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Ela era uma mulher de muitos nomes,
também de muitas vidas. A sua preocupação maior, o
sonho pelo qual lutou por tanto quanto teve de
energias, foi o de elevar a mulher brasileira à
plenitude de suas potencialidades humanas.
Dionísia Pinto Lisboa, ou Dionisia
Gonçalves Pinto, ou Nisia Floresta Brasileira
Augusta, ou apenas Nisia Floresta, como
simplificadamente a têm identificado os raros e
rarefeitos estudos que a mencionam, morreu fora do
seu pais, em 1885.(...)
O
Opúsculo Humanitário
retorna à sua
segunda edição nada menos que 136 anos depois de
ter escandalizado as brasileiras e brasileiros dos
tempos imperiais. Nele está contida, em sua forma
mais elaborada, a tese de Nisia Floresta como
educadora feminista e reformadora social.
Indiscutivelmente também - descontado o
encantamento romântico próprio do seu estilo, a
sedução de que era possuído todo o romantismo
brasileiro, privilegiadameme coevo de um pais que
construía, também de forma romântica, o seu sonho
de independência - o arcabouço das idéias de Nisia
Floresta será ainda um desafio à contemporaneidade
nacional.
PEGGY SHARPE-VALADARES
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OPÚSCULO HUMANITÁRIO
GRUPO DOS EDITORES DE
LIVROS UNIVERSITÁRIOS
BIBLIOTECA DA EDUCAÇÃO
Série 3 — MULHER TEMPO
Volume 1
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E
PESQUISAS EDUCACIONAIS — INEP
Diretor-Geral: Manuel Marcos Maciel Formiga
Diretora de Estudos e Pesquisas: Maria Laís Mousinho Guidi
Diretor de Planejamento e Administração: Carlos Avancini Filho
Diretora de Documentação e Informação: Silvia Maria Galliac Saavedra
Coordenadora de Editoração e Divulgação: Samira Abrahão R. Pinheiro
Comitê Editorial: Armando Dias Mendes, Carlos Benedito Martins, Fátima Cunha
Ferreira Pinto, Jacques Velloso, lader de Medeiros Britto, Léa Pinheiro Paixão, Maria
Helena Silveira, Osmar Fávero, Silke Weber, Sofia Lersch Vieira, Walter Esteves
Garcia.
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Floresta, Nísia, 1809 ou 10-1885.
Opúsculo humanitário / Nísia Floresta. - Ed. Atual. / com
estudo introdutório e notas de Peggy Sharpe-Valadares. - São
Paulo : Cortez ; [Brasília, DF] : INEP, 1989. -(Biblioteca da
educação. Série 3 ; mulher tempo, v. 1)
ISBN 85-249-0165-9
1. Educação feminina - Brasil 2. Feminismo - Brasil 3.
Floresta, Nísia, 1809 ou 10-1885. 4. Floresta, Nísia, 1809 ou
10-1885. Opúsculo humanitário I. Sharpe-Valadares, Peggy. II
Título. III. Série.
CDD-305.42092 -
305.420981
89-0240 -376981
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil: Educação feminina 376.981
2. Brasil: Feminismo: Sociologia 305.420981
3. Feministas:Biografiaeobra305.42092
NÍSIA FLORESTA
OPÚSCULO HUMANITÁRIO
Edição atualizada com
estudo introdutório e notas de
PEGGY SHARPE-VALADARES
OPÚSCULO HUMANITÁRIO
Nísia Floresta — Estudo introdutório e notas de Peggy Sharpe-Valadares
Capa: Edição de arte: Roberto Yukio Matuo
Projeto: Milton José de Almeida sobre ilustração de Cláudia Ortiz
Coordenação editorial: Ana Cândida Costa Revisão: Liege
Marucci Supervisão editorial: Antonio de Paulo Silva
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem
autorização apressa da organizadora e do editor.
© 1989 by Peggy Sharpe-Valadares.
Direitos para esta edição
CORTEZ EDITORA
Rua Banira, 387 - Tel: (011) 864-0111
05009 - São Paulo - SP
Impresso no Brasil - 1989
ÍNDICE
Prefácio ................................................. i
Introdução ............................................. iv
Opúsculo Humanitário
I ....................................................... 2
II ...................................................... 4
III ............................................... 6
IV .................................................. 8
v ....................................................... 12
VI 17
VII
....................................................... 19
VIII ............................................... 22
IX ...................................................... 25
X
....................................................... 27
XI 29
XII
....................................................... 32
XIII
....................................................... 35
XIV .................................................... 38
XV 40
XVI 42
XVII 43
XVIII 44
XIX 46
XX 47
XXI 49
XXII 51
XXIII 53
XXIV
........................................................55
XXV
........................................................57
XXVI .............................................. 60
XXVII ............................................ 62
XXVIII ............................................ 64
XXIX 66
XXX 68
XXXI 70
XXXII 73
XXXIII 76
XXXIV ............................................... 78
XXXV ............................................ 80
XXXVI 81
XXXVII 83
XXXVIII 85
XXXIX .............................................. 88
XL ..................................................... 90
XLI .................................................... 93
XLII ................................................... 96
XLIII ................................................ 98
XLIV ................................................ 101
XLV ................................................. 103
XLVI ................................................ 106
XLVII ............................................... 108
XLVIII .............................................. 112
XLIX ................................................ 115
L ................................................. 117
LI .................................................. 121
LII ................................................. 124
LIII ............................................... 126
LIV .................................................. 129
LV ................................................... 133
LVI .................................................. 136
LVII ................................................ 139
LVIII ................................................ 143
LIX ................................................. 146
LX...................................................... 150
LXI .................................................. 153
LXII ................................................ 157
Posfácio.................................. 161
PREFÁCIO
Ela era uma mulher de muitos nomes, também de
muitas vidas. A sua preocupação maior, o sonho pelo qual
lutou por tanto quanto teve de energias, foi o de elevar a
mulher brasileira à plenitude de suas potencialidades
humanas.
Dionísia Pinto Lisboa, ou Dionísia Gonçalves Pinto,
ou Nísia Floresta Brasileira Augusta, ou apenas Nísia
Floresta, como simplificadamente a têm identificado os raros
e rarefeitos estudos que a mencionam, morreu fora do seu
país, em 1885. Os seus restos mortais retornaram ao solo
pátrio e hoje repousam naquela terra em relação a que - nisso
também antecipadora - ela foi tão ufanista, a ponto de
autodenominar-se Brasileira. Hoje, uma cidade do Nordeste
lhe dedica o próprio nome, mas a imensa maioria dos seus
compatriotas ignora a existência de Nísia Floresta, de tal
forma tem sido difícil o acesso ao pensamento dessa mulher
extraordinária, até mesmo por especialistas e bibliófilos.
Não podemos, por essa razão, disfarçar o
contentamento muito especial em poder contribuir para
entregar de novo ao leitor brasileiro um dos títulos mais
significativos da produção intelectual de Nísia Floresta.
O Opúsculo Humanitário retorna à sua segunda
edição nada menos que 135 anos depois de ter escandalizado
as brasileiras e brasileiros dos tempos imperiais. Nele está
contida, em sua forma mais elaborada, a tese de Nísia
Floresta como educadora feminista e reformadora social.
Indiscutivelmente também - descontado o encantamento
romântico próprio do seu estilo, a sedução de que era
possuído todo o romantismo brasileiro, privilegiadamente
coevo de um país que construía, também de forma
romântica, o seu sonho de independência - o arcabouço das
idéias de Nísia Floresta será ainda um desafio à
contemporaneidade nacional.
O cuidado religioso, a devoção mesma de que fomos
tomada desde a primeira aproximação à obra da autora nos
obrigam a dizer que mantivemos, na atualização ortográfica
do texto da presente edição, toda a fidelidade que nos parecia
obrigatória para assegurar o perfeito sentido da mensagem da
autora. Todavia, não nos dispensamos, onde e quando
necessário, de nos indagar se Floresta, dirigindo-se, de
imediato, a leitores de jornal, não teria hoje o cuidado de
emprestar a seu texto a plástica que a dinâmica dos tempos
atuais - elétricos, nervosos, sincopados - estaria a exigir.
Acreditamos ter operado num meio termo que respeite por
inteiro o corpus original e devolva, ao mesmo tempo, ao
leitor moderno as páginas que, de princípio, se destinavam
ao homem e à mulher comuns.
Queremos manifestar nosso agradecimento às fontes
financiadoras que nos facilitaram os recursos para a
confecção deste trabalho. Em primeiro lugar, à Fundação
William and Flora Hewlett da Universidade de Illinois, e à
Fundação Beckman da mesma universidade. Finalmente, ao
assistente de pesquisa, Sebastião Moreira Duarte, nossos
sinceros agradecimentos pela eficiente colaboração e apoio;
que tornaram este trabalho uma tarefa menos árdua e um
aprendizado constante.
Peggy Sharpe-Valadares
INTRODUÇÃO
Um caso saliente da omissão seletiva por que passam
as mulheres nos cânones da vida intelectual é o nome de
Nísia Floresta Brasileira Augusta, figura revolucionária da
sociedade do século XIX e precursora do moderno
movimento feminista no Brasil. O seu trabalho de escritora e
educadora apenas superficialmente foi reconhecido pela
crítica. E, no entanto, a especificidade do seu discurso
penetra o amplo espectro social, visto sob o ângulo da
subjetividade feminina, em um tempo em que a maioria das
mulheres não só não escrevia como nem mesmo recebia
instrução formal. O pensamento e a ação de Nísia Floresta
são um exemplo de contribuição literária dos mais raros e,
sob dois aspectos, pelo menos, servem para desvelar o
passado histórico das mulheres: como uma fonte pela autora
mesma personificada, e pelo contraste do quadro histórico
em que se situa, por ela vividamente retratado, contra o qual
edifica a sua obra multifária. E, todavia, os escritos de Nísia
Floresta têm permanecido inacessíveis ao público brasileiro -
especialistas incluídos - desde nada menos que por mais de
um século. Afora notas esparsas em compêndios de história
da literatura ou em livros de referência, ela foi quase
completamente relegada ao esquecimento,
1
não tendo tido,
desde a sua morte, mais que dois pequenos trechos
reeditados.
2
Foi através do esforço recente da pesquisa feminista,
oferecendo uma leitura reinterpretativa do papel social da
mulher, que o nome de Nísia Floresta voltou à circulação.
Sinal dos tempos, em 1985 ela abria o calendário preparado
por Maria Lúcia de B. Mott e lançado pelo Conselho
Estadual da Condição Feminina, em São Paulo. E, como
esboços biográficos, os de Socorro Trindad e Zélia Maria de
Bezerra Mariz mostram, ademais, o que, através de Nísia
Floresta, o feminismo brasileiro, não obstante a escassez de
Para uma relação completa da bibliografia sobre Nísia Floresta, veja Zélia Maria
Bezerra Mariz. Nísia Floresta Brasileira Augusta. Natal, Editora Universitária, 1982.
pp. 51-54.
2
A primeira tentativa de reeditar a obra de Nísia Floresta deu-se em 1935 quando
Fernando Osório incluiu, no seu livro Mulheres Farroupilhas (Porto Alegre, Livraria
do Globo, 1935. pp. 62-71), um manuscrito de autoria de Nísia Floresta intitulado Fany
ou o modelo das donzelas, por N. B. Augusta. Em 8 d'abril de 1847 - Colégio Augusto. A
seguir, em 1941, Adauto da Câmara publicou a História de Nísia Floresta (Rio de
Janeiro, Irmãos Pongetti, 1941), na qual transcreveu alguns trechos da obra e fez um
estudo extenso da biografia da autora. Adauto da Câmara também reeditou [na
Revista da Federação das Academias de Letras, Rio de Janeiro, (2-3): 66-88, 1938], o
poema A lágrima de um caeté, antes publicado em 1849 (Rio de Janeiro, Tipografia de
L.A.F. de Menezes). No mesmo volume aparece outro artigo de Adauto da Câmara,
intitulado Bibliografia de Nísia Floresta, em que também constam passagens da obra
da autora. Ivan Lins, na História do Positivismo no Brasil (São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1964), transcreveu alguns trechos da correspondência entre Nísia
Floresta e Augusto Comte, no segundo capítulo, dedicado à autora. A
correspondência de Augusto Comte destinada a Nísia Floresta foi publicada numa
edição especial de 100 exemplares intitulada Sept lettres inédites d'Auguste Comte a
M.
me
Nísia Brasileira. Rio de Janeiro, Siège Central de 1'Apostolat Positiviste du
Brésil, 1888.
documentos e a dificuldade de encontrá-los, tem feito para
reescrever o passado histórico da mulher no Brasil.
3
Para Socorro Trindad, a primeira feminista brasileira
foi a índia potiguar Clara Camarão, figura de destaque nas
lutas contra os holandeses, durante a primeira metade do
século XVII. Nos campos de batalha, ela liderava um grupo
de índias no incentivo aos combatentes pró-Portugal para
heróicos feitos de armas. Dois séculos adiante, Clara é
continuada por outra "guerreira" de sua terra, chamada
Dionísia Pinto Lisboa
4
- nome real de Nísia Floresta - que
não encarnou nenhum papel lendário, mas elevou-se à
categoria de primeira mulher brasileira a publicar e divulgar
suas idéias revolucionárias, tanto no Brasil quanto na
Europa, e em três línguas diferentes: português, francês e
italiano.
Nísia Floresta é versão abreviada de um pseudônimo
que Gilberto Freyre entende como composto dos seguintes
elementos: Nísia, final do nome de Dionísia; Floresta, pelo
lugar onde ela nasceu, no Rio Grande do Norte; Brasileira,
para lembrar a nacionalidade da mulher que deixou o seu
país em 1849 e, com a exceção de dois intervalos, passou a
viver na Europa; e Augusta, para guardar a memória de seu
segundo marido, Manuel Augusto de Faria Rocha, morto de
'Ver: Socorro Trindad. Feminino, Feminino. Natal, Editora Universitária, 1981; e
Zélia Maria Bezerra Mariz, op. cit..
Até o nome verdadeiro de Nísia Floresta é objeto de controvérsia: Maria Lúcia de
B. Mott, nas informações fornecidas ao Conselho Estadual da Condição Feminina,
em São Paulo, no citado calendário de 1985, registra o nome da autora como sendo
Dionísia Gonçalves Pinto, informação que, aliás, é sugerida pela chamada de alguns
catálogos bibliográficos, nos quais o sobrenome Pinto é que identifica a autora.
repente, em 1833, com apenas 25 anos.
5
Ela também
assinou escritos com os pseudônimos de Tellezilla, Telesila,
B.A. e Une Brésilienne.
É muito pouco o que se sabe sobre a juventude de
Nísia Floresta. Nascida em 1809 ou 1810, na então capitania
do Rio Grande do Norte, Dionísia Pinto Lisboa foi a
primeira filha do casamento, realizado em 1808, entre o
advogado português Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa e a
viúva brasileira Antônia Clara Freire.
6
Dessa união
nasceram mais os filhos F. Clara de Medeiros e Joaquim
Pinto Brasil. Outros registram também a existência de uma
irmã mais velha de Dionísia, possivelmente fruto do primeiro
casamento de Antônia Clara. Nísia viu a luz no Sítio
Floresta, perto da antiga cidade de Papari, hoje denominada
Nísia Floresta.
Adauto da Câmara menciona que a autora morou por
algum tempo, em 1819, na cidade de Goiana, Pernambuco,
onde o seu pai havia se estabelecido quando chegou ao
Brasil. Mais tarde, ela regressa ao estado natal, mas irá
deixá-lo em definitivo após a Revolução de 1824, por causa
das perseguições políticas movidas contra a família. Um
Citado por Zélia Maria Bezerra Mariz, p. 23. Ver também: Luís da Câmara
Cascudo. O Sítio Floresta. In: O Livro das Velhas Figuras. Natal, Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, 1978.
Nos estudos publicados, existe discrepância quanto à data de nascimento da autora.
Adauto da Câmara registra-o como tendo ocorrido a 12 de outubro de 1809. O
calendário do Conselho Estadual da Condição Feminina também cita o ano de 1809
como data de seu nascimento. Ivan Lins segue a mesma versão. Socorro Trindad e
Zélia Maria Bezerra Mariz trazem a data de 12 de outubro de 1810, sem maiores
explicações. A confusão existe no próprio túmulo da autora, na cidade de Nísia
Floresta, no Rio Grande do Norte: nele, duas lápides distintas registram, uma ao lado
da outra, as duas datas acima.
pouco antes disso - 1822 ou 1823 - Floresta já está casada
com Manuel Alexandre Seabra de Melo, marido imposto,
segundo a mentalidade da época, a quem irá abandonar
quando se transferir para o Rio Grande do Norte. Partindo
de sua terra, ela se detém de novo em Goiana, onde chega a
conhecer um estudante de Direito, Manuel Augusto de Faria
Rocha, ou Augusto, como ela lhe chamava. Será este o
parceiro da sua própria escolha e, ainda que pouco dure tal
união, será dele que Floresta haverá de ter todos os seus
filhos. A permanência em Goiana é curta, pois logo a família
se muda mais uma vez, primeiro para Olinda e depois para o
Recife. No dia 17 de agosto de 1828, o pai de Nísia Floresta
é assassinado a mando de um certo capitão-mor A. Uchôa
Cavalcanti. Nada de certo se sabe sobre o motivo do crime,
nem maiores detalhes existem sobre o assassino.
Os poucos estudiosos de Nísia Floresta são
concordes quanto a uma possível anulação de seu primeiro
casamento, antes de ela unir-se a Manuel Augusto de Faria
Rocha, o qual, em 1832, formava-se bacharel em Direito
pela Faculdade de Olinda. O primeiro filho desse novo
matrimônio morreu ainda no berço; a ele seguiu-se a filha
Lívia, nascida a 12 de janeiro de 1832; o terceiro, Augusto
Américo, já foi nascer no Rio Grande do Sul, a 12 de janeiro
do ano seguinte, pois em 1832, Floresta - juntamente com o
marido, a mãe, e duas outras irmãs - tinha deixado
Pernambuco para ir morar em Porto Alegre, provavelmente a
convite de um cunhado residente nessa cidade. O batizado de
Augusto Américo deu-se a 4 de agosto de 1833. Quinze dias
depois Floresta perderia o marido que de fato amara.
É durante essa primeira época de viuvez, a partir de
1834, que Floresta, autodidata, inicia-se no magistério. Em
1837 ela se transfere para o Rio de Janeiro, juntamente com
a família e os dois filhos, onde, durante os próximos 17
anos, manterá um estabelecimento de ensino para meninas -
o Colégio Augusto - que abriu as portas no dia 15 de
fevereiro de 1838. O colégio funcionou inicialmente à Rua
Direita, 163 (hoje Rua 1° de Março), e depois à rua D.
Manuel, 20, com entrada pela Travessa do Paço, 23.
Após onze anos no Rio, Nísia deixou o Brasil e foi
para a Europa. Como motivo para a viagem, conta-se que a
filha Lívia, nessa época com 14 anos, sofrerá uma queda de
cavalo e os médicos lhe recomendaram uma "mudança de
ares". Então, no dia 2 de novembro de 1849, embarcam a
mãe, a filha e o filho Augusto Américo, na galera francesa,
Ville de Paris, com destino ao Havre, na França. Esta foi
uma viagem de certo modo definitiva, pois, à exceção de
dois curtos intervalos, nunca mais a autora voltou ao Brasil
para aqui fixar domicílio. Durante os próximos anos,
permanecerá na Europa onde haverá de publicar suas obras
em italiano e em francês.
Sobre sua vida no Rio de Janeiro, também poucos
detalhes são concretos. Os documentos disponíveis referem
dados conflitantes sobre a sua vida particular e sua
participação na sociedade de então. Bezerra Mariz conta, por
exemplo, que, em 1842, Floresta fazia conferências
abolicionistas e republicanas no Rio, mas disso não existe
evidência nem em suas obras nem nos jornais da época. O
que, sim, parece ser informação concreta é a crítica que se
fazia ao Colégio Augusto, cujo programa de estudos incluía
disciplinas tais como Latim, Caligrafia, História, Geografia,
Religião, Matemática, Português, Francês, Italiano, Inglês,
Música, Dança, Piano, Desenho e Costura. Nessa
experiência educacional, Nísia Floresta empregou novos
métodos de ensino, desconhecidos pelos mestres brasileiros
e que, ainda hoje, seriam considerados inovadores e
pedagógicamente sólidos.
7
Além disso, a seriedade da pedagoga Nísia Floresta
ressalta de sua critica ao ambiente instrucional do Rio de
Janeiro da época: ela se opunha à comercialização do ensino
por indivíduos incompetentes que com freqüência abriam
escolas de bela aparência, mas de pouca substância em seu
interior. Para ela, a tarefa educativa era missão que somente
aos mais qualificados deveria ser confiada. Estes seus
sentimentos espelham-se em um artigo anônimo de jornal no
qual o problema é discutido, chamando-se os pais à
responsabilidade e recomendando o Colégio Augusto por
seus vários méritos:
Ao confiar uma filha a um colégio, o pai
deve ter os mesmos receios que depois de
entregá-la a um mau esposo. Admiramos a
facilidade com que, entre nós, se acredita na
moralidade protestada num anúncio mais ou
menos pomposo, de quem abre um colégio,
Na atual metodologia de aquisição de segunda língua, usa-se o mesmo método
"direto" que se empregava no Colégio Augusto nas aulas de língua estrangeira. O
método "direto" parece haver consistido no uso exclusivo da segunda língua na sala
de aula, sem nenhuma interferência da língua materna.
xi
e sem mais exame se lhe entrega a educação de
uma menina!
8
Mais perigosa ainda, na opinião da educadora, era a
ameaça representada por estrangeiros que abandonaram seu
país de origem para abrir colégios no Brasil e eram recebidos
por uma sociedade enamorada de qualquer coisa da Europa,
sem consideração sobre a qualidade. A educação das
mulheres no Brasil de princípios do século XIX estava
organizada ao redor da dicotomia européia entre a instrução e
a educação. Aos homens se instruía, para desenvolver o
intelecto. Às mulheres se educava, para formar o caráter.
Não se considerava o desenvolvimento intelectual das
meninas como benefício em si mesmo nem como meio de
realização da personalidade individual. O propósito principal
da educação da mulher brasileira era conservar a pureza, em
sua conotação sexual, e assegurar um comportamento
correto perante a sociedade.
Contrapondo-se a essa mentalidade, Nísia Floresta
formava conceito de seu colégio como uma instituição séria
para a instrução das mulheres, em um tempo em que o
programa de estudos para elas se atinha, na maioria dos
casos, ao ensino da costura e dos bons modos. Embora
poucos, os artigos de jornal que louvavam os sucessos de
suas alunas e a competência intelectual delas foram
freqüentes o bastante para que tanto o colégio como sua
diretora se fizessem objeto da calúnia por parte dos
8
O Mercantil, 27 dez. 1846. p. 4. Citado por Adauto da Câmara, História de Nísia
Floresta, p. 200.
competidores estrangeiros da autora. Porque ela ousou
pronunciar-se em reação a eles, porque teve a coragem de ser
ela mesma contra o conservantismo da época, os seus
concorrentes acusaram-na de adotar uma posição
considerada masculina:
As audácias da diretora, seu caráter sui júris
(sic), suas idéias já conhecidas em prol da
reabilitação da mulher, causaram mal-estar
entre as rivais assustadas, e entre os catões,
que aborreciam aquela mulher metida a
homem, pregando a emancipação do seu
sexo, batendo-se pela extinção da odiosa
tirania masculina, escrevendo nos jornais,
estigmatizando os senhores de escravos,
afrontando desassombradamente seculares
preconceitos.
9
Tais críticas eram, visivelmente, indicadoras da ideologia
dominante a respeito do lugar da mulher na sociedade.
Os comentários desfavoráveis sobre o colégio e seu
programa de estudos progressivos também vinham
acompanhados de ataques caluniosos à vida pessoal de sua
diretora. Segundo Adauto da Câmara, sua mera presença na
sociedade carioca incitou à publicação de artigos que aludiam
a envolvimentos amorosos dela, tanto com amantes
masculinos quanto com suas alunas. Alguns artigos de jornal
da primeira metade do século XX insinuavam que a decisão
Adauto da Câmara, p. 57.
tomada por Floresta, de ir embora para a Europa, talvez
fosse mais uma fuga, resultado direto de tais incidentes
desagradáveis. O Colégio Augusto, no entanto, aberto desde
onze anos antes, não encerrou suas atividades com a saída de
sua idealizadora. Até 1856, esteve sob a direção de uma
pessoa de quem não se guarda notícia. Daí para a frente, uma
notícia no Almanaque Laemmert anunciava que uma ex-
graduada do colégio, Lívia Augusta de Faria Rocha, a filha
de Nisia Floresta, era a nova diretora do estabelecimento. E
embora Nisia tenha voltado duas vezes ao Brasil - de 1852 a
1856 e, outra vez, de 1872 a 1875 - não há evidência de que,
durante esses períodos, tivesse reassumido sua posição à
frente do educandário.
Durante sua longa residência na Europa, Floresta
continuou comprometida com os problemas educacionais,
tendo com freqüência expressado sua admiração pelas
técnicas pedagógicas européias. Ao observar, por exemplo,
a cena idílica de uma mestra alemã com um grupo de
meninos num parque, para o que hoje se chamaria uma
excursão científico-escolar, ela recorda com saudade suas
experiências anteriores, contrastando-as com o método de
instrução que está presenciando. A educadora brasileira
sentiu que seu próprio coração e espírito
se harmonizavam para instruir a mocidade:
apenas esta se limitava a ministrar lições entre
as paredes de um estabelecimento, e em um
país onde não se compreende ainda todo o
alcance de uma educação geral, que forma,
simultaneamente, o moral e o físico; ao passo
que a mulher que ali estava diante de mim,
instruía, viajando, seus alunos, cujos pais
sabem apreciar as vantagens deste método,
que fará rir aos espíritos ainda atrasados.
10
Sabemos também, concretamente, que, a partir de
1851, Floresta passa a mandar da Europa artigos para
publicação em jornais cariocas, entre os quais o Brasil
Ilustrado, O Liberal, O Diário, o Novo Mundo, e o Jornal
do Comércio. Em 1852, ela retorna da Europa,
desembarcando no Rio de Janeiro no dia 10 de fevereiro,
juntamente com seus dois filhos, Lívia e Augusto Américo.
Em 1855, por ocasião de uma epidemia de cólera que
grassou no Rio de Janeiro e que só na capital do império
matou mais de 6 mil pessoas, Floresta serviu como
voluntária na Enfermaria de Nossa Senhora da Conceição, à
rua da Quitanda, 40, aderindo ao movimento de
solidariedade humana da sociedade carioca. A 25 de agosto
do mesmo ano e na mesma cidade falecia, aos 75 anos,
Antônia Clara Freire, sua mãe, vítima de uma pneumonia, no
mesmo endereço onde funcionava o Colégio Augusto, à
Travessa do Paço, 23.
No dia 10 de abril de 1856, Floresta retorna com a
filha à Europa, a bordo do vapor francês Cadix, com destino
ao Havre. O seu filho permanece no Brasil. Durante 16 anos
- até 1872 - ela não voltará ao Brasil. Durante esse tempo,
viajará sem parar pelo Velho Mundo, residindo na França e
na Itália, visitando várias vezes a Alemanha, a Bélgica, a
Suiça, a Sicília, a Inglaterra e, pelo menos uma vez, a
10
Nísi. Floresta. Itinéraire d'un voyage en Allemagne. Paris, F. Didot frères, 1857.
A passagem é citada em tradução portuguesa por Adauto da Câmara, p. 39.
Grécia. Cansando, finalmente, de tanto peregrinar, fixa-se
na cidade de Ruão, na França.
A 31 de maio de 1872, passageira do paquete inglês
Neva, Floresta retorna ao Brasil, onde permanece até 1875.
Desta vez, a filha Lívia fica em Lisboa, como preceptora dos
filhos de uma família amiga. Durante essa estada no Brasil,
Joaquim Pinto Brasil, irmão de Nísia, falece no Rio de
Janeiro. A 24 de março de 1875 ela volta em definitivo para
a Europa. Finalmente, no dia 24 de abril de 1885, a autora
veio a falecer na cidade de Ruão, também vítima de uma
pneumonia como a mãe, e com os mesmos 75 anos de idade,
se se estabelece o ano de seu nascimento em 1810. Em
1891, seu filho Augusto Américo de Faria Rocha morreu no
Rio de Janeiro. E em 1911, segundo se admite, a filha Lívia
Augusta Gade faleceu em Cannes, na França, depois de
casada pela segunda vez.
As notícias da morte de Nísia Floresta não
provocaram maiores comentários no Brasil. O Jornal do
Comércio, no dia 26 de maio de 1885, e O País, no dia 27
do mesmo mês, publicaram a notícia da sua morte. No
Jornal do Comércio há vários anúncios de missas celebradas
em memória da autora, encomendadas por sua família e pelas
alunas do Colégio Augusto, durante maio e junho, no Rio de
Janeiro.
11
Nessa ocasião, o seu filho Augusto Américo
dirigia a casa de ensino, que então funcionava "no muito
saudável arrabalde de Engenho Novo".
12
Em 1894, no lugar
do Colégio Augusto, passa a existir o Colégio Loureiro, para
1
'Ver: Adauto da Câmara, p. 210 e 211 para a reprodução dos óbitos e convites
para missas.
12
Adauto da Câmara, p. 40.
XVI
meninos, dirigido por Francisco Luís Loureiro de Andrade,
(Rua Souza Barros, 19, Engenho Novo), que disse tê-lo
comprado, em 1892, de uma viúva que não deixara filhos, a
esposa do falecido filho de Nísia Floresta.
13
Com a venda do
Colégio Augusto e a morte de Nísia e Augusto Américo,
termina o seu legado institucional no campo do ensino.
No dia 12 de outubro de 1909, no sítio Floresta, em
Papari, Rio Grande do Norte, foi erigido um monumento a
Nísia Floresta, por proposta de um congresso literário e sob
os auspícios do então Governador do Estado, Alberto
Maranhão. Em 1954, o monumento é ampliado para receber
os restos mortais da autora, trasladados de Ruão, na França,
por iniciativa do Governo Brasileiro. Os despojos, levados à
igreja matriz de Natal, foram guardados definitivamente no
túmulo, em Papari, no dia 3 de abril de 1955, num
acontecimento marcado por solenes homenagens do povo e
das instituições culturais.
As muitas peripécias e andanças de Nísia Floresta
põem à mostra o roteiro intelectual dessa mulher
antecipadora de tempos ede idéias. Já no Recife, em 1832,
entre os seus 22 ou 23 anos, ela tomou contato com o
principal tratado feminista da época, A Vindication of the
Rights of Woman, de Mary Wollstonecraft. Esta obra foi
publicada em Londres, em 1792, e expunha a idéia de que a
verdadeira liberdade requer a igualdade entre mulheres e
homens. O objetivo de Wollstonecraft era responder ao
argumento de J. J. Rousseau, quando este insistia em que,
educadas, as mulheres iriam perder seu poder natural sobre
os homens. Replica a escritora inglesa: "É este justamente o
1
Adauto da Câmara, p. 40.
ponto a que me dirijo: não advogo que tenham poder sobre
os homens, mas sobre si mesmas."
14
Aí está a passagem-
chave da obra de WoUstonecraft: as misérias e os defeitos
próprios da mulher surgiram por causa da sua dependência
em relação aos homens. A educação é um passo para a
independência. A solução será habilitar todas as mulheres
para saírem ao mundo, proporcionar-lhes a oportunidade de
desenvolvimento do intelecto, para ganharem dignidade
pessoal e chegarem a ser filhas mais devotadas, irmãs mais
carinhosas, esposas mais fiéis, mães mais razoáveis, e
melhores cidadãs. Enfim, era propósito de Mary
WoUstonecraft criar um novo sujeito social: a mulher que se
constitui a si mesma, como alguém que busca realizar-se.
O primeiro trabalho de Dionísia Pinto Lisboa foi a
divulgação da obra da escritora britânica. O texto utilizado
não foi o original inglês, mas a versão francesa, transposta
em "tradução livre" - 56 páginas apenas - para o português, e
publicada sob o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira
Augusta, com o título de Direitos das mulheres e injustiças
dos homens. Adauto da Câmara menciona* uma segunda
tiragem desta obra, em Porto Alegre, e a possibilidade de ter
saído uma terceira, no Rio de Janeiro.
15
Wilson Martins,
com quem é preciso concordar, argumenta contra a
existência dessas edições extras.
16
É importante guardar o sucesso significativo de Nísia
Floresta na disseminação das idéias de WoUstonecraft no
14
CaroI H. Poston, ed., A Vindication of lhe Rights of Woman. New York, Norton
& Co., 1975. p. 62.
15
Ver Adauto da Câmara, p. 115.
Wilson Martins. História da inteligência brasileira. São Paulo, Cultrix, 1977. 2v. p.
306.
XV111
universo da cultura brasileira. A sua afiliaçâo inicial com as
idéias utilitaristas da escritora inglesa, desenvolvidas,
depois, por John Stuart Mill, coloca-a precisamente dentro
da tradição do feminismo liberal. Paradoxalmente, porém,
sua formação intelectual ela a recebeu pela via dos filósofos
franceses da Ilustração, tais como Rousseau, Montesquieu e
Condorcet. Além disso, a familiaridade, posterior em sua
vida, e a amizade íntima com Augusto Comte, o pai do
positivismo, complica ainda mais a multidão de influências e
tradições intelectuais subjacentes à sua obra. Esta tensão faz-
se a nota específica e dominante do seu feminismo, sempre
presente e fecundo, mas, no entanto, tão difícil de conciliar
num conjunto unitário. Elucubrada numa emotiva linguagem
romântica, esta tensão é visível principalmente no Opúsculo
Humanitário, a coleção de 62 ensaios pedagógicos que ora
se devolve à circulação.
17
Mas, com a tradução das idéias de Mary
Wollstonecraft, apenas começava o trabalho revolucionário
de Nísia Floresta. De seus escritos sobre a práxis da
educação brasileira, publicados no Brasil e na Europa,
ressalta a preocupação pelo ensino, que ela acreditava capaz
de, mudando as consciências, mudar a vida material e
concreta das mulheres. Os seus estudos, que se dedicam
notadamente à educação feminina, tratam da ausência da
mulher no mundo, ausência que se dá diante de si mesma, e
levantam a tese de que os limites e o modelos dessa educação
estão determinados pelos homens, que não querem contrariar
os interesses da sociedade em que têm o domínio.
BA. Opúsculo Humanitário. Rio de Janeiro, M.A. da Silva Lima, 1853.
Com esse espírito, Nísia Floresta publicou várias
obras pedagógicas anteriores ao Opúsculo Humanitário.
Depois dos Direitos das mulheres e injustiças dos homens,
de 1832, saíram os Conselhos à minha filha, em 1842.
Desses Conselhos houve mais uma edição brasileira, além de
uma tradução italiana e outra francesa. Em 1847, é publicado
Fany ou o modelo das donzelas.
16
Outro discurso moralista,
não existente hoje, é Daciz ou a jovem completa, também de
1847, pequena lição moral de 15 páginas, dedicada às alunas
do seu colégio.
19
Adauto da Câmara afirma ter manuseado o
único exemplar desse folheto na biblioteca de Henrique
Castriciano, em Natal, mas Mariz, dizendo ter consultado a
mesma biblioteca, dá-o como perdido.
20
Ainda em 1847,
aparece o Discurso que às suas educandos dirigiu Nísia
Floresta Brasileira Augusta, em 18 de dezembro de 1847, de
6 páginas.
21
Em 1849, A lágrima de um caeté, poema de 39
páginas sobre a Revolução Praieira, assinala o ingresso de
Nísia Floresta no campo fechado da literatura e a obrigação
de se associar o seu nome, pelo tema e pelo estilo, aos seus
contemporâneos da escola romântica, como Gonçalves de
Magalhães e Gonçalves Dias.
22
Nessa seqüência, em 1850
Fany ou o modelo das donzelas foi lançado a público em 8 de abril de 1847,
assinado com o pseudônimo N. B. Augusta. É o mesmo discurso publicado por
Fernando Osório em seu livro Mulheres Farroupilhas.
Daciz ou a jovem completa, assinado por N. F. B. A., foi lançado em julho de 1847,
pela Tipografia de F. de Paula Brito, no Rio de Janeiro.
20
Mariz, p. 29.
2
'Este discurso foi publicado no Rio de Janeiro, pela Tipografia de F. de Paula Brito.
A lágrima de um caeté foi editado no Rio de Janeiro, pela Tipografia de L.AF.
Menezes.
aparece Dedicação de uma amiga, romance histórico em dois
volumes.
23
O Opúsculo Humanitário levou a assinatura de B.A.
e foi editado no Rio de Janeiro pela Tipografia de M.A. da
Silva Lima, num volume in 8
C
, com 178 páginas, e mais
uma errata no final. Tendo aparecido inicialmente como
artigos sem assinatura no Diário do Rio de Janeiro, a
publicação foi interrompida no capítulo XX. Depois os
originais foram entregues a Silva Lima, que os enfeixou em
livro. Enquanto isso, O Liberal, de sua propriedade,
transcreveu os capítulos aos dois e três a cada dia, de 7 de
julho de 1853 até 21 de maio de 1854, já depois de estar o
livro circulando.
Ao Opúsculo, segue-se, em Paris, o Itinéraire d'un
voyage en Allemagne.
24
Em 1859, aparecem as Scintille d'un
anima brasiliana.
25
Este livro reúne cinco trabalhos em prosa:
O Brasil, O abismo sob as flores da civilização, A mulher,
Viagem magnética, e, finalmente, Um passeio aos jardins de
Luxemburgo. Depois, como separata das Scintille, Le Brésil é
publicado em Paris, num volume de 49 páginas.
26
Em 1861
ou 1864, conforme variam as notícias a respeito, Nísia
Floresta escreve Trois ans en Italie, suivis d'un voyage en
Grèce, assinando-o como "Une
L
-Dedicação de uma amiga, assinado com o pseudônimo B.A., foi publicado em
Niterói, pela Tipografia Fluminense, de Lopes & Cia. Inocêncio Francisco da Silva,
em seu Dicionário Bibliográfico, explica que a obra seria composta em quatro
volumes, dos quais somente dois foram publicados.
2
Este livro, assinado por Floresta Augusta Brasileira, foi editado por Firmin Didot
Frères et Cie.
"Também assinado por Floresta Augusta Brasileira, o livro foi publicado em
Florença, Itália, na casa editora de Barbera, Bianchi & Cia.
2
°Le Brésil foi publicado pela Librairíe André Sagnicr.
Brésilienne".
27
O l
8
volume tinha 392 páginas. O segundo
volume, de 358 páginas, vem logo depois, publicado em
1872, assinado também por "Une Brésilienne".
A última publicação, considerada como a obra
mais rara de Nísia Floresta, trata-se de Fragments d'un
ouvrage inédit, que é um capítulo de suas memórias, com
111 páginas, publicado com o pseudônimo de Mme. Bra-
sileira Augusta.
28
Não seria de desprezar a colaboração jornalística
dessa extraordinária mulher, embora seja praticamente
impossível identificar tais escritos, pois, afora as iniciais
B.A., ela, conforme Mariz, não raro simplesmente punha tão
só três asteriscos em lugar de seu nome ou, mesmo, não
assinava nada. Três artigos no jornal Brasil Ilustrado
foram atribuídos a ela: as "Páginas de uma vida obscura,"
"Um passeio ao aqueduto da Carioca" e "Pranto filial," de
1856.
Nísia Floresta foi profundamente influenciada por
quatro filosofias políticas em voga na metade do século XIX
e pelas idéias daí decorrentes, a saber: a filosofia da
Ilustração, o Idealismo romântico, o Positivismo e o
Utilitarismo.
Como representante da Filosofia Ilustrada, que
influiu mais tarde no pensamento romântico, Rousseau, ao
*• O primeiro volume foi publicado em Paris, por E. Oentu. O segundo volume é da
mesma editora.
28
Os Fragments foram publicados em Paris, por A. Chérie, em 1878. Dão-se
como perdidas as seguintes obras de Nísia Floresta, anotadas por ordem de data
de publicação: Direitos das mulheres e injustiças dos homens (1832), Daclz ou
a Jovem completa (1847), Dedicação de uma amiga (1850), e Inspirações maternas,
de data desconhecida.
elaborar o seu modelo de cidadania, parecia tão preocupado
com a igualdade de direitos quanto aparecia desinteressado,
visivelmente, em criar um espaço para a participação das
mulheres na esfera pública.
29
Como desdobramento, por sua
vez, do pensamento iluminista, o ideal romântico da
feminilidade independente viu nos poderes do amor um
paradigma para a reforma político-social. Segundo os
românticos, a reforma da sociedade começaria nos centros da
vida privada. Do ponto inicial de boas relações em que os
indivíduos alcançassem uma nova compreensão de si
mesmos, as modificações se difundiriam para o quadro mais
amplo da sociedade.
30
Daí que a hierarquia de valores
românticos igualmente não tivesse em alta estima uma
postura política por parte da mulher. Somente mais tarde,
com o desenvolvimento do Utilitarismo, ela passaria a ser
objeto de interesse no domínio da política.
Antes do advento do Utilitarismo, entre 1820 e 1826,
haviam aparecido os Opuscules de Augusto Comte, que
representam a primeira etapa de suas obras principais. É
improvável que seja mera coincidência a repetição do termo
no título do Opúsculo Humanitário de Nísia Floresta. Com
efeito, já por volta de 1851 se havia estabelecido a
familiaridade da autora com Comte quando, durante sua
primeira permanência de três anos em Paris, havia assistido a
29
Para uma estimulante apreciação do modelo de cidadania em Rousseau e sobre as
possibilidades de uma leitura feminista desse modelo, vide Margarcl Canovan.
Rousseau's two Concepts of Citizenship. In: Kennedy, Ellen and Mendus, Susan, eds.
Women in Western Political Philosophy. New York, St. MartirTs Press, 1987. pp. 78-
105.
30
Ursula Vogel. Humboldt and lhe Romantics. In: Kennedy and Mendus, eds. Women
in Western Political Philosophy, p. 121.
XX111
uma das conferências do filósofo francês sobre "A história
geral da humanidade." Ao voltar à Europa em 1856, ela
presenteou a Comte com uma cópia do seu Opúsculo, assim
apreciado por ele numa carta a Pierre Lafitte, datada de 30 de
setembro de 1856:
Desde que fiquei inteiramente livre,
fiz as leituras excepcionais que
espontaneamente prometera. O opúsculo em
português, além de revelar-me que eu sabia
indiretamente mais uma língua, inspira-me
sólidas razões para esperar se torne a nobre
dama, sua autora, dentro em breve, uma
digna positivista, susceptível de alta eficácia
para a nossa propaganda feminina e
meridional.
31
Embora Nísia Floresta talvez não tenha realizado
todas as esperanças de Augusto Comte quanto à
disseminação da doutrina positivista no Brasil, mais tarde em
sua carreira chegaria a situar-se plenamente no domínio do
pensamento comteano. As suas primícias como escritora
sugerem que já se inclinava a essa tendência, mas traziam
ainda colorações das correntes filosóficas anteriores.
Os Opuscules de Comte, descrição e análise de um
momento da história européia, concluem que nem a
revolução nem a ciência podiam efetuar a reorganização da
sociedade. Essas mudanças mais profundas ocorreriam
Ivan Lins, p. 20.
somente por meio de uma síntese das ciências e com a
criação de uma política positiva.
32
Comte viu a difusão do
pensamento científico e a atividade industrial como uma
contradição ao pensamento teológico e militar do passado.
Para ele, a única maneira de superar essa crise seria criar
uma nova ordem social que valorizasse o pensamento
científico. Nesse rumo elaborou o seu sistema de idéias
científicas, que, segundo acreditava religiosamente, iria
presidir à reorganização geral da sociedade.
No conjunto de suas idéias, Comte enfatiza a
igualdade das relações familiares: uma relação de veneração
entre os filhos e os pais; e uma complexa relação de
autoridade ou obediência entre o esposo e a esposa. No
entanto, a autoridade do homem é inferior, porque é uma
atividade intelectual, enquanto que o poder espiritual da
mulher - o poder do amor - ao parecer inferior, é essencial
para a família e, portanto, muito mais nobre. De acordo com
essa estrutura familiar, o lugar da mulher como esposa
submissa e como mãe dedicada lhe permite alcançar um
estado de superioridade moral; o cultivo dessa posição da
mulher dentro da família, Comte o desenvolveu, com o
tempo, até ao ponto de transformar o positivismo numa
religião que celebrava a virtude feminina. Essa visão da
igualdade está baseada na diferenciação das funções e das
naturezas. Ao mesmo tempo, observa Aron, na família
"...são os homens os que têm a experiência da continuidade
histórica, os que aprendem qual a condição da civilização, os
Raymond Aron. Main Currenls in Sociological Tkought 1. New York, Doubleday,
1968. pp. 75-80.
XXV
que controlam a transmissão da civilização de uma geração
para outra."
33
Por outra parte, a visão utilitarista dos direitos
políticos iguais, tais como as expuseram Wollstonecraft,
Stuart Mill e Bentham, enfatizou o conceito de que as
diferenças entre os sexos não são naturais, mas sociais, e,
portanto, estão sujeitas à mudança, quando se objetiva a
reforma da sociedade. Intimamente associada com esse
ponto de vista estava a consciência, por parte dos
utilitaristas, de que as mulheres não podiam realizar suas
capacidades nas íntimas relações pessoais, enquanto não
fossem reconhecidas como pessoas iguais na esfera
pública.
34
A perspectiva de Nísia Floresta sobre as mulheres e
sobre a possível reforma da sociedade brasileira parece
assimilar, de modo eclético, elementos dessas quatro
correntes de pensamento anteriormente referidas. De uma ou
outra forma visíveis no conjunto da produção escrita da
autora, o Opúsculo Humanitário, de modo especial, reflete
uma tensão básica entre duas dessas filosofias. Por uma
parte, Nísia Floresta era prisioneira de certos modos
tradicionais de pensar a respeito da mulher, por ela herdados
da Ilustração e do Romantismo; por outra parte, estava
tentando libertar-se desses paradigmas mais tradicionais e
abraçar as novas filosofias, mais liberais, que iam fazendo o
ambiente da metade do século XIX. O próprio pai do
positivismo percebeu essa ambigüidade e esse conflito no
centro mesmo do pensamento da autora. Numa carta ao Dr.
33
Aron, p. 111.
34
Vogel, p. 122.
Audiffrent, datada de 29 de março de 1857, ele expõe a
conveniência de ter Nísia Floresta e sua filha, de 22 anos,
como possíveis discípulas de sua doutrina e como
participantes potenciais do salão positivista que ele espera
abrir dentro de pouco. E comenta:
Ambas são eminentes pelo coração e
suficientes quanto ao espírito. Acha-se,
contudo, a mãe de tal modo imbuída dos
hábitos do século dezoito, que pouco
devemos esperar da plenitude de sua
conversão, embora as suas simpatias
remontem ao meu curso de 1851, cuja
influência ela não pôde, entretanto, receber
senão através de uma única das sessões...
Sua filha, porém, comporta uma incorpora-
ção completa, que a mãe secundará sem ri-
validade disfarçada.
35
Essa contradição, Nísia Floresta a conservava, enquanto
evoluía para uma aceitação mais completa das doutrinas
filosóficas de Augusto Comte.
Alison Jaggar, na crítica que faz das
epistemologias ocidentais, afirma que os valores morais
básicos da filosofia liberal fundamentam-se na presunção de
que todos os indivíduos, sem exceção, são dotados de
razão.
36
Essa afirmação, situada na perspectiva do século
35
Lins, p. 21.
36
Feminist Politics and Human Nature. Totowa, New Jersey, Rowman & Ailanheld
Publishers, 1983. p. 33.
XX, não evidencia mais a sua marca polêmica. Esse era, no
entanto, um conceito revolucionário na época de Nísia
Floresta, se considerarmos que nele as mulheres
simplesmente não estavam incluídas. Tal noção remonta, na
filosofia ocidental, à idéia de Aristóteles, de que as mulheres
são seres humanos incompletos e insuficientes por natureza,
pertencentes a uma ordem completamente distinta da dos
homens. Daí que se considerasse a subordinação da mulher
como algo "natural", portanto indiscutível, já que
socialmente mascarada. É precisamente esse conceito,
associado à desvalorização da mulher na relação com o
divino, que constitui a metáfora fundamental sobre que se
erigiu a civilização do Ocidente.
37
Segundo a tradição
ocidental, os pressupostos básicos sobre o conceito de
mulher resumem-se nas quatro seguintes asserções:
primeiro, a natureza biológica feminina dita e justifica a falta
de categoria da mulher; segundo, a natureza psicológica
feminina é mansa, submissa, emocional e, logo, irracional;
terceiro, a mulher deve estar confinada ao lar e à vida
doméstica; e, quarto, a mulher serve para criar os cidadãos,
mas não serve para ser ela mesma cidadã.
38
Era, pois, revolucionaria, na época de Nísia Floresta,
a idéia veiculada pela filosofia liberal, de que todos os seres
humanos são entes racionais, sem distinção de sexo.
Floresta orienta a sua análise à questão do potencial e da
utilidade da mulher brasileira na sociedade, com vista,
37
Gerda Ltrner. The Crealion of Patriarchy. New York, Oxford University Press,
1986. p. 10.
38
Kennedy and Mendus, eds. Introduction. In:Women in Western Polilical
Philosophy. p. 3.
principalmente, à reforma da consciência nacional, para a
qual teria mais valor a autonomia de cada indivíduo. Do
positivismo e do utilitarismo provêm algumas idéias-mestras
que ela incorporou a sua crítica: por exemplo, a idéia de
utilidade, o conceito de ser a natureza feminina igual à do
homem, a da atuação da mulher na esfera pública, e a de
desenvolver e aproveitar a habilidade intelectual da mulher
para edificar uma sociedade melhor e fortalecer as relações
familiares. Tais idéias, em verdade, constituem a base
ideológica, o próprio fundamento estrutural das mudanças
propostas para a sociedade brasileira no Opúsculo
Humanitário. Nada a surpreender, em conseqüência, que a
opção abolicionista, republicana, indianista e feminista de
Floresta fosse assacada por seus críticos conservadores
como uma acusação contra ela. Quase um século depois,
porém, Adauto da Câmara identifica os verdadeiros objetivos
do feminismo de Nísia Floresta:
Floresta tinha o mérito de ser desinteressada
no seu feminismo: não tinha empregos em
mira, não pretendia prestígio político visando
arranjos para os parentes: não se batia pela
elevação social da mulher como um pretexto
para se fazer notar, para obter gordas
comissões na Europa, ou cadeira de
deputado. Era verdadeiramente um idealismo
são que lhe inspirava a luta pela educação da
mulher e pela extinção de sua inferioridade.
39
Bibliografia de Nísia Floresta, pp. 89-90. Vide Nota 2.
Como observa esse estudioso, em vez de seu
engrandecimento pessoal, Floresta estava sinceramente
interessada em apresentar propostas de reformas sociais
abrangentes que valorizassem os direitos e a autonomia
individual, baseadas no postulado filosófico de que a
inferioridade do sexo feminino é uma mera construção
cultural, e que a mulher e o homem são dotados, por igual,
da mesma natureza humana.
No artigo 32 da proposta da Constituição Nacional
de 1823, garantia-se a todos os cidadãos a educação primária
pública. Na realidade, porém, "todos os cidadãos" eram os
filhos e não as filhas dos homens livres. Heleieth Saffioti
assinala que havia um projeto de lei para outorgar uma
comenda por elevados serviços prestados à Nação e uma
condecoração com a Ordem Imperial da Cruz para o cidadão
que apresentasse "o melhor tratado sobre a cultura e a
educação física, moral, e intelectual da mocidade brasileira;"
com base na proposta de um dos delegados, o projeto de lei
foi emendado para se ler: a mocidade brasileira "de um e
outro sexo."
40
Não obstante, antes que se aprovasse o
projeto de lei, omitiu-se o acréscimo da frase liberal que
incluiria as mulheres. Isso já serve para dar uma idéia de
qual seria o significado prático do artigo 32, antes
mencionado: na Constituição outorgada de 1824 declara-se
simplesmente que "a educação primária é gratuita para todos
os cidadãos." Sendo assunto de legislação ordinária, ao
40
Annaes do Parlamento Brasileiro, Assembléia Constituinte, 1823, Tipografia do
Imperial Instituto Artístico, Rio de Janeiro, 1872, Sessão de 11 de agosto de 1823.
Citado por Heleieth Saffioti. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São
Paulo, Livraria Quatro Artes Editora, 1969. p. 203.
quadro legislativo de 1826 estava cometida a tarefa de redigir
em seus pormenores as leis sobre a educação nacional. O
projeto de lei que tratava da organização da educação
primária pública no Império, e subscrito por vários
deputados, declara o seguinte:
Haverão (sic) escolas de primeiras letras, que
se chamarão pedagogias, em todas as
cidades, vilas e lugarejos mais populosos do
Império. (...) Serão nomeadas mestras de
meninas e admitidas a exame, na forma já
indicada, para cidades, vilas e lugarejos mais
populosos, em que o presidente da província,
em conselho, julgar necessário este
estabelecimento, aquelas senhoras, que por
sua honestidade, prudência e conhecimentos
se mostrarem dignas de tal ensino,
compreendendo também o de coser e
bordar.
41
Uma lei de 1827, ao mesmo tempo em que garantia
às mulheres o direito da educação, foi usada
sintomaticamente como instrumento de discriminação. Essa
lei estabelecia programas de estudos distintos para os
colégios primários de varões, limitando às quatro operações
fundamentais o ensino da aritmética às mulheres, e excluindo
a geometria. Acontecia, porém, que, no pagamento dos
salários a mestres e mestras, o critério de diferenciação dos
41
Annaes do Parlamento Brasileiro, Câmara doa Deputados, Sessões de 1826 a 1834,
Tipografia do Imperial Instituto Artístico, Rio de Janeiro, sessão de 16/6/1826.
Citado em Saffioli, p. 203.
valores se baseava no conhecimento da geometria, de modo
que, ao final das contas, as mestras terminavam ganhando
menos.
42
Além do mais, as mulheres tiveram a sua instrução
limitada ao nível das "pedágogias," ou seja, aos quatro anos
de estudos primários, enquanto que aos varões se reservava
o privilégio de ascenderem aos graus mais elevados do
ensino (liceus, ginásios, academias). O programa de estudos
das escolas femininas tinha os seus interesses centrados nas
artes da costura, em vez de se preocupar com a instrução
acadêmica. Os próprios pais costumavam retirar as filhas da
escola mal estas aprendiam a costura, para evitar que
aprendessem a ler, escrever e contar.
Essa lei de 1827 tinha, em todo caso, uma vantagem:
ao propor a centralização do ensino, acenava com a
possibilidade de uma escolaridade básica, uniforme e
universal. Entretanto, o Ato Adicional de 1834 transferiu às
Assembléias Provinciais o poder de legislar sobre a educação
pública primária, reservando ao governo central a
responsabilidade sobre o ensino secundário e superior. Essa
medida seria desastrosa para a educação das mulheres.
Como assinala Saffioti:
A emenda constitucional de 34 conferia, num
país de analfabetos, maior importância aos
estudos mais avançados do que àqueles sobre
os quais se assentaria o desenvolvimento
social e econômico da nação. A formação da
mentalidade nacional correria, daí por diante,
por conta das iniciativas provinciais,
Saffioti, p. 205.
cuidando a União exatamente daquela
educação cujos destinos seriam o da
diversificação regional.
43
Dentro desse contexto cultural, a aparição de um livro como
o Opúsculo Humanitário haveria de constituir uma anomalia.
A educação como meio de superação Co problema da
inferioridade feminina é o enfoque de maior relevo no
Opúsculo Humanitário. Mesmo que o livro não revele
nenhuma divisão estrutural externa, tem, contudo, uma
organização temática interna que se constrói ao redor dos
seguintes temas: as condições universais da mulher através
da História; a superioridade da educação da mulher européia;
a situação da mulher no Brasil; recomendações para mudar
essa situação; e finalmente uma expressão de esperança para
o futuro.
Os dezessete primeiros ensaios do Opúsculo
Humanitário traçam a evolução das condições femininas
desde os tempos mais remotos no Egito, na Pérsia, na índia,
na Babilônia, na Grécia e em Roma, até chegar ao século
dezenove na Alemanha, França, Inglaterra e Estados
Unidos. Logo Nísia Floresta considera o lugar da mulher na
sociedade. Ela viu as mulheres, européias como úteis
membros da sociedade, como magníficas educadoras dos
jovens, tanto em casa como nas escolas, assim como
companheiras inteligentes de seus maridos. Em contraste, as
mulheres brasileiras não podiam comparar-se, nem na
fortaleza de caráter nem na moralidade, com suas irmãs
Saffioli, pp. 206-207.
européias e norte-americanas, porque eram vítimas do
preconceito e da opressão duma existência enclausurada, do
analfabetismo, e serviam só para a procriação. Reveladoras
das atitudes prevalecentes à época são estas palavras de um
ex-governador da província de Minas: "Deve-se ensinar às
meninas tudo quanto convém que saiba uma mulher, que tem
de ser criada de si e de seu marido."
44
Depois de denunciar essas condições imperantes na
sociedade brasileira, a autora prossegue a apresentar
propostas de mudança. Uma reforma educacional
compreensiva, tanto no setor privado como no público, é
condição sine qua non para a reestruturação da sociedade
brasileira. Aqui recordamos a opinião de Comte de que a
reforma intelectual é pré-requisito da reforma social.
Concordando com Comte, Nísia Floresta insiste:
É partindo desta experiência, que tiramos a
conclusão de que, no Brasil, não se poderá
educar bem a mocidade enquanto o sistema
de nossa educação, quer doméstica, quer
pública, não for radicalmente reformado (p.
111).
Floresta reconhece que a opressão da mulher é criada pelos
homens para seu próprio proveito e que logo eles a usam
para que se reforce e se perpetue. Em outras palavras, às
mulheres é negado o acesso à educação e logo elas são
Opúsculo Humanitário, p. 82 da presente edição. Todas as futuras citações da
presente edição estão incluídas no texto.
excluídas de participar na esfera pública devido a sua Falta de
educação. A justificação de tal opressão provém da tradição
da filosofia antiga, a qual descreve a mulher como
particularista, emocional e intuitiva, ao contrário do homem
que se considerava universal, racional e reflexivo. À mulher
é relegado o lado negativo dessa dicotomia, já que é escrava
de suas emoções, naturalmente submissa e servil.
Floresta considerou a cultura e as sociedades do
norte da Europa superiores a suas contrapartes brasileiras,
advogando a emulação daquelas culturas e o estudo dos
costumes das mulheres. Conforme suas palavras:
Copiemos antes de tudo a educação que
naqueles países se dá à mocidade. Imitemos
principalmente os ingleses no respeito à
religião e à lei, os alemães no hábito de
pensar e no empenho de elevarem-se acima
de todos os povos pelo estudo e pela
reflexão, os franceses em seu espírito
inventor, e em suas generosas inspirações
civilizadoras: a todos, no gosto pelo trabalho
e no desejo sempre progressivo de
engrandecerem-se por seu engenho e
atividade (p. 101).
Ela admira especialmente as inglesas por seu espírito
de ordem, por sua convicção dos direitos individuais e pela
inclusão da mulher em sua própria definição de
individualidade. Na opinião de Floresta, as inglesas são
ainda mais distinguidas que as mulheres de outros países
europeus, porque
[g]ravando-se-lhe no espírito, quase logo ao
sair do berço, a consciência de sua própria
dignidade, ela compreende muito cedo a
nobreza do sexo a que pertence e a
importância do cumprimento de seus deveres
(p. 23).
Os brasileiros haviam herdado dos portugueses o
costume muçulmano de pôr debaixo de chave as mulheres,
de rodeá-las com escravos, e de abandoná-las na ociosidade
e na ignorância. Mas as inglesas jamais tiveram que ser
vigiadas na ausência dos pais e esposos. Portanto, como
lembra a autora, o componente religioso-moral da educação
também é distinto porque confere à mulher a oportunidade de
respirar a atmosfera da sinceridade, a liberdade e a
independência que caracterizam o espírito da nação britânica
em geral.
Um panorama breve das condições gerais da
educação brasileira na época em que Floresta desempenhava
suas atividades pedagógicas iluminará algumas das razões
que levaram a autora a propor idéias sobre a reforma
educacional. Um indício da pouca importância que se dava a
essa educação é o fato de que dos 55.500 jovens que
estavam matriculados no Brasil em 1852, quando a autora se
preparava para publicar o Opúsculo Humanitário, somente
8.443 eram mulheres, instruídas em escolas de precárias
condições (p. 81). As mestras eram elas mesmas mal
educadas e, segundo Nísia Floresta, o programa de estudos
de tais escolas visava, literalmente, à arte da sedução e aos
deveres domésticos.
xxxvi
Contemplando a educação brasileira como
completamente deficiente desde a base, Floresta acreditou
que o componente religioso-moral do sistema inglês continha
os princípios fundamentais que deveriam servir de inspiração
à reforma educacional brasileira. Se a religião e a moralidade
fossem a causa final da educação, as mulheres seriam
instruídas no desenvolvimento da verdadeira virtude desde a
tenra idade. A educação religiosa moral, vista assim, é uma
cadeia indestrutível que vincula a mulher a seus deveres.
Floresta compara a mulher sem religião a uma flor formosa,
mas de olor repugnante, uma flor que somente de longe se
podia admirar. A religião reforça as naturais qualidades
femininas, sustem e consola a mulher nas circunstâncias
mais difíceis de sua vida, é uma bússola invariável que lhe
indica seus deveres e a leva a cumpri-los. Lamentavelmente,
a educação religiosa, tal como se levava a efeito no Brasil da
época, também deixava a desejar e é criticada pela autora. A
moralidade relaxada do clero brasileiro, seu comportamento
depravado e seus costumes preguiçosos são indicadores do
estado geral de decadência do Brasil na metade do século
XIX.
Um dos objetivos fundamentais da educação
religiosa-moral superior haveria de ser ensinar às mulheres a
instruir os seus filhos e a assumir os seus deveres naturais
de mães. Nísia Floresta crê que esta é a contribuição
principal da mulher à esfera privada, especialmente à luz das
condições deploráveis encontradas nas escolas da época:
Uma mãe bem educada e suficientemente
instruída para dirigir a educação de sua filha
obterá sempre maiores vantagens, aplicando-
se com terna solicitude a inspirar-lhe como
emulação o sentimento da própria dignidade,
que qualquer diretora não conseguiria obter
de suas educandas (pp. 91).
Seria errôneo, porém, pensar que a plataforma de
Nísia Floresta fosse somente para o benefício das mulheres
da classe alta. Ela também se preocupa e se inquieta com as
condições da mulher da classe pobre, da crescente classe
média, da escrava africana, assim como da índia:
É, portanto, em favor de todas as mulheres
brasileiras que escrevemos, é a sua geral
prosperidade o alvo de nossos anelos,
quando os elementos dessa prosperidade se
acham ainda tão confusamente marulhados no
labirinto de inveterados costumes e arriscadas
inovações (p. 130).
A autora observa a condição da mulher da camada
trabalhadora, verdadeiramente oprimida, devido à falta de
acesso à educação, o que resulta em sua desvantagem tanto
econômica quanto culturalmente. Ela divide, com efeito, a
sociedade brasileira em duas classes: a rica e a pobre,
encarando o crescimento da classe obreira como um passo
importante no caminho da independência feminina:
XXXVIII
Se se instituísse uma classe pública de
operárias em toda a sorte de trabalhos,
oferecer-se-ia a uma parte das famílias
desvalidas do Brasil não somente um meio
seguro de as livrar da miséria, mas ainda de
habilitá-las para um futuro que não está longe
(pp- 132).
Essas escolas serviriam para preparar a mulher para uma
vida financeiramente independente, dando-lhe os meios para
que pudessem ter uma profissão autônoma. É interessante
observar que Floresta se refere aqui a uma classe pública de
operárias, conceito totalmente novo no Brasil da época,
ainda que proveniente das idéias então em voga no
continente europeu. No entanto, notemos que no caso
brasileiro ela amplia esse conceito para incluir também o
sexo feminino, vendo que o crescimento da classe obreira
seria um passo importante para a independência feminina.
À contraparte da mulher urbana, à "cabocla" ou
mulher índia, ela a define como "dessa interessante e infeliz
porção da humanidade que se tem de mais em mais
entranhado em nossas florestas, ou vive aqui e ali decimada
em mesquinhas e desorganizadas aldeias" (p.143). Contudo,
Floresta considera os costumes das índias como lição de
humildade para a sociedade brasileira. Embora não fossem
tocadas pela moralidade da educação religiosa, as índias
haviam sido modelo de virtude e de heroísmo em períodos
de paz e de guerra. Companheiras fiéis e submissas a seus
maridos, jamais deficientes de espontaneidade, essas
mulheres se afanavam dentro e fora do lar. A autora as elogia
também como mães:
Ide vê-las, hoje mesmo, como nós as vimos,
nos restos de algumas aldeias, ao norte e ao
sul do Rio de Janeiro, desenvolverem, no
estado intermediário do selvagem e do
civilizado, ligadas dia e noite a seus filhinhos
por mais fortes vínculos de natural afeição do
que muitas mães da nossa sociedade, não
deixando-os, como muitas destas, em seio
estranho, alguma vez mesmo enfermos, para
irem tomar parte nos prazeres do mundo, ou
satisfazerem uma etiqueta da sociedade (pp.
147-148).
Nem participaram jamais as índias no costume de negar a
seus filhos o leite de seus seios, como faziam as brasileiras,
que permitiram a seus bebês mamarem "leite impuro" que vai
contaminando "o físico como o moral" (p. 93). Nísia
Floresta comenta até o costume da fidelidade conjugai entre
as índias, apontando-as como modelos morais, e citando a
falta do adultério entre os indígenas.
Em contraste com as índias, a brasileira típica parece
ser vazia, ociosa, preguiçosa e imoral. Entretanto, como
Floresta observa, se a inteligência não tivesse sexo, se a
debilidade física feminina não fosse uma justificação
conveniente para proibir-lhe de receber iguais oportunidades
de educação, então, dadas as condições apropriadas, logo as
mulheres seriam mais úteis à sociedade. Contudo, Floresta
estabelece limites a sua teoria:
Não compartindo a doutrina de Helvécio
sobre a igualdade da inteligência em todos os
homens, sabemos que todas as mulheres não
podem ser igualmente instruídas, ainda
mesmo quando a todas se proporcionasse os
meios de cultivar o seu espírito. O que
pretendemos é possível, justo e de rigorosa
necessidade, isto é, que todas sejam bem
educadas em suas respectivas situações (p.
65).
Tendo em mente essas limitações, Floresta prognostica o
resultado da educação de suas compatriotas: "melhor
educação, destino mais digno delas" (p. 156).
Os jovens brasileiros cresceram expostos às duplas
influências decadentes de um sistema de escravidão em que
aprenderam, por exemplo, a imitar o comportamento
negativo não somente dos senhores mas também dos
mesmos escravos. Devido às condições abjetas em que
viviam os escravos e à ignorância em que os deixou a
sociedade, muitas vezes estes se viram obrigados a recorrer a
atividades criminosas para sobreviver. Floresta recomenda
que as meninas de famílias endinheiradas sejam enviadas
para os melhores colégios, nos quais os seus estudos sejam
regulados por um horário específico e onde não presenciem
os males inerentes ao sistema escravagista, cláusula,
segundo a autora, "essencialmente necessária para o bom
resultado da educação" (p. 92).
Vimos como Floresta incorporou certos conceitos
positivistas e utilitários a seu pensamento publicado. No
entanto, quanto à questão do determinismo biológico e
ambiental, ela era mais ambivalente. Apenas em parte a
autora aderiu ao cânon determinista. Aceitando a crença de
sua época, de que a natureza humana foi determinada pela
História e pelo ambiente - os agentes temporais, sociais e
culturais que formaram o homem - ela rechaçou, porém, o
terceiro fator no triunvirato determinista: a raça, aí incluído o
determinante biológico, genético. Porque, obviamente, um
indivíduo não deve considerar-se incompleto, imperfeito,
nem inferior, simplesmente porque lhe coube a sorte de
nascer mulher. No entanto, Nísia Floresta viu claramente
que dos três fatores deterministas, o único que se podia
mudar era o ambiente. A sociedade - o ambiente - poderia ser
transformada e melhorada por meio de uma educação
correta, a que deviam ter acesso todos os seres humanos.
Na peroração a seus compatriotas, a autora olha para
adiante, para o futuro da América do Sul, para o dia em que
as mulheres sejam completamente integradas à sociedade,
como verdadeiros sujeitos. Nísia Floresta se dirige aos pais,
aos governantes e a seu povo, e lhes pede que ponderem a
seguinte questão:
Não vos diz a consciência que a mulher
nascida nesta vigorosa terra superabundante
de magnificências naturais, respirando sob
um céu radiante, no meio da poesia de tão
admirável natureza, não se pode limitar ao
papel que tem até hoje representado? (p.
159).
A exortação utópica de Floresta culmina com uma súplica
emotiva de que se eduque a mulher para prepará-la nessa
caminhada: "Educai, para isto, a mulher e com ela marchai
avante, na imensa via do progresso, à gloria que leva o
renome dos povos à mais remota posteridade!" (p. 160).
Esta nota de esperança no pedido final do Opúsculo
Humanitário antecipa o binômio positivista "ordem e
progresso" (que depois se transformará em ordem de
comando na ideologia republicana brasileira) e mostra como,
sem maiores contatos e impregnações, até então, da filosofia
comteana, Nísia Floresta já havia elaborado por seu próprio
esforço uma síntese pessoal que iria, sem maiores surpresas,
desaguar e ampliar-se ao contato mais próximo com o
pensamento positivista.
Cem anos depois, a experiência de Nísia Floresta
como pedagoga e escritora, como sujeito comprometido com
a produção do significado, da representação, e da
representação de si mesma, pode vincular-se com o projeto
da teoria feminista. Porque esta se constitui como "uma
reflexão sobre a prática e a experiência; uma experiência em
que a sexualidade é ponto central porque determina, por
meio da identificação do sexo, a dimensão social da
subjetividade feminina, a experiência pessoal da sua
sexualidade e uma prática dirigida primeiro ao enfrentamento
dessa experiência e à mudança concreta, material e
consciente da vida das mulheres."
45
Teresa de Laurctis. Alice Doesnt. Bloomington, Indiana University Press, 1984. p. 184.
Vista por essa perspectiva, a obra de Nísia Floresta
teoriza a prática política de uma específica realidade social, e
rearticula essa realidade sob o prisma da experiência histórica
das mulheres. Afinal, o sumo do seu projeto é interceder
pelas mulheres, desenredar a contradição em que vivem as
mulheres - e ajudar cada uma a se fazer mulher.
A MEU QUERIDO IRMÃO
JOAQUIM PINTO
BRASIL
1
Tu, cujo espírito superior distingue, aquilata e
deplora os erros que por aí se preconizam, e, apoiado à
coluna da filosofia, vê em silêncio passar as legiões de
combatentes e combatidos das idéias que vogam; tu, cujo
bom senso, fugindo à inconstante atmosfera política que
tanto faz variar os homens, continua enérgico e perseverante
na onerosa e nobre carreira que ambos encetamos lá desde o
albor da juventude; tu, digo, compreenderás, lendo estes
reflexos de um coração sempre dedicado à educação de
nossa mocidade, o interesse que ela me inspira ainda lutando
com o mal físico que me oprime, depois de minha volta da
Europa.
2
Aceita, pois, este imperfeito trabalho meu, e dá-lhe
um dia, tu que és o pai de sete filhos e diriges uma porção
dessa mocidade, o desenvolvimento que julgares merecer o
objeto que o inspirou a
Tua amiga da infância
B. A. 3
1
Joaquim Pinto Brasil (1819-1875) teve, sob muitos aspectos, formação precoce:
ingressando na Faculdade de Direito de Olinda com apenas 14 anos, logo também
passou ao exercício do magistério. Em 1841 já se encontrava no Rio, onde deixou
nome como educador. Tendo se casado, ainda estudante, com uma pernambucana,
com ela teve 11 filhos. A sua irmã muito o apreciava como filósofo, cognominando-o
familiarmente "o Sócrates brasileiro."
Floresta retomou ao Rio de Janeiro, de sua primeira viagem à Europa, a 10 de
fevereiro de 1852. Antes de fazer funcionar o seu Colégio Augusto na capital do
Império, em 1838, já desenvolvera atividades pedagógicas em Porto Alegre, desde a
primeira metade da década de 30.
B.A. (abreviação de Brasileira Augusta) é um dos pseudônimos de Nísia.
OPÚSCULO HUMANITÁRIO
I
Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o
brado - emancipação da mulher -, nossa débil voz se levanta,
ná capital do império de Santa Cruz,
3
clamando: educai as
mulheres!
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados!
Governo, que vos dizeis liberal! Onde está a doação mais
importante dessa civilização, desse liberalismo?
Em todos os tempos, e em todas as nações do
mundo, a educação da mulher foi sempre um dos mais
salientes característicos da civilização dos povos. Na Ásia,
esse berço maravilhoso do gênero humano e da filosofía, a
mulher foi sempre considerada como um instrumento do
prazer material do homem, ou como sua mais submissa
escrava: assim, os seus povos, mesmo aqueles que atingiram
ao mais alto grau de glória, tais como os babilônios,
ostentando aos olhos das antigas gerações suas admiráveis
muralhas, seus suspensos e soberbos jardins, suas colunatas
de pórfiro, seus templos de jaspe, com zimbórios de pedras
preciosas elevando-se às nuvens, obras que até hoje não têm
podido ser imitadas, esses povos tão poderosos, dizemos,
A autora começa lembrando as tradições cristas do Brasil, para colocá-las em
contraste com a condição da mulher brasileira.
permaneceram sempre em profunda ignorância dessa
civilização que só podia ser transmitida ao mundo pela
emancipação da mulher, não conforme o filosofismo dos
socialistas, mas como a compreendeu a sabedoria divina,
elevando até a si a mulher, quando encarnou em seu seio o
Redentor do mundo.
As Déboras,
4
as Semíramis,
5
as Judites
6
se
mostraram embalde, atestando, aquela, a graça de que a
tocara Deus, permitindo-lhe revelar aos homens alguns de
seus mistérios; estas, uma razão esclarecida, uma coragem
rara, que provavam já então não ser a mulher somente
destinada a guardar os rebanhos, a preparar a comida, e a dar
à luz a sua posteridade.
4
Personagem bíblica (Juízes, IV e V): Débora foi a profetiza que, ajudada por Barac,
libertou o seu povo do domínio cananeu.
5
Semíramis - nome helenizado de Sammu-ramal - é figura em que se confundem a
História e a lenda. As narrativas de Heródoto e Dionísio Sículo dão-na como tendo
governado a Assíria por 42 anos, durante os quais anexou muitas terras ao seu
domínio e construiu obras fabulosas, como os Jardins Suspensos da Babilônia, uma
das sete maravilhas da Antigüidade. Para outros, não é mais que uma variação do
nome de Astarte, divindade que os gregos chamavam de Afrodite Uránia e os
romanos de Vênus Celeste. Ao tempo em que Nísia Floresta escrevia esta passagem, o
tema de Semíramis retornava à lembrança através da ópera em dois atos de Rossini
(1825), célebre por sua abertura.
6
Judite, personagem do livro do mesmo nome, na
Bíblia, foi a heroína que livrou a cidade de Betúlia das tropas de Nabucodