Download PDF
ads:
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Dr. Francisco de Paula Ferreira de Rezende em 1874, aos
42 anos de idade
ads:
COLEÇÃO DOCUMENTOS BRASILEIROS
DIRIGIDA POR OCTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA
45
FRANCISCO DE PAULA FERREIRA DE REZENDE
MINHAS
RECORDAÇÕES
Prefácio de OCTÁVIO
TARQUINIO DE SOUSA
Com 7 ilustrações
BELO HORIZONTE
1987
CAPA: Anselmo Guimarães
Desenho do Cassarão: Maurílio Villamarim
FICHA CATALOGRAFICA
Rezende, Francisco de Paula Ferreira de, 1832-1893.
R467 Minhas recordações.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1987.
477 p. ilust. (Documentos brasileiros, 45)
1. Rezende, Francisco de Paula Ferreira de,
1832 — 1893. I. Título.
CDD: 923.2
Imprensa Oficial de Minas Gerais Av.
Augusto de Lima, 270 30190 — Belo
Horizonte — MG
MEMÓRIAS — MIRAGEM DE UMA CULTURA
Os anos se foram. Anos e anos passados. 1887. Data inicio de
MINHAS RECORDAÇÕES, de Francisco de Paula Ferreira de Rezende. É
uma procura pela Cultura-raíz de nosso povo de Minas; os costumes e toda
história da gente de Campanha, no século X/X. O autor soube, como
poucos, descobrir e revitalizar verdades essenciais de uma época,
construindo uma literatura permanente, viva, veraz e conclusiva. Francisco
de Paula mergulha fundo nos costumes e nas vidas de homens que sempre
procuraram um encontro com seus destinos.
Retrato das angústias e alegrias humanas, "Minhas Recordações" é
um livro imprescindível e necessário. Certamente esta foi a razão pela
qual, de imediato, a Secretaria de Estado da Cultura acolheu a sugestão do
Prefeito Ronald Ferreira para reeditar a obra de Francisco de Paula
Ferreira de Rezende. Não se prestou um serviço só a Campanha. Prestou-
se uma homenagem a Minas e à literatura brasileira.
Belo Horizonte, dezembro de 1986
Jota Dangelo SECRETÁRIO
DE ESTADO DA CULTURA
APRESENTAÇÃO
Acolhendo honrosa convocação do Exmo. Sr. Prefeito Municipal Ronald
Ferreira, cabe-me apresentar a reedição da notável obra literária, histórica e aulo-
biográfica de Francisco de Paula Ferreira de Rezende, reedição autorizada pelo
Exmo. sr. Secretário de Estado da Cultura, Deputado Delfim Ribeiro.
Esta autorização foi concedida após ingentes esforços do nosso ilustre e
dinâmico Chefe do Executivo Municipal — sr. Ronald Ferreira que, comparecendo
aos encontros culturais do Sul de Minas e realizando várias viagens a Belo
Horizonte para gestões junto aos órgãos competentes do Governo do Estado,
obteve, afinal, a realização do seu objetivo, consubstanciado pelo ofício do sr.
Secretário de Estado da Cultura, datado de 21 do corrente mês de outubro.
Essa reedição se fazia necessária já há muito tempo e, mais agora, que se
aproxima a comemoração dos 250 anos do Encontro Oficial do Governo da
Capitania de Minas Gerais com o Núcleo Populacional, hoje cidade da Campanha.
Era, aliás, pressentido esse encontro, pelos rumores que chegavam a
Mariana, a respeito da existência de mineração de ouro no Vale do Rio Verde, ou
seja, todo o Sul de Minas, região que estava mais próxima da então Vila de São
João d'el Rei, uma das sete então existentes na capitania que, nessa época, não
contava com nenhuma vila no Sul de Minas.
Auspicioso, pois, o lançamento desta reedição de uma obra de tal vulto
para comemorar os 250 anos da cultura campanhense.
Na verdade, como o que foi dito: a) no prefácio de Octávio Tarquínio
de Souza; e b) na própria advertência do autor da obra, ora reeditada o
trabalho de Ferreira de Rezende, por ele deixado, metodicamente organizado, em
55 capítulos, lodos com ementas muito elucidativas e editado há quase 50 anos,
depois de sua morte, graças ao carinho
de seus filhos, notadamente de Cássio, é um trabalho de alto e decisivo
valor para apreciação dos fatos de nossa História Geral do Brasil e
particularmente de Minas Gerais.
Nesse desenrolar de informações, onde sempre aparece em destaque
a Campanha, o leitor encontrará, por certo, as razões, os motivos que nos
leva a ler essa obra, em alentado volume de quatrocentas e cinquenta e
uma páginas, como um dos pontos mais altos das comemorações
programadas para festejarmos, condignamente, os 250 anos do
conhecimento oficial que a capitania de Minas Gerais teve desse encontro
com a cultura campanhense.
E esta cultura, que sempre esteve na vanguarda e se espraiou por
todo o território Sul Mineiro e Nacional, agora retoma um ritmo acelerado,
com a inauguração do "Circuito das Aguas", em 12 de setembro de 1966,
acontecimento que veio libertar a Campanha de um "ilhamento geográfico"
de mais de sessenta anos.
Foi a Campanha sede do primeiro noviciado da Província Italiana
dos Jesuítas no Brasil; do segundo colégio de S10N instalado neste país e a
primeira sede dos Irmãos Canadenses em nossa pátria.
Decorridos apenas 19 anos da inauguração do "Circuito das Aguas"
e da libertação da Campanha do seu "ilhamento geográfico", a Invicta
Civilas reergue-se como matriz de cultura que sempre foi contando agora
com uma Academia de Letras, uma Fundação Cultural, mantenedora de
uma Faculdade de Filosofia; de um Instituto Histórico e Geográfico e,
ainda, do SERPHAM, órgão municipal para a defesa do nosso Patrimônio
Cultural, Histórico e Artístico da cidade.
Como demonstração desse espraiamento cultural da Campanha,
permito-me transcrever aqui o que está à página 52 da obra ora reeditada.
É um destaque do trecho em que Ferreira de Rezende faz alusão do
casamento de seus pais Tenente Coronel Valério Ribeiro de Rezende com
dona Francisca de Paula Ferreira de Rezende, que diz: "E dos oito filhos
que ambos tiveram, seis morreram em baixa idade, e os únicos
sobreviventes fui eu e meu irmão Valério Ribeiro de Rezende, que tem se
conservado solteiro e que depois de ter muito tempo morado comigo acha-
se atualmente estabelecido na Leopoldina com um colégio de instrução
secundária."
Eis aí a presença da Campanha na Leopoldina, zona da Maia e
cidade que, sem favor, pode ser, senão a primeira, pelo menos uma das
primeiras matrizes culturais daquela Zona.
Ao terminar quero chamar a atenção do leitor para uma fotografia
da casa em que nasceu Ferreira de Rezende.
Esta fotografia mostra a casa como era antes de sofrer algumas
alterações e a fachada que aparece, dá para a antiga rua Direita, hoje
Saturnino de Oliveira, percebe-se seis sacadas que emolduram o pavimento
superior. Mas o que torna a casa um majestoso edifício são as nove
sacadas que dão para o antigo Largo das Dores, hoje Praça dr. Jefferson
de Oliveira. E há nesse grandioso solar um equilíbrio arquitetônico, pois a
fachada lateral, representa dois terços da fachada principal.
Assim é a Campanha da Princesa, com seus 250 anos de Cultura e
Civilização e cidade mater de 151 comunas que integram o Sul de Minas.
Desembargador Manoel Maria Paiva de Vilhena
MINHAS RECORDAÇÕES
Apresentação da reedição do livro de Francisco de Paula Ferreira
de Rezende, com o título acima, publicado pela editora José Olímpio em
1944.
A reedição é uma homenagem à histórica e aprazível Campanha,
nas celebrações dos seus 250 anos de cultura.
Apresentação feita pelo Desembargador Manoel Maria Paiva de
Vilhena, Presidente da Fundação Cultural Campanha da Princesa,
entidade mantenedora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa
Senhora de Sion (FAFI SION), Presidente do Instituto Histórico e
Geográfico da Campanha "Casa Alfredo Valladão" e membro do
SERPHAM (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Municipal).
COLEÇÃO DOCUMENTOS BRASILEIROS
Dirigida por GILBERTO FREYRE até o vol. 18 Por OTÁVIO
TARQUINIO DE SOUSA a partir do vol. 19
1 — Sérgio Buarque de Holanda — RAÍZES DO BRASIL — Prefácio
de Gilberto Freyre.
2 — Oliveira Lima — MEMÓRIAS — (Estas minhas reminis-
ciências... Prefácio de Gilberto Freyre Com 9 ils. fora do
texto.
3 _ Otávio Tarquínio de Sousa — BERNARDO PEREIRA DE
VASCONCELOS E SEU TEMPO — Com 6 ils. fora do texto.
4, _ Gilberto Freyre — NORDESTE — Aspectos da influência da cana sobre a
vida e a paisagem do Nordeste do Brasil — Ilustrações e mapas de M.
Bandeira e vários retratos de aristocratas do canavial.
5 — Djacir Menezes — O OUTRO NORDESTE — Formação social do
Nordeste — Vários mapas, gráficos e fotografias.
Alberto Rangel — NO ROLAR DO TEMPO... — Opiniões e
testemunhos respigados no arquivo do Orsay, Paris — Com 8 ils. fora
do texto.
— Afonso Arinos de Melo Franco — O ÍNDIO BRASILEIRO E A
REVOLUÇÃO FRANCESA — As origens brasileiras da teoria da
bondade natural — Com 15 ilustrações.
8 — Luís Viana Filho — A SABINADA — A República de 1837.
9 — Alcântara Machado — BRAS1LIO MACHADO (1848-1919).
Com um retrato de Brasilio Machado.
10 — Olívio Montenegro — O ROMANCE BRASILEIRO — As
suas origens e tendências — Prefácio de Gilberto Freyre.
11 — Júlio Belo — MEMÓRIAS DE UM SENHOR DE ENGENHO
Prefácios de Gilberto Freyre e José Lins do Rego
Com 15 ilustrações fora do texto.
12 — André Rebouças — DIÁRIO E NOTAS AUTOBIOGRÁFICAS
Texto coligido e anotado por Ana Flora e Inácio José
Veríssimo — Com 7 ilustrações fora do texto.
13 — Elói Pontes — A VIDA DRAMÁTICA DE EUCLIDES DA
CUNHA — Com 40 ilustrações fora do texto.
14 — Lindolfo Color — GARIBALDI E A GUERRA DOS FAR-
RAPOS — Com 18 ilustrações, mapas e tricromias.
15 —• Cap. Álvaro Ferraz e Dr. Andrade Lima Júnior — A MOR-
FOLOGIA DO HOMEM DO NORDESTE — (Estudo bioli-pológico)
Trabalho da Diretoria de Educação Física da Brigada Militar de
Pernambuco — Prefácio de W. Be-rardinelli — Com 43 gráficos, 36
retratos, 8 sectogramas a cores, 12 quadros, tabelas e escalas, e 1 mapa.
* 16 — Euclides da Cunha — CANUDOS — Diário de uma expe-
dição — Introdução de Gilberto Freyre — Edição ilustrada.
17 — Euclides da Cunha — PERU VERSUS BOLÍVIA — 2.*
edição, com 2 mapas e um estudo de Oliveira Lima.
18 — Otávio Tarquínio de Sousa — HISTÓRIA DE DOIS GOLPES
DE ESTADO — Com 8 ilustrações fora do texto.
19 — José Carlos de Macedo Soares — FRONTEIRAS DO BRA-
SIL NO REGIME COLONIAL — Ilustrações e mapas de J. Wasth
Rodrigues.
20 — Inácio José Veríssimo — ANDRÉ REBOUÇAS ATRAVÉS
DE SUA AUTOBIOGRAFIA — Prefácio de Otávio Tarquínio de Sousa
— Com 9 ilustrações fora do texto.
21 — Elói Pontes — A VIDA CONTRADITÓRIA DE MACHADO
DE ASSIS.
22 — Pedro Calmon — HISTÓRIA DA CASA DA TORRE
Uma dinastia de pioneiros — Com 14 ilustrações fora do texto.
* 23 — Nelson Werneck Sodré — HISTÓRIA DA LITERATURA
BRASILEIRA — Seus fundamentos econômicos — 2.' edição,. revista e
aumentada.
24 — Sílvio Romero — HISTÓRIA DA LITERATURA BRASI-
LEIRA — 3.* edição, em 5 vols., organizada e prefaciada por Nelson
Romero.
25 — Cassiano Ricardo — MARCHA PARA OESTE — A influên-
cia da "Bandeira" na formação social e política do Brasil
— Ilustrações de Lívio Abramo — 2.» edição, em 2 vols.,
acrescida de vários capítulos inéditos.
26 — Gilberto Freyre — UM ENGENHEIRO FRANCÊS NO BRA-
SIL — Prefácio do Prof. Arbousse-Bastide — Com 19 ilustrações fora
do texto.
27 — Almir de Andrade — FORMAÇÃO DA SOCIOLOGIA BRA-
SILEIRA — I — OS PRIMEIROS ESTUDOS SOCIAIS NO BRASIL
Séculos 16, 17 e 18 — Com 20 ilustrações e mapas fora do texto.
28 — Gilberto Freyre — O MUNDO QUE O PORTUGUÊS CRIOU
Aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil
com Portugal e as colônias portuguesas — Prefácio de
Antônio Sérgio.
29 — Gilberto Freyre — REGIÃO E TRADIÇÃO — Prefácio de
José Lins do Rego — Ilustrações de Cícero Dias.
30 -- Sílvio Rabelo — FARIAS BRITO ou UMA AVENTURA DO
ESPIRITO.
14
31 —• Nelson Werneck Sodré — OESTE — Ensaio sobre a gran-
de propriedade pastoril.
32 — Raul do Rio Branco — REMINISCÊNCIAS DO BARÃO DO
RIO BRANCO — Com 9 ilustrações fora do texto.
33 — Cel. Mário Travassos — INTRODUÇÃO À GEOGRAFIA
DAS COMUNICAÇÕES BRASILEIRAS — Prefácio de Gilberto
Freyre — Com 6 mapas.
34 — Gilberto Freyre — GUIA PRATICO, HISTÓRICO E SEN-
TIMENTAL DA CIDADE DO RECIFE — Ilustrações de Luís
Jardim.
35 — Otávio Tarquinio de Sousa — DIOGO Antônio FEIJÓ
(1784-1843).
36 — Gilberto Freyre — CASA-GRANDE & SENZALA — 4ª edi-
ção, definitiva — 2 vols. ilustrados por Santa Rosa.
37 — Lúcia Miguel-Pereira — A VIDA DE GONÇALVES DIAS
Acompanhado do DIÁRIO INÉDITO DA VIAGEM DE
GONÇALVES DIAS AO RIO NEGRO.
38 — Elói Pontes — A VIDA EXUBERANTE DE OLAVO BILAC
2 vols.
39 — Vivaldo Coaracy — O RIO DE JANEIRO NO SÉCULO
XVII.
40 — João Mangabeira — RUI — O ESTADISTA DA REPÚBLICA.
41 — Gilberto Freyre — PERFIL DE EUCLIDES E OUTROS
PERFIS — Com desenhos de Santa Rosa e Portinari.
42 — Aires da Mata Machado Filho — O NEGRO E O GARIMPO
EM MINAS GERAIS.
43 — Sílvio Rabelo — ITINERÁRIO DE SÍLVIO ROMERO.
44 _ Gilberto Freyre — OLINDA — 2.' GUIA PRÁTICO, HIS-
TÓRICO E SENTIMENTAL DE CIDADE BRASILEIRA — 2.ª
ed., ilustrada por Luis Jardim.
45 — Francisco de Paula Ferreira de Rezende — MINHAS RE-
CORDAÇÕES.
46 — Aluísio de Almeida — A REVOLUÇÃO LIBERAL DE 1842.
47 — Nelson Werneck Sodré — FORMAÇÃO DA SOCIEDADE
BRASILEIRA.
48 — Luís Delgado — RUI BARBOSA (Tentativa de compreen-
são e de síntese).
49 Oliveira Lima — D. JOÃO VI NO BRASIL — 2.' ed., 3
vols. Prefácio de Octávio Tarquinio de Sousa — Vinhetas de Luís
Jardim. .
50 — Álvaro Lins — RIO BRANCO.
51 — Luís da Câmara Cascudo — GEOGRAFIA DOS MITOS
BRASILEIROS.
52 — Joaquim Ribeiro — FOLCLORE DOS BANDEIRANTES.
Gilberto Freyre — ORDEM E PROGRESSO.
Gilberto Freyre — PESSOAS, COISAS E ANIMAIS.
Gilberto Freyre — SOBRADOS E MUCAMBOS — 2.' ed. revista.
Conselheiro João Alfredo — MEMÓRIAS POLÍTICAS (0 Ministério da
Abolição e o epílogo do Império) — Texto organizado e comentado
por Pedro Moniz de Aragão.
Augusto Meyer — BIOGRAFIA PÓSTUMA DE MACHADO DE
ASSIS (História de sua interpretação).
Álvaro Lins — GILBERTO E EUCLIDES: DUAS DESCO
BERTAS DO BRASIL. )
Oliveira Viana — RAÇA E CULTURA.
Almir de Andrade — FORMAÇÃO DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA
— II — OS ÚLTIMOS ESTUDOS SOCIAIS NO BRASIL — Séculos
19 e 20.
Sílvio Romero — ESTUDOS SOCIAIS.
Sílvio Romero — O FOLCLORE NO BRASIL.
Luís Viana Filho — O NEGRO NA BAÍA.
Tristão de Athayde — PRIMEIROS ESTUDOS.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA — Sob a direção de
ÁLVARO LINS:
l.o vol. — Gilberto Freyre — O AMBIENTE SOCIOLÓGICO, O
MEIO FÍSICO E OS ELEMENTOS ÉTNICOS.
2º vol. — Barreto Filho — O PENSAMENTO FILOSÓFICO E
CIENTÍFICO.
3.º vol. — Abgar Renault — EVOLUÇÃO DA LÍNGUA LITERÁRIA.
4.º vol. — Otto Maria Carpeaux — INFLUÊNCIAS E CORRENTES
ESTRANGEIRAS.
5.º vol. — Fidelino de Figueiredo — A LITERATURA PORTUGUESA
NO BRASIL.
6.º vol. — Luís da Câmara Cascudo — LITERATURA ORAL.
7.º vol. — Sérgio Buarque de Holanda — PERÍODO COLONIAL.
8.º vol. — Roberto Alvim Correia — DE 1830 A 1870 (Poesia).
9.º vol. — Astrojildo Pereira — DE 1830 A 1870 (Prosa de ficção).
10ºvol. — Octávio Tarquinio de Sousa — DE 1830 A
1870 (Prosa: história, crítica, ensaio, eloquência,
jornalismo, etc.) .
11ºvol. — Aurélio Buarque de Holanda — DE 1870 A
1920 (Poesia).
12ºvol. — Lúccia Miguel-Pereira — DE 1870 A 1920
(Prosa de ficção).
13ºvol. — Tristão de Athayde — DE 1870 A 1920 (Prosa:
história, crítica, ensaio, eloquência, jornalismo,
etc.).
14ºvol. — Álvaro Lins — LITERATURA CONTEMPORÂ-
NEA (De 1920 aos nossos dias).
15ºvol. — BIBLIOGRAFIA E ÍNDICES.
MINHAS RECORDAÇÕES
Dedicadas a meus filhos.
ÍNDICE
Prefácio.......................................................................................................... 31
Advertência ................................................................................................... 35
PARTE PRIMEIRA
CAPITULO I
A província de Minas Gerais. A excelência de seu clima,
a beleza de seus panoramas e a riqueza de seu solo. O
grande amor à terra natal e o orgulho de ser mineiro.
Os paulistas que, à cata de ouro, devassaram quase todo
o continente, parece que não enveredaram pelo Sul de Minas,
onde o ouro, entretanto, abundava à flor da terra. A
fundação da Cidade da Campanha. O documento que refere
a sua história e fixa a sua data. O grande papel que a
Campanha representou na civilização e desenvolvimento do
vale do Sapucaí. Sua grandeza e decadência....................................... 39
CAPITULO II
A genealogia da família. O nascimento do autor e a ingénua decepção da
progenitora. Um menino franzino e um homem hipocondríaco. De oito irmãos,
dois apenas sobreviveram 50
CAPITULO III
Ajudar a missa e representar na ópera era uma das maiores
ambições dos rapazes ou estudantes de certa ordem. Anjos
de procissão. Três casamentos ao mesmo tempo. Porque
é que as nossas princesas não se casaram no mesmo dia.
Preconceito sem fundamento. A pompa dos casamentos e
batisados. A remuneração dos padres era generosa, mas a
dos médicos e advogados era mesquinha. Os médicos não
tinham doentes, e os advogados que tinham muitas tretas,
mas poucas letras, eram vistos com maus olhos............................... 55
CAPÍTULO IV
Uma reminiscência muito antiga da primeira infância. O
fato, a princípio incompreensível, mais tarde se esclareceu.
Sua relação com a insurreição mineira de 1833. Dos baixos
de uma casa para os píncaros da política. O numa Popílio
do Brasil: Bernardo Pereira de Vasconcelos. O elogio deste
grande estadista. A atitude da província em face daquela
insurreição e uma anedota histórica pouco conhecida ou
ignorada ......................................................................................................... 60
CAPÍTULO V
As recordações que mais vivas se conservaram na memória
infantil do autor, foram as da vida política do País. A
explicação do fato pela influência do meio em que viveu.
As ideias liberais inflamavam os corações. O entusiasmo
cívico era grande e as comemorações públicas agitavam as
populações. Alvoradas e luminárias. O primeiro grande
homem que o autor conheceu foi Evaristo da Veiga. O
segundo foi o padre Diogo Antônio Feijó. Feijó se hospedou
na casa do avô do autor e, na mesa, não dispensava nunca
a compoteira de melado............................................................................ 67
CAPÍTULO VI
O enforcamento de um condenado. Incidentes da execução.
Comentários do povo. Falecimento da bisavó do autor.
Durante a noite, os presos fogem da cadeia. As circunstâncias
da fuga levantam suspeitas. A calúnia entra em campo e a
sátira popular incrimina o carcereiro ..................................................... 76
CAPÍTULO VII
Casamento de D. Bárbara Alexandrina Ferreira, tia do autor,
com o tenente coronel Martiniano da Silva Beis Brandão,
sobrinho de Marília de Dirceu e auxiliar do coletor. A
história do casamento. Como se fazia então a coleta dos
impostos e como era andejo, enfadonho e trabalhoso o lugar
de coletor. Os Bezendes e os Brandões como esposos. Os
casamentos naqueles tempos. A vida, menos intensiva, se
concentrava na religião e no amor. Aos vinte e cinco anos,
os homens de então ainda eram filhos famílias. Hoje, aos
vinte e um anos, um moço já é um sábio e um velho ao
mesmo tempo ................................................................................................ 82
CAPITULO VIII
A viagem à Corte, em 1839. Contentamento e temores. A
descrição da viagem. 0 perigo dos salteadores e medidas
para evitá-lo. A passagem pela Vila de Rezende. A sua
reminiscência dá lugar a comentários e conceitos sobre
a família real. Pedro I não tinha o mínimo sentimento
de dignidade conjugal e D. Miguel era um verdadeiro
monstro.......................................................................................................... 91
CAPITULO IX
A estadia na Corte. Como e por que se conheceu o médico
mais notável daquele tempo. 0 Conselheiro Perdigão Ma
lheiros: seu gênio e suas excentricidades. Visitas e passeios.
0 Cicerone não podia ser melhor. Vultos políticos e altos
personagens que foram vistos e ficaram conhecidos. A
parada militar de 7 de setembro. Ao ver o pequeno impe
rador, o autor sentiu uma grande inveja. A ida ao teatro:
João Caetano, a Estela e a Ludovina. Visita à Câmara dos
Deputados. Um velhinho baixo e muito teso fazia um
discurso, soltando perdigotos. Quem era esse velhinho. Na
Escola Militar. 0 futuro general Pederneiras jogava florete.
A crisma do autor no Convento de Santo Antônio. Regresso
à Campanha.................................................................................................... 98
CAPITULO X
0 autor narra à preta Margarida as peripécias da sua viagem à Corte e a preta
Margarida o escuta maravilhada. Quem era a preta Margarida. As histórias que ela
contava e as muitas coisas que ensinava. Para bem se conhecer a humanidade, não
basta conhecer-lhe a casca. Um pouco de filosofia e da alta história é necessário;
mas não se esqueça o povo, os preconceitos e até mesmo as superstições absurdas.
O Saci-perêrê e a mula-sem-cabeça. Bruxas e lobisomens. Os doentes de enxaqueca
e os lobisomens. Uma lenda curiosa sobre a Campanha e como é que a preta
Margarida explicava as diferenças de cor na espécie humana 109
CAPÍTULO XI
O ano de 1840 é vazio de acontecimentos pessoais. O pai
do autor tenta, sem resultado, a exploração do ouro. Chega
à Campanha a notícia da maioridade do Imperador. Os
liberais se regosijam e promovem festejos. Há Te Deum
na Matriz. O templo regurgita de povo e de oficiais da
Guarda Nacional. Há padres que também se fardam. A quem
se deve, em grande parte, o Brasil que hoje existe. O clero
daquele tempo e o de hoje. Ilustração, virtude e patrio
tismo. A Pátria em primeiro plano. Depois o papa. Agora
é o contrário: primeiro o papa, depois a Pátria....................................... 119
CAPITULO XII
As eleições no Brasil. Pedro I nunca venceu as eleições. Durante a Regência, era a
Câmara dos Deputados que governava. Depois da maioridade veio a compressão de
cima para baixo. A liberdade do voto desaparece. As últimas eleições sérias foram
as de 1840. Na Campanha a luta foi muito renhida. Sobressalto dos conservadores e
decepção dos liberais. Bernardo Jacinto da Veiga que era conservador, introduz na
Campanha o sistema das tricas eleitorais e salva a situação. O ódio dos liberais
e o apelido de "Pato" . . 127
CAPITULO XIII
O pai do autor adquire a fazenda do Coroado. A vida na
fazenda é monótona e insípida, mas, na cidade, é alegre
e movimentada. A política entra em efervescência. Caem
os liberais e sobem os conservadores. São estes agora que
exultam de alegria e organizam os festejos. A cidade se
enche de povo. As festas se sucedem durante três dias,
nas ruas e nas igrejas. Descrição das festas. Bandas de
música e foguetório. Os encamisados. O curro e as ca
valhadas. O jogo das cabeças e da argolinha. O teatro
improvisado e o bobo do teatro................................................................. 134
CAPITULO XIV
A revolução de 1842. Incêndio repentino no centro da
província. O incêndio se propaga em torno de si mesmo
e atira fagulhas para muito longe. Quando as fagulhas
começam a arder, o foco central está quase extinto. Uma
série de calamidades. A ruína das fortunas e o êxodo dos
habitantes. José Feliciano é escolhido para chefe do mo
vimento. Monarquista de coração e homem muito rico,
José Feliciano nunca desejou o recurso às armas. Os chefes
mais prudentes do partido pensam do mesmo modo. A
revolução é dominada, mas os mineiros mantiveram, com
honra, os compromissos assumidos.......................................................... 142
CAPITULO XV
A Revolução de 1842 no Sul de Minas. Os liberais se preparam para a luta e se
apoderam de Baependí. Reação do governo. A cidade é retomada. O desânimo
invade as fileiras dos revolucionários e estes se dispersam. Na Campanha, o
delegado de polícia é um português ignorante e violento. Atos de arbitrariedade e
episódios grotescos .. .. 151
CAPITULO XVI
O pai do autor toma parte na revolução. Sua família se
retira da Campanha. Prisão, processo e julgamento dos
revolucionários. Episódios do processo. Abrandamento dos
ódios políticos e a nobreza do caráter mineiro. Teófilo
Ottoni é absolvido e, quando penetra no recinto do tribunal,
os jurados se levantam para recebê-lo................................................... 158
CAPÍTULO XVII
O autor é acometido de uma moléstia grave. 0 seu estado se torna melindroso. O
carcereiro se condói das aflições de seu pai e permite que este visite o filho durante
a noite. Regresso à cadeia. Absolvição definitiva. Começam os embaraços
financeiros. Retrato físico e moral do avô do autor 166
CAPITULO XVIII
A memória do autor. Inaptidão para a escrita e para tra
balhos manuais. Na escola pública da Campanha. Os pro
fessores e os alunos de primeiras letras. A palmatória e o
vai de roda. Os exames do fim do ano. 0 autor é aprovado.
Os companheiros da turma: Evaristo Ferreira da Veiga,
Joaquim Nicolau Roiz Gama, Inácio Cândido Xavier de
Araújo e os três Florianos. Algumas palavras sobre os
mesmos e a história triste dos três últimos. O vigário
colado de Três Pontas e o anjo de caridade e humildade
que foi D. Viçoso. O enjeitado de S. Gonçalo de Supacaí
e o milagre da caridade ................................................................................. 172
CAPITULO XIX
Vista geral sobre o estado social em 1842. As raças do
Brasil e uma profecia do autor. No começo do século ainda
dominava o sentimento aristocrático. As classes não se mis
turavam e tinha cada uma a sua vida própria. Igrejas,
irmandades e festas religiosas na Campanha.................................................. 183
CAPÍTULO XX
Divertimentos profanos na Campanha. As dansas da cidade
e as danças do campo. Usos e costumes....................................................... 194
CAPITULO XXI
O teatro e os circos de cavalinhos. Chiarini e Candiani.
Os divertimentos infantis. O ensino público. Era um mal
ensinar ãs meninas. Nem modas, nem modistas. Como se
vestiam os homens e as mulheres. 0 lenço e a boceta de
tabaco. O rapé desbanca o tabaco e o charuto desbanca
o rapé. 0 luto de hoje e o luto daquele tempo. As ca
valeiras e os selins. 0 pagem e os capotes de viagem.
Como se faziam estas últimas. As botas dos mineiros con
feriam imunidades e, pelo fardamento do pagem e objetos
de prata que trazia, se avaliava a importância do viajante.
Ferraduras de prata que ficavam pelo caminho. A iluminação
das casas e o luxuoso candieiro de latão................................... 205
CAPÍTULO XXII
O que era naquele tempo a instrução pública na província.
Na Campanha havia uma cadeira de latim. Estudantes que
vinham de longe para aprender essa matéria. Joaquim
Delfino e seu irmão Antônio Máximo. O primeiro representa,
num teatro improvisado, o papel de general russo. Joaquim
Delfino e Afonso Celso. Sua vertiginosa carreira política.
O professor de latim, na Campanha, era o Padre Manuel
João Damasceno. Seu caráter e seus conhecimentos. Ele
introduz na Campanha a cultura das abelhas e a homeo
patia. O seu método de ensino. A não ser o latim, nada
mais se ensinava na Campanha.......................................................... 219
CAPÍTULO XXIII
O marasmo na Campanha após a revolução de 1842. Um
motivo sem nenhuma importância derruba os liberais em
1841. Três anos depois, um motivo semelhante derruba
os conservadores. Só o diabo queira governar com crianças.
A frase parece verdadeira. Honório Hermeto teria sido um
republicano encoberto. Sua estadia na Campanha em 1852.
O ministério da Conciliação. A conciliação dos partidos foi
e há de ser sempre uma utopia. A ideia de Honório foi
também um erro político. As eleições gerais e municipais
de 1844. Tricas, tumultos e espertizas .............................................. 228
CAPÍTULO XXIV
O tenente Manuel Corsino, tio do autor, comparava-se ao
primeiro Visconde de Caravelas e era um grande contador
de casos. A história de Januário Garcia — o sete orelhas.
O sapateiro Bandarra e as suas profecias. A Irmandade do
Carmo na Campanha. A fé em Nossa Senhora e o poder
da imaginação. O tenente Manuel Corsino marca o dia e a
hora de sua morte............................................................................. 234
CAPITULO XXV
Em 1847, o autor faz um novo, mas curto passeio à Corte. Últimos esforços
da antiga hombridade nacional contra o suave e doce absolutismo. A grande
província de Minas Gerais dos outros tempos já quase que não existia. D.
Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, visita a Campanha. As grandes
festas que, então, se realizaram. D. Viçoso, que era um verdadeiro santo,
gostava muito de música e, nas horas vagas, tocava piano. Uma cena en-
ternecedora. D. Viçoso deixou muitos discípulos e esta foi uma das suas
glórias. 0 bispo de Diamantina e o Arcebispo da Baía foram seus discípulos.
Não menos virtuoso do que estes, foi o cônego João Gonçalves de Oliveira
Ribeiro, vigário de Barbacena. 0 cônego João Gonçalves também gostava
de música e tocava piano, mas, em vez das cantatas do Bispo, preferia as
modinhas e os lundus . .
CAPITULO XXVI
Na fazenda do Saco. 0 primeiro engenho deitado e de
ferro que se fez naquela zona. A fazenda do Saco era
fatídica. A crise da lavoura. Falece o pai do autor. A
venda da fazenda. Regresso à Campanha. A orfandade e a
luta pela vida. 0 Visconde de Jaguarí. 0 autor tinha
que se formar. Por que não quis ser médico. Sua partida
para São Paulo em 1849. Inicia-se uma vida nova.......................................
PARTE SEGUNDA
CAPITULO XXVII
0 autor em São Paulo. A pensão do Bressane. Quem era
esse Bressane. Da rua do Rosário para a Chácara dos
Ingleses. A celebridade desta chácara. O autor faz os seus
primeiros preparatórios. Lentes e examinadores. Dr. Manuel
Joaquim do Amaral Gurgel. Dr. Emílio Paulo. Padre Ma
mede. O Conselheiro Antônio Joaquim Ribas e o cônego
Fidelis. A caderneta do cônego Fidelis. Comentários e
observações ...................................................................................................
CAPITULO XXVIII
0 autor termina os preparatórios. O professor de filosofia e o seu substituto:
Dr. Manuel José Chaves e o cônego Joaquim do Monte Carmelo. O cônego
escreveu contra os bispos na questão religiosa e, com o Cabido, rebelou-se
contra o seu próprio bispo, D. Antônio de Melo. 0 autor abandona a
companhia do Bressane e vai morar na rua da Palha. Evaristo Ferreira da
Veiga, Antônio Simplício de Sales e Bernardo Jacinto da Veiga. A rua da
Palha era uma rua de estudantes. José de Alencar morava nessa rua.
Feliciano Coelho Duarte, estudante do 5º ano e irmão do
Conselheiro Lima Duarte, também morava ai. A sua morte
abalou a Pauliceia. Laura, a causadora de seu suicídio, era
a maior beleza de São Paulo. Muitos a amaram. O Con
selheiro João Silveira de Sousa dedicou-lhe a mais célebre
de suas poesias. Um grande amor e uma indignação ainda
maior. Laura, que só ambicionava riqueza, morreu na
miséria............................................................................................................ 263
CAPÍTULO XXIX
A república da rua da Palha muda de sede. A rua dos
Bambus era uma rua acadêmica. 0 tenente coronel Nenê
morava aí. Por causa de uma novena. A briga com os
estudantes. O coronel barra a entrada em sua casa ao aca
dêmico Dario Rafael Calado e o acadêmico perde a tra
montana. Os calouros e as vaias. O conselheiro Paulino
de Sousa passa momentos amargos. Os Drs. Manuel Joaquim
e José Maria de Avelar Brotero eram os lentes do primeiro
ano. Os exames do fim do ano e as férias na Campanha.
Regresso a São Paulo e primeiros acessos de hipocondria.
O padre Anacleto José Ribeiro Coutinho. Chega de Ouro
Preto um bichinho ainda muito novo e espigado. Quem
era esse bichinho........................................................................................... 271
CAPITULO XXX
0 autor deixa a república e vai morar numa casinha,
situada no caminho do Ó, em companhia de um primo.
Uma visita inesperada e os apuros por que passou. Da
casinha para uma chácara. Os lentes do 3.º ano: Dr.
Manuel Dias de Toledo, o Bavout; Padre Vicente Pires da
Mota e Dr. Prudêncio Geraldo Tavares da Veiga Cabral.
Apreciações, anedotas e comentários.......................................................... 278
CAPÍTULO XXXI
A sociedade literária: Ensaio Filosófico. Primeiros escritos
do autor. 0 senador Manuel Francisco Correia ............................... 286
CAPITULO XXXII
No Colégio João Carlos. Professor de inglês e de latim. Os benefícios da nova
atividade. A mesada dos estudantes. O aluguel das casas e os preços dos gêneros
alimentícios. O autor nasceu para ser econômico, prudente e amante da paz e da
ordem. 0 Barão de Ramalho e o Dr. Clemente Falcão de Oliveira. Apreciações,
fatos e comentários .. .. 291
CAPITULO XXXIII
Os lentes substitutos da Academia em 1849: João Crispiniano Soares.
Joaquim Inácio Ramalho, Francisco Maria da Silva
Furtado de Mendonça e João da Silva Carrão. A reforma
do ensino em 1854. Criação das cadeiras de Direito romano
e Direito Administrativo. Novos lentes e novos substitutos:
Silveira da Mota, Gabriel José Roiz dos Santos, Martim
Francisco Ribeiro de Andrade e Antônio Joaquim Ribas.
A contradansa parlamentar se reflete na Academia. O Vis
conde de Caravelas. Apreciações, fatos e comentários.
Relação dos bacharéis de 1855 ...................................................................... 299
CAPITULO XXXIV
Ao iniciar o curso, a turma do autor se compunha de 48
estudantes. Os que ficaram pelo caminho. A turma foi uma
das melhores. Apreciações, fatos c comentários. Felisberto
Pereira da Silva, Henrique D'Avila, Antônio Simplício de
Sales, Evaristo Ferreira da Veiga, Américo Brasiliense de
Almeida Melo, Frederico Augusto de Almeida, Cândido
Gomes de Vasconcelos Guanabara, Paulino de Sousa, Ferreira
Viana, Caetano José de Andrade Pinto e Manuel da Silva
Mafra.............................................................................................................. 307
CAPÍTULO XXXV
Os melhores poetas de São Paulo no tempo do autor. Alvares de Azevedo,
Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães. Apreciações, fatos e comentários. Silveira
de Sousa e Francisco Otaviano, José de Alencar e Quintino Bocaiuva . . . .
319
PARTE TERCEIRA
CAPITULO XXXVI
O autor, já bacharel, regressa à Campanha. Advogado sem
causas. As eleições por distritos em 1856. Os benefícios
do novo sistema. Fatos e comentários.......................................................... 331
CAPITULO XXXVII
As três famílias de Lopes da Campanha: Ferreiras Lopes
ou Lopes Mansos. Os Lopes de Araújo ou Lopes Bravos,
e os Lopes de Figueiredo. O Barão de Parima e o cônego
Antônio Felipe. A história interessante desse cônego e o
papel que representou na eleição de 1856........................................... 335
CAPÍTULO XXXVIII
A lei dos círculos, as eleições gerais de 1856 e o cônego
Antônio Felipe. A história complicada dessa eleição na
Campanha. O Marquês de Paraná apresenta a candidatura
do filho. O susto do cônego e a morte do Marquês. A
pressão continua. 0 cônego vence a eleição e entra para
a Cadeia Velha. Sua vida social na Corte. Boas amizades.
Morte por febre amarela. Eleições provinciais. A candidatura
do autor. A derrota nas urnas. Decepção.............................................. 344
CAPITULO XXXIX
Em Queluz de Minas. A cidade de Queluz. Suas freguesias.
Sua indústria. Sua agricultura. Suas riquezas naturais. A
Igreja de Matozinhos e as estátuas do Aleijadinho. Usos e
costumes do lugar. Decadência................................................................ 354
CAPITULO XL
Os homens mais importantes de Queluz: Barão de Su-
assuí; Coronel Antônio Rodrigues Pereira, depois Barão de
Pouso Alegre; e os dois irmãos Baetas. Traços gerais do
caráter e da vida desses homens. O conselheiro Lafayette
e seu irmão, Dr. Washington Rodrigues Pereira. A família
dos Baetas Neves. A doença dos dois irmãos e o Conde
de Prados........................................................................................................ 361
CAPITULO XLI
Ainda em Queluz. A casa do autor. Reminiscências da revolução de 1842. O
tenente coronel José Antônio Rezende. A sua bravura, o seu caráter e as
esquisitices. Outro homem esquisito: o tenente Francisco Balbino de Noronha
Almeida 368
CAPITULO XLII
Juiz Municipal e de Órfãos do termo de Queluz. O Barão de
Camargos. 0 autor acumula os cargos de Juiz e Delegado
de Polícia. Sua atuação nos dois cargos. Por que não foi
reconduzido. Um ato de injustiça que foi um benefício.
A vida ingrata do magistrado. Casos comprobatórios. 0
Padre Ribeiro. Advogado e chicaneiro. Uma herança com
plicada e perversão do senso moral....................................................... 376
PARTE QUARTA
CAPITULO XLIII
A zona da Mata. Descoberta do Feijão Crú e a fundação
de Leopoldina. Os seus primeiros habitantes. Os Mon-
teiros de Barros. Os Almeidas. Os Britos e os Netos. Fatos
e reminiscências............................................................................................. 387
CAPITULO XLIV
O verdadeiro Rómulo de Leopoldina: Dr. Antônio José
Monteiro de Barros. 0 seu caráter. A sua bondade. A sua
influência política e a sua ruína financeira. Barão de
Airuoca. Uma figura legendária. Serviços que prestou.
Anedotas a seu respeito............................'............................................... 395
CAPITULO XLV
Os índios purís. Seu grau de desenvolvimento. Os seus sentimentos, usos e
costumes. O sarampo ocasiona entre eles uma enorme devastação. O seu
desaparecimento. As indagações pessoais do autor e o resultado de suas pesquisas
400
CAPITULO XLVI
Dificuldades com que lutaram os primeiros habitantes de
Leopoldina. O desenvolvimento progressivo da localidade
e o grande atraso em que ainda se achava quando o autor
aí chegou. Os elementos que constituíram a colonização da
Mata de Leopoldina. Os Teixeiras Leite, os Leite Ribeiros
e os Monteiros................................................................................................ 410
CAPITULO XLVII
Como e por que foi o autor parar em Leopoldina. O autor
conta as peripécias de sua viagem e qual era o seu destino.
A sua chegada em Leopoldina. O Hotel Leopoldinense. O
dono do Hotel era um homem extraordinário. O autor não
fica no Hotel. Um encontro inesperado altera os seus planos
e ele desiste de ir para S. Fidelis. Instala-se em Leopoldina
e nunca se arrependeu ........................................................................... 420
CAPÍTULO XLVIII
O Juiz Municipal e de Órfãos de Leopoldina: Dr. João das
Chagas Lobato. Quem era esse homem. O seu retrato físico
e moral e o papel que desempenhou na vida política do país.
Amizade que nunca se interrompeu. A vida em Leopoldina.
A palestra nas lojas e o gamão na botica. O voltarete, o solo
ou a manilha. O coletor de Leopoldina: uma fruta boa com
casca carrasquenha. Festas de roça e passeios pelas fazen
das. Um grande giro em diligências, que rendeu muita coisa.
Onde estão Breves e Teixeiras Leite, aí também está o jogo.
Os dois homens mais ricos da Mata: José Eugênio Teixeira
Leite e Antônio Carlos Teixeira Leite. A formatura do Dr.
Nominato José de Souza Lima e a grande festa na fazenda
de D. Euzebia, sua avó .............................................................................. 428
CAPÍTULO XLIX
O caráter do autor. Seus sentimentos e ideias políticas. A
vida política em Leopoldina. Esta cidade era um feudo dos
Monteiros de Barros. Como se faziam as eleições. O autor
põe-se à frente dos liberais. Deputado provincial em duas
legislaturas. Recusa a sua candidatura á deputação geral.
Motivos da recusa. Desencanto das lutas e recolhimento à
vida doméstica ........................................................................................ 434
CAPITULO L
A influencia do acaso na vida do autor. O seu fatalismo e a
força desconhecida que o arrastava. As surpresas do destino
e a história do seu casamento .................................................................... 441
CAPÍTULO LI
A Índole do autor era essencialmente religiosa e a sua fé era
sincera e muito grande. As suas orações cotidianas. Como e
por que foi perdendo essa fé e se tornou, por fim, um racio
nalista. A concepção e a feitura de sua obra, "Julgamento
de Pilatos" — foram o vendaval que varreu do seu espírito
os últimos preconceitos cristãos. Como e por que foi escrita
essa obra e por que foi retardada a sua publicação ............................ 449
CAPITULO LII
Como e por que o autor comprou uma fazenda e lhe deu o
nome de Filadélfia. A sua mania para com a República e os
nomes dados aos últimos filhos: Cássio, Flamínio e Manlio.
O abandono da advocacia. As dificuldades, erros e contra
tempos na administração da fazenda e como foi possível sal
var a situação ........................................................................................ 456
CAPÍTULO LIII
0 balanço da situação financeira em 1885. Recompensa de
20 anos de trabalhos e sacrifícios. A situação não podia ser
melhor. Dívidas quase pagas. Tudo valorizado. Cafesais
plantados. Escravos criados e em plena produtividade.
Assegurados o futuro da família e a educação dos filhos.
Tranquilidade de espírito. De repente tudo se demorou
A lei de 13 de maio. Libertação dos escravos. A fazenda
abandonada. Ruina quase completa. Abalo geral na vida
econômica do país. Comentários e indignação ..................................... 461
CAPÍTULO LIV
A época mais feliz da vida do autor. Viagem a São Paulo
em 1868. Motivos e impressões da viagem. O encontro com
Luiz Gama c a limpeza de suas mãos. A abolição: ideia
justa, generosa e quase santa. Abolicionista: de coração puro
e abolicionistas de carregação ou de última hora. A abolição.
filha de múltiplos interesses, do servilismo e da especulação,
tal como foi feita, muito pouco teve à ideia .................................... 468
PREFÁCIO
Nossa época, que sob tantos aspectos se caracteriza por uma inumana
anulação do indivíduo, é ávida, como reação inevitável, de livros em que os homens
apareçam de alma nua, homens particulares, homens diferentes uns dos outros,
homens como a vida modela e destrói, homens no seu meio familiar e social,
sofrendo influência e influindo, seu comportamento dentro e fora de casa, os
amores e as afeições, o lirismo e a política, as intenções e os atos, a vida, toda a
vida em suas mais opostas e diversas faces.
Daí o êxito tão grande das biografias e autobiografias, dos livros de
memórias ou de confissões, dos diários íntimos ou de viagem, dos assentos de
família e das correspondências particulares.
A coleção "Documentos Brasileiros" reúne nesse gênero de literatura
algumas obras de incontestável significação das Memórias de Oliveira Lima,
diplomata, historiador, homem público no melhor sentido, com o seu ar de Dom
Quixote gordo, como o chamou Gilberto Freyre, às de Júlio Belo, depoimento de
um autêntico senhor de engenho; do Diário e Notas autobiográficas de André
Reboliças, documento de um período histórico e espelho de uma grande alma, às
Reminiscências do Barão do Rio Branco, por seu filho o embaixador Raul do Rio
Branco, trabalho em que a modéstia quase excessiva do autor não chega a
prejudicar o valor como contribuição para o conhecimento de um grande
brasileiro.
O livro agora incluído na "Documentos Brasileiros" — Mi-nhas
Recordações, de Francisco de Paula Ferreira de Rezende pode com vantagem
figurar ao lado dos outros já aqui aparecidos. Minhas Recordações é, sob vários
pontos de vista um documento do mais vivo interesse, ao mesmo tempo depoimento
histórico e testemunho de um homem.
Nas palavras da "Advertência" que abre o seu escrito, Francisco de Paula
Ferreira de Rezende, com um pudor que é traço bastante comum na gente de sua
província, como que se desculpa de ter feito "uma tal ou qual autobiografia".
Mineiro, bom e verdadeiro mineiro, muito dificilmente exporia ao grande
público a
sua vida mais íntima, os móveis de seus atos. O que ele pretendeu foi
"salvar de um completo esquecimento" costumes e tradições do seu tempo,
homens e figuras que encontrou pelo caminho. E, na verdade, realizou esse
projeto com muita inteligência, muita finura de observação, pacientemente.
Mas nem por isso, nem por querer antes de tudo fixar o quadro familiar,
social e politico do meio em que viveu, deixou de dar a este livro o sentido
de uma autobiografia. Em Minhas Recordações está também a vida do
narrador, está o homem nas suas reações mais pessoais, no recorte de sua
fisionomia moral, o homem privado e o homem público, um homem, cujo
conhecimento através deste livro, força a admiração e tem o prestigio de
criar amigos póstumos.
Tipo realmente admirável sob muitas faces esse Ferreira de
Rezende, mineiro de boa origem, parente de marqueses e grandes do
Império e que foi sempre de uma austeridade e de uma simplicidade que
poderiam ser chamadas de republicanas republicanas à maneira norte-
americana dos bons tempos -— se não conviesse mais denominá-las à
mineira, como características dos melhores exemplares humanos de sua
província. Ao lado disso, a cada passo do livro se vão sucedendo os sinais
de seu espírito inquieto, de sua curiosidade, de sua compreensão, do seu
dom de interessar-se pela vida, de comunicar-se qualidade esta que
estaria em contradição com a "misantropia" ou "hipocondrismo" de que o
memorialis-la por vezes se acusa.
Mas, se este livro interessa pelo homem que nos aparece mi-
neiramente numa "tal ou qual autobiografia", impõe-se em primeiro lugar
como um documento de excepcional valor acerca da vida social e de
família, dos costumes, das tradições, de tudo que é mais característico do
Brasil e, particularmente, de Minas Gerais, entre os anos de 1830 a 1890.
Muito lúcido, muito alento, de tudo se recordando, tudo anotando,
Ferreira de Rezende vai desfiando a história de sua vida, desde os dias da
primeira infância, num imenso esforço de reconstituição. E lá do fundo de
sua memória e dos menores recantos de seu coração, um mundo inteiro,
uma época inteira surge com os seus estilos de vida, com as suas
peculiaridades, em flagrantes de instituições, costumes e homens.
Como que pressentindo a importância que para os estudos
históricos e sociológicos sobre o passado brasileiro havia em recolher
certas "ninharias", como ele chama, em meio de coisas grandes, fatos da
vida quotidiana, cerimônias familiares, balizados, festas populares,
danças, vestuários, meios de transporte, viagens, instrução pública, lutas
políticas, choques partidários, eleições, revoluções, alvoradas e
luminárias, a vida nas cidades e nas fazendas, os
senhores e os escravos, as raças e a mestiçagem, os teatros e os circos de
cavalinhos, as modas, tudo isso em seus aspectos mais característicos e na sua
significação mais realista, Ferreira de Rezende apresenta ao leitor de Minhas
Recordações.
Menino nos grandes dias da Regência, ficou-lhe para sempre a impressão
desse "tempo em que o Brasil vivia, por assim dizer, muito mais na praça pública
do que mesmo no lar doméstico"; e dai a sua afirmação de que as lembranças mais
vivas na sua memória eram as da vida política do país.
Ao escrever este livro, já em caminho dos sessenta anos, tinha a imagem
muito nítida dos políticos mais eminentes daquela época, que vira com olhos
espantados de criança Evaristo da Veiga, Diogo Antônio Feijó. Do último, que
foi amigo de seu avô, transcreve duas cartas e conta como o duro padre paulista
gostava de melado, por ele considerado o rei dos doces.
Mas as reminiscências de fatos políticos não são de modo algum o assunto
exclusivo de Ferreira de Rezende, não o tornam monótono. Aqui e ali,
frequentemente uma recordação mais pessoal aponta, o registro de um
acontecimento privado ou uma desgraça de família dão à narrativa um outro tom,
chegando por vezes a uma emoção contida mas funda, como ao evocar o enterro de
uma irmã, que morreu com dois ou três anos, e foi para a igreja numa cadeirinha,
carregada por dois escravos fardados, "dentro da cadeirinha um padre sentado, e
diante do padre, sobre um tamborete com uma colcha de damasco, o seu pequenino
caixão".
Que grande cousa a primeira viagem de Ferreira de Rezende ao Rio de
Janeiro, à Corte, em 1839! 0 que o menino de sele para oito anos viu nunca se lhe
apagaria da memória, e o que nos conta tem um sopro de vida verdadeira. Para
percorrer o Rio, passear, fazer visitas, conhecer personagens importantes, assistir a
uma sessão da Câmara dos Deputados (seria típico da era regêncial levar uma
criança a uma sessão da Câmara), o jovem Francisco de Paula Ferreira de
Rezende encontrou um cicerone da maior graduação seu padrinho de crisma, o
padre José Bento Leite Ferreira de Melo, vigário de Pouso-Alegre, senador do
Império, político liberal de grande prestígio, padre revolucionário, galante, e de
rara beleza física, a julgar pelo retrato do álbum de Sisson.
Na Câmara ouviu o discurso de "um velhinho baixo e muito leso e que
quando falava cuspia muito" Antônio Carlos, e viu sentado, ao lado do
presidente, "um homem gordo, baixo, já de alguma idade, e vestido com uma farda
bordada" Manoel Alves Branco, ministro da Fazenda.
33
O menino foi também ao teatro, parece que ao São Januário, e lá
assistiu a uma representação em que tomou parte João Caetano; e, na
parada de 7 de setembro de 1839, teve inveja do chapéu armado do
Imperador, então com 13 anos.
Depois, ê a volta à Campanha, as conversas com a preta Margarida,
de quem diz: "ainda que não professasse de cadeira, sabia tanta cousa e
tanta cousa me ensinou, que não pode deixar de entrar na classe de meus
melhores professores".
Outros professores, que falavam de cadeira os seus mestres na
Faculdade de Direito de São Paulo não lhe mereceriam tamanho
reconhecimento.
São dos melhores capítulos do livro os que dedica a São Paulo, e à
vida acadêmica, faz o perfil de professores e evoca os estudantes do tempo.
Entre seus colegas e contemporâneos aparecem Bernardo Guimarães,
Alvares de Azevedo, Aureliano Lessa, José de Alencar.
Ferreira de Rezende, pela situação de sua família, não teria
dificuldades em fazer carreira politica, se esse fosse o seu maior pendor ou
não o inibisse certo feitio pessoal. Foi juiz, foi fazendeiro de café, morreu
Ministro do Supremo Tribunal Federal, no começo da República. O homem
que não se esquecera dos tempos da Regência, que tinha sempre presente a
pureza de Evaristo, a retidão de Feijó, a força de Vasconcelos, foi um
inadaptado nos meios políticos do Segundo Reinado. Por uma feição mais
idealista, não se conformava com o espirito de transigência dos monar-
quistas de razão, desses bons oportunistas que eram os políticos do
Império. Queria a república, na república via a solução dos problemas do
Brasil. A sua fazenda em Leopoldina, chamou de Filadélfia, aos filhos
deu nomes romanos Manlio, Cássio, Flaminio.
Mas quando a república veio já o encontrou doente e desanimado. A
abolição dos escravos, cuja forma violenta tão vivamente combate neste
livro, de todo o arruinara. Doenças, cuidados, os novos encargos com a
nomeação para o Supremo Tribunal, não lhe permitiram concluir as
memórias, dar-lhes a última demão.
Meio século depois da morte de Ferreira de Rezende, os filhos
resolvem publicá-las. Tendo lido os originais, animei quanto pude a sua
inclusão na "Documentos Brasileiros", do editor José Olympio. É
autenticamente um documento de homem, de vida, de fatos do Brasil.
OCTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA
ADVERTÊNCIA
Feito apenas de memória e um pouco às pressas, este escrito pelo
lado literário, nenhum mérito encerra. Nem, encetando-o, outra foi minha
intenção, do que a de deixá-lo como uma simples lembrança para meus
filhos.
A esta falta, porém, de mérito literário, este escrito ainda reúne outra
grande desvantagem: a de parecer, a primeira vista, nada mais ser do que
uma simples autobiografia que, pretensiosa talvez para muitos, há de ser
para todos os que ela realmente é — insulsa e sem cor, e, ao mesmo tempo,
mais ou menos desconchavada. Entretanto, se o leitor, em vez de contentar-
se, como vulgarmente se diz, unicamente com a casca, preferir o útil ao
agradável e se der ao trabalho de penetrar um pouco mais no âmago do que
escrevi, há de afinal reconhecer, que se aqui existe, com efeito, uma tal ou
qual autobiografia, esta, entretanto, não passa de um fio apenas, de que a
obra mais ou menos precisava, ou de um simples pretexto apenas que muito
de propósito procurei, é certo, mas como o mais apropriado também, para
que eu pudesse fazer a descrição de alguns dos nossos costumes que ainda
encontrei e que vão de dia em dia se apagando, e, ao mesmo tempo, me
ocupar de algumas pessoas que foi achando pelo meu caminho, e muitas das
quais lograram alcançar em nosso país uma notoriedade maior ou menor.
Ora, se hoje já tanta gente existe que não conhece muitos dos fatos e
costumes de que aqui me ocupo, quanto mais, se em vez de algumas
dezenas de anos, começarem os séculos a se acumularem! E se hoje quase
nada se escreve senão na Corte e sobre a Corte, quem é que se lembraria de
perder o seu tempo escrevendo sobre os costumes e sobre as pequenas
ninharias desta nossa tão desprezada província?!
Sejam, pois, quais forem os defeitos de forma ou sejam mesmo quais
forem todas as outras arguições, em que este escrito possa incorrer, um
mérito possue ele pelo menos, e quanto a mim de alguma ponderação; e é o
de salvar de um completo esquecimento uma parte, e não muito pequena
talvez, desses nossos costumes; esquecimento este, que, me parecendo
quase infalível, não deixará de ser, ao mesmo tempo, mais ou
menos lamentável.
O AUTOR
Parte Primeira
(Escrita de meados de outubro ao
fim de dezembro de 1887)
\
CAPÍTULO I
A província de Minas Gerais. A excelência de seu clima, a beleza de seus
panoramas e a riqueza de seu solo. O grande amor à terra natal e o
orgulho de ser mineiro. Os paulistas que, à cata de ouro, devassaram quase
todo o continente, parece que não enveredaram pelo Sul de Minas, onde o
ouro, entretanto, abundava à flor da terra. A fundação da Cidade da
Campanha. O documento que refere a sua história e fixa a sua data. O
grande papel que a Campanha representou na civilização e
desenvolvimento do vale do Sapucaí. Sua grandeza e decadência.
Filho, neto e bisneto de mineiros, eu quase que poderia dizer que
nunca saí de Minas; pois que a não ser o tempo apenas que estudei em S.
Paulo e o de algumas viagens, poucas e muito rápidas, que tenho feito à
Corte, nunca tive realmente outra morada, que não fosse a vivificante e
sempre tão benéfica sombra das nossas montanhas; ou que não fosse no seio
desta terra em que nasci; cujas ideias e sentimentos assimilei com o leite,
com o ar e com os anos; e pela qual, por isso mesmo talvez, é tão grande e é
tão sem cálculo o amor que sinto, quanto é grande e quanto é sério o
orgulho que ela me inspira.
Desta geografia, portanto, que tanta gente aprende mais ou menos
viajando, muito pouco é o que aprendi. E, de fato, é tão limitado o que sei
por este modo ou é tão acanhado o círculo em que tem se resolvido a minha
vida itinerante, que, se eu tivesse de definir a terra pelo que dela unicamente
tenho visto, bem poderia talvez defini-la por esta forma — um polígono
extremamente irregular, mas sobre o qual não se poderia traçar uma só reta
que mais tivesse de cem léguas.
Se preso, porém, pela sorte ou pelo gosto, a tão acanhados ho-
rizontes, muito pouco tenho visto; muitíssimo em compensação eu tenho
lido e não pouco conversado. E o resultado que tenho colhido, ou a
convicção a que cheguei, e que muito grata para mim vai se tornando cada
vez mais firme, vem a ser esta — que podem existir, e que de fato existem,
muitos outros lugares, que por algumas ou que mesmo por muitas dessas
excelências que nos
encantam, que nos admiram, ou que verdadeiramente nos assombram, se
tornam dignos da maior celebridade; porém que sejam quais forem as
excelências que possam possuir esses lugares, não há talvez em parte
alguma do mundo um torrão a todos os respeitos tão beneficamente
privilegiado ou tão divinamente abençoado, como é e sempre foi o nosso
centro de Minas; pois que nele se encontrando tudo quanto realmente se
torna indispensável para a nossa existência, e podendo o homem, por
consequência, aí viver, por assim dizer, independente do mundo, o centro de
Minas é ainda um lugar, em que não só não se conhece o que sejam grandes
frios, nem o que sejam grandes calores; e ao passo que os olhos se deleitam
nas belezas da mais esplêndida natureza, ao mesmo tempo, a água é pura, o
ar é são e a terra é fértil; mas é ainda um lugar, em que por essas mesmas
causas talvez, o espírito, de ordinário, nunca se deprime nem se exalta ou
em que o coração e a cabeça, perfeitamente equilibrados, sempre funcionam
em liberdade e sem excessos.
Se, porém, todas estas minhas proposições são mais ou menos
verdadeiras, quando nós as aplicamos a essa região mais fria e ao mesmo
tempo muito mais alta, onde quase que juntas se encontram as estreitas
cabeceiras dos nossos longos e volumosos rios Grande, Doce e S. Francisco;
muito mais verdadeiras elas ainda se tornam, quando nós as aplicamos a
esse canto tão aprazível da província, que, tendo formado outrora uma das
partes integrantes da antiga comarca do rio das Mortes, hoje se chama o sul
de Minas; e que, tendo de um lado o rio Grande e do outro as divisas de S.
Paulo, vai sempre subindo e se alargando, até que vai por fim fechar-se
nesse alongado e tão majestoso muro que altíssimo lhe forma a Mantiqueira
entre o Morro do Lopo e o Mirantão.
Entretanto os paulistas, que, sempre inquietos e que sempre
aventureiros, tão cedo começaram a devassar quase todo o continente, e que
de fato o percorreram em quase todos os sentidos, ao principio em busca de
índios para os cativar e depois em busca de ouro e de pedras preciosas,
parece que nunca enveredaram pelo sul de Minas, ou que, se por ventura o
descobriram, bem depressa o abandonaram e muito mais depressa ainda o
esqueceram. Parece, porém, antes, que eles ali nunca passaram; pois que ali
com certeza não ficaram nem deixaram de si sinal algum. E se este fato não
pode deixar de causar a todos uma grande admiração, muito maior essa
admiração ainda se torna, quando se sabe que as divisas de Minas por
aquele lado quase que chegam às portas da capital dos paulistas, e que esse
ouro que aqueles mesmos paulistas andavam tão afanosos a procurar tão
longe, ele ali o tinham, não só tão perto, mas ainda, ou para melhor dizer, à
mão
e tanto e tão na superfície da terra, que nas ruas da Campanha, quando a chuva é
grande, se o pode ver, assim como eu mesmo muitas vezes o vi, misturado ou por
cima do esmeril ou de areia preta e fina, lavada e batida pela enxurrada, se deposita e
as conserva pelos interstícios da calçada. Parece, porém, que, mesmo por ser assim
tão bom aquele lugar, havia da parte da Providência, um como que propósito de
esconde-lo ou de deixá-lo para o fim, pois que, estando S. Paulo pelo lado do sul
assim tão perto, e havendo já não poucos anos que, pelo lado do norte, a província
quase toda tinha sido descoberta não só até S. João del-Rei mas muito mais ao sul
talvez do Rio das Mortes; nunca entretanto, que pelo menos conste, alguém havia ali
ainda penetrado e muito menos ali se havia estabelecido. Nem é preciso para prova
deste meu asserto de entrar aqui em longos arrazoados ou de fazer qualquer
dissertação mais ou menos erudita, porque, se é certo, que as altas cabeceiras do Rio
Verde foram um pouco mais cedo descobertas e que aí se foram logo afundando
algumas pequenas povoações como Baependi, por exemplo, e a de Carrancas talvez;
um fato ainda existe o qual não pode sofrer a menor contestação, e esse fato é o
seguinte — que assim como a Campanha do Rio Verde, Campanha da Princesa ou
simplesmente Campanha, é a primeira cidade e a primeira vila que existiu no sul de
Minas; assim também foi ela de Baependi para baixo a primeira paróquia e a mais
antiga povoação que ali se fundou.
A Campanha, portanto, que foi sempre a cabeça de todo aquele território, foi
também sempre considerada como a mais antiga das suas povoações e como o
principal ponto de partida de todo o seu povoamento. Ora, se a respeito de Baependi
e de Carrancas, se pode ter dúvida sobre a época de sua descoberta, quanto a da
Campanha, essa parece ter sido, com toda a certeza, nunca antes da segunda ou
talvez mesmo da terceira década do século XVIII. E não só é isto o que muito
naturalmente se deduz do silêncio tão profundo que a respeito da Campanha guardou
a nossa história e a nossa legislação até quase que aos meados do século passado;
mas é isto ainda o que justamente nós vemos confirmado por uma carta que ao
Almanaque de Minas do ano de 1865 foi dirigida por um dos nossos mais dignos
conterrâneos, o muito distinto e muito honrado médico Dr. Manuel Joaquim Pereira
de Magalhães.
Ora, além de conhecer há muito o autor da carta, eu cheguei também a
conhecer um pouco ao coronel José Francisco a quem a mesma se refere, e como em
falta de outra qualquer tradição essa carta torna-se para a Campanha de uma
importância imensa,
eu não quero deixar de aqui transcrever um semelhante documento; e eis
aqui quais são os seus termos:
"Eu não posso precisar bem a época, em que se deram os fatos, que
vou narrar, mas, segundo dados prováveis, creio poder asseverar que eles
tiveram lugar entre as eras de 1710 e 1720.
Foi, pouco mais ou menos, neste período que, escapados das prisões
de Vila Rica, dois sentenciados, um que se apelidava — Montanhez — e
outro cujo nome não me lembro, atravessaram os sertões inabitados, que se
estendiam ao S.D. de Vila Rica, e, viajando por muitos dias, depararam com
um quilombo composto de dois pretos, situado na latitude austral de 21º16'
e 2º15, de longitude do meridiano do Rio de Janeiro. Estes pretos tinha seu
pequeno estabelecimento rural, do qual e de alguma criação de porcos
tiravam subsistência, sendo provável que se comunicassem com algumas
povoação mais próxima para o mais, de que necessitassem.
Tomaram então os fugitivos a deliberação de viverem em sociedade
com o quilombolas, que os haviam hospedado e assim viveram por algum
tempo, até que, manifestando-se algum predomínio da parte dos brancos,
deliberaram os pretos descartar-se daqueles; deu-se então um conflito, do
qual saíram vitoriosos os brancos, sucumbindo os pretos, ficando, portanto,
os dois fugitivos, proprietários da cabana e mais pertences.
Assim isolados sentiram a necessidade de comunicações, e neste
intuito trataram de explorar os arredores, até que no fim de dias puderam
perceber dos altos da serra, em cujas fraldas estava estabelecido o
quilombo, um fumo que se elevava para os lados de leste, tendo então este
meio de guia, foram por picada até encontrar uma fazenda, estabelecida na
margem esquerda do rio Verde, cujo dono era aplicado ao curato de
Baependi, e é este o lugar onde está hoje situada a freguesia da Conceição
do Rio Verde.
Estabelecidas as relações entre esse fazendeiro e Montanhez e seu
companheiro, casaram-se com filhas do tal fazendeiro, o qual, a convite dos
seus genros, foi com toda a família estabelecer-se no quilombo, talvez
levado pela abundância de ouro que prometia o terreno, já explorado
pelos genros.
São estes os primeiros habitantes do lugar onde é hoje a cidade da
Campanha, que rapidamente povoou-se pela afluência de mineiros quer da
capitania de Minas, quer da de S. Paulo.
Esta notícia me foi dada por meu avô o coronel José Francisco
Pereira, falecido em 1855 com 95 anos de idade, que era
homem de verdade e teve relações e amizade com um neto de
Montanhez que lhe comunicou todos estes detalhes.
Ouro Preto, 29 de junho de 1864".
Como, acontece a todas as povoações que devem a sua fundação a
descobertas do ouro ou de pedras preciosas, o desenvolvimento da
Campanha foi, com efeito, não só relativamente grande, mas
extremamente rápido.
Assim como, porém, aconteceu a quase todas, ou antes, a todas as
povoações de Minas que tiveram uma semelhante origem, a prosperidade
da Campanha muito pouco durou.
E disto ninguém pode dar hoje um melhor testemunho de que eu
porque, tendo nascido um pouco mais de século depois que a Campanha se
fundou ou foi descoberta, quando cheguei a conhecê-la, ela já tinha então,
não só atingido ao apogeu de sua grandeza e da sua riqueza, mas pode-se
mesmo dizer, que, trocada a antiga pletora por uma espécie de
depauperamento constante e mais ou menos progressivo, já havia muitos
anos, que para aquela povoação tinha de fato começado, ainda que mais ou
menos lenta, e por isso mesmo, muito menos sensível, essa decadência em
que mais ou menos se tem sempre conservado, e da qual já muito menos
provável é agora que consiga reerguer-se, porque, estando a Campanha pela
sua posição topográfica fora do traçado natural das nossas vias férreas, esse
elemento tão poderoso de vida que lhe falta, terá agora, sem muito grande
utilidade para ela, mas antes à sua custa ou em seu prejuízo, de ir cada vez
mais aproveitando a todas as povoações que a cercam e por onde essas
estradas já passam ou tiverem de passar; e ela terá por consequência, de ir
cada vez mais também perdendo o pouco que ainda lhe resta da sua antiga e
tão extensa influência naquela belíssima zona, caso alguma circunstância
favorável e imprevista, não lhe venha dar na indústria ou em qualquer outro
fator das riquezas ou da influência uma nova origem de importância.
Nem para bem se apreciar o grande e rápido desenvolvimento que
teve a Campanha, é preciso mais do que lembrar, quanto a metrópole era
morosa e parca em criar divisões eclesiásticas e administrativas que exigiam
sempre um aumento maior ou menor de despesas com os empregados e que
diminuíam, por consequência, os proveitos que da colônia se procuravam
tirar por todos os modos.
Assim no começo deste século e quase que ainda no tempo da nossa
independência, a província de Minas só tinha uma única cidade, que era
Mariana; quatro comarcas, que eram as de Vila Rica, Rio das Mortes,
Serro e Rio das Velhas; e apenas
dezesseis vilas, das quais as principais eram Vila Rica, Sabará, S.
João d'El-Rei, Barbacena, Paracatú, Serro e Campanha.
Ora, de todas as povoações da província, era então a Campanha uma
das mais novas; pois que, segundo já tive ocasião de dizer, a sua descoberta
só teve lugar na segunda ou terceira década do século passado. Pois a
Campanha, que, em 1752, já tinha sido por uma ordem régia criada
freguesia, era em 1785 constituída em um julgado da comarca do rio das
Mortes por uma provisão de 20 de junho do conselho extramarino; e era,
finalmente, elevada à vila com um juiz de fora do cível, crime e órfãos por
alvará de 20 de outubro de 1798.
E cumpre aqui observar, que era tal, naquele tempo, a sua riqueza,
que, apenas criada a vila e eleita a câmara, um dos primeiros atos que esta
praticou, e que mostra ao mesmo tempo qual a confiança que ela tinha na
abundância e permanência dos seus rendimentos, foi o de oferecer
voluntária e perpetuamente a uma das princesas (a da Beira, se não me
engano) a terça parte da consignação que havia feito para o aumento das
rendas públicas; oferecimento este, que em vez de ser recusado, foi, pelo
contrário, aceito, e aceito de muito boa vontade pelo príncipe regente,
depois D. João VI, o qual, além de todos os agradecimentos do estilo, ainda
mandou por carta de 6 de novembro, datada de Mafra, que o dinheiro se
remetesse diretamente e em cofre separado, ao erário régio, afim de ser logo
entregue à princesa.
Quando, pois, nasci, a Campanha, que já era vila, havia um pouco
mais de trinta anos, possuía nada menos de cinco igrejas, e além destas
ainda tinha a sua matriz, que é talvez o templo maior que tenho conhecido;
mais que, entretanto, já não se tinha podido acabar; ao passo que por outro
lado, uma dessas cinco igrejas, tendo ameaçado ruína, em vez de ser
reparada, foi demolida e nunca mais se levantou. Ora, sendo a religião, o
que naquele tempo, pode-se dizer, constituía o principal objeto da vida do
homem, pode-se igualmente dizer, que o que constituía um verdadeiro
barómetro ou melhor indicador da prosperidade de um lugar qualquer,
naquele tempo, era, sem dúvida nenhuma, a riqueza ou as magnificências
que se ostentavam na celebração das festas religiosas ou na sustentação do
culto público.
Pois bem, quando eu conheci a Campanha, ela não só ainda tinha
dentro da povoação nove ou dez padres, e todos mais ou menos abastados,
mas ainda a sua matriz que possuía um grande número de objetos de prata
e até mesmo alguns de ouro,
achava-se ao mesmo tempo, o que, na minha opinião, é ainda uma prova muito
maior de sua prosperidade, perfeitamente provida de todos os ornamentos e de todos
quantos objetos eram preciosos para todas as grandes festas que era de costume ali
fazeram-se, mas que, entretanto, já então não alcancei; pois que o grande S. Jorge
que de pé e de pernas abertas se achava atrás de uma porta e como que escondido
para meter medo à gente em um dos corredores da imensa matriz, e que, segundo se
me dizia, muitas vezes dali tinha saído para percorrer a vila puxado e cercado por
todos os ferreiros da povoação e com um aparato verdadeiramente deslumbrante, já
nunca cheguei, como tanto desejava, vê-lo, uma só vez sair daquele lugar escuro,
para montar no mais belo cavalo dos arredores, e armado de escudo e lança,
caminhar cercado de um imenso e fustoso estado; assim como igualmente, já nunca
também pude ver as grandes endoen-ças ou essas semanas santas inteiras de que
tantas vezes ouvia falar e de que se me fazia uma tão pomposa descrição.
Ora, se no meu tempo, já tudo isto não se via, muito pior é hoje ainda,
porque hoje na Campanha quase que não há padres as suas festas religiosas são
inteiramente frias e sem a menor pompa; entretanto que a sua fábrica parece que vai
se tornando cada vez mais pobre.
Eu bem sei que tudo isto não é uma prova bem evidente da decadência da
povoação, pois que tudo isto podia ser apenas o efeito do desaparecimento ou de
uma simples decadência do sentimento religioso. Isto, porém, é que não é exato, por
que, nesta província e sobretudo na Campanha, se o sentimento religioso já não tem
hoje toda aquela vivacidade que teve outrora, nem por isso se extinguiu nem tem
muito diminuído.
Eu, porém, vou citar alguns fatos, que, dando-nos uma ideia mais ou menos
aproximada do estado daquela cidade em outros tempos, servem de prova a tudo isso
que acabei de dizer. Entretanto, como um desses fatos pretendo deduzi-lo do modo
como na Campanha saía o "Senhor de fora", e como escrevendo estas "Minhas
Recordações", o meu fim principal é descrever costumes, vou, em forma de
parêntesis, aqui explicar, como era que então se levava na Campanha o víatico
aos enfermos.
Quando eu conheci a Campanha, era ainda uma grande desgraça, e muitas
vezes mesmo um grande escândalo, o morrer--se sem todos os Sacramentos. Daqui
resultava que muito raro era a semana que não se tivesse de levar o víatico a algum
enfermo e que, por consequência, e muito frequentemente, não se tocasse o
"Senhor de fora". Se, antes de repicar e durante o
tempo que repicava, o sino dava por intermitências as cinco badaladas do
estilo, todos já sabiam que o Sacramento que tinha de levar-se, era para
algum dos habitantes de dentro da povoação; e que não tinha um objeto
muito rigoroso que o retivesse em casa, imediatamente saía para
acompanhá-lo. Quando se chegava à igreja, já ali se encontrava um homem
que tinha o apelido de — Masca-pregos — por causa de um movimento
contínuo que fazia com os queixos como quem mastigava um objeto duro e
resistente; e que além disso, era tão excessivamente míope que não só
quando escrevia quase que chegava a tocar no papel com o nariz, mas que
ainda, segundo muitas vezes ouvi dizer, nunca na sua vida tinha visto
estrelas.
Este homem que era para os meninos uma espécie de duende e de
quem, não obstante, eles nunca fugiam, porque era ele quem lhes poderia
dar o gosto de carregar uma lanterna e o turíbulo; e muito mais ainda o de
carregar, nos enterros, a cruz e a caldeirinha, que davam direito a duas boas
velas, cha-mava-se o capitão Manuel Luiz de Sousa, e era pessoa de im-
portância no lugar, pois que sempre o conheci como juiz municipal ou
presidente da câmara. Era ele, entretanto, quem tinha a seu cargo distribuir
as opas e quem, pontual sempre e sempre correndo, dispunha de tudo o mais
que era preciso para a saída do Sacramento. Pouco depois este saía; e eis
aqui a ordem que se observava: À frente do préstito ia uma pessoa vestida
de opa, de ordinário um menino, tocando a campainha; e depois a cruz de
prata da irmandade do Santíssimo, entre duas lanternas cada uma das quais
tinha uma vela acesa, para que, a despeito do vento e da chuva, nunca
faltasse luz ou esta jamais se apagasse; pois que assim como antigamente o
fogo de Vesta nunca se deveria apagar, assim também, segundo o nosso
costume religioso, numa o Sacramento deve ficar às escuras. Todas as pes-
soas que vestiam opas e que iam todas com tochas acesas, formavam duas
alas que tinham por cabeças de fila as duas lanternas.
No começo de uma dessas duas alas, ia o juiz ou provedor da
irmandade com a sua vara de prata onde estava esculpida a imagem do
Sacramento; e no couce da outra um irmão que levava uma toalha a tiracolo
e que ao mesmo tempo carregava sobre um dos braços uma espécie de livro
muito grande, mas cujo nome eu nunca soube ou agora não me recordo.
No centro e no fim das duas filas, ia então o vigário com o
Sacramento, o qual era umas vezes conduzido debaixo da sombrinha ou
de um chapéu de sol muito grande, coberto de
seda carmezim e forrado de seda branca e outras vezes debaixo do
pálio, cujas varas de prata eram carregadas por seis pessoas.
Atrás finalmente do Sacramento, iam todas as pessoas que não
vestiam opas ou que se iam encorporando pelo caminho; e se na povoação,
existia algum destacamento militar, e o Sacramento por ele passava,
imediatamente parte dele era obrigado a ir fazer parte do préstito colocando-
se logo atrás do pálio; o que tudo acabava por fazer às vezes um
acompanhamento tão grande, que se poderia tomar por uma verdadeira
procissão, mas, circunstância esta que era de um péssimo agouro para o
pobre doente, visto que se considerava como cousa certa que um
acompanhamento muito grande ou fora do ordinário era neste caso um sinal
infalível de morte para aquele que ia ser sacramentado. Quando se chegava
à casa do enfermo, abria-se o tal livro grande de que acima falei e que ficava
servindo de altar ou de sacrário; punha-se a toalha debaixo do pescoço do
doente para que não houvesse perigo de cair ou de perder-se a sagrada
forma; e o vigário administrava a comunhão ao mesmo doente que, às vezes,
por intermédio do vigário, pedia a todos os presentes e ausentes o perdão de
alguma ofensa que por ventura lhes tivesse feito.
Concluindo tudo isto, voltava-se para a igreja, e tanto na ida como na
volta, ou o vigário recitava salmos que eram respondidos pelas pessoas que
os sabiam ou todos em coro cantavam a Bendito. Desde que chegava-se à
capela do Santíssimo, punha-se o Sacramento sobre o altar, cantavam-se o
Tantum Ergo e depois o Bendito; e, recolhido o Sacramento ao sacrário,
dispersava-se o povo. Se, porém, para anunciar a saída do Sacramento, em
uma daquelas cinco badaladas intermitentes de que há pouco acabei de falar,
eram três apenas as que o sino dava, desde logo se fazia sabendo que o
Sacramento era para fora da povoação e, embora neste caso, ele tivesse de
sair ou ser levado a cavalo, isto não obstava que muitas vezes menos de
meia hora depois, ele se pusesse na rua; e não acompanhado por uma meia
dúzia apenas de cavaleiros, mas, pelo contrário, por dez, por vinte e
muitas vezes por muito mais.
E isto porque?
Porque era tão grande a riqueza na Campanha e esta se achava
espalhada por uma tal forma, que não havia talvez uma só pessoa de alguma
importância e até mesmo das classes menos abastadas, que não tivesse o seu
animal de estrebaria ou de passeio.
Desta grande abundância de animais de trato, e, ao mesmo tempo,
da grande afluência que então havia de gente de fora e
que de ordinário preferia que os seus animais ficassem antes a capim do que
fossem para o pasto, resultava o ter-se estabelecido na Campanha uma
indústria especial que não só dava, à noite, ao largo das Dores o aspecto
alegre e sempre animado de uma praça de mercado, mas que era uma das
mais concorridas e ao mesmo tempo uma das mais lucrativas para os
escravos que viviam a jornal. Não era esta, entretanto, uma indústria leve
nem talvez mesmo das mais agradáveis. E eu vou dizer porque:
Como a necessidade do capim era grande, e como não havia então
ainda o da Angola, e muito menos ainda qualquer dessas plantas forrageiras
que vão agora introduzindo, o recurso único que então se tinha, era o de um
capim nativo que se chama — capitinga — e que julgo assim chamar-se por
ser ele de uma cor verde não muito carregada e significar aquela palavra em
língua indígena — capim branco — ; mas capim este, que só se encontrava
na serra, e que ficava por consequência, em uma distância da povoação de
uma légua pelo menos, e muitas vezes de muito mais. Os escravos, pois, que
se dedicavam a esta indústria, apenas o dia amanhecia, muniam-se de uma
ligeira matolota-gem que lhes pudesse servir de almoço, ou lhes matar a
fome; e descobertos no tempo seco e cobertos no tempo de chuva com uma
capa feita do capim mumbeca, todos os dias, muito cedo, dirigiam-se para
o mato.
Cortado o capim, estendido e amarrado em um comprido varapau
que mal se compreendia como um único homem o pudesse carregar, à tarde
vinham todos para o largo das Dores, e aí, dividido o capim em feixes de
um tamanho convencional, cada um dos quais custava quatro ou seis
vinténs, e dos quais três se considerava a ração suficiente para um animal,
durante um dia e uma noite. Daí tiravam aqueles pretos o jornal que deviam
dar aos seus senhores, que era de uma pataca mais ou menos; e muito ainda
lhes sobrava para o seu fumo e a sua cachaça.
Pois bem, essa indústria, creio que hoje desapareceu inteiramente
da Campanha; e na última vez que lá estive, talvez não se encontrasse em
toda a cidade, já não digo dez, mas nem mesmo seis cavalos de estrebaria; e
isto, não porque o gosto mudasse, mais porque os meios faltavam.
Eu, porém, vou citar um novo fato, que só por si basta para provar
quanto é grande a decadência da campanha.
A casa em que nasci, é o sobrado, que, descendo a rua Direita,
forma do lado de cima a esquina do largo das Dores.
Esta casa foi construída por meu avô; e se não me falha a memória, em
relação ao que lhe ouvi muitas vezes dizer a este respeito, essa casa é toda
de pedra de alto a baixo; os seus alicerces estão enterrados doze ou quatorze
palmos; e meu avô, na casa e nos respectivos muros, gastou quinze ou vinte
mil carros de pedras. Verdade é que essas pedras foram compradas a meia
pataca o carro; mas sem falar que aquele edifício era uma casa de luxo para
o lugar, calcule-se unicamente o preço das pedras que nela se enterrou, e
veja-se quanto não deveria valer em um lugar mais ou menos
próspero.
Pois bem, essa casa que por ocasião da ideia que ali apareceu de se
criar uma nova província, foi logo indicada como sendo a mais própria para
o palácio da presidência, foi, há vinte e tantos anos vendida; e, se não há
engano de minha parte, o seu preço foi apenas de oito ou dez
contos de réis.
Entretanto, se grande é a decadência da Campanha, se essa
decadência, como disse, parece que tende a aumentar-se; uma glória que
nunca se lhe há de tirar, há de ser esta: — que, não só durante mais de meio
século, ela foi uma das maiores e mais importantes povoações da nossa
província; mas ainda e muito principalmente, que, tendo sido, por assim
dizer, a mãe de quase todas as povoações que se foram criando e se esten-
dendo por todo aquele abençoado vale do Sapucaí, ela pela sua grandeza,
sua riqueza e, sobretudo pelo seu adiantamento moral, tornou-se, de fato, e
por muito tempo, o verdadeiro e luminoso lar da civilização de todo aquele
canto de Minas, que, hoje, já tão povoado, se prepara para as grandes
conquistas do futuro, e que tão cheio de esperança e com toda a justiça, na
sua nova geração, já orgulhoso conta, entre seus filhos, além de tantos
outros respeitáveis, José Bento e Honório Hermeto.
CAPÍTULO II
A genealogia da família. O nascimento do autor e a ingénua decepção da
progenitora. Um menino franzino e um homem hipocondríaco. De oito
irmãos, dois apenas sobreviveram.
Pelos meiados do século passado, veio para o Brasil um português
que se chamava Manuel Ferreira Lopes. Tendo-se estabelecido como
comerciante na Campanha; aí se casou com D. Maria Eugenia de Jesus, cuja
família se achava entrelaçada com a dos Machados de Oliveira, de S. Paulo,
mas na qual, por outro lado, parece que havia alguns parentes caboclos.
Deste casamento nasceram os seguintes filhos:
Capitão Antônio Quirino Lopes; Tenente Manuel Corsino Ferreira
Lopes; Tenente Miguel Ferreira Lopes; Alferes João Pedro Ferreira Lopes;
Major Domingos Ferreira Lopes e Comendador Francisco de Paula Ferreira
Lopes; os quais todos morreram maiores de 60 anos, e dois quase
centenários.
À exceção do Alferes João Pedro, todos eles se casaram e deixaram
uma descendência mais ou menos numerosa. Destes filhos o último casou-
se com D. Ana Rita de Cássia que era filha do Major Gaspar José de Paiva e
de D. Leonor de Paiva. Nada sei a respeito da família de D. Leonor. O
Major Gaspar, porém, pertencia a uma família muito importante de
Campanha e que se tornava até ridícula pelas suas grandes fumaças de
nobreza, sobretudo quando esses Paivas pertenciam a um dos ramos dessa
família que se dizia descender ou que de fato descendia de Amador Bueno
da Ribeira. Do casamento do Comendador Paula Ferreira com D. Ana de
Paiva nasceram dois filhos — o Dr. Gaspar José Ferreira Lopes e o Capitão
Francisco de Paula Ferreira Lopes Júnior; e três filhas — D. Francisca de
Paula Ferreira de Rezende, D. Bárbara Alexandrina Ferreira Brandão, e D.
Ana Rita de Cássia Ferreira; e à exceção do primeiro e da última, todos se
casaram e deixaram maior ou menor descendência. Como, porém, aquele
Comendador muito cedo enviuvasse, passou logo a segundas núpcias com
D. Mariana Generosa Moinhos de Vilhena; e deste segundo
matrimônio só cresceram e casaram-se
quatro filhas — D. Maria do Carmo, D. Iria. D. Mariana e D. Maria José;
e só da primeira e última ficaram descendentes.
Quase pelo mesmo tempo em que veio para o Brasil o Quartel
Mestre Manuel Ferreira Lopes, veio igualmente o Coronel Severino Ribeiro
que pertencia a uma família nobre de Lisboa, e que tendo se estabelecido
em uma fazenda de cultura na freguesia da Lagoa Dourada, ali se casou com
D. Josefa de Rezende. Esta D. Josefa de Rezende era descendente de uma
das três Ilhas; e esta simples frase descendente das Três
Ilhas
equivale para muita gente a uma genealogia; visto que, na província,
essa frase tem uma significação especial; e essas Três Ilhas nela
conservavam um certo que de legendário. Como, porém, nem todos têm
motivo ou obrigação de as conhecer, eu direi simplesmente, que eram três
irmãs que, tendo vindo para Minas, logo que esta província foi descoberta,
aqui se casaram e tornaram-se os troncos das três grandes famílias de
Rezendes, Carvalhos e Junqueiras, que, entrelaçando-se, há tantos anos,
com tantas outras, hoje cobrem quase todo o centro e sul de Minas e uma
grande parte de S. Paulo. D casamento do Coronel Severino com D. Josefa
nasceram os seguintes filhos — Estevam Ribeiro de Rezende (Marquês de
Valença), Coronel Geraldo Ribeiro de Rezende, Coronel Severino Eulógio
Ribeiro de Rezende; e Capitão Joaquim Fernandes de Rezende; e diversas
filhas, das quais, de vista ou por notícia, só conheço as quatro seguintes
D. Ana, D. Leonarda, D. Maria Clara e D. Francisco de Paula Galdina
de Rezende; e, à exceção de D. Ana, todos os mais tiveram descendência
e não pequena.
D. Francisca de Rezende casou-se com o Alferes Domingos dos Reis
e Silva que pertencia a uma família muito abastada c numerosa de
lavradores mineiros; e deste casamento nasceram três filhos e duas filhas
que são — Major Estevão Ribeiro de Rezende, Coronel José dos Reis e
Silva Rezende, Tenente-Coro-nel Valério Ribeiro de Rezende, D. Maria
Benedita Teixeira e D. Urbana Felisbina dos Reis Perdigão; que todos se
casaram e deixaram descendência. Tendo D. Francisca enviuvado, passou
pouco depois a segundas núpcias com o Capitão Antônio Justiniano
Monteiro de Queiroz; e deste segundo matrimônio nasceram os seguintes
filhos — o Tenente Coronel Antônio Justiniano Monteiro de Queiroz,
Francisco das Chagas de Rezende, D. Justinia-na, D. Ana e D. Maria do
Carmo que todos se casaram e deixaram descendência.
Ora, o Tenente Coronel Valério Ribeiro de Rezende, casou-se com
D. Francisca de Paula Ferreira de Rezende, e dos oito filhos que ambos
tiveram, seis morreram em baixa idade,
e os únicos sobreviventes fui eu e meu irmão Valério Ribeiro de
Rezende que tem se conservado solteiro e que depois de ter
muito tempo morado comigo, acha-se atualmente estabelecido na
Leopoldina com um colégio de instrução secundária.
De todos esses meus ascendentes, os únicos que restaram quando
nasci, eram — Gaspar, D. Maria Eugenia, D. Francisca de Paula Ferreira. E,
destes, o que mais viveu, depois do meu nascimento, foi o Comendador
Paulo Ferreira; pois que só veio a morrer em dezembro de 1886 e quando já
contava nada menos de quase 94 anos.
Por isso, não só foi o único que bem conheci; mas foi ainda o que de
todos se tornou para mim o mais querido. E nem poderia ser de outra sorte
porque, se é grande, como dizem, a afeição que os avós nutrem para cora os
netos, neste caso, a afeição que ele tinha para comigo, não era uma afeição
simplesmente grande; mas convertia-se em uma predileção muito forte e
francamente declarada, entretanto que foi, segundo já disse, em sua casa que
nasci; e foi sempre à sua sombra ou ao seu conchego que me criei e cresci.
Por isso também, quando neste escrito eu disser simplesmente —
meu Avô — sem qualquer outro qualificativo, deve-se entender que é a
ele que me refiro.
Ora, tendo já tratado do lugar em que nasci e dito dos meus
ascedentes tudo quanto sabia ou a memória me ofereceu, creio que é
finalmente chegada a ocasião de começar a ocupar-me de mim mesmo; e
que posso, por conseguinte, entrar sem mais preâmbulos, na história desta
minha bem pouco interessante vida, mas que, por não ser das mais breves
nem também inteiramente uniforme e desatenta, deu-me ocasião para ver
muitas coisas que a atual geração já não conhece e que muito menos
poderiam conhecer as gerações vindouras. Eu, pois, começarei por dizer,
que, logo depois do seu casamento, meus pais se retiraram para a Fazenda
do Bom Jardim, que fica a três léguas da Campanha, e junto às margens do
Rio Verde; e onde, apesar de já muito gravemente enferma, ainda vivia
minha avó D. Francisca. Apro-ximando-se, porém, o termo da gravidez de
minha mãe, meus pais vieram para a Campanha; e não só foi aí que nasci a
18 de fevereiro de 1832, mas foi ainda aí que a 20 de abril desse mesmo ano
fui batizado pelo cônego João Dias de Quadros Aranha que, paulista de
muito boa têmpera, como tantos havia naqueles tempos, foi sempre um
amigo sincero da nossa família; e que, sendo íntimo amigo, ao mesmo
tempo, do senador José Bento, foi, graças a este, uma ou mais vezes
deputado por esta província. Quanto aos meus padrinhos, quase que era
desnecessário que eu dissesse
quem eles foram; porque um dos costumes que mais geralmente se
observam é o de serem os avós os padrinhos dos nosso primeiros filhos; e,
como naquele tempo, os únicos avós que então vivos eu tinha, era o meu
avô Paulo Ferreira e minha avó D. Francisca, esses foram, com efeito,
os meus padrinhos.
Filho primogênito de um casal extremamente novo, o meu
nascimento foi como que a verdadeira imagem do meu futuro destino; pois
que, depois de cinco dias de um laboriosíssimo parto, e quando já cansados
de esperar, parece que se dispunham a me tirar a ferros, eu vim afinal ao
mundo, mas tão enegrecido e contundido, que muitas vezes ouvi minha mãe
dizer, que nunca tivera um tão grande desgosto, como quando ao
contemplar, cheia de um ansioso gozo, aquele primeiro, tão esperado e já
tão querido fruto do seu amor, ela cheia de dor e de angústia, reconheceu na
sua ingenuidade de criança, que tinha dado à luz um filho negro!
Assim também, eu que já comecei a dobrar o morro da vida e que até
esta idade quase que não deveria ter senão fervorosas graças a Deus para dar
à Providência por me haver acumulado de tantos benefícios e preenchido
quase todos os meus desejos, sou, entretanto, imaginariamente embora, um
dos homens mais desgraçados ou dos mais subjetivamente infelizes; pois
que, vítima de um esgotamento ou de uma desilusão extremamente precoce,
comecei a tornar-me um hipocondríaco e quase que um misantropo, na
idade apenas de vinte anos, ou quando a vida nada mais é para todos do que
sorrisos e flores; e desde então, por mais que reaja contra mim mesmo e
procure com o auxílio da minha razão encontrar, no tão carregado céu da
existência, uma simples aberta apenas um pouco mais azulada, é tudo
debalde; porque a biles que me derrama o fígado cada vez mais se
corrompe, cada vez mais se enegrece; e hoje tenho chegado a esse
incômodo, horrível e tristíssimo estado, em que, verdadeira sensitiva para
afligir-me, nada para mim, entretanto, existe que me possa dar prazer.
Ora, se como se costuma dizer, cada um já nasce com a sua estrela
ou com o seu destino, parece que houve na minha natureza de criança
alguma coisa que bem se poderia dizer um instinto ou um dom de conhecê-
lo; porque, tendo sido tão grande a dificuldade que mostrei de vir ao mundo,
ainda não foi menor a relutância que mostrei de nele ficar ou o esforço que
fiz para dele sair; pois que, fraco e sempre doentio, os meus primeiros anos,
pode-se dizer, que outra coisa mais não foram do que uma luta constante
contra a morte; até que, parecendo-me conformar com esse meu destino, me
tornei um menino franzino sempre, é verdade, mas sem, entretanto, nunca
mostrar uma debilidade verdadeiramente inquietadora. E o que muito
mais é, e que aqui consigno como
mais uma prova da grande verdade deste dito popular — que não há Senhor
do bom princípio — eu que fui, como acabei de dizer, um menino tão
franzino e tão doentio, desde a idade de dez anos até hoje, anda que nunca
fosse um homem forte e menos ainda vigoroso; mas que, pelo contrário,
nestes últimos tempos, posso ser considerado como um homem inutilizado
ou um velho inteiramente valetudinário a quem o sereno, a chuva, o sol,
tudo faz mal, nuca também sofri de qualquer moléstia grave que me levasse
forçadamente ao leito ou que exigisse o emprego desse nauseabundos
purgantes ou deletérios vomitórios aos quais sempre votei a mais
declarada antipatia.
Se, porém, criança doentia, como disse, quase que não havia ano, em
que não fosse atacado de febre ou de algum outro incômodo mais ou menos
grave; nunca, entretanto, a minha vida correu tanto perigo, como no ano,
senão me engano, de 1835; porque, nesse ano, como periodicamente sucede,
apareceu na Campanha a coqueluche; e esta epidemia que nas partes mais
frias de Minas é sempre tão grave, complicou-se desta vez com o sarampo, o
que lhe deu um caráter por tal forma mortal, que muito poucas foram as
crianças atacadas que ao mau não sucumbissem. E raríssimas, entretanto, ou
talvez mesmo nenhuma, foram as que se conservaram imunes um uma
semelhante epidemia. Como as outras, fui igualmente alcançado pelo mal; e
tendo, como eu, sido atacadas as duas irmãs que então tinha e que foram
também as únicas que tive, dos três fui eu o único que escapou; e ainda
assim, como por vezes ouvi dizer, se, com efeito, escapei, foi unicamente
por um milagre ou graças a um imenso cáustico que me puseram nas costas
e do qual ainda hoje conservo o sinal. Eu não cheguei a conhecer bem a
esses minhas duas irmãs; porque morreram quando a minha inteligência mal
talvez começasse a despertar-se; mas não obstante, conservo de ambas
algumas lembranças, sobretudo da primeira que se chamava Ana ou Anica,
que era mais moça do que eu apenas dez meses, que era, como eu, muito
magrinha, e com quem me lembro de ter brincado e até uma vez brigado. Da
outra que se chamava Bárbara e que morreu muito criança, apenas me
recordo que era muito gordazinha, e, ao mesmo tempo, muito clara, muito
loura e de olhos azuais como meu pai. Aquilo, porém, de que mais
vivamente conservo lembrança é do tempo em que ambas adoeceram e em
que ambas morreram; pois que não só me recordo e muito perfeitamente, de
tudo quanto então se passou; mas ainda igualmente me recordo do enterro de
uma dessas minhas irmãs, indo ela em uma cadeirinha carregada por dois
escravos fardados, dentro da cadeirinha um padre sentado, e diante do padre,
sobre um tamborete com uma colcha de damasco o seu pequenino caixão.
CAPÍTULO III
Ajudar a missa e representar na ópera era uma das maiores ambições dos rapazes
ou estudantes de certa ordem. Anjos de procissão. Três casamentos ao mesmo
tempo. Porque é que as nossas princesas não se casaram no mesmo dia. Preconceito
sem fundamento. A pompa dos casamentos e batizados. A remuneração dos padres
era generosa, mas a dos médicos e advogados era mesquinha. Os médicos não
tinham doentes, e os advogados que tinham muitas tretas, mas poucas leiras,
eram vistos com maus olhos.
Antigamente na Campanha ou nesses bons tempos em que a tão pouco se
reduziam as nossas maiores ambições, duas coisas havia que muito raros eram
aqueles que, sendo estudantes ou rapazes de uma certa ordem, nunca as tivessem
feito; e eram — ajudar a missa ou fazer um papel na ópera, como então se chama-
vam todas as representações teatrais. Ora, eu nunca tive o menor jeito para o teatro; e
nunca também quis ou nunca pude saber de cor as respostas que um sacristão deve
dar ao padre na celebração daquele santo sacrifício; e que então não havia pajem ou
molecote de padre que as não soubesse na ponta da língua.
Eu, pois, nunca subi ao palco; e nem tão pouco ajudei a missa, senão uma
única vez quando já estava casado e já era mesmo um homem de alguma
importância; e ainda assim, para nesse ato representar o mais ridículo de todos os
papéis; pois que, desempenhando uma cerimônia que eu não sabia nem jamais tinha
praticado, tive de ajudar a essa missa de cartilha na mão, e por uma tal forma
atarantado; que, por mais que me esforçasse por ser atento, raríssima era a vez que
alcançasse ouvir a deixa para entrar em cena ou que pudesse fazer ou dizer alguma
coisa sem ponto ou aviso.
Se, porém, nunca representei no teatro e se, à exceção dessa única vez de que
acabo de falar, nunca ajudei a missa; o que era, como já disse, a grande ambição e o
grande orgulho dos rapazes daquele tempo, eu, entretanto, muito cedo comecei e até
muito tarde continuei, sem a menor intermitência, a ser aquilo que todos os meninos
tanto desejavam e que todos mais ou menos
foram; isto é, anjo nas procissões. E o que me parece é que eu tinha mesmo
nascido para ser anjo; porque não havia quem não me achasse um anjo
muito bonito; e quem ainda muito mais bonito me achava, vinha a ser eu
mesmo; quando, pondo-me a me contemplar, eu, com maior orgulho
talvez ainda do que mesmo vaidade, me via com aqueles meus
sapatinhos de cetim de longas fitas que me trepavam trançadas pelas
pernas calçadas de meias de seda cor de carne; com o meu saiote (
então sem arco) também de seda, mas de uma seda toda ricamente bordada,
e a fio de prata; com as minhas grandes nuvens de filó e asas naturais
de garça postas sobre as costas; com o meu turbante ou capacete todo cheio
de plumas e de pedras preciosas; e finalmente, e, sobretudo, com aquele peito
tão rico e tão brilhante que me cobria a frente e com o qual eu ansiava e mal
podia; tão grande era o peso da pedraria que levava. Entretanto, por
maior que pareça, e que realmente fosse, a riqueza deste meu
vestuário a despesa que ele ocasionou, não só não foi das maiores;
mas pode-se dizer que a muito pouco reduziu-se; porque as pedras
eram de casa ou dos parentes e a maior parte do vestuário nada mais era
do que restos aproveitados do vestuário com que minha mãe se
apresentou no dia do seu casamento; vestuário este, que foi realmente muito
rico; pois que, sem falar no mais que não me lembra, ela se casou com um
vestido, ou não sei se saiote, de tal seda bordada de prata; com um rico
turbante de plumas que eu ainda vi guardado; e com um grande véu, que,
preso ao turbante ou à cabeça, lhe cobria a maior parte do corpo; entretanto,
que meu pai se casou de calções de casemira branca e creio que também de
espadim; pois foi só o que eu ainda alcancei e pude ver.
E já que falo nesse casamento dos meus pais, eu aproveito o ensejo
para dizer que foi esse um dos casamentos da Campanha que deixou maior
fama; não só por causa da pompa e aparato que nele houve; mas ainda
porque juntamente com meu pai casaram-se na mesma ocasião duas pessoas
muito importantes da Campanha — o meu parente Major Salvador Machado
e Oliveira que se casou com uma filha do Major Joaquim Inácio Vilas Boas
da Gama e meu bisavô Major Gaspar que se casou com uma sobrinha que se
chamava D. Maria Cândida de Paiva. Foi, pois, um tríplice casamento, e um
casamento em que pode-se dizer, figuravam as três idades da vida; a saber:
— a mocidade representada por meus pais dos quais o noivo teria então vinte
anos mais ou menos e a noiva quinze; a virilidade pelo Major Machado que
já tinha andado pelas guerras do sul como cirurgião-mor; e a velhice pelo
meu bisavô que já era então mais que sexagenário talvez, e que agora
contraía as suas terceiras núpcias.
Dizem que estes casamentos, feitos assim ao mesmo tempo, quase nunca são
bons. E este prejuízo é tão geral, que, segundo ouvi dizer, foi esse o verdadeiro
motivo, porque as nossas princesas não se casaram no mesmo dia e teve-se de fazer
duas festas em vez de uma. Nem se vá agora pensar que foi isso obra do nosso
imperador; que tenho algumas vezes ouvido ser acusado de céptico: mas nunca me
constou que fosse supersticioso. 0 obstáculo veio de outra origem ou de quem nunca
constou que servisse de obstáculo a coisa alguma; isto é, da boa mãe das princesas
ou dessa nossa velha imperatriz, que, embora tenha, segundo dizem, um grande
número de virtudes; como verdadeira italiana de Nápoles, não deixa de ter o seu
fundo maior ou menor de superstição; e que por isso, pela primeira vez, nesta
ocasião, mostrou que tinha vontade; pois que, repito, segundo ouvi dizer, nada houve
que a obrigasse a consentir em que os dois casamentos se fizessem no mesmo dia; e
isto, somente por esse receio de alguma desgraça.
Ora, que este prejuízo é absurdo, como são quase todos os prejuízos
populares, é isso uma dessas coisas que nem merecem discussão. E para desmenti-lo,
eu tenho só em casa nada menos de dois exemplos: e desses exemplos um me é até
pessoal; pois, quando me casei, assim como meu pai, tive também dois compa-
nheiros de matrimônio; e, embora já não estejam muito longe as nossas núpcias de
prata, todos até agora têm sido mais ou menos felizes. Quanto ao outro exemplo, é
esse do casamento dos meus pais; pois que, sendo um tríplice casamento e em que se
notava a mais completa diversidade não só de idade, mas ainda, de gênio, de modo
de vida, e de muitas outras circunstâncias, nenhum desses casamentos se pode dizer
que fosse infeliz; mas antes pode-se dizer que foram até todos felizes. Mesmo o meu
bisavô, que se casou com uma sobrinha que podia ser sua neta, e que só por esse fato
poderia ser talvez desgraçado, nem esse mesmo o foi; pois que, tendo falecido, senão
me engano, em 1846, e tendo, por consequência, vivido ainda 15 ou 16 anos depois
que se casou; durante todo esse tempo, ele nunca deixou, do que dou testemunho, de
ser sempre muito estimado e muito respeitado por sua mulher; cuja dedicação por ele
se revelou verdadeiramente heróica, quando, já no fim dos seus dias, pegando fogo
na cozinha da sua casa, o pobre velho, sobressaltado e trôpego, corre a ver o perigo;
pisa em uma tábua já carcomida pelo fogo; cai no meio das chamas; e a sua jovem
mulher sobre ele se atira e toda queimada salva-lhe a vida. Ora desse pouco que
acima disse sobre o modo como se fez o casamento de meus pais, facilmente se
qual não era a magnificência e o brilhantismo com que naquele tempo se fazia um
casamento de pessoas da mais alta sociedade, e agora acrescen-
tarei, que essa magnificência não se limitava unicamente ao vestuário ou mesmo às
festas que ao casamento se seguiam; mas que se estendia a tudo; e que daqueles que
melhor a podiam apreciar ou dela tirar maior proveito, nenhum ocupava um lugar
talvez mais saliente do que o padre que celebrava o casamento.
Assim, pode-se dizer que os batizados e os casamentos de certa ordem eram
para os padres daquele tempo, exatamente o que hoje costuma ser para um médico
uma boa operação ou para os advogados certas defesas no júri; pois que, se a
espórtula oficial ou legal dos padres por um casamento qualquer estava na mesma
proporção do que se lhe arbitrava e do que ele unicamente levava por uma missa
rezada e que era meia oitava ou duas patacas; quando se tratava de um desses
casamentos de gente elevada, ninguém lhes pagava pela tabela; mas, quando o
sacristão apresentava o livro fechado para sobre ele se pôr a espórtula devida os pais
dos noivos e todos os padrinhos nunca deixavam de pôr ali cada um a sua; e essa
espórtula não consistia unicamente em simples patacões ou em quaisquer outras
moedas de prata e nem mesmo em pequenas moedas de ouro; porém, sim e não
poucas vezes nas maiores desta espécie que então havia e que eram as meias dobras,
as dobras e os dobrões; e tão arraigado tinha-se tornado este costume; que ainda
quando, tempos depois, a moeda metálica foi diminuindo até quase desaparecer de
todo, para esses atos sempre alguma aparecia.
Só os coitados dos médicos e dos advogados é que nunca tinham destas
gordas manjubas; os primeiros porque não pareciam muito necessários em um tempo
em que tanta gente sabia curar e não matava mais do que eles; e os segundos por que
sendo todos eles uns homens que tinham tanto de poucas letras quanto tinham de
muitas tretas; eram geralmente olhados com muito maus olhos.
Verdade é, que, assim como os vigários pareciam não ter mãos para medir o
que recebiam dos seus fregueses que de tudo lhes atulhavam as casas; assim também
os médicos e advogados não deixavam de ser mais ou menos obsequiados pelos seus
doentes e clientes; mas, nestes casos, o que principalmente importa e na realidade
avulta, é aquilo com que se compram os melões; e por este lado, o negócio era
extremamente excasso. Assim, conforme todos sabem, naqueles tempos não havia
nem júri nem advocacia administrativa; e se, privados dessas duas tretas que a tanta
gente engordam hoje, os advogados daquele tempo nunca poderiam fazer mundos e
fundos; faça-se ideia do que seriam os seus lucros quando se souber, que, se não
cobravam exatamente pelo contado, entretanto, sempre cobravam em uma certa
proporção mais ou menos relativa ao contado; e que esse era tal, que havia
partilha
em que o salário do partidor era apenas de cento e cinquenta réis. Ora com o médico
dava-se a mesma coisa não só porque eles quase nunca faziam operações, ou se
faziam as cobravam como simples ato de obrigação do seu ofício; mas ainda porque
nenhum deles se atrevia a cobrar uma cura por estimativa e sobretudo por uma
estimativa que só ele conhecia ou que só por ele era arbitrada com uma imaginação
verdadeiramente gananciosa. Os médicos, portanto, ou, como se chamavam, os
cirurgiões daquele tempo, nada mais cobravam do que as visitas que faziam aos seus
doentes e cujo preço convencional e que era de todos conhecido, era apenas de duas
patacas; mas duas patacas estas, que podiam multi-plicar-se muito; porque o
costume dos médicos na Campanha era o de sairem a cavalo todos os dias depois do
almoço e do jantar para irem visitar os seus doentes; e uma vez que eram chamados,
nunca deixavam de visitar o enfermo uma ou duas vezes por dia, conforme a
gravidade da moléstia, até que o desse para o chão ou que o mandasse para a cova.
Entretanto, apesar da modicidade dos seus emolumentos, e de os receberem,
sem arrancá-los e nem sequer esticá-los, toda essa gente daquele tempo acabava
quase sempre por mais ou menos se arranjar; ao passo que hoje, em que não se fala
mais em oitavas nem patacas, mas unicamente em dezenas e centenas de mil réis, e
em que, além disso, quase que não se vê por toda a parte senão arte de berliques e
berloques, se alguns se arranjam; a maior parte anda sempre com a sela na barriga e
deixam quase sempre a família na miséria. À primeira vista, um tal fato admira; mas
a sua explicação é simples; e é, que não basta ganhar muito; mas é preciso saber
guardar; entretanto, que isto, que era antes uma virtude, hoje, ainda mesmo de
muito longe, cheira a ridículo.
CAPITULO IV (*)
Uma reminiscência muito antiga da primeira infância. O fato, a princípio
incompreensível, mais tarde se esclareceu. Sua relação com a insurreição
mineira de 1833. Dos baixos de uma casa para os píncaros da política. O
Numa Pompilio do Brasil: Bernardo Pereira de Vasconcelos. 0 elogio deste
grande estadista. A atitude da província em face daquela insurreição e uma
anedota histórica pouco conhecida ou ignorada.
Querendo, quanto for possível, neste meu trabalho, observar uma
certa ordem cronológica ou a ordem em que as impressões sucessivamente
foram segurando nas circunvoluções do meu cérebro ou na tábua rasa do
meu espírito, eu disse em um dos artigos precedentes, que as minhas
primeiras recordações se referiam às minhas duas irmãs; e me parece, que, a
este respeito, não me engano. Há outra reminiscência, entretanto, cuja data
precisa não posso determinar, mas que considero ser das primeiras ou das
mais antigas que conservo; e é dela que vou agora me ocupar. Essa
reminiscência é a de um fato o mais insignificante que é possível; visto que
na realidade, de nada mais se trata do que o ter eu visto nos baixos da casa
do meu avô umas tábuas que ali se guardavam, e pelas quais nunca podia
passar sem que me chamassem a atenção pelo seu cumprimento e pelo modo
com que estavam serradas ou afeiçoadas. Sempre que se me oferecia oca-
sião, eu nunca deixava de perguntar o que era aquilo; mas por mais que
perguntasse ou que especulasse, como se diz das crianças que muito querem
saber demais, a resposta que se me dava ou a única que podiam dar-me,
quase que não passava disto — que eram as tábuas do arco — e eu ficava
sempre na mesma; porque não podia saber e nem mesmo compreender
talvez o que pudesse ser um tal arco; quando esta palavra, outra ideia não me
sugeria que não fosse a do arco de bater algodão, único que então conhecia,
ou a de outro ainda muito menor — a daquele que os
(*) Nota: — Este capitulo está riscado no original, parecendo que o autor quis suprimi-
lo por qualquer motivo que não julgou necessário declarar.
meninos fazem de taquara para com ele atirarem varinhas como se fossem setas.
Algum tempo, porém, depois, não só cheguei a compreender o que era esse arco;
mas ainda soube também o motivo por que havia sido esquecido. E como esse
motivo é justamente o que dá a esta minha recordação uma real importância; sem
deixar a recordação de parte, para só me ocupar da associação de ideias que ela veio
em mim despertar; eu vou, por consequência, dar um imenso salto dos baixos da
casa do meu avô para mais altos píncaros da nossa vida política.
Todos sabem que foi em 1883 que teve lugar a sedição militar de Ouro
Preto; mas o que hoje já está um pouco esquecido é o imenso entusiasmo e a
verdadeira alacridade com que imediatamente a província se ergueu-para sufocá-la
em poucos dias. Para isso, apenas chegava a notícia da sedição a qualquer lugar, ime-
diatamente e mesmo talvez sem que de cima tivessem chegado as precisas ordens, a
Guarda Nacional reunia-se; e sem mais demora partia para a capital em contingente
maior ou menor. Ora nesse tempo, meu avô era o comandante superior da Guarda
Nacional (Ta Campanha; e apenas teve a comunicação daquela sedição, com a
maior presteza fez partir o contingente que lhe cabia dar. E digo — .que lhe cabia
dar; porque o entusiasmo era tanto, que alguns moços, e das melhores famílias, não
tendo sido designados para fazer parte da expedição, esperaram que ela partisse, e
alguns dias depois fugiram das casas de seus pais e foram em caminho a ela se
ajuntar. A Guarda Nacional não entrou em fogo; porque vendo os sediciosos que a
província se levantava toda para esmagá-los, perderam logo o ânimo, e apenas o
General Pinto Peixoto se aproximou da capital, com as primeiras forças que teve à
mão, imediatamente se renderam.
Debaixo, pois, do ponto de vista puramente militar, a vitória que se havia
alcançado, era Uma vitória sem glória; visto que havia sido alcançada sem esforço
ou tinha se tornado incruenta. No meio, porém, de tudo isto, aparecia uma vitória
infinitamente maior e um triunfo muito mais esplêndido, do que tudo isso que se tem
por costume considerar a maior de todas as glórias — a glória militar — e essa
vitória e esse triunfo de que falo, foi a vitória do mais santo de todos os sentimentos
— o de patriotismo desinteressado —, e o triunfo do mais respeitável dos vencedores
a opinião pública. Ora meu Avô quis também pela sua parte celebrar esse triunfo nas
pessoas daqueles que mais de perto concorreram para a vitória; e no meio das festas
que se fizeram para celebrar a volta dos guardas nacionais da Campanha, estes
passaram cobertos de flores e ao som dos hinos patrióticos debaixo desse arco
que, para eles, meu Avô havia mandado erguer em
frente da sua própria casa. Assim pois, vê-se, que nesta ocasião não só meu avô
concorreu, pelo que dele dependia, para o triunfo da ordem pública; mas que ainda,
não contente com isto, procurou celebrá-lo com brilho e até com uma certa
magnificência. Nem foi este o único serviço que ele prestou à liberdade e ao seu
país; mas outros muitos já havia prestado e ainda continuou a prestar; como daqui
a pouco terei ocasião de falar.
Antes, porém, de o fazer, quero referir primeiro uma anedota, que se liga à
essa sedição militar de Ouro Preto, que julgo pouco sabida ou talvez inteiramente
ignorada, e que embora seja de muito pouca importância em si, me parece que eu
não poderia sem uma como que falta de dever, deixar de aqui a mencionar; não
porque ela nos dá a conhecer um dos lados do caráter de Manuel Inácio de Melo e
Sousa, depois Barão de Pontal, e de Bernardo Pereira de Vasconcelos, aquele o
presidente e este o vice-presidente da província que foram depostos pelos sediciosos;
mas ainda e muito principalmente, porque, na minha opinião, Vasconcelos é um
desses homens raros que honram a um país qualquer; e cuja memória portanto,
manda-nos o pariotismo, que nunca olvidemos, mas que procuremos pelo contrário
conservar por todos os modos. E, de fato, o que nos diz a história e mais talvez ainda
a tradição, é que, jornalista, parlamentar, administrador, p sobretudo legislador,
Bernardo de Vasconcelos foi um homem verdadeiramente excepcional. Em alguns
destes seus predicados, não seria de admirar, que ainda venhamos a ter muitos que o
igualem e que até mesmo o excedam; sobretudo se atendermos quando era profundo
e quase que geral o atraso que existia em nosso país no tempo em que Vasconcelos
viveu; entretanto que hoje, a ilustração vai cada vez mais se estendendo; e qualquer
ministro ou candidato a ministro, não só tem muito quem por ele trabalhe, estude e
faça, mas que ainda, embora um pouco pela rama, não entenda ele mesmo um
poucochinho de quase tudo.
Se, porém, não é difícil, que encontremos oradores ou jornalistas, por
exemplo, que pelo brilho de sua pena ou da sua palavra possam competir com a
grande profundeza e a sarcástica argumentação de Vasconcelos; aquilo, entretanto,
que se me afigura dificílimo e talvez mesmo como um pouco impossível, é que tão
cedo nós cheguemos a ter um segundo ele mesmo, ou que cheguemos a ter um
homem que consiga, já não digo, reunir em sua pessoa todas as qualidades que ele
efetivamente possui e que possuía em um grau tão elevado; porém que possa
simplesmente igualá-lo nessa única em que mais primava — a de um legislador pro-
fundo, metódico, preciso e claro, ou para dizer em uma só palavra — perfeitamente
consumado.
Nem se diga que tudo isto não passa de pura declamação ou de uma simples
exageração provincialista; porque mesmo sem falar no testemunho que de tudo isto
nos dá a coleção das nossas leis provinciais; para prova de tudo isto, bastaria apenas
o nosso Código Criminal, o nosso Ato Adicional e até mesmo a organização do
colégio de Pedro II; entretanto, que são tantos e de tantas espécies os atos que
partiram de Vasconcelos c que se encontram na coleção feral das nossas leis; que se
pode dizer, e dizê-lo talvez sem a menor hipérbole, que gênio verdadeiramente
criador Bernardo de Vasconcelos não fez unicamente muito; mas que ainda tudo
quanto ele fez, era tão perfeitamente acabado, que todas as suas obras ainda mais ou
menos perduram; e que ninguém pode nelas ter ousado tocar, sem que
imediatamente as estrague, quando mais não seja as deforme.
Nem Vasconcelos fez só aquilo que ele assinou ou que aparece como sendo
dele; mas se até à sua morte, muitos são os referendários das nossas leis, o que
parece não estar muito longe da verdade, é que desde a 1ª até a 5.ª legislatura, talvez
nas nossas coleções não se encontre uma só lei ou um só regulamento da nossa mais
alta administração, que mediatamente, não seja uma concepção ou uma produção
daquela imensa cabeça, na qual, como se nela se concentrassem todas as forças que
os membros haviam perdido, as ideias borbulhavam como que em uma vasta
caldeira fervente, e da qual, entretanto, nunca subiam senão com a maior ordem e o
mais perfeito método. Entretanto este homem, que poderia talvez e com toda a razão
ser apelidado o nosso Numa Pom-pilio e que foi incontestavelmente um grande e
incomparável gênio, nos oferece duas grandes singularidades. A primeira é, que fez
uma péssima figura como estudante; pois que, segundo muitas vezes ouvi dizer, ele
tinha por costume gabar-se, de que a sua carta nunca havia sido manchada com uma
só plenamente; entretanto que, segundo nos diz a história, os seus primeiros
discursos na câmara dos deputados nem sequer de leve anunciavam o grande orador
que muito em breve ia ali se revelar; o que tudo prova, que as melhores inteligências
nem sempre são as mais precoce, porém, sim aquelas que, sem nunca darem voos,
vão sempre se desenvolvendo e sempre progredindo até a própria velhice.
Quanto à segunda singularidade, é que vendo Vasconcelos um homem de
uma capacidade intelectual tão grande, nunca foi, entretanto, um simples ideólogo
ou um desses políticos simplesmente especulativos, como esse tão célebre abade
Sieyes; mas que pelo contrário, administrador prático, sagassíssimo político e ho-
mem capaz de todas as energias, como bem o demonstrou nesse seu tão afamado
ministério das 48 horas, era Vasconcelos ao mesmo
tempo dotado de uma coragem à toda prova e do mais profundo sangue frio. E é isto
o que nos mostra a anedota de que falei e que agora vou contar.
Tendo sido deposto o presidente e o vice-presidente da província,
consentiram os sediciosos que ambos pouco depois se retirassem para fora da
capital; e foi este com certeza o maior de todos os seus erros; porque apenas
Vasconcelos se viu fora de Ouro Preto, sem mais demora organizou a resistência
contra a revolta, e a revolução imediatamente contrastada, teve de nascer e morrer
dentro dos muros da capital.
A saída, porém, de Vasconcelos e do seu companheiro, não impediu que
antes de retirarem-se, pudessem presenciar os violentos desabafos e o alegre tripúdio
da revolta triunfante ou que por algum tempo passassem pelas mais terríveis
angústias de um grande perigo que lhes parecia iminente e ao mesmo tempo incerto.
E a verdade manda que diga que nenhum dos dois se mostrou nesta ocasião
intimidado ou pelo menos muito aterrado.
Se, porém, ambos não se mostraram nesta ocasião tomados de um susto
excessivo ou desonroso, entre eles, havia, entretanto, esta muito grande diferença,
que ao passo que Vasconcelos via e ouvia tudo como um simples espectador apenas
que observa e toma notas; Manuel Inácio, pelo contrário, que era de um genio
nervoso e insofrido, parecia mais ainda sentir-se das alegrias que tão
estrondosamente se mostravam pela sua deposição do que talvez mesmo pela própria
deposição; de sorte que durante todo o tempo que se conservaram nesta ansiosa
espectativa, um não fazia senão exasperar-se cada vez mais, e o outro a rir-se e a
chas-quear dos sediciosos e até mesmo do seu próprio companheiro; até que vendo
Vasconcelos que este último cada vez mais se irritava com os foguetes que sem
cessar subiam ao ar, a modo de conselho ou de consolação lhe disse, que em vez de
estar assim a se afligir sem o menor motivo, melhor fora, que se pusesse a contar
cada um dos foguetes que os seus inimigos fossem soltando. Manuel Inácio não
compreendeu o alcance daquele dito; e parece mesmo que não deixou de enfadar-se
um pouco; respondendo-lhe que as circunstâncias eram muito sérias, para que se
tratasse de chalaças. Vasconcelos, porém, sem mudar de tom nem de modos, mas
sempre metendo o caso a ridículo, procurou então mostrar a Manuel Inácio, que
longe de estar gracejando, estava, pelo contrário, falando muito a sério; e para fazer
esta demonstração, ser-viu-se do seguinte raciocínio: Um foguete custa uma pataca;
cada foguete que soltam é uma pataca que lhes sai das algibeiras e quanto mais
daqueles soltarem tanto mais vazias estas ficarão;
ora, o nervo da guerra é o dinheiro; logo quanto mais foguetes soltarem, tanto mais
depressa ficarão vencidos. E o que é certo é que durante toda a sua vida, nunca
Vasconcelos desmentiu a coragem e o sangue frio que nesta ocasião mostrou.
Eu, porém, disse, que meu avô tinha prestado muitos serviços ao país; e de
fato, não só me parece certo que no círculo mais ou menos limitado da sua influência
muito fez como liberal e patriota; mas ainda me recordo de haver ele um dia me
mostrado em seu escritório um grande maço de papéis que ali guardava e de me
haver dito que eram os documentos de todos ou da maior parte dos serviços que
durante toda a sua vida nunca tinha deixado de prestar ao governo e à sua pátria;
acrescentando, que tendo sido condecorado no primeiro reinado com o hábito de
Cristo e no segundo com o oficialato e depois com a comenda da Rosa, pessoal-
mente já deles não precisava; mas que não obstante os guardava sempre e até mesmo
com o maior cuidado, porque poderiam servir algum dia a algum dos seus
descendentes.
Eu era então muito moço para que pudesse dar a tais coisas uma importância
qualquer; e é até muito provável que a comunicação de meu Avô não despertasse em
mim mais do que algum sorriso de desdém pela vaidade do pobre velho.
Hoje, porém, sinto um real pesar e quase que até mesmo uma espécie de
remorso de não ter então lido aquele volumoso e ao mesmo tempo tão bem guardado
maço de documentos; não só porque entre eles poderia achar talvez algumas
circunstâncias históricas que merecessem alguma atenção; mas mesmo porque me
causaria hoje prazer e quiçá mesmo algum orgulho o conhecimento que eu tivesse
desses tantos serviços que meu Avô dizia ter prestado. Em todo caso, dois pelo
menos desses serviços conheço eu e vou agora registrá-los.
Sendo em um ano que não posso precisar, chamado à Corte o regimento de
milícias da Campanha, não sei se para seguir para o sul ou com que outro fim, meu
Avô com ele partiu na qualidade de major ou não sei se já de Tenente Coronel que
acabou por ser. 0 regimento, porém, não passou da Corte e algum tempo depois
voltou para a Campanha.
Quanto ao outro serviço, ele o prestou, ainda na qualidade de comandante
superior da Guarda Nacional da Campanha, por ocasião de uma insurreição de
escravos que se deu na fazenda de um dos meus parentes Junqueiras. Os escravos
cometeram contra a família do senhor as maiores atrocidades; a insurreição se esten-
dia; e as circunstâncias se tornavam extremamente graves; quando
meu Avô ao ter notícia do que se passava, mesmo sem ordem, fez partir a
Guarda Nacional; a insurreição é imediatamente abafada; e as medidas que
ele tomou foram tão prontas e tão acertadas, que segundo ele dizia,
mereceram do governo a mais completa aprovação e elogio.
Eu não tenho a menor lembrança de ter visto partir essa força, o que
não me teria escapado, se eu tivesse mais de quatro anos. É, pois, de supor
que fosse antes de 1836 e se foi, como suponho, em 1834 ou no princípio
talvez de 1835, é muito provável, que essa insurreição fosse a causa
ocasional dessa tão célebre lei de 10 de junho, de cuja revogação se
trata agora.
CAPÍTULO V
As recordações que mais vivas se conservaram na memória infantil do
autor, foram as da vida política do país. A explicação do fato pela
influência do meio em que viveu. As ideias liberais inflamavam os corações.
O entusiasmo cívico era grande e as comemorações públicas agitavam as
populaças. Alvoradas e luminárias. O primeiro grande homem que o autor
conheceu foi. Evaristo da Veiga. O segundo foi o padre Diogo Antônio
Feijó. Feijó se hospedou na casa do avô do autor e, na mesa, não
dispensava nunca a compoteira de melado
De ordinário as nossas primeiras, mais agradáveis e ao mesmo tempo
mais firmes recordações, quase que não tem por objeto, senão aquilo que
constitue o círculo comum e muito limitado da vida de uma criança e que
pode se dizer, se resume, ao princípio, nos seus jogos infantis e nas suas
relações com as outras crianças, e algum tempo depois nos seus pequenos
desejos e pequenas vaidades mais ou menos satisfeitas.
Pois, comigo, deu-se um fato que se não é inteiramente contrário,
parece ser muito pouco comum; e vem a ser que as minhas recordações
daquela natureza tendem constantemente a se apagarem ou a irem se
tornando cada vez mais confusa ou longínquas; entretanto que as que mais
nítidas se conservam, são as que se referem a atos públicos, ou mais
propriamente a atos e circunstâncias da nossa vida política.
0 fato tem, entretanto, quanto a mim, uma explicação plausível e
muito natural; e é, que nasci e me criei no tempo da regência; e que nesse
tempo o Brasil vivia, por assim dizer, muito mais na praça pública do que
mesmo no lar doméstico; ou, em outros termos, vivia em uma atmosfera tão
essencialmente política que o menino, que em casa muito depressa aprendia
a falar liberdade e pátria, quando ia para a escola, apenas sabia soletrar a
doutrina cristã, começava logo a ler e aprender a constituição política do
império.
Daqui resultava que não só o cidadão extremamente se interessava
por tudo quanto dizia respeito à vida pública; mas que
não se apresentava um motivo, por mais insignificante que fosse, de regosijo
nacional ou político, que imediatamente todos não se comovessem ou que desde logo
não se tratasse de cantar um Te-Deum mais ou menos solene e ao qual todos, homens
e mulheres, não deixavam de ir assistir; ou que não fosse isso ocasião para que à
noite, pelo menos, se tratasse de por na rua uma bonita alvorada, mais ou menos
estrondosa. Como, porém, esta palavra — alvorada — etimologicamente não explica
talvez bem a coisa que vai-se acabando ou que hoje talvez já nem ao menos exista,
eu vou aqui dizer o que é que então se tinha por costume de chamar uma alvorada.
Quando se tratava de manifestar o regosijo geral por qualquer ato político,
ou público, apenas a noite começava a escurecer, toda a vila tratava logo de
iluminar-se; e esta iluminação se fazia pela forma seguinte:
Nas casas mais ricas ou de maior luxo, suspendia-se em cada um dos portais
de todas as portas e janelas uma lanterna de folha de flandres com vidros e, dentro,
uma vela.
Em outras casas essa lanterna era substituída por uma espécie de palmatória
ou de uma rodela de tábua, que além de ter no seu centro um lugar apropriado para
se por a vela, era rodeada por uma meia folha de papel branco, em cuja frente se
achavam pintadas as armas imperiais ou simplesmente os ramos de fumo e de café;
e, dentro deles, dísticos alusivos ou patrióticos.
E finalmente na maior parte das casas, e sobretudo nas dos pobres, em vez de
lanternas, a iluminação se fazia por meio de umas lamparinas, que se chamavam
luminárias, e que, parece, era antigamente o único meio de iluminação que se
empregava; visto que, na linguagem vulgar, o por luminárias era sinônimo de ilu-
minar-se a povoação; entretanto que essas luminárias nada mais eram do que umas
pequenas panelinhas de barro, que, cheias de azeite de mamona e com uma torcida
de algodão acesa, eram colocadas em maior ou menor número sobre as vergas de
todas as portas e janelas, o que não só de perto mas sobretudo de longe, não deixava
de fazer uma bonita vista. Fosse, porém, qual fosse o meio de que cada um se servia
para iluminar as suas casas, o que é certo, é que nenhuma ficava que não fosse, mais
ou menos iluminada; e até o próprio carrasco, que morava em um morro vizinho e
em um pequeno ranchinho que ficava quase que dentro do mato, até esse não
deixava de por na pequena janela do seu casebre as suas duas pequenas luminárias,
que, vistas de longe e mais ou menos agitadas pelo vento, muito se assemelhavam a
dois grandes vagalumes a relampaguear no mato.
Desde que a povoação começava também a concorrer para o largo da cadeia
onde estava a casa da câmara; e logo que chegava a hora anunciada ou que a reunião
já estava bastante numerosa todos se punham em movimento, tendo à sua frente o
juiz de paz com o seu fitão; e, com fogos e música, percorriam as principais ruas da
povoação, dando, de distância em distância, entusiásticos e estrondosos vivas; e dos
quais os primeiros e sempre infalíveis eram — à nossa santa religião, à constituição
política do Estado e ao Imperador. .
Como parar em frente a uma casa para dar os vivas, era um sinal de
consideração para os habitantes dela; se na casa havia uma ou mais senhoras que
sabiam cantar, logo todos se dirigiam para as janelas, e uma das que tinham melhor
voz ou a que era mais desembaraçada, dali mesmo cantava o hino patriótico, que
umas vezes era ouvido em silêncio pelo povo e outras por ele respondido ou
acompanhado; o que, devo dizer, era realmente bonito e capaz de entusiasmar ainda
mesmo aos mais frios ou indiferentes.
Em outros casos, em vez do hino, o que se achava era uma grande mesa de
doces que tinha sido com antecedência preparada; e para a qual, sendo convidado, o
povo entrava sem a menor distinção, e ali comia e bebia à sua vontade.
E assim se levava até muito alta noite. Ora, tendo eu nascido naturalmente
inclinado para a política, e tendo sido criado em um semelhante meio, em que tudo
parecia conspirar para fazer correr a quem já tinha nascido para disparar; o que
aconteceu foi, que não havia uma só festa política ou uma eleição ainda mesmo de
grande perigo, como a de 1840, a que eu não fosse assistir; e aos dez ou doze anos eu
já sabia tanto de política e de eleições, que eu mesmo muitas vezes me sorria da
admiração e quase pasmo que se apoderava dos meus parentes roceiros, quando eles
me viam tão pequenino e tão pernóstico, como eles diziam, saber a este respeito, não
só tanto, mas talvez mesmo muito mais do que eles, já eram homens, e que se tinham
na conta de pessoas de mais ou menos importância social e política.
Daqui resultou, que, não só, como disse, eu conservo ainda muito claramente
todas as impressões políticos de minha meninice, mas que não há homem algum de
importância política que em menino eu tivesse visto, do qual eu ainda hoje não
conserve as feições, os modos, e até de alguns as próprias palavras que cheguei a
ouvir. Ora, eu muito cedo comecei a ver e a conhecer a alguns dos nossos homens
políticos; e posso mesmo dizer, alguns dos nossos mais grandiosos vultos políticos;
porque sendo o chefe
do partido liberal na Campanha; tendo, além disso, sido membro da
assembleia provincial na sua primeira legislatura; e tendo, em todos os
tempos, sempre sentido um grande fraco para todas as grandezas; meu avô
desde muito cedo começou a travar relações com os grandes homens
daquele tempo; e raro era aquele que passava pela Campanha ou que, indo
tomar as águas virtuosas do Lambari, chegava àquela vila, que não fosse
ser ali seu hóspede.
De todos os nossos grandes homens, porém, o primeiro, que eu
conheci, foi Evaristo Ferreira da Veiga, que tornou-se, como todos sabem,
tão célebre nos primeiros tempos da nossa existência política, não só pela
imensa influencia que então exerceu o seu jornal a Aurora Fluminense; mas
ainda pela grande autoridade que tinham os seus conselhos no seio do
grande partido nacional a que ele então pertencia, de sorte que, tendo se
tornado um dos mais poderosos demolidores do primeiro reinado, ele
tornou-se ao mesmo tempo um dos mais modestos e dos mais esforçados
fundadores das nossas liberdades.
Todas as lutas, porém, acabam por cansar-nos, e muitas vezes
mesmo por nos arruinar a saúde; e como Evaristo se sentisse cansado e mais
ou menos enfermo, assentou de ir visitar alguns parentes que tinha na
Campanha e de ir ao mesmo tempo retemperar as suas forças naquele
delicioso clima, que, além de ameno, é sempre tão benéfico; e onde parece
que achou, com efeito, o que procurava, pois que, embora ali se tivesse
demorado bastante tempo, quando de lá partiu, parece que ainda saiu como
que arrancado; e é isto o que muito claramente se vê de algumas qua-
drinhas que em despedida ele então fez àquela vila e das quais, embora eu
não possa garantir uma perfeita exatidão, três ainda conservo de memória e
são as seguintes:
Adeus vila da Campanha Que
deixo triste e saudoso,
Descansando em teu regaço
Quatro meses fui ditoso.
Nunca de minha memória
Fugirão tão belos dias;
Apagará sua ideia As cruéis
melancolias.
Nem políticas tormentas. Nem a
intriga e seus furores, Vieram aqui
turbar Da paz cândida ou favores.
(*)
(•) Nota:
Na Província de Minas, o excelente seminário de J. Pedro Xavier da
Veiga, têm-se publicado, na parte literária, uns valiosíssimos artigos, lntitu-
Eu sei precisamente o ano em que Evaristo foi à Campanha; mas deve ter
sido em 1837 mais ou menos; visto que a sua estada ali, foi justamente quando se
tinha dado ou ia dar-se o grande rompimento do partido moderado ou quando
Bernardo de Vasconcelos, levantando a bandeira do regresso, ia criar o atual partido
conservador.
Evaristo, entretanto, ainda não tinha até então se manifestado sobre este
ponto, mas, pelo contrário, antes de pronunciar-se ou de dizer a este respeito a sua
última palavra, parece que estudava, refletia, e cada vez mais se concentrava, tão
melindrosa e grave lhe parecia talvez uma resolução qualquer sobre este ponto. O
que é certo é que não se tendo declarado, ele continuou a ser o mesmo para todos; e
tão entusiástico e tão unânime foi na Campanha o acolhimento que lhe fizeram, que,
tendo-se de lhe oferecer um grande jantar ou, como então se dizia, um grande
banquete, não se achou que houvesse para isso uma sala que bastasse; e esse
banquete teve de lhe ser dado ao ar livre ou no quintal da casa da rua Direita que faz
frente para o largo da Matriz e que, pelos fundos, confinando com o do meu avô,
hoje é de propriedade dos herdeiros do Dr. Luiz Soares de Gouveia Horta.
lados —• Minhas recordações, — escritos do Sr. Paula Rezende, que multo
brindou a história de Minas com tão bem elaboradas linhas.
Referindo-se ao grande publicista brasileiro Evaristo Ferreira da Veiga dá a
lume o erudito Sr. Paula Rezende três quadras — únicas que sua memória conserva
— de uma poesia que aquele compusera, ao retirar-se, em 1837, da então vila da
Campanha.
Conhecendo nós essa poesia na sua Integra, damos hoje, como mimo
oferecido aos nossos leitores, — a última composição de Evaristo da Veiga.
Extraimo-la de um periódico antigo, publicado no Rio de Janeiro e ilegível
Universal, no volume do ano de 1838. Ei-la:
POESIA BRASILEIRA ÚLTIMA COMPOSIÇÃO
DE EVARISTO FERREIRA DA VEIGA
Despedida
Adeus, vila da Campanha, Que
deixo triste saudoso, Em que da
paz no regaço, Quatro meses fui
ditoso.
Nunca da minha memória
Fugirão tão belos dias, Apagará
sua ideia As cruéis melancolias.
Evaristo demorou-se quatro meses na Campanha: e, apenas retirou-se para a
Corte, ali pouco depois faleceu.
Essa morte, entretanto, assim tão repentina, foi, quanto a mim, uma
circunstância feliz para ele; porque, não podendo talvez mais ganhar em glória, a
morte veio poupar-lhe o desprazer de ver, como tantos outros, bem depressa
esquecida, ou malsinada, a glória que até então tinha alcançado.
Os seus parentes afirmam, que ele estava disposto a aceitar a bandeira do
regresso ou que ia sem mais demora declarar-se conservador; e que se o não fez, foi
unicamente porque a morte que veio tão depressa e tão inesperada, não lhe deu para
isso o necessário tempo; e se isso é exato, a morte, como disse, foi para ele um
verdadeiro benefício; visto que não consentindo que ele fosse o homem de um
partido, ela fez com que ele vivesse, morresse, e continuasse a ser para todos o
homem da nação.
O segundo dos nossos grandes homens que muito cedo conheci; e isto, senão
me engano, no mesmo ano ou no seguinte da sua abdicação, foi Diogo Antônio
Feijó.
Nem políticas tormentas,
Nem a intriga e seus furores,
Vieram aqui perturbar
Da paz cândida os favores.
Adeus, vila da Campanha, Onde
amizade encontrei, E na doce
simpatia Suaves horas passei.
Mineiro por livre escolha Deste
afamado torrão, De seda em
laços cativo, É mineiro o
coração.
Mas, à vila da Campanha É mais
vivo o afeto meu; Amigos aqui,
parentes, Parte de mim deixo eu.
Oh! que nunca de meu peito (Embora em
mil coisas pense) Sairá esta saudade Do
bom povo campanhense.
Adeus, parentes queridos, Que ficais longe
de mim, Ah! só Deus sabe em que tempo
Esta ausência terá fim.
Eu não sei quando começaram as suas relações com meu avô; mas sei que
eram muito amigos e tão amigos, que, ao tomar conta da regência e indo, por
consequência, estabelecer a sua residência na Corte, foi com ele morar meu tio
Gaspar José Ferreira Lopes, que ali estudava ou que nessa ocasião foi para ali
estudar na escola de medicina.
Ainda há pouco, tendo falecido minha mãe e estando a rever alguns de seus
papéis, tive ocasião, com uma grande surpresa e com um prazer talvez ainda maior
de entre eles encontrar um bilhete e uma carta de Feijó para aquele meu tio; o que
tudo guardo como duas grandes preciosidades e quase com tanto amor e respeito,
como aqueles com que desde muito tempo guardo dois pequenos pedaços da madeira
quase podre que na Varginha de Queluz consegui arrancar de uns bancos que ainda
ali encontrei, e nos quais, segundo muitas pessoas me afirmam, mais de uma vez se
haviam sentado os inconfidentes de Minas quando ali se reuniam para deliberarem
sobre a sua já tão adiantada conspiração.
E já que tive essa ventura de encontrar, assim por acaso, esses dois
autógrafos de Feijó, eu os quero aqui igualmente publicar; não só porque são eles
uma lembrança de família; mas ainda
Em brandos nexos de sangue Já nos
prendera a Natura, Prendem-me agora
de novo Doces provas de ternura.
Adeus, boa e cara mana, Vivos galantes
sobrinhos, Na distância em que ficamos
Não terei vossos carinhos.
Adeus, belas tão amáveis, Vosso gesto
encantador, Terna, meiga condição,
Acendem chamas de amor.
Adeus, inocentes brincos, Onde as
horas se apressavam, Onde as graças,
onde os risos, Lindamente se
abraçavam.
Adeus, todos habitantes Desta risonha
mansão, Em mim, dos vossos favores
Fica eterna a gratidão.
