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Pesquisa e Tomada de Decisão
Pedro Demo
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PESQUISA E TOMADA PE DECISÃO -
Casamento, Divorcio, Estupro -
Pedro Demo
Brasilia, Junho de 1987, INEP/MEC
Na expectativa normal, pesquisa e tomada de decisão
seriam parceiros do mesmo casamento, já que não se poderia mu-
dar o que não se conhece, nem decidir com discernimento e racio
nalidade sem conhecimento prévio das circunstâncias.
Na expectativa real, no entanto, pode predominar o
divorcio, quando o decisor age por conveniência política ou mes_
mo ignora qualquer base científica, achando que seu faro práti-
co a substitui. Certamente se pode afirmar que há uma despro-
porção considerável entre o montante de conhecimento gerado pe-
la pesquisa e a mudança acionada pela tomada decorrente de deci_
são. Conhecemos mais do que mudamos.
Mas há ainda a relação violenta entre pesquisa e to
mada de decisão, quando esta se faz ostensivamente à revelia,ou
usa a outra em sentido abusivo, ou a reduz a mera encomenda, pa_
ra fins de justificação ideológica.
Todavia, a relação pode ser inversa também, no sen-
tido de a pesquisa estabelecer relações conflituosas para com a
tomada de decisão, em que pese estarmos habituados a ver as coi^
sas sempre na outra direção. O pesquisador pode violentar o de_
cisor, quando também o despreza ostensivamente, permanecendo na
investigação irrelevante, ou apenas se utilizando dele, ou rea-
lizando uma crítica sem qualquer vinculação com a prática.
Neste trabalho, buscamos discutir preliminarmente al
gumas condições do encontro/desencontro entre pesquisa e tomada
de decisão, tentando nao colocar a questão somente do lado do de
cisor, como se o pesquisador sempre fosse a vitima. Embora isto
mais freqüentemente aconteça, i mister reconhecer que o pesquisa_
dor raramente é agente de mudança concreta. Neste contexto, ca-
be perguntar-se por condições do encaixe satisfatório entre pes-
quisa e tomada de decisão.
Por fim, conservamos como pano de fundo a defesa
cri-tica da pesquisa, ainda muito pouco desenvolvida e muitas
vezes relegada na montagem das políticas sociais (1).
I. Ciências Sociais e Intervenção na Realidade
Quando falamos de tomada de decisão, estamos habitua
dos a colocar nela uma expectativa positiva, no sentido da mudança deseja
da das circunstâncias em questão. Assim, quando ligamos ciências
sociais e intervenção na realidade, estamos insinuando, de modo
geral, uma intervenção na linha da redução dos problemas sociais
(1) - Este trabalho reflete, entre outras coisas, a experiência
de mais de um ano na direção geral do INEP/MEC, onde se
per-cebe com ostensiva clareza o lugar secundário e mesmo
resi-dual que a pesquisa tem para a condução das políticas
governamentais. Primeiro, o orçamento anual é
verdadeiramente ridículo: foi de mais ou menos Cz$ 15
milhões para 1986, passando a Cz$ 30 milhões para 1987;
embora o aumento tenha sido de 100% reais, ainda i
invisível. Segundo, é uma casa regida pelas normas típicas
do antigo DASP,feitas pre cisamente para nao funcionarem e
para permitirem salários absolutamente incompatíveis com a
atração de pessoas compe tentes. Terceiro, é forçoso
reconhecer que grande parte das pesquisas financiadas,
além de pequenas por causa da falta de recursos, são
marcadas pela irrelevância e pela ne cessidade de solução
de problemas individuais de pesquisa dores. O que agrava
ainda mais a pequenez da casa e sua pouca utilidade
prática.
ou até mesmo de sua eliminação. Pareceria claro, pelo menos na
ótica do senso comum (quase do bom senso), que estudamos a reali_
dade movidos pela vontade de instalarmos condições desejáveis de
vida. Quando a população observa a universidade, mesmo que não
a entenda de modo correto, se faz a expectativa muito normal de
que por lã os estudiosos se dedicam a resolver problemas, para o
bem geral de todos.
Esta visão da relação entre ciências sociais e
inter-venção na realidade é extremamente ingênua, porque passa
ao largo de inúmeros problemas históricos e metodológicos, a
começar pelo fato de que muita intervenção se constrói para
não mudar. O aproveitamento maior que se faz dos resultados das
ciências so ciais não está na direção das mudanças sociais,
sobretudo de estilo radical em favor das camadas populares
desfavorecidas, mas na direção do aperfeiçoamento do controle
social e da desmobilização popular. Assim, passa-se ao lago da
relação estreita entre saber e poder (1).
Por outra, mesmo a postura absenteista, de quem se
imagina tão-somente estudar por estudar, ou de quem se acha neu-
tro na abordagem, é uma prática também. Abster-se não é não exis
tir; é precisamente uma forma de existir, por mais que possamos
descrevê-la como inaceitável, de acordo com a postura ideológica.
Porquanto, não ter posição, é uma posição.
Assim, decidir-se a não intervir é um modo de inter-
vir, porque não é possível apagar a dimensão política da ação so
cial. Quer dizer, não há saber que não transude pelo menos um
pouco de poder, por mais que um não se reduza simplesmente ao ou
tro. Neste sentido, se nao vale supor ligeiramente que conheci-
mento se ligue de forma direta ã intervenção na realidade e que
(1) - C R BRANDÃO (Org.) Pesquisa Participante ,Brasiliense, 1982.
P.DEMO, Envestigaciõn Participante - Mito y Realidad,
Kapelusz, 1985. Ia. , Mentira Científica, INEP/MEC, Bra
sília, mim., 1987.
esta intervenção seja desejável aos olhos dos marginalizados, tam
bem nao vale supor que o conhecimento sem prática não seja uma
pratica. Por estarmos habituados a pensar a prática como mudança
em sentido transformador ou quase, não se pode imaginar que toda
prática seja de conteúdo desejável. Assim, uma crítica puramen
te teórica por definição foge da prática, mas é nisto muito prá-
tica.
Colocando com clareza esta questão, podemos afirmar
que nosso assunto aqui é indagar sobre a relação entre ciências
sociais e sua capacidade de intervir na realidade na linha das
mudanças sociais favoráveis aos desiguais.
Neste contexto, parece constatável que não é princi-
palmente por falta de conhecimento que não se muda. Muitas ve-
zes os problemas são de tal modo escancarados, que colocar a con
dição de conhecer mais seria escamoteá-los. Na verdade, conhece
mos mais do que conseguimos mudar. Basta lembrar que a pobreza
foi, nas últimas décadas, esquadrinhada de todos os lados: sabe
mos quantos são os pobres, quem são, onde estão, o que querem,co
mo se proliferam etc. Mas não diminuiu o problema, pelo menos
em termos relativos. A capacidade de os controle certamente se
incrementou (1) .
Assim, não se pode afirmar, sem mais, que a trans-
formação sempre dependa do conhecimento cientifico, ate porque
teria como conseqüência a aceitação de que o transformador ideal
seria o cientista social. Ou o Presidente perfeito da República
deveria ser um Doutor em Política. Muitas transformações sociais
são movidas por pessoas simples, que são mais sábias que cien-
tistas, e nem por isso deixam de possuir visão aguda da realida-
de, guiada pelo bom senso, que nenhuma ciência conseguiria subs-
tituir.
(1) - Cfr. dados a respeito: E. F. CALSING e o., Informações Ge-
rais sobre a Pobreza das Famílias e dos Menores no Brasil,
IPEA/IPLAN/CNRH, Brasília, março de 1987, min.
Pode-se afirmar que o conhecimento cientifico sobre
as condições reais de transformação seria uma forma mais racio-
nal e segura de conduzir os processos, desde que seja possivel
tal conhecimento, na profundidade necessária, o que sempre e mui
to questionável. As transformações se dão também no campo das
circunstâncias objetivas, por vezes mais fortes que as subjeti-
vas, quando a tomada de consciência crítica cientifica pode ser
apenas um epifenomeno, conseqüente e de pouca monta concreta. Se
ria ridículo imaginar que devêssemos parar o trem, porque o estu
dioso ainda não terminou sua análise. No extremo, diríamos que
as transformações sociais se fazem com ou sem ciência e nem está
garantido que se houvesse ciência, esta seria favorável ás mudan
ças em curso.
Ê perfeitamente pensável a elaboração de um conheci
mento cientifico para embotar a consciência política dos desi-
guais, e talvez isto domine muito mais no campo metodológico, do
que a construção de rotas da libertação social. Se a ciência es
tá mais a serviço dos poderosos, do que dos desiguais, com que
razão suporíamos que ela tenha alguma vocação—prévia à magnanimi-
dade?"
Assim, parece possivel afirmar que, no campo da edu
cação, seus problemas principais não se resolvem por outras ra-
zões, que nao a falta de conhecimento adequado. Universalizar a
educação de 19 grau é certamente menos um problema de pesquisa,
do que de decisão política. E mesmo se houvesse toda a pesquisa
do mundo, ainda assim não decorreria que devesse ser tomada tal
decisão, até 'porque não está garantido que a pesquisa desejasse
tal decisão. Todavia, esta postura não precisa perambular por
searas obscurantistas, no sentido de atacar a pesquisa como algo
a priori inútil, diletante, perverso. Conhecer a realidade é
uma tarefa importante em si, precisamente porque nunca a conhece
mos de modo satisfatório e final. O lugar da pesquisa não se
justifica apenas pela importância na tomada de decisão. Ainda
que não fosse usada, teria sua relevância, extraída da necessida
de humana de conhecer, movida geralmente pela necessidade de
dominar. Até pela simples razão de termos conhecimento disponí
vel - sem uso imediato - poderíamos justificar a importância de
pesquisar, sem falar que a pesquisa, concebida no quadro educati
vo, possui suas qualidades pedagógicas irrecusáveis, na formação
do mestre, para além do mero discípulo.
Por outra, hipostasiar a pesquisa é o truque do pes_
quisador, que já faz dela seu meio de vida e o instrumento de
ocupação de espaço de poder, desligado de qualquer compromisso
com mudanças históricas. Quer dizer, compromissado com outras
posturas políticas de estilo conservador. Tal problemática come
ça pela presença compacta da prática teórica, onde a prática pro
priamente dita é a fabricação da teoria. Esta gera entre ou-
tros, o produto típico da critica radical sem prática coerente,
como se coubesse a secular divisão de trabalho entre os que pen-
sam, e os que executam, reservando-se o lugar de superioridade
para os primeiros.
Na verdade, não há nada mais conservador que uma
critica radical sem prática coerente. Primeiro, porque assassina
a credibilidade do crítico, já que não une o que diz, com o que
faz. É farisaismo consumado. Segundo, porque não muda nada,mas
apesar disso pretende a áurea de progressiva e de vítima dos con
servadores que não o escutam. Terceiro, porque transfere para o
sistema que se pretenderia mudar, a capacidade de mostrar que e
democrático, porque convive com os críticos e até os sustenta com
remunerações privilegiadas, sem perceber que isto se faz, porque
a crítica ê vazia. Interessa muito ao sistema o crítico sem pra
tica, pois além de não mudar nada, faz o papel de bobo da corte.
Tudo pode ser dito, porque nada acontece.
Neste caso, a falta de relação esperada entre ciên-
cias sociais e intervenção na realidade é mais um problema do
cientista, do que do tomador de decisão, porquanto, ao afastar-
se do envolvimento prático, envolve-se com a manutenção da ordem
vigente, na qual não transita como deserdado, mas como parte do
grupo dominante. E preciso, pois, desfazer a ligação pretensa-
mente direta entre saber e mudar, porque a ligação mais concre
ta é entre saber e poder.
Muitas pesquisas possuem indiscutível qualidade for
mal, no sentido de serem científicas de acordo com os cânomes
vigentes. Podem ser metodologicamente acuradas e significar avan
ços na teoria, com grande originalidade. Mas podem também não
possuir qualidade política, no sentido da intervenção histórica
em favor de mudanças da realidade aos olhos dos desiguais. Quali
dade política significa, neste caso, tomar a sério a relação en
tre saber e poder, reconhecendo que a tendência histórica nor-
mal é o saber a serviço do poder. Para se alcançar um saber que
mude precisamente na direção contrária aos poderosos, o cientis-
ta necessita de postura política consciente, que coloque os
obje-tivos da mudança acima das vantagens sociais. Conhecer a
realida-de social de maneira cientificamente correta, não quer
dizer,nem de longe, necessariamente querer muda-la em favor dos
desiguais(1),.
No contexto desta qualidade política pode-se falar
de seu contrário, que seria a pobreza política, entendida como
a situação de objeto de manipulação por parte dos dominantes.
Pe lo fato de o pesquisador ser uma pessoa estudada, não quer
dizer que seja um cidadão consciente, e que esta consciência se
dirija a mudar em favor dos desiguais. Muitos pesquisadores
reprimem a consciência política, seja a título de neutralidade
científica, seja por pretenso desinteresse, seja pela
compreensão defeituosa que confunde envolvimento político com
deturpação da realidade. Procuram entender-se como seres
apolíticos, como se isto não fos-se "política".- Fogem de
posicionar-se, como se isto não fosse "posição". Condenam o
envolvimento, como se não estivessem envol-vidos. Têm razão,
certamente, em procurar não confundir ciência
(1) - Sobre a questão da qualidade política, cfr. P. DEMO, Avalia
ção Qualitativa (4 textos), a sair pela Ed. Cortez. Id.. , Ci
encias Sociais e Qualidade, Ed. ALMED, Sao Paulo, 1985.Id.,
Participação é Conquista - Noções de Política Social Parti-
cipativa, Ed. Univ. Federal, Fortaleza, 1986.
com ideologia, porque não são a mesma coisa, ainda que sempre en
trelaçadas. Mas a melhor maneira de controlar a ideologia não é
reprimi-la, mas assumi-la criticamente. Até porque a depuração
ideológica cabal é reles ideologia, que sequer sabe que é.
Outros pesquisadores têm consciência do envolvimen-
to, mas não o dirigem para mudanças desejadas, porque estas im-
plicariam mudanças em seus próprios privilégios. Nestes casos,
os expedientes mais utilizados são o refúgio na critica radical
sem pratica, na esperança de que o barulho critico faça esque-
cer a necessidade de pratica coerente, ou o refugio técnico, de-
clarando-se como seu problema o tratamento técnico da questão,
não sua solução. Em ambos os casos, resta sempre o efeito funda-
mental de controle social e de desmobilização, que ê aquilo que
o poder mais busca no saber.
Já não se controla ou se desmobiliza a ferro e fogo,
na violência bruta, ainda que isto também possa existir. Opta-se
pelo controle social sibilino, subliminar, cientificamente formu
lado e levado a termo, de tal sorte que o controlado sequer per-
ceba como controle. Precisamente como a política social assiten-
cialista e compensatória, que apenas recria as condições da misé
ria, mas deixa no miserável a sensação de que esta sendo assisti-
do e de que o poder lhe quer bem. Assim como não se coloca um critico radi-
cal na cadeia. Isto seria valoriza-lo para além do que merece.
Da-se um bom salário. Com isto, diz o que o poder quer, e cien-
tificamente. Faz suas políticas sociais, que não resolvem, mas
aplacam.
Isto significa que a qualidade formal não coincide
necessariamente com a qualidade política. As ciências sociais
são muito mais aptas a formular as condições científicas da
desmo bilização bem feita, do que as condições da mudança social
radical. São muito mais capazes de justificar por que não se
pode mudar, por que seria prematuro mudar, por que seria
arriscado mu dar, pois servem muito mais aos trâmites do poder,
do que ás necessidades de mudança. Por outra, justificam com
muito maior vir tude o que seria mister mudar, para manter.
A esta altura, cabe a pergunta sobre quem é o pes-
quisador. Também aqui é fundamental desfazer a imagem de virgin-
dade que angariou na prostituição de alto nível. Estamos habitua
dos a contemplá-lo como alguém acometido de seriedade inabalável,
indiscutivelmente bem intencionado, comprometido com o futuro da
humanidade. As coisas andam mal, porque não é escutado. Voz que
clama no deserto. Sacerdote da boa nova, cercado de fariseus que
decidem ã revelia (1).
Embora seja possível encontrar este sacerdote, por-
que é possível ser politicamente coerente, a tendência histórica
vai em outra direção. O pesquisador, de partida, faz parte do gru
po dominante, por mais que gostasse de fantasiar-se de proletá-
rio. Dentro do grupo dominante não ocupa lugar de grande desta-
que por que é uma elite pouco significante diante do grande capi.
tal, e porque muitas vezes é até decadente, mas ainda assim é eli-
te, já que saber é poder. 0 acesso à elite tem muitos caminhos,
sendo o mais decisivo o caminho econômico. A universidade tam-
bém é um caminho, por vezes muito enganoso, porque é possível na-
da aprender, mas é um expediente que coloca as pessoas acima da
turba ignara, eleva ao trabalho intelectual e permite viver a som
bra dos poderosos.
Ê um pequeno-burguês, na linguagem clássica, porque
dono de pequenos meios de produção, como é o saber especializado.
Sua consciência se pauta, assim, não pela identificação com as
causas dos oprimidos - que geralmente ajuda a oprimir -, mas pela
identificação com os privilegiados, que ajuda a justificar. O que
dói no pequeno-burguês e o fato de não ser grande, e isto lhe mar
ca a consciência muito mais do que veleidades científicas, tradu-
zidas sob a forma prosaica do "intelectual orgânico", ou sob ou-
tras latinidadades do clero ilustrado.
(1) - P.DEMO, Intelectuais e Vivaldinos, Ed. ALMED, S. Paulo, 1982.
E. PORTELLA, O Intelectual e o Poder, T. Brasileiro, 1983.
A. GRAMSCI, Os Intelectuais e a Organização da Cultura, Cl
vil. Brasileira, 1978.
A identificação ligeira com a causa dos pobres é o
truque do sabido, não só porque vende uma imagem à revelia das con
diçôes objetivas, mas também porque leva ao pobre a ilusão de so-
lidariedade, que a história jamais saberia comprovar. Se é certo
que em toda transformação social aparece o intelectual comprometi
do, porque ela não se faria sem o trabalho ideológico dele em maior
ou menor proporção, é também certo que isto não é vocação intelec
tual pura e simplesmente, como se em cada um habitasse a esperan-
ça do martírio por uma causa nobre. O que habita com certeza é a
esperança do privilégio, na lógica do poder. Ê por isso que o sa
ber é importante e mesmo indispensável à montagem de um sistema
sagaz de controle social e manutenção da ordem dominante.
Assim, não se pesquisa em primeiro lugar para mudar.
Isto é mentira histórica, por mais que academicamente bem concebi
da. A direção mais típica é outra: pesquisa-se de acordo com as
necessidades do poder. E mais: nao é um problema apenas do poder,
que faz uso interesseiro do saber. 0 problema já está no próprio
saber, não porque se reduza a poder, mas porque se alimenta mais
do desejo de dominar, do que de conhecer. Ê muito mais fácil o
conluio entre saber e poder, do que a conjunção entre saber e mu
dar. E a conjunção entre saber e mudar fica mais fácil, se for
questão de mudar, para manter.
O fervor com que as ciências sociais produzem ins-
trumentos científicos de controle social não é comparável com a
necessidade de mudança, e isto não só porque o poder assim exige,
mas também porque interessa ao pesquisador, já que está mais fa-
cilmente do lado do poder, do que do lado da mudança. Ê preciso,
pois, desfazer a imagem de vítima, que o pesquisador gosta de ar-
mar. Certamente, pode ser vítima. Mas ê mais tipicamente compar
sa.
Predomina entre os pesquisadores um discurso falso
sobre mudanças sociais. Primeiro, porque a maioria supõe uma re-
lação direta e mesmo necessária entre conhecer e mudar. Segundo,
porque, ainda que conhecêssemos bem a realidade social, não
decor-
re que o conhecimento seja para mudar. Terceiro, porque se es
camoteia a posição mais típica do pesquisador, que não é de de-
fensor das causas da pobreza, Ê importante perceber que mudan
ças sociais profundas implicam mudanças na situação dos privile
giados, algo que é muito interessante de proclamar, mas não de
executar.
Talvez se pudesse aduzir o exemplo atual do dis-
curso em torno da transformação em educação. Educadores trans-
formadores ê o que não parece faltar, ao nivel do discurso. Na
prática, ê difícil vislumbrar o que se estaria de fato
transfor-mando. Além de existir uma compreensão muito diluída
de transformação, cujo conteúdo geralmente não iria além de
simples re formas, não se tem noção precisa do que seria uma
pratica coerente de transformação, que implicaria riscos,
coragem, envolvi-mento radical, coisas que normalmente estão
muito longe dos intelectuais. O discurso sobre transformação é
charmoso, até por-que pode ser bem formulado, por quem aprende
isto na universida_ de com relativa sagacidade. Mas deixa-se
de perceber que este tipo de educador é mais tipicamente
adversário da mudança que pretensamente prega, do que seu
adepto inconteste. Pode certamente existir o educador
transformador, mas não na mera teoria, nem fora de prática
transformadora, Ê de mínima coerência que educador
transformador transforme alguma coisa. Isto não impli-ca
imediatismo, como se transformação fosse um tiro à queima-
roupa. Mas implica com certeza uma atitude que, mesmo a lon-
guíssimo prazo, plante condições de transformação, não de manu-
tenção velada da sempre mesma ordem vigente, na qual está por
cima, não por baixo.
III. Condições e Limites da Tomada de Decisão
Na expectativa habitual, o problema relativo à re
sistência contra a mudança estaria quase que exclusivamente nas
mãos do decisor, implacavelmente comprometido com o
conservado-rismo. Há certamente boas razões para esta
expectativa, dentro
da lógica do poder. Nao há nada mais lógico dentro do poder,do
que a tendência a conservá-lo. Embora o poder devesse ser vis:
to como instrumento para a tomada de decisões de mudança, acaba
tornando-se fim em si mesmo. Passa a ser muito mais importante
mantê-lo, do que usá-lo como meio de transformação social, ou,
procuram-se aquelas mudanças que viabilizam sua permanência.
O poder tende a estar mais atento aos riscos que
corre com possíveis mudanças, do que aos compromissos com trans
formações julgadas desejáveis e mesmo imprescindíveis. Esta pos
tura lógica dentro do contexto do poder explica, mais ou menos,
que o parâmetro de comportamento do tomador de decisões seja ti
picamente as vantagens que possa auferir, não as metas a serem
atingidas. O saber é um instrumento importante, no sentido de
trazer à cena expedientes fundamentais de consolidação da perma
nência no poder. Despreza-se ou coibe-se o saber que possa ser
critico, contestador, ou promove-se somente aquele que bajula e
que deturpa a realidade em favor da ordem vigente. Isto, porém,
nem sempre é uma violência, porque não é tão difícil encontrar
no campo do saber gente que compactue ardorosamente com os pode
rosos, na sua sombra ou na sua sobra.
Este pano de fundo nos parece fundamental, para
não banalizarmos a visão da realidade social, transformando o
réu em acusador. Mesmo assim, ê mister reconhecer que nem sem-
pre todo decisor é conservador. Por vezes a diferença entre pes
quisador e decisor é meramente conjuntural, no sentido de que,
de repente, um pesquisador muito crítico passa a decisor. Como
decisor pode tentar executar aquilo que pregava como pesquisa-
dor, buscando transformações relevantes na realidade histórica.
Ê comum que a comunidade de pesquisadores tenda a
ver nos decisores elementos de entrave a mudanças, mesmo que
tais decisores sejam pesquisadores ou tenham sido antes. Tal
desconfiança tem muitas razões históricas, seja porque há pou-
cos motivos pará se acreditar na ação do Estado, seja porque
se conta com a lógica do poder mais ou menos implacável,seja por
que já se espera que o convívio com o poder acabe amainado os
im-petos radicais que por ventura remaneceram no decisor.
Mas também é comum que o novo decisor descubra que
decidir não é tão simples assim, o exercício do poder nunca ê
ilimitado. Estar numa situação de comando não quer dizer neces-
sariamente poder comandar. Percebe-se, então, que o pesquisador
tinha uma visão fantasiosa do processo de tomada de decisão, por
que precisamente não sabe unir teoria com prática. Ao mesmo tem
po, percebe que precisa tomar muitas decisões sem pesquisa, seja
porque não há tempo hábil, seja porque a decisão parece evi-
dente, seja porque faz parte de uma rotina burocrática repetiti
va.
É voz corrente que na America Latina ocorreram gran
des mudanças na escolarização básica, em termos quantitativos nas
últimas décadas, caminhando-se para limites próximos da univer-
salização do 1º Grau (1). Pode-se perguntar, até que ponto a
pesquisa teria sido fator decisivo neste processo. Esta indaga-
ção não admite uma resposta adequada, porque não dispomos de ele
mentos satisfatórios de controle de um processo tão extenso e
complexo. O que podemos fazer é refletir tentativamente sobre o
contexto em questão, que permite sugerir certamente que a pesqui^
sa jamais foi o fator decisivo. O surgimento do reconhecimento
do direito á educação básica não foi resultado de pesquisa, nem
se realiza pela pesquisa. Ê antes resultado da conquista da ci-
dadania organizada, ou seja, uma questão de prática, não de um
acerto acadêmico.
A pesquisa pode entrar aí, de muitas maneiras, o
que permite sua valorização correta. Pode sempre ser um instru
mento de elucidação do processo, naquilo que tem de faces ocul-
tas, de contradições pouco intelegíveis de modo imediato,de exi-
gências novas que vão surgindo no tempo. Na formação do profes_
sor, no equipamento da escola, no acerto do material didático e
dos livros escolares, e assim por diante,a pesquisa pode ajudar
(1) - G.W. RAMA (Coord.), Mudanças Educacionais na América Lati-
na, Ed. UFC, Fortaleza, 1983.
de maneira decisiva. Pode-se mesmo dizer que sem certa acumula-
ção de saber, tal processo seria uma aventura diletante. A pes-
quisa pode ajudar a decidir sobre a idade ideal para entrar e
sair do 1º Grau, sobre a adequação da merenda, sobre o ritmo de
aprendizagem.
Tudo isto é correto, mas não decide a universali-
zação do 1º Grau, ate porque no Brasil se sabe isto de maneira
mais ou menos satisfatória, e nem por isso se avança a contento
na questão. Certamente sabemos muito mais, do que conseguimos
resolver o problema. Seria certamente ridículo imaginarmos que
nossa situação de grande precariedade na educação básica depen-
deria sobretudo da pesquisa, ou, exagerando ainda mais as coi-
sas, que seria necessário pararmos o processo educacional para
darmos tempo aos pesquisadores, com vistas a acumularmos um co-
nhecimento que seria essencial para a solução do problema. O bom
senso bastaria para nos sugerir que a questão principal não está
aí, nem de longe. Ela está muito mais nas condições precárias
de nossa cidadania popular, que ainda não consegue controlar ade
quadamente o Estado e seus pesquisadores e decisores. Até por-
que uma decisão acertada tem muito mais de bom senso, do que de
ciência.
O pesquisador precisa entender que não é em primei-
ro lugar a pesquisa que leva a superar o clientelismo político
de muitos decisores, o desplanejamento e a descoordenação das
administrações públicas, a alta rotatividade na ocupação de car-
gos que viram périplos conjunturais, a ineficiência crônica dos
serviços do Estado. As misérias da administração publica são por
vezes o túmulo de bons decisores, que um dia foram pesquisadores
e que acreditavam que bastava querer para poder mudar. Na lógi-
ca da burocracia, ela é feita para não funcionar. O decisor pas_
sa. Ela fica. O entusiasmo dos primeiros dias arrefece diante
da barreira armada pela inércia, pelo cerco de controles e pela
cumplicidade em possíveis mordomias. O decisor bem sucedido é
aquele que fica bem com a máquina. Decide pouco, faz muitos ami
gos, aproveita o poder, e consegue sobreviver num posto novo,
quando vem o término de uma gestão.
Estas considerações aparentemente pessimistas e
sarcásticas apontam para um fato comum. Grande parte dos pesqui
saores não tem idéia realista do que seja tomar decisões dentro
da máquina estatal. Primeiro, sustenta-se a fantasia de que
transformações sociais são obtidas na rotina da burocracia, sem
perceber que não há a mínima adequação entre instrumento e obje-
tivo a ser atingido. Um exemplo: num país que tem por volta de
30 milhões de analfabetos, parece claro que a superação de um
problema como este exige numa política radical. Nao faz
sentido em alfabetizar por ano 500 mil adultos, pois este montan
te talvez seja inferior aos novos analfabetos que entram na fila
por deficiência do 19 Grau. Diante da dimensão do problema,tal
política seria apenas compensatória. Se assim ê, é uma críti
ca fátua dizer que o Presidente da Fundação Educar não resolve o
problema porque ê conservador, não tem interesse, só quer mordo
mias etc. Porquanto, se o pesquisador crítico chegasse a ser
Presidente desta Fundação, veria que, por mais que tomasse deci-
sões corajosas, que colocassem até mesmo em risco o cargo, ja-
mais resolveria o problema, porque o instrumento não é adequado
ao objetivo. Num país pouco propenso o adotar políticas radi-
cais de alfabetização, a alfabetização de adultos é uma guerra
por definição perdida. Dentro da rotina, somente seria possível
obter uma solução a muito longo prazo, se houver uma política
consistente de universalização de 19 Grau.
Segundo, fatasia-se um espaço ilimitado de tomada
de decisões, imaginando-se em ocupar um cargo é o mesmo que exercê-
lo. A própria falta de qualidade política do pesquisador o leva
a simplificar tais questões, no sentido de que seu encastelamen-
to teórico o conduz a ver na prática um penduricalho conseqüen-
te. Ora, decisões que acarretam mudanças estruturais não são sim-
pies veleidades. Elas exigem estratégia acurada, criam adversá-
rios ferrenhos, provocam riscos ponderáveis, e muitas vezes sig-
nificam o fim do decisor. Precisamente em vista disso, o deci-
sor tende a se acomodar no poder, decidindo apenas aquilo que
convém ã manutenção da situação. Um exemplo: é fato comum que
muitos decisores fogem a decidir qualquer coisa. Optam por
deixar as coisas apodrecerem, na esperança de que se resolvam
por si. Fazem-se muitas reuniões. Sobretudo, nomeiam-se mui-
tas comissões, todas de "alto nivel", para estudar o problema e
encaminhar soluções. Com isto o tempo passa e por vezes até o
problema passa. "Formar um processo" é freqüentemente a maneira
esperta de "pré-arquivar" um problema, pois começa uma peregri
nação infinita, de gabinete em gabinete, cheio de pareceres que
sempre acabam pedindo um outro, "salvo melhor juízo". O interes_
sado no processo se ilude com sua presença física e pode mesmo
acompanhar as idas e vindas. No fundo, porém, funciona a lógica
da não-decisão. Dificilmente se poderia conceber visão mais in-
gênua do processo de tomada de decisão, do que aquela que julga
poder o decisor decidir tudo, bastando que se decida.
Nao vale - é claro - fazer do
decisor tipicamente
uma vítima, porque é mais fácil encontrar aquele que é centralis_
ta, verticalista, e que com isto atrapalha as mais simples deci-
sões, impondo a tudo o ritual fátuo da corte do poder. O pesqui
sador se insurge - com toda a razão - contra este tipo de decisor,
que despreza ou ignora o conhecimento científico, que se quer a-
cima do julgamento da sociedade, que dispensa objetivos a serem
atingidos, que manipula recursos financeiros.faceiramente, que
não entende o exercício do poder como serviço ã comunidade. Por
vezes trata-se de pessoas que antes eram iguais a qualquer pes-
quisador, mas que, uma vez alçados a uma posição de poder, mudam
de consciência e já vêem tudo de cima para baixo. Só atendem com
hora marcada, mandam dizer que não estão,exigem formalidades ocas
e fazem questão de estabelecer uma distância protocolar, que supos_
tamente lhes preservaria a autoridade. Pode acontecer com cole-
gas que antes pareciam profundamente críticos, pretensamente
aves-sos ao poder, discursivamente comprometidos com as camadas
populares (1) .
(1) - J. BEN-DAVID, O Papel do Cientista na Sociedade, Pioneira,
1974, B. NIXON, Para que serve a Ciência, EDUSP, 1987,
W.R. COULSON & CR. ROGERS, 0 Homem e a Ciência do Homem,
Interlivros, 1973.
O enredamento na lógica do poder produz transforma
ções inacreditáveis. Leva para a direita gente que jurávamos te
rem sido da esquerda mais autêntica. Sepulta criticas que se per
dem na mais perfeita amnésia. Cria cuidados extremos em pessoas
que antes pareciam dispostas a tudo, em qualquer momento. Inven
ta bajuladores exímios em pessoas que antes condenavam permpto-
riamente a subserviência. Diz a ironia sociológica, que o revo-
lucionário de hoje será o reacionário de amanhã, desde que che-
gue ao poder. Ver a realidade social como desigual, i uma coi-
sa. Vê-la como privilegiado, ê outra muito diferente. Poucos con
versam a mesma consciência lá e cá.
De todos os modos, é mister reconhecer que a rela-
ção entre conhecer bem e decidir mudar não é nem direta, nem ne-
cessária. Talvez se possa até dizer que a maioria das decisões
são tomadas na rotina burocrática, sem recurso a informação de
cunho cientifico. Dificilmente se encontra um decisor que passe
noites em claro, estudando cientificamente caminhos mais racio-
nais para suas decisões. Normalmente lança mão de informações
disponíveis, aquelas que estão mais próximas e é forte? a repe-
tir a sistemática sabida das decisões anteriores, sobretudo por
conta de não correr riscos desnecessários. Assim, a qualidade
formal da pesquisa não é critério suficiente para ser levada em
conta na tomada de decisão, por mais que seja lógico mostrar que
é fundamental para uma decisão racional (1).
(1) - Não se trata de proteger o decisor contra o pesquisador,in
vertendo-se pura e simplesmente a relação. Acentuamos o
problema do lado do pesquisador, apenas porque o critico ao
decisor já é algo sabido e notório. Desmascarar o decisor
é um trabalho esperado e quase óbvio. Mas não é ainda des_
mascarar o pesquisador. Hoje já existe até mesmo o aces
so monopolizado a fontes de recursos por parte de certos
grupos de pesquisadores, que, em nome da cientificidade,
alijam os outros sem mais nem menos.
IV, Conhecer e Mudar
Tendo refletido sobre as dificuldades de unir ade-
quadamente conhecer e mudar, ê possivel colocar a questão de modo
mais aprofundado, dando-se ênfase ao papel do pesquisador. No en-
tanto, antes de entrar no assunto, ê fundamental recolocar al-
guns "curtos-circuitos" nesta matéria, tais como:
1. É um simplismo propor que o critério de utilida
de pratica seja fatal para a pesquisa, porquanto a boa teoria nun
ca é secundária. Deve-se insistir nos dois lados (teoria e práti
ca), mantendo-se a propriedade de cada um, o que permite também
reconhecer momentos de maior especificidade de um ou de outro. Ha
pesquisas que são inúteis, do ponto de vista prático imediato,mas
nem por isso menos essenciais ao progresso cientifico, como in-
vestigações de teor metodológico. Por outra, submeter toda pes-
quisa ao único critério de utilidade, seria reduzi-la a um consu
mo funcional, com graves prejuízos de sua qualidade formal. O fa-
to de que a maioria da pesquisa feita não tenha utilidade para
as políticas, não significa que se deva responder a um erro com
o erro oposto.
2. Mas existe o simplismo do outro lado, no sentido
de se pretender considerar a pesquisa como algo intocável, como
veredito cabal de tudo e de todos. Ê muito comum esta atitu de,
que casa perfeitamente com a empáfia do cientista que se julga
dono do saber e por isso na posição intocável de juiz da socie
dade e da política. Exige-se inteira liberdade da ação, reivindi-
ca-se acesso irrestrito a recursos sem qualquer obrigação de con-
trapartida, rejeita-se qualquer proposta de ser julgado pelos pa-
res ou pelos financiadores. Reduz-se o decisor a mero contribuin
te financeiro, esperando que acate sem restrição os resultados da
pesquisa. Mesmo podendo-se defender a pesquisa como atividade por
si, porque o conhecimento é objetivo importante por ele mesmo, na
prática a pesquisa é atividade instrumental, e para nosso contex
to, vale o quanto muda.
3. Ê também uma visão torta supor que o decisor po
de tudo, por definição tem má vontade, que é sempre suspeito, den
tro de uma visão monolítica do Estado. Parece correto afirmar
que a tendência histórica típica do Estado é de armar cientifica-
mente o controle social e a tática da desmobilização em favor de
sua manutenção indefinida, mas isto não impede de ver situações
frequentes de abertura concreta para políticas renovadoras, mesmo
que não ultrapassem reformas. Mas, de reforma em reforma, pode-se
plantar importantes transformações. A visão obtusa do decisor e
do Estado torna-se ainda menos verssímil,quando os ocupantes de
cargos são colegas pesquisadores, apenas conjunturalmente noutra
posição.
4. Não se trata, por outra, de propor que se aca-
be com o Estado, com o decisor, e também com a pesquisa, porque
todas estas figuras, por maiores defeitos que possam ter, são ne-
cessárias na sociedade moderna. A questão é outra, ou seja: a
qualidade do Estado, do decisor, da pesquisa, o que nos remete ao
tema da qualidade política. Assim, não se trata de agredir a pes_
quisa pura e simplesmente, porque de modo geral é inútil, pernós-
tica e irrelevante, mas de discutir condições de sua qualidade po
lítica, para além da formal. O mesmo vale para o decisor.
Na verdade, as mudanças ocorridas no setor educa-
cional, para ficarmos neste exemplo, foram notáveis, no plano
quan titativo, mas são o resultado conseqüente da dinâmica
econômica, mais do que decorrência de "grandes decisores", ou
decorrência de capacidade científica marcante. Talvez se esconda
nesta problema tica uma visão ligeira do que seja transformação,
ã medida que se imagina obtê-la por meio de simples decisões ou de
boas pesquisas.
Sem recair na ortodoxia marxista, que é excessiva-
mente monocausal, é possível reconhecer que os avanços em educa-
ção são mais a resultante de impactos econômicos, que envolvem ine
vitavelmente todas as regiões do país, trazendo em sua esteira
inúmeros efeitos, inclusive a necessidade de educação. Esta força
é certamente mais decisiva também que a determinação constitucional,
já que em muitos casos o direito à educação é negado sem proble-
mas, seja através de escolas precárias, seja através do não aten-
dimento da matricula total em idade escolar, seja através do paga
mento irrisório dos professores, etc. Se decisão bastasse, não
teríamos como explicar que o direito é reconhecido há muito tem-
po, mas ainda vivemos num país com forte presença de analfabetos,
com um 19 Grau ainda muito seletivo, com professores mal prepara
dos e mal pagos.
Assim, transformação social depende também de ato-
res políticos decididos, mas não se pode deixar de lado a impor-
tância das condições objetivas materiais, o que explica, por
exem-plo, que lugares mais ricos normalmente tenham melhor
sistema de ensino e melhores universidades, É algo deplorável,
do ponto de vista da garantia de direitos sociais básicos, que a
educação a-vance na cauda do progresso econômico, porque isto
significa entender direito à mercê das condições econômicas da
pessoa. Se o direito é incondicional, deveria estar fora do
mercado. Neste sen tido, é correto colocar a questão da
necessidade de decisão, tendo em vista a premêmcia e a urgência
deste direito (1).
Entretanto, tamanha transformação não ocorre na ro
tina das decisões burocráticas vigentes e muito menos como resul
tado de pesquisa pura e simplesmente. As condições reais de mu-
dança são outras, mais profundas, mais estruturais, mais determi-
nadas. Certamente é possível resolver o problema da universaliza.
ção da educação básica, porque há recursos, há conhecimento, há
exemplos positivos. Não é por falta disso que o processo se em-
perra. A causa maior está em outra esfera, que é a questão da po
breza política da população, desaparelhada, através de uma nisto
ria secular de manipulação, de exercer seus direitos sociais bási-
cos. O que universaliza a educação básica é menos a atribuição
(1) - Sem pretender polenizar com o marxismo ortodoxo, nao cremos
que tudo em última instância seja determinado pelo econômi-
co. A premência imediata que a necessidade material exerce
não significa que seja a mais importante, até porque
afir-mar, por exemplo, que a necessidade de afeto, de
comunicação humana, de vida simbólica é menos importante ou
determi-nada em ultima instância pelo econômico, ê uma
visão compar
timentada e simploriamente monocausal.A questão do poder nao
ê menor, nem maior que a econômica.
teórica deste dever ao Estado, do que a capacidade de organização
política da sociedade civil, que controla o Estado e determina a
qualidade dos seus serviços públicos.
Sem este fenômeno de cidadania básica - que é tão
infra-estrutural, quanto a dinâmica econômica - a pesquisa grita
em vão, até porque faria parte da mesma pobreza política. Neste
sentido, vale colocar a importância de elaborar na teoria e na pra
tica uma estratégia política especifica, que busque a mudança con
siderada necessária. Significa dizer que a pesquisa muda, se as-
sumir uma estratégia política de mudança, e isto lhe fizer parte
integrante. Ou seja, se tiver suficiente qualidade política.
E preciso reconhecer que os pesquisadores estão des_
preparados para tal tarefa, até mesmo porque a formação acadêmica
lhes incute o dever da qualidade formal, muitas vezes entendido co
mo adversário da qualidade política. No entanto, a assepsia polí-
tica do pesquisador é sua pior política. "Politizar" a pesquisa
não quer dizer exterminar sua qualidade formal. Muito ao contrá-
rio. Primeiro, politizar não coincide com praticar a politicagem,
no sentido da reles manipulação ideológica. Controlar a ideologia
continua ideal científico como sempre, apenas não pelo escamoteamen
to, mas pela coragem de assumir abertamente, dentro do critério de
que somente é científico o que é discutível. A discutibilidade ir
restrita das ideologias é a salvaguarda mais confiável para uma
ciência que as controla, e ao mesmo tempo as pode defender, desde
que criticamente.
Certamente, montar uma estratégia política signifi-
ca defender ideologias, como seria, por exemplo, a defasa do ensi-
no público, ou a municipalização do ensino, ou a universalização
do pré-escolar. Sendo a ideologia parte integrante das ciências
sociais, não há como fugir dela. Apenas não pode ser confundida com
o objetivo básico científico, que é conhecer, descobrir, sistemati-
zar a realidade social, com vistas a mudar ou manter. Esta ques-
tão não pode ser banalizada, porque o relacionamento entre conheci
mento e ideologia é complexo, arriscado e sempre temerário. Mas
normal. Do negócio em si.
Nao é assim também que se deva colocar uma disjun
tiva entre conhecimento e estratégia política, como se um deves_
se ser mais relevante que a outra. A estratégia política não po-
deria tornar subserviente o conhecimento, e vice-versa, até por-
que no fundo temos o mesmo problema na mão, se é verdade que en-
tre saber e poder existe relação mais profunda do que se imagina
corriqueiramente. Evitar a deturpação ideológica excessiva é pro
jeto científico fundamental, mas isto não coibe a montagem de uma
estratégia política, até porque sua negação é uma péssima
estraté-gia. Ê que somos seres políticos inevitavelmente, mesmo
quando imaginamos estar fazendo a pesquisa mais pura.
Assim, reclamar que a pesquisa não é levada em con
ta pelo decisor, pode ter sua razão de ser, mas pode também reve-
lar falta de estratégia, que significa no fundo o pacto da não-de
cisão, É pelo menos ingênuo pensar que o mundo se move apenas por
idéias, com teorias, com levantamentos. E isto recoloca a ques_
tão da qualidade política do pesquisador, no sentido de se inda-
gar se de fato quer mudança, e qual. Falta competência políti-
ca, onde muitas vezes abunda a competência técnica formal.
Neste contexto, sao relevantes as metodologias al-
ternativas , envolvidas com a ligação necessária entre teoria e
pratica. Como sempre, há incríveis banalizações, desde os ativis_
mos baratos e fanáticos, até a despreocupação irresponsável com
passos metodológicos, a título de uma dialética que é tudo e na-
da. Mas possuem um mérito fundamental, que é o de calcar a liga-
ção vital entre conhecer e mudar, dentro de uma estratégia políti
ca de ação. Ou seja, mostram que o pesquisador não é um papel so
cial mais fundante, do que o papel de cidadão, na qualidade de
ator consciente na sociedade histórica. A transformação social
provém muito mais facilmente da cidadania organizada, do que da
pesquisa formalmente correta. Assim, falta muito mais cidadania,
do que pesquisa, ainda que esta contraposição seja mais artifi-
cial que real (1).
(1) - P. FEYERABEND, Contra o Método, Fr. Alves, 1977. D.L.
PHILLIPS, Abandoning Method, Jossey-Bass Publishers, 1973,
F. CAPRA, O Ponto de Mutação - A ciência, a sociedade e a
cultura emergente, Cultrix, 1986. P. Demo, Ciências Sociais
e Qualidade, Ed. ALMED, S. Paulo, 1985.
As metodologias alternativas, que aqui nos dizem
respeito, perseguem não somente a correção formal dos produtos
ditos científicos, mas igualmente sua propriedade histórica, como
produto social que muda ou mantêm a ordem vigente. No fundo, ad-
mite-se que estudar a pobreza, sem preocupar-se com sua solução,
é viver dela. A pesquisa que se basta a si mesma é tendencialmen
te uma atividade de elite, que pode deleitar-se com desempenhos in
telectuais, enquanto a maioria trabalha para sustentar tais privi
légios. Assim como os decisores tendem a formar um grupo de pre-
potentes privilegiados, os pesquisadores tendem a se distanciar de
compromissos práticos, até porque estes implicariam revisões teó
ricas incômodas.
A junção mais adequada entre conhecimento e deci-
são pode ser favorecida através de expedientes de democratização
do saber, através dos quais se colocam resultados de pesquisa à
disposição de camadas populares, sem nivelar por baixo. Ciência
tão científica, que o povo entenda. Ê quase proverbial que os
pesquisadores pesquisam para si mesmos, dentro de uma linguagem
so-mente dominada por eles. Talvez se pudesse dizer que a
pesquisa é um dos monólogos mais solipsistas que a sociedade
conhece. E parece haver uma correlação entre a maior inutilidade
pratica da pesquisa e a maior sofisticação da linguagem.
Tal junção pode ser facilitada pela formação mais
adequada do pesquisador, desde que saiba ultrapassar o horizonte
da qualidade formal e penetrar na qualidade política. Não que a
primeira seja secundaria. Ambas são de igual importância. Pelo
menos é relevante entender que a realidade é maior que o método
e que não é correto considerar real apenas o que cabe ao método.
Ora, cabe no método formal apenas a parte formalizável da realida
de, extirpando-se a outra, que chamamos aqui de política.
Tem importância ainda a organização do pesquisador,
tanto como exercício de sua cidadania, como para chegar a estraté
gias políticas efetivas. Toda sociedade possui projeto políti-
co, mesmo aquela que parece não o ter. Se assim é, cabe colocar
ao pesquisador a pergunta sobre seu projeto político. Que tipo
de sociedade defende? A cidadania organizada ainda é a base mais
viável para se alcançarem transformações sociais no horizonte
po lítico. Ademais, é muito difícil acreditar que um pesquisador
en tenda de mudança, se não for um ator consciente dela.
Neste sentido, a competência técnica é algo indis_
pensável, mas pode também ser a toca onde se esconde, para fugir
de compromissos políticos, que - por esperteza - taxa se antici-
entíficos. Nisto se funda muitas vezes a crise de instituições
dotadas de grande competência técnica, mas tolhidas de qualida-
de política, porque a distância entre conhecer e mudar vai se
tornando cada vez maior. O sentimento de inutilidade se alas-
tra e os recursos diminuem na mesma proporção.
Por fim, é conveniente lembrar que a valorizaçãoda
pesquisa depende também da existência de uma política científica,
com prioridades claras. A mendicância do pesquisador se nutre
muitas vezes desta situação, condenado a migalhas. Ê fundamental
entender que a pesquisa faz parte do processo de formação e-
ducativa, no sentido de ser caminho principal da descoberta cria_
tiva, do diálogo com a realidade, da crítica fundada. Mas isto
releva exatamente sua característica essencial de ato político,
na medida que realiza uma das necessidades humanas fundamentais (1).
V. CONCLUSÃO
De tudo o que dissemos, ê fácil ver que não há so
lução simples para o problema de combinar criativamente a pesqui_
sa com a tomada de decisão, É mister construir um caminho,nas ve
redas tortas da sociedade e da formação acadêmica.
d) - S. SCHWARTZMAN, Ciência, Universidade e Ideologia - A po-
lítica do conhecimento, Zahar, 1981.
Mas terá ficado claro que, se o problema é atingir
transformações sociais tidas por relevantes, o lastro da cidada
nia pesa mais que a competência técnico-científica. Este é tam-
bém o problema central do decisor, pois, mesmo sendo muito ca-
paz em termos técnicos e tendo espaço realista de influência,res
ta saber que tipo de mudança quer implantar. Voltamos à quali-
dade política. Se esta existir, parece claro que o decisor sabe_
rá valorizar a pesquisa, em nome da necessidade de decidir com
acerto, respeito e determinação.
No entanto, valorizar a pesquisa significa muitas
coisas: não supervalorizar o conhecimento, como se estivesse aci
ma do bem e do mal; não transformá-lo em autodefesa, na direção
de privilégios para um grupo que imagina deter o monopólio do
saber pensar; democratizá-lo como patrimônio da sociedade e
para que sirva a mudanças sociais relevantes; defendê-lo como
ne-cessidade social essencial, dentro da qualidade formal
também. Trata-se, pois, de uma defesa critica, que jamais
confundiria pes quisa com mudança, nem colocaria o problema
apenas nas mãos do decisor. Porquanto o signo das ciências
sociais não é resolver problemas sociais, mas servir ao poder.
Neste quadro, a pesqui sa é muito mais decisiva para manter, do
que para mudar, ou mudar para manter.
A pesquisa que de fato quer mudar precisa se in-
cluir no horizonte de uma estratégia política, onde a competên-
cia política não é menos relevante que a competência técnica. A
qualidade política da pesquisa passa pela qualidade política do
pesquisador, ou seja, pela sua cidadania. E isto vale também pa
ra o decisor, que em muitos casos é o próprio pesquisador.
No fundo, lateja uma compreensão muito banalizada de
transformação social, como se fosse decorrência ligeira de meras
formulações teóricas. As transformações que buscamos pedem mui
to mais que simples conhecimento competente, mesmo que, para se
rem bem feitas, o conhecimento seja parte central. Mas a liga-
ção não ê nem direta, nem necessária. Somente será direta e
necessária, se tiver a devida qualidade política, para além da
qualidade formal.
Em muitos casos é fantasiosa também a visão do de
cisor, pintando-o como vilão maior do que é de fato, ou supondo
um raio infinito de ação, totalmente irreal. Embora na maioria
dos casos decida à revelia ou contra a pesquisa - e esta queixa
é muito correta -, o mal não esta somente aqui, mas também no
próprio pesquisador, cuja vocação histórica está mais para man-
ter, do que para mudar.
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