Tenho nobres sentimentos, Tenho uma
alma agradecida; A lembrança do que
devo Dura tanto como a vida.
porque, no caso que para o fazer eu não tivesse outros motivos, para isso
bastaria o serem eles do punho desse grande cidadão e emérito patriota, que,
julgando-se mais poderoso com cinco mil guardas nacionais do que com um
exército de vinte ou trinta mil homens, conseguiu manter a ordem na capital
do império; e salvou talvez a integridade de nossa pátria.
O bilhete de que falo é escrito em uma estreita tira de papel almaço;
e essa tira que já está toda encardida, ainda foi aproveitada de um papel já
servido; pois que, no alto do bilhete, ainda se vê, e bem distintamente, o
resto ou as hastes de duas letras que foram cortadas.
O bilhete não tem data; mas foi escrito na Corte quando Feijó era
regente; e do seu conteúdo pode-se talvez coligir que foi escrito da
residência oficial do regente ou do gabinete em que tinham lugar as
conferências ministeriais.
Assim, pois, quando hoje não há empregado de secretaria, que por
mais subalterno que seja, não escreva em um papel fino e marcado e que
não o cubra com uma capa já de antemão preparada e que vale quase que
tanto como o próprio papel; naquele tempo o regente do império e do meio
talvez dos seus ministros servia-se para escrever os seus bilhetes, de uma
simples tira de papel almaço e de mais a mais bem grosso; e ainda assim
aprovei-tava-se para isso de um papel já servido.
Como, porém, os efeitos são sempre conformes com as suas causas;
uma grande diferença também se nota de hoje para então; e é que, naquele
tempo, em que o império se conservava em uma constante convulsão; e em
que parecia quase que impossível que fosse salva a não do Estado das
procelas e parcéis que por todos os lados a cercavam, ela, não obstante, foi
salva; e com ela foram igualmente salvas todas as nossas liberdades por
aqueles homens assim tão simples e quase que grosseiros, sem que tivessem,
entre-
Adeus, vila que afastada Já de
mim eu considero. Outra vez
torna a ver-te Mais desejo do que
espero.
Adeus!... de lágrimas tristes Se
banham os olhos meus! O coração
se me apertai... Bela vila, adeus!
adeus!
(Do "Arauto de Minas" — 18-03-1888)
tanto, de recorrer jamais a grandes empréstimos; e o que muito mais é, quando
apenas tinham, para a tudo ocorrer, um orçamento apenas quádruplo ou quintuplo
quando muito do só orçamento atual da província do Rio de Janeiro; entretanto que
hoje, embora reine por toda a superfície do Império uma paz e uma tranquilidade
verdadeiramente otaviana, seja ao mesmo tempo o nosso orçamento de quase cento e
cinquenta mil contos, esse orçamento não nos basta para as nossas únicas despesas
ordinárias; e a nossa dívida crescendo de ano em ano, e em uma progressão cada vez
maior, já atingiu e já passou talvez de um milhão de contos.
Quanto ao outro autógrafo — a carta — essa foi escrita de S. Paulo, pouco
depois que Feijó deixou a regência; e sobre ela eu só farei uma única observação, e é
que o Joaquim a quem se refere aquela carta, nada mais era do que um simples
escravo apenas de meu avô e que servia de pagem na Corte a meu tio Gaspar.
Eis agora os autógrafos:
BILHETE. "Sr. Gaspar. Na primeira mesa da sala do gabinete,
encontrará um caderno impresso Regulamento da Alfândega com alguns
manuscritos dentro; mande-me pelo portador. Adeus. Seu venerador. Feijó".
CARTA. "Sr. Gaspar. Recebi a sua com prazer. Sinto os seus
incômodos e estimarei que Joaquim esteja salvo: eu ando
melhor mas ainda bem adoentado e sem esperança de voltar
a meu antigo estado de saúde mas sempre pronto para servi-
lo. Adeus, seja feliz como lhe deseja o seu amigo venerador e
obrigado servo. Feijó. S. Paulo, 11 de janeiro de
1838".
Ora, Feijó ou porque fosse às Aguas Virtuosas por enfermo ou por qualquer
outro motivo que eu nunca soube ou de que hoje não me recordo, foi hóspede de
meu avô durante alguns dias; eu com ele jantei por vezes na mesma mesa; e se nada
me lembro das suas palavras, lembro-me, pelo contrário, muito bem da sua figura, e
muito mais ainda de uma circunstância que não deixou então de muito admirar-me; e
é que, estando a mesa sempre cheia de muitos doces, junto de Feijó sempre se punha
uma compoteira de melado; ou porque, ele não comia de outro doce; ou porque,
como ele dizia, o melado era o rei dos doces, e o preferia a qualquer outro.
CAPITULO VI
O enforcamento de um condenado. Incidentes da execução. Comentários do povo.
Falecimento da bisavó do autor. Durante a noite, os presos fogem da cadeia. As
circunstâncias da fuga levantam suspeitas. A calúnia entra em campo e a sátira
popular incrimina
o carcereiro.
Do ano de 1838 apenas conservo bem vivas três únicas recordações; e ainda
assim, não tenho bastante certeza de que todas se refiram a esse ano. Destas três
recordações a primeira é a da execução de um condenado à morte. E ainda que não a
possa talvez expor com bastante minuciosidade e nem mesmo com uma muita
perfeita exatidão; porque era então muito criança e nem tudo pude ver muito de
perto; vou referir, não obstante, aquilo que me lembro de ter visto ou de me ter sido
contado. Na véspera da execução, como, segundo se dizia, não se devia deixar, sen-
do possível, de satisfazer aos últimos desejos de ura condenado à morte, creio que
foram saber desse de que aqui me ocupo, aquilo que desejava mas não sei ou não me
recordo do que desejou; nem se lhe satisfizeram o desejo. Sei , porém, que segundo
um costume que então havia, e cuja origem ou razão não sei bem qual seja, não
deixaram na véspera e no dia da execução, além do alimento ordinário, de lhe
fornecerem vinho e marmelada.
A condução do condenado para o suplício e que foi o que de mais perto pude
presenciar, foi também o que mais me impressionou. Não me recordo se houve
nesse préstito tão lúgubre muita ou pouca força de infantaria; mas lembro-me muito
bem, que havia um piquete de cavalaria da Guarda Nacional, que acompanhava o
cortejo ou que o precedia e ao mesmo tempo o acompanhava. A marcha da justiça
era a seguinte: Adiante o condenado, que era um africano ainda, segundo creio, um
pouco boçal, e que parecia ainda muito moço e franzino. Ao lado dele ia um padre
que já não sei quem era. Mas sei que foi muito difícil achar quem desempenhasse
essa missão; porque todos os padres da Campanha se achavam ou se declaravam
sem ânimo para desempenhá-la.
O condenado ia amortalhado como se já estivesse morto; e levava uma corda
ao pescoço; e atrás dele, seguindo-lhe os passos, e segurando na corda, marchava o
carrasco que era um pardo baixo e já velho e que puxava de uma das pernas pelo que
todos o chamavam Manoel Joaquim Manco. Atrás do carrasco vinha o juiz
municipal com o escrivão das execuções e acompanhado por diversos oficiais de
justiça. De distância em distância, todo este cortejo parava, e o escrivão ou o porteiro
dos auditórios, lia uma meia folha de papel onde estava transcrita a sentença que
havia condenado ao réu. A marcha deste cortejo foi exatamente como a de uma
verdadeira procissão; pois que tendo saído da cadeia, desceu pela rua do Fogo até a
rua da Misericórdia, desceu por esta e pela do Comércio até o largo das Dores; e
daqui, subindo pela rua Direita, largo da Matriz e rua do Rosário, foi parar no campo
deste nome, onde a forca estava erguida não muito distante da casa da
Misericórdia.
Desejei muito ir assistir à execução; mas ou faltou-me o ânimo para isso, ou
antes e com mais certeza, não me deixaram ir. Então fui para a Casa da Câmara e de
uma das janelas donde se avistava a forca, estive olhando o que se passava; embora
quase que nada pudesse ver muito distintamente por causa da distância. De tudo
quanto se passou, o que apenas vi e percebi perfeitamente foi que de repente saiu do
meio da multidão um Guarda Nacional a galope, e que tendo chegado a uma loja da
rua do Fogo, dali imediatamente voltou levando na mão um objeto que soube depois
ser um rolo de cordas. E eis aqui, segundo nesse mesmo dia vim a saber, como é que
as coisas se passaram. Logo que o préstito chegou ao campo do Rosário, onde estava
a forca, foi esta cercada pela força pública; e então o condenado, o carrasco e o
padre, subiram por uma pequena escada para uma espécie de estrado, que era
formado, se não me engano, sobre três esteios apenas, o que faz com que se dê
também à força o nome de três paus.
Chegados ali e posto o condenado de joelho na beirada da forca, o padre que
sempre o tinha procurado consolar, mandou que pusesse as mãos e que rezasse o
credo ou com ele o foi rezando, até que ao proferir as últimas palavras — e na vida
eterna — o carrasco empurrou o pobre condenado para fora da forca; e com o baque
ou com o choque da queda, a corda arrebentou. O fato repetiu-se segunda e terceira
vez; e só na quarta o condenado conservou-se suspenso; e pôde então o carrasco
trepar-lhe nos ombros e acabar de extrangulá-lo. Isto deu causa, não só a que por
ignorância da lei muito se discutisse e muito se acusasse a irmandade da
Misericórdia por não ter comparecido ao ato com a sua
bandeira a fim de que pudesse com ela cobrir o condenado logo que a corda
arrebentou e desta sorte salvar-lhe a vida; mas ainda a que tomasse cada vez
mais vulto um prejuízo que parecia ser já muito antigo; e vem a ser que a
corda só arrebenta quando o paciente é vítima de uma grande injustiça ou é
condenado estando inocente. E digo que este prejuízo tomou então muito
maior vulto; porque desde logo começaram a descobrir certos fatos ou a se
tornar muito mais salientes certas considerações, que não deixaram de dar
uma tal ou qual plausibilidade à opinião que ia se tornando cada vez mais
geral de que aquele réu não havia sido de modo algum culpado.
Quanto à segunda recordação de que acima falei, é a do falecimento
de minha bisavó D. Maria Eugênia; e que teve lugar com toda a certeza a 20
de fevereiro. Muito pouco a conheci: nem quase que dela tenho outra
lembrança senão essa do seu falecimento; e ainda assim por uma
circunstância, que então se deu, que muito me impressionou; e da qual vou
agora falar.
A casa que foi nossa e em que aquela minha bisavó morava, fica ao
pé do largo da Cadeia justamente no lugar em que, do lado de cima da rua do
Fogo, faz esquina com a do Hospício. Naquele tempo a cadeia ficava-lhe
muito próxima; porque em vez de estar, como está hoje no centro ou no
fundo do largo, naquele tempo a cadeia fazia frente com a rua do Fogo e
esquina com outra que descia lá dos lados do Rosário; e era aí que sobre um
grande paredão de pedra que lhe servia ao mesmo tempo de base e de
suporte, ela se erguia em dois pavimentos e em forma de um para-lelogramo,
cujas dimensões não posso determinar, mas que me parece não deveriam
muito fugir de cem palmos sobre sessenta. Destes dois pavimentos, o
superior para o qual se subia por uma escada de pedra muito comprida posta
do lado de fora e a descoberto e que, encostada à parede, era do outro lado
amparada por um guarda-mão de madeira que mais servia de brinquedo aos
meninos que por ele escorregavam montados desde cima até em baixo, do
que mesmo para amparo, dividia-se do seguinte modo: do lado da rua do
Fogo toda a sua extensão era aproveitada para duas únicas salas, das quais a
menor, que era tapetada e muito mais asseada, só servia para as sesssões da
Câmara, e a outra era a sala das audiências, a qual não só servia para estas,
como para um grande número de outros atos públicos, como por exemplo,
para as eleições de oficiais da Guarda Nacional, para a reunião das juntas de
paz, e até para o exame das meninas que frequentavam a aula pública de
instrução primária. Além, porém, destes e de muitos outros atos que ali se
praticavam, um ainda havia e dos mais frequentes; e era a revista dos
enjeitados ou dos expostos
que eram criados à custa da Câmara, e cujas amas tinham periodicamente a
obrigação de ir ali apresentá-los, para que, em uma reunião presidida pelo fiscal, e de
que faziam parte o secretário da Câmara e o seu médico de partido, fossem todos
examinados, tomando-se nota do seu estado e de tudo aquilo que lhes faltava, para
então ou depois se darem as providências que o caso exigisse. E o que posso dizer, é
que era esta uma das reuniões a que eu quase nunca faltava; porque além da minha
tão grande curiosidade natural, havia ainda neste caso para mim alguma coisa de
divertido ou de um prazer muito real em ver assim ali reunido um tão grande número
de crianças, umas ainda ao colo, outras já começando a andar, e todas tão bem
vestidinhas ou pelo menos muito asseadas. Quanto ao resto do pavimento superior, e
que embora formasse o fundo da casa, era entretanto por onde nela se entrava, pode-
se dizer que era a sua parte escura; porque uma saleta, que do topo da escada ia-se
comunicar com o salão das audiências, separava para o lado esquerdo o que se
chamava o xadrez, que tinha por porta uma grande grade de madeira e que servia de
depósito ou de prisão para presos de pouca importância; e, para o lado direito, os
cômodos do carcereiro e um estreito corredor que levava à janela, onde do lado de
fora pendia o sino, que não era muito grande, mas cuja voz era muito clara e um
pouco diferente da dos outros; e que por isso, apenas soava, era imediatamente
conhecida.
0 pavimento inferior ou térreo, esse pode-se dizer que nada tinha que não
fosse horripilante e imundo; porque, dividido em três enxovias iguais, para as quais
se descia por meio de uma escada móvel que se punha aos alçapões que para esse
fim existiam no pavimento superior, essas enxovias eram úmidas, frias, cobertas de
um barro visguento e fétido, e eram ao mesmo tempo escuras; porque embora a do
meio tivesse uma janela e a dos topos duas; como as paredes eram grossas, e as
janelas não muito largas e ainda diminuídas pelas grades de ferro que lhes serviam
de segurança, muito pouca era, de fato, a luz que por elas penetrava. Entretanto,
parece, que os presos por serem talvez da pior classe de gente, não viviam ali
acabrunhados e nem mesmo muito tristes; pois que ao passo que umas vezes de pé e
só com o pescoço enfiado na grade, outras vezes com as pernas e com os braços para
fora, quase que não saíam da janela onde estavam de conversa e às gargalhadas com
as pessoas que passavam pela rua ou que lá iam ter com eles; por outro lado, viviam
sempre a cantar; e para melhor ainda matar o tempo, faziam uns chapéus que
vendiam, se não me engano, a doze vinténs ou como em Minas se dizia a seis
cobres e que embora se chamassem chapéus de palha eram
na realidade chapéus de taquaraçu que eles encomendavam e compravam e do qual
tiravam lâminas ou lascas que adelgaçadas por eles com uma faca ou com qualquer
outro instrumento cortante, serviam-lhes para formarem tranças que sendo depois
cozidas, constituíam o chapéu.
Quando, porém, maior e mais ruidosa alegria eles mostravam, era quase
sempre à noite porque, não contentes de cantar, ainda algumas vezes punham-se
também a dançar; e nessa ocasião faziam um barulho de ensurdecer ou
verdadeiramente infernal; o qual barulho muitas vezes o faziam muito de propósito e
de caso pensado, ou quando meditavam alguma fuga; visto que, no meio de toda
aquela matinada e graças a ela, os que não dançavam, podiam entregar-se com a
maior segurança ao trabalho de laminarem as grades; serviço este, que muitas vezes
continuavam por semanas e meses, mediante a simples precaução que nunca
deixavam de tomar — de cobrir e disfarçar com cera da terra todo o serviço que
neste sentido iam fazendo. Ora, a noite do falecimento dessa minha visavó, foi
justamente aquela em que teve lugar uma dessas fugas e a mais célebre talvez de
quantas têm havido na Campanha; de sorte que, estando ioda a família reunida à
espera do seu falecimento, soube-se de repente, não sei por que nem como, que os
presos estavam fugindo ou já tinham fugido. À vista desta notícia, meu pai e mais
algumas pessoas foram à cadeia; viram que as grades estavam arrombadas e uma das
enxovias vazia, bateram por muito tempo à porta do carcereiro sem que ninguém
respondesse; e quando viram que os seus esforços eram baldados, puseram-se a jogar
pedras no sino; até que, afinal, o carcereiro apareceu; tocou-se a rebale; e muito
grande foi o reboliço que então se deu em toda a povoação mas creio que sem grande
resultado; porque o autor e ao mesmo tempo o motivo desta fuga foi um célebre
criminoso que então havia e que se chamava Marimbondo; e esse evadiu-se e nunca
mais foi preso, senão muitos anos depois lá pelos lados de Ouro Preto; tendo eu
ouvido dizer, se não me falha a memória, que ele acabou afinal por ser agente da
polícia secreta da Corte no tempo em que ali foi chefe de polícia ou antes ministro da
Justiça o Conselheiro Francisco Diogo Pereira de Vasconcellos.
Se bem me recordo, Marimbondo era um salteador que exercia a sua
profissão para os lados do que hoje se chama — a Mata — ou nestes territórios que
são banhados pelo Pomba e pelo Piranga. Fosse, porém, o roubo, ou outro qualquer
o seu crime, o que sei e posso afirmar, é que Marimbondo dispunha de grandes
quantias de dinheiro; de sorte que tendo o juiz de paz de então
o apelido de Rato e tendo o carcereiro o nome de Gato, a calúnia não perdeu a
ocasião de explorar um tal acontecimento e de fazer logo esta quadrinha:
O gato miou,
0 rato escutou,
O preso fugiu,
0 cobre ficou.
Ora, para mostrar quanto aquele preso dispunha, com efeito, de dinheiro, não preciso
mais do que recordar que um mil réis naquele tempo talvez não correspondesse a
menos de cinco hoje; e em seguida contar, como vou fazer, o fato seguinte: Pouco
depois da fugida de Marimbondo, apareceu em nossa casa um pescador chamado
Cirino, que era compadre de meu pai, e que sendo extremamente pobre, morava em
uma pequena choça coberta de capim junto às margens do Rio Verde; e dirigindo-se
com um certo ar de mistério a meu pai, pediu-lhe que lhe trocasse uma cédula de dez
mil réis; pois que era esse o nome que dava-se então às notas do tesouro; o
apresentou-lhe a cédula. Meu pai exami-nou-a; viu que era de cem mil réis e não de
dez; e perguntando a Cirino qual era o valor da cédula, este de novo repetiu que era
de dez mil réis.
Então dizendo-lhe meu pai que a nota era de cem mil réis, e que, sendo ele
tão pobre que não poderia sem alguma suspeita possuir uma cédula de dez mil réis,
era preciso que explicasse como possuía assim uma quantia tão grande. Cirino lhe
contou, que estando uma noite no seu ranchinho, ali havia chegado um viandante
que lhe pedira o passasse para o outro lado do rio; que ele recusou-se a princípio,
alegando o que era verdade, que a noite estava muito escura e que não se podia fazer
a passagem sem grande perigo; mas que tendo o viandante lhe oferecido como
espórtula a quantia de dez mil réis, à vista de uma tão grande oferta não hesitou
mais; passou sem demora o viandante; e este quando chegou do outro lado, tirou da
carteira aquela cédula e lha deu dizendo — "Eis aqui os seus dez mil réis". Então
com-binaram-se as datas e circunstâncias; e verificou-se que aquele passageiro era
o próprio Marimbondo.
CAPÍTULO VII
Casamento de D. Bárbara Alexandrina Ferreira, tia do autor, com o tenente
coronel Marliniano da Silva Reis Brandão, sobrinho de Marília de Dirceu e
auxiliar do colelor. A história do casamento. Como se fazia então a coleta dos
impostos e como era andejo, enfadonho e trabalhoso o lugar de colelor. Os
Rezendes e os Brandões como esposos. Os casamentos naqueles tempos. A vida,
menos intensiva, se concentrava na religião e no amor. Aos vinte e cinco anos, os
homens de então ainda eram filhos-familias. Hoje, aos vinte e um anos, um moço já
é um sábio e um velho ao
mesmo tempo.
O terceiro dos fatos que formam as minhas únicas recordações do ano de
1838, e que deixei para dele aqui tratar, é o casamento de minha tia D. Bárbara
Alexandrina Ferreira com um moço que era então um dos melhores amigos de meu
pai e que é hoje o meu velho tio e muito estimado amigo, o Tenente Coronel
Martiniano da Silva Reis Brandão.
Este casamento, entretanto, não só não foi acompanhado de circunstância
alguma extraordinária que merecesse ser aqui referida; mas nem mesmo o posso
considerar como uma das minhas recordações mais vivas; tão confusa ou mais ou
menos apagada é a ideia que dele me ficou. Eu, porém, entendi que não devia deixar
de aqui mencioná-lo; e isto por duas razões; 1." porque tendo sido este meu tio um
dos primeiros e mais leais amigos de meu pai, e depois da morte deste nunca tendo
deixado de ser com a mais perfeita boa vontade, um amigo muito sincero e muito
dedicado da sua viúva e de seus filhos; daqui resultou, que à exceção de meu Avô, é
ele talvez de todos os homens o que teve uma parte mais larga e mais longa em
algumas das relações da minha vida; e que essa qualidade de afim se convertesse por
isso para mim em alguma coisa mais do que um simples parentesco; e 2.» porque
essa parte que ele leve assim tão grande nas relações da minha vida, sendo, ou de
uma natureza muito íntima para ser publicada, ou dizendo então respeito a esses atos
muitos comuns da nossa existência e que aos outros muito raras vezes interessam;
eu não poderei na continuação destas "Minhas Recordações" dele
lalar tantas vezes e tão extensamente quanto talvez desejasse ou me pede o coração;
e assim, esse seu casamento que foi a circunstância feliz que o fez entrar para nossa
família, torna-se agora ainda uma circunstância feliz ou uma ocasião extremamente
azada, para que eu possa aqui me ocupar desse meu tio e dele me ocupar um pouco
mais exclusiva e demoradamente. Como, porém, neste meu trabalho, aquilo que sei
ou de que trato, gosto de contar sempre tim-tim por tim-tim, vou antes de tudo
começar por contar qual foi o ponto de partida ou a origem de um semelhante
casamento. Pouco depois que meu pai se casou, ou porque tivesse sido muito infeliz
em um negócio de gados em que se envolveu e em que teve um prejuízo de muitos
mil cruzados; ou por instâncias de meu Avô que desejava ter a filha mais ao pé de si;
meu pai aceitou o lugar de coletor de impostos na Campanha; e me parece que aí o
exerceu por cinco ou seis anos. Esse lugar, porém, que hoje quase que não passa de
um simples emprego de escritório, era naquele tempo essencialmente andejo e um
talvez dos mais enfadonhos e trabalhosos; porque quase todos os impostos eram
lançados; para lançá-los, era preciso que o coletor corresse quase todo o município;
e o município da Campanha era então tão extenso, que o seu território que pelos
lados de Itajubá chegava aos confins de S. Paulo, abrangia uma região onde hoje se
encontram nada menos de seis ou de oito municípios. Isto, tudo, porém, nada era em
comparação com a avença dos dízimos que então ainda existiam, e para a qual era
preciso que o coletor corresse o município, por assim dizer, de fazenda em fazenda;
e que ainda tivesse de perder muito tempo em cada uma dessas fazendas; porque
essa avença, como o nome o indica, era uma espécie de ajuste entre o coletor e o
coletado e pode-se fazer ideia qual não seria a dificuldade que aquele não teria em
arrancar deste uma confissão mais ou menos sincera dos produtos que colhia,
quando já não existia o único móvel que o podia fazer falar e que era o da religião;
visto como é bem sabido que então os dízimos pertenciam ao Estado que os tinha
tomado para si com a promessa ou a obrigação de sustentar o culto e o clero. Para
isso, pois, era preciso, não só muita paciência; mas ainda um certo jeito ou ronha da
parte do coletor ou dizimeiro; e de que vou dar um exemplo contando um caso que
se deu com meu Avô, e que, muito mais de uma vez, eu o ouvi contar.
No tempo em que os dízimos eram ainda arrematados e que meu Avô
arrematou os do município da Campanha, existia na freguesia de S. Sebastião da
Capituba um fazendeiro que se chamava o furriel Antônio Ferraz. Fazendeiro
abastado mas tão birrento que só dava para o dízimo mantimento podre, ardido ou
carunchado, não havia coletor ou dizimeiro que lhe arrancasse uma quantia qualquer
de dinheiro que valesse a pena; porque recusando-se sempre a qualquer avença e
sendo metido a valentão, se o cobrador insistia, ele o ameaçava e o punha no olho da
rua. Meu Avô, portanto, que estava de tudo isto muito bem informado, dirigiu-se
para aquela fazenda quase que por um simples desen-cargo de consciência e sem a
menor esperança de bom resultado. Mas ao entrar na sala da fazenda, um dos
primeiros objetos que lhe feriu a vista, foi uma bonita lança de correr cavalhada que
se achava encostada a uma das paredes e que ali parecia ter sido posta de propósito
como que em uma espécie de exposição. E como meu Avô sabia que o gosto pelas
corridas hípicas é uma verdadeira monomania, que pode mudar de forma ou de
objeto, mas que existe sempre c é uma talvez das mais profundas; logo começou a
criar esperança de que não sairia com as mãos vazias; e fez imediatamente o seu
plano. Ele, pois, não falou ao fazendeiro quem era nem ao que ia, mas pôs-se a
conversar sobre coisas várias e indiferentes; até que fingiu avistar a lança; e
perguntou se era de correr cavalhada. Ora, isto, como se diz, foi exatamente bater
direitinho na tecla; porque o homem desde esse momento não falou mais senão em
cavalos e cavalhadas; e meu Avô, que foi sempre um péssimo cavaleiro e que nunca
foi amador de cavalos, foi pouco a pouco e como que por contágio se entusiasmando
com o homem até que, para encurtar razões, no fim do dia ou na manhã seguinte, o
fazendeiro estava a cavalo e de lança em riste a correr cavalhada no terreiro, para que
o seu hóspede pudesse bem apreciar todo o garbo e toda a maestria do cavalo e do
cavaleiro. Só na hora de sair, é que meu Avô disse ao fazendeiro quem era e ao que
ali tinha ido; mas acrescentando que sentia-se na realidade quase que sem ânimo de
cobrar dízimos a um homem que se podia considerar como o melhor corredor de
cavalhadas de toda aquela redondeza; e que ainda mesmo que tivesse de fazer essa
cobrança; pois que tal era o seu dever; ele sabia muito bem com quem lidava; e
deixava, por consequência, que o próprio dizimado marcasse o que em sua cons-
ciência devia ou na sua vontade queria dar. 0 homem imediatamente deu a sua lista
dos produtos colhidos; e os dízimos que ele teve de pagar e que de pronto pagou
subiram a uma quantia dez ou vinte vezes maior, do que jamais meu Avô tinha
esperado.
Por tudo, pois, quanto acabo de dizer, vê-se perfeitamente, que meu pai não
podia prescindir, como chefe que era da cole-toria, de ter agentes os ajudantes que
por ele corressem o município; e um desses seus agentes ou ajudantes foi justamente
esse meu tio Martiniano de que estou aqui falando. Ora,
como ajudante ou como escrivão que era da coletoria, ele
frequentava muito a nossa casa; e foi ali que teve ocasião de
conhecer minha tia ou, pelo menos, de achar entrada para o
seu casamento.
Antigamente em Minas, ou pelo menos em certos lugares e em certas
classes, os casamentos se faziam um pouco à moda oriental; pois que os noivos
muito pouco ou quase nada se conheciam; e muitas vezes quase que só depois de
estarem casados é que podiam saber qual o gênero de negócio que tinham feito.
Assim, um dos casos que muitas vezes ouvi contar, foi o que se passou com um dos
meus tios-avós que nada linha de peco, mas que, pelo contrário, sempre passou
como um homem muito vivo e muito inteligente; e que, entretanto, tendo pedido em
casamento a uma bonita moça que ele tinha chegado a ver, quando; depois do
casamento e tirado o véu, pôde ver a cara da nova companheira de toda a sua vida, é
que verificou que o seu sogro lhe havia dado em lugar de Raquel que ele tinha
pedido, uma Lia que não era vesga, é certo, e que era de uma bondade muito grande
e muito simples; mas que além de não ter um traço sequer bonito, ainda parecia
trazer impresso em toda a sua fisionomia e em todos os seus modos, um certo quê de
um mais ou menos pronunciado idiotismo. Não houve divórcio; mas houve alguma
coisa que muito com ele se parecia; pois que os dois cônjuges, pode-se assim dizer,
moravam e viviam nas duas extremidades da casa.
Felizmente na Campanha nunca existiu um tal costume; 6 o casamento de
meu tio Martiniano não só foi um casamento de puro amor; mas pode-se dizer, que
foram os próprios noivos quem o ajustaram, pois que ainda me lembro de havê-los
visto em minha casa e em presença de minha mãe e de minha tia D. Ana, darem a
sua última palavra e combinarem no pedido que devia sem mais demora ser feito
a meu Avô.
E, de fato, o casamento realizou-se pouco depois; eles se conservaram
casados perto de 50 anos; e (coisa inacreditável talvez, porém real!) esses 50 anos
foram para ambos o tempo de uma felicidade conjugal sem a menor sombra ou de
um amor que parecia eterno. Este fato, como disse, pode ser tido até como incrível;
mas a admiração diminuirá muito se eu disser que minha tia, além de ter sido uma
das moças mais bonitas da Campanha, e de moça e bonita se ter conservado até
muito mais tarde, era uma senhora que tinha se tornado de alguma sorte como
que insensível a tudo; tanto a sua sensi-
bilidade parecia ter-se toda concentrado nestes dois únicos objetivos
— o seu marido e os seus filhos.
Por outro lado, meu tio Martiniano pertencia à família dos Brandões; e
como se sabe, todas as famílias têm certas qualidades que mais ou menos as
caracterizam. Ora, assim como na minha, por exemplo, não há maus maridos; mas
seria muito difícil achar um Rezende que não fosse um marido mais ou menos
imperioso; assim também, o que caracteriza os Brandões é a doçura para com as
mulheres; e muito raro seria achar um Brandão que não fosse um marido mais ou
menos condescendente e sempre benévolo para com as suas mulheres. E disto a
melhor de todas as provas é um irmão desse mesmo meu tio Martiniano, que, indo
muito mocinho para S. Paulo, a família entendeu que não podia para lá ir sem uma
pessoa que dele tratasse e que o vigiasse; e para isso, foi escolhida uma sua tia e que
era, senão me engano, ao mesmo tempo a sua madrinha. Esta ali chegando, pos-se a
refletir sobre o caso, e afinal reconheceu que o melhor dos meios que podia ter de
bem tratar do sobrinho e de melhor vigiá-lo, era sem a menor dúvida, o de tê-lo
sempre preso a si pelo mais seguro de todos os laços que é o do matrimônio e com
efeito com ele se casou.
Muitíssimos anos depois, quando os vi na Campanha, a mulher já tinha de
60 a 70 anos; usava de peruca; tinha alguns dentes, poucos, redondos e muito
grandes; a cara bexigosa; todas as feições muito graúdas e flácidas e era o que se
poderia chamar uma mulher, não direi asquerosa pois que era pelo contrário muito
asseiada e até um pouco casquilha; mas que tinha alguma coisa um pouco mais do
que simplesmente feia e que muito se aproximava do horrendo. O marido,
entretanto, que muito mais filho parecia, do que mesmo seu marido, que era muito
bem apessoado e até quase bonito, teria então 40 anos mais ou menos e poderia, se
quisesse, passar por um homem de trinta e poucos. Pois bem; este moço vivia com
aquela velha; mostrava-se com ela extremamente satisfeito; e a tratava com um tal
carinho que em vez de um casal de velhos, mais pareciam dois jovens noivos que
ainda se achavam na sua lua de mel.
Órfão muito cedo, meu tio Martiniano quase que não teve outra educação
literária senão a simples instrução primária que então se dava na Campanha. Tal
era, porém, a sua inteligência e tal o conjunto que ele possuía dessas qualidades
ativas e ao mesmo tempo práticas, que constituem, se assim me posso
exprimir, o grande senso da vida, que, sendo muito pobre, logo depois de casado,
tentou um ou dois anos a advocacia em Três Pontas, veio depois exercê-la na
Campanha; e tão bem se houve em tudo quando empreendeu que, no fim de alguns
anos, ele não só já dispunha de influência muito extensa naquela cidade; mas ainda
acabou por acumular uma fortuna relativamente não pequena; e isto, não por meio
de uma economia sórdida; mas pelo contrário, passando sempre com certa largueza;
dando a toda sua família uma educação mais ou menos esmerada; tendo formado a
quase todos os seus filhos; ajudando-os ainda depois disto; e tendo finalmente o
prazer de vê-los todos aparecer, de um modo mais ou menos notável, nas diferentes
carreiras que adotaram.
Neto de um general Sanches de Ouro Preto, e sobrinho de D. Maria Doroteia
(a Marília de Dirceu) meu tio Martiniano teve por pai a João Crisóstomo da Fonseca
Reis que foi tabelião de notas na Campanha e que, sendo um homem de inteligência
pouco comum, ali se tornou sobretudo notável pela sua prodigiosa habilidade pela
música pois sem ter um mestre suficientemente habilitado, não só se tinha tornado
um insigne rabequista; mas ainda compunha música, às quais, segundo muitas vezes
ouvi dizer, não faltava merecimento c talvez grande. Eu mesmo, apesar de ser então
muito criança, lembro-me ainda de ter ouvido uma dessas composições que alguns
amadores estavam tocando, única e simplesmente para apreciar o talento do
compositor; assim como ainda igualmente lembro-me, que essa cantata, hino ou não
sei como lhe chame, tinha sido feita para solenizar-se a chegada, não sei se de
Lisboa ou do Rio de Janeiro, do compromisso de uma das irmandades da Campanha;
pois que, finalmente, ainda muito bem me recordo, que a letra dessa música era
assim que começava:
Aplaudo a irmandade Com
gosto geral 0 seu
compromisso De firma real.
E todos estes fatos eu os registro aqui e com a minucio-sidade com que o
estou fazendo, para que se possa ver e apreciar quanto é grande a diferença dos
tempos de então para os de hoje; pois que, ao passo que hoje sem o menor barulho
nem esforço, qualquer irmandade pode em poucos dias obter do presidente da
província o seu compromisso por mais complicado que seja, e o recebe com a mais
completa indiferença ou como se tivesse recebido um simples ornamento
um pouco mais
precioso que tivesse mandado vir da Côrte para as festas do seu orago, antigamente
para obter-se o mais simples dos compromissos, levavam-se meses e anos; e quando
se o recebia de Lisboa com a assinatura do próprio rei, fazia-se para celebrar a sua
chegada uma grande e pomposa festa; e até para ela se compunha uma cantata
ou música especial.
Entretanto, com isto não quero de modo algum fazer crer, que os homens
daquele tempo fossem menos felizes, ou antes mais infelizes, do que nós somos
hoje; porque, se, como se diz, e é uma grande verdade, o melhor da festa é esperar
por ela; eles que eram forçados a esperar muito mais do que nós pelas suas festas,
tinham também um prazer infinitamente mais prolongado do que o prazer que nós
hoje temos. A isto acresce; que, sendo o círculo da atividade dos homens daquele
tempo muitíssimo mais limitado do que o temos hoje, pode-se dizer, que, sem falar
na luta pela vida, que é sempre a mesma em todos os tempos e em todos os lugares,
os homens daquele tempo quase que se não ocupavam se não de duas coisas — da
religião e do amor. Ora, se por um lado, a religião é a fonte de todos os nossos
sentimentos, é justamente o amor o que nos dá os prazeres os mais doces e, ao
mesmo tempo, os mais intensos. E como é ainda uma grande verdade, que tanto
mais a nossa sensibilidade se concentra em um ponto único, tanto mais intenso se
torna o prazer que daí nos provém; e é certo ainda, que tanto mais felizes nós nos
julgamos, quanto mais intensos são os prazeres que nós sentimos; o que de tudo isto
se segue, é que a gente daquele tempo, vivendo por assim dizer só do amor, muito
mais intenso eram os prazeres que daí lhes provinham e que, por consequência,
muito maior era também a sua felicidade.
Ainda há pouco, viajando na estrada de ferro de Pedro II com uma pessoa do
meu conhecimento, ao chegarmos ãs proximidades da Sapucaia, em um lugar em
que o Paraíba muito se estreita, essa pessoa me disse — "Vês aquela fazenda que ali
está? Pois eu já fui ali administrador no tempo de moço; e quase que não se passava
uma só noite que de lá não saísse; e que duas vezes não atravessasse aqui o Paraíba a
nado na ida e na volta". E o motivo que ele me dava para arriscar por este modo
todas as noites a sua vida, era justamente aquele pelo qual Leandro, segundo nos diz
a fábula, tantas vezes atravessava o Hellesponto a nado. Assim também, quando
estive em Queluz, muitas vezes ouvi ali contar-se um caso que se me asseverou ser
verdadeiro e que se havia dado para os lados de Congonhas do Campo ou de
S. Gonçalo da Ponte; e era
o de um moço que todas as noites, saindo pelo mesmo motivo, da casa de seus pais e
voltando antes que o dia amanhecesse, tinha forçosamente de atravessar uma ponte
do rio Paraopeba ou de um de seus afluentes; até que um dia lhe disseram, que, na
véspera, a ponte havia caído; o que o moço negou com todas as forças que pudesse
ter acontecido; porque, depois dessa hora, ele muito bem que por ali havia passado
quando voltava do seu noturno passeio. Entretanto, era isso uma verdade; a ponte
tinha, com efeito, caido; e sem que aquele moço o percebesse, a sua besta o tinha
conduzido por cima da única viga que ali existia e onde descobria-se ainda o rastro
das ferraduras; tal era o hábito que ela tinha de por ali passar.
Assim também, quando, não se contando comigo por causa da minha idade
muito tenra, eu ouvia os homens daquele tempo contar as grandes façanhas da sua
mocidade, essas grandes façanhas outras não eram senão as do amor e da mesma
natureza mais ou menos dessas de que acabo de falar. Ora, qual era o moço de hoje,
que por um tal motivo julgasse que valia a pena, já não digo de arriscar todos os dias
e nem mesmo uma só vez a vida; mas até simplesmente de se expor a alguma grande
conspiração?! E isto por que? Porque, sendo, como disse, a sensibilidade
extremamente concentrada naquele tempo e tendo por objeto a mais forte de todas as
nossas paixões — o amor — ela tinha todo esse imenso poder que é próprio de todas
as forças concentradas; e tão grande, por consequência, era também o prazer que
dessa concentração resultava, que para obtê-lo, não havia obstáculos que não se
vencessem e que até se expunha e de muito boa vontade a própria vida; entretanto
que hoje, apenas o menino começa a sair dos cueiros, são tantas as sensações
diversas e ligeiras que sem cessar ferem-lhe o coração, que este vai pouco a pouco se
embotando ou calejando até que acaba bem depressa por quase que não sentir. E
como sem sentir não há prazer; e sem prazer não pode haver felicidade; o resultado
é, que, se muito grande tem sido a mudança, e que se nós, com toda a razão,
podemos nos ensoberbecer dos nossos grandes progressos; nós, entretanto, talvez
que em vez de nos rirmos, como é costume, da simplesa e do atraso dos nossos pais;
devêssemos antes e com muito mais razão lhes invejar a felicidade. Pois, a verdade é
esta — que parecendo terem adotado por divisa que Roma e Pavia não se fez em um
dia, e por consequência, nunca se apressando nem procurando de um salto chegar
nos últimos desenganos da nossa vida neste mundo, eles tinham tempo para irem
apreciando e saboreando todas as flores e
frutos que iam encontrando pelo caminho; e o resultado era, que, aos 25 anos, os
homens daquele tempo eram ainda filhos-famílias e tinham em toda sua força a
exuberância da mocidade; entretanto que hoje, sendo imenso e variadíssimo o
campo da nossa existência ou da nossa atividade; e para que o possamos devassar
em todos os sentidos, tendo nós adotado por divisa a máxima inglesa de que o
tempo é dinheiro; hoje o menino já quase nasce aprendendo; e em muito pouco
tempo já sabe tanto, já tanto tem sentido, tanto visto e tanto experimentado; que se
pode dizer que hoje um moço de 21 anos já é um sábio e ao mesmo tempo um
velho; e um sábio e um velho com todos os achaques da sabedoria e da velhice;
inclusive essa grande desilusão de tudo, que é incontestavelmente a maior, a mais
triste e a mais terrível de todas as nossas desgraças.
/
CAPÍTULO VIII
A viagem à Corte, em, 1839. Contentamento e temores. A descrição da viagem. 0
perigo dos salteadores e medidas para evitá-lo. A passagem pela vila de Rezende. A
sua reminiscência dá lugar a comentários e conceitos sobre a família real. Pedro I
não Tinha o mínimo sentimento de dignidade conjugal e D. Miguel era um;
verdadeiro monstro.
De todos os fatos da minha meninice aquele que deixou na minha memória
não só as mais numerosas impressões, porém ainda as impressões mais vivas e mais
profundas, foi incontestavelmente a minha primeira viagem à Corte.
'Esta viagem teve lugar em 1839; e eis aqui como veri-ficou-se. Meu pai,
pouco depois de casado, foi por alguns anos, como já disse, o coletor das rendas
públicas na Campanha; mas, ou porque não gostasse do emprego ou o achasse pouco
rendoso, assentou de se dedicar antes ao comércio; e tendo já o seu negócio aberto;
resolveu-se afinal a ir pessoalmente à Corte, para lá fazer um avultado sortimento.
Minha mãe que tinha sentido sempre um fortíssimo desejo de lá ir também, não quis
perder uma monção que tão propícia assim se lhe oferecia; e não só obteve de meu
pai que a levaria; mas ainda e com o mais geral contentamento, ficou igualmente
resolvido, que iria conosco minha tia D. Ana que era íntima e inseparável amiga de
minha mãe, e que pelo seu grande amor e a mais extremada dedicação por todos os
seus, foi sempre até a sua morte o ídolo de todos. Tudo, pois, parecia correr às mil
maravilhas; e a nossa ida à Corte tomava as proporções de um desses
acontecimentos felizes que tão raras vezes se repetem em nossa existência; quando
no meio dos mil e um castelos que já se formavam, aparece alguma coisa que muito
se assemelhava a um como que estrondear de tiros, de sangue que corria, de mortes e
destroços; e imediatamente o mais formoso e o mais agradável de todos os sonhos
começa a se converter cada vez mais no mais incômodo e horrível de todos os pesa-
delos. E eis aqui qual era o motivo de assim se aguar um prazer tão grande. Em
todos os tempos, a serra que separa
a província de Minas da do Rio de Janeiro havia sido sempre considerada como um
lugar extremamente apropriado para a habitação de ladrões; e parece com efeito, que
mais de uma quadrilha ali se estabeleceu, ou mesmo na divisa ou nas suas
imediações onde a serra se entranha pela nossa província; pois que ainda hoje
Mantiqueira é na linguagem vulgar sinônimo de um covil de salteadores ou mais
propriamente de um lugar de grandes ladroeiras. Ora, em 1839 havia ou dizia-se que
nu serra do Picú uma dessas quadrilhas; cujo chefe, segundo ainda se dizia, era um
sujeito que se chamava Chico Paz e que residia nas imediações de Capivarí.
Para dar ideia do medo, ou antes do imenso terror que um semelhante
homem inspirava, citarei um único fato; mas esse fato é só por si bastante para o fim
que acabei de indicar; embora só tenha certeza da sua substância e vacile um pouco
sobre os seus acessórios. Em todo o caso, é mais ou menos isto: Tendo esse Chico
Paz de responder ao júri ou de ser processado por um crime qualquer e
provavelmente à sua revelia, José Alcibíades Carneiro, que era ou acabava de ser
deputado à assembleia geral, interveiu nesse negócio, como advogado, como jurado,
ou em outra qualquer qualidade de que nunca soube ou não recordo-me; e nessa
qualidade, fosse ela qual fosse, interessou-se, ou antes, muito se esforçou, para que
ele fosse absolvido ou alcançasse o que desejava; o que, entretanto, não conseguiu.
Paz foi informado de tudo quanto se havia passado; e escreveu a alguém, pedindo
que o avisasse do dia em que Alcibíades tinha de partir para a Corte ou Ouro Prelo
para onde o chamavam negócios ou deveres. Alcibíades soube logo desta carta; e
tomado da ideia de que Paz o suspeitando de ter sido o causador do mau êxito do seu
processo, o queria talvez assassinar, encheu-se de medo: e misteriosamente, em vez
de seguir o caminho que todos costumavam seguir, tomou outro muito diferente; e
acredito que por esse modo tinha-se posto inteiramente a salvo. Paz, porém, tinha
espiões por toda a parte; soube imediatamente o dia da sua partida; e tomando por
atalhos e veredas, o foi esperar nesse outro caminho que ele havia seguido; de sorte
que quando Alcibíades já se julgava na mais perfeita segurança, vê que sai do mato
esse mesmo Chico Paz que ele evitava; que para ele resolutamente caminha; e que
em vez de matá-lo, dirige-lhe os mais fervorosos agradecimentos pelos bons
serviços que lhe havia prestado; que lhe oferece qualquer quantia de dinheiro de que
precise; e que põe à sua disposição todos os seus préstimos e toda a sua
dedicação.
O que Alcibíades respondeu, eu o ignoro; mas o que sei, é que dali saiu,
como se houvesse sido assassinado: o medo o havia enlouquecido. Ora se tal era o
efeito que sobre um homem produzia o terror do Chico Paz, pode-se muito facil-
mente calcular, qual não deveria ser esse terror sobre duas fracas mulheres.
Felizmente elas descobriram um meio de cortar a dificuldade; meu pai prestou-se a
tudo quanto elas quiseram; e sendo resolvido, que .se venceria um tão tremendo
inimigo por meio de um bem combinado movimento de flanco; quando tudo estava
disposto para a partida, em vez de sairmos pela estrada da Corte, nós saimos da
Campanha pela estrada do Ouro Preto.
Se minha mãe, e se minha tia estavam que não cabiam em si de contentes,
ante essa ideia há tanto tempo acariciada, eu neste ponto do contentamento em nada
lhes ficava atrás; mas os meus motivos de satisfação eram muito diferentes; e eram
dois: — 1.º porque montando no meu pequira, eu dele não desceria durante muitos
dias; 2." porque pela primeira vez na minha vida, eu calçava botas brancas de couro
de veado, ou como então se chamavam — botas mineiras; botas estas que me
chegavam até acima dos joelhos e prendiam-se à cintura por meio de correias com
fivelas; e por consequência, eu já podia me considerar mais ou menos como um
homem. Entretanto, como neste mundo pão há venturas completas, no brilhante céu
da minha felicidade — havia uma nuvem negra — as minhas botas eram ainda sem
esporas. Felizmente, no primeiro dia de marcha, nós pousamos no arraial dos Três
Corações de Rio Verde em casa de um homem que se chamava Estêvão Fecha; e
este homem que era amigo de meu pai, presenteou-me com um par de esporinhas de
prata; e desde então, durante muitos dias, não houve um ente mais feliz sobre a
terra.
No terceiro dia da nossa viagem, passamos por S. Tomé das Letras.
Colocada em cima de uma alcantilada serra, a povoação que era composta de muito
poucas casas e quase todas elas desabitadas, podia muito bem ser comparada a um
verdadeiro ninho de aves. Não obstante essa espécie de solidão que tinha a meus
olhos alguma coisa de triste, eu gostei, entretanto, não só de ver a igreja, donde a
vista se espraia por um horizonte imenso; porém muito mais ainda gostei de ver as
letras que dão o nome ao lugar e que se acham ao lado da igreja em uma grande
pedra cortada a pique. Embora muito fugitiva, ainda conservo uma ideia dessas
letras, ou para falar com muito mais exatidão, desses sinais. Para todos, porém,
passavam por serem letras de não sei que alfabeto e que queriam significar — Por
aqui andou Tomé —; pois que se
bem me recordo, esses sinais eram quatro. É muito provável, que essas letras
pertençam à mesma espécie de outras maravilhas naturais que por ali se encontram;
pois que aquele lugar e toda a serra são bem conhecidos e notáveis pelas belas lages
soltas que ali por toda a parte se encontram, e que se prestando para pas-seios para
fornos de farinha e para outros misteres, entre elas algumas se descobrem em que
estampadas ou encrustadas vêem-se árvores e não sei se também animais ou outros
objetos; e isto, de um modo tão perfeito e às vezes tão acabado, que encanta e admi-
ra mesmo àqueles que privados como eu de bossa artística, não se deixam
embasbacar por qualquer coisa.
Depois de S. Tomé, a primeira povoação por que passamos, foi a vila da
Airuoca; e aí fomos pousar em casa de dois parentes nossos — os cônegos Antônio
dos Reis Silva Rezende e Urbano dos Reis Silva Rezende. Eram dois irmãos que há
pouco morreram já muito velhos e que toda a sua vida viveram juntos e na mais
perfeita harmonia. Este fato não é raro na minha família paterna; e tanto mais
notável se torna, que sendo essa família dotada de qualidades não muito brilhantes
mas sólidas e muito estimáveis, essas suas qualidades, entretanto, são de alguma
sorte mareadas por uma aspereza de gênio que a própria educação custa a conter; e
muito mais ainda, por uma obstinação, que útil e respeitável em alguns casos, em
outros quase que toca a meta do absurdo. E eis aqui um exemplo que vou dar e que
serve de prova a tudo quanto acabo de dizer. Dois dos meus tios paternos, tendo
falecido minha Avó, concordaram de porem os seus recursos em comum e de
ficarem com toda a fazenda comprando as partes dos outros herdeiros; e assim o
fizeram. Naquela casa ninguém sabia qual dos dois era o dono; porque nunca se os
via discutir e a ordem que um dava era imediatamente cumprida. E desta sorte, ali
viveram vinte e tantos anos em uma harmonia, um pouco seca e muito silenciosa, é
certo, mas tão perfeita, que eu mesmo muitas vezes ficava admirado, como é que
dois homens de um gênio tão imperioso e de modos tão ásperos, como eram aqueles,
podiam ficar assim juntos, já não digo uma semana, mas meses e anos sem nunca
brigarem. No fim, porém, de tantos anos, um deles casou-se; o outro segue-lhe o
exemplo; e em pouco tempo desavieram-se; partiram todos os bens; e um fole, que
ambos pretendiam e que nenhum queria ceder, foi serrado ao meio, para que cada
um ficasse com a parte ou com o pedaço que por direito lhe pertencia.
De Airuoca até Rezende só me lembro de um rio que tivemos de passar já
quase à noite que suponho dever ser o Rio Preto, e cuja lembrança principalmente
conservo por ser esse o primeiro
rio que tive de atravessar em barca, a qual era formada de um assoalho de tábuas
sobre três canoas e o todo cercado de grades com duas porteiras.
Em Rezende estivemos com uma parenta nossa que ali residia e uma de
cujas filhas era, senão me engano, professora pública. Algum tempo depois soube
que esta se havia casado com um filho natural de Pedro I; o que na minha
ingenuidade de criança fez com que eu quase a considerasse como uma verdadeira
princesa. E isto me desperta algumas ideias que desejaria e deveria talvez não
divulgar aqui, quando mais não fosse, por esse sentimento de delicadeza ou caridade
que tantas vezes nos prende a língua quando pode ofender a um inocente ou mesmo
a um culpado sem muito grande necessidade.
Mas além de que estas "Minhas Recordações" têm alguma coisa de
históricas; e o que a história procura, é a verdade por todos os modos; ainda acresce,
que é tão grande o ódio e ao mesmo tempo o horror que sinto pelo despotismo, seja
qual for a forma com que se apresente; que não poderia me deixar prender por uma
semelhante consideração; sobretudo quando vejo, que depois dos tempos heróicos
da independência e da menoridade, tendo nós caído nesse triste marasmo em que,
entre os vagidos do comunismo e a mais chata cortesania, cada vez mais vai so
esquecendo da verdadeira e bem entendida liberdade; é preciso que o povo nunca se
esqueça do que já viu e já sentiu; para que possa constantemente lembrar-se que
todo o poder demasiado é sempre funesto e que para o seu bem-estar e liberdade não
há salvação possível senão na lei e no dever. De mais; como sentir-se respeito, como
sentir-se simpatia ou mesmo uma dose qualquer de compaixão por pessoas que
nunca fizeram por onde merecê-las? Ora quando se vê, senão a sabedoria infusa que
se atribui ao atual imperador, pelo menos a sua incontestável e muito variada ilustra-
ção; quando ainda se vê essa tão esmerada educação que tiveram as nossas
princesas; e ao mesmo tempo, a virtude, a modéstia e essa bondade tão simples e um
pouco campônea da nossa imperatriz; e quando finalmente se observa essa tão
perfeita moralidade do paço imperial; muito dificilmente se compreende o que foi no
Brasil a família de D. João VI. Privados todos os membros dessa familia da mais
vulgar educação, intelectual ou moral, não há quem não saiba, mais ou menos, o que
foi Pedro I como um homem extravagante; ou como um homem que não tinha o
mínimo sentimento da dignidade conjugal dentro e fora da sua casa; de sorte que se
por acaso o seu reinado se prolongasse por mais tempo, era muito possível, que
no Brasil se tornasse tão vulgar
o caído beiço austríaco, quanto é vulgar, segundo nos diz A. Dumas, o nariz
"bourbônico" em uma das localidades de Nápoles.
D. Miguel, esse era um verdadeiro monstro, cuja única lembrança nos faz
não digo simplesmente raiva, mas quase que horror; pois que, se Pedro I tem
defeitos e grandes, esses defeitos nasciam principalmente da educação, ao passo que,
no fundo da sua alma, se encontravam, senão grandes virtudes, algumas qualidades
mais ou menos apreciáveis e os estímulos de um herói talvez; entretanto que D.
Miguel, profundamente ignorante, estúpido ou insano, mas sobretudo naturalmente
mau, até nos seus próprios divertimentos, só achava prazer em fazer mal. Assim, ele
tinha por costume passar algum tempo na fazenda de Santa Cruz; e o seu principal
divertimento ali era aguardar os viajantes do interior que transitavam por aquela
estrada, e ultrajosamente escarnecê-los a relho. Eu mesmo conheci na Campanha
uma pessoa e de família das mais importantes e respeitáveis dali que foi uma das
vítimas desses tão inocentes e tão agradáveis passatempos reais; mas o que não
afirmo; porque sobre este ponto a memória me falha, é se nesse desacato de um
pacífico viandante também tomou parte o seu irmão mais velho.
Se os homens eram isto que acabo de dizer; parece que as mulheres não eram
muito mais dignas de respeito; pois que a rainha Carlota, como todos sabem, nada
tinha de estimável; e embora muito mais reclusas, as próprias princesas, parece, que
não escapavam à murmuração. Eu, por exemplo, ainda conheci um homem que
residia em S. Gonçalo de Sapucaí e que por sua grande riqueza era ali pessoa das
mais consideradas. Este homem, me disseram que era pobre e não sei se tropeiro;
mas o que me deram como certo, é que como tropeiro, como comerciante, ou como
outra qualquer coisa, frequentava a cidade do Rio de Janeiro; e que assim como
todos os outros viajantes da Campanha, ele não deixava de passar pela fazenda de
Santa Cruz e talvez mesmo de aí muitas vezes pousar; até que em uma das suas via-
gens ele voltou trazendo consigo, e sem disso dar uma bem satisfatória explicação,
uma criança; e que desde então a sua fortuna começou a avultar por uma forma tão
rápida, que parecia não ser o efeito simplesmente do esforço e do trabalho. Desde
então, ele não deixava de ir periodicamente à Corte; e quando voltava nunca deixava
de trazer muitos objetos finos, delicados e muito pouco próprios daqueles lugares; e
dos quais o que sobretudo despertou a atenção geral foi uma espingarda marchetada
de prata e de muito fino lavor com que alguns anos depois ele ali se apresentou
dizendo que a havia comprado.
Essa criança cresceu e não sei se ainda vive; mas a explicação que de tudo
isto se costumava dar, vinha a ser esta — que o menino era filho de uma das
princesas que o entregou àquele sujeito para conservá-lo oculto; entretanto que
dando-se repentinamente a partida da família real para a Europa, e não havendo
tempo para nada se providenciar, o menino lá ficou; e em um estado inteiramente
diferente daquele para o qual a sorte parecia destiná-lo; porque o seu aio nunca lhe
confiou o segredo do seu nascimento e se apoderou de tudo quanto era dele. Eu não
garanto a verdade do fato e nem tão pouco a de todas as suas circunstâncias; não só
porque não mais faço do que repetir aquilo que em outros tempos ouvi; mas ainda
porque este meu trabalho, como o próprio título o indica, é um ato simplesmente de
memória e muitas vezes de memória de uma criança que mal saía da infância ou que
muito poucos anos contava.
É possível mesmo que tudo isto não passe de uma refinada calúnia ou de um
simples fruto apenas da maledicência ou da inveja. 0 fato, porém, de nascer e ser
criada uma semelhante calúnia, bastará, sem dúvida nenhuma, para mostrar qual a
triste ideia que naquele tempo se formava da então família real.
A digressão não deixou de ser um pouco longa; mas enfim, quem viaja
precisa um pouco de conversar, quando mais não seja para distrair-se desse
monótono caminhar de tantas horas sob os raios mais ou menos ardentes de um sol
sem nuvens ou por entre as nuvens de uma poeira sempre incômoda, e muitas vezes
sufocante; e é esta a sua desculpa.
Eu, porém, poupando em compensação ao leitor a descrição do resto da
minha viagem até à Corte, vou dá-la aqui por terminada; e sem falar na Barra Mansa
que então se chamava a vila da Posse, no Arrozal, em Itaguaí, em Santa Cruz e em
outros lugares por onde passamos; e nem mesmo na Pavuna onde vi pela primeira
vez a água do mar e na Venda Grande onde nos disseram que dali à Cidade só havia
duas léguas; eu me considero chegado a um rancho ou a uma estalagem na entrada
de São Cristóvão, onde paramos a fim de fazer os devidos preparativos para o nosso
ingresso nessa tão formosa e tão almejada capital do Brasil; mas onde contudo não
quisemos entrar senão de noite; porque os nossos animais estavam tão magros e tão
escalavrados, que nos pareceu uma falta de respeito e ao mesmo tempo de
respeitabilidade, nela fazer a nossa entrada à luz do sol ou "coram populum".
CAPÍTULO IX
A estadia na Corte. Como e por que se conheceu o médico mais \notável daquele
tempo. O Conselheiro Perdigão Malheiros: seu gênio e suas excentricidades. Visitas
e passeios. O Cicerone não podia ser melhor. Vultos políticos e altos personagens
que foram vistos e ficaram conhecidos. A parada militar de 7 de setembro. Ao ver o
pequeno imperador, o autor sentiu uma grande inveja. A ida ao teatro: João
Caetano, a Estela e a Ludovina. Visita à Câmara dos Deputados. Um velhinho baixo
e muito teso fazia um discurso, soltando perdigotos. Quem era esse velhinho. Na
Escola Militar. O futuro general Pederneiras jogava florete. A crisma do autor
no Convento de Santo Antônio. Regresso à
Campanha.
Ao tratar do regente Feijó, já tive ocasião de dizer que meu tio Gaspar estava
estudando medicina na Corte; e agora acrescentarei que em 1839 ali também se
achava meu tio Francisco ou Iquinho que para lá tinha ido a fim de estudar em uma
aula do comércio que já antes existia ou que nessa ocasião fora criada; e na qual
também estudavam os meus primos Joaquim Bento Ferreira Lopes e Cândido Inácio
Ferreira Lopes. Fomos, pois, morar com aqueles meus tios em uma casa que haviam
alugado para esse fim no moro do Castelo.
A vista para o mar era magnífica; e por esse lado, não se podia achar coisa
melhor; mas em compensação, dês do momento em que se abaixavam os olhos, nada
mais se enxergava senão telhados. Minha mãe não gostou, portanto, da casa; e
fomos então morar em uma assobradada e com sótão que ficava na rua do Hospício
fazendo esquina com o Beco do Fisco. Pouco depois, porém, que para ali nos
mudamos, adoeceu meu tio Francisco; e esta doença deu-me ocasião para conhecer
um homem que tinha então uma fama como não há hoje um só dos filhos da
faculdade de medicina que tenha nem sequer a décima parte; porque hoje, não há
médico que se tenha ou que alguns o tenham na conta de um verdadeiro gênio, que
não seja para os outros um famoso charlatão; entretanto que esse de quem falo, sem
contestação, nem rivais, era tido como o primeiro médico da Corte, e por consequên-
cia, do Brasil inteiro. Esse homem era o Dr. Joaquim Cândido
Soares de Meireles e que foi deputado por Minas em diversas legislaturas.
Este Dr. Meireles era muito querido de todos os mineiros que o chegavam a
conhecer; e em honra sua, o que lhe atraía todas essas simpatias não era,
nem o seu grande saber médico, e menos ainda a sua importância política;
mas era uma qualidade que tanta gente hoje parece que até se esforça por
perder, mas que ele até a sua morte, conservou em toda a sua pureza — o
amor e o orgulho pela sua província natal. E como quem ama ao dono ama
ao cão, ele que assim tanto amava a esta terra em que ele havia nascido, não
só fazia alarde de ser mineiro; porém ainda, o que não menos o honra, os
seus braços estavam sempre abertos para todos os mineiros que o
procuravam. A doença de meu tio eram bexigas; e por conselho do médico
nós fomos morar em casa do então desembargador e depois Conselheiro
Agostinho Marques Perdigão Malheiros, que era casado com minha tia D.
Urbana. Era este um homem não simplesmente sistemático, mas o homem
talvez o mais sistemático de quantos tenho conhecido; de sorte que tudo nas
suas ações, tudo na sua casa, tinha o seu tempo e tinha o seu lugar; e tempo e
lugar nunca se alterava. Como tudo o mais as suas diversas refeições tinham
igualmente o seu lugar e a sua hora certa; e se por acaso, essa hora era exce-
dida por culpa da cozinheira, esta imediatamente vinha ao pé dele; e com a
mesma impassibilidade com que ele abriria uns autos para despachar, sem se
alterar, abria o relógio que trazia na algibeira; via o número de minutos que
havia de excesso; e com um pequeno cacete, que tinha sempre sobre uma
pequena mesa para esse fim, dava ao alto da cabeça da infratora do sistema,
tantas cacetadas, quanto era exatamente o número de minutos excedidos.
Como, porém, naquela casa, tudo andava sempre a tempo e a hora; não só
esse castigo era raríssimo e quase que não excedia de quatro ou cinco
cacetadas; mas ainda, ele as aplicava com tanto jeito ou com tão pouca
força; que nunca daí resultava outro mal que não fosse o de uma dor maior
ou menor que a paciente sofria. 0 conhecimento que tive do Conselheiro
Perdigão nunca passou de um conhecimento puramente superficial. Ouvi,
porém, dizer, que possuía algumas qualidades muito apreciáveis; e ao
mesmo tempo dois defeitos. Destes o primeiro, que nem mesmo se pode
talvez considerar como um grande defeito, era, que não sendo rico e vivendo
apenas dos seus ordenados, gastava em comprar quadros ou painéis de que
era um grande amador uma boa parte dos seus rendimentos, que poderiam
ter sido melhor empregados em benefício da família. Quanto ao outro defei-
to, esse era muitíssimo mais grave; porque, imbuído das ideias as mais
atrasadas em relação à liberdade da família, o Conselheiro
Perdigão era ainda quanto à honra e ao decoro desta, de uma tão
extravagante suscetibilidade, que muito mais se parecia à de um turco do
que à de um homem dos nossos dias e sobretudo de um homem ilustrado.
Assim, tendo sido minha tia, segundo muitas vezes ouvi dizer, uma das
moças mais belas que a Campanha possuiu, ele, segundo muitas vezes
também ouvi dizer, nunca saía de casa para dar audiência ou para outro
qualquer fim, sem que levasse consigo a chave da casa; e como se uma tão
esquisita cautela não lhe bastasse, tinha a mais esquisita ainda de espalhar
ou peneirar fubá ou farinha no corredor da entrada, para que tivesse certeza,
pela ausência de rastros, de que ali ninguém havia penetrado. 0 que é certo é
que, dominado destas ideias tão antiquadas ou antes tão ridiculamente
extravagantes, o Conselheiro Perdigão, em vez de dar à sua família esse
desembaraço e essa experiência do mundo que tão útil nos é a todos, nos
primeiros passos da vida, o que fez pelo contrário, foi criar os seus filhos
como moças e a suas filhas quase como freiras.
Em 1839 já eram moças as duas filhas que teve e que foram moças
lindíssimas; mas na sua casa não entrava médico, mestre ou qualquer outra
pessoa que pudesse ser suspeita de perigosa; o que quer dizer, que a não ser
parentes ou pessoas a todos os respeitos garantidas, ali ninguém entrava que
não fosse mais ou menos escuro, mais ou menos velho, e finalmente mais
ou menos feio. Entretanto, o Conselheiro Perdigão era geralmente estimado
e respeitado por toda a família; embora esta estima não deixasse de ser
talvez em parte um grande reflexo do amor e da veneração que todos
consagravam à minha tia; porque ainda que de uma amabilidade sempre
séria e quase seca e que de alguma sorte ela tinha herdado com o sangue,
nunca até os últimos dias da sua vida deixou de ser para todos os seus
parentes, sem a menor exceção, uma amiga sincera e desvelada; assim como
era um verdadeiro tipo da mais profunda e singela virtude.
Sem falar nessa casa do Conselheiro Perdigão onde ficamos durante a
moléstia de meu tio e que depois muito assiduamente frequentávamos e na
de meu tio, o Marquês de Valença, aonde fomos algumas vezes, não tenho
bastante lembrança de haver ido a outras casas, senão uma vez à do
desembargador Bernardo Ribeiro Soares de Sousa e creio que à do então
doutor e não sei se também desembargador Paulino José Soares de Sousa,
depois Visconde de Uruguai. E desta visita, aquilo de que apenas me recor-
do, é que a dona da casa nos levou a um quarto espaçoso em que o silêncio
perfeitamente se casava com a fraca luz que o esclarecia, para mostrar à
minha mãe todos os seus filhos, que, por ser
já um pouco tarde, ali já se achavam deitados nas suas camas ou berços. E
se isto se passou, como é possível que se passasse, em casa do futuro
Visconde de Uruguai, um daqueles meninos era muito provavelmente o meu
futuro colega Paulino de Sousa, atual senador do império, e o dono mais ou
menos reconhecido da Província do Rio de Janeiro. E aqui cumpre-me
dizer, que, ao recordar um fato desta ordem, o daquele quarto silencioso e
meio obscurecido como um verdadeiro tabernáculo onde, ufana como a
romana Cornélia, u'a mãe mostrava à outra o melhor e o maior de todos os
seus tesouros naquelas pequenas crianças que ali tão docemente
ressonavam, eu não posso deixar de dar cada vez mais graças a Deus de ter
tão cedo me desiludido e afastado das grandezas deste mundo; porque não
há, com toda a certeza, prazeres tão plácidos e tão doces como o de uma
família feliz; e além de tantas e tão grandes amarguras, a glória não se
alcança e a ambição não se satisfaz senão com o sacrifício desses mesmos
prazeres. E disto é talvez uma prova esse mesmo Visconde de Uruguai de
cujos filhos talvez eu esteja falando; pois que, segundo ouvi, senão me
engano, aquele mesmo que hoje lhe continua o nome e os feitos, a sua vida
era por uma tal forma fatigante e acabrunhadora; que a velar noites e noites,
quando todos os outros dormiam, muitas vezes era unicamente quando a
aurora despontava, que lhe era dado recolher-se ao seu quarto, e para não
acordar a esposa adormecida, a seu lado deitava-se mesmo por cima das
colchas; e aí passava por um rápido sono.
Há, entretanto, uma casa ainda, a que me lembro de ter ido; e era a de
D. Matilde, mulher, se não me engano, de um nosso diplomata, Bernardo de
Figueiredo e que foi sogra do senador José Pedro Dias de Carvalho. Assim
como o cônego Geraldo Leite Bastos, era o amigo de todos os principais
políticos liberais daquele tempo e era deles extremamente estimado, como
muito tempo depois eu ainda pude observar por ocasião do seu falecimento;
assim também, me parece que D. Matilde era uma senhora que lhes merecia
muito as simpatias e que a sua casa era como que espécie de clube ou de
ponto de reunião para muitos deles. Pelo menos, todas as vezes que a essa
casa eu ia, lá sempre encontrava um grande número de homens e muito ali
se falava em política; mas dessas discussões nada absolutamente me lembro,
senão que muito se falava em banca rota; e isto mesmo, por não conhecer a
palavra e ter-me ela feito mossa. Também das pessoas que ali vi, a única de
quem ainda conservo uma lembrança bem viva é talvez o Dr. Francisco
Álvares Machado que era então deputado, passava por um bom orador, e
tinha, segundo creio, bastante importância. Além de político, porém,
Álvares Machado
era também médico e fazia operações de catarata. E como em terra de cegos
quem tem um olho é rei; ele que neste ponto, talvez não passasse hoje de
um simples aprendiz à vista de tantos médicos oculistas que felizmente
possuímos; naquele tempo gozava de uma fama de operador que tinha
alguma coisa de prestígio. Parece que ele tinha consciência disto, e que
julgava que o seu nome chegaria à posteridade mais como o de um grande
operador, do que como o de um deputado eloquente ou do homem que o go-
verno da maioridade julgou capaz de ir, como presidente do Rio Grande do
Sul, por termo à república de Piratinim. Pelo menos, ele falava muito nessas
suas operações, e a mim mesmo gracejando perguntava se não queria ser
médico para ser operador; e então contava com o maior gosto e
desvanecimento, que tinha um filho ou um neto com uma tal inclinação para
essa profissão, que, tendo começado a exercitar-se a fazer a operação de
olhos em uma cidra, depois já tinha passado a fazê-la nas galinhas ou não
sei em que outros animais.
E já que falei em dois ou três deputados daquele tempo, direi que não
só muitos outros conheci; mas que mesmo não deixei de ir uma vez à
Câmara. E se eu tivesse à mão os anais desse ano de 1839, poderia até
marcar o dia exato da sessão à qual assisti; pois que me lembro bem, que
nesse dia estava sentado na mesa ao lado do presidente, um homem gordo,
baixo e já de alguma idade e vestido com uma farda bordada; e perguntando
eu quem era aquele sujeito, me disseram que era o ministro da Fazenda,
Manuel Alves Branco; entretanto que de frente junto de uma porta e na
extremidade de um banco estava a falar um velhinho baixo e muito teso e
que quando falava cuspia muito ou como vulgarmente se diz lançava muitos
perdigotos; e perguntando eu quem era o tal velho, me responderam que era
Antônio Carlos Ribeiro de Andrade Machado e Silva.
Entretanto, tendo até agora tratado nestas Minhas Recordações de
alguns homens ilustres e de tantos outros obscuros, ainda não me ocupei
senão muito de passagem de um de quem terei daqui em diante muitas
vezes de falar — o senador José Bento Leite Ferreira de Melo. vigário de
Pouso Alegre. Nome hoje um pouco esquecido e de alguns inteiramente
talvez ignorado, o vigário José Bento que foi o primeiro senador por Minas
depois da primeira organização do senado, foi ao mesmo tempo um dos
nossos políticos mais estimados e um talvez dos de maior influência durante
toda a maioridade. Eu não lhe pude conhecer a ilustração e nem creio
mesmo que ela fosse muito vasta; mas eu sei que era ele um
homem de incontestável e
D. Ignacia Luisa Horta Barbosa, futura esposa
do Dr. Francisco de Paula Ferreira de Rezende,
aos 18 anos de idade.
D. Ignácio Luisa Barbosa de Rezende, esposa do
Dr. Francisco de Paula Ferreira de Rezende
aos 28 anos de idade, em tratamento de saúde
no Rio de Janeiro (1874J.
muito viva inteligência e que tinha o dom de fazer valer o muito ou pouco que sabia.
Assim, pronunciando discursos que eram tidos como bons, e perguntando-lhe meu
Avô como, sem ter estudos regulares, os podia fazer, ele com toda a franqueza lhe
declarou, que o seu sistema era nunca ser dos primeiros a falar, ouvir primeiro os
discursos dos outros, e senvindo-se do que achava de bom em todos eles, formar
depois o seu ramalhete. Se, porém, José Bento não tinha uma instrução muito vasta;
se não era um orador eloquente ou consumado; e se até mesmo se quiser admitir que
ele não tinha nem a terça ou quarta parte da inteligência que realmente possuía; nada
disso contrariaria aquilo que a seu respeito vou dizer ou em nada poderia diminuir o
seu verdadeiro valor político; porque se todas essas qualidades podem, ser, e são,
com efeito, muito úteis em política como em tudo o mais; entretanto, na política
como em quase tudo, o que dá o respeito, a força e quase sempre o triunfo, isto é, o
essencial, é sempre o caráter; e o caráter de José bento era feito para dominar e
arrastar. Franco, generosamente liberal, amigo dedicado, de uma firmeza de opiniões
à toda prova, de uma vontade de ferro, e ao mesmo tempo jeitoso e de modos
brandos, quando queria José Bento tinha tudo quanto era preciso para exercer uma
muito grande influência em torno de si, qualquer que fosse o círculo em que a sua
atividade se desenvolvesse. E essa influência ele a teve, não só na sua freguesia, mas
na província e até no meio da própria assembleia geral.
Para provar a grande influência de José Bento eu apenas citarei três fatos. O
primeiro é essa tão célebre constituição de Pouso Alegre que fez um tão grande
barulho e quase produziu uma completa revolução nas nossas instituições; e que me
parece (não afirmo) tira o seu nome da povoação ou da vila em que ele residia. 0
segundo é a parte importantíssima que ele teve na proclamação da maioridade; pois
que ainda me lembro, como se fosse hoje, de tê-lo visto contando a meu Avô como
se tinha operado essa conspiração imperial, e além de outras coisas que já me pas-
saram, de ouvi-lo dizer que a ele se devia o não ter falhado a conspiração; porque
tendo ido um pouco mais cedo para o senado, viu sobre a mesa o decreto do
adiamento das câmaras assinado por Vasconcelos ; e como sabia que a sessão não se
abriria tão depressa, ele sem perder tempo, correu para a câmara dos deputados a fim
de ali combinar o que se devia fazer; quando porém lá chegou já o decreto de
adiamento tinha sido lido e todos já se retiravam, murmurando sim mas resignados,
quando ele arrebanhando todos os deputados maioristas que ali se achavam,
sem mais demora com eles partiu para o senado onde se fez a revolução.
Quanto ao terceiro fato, esse é ainda mais concludente e ao mesmo tempo
mostra a sua grande perspicácia.
José Bento, assim como meu Avô, eram amigos de Antônio Paulino
Limpo de Abreu, depois Visconde de Abaeté; e meu Avô, além de amigo,
era ainda como liberal um grande entusiasta de Limpo de Abreu; mas José
Bento não negando, antes mesmo exaltando todas as grandes qualidades
desse nosso grande estadista, dizia a meu Avô — tudo isto é certo; mas o
Limpo é um caráter fraco e que precisa de ter quem o segure. Enquanto eu
for vivo, ele há de continuar sempre a ser liberal; no momento, porém, em
que eu fechar os olhos, ele será arrastado e dominado pelo Honório — E
com efeito, José Bento foi assassinado em 1844; pouco depois os liberais
começavam a queixar-se da tibieza política do seu antigo paladino; os
queixumes começaram a conver-ter-se em suspeitas cada vez maioers; e em
1853 o Visconde do Paraná organizava um ministério, e, com espanto geral,
o ministro de estrangeiros era o Visconde de Abaete.
Ora, José Bento era amigo íntimo do meu Avô; e com o gênio que
ele tinha, com as relações de que dispunha, nós não poderíamos achar um
cicerone que estivesse tão a par dos nossos desejos ou quem melhor do que
ele, nos pudesse tudo mostrar e nos levar a toda parte. E com efeito, não
houve lugar ou coisa digna de ver-se e que quase sempre por ele
acompanhado, nós não fôssemos ou não víssemos; inclusive até uma muito
grande e bonita fragata americana que havia pouco tinha chegado e que
estava ancorada na baia. E devo dizer, que foi este um dos passeios que
mais nos agradaram e que maior impressão me deixaram no espírito.
Custou-me é certo, um pouco, o subir a estreita escada de corda, donde me
parecia a cada passo que eu ia cair no mar; e muito mais ainda me custava o
equilibrar-me ou dar um passo no navio sem que este me parecesse que ia
virar ou que eu estava ficando meio bêbado; mas tudo isto mesmo era para
mim um novo divertimento; e tendo muito gostado de tudo, aquilo de que
mais gostei e que eu não cessava de reparar, era a guarnição que se tinha
formado dentro da fragata; pois devo dizer, que não tendo, como um
genuíno mineiro que sou, o menor espírito militar, e sendo de uma natureza
tão pacífica ou tão prudente, que poderia talvez dizer que nunca briguei em
toda a minha vida; entretanto, nada há que tanto me divirta como ver
soldados e evoluções militares; assim como, sendo incapaz de ouvir uma
ópera por gosto ou mesmo de apreciar uma peça de música mais ou menos
compli-
cada e que seja nova para mim, gosto entretanto e realmente aprecio as bandas
militares, o toque do clarim e até o próprio rufo das caixas.
Felizmente, eu tive pouco depois uma excelente ocasião de satisfazer a todos
estes meus gostos; porque no dia 7 de setembro houve, segundo o costume, uma
grande parada no largo do Paço; e nós fomos assisti-la de uma das janelas do próprio
Paço. Foi esse para mim um dia inteiramente cheio; pois que dele eu nada perdi
desde os tiros de peça que se deram de madrugada até a representação que houve à
noite e em que figuraram o João Caetano, a Estella e a Ludovina; embora sobre este
ponto me reste uma dúvida; porque me parece que o teatro a que fomos era o de S.
Januário, e estes atores, se não me engano, não representavam senão no S. Pedro. 0
que, porém, deveras me encheu as medidas, foi mesmo ou foi só a parada; pois que
vendo aí tanta coisa bonita e de que eu tanto gostava, eu posso dizer que a minha
satisfação não podia ser mais completa. De tudo, entretanto, o que mais me
impressionou, foi o pequeno imperador que eu via em uma janela não muito distante
da minha e que dali estava como eu e talvez com o mesmo gosto que eu a
contemplar a parada; e o que não deixava de me por no coração um pequenino grão
de inveja, tapava o sol que nos feria pela frente com um pequenino chapéu armado
que ele conservava pousado sobre o peitoril da sacada e por trás do qual ele parecia
espiar; chapeuzinho este que me parecia dever caber justinho na minha cabeça e que
todo coberto de arminho, como estava, me parecia naquele momento ser o objeto
mais bonito de todo o mundo.
Eu, porém, disse que nós fomos a toda parte; mas para ser exato é preciso
que faça aqui uma pequena restrição; e é, que assim como fui sem minha família a
alguns lugares, como por exemplo, uma vez à escola militar, onde estive a ver jogar
florete a um moço que era muito amigo de meus tios, que então se chamava o
Inocêncio e que hoje se chama o General Pederneiras; assim também minha família
foi muitas vezes sem mim a uma sociedade de canto e música que se denominava
Filarmônica; e além de outros bailes a que foram diversas vezes, foi a um que muito
dispendioso ficou para meu pai; e do qual durante toda a sua vida minha mãe e
minha tia não falavam sem movimentos do mais vivo entusiasmo. Era um baile a
que iam príncipes e diplomatas, uma espécie, senão me engano, do atual Cassino, e
que se denominava — o baile dos estrangeiros.
A nada disto eu fui, como disse; e a razão que se dava e que então me
pareceu o mais iníquo de todos os absurdos mas que,
hoje, acho extremamente sensata, é que os estatutos proibiam ou que
na Corte não era uso levar crianças a bailes.
Ficamos na Corte dois ou três meses; mas o homem não vive só de
passeios e divertimentos, porém, sim e principalmente de trabalho e
economia. A casa nos chamava; e como desde que nasci, o Padre José Bento
era o meu destinado padrinho de crisma; este me levou, se não me engano,
ao convento de Santo Antônio onde morava o bispo da Anemuria, e
este me crismou.
Por minha mãe e por minha tia nós nunca sairíamos da Corte; mas
meu pai resistiu; os animais tinham chegado; e nós partimos, elas todas
chorosas e suspirosas e eu todo ancho e todo contente, porque me via de
novo de botas e de esporas em cima do meu pequeno Alazãozinho. Não
cançarei ao leitor com a descrição da nossa volta; porque eu quase que não
teria para dizer senão isto — que se na ida tivemos por único contratempo o
sol e a poeira, a volta foi terrível. As chuvas tinham começado; as estradas
estavam cheias de atoleiros; e se se fugia do caminho mais trilhado para
procurar um desvio que parecia estar um pouco melhor, era logo um —
Nossa Senhora — e ventas na lama; e meu pai logo a dizer: — Nunca fujas
do trilho dos burros. Quanto às serras, isto então nem é bom falar. Nelas a
estrada pode-se dizer que era rosário de caldeirões. E como hoje os leitores
não sabem o que são caldeirões, eu direi que eram uns regos que atra-
vessavam a estrada de lado a lado ou uma como que escada deitada ou feita
no chão em que o animal devia por o pé no vão que era justamente o lugar
em que ele ia até aos peitos; e ai do coitado que fosse cm um animal que
não soubesse contar. Ficava que nem pinto pelado que caiu no azeite. E
tudo isto, note-se bem, quando muitas vezes não vinha pela frente uma tropa
e pela retaguarda outra, e atrás da tropa uma porcada, uma carneirada e,
sobretudo, uma boiada!
Quando eu me lembro de todas estas coisas, eu tenho um verdadeiro
dó de toda essa gente que ainda hoje por aí, e para a qual parece que os pés
não foram feitos para andar mas para serem sempre carregados; e digo que
de todos eles tenho dó; porque (coitados!) andam em um dia e às vezes até
em horas dezenas e dezenas de léguas, e não sentem uma só emoção, nem
sequer conseguem avivar ou abrir o apetite; e quando voltam, o mais que
podem contar é que o bonde foi de encontro a uma carroça ou então, e eis o
"suprasummum" de todas as emoções — em tal ponto o trem
desencarrilhou!
Entretanto, da Campaha à Corte tem apenas 64 léguas; fiz esta
viagem em 10 ou 12 dias; não sabia onde iria comer; dormia
em ranchos abertos ou mesmo ao relento; e quantas e quantas emoções esta
viagem não me deixou e que são outras tantas lembranças para meu manar
mais saboroso, do que os que eu comi nessa viagem, do pobre caldeirão! E o
rancho, e o tropeiro com o seu canto e os seus folgares?! Nem quero me
lembrar dessas coisas, porque são capazes de aumentar ainda mais o meu
"spleen".
Eu, pois, direi ao leitor, que ou porque as delícias da Corte nos
fizessem perder o medo do Chico Paz; ou seja porque naquele tempo quem
ia para a Corte levava dinheiro e quem de lá voltava vinha sempre com as
algibeiras vazias; e por consequência, não se podia ter medo de salteadores;
ou seja lá pelo que for e de que agora já não me recordo; voltamos pelo
Picu. E foi isso muito bom; porque sem que nada de sinistro afinal nos
acontecesse, nós tivemos assim alguns lugares novos para conhecer e a mais
bela das perspectivas que até então eu tinha visto — a da serra do Picu.
Divisa das duas províncias, do lado do Rio de Janeiro a subida é muito curta
e muito íngreme, pois que apenas tinha três quartos de légua; e quando se
voltavam os olhos para trás se via o mais ameno e o mais risonho dos
panoramas — era a província do Rio toda descampada e com os seus baixos
e redondos morros todos cobertos de café; entretanto, que apenas se chegava
ao alio e se começava a entrar no território de Minas, o espetáculo tornava-
se imediatamente ou sem a menor transição inteiramente outro; pois que em
vez de um descampado, eram três léguas de uma alterosa serra toda envolta
em neblina e sempre a desdo-brar-se toda coberta de mato.
Finalmente, pelo muito adiantado que já ia o ano, nós não tivemos
de sofrer e nem mesmo de receiar um perigo que então, e não sei se ainda
hoje, ali se corria, segundo mais de uma vez ouvi contar; e era o do frio que
em certos invernos tornava-se tão intenso, que chegava a matar burros de
carga e que até mesmo algumas vezes entorpecia ou, como vulgarmente se
diz, encaran-gava por um tal feitio ao próprio tocador, que este tolhido de
todos os membros, não podia caminhar ou caía.
Se ele fosse abandonado neste estado, com certeza morreria; mas
como a natureza ao lado do veneno põe sempre o antídoto,
os tropeiros bem depressa descobriram para um semelhante mal, o mais
pronto e o mais eficaz de todos os remédios, e era este — o primeiro dos
tocadores que encontrava um companheiro que parecia estar assim se
dispondo para se converter em uma fria estátua, armava-se imediatamente
do relho com que tocava o seu lote, e tangendo com ele ao companheiro
como se fosse um ver-radeiro burro, em muito pouco tempo o punha tão
quente e tão lesto, que ele não só já andava e corria; mas ainda poderia, se
fosse preciso, naquela mesma hora retribuir ao companheiro o grande
serviço que este lhe acabava de prestar.
CAPÍTULO X
O autor narra à preta Margarida as peripécias da sua viagem à Corte e a
preta Margarida o escuta maravilhada. Quem era a preta Margarida. As
histórias que ela contava e as muitas coisas que ensinava. Para bem se
conhecer a humanidade, não basta conhecer-lhe a casca. Um pouco de
filosofia e da alta história é necessário; mas não se esqueça o povo, os
preconceitos e até mesmo ns superstições absurdas . O Saci-perêrê e a
mula-sem-cabeça. Bruxas e lobisomens. Os doentes de enxaqueca e os
lobisomens. Uma lenda curiosa sobre a Campanha e como é que a preta
Margarida explicava as diferenças de cor na espécie humana.
Ainda no tempo em que fui à Corte muito poucos eram os homens
da Campanha, que a não serem tropeiros ou comerciantes, tivessem feito
essa viagem; e se isto se dava com os homens, quanto mais com as
mulheres ou com os meninos!
Eu, entretanto, que ainda não tinha 8 anos, já havia viajado 138
léguas de ida e volta; tinha visto muitos rios, muitas vilas; tinha ouvido o
ribombar da artilharia; tinha andado sobre o mar; tinha entrado em um
navio de guerra; e para tudo dizer em uma palavra, eu tinha ido à Corte. Eu,
pois, não só não era um menino como qualquer outro; mas poderia mesmo
ser considerado como um homem que muito mais do que os outros já bem
sabia quanto este nosso mundo era grande.
Para quem, porém, este novo Fernão Mendes ou este novo e tão
pequeno Marco Polo tomava proporções ainda mais gigantescas ou a quem
ele deixava, digamos assim, completamente embasbacada com a narração
maravilhosa da sua maravilhosa viagem, era uma preta escrava, que meu
bisavô Gaspar havia dado à minha mãe quando eram ambas ainda pequenas;
que foi por isso a primeira cara negra com que me acostumei; e de quem
desde então eu quase nunca me desprendia; porque era ela de muito bom
gênio; e esse gênio era ao mesmo tempo tão igual, que apesar de um pouco
aperreada por minha mãe, nunca tinha, por assim dizer, um só momento de
burros nem mesmo de um simples enfado; mas contente sempre e
tendo muito boa voz, sempre que
podia, cantava; e se não podia, conversava ou contava histórias. Esta preta
que era baixa e retinta e que trazia estampadas no rosto a alegria e a
bondade que lhe iam pela alma, tinha sido batizada com o bonito nome de
Margarida. Mas ou porque o achasse feio, ou talvez antes, porque muito
mais do que este achasse que valia o da mãe de Deus, foi crismada com o
nome de Ana; e por isso, ficou desde então se chamando Ana
Margarida.
Nem se estranhe que assim me ocupe, e com uma tão grande e quase
que excessiva minuciosidade de uma simples preta escrava; porque se aqui
não omito os meus parentes mais ou menos nobres e se de preferência
procuro falar de gente e de coisas grandes, contudo o que principalmente me
dirige a pena, é a lembrança daqueles a quem mais devo ou que mais me
amaram neste mundo; e esta pobre e alegre negra tanto me amou, tantas
vezes me teve ao colo, que ainda mesmo que eu quisesse, não poderia
jamais dela me esquecer. Outra circunstância, porém, existe ainda, que faz
com que eu não pudesse deixar de mencioná-la aqui; e é, que um dos pontos
do meu programa é o deixar registrado neste escrito o nome de todos os
meus mestres; e ainda que nunca professasse de cadeira, a Margarida sabia
tanta coisa e tanta coisa me ensinou, que ela não pode deixar de entrar na
classe dos meus melhores professores. E isto digo; porque, para bem
conhecer-se a humanidade, não é bastante que se lhe conheça unicamente a
casca ou que se tenham algumas noções de filosofia e alta história; mas é
ainda preciso, que igualmente se conheçam as opiniões do povo, os seus
prejuizos e até mesmo as suas absurdas superstições. E em todas estas
matérias, a Margarida não era uma simples curiosa ou uma simples
amadora; mas era, pelo contrário, uma verdadeira professora ou como tal
deve ser e, com toda justiça, considerada; pois que, para isso, não era
absolutamente indispensável que tivesse título ou aula aberta; assim como o
divino Sócrates nunca teve a sua aula em lugar algum determinado, mas
ensinava por toda parte ou onde e quando achava discípulos; e Sócrates,
como todos sabem, é o primeiro de todos os professores que a
humanidade tem tido.
Com isto não quero dizer, que uma tal aprendizagem e que sendo
sobretudo feita em uma idade tão tenra como era a minha. não deixasse de
ter os seus inconvenientes; pois que, além de ser isso uma dessas coisas que
a razão nos mostra, eu ainda sei, e o sei muito bem, que para mim os teve,
com efeito, e de uma natureza quase que irremediável. Assim, eu duvido
muito, que haja muita gente, que tenha um espírito, não direi tão são;
porque, se é minha opinião que não há ninguém que não tenha a sua
veia
de doido e que este mundo não passa de uma verdadeira casa de "orates" em ponto
muito grande; às vezes quase que chego a crer que, pela parte que me toca, eu estou
quase que a entrar para a classe dos loucos varridos ou daqueles cuja loucura não
está coberta com o pó ou com as aparências de uma tal ou qual razão; mas eu direi,
que tenha um espírito tão livre e tão completamente despreocupado como se acha
atualmente o meu.
Pois bem; ainda hoje, não só extremamente me desagrada, por exemplo, a
presença repentina de um beija-flor de rabo branco que aprendi em menino ser um
núncio, de más novas; mas, sobretudo, quando ouço um cão uivar ou uma coruja
piar, que também aprendi ser agouro infalível de alguma morte, por mais que me
queira fazer de duro, eu não posso deixar de sentir imediatamente um
estremecimento involuntário e que me deixa mais ou menos apreensivo por algum
tempo. E, no entretanto, eu sei perfeitamente pela razão e muito mais ainda pela
minha própria experiência, que tudo isto não passa de uma verdadeira loucura.
Mas enfim, se um tal ensino teve para mim inconvenientes maus, a intenção
foi boa ou não foi má; e, em todo o caso, graças à minha boa Margarida, sei hoje
tantas coisas, que a maior parte dos doutores de borla e capelo não sabem nem
sequer talvez a metade. E para que não se diga, que exagero ou que procuro dar à
minha mestra um mérito muito maior do que poderia ter, vou dar aqui alguns
espécimes desses conhecimentos que ela possuía em tão alta escala e que, sem paga
e até mesmo sem nem sequer fazer-se muito de rogada, de tão boa vontade
me transmitiu.
Assim, todos sabem que o Saci é uma entidade infernal ou diabólica; mas se
por acaso se perguntasse a qualquer dos meus leitores, qual é a verdadeira forma
dessa entidade ou qual a sua missão neste mundo, eu duvido muito que um só
houvesse que pudesse responder a uma semelhante interrogação. Pois se não sabem,
fiquem agora sabendo, que o Saci que não sei bem porque, às vezes se costuma
também chamar de Saci-Pererê, é um mole-cote de uma cor negra extremamente
retinta e que nunca deixa de estar de carapuça vermelha. Muito alegre e zombeteiro,
anda sempre com os dentes arreganhados; e apesar de ter um pé só, como dizem
alguns que já o tem visto, vive constantemente a dançar ou constantemente a pular.
É sem dúvida nenhuma da família rios diabos, e é por isso também que não há quem
dele não tenha medo; mas nunca me constou que levasse alguém para o inferno. E na
realidade, a sua missão e o seu prazer quase que não passa da de se divertir à nossa
custa; embora, como diabo que é, os seus divertimentos nunca deixam de ser mais
ou menos malignos.
De todos os diabos é talvez o Saci o que menos habita o inferno ou o que
mais frequenta a terra; pois que é o único que mais vezes tem-se visto, e que
por isso, ao inverso dos outros, tem uma fisionomia própria e que é por
todos muito bem conhecida. Se, porém, é um diabo e, se vive
constantemente no mundo, já se sabe que por mais alegre e zombeteiro que
seja, não havia de aí ficar para nos fazer bem. E com efeito, a sua vida outra
não é, senão a de nos andar sempre a pregar sustos e a nos fazer todas as es-
pécies de amofinações. Sem falar, porém, nos cercos e nos medos que nos
prega de noite nas estradas, aquilo que parece estar fora de toda a dúvida, é
que o lugar que o Saci de preferência procura para não amofinar, é sempre o
nosso quarto de dormir onde nos vem perturbar o sono, mas sobretudo a
nossa cozinha, onde ele quebra panelas, entorna ou espalha os objetos que
ali estão guardados e vira quase todos os vasos de boca para baixo.
0 Saci, portanto, nada tem desse caráter feroz e essencialmente
hórrido de quase todos os outros diabos. Por isso talvez, nunca também tive
muito grande medo do Saci; e devo mesmo dizer que um dos meus maiores
desejos foi o de laçá-lo com um rosário; porque em criança parece que eu
era muito mais ambicioso do que sou hoje; e eu sabia que se conseguisse
laçá-lo por este modo, poderia contar como satisfeitos todos os meus
desejos; visto ser coisa que nunca se pôs em dúvida, que, laçado assim o
Saci, ele não poderia por si mesmo se livrar, e para ser solto nada havia que
se lhe pedisse que imediatamente não desse ou executasse. Ora, assim como
o Saci, muitos outros diabos ainda existem que andam a vagar pelo mundo,
assim como muitas e de diversas qualidades são as almas perdidas, que,
desde meia-noite até o primeiro cantar do galo, vivem empre a percorrê-lo.
Mas tudo isto é por demais sabido para que valha a pena repisá-lo. Eu, pois,
prefiro tratar de um gênero de seres desgraçados, de uma natureza mais ou
menos híbrida, que são homens e sombrações ao mesmo tempo, ou cujo
tormento é mesmo neste mundo ou nele já o principiam a sofrer ainda
mesmo antes que tenham perdido a vida ou que as suas almas se tenham
separado dos seus corpos. Deste gênero a primeira espécie de que me
ocuparei, por ser de todas a que tende cada vez mais a desaparecer é n da
mula-sem-cabeça. E digo que esta espécie tende cada vez mais a
desaparecer, porque havendo cessado de fato a proibição de lerem-se as
escrituras santas, é tão grande a mudança que vai se operando nas ideias
populares sobre alguns pontos da religião, que hoje já quase que ninguém
existe que não saiba que o celibato sacerdotal não é de instituição divina e
que até mesmo de uma mulher já tenho ouvido repetir este conselho ou
este princípio de S. Paulo
—. que é melhor casar do que abrasar-se. E isto não só faz que o celibato clerical
não se considere como lá muito essencial à religião mas ainda e sobretudo, que vá de
dia em dia diminuindo e quase que desaparecendo o como que horror que ao povo
inspirava a violação desse mesmo celibato. Antigamente, porém, não era assim; o
caráter do padre era aos olhos de todos por uma tal forma sagrado e a mais casta
pureza tornava-se uma qualidade tão essencial desse caráter, que a menor falha ou a
menor mancha nessa qualidade tornava-se igualmente um imenso sacrilégio ou um
pecado verdadeiramente horrendo. 0 padre, porém, era um homem; e a humanidade
como todos sabemos pode-se dizer que é um verdadeiro composto de fraquezas; e
como, pois, conciliar esse caráter assimo santo com as quedas da fraqueza? 0 meio
que para isso se descobriu, foi muito simples; e torna-se extremamente curioso;
porque mais uma vez nos confirmando quanto é inventiva e sábia a imaginação do
povo, um semelhante meio vem, da maneira a mais evidente, nos mostrar que em um
tempo, em que a metafísica política ainda se achava tão atrasada e em que por toda a
parte e sem o menor contraste, só reinava o mais ferrenho despotismo, já em relação
aos padres, tinha o povo descoberto e posto em prática, essa tão célebre e hoje tão
conhecida máxima dos governos constitucionais de que o rei não faz ou não deve
fazer mal. Assim, segundo a opinião popular daquele tempo, se um padre pecava; o
culpado não era ele, mas sim a causa ou a vítima da sua fraqueza; pois que sendo ele
santo, se por acaso havia pecado, era unicamente porque o diabo o havia tentado
debaixo da figura de uma pessoa humana que lhe havia servido de invólucro e por
consequência, era sobre esse demônio encarnado que devia recair todo o pecado ou
toda a responsabilidade desse mesmo pecado. Para isto, porém, era preciso, que se
desse uma outra circunstância; e era — que por uma nova fraqueza o padre não se
condoesse da triste sorte da sua vítima; e que, portanto, sobre ela, e sobre ela só,
atirasse o peso de uma tão tremenda responsabilidade. E era isto justamente o que
todos eles faziam e por meio de uma tão grande simplicidade que não havia nenhum
que não quisesse ou não pudesse empregar; e esse meio era o seguinte — o padre
escrevia em uma tira de papel o nome da pessoa que era preciso condenar; colocava
esse papel no bico do sapato do pé direito; e quando ia dizer missa, e que fazia as
genuflexões do estilo, de nada mais precisava do que, ao levantar a hóstia e o cálice,
apertar ou calcar com toda a força o papel queestava no sapato pois quanto mais o
calcasse, tanto mais desceria para o inferno a pessoa cujo nome ali estava
escrito; entretanto que
tanto mais ficaria ele também limpo de todo o pecado e puras as suas
mãos para apresentar ao povo o santo dos santos.
Nem ficava só nisto o castigo de um tão grande crime; pois que, se
empurrada por esta forma para o inferno, a alma da vítima tinha
forçosamente de lá ir parar; essa mesma vítima ou antes a causa ou objeto
desse tão grande pecado, não esperava pela morte para lhe sofrer as
consequências; mas ré do mais infando de todos os crimes e devendo,
portanto, principiar a sofrer a sua punição aqui mesmo neste mundo; desde
que o pecado havia sido cometido, era imediatamente condenada a vagar
todas as noites pela terra, ou em certas noites pelo menos; e aí vagar, não
simplesmente em espírito ou debaixo da sua própria forma; mas pelo
contrário, debaixo da forma de um animal infecundo e inteiramente desna-
turado ou de um animal híbrido e hórrido ao mesmo tempo. E com efeito, a
forma desse animal, segundo sempre ouvi dizer, era a de uma mula-sem-
cabeça. Nem sobre este ponto nunca me constou, que houvesse qualquer
discrepância ou que se desse qualquer desacordo de opiniões. Se, porém, à
vista de um consenso tão unânime, não se pode deixar de acreditar e de
afirmar, que a forma era, com efeito, a de mula; aquilo, entretanto, que não
se pode também deixar de reconhecer, e que pela minha parte eu afirmo com
toda a certeza, é que o rastro nenhuma semelhança tinha com o das bestas;
pois que eu mesmo muitas vezes o vi quando corria os pastos da nossa
fazenda; e posso garantir que esse rastro que tantas vezes me mostraram e
que me afirmaram ser o dela, era perfeitamente idêntico a umas covinhas
redondas e rasas que ainda hoje com muita facilidade se encontram e que
são feitas pelos Lagartos ou pelos tatus.
A este mesmo gênero de que acabo de falar, pertencem ainda duas
outras espécies de que muito se fala, mas que são ao mesmo tempo muito
pouco conhecidas; e são a das bruxas e a dos lobisomens. Eu não sei qual é
a forma peculiar das bruxas; mas creio que essa forma nada tem de fixo; e
que assim como dizem que são as fadas, assim também as bruxas variam
muito de forma e podem mesmo se tornar mais ou menos invisíveis. Em
todo caso, o que parece certo, é que elas se alimentam de sangue das
crianças ou pelo menos têm por ele uma grande predileção. E tal é o motivo
por que vêem-se muitas e muitas crianças que, sem apresentarem sintomas
mórbidos bem pronunciados, de repente começam e emagrecer e a mostrar
todos os característicos de uma anemia profunda; embora muitas vezes isto
possa ser também o efeito de um simples quebranto ou mau olhado, cujo
remédio, como todos sabem, é o de benzer-se a criança mediante
certas fórmulas
que são unicamente conhecidas de certas velhas que disso fazem profissão e
onde à arruda cabe sem a menor dúvida um papel importantíssimo. Este
perigo, entretanto, de serem as crianças chupadas pelas bruxas, torna-se
muito maior quando as crianças ainda se conservam pagãs; mas para evitar
um tal perigo há um remédio, que é único, é verdade, mas que é ao mesmo
tempo fácil e infalível; e esse remédio é o de pôr na cabeceira da criança
uma tesoura cm pé e aberta; e quanto mais perto da criança tanto
melhor.
Quanto aos lobisomens, esses eu os conheço muito melhor; e posso,
por consequência, afirmar, que um lobisomem é uma espécie de alma
penada que debaixo da forma de um cão preto, em certos dias do ano,
sempre de noite e quase sempre em sexta-feira, são condenados a vagar pela
terra ou a correr o seu fadário. E não duvido afirmar todas estas coisas;
porque, segundo me contou a Margarida, houve uma ocasião na Campanha,
em que ali apareceu um grande número deles, os quais incessantemente não
faziam senão rolar uma grande porção de barris em um beco estreito, deserto
e um pouco escuro que ali existia e que desce do largo da Matriz para os
lados das Mercês acrescentando ela ainda, que não só houve diversas
pessoas que os chegaram a ver; mas que até mesmo houve um sujeito tão
ousado que se arriscou a atacar um deles; o que foi, com efeito, uma ação
verdadeiramente de Hércules; porque se alguém chega a ser mordido pelo
lobisomem, imediatamente torna-se também lobisomem; entretanto que este
é insensível e invulnerável às armas de fogo e não pode ser ferido ou
vencido senão a ferro frio. Eu não sei bem, se todos os lobisomens são
homens; mas o que eu sei (e até já vi um que a Margarida me mostrou) é
que há homens ainda vivos que já são lobisomens; sendo bem certo, que
assim como, se uma mulher tem 7 filhas seguidas, a mais velha torna-se
bruxa; assim também, se em vez de filhas, são sete filhos que ela os tem
seguidos, o mais velho torna-se infalivelmente lobisomem. E já que vi,
como disse, um lobisomem, vivo ou em carne e osso, eu quero dar ao leitor
os seus principais sinais; porque é de supor que, embora sem saber, mais de
um também já tenha visto; e com esses sinais que lhe vou dar, há de
encontrar daqui em diante um número muito maior. 0 lobisomem, desses
pelo menos que andam entre nós e que portanto, podem ser vistos de dia, é
um homem mais ou menos macilento, de um caráter mais ou menos
macambúzio, e que, em certos dias do mês ou do ano, se encerram em casa e
como que desaparecera. Esse encerramento, que é mais ou menos
periódico,
dá-se justamente no tempo em que eles têm de correr o seu fadário; o que,
de ordinário, tem lugar, como já disse, desde meia-noite até o primeiro
cantar do galo. Como, porém, o fadário de um lobisomem é o efeito de uma
grande desgraça ou um castigo terrivelmente mortificante; no dia ou nos
dias que se seguem à noite em que ele tem de correr, o pobre desgraçado
não tem remédio senão conservar-se encerrado e muitas vezes de cama, para
poder descansar, reparar as forças e disfarçar os vestígios de uma tão grande
atormentação. Em suma, o que de tudo isto se colige, é que infinito deve ser
o número dos lobisomens que .andam a vagar por este mundo; pois que,
mesmo sem falar em todos esses cuja multidão deve ser enorme, mas que
nos são mais ou menos invisíveis; pode-se, sem o menor medo de errar,
estabelecer como um princípio verdadeiramente inconcusso, que se todos
aqueles que sofrem de uma enfermidade chamada enchaqueca, não são
outros tantos lobisomens, eles, pelo menos, com os lobisomens se parecem
como um bicho a outro bicho ou como duas gotas d'água.
Se quisesse a este respeito contar tudo quanto sei, seria, como se diz,
um nunca acabar. Este artigo, porém, já vai se tornando longo demais; e eu
vou terminá-lo, contando uma lenda sobre a Campanha que a Margarida me
contou; e bem assim, como é que os negros ou antes como é que a
Margarida, que era uma negra, explicava a variedade de cor na espécie
humana.
A lenda é a seguinte: Junto do Ribeirão de Santo Antônio que
atravessa a Campanha e que divide a povoação em duas partes muito
desiguais, existe, ou existia naquele tempo, em um lugar que não posso bem
determinar mas que julgo ficava para os lados em que o ribeirão sai da
cidade, uma pedra que as enxurradas vão cada vez mais cobrindo de terra e
areia. Nos tempos primitivos da Campanha, dizia a Margarida, que essa
pedra ali não existia mas que um dia uma mulher tendo tido um filho e
querendo ocultar a sua vergonha, levou a criança para ali; a atirou ao
ribeirão; e imediatamente sobre a criança se ergueu uma alta e vasta pedra.
O fato, como era de prever, surpreendeu e maravilhou a todos; mas ninguém
achava para o caso uma explicação satisfatória; até que, aparecendo na
Campanha um missionário, este, revelando ao povo o fato que até então se
havia conservado inteiramente oculto, declarou, que se aquela pedra não
existia, e se agora ia cada vez mais se abaixando, é porque debaixo dela
havia uma enorme serpente que a pedra cada vez mais esmagava ou calcava
para o inferno; e que assim havia de ir continuando sempre; até
que sete anos depois que a Campanha fosse cidade, a pedra desapareceria; e
com ela se sumiria ou se subverteria a Campanha e sete léguas em roda;
sendo tudo substituído por um imenso abismo ou por um mar talvez de
enxofre, como esse que hoje ocupa o lugar em que outrora se sentou a
criminosa Sodoma. Esta profecia causou em mim por muito tempo uma
muito grande apreensão; mas felizmente, se nunca cheguei a perder o grande
pesar que me causava o desaparecimento daquela terra em que havia nascido
e a que eu tanto queria, pelo lado do perigo cheguei a tranqiiilizar-me
completamente; porque afinal lembrei-me, que estando marcado o tempo do
desastre e além disso, muito bem determinada a área a que esse desastre se
deveria estender, não era nada difícil a mim ou a todo aquele que o quisesse,
de evitar o perigo, pondo-se com a devida antecedência bastante ao largo; ou
até mesmo em algum lugar, donde, como Nero contemplando o incêndio de
Roma, poderia contemplar esse incêndio ou esse espetáculo infinitamente
mais grandioso e horrífico.
A profecia, contudo, parece que não realizou-se; porque a Campanha
foi elevada a cidade pela lei provincial n.º 163 de 9 de março de 1839, e se a
pedra sumiu-se, do que não tenho notícia; com toda a certeza eu sei e afirmo
que a Campanha ainda não subverteu-se mas que pelo contrário, lá se acha
de pé e continua como dantes a viver a sua vida ordinária. Entretanto, é
ainda possível que a profecia se realize; porque isto de profecias sempre são
profecias: os seus termos nunca devem ser tomados muito ao pé da letra; e
assim, pode muito bem ser, que, em vez de sete anos, o frade quisesse falar
de sete semanas de anos ou de sete séculos ou de sete semanas de séculos.
Quanto ao modo como a Margarida explicava a variedade de cor na
espécie humana; eis aqui mais ou menos o que ela dizia:
Quando Deus criou o mundo, criou o homem negro; mas, depois que
o homem já se tinha reproduzido e que a espécie já se tinha tornado
numerosa; ou porque Deus se tivesse arrependido do que havia feito (isto
aqui agora é que eu não me lembro bem) ou porque os negros achassem que
o cor branca era muito mais bonita do que a preta; o que é certo é que, entre
Deus e os homens houve um pacto (a expressão é da Margarida) e Deus,
lhes mostrando um rio que havia não sei onde, lhes disse que todos os que
atravessassem aquele rio, ficariam logo brancos; mas, ao mesmo
tempo, os
preveniu de que a água era muito fria e a passagem perigosíssima. Todos
imediatamente correram para o rio; e, apalpando a água com as palmas das
mãos, verificaram que Deus não tinha mentido, e que a água era mais fria do
que o próprio gelo. O desânimo foi geral. Mas alguns que eram mais afoitos
ou menos friorentos, atiraram-se à água; e todos imediatamente afundaram;
até que, depois de mil esforços, e de uma luta horrível, alguns apareceram
salvos na outra margem e todos eles mais claros do que um alemão ou do
que o mais claro dos escandinavos. A vista daqueles homens assim tão
claros fez inveja aos que não tinham querido passar; e tal foi a violência do
desejo que estes então tiveram de ser brancos; que todos, ao mesmo tempo,
e sem hesitar, correram para o rio com o firme propósito de o atravessarem;
mas, apenas tocaram a água com a sola dos pés e que lhe chegaram a sentir
o grande frio; de novo desanimaram; e renunciaram para sempre à pretensão
de serem brancos. E tal é a razão, porque, tendo inteiramente preto todo o
seu corpo, os negros, entretanto, têm as solas dos pés e as palmas das mãos
mais ou menos brancas; pois que, de todo o seu corpo, foram, com efeito, as
únicas partes que chegaram a tocar a tal água milagrosa; mas cujo frio eles
não se animaram a arrostar. E eu creio que a Margarida não deixava de ter a
este respeito alguma razão; porque naturalmente adormentado ou rotineiro, o
negro é ainda o mais friorento de todos os animais; pois que sempre a tremer
c a bater o queixo, nunca acha sol ou fogo que o farte; e, enquanto ao sol ou
ao fogo ele se aquece, ou dorme ou cochila.
CAPÍTULO XI
O ano de 1840 é vazio de acontecimentos pessoais. O pai do autor tenta, sem
resultado, a exploração do ouro. Chega à Campanha a notícia da maioridade do
Imperador. Os liberais se regozijam e promovem festejos. Há Te Deum na Matriz. O
templo regorgita de povo e de oficiais da Guarda Nacional. Há padres que também
se fardam. A quem se deve, em grande parte, o Brasil que hoje existe. O clero
daquele tempo e o de hoje. Ilustração, virtude e patriotismo. A pátria em primeiro
plano. Depois o papa. Agora é o contrário: primeiro o papa,
depois a Pátria
Inteiramente apagado em tudo quanto diz respeito à minha própria vida, o
ano de 1840, debaixo deste ponto de vista, pode-se dizer que não me deixou senão
uma única recordação; e eis aqui qual é. Na fazenda do Bom Jardim, que foi dos
meus avós, havia uma lavra, que se dizia ser de uma riqueza muito grande. Ela,
porém, não tinha água permanente ou a que tinha era por tal forma reduzida, que
sendo unicamente no tempo das chuvas que tomava um certo vulto, ainda assim era
tão pouca, que mal chegava para que ali pudessem trabalhar umas três ou quatro
pessoas. Ora, como meu pai tinha desde o ano anterior um caixeiro de toda a sua
confiança que lhe tomava conta do negócio, e que era o meu primo Joaquim Bento
Ferreira Lopes; mais por divertimento ou por gosto pela mineração, do que talvez por
esperança de grande lucro, resolveu-se aproveitar o tempo das aguas daquele ano,
para ir ali com dois ou três escravos fazer uma tentativa ou antes um pequeno e
rápido serviço de mineração; tanto mais quanto não precisava de lá ficar a pé quedo e
que muito próxima estava a fazenda em que moravam os meus tios e onde, por
consequência, podia encontrar tudo aquilo de que por ventura precisasse. Já não me
lembro do tempo que durou essa sua distração ou esse seu empreendimento. Sei,
porém, que foi negócio de alguns meses apenas, se a tanto chegou; e que nas
vésperas da apuração ali fui ficar alguns dias com meu pai.
Esta lavra tinha um nome e me parece que esse nome era Ouro
Fino. Entretanto, aquilo que sei com toda a certeza
e que posso, por consequência, afirmar, é que ela ficava junto à margem do
Rio Verde e que já havia sido em outros tempos explorada; pois que imenso
era o barranco que ali se via cortado e que havia sido cortado quase a pique.
Este barranco era atravessado horizontalmente por uma bonita faixa de
diversas cores que devia ter dois ou mais palmos de largura; e que era de
tudo aquilo o que mais me encantava os olhos; de sorte que ouvindo muitas
vezes falar-se com entusiasmo da rica cinta que a lavra possuía, sempre
entendi, que era aquela faixa o que constituía a tal cinta e que era
ali que estava o ouro.
A cinta, porém, de que todos falavam e que era, senão me engano,
uma camada de cascalho e areia, essa ficava muito mais abaixo ou mesmo
bem rente com o chão; e era nisto justamente que estava o grande embaraço
ou o grande contratempo; porque ela entranhava-se e descia por baixo
daquele barranco que já era tão grande; e não se podia desmontar tanta terra
para acompanhá-la sem a água que ali faltava, e que, entretanto, por um
contraste verdadeiramente desesperador, se via ali tão próxima e em tão
grande abundância a rolar ruidosa e encachoeirada pelo leito do Rio
Verde.
Como, porém, o mal era absolutamente sem remédio, o que cumpria
era se conformar com as circunstâncias; e era isto o que meu pai fazia.
Aproveitava da tal cinta o que era possível aproveitar com tal aguinha que
despenhava-se do alto de um rego preparado para esse fim, e nesse rego se
punha toda a terra que se tirava da cinta e que era ali mexida com a água; de
sorte que levando a água o que se chamava pissarra e pissarão ou tudo
quanto era terra propriamente dita, e deixando por cima o pedregulho ou
cascalho, este depois se carregava para se pôr fora em montes, em umas
gamelas fundas e ao mesmo tempo um pouco afuniladas que se chamavam
carumbés.
Quanto mais se remexia o rego, tanto mais o que nele se conservava
ia se limpando ou simplificando ou tanto mais ia ficando no fundo somente
a areia e com ela o ouro que por mais pesado tendia sempre a descer. E aqui
devo dizer, que eu não podia achar um divertimento que tanto me agradasse,
como esse que então ali tive; porque longe de me aborrecer um
momento, pelo contrário, sempre descalço e de pernas arregaçadas, não saía
de dentro do rego, onde, ,ao passo que umas vezes me entretinha em catar
os seixos e tudo o mais que ali encontrava de interessante para mim,
outras vezes me punha
também a remexer o próprio rego como faziam os escravos; e isto com uma
enxadinha leve e de cabo muito curto que para esse fim me haviam dado.
Logo que se aproximou o tempo da apuração e que o ouro já começava a
aparecer no rego, meu pai mandou fazer ali um pequeno rancho de capim e dentro
dele dois giraus cada um dos quais era formado por quatro paus de forquilha que se
fincavam no chão; de sorte que postas quatro travessas sobre as forquilhas e sendo
depois essas travessas estivadas com paus roliços e afinal também com ramos e
capim, sobre estes catres assim improvisados se arranjavam as nossas camas. E, com
efeito, ali dormimos duas ou três noites; tendo, porém, meu pai, antes de se terminar
o serviço, a cautela de mandar tirar a água e de escrever no rego diversas letras ou
nele fazer diversos sinais, para que ninguém se lembrasse de lá ir bulir e furtar a
terra que já então se achava mais ou menos limpa, e por consequência mais ou
menos cheia de ouro. Finalmente chegou o dia da apuração e creio que não foram
poucas as pessoas que a ela foram assistir. Ora, essa apuração consistiu no
seguinte:
Independente do rego em que a terra tinha sido lavrada, mas muito próximo
deste, fez-se um segundo muito mais curto e ao mesmo tempo muito mais nivelado;
e para este segundo rego se foi carregando a terra do outro; e se depois de mais
algum processo não sei; mas sei perfeitamente que ali de novo remexida aquela terra
em breve começou a vir cada vez mais amarelecendo, até que por fim, na cabeceira
da canoa (pois que tal era o nome deste segundo rego) quase que não se via senão o
ouro que ali brilhava no meio do esmeril. Chegado a este ponto, começou-se então a
apuração, ou a lavagem daquela areia aurífera, no que eles chamavam bateias, e que
eram quase o mesmo que os carimbés; porém mais amplas, mais lisas, mais raras, e
perfeitamente afuniladas. Como, porém, apesar do peso do ouro, aquele que era mais
fino não deixava mais ou menos de correr com as areias que eram impelidas pelas
águas; para obviar a este inconveniente, e não se perder o ouro que fugiria para o rio
ou para fora da canoa; na saída desta estenderam-se algumas baetas mais ou menos
grossas onde na passagem ia o ouro ficando; e donde depois se tirava lavando-as. E
que este prejuízo podia ser muito grande, prova-o um fato de que ainda me lembro, e
foi — que possuindo meu tio Domingos Ferreira Lopes uma grande lavra, ao pé da
Campanha, que se chamava o Barro Alto, um ano em que ele teve, de fazer ali
uma grande apuração, comprou para esse fim
todos os cobertores de papa que havia nos negócios da Campanha; o que
não deixou de admirar a todos; porque naquele tempo cada um desses
cobertores custava dez mil réis e dez mil réis naquele tempo podiam bem
equivaler a nada menos de vinte ou trinta hoje.
Eu já não me lembro qual foi a quantidade de ouro que meu pai
tirou naquela ocasião; mas aquilo de que estou perfeitamente certo, é que
além do ouro mais grosso e mais limpo que mandou em pó para a Corte, e
que tenho uma ideia muito vaga de terem sido cento e tantas oitavas, ele
ainda com o mais fino e o mais sujo fez por meio do azougue uma espécie
de bola, que deveria regular mais ou menos com o tamanho de uma bala das
espingardas daquele tempo que se chamavam reunas. Se, porém, como
disse, o ano de 1840 foi inteiramente apagado no que se refere à minha
própria vida; ele, entretanto, tornou-se notável por dois acontecimentos de
grande importância política — a maioridade do imperador e as eleições que
em seguida tiveram então lugar: e de ambos esses fatos conservo ainda uma
bem clara recordação. Assim, não só me recordo do grande interesse com
que ouvia ler as discussões que a propósito da maioridade tiveram então
lugar nas câmaras; mas até mesmo me parece, que eu própria já não deixava,
embora ainda um pouco gaguejadamente de as ler ou repisar, quando achava
o jornal desocupado. Todas essas discussões me pareciam, com efeito,
extremamente interessantes; e de tudo quanto se passou nada havia que mais
ou menos vivamente não me impressionasse; mas aquilo que de tudo quanto
li ou ouvi contar mais me interessava ou mais vivamente me impressionou,
foi a parte que nesses dias tão agitados, coube a um deputado por Mato
Grosso, chamado Navarro, que depois ficou louco e morreu no Hospício,
segundo ouvi dizer; mas que naquele tempo se tornou muito célebre; porque
sendo um maiorista muito exaltado, estava constantemente a perturbar as
discussões; até que um dia, tendo tido uma forte alteração com Honório
Hermeto, e depois disto, estando atrás dele, ou para ele se dirigindo, mete de
repente a mão no seio ou no bolso da sobrecasaca para tirar um lenço ou um
outro objeto qualquer; todos acreditam que é um punhal que ele tinha tirado
ou que ia tirar; e daqui resultou um grande barulho, que felizmente não
passou de barulho ou de uma simples trovoada seca.
Assim como havia acontecido em toda a parte, a notícia da
maioridade foi também recebida pelos liberais da Campanha com um
entusiasmo extraordinário; e estes a festejaram do
melhor modo que puderam. Eu, porém, não tenho, nem bem assentada nem bem
viva a lembrança dessas festas que então se fizeram; e apenas do que muito bem me
recordo, é que nelas muito se cantou um hino que se tinha feito para aquela ocasião,
cuja primeira letra era assim:
Deus salve a Pedro
Nosso imperador, E do
Brasil 0 faça amante;
e de que o estribilho era este:
Seja imortal Pedro II;
Suas virtudes Brilhem no
mundo.
A Campanha era então, e nunca deixou de ser mais ou menos, um dos mais
inexpugnáveis baluartes do partido conser-Sul de Minas; entretanto que, em Pouso
Alegre, pode-se dizer que naquele tempo não havia um só conservador. Ora, sendo a
natureza do homem em tudo imperfeita e por tal forma, que ainda mesmo no fundo
da sua maior benevolência talvez não fosse difícil de achar-se um grãozinho de
maldade; não só parece que nunca para o homem uma felicidade qualquer é
inteiramente completa se uma tal felicidade não chega a causar alguma inveja aos
outros; mas ainda parece que a celebração de um triunfo ou que a grande alegria que
para o homem resulta de uma grande vitória, nunca deixa de ser mais ou menos
aguada, se o vencido a não puder ver ou se dela não resultar para o vencido o
espinho do abatimento e da mortificação.
José Bento, portanto, passando pela Campanha na sua volta da Corte,
combinou com meu Avô, que em vez de celebrarem os liberais de Pouso Alegre
naquela mesma vila a proclamação da maioridade, eles a viriam em um tempo que
marcaram celebrá-la na Campanha. E com efeito, algum tempo depois, parecia que a
boa sociedade de Pouso Alegre se transplantava toda para a Campanha; pois que
tudo quanto ali gozava de uma tal ou qual posição social, sem que de modo algum se
embaraçassem cora uma incômoda viagem de catorze léguas e de mais a mais de
maus caminhos, puseram-se em caravana para aquela cidade, e como que de
surpresa e com a mais completa admiração da parte dos conservadores, ali se foram
apresentar com o maior brilhantismo. Nem eu preciso para prova disto que acabo de
dizer, mais do que acrescentar que um dos pontos do programa da festa era um sole-
ne Te-Deum cantado na matriz; e que por essa ocasião aquela vasta igreja
ficou tão cheia de homens fardados, que esse Te-Deum mais parecia uma
solenidade militar do que mesmo um simples ato religioso; e o que mais
ainda admira é que entre aqueles homens que estavam assim fardados bem
poucos eram talvez aqueles que não tivessem banda e espada; o que quer
dizer, que eram quase todos oficiais. Isto pode parecer talvez a muitos que
não passa de uma grande exageração; e entretanto não é; nem como tal
parecerá, desde que se saiba, que além de ali se acharem quase todos os
oficiais do comando superior da Campanha que se compunha de duas
legiões com cinco batalhões de infantaria e dois esquadrões de cavalaria, ali
também se achavam quase todos os oficiais do comando superior de Pouso
Alegre e que este se compunha de três legiões com seis ou mais
batalhões de infantaria.
Entretanto, o que muito mais ainda nos deve admirar, é que havia
entre aqueles oficiais alguns que eram padres; pois que um pelo menos, o
cônego João Dias de Quadros Aranha me parece ter certeza de que era nessa
ocasião Tenente Coronel. Ora este fato de serem os padres oficiais da
Guarda Nacional se nos afigura hoje tão esquisito ou tão de costa acima; que
junto ao fato ainda mais notório da parte tão importante que muitos deles
pouco depois tomavam na revolução de 42, é capaz de fazer crer a muita
gente que o clero daquele tempo era uma verdadeira imagem do clero da
média idade ou que os padres daquele tempo não passavam de uns
verdadeiros mata mouros ignorantes e viciosos. Pois eu que os cheguei a
conhecer um pouco, posso dar testemunho do contrário; e posso por
consequência, afirmar, que se alguns havia que eram viciosos, como hoje os
há, e sempre houve e há de haver em todos os tempos, a maioria era de
homens mais ou menos virtuosos, havendo mesmo alguns cuja virtude
muito se aproximava da santidade; entretanto que pelo lado da ignorância,
se alguma havia, esta contudo, nada tinha de profunda e muito menos ainda
de tão geral, como se poderia talvez supor; podendo-se antes e com inteira
justiça talvez afirmar, que não só os padres daquele tempo sabiam, em sua
maioria pelo menos, muito bem o seu ofício e que em todo caso praticavam
muito melhor do que os de hoje; porém que ainda entre eles alguns havia de
uma ilustração incontestavelmente muito grande, ou pelo menos muito mais
sólida e muito mais profunda do que a que hoje tem a maioria do clero.
Assim, o primeiro vigário que eu conheci na Campanha e que se chamava
José de Sousa Lima, era um homem tão extremamente acanhado, que nunca
o ouvi pregar nem falar em público; e não obstante, sempre ouvi dizer, que
era um homem tão ilustrado que até sabia o grego. Eu, porém, morei em
Queluz
em uma casa da qual uma das maiores salas tinha as paredes do alto abaixo
todas cobertas de prateleiras, e todas estas prateleiras estavam inteiramente
tapadas de livros, dos quais muitos eu nunca tinha visto e de alguns nem
sequer eu havia jamais ouvido falar. Nem eram só os Calmets e uma
imensidade de outros grandes "in-folios" sobre a teologia e a moral cristã os
únicos livros que enchiam aquelas vastas prateleiras; mas entre eles muitos
outros ainda ali se encontravam de um grande valor profano, dos quais me
bastará citar a "Iliada" e a "Odisseia" traduzidas em francês e o que mais
ainda admira a Jerusalém Libertada na sua língua original. Pois bem; esta
livraria, que é de supor já tivesse sido mais ou menos depauperada, e que
não obstante, ainda se mostrava assim tão rica, tinha sido a livraria de um
padre, que já havia muito tempo, tinha falecido; mas que ainda alcançou os
primeiros tempos da nossa independência; pois que esse padre que se
chamava Francisco Pereira de Santa Apolônia, foi ainda membro do segundo
governo provisório desta província; e como vice-presidente, por vezes
governou até 1829.
Assim pois, se entre os padres daquele tempo e os de hoje diferenças
existem, as principais e que na minha opinião são todas em favor daqueles,
são as seguintes: 1ª como eram homens mais simples ou não conheciam
ainda esta arte tão filha da civilização e que a todos ensina a envernizar ou
ocultar seus vícios, os padres daquele tempo eram também menos
hipócritas; 2.* como neles a fé não estava só nos lábios mas se achava
perfeitamente arraigada no fundo dos seus corações, a sua caridade, por isso
mesmo que era muito mais espontânea, tornava-se para eles muito mais im-
periosa e por consequência muito mais ardente; e 3.ª finalmente, e é aqui
que se acha o ponto capital da diferença, ao passo que então a fé do padre
era muito mais firme, e por consequência, muito mais sincera, ele era ao
mesmo tempo muito mais amigo da liberdade e sobretudo mais patriota;
entretanto, que hoje, que os padres e que sobretudo os bispos, são os
primeiros talvez a não acreditarem lá muito naquilo que ensinam, não só vão
cada vez mais combatendo a liberdade debaixo de todas as suas formas, mas
ainda vão trocando cada vez mais a própria pátria por uma pátria de pura
fantasia ou de simples convenção; de sorte que para os padres daquele
tempo, assim como para toda a nação o que estava sempre em primeira
plana era a pátria e só depois é que aparecia o papa; entretanto que para os
padres de hoje a pátria vai se afastando tanto para trás e o papa avançando
tanto para adiante; que em breve aquela desaparecerá inteira-
mente dos seus olhos, e que eles não verão a pátria senão onde residir o papa, ou que
então eles nada mais serão do que simples soldados do papa.
E o pior é que esta digressão sobre os padres me afastou tanto dos festejos da
maioridade de que estava tratando e alongou este artigo por uma tal forma, que nele
já não posso agora, como pretendia, me ocupar das eleições que à maioridade se
seguiram. Pois trataremos dessas eleições no artigo seguinte; e não nos
queixemos da digressão.
Pela minha parte pelo menos, dela não me acuso nem me arrependo; e isto
por uma razão muito simples e que vem a ser a seguinte — que se não sou de modo
algum infenso aos padres atuais, eu contudo, sinto para com os antigos esse espécie
de simpatia ou antes de veneração de que nunca pude jamais eximir-me diante de um
patriotismo verdadeiramente grande; e a esses padres antigos, assim como aos
magistrados e a alguns poucos homens ilustrados que então existiam no Brasil, é que
nós verdadeiramente devemos essa pátria boa ou má que hoje possuímos; e que
espero em Deus, há de ainda se tornar tão grande, que há de vir a ser para os nossos
filhos, não simplesmente um objeto de amor, mas ainda do maior
orgulho.
CAPÍTULO XII
As eleições no Brasil. Pedro I nunca venceu as eleições.
Durante a Regência era a Câmara dos Deputados que governava.
Depois da maioridade, veio a compressão de cima para baixo.
A liberdade do voto desaparece. As últimas eleições sérias foram as de
1840. Na Campanha a luta foi muito renhida. Sobressalto dos
conservadores e decepção dos liberais. Bernardo Jacinto
da Veiga que \era conservador, introduziu na Campanha o sistema
das tricas eleitorais e salva a situação. O ódio dos liberais c o apelido
de "Pato".
Um dos fatos mais característico da nossa história é o seguinte: 1.»
que durante todo o primeiro reinado, não só nunca Pedro I conseguiu
alcançar na câmara dos deputados uma maioria sua; mas que ainda vindo a
Minas e aí se empenhando com todas as suas forças pela reeleição de um
dos seus ministros; nem isto sequer ele o pode conseguir; 2.' que durante a
menoridade ou todo o período regencial quem exclusivamente governou o
país foi a câmara dos deputados, e por tal forma, que todos os governos
desse tempo nada mais foram do que simples executores da sua vontade; e
3." finalmente que durante todo o 2.» reinado ao passo que não houve um só
governo que presidisse à uma eleição, que a não ganhasse; por outro lado, a
câmara dos deputados foi constantemente perdendo do seu prestígio e por tal
forma, que ultimamente o seu poder, em vez de real e efetivo, como deveria
ser, foi pelo contrário se tornando cada vez mais um simples poder
de ficção.
A razão de tudo isto não há ninguém que o ignore; e é que, se Pedro I
era muito tolo ou antes muito orgulhoso para empregar a corrupção ou
mesmo a força, quando ele tinha consciência de que não precisava do povo
nem dos seus votos para governar; e que se a regência era muito fraca, ou
antes e com muito mais acerto, era muito patriótica, para que se lembrasse
de empregar qualquer destes dois meios; o 2.» reinado, pelo contrário, não
só empregou a corrupção ou mesmo a força, quando ele tinha consciência de
que ºaquiavélicas; mas quando percebia que não lhe bastavam os
meios de corrupção ou todos
esses outros de que está sempre cheio o arsenal de qualquer governo, nunca hesitou
em empregar a violência e ,até mesmo a força armada. Daqui resultou este fato
igualmente característico — que por mais que se tenha reformado a nossa legislação
eleitoral e por melhores que tenham sido as leis que a este respeito temos com efeito
tido; o mal que elas procuravam curar, em vez de desaparecer, se agravava sempre;
entretanto que esse mal nunca existiu, quando a legislação absolutamente não
prestava.
E com efeito, não só era péssima a legislação eleitoral que tivemos nos
primeiros tempos da nossa vida política; mas quase que pode-se até dizer que sobre
esta matéria nós não tínhamos legislação alguma; porque as instruções que a este
respeito regulavam eram por tal forma inperfeitas; que nada ou quase nada
providenciavam de um modo verdadeiramente eficaz; mas apenas o que faziam era
deixarem quase tudo inteiramente entregue à decisão do juiz de paz e da assembleia
paroquial; e facilmente se compreende que dificuldades ou antes que verdadeira
balbúrdia não deveria resultar de um tal sistema. Assim, pois, se debaixo do ponto de
vista da liberdade do voto, as eleições de hoje em nada se parecem com as eleições
daquele tempo; debaixo do ponto de vista da regularidade, as eleições daquele tempo
em nada absolutamente se pareciam com essas que hoje nós temos, e nas quais
algumas dezenas de cidadãos com muita dificuldade qualificados, e todos de gravata
e meias vão à casa da câmara ou a um edifício público qualquer previamente
designado; aí encontram o 1.» juiz de paz com os seus colegas e suplentes e muitas
vezes também com os fiscais de todos os candidatos; e aí depois de terem sido
chamados, de terem dado o seu voto mostrando o seu diploma, e de terem assinado
em um livro o seu próprio nome para que se saiba que foram eles mesmos e não
outros que ali compareceram, em seguida e sem mesmo sequer se interessarem pelo
resultado da apuração, tratam logo de se retirarem e de irem cuidar dos seus
negócios.
Naquele tempo uma eleição era justamente o contrário de tudo isto: muita
gente, muita animação, muito pouca ordem; e a eleição era boa; porque ali não se via
senão um único representante da autoridade, que era o juiz de paz; e o juiz de paz
era um eleito do povo; de sorte que se havia violência; e muitas vezes havia; quem
vencia era sempre a maioria; isto é, quem tinha mais gente e por consequência, mais
força. Por isso também, um deputado sabia que era na realidade o representante da
nação: em vez de curvar-se ao ministro, era o
ministro que a ele se curvava; ou antes e com muito mais exatidão, nem um deles se
curvava, mas pelo contrário, se conservavam ambos sempre erguidos; e isto por um
motivo muito simples; e era, que então, em vez de vir de cima, a pressão pelo
contrário vinha de baixo; e como quem anda sempre erguido, vê largo e ao longe,
ministros e deputados, em vez de só cuidarem de si ou dos seus parentes e aderentes,
quase que não tinham olhos, senão para os interesses e para a liberdade do seu país.
Ora dessas eleições de que acabo de falar, as de 1840, foram incontestavelmente as
últimas; meçou a vir exclusivamente de cima; e como toda a pressão que vem de
cima, esmaga e achata; desde então o espírito público começou a ser esmagado e
achatado; e ao mesmo tempo as eleições foram se tornando cada vez menos livres;
menos desinteressadas e, por consequência, também, muito menos nobres.
Felizmente essas de 1840 eu ainda as alcancei; e como embora ainda muito criança,
quase nada delas perdi; vou contar aqui o que foram ou vou deles referir tudo
aquilo que vi ou me contaram.
No ano de 1840 a freguesia da Campanha era ainda muito grande; porque,
além do seu atual território, ainda compreendia todo aquele em que hoje se estendem
as novas freguesias das Aguas Virtuosas, Lambari, Mutuca e Cambuquira. A grande
força dos conservadores estava principalmente no distrito da cidade onde a sua
maioria era realmente imensa; mas para contrabalançá-la, os liberais contavam com
a maioria do Lambari e muito mais ainda com a quase unanimidade da Mutuca.
As eleições, portanto, foram extremamente disputadas; e durante um ou dois
meses não houve esforço nem astúcia que não se empregasse para aliciar votante.
Como, porém, as eleições naquele tempo tinham alguma coisa que muito parecia a
uma verdadeira guerra; e como na guerra não basta arranjar soldados, mas é preciso
também reuni-los e aquartelá-los; feito aquele primeiro serviço de aliciar votantes,
tornava-se ainda necessário ver os modos de acomodá-los; e foi disto que se tratou
com a devida antecedência, escolhendo-se os almoxarifes ou quartéis-mestres;
prevenindo-se de casas apropriadas para esse fim; encomendan-do-se e conduzindo-
se todos os mantimentos, inclusive os bois que deviam ser mortos; e providenciando-
se, enfim, sobre a louça, sobre as camas e sobre tudo o mais que as circunstâncias
exigiam. Quando, pois, tudo isto já se achava pronto, chegou enfim a véspera da
eleição; e foi este um dia cheio e alentado ou quase tão repleto de emoções como o
próprio dia da grande batalha; porque era na véspera que chegavam quase todas as
tropas; e er,a o número destas que devia decidir da vitória.
Com efeito, nesse dia começaram a chegar de todos os lados os contingentes
que cada um dos contendores esperava; e é desnecessário dizer a ansiedade, as
esperanças e os receios que ia tudo isto produzindo; até que o último dos
contingentes que afinal chegou, foi o contingente da Mutuca; o qual vinha
capitaneado pelo meu parente Tenente-Coronel Cirino Hortêncio Goulart Brum,
homem este que, embora tivesse um excelente coração e nunca em sua vida tivesse
praticado ato algum criminoso, era, entretanto, tão mal encarado, falava tão grosso e
tinha tanto os modos de um feroz sertanejo; que os conservadores o julgavam capaz
de tudo; e tornava-se para eles uma espécie de duende. De todos os contingentes, foi
este, incontestavelmente, o mais numeroso e, ao mesmo tempo, de todos o mais
pinturesco; porque sendo o contingente do distrito o mais distante e mais atrasado da
freguesia, nele nada faltava, que não pudesse fornecer um abundantíssimo assunto
para um homem observador ou para o lápis de um hábil caricaturista. Quanto a mim,
porém, o que principalmente me impressionou, foi o número dos cavaleiros, mas
sobretudo um pequeno e bonito poldrozinho que vinha também metido no meio
daquela grande maloca, e que, embora algumas vezes saísse da forma, não deixava,
entretanto, de ser o constante serra fila de uma feminina e pançuda cavalgadura em
que se apresentava um daqueles cidadãos votantes. Eu não sei, nem mesmo nunca
procurei saber, qual era o número daqueles cavaleiros; o que, porém, sei, por ter
ouvido contar e mesmo por ter, apesar de muito criança, desde logo percebido, é que
à vista daquela entrada, os conservadores ficaram completamente consternados e que
os liberais ficaram que não cabiam em si de contentes.
A entrada desta gente da Mutuca foi pelas Almas e Rua Direita. Pode-se,
entretanto, dizer que não houve rua alguma da cidade que não gozasse de um
espetáculo semelhante; porque, vindo os votantes de todos os pontos, por todos os
pontos também eles entravam. Foss . porém, qual fosse o ponto donde vinham ou a
rua por onde entravam, cada um dos diversos contingentes, à proporção que vinha
chegando, ia imediatamente para o seu respectivo quartel.
E desde que ali entravam, ficavam todos como se tivessem entrado para um
verdadeiro quartel militar ou antes para uma verdadeira praça de guerra; pois que
desde que ali penetravam, já ninguém, a não ser os chefes ou oficiais, podia em
regra dali sair sem licença ou convenientemente acompanhado, para que não fosse
sujeito a alguma tentação de desertar; entretanto, que de dia e de noite, nunca
deixava de haver sentinelas mais ou menos vigilantes, para que não entrassem
inimigos ou espiões na praça,
que pudessem avariar as munições ou subornar os soldados. Se, porém, a disciplina
era assim tão rigorosa; por outro lado, todos os votantes como verdadeiros soldados
que eram, não só tinham direito à etapa que se lhes fornecia com toda a largueza;
mas ainda, se não eram cadetes ou soldados particulares, que por sua igualmente
direito a todo o fardamento ou pelo menos a uma certa porção dele; porque havendo
então de fato o sufrágio universal, e nem todos podendo se apresentar em forma de
um modo suficientemente decente, tornava-se necessário que da caixa saísse o preço
de uma roupa mais ou menos apresentável, e muito mais ainda de um bom par de
sapatos, que para a gente da roça ainda hoje não se tornou um objeto de primeira
necessidade.
Chegado que foi o dia da eleição, e logo depois do almoço, onde, além de
uma alimentação simples mas suculenta, não deixava ae correr, e de correr com uma
certa abundância, a aguardente e muitas vezes mesmo o vinho, cada um dos quartéis
começou a despejar o povo que até então tinha encerrado, e todos em forma e bem
vigiados, dirigiram-se para a igreja. Como, porém, nem mesmo na igreja, os partidos
se confundiam, e cada um já sabia o lado da igreja que lhe pertencia, os
conservadores foram ocupar o lado direito e os liberais se puseram do lado esquerdo.
E só foi então, que, estando todas as forças ali reunidas, puderam os adversários se
mirar e medir; ou só foi então que se pode com um pouco mais de exatidão calcular
e saber qual o número real de votantes de que cada um dos partidos podia dispor. 0
número total, porém, dos votantes era muito grande; os dois grupos formavam duas
grandes massas compactas e ao mesmo tempo movediças; e essas duas massas
pareciam quase iguais. Como, pois, se poderia saber quem seria o vencedor?
Os conservadores, portanto, que nunca tinham contado com a derrota e que
de alguma sorte estavam como que atordoados por aquela repentina e tão cruel
decepção, começavam a perder o ânimo e a ir ficando cabisbaixos; entretanto, que os
liberais, que tinham feito bem as suas contas e que sabiam que a maioria era sua,
exultavam de .alegria e se ostentavam cada vez mais ufanos.
Estes, porém, não contavam com o hóspede; e o hóspede neste caso foi
Bernardo Jacinto da Veiga que, tendo sido demitido da presidência desta província,
tinha, não havia muito, chegado à Campanha. Dotado de uma memória prodigiosa
ou antes da mais desenvolvida bossa do cálculo, Bernardo Jacinto da Veiga tinha
uma tal facilidade para contas, que, segundo mais de uma vez eu ouvi dizer, ele
lançava os olhos para uma extensa coluna de algarismos; e só com os olhos a
somava com mais rapidez e exatidão do que qualquer outra pessoa com tinta e pena.
Bernardo Jacinto,
portanto, apreciando bem o estado em que as coisas se achavam, e vendo que a perda
da eleição na Campanha seria para o partido conservador, não simplesmente uma
vergonha depois de tantas vitórias, mas ainda de um péssimo efeito moral para o
resto da província; enquanto se tratava de formar a mesa e que se discutia uma
questão de ordem que de propósito ou por acaso se havia levantado, ele sobe
disfarçadamente a um dos púlpitos, consegue contar os votantes de um e do outro
lado; verifica que os liberais dispunham da maioria, embora não muito grande; desce
imediatamente do púlpito e dirige-se a meu tio Domingos Ferreira Lopes, que era o
juiz de paz que presidia a eleição; diz-lhe ao ouvido rapidamente algumas palavras; e
sem mais demora aquele meu tio, declarando à assembleia paroquial que a questão
de que se tratava sendo extremamente intrincada, ele ia a respeito consultar o
presidente da província; e que, portanto, adiava a eleição para um dia que ele marcou
ou até que tivesse a solução que ia pedir; mal proferiu estas palavras, suspendeu a
assembleia eleitoral e retirou-se.
Naquele tempo ninguém sabia o que eram tricas eleitorais: ia-se para a
igreja; não se olhava para fórmulas; o que se queria era votar; e feita a votação,
estava acabada a história; quem venceu, venceu; quem não venceu, vencesse.
Os liberais, portanto, ficaram, como vulgarmente se diz, com cara de João
tolo porque, apanhados assim de sopetão e ficando por assim dizer como que
atordoados, eles não sabiam o que deviam de fazer em uma tal emergência, e como
viram que brigar naquela ocasião não lhes faria ganhar a eleição que de direito
estava adiada e poderia talvez diminuir-lhes as forças para as que iam seguir-se;
embora rosnando e praguejando, retiraram-se da igreja tão humilhados e
descontentes, quanto alegres e ufanos para lá tinham partido.
Ora, Bernardo Jacinto da Veiga, que foi assim quem introduziu na
Campanha o reinado das tricas em eleições, não era mineiro, mas tendo ido cedo
para ,a Campanha, ali deixou filhos; e pode ser tido, por consequência, como um
mineiro, naturalizado.
Irmão de Evaristo Ferreira da Veiga, como quase todos os Veigas, era um
homem muito inteligente; e, como todos eles, tinha uma tendência muito
pronunciada para a imprensa. Assim, foi ele o fundador da primeira gazeta que teve
a Campanha, — A Opinião Campanhense — que foi ao mesmo tempo, uma das
primeiras que teve a província. Nunca a li; mas parece-me que era bem escrita e
que exerceu alguma influência. Eleito com
meu Avô deputado à assembleia provincial na primeira legislatura, ambos foram
para Ouro Preto, e ali se ligaram com Bernardo de Vasconcelos, de quem ambos
foram amigos; e este, que sabia conhecer os homens, parece que então teve ocasião
de conhecer e de apreciar a grande capacidade política e administrativa de que era
Bernardo Jacinto naturalmente dotado; pois que sendo este último um homem que
nunca tinha tido estudos regulares, e não passando na Campanha de um simples
agente do correio e de negociante de fazendas era ponto não muito grande;
Vasconcelos, não obstante, o nomeou presidente de Minas em 1838; e nessa
presidência Bernardo Jacinto se conservou até que em 1840, caindo o partido
conservador, foi então demitido. Ainda mais; apenas em 1842 receiou-se o
aparecimento da rebelião em Minas, o homem de quem o governo se lembrou para
conjurar a tempestade foi ainda Bernardo Jacinto da Veiga, que aceitou o encargo e
que o desempenhou com muita coragem e muita energia. Por isso também, Bernardo
Jacinto, até a sua morte, foi muito odiado pelos liberais, que nunca lhe davam outro
nome senão o de Pato; porque tendo a sua família uma conformação de pés que faz
com que abaixo dos tornozelos, aqueles pareçam mais cheios do que convém e como
que fugindo para fora, por este ou por outro qualquer motivo, o andar de Bernardo
Jacinto muito se assemelhava ao de um pato.
CAPÍTULO XIII
O pai do autor adquire a fazenda do Coroado. A vida na fazenda é monótona e
insípida, mas, na cidade, é alegre e movimentada. A politica entra em
efervescência. Caem os liberais e sobem os conservadores . São estes agora que
exultam de alegria e organizam os festejos. A cidade se enche de povo. As festas se
sucedem durante três dias, nas ruas e nas igrejas. Descrição das festas. Bandas de
música e foguetório. Os encamisados. O curro e as cavalhadas. O jogo das
cabeças e da argolinha. O teatro improvisado e o bobo
do Teatro-
Inteiramente ao em vez do ano de 1840, em que, segundo já disse, a minha
vida própria como que se apaga, eu me recordo, e muito perfeitamente, de quase
tudo que se passou comigo durante o ano de 1841; porque nesse ano meu pai
comprou, em Sant'Anna do Sapucaí, uma fazenda denominada — Coroado; nós
para ela nos mudamos; e essas mudanças de vida sempre deixam em nosso
espírito traços mais ou menos profundos.
Como, porém, aquela povoação era naquele tempo um lugar muito atrasado
e, de mais a mais, sem animação e sem vida; e como a fazenda para onde nos
mudamos, além de privada de todos os cômodos, era, ao mesmo tempo, muito mal
avizinhada, pode-se dizer que a minha vida ali se reduziu a isto — ver todos os dias
os mesmos objetos e fazer todos os dias as mesmas coisas. Por isso também a única
recordação um pouco mais viva que eu conservo daquele lugar, foi o de ter visto ali,
pela primeira vez, uma festa do Espírito Santo, em que um homem, revestido de
todas as insígnias da realeza e de coroa na cabeça, saiu da sua casa e com toda a
gravidade, como se fosse um verdadeiro imperador, caminhou para a igreja, indo
dentro de quatro varas e sendo acompanhado pelos seus caudatários e pelo povo;
havendo depois, à noite, um fogo de artifício ou um castelo, como então se
costumava dizer, o que foi o primeiro e quase que o único a que tenho assistido.
Se, porém, a fazenda era isso que acabei de dizer, ela tinha, entretanto, uma
bondade e, ao mesmo tempo, uma boniteza: a bondade era a grande uberdade de
suas terras; e a boniteza era
um altíssimo monte que lhe dava o nome, por ser todo coberto de mato e ter no
cimo um pequeno campo que lhe servia como que de coroa e donde se avistava tão
longe que, segundo ouvi dizer, dali se descobria a povoação ou a serra de S. Tomé
das Letras, que fica a uma distância talvez de quinze ou vinte léguas.
Não era, entretanto, esse morro e sua coroa o que mais me preocupava;
porém, sim o desejo de descobrir nas suas fraldas o lugar em que se dizia que havia
caído, não sei em que tempo, um grande aerólito luminoso ou, como dizia o povo,
— uma mãe d'ouro; porque, na opinião do povo, tais aerólitos são compostos de
ouro e quem os encontra não acha simplesmente uma rica mina, mas antes um
verdadeiro tesouro, visto que o único trabalho que então se tem muito pouco mais é
do que ajuntar, limpar e carregar o ouro que ali se encontra. E eis aqui tudo quanto
posso dizer ao leitor sobre a minha vida naquela fazenda; pois que eu não hei de
por-me aqui a lhe contar — que tocava os bois no engenho trepado na sua grande
almanjarra; que me entretinha muitas vezes em apanhar sangue-sugas que em
abundância havia em um córrego ao pé da casa; que muito gostava de umas gabiro-
bas de árvores que existiam até quase que dentro do terreiro; de outras que tais
coisas e jusdem furfuris.
Se, porém por este lado, nada lhe posso dizer que lhe inspire qualquer
interesse, em compensação posso e vou, segundo o meu costume, tocar um pouco
na tecla da política, e acredito que desta vez a política nos há de dar uma bonita
festa, e a mais bonita de quantas assisti na Campanha.
Eu já falei do entusiasmo que aos liberais daquele lugar havia causado a
proclamação da maioridade do Imperador, e bem assim das grandes festas que por
essa ocasião ali se fizeram. Se, porém, grande foi o seu entusiasmo e o seu prazer,
tudo isso muito pouco durou; porque, não se prestando o ministério da maioridade a
demitir um general que lhe parecia bom, para substituí-lo por outro que lhe parecia e
que de fato se mostrou inepto, o menino Imperador, ou para condescender com os
seus achegos, ou talvez para desde logo mostrar que era só ele quem governava,
demitiu o ministério. E então o que aconteceu foi que, assim como os liberais
haviam festejado e com um tão grande entusiasmo a elevação daquele que lhe havia
dado o poder, assim também os conservadores, que se achavam agora no poder, não
quiseram mais ficar atrás; e por seu turno procuravam festejar a coroação daquele
que, dizendo apenas — eu não quero —, os havia de novo e tão depressa a si
chamado.
E eis aqui está como é que essas grandes tempestades lá do alto vieram-me
tirar da monotonia do Coroado e, ao mesmo tempo, me vieram oferecer ocasião para
assistir a essas festas conservadoras que tiveram então lugar na Campanha, e que
foram realmente não só as mais bonitas que ali vi, mas que ainda foram as últimas
verdadeiramente arrojadas que ali se fizeram.
E, com efeito, nada lhes faltou para que fossem inteiramente completas; pois
que, não só tudo quanto nelas se fez foi feito com muito brilho e com muita
grandeza, mas ainda porque, sendo, como todos sabem, a concorrência do povo o
que principalmente faz as festas, enorme foi a concorrência que então houve, não se
limitando esta unicamente ãs pessoas da cidade e nem mesmo aos habitantes apenas
do município, mas vindo para elas gente de toda a parte e até de lugares um pouco
distantes.
Estas festas que, se não me engano, foram principalmente ou
exclusivamente feitas por iniciativa e à custa de meu tio, o major Domingos Ferreira
Lopes, que era então o presidente da câmara municipal e chefe ao mesmo tempo do
partido conservador da Campanha, duraram três dias, sem falar, entretanto, na lufa-
lufa dos preparativos e na chegada de tanta gente, o que só por si já constituía uma
grande festa e não talvez das piores.
Na véspera do dia em que as festas deviam ter o seu começo, houve o que
então se costumava a chamar — os encamisados — que me parece ter sido uma
coisa antigamente muito usada; mas que foram os únicos que eu vi, e de que nunca
mais nem sequer ouvi falar. Era, pois, este um dos antigos costumes de que deveria
aqui me ocupar com um pouco mais de extensão; mas é isto justamente o que não
posso fazer, porque eles saíram à noite e já um pouco tarde, e não os pude
convenientemente observar.
Entretanto, eu vou dar uma ideia mais ou menos do que eram tais
encamisados; e direi que era um grande bando de cavaleiros, todos vestidos de
branco da cabeça até os pés, e que, envolvidos em uns amplos mantos ou em alguma
coisa que me parecia grandes lençóis, percorreram as ruas da cidade parando aqui e
acolá para anunciar o programa de todas as festas que iam ter lugar no dia seguinte e
bem assim nos outros subsequentes.
E como eles faziam tudo isto com uma certa solenidade mais ou menos
lúgubre ou com um certo ar de mistério que muito mais parecia intimidar do que
alegrar, tudo isto combinado com aquele seu vestuário tão alvo e tão esquisito e com
as trevas e o silêncio da noite, dava na minha imaginação pelo menos, a cada um
deles e ao bando todo um não sei que de tão fantástico e
ao mesmo tempo de tão desagradável, que a ideia que eles principalmente me
despertaram, era a de uns terríveis espantalhos ou de uma verdadeiras
assombrações.
No dia seguinte tiveram, com efeito, começo as testas, conforme haviam
sido anunciadas; e essas festas que por assim dizer se acumulavam umas sobre as
outras, consistiam, sem falar na foguetaria e na música que eram de todas as horas e
de todos os lugares, no seguinte: — de manhã nos tiros e fogos com que todos os
dias não se deixava de saudar o alvorecer da aurora; depois do almoço, nas
solenidades religiosas que eram compatíveis com o caso; depois do jantar, em curro
e cavalhada; e à noite, finalmente, em alguma representação teatral. Deixando,
entretanto, de parte as primeiras (lestas festas por serem ainda muito comuns, vou
unicamente ocupar-me da última e sobretudo das duas penúltimas; não só por serem
das que vão cada vez mais desaparecendo, mas também por serem delas todas as
que mais me impresionaram.
A palavra — curro ou curros — era antigamente uma palavra muito popular
e servia para indicar uma corrida de touros.
Procurando-a em alguns dicionários, em nenhum deles a encontrei; mas
talvez signifique o círculo em que se corre. Seja como for, o curro e as cavalhadas
tiveram lugar no vasto largo das Almas, onde se fez um imenso circo todo cercado
de uma arquibancada em que todos podiam indistintamente se sentar; havendo,
porém, por cima desta um ou dois andares de camarotes, dos quais cada família
tomava um para si e o mandava enfeitar à sua custa e ao seu gosto. Este circo tinha
diversas entradas e junto de uma delas estava um pequeno curral onde se
conservaram os touros que deviam ser corridos e que foram todos com grande
cuidado e muita antecedência procurados e escolhidos como os que tinham fama de
mais investidores ou bravos; e ainda me lembro que eram todos ou quase todos de
raça nila; raça essa que então se estava introduzindo na província e que passava por
ser tão forte para o serviço quanto era ao mesmo tempo indômita e feroz. A tarde,
quando o circo e todos os seus arredores estavam repletos de povo, que parecia um
verdadeiro formigueiro, de repente soltou-se um daqueles touros; o silêncio se fez
por toda a parte durante alguns instantes; e todos se puseram a esperar o resultado.
Então o toureador ou os toureadores, que pareciam ser homens destemidos,
aguardaram o touro, tendo na mão esquerda uma pequena bandeira e na direita
uma garrocha.
Não tendo o touro se movido, aqueles para este se dirigiram acenando com
a tal bandeirinha; e enquanto assim procediam, não
só uma grande porção de capinhas também com bandeiras e gar-rochas os
procuravam imitar mas sempre de longe; porém, ainda um número muito maior de
mascarados ou de palhaços não deixavam de ir dizendo as suas graças, de ir fazendo
as monices, e de ir assim entretendo o povo; sem que, entretanto, nunca se ar-
redassem da cerca que separava o circo, a qual, ao menor movimento do touro, eles
imediatamente saltavam para se porem a salvo. A ansiedade ao principio foi imensa.
Mas pouco a pouco foi se vendo que o perigo não podia ser grande com o touro que
estava em cena; porque, espantado e como que atordoado diante de todo aquele
espetáculo e de todo aquele movimento tão estranho para ele, o touro em vez de
investir ou mesmo de simplesmente correr, retraía-se pelo contrário ou se mostrava
quase que inteiramente apatetado. Soltou-se então um segundo touro, depois um
terceiro e depois muitos outros; mas o resultado continuou a ser sempre o mesmo; e
a decepção não podia ser maior. Foi nesta circunstância e quando o
desencantamento geral já tinha chegado ao seu auge, que um dos toureadores, que
era também domador ou pião, lembrou-se que uma vez que os touros se mostravam
assim tão tímidos e tão dóceis e que ele não podia mostrar as suas habilidades de
toureador, nada impedia que ele mostrasse ao menos as que possuía como domador;
e sem mais demora, mandando vir o seu lombilho, em vez de tourear os bois, neles
montou; e desta sorte, a tragédia converteu-se em entremez; mas ao menos fez rir.
Apesar de todas as providências, que de um dia para o outro se tomaram,
mandando-se vir muitos e novos touros a fim de que não se repetisse aquele fiasco
tão completo que se havia dado; o segundo dia foi mais ou menos a fiel cópia ou
repetição do primeiro. Então um fazendeiro lembrou-se que tinha um boi de carro,
que não deixava de trabalhar mas com o qual era preciso lidar com um certo jeito; c
disse, que uma vez que os touros não investiam, ele mandaria vir o boi, para ver se
ao menos não fugia. E, com efeito, o boi veio; e tais diabruras fez, que não só não
havia capinha nem palhaço que se arredasse da cerca do circo; mas que até mesmo
os próprios toureadores não sabiam se haviam de atacar ou defender-se. E o certo é
que um deles, longe de espantar ou mesmo ferir o boi, foi por ele, pelo contrário, por
tal forma maltratado, que poucos meses depois tinha morrido.
As cavalhadas, embora não produzam as emoções que produz uma corrida
de touros, não deixam, entretanto, de ser um espetáculo divertido; e o que mais é,
não só há muita gente que muito as aprecia, mas ainda desses que delas
gostam, alguns há que
sentem por ela um entusiasmo, não direi simplesmente descomunal, mas
quase tão ridículo ou talvez até muito mais ridículo do que o entusiasmo
dos caçadores.
A cavalhada é um simulacro das cruzadas ou mais propriamente das
guerras que se deram entre os mouros e os cristãos na Península ou no
tempo de Carlos Magno. São dois bandos com seus chefes e bandeiras, e
dos quais um representa os mouros e o outro os cristãos. Assim como,
porém, no curro, além dos toureadores haviam os capinhas e os mascarados
que divertiam o povo; assim também na cavalhada, além desses dois
bandos, ainda havia aqueles mesmos mascarados que andavam a pé e
divertiam o povo, e um número muito maior de mascarados a cavalo, que
ali se apresentavam unicamente para ostentar a beleza dos seus cavalos e a
riqueza ou bom gosto das suas vestimentas.
Eu não acompanharei todas ,as evoluções que aqueles dois bandos
faziam; até mesmo porque já não tenho de tudo isso uma lembrança lá
muito perfeita. Eu, pois, apenas direi que os cristãos estavam fardados como
oficiais da guarda nacional; que os mouros ostentavam vestimentas de cores
vivas e brilhantes; que todos se achavam montados nos melhores e mais
bem ensinados cavalos que havia em uma redondeza de muitas dezenas de
léguas, que entre os dois bandos havia continências, embaixadas e diversos
combates; e que afinal como era bem de prever, os mouros são derrotados; e
depois de aprisionados e de chorarem ou blasfemarem, acabam por se
converterem.
Feita a paz e a conversão, os dois bandos misturavam-se; e
começava, por assim dizer, um novo gênero de espetáculo, o qual, para o
entusiasta, parece ser o mais apreciado; porque na primeira parte, à exceção
da embaixada, em que o cavalo do embaixador pode mostrar as suas
habilidades, quase todas as evoluções são feitas por todos ou então por
magotes; entretanto, nesta segunda parte, todos aparecem um por um
ou dois a dois.
Tal é o jogo das cabeças; que assim se chama porque em toda a
circunferência do circo e de distância em distância, há espetadas em postes
algumas cabeças de papelão; e a grande habilidade do cavaleiro está em
correr a toda desfilada em torno do circo; e com as pistolas e depois com a
lança e não sei se também com a espada, acertar em uma ou mais daquelas
cabeças. Eu não sei se, além deste, houve ainda algum outro jogo; mas de
todos os mais importante e que termina a festa, é o jogo da argolinha. E esse
jogo é o seguinte: no meio do circo levantam--se dois postes aos quais se
prende uma corda ou um arame um pouco frouxo; e deste arame pende na
ponta de um fio ou de uma
fita uma pequena argola; mas presa por tal feitio que sendo tocada ou antes
enfiada por uma lança, imediatamente se desprende e fica na ponta da
lança.
Feito isto, todos os cavaleiros se colocam em fila defronte e bem
longe da argolinha; e cada um por sua vez, saindo da fila, firma-se na sela,
enrista a lança e, fazendo o cavalo disparar, passa por entre os dois postes
onde está a argolinha e tenta tirá-la.
Parece que a empresa não é, entretanto, das mais fáceis; porque se
alguns apenas chegam a tocá-la, muito menos são ainda aqueles que
desfrutam o prazer de conseguir tirá-la.
Se, porém, algum a tira, a música toca, as palmas e os bravos
ressoam por todo o imenso círculo e o feliz vencedor, na festa de que
tratamos, ia levá-la ao camarote onde se achava reunida a câmara municipal,
cujo presidente, tomando a argolinha que voltava para o seu lugar primitivo,
em lugar dela, colocava uma pequena fita que o vencedor ia oferecer a uma
senhora ou a uma pessoa de importância ou da sua predileção, a qual
retribuía a fineza atando à lança, em lugar da pequena fita que recebia, uma
ou mais peças de ricas e largas fitas ou outros quaisquer objetos de valor
que o cavaleiro guardava ou depois atava ao braço. E tudo ia assim se
repetindo até que todos tivessem corrido. Entretanto, se este era o ato final
da cavalhada, era ele também aquele em que melhor se podia apreciar o
garbo, a gentileza e todos os demais predicados tanto do cavalo como do
cavaleiro; pois que além do grande galope para tirar a argolinha, e das
diversas marchas e contramarchas que a esse galope se seguiam era ainda na
entrega da argolinha e na da pequena fita, que principalmente se oferecia a
ocasião, para que o cavalo mostrasse a mais apreciada e ao mesmo tempo a
mais ridícula das suas habilidades — a de jogar ou dançar; — ou em que o
cavalo, sem quase que sair do lugar, caminha curvando as cadeiras e sem
nunca ter as duas mãos no chão; mas apenas uma desce, já a outra se
levanta; e quanto mais alto a levanta o cavalo, tanto melhor é ele. E o que é
certo, é que para os entusiastas desta espécie, é este, com efeito, o momento
das verdadeiras palpitações ou das maiores e mais trêmulas emoções: e se os
que apenas vêem o cavalo, as sentem por esta forma, faça-se ideia dos saltos
e das tremuras que não deverão passar pelo pobre coração daquele
que vai em cima.
À noite finalmente, tinha lugar, conforme já declarei a representação
teatral; e como essa representação era mais ou menos como são todas as
representações desta ordem feita por amadores de província; eu não
me meterei a descrevê-la; até
mesmo porque, nem sequer me recordo qual foi a peça ou as peças que então se
representaram a não ser que em uma dessas peças havia um personagem chamado
Florindo e que o seu assunto muito se parecia com o do filho pródigo de que fala o
Evangelho.
Eu, pois, apenas direi, que não havendo então na Campanha um teatro
permanente como o que hoje ali existe, teve-se, como ainda muito depois acontecia,
de fazer um provisório no largo de S. Francisco e que foi feito mais ou menos como
o circo; isto é, como plateia para todos e duas ou três ordens de camarotes para as
famílias que os cobriam e que os ornavam à sua custa e à sua vontade; devendo
ainda observar, que nesse teatro não deixou de aparecer um personagem que
naqueles tempos parecia ser absolutamente indispensável; isto é, uma espécie de
bobo, que sempre que o pano estava fechado, vinha para a boca do teatro, e fazendo
comentários sobre a peça ou dizendo graças mais ou menos insulsas, se esforçava
por entreter os espectadores, e que em parte pelo menos não deixava de conseguir o
seu fim.
CAPÍTULO XIV
A revolução de 1842. Incêndio repentino no centro da província. O incêndio se
propaga em torno de si mesmo e atira fagulhas para muito longe. Quando as
fagulhas começam a arder, o foco central está quase extinto. Uma série de
calamidades. A ruína das fortunas e o êxodo dos habitantes. José Feliciano é esco-
lhido para chefe do movimento. Monarquista de coração e homem muito rico, José
Feliciano nunca desejou o recurso às armas. Os chefes mais prudentes do partido
pensam do mesmo modo. A revolução é dominada, mas os mineiros mantiveram,
com honra, os compromissos assumidos.
Que a revolução de 1842 foi um dos fatos mais calamitosos que têm recaído
sobre a nossa província, não é isso coisa que se possa pôr em dúvida; pois que
basta dizer que foi uma guerra.
Das calamidades, porém, dessa guerra, a maior não foi nem os processos por
que os rebeldes tiveram de passar; nem os sustos e as inquietações das famílias; e
nem mesmo o sangue que se derramou e que na realidade não foi muito; mas foi
uma espécie de desmoronamento ou antes um decaimento triste e sem remédio que
desde logo começou e que desde então continuou de um modo mais ou menos
pronto ou mais ou menos visível a operar-se nas fortunas de quase todos; de sorte
que sem a menor exageração se pode dizer, que de quantos entraram na revolução,
poucos, pouquíssimos mesmo talvez foram aqueles, que tendo uma fortuna sólida,
não ficassem com ela mais ou menos abalada, ou que a lendo já mais ou menos
abalada, não a vissem inteiramente arruinada. E disto pode ser dado como uma das
melhores provas ou como a sua mais completa confirmação um fato que observei, e
que me parece ter sido muito geral; isto é, o de uma grande deslocação de população
que teve lugar na província logo em seguida à revolução, ou uma espécie de
doloroso êxodo de famílias e famílias, que sentindo-se sem os meios precisos para
subsistirem nos lugares em que tinham nascido ou se haviam desde muito
estabelecido, viam-se obrigadas a sujeitarem-se agora a todos os azares da sorte e a
irem procurar ou tentar fortuna em outros lugares.
Entretanto, uma das questões mais difíceis de resolver, é a de saber, até que
ponto essa revolução de 1842 foi, com efeito, calamitosa para Minas; porque um fato
desde muito preexistente e que não pode sofrer contestação é que desde que o ouro
começou a escassear ou antes a se mostrar muito mais difícil de tirar, desde logo a
prosperidade da província, não só estacou, mas ainda começou a ir-se convertendo
em uma decadência mais ou menos pronunciada. E assim, tornou-se não só muito
difícil, como disse mas até quase impossível, o discriminar-se qual a verdadeira
parte que nos males da província continuou a caber aquela causa geral e já algum
tanto antiga, e a que de fato coube a essa nova causa que aquela primeira veio agora
se ajuntar. Como quer que seja, o fato que aparece e que é de todo incontestável,
vem a ser este — que desde o ano de 1842 a província como que tem um verdadeiro
desmaio; e que durante 15 ou talvez 20 anos, a não ser pelo lado da instrução e do
aumento da população que foi sempre progredindo, ela quase que não deu um único
passo para adiante, e a mais de um respeito talvez que se pudesse dizer que até retro-
gradou. Eu, pois, vou me ocupar aqui dessa notável revolução; e como muitas são as
minhas recordações que a ela se ligam, é muito provável, que por mais que me
esforce por abreviar, tenha de ir nela encontrar assunto para mais talvez de um
capítulo. Sendo a lei de 3 de dezembro a causa principal daquela revolução, não
seria talvez fora de propósito que eu começasse por dela aqui tratar. Eu, porém, nem
entrarei no exame dos méritos e deméritos de uma semelhante lei e nem tão pouco
procurarei discutir se os males que dela resultaram ou que dele poderiam resultar
eram tais e tão irremediáveis, que reclamassem aquele tão perigoso v quase sempre
tão fatal recurso às armas. E não o farei; porque me parece que não é bem tempo
para isso e que não pode ser um bom juiz daquela lei o filho de um homem que
pegou em armas contra ela. Assim também, não procurarei indagar quem foi o
primeiro autor da ideia da revolução; nem tão pouco nada afirmarei sobre o modo
como foi resolvida esta tão grave e tão melindrosa questão; porque não sei com
certeza o que é que se passou nos conselhos da oposição depois que a câmara dos
deputados foi previamente dissolvida; e me faltam, por consequência, a este respeito
os suficientes dados. Entretanto, o que sempre eu ouvi dizer, e o que nunca deixou
de passar como certo, foi que os homens mais prudentes do partido pronunciaram-se
pela moderação; e que a todos ou quase todos o recurso às armas pareceu, não só
perigoso, mas até mesmo funesto; sobretudo, quando a dissolução a todos tinha
tomado de surpresa; nada estava preparado para uma revolução assim tão
desesperada; e nem mesmo sequer se tinha uma bem firme certeza se o
povo quereria ou
não levantar-se. Os paulistas, porém, disseram e asseveraram, que eles sós
tudo fariam; que apenas eles tomassem as armas, o ministério seria demitido
e as nossas liberdades salvas; e que para que eles sós pudessem alcançar um
tão grande e tão desejado resultado, nada mais era preciso ou eles nada mais
pediam senão que as outras províncias se agitassem mais ou menos ou se
pudessem, se levantassem um pouco; para que por esta forma sentindo o
governo grandes receios por toda a parte, se visse embaraçado nos seus
movimentos; e não pudesse, por consequência, dispor de todas as suas
forças e dirigi-las para S. Paulo. Diante de uma tal confiança e ao mesmo
tempo de uma tão grande abnegação, os deputados das outras províncias
parece que sentiram-se vexados de recusarem uma tão mínima parte de
sacrifício a quem sobre si o tomava quase todo; eles cederam; e a presunção
dos paulistas nos perdeu.
Ora, tendo-se feito este acordo, e tendo a 17 de maio sido
proclamada a revolução em Sorocaba; os chefes mineiros julgaram que
tinha chegado a hora de cumprirem a sua promessa; a 10 de junho
proclamaram em Barbacena como presidente interino da província a José
Feliciano Pinto Coelho da Cunha; e sem um plano fixo, sem armas, sem
munições e até sem oficiais militares, começaram a ajuntar forças: ou a
promover o levantamento da província.
Quando, porém, estando a sua obra já algum tanto adiantada, eles
esperavam a todo momento a notícia tão desejada e sempre tão esperada dos
triunfos de S. Paulo e do levantamento das outras províncias, a notícia que
lhes chega e que ao mesmo tempo como que os fulmina, foi que nenhuma
das outras províncias se tinha levantado nem dava disso o menor sinal; que
S. Paulo havia sido vencido, por assim dizer, sem combate; e que
estabelecida ali a mais completa paz, o Barão de Caxias vinha sobre a nossa
província com as suas forças vencedoras. E o que fazer em um semelhante
caso? Parece que o melhor de todos os expedientes seria não lutar por mais
tempo contra uma sorte que assim tão adversa se nos mostrava; depor as
armas sem a menor demora; e apelando para a clemência ou para a
generosidade de um inimigo que não era ainda vencedor, entregar-se desde
logo à discrição. E parece, com efeito, que mais de um assim pensou. Mas
sendo inimigos por natureza de barulho e de aventuras e, além de pouco
andejos, nunca tendo sido espalha-brasas, os filhos de Minas, não só não
gostam de sair das suas montanhas; mas, ainda contentes unicamente de
viver livres e independentes, tendo por conchego a família e por diotração o
trabalho, eles nunca mostraram esses
assomos de um valor muitas vezes descabido; e muito menos ainda jamais sentiram
esse nobre, é certo, mas ao mesmo tempo tão perigoso, entusiasmo pelas armas. E se
por tudo isto, são eles ãs vezes suspeitados de não ser destemidos ou de falta de
coragem; o que não se diria, se eles se dessem por vencidos sem nem ao menos
combater?!
Além disso, para quem toma as armas contra as leis não há senão duas
únicas saídas — ou há de acabar por ser um herói e um benemérito ou um dos
maiores criminosos. Ora, o grande crime já estava cometido; todos os chefes viam-
se sujeitos à pena de prisão perpétua com trabalho e, quanto mais não fosse, a de dez
anos no mínimo; e quem poderia afiançar que os inimigos encarniçados e odientos
não se lembrassem de aplicá-las? Vencer era, com efeito, impossível, mas quem
sabia se um combate ganho não poderia inspirar talvez receios, despertar mais sérias
reflexões, e provocar, por consequência, uma promessa de perdão?
E foi isto o que de fato se venceu; porque sem mais demora o exército se
põe em movimento; ataca a vila de Queluz que estava defendida por infantaria e
artilharia; derrota completamente o exército da legalidade; e marcha para atacar a
capital.
Quando, porém, ali chegam e que tudo se dispunha para o projetado assalto;
eis que chega a notícia e notícia certa, de que a marchas forçadas já Caxias se
aproxima. Tinha falhado, pois, o plano; e embora o desânimo cada vez mais se
aumente, os rebeldes, entretanto, julgam ainda, que não é tempo de depor as armas;
que podem e que devem tentar um novo esforço mas esforço último; e deixando
atrás de si a capital, Caxias e todas as forças do governo, passam-se para a bacia do
Rio das Velhas e descem este rio com o propósito firme ou na esperança ao menos
de irem ali achar senão a vitória, um melhor refúgio e em todo o caso um ponto de
apoio em alguma dessas muitas freguesias que margeiam aquele rio ou dão-lhe as
águas e que tão áditos e tão constantes sempre se haviam mostrado à causa da
revolução. Entre eles, porém, e aquele seu propósito erguia-se um bem terrível
embaraço: era Sabará que, tendo-se armado desde o começo em favor da legalidade,
se lhes apresentava agora em frente e que ali recostada sobre o rio e a vigiar a
estrada, lhes parecia dizer -— Por aqui não há quem passe! E Sabará que era então
uma das maiores cidades da província, e que se achava naquela ocasião muito bem
guarnecida, podia, com efeito, oferecer aos rebeldes uma dessas resistências não
simplesmente grandes mas talvez mesmo insuperáveis; visto que, além das suas
próprias forças que eram numerosas e que em mais de um combate já
tinham
dado provas de valor, ainda na véspera tinha aquela cidade recebido em seu seio
as duas fortes colunas do Serro e do Caeté.
Os rebeldes, porém, que se vêem desta sorte, por assim dizer, entre dois
fogos — Sabará que lhes fecha o caminho e Caxias que lhes vem ao encalço — não
se acobardam nem hesitam, mas ati-rando-se ao inimigo que lhes fica em frente,
investem aquela cidade; em pouco tempo a tomam; marcham depois para Santa
Luzia, que ficava algumas léguas apenas mais adiante; vendo-se tranquilos agora
pela sua retaguarda, confiados ali acampam; e, dispostos a terminar ali mesmo
aquela sangrente luta, com o coração bem cheio, é certo, mas ao mesmo tempo
resignados, aguardam a chegada de Caxias que sobre eles vinham com todas as suas
forças e sem quase que perder tempo.
A 20 de agosto Caxias ataca; seus esforços são impotentes durante sete horas
para tomar a povoação; ele é repelido; ele recua; já os rebeldes o flanqueiam pela
esquerda; já eles investem sobre as suas próprias peças; e ele estava enfim vencido.
Mas, de repente e quando menos se esperava, seu irmão ataca os rebeldes pela
retaguarda e por um ponto por onde ninguém o aguardava; Galvão, o melhor general
da revolução, adoece; Caxias volta à carga; e os rebeldes acreditando que ao menos
tinham bem claramente salvado a honra da província dão-se então por vencidos.
Tudo isto quando acabo de dizer é o que de ordinário se costuma a chamar a
revolução de Minas; mas na realidade, tudo isto que acabo de dizer nada mais é do
que apenas a revolução do centro; porque fato inteiramente inesperado e que se deu
em uma província que pode em vastidão igualar a muitos reinos, a revolução de
1842 se apresentou em Minas como um verdadeiro incêndio repentino, que se
propagando rapidamente em torno de si, ao mesmo tempo atirava faíscas por toda a
parte e tão longe; que quando o incêndio principal já se extinguia no seu foco, é que
novos incêndios se ateiavam nas extremidades; de sorte que já a revolução quase
que mais não existia em Barbacena e São João d'El Rei, quando era então que
isolada e mais ou menos intensa, ela começava por tardio esforço a se manifestar no
Para-catu, no Araxá e em outros pontos.
Assim, a revolução do sul de Minas, que foi a única à qual assisti ou aquela
de que alguma coisa posso contar de visu, pode-se também dizer que nenhumas
relações teve com a do centro e muito menos ainda com a dos outros pontos. Como,
porém, é ela a única que me diz respeito, embora seja o primeiro a reconhecer que é
de todas a que menos interesse oferece, quero e vou dela me ocupar um pouco
mais detidamente.
Deixando, entretanto, essa história para o artigo seguinte, quero ainda fazer
aqui uma observação geral; e é que, se os males que da revolução resultaram para
Minas foram muitos e foram de tal natureza, que puseram, por muito tempo, como
disse, um terrível cravo na roda da nossa fortuna; esses males, entretanto, nem
foram tantos nem foram tão grandes, como poderiam talvez ter sido, se, em vez de
José Feliciano, outro tivesse sido o presidente nomeado.
Como, porém, durante o tempo que viveu a revolução, nunca se manifestou
entre os chefes a menor desarmonia, a não ser talvez por ocasião do ataque à capital;
e como a vitalidade que a revolução ostentou foi por tal forma acentuada que Abreu
Lima não hesitou em dizer que, sem as prontas e eficazes medidas do governo, a
rebelião teria criado profundas raízes; esta observação que acabei de fazer pode, e
com alguma razão talvez, passar para muitas pessoas com uma simples suposição em
base; e para que midamente que me for possível, dar aqui os motivos desse meu não
se acredite que assim é, quero e vou, ainda que o mais resu-modo de pensar ou a
explicação desse meu dito. Eu não conheci pessoalmente a José Feliciano, e nem as
informações que tenho a seu respeito são suficientes, para que eu pudesse dar dele
aqui uma biografia completa e nem sequer uma ideia mais ou menos perfeita.
Mas me parece poder afirmar, que as causas que concorreram para a sua
nomeação, foram as seguintes: 1.* — a firmeza das suas convicções partidárias e o
respeito que todos os rebeldes lhe consagravam; 2.º — a sua fortuna, que se não era
colossal nem talvez mesmo muito fora do comum, era entretanto mais ou menos
avultada em relação às de quase todos os outros chefes rebeldes; mas a 3.º — e
sobretudo, o ser ele o chefe e muito prestigioso de uma família muito importante e
muito numerosa no centro e norte de Minas.
E não se pode deixar de reconhecer, que por este lado, a escolha não podia
ser melhor. Mas, se isto é verdade; por outro lado, é preciso ainda acrescentar: 1.º —
que José Feliciano era um homem extremamente moderado; que foi um dos que
reprovaram o alvitre de recorrer à resistência armada; que foi por condescendência
apenas para com os seus amigos que entrou na revolução; e que ainda assim, nela
não entrou senão com o propósito bem determinado de não lhe dar um grande
desenvolvimento ou com a esperança ao menos de que Minas nunca se afastaria da
modesta missão que lhe havia sido assinada ou a de um simples espantalho, como os
paulistas tinham pedido; 2.* — que pertencendo
a uma família que pretendia a foros de nobreza e sendo ele mesmo veador da casa
imperial, José Feliciano era um desses monarquistas; não simplesmente de cabeça,
mas ainda do coração ou por habito e por instinto; e 3.º — finalmente que era um
homem a certos respeitos tão cheio de escrúpulos sobre a probidade, que, embora a
sua fortuna se tivesse muito estragado com a revolução, ainda depois desta, não
deixava, segundo ouvi dizer, de pagar qualquer documento que se lhe apresentava de
requisições que em seu nome tivessem sido feitas.
Ora todas estas qualidades são, com efeito, muito apreciáveis; e são
justamente aquelas que se deveriam procurar quando se trata de um governo regular;
mas tais qualidades são sempre fatais quando se trata de um governo revolucionário;
que só revolucionariamente é, que pode viver; e que por isso, não só exige qualida-
des
1
quase que inteiramente opostas; mas sobretudo homens que esquecendo-se
nessas ocasiões de todos os outros princípios, nunca se esqueçam, que a primeira e
quase que única lei nas revoluções ou em todas as grandes crises sociais, é sempre
— o salus populii; ou então homens como Teófilo Ottoni, por exemplo, que assim
como não hesitou em mandar queimar a ponte do Paraibuna, o que na realidade nada
era em vista das vidas que se arriscavam e se tiravam a toda hora; assim também,
sem a menor hesitação, não duvidaria de sancionar qualquer outra medida da mesma
na-tureza que pudesse ser realmente necessária para a salvação da causa de cuja
bondade ele estava convencido.
Daqui, pois, resultou, que, não sendo José Feliciano um homem
revolucionário, mas que nada tanto receiando como que em torno dele se levantasse
o grito de república, não só não deu à revolução aquela força e energia que lhe
poderia ter dado; mas que apenas viu terminada a revolução de S. Paulo, desde logo
julgou terminada a de Minas; e embora sempre leal e sempre concreto para com
todos aqueles que tinham nele posto a sua confiança, ele não teve desde então, sendo
um único e principal empenho — o de tirar a si e aos seus companheiros daquele
terrível beco sem saída em que todos se haviam metido; e caso não fosse ouvido ou
não o quisessem acompanhar, ao menos, retirar-se só. E, com efeito, assim, o fez;
pois que tendo chegado a Santa Luzia e declarado aos outros chefes, que daria ainda
as ordens para aquele combate; mas que fosse qual fosse o resultado, desde daquele
dia se retiraria do exército; e que para ele ao menos, ali seria o último dia da
revolução; antes mesmo de terminado o combate, tratou de retirar-se.
E tanto é verdade tudo isto que acabo de expender; e que o combate de Santa
Luzia era, por assim dizer, um como que último adeus que os rebeldes diziam à
liberdade que eles julgavam moribunda ou às suas esperanças e ilusões perdidas,
que, embora os rebeldes tivessem sido vencidos, mas de nenhum modo destroçados;
os principais chefes, entretanto, ali se deixaram ficar quase todos; e ali se
entregaram, sabendo perfeitamente que não estavam cercados; mas que pelo
contrário, tinham uma estrada franca e muito bem guardada, por onde poderiam com
toda a segurança retirar-se, assim como por ela tantos outros, de fato, retiraram-se.
E se este fato de só ficarem prisioneiros quase que unicamente aqueles que o
quiseram ser, é uma prova sem réplica, de que os rebeldes foram, como disse, ali
vencidos, porém, não destroçados, e que se a guerra não continuou, foi porque faltou
para ela um chefe ou os seus a não quiseram continuar; prova muito mais
convincente é ainda o falo de que em vez de serem perseguidos, os batalhões dos
rebeldes dali se retiravam, pelo contrário, na mais completa calma e todos ou quase
todos formados e com as suas bandeiras alçadas.
E o que de fato se vê dos documentos oficiais, é que não só o imortal Galvão
no dia seguinte se apresentava ao subdelegado de Matozinhos à frente de setecentos
homens armados para ali voluntariamente deporem as armas; porém que ainda um
dos mais valentes batalhões da revolução, o de Santa Bárbara, ia em número de
trezentos guardas depor as suas na própria sede do seu município; e que uma coluna
muito mais numerosa e que era composta na sua quase totalidade de guardas
nacionais de Barbacena ou de S. João e de S. José d'El-Rey, dirigindo-se pelos lados
do Bonfim em busca dos seus municípios, encorporada sempre se conservou, até que
parte por si mesma despersou-se, e parte ainda em número de mais de trezentos
depuseram as armas na atual vila de Entre Rios, que fica muitos dias de marcha
separada de Santa Luzia.
Neste quadro severo, e ao mesmo tempo, tão límpido, da revolução de
Minas, houve contudo uma nódoa; mas felizmente a única.
Na véspera do combate de Santa Luzia, um comandante de corpo, que eu
nunca cheguei a saber se era com efeito mineiro, não se pejou de vender-se a troco
de uma patente no exército imperial. No dia do combate conservou-se inerte
ou abandonou o
posto que devia guardar; e foi esta talvez uma das principais causas da
perda daquele combate. A paga, o traidor a recebeu logo; mas felizmente a
não gozou; porque, transportado para a briosa província do Rio Grande do
Sul, ele ali só encontrou o asco por toda a parte; e o desgraçado sucumbiu
em pouco tempo ao desprezo e ao remorso.
Deixemos, porém, de parte todas estas coisas; e tratemos agora de
ver e de apreciar, o que é que durante todos estes sucessos, se passava na
Campanha ou no sul de Minas onde então me achava.
CAPÍTULO XV
À revolução de 18i2 no Sul de Minas. Os liberais se preparam para a luta e se
apoderam de Baependi. Reação do governo. A cidade é retomada. O desânimo
invade as fileiras dos revolucionários e estes se dispersam. Na Campanha, o
delegado de polícia é um português ignorante e violento. Atos de arbitrariedade e
episódios grotescos.
Nos primeiros meses de 1842 começou-se a por em execução na Campanha
a lei de 3 de outubro, ou como então se dizia, a lei das reformas; e o delegado de
polícia que para aquela cidade se nomeou, foi um português naturalizado que se
chamava Antônio Joaquim Gomes. Homem de alguma influência e alguma fortuna,
era ele, entretanto, um energúmeno em política; e, o que tornava esta sua qualidade
muito mais perigosa, esse homem era de poucas luzes e de muita energia. Nem outro
me parece que fosse o verdadeiro motivo de ter sido ele o nomeado, deixando-se de
fora todos os chefes do partido conservador que dispunham de um prestígio muito
maior e que até então tinham sempre ocupado os empregos principais da
governança local.
Entretanto, se grandes tinham sido as apreensões que a todos os leberais
havia causado a nomeação do novo delegado, os atos vieram bem depressa
confirmar, quanto eram bem fundadas todas aquelas apreensões; pois que uma das
primeiras medidas, que ele tomou, foi a de chamar à polícia os principais membros
do partido liberal, a fim de assinarem um termo, cujo nome ou cujo objeto legal cu
mesmo não saberia dizer qual era; porque os únicos lermos que a lei reconhece, são
os de segurança e bem viver e esse a que eu me refiro, era de achar boa a lei da
reforma outra qualquer coisa semelhante.
Ora, dos liberais da Campanha o mais orgulhoso e que parecia ser o mais
enérgico, era o Major Salvador Machado de Oliveira e creio, que, por isso mesmo, o
delegado assentou de começar por ele. Machado foi, pois, chamado à polícia, para
assinar este termo de que acabo de falar. Como era de prever, ele recusou-se: o
delegado dá-lhe 24 horas para refletir; e no dia seguinte, quando
Machado declarou que tinha bastante refletido e que não assinava o termo; o
delegado, com a maior frescura e com um tom que bem revelava que entre o dito e o
feito não intermediaria mais do que alguns poucos minutos apenas, lhe disse: — que
ele havia de assinar o termo, ou que naquele mesmo momento deceria para a
enxovia. Machado assinou; outros foram chamados; e todos assinaram . Mas
também ninguém hoje pode nem sequer fazer uma ligeira ideia, do estupor ao
princípio, e logo em seguida, dar frêmitos de indagação e da cólera concentrada, que
se apoderou daquelas almas enérgicas, independentes e livres, que educadas com
todas as liberdades do código do processo, nunca um só momento haviam acreditado
que um cidadão inocente pudesse ser lançado em uma daquelas hórridas prisões dos
maiores celerados e que agora, sem a menor exceção poderiam ser ali atirados; e não
por um juiz que eles mesmos houvessem eleito, nem julgados por seus pares, mas
pelo primeiro estrangeiro que o governo se lembrasse de revestir de todo o poder
naquela terra que os seus pais haviam criado e que desde a independência eles
acreditavam devera ser daqueles que a haviam libertado; e unicamente deles.
0 resultado, portanto, que o delegado tinha sido em vista e que havia
considerado talvez como certo, falhou; ou antes, esse resultado foi inteiramente o
contrário do que havia esperado; porque, em vez de intimidar, o seu procedimento
apenas exasperou; e como nesse tempo o meu parente Gabriel Francisco Junqueira;
depois Barão de Alfenas, já tratava de ajuntar forças para a revolução em um lugar
chamado Galinhas, e depois na fazenda do Ribeirão, que pertenciam ao município
de Baependi; muitos foram os liberais da Campanha, que dali furtivamente se
escapando, a elas se foram ajuntar; e deste número foi meu pai.
Ora, se era assim, que o delegado procedia quando ainda a revolução não
havia rebentado, pode-se julgar o que não seria quando esta apareceu e tomou um
incremento tão rápido e tão grande. Então, com efeito, não se tratou mais de termos
nem de ameaças, porém, sim de prisões; e a primeira que se deu, foi a de um
Francisco de Paula Beltrão, homem de boa sociedade, mas sem nenhuma
importância política; e cujo único crime pode-se dizer que era o de cotucar sem
jamais ferir; pois que era um desses homens levianos ou um desses parlapatões, que
sem ter uma grande dose de espírito, acreditam sempre que o tem muito; e para o
mostrarem, nunca refletem e muito menos ainda se lembram de segurar a língua. Eu
fui vê-lo das grades da cadeia; e apesar de ainda muito criança, eu não pude deixar
de apiedar-se de vê-lo, a ele um homem limpo e de uma certa posição, ali metido
naquela enxovia tão imunda, cercado unicamente de assassinos e
ladrões, e ele, sempre tão asseiado e tão cheio de melindres, no meio de toda aquela
gente cujo só contato parecia dever encher de repugnância e horror ainda mesmo
àqueles que não fossem dos mais susceptiveis. Ele, entretanto, em uma das tarimbas
da prisão, que ficava mais exposta ao ar e à luz, tinha feito com panos uma espécie
de quiosque ou um pequeno camarote onde de noite dormia e de dia se recostava; e
como era um homem alegre e os outros presos tinham para com ele uma certa
consideração e mesmo respeito; eu não o achei tão acabrunhado, como me pareceu
deveria estar. Só uma coisa havia de que muito se queixava; porque, dizia, por mais
que tivesse feito por escapar-se ou depois livrar-se, não tinha conseguido; e isso de
que ele assim tanto se queixava, era uma espécie de piolhos que são próprios de
pessoas e de lugares imundos; piolhos estes, que são brancos, andam pelo corpo e
pela roupa em vez de andarem pela cabeça, e que são conhecidos entre o povo com o
nome de muquirana. De todas estas prisões, porém, a que mais me impressionou,
assim como impressionou a todo o mundo, foi a de um padre já velho e que se
chama o Padre Bravo. E o que mais é, que até hoje nunca pude saber o pretexto da
sua prisão; e digo pretexto; porque embora liberal e homem de alguma fortuna,
nunca me constou que aquele padre fosse um político exaltado; e em todo o caso,
assim como Beltrão, nunca poderia ser perigoso; visto que longe de ser um desses
homens, que pelo seu caráter, ou pela sua influência pessoal ou política, torna-se
capazes de arrastar ou de concorrer para arrastar o povo a qualquer movimento
revoltoso, aquele padre, pelo contrário, sempre me pareceu um desses seres com-
pletamente apagados ou cuja existência em uma terra quase que não se faz sentir
senão unicamente pela sua presença corporal.
E de fato, nunca me constou, que em coisa alguma ele tivesse representado,
na Campanha, um papel, já não digo importante porém, nem mesmo mais ou menos
saliente. Entretanto, foi também posto em uma daquelas lôbregas e tão repugnantes
enxovias da cadeia; e o que fez dele aos olhos de todos uma vitima ainda muito mais
digna de lástima, é que tendo para ali entrado quando já começava a sofrer mais ou
menos da vista, quando de lá saiu, estava quase inteiramente cego.
Já então o movimento revolucionário estava em toda a sua força; e como
desde que se teve notícia na Campanha da revolução em S. Paulo, imediatamente
haviam começado a afluir para a sede do município alguns contingentes da Guarda
Nacional; e apenas a revolução rebentou também em Minas, esses contingentes
foram de dia em dia e cada vez mais aumentando; o que aconteceu, foi que em
muito pouco tempo muito grande já era a força ali
reunida; até que pela chegada do Tenente Coronel Bezerra com força de linha e
artilharia, aquela cidade veio a converter-se em uma verdadeira praça de guerra.
Eu não me cansarei em descrever o que então se passou durante o tempo em
que ali me conservei. Apenas citarei como mais característicos três únicos fatos.
Destes fatos o primeiro é que receiando-se muito que a qualquer hora a Campanha
fosse assaltada pelos rebeldes que se achavam em Baependi, não havia uma só das
entradas da cidade que não tivesse sempre muito bem guardada; não só para que não
houvesse alguma surpresa por parte dos rebeldes; mas ainda, para que não se pudesse
estabelecer qualquer correspondência entre eles e os liberais que tinham ficado na
cidade; de sorte que não podia sair nem entrar uma só carta fechada ou que não fosse
aberta e lida pelos comandantes e revistado o portador. Entretanto, meu Avô estava
sempre em dia com os movimentos mais importantes dos rebeldes; e o meio que para
isso se empregava era o mais simples possível. Ele possuía, a legua e tanto da cidade,
uma fazenda, que ficava justamente para os lados donde os rebeldes deveriam, vir; e
para indicar o tempo marcado para a sua chegada, por exemplo, o administrador não
precisava mais do que escrever a meu Avô um bilhete como este que eu uma vez
ouvi ler — que ele (o administrador) tinha querido mandar o feijão no dia tal; mas
que tendo-se dado tais e tais inconvenientes, ainda não sabia ao certo quando o
poderia mandar, mas que nunca poderia ser antes de um dia que ele indicou. O
bilhete era lido pelo piquete que vigiava a entrada e por ali passava como um simples
pedaço de papel inteiramente inofensivo ou como o mais inocente de todos
os bilhetes:
Quanto ao segundo dos fatos de que acima falei; vem a ser este — que se
muito numerosas eram com efeito as forças da Campanha, elas, entretanto,
continham em si um elemento de franqueza não só grande mas extremamente
perigoso nos muitos liberais que não tendo ido para o acampamento rebelde, delas
faziam parte como Guarda Nacional.
E disto a melhor prova é a circunstância que se deu em uma ocasião de
rebate, de achar-se em um dos quartéis um grande número de armas, e não sei
mesmo se todas, completamente inutilizadas, por estarem os fundos dos canos
entupidos com sebo.
O terceiro fato finalmente foi um grande rebate a que ali assisti; e que mais
do que um objeto de susto foi antes para mim um verdadeiro objeto de riso; porque
contando-se como certo que os rebeldes já estavam muito perto da cidade,
imediatamente começou não só a manifestar-se por toda a parte essa tão
grande
lufa-lufa que nunca deixa de existir em semelhantes ocasiões; mas ainda desde logo
começou a por-se na rua não só tudo quanto era soldado, mas ainda tudo quanto era
mais ou menos conservador; e pode-se fazer ideia do quanto não me deveria parecer
estranho ou ridículo o ver marchando para combater ou antes como membros
componentes de um exército ativo, já não digo paisanos mais os menos desajeitados,
porém, ainda certos homens que eu mais ou menos conhecia e cuja vida e profissão
pareciam destiná-los para tudo quanto se quisesse, menos entretanto para a guerra;
como por exemplo, um médico muito velho que ali havia e que se chamava Midões,
o qual nem mesmo andar sabia com bastante firmeza, nunca saia de casa senão por
algum motivo muito grave ou muito solene ou então para visitar os seus doentes; e
nunca o fazia senão montado em um cavalo que não andava senão a passo e ainda
assim com o pagem bem perto de si. Pois até esse, também saiu: e como o cavalo
estava um pouco atordoado com aquela tão grande novidade para ele; é muito de
supor, que apenas se disparasse o primeiro tiro, fosse aquele valente cavaleiro o
primeiro corpo contundido que se tivesse de carregar. De todos esses guerreiros,
porém, que iam antes servir de entulho do que mesmo de auxílio ou de força,
nenhum me parece mais exótico ou mais digno de riso do que um vizinho do meu
Avô, chamado Antônio Luiz da Silva; homem já velho, e que nunca eu tinha visto
sair de casa ou detrás do balcão; e que nesse dia também saiu para o combate; e que
para ele saiu armado, não de espingarda e nem mesmo de algum velho mosquete;
porém de uma mangoara de peroba, que senão era das mais grossas, era pelo menos
tão comprida que lhe passava um ou dois palmos acima da cabeça. Eu não sei o mo-
tivo, por que ele e pôs assim em campo; a sua intenção, porém, me pareceu que era a
de guardar o mais que pudesse a retaguarda, porque saindo de casa com um olhar e
jeitos extremamente esquerdos, como os de quem ia pela primeira vez entrar em um
baile e sem saber dançar, em vez de dirigir-se para a frente, parece que todo o seu
esforço era o de dirfarçar-se por trás de algum grupo mais espesso; mas para sua
desgraça, era essa justamente a ocasião em que o Tenente Coronel Bezerra vinha
descendo a rua com a sua gente formada; e ao vê-lo assim como que hesitante sobre
qual a posição ou antes qual a direção que deveria tomar, com uma voz de Stentor e
com toda a bruscaria militar foi logo gritando para ele — Paisanos à frente! E o
pobre homem com a sua franqueza e a sua mangoara foi marchando para frente.
Entretanto, este rebate, assim como tantos outros que se haviam dado e que
ainda depois se deram, foram todos inteiramente falsos; e eu vou dizer porque.
Já disse, ainda há pouco, como apenas se divulgou na Campanha a notícia da
revolução cm S. Paulo, os conservadores daquele lugar se puseram a reunir gente
para combatê-la. Pois agora acrescentarei, que os liberais do Sul de Minas ,não
foram em nada menos pressurosos; pois que tendo rebentado a revolução em
Barbacena a 10 de junho, já a 20 desse mesmo mês José Feliciano dirigiu a Gabriel
Francisco Junqueira um ofício, em que, agradecendo a este e a outros cidadãos as
felicitações que lhe haviam dirigido em seu nome e como representantes de
novecentas pessoas reunidas no arraial de S. Tomé das Letras para o fim de susten-
tarem a sua autoridade e de marcharem para qualquer ponto onde necessário tosse o
emprego da força armada para fazer respeitá--la, mostrava a sua grande satisfação
por ver o seu procedimento aprovado por uma parte tão considerável de mineiros
recomendáveis por suas luzes, fortuna, empregos e tantas outras brilhantes
qualidades; e terminava declarando que aceitava o oferecimento e que em tempo
oportuno a ele recorreria.
Logo que estas forças se acharam reunidas e que se viram em estado de se
porem em campo, sem mais demora, se dirigiram para Baependi; cercaram a vila; e
antes do fira de junho dela se apoderaram em virtude de uma capitulação, era que os
legalistas, rendendo-se e entregando as armas, se comprometiam a reconhecer a
autoridade do novo presidente interino uma vez que estivesse apoiada na maioria da
província; concordavam na suspensão da lei das reformas e no restabelecimento dos
códigos e mais leis por aquela prejudicados; e finalmente se estipulava que se
entregariam de parte a parte os presos por motivos políticos, e que se por ventura o
armamento do município fosse requisitado para outro ponto, nunca deixaria de
pertencer àquele mesmo município. Esta capitulação foi assinada pelos chefes dos
dois lados; e que eram os seguintes: Joaquim Inácio de Melo, Joaquim Nogueira de
Sá, José Ribeiro da Luz, Manoel Pereira de Barros, Honório Roiz de Faria e Castro
(juiz de direito rebelado) Gabriel Francisco Junqueira, Domingos Teodoro de
Azevedo e Paiva, Zeferino José dos Santos e Joaquim Fabiano Alves.
Ora, como ao mesmo tempo que isto acontecia, tinha o município de
Aiuruoca igualmente aderido à insurreição; o primeiro e o maior desejo dos
rebeldes, foi o de marcharem para o sul afim de tomarem a Campanha. Tudo, porém,
nesta revolução caminhou tão rapidamente, que apenas os rebeldes se apoderaram de
Baependi, imediatamente souberam, que, além de se estarem reunindo forças mais
ou menos numerosas na freguesia de Pouso Alegre, que foi sempre muito
conservadora e que fica nos limites desta província com a do Rio de Janeiro,
ainda da Corte ou desta última
província marchavam outras forças para se reunirem àquelas e juntas recuperarem
Baependi. Elas, pois se conservaram nesta vila e escreveram a José Feliciano, não só
comunicando a posição em que se achavam; mas ainda pedindo-lhe, que a este
respeito lhes desse as suas ordens ou conselho. Antes, porém, que estas ordens
chegassem, eles foram atacados por força da Campanha e ao mesmo tempo pelas do
Pouso Alegre e do Rio que já haviam chegado. Houve então entre os rebeldes e as
forças que vinham da Campanha um combate na ponte do rio Baependi ou no sítio
do Ribeirão; combate este, que não teve grande importância; porque ambas as forças
ficaram, por assim dizer, intactas, e ambas se consideraram ou diziam terem
sido vencedoras.
Se, porém, como disse, as forças rebeldes se achavam intactas a situação
tinha inteiramente mudado; porque, ao passo que Baependi era cercada pelas forças
da Campanha e pelas que vinham do lado do Rio de Janeiro, pelo lado de Barbacena,
a legalidade igualmente avançava e a rebelião ia se retirando para o norte.
Nestas circunstâncias, os chefes entenderam, que persistir por mais tempo,
seria aumentar os sacrifícios já feitos e já tão grandes, sem a menor esperança de
bom êxito; e, em consequência, depois de terem abandonado Baependi, acabaram
por dispersa-rem-se.
CAPITULO XVI
O pai do autor toma parte na revolução. Sua família se retira da
Campanha. Prisão, processo e julgamento dos revolucionários. Episódios
do processo. Abrandamento dos ódios políticos e a nobreza do caráter
mineiro. Teófilo Ottoni é absolvido e, quando penetra no recinto do
tribunal, os jurados se levantam para
recebê-lo.
Quando meu pai foi reunir-se às forças rebeldes que se estavam
formando nas Galinhas, meus tios paternos, que eram conservadores,
ficaram com isso extremamente incomodados e aborrecidos; e como o chefe
dessas forças era nosso parente, meu tio José dos Reis não hesitou em ir até
lá afim de ver se convencia meu pai a voltar e se o trazia consigo.
Ele, pois, partiu sem mais demora para o acampamento rebelde; mas
para que pudesse ali chegar sem muito grande perigo, quando foi se
aproximando do acampamento, ele, que era legalista e um legalista de
alguma importância, não teve remédio, senão tornar-se e apresentar-se ali
com as divisas de que os rebeldes se serviam e que eram duas tiras de baeta
uma verde e outra amarela que se amarravam a um dos braços.
Já um pouco antes da revolução, tinha-se introduzido o costume,
entre os liberais mais exaltados, de trazerem no chapéu o tope nacional ou
uma rodela de contas verdes com uma estrela de contas amarelas no centro.
Os rebeldes, porém, não possuindo os meios de terem esses topes com
facilidade e nem talvez mesmo chapéus bastante apropriados para pô-los,
foram forçados a escolher algum outro meio que os distinguisse; e
adaptaram aquele costume das tiras no braço que era muito mais simples e
estava no alcance de todos.
Por um desses felizes acasos, o piquete que vigiava o acampamento
quando meu tio ali chegou, era composto de meu pai que era então major
ajudante de ordens da guarda nacional da Campanha, do tenente Joaquim
Xavier de Araújo Filho, que pouco depois foi nomeado pelo presidente
rebelde comandante superior
da mesma guarda, e de um terceiro cujo nome agora não me ocorre mas que era
também um homem de mais ou menos importância.
Eu faço todas estas especificações, para que se veja qual era a qualidade de
gente de que se compunha o exército rebelde; o que não obstou que então o governo
fizesse publicar que era ele composto unicamente de gente ordinária que longe de
obedecer a verdadeiras convicções políticas, não tinha na realidade outro qualquer
móvel senão a rapina. Meu tio demorou-se ali com meu pai dois ou três dias, mas
não conseguiu convencê-lo; e voltou de novo para a Campanha, sem que tivesse
podido, como contava, arrastá-lo do meio dos seus companheiros.
A partida de meu pai para as Galinhas foi, como a de todos os outros
rebeldes da Campanha, uma espécie de fuga. Ele, pois, partiu tão rapidamente, que
nada providenciou sobre a família que deixava; e uma vez que estávamos na
Campanha, aí continuamos a ficar. Meu avô, porém, era vigiado como um homem
suspeito; as paixões se exarcebavam cada vez mais; a todo o momento se esperava
um ataque da Campanha pelos rebeldes; e ele entendeu, que a nossa permanência
naquela cidade era talvez inconveniente senão perigosa.
Ora, entre as influências do partido conservador, figuravam meu tio Estêvão
Ribeiro de Rezende e esse meu tio José dos Reis Silva Rezende de que acabei de
falar; e meu avô achou que seria muito conveniente que minha mãe se retirasse
comigo para a fazenda daqueles meus tios, à cuja sombra nós ficaríamos na mais
completa segurança.
Minha mãe, portanto, tendo ajuntado em uma grande caixa tudo quanto
possuíamos de objetos mais preciosos, enterrou a caixa em um quarto térreo que
havia em nossa casa, para que esses objetos aos menos pudessem escapar ao
sequestro ou confisco que um aviso do governo havia decretado contra os rebeldes;
meu tio José nos veio buscar, e nós partimos. Mas em vez de irmos para a fazenda
do Bom Jardim onde moravam aqueles meus tios, nós ficamos para aquém meia
légua, na fazenda da Estiva, pertencente ao alferes Tomé Inácio Valim, que era
casado com minha tia, D. Justiniana de Rezende.
Isto, porém, não impedia, que uma ou outra vez eu fosse passear àquela
fazenda do Bom Jardim. E como a fazenda ficava quase à margem do Rio Verde, e o
rio não tinha ponte; e eu sempre muito gostei do mar e dos rios, o meu maior
divertimento era sempre aquele mesmo rio.
Assim, se alguém do outro lado gritava pedindo passagem, que, segundo o
costume, imediatamente se lhe ia dar, eu nunca deixava de ir assistir a dá-la,
unicamente para ter o gosto de ver a canoa ir e voltar, e muito mais ainda, para ver
puxados pelas rédeas e metidos por baixo da canoa, os cavalos atravessarem o rio
sempre a nadar e sempre a bufar.
Ou então, como bem junto do rio havia uma árvore bastante copada, onde
quase sempre se encontrava em bandos um grande número de pombas trocais, era
ali que eu ia passar quase todas as tardes com meu tio Chagas, que eu muito
estimava e que por ser ainda muito moço ali morava com os dois mais velhos.
E para que ali tivéssemos uma excelente caçada, nada mais era preciso do
que arranjar-se debaixo da árvore uma espécie de tolda ou de esconderijo com ramos
porque, assim ocultos debaixo da tolda, ele ia atirando nas pombas que ali
chegavam; e como pouco se esperava e o tiro era certo, quase que todo o trabalho se
reduzia a servir-se da canoa, que ali se tinha à mão, para se tirarem do rio as
pombas que nele ãs mais das vezes caíam.
Eu não estou bem certo sobre o tempo que ficamos na fazenda da Estiva;
mas aquilo de que perfeitamente me recordo, é que durante todo o tempo que ali
estivemos, eu sempre tive, como obrigação que me foi imposta por minha mãe, a
tarefa de rezar todos os dias uma oração muito comprida que vinha nas Horas
Marianas com o título, se não me engano, de — Oração utilíssima e de prodigiosa
eficácia; — mas que era geralmente conhecida pelo simples nome de Oração
prodigiosa. E devo dizer, que não deixei um só dia de cumprir aquela minha
obrigação, e que muito longe de pesar-me, pelo contrário, não só a cumpria com
gosto, mas ainda com muito grande devoção.
Para que, porém, não se me tome por melhor do que realmente sou, e passe
talvez pelo mais dócil e obediente dos filhos, julgo do meu dever fazer aqui uma
observação; e é, que a ordem que minha mãe me havia dado e que muito me havia
recomendado, era, que, no lugar próprio, que nas Horas vinha marcado, para se pedir
aquilo que se desejava, eu pedisse para que a guerra se acabasse; entretanto que em
vez disso, o que eu pedia com todas as forças da mais ardente e mais sincera
devoção, era que a rebelião saísse triunfante ou que meu pai vencesse.
Este fato que mostra qual era então a natureza do meu caráter político, serve,
ao mesmo tempo, para explicar uma tal ou qual contradição que se pode descobrir e
que eu mesmo não deixo de perceber no meu atual modo de pensar.
Ora, essa contradição vem a ser a seguinte — que, sendo desde muito
desabusado, contudo, desde o momento em que sou estimulado por uma paixão
realmente forte, desde logo muito bem percebo que o meu antigo natural volta a
todo o galope; e, embora com um certo pesar, sou forçado a reconhecer, que não só
aquelas minhas boas qualidades estão muito longe de serem fatos permanentes ou
positivos; mas que sendo elas pelo contrário, simples frutos apenas da mais
completa apatia; por mais que eu queira ou por mais que eu faça, hei de ser sempre
o que sempre fui; ou em outros termos, que um homem que em menino, pensava e
obrava por aquela maneira e que depois de moço, entre os heróis da revolução
francesa achava Saint Just como o mais digno do seu apreço e até mesmo do seu
maior entusiasmo, um tal homem poderá ser tudo quanto quiser, mas por mais bem
intencionado que se esforce, nunca deixará de ser um verdadeiro fanático metido
apenas na pele de um céptico.
Quando as forças rebeldes se dissolveram no município de Baependi, meu
pai, fazendo uma pequena volta em direção ao município de Três Pontas, procurou a
fazenda do Tacho que ficava na freguesia da atual cidade da Varginha e que
pertencia ao capitão Antônio José Teixeira, que era um dos chefes conservadores
daquele município e que era casado com minha tia D. Maria Benedita.
Logo que meu pai ali chegou, eu fui com minha mãe encontrá-lo. Mas
muito pouco tempo nos demoramos naquela fazenda; porque tendo se assentado,
que o que havia de melhor a fazer, era que meu pai se entregasse voluntariamente à
prisão, nós viemos pouco depois para a fazenda do Bom Jardim.
Como, porém, não convinha que meu pai fosse preso, sem que primeiro se
dessem uns certos passos que se julgavam necessários, enquanto minha mãe e meus
tios iam à Campanha para esse fim, estes mandaram fazer um pequeno rancho em
um dos matos da fazenda, e eu fui ali ficar com meu pai durante alguns dias, não
indo lá ninguém senão uma pessoa de toda a confiança que era a que tinha feito o
rancho e que ali nos levava a comida.
Pareceria que muito pesada e muito aborrecida me deveria ser uma
semelhante vida; e, no entretanto, eu não tive um só momento de enfastiar-me, não
só porque a companhia de meu pai me era sempre agradável, mas ainda porque,
receando ele que aquela existência tão solitária e tão restrita acabasse por con-
trariar-me ou entristecer-me, procurava distrair-me por todos os modos ao seu
alcance; e, apesar de todas as suas inquietações, durante quase que todo o dia outra
coisa maior não fazia do que
arranjar brinquedos para mim, ou de estar armando laços e mun-déos para que
eu caçasse passarinhos.
Saímos enfim dali e meu pai foi recolher-se à cadeia da Campanha, onde lhe
continuei a fazer companhia durante o dia e algumas vezes também dormia.
Aquela prisão, entretanto, nada tinha de mortificante e nem mesmo de
desagradável, porque, tendo a vitória abrandado a fúria dos inimigos, em vez das
imundas enxovias para as quais antes tinha descido tanta gente boa, os rebeldes
tinham agora por prisão a sala livre e até mesmo a própria sala da câmara.
E como muitos eram os presos e todos pertencentes às melhores famílias do
município, não só a cadeia estava sempre cheia de visitas e distrações nunca
faltavam, mas ainda gozavam todos de uma excelente mesa, visto que ia para cada
preso a sua bandeja de comida que cada uma das famílias se esmerava em que fosse
boa, e fazendo-se de tudo uma só mesa, comiam todos em comum.
Ultimamente até se consentiu que as próprias mulheres dos presos lá fossem
dormir; de sorte que se não fosse a privação de liberdade e os receios do resultado
final dos processos, bem se poderia dizer que, em vez de prisão, era antes aquilo
uma verdadeira festa.
E, de fato, aqueles receios não deixavam de ter um tal ou qual fundamento,
porque, sendo a pena muito grave, nenhum dos réus que ali se achavam tinha,
entretanto, completa segurança ou uma perfeita certeza de que ela não lhe fosse
imposta. Um deles, porém, era o tenente Antônio Ribeiro da Silva, tio do atual
senador e conselheiro Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, e aquele Ribeiro era amigo
do tenentc-coronel Lourenço Xavier da Veiga, pai do atual senador Evaristo
Ferreira da Veiga.
Ora, embora aquele tenente-coronel fosse um dos conservadores mais
exaltados e fosse, por isso, mais ou menos odiado por quase todos os liberais, soube-
se, com grande surpresa, que ele se interessava por aquele Ribeiro e que estava
trabalhando para livrá-lo. E o que é certo é que, ou fosse levado por aquela amizade,
ou pela esperança talvez de angariar para o partido conservador aquele rebelde e
com ele parte da família, que era toda muito liberal, ou, enfim, pelos dois motivos
ao mesmo tempo, tratou de conseguir que fosse Ribeiro despronunciado e empregou
para isso todos os meios. (*)
NOTA: O suposto exaltamento político da pessoa a quem se refere o ilustrado escritor,
outra coisa não era senão sinceridade c franqueza de convicções. Sensível ao infortúnio
dos próprios adversários, o finado
Ora, em 1842, o juiz de direito da comarca do Rio Verde era o doutor e
depois desembargador Tristão Antônio de Alvarenga, e como este era casado na
família dos Junqueiras que havia toda se envolvido na revolução; e como, por outro
lado, durante toda a sua vida foi sempre um homem muito moderado e um juiz
extremamente benévolo, parece que o protetor do Ribeiro não encontrou grande
dificuldade para livrá-lo, e Ribeiro foi, com efeito, despronunciado.
Aberto, pois, este primeiro exemplo e estando todos os réus nas mesmas
condições, e uma vez que o juiz era um homem realmente sério, a lógica era fatal:
todos deviam ser despronunciados e todos o foram com efeito.
Entretanto, a esta. regra quase que se deu uma exceção, e esta exceção
seria constituída por meu pai.
E eis aqui como a coisa aconteceu. Antes de 1844 não me consta que jamais
houvesse na Campanha um só advogado formado; e em 1842, além de alguns
poucos solicitadores, ali só havia dois ou três rábulas, todos eles mais ou menos
ignorantes. Um destes, que foi o advogado de meu pai, chamava-se Caetano Alves
de Magalhães. Era um homem alto, membrudo, que tinha um ou ambos os olhos
saltados para fora; que falava muito e que vivia sempre a dizer — que de fazer mal
ainda ninguém havia se arrependido e que de se fazer bem se arrependia sempre, —
máxima esta que, embora menos absurda do que à primeira vista parece, ele,
entretanto, muito pouco punha em prática.
Se, porém, Caetano Alves não era um mau homem, era, em compensação,
um péssimo advogado; e se durante toda a sua vida, que já não era breve, nunca
tinha podido compreender o Pereira e Sousa, muito menos poderia em alguns meses
compreender a lei da reforma, que só então se principiava a executar. 0 advogado
tenente-coronel Lourenço Xavier da Veiga, nesse mesmo movimento revolucionário de 1842,
pode ser útil a diversos dos rebeldes de então, esquecendo generosamente o ódio politico que
eles com especialidade lhe votavam, quer pela firmeza de sua dedicação à causa da legalidade,
quer pela circunstância de ser irmão do presidente da província, conselheiro Bernardo Jacinto
da Veiga, contra quem — compreende-se bem — mais se desencadeavam as cóleras
revolucionárias.
O único fato que lembra o ilustrado autor das Recordações, com referência ao finado
tenente-coronel Lourenço Xavier da Veiga, longe de confirmar seu suposto exaltamento, é
prova da magnanimidade de sua alma.
Assinalando Isto, por simples sentimento de justiça e não por mera homenagem de
amor filial, apraz-nos crer que em nada contrariamos ao distinto Sr. Dr. Paula Rezende.
(Os redatores da Província)
de meu pai, portanto, deixou que se passasse o prazo que o regulamento marcava
para a interposição do recurso do despacho do juiz municipal que o havia
pronunciado, e meu pai estava irremediavelmente condenado a ficar na cadeia e a
ter de ser julgado pelo júri, quando por um meio, que pouco importa saber, os autos
subiram ao juiz de direito, e meu pai foi também despro-nunciado.
E como tudo isto se fez e tudo isto se alcançou, sem que houvesse um só
empregado talvez que não fosse conservador; eu quero assinalar aqui um fato que,
muito honrando aos então conservadores de Minas, constitue, ao mesmo tempo, um
dos mais brilhantes padrões de glória para o caráter mineiro.
Só quem viveu naquele tempo é que pode fazer uma verdadeira ideia dos
ódios e da exaltação que dividia os partidos. Nem para mostrar é preciso mais do
que o dizer •— que um liberal, em regra, não comprava na loja de um conservador,
e vice-versa; que cada um dos partidos tinha o seu médico, a sua botica e tudo o
mais por esta forma; e que até na própria igreja era muito raro se confundissem.
Pois bem; apenas os rebeldes foram vencidos, o ódio por toda a parte e como
que por encanto, cedeu imediatamente o lugar à compaixão ou antes à generosidade,
e aqueles que ainda na véspera não recuavam diante de medidas às vezes cruéis ou
quase atrozes, de repente serenaram.
Não pretendo com isto dizer que os ressentimentos desapareceram; porque
tais ressentimentos não poderiam ser tão cedo, já não digo esquecidos, mas nem
sequer perdoados; porém, o que quero dizer e o que digo é que, à exceção ou a des-
peito de algumas dessas almas baixas ou mesquinhamente odientas que nunca
deixam de existir em todos os tempos e em todos os lugares, os rebeldes não
acharam em parte alguma de Minas aquilo que é tão comum em quase todas as
guerras civis, isto é, as denunciações infames ou as perseguições puramente
acintosas; porém que por toda a parte muito mais ainda lamentados do que mesmo
odiados nem um talvez houve que não achasse no meio das suas desgraças um ou
muitos proteto-res no próprio seio do partido contrário.
O próprio Teófilo Ottoni, o incendiário, o republicano, o mais odiado de
todos eles, e que por ordem do governo teve de ser julgado em um júri, onde a sua
condenação parecia inteiramente certa, nem esse foi condenado; mas, pelo contrário,
como se a província quisesse protestar contra este espírito de perseguição que se
levantava contra ele, Teófilo Ottoni .achava
no próprio tribunal que o devia condenar um simples teatro apenas para a
maior de todas as suas glórias; pois que aqueles que se haviam escolhido
para seus algozes, nem seus juízes querem ser — convertem-se em
admiradores. E ele, o réprobo, ele que por toda a parte se mandava apregoar
como digno não só de pena, mas ainda da mais tremenda e eterna maldição,
quando, infamado sim, mas altivo e nobre, quando é nobre e altiva a
liberdade, penetra no tribunal; o tribunal (coisa surpreendente e nunca vista
talvez!), como se fosse movido por uma única e irresistível mola, em
peso se levanta para receber o réu.
Ora, quando os juízes se levantam diante daqueles que têm de
julgar, uma condenação é moralmente impossível.
Teófilo Ottoni foi, com efeito, absolvido, e a sua absolvição foi
recebida por toda a província como um motivo de regozijo público.
CAPÍTULO XVII
O autor é acometido de uma moléstia grave. O seu estado se torna
melindroso. O carcereiro se condói das aflições de seu pai e permite que
este visite o filho durante a noite. Regresso à cadeia. Absolvição definitiva.
Começam os embaraços financeiros. Retrato físico e moral do avô do
autor.
Nos últimos tempos da prisão de meu pai, eu fui como mais de uma
vez já havia acontecido, atacado de uma forte febre. O meu estado agravou-
se e pouco depois tornou-se mais ou menos melindroso; e meu pai que me
queria com um desses afetos que são mais próprios de mãe do que de pai, e
que entretanto ali tão perto não me podia ver, passou pelos transes da mais
aflitiva agonia, até que o carcereiro que o conhecia e que bem sabia que
tudo poderia fazer menos de faltar à honra, condoeu-se da sua dor e abriu-
lhe as portas da prisão. Ele, pois, uma vez veio ver-me; e antes que o dia
clareasse, voltou de novo para a cadeia. Felizmente a minha doença foi
rápida; e poucos dias depois daquela visita, meu pai estava absolvido e se
recolhia definitivamente ao seu lar doméstico.
O grande perigo estava, pois, superado. Se, porém, para os grandes
sofrimentos por que havia passado o cidadão parecia achar uma espécie de
consolação nesse orgulho ou nesse íntimo contentamento que para uma
alma nobre sempre resulta do cumprimento, doce é certo, mas às vezes tão
custoso, de um dever patriótico; o homem particular ou o pai de família,
começava a sentir-se inquieto e cada vez mais apreensivo por dificuldades
de outra ordem. E com efeito, nós íamos começar a lutar agora com os
embaraços financeiros, ou iamos ter diante de nós, senão calamidades e nem
mesmo um verdadeiro mal estar, essa contrariedade, pelo menos, de uma
fortuna que já não era boa e que se havia tornado agora infinitamente
pior.
Como, porém, esses transtornos de meu pai de alguma sorte se
entrelaçam com os de meu Avô; vou me ocupar aqui de meu Avô e dos
seus negócios, e depois me ocuparei dos de meu pai.
Meu Avô foi um dos homens mais abastados da Campanha; porque tendo,
assim como todos os seus irmãos, muito cedo se dedicado à mineração, dela tirou
desde logo muito grandes resultados; e quando viu que as lavras começavam a
falhar, longe de insistir e persistir, como a maior parte daqueles o fizeram, e que
todos acabaram pobres; ele, pelo contrário, as abandonou e estabeleceu na
Campanha, em ponto grande, uma loja de fazendas secas. Ora meu Avô tinha um
irmão, o Alfredo João Pedro Ferreira Lopes, que nunca se casou e que nunca saiu da
Campanha. Sendo mais velho do que meu Avô, parecia sentir por este uma espécie
de fascinação; pois que nunca o deixou, a ele dedicou toda a sua vida até o seu
último suspiro; e ninguém poderia bem determinar qual a natureza da sua afeição
para com aquele seu irmão mais moço; pois que nessa afeição como que havia tudo
— de pai, de irmão, de filho, e até de um discípulo ou de um empregado
respeitoso e tímido.
Homem de uma simplicidade espartana; sem nenhuma instrução a não ser a
de ler, escrever e contar; esse meu tio, entretanto, tinha nascido com a bossa do
comércio, e ninguém negociava melhor do que ele. Sem nunca sair da loja onde
dormia, senão para ir uma ou outra noite muito raras vezes visitar a minha mãe, ele,
como se fora do comércio fosse ou se considerasse um ser inútil, em nada se
envolvia do que se passava na terra nada sabia ou procurava saber do que ia pelo
mundo; e pode-se dizer, que viveu e morreu dentro da loja. Foi ele, pois, quem
tomou conta desse negócio de meu Avô; e esse negócio tornou-se para este, desde
logo e durante muito tempo, a melhor de todas as minas ou uma fonte constante e
muito abundante de dinheiro. Graças, portanto, a todas estas circunstâncias, meu
Avô, que não tinha nascido para ser pobre e que muito pouco jeito parecia ter para
ajuntar fortuna, pôde muito cedo tornar-se um dos homens mais felizes que tenho
conhecido; porque, graças a ela, ele pôde muito cedo folgadamente entregar-se a
todos os seus gostos favoritos.
Eu conheci uma senhora de idade já muito avançada, que tendo amado a
meu Avô em moço e que tendo muito desejado com ele casar-se; ainda quando a
conheci, não falava daquele seu antigo e tão querido namorado, senão com um
entusiasmo que bem mostrava quantos encantos ele não deveria ter tido.
E de feito, não só conheci alguns outros fatos que pareciam dar a mais
completa razão ao entusiasmo daquela mulher; mas ainda sempre ouvi dizer, que
meu Avô tinha sido realmente um moço muito bonito. Quando o conheci, ele já
tinha mais de quarenta anos. Embora, portanto, tivesse uns olhos grandes
e expressivos, uma testa espaçosa e com grandes entradas, um sorriso entre
benévolo e altivo, e sobretudo uns belíssimos dentes que chegou a
conservar por assim dizer até a sua morte; ele que era de baixa estatura, já
então estava gordo; tinha todas as suas feições mais ou menos cheias; o seu
nariz, ainda que não se pudesse dizer malfeito, ia-se tornando cada vez mais
carnudo; os seus cabelos, que já estavam branqueando e que ele tingia,
avermelhavam-se e endureciam-se; de sorte que já era antes um homem
respeitável do que mesmo belo.
E respeitável ele o era, com efeito, não só pela sua figura, não só
pela sua posição social na Campanha; mas ainda e sobretudo por um certo
conjunto de qualidades morais tão bem combinado, que impondo a estima
não lhe alheiavam as simpatias. Da mais imaculada probidade em todos os
seus negócios, de uma perfeita cortezia no seu trato, havia no fundo do seu
coração uma dose tão real de benevolência, que se pode com razão dizer,
que nunca a ninguém fez mal por ódio, e que o bem, espontânea ou
refletidamente, ele o fez a muitos.
Como político, o que principalmente o caracterizou, foi uma
inabalável firmeza de convicções aliada a uma moderação muito maior
ainda. No meio do mais aceso furor das paixões partidárias, nunca deixou
de pagar aos seus adversários todos os deveres da mais correta civilidade; a
nenhum jamais perseguiu ou ofendeu, e a alguns protegeu e serviu.
Esta sua moderação era tal, que as vezes quase que chegava a
parecer franqueza. E disso foi ele muitas vezes acusado por alguns dos seus
correligionários mais exaltados. Entretanto um fato muito natural e muito
comum e que ao mesmo tempo o honra, é que desses que o acusavam de
tibieza política, todos ou quase todos mudaram de partido ou mais ou
menos transigiram; entretanto que ele viveu quase um século, principiou a
sua vida política muito moço, a principiou como um monarquista liberal
moderado, e quando a terminou, ele era ainda aquilo que durante toda a sua
vida nunca um só momento tinha deixado de ser; isto é, um monarquista
liberal moderado.
A instrução que teve, foi a que de ordinário tinham os moços do seu
tempo, e que era na realidade extremamente limitada. Como, porém, era um
homem bastante inteligente, como nunca deixou de ler jornais, e gostava de
ler também alguns livros, ele acabou por ter uma instrução muito maior do
que a maior parte dos seus antigos conterrâneos.
Entusiasta de todas as grandezas, e não tendo bastante profundeza
de vista para através do brilho descobrir o que havia
de fraco e de desforme no âmago do grande colosso, meu Avô não poderia deixar
de ser um grande entusiasta de Napoleão I. O foi com efeito, e lhe sabia a história,
por assim dizer, de cor e salteada.
Dotado de um temperamento sanguíneo, ele, como de ordinário acontece às
pessoas de um tal temperamento, era extremamente irascível; mas em
comprensação, as suas cóleras, muito pouco duravam e quase nunca passavam do
que geralmente se costuma chamar uma grande trovoada seca.
Duas das suas principais paixões eram — a música e o belo sexo —; e
sendo bom juiz em qualquer destas matérias, não só era um bom músico e até
mesmo um perfeito rabequista; mas ainda durante toda a sua vida nunca deixou de
ser um assíduo galanteador de todas as moças bonitas que encontrava.
É verdade, que uma das regras que professava ou vivia constantemente a
repetir era a seguinte — que não havia moça que se pudesse dizer verdadeiramente
bela ou bonita, se por maiores que fossem os dotes que possuísse, não reunisse as
três seguintes qualidades — de tripada, olhos campeiros e bafo de bezerro —; ou em
outros termos: que tendo um hábito suave e puro como o do bezerro, e que a partir
dos seios tendo unicamente depressões e nada de promontórios, não tivesse ainda
um olhar capaz de abalar e comover, ou que em vez desses olhos que nada dizem e
que, mais parecem olhos de peixe morto, não tivesse, pelo contrário, uns desses
olhos que pela sua cintilação constante parecem estar constantemente a nos titilar o
sentimento ou parecem estar sempre a tocar campanhia cujos sons vêm repercutir
nos nossos pobres corações e que aí tão fortemente repercutem que os fazem
dançar sem querer.
Isto é, o que ele dizia. Mas na prática era um frei Tomás, como qualquer
outro; pois aquilo que nunca deixei de observar, é que só havia uma coisa que lhe
fazia tirar os olhos de uma mulher; e era que fosse velha ou inteiramente
feia.
Já ele tinha muito mais de 80 anos, quando veio à Leopoldina, unicamente
para ver-me; pois que sempre fui, como já disse, o seu neto de predileção, ou como
ele dizia, o seu orgulho. Nessa ocasião lhe perguntei, se ainda gostava da música e
das moças; e a sua resposta foi esta —• que não só ainda gostava, que não só lhe
parecia impossível que deixasse jamais de gostar, mas que até piamente acreditava,
que se estando já com a vela na mão para morrer, pudesse ter diante dos seus olhos
uma bonita moça e ao mesmo tempo ouvindo uma boa peça de música,
morreria sem dor e sem pesar; porque inteiramente alegre e consolado, suporia
que já estava entrando no paraíso.
E eu acredito, que o que dizia era uma pura verdade; porque não é de hoje
que eu tenho observado que não há ocasião mais propícia para bem se conhecer a
paixão predominante de qualquer pessoa como é o momento em que essa pessoa se
acha possuída de um pesar, de uma alegria ou de outra qualquer paixão que a ponha
um pouco fora das suas guardas; e um dos primeiros fatos que me sugeriu esta
observação foi meu Avô quem m'o forneceu em uma viagem que fizemos juntos à
atual cidade de Alienas.
Tendo-se feito ali em 1856 uma festa, nós, a convite de alguns parentes
que tínhamos lá, fomos também a ela assistir.
A viagem fez-se em três dias; porque dizia meu Avô que uma viagem, para
ser agradável, é preciso que se faça sem pressa e sem estômago vazio; e por
consequência, embora as marchas fossem muito curtas e não se saísse senão depois
do almoço, ele nunca deixou de parar no caminho para descansar à sombra de
alguma copada árvore ou para junto de algum límpido córrego fazer as honras à
matolotagem. Na volta, porém, não sei porque circunstância, perdeu-se ou esgotou-
se a matolotagcm no segundo dia; de sorte que meu Avô com frequência se
queixava e tornava-se cada vez mais de mau humor.
Eu procurava consolá-lo, fazendo-lhe ver que o nosso pouso não deveria
estar muito longe, e que deveria até pelo contrário, já estar muito perto; pois que
devendo ser a nossa marcha quando muito de cinco léguas, nós com certeza já
tínhamos andado mais de quatro.
Mas essa quinta légua que faltava é que nunca se preenchia; até que o
pagem nos disse, que se havia equivocado em uma encruzilhada que tínhamos
deixado lá muito para trás e que estávamos seguindo um caminho errado.
0 furor de meu Avô ao ouvir uma semelhante notícia foi tal, que as suas
feições se alteraram, que ele parecia um homem ameaçado de iminente congestão, e
que se ele pudesse, teria ali mesmo comido o pagem vivo. Quando, porém, no
cúmulo da cólera e todo roxo de raiva, ele mais esbravejava; de repente se apresenta
à nossa vista em um cercado que ficava à beira da estrada, uma mocinha, que apesar
de descançada e mal trajada, tinha traços muito lindos; e como se em uma caldeira
de água fervendo se despejasse um ribeirão de água fria; meu Avô volta-se para
mim; e com uma voz completamente plácida ou antes toda cheia da mais admirativa
satisfação me diz: — E que tal! Não é
que é realmente muito bonita! E imediatamente esqueceu-se do pagem, do cansaço
e até do próprio estômago que tão altamente lhe pedia alimento; para só se lembrar
da bonita caipirinha que ele acabava de ver.
Meu Avô, porém, além destas duas paixões pela música e pela beleza
feminil, ainda tinha uma terceira, que lhe foi muito mais prejudicial; e essa terceira
paixão eu chamarei a paixão da grandeza; pois que ele sentia uma espécie de
fascinação por tudo quanto era grande; e ele mesmo nada fazia senão com a
condição de que fosse grande. Assim, se quer fazer uma casa, ele a faz como essa
que eu acima já descrevi; quer dar um baile, ou ele não o fará, ou para esse baile há
de ser convidada a gente toda da cidade; um capitão general ou um alto personagem
que de S. Paulo se dirige para Minas lhe pede que arranje pouso para ele e sua
escolta, meu Avô não só o arranja na Campanha, mas ainda o vai também arranjar
no Rio Verde, e o que faz para uma escolta, chegaria para um exército. E tudo o
mais era assim por este jeito.
Ora, se meu tio João Pedro era o melhor de negociantes, não era nenhum
mágico nem tinha descoberto a pedra filosofal, para que pudesse encher de dinheiro
a um tonel sem fundo. Assim pois, quando chegou o ano de 1843, meu Avô, que,
além de ter formado um filho e educado o outro, ainda tinha casado e dotado um
grande número de filhas; e ao passo que fazia estas e tantas outras despesas mais ou
menos úteis, ao mesmo tempo tinha gasto e esbanjado tantos e tantos mil cruzados
em despesas dispensáveis, e por assim dizer insensatas; acabou por conhecer que a
sua fortuna estava estragada; e para cúmulo de seu caiporismo, em abril desse
mesmo ano faleceu meu tio João Pedro, que tinha sido para ele o seu melhor e
mais seguro esteio.
Ora, meu Avô devia a meu pai alguns contos de réis; este não queria mais
voltar para a fazenda que tinha em Sant'Ana de Sapucaí porque dela se havia
desgostado e não esperava tirar grandes vantagens; e como por outro lado, meu Avô
nunca tinha nascido para ser fazendeiro e possuía uma fazenda denominada Saco e
que ficava légua e meia da Campanha na estrada que dela seguia para as Águas
Virtuosas; concordou-se, que meu pai ficaria com essa fazenda; meu Avô dela lhe
fez venda com toda a escravatura; e meu pai para ali se mudou com toda a família, a
fim de começar de novo uma terceira ou quarta vida!
CAPÍTULO XVIII
A memória do autor. Inaptidão para a escrita e para trabalhos manuais. Na escola
pública da Campanha. Os professores e os alunos de primeiras letras, A palmatória
e o vai de roda. Os exames do fim do ano. O autor é aprovado. Os companheiros da
turma: Evaristo Ferreira da Veiga, Joaquim Nicolau Roiz Gama, Inácio Cândido
Xavier de Araújo e os três Florianos. Algumas palavras sobre os mesmos e a
história triste dos três últimos. O vigário colado de Três Pontas e o anjo de caridade
e humildade que foi D. Viçoso. O enjeitado de S. Gonçalo de Sapucaí e o milagre
da caridade.
A falta de memória foi sempre um mal dos velhos; e eu que desde moço já
vivia a queixar-me da minha, hoje a tenho por um tal feitio, que não só esqueço e
baralho fatos ainda mesmo de datas recentíssimas, mas que algumas vezes chego
mesmo ao ponto de me não ocorrer de repente o nome dos meus próprios filhos.
Entretanto, de quanto até aqui já tenho escrito, o que parece ficar fora de dúvida, é
que fui um menino ou nos meus primeiros tempos, de uma memória muito feliz para
os fatos; porém que ainda hoje me recordo, e mais ou menos claramente, de
circunstâncias que se passaram quando eu mal teria seis, quatro e até três anos.
Direi mesmo que fui em menino bastante vivo; e como os meninos vivos
devem começar a aprender cedo, muito cedo me puseram na escola. A escola,
porém, era pública, os meninos muitos, e os mestres ruins; e se dessa minha ida para
a escola por acaso algum proveito resultou, foi apenas o de não estar em casa a fazer
travessuras; porque eu na escola nada estudava e nem também coisa alguma me
ensinavam; de sorte que tendo ido à Corte, como já contei, ali me puseram em um
colégio que ficava, se não me engano, na rua rio Rosário ou dos Ourives e cujo
diretor se chamava Estrela; e nos dois meses mais ou menos que ali estive, aprendi
muito mais do que teria aprendido na Campanha em um ou dois anos. Devo mesmo
dizer, que os progressos que então fiz, pareceram não só agradar porém ainda sur-
preender um pouco aos meus mestres, menos entretanto na escrita; porque em
toda a .aula só havia um menino muito me-
nor do que eu, com quem eu me animava a apostar sobre escrita, como era o
costume da aula em certos dias; e ainda assim, apenas uma vez consegui empatar;
perdendo desta sorte um grande número de prêmios que se chamavam isenções e
que havia alcançado pelas lições e comportamento.
Felizmente não me fizeram falta; nem de tais isenções jamais precisei; pois
que durante esses poucos meses que eu ali estive, nunca recebi castigo algum.
Nem há nesta minha inaptidão para a escrita coisa alguma que admire;
porque sendo neto de um homem (o meu Avó paterno) que a todos surpreendia pela
sua grande habilidade em mecânica e em quase todos os artefatos que tentava, e
tendo parentes de uma delicadeza de mãos a toda prova; eu, entretanto, sou incapaz
de bem fazer um palito; ou de fazer qualquer coisa, ainda mesmo muito simples,
sem um descaso qualquer, ou sem ofender-me, sem entornar, ou sem
quebrar.
Por isso também, ainda hoje, por maior que seja o meu esforço ou meu
cuidado, não consigo jamais fazer uma letra igual nem uma escrita limpa.
Quando voltei da Corte, é muito provável que sem grande demora eu
entrasse de novo para a escola pública; pois que nunca fui interno de colégio algum;
nem mesmo externamente frequentei outro qualquer a não ser esse de que há pouco
falei; mas todos os meus estudos pode-se dizer, que só foram feitos, on comigo
mesmo ou em aulas públicas.
Eu. porém, já disse, quase que não me lembro do que comigo se passou no
ano de 1840; enquanto estive em Sant'Ana nada absolutamente estudei; e assim não
podendo bem coordenar as minhas ideias sobre a minha estada na escola pública da
Campanha, vou dela me ocupar de um modo muito geral ou vou dar a seu respeito
algumas ideias muito vagas.
A frequência era muito grande; pois que a matrícula era de cento e muito
meninos. O ensino se fazia por classes; e como o mestre não tinha tempo para
pessoalmente se ocupar de tantos meninos, as classes inferiores eram mais ou menos
desprezadas" e bem pouco se adiantavam.
Quanto à matéria do ensino e ao modo como este se dava, era mais ou
menos o que ainda hoje se vê; e por isso sem demorar-me sobre este ponto, só quero
aqui registrar uma novidade que na aula apareceu e que julgo bem pouco
durou.
Essa novidade foi umas espécies de pequenas mesas cercadas de umas
taboletas as quais, cheias de uma areia bem lisa, serviam para nela se escrever ou se
fazerem letras, em lugar de lousas ou papel.
Os alunos eram obrigados a levar os livros e tudo o mais que era necessário
para o ensino; se, porém, eram pobres, tudo tinham da província.
Durante o tempo que frequentei a escola, foi esta algumas vezes regida por
alguns professores que ali muito pouco tempo duravam; e destes, aqueles de que
neste momento apenas me lembro, foram — um meu parente José Brandão que era
irmão daquela minha prima da cidade de Rezende de que já falei; um fulano
Coutinho que os meninos chamavam de Biscoitinho; um João Joaquim Lopes de
Figueiredo (que pertencia a uma família de gente inteligente e toda metida a
advogados) mas que tendo uma noite levado uma grande cossa na rua, no dia
seguinte fez uns versos em que se gabava de ter levado a cossa mas de não ter
largado uns peixes que então trazia; e finalmente o meu futuro colega, e creio que
hoje juiz municipal de Caldas, Bernardo Jacinto da Veiga. Todos estes, porém, e não
sei se ainda mais alguns, creio que não passaram de simples professores interinos ou
talvez mesmo nada mais eram do que simples ajudantes do professor efetivo, que se
não me engano, tinha alguma coisa também de solicitador ou de advogado e que se
chamava José Antônio Mendes.
Este, que mudou-se e que não sei se ainda é vivo, era um homem que tinha
uma das pernas cortadas muito acima do joelho e que andava de muletas; mas com
tanta agilidade, que sem o menor embaraço, mas antes com a maior presteza e
agilidade, subia aquela escada de pedra da cadeia velha da Campanha, de que já tive
ocasião de falar, e que pelo seu comprimento e um pouco também pela sua
ingrimidade, não era das mais fáceis de subir, ainda mesmo para aqueles que podiam
dispor das suas duas pernas; entretanto que ele sabia, quando lhe convinha, ca-
minhar com uma tal subtileza, que mal se podia ouvir o andar ou o batido das
muletas. E ai do menino que se fiava nesse batido traidor! Porque, quando menos
esperava, do corredor que vinha do interior da casa, o mestre fazia na porta uma
meia volta à esquerda, e com um simples lanço de olhos pilhava com a boca na
botija a todos aqueles, que fiados na sua ausência, ti-nham-se posto a conversar ou a
brincar. Então, dirigindo-se para a mesa em que escrevia ou para a poltrona em que
se sentava, tomava a Santa Luzia, que assim se chama a palmatória, segundo penso,
por ser aquela santa a protetora dos olhos e ter
a palmatória nada menos de cinco; e começava o que se poderia chamar um
verdadeiro — vai de roda —; visto que sem pronunciar o nome, mas apenas
indicando com os olhos ou com a mão a vítima que devia caminhar para o sacrifício,
ele nada mais fazia do que dizer — Venha cá senhor mestre! Ou — Venha cá,
senhor mandrião! E assim como o sapo, que atraído pela cobra, embora hesite e
gema, vai indo sempre para adiante até que se lhe enfiam pela boca a dentro; assim
também o pobre menino, ou antes o pobre rapagão, que era assim designado para o
sacrifício, ia para ele sem remédio caminhando; e por mais que chorasse, por mais
que gemesse e por mais que exclamasse — Pelo amor de Deus, senhor professor!
Perdoe-me por esta vez! etc, etc; era tudo tempo perdido; porque os bolos, estes ele
os tinha de levar forçosamente. E que bolos; santo Deus! Estalavam que ainda
mesmo de muito longe se ouviam; e eram às vezes tantos, que quase se lhes perdia a
conta. E se por acaso o supliciado fugia com o corpo ou com a mão, o carrasco lar-
gava a muleta; atirava-se sobre ele; e com ele voltava pelos cabelos para junto da
poltrona.
Nem esta sua irascibilidade e este seu grande rigor, era uma dessas coisas
momentâneas ou mesmo simplesmente intermitentes; mas muito pelo contrário, era
nele um fato tão normal e tão constante, que tendo por hábito estar sempre a mas-
tigar gengibre, diziam os meninos que aquele hábito, ele o tinha contraído, não por
gosto ou por prazer, mas apenas como um meio unicamente de encobrir ou disfarçar
o cheiro do muito álcool de que vivia a saturar-se. Creio, porém, que não havia nisto
verdade e nem sequer a menor sombra de fundamento; porque, embora lhe desse a
lição muito de perto, nunca, entretanto, lhe senti o menor cheiro de aguardente; ao
passo que por outro lado, inteiramente correto no seu vestuário, sempre limpo e
muito bem barbeado, nem ele tinha a fisionomia de um ébrio, nem tão pouco jamais
proferiu na aula uma só frase ou mesmo uma simples palavra, que não pudesse ser
proferida por um professor grave.
Eu entretanto, embora, como todos os mais o temesse como quem teme a
um animal feroz, não só dele não conservo uma lembrança odienta; mas pelo
contrário, sinto para com ele uma espécie de gratidão; pois que naquela aula de mais
de cem alunos e dos quais nenhum talvez tinha menos de dez ou doze anos e alguns
estavam já barbando, só eu e o meu colega e constante companheiro, o atual senador
Evaristo Ferreira da Veiga, éramos os únicos que tinham menos de nove; e aquele
homem tão colérico e que nos assomos da sua cólera se nos afigurava como um
animal ou um verdadeiro monstro, esse homem
era susceptível de compaixão; e se condoía daquelas duas pobres crianças. Nunca, é
certo, ele nos amimou e nem sequer um só momento nos abriu a sempre fechada
cara; mas compreendendo, e compreendendo muito bem, que seria uma verdadeira
crueldade conservar-nos durante cinco ou seis horas sentados e presos àqueles tão
duros bancos de madeira; a uma certa hora do dia ou quando ele julgava oportuno,
mandava-nos que entrássemos para o interior da sua casa; e ali, não só tínhamos a
mais completa liberdade de brincar no pátio e na horta; mas sua mulher, que era
ainda bem moça (assim como ele mesmo não era velho) nunca deixava de nos dar
alguma dessas lam-biscarias que andam sempre pelos armários, como o doce, o
queijo, os biscoitos etc, as quais nos pudessem entreter o estômago até a hora
de nos recolhermos para a casa.
Esta senhora, que tão boa se mostrou assim para conosco, e de cuja figura
meiga (e que então se me representava como a de uma vítima resignada) eu ainda
conservo uma tão perfeita lembrança, creio que se chamava D. Clara.
Ora tratando-me o mestre por esta forma, facilmente se compreende, quanto
deveria ser, senão benigno, pelo menos pouco severo para comigo; sobretudo
quando eu disser que nunca lhe dei o menor motivo para que deixasse de ser mais ou
menos indulgente para comigo. Pois bem; para que se julgue da sua severidade, eu
direi, que ele me deu dois bolos, únicos que me lembro de me haver dado; e vou
dizer qual o motivo desse meu castigo.
Eu já estava estudando gramática; e um dia julgava ter a lição tão sabida,
que não acredita houvesse na classe quem a desse tão bem como eu; e nesse meu
entusiasmo, fui desasada-mente colocar-me na ponta do banco, para ser o primeiro a
dar a lição quando chegasse a hora. A presunção, porém, ou a soberba, é, como
ninguém há que o ignore, a coisa que mais se paga neste mundo; e aquela minha
soberba ou aquela minha presunção, eu ,a tive de pagar naquele mesmo dia; porque
eu sabia, e sabia muito bem como disse a minha lição; mas muito criança ainda e
convivendo com gente mais ou menos ignorante, eu algumas coisas pronunciava
como via essa gente pronunciar; e assim, tendo de repetir um dos exemplos da
gramática, disse duas águias "avoaram", uma do oriente e outra do ocidente —. O
mestre perguntou simplesmente — como? E eu, que estava bem certo do exemplo, e
que não podia ter a menor consciência de o haver errado, o repeti pelo mesmo feitio
com que antes havia feito e tomei os bolos; de sorte que só depois é que pude com
grande admiração descobrir onde era que se escondia o
gato; assim como só depois deles é que fiquei sabendo de duas grandes
verdades que até então absolutamente ignorava; e que são: — 1.º que se há
na gramática uma figura chamada prótese, tal figura não existe, entretanto,
para os meninos que dão lição da mesma gramática; e 2.º que para abater os
soberbos e exaltar os humildes nada mais é necessário do que um simples —
a — posto ou tirado no começo de uma palavra; porque os meus
companheiros pronunciavam o verbo voar exatamente como eu o
pronunciava; mas por presunção ou por soberba, quis ser o primeiro a dar a
lição, e a dei com o acréscimo daquele maldito — a — e fui humilhado;
entretanto que eles a custa dos meus bolos o suprimiram; não os
levaram; e foram exaltados.
Uma das coisas, com que mais o mestre embirrava era com os
cabelos grandes: eu os tinha grandes; e pode-se fazer ideia do susto e aflição
que este fato me causava, sobretudo quando o vi um dia chamar um dos
alunos; meter-lhe a tesoura nos cabelos; e deixar-lhe a cabeça no mais
desgraçado e risível estado. Minha mãe, porém, não quis por modo algum
ceder aos meus rogos para que os cortasse; e eu assim os conservei até sair
da escola. As mães, porém, são sempre assim; e ela foi ainda causa de que
eu levasse um grande pito do mestre no dia do meu último exame e em que
deixei a escola. Havia hora marcada para o exame; e se muitas vezes por
medo do mestre eu quase que não queria esperar o almoço só para não
chegar tarde à aula, quanto mais em um dia de exame! Mas minha mãe
queria por força que eu fosse nesse dia muito bonito; e tanto tempo levou a
embonecar--me, que cheguei muito tarde. Quando virei a esquina da casa
que ficava de fronte da escola e que vi a cara do mestre que parecia estar na
porta à minha espera, quase que me caiu o coração aos pés. Ele, porém,
apenas se contentou com o dizer-me — sempre se espera pela pior figura —
c tratou de dar começo ao exame. Os aprovados ou dados por habilitados
nesse exame, creio que fomos sete; e quando terminaram todos os outros
exames, fomos chamados à mesa onde se achava o delegado literário; e este
que era o Tenente Coronel Antônio José de Melo Trant (oficial reformado
que tinha vindo muito cedo para a Campanha com diversas irmãs, onde
todas ou quase todas se casaram e formaram família) pôs a tiracolo em cada
um dos sete uma fita verde ou azul; e foi assim revestido desta insígnia do
saber e do mérito, que todo ancho e orgulhoso voltei para a casa.
Os meus seis companheiros de aprovação fórum estes: — Evaristo
Ferreira da Veiga, Joaquim Nicolau Roiz Gama, Inácio Cândido Xavier de
Araújo e três irmãos que eram conhecidos por Florianos.
De Evaristo terei de falar mais tarde; porque nascemos quase que no
mesmo dia; juntos estudamos desde as primeiras letras; juntos moramos em
S. Paulo; e juntos nos formamos. Nada, pois, direi sobre ele aqui. Como,
porém, depois do estudo do latim, o destino dos outros se separou
inteiramente do meu, quero como simples lembrança, dizer deles o muito
pouco que sei. Inácio Cândido casou-se para os lados da Cristina, tornou-se
negociante ou fazendeiro e nunca mais nos vimos. Joaquim Nicolau fez o
mesmo; e muito cedo se casou e retirou-se para os lados de S. Paulo, donde,
há pouco, li que sendo subdelegado de polícia, sofreu uma dessas afrontas
que para um homem de brio são mais dolorosas do que a própria morte;
pois que por vingança ou não sei bem por que motivo, o atrairam a uma
casa ou a uma emboscada e aí cruelmente lhe aplicaram todos aqueles
castigos que se tem por costume aplicar aos escravos.
Quanto aos Florianos, ainda os vi uma vez muito tempo depois. Eu
estava em Ouro Preto como juiz de direito interino, quando um dia indo à
cadeia naquela qualidade ou em companhia do chefe de polícia, ali e sem
que de todo o esperasse, encontrei entre o presos aqueles meus três colegas.
Ora naquele tempo, eu estava no começo da vida; ainda não tinha chegado a
essa idade em que bem poucas são as coisas que nos surpreendem ou que
muito vivamente nos afetam; e assim, pode-se muito bem fazer ideia, de
que se passaria no meu espirito e no meu coração, quando ali vi naquela
escura prisão, umida e tão fria, aqueles três moços, que não havia ainda dez
ou doze anos, comigo se sentavam nos mesmos bancos como iguais, todos
alegres e felizes; e que agora naquele lugar tão soturno e triste de novo nos
encontrávamos; eu todo comovido mas como um juiz em frente deles; e
eles como réus pronunciados de um crime infamante, e que com as faces
cobertas de pejo menos talvez pelo crime do que por uma tão cruel e tão
triste humilhação, quase que não sabiam o que deveriam fazer, se me
cumprimentarem ou se esconderem-se. Algum tempo depois passaram
encorrenta-dos pela vila de Queluz quando seguiam para responder ao júri
no foro do crime; e ali pararam. Fazendo por eles o que me era possível
fazer sem faltar aos meus deveres oficiais, eu que era ali juiz municipal, e
ao mesmo tempo delegado de polícia, procurei que se lhes desse um melhor
cômodo na cadeia; mandei-lhes camas e comida; e lá fui vê-los e, de
alguma sorte, consolá-los.
A história destes moços é a seguinte: Seu pai, que se chamava José
Floriano dos Santos, era um filho natural ou um simples enjeitado. Tendo
vindo muito cedo para a Campanha, ali se casou em uma das melhores
famílias do lugar; e ali por
gato; assim como só depois deles é que fiquei sabendo de duas grandes
verdades que até então absolutamente ignorava; e que são: — 1.º que se há
na gramática uma figura chamada prótese, tal figura não existe, entretanto,
para os meninos que dão lição da mesma gramática; e 2.º que para abater os
soberbos e exaltar os humildes nada mais é necessário do que um simples
— a — posto ou tirado no começo de uma palavra; porque os meus
companheiros pronunciavam o verbo voar exatamente como eu o
pronunciava; mas por presunção ou por soberba, quis ser o primeiro a dar a
lição, e a dei com o acréscimo daquele maldito — a — e fui humilhado;
entretanto que eles a custa dos meus bolos o suprimiram; não os
levaram; e foram exaltados.
Uma das coisas, com que mais o mestre embirrava era com os
cabelos grandes: eu os tinha grandes; e pode-se fazer ideia do susto c aflição
que este fato me causava, sobretudo quando o vi um dia chamar um dos
alunos; meter-lhe a tesoura nos cabelos; e deixar-lhe a cabeça no mais
desgraçado e risível estado. Minha mãe, porém, não quis por modo algum
ceder aos meus rogos para que os cortasse; e eu assim os conservei até sair
da escola. As mães, porém, são sempre assim; e ela foi .ainda causa de que
eu levasse um grande pito do mestre no dia do meu último exame e em que
deixei a escola. Havia hora marcada para o exame; e se muitas vezes por
medo do mestre eu quase que não queria esperar o almoço só para não
chegar tarde à aula, quanto mais em um dia de exame! Mas minha mãe
queria por força que eu fosse nesse dia muito bonito; c tanto tempo levou a
embonecar--me, que cheguei muito tarde. Quando virei a esquina da casa
que ficava de fronte da escola e que vi a cara do mestre que parecia estar na
porta à minha espera, quase que me caiu o coração aos pés. Ele, porém,
apenas se contentou com o dizer-me — sempre se espera pela pior figura —
e tratou de dar começo ao exame. Os aprovados ou dados por habilitados
nesse exame, creio que fomos sete; e quando terminaram todos os outros
exames, fomos chamados à mesa onde se achava o delegado literário; e este
que era o Tenente Coronel Antônio José de Melo Trant (oficial reformado
que tinha vindo muito cedo para a Campanha com diversas irmãs, onde
todas ou quase todas se casaram e formaram família) pôs a tiracolo em cada
um dos sete uma fita verde ou azul; e foi assim revestido desta insígnia do
saber e do mérito, que todo ancho e orgulhoso voltei para a casa.
Os meus seis companheiros de aprovação foram estes: — Evaristo
Ferreira da Veiga, Joaquim Nicolau Roiz Gama, Inácio Cândido Xavier de
Araújo e três irmãos que eram conhecidos por Florianos.
De Evaristo terei de falar mais tarde; porque nascemos quase que no
mesmo dia; juntos estudamos desde as primeiras letras; juntos moramos em
S. Paulo; e juntos nos formamos. Nada, pois, direi sobre ele aqui. Como,
porém, depois do estudo do latim, o destino dos outros se separou
inteiramente do meu, quero como simples lembrança, dizer deles o muito
pouco que sei. Inácio Cândido casou-se para os lados da Cristina, tornou-se
negociante ou fazendeiro e nunca mais nos vimos. Joaquim Nicolau fez o
mesmo; e muito cedo se casou e retirou-se para os lados de S. Paulo, donde,
há pouco, li que sendo subdelegado de polícia, sofreu uma dessas afrontas
que para um homem de brio são mais dolorosas do que a própria morte;
pois que por vingança ou não sei bem por que motivo, o atraíram a uma
casa ou a uma emboscada e aí cruelmente lhe aplicaram todos aqueles
castigos que se tem por costume aplicar aos escravos.
Quanto aos Florianos, ainda os vi uma vez muito tempo depois. Eu
estava em Ouro Preto como juiz de direito interino, quando um dia indo à
cadeia naquela qualidade ou em companhia do chefe de polícia, ali e sem
que de todo o esperasse, encontrei entre o presos aqueles meus três colegas.
Ora naquele tempo, eu estava no começo da vida; ainda não tinha chegado a
essa idade em que bem poucas são as coisas que nos surpreendem ou que
muito vivamente nos afetam; e assim, pode-se muito bem fazer ideia, de
que se passaria no meu espírito e no meu coração, quando ali vi naquela
escura prisão, umida e tão fria, aqueles três moços, que não havia ainda dez
ou doze anos, comigo se sentavam nos mesmos bancos como iguais, todos
alegres e felizes; e que agora naquele lugar tão soturno e triste de novo nos
encontravámos; eu todo comovido mas como um juiz em frente deles; e
eles como réus pronunciados de um crime infamante, e que com as faces
cobertas de pejo menos talvez pelo crime do que por uma tão cruel e tão
triste humilhação, quase que não sabiam o que deveriam fazer, se me
cumprimentarem ou se esconderem-se. Algum tempo depois passaram
encorrenta-dos pela vila de Queluz quando seguiam para responder ao júri
no foro do crime; e ali pararam. Fazendo por eles o que me era possível
fazer sem faltar aos meus deveres oficiais, eu que era ali juiz municipal, e
ao mesmo tempo delegado de polícia, procurei que se lhes desse um melhor
cômodo na cadeia; mandei-lhes camas e comida; e lá fui vê-los e, de
alguma sorte, consolá-los.
A história destes moços é a seguinte: Seu pai, que se chamava José
Floriano dos Santos, era um filho natural ou um simples enjeitado. Tendo
vindo muito cedo para a Campanha, ali se casou em uma das melhores
famílias do lugar; e ali por
muito tempo continuou a viver como um pequeno negociante. Extremamente
pacífico e inteiramente inofensivo, passava uma existência muito recolhida no seio
da sua família; e embora de pouca fortuna; parecia ser um homem feliz. De repente,
espa-lhou-se, que a mãe o havia reconhecido e que ele tinha se tornado ou ia se
tornar o senhor de uma fortuna imensa.
Essa fortuna, porém, para nada mais lhe veio servir, senão para se tornar
para ele e para todos os seus a causa dos maiores infortúnios; porque sempre e cada
vez mais atraído por ela sem que nunca a pudesse alcançar, ele acabou afinal por
deixar a família, que se compunha de um grande número de filhas, todas moças e
todas honestíssimas, reduzidas a um tal estado de penúria, que fazia a todos
compaixão; entretanto que os seus três filhos foram acusados do crime de roubo; e
foram parar, como já disse, na cadeia de Ouro Preto. Eu nunca conheci muito bem a
história ou enredo de todo este negócio. Creio, porém, ser mais ou menos isto; a mãe
de José Floriano era uma senhora muito rica do município do Rio Preto; tinha filhos
legítimos que se opuseram ao reconhecimento do natural, ou consumindo o tes-
tamento ou empregando outros quaisquer vícios; e durante toda a sua vida,
Joaquim Floriano nada conseguiu jamais alcançar.
Morto Joaquim Floriano, os seus três filhos, que já tinham chegado à idade
de homens, dirigiram-se para o Rio Preto; e no fim de algum tempo tornaram-se
senhores de algumas letras, de cujo valor não me recordo, mas que era grande; e que
lhes eram passadas pelo irmão ou por um dos irmãos do seu pai. Ao passo, porém,
que eles diziam que aquelas letras eram o resultado de uma transação que haviam
feito com o tio, este pelo seu lado, logo depois de as ter passado, começou a alegar
que as mesmas lhe haviam sido extorquidas por meio de ameaças ou de violência; e
não só tratou de dar logo as mais prontas providências para que não fossem pagas;
mas ainda conseguiu, que perseguidos e bem depressa alcançados, os sobrinhos
fossem presos com as letras que levavam. 0 que depois se seguiu foi o que sempre
acontece em todos os casos como o destes moços: e assim é quase que desnecessário
dizer, que eles tiveram contra si todo o poder e todo o vigor da autoridade pública;
porque ao passo que seu tio dispunha de tudo quanto dá força na sociedade, isto é,
uma grande fortuna, família importante e sobretudo uma grande influência política
com o seu partido de cima; aqueles sobrinhos, pelo contrário, eram tão pobres e
estavam por tal forma abandonados, que talvez não tivessem outro alimento na
cadeia, senão esse, que tão mal preparado e sempre tão magro se ministra ao presos
pobres. Se, porém, os acusadores eram, com efeito, muito ricos e
muito poderosos, não deixavam de ter também os seus inimigos, e inimigos de alta
estofa: a causa dos moços tomou logo um caráter mais ou menos político; eles
tiveram defensores pagos a contos de réis ou que podendo ganhar essas quantias, os
vieram defender de graça; e o resultado de tudo isto, foi que ou eles foram
absolvidos pelo júri ou fugiram da cadeia e não os acharam mais.
Tais foram os meus condiscípulos de primeiras letras que as terminaram ao
mesmo tempo que eu, e que meus condiscípulos ainda continuaram a ser no estudo
de latim, para o qual com alguma diferença de tempo todos entramos no ano
seguinte. Eu, porém, não posso deixar de com eles mencionar um, que pouco antes
havia saido da escola; e que foi ainda o primeiro amigo que tive, e que felizmente
ainda conservo. Naturalmente feito para o bem e para a paz, não havia na escola um
só menino que o não estimasse e não lhe quisesse muito; e como não era inimigo de
ninguém, ele não queria também que os seus amigos fossem inimigos uns dos
outros. Por isso, apenas aparecia uma dessas brigas ou uma dessas inimizades, que
são tão comuns entre os meninos; já se sabia, que ele aí vinha e que se haviam de
fazer as pazes. Para essas pazes, entretanto, se oferecia quase sempre um formidável
obstáculo; e esse obstáculo vinha a ser o seguinte: — que assim como antigamente
não se declarava uma guerra sem umas certas e determinadas formalidades; assim
também, naquele tempo, nunca se declarava uma inimizade, sem que fosse por meio
desta fórmula sacramental — estamos mal; diabo leve quem procurar. Ora isto era
um juramento, e um juramento de tal ordem, que a sua sanção nada mais era do que
um passeio, ou antes, do que uma reclusão para sempre, no inferno. E assim, como
fazer os rapazes, sem incorrer em tão grande perigo? Pois aquele meu coleta e amigo
descobriu um meio facílimo de cortar uma tão grande dificuldade; e esse meio que
era dotado de uma tão grande eficácia, consistia nisto: — os dois inimigos davam as
mãos, e dizendo — desdigo do que disse — diabo leve quem procurar —; o diabo
nada mais tinha que ver com o negócio; e as pazes estavam feitas. Verdade é que
uma tal casuística parece tão fácil e tão acomodatícia, que bem se poderia dizer, que
se seu autor havia nascido para ser ura grande jesuíta; pois que para alcançar o fim
que tinha em vista e que ele julgava bom, não hesitava em aconselhar um perjúrio,
ou que se tirasse ao juramento aquela santa importância que este sempre deveria ter;
o autor, porém, tinha tanta fé, tanta bondade, tanta franqueza e sobretudo uma tão
grande falta de cálculo naquilo que praticava, que ainda mesmo que ele o quisesse,
não poderia ser em tempo algum um bom jesuíta. Ora, este amigo de quem
falo,
muito tempo continuou a viver como um pequeno negociante. Extremamente
pacífico e inteiramente inofensivo, passava uma existência muito recolhida no seio
da sua família; e embora de pouca fortuna; parecia ser um homem feliz. De repente,
espa-lhou-se, que a mãe o havia reconhecido e que ele tinha se tornado ou ia se
tornar o senhor de uma fortuna imensa.
Essa fortuna, porém, para nada mais lhe veio servir, senão para se tornar
para ele e para todos os seus a causa dos maiores infortúnios; porque sempre e cada
vez mais atraído por ela sem que nunca a pudesse alcançar, ele acabou afinal por
deixar a família, que se compunha de um grande número de filhas, todas moças e
todas honestíssimas, reduzidas a um tal estado de penúria, que fazia a todos
compaixão; entretanto que os seus três filhos foram acusados do crime de roubo; e
foram parar, como já disse, na cadeia de Ouro Preto. Eu nunca conheci muito bem a
história ou enredo de todo este negócio. Creio, porém, ser mais ou menos isto; a mãe
de José Floriano era uma senhora muito rica do município do Rio Preto; tinha filhos
legítimos que se opuseram ao reconhecimento do natural, ou consumindo o tes-
tamento ou empregando outros quaisquer vícios; e durante toda a sua vida,
Joaquim Floriano nada conseguiu jamais alcançar.
Morto Joaquim Floriano, os seus três filhos, que já tinham chegado à idade
de homens, dirigiram-se para o Rio Preto; e no fim de algum tempo tornaram-se
senhores de algumas letras, de cujo valor não me recordo, mas que era grande; e que
lhes eram passadas pelo irmão ou por um dos irmãos do seu pai. Ao passo, porém,
que eles diziam que aquelas letras eram o resultado de uma transação que haviam
feito com o tio, este pelo seu lado, logo depois de as ter passado, começou a alegar
que as mesmas lhe haviam sido extorquidas por meio de ameaças ou de violência; e
não só tratou de dar logo as mais prontas providências para que não fossem pagas;
mas ainda conseguiu, que perseguidos e bem depressa alcançados, os sobrinhos
fossem presos com as letras que levavam. O que depois se seguiu foi o que sempre
acontece em todos os casos como o destes moços: e assim é quase que desnecessário
dizer, que eles tiveram contra si todo o poder e todo o vigor da autoridade pública;
porque ao passo que seu tio dispunha de tudo quanto dá força na sociedade, isto é,
uma grande fortuna, família importante e sobretudo uma grande influência política
com o seu partido de cima; aqueles sobrinhos, pelo contrário, eram tão pobres e
estavam por tal forma abandonados, que talvez não tivessem outro alimento na
cadeia, senão esse, que tão mal preparado e sempre tão magro se ministra ao presos
pobres. Se, porém, os acusadores eram, com efeito, muito ricos e
muito poderosos, não deixavam de ter também os seus inimigos, e inimigos de alta
estofa: a causa dos moços tomou logo um caráter mais ou menos político; eles
tiveram defensores pagos a contos de réis ou que podendo ganhar essas quantias, os
vieram defender de graça; e o resultado de tudo isto, foi que ou eles foram
absolvidos pelo júri ou fugiram da cadeia e não os acharam mais.
Tais foram os meus condiscípulos de primeiras letras que as terminaram ao
mesmo tempo que eu, e que meus condiscípulos ainda continuaram a ser no estudo
de latim, para o qual com alguma diferença de tempo todos entramos no ano
seguinte. Eu, porém, não posso deixar de com eles mencionar um, que pouco antes
havia saido da escola; e que foi ainda o primeiro amigo que tive, e que felizmente
ainda conservo. Naturalmente feito para o bem e para a paz, não havia na escola um
só menino que o não estimasse e não lhe quisesse muito; e como não era inimigo de
ninguém, ele não queria também que os seus amigos fossem inimigos uns dos
outros. Por isso, apenas aparecia uma dessas brigas ou uma dessas inimizades, que
são tão comuns entre os meninos; já se sabia, que ele aí vinha e que se haviam de
fazer as pazes. Para essas pazes, entretanto, se oferecia quase sempre um formidável
obstáculo; e esse obstáculo vinha a ser o seguinte: — que assim como antigamente
não se declarava uma guerra sem umas certas e determinadas formalidades; assim
também, naquele tempo, nunca se declarava uma inimizade, sem que fosse por meio
desta fórmula sacramental — estamos mal; diabo leve quem procurar. Ora isto era
um juramento, e um juramento de tal ordem, que a sua sanção nada mais era do que
um passeio, ou antes, do que uma reclusão para sempre, no inferno. E assim, como
fazer os rapazes, sem incorrer em tão grande perigo? Pois aquele meu colega c
amigo descobriu um meio facílimo de cortar uma tão grande dificuldade; e esse meio
que era dotado de uma tão grande eficácia, consistia nisto: — os dois inimigos
davam as mãos, e dizendo — desdigo do que disse — diabo leve quem procurar —;
o diabo nada mais tinha que ver com o negócio; e as pazes estavam feitas. Verdade é
que uma tal casuística parece tão fácil e tão acomodatícia, que bem se poderia dizer,
que se seu autor havia nascido para ser um grande jesuíta; pois que para alcançar o
fim que tinha em vista e que ele julgava bom, não hesitava em aconselhar um
perjúrio, ou que se tirasse ao juramento aquela santa importância que este sempre
deveria ter; o autor, porém, tinha tanta fé, tanta bondade, tanta franqueza e sobretudo
uma tão grande falta de cálculo naquilo que praticava, que ainda mesmo que ele o
quisesse, não poderia ser em tempo algum um bom jesuíta. Ora, este amigo de
quem falo,
chamava-se Francisco de Paula Vitor e é hoje vigário colado da cidade de Três
Pontas. Crioulo retinto e em quase tudo um perfeito tipo da raça, ele nunca foi
bonito; mas verdadeiro coração de ouro, ele tem e sempre teve a sua alma tão branca
quanto é negra a cor da sua pele. Filho natural de uma mulher que nada possuía,
teve a felicidade de achar uma madrinha, que ainda tomava um pouco a sério esse
parentesco espiritual; e que por isso, embora não fosse rica, e levou para sua casa e
lhe deu toda a educação que na Campanha se podia, dar a um menino que não se
destinava aos ofícios mecânicos. Ele pode, desta sorte, aprender as primeiras letras;
o latim, e finalmente a música, da qual se não chegou a saber muito, soube pelo
menos quanto era bastante, para que ele pudesse cantar nas igrejas com a sua voz de
baixo profundo. 0 maior de todos os seus desejos era o de ser padre. Mas como
realizá-lo se ele nada absolutamente tinha e se a sua madrinha que nunca fora rica,
se tornava cada vez mais pobre? Ele, entretanto, esperava e esperava sempre. E com
razão esperava; porque justamente no momento em que acabava o seu latim;
apareceu na Campanha esse anjo de caridade c de humildade que na terra se chamou
D. Antônio Ferreira Viçoso, depois conde da Conceição; alguém lhe falou na
pretensão do pobre crioulo; e tudo imediatamente se arranjou. Fez-se uma pequena
subscrição para que o novo ordenando pudesse partir para Mariana; ele entrou para
o seminário como fâmulo do bispo; e hoje é vigário de Três Pontas, onde muito
cristãmente desempenha os seus deveres paroquiais, ainda ali sobra-lhe tempo para
educar a mocidade em um colégio que fundou e em que também ensina.
Ora, tendo tratado destes meus condiscípulos de primeiras leiras, quero
ainda aqui falar de mais um; não tanto como condiscípulo, porque na escola foi
sempre muito mais atrasado do que eu; mas porque sendo da minha idade mais ou
menos, era um dos poucos meninos que tinham entrada na minha casa para brincar
comigo.
Chamava-se João Amado Damasceno, e além de muito espigado, era muito
claro ou de uma cor um pouco látea e extremamente sardento. Naquele tempo o
número de enjeitados era muito maior do que é hoje; e João Amado tinha sido um
enjeitado. Nunca se lhe conheceu a mãe; mas suspeitou-se, ou antes soube-se, que
ele tinha vindo de S. Gonçalo de Sapucaí, que fica a quatro léguas distante da
Campanha. Ou porque entre os pobres há muito mais caridade do que a que se
encontra entre os ricos. ou por outro qualquer motivo, este menino foi enjeitado
em uma
casinha muito pequena que havia defronte da cadeia velha, e onde moravam
duas irmãs pretas que eram geralmente conhecidas pelo apelido de —
Tigres.
Estas duas negras deveriam ter naquela ocasião muito mais de
quarenta anos e talvez que até de cinquenta; pois o que é certo, é que
quando as conheci já eram ambas velhas e tinham filhas, das quais uma pelo
menos parecia ser mais velha do que minha mãe. Quando aquelas pobres
pretas acharam o menino na porta ou no corredor da sua casa, ficaram
extremamente embaraçadas e sem saber o que fariam daquela desgraçada
criancinha; porque eram, com efeito, muito pobres; e naquele tempo, sendo
quase que inteiramente desconhecida a alimentação artificial, não tinham
meios nem talvez as precisas facilidades para arranjarem-lhe uma ama.
Podiam, é certo, entregar o menino à câmara, que o mandaria criar, mas até
lá, quanto não sofreria aquele pobre coitadinho!
Além disso, a caridade, ou a simples vista daquela criança tão branca
e tão magrinha, tinha feito nascer no coração daquelas pobres mulheres um
amor que nove meses de permanência no seio da sua própria mãe, não lhe
haviam conseguido inspirar. As duas resolveram-se, portanto, a ficar com a
criança, custasse o que custasse; e como a caridade é sempre inventiva; uma
delas mandou buscar uma erva chamada — caruru de porco — ou não sei
qual que se dizia ter a propriedade de chamar o leite aos peitos; com ela foi
repetidas vezes banhando os seios; e tanto fez e tanto insistiu; que o menino
achou o leite que desejava no quase ressequido seio daquela nova Sara.
Depois disto, elas o criaram sempre com muito carinho; o puseram na
escola; o traziam sempre bem trajado quanto lhes permitiam os seus poucos
meios; e ele pelo seu lado, não se mostrou indigno de um tão grande amor e
de tanta dedicação; porque enquanto elas viveram, sempre lhe fez
companhia; e tendo por último se mudado para a cidade de Alfenas ali
acaba de morrer, depois de ter-se feito gente por si mesmo; e gozando,
segundo fui informado, da mais completa estima e da mais constante e
geral simpatia.
chamava-se Francisco de Paula Vitor e é hoje vigário colado da cidade de Três
Pontas. Crioulo retinto e em quase tudo um perfeito tipo da raça, ele nunca foi
bonito; mas verdadeiro coração de ouro, ele tem e sempre teve a sua alma tão branca
quanto é negra a cor da sua pele. Filho natural de uma mulher que nada possuía, teve
a felicidade de achar uma madrinha, que ainda tomava um pouco a sério esse
parentesco espiritual; e que por isso, embora não fosse rica, e levou para sua casa e
lhe deu toda a educação que na Campanha se podia dar a um menino que não se
destinava aos ofícios mecânicos. Ele pode, desta sorte, aprender as primeiras letras;
o latim, e finalmente a música, da qual se não chegou a saber muito, soube pelo
menos quanto era bastante, para que ele pudesse cantar nas igrejas com a sua voz de
baixo profundo. 0 maior de todos os seus desejos era o de ser padre. Mas como
realizá-lo se ele nada absolutamente tinha e se a sua madrinha que nunca fora rica,
se tornava cada vez mais pobre? Ele, entretanto, esperava e esperava sempre. E com
razão esperava; porque justamente no momento em que acabava o sou latim;
apareceu na Campanha esse anjo de caridade e de humildade que na terra se chamou
D. Antônio Ferreira Viçoso, depois conde tia Conceição; alguém lhe falou na
pretensão do pobre crioulo; e tudo imediatamente se arranjou. Fez-se uma pequena
subscrição para que o novo ordenando pudesse partir para Mariana; ele entrou para
o seminário como fâmulo do bispo; o hoje é vigário de Três Pontas, onde muito
cristãmente desempenha os seus deveres paroquiais, ainda ali sobra-lhe tempo para
educar a mocidade em um colégio que fundou e em que também ensina.
Ora, tendo tratado destes meus condiscípulos de primeiras letras, quero
ainda aqui falar de mais um; não tanto como condiscípulo, porque na escola foi
sempre muito mais atrasado do que eu; mas porque sendo da minha idade mais ou
menos, era um dos poucos meninos que tinham entrada na minha casa para brincar
comigo.
Chamava-se João Amado Damasceno, e além de muito espigado, era muito
claro ou de uma cor um pouco látea e extremamente sardento. Naquele tempo o
número de enjeitados era muito maior do que é hoje; e João Amado tinha sido um
enjeitado. Nunca se lhe conheceu a mãe; mas suspeitou-se, ou antes soube-se, que
ele tinha vindo de S. Gonçalo de Sapucaí, que fica a quatro léguas distante da
Campanha. Ou porque entre os pobres há muito mais caridade do que a que se
encontra entre os ricos, ou por outro qualquer motivo, este menino foi enjeitado
em uma
casinha muito pequena que havia defronte da cadeia velha, e onde moravam
duas irmãs pretas que eram geralmente conhecidas pelo apelido de —
Tigres.
Estas duas negras deveriam ter naquela ocasião muito mais de
quarenta anos e talvez que até de cinquenta; pois o que é certo, é que
quando as conheci já eram ambas velhas e tinham filhas, das quais uma pelo
menos parecia ser mais velha do que minha mãe. Quando aquelas pobres
pretas acharam o menino na porta ou no corredor da sua casa, ficaram
extremamente embaraçadas e sem saber o que fariam daquela desgraçada
criancinha; porque eram, com efeito, muito pobres; e naquele tempo, sendo
quase que inteiramente desconhecida a alimentação artificial, não tinham
meios nem talvez as precisas facilidades para arranjarem-lhe uma ama.
Podiam, é certo, entregar o menino à câmara, que o mandaria criar, mas até
lá, quanto não sofreria aquele pobre coitadinho!
Além disso, a caridade, ou a simples vista daquela criança tão branca
e tão magrinha, tinha feito nascer no coração daquelas pobres mulheres um
amor que nove meses de permanência no seio da sua própria mãe, não lhe
haviam conseguido inspirar. As duas resolveram-se, portanto, a ficar com a
criança, custasse o que custasse; e como a caridade é sempre inventiva; uma
delas mandou buscar uma erva chamada — caruru de porco — ou não sei
qual que se dizia ter a propriedade de chamar o leite aos peitos; com ela foi
repetidas vezes banhando os seios; e tanto fez e tanto insistiu; que o menino
achou o leite que desejava no quase ressequido seio daquela nova Sara.
Depois disto, elas o criaram sempre com muito carinho; o puseram na
escola; o traziam sempre bem trajado quanto lhes permitiam os seus poucos
meios; e ele pelo seu lado, não se mostrou indigno de um tão grande amor e
de tanta dedicação; porque enquanto elas viveram, sempre lhe fez
companhia; e tendo por último se mudado para a cidade de Alfenas ali
acaba de morrer, depois de ter-se feito gente por si mesmo; e gozando,
segundo fui informado, da mais completa estima e da mais constante e
geral simpatia.
CAPÍTULO XIX
Vista geral sobre o estado social em 1842. As raças do Brasil e uma profecia do
autor. No começo do século ainda dominava o sentimento aristocrático, As classes
não se misturavam e tinha cada uma a sua vida própria. Igrejas, irmandades e
festas religiosas na Campanha.
O ano de 1842 foi, como já tive ocasião de dizer, extremamente crítico para
a província de Minas e sobretudo para a Campanha; e como desde então os
costumes foram mudando cada vez mais; eu antes de prosseguir cronologicamente
nestas minhas recordações, quero fazer aqui uma espécie de parada; para me ocupar
de certos fatos que não têm uma data certa ou para fazer algumas considerações que
são o resultado de observações múltiplas ou mais ou menos reiteradas; e começarei
por uma espécie de vista geral sobre o estado social daquele tempo ou antes pela
distinção muito acentuada que então se observava entre as diferentes classes da
sociedade. Sem falar nos pequenos contingentes de outras raças que sobretudo
nestes últimos tempos têm entrado para o Brasil, pode-se dizer, que a nossa
população se compõe exclusivamente das três seguintes raças — da branca ou
portuguesa, da vermelha ou indígena e da preta ou africana. A não ser em alguns dos
nossos sertões onde a raça indígena se refugia e vai de dia em dia cada vez mais
diminuindo, pode-se ainda dizer, que esta raça primitiva do nosso país já quase que
não existe; pois que não tendo bastante força para resistir à raça conquistadora, ela
foi desde o princípio sendo por esta completamente absorvida. Das outras duas é a
preta a que mais pura se tem conservado; embora não sejam muito poucos talvez os
tipos mais ou menos puros que ainda existem da raça branca. Destas três raças,
porém, originou-se uma quarta que é formada pelo cruzamento daquelas três; e esta
última raça que em prejuízo das que a formam tende cada vez mais a multiplicar-se
e a estender-se, tem tomado um tão grande desenvolvimento, que já não é de hoje,
que se costuma dizer que não há um só brasileiro que não atire seta ou toque
urucungo; o que quer dizer, que não
talvez um só brasileiro que não tenha em suas veias uma quantidade maior ou menor
de sangue indígena ou de sangue africano. Esta proposição, sobretudo assim tomada
em um sentido tão amplo, ainda está um pouco longe de ser de uma perfeita
exatidão: ela, porém, tende, como eu já disse, a se tornar cada vez mais verdadeira; e
é muito de supor, que no fim de mais alguns séculos a população toda do Brasil não
se componha senão dessa raça única, com as pequenas exceções apenas dos novos
estrangeiros que forem continuando a entrar ou dos seus imediatos descendentes. O
que essa quarta raça terá de fazer ou o que ela dará, só o futuro é que o pode dizer;
mas o que desde já se pode profetizar, é que há de ser uma raça extremamente
inteligente. E se não, corram-se os olhos por toda a nossa sociedade desde o nosso
parlamentar até qualquer banda de música; e observe-sc qual é o papel que por toda
parte representa o homem pardo ou esse elemento misturado.
Tornando-se cada vez mais numerosa e com ela crescendo, ao mesmo tempo
e como que "pari passu", as ideias da mais completa democracia; hoje quase que não
se distingue essa raça misturada da raça superior, isto é, da raça branca: sobretudo,
se se trata de pessoas dinheirosas ou que se acham nas altas cumiadas do poder.
Quando, porém, eu me conheci por gente, ou nos primeiros tempos da nossa vida
independente, as coisas não se passavam por um semelhante modo; mas sendo, pelo
contrário, inteiramente aristocrático o sentimento que então dominava, longe de
haver essa igualdade que vai hoje cada vez mais se estabelecendo, o que se via
então, era que não só as diversas raças nunca se confundiam; mas que muito pelo
em vez disso, cada raça e cada uma das suas classes nunca deixavam de mais ou
menos manter e de conhecer o seu lugar; porque em todas havia gradações; e os
limites que as estabeleciam não podiam ser passados sem a violação da mais
poderosa de todas as leis — a que se funda sobre um prejuízo antigo e mais ou
menos universal. Para dar disto uma ideia, eu vou contar a vida dessas diferentes
classes tal qual eu ainda pude alcançar e conhecer. E como onde a desigualdade
mais depressa desaparece ou menos se observa, é na religião e no prazer; é sobre
estes dois pontos que principalmente insistirei. Assim, eu não direi simplesmente
que não havia naquele tempo uma verdadeira igualdade perante a religião; porque
essa igualdade foi coisa que nunca existiu e que ainda hoje não se observa; mas direi
que naquele tempo a desigualdade ou que a distinção das classes era de
tal natu-
CAPÍTULO XIX
Vista geral sobre o estado social em 1842. As raças do Brasil e uma profecia do
autor. No começo do século ainda dominava o sentimento aristocrático., As classes
não se misturavam e tinha cada uma a sua vida própria. Igrejas, irmandades e
festas religiosas na Campanha.
O ano de 1842 foi, como já tive ocasião de dizer, extremamente crítico para
a província de Minas e sobretudo para a Campanha; e como desde então os
costumes foram mudando cada vez mais; eu antes de prosseguir cronologicamente
nestas minhas recordações, quero fazer aqui uma espécie de parada; para me ocupar
de certos fatos que não têm uma data certa ou para fazer algumas considerações que
são o resultado de observações múltiplas ou mais ou menos reiteradas; e começarei
por uma espécie de vista geral sobre o estado social daquele tempo ou antes pela
distinção muito acentuada que então se observava entre as diferentes classes da
sociedade. Sem falar nos pequenos contingentes de outras raças que sobretudo
nestes últimos tempos têm entrado para o Brasil, pode-se dizer, que a nossa
população se compõe exclusivamente das três seguintes raças — da branca ou
portuguesa, da vermelha ou indígena e da preta ou africana. A não ser em alguns dos
nossos sertões onde a raça indígena se refugia e vai de dia em dia cada vez mais
diminuindo, pode-se ainda dizer, que esta raça primitiva do nosso país já quase que
não existe; pois que não tendo bastante força para resistir à raça conquistadora, ela
foi desde o princípio sendo por esta completamente absorvida. Das outras duas é a
preta a que mais pura se tem conservado; embora não sejam muito poucos talvez os
tipos mais ou menos puros que ainda existem da raça branca. Destas três raças,
porém, originou-se uma quarta que é formada pelo cruzamento daquelas três; e esta
última raça que em prejuízo das que a formam tende cada vez mais a multiplicar-se
e a estender-se, tem tomado um tão grande desenvolvimento, que já não é de hoje,
que se costuma dizer que não há um só brasileiro que não atire seta ou toque
urucungo; o que quer dizer, que não
talvez um só brasileiro que não tenha em suas veias uma quantidade maior ou menor
de sangue indígena ou de sangue africano. Esta proposição, sobretudo assim tomada
em um sentido tão amplo, ainda está um pouco longe de ser de uma perfeita
exatidão: ela, porém, tende, como eu já disse, a se tornar cada vez mais verdadeira; e
é muito de supor, que no fim de mais alguns séculos a população toda do Brasil não
se componha senão dessa raça única, com as pequenas exceções apenas dos novos
estrangeiros que forem continuando a entrar ou dos seus imediatos descendentes. O
que essa quarta raça terá de fazer ou o que ela dará, só o futuro é que o pode dizer;
mas o que desde já se pode profetizar, é que há de ser uma raça extremamente
inteligente. E se não, corram-se os olhos por toda a nossa sociedade desde o nosso
parlamentar até qualquer banda de música; e Observe-se qual é o papel que por toda
parte representa o homem pardo ou esse elemento misturado.
Tornando-se cada vez mais numerosa e com ela crescendo, ao mesmo tempo
e como que "pari passu", as ideias da mais completa democracia; hoje quase que não
se distingue essa raça misturada da raça superior, isto é, da raça branca: sobretudo,
se se trata de pessoas dinheirosas ou que se acham nas altas cumiadas do poder.
Quando, porém, eu me conheci por gente, ou nos primeiros tempos da nossa vida
independente, as coisas não se passavam por um semelhante modo; mas sendo, pelo
contrário, inteiramente aristocrático o sentimento que então dominava, longe de
haver essa igualdade que vai hoje cada vez mais se estabelecendo, o que se via
então, era que não só as diversas raças nunca se confundiam; mas que muito pelo
em vez disso, cada raça e cada uma das suas classes nunca deixavam de mais ou
menos manter e de conhecer o seu lugar; porque em todas havia gradações; e os
limites que as estabeleciam não podiam ser passados sem a violação da mais
poderosa de todas as leis — a que se funda sobre um prejuízo antigo e mais ou
menos universal. Para dar disto uma ideia, eu vou contar a vida dessas diferentes
classes tal qual eu ainda pude alcançar e conhecer. E como onde a desigualdade
mais depressa desaparece ou menos se observa, é na religião e no prazer; é sobre
estes dois pontos que principalmente insistirei. Assim, eu não direi simplesmente
que não havia naquele tempo uma verdadeira igualdade perante a religião; porque
essa igualdade foi coisa que nunca existiu e que ainda hoje não se observa; mas direi
que naquele tempo a desigualdade ou que a distinção das classes era de
tal natu-
reza, que não só cada uma das classes procurava ter sempre a sua igreja própria; mas
que ainda os próprios santos dos céus pareciam não pertencer a todos; pois que ao
passo que os brancos podiam pertencer a todas as irmandades sem a menor exceção,
e tinham algumas que exclusivamente lhes pertenciam, como a do Santíssimo, a dos
Passos e a do Carmo, por exemplo; por outro lado, os pardos parece que não tinham
licença senão de serem irmãos das Mercês e da Boa-morte; caso não quisessem ir ser
também irmãos do Rosário e S. Benedito, que com Santa Efigênia e Santo Elesbão,
parece que eram os únicos santos que os pobres pretos tinham o direito de adorarem
ou pelo menos de tomarem por patronos. Os pardos, porém, quase nunca se
utilizavam deste último privilégio; porque, se os brancos não se dignavam de descer
até eles, eles muito menos ainda se prestavam a descer até os pretos. Assim, sem
falar na igreja de S. Francisco, que eu ainda alcancei mas que pouco depois foi
demolida, das cinco igrejas que existiam na Campanha e que eram a Matriz que tinha
por orago a Santo Antônio, a das Dores, de São Sebastião, a das Mercês e a do
Rosário, as três primeiras pertenciam aos brancos, a quarta aos pardos e a última aos
pretos. A igreja das Dores era um templo pequeno; mas de todas a única que era de
pedra e que tinha torres ou antes uma só torre que depois foi demolida; era ainda a
única que tinha o seu forro pintado e com uma pintura tão próxima da perfeição, que
mal se compreendia, como pudesse ser obra de tempos tão atrasados. Muito próxima
da casa que foi de meu Avô, a das Dores era por assim dizer a igreja da nossa
devoção; e não só foi aí que meu pai se casou, mas foi ainda aí que se enterrou seu
corpo. Estando o altar do senhor dos Passos na Matriz, era para a igreja das Dores
que na véspera da sua procissão se fazia o depósito da imagem; e era dali que saía a
procissão; a qual descendo pela rua Direita e subindo pela do Hospício, depois de
feito o encontro na esquina da do Comércio, seguia por esta, pela da Miserirdia
e do Fogo e recolhia-se à Matriz.
Esta procissão na Campanha se a fazia como se a faz em toda a parte; e por
isso, só consignarei aqui duas únicas circunstâncias. A primeira que só menciono,
por não me lembrar de a ter observado em outros lugares mais distantes por onde
andei, era o aparecimento naquelas procissões de uns certos personagens que era o
que para os meninos c mesmo para muita gente grande fazia o melhor da festa; isto
é, os farricuncos, ou como mais vulgarmente se diz, os farricocos; que eram uns
sujeitos vestidos como os dominós no carnaval,
mas uns dominós descalços e em tudo muito grosseiros, e dos quais uns
tocavam matraca c os outros armados de uns chicotes muito compridos,
faziam o papel de enxota-cães e esca-ramuçavam os moleques e
meninos.
Quanto à outra circunstância, tem um pouco mais de importância;
porque é mais uma prova desse espírito aristocrático que então reinava e de
que acima falei; e é que nessa procissão, como todos sabem, sai um grande
pendão em que estão inscritas as letras — S. P. Q. R. — que sendo, como
todos ainda sabem, a abreviatura de — senatus populus que roma-nus —
por graça se costumavam então traduzir por esta forma — salada, pão,
queijo e rapadura. Ora como este pendão é muito alto e pesado, quem o
conduz não o poderia convenientemente equilibrar, sobretudo se houvesse
vento ou uma pisadura em falso; e então para auxiliar ao seu condutor, da
travessa superior do pendão partem quatro cordões de algodão ou seda com
borlas nas pontas e que são levados por quatro homens que são colocados
em uma distância conveniente nas duas alas da procissão. Pois bem; não sei
porque, o segurar aqueles cordões era considerado uma grande honraria; e
por consequência, não só para esse mister se escolhiam as pessoas havidas
como as mais importantes da terra; mas era isso ainda uma ocasião para a
manifestação de muitos amores próprios ofendidos; assim como também
era, e muito mais ainda talvez, o não ser convidado para segurar nas varas
do pálio, que parecia ser um privilégio exclusivo dessas mesmas pessoas
reputadas como mais nobres ou mais graduadas.
A outra festa, que havia todos os anos na igreja das Dores, era a do
Menino Jesus. Começava à meia noite de 24 de dezembro pela missa do
galo; seguiam-se as trezenas que duravam até o dia de Reis; e nesse dia
terminava-se a festa por uma missa cantada. E como esta festa era feita por
esmolas, havia de ordinário durante as trezenas o leilão dos objetos que os
devotos ofereciam e que principalmente consisliam em frangos, leitões,
doces, frutas etc. Era uma festa muito simples e no entretanto muito
agradável; porque não havendo naqueles tempos abundância de
divertimentos ou distrações, oferecia treze noites de uma grande reunião de
povo e de reunião mais ou menos interessante. Além destas duas festas
quase que nenhuma outra se costumava fazer naquela igreja; mas lembro--
me de ter ali visto se celebrarem algumas missas novas por moços da
Campanha, que tendo acabado de se ordenar, ali vinham cantar a sua
primeira missa. E como naqueles tempos, uma das maiores ambições de
quase todas as famílias era a de
reza, que não só cada uma das classes procurava ter sempre a sua igreja própria; mas
que ainda os próprios santos dos céus pareciam não pertencer a todos; pois que ao
passo que os brancos podiam pertencer a todas as irmandades sem a menor exceção,
e tinham algumas que exclusivamente lhes pertenciam, como a do Santíssimo, a dos
Passos e a do Carmo, por exemplo; por outro lado, os pardos parece que não tinham
licença senão de serem irmãos das Mercês e da Boa-morte; caso não quisessem ir ser
também irmãos do Rosário e S. Benedito, que com Santa Efigênia e Santo Elesbão,
parece que eram os únicos santos que os pobres pretos tinham o direito de adorarem
ou pelo menos de tomarem por patronos. Os pardos, porém, quase nunca se
utilizavam deste último privilégio; porque, se os brancos não se dignavam de descer
até eles, eles muito menos ainda se prestavam a descer até os pretos. Assim, sem
falar na igreja de S. Francisco, que eu ainda alcancei mas que pouco depois foi
demolida, das cinco igrejas que existiam na Campanha e que eram a Matriz que tinha
por orago a Santo Antônio, a das Dores, de São Sebastião, a das Mercês e a do
Rosário, as três primeiras pertenciam aos brancos, a quarta aos pardos e a última aos
pretos. A igreja das Dores era um templo pequeno; mas de todas a única que era de
pedra e que tinha torres ou antes uma só torre que depois foi demolida; era ainda a
única que tinha o seu forro pintado e com uma pintura tão próxima da perfeição, que
mal se compreendia, como pudesse ser obra de tempos tão atrasados. Muito próxima
da casa que foi de meu Avô, a das Dores era por assim dizer a igreja da nossa
devoção; e não só foi aí que meu pai se casou, mas foi ainda aí que se enterrou seu
corpo. Estando o altar do senhor dos Passos na Matriz, era para a igreja das Dores
que na véspera da sua procissão se fazia o depósito da imagem; e era dali que saía a
procissão; a qual descendo pela rua Direita e subindo pela do Hospício, depois de
feito o encontro na esquina da do Comércio, seguia por esta, pela da Misericórdia
e do Fogo e recolhia-se à Matriz.
Esta procissão na Campanha se a fazia como se a faz em toda a parte; e por
isso, só consignarei aqui duas únicas circunstâncias. A primeira que só menciono,
por não me lembrar de a ter observado em outros lugares mais distantes por onde
andei, era o aparecimento naquelas procissões de uns certos personagens que era o
que para os meninos e mesmo para muita gente grande fazia o melhor da festa; isto
é, os farricuncos, ou como mais vulgarmente se diz, os farricocos; que eram uns
sujeitos vestidos como os dominós no carnaval,
mas uns dominós descalços e em tudo muito grosseiros, e dos quais uns
tocavam matraca e os outros armados de uns chicotes muito compridos,
faziam o papel de enxota-cães e esca-ramuçavam os moleques e
meninos.
Quanto à outra circunstância, tem um pouco mais de importância;
porque é mais uma prova desse espírito aristocrático que então reinava e de
que acima falei; e é que nessa procissão, como todos sabem, sai um grande
pendão em que estão inscritas as letras S. P. Q. R. que sendo, como
todos ainda sabem, a abreviatura de — senatus populus que roma-nus
por graça se costumavam então traduzir por esta forma — salada, pão,
queijo e rapadura. Ora como este pendão é muito alto e pesado, quem o
conduz não o poderia convenientemente equilibrar, sobretudo se houvesse
vento ou uma pisadura em falso; e então para auxiliar ao seu condutor, da
travessa superior do pendão parlem quatro cordões de algodão ou seda com
borlas nas pontas e que são levados por quatro homens que são colocados
em uma distância conveniente nas duas alas da procissão. Pois bem; não sei
porque, o segurar aqueles cordões era considerado uma grande honraria; e
por consequência, não só para esse mister se escolhiam as pessoas havidas
como as mais importantes da terra; mas era isso ainda uma ocasião para a
manifestação de muitos amores próprios ofendidos; assim como também
era, e muito mais ainda talvez, o não ser convidado para segurar nas varas
do pálio, que parecia ser um privilégio exclusivo dessas mesmas pessoas
reputadas como mais nobres ou mais graduadas.
A outra festa, que havia todos os anos na igreja das Dores, era a do
Menino Jesus. Começava à meia noite de 24 de dezembro pela missa do
galo; seguiam-se as trezenas que duravam até o dia de Reis; e nesse dia
terminava-se a festa por uma missa cantada. E como esta festa era feita por
esmolas, havia de ordinário durante as trezenas o leilão dos objetos que os
devotos ofereciam e que principalmente consistiam em frangos, leitões,
doces, frutas etc. Era uma festa muito simples e no entretanto muito
agradável; porque não havendo naqueles tempos abundância de
divertimentos ou distrações, oferecia treze noites de uma grande reunião de
povo e de reunião mais ou menos interessante. Além destas duas festas
quase que nenhuma outra se costumava fazer naquela igreja; mas lembro--
me de ter ali visto se celebrarem algumas missas novas por moços da
Campanha, que tendo acabado de se ordenar, ali vinham cantar a sua
primeira missa. E como naqueles tempos, uma das maiores ambições de
quase todas as famílias era a de
ter um filho padre; já se vê, que uma missa nova não podia deixar
de ser um dia de grande festa.
Na igreja de S. Sebastião, nunca vi outros festejos ou solenidades que não
fosse a festa do próprio santo; e que era uma festa como outra qualquer. Eu,
entretanto, a apreciava muito; e isto por duas razões; 1.' porque, independente do in-
teresse de conservar sempre propício um santo que é o nosso advogado contra a
peste, fome e guerra, eu por muitos outros motivos, mas sobretudo por uma muito
particular simpatia, fui sempre um dos maiores devotos de S. Sebastião; e 2.º porque,
além dessa natural e tão funda simpatia, que por ele sempre senti, ainda o achava
bonito quando o via na procissão com a banda da Guarda Nacional à cinta e de
hábito de Aviz ao pescoço; não sei se por ter sido tribuno legionário em Roma ou se
por ser oficial honorário do nosso exército como tantos outros santos. Havia, porém,
mais um motivo ainda para que eu gostasse e muito daquela procissão; e vinha a ser
que nela o outro andor que saía e que era carregado por mocinhos ou por meninos
era o andor de S Roque; e ninguém faz ideia da graça que eu achava naquele andor
tão pequeno quanto pequeno era o santo; em uma espécie de cabacinha de mel que
este levava, se bem me recordo, suspensa a um cajado ou a bordão que se curvava na
ponta; mas sobretudo em um pequeno cãozinho que se conservava a seus
pés.
A festa das Mercês era feita pelos pardos; e como desde seus começos
existiram na Campanha algumas famílias de pardos que dispunham de alguma
fortuna, parece que era então celebrada com bastante pompa. No meu tempo,
porém, nem ela sempre se fazia; ou se por acaso fazia-se, nada tinha de notável. Em
compensação, porém, na igreja matriz havia um bonito altar da Senhora Boa Morte
cuja irmandade pertencia aos pardos; e esta festa era uma das mais bonitas; havendo
além das novenas, a procissão do enterro de N. Senhora no dia 14 de agosto e a
da sua Assunção no dia seguinte.
Muitos e de diversas naturezas eram os festejos que se faziam na Matriz;
pois que era ali que, além de um grande número de festas exclusivamente religiosas,
ainda se celebravam as grandes exéquias que se faziam por defuntos notáveis e todos
os atos religiosos que se celebravam por motivos políticos. Mas de todas essas festas
que ali tinham lugar nenhuma havia de que eu tanto gostasse como eram as da
semana santa; porque sendo a religiosidade em mim um desses sentimentos que não
há nada que os possa inteiramente arrancar do fundo dos nossos corações, eu
sempre fui extremamente sensível a essa espécie
de respeito ou de um como que terror santo, que ainda mesmo nas almas pouco
religiosas nunca deixa de mais ou menos inspirar a sublime grandeza ou a solene
majestade do culto católico.
Ora debaixo deste ponto de vista, e ainda mesmo sem falar nessa série de
atos ou de cenas quase todos tão comoventes que se encadeiam e que constituem o
que se costuma chamar umas endoenças, de todas as festas católicas ou pelo menos
de todas aquelas que eu tenho visto, nenhuma há que se possa comparar em
majestade a uma semana santa. Das solenidades, porém, que a constituem, duas
eram as que mais me impressionavam ou de que ainda conservo as mais profundas
recordações.
Destas solenidades, a primeira, se não há de minha parte algum equívoco,
creio que se chamava — textos —. Mas tendo-a visto uma única vez e sendo nessa
ocasião ainda muito pequeno, não sei se poderei dar do que vi uma verdadeira
descrição. Combinando entretanto as minhas recordações com os conhecimentos que
hoje tenho da religião, creio poder dizer que aquela solenidade, que ou por ser na
realidade comovente ou peta sua execução vivamente dramática ou teatral, tanto me
impressionou, se resumia mais ou menos nisto: Junto de um altar e com :•. frente um
pouco voltada para o corpo da igreja, ficava um padre vestido de alva e com uma
estola a tiracolo; e este padre representava a Cristo. Em um dos púlpitos da matriz
achava-se outro padre, de cujo vestuário já não me recordo, e este representava um
dos quatro evangelistas; no púlpito fronteiro um terceiro ficava representando
Pilatos; e finalmente no coro, os músicos faziam o papel de judeus. Tratava-se, pois,
do julgamento de Jesus Cristo perante Pilatos. O padre que estava em um dos
púlpitos, começava a narração desse julgamento, segundo o descreve o Evangelho;
mas apenas chegava a qualquer ponto em que algum daqueles três interlocutores
dizia alguma coisa, o evangelista ca-lava-se; e um dos padres ou a música tocava a
palavra e repetia as frases que Jesus, Pilatos ou os judeus haviam proferido. Assim,
chegando ao ponto em que Pilatos pergunta a Jesus, se ele era com efeito rei de
Israel; era o padre que representava Pilatos quem fazia a pergunta; entretanto que era
o padre que representava o Cristo quem, em uma melopeia grave e triste, como se
nos afigura que deveria ser a linguagem de Jesus, dava a resposta. Ou então, se
Pilatos perguntava aos judeus, o que devia fazer de Jesus, era a música que,
rompendo em sons estridentes e um pouco descompassados, respondia —
"crucifique! Crucifique!" E assim por diante. Se, porém, esta solenidade nos
ter um filho padre; já se vê, que uma missa nova não podia deixar de
ser um dia de grande festa.
Na igreja de S. Sebastião, nunca vi outros festejos ou solenidades que não
fosse a festa do próprio santo; e que era uma festa como outra qualquer. Eu,
entretanto, a apreciava muito; e isto por duas razões; 1.' porque, independente do in-
teresse de conservar sempre propício um santo que é o nosso advogado contra a
peste, fome e guerra, eu por muitos outros motivos, mas sobretudo por uma muito
particular simpatia, fui sempre um dos maiores devotos de S. Sebastião; e 2.*
porque, além dessa natural e tão funda simpatia, que por ele sempre senti, ainda o
achava bonito quando o via na procissão com a banda da Guarda Nacional à cinta e
de hábito de Aviz ao pescoço; não sei se por ter sido tribuno legionário em Roma ou
se por ser oficial honorário do nosso exército como tantos outros santos. Havia,
porém, mais um motivo ainda para que eu gostasse e muito daquela procissão; e
vinha a ser que nela o outro andor que saía e que era carregado por mocinhos ou por
meninos era o andor de S Roque; e ninguém faz ideia da graça que eu achava
naquele andor tão pequeno quanto pequeno era o santo; em uma espécie de
cabacinha de mel que este levava, se bem me recordo, suspensa a um cajado ou a
bordão que se curvava na ponta; mas sobretudo em um pequeno cãozinho que se
conservava a seus pés.
A festa das Mercês era feita pelos pardos; e como desde seus começos
existiram na Campanha algumas famílias de pardos que dispunham de alguma
fortuna, parece que era então celebrada com bastante pompa. No meu tempo,
porém, nem ela sempre se fazia; ou se por acaso fazia-se, nada tinha de notável. Em
compensação, porém, na igreja matriz havia um bonito altar da Senhora Boa Morte
cuja irmandade pertencia aos pardos; e esta festa era uma das mais bonitas; havendo
além das novenas, a procissão do enterro de N. Senhora no dia 14 de agosto e a
da sua Assunção no dia seguinte.
Muitos e de diversas naturezas eram os festejos que se faziam na Matriz;
pois que era ali que, além de um grande número de festas exclusivamente religiosas,
ainda se celebravam as grandes exéquias que se faziam por defuntos notáveis e todos
os atos religiosos que se celebravam por motivos políticos. Mas de todas essas festas
que ali tinham lugar nenhuma havia de que eu tanto gostasse como eram as da
semana santa; porque sendo a religiosidade em mim um desses sentimentos que não
há nada que os possa inteiramente arrancar do fundo dos nossos corações, eu
sempre fui extremamente sensível a essa espécie
de respeito ou de um como que terror santo, que ainda mesmo
nas almas pouco religiosas nunca deixa de mais ou menos ins
pirar a sublime grandeza ou a solene majestade do culto ca
tólico.
Ora debaixo deste ponto de vista, e ainda mesmo sem falar nessa série de
atos ou de cenas quase todos tão comoventes que se encadeiam e que constituem o
que se costuma chamai* umas endoenças, de todas as festas católicas ou pelo menos
de todas aquelas que eu tenho visto, nenhuma há que se possa comparar em
majestade a uma semana santa. Das solenidades, porém, que a constituem, duas
eram as que mais me impressionavam ou de que ainda conservo as mais profundas
recordações.
Destas solenidades, a primeira, se não há de minha parte algum equívoco,
creio que se chamava — textos —. Mas tendo-a visto uma única vez e sendo nessa
ocasião ainda muito pequeno, não sei se poderei dar do que vi uma verdadeira
descrição. Combinando entretanto as minhas recordações com os conhecimentos que
hoje tenho da religião, creio poder dizer que aquela solenidade, que ou por ser na
realidade comovente ou pela sua execução vivamente dramática ou teatral, tanto me
impressionou, se resumia mais ou menos nisto: Junto de um altar e com a frente um
pouco voltada para o corpo da igreja, ficava um padre vestido de alva e com uma
estola a tiracolo; e este padre representava a Cristo. Em um dos púlpitos da matriz
achava-sc outro padre, de cujo vestuário já não me recordo, e este representava um
dos quatro evangelistas; no púlpito fronteiro um terceiro ficava representando
Pilatos; e finalmente no coro, os músicos faziam o papel de judeus. Tratava-se, pois,
do julgamento de Jesus Cristo perante Pilatos. 0 padre que estava em um dos
púlpitos, começava a narração desse julgamento, segundo o descreve o Evangelho;
mas apenas chegava a qualquer ponto em que algum daqueles três interlocutores
dizia alguma coisa, o evangelista ea-lava-se; e um dos padres ou a música tocava a
palavra e repetia as frases que Jesus, Pilatos ou os judeus haviam proferido. Assim,
chegando ao ponto em que Pilatos pergunta a Jesus, se ele era com efeito rei de
Israel; era o padre que representava Pilatos quem fazia a pergunta; entretanto que era
o padre que representava o Cristo quem, em uma melopeia grave e triste, como se
nos afigura que deveria ser a linguagem de Jesus, dava a resposta. Ou então, se
Pilatos perguntava aos judeus, o que devia fazer de Jesus, era a música que,
rompendo em sons estridentes e um pouco descompassados, respondia —
"crucifique! Crucifique!" E assim por diante. Se, porém, esta solenidade nos
enchia a alma de dor, essa dor entretanto, tinha alguma coisa de uma doce
melancolia; porque a ilusão quase que nos fazia ver naquele padre que representava
o Cristo, o próprio Cristo que ali estava presente e que nos parecia falar; entretanto
que a outra solenidade, a que me referi e que tinha lugar na sexta-feira da paixão,
ferindo-nos os sentidos com objetos unicamente tristes e mais ou menos lúgubres,
enchia-los a alma de uma dor pungente que de alguma sorte a acabrunhava e ao
mesmo tempo a enchia de remorsos. E com efeito, como era solene e triste, naquela
imensa igreja que se chama a Matriz da Campanha, meio obscurecida e atulhada de
povo, o ver sair, não se sabe donde, alguns padres, todos cobertos de branco até a
cabeça; e em silêncio, com o passo vagaroso e de um modo em que tudo respirava o
mistério, dirigem-se ao calvário; e ali chegando e depois de contemplarem por
algum tempo o Cristo que ali se achava suspenso entre os dois ladrões, e com a ca-
beça pendida e os braços abertos parecia chamar a si a humanidade inteira; em
seguida, colocarem escadas ao madeiro em que ele estava pregado: com o martelo
tirarem.lhe os cravos; com o auxílio de toalhas descerem-no da cruz; colocarem-ne
em um esquife; e tomando a este sobre os ombros, o conduzirem em procissão, até
que vinham afinal na volta colocarem-no no sepulcro que para ele já se tinha
preparado! E que procissão!
Calados os sinos que nunca se calam e que nesse dia ficam mudos, a
procissão sai da matriz, não simplesmente calada mas em um como que furtivo
segredo; e mostrando um tudo quanto à forma, um ar verdadeiramente misterioso e
santo, essa tão solene procissão vagarosa caminha por entre as trevas que envolvem
a natureza inteira; e sempre silenciosa percorre as ruas da cidade sem que outra voz
se ouça senão ,a voz de Verônica, que trepada sobre um tamborete de espaço em
espaço a todos pergunta se há uma dor que se possa comparar à sua e que então
lacrimosa a todos mostra a sangrenta imagem do Divino Salvador; ou então a voz da
música que nos mais melancólicos acordes chora em surdina a morte de um Deus e a
imensa grandeza do pecado do homem. E como se no meio de toda essa imensa
tristeza nada devesse faltar que nos recordasse todos os pontos desta tão triste
história, nessa procissão nada falta que de perto ou que de longe se entrelace com o
grande mistério da redenção. Aqui é Izac, por exemplo, que leva às costas o seu
pequeno feixe de lenha, ali é Madalena arrependida e toda desgrenhada que chora os
seus pecados e a saudade d'Aquele que a perdoou; mais adiante são ainda as três
Behús ou o discípulo bem amado que em um livro que leva aberto
vai escrevendo o seu evangelho; até que a procissão entra na igreja; o corpo é
deposto no sepulcro; um centurião, o guarda e o vigia com os seus soldados; e no
meio do sermão que a tudo isto se segue, abre-se de repente a cortina da capela--
mor; e o calvário de novo aparece, mas agora já todo iluminado e coberto de
anjos.
Tudo isto, assim contado e não presenciado, e contado a espíritos frios ou a
corações em que a fé é morta ou sem força, parecerá com certeza uma coisa bem
desencabida e quiçá mesmo profundamente ridícula. Eu próprio não sei o que hoje
talvez sentisse; mas entretanto, o que digo e afirmo com todas as veras de uma
convicção inabalável, é — que bem-aventurados e mil vezes felizes são aqueles que
ainda podem ver tais coisas e com elas se comoverem; porque para eles a natureza
vive e fala e toda a 'criação nada mais é do que uma harmonia constante e festiva que
vira a proclamar a glória do divino redentor; pois que, se é para dele nos falar que o
maracujá nos mostra dentro da sua admirável corola o símbolo mais completo da
Paixão; e se é ainda para nos chamar ao sentimento da sua morte que as flores da
quaresma são todas mais ou menos roxas; assim também, quando o galo ao
aproximar da aurora bate as suas asas com um tão grande estridor e entoa esse seu
canto tão ressonante e prolongado, é unicamente para despertar a todos os outros
animais e anunciar--Ihes que o Cristo nasceu; entretanto que o boi mugindo pergunta
— aonde? E balando a ovelha prestes responde — Em Belém. Entretanto para todos
esses que nunca tiveram essa fé tão cheia de encantos, e ao mesmo tempo, tão
vivificadora, ou para aqueles que muito mais desgraçados ainda, já a tiveram e hoje a
não tem, o que vem a ser um mundo? Para uns, um verdadeiro deserto árido e sem
fim que parece tornar a morte um bem; e para outros, uma enganadora floresta
apenas, cujas árvores tão belas de ver, e tão profusamente carregadas, lhes desafiam
o apetite e lhes prometem de lhes satisfazer a gula; mas cujos frutos, entretanto, são
exatamente como aqueles de que Milton nos faz uma tão bela descrição, e que sendo
de uma aparência belíssima por fora, dentro pelo contrário, só nos apresentam os
nojos da podridão ou as mais amargas e nauseabundas cinzas.
Em contraposição a todas estas tristezas da semana santa, a mais alegre de
todas as festas da Campanha era a festa dos negros; isto é, a de Nossa Senhora do
Rosário ou como mais vulgarmente se dizia — a subida do Rosário.
Nem há neste fato de ser tão grande a alegria dos negros coisa que nos deva
admirar; porque para mim é fora de toda a
enchia a alma de dor, essa dor entretanto, tinha alguma coisa de uma doce
melancolia; porque a ilusão quase que nos fazia ver naquele padre que representava
o Cristo, o próprio Cristo que ali estava presente e que nos parecia falar; entretanto
que a outra solenidade, a que me referi e que tinha lugar na sexta-feira da paixão,
ferindo-nos os sentidos com objetos unicamente tristes e mais ou menos lúgubres,
enchia-mos a alma de uma dor pungente que de alguma sorte a acabrunhava e ao
mesmo tempo a enchia de remorsos. E com efeito, como era solene e triste, naquela
imensa igreja que se chama a Matriz da Campanha, meio obscurecida e atulhada de
povo, o ver sair, não se sabe donde, alguns padres, todos cobertos de branco até a
cabeça; e em silêncio, com o passo vagaroso e de um modo em que tudo respirava o
mistério, dirigem-se ao calvário; e ali chegando e depois de contemplarem por
algum tempo o Cristo que ali se achava suspenso entre os dois ladrões, e com a ca-
beça pendida e os braços abertos parecia chamar a si a humanidade inteira; em
seguida, colocarem escadas ao madeiro em que ele estava pregado; com o martelo
tirarem.lhe os cravos; com o auxílio de toalhas descerem-no da cruz; colocarem-nc
em um esquife; e tomando a este sobre os ombros, o conduzirem em procissão, até
que vinham afinal na volta colocarem-no no sepulcro que para ele já se tinha
preparado! E que procissão!
Calados os sinos que nunca se calam e que nesse dia ficam mudos, a
procissão sai da matriz, não simplesmente calada mas em um como que furtivo
segredo; e mostrando um tudo quanto à forma, um ar verdadeiramente misterioso e
santo, essa tão solene procissão vagarosa caminha por entre as trevas que envolvem
a natureza inteira; e sempre silenciosa percorre as ruas da cidade sem que outra voz
se ouça senão a voz de Verônica, que trepada sobre um tamborete de espaço em
espaço a todos pergunta se há uma dor que se possa comparar à sua e que então
lacrimosa a todos mostra a sangrenta imagem do Divino Salvador; ou então a voz da
música que nos mais melancólicos acordes chora em surdina a morte de um Deus e a
imensa grandeza do pecado do homem. E como se no meio de toda essa imensa
tristeza nada devesse faltar que nos recordasse todos os pontos desta tão triste
história, nessa procissão nada falta que de perto ou que de longe se entrelace com o
grande mistério da redenção. Aqui é Izac, por exemplo, que leva às costas o seu
pequeno feixe de lenha, ali é Madalena arrependida e toda desgrenhada que chora os
seus pecados e a saudade d'Aquele que a perdoou; mais adiante são ainda as três
Behús ou o discípulo bem amado que em um livro que leva aberto
vai escrevendo o seu evangelho; até que a procissão entra na igreja; o corpo
é deposto no sepulcro; um centurião, o guarda e o vigia com os seus
soldados; e no meio do sermão que a tudo isto se segue, abre-se de repente a
cortina da capela--mor; e o calvário de novo aparece, mas agora já todo
iluminado e coberto de anjos.
Tudo isto, assim contado e não presenciado, e contado a espíritos
frios ou a corações em que a fé é morta ou sem força, parecerá com certeza
uma coisa bem desencabida e quiçá mesmo profundamente ridícula. Eu
próprio não sei o que hoje talvez sentisse; mas entretanto, o que digo e
afirmo com todas as veras de uma convicção inabalável, é — que bem-
aventurados e mil vezes felizes são aqueles que ainda podem ver tais coisas
e com elas se comoverem; porque para eles a natureza vive e fala e toda a
.criação nada mais é do que uma harmonia constante e festiva que vira a
proclamar a glória do divino redentor; pois que, se é para dele nos falar que
o maracujá nos mostra dentro da sua admirável corola o símbolo mais
completo da Paixão; e se é ainda para nos chamar ao sentimento da sua
morte que as flores da quaresma são todas mais ou menos roxas; assim
também, quando o galo ao aproximar da aurora bate as suas asas com um
tão grande estridor e entoa esse seu canto tão ressonante e prolongado, é
unicamente para despertar a todos os outros animais e anunciar--lhes que o
Cristo nasceu; entretanto que o boi mugindo pergunta — aonde? E balando
a ovelha prestes responde — Em Belém. Entretanto para todos esses que
nunca tiveram essa fé tão cheia de encantos, e ao mesmo tempo, tão
vivificadora, ou para aqueles que muito mais desgraçados ainda, já a tiveram
e hoje a não tem, o que vem a ser um mundo? Para uns, um verdadeiro
deserto árido e sem fim que parece tornar a morte um bem; e para outros,
uma enganadora floresta apenas, cujas árvores tão belas de ver, e tão
profusamente carregadas, lhes desafiam o apetite e lhes prometem de lhes
satisfazer a gula; mas cujos frutos, entretanto, são exatamente como aqueles
de que Milton nos faz uma tão bela descrição, e que sendo de uma aparência
belíssima por fora, dentro pelo contrário, só nos apresentam os nojos da
podridão ou as mais amargas e nauseabundas cinzas.
Em contraposição a todas estas tristezas da semana santa, a mais
alegre de todas as festas da Campanha era a festa dos negros; isto é, a de
Nossa Senhora do Rosário ou como mais vulgarmente se dizia — a
subida do Rosário.
Nem há neste fato de ser tão grande a alegria dos negros coisa que
nos deva admirar; porque para mim é fora de toda a
dúvida, que a primeira condição de felicidade é a fé; e eu estou igualmente
convencido que a segunda é o trabalho, e quanto mais material melhor.
Ora, sendo o negro completamente ignorante, e sendo a ignorância a
principal base da fé, esta ou boa ou má, eles a tem em uma dose elevadíssima; e
como, por outro lado, eles são, ou eram, obrigados a um trabalho forçado e
constante; eles reuniam em si as condições essenciais para serem completamente
felizes; e por consequência, para serem alegres; pois que a felicidade é puramente
subjetiva; e feliz não é quem o parece ser, mas sim quem se julga ser; ou muito
melhor ainda, quem não tem tempo para poder ver quanto é desgraçado.
Tudo isto parece à primeira vista o mais desbragado dos paradoxos; porque
se há um ente que se considera essencialmente desgraçado, é o escravo; e não
obstante, eu que sempre os tive e que os conheço muito a fundo, estou intimamente
persuadido de que não há seres mais do que eles realmente felizes; salvo, se pela sua
natureza já nasceram tão alegres, que os males da escravidão não são bastante
para torná-los tristes.
Não se pense, entretanto, que eu quero com isto dizer que os negros não
preferem a liberdade à escravidão. Pelo contrário, nada há tanto que desejem como
seja a liberdade. Mas o que eu afirmo e julgo ser certo, é que por paciência
resultante da fé ou por falta de tempo para pensarem, eles são, como disse, seres es-
sencialmente felizes. E isto eu o digo; porque sempre vi que o menor prazer que se
lhes concedia era sempre para eles um motivo de grande contentamento; entretanto
que não havia fadigas nem desgostos que os impedissem de cantar e dançar; de sorte
que muitas vezes após um dia de aturado trabalho, se eu lhes consentia que fizessem
algum folguedo, eles passavam a noite inteira a cantar, tocar e dançar na mais
completa e descuidada alegria; ao passo que, atormentado pelos pensamentos e por
tantos cuidados, uns reais e a maior parte imaginários, passava grande parte da noite
a revolver-me no leito e debalde, procurando conciliar o sono. A festa do Rosário,
portanto, era, senão a festa mais luxuosa da Campanha, pelo menos a mais alegre e
divertida porque, se os festeiros eram, como já disse, os seres os mais felizes, ou se
quiserem, os mais alegres deste mundo; tudo ainda nesta festa se ajuntava e
concorria para torná-la realmente alegre e divertida.
A igreja do Rosário está colocada acima da Matriz no ponto mais alto da
colina em que a povoação se assenta, e justamente no lugar em que naquele tempo
acabavam as casas e começava o campo. Sem nenhuma arquítetura e sem torres,
o seu sino ficava
do lado de fora junto a uma grande figueira ou gameleira que ali cresceu e se
desenvolveu quase que pegada à igreja. Esta festa era, pois, uma festa de cidade e
campestre ao mesmo tempo. E se por esta última circunstância deveria se tornar
alegre em vista da muito grande concorrência de povo que ela provocava e que fol-
gadamente se espalhava pelo campo; mais alegre ainda se tornava; não só pela
algazarra que os pretinhos faziam dentro da igreja ao afagar as respectivas jóias e
armas; e fora da igreja com os seus dançares e cantares; porém, ainda também pelo
vestuário mais ou menos grotesco de alguns e pelas lantejoulas e ornamentos de
cores vivas que todos mais ou menos ostentavam.
Quanto ao programa principal da festa ou o que propriamente constituia a
subida do Rosário, era a condução do rei e da rainha da sua casa para a igreja; os
quais de coroa na cabeça e com um grande acompanhamento ia ali como os outros
levar as suas jóias e não sei se também assistir à eleição dos seus sucessores. As
negras iam vestidas com o que elas tinham de melhor ou que podiam arranjar
emprestado; e como, de ordinário, aquilo que mais se aprecia é justamente aquilo de
que menos precisamos; muito raro era a negra, que embora não houvesse sol nem
chuva, não subisse de chapéu de sol aberto. Os pretos faziam também o que podiam
para bem aparecer naquele dia; e muitos havia que tudo quanto ajuntavam durante
o ano, nesta festa o consumiam.
O que era propriamente festa de igreja durava pouco e acabava cedo; mas a
da rua prolongava-se pela noite adiante até a madrugada; e esta consistia em
andarem eles toda a noite a percorrerem as ruas e as casas e nelas a dançarem e
cantarem. Eram dois os bandos; e entre eles não deixava de haver urna tal ou qual
rivalidade; porque, se entre pessoas inteiramente iguais essa rivalidade nunca deixa
de aparecer, e às vezes de degenerar em ódio e até em ferozes inimizades neste caso
para essa rivalidade, dava-se uma circunstância ainda; e vinha a ser; que um dos
bandos se compunha exclusivamente de crioulos ou de pretos da cidade; entretanto
que o outro se compunha dos escravos da fazenda do Barro Alto, aos quais se
agregavam alguns de outras fazendas e mesmo alguns da cidade que não podiam ou
não queriam fazer parte do primeiro. Os deste segundo bando vestiam-se todos de
branco e tinham um capacete feito com arcos de taquara cobertos também de branco;
e tudo isto, capacete, calças e vestido, enfeitado de fitas de diferentes cores.
Dançavam com pandeiros e cantavam versos que eles mesmos faziam e dos quais se
pode fazer uma perfeita ideia por este de que ainda me recordo:
dúvida, que a primeira condição de felicidade é a fé; e eu estou igualmente
convencido que a segunda é o trabalho, e quanto mais material melhor.
Ora, sendo o negro completamente ignorante, e sendo a ignorância a
principal base da fé, esta ou boa ou má, eles a tem em uma dose elevadíssima; e
como, por outro lado, eles são, ou eram, obrigados a um trabalho forçado e
constante; eles reuniam em si as condições essenciais para serem completamente
felizes; e por consequência, para serem alegres; pois que a felicidade é puramente
subjetiva; e feliz não é quem o parece ser, mas sim quem se julga ser; ou muito
melhor ainda, quem não tem tempo para poder ver quanto é desgraçado.
Tudo isto parece à primeira vista o mais desbragado dos paradoxos; porque
se há um ente que se considera essencialmente desgraçado, é o escravo; e não
obstante, eu que sempre os tive e que os conheço muito a fundo, estou intimamente
persuadido de que não há seres mais do que eles realmente felizes; salvo, se pela sua
natureza já nasceram tão alegres, que os males da escravidão não são bastante
para torná-los tristes.
Não se pense, entretanto, que eu quero com isto dizer que os negros não
preferem a liberdade à escravidão. Pelo contrário, nada há tanto que desejem como
seja a liberdade. Mas o que eu afirmo e julgo ser certo, é que por paciência
resultante da fé ou por falta de tempo para pensarem, eles são, como disse, seres es-
sencialmente felizes. E isto eu o digo; porque sempre vi que o menor prazer que se
lhes concedia era sempre para eles um motivo de grande contentamento; entretanto
que não havia fadigas nem desgostos que os impedissem de cantar e dançar; de sorte
que muitas vezes após um dia de aturado trabalho, se eu lhes consentia que fizessem
algum folguedo, eles passavam a noite inteira a cantar, tocar e dançar na mais
completa e descuidada alegria; ao passo que, atormentado pelos pensamentos e por
tantos cuidados, uns reais e a maior parte imaginários, passava grande parte da noite
a revolver-me no leito e debalde, procurando conciliar o sono. A festa do Rosário,
portanto, era, senão a festa mais luxuosa da Campanha, pelo menos a mais alegre e
divertida porque, se os festeiros eram, como já disse, os seres os mais felizes, ou se
quiserem, os mais alegres deste mundo; tudo ainda nesta festa se ajuntava e
concorria para torná-la realmente alegre e divertida.
A igreja do Rosário está colocada acima da Matriz no ponto mais alto da
colina em que a povoação se assenta, e justamente no lugar em que naquele tempo
acabavam as casas e começava o campo. Sem nenhuma arquítetura e sem torres, o
seu sino ficava
do lado de fora junto a uma grande figueira ou gameleira que ali cresceu e se
desenvolveu quase que pegada à igreja. Esta festa era, pois, uma festa de cidade e
campestre ao mesmo tempo. E se por esta última circunstância deveria se tornar
alegre em vista da muito grande concorrência de povo que ela provocava e que fol-
gadamente se espalhava pelo campo; mais alegre ainda se tornava; não só pela
algazarra que os pretinhos faziam dentro da igreja ao afagar as respectivas jóias e
armas; e fora da igreja com os seus dançares e cantares; porém, ainda também pelo
vestuário mais ou menos grotesco de alguns e pelas lantejoulas e ornamentos de
cores vivas que todos mais ou menos ostentavam.
Quanto ao programa principal da festa ou o que propriamente constituía a
subida do Rosário, era a condução do rei e da rainha da sua casa para a igreja; os
quais de coroa na cabeça e com um grande acompanhamento ia ali como os outros
levar as suas jóias e não sei se também assistir à eleição dos seus sucessores. As
negras iam vestidas com o que elas tinham de melhor ou que podiam arranjar
emprestado; e como, de ordinário, aquilo que mais se aprecia é justamente aquilo de
que menos precisamos; muito raro era a negra, que embora não houvesse sol nem
chuva, não subisse de chapéu de sol aberto. Os pretos faziam também o que podiam
para bem aparecer naquele dia; e muitos havia que tudo quanto ajuntavam durante
o ano, nesta festa o consumiam.
O que era propriamente festa de igreja durava pouco e acabava cedo; mas a
da rua prolongava-se pela noite adiante até a madrugada; e esta consistia em
andarem eles toda a noite a percorrerem as ruas e as casas e nelas a dançarem e
cantarem. Eram dois os bandos; e entre eles não deixava de haver uma tal ou qual
rivalidade; porque, se entre pessoas inteiramente iguais essa rivalidade nunca deixa
de aparecer, e às vezes de degenerar em ódio e até em ferozes inimizades neste caso
para essa rivalidade, dava-se uma circunstância ainda; e vinha a ser; que um dos
bandos se compunha exclusivamente de crioulos ou de pretos da cidade; entretanto
que o outro se compunha dos escravos da fazenda do Barro Alto, aos quais se
agregavam alguns de outras fazendas e mesmo alguns da cidade que não podiam ou
não queriam fazer parte do primeiro. Os deste segundo bando vestiam-se todos de
branco e tinham um capacete feito com arcos de taquara cobertos também de branco;
e tudo isto, capacete, calças e vestido, enfeitado de fitas de diferentes cores.
Dançavam com pandeiros e cantavam versos que eles mesmos faziam e dos quais se
pode fazer uma perfeita ideia por este de que ainda me recordo:
Marcha, marcha, marcha,
Marcha general; Na subida do
Rosário Temos muito que
marchar.
Os do segundo bando eram todos e a todos os respeitos muito mais
civilizados; e não só se vestiam com mais variedade e até alguns ou todos de calções
e manto; mas além de cantarem e dançarem, ainda entre si dialogavam e faziam uma
como que representação cómica ou dramática da sua própria invenção.
Além das igrejas e das festas de que acabo de falar, ainda havia na
Campanha uma dessas festas campestres que existem mais ou menos por toda a
parte e que são sempre tão aprazíveis; a qual tinha lugar no dia 3 de maio em uma
localidade próxima e que se chamava — Árvores Bonitas.
Este lugar fica meia légua distante da cidade; e o seu nome vem de um
grande número de árvores que ali cresceram no meio do campo, e que pela sua
altura, imensa copada, e ao mesmo tempo, pelo modo com que estão dispostas e
reunidas, merecem com a mais inteira justiça o nome que lhes deram; pois que são
realmente muito bonitas e tornam muito aprazível o lugar em que se acham.
Junto dessas árvores, ou um pouco mais para o alto, construíram ali uma
pequena ermida com a invocação de Santa Cruz; e a missa que ali se dizia no dia 3
de maio, era o pretexto para que a cidade, quase inteira para lá se transportasse, indo
alguns a cavalo e a maior parte a pé; e a festa pode-se dizer que não passava daquela
imensa reunião de povo, e desses divertimentos que são próprios dessas mesmas
reuniões.
Independente porém, da lufa-lufa ou da imensa concorrência desse dia, era
aquele lugar tão aprazível, que não era raro que algumas famílias, aproveitando-se
de uma estação para isso favorável, em bandos mais ou menos numerosos, ali
fossem por simples passeio ou para lá irem fazer o que hoje se costuma chamar um
pick-nick.
Eu mesmo a um deles assisti que me pareceu muito agradável, mas do qual
o que houve de melhor por ser um divertimento que não tinha entrado no programa,
foi uma fortíssima pancada de chuva que na volta, nos tomando de sopetão ao descer
o grande morro da cidade, aí muito nos fez patinar sem querer e acabou por deixar-
nos a todos ainda mais que enlameados, escorridos "que nem" pintos.
CAPÍTULO XX
Divertimentos profanos na Campanha. As danças da cidade e as danças
do campo. Usos e costumes.
Tendo tratado no artigo precedente das igrejas e das festas religiosas
da Campanha, neste vou me ocupar dos seus divertimentos profanos, e
começarei pela dança. Para proceder, porém, com um pouco mais de
método, me ocuparei primeiro das danças da cidade e tratarei depois das
que eram próprias do campo.
Naquele tempo a população da cidade se dividia nas três seguintes
classes — a dos brancos e sobretudo daqueles que por sua posição
constituíam o que se costuma chamar a boa sociedade; a do povo mais ou
menos miúdo; e finalmente a dos escravos. A dança da classe superior
constituía o que propriamente se chama um baile. Aqui, porém, é preciso
ponderar, que em todo o sul de Minas só havia bailes em duas únicas
povoações, que eram a Campanha e a então vila de Pouso Alegre. E com
efeito, era o baile naquele tempo um progresso de tal natureza ou ia de
encontro por uma tal forma às ideias até então dominantes; que ambas
aquelas povoações começaram desde logo a gozar por isso de uma tal ou
qual fama de imoralidade; pois que, segundo se dizia, a sua desenvoltura
chegava a um tal ponto, que as próprias senhoras já nem sequer se vexavam
de dançar com os homens. Nas outras povoações, portanto, a classe superior
não dançava; e tudo que vou dizer só se aplica à Campanha, e com muito
mais razão se pode também aplicar a Pouso Alegre; porque embora muito
mais nova do que a Campanha, aquela povoação de repente entrou e com
um tal furor em todas as ideias do progresso; que ali até havia sociedades
políticas de senhoras em que estas procuravam macaquear as dos homens,
fazendo discursos, não sei se improvisados ou levados de casa, mas que
eram sempre acompanhados dos indefectíveis apoiados, muito bem,
muito bem, etc.
As primeiras danças que naqueles tempos constituíam um baile,
eram, segundo ouvi dizer, o ril, o miudinho, e outras de cujos nomes não
me recordo agora. Eu, porém, já não as alcancei; e por isso, não posso dar a
sua descrição; embora me pareça que
eram danças de três, de cinco e de nove pessoas e como todas as danças
daquele tempo muito cheias de movimento. Os primeiros bailes a que
assisti, e que já tinham um caráter muito mais moderno, esses começavam
de ordinário pela gavota, a qual era dançada por um ou dois pares;
principiando esta pelo minuete, seguindo-se depois a este diversos passos e
corridas; e tudo isso servindo a todos aqueles que a dançavam de uma
excelente ocasião para mostrarem a sua ciência na postura e a sua agilidade
nos movimentos. Depois da gavota seguia-se uma contradança inglesa, na
qual podiam tomar parte todos os pares que quisessem, os quais colocados
no meio da sala, formavam duas filas, ficando os cavalheiros de um lado e
as damas do outro em frente cada um do seu respectivo par; de sorte que
descendo e subindo pelo meio daquelas duas filas, cada um dos pares
dançava com todos os outros por meio de marcas que se repetiam e que se
variavam mas cuja descrição eu deixo de fazer, com o receio de que se
tornasse mais ou menos fastidiosa.
Esta era a contradança que mais vezes se repetia. Entretanto, para
variar, dançava-se também mais de uma vez a contradança espanhola, que
era a inglesa tal qual; mas com esta diferença — que na inglesa se fazia nas
diversas marcas uma simples roda com o próprio par e com todos os outros,
à proporção que chegava a vez de cada um; entretanto, que na espanhola,
essa roda era substituída por um passo de valsa. Nos intervalos dessas duas
contradanças, tinham lugar as valsas; mas estas eram só de duas qualidades
— a inglesa, que era uma valsa mais ou menos pulada; e a espanhola, que
era uma valsa arrastada e vagarosa e a mesma que se dançava na
contradança deste nome.
Nos bailes de meu Avô tocava-se também piano e creio que se
cantavam modas e árias; mas isso só se dava em casa dele; porque tendo
hoje a Campanha dezenas de pianos, naquele tempo só havia esse de meu
Avô que era um piano de cauda e de uma cauda tão comprida que ocupava
uma boa parte da sala; e pode-se fazer ideia da dificuldade que não deveria
haver para se conduzir uma peça destas por meio de animais e de uma tão
grande distância e por tão maus caminhos como os que então existiam entre
a Campanha e a Corte. Eu não sei, se em vez do piano era mais ou menos
geral o uso do cravo. Creio que não; porque nunca vi em parte alguma
senão um único na Campanha; e cuja forma externa era exatamente a de um
piano um pouco menor; porém, no mais havia esta grande diferença — que
o som e que as cordas eram mais ou menos como da viola; sendo, por isso,
as cordas não batidas pelos martelos como nos pianos, mas picadas por
umas
pequeninas penas que nos martelos se achavam seguras ou embutidas em
forma ou em lugar de unhas.
Tais eram os bailes ou as danças dos brancos ou a dança da classe superior.
Quanto à dos negros, reduzia-se ao jongo, que era feito em algum subúrbio da
cidade, e que, segundo o costume dos africanos, era sempre feito ao ar livre. Era
esta, ou antes, é esta, uma dança em que ninguém fica parado; porque nela todos se
conservam de pé e em círculo a cantar e a sapatear, enquanto no centro há sempre
um dançador que faz mil momices e requebrados até que vai tirar outro ou outra
para vir para o centro repetir a mesma coisa; e isto, por assim dizer, sem cessar; e
muitas vezes durante um dia e uma noite inteira. Para esta dança eles quase não se
servem de outro instrumento músico, além do caxambú de que em algumas partes a
dança tomou o nome; e que é uma espécie de barril afunilado que tem a boca
coberta com um couro onde eles batem com as duas mãos.
Nem admira que eles se sirvam desse único instrumento; porque sobre este
ponto os africanos são de uma pobreza inventiva extraordinária; e parece que além
do caxambú, eles nenhum outro instrumento possuem a não ser a marimba que é
uma espécie de pequena tartaruga com dentes de ferro sobre a parte chata e que eles
tocam com os dois dedos polegares e o urucungo que é um arco cuja corda é de
arame e tem em uma das pontas uma cabaça, sendo a corda ferida com uma
varinha.
Se, porém, a classe superior tem o seu baile e se os negros têm o seu .jongo
ou caxambú; a classe inferior da cidade, pode-se dizer, que naquele tempo não
dançava; ou que pelo menos não tinha uma dança que lhe fosse própria.
Felizmente para os que eram assim privados de um prazer que é tão comum
à quase toda a humanidade, havia então uma dança que sendo própria e quase que
exclusiva da gente baixa ou ordinária, era entretanto um campo francamente aberto
para todos que nela quisessem entrar, inclusive até às vezes alguns desses padres
relachados, que não recuam diante de nada nem mesmo do maior escândalo; pois
que eu mesmo cheguei a conhecer um, que, segundo geralmente se dizia, não só era
um acérrimo devoto dessa dança; mas ainda nela se portava com uma tal indecência
e um descomedimento de tal natureza, que eu mesmo me vexaria de aqui dizê-lo.
Ora, essa dança de que acabo de falar e que servia de chamariz para muita gente
boa, era o batuque; que essencialmente lúbrico e indecente, era, por isso, uma dança
proibida; e na qual nem mesmo os pobres que eram dotados de um certo sentimento
de dignidade ou de bons costumes, jamais se animavam a entrar.
Eu nunca cheguei a ver um verdadeiro batuque; mas ouvi muitas vezes
fazer-se a sua descrição; e sei também que é dele uma decente imagem ou uma
inocente miniatura, uma dança que se costuma chamar — o batuquinho —; e que
uma vez em uma festa da roça que teve lugar, senão me engano, por ocasião da
formatura do atual desembargador João Bráulio Moinhos de Vilhena, não só vi
dançar mais até nela tomei parte. E eis aqui o que era o batuquinho: Tocada a música
que, seja dito de passagem, é de tal natureza, que desperta desejo de dançar ainda
mesmo àqueles que não sentem, como eu, o menor prazer em um semelhante
divertimento, e que parece por fogo nas veias dos que são a ele inclinados; uma
pessoa vai para o meio da sala, e puxando a fieira e fazendo todos os requebrados e
desembaraçados ademanes que a decência lhe permita, vai afinal curvar-se ou
ajoelhar-se diante de uma pessoa do outro sexo que é obrigada então a sair e a ir por
sua vez fazer a mesma coisa.
Ora, o batuque em última análise vem a ser justamente isso; mas com esta
grande diferença — que tudo nele é imensa e Iubri-camente exagerado; entretanto
que a pessoa que é tirada sai para dançar com a que a tirou e acabam afinal ou como
por despedida ou paga do favor que mutuamente se fizeram, por uma umbigada que
é dada de um certo jeito que estala com uma grande força; e quanto maior é o estalo,
tanto melhor ou tanto mais apreciada é também a umbigada; no que entretanto, não
deixa de haver algum perigo; porque para dá-la, não basta querer, é preciso saber; e
o que não sabe ou que despresa as regras, muitas vezes fica rendido.
Sendo o batuque proibido, e com a civilização e a liberdade, tendo muito se
ampliado o círculo das nossas ideias e ao mesmo tempo das nossas distrações e dos
nossos divertimentos; o batuque tem ido pouco a pouco se acabando, e há muito que
já não ouço falar nele. Entretanto, ainda em 1860, o batuque não tinha desaparecido
dos arredores da própria capital; pois que segundo ouvi dizer a mais de uma pessoa,
houve ali por esse tempo mais ou menos um delegado de polícia que tomou a peito
por termo a um semelhante divertimento, que além de imoral, era proibido com
alguma severidade pelas posturas municipais. Esse delegado porém, que, segundo
ainda me disseram, era um farmacêutico muito conhecido no Ouro Preto, parece que
perdeu-sc por excesso de zelo; porque tendo uma noite notícia ou denúncia de um
batuque que se achava formado em um dos bairros da capital chamado — As
Cabeças — em vez de mandar dispersar por seus agentes aquela reunião ilícita,
assentou de fazer a diligência em
pessoa; e para lá partiu com o propósito bem firme de não deixar escapar a um só
dos dançadores e de trazê-los todos, fossem quem fossem, para a cadeia.
Ele, portanto, não querendo errar o seu bote, antes de dar sinal da sua
presença, quis explorar o terreno em que devia manobrar; e deixando, segundo creio,
um pouco atrás a torça que levava, seguiu só, para por si mesmo observar o que se
passava; e quando ali chegou, pôs-se a expiar a dança que naquela ocasião se achava
no seu maior auge; e assim ficou por algum tempo; até que ao ver que ela chegava a
um daqueles seus momentos mais frenéticos e delirantes, ele esquece-se da força que
havia consigo levado; bate imprudentemente na porta; e em vez de prender aos
dançadores, é ele quem também mete-se na dança, e quem dançando como o mais
furioso dos dançadores, ali passou todo o resto da noite.
Antes de começar a tratar das danças que existiam nas povoações, eu dividi,
como o leitor deve estar lembrado, toda a população em três classes; isto é, na da
gente que constituía a boa sociedade, na do povo mais ou menos miúdo, e na dos
negros finalmente ou dos escravos. Entretanto, esta classificação não é perfeitamente
exata, porque naquele tempo havia no seio da população uma espécie de elemento
híbrido, que entrando na primeira e na segunda classe, não obstante, a nenhuma
delas perfeitamente pertencia. E esse elemento era essa quarta raça da qual já me
ocupei quando principiei a tratar desta matéria, raça esta, que tendendo cada vez
mais a absorver todas as outras, era formada pelos indivíduos de sangue
misturado ou antes pelos pardos.
Assim sendo todos os indivíduos desta raça extremamente orgulhosos ou
para falar talvez com muito mais exatidão, querendo todos, como todos os homens,
sempre subir e nunca descer, aqueles que pertenciam à segunda classe não se
dignavam de descer até os negros de quem tinham uma parte maior ou menor do seu
sangue, e dos quais em compensação, não deixavam de ser não simplesmente mal
vistos mas talvez mesmo que até sinceramente odiados; entretanto que aqueles que
por direito deveriam pertencer à primeira classe, e cujo maior desejo era o de
poderem ser nela recebidos no mais completo pé de igualdade, ali apenas apareciam
como a gralha entre os pavões; pois que embora os brancos não os repelissem
inteiramente da sua convivência, nunca, entretanto, os acolhiam senão como seres de
uma qualidade muito inferior; e ainda que todos por dentro se remordendo, eles não
tinham remédio senão se conformarem com essa sua inferioridade, que lhes era
imposta, como já disse, pela mais forte de todas as leis — a de um prejuízo
inveterado, e por assim dizer, universal.
Assim eu conheci na Campanha algumas famílias de pardos, muito
honestos, muito respeitáveis, e que pela sua posição e fortuna, reuniam
todas as condições para pertencerem à classe superior. E com efeito, essas
famílias eram muitas vezes convidadas para os bailes dos brancos. Mas se
eram convidadas e se quase nunca deixavam de aceitar o convite, isto não
quer de modo algum dizer que lá fossem para dançar ou tomar parte no
baile; porque na realidade o que se dava é que elas apareciam nesses bailes
unicamente para ali figurarem como simples espectadoras, ou para lá irem,
como vulgarmente se diz, fazer o papel de simples placas apagadas. E isto
era ainda assim entre o ano de 1841 e o de 1845; pois que embora mais ou
menos esquecido do ano, lembro-me, entretanto, e muito perfeitamente da
noite em que este prejuízo começou a ser derrocado. E eis aqui como o
fato se passou:
Meu Avô havia dado um baile; e como era seu costume, segundo já
tive ocasião de dizer, de convidar para eles toda a gente mais ou menos
limpa da povoação; convidou para esse todas essas famílias de pardos de
que há pouco falei; e em uma das quais havia duas moças que além de
muito bem educadas para aquele tempo, e de muito prendadas, eram ainda
dotadas de uma grande formosura. Os homens que estavam no baile e que
não podiam deixar de admirá-las, começaram a lamentar o prejuízo que as
impedia de dançar; e filosofando sobre o absurdo de um tal prejuízo;
concluíram afinal e concordaram que se devia acabar com ele. Mas deu-se
aqui o mesmo que aconteceu no concílio dos ratos em que se resolveu que
se pusesse o guizo ao gato: todos concordavam que se as devia tirar para
dançar; mas nenhum havia que se animasse a fazê-lo; até que meu pai, ou
por mais desabusado ou por não se receiar que se fizesse mau juízo do seu
procedimento, foi tirar a uma delas; e dado o exemplo, nunca mais se
sentaram. Um tal resultado, entretanto, me parece ter sido antes devido à
beleza daquelas duas moças do que talvez mesmo a um sentimento de
justiça e de igualdade democrática. E isto digo; porque até o tempo em que
saí da Campanha nunca vi que ali se tirasse para dançar a qualquer parda
velha ou feia; e muito menos que os pardos se animassem a tirar uma branca
ou até mesmo a se por na sala para dançar ainda que fosse com uma senhora
da sua cor; porque teria de ser o vis-à-vis de uma branca; e isto para esta
parecia ser um osso um pouco duro de roer.
Passando agora a tratar das danças do campo, eu direi, que se no
campo, como em toda a parte, o negro dança sempre, e que se a sua dança é
sempre o jongo; ao em vez do que acontecia na cidade, no campo, a gente
da primeira classe absolutamente não dançava, e a da segunda dançava
muito. E isto se explica pelo
modo do viver de cada uma delas; pois que ao passo que a vida da família do
fazendeiro era uma vida de isolamento e de uma reclusão mais ou menos completa, a
classe inferior dos habitantes do campo e que se compunha de pequenos sitiantes ou
de camaradas e de agregados dos fazendeiros, viviam, por assim dizer, com as suas
famílias não só ao ar e à chuva, porém, ainda em uma como que completa
promiscuidade, pois que não só toda a família, homens e mulheres juntos se
ocupavam da maior parte dos serviços, e estavam com os vizinhos em relações
muito contínuas, porém ainda ocasiões havia, em que sob o nome de mutirões, todos
esses vizinhos se reuniam para irem ajudar a algum deles que se via com o seu
serviço mais ou menos atrasado ou que tinha urgência de concluir um serviço
qualquer; auxílio este, que embora muitas vezes reiterados, eles entretanto nunca o
deixavam de prestar; e de prestá-lo da melhor vontade; porque além da certeza que
todos tinham da retribuição quando dela precisassem, esses mutirões cujo resultado
era às vezes de importância imensa para aqueles que os faziam, convertiam-se ao
mesmo tempo para todos em um dia de verdadeira festa; pois que embora se traba-
lhasse e se trabalhasse muito; o trabalho, entretanto, tinha mais ares de brinquedo do
que mesmo de fadiga; e o resultado final, depois de todos os comes e bebes, era
muito canto e muita dança.
Ora desta vida assim um pouco em comum e que era ao mesmo tempo de
um trabalho constante e mais ou menos variado, resultava este fato — que não só a
mulher do campo era muitas vezes mais forte do que qualquer homem da cidade;
porém que sendo ela capaz de grandes virtudes, mas sem esse pudor afetado ou mais
ou menos sincero da gente da cidade, não só se mostrava entre os seus iguais de um
desembaraço completo; mas que mesmo em público não se acanhava por qualquer
coisa. E assim, a mulher do campo, que de ordinário andava a pé ainda quando era
acompanhada pelo seu marido ou por algum dos seus filhos que ia às vezes a cavalo,
se era preciso ou se a ocasião para isso se oferecia; sem a menor cerimônia nem o
menor embaraço, ou sentava-se na garupa de qualquer deles com ambas as pernas
para um dos lados, ou então, fazendo do seu vestido ou da sua saia uma espécie de
calças que muito mal lhe cobriam as pernas, montavam como um homem nos
primeiros arreios que encontrava; e ia pela estrada a fora com dois ou três filhos, uns
adiante e outros atrás e ainda por cima alguma trouxa.
Ora eu já disse quanto os negros são alegres; quanto eles gostam de dançar e
divertir-se; e atribuí um semelhante fato à sua fé a que se entregam. Pois bem; a
classe inferior do campo reúne em um grau maior ou menor todas estas
qualidades; e o
resultado que se observa é ainda o mesmo; pois que a verdade é esta — que o
camponês pobre é, como o escravo, o mais alegre, o mais feliz, o mais prestativo, e
ao mesmo tempo o mais hospitaleiro de todos os homens. E como o canto e a dança
são os companheiros mais ou menos inseparáveis da alegria ou de um espírito
descuidado, ninguém também talvez haja que mais dance e que mais cante do que
esses mesmos camponeses. Ao envez, porém, dos negros, cujos cantos são quase
sempre os mesmos e mais ou menos monótonos, os cantos dos camponeses são
feitos em todos os tons; as suas letras variam com as toadas; e essas letras, que são
umas vezes alegres, outras cômicas, e outras finalmente tristes ou pelo menos
repassadas de uma doce melancolia, são eles mesmos quem as compõem. Seria
realmente digno de muito apreço um trabalho que tratasse dessa matéria debaixo dos
diversos pontos de vista pelos quais pode ela ser encarada; isso, porém, não cabe em
um trabalho tão ligeiro ou de simples memória como este que vou aqui fazendo. E
assim, sem estender-me mais sobre este ponto, apenas acrescentarei, que a dança por
excelência da gente do campo ou aquela para a qual nunca se deixa de aproveitar
qualquer ocasião é a que se chama — cateretê —; dança esta, que é extremamente
alegre e muito animada; porque sendo os dançadores por natureza alegres, ela é
ainda acompanhada do canto, de palmas e de sapateados; e dançadas ao som da
viola, que é tocada por um dos quatro dançadores que a formam e que em um
movimento geral e contínuo, umas vezes se cruzam, outras se cumprimentam, e
outras finalmente voltam-se em torno uns dos outros.
Quanto à vida de uma fazenda, era, como acima já disse, uma vida de
reclusão e de isolamento para a familia. Então uma fazenda, longe de ser, como é
hoje, uma como que prolongação da vida da cidade, tinha alguma coisa de um
castelo medieval e ao mesmo tempo da casa de um turco. 0 fazendeiro, esse era
livre; tudo lhe era permitido; e se ele não usava e não abusava do seu poder e da sua
liberdade; era unicamente, porque em geral, os seus costumes eram mais ou menos
puros, e todos eles mais ou menos observadores desse sentimento do próprio
respeito ou da própria dignidade, ou por outra, do próprio decoro.
A família, porém, do fazendeiro, esta tinha alguma coisa de uma escrava, e
ao mesmo tempo, de uma santa que se enche de todos os respeitos mas que se
conserva com todo o cuidado em um oratório para que não se quebre ou não se
cubra de cisco; e como o seu destino era de viver sempre guardada; muito bem
se
poderia também compará-la com essas pedras preciosas ou com esses
diamantes da coroa que apenas aparecem nos dias de maior gala.
E com efeito, à exceção de certos cuidados que exigia o governo
doméstico, pode-se dizer, que a família do fazendeiro passava todo o dia em
um vasto salão, onde a dona da casa, sentada sobre um estrado como uma
rainha sobre o seu trono, via-se cercada de toda a sua corte que eram as
filhas a coser e a bordar junto dela, e em roda do salão e um pouco mais
longe, uma grande fila de escravas que se empregavam em diversos
misteres, mas a maior parte em coser, em fiar e em fazer renda. Naquele
recatado interior nenhum estranho penetrava que vestisse calças, a não ser
algum parente muito próximo e ãs mais das vezes era ainda preciso que ou
fossem muito velhos ou muito crianças; sobretudo se se tratava de primos;
pois que a máxima que então predominava era, que nada se devia tanto
vigiar como três •— P.P.P. —; isto é, os primos, os patos e os padres;
porque diziam eles, os primos, os patos e os padres, são sempre os que
borram a casa.
A mesa dos hóspedes era sempre em uma sala exterior; e se a
importância do hóspede era tal que exigisse a presença do dono da casa,
nesse dia a família comia sem ele. Isto não quer dizer que a família não
visse os hóspedes; porque toda a mulher é essencialmente curiosa; e
nenhuma há que não encontre um meio qualquer de espiar. O hóspede,
porém, nunca via a essas curiosas espiadoras, e quando muito as lobrigava.
Havia, entretanto, certos deveres de civilidade, que não se podiam deixar de
cumprir; e a família não faltava de fazer certas visitas a certas parentas e
comadres, nem de ir assistir no arraial ou na respectiva freguesia às quatro
festas do ano, que eram, senão me engano, o natal que se emendava com o
ano bom, a páscoa ou semana santa e o Espírito Santo; assim como a
qualquer outra festa religiosa que ali se celebrasse. Ainda assim, se nessas
ocasiões, as mulheres podiam tudo ver ou pelo menos ver muitas coisas;
elas, pelo contrário, quase que não eram vistas; porque nunca se mostravam
em público, senão inteiramente veladas; e em casa, em vez de vidraças, o
que se observavam nas janelas eram umas como que venezianas que se
chamavam rótulas, porque eram formadas de umas taboinhas movediças
que se podiam rodar para baixo ou para cima e que ficavam sempre
arranjadas de modo que de dentro tudo se podendo ver, de fora nada
se via.
Só uma coisa havia em que se dava uma grande inconsequência
neste sistema do mais completo recato; e era no modo como as senhoras
cavalgavam; pois que ao passo que hoje em que as modas parecem
apostadas a destruir todo o sentimento do
pudor, uma senhora que cavalga, ou como se costuma dizer, uma amazona,
fica perfeitamente coberta e montada de banda; naquele tempo as senhoras
cavalgavam em umas selas chamadas cavaleiras e que hoje nem mesmo um
homem poderia suportar; e por isso as saias de montar que eram sempre de
pano azul, não só eram curtas e nunca passavam dos tornozelos; mas ainda
eram partidas adiante e atrás; de sorte que embora cobertas por umas calças
largas e compridas que pelos babados que caíam sobre os pés pareciam
fazer de quem as levava uma espécie de pombo calçudo, as suas pernas não
deixavam de ficar mais ou menos em exposição; o que não deixava de ser
também para aquele tempo uma espécie de ofensa ao pudor.
Eu quero crer que os pais de família desses tempos já tão estranhos
para nós, tinham uma perfeita consciência daquela inconsequência, e que se
não procuravam remediá-la, era unicamente por não serem dotados de
um gênio bastante inventivo.
Se, porém, eles não descobriam um meio de fazer a mulher cavalgar
sem aquele inconveniente; elas, entretanto, descobriram um que lhe tirava
todo o perigo, ainda mesmo que elas tivessem de cavalgar sem calças. E
esse meio era o chapéu de que então as cavaleiras usavam e que muito
semelhante ãs primeiras barretinas que teve a nossa Guarda Nacional,
parecia mais ou menos a um barril de oito medidas; com a diferença apenas
de que sendo justo na cabeça, ia sempre se alargando para cima obra mais
ou menos de dois palmos. Ora, com um tal chapéu, parece que não há
mulher, moça ou formosa, que pudesse servir de tentação a ninguém.
Eis aqui, pois, qual era a vida da classe superior dos habitantes do
campo. E se tal era a sua reclusão e o seu resguardo, está bem visto, que a
dança, e que sobretudo a dança de homens com mulheres, seria a última
coisa que pudesse vir ao espírito de semelhante gente. E com efeito, como
eu já disse, a classe superior dos habitantes do campo não dançava; ainda
que não deixasse de fazer algumas festas mais ou menos familiares, como
as que, de ordinário, tinham lugar por ocasião de alguns casamentos. Estas
festas, contudo, não só nunca passavam de um grande banquete que se
tornava notável pela profusão que havia de tudo, mas muito principalmente
dos doces que eram feitos com uma grande perfeição e em cujo números os
que mais brilhavam eram os do gênero alfenim; mas ainda pode-se
acrescentar que longe de haver nessas ocasiões qualquer confusão maior ou
menor das pessoas dos dois sexos; pelo contrário, o que mandava a
pragmática, era que, ou houvesse duas mesas, uma para os homens e outra
para as mulheres; ou então quase todos comessem simultaneamente
na mesma
mesa, os homens ficassem de um lado e as senhoras do outro. Eu mesmo ainda
alcancei uma destas festas de casamento; e devo dizer, que nesta houve dança; mas a
dança não foi de homens e mulheres, nem mesmo da gente da classe superior que ali
se achava; mas essa dança foi executada por três ou quatro moças que tinham vindo
não sei donde; e de cuja dança já bem pouco me recordo; lembrando-me apenas que
uma das piruetas que essas moças faziam terminava sempre por uma barraca; isto é,
por uma volta mais ou menos prolongada que elas faziam sobre si mesmas e que de
repente interrompiam baixando-se; donde resultava formarem as saias do vestido
uma espécie de balão. E como esta barraca era um como que ato de honraria ou de
cumprimento à pessoa junto da qual se fazia; lembro-me ainda que cada qual ou que
os mais desembaraçados não cessavam de pedir uma para si; e quanto maior era a tal
barraca, tanto mais se a aplaudia.
CAPÍTULO XXI
O teatro e os circos de cavalinhos. Chiarini e Candiani. Os divertimentos infantis.
O ensino público. Era um mal ensinar às meninas. Nem modas, sem modistas.
Como se vestiam os homens e as mulheres. 0 lenço e a boceta de tabaco. O rapé
desbanca o tabaco e o charuto desbanca o rapé. O luto de hoje e o luto daquele
tempo. As cavaleiras e os selins. O pagem e os capotes de viagem. Como se faziam
estas últimas. As botas dos mineiros conferiam imunidades e, pelo fardamento do
pagem e objetos de prata que trazia, se avaliava a importância do viajante.
Ferraduras de prata que ficavam pelo caminho. A iluminação das casas e o
luxuoso candieiro de latão.
Já o leitor conhece quais eram os divertimentos com que antigamente a nossa
população se entretinha, tanto no campo como na cidade; e esses divertimentos
pode-se dizer que eram os seguintes; as festas nacionais de que em outro lugar já tive
ocasião de falar; as festas religiosas que eram aquelas de que principalmente então se
preocupava; e finalmente o canto e a dança, que para algumas das classes pelo
menos em que a sociedade então se dividia, constituíam um dos maiores mananciais
de prazer. Nem eu creio que fora destes divertimentos e de alguns outros que são
muito comuns como a caçada por exemplo, outros então houvesse; porque o teatro
que é hoje uma das distrações mais vulgares da população das cidades não existia
então em parte alguma a não ser apenas na capital da província; e até as próprias
companhias de funâmbulos, de cavalinhos e outras que hoje vivem a se cruzarem por
toda a parte, naquele tempo era coisa que nem sequer se conhecia; pois que o
primeiro acrobata que se fez ver na Campanha foi um certo Chiarini; e tão grande foi
a admiração que ali causou, que assim como por muito tempo e não sei se ainda hoje
o nome de Candiani se costumava tomar por sinônimo de uma cantora insigne, por
ser essa a primeira das cantoras italianas que apareceu no Brasil e que a todos encheu
de uma tão grande admiração cantando a Norma; assim também o nome de Chiarini
foi por muito tempo empregado em Minas como um verdadeiro sinónimo de. um
homem extremamente ágil ou de um perfeito dançador de corda.
Quanto aos cavalinhos, esses já são do meu tempo; c a primeira
companhia que deles apareceu na Campanha foi a de um russo chamado
Alexandre não sei se Loanda; e em seguida a de um americano chamado
Stuart.
Se, porém, os homens de hoje parece que gozam de um número
muito maior de divertimentos do que os homens daquele tempo; em
compensação, parece que os meninos ou que os moços de então os tinham,
não só em muito maior número, mas ainda de uma natureza muito mais sã e
muito mais ativa do que os de hoje. Assim, além de que dos meninos
daquele tempo tinham todos ou quase todos os brinquedos que se observam
entre os meninos d'agora; ainda aqueles tinham muitos outros que
desapareceram ou que, na parte quente pelo menos da província, vão cada
vez mais desaparecendo; como o soltar papagaios, por exemplo; como o
jogo do pião; e sobretudo, como o ferrolho ou o tempo-será, que era de
todos o mais comum e o mais constante. Além destes que eram mais ou
menos gerais, havia ainda no sul da província um que lhe era mais ou
menos exclusivo e que muito entretinha a todos os meninos durante todo o
tempo em que havia pinhões. Esse brinquedo era o jogo do pinhão; e
embora fosse realmente um jogo, era, entretanto, o jogo mais inocente de
quantos se tem inventado; porque não tendo ali os pinhões quase que
nenhum valor; esse jogo conservava os meninos ocupados e entretidos e em
constante movimento; e tudo isto sem o menor prejuízo nem perigo; pois
que esse jogo consistia no seguinte: — feito um pequeno buraco no chão e
de preferência junto de alguma parede ou de algum barranco, dois ou mais
meninos colocavam-se em uma certa distância e com um certo número de
pinhões e os atiravam de um em um em direção àquele buraco; e todos os
pinhões que dentro deste iam por acaso cair, estavam ganhos ou já fora de
combate.
Então tratava-se de encovar por meio de piparotes que se davam
com o dedo polegar ou com outro qualquer dos dedos da mão os restantes
pinhões que tinham ficado por fora; de sorte que regulada a precedência
pelo maior número de pinhões que ao princípio atirados, tinham caído no
buraco, ou no caso contrário, pela maior proximidade em que do mesmo
buraco haviam caído, aquele dos jogadores a quem cabia a preferência, ia
sempre jogando enquanto os ia encovando; e quantos encovava tantos
ganhava; até que falhando uma vez, seguia o companheiro imediato; e
assim por diante.
Estes eram os divertimentos ordinários dos meninos. Como, porém,
o homem é por natureza um verdadeiro macaco que tende sempre a
imitar tudo quando enxerga; e como os meninos são
ainda muito mais macacos do que os homens; já se vê quantos não-seriam os
brinquedos que eles não inventariam por meio da imitação . Eu, pois, sem me
alongar sobre este ponto, apenas direi, que assim como, desde que chegava à
Campanha, uma dessas companhias de que acima falei; desde logo não se via por
toda a cidade senão meninos e mesmo às vezes alguns rapagões que nada mais
faziam do que andarem a rodar pratos em um pau, a dançarem em uma corda bamba
ou tesa ou a se equilibrarem em cima de um cavalo em pelo; assim também logo
depois da revolução de 1842, não se viam pelas ruas da cidade, senão meninos em
bandos que armados de espadinhas de pau ou de taquara, e tendo na cabeça um
chapéu armado de papel, viviam constantemente a se desafiarem e a fingirem que se
combatiam; até que, em vez de meninos, tendo-se formado um desses bandos com
moleques ou meninos já taludos, um rapaz já quase homem que se chamava
Faustino e que era irmão daquele João Joaquim de quem falei por ocasião da escola,
se lembrou de por-se à frente dos meninos pequenos, e quase que só, por assim
dizer, mas armado de uma verdadeira espada, foi desafiar aquele bando de
moleques; e tendo se seguido ao desafio uma briga real, ou um combate em que
houve um ou mais feridos, a polícia ou as famílias intervieram e pos-se termo a
uma semelhante brincadeira.
Deixemos, porém, de parte todos esses brinquedos; e tratemos agora de
algumas outras coisas.
Desde muito cedo me parece que a Campanha teve uma escola pública de
meninos. Mas a tivesse ou não, o que é certo, é que raríssimo era o menino de
dentro da povoação que não tivesse mais ou menos uma tintura qualquer de ler, de
escrever e até mesmo de contar. E como, segundo eu já disse, a minha escola era
frequentada por mais de cem alunos; já se vê que se alguma coisa ali faltava, não era
com certeza o desejo de aprender. Quando me conheci por gente, já na Campanha
existia uma aula pública de meninas que tinham uma frequência talvez de cinquenta
alunas; e ainda me recordo de ter ali alcançado uma velha muito velha que tinha
sido professora de meninas; mas sem que eu saiba se tinha sido pública ou
particular. Sei unicamente que sem nunca ter tido as habilitações do meu mestre,
esta velha tinha sido, entretanto, tão maligna como ele; com esta diferença, porém,
— que se ele, como homem, dava bolos e puxava os meninos pelos cabelos, ela
como mulher, quase que gangrenava os braços das meninas a poder de beliscões; o
que de nenhum modo excluía a vara de marmelo e muitos outros castigos.
Feliz ou infelizmente, bem poucas, segundo creio, eram as vítimas de uma
semelhante megera; porque naquele tempo, longe de considerar-se uma verdadeira
prenda o saber uma menina escrever, era isso, pelo contrário, considerado um mal;
porque, segundo se pensava e se dizia, um tal conhecimento apenas servia para que
a moça pudesse escrever bilhetes ama-tórios; sem que entretanto ninguém então se
lembrasse, que assim como não há cadeia nem sentinela que prive a um preso de
comunicar-se com o exterior, e que assim como não há quem mais se queime do que
aquele que nunca lidou com o fogo; assim também, não há uma só mulher que se
consiga isolar de todo, nem moça que mais fraca se mostre do que aquela que pela
sua própria inocência ou pela sua ignorância, ao primeiro contacto do homem se põe
logo a tremer e a abrasar-se.
Como naqueles tempos não havia modas nem modistas, e, se aparecesse uma
dessas máquinas de costura que hoje por aí se encontram a cada canto, seria tomada
como uma invenção diabólica; a primeira coisa que uma menina tratava logo de
aprender era o coser; porque tudo se cortava e tudo se fazia em casa. A verdade,
porém, manda que se diga que esse tudo era bem pouco; porque ao passo que o ferro
de engomar (que se compunha de duas línguas de ferro que se aqueciam ao fogo e
que revezadamente se punha dentro de uma capa de metal amarelo) quase que não
saía do seu esconderijo, senão nas vésperas de algum dia santo, e só verdadeiramente
trabalhava em ocasião de grandes festas; por outro lado, isso de muitos babados e de
muitas saias que só servem para disfarçar as formas, era ainda então um grande
pecado; entretanto, que naquele tempo ninguém sabia o que era uma roupa acabar-se
sem ser por velha, mas unicamente por estar fora da moda; e muito menos ainda, o
mudá-la quando estava limpa.
Demais, como a luva era um traste exclusivamente militar, e as meias ainda
não passavam de objeto de luxo ou apenas dos dias dúplices, o resto do vestuário
não podia deixar de se harmonizar mais ou menos com as ideias que então assim
reinavam. E com efeito, o que apenas fazia o luxo ou constituía a maior vaidade das
mulheres daquele tempo, pode-se dizer que não passava da alvura a mais completa
da roupa, dos crivos e rendas com que ornavam até mesmo aquelas peças do seu
vestuário que nunca apareciam; e finalmente e mais que tudo, das jóias e adereços
com que procuravam sempre tornar-se e dos quais os mais comuns e ao
mesmo tempo os
mais apreciados, eram os cordões e relicários de ouro com que não
havia pescoço que mais ou menos não se ornasse.
Em casa os vestidos de que se usava eram todos muito corridos e
quase que sem nenhum enfeite; e em vez de colchetes, eram fechados na
cintura por duas pontas ou cordões, um dos quais passava por um furo que
se fazia no cadarço do cós e ia se atar com outro na frente. Os vestidos eram
geralmente de chita e quase sempre de uma chita azul de florzinhas
amarelas; porque muito poucas eram as qualidades de chitas que então havia
e os padrões destas nunca variavam. Se se tinha de receber uma visita de
alguma cerimônia, de ordinário trocava-se o vestido de casa por outro de
chita ou cassa; e para isso nunca faltava o tempo; porque a não tra-tar-se de
parentes ou de pessoas de muita intimidade, nunca se fazia uma visita, sem
que primeiro se mandasse saber se a pessoa visitada estava em casa e se
dava licença para que se lhe fosse fazer aquela visita.
Para os grandes dias ou para os atos de maior solenidade é que então
saíam os ricos vestidos de seda ou de veludo; e era nessas ocasiões que se
ostentavam o cetim, as rendas e as fitas. Entretanto, como a decência exigia,
que sobretudo na igreja, uma mulher não se apresentasse senão o mais
velada que fosse possível, não havia em geral para as mulheres nada que lhe
fosse tão necessário como um lenço que lhe cobrisse a cabeça ou um chalé
para se envolver e que segundo as posses de cada um ia do algodão o mais
barato até a mais rica e mais fina cachemira.
Em vez, porém, do chalé, aquilo de que a maior parte das mulheres
usava, era em casa de um timão de baeta que umas vezes chegava apenas
até a cintura e outras descia abotoado até os pés; e, para sair, de uma capa
como essa de que se cobre N. Senhora e que era sempre de baeta azul, com
esta única diferença de ser, segundo as posses, a baeta mais fina ou mais
grossa e de ser as capas das senhoras ricas sempre bandadas de cetim azul
mas de uma cor um pouco mais clara do que a da capa.
Quanto ao vestuário dos homens, esse não era menos simples, e era
talvez ainda mais fora de modas do que o das mulheres. Assim, um
fazendeiro andava regularmente em casa com uma camisa de algodão muito
fino e muito alvo, sem gravata; com calça e jaqueta ou vestia como então se
chamava de algodão ou de lã, tudo fiado e tecido em casa; chinelos de
couro branco sem meias; chapéu de palha de abas mais
ou menos largas; e uma mangoara na mão, de que se tinha sempre um
grande sortimento encostado a um canto da sala de entrada; mangoara essa,
que servia a quem a levava, além do mais, primeiro para matar cobras;
segundo para ajudá-lo a caminhar ou a dar algum pulo; e terceiro
finalmente para defendê-lo contra tudo e contra todos.
Assim como a mulher do campo andava sempre descalça e quase
que não se vestia senão de uma camisa e saia de algodão e às vezes de um
timão de baeta contra a chuva e contra o frio; assim também, o homem do
campo andava sempre descalço e só vestia uma camisa e uma calça de algo-
dão que era presa na cintura por uma correia que se apertava com uma
fivela e nesta correia nunca deixava de estar enfiada uma faca com
bainha.
Tanto o fazendeiro como todos os habitantes do campo, tinham a sua
roupa especial de irem ãs festas a que eles chamavam a sua roupa de ver a
Deus. Esta roupa que mais ou menos se parecia com a da gente da cidade
das suas respectivas condições, era quase sempre a mesma e constituía para
eles uma espécie de uniforme. 0 fazendeiro viajava como os homens ricos
da cidade, do que me ocuparei daqui a pouco.
Os outros homens do campo viajavam como andavam em casa; salvo
se não eram inteiramente pobres; porque neste caso se preparavam para a
viagem com uma jaqueta ou roupa um pouco melhor. Aquilo, porém, de que
nenhum deles prescindia era de uma ou duas esporas de ferro mais ou
menos velhas e enferrujadas, e os metidos a piões de umas muito grandes
que se chamavam chilenas cujas imensas rosetas eles faziam garbo de
arrastar quando andavam; mas sobretudo do ponche, que era uma peça de
pano azul forrado às mais das vezes de baeta e que era cortado quase que
redondo com uma abertura no meio por onde se enfiava o pescoço; ponche
este que o abrigando sempre contra o frio. e, ao mesmo tempo, a ele, e a
alguma trouxa que levava na garupa, contra a chuva, lhe servia igualmente
de cobertor durante a noite. Quase todos os homens do campo montavam
em um selote que se chamava lombilho e que se compondo apenas de
algumas tábuas cober tas de couro, não tem suadouro mas se assenta sobre
um pequeno colchãozinho de palha ou capim que anda solto; e que por isso,
sendo de todos os arreios o mais simples, o mais seguro, e ao mesmo
tempo, o mais barato, quase que não há ninguém que o não possa possuir.
Aqueles, porém, que eram mais abastados ou mais luxuosos, em vez de
lombilho, faziam uso do basto, que sendo mais ou menos um
lombilho em ponto
maior mas sem as duas saliências que o lombilho tem adiante e atrás, sem nenhuma
das suas asperezas, e em tudo trabalhado com muito mais perfeição e até às vezes
chapeado de prata nas suas duas cabeças, além do suadouro' que tem e que se põe
sobre uma ou mais mantas, ainda leva por cima um ou mais forros, sobre os forros
um cochonilho e sobre este um pelego ou uma pele de carneiro curtida; o que tudo
concorrendo para tornar o assento muito macio, pode ainda em caso de necessidade
fornecer ao cavaleiro uma bem sofrível cama.
Os homens da cidade andavam em casa de camisa de morim ou de
riscadinho; de jaqueta de brim ou de outro qualquer pano de lã ou de algodão, de
calças das mesmas fazendas mas principalmente de um algodão trançado de cor azul
ou mesclado que era então muito comum e que se chamava tré; sendo as jaquetas
mais ou menos como os atuais palitos, porém, sem abas ou chegando só até a cintura
e com algibeiras dos dois lados para o lenço, a boceta de tabaco, ou qualquer outro
objeto que ali se quisesse guardar; e sendo as calças que aos ombros se prendiam
por suspensórios de algodão, sem nenhum dos excessos de largura ou de estreiteza
em que vivem sempre as de hoje; mas sempre invariáveis e em vez da abertura que
as de hoje têm na frente, tendo as daquele tempo uma peça que presa em cima por
botões se podia descer quando era preciso e que se chamava alçapão pela sua
semelhança com essa pequena gaiola em que se caçam passarinhos.
Para os atos menos solenes os homens que em casa andavam de sapatos de
cordavão ou de couro branco, saiam de botinas de cordavão de lustre ou cego e com
altos canos que ficavam por baixo das calças; com colete ou jaleco como então se o
chamava, e que era de fustão, de pano, ou de seda ou veludo; com uma calça de
brim ou de pano azul, preto ou cor de vinho; e com uma sobrecasaca comprida
também de pano ou como então se dizia com um robes.
Como, porém, nem todos podiam ter a sua roupa de pano, para substituí-lo,
fazia-se uso da sarja, mas sobretudo de uma fazenda que então era muito
comum e que se chamava lila.
Para os grandes dias ou para os atos solenes ou de cerimônia, o uniforme
era este — os botins de que acima falei; calças de pano preto; colete da mesma cor;
casaca de pano preto com a gola muito alta: camisa muito fina e toda bordada nos
punhos, no peito e até às vezes no próprio colarinho;
gravata de papelão coberta de seda preta e mais alta talvez ainda do que a
gola da casaca; e finalmente chapéu preto de copa alta desses que hoje se
chamam cartolas, mas que então tinham as abas mais estreitas e a copa mais
alta. Desde que os homens chegavam a uma certa idade, andavam em regra
de bastão de diversas qualidades e dos quais os mais ricos eram os de
unicôrnio que chegavam a custar muitas dezenas de mil réis; e bem assim
de relógios que pela sua forma e tamanho às vezes se chamavam cebolas;
pois que além de serem muito grandes ainda estavam encerrados em uma
grande porção de capas de prata que no abrir ou tirar muito se pareciam a
uma cebola que se descasca; tendo esses relógios além da fita ou do cordão
de ouro que os segurava, um grande número de penderucalhos alguns dos
quais se compunham de pedras mais ou menos preciosas.
Fosse, porém, qual fosse o vestuário com que se achasse o homem
de certa posição ou o lugar em que ele estivesse, dois eram os objetos de
que ele nunca se desprendia, e que a não serem os óculos para aqueles que
deles faziam uso, eram sempre considerados como dois objetos da maior
necessidade. Esses dois objetos eram— o lenço e a boceta de tabaco. E isto
muito naturalmente se explica pelo grande uso que então se fazia do tabaco
em pó; pois que é preciso dizer que se o uso que então se fazia do fumo era
o mesmo que se faz hoje; e que assim como hoje, já era cheirado, pitado,
fumado, mascado e também usado em mechas; houve, entretanto, entre as
duas épocas uma diferença muito notável; e é, a que se dá entre a
quantidade do fumo que então se cheirava e fumava e a que hoje se cheira e
fuma. Assim, da mesma sorte que hoje, a mecha e a masca se encontrava
em qualquer das classes da população, mas em escala extremamente
diminuta; o cigarro que se achava um pouco por toda a parte era o vício
comum das classes baixas tanto de um como de outro sexo; e o cachimbo
que um pouco por exceção era encontrado aqui e acolá, era o verdadeiro
vicio dos escravos e sobretudo dos escravos velhos; havendo ainda alguns
africanos que em vez do fumo, fumavam o pango, que é uma erva que
existe em nossos matos e que parece eles fumavam sem ser em cachimbo.
Pelo menos um que eu vi fumar, o enrolou em uma folha a que ele deu a
forma de um funil; pos--Ihe fogo; e segurando ou amparando com a mão
aquele cachimbo de nova espécie, ele ia tirando baforadas muito maiores
talvez do que aquelas que se tiram no pito.
A grande diferença, portanto, que entre as duas épocas realmente
existe, vem a ser a seguinte — que naquele tempo o fumar ou cigarrar
passava como um vício pouco decente e que
praticado por moços e sobretudo meninos, era não só uma falta de respeito mas até
mesmo uma quase que prova de maior ou menor imoralidade. Daqui vinha que das
pessoas de certa ordem bem rara era aquela que não tomasse tabaco, isto é, que o
não cheirasse.
Como, porém, naquele tempo ainda não havia aparecido nenhuma dessas
diferentes espécies de rapé que hoje existem, o tabaco que então se tomava, era
unicamente o de fumo torrado e moido, as mais das vezes mesmo em casa; e que se
era grosso e mais torrado, se chamava esturro; e se era fino e preparado com mais
cuidado, se chamava amostrinha. Além destes, porém, havia um terceiro que só a
poucos cabia — era o ilhéo que tinha um cheiro muito mais agradável do que os dois
outros e que era feito de um fumo especial e que só dá em um dos municípios do
litoral de S. Paulo — o de S. Sebastião — senão me engano, e que aí dá, segundo
ouvi dizer, não na ilha donde lhe veio o nome, mas na parte continental do seu
município.
Era isto o que então se observava; mas tendo depois aparecido o rapé e quase
em seguida o charuto; não só o rapé foi pouco a pouco desbancando todos aqueles
tabacos; mas ainda o charuto tornando-se um vício aristocrático, ao passo que foi ex-
cluindo mais ou menos o rapé por toda a parte, foi ao mesmo tempo, tirando ao
cigarro todas as máculas de que ele até então tinha andado tão inquinado; e o
resultado, todos aí o estão vendo; e é, que do mais alto até o mais baixo ponto da
nossa sociedade bem poucos são aqueles que não fumam muito ou pouco.
Ora, isto que hoje se observa com o fumar, era o que mais ou menos se dava
antigamente com o cheirar; e se as classes inferiores podiam prescindir da boceta;
porque para isso lhes servia qualquer pedaço de papel ou qualquer canudinho de
taquara com uma tampa de cuia; e se podiam prescindir do lenço, porque se
assoavam como fazem ainda hoje os brahmanes na índia; o mesmo não podiam
fazer os homens das classes mais elevadas ou que se tinham na conta de bem
educados; e daí essa tão grande importância que tinha para todos, não só a boceta
que muitas vezes era de prata ou de ouro, de muito valor; mas ainda o lenço que era
geralmente de alcobaça dobrado com ferro em forma de livro cujas folhas iam se
enchendo com todo o cuidado e método e que para certas pessoas costumavam a ser
de seda da Índia e daquela, como há muito tempo, já ninguém mais vê — fina,
pesada e forte.
A vestimenta de que então se servia para luto, era para os pobres de roupa
tinta de baraúna, campeche, ou outras espécies vegetais que possuímos e cuja
cor se consolidava ou
fixava por meio do tijuco; e para os ricos das diferentes fazendas de lã que
estão existiam. Be todas essas fazendas, porém, a que parecia gozar de um
certo privilégio para esse fim, era uma baeta congeste.
E já que falo nesta matéria, eu não quero deixar, ainda que muito de
passagem, de fazer aqui uma observação; e é, que se muito grande tem sido
a mudança que se tem operado em todos os nossos costumes, em nada essa
mudança tem sido tão grande como no que se refere a esse sentimento, não
sei se diga das conveniências ou se do respeito ao que é ou nos parece dever
ser respeitado, e que se poderia talvez chamar o sentimento do decoro. E
isto digo; porque assim como hoje o luto não passa de uma coisa
inteiramente banal e não é para as mulheres mais do que um novo pretesto
para novas modas; assim também nada há por mais sério e grave que não se
trate mais ou menos em ar de resto ou de pouco caso; de sorte que mesmo
na própria câmara dos deputados que é um dos ramos e o mais importante
talvez da soberania nacional, se alguém por acaso ali entra, em vez de ali
achar o que muito naturalmente lhe parecia dever achar, isto é, alguma
coisa de solene e majestoso ou o recinto augusto dos digníssimos
representantes da nação, o que de fato ali encontra ou aquilo pelo menos
que lhe parece ver, é apenas um simples clube, já não digo de homens
sérios, mas de estudantes mais ou menos malcriados, que vestidos muito a
ligeira, e fazendo grande algazarra, quase que só falta que se deitem ou que
ponham as pernas sobre a mesa do próprio presidente; entretanto, que
antigamente, não só o luto era extremamente rigoroso e havia casos em que
não durava menos de um ano; mas não havia um só homem que se
prezasse, que se animasse a fazer uma visita de cerimônia ou apresentar-se
em certos atos graves sem que fosse com aquele seu uniforme solene de que
acima falei; dando-se ainda mais esta circunstância — que isto não
restringia-se unicamente às classes ricas, mas que pelo contrário, até o
próprio artista, desde que podia ter uma pequena reserva, nunca deixava de
prover-se logo de uma casaca melhor ou pior, mas que lhe deveria servir
para com toda a decência se apresentar em todas as ocasiões de uma
solenidade qualquer.
Deixemos, porém, de parte esta observação que aqui se veio meter
como um pingo de tinta que da pena por descuido nos cai as vezes no papel;
e digamos que assim como não havia uma só mulher que não tivesse o seu
chalé ou a sua capa; assim também não havia talvez um só
homem que não
tivesse o seu tapa-frio e tapa-chuva, ou em outros termos, o seu capote. A única
diferença a este respeito é que, segundo as posses de cada um, este capote ou era de
baeta e as mais das vezes de baeta cor de vinho; ou de escossia e barregana que eram
umas fazendas de lã todas listadas e de cor verde ou cor de rosa; ou finalmente de
pano azul forrado de batis-ta ou de alguma outra fazenda ainda mais leve; e alguns
dos quais além da gola de veludo de couro de lontra, e dos botões e alamares que
eram algumas vezes de prata, ainda tinham um ou dois cabeções por onde se
enfiavam os braços que podiam desta sorte ficar livres ou cobertos.
Antigamente parece que todos os homens da cidade não andavam senão em
umas selas fundas que se chamavam cavaleiras e que eram aquelas mesmas em que
as mulheres também andavam, como já disse há pouco, e nas quais bem raros se-
riam aqueles que não fizessem boa figura; pois quem nelas se metia, quer quisesse
quer não quisesse, ficava logo teso e como se estivesse em pé sobre os estribos cujo
fundo abaixo do pé tinha a forma de um pequeno sino ou de uma campainha toda
rendada.
Quando, porém, eu comecei a perceber as coisas, já ninguém andava senão
em selim; mas em vez de serem esses selins como os ingleses de hoje que mal se
enxergam sobre o lombo do animal, eram pelo contrário, como costumavam ser
todas as obras portuguesas, uns selins pesados e ao mesmo tempo sólidos com dois
coldres adiante onde de ordinário se traziam as pistolas e que de mais a mais
andavam um excelente cômodo para se carregarem as crianças que ainda não
podiam ser levadas na garupa.
Quando um homem de alguma importância tinha de viajar, nunca saia sem
que levasse seu pajem que lhe conduzia as malas e o seu capote; porque naquele
tempo, em vez do ponche branco que depois se usou para nos abrigar dos raios do
sol, do que então se procurava abrigar era do frio e da chuva, para o que este de nada
serviria; e eu conheci a um advogado de Baependi chamado Olímpio Carvalho
Viriato Catão e que foi presidente do Espirito Santo, o qual na maior força do sol se
embrulhava sempre no seu capote; porque, dizia ele, era esse o melhor preservativo
contra os efeitos dos raios solares. E o que mais é, estranhando eu o absurdo de uma
tal proposição, achei alguém que asseverou-me ser ela, pelo contrário, muito
verdadeira. Como, porém, nunca tive ocasião de por mim mesmo experimentá-
lo, nada afirmo nem nego.
Quando a viagem era de alguns dias, em vez de mala, levava-se um
cargueiro de canastrinhas e um ou mais cavalos à dextra; e se a viagem era
uma viagem prolongada ou com família como a que se fazia à Corte, nesse
caso, era necessário levar ainda cargueiros de cangalha com as canastras e
às vezes com a cozinha, porque não havendo na província do Rio de Janeiro
a proverbial hospitalidade mineira, e faltando pelo caminho estalagens, ou
hotéis como se diz hoje, o recurso único eram os ranchos abertos onde
dormiam os tropeiros, e onde com as canastras e com os couros que serviam
de coberta aos cargueiros, se arranjava uma espécie de cubículo e aí a cama;
ao mesmo tempo que se cuidava na comida, pondo--se, apenas se chegava,
o feijão a cozinhar em um pequeno caldeirão que por uma forquilha de pau
ou de ferro atada a uma correia, se suspendia a uma espécie de tripeça que
se fazia com três paus e que se abria sobre o fogo.
Desde que um homem montava a cavalo e que não ia dar um simples
passeio pela povoação e seus arredores, um traste, por assim dizer, tão
indispensável como o próprio selim, eram umas botas de couro de veado
que lhe subiam até acima dos joelhos; e cujo uso se tornou tão comum entre
os mineiros, que por elas eram eles conhecidos na Corte, e ainda nas
ocasiões do mais forte recrutamento que ali se fizesse, quem nelas se
achava metido estava completamente imune ou ainda muito mais isento de
ser preso, do que os próprios estudantes, que para não serem recrutados,
nunca deixavam de trazer no bolso uma espécie de papeleta que para esse
fim lhes era fornecida por quem de direito.
Assim como em vez do ponche branco que hoje se usa era do capote
que então se usava para viajar; assim também, em vez da coberta de linho
que hoje se põe nos chapéus, naquele tempo, pelo contrário, era de oleado
preto a coberta que se lhe punha.
Por onde, porém, melhor se poderia conhecer o valor social ou a
riqueza do viajante, era pelo fardamento do pajem com o seu chapéu alto de
couro envernizado, e um pouco também pelos objetos de prata que ele
ostentava, como eram de ordinário as esporas, o freio, e a caldeirinha que o
pajem levava sempre a tiracolo, para nela se beber água em caminho; pois
que é preciso dizer, que naquele tempo havia tanta prata em Minas, que
muito rara era a casa de uma certa posição, que além dos talheres, não
tivesse um grandemero de outros objetos desse metal, como salvas,
paliteiros, castiçais, etc.
E eis aqui um fato que é bastante característico e que prova o que eu acabo
de dizer. 0 segundo sogro de meu Avô foi o Coronel Matias Antônio Moinhos de
Vilhena. Eu ainda o conheci; mas já muito velho; e nessa ocasião inteiramente
pobre. Tinha sido entretanto um homem muito rico; e ou por ostentação da sua
riqueza ou para fazer alarde da sua magnanimidade, um dos seus costumes, pelo
qual se tornou célebre, era, segundo mais de uma vez ouvi dizer, de mandar ferrar o
seu cavalo com ferraduras de prata, presas por alguns cravos mal seguros; e quando
em um dia de festa passava por algum lugar em que o povo estivesse reunido ou
defronte de alguma casa em que as janelas estivessem cheias de moças, ele
esporeava o cavalo e o fazia saltar ou jinteare de modo que a ferradura caía, e
continuava o seu caminho, sem que nem sequer olhasse para trás ou fizesse o menor
gesto para que se apanhasse a ferradura.
Sendo muito moderno o uso do espermacete e de todas as suas composições
ou imitações, e muitíssimo mais moderno sendo ainda o querosene; antigamente só
havia quatro espécies apenas de luz para a iluminação das casas, e eram — as velas
de cera do reino que só serviam nos dias de maior cerimônia; a vela de sebo que nas
casas ricas eram mais ou menos empregadas; as diversas candeias ou candieiros de
azeite; e finalmente o rolo de cera da terra, que era uma torcida de algodão
envolvida nessa cera, e que enrolada em forma de rodilha servia aos pobres em lugar
das velas de sebo; pois que além da facilidade de as fazer, ainda o rolo ou essas
velas de cera tinham a grande vantagem de dispensar mesas e castiçais e de se poder
pregá-las nos portais ou em qualquer outro objeto de madeira. De todas essas luzes,
entretanto, a mais geral ou aquela que, pode-se dizer, se encontrava da sala até a
cozinha, era sempre a do azeite; pois que sendo a mamona uma vez plantada, uma
dessas plantas que por si mesma se conserva e cada vez mais se estende, o seu azeite
sendo então muito comum e muito barato, para se ter luz nada mais era preciso do
que um capucho de algodão e um caco de xícara ou de panela; entretanto que para
empregá-lo mais decente ou mais asseadamente, não só havia um grande número de
candeias de ferro mais ou menos baratas e que se espetavam, pelos portais ou
mesmo pelas paredes; mas ainda havia o grande e luxuoso candieiro de latão que se
punha sobre a mesa e que ali se ostentava muito areado e muito alto, com
os
seus quatro bicos que nem todos se acendiam ao mesmo tempo, e com um
grande número de penderucalhos, dos quais, uns serviam para espevitá-lo,
outros para cortar a torcida, outros para apagá-lo, etc.
Tendo esgotado tudo quanto me veio ao pensamento sobre esta
matéria e que me parece valer a pena de aqui mencionar; eu vou agora
continuar cronologicamente a série das minhas recordações.
CAPÍTULO XXII
O que era naquele tempo a instrução pública na província. Na Campanha
leria uma cadeira de latim. Estudantes que vinham de longe, para aprender
essa matéria. Joaquim Delfino e seu irmão Antônio Máximo. O primeiro
representa, num teatro improvisado, o papel de general russo. Joaquim
Delfino e Afonso Celso. Sua vertiginosa carreira política. O professor de
latim, na Campanha, era o Padre Manuel João Damasceno. Seu caráter e
seus conhecimentos. Ele introduz na Campanha a cultura das abelhas e ia
homeopatia. O seu método de ensino. A não ser o latim, nada mais se
ensinava na Campanha.
Tendo feito o meu exame de primeiras letras em dezembro de 1842,
eu me retirei para a nossa Fazenda e aí me conservei até meados de 1843
em que depois das férias do Espírito Santo vim de novo para a cidade, a fim
de ali começar com o meu estudo de latim. Desde então me conservei
sempre na Campanha, ora em casa do meu Avô, ora em casa do meu tio
Martiniano; porém a quase totalidade do tempo em nossa própria casa, onde
ao princípio fiquei sozinho com uma escrava que tinha vindo da Fazenda
para me servir; depois com uma parda velha e muito gorda que havia sido
atriz no Ouro Preto no tempo dos capitães generais e que por isso muito me
divertia contando histórias daqueles tempos; e finalmente com meu tio Dr.
Gaspar que ali veio residir em companhia de minha tia D. Ana. Antes,
porém, de falar da minha estreia como estudante, julgo dever dizer algumas
palavras sobre a aula e sobre o professor de latim na Campanha.
Ainda alguns anos depois da nossa independência, a instrução
pública em Minas era extremamente limitada; pois que além de algumas
escolas de primeiras letras, que aqui e ali se encontravam e de dois colégios
dirigidos por padres e dos quais, um se achava estabelecido em Congonhas
do Campo e o outro no Caraça, quase que em toda a província não existia
outro qualquer estabelecimento de instrução secundária, que não fosse o
seminário de Mariana em que se preparavam os padres, e uma simples
cadeira de latim em algumas das principais vilas da província. A
Campanha era uma dessas
vilas privilegiadas; e como era a única que no Sul de Minas gozava dessa vantagem;
para ali vinham estudantes de todos os pontos, não só mais vizinhos, como Pouso
Alegre, Baepen-di, Três Pontas etc.; mas até mesmo de alguns muito mais distantes,
como Jacuí por exemplo, donde era um estudante que eu cheguei a conhecer e que
se chamava Carvalhaes, o qual tendo ido jogar estrudo em casa de uma família e
vendo-se de repente sem limões e atacado por todos os lados pelas moças que o
perseguiam, corre afinal para a cozinha; apodera-se de um barril cheio d'água; faz
dele um verdadeiro canhão Krupp; mas com tal entusiasmo ou com tal infelicidade
o maneja, que o arco do barril, ferindo-lhe a mão sem que ele entretanto o
percebesse, quase que lhe decepou dois dedos; o que o obrigou por muito tempo a
trazer esses dois dedos envolvidos em alguma coisa que me parecia, ou que era com
efeito, dois grandes dedos de couro.
Desses moços, porém, que não sendo de dentro da cidade ali vieram se
preparar em latim, o primeiro talvez que cheguei a conhecer, foi o conselheiro
Joaquim Delfino que morava com o seu irmão, o Dr. Antônio Máximo, em casa de
sua Avó ou de uma sua parenta que ficava em frente à casa do meu Avô.
Embora fosse ainda muito criança quando ambos partiram para S. Paulo,
conservo de ambos algumas lembranças, como por exemplo de vê-los uma tarde
expondo da janela do quarto em que moravam um espelho ao sol, e malignamente se
divertindo em perseguir com os reflexos do espelho as pessoas que ficavam defronte
ou que iam passando pela rua. De todas essas lembranças, porém, a que mais viva
me ficou, e que ainda hoje me parece ter sido uma coisa passada ontem, foi a de ter
visto aquele conselheiro representando em um teatro que se havia armado no largo
da Matriz. A peça era "Pedro, o Grande"; e embora quem representasse o papel de
Catarina, fosse o Tenente Francisco Ferrão de Almeida Trant, que, há pouco,
faleceu maior de setenta anos, o papel que coube ao conselheiro Joaquim Delfino,
foi o de um general russo, ou como então se dizia e ele mesmo parecia acreditar, o
de comandante superior.
E o que é certo, é que tártaro ou moscovita, aquele general russo se
apresentou em cena exatamente como se fosse um simples oficial da nossa Guarda
Nacional. Naquele tempo o conselheiro Joaquim Delfino devia ter de 14 para 16
anos; e se o seu rosto nunca foi dos mais cabeludos, naquele tempo muito mais
parecia o de uma menina do que mesmo o de um rapaz.
Para que, portanto, pudesse parecer um general, tornou-se preciso, que se
lhe fizesse com uma cortiça queimada um bom par de bigodes, e não sei se também
suiças. Hoje eu estou tão indiferente a tudo, que se o conselheiro Joaquim Delfino
me quisesse dar a sua pasta da guerra em troca desta minha tão completa e tão inerte
quietação, com toda a certeza a rejeitaria; mas, naquela ocasião, imensa foi a inveja
que ele me causou; pois que estava realmente um soldadinho muito bonito e muito
simpático: e nem outro defeito eu lhe achava no uniforme e na figura senão este —
parecia-me que a espada era algum tanto grande demais para ele; de sorte que apesar
de a estar sempre arrastando, para que a conservasse em um certo equilíbrio, era
preciso que ele nunca tirasse a mão esquerda do punho; e para o fazer via-se de
alguma sorte obrigado a conservar o braço um pouco levantado; e que além de não
ser muito airoso, devia afinal acabar por cansar.
Naquele tempo o conselheiro Joaquim Delfino gozava na Campanha e seus
arredores da fama de um talento verdadeiramente extraordinário ou era tido por
todos como uma aguiazinha que se emplumava para se arrojar aos mais altos voos.
Eu nunca dei muita importância a essas patentes de gênio que se obtém com tanta
facilidade nas terras pequenas; porque de ordinário esses gênios de aldeia muito se
assemelham às bolhas de sabão que se sopram e das quais raras são as que sobem e
ainda assim para logo arrebentarem; entretanto que a maior parte delas nada mais
fazem do que descer ou então arrebentar sem descer nem subir. 0 conselheiro
Joaquim Delfino, porém, não desmentiu inteiramente o juízo que dele se fazia;
porque, se não foi um Paraná ou um Vasconcelos, galgou, entretanto, as maiores
posições do estado, e as galgou, e é aqui que está o elogio, sem que ninguém
achasse que havia nisso simples favor da sorte ou alguma muito grande injustiça.
Ora se o subir assim tão alto é já um bom atestado de capacidade, muito melhor se
torna ainda esse atestado, quando se sabe que a subida foi tão rápida, que, na
província pelo menos, não há exemplo de outra igual, a não ser a do conselheiro
Afonso Celso que antes dos trinta anos era ministro, e mal tinha os quarenta, já era
senador e pouco depois conselheiro de estado.
Nem é esta a única semelhança que se encontra no destino destes dois
homens; mas pelo contrário, muitos outros pontos de contacto são os que se podem
notar na vida de ambos. 0 ponto de partida foi mais ou menos o mesmo; os meios os
mesmos; e o mesmo foi também o resultado. Um fato, porém, que se torna
inteiramente digno de nota, é o seguinte — que sendo o Conselheiro Afonso Celso
um gênio extremamente fogoso e susceptível,
ou como vulgarmente se diz, um verdadeiro pimenta; e o outro, na
aparência pelo menos, extremamente paciente e pacato; tais foram as
afinidades que entre ambos haviam, pode-se dizer — apenas se viram logo
se amaram; de sorte, que tendo dês dos seus princípios se tornado amigos,
amigos ainda hoje se conservam, a despeito de todas as vicissitudes e de
todas as lutas encarniçadas da nossa política. E com efeito, tão
extraordinário este fato sempre pareceu e ainda hoje parece; que os partidos
que são por sua natureza extremamente suspeitosos e que nunca olham com
muito bons olhos para adversários que vivem a se abraçarem e a se
beijarem, nunca deixaram de mais ou menos dizer, que uma tal amizade,
longe de ser filha do coração, nada mais era na realidade do que o resultado
de um pacto, pelo qual aqueles dois amigos se comprometeram a
mutuamente se auxiliarem ou a mutuamente se sustentarem, quando o
partido de um subisse e o do outro descesse. Eu não duvido que por simples
simpatia ou mútua estima, esses dois homens que tão notáveis se têm tor-
nado, mutuamente se poupem, e que até mesmo sendo possível, se prestem
alguns serviços; mas que o pacto houvesse é o que eu não creio.
Entretanto quero aqui fazer uma observação; e é que parece ser fado
do conselheiro Joaquim Delfino o ser acusado de semelhantes pactos.
Assim, sendo ou tendo sido a família deste conselheiro toda ela muito
liberal, os dois irmãos, quando partiram para S. Paulo eram igualmente
liberais. Entretanto quando de lá voltaram, o conselheiro voltava
conservador, e o irmão continuando a ser liberal. Ora, em Minas, é muito
raro o homem que muda de partido e o filho que não segue o partido do seu
pai. E como em S. Paulo os moços passam ãs mais das vezes a republi-
canos; mas é raríssimo que de liberais se tornem conservadores; aquela
mudança causou uma tal estranheza, que a única explicação que para ela
achavam e que foi por muita gente acreditada, foi que essa mudança era o
efeito de um cálculo ou pacto, pelo qual, ficando cada um dos irmãos em
um partido diverso, poderiam assim melhor se sustentarem e se ajudarem na
sua vida e pretensões.
Se, porém, eu nunca pude crer naquele primeiro pacto, muito menos
poderia crer neste segundo; quando sem falar no caráter modesto e tão
pouco ambicioso de que o Dr. Antônio Máximo sempre deu provas, nada
mais era preciso para explicar aquela mudança do que a simples ambição
do conselheiro; sobretudo se ainda atendermos que foi justamente no ano de
1848 em que ele formou-se, que teve lugar a queda do partido liberal
e que foi desde então uma convicção muito profunda e muito
geral que não seria tão cedo que este alcançaria de novo o poder.
E o que é certo, é que nomeado juiz municipal de Itajubá, pouco
depois foi chamado à capital, e ali começou a subir e a subir foi sempre
continuando, e com uma tal rapidez, que pouco mais tinha de quarenta
anos, quando já era senador do império.
Se, porém, o conselheiro Joaquim Delfino é ou foi nessa ocasião um
ambicioso; e se mesmo pode ter muitos outros defeitos que eu não conheço,
uma virtude e das mais apreciáveis ele possue e da qual eu posso dar
testemunho — o conselheiro Joaquim Delfino não é daqueles que sujam os
pratos em que comeram ou que metem os pés nos que lhes deram a mão,
pois que tendo sido meu sogro, o conselheiro Luiz Antônio Barbosa quem
lhe abriu o caminho para a sua atual grandeza, o conselheiro Jonquim
Delfino, entretanto, nunca deixou de honrar e de ser útil à sua família.
Voltando, porém, ao assunto, de que esta digressão um pouco me
desviou, cu direi que naquele tempo o professor de latim na Campanha era
o padre João Damasceno Teixeira; e embora não saiba se foi ele o primeiro
professor dessa matéria naquele lugar, aquilo, entretanto, que sei e posso
afirmar, é que não só foi ele o primeiro que ali conheci; mas que ainda
desde dos primeiros moços da Campanha que se formaram, e que foram em
direito os desembargadores Tristão Antônio de Alvarenga e José Cristiano
Garção Stockler e, em medicina, meu primo Joaquim Bueno Goulart Brum
e o meu tio Gaspar José Ferreira Lopes até tantos outros que ainda muito
depois de mim alcançaram um pergaminho, todos foram seus
discípulos.
Homem muito reservado, de modos um pouco misteriosos, e muito
econômico, o padre Manuel João Damasceno passava por ser um latinista
de primeira força, como sói acontecer a quase todos os mestres na opinião
dos seus discípulos. Eu, porém, que sabia de latim um pouco mais talvez do
que a maior parte dos que hoje fazem exame dessa matéria e nela não
aprovados plenamente, nunca tive, entretanto, dessa língua aquele
conhecimento que era preciso para que eu pudesse apreciar ou bem julgar
aquele meu mestre. Em todo o caso, me parece, que além dos estudos que
eram então necessários para a ordenação e de algumas tinturazinhas muito
ligeiras de botânica, o Padre Mestre João Damasceno muito pouco mais
sabia do que algumas noções de história e essas mesmas muito incompletas
e muito superficiais. Todavia, por causa daquela sua reserva e daqueles seus
modos mais ou menos misteriosos, ele passava para muita gente como um
verdadeiro oráculo; embora, quanto a mim, ess.a opinião não ti-
vesse o menor fundamento. Aquilo, porém, que não se pode negar, é que
era dotado de um gênio mais ou menos progressista; pois que não só foi ele
quem introduziu na Campanha a cultura das abelhas e parece mesmo que
tentou a do bicho-da-seda e a da cochonilha; mas foi ele ainda quem
primeiro ali teve livros e botica homeopática; e foi, portanto, sem falar em
um certo Benjamim Tanner que por algum tempo ali residiu, o verdadeiro
introdutor naquela cidade dessa nova medicina.
Como professor, o Padre Mestre João Damasceno formava um
perfeito contraste com o meu antigo professor de primeiras letras; pois, se
este era colérico, impetuoso e maligno; o Padre Mestre, pelo contrário, era
brando em tudo, até mesmo no falar; pois que era muito raro que alteasse a
voz ou que se mostrasse arrebatado em qualquer coisa. 0 que não quer dizer
que fosse uma dessas almas cândidas que tudo relevam e que de nada sus-
peitam. 0 Padre Mestre, pelo contrário, era extremamente desconfiado; e se
nunca ou quase nunca se manifestava iroso, nem por isso, quem o conhecia,
deixava de logo perceber a violência da raiva e da cólera que lhe ia pela
alma, unicamente pelos olhos, que, sendo naturalmente gázeos, muitíssimo
mais brancos ainda se tornavam em semelhante ocasiões. Como em todas as
aulas daquele tempo, na de latim também havia a palmatória; mas não me
lembro de tê-la jamais visto funcionar; embora não deixasse de haver uma
ou outra vez alguns bolos. Estes, porém, eram antes dados para vexar do
que mesmo para doer; visto que eram dados às mais das vezes com o livro
do próprio estudante e em número de um a dois; e outras vezes até
simplesmente com a boceta de rapé ou antes de ilhéo que era o tabaco que o
Padre Mestre usava.
Durante a aula ou pelo menos em certos dias ou quando as lições
terminavam mais cedo, o Padre Mestre, por gosto ou unicamente para
preencher o tempo, tinha por costume contar-nos algumas anedotas ou
referir-nos alguns fatos cujo fim principal era a nossa instrução moral ou
então de dar-nos alguns conhecimentos sobre muitas outras coisas que não
era propriamente latim; lembrando-me ainda de se haver proposto uma
ocasião a nos dar algumas lições de ortografia, para o que durante algum
tempo nos mandava a todos escrever o que ele ia lendo em um livro, cujo
título e matéria ignoro; mas de que o primeiro trecho que tivemos de
escrever, começava por esta forma: — O homem nasceu para o trabalho
como a ave para o vôo.
A aula durava das 10 horas à uma; mas de ordinário, ia-se para ela
um pouco mais cedo porque em casa o estudo sendo quase nulo,
aproveitava-se o tempo da reunião na rua ou junto
da casa para se conferenciar e estudar com os outros colegas, até que o Padre Mestre
abria a porta e todos entravam. Eis pois, qual era o homem que deveria ser meu
mestre durante cinco anos, e que assim como todos os outros e mais talvez ainda do
que todos os outros, me mostrou sempre uma grande estima e afeição.
Quando no primeiro dia eu fui para a aula de latim minha mãe, como era
sempre o seu costume, não deixou de me preparar com todo o cuidado e o melhor de
todo o meu vestuário era uma bonita camisa de vira que se tornava na realidade
1
digna de ver, não só pelo fino do pano, como pela delicadeza do bordado; e
facilmente se concebe quanto eu não iria inchado, indo pela primeira vez para o
estudo e não para a escola; e indo assim tão preparado e tão bonito. Mas... oh!
Vaidade cruel e sempre tão tremenda de todas as coisas humanas! Eu que na escola
quase que nunca tinha passado de pequeno pinto no meio de frangos já bem
empenados, no estudo de latim bem me poderia comparar agora a um pequeno
garnizé no meio de grandes perus; porque muito raro era ali o estudante que tivesse
muito menos de 14 a 16 anos, entretanto que alguns havia que já podiam figurar de
pais de família. Por isso também, todos aqueles estudantes já se tinham mais ou
menos na conta de verdadeiros homens; ves-tiam-se sempre com uma certa
decência; e nunca deixavam de olhar para os outros rapazes um pouco por cima dos
ombros. E como é que além de tão pequeno, eu ainda me atrevia a ir enxovalhar a
aula, ali me apresentando com aquele distintivo das crianças — uma camisa de
vira!... Imenso foi, pois, o trote que por esse motivo ali me deram; e tão grande foi
ele; que apesar do medo que tinha de minha mãe e do desejo que tinha de estudar,
positivamente lhe declarei que não voltaria mais para o estudo, se eu não tivesse
para lá ir uma camisa de colarinho em pé. Felizmente minha mãe fez-me a vontade;
e no dia seguinte para lá voltando com o meu colarinho bem em pé, gravata preta e
todos os distintivos de um homem como os outros, fui ali muito bem recebido e até
muito acariciado; pois que desta vez eu não ia só, porém sim acompanhado de duas
grandes bandejas de doces como patente pela minha entrada; e às quais depois da
aula os meus novos colegas fizeram as devidas honras, ainda que sem barulho nem
desordem, por causa do Padre Mestre que se conservava em uma sala próxima.
Feita assim a minha instalação e não havendo antigamente estudo de latim
que não começassem sempre pelo Novo Método ou antes pela bem conhecida
artinha do Padre Pereira de Figueiredo, que era toda mais ou menos decorada,
eu também tive de
começar por ela; e no fim mais ou menos de três meses estava com essa artinha
decorada. Isto que hoje poderia fazer qualquer menino ainda mesmo de uma
inteligência muito medíocre, foi então considerado como uma verdadeira lança que
eu tivesse metido em Africa; porque o tempo ordinário desta empreitada costumava
a ser sempre de oito meses mais ou menos e quando se levava dez meses ou mesmo
alguma coisinha mais, não era isso razão para que se desse a qualquer estudante a
nota de estúpido. E assim, só por este único fato pode-se muito bem avaliar quanto
era pouco o que então se estudava; e qual a razão porque naquele tempo nunca se
aprendia o latim em menos de cinco anos, e estudantes havia que no estudo se
conservavam oito e mais anos e dele muitas vezes saíam sem muito bem saber
daquilo que haviam aprendido.
Logo que acabei a artinha, o Padre Mestre me passou para uma decúria que
já estava traduzindo Eutrópio; e ainda me lembro que a minha primeira lição foi
apenas a seguinte frase — jam romani potentes esse coperavit.
Eu, porém, não me demorarei em contar a marcha ou os progressos que fui
fazendo neste meu estudo; porque realmente nada aí se encontra, que seja muito
digno de nota; e assim, me bastará dizer, que tanto eu, como os meus três
companheiros de classe e que eram, Paulo Vitor, Evaristo da Veiga e Bernardo dos
Santos, não só nunca deixamos de dar de nós muito boas contas no estudo, mas que
até mesmo em relação aos outros fizemos muito mais do que se costumava fazer;
pois que a muitos chegamos a passar que tinham entrado para o estudo dois ou três
anos antes de nós.
Quando eu já estava mais ou menos adiantado em latim, não havia na
Campanha nenhuma outra cadeira dr instrução secundária que eu pudesse
frequentar; porque embora ali tivesse havido uma cadeira de filosofia para a qual
tinha concorrido o cônego Marinho mas que tinha sido dada ao seu concorrente Joa-
quim Lobo Leite Pereira que no concurso o havia vencido, essa cadeira muito pouco
tempo durou sem que eu saiba o verdadeiro motivo da sua extinção. Depois disto ou
talvez na mesma ocasião ali também houve uma cadeira de francês, que era regida
por um suíço naturalizado e que se chamava Boaventura Bar-dy cuja frequência me
parece que não era pequena. Entretanto, assim como a outra, esta aula também
fechou-se, sem que eu nunca chegasse a saber se a aula tinha-se fechado porque o
professor se havia mudado; ou se o professor mudou-se porque a aula havia sido
extinta.
Eu porém tinha um primo que havia sido discípulo do Bar-dy; este se
ofereceu para me ensinar o francês; eu aceitei o oferecimento; e em 1844 ou 1845
comecei com esse novo estudo. O meu primo é de supor que não fosse lá muito forte
na matéria que me ensinava; porque o seu próprio mestre talvez não fosse muito
profundo. Ele, porém, parecia saber bem o que o Bardy lhe havia ensinado; e o certo
é que nunca tive senão esse único mestre. Verdade é, que eu nunca soube falar o
francês e menos ainda escrevê-lo; e que até muito pouco ou nada entendo quando o
ouço falar, sobretudo se quem o fala é mesmo um francês. Mas a culpa não é do meu
mestre; porém sim da minha inabilidade para tudo quanto é língua; pois que nunca
outra tendo eu falado que não fosse a portuguesa, e a estando sempre a falar há mais
de meio século e de ordinário com pente que mais ou menos a conhece, eu,
entretanto, ainda até hoje não a posso escrever mais ou menos corretamente, sem
que tenha ao pé de mim um dicionário e algumas vezes mesmo alguma gramática.
Eu, pois, o que aprendi de francês sem ser nos livros, unicamente o devo a esse meu
primo e meu amigo, o major Francisco de Paula Ferreira Lopes Sobrinho, que já
desde muito está residindo na cidade de Alienas, onde exerce diversos empregos
públicos e onde aplica-se à indústria da cera da qual, dizem, tem tirado não pequeno
resultado.
Nos fins dos meus estudos na Campanha, o Dr. Cândido Bueno da Costa que
ali por acaso esteve algum tempo, ofereceu--se para ensinar-me a aritmética que ele
dizia saber com toda a profundeza; e com efeito, recebi dele algumas lições; mas
esse meu novo mestre muito pouco depois retirou-se; e eu quase que não passei
das primeiras páginas do Besout.
Eis aqui tudo quanto aprendi na Campanha; mas nas aulas, bem entendido;
porque tendo tido sempre para a leitura um gosto muito pronunciado; e por tal
forma, que sendo ainda muito criança e quase que mal sabendo soletrar, eu não
podia ver as gravuras do Museu Universal sem que, embora com muito custo, não
tratasse de ler a explicação que dava o texto; eu desde que principiei a ler um pouco
mais corretamente, nunca perdia a ocasião de ler qualquer coisa que me agradava ou
que me ficava ao alcance. Infelizmente quase que não me lembro das obras que
então li; e sem falar no Bertholdo, no Carlos Magno ou nos doze pares de França e
em outras deste jaez, daquelas que realmente mereciam ser lidas quase que só me
lembro das três seguintes — Orlando Furioso, Nova Heloísa e Corinna ou a
Itália.
CAPÍTULO XXIII
O marasmo na Campanha após a revolução de 1842. Um motivo sem
nenhuma importância derruba os liberais em 1841. Três anos depois, um
motivo semelhante derruba os conservadores. Só o diabo queira governar
com crianças. A frase parece verdadeira. Honório Hermeto teria sido um
republicano encoberto. Sua estadia na Campanha em 1852. 0 ministério da
Conciliação. A conciliação dos partidos foi e há de ser sempre uma utopia.
A ideia de Honório foi também um erro político. As eleições gerais e
municipais de 1844 Tricas, tumultos e espertezas.
Eu já disse que a revolução de 1842 havia sido para a província de
Minas uma grande calamidade; c o que é certo, é que desde 1843 até o
princípio de 1849 em que parti para S. Paulo a vida da Campanha não
passou de uma vida mais ou menos marasmática. Muito pouco tenho, pois,
para contar durante quase todo esse período. E se isto se dá com a vida da
Campanha, muito mais ainda se dá com aquilo que propriamente a mim se
refere; porque nunca tendo sido um rapaz da moda e não tendo sido jamais
amigo de prazeres ruidosos ou muito variados, a minha vida tem sido quase
sempre calma e mais ou menos concentrada; e quase tudo quanto teria, por-
tanto, para dizer de mim nada mais seria do que aquilo que fiz como
estudante e de que já tive ocasião de falar. Verdade é, que foi essa para mim
a época justamente, em que para todo o menino começa a despontar e a
cada vez mais embelezar-se essa vida e sempre tão encantadora região dos
nossos mais doces e mais inapagáveis sonhos; e que é essa, por consequên-
cia não só a época que mais nos aformosea o passado, mas é ainda aquela,
que, quando se sabe contar, mais agrada a quase todos os leitores.
Infelizmente, porém, para mim, no meio dessas tantas e tantas coisas que
me faltam ou que a natureza me negou, uma delas foi o jeito para poeta e
muito mais talvez ainda para romancista; porém quando ainda eu o tivesse e
o tivesse na mais alta escala, seria neste caso quase o mesmo que o não ter;
porque tendo sido sempre um dos homens mais reservados talvez sobre
todas aquelas coisas que merecem ou
que exigem reserva, sobre este ponto então, essa minha reserva nunca teve a menor
falha; pois que sempre tive como uma das máximas que jamais a quebrantei, este
conceito de Garrett:
Que os segredos da ventura Não são
para se dizer.
Seja, porém, pouco ou seja muito o que tenho para contar até a minha
partida para S. Paulo, tratemos de atirá-lo para fora ou de ver no que
consiste.
Quando tratei da queda dos liberais em 1841, não deixei de assinalar que a
causa dessa mudança tão rápida havia sido apenas uma questão de nomeação ou de
demissão de um empregado publico. Em 1844 uma questão de nomeação ou de
demissão de um empregado público deu igualmente com os conservadores em terra.
Desta vez, porém, o chefe do ministério era um homem naturalmente carrancudo e
insofrido por índole; e não era, por consequência, um homem que suportasse
resignado, e muito menos de cara alegre, o arbítrio ou o capricho de alguém, quem
quer que fosse, ainda mesmo que esse alguém trouxesse cetro e coroa. Dizem, pois,
que ao sair da conferência imperial em que o chefe do poder executivo havia
recusado ao ministério essa medida que este julgava útil e que por isso a havia
reclamado; Honório Hermeto, em voz um tanto alta que podia ser ouvida e que de
fato foi ouvida por aquele que se julgava com direito de mudar situações, havia
proferido a seguinte frase: Só o diabo queira governar com crianças! E tanto a
anedota foi tida como verdadeira ou foi geralmente acreditada; que não só muitas
vezes ouvi a alguns liberais afirmarem que Honório era um republicano encoberto e
que estava apenas à espera de uma ocasião propícia para proclamar a república; mas
que ainda sendo Honório o mais prestigioso chefe talvez do partido conservador, e
depois da ascensão deste partido em 1848, tendo ficado por muito tempo fora das
organizações ministeriais, a explicação que geralmente se dava para um semelhante
fato, era a lembrança constante daquele dito ou o — tanta in animis ira deum!
Honório, entretanto, foi chamado em 1853 para organizar um dos nossos
mais célebres ministérios — o que levantou a bandeira da conciliação. E como esta
ideia da conciliação tem sido considerada como de pura iniciativa ou de exclusiva
invenção do imperador; uma conclusão muito natural que de tudo isto se poderia
tirar é que Honório, como tantos outros,
vergou-se também por sua vez, e que indo prostrar-se aos pés dequele que tudo
podia, e que lhe dizendo, como consta que alguém o disse — para um grande crime
só um grande perdão! — desde então deixou de ser o Honório de todos os tempos,
para nada mais ser do que um simples homem do rei ou um simples instrumento da
sua vontade. Uma tal conclusão, porém, só a poderia tirar quem nunca conheceu a
Honório Hermeto. Eu, porém, posso ainda afirmar que essa conclusão é falsa;
porque muito antes de ser Honório o organizador daquele ministério, e quando nem
sequer se suspeitava que ele o pudesse organizar, já Honório, não só tinha aquela
ideia; mas até mesmo já se preparava para pô-la por, si só em prática. E eis aqui o
motivo que tenho para assim me enunciar:
No ano de 1852, se não me engano, e em todo o caso, em um tempo em que
Honório ainda não era ministro, como disse, nem se suspeitava que o pudesse ser,
ele foi à Campanha. Estancio hospedado em casa do cônego Antônio Felipe de
Araújo, meu Avô foi com o Padre Mestre João Damasceno visitá-lo, e foram ambos
por ele tão bem recebidos e tratados com uma tal distinção; que, segundo dizia meu
Avô, o fato não deixou de causar ura certo sentimento de ciúme ou de despeito da
parte dos conservadores que ali se achavam em um muito grande número; pois que
tendo Honório Hermeto os levado para o sofá em que se achava sentado e tendo ali
se colocado entre os dois, e só com eles durante todo o tempo da visita que não foi
breve, quase que não conversou senão com eles. Ora o tema dessa conversação
assim tão longa e tão amável, foi o seguinte: que as nossas coisas estavam indo
muito mal e que era isso devido à exaltação política ou ao excesso do espírito
partidário; que sendo conhecida a causa, o remédio estava em combatê-la mas que
sendo muito difícil alcançar um tal resultado com os elementos de que se
compunham e com os hábitos e prejuízos de que se achavam eivados os dois antigos
partidos, o que cumpria era formar um novo que se compusesse do que em ambos
houvesse de melhor, que era isso o que ele pretendia e estava tratando de realizar, e
que sendo aqueles seus dois interlocutores homens que na sua opinião se achavam
perfeitamente no caso de concorrer para a realização dessa ideia que julgava útil e
patriótica, desde já contava com eles. E o que é certo, é que tendo Honório
organizado o ministério da conciliação, logo a 2 de dezembro houve uma concessão
em ponto muito grande de títulos e condecorações que foram dadas sem nenhuma
consideração para as crenças políticas dos agraciados, e que entre estes
apareceu meu Avô com a Comenda
da Rosa, o que naquele tempo era ainda uma distinção muito elevada. A ideia que
Honório advogava, era, com efeito, uma ideia simpática e tão simpática é sempre,
que ela nunca deixa de surgir mais ou menos em toda parte, como uma espécie de
panaceia para todos os males públicos que se sentem, como, ainda há bem pouco,
nós tivemos ocasião de ver no Estado Oriental.
Esta ideia, porém, da conciliação dos partidos foi e há de ser sempre uma
grande utopia; porque desde que existe um governo parlamentar, é absolutamente
indispensável que existam partidos; e ainda mesmo que fosse possível acabar com
os existentes, desde logo, não só outros os viriam substituir; mas ainda e quase a
todos os respeitos, desde logo ou muito em breve, os novos em nada absolutamente
difereriam dos antigos; visto que os ma. . de que mais de ordinário nos queixamos,
estão quase sempre nos homens e nos costumes; e os novos partidos terão sempre de
se formar com os homens e com os costumes dos velhos. Assim também, outra
utopia que não é menor, e que talvez mesmo seja ainda maior, é o de pretender--se
formar um partido unicamente composto de gente boa; ou um partido que assim
composto, pudesse dar um grande resultado; não só porque os hipócritas e
intrigantes são tantos que, afinal de contas, quase que não se sabe quais são os bons
ou quais são os maus; mas ainda porque nos partidos, como em muitas outras
cousas, é preciso, que haja de tudo — de bons, de maus e até de malucos. E isto
digo; porque na realidade, o que se chama um homem de bem quase que nada mais é
do que um simples paralítico bem intencionado; ou um homem que se não faz mal e
deseja todos os bens, é entretanto muito pouco o bem que faz; visto que sendo
naturalmente inerte e mais inerte ainda se tornando pela falta de ambição ou pelo
receio de passar por mau não só falta-lhe quase sempre a energia necessária para
atacar e defender-se; mas até mesmo para fazer o próprio bem. Por isso também, não
só hoje acredito, que os próprios ladrões não deixam de ser mais ou menos úteis;
porém vou muito mais além; e digo que muitas vezes são eles até mais úteis do que
os próprios homens de bem; porque esses ladrões de que aqui falo, e que são os que
vivem de furtar em grosso, para que possam furtar é preciso que inventem obras e
que nelas se metam e por mais que furtem afinal o benefício fica.
Assim, pois, se repousando sobre estes dois fatos, a ideia de Honório,
embora simpática à primeira vista, não passava de uma rematada utopia; ela
foi ao mesmo tempo, um grande
erro político; porque inteiramente desvirtuada por quem nisso tinha o maior
interesse, ela apenas serviu, para que dela se apoderando e dando-lhe o maior
impulso no sentido que lhe convinha, o imperador conseguisse afinal amolgar a
quase todos os últimos caráteres mais ou menos altivos que ainda existiam; e o
resultado que Honório tinha talvez querido evitar e que não fez mais do que
apressar, foi, como todos sabem, que desde então ou que muito pouco tempo depois,
não existiu mais no Brasil senão uma única força e uma única vontade, e que essa
única força e única vontade era o imperador.
A queda dos conservadores deu lugar a que em 1844, houvesse, como em
1840, além da eleição municipal uma eleição geral. Ambas foram muito disputadas
na Campanha; e tão disputadas foram elas, que houve grande risco de mais de um
conflito; mas, não obstante, eu nada delas perdi. Meu pai foi quem presidiu a essas
eleições; mas, embora naquele tempo fosse o juiz de paz quem de fato presidia à
eleição, ele, entretanto, tinha como adjunto o vigário da freguesia que se sentava a
seu lado e com quem ele devia proceder sempre de acordo, sobretudo na formação
da mesa. Se ambos eram do mesmo partido, não havia nenhuma dificuldade; porque
fazia-se uma mesa unânime e tudo corria às mil maravilhas. Se, porém, dava-se a
hipótese contrária, quase que nada se podia fazer. Assim, nessa eleição, o primeiro
barulho que apareceu foi por ocasião da formação da mesa; chegando-se, porém,
afinal a um acordo, em virtude do qual meu pai nomeou dois mesários liberais e o
vigário os outros dois, conservadores; acordo este que os conservadores aceitaram
de boa vontade; porque acreditavam, que não havendo maioria de nenhum dos lados,
ou nada se faria ou então se faria por meio de transação. Infelizmente, porém, para
eles, apenas se suscitou a primeira questão e que eles alegaram o empate que se
havia dado, meu pai, que já tinha levado uma coleção de leis para esse fim, leu um
aviso em que se declarava que em caso de empate, o juiz de paz gozava do voto de
qualidade. Imenso, como era de prever, foi o desapontamento dos conservadores; e
desde então, tendo os liberais a maioria da mesa, foram vencendo todas as questões
que iam sendo suscitadas. Era, porém, tão sólida ou tão avultada a maioria que os
conservadores possuíam no distrito da cidade; que o mais que os liberais
conseguiram, foi apenas fazerem os suplentes sem uma muito grande diferença de
votos. Deu-se, entretanto, uma circunstância, que eu ainda quero aqui mencionar
como um simples fato característico das tricas e esper-tezas que já então iam-se
introduzindo nas eleições.
Hoje e desde 1846 quem preside sempre a todas as nossas eleições, é o
primeiro juiz de paz; e isto pela razão muito plau-
Conselheiro Luiz Antônio Barbosa, sogro do Dr.
Francisco de Paula Ferreira de Rezende, nascida na Província
de Minas em 1815 e fulecido em Petrópolis em 1860,
como Senador do Império.
sível de que é ele o verdadeiro representante da maioria. Na
quele tempo, porém, o presidente era, pelo contrário, o juiz de
paz do ano. e como as eleições sempre se tinham feito de quatro
em quatro anos; o presidente era sempre o último dos juízes
de paz ou o do quarto ano, que ãs mais das vezes era um dos su
plentes que por morte ou por outro qualquer motivo havia subs
tituído a algum dos efetivos. E assim, facilmente se compreende,
qual não deveria ser para os partidos a importância do primeiro
suplente. Ora os dois primeiros suplentes tinham saído empa
tados; e destes um que era o meu tio Antônio Quirino Lopes era
um liberal decidido; mas o outro era aquele Antônio Luiz de
Sousa de que falei quando me ocupei de um dos rebates que
houve na Campanha em 1842; e que sendo um homem de caráter
fraco e não tendo propriamente partido algum, os liberais ha
viam metido na sua chapa, unicamente como um meio de ver
se poderiam por esse modo obter mais alguns votos. Aos libe
rais, portanto, não convinha de modo algum que fosse esse o pri
meiro suplente; e como, apesar de já ter os meus doze anos, sem
pre representei ter menos idade do que a que realmente tinha,
e era o único menino que ali se achava na igreja; fui escolhido
para tirar a sorte de desempate; e os liberais puseram nas mi
nhas mãos a melindrosa missão de tirá-los daquela dificuldade.
Eu fui, pois, assistir ao escrever e enrolar os papéis da sorte; re
parei que um deles tinha ficado um pouquinho menos enrola
do do que o outro; e como se tivesse olhos nos dedos, fui direi
tinho ao que continha o nome de meu tio o qual ficou sendo
o primeiro suplente.
Quanto à segunda eleição, a geral, esta ainda foi muito mais
tumultuada, até que os conservadores, depois de começado o recebimento
de algumas listas, no segundo dia se retiraram ou não compareceram; e os
liberais tendo tempo para organizarem uma segunda chapinha, não
fizeram todos os eleitores, mas também todos os suplentes. Se, porém, eles
venceram na freguesia da cidade, tinham perdido a eleição em todo o
município; e assim, receiando, que a maioria do colégio lhes anulasse os di-
plomas ou que pelo menos lhes tomasse os votos em separado; nas vésperas
da eleição secundária, foram todos os eleitores em número de 19 para
Baependi, cujo colégio era quase que unanimemente liberal; e ali prestaram
os seus votos.
CAPÍTULO XXIV
O tenente Manuel Corsino, tio do autor, comparava-se ao primeiro visconde de
Caravelas e era um grande contador de casos. A história de Januário Garcia — o
sete orelhas. O sapateiro Bandarra e as profecias. A irmandade do Carmo na
Campanha. A fé em Nossa Senhora e o poder da imaginação. O tenente Manuel
Corsino marca o dia e a hora de sua morte.
Dos irmãos do meu Avô, aquele cuja casa eu mais frequentava, e que por
isso, melhor conheci, foi o Tenente Manuel Corsino. Este meu tio, que era coxo, e
que por este motivo, compa-rando-se ao primeiro visconde de Caravelas, a si
mesmo se chamava de Manuel Alves Branco, era um desses homens que julgam que
a fé e que as orações podem tudo suprir; era, além disso, mais ou menos
supersticioso; e era finalmente, um grande contador de casos.
Das histórias, porém, que aquele meu tio vivia sempre a contar, aquela que
nunca perdia para mim do seu interesse, mas que pelo contrário, como que parecia
cada vez mais interessar-me, era a de Januário Garcia, ou como também muitas
vezes se o costuma chamar — o sete orelhas —; história esta, que era naqueles
tempos muito geralmente conhecida; mas que embora tenha até já sido posta em
drama, bem poucos hoje serão talvez aqueles que mais ou menos a conheçam.
Essa história, entretanto, muito longe de ser, como se poderia talvez supor,
um simples conto imaginário; era, pelo contrário, a história muito real de um sujeito,
cujo pai havia sido morto e esfolado por seus inimigos, e cujo filho que era aquele
mesmo Januário, tendo feito o juramento de tirar do fato a mais completa vingança,
pôs-se desde logo no encalço dos autores do atentado; e nunca mais sossegou
durante muitos anos, senão depois de ter a todos matado; ter tirado de cada um deles
uma orelha; e ter com elas feito um rosário de que nunca se desprendia.
Este Januário, entretanto, ou porque o temessem, ou porque se reconhecia,
que embora atroz, a sua vingança era justa; creio que não só nunca foi perseguido;
mas que até se converteu em uma espécie de protetor dos injustamente
perseguidos. E isto
digo; porque embora um pouco vaga, eu ainda tenho uma ideia de ter ouvido a meu
Avô ou àquele meu tio Manuel Corsino, mais de uma vez contar, que havendo meu
Bisavô sofrido uma ofensa mais ou menos grave de uma pessoa de importância na
Campanha, meu tio Antônio Quirino imediatamente tratou de vingar ao pai, e
publicamente espancou ao ofensor no meio da rua. E como fosse perseguido,
retirou-se para fora da povoação sem se saber para onde, até que, passado algum
tempo, voltou acompanhado por aquele Januário Garcia e nada teve que sofrer; sem
que, entretanto, eu me possa recordar o que foi que então se passou nem se a coação
que houve, foi sobre o juiz, sobre a parte ou sobre o escrivão; e se, por
consequência, o que houve foi despronúncia, desistência ou simples sumiço do
processo.
Se, porém, aquele meu tio Manuel Corsino era um grande contador de casos;
aquilo entretanto, em que mais saliente se tornava, era pela sua superticiosa
credulidade. Era ele, portanto, na Campanha o mais acérrimo talvez de todos os
panegiristas do Bandarra e uma das profecias daquele célebre sapateiro que ele vivia
sempre a repetir, vinha a ser esta — que o ano de 1845 havia de ser um brinco —. E
com efeito, parece que esta profecia realizou-se; porque não me consta, que durante
todo aquele ano se desse qualquer desgraça muito digna de nota; entretanto que foi
no seu começo que cessou uma das maiores calamidades que tem pesado sobre o
Brasil — o da guerra civil no Rio Grande do Sul —; guerra esta, que junta a tantas
outras que tanto tínhamos tido no Rio da Prata, havia por tal forma impressionado ao
povo, que tendo se demolido na Campanha a igreja de S. Francisco por ameaçar
iminente ruína, a explicação que a alguns eu ouvi para aquele fato foi a seguinte —
que uma igreja não podia olhar ou ter a frente, como aquela tinha, para o sul; por
causa do muito sangue que sem cessar ali se derramava. Nem foi somente o estado,
quem desta sorte sentiu os benéficos efeitos desse influxo que devia do ano de 1845
fazer um brinco. Comigo parece que a mesma coisa aconteceu; porque, se é certo,
que a maior, ou pelo menos a mais pura das nossas felicidades é a tranquilidade da
nossa vida; e por isso, se diz, que os povos verdadeiramente felizes são justamente
aqueles que não tem história; a minha vida durante o ano de 1845 parece que não
teve história; pois que por mais que excogite, de nada com precisão me recordo, que
de qualquer maneira me diga respeito e que a esse ano se refira.
Entretanto, me parece, ou antes, quase que tenho como certo, que foi
justamente nesse ano de 1845, que minha mãe foi priora do Carmo. E como homem
que se afoga a tudo se agarra, aproveitando-me desta simples circunstância,
vou reparar uma
omissão que cometi quando tratei das igrejas e irmandades da Campanha; e
vou aqui, por consequência, ocupar-me dessa irmandade ou dessa ordem
terceira do Carmo, que, assim como em toda a parte, era também na
Campanha uma das mais apreciadas, das mais concorridas, e ao mesmo
tempo, das mais aristocráticas. E com efeito, não só muito poucos eram os
homens de uma certa ordem que não se achassem alistados naquela confra-
ria; mas pode-se ainda dizer que raríssima era a senhora de uma certa
posição e de uma certa idade para cima que dela não fizesse parte. De todos
os membros, porém, dessa nobre e tão respeitável confraria, nenhum havia
que mais devoto fosse ou que maior impressão me deixasse do que dois
irmãos chamados Ba-guns, para os quais o vestuário do Carmo era como
que a farda para o soldado ou a batina para os padres; pois que sendo pobres
e não indo a outras festas que não fossem as da igreja, quase que não se
viam na rua senão vestidos sempre com aquele seu uniforme. Também
pode-se dizer, que não havia ato algum que se referisse ao culto daquela
Santa, a que os dois irmãos não fossem assistir, inclusive a missa que em
todos os sábados era dita pelo capelão da irmandade em um dos mais
bonitos altares da Matriz onde se achava a imagem de Nossa Senhora a
quem ele pertencia; missa esta, que embora tivesse lugar em um dia de
semana, nunca entretanto, deixava de ser bastante concorrida; porque de
todas as Nossas Senhoras era sem a menor dúvida a do Carmo, a que para o
seus devotos pelo menos, parecia ser ou dispor de um valimento mais
poderoso e mais seguro junto do seu divino filho. Sem, porém, falar nestas
missas, e sem mesmo falar na festa que se poderia dizer propriamente de
Nossa Senhora, e que de ordinário se compunha de novenas, missa cantada
e procissão; aquilo que de alguma sorte se poderia considerar como sendo
especial a esta ordem Terceira, era o modo como ela fazia a posse da sua
mesa; ou para falar talvez com mais acerto, era a solenidade que todos os
anos tinha lugar por ocasião da posse ou da instalação da priora. Havia, é
certo, nesta solenidade, alguma coisa que muito se parecia com o que se
praticava na subida do Rosário de que em outro lugar já tratei; mas se essa
semelhança existia no fundo, ela na aparência não existia ou desaparecia de
todo; porque ao passo que aquela festa dos pretos era uma festa, alegre sim,
mas muito barulhenta, um pouco anárquica e extremamente ridícula; esta
dos brancos, pelo contrário, era extremamente séria, ou era feita com a
maior ordem e com toda a regularidade.
Muito simples, entretanto, ela quase que se reduzia ao seguinte: no
dia do costume, as irmãs do Carmo com o seu vestido preto, escapulário ao
peito, e um véu branco na cabeça, dirigiam--se para a casa da priora; feita
ali a reunião ou chegada que era
a hora, todas aquelas irmãs incorporadas conduziam a priora para a igreja; e quando
a esta chegavam, já na porta se achava o capeio da irmandade que ali a esperava e
que à frente de todos os irmãos que ali também se achavam com tochas acesas e
revestidos com os seus hábitos pretos, capa branca, escapulário ao pescoço e a
correia na cintura, a conduzia para a capela-mor; e dava-se então começo aos ofícios
religiosos. Quando estes terminavam a priora era conduzida a uma cadeira de
espaldar ou a uma espécie de trono que se fazia junto ao arco-cruzeiro; e ali todos os
irmãos e mais pessoas presentes iam lhe beijar a mão; e estava terminada a festa.
Como a vaidade humana em nada absolutamente depende da vastidão dos
horizontes ou é sempre a mesma desde o mais alto dos tronos até o ponto mais baixo
da escala social; este lugar de priora era para as senhoras que o exerciam um motivo
de verdadeiro regozijo; e nunca posso me esquecer, que uma das maiores vaidades
de minha mãe e que ela conservou, por assim dizer, até os seus últimos momentos,
era a de contar com o mais completo desvanecimento a história desse grande dia de
glória que ela teve, e em que todas as principais pessoas da Campanha lhe foram
beijar a mão, como se fosse ela realmente uma rainha.
Pouco antes deste priorado de minha mãe, havia sido também priora uma
minha parenta, a mulher do major Salvador Machado de Oliveira; e esta querendo
estender um pouco mais os regozijos do seu priorado, depois das festas religiosas
que tiveram lugar durante o dia, deu à noite, em sua casa, um grande baile.
Isto de misturar-se o profano com o religioso, é hoje uma coisa tão comum,
que sobretudo na Corte até os próprios anúncios das festas religiosas são exatamente
feitos, como se se tratasse de uma ópera ou de outro qualquer espetáculo de idêntica
natureza. Antigamente, porém, e sobretudo em Minas, o sentimento religioso ainda
estava muito apurado de mais, para que assim tão comodamente se amenizassem as
penitências, ou para que de um ato de sincera devoção se pudesse fazer um simples
ato de prazer. Aquela inovação, pois, não deixou de causar um certo reparo; e a
muitos pareceu mesmo, que não só era uma coisa um pouco de costa acima, mas até
quase que um sacrilégio, aquela mistura do sagrado e profano ou de um baile
completando um Te-Deum. No dia seguinte, portanto, corria pela cidade esta
quadrinha ou esta pequena sátira:
Priminhas, priminhas, Vamos
primar; Que a nossa priora
Nos há de perdoar.
E acrescentava-se, que enquanto dançavam, era assim que os
dançadores cantavam. Ora tendo dito, quanto era grande o prestígio de que
gozava o patrocínio de Nossa Senhora do Carmo; e quanto, por isso, era
também grande a devoção que muitos para com ela tinham; eu vou aqui
referir um fato, que se deu, e cuja verdade quase que posso garantir, com
aquele meu tio Manuel Corsino de que tanto me tenho ocupado neste artigo.
E tanto mais desejo referi-lo quanto para os devotos será isso mais um
argumento do grande auxílio ou da eficácia da devoção, que se pode esperar
daquela santíssima Senhora; entretanto, que para os incrédulos pode servir e
ser dado, como um dos melhores exemplos do imenso poder que sobre nós
exerce a imaginação e até que ponto esse poder é capaz de chegar.
Nem esse poder da imaginação é nenhuma novidade ou uma dessas
coisas que se possa hoje por em dúvida; pois que é este um fato que já por
vezes tem-se verificado; e não há quem não conheça o caso daquele
condenado à morte, cujas veias os médicos fingiram picar, e que estando
com os olhos vendados e supondo que era sangue a água um pouco tépida
que lhe iam entornando sobre os braços, expirou no momento, em que os
médicos com um certo ar de mistério, anunciaram que estavam saindo as
últimas gotas de sangue, e que aquele condenado a morrer esvaído, não
tinha mais do que um ou dois segundos de vida.
Ora o caso daquele meu tio, se não foi, com efeito, um milagre; foi
com toda a certeza um fato da mesma natureza desse do condenado de que
acabo de falar. E eis aqui como a coisa se passou. Como tantos outros, era
aquele meu tio um devoto acérrimo de Nossa Senhora do Carmo; e a sua fé
a este respeito era de tal natureza; que ele sempre dizia com os acentos da
mais profunda convicção, que não havia de morrer em pecado mortal; mas
que tinha, pelo contrário, quase como certa a sua própria salvação; porque,
dizia ele, havia uma oração, que sendo rezada cora fé e todos os dias à
Nossa Senhora, esta não deixaria de vir anunciar a quem assim a rezava, o
dia e a hora da sua morte, para que essa pessoa ou esse seu devoto tivesse o
tempo de se por bem com Deus e de evitar a condenação eterna. E como,
segundo ele afirmava, nunca tinha deixado de rezar aquela oração, ele conti-
nuava certo, que um tal aviso não lhe havia de faltar. Por isso, embora
tivesse tido algumas doenças, nunca, entretanto, se incomodava ou se
afligia; mas pelo contrário, se a família ou algum amigo se inquietava, a sua
resposta era sempre — Qual! 0 aviso ainda não veio. E punha-se a gracejar
sobre a doença. Até que afinal teve uma última enfermidade; e indo o
incomodo cada vez
mais a se agravar, em uma quarta ou quinta-feira, ele disse à família; "Hoje
Nossa Senhora me apareceu e me avisou, que a partida é no sábado, que é o
meu dia e que há de ser a tais horas. Agora sim; não tenho mais dúvida que
a minha vez chegou e que é preciso que eu cuida da viagem; tratem,
portanto, de mandar chamar o padre".
0 padre veio, com efeito; com ele se confessou; recebeu depois
todos os outros sacramentos; e desde então não cuidando mais senão dessa
sua partida para o outro mundo, despediu-se da família, e de todas as
pessoas a quem tinha afeição; e no dia e hora marcada ele expirou.
CAPÍTULO XXV
Em 1847, o autor faz um novo, mas curto passeio à Corte, últimos esforços da
antiga hombridade nacional contra o suave e doce absolutismo. A grande província
de Minas Gerais dos outros tempos já quase que não existia. D. Antônio Ferreira
Viçoso, bispo de Mariana, visita a Campanha. As grandes festas que, então, se
realizaram. D. Viçoso, que era um verdadeiro santo, gostava muito de música e, nas
horas vagas, tocava piano. Uma cena enternecedora. D. Viçoso deixou muitos
discípulos e esta foi uma das suas glórias. O bispo de Diamantina e o Arcebispo da
Bahia foram seus discípulos. Não menos virtuoso do que estes, foi o cônego João
Gonçalves de Oliveira Ribeiro, vigário de Barbacena. O cônego João Gonçalves
também gostava de música e locava piano, mas, em vez das cantatas do Bispo,
preferia as modinhas e os lundus.
É tão pouco o que tenho para dizer dos anos de 1846, de 1847 e de 1848,
que apesar de os englobar a todos três neste único artigo, ainda assim, terá este de
ser talvez um dos mais magros. Todo de luto e tão cheio de lágrimas para mim e
para os meus, o ano de 1846 não poderia oferecer-me para aqui contar, senão tris-
tezas. As grandes tristezas, porém, são silenciosas; e a dor que não é dramática,
quase sempre desagrada.
Quase que tão inteiramente apagado como alguns outros de que já tenho
tratado, o ano de 1847, só se tornou notável para mim por uma única circunstância
— uma viagem que por simples passeio fiz à Corte, em companhia de meu tio
Francisco de Paula Ferreira Lopes Júnior ou Iquinho, como em família e quase que
geralmente todos o tratavam.
Se, porém, aquela primeira viagem que fiz à Corte e quando apenas contava
pouco mais de sete anos, foi para mim um manancial de tantas e de tão vivas
recordações que pode, como se viu, fornecer-me assunto para dois bem longos
capítulos, esta segunda pelo contrário, não me deixou talvez uma única impressão
que valesse a pena de ser aqui registrada. E isto por duas razões: Primeira porque
apenas me demorei ali oito ou dez dias; e segunda porque por falta talvez de um
bom cicerone, quase que nada vi, e muito menos ainda observei; de sorte que a não
ser o fato de ter visto João Caetano representando o Kean e de ter
ficado um pouco surpreendido, quando sem esperar e um pouco sem compreender,
vi um homem erguer-se em um dos camarotes e com gestos e modos
descompassados gritar que o Kean estava doido; eu quase que poderia dizer que
assim como fui assim vim; pois que. de fato; se muito pouco vi, muito menos ainda
me ficou.
Quanto ao ano de 1848, esse foi o ano de uma mudança de situação política,
de eleições agitadíssimas, da revolução praeira e finalmente dos últimos esforços da
antiga hombridade nacional contra o suave e doce absolutismo que nos ia dominar;
mas que enquanto não se firmava, violento às vezes se mostrava. Imenso seria, pois,
a messe, que eu poderia ter aqui para ceifar. Mas a grande província de Minas
Gerais dos outros tempos já quase que não existia; o seu papel se apagava cada vez
mais; e eu não quero falar das violências que de um governo nacional e até mesmo
de seu próprio filho, teve de sofrer uma província, que o próprio despotismo da
metrópole respeitava e temia; e por tal forma que ao passo que não cessava de
recomendar aos seus agentes que a tratassem com todos os resguardos de
diplomacia; quando mandava construir o palácio dos seus governadores, ordenava
que se o fizesse como um castelo ou fortaleza, para que lhes pudesse garantir a
segurança.
Não querendo, pois, enveredar por este rumo, eu vou apenas ocupar-me do
único fato de alguma importância que teve então lugar na Campanha; e que foi a
primeira visita que fez àquela cidade o bispo de Mariana, D. Antônio Ferreira
Viçoso; visita esta, cuja data precisa não posso agora de momento determinar; mas
que me parece quase certo ter tido lugar pelos meados mais ou menos do ano de
1848.
Depois das grandes e tão pomposas festas que em outros tempos se faziam e
de algumas das quais já tenho aqui tratado, a única que depois da revolução ainda
houve na Campanha e que teve o poder, não só de comover toda a cidade, mas por
assim dizer, de literalmente enchê-la, foi a que teve lugar por ocasião dessa primeira
e tão desejada visita do Bispo; pois que havendo muitíssimos anos já, que na
Campanha não se via um Bispo; e sendo até mesmo possível que nenhum ali tivesse
jamais aparecido; agora afim de ver-se aquele que ali se vinha apresentar ou então
para se crismar, bem poucos foram aqueles que de perto ou que de longe não
concorressem para aquela festa.
Esta, entretanto, se tão brilhante se mostrou e se muito mais ainda a todos
tão geralmente agradou, não foi contudo pela sua variedade; porque aquilo que se
via um dia, era, por assim dizer, o mesmo que se fazia sempre. A esta regra,
contudo, houve uma bonita exceção e foi o dia em que o Bispo chegou; porque
nesse
dia, sendo ele encontrado a uma distância maior ou menor da povoação por
um número muito avultado de cavaleiros, a sua entrada ali se fez pela rua
do Fogo, vindo ele acompanhado por uma multidão enorme de povo sendo
ao mesmo tempo precedida pelo esquadrão de cavalaria da Guarda
Nacional que para esse fim espontaneamente se havia reunido.
Eu não me recordo muito bem, se o Bispo entrou na cidade na liteira
em que tinha por costume viajar, ou se tendo apeado na igreja de S.
Sebastião ou das Mercês, dali seguiu debaixo do pálio. 0 que, porém, me
parece lembrar, é que depois de ter passado debaixo de um ou mais arcos
que se haviam levantado, ele fez a sua oração na igreja das Dores; e que dali
se dirigiu para a casa do vigário, onde se achava preparado o seu aposento e
nele uma cama ainda muito mais luxuosamente preparada; mas na qual,
segundo ouvi dizer, nunca deitou-se; suspeitando-se ou di-zendo-se, que ele
dormia no chão sobre um tapete. E digo — suspeitando-se — porque longe
de ostentar as antas austeridades a que, segundo se dizia, tinha por costume
entregar-se, o Bispo Viçoso, pelo contrário, sempre e quanto podia as
procurava ocultar.
Parece-me, que no próprio dia em que chegou, e que a despeito do
cansaço da viagem, já de tarde ele foi à igreja desempenhar as suas funções
episcopais; mas o que é certo é que durante todo o tempo, que na Campanha
se conservou, nunca deixou de ir todos os dias duas vezes para a matriz,
indo sempre revestido de uma espécie de capa muito comprida, cuja cauda
era conduzida por uma das principais pessoas da cidade; e que não só ali
crismava e celebrava outros atos religiosos; mas que ainda nunca deixava
cada dia de ali pregar uma vez pelo menos. Os seus sermões nada tinham de
pomposos e até nem mesmo de peças mais ou menos literárias; mas na
realidade quase que não passavam de uma simples prática ou de uma
espécie de conversação com os seus ouvintes; mas ao passo que essa
conversação era feita em uma linguagemo chã, que não havia ninguém
que a não compreendesse; ao mesmo tempo, havia na sua voz, no seu ar e
em toda a sua pessoa, uma tal unção, e ao mesmo tempo, um não sei que de
ingenuidade, que ninguém havia, que não se deixasse convencer ou
comover-se; ou que em todo caso não o ouvisse com um verdadeiro
encanto. Já então D. Antônio Viçoso gozava de uma grande fama de
virtudes; mas só foi quando essas virtudes foram de alguma sorte
confirmadas por tantos anos de episcopado, que ele tornou-se para todos,
não simplesmente um homem respeitado e mesmo venerado, porém alguma
coisa como um verdadeiro santo. Eu ainda o vi algum tempo depois em
Queluz e em Ouro Preto; cheguei mesmo a ter com ele algumas relações; e
ainda conservo uma carta sua em que me recomendava a causa de um
pobre; e o
que posso asseverar, é que quanto mais o via ou com ele conversava, tanto mais por
ele se aumentava a minha estima e a minha mais profunda admiração.
Um dos benefícios, e ao mesmo tempo, uma das glórias daquele santo bispo,
foi alguns dos discípulos que ele deixou, e dos tais os mais dignos, como todos
sabem, ou pelo menos os mais célebres, são o venerando bispo da Diamantina e o
não mais virtuoso arcebispo da Bahia. Quando, porém, D. Antônio Viçoso esteve
em Queluz no ano de 1858, eu cheguei ali a conhecer um terceiro que em nada
absolutamente cedia àqueles em virtudes mas que tendo se conservado sempre em
uma posição muito menos elevada, muito menos também apareceu. Este terceiro era
o cônego João Gonçalves de Oliveira Ribeiro, a quem o Bispo muito estimava; que
a este muitas vezes acompanhava nas suas viagens; e que acabou por ser vigário de
Barbacena e monsenhor ou não sei que nomeado pelo papa. Na ocasião em que o
conheci, ele acompanhava o Bispo, e era quem na falta deste, quase sempre pregava.
À. noite, porém, enquanto os outros cônegos, que não gozavam de uma muito
grande reputação de santidade, passeavam pela povoação; e enquanto o Bispo
rezava ou trabalhava em um quarto próximo; o cônego João Gonçalves conservava-
se na sala, que estava sempre cheia de visitas e sobretudo de senhoras; e aí cantava
ao piano. E o que é muito mais para admirar, é que aquilo que ele ali cantava não
eram rezas, nem mesmo alguns desses cânticos que as irmãs de caridade têm por
costume ensinar às suas discípulas ou alguns dos outros que o próprio Bispo
também cantava. Pois é preciso dizer que o bispo D. Antônio muito gostava de
música; e que não só nas suas horas vagas tocava piano, mas que ainda neste muitas
vezes cantava algumas pequenas composições de uma natureza puramente
religiosa.
Ainda em 1864 estando ele em Sabará, ali acompanhou ou ouviu cantar a
minha mulher e a duas irmãs quando eram todas ainda solteiras.
Quando acabou o canto, que era um hino religioso, tão enternecido ele
sentiu-se, que abençoou as cantoras e pediu a Deus que as fizesse felizes. Menos de
um mês depois, aquelas cantoras eram pedidas em casamento por três deputados
provinciais; e minha sogra sempre atribuiu o fato à súplica do Bispo.
O que o padre João Gonçalves cantava em nada absolutamente se parecia
com essas cantatas do Bispo; porque ao passo que ele sentia uma tendência muito
pronunciada para as modinhas mais ou menos ternas; por outro lado ou ao mesmo
tempo, aquilo de que mais gostava era de alegres e engraçadíssimos lundus de que
tinha uma grande e variadíssima coleção; e dos quais o mais
bonito, c ao mesmo tempo o mais bem cantado, era justamente um dos mais livres
ou aquele, em que, abrazada em amor por um sujeito que se chamava Jucá, uma
pobre e desconsolada moça, se queixava a Santo Antônio, de que este a não
auxiliasse no seu amor ou a não livrasse de uma semelhante tentação.
Eu não conservo a letra desse lundu; mas me recordo bem do assunto, e até
me lembro, que um dos versos começava por esta forma:
Santo Antônio, meu santinho, Já não vale
nada não;
e que o estribilho era assim que terminava:
Senhor Jucá, oh! senhor Jucá! Que
tentação do demónio!
Pois este padre, ou antes, este cantador de modinhas e de lundus assim tão livres, e
que por ser de uma família dotada de uma habilidade extraordinária para a música,
os cantava perfeitamente, era ao mesmo tempo, um dos melhores padres que tenho
conhecido.
Tendo em 1864 de ir tomar assento na assembleia provincial, eu, em vez de
seguir diretamente da Leopoldina para o Ouro Preto, dei, por motivos de negócio,
uma volta por Barbacena, onde era então vigário o cônego João Gonçalves. Embora
já fosse noite quando ali cheguei, fui procurá-lo em sua casa; e sabendo que estava
na igreja, para ali me dirigi. Sendo dia de semana e não me constando que houvesse
festa alguma, eu acreditava, que o iria ali encontrar, só ou praticando algum desses
atos mais ou menos insignificantes que se dão quase todos os dias na igreja. Qual,
porém, não foi a minha surpresa diante do espetáculo que aos meus olhos então se
apresentou! A igreja que era um templo bastante vasto, estava literalmente cheia até
a porta, e tão cheia que eu mal pude chegar ao tapa-vento. Sobre aquela imensa
multidão de cabeças que todas imóveis se conservavam, reinava um silêncio tão
profundo que se poderia, como se diz, ouvir voar uma mosca. E este silêncio tão
profundo só era quebrado pelo salmodiar do vigário no altar ou por um cântico
melancólico, e ao mesmo tempo suave e doce, que era entoado por vozes tão
límpidas e maviosas, que parecia estar-se ouvindo um verdadeiro canto de
anjos.
Eu não sei, se todos são como eu susceptíveis desse encanto misterioso que
sempre grave e tão solene, me infunde n'alma tudo quanto a parece elevar para as
alturas do infinito; mas o que posso asseverar, é que aquele templo vasto
e tão
cheio, aquele silêncio tão profundo, aquele grave salmodiar do padre, e que
aquelas vozes tão suaves que eu ouvia, produziram em mim uma emoção
tão súbita e profunda, que nunca talvez na minha vida eu tive um desses
arrebatamentos místicos, de que há pouco falei, tão penetrante e forte, como
esse que naquele momento eu senti; e tanto que ainda hoje, depois de vinte
e muitos anos, a sua lembrança se conserva sempre e é provável que nunca
mais se apague.
Algum tempo depois é que vim a saber que não só aquelas cantoras
eram moças das primeiras famílias de Barbacena que, instruídas ou
dirigidas pelo padre João Gonçalves, tinham por costume tr cantar na igreja;
mas que entre elas algumas havia que ali estavam apenas de passeio, como
por exemplo, uma neta do Marquês de Olinda e filha do Visconde de Piras-
sununga a qual depois casou-se com um meu parente, o Barão do Rio Preto;
e ainda outra, que amiga daquela, sem que então nem sequer por sombra eu
o suspeitasse, ia muito em breve se tornar minha cunhada, casando-se ao
mesmo tempo que eu com o meu antigo colega e então novo amigo Dr.
Washington Rodrigues Pereira.
E tanto mais esse arrebatamento religioso que ali fui receber, me
impressionou; quanto eu sempre tinha ouvido dizer, que Barbacena era um
lugar de muito pouca religião ou pelo menos de costumes mais ou menos
dissolutos ou libertinos; e eu não podia, por consequência, supor ou esperar
de ali encontrar uma reunião por tal forma edificante como aquela que ali
havia presenciado. E então a conclusão que tirei, foi que, se aquela opinião
que eu fazia de Barbacena, era, com efeito, verdadeira; aquilo que ali vi e o
que senti, seria a prova a mais evidente de quanto é grande o poder da
virtude, sobretudo, quando esta não toma os ares da hipocrisia ou quando,
despin-tlo-se de uma austeridade muitas vezes descabida, se mostra sem
aspereza e mais ou menos sorridente.
CAPITULO XXVI
Na fazenda do Saco. O primeiro engenho deitado e de ferro que se fez
naquela zona. A fazenda do Saco era fatídica. A crise da lavoura. Falece o
pai do autor. A venda da fazenda. Regresso à Campanha. A orfandade e a
luta pela vida. O visconde de Jaguari. O autor tinha que se formar. Por que
não quis ser médico. Sua partida para São Pauto em Í849. Inicia-se uma
vida
nova.
Em fins de 1842 ou no começo de 1843, meu pai, como já disse,
havia comprado a meu Avô a fazenda do Saco; e tinha sem mais demora ido
ali se estabelecer. Colocada a pouca distância da serra das Águas Virtuosas
e ocupando a vertente oriental do serrote do Joaquim Inácio, esta fazenda
que possuía uma boa aguada e que era cotada por um ribeirão que julgo
deno-minar-se S. Bento, compunha-se de campo e mato. O campo era
excelente, as terras magníficas; e além de muitos cômodos, e de todos os
edifícios necessários, ainda meu Avô que nada fazia a meio ou sem
grandeza, tinha nela estabelecido todos os maqui-nismos os mais
aperfeiçoados que existiam naquele tempo para o preparo da cana. Nem
para prova disto que acabo de dizer, é preciso mais do que acrescentar, que
até aquele tempo não se conheciam, pelo menos em Minas, outros engenhos
que não fossem todos de madeira e todos em pé; entretanto que foi meu Avô
um dos primeiros, senão o primeiro fazendeiro daqueles lados, que não
fez naquela fazenda um engenho deitado; mas que ainda o fez de ferro. E
como naquele tempo os ingleses e americanos ainda não se tinham lembrado
de vir atulhar os nossos mercados com todos esses seus hoje tão variados
artefa-tos de ferro; para que realizasse um semelhante mellhoramento, teve
meu Avô de mandar fundir na fábrica de ferro do Ipanema, em Sorocaba,
três cilindros ocos, que depois de terem vindo em burros e com alguma
dificuldade, foram ajustados sobre moendas de pau; o que deu em resultado,
ficar aquele seu engenho exatamente como são os de hoje; mas com esta
diferença contudo, que os cilindros eram inteiramente lisos e que as moen-
das eram de um tamanho muito maior do que as de hoje.
Era, pois, aquela fazenda do Saco uma fazenda que se poderia dizer
perfeita; e se a isto acrescentar-se, que filho de fazendeiros e que tendo na
lavoura se criado, meu pai reunia, e reunia em muito alto grau, as duas
principais condições que se tornam necessárias para bem se administrar uma
fazenda, e que são a capacidade e o gosto; parece que ele não poderia deixar
de fazer ali grande interesse, e até mesmo de muito em breve realizar talvez
grande fortuna. Havia, porém, uma tradição na Campanha, segundo a qual,
corria como certo, que na aquisição primitiva ou que em uma das
transmissões daquela fazenda, havia se praticado, não sei bem se uma
grande violência ou se uma grande fraude, mas em todo caso, um desses
atos que por sua própria iniquidade bradam ao céu; e que por isso, na
opinião popular, não só o seu castigo é sempre certo, mas ainda se converte
em uma espécie de verdadeira lepra que se agarra ao objeto do pecado, e
que contaminando, por assim dizer, a todos que nele pegam, vai a todos
indefinidamente ferindo ainda mesmo aos mais justos e inocentes. Daqui
resultou esta opinião popular, que por melhor que fosse aquela fazenda,
nunca quem dela fosse senhor, jamais prosperaria. E com efeito, se para a
prova de um absurdo qualquer nada mais fosse preciso, do que a simples
existência de alguns fatos isolados ou até mesmo do que uma sucessão
maior ou menor de certos fatos da mesma natureza; parece que seria este
justamente um dos casos, em que apoiando-se sobre alguns fatos
averiguados e contínuos, poderia todo cheio de si e com ares do mais com-
pleto triunfo, esse mesmo absurdo a todos se apresentar como a mais
perfeita expressão da verdade; pois que a realidade neste caso vinha a ser
esta — que nenhum dos antecessores de meu pai ali prosperou; que seus
sucessores menos ainda ali prosperaram, segundo parece; e que assim como
aqueles e que assim como estes, ele ali também nada absolutamente
conseguiu fazer; pois que tendo até aquela época a lavoura se mantido
sempre em um certo pé de mais ou menos constante estabilidade, desde que
-
meu pai para ali se mudou entrou ela em oscilações tão rápidas e tão
desacostumadas que os pobres fazendeiros já quase que não sabiam para
onde se virar.
Assim até então, o preço, por assim dizer, corrente e constante de um
barril de aguardente ou de uma arroba de açúcar era o de dois mil réis e
tanto a três mil réis; mas apenas meu pai entrou para a fazenda, esse preço
baixou imediatamente a mil réis e até mesmo a oitocentos réis e a duas pa-
tacas. Tendo em consequência disto, meu pai se resolvido a passar para a
cultura do fumo em rolo, deu-se com este uma baixa quase igual; tendo
depois tentado de mandar o fumo em
folha para a Bahia, o resultado não foi melhor; e teve afinal de voltar de
novo para a cana, cujo cultivo tendo sido geralmente abandonado, de
repente começou a recuperar a alta perdida.
Ao cabo, porém, de pouco mais de três anos, e quando ainda lutava
com estas contrariedades, e com muitos outros contratempos, meu pai que
desde uma constipação que apanhara na Corte, nunca mais tinha tido uma
saúde perfeita, repentinamente enfermou do fígado; esteve algum tempo na
Campanha se tratando; e quando parecia melhor e já se dispunha a voltar
para a fazenda, foi de repente acometido de um ataque de convulsões; e no
dia seguinte, 6 de agosto de 1846, faleceu na idade mais ou menos de 36
anos. Pouco mais tendo de 14 anos, eu era ainda muito criança, para que
pudesse bem avaliar a grande perda que eu acabava de sofrer; mas o
coração que era todo dele, adivinhou, sentiu; e bem largo e fundo recebeu o
golpe. Muitas, portanto, e muito amargas foram as lágrimas que então
derramei. Nem outras me recordo de haver depois disto realmente
derramado; senão quando já velho e julgando-me assaz cortido para poder
impassível contemplar o mundo e todas as suas misérias, eu ainda tive o
dissabor de ver falecer, a 23 de dezembro de 1883, aquela, que mais do que
mãe, havia sido para mim um pai; e que embora nunca tivesse sido extre-
mamente carinhosa, mas antes severa; nunca deixou, entretanto, de ser
sempre amorosa e dedicada; e pode, por isso mesmo, tornar-se aquilo que
realmente foi — uma verdadeira mãe de filhos na orfandade; pois que tudo
quanto sou a ela o devo; e ninguém mais do que eu conhece quanto lhe
custei de privações e sacrifícios.
Meu pai deixou muitos bens; as suas dívidas, porém, também eram
muitas, para que uma mulher que tinha nascido e se havia criado em uma
povoação, as pudesse saldar por meio da lavoura. Minha mãe, portanto, que
era dotada de um grande tino para o negócio, ou de um certo senso da vida
prática, tomou o partido, que único nos poderia salvar alguma coisa; vendeu
a fazenda, os escravos, e tudo quanto pertencia à fazenda, ou de que ela não
podia precisar; e com o pequeno saldo que apurou e com três ou quatro
escravos que reservou, veio estabelecer-se conosco na Campanha, a fim de
que debaixo da sua vigilância eu pudesse continuar com os meus estudos e
começasse meu irmão com as suas primeiras letras.
A sua resolução estava firmemente tomada: desde muito pequeno se
havia dito que eu havia de me formar; era preciso que eu me formasse; e eu
havia de me formar. Uma formatura, porém, não é das coisas mais
fáceis para os pobres; o pequeno
capital que minha mãe havia reunido era extremamente diminuto; os lucros das suas
quitandas c de outros pequenos negócios mal davam para as nossas despesas
ordinárias; como, pois, cuidar na minha formatura?! Havia um único meio; era o de
sujeitar-nos todos a uma economia extremamente severa; e esse meio foi
imediatamente adotado. Ela que tinha sempre passado com uma certa largueza e até
mesmo com algum luxo, reduziu-se ao mais estrito necessário, não esperdiçou um
só vintém; e eu que até um certo tempo havia sido um dos meninos mais casquilhos
da cidade e que já um pouco antes da morte de meu pai, tinha começado a não
aparecer senão simplesmente como todos os outros; desde então quase que não
vesti-me senão com os restos aproveitados das roupas já velhas ou servidas; e ainda
me lembro que durante dois anos talvez, eu não tive para frequentar o estudo, senão
um paletozinho feito mesmo por minha mãe ou apenas cortado pelo alfaiate e por
ela cosido; e cuja fazenda era uma lã que tinha sido fiada e tecida em casa e que por
ela mesma havia sido depois tinta de preta ou azul ferrete. Nem é sem uma certa
complacência, que assim insisto sobre tais minúcias; pois que se é certo, que há
sempre um verdadeiro prazer em contemplar depois de salvo, os perigos e difi-
culdades pelos quais havemos passado; eu ainda tinha para isso neste caso as três
seguintes razões: primeira recordar os benefícios que recebi da minha boa mãe, que
viúva na flor da idade nunca se esqueceu dos filhos e a tudo por eles sujeitou-se;
segundo porque há em tudo isto alguma coisa que nos revela um lado dos mais
apreciáveis do caráter mineiro; e terceiro finalmente, porque se os grandes é lícito
comparar pequenas coisas; debaixo deste ponto de vista, a minha sorte muito se
assemelha à de um homem que representou um grande papel em a nossa vida
política — o visconde de Jaguari; pois que sendo sua mãe também muito pobre, e
não dispondo de outros recursos que não fossem as suas quitandas que ela mesma
fazia e que ela mesma vendia em Baependi; conseguiu, entretanto, formar a todos os
seus filhos, os quais também, assim como eu, sabiam compreender o benefício que
recebiam e o grande sacrifício que custavam; e por isso, em vez de esbanjarem,
como alguns outros, o suor e as lágrimas daquelas que lhes dão o ser, sabiam, pelo
contrário, quanto neles estava, auxiliá-la pela sua própria prudência e pela sua não
menor economia; da qual a melhor das provas é a seguinte exageração que a respeito
do visconde de Jaguari tinha curso entre o povo e que muito mais de uma vez eu
ouvi referir; isto é, que ele havia conseguido fazer todo o seu curso em S. Paulo com
a mesma sobrecasaqui-nha de lã que de Baependi para lá tinha levado.
A intenção de meu pai era que eu me formasse em medicina; mas eu
preferi ou minha mãe achou mais fácil a minha formatura em S. Paulo. E
assim foi bom; porque não tendo gosto nem a menor habilidade para as
ciências físicas ou naturais, e por consequência para nenhuma das ciências
ou materiais que constituem o estudo da medicina; e faltando-me por outro
lado, o que se chama o tino médico; e por acaso em tal matéria eu me
formasse, ou seria para viver às moscas, ou então, e o que muito pior seria,
para encher os cemitérios. Estando, pois, desde o começo de 1848 pronto
em latim; parecendo estar também pronto em francês; e tendo já entrado no
meu 17.º ano; minha mãe entendeu, que era tempo que eu partisse para S.
Paulo; e efetivamente para ali parti no primeiro dia de fevereiro de 1849;
tendo sido acompanhado de fora da cidade por um grande número de
parentes e de pessoas da minha amizade; e sendo ainda muito gratamente
surpreendido no campo do Rosário pelo encontro dos meus ex-colegas, os
alunos da aula de latim, que por pedido seu ou por espontânea iniciativa do
padre Mestre, haviam deixado a aula e haviam ali ido me esperar para ainda
uma vez me verem e me dizerem o seu último adeus.
Desde então, começa para mim uma vida inteiramente nova; e é
justo que aqui termine a primeira parte deste meu trabalho.
Parte Segunda
CAPÍTULO XXVII
O autor cm São Paulo. A pensão do Bressane. Quem era esse Bressane. Da rua do
Rosário para a Chácara dos ingleses. A celebridade desta chácara. O autor faz os
seus primeiros preparatórios. Lentes e examinadores. Dr. Manuel Joaquim do
Amaral Gurgel. Dr. Emílio Paulo. Padre Mamede. O Conselheiro Antônio Joaquim
Ribas e o cônego Fidelis. A caderneta do cônego Fidelts. Comentários e
observações.
Minas é de alguma sorte uma filha de S. Paulo; porque além de ter sido
descoberta pelos paulistas, foi em grande parte povoada por eles. Hoje dá-se o
contrário: a província de S. Paulo está sendo colonizada pelos mineiros; e até na
própria capital, pequeno já hoje não é o número dos nossos, que atraídos pelas letras
ou pela indústria, lá se acham estabelecidos. No ano, porém, de 1849, e desde de
muito mais de meio século antes talvez, ao espírito de aventuras tendo sucedido uma
espécie de quietismo ou de concentração geral, as relações entre a Campanha e S.
Paulo tinham até aquela época se tornado quase nulas. Eu, pois, quando deixei a
Campanha e que parti para S. Paulo, ia, ou supunha ir, para uma cidade onde não
tinha o menor conhecimento. Antes, porém, que eu partisse, havia se procedido a
algumas averiguações; e o resultado que de todas aquelas averiguações por fim se
veio a recolher, foi — que em S. Paulo havia então um homem, que era filho de
Pouso Alegre; que era afilhado de meu avô; e que se chamava Francisco de Paula
Bressane. Este Bressane tinha, segundo se dizia, um colégio. E foi para a casa dele
que então me dirigi, levando uma carta de meu avô. O tal colégio não passava de
uma simples casa de pensão. E quando lá cheguei, a mesma se achava na rua do
Bosário.
Entretanto nada poderia vir para mim mais a propósito; porque tão
inexperiente como ainda era, não só tive algum tempo para me ir sem perigo
habituando a viver sobre mim; porém ainda, e muito principalmente, porque sendo o
Bressane casado com uma senhora que se chamava D. Carolina e tendo uma
cunhada que se chamava D. Brandina; e sendo todos eles
pessoas muito amáveis ou aquilo a que se costuma a chamar uma boa gente;
sempre da parte de todos ali encontrei o melhor carinho.
Tendo chegado a S. Paulo no tempo justamente em que se faziam os
exames de preparatórios; e tendo levado já prontos da Campanha o meu
latim e o meu francês; desde logo tratei de requerer o exame dessas duas
matérias. A banca de latim compunha-se do Dr. Manuel Joaquim do Amaral
Gurgel, que era o diretor da academia, como presidente; do Dr. Emílio
Paulo, que era o lente da cadeira; e do padre Mamede, que era o substituto
de latim e retórica.
0 Dr. Manuel Joaquim era um homenzarrão muito alto e muito
grosso e por esse motivo tinha o apelido de caiena; mas que era, não
obstante, um homem muito estimável e geralmente estimado. O padre
Mamede era um padre ainda moço, bastante inteligente, e que era ao mesmo
tempo estudante da academia. Quanto ao Dr. Emílio Paulo, era um homem
muito alegre, muito amável, mas que não deixava de prestar-se um pouco ao
ridículo. A seu respeito corria uma anedota que muito melhor talvez do que
tudo quanto eu pudesse dizer, pode, quanto a mim, dar ao leitor, senão uma
ideia perfeita, uma ideia pelo menos muito aproximada do que era, com
efeito, o homem. E essa anedota que à primeira vista pode muito
naturalmente ser tomada como um simples debique ou como uma ironia
muito fina, porém que na realidade ou segundo todos unanimente o
asseveram, se havia dado como uma coisa séria; eis aqui qual foi: Estando o
Dr. Emílio Paulo a examinar um dia, ou a lecionar a um estudante, que
ainda cheguei a conhecer em S. Paulo e que se chamava Whitaker, este
lembrou-se de apresentar aquele doutor uma daquelas objeções muito
corriqueiras que não havia um só estudante que as não conhecesse e que as
não empregasse. E o Dr. Emílio Paulo, depois de o ter ouvido com o seu ar
constantemente risonho e constantemente prazenteiro; quando chegou a sua
vez de o refutar, tomou, segundo o seu costume, uma posição toda retesada
e uma entonação de voz inteiramente declamatória; e a resposta que lhe deu,
foi a seguinte: "A objeção do Sr. João Guilherme Whitaker é na qualidade
absolutamente irrespondível. Jerónimo Soares Barbosa, porém, no seu livro
tal, capítulo tantos, a resolve da maneira a mais cabal e a mais evidente". E
começou então a desenvolver os seus argumentos.
Uma vez tendo por acaso entrado na sua aula de latim, ainda
conservo uma ideia extremamente vaga de o haver visto ali a lecionar; e
que em vez de estar como todos os outros
sentado na cadeira, lecionava passeando pela aula ou pelo meio dos seus
discípulos. Como todos os outros professores, nunca deixava de ir à aula de
casaca; mas em casa e pelas imediações da sua casa apresentava-se vestido
mais ou menos como um estudante. E isto digo; porque morando na
freguesia de Santa Efigênia e até mesmo morando muito nas imediações da
nossa rua dos Bambus, não só o Dr. Emílio Paulo veio por esse motivo a ser
por algum tempo nosso vizinho; porém, por esse mesmo motivo, veio ainda
a ter a muito insigne honra de entrar em uma daquelas poesias de Bernardo
Guimarães que só eram ou que só poderiam ser lidas pelos estudantes;
poesia essa, da qual, para dizer a verdade, já quase que nada me recordo e
que ainda mesmo que me chegasse a recordar, não poderia aqui
transcrever.
Entretanto, como há pessoas muito curiosas e que sentem prazer em
adivinhar charadas; aí vai um pequeno espécime para que vejam se são
capazes de adivinhar:
Nesta rua tudo f. .. O gato, o
cachorro, a Luiza, F... a cabra,
f... o bode, F... o nosso
Emílio Paulo.
Tal foi a minha banca de latim. Quanto à de francês, já quase que
não me recordo como foi que se compôs. Em todo o caso creio que
ainda foi presidida pelo Dr. Manuel Joaquim.
Eu não sei se naquele tempo sabiam-se menos os preparatórios do
que se sabem hoje. Sei, porém, que já naquele tempo muito raro era o
estudante que fizesse o exame sem estudar os pontos; e que alguns já iam
para o exame sem nem sequer sabê-los todos. Indo para S. Paulo sem quase
que nem ao menos saber o que era propriamente um exame, disseram-me
que requeresse os que eu queria fazer; eu os requeri; fui para a banca
inteiramente a Deus e a ventura. Felizmente, se não sabia, como ainda hoje
não sei, o francês com perfeição, eu pelo menos o lia sofrivelmente e o
traduzia não muito mal. E quanto ao latim, que naquele tempo já quase que
ninguém o sabia senão os mineiros, eu podia me considerar como um
totum--quebas naquela língua; pois quando os outros unicamente sabiam os
pontos e ainda sabe Deus como, eu era um estudante que havia traduzido o
Horácio todo, todo o Virgílio à exceção das Geórgicas, e ainda por cima o
Ovídio quase inteiro. Hoje quase que nem das declinações já me lembro.
Mas naquele tempo a memória estava ainda muito fresca. Eu, pois, sem que
disso muito me admirasse, fui aprovado plenamente.
Muito pouco tempo depois que eu havia feito estes meus dois
exames, o Bressane, sem que eu já me recorde muito bem o porque, teve de
deixar a rua do Rosário. Então mudou-se conosco para um grande sobrado
que tendo em frente o cemitério e pelos fundos o Tamanduateí, se
denominava a Chácara ou a casa dos Ingleses. Isolada, por assim dizer, no
meio do campo, e se bem me recordo, estando quase sempre desabitada,
aquela chácara ou aquela casa dos Ingleses gozava, no entretanto, de uma
certa celebridade; porque, segundo a mais de uma pessoa eu então ouvi
dizer, fora ali que Pedro I havia se aposentado quando fora a S. Paulo; fora
ali que se travaram as suas relações com uma pessoa que veio depois a se
tornar um dos seus mais íntimos conhecimentos; fora ali finalmente que se
havia dado uma das muitas e das mais interessantes anedotas, que a partir
desse fato, começaram a se divulgar e que ainda no meu tempo tão
geralmente se contavam.
Infinito era, com efeito, o número delas. De todas, porém, as duas
que a. todos mais divertidas pareciam, era uma (a tal) que se poderia
denominar — Quem é então que disse que eu grito?; e outra que se poderia
denominar — A aposta com o bispo. Esta então era de tal natureza; que por
mais incrível que pudesse parecer, nunca deixava de provocar as mais ale-
gres gargalhadas; pois, de fato aquilo de que na realidade se tratava naquela
celebérrima e tão estapafúrdia aposta, nada mais ou antes nada menos era,
do que o verificar quem seria capaz de atirar a uma parede um esguicho
mais alto; entretanto que foi o pobre daquele tão desconsolado bispo quem
teve de ficar completa e vergonhosamente vencido; e vencido, não pela
orelha e nem mesmo talvez pelo pescoço; mas por uma grande ou
respeitabilíssima distância.
Tendo já dito, que naquele tempo a chácara dos Ingleses nchava-se
completamente isolada no meio de um campo, eu, para obedecer a mais de
um motivo que neste momento tenho em vista, vou ainda acrescentar mais
duas observações; uma das quais é — que não existindo ali nem siquer uma
simples horta, a casa era tudo quanto constituía a chácara. E quanto à
segunda, vem a ser esta — que aquela casa era um alto e muito vistoso
sobrado que apresentava nos fundos uma espécie de terraço; ou antes, uma
espécie de sapata, de largo patamar ou não sei mesmo qual o nome que lhe
poderia dar; e sapata ou patamar aquele que formando uma espécie de
estreito passeio por cima do telhado dos acrescentes inferiores, se
prolongava em todo o cumprimento da casa. O cômodo que eu ali ocupava
era um quartinho extremamente pequeno, o qual se achava no ângulo do
sobrado que olhava para o Lava-pés ou para o Ipiranga.
E como este meu quartinho ficava justamente pegado com a tal sapata ou
patamar, era a passear sobre este ou a percorrê-lo de uma extremidade à outra, que
eu quase todas as manhãs fazia os meus inauditos esforços para ver se conseguia
encaixar na minha cachola a mais célebre de quantas cadernetas chegou a possuir a
academia de S. Paulo — a Caderneta do cônego Fidelis. E já que toquei neste ponto,
é de justiça, que voltando agora um pouco atrás, eu trate, não só de contar ao leitor o
histórico dos meus estudos durante o ano; porém muito principalmente de lhe dar
alguns traços daquele tão ce-lebérrimo cônego.
Logo depois que fiz os meus dois exames de latim e de francês, eu por
conselhos de um moço, que morava conosco, que se chamava Joaquim Batista da
Silva; que, estudando já um pouco velho, tinha ares de pedagogo; e que me havia
tomado desde logo, como tinha por costume de fazer a outros, sob sua proteção;
tratei de matricular-me na aula de história e na de retórica.
Eu fui sempre, desde muito pequenino, muito apaixonado pela história. E
conquanto este estudo fosse então considerado como sendo de todos o mais difícil; e
conquanto a aula quase que estivesse unicamente cheia de gente que se preparava
para serem calouros; eu, todavia, ali não fiz uma figura que fosse lá muito inferior a
de outro qualquer, salvo apenas o depois conselheiro Francisco Januário da Gama
Cerqueira, que além de ser um homem muito inteligente, tendo ido para S. Paulo já
homem feito e depois de ter sido empregado público em Ouro Preto, passou na aula
como sendo o primeiro estudante dela. Para que, porém, no meio de toda aquela
gente eu não fizesse uma figura triste, ninguém faz ideia do imenso esforço que tive
de empregar. Nem eu preciso mais do que dizer, que não tendo podido encontrar
compêndio um pouco mais resumido que tratasse da história do Império do Oriente,
eu em 24 horas cheguei a ler um grande e grosso volume, se não me engano, de
Segur. Se, porém, como disse, o exame de história era de todos o mais difícil; das
aulas de preparatórios da academia, a de história era também a única, que, à exceção
um pouco da de filosofia, não participava do imenso descrédito que então recaía
sobre todas elas. E isto porque, ao passo que em todas as outras quase que não se
descobria senão o relaxamento, a ignorância ou a estupidez; a aula de história, pelo
contrário, era então dirigida pelo Dr. e hoje conselheiro Antônio Joaquim Ribas,
homem de uma grande distinção que veio depois a ser lente do curso e que é
atualmente um dos melhores advogados da Corte.
Entre a aula de história e a de retórica o contraste então parece que se
estendia à própria pessoa dos professores; porque o professor desta última
era o cônego Fidélis de Sing Maringen de Morais; e ao passo que o Dr.
Ribas era um homem alto, bem feito; claro, corado, testa espaçosa e o que se
poderia chamar um homem bonito e airoso; o cônego Fidelis vinha a ser,
pelo contrário, um padre gordo, já então um pouco idoso, toutiçudo, de uma
cor avermelhada, e que era, de mais disso, dotado de uma grande penca de
beiços, dos quais o de baixo era muito caído. Nunca tendo tido com o
cônego Fidelis outras quaisquer relações que não fossem as que se referiam
ao estudo da retórica, eu não poderia afirmar com uma bem inteira certeza
que ele fosse um homem completamente estúpido. Fosse, porém, qual fosse
o grau da sua inteligência, a opinião geral ou a impressão pelo menos que a
sua vista em todos produzia, era — que a inteligência do cônego em nada
destoava de todas aquelas gordas e tão enrugadas carnosidades que lhes
serviam de invólucro. As pessoas que o conheciam mais de perto diziam que
não era um mau sujeito. Na academia porém, não havia para ele senão dois
únicos sentimentos — o terror da parte daqueles que ainda não haviam feito
o exame e o do desprezo daqueles que do mesmo já se achavam livres. De
todos, entretanto, que chegaram a sentir esse tão grande terror do cônego,
ninguém tão grande o chegou talvez a sentir, como eu. E o que há de encher
de admiração a todos, é que não havendo para esse meu terror o mínimo
motivo pessoal, ele unicamente procedia da incapacidade com que me sentia
para dar conta de um exame que um menino um pouco vivo e que fosse
dotado de uma boa memória, poderia fazer talvez em menos de um mês.
E com efeito, todo aquele estudo, que aqui seja dito de passagem,
não era explicado e muito menos ainda discutido, de fato quase que a outra
cousa mais não se reduzia, do que a decorar uma simples caderneta, que,
manuscrita como era, parecia algum tanto volumosa, mas que não poderia
dar para muito mais do que um pequeno volume impresso. Para quem,
portanto, tivesse u'a memória mais ou menos sofrível, já se vê, que nada
poderia haver de mais fácil. Eu, porém, que, sobretudo até certa idade,
possui uma memória felicíssima para os fatos, nunca, nem mesmo nos
primeiros tempos quando a natureza mais nos favorece sobre este ponto, eu
consegui ser um bom decorador de palavras.
A isto, porém, acrescia uma circunstância ainda; e vinha a ser, que,
ao passo que naquele tempo a minha inteligência ainda se achava muito
pouco desenvolvida; a caderneta era, por outro lado, de uma tal indigestão,
segundo todos diziam, e em todo caso de uma tão grande obscuridade
para mim; que ninguém poderia
fazer uma ideia mais ou menos exata de quais e de quantos foram os
esforços que tive de empregar para que chegasse por fim a decorá-la.
Decorando-a, porém, isto não fez que de qualquer modo eu tivesse ficado
sabendo a matéria que estudava; porque neste caso, o que era para mim (e
creio que para a maior parte de todos os outros) a pura verdade; era que
sendo o estudo da retórica um estudo de palavras e unicamente de palavras,
eu nunca havia chegado jamais a muito bem compreender o que no fim de
todas as contas vinha a ser aquele para mim tão incompreensível e para
todos tão encafifante embroglio a que se dava o nome de caderneta do
Fidelis. E se há poucos meses eu não tivesse encontrado por acaso uma
retórica entre os livros de um dos meus filhos e por pura curiosidade não me
tivesse lembrado de a ler, eu muito bem poderia ter ido para o túmulo, sem
que na realidade eu tivesse jamais chegado a saber muito bem o que era
retórica. Felizmente creio que não perderia muito com isso; porque a
eloquência nasce e não se faz; e mais vale convencer e persuadir sem regra
do que aborrecer com arte.
Fosse, porém, muito embora inútil aquele estudo, ou fosse, como era
de fato com aquele tão estapafúrdio professor, uma simples e bem cruel
amofinação para todos os que o tinham de fazer, não havia quem se pudesse
formar sem que o fizesse. E eu tive de me sujeitar à regra. Que tédio,
porém, e que de enormes esforços eu não tive de fazer para decorar a
caderneta; ou para que pudesse levar para a aula alguma cousa que de
qualquer modo se assemelhasse à uma lição bem sabida!
Tudo isto, porém, pode-se dizer, nunca havia passado de uma pura
vontade sem braços. E de duas ou três vezes, tendo, tomado do maior
sobressalto, sido pelo cônego chamado à lição, muito longe de espichar-me
como uma verdadeira vaca espanhola; eu tive a ventura para mim
completamente inesperada, ou para melhor dizer, a imensa glória de salvar
a honra da bandeira; isso unicamente eu o vim a dever a um fato puramente
estranho ou a uma dessas muitas e sempre tão conhecidas espertezas de
estudantes, a qual o gordalhudo do cônego nunca chegou a perceber; e
vinha a ser — que sendo eu o 19 da aula e que sendo o n.º20 o meu
colega, hoje Dr. Antero José Lage Barbosa, desde que o cônego me
chamava, o Antero chegando-se o mais que podia para perto de mim, punha
sobre os joelhos a caderneta aberta e encostada ao banco da frente; e não
contente com isto, ia ainda com o dedo acompanhando e apontando para as
linhas e para as palavras que eu deveria repetir.
Quando tive de fazer o exame, era tal o susto de que me achava
apoderado; que apenas repetidas as primeiras linhas do ponto, eu
comecei a ficar como um cavalo passarinheiro que em dia de sol
claro avista caído à beira da estrada a algum devoto de Baco; o
que quer dizer que principiei a gaguejar ou talvez mesmo a dar
sinais de grande atrapalhação.
Ora, o padre Mamede, que na sua qualidade de professor substituto de latim
e de retórica, era um dos examinadores; e que por outro lado, não deixava de ser um
dos primeiros que fazia a mais completa justiça da caderneta do cônego, de
ordinário tinha por costume, quando percebia que um examinando se achava emba-
raçado, de não consentir que o mesmo se calasse; e, para esse fim, de sair-lhe pela
frente com uma objeção, cujo fim principal era o de avivar-lhe de alguma sorte a
memória ou de obrigá-lo a falar. E se o estudante era inteligente e sabia alguma
cousa de retórica, tomava logo fogo; punha-se com maior ou menor habilidade a es-
pichar, o mais que podia, a discussão; e naquele dize tu direi eu, ia o tempo se
passando, até que o presidente do exame virava a fatídica ampulheta; e o exame
estava feito. O Mamede, portanto, desde que chegou a perceber que minha memória
estava se tornando pouco fiel ou que dava sinais mais ou menos visíveis de alguma
perturbação; dispôs-se desde logo a vir em meu auxílio; e eu percebi perfeitamente,
que não só a objeção já estava engatilhada; mas que ele até já começava a ir abrindo
a boca para dispará-la.
Para os estudantes que sabiam alguma cousa de retórica, este
intrometimento do Mamede era de um auxílio imenso: nem para os que estudavam
fora, havia cousa que eles tanto desejavam.
Eu, porém, já tive ocasião de dizer, que não podendo compreender bem a
caderneta do Fidelis, eu nada absolutamente sabia de retórica. E assim, se o Mamede
me tivesse atarracado a objeção; muito pelo contrário do que ele esperava ou do
auxílio que ele supunha dar-me, ele de fato teria sido a causa da minha perdição;
porque, na impossibilidade em que me acharia de responder, ou eu teria de levantar-
me ou teria de ser reprovado. Felizmente tão grande foi o susto que veio em mim
produzir este novo e tão inesperado contratempo; que este último susto operando,
por assim dizer, mecanicamente sobre a minha natureza; e que, por consequência,
como muito maior que de fato era, tendo acabado por dissipar o antigo do qual até
então eu me tinha achado possuído, veio como que servir de aguilhão à minha tarda
ou tão atordoada memória; e o que é certo, e o que pode bem ser, o leitor não
acredite, é que tendo de novo e desde logo encarrilhado o negócio, desde então
e quase que de ura só
fôlego, levei o ponto até o fim. Eu, pois, tinha feito um exame
brilhantíssimo; e o grande, o imenso barranco, eu o havia transposto com a
maior galhardia.
Se, porém, o grande barranco eu o havia transporto; outro ainda se
me oferecia contudo; e que não era lá muito baixo ou muito estreito para
que eu pudesse com muita facilidade saltar. E este era o exame prático que
eu tinha de fazer com o Fidelis; ou como então mais geralmente se dizia, era
a análise, na qual o estudante tinha de mostrar nas Orações de Cícero todas
as belezas oratórias que ali se encontram. Deste exame, porém, era que eu
tinha medo; porque a regra invariável era de recair o exame sobre o
princípio da oração que havia saido por sorte; e havia um grande número de
Cíceros onde no começo de cada ponto, com letra muito miudinha por baixo
das linhas, estavam indicados todos os ornamentos oratórios que ali
existiam. E eu que possuía um desses Cíceros, estava por este lado um
pouco desassombrado. 0 sistema que o cônego seguia, eis aqui qual era:
Verificado qual o ponto, ele mandava que o estudante o lesse; e quando este
havia lido algumas linhas o Fidelis mandava que ele se interrompesse,
servindo-se desta frase sacramental — paremos aqui. E então indicando
uma palavra ou uma frase, serviar-se desta outra frase também sacramental
— que brilhantes temos aqui? E isto queria dizer qual era o ornamento
oratório que ali se encontrava. 0 Fidelis mandou-me, pois que eu lesse a
Oração que me tinha saído por sorte; e eu comecei a ler, não só sem cometer
a mais insignificante silabada, porém, ainda com aquela informação de
quem perfeitamente sabia o que estava lendo. Ora, o Fidelis parece que era
latinista; e ao ver um rapaz que lia tão bem o latim, parece que achou nisso
prazer; e deixou-me que fosse lendo. Quando a leitura passou da página ou
da parte da página que achava-se marcada, eu não deixei de ter um certo
sobressalto; mas vendo que lendo, ia o tempo se passando; e que era muito
natural que o Fidelis voltasse ao princípio para fazer a análise, fui sempre
continuando a ler; e devo mesmo dizer que ia com isso sentindo um certo
orgulho. Mas, ó decepção, e de todas as decepções! Quando eu já havia lido
três páginas ou talvez mais, o Fidelis diz-me: Paremos aqui. E em vez de
voltar para o princípio, lê uma das frases do período que eu havia acabado
de ler; e me diz: Que brilhantes temos aqui? O meu coração como que
parou; as minhas mãos esfriaram-se; e em vez de enxergar as letras do livro,
ou mesmo o rubro carão do cônego Fidelis, unicamente o que eu enxergava,
eram estrelas ao meio dia; porque, se mesmo os tendo nas mãos eu não
conhecia os tais brilhantes, como poderia o coitado de mim ir agora
procurá-los ou descobri-los no fundo de uma escura mina! Eu,
porém,
lembrei-me, que nas tais marcas que vinham no começo dos pontos quase
todos esses brilhantes tinham o nome de metáfora, de metonímia, e de mais
duas ou três figuras e entregando-me a Deus e à ventura, a cada pergunta
que o Fidelis me fazia, eu lhe atirava inteiramente ao acaso um daqueles tão
corriqueiros brilhantes; e tal foi a minha felicidade que, tendo ele me feito
uma meia dúzia de perguntas, eu apenas cheguei a errar uma ou quando
muito duas. Ele deu-se logo por satisfeito; e eu tinha feito um exame tão
esplêndido que, se naquele tempo houvesse na academia a aprovação com
distinção ou óptimo cum laude, eu com certeza a teria obtido.
Como, porém, não havia; tive de contentar-me apenas com o
meu plenamente.
CAPÍTULO XXVIII
O autor termina os preparatórios. O professor de filosofia e o seu
substituto: Dr. Manuel José Chaves e o cônego Joaquim do Monte
Carneiro. O cônego escreveu contra os bispos na questão religiosa e, com o
Cabado rebelou-se contra o seu próprio bispo, D. Antônio de Melo. O autor
abandona a companhia do Bressane e vai morar na rua da Palha. Evaristo
Ferreira da Veiga, Antônio Simplício de Sales e Bernardo Jacinto da Veiga.
A rua da Palha era uma rua de estudantes. José Alencar morava nessa rua.
Feliciano Coelho Duarte, estudante do 5.? ano e irmão do Conselheiro
Lima Duarte, também morava aí. A sua morte abalou á Paulicéia. Laura, a
causadora de seu suicídio, era a maior beleza de São Paulo. Muitos a
amaram. O Conselheiro João Silveira de Souza dedicou-lhe a mais célebre
de suas poesias. Um grande amor e uma indignação ainda maior. Laura,
que só embicionava riqueza, morreu- na
miséria.
Depois de termos nos conservado na Chácara dos Ingleses durante
alguns meses, em outubro de 1849, mudamo-nos para a casa nº 16 da rua de
S. Bento, que era um sobrado que ficava logo acima dos Quatro Cantos.
Em fevereiro de 1850 fiz os meus dois exames de retórica e de
história. E como eu tinha vindo da Campanha já sabendo alguma cousa de
aritmética, e como por outro lado, a banca de geometria estava marcada ou
só teria de funcionar em fins de março; eu assentei de ver, se graças a um
muito grande esforço da minha parte, eu poderia me livrar ainda de mais
este exame. Tomei, por consequência, para professor a um pardo que se
chamava Gil e que era um dos tais engenheiros da província que por
aqueles tempos se haviam feito em S. Paulo. E tive a satisfação de por
fora mais aquele exame.
Os únicos preparatórios, portanto, pelos quais agora eu ainda me
achava preso, vinham a ser o de inglês e o de filosofia. Ora a aula de inglês
era de todas as da academia a que passava naquele tempo, não só por ser
aquela em que menos se aprendia, porém, o que muito pior talvez ainda era,
por ser de todas a mais relaxada. Tomei então o propósito de estudar o
inglês comigo mesmo em casa; e matriculei-me na aula de
filosofia, da
qual o professor era o Dr. Manuel José Chaves e o substituto o cônego Joaquim do
Monte Carmelo. Aquele Dr. Chaves era um homem pequeno que andava quase
sempre muito encolhidinho e que nunca se via sem que estivesse todo vestidinho de
preto, isto é, de chapéu, de gravata, de casaca, de colete, de calças e de sapatos
pretos; de sorte que nele nada havia que fosse branco senão a camisa; e ainda assim,
muito pouco aparecia. Se, porém, naquele doutor nada havia que não fosse mais ou
menos miudinho; uma cousa, contudo, ele possuia que poderia dar para três pessoas.
Eram os seus beiços que ele vivia constantemente a lamber. Quanto ao que ele era
como professor, os dados de que disponho são inteiramente insuficientes para que eu
o possa julgar. Apenas o que sei; e ainda assim, sem que o possa dizer com uma
muito grande certeza; é que a sua filosofia ou aquela pelo menos que ele ensinava na
aula, não vinha a ser, segundo me parecia, mais do que uma espécie de ecletismo sui
generis, ou para falar talvez com uma exatidão ainda maior, mais do que uma
verdadeira mistura de grelos; porque, ao passo que o autor que servia de compêndio
na aula era Edm. Powell; quando se tratava de psicologia o sistema ensinado era o
de Laroniguere; e creio que a respeito de outras matérias, outros não eram ainda os
autores ou os sistemas que serviam para o ensino. Quanto ao substituto que também
durante alguns dias nos lecionou, e que por ser tatoez um pouco gago, nos pareceu
que muito pouco sabia; creio, entretanto, que era, não só um homem de bastante in-
teligência, porém até mesmo de bastante ilustração, eclesiástica pelo menos. E isto
eu o digo; porque na ocasião da prisão dos bispos ou da questão religiosa que tão
acesa andou entre nós, foi aquele cônego um dos que mais escreveram. E coisa que
torna-se muito digna de nota. escrevia contra os bispos. Isto, porém, de nenhum
modo me admirou; porque muitíssimos anos antes disto e que se a minha memória
não me é infiel, acredito ter sido no ano de 1854, aquele mesmo cônego de parceria
com alguns da catedral de S. Paulo já ali se haviam posto em luta contra o seu
próprio bispo D. Antônio de Melo; o qual tendo sido militar, e sem que um só
momento se lembrasse de quanto era grande o relaxamento do cabido de S. Paulo e
que em tais casos deve se ir um pouco mais devagar ou quando muito mais talvez do
que a força pode o jeito, tratou pelo contrário de levar tudo a excesso e à valentona;
e o resultado foi, que muito longe de conseguir uma parte qualquer do seu programa,
foi ele quem teve de deixar a catedral e de andar sempre a viajar por fora,
unicamente para não se achar em contacto com aquele cabido, a quem o bispo tanto
queria quanto aquele ao bispo. Ainda hoje muito perfeitamente me recordo da noite
em que teve lugar a grande estralada do cabido com
o bispo. E conquanto já muito pouco me recorde do verdadeiro motivo do
barulho e do modo como o mesmo se passou; sei, entretanto, que foi em
uma noite de natal em que a igreja estava cheia por um tal feitio, que só
com muita dificuldade é que lá cheguei por fim a penetrar; entretanto que
tendo o bispo chegado, e se sentando no ólio pontifício e dito ou exigido
não sei o que, uni dos cônegos, o mais moço, e que segundo creio, fora
aquele Monte Carmelo, tomou a palavra e então começou o tal dizer tu direi
eu, que foi a primeira manifestação da grande insubordinação do cabido
contra o bispo.
Tive no fim do ano a felicidade de fazer aqueles meus dois exames.
E desta sorte, em meados de novembro, não só achei-me por fim calouro;
porém ainda pude ver diante de mim umas verdadeiras férias de cursista.
Tão grande, porém, ainda em mim se conservava a má ou a tão terrível
impressão que me havia ficado da minha primeira viagem da Campanha
para S. Paulo; que muito longe de procurar aproveitar-me daquela tão
magnífica monção de uma férias assim tão longas para ir depois de tanto
tempo de novo repastar o ânimo e os olhos na casa e na terra natal, preferi
pelo contrário e sem a menor hesitação de me conservar naquela para mim
tão insípida Paulicéia. Só em meados daquele ano de 1850, é que deixei a
companhia do Bressane. E como nos começos desse mesmo ano tinham
também vindo para S. Paulo os meus colegas e conterrâneos Evaristo
Ferreira da Veiga, Antônio Simplício de Salles e Bernardo Jacinto da
Veiga; eu com eles fui então morar em uma pequena casa que então ficava
no começo da rua da Palha logo adiante da Ladeira do Piques.
Naquele tempo a rua da Palha, não só ainda não se achava, nem
sequer a metade, bem cheia de casas; mas destas uma só talvez não se
encontrasse, que não passasse de uma casa mais ou menos ordinária ou até
mesmo de algum simples casebre. Por isso também, pode-se dizer, que a
rua da Palha na realidade não passava naquele tempo de uma dessas ruas
em que, além de meretrizes ou de gente mais ou menos pobre, quase que
não se encontravam senão estudantes. Muitos eram, com efeito, os
estudantes que então ali moravam. E um dos que entravam neste número,
era José de Alencar, a quem todos os dias eu via passar para a aula, quase
sempre só e sempre muito sério. Pois, conquanto nunca o chegasse a
conhecer senão de vista, aquilo, que a julgar unicamente pelas aparências,
eu dele posso aqui dizer, é que não só parecia ser um moço extremamente
estudioso; porém que era ainda um moço que jamais se via metido em
partidas de prazer; e que até nas próprias rodas ou reuniões acadêmicas
muito pouco aparecia. Por agora, porém, deixando inteiramente de parte a
José de Alencar e a todos esses outros estudantes que então por ali
moravam,
eu vou exclusivamente me ocupar de um deles, que tendo na academia
representado um papel muito mais brilhante do que o de José de Alencar,
veio naquele tempo a se tornar em S. Paulo muito notório. Filho de Minas e
irmão do atual senador Lima Duarte, aquele estudante morava na outra
extremidade da rua quase que ao sair no campo dos curros.
Estudante do 5º ano, Feliciano Coelho Duarte (pois que tal era o seu
nome) era ainda ou de mais a mais um desses homens que unicamente pela
sua figura nunca deixavam de atrir a atenção. Alto, barbado, bonito,
eloquente, ele havia sempre passado por uma das melhores inteligências da
academia. E ainda na última festa de 11 de agosto, da qual perfeitamente me
recordo e na qual manifestou-se um muito grande entusiasmo, fora
Feliciano quem havia merecido a honra de ter sido eleito pela academia o
orador da festa. Entretanto, quando ainda na véspera Feliciano havia se
mostrado aos olhos de todos em todo o esplendor da mocidade e da saúde,
veio uma manhã a se saber com a maior surpresa e no meio por assim dizer
de um geral espanto que ele havia falecido.
Hoje em S. Paulo a morte de um estudante tem se tornado um dos
fatos mais normais; pois que anos há, em que por muitos são contados os
falecimentos desta ordem. Até o ano, porém, de 1850 não era assim. Ou
porque o número dos estudantes era menor; ou porque, segundo presumo, e
creio que na realidade o era, fosse naquele tempo muito maior a salubridade
daquela cidade; o que é certo, é que se antes daquele dito ano de 1850, que
foi, por assim dizer, o ano fatídico em que veio a se quebrar aquele tão
inapreciável condão que parecia tornar o estudante de alguma sorte imune
contra a morte, algum estudante efetivamente houve que ali tivesse
falecido, ou havia sido a vítima algum pobre e desconhecido zero daqueles
que somem-se ou que de ordinário se confundem naquela tão imensa turba
multa que constitue a bicharia; ou então um semelhante fato já se havia
tornado tão antigo, que pode-se dizer, já dele não existia tradição.
A morte de Feliciano, portanto, foi um raio que caiu sobre a cidade.
E se a impressão que sobre esta produziu foi realmente grande; enorme e
quase que indescritível, pode-se dizer que foi a que veio produzir no seio da
academia. Nem para demonstrá-lo, eu preciso mais do que unicamente
dizer, que o seu enterro foi um desses acontecimentos que por muito tempo
e por diferentes motivos nunca deixam de se conservar na memória
daqueles que a ele assistiram; pois de quantos ali cheguei a presenciar, a
nenhum com toda a certeza cheguei a ver, que fosse como aquele tão so-
lene; que além de solene fosse tão triste, fosse por fim e por uma
tal forma concorrido; pois, que ficando a casa do morto, como ainda há pouco
acabei de dizer, quase que mesmo a sair no campo dos curros, o préstito fúnebre, no
entretanto, pode-se dizer que ocupava toda ou quase toda aquela tão extensa
rua.
Vistos de longe ou ouvidos com ânimo inteiramente frio, os fatos tornam-se
quase todos indiferentes; porque é o meio em que eles se realizam ou é o estado de
ânimo com que são vistos, o que unicamente lhes dá todo o seu relevo.
Só quem viu, portanto, o que eu acabo de contar é que pode fazer ideia da
impressão que um tal fato produziu. E no entretanto, se por tantos e por tão
diferentes motivos, a comoção que de todos desde o princípio se havia apoderado,
tinha tomado como disse, proporções tão elevadas, que muito bem se poderia
imaginar que em um semelhante acontecimento não deixava de entrar alguma cousa
de sonho ou de puramente fantástico; para que muito maior viesse ainda a se tornar
essa mesma comoção, uma nova e muita estranha circunstância veio então, e no
meio de todas as tristuras daquele já tão consternado enterro, fatídica e como que de
súbito a todos se oferecer; a qual tendo naquele momento unicamente servido para
aumentar o estado melancólico de todas as almas, veio depois e por muito tempo
ainda a servir de tema para os maiores e os mais disparatados comentários. E essa
circunstância de que falo e que naquela ocasião produziu no ânimo de todos um
efeito que hoje muito mal se poderia avaliar, foi o súbito aparecimento de um
carneiro todo negro que ninguém sabia donde realmente havia saído; e que desde a
casa até a igreja, nunca deixou de acompanhar o enterro sempre próximo do caixão
e sempre balando do modo o mais triste.
A mocidade de Feliciano, o ano em que se achava, as suas qualidades
pessoais, o repentino do acontecimento, e todas estas cousas combinadas com o fato
tão excepcional da morte de um estudante, explicam da maneira a mais perfeita o
grande abalo que um tal fato produziu.
Deu-se, porém, uma outra circunstância e muito especial; e foi ela sem a
menor dúvida a verdadeira ou a principal causa daquele tão grande e tão profundo
abalo. Quando cheguei a S. Paulo, já ali encontrei uma dessas moças que habituadas
a serem sempre levadas ao galarim da fama, parece de ordinário não terem vindo ao
mundo, senão para serem o tormento ou a desgraça de muitos. O seu nome era
Laura; e passava, na opinião geral, por ser a única ou a maior de todas as belezas de
S. Paulo. Não sei se seria tanto assim. Era em todo caso uma mulher formosa. E
sendo, como era, francesa ou filha de franceses; quantos não seriam os pobres
corações que ela não saberia prender?! Muitos
foram os que a amaram; e destes um dos mais notáveis foi o atual
conselheiro João da Silveira de Sousa. Poeta, que então era, e que muito
mais ainda prometia ser, Silveira de Sousa a amou com todo o ardor de um
poeta. E de todas as suas poesias aquela que mais célebre se havia tornado e
que ainda muito tempo depois que de S. Paulo ele havia se retirado, não
havia um só estudante que a não recitasse ou que a não cantasse, era
justamente uma em que ele tratava de descrever todas as perfeições daquela
que havia se tornado a exclusiva senhora do seu coração. Pouco, poderia
mesmo dizer quase que nada, é o que hoje me recordo ainda daque-la tão
bela poesia. Mas se a memória de todo não me falha, creio que era por este
modo que começava:
Tens nas faces de neve a cor do pejo, Nos
langues olhos a do céu pintada;
e que era mais ou menos assim que depois prosseguia:
É nuvem d'ouro a trança desatada Por sobre o
colo seu toda espargida.
Passado algum tempo, as ilusões do desgraçado poeta tiveram, assim
como a tantos outros antes dele já tivesse talvez acontecido, de ser varridas
pelo mais impetuoso dos tufões — o da ingratidão e da perfídia. Em vez,
porém, de chorar, do que havia aquele tão indignado poeta de lembrar-se?
De esquecer? Não. No fundo do seu coração é muito de supor que ele talvez
ainda a amasse. E então correndo o risco de cometer talvez uma das maiores
indignidades e servindo-se sem a menor piedade daquela sua poesia que do
santuário ou que do mais íntimo do seu peito outrora havia soltado, como o
mais ferino ou como o mais apropriado instrumento da sua vingança, faz
dela aquele tão indignado poeta uma indecente e tremendíssima paródia; e
como se aquela sua paródia fosse um verdadeiro gancho com o qual o
desenganado amante se livrasse de um objeto fétido e imundo que mais do
que nunca parecia importuná-lo, com ele arrasta aquela que, havia tão
pouco, tinha sido para ele a deusa ou o objeto o mais sagrado de todos seus
pensamentos, não direi para o báratro porém para cousa infinitamente pior
— para um esgoto de imundícies.
O leitor compreende bem, que eu não poderia ainda quando dela me
lembrasse, de vir aqui transcrever uma semelhante paródia. Para que dela se
faça uma ligeira ideia, eu vou, servindo-me das convenientes reticências,
aqui unicamente transcrever o seu começo; o qual, graças a todas essas
mesmas reticências só poderá ser compreendida ou adivinhada por aqueles
que sem o menor inconveniente poderiam ler a poesia inteira. Eis aqui
qual foi a
paródia daqueles dois primeiros versos; e por esses o leitor poderá do mesmo
modo o mais perfeito avaliar o que seriam os outros:
Tens nas faces de m..da a cor do p..do, Nos laxos
olhos a do c. pintado;
E por este teor prosseguiu sempre até que chegou ao fim. Ora Feliciano foi um dos
muitos amantes de Laura; e como todos os astros, ele a amou com paixão. Devorado
daquele amor que formava para ele o lúcido e quase que único alvo de toda a sua
felicidade no futuro, Feliciano quis com ela casar-se. A sua família se opôs. Os seus
esforços, porém, foram tais, e tão insistentes, por último se haviam tornado; que
aquele tão desejado consentimento foi por ele afinal alcançado.
Ora, Laura era pura de corpo e mais do que ninguém era formosa. Se
grande, porém, era com efeito, aquela sua tão proclamada formosura, a sua alma
parece que não correspondia nem sequer de longe a um tão belo invólucro; na
opinião de quase todos não passava de uma simples loureira; ou o que é pior ou
muitíssimo pior talvez ainda o fosse — Laura era uma formosura que em vez de
sentir, ainda quando tremia e chorava apenas calculava. Assim, pois, quando depois
de tantos e de tão grandes obstáculos com uma tão grande perseverança
sobrepujados, tudo parecia caminhar agora e do modo o mais desembaraçado para o
seu desfecho; ou quando, segundo geralmente se dizia, nada mais faltava para que o
casamento se verificasse, do que a insignificante e mais do que certa já tão
aproximada circunstância da formatura do Feliciano; aconteceu, que então
apresentou-se em S. Paulo ou que de Laura se aproximou um moço, que poderia se
dizer, formava com Feliciano o mais completo contraste. Baixo, gordo, sem grande
espírito talvez, aquele moço era um estudante sem nome.
Esse moço, porém, dizia-se, era possuidor ou era o herdeiro de uma grande
fortuna. Este moço tem entrada na casa de Laura; Feliciano inquieta-se; Feliciano
queixa-se; até que em um baile todas as atenções de Laura são para aquele e para
este só reserva os desdéns que se cobrem com o sarcasmo de uma meiguice à flor
dos lábios.
No dia seguinte ou dois ou três dias depois, Feliciano, amanhecia morto e na
sua gaveta se encontravam alguns resíduos de arsênico. O desgraçado se havia
envenenado.
Se, porém, a compaixão e o luto o acompanharam ao túmulo; a sorte se
encarregou da sua vingança. Feliciano pertencia a uma família abastada e de grande
influência na Província. Seu irmão
tem chegado às mais elevadas posições da nossa sociedade. Debaixo de
muitos pontos de vista, o da eloquência, o da inteligência e outros,
Feliciano era sem dúvida nenhuma e sem desar para o seu irmão muito
superior a ele. Se, pois, Laura tivesse se casado com aquele desgraçado a
que tão grande altura não teria talvez chegado?!
Mas parece que o seu sonho era riqueza, a riqueza unicamente. E
acabou por se casar com um estrangeiro, um inglês senão me engano, que
ela acreditou talvez ser rico; mas que o não era; ou que se porventura o era,
veio a perder toda a fortuna.
Um dia o juiz municipal da Leopoldina dirigindo-se a mim
perguntou-me: sabes quem morreu no Angu? Não, lhe respondi. Pois foi a
Laura. Que Laura? Lhe perguntei. "Aquela; me respondeu. A Laura de S.
Paulo. Viúva e com filhos todos pequenos, vivia no Angu sem que nós o
soubéssemos. E ali vivia de um colégio bem pequeno e que bem poucos
conheciam. Há poucos dias tive de lá ir; e lá fiz o inventário ou a
arrecadação dos poucos, bem poucos bens que possuía".
E assim, morreu quase que na miséria e quase que no meio de um
sertão, quem unicamente havia sonhado com a opulência e por meio da
opulência com todos os gozos e todos os esplendores de uma grande
cidade.
CAPÍTULO XXIX
A república da rua da Palha muda de sede. A rua dos Bambus era uma rua
acadêmica. O tenente coronel Nené morava aí. Por causa de uma morena.
A briga com os estudantes. O coronel barra a entrada em sua casa ao
acadêmico Dário Rafael Calado e o acadêmico perde a tramontana. Os
calouros e as vaias. 0 conselheiro Paulino de Souza passa momentos
amargos. Os Drs. Manuel Joaquim e José Maria de Avellar Brotero eram
os letras do primeiro ano. Os exames do fim do ano e as férias na Cam-
panha. Regresso a São Paulo e primeiros acessos de hipocondria. 0 padre
Anacleto José Ribeiro Coutinho. Chega de Ouro Preto um bichinho ainda
muito novo e espigado. Quem era esse bichinho.
Uma das ruas mais extensas que no ano de 1850 havia em S. Paulo,
era uma, que partindo do Campo dos Curros e passando pelos fundos da
igreja de Santa Efigenia, ia ter por fim a uma quebrada, que muito mais do
que a uma rua, asse-melhando-se antes a uma verdadeira estrada, se dirigia
para os lados da Luz. Reta, comprida e tendo, além disso, uma largura que
se poderia talvez considerar como mais do que suficiente, era aquela uma
das ruas que se preparavam para vir a ser em um futuro mais ou menos
próximo uma das mais belas daquela cidade. As suas casas, entretanto, além
de que eram muito poucas, eram todas isoladas; e entre algumas imensa era
a distância que lhes servia de separação. Aquelas casas, porém, se, com
efeito eram muito poucas, todas em compensação eram limpas; algumas
boas; e todas ocupadas por famílias. Se a rua tinha um nome, eu nunca o
conheci. De um e outro lado dela havia algumas travessas, muito poucas; e
de mais disso, creio que todas desencontradas.
Só de uma cousa acho-me ainda hoje perfeitamente recordado; e é,
que aquela rua, quando chegava a uma certa distância dos fundos da Igreja
de Santa Efigênia (que me seria agora impossível determinar, porém que se
por ventura a minha memória não me é de todo infiel, deveria exceder de
duzentos ou de trezentos metros talvez) era então atravessada por outra, que
vindo dos lados do Anhangabaú ou antes de um largo que por ali existia e
de cujo nome já também não me recordo, se dirigia
para os lados dos campos. A esquina que do corte destas duas ruas ficava
para os fundos desertos que iam ter à Luz e que era uma das três que até
aquele tempo já se achavam ocupadas, era formada por uma dessas casas
que por fora nada absolutamente apresentava que a pudesse distinguir de
outra qualquer, porém que além de ser muito limpa e quase que
inteiramente nova, ainda dispunha de um grande número de cômodos, todos
arejados à exceção de um único e todos mais ou menos espaçosos. O
aluguel desta tão excelente casa era, se da minha parte não existe talvez
algum engano, unicamente de dezesseis ou dezoito mil réis. Nós, pois, em
princípios de dezembro para ela nos mudamos; e foi aí que sempre me
conservei até começos de 1853.
Como a primeira rua de que há pouco falei, esta segunda que
atravessava, e que era justamente aquela para a qual a nossa casa punha a
frente, se tinha um nome nenhum de nós o conhecia. Entretanto, como em
um ou em alguns dos quintais que a orlavam, havia umas grades e muito
bonitas touceiras de bambus; rua dos Bambus vinha a ser realmente o único,
pelo qual de todos os estudantes tinha ela se tornado conhecida. Cortada
pela outra rua, a dos Bambus ficava, por esta forma, de fato dividida em
duas, ou antes em dois pedaços, que além de desiguais, eram muito
distintos.
O pedaço, que ficava do lado do campo, e que era talvez o único ao
qual muito mais propriamente pertencia a denominação de rua dos Bambus,
era de uma extensão, por assim dizer, indefinida; possuía um número muito
pequeno de casas as quais se achavam todas de um único lado; e de todas
essas casas não havia uma única talvez que não fosse ocupada por
estudantes. Era, portanto, uma rua exclusivamente acadêmica.
Quanto ao outro pedaço, era inteiramente o contrário. Muito mais
curto, muito mais cheio de casas sobretudo de um lado, os seus habitantes
constituíam uma população muito misturada; mas entre a qual o elemento
que predominava era o elemento pobre ou ordinário. E com efeito, sem falar
no Dr. Emílio Paulo que julgo ter ali morado, não me recordo de que ali
tivesse morado pessoa alguma de alguma importância a não ser um oficial,
não sei se reformado, do exército; e que se chamava o Tenente-Coronel
Nenê. Era um homem gordo, de cara bastante cheia e que usava só bigodes.
Não sei se era casado. Sei, porém, que tinha algumas filhas; e que duas
destas pelo menos eram moças bonitas. Religioso, como eram quase todos
os militares daquele tempo, o Tenente-Coronel Nenê parece que tinha
alguma cousa de carola. E isto foi ocasião para uma ane-
dotada, que desejo contar; não tanto pela anedota em si; porém antes como
recordação de um moço, que depois de ter sido meu contemporâneo em S. Paulo,
vim depois a conhecer muito melhor em Ouro Preto quando foi chefe de polícia em
nossa província; moço este, que parecia, como magistrado, muito prometer para o
futuro; mas que estando como juiz de direito em Barbacena e tendo feito uma
viagem à Corte, dali de repente desapareceu, sem que até hoje dele se tivesse a
menor notícia, havendo unicamente a presunção de que ali se tivesse
suicidado.
Refiro-me ao Dr. Dário Rafael Calado. Quanto à anedota eis aqui qual foi.
Uma ocasião ou porque fosse uma devoção antiga, ou fosse qual fosse o motivo, o
Tenente Coronel Neto lembrou-se de fazer na sua casa não sei se uma novena ou
que outra qualidade de reza. Sei porém, que a parte principal, ou talvez única, era
uma ladainha. Desde que os estudantes farejaram o negócio, ou para verem muito
mais de perto as moças, ou unicamente pela pagodeira da reza; não deixaram de
fazer o que em tais casos tinham por costume de sempre fazer; e ser-vindo-se de pés
de lã, trataram sem a menor demora de irem lá se metendo, como se fossem uns tão
bons devotos de Nossa Senhora como o próprio Tenente Coronel Nenê. Ao princípio
as cousas correram ãs mil maravilhas; porque se alguma cousa os tais malandros
faziam, o que na realidade aparecia nada tinha que ofendesse a reza. Uma noite,
porém, algum ou alguns desses suspeitos devotos, se desmandaram; e o Tenente
Coronel que já andava um pouco de orelhas em pé com eles, tendo desde logo
tomado a resolução de não mais os admitir em casa, começou desde então a não
fazer a sua reza senão a portas fechadas. Ora, dos devotos mais encarniçados dela
era justamente aquele Dário Calado, que por morar em um bairro muito afastado não
sabendo da revolução que se havia dado na noite antecedente, apre-sentou-se para a
reza; e achou a porta fechada. Ele, porém, não quis perder a grande caminhada que
havia dado. E como ouvisse que dentro se rezava ou que estavam todas as cousas
preparadas para isso, bateu à porta. Foi o Tenente Coronel quem lha veio abrir; e
depois de saber o que ele queria e de o procurar desenganar do seu propósito com
algumas razões que se não eram muito delicadas, não eram pelo menos lá muito
cheias de má criação, acabou, no entretanto, por lhe dizer com toda a franqueza, ou
para muito melhor falar, com o maior atrevimento, que os estudantes, fossem eles
quais fossem, não eram dignos de assistir a um ato sério. 0 Dário não se deu,
contudo, por vencido; e procurou por todos os modos ver se chegava a convencer o
velho. Por maiores que fossem, porém, os seus rogos ou por mais solenes que
fossem todos os seus protestos de que se por-
taria de um modo tão exemplar; que o próprio Tenente Coronel havia de ser
o primeiro a ficar de todo edificado; nada houve que fosse capaz de fazer
com que este se afastasse do seu propósito. E então o Dário, que era dotado
de um gênio muito forte e que de mais a mais era extremamente atrevido,
mudando de repente e da maneira a mais completa de modos e sobretudo de
linguagem, passa no pobre do Tenente Coronel a mais furiosa das
descomposturas e ainda de longe sempre exclamando para ele: "Pois limpe
o c. com a sua ladainha, Sr. Ca..lhão de bigodes"; tratou de retirar-se e de ir
procurar para aquela noite alguma outra distração em outra freguesia.
Naquele tempo, e não sei se ainda hoje, havia na academia um
costume muito antigo. Era o direito que os segundanistas haviam se
arrogado e que era compartilhado por todos os anos superiores de vaiarem
aos calouros no dia em que se abria a academia. Para isso, no ano de 1855
os segundanistas mandaram fazer uma túnica ou camisola especial, um
barrete ou antes um capacete que muito se assemelhava ao de que se servem
alguns palhaços; tudo isto extremamente ridículo; e era assim vestido, e
tocando trombeta, que o pobre do calouro tinha de atravessar todo o largo
de S. Francisco debaixo de uma vaia tremendíssima e de quantas chufas e
judiações se podiam imaginar. Para os que eram desembaraçados e que
tinham bastante presença de espírito para tomarem a judiação como um
simples brinquedo, a cousa pouco valia.
Para outros, porém, ninguém faz ideia de que momentozi-nho
amargo não foi aquele. De todos, porém, ninguém tanto sentiu e tanto o
mostrou como o Paulino; porque muito alto e ficando para ele a camisola
um pouco curta, foi de todos talvez o mais ridículo; entretanto que muito
sério, metido a diplomata e sobretudo extremamente vexado, tal foi o abalo
que sofreu; que ninguém seria capaz de dizer a cor que ele tinha; pois que
juntas no seu rosto quase que se descobriam todas por meio de manchas, das
quais eram umas brancas, outras vermelhas, outras roxas e algumas azuis.
Um houve, de cujo nome já não me recordo atualmente, que tentou resistir.
Muito melhor fora, porém, que nunca tivesse tido uma semelhante ideia;
porque sofreu muito mais do que todos os outros e ainda por cima ficou
extremamente maltratado. Creio que não houve um só do ano que es-
capasse. Eu, contudo, escapei. Para isso, sabendo que no primeiro dia não se
marcava ponto, em vez de ir para a aula, fui por-me em uma casa próxima a
fim de ver os tormentos dos colegas. Tendo, porém, no primeiro dia alguns
outros escapado, os segundanistas se prepararam para esperarem os
recalcitrantes e deram-lhes uma vaia ainda maior. E, então, para
dela escapar,
eu nesse segundo dia fui para a academia muito antes da hora. Depois da aula fui
esconder-me na biblioteca e tendo de lá assistido à nova vaia lá me conservei; até
que pude sair sem que me vissem. E como quase que eu era o único que faltava,
parece que de mim se esqueceram.
Os dois lentes do primeiro ano que acompanhavam ao segundo os seus
discípulos, eram o Dr. Manuel Joaquim e o Dr. José Maria de Avelar Brotero. Entre
ambos havia o mais completo contraste; porque ao passo que o primeiro era um
homenzarrão pesado tanto física como intelectual ou moralmente falando; o segundo
era um homem pequeno e que parecia um verdadeiro azougue. Os discípulos deste
último sentiam por ele um verdadeiro entusiasmo; e diziam, que não havia quem
fosse como ele tão eloquente e tão instruído na matéria que ensinava. Uma vez que
todos assim o diziam, é porque assim o era com efeito. Para quem, porém, como eu,
apenas passava de relance pela sua aula, o que ficava realmente conhecendo, é que o
Brotero, se tinha todas essas qualidades, era ao mesmo tempo o maior de quantos
trapalhões eu tenho visto; porque não proferindo uma frase que não fosse
acompanhada desta outra — meus senhores, meus senhores — ele ainda baralhava
todas essas frases por um tal feitio; que uma vez querendo servir-se desta
comparação — como o pescador escandinavo pescando na pinguela; — o que na
realidade ele disse e repetiu mais de uma vez foi — como o pescador escandinavo
pinguelhando na pesquela.
0 Manuel Joaquim que foi o nosso lente, creio que era inteligente e que
tinha alguma ilustração. Não era, porém, homem que o mostrasse muito nem que
muito agradasse.
Tendo feito o meu ato em fins de outubro, parti logo para a Campanha; e
como emendasse as férias gerais com as da semana santa, de lá só voltei em meados
de abril de 1852. Indo à Campanha depois de quase três anos e para ali voltando já
com umas certas fumaças de doutor, pode-se facilmente compreender, o que não
seria para mim esses quase que seis meses de férias. Infelizmente, quando de lá
voltei, comecei a sentir os primeiros acessos da minha hipocondria; e desde então
quase que nunca mais deixei de ser um simples carregador da vida.
Deste ano de 1852 muito pouco é o que tenho para dizer. Eu, portanto,
apenas direi, que tendo o Manuel Joaquim continuado a ser o nosso lente da primeira
cadeira, o da segunda era o Padre Anacleto José Ribeiro Coutinho; um desses
homens que não fedem nem cheiram; ou que modesto em sua figura e em tudo,
desempenhava igualmente com a maior modéstia a sua obrigação de lente de
direito eclesiástico.
Durante o curso deste ano de 1852, se a memória me não engana,
chegou de Minas e foi morar na rua dos Bambus um bichinho ainda muito
novo, muito espigado; e que tinha um nariz um pouco grande, o qual ficava
um pouco chupado quando o seu dono tinha raiva. Muito inteligente e
extremamente vivo, este bicho que, por muito tempo, foi o nosso maior
divertimento; porque tendo um gênio de pólvora, era bastante que se o cotu-
casse, para que ficasse desde logo como uma cobrinha em cuja cauda se
tivesse pisado; é hoje o muito alto e muito poderoso Sr. Visconde de Ouro
Preto, ministro da Fazenda e presidente do Conselho de Ministros. Tendo
muito pouco depois me mudado da rua dos Bambus, eu quase que o perdi
inteiramente de vista; até que de novo e quando ele já se achava formado e
casado, nós fomos encontrar em Queluz e Ouro Preto. Desde então, ele
começou a subir e a aparecer e eu a concentrar-me e a tornar-me cada vez
mais nulo.
Hoje eu nada mais sou do que um simples lavrador que bem poucos
jà são os que o conhecem; entretanto que aquele tão vivo e tão divertido
bichinho de outrora acha-se hoje em uma posição, donde terá de subir para
as nuvens ou terá de sofrer a mais desastrada das quedas. Subirá ou cairá?
Só Deus o sabe. Primeiro talvez de todos os nossos parlamentares atuais,
ninguém há que o exceda em talento e quem mais do que ele estude e
trabalhe. Não desdenhando, porém, o emprego dos pequenos meios, o qual
deveria ficar como o apanágio exclusivo dos pequenos caracteres, o caráter
do Afonso tem, além disso, algumas outras falhas que se muito até agora
lhe tem quiçá servido, pode muito bem acontecer que tenham de acabar por
vir a ser para ele a causa principal da sua futura queda.
Liberal unicamente porque um puro acaso ou porque o seu destino
determinou que fosse como liberal que ele tivesse de começar a sua carreira
política, o Visconde de Ouro Preto foi e nunca deixará de ser o homem da
sua ambição, da sua família, dos seus parentes, dos seus amigos ou do seu
partido, senão exclusivamente. pelo menos muitíssimo mais do que o
homem de uma ideia. Não sendo daqueles que sobre as matérias do governo
têm princípios perfeitamente lógicos e assentados, o nosso
atual presidente do conselho é um estadista um pouco aleatório; c, podendo
fazer grandes bens, pode ser também o autor de grandes males. Finalmente,
dotado de uma ambição desmedida; possuindo uma violência de caráter
extraordinária; e nunca tendo encontrado muita dificuldade na escolha dos
meios que, para vencer, lhe depare o acaso ou a sua vontade, o Visconde de
Ouro Preto já é um dos nossos grandes homens políticos e não seria de
admirar que muito maior ainda se tornasse. Nunca, porém, assim pelo
menos me parece, há de merecer muito o amor dos seus concidadãos e nem
talvez mesmo uma estima que se pudesse dizer completamente sem
reservas.
CAPÍTULO XXX
O autor deixa a república e vai morar numa casinha, situada no caminho
do O', em companhia de um primo. Uma visita inesperada e os apuros por
que passou. Da casinha para uma chácara. Os lentes do 3º ano: Dr.
Manuel Dias de Toledo, o Bavoul; Padre Vicente Pires da Mota e Dr.
Prudência Geraldo Tavares da Veiga Cabral. Apreciações, anedotadas
e comentários.
Quando fizemos o nosso ato de segundo ano, os meus companheiros
partiram para a Campanha; enquanto que por mais de um motivo e cada
qual mais ponderoso, eu deixei-me ficar. Tendo, porém, por aqueles meus
colegas minha mãe chegado a saber, que eu havia ficado um pouco magro;
que andava tristonho; e que sofria, além de tudo, de um tal ou qual começo
de dispneia; aterrou-se com a notícia; acreditou que eu estava talvez ficando
tísico; mandou-me condução; e eu tive de partir. Ao inverso, entretanto, das
minhas primeiras férias, durante estas, eu me conservei sempre
extremamente concentrado; e muito pouco foi o que delas cheguei a
aproveitar.
Ora, naquela ocasião, meu tio Martiniano achava-se com um filho,
que sendo desde muito criança dotado de uma dessas inteligências de
primor, deveria ter então de doze para treze anos. Aquele menino, que
estava destinado a ser um dos melhores médicos da nossa província; que
tendo, há muitíssimos anos e debaixo do título de Colombo, fundado na
cidade da Campanha um jornal republicano, veio por essa forma a se tornar
um dos primeiros promotores desse partido em Minas; que ainda na última
eleição de senadores à qual se acaba de proceder, obteve cerca de cinco mil
votos; e que finalmente com o nome de Dr. Francisco Honório Ferreira
Brandão, é hoje geralmente conhecido em toda a província; aquele menino,
digo, desde muito pequenino, estava resolvido, que teria de se formar. Mas
extremamente querido do pai, aquele menino era, sobretudo, para a mãe o
que se costuma a chamar um Ai Jesus. E como dele se separarem em uma
idade assim tão tenra?!
Tão grande, porém, era a confiança que ambos em mim
depositavam; que me entregaram o filho para que eu o levasse
para S. Paulo. Um semelhante acontecimento foi, para mim um verdadeiro achado;
porque, já então, atacado da minha hipocondria, desde o ano anterior que eu andava
sentindo uma disposição muito pronunciada para a solidão. E como meu primo
levava um pagem que era um bom cozinheiro; e como por outro lado, entregue
inteiramente à minha direção, o meu primo não fazia comigo mais do que um; a ideia
que desde logo me ocorreu, e que apenas me ocorreu, tratei desde logo de a por em
execução; foi, que havíamos de morar sós. Para isso, aluguei, depois de um pouco de
dificuldade, a uma pequena chácara, que ficava muito lá para adiante do Arouche
sobre um pequeno alto que existia no caminho do Ó. 0 aluguel era de nada menos de
14$000. E uma semelhante despesa não tinha a menor proporção com a minha tão
pequena mesada. Eu, porém, fiz o propósito de apertar a economia sobre todas as
outras verbas da minha despesa; e de boa vontade sujeitei-me a esta. Muito pouco foi
o tempo que morei naquela chácara; e de todas as recordações que a mesma me
deixou, quase que a única que atualmente eu ainda conservo foi a de um vexame que
eu ali passei. Um dia em que muito cedo tinha-me posto à janela, aconteceu, que por
ali passou uma das quitandeiras do Ó que tinha por costume de todos os dias vir
trazer à cidade hortaliças, ovos e alguns outros objetos. Desta vez, porém, além de
todos esses objetos, ela de mais ainda trazia um pequeno balaio que estava cheio de
pequenos lambaris; e pelos quais ela pedia uma verdadeira tutaméia. Ora, naquele
tempo, eu gostava daqueles peixinhos. E pondo-me a refletir, cheguei ao seguinte
resultado — que se por acaso eu me dispusesse a fazer aquela compra, eu poderia
introduzir em um único saco nada menos de três bem sofríveis proveitos: 1.» de
comer um prato, que além de ser do meu gosto, tinha ainda naquela ocasião o grande
sal da novidade; 2.9 poupar a grande viagem do cozinheiro à cidade para ir buscar a
carne; e 3.» conservar no cofre a diferença do preço que se dava entre a carne e os
peixes e que era tão grande, que quase equivalia a um dia de menos que desta se
tinha de comprar. A vista disto, não senti mais a menor hesitação; comprei os peixes;
e não mandei comprar a carne. Ora naquele tempo havia em S. Paulo um rapaz que
passava como muito rico; e esse rapaz, que naquele tempo se chamava o Maneco de
Azevedo, é hoje o conselheiro Manuel Alves de Azevedo. Eu tinha com ele algumas
relações; porém, não propriamente intimidade. Entretanto, não sei por que cargas
d'água, foi esse justamente o dia ou um dos dias, em que aquele, já então algum tanto
gorducho Sr. Maneco, lembrou-se de vir à minha casa. E como a hora era exatamente
a do almoço; eu que nunca tive uma mesa que pudesse fazer honra a ninguém e
que ainda hoje com muito poucos pratos me con-
tento, não tive outro remédio, senão o de oferecer-lhe aquele meu pobre e
tão magríssimo almoço; e de obrigá-lo, sem que pudesse ao menos alegar a
circunstância de que fosse sexta-feira, a que não comesse senão peixe; e de
mais a mais, que peixes !
Em setembro de 1853, tendo vagado uma chácara que ficava quase
que logo para adiante do Tanque do Arouche e que então unicamente se
compunha de duas estreitas, unidas, e, demais, bem pequeninas casas e de
um grande, ou antes, de dois não pequenos pastos; eu para ela me mudei. E
não só, enquanto ali morei, tive um cavalo, cachorro, galinhas, etc, e
durante algum tempo cheguei mesmo a ter uma vaca; porém, foi ainda
naquela mesma chácara que sempre me conservei até formar-me. Neste ano
tivemos lentes e matérias inteiramente novas; porque era de fato no 3º ano
em que naquele tempo se começava a estudar o que se chamava o direito
positivo.
O lente de direito criminal era o Dr. Manuel Dias de Toledo. Alto,
corpulento, de gravata e de pescoço muito alto, o Dr. Manuel Dias era um
homem, que se movia como se por ventura não tivesse juntas ou como se
fosse uma só peça inteiriça. E como tivesse o costume de citar na aula e
com uma voz que tinha alguma coisa de muito arrancada, os três autores
seguintes Bavout, Foderé, Toc-queville; ele tinha adquirido entre os
estudantes o apelido, pelo qual era geralmente conhecido, de Bavout. Não
creio que fosse dotado de muito grande inteligência; e de todos os lentes do
curso talvez fosse o único que fazia as suas preleções por caderneta. Mas
repetindo o que estava na caderneta, longe de cingir-se unicamente ãs suas
palavras não só aquele doutor a discutia; porém, era ele ainda o que
provocava aos seus discípulos a que a discutissem ou sobre as suas matérias
emitissem juízo. Entretanto, como lia quase tudo, quanto de mais notável
aparecia, tanto a respeito da prática, porém, muito principalmente a respeito
da teoria do direito criminal, a sua caderneta, muito longe de ser, como se
poderia supor, uma dessas obras que eram desde logo destinadas para
constituírem o padrão granítico ou o mais acentuado da fixidez, da
ignorância, e muito mais talvez do que tudo, da preguiça; era pelo contrário
mais ou menos progressiva. Por essa razão, ainda que geralmente não se
tivesse por ele como lente uma muito grande estima; eu nunca deixei, no
entretanto, de o considerar pela minha parte como sendo talvez um dos
melhores; porque, lente muito embora que não era de altos voos ou de uma
simples caderneta, todos os seus discípulos não deixavam por isso de ficar
sabendo tudo quanto havia de melhor ou de mais adiantado sobre aquela
matéria.
O lente da primeira cadeira ou o lente de direito civil, que naquele
ano teve de vir a ser o nosso, foi o doutor, ou como mais
geralmente então se dizia, foi o Padre Vicente Pires da Mota. Muito alto, muito
magro, olhando muito alto por causa talvez dos óculos de que usava, e tendo uns
beiços que pareciam revirar-se ou abrir-se um pouco mais no centro do que nos
cantos, o que dava à sua boca alguma cousa que absolutamente nada tinha de
amável, mas que pelo contrário parecia ser o supra-sumo do desdém ou da
presunção a mais imperiosa, o Padre Vicente era de todos os lentes da academia
aquele talvez que se poderia considerar como o menos simpático.
E como se isto já não bastasse para enfastiar aos seus discípulos, dos lentes
da academia era ele talvez ainda o menos agradável de se ouvir; porque monótono e
sem a menor elevação; e sendo, além disso, dotado de uma voz, que além de ser um
pouco fanhosa, tinha ao mesmo tempo um certo que de taquara rachada; o Padre
Vicente, para que nada lhe faltasse que não tornasse a sua oratória extremamente
desagradável, ainda tinha um novo e um dos mais terríveis defeitos. E esse defeito
era o de repetir todas as frases; e de quase sempre as repetir, não uma nem duas, mas
três quatro vezes de sorte que ainda hoje me recordo de uma daquelas suas preleções
na qual muito nos custou a conservar o sério; porque sendo o objeto dela a herança
ou a instituição de herdeiros, o Padre Vicente, durante todo o tempo que durou aque-
la preleção, quase que outra cousa mais não fez do que repetir esta frase — como
herdeiros, como herdeiros, como herdeiros; — e depois que principiava, parecia
que nunca mais queria acabar.
O Padre Vicente nunca se tornou notável, nem como escritor, nem como
orador, e muito menos o poderia talvez ser como lente ou como jurisconsulto.
Entretanto, no Brasil talvez que ninguém ainda houvesse que tantas vezes e que em
tão grande número de províncias tenha sido presidente. E como não me consta que
em nenhuma dessas presidências, ele tivesse tornado o seu nome recomendável por
algum desses atos que servem para perpetuar ou quanto mais não seja para tornar
mais ou menos conhecido a um administrador qualquer; e como, por outro lado,
nunca igualmente me constou que a sua influência eleitoral jamais transpusesse os
limites da mais completa mediocridade; a conclusão que de todos esses fatos eu sou
muito naturalmente levado a tirar, é que todas aquelas nomeações foram unicamente
devidas à duas das suas mais notáveis e ao mesmo tempo das suas mais
incontestáveis qualidades — a independência do seu caráter e a firmeza e a energia
da sua vontade. E a prova quanto a mim, a melhor, que de um semelhante fato se
poderia talvez apresentar, é que o Padre Vicente nunca chegou a ser o presidente
popular, nem sequer ao menos entre os seus próprios correligionários políticos.
Quando foi presidente de Minas, a maioria da assembleia, que era
conservadora como ele mas que achava-se extremamente descontente por ver que o
Presidente não se prestava a lhe satisfazer todos os desejos e caprichos, mandou-lhe
um dos seus como enviado, para que, debaixo da capa de amizade e ao mesmo
tempo como um fino diplomata, se esforçasse para fazê-lo ceder e para que, no caso
de resistência, não deixasse com o maior jeito de dar como certa a oposição de toda
aquela mesma maioria.
Quando, porém, o embaixador contava como certo o êxito feliz daquela tão
terrível ameaça; o Padre fez com a boca um daqueles gestos de desdém que lhe eram
tão peculiares; e com a maior serenidade unicamente lhe respondeu: — "Sr. F. eu
nada absolutamente tenho com a assembleia. 0 seu ofício é o de fazer leis e o meu é
o de governar. Ela, portanto, faça o que entender do seu dever; que pela minha parte
eu saberei cumprir o meu". E o que é certo, é que o embaixador teve de sair,
segundo se diz, como o cachorro que quebrou a panela; e que aquela maioria não
tugiu nem mugiu. Creio, porém, que nada nos poderia dar uma melhor ideia do que
foi aquele homem, do que uma anedota que não havia em S. Paulo quem a não
soubesse; e a qual, por consequência, a muito mais de uma pessoa eu ouvi contar.
Sendo nos primeiros tempos da constituição juiz de paz naquela cidade, o Padre
Vicente mandou intimar a um sujeito, que morava para os lados da Luz e que
suponho era estudante, para que sem a menor demora viesse à sua presença. O
sujeito, porém, longe de vir, parece que deu aos executores da ordem uma resposta
que não era das mais respeitosas para quem o mandava intimar. E o que é que faz o
Padre? Ordena aos oficiais que sem a menor demora para lá voltassem; que
amarrassem o desobediente; e que depois o trouxessem pendurado em um pau como
se fosse um porco. E diziam que a ordem havia sido pontualmente cumprida. O fato
é de tal natureza, que eu nunca pude nele acreditar. Entretanto, muitos foram os que
me afirmaram, que se havia realmente dado.
O outro dos lentes do terceiro ano que acompanhava os seus discípulos ao
quarto, era o Dr. Prudência Geraldo Tavares da Veiga Cabral. Homem que nunca se
via senão unicamente na academia ou na sua própria casa, o Dr. Cabral foi de todos
os lentes o que mais notório se tornou entre os acadêmicos como um grande
fornecedor de anedotas. E destas a mais antiga que se conhecia, era a do seu
casamento. Contava-se, com efeito, que tendo o Cabral se casado em uma das
melhores famílias de S. Paulo naqueles tempos, a sua noite de núpcias acabou por se
converter para uns em um objeto de comentários os mais divertidos e para outros em
um objeto de dor ou do maior escândalo. E isto; porque depois que o introduziram
no quarto da sua noiva
e que ele acabou por se ver ali a sós com ela, parece que foi de repente atacado de
um acesso de grande terror ou quiçá, para melhor dizer, de um grande
arrependimento. E então, em vez de ir para o leito ou de dirigir à sua noiva, que
espantada o observava, a menor carícia ou sequer uma palavra ao menos; do que
havia de se lembrar aquele depois tão celebrado maluco? Põe-se a passear pelo
quarto; põe-se a meter a mão pelos cabelos; põe-se enfim e a todo o momento a
exclamar: Cabral, que fizeste! Cabral, Cabral, que fizeste! E tendo passado por este
modo toda aquela noite a passear c a exclamar; desde que o dia amanheceu, deixou a
casa e nunca mais lá pôs os pés.
Alto e um pouco giboso; olhando sempre para baixo e de lado, como se por
ventura estivesse sempre possuído de uma grande desconfiança; aquele doutor não
só falava sempre baixo; porém quando falava, era ainda sempre com um certo ar de
mistério. Com todos estes seus modos era exatamente que ele tinha também o
costume de fazer as suas preleções; e a única particularidade que se poderia talvez
ainda acrescentar é que, desde que subia para a cadeira, ele nela sempre se
conservava mais ou menos agachado e às mais das vezes com as suas mãos entre as
pernas. Completamente indiferente para tudo ou para quase tudo que de ordinário
estimula aos homens neste mundo, o Cabral desempe-nhava-se das suas funções de
lente como quem sem estímulo e da maneira a mais maquinal carrega um fardo. Ia à
aula; a ela falhava o mais que podia; e quando nela se achava, se alguma cousa ali
realmente o preocupava era que a mesma quanto antes chegasse ao seu fim, para que
ele, Cabral, sem a menor demora a pudesse também deixar. O Cabral, portanto, não
só nunca deixou de passar para todos como um mau lente; porém, até mesmo, e isto
por um grande número de anos, ele nunca havia deixado de ser considerado por
todos como sendo de uma esfera intelectual extremamente acanhada; quando um
puro acaso veio a todos de repente revelar; que muito longe disso, era ele, pelo
contrário, dotado de uma inteligência de primeira ordem. E eis aqui como esse tal
acaso se passou ou qual foi esse tão inesperado acontecimento que veio a produzir
uma semelhante revelação.
Os reis, quando querem divertir-se; ou quando, percebendo o seu trono
abalar-se, sentem a necessidade de agradar aos seus povos; um dos meios de que
lançam mão, é o de passear pelas províncias, ou de visitar aos seus amados súditos,
que por eles e para eles tem sempre às ordens a bolsa e a vida. Depois da grande
revolução de 42, o nosso atual imperador entendeu que verificava-se uma daquelas
duas hipóteses; e lembrou-se de ir visitar S. Paulo. 0 ano exato não me ocorre agora.
Sei, porém, que foi aquela viagem, em que revelando o furor poético de que veio
depois a dar tantas
e tão ridículas provas, o Sr. D. Pedro II deixou sobre uma mesa aquela
célebre e naquele tempo tão decantada quadrinha:
0 sincero acolhimento Do
fiel povo ituano Gravado
fica no peito Do seu grato
soberano.
Ora, estando nu capital, o imperador, que já naquele tempo se
preparava para ser o maior dos sábios, e ao mesmo tempo, o maior dos
protetores das letras; não era possível que deixasse de E se fizer o exame;
desde já está reprovado. — O que depois se ir à academia para fazer-lhe
uma visita. Ele, com efeito, lá foi. E quando ele ali chegou, um dos lentes
que por um verdadeiro acaso achava-se então a ocupar a cadeira, outro não
era senão aquele mesmo e sempre tão celebrado Dr. Cabral, o qual, de mãos
entre as pernas e de mais a mais todo curvado, estava, segundo sempre fora
o seu costume, a fazer uma das suas preleções em uma voz que bem poucos
eram aqueles que a ouviam e cada vez mais a espiar para a frente e para os
lados. De repente, eis que entra o imperador; o Cabral o recebe; o imperador
manda que ele de novo ocupe a cadeira; e no meio da maior das admirações
ou de um verdadeiro espanto geral, outro era inteiramente o homem que
naquela mesma cadeira agora se achava sentado. Teso, airoso, e modulando
uma voz, que além de alta havia se tornado sonora, o Cabral, com uma
eloquência que a todos arrebatava, havia concebido, e de súbito proferido,
um discurso, que, segundo a muitos eu ainda ouvi dizer, fora, sem a menor
contestação, o melhor e o mais eloquente que se havia ali proferido.
Entretanto, o Cabral de novo se havia curvado; de novo a sua voz se havia
abaixado; e ele havia de novo e por um tal feitio caído no seu antigo ou sem-
pre tão pertinaz ramerrão; que o fim daquela sua para sempre tão célebre
preleção acabou por ser exatamente o que havia sido o seu princípio ou
como se por ventura dentro daquela sala nada absolutamente se houvesse
passado de extraordinário.
Algumas vezes, antes de encerrar-se a aula, o Cabral tirava-se dos
seus bons cuidados; e como se fosse inspirado pelo Espírito Santo, prevenia
aos seus discípulos que era muito provável que no dia seguinte estivesse
doente; e que eles, por consequência, não precisavam de dar-se ao trabalho
de virem a aula. Outras vezes, e sem que para isso se desse o menor motivo,
ele embirrava com algum ou com alguns deles. E ainda me lembro de um
dia em que estando ele à porta da aula com um dos bedéis que se chamava
Mendonça, ao ver entrar para a aula a um daqueles seus discípulos,
perguntou ao bedel se na véspera ao mesmo não havia marcado ponto. O
bedel respondeu que não; e que não era possível que
lho tivesse marcado, porque o estudante tinha comparecido à aula. "Pois marque-lhe,
disse o Cabral; vá sempre marcando-lhe, ainda mesmo que ele compareça".
Uma ocasião, estando a fazer exame não sei qual dos meus colegas de
preparatórios, e sendo o Cabral o presidente da banca, este desde que avistou o
rapaz, parece que desde logo com ele embirrou. E o que é certo, é que durante todo o
tempo que durou aquele exame, o demônio do maluco quase que outra cousa não
fez, do que com aquele seu tão conhecido ar de mistério, indicar aos examinadores o
pobre do rapaz, com eles cochichar e, de a todo o momento, lhes dizer: "Olhem,
olhem-lhe só para a boca; e vejam se não é mesmo uma boca de quem está comendo
feijão".
O pobre do examinando já não sabia porque alturas andava, e quase que viu-
se perdido. Como, porém, era um rapaz inteligente e creio que de mais disso sabia
muito bem a matéria, conseguiu não ter tomado bomba.
Naquele tempo não havia a minima regra sobre a chamada para os exames de
preparatórios. E como de ordinário eram mais os inscritos do que aqueles que
poderiam ser chamados; o que acontecia, é que tudo dependia dos empenhos ou do
bem querer do presidente da banca. Ora, em uma dessas vezes sendo aquele tão
endiabrado Cabral o presidente de uma banca em que tinha de fazer exame o atual
Visconde de Ouro Preto, este lembrou-se de ir pessoalmente pedir-lhe para que o
chamasse. 0 Cabral o recebeu da maneira a mais benévola; mas depois de ter-lhe
prometido que o chamaria e de o ter tratado com uma amabilidade muito grande,
perguntou-lhe: Mas como é que o senhor se chama? Afonso Celso de Assis
Figueiredo; respondeu-lhe o Afonso muito depressa. — Celso! Celso! Não o chamo.
Celso! Celso! Qual! Decididamente não o chamo.
— Mas, senhor doutor, disse-lhe o Afonso, eu nenhuma culpa tenho que
meus pais se tivessem lembrado de me porem um semelhante nome. — Celso!
Celso! Qual! Decididamente não o chamo. E se fizer o exame; desde já está
reprovado. — O que depois se seguiu ou se o Afonso fez ou não fez o exame; é o
que não me contaram ou já de todo me esqueci.
CAPÍTULO XXXI
A sociedade literária: Ensaio Filosófico. Primeiros escritos do
autor. O senador Manuel Francisco Correia
Havia em 1853, em S. Paulo, uma sociedade literária acadêmica que
se denominava — Ensaio filosófico. Além das sessões em que todas as
semanas se discutiam diferentes teses de filosofia, possuía ainda a sociedade
uma revista em que os sócios escreviam sobre todos os objetos de literatura.
Para a redação desta Hevista, havia uma comissão periodicamente eleita; e
dessa comissão fazia parte nesse ano de 1853 o atual senador Manuel
Francisco Correia que era então geralmente conhecido pelo nome de Correia
Neto. Tendo este um dia me perguntado, se não mandava algum artigo para
a Revista, eu que já desde muito tempo andava com umas certas comichões
de escrever alguma cousa, mandei um artiguinho de muito poucas linhas e
que tinha por título — Ignorância e felicidade. Já não me lembro do que foi
que ali escrevi. A ideia capital, porém, era esta, — que só os ignorantes é
que podiam ser verdadeiramente felizes ou que a felicidade era mais ou
menos incompatível com a ciência. Primeira produção de quem ainda hoje,
por mais que se esforce, não consegue escrever bem, aquele meu artiguinho
não deve ter passado de uma pequena e mal cozida futilidade. Julguei,
porém, que o deveria aqui mencionar, por duas razões; primeira por ter sido
o primeiro escrito meu que teve as honras de aparecer em letra de forma; e
segundo para mostrar, que assim como em quase tudo o mais, ainda sobre
este ponto quase que não mudei; pois que ainda hoje depois de velho, não
renunciei, mas antes, cada vez mais adiro aquela minha opinião, embora seja
à primeira vista um pouco paradoxal.
Como com o escrever, parece que dá-se o mesmo que se dá com o
comer e o coçar que o ponto está em começar; pouco depois deste artigo
escrevi outro muito mais extenso e que tinha por título — Uma vista sobre a
história do povo romano. — Ainda que muito mais extenso, o seu mérito era
talvez ainda inferior ao do primeiro; pois que na realidade, este
segundo ar-
tigo, que nada tinha de original e nem sequer de simplesmente bem vestido, não
passava de um resumo mais ou menos seco ou mais ou menos declamatório dos
principais fatos da história romana.
Finalmente, no fim desse ano, tendo os meus colegas conterrâneos ido para a
Campanha e férias, lá apareceu a ideia de criar-se uma província no sul de Minas que
tivesse por capital aquela cidade. Embora abraçada geralmente e com muito entu-
siasmo, esta ideia, entretanto, não passava de um fruto apenas do bairrismo
campanhense; pois o que de fato se queria, não era tanto uma nova província, mas
que a Campanha fosse uma capital de província; de sorte que se a ideia tivesse de
realizar-se sendo outra a capital, não haveria talvez um só dos seus iniciadores que a
ela não renunciasse e que a não combatesse com todas as suas forças. Em princípio,
pois, do ano de 1854, o meu colega Simplício de Sales escreveu-me, comunicando o
que se havia passado e resolvido; e mandando-me dois manifestos ou cousa que o
valha, escritos por ele e pelo Dr. Ferraz da Luz, a fim de que eu os mandasse
imprimir em folhetos em alguma das tipografias de S. Paulo; acrescentando, que
Justiniano José da Rocha havia aceitado o patrocínio da ideia; e que tendo posto à
disposição dos defmsores dela as colunas do — Velho Brasil ele então redigia, eu
poderia, se quisesse, enviar-lhe alguns artigos nesse sentido que seriam de
certo publicados.
Pouco tempo depois chegavam os meus colegas da Campanha; e por eles
soube, que não só aqueles meus artigos tinham sido ali uito apreciados; mas que até
geralmente se atribuem ao próprio Rocha. Era isto devido ao simples fato talvez de
serem aqueles artigos assinados com um — R — e de se ignorar quem era o autor;
mas, não obstante, pode-se fazer idéia de quanto não deveria ficar lisonjeada a minha
vaidade, por menor que ela fosse, com uma semelhante suposição.
Depois disto creio que ainda escrevi um ou mais artigos para um jornal que
na Campanha se havia criado com a denominação de Nova Província; mas de tudo
quanto então escrevi, pouco ou nada me recordo. Ora tendo declarado que foi o
senador Correia quem sendo ainda estudante, tornou-se de fato o editor daqueles
meus escritos que primeiro foram publicados pela imprensa, eu não posso deixar de
dizer sobre ele aqui alguma cousa. E para o fazer, independente do prazer que para
mim sempre resulta de semelhantes recordações, ainda tenho um duplo motivo.
Desses motivos o primeiro é ser meu costume neste meu trabalho, como o leitor já
deve ter percebido, nunca encontrar no meu caminho qualquer pessoa que
tenha por qual-
quer motivo se tornado notável, sem que procure quanto posso, pô-la mais ou menos
em saliência pelo lado em que essa pessoa é quase sempre muito menos conhecida.
Quanto ao segundo motivo, vem a ser o seguinte — que assim como para quem já
conhece um rio bastante grande na sua foz ou mais ou menos volumoso no seu
curso, nunca deixa de haver um tal ou qual prazer em contemplá-lo sem barco nem
canoa, assim também, nunca deixa de haver para o leitor um certo encanto ou essa
mesmo espécie de prazer, quando ele pode contemplar os seus começos a todos
aqueles que pelo seu talento, pela sua atividade ou por outras quaisquer qualidades
intelectuais ou morais chegaram a se tornar mais ou menos salientes no meio de
tantos outros milhões de homens.
Eu, pois, direi que tendo já vindo do colégio do Pedro II com a fama de bom
estudante, Correia Neto passou em S. Paulo por um dos melhores da academia; e
com toda a justiça; porque além de ser efetivamente muito inteligente, era ainda
muito estudioso. Nem Correia Neto era simplesmente um bom estudante; mas de um
gênio alegre, franco e muito sem cerimônias, quase que não havia ninguém que em
sua companhia não se achasse à vontade ou que dele não gostasse.
O que, porém, essencialmente o caracterizava e o tornava, por assim dizer,
um ser único no seu gênero, era uma tal atividade moral e ao mesmo tempo um tal
mobilidade física; que se poderia dizer, como vulgarmente se diz, que ele tinha
azougue no corpo. E com efeito, não só Correia Neto falava sobre todas as cousas e
em toda a parte, nas sociedades secretas, nas reuniões acadêmicas, na rua, em casa, e
até sozinho, recitando poesias ou declamando os discursos de lord Chatan a favor da
América; não só fazia versos, compunha dramas e escrevia sobre o primeiro assunto
que lhe vinha ao pensamento; mas ao mesmo tempo e como se o físico se achasse
constantemente a correr parelhas com o moral o que nele ainda se observava e dava
logo nas vistas de qualquer, era que não havia uma só parte do seu corpo que
soubesse o que era repouso; pois que tudo nele sem cessar e ao mesmo tempo se
movia, pernas, braços, cabeça, língua, olhos e até os próprios cabelos da cabeça; pois
que sendo cortados mais ou menos rente, com o movimento constante da cabeça ou
antes com o movimento da pele da testa, pareciam que se ouriçavam e que sem
cessar também se moviam.
Como, porém, apesar de tantas cousas que fazia, Correia Neto parecia ainda
ter tempo para muito mais; houve uma ocasião em que deu para magnetizador.
Lembro-me ainda de ter
assistido a uma ou duas dessas sessões que ele dava de magnetismo; e ainda me
recordo, como se fosse hoje, do olhar imperioso com que ele procurava dominar a
vontade do pobre magnetizando, e do ar solene e ao mesmo tempo severo ou um
pouco tenebroso, com que perfeitamente convencido da verdade do que fazia e do
poder que tinha para o fazer, ele procurava com passes e contra-passes mais ou
menos lentos ou mais ou menos acelerados envolver e saturar de fluido magnético, a
sua paciente ou incrédula vítima, que se conservava sentada em uma cadeira no meio
da sala e que ali se conservava firme e muda como uma estátua.
Eu não me recordo muito bem quais foram as vítimas ou os pacientes que
figuraram nessa ou nessas sessões a que assisti; mas quase que tenho certeza de que
uma delas foi um estudante que então havia em S. Paulo, e que se chamava Floriano
Leite Ribeiro. Era um rapaz muito feio, muito esquisito e ao mesmo tempo um
cristão de força. Para dar disto uma ideia, bastará a seguinte anedota que me
contaram e deram como verdadeira. Floriano era um vadio de chapa e não sabia
nenhum preparatório. Entretanto requereu o exame de história; e quando depois das
devidas continências esse mesmo Floriano se sentou na banca, deu-se entre ele e o
conselheiro Antônio Joaquim Ribas que era o professor de história o seguinte
diálogo:
Diga-me, senhor Floriano, quem foi Leão X?
Muito me admira, senhor doutor, que V. Exa., me faça uma tal pergunta;
pois devo com toda a sinceridade declarar a V. Exa. que muito embora eu tenha
estudado a história e estudado um pouco a fundo, é essa a primeira vez que ouço
falar em um tal sujeito.
Pois fique então senhor Floriano sabendo uma cousa
muitíssimo mais de admirar; e é, que haja um estudante que se
anime a vir fazer o exame de história sem saber quem fosse
Leão décimo.
Senhor Doutor, está me parecendo que talvez V. Exa.
tenha razão sobre este ponto; e neste caso eu me retiro.
Ora por maiores que houvessem sido todas as glórias do Correia Neto, nunca
chegou ele a alcançar um triunfo magnético tão completo e tão assombroso, como
nesse dia em que magnetizou ao Floriano. Verdade é, que este resistiu um pouco ao
sono, e que foi preciso que o magnetizador empregasse mais do que nunca a sua
força magnética para obrigá-lo a dormir; mas também quando o sono chegou,
foi este tão profundo e ao mes-
mo tempo tão lúcido, que não só o magnetizador estava que não cabia em si
de contente; mas que ainda os mais incrédulos dos espectadores, achavam-
se mais ou menos abalados e quase que um pouco assombrados.
Floriano, porém tinha a todos debicado; e tanto mais lúcido havia
sido o seu sono, quanto acordado, ele tinha sempre se conservado desde o
princípio até o fim.
Tal era o Correia Neto que eu conhecia em S. Paulo. Quanto ao
senador Correia, creio que em nada mudou do que foi o simples estudante.
Pelo menos a última vez e creio que a única que o vi e que foi em maio de
1871 no senado por aco-sião da abertura das câmaras, não lhe notei a
menor diferença.
Apenas achei-o um pouco esquisito com a farda bordada, com que se
achava vestido; primeiro porque aquela farda, sem que eu o possa bem dizer
porque, me parecia que não assentava bem em quem movia-se tanto; e
segundo porque tendo o conselheiro Correia sempre conservado a barba
toda, não sei porque, pareceu-me que havia uma certa dissonância entre
aquela farda e aquela barba.
Quando, porém, achei o meu Correia Neto todo inteiro, foi um pouco
depois ou quando terminada aquela augusta solenidade, e que já todos se
retiravam, eu o vi sair do interior do senado e vir conservando com o
internúncio, pois é desnecessário dizer que naquele ano o deputado Correia
era o nosso ministro de estrangeiros.
0 internúncio era surdo e para poder perceber o que se lhe diziam,
era preciso que se lhe falasse alto e mais ou menos perto do ouvido; e o
conselheiro Correia lhe falava tão alto e tão de perto, e ao mesmo tempo
tanto se movia com a cabeça e com os braços; que mais de uma vez me
pareceu estar vendo a hora em que? nosso ministro dava uma grande
cabeçada naquele pobre velho e que o atirava pela escada abaixo.
CAPÍTULO XXXII
No colégio João Carlos. Professor de inglês e de latim. Os benefí
cios da nova atividade. A mesada dos estudantes. O aluguel das
casas e os preços dos gêneros alimentícios. O autor nasceu para
ser econômico, prudente e amante da paz e da ordem. O Barão
de Ramanho e o Dr. Clemente Falcão de Oliveira. Apreciações,
fatos e comentários. '
Os meus conterrâneos Evaristo e Simplício tinham sempre o costume de ir
passar as grandes férias na Campanha. Nas de 1853 e nas que depois se seguiram de
1854, um dos nossos colegas que era de Santa Catarina que se chamava Luiz de
Medeiros, assentou de aproveitar de sua companhia e de ir com ele lá passadas. Ora
havia naquele tempo um colégio em S. Paulo, que era quase que o único e que do
nome do seu diretor se chamava — o colégio João Carlos. — E como tanto o
Simplício como o Medeiros, nele fossem professores, o primeiro de latim e segundo
de inglês; ambos comigo se empenharam, para que eu os fosse substituir. Quanto ao
Simplício, não se me oferecia dificuldade alguma. Como, porém, poderia eu me
animar a substituir ao Medeiros; se tudo quanto eu havia sabido de inglês, nunca
havia passado do muito pouco que naqueles tempos se exigia para o exame?! Tantas,
porém, foram e tão instantes as solicitações que ambos me fizeram; que acabei por
fim por me encarregar da prebenda. E o mais é, que muito longe de ter com isso de
me arrepender; foi justamente o contrário o que veio a acontecer.
E é isto, o que, sem entrar em nenhum preâmbulo vai o leitor desde já ficar
sabendo.
O ano de 1854 foi talvez aquele, em que aumentando por assim dizer, de dia
em dia; ou em que, tomando um caráter verdadeiramente agudo; a minha
hipocondria parecia haver atingido, por fim, ao seu ponto o mais elevado.
Nem para que o leitor disse se convença, eu preciso mais, do que lhe contar
um fato. E esse fato, que se por ventura houvesse sido por alguém observado, não
deixaria de ser capitulado como um verdadeiro ato de loucura, foi — que
nada encontrando que
me pudesse servir de estimulante ou de distração para aqueles meus pensamentos
sempre tão tristes e muito principalmente para uma espécie de tédio ou do mais
completo desânimo da vida; do que acredita, do que presume, ou do que acha
possível qualquer dos meus leitores, que fosse capaz de lembrar? Pois foi (e agora é
a hora de arregalarem muito bem os olhos) pois foi de tomar uma foice e de pôr-me a
limpar o pasto da Chácara. E como em muito pouco tempo as minhas mãos já se
achassem em uma verdadeira petição de misérias; sabem ainda do que foi que me
lembrei? Não sabem? Pois foi de tomar umas luvas e de pôr-me a roçar de luvas. E o
que muito mais é para admirar, só depois de alguns dias é que cheguei a renunciar a
um empenho assim tão insensato.
Ora em um estado assim de meu espírito, nada me poderia vir mais a
propósito, do que aquele, para mim tão inesperado, ensino de inglês porque não
havendo, quem (quando quer, precisa ou se entusiasma) seja capaz de um esforço
mais frenético ou mais tenaz, do que eu; desde que senti que tinha um dever a
cumprir; e que aquele dever eu não o poderia desempenhar, sem que eu chegasse a
saber o inglês; o que aconteceu, foi, que desde aquele momento atirei-me àquele
estudo com uma aplicação, ou para empregar a palavra própria, com um tal furor ou
frenesi; que apesar da minha tão completa inaptidão para língua, quando afinal
deixei o colégio, eu do inglês sabia tanto ou mais do que outros que se tinham na
conta de o saberem muito. Hoje, como me aconteceu com o latim, já quase que nada
sei. 0 grande resultado, porém, eu o havia alcançado. 0 estudo do inglês, sem que eu
de qualquer modo o tivesse previsto, havia sido, com efeito, durante algum tempo ao
menos, o melhor e o mais poderoso derivativo para aquela minha Ião grande
hipocondria.
Se, porém, utilíssimo havia sido, com efeito, aquele tão ines
perado resultado; outro, contudo, cu ainda colhi, o qual naquela
ocasião eu cheguei a considerar como sendo talvez o único; e que
em todo o caso, foi então para mim o mais sensível. Ora esse
resultado foi o que se referia à parte material de todo aquele
negócio ou à grande questão de todos e de todos os tempos — o
cobre.
E com efeito, se para todos e em todos os tempos estão tão afetadamente
desprezada questão do dinheiro nunca deixou no entretanto de ser de um valor mais
ou menos apreciado; quanto mais não deveria ser ela para mim, se durante toda a
minha vida nunca cheguei a nadar em dinheiro, vivia naquele tempo quase que a
nadar constantemente em seco?
Ora, quanta não devia ser, portanto, a minha necessidade; e qual não deveria
ser o meu contentamento, se o cobre, como uma pequena chuva, por ventura se
lembrasse de me vir cair?! E neste caso, e pela primeira vez na minha vida, eu via
que esse cobre caía, e que ele me vinha cair, não atirado, porém muito pelo
contrário, por mim arrancado. O resultado, por consequência, não podia deixar de
ser para mim, como realmente o foi, de uma importância não direi simplesmente
grande, porém verdadeiramente enorme.
Para que, no entretanto, todos os meus leitores reconheçam toda a exatidão
de um semelhante asserto, eu quero, ou antes, torna-se de uma necessidade
verdadeiramente indeclinável para eles, que eu não prescinda, ainda que ãs carreiras
ou do modo o mais perfunctório que me seja possível, de lhes fornecer alguns dados.
Tanto mais, quando esses dados pessoais, como tem sido sempre o meu costume
nestas Minhas Recordações, tem sempre por mira alguma cousa mais alta, ou, se
assim me posso exprimir, esterioti-par uma época. Pois aí vão esses necessários e
quanto a mim tão interessantes dados.
Durante o tempo em que me achei em S. Paulo, a mesada a mais geral dos
estudantes costumava a ser de 40$000. Algumas chegavam a 80$000; outras
desciam de 40$000. Muito raras, porém, seriam aquelas que fossem menores de
30$000. 0 minha, no entretanto, nunca deixou de ser de 25$000. E só de certo tempo
cm diante quando me dispus a por ao ganho a uma escreva que tinha comigo e que
de ordinário me dava um jornal de 400 réis, é que a mesma chegou ou pouco
excedeu de uns trinta mil réis. Tudo era, é certo, muitíssimo mais barato do que
atualmente o é. Nem para que isto se reconheça, é preciso mais do que ponderar, que
sem falar nos alugueis das casas, que eram extremamente diminutos como se poderá
já ter visto de alguns, dos quais eu aqui já tenho falado; ainda os comestíveis em
nada destoavam, quanto ao preço, daquela mesma modicidade. Isto, contudo, se era
verdadeiro até o ano de 1853; desde então deixou de o ser; porque tendo sido aquele
ano, ou o seguinte talvez, um ano de muito grande carestia, de certos gêneros pelo
menos, desde então houve nos preços destes a mais completa alteração. Assim, por
exemplo, o toucinho que antes nunca havia se vendido senão à razão de uns três mil
réis a arroba ou de oitenta e sem réis a libra, naquele ano encareceu por tal feitio,
que eu cheguei a comprá-lo a 800 réis e até mesmo a 1$000 a libra. Depois disto,
tendo desaparecido aquela tão apertada carestia, os preços tornaram, como era de
razão, de novo a baixar.
Como, porém, é também do costume, nunca tornaram a chegar ao
seu antigo ou usual valor; e esse mesmo toucinho, por exemplo, parece que
nunca mais desceu de 400 réis por libra.
Um fato, entretanto, fica sempre fora de toda e qualquer dúvida: a
minha mesada era extremamente pequena, para que pudesse, com facilidade,
fazer face a todas as minhas despesas. E assim, fosse qual fosse a barateza
de todos aqueles gêneros, facilmente se compreende, quais não deveriam ser
os incessantes, e direi mesmo os quase incríveis prodígios de economia que
eu não teria de fazer, para que sendo, como nunca deixei de ser, não
simplesmente exato, porém até mesmo quase que verdadeiramente me-
ticuloso em questões de dinheiro, eu pudesse desmpenhar-me de todas as
minhas despesas; e que eu delas me pudesse desempenhar não só salvando,
tanto quanto me era possível, todas as verdadeiras conveniências; porém
muito principalmente que eu delas me pudesse desempenhar, sem que
andasse, como tantos outros, constantemente a dever e a pedir; porém muito
pelo contrário, tendo ainda de ordinário no fim de cada um dos meses, um e
às vezes dois mil réis, para emprestar a outros, cujas mesadas eram muito
maiores do que a minha. Ora, quando menos o esperava, tendo ido para o
colégio; e depois que lá me achava, tendo o João Carlos ainda me
encarregado de algumas outras aulas; de sorte que houve um tempo em que
tinha de lá ir passar o dia; eu cheguei por esta forma, a ganhar ali por mês,
ao princípio 60$000 e depois 70$000. À vista do grande trabalho que eu ali
tinha, era, como se vê uma verdadeira insignificância. Esta insignificância,
porém, reunida à minha mesada, que muitíssimo mais insignificante ainda
era, constituía para mim durante alguns meses u'a mesada de nada menos de
100$000, o que era para mini naquele tempo um dinheiro louco; e pode-se
fazer uma ideia se o tal colégio foi ou não para mim uma verdadeira
redenção.
Pelo que acabo de dizer, já o leitor ficou sabendo, se é que já antes
não o tivesse percebido, quanto eu sou um financeiro de força; ou em outros
termos, que eu fui um rapazinho que já havia nascido para ser econômico.
Para muitos há de parecer que eu já nasci velho. E realmente às vezes quer
me parecer, que assim foi com efeito; porque além desta virtude da
economia, que parece nunca ter sido uma virtude dos moços; outra tenho eu,
que é ainda quase que exclusiva dos velhos; — a prudência ou antes o amor
da paz e da ordem. Basta dizer, que, por ser talvez muito pequenino entre os
outros, eu na escola nunca briguei. Se, porém, naquele tempo poderia haver
talvez uma tal desculpa, o mesmo não acon-
294
tecia depois; e não obstante, o que posso com toda a verdade assegurar aos meus
leitores, é que até hoje nunca cheguei a saber o que são ou o que fossem vias de
fato.
Entretanto, depois que me mudei para a Leopoldina, ou porque o lugar era de
mata e a vida do próximo não era das cousas que mais se respeitasse; ou fosse lá pelo
que fosse, deu-me uma ocasião a veneta para ser também valentão. Eu, pois, tirei
uma licença para andar armado; comprei uma faca de ponta com bainha e cabo de
prata; e para que ficasse como um cabide de armas, mandei comprar na Corte um
aparelhado revólver de nada menos de seis tiros; que por infelicidade enferrujou-se e
perdeu-se sem dar um tiro; e que, no entretanto, teve de me custar muito mais talvez
de sessenta ou setenta mil réis; pois que sendo então um objeto nunca visto ou um
objeto de muito alta novidade, o que hoje custa dez, naquele tempo custava setenta.
Eu, portanto, sempre que tinha de viajar e desde que havia colocado as minhas es-
poras de prata com a sua respectiva correntinha, não deixava de pôr na cava do colete
a minha faca e de amarrar à cintura aquele meu tão formidável revólver. E devo dizer
que tudo isso não deixava de me incomodar bastante; porque a faca às vezes me
apertava o peito; e o tal revólver, além de que era um peso, esbarrava às vezes no
selim. Mas não se caçam trutas a bragas enxutas; e uma vez que era preciso que eu
me fizesse respeitar, não havia outro remédio, senão me sujeitar ao aperto e ao peso.
Se, porém quando saía de casa, eu nunca me esquecia das armas; o contrário era
justamente o que me acontecia quando saia do pouso. E ten-do-me visto por duas ou
três vezes obrigado a fazer o meu pagem voltar (e de uma ocasião nada menos de
uma légua) para ir buscar as armas que eu sempre esquecia, assentei que ovelhas não
são para tais matos; e que se eu pudesse ter préstimo para alguma cousa, com toda a
certeza, nunca seria para valentão. Eu, pois guardei as armas. E desde então, a única
que trago, é um pequeno canivete. E ainda assim, porque; quando vim para a
Leopoldina, não havendo aqui cigarros feitos c os que eu levava na carteira, desde
que a abria, se evaporavam, sem que achasse quem nos pudesse retribuir; assentei de
fazer como os outros, comprei o meu canivete; pus no bolso um pedaço de fumo; na
carteira uma porção de palhas cortadas; e desde então por necessidade, e hoje por
distração, ou por hábito, sou eu mesmo quem me encarrego de me preparar os
cigarros.
A que propósito, porém, me perguntará o leitor, veio para aqui uma
semelhante história? E eu lhe responderei, que unicamente para que me servisse de
exórdio afim de que eu por fim lhe contasse, que naquele ano de 1854 deu-se, sem
que eu já muito
bem me recorde o porque, um grande conflito em S. Paulo entre os militares
e os estudantes. Como às mais das vezes acontece, este de que aqui me
ocupo, na realidade não passou de um desses fogachos que muito crepitam,
que muito enfumaçam, e que afinal de contas quase que nem cinzas deixam;
tão leves ou passageiros são. Contudo, o negócio pareceu tão feio; que um
dos meus colegas que se metia a filósofo e que teórica e praticamente
sustentava que nunca se devia brigar, veio uma noite passá-la comigo na
chácara; porque, dizia ele, receava que apesar de todas as suas teorias, fosse
obrigado a brigar. Ora, eu não tinha aquelas teorias; mas na prática eu
sempre as segui. E assim, durante todo o tempo que morei em S. Paulo,
nunca me envolvi em nenhuma dessas brincadeiras de estudantes. Eu,
portanto, destas, como de todas as outras vezes, estava tão puro como a
neve. Como, porém, eu não trazia letreiro na testa; e a questão era de classes
e não de pessoas; entendi, que assim como os outros; eu não devia deixar de
igualmente armar-me. E como, quando eu tinha saido da Campanha, meu
Avô me havia feito presente de uma pistolinha muito bonita; dela agora me
lembrei; tratei de fazer, mesmo em casa, umas balas que nela se pudessem
introduzir; e era assim com ela bem armado, que tu tinha o costume de partir
para a cidade. No segundo ou no terceiro dia, porém, o demónio da
pistolinha lembrou-se de me cair do bolso no meio da rua. E então, pondo-
me a refletir que o tal perigo dos militares era cousa muito incerta; e que
muito mais certo talvez fosse o ser preso por uso de armas proibidas, fiz
com tal pistolinha o mesmo que vim depois a fazer com o meu revólver;
atirei-a sem a menor hesitação para um canto; e entre-gando-me a Deus e à
ventuda, andei por toda a cidade sem que nunca militar algum se lembrasse
de me fazer o menor mal.
Enquanto iam se passando todas estas cousas, as aulas por seu lado,
não deixavam de ir igualmente funcionando e sendo esta a nossa principal
obrigação; foi dela, entretanto, que até agora ainda não disse palavra. Pouco,
porém, é o que tenho para dizer. E esse pouco eu o vou sem mais demora
agora desembuchar.
Neste ano de 1854 tendo o Padre Vicente sido nomeado presidente,
não sei bem de que província, foi o Dr. Ramalho, hoje, Barão de Ramalho,
quem o teve de substituir na primeira cadeira ou na cadeira de direito
civil.
Homem de pouco corpo e de uma figura que nada tinha de graciosa,
o Dr. Ramalho, quando andava, muito se assemelhava à uma dessas velhas
que vivem pela casa a procurar alguma cousa. Um dos lentes mais sem fogo,
ninguém, entretanto, havia que estivesse, como ele, tão em dia com todos
os nossos praxistas. E
assim, se era um lente maçante; oferecia como compensação, o ser um
verdadeiro poço de direito prático. Em meados do ano tendo sido nomeado
lente catedrático, foi ele então substituído pelo Dr. Gabriel que nos levou
até o fim.
Quanto à cadeira de direito comercial e marítimo, quase que seria
inteiramente desnecessário, que aqui declarasse quem é que foi daquelas
matérias o nosso mestre; porque o lente daquela cadeira era ainda o Dr.
Clemente Falcão da Silveira. Ora, enquanto aquele doutor ocupou o seu
posto, não houve um só dos formados em S. Paulo, que não tivesse sido seu
discípulo; assim como de todos os seus discípulos bem raros foram aqueles,
que chegaram a se benzer com um feriado seu. E na verdade, se não havia na
academia um só lente que não se tivesse tornado mais ou menos notável por
uma singularidade qualquer; o que caracterizava ou o que constituía a
grande singularidade daquele Dr. Falcão, vinha a ser esta — que à exceção
de uma certa advocacia em que por simples desenfado uma ou outra vez se
metia, nunca tendo tido, pelo menos que me constasse, aquele Dr. Falcão
outra obrigação, e talvez que se pudesse dizer, outra distração, que não
fosse, sempre, só e exclusivamente, aquela sua já tão antiga e sempre tão
querida aula; o que de tudo isto resultava, era, que aquele mesmo doutor
tornava-se na academia de uma pontualidade e de uma assiduidade por uma
tal forma exagerada; que se por ventura, uma vez na vida e outra na morte,
ele chegava a lá não ir; os seus discípulos iam para o adro e ali davam um
imenso urro como se o mundo estivesse para acabar.
Grosso e de cara redonda, que se tornava muito caracterizada por um
óculos de larga tartaruga e que eram também muito redondos, o Dr. Falcão
tinha uma perna um pouco mais curta do que a outra. E para que muito mais
caracterizada ainda se tornasse a sua pessoa, ele nunca deixava de andar
constantemente com um grande bastão que parecia maior do que pedia a sua
estatura, menor talvez que a ordinária; e bastão aquele, que sendo pelo Dr.
Falcão sempre empunhado como se fosse uma tocha, aquele mesmo doutor
nunca deixava de erguer e de bater no chão de um modo muito compassado
e sempre simultaneamente com a sua perna curta.
Inteligente e sabendo muito bem as matérias que ensinava, podia-se o
considerar como um dos melhores lentes de S. Paulo. Educado, porém, em
França, sendo por esse motivo um descabelado voltaireando, ele não só na
aula não perdia a menor monção de chasquear da religião e da Bíblia;
porém, algumas vezes ainda, levava a sua inconveniência muito mais longe;
e lembro-me ainda de um dia, em que dirigindo-se a nós, não duvidou de
nos dizer:
"Cada um dos senhores pode talvez saber quem é a sua mãe. Um único, porém, não
há que possa afirmar quem é o seu pai". E o que mais é, parece que aquele doutor
não deixava na prática de ser lógico; e além de muitos fatos que o demonstravam;
bastaria talvez dizer, que nunca tendo querido se casar, ele no entretanto, vivia com
a maior honestidade, e como se realmente casado fosse, com uma senhora que veio a
ser mãe de um meu colega que tinha o mesmo nome do pai; e que depois, não só
veio a ser um dos lentes da academia; porém, que veio ainda a se tornar muito
notável, além de outras empresas de que se tornou o principal iniciador, como o
incorporador ou como o principal diretor da grande Estrada de Ferro Paulista, a qual
constituiu-se de fato o verdadeiro ponto de partida da viação férrea em S. Paulo; e
por consequência, de todas as grandes prosperidades que desde então começaram a
se acumular sobre aquela província.
CAPÍTULO XXXIII
Os lentes substitutos da Academia em 1849: João Crispiniano Soares,
Joaquim Inácio Ramalho, Francisco Maria da Silva Furtado de Mendonça
e João da Silva Carrão. A reforma do ensino cm 1854. Criação das
cadeiras de Direito romano e Direito administrativo. Novos lentes e novos
substitutos: Silveira da Mola, Gabriel José Roiz dos Santos, Martim
Francisco Ribeiro de Andrade e Antônio Joaquim Ribas. A contradança
parlamentar se reflete na Academia. O Visconde de Caravelos.
Apreciações, fatos e comentários. Relação dos bacharéis de 1855.
Quando cheguei a S. Paulo, os lentes substitutos que ali existiam
eram os doutores seguintes: João Crispiniano Soares, Joaquim Inácio
Ramalho, Francisco Maria da Silva Furtado de Mendonça e João da Silva
Carrão.
Crispiniano era uma espécie de gigante em cuja boca via-se pintado o
orgulho e o desprezo. Dizia-se que era de uma profundeza imensa em direito
romano. E parece que ele tinha disso consciência; pois, que sobre este ponto
era de tal natureza o seu orgulho; que algumas vezes ele na aula tinha por
costume de assim exprimir-se: "Savigny ou tal jurisconsulto romano é por
esta forma que resolve esta questão. Eu, porém, e Papiniano não é assim que
a entendemos".
Furtado era um homem de barba toda rapada; que se movia e falava
com muita rapidez; que muito ligeira e muito amavelmente a todos
cumprimentava; e que sendo dotado de uma cor um pouco baça, andava
constantemente como um mariola, ou antes como um padre que em dia de
missa cantada faz no altar a confissão geral virando-se para um lado e para o
outro. Como lente, o Furtado tornava-se unicamente notável pela sua muito
grande severidade.
0 Dr. Carrão era um homem alto e magro, de cara um pouco
chupada, de uma boca negra como a de um cão, muito sério; e não obstante,
um homem simpático. De muito pouco vôo e nunca se elevando muito nas
suas explicações, o Dr. Carrão era, no entretanto, um lente, que poderia
explicar qualquer matéria e que a poderia explicar bem.
Quando em meados de 1854, se reformaram os estatutos dos cursos
jurídicos e que se criaram as duas novas cadeiras, de direito romano para o
primeiro ano e a de direito administrativo para o quinto; o governo nomeou
para esta última o doutor e hoje senador Silveira da Mota que era então o
lente de prática; nomeou para a de prática o Dr. Ramalho; e para a de direito
romano foi nomeado o Dr. Crispiniano. À vista da revolução que por este
modo havia vindo produzir aquela reforma, tornou-se de necessidade que se
nomeassem novos substitutos; e estes, que em vez de entrarem cm concurso,
foram desde logo nomeados por decreto, foram os seguintes doutores e
bacharéis: Gabriel José Roiz dos Santos, Martim Francisco Ribeiro de
Andrade e Antônio Joaquim Ribas.
Martim Francisco era ainda moço; mas, segundo se dizia, sendo um
glutão de força e muito amigo de perus, já era bastante gorducho. Isto,
porém, não impedia, que falasse como uma torrente; que se movesse como
um corrupio; e para que nada lhe faltasse que fizesse dele um verdadeiro
azougue, ele ainda possuía o cacuete ou talvez antes um defeito que às vezes
até se tornava incômodo para as pessoas que tinham de com ele tratar; e era
o de piscar constantemente os olhos. Tendo sido deputado provincial, geral e
até ministro, se em nenhum desses cargos o Dr. Martim Francisco não
chegou a fazer uma figura verdadeiramente notável; em nenhum deles
também se pode dizer que ele estivesse realmente abaixo da posição em que
se achava. E no entretanto, tendo nos ido lecionar a economia política, mos-
trou-se tão inteiramente abaixo da sua posição; que mais de um dos seus
discípulos seria talvez capaz de fazer uma preleção muito melhor do que
as dele.
Baste unicamente dizer, que nem os próprios exemplos que tinha às
vezes de citar, ele os podia citar sem que houvesse primeiro mexido e bem
remexido os apontamentos que levava.
O Dr. Gabriel foi o melhor de todos os oradores parlamentares que
me têm sido dado de ouvir.
De ordinário o orador que torna-se bom de ouvir, quase nunca é bom
de ler-se; entretanto que de ordinário o que é bom de ler-se, quase nunca o é
de ouvir-se. 0 Dr. Gabriel parece que se achava no primeiro caso; porque
tenho lido alguns dos seus discursos; e se não se pode deixar de reconhecer
que são a produção de um homem na realidade inteligente; contudo o efeito
não é nem sequer a décima parte do que aqueles discursos deveriam
produzir, se por acaso em vez de lidos fossem ouvidos. E isto é mais uma
prova de quanto não se tornam de importância
para o orador as suas qualidades intrínsecas. O Dr. Gabriel era, com efeito, a figura
mais bela ou a mais completa que se poderia desejar para um orador. Alto,
desempenado, ossos cobertos, testa espaçosa, uma bonita boca, tudo isto era
completado por um peito saliente onde caía uma gravata, sempre a mesma, e na qual
fulgurava um alfinete de brilhantes. A única falha que nele se poderia talvez notar e
que o tornaria um orador não muito próprio para o grande teatro da praça pública, era
a falta de patético ou uma vez que na era completamente volumosa. Tais qualidades,
porém, não perfeitamente dispensáveis para um orador parlamentar. E se ele não
possuía uma voz propriamente esten-tórica; se a sua voz não deixava talvez mesmo
de ter um pouco desse criado que algumas vezes se nota em alguns desses constantes
ou acérrimos devotos do cigarro; o que, entretanto, se via; e o que era para o caso
muito mais do que o suficiente; é, que além de clara, e que além de animada e
sonora, a voz daquele nosso tão eminente parlamentar era de todos perfeitamente
ouvida.
Eu não quero; nem ainda que eu o quisesse; eu não poderia fazer aqui um
estudo do Dr. Gabriel como orador. Todo o meu fito é o de manifestar unicamente
uma simples impressão pessoal. E como as mais antigas são sempre as melhores;
para dar uma ideia do que era o homem, vou citar um único fato que foi por mim
presenciado muito pouco tempo depois que cheguei a S. Paulo. Dissolvida a situação
liberal em 1848, a assembleia provincial de S. Paulo tornou-se manifestamente
conservadora; e ali havia um pequeno grupo de liberais que era composto do Dr.
Gabriel como uma grande águia e dos Drs. Martim Francisco e João Brotero que
ainda muito moços, faziam o papel dos dois filhotes da águia. Faltando vinte ou
trinta minutos para dar a hora, o Dr. Gabriel que não desejava que se votasse um
projeto cuja passagem procurava embaraçar, pede a palavra pela ordem, fala
unicamente por falar, ou como vulgarmente se diz, põe-se unicamente a falar para
encher o tempo. E cousa admirável! No recinto e sobretudo nas galerias não havia
uma só pessoa que não estivesse presa aos seus lábios; e que não sentisse um ver-
dadeiro pesar, quando a hora soa e ele imediatamente se assenta.
Entretanto, veja-se o que é a influência imensa do meio! Aquele homem que
tinha passado a sua vida a falar em público; que tinha arrostado as maiores tormentas
parlamentares; e que tinha muitas vezes falado em presença do que a nação possuía
de mais seleto; quando pela primeira vez teve de nos lecionar, parece que lhe
aconteceu exatamente o mesmo que mais de meio século antes já havia
acontecido ao grande Napoleão quando a
18 brumário teve de se achar e levantar a sua aliás tão poderosa voz no recinto dos
Quinhentos. E com efeito, aquele mesmo Dr. Gabriel que tantas vezes tinha se
mostrado sobranceiro c tão cheio de audácia no meio dos maiores e dos mais
temíveis dos seus adversários, agora que se via em um cenário inteiramente novo,
não pode furtar-se ao grande abalo que um tal fato lhe produziu; tornou-se, por assim
dizer, um homem inteiramente outro; e desde que subiu a escada e que sentou-se na
alta cadeira diante apenas de trinta e tantos moços que nada mais eram para ele do
que alguns discípulos, aquele homem teve medo; as suas faces descoraram; o suor
transparecia sobre sua fonte; os seus lábios tremiam; e foi com uma voz mal segura e
toda cheia da maior emoção, que ele nos fez o seu cavaco.
O seu cavaco foi, como se esperava, digno daquele que o havia feito.
Quando no dia seguinte, porém, o Dr. Gabriel teve de entrar no que constituía
propriamente a matéria do ensino, maior não era possível que fosse a nossa
decepção. Habituados, como nos achávamos, à enfadonha muito embora, mas
sempre sólida e tão profunda erudição do nosso velho Ramalho, nós queríamos; e
neste caso, contra o que muito naturalmente nós o deveríamos esperar, nós
contávamos com alguma cousa de muito sólido e que fosse de mais a mais
envernizada por um dos maiores brilhantismos. E o que foi que tivemos por fim de
presenciar? Durante toda a aula aquele tão grande orador quase que outra cousa mais
não havia na realidade feito do que repetir e do que citar a quem santo Deus?! A Liz
Teixeira; que nós que éramos os seus discípulos havíamos tido por um verdadeiro
timbre de nunca citar, para que, mostrando-nos enfronhados em um autor que então
passava por ser um dos mais corriqueiros, não tivéssemos de nos apresentar como
uns estudantes de cacaracá. O coração, portanto, como seria bem de prever, desde
logo nos caiu aos pés; e desde aquele dia sentindo-nos todos cheios de saudade do
nosso antigo e tão enfadonho mestre, tratamos de ir, como era da nossa obrigação, à
aula; mas sempre bem dispostos a estudar o direito por nós mesmos.
A cadeira de direito administrativo tendo sido criada em meados de 1854,
ela só se tornou efetiva em 1855.
O nosso ano foi, portanto, o primeiro que estudou essa matéria. Tratando-se
de uma matéria que era inteiramente nova, o governo parece que escolheu de
propósito para ela a um homem, que além da sua reconhecida inteligência e que
além de ser um dos lentes mais antigos, era ao mesmo tempo um antigo e dos mais
provectos parlamentares. O escolhido foi, portanto, como eu já disse, o doutor e hoje
senador José Inácio Silveira da Mota. Ten-
do, sem que eu já me recorde bem o por que, o apelido de Mota Luzo, o Dr. Silveira
da Mota era um homem calvo; desembaraçado no andar; cujo rosto, se bem me
recordo, era bexigoso; e cuja cor era de um vermelho tão carregado, que se poderia o
tomar como um homem ameaçado de morféia.
Como lente falava com uma extrema facilidade; mas, como ainda hoje e
muito mais talvez do que ainda hoje, não cessava a todo o momento de pronunciar
esta frase: — verbi gratia — que havia nele já se tornado uma espécie de
cacuete.
Tendo dado o seu cavaco no dia da abertura da academia, o Dr. Silveira da
Mota durante alguns dias não tornou a comparecer à aula. Passados, entretanto,
alguns dias, ele de novo ali se apresentou; subiu para a cadeira; e depois de nos
haver dito, que por maiores que tivessem sido os seus esforços, não lhe havia sido
possível descobrir um único livro que nos pudesse servir de compêndio, mete em
seguida a mão no bolso da sua casaca: dele tira um número do Jornal do Comércio; e
nos declara que seria o Jornal do Comércio ou o orçamento do império que nele se
achava, o que nos teria de servir de compêndio.
Nós não pudemos, à vista de uma semelhante declaração, de arregalar um
pouco os olhos, e de nos olharmos uns para os outros. E como não nos era possível
de modo algum compreender como o Jornal do Comércio ou como o orçamento do
império pudesse ser jamais um compêndio e quanto mais um bom compêndio de
ciência alguma; o que se nos afigurou como muito mais certo, é que bem pouco
teríamos afinal de ficar sabendo do direito administrativo.
Aquele ano, porém, não sei se por alguma epidemia ou por que outra
qualidade de motivo, parece que foi um dos anos de maior contradança parlamentar;
porque tendo nós tido como lentes de economia política aos Drs. Carneiro de
Campos, Carrão c Martim Francisco, que eram todos deputados ou suplentes de
deputados; apenas um deles entrava para tomar conta da cadeira; daí a pouco já era
chamado, ou estava marchando para a Corte; de sorte que, se durante todo o ano,
tivemos cinquenta lições desta matéria, seria talvez o mais. Ora, apenas o Dr. Mota
deu a primeira ou a segunda lição do Jornal do Comércio, foi igualmente como os
outros, chamado para a Corte; e para substituí-lo foi nomeado o Dr. Furtado. Este
nem sequer compareceu à aula. Mas depois de ter-se feito esperar durante alguns
dias, acabou por escusar-se; e para substituí-lo foi afinal designado o Dr. Ribas.
Gozando de uma fama muito grande de talento, ninguém acreditava que ele
pudesse se recusar a um tal encargo. Mas dois, três dias, já se haviam passado sem
que o homem nos aparecesse na aula e nós já começávamos a chasquear daquela tão
grande inteligência engarrafada, quando no quarto dia ele se nos apresenta; e nos diz
que debalde havia procurado um livro que nos pudesse servir de compêndio; mas
que não sendo possível que por esse motivo se deixasse de estudar a matéria; ele se
havia lembrado de organizar uns apontamentos que ele nos daria ou que ele nos iria
dando para copiar; e que seriam esses apontamentos os que teriam de nos servir de
compêndio. Então tirou do bolso os tais apontamentos; e desde então nô-los
principia a ler e ao mesmo tempo a nô-lo explicar. Quando a aula terminou, o
homem estava conhecido e soberanamente julgado. Os seus apontamentos eram um
verdadeiro primor didático onde não se sabia o que mais se deveria admirar, se a
profundeza, se o método ou se a clareza.
Tendo até aqui e por esta forma me ocupado de todos os lentes da academia;
agora só me resta tratar de um único: do qual julgo ter apenas uma única vez
proferido o nome. Esse é o Dr. Carlos Carneiro de Campos, depois Visconde de
Caravelas, senador e conselheiro de estado e que era naquele tempo o lente de
economia política. Alto, magro, sempre teso, não havia quem o visse e sobretudo
quem o tivesse ouvido que com ele desde logo não simpatizasse. Figura esbelta e
que desde logo infundia respeito, Carneiro de Campos era um lente que a ninguém
reprovava. Formado unicamente, segundo creio, em ciências sociais, pouco ou nada
talvez soubesse de direito. Mas na matéria que ensinava; que imensa profundeza!
Mas sobretudo, que melíflua persuasão! Quanto a mim, foi o lente que mais me
encheu as medidas. Niguém mais ensinava e ninguém menos cansava. 0 depois
Visconde de Caravelas tinha o verdadeiro dom de despertar a mais profunda
curiosidade. E o seu sistema era quase sempre o seguinte. Ele estabelecia uma tese;
esta tese, apenas exposta, não havia quem a não considerasse o maior de todos os
absurdos: ele então começava com a sua voz extremamente fraca a demonstrá-la; e
quando aquele elevado e tão simpático argu-mentador havia por fim chegado à
verdadeira ou à mais importante das suas conclusões, não havia talvez um único dos
seus ouvintes, que não se achasse inteiramente satisfeito, e ao qual não se afigurasse
como o maior dos absurdos, que se pudesse pensar jamais de outra maneira. Em S.
Paulo, como me aconteceu com todos os lentes daquela academia (à exceção apenas
dos Drs. Manuel Joaquim e Manuel Dias aos quais, tendo sido recomendado, eu uma
ou outra vez lembrava-me de fazer uma visita de verda-
deira cerimônia) eu nunca cheguei a ter com aquele Dr. Carneiro de Campos outras
relações que não fossem as acadêmicas ou antes de ter durante alguns meses o
ouvido na aula. Entretanto, em Minas, aqui de novo eu o vim encontrar quando era
ele o presidente da província; e creio que chegamos a nos escrever. Pouco tempo
depois, ou talvez que desde antes, deixou ele de ser lente, para não mais
desempenhar senão empregos políticos.
Este capítulo, como se vê, é o que se poderia chamar um
capítulo puramente acadêmico; pois que nele, colocando-me in
teiramente de fora, eu quase que de outra cousa mais não me
ocupei, senão de falar de lentes e de preleção.
Uma vez, porém, que não houve lente ainda mesmo daqueles que não
chegaram a ser meus mestres, dos quais neste ou em outros capítulos eu não me
tivesse ocupado; creio que seria a maior das injustiças, se ao menos os nomes eu
aqui não mencionasse de todos aqueles que comigo estudaram ou que pelo menos se
formaram.
Ê isso, pois, o que eu agora vou fazer como que para formar o fecho do
presente capítulo. Ora esses meus colegas, pela ordem da nossa matrícula no nosso
5.' e último ano foram os seguintes:
Clemente Falcão de Sousa;
Henrique Francisco d'Ávila;
Frederico Augusto de Almeida;
Caetano José de Andrade Pinto;
Felisberto Pereira da Silva;
Manuel da Silva Mafra;
José Tomaz da Silva Quintanilha Júnior;
Antônio Carlos Ribeiro de Andrade Machado Silva;
Antônio Ferreira Viana;
Francisco Manuel das Chagas;
Américo Brasiliense de Almeida Melo;
Bernardo Jacinto da Veiga;
Felisberto Gomes Jardim;
José Diogo de Menezes Fróis;
Vicente Mamede de Freitas;
Luiz Ladislau de Toledo Dantas;
Francisco de Paula Ferreira de Rezende;
Cândido Gomes de Vasconcelos Guanabara;
Gabriel de Paula Almeida Magalhães;
Carlos Fredecido de Lima e Silva;
Paulo José de Melo Roiz Costa;
João Rodrigues da Costa;
João Luiz de Matos Pereira e Castro;
Paulino José Soares de Sousa;
Frederico Nunes de Seabra Perestelo;
Francisco Gonçalves Meireles Júnior;
Evaristo Ferreira da Veiga;
Antônio Simplício de Sales;
Luiz de Medeiros;
Domingos José da Cunha Júnior;
Hilário Gomes Nogueira de Castro;
João Benício da Silva.
CAPÍTULO XXXIV
Ao iniciar o curso, a turma do autor se compunha de 48 estudantes. Os que
ficaram pelo caminho. A turma foi uma das melhores. Apreciações, fatos
comentários Felisberto Pereira da Silva. Henrique D'Ávila. Antônio
Simplício de Sales. Evaristo Ferreira da Veiga, Américo Brasiliense de
Almeida Melo, Frederico Augusto de Almeida, Cândido Gomes de
Vasconcelos Guanabara, Paulino de Souza, Ferreira Mana, Caetano Jo
de Andrade Pinto e Manuel
da Silva Mafra.
Em 1851 matriculamo-nos no primeiro ano do curso jurídico de S.
Paulo 48 estudantes. No fim do ano a banca que nos devia examinar,
compôs-se do Dr. Manuel Joaquim que era o lente do ano, do Dr. Carrão
que o substituiu na cadeira durante alguns dias e finalmente do Dr.
Furtado.
Furtado não era homem que primasse pelo raciocínio. Sendo, porém,
dotado de muita memória, usava e abusava desta sua faculdade. E como
parecia ter sido feito para navegar em tudo terra a terra; pode-se dizer, que o
ensino do direito não passava para ele de um simples papear sem alma;
porque nas suas preleções que eram aparentemente rápidas, mas que por
falta de cadência e excesso de carga tornavam-se na realidade mais ou
menos enfadonhas e ao mesmo tempo tão pesadas, não dando Furtado aos
princípios senão uma parte em todos os sentidos extremamente escassa, o
ensino do direito tornava-se de fato para ele em alguma cousa de
exclusivamente positivo ou em uma citação sem fim de leis, decretos e
até de avisos.
Nos exames o sistema era o mesmo. E como em semelhante labirinto
ninguém há que não se enrede, o que realmente acontecia, é que não havia
estudante por mais inteligente ou estudioso que fosse, que não pudesse ser
com muita facilidade espichado por aquele lente.
Como de ordinário são os lentes desta natureza os que se mostram
mais severos, Furtado, não só era o lente mais reprovador da academia; mas
tinha de fato, se tornado o verdadeiro terror de todos os acadêmicos. Os seus
companheiros não eram o que se chamam lentes reprovadores; mas
também não eram
dos mais benévolos; e o resultado foi que, de 48, ficamos reduzidos a 32. Um terço
do ano tinha ficado sobre o campo no primeiro encontro. Quando a 16 de novembro
de 1855 tivemos de tomar o grau éramos ainda 32. Destes, porém, nem todos eram
dos 32 primitivos, porque durante o curso havíamos ainda perdido alguns
companheiros muito poucos, dois ou três; e estes foram substituídos por um igual
número de outros que vieram dos anos superiores.
O ano, pois, tinha-se tornado um dos melhores; porque se dele se tirassem
uns dois, ou quando muito, uns três; pode-se, com toda a certeza afirmar que todo ele
só se compunha de boas inte-figências e que destas algumas havia que eram
incontestavelmente ótimas; de sorte que apesar de terem falecido logo depois de for-
mados, nada menos de 7 ou 8, só com os vinte ou vinte e cinco restantes, já o ano,
sem falar em todos aqueles que em tão grande número têm sido deputados gerais e
provinciais e membros da alta administração ou da magistratura, tem dado quatro
lentes do curso jurídico de S. Paulo, quatro ministros e três senadores.
Uma das coisas mais difíceis é classificar, sem injustiça ou sem engano, as
inteligências pela ordem do mérito; porque se umas são mais brilhantes outras são
mais profundas; e nestas duas classes, muitos são ainda os aspectos debaixo dos
quais pode o mérito ser encarado; e é quase que impossível bem determinar, ou
antes, comparar o valor de quantidades ou de qualidades por assim dizer
heterogêneas.
Assim, nós tivemos um colega Felisberto Pereira da Silva que sendo
deputado, foi mais de uma vez indigitado para ministro e que sempre recusou-se.
Além de passar por ser dotado de uma inteligência muito profunda, diziam ainda que
Pereira da Silva possuía conhecimentos extensos sobre matemática e algumas outras
matérias. Entretanto, muito concentrado, um pouco acanhado mesmo, e sentindo
uma grande dificuldade de exprimir-se, a sua figura na academia não correspondia
de modo algum ao muito que dele se esperava. Já Henrique d'Ávila, quando falava,
se expremia com tal facilidade e era tão grande a doçura que tinha na voz, que não
havia quem não ficasse encantado de ouvi-lo; mas eu não sei se o fundo
correspondia à forma.
Assim também Antônio Simplício de Sales, que era meu conterrâneo, meu
amigo e meu companheiro de casa, era uma excelente inteligência. E como desde
muito criança foi sempre muito dado à leitura, quando foi para S. Paulo, já levou
uma boa cópia de conhecimentos; e se não tivesse morridoo cedo, é
muito
provável, que ajudado pelo seu caráter, acabasse por vir a representar em
nossa cena política um papel mais ou menos saliente. Mas Simplício tinha
para prejudicá-lo uma certa timidez nervosa ou esse acanhamento muito
próprio de nós caipiras mineiros; e foi um bom estudante, mas não brilhante.
Já Evaristo que era seu sobrinho e que era um grande vadio e um namorador
de chapa, muito pouco ou quase nada sabia das matérias que
estudava.
Quando fez o seu exame do primeiro ano, Simplício que muito
queria-lhe e que lhe conhecia a fraqueza, passou 24 horas amar-
guradíssimas; e quando fomos assistir ao seu exame, íamos certos de que ele
seria infalivelmente reprovado; porque tudo quanto Evaristo sabia de direito
natural se reduzia a duas ou três ideias incompletas e muito vagas e ainda
assim essas ideias não se referiam à matéria do ponto. Quando terminou o
exame, eu e o Simplício estávamos de boca aberta. Evaristo com a maior
naturalidade do mundo e com uma habilidade capaz de fazer inveja a
qualquer, havia encaixado no ponto essas duas ou três únicas ideias que
possuía; e tinha feito um exame não simplesmente bom, mas quase que
brilhante.
Estes quatro colegas de que acabo de falar, continuaram a ser depois
de formados, mais ou menos aquilo que prometiam ou que sempre haviam
sido como estudantes. Eu, porém, quero aqui citar três outros que mudaram
depois de formados ou que não deram depois de formados o que o estudante
prometia. Esses três colegas são os seguintes: — Américo Brasiliense de
Almeida Melo, Frederico Augusto de Almeida e Cândido Gomes de
Vasconcelos Guanabara.
Um pouco falador e sempre falando alto e muito apaulistada-mente,
Américo, além de ser mais ou menos vadio, era ainda um estudante metido
a gaiato; de sorte que na aula de direito eclesiástico, nas lições ou sabatinas
nunca tratava a S. Paulo senão — cacique da Igreja —. Por isso, embora
inteligente, muito pouco prometia.
Entretanto logo depois de formado, casou-se, tornou-se homem
grave; escreveu um livro que foi apreciado; foi chefe do partido republicano
em S. Paulo apesar de ter sido em estudante um conservador muito
exagerado; e é hoje lente ali da academia.
Formando o mais perfeito contraste com Américo, Frederico de
Almeida era sério; calado; e nunca fez barulho na aula; mas assim como
aquele, ele também deu mais do que prometia; porque sendo deputado
pela Bahia em diversas legislaturas Frederico de
Almeida não só não fez na câmara uma figura inteiramente nula, porém, ainda e bem
depressa constituiu-se em sua província uma verdadeira influência.
Guanabara foi o inverso dos dois outros. Nos dois primeiros anos do curso
foi talvez Guanabara o estudante mais aparatoso ou o mais brilhante do ano; porque
possuindo algumas das principais condições do orador — uma certa eloquência
natural, boa figura e uma voz clara e sonora; e tendo, além disso, algumas noções
gerais de filosofia e um certo número de palavrões ou de frases retumbantes,
Guanabara nunca deixava de ser ouvido com, muito agrado, sobretudo, por aqueles
que julgavam estar a eloquência quase que exclusivamente na ênfase ou nas grandes
sonoridades e que muito pouca ou quase nenhuma atenção prestam ao fundo. Mas
por isso mesmo, parece que julgou-se Guanabara dispensado para sempre de estudar;
e o que aconteceu, foi, que não só à proporção que os anos passavam, Guanabara ia
cada vez mais ficando para a retaguarda; mas que ainda depois de formado, não me
consta que tivesse feito em cousa alguma grande papel embora exercesse o cargo de
promotor público na Corte e fosse também deputado provincial pela província
do Rio de Janeiro.
Fossem, porém, quais fossem os melhores estudantes do ano, dois havia a
quem ninguém contestava um lugar entre os primeiros. Esses dois eram Paulino e
Viana. Eu quase que poderia me dispensar de dizer o que era Paulino; porque não
hoje quem não conheça o senador Paulino de Sousa; e pondo de parte esses
desenvolvimentos que em nós sempre produz, a idade, o estudo e o traquejo dos
negócios, me bastaria talvez dizer, que o estudante Paulino já era exatamente aquilo
que é hoje em ponto grande o Senador Paulino de Sousa. Entretanto, como de todo o
meu ano foram estes os que mais têm brilhado ou aparecido depois de formados, eu
pretendo, por isso, demorar-me um pouco mais no exame do caráter e da inteligência
de cada um deles e fazer de ambos um estudo, por assim dizer, paralelo; tornando-se
necessário que, exponho o que foi como estudante o conselheiro Ferreira Viana, eu
tenha igualmente de contar o que foi o estudante Paulino.
Como acabei de dizer, Paulino e Viana eram ambos dotados de uma
inteligência de flor; mas tanto pelo lado da inteligência como debaixo de todos os
outros pontos de vista, havia tantas diferenças entre aqueles meus dois colegas, que
os dois formavam, por assim dizer, a mais completa antítese.
Dotado de uma inteligência muito mais viva e muito mais imaginosa,
Ferreira Viana, não só com facilidade falava de improviso; mas ainda falava
com uma tal ou qual eloquência;
embora pela ênfase da frase e pelo entono da voz que às vezes se tornava cavernosa
e quase sepulcral, os discursos de Viana tivessem um não sei que que desagradava e
que nunca o fizeram um orador simpático. Ainda que não fosse inteiramente incapaz
de falar de improviso, Paulino, entretanto, como de ordinário acontece às mais
robustas inteligências, nunca falava realmente bem sem meditação e estudo.
Quando, porém, tinha estudado e meditado, o que dizia era sempre bom; e
era sempre dito, sem muito brilho, é verdade; mas sempre com clareza e agrado.
Filho do Visconde de Uruguai, e orgulhando-se do seu ilustre progenitor,
Paulino, por índole e por vontade, perfilhava todas as ideias do pai. Paulino era
portanto, debaixo de todos os pontos de vista, um conservador puro sangue. Viana,
que, pelo contrário, lia e gostava de citar Proudhon, era republicano e creio que ateu.
Ambos pouco procuravam e menos ainda frequentavam aos colegas .
Aristocrata, porém, por nascimento e diplomata por índole, Paulino não
apertava jamais a mão de um colega, sem que esse aperto de mão fosse
constantemente acompanhado de um sorriso e de uma curvatura mais ou menos
solene; o que quer dizer que a todos tratava bem, sem nunca familiarizar-se. Ao vê-
lo ainda quase imberbe c com aquele seu ar sempre grave e ao mesmo tempo afável,
quase que ninguém havia que não parecesse ver nele um arremedo de ministro ou
um pequeno conselheiro de estado.
Democrata muito mais de palavra do que de ideias ou de sentimento, a
democracia para Viana parecia não consistir senão naquilo em que realmente ela
consiste para a maior parte dos democratas; isto é, em igualar para cima ou em subir
para que ninguém nos tape a vista. Ferreira Viana, portanto, não fugia simplesmente
dos colegas, cm cujas rodas ninguém jamais o via; mas tratando-os a todos um
pouco por cima dos ombros ou para eles olhando como um peru para pintos, o seu
lugar era sempre junto dos lentes; e até quando tínhamos de entrar para a aula, envés
de para ela entrar conosco, Viana se colocava na porta a par do lente ao qual, quando
passávamos, tínhamos de curvar a cabeça. E para que não se pensa que exagero
sobre este ponto, vou contar um fato que se deu comigo. Tendo ido à Corte em 1857
e estando uma noite no teatro, no camarote da família do conselheiro Eusébio, em
um entreato achava-me enconstado à porta do camarote que ficava perto da escada,
quando vejo de repente vir do outro lado do corredor o meu colega Ferreira Viana
pelo braço do Conselheiro Carrão. 0 conselheiro Carrão tinha me examinado
algumas vezes e tinha lecionado o nosso ano durante o impedimento mais ou menos
momentâneo de alguns lentes efetivos. Como, porém, nunca lhe frequentei a casa,
nem tive como ele outras quaisquer relações, quase que não havia motivo para que
me conhecesse. Isto não obstante, apenas me avista, para mim se dirige; aperta-me a
mão e me cumprimenta com a maior cordialidade; e enquanto assim penhorava da
maneira a mais cavalheirosa a minha completa nulidade, aquele que durante cinco
anos tinha comigo se sentado nos mesmos bancos e que não havia ainda ano e meio
comigo se havia formado no mesmo dia, conservava-se a muito poucos passos de
distância, indiferente, impassível, mudo e quedo, como se nunca me tivesse
conhecido ou como se não visse em mim mais do que um pobre caipira de Minas
que não valia a pena de cumprimentar.
Entretanto quanta dignidade se esconde na pele desses pobres caipiras!
Possuindo Viana e Paulino uma inteligência cada qual melhor, e havendo
entre ambos tantos pontos de diferença, era muito provável que entre eles aparecesse
a rivalidade e uma rivalidade mais ou menos malévola. E essa rivalidade, com efeito,
apareceu. Paulino parecia invejar a Viana um tal ou qual barulho que este fazia
dentro e fora da academia; e Viana parecia odiar Paulino por causa daquela
imponência constante com que sempre procedia e como a qual parecia dizer ao
contendor: por mais que ruja e que invista, não me ensordece nem derroca.
Depois de formados, Paulino continuou a ser o que havia sido, Viana, porém,
de republicano e ateu converteu-se em conservador extremo; e não só tornou-se um
católico ultramontano; mas até, segundo ouvi dizer, veste-se muitas vezes com o
hábito de S. Francisco. Alguns duvidam da sinceridade desta conversão. Eu, porém,
não; porque sendo as duas principais virtudes do cristianismo a caridade e
humildade, Viana que eu conheci como o mais orgulhoso dos homens e que parecia
eivado das mais odientas e sanguinárias paixões da democracia, hoje parece ter se
tornado de uma tal caridade e sobretudo de uma tão grande humildade; que se não
me edifica, porque a minha natureza não se presta com muita facilidade à edificação,
nem por isso deixa de me encher da mais incompreensível e quase que assombrosa
admiração. E tanto mais sobe de ponto esta minha admiração, quanto veio que Viana
nunca procurou esconder e nem sequer disfarçar, essa sua tão repentina e ao mesmo
tempo tão completa conversão; mas que muito pelo contrário, para que o mundo
inteiro pudesse contemplar a sua tão sincera penitência, ele, que tanto havia odiado a
Paulino e que o julgava mil furos abaixo de si, convertendo o ódio em
amor, e o orgulho em humildade, declarou na câmara dos deputados, e por
consequência perante o Brasil e o mundo, que se por acaso ali se achava,
não era porque o merecesse, porém, unicamente porque assim o tinha
querido o seu muito digno chefe e muito honrado amigo, o senhor Paulino
de Sousa de quem ele era e se confessava o exclusivo deputado.
Entretanto, como de mouro nunca se fez um bom cristão, apesar de
toda a sinceridade da sua devoção, ou por despeito, como dizem alguns; ou
por outro qualquer motivo que não me é dado saber, Ferreira Viana sempre
mostra que foi o autor da Conferência dos Divinos, ou nunca deixa de fazer
rir a câmara, atirando as mais ervadas setas contra o imperador e a
família imperial.
E já que falei destes meus dois colegas que tanto já tem honrado o
nosso ano pelo papel proeminente e tão brilhante que estão representando
em nossa cena política, quero agora ocupar-me de outro, que na Corte e que
por toda a parte onde foi juiz, tornou-se verdadeiramente notável pela sua
retidão, pela sua seriedade e saber, ou para tudo dizer em uma só palavra,
como o mais completo tipo de um verdadeiro magistrado. Refiro-me ao meu
colega e hoje desembargador aposentado Caetano José de Andrade Pinto.
Primo do conselheiro Eduardo de Andrade Pinto, que tendo sido em
estudante um dos conservadores mais exagerados que tenho conhecido
tornou-se, depois de formado, um liberal mais ou menos extremado, ambos
moravam, na rua dos Bambus e muito perto da nossa casa, com Pereira da
Silva e com um dos moços mais simpáticos que havia então na academia e
que ainda há pouco tempo faleceu — Antônio Dias Pais Leme.
Perereira da Silva que era ou parecia ser muito mais velho do que
todos eles, e que era, por assim dizer, a gravidade e a dig-nidade em pessoa,
tinha para com Caetano uma afeição que muito se assemelhava a essa
afeição sempre indulgente e com ares de severidade que de ordinário
mostram os pais para com um filho único que mais ou menos traquinas ou
extremamente malcriado os vive sempre a atormentar; e Caetano, pela sua
parte, embora sempre resmungando, parece que não deixava de ter um tal ou
qual respeito para com aquele seu companheiro, que nunca brincava e que
ao mesmo tempo tão amigo sempre se lhe mostrava.
Dotado de uma inteligência muito viva e ao mesmo tempo de uma
memória, que muitas vezes sem querer e sem sentir, se tornava plagiário
repetindo trechos que havia lido, Caetano, quando falava, muito se parecia a
um homem que se afoga e que braceja desordenadamente; porque possuindo
uma grande porção de ideias, essas lhe acudiam ao espírito em borbotão e
querendo, por assim
dizer, sair todas ao mesmo tempo, nunca saíam sem uma certa desordem.
Sendo um dos mais moços do ano, Caetano, que dentro de aula, era o mais
correto talvez de todos os alunos, fora dela e desde o primeiro até o útimo
ano, nunca deixou, por maiores que fossem os protestos em contrário que às
vezes se lembrava de fazer, de se portar sempre como uma verdadeira
criança e como a mais travessa de todas as crianças. Isto incomodava
extremamente ao Pereira da Silva; mas este perdia inteiramente o seu
tempo; porque se aquele sábio Mentor procurava conter ao seu endiabrado
Telêmaco, este achava para mais ainda o fazer desembestar ao seu ajuda-
culpas ou inseparável companheiro de travessuras — o meu conterrâneo
Evaristo. Seria para não acabar, se eu quisesse aqui referir todas essas
travessuras que ambos fizeram e de que chegue a ter notícia. Mas para dar
delas uma simples ideia, creio que me bastará mencionar umas três ou
quatro de gêneros muito diversos.
Quando foi nomeado bispo um dos antecessores do atual e que se
chamava, se não me engano, D. Antônio de Melo, este nomeou para
governador do bispado a um padre da província, que apenas chegou à
capital, começou a pregar e a ensinar o catecismo nas igrejas; e que tanto na
prédica como no ensino do catecismo falava tanto em pureza, que uma
semelhante insistência parecia ser nele uma espécie de mania.
0 governador do bispado foi, pois, para o Evaristo e para o Caetano
um verdadeiro achado; porque desde então se puseram a seguí-lo por toda a
parte; viviam como ele a pregar constantemente todas as virtudes da pureza;
e como aquele padre se prestava realmente à chacota e o que eles
principalmente desejavam era de pregar-lhe uma peça qualquer; puseram-se
a excogitar qual seria o melhor meio para isso; até que um dia, com grande
admiração de todos os companheiros, eles se encasacaram e se enluvaram
com todo o esmero; dirigem-se, sem que ninguém pudesse atinar para onde,
à casa do governador do bispado e com a maior solenidade de que ambos
eram capazes, a ele se apresentam como uma comissão que era enviada pelo
corpo acadêmico, para felicitá-lo pelos benefícios que estava prestando à
religião com todos os seus atos, mas sobretudo pelo empenho com que
procurava exaltar a grande virtude da pureza; e depois de terem quase uma
hora não falado senão na pureza e mais na pureza, retiraram-se deixando o
pobre do governador contentíssimo de si, e extremamente penhorado por
aquela prova de apreço e da mais subida estima que lhe havia dado a
mocidade acadêmica. Este fato que se passou no mais alto da escala
social ou que teve por objeto o personagem
mais elevado da igreja, foi logo depois seguido por outro, cujo teatro teve
lugar na extremidade oposta ou exatamente na classe mais baixa da
sociedade.
Havia naquele tempo em S. Paulo, e não sei se ainda hoje existem,
uns bailes a que os estudantes haviam dado o nome de siíilíticos; e depois
ficaram sendo assim geralmente conhecidos; porque eram uns bailes, ao
quais, como o nome o indica, só escorriam pessoas de condição suspeita ou
gente quase toda muito baixa. Ambos, isto é, os dois de que trato, não sei
como nem por que, assentaram de ir assistir a um desses bailes; e depois de
terem apreciado tudo e de terem feito algumas outras das suas, quando
chegou a hora do chá, foram procurar no terreiro alguma coisa que tanto
repugna à vista e que muito mais ainda desagrada ao olfato; e depois de
terem com isso temperado convenientemente o chá, foram se sentar na sala
como uns dois santinhos; e quando viram que todos os convidados haviam
bebido e deliciosamente saboreado aquele seu aromático e tão apetitoso chá,
trataram de retirar-se.
Entre a nossa casa e a do Caetano havia uma em que moravam umas
moças chamadas Viciais, de que já tratei ou de que terei de tratar daqui a
pouco. Um dia Caetano põe-se em traje de Adão no paraiso; embrulha-se
muito bem em um lençol; e vai bater na casa . As moças, na forma do
costume, correm todas para verem quem era; Caetano finge que vai fazer um
pedido; e trava conversação com as moças. Pouco a pouco elas começaram a
perceber que o Caetano talvez tivesse saido do banho naquele momento; e já
não sabiam se haviam de abrir mais ou se fechar os olhos, quando, de
repente, Caetano finge fazer um movimento desazado; o lençol cai todo a
seus pés; e como se fosse um tiro dado mesmo no meio de um bando de
pombas, todas correm gritando e querendo mas não se animando a olhar
para trás.
Quase ao mesmo tempo que fez Caetano esta travessura que era da
sua única e excluva invenção, tratou de arranjar outra de parceria com
Evaristo. E eis aqui qual foi.
Um dos meus colegas com quem mais relações entretive em S.
Paulo, foi o atual conselheiro Manuel da Silva Mafra. Antes de morar em
uma casa da Tabatinguera onde quase todos os dias nos reuníamos e que,
por sermos sete, nos denominávamos — Os Sele Infantes de Lara —, Mafra,
Luiz de Medeiros, João Antônio da Costa Bueno e José Venceslau Marques
da Cruz, que moravam na casa, e eu, Simplício e Guanabara que a
frequentávamos; o Mafra esteve durante algum tempo fazendo também
parte da nossa república na rua dos Bambus.
Embora nunca tivesse sido o que se chama um rapaz namorador, e
embora de mais a mais nada tivesse de bonito; o Mafra, entretanto, sem que
se pudesse saber bem pelo que, parecia ter o dom de agradar muito às
mulheres, algumas das quais por ele se apaixonavam até mesmo sem que ele
o soubesse nem quisesse. Ora, defronte da nossa casa, morava uma moça,
muito feia e muito desengraçada. Tinha-se, entretanto, na conta de bonita; e
um dos objetos a que dava mais apreço, com o qual parecia ficar matando
tudo; e que por isso, só dele se servia nos dias de maior gala, era um chalé
muito grande de casemira amarelo, mas de um amarelo que até de longe
espantava. Esta moça, nem bem que tinha visto o Mafra, começou logo a
beber os ares por ele; e ao passo que em breve o seu amor era tal que não
havia ninguém que desde logo o não percebesse; por outro lado nada havia
que tanto encaipo-rasse ao Mafra como o se lhe falar naquele seu amor ou
naquela sua namorada, a qual por isso mesmo ele quase que chegava a odiar
de todo o seu coração. Ora, naquela ocasião ele tinha uma casaca velha, que
às vezes não sei por que, se lembrava de vestir em casa. E como era seu
costume andar sempre com um boné de pano ou de casemira preta; a sua
figura não deixara de se tornar algum tanto ridícula quando ele se punha
com aquele seu vestuário; isto é, de calças de qualquer coisa, de chinelos de
tapete, com colete ou sem ele e de casaca e boné. Os dois, portanto,
aproveitando-se desta circunstância, e encarando o ridículo que daí
resultava, acabaram com a mais perfeita naturalidade por perguntarem ao
Mafra, se ele seria capaz no dia seguinte à hora da missa em que passava um
pouco mais de gente na rua, de passear em frente da casa de casaca e boné?
"Ora grande coisa! Respondeu o Mafra. Se eu era capaz de ir assim
até o largo de Santa Efigênia, quanto mais passear aqui defronte da casa! É,
não é, e acabaram por apostar, que no dia seguinte à hora da missa o Mafra
teria de passear durante meia hora na frente da casa de casaca e boné.
Feita a aposta, os dois escreveram à moça uma carta em nome do
Mafra, na qual este depois dos maiores encarecimentos à sua beleza e de se
desfazer todo nos protestos do mais abrasado amor, rematava por dizer-lhe
que não exigia resposta da carta; porém, que se contentava ou que receberia
como sinal de que era o mais feliz de todos os mortais, se ela no dia seguinte
à hora da missa se apresentasse à janela com aquele seu tão bonito chalé
amarelo que muito bonito por si mesmo, muito maior valor ainda adquiria
por dar um novo realce e um brilho sem igual a um objeto para o qual já
quase que não se podia olhar sem o mais completo deslumbramento, etc,
etc.
No dia seguinte as coisas se passaram como ambos haviam
planejado; e apenas o Mafra começou o seu passeio de casaca e boné,
imediatamente a moça, inteiramente deslumbrante como aquele seu
açafroado ou tão desesperado chalé, apresentou-se à janela toda casquilha e
toda dengosa; e assim se conservou durante todo o tempo da aposta: ele
quase que sem ver a moça que se achava à janela, e ela a dardejá-lo com um
olhar em que mesmo de longe se percebiam todas as alegrias do triunfo e
todas as cintilações do mais ardente amor.
Só algum tempo depois é que o Mafra chegou a saber do grande
debique que lhe haviam feito; e tão grande foi então o seu despeito e a sua
raiva, que para ficar livre da moça e dos seus dois cabriões, tratou
imediatamente de mudar-se.
Como estas muitas outras foram as que o Caetano tinha feito, sem
que entretanto, nunca lhe tivesse acontecido coisa alguma; até que um
dia caiu a casa, ou quebrou-se o pote na fonte.
Já quando o Caetano e o Evaristo não sabiam mais o que inventar,
lembraram-se um dia de cantar a ladainha no teatro e de canonizarem o
subdelegado de polícia que presidia ao espetáculo e que se chamava
Antônio de Almeida.
Ajuntaram alguns companheiros que os ajudassem; e começaram a
ladainha; mas dito ou cantado que era o nome de um santo, o do
subdelegado era logo intercalado; de sorte que apenas se acabava de dizer
— Santa Maria ora por nobis — logo se seguia — Santo Antônio de
Almeida ora pro nobis —; e assim por diante.
O subdelegado era um homem pacato e sem bastante prestígio; e
por isso abusavam da sua bondade.
Quando ele, porém, viu que o haviam feito santo; parece que deixou
de ser o homem que era; e mandou prender o cabeça do motim que era o
Caetano. E então é que o barulho ficou feio; porque os estudantes não
queriam que o colega fosse preso; e como não podiam lutar com a força
armada que imediatamente entrou; puseram-se a berrar como uns
desesperados, que o Caetano era um moço fidalgo e que não podia ser
preso, senão por uma patente de capitão para cima; e nesta algazarra se
conservaram até que apareceu, senão me engano, o meu parente, o capitão
Luiz de Rezende que por ser oficial ou também moço fidalgo se ofereceu
para levar o preso.
Felizmente a estudantada não cessou de vozear e de fazer barulho
enquanto seguia o preso; os empenhos logo apareceram; e o Caetano foi
solto antes de entrar para o quartel.
Sendo da escola do Pereira da Silva, e a companhia do Caetano já
tendo me causado alguns aborrecimentos, eu havia prometido que nunca
mais andaria com ele. Uma tarde, porém, ele convidou-me para irmos até o
largo de Santa Efigênia; e como tudo por ali era ainda muito deserto e me
pareceu que não havia o menor perigo de que ele me fizesse algumas das
suas; condescendi e fomos. Quando chegamos ao largo, a viscondessa de
Castro, mãe da marquesa de Santos, que acabava de sair da igreja, já estava
quase que a entrar no portão da casa da marquesa, quando o Caetano gritou
com todas as forças dos seus pulmões — Oh! viscondessa velha! E dando
uma carreira, escondeu-se na igreja, deixan-do-me aturdido e meio
apatetado no meio do largo.
Se a viscondessa se voltasse, eu teria com toda a certeza, de passar
como o autor daquele desacato ou daquela tão grande irreverência para com
uma senhora respeitável pela sua posição social c pela sua vilhice.
Felizmente a viscondessa era muito surda; nem sequer se virou e eu
passei unicamente pelo susto.
CAPÍTULO XXXV
Os melhores poetas de São Paulo no tempo do autor. Alvares de
Azevedo, Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães. Apreciações, fatos
e comentários. Silveira de Souza e Francisco Otaviano, José de
Alencar e Quintino Bocaiuva.
Durante o tempo em que estive em S. Paulo, os estudantes que
passavam como os melhores poetas ou que davam esperanças de virem a ser
grandes poetas, eram apenas três — Álvares de Azevedo que era conhecido
por Maneco de Azevedo, Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães. De
Maneco de Azevedo, a lembrança que me ficou ou que ainda hoje conservo,
é extremamente vaga. Hecordo-me porém, e isto com bastante clareza que
era um moço de um aspecto um pouco melancólico, de uma fisionomia
muito atrativa, e muito pálido, dessa palidez amorenada e um pouco
mórbida talvez, mas que é sempre tão simpática. Creio que nunca estive
com ele senão uma única vez; nem desse nosso encontro nada mais guardo
do que este único fato de me haver ele encarado por algum tempo, c depois
dizer, que era realmente admirável quanto fisicamente eu me parecia com
Vitor Hugo.
Quanto ao Aureliano que era um rapaz bonito e extremamente
falador, eu o vi pela primeira vez em um dia 7 de setembro em que ele
recitou no teatro uma poesia em que muito se falava em catadupas ígneas; e
depois disto com ele me encontrei duas ou três vezes em casa de um velho,
que parecia ser homem abastado, que se chamava Vilares e que era irmão do
cadete Santos, depois Barão de Itapetininga. Este Vilares, que era solteiro e
que ainda me parece estar vendo a olhar para a gente com um ar de
desconfiança ou de um boi que se prepara para marrar, morava em uma
chácara própria que ficava lá para os lados ou mais propriamente para os
fundos do Jardim Botânico.
Ele, entretanto, ou porque tivesse uma filha natural que de sejava
casar, ou porque realmente gostasse dos estudantes, dava-lhes, ou a alguns
deles pelo menos, uma tal ou qual entrada para que lhe fossem à casa, e
entre aqueles que dessa entrada se aprovei-
tavam para lá irem, um pouco para passeio mais principalmente para procarem dos
doces do proprietário, Aureliano era talvez o mais assíduo.
Com as suas feições flácidas, olhos mortos, os beiços grossos e o debaixo
um pouco caído, Bernardo foi dos três o que cheguei a conhecer melhor; e a causa
ocasional deste meu conhecimento, foi apenas o fato de ter eu durante dois anos pelo
menos, sempre morado em uma casa da rua que se chamava, ou que nós chamáva-
mos, dos Bambus, e que fazia esquina com a rua que passava por trás da igreja de
Santa Efigênia, de cujo nome já não me lembro ou talvez nunca soubesse; tão pouco
habitado ou sem importância era ainda naquele tempo aquele bairro de S. Paulo.
Ora, nessa rua dos Bambus e perto da nossa casa moravam umas moças que eram
muito agradáveis e que não eram feias; e cuja casa guardava um certo meio termo
entre uma casa fechada e uma casa franca. Estas moças, que se bem me recordo, se
chamavam Vidais, viviam com a sua mãe que era uma mulher um pouco pernóstica;
mas que escrevia feijão com um — G — cedilhado; o que prova, que se aquela
mulher não tinha tido talvez uma educação literária das mais esmeradas, tinha pelo
menos recebido da natureza o que falta a muita gente; isto é, a base linguística; pois
que se refletírmos um pouco, não se poderá deixar de reconhecer, que a analogia que
existe entre o — G — e o — J —, se não é idêntica, pelo menos muito se parece
com a que existe entre o — C — sem cedilha e o — Ç — cedilhado.
Pois bem; esta casa das Vidais era a casa onde Bernardo Guimarães morava
e onde ele tinha um filho chamado Benedito. E sendo nós assim tão vizinhos, é
muito natural que embora ele sempre vivesse mais ou menos encafuado, nós nos
víssemos, entretanto, com alguma frequência. Naquele tempo, quem era reprovado
duas vezes no mesmo ano, não podia mais continuar a estudar. Bernardo Guimarães
tendo sido reprovado no 4.' ano, (creio que era esse o ano) o estava repetindo. O
estudo, porém, era talvez a coisa de que Bernardo Guimarães menos se lembrava; de
sorte que o mês de outubro ainda estava muito longe; e ele já tinha dado 38 ou 39
pontos. Era isto uma péssima recomendação para o exame; e o que é pior, sem meios
ou com muito poucos meios para estudar, bastava-lhe entretanto, que desse mais um
ou dois pontos para que perdesse o ano. Mas o que era para Bernardo Guimarães um
ano perdido com todas as suas consequências comparado com as lânguidas delícias
do sono da manhã ou com o seu constante e sempre tão doce devanear de um
cético?!
Bernardo, portanto, nem estudava, nem acordava para ir à aula; e ele teria
com toda a certeza perdido o ano, se não fosse
um velho bedel da academia, que se chamava Mendonça, e que morando no largo de
Santa Efigênia e sentindo por Bernardo Guimarães uma espécie de caritativa
simpatia, tomou a si a penosa tarefa de sair mais cedo para a academia; passar pelas
Vidais; e não continuar o seu caminho sem que tivesse acordado o Bernardo e o
levasse consigo. Eu desejaria bem, se pudesse, dar aqui minuciosas informações
destes três futuros poetas de que me estou ocupando. Infelizmente tudo quanto sei da
sua vida, é apenas o que todos sabiam; isto é, que sendo a mania daquele tempo
imitar em tudo a Lord Byron, o ponto principal, sobre que recaia essa tola imitação,
era a de uma vida desregrada e, sobretudo, a da mais completa borracheira. Os três,
portanto, bebiam muito. De Maneco de Azevedo, ouvi dizer, que bebia quantidades
enormes de cognac ou de não sei que bebida muito forte que então estava em moda.
Entretanto, ou por que tivesse a cabeça muito forte, ou por que nunca chegasse a
perder o seu natural sentimento de dignidade; o que é certo, é que nunca me constou,
que ele desse com as bebidas qualquer escândalo; ao passo que os dois outros, até no
próprio semblante, já traziam os sinais daquele degradante excesso.
Maneco de Azevedo morreu muito moço; e foi isso uma verdadeira pena;
porque, muito era, com efeito, o que ele nas letras prometia. Aureliano, porém, viveu
muito mais tempo; e melhor fora talvez que não tivesse vivido; porque, pertencendo
a uma das melhore:; e das mais ricas famílias da província e parecendo fadado por
consequência, para uma grande posição e para grandes coisas, desde que saiu da
academia, nada ou quase nada produziu que valesse a pena; entretanto que, segundo
ouvi dizer, foi cada vez mais e cada vez mais descendo, e por consequência, cada
vez mais também atirando aos porcos aquele tão precioso e tão belíssimo dom da
inteligência que a natureza lhe outorgara. Ora, a prova do que estou dizendo acha-se
no modo como ambos acabaram ou naquilo que eu chamarei o cântico da morte de
cada um deles. Assim, muito moço ainda para ser um verdadeiro cético, Maneco de
Azevedo, longe de ostentar, quando morre, essa indiferença que a sua escola afetava
por tudo, parece, pelo contrário, com a mais melancólica ternura gemer e chorar por
tudo aquilo que vai perder; e a mais bela, com efeito, e a mais tocante de todas as
suas poesias, é justamente essa que todos conhecemos, e em que, cheio de admiração
por todos os esplendores da natureza e lamentando do íntimo d'alma esse mesmo
mundo que tantas vezes talvez tivesse cruelmente amaldiçoado, assim começa:
Se eu morresse amanhã veria ao menos
Cerrar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria Se eu
moresse amanhã.
Muito mais avançado em idade e cético inteiramente empedernido,
Aureliano havia-se tornado uma alma completamente ressequida pela aridez
da desolação: e um homem neste estado, o que é que pode dizer? Nada.
Por isso também, não podendo chorar, nem mesmo tomar um pouco
ao sério a morte; escarninho a encara; olha depois para o ventre entumecido;
e, dando uma grande gargalhada, cospe-lhe na cara: ou em outros termos,
tudo quanto ele acha para consolar a uma das suas amantes, e deus sabe
amante de que natureza, foram apenas estes quatro e bem pobres
versos:
Enxuga, Anália, o teu pranto
Com a ponta da tua anágua; Que
o teu pobre Aureliano Morre
de barriga d'água.
Entretanto, este mesmo homem, que assim morria, tinha em sua mocidade
escrito poesias; não só ardentes e entusiásticas; mas ainda do mais puro
sentimentalismo; e das quais uma há, que ninguém talvez se encontre que a
não tenha cantado ou ouvido cantar; é a que serve de lentra a uma das mais
antigas e a mais popular talvez das nossas modinhas, e que assim
começa:
Por entre as trevas da noite, Que
cercam a minha existência, Brilha um
astro de inocência, Que é a minha
estrela polar; Nos abismos da
minha alma Só ela pode brilhar.
Embora professando os mesmos princípios, Bernardo Guimarães era de uma
natureza muito diferente de qualquer dos dois outros; ou antes parecia reunir
em si alguma coisa de ambos, sem prejuízo, entretanto, daquilo que lhe era
exclusivamente próprio. Pode-se mesmo dizer que a natureza de Bernardo
Guimarães não deixava de ser mais ou menos incompreensível; ou que,
assim como acontece à natureza da maior parte dos homens, era a sua um
verdadeiro complexo de contradições. Dessas contradições, porém, a que
mais notável talvez se tornava, vinha a ser a seguinte — que revelando às
vezes verdadeiros assomos de orgulho, de patriotismo, e de muitos outros
sentimentos nobres, Bernardo Guimarães, entretanto, parecia ao mesmo
tempo ou às mais das vezes, não passar de um homem insensível a tudo
ou de um ser inteiramente inútil.
Assim também, o que mais nos encanta nos escritos de Bernardo Guimarães,
é essa naturalidade quase ingênua que neles domina; são esses sentimentos ternos,
doces e um pouco melancólicos que por toda a parte neles se divisam; e no
entretanto o que sobretudo caracteriza o gênio de Bernardo Guimarães, é o seu espí-
rito brincalhão e um pouco satírico. Bernardo Guimarães, porém, se a ninguém fazia
bem; porque parecia desprezar este mundo ou nele não viver; e por isso, parecia que
se tornava inteiramente indiferente ao bem e ao mal; por outro lado, ou por isso
mesmo, nunca a ninguém fez mal; e o resultado de tudo isto era que não havia
ninguém que dele não gostasse e muitos havia que lhe tinham senão uma
verdadeira estima, pelo menos muita afeição.
Ora, deste número, era um meu colega chamado Hilário, a quem Bernardo
também muito queria; talvez porque entre ambos não deixava de haver um certo
ponto de contato; e vinha a ser, que assim como Bernardo, também Hilário vivia
sempre a rir-se do mundo e nunca realmente o tomava muito ao sério; de sorte que
além daquele frequentar a este um pouco mais do que tinha por costume frequentar
aos outros, uma ou outra vez não lhe deixava de fazer algumas poesias; lembrando-
me ainda que, tendo-lhe feito uma por ocasião do seu aniversário natalício, quando a
enviou, a acompanhou do seguinte bilhete:
Ao meu amigo e senhor O muito
ilustre doutor Hilário Gomes de
Castro, Ante quem o pé arrastro Com
solene cortesia, Dedico esta poesia, Eu
que sou aquele bardo Que chamam
doutor Bernardo.
Eu, porém, disse, que o gênio de Bernardo Guimarães era quase sempre
satírico; e vou disto dar aqui um exemplo. Hoje parece que não há um só português
que não reconheça as reais virtudes de D. Maria II, porque se esta pode ter defeitos
ou se não foi uma boa rainha; o que está fora de toda a dúvida; é que ela como
mulher; poderia servir de exemplo ainda mesmo àquelas que não são rainhas. Todos,
porém, sabem, o que são paixões politicas, e o ódio que em Portugal se votava aos
Cabrais fez com que se inventasse e que bem depressa se espalhasse, que não só a
proteção que a rainha lhes dispensava não era devida a motivos exclusivamente
políticos; mas ainda, que se o rei se mostrava indiferente ou se fazia cego, é que para
isso também tinha os seus motivos particulares. Ora, quando o conde de Tomar veio
ao Brasil como ministro plenipotenciário de Portugal, Bernardo Gui-
marães se achava por acaso ou residindo na Corte; e apenas ali chegou aquele conde,
fez ele imediatamente esta sátira ou antes este epigrama extremamente ferino:
Dizem que o Costa Cabral
Só é conde de Tomar;
Mas se cornos ele toma,
Cornos também sabe dar,
E eis ai por que é que o chamam
Conde de dar e tomar.
Depois de formado, e ainda me encontrei com Bernardo Guimarães em
Ouro Preto. En, ainda o mesmo; porém muito para pior; porque, embora sem nunca
descompor-se, cair ou esquecer de todo as conveniências; e, por consequência, sem
nunca deixar de conservar uma tal ou qual integridade da sua própria consciên-cia,
entregava-se cada vez mais ao seu antigo vício.
Apesar disto, ungido pela necessidade, ou obedecendo à sua própria
vocação, nunca deixou Bernardo Guimarães de mais ou menos escrever; e tanto
escreveu e tão geralmente agradavam as suas obras que estas são conhecidas em
todas as classes da socieda-neste estado, ele conseguiu alcançar um nome, que, é
muito provável, nunca se tornará um nome obscuro e muito menos esquecido; veja-
se o que Bernardo Guimarães não poderia ter feito, se não fosse aquele desgraçado
vício a que ele tão cedo se entregou.
Entretanto, pode bem ser, que fosse esse mesmo vício o que na realidade
serviu para dar-lhe o nome que tem; porque, sem ele, talvez que Bernardo
Guimarães se lembrasse de dar para a política ou para outra qualquer coisa mais ou
menos séria ou de valor sonante; e, então, adeus musa e adeus romances!
E disto nós temos um bom exemplo no conselheiro Silveira de Souza, que,
em estudante, deu provas de ter nascido para poeta; entretanto que entregou-se
exclusivamente à política e ao magistério; e tudo isto não fará que o seu nome, já
não digo seja imortal, mas mesmo que sobreviva por muito tempo depois da sua
morte.
Há, porém, um exemplo, que é ainda muito mais frisante, e é o de Francisco
Otaviano; cujo nome, quando chegei a S. Paulo, foi talvez o primeiro e o que mais
fortemente me feriu o espírito; pois que embora já estivesse formado, havia três ou
quatro anos, quando lá cheguei; ainda o conselheiro Otaviano era ali um dos nomes
em que mais se falava; e ninguém nele falava senão como uma esperança imensa
que ia muito em breve se converter na mais gloriosa realidade ou como um astro
luminosíssimo que ia sem grande demora aparecer e brilhar no mais alto
firmamento
da literatura brasileira. Entretanto, preferiu ser político; e na política chegou a ser,
com efeito, um grande. Mas dos seus escritos jornalísticos quase que já ninguém se
lembra; como orador há muita gente que lhe ponha o pé adiante; e como chefe de
partido, ele nunca teve nem sequer a décima parte do poder e talvez mesmo da
fama do Visconde de Camaragibe.
Dizem, é certo, que não há, ou que não havia, quem tivesse, como ele, um
jeito, tato, tino ou não sei bem o que, para acomodar e dirigir um partido; mas isso
são coisas, que não se vêem, que poucos conhecem, e que ainda mais depressa se
esquecem; e infelizmente para ele, o que acontece, é que em vez de deixar como
poderia talvez ter feito, um desses escritos que desafiam os séculos, Francisco
Otaviano contentou-se ou preferiu não ser senão aquilo, que tantos outros tem sido;
isto é, verdadeiros fogos de artifício, que brilham muito e fazem muito barulho
enquanto duram; mas que acabados que sejam, deles ninguém mais se lembra, a não
ser talvez aqueles que os chegaram a ver, ou quando muito os filhos e netos a quem
estes contaram. Por isso também se o nome de Otaviano tiver de se tornar um nome
histórico, não há de ser, com toda a certeza, como o de um conselheiro ou senador;
como o de um emérito chefe de partido; e até nem mesmo pelos seus escritos
jornalísticos; mas só e unicamente por uma circunstância, por assim dizer, casual; ou
por um dos atos de sua vida que bem pouco ou nada lhe custou; isto é, o de ter posto
o seu nome no tratado da tríplice aliança contra o Paraguai, tratado este, que, se não o
desonra como diplomata, nenhuma honra também lhe traz; porque aquela aliança
estava naturalmente feita pelas circunstâncias; e o que ele fez, outro qualquer
poderia talvez fazer.
Ora, tendo falado dos três melhores poetas dos meus tempos acadêmicos,
não é possível que eu deixe de falar de mais um estudante que ainda ali alcancei, e
que embora nem tudo quanto escreveu fosse em linhas de pés contados ou em versos
medidos, nem por isso, deixou de ser um grande poeta; isto é, de José de Alencar.
Tendo-se formado quando eu era ainda bicho, eu conheci a José de Alencar
apenas de vista; e a única impressão que ele me deixou, foi esta — que era um moço
magro, de cara um pouco tristonha ou antes fechada, e que me parecia feio por causa
do muito cabelo que lhe diminuía ou lhe cobria a testa. Na minha opinião, José de
Alencar é talvez, senão a mais profunda, pelo menos a mais bela e a mais
enciclopédica inteligência da penúltima geração; porque, adoentado e não sendo rico,
segundo penso; tinha de trabalhar para viver ou pelo menos para manter uma certa
posição; e não obstante, como orador parlamentar, como
ministro, como advogado; como escritor político; e finalmente ainda como
romancista, José de Alencar em nenhuma destas matérias foi um simples tateador ou
um homem que simplesmente apareceu; mas pelo contrário, em tudo isto mais ou
menos brilhou.
Como romancista, entretanto, devo dizer, para ser franco; que José de
Alencar não me inspira a mesma admiração que inspira aos outros ou que a
admiração que José de Alencar me inspira nada tem de comum com aquela que ele
tão geralmente inspira aos outros. E este fato é justamente um dos muitos argumentos
que sempre me fizeram crer que eu não posso ou que eu não fui dotado de um bom
critério literário; porque dos romances de Alencar os que mais me agradam são
justamente os primeiros ou são aqueles que na opinião geral são todos de somenos
valia; ao passo que eu não posso ou que eu não sei convenientemente apreciar os
últimos que são os que para todos passam como sendo os melhores, inclusive o
próprio Guarani, que é de todos o que lhe tem dado maior nome. Eu desejaria dar
aqui a razão deste meu dito; mas além de uma certa exageração ou de uma certa
invero-similhança que existe em algumas das situações desses romances, e que é, por
assim dizer, um defeito comum a todos eles, eu não poderia, sem um novo estudo
para o qual me falta o tempo, indicar aqui todos ou alguns pelo menos, dos defeitos,
que nesses romances notei quando os li pela primeira vez; entretanto, que já tantos
anos há que fiz essa leitura e tão rápida ou desatenta foi ela, que bem pouco ou quase
nada é o que hoje ainda me lembro dos defeitos que então notei. Quando, porém, eu
li o Guarani, minha mulher tambem o leu; e quando conversávamos sobre as suas be-
lezas e sobre alguns dos seus defeitos; ainda me recordo, que uma das observações
que eia fez e que me pareceu, com efeito, sensata, foi a seguinte — que desde o
começo até o fim do romance, aparecem nele duas moças, uma das quais pode ser
considerada como uma das suas primeiras personagens; e cuja vida, por consequên-
cia, corre por assim dizer ante os olhos do leitor ou que não é uma dessas
personagens que não se sabe donde vem nem como vivem. Entretanto, essas duas
moças que são solteiras e que de mais a mais são nobres, vivem em uma casa onde
não há ou não aparece uma escrava, uma criada, ou outra qualquer mulher; ao mesmo
tempo que um índio, e um índio que ainda tem alguma coisa de salvegem, não
encontra o menor obstáculo para devassar toda essa casa; mas pelo contrário, nela
penetra por toda a parte, até mesmo no quarto dessas moças, como se fosse, já não
digo um parente ou mesmo um irmão; mas como se fosse uma aia ou talvez mãe.
Tendo esgotado o assunto que me propus tratar neste capítulo, eu
deveria talvez aqui terminá-lo. Antes, pom, de o fazer, não quero deixar de
ainda falar de um mocinho que em S. Paulo também conheci; e que era
então muito espigado, muito teso e extremamente simpático; mas no qual o
que principalmente me impressionava era a cabeça e sobretudo a testa; que
me parecia ser pesada ou grande demais para um pescoço tão fino; embora
ele nunca deixasse de a levar, como, segundo dizia Camillo De-moulins,
Saint Just costumava levar a sua. Esse moço, entretanto, que eu mesmo não
sabia onde morava nem como é que estudava, de repente dali desapareceu; e
embora aquela figura altiva e meiga ao mesmo tempo, nunca me saisse
inteiramente do espírito, eu entretanto, nunca mais tive dele a menor notícia;
senão quando comecei a ler nos jornais uns artigos que ele então começava a
escrever e que já então muito bem se percebia que eram os bonitos embriões
daqueles que hoje escreve no País. Já se vê, portanto, que falo de Quintino
Bocaiuva; e, desta vez ao menos, me parece que não me impressionei sem
motivo com aquela fisionomia que tanto tinha de inteligente quanto tinha de
poderosamente atraente; e da qual se poderia talvez dizer que vivia a meditar
sorrindo-se. Republicano inteiramente excêntrico ou muito cá a meu modo,
eu não compartilho hoje todas as ideias de Quintino, porque, mesmo em
moço, nunca tendo deixado de ser um republicano mais ou menos
conservador; muito menos poderia eu hoje conformar-me com todas essas
ideias da democracia moderna, cujo corolário lógico c fatal me parece ser o
mais desbragado comunismo; e quando eu nunca pude compreender, já não
digo o progresso, mas a simples permanência da sociedade sem a
propriedade e sem a família.
Quintino, entretanto, nunca foi desses botafogos da anarquia; o que
realmente me admira é que no meio em que ele vive, tenha podido
conservar os restos dessa moderação que ele sempre professou, e que, é
força confessar, ele nunca de todo perdeu.
Sejam, porém, quais forem as ideias de Quintino, ou os seus erros e
defeitos, que não conheço e dos quais não quero e nem posso ser juiz;
apenas o que nele vejo, e o que, sobretudo, o eleva tanto a meus olhos, é
que, de todos os republicanos do nosso tempo, talvez sejamos nós dois os
únicos que ainda somos o que nunca
deixamo-lo de ser. Todos os mais se transformaram, mudando de rumo e de ideias:
uns por necessidade; outros por vaidade; outros ainda por ambição ou por simples
interesse. Entretanto, o que há nisso que admirar? Pela minha parte, pelo menos, se
ainda não cheguei a esse ponto culminante da filosofia, em que nos é dado rir do que
é triste e causa nojo; já perdi, entretanto, todos aqueles espantos e todas aquelas
raivas e ferozes indignações que tais fatos me causavam; porque já de mais tenho
vivido; e o que a experiência nos mostra e a cada momento nos confirma, é que, por
mais baixo que um homem esteja, ele vive constantemente a olhar para cima; e, se
por acaso, não pode subir ou não encontra quem o alce, ele morde ou dá
coices.
Parte Terceira
CAPÍTULO XXXVI
O autor, já bacharel, regressa à Campanha. Advogado sem causas.
As eleições por distritos em 1856. Os benefícios do novo sistema.
Fatos e comentários.
Depois de ter estado em S. Paulo quase 7 anos, dali parti com minha
mãe a 4 de dezembro de 1855, lá deixando em um colégio a meu irmão, de
cuja educação desde então me encarreguei. A 13 desse mês cheguei à
Campanha. E como sempre tive, não sei se o bom ou o mau sestro, de não
procurar a fortuna mas de deixar que esta por si mesma procure; desde
aquele dia até que parti para Queluz, a minha estada naquela cidade nada
mais foi do que uma espécie de simples férias um pouco mais prolongadas;
pois que não tive uma só causa; a única que me apareceu, um rábula da roça
ma tirou; e eu não teria ganho na Campanha um só vintém, se não fossem
umas duas ou três consultas que me fizeram e uns magros emolumentos de
curador geral de órfãos e de promotor de capelas e resíduos, de que
obtive a nomeação.
Felizmente minha mãe ainda tinha uns aluguéis de escravos e uns
restinhos das suas antigas economias e foi com isso que passamos.
Também de todo esse tempo nada tenho digno de nota para registrar,
senão um único fato — o da eleição por distritos de um só deputado que
teve lugar pela primeira vez no Brasil no ano de 1856. Em relação ao
sistema antigo, o novo deu um bom resultado, que foi o de quebrar a
unanimidade que o governo sempre alcançava. Mas em compensação deu-se
este fato singular — que aqueles que nas eleições por província eram os
mais votados e que se podem também dizer eram os mais dignos, foram
justamente os que mais custaram a se fazer eleger ou que em regra foram
derrotados por quase toda a parte; e derrotados não por concorrentes mais ou
menos sérios; porém pelo contrário por verdadeiras nulidades que tiravam a
sua única força de todos esses meios que só se empregam ou tem força nas
aldeias, quando não os iam buscar na fraude e na violência.
Darei disto dois únicos exemplos. Em Sabará era candidato o meu futuro
sogro, o conselheiro Luiz Antônio Barbosa que já havia sido ministro e que pouco
depois era eleito senador, e o seu contendor era um médico inteiramente
desconhecido; e no entretanto, apesar de muito protegido pelo governo e de ter ainda
por à algumas das influências do partido contrário, aquele conselheiro não ganhou a
eleição senão por dois ou três votos apenas.
Em Ubá muito mais notável foi ainda o fato; porque se em Sabará tratava-se
de um médico mais ou menos obscuro, esse médico não tinha contra si máculas, e a
sua popularidade havia sido alcançada por meios honrosos e até louváveis. Em Ubá,
porém, já não era assim; porque ali tratava-se de um rábula que não tendo família,
ilustração e nem fortuna e que não dispondo por consequência, de nenhum desses
meios que de ordinário dão aos homens uma sólida ou bem legítima influência, havia
obtido a sua pela audácia e pela largueza da consciência de mãos dadas com essa
pequena e tão bem conhecida astúcia das aldeias, ou para tudo dizer em uma so
palavra, pelo pouco escrúpulo, se é que se pode dizer que algum realmente havia,
nos meios que empregava para chegar a essa popularidade ou influência a que
de fato chegou.
Pois bem; contra ele apresentaram-se a pleitear a eleição nada menos de três
candidatos; cada qual mais notável; pois que esses candidatos vinham a ser — pelo
lado liberal, o depois senador e conselheiro Antão; e, pelo lado conservador, não só,
o depois senador e já então tão distinto jornalista e duas vezes deputado Firmino
Rodrigues Silva; porém ainda um dos mais dignos e mais prestimosos mineiros, o
antigo deputado Paula Cândido. Na véspera da eleição reconhecendo estes três
últimos candidatos quanto era grande a força do seu contendor, não duvidaram em
chegar finalmente à fala; e então concordaram, que uma vez que nenhum deles tinha
elementos bastantes para triunfar, ao menos tratassem de ver se conseguiam dar ao
distrito um deputado que dignamente o representasse. À vista disso, tornando-se
então necessário verificar qual dos três deveria ser o preferido, os dois primeiros
desistiram da sua própria candidatura em favor do último que além de ser dos três o
que dispunha de melhores elementos, era ao mesmo tempo dos três o que se
mostrava mais digno da preferência por diferentes titulos.
Desde então todos de comum acordo e com o maior esforço se puseram a
trabalhar em favor daquele que tinha assim merecido o apoio de todos. Tudo isto,
porém, não passou no fim de contas de uma simples vontade sem braços ou de um
esforço puramente
inane; porque, por fás ou por nefas, afinal veio a vencer o contendor que juntos ou
separados todos eles guerreavam; e venceu por uma maioria imensa.
Na Campanha nenhum dos dois candidatos prestava; mas um deles, cuja
nulidade ainda não era bem conhecida, tinha por si o que valia mais do que quantos
merecimentos um candidato poderia apresentar; porque chamava-se Honório
Hermeto Carneiro Leão; e o marquês de Paraná, seu pai, cuja influência foi sempre
tão grande, era naquele tempo, não direi simplesmente um presidente de conselho o
que só por si basta para fazer de qualquer capelão ou cabide de farda um grande
manda-chuva, mas pode-se com toda a afoiteza dizer, era tão poderoso, que se o
considerava quase como um vice-imperador.
Quanto ao outro candidato, eu não posso dele simplesmente dizer, como acabo
de dizer seu contendor, que foi apenas uma nulidade; porque além de ter sido um
homem que deixou de si na Campanha uma lembrança de ódio ou de desprezo para
alguns; porém de amor e de muita saudade para um grande número esse homem
constituía ainda, quanto a mim, um tipo humano que não é dos mais vulgares, e que
não deve. por consequência, ficar inteiramente esquecido.
Esse candidato era o padre Antônio Felipe de Araújo, que foi o vigário da
Campanha desde 1843, se não me engano, até 1857; e que sendo geralmente
conhecido pelo nome de cônego Antônio Felipe, era também algumas vezes ou por
algumas pessoas simplesmente chamado — o cônego Felipe.
Sem que eu saiba onde nem quando, houve no Brasil um cônego Felipe, que
assim como em França Mr. de La Pallisse, tornou-se entre nós o tipo da imbecilidade
ou da parvoíce humana. Este de que aqui trato, apesar de haver deixado na
Campanha algumas boas anedotas, nada tem de comum ou de semelhante com
aquele seu homónimo; mas antes, em vez de ser dado como um tipo mais ou menos
completo da toleima humana, poderia ser talvez e com muito mais razão apresentado
como um tipo dessa esperteza um pouco campesina, que se disfarçando com os ares
da bonomia ou toleima, inspira mais desdém do que mesmo um sério receio e acaba
por isso mesmo quase sempre por vencer.
Parece, pois, que entrei por em cheio na biografia do meu herói e que nada
mais tinha agora a fazer do que em alguns traços rápidos mas cintilantes marcar-lhe
bem firmemente o caráter e entrar em seguida em uma bem interessante narração
dos seus feitos e virtudes. E é isto o que de certo não deixariam de fazer os que
sabem verdadeiramente contar. Eu porém não conto; eu con-
verso. E como a prolixidade e a divagação é um vício dos velhos; e como
nestas Minhas Recordações quando falo de mim ou de alguém é unicamente
para ter ocasião de falar de muitas outras cousas; e como finalmente este
cônego Felipe, além de Araújo era também Lopes; eu vou aproveitar-me
desta monção para começando a sua história um pouco mais ab ovo, dizer
algumas palavras muito rápidas de uma familia da Campanha da qual até
agora ainda não tive ocasião de falar; e assim deixemos os Lopes e o cônego
para o capítulo seguinte.
CAPÍTULO XXXVII
As três famílias de Lopes da Campanha: Ferreira Lopes ou Lopes Mansos. Os Lopes
de Araújo ou Lopes Bravos; e os Lopes de Figueiredo. O Barão de Parima e o
cônego Antônio Felipe. A história interessante desse cônego e o papel que
representou na
eleição de 1856.
No começo deste século havia na Campanha três famílias de Lopes: os
Ferreira Lopes ou Lopes Mansos; os Lopes de Araújo, ou Lopes Bravos; e os Lopes
de Figueiredo que se tinham apelido, já não me recordo qual fosse.
A dos Lopes Bravos era uma das principais da Campanha; não só porque era
branca legítima de Braga, como então se dizia, e gozava de uma tal ou qual posição
social avantajada; mas ainda porque de todas as famílias que se encerravam dentro
da cidade era esta talvez a mais numerosa; visto que além de ter em outras ruas da
povoação um ou outro dos seus membros, a rua d'Áustria era quase que
exclusivamente por ela ocupada.
Todas as famílias têm um certo número de qualidades boas ou más que são
nelas por assim dizer hereditárias, o que vem a ser justamente o que de alguma sorte
as caracteriza. Como todas as outras, esta tinha também as suas qualidades próprias;
e foram essas suas qualidades que serviram de fundamento para esse apelido de —
Bravos — que lhe deram e que era tomado no sentido particular de braveza.
O membro mais notável que esta família tem dado, foi um moço que eu
ainda alcancei um pouco no estudo do latim; que pouco depois matriculou-se na
escola militar, e que tendo-se tornado um engenheiro distinto e feito parte, como
membro ou chefe, de algumas das nossas comissões de limites com os estados
vizinhos, ainda há pouco faleceu Barão de Parima.
Como a família dos Lopes Bravos nunca primou muito pela inteligência e
nunca também foi muito dada às letras, nunca também até meados do presente século
havia tido membro algum, cuja nomeada transpusesse os restritos limites do
município da Campanha ou dos seus arredores.
Ora, embora bastardo, era a esta família dos Lopes Bravos que pertencia o
protagonista da eleição de 1856 ou esse cônego Antônio Felipe, de cuja biografia me
comprometi a dar aqui alguns ligeiros traços.
Filho de um negociante, e por este criado e desde logo reconhecido, era ele
em menino quem, segundo mais de uma vez ouvi contar, vigiava a loja do pai,
ficando para isso sentado em cima do balcão e tendo diante de si uma almofada onde
fazia rendas. Filho, porém, de um Lopes Bravo, o cônego Antônio Felipe muito
pouco ou quase nada se parecia com aqueles Lopes, exceto contudo no corpo;
porque todos eles eram altos, mais ou menos corpulentos, e alguns até extremamente
gordos; e o cônego era igualmente corpulento e alto.
Quanto à sua inteligência, eu não tive ocasiões suficientes para bem apreciá-
la. Se, porém, com certeza não era estúpido; ninguém também havia que acreditasse
que ele tivesse nascido para descobrir a pólvora. A sua ilustração, essa se limitava,
por assim dizer, ao latim e ao Larraga; e fora disso a sua ignorância era de tal
natureza, que ele não sabia em que parte do mundo é que ficavam as repúblicas do
Prata nem quais eram as suas capitais. Entretanto pregava sermões e embora
decorados e muitas vezes repetidos, ele os sabia pregar com uma tal consciência de
quem os havia feito, que geralmente agradavam e eu pelo menos muito deles
gostava.
Era o cônego o que se poderia chamar com toda a exatidão um verdadeiro
molúria; porque ao passo que ninguém havia que soubesse como ele levar a água ao
seu moinho; por outro lado, alto e tão cheio de corpo, como eu já disse, ele,
entretanto, na voz, no andar, nos modos, e em suma em tudo, era um homem todo
macio e todo adocicado. Devo mesmo dizer, que neste último particular, ele não só
chegava ao ponto de desagradar e quase que enojar as pessoas secas, porém sinceras,
mas que até mesmo para as pessoas que mais o estimavam, ele não deixava algumas
vezes de cair em um tal ou qual ridículo, como quando, tão cheio de corpo e com as
suas mãos tão gordas, depois de todos os me-deixes e quindins próprios de uma
dama envergonhada, se prestava a ir dedilhar o piano que muito mal sabia e punha-
se então ali a cantar, com uma voz não direi melodiosa mas languo-rosa e toda cheia
de bemóis e sustenidos, algumas modinhas cada qual mais terna; e das quais a que
parecia ser a da sua maior predileção, era uma que andava então muito na baila, e
que era assim, se bem me recordo, que começava:
Quando tua voz Lília escuto,
Renasce em mim a esperança;
Mas depois a desconfiança
Vem ferir meu coração.
Mas se teu peito
Também me ama,
Se a mesma chama
Sentes arder;
Porque em ciúme
Meu peito incendes,
Porque pretendes
Ver-me sofrer?!
Há um prolóquio popular que diz: — Quando um não quer, dois não
brigam. 0 cônego Felipe era uma perfeita confirmação deste prolóquio;
porque tendo tido um grande número de cas-tanhotos e que lhe cortavam
desapiedadamente na pele, nunca me constou que com algum altercasse e
que nem mesmo alterasse muito para com eles o seu modo de proceder; mas
pelo contrário quando por acaso sabia que alguém tinha dele falado mal, era
justamente quando na primeira vez que o encontrava, já desde longe vinha
com os braços aberteos para abraçá-lo e confudi-lo com os protestos da mais
sincera e calorosa amizade; e se por acaso se oferecia ocasião de servi-lo ou
ser-lhe útil, não o deixava de fazer.
Onde, porém, muito mais talvez ainda se poderia bem apreciar o
caráter do cônego ou até que ponto chegava a sua pachorra. era no modo
como ele procedia para com os seus escravos, os quais o estimavam muito e
o serviam muito bem. 0 cônego, pode-se dizer, que não lhes perdoava uma
só falta; mas também pode-se dizer que nunca os castigou com raiva e
menos ainda com crueldade; porque se o castigo era certo e algumas vezes
mesmo rigoroso, ele, entretanto, nunca tinha pressa em aplicá-lo e nem
sempre esse castigo era batendo. Assim, se a cozinheira lhe apresentava a
sopa ou qualquer outro prato mal temperado, o cônego em vez de bater ou de
fazer o menor barulho, pelo contrário, o que apenas fazia, era mandá-la
chamar, e quando esta chegava, ele com a sua voz adocicada e nestes casos
ainda mais meiga do que o costume, lhe dirigia um discurso mais ou menos
nestes termos: "Fulana, achei hoje aqui na mesa esta sopa, que parece ter
realmente caído do céu porque tem estas e aquelas excelentes qualidades; e
tão saborosa me pareceu, que se me afigurou seria da minha parte até um
encargo de consciência se dela provasse qualquer bocado em prejuizo de
quem tão boa a havia feito. Eu, pois, te
peço que te assentes à mesa e que ainda quando não fosse senão unicamente para me
fazer o gosto, não deixes nada para qualquer outro".
E fosse qual fosse a qualidade ou a quantidade da iguaria, a pobre da
cozinheira a havia de tragar toda até a última gota.
O pagem do cônego era um pardo chamado Elias, a quem aquele muito
estimava e deixou forro. Era um traste que muito se parecia com o dono; no
moral, bem entendido.
Mas fosse lá pelo que fosse, ambos se entendiam às mil maravilhas. Se o
cônego era severo com os seus escravos, com o pobre ou com o tratante do Elias,
isso então nem se fala; não só porque o cônego o trazia sempre à rédea curta, mas
ainda porque com ele nunca deixava passar camarão por malha ou não havia culpa
por mínima que fosse, que o Elias a não pagasse. De todos os escravos, porém, o
Elias era também o único que se podia gabar de uma regalia verdadeiramente
inaudita no reinado da escravidão; e é, que ele nunca foi condenado e muito menos
ainda punido, sem que fosse convencido. E, com efeito, se o coitado do Elias
apanhou não poucas vezes, e algumas delas deveras ou a valer porque infelizmente o
tratante não deixava mais ou menos de fazer por onde, aquilo entretanto, que deve
aqui ficar consignado para honra do cônego e para glória do Elias, é que este nunca
levou talvez um único bolo sem que primeiro entre o escravo e o senhor tivesse
havido uma longa e às vezes muita divertida discussão ou sem que ao castigo tivesse
precedido um julgamento não direi solene mas pelo menos muito longo e muito
curioso, em que o senhor acusava, e em que o escravo se defendia, ou negando o fato
ou alegando o maior número de circunstâncias atenuantes ou justificativas que a sua
prática na matéria ou que a sua própria esperteza nunca deixava de lhe
fazer descobrir.
Verdade é que jogando o cônego de cima e que não podendo o Elias o
vencer em matreirice, muito raro era o caso, em que este não chegasse por fim a
concordar com a acusação. Mas ao menos o seu direito de defesa, esse ninguém o
tirava. E esse direito, é preciso que eu aqui pondere, não se limitava, como de
ordinário acontece, unicamente ao que se poderia chamar a questão de fato; mas pelo
contrário, era de uma tal amplidão, que ainda mesmo depois de convencido, não
ficava o réu de modo algum tolhido ou privado de lavar a questão para esse tão
amplo e ao mesmo tempo tão vago terreno da equidade, e de discutir, fundando-se
nesta, sobre a qualidade e a quantidade da pena que lhe deveria ser infligida; visto
que, segundo a lei ou antes segundo a pachorra do conêgo, ele parecia não se julgar
não direi com
o poder ou com o direito mas pelo menos com a precisa disposição para
infligir a pena, enquanto o réu tácita ou formalmente não tivesse com ela
concordado. E com efeito, só quando se havia chegado a este último
resultado, é que ele então ordenava ao próprio Elias que fosse buscar o
instrumento do castigo, para que este lhe fosse aplicado.
Mas ainda aqui não se esgotavam inteiramente os recursos da defessa
porque indo neste ponto o cônego muito além talvez da nossa tão libérrima
legislação criminal, tinha ainda o Elias um direito do qual se aproveitava o
maior número de vezes que lhe era possível; e era o de vir com embargos à
execução; embargos estes, que em regra não podendo ser infringentes do
julgado, eram as mais das vezes simplesmente protelatórios; como por
exemplo o haver algum outro serviço mais ou menos urgente que pudesse
ficar prejudicado com o tempo consumido no castigo; como o frio muito
intenso que na ocasião estivesse fazendo; como algum pequeno arranhão ou
queimadura que na mão tivesse o réu, etc, etc. E o que é certo, é que estes
embargos quase nunca eram desprezados in limine, porém antes eram quase
sempre recebidos si et in quantum; e só depois de uma nova e não raro bem
longa discussão, é que se marcava o dia e a hora para a execução.
0 Elias, porém, se era, como disse, um pouco tratante, e se como
advogado em causa própria era de força para lutar com o próprio senhor; ele
entretanto, possuía uma grande virtude — ninguém melhor do que ele
conhecia a lei em que vivia; e assim, se enquanto o pleito não havia sido
soberanamente julgado, não havia direito ou chicana de que não lançasse
mão; desde o momento em que via que a causa tinha chegado aos seus
últimos termos ou que não havia mais possibilidade de apelação ou agravo;
dês desse momento, resignado ou estoico, preparava-se sereno para cumprir
o que ele julgava o seu dever, e sem que houvesse edital ou qualquer
intimação, no dia e hora marcados, ele mesmo se apresentava ao cônego
levando-lhe essa tão bem conhecida rodela de cabiúna de cabo e de cinco
olhos em forma de cruz; recebia os bolos, cujo número era sempre exato e
muito bem sonantes; e com lágrimas ou sem elas voltava silencioso e
cabisbaixo a fim de ir continuar na sua vida ordinária, até que se oferecesse
uma nova falta e um novo pleito, cujo resultado não deixaria de ser mais
ou menos o mesmo.
Muito grande era o número de anedotas que na Campanha se
contavam do cônego e do seu Elias. Mas creio que para exemplo me bastará
contar uma. Quando o cônego saía à noite para jogar ou por outro qualquer
motivo que o pudesse demorar, uma das
obrigações do Elias era ficar dormindo no corredor para lhe abrir a porta
quando chegasse e prestar-lhe os serviços de que precisasse até deitar-se.
Uma noite voltando o cônego um pouco mais cedo do que o Elias
talvez esperasse, viu que este, em vez de estar no corredor, achava-se pelo
contrário, em um beco ou em uma rua um pouco escura que ficava ao pé da
casa. O cônego, porém, fingiu que não o havia visto, enquanto que este
apenas o pressentiu, tratou quanto antes e o mais que pode de esconder-se.
Certo de que o Elias lhe viria logo sobre os passos, o cônego dirige-se para a
casa, fecha a porta, e do lado de dentro põe-se a bater e a chamar pelo Elias
para que lhe abrisse a porta.
O Elias que havia chegado imediatamente, tratou então de convencê-
lo que ele mesmo o havia posto na impossibilidade de abrir a porta; e por
mais que respondesse que estava do lado de fora e que não podia abrir, o
cônego insistia que estava ou que devia estar do lado de dentro, e que
portanto, abrisse.
E assim, se conservaram por uma boa temporada; até que o cônego
resolveu-se a abrir a porta; seguiu-se o julgamento do costume; e como
tratava-se de um flagrante delito com a circunstância agravante da noite e
outra talvez ainda mais importante, não sei se o Elias desta vez arranjou
quaisquer embargos que adiasse a execução da sentença.
O cônego Antônio Felipe passava por quase todos na Campanha por
ser, não direi um jesuíta, pois que ele nunca foi o que propriamente se
chama um hipócrita, mas por ser um grande francês. Entretanto um fato que
me parece deve ficar aqui assinalado é que se ele foi abandonado por alguns
dos seus amigos que mais o acariciavam e que eram por ele da mesma sorte
acariciados; não me consta que a nenhum ele, cônego, abandonasse; e aquilo
de que pela minha parte posso dar testemunho, é que tendo ele desde muito
moço se ligado pelos laços da amizade com meus tios paternos e sobretudo
com meu tio José dos Reis, e de uma amizade tão estreita que parecia quase
que de irmãos, uma tal amizade nunca sofreu a menor quebra e durou tanto
quanto ele viveu. Uma grande virtude, porém, que ele sempre possuiu e que
nem mesmo os seus mais rancorosos inimigos jamais se animaram a
recusar-lhe, é que sendo muito desinteressado em questões de dinheiro, o
cônego Antônio Felipe foi durante toda a sua vida um dos homens mais
serviçais que teve a Campanha e embora nunca tivesse sido rico, foi
extremamente generoso em obséquios. E é sobretudo a estas suas tão
apreciadas qualidades, que me parece se deve atribuir essa influência
que ele alcançou na sua
Viuva e filhos do Dr. Francisco de Paula Ferreira de Rezende
F
otografia tirada em 1894.
Ao centro, a viuva; — ò sua direita, seu filho Gaspar. — à esquerda, o caçula Manlio; no
segundo plano, da direita para a esquerda, Flamínio, Francisca Eugenia. Luiz, Francisco,
Valério e Cássio.
D. Antonia Luiza Horta Barbosa, sogra do Dr.
Francisco de Paula Ferreira de Rezende, nascida
na Província de Minas em 1815 e falecida no Rio
de Janeiro em 1905.
freguesia; que foi pouco a pouco se estendendo pelo sul de Minas; e que ninguém
sabe até que ponto chegaria, se a morte não tivesse vindo o surpreender no começo
apenas da sua carreira ou pelo menos da sua carreira política.
Dominado por um grande desejo de elevar-se, o cônego Antônio Felipe, logo
que se ordenou, parece que mostrou desejos de entrar na chapa para eleitores. Os
liberais, porém, parece que deram pouca atenção a esse desejo e não o incluiram na
chapa. Os conservadores que bem depressa perceberam o despeito que daí havia
resultado para o recém-padre, o incluíram; e embora filho de uma família que tinha-
se tornado notável pela inquebrantável firmeza das suas convicções políticas, o
cônego Antônio Felipe tornou-se então conservador. Pouco depois foi igualmente
incluído na chapa de vereadores; e como o mais votado que saiu, tornou-se o
presidente da câmara. Aqui porém, deu-se um episódio, que fez um tal ou qual
barulho na pequena vida da Campanha; mas que entretanto, não deixou de ter
também o seu tanto ou quanto de cómico.
Naquele tempo era juiz municipal da Campanha o Dr. Felizardo Pinheiro de
Campos, homem mais ou menos inteligente, mas um pouco trêfego e que nunca
primou muito pelo seu bom senso. Tendo entrado na chapa com o cônego e tendo
saído também um dos mais votados, em uma das sessões da câmara, o Dr. Felizardo
suscitou uma questão não sei bem de que natureza e enquanto o cônego como
presidente dava algumas explicações, aquele doutor, pediu a palavra e faz-lhe ver,
que se tinha alguma coisa a dizer, era preciso que deixasse a presidência, pedisse a
palavra e fosse falar como outro qualquer vereador. O cônego atendeu prontamente à
reclamação; chamou aquele doutor para ocupar a cadeira da presidência; e foi falar
como um simples vereador.
Quando terminou as observações que tinha a fazer, veio para ocupar de novo
o seu lugar na presidência; mas o doutor tinha tomado gosto a esse lugar ou havia
resolvido de ficar com ele por direito de conquista; e recusou-se entregá-lo. Todos os
outros vereadores começaram então a reclamar contra um semelhante esbulho; das
reclamações passaram a protestos cada vez mais enérgico e violentos; o negócio foi
cada vez mais se esquentando; e eu já não me lembro ou não sei bem como é que a
coisa se passou.
Creio, porém, que o usurpador prevaleceu-se da sua qualidade de juiz
municipal; e que não só ameaçou de processar aos
vereadores, como até me parece, que chegou a dar-lhes a voz de prisão como
desobedientes ou não sei pelo que.
O que é certo, é que para não serem presos ou por outro qualquer motivo,
todos os vereadores se retiraram e deixaram o intruso presidente sozinho na mesa
donde não se o podia arrancar e onde eles supunham que ele ficaria a presidir-se a si
mesmo. Mas foi nisto que eles redondamente se enganaram. E com efeito, retirando-
se e deixando aquele doutor senhor da mesa, eles nada mais fizeram do que atirar o
sapo n'água; porque apenas se viu senhor do campo de batalha, o Dr. Felizardo tratou
imediatamente de mandar convocar os suplentes; estes que eram do partido contrário
sem mais demora compareceram; e desta sorte, os legítimos vereadores ficaram a ver
navios e de mais a mais com um processo ou com a ameaça de um processo às
costas. Felizmente para eles, o negócio era por tal forma escandaloso, que o presi-
dente da província, apesar de liberal, não o pode aprovar; e o resultado foi, que não
só o Dr. Felizardo perdeu a presidência, mas até mesmo o seu lugar de vereador;
porque os próprios que o haviam encaixado na chapa, agora descobriram que ele
havia sido eleito sem que tivesse os dois anos de residência que a lei exigia, e a
sua eleição foi, por consequência, anulada.
Desde então o cônego foi constantemente subindo até que foi eleito membro
da assembleia provincial e pouco depois aparecia como presidente desta.
Ora, a ambição de qualquer coisa é como a do dinheiro, que quanto mais .se
tem, mais se quer. E assim, o cônego, que talvez nunca sonhasse de poder ser um
deputado provincial, desde que o foi, assentou que linha o caminho aberto para ir
muito mais longe; e desde aquele momento o seu sonho dourado foi o de representar
no sul de Minas ou talvez mesmo em toda a província o mesmo papel que não havia
muito, tinha nela representado o senador José Bento.
O cônego, portanto, fez da assembleia provincial o seu ponto de partida, ou
antes, de apoio, para a grande ascenção que proje-tava; e como ele sabia pedir e
sabia dar; e altas ideias de patriotismo e de conveniências públicas foram coisas que
nunca lhe ocuparam um só momento o cérebro; pode-se facilmente avaliar o que ele
não faria e o que de fato ele não fez.
Com isto não quero dizer que o cônego fosse homem de verdadeiras
trampolinagens, mas apenas que não sendo um homem de vistas largas nem de
um senso moral e político na altura do
lugar que ocupava não fazia desse lugar mais do que um meio de
engrandecer-se a si próprio. E disto vou dar um único exemplo.
Um dos chefes liberais de Três Pontas era um velho que cheguei
ainda a conhecer e que se chamava o major Arantes.
Indo o cônego àquele lugar, o major Arantes pediu-lhe que visse se
podia arranjar na assembleia uma certa quota para a matriz ou não sei para
que obra ou instituição daquela cidade. O cônego prometeu e cumpriu a
promessa; e na mesma ocasião declarou ao peticionário, que na seguinte
legislatura pretendia apresentar-se candidato à geral, não propriamente
como um candidato político, mas antes como um candidato dos seus
amigos. O major que acabava de receber aquele obséquio e que via que
sendo a lista de vinte, o desvio de um voto, não era coisa que pudesse causar
grande transtorno à chapa, fez a promessa. Algum tempo depois aparecia a
lei dos círculos, segundo então se dizia; o cônego apresentava-se candidato
do distrito da Campanha; e escrevia àquele major lembrando-lhe a
promessa que havia feito.
Quando se reuniu o colégio na Campanha, o major Arantes foi
hóspede de meu tio Marliniano, de quem era compadre e íntimo amigo; e
ninguém faz ideia dos esforços que se fizeram para que aquele major
deixasse de votar no cônego.
Tudo, porém, foi baldado; e ainda me lembro da resposta que ele deu
à minha tia quando esta com muitas outras senhoras pediam-lhe com a
maior instância que não desse o seu voto ao cônego; e essa resposta foi mais
ou menos esta: "Ninguém melhor do que eu conhece quanto o cônego é
pouco merecedor do lugar que aspira: vou nele votar com verdadeira dor de
coração e quase que até com pejo, mas, minha comadre, eu sou um homem
honrado e de palavra; prometi-lhe o meu voto; e não posso deixar de dar-
lhe".
E com efeito, assim o fez. Agora, pois, que já conhecemos a pessoa e
a família do candidato, continuemos com a história dessas eleições de 1856,
que eu havia deixado para o capítulo seguinte e que só agora é que chegou a
ver de a concluir. Eu, porém, prometo por enquanto deixar de parte as
minhas costumadas divagações, é, no capítulo seguinte, o leitor pode contar
certo que não lhe falarei senão só e exclusivamente de eleições.
CAPÍTULO XXXVIII
A lei dos círculos, as eleições gerais de 1855 e o cônego Antônio Felipe. A história
complicada dessa eleição na Campanha. O Marquês de Paraná apresenta a
candidatura do filho. O susto do cônego e a morte do Marquês. A pressão continua.
O cônego vence a eleição e entra para a Cadeia Velha. Sua vida social na Corte.
Boas amizades. Morte por febre amarela. Eleições provinciais. A candidatura do
autor. A derrota nas urnas. Decepção.
Logo que apareceu a lei dos círculos, o cônego Antônio Felipe, embora não
publicasse oficialmente a sua candidatura, começou sem mais demora a comunicá-la
aos amigos e a todas as pessoas com cujo auxílio já contava ou poderia contar. E
como desde muito tempo já havia para isso preparado o terreno e não contava que
houvesse no distrito qualquer outro candidato que se apresentasse ou que tivesse os
suficientes elementos para vencer, tudo fazia acreditar que a candidatura do cônego
não só era uma candidatura perfeitamente viável, mas até mesmo quase que segura.
Havia, porém, naquele tempo, em S. Gonçalo da Campanha e hoje do
Sapucaí dois homens, que ali viviam à maneira de dois grandes senhores ou como
verdadeiros aristocratas, e que sendo por esse motivo, muito pouco populares,
também por esse mesmo motivo, muito pouco se envolviam na pequena politica do
município. Entretanto eram estes dois homens os que desde muito tempo se haviam
constituído ou vinham a ser de fato os verdadeiros diretores da alta política
conservadora daqueles lugares, visto que se conservando sempre um pouco de longe,
porém sobretudo em uma muito grande elevação, eram eles, entretanto, sem cuja
vontade nada absolutamente se fazia do que por acaso dependia mais ou menos
exclusivamente da alta administração e sobretudo do governo geral; o que não
deixava de provocar da parte da gente da Campanha para com eles uma espécie de
antipatia ou até mesmo de raiva; porque, habitantes de uma simples freguesia do
município, não só eram quem realmente davam as cartas, mas pareciam mesmo
tratar a cidade com uma espécia de desdém ou de despreso. Ora esses dois homens
que assim dispunham de
uma tão grande influência na Corte, eram o Barão do Rio Verde e o comendador
Francisco de Paula Bueno, que sendo senhores de uma fortuna não pequena e
mantendo antigas e muito importantes relações sociais e políticas, ainda tinham para
apoio in-contrastável daquela sua influência o fato das relações de amizade e até
mesmo de parentesco que entre eles existiam e a família Itaboraí-Uruguai.
Os dois, portanto, ou porque nunca tivessem sentido uma muito grande
simpatia pelo cônego que pela sua parte lhes pagava mais ou menos na mesma
moeda; ou porque principiassem agora a recear que a influência cada vez mais
crescente deste acabasse por suplantar a sua, ou porque enfim, independente de
qualquer cálculo, o que apenas queriam era terem mais uma ocasião de agradarem
ou de lisonjearem ao poderoso marquês de Paraná; o que é fora de toda a dúvida, é
que escreveram a este, oferecendo-lhe o distrito de Campanha como sendo de todos
talvez o mais próprio para que nele fosse apresentada a candidatura do filho mais
velho do marquês que não havia muito tinha acabado de formar-se; visto que,
segundo eles lhe mandavam dizer, além de muitas outras considerações que se
davam para que aquela candidatura fosse ali perfeitamente aceita, ainda se aquele
um distrito que não tinha candidato; e que por consequência, em vez de
dificuldades, só teria para o candidato que assim indicavam a mais completa
alacridade ou simples sorrios e flores. À vista de um tal oferecimento e de tais
seguranças, o marquês, que talvez nunca se tivesse lembrado de apresentar o filho
como candidato ou pelo menos de apresentá-lo por aquele distrito, não quis rejeitar
um presente, que lhe iam tão espontaneamente ofertar, e aceitou o oferecimento
com agrado.
Em princípio de julho, eu estava em um concerto a que também assistia o
cônego, quando de reperente ali se ouviu o convencional e bem conhecido estourar
do rojão ou foguetão que anunciava a chegada do correio, e pouco depois ali
apareciam algumas das circulares em que aquele marquês apresentava o filho. Tudo
isto se havia feito com um tal segredo, que bem poucos eram os que sabiam do
negócio e muito menos os que nele acreditavam. Aquela circular, portanto, veio cair
sobre o cônego como um raio que inesperadamente arrebentando, ainda quando não
mata, sempre assombra ou patetea. Ele contudo, embora ficasse com uma cara de
fazer rir e ter dó ao mesmo tempo, teve, não obstante, bastante força para não cair; e
eu já não me recordo do que foi que ele então disse e nem do que depois disso ele
fez.
Julgo, porém, me lembrar, que tendo ficado extremamente branco e com um
ar de quem acorda espantado, e que mal tendo podido articular uma pergunta de
quem não sabe o que quer perguntar, ele depois fez um boca de quem procurava
assobiar sem que o vento queira sair; e quando, passado muito pouco tempo dali se
retirou.
Como eu não andava muito em dia com essas cousas, que trazendo a todos
em uma ebulição constante, para mim não passavam de uma dessas tolas barulhadas
que fazem nos teatros por causa das pernas de alguma dançarina, ou da cara de
alguma cómica um pouco mais jeitosa, ou talvez antes, como tudo isso não passava
para mim de uma simples briga de galos, onde não se via uma só ideia sequer e o
que unicamente aparecia e tanto se aplaudia eram apenas o pulos e as boas esporas
dos contendores, eu realmente não sei qual foi então a resolução que o cônego
chegou a tomar e nem se continuou com a mesma atividade na campanha que já
antes havia encetado.
Em princípios de setembro, porém, e quando menos se esperava, faleceu na
Corte, como se sabe, o marquês de Paraná; e eu não sei se na primeira missa que o
cônego teve de celebrar, este rezou o momento ou se se pôs, sem talvez sentir, de
casula branca, a cantar aleluia! aleluia! 0 que sei e é certo, é que ele desde logo pôs-
se de novo em campo e que já de novo se considerava o senhor da situação, quando
ainda de novo lhe veio estourar aos pés alguma cousa que se não era aquele raio tre-
mendo que havia quase que o fulminado, nem por isso deixava de ser uma
verdadeira bomba e das mais mortíferas; e que poriso mesmo, veio, não só mais uma
vez ainda fazer o pobre do cônego assobiar sem querer; mas que até mesmo o teria
feito talvez desacoroçoar completamente do seu intento, se a ambição ou se a
perseverança do cônego fosse susceptível de desacoroçoamentos. Ora, essa bomba
de que falo, e que tão terrível e tão esmagadora havia assim se tornado para cônego,
foi a notícia que logo depois chegou — que se o grande marquês havia falecido, ele,
não obstante ainda mesmo além do túmulo, continuaria a proteger o filho com a sua
poderosa sombra. E com efeito, o ministério presidido pelo marquês de Paraná,
tendo continuado sob a presidência do marquês de Caxias, todos os seus membros
sem a menor discrepância entenderam, que era para eles um dever de reconheci-
mento ou antes um verdadeiro ponto de honra, o faz vingar a candidatura do filho
daquele que acabava de ser o seu ilustre e tão poderoso chefe e que se vivo fosse o
faria eleger por qualquer parte.
Nem foi só o ministério quem tomou este negócio a peito; mas pode-
se talvez dizer que cora este o partido conservador inteiro se havia
consubstanciado nesse mesmo pensamento; pois que não eram amada
passados muitos dias depois da morte do marquês de Paraná, quando a
Campanha foi de novo surpreendida por uma nova circular, mas que em vez
de vir, como a primeira, apenas assinada por um simples e bem curto nome,
vinha agora pelo contrário coberta com as assinaturas de todos quantos na
Corte eram ou pasavam por ser os grandes magnatas conservadores, e na
qual não só se ratificava a apresentação que o marquês havia feito do filho,
mas ainda se pedia com o maior encarecimento que fosse ele sufragado.
Isto, porém, era apenas o que se poderia chamar a proclamação, que
antes da batalha, de ordinário se publica, para encorajar as tropas e
amedrontar o inimigo. Como, porém, se algumas vezes se pode espantar o
inimigo com o barulho ou coma ostentação de forças que realmente muitas
vezes não se possuem, o que sobretudo concorre para vencê-lo, são os
meios que se empregam para ter gente e para desmoralizá-lo; porisso
também ao passo que se publicava para todos essa proclamação solene que
aos olhos do povo tornava-se realmente deslumbrante pelos títulos e
grandezas que afirmavam, nas cartas particulares que vinham com ela mas
com endereço especial para os diretores daquele pleito, não se esquecia de
dizer, e de dizê-lo da maneira a mais categórica, que o ministério estava
pronto para acudir com todas as providências que se julgassem úteis e que
fossem reclamadas, e que o governo da província a nada igualmente se
recusaria.
E com efeito, ou para encurtar razões, o que eu sei e que é certo, é
que ainda dois ou três dias antes da eleição, chegava a Campanha vinda do
Ouro Preto, por um positivo, a nomeação de um novo delegado de polícia
que daquela primeira cidade se havia mandado buscar para substituir o que
então estava servindo e que parecia não ter-se mostrado bastante enérgico
ou não se achar, como se costuma dizer, à altura da situação.
Ora, depois que reina o atual imperador, e que a vontade de um só
chegou a substituir-se àquela nossa pristima e tão enérgica vontade nacional
qual foi o partido que por mais unido, disciplinado ou numeroso que fosse,
jamais conseguiu com o antigo sistema de eleições obter um triunfo
qualquer, quando o governo fazia empenho em vencer?
Pois como se não bastasse para esmagá-lo esse empenho assim tão
fortemente manifestado do governo, o cônego ainda teve
contra si um fato inteiramente virgem naquele lugar; e esse fato foi, que todos os
chefes principais dos dois partidos então existentes na Campanha e que antes não
mantinham entre si mais do que essas simples relações de cortesia, agora ou por
antipatia para com ele ou pela esperança talvez dos grandes benefícios que ao
distrito poderiam advir pela eleição de um representante assim tão altamente
recomendado, esqueceram pela primeira vez os seus antigos ódios e malquerenças e
todos se coligaram contra o cônego; de sorte que este não teve desde então em seu
favor, senão alguns chefes mais ou menos secundários desses mesmos partidos, mas
que eram em compensação também os mais ativos; e além destes, quase que
unicamente o povo mais ou menos miúdo; caso não queiramos meter também em
linha de conta a um elemento que ordinariamente se despreza, mas que no entretanto
tem muita força — o das mulheres que rezavam pelo seu triunfo.
Como, porém, eu disse que os chefes de ambo os partidos se coligaram
contra o cônego; para que se possa bem compreender o caráter desta eleição, é
preciso que eu aqui declare, que sendo ambos os candidatos conservadores, os
liberais, sem propriamente cindirem-se, inclinaram-se, à vontade de cada um, para o
lado para o qual os chamavam as suas amizades ou maiores simpatias; e se algum
princípio um pouco mais alto parecia dominar esta escolha ou aquilo que o resultado
final pareceu indicar, foi que em regra a parle mais aristocrática do partido inclinou-
se para os pa-ranistas e que a parte mais democrática inclinou-se para os felipis-tas.
Em todo o caso foi o partido liberal quem mais lucrou com esta tão grande
baralhada; porque nunca tendo conseguido vencer uma eleição municipal na
Campanha, agora pela primeira vez tiveram os liberais o gosto e a surpresa de verem
que o presidente da câmara e que os vereadores mais votados eram todos do seu
grêmio; porque tendo os paranistas incluindo na sua chapa quatro dos principais
chefes desse partido, o cônego imediatamente fez outra em que aceitando esses
mesmos quatro ainda lhes pôs por cima mais outros quatro, se não me engano.
À vista de tudo quanto até aqui já tenho exposto, me parece que não há um
só dos meus leitores, que não compreenda a natureza e a multiplicidade de
embaraços com que o pobre do cônego não teria de lutar.
A despeito, porém, de todos esses elementos contrários, desse empenho tão
grande e de todos esses esforços que empregaram contra ele, o cônego acabou da
maneira mais completa e contra a espectativa geral por ganhar a eleição
preparatória. Mas que importava a eleição da Campanha, quando, segundo
todas
as presunções e sobretudo na opinião dos adversários do cônego todo o distrito era
contra ele?! Quando raiou o dia tão ansiosamente esparado da eleição secundária, e
quando na véspera já haviam chegado à Campanha todos os eleitores dos
municípios vizinhos, estava tão arraigada no espírito dos paranistas a convicção da
vitória do seu candidato ou era mesmo tão geral a presunção da derrota do cônego,
que bem poucos seriam aqueles que se animassem a apostar dez contra cem
pelo triunfo deste.
Pois bem; quando se correu o escrutínio, aquele padre, sem grande
inteligência, sem nenhuma ilustração, sem família por assim dizei, e sem nenhuma
dessas condições intrínsecas ou extrínsecas que constituem o mérito ou que
concorrem para criar uma grande e real influência, venceu a eleição por uma
maioria não pequena; e a venceu contra todo o ministério e contra todos os
magnatas da Corte, contra o governo da província que tinha inteiramente se posto à
disposição dos seus adversários, e finalmente contra todos os embaraços que lhe
antepusseram sem o menor escrúpulo o poder com as suas forças, e a maledicência a
mais insultante e desbragada da paixão política.
Diante de um triunfo assim tão grande e que ao mesmo tempo tinha tanto de
esplêndido quanto por outro lado e muito mais talvez ainda tinha de inesperado, não
só imensa foi a vergonha, a tristeza e a dolorosa surpresa dos adversários do cônego;
mas pode-se mesmo dizer que todos estes ressentimentos neles se converteram em
uma espécie de pasmo ou da mais completa consternação; de sorte que em vez dessa
raiva mais ou menos explosiva que em tais casos de ordinário se observa, o que de
fato se obesrvava, era que sem ânimo e sem forças para disfarçarem aquele seu tão
grande desalento, eles também se mostravam e muito mais ainda se sentiam sem as
forças e sem a precisa vontade, para reagirem de um modo mais ou menos heróico
contra a desgraça que os oprimia; e que enquanto assim calados e todos cabisbaixos
iam no meio dessa sua inesperada e tão cruel desventura roendo, por assim dizer,
aquele tão amargo osso que a sorte impiedosa lhes havia preparado, só uma única
ideia lhes acodia ao espírito como um pálido sorriso de consolação ou como um
último urro da vingança.
Ora, essa idéia vinha a ser aquela tão completa e tão bem conhecida
nulidade do cônego, a qual, diziam eles, bem depressa teria de fazer do cônego na
Corte um objeto de despreso e talvez mesmo de riso. E o que mais é; não eram
poucos talvez os que sem serem inimigos do cônego, pensavam mais ou menos por
esse
modo. O cônego, porém, tendo chegado à Corte, pouco depois ali faleceu de
febre amarela; e ninguém sabe, se neste ponto o vaticínio se realizaria ou
não.
Creio, entretanto, que se o cônego vivesse, bem longe de alcançarem
essa tão triste e tão magra consolação, os seus inimigos teriam de passar por
uma nova e não menos cruel desepção; pois acredito que se não fosse a
morte que o veio surpreender no meio do seu triunfo, ainda quando o
cônego não pudesse ou não se animasse a falar na câmara e ainda quando ali
não fosse capaz de lavrar um simples parecer um pouco mais sério de
qualquer comissão; nem por isso deixaria de acabar por obter tudo quanto
desejasse; tal era a sua perseverança; tal era o seu jeito para sem
propriamente degradar-se, insinuar-se por toda a parte e sobretudo com as
pessoas que desejava agradar; e tal era finalmente a grande habilidade que
realmente possuía, de empregar e fazer valer todos os pequenos meios.
Tenho para assim pensar, não só a experiência do mundo que me tem dado
56 anos de uma vida que observa e medita um pouco; mas ainda esse
conhecimento, que embora não muito profundo, cheguei contudo a ter do
cônego. Se, porém, o leitor quer uma prova do que acabo de dizer, eu quero
e vos dar uma, que embora à primeira vista de pouca importância, dá
entretanto, muito bem a conhecer, o que era o homem e os seus meios.
Ora, essa prova vem a ser a seguinte: que tendo o cônego partido
para a Corte em abril e que tendo ali falecido em junho, em menos de dois
meses já ele tinha se tornado o parceiro infalível de voltarete da marquesa
de Olinda, cujo marido era então o presidente do Conselho; entretanto que
era ao mesmo tempo o amigo e o companheiro de casa do conselheiro Fran-
cisco Diogo Pereira de Vasconcelos que era o ministro da Justiça; pois devo
aqui declarar, que assim como o atual visconde de Ouro Preto e o
conselheiro Joaquim Delfino apenas se encontraram tais foram as afinidades
que entre si se descobriram, que desde logo e até hoje, como já tive ocasião
de dizer, ambos se ligaram para a boa ou a má fortuna; assim também o
cônego e aquele primeiro conselheiro apenas se avistaram em Ouro Preto,
desde logo se ligaram de amizade; embora, quanto a mim, se nela havia
alguma sinceridade, seria unicamente da parte do cônego.
A luta entre os felipistas e paranistas foi de tal natureza, que
devendo-se votar para um deputado e para um suplente deste, ainda na
véspera da eleição nenhum dos dois partidos havia cogitado ou lembrado de
quem deveria ser o suplente. Foi então que meu tio Martiniano que era
liberal e paranista, lembrou-
-se de falar a meus tios paternos que eram conservadores e felipis-tas, que uma vez
que não havia candidato à suplência, me apresentassem a mim. Meus tios
responderam, que se aquela sugestão tivesse aparecido mais cedo, eu teria sido com
certeza eleito e quase que por unanimidade; mas que na véspera à noite tinha-se
combinado que se votasse no Dr. Antônio Dias Ferraz da Luz, e que agora a
minha apresentação tinha se tornado impossível.
Assim, se não fosse aquela demora de algumas horas, eu teria sido o
deputado por aquele distrito; porque tendo o efetivo falecido logo em começo da
legislatura, coube de fato o lugar ao seu suplente.
Isto, entretanto, foi para mim talvez um bem; porque uma
das maiores dificuldades com que tenho sempre lutado em toda
minha vida; e que ãs vezes quase que me chega a fazer desesperar,
é a falta desse dom tão apreciável de bem exprimir o nosso pen
samento, que servindo muitas vezes de capa ou de estímulo para
a inópia do espírito, aliado ao estudo, é um verdadeiro ouro
sobre azul.
Ora, uma tal dificuldade é em mim de tal natureza, que posso com toda a
verdade dizer, que sendo quase que inteiramente incapaz de fazer de improviso um
simples brinde desses que qualquer criança ou caipira um pouco mais
desembaraçado faz por aí nos copos d'água ou de proferir qualquer discurso em que
principalmente se fala unicamente para falar, ainda mesmo naqueles casos em que se
trata de um discurso, cujo objeto é um assunto sério ou mais ou menos abundante,
eu nada poderia dizer com um tal ou qual método e sobretudo em frase que não
arranhe os ouvidos ou que não espante a retórica, senão depois de algum estudo e
muitas vezes depois de muito trabalho; de sorte que aquilo, que embora confusa e
muito baralhada, nunca me falta é a ideia; mas o que me mata é a forma. E se isto
ainda hoje é quase que assim; quanto mais, logo depois que sai da academia!
0 meu papel, portanto, se por acaso chegasse a ir à câmara naquela ocasião,
não poderia deixar de ser, pelo menos assim o acredito, senão inteiramente nulo, em
todo caso muito apagado. Ora, a minha opinião sobre esta matéria tem sido sempre
esta — ou bem César ou João Fernandes — ; e que, por consequências, se não se
pode aparecer de um modo bem saliente, muito melhor é que se procure esconder o
mais que se puder no seio da multidão. E assim, não sinto antes estimo de ter
perdido aquela tão fácil ocasião de ir-me, assim como tantos outros tão bons ou
piores do que eu, poltronear-me nas cadeiras da Cadeia Velha; sem ainda falar
no grande risco a que sem grande necessidade
ia-me expor de vez talvez da noite para o dia a minha tão morena pele se
converter em um pouco mais amarela do que já é, e ter, por consequência,
de ver estes meus tão mineiros ossos entregues, sem mais nem menos, à
terra do Catumbi.
Alguns meses depois da eleição geral teve de se proceder à de
deputados provinciais; e alguns dos meus parentes se embra-ram de me
apresentar como candidato a um dos dois lugares que ao distrito cabia
preencher. A minha eleição parecia estar seguríssima; porque sem ter
nenhuma indisposição contra mim, eu era ainda apoiado pelas principais
influências dos dois partidos. Mas foi isto justamente o que me parece ter
perdido; porque havendo dois outros candidatos; e vendo estes ou os seus
prote-tores, que um deles teria de ser forçosamente derrotado, na véspera da
eleição à noite chegaram a um acordo e se ligaram para se salvarem à minha
custa; e embora por muito poucos votos fui com efeito derrotado.
Sendo ainda muito moço e nunca tendo sido dos mais
desembaraçados; e por outro lado contando certíssimo com o meu triunfo
que para mim nunca havia sido objeto de dúvida; pode-se facilmente avaliar
da cara com que fiquei, quando estando a assistir à apuração, e, em vez
desse triunfo assim tão sem dúvida e que para mim nunca deixou de ser
favas contadas, comecei a ver, que ia cada vez mais descendo, até que
finalmente a mesa proclamou que o bocado não é para quem se talha,
porém, sim para quem o come.
Ora, para um hipocondríaco, como eu sou, parece que este fato
deveria ser para mim um desses espinhos mais ou menos agudo que nos
ficam na memória para nos picar durante o resto da vida. Deus, porém,
quando criou o homem e que o fez inconsequente, não só mostrou que era
um grande sábio; mas ainda que não é atoa, que se chama a fonte da
sabedoria; porque se há uma coisa que estica até arrebentar, é a lógica; e se
não fosse a inconsequência, cu acredito, que a humanidade acabaria afinal
por suicidar-se ou por morrer de tubérculos.
Porisso também, embora hipocondríaco como sou e olhando para o
mundo com óculos de um negro extremamente carregado, eu viva
constantemente, na frase consagrada, a descrer e a maldizer dos homens e
das coisas, eu sou ao mesmo tempo um dos maiores otimistas que o céu
cobre; pois que afinal de contas a minha filosofia vem a ser esta — que tudo
quanto Deus faz, é sempre para melhor —; e hoje reconheço que aquela
minha derrota foi para mim um bem.
Com isto, entretanto, não vá agora pensar o leitor que eu quero
dizer ou vou querer insinuar que cu não senti aquela
minha inesperada e tão assinalada derrota; porque além de que felizmente
não tenho por costume o mentir, ainda, graças a Deus, eu tenho um
pouquinho de bom senso, para não cometer inépcias; e se neste caso eu
quisesse pregar a minha mentirazinha; não haveria um só dos meus leitores
que acreditasse; pois que todos eles pelo que acima ficou dito já ficaram
muito bem sabendo que naquela ocasião eu tinha acabado de sair da acade-
mia; e se no primeiro ano o estudante não sonha senão com a presidência da
república, no 5.' essas pretensões já se acham tão minguadas, que uma
cadeira na assembleia provincial não é cousa a que de modo algum se torça
o nariz; pois quando mais não seja, é sempre um excelente degrau para se
subir mais alto.
Eu, pois, senti, que não tem dúvida, aquela minha derrota; mas o que
posso dizer com toda a franqueza ao leitor, é que se muito grande foi o meu
pesar, o que realmente me amofinou ou me queimou como um ferro em
brasa, não foi a perda da cadeira, mas o vexame porque passei e o quanto
senti o meu orgulho humilhado. Entretanto, foi justamente nisto que tanto
então me incomodou, que eu vim afinal a encontrar o bem de que acima
falei; porque sofrendo uma semelhante derrota com todas essas
circunstâncias que a acompanharam, Deus quis de alguma sorte me estanhar
a cara ou calejar-me a sensibilidade para poder sofrer impassível e até
sorrindo a série tão longa e tão constante de outras que teriam de vir depois;
pois é preciso que o leitor saiba que parece ter sido a minha sina a de ser eu
sempre um candidato sem ventura ou de ser constantemente derrotado em
campanhas eleitorais. E com efeito, apesar de haver gozado da felicidade de
ter sido sempre muito e muito geralmente estimado em todos os lugares em
que tenho residido; de ter em todos esses lugares achado muitos e dos mais
dedicados amigos no partido conservador; e de haver finalmente andado
constantemente metido em chapas; ou entretanto, sem falar em duas
eleições, em que, sem que eu procurasse e até mesmo sem que eu soubesse,
me fizeram deputado provincial, nunca cheguei jamais alcançar, não direi o
prazer que bem pouco deveria ser para mim, porém a honra de ser um
vereador, um juiz de paz, ou um simples eleitor eleito.
Fato este, que aqui consigno com o maior orgulho e como um
exemplo para os meus filhos; pois que na realidade, o que um tal fato
significa, é que soldado exclusivo da ideia, nunca houve poder ou maioria
que fosse capaz de me afastar daquilo que se me afigurava um dever ou ser
a verdade; e porisso passei sempre a minha vida política no seio da
minoria.
CAPÍTULO XXXIX
Em Queluz de Minas. A cidade de Queluz. Suas freguesias. Sua indústria.
Sua agricultura. Suas riquezas naturais. A Igreja de Matozinhos e as
estátuas do Aleijadinho. Usos e costumes do
lugar. Decadência.
Antigo Arraial dos Carijós, a atual cidade de Queluz foi elevada a
vila em 1791, pelo capitão general visconde de Barbacena. Composto de
campo e mato, a indústria do município em 1857 consistia: primeiro na
criação de animais, sobretudo muares, cujo preço era de 50$000 mais ou
menos na idade de um a dois anos; segundo, na cultura da cana em ponto
maior ou menor; e terceiro finalmente, na de mantimentos, para a qual a
mata era boa e os capões ainda melhores.
Queluz, era portanto, naquele tempo, como creio que ainda é hoje,
um dos melhores celeiros do Ouro Preto. Além dos tecidos de algodão para
o uso doméstico e que se encontravam por toda a parte, havia na freguesia
da vila uma fazenda ou um lugar chamado S. Gonçalo onde se faziam umas
colchas ou antes cobertores de lã, alguns dos quais tinham no centro as
armas imperiais, obra tão bonita e tão perfeita que apesar de ser o seu custo
de 50$000, não era fácil de obtê-los; visto que além de serem muito
procurados, sobretudo para presentes, na Corte e na provincia; até para a
Europa, segundo depois vim a saber, alguns foram, por intermédio de minha
sogra, para as nossas princesas que ali residiam ou para encomenda
destas.
Das freguesias do município só mencionarei três — a Itave-rava,
Catas Altas da Noruega e o Brumado de Suassui. A Itave-rava, como se
sabe, é um dos lugares mais célebres da nossa província, por ter sido o
primeiro em que se descobriu o ouro em Minas. A despeito, porém, desta
circunstância e de possuir o território da freguesia alguma riqueza, a
povoação além de pequena, era bastante feia, e nada oferecia de
notável.
Catas Altas era uma freguesia pobre; mas antigamente gozou de uma
certa notoriedade, por causa do muito ouro que ali se tirou. Ainda em
1857 havia algumas pessoas, que embora em
pequeno ponto, continuavam a explorar as suas antigas minas, que, por escassas ou
por difíceis, já desde muito haviam sido abandonadas. Diziam, porém, que uma das
mais ricas veias auríferas que ali se haviam descoberto, ainda lá se conserva à espera
de quem a quisesse ou pudesse explorar; porque tendo sido acompanhada até
próximo da igreja, não era possível prosseguir no trabalho sem que esta fosse
derribada; e diante do sentimento religioso estacou a cobiça desse tão apreciado
metal. A freguesia dr Brumado, que é hoje a vila de Entre Rios, era em quase todos
os sentidos a melhor do município. A povoação era grande, asseada e bonita; o povo
mais ou menos civilizado; e se não havia ali muito grandes fortunas, a riqueza estava
melhor repartida e o bem-estar parecia ser mais geral. De todas as freguesias do mu-
nicípio, era esta a que dava mais serviço à justiça e à que esta pelo seu lado, mais
também gostava de ir; pois era ali um costume ou antes uma espécie de ponto de
honra, o não deixar a justiça voltar para a vila sem que levasse consigo o importe de
todas as custas feitas e até às vezes das que estavam por fazer-se de sorte que
custasse o que custasse ou saísse donde saísse nunca deixava de aparecer o dinheiro
para esse fim. Além da freguesia da Ita-verava em que se descobriu o primeiro ouro
em Minas e a de Catas Altas em que este se mostrou muito mais abundante, ainda
havia em Queluz um lugar que se tornou notável pela grande quantidade que aí se
tirou desse metal. Este lugar chama-se Passagem e fica, a uma légua mais ou menos
de Congonhas. Um dia em que eu viajava pelos lados do Ouro Preto, atravessei um
rego que se dirigia para as bandas da Passagem; e eis aqui o que a seu respeito me
contaram. Possuindo alguma fortuna e sendo um homem extremamente
empreendedor, o dono ou o descobridor daquelas minas, que sabia muito bem
quanto eram ricas e que muito pouco ou quase nada podia fazer, por causa da água
que era escassa ou que não era suficientemente para ser útil, já não sabia de que
expediente pudesse lançar mão que o tirasse daquela tão grande contrariedade,
quando afinal julgou achar esse meio. E eis aqui qual foi. Como se sabe, na serra que
passa próximo de Queluz, há um lugar em que se encontra, a muito pequena
distância, águas que correm para o Piranga ou Rio Doce, para o Paroepeba ou S.
Francisco e finalmente para o Carandaí ou Rio Grande; e caminhando-se desse ponto
para os lados do Ouro Preto, vai-se tendo sempre à direita as águas do Rio Doce e à
esquerda as do S. Francisco. Vendo pois aquele homem que não achava na bacia do
Paraopeba a água de que tanto precisava, resolveu trazer para a bacia deste rio um
córrego que na vertente oposta descia para o Piranga; e embora tivesse para isso de
vencer não pequenas dificuldades e uma distância de algumas léguas,
empreendeu a
tirada do rego. Como, porém, as suas posses não davam para uma tão grande
empresa, contraiu entre os seus amigos e conhecidos um grande número de
dívidas; meteu-se na mata e nunca mais apareceu, para que, enquanto tirava
o rego que devia levar muito tempo, não fosse ele inquietado pelos seus
credores. Diante de um tal desaparecimento, os credores trataram de acioná-
lo à revelia; prepararam as suas execuções; e quando o misterioso fujão de
novo apareceu no campo, nas imediações de Ouro Branco e à frente do rego
que vinha agora trazendo, sem mais demora começaram a cair sobre ele as
citações para a penhora, e ele pelo seu lado e com a maior impassibilidade a
pedir vista para embargos; até que por notícia ou denúncia dos credores
sabendo o governador e capitão geral de tudo isto, mandou chamar o
homem; e perguntou-lhe se era exato que ele havia pedido vista para
embargos de todas aquelas execuções e se era possível que em tão grande
número de credores e. de dívidas não houvesse um só que não fosse um
velhaco ou uma só que não fosse filha da fraude. 0 homem respondeu, que
pelo contrário, todos os seus credores eram homens muito de bem, e que
tudo quanto exigiam ele realmente o devia; mas que em seis meses ele
esperava chegar com o rego à mina e que apenas isso acontecesse; não só
pagaria a todos os seus credores e com a maior usura; mas que ainda se
julgaria bastante rico para dar disso provas à Sua Majestade e ao seu
representante na colônia; e que, por isso, quando pediu a vista em todas
aquelas execuções foi unicamente para ganhar tempo e não ter o desprazer
de naufragar quando já estava quase que entrando no porto. À vista de uma
tal segurança, o governador prometeu-lhe que faria com que os credores
esperassem o tempo de que ele ainda precisava; mas que se as cousas não
saíssem como dizia, era com ele governador que teria de haver-se. E com
efeito, tudo se passou como o homem havia dito; pagou e com muita
generosidade a todos os seus credores; e a sua riqueza tornou-se tal, que
sendo uso naquele tempo pulverizarem as mulheres os seus cabelos com
uma espécie de pós brancos, as suas filhas (se não há em tudo isto no meu
espírito alguma confusão de fatos e pessoas) quando iam à igreja,
pulverizavam os seus com ouro era pó. Entretanto, se, como disse, não estou
talvez confundindo dois fatos distintos que se deram no mesmo lugar ou que
me contaram em ocasiões diversas, eu ainda alcancei netos ou bisnetos
desse homem que se achavam reduzidos não só a mais completa pobreza
mas quase que ao estado de verdadeiros mendigos.
Sendo o município de Queluz dividido com o de Ouro Preto por um
rio chamado Ventura Luiz ou Maranhão que corta em duas partes a
povoação de Congonhas do Campo, ficava pertencendo para Queluz a
margem esquerda ou a parte da povoação
onde se acha o santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos; santuário
este, que segundo é de todos bem sabido, foi sempre tão notável na
província e até mesmo fora dela; e isto por duas razões: primeiro pelo
colegio que ali por tantos anos se manteve e tanto prosperou; segundo peio
jubileu que ali tem sempre lugar em setembro de todos os anos e que dura
de 12 a 14 desse mês, se não me engano. 0 colégio se ainda existe, do que
não tenho bem certeza, não é em todo caso, mais do que uma simples
sombra do que foi o mesmo antigamente quando sendo dirigido pelos padres
lazaristas, vinham para ele estudantes de toda a parte, até mesmo da Corte.
Quanto ao jubileu, esse parece que ainda continua a ser o que sempre foi; e
o que posso dizer é que naquele tempo era tal a concorrência que para ele
havia, que não só não havia casas nem outras acomodações que bastassem
para os romeiros curiosos ou traficantes que para ele concorria; mas que as
esmolas que se faziam, e que sem falar no dinheiro e na cera que era o
principal compreendiam também animais e outros objetos, muitas vezes
atingiam a quantia de dez contos de réis e anos houve em que mostraram a
muito mais.
A igreja de Matozinhos é pequena e de uma aparência mesquinha
por fora; mas é rica e bonita por dentro. 0 que, porém, a torna muito
notável, é o seu adro, que além de bonito, é ainda cercado de um grande
número de estátuas de pedra, não sei se dos doze apóstolos ou se dos
profetas.
Estas estátuas pareciam perfeitas e a quase todos era o que ali mais
agradava e admirava. Entretanto, o que nem todos sabiam e o que muito
mais deveria admirar, é que todas eram a obra de um homem sem mãos e
que por isso, se chamava — o Aleijadinho. Eu já não me recordo bem no
que é que consistia o aleijão desse homem — se na falta completa ou se na
simples inutilização da mão nem se de uma só ou se de ambas as mãos; mas
aquilo que se me contou e que julgo me recordar com mais clareza, é que
para que pudesse trabalhar, tornava-se necessário que se lhe amarrasse a
ferramenta nos braços ou nas suas imperfeitas mãos. Nem esse adro de
Matozinhos foi a única obra que ele deixou; mas, segundo ouvi dizer, há no
Ouro Preto uma ou mais igrejas que são obras suas.
Como este, muitos outros homens existiram em Ouro Preto, cuja
memória deveria ser conservada; pois que, segundo ouvi dizer, a pessoa que
parecia não mentir, além de alguns outros fatos curiosos que ali se deram,
houve o de um homem que tentou voar, e que fez, não sei com que
resultado, alguma coisa neste sentido. Os filhos, porém, de Ouro Preto, são,
como todos os outros mineiros, bem pouco apreciadores do muito que
eles pos-
suem de bom; e vão assim deixando que cada vez mais se olvidem as nossa glórias.
Ao menos a memória do Aleijadinho algum deles bem poderia salvar do
esquecimento, consultando os monumentos e quando mais não fosse, aos muitos
macróbios que ainda por lá existem.
Parece-me que a cidade de Queluz nunca teve, como algumas outras
povoações da província, uma muito grande prosperidade. Quando, porém, ali
cheguei, era uma vila decadente e pobre e parecia constituir uma só família; pois que
no foro e em toda a parte era muito difícil achar uma pessoa mais ou menos limpa
que não fosse aparentada com quase todos os outros habitantes do lugar. Apesar da
riqueza que lhe faltava, era Queluz uma povoação que nada tinha de desagradável ou
de enfadonha; mas era pelo contrário, uma povoação alegre, onde as festas eram fre-
quentes, variadas, bonitas e todas elas muito baratas; porque todos concorriam para
elas com as suas pessoas ou com aquilo que podiam dar e muito pouco era o dinheiro
que realmente se gastava. E é assim, que fui ali ver algumas festas e brinquedos que
nunca eu havia antes visto. Eu, por exemplo, muitas vezes tinha ouvido falar em —
charola — e muitas vezes tinha empregado a palavra no sentido que geralmente a ela
se dá de alguma coisa que se faz e ar de pouco caso ou de brincadeira; entretanto,
que só foi em Queluz que cheguei a saber qual a verdadeira origem dessa palavra ou
o que é que que propriamente se chama charola; pois que ali é que fui ver uma pela
primeira vez. A charola é, pois, a condução de um pequeno andor em que vai um
Senhor dos Passos pequenino; c esta condução que tem lugar à noite e no escuro ou
com muito poucas luzes, faz-se cantando e correndo ou pelo menos em passo muito
apressado; de sorte que mais parece uma confusão ou um tumulto do que mesmo um
ato sério ou religioso.
Outro brinquedo que ali também vi; mas que não posso bem descrever; ou
porque não lhe prestei bastante atenção ou antes porque a minha memória daquele
tempo já não era a minha antiga memória de criança e de menino; chamava-se Luiz
ou Liz Teixeira. Sei apenas que era um homem carregado em uma padiola ou em
uma espécie de andor, com alguma algazarra e canto e que onde parava ou enquanto
caminhava parecia que ia serrando ou fingia que serrava alguma coisa. Se, como me
parece ter uma vaga lembrança, nessas paradas o homem do andor pregava o sermão
da cachaça, é muito de supor, que esse brinquedo nada mais fosse do que alguma
festa de Baco que o paganismo nos transmitiu.
Deixando, porém, de parte algumas outras novidades deste gênero
que ali encontrei, só falarei agora da serração da velha; embora como a
respeito do Liz Teixeira, a memória ainda aqui me falhe ou não me ajude.
De três coisas, entretanto, me recordo bem; e é: primeiro que a velha é a
quaresma que eles tratam de serrar; pois que esse brinquedo tem lugar
justamente no meio exato da quaresma; segundo que a velha faz um
testamento exatamente como o do Judas em que se trata de satirizar os
costumes ou antes algumas pessoas; e terceiro finalmente que este
brinquedo terminava por uma paródia mais ou menos perfeita de um enterro
ou antes de um ofício solene de defunto, pois que reunidos todos defronte
da minha casa no largo da Matriz, com estandartes, luzes, e muitos deles
vestidos de padres, aí se conservavam um tempo imenso a cantarem lições e
a praticarem algumas outras solenidades que são próprias daqueles
ofícios.
Se, porém, achei em Queluz este costume da serração da velha que
se fazia na quaresma e que não havia na Campanha; em compensação, não
encontrei ali e nem talvez mesmo em nenhuma das partes por onde tenho
andado, um costume que havia naquela cidade e que era o da
encomendação das almas.
E já que tratando da Campanha, esqueci-me ou não tive ocasião de
falar neste costume; e sendo o meu plano não ter plano nenhum, mas ir
apanhando tudo para nada perder do que me acode ao pensamento; vou
agora aproveitar a monção que se oferece, para reparar aquela falta; e direi,
por consequência, que assim como em todas as quartas e sextas-feiras da
quaresma havia na matriz da Campanha um ato religioso que se chamava
— orações mentais; assim também, nesses mesmos dias havia muito alta
noite nas ruas as encomendações das almas.
Estas encomendações, porém, eram de duas naturezas A primeira ou
a menos solene, era feita por alguns sujeitos, que munidos de uma ou mais
matracas, percorriam as ruas e que onde ou quando paravam; depois de
baterem a matraca para acordarem os moradores, cantavam em voz soturna
e triste umas certas palavras com as quais procuravam recomendar-lhes que
se lembrassem da morte e que rezassem pelas almas.
A segunda era feita com música; e esta segunda encomen-dação
tinha alguma coisa de solene e ao mesmo tempo de como-
vente; porque embora muito simples, a música de que serviam-se, era toda
cheia de uma tão doce e tão profunda melancolia que tinha um não sei que
de fantástico e tornava-se por isso mesmo, muito própria para abalar o
coração e para levantar o pensamento para as coisas dalém túmulo. Dos
costumes de Queluz, os únicos que estranhei, foram apenas dois. 0 primeiro
empregar-se a palavra — obrigação —• como sinônimo ou em lugar da
palavra família; e segundo, a pretexto de arearem os dentes, não tirarem a
maior parte das mulheres o fumo da boca que realmente mascavam; e o que
muito mais repugnante ainda se tornava, algumas havia que besuntavam
com ele os lábios por fora.
CAPÍTULO XL
Os homens mais importantes de Queluz: Barão de Suassuí; Coronel
Antônio Rodrigues Pereira, depois Barão de Pouso Alegre; e os dois
irmãos Baetas. Traços gerais do caráter e da vida desses homens. O
Conselheiro Lajaiete e seu irmão, Dr. Whasginton Rodrigues Pereira. A
família dos Baeta Neves. A doença dos dois irmãos e o Conde de
Prados.
Quando cheguei a Queluz os homens que ali representavam o
principal papel, eram os seguintes: — O Barão de Suassuí que se dizia e ao
princípio se assinava Barão de Sussuí, o coronel Antônio Rodrigues Pereira
que foi depois Barão de Pouso Alegre, e os dois irmãos Baetas.
O Barão de Suassuí parece que tinha algumas qualidades boas; pois
que tinha alguns amigos que lhe pareciam dedicados. Filho, porém, do
último capitão-mor do lugar e tendo-se tornado muito célebre debaixo do
nome de capitãozinho pelas suas extravagâncias e arbitrariedades, quando o
conheci, ainda não tinha inteiramente se esquecido de que era ou havia sido
o filho de um capitão-mor. Jogador e ambicioso, parece que não era muito
cavalheiro no jogo; e como o único emprego lucrativo do lugar era o de
coletor, este entendia ele que lhe devia pertencer e aos seus; de sorte que o
tendo exercido pessoalmente por não pouco tempo, depois o passou a um
sobrinho. Sendo coletor em 1834 e recebendo a nomeação de substituto do
juiz municipal daquele termo, ele, que embora extremamente ignorante,
tinha contudo bastante viveza para não se deixar prejudicar no que lhe dizia
respeito, soube que os empregos eram incompatíveis e oficiou ao presidente
declarando, que se a incompatibilidade, com efeito, existia, ele optava pela
coletoria; o que deu lugar a que se aumentasse com mais um fato a coleção
já então tão rica dos despachos estrambólicos do general Andreas; pois que
sendo este então o presidente de Minas, pôs naquele ofício o seguinte
despacho: "Informe a tesouraria que tal é o freguês que tão apegado se
mostra ao emprego".
O coronel Antônio Rodrigues era um velhinho magro e teso, e
tinha sempre a cabeça tão erguida, que incomodava ex-
tremamente a quem com ele falava. Era, entretanto, tão forte que apesar da
sua idade, saía da sua fazenda dos Macacos, que fica ao pé da estação de
Buarque de Macedo, e chegava no mesmo dia a Ouro Preto.
Homem inteligente como quase toda a família; e muito voltairiano, o
coronel Antônio Rodrigues era, por assim dizer, a vaidade personificada.
Para prová-lo, imensa e variadíssima seria a coleção dos fatos. Creio,
porém, que para isso bastarão dois únicos. Sendo fazendeiro e não tendo
nem podendo ter conhecimento de direito, tinha ele entretanto, por costume
dizer, que na qualidade de substituto do juiz municipal, nunca tinha pre-
cisado ou que poderia pelo menos sem o menor inconveniente dispensar
qualquer assessor.
Assim também, estando ele uma ocasião a presidir o conselho de
revista da Guarda Nacional, do qual fazia eu parte e o presidente da câmara,
não sei bem a que propósito veio a se falar no então Marquês de Caxias, e
quando um de nós insistia sobre uma opinião ou uma das melhores
qualidades daquele general, o coronel Antônio Rodrigues, com os acentos
da mais profunda convicção ou com o ar de quem dizia a mais conhecida de
todas as verdades, exclamou: "Não me falem em Caxias! Caxias não é nada.
Eu à frente de um exército valho muito mais do que ele". Este homem,
entretanto, que era além disso essencialmente egoísta, gozava no município
de grande consideração e onde aparecia, quase sempre dominava.
Moralidade: Quem mais grita é quem mais tem razão. Os filhos
muito pouco ou quase nada se parecem com o pai. O meu concunhado Dr.
Washington é, por assim dizer, a mais completa antítese do pai; porque de
um gênio alegre e muito sem cerimônia, é ele um dos homens mais chãos
que tenho conhecido. O conselheiro Lafaiete, esse se parece num pouco
mais com o pai; porque, debaixo das aparências de uma grande modéstia e
bonomia, ele é na realidade um grande poço de orgulho; o orgulho, porém,
quando é fundado, nunca foi vaidade.
Quanto aos Baetas, a gratidão exige que eu não seja tão lacónico; e
vou sobre eles estender-me um pouco mais.
No começo deste século ou pelos fins do século passado, veio para o
Brasil um português que trazia nas algibeiras algumas patacas; quatro ou
seis; já não me recordo o número. Chegado ao Rio de Janeiro, esse
português viu bananas; provou-as; e no fim de dois ou três dias tinha nelas
consumido a maior parte do seu capital.
Com o restinho que lhe ficou, comprou uns lenços e mais algumas pequenas
quinquilharias de muito pouco valor; fez de tudo uma pequena trouxa e subiu para
Minas. Pouco depois regressou à Corte e de novo voltou para Minas com uma
trouxa já muito maior; porque tudo quanto na primeira tinha levado, havia vendido
com um lucro imenso. As viagens foram assim se repetindo e no fim de algum
tempo já o português tinha um sofrível capital.
Naquele tempo em que as minas já pouco davam; em que ainda não se
ganhava para se enriquecer mas que era preciso trabalhar muito e gastar pouco para
se alcançar no fim de muito tempo uma boa fortuna; e em que finalmente não havia
tomado no Brasil o desenvolvimento que depois tomou, essa frutinha que é hoje tão
conhecida e que se chama cofea arábica; só existia um único meio de enriquecer
depressa c sobretudo de enriquecer muito. Esse meio era o contrabando de africanos
ou o negócio de negros novos. Este negócio era de duas espécies. A primeira era
daqueles que quase nada mais precisando do que ter um navio, iam à África; o
atulhavam do maior número de peças que podiam; e ainda dando de quebra ou para
as avarias metade da carregação, conseguiam com a outra metade apurar e embolsar
um lucro pronto e imenso. Bastava uma meia dúzia destas viagens, para em muito
pouco tempo pôr um homem a nadar em cobres. Era uma espécie de sorte grande
que ia se tirando sempre. Mas em compensação, este negócio tinha dois grandes
contras: era o mar que foi sempre traiçoeiro e o inglês que é sempre egoista; e às
veies quando as coisas pareciam mais seguras, lá se ia pela água abaixo ou para as
unhas dos ingleses a carregação mais o navio.
A segunda espécie era muito mais segura; porque em terra não se naufraga;
e não há quem prenda ou queira mal àqueles que nos fazem bem.
Se, porém, o negócio era seguro, era preciso, contudo, tantos centos de mil
réis quantos fossem os contos que se queriam ganhar. Foi isto o que fez o português;
e tão bem andou neste negócio que tendo se afazendado em Queluz, quando ali
faleceu, deixou uma fortuna que não era para se olhar sem que se lambessem os
beiços.
Nunca se tendo casado, logo que teve fortuna, começou aquele português a
mandar vir de Portugal os sobrinhos que por lá tinha em não pequeno número.
Quando um destes chegava, ia imediatamente para a enxada; e o prazer do tio
parecia ser o empregá-los nos serviços os mais pesados e muitas vezes mesmo os
mais sórdidos e grosseiros. Se algum deles tinha de ir a
Queluz ou ao Ouro Preto com a tropa, havia para todos fosse qual fosse o
seu tamanho ou a sua altura, um único e velho casacão que havia sido do tio
em outros tempos, e que, tanto tendo de grande e de grosso, quanto tinha de
forte, era, segundo muitas vezes eu ouvi dizer, uma coisa
verdadeiramente horrenda.
Por maiores que fossem os trabalhos e os sofrimentos dos sobrinhos,
era entretanto, aquele maldito casacão o que constituia paru eles o maior de
todos os seus martírios. Entretanto, por mais esquisito ou mesmo por mais
repugnante que tudo isto nos possa parecer, é preciso contudo acrescentar,
que não era por maldade ou por falta de amor que o tio assim procedia, mas
unicamente porque entendia que para que os sobrinhos pudessem chegar a
dar homens, tornava-se absolutamente indispensável que eles fizessem ou
aprendessem a fazer o que durante toda a sua vida ele mesmo nunca tinha
deixado de fazer; isto é, trabalhar muito e economizar muito mais ainda. E
tanto não é isto uma simples suposição porém a mais completa verdade, que
um deles que foi depois o Barão de Loredo, não tendo podido resistir a tanto
trabalho, a tanta impertinência e ao mesmo tempo àquele maldito casacão, e
tendo, por consequência, deixado o tio e logo depois se casado, este desde
que o viu casado e portando-se nem, sem mais demora mandou emprestar-
lhe por interposta pessoa a quantia naquele tempo avultadíssima de vinte
contos de réis; e tão bem guardado ficou sempre este segredo, que só depois
da morte do tio, é que o sobrinho veio a saber donde lhe tinha vindo o
benefício. Este português que era geralmente conhecido em Queluz pelo
nome de — O Baeta Velho — depois de ter no seu testamento aquinhoado
mais ou menos a todos os seus parentes, deixou a quase totalidade da sua
fortuna aos dois sobrinhos mais velhos e que mais tempo o haviam
suportado.
Destes dois sobrinhos, o mais velho que se casou e que naturalizou-
se brasileiro, era o Comendador Joaquim Lourenço Baeta Neves, e o outro
que português se conservou e sempre solteiro, chamava-se Daniel Lourenço
Baeta Neves. A maior paixão destes dois homens era que a família
aparecesse; e por isso, embora qualquer deles perfeitamente conhecesse
todo o valor que tem o dinheiro, e ninguém melhor do que eles, o soubesse
ganhar e guardar, nunca a bolsa de ambos deixava de estar larga, e muito
largamente aberta, para tudo quanto eram festas ou melhoramentos locais, e
bem assim para todas quantas subscrições apareciam quer nacionais ou
públicas ou quer mesmo simplesmente parculares. Daniel que era
estrangeiro e de uma vida muito frugal e extremamente modesta ou
retraída, nunca quis e nunca
procurou cousa alguma para si; mas ele era o irmão, ele era os
sobrinhos, e tudo ele queria para aquele e para estes.
Sendo, como disse, a paixão daqueles homens que a família
aparecesse, apenas os dois filhos mais velhos chegaram à idade de
poderem ir para S. Paulo, para lá logo os mandaram.
Estes dois filhos dos quais um foi depois Barão de Queluz e o outro
é o Dr. José Joaquim Baeta Neves, hoje Juiz de Direito em uma das
comarcas daquela província, ali estiveram, com efeito, algum tempo. No
fim de um ano, porém, ou pouco mais, a respeito de estudos estavam quase
como tinham ido; e haviam gasto, se bem me recordo, sete ou nove
contos de réis.
Ninguém faz ideia do desgoto que isto causou aos dois Baetas; não
pelo dinheiro que era para eles neste caso uma questão mais ou menos
secundária: mas porque aqueles que deviam honrar e ilustrar a família,
mostravam-se por esta forma inteiramente abaixo das suas esperanças e
muito mais ainda dos seus desejos. Os dois moços vieram, pois, para a casa;
o pai os pôs no eito com os escravos; e muitas vezes ainda os ia ali
feitorizar; até que o tio, julgando o castigo suficiente, intercedeu por eles, e
ficou resolvido, que ele mandaria ao José que era o seu afilhado, para
Pernambuco à sua custa, para ver se nesse lugar dava melhor contas de si; e
se forneceria à família o corte de um deputado, de um senador ou de um
ministro talvez. Daniel, portanto, marcou ao sobrinho u'a mesada bastante
avantajada, mas sem ordem de tirar nem sequer mais um vintém, e o
mandou para Pernambuco. Ou porque as ordens fossem assim tão restritas
ou porque a enxada lhe tivesse dado juízo, José Baeta começou a fazer o seu
curso sem nenhuma novidade; e cada notícia de uma nova aprovação era um
sino que repicava no coração dos dois irmãos. Tudo, pois corria às mil
maravilhas, quando já quase no fim do curso, José participou que ia casar-
se; e o repique desta vez se converteu em dobre de finados, sobretudo
quando José mandou contar que a sua noiva além do mais até sabia
filosofia. Filosofia dentro de casa! Filosofia na cozinha! exclamaram os dois
ao mesmo tempo; e quase que acreditaram que o mundo já começava a
virar de pernas para o ar.
Mas enfim, passado o primeiro assombro, começaram a pensar que o
diabo não era talvez tão feio como se o pinta; e como o rapaz formava-se, e
a noiva era de boa família ou filha de uma pessoa de importância em
Pernambuco, ambos se conformaram com a sorte; creio mesmo que a
mesada foi dobrada; e quando a nova parenta veio, lhe fizeram boa
casa.
Eu ainda não vi homens em que o espírito de família fosse tão
profundo ou tão energicamente acentuado, como eram aqueles antigos
Baetas; e sobretudo entre os dois irmãos Joaquim e Daniel a amizade era de
tal natureza que bem se os poderia comparar aos dois irmãos siameses. E
disto poderá servir talvez de prova o fato que vou contar. Embora de um
gênio mais ou menos alegre, o comendador Joaquim Baeta começou de
repente a entristecer e acabou por meter-se em um quarto sem querer ver
nem falar a ninguém. Daniel vai vê-lo; encontra-o neste estado; e quando
volta para casa ou muito poucos dias depois, cai no mesmo estado em que
se achava o irmão.
Naquele tempo residia em Barbacena donde era filho, o Dr. Camilo
Armond que foi depois conde de Prados. Um dos nossos melhores médicos,
mas rico e hipocondríaco, o Dr. Camilo tomou uma tal aversão à clínica,
que bastava que se lhe falasse em ver um doente, para que ele se tornasse
quase furioso. Entretanto, quanto mais esquivo se mostrava, tanto mais
admiráveis eram as curas que ele fazia. Não achando possibilidade de livrar-
se de uma amofinação que tanto o tormentava; o Dr. Camilo preferiu dos
males o menor e declarou, que todos os dias ou que, em certos dias a uma
hora certa, ele veria a todos os doentes que o procurassem os quaes vinham
muitas vezes de distâncias muito grandes. Por mais distraído ou mesmo
alegre que estivesse, apenas batia a hora fatal, o seu rosto imediatamente se
assombrava, ele parecia preste a ter algum grande incômodo; mas não
obstante ia para o seu posto, e ainda que sempre carrancudo e de mau
humor, durante a hora marcada examinava a todos que se apresentavam e
para todos receitava. Como nada recebia para si daquele seu trabalho, todos
que já sabiam do costume que estava estabelecido, à proporção que iam
saindo, depositavam sobre u'a mesa uma espórtula qualquer conforme as
suas posses ou a sua vontade. Todo este dinheiro era para a casa de
misericórdia de Barbacena pela qual o Dr. Camilo muito se interessava; e da
qual sendo o médico, quando ali entrava parecia se converter em um ser
inteiramente diferente; pois que tornando-se logo jovial e carinhoso para
com todos os doentes, procedia para com eles com um tal cuidado ou um tal
zelo, como se fosse um médico que dali tirasse a sua substância ou os mais
avultados rendimentos. Se, porém, fora da Misericórdia, o Dr. Camilo
arrenegava de tratar de doentes, ele entretanto, não deixava como outro
qualquer particular de visitar aos amigos ou conhecidos que por acaso
enfermavam.
Ora, estando os dois Baetas naquele estado, a família e um primo
que era médico, resolveram levá-los para Barbacena; não
só para se ver se melhoravam com a mudança de terra mas ao mesmo tempo ou
sobretudo na esperança de que pudessem ser vistos pelo Dr. Camilo. Felizmente
eram ambos conhecidos daquele estapafúrdio salvador dos outros; ele os foi visitar
na chácara em que residiam; e por uma dessas bizarrias que são tão próprias nos
homens desta natureza; o Dr. Camilo não só continuou a ir vê-los todos os dias ou
quase todos os dias; mas ainda com eles ficava a conversar horas inteiras.
Em pouco tempo os dois irmãos começaram pari passu a melhorar e
quando um sarou o outro estava igualmente são.
De todos os seus parentes, aquele a quem ambos mais estimavam, era um
primo que se chamava Joaquim Afonso e que algum tempo depois foi genro do
comendador.
Sendo muladeiro, Joaquim Afonso passava pela Campanha para ir a
Sorocaba e ali se achando quando me dispunha a partir para Queluz, não sei quem se
lembrou de pedir-lhe uma carta de recomendação para mim. Quando cheguei a
Queluz apresentei a carta aos primos; e desde logo fui tratado por ambos com a mais
completa cordialidade; cordialidade esta que bem depresa se converteu em estima e
amizade, e durante todo o tempo em que ali estive, nuca deixou de se conservar tal
qual, ainda mesmo a despeito de algumas desagradabilíssimas circunstâncias, que
outra fosse o caráter meu e dele, bem poderiam ter quebrado a primitiva simpatia e a
consequente amizade. Logo que cheguei, pedi ao Daniel que me arranjasse uma
casa; ele disse-me que a casa já estava arranjada; e não só no dia seguinte para ela
me mudava; porém ainda pouco tempo depois ele a mandava envidraçar e oleá-la
toda. Quando quis saber do preço do aluguel para pagá-lo; disse-me que não tinha
casas para alugar; e quando insisti a sua resposta foi esta — que ele não me havia
dado a casa; mas sim ao seu primo Joaquim Afonso que me havia recomendado.
Lembreu-me então de procurar outra e de mudar-me; mas vendo as grandes
despesas que ele havia feito, e que a minha saída poderia ofendê-lo; refletindo,
ainda, que as nossas relações de amizade já estavam travadas e que não seria o
aluguel da casa que poderia aumentar a minha suspeição, se acaso houvesse; e tendo
finalmente e sobretudo, bastante consciência do meu caráter; não insisti e nem
mudei-me; e nessa casa me conservei durante todo o tempo em que ali residi.
CAPÍTULO XLI
Ainda em Queluz. A casa do autor. Reminiscências da revolução
de 1842. O tenente coronel José Antônio Rezende. A sua bravura,
o seu caráter e as suas esquisitices. Outro homem esquisito: o
tenente Francisco Balbino de Noronha Almeida
A casa em que morei em Queluz é a que fica defronte da matriz e que ocupa
toda a frente do largo entre a rua Direita e a outra que passa pelo lado oposto. Quase
toda de pedra, a madeira que nela se empregou é tão grossa e de tal qualidade, que
faz gosto vê-la c que ao mesmo tempo admira. Entretanto, esta casa foi comprada
algum tempo depois da revolução pela insigni-ficante quantia de dois ou três contos
de réis.
Quando nela morei, ainda se viam em diversos lugares os sinais das balas
que a haviam ferido no combate de 26 de julho de 1842; combate este de que a
suma é a seguinte:
Tendo na véspera à noite sido a vila flanqueada pelas forças do capitão
Marciano Pereira Brandão, que se emboscaram nas estradas de Congonhas, Suassui
e Ouro Preto, no dia 26 foi atacada do lado do Lavapés pela coluna do Coronel
Antônio Nunes Galvão e do lado das Bananeiras pela do Coronel Francisco José de
Alvarenga. O exército da legalidade que defendia Queluz, tinha estado ao mando do
comandante das armas José Manuel Carlos de Gusmão; tendo, porém, este, poucos
dias antes, se retirado para Ouro Preto, no dia do combate era o exército comandado
pelo brigadeiro Manuel Alves de Toledo Ribas.
Como em quase todos os combates a que assistiu o presidente rebelde, neste
combate de Queluz o papel proeminente ou o mais brilhante ainda veio a caber ao
bravo e infatigável Coronel Galvão. Galvão, entretanto, já era velho e de mais a mais
um velho achacoso, Tão adoentado se achava no combate de Santa Luzia, que
mesmo no momento mais crítico daquela ação, foi atacado de uma forte síncope que
o impedia de continuar a combater; mas tal era a sua força de ânimo e de vontade,
que apesar do estado enfermo em que se achava, desde que asi tornou e que pôde dar
ordens, desde logo as deu e tão sábias e acertadas, mais como um
exército que voluntariamente se retira do que mesmo como um exército vencido.
Tendo logo depois daquele combate deposto as armas em Matozinhos, ele ali
mesmo se ocultou e muito pouco depois ali mesmo faleceu.
Os rebeldes, porém, tinham feito grande medo ao governo; e se, como se diz,
o medo é mau conselheiro; eu não duvido acrescentar que o medo foi sempre muito
pouco cavalheiro. E disto foi uma das provas, naquela ocasião, o modo como foram
tratados os prisioneiros de Santa Luzia pois que embora constituíssem eles o que
havia de melhor na província e embora tivessem voluntariamente se entregado, além
de outras picardias que sofreram nem sequer lhes dispensaram os ferros na sua
condução para a capital. Grande foi, portanto, o terror que de todos se apoderou logo
depois da vitória; e tão grande foi esse terror; que dar asilo a um rebelde pareceu ser
um crime igual ao da própria rebelião. A pessoa, pois, que havia asilado a Galvão em
Matozinhos parece que receiou de ser acusada de haver cometido esse tão grande
crime, e o que é certo, é que por esse ou que por outro qualquer motivo, não só foi
Galvão enterrado sem acompanhamento e sem honras; mas embrulhado ou cosido
apenas em um simples lençol, como era o costume de enterrarem-se os escravos; mas
até mesmo no próprio assento de óbitos, o seu nome ali foi dado como o de um
escravo da fazenda, em que ele havia falecido.
E eis aqui está qual foi o triste e lastimoso fim do mais valente cabo de
guerra da revolução mineira; ou como miseranda vítima de uma tão generosa causa
escondeu-se seu nome debaixo da terra e morreu como escravo, aquele que tanto
havia combatido pela liberdade, e que muito mais do que tantos outros era digno de
uma estátua porque prudente e bravo, modesto e firme, Galvão possuía ainda um
grande coração e uma alma verdadeiramente heróica. E eis aqui um exemplo apenas
para que se possa conhecer o homem. Atacada a vila de Queluz por todos os lados, o
exército da legalidade começou a recuar por toda a parte, até que por fim se
concentrando no largo da Matriz fez desta uma espécie de fortaleza, donde com a
artilharia de que dispunham, os legalistas varriam as ruas que iam ter ao largo.
Na rua Direita e quase que defronte da casa em que morei, havia um sobrado
donde se avistava o adro e grande parte do largo: um filho de Galvão, o alferes
Fortunato Nunes Galvão, penetrando naquela casa, trata imediatamente de fazer dela
um ponto de apoio para atacar o inimigo, e apoderando-se ele mesmo de uma
espingarda, e convertendo-se em atirador, logo que
havia carregado a espingarda dentro da sala, vinha para uma janela da
sacada que tinha a casa, e protegendo-se com o portal da mesma janela fazia
com segurança a pontaria e atirava para a igreja. Tão incômodo para os
legalistas tornou-se logo aquele tão terrível atirador, que resolveram,
custasse o que custasse, pô-lo fora de combate. Um soldado, portanto,
saindo da igreja pelos fundos do adro, passa-se para o lado oposto ao da rua
Direita; e cosendo-se com as casas e ocultando-se de todos os modos que
pôde até chegar junto da casa em que depois vim a morar, aqui de novo
atravessa o largo e sempre escondido pela casa, vai coloear-se na esquina
que esta formava com a rua Direita. Ali colocado, o soldado fez exatamente
o mesmo jogo que eslava o moço fazendo; e enquanto este amparando-se
com o portal da janela apontava para a igreja, o soldado amparado pela
esquina da casa apontava para ele; e disparando o tiro, o feriu, porém, em
cheio.
Como a distância era muito pequena e pouco mais teria de dez
braças, se é que realmente as tinha, o jovem Galvão caiu mortalmente
ferido. Avisado que lhe morre o filho, corre o velho pai a vê-lo; e mal
tem tempo para lhe cerrar os olhos.
Terrível foi o golpe e o coração lhe estala. Mas como se tivesse pejo
da sua própria dor, ele como o carvalho que se de-senraíza e não se verga,
não chora o filho nem a si mesmo se lamenta; e dizendo apenas — é um
que perco, mas três ainda me ficam para darem a vida pela liberdade da
nossa pátria — silencioso se retira; e vai de novo combater.
Este combate de Queluz é um daqueles muito poucos em que a
verdade aparece em toda a sua nudez; porque havendo a seu respeito nada
menos de três partes oficiais, nos pontos capitais são todas perfeitamente
concordes.
Se, porém, todas são concordes nos pontos capitais e sobretudo na
completa derrota que ali sofreu o exército da legalidade; nenhuma delas,
entretanto, se ocupa dos pequenos incidentes, nem nos dá a menor notícia
de um grande número de episódios mais ou menos interessantes que se
deram naquele combate e que a tradição conserva. Em parte ao menos, eu
poderia sanar essa lacuna; isso, porém, me levaria muito longe. Eu pois,
deixando de parte tudo quanto sei, me contentarei apenas com o citar aqui
dois fatos, dos quais o primeiro pode servir de argumento para aqueles que
acreditam na fatalidade do nosso destino e o outro é uma das melhores
provas de quanto é capaz o medo ou um terror pânico.
Em uma casa que havia e que não sei se ainda existe quase que defronte da
cadeia, porém um pouco mais para o lado da igreja do Carmo, morava em 1842 uma
pobre mulher. Quando começou o ataque da vila, foi tal o susto que dela se
apoderou, que não contente de fechar todas as portas e janelas, ainda procurou um
dos quartos que mais recônditos ficavam no interior da casa, e ali foi se esconder
metendo-se debaixo da cama. No dia seguinte quando se abriu a casa e que se
procurou a sua habitadora, esta ainda se achava debaixo da cama; mas estava morta
e banhada no seu sangue. Como se de propósito a procurasse, uma bala de peça ou
de espingarda atravessando uma ou talvez mesmo muitas paredes a tinha ido ali
alcançar; e ela desta sorte achou a morte no lugar justamente em que mais segura
supôs guardar a vida. Quanto ao outro fato que se passou com o Tenente Coronel
Luiz Gonzaga de Melo e que foi o próprio que mo contou, foi o seguinte:
Acossado por todos os lados, o exército da legalidade tinha todos, como já
disse, se concentrado no largo da Matriz e ali se achava quando chegou a noite.
Completamente desmoralizado para que pudesse ainda resistir e estando privado de
mantimentos e absolutamente sem água da qual se achava cortado, os rebeldes
contavam, que apenas amanhecesse, o inimigo se renderia à dis-creção.
E como supunham que este se achava completamente cercado no largo,
descuidaram-se de segurar as saídas da povoação. Próximo, porém, ao fundo do
adro, havia um beco muito estreito, escuro e íngreme, que descia para uma rua que
levava à estradas de Suassuí; e apenas escureceu, a não serem os feridos e aqueles
que preferiram se render e que no dia seguinte foram aprisionados em número de
200, todos os mais enfiaram por aquele beco e procuraram a estrada de Suassuí;
onde apenas existia um piquete de quatro ou seis pessoas que ali estavam
unicamente para vigiarem quem entrava ou quem saía.
Os legalistas tinham alcançado o seu intenso e já davam graças a Deus de os
haver salvo de um perigo que parecia sem remédio, quando o piquete pelo seu lado
ao ver aquele borbotão de gente com o qual de todo não contava, antes de salvar-se,
lem-bra-se de aproveitar ao menos os tiros que já estavam prontos e disparou as
espingardas contra os primeiros que chegavam. Ouvindo aqueles tiros, os fugitivos
acreditam que a estrada estava guardada com forças pelos rebeldes; e seguiu-se
então uma das cenas mais indiscritíveis de terror, confusão e desespero; porque
além de tudo, entre aqueles fugitivos havia também algumas mulheres.
Fazia parte desta multidão assim posta em tão terrível debandada, aquele
Tenente Coronel Gonzaga, que julgando estar a estrada tomada, ficou algum tempo
sem saber o que fizesse; até que sendo um perfeito conhecedor de todas aquelas
localidades, lembrou-se de meter-se no mato e procurar a fazenda da Pedra que fica
nas imediações das Taipas e que, pertencendo a parentes seus, poderia lhe servir de
refúgio.
Ele, portanto, sem mais demora, meteu-se no mato; e disse--me, que durante
toda a noite caminhou sempre e sem parar um só momento em direção às Taipas.
Quando começou a aparecer esse clarear tão duvidoso que precede a aurora, lhe
pareceu lobrigar um campo e esse campo lhe pareceu ser exatamente o pasto da
Pedra; e sem mais demora para este se dirigiu.
Quando, porém, entra no pasto, e que ali dá os seus primeiros passos, vê
diante de si um soldado que lhe apontava uma espingarda ao peito. A surpresa e o
susto que este fato lhe causou, foi tal, que lhe faltando a voz para gritar ou ânimo
para correr, estacou no mesmo lugar, e imóvel ali ficou até que afinal reconheceu
que o soldado era um toco e a espingarda um galho seco que ainda o toco
conservava.
É desnecessário dizer, qual não foi o alívio que sentiu a sua alma já tão
atribulada, quando ele se viu livre daquele perigo embora cômico, tão terrível para
ele. Esse alívio porém, bem pouco durou ou não passou de um simples alívio
puramente momentâneo; porque livre daquele perigo e pondo-se, sem mais demora,
a correr para a casa que ficava em baixo e que ia se tornar para ele a salvação, de
repente reconhece, que em vez da fazenda da Pedra que fica a cinco ou seis léguas
distante de Queluz, ele estava descendo, pelo contrário para a chácara das
Bananeiras, que apenas dista um quilómetro ou pouco mais daquele lugar; e embora
morto de fome, de sede, de sono e de cansaço, teve de novo de meter-se no mato e
de ir já não sei onde nem como procurar outro refúgio.
E já que acabo de falar deste combate de Queluz e da revolução de Minas,
quero aqui fazer menção de um dos muitos parentes meus, que fui encontrar no
município de Queluz; e que além de ter sido um daqueles com quem tive mais
frequentes relações e de ser dotado de um caráter bastante original, ainda alcançou
naquela revolução uma notoriedade mais ou menos extensa. Este meu parente era o
Tenente Coronel José Antônio de Rezende que era casado com uma parenta creio
que neta) do Ti-radentes, e que tornou-se muito conhecido na revolução debaixo do
nome de capitão dos óculos, porque, contra o costume da provín-
cia, andava sempre de óculos, e em todos os combates em que entrou nunca deixou
de mostrar uma bravura extraordinária. Baleado em uma coxa no ataque de Sabará,
não pode o Capitão Rezende entrar em fogo ou antes, pôr-se à frente da sua
companhia no combate de Santa Luzia; mas não lhe sofrendo o ânimo de ficar
inerte, assentou, já que não podia comandar a sua gente, de se tornar ainda que um
pouco de longe, um franco atirador. Tomando, portanto, uma reúna e um grande
número de cartuchos, foi colocar-se em uma posição donde pudesse atirar sobre as
forças do governo; e segundo dizia ele, quantos tiros deu, foram outros tantos
carapuças que lançou por terra. Carapuças era sempre o nome que ele dava aos
soldados de linha, que, naquele tempo, em vez de bonés ou barretinas usavam de
uma espécie de capacetes ou de mitras, que não deixavam de ter uma tal ou qual
semelhança com as nossas antigas carapuças. Baleado como estava, foi um dos
primeiros aprisionados; e dizia ele que foi nessa ocasião muito e muito insultado
pelos carapuças; mas acrescentava que nem sequer ouvia o que eles diziam; porque
naquela ocasião toda a sua atenção e todo o seu cuidado apenas concentrados no
chapéu do Chile que levava e em cujo forro estavam duzentos ou trezentos mil réis
que era tudo quanto então possuía e que tanta falta lhe poderiam então fazer; e por
isso, enquanto o descompunham, o que ele fazia, era segurar com as duas mãos o
chapéu contra o peito, para que não lho tirassem nem lhe pudessem ver o fundo.
Nem era este meu parente excelente atirador, unicamente como soldado ou
de espingarda; mais o que muito mais admira pela dificuldade e muito mais talvez
ainda pela singularidade, era também um insigne atirador de bodoque; de sorte que
achan-do-se em sua casa um francês, e estando um cabrito bastante longe a roer uma
planta; sem mais demora, ele toma o bodoque; faz a pontaria; e tão certeira foi esta;
que a pelota foi dar no focinho do cabrito; o que produziu no francês um tal
entusiasmo ou uma tão grande admiração; que este não sossegou, enquanto o meu
parente não lhe deu ou não lhe vendeu o bodoque para levá-lo para a França.
Depois de velho, a sua maior distração era a de fazer palitos; e quando ia
visitar-me, já eu sabia que tinha sortimento para muito tempo. Assim como em toda
a parte, em Queluz todos os rebeldes foram despronunciados; mas aqui como cm
outros lugares, se exigia como condição da despronúncia que os rebeldes assinassem
um termo em que declaravam que haviam sido iludidos e que não havia quem mais
do que eles, amasse as leis e o imperador, etc.
O advogado, portanto, daquele meu parente e que era o Dr. Pinto de
Vasconcelos, foi com ele entender-se para que fizesse ou assinasse a tal declaração;
acrescentando, que sem ela nada se poderia conseguir. A resposta, porém, que lhe
deu como que ofendido ou se julgasse insultado, foi — que nunca na sua vida havia
mentido e que não havia agora de mentir para negar aquilo que o honrava, que havia
feito de muito sua livre vontade e que estava pronto a repetir, se pudesse ou fosse
necessário. E em conclusão lhe disse que se o pudesse livrar sem a declaração, que o
livrasse; mas que se isso não fosse possível, ficaria na cadeia, certo de que não
morreria de fome e que para distrair-se havia nas nossas matas muita salsa e cinco
folhas para prazer palitos. E com efeito, não assinou a declaração; mas não obstante,
foi despro-nunciado; porque o juiz municipal que era o Dr. José Inácio Nogueira
Penido, além de ser naturalmente muito benévolo e moderado, era ainda parente dos
Baetas que faziam timbre em favorecer a todos os rebeldes.
De quanto acabo de dizer vê-se logo que aquele capitão Rezende era o que
hoje se costuma de chamar um tipo ou como antigamente se dizia um grande
esquisito. Pois em Queluz havia outro que não lhe ficava muito atrás. Era o Tenente
Francisco Balbino de Noronha Almeida. Homem de uma natureza pouco comum ou
mais ou menos excêntrico no seu vestuário, nos seus modos, e até mesmo talvez nas
suas ideias, o Balbino desde que não tinha obrigação que rigorosamente o prendesse,
quase que não fazia outra coisa senão passear na frente da própria casa. E este
passeio, ele nunca o praticava em silêncio, porém sim cantando ou antes
cantarolando com uma voz que talvez pretendesse que fosse baixo, mas que não era
baixo nem falsete e que seria um pouco difícil de classificar. Balbino, porém, não
era como alguns da sua espécie que só tocam em uma corda ou cantam uma só ária.
O seu repertório, pelo contrário, era variadíssimo e ia desde a mais terna das
modas até o mais solene cantochão.
Entretanto, este homem que tanto gostava de cantar, era, (e digo, era, porque
não sei se mudou com a idade) um dos homens mais rancorosos que tenho
conhecido. Se, porém, ele tinha um coração que não esquecia nem perdoava o mal
que se lhe fazia, esse coração, entretanto, ele o tinha sempre aberto para todos que
nele quisessem entrar. Assim, logo que chegava a Queluz uma pessoa mais ou
menos limpa ou uma família estranha, o maior gosto que essa pessoa ou que essa
família podia dar ao Balbino, era o de procurar a sua casa; e logo que ali se ia,
achava-se em todos um acolhimento sempre tão franco e sempre tão inteiro, que
ninguém deixava de voltar.
Eu lá fui como tantos outros; e mais do que os outros lá fiquei;
porque quanto mais o tempo passava mais a casa ficava sendo minha e
muito mais do que um estranho ia ficando membro da família. 0 Balbino,
porém, possuía uma esquisitisse que era a meus olhos a maior de todas.
Como se sabe, uma das regras que, pode-se dizer, quase que não tem
exceção, vem a ser a seguinte — toda a pessoa que é fácil em receber aos
outros ou que parece ter, como se diz, um coração de estalagem; se não é
falsa; o que forma com toda a certeza o fundo do seu caráter, é o mais
completo francesismo. Pois aquele homem, que tão bem sabia odiar, igual-
mente sabia amar; e entre alguns amigos que tenho tido e que tão dedicados
me tem sido, não é com certeza o Balbino, quem ocupa o último lugar. Dele
tive muitas provas; mas para conhecê-lo bastará esta.
Balbino era um homem pobre; tinha uma numerosa família; e para
mantê-la dispunha apenas dos seus minguados vencimentos de partidor e
contador. Pois bem; quando deixei Queluz, e que partia sem bem saber para
onde, nem se jamais lá voltaria, na hora em que abraçava pela última vez
aquela gente que tanto me havia amado, aquele esquisitão com as lágrimas
nos olhos, dá-me um embrulho e me diz: O senhor vai para um lugar, que
não conhece: peço-lhe que leve isto; talvez lhe possa servir. E aquele
embrulho que ele me dava e que encerrava duzentos e tantos mil réis em
moedas de ouro e de prata era o resultado das economias de toda a sua vida.
Debalde recusei; fui obrigado a aceitar. Ano e meio depois voltei a Queluz;
e levando o embrulho tal qual o havia trazido; disse ao Balbino: Já ganhei
muitos contos de réis: possuo uma chácara. Guarde, pois, o seu embrulho
que nas suas mãos ficará melhor guardado. Quanto à minha gratidão, essa
eu mesmo a guardarei.
CAPITULO XLII
Juiz Municipal e de órfãos do termo de Queluz. O Barão de Camargos. O
autor acumula os cargos de Juiz e Delegado de Polícia. Sua atuação nos
dois cargos. Por que não foi reconduzido. Um ato de injustiça que foi um
benefício. A vida ingrata do magistrado. Casos comprobatórios. O Padre.
Ribeiro. Advogado e chicaneiro. Uma herança complicada e
perversão
do senso moral
Tendo sido nomeado juiz municipal e de órfãos de termo de Queluz
por decreto de 30 de outubro de 1856, parti da Campanha a 26 de junho de
1857 e a 4 de julho cheguei à sede do meu município. No dia seguinte
escrevi ao Comendador Manuel Teixeira de Sousa, depois senador do
império e Barão de Camargo, enviando-lhe uma procuração minha para que
em meu nome tomasse posse do emprego. Até então ou até; ser escolhido
senador, o Comendador Manuel Teixeira havia se tornado notável em toda a
província pela prontidão e pela mais completa boa vontade com que a todos
servia. Estando, pois, na sua fazenda, apenas recebeu a minha carta, veio
sem a menor demora à capital; tomou a posse no dia 3; e eu a 9 entrei em
exercício. Nomeado muito pouco tempo depois delegado de polícia,
acumulei desde logo os dois empregos. Como havia muitos anos que o
termo tinha estado sem um juiz formado, e a estada do meu predecessor
naquele lugar tinha sido de muito pouca duração; o resultado deste fato foi,
que a justiça havia perdido quase toda a sua atividade, a sua imparcialidade
e sobretudo a sua severidade; e desde então seguiu-se o que não poderia
deixar de seguir-se; isto é, que ao passo que para todos a lei ia cada vez
mais se convertendo em um espantalho sem força ou em simples letra mor
ta, iam ao mesmo tempo os criminosos ou os desordeiros cada vez mais
infestando quase todo o município, mas sobretudo a dois dos seus distritos
fronteiros — o da Capela Nova das Dores e o de S. Catetano do Paraopeba.
Logo que tomei conta dos meus empregos, um sujeito deste último distrito
veio-se-me queixar de alguns criminosos que ali existiam e pedir-me que o
protegesse contra a morte com que estes o ameaçavam. Procurei então tirar
a esse respeito algumas informações; e quando verifiquei que a
qeixa não era inteiramente infundada, assentei de ir em pessoa fazer as
prisões; e tendo reunido todos os oficiais de justiça e mandado intimar
alguns policiais; e além destes auxiliares, tendo também se agregado à
escolta algumas pessoas da vila, que voluntariamente se ofereceram para
acompanhar-me; à tardinha parti de Queluz sem que ninguém soubesse qual
era o nosso destino, senão o único escrivão que havia sido encarregado de
lavrar os mandados. Tendo durante a noite caminhado às 5 léguas mais ou
menos que da vila distava o lugar da diligência, cercamos às casas em que
estavam aqueles que íamos prender e que eram todas mais ou menos juntas.
Quando, porém, já nos dispúnhamos a esperar que o dia
amanhecesse para se dar execução aos mandados, começaram de dentro das
casas os tiros contra a escolta; e o resultado foi que um dos oficiais ficou,
senão me engano, levemente ferido, e que um tiro passou tão próximo da
cabeça do outro, que lhe chamuscou os cabelos. A diligência efetuou-se não
obstante, e um dos presos teve de vir em carro para Queluz por ter sido
baleado em uma das coxas.
Ora, como creio já ter dito, eu sempre fui tão prudente ou tão
pacífico, que nem mesmo em menino me lembro de ter seriamente brigado;
e como de todo não contava com aquela resistência; pode-se facilmente
avaliar qual não seria a minha surpresa e o estado do meu coração. Assim
como, porém, Henrique IV no cerco de Cahors tremia a todo tremor, mas
lembrou-se que um futuro rei de França não tinha licença de ter medo, e
atirou-se ao assalto como um bravo; assim também entendi que um
delegado de polícia tinha obrigação de ser corajoso; e fazendo das tripas
coração, consegui manter uma tal calma; que se o coração pulsava ou estava
pequenino, ninguém houve, que o percebesse; e desde então ficou público e
evidentemente reconhecido que o juiz municipal de Queluz não tinha
medo.
Ninguém faz ideia da força moral que me adveio de uma semelhante
diligência. Nem para mostrá-lo eu preciso mais do que dizer; que não só
desde logo a maior parte dos criminosos e desordeiros começaram a retirar-
se do município e que até em alguns lugares o meu nome começou a servir
de tutu ou espantalho para as crianças; mas que tendo por esse tempo ou
pouco tempo depois se tornado mais ou menos agitado ou um pouco
melindroso o estado do município de Pitangui; o presidente da província,
que era então o Conselheiro Carlos Carneiro de Campos depois Visconde
de Caravelas, escreveu-me em princípios do ano seguinte propondo-me a
minha remoção para aquele município, afim de
ser nomeado ao mesmo tempo delegado de polícia mediante uma gratificação que
me parece era de 400$000 ou talvez mais. Eu, porém, não aceitei a proposta.
Entretanto, se tudo isto é certo, e se reconheço que aquela diligência muito
concorreu para o Bom êxito da minha administração em Queluz; contudo quando
hoje reflito sobre aquele meu ato com a calma dos anos e da experiência, fico
convencido de que aquela diligência não deixou de ser um grande excesso de zelo
ou um ato mais ou menos quixotesco, e se tivesse de começar de novo a minha vida,
não praticaria com toda certeza um semelhante ato.
Quando cheguei a Queluz, muito pouco ou quase nada sabia de prática; e
quanto ao direito, eu nada mais sabia do que essas noções gerais muito vagas e
muito incompletas com que sai da academia a maior parte dos recém-formados.
Felizmente não havia em Queluz quem tivesse bastante habilitações para conhecer a
minha inópia; pois que esta era tal, que senti-me extremamente embaraçado quando
tive de ali dar a minha primeira audiência. Procedendo, porém, com certo ar de
quem tinha consciência de si, fui despachando o que me parecia fácil; sobre outros
pontos indagava antes de despachar qual era o estilo que se achava adotado naquele
foro; e quando via que o negócio era mais ou menos complicado, despachava que
viesse nos autos. Por felicidade, nos autos que me tinham ido em conclusão,
encontrei algumas faltas ou negligências que os escrivães haviam cometido; não
deixei passar camarão por malha; adverti, censurei ou ameacei, conforme o caso; li
os despachos na audiência; e quando esta acabou, o juiz eslava julgado: dava-se
a respeito e fazia medo.
Desde então pus-me a estudar a prática nos livros e ao mesmo tempo nos
autos; não dava despacho algum sem que primeiro estudasse bem a questão; e como
em terra de cegos quem tem olho é rei; e a minha retidão foi coisa que logo todos
perceberam e que nunca se pôs em dúvida; o que aconteceu foi, que em pouco
tempo tal era o acatamento que mereciam os meus despachos; que a não ser em duas
ou três coisas em que estavam em jogo grandes interesses e onde a chicana
disputava meças à má fé, eu não me recordo de que se tivesse agravado de um só
dos meus despachos nem talvez mesmo apelado.
Se, porém, à exceção dessas duas ou três causas que me deram que fazer e
alguns desgostos, muito suave foi para mim a vara civil; até mesmo porque o
principal trabalho do juiz eram os inventários e partilhas, e quando voltava daqueles
já trazia o esboço destas organizado de acordo entre todos os interessados e
mandando chamar um dos partidores, era eu mesmo por assim dizer quem as
fazia; outro tanto não posso dizer pelo que se
refere ao crime; porque segundo já disse, a falta de um juiz formado tendo tirado à
lei quase toda a sua eficácia, foi tal o número de processos e de prisões que tive de
fazer de gente boa; que em relação ao lugar e ao tempo, talvez não haja nem um juiz
que tenha feito o que fiz.
Entretanto, para que não se pensasse que havia da minha parte outro
qualquer móvel que não fosse o amor do dever e da justiça, eu não só nunca
empregava na perseguição do crime rigores desnecessários; mas procurava, pelo
contrário, suavizar quanto podia a própria ação dessa mesma justiça. E para dar uma
ideia do meu modo de proceder a este respeito, eis aqui um exemplo:
Havia em Queluz um advogado, homem muito popular, muito aparentado e
que era realmente um bom homem; de sorte que além de ser geralmente muito
benquisto, era, por assim dizer o primeiro juiz de paz vitalício ali do lugar. Mas, ou
por ignorância, ou por facilidade ou talvez mesmo por essa bondade ma/ entendida
que não vê na pena senão a dor que dela resulta e não a correção que é o seu fim;
aquele advogado envolveu-se em um negócio de perjúrio; e eu tive por isso de
processá-lo. Havendo dado o despacho de pronúncia, o levei para a audiência; e
quando esta acabou chamei o réu e lhe disse: "0 senhor assistiu ao seu processo; e
compreende muito bem que eu não poderia deixar de pronunciá-lo. Eu pois, o
pronunciei e o senhor está preso. Como, porém, o seu crime é afiançável; mande ver
quem trate de arranjar a fiança; e para que ela se preste sem demora, e o senhor
possa ir dormir na sua casa, eu aqui me conservarei para dar todos os despachos que
forem necessários". Com efeito, assim se fez; e em vez de me querer mal, ficou-me,
pelo contrário, agradecido.
Quando acabei o meu quatriênio, um pouco por hábito e afeição que já tinha
àquele lugar, porém muito mais ainda pelos receios que me causavam as incertezas
de um novo destino, eu desejava, ainda que fosse unicamente por mais algum
tempo, de continuar a exercer ali o meu emprego.
Tendo, porém, bastante consciência de haver sido um bom juiz e muito
orgulho para pedir como favor aquilo a que me julgava com direito, eu não solicitei
a minha recondução nem dei para isso o menor passo. Ora, o senador Manuel
Teixeira queria o lugar para um dos seus filhos; e eu não fui reconduzido. Isto que
então recebi como uma das maiores injustiças, hoje considero como um dos maiores
benefícios que se me têm feito; porque se por acaso houvesse sido reconduzido, eu
não teria o sossego e certas comodidades que logo depois alcancei e teria abraçado
talvez uma das carreiras que honram ao homem, a que no Brasil pelo menos só
serve
como crisol de virtudes; porque votado eternamente à pobreza e a uma dependência
maior ou menor, o magistrado, para cúmulo das suas misérias, é ainda um alvo
sempre constante para os tiros dos maus; e por melhor que seja ou mais que faça,
como o moleiro, seu filho e o burro, é sempre preso por, ter cão e preso por não ter
cão. E disto quero dar três exemplos que se passaram comigo mesmo. Um sobrinho
do Balbino que era casado com uma prima, moça e bonita, foi denunciado como o
autor de um crime grave; e embora não houvesse contra ele, senão alguns indícios
mais ou menos fortes, eu o pronunciei e tratei de prendê-lo. Tendo, porém, já dito
como Queluz quase que formava uma só família e sendo aquele moço aparentado,
por assim dizer, cora toda a vila, por maiores que fossem os meus esforços, nunca
me foi possível prendê-lo; e desde logo se começou a dizer, que se eu o não prendia,
ura unicamente por contemplação para com o Balbino e muito mais ainda por causa
dos bonitos olhos da mulher do réu. Este pouco depois recolheu-se voluntariamente
à prisão para ser julgado pelo júri; e sendo, como era de esperar, por este absolvido,
o juiz de direito apelou. Então eu, que muito bem sabia que o réu fugiria, e que uma
vez fugido, eu não o poderia prender de novo, tratei de vigiá-lo; e apenas encerrou-
se o júri o enviei com os outros para a cadeia do Ouro Preto. Pois bem; apenas
pratiquei este ato, desde logo se começou a dizer; que eu o havia praticado, não para
que o réu ficasse melhor seguro; mas unicamente apenas para que a mulher do réu
ficasse em mais completa liberdade.
O outro fato que foi para mim ainda mais doloroso foi o seguinte: Um moço
que se achava casado na família dos Baetas e que pertencia, ao mesmo tempo, a uma
das melhores e mais importantes famílias do município, cometeu igualmente um
crime grave; e embora nunca tivesse negócio que tanto me contrariasse como fosse
esse, não deixei de cumprir o meu dever com todo o zelo que o caso exigia e
pronunciei aquele moço. Se o não tivesse feito, não haveria talvez três pessoas em
Queluz, que não me acusassem de ter sido influenciado pela amizade ou pelo
poderio daquelas famílias. Desde, porém, que pronunciei aquele moço, até alguns
colegas meus, que estou certo seriam os primeiros a me porem pela rua da amargura
por ter-me tornado um humilde passador de culpas, até esses, ou para alcançarem o
patrocínio da causa, ou para me intrigarem com os Baetas, ou finalmente para cor-
tejá-los à minha custa, começaram a dizer, que se eu havia assim procedido, não era
por convicção ou espírito de justiça; mas unicamente para ostentar catonismo.
O terceiro fato é de natureza civil; e eis aqui qual foi. Havia no município
de Queluz um português rico e que era solteiro.
Embora tivesse irmãos e outros parentes ricos em Portugal, instituiu seus
testamenteiros conjuntos e universais herdeiros a um português que morava com ele
e a um brasileiro seu vizinho. Logo que faleceu, os parentes alegaram que o
testamento era falso e que os herdeiros instituidos haviam envenenado ao testador.
Um desses herdeiros, porém, pertencia a uma família rica e numerosa, e o outro
achou logo casamento em outra família também rica e de influência. Os parentes
que eram pobres e que se viram ao mesmo tempo sem a menor proteção, nada
conseguiram do que pretendiam ou não puderam levar avante a sua demanda. Neste
ínterim faleceu o herdeiro brasileiro deixando órfãos pequeninos, e o português
assenhoreou-se só de toda a herança e nela se meteu de posse.
Quando cheguei, a Queluz, já isto durava, havia dez anos ou talvez mais.
Pareceu-me, pois, que não era possível, sem um grande escândalo, que aqueles
órfãos, que não estavam em boas circunstâncias, continuassem privados da parte que
tinham naquela herança enquanto o outro herdeiro ia indefinidamente se locuple-
tando com ela; e tratei de partilhá-la. Isto, porém, é que não convinha a quem a tinha
toda; e o que aconteceu foi, que este meu amor pela justiça ou que essa proteção que
tratei de dar ao direito dos fracos que nem sequer conhecia contra os fortes que me
haviam recebido nas palminhas das mãos, veio a ser causa dos maiores e quase
únicos dissabores que tive em Queluz; porque vendo aqueles poderosos que nada
conseguiram com as lisonjas e com todos os outros meios blandiciosos, trataram
afinal de ver se me desgostavam e se me punham fora do município; e para al-
cançarem este seu desiderato, lançaram mão de tudo: da imprensa, das denúncias
dadas ao governo contra mim, e até mesmo de meios não só indignos, porém,
verdadeiramente asquerosos. Eu, porém, nem cedia, nem perdia a calma; e sempre
acastelado na legalidade, não só acabei enfim por vencer; mas ainda para castigo dos
iníquos, foram eles próprios os que me vieram fornecer as últimas armas com que eu
os deveria ferir, ou antes, com que eles a si próprios se ferindo, cairam de uma vez.
E vou dizer como.
Havia na freguesia de Itaverava um advogado muito velho que se chamava o
Padre Ribeiro, e que era conhecido em toda aquela redondeza como o maior de
todos os chicaneiros. Homem muito inteligente e que em outros tempos tinha sido
deputado provincial e exercido alguma influência, esse Padre Ribeiro estava agora
completamente entrevado no fundo da cama e creio que nem mesmo o alimento ele
já o tomava por suas mãos; dizendo ele que já se tinha tornado um passarinho pelo
muito pouco que
realmente comia; mas nunca deixando de ter na boca umas pequenas pelotinhas de
fumo que estava constantemente a mascar ou antes a revolver na língua.
Apesar deste seu estado e da sua muito grande velhice o Padre Ribeiro que
era um homem extremamente espirituoso, nunca cessava de dizer graças, e graças
que pareciam inteiramente dissonantes na boca de um padre nem tão pouco chegou
jamais a perder a perfeita lucidez da sua tão notável inteligência. Infelizmente
parece que nunca soube o que era moral e o que era justiça; e em todo o caso; o que
se pode afirmar, é que se em algum tempo conheceu tais cousas, pouco a pouco, a
poder de fazer do direito torto, linha acabado por perverter por uma tal forma o seu
senso jurídico, que se lhe dessem a melhor de todas causas para defender, ele invés
de seguir a linha reta, preferiria, ou antes, não poderia deixar de seguir por zig-zags
e torcicolos todos cheios de espinhos e até mesmo de imundícies.
Quanto à perversão do senso moral, essa era tal, que tendo o Padre Ribeiro
um filho, também padre, mas um homem de virtudes e de grande pundonor, e o
podendo instituir por meio de um simples testamento seu herdeiro, quis, não sei se
para poupar selo da herança ou se por outro qualquer motivo, perfilhá-lo judi-
cialmente; e para isso veio justificar perante mim que aquele padre era seu filho e
que ele o havia tido de uma sua própria irmã!
Foi, pois, este padre Ribeiro, quem se tornou a alma de todo aquele negócio
da herança; e não houve chicanas nem delongas de que não lançasse mão; até que
vendo que nada conseguia e tendo dito a algumas pessoas que nunca havia
encontrado um juiz que lhe fizesse frente, e que afinal tinha se achado sem forças
diante de uma criança, lembrou-se de lançar mão de um último recurso e foi este
recurso o que tudo perdeu. O padre Ribeiro era muito versado na legislação antiga e
por tal forma, que, não podendo ler nem se mexer, não a deixava de citar com muita
frequência, e da cama mesmo indicava ao escrevente o livro que deveria ir buscar e
o lugar que deveria abrir e ler.. Mas o Padre Ribeiro muito pouco ou quase nada
sabia da legislação moderna; e acreditando que se a herança fosse denunciada com
bens de ausentes, seria a arrecadação feita pelo juízo dos feitos e que desde que eu
deixasse de ser juiz na causa tudo mais se arranjaria depois com a maior facilidade;
aconselhou ao herdeiro que estava de posse da herança que a denunciasse à
tesouraria como sendo uma herança de ausentes; e que requeresse já não sei bem o
que. O herdeiro fez, pois, o que o Padre lhe ordenou e assinou o requerimento; a
tesouraria manda-me a denúncia para que eu proceda
à arrecadação; e desde que o próprio possuidor declarava que não havia quem dela
tomasse conta, procedi à arrecadação. Facilmente se concebe qual não seria a
decepção ou desespero! Mas o mal estava feito e sem remédio; porque privado da
fazenda e de todos os outros bens, o defraudador dos órfãos já não dispunha da
pólvora inglesa para lhes abafar o direito. Quando saí de Queluz a questão ainda não
estava decidida; mas aquele que tanto se havia oposto à partilha, agora a pedia como
um grande favor; e creio que foi isto, com efeito, o que afinal se decidiu.
Pouco antes de retirar-me de Queluz, e quando já se sentia quase que prestes
a morrer, o Padre Ribeiro mandou-me pedir que fosse à sua casa; que ele desejava
pedir-me perdão das ofensas que tinha praticado para comigo; e depois de ter muito
encarecido as minhas qualidades de juiz, aquele padre pediu-me que lhe perdoasse
as muitas ofensas e injustiças de que se considerava réu para comigo.
Respondi-Ihe, que tendo ele feito o que julgava ser o seu dever de advogado
e eu o meu de juiz, nada havia para ser perdoado: mas que se ele entendia, que no
seu procedimento alguma cousa havia que necessitava de perdão para a sua alma,
pela minha parte eu lho dava pleno e da melhor vontade.
E eis aqui está o juiz a quem o governo julgou incapaz de continuar a
administrar justiça e a quem talvez julgasse fazer ainda um grande favor de não
mandar responsabilizar por tanta coisa ruim que havia feito. Felizmente outra
recompensa me coube que vale imensamente mais do que quantas reconduções ou
nomeações de juiz de direito se me pudessem dar. Se alguém for ao município de
Queluz e perguntar a qualquer das pessoas mais antigas daquela localidade, quem
foi um juiz que por lá andou de 1857 a 1861, há de ficar realmente admirado de
como é que depois de quase trinta anos se pode conservar ainda tão firme e sempre
tão favorável a lembrança de um pobre juiz municipal.
Parte Quarta
CAPÍTULO XLIII
A zona da Mata. Descoberta do Feijão Cru e a fundação de Leopoldina.
Os seus primeiros habitantes. Os Monteiros de Barros. Os Almeidas.
Os Britos e os Netos. Fotos e reminiscências.
Depois que se fundou a cidade do Rio de Janeiro e que a sua
existência se firmou de um modo incontrastável, os índios tamoios que
ocupavam aqueles lugares e que formavam uma tribo, senão muito
numerosa, pelo menos extremamente aguerrida, foram pouco a pouco
retirando-se, ou antes, segundo me recordo de já ter lido, de repente
desapareceram.
Desde então a colonização da província do Rio de Janeiro começou a
se fazer sem grande estorvo e creio mesmo que com uma certa rapidez
relativa; até que chegando ao baixo Paraíba, e ali encontrando esse rio, já
nesse ponto bastante largo e volumoso, e do outro lado os índios puris,
pareceu estacar nesse lugar; e o que é certo, é que desde a sua confluência
com o Parai-buna até quase à sua confluência como Pomba, o Paraíba tor-
nou-se desde então o limite nunca ultrapassado daquela província.
Ora, como se sabe, só foi nos últimos anos do século XVII que
alguns exploradores ou aventureiros descobriram o ouro nos sertões de
Minas; e em muito pouco tempo o centro de nossa província não só era por
toda a parte devassado, porém ainda mais ou menos povoado; pois que
sendo uma das últimas províncias descobertas, foi entretanto a que mais
depressa e mais abundantemente se povoou.
Como, porém, os imigrantes que para ela vinham do Rio de Janeiro
ou de S. Paulo faziam a sua entrada pela estrada de Matias Barbosa e daí
para o sul até as imediações da atual cidade de Baependi e como o principal
ou talvez único móvel dessa tão forte emigração era o precioso metal, que
podia de um dia para outro fazer de um pobre diabo um homem rico ou
talvez mesmo um grande potentado; e como finalmente esse mesmo ouro
nunca existiu ou pelo menos nunca apareceu de um modo satisfatório nas
bacias do Pomba e do Muriaé; o que aconteceu, foi, que em vez daquela
tão forte corrente imigratória obliquar para
a direita, afim de ir encontrar o Paraíba; e desta sorte, ligar por aquele lado
o litoral ou a província do Rio com o centro de Minas, espalhou-se pelo
contrário pelo norte, pelo sul e até mesmo um pouco pelo ocidente em
procura da província de Goiás e desprezou completamente a parte hoje mais
rica de toda a província, isto é, aquela que hoje se denomina a mala. Ora,
desta circunstância veio a resultar um fato que, se não é talvez singular, não
deixa entretanto, de ser bastante curioso; e esse fato vem a ser o seguinte —
o de ter-se conservado no Brasil durante perto de século e meio, e de mais a
mais, a uma distância da costa que não chegava a dezenas de léguas, um
verdadeiro pequeno mundo selvagem, que, independente e inteiramente
segregado, vivia, por assim dizer, no meio da civilização que o cercava;
pois que, ainda nos princípios do século atual, entre a província do Rio de
Janeiro e o centro de Minas, se conservava em pleno poder dos nossos
aborígenes ou como tais mais ou menos considerados, uma língua ou tira de
mata que muito estreita nas imediações da atual cidade do Mar de Espanha,
ia sempre se alargando para o oriente até ligar-se na grande ou imensa mata
da província do Espírito Santo ou da Capitania como ainda até bem pouco
era o costume de se chamar aquela província.
É a 12 léguas da cidade do Mar de Espanha e quase que no começo,
por consequência, dessa estreita tira de mata, que se acha hoje a atual
cidade da Leopoldina, que assentada sobre o pequeno ribeirão do Feijão
Cru, fica a duas léguas apenas do rio Pomba e a oito mais ou menos do
Paraíba.
Foi na terceira década mais ou menos do corrente século que veio a
ter lugar a descoberta do Feijão Cru ou que este começou a ter os seus
primeiros habitadores brancos; e a primazia ou a precedência deste fato é
ainda hoje disputada pelas duas famílias mais numerosas destes contornos
— a dos Monteiros de Barros e a dos Almeidas — família esta última que
do campo já veio confundida ou que aqui desde logo se confundiu com a
dos Britos e a dos Netos. A questão, entretanto, não tem, quanto a mim,
grande importância; porque tendo sido o fato quase simultâneo, não
nenhum inconveniente que todas essas famílias fiquem com essa honra em
comum.
Eu, porém, tendo ainda a tempo me lebrado de tirar a este respeito
informações com um dos primeiros entrantes, homem sério, que mais
forneceu com inteira imparcialidade, vou aqui expor o resultado do que
pude colher dessas informações: e bem assim, do que pude observar por
mim mesmo; pois que vindo para este lugar em 1861, ainda o encontrei em
um ponto de atraso extraordinário; e posso, por consequência, me
considerar tam-
bém como um dos primeiros entrantes ou pelo menos como um dos seus
primitivos habitadores; visto que vim em um tempo em que nas rodas dos
homens, quase que ainda não se via um só que fosse filho desta terra.
Quem fosse o verdadeiro descobridor do antigo Feijão Cru ou da
atual cidade da Leopoldina, parece não ser cousa que hoje se possa dizer
com certeza. Sei apenas que o primeiro que habitou no lugar em que hoje se
acha a cidade, foi um sujeito que se chamava ou que tinha o apelido de
Peitudo. Quem, porém, muito concorreu para o povoamento destes lugares
foi Francisco Pinheiro que era irmão de Romão Pinheiro de Lacerda,
homem este último, que eu ainda aqui alcancei como um dos fazendeiros
mais ricos destes lugares e que embora por ser homem muito retraído, muito
pouco figurasse na vida pública, veio entretanto a fundar pela sua
descendência e pelos parentes que atraiu, uma das melhores famílias desta
freguesia.
Naquele tempo qualquer tinha o direito de se apropriar de quanta
terra devoluta lhe desse na vontade; e para isso nada mais era preciso do
que fazer qualquer pequeno serviço que consagrasse ou que autenticasse a
posse tomada.
Foi isso o que fez aquele Francisco Pinheiro. Homem naturalmente
empreendedor, em vez de se entregar aos pacíficos, porém monótonos
serviços da sua antiga lavoura, veio abrir diferentes posses aqui na mata; e
quando as havia aberto, foi ao centro de Minas divulgar o que por aqui
havia visto e encontrado; as posses que já tinha aberto: e finalmente
convidar pessoas que as viessem ver, e comprá-las.
A família dos Monteiros de Barros é, como todos sabem, originária
de Congonhas do Campo; e como todos sabem ainda, é uma das mais
importantes da nossa província.
Possuidora de minas, e por consequência, muito rica em outros
tempos, desde que o ouro começou a escassear, a antiga riqueza começou a
diminuir; e então um membro dessa família, o comendador Manoel José
Monteiro de Barros, assentou de deixar, as minas para vir se estabelecer na
mata com fazenda de cultura. Para esse fim alcançou do governo ura grande
número de sesmarias, não só para si e para todos os seus filhos que já
existiam; mas até mesmo, segundo ouvi dizer, para uma filha que ainda não
estava nascida e não sei se também para todos os outros que tivessem de
nascer. O que sei e que até bem pouco ainda se via, é que todo o Pirapetinga
pequeno e que quase todo o Pirapetinga grande desde a fazenda do Socorro
até a Pedra bonita e a fazenda de Santa Rosa nas imediações da atual
freguesia de Santa Ana do
Pirapetinga, ficaram, por assim dizer, sem quase que nenhuma interrupção,
em poder dos Monteiros. Sendo já homem de alguma idade ou envolvido
nos negócios políticos daquela época, o comendador Manuel José, antes de
fazer para aqui a sua mudança mandou que primeiro se abrisse a fazenda
para a qual deveria entrar, fazenda esta, que é a da Providência onde se acha
a estação da estrada de ferro da Leopoldina que tem o mesmo nome, e deste
serviço foi incumbido o meu parente o capitão Quirino Ribeiro de Avelar
Rezende, que era genro do comendador e com ele João Ferreira da Silva
que era também genro ou parente do mesmo comendador.
Nestes casos de colonização, assim como em quase tudo, o ponto
está em dar-se o primeiro passo.
E assim, desde que aqui penetraram os primeiros colonizadores, o
resto foi, por assim dizer, de gargalheira.
Se porém, depois de vila e sobretudo depois que a estrada de ferro se
aproximou, a colonização desta mata se compôs de elementos um pouco de
toda parte e até mesmo do Ceará, na sua quase totalidade essa colonização
foi mineira e sobretudo dos municípios desta província que mais ou menos
se aproximam da serra do Espinhaço desde a Itabira e Congonhas do
Campo até o Rio Preto.
Em 1829 Manuel Antônio de Almeida que morava na freguesia do
Bom Jardim que hoje pertence ao Turvo ou Lima Duarte, dirigiu-se para
aqui a fim de examinar a mata e ver se havia modo de aqui estabelecer-se.
Tendo chegado onde existe a velha fazenda do Feijão Cru, aí
encontrou um certo Felipe que lhe propôs vender a posse que nesse lugar
havia feito.
Manuel Antônio respondeu-lhe — que a posse lhe agradava e que o
seu desejo vindo para aqui era de aqui estabelecer-se; mas que à vista da
grande multidão de índios que ocupavam toda a mata, ele não se animava a
trazer a família e vir se expor a si e a ela a um tão grande perigo. Felipe,
porém, tendo lhe dito, que os índios eram muito pacíficos e desde que não
se procurava envolver-se lá nos seus negócios nada absolutamente havia
que deles se pudesse recear, acabou por convencer a Manuel Antônio; e
este fez a compra da posse.
Tendo Felipe estabelecido a sua posse um pouco acima da
confluência do Feijão Cru pequeno com o grande e tendo feito talvez
algumas pequeninas abertas por este último ribeirão acima, a sua posse veio
por esta forma a compreender todas as vertentes
desse mesmo ribeirão; e o que é certo, é que apesar de ter-se dela destacado
a grande fazenda ou sesmaria da Constança, a minha pequena fazenda da
Filadélfia, e ainda alguns outros pequenos sítios que Manuel Antônio
durante a sua vida foi dando ou vendendo, no inventário a que por morte de
sua mulher se teve de proceder, as terras que nele entraram, ainda montaram
à quantia de mais de oitenta contos de réis à razão de cem mil réis o
alqueire.
Este mundo de terras foi no entretanto comprado por Manuel
Antônio a troco, por assim dizer, de um mau cavalo arriado mais que o
preço da venda havia sido esse mesmo cavalo de que Felipe precisava para
retirar-se e mais uma pequena quantia em dinheiro (cerca de duzentos mil
réis se não me engano) da qual ou de cuja maior parte Manuel Antônio
passou crédito que afinal, segundo ouvi dizer, não chegou a pagar; porque
Felipe desde então sumiu-se e nunca mais apareceu para receber o
importe.
Eu ainda alcancei aqui a Manuel Antônio e sua mulher. Esta morreu
algum tempo depois já quase centenária. O marido sobreviveu-lhe ainda
alguns ,anos e morreu maior de cem anos.
Quando aqui cheguei, estava ele ainda tão forte, que nas festas de S.
João trepava pelo mastro acima com tanta facilidade quase como os netos
que assistiam também à festa. Ainda nas vésperas de morrer andava a cavalo
por toda a parte sem nenhuma companhia; mas sempre a falar sozinho
planejando casamento com as moças ou queixando-se das moças que
pretendiam casar com ele. Como disse, ele morreu com idade maior de cem
anos; e ainda assim morreu porque quis; pois que tendo nas pernas umas
feridas já bastante antigas, de repente embirrou em querer curá-las; e
quando elas de todo se finaram ele também morreu. Sobre seus defeitos e
virtudes nada posso dizer com muita certeza. Sei, porém, que era um grande
sovina ou que era tão ignorante sobre trabalhos de advocacia, que nem de
leve lhes conhecia o valor.
Tendo-lhe falecido um neto de quem herdava cerca de vinte contos
de réis ou talvez mais, procurou-me para tratar da arrecadação da herança.
Como eu tinha acabado de casar-me naquela ocasião, disse à minha mulher,
que uma vez que era aquele o primeiro serviço que fazia depois de casado
havia de ser ela quem escrevesse a petição e que os honorários desse
negócio lhe ficariam pertencendo. Minha mulher ficou muito contente con-
cariam pertencendo. Minha mulher ficou muito contente contando que teria
de receber talvez alguns centos de mil réis. Tendo, porém, eu dito a Manuel
Antônio que ele daria por aquele meu serviço o que por acaso entendesse
o mesmo valer, quan-
do ele recebeu a herança mandou de presente à minha mulher, e julgando
talvez ter pago e muito bem pago o meu trabalho, um simples balainho
com joás.
Foi no dia 1.º de setembro de 1829 que Manuel Antônio partiu do
Bonjardim com a família e alguns parentes, e foi a 30 desse mesmo mês que
ele chegou ao Feijão Cru; tendo, desta sorte, consumido exatamente um
mês, em uma viagem que hoje se faz em muito poucos dias. Tendo passado
por S. João Nepomuceno, até onde as comunicações pareciam ser um pouco
mais fáceis, Manuel Antônio tratou de procurar a atual freguesia do Rio
Pardo, onde já havia então um começozinho de povoação; e daqui desceu
com toda a sua comitiva aquele mesmo rio, por uma picada ou por um
caminho que então havia mais ou menos transitivei, porém que em vez de
dirigir-se um pouco mais para o sul em demanda de Feijão Cru pequeno ou
grande ia ter, pelo contrário, ao lugar onde acha-se hoje a ponte, que fica na
estrada da Leopoldina para Cataguazes; e onde passava outro caminho ou
picada, que vindo dos lados do Meia Pataca, chegava apenas à atual
fazenda da Providência.
Desde que Manuel Antônio aqui se estabeleceu, começou sem mais
se interromper uma verdadeira corrente de imigração, que sendo ao
princípio dos parentes e conhecidos que ele havia deixado na freguesia
natal, foi desde logo e cada vez mais se .ampliando às freguesias e
municípios vizinhos. Como, porém, já disse, se foram estes, com efeito, os
verdadeiros colonizadores da Leopoldina; pois que todos ficaram; e foram
eles de fato os que acabaram por encher esta nossa freguesia; a eles,
entretanto, não cabe, nem ,a honra da descoberta e nem sequer ao menos a
de terem sido os primeiros habitadores destes lugares; pois que sem falar no
capitão Querino e João Ferreira que já estavam abrindo a Prividência; sem
falar em Peitudo que já tinha o seu ranchinho onde é hoje o centro da
cidade; sem falar ainda em Bernardo Fonseca que tinha na Grama uma
lavoura em um ponto já um pouco maior; e sem falar finalmente em
Francisco Pinheiro, que ,além das posses que havia aberto e não sei se
também uma sesmaria na Onça, ainda possuía todas as terras onde se acha a
Estação da estrada de ferro e que vendidas a João Ferreira da Silva, vieram a
formar a atual fazenda do Desengano; ainda havia onde está hoje a fazenda
da Cachoeira, a meia légua da cidade, um fulano Manuel João da Silveira
que vendeu a sua posse ou sesmaria a Joaquim Ferreira Brito; junto da
cachoeira do Feijão Cru, que fica um pouco para baixo da estrada que segue
da Leopoldina para Cataguazes, o padre Manuel Antônio Brandão, o qual
da-va-se à cultura das suas terras, mas que muito maior
interesse
talvez ainda colhia da poaia que, encarregando aos índios de tirar, deles
comprava por pouco mais de nada e a mandava vender na Corte por muito
bom preço; e havia finalmente onde é hoje a fazenda da Fortaleza, a três
quartos de légua da Leopoldina, na estrada que vai desta cidade para o
Laranjal, um fulano Manuel Alves, que naquele lugar havia feito ou
comprado uma posse cuja extensão excedia a muito mais de uma boa
sesmaria, e posse essa que, desde logo ou que passado apenas muito pouco
tempo, veio a passar para o poder do capitão João Gualberto Ferreira
Brito.
Este capitão João Gualberto, que foi um dos primeiros en-trantes,
que era genro de Manuel Antônio, e que tornou-se com o tempo o membro
mais importante da família dos Almeidas, dos Britos e dos Netos, veio
depois a exercer, por esse motivo, uma influência muito grande na freguesia
da Leopoldina, onde ninguém podia vencer uma só eleição sem o seu
concurso; e o título de capitão se lhe havia apegado à pessoa por um tal
feito, que, desde que se dizia — o capitão — já todos sabiam que o
capitão de que se falava era o capitão João Gualberto.
Pouco antes de morrer, ele foi condecorado com o oficialato da Rosa
e o próprio decreto imperial que o nomeou, declarava que a nomeação era
para o capitão João Gualberto Ferreira Brito. Entretanto, só há bem pouco
tempo e depois que ele já havia falecido, é que se veio a saber, que o capitão
João Gualberto era tão capitão, como eu ou como qualquer dos meus
leitores que na Guarda Nacional nunca passou de um simples soldado raso.
E eis aqui como é que se fez semelhante nomeação.
Quando em 1842 arrebentou a revolução em Barbacena dois dos
lugares que a ela primeiro aderiram foram a vila do Pomba e todo o seu
município e uma grande parte do município do Presídio; e desde que estes
dois lugares se pronunciaram, começou a espalhar-se que os rebeldes daí
estavam se dispondo para virem tomar o Feijão Cru. Naquele tempo o nosso
Feijão Cru ainda vivia como que inteiramente separado da comunhão
nacional: não tinha Guarda Nacional e se tinha juiz de paz, esse andava lá
muito por longe. Isto não obstante, ou porque tivesse ordem ou de modo
próprio, os habitantes trataram de armarem-se da melhor forma que cada um
pode; e de se reunirem para o que desse e viesse. Quando, porém, armaram-
se e reuniram-se, começaram todos a perguntar: Mas quem é que há de
ser agora o nosso comandante?
E já não sabiam como é que haviam de resolver uma questão tão
nova e tão intrincada, quando um dos circunstantes
(é pelo menos assim que mais ou menos me contaram) mete a mão no bolso
das calças, tira uma boceta redonda de crife; bate nela com a mão antes de
abri-la; toma uma boa pitada de esturro; e com ares de um velho Nestor ou
como o Arquimedes quando exclamou — eureka! — tira das profundezas
do seu bestunto o verbo do bom senso; e exclama: Ora gente! Para que hão
de estar vocês aí com chove não chove! Boi sem can-dieiro não guia; e
aquilo que não se tem, faz-se. Pois alumiemos um capitão que nos
governe.
E quando a mim, o compadre João Gualberto está muito no causo
de ser o nosso capitão.
Sim senhor: respondeu logo outro. Tirou-me isso mesmo da língua.
Nós precisamos de um candieiro que nos guie; e o compadre João está
muito no causo de ser o nosso capitão. Quem melhor do que ele? De certo,
de certo. Está muito no causo. Pois seja o compadre o nosso capitão! 0
compadre é nosso capitão!
E desde aquele dia o capitão João Gualberto ficou sendo não só um
capitão, mas ainda um capitão como nenhum outro; porque, no império do
Brasil, não havia nem um poder, nem mesmo o do imperador, que
fosse capaz de demiti-lo.
Ora se isto era assim em 1842 pode-se fazer ideia do que não seria,
quando esse capitão João Gualberto com Manuel Antônio e sua família
vieram aqui estabelecer-se. E com efeito, era tal o isolamento em que
viviam e tão grande era a escassez de tudo quanto haviam mister nos
primeiros tempos em que aqui se acharam; que, segundo as informações que
pude obter, o próprio milho de que precisavam para passar o primeiro ano
depois da sua chegada, eles o tiveram de ir procurar e buscar, embora pelo
preço de duzentos e quarenta réis o alqueire, em S. José do Paraopeba, que
fica, como se sabe, a doze léguas daqui, entre as cidades do Pomba e Ubá;
porque, ainda que no Meia Pataca já houvesse naquele tempo algumas casas
ou mesmo um pequeno princípio de povoação, era esta, entretanto, tão
pobre ou antes tão miserável, que um juiz de paz que ali havia, morava em
um pequeno rancho à margem do Pomba; e nem sequer se dava ao trabalho
ou ao luxo de vestir calças, mas de ordinário andava só de ceroulas.
CAPÍTULO XLIV
O verdadeiro Rómulo de Leopoldina: Dr. Antônio José Monteiro de
Barros. O seu caráter. A sua bondade. A sua influência política e a sua
ruína financeira. Barão de Airuoca. Uma figura legendária. Serviços que
prestou. Anedotas a seu respeito.
Gomo já tivemos ocasião de ver, os verdadeiros povoadores da freguesia da
Leopoldina foram os Almeidas, os Britos e os Netos; não só porque foram os
primeiros que vieram; mas ainda porque vieram em tão grande número, que, na
ocasião em que vim para aqui, muito raras eram as pessoas (na freguesia só, bem
entendido) que não pertencessem a essas famílias ou que não se achassem com elas
mais ou menos entrelaçadas.
Se, porém, foram esses os verdadeiros povoadores da Leopoldina, quem foi
o verdadeiro Rómulo dessa nossa pequenina Roma, quem politicamente a fundou ou
quem principiou a dar--lhe essa importância tão grande e tão rápida que em muito
pouco tempo fez dela um dos mais ricos e dos mais prósperos municípios da
província, esse foi, como é de todos bem sabido, um Monteiro; e um Monteiro que
me parece não ter sido talvez dos primeiros entrantes. Ora, esse Monteiro de que
falo, foi o Dr. Antônio José Monteiro de Barros, que sendo um homem rico, não sei
se já por herança ou se unicamente por dote, veio fundar a légua e meia desta cidade,
junto às margens do Pirape-tinga, a sua fazenda do Paraíso que veio a ser depois do
conde de Mesquita; e que sendo ainda hoje uma das maiores do município, era
naquele tempo relativamente uma verdadeira maravilha; porque além de ser a casa
muito grande e feita com bastante gosto, era ainda tão abundantemente mobiliada e
de objetos tão bem trabalhados ou preciosos, que depois que aquele Dr. quebrou,
bem poucos foram os habitantes da Leopoldina de uma certa ordem, que não
tivessem nas suas casas algum ou alguns daqueles mesmos objetos e comprado por
trinta ou por quarenta o que valia duzentos ou trezentos. Foi este Dr. Antônio José
quem por simples amor a este lugar ou talvez antes para com ele formar para si um
verdadeiro feudo, promoveu e conseguiu a sua elevação a fregresia e ao mesmo
tempo a vila pela lei provincial n.º 666 de 1854, sendo 7 anos depois
elevada
a cidade pela lei n.° 1.116 de 18 de outubro de 1861. E com efeito, tal veio a
ser afinal a influência, e influência muito legítima que o Dr. Antônio José
aqui exerceu; que não havia uma só eleição de qualquer natureza em que se
apresentasse como candidato, que ele perdesse qualquer outro voto que não
fosse unicamente o seu. E se por acaso ele não quebrasse e não morresse
logo depois, é muito de supor, que essa sua influência nunca diminuísse e
que se tornasse verdadeiramente incontras-tável; tanto parecia ser dotado
desse dom de agradar e de prender aos homens, servindo-os sempre e
sempre parecendo servi--los da melhor vontade.
Eu não cheguei a conhecer pessoalmente ao Dr. Antônio José;
porque ele já estava na Corte quando aqui cheguei e ali pouco depois
morreu; mas não duvido de afirmar o que acabo de dizer. E isto por duas
razões: primeiro porque não sendo o Dr. Antônio José um homem que
primasse pelos seus dotes intelectuais e nunca tendo feito figura na câmara
onde de fato não passava de um simples deputado mudo, não obstante, tanto
na Corte como por toda parte por onde andou, foi sempre muito considerado
e muito estimado; e segundo, e é esta a principal razão, porque lutando no
fim da vida com grandes dificuldades financeiras quando faleceu, era o Dr.
Antônio José devedor de quase todos os habitantes deste lugar ou de
dinheiro ou de mantimentos ou de outras diferentes espécies de negócios, e
a alguns quantias mais ou menos avultadas. Imenso, portanto, e ao mesmo
tempo muito geral, foi o prejuízo que a sua quebra acabou afinal por causar;
e no entretanto não só nunca ouvi a ninguém que dele se queixasse por esse
ou por outro qualquer motivo; mas, pelo contrário, a mais de um algumas
vezes ouvi dizer: 0 Dr., assim como a todos, me causou a mim também tal
ou tal prejuízo; mas enfim, era uma pessoa tão prestativa e em tudo tão boa,
que não me queixo do prejuízo, antes o dou por muito bem empregado.
Entretanto creio que foi essa mesma sua bondade assim tão grande o
que veio a ser talvez a verdadeira causa da sua perda; porque marido amante
e fraco, o Dr. Antônio José foi casado com uma senhora que não só amava
muito o luxo, mas que ainda o levava ao ponto de uma verdadeira tolice;
pois que para dar disso a prova não é preciso mais do que dizer, que aquela
senhora nunca ia à Corte sem ser sempre com uma bagagem tão numerosa e
tão ostentosa, que mais parecia uma mudança do que mesmo um simples
passeio, visto que só o número de mucamas e serventes era uma coisa
despropositada; entretanto, se ali ela ia a uma casa de modas e lhe
mostravam alguns chapéus, por exemplo, dizendo-se-lhe que eram
os da
última moda e os únicos que ainda existiam, ela os tratava logo de comprar e
não se contentava de comprar um nem dois, mas pelo contrário, os
arrematava todos, embora, como sempre sucedia, os tivesse pouco depois de
os pôr de lado por inúteis ou já não serem mais da moda. Assim, pois,
embora o Dr. Antônio José fosse um homem chão e simples e muito pouco
consigo mesmo gastasse, não é de admirar que acabasse por quebrar como
de fato quebrou, seguindo-se ,a essa quebra sem grande demora a sua morte,
ainda que estivesse bem longe de ser velho.
E já que falei deste Dr. Antônio José a quem Leopoldina tanto veio a
dever; não quero também deixar de falar de mais um homem que
encarregado pelo governo provincial, e que embora não fosse engenheiro,
foi entretanto quem abriu uma excelente estrada e a primeira
verdadeiramente de rodagem que esta mata possuiu, a qual estrada, partindo
do Meia Pataca ou não sei se ainda muito mais de trás ia terminar nas
margens do Paraíba em S. José ou talvez antes no Porto Novo do Cunha,
que, naquele tempo, nem mesmo uma povoação se poderia talvez chamar,
tão pequeno era o número de casas que então ali se avistavam. Este notável
mineiro de quem agora estou falando e que, residindo então em Mar de
Espanha, era não obstante o homem, por assim dizer, de todos esses lugares,
onde acabou por se tornar uma figura verdadeiramente legendária, era o co-
mendador Leite Ribeiro que veio a ser depois Barão da Airuoca. Homem
rico e pertencendo a uma família muito rica, mais de uma vez desarranjou-se
ou chegou mesmo a quebrar; e por mais que os seus parentes lhe viessem
em auxílio e lhe restabelecessem a fortuna, era tudo mais ou menos em vão;
porque, além de que o seu tempo estava sempre à disposição do estado, da
província, do município >e até mesmo de qualquer particular, que o
reclamasse; ainda a sua alma era tão excessivamente beneficente, que não
havia lágrimas que ele não enxugasse, nem benefício que ele, podendo,
o não prestasse.
Entretanto era um homem taciturno, que pelos seus modos mais
tirava do que dava esperanças e que sempre muito mais fazia do que
aquilo que asseverava ou prometia.
Muitas são as anedotas que se contam a seu respeito. Eu,
porém, só registrarei aqui duas únicas apenas, mas que me
lhor do que as palavras, dão perfeitamente a conhecer qual era
o seu verdadeiro caráter.
Uma tarde apareceu na fazenda do Barão de Airuoca um homem que
vinha de bem longe, creio que do município do Bonfim; e disse-lhe, que
era pai de uma numerosa família e que
estava sendo executado por uma quantia de quatro ou seis contos de réis;
que aquela execução era a sua ruína e a desolação da sua família; que, se ele
arranjasse aquela quantia, tinha certeza de que a pagaria em um prazo que
indicou, porque para isso contava com tais e tais meios; mas que tendo
recorrido a todas as pessoas que o poderiam socorrer nesta ocasião, vira os
seus passos todos perdidos; ,até que tendo sabido da caridade com que o
Barão a todos amparava, tomara a resolução de vir até ele, afim de se ver se
achava esse socorro que andava, havia tanto tempo a procurar debalde.
0 Barão não lhe disse uma só palavra. Quando chegou a hora da ceia,
o mandou chamar para que fosse ceiar; e terminada a ceia, o despachou
para que fosse dormir.
O homem, porém, pouco ou nada dormiu; porque, tendo se esvaído a
sua última esperança, passou quase toda a noite a pensar na grande
desconsolação em que ia voltar; e quando prestes para partir foi despedir-
se daquele que tinha sido a sua última esperança e que tão secamente se
havia convertido para ele na sua última desilusão; este tira do bolso um
papel e lho entrega, dizendo apenas: Eis aqui uma ordem do dinheiro que o
senhor precisa. O homem caiu das nuvens; e depois de ter-se desfeito nas
expressões do mais estranhado reconhecimento, pediu-lhe que lhe
fornecesse papel para que lhe passasse a clareza daquela quantia.
O Barão, porém, lhe respondeu: "Eu não sei quem é o senhor. Se for
homem de bem, me pagará ainda mesmo sem clareza; e se for um velhaco, a
sua clareza só me servirá para me vir entupir a gaveta. É desnecessário,
portanto, que o senhor a passe".
Quando havia decorrido o tempo que o desconhecido havia marcado,
para reembolsar ,a quantia que viera pedir; de novo apareceu na fazenda do
Barão e restituiu-lhe o dinheiro com toda a exatidão e ainda acompanhado
de um presente e de mil agradecimentos, tanto dele como de toda a sua
família. Infelizmente nem todos eram assim que procediam. E essa era tam-
bém uma das principais causas dos transtornos do Barão. Era tal o
sentimento de caridade ou de benevolência que dominava ao Barão de
Airuoca; que não havia criminoso, por mais indigno que fosse de qualquer
complacência, que não alcançasse a sua proteção; e quando o censuravam
porisso, a sua resposta era sempre esta: Os bons não precisam de proteção;
porque estes estão por si mesmos protegidos; os maus porém, não estão no
mesmo caso; e se ninguém os proteger que virá a ser deles? Uma ocasião,
sendo ele juiz municipal substituto em S. João
Nepomuceno, um criminoso o procurou com as choradeiras do costume, para que
lhe valesse naquela sua tão grande e, segundo ele, tão imerecida desgraça. O Barão
partiu imediatamente para a vila, e perguntando ao escrivão pelos autos, indagou
deste, se havia muita prova ou se a defesa era fácil. O escrivão respondeu, que o
crime era grave e que a prova era tal que não havia a menor probalidade de
defesa.
Nesse caso, disse-lhe o Barão, é preciso que esses autos se consumam. O
escrivão fez-lhe então ver que a cousa não era tão fácil como ele supunha; e que se
os autos desaparecessem, isso aproveitaria ao criminoso; mas que em compensação,
ficaria criminoso ele escrivão que nunca havia cometido crime algum. O Barão ficou
extremamente embaraçado com uma semelhante resposta; e por algum tempo se
concentrou ou pôs-se a ruminar a ver se achava um meio que a ninguém comprome-
tesse; quando afinal julgou que o havia achado; e disse ao escrivão: "Eu nunca
comprometi a ninguém e não quero de modo algum comprometer a você que é um
pai de família. Mas também não é possível que este pobre diabo tenha de sofrer uma
pena tamanha. E assim, você lavre aí um auto de consumo e eu mesmo o
assinarei".
E o que é certo, é que o escrivão custou muito a convencê-lo que o tal auto
de consumo não remediava nada e que apenas o que poderia acontecer, é que em vez
de um só criminoso pelo negócio, dois talvez fossem os criminosos.
As mortes tanto do Dr. Antônio José como desse Barão de Airuoca quase
que coincidiram exatamente com a minha vinda aqui para a Leopoldina; e com esses
dois homens fecha-se, por assim dizer, o período lendário ou tradicional desta nossa
Mata. O que, pois, d'aqui em diante vou contar já faz parte da minha própria vida; e
por consequência, vou deixar de ser um simples colecionador de tradições, para ser
um historiador 'de viso e ao mesmo tempo também um pouco ator.
CAPÍTULO XLV
Os índios puris. Seu grau de desenvolvimento. Os seus senti-
mentos, usos e costumes. O sarampo ocasiona entre eles uma
enorme devastação. O seu desaparecimento. As indagações pes-
soais do autor e o resultado de suas pesquisas.
Quando os primeiros posseantes penetraram no Feijão Cru, pode-se
dizer que por este lado, os pontos avançados da civilização vinham a ser os
seguintes: 0 Angu ao Sul, o Rio Pardo ao ocidente e o Meia Pataca ao norte.
A partir destes pontos começava então o que se poderia denominar a mata
bruta ou a região dos selvagens. Mas se a bacia do Pomba já se achava toda
conquistada e se por quase todos os lados a linha da conquista já não pouco
havia progredido; isto, contudo, não impedia que muito vasta fosse ainda a
parte da mata que restava por conquistar. E com efeito, terminando em
ponta mas cada vez mais se alargando para o norte ou na direção de
nordeste, não só isso que ainda restava da mata bruta ou essa região dos
selvagens se extendia desde o Feijão Cru até a fronteira do Espírito Santo;
mas ainda acompanhando sempre a margem esquerda do Paraíba do qual
muito pouco se afastava, ela, que, segundo já disse, ia sempre se
desenvolvendo para o oriente e para o norte, acabava afinal por ir confundir
por este último lado com os confins, naquele tempo muito incertos ou extre-
mamente vagos, do mais antigo de todos os nossos municípios — o de
Mariana — e dos dois outros muito mais modernos do Piranga e do
Presidio.
Ora, esta região de que acabo de falar e que naquele tempo não
passava de uma simples testemunha silenciosa da criação mas que no fim de
tão pouco tempo veio depois a se tornar em uma das gemas mais preciosas
da nossa província, então achava-se toda em poder de uns índios, que eu não
sei se a si mesmos se denominavam puris, mas que eram geralmente assim
chamados pelos invasores brancos. Se estes índios eram, com efeito, puris;
divi-diam-se em muitas tribos; se estas tribos eram ou não mais ou menos
numerosas; e finalmente se todos eles formavam um povo único e irmão ou
se pelo contrário pertenciam a diferentes raças; são questões estas sobre as
quais nada posso dizer. Sejam, porém,
quais forem as respostas que se possam dar a todas estas questões e ainda a
muitas outras sobre as quais a minha ignorância não é talvez menor; há um
fato, entretanto, a cujo respeito todas as minhas informações combinam e
que pode, por consequência, ser dado como certo; e é que esses índios de
que aqui nos ocupamos, nada tinham de ferozes; mas que pelo contrário,
sendo dotados de uma índole extremamente branda, eram todos muito
pacíficos.
Isto não obstante, de todos os nossos índios eram estes talvez um dos
mais atrasados. Nem para a prova deste meu asserto talvez fosse necessário
mais do que dizer, que não só todos eles viviam em um estado da mais
completa nudez; porém que ainda, nunca tendo chegado a conhecer o uso de
rede (objeto este que desde tanto tempo tão comum já se havia tornado entre
os outros índios) eles só tinham por leito a própria terra. Dava-se mesmo
com eles uma circunstância que não deixa, quanto a mim, de ser algum tanto
curiosa. E essa circunstância, que não me consta tenha sido jamais
observada entre os outros índios, vem a ser a seguinte: — que em vez de
altearem as suas camas, como é o costume de quase toda a humanidade,
estes índios pelo contrário, as tratavam quanto podiam, de rebaixar; ou
exatamente como fazem os porcos e alguns outros animais, as cavavam no
chão, onde com o tempo ou com um uso mais ou menos prolongado, essas
mesmas camas acabavam por ficar tão lisas, que se poderiam dizer enver-
nizadas.
Quanto às suas habitações, ou quanto aos seus aldeamentos, estes
nossos selvicolas nada absolutamente possuíam do que os outros tinham por
costume de denominarem uma taba. E digo isto, porque sendo aquelas tabas,
como se sabe, umas construções mais ou menos vastas, mais ou menos
permanente e que eram sempre feitas com uma certa arte; tudo quanto os
índios que aqui habitavam de melhor chegaram a realizar neste sentido,
apenas se reduzia, segundo o testemunho de todos aqueles que os puderam
observar, a alguns pequeninos ranchos de beirada ao chão; e que não
passam, como ainda se deve saber, de duas simples forquilhas afincadas no
chão; sobre as quais se atravessa um pau em forma de cumieira; e sobre a
qual cumieira depois se encostam alguns outros paus, que fazendo as vezes
de caibros, e sendo afinal cobertos com qualquer cousa sobre a qual a água
possa correr, vem por este modo a ficarem servindo ao mesmo tempo de teto
e parede. Entre nós encontram-se alguns destes ranchos que são feitos com
certa perfeição relativa e que são depois cobertos de sapé.
Os dos índios, porém, eram muito mais fracos e muito mais grosseiros; e
exclusivamente cobertos com folhas de palmito. Se, porém, estes ranchos já eram
assim tão toscos e tão ligeiros; esses mesmos índios ainda tinham um gênero de co-
berta que com facilidade e em falta de agasalho levavam muito as lampas a esses
mesmos ranchos. E essas cobertas, que eu não sei se eram simplesmente transitórias
ou se tinham alguma cousa de mais ou menos permanente, vinham a reduzir-se uni-
camente a isto: — em fincarem eles no chão algumas cabeças de palmito; cujas
folhas ficando bem juntas e todas mais ou menos inclinadas para um único lado
acabavam por lhe fornecer uma tal ou qual guarida, que embora muito pouco sólida e
nada tivesse de muito impermeável, nem porisso, deixava de lhes servir para ali
passarem algumas noites ou para ali se abrigarem durante o dia contra o rigor das
intempéries. Como todos os outros índios, estes também davam-se à pesca. E é muito
de supor que nesta eles não deixassem de fazer uso dos covos ou giquis. Para
pescarem os lambaris e alguns outros tão miúdos como estes, o meio ou um dos
meios de que eles se serviam, era um que eu mesmo em menino algumas vezes
empreguei ou vi empregar; e que pelo lado da simplicidade talvez não haja
nenhum que o iguale.
Ora, esse meio é o de uma linha sem anzol. Na ponta da linha, porém, tendo-
se amarrado como isca algumas minhocas, estas puxadas com um certo jeito e de
repente aladas ou sacadas para fora, traziam consigo os peixes. Quanto aos peixes
maiores ou quando a pescaria tinha de ser feita em águas um pouco mais volumosas,
o meio que era empregado ou que era de todos o mais comum, era o das redes, as
quais eram sempre feitas com o fio de tucum ou com a embira que se tira da
imbaúba branca.
Segundo todas as informações que cheguei a obter, estes índios nada
absolutamente plantavam. Dir-se-ia mesmo que eles não tinham nem sequer a ideia
da agricultura. E assim, sem falar no mel das abelhas que além de um pouco escasso
parece ter por natureza de não passar de um simples acepipe; e sem falar ainda nos
frutos das árvores que além de intermitentes, são de ordinário tão precários; pode-se
dizer, que tudo quanto esses pobres índios chegavam a tirar da terra para o seu
sustento, quase que unicamente se reduzia a um certo número de raízes, que são hoje
mais ou menos desconhecidas ou de que hoje já quase que ninguém se aproveita. E
destas raízes aquela, de que mais uso eles faziam; de que pareciam muito gostar; e
que por ser aqui muito abundante, tornava-se para eles de uma utilidade constante
e muito apreciada; vinha a ser o caratinga;
que é uma espécie de cará muito mais duro do que os outros, e que
inteiramente privados de qualquer espécie de ferramentas, eles tinham por
costume de arrancar, não só com o primeiro instrumento cavante que o
acaso lhes deparava; porém até mesmo muitas vezes com as próprias
unhas.
Ora, estes índios eram, segundo mais de uma pessoa me afirmou, uns
grandes corredores. E assim, achando-se eles reduzidos a meios de
subsistência tão escassos, e que além de tão escassos, não deixavam de ser
mais ou menos precários, está bem visto, que eles não deixariam de ser
também uns grandes caçadores. E eles o eram com efeito; e eram, se assim
me posso exprimir, por duas necessidades — uma física e outra moral. Por
necessidade física, porque era a caça o que constituía para eles a principal
base da sua alimentação; e por necessidade moral, porque a não ser essa
mesma caça, esses índios quase que não tinham outra qualquer espécie de
divertimento senão a dança, a qual entretanto não era, nem frequente nem
feita em toda a parte; mas segundo estou informado, só tinha lugar por
temporadas ou mais ou menos periodicamente e ao mesmo tempo em certos
e determinados sítios que eram para isso destinados; de sorte que, sendo
esses sítios muito poucos pela dificuldade de os achar e de os preparar no
mato, e que sendo, além disso, aproveitados desde tempos por assim dizer
imemoriais, eles, que iam-se tornando cada vez mais limpos e cada vez mais
duros, afinal acabaram, segundo ainda me recordo de ter ouvido contar, por
ficarem como que inteiramente petrificados. Ora deste fato de ser, como
acabei de dizer, a caça para os índios uma necessidade e ao mesmo tempo o
principal talvez de todos os seus divertimentos, veio a resultar uma con-
sequência. que sendo muito natural em todos os lugares que têm sido
ocupados pelos nossos indígenas, parece que aqui veio a se tornar ainda
muito mais sensível. E essa consequência é a seguinte — que sendo esta
mata a última parte descoberta da nossa província, ela no entretanto, não só
é hoje muito mais pobre de caça, do que as extremidades de Minas onde a
população ainda se acha muito rareada; mas até mesmo do que o próprio
centro que foi o primeiro a ser descoberto e povoado. Verdade é, que
estando a população aqui a perder de vista, muito mais condensada do que
se acha no campo ou talvez mesmo em qualquer outra parte da província,
esta bem pode ser talvez, não só uma das causas eficientes do fato; mas
quiçá mesmo a principal ou a verdadeira causa desse tão rápido e tão
progressivo desaperecimento da caça. E isto porque, derribadas como têm
sido as matas; e por consequência já não encontrando a caça aqui nem
o espaço necessário para se mo-
ver e nem talvez mesmo o alimento suficiente para se nutrir, ela, ou é com
facilidade morta; ou então trata quanto lhe é possível de ir sempre se
retirando para os lados do oriente ou da província do Espirito Santo, onde a
mata vai sempre se alargando e se tornando cada vez mais compacta. O fato,
porém, é, que a caça tem diminuído muito e que tende cada vez mais a desa-
parecer.
Quando eu aqui cheguei já os veados não entravam na classe das
coisas muito comuns. E no entretanto eu ainda cheguei a ver matar-se um
dentro mesmo da chácara que eu então possuía, por assim dizer, dentro da
própria cidade; chácara esta, que ficava quase que pegada com a igreja do
Rosário que então se começava a construir; e veado este, que ia dando causa
a uma briga ou a uma grande demanda; porque tendo sido o tal pernilongo
levantado pelos cães de um francês muito caçador que então aqui havia e
que se chamava Levasseur, e tendo depois de muitas marchas e contra-
marchas acabado por entrar pelas ruas da cidade; quem o matou, não foi o
dono dos cães que não sei onde o esperava nem por onde andava; porém sim
um dos moradores da mesma cidade, que estando em sua casa e o vendo
passar, sem a menor demora se apoderou de uma espingarda; montou em um
cavalo que por acaso se achava arreado à sua porta e como se fosse um
verdadeiro louco, disparou a correr atrás dele; até que afinal o foi matar,
como já disse, à minha vista no pasto da minha chácara.
Quase que por esse mesmo tempo, ou antes, já alguns anos depois
quando a minha residência não era mais na cidade, tenho alguma lembrança
de que esse mesmo francês ainda chegou a matar ou chegou a pegar uma
anta, pois que me recordo de me haverem convidado para lá ir vê-la; o que
não fiz, por me parecer que não valia a pena andar três léguas por um se-
melhante motivo. Mas hoje quem é que ouve mais falar em antas nem
veados?! Mesmo depois que me afazendei, ainda uma onça, cujo rastro
bastante grande foi visto atrás do meu paiol e debaixo de uma coberta que
tinha quase que pegada à casa, chegou a comer-me alguns carneiros; e o seu
propósito bem firme e bem deliberado era com toda a certeza o de não me
deixar talvez um só. E de fato, com uma intermitência mais ou menos
regular, ela os foi agarrando e levando para o mato onde os comia; até que
tendo-se armado uma espingarda no lugar onde a mesma havia escondido os
restos de um desses carneiros destinados a contentar a sua mortífera gula, e
tendo a espingarda disparado à noite quando o carnívoro havia vindo em
busca da carne guardada, desde então nunca mais apareceu. Hoje o que
desta raça uma vez ou outra por aí se encontra,
pode-se afoitamente dizer, que são apenas algumas jabutiricas ou simples
gatos do mato; mas espécie esta, que a não ser às galinhas, a ninguém mete
medo. Eu mesmo, que pouco saio de casa, já tenho visto alguns; e não só já
matei um, que por acaso encontrei nas imediações do meu terreiro; mas
ainda tive o cuidado de guardar-lhe a caveira como um padrão de glória
venatória; pois que sendo eu um caçador que apenas serve para semear
chumbo pelos matos ou cuja mão treme e os olhos fe-cham-se quando o tiro
dispara, posso entretanto dizer, sem pregar nenhuma mentira, que já
matei uma onça.
A caça, entretanto, que mais resistiu e que ainda não há muitos anos,
era uma verdadeira praga para as roças, foram os porcos do mato (queixadas
e catetes) cujas varas eram muitas vezes grandes; e que pelo que me diz
respeito, me chegavam até bem perto de casa ou a uma distância de cem
braças mais ou menos onde a mata vinha pegar ao açude.
Tudo isto está hoje muito diminuído, bem como as pacas e quase
toda a caça de pena; de sorte que a não ser as cotias o que se dá pouco
apreço e os jacus e pombas que estão também no mesmo caso, bem poucos
são os animais de pêlo que hoje se encontram, assim como já se faz uma
grande festa quando se tem à mesa um inhambu ou um jaó; e quanto a um
macuco, isso então nem se fala.
Voltando, porém, aos índios, direi, que para a caça, como para tudo o
mais eles não dispunham de outra arma senão da flecha; e quanto aos seus
costumes, o único que parece chamar a atenção dos brancos, foi justamente
o que menos atenção deveria merecer por ser muito comum entre todos eles;
isto é, de logo depois do parto irem as parturientes se banhar na água fria e
de ficarem como se nada tivessem, enquanto os maridos pu-nham-se por
elas a guardar o resguardo.
Nem todos furavam a face. Alguns, porém, não só furavam as
orelhas e os lábios; mas ainda pintavam ou bordavam todo o corpo,
sobretudo no peito e nos braços, com uma tinta que me disseram ser azul;
embora eu não conheça no mato nenhuma substância que dê uma cor
perfeitamente azul.
Apesar de haver a mais completa separação entre a vida dos brancos
e a dos índios, estes, contudo, foram pouco a pouco civilizando-se; e não
deixavam de ser por aqueles aproveitados em alguns serviços; que eram, de
ordinário, pagos com cachaça. Desses serviços, porém, aquele que lhes era
quase que exclusivo era o de derrubar o mato, no qual, dizem todos, não
havia quem os excedesse.
Um fato, que, me parece, pode ser considerado como o mais característico
destes índios foi a sua muito grande mansidão porque sendo eles os senhores
exclusivos e imemoriais de toda esta nossa mata e não lhes sendo, no princípio
sobretudo, de nenhum modo difícil disputar aos brancos a sua posse; entretanto,
desde os primeiros entrantes que viviam, por assim dizer, afogados entre eles, até os
últimos tempos em que os novos vindos iam de fato tomando conta de toda ela, não
só nunca houve um só exemplo de agressão em corpo por parte dos índios contra os
brancos; mas até mesmo pode-se afirmar que se alguma rixa individual veio a dar-se,
o que era muito natural e provável, tais rixas foram de tal natureza, que não deixaram
de si lembrança a não ser talvez nos cartórios.
É muito de supor-se que a proporção que a mata ia sen
do ocupada pelos brancos, fossem também os índios, assim como
a caça, emigrando para o oriente ou para os sertões do Espírito
Santo.
Aquilo, porém, que mais concorreu para o seu desaparecimento, foi, segundo
o testemunho geral de todos os primeiros colonizadores com quem tenho
conversado, uma epidemia de sarampos que apareceu alguns anos depois que estes
últimos fizeram aqui o seu estabelecimento; porque sendo um mal inteiramente
novo, segundo me parece, entre eles, a epidemia tomou um caráter, não só muito
intenso porém ainda extremamente geral; c como apenas a febre aparecia, desde logo
tratavam de se atirarem à água fria; o resultado foi essa mortandade tão grande e que
tanta impressão causou a todos aqueles que já se achavam aqui estabelecidos.
Quando vim para a Mata, ainda tive ocasião de ver um grande número desses
índios na fazenda da Soledade que pertencia ao capitão Quirino; e vi também ainda
algum tempo depois uma espécie de pequeno aldeamento deles, um pouco para lá do
atual arraial dos Tebas na estrada que ia para o Rio Pardo. Eram apenas alguns
pequenos ranchos muito imundos e onde eles pareciam estar sempre a
cozinhar preguiça.
Nunca soube-lhes o número ao certo; mas parece que deveriam ser uns dez
ou doze; e sei que eram homens e mulheres. Entretanto, em vez de progredirem,
parece que já se acabaram ou que estão se acabando de velhice ou talvez mais ainda
de doença.
Eu á disse que estes índios eram aqui conhecidos pelo nome de puris; e eis
aqui o que a respeito dos puris nos diz Varnhagem na sua História Geral do
Brasil:
"Porém novos perigos vinham reclamar os cuidados do Governador
em outra capitania: na do Porto Seguro, ameaçada de perder-se inteiramente,
sucumbindo à anarquia e às assoladoras invasões de uns novos inimigos
que, com o nome de Aimorés, ali se apresentavam chegados do sertão; e os
quais havidos pelos outros Bárbaros por mais que bárbaros, falavam uma
língua inteiramente desconhecida e tinham usos estranhos a todo o mais
gentio do Brasil. Não construíram tabas nem tujupares; não conheciam a
rede, e dormiam no chão sobre folhas; não agricultavam; andavam em
pequenos magotes; não sabiam nadar, mas corriam muito, não havendo
outro meio de se lhes escapar mais do que o de entrar nágua, se a havia
perto; arrancavam a fala com muita força, desde a garganta; e (o que era
mais para temer) eram antropófagos, não por vingança e satisfação de ódios
inveterados, mas por gula. Tudo induz a acreditar que eram da mesma nação
representada pelos chamados agora Puris, que também, como este nome o
expressa, são gulosos de carne humana, e preferem, como se conta dos
tubarões d'África, à carne dos brancos a dos negros, a quem designam
por macacos do chão".
Esta descrição parece combinar em quase tudo com as informações
que pude obter sobre os nossos puris e que já atrás ficaram expostas.
Lembrando-me, porém, que os dois principais característicos dos Aimorés
eram o horror à água e a sua ferocidade ou tão gulosa antropofagia; e vendo
ao mesmo tempo, que nestes dois pontos, dá-se entre os dois povos, não
uma simples divergência de costumes, porém, pode-se mesmo dizer um
contraste o mais completo; pois que ao passo que já mostrei que os nossos
puris eram de uma mansidão e de uma inoxidade sem igual; por outro lado,
eles eram ainda, conforme o testemunho de quase todos que os conheceram,
uns nadadores de primeira força; de repente suscitou-se-me no espírito uma
dúvida, que não sei mesmo se como tal possa ser considerada; e essa dúvida
que me assaltou, vem a ser a seguinte — se os nossos puris são, com efeito,
Aimorés ou se não seriam pelo contrário, algum ramo da nação tupi. Para se
cortar a questão, era preciso ouvi-los falar ou conhecer pelo menos algumas
palavras da sua língua. Mas só há meses é que me lembrei de escrever estas
Minhas Recordações; e hoje me é impossível verificar o fato por mim
mesmo; entretanto que as informações que a este respeito procurei, foram
inteiramente nulas. Apenas o que posso dizer, é que os primeiros entrantes
davam à moléstia chamada opilação o nome de cangua-ri, nome que me
parece ser tupi e que vim aqui ouvir pela primeira vez. Este nome, porém
pode ter sido importado, bem como o das aves, o das árvores e o dos frutos,
que são iguais aos dos outros lugares. Um dos rios, entretanto, que
passa mais perto
daqui, é o Pirapetinga, nome este que me parece ser puramente tupi e que ainda me parece, não
existe nos lugares donde vieram os primeiros colonizadores, para que um tal nome pudesse ser
transplantado. A minha incompetência, porém, sobre esta matéria é tão grande, que até receio
estar dizendo talvez algumas boas necedades. Mas se por acaso eu com efeito as disse, creio
que mereço ser desculpado; porque o meu desejo era unicamente o de poder fornecer algumas
informações de que os entendidos pudessem tirar talvez algum proveito; entretanto que por
infelicidade minha eu nada pude ver ou observar por mim mesmo; e o que a tal respeito me
contaram; é tão pouco, tão superficial e talvez mesmo tão incerto; que afinal de contas pode
bem ser, que se reduza a zero.
NOTA: — Eu já havia escrito este capitulo, quando me constou que nos arredores da
Leopoldina ainda vivia um velho que por algum tempo havia morado entre os Índios. Incumbi
então uma pessoa da minha confiança e para Isso bem competente, o Sr. João Guilherme
Gaede, de ver se obtinha desse velho algumas Informações que me fossem úteis. E essas
Informações, que há pouco me foram remetidas e que por mais de um motivo vou aqui
transcrever lpis verbis, são as seguintes:
«Informações obtidas do senhor Camilo José Gomes, de idade de 98 anos
já feitos e que conhece o Feijão Cru, há mais de cinquenta anos.
Primeiro — Os índios que conheceu, são os Coroados, Coporés e Puris, sendo todo o seu
comércio com estes e com eles habitou. Os seus aldeamentos eram dentro das matas e em forma
circular e constava de ranchos feitos de palha de palmito, e giravam pela margem do rio Pomba,
Roça Grande até a margem do Paraíba, e os Coroados e Caporés giravam na margem do rio
Pomba, Presidio e Ubá, e não permanecem alojados no mesmo lugar, o que fazem com que
estejam ora aqui, ora acolá.
Segundo — As suas poderosas armas de defesa e de caça constam
da flecha e do bodoque (armas que o senhor Camilo manejou com tanta
perícia como eles e que apesar da sua velhice ainda mata uma galinha,
quer com a flecha, quer com o bodoque, pela cabeça, Isto é, atirando-lhe
certeiramente na cabeça).
Terceiro — As flechas são feitas de pontas de taquaras quissé, em-brejauba e ubá.
Quarto — Além da pedra conhecida por pedra de raio que eles tinham engastada em um
pau, o que leva a supor-se que era este o instrumento primitivo, possuiam facas e foices velhas
e arcos de barril e com isto faziam tudo.
Quinto — Plantavam favas mangalê, caratinga, batatas doces, bananas da terra, e milho,
cavando a terra com cavadeira de pau e de tudo davam cabo em estado verde.
Sexto — Pescavam como timbó ou com balaios do feitio pouco mais ou menos dos
nossos giquiás, sendo de boca larga, trazendo uma armadilha para disparar e fechar-se a
tampa.
Sétimo — Nadam como peixes, fazem jangadas para seus transportes, e montados em
um pau atravessam em qualquer rio, excepto os lugares de cachoeira.
Oitavo — São corredores e de sagacidade e esperteza admiráveis e no mato andam
sempre agachados. São dados ao furto e não são leais.
Nono — Casam-se por afeição, conhecida esta; é toda a forma do
casamento, e este constituído e assim unidos, respeitam severamente.
Décimo — Fazem balaios, redes, e panelas (enormes) de barro; as redes são feitas de
corda torcida de embiriçu, tucum e de embaúba branca.
Décimo primeiro — São conhecedores de raízes e plantas medicinais, que aplicam
em caso de enfermidades.
Décimo segundo — Usam de cabelos compridos, andam nus, as mulheres é que
usavam um saco atado à cintura.
Décimo terceiro — Temem ao trovão e em grande alarido gritam tupã está brabo,
quando há trovoada.
Décimo quarto — Os que falecem são enrolados ou atados com cordas e depositados
com a sua flecha, bodoque e mais objetos que lhe pertençam, dentro de uma grande panela de
barro e assim enterrados; e de tempos em tempos voltam os que sobrevivem àquele lugar para
os chorarem.
Décimo quinto — Em tempo determinado fazem suas reuniões (uma espécie de quinteto
que costumam a fazer os pretos) as suas cantigas são de um alarido infernal e para essas
ocasiões fazem provisões de cacas assadas e cozidas; esses divertimentos duravam de dois a três
dias e nestas reuniões tornavam-se perigosos pela bebedeira que tomavam de uma bebida que
lhe davam o nome de catipueira (milho mascado e depositado com água em uma grande panela
de barro; fermentada, está pronta a bebida); a carne cozinhavam do seguinte modo — fazendo
um buraco no chão, calcando-o com pedras, folhas e terra e fazendo por cima uma grande
fogueira e finda esta, estava pronta a carne; assavam pondo em cima do fogo a carne por
meio de um estivado de paus.
Décimo sexto — A eles acompanham uma qualidade de cachorros miúdos que lhes
ajudam a caçar.
Décimo sétimo — O senhor Camilo dominava quarenta famílias pelo modo e respeito
que do mesmo tomaram por causa da arma de fogo.
Décimo oitavo — Diz o senhor Camilo que no Sapé existem algumas sepulturas e
que ele conhece o lugar e que se pode ainda verificar.
Décimo nono — Aos que eles consideravam amigos chamavam Opé.
Vigésimo — Aos indivíduos de cor branca, ao verem, diziam: aí vem raiai orutu que
quer dizer valente; e aos de cor preta diziam: ai vem tapanhê.
Vigésimo primeiro — Acreditavam muito em feitiço; tanto assim, que o indio que os
dominava, de noite afastava-se do aldeamento a fim de entender-se com o Nhaueira. Feito isto,
voltava a dar conta da conferência, determinando o que se devia fazer. Carachucha era o nome
que tinha o índio chefe.
CAPÍTULO XLVI
Dificuldades com que lutaram os primeiros habitantes de Leopoldina. 0
desenvolvimento progressivo da localidade e o grande atraso em que ainda
se achava quando o autor aí chegou. Os elementos que constituíram a
colonização da Mata de Leopoldina. Os Teixeiras Leite, os Leites Ribeiro e
os Monteiros.
Estabelecidos no meio de um sertão inteiramente bruto, compreende-
se perfeitamente quantas e de que ordem não deveriam ser as dificuldades
com que teriam, desde logo e durante algum tempo, de lutar os primeiros
que para aqui entraram. E com efeito tão grande era o estado de isolamento
em que se achavam, tantas as contrariedades com que a cada passo tinham
de arcar, e finalmente tal a escassez de tudo quanto haviam mister; que para
dar de tudo isto uma noção perfeitamente clara, creio que me bastará
assinalar um único fato. E esse fato vem a ser o seguinte — que sendo o
milho para os mineiros um objeto, não simplesmente de uma utilidade maior
ou menor, porém a verdadeira base da alimentação dos homens e de todos os
animais; e que não podendo por consequência esses primeiros entrantes dei-
xar de o ter, não só para fazerem as suas primeiras plantações, porém até
mesmo para atravessarem o primeiro ano da sua estada aqui; eles entretanto,
para o obterem, o tiveram de ir procurar e buscar, ainda que pelo preço
apenas de duzentos e quarenta réis o alqueire, a uma distância não inferior
talvez a doze léguas ou a uma povoação que fica entre as cidades do Pomba
e Ubá e que se chama S. José do Paraopeba. E isto porque, sendo o caminho
que ia para aqueles lados, de todos os mais transitável ou para falar melhor,
o menos intransitável, eram justamente esses lados os que mais cômodos de
fato se tornavam para uma condução qualquer. Se, porém, esse fato de
existir para ali um caminho, já só por si queria indicar que havia por aqueles
lados um pouco mais de habitadores; isso, contudo, não queria de modo
algum dizer que houvesse ali uma muito grande abundância e uma
civilização muito maior ou que ali se encontrassem muitos outros lugares
em que aqueles primeiros entrantes se pudessem prover do necessário. E é
assim, que embora no Meia Pataca já não deixasse de haver algumas casas
e até mesmo um certo princípio de po-
voação, era esta no entretanto tão pobre, ou para falar com muito maior exatidão, era
por uma tal forma miserável, que segundo informações seguras que a este respeito
cheguei a alcançar, um juiz de paz que ali havia, não só morava em um rancho à
margem do Pomba; mas nem sequer se dava ao trabalho ou ao luxo de vestir calças,
porém andava de ordinário só de ceroulas.
Ora se era isto o que se dava com o simples mantimento; veja-se agora o que
não seria com o sal! E com efeito, tais eram os embaraços que resultavam da
carência quase sempre maior ou menor de um gênero de uma tão grande
necessidade; que para obtê-lo com um pouco mais de facilidade, todos se reuniram e
foram abrir uma picada e fazer um caminho mais ou menos transitável, que
prosseguindo da Providência onde o antigo havia parado, foi ter à povoação do
Angu. E foi esta povoação onde desde então foram se abastecer não só de sal, mas
ainda de alguma coisinha mais que a sua vida quase que tão simples como a
dos próprios puris, às vezes exigia.
Perguntando ao meu informante qual foi a primeira freguesia e o primeiro
município a que pertenceram, depois que aqui chegaram; disse-me ele, que a
freguesia foi a do Angu (hoje Angustura) e o município o do Pomba. Creio, porém,
que deve haver nisto algum equívoco; porque sendo o Angu e S. José d'Além
Paraíba, muito mais antigos do que a Leopoldina, como poderiam pertencer ao
município do Pomba, se achavam-se dele separados pela mata ainda não aberta do
Feijão Cru? Só se havia para lá chegar algum outro caminho que fizesse uma grande
volta. Parece-me, porém, muito mais natural que as margens do Paraíba
pertencessem ao município de Barbacena ou ao de S. João Nepomuceno, se por
acaso este último já então existia. Infelizmente faltam-me aqui os meios de verificar
à qual das antigas freguesias ou municípios iam pertencendo as diversas povoações
que iam se fundando.
A questão, porém, é fácil de resolver recorrendo aos arquivos da província;
e porisso, prefiro contar a vida dos primeiros entrantes que não consta dos arquivos;
e que se eu aqui a não deixar consignada, talvez no fim de bem pouco tempo, já
ninguém se venha a encontrar que a possa de qualquer modo apanhar.
Nos começos o que unicamente se procurava, era apenas viver e ao mesmo
tempo ir arranjando os cômodos para tudo: visto que nada existia. Tudo, pois, se
cifrava em plantar o mantimento para o gasto e algum algodão com que se fizesse a
roupa. Pouco a pouco, porém, as cousas foram melhorando: os porcos aumentaram;
sobraram alguns cevados; e foi esse o primeiro
gênero de exportação que deu este lugar; sem falar na poaia em que o padre Manoel
Antônio desde logo se pôs a negociar, segundo já tive ocasião de dizer; e nada mais
podendo eu sobre isto acrescentar, senão que nesse tempo a exportação na sua
totalidade ou na sua quase totalidade era feita para S. Fidelis e não sei se também
para Campos.
Quanto ao café, este foi plantado aqui muito cedo; porque Francisco
Pinheiro e Romão Pinheiro, quando vieram, já trouxeram de Valença algumas
sementes; e foram estas as que forneceram aqui as primeiras mudas. O café, porém,
não era um gênero mineiro; os habitantes eram mineiros e dos menos progressistas
da província; e o café vegetou por muito tempo assim como uma cousa um pouco
esquisita; até que afinal alguns Monteiros com muita repugnância e como que só
para experimentar, o plantaram também; acharam que a cousa não era ruim; a moda
depressa pegou; e em pouco tempo o Feijão Cru não esteve mais para ser Feijão
nem Cru nem cozido; e graças ao café, se crismou cm Leopoldina.
Quando cheguei aqui, a cultura do café, embora não fosse ainda a décima
nem talvez mesmo a vigessima parte do que ela é hoje; já era, entretanto, bastante
avultada; ainda mesmo sem falar no Angu e S. José, que a este respeito, como em
quase tudo o mais. estava mil furos adiante da Leopoldina. Nessa ocasião grande
parte da exportação, sobretudo a da parte oriental do município, ainda continuava a
ser feita por S. Fidelis; a maior parte, porém, já se fazia por Magé ou pelo porto da
Piedade; até que a estrada de ferro veio acabar com todos esses escoadouros, de
que hoje já quase que ninguém se lembra.
Desde que alguns cristãos se reúnem em qualquer terra des conhecida, uma
das primeiras ideias que lhes vêm ao pensamen to, é a ae construírem uma igreja
onde rendam graças a Deus e um cemitério onde possam dar uma plácida morada
aos ossos dos seus. E se isto é o que acode a todos os cristãos em geral; como
poderia deixar de acudir aos filhos de uma província tão profundamente religiosa
como sempre tem sido esta nossa, e sobretudo a mineiros como eram então os
daqueles tempos, que nunca se deitavam, sem que primeiro reunida a família inteira
todos tivessem rezado o terço, e que nunca se levantavam sem ter o primeiro se
recomendado a Deus, ou quando, assim como em algumas casas acontecia, ninguém
se entregava aos seus afazeres senão depois de reunidos haverem saudado o novo
dia que aparecia, com um certo número de cânticos sagrados? Os primeiros
entrantes, portanto, que se animaram a deixar o campo para virem procurar aqui
melhores condições de fortuna, apenas
se haviam estabelecido nesta terra dos bugres, a primeira cousa de que se
lembraram, foi de não viverem como pagãos no meio daqueles pagãos; ou de terem
quanto antes uma igreja e um cemitério em que juntos pudessem rezar e onde os
ossos dos seus pudessem repousar em terra sagrada. Ora, tomada uma semelhante
resolução, Joaquim Ferreira Brito e Francisco Pinheiro, cujas sesmarias se
encontravam na Grama c no lugar onde está hoje a cidade; delas tiraram uma
pequena parte; e dessa pequena parte das suas terras fizeram doação à comunidade;
para que desde então ficassem formando o patrimônio do padroeiro que por todos
havia sido escolhido ou do tão simpático e muito glorioso mártir S. Sebastião.
Quanto aos limites deste patrimônio, não os posso determinar com bastante
precisão; mas julgo que foram o Feijão Cru e um pequeno lagrimai que vindo dos
lados do cemitério velho, atravessa a rua do Rosário, e que depois de já estar junto
com o corrego-zinho que passa pela cadeia, atravessa a rua Direita e vai entrar no
Feijão Cruz.
O largo do Rosário e a rua do Riachuelo, sei com toda a certeza que não
faziam parte desse patrimônio primitivo; pois quando aqui cheguei ou muito pouco
tempo antes de aqui chegar, ainda estavam em terras de José Ferreira Brito, o qual,
embora não dispusesse de grande fortuna, foi, entretanto, não só quem deu começo à
igreja do Rosário e nela gastou um conto de réis, mas quem deu ainda para o
patrimônio da igreja ou da câmara, que sem muita cerimônia foi logo dele tomando
conta, o terreno onde se acha hoje a referida rua ou pelo menos a parte que fica do
lado da igreja até uma certa distância e depois de um pequenino córrego que lhe
passa pelos fundos.
Quanto ao cemitério novo, esse se acha nas terras da chácara que foi minha
e das quais doei a parte que se julgava necessária para a fundação do mesmo.
Antes disso ou antes que os primeiros entrantes se dispusessem a construir
aqui uma igreja, não é de supor que se conservassem inteiramente sem missas nem
sacramentos. Eu, porém, inteiramente ignoro onde tais atos se praticavam ou como
eram eles praticados; e tudo quanto a este respeito posso talvez afirmar é que a
primeira missa que aqui se disse, teve por altar, segundo me foi asseverado, um
simples toco de sapucaia. Desde, porém, que S. Sebastião já se havia tornado um
proprietário ou posseiro como outro qualquer, não havia mais razão para que
andasse assim um pouco aos boleus pelos matos ou como um simples hóspede dos
seus devotos; estes trataram quanto antes de lhe darem uma casa própria; e
para assento da pequena capela, e
ao mesmo tempo (sem o saberem) para o assento da futura cidade da Leopoldina, foi
escolhido o alto ou o morro que ainda hoje julgo chamar-se do cemitério; e que é o
que ficava para trás da rua do Rosário na estrada que desde então começando a se
estender para os lados do Laranjal e Capivara, hoje vai ter às duas novíssimas
povoações do Campo Limpo e Vista Alegre, cuja existência como é de todos bem
sabido, é um fruto exclusivo da estrada de ferro.
Foi, pois, ali que se fez esse cemitério, cujos restos creio que ainda alcancei;
e bem assim essa igreja, que bem poucos já são hoje os que a tivessem visto.
Sc, porém, a não vimos, grande não deve ser também o nosso pesar; visto
que tanto pela forma, como igualmente pela sua matéria, essa igrejinha bem
mostrava que era obra de quem bem pouco tinha para si, quanto mais para dar aos
outros; ainda mesmo que esse outro fosse o grande protetor dos homens contra a
fome, a peste e a guerra; pois que essa igreja, que eles então ali fundaram, nada mais
vinha a ser na realidade, do que um simples ranchinho coberto de palmito e cujas
paredes eram feitas de pau a pique e barro.
Mas enfim, mesmo assim tão toscozinho como era, esse pobre rancho de
palmito e barro, não deixava de ser por isso uma igreja tão santa como outra
qualquer e até não duvido dizer mais, muito mais santa talvez do que as mais ricas
ou primorosas catedrais; visto que nestas Deus é de ordinário apenas adorado por
hábito ou simplesmente com os lábios; entretanto que, naquele tão pequenino
ranchinho, o grande altar da divindade se achava pelo contrário profunda e
magnificamente erguido no coração de cada um. Ora o homem procura o mais que
pode de aproximar-se ou de sempre se amparar à sombra da divindade; e como
porisso, não à igreja que fique por muito tempo isolada; em torno desta de que aqui
tratamos, foram desde logo se levantando algumas pequeninas casinhas ou antes
alguns pequenos ranchos que em tudo perfeitamente condiziam com aquele em que
tão parcamente se abrigava o santo.
Como, porém, se S. Sebastião é o nosso padroeiro contra a fome, isto não
quer rigorosamente dizer que o seja também contra a sede; e como S. Sebastião ali
não dava água aos seus devotos e nem aliviava o peso da que eles viam-se obrigados
a procurar bem longe; parece que eles acharam que uma vez que a água não lhes
vinha a eles, eram eles que deveriam ir à água, e como então a miséria não era tão
grande, eles um pouco abaixo da atual matriz ou ali mesmo, ou melhor, no
meio do morro onde,
à direita, segue o caminho que não sei se chame rua ou estrada que vai para a
Grama, fizeram uma nova igreja, muito ruinzinha ainda, é certo, mas que à vista da
outra, quase que parecia tomar ares de catedral. Eles, portanto, agarraram no santo, e
o trouxeram para ali. E como ninguém queria morar longe do santo; não só com a
igreja de palmito lá também deixaram as suas casas de palmito e vieram fazer outras
cá bem junto da igreja nova, porém ainda, assim como o santo já não parecia puri,
metido debaixo das cabeças de palmito e já parecia gente civilizada que tinha casa
coberta de telhas, os devotos também o acompanharam neste ponto; e em vez de
palmito (visto que então ainda não havia nascido o sapé), puseram-se também a
cobrir as suas casas de telha.
Mas isto de dizer que o santo já parecia gente civilizada é apenas um
simples modo de dizer; porque se a igreja e as casas já não eram de puris, contudo
ainda eram e iam continuando a ser casas de gente pobre e muito atrasada; até que
afinal deram o último arranco: levaram a igreja muito mais para cima ou para o alto
do morro; e ali a fizeram muito maior e sem nenhum ornato; até que. já no meu
tempo, lhe puseram torres, a entalharam e a envernizaram mais ou menos; e está
hoje senão uma cousa que chame a atenção, pelo menos alguma cousa que não faz
rir. Desde então as casas da povoação foram também pelo seu lado tratando de mais
ou menos melhorar: já ia-se achando telhas para cobri-las, tábuas para assoalhá-las,
alguma cal para branqueá-las e até óleo para tingi-las; até que hoje já algumas
existem que os donos podem mostrar sem constrangimento nem vergonha.
Quando cheguei aqui, a Leopoldina já era vila e a sua fama já começava a se
estender com uma tal exageração; que eu já havia chegado ao centro da vila e ainda
continuava a estender os olhos para diante afim de ver se podia descobrir onde é que
a vila estava. Nesse tempo a Leopoldina, incluindo-se a Grama que formava um
bairro inteiramente separado, deveria ter umas setenta ou oitenta casas mais ou
menos; e estas eram de tal natureza que precisando de uma para morar, e tendo logo
achado três ou quatro que me emprestaram (porque naquele tempo não se usava
alugar casas) eu entretanto, embora visse que eram das melhores da vila e embora se
diga que a cavalo dado não se olha o dente, preferi pagar 15$000 mensais por um
Sobradinho que fica pouco abaixo da matriz no começo da rua ou estrada que vai
para a Grama. Esse ao menos era um pouco mais limpo e em todo caso não tinha
buracos. Como naquele tempo as vidraças eram um objeto de luxo que
cabia à casa
da Câmara e a mais três ou quatro casas particulares; o que fiz, foi mandar pôr umas
duas out rês empanadas nas janelas do meu quarto e do meu escritório. E foi ali que
passei um ano bem agradável. Mas isto por duas razões; Primeiro porque a respeito
de necessidades eu fui sempre um pouco esparciata e quase nada há que me faça
falta; e segundo porque naquele tempo vivia-se na Leopoldina como que um pouco
em família; e nada há de que eu goste tanto como a vida em família ou de estar livre
de formalidades e cerimônias ou na minha mais completa liberdade. A verdade,
porém, é, que naquele tempo só se tinha carne uma vez por semana, e que ainda
assim, às vezes falhava; que eu não tinha galinheiro e nem sequer um pátio fechado
onde pudesse ter alguns frangos presos; e que se biscoitos mesmo nem sempre se
achavam, quanto mais pão; de sorte que às vezes se chagava algum hóspede e que se
tinha havido algum «descuido em conservar a despensa mais ou menos bem provida,
o resultado era, que não ficava simplesmente com a cara de unha de fome, mas até
mesmo com cara de quem passa sem comer.
Poderia aqui terminar este capítulo da descoberta e povoamento da mata da
Leopoldina; pois que na realidade nada me ocorre de alguma importância que
pudesse aqui acrescentar.
Como, porém, o Angu e S. José fizeram parte por muito tempo do nosso
município e eu ainda não disse uma só palavra do povoamento que veio para esta
mata por aquele lado; vou agora suprir essa lacuna. Assim como a colonização que
veio do lado do Pomba e do Rio Pardo era toda mineira, assim; também pode-se
dizer que a que veio do lado do Paraíba era ainda mais ou menos mineira; não só
porque me parece que foram muitos os mineiros que dos lados do Rio Preto e
Paraibuna vieram pouco a pouco margeando o Paraíba pelo lado esquerdo e
conquistando a mata; mas ainda porque mesmo dos que atravessaram o Paraíba não
poucos, ou antes para falar com maior exatidão, a maioria talvez eram igualmente
mineiros. E nesse caso creio que estão todos os membros da família Teixeira Leite e
Leite Ribeiro, que vieram se estabelecer naquelas duas freguesias e que ali se
tornaram os mais ricos e importantes fazendeiros.
Três foram, pois, os elementos que constituíram a colonização da nossa
mata; todos eles mais ou menos mineiros; e não obstante muito diferentes entre si.
Assim, aqueles que depois de terem saído da província pelas estradas de Matias
Barbosa, de Rio Preto, de novo voltaram a ela pelo Porto Novo ou pelo Porto Velho
depois de terem residido um tempo maior ou menor
na província do Rio de Janeiro, esses voltaram para a província com ideias e
costumes fluminenses; e como os habitantes de Angustura e S. José se conservaram
sempre em relações muito íntimas e constantes com a Corte; daqui resultou que a
sua civilização e riqueza era muito superior à do resto da Mata, havendo nas grandes
e ricas fazendas que ali existiam, muito maior luxo e sobretudo muito maior
conforto.
Entre Angustura e a serra da Leopoldina achava-se o segundo elemento — o
dos Monteiros —; que, genuínos representantes dos fazendeiros mineiros, trouxeram
para a Mata a aristocracia patriacal do centro da província; isto é, fazendas grandes,
muita religião, muita abundância em tudo; mas ao mesmo tempo, ideias acanhadas,
pouco gosto e pouco conforto. Da serra da Leopoldina para o lado do Pomba e Rio
Novo era o elemento democrático mineiro com todas as suas virtudes e defeitos:
muita religião; hospitalidade franca, prestabilidade sem limites; mas ao mesmo
tempo, muita ignorância, muita superstição, nada de conforto e nem mesmo às vezes
de útil ou nem sequer do quase necessário.
Houve um tempo, é certo, em que neste elemento colonizador se introduziu
um luxo extremamente tolo e foi o dos objetos de ouro e prata. E isto se deu; porque
houve um tempo, de 1850 a 1860 mais ou menos, em que sobre toda a província
mas principalmente aqui na mata veio cair como uma verdadeira praga do Egito um
grande bando de joalheiros franceses ou antes de joalheiros israelitas de todas as
procedências, os quais tiravam todo o ouro e prata velha do melhor quilate que então
havia e em muito grande abundância, deixando em troca ouro e prata falsa ou de
quilate muito ordinário e cujo peso era ainda fraudulentamente aumentado pelas
chapas de ferro ou por outras matérias de nenhum valor que eram cobertas ou
disfarçadas debaixo de lâminas muitas vezes assaz delgadas daqueles dois preciosos
metais; de sorte que eles se pediam por um objeto qualquer, cem, por exemplo, o
vendiam por cinquenta ou quarenta, e de ordinário a crédito; rebatiam logo o crédito
às vezes pela metade; e ainda assim, acabavam sempre por tirar do negócio um lucro
mais ou menos leonino. Tal era, porém, a tolice dos compradores, ou tal a lábia, os
artifícios ou a insistência dos vendedores, que não havia quase que ninguém que não
fosse vítima desta mania de ter objetos de ouro e prata ou de ostentar esse luxo tolo
ou em uma tão completa desarmonia com tudo o mais, pois que, ainda depois que eu
aqui estava, ainda ouvi contar o caso de um meu colega, que pousando em uma casa,
deram-lhe a água para o rosto em uma bacia de prata; entretanto, que, à
noite, teve ele de levantar-se e de dar um passeio até a porta do terreiro; porque
debaixo da sua cama não havia nenhum vaso, nem de prata, nem de louça, nem
de qualidade alguma.
Felizmente este escândalo dos mascates acabou por chegar a um tal ponto,
que a assembleia provincial c as câmaras municipais entenderam que era preciso
lhes pôr cobro; e tendo estabelecido sobre essa indústria impostos verdadeiramente
proibitivos, esses mascates ou antes esses verdadeiros ladrões foram pouco a
pouco desaparecendo.
Ao passo, pois, que a parte meridional do município da Leopoldina foi quase
toda ocupada por gente mais ou menos abastada e sobretudo mais ou menos
civilizada, a sua parte setentrional, incluída a freguesia propriamente da cidade, só
teve nos seus princípios por habitadores gente quase toda mais ou menos ignorante
ou que quando muito mal sabia ler e escrever e que eram todos muito pouco
abastados e em geral muito pouco civilizados. Daqui resultou, que ainda mesmo
depois que já era cidade, muitas vezes se encontrava pelas estradas um homem todo
vestido de roupa grossa pouco asseada e às vezes até um pouco esfrangalhada; com
um chapéu também grosso, sujo c velho; descalço ou com sapatos ou chinelos de
couro branco; e finalmente ou quase sempre com as pernas das calças mais ou
menos arregaçadas. Este homem ia montado em um cavalo ou burro muito
ordinário, tendo no pé uma única espora e sobre um lom-bilho muito mal forrado e
que, cm tudo, muito bem condizia com o cavalo e o cavaleiro; e tudo isto sem falar
ainda na grande e indefectível manguara ou no pirai ou chiquerá cujo cabo podia
também servir de manguara e também algumas vezes no saco que ia à garupa, ou na
enxada, no machado, ou algum outro objeto de igual natureza que ia carregando
ao ombro.
Ao ver uma figura assim tão esquipática, ninguém havia que desde logo não
pensasse que era apenas um trabalhador de roça, e, se tinha os pés inchados ou
algumas feridas nas pernas, que não acreditasse que era talvez algum mendigo e não
entretanto pondo-se a conversar com ele ou tiradas as devidas inquirições, vinha-se
afinal a saber que o tal trabalhador de roça era
às vezes um fazendeiro cuja fortuna ascendia a muitas dezenas de contos
de réis e que era ou já tinha sido eleitor, juiz de paz, vereador etc, etc.
Disto ainda se via, há bem pouco tempo.
Felizmente depois da criação da vila quando foram entrando outras
famílias e sobretudo depois da estrada de ferro que produziu no lugar uma
verdadeira revolução, as coisas têm mudado muito; e não só mesmo nas
casas mais pobres já se vê muito mais comodidades; mas, sobretudo em
público, a decência é mais ou menos geral; e os filhos daqueles jarretas, em
parte ao menos, já quase que apresentam ares de Corte.
CAPÍTULO XLVII
Como e por que foi o autor parar em Leopoldina. O autor conta as
peripécias de sua viagem e qual era o seu destino. A sua chegada em
Leopoldina. O Hotel Leopoldinense. O dono do Hotel era um homem
extraordinário. O autor não fica no Hotel. Um encontro inesperado altera
os seus planos e ele desiste de ir para S. Fidelis. Instala-se em
Leopoldina e nunca se arrependeu.
Eu já contei, como não tendo sido reconduzido no emprego de juiz
municipal de Queluz, vi-me de repente na necessidade de mudar de
carreira e de procurar um lugar onde fosse advogar.
Assim pois. sem que tivesse o menor conhecimento dos lugares para
onde ia, sem cartas de recomendações, e de mais a mais, tendo às costas
uma dívida de quase dois contos de réis e não tendo nas algibeiras mais do
que uns duzentos ou trezentos mil réis, que fossem propriamente meus, parti
de Queluz em procura do ponto em que mais me conviria estabelecer-me; e
tendo passado por Barbacena onde se achavam os Baetas a quem desejava
visitar, dirigi-me para o Mar de Espanha.
Povoação muito nova que antigamente se chamava o Cágado, e que
nunca pude saber porque foi depois crismada em Mar de Espanha, porém
que sabe-se foi apenas inventada ou de repente exalçada unicamente em
ódio a S. João Nepomuceno que por intrigas políticas se queria suprimir; o
Mar de Espanha, naquela ocasião já era uma cidade pequena, limpa e que se
poderia dizer bonitinha.
Quando ali cheguei, eu não conhecia ou julgava não conhecer uma
viva alma; mas por um verdadeiro acaso ali encontrei um contemporâneo
de S. Paulo com o qual tinha tido algumas relações em uma sociedade
secreta de beneficência ou não sei se em um clube republicano que lá havia.
E foi este meu contemporâneo que se chamava Antônio Vespaziano de
Albuquerque, quem além de me apresentar algumas pessoas do lugar, me
forneceu as informações que eu andava a procurar.
Tendo deixado o Mar de Espanha e estando cada vez mais firme no
meu propósito de continuar na minha peregrinação até
São Fidelis, comecei então a entrar no que se poderia chamar a parte mais densa da
Mata; c onde com grande admiração da minha parte, a cada passo me via estar
passando por cima dos mais belos e apetitosos palmitos, dos quais sempre tanto
gostei; que no campo eram tão caros e que só se encontravam pelos píncaros das
serras; e que agora ali estavam caídos no chão, sem que deles ninguém fizesse o
menor caso, porém, muito pelo contrário inteiramente desprezados e até mesmo
quase que de todo evitados; porque sendo naqueles tempos a opilação uma das
principais moléstias aqui da Mata, era, segundo quase todos acreditavam, não os
brejos ou a própria virgindade de uma tão luxuriante natureza a causa daquele mal
que pelo depauperamen-to do corpo igualmente depauperava a alma; porém sim e
com a maior talvez de todas as injustiças, aqueles pobres, tão esbeltos e sobretudo
tão gostosos palmitos. No dia seguinte cheguei ainda não muito tarde à Leopoldina;
e não preciso, pois que julgo tê-lo feito, aqui de novo repetir a má impressão que
recebi; pois quando esperava encontrar uma povoação grande e sobretudo muito
florescente, o que de fato acabei por encontrar não passava, pode-se dizer, de um
simples lugarejo, onde algumas casas um pouco melhores que ali se viam quase que
pertenciam unicamente a fazendeiros.
Isto não obstante, a terra não deixava de ter o seu hotel, o qual ficava na rua
Direita logo acima da cadeia, e cujo título, se bem me recordo era o de Hotel
Leopoldinense.
0 hotel, cujo dono se chamava José Maria Monteiro, era um hotel como
outro qualquer; e torna-se, por consequência, desnecessário que eu aqui dele me
ocupe. Uma espécie, porém, de Petrus in cunctis da Leopoldina naquele tempo, e
dos tipos que aqui vim encontrar um dos mais curiosos, o dono daquele hotel, além
de ser vereador, negociante de secos e molhados, procurador ou cousa que o valha
da irmandade do Santíssimo Sacramento, agente do correio, e finalmente,
subdelegado de polícia; com tudo isto e com algumas outras coisinhas mais, ainda
acumulava a profissão, o negócio ou a glória de proprietário edificador ou a de um
indefesso construtor de casas.
Verdade é, que dispondo de recursos que nada tinham de folgados, os
materiais de que ele se servia para as suas obras, tanto tinham de refugos quanto
tinham de baratos; e que por esse motivo, quase todas as suas obras nunca chegavam
a ter uma duração muito maior do que a dessa tão conhecida Rosa de Ma-lherbe, ou
dados os devidos descontos — o espaço de alguns anos. Isso, porém, não vinha de
modo algum impedir que essas obras se fizessem; e tantas já eram elas; que todo
cheio do maior
orgulho, uma das frases que de ordinário se servia quando se punha a alegar
os seus serviços, vinha a ser esta — que a Leopoldina nunca havia tido e
que era muitíssimo provável que ela não haveria jamais de ter, quem como
ele tanto obrasse.
Tendo uma tendência extremamente pronunciada para o papel de
Muckausen, a muitos fazia rir, e a muitos deixava inteiramente
embasbacados, a ousadia e a perfeita seriedade, com que ele pregava as
mais descabeladas petas. De uma inteligência menos que medíocre e de
uma ignorância que apenas se disfarçava com a moradia que algum tempo
tivera na Corte, um dia em que tratava-se de expedir voluntários para o
Paraguai, por acaso veio a dizer-se, que antes de lá chegar, eles teriam de
ficar em Montevideu. E logo o José Maria exclamou: "Oh! Conheço muito
esta cidade. Fica exatamente por trás do Pará; e uma vez já tive de lá ir, e lá
fiquei algum tempo, como guarda-marinha".
Eu não sei se foi nessa mesma ocasião, que ele ainda contou — que
tendo sido cercado em uma das ruas por um magote de seis ou oito
espadachins, ele apesar de dispor apenas do seu espadim, não só abriu o seu
caminho por meio deles; porém ainda acreditava que dos outros um só não
havia ficado que não estivesse ou morto ou ferido; o que, entretanto, não
podia afirmar com toda a certeza; porque tendo o fato se dado à noite e
querendo ele evitar a polícia ou algum escândalo, tratou o mais depressa
que lhe foi possível, de se recolher à casa.
Nem eram as façanhas de valentia ou outras de igual natureza, as
únicas que com o maior gosto alardeava. Mas homem fadado para todas as
glórias, ele não só afirmava que desde muito moço se havia dado ao culto
das musas e que havia deixado rastros numerosos e verdadeiramente
luminosos em nossa literatura; porém até um dia abrindo a gaveta do seu
balcão e tendo dela tirado um soneto de Bocage que assim começa: "Piolhos
cria o cabelo o mais dourado", depois de os ler a algumas pessoas que
estavam presentes, acrescentou, que era uma pequena poesia que, sentindo-
se inspirado, tinha feito naquele mesmo dia ou na noite precedente.
Esquecendo-se, entretanto, de que havia sido guarda-marinha e de
todas as grandezas por onde sempre havia andado, uma das suas maiores
glórias era a de ter sido chefe de cozinha ou um dos cozinheiros da casa
imperial; e era este justamente um dos campos mais vastos, por onde à
rédea solta caminhava a sua musa petalógica.
0 que, porém, o havia tornado realmente célebre, era o seu gênio
arrebatado e extremamente colérico. E como vivia sempre
a se proclamar o maior inimigo da pressa; e como por outro lado andando
constantemente a se queixar das suas comadres; nunca se podia realmente saber
quando se o tinha pelos pés ou pelas mãos; não só se tornava necessário um muito
grande tino para se lidar com ele; porém muito principalmente na agência do correio,
onde tendo-se em conta muito mais de senhor do que simples empregado, ali sempre
procedia como um verdadeiro déspota, ou como um verdadeiro Lopes, como de fato
alguns o chamavam pois que bastava a menor exigência ou a menor circunstância
que o contrariasse, para que desde logo disparasse e muitas vezes mesmo recusasse
de entregar a correspondência naquele momento; e até mesmo por muitos dias; como
isto aconteceu com um oficial de justiça chamado Antônio Lúcio, que tendo ido ver
cartas, teve em resposta — que no mundo não havia quem perdesse o seu tempo em
lhe escrever. O oficial, ou porque se insultasse ou por simples debique, mandou
assinar o Jornal do Comércio; e quando o foi buscar, José Maria, ao princípio pelo
menos, recusou-se a lhe fazer a entrega, dizendo com a maior sem cerimônia ou com
o maior desprezo — que negro não assinava jornais.
Havia, entretanto, um meio de fazer deste homem, assim tão intratável, o
mais amável e o mais paciente de todos os homens. E esse meio que era
extremamente simples, eis aqui qual era: Naquele tempo um dos homens mais
importantes do município da Leopoldina era o major José Maria Manso da Costa
Reis. Um dia, uma pessoa que não conhecia aquele major o qual era geralmente
conhecido pelo simples nome de major José Maria, o confundiu com o dono do
Hotel e deu a este o titulo de major.
Às pessoas que estavam presentes, não escapou a imensa transformação que
imediatamente se havia dado na fisionomia e nos modos do nosso homem;
chegaram a verificar que aquela tão benéfica transformação era um simples efeito
daquele título de major; e desde esse dia os que chegaram a ter conhecimento deste
negócio, tiveram nas mãos a potente vara mágica com que poderiam dominar de um
modo certo e seguro aquela tão irritável e tão furiosa fera; pois que por mais
impaciente, por mais hemorroidário ou mesmo por mais colérico que ele estivesse,
era bastante que se lhe dissesse: Perdão ou tenha paciência, senhor major! E
imediatamente o homem tornava-se macio como uma cera; e dele se poderia
fazer tudo quanto se quisesse.
Fossem, porém, quais fossem os defeitos ou mesmo os ridículos deste
homem; uma justiça se lhe deve fazer: era um ho-
mem muito serviçal e ainda mesmo no meio dos seus maiores
arrebatamentos, nunca se mostrou verdadeiramente mau.
Se, porém, todos o temiam e se muitos também eram os que, o conhecendo
mais de perto, o sabiam estimar; ninguém, entretanto, tanto o temia e ao mesmo
tempo tanto o apreciava, como um dos seus vizinhos que lhe ficava em frente; e que
formava, com ele o mais perfeito contraste; porque ao passo que aquele era baixo,
claro, muito vermelho e extremamente colérico; este pelo contrário que era alto,
muito moreno e de uma palidez um pouco hepática, era de uma tal pachorra e de
uma mansuetude tão grande, que não só geralmente se dizia que na sua casa ele era
ainda menos do que um galo e que na realidade quase que não passava de um
simples pinto que leva bicadas; porém que muito célebre chegou ainda a se tornar
por um grande número de anedotas que dele se contavam e das quais vou dar aqui
umas duas ou três para exemplo.
Tendo ido a uma festa na fazenda de D. Eusébia, onde é hoje a estação desse
nome da estrada de ferro da Leopoldina, pediu ele que no dia seguinte muito cedo
lhe dessem arreado o seu animal; e depois de ter dado os sinais que melhor o
caracterizavam, acrescentou, que era um caponacho que lhe haviam emprestado e o
melhor cavalo em que até então havia montado. Quando lhe trouxeram o animal
para montar, alguém lhe ponderou, que o cavalo era égua. Ele, porém, assegurou,
que tinha vindo em um caponacho; que estava bem certo disso; e que era aquele que
ali se achava. E quando foi bem de perto examinar, sacudiu a cabeça; e parece
que ainda ficou duvidando.
Um dia, foi ele mesmo quem contou, tendo saído a passear pelas ruas de
Mariana embrulhado em um capote de barregana, uma mulher da vida airada o
agarrou e o fechou pelos peitos na suposição de que era um outro; e já ia feri-lo com
uma navalha, quando reconhecendo o seu engano, lhe disse: "0 senhor escapou de
boas; pois por um triz, que eu lhe cortava o pescoço com esta navalha". E ele, dizia
tomado de uma violentíssima cólera, lhe respondeu: "Pois foi vossemecê quem de
muito pior escapou; pois que, se a senhora tivesse cortado o meu pescoço com essa
sua navalha, eu lhe dava um tapa".
Sendo solicitador e tendo sido em Mar de Espanha nomeado defensor de
alguns escravos de um F. Carcasseno que respondiam ao júri por um dos crimes da
lei de 10 de junho, o nosso pachorrento falou uns quatro ou cinco minutos e deixou
os pobres pretos completamente indefesos. Quando lhe foram dizer, que os seus
clientes haviam sido condenados à morte, ele
com a costumada pachorra exclamou: "Com que então foram condenados à morte!
Coitados! E se eu não me tivesse esforçado como me esforcei, o que seria
deles?!"
Ora, o hotel do José Maria sendo o único que existia no lugar, e além disso,
não havendo a menor dificuldade de o encontrar, fui direitinho a ele. Quando,
porém, já estava me dispondo para apear, eis que em forma de exclamação, ouço
partir da janela de um sobrado fronteiro uma voz que me parecia ser muito minha
conhecida e que no meio de um grande número de alegres ó lá, ó lá, trazia como
estribilho: Pois então estás aqui?!
Sem a menor demora volvi a cabeça; e quem é que ali eu havia de
encontrar? Pois era o meu colega Bié, um sujeito que já escapou de ser visconde, e
que hoje milionário, é geralmente conhecido pelo nome de Gabriel de Paula
Almeida Magalhães, mas que tendo no seio da família o apelido de Bié, era por esse
mesmo modo conhecido pelos colegas.
É desnecessário dizer que em vez de apear-me no hotel, fui desde logo
fazendo uma rápida meia volta à esquerda, e que daí a pouco estava eu caindo na
casa e nos braços daquele colega, de quem desde a nossa formatura nunca mais eu
tivera a menor notícia, e que vínhamos agora a nos encontrar nas margens do
Feijão Cru.
Tendo-lhe contado, depois das expansões próprias de um semelhante
encontro, que a minha viagem não passava da de um simples Paturot que andava em
busca de uma advocacia qualquer; disse-me o Gabriel que o que eu procurava,
estava achado: e o que realmente me convinha era mesmo a Leopoldina.
Para melhor me convencer, mostrou-me todos os seus assentos; e então com
um pouco de inveja pude logo verificar, que enquanto eu havia partido para Queluz
levando dois escravos e de lá saía possuindo menos talvez do que levara; o Gabriel,
pelo contrário, que havia vindo, logo depois de formado, para a Leopoldina, muito
pouco mais trazendo de seu do que o pobre cavalo talvez em que montava e na
garupa deste a importância da própria formatura que ainda estava devendo; no fim,
entretanto, de muito pouco mais de cinco anos, não só havia pago tudo quanto tinha
vindo devendo, e já havia se tornado senhor de muitas coisas; porém até já era
tido na conta de capitalista.
Apesar, contudo, de tudo isto, o aspecto da terra me contrariava; e a
minha ideia fixa era sempre S. Fidelis.
Como, porém, os meus animais já estavam muito estragados; e como o
Gabriel me disse que me garantia que eu não me havia
425
de arrepender e que depois de algum tempo de experiência nada me impedia que eu
fosse experimentar S. Fidelis; acabei por me render si et in quantum a este
argumento; e tendo voltado a Queluz para de lá fazer seguir a minha bagagem, no
dia 22 de setembro de 1861 aqui de novo bati carga e tratei de estabe-lecer-me.
Quanto aos resultados que de uma tal resolução se segui
ram, esses de alguma sorte se caracterizam por esta única as
serção — que eu hoje ainda aqui estou e que nunca me ar
rependi.
E de fato, muito pouco depois que aqui cheguei, comecei desde logo a
reconhecer que longe de serem fundados os meus receios, eram, pelo contrário, as
minhas esperanças que se mostravam de muito excedidas. Deixando, porém, de
parte tudo quanto a tal respeito eu pudesse aqui dizer, eu vou, e de um modo (????)
perfunctório, unicamente cosignar as duas causas (???? ) entender, mais
concorreram para a minha boa estreia na Leopoldina. E dessas causas a primeira eis
aqui qual foi:
Pouco depois que cheguei, tendo-se reunido o júri, alguém propos-me ou
veio pedir-me, que me encarregasse da defesa de um pobre diabo que se achava na
cadeia e que não encontrava quem o quisesse defender; e eu de boa vontade me
prestei ao pedido. O crime estava provadíssimo; e por esse lado não havia a menor
esperança de salvação. Parece porém, que além da declaração do réu ainda havia
alguns indícios de que o móvel do crime fora o desagravo da honra de um
marido ultrajado.
E então, como tive tempo para ler e para bem estudar o processo, tive
igualmente ocasião para preparar um discursozi-nho, no qual deixando inteiramente
de lado o crime ou a sua prova, nada mais fiz do que única e exclusivamente me
ocupar da relevância e até mesmo da grande santidade do móvel que realmente o
havia ditado. E este pequeno discurso, que alcançou a absolvição (creio que
unânime) do réu não só pareceu que havia agradado às pessoas entendidas, porém
até mesmo, e muito mais talvez ainda aos homens da roça. O que é certo, é que,
pouco depois, aparecia no Jornal do Comércio um artiguinho anónimo em que muito
se elevava aquela defesa; e que na seguinte sessão do júri, apesar de muitos serem os
réus, fui eu quem os defendeu a todos ou pelo menos a quase todos; de sorte que
muito embora naquele tempo muito poucas fossem as defesas cujo valor excedesse
de uns cem ou duzentos mil réis, só naquela única sessão do júri eu cheguei a ganhar
perto de dois contos de réis.
Quanto à outra causa ou circunstância a que acima me referi, essa foi
a seguinte. Quando cheguei à Leopoldina, dois eram os únicos advogados
que aqui residiam; e desses, tendo sido um excluído pelo parentesco em que
se achava com o escrivão de órfãos; de direito, e mais ou menos de fato,
pode-se dizer, que então não havia senão o Gabriel. Ora, pouco depois que
aqui cheguei, o Gabriel tratou o seu casamento; e como antes deste teve de
ir medicar-se à Corte, eu vim a ficar por muito tempo o único advogado da
terra; e o resultado de tudo isto foi — que sem ter necessidade de ir talvez a
mais de umas quatro ou seis audiências, eu, no fim do ano, do modo o mais
limpo e ao mesmo tempo do modo o mais cômodo havia ganho cerca de
sete contos de réis ou quase tanto quanto havia ganho durante o meu
quatriênio em Queluz e pelo modo que o leitor já sabe, tão cheio de
trabalho e de amarguras.
CAPÍTULO XLVIII
O Juiz Municipal e de órfãos de Leopoldina: Dr. João das Chagas Lobato. Quem
era esse homem. O seu retrato físico e moral e o papel que desempenhou na vida
política do país. Amizade que nunca se interrompeu. A vida em Leopoldina. A
palestra nas lojas e o gamão na botica. O voltarete, o solo ou a manilha. O coletar
de Leopoldina: uma fruta boa com casca carrasquenha. Festas de roças e passeios
pelas fazendas. Um grande giro em diligências, que rendeu muita coisa. Onde estão
Breves e Teixeiras Leite, aí também está o jogo. Os dois homens mais ricos da Mata:
José Eugênio Teixeira Leite e Antônio Carlos Teixeira Leite. A formatura do Dr.
Nominal o José de Sousa Lima e a grande festa na fazenda de D. Eusébio, sua
avó.
Quase que ao mesmo tempo em que mudei-me para a Leopoldina, veio para
aqui como juiz municipal e de órfãos (o segundo) deste termo, o Dr. João das
Chagas Lobato.
Baixo, muito moreno, e de feições que nada tinham de bonitas e nem mesmo
de muito agradáveis, o Lobato era além de seco e muito reservado, de modos
algumas vezes bruscos. Dotado de uma inteligência um pouco vagarosa, mas
raciocinadora e profunda, não possuía ele uma grande facilidade de expressão; o que
fazia com que, sendo às vezes um orador que convencia, bem poucas vezes
agradava.
Possuindo o que talvez se pudesse chamar o senso ou o tino jurídico, e
nunca deixando de estudar muito a fundo as questões que tinha de resolver, este
homem, que foi um bom juiz e um excelente delegado de polícia, se não tivesse
abandonado tão depressa o estudo do direito, teria acabado quanto a mim, por e
tornar um dos nossos maiores jurisconsultos.
Se, porém, segundo acabei de dizer, o Lobato não era, nem podia ser, um
grande orador; em compensação sabia escrever muito bem; e o seu estilo era, por via
de regra, preciso, claro e muito nervoso.
Foi ele quem, estando em um dos dias do ano de 1888 na Leopoldina,
lembrou-se de convidar a todos os cidadãos para uma reunião pública em que se
discutissem os meios de pôr um
dique ao absolutismo que nos ameaçava; e foi essa reunião justamente, que
tendo sido feita no momento exatamente o mais apropriado, chegou de
repente a converter em um foco ardente e sobretudo profundo de
republicanismo um dos mais fortes e dos mais constantes baluartes do
conservadorismo em nossa província, qual sempre havia sido a
Leopoldina.
Nem os efeitos de uma semelhante reunião se limitaram unicamente
ao município em que havia tido lugar; mas pelo contrário, o manifesto, que
dela se originou e que feito pelo Lobato e que assinado por um grande
número de pessoas respeitabilís-simas, foi publicado no Jornal do Comércio,
produziu na Corte c por toda a parte uma tal sensação; que embora se
procurasse ridicularizá-la, denominando-se República da Leopoldina ao
novo movimento que por essa forma se iniciava, o resultado foi que o
exemplo foi desde logo seguido por quase toda a província, por grande parle
da do Rio e até mesmo por outras mais longínquas.
Além deste manifesto, parece-me que ainda foi obra do Lo
bato, o do congresso republicano que se reuniu em Ouro Preto
e que teve como aquele, uma repercussão muito geral c profun
da.
Havendo entre nós mais de um ponto de afinidades ou de mútua
simpatia, desde que nos conhecemos, nos tornamos amigos; e essa amizade
ainda hoje perdura, sem que se lhe notasse jamais a menor quebra.
Eu, como já tive ocasião de dizer, morava em um pequeno sobrado
que fica, descendo, do lado esquerdo e um pouco abaixo da Matriz, e o
Lobato no que lhe fica perfeitamente em frente; entretanto que ao passo que
ainda no largo, mas já no começo da rua que hoje se chama do Barão de
Cotegipe, morava um negociante muito popular então e que se chamava
João Teixeira Lopes Guimarães, no espaço intermédio ou um pouco mais
para baixo da minha casa, morava um homem que, tendo sido o primeiro
coletor da Leopoldina, dela coletor é hoje ainda, e que, se os fatos não
enganam, terá de coletor ir para a cova.
Hoje, parece que o tratam de comendador Lucas Augusto Monteiro
de Barros, com o mesmo direito ou pela mesma razão com que outros vão
também sendo tratados que não passam de uns simples cavalheiros. Naquele
tempo, porém, a terra era ainda muito democrática, ou antes, sendo ainda
um pouco feudal, não conhecia senão dois comendadores: o primeiro que já
havia falecido e que se chamava Manuel Monteiro de Barros; e o segundo
que se chamava Manuel José Monteiro de Castro e que foi depois o
primeiro Barão da Leopoldina.
Com uma cara de limão azedo ou então de sol com chuva, com um
corpo extremamente fino e com um todo de quem nunca foi moço e jamais
envelhece; Lucas Augusto, que acotovelando a todos com quem conversa,
parece comer, beber e suar política; e que julgando-se e parecendo um
conservador até à medula dos ossos, não passava no fundo do coração de
um temível democrata; era no fim de contas, uma alma generosa, um amigo
dedicado. ou como se poderia talvez dizer, uma boa fruta cora casca
carrasquenha.
Ora, sendo a terra pequena, cada um vivendo no seio da família, e
quase que não havendo outra espécie de divertimento senão a palestra em
alguma loja ou o gamão na botica, a nossa principal distração (minha e dos
três) vinha a ser o jogo (voltarete, solo ou manilha) que era de ordinário a
dez réis o tento. E como de cada uma das casas se avistava as outras três,
desde que algum dos companheiros se sentia disposto e via aos outros pelas
portas ou janelas, dava um pequeno sinal; e a roda pouco depois estava
formada. Se, porém, dentro da vila e logo depois cidade, os divertimentos,
eram, como disse, extremamente escassos, em compensação, muitas eram
as festas de roça ou os passeios pelas fazendas, que supriam e talvez com
melhoria, os que poderia haver na povoação.
Muitas são as recordações que de tudo isso ainda conservo, Mas aqui
só falarei de um único desses passeios e de uma única só dessas festas à
que assisti.
Pouco tempo depois que cu havia aqui chegado, o Lobato, que tinha
de fazer um grande giro em diligências, convidou-me para acompanhá-lo.
Ao princípio recusei-me. Mas, tendo ele me feito ver, que além de
divertido, o passeio poderia ser para mim de grande utilidade; pois que me
tornaria assim mais conhecido e poder-se-ia mesmo oferecer alguma
eventualidade de arranjar algumas causas; acabei por ceder.
E com efeito, tudo se passou como ele havia previsto; porque, sem
falar em causas menores, eu não só alcancei uma causa cível muito simples
e que ajustei por um conto de réis; mas ainda aconteceu que o Lobato nas
vésperas da partida havia pronunciado por crime de dano a um grande
fazendeiro do Angu; e quando chegamos a S. José, o fazendeiro, que não
tinha conhecimento da pronúncia, não só ali se achava publicamente, mas
creio mesmo que foi visitar ao Lobato. Este foi às nuvens com o negócio;
mas não obstante, desde logo mandando passar o mandado de prisão e
acompanhado do seu escrivão, foi em pessoa prender o fazendeiro. E assim,
veio a se me deparar uma causa crime, que foi das melhores que tive, e
que eu teria com
toda a certeza perdido se ali não estivesse; porque, devendo-se tratar imediatamente
da fiança do homem, outro que mais perto estivesse, seria então o chamado, e
não eu que morava longe.
Pelo lado do divertimento, as coisas não foram piores; pois que sem falar
nos grandes e bonitos surubis de que tanto nos fartamos enquanto andamos pelas
margens do Paraíba, ainda por toda a parte encontramos algumas moças mais ou
menos bonitas; e na idade em que nos achávamos, quase que só isso era bastante
para que a viagem fosse boa.
Já não me recordo bem do tempo que durou essa nossa peregrinação. Sei,
porém, que além da parte do município que percorremos na ida e na volta, a nossa
viagem pela margem do Paraíba se estendeu desde o Porto Velho até uma légua
acima do Porto Novo do Cunha; o qual, naquele tempo, apenas tinha a casa da
barreira e mais duas ou três, em uma das quais havia um negócio que parecia só
ter prateleiras para vender.
Entretanto, se esta viagem me foi útil e agradável por todos os lados, foi
nela, todavia, que passei um dos meus mais incômodos ou um dos meus mais
encaiporantes quartos de hora. E eis aqui qual foi o caso. Quando chegamos a S.
José d'Além Paraíba, acabava de haver ali uma festa; e na casa em que nos fomos
hospedar, se achavam como hóspedes da festa o comendador José Eugênio Teixeira
Leite s seu irmão Antônio Carlos Teixeira Leite, que eram naquele tempo os homens
talvez os mais ricos de toda a Mata. Ora, onde estão Breves e Teixeira Leite, aí está
também o jogo; porque, parece ser um agente que já nasce jogando.
Aqueles dois ricaços, porém, não tinham parceiros p::ra o jogo e assentaram
por força de os arranjar entre a gente da justiça que com eles estava então pousada.
O Lobato foi desde logo torcendo o nariz; e com o seu modo seco e decisivo, recu-
sou-se peremptoriamente ao convite. A razão que ele deu para isso, foi que não
jogava. Mas a verdadeira creio que foi outra; e quase que posso asseverar, que foi o
existir então na casa uma senhorita muito bonita, ou pelo menos, tão simpática, que
em um dos dias seguintes, tendo eu encontrado ao escrivão de órfãos, que era um
homem já velho e carregado de família, de bruços a escrever sobre a cama ou sobre
um banco, fui ver o que o mesmo escrevia; e embora tivesse feito o maior esforço
para esconder, pude contudo verificar, que era uma quadra em louvor da deusa,
como ele a costumava chamar. E então o Lobato, que era um moço e que por ser juiz
não deixava de ter coração, assentou, que em vez de aturar a velhos jogadores,
muitíssimo mais divertido era conversar com a moça ou com as outras que
lá também havia. Vendo que nada arranjavam com o juiz, os lais senhores voltaram-
se então para o advogado. E, por mais que eu lhes dissesse que era um moço pobre;
que não tinha por costume jogar; e que ainda quando o quisesse fazer, não o poderia
fazer com milionários como eles; foi tudo tempo perdido; porque tendo eles me dito
que o jogo era a dinheiro, unicamente para prender a atenção; e que por
consequência, seria eu quem determinaria a qualidade do jogo e o preço deste; senti-
me acanhado, com toda aquela insistência; pareceu-me que da minha parte seria uma
falta de polidez o recusar; e então respondi, que não duvidaria de concorrer para o
marimbo que eles propunham, mas que havia de ser com a condição de que o valor
do tento seria quando muito de cem réis apenas. Tudo aceitaram e o jogo começou,
com efeito, a cem réis o tento; e devo mesmo dizer que nunca se alterou o seu
valor.
À proporção, porém, que ia o jogo caminhando, a parada foi também
passando de um tento a dois, de dois a quatro, e afinal era aos punhados. 0 resultado
foi que apesar de ter eu desde o começo me posto, como se diz, atrás do toco;
quando dei acordo, já me achava perdendo perto talvez de duzentos mi] réis.
Eu estava em brasas; porque além de nunca ter perdido uma tão grande
quantia, todo o dinheiro que eu tinha não passava de trinta ou quarenta mil réis. Eu.
porém, contava com o Lobato; e em uma ocasião, tendo me ausentado da mesa do
jogo, fui dele saber qual a quantia que ele na ocasião possuía ou com a qual eu
pudesse contar; e a resposta que me deu foi, que tudo quanto tinha eram dezoito
ou vinte e dois mil réis.
Caiu-me então o coração aos pés e por muito tempo pus-me a ver estrelas ao
meio-dia, apesar de ser então meia-noite porque em negócios de honra e de dinheiro,
sendo de um acanhamento e de uma susceptibilidade quase que até pueril; ninguém
pode, nem sequer de leve, fazer uma ideia do que em mim se passou, quando todo
cheio de susto e de vergonha eu me lembrava, que não tinha dinheiro para pagar
uma dívida de jogo e para pagá-la a homens altamente colocados e que me viam
pela primeira vez.
Felizmente ainda tinha alguns tentos, e tendo me dirigido para a mesa no
propósito de acabá-los e de levantar-me, pouco à pouco a fortuna começou a
bafejar-me; e conquanto saísse ainda perdendo, o meu dinheiro chegou,
contudo, para o pagamento.
Agora, a festa da roça de que prometi falar, que foi realmente muito boa,
mas que não pretendo descrever; essa teve
lugar na fazenda de D. Eusébia, que a deu com o fim de celebrar a
formatura e a chegada do seu neto, o Dr. Nomimato José de Sousa Lima.
A festa durou três dias; e durante todo esse tempo, eu dormiria,
quando muito, umas quatro ou cinco horas; porque dança-va-se de dia e de
noite; e muitos eram aqueles e muito principalmente aquelas que não
consentiam que alguém jamais dormisse.
Ora, ainda hoje que já estou velho, ninguém há que tanto como eu se
queixe do sono. E isto, porque, para que eu fique satisfeito, são
indispensáveis duas condições: primeiro que acorde naturalmente; e
segundo que tenha dormido de sete horas e tanto a oito; pois que, moço e
tresnoitado, cheguei de uma vez a dormir dezoito. E assim, pode-se bem
avaliar do triste e desgraçado estado em que não deveria achar-se a minha
pobre e tão dorminhoca animalidade.
Entretanto, o quarto dia era o dia em que se reunia a junta de
qualificação de votantes. E como eu tinha o maior empenho em vencer a
eleição, ou pelo menos, em fortalecer o meu partido; nada havia que me
pudesse impedir de ir fazer parte da junta. Saindo, pois, a lua à meia noite, à
uma hora da madrugada deixei a festa; e com o Lobato, e não sei com que
outros companheiros, viemos almoçar na Leopoldina.
Nunca, porém, tive uma viagem igual a esta; e para prova, basta
dizer, que uma légua antes de chegar à Leopoldina, eu andei, de cinco a dez
minutos pelo menos, completamente dormindo em cima do animal. E coisa
verdadeiramente admirável! Eu que acordado nunca fui dos mais firmes,
quando me vejo em cima de uma sela; assim tonto e dormindo,
não cai!
CAPÍTULO XLIX
O caráter do autor. Seus sentimentos e ideias políticas. A vida política em
Leopoldina. Esta cidade era um feudo dos Montei-ros de Barros. Como se
faziam as eleições. O autor põe-se à frente dos liberais... Deputado
provincial em duas legislaturas. Recusa a sua candidatura à deputação
geral. Motivos da recusa. Desencanto das lutas e recolhimento à vida
doméstica.
Dão-se em mim dois fatos, que embora não sejam incompatíveis,
não é frequente que se achem juntos. E esses dois fatos são que sentindo
uma grande necessidade de ordem, eu sou no fundo do meu caráter
extremamente conservador; entretanto que por outro lado, ninguém talvez
havendo em quem seja mais profundo o sentimento da independência, do
direito, e sobretudo, da própria dignidade, também talvez ninguém se
encontre, que sinta-se mais disposto a resistir e a combater, em relação a si,
todo e qualquer poder, que não se funde na própria natureza; e por
consequência, no direito e na razão.
Assim, acatando sempre a autoridade, desde que é legítima, não só
eu nunca cometi um crime, não só eu nunca faltei ao respeito das pessoas
que tem por si a investidura legal; mas até mesmo, quando estudante e em
um tempo em que se fazia garbo de nada respeitar, eu nunca deixei de
atender à mais ligeira advertência da mais desprezível sentinela; porque
naquele homem, que debaixo de tantos pontos de vista, nada poderia
absolutamente valer, eu, entretanto, não via, senão um agente dessa
autoridade, sem a qual a sociedade não pode subsistir; mas sobretudo o
representante da lei ou dessa vontade, que bem ou mal interpretada, se
presumia ser a vontade de todos. Entretanto indómito sempre contra a
tirania violenta ou disfarçada e contra toda a depressão do meu caráter
cívico, e ao mesmo tempo do caráter nacional, bem poucos terão se
conservado em uma oposição tão constante e tão intransigente, como eu te-
nho me conservado durante toda a minha vida que já não é das mais breves,
em relação ao governo que entre nós tem sido estabelecido.
Ora, com todas estas predisposições e tendo entrado muito cedo para o
estudo de latim, o entusiasmo pelas virtudes cívicas dos romanos, do bom tempo,
desde logo fez de mim um republicano por instinto ou um republicano de
sentimento; e hoje que já se tem decorrido perto de meio século, eu republicano, e
mais republicano talvez, ainda o sou. Com esta diferença, porém, que tendo sido
durante toda a minha vida e até mesmo em moço, um republicano mais ou menos
moderado, hoje acabei, entretanto, por me tornar republicano apaixonado e
verdadeiramente odiento.
E não é propriamente pelo fato da abolição, que muito embora para mim e
para a verdade não passasse de um puro efeito do despotismo real, era, no
entretanto, uma ideia justa, e que postas de parte as considerações políticas ou
puramente econômicas, poderia até chamar-se uma ideia santa. Porém unicamente,
com toda a verdade o digo, pela criação da guarda negra; porque esta criação, que a
uns assombrou, que a muitos pareceu um grande erro político, e que a todos os bons
cidadãos mais ou menos desagradou, veio mais uma vez ainda confirmar-me, que os
reis, para governarem alguns homens, não duvidariam de incendiar o resto do
universo inteiro.
Nem se diga que uma tal ideia não partisse do alto; porque ainda quando os
reis não fossem adivinhados pelos seus Sejanos, bastaria o mais ligeiro sinal de
reprovação da parte daqueles que tudo dão para que imediatamente entre brancos e
pretos reinasse como até agora a mais completa harmonia; visto que torna-se
absolutamente incompreensível, que escravos e senhores que se amavam,
tornassem-se inimigos pela liberdade; ou que aqueles que nunca se levantaram para
ser livres, queiram matar aqueles, que atónitos sim, porém, sem a menor relutância,
lhes aceitaram a liberdade. Que se poderia, porém, esperar de uma mulher beata e
sem critério ou de um estrangeiro, que, intrigante por índole e por família e mais do
que tudo cupido, nunca poderia amar a cousa alguma, quanto mais uma pátria que o
não viu nascer?!
Quando fui para S. Paulo, eu já era um republicano tão entranhado e tão
convicto; que, na aula de direito constitucional sendo um dia chamado à lição, não
duvidei de contrariar a doutrina ensinada, e de procurar, quanto pude, mostrar, que
não tendo o seu assento em a natureza, o poder moderador nunca passaria de uma
para mistificação; e por consequência, de um produto unicamente da força ou da
falta de dignidade nacional.
Não havendo partido republicano no Brasil, eu, ou por acompanhar os
sentimentos de família, ou por entender que o
partido liberal era o que mais se aproximava do meu ideal, a ele me filiei; e
o leitor já sabe, qual foi desde criança o meu ardor para a política.
Desde o momento, porém, em que cheguei a Queluz, entendi, que
um juiz não deveria ser político, e embora os liberais dali me tivessem
posto na sua chapa para eleitores, ou não fui votar ou se fui, votei em
branco.
Quando vim para a Leopoldina, não havia aqui partido liberal; e
assim como em Queluz, as minhas relações foram principalmente com os
mais firmes ou mais notáveis conservadores. Se, porém, na Leopoldina, não
havia um partido liberal; nem por-isso, deixava de haver alguns liberais,
que abatidos pela falta de consistência, porém, não desanimados e muito
menos ainda conformados como que pareciam unicamente esperar por um
chefe que os soubesse congregar e dirigir, para se atirarem a essas lutas a
que muitos nas suas terras se haviam dado e que aqui não podiam dar-se. À
vista disto, e tendo logo sabido que eu sempre fora, não só um liberal de
família e de inclinação, porém, até mesmo um republicano convicto, o que
depois veio a ser a maior arma que aqui se empregou contra mim, os
liberais digo, na primeira eleição que se efetuou, trataram de fazer também
a sua chapinha; e sem que me consultassem, nela incluíram o meu nome.
Ora, feudo dos Monteiros de Barros desde os seus começos e em cujas
eleições o Dr. Antônio José, ou fosse para juiz de paz ou fosse para
deputado, quase que de ordinário só perdia o seu único voto, tudo na
Leopoldina que se referia à vida política, tinha um certo que de patriarcal
ou puramente de família; e o que acontecia, era que, tanto as qualificações
como as eleições não passavam na realidade de puras formas ou só se
faziam para constar. Assim portanto, não é de admirar, que as qualificações
da Leopoldina estivessem todas cheias de descui dos e até mesmo de
irregularidades mais ou menos substanciais.
Quando terminou-se a eleição, e que os liberais foram vencidos,
como todos esperavam, eu pedi a palavra; e um pouco por desfastio, mas
sobretudo para agradecer a fineza que os liberais me haviam feito, fiz um
protesto fundado naquelas irregularidades; e protesto este, que, se houvesse
necessidade de anular os votos da Leopoldina para vencer a eleição de
deputado, muito bem se o poderia fazer, sem que se desse o menor
escândalo.
Se o anti-cristo tivesse aparecido ali naquele momento ou se uma
bomba de dinamite tivesse ali arrebentado sem que se soubesse donde havia
partido, não faria o mesmo efeito que produziu o meu protesto. Ao
princípio houve apenas um grande es-
tupor. Mas quando se passou aquela primeira emoção, foi só então que
todos aqueles inocentes e tão pacatos cidadãos começaram a refletir em
todas as ciladas e em todas as enormidades de que era capaz o espírito do
mal. "Que pena! Um moço tão bom!..." era o que se ouvia dizer a todos
aqueles que me eram mais amigos. E esta exclamação, que no caso vertente
quase que chegava a equivaler àquela outra antiga e muito conhecida — até
fuma! — queria de alguma sorte dizer, que apesar de toda a minha
bondade, não havia talvez monstruosidade alguma de que eu não fosse
capaz.
Felizmente, criados pelos Monteiros de Barros, cuja índole (a dos
velhos pelo menos) foi em todos os tempos profundamente ordeira e
inimiga de espalhafatos, os conservadores da Leopoldina mostraram-se
igualmente em todos os tempos muito cordatos e moderados; e embora
desde então mostrassem para comigo uma extrema prevenção política;
entretanto, não só nunca me fizeram nem me quiseram o menor mal; mas
muito pelo contrário, continuaram sempre, fora da política, a me estimar
como dantes. Isto, porém, não teria assim se passado, se invés de ter sido
feito o meu protesto na Leopoldina, eu o tivesse ido fazer no Meia Pataca;
porque o senhor feudal daquele lugar, que era um meu parente por afinidade
senão também por sangue e que se chamava o major Antônio Vieira da
Silva Pinto, longe de ter essa longanimidade dos Monteiros, formava, pelo
contrário, com eles a mais perfeita antítese, de sorte que, ao passo que os
Monteiros, nunca deixaram de ser uns homens perfeitamente patriarcais,
aquele major veio a constituir o último e o mais perfeito tipo dos antigos
capitães-mo-res que teve a nossa província ou pelo menos daqueles que
pude por notícia conhecer. E para que não se creia que estou exagerando,
vou aqui consignar um único fato mas que só por si é suficiente para
caracterizar o homem.
0 major Vieira, depois de ter feito sair da freguesia a um dos seus
genros que foi o último liberal que se animou a lhe fazer frente ali, tornou-
se o senhor incontestado e o mais absoluta daquele lugar. Em 1863, porém,
tendo subido os liberais, um negociante chamado Moretzon, que para ali se
havia mudado e que tinha sido nomeado subdelegado de polícia, tentou
erguer o partido e disputar a eleição ou pelo menos sustentar uma chapinha.
0 major, porém, mandou-lhe dizer, que o partido liberal no Meia Pataca era
de tal natureza; que nem o próprio chefe era digno de votar; e que não havia
de votar. No dia da eleição, sendo Vieira como sempre o juiz de paz
presidente da mesa, Moretzon colocou-se atrás da sua cadeira para assistir à
eleição. Quando na
chamada dos votantes chegou ao nome do chefe liberal, o major Antônio Vieira,
como por uma simples distração, passou por cima do seu nome e chamou o
seguinte.
Como era bem de prever, o vigilante Moretzon não deixou de reclamar. Mas
por mais que reclamasse e que até com o próprio dedo mostrasse o seu nome na
lista, o major, pelo seu lado, insistiu que ali não estava ou que o não enxergava; e o
reclamante teve de ficar sem votar. Na primeira reunião da qualificação, o major
não deixou de o eliminar; e o eliminou por falta de renda; e tendo Moretzon
recorrido para o conselho municipal, que na sua maioria era composto de
conservadores, foi o seu recurso unanimemente provido; e o seu nome foi incluído
na qualificação.
Na primeira eleição que se seguiu, apresentou-se Moretzon para votar; e
terminada a chamada sem que o seu nome fosse proferido, e tendo ele reclamado
que se o chamasse, o major lhe respondeu, que o reclamante não havia sido
qualificado. E quando este se pôs a insistir que estava, aquele lhe perguntou quem o
havia qualificado? Então Moretzon com os documentos que tinha nas mãos, lhe
disse, que quem o havia qualificado fora o conselho municipal. "Pois, senhor
Moretzon, respondeu-lhe o major com o mais imperturbável sangue frio, se quem o
qualificou foi o conselho municipal, é lá que o senhor deve ir votar. Vá, vá votar no
conselho municipal". E o pobre Moretzon não teve outro remédio, senão depor o
voto no bolso e de conservar bem quietinha a língua dentro da boca.
Voltando, porém, ao que ia contando da eleição da Leopoldina, direi, que
sendo por aquela forma e um pouco sem querer estimulado para a luta; o que, dada a
minha natureza, vê-se bem que não seria das cousas as mais difíceis; pus-me desde
logo à frente dos liberais; fiscalizei e promovi as qualificações; e na primeira eleição
que depois desta teve lugar, os liberais, que, antes nunca passavam de uns trinta ou
quarenta votos, tiveram cento e muitos; e o fato foi tão estrondoso que
repercutiu por fora.
No fim de 1863, lendo nos jornais a chapa de deputados provinciais, vi, com
a maior surpresa da minha parte, que o meu nome estava nela. E até hoje nunca
pude saber quem foi o autor desta lembrança. Tendo sido eleito, fui tomar assento
na primeira sessão da legislatura; e tendo deixado de ir à segunda, os deputados
provinciais, que organizaram a nova chapa, não quiseram deixar de fora o meu
nome; e fui ainda assistir à primeira sessão desta nova legislatura. Foi então, que, da
parte do presidente da província que era naquele tempo o Dr. e hoje Conselheiro
Saldanha Marinho, vieram me sondar, ou antes me propor, para ser um dos
candidatos à deputação geral pelo então 5.' distrito eleitoral desta província, onde
nasci e onde tenho uma tão grande parentela.
Eu, porém, desde logo e sem sequer a menor hesitação, recusei. E isto por
dois motivos: primeiro porque chefe da maioria que era histórica, e quando se
tratava de dar entrada na província à situação progressista, eu não poderia aceitar
uma candidatura que deveria ser apoiada por um presidente a quem eu não queria
apoiar e a quem ia talvez bem depressa hostilizar; e segundo porque, sendo o 5º
distrito extremamente conservador, eu não poderia naquela ocasião ser eleito, senão
por meios pouco honrosos. em meu lugar, ou em falta de outro, foi então incluído o
Dr. Cesário Alvim, que, sendo naquela época carne e osso com o conselheiro
Afonso Celso então ministro, representava então na assembleia o papel de um fino
diplomata, que, presentindo bem e não podendo de todo os evitar, procurava ao
menos demorar ou amortecer os golpes que estavam pendentes e que às vezes caíam
sobre aquela situação, que se esforçava por defender. Tendo entrado na chapa, ele e
os seus companheiros foram, com efeito eleitos. Mas para isso, além de uma
compreensão extraordinária, foi ainda preciso que na câmara se fizesse uma injusta
depuração de alguns colegas.
0 pouco que cheguei a ver da nossa alta política bem depressa me
desencantou de todas essas lutas em que as ideias inteiramente desapareciam, para
cederem, sem pejo nem lógica, o seu lugar às piores paixões e a um interesse muitas
vezes sórdido. Não tendo, portanto, comparecido à segunda sessão daquela
legislatura, quando, no fim de 1866 se tratava de organizar uma nova chapa, escrevi,
ao Dr. e hoje conselheiro Lima Duarte que se achava encarregado desse mister, que
eu não queria mais ser deputado provincial e indiquei-lhe um nome que poderia
entrar em meu lugar. Desde então fui cada vez mais me recolhendo à vida do-
méstica. E já nem sequer me lembrava de concorrer às eleições como um simples
votante; quando afinal o aparecimento do partido republicano veio de novo
despertar no meu coração as chamas dos meus antigos tempos.
Infelizmente já não pode servir para as pelejas um antigo e desventurado
corcel, que, indómito e brioso embora, além de
velho e cansado, já se sente estropeado. E não obstante, assim como os
velhos que se assentavam nas praças públicas para estimularem os
combatentes, eu onde estou e quanto posso, sirvo-me da palavra e da pena,
para bradar — avante!
E no dia de cada eleição, esquecendo próximos parentes e os meus
mais íntimos amigos, o meu voto que nunca falta, quando isento como a
própria liberdade, ou quando tão puro como a mais pura das ideias, veloz se
atira pelas profundezas da urna, dentro ou fora unicamente brada — viva a
república!
CAPITULO L
A influência do acaso na vida do autor. O seu fatalismo e a força
desconhecida que o arrastava. As surpresas do destino e a história
do seu casamento.
De tudo quanto acabei de referir no anterior capítulo já o leitor ficou
sabendo, que eu fui eleito deputado provincial sem pretensão da minha
parte; e por consequência, por um puro acaso. 0 que, porém, o leitor não
sabe e que eu agora não duvido de lhe dizer, é que essa eleição foi para mim
um motivo de boas venturas; porque não só ela ofereceu-me ocasião para
merecer dos meus companheiros da assembleia uma tal ou qual
consideração; mas muito principalmente, porque direta ou indiretamente
essa eleição ou a minha estada na assembleia veio a ser causa de certos
fatos, dos quais o meu coração guarda até hoje uma bem funda lembrança.
Além disto, o leitor muito provavelmente ainda não se terá
esquecido, de que mudando-me aqui para a Leopoldina, um semelhante ato
nada mais havia sido, do que um simples efeito do acaso; uma vez que além
de ter sido por um puro acaso que vim aqui encontrar ao meu amigo Bié,
ainda acresce, que sendo essa uma resolução que tive de tomar um pouco de
afogadilho, eu não cheguei na realidade a tomá-la em consequência de uma
intuição que se pudesse propriamente denominar minha, porém, antes como
que arrastado pela influência de outrem ou inteiramente contra a minha
vontade. E não obstante, o leitor não deixará de estar igualmente lembrado
de que muito longe de ser isso para mim um mal, tornou-se muito pelo
contrário para mim e desde logo, um motivo de verdadeira felicidade; visto
que no simples espaço de um ano eu não só cheguei a ganhar tanto ou quase
tanto quanto eu havia ganho em Queluz durante todo o meu quatriênio;
porém o que muito mais é ainda, sem que tivesse para isso o imenso
trabalho e sobretudo os grandes desgostos e incômodos de espírito que por
lá passei.
Isto que se deu com a minha eleição e que antes já se havia dado
com a minha mudança para a Leopoldina, é o que sempre se tem dado
em todo o curso da minha vida.
E não só já o leitor teve talvez ocasião de o notar, quando me ocupei
da minha formatura e depois disso quando tratei da minha nomeação de juiz
municipal e da minha mudança para Queluz; mas será isso ainda o que terá
de observar, se por acaso no curso destas Minhas Recordações, cu chegar,
além de outros fatos de muito menor monta, a me ocupar de minha
passagem de advogado para lavrador e finalmente do modo como cheguei a
conceber e executar o Julgamento de Pilatos.
E com efeito, isto tem se refletido tantas vezes, e tal influência tem
acabado por vir a exercer sobre o meu espírito, que se eu fosse capaz no
que vai de telhas acima, de acreditar com fé em alguma cousa, eu talvez
pudesse dizer, que hoje não passo de um perfeito fatalista e com relação à
minha pessoa de um fatalista otimista.
Felizmente, além de que a metafísica do homem muito pouco influi
no seu proceder e o que dirige ou pelo menos às mais das vezes arrasta ao
homem, são os seus instintos, ou se quiserem, é o seu caráter; acresce ainda,
que a crença na fatalidade é tão contrária à atividade e a essa tão grande
presunção de que o homem foi dotado; que não há um só fatalista, que
jamais fosse lógico. Ora eu não nasci para ser um fatalista; e tanto que não
há talvez ninguém, que tão pouco apreço dê ao presente e que tanto se
ocupe do futuro.
Mas o que não deixa de ser igualmente certo é que tenho sido desde
moço tão prudente e tão previdente; que pondo inteiramente de parte toda a
modéstia, eu posso dizer com a mais inteira verdade, que, no pequeno
círculo das minhas relações, de ordinário, os meus conselhos ou as minhas
opiniões se revestiam quase que da autoridade de um oráculo; donde a
conclusão que daqui se deveria tirar, seria — que tudo quanto sou ou que
todo o bem que no curso da minha vida eu possa de fato ter colhido, só a
mim o devo. Pois bem; este homem, que assim tem gozado de um conceito
tão elevado de bom senso, de prudência e de previdência, é o primeiro que
reconhece e que não sente o menor vexame de confessar, que tudo quanto a
si realmente deve neste mundo, é pura e simplesmente o bom conceito que
chegou a alcançar dos outros e evitar as más consequências de um
procedimento sem critério nas coisas mais ordinárias da vida. Quanto,
porém, ao seu verdadeiro destino ou quanto aos pontos capitais dessa
mesma vida ou ao que constitue os verdadeiros picos dessa tão pequenina
montanha, o coitado de mim, como diz Fernão Mendes
Pinto, nada absolutamente mais tem feito, do que ser às mais das vezes
arrastado por uma força, que ele mesmo não conhece, e que o arrastava, de
um modo inesperado e muitas vezes irresistível, para onde nunca os seus
desejos e muito menos talvez ainda a sua vontade o aconselhavam que
fosse.
E o que mais é e o que sobretudo o acabava por confundir, é que
sempre achava um bem onde só esperava achar o mal; ou que o caso
sempre esperava por se mostrar mais sábio.
Disto vou dar uma nova prova. Legítimo e muito genuíno neto de
meu avô, eu desde a idade a mais tenra comecei a mostrar pelas pessoas do
outro sexo a mais pronunciada inclinação. Esta precocidade foi em mim de
uma tal natureza; que talvez seja eu o único homem que verdadeiramente
não conheça qual tenha sido o seu primeiro amor; visto que, se muito
perfeitamente eu ainda me recordo da primeira vez em que o tal bichinho,
deixando inteiramente de parte as suas antigas e tão inocentes cócegas, se
lembrou de muito seriamente se por a me roer o coração; por outro lado
aquilo que ainda hoje é para mim uma questão que eu não poderia com
alguma certeza resolver, é se naquela ocasião eu já teria então chegado ao
fim do meu décimo primeiro ano. E é ainda para mim extremamente
duvidoso, se em uma semelhante idade já se pode amar. Desde então até
que afinal me casei e que cheguei hoje a esse, não sei se diga triste ou se
venturoso estado, de olhar para a mais formosa das moças com os mesmos
olhos com que me poria a contemplar alguma gabada ou bonita pintura, a
parte mais interessante ou pelo menos a mais cheia da minha vida pode-se
dizer que outra cousa mais não foi, do que uma série nunca initerrupta de
variados e multíplices galanteios, que resvalando, por assim dizer, muito de
leve pelo coração, iam ter na imaginação apenas, o seu principal, ou talvez
antes, o seu exclusivo teatro. A despeito, porém, de tudo isto ou por isso
mesmo talvez, deu-se comigo um fato realmente singular; e foi — que
nunca me passou pelo pensamento uma ideia um pouco mais consistente,
de que pudesse ou devesse realmente casar-me.
Quando mudei-me para a Leopoldina, as minhas ideias a este
respeito estavam por tal forma assentadas; e o casamento havia sido tão
absolutamente eliminado do número das coisas prováveis da minha
existência; que tendo algum tempo depois que ali cheguei comprado uma
pequena chácara; a casa que desde logo tratei então de construir e onde me
parecia que teria de passar o pouco ou muito de vida que ainda me ficasse
para viver, na realidade não passava de algumas salas e alcovas, onde
apenas se poderia mover um simples homem solteiro que não fosse dos
mais gordos e que de mais a mais não gostasse dos badulaques — teteias.
Quando em 1864 fui para o Ouro Preto tomar assento na assembleia
provincial, ainda esta minha pequena casa estava levando a sua última demão. Se,
porém, como se diz, o casamento e mortalha no céu se talha, às vezes quer me
parecer, que esse talhamento nada tem de cousa feita à última hora; mas que o céu,
pelo contrário, ou por ser inimigo de pressas ou por ter ao seu dispor o tempo e a
fazendo ou muito principalmente pelo seu grande e incomparável saber-fazer; desde
longe apronta tudo: e que às vezes quase que leva a sua bondade em ir prevenir ao
freguês que a sua obra já está pronta. E senão, o leitor, que me vá ouvindo; e depois
hei de pedir-lhe, que me diga, se é assim ou não.
O Juiz de Fora, que durante algum tempo se denominou a vila e a cidade do
Paraibuna, mas que por ter então o povo combinado em preferir ao nome do rio que
o banha o de algum caturra que por ali morasse, a lei veio a não ter outro remédio
senão o de que o crismar de novo, hoje é de fato e de direito a cidade do Juiz de
Fora. Em princípios de 1850, porém, essa cidade que é hoje tão catita e que parece
um pedacinho da grande cidade do Rio de Janeiro, não era nem sequer uma simples
freguesia desta nossa tão vasta e tão sertaneja província; e até mesmo muito poucos
anos antes disso, pode-se ainda acrescentar, que não passava de um pobre e bem
insignificante lugarejo ou de um simples rancho de tropa. Tudo quanto é hoje o Juiz
de Fora, ele principalmente o deve a um dos filhos mais empreendedores que a nossa
província tem tido e que ainda quando o Brasil vivia a ressonar mais ou menos
narcotizado no colo de Senhor D. Pedro II e que ainda ninguém se lembrava de falar
em Mauás e muito menos, ainda em atravessar a vapor a serra do Mar, e quanto mais
a Mantiqueira, já havia ele sozinho se encasquetado em ligar o Ouro Preto à Corte
por uma estrada que fosse estrada: e inventou essa obra monumental que veio depois
a se chamar a União Indústria. No ano de 1861 a estrada tinha enfim chegado à
então cidade do Paraibuna; parte do grande sonho de Mariano Procópio estava enfim
realizado; e desde a colonização alemã do Juiz de Fora, que era ainda mais uma das
suas criações, se poderia ir em um dia à imperial cidade de Petrópolis ou ao Porto da
Estrela; e podia-se ir desde então sem lama, sem caldeirões; e quem o quisesse ou
pudesse, ao abrigo do sol e da chuva. A inauguração da grande obra marcou-se então
para o dia de S. João daquele ano; e como a família imperial vinha a ela assistir e era
essa a primeira vez que o imperador se dignava de ver a nossa província; foi esta
uma das festas mais estrondosas de que rezam os nossos anais daqueles tempos
passados.
A família imperial foi hospedada no bonito castelo que Mariano
acabava de ali fazer, e que ainda hoje merecendo uma justa admiração de
todos aqueles que o vêem, passava naquele tempo por uma verdadeira
maravilha. Para auxiliá-lo na recepção das imperiais pessoas, o anfitrião de
toda aquela festa convidou a família do conselheiro Luiz Antônio Barbosa
com a qual entretinha relações antigas e muito estreitas de amizade; de
sorte que ao passo que a viúva daquele conselheiro teve então de fazer
companhia à imperatriz, as duas filhas mais velhas acompanhavam as duas
princesas.
Tratando-se de um ato e de uma festa de tal importância e para a
qual de todos os lados era tão grande a concorrência; não era possível que
a capital se conservasse indiferente.
E com efeito, além da banda de música do corpo policial e de um
corpo de cavalaria, partiu do Ouro Preto para ali o presidente da província,
que era então o conselheiro Pires da Mota; alguns funcionários da mais alta
categoria; e entre estes o Dr. hoje conselheiro Quintiliano José da Silva que
para ali foi, ou como juiz de direito e dos feitos da Capital, ou então,
segundo me parece, como chefe de polícia interino que então era. Ora, o Dr.
Quintiliano era naquele tempo o correspondente do Jornal do Comércio em
Ouro Preto e quando mandou para o Jornal a descrição daquela festa; ele,
ou porque tendo sido cunhado do conselheiro Barbosa, quis pagar com um
elogio às filhas um tributo à memória do morto; ou talvez antes, como sou
muito mais levado a acreditar, estando viúvo, havia pouco tempo, não pôde
ser bastante forte contra os encantos de duas jovens, que muito mais do que
formosas, pareciam se revestir desse brilho, muito mais raro e muito mais
talvez irresistível, de um espírito cintilante e de uma inteligência culta; o
que é certo, é que fez daquelas moças uma descrição tão extremamente
lisonjeira; que ao ler a correspondência, o meu coração como que se pôs a
escutar; e que ao passo que a minha imaginação me dizia que era
exatamente assim o ideal que algumas vezes devaneando eu havia feito de
uma esposa para mim; ia o meu coração por outro lado, todo cheio do maior
enlevo, a acompanhando sempre; até que parecendo nada mais fazer do que
repetir um eco de uma voz suave e remotíssima que parecia partir das
maiores profundezas da minha alma, de repente eu exclamei: Oh! Se eu
pudesse me casar com uma delas... Mas quando parecia andar por este
modo tão docemente a divagar por essas belas e tão encantadoras regiões
em que únicas nos é dado de gozar sem dor, fui de repente despertado por
uma voz, que no
meio de uma grande gargalhada, me dizia: Absurdo! E com efeito, era
aquela exatamente a vez primeira, que eu ouvia falar daquelas moças.
E ainda assim, para ficar desde logo sabendo, que eram filhas de um
homem que havia sido um ministro de estado e que morrera senador; que
tinham recebido uma educação finíssima; e que sobrinhas do mordomo do
paço, conviviam com as princesas. E eu? Que era eu? Um triste, modesto e
bem insignificante juiz da roça, ou para falar de um modo muito mais
preciso ou de um modo muito mais claro, um pobre moço que apenas tinha
para viver um pergaminho que tanto lhe custara e que tão pouco lhe rendia;
que inteiramente desconhecido, só tinha por si essa arma modesta e de
ordinário tão pouco apreciada de uma vida sem mancha; e que de mais a
mais, nunca tendo tido o gênio, e muito menos talvez ainda, a vontade, das
belas aparências, não passaria talvez aos olhos da frivolidade dourada e
sempre estulta, de um simples matuto. Tudo, pois, não passou de rápido
sonho que acordado se esquece ou de um simples relâmpago que fúlgido
brilha e que desaparece para sempre.
No mês de julho de 1864, ou três anos perfeitamente exatos depois
disto, eu me achava no Ouro Preto como membro da assembleia provincial.
E como eram muitos os dias santos e a assembleia talvez não trabalhasse;
assentei de ir passar em Queluz as festas de S. João.
Mandei, pois, buscar os meus animais que lá se achavam; e quando
chegaram no dia 22, mandei que fossem postos em um pasto que havia logo
na saída do Ouro Preto, e que cercado de um alto muro, era fechado por um
grande portão. Na noite desse dia estava em um baile em casa do Dr. Carlos
Tomás de Magalhães Gomes, quando, já quase no meio do baile, ali
apareceram umas moças, que pelo seu ar, pelos seus modos e até pelo seu
próprio vestuário, desde logo se via que não eram de Ouro Preto. Perguntei
quem eram. E responderam-me, que eram filhas do conselheiro Luiz
Antônio Barbosa que indo para Matozinhos a visitar a avó, estavam de
passagem no Ouro Preto. E cousa admirável! Não fizeram em mim a menor
impressão; e nem sequer me passou pelo pensamento a inauguração da
União Indústria. No dia seguinte de manhã apareceu-me em casa um meu
colega de assembleia, o vigário Paraíso; e da parte do Dr. Quintiliano me
disse, que para obsequiar a sua cunhada e sobrinha que se achavam em sua
casa, aquele Dr. pretendia dar uma reunião familiar e que esperava que eu a
ela não faltasse. Respondi que estava unicamente à espera dos meus
animais; e que apenas os mesmos chegassem, partiria para Queluz.
Os animais, porém, haviam
fugido daquele pasto tão seguro; durante o dia não apareceram e eu fui, à
noite, à reunião. Na hora da despedida, as filhas do Dr. Quintiliano, que me
tratavam com alguma familiaridade desde os tempos em que residi em
Queluz e onde estiveram alguns meses, exigiram de mim com a maior
insistência que não faltasse à reunião do dia seguinte. Mas embora aquela à
que eu acabava de assistir já me tivesse parecido extremamente agradável,
não quis ceder, senão sub conditione; isto é, caso os meus animais ainda
não aparecessem no dia que ia seguir-se. Os animais, porém, que pareciam
haver sido escondidos por algum encartador ou que haviam se apostado
para não me levarem à Queluz, ainda neste dia não quiseram aparecer; eu
tive de cumprir a minha promessa; e não só esta segunda reunião me
pareceu muitíssimo mais agradável do que a primeira; porém, aconteceu
ainda, que no terceiro dia os animais tendo aparecido, começou a parecer-
me — que parte dos dias santos já não tendo eu aproveitado, seria agora da
minha parte uma falta de cumprimento dos meus deveres cívicos, se não
concorresse com a minha presença para que por falta de número não
deixasse de haver sessão. Eu, pois, fiz voltar a minha condução; e em vez
de partir para Queluz, continuei a nunca dar parte de ausente nas reuniões
daquele doutor.
Como, porém, não há mal que sempre dure e nem bem que não se
acabe, no fim de uma semana, aquelas moças partiram; e o Ouro Preto
pareceu para muita gente o lugar o mais êrmo e o mais aborrecido de
quantos o céu cobre.
A 20 de agosto eu e os meus colegas de assembleia, o Dr. Francisco
Vicente Gonçalves Pena e o Dr. Washington Rodrigues Pereira partimos
para a fazenda de André Gomes que fica à pouca distância de Sabará; no
dia 22 ali chegamos; e no dia 23 Monsenhor José Augusto Ferreira da Silva
dizia u'a missa em ações de graça pelos três casamentos que acabavam de
ajustar-se.
No dia 25 deixando o André Gomes em um estado de minha alma
que bem poucos poderiam compreender, recolhi-me para a Leopoldina. E
desta sorte, entrevista, por assim dizer, apenas, eu agora e bem depressa e
quando ela acabava de prometer ser minha, ia de novo separar-me dessa
noiva, com a qual, havia três anos a minha imaginação tinha sonhado; e
cerca de 5 bem vagarosos meses que não foram entretanto inteiramente
despidos de uma certa dulcidão ou desse tão agridoce encanto da esperança
de um bem que se reputa certo, nós vivemos unicamente das nossas cartas.
A 2 de fevereiro, porém, de 1865, na fazenda do Cafezal, aquele
mesmo Monsenhor José Augusto, em presença do vigário
de Juiz de Fora, celebrou os três casamentos; e desde aquele dia começou para
mim uma existência inteiramente nova.
Hipocondríaco e insociável por natureza, mais de uma vez, diante desse
ônus e de todas essas contrariedades grandes e pequenas que constituem, por assim
dizer, a parte pouco atrativa ou a mais dissaborida de uma família qualquer, eu
quase que tenho me arrependido de me haver casado. Ouvindo, porém, e bem
depressa, essa voz íntima e tão alta da gratidão e da razão eu a mim mesmo desde
logo brado: "Mas desgraçado, sem essa mulher que Deus te deu, ou até mesmo sem
essa família que tanto te pesa ou te incomoda, o que seria de ti?!"
E reverente e grato curvo-me então perante essa Providência que
misericordiosa sempre para comigo e tão benigna, tantos e tão grandes bens me tem
outorgado, que eu não procurava nem talvez os merecesse; e dos quais foi o maior
talvez essa sócia dedicada, tão cheia de brandura e tão paciente, dos meus agros,
indómitos e tão íntimas desprazeres. (*)
(•) NOTA: — Meu Pai foi sempre um idealista — Os bens materiais nunca o
seduziram. Por Isso, ele deixou sem resposta a seguinte carta, encontrada no seu
arquivo e que ora se publica como documento interessante da época. Eil-a:
Fazenda do ............................... 10 de Dezembro de 1863.
Meu colega e amigo Sr. Dr. Rezende.
Tenho uma filha única e desejo dar-lhe estado com Moco bem educado e de
espirito econômico e julgando o meu colega nessas e outras condições apreciáveis,
convido-o para meu genro, e, aceitando, peço-lhe que
d'ai mesmo do Muriaé siga para a Cidade de ............................ Fazenda
das ................... onde me encontrará para mais de plano falarmos sobre
esse objeto, e desde já garanto ao meu colega um estado e futuro lisongei-ro. Minha
filha além da educação esmerada que lhe hei dado, é herdeira de mais de cem
contos de réis. Espero, portanto, meu colega na Fazenda
das ........................ para onde sigo agora. Desejo-lhe todas as felicidades,
e, sempre às ordens, sou, com toda estima seu colega e amigo obrigado.
assinado: C. R. de M.»
CAPÍTULO LI
A índole do autor era essencialmente religiosa e a sua fé era sincera e
muito grande. As suas orações cotidianas. Como e por que foi perdendo
essa fé e se tornou, por fim, um racionalista. A concepção e a feitura de sua
obra, "Julgamento de Pilatos" — foram o vendaval que varreu do seu
espírito os últimos preconceitos cristãos. Como e por que foi escrita essa
obra e por que foi retardada a sua publicação.
Minha índole é essencialmente religiosa. E tendo nascido em uma
província que ainda hoje é a mais católica do império, e em um tempo em
que no Brasil o sentimento cristão e católico achava-se ainda em todo o seu
vigor, eu não só fui um menino extremamente religioso; mas quase que
carola.
Assim, sem falar em todas essas manifestações de religiosidade que
são comuns a todo o mundo, unicamente direi, que desde muito criança
nunca passei uma só noite, sem que antes de deitar-me não me
recomendasse a Deus e que cheio do maior ardor, não lhe dirigisse um
grande número de orações. E destas quero aqui consignar duas como sendo
indicativas de dois de meus sentimentos mais profundos e ao mesmo tempo
os mais duradouros — o desejo de aprender e o amor a meu pai. E de fato,
ouvindo sempre dizer que Santo Agostinho era o maior doutor da igreja, eu
entendi, que ninguém melhor do que aquele santo poderia fazer de mim um
grande doutor, e todas as noites nunca deixava de importuná-lo com aquela
minha sobredita oração, a fim de que alcançasse de Deus o infundir-me a
sabedoria. Quanto à outra oração, essa, debaixo do ponto de vista do
sentimento pelo menos, se não fosse útil, ninguém dirá no entretanto que
não fosse digna do maior respeito, e tinha por fim o interceder junto a Deus
pela salvação eterna de meu pai. E cousa digna de nota! Quando já homem
feito, e que a descrença já havia em mim produzido quase todos os seus
efeitos, eu ainda rezava esta mesma oração; porque me parecia que o deixar
um semelhante ato seria de alguma sorte da minha parte um esquecimento
de meu pai ou um verdadeiro sacrilégio à sua memória. Quando parti para
S. Paulo, a pureza e a intensidade das minhas crenças ainda se
achavam perfeitamente
intactas; de sorte que, aproximando-se ali a quaresma, eu de nenhum modo esqueci-
me dos preceitos quaresmais, e lembrei-me desde logo de confessar-me.
Os estudantes, porém, não tinham por costume de se confessarem; e nada
havendo de que tanto eu sempre receiasse como de cair no ridículo, dirigi-me ao
convento da Luz, que ficava então e não sei se ainda hoje em um dos arrabaldes da
cidade; e pedi a um frade que ali existia, o favor de confessar-me. O frade, porém,
recusou-se; e desde aquela época nunca mais me tornei a confessar, senão acerca
talvez de catorze ou quinze anos depois no Juiz de Fora; e ainda assim, por uma
simples e quase indecente formalidade; visto que ali me adiando para me casar, se
me declarou, que uma tal formalidade era absolutamente indispensável para que eu
tivesse o direito de formar uma família.
A despeito, no entretanto, daquela recusa do frade, e a despeito mesmo, e
muito mais talvez ainda, do meio muito pouco religioso em que eu agora me achava
vivendo, se desde aquele tempo comecei a duvidar da santidade dos frades e até
mesmo de algumas outras abusões em que antes muito eu cria; nada ainda me
levava, no entretanto, a descrer nem sequer por sombras, da santidade e da grande
eficácia da religião.
Infelizmente, porém, na esquina que ficava defronto da nossa casa na rua
dos Bambus, havia um homem que se chamava Porto; e este homem, além de um
filho que era nosso colega, tinha um mais novo que era caixeiro no Rio de Janeiro; e
tendo uma ocasião vindo visitar a família, e que foi, se bem me recordo, no ano de
1851, este moço, em uma roda em que por acaso também me achava, tais coisas
disse da mãe de Jesus Cristo e sobretudo de tudo quanto se referia à sua virgindade;
que não só desde logo me caiu o coração aos pés; mas que até cheio do mais santo
horror, eu quase que temia, ou antes, quase que não sabia compreender, como era
que lá das maiores alturas do céu não se desprendia algum vingador e tremendo raio
que viesse sem a menor demora fulminar aquele tão grande blasfemo. Por maior,
porém, que fosse o meu terror e a minha ansiedade, aquele raio não quis aparecer. E
desde aquele dia a semente da dúvida começou a germinar no meu coração, ou para
falar com muito melhor acerto, desde aquele dia o meu espírito lembrou-se de
examinar.
Entretanto, muito longe de em mim a dúvida proceder, como em tantos
outros, de um único jato ou por meio de grandes saltos, foi pelo, contrário, de uma
marcha lentíssima; e tão vagarosos e miúdos foram sempre os seus passos; que se
não fosse a vida já um tanto longa que o destino me tem dado, ela (a dúvida) não
chegaria ao fim.
Assim, ao princípio e pouco a pouco me tornando protestante mas
sem que nunca sentisse a menor simpatia pela religião protestante, só
muitos anos depois, é que acabei por me tornar de nome um simples
racionalista.
Em 1861, quando mudei-me para Leopoldina, já era esse mais ou
menos o estado do meu espírito. E no entretanto, embora em 1864 a dúvida
já tivesse produzido em mim todos os seus efeitos; e embora na realidade,
nem de cabeça e nem de coração eu me pudesse considerar um cristão, e
quanto mais ainda um católico; não só antes de partir para tomar assento na
assembleia, mandei dizer uma missa para que Deus me guiasse naquela
nova carreira em que ia agora entrar; mas que ainda na véspera de escrever
a carta em que devia pedir a minha mulher em casamento, mandei dizer
uma segunda missa em Ouro Preto, para que Deus me inspirasse, se eu
deveria ou não realizar um tal intento. Tanto pode a força do hábito ou tal é
a religiosidade da minha natureza, que não encontrando religião alguma em
que eu possa crer, acabo por acreditar que todas podem ser agradáveis a
Deus; e que sendo o que vale unicamente a intenção, qualquer delas nos
pode servir como um veículo para a ele nos dirigirmos.
Durante vinte anos foi este exatamente o estado em que o meu
espírito se conservou; até que tendo escrito o Julgamento de Pilatos, o
estudo que para isso tive de fazer, veio de alguma sorte ou da maneira a
mais inteira completar a revolução. E como foi esse Julgamento de Pilatos,
uma espécie de vendaval que acabou por varrer do meu espírito os últimos
preconceitos cristãos que por ventura ainda aí existissem, eu quero aqui
contar quando e como uma tal obra nasceu e veio afinal a realizar-se.
Fazendeiro feito à força ou por um puro acaso, nunca achei na
lavoura o mínimo prazer. Além disso, sendo a minha fazenda muito
pequena, e tendo sempre eu tido quem fizesse por mim todas as cousas, o
papel de fazendeiro quase que na realidade não passava de dar algumas
ordens gerais.
A tudo isto acresce ainda, que tendo sido toda a minha vida
extremamente concentrado, eu que a princípio tinha ainda alguma força
para vencer uma tal predisposição, e que ainda uma ou outra vez saía e
passeava, acabei nos últimos tempos por quase que não sair de dentro de
casa. E daqui resultou, que se durante toda a minha vida, a leitura foi
sempre um dos meus melhores divertimentos; quando passei de uma certa
idade, ela tornou-se não só a minha única distração, mas pode-se mesmo
dizer — a minha única ocupação. Ora no ano de 1885 minha sogra, tendo
feito o propósito de visitar a todos os filhos, teve de vir à Leo-
poldina onde tinha um, e à minha fazenda onde havia outra. Já bastante idosa,
porém, e de mais a mais muito pesada, minha mulher, para poupar-lhe o grande
incômodo de uma viagem a cavalo e por maus caminhos, lembrou-se de ir ela
mesma para aquela cidade, onde a mãe durante mais tempo poderia assim gozar da
companhia dos dois filhos; entretanto que ainda estando pagão um dos meus filhos,
se aproveitaria a presença da avó, para se lhe fazer o batizado.
Esta ideia foi com o melhor aplauso aceita; e em agosto daquele ano, minha
mulher para lá partiu, não só disposta a demorar-se todo o tempo que a mãe lá
estivesse; mas ainda levando todos os filhos c me deixando completamente só. Era
justamente um tempo em que eu não tinha em casa a menor leitura; e facilmente se
compreende, qual não seria o meu desencanto e o estado de tédio que de mim se
apoderou, quando me vi assim tão só e sem a menor distração. Debalde corri uma e
muitas vezes a minha estante onde por mais que procurasse, não podia descobrir ura
só livro que não fizesse sono, ou que por lido, relido e trelido, fosse capaz de me
prender a atenção.
Então era desespero de causa, avistei um livro dos evangelhos; e deliberei-
me de o ler. Assim o fiz com efeito. No fim de dois dias, porém, a leitura estava
feita. E como agora supri-la? Não se me deparando à imaginação um meio qualquer
para isso, então lembrei-me de aproveitar-me da leitura que acabava de fazer, para
sobre ela escrever algumas variações; ou para dela extrair um assunto qualquer,
sobre o qual eu pudesse escrever. E o primeiro que me deu na vista e que desde logo
me serviu de tema, foi o fato de ser Pilatos tão conhecido, sem entretanto, o merecer
0 assunto, porém, parece que era extremamente magro; porque no fim de muito
pouco tempo estava de todo esgotado. E então apelando para um segundo, um
terceiro ou mais assuntos, verifiquei, que não havia um só que valesse um dez réis
de mel coado; quando de repente notei, que todos esses trechos esparsos e que
haviam sido escritos inteiramente ao acaso, e que lidos juntos, como estavam, não
passariam de um verdadeiro jogo de disparates, podiam, no entretanto se ligar e
juntos se conservar na mais perfeita harmonia, desde que se quisesse servir para
ligá-los de uma ideia que rapidamente naquele momento me havia ocorrido ao
espírito — a loucura de Jesus Cristo.
Ora, desde que tal pensamento me ocorreu; a minha distração estava
achada; e pensando e repensando noite e dia no meu assunto, nenhuma falta senti da
mulher nem dos filhos. Em dezembro desse ano, embora um pouco incompleto e
muito informe ainda, o esboço da obra estava feito. Como, porém, a miséria
é
sempre a véspera da fartura; eu, que durante tanto tempo tinha andado a lazarar uma
leitura qualquer, recebi nesse mesmo mês de dezembro o recado de um médico, o
Dr. Otávio Otoni, que, havia muito pouco, tinha vindo para aqui, dizendo-me que
tinha alguns livros entre os quais se contava uma grande coleção que se denominava
Bibliothèque Nationale; e que todos esses livros ele me punha à minha disposição. E
isto foi para mim o mesmo que ter visto passarinho verde ou mesmo melhor do que
se tivesse me vindo às mãos algum prêmio não muito pequeno da loteria. E o que
posso asseverar, é que durante quatro ou cinco meses devorei nada menos de uns
duzentos volumes dessa tal Biblioteca.
Em junho de 1886 a grande Biblioteca estava esgotada; eu de novo sem
leitura; e então lembrei-me de meu Julgamento de Pilatos; e voltei de novo à carga;
mas desta vez quase que unicamente para apurar ou limar o que já estava escrito.
Em outubro desse ano dei a obra por concluída; e já me dispunha a ir à Corte para
tratar da sua publicação, quando o aparecimento do cólera-morbus e depois o de
algumas outras epidemias me obrigaram a adiar indefinidamente essa minha
publicação.
E aqui cumpre notar que foi ainda a"uma circunstância inteiramente
independente da minha vontade e que, pelo contrário, muito a contrariou, que foi
este adiamento exclusivamente devido; entretanto que afinal tive de dar as mais
fervorosas graças à Deus porque houvesse assim acontecido. E isto digo por mais de
uma razão; principalmente por duas, de que vou aqui tratar. A minha vida tem sido
tão modesta e tem se passado tão silenciosa; que se porventura o meu nome não
morresse, de todo ou desde logo, comigo, eu só o poderia dever a esse meu
Julgamento de Pilatos, que se me afigura como novo ou um pouco mais profundo,
talvez no entretanto que não deixa de encerrar um mérito qualquer; muito embora
muitas vezes queira também me parecer, que aquilo que se me afigura como novo
ou um pouco mais profundo, talvez não passe na realidade de alguma cousa muito
comum. Mas enfim, boa ou má, não me resta cousa melhor; e quem se afoga a tudo
se agarra.
Velho, pois, como já estou, e sem a menor esperança de já agora poder
salvar-me de um inteiro esquecimento, é este para mim a tábua única de que
disponho ou à qual me posso agarrar.
Ora, se ideias não me faltam; e se o que realmente me mata, é essa tão
grande dificuldade, que sempre senti, de dar a essas minhas ideias uma expressão
um pouco menos insuportável e, sobretudo, de tornar um pouco mais leve o meu
estilo de ordinário tão pesado; todos esses adiamentos, além de que me serviram
para ir tirando, até meados de 1888 em que dei a obra por concluída,
algumas das muitas escabrosidades do estilo que então a mesma encerrava e de que
ainda conserva um tão grande número, todos esses adiamentos, repito, vieram ainda
me fornecer ocasião, para que, além da introdução e das notas que só afinal me
lembrei de acrescentar, igualmente e depois do primeiro adiamento acrescentasse à
obra uma nova parte; isto é, a segunda, ou para melhor dizer, os primeiros capítulos
da segunda. Bem sei, que esta segunda parte veio tornar ainda um pouco mais
desconexo o todo da obra. Mas desde muito tempo já tinha me assaltado a ideia de
que os primeiros capítulos do gênesis não passavam de uma pura alegoria; e quando
se me oferecia assim uma ocasião mais ou menos asada para fazer a manifestação
dessa minha idéia, entendi que a não devia desprezar; tanto mais quando essa
transição ou essa escrescência me servia para disfarçar aos olhos dos leitores
cristãos o que eu não lhes poderia dizer, sem irritá-los ou profundamente
escandalizá-los.
Quanto à outra razão de que acima falei essa foi — que tendo eu, como
disse, terminado a obra em princípio ou meado de 1888, logo depois ou quase que
simultaneamente verificou-se a abolição do elemento servil. Raras vezes ter-se-á
verificado uma revolução semelhante de um modo tão pacífico; e o que mais é, tão
sem ódio entre os que se chamavam os opressores e os que se chamavam os
oprimidos. Infelizmente, porém, obra muito mais de paixões e de interesses
inconfessáveis, do que mesmo da razão, da política ou do sentimentalismo, essas
mesmas paixões e interesses inconfessáveis quiseram servir-se agora dos novos
redimidos como instrumentos para os fins mais ou menos reprovados que tinham em
vista; e em um país, que se formou de diferentes raças, e onde depois da conquista
nunca se haviam visto lutas ou ódios dessas mesmas raças, agora os procuravam
criar; e aqui bem perto de mim, eu tive de ver libertos, capitaneados ou insuflados
por padres ou por autoridades policiais e caminhando aos gritos de — viva a rainha
— ameaçarem de morte e de incêndio aos seus antigos senhores; ou para melhor
dizer, aos homens antigamente livres, unicamente porque, acreditando que não
estavam destinados a passasarem de livres para escravos, pretendiam discutir
reunidos os inconvenientes da monarquia, ou porque festejavam em banquetes ao
som da Marselhesa o advento da república.
Ora, o catolicismo foi sempre o maior fautor do absolutismo e um dos
maiores inimigos da liberdade; e se o antigo clero brasileiro por muito tempo
constituiu uma das exceções mais honrosas a esta regra; hoje, inteiramente
estrangeirado e inteiramente subordinado às influências de Roma, procura fazer de
uma princesa beata e que só se tem dado a conhecer por uma grande leviandade,
o principal arrimo do poder sacerdotal que vai, de dia em dia, se arruinando. E como
toda a força dos homens da igreja sempre se fundou na ignorância dos povos; um
dos meios de que mais se servem para se oporem à libertação nacional, é o de
dizerem — que a república, destruindo a monarquia, apenas o que pretende, é des-
truir a religião. E assim, se eu não tivesse sido impedido de publicar o Julgamento
de Pilatos, uma semelhante publicação teria agora vindo a servir, nas mãos deles, de
um grande argumento comprobatório daquela sua asserção; e desta sorte, não só
lhes teria fornecido uma excelente arma contra a república; mas, ainda com esta
simples frase — ele chama a Jesus Cristo de louco — me teriam exposto talvez a
mim e a minha família aos maiores perigos.
CAPÍTULO LII
Como e por que o autor comprou uma fazenda e lhe deu o nome de
Filadélfia. A sua mania para com a República e os nomes dados aos últimos
filhos: Cássio, Flamínio e Manlio. O abandono da advocacia. As
dificuldades, erros e contratempos na administração da fazenda e como foi
possível salvar a situação.
O meu irmão, Valério, nunca foi dos mais inclinados para as letras; e
em menino era tal a sua negação para o estudo, que ainda me recordo de
uma ocasião em que para não ir à escola, ele lembrou-se de fugir e de ir por
alguns dias se esconder em uma casa do nosso conhecimento. Minha mãe
logo que veio a saber do seu esconderijo, não se demorou em lá ir buscá-lo;
e severa como era, ia, segundo declarava, muito disposta a dar-lhe um
castigo exemplar. Mas desde que a pressentiu, ele tratou imediatamente de
trepar para o telhado da casa; e desde o momento em que lá se achou em
cima, tornou-se necessária uma muito grande diplomacia para que o
fizessem descer; porque ameaçando de atirar-se daquelas alturas ao chão se
alguém por ventura se lembrasse de lá ir pegá-lo; ele de fato de lá não
desceu, senão depois de ter obtido de minha mãe uma promessa muito
formal de que nada lhe faria e depois de ter além disso alcançado todas as
competentes e as mais eficazes garantias do cumprimento daquela
promessa. Quando minha mãe foi para S. Paulo a fim de ali passar comigo o
meu último ano, o levou consigo. E quando de lá nos retiramos, eu o deixei
em um colégio. Durante, porém, cerca de nove ou dez anos ele não
passou do segundo ano do curso.
Em fins de 1864 escreveu-me, que estava absolutamente decidido a
não continuar a estudar; que ele só havia nascido para ser lavrador; e que se
eu queria fazer dele um homem que pudesse ser útil, que tratasse de lhe
arranjar um modo de ser lavrador.
À vista disso, me dispus a comprar um sitio em que ele pudesse
começar a sua nova vida. Mas lembrando-me que o re-
sultado que poderia tirar de um pequeno sítio seria extremamente insignificante c em
todo o caso extremamente demorado; assentei que o verdadeiro era eu também me
tornar lavrador; porque reunidos os meus poucos recursos aos poucos e ruins de
minha mãe, talvez conseguíssemos no fim de algum tempo uma fortunazinha. Eu,
pois, comprei a légua e meia de Leopoldina uma pequena fazenda que se chamava
do Córrego da Onça mas que eu na escritura crismei com o nome de Filadélfia. 0
motivo que tive para isso, foi dar à fazenda um nomo que significasse a verdadeira
razão da sua compra; pois que fora unicamente por amor a meu irmão que eu ia ai
assim me meter em uma vida tão nova e tão estranha para mim. Eu, porém, tive para
isso um outro e talvez muito mais poderoso motivo. E foi, que tendo naquele tempo
perdido quase que de todo a esperança de chegar a ver a república estabelecida neste
nosso amplívago império, eu quis que nessa vida solitária em que teria agora de
viver, o nome do meu retiro me recordasse essa república pela qual vivia sempre a
suspirar sem nunca vê-la; e então dei à fazenda o nome da grande cidade em que se
proclamou a primeira das repúblicas americanas. Nem parou só nisto essa espécie de
mania para com a república. Mas para que tudo em minha casa a recordasse, desde
que dei a meus filhos, segundo o costume, os nomes dos avós ou dos parentes mais
próximos ou mais queridos, comecei a não lhes por outros nomes senão os dos
grandes republicanos dos bons tempos de Roma. E tal é a razão porque os meus
últimos filhos se chamaram Cássio, Flamínio e Manlio. 0 meu maior desejo era de
por em um deles o nome de Bruto. Minha mulher, porem, que é de um sangue
extremamente conservador e um pouco palaciano e da qual porisso nunca pude fazer
uma boa republicana, nunca quis de maneira alguma consentir que eu pusesse em um
dos meus filhos um nome de cachorro, segundo ela dizia; e tal foi o único motivo
porque não pode ter o prazer de possuir um filho Bruto.
Comprando esta fazenda a minha intenção era de, morando na roça,
continuar não obstante a advogar e de me por por este modo a andar a dois carrinhos
ou a correr a dois carrilhos. Este, porém, foi o maior dos enganos que vim então a ter
nesses meus cálculos; porque no fim de muito pouco tempo eu tive infelizmente de
mais uma vez ter de reconhecer a grande verdade deste conhecido preceito
evangélico — que ninguém pode servir a dois senhores; fui em consequên-cia disto
pouco a pouco abandonando a minha advocacia; e quando afinal acabei por dar
acordo, eu havia quase que sem
o sentir perdido de todo a boa fonte do cobre ou a minha macia e tão gorda
teta; estava reduzido a uma teta um pouco áspera e extremamente magra;
entretanto que a fome parecia cada vez mais aumentar.
Tanto eu como meu irmão não tínhamos a menor noção da cultura de
cafe; e pode-se mesmo dizer, que não tínhamos a respeito de qualquer
cultura mais do que esses conhecimentos superficiais que não há quase que
ninguém que os não tenha. E assim, não é de admirar que ao princípio
cometêssemos alguns desses erros ou antes algumas tolices que eram dignas
de fazer rir a qualquer agricultor ainda mesmo dos mais inexperientes.
Felizmente a agricultura nunca foi das ciências as mais difíceis. E como,
embora entre mim e meu irmão não deixe de existir esse que de família que
nunca de todo desaparece, existe, entretanto entre os nossos caracteres uma
antítese mais ou menos completa; isto mesmo nos serviu de muito; porque
possuindo eu muito mais bom senso, muito mais brandura e moderação e
um espírito muitíssimo mais rotineiro, estas minhas qualidades serviam para
coibir o que nele havia de muito áspero, de muito ousado e sobretudo de
muito progressista. E como ele havia, com efeito, nascido, segundo dizia,
para a lavoura; não sabia o que era preguiça nem descuido; e de mais a mais
havia herdado de um dos nossos avós uma grande habilidade para as artes
mecânicas ou para fazer tudo de que precisava ou que ãs vezes intentava de
fazer; o que é certo, é que no fim de muito pouco tempo, ele havia se
tornado um lavrador, não só igual, porém talvez que até mesmo superior a
todos os nossos vizinhos. Se dispuséssemos de recursos, é muito de supor
que no fim de muito poucos anos nós teríamos feito uma muito grande
fortuna. Aqui, porém, era justamente onde batia o ponto. Não dispondo de
capitais, tive de pedir emprestado o preço da fazenda que era o de 14 contos
de réis; e o prêmio que tive de pagar e que de fato paguei durante um grande
número de anos era de 12% ao ano. Os escravos eram muito poucos, e de
mais a mais, eram quase todos ruins; e onde ir buscar dinheiro para comprar
outros? Finalmente e era este talvez o pior de todos os contratempos, a
fazenda tinha muito poucos cafezais; e por falta de experiência da nossa
parte e ao mesmo tempo por falta de recursos, não tratei desde logo de
aumentá-los. Como, porém, se tudo isto já não fosse mais do que suficiente
para acabar em muito pouco tempo por me conduzir a uma perdição
completamente irremediável; para cúmulo das minhas desgraças, tendo
reunido as minhas duas primeiras colheitas, tendo-as mandado de
uma
só vez, e tendo-me demorado em sacar o importe, o comissário quebrou e
acabou por me dar um prejuízo de cerca de três contos de réis, cujos juros
acumulados hoje andariam em algumas dezenas de contos. Em tais
circunstâncias, parece que bem poucos em meu lugar não deixariam de
desanimar e que menos seriam talvez ainda aqueles que não acabassem por
completamente desmantelar-se. Pela minha parte, não desconheci a
profundeza do abismo e cujas bordas me achava; e algumas vezes quase que
cheguei também a desanimar. Eu, porém, que sou muito naturalmente
econômico, já tinha desde meus primeiros passos na vida ou desde minha
meninice e da minha estada em S. Paulo podido conhecer de quantos
prodígios não é capaz a economia; e foi a extrema economia a grande arma
de que me dispus a lançar mão para vencer a uma tão difícil campanha.
Houve, contudo, dois fatos que para isso muito concorreram; e dos
quais quero aqui falar. O primeiro foi o sistema que sempre segui de nunca
vender o meu café, enquanto o preço estava baixo, de sorte que muito mais
de uma vez cheguei a ter guardadas as colheitas não só de dois, porém até
mesmo de três anos. O resultado, entretanto, nunca deixou de ser-me
extremamente favorável; visto que além de nunca ter sido dessas contas de
venda do café que mal chegavam apenas para cobrir os gastos da produção,
eu de ordinário vendia o meu pelo duplo e às vezes pelo triplo do que teria
dado no ano da colheita; e uma vez cheguei a vender por doze e até por ca-
torze mil réis a arroba, um café que no ano da colheita a muitos não chegou
a dar mais do que uns dois mil réis líquidos.
Quanto ao outro fato, eis aqui qual ele foi. Um dia tendo ido a casa
de um vizinho, ali encontrei um pardo já velho, descalço, que se chamava
Joaquim Francisco da Silva e que era ou tinha sido carpinteiro. Disse-me
que vinha à minha casa. E então contou-me: que era credor hipotecário, de
um fazendeiro, da quantia de 20 contos de réis mais ou menos; que a sua
hipoteca era só dos remanescentes de outra, feita a um comissário; que
sendo a dívida do comissário apenas de vinte e um contos, tais eram,
entretanto, os prêmios, comissões, e a multa que o devedor teria de pagar se
a cobrança fosse judiciária, que essavida no fim de dois anos ou pouco
mais tinha subido à quase cinquenta contos de réis, que era exatamente o
valor dos bens do executado; e que ele tinha vindo de muito longe
unicamente para me confiar a causa, visto que tinha como certo que se eu
dela me encarregasse, não deixaria de lhe salvar alguma coisa.
Respondi-lhe, que à vista da sua própria
exposição, nada se poderia alcançai-; e que por isso eu não pedia aceitar a causa.
Então me declarou, que ele tinha vindo unicamente para me confiar a sua procuração
e disposto a deixar inteiramente ao meu arbítrio os honorários que eu quisesse ou
entendesse dever cobrar; e que uma vez que eu não aceitava a causa, nesse caso dava
de mão a qualquer direito que porventura pudesse ter e que voltaria para a sua casa
que era, se não me engano, na freguesia do Lamim ou de Catas Altas da Noruega, no
Município de Queluz. À vista de uma prova de tanta confiança e de uma
generosidade tão grande, disse-lhe, que eu não tinha esperança alguma de ser-lhe
útil; mas que para corresponder a essa sua tão grande confiança em mim depositada,
eu iria tratar de ver se se poderia arranjar alguma coisa.
Com efeito, recebi a procuração; tratei de disputar a preferência; e o
resultado foi, que em menos de um ano, além de muitos agradecimentos que recebi
do homem, igualmente recebi mais de dois contos de réis em dinheiro e o que valia
muito mais do que isso, seis escravos, todos muito novos e que foram desde então
para mim de um auxílio imenso para a minha lavoura.
Como este capítulo ficaria extenso em demasia, se nele incluísse o muito
que ainda tenho para dizer, fica o resto para o seguinte ou para os seguintes.
CAPITULO LIII
O balanço da situação financeira em 1885. Recompensa de 20 anos de trabalhos e
sacrifícios. A situação não podia ser melhor. Dívidas quase pagas. Tudo valorizado.
Cafesais plantados. Escravos criados e em plena produtividade. Assegurados o
futuro da família e a educação dos filhos. Tranquilidade de espírito. De repente tudo
se desmorona. A lei de 13 de maio Libertação dos escravos. A fazenda abandonada.
Ruína quase completa. Abalo geral na vida econômica do país.
Comentários
e indignação.
No ano de 1885 ou exatamente vinte anos depois que eu havia dado a
grandiosa cabeçada de me meter a ser fazendeiro, eu havia afinal vencido a
grande campanha. Já quase que não devia; a minha fazenda tinha cerca de
cem alqueires de terras, sendo uma boa parte em matas virgens; nela es-
tavam plantados cerca de cento e cinquenta mil pés de café; e finalmente eu
possuía vinte e tantos escravos, todos moços e quase todos de flor. 0 meu
grande desiderato estava enfim alcançado: a educação dos meus filhos
estava garantida; e se eu morresse, a minha família teria com que passar, se-
não com luxo pelo menos ao abrigo de privações; pois que avaliando
naquele ano a minha fortuna em cento e muitos contos de réis, o rendimento
que daí em diante eu dela poderia tirar, se poderia sem uma muito grande
exageração calcular em dez contos de réis que deveriam ir de ano em ano
cada vez a mais. E de fato, aquele ano de 1885 foi para a lavoura aqui da
Mata o que se poderia com toda a razão denominar o apogeu da sua
prosperidade; pois que as terras que eu ainda havia comprado a 80$000 o
alqueire agora se achavam a 300$000 mais ou menos; o pé de café que eu
havia comprado a 200 réis estava a 400 e 500 réis; e finalmente os escravos
que em muito pouco tempo tinham aumentado de valor de um modo
verdadeiramente extraordinário e que antes valiam um conto e tanto,
agora regulavam, quando moços e sem
defeitos, de 1:500$000 para cima sendo mulheres, e de .................
2:000$000 para cima sendo homens. Todo este estado, porém,
de uma tão grande prosperidade estava, como de ordinário sucede, destinado a nada
mais ser do que uma espécie de visita da saúde ou do que um verdadeiro prenúncio
de grandes misérias. Foi com efeito, neste ano que passou e foi sancionada a secunda
lei de 28 de setembro ou a Lei Saraiva, como vulgarmente se a chama; e tendo esta
lei fixado para a emancipação um preço aos escravos muito inferior aqui na Mata à
metade do seu valor, isto já foi um grande e direi mesmo um bem grande golpe que
se deu na fortuna do fazendeiro. Mas como não lhe tiraram os braços e todas as
demais circunstâncias eram prósperas, esta lei veio de fato a não fazer mal algum à
produção; e se se tivesse deixado tempo para que essa mesma lei fosse sem uma
muito grande celeridade produzindo todos os seus efeitos, a abolição se teria realiza-
do, não direi sem prejuízo e grandes desgostos: pois que estes eram absolutamente
inevitáveis; porém ao menos sem um muito grande abalo e sobretudo sem grandes
desgraças e as tão lamentáveis misérias que tivemos de presenciar.
A impaciência, ou os interesses da Corte, não consentiu, porém, que assim se
fizesse; e três anos depois quando das árvores pendia uma colheita tão grande como
nunca antes ainda se havia visto, o Brasil inteiro foi de repente surpreendido por uma
lei que passava em quatro ou seis dias c que em duas linhas declarava: que no Brasil
não havia mais escravidão; isto é, que um país, cuja civilização, segundo havia dito o
grande e incomparável estadista nosso, o senador Bernardo de Vasconcelos, nos
tinha vindo da costa d'África; que sendo, como agora ainda o era, tão novo e tão
extenso, quase que não tinha outros trabalhadores, senão os descendentes desses
mesmos africanos boçais que nos haviam trazido a civilização; e que finalmente
lendo suportado, por mais de três séculos, o cancro da escravidão agora se punham a
grilar que não o poderia suportar nem sequer por mais alguns anos; ficara de repente,
ou para melhor dizer da noite para o dia, privado de seiscentos ou de oitocentos mil
trabalhadores que tinham feito e que ainda faziam toda a sua fortuna; e isto sem que
para substituí-los nada se apresentasse; e a cada um o que apenas se dizia era:
Arranje-se como puder.
Ninguém faz ideia do abalo que um tal fato produziu entre todos os
lavradores. E no entretanto, tal é a nossa índole; que não houve uma só pessoa a
quem viesse o pensamento de resistir e nem sequer de sofismar a lei. Os senhores
não ficaram querendo mal a nenhum dos seus libertos; e estes, ou ficassem ou se
retirassem, nenhum só insultou e nem sequer
faltou com o respeito aos seus antigos senhores. E tal sendo o modo como todos se
separaram, é muito de supor que, com o tempo, os antigos laços de família que a uns
e a outros por tanto tempo haviam prendido, se convertessem por fim em relação de
amizade e de mútuos e sinceros bons ofícios, se a alma danada da monarquia ou se a
sórdida ambição de um estrangeiro não viesse converter, ou pelo menos procurar
converter, em inimigos, as pessoas que pareciam destinadas pela própria natureza
para nunca de todo se desprenderem.
Assim, pois, nós tivemos de presenciar no Brasil dois fatos, que, tendo de
encher a posteridade de uma grande admiração, só com muita dificuldade terão de
ser talvez acreditados. O primeiro destes fatos é que em um país, onde, como então
se dava com o Brasil, quase todo o trabalho unicamente repousava sobre o braço
escravo, tivesse a escravidão sido abolida tão de súbito e de um modo tão pacífico. E
quanto ao segundo fato, é que houvesse um governo, que, podendo se aproveitar
desta calma tão propícia para procurar, quanto pudesse, reparar os males inevitáveis
de unia revolução tão profunda e tão súbita; e muitíssimo principalmente para
procurar aplacar aos ânimos daqueles que reduzidos à mais completa ruína,
mostravam-se, não obstante tão perfeitamente dispostos a resignar-se; fosse esse
mesmo governo, quem tomasse a si o danado, e quase que se poderia dizer o
incompreensível empenho de furiosamente encapelar as terríveis ondas de um
oceano que tão quieto se mostrava; ou que, muito longe de pressuroso aproveitar-se
de condições tão singulares e ao mesmo tempo tão excelentes, para ocupar-se, se não
de cicatrizar de todo e de pronto a todas essas chagas tão profundas e tão vivas e que
tão doloridas sangravam, pelo menos sobre elas lançar algumas gotas de um bálsamo
qualquer; aquilo, pelo contrário, que unicamente lhe ocorreu à mente insana ou que
se lhe afigurou como o suprasumnuim da política ou, para falar com muito maior
exatidão, — como o suprasummum de um servilismo, nerônico ou inteiramente
oriental, foi, como é de todos bem sabido, essa ideia verdadeiramente estrambótica, e
que eu não sei se deva chamar satânica ou se antes bruta ou ferozmente estúpida, de
envenenar ou de cada vez mais irritar a essas mesmas chagas, não só com as ameaças
de novas e maiores opressões, ameaças estas, todas tão cheias de desdém, e ao
mesmo tempo, todas tão repassadas de ódio e de furor; porém muito principalmente
com a pior de todas as iniquidades ou com aquela de todas as ofensas que. sempre
superior à maior das paciências, é por isso mesmo também de todas a que menos
talvez se poderia perdoar e quanto mais poder olvidar! E essa ofensa que a todos
encheu de pasmo e de
nojo, foi o aumento da aflição ao aflito por esse meio quase sempre tão perigoso e no
caso de que aqui tratamos tão absolutamente indigno — o do ridículo; pois que
muito embora o coração e até mesmo a própria consciência universal se recuse a
acreditar; um ministro houve que do alto da sua cadeira no parlamento deu graças a
Deus por saber que senhoras de dezenas de escravos acha-vam-se agora reduzidas à
triste necessidade de lavar e cozinhar para si e para a sua família por não terem quem
o fizesse no seu lugar; visto que, dizia ele, ninguém devia viver à custa do trabalho
dos outros. E ele? Servia-se por acaso por suas próprias mãos? Lavava e cozinhava
para si? Pelo contrário, vivia muito à farta, e sabe Deus com que santíssimos
pensamentos, em um convento, à custa e ao doce e tão santo aconchego dos
seus bons frades.
A lei, pois, de 13 de maio de 1888 veio a ser para mim, assim como o foi, e
ainda mais talvez, para quase todos os lavradores, um golpe terribilíssimo. A minha
fortuna que em 1885 eu havia avaliado, segundo há pouco acabei de dizer, em cento
e muitos contos; desceu desde logo e por assim dizer, de um só golpe, a cerca de uns
trinta contos de réis; e ainda assim puramente nominais; porque ao passo que
eliminado sem deixar o menor resíduo o valor dos escravos, e que o valor das terras
descia a cem mil réis o alqueire e até mesmo a menos e o do pé de café a cem réis e
alguns a cinquenta e vinte; por outro lado nem mesmo por esses preços os
compradores apareciam.
Ora, ver-se da noite para o dia aniquilado o fruto de tantos anos de esforços,
de privação e até mesmo de capitais; pois que na minha lavoura eu havia aplicado a
pequenina herança de meus pais, o pequeno dote de minha mulher e um grande
número de contos de réis que eu havia ganho pela advocacia e por alguns outros
modos, não é, com efeito, cousa com que facilmente se possa resignar; sobretudo
quando se vê que a causa principal de um tal golpe não passava da mais sórdida
ambição è de um grande número de interesses inconfessáveis c quando aqueles que
haviam vibrado esse tão rude e tão tremendo golpe continuavam sempre a se
conservar no seu mais completo bem bom e que em lugar de consolar ou de se
condoerem, pelo contrário riam-se das suas vítimas.
Felizmente, porém, para mim, eu que sou uma verdadeira sensitiva para
quase todos os pequeninos males e que vivo constantemente a me inquietar por umas
verdadeiras ninharias, sou, no entretanto, c da maneira a mais contrária, de uma
resignação e de uma grandeza d'alma verdadeiramente pouco comum para todos os
males que reconheço virem do alto ou para os quais
reconheço que é absolutamente inútil procurar remédio. A abolição estava para mim
neste caso; e tendo desde logo reconhecido, que independente do grande mal, que
teria para o futuro de se converter em um grande bem, nem mesmo para os outros ou
para aqueles que se tornavam uma consequência imediata do primeiro; isto é, que
nem mesmo para a reorganização da minha lavoura eu poderia descobrir um remédio
qualquer, que além de pronto, fosse ao mesmo tempo convenientemente acertado,
desde logo também me resolvi a entregar-me de olhos fechados nas mãos da
Providência; deixar de ser lavrador, se assim fosse preciso, durante um ano pelo
menos; e ir por esse modo vivendo, ou antes, comendo o ganhado, até ver o que mais
me conviria fazer sem correr o risco de dar um passo em falso e do qual tivesse
depois talvez de arrepender-me. Felizmente, porém, ainda para mim, os meus libertos
me declararam, que nem um só deles se retiraria, sem que primeiro me houvessem
colhido todo o meu café. E com efeito, não só o cumpriram, porém ainda, enquanto
se conservaram em minha casa, nunca se afastaram na menor coisa do antigo regime
e da antiga disciplina. Quando concluíram a colheita, é que então, ou para reunirem-
se às suas famílias, ou para terem consciência, como era muito natural, de que se
achavam com efeito livres, foram pouco a pouco se retirando, mas dando-lhes eu
condução e saindo todos na mais perfeita paz comigo. Afinal, fiquei reduzido a um
que havia sido o meu primeiro escravo e que se chamava Antônio e a duas que
serviam dentro de casa e das quais uma que se chama Inocência e que foi ama de um
dos meus filhos, preferiu ficar comigo a ir para a companhia da mãe que havia
conseguido reunir toda a família e que muito instou para que ela para lá
também fosse.
Desde então os cafezais não mais se capinaram e o próprio terreiro passou a
antes parecer o de uma tapera do que mesmo o de uma fazenda habitada. Entretanto
isto mesmo que à primeira vista poderia parecer um grande mal, veio para a mim a
se converter em um bem; porque, naquele ano e depois no seguinte devendo tudo, de
todos os modos, concorrer para tornar o mais completo, que fosse possível, a ruína
da miserável lavoura, até as próprias estações mudaram; de sorte que, ao passo que,
na estação da chuva o sol do alto do trópico ia tudo queimando durante treze ou
catorze horas por dia, quando deveria começar a seca e que era dela agora que
unicamente se precisava, principiou a chuva. O que então se plantou de cereais, foi
muito pouco; e fazendas houve em que se poderia dizer que nada absolutamente se
plantou; pois que um dos meus vizinhos, por exemplo que sempre havia tido o
costume de plantar muitas dezenas de
alqueires de milho, não chegou, segundo a mais de uma pessoa ouvi contar,
a plantar senão apenas um único alqueire, além de haver perdido cerca de
dez mil arrobas de café por não encontrar quem o colhesse.
Do muito, porém, ou do muito pouco que se plantou, in-
significantíssima foi a colheita; e de alguns cereais, como o arroz por
exemplo, a maior parte dos plantadores nem a semente chegaram a tirar.
Ora, se os meus libertos tivessem ficado, eu não deixaria de fazer as minhas
roças do costume e muito maior teria sido a minha despesa; sem que
entretanto pudesse tirar o menor proveito; pois que todos os libertos, sem a
menor exceção, foram cada vez mais diminuindo o serviço; de sorte, que os
dois casais últimos que me ficaram, gastaram dois meses ou cento e
cinquenta serviços para me capinarem unicamente um alqueire apenas de
cafezal, o que antes se fazia com a quarta parte desses mesmos serviços; e
isto, ou para chegar a um resultado assim tão irrisório, além dos jornais que
lhes pagava, sustentando eu nada menos de doze bocas; pois que desses dois
casais um tinha 5 ou 6 filhos e o outro 3 e todos de doze anos para baixo.
Ora a saída dos libertos poupou-me o mantimento que com eles teria de
gastar; e tendo assim ficado com os paióis cheios e com o café nas tulhas, eu
vim a me achar suficientemente habilitado para sem uma muito grande
urgência ir aguardando tempos melhores; entretanto que o ter ficado os
cafezais no mato foi ainda de alguma sorte um bem; visto que, se não há da
minha parte algum erro de observação, quer às vezes me parecer que, por
estar a terra por falta de capina mais ou menos coberta, não foi o estrago nos
meus ca-fecais causado pelo sol talvez tão grande como aquele que em
alguns outros me pareceu notar; ainda que por uma bem desagradável
compensação muito maior foi também o meu prejuízo que veio a se produzir
na minha colheita de café. E isto, porque, sendo em fins de abril ou princípio
de maio que o café costumava a se achar no ponto de se principiar a colher,
em abril de 1889, já ele à força do muito sol não se achava completamente
maduro, mas até mesmo começando a secar; e então o que aconteceu,
foi que com as chuvas que lo-
go depois sobrevieram, a metade pelo menos, ou dois terços talvez, caiu e
perdeu-se; o que fez que sendo a colheita já em si uma das mais pequeninas,
acabou por menor se tornar ainda. Em abril de 1889 fui a Juiz de Fora
buscar alguns colonos italianos; c creio que não fui infeliz na escolha. Foi
isto uma simples experiência; e por ora ainda absolutamente não sei o que
terei de fazer. Sejam, porém, quais forem as vantagens do serviço livre; um
fato para mim está desde já verificado; e vem a ser — que, bem ou mal, o
escravo trabalha muito mais do que o homem livre; uma vez que o seu
trabalho seja fei-torizado.
CAPÍTULO LIV
A época mais feliz da vida do autor. Viagem a São Paulo em 1863. Motivos e
impressões da viagem. O encontro com Luiz Gama e a limpeza de suas mãos. A
abolição: ideia justa, generosa e quase santa. Abolicionistas de coração puro e
abolicionistas de carregação on de última hora. A abolição, filha de múltiplos
interesses, do servilismo e da especulação, tal como foi feita, muito pouco deve
à ideia.
Se é certo, como dizem, e como realmente parece, que os povos mais falizes
são exatamente aqueles que não tem história; e se um tal conceito, como é de razão,
deve igualmente ser aplicado ao homem; eu poderia talvez dizer, que a época a mais
feliz de toda a minha vida é também aquela em que tendo-me casado e em que tendo
pouco depois me afastado da advogacia, acabei por me tornar exclusivamente
lavrador. Até então eu tinha sido de uma atividade um pouco acima talvez do que é
comum. Mas desde aquele para mim tão memorável ano de 1865 começou a se
desenvolver em mim uma espécie de evolução quietista, que muito demorada nos
seus princípios, foi, no entretanto, caminhando em uma proporção sempre pro-
gressiva ou cada vez mais crescente, até o ano de 1885; e muito principalmente deste
ano de 1885 até o ano de 1888. E faço esta distinção; porque, se naquele primeiro
período eu não tinha ainda de todo me desprendido de certas obrigações sociais e de
certos cuidados ou de certas ocupações domésticas; desde aquele ano de 1885 deu-se
uma nova circunstância, que veio de alguma sorte tornar absoluta ou tornar
inteiramente completa essa mesma evolução de que acabei de falar. E essa
circunstância foi — que tendo trocado naquele ano de 1885 o meu antigo e já tão
enraizado hábito de ler pelo hábito para mim mais ou menos novo de escrever, e que
tendo, segundo 0 meu costume, me entregado a este meu novo hábito com uma
espécie de verdadeiro furor; tão grande veio então a se tornar a concentração do meu
espírito nos objetos sobre que escrevia; que poderia dizer talvez, e dize-lo sem a
menor sombra de encarecimento ou de uma muito grande exageração
que durante quase todo aquele período de três anos a minha vida não passou
de uma vida quase que inteiramente espiritual; até que o fato da abolição
vindo arrebentar para mim como um verdadeiro raio, veio pelo tão
inesperado golpe, produzir em toda a minha existência uma revolução de tal
natureza; que muitas vezes me parecia estar sonhando ou ter sido por uma
espécie de arte mágica transportado para um país longínquo e onde nada
eu encontrava que não me fosse estranho.
Ora, a paixão, e com ela a sua inseparável companheira — a
imaginação, é sem dúvida nenhuma o que constitue a vida. E tanto isto é
verdade, que para os velhos o maior de todos os seus prazeres acaba por ser
o sono; e o sono já muito se parece com a morte. Se, porém, a paixão é a
vida, a paixão é ao mesmo tempo a dor; e daqui o vir a ser o desprendimento
ou uma certa placidez do ânimo, que não pode resultar senão de uma tal ou
qual moderação das nossas paixões e da nossa imaginação, a base principal
de uma verdadeira felicidade ou dessa felicidade relativa que é de fato a úni-
ca que o homem pode alcançar neste mundo.
Este foi o estado em que me conservei durante esse tão longo período
de que acabei de falar. E assim, se durante ele eu tive, e nem era possível
que eu deixasse de ter prazeres e pesares, todos esses pesares e prazeres
eram unicamente daqueles que tem por costume de passar sem deixar sulcos
ou sem que deixem pelo menos muito profundos sulcos.
E com efeito, sem falar em uma moléstia, bastante grave de que
minha mulher foi atacada e de que na ocasião muitas vezes temi; e sem
igualmente falar no falecimento de minha mãe c do qual já tive ocasião de
me ocupar; eu quase que poderia dizer que durante todo esse tão longo
espaço de quase um quarto de século, dois são quase que os únicos fatos,
que não direi a minha memória conservou mas que vieram na realidade
quebrar essa espécie de quietude monótona em que a minha vida ia mais ou
menos docemente de contínuo se deslizando.
0 primeiro desses fatos é a maior loucura, a maior tolice, ou não sei
se deveria antes de dizer, a maior asneira que tenho cometido em toda a
minha vida. Entretanto trata-se de um fato muito simples, extremamente
natural, e que se fosse apreciado unicamente pela intenção que o ditou, não
só seria digno de todas as desculpas, porém até mesmo de algum elogio.
Infelizmente, porém, ninguém há talvez que seja como eu tão fraco contra
o ridículo ou que tenha do ridículo um tão gran-
de horror. Ora, o que eu havia feito, sobretudo partindo de mim, era o que
havia de mais soberanamente ridículo; e quando praticada aquela tão grande
asneira, eu desde logo pude cair em mim, tão grande foi o vexame de que de
mim imediatamente se apoderou; que se me fosse possível, eu teria ido me
meter umas mil braças pela terra a dentro. Felizmente o fato acabou por se
esquecer, ou para melhor dizer, passou completamente despercebido; e não
serei eu quem agora me lembre de o vir aqui recordar.
Tratemos, pois, do outro que foi uma viagem que fiz em 1868 a S.
Paulo. Havia dois motivos para que esta viagem não deixasse de produzir
em mim uma grande impressão; e eram que depois de ter-me conservado
ausente muito mais de doze anos, eu de novo ia agora tornar a ver a uma
cidade que passa como uma das maiores e das mais belas que possuímos e
na qual eu havia morado quase sete; entretanto que era aquela a primeira e
única vez em que saindo barra fora, eu fazia uma viagem por mar. 0
primeiro motivo, porém, não produziu o que eu esperava; porque, conquanto
já então se começasse a dizer que S. Paulo estava prosperando muito, eu fui
achar a cidade tal qual eu havia deixado, nada tendo ido ali encontrar de
novo, senão a estrada de ferro que não havia muito se tinha construído. E
como, ou porque nunca me ache bem senão quando me vejo aqui no seio
destas nossas Minas, ou porque não tendo tido em S. Paulo senão uma vida
puramente escolástica e nunca tendo, além disso, chegado jamais a
encontrar ali grandes prazeres, nunca também tivesse grandes motivos para
querer a terra; o que é certo é que revi aquela cidade com a mais completa e
com a mesmíssima indiferença com que treze anos antes eu a tinha deixado
e que no fim de muito poucos dias já me achava aflitíssimo para me ver de
novo em casa.
Quanto à viagem da ida nada também me ofereceu de notável;
porque foi feita sem um incidente qualquer que me tocasse a imaginação ou
os nervos; e o oceano, que é maior de imaginar-se do que mesmo de ver-se,
desde que se afaste da terra, acaba por se tornar monótono. A viagem,
porém, de volta nada teve de semelhante com a da ida; mas muito pelo
contrário, formou com ela o mais perfeito contraste; não só porque a da ida
foi de dia e a da volta de noite; mas sobretudo porque nesta última, desde
que saimos de Santos, foi tal o pampeiro, o aguaceiro, a tempestade ou não
sei qual o nome que se dá a essa coisa que se pôs a brincar com o tal
Paulista em que viajávamos; que todos os passageiros que vinham
para S. Sebas-
tião, tiveram de vir dar com os costados na Corte; porque tal era a força do
vento ou a braveza do mar, que o navio teve de se fazer ao alto para não
correr os grandes perigos da costa.
Desta viagem, entretanto, ou desta para mim tão temerosa
tempestade, não serei eu por certo que me lembre de fazer a
descrição; porque nada deveria haver de mais ridículo do que um
puro caipira de Minas a falar das coisas do mar. E assim, tudo
quanto me animo de aqui consignar, são duas únicas observações
que naquela ocasião cheguei a fazer; e que são as seguintes;
primeiro que não tenho lá muito grande medo da morte, visto
que tendo naquela ocasião a considerado como estando muito
longe, a morte no entretanto não me causou então um muito
grande abalo; e segundo — que não é o uso do mar o que
acaba por tirar o enjôo, mas que só enjoa quem já nasceu para
ser enjoado. E com efeito, aquela tempestade era de tal natureza
que à exceção talvez dos empregados do navio, dentro dele não
havia uma só pessoa que não lançasse, que não tropeçasse ou que
não caísse, e que ao passo que havia um paulista que não cessava
de gritar como um desesperado pelo Senhor Bom Jesus da Cana
Verde, ao mesmo tempo não havia naquele navio um só viajante
que de boca ou que do fundo do seu coração não se
encomendasse a todos os santos da Corte do Céu e muito
principalmente àquele ou àqueles que eram da sua mais especial
devoção; entretanto que no meio de toda aquela balbúrdia, além
de um caipira paulista que muito mais valente ainda do que eu
parecia andar pelo navio com todo o desempeno de quem não
havia saído da sua própria casa, eu fui o único que me pareceu
não ter enjoado. Verdade é, que sendo chamado para jantar e que
me sentindo com muito bom apetite, eu não deixei de muito de
pronto ir apresentar-me à mesa; e que não obstante, não pude
nela me conservar por muito tempo. Mas isto foi unicamente
porque, vendo que ali tudo dançava, cadeiras, mesa, pratos,
talheres e sobretudo os lampeões que pareciam badalos de sinos a
querer tocar no teto; ache que antes de lançar carga ao mar era muito
melhor por-me horizontalmente em um banco onde a cabeça
recostada podia apreciar os males dos outros sem que, para deles
se compadecer, precisasse de também sofrer.
Fora disto, não me recordo de ter sentido qualquer outro incômodo.
Contudo para ser um narrador que ainda nas menores coisas nunca deixa de
ser exato e de ser sobretudo extremamente minucioso, eu não devo aqui
deixar de comemorar uma
circunstância muito importante; e é que ainda dois ou três dias depois que
eu me tinha desembarcado, toda a Cidade do Rio de Janeiro me cheirava
a navio.
Qual foi porém o motivo desta minha viagem a S. Paulo? É o que eu
agora vou contar. Minha mãe depois de ter estado algum tempo comigo em
Queluz, assentou afinal de ir ficar com meu irmão em S. Paulo. Ora,
segundo creio já ter tido ocasião de o dizer, minha mãe era dotada de um
tino muito grande para os seus negócios. Passando, portanto, pela Campanha
ela lembrou-se de ali comprar alguns escravos mais ou menos velhos, mais
ou menos defeituosos; os levou consigo para S. Paulo; os pôs a jornal
naquela cidade; e desta sorte, de um capital extremamente diminuto, ela
chegou a tirar um rendimento, que se não era grande, dava-lhe, não obstante
o quanto era preciso para não passar de um modo muito apertado.
Quando meu irmão veio para a minha companhia, ela veio também.
Mas minha mãe, como de ordinário acontece a quase todas as senhoras,
sentia um grande fraco pelas cidades grandes; e assim como em 1839 foi
com o maior desprazer que ela deixou a Corte; assim também agora, apesar
de ter de ficar pela primeira vez sem nenhum dos filhos, não havia nada que
lhe fizesse perder de todo a esperança ou a intenção de voltar para S. Paulo,
ainda que fosse, como dizia, para lá ir despedir-se das suas amigas e lá ir
passar mais alguns meses. Por um semelhante motivo nunca houve razões
nem instâncias que a fizessem consentir em que eu mandasse buscar os
escravos que ainda lá haviam ficado; e como sempre timbrei em nunca
contrariá-la ainda mesmo naquilo que reconhecia não ser lá muito razoável;
desisti daquela ideia. Minha mãe, porém, tendo adoecido e tendo se tornado
absolutamente impossível a sua volta para S. Paulo, assentei de ir eu mesmo
buscar aqueles escravos, porque tendo já se passado quase que quatro anos,
não era este um negócio que pudesse ser convenientemente liquidado
senão por mim.
Muito pouco tempo depois que eu havia chegado a S. Paulo quando
lá fui pela primeira vez, eu tive ocasião de conhecer e de travar relações
com um homem que se chamava Joaquim José Ferreira que era quase meu
conterrâneo, e que sendo um liberal muito exaltado e que sendo por isso
assinante do Grito Nacional que era de tal violência de linguagem e de
ideias, que se dizia ser pago pela polícia, por aí começamos as nossas
relações. Depois disto ou nos meus últimos anos de S. Paulo ainda
aconteceu que eu fui ser seu vizinho durante quase três anos em uns terrenos
que ele possuía adiante do Tanque dos Unegas e que ficavam
defronte da chácara em que eu ali morava. De tudo isto resultou. que apesar de ser
aquele Ferreira um homem muito irascível e um pouco esquisito, tal afeição acabou
por me mostrar; que por ocasião da minha retirada de S. Paulo, desde a véspera da
minha partida estava a chorar e que no dia seguinte de madrugada saiu de casa
para não me ver partir.
Chegando, pois, a S. Paulo em 1868, não quis deixar de ir ser seu hóspede; e
tendo, por consequência, tomado na estação um carro, dali mesmo segui diretamente
para a sua casa e com ele lá me fui aboletar; tanto mais que todas as minhas visitas
eram de não me demorar naquela cidade mais de uns três ou quatro dias.
Não encontrei nenhuma dificuldade em reunir os escravos e em liquidar as
respectivas contas, embora quase tudo 0 mais que minha mãe lá havia deixado se
houvesse de todo extraviado. Dos escravos, porém, havia uma chamada Geralda, que
tendo estado alugada como servente do bispo daquela diocese e tendo este um pouco
antes falecido, ou por descuido do encarregado dos escravos ou não sei porque
motivo, tinha ido se estabelecer sobre si ou linha ido morar em uma casa que ela
mesma havia alugado em uma rua que corre além do Carmo pelas margens do
Tainanduateí.
Tendo, embora com alguma dificuldade, chegado a descobrir a casa em que
ela morava, uma noite para lá parti com um dos escravos do Ferreira e a trouxe
comigo. No dia seguinte muito cedo vieram me dizer, que à porta estava um homem
de carro que desejava falar-me. Fui recebê-lo; e então soube que era um oficial de
justiça que me intimava da parte do juiz municipal para ir, apresentar-lhe a senhora
F. ou a pessoa que na véspera à noite eu havia trazido para a minha companhia.
Tendo, pois, tomado o tempo apenas preciso para me vestir, parti com a escrava para
a casa do juiz. Quando ali cheguei havia algumas pessoas e entre elas encontrei a
Luiz Gama que era o autor da intimação; e cuja polícia era de tal natureza; que,
estando eu em S. Paulo depois de quatro ou cinco dias apenas; que sendo ali quase
que inteiramente desconhecido; que estando em uma casa que ninguém sabia; e que
além disso, tendo feito em um bairro da cidade a apreensão da escrava à noite e tendo
em seguida, e sem que ninguém o tivesse visto, a levado para um bairro inteiramente
oposto; no entretanto menos de 12 horas depois eu era intimado para apresentá-la
em juízo.
O fundamento do mandado, como já se pode ter percebido, era que a escrava
achava-se sobre si e que por consequência acha-va-se de fato na posse da sua
liberdade. Eu, porém, apresentei
os documentos que tinha; o encarregado dos escravos tendo por ordem do
juiz sido chamado, explicou todos os fatos como eles realmente eram; e a tal
posse da liberdade caiu, por assim dizer, com um sopro . Então Luiz Gama,.
vendo-se batido sobre este ponto, ainda alegou que a escrava havia tido
filhos com o seu antigo senhor; e que em vista da Ordenação estava por este
fato livre. Eu, porém, que conhecia muito bem a Campanha, mostrei que a
escrava poderia ter tido talvez filhos com algum dos filhos do seu senhor;
mas que com o seu próprio senhor não era isso de modo algum possível por
diversas razões que apresentei; a escrava, ou de boa fé ou por não ter havido
tempo de ser insinuada, confirmou as minhas alegações; e então à vista de
provas e de explicações tão claras, o juiz me declarou que eu podia reti-rar-
me levando a escrava; pois que o meu direito não podia sofrer a menor
contestação. Luiz Gama ainda quis ver se era possível lançar mão de algum
outro pretesto para reter a escrava; mas ele mesmo acabou por se convencer
que não havia para isso possibilidade alguma.
Por esta ocasião e quando Luiz Gama parecia mais insistir, eu lhe
perguntei se realmente achava que eu fosse capaz de querer reduzir à
escravidão pessoa livre? "Não; respondeu ele; não só não o acho capaz;
porém até mesmo estou inteiramente persuadido, de que o senhor procede
com a mais completa boa fé. Mas eu também fui escravo; não tive do meu
senhor a menor queixa, antes lhe devo talvez alguma gratidão; e no
entretanto nada disto impede que eu tivesse sido escravo, apesar de haver
nascido homem livre. 0 meu dever, portanto, ou antes a missão que a mim
tomei, é a de defender o direito dos escravos sempre e em toda a parte onde
eu o possa fazer; sem que entretanto nada tenha com as intenções dos
senhores ou que de qualquer modo lhes queira mal por isso".
No dia seguinte muito cedo apareceu-me de novo em casa uma
pessoa que me procurava da parte de Luiz Gama; e este fato causou-me um
tal aborrecimento, que eu disse ao meu hóspede que partiria no dia seguinte
deixando a escrava e todos os outros, se por ventura me viessem ainda com
alguma nova trica ou embaraço. Fui, no entretanto, verificar o que ainda se
queria de mim; e encontrei um homem que entregando-me um papel, me
declarou ser empregado ou não sei que de Luiz Gama.
0 papel era uma conta mais ou menos nestes termos: Importância do
mandado, tanto; aluguel de carro, tanto; mais não sei que parcela, tanto;
soma tanto (três ou quatro mil réis); deduzidos de tanto (vinte e tantos mil
réis) que me foram entregues pela Sra. Geralda; sobra, tanto; que
devolvo.
O dinheiro me foi então entregue pelo portador juntamente com um relógio
velho e mais alguns outros objetos pertencentes à escrava; e na conta não se achava
nem sequer o preço da petição que havia sido feita por Luiz Gama. Que limpeza
de mãos!
Sendo a abolição uma ideia justa e direi mesmo uma ideia generosa e quase
que santa, muitos devem ter sido aqueles que a abraçaram unicamente por amor dela
ou que vieram a se tornar abolicionista em toda a pureza do seu coração. Eu, porém,
com toda a verdade o digo, a dois unicamente é que cheguei a conhecer. E estes dois
foram Luiz Gama e o meu primo, o Dr. Agostinho Marques Perdigão Malheiros. E
ainda assim, eu dou a primazia ao último; porque aquele ainda tinha para estimulá-lo
o amor da própria raça e o ódio da escravidão que havia sofrido; enquanto que o
último, legítimo branco, neto de fazendeiros e ele mesmo senhor de escravos, não
duvidou, no entanto, em um tempo em que falar em abolição era mais do que um
crime e era quase que um sacrilégio, de escrever um livro que ele muito bem sabia
não havia de ter compradores; e isto unicamente para convencer a quem não queria
ser convencido, que a escravidão era a maior de todas as iniquidades, fosse qual
fosse o ponto de vista debaixo do qual se a pudesse considerar.
E como na completa unidade em que naquele tempo ele se achava, era
preciso que ninguém pudesse duvidar da sua própria sinceridade, ele que não
dispunha de uma muito grande fortuna libertou a todos os seus escravos.
Entretanto, ó desconsoladoras ironias da sorte! Em todas essas tão
barulhentas festas da abolição, tão prolongadas e sempre tão cheias de vivas e de
flores, se por ventura o nome de Luiz Gama chegou algumas vezes a aparecer, pode-
se dizer que foi apenas per accidens ou então unicamente de encabulada com aquela
tão bem conhecida e tão imensa turba multa de abolicionistas de carregação ou de
puro contrabando ou daqueles que unicamente o foram quando viram que muito
pouco faltava para pingar a última hora. Quanto ao nome de Perdigão Malheiros,
esse já desde muito que havia de todo se afundado; e a ninguém com toda a certeza
encontrou que dele se lembrasse. Isto, no entretanto. era, aquilo que natural e muito
logicamente deveria acontecer. Filha de um grande número de interesses, do
servilismo e da mais sórdida especulação, a abolição, tal qual foi feita, muito pouco
deve à ideia. Desde os seus mais altos promotores até o último e o mais desprezível
dos papa-pecúlios, o que unicamente transparece é a especulação e sempre a
especulação.
Se, algum dia, um historiador aparecer, que, despido de todos os
preconceitos, ainda mesmo os humanitários que pelo simples fato de serem
humanitários não deixam por isso de ser muitíssimas vezes iníquos, se dispuser a ser
um juiz verdadeiramente imparcial, ele, para condenar não pequena turba vil e muito
mais odiosa talvez dos especuladores grandes, de nada mais precisará do que ler os
pareceres do Conselho de Estado ou os debates das nossas câmaras e cotejar os feitos
dos homens com as suas próprias palavras ou com aquilo que muitas vezes na
véspera todos eles haviam dito. Quanto aos miúdos, a condenação é sem dúvida
nenhuma muito mais difícil; porque os ladrões e os velhacos foram e hão de ser
sempre muito hábeis em fazer desaparecer as provas dos seus crimes. Para que,
porém, por um único exemplo se possa fazer ideia do muito de igual que então se
praticou, eu quero aqui consignar um fato que se passou, por assim dizer, na minha
família; e do qual o autor seria provavelmente algum daqueles que cheios do maior
desassombro viviam a se esfalfar para proclamarem a todos os ventos que não se
deveria viver à custa do suor alheio; e que por consequência, não havia um só
fazendeiro que não fosse digno de ser queimado e de se lhe atirar as cinzas ao vento;
pois eram homens de tal natureza, que só davam aos seus escravos relho e trabalho e
que às vezes os cozinhavam nas suas caldeiras e não sei se também os comiam. E eis
aqui qual foi o fato.
Tendo minha sogra se mudado para a Corte, levou consigo uma escrava sua,
já velha e cega de um olho; e a colocou em uma casa onde, em muito pouco tempo,
além do jornal que dava à senhora, pôde ainda arranjar um pecúlio de 100$000. Um
dos tais, sabendo do fato, que para isso o faro nunca lhes faltava, disse à escrava, que
com aqueles 100$000, poderia alcançar a sua liberdade por meio da confederação
abolicionista; e que se ela quisesse, ele unicamente por comiseração para com a sua
tão grande desgraça, não duvidaria de se encarregar desse negócio. A pobre preta
anuiu com o melhor prazer; e poucos dias depois a preta dava os seus 100$000 e em
troca recebia uma carta falsa de liberdade com o conselho de que deixasse quanto
antes a casa onde se achava e de procurar desaparecer. Assim ela o fez com efeito. A
polícia, porém, ainda tinha naquele tempo algum respeito pelo direito dos senhores;
e, tendo sido a escrava descoberta, minha sogra, para que a mesma não se tornasse de
novo a extraviar, a mandou aqui para a Leopoldina a fim de ficar em companhia de
um dos meus cunhados que estava sem quem o servisse. Desde então e até que,
aparecendo a abolição, aquela pobre negra foi verdadeiramente libertada, pode-se
dizer, que ela quase que outra
coisa mais não fazia, do que lamentar a sua desapiedada sorte e de amaldiçoar aquele
indigno e tão cruel autor da sua desgraça, que havia feito com que ela saísse da Corte
donde tanto gostava e de uma casa onde tão bem ela se achava, para acabar por vir
agora, e quando menos o esperava, a achar-se aqui neste ermo da Leopoldina e ter no
fim da sua vida de desgostar a uma senhora que sempre a havia tão bem tratado.
"Mas, acrescentava ela. um moço tão bonito, tão bem trajado, um empregado do
Tesouro, como eu poderia pensar que jamais me fizesse esta!" E esta, no entretanto,
não foi talvez das piores.
REVISÃO FINAL
RESPONSABILIDADE DO ENCOMENDANTE
IMPRENSA OFICIAL
BELO HORIZONTE — JANEIRO DE 1987
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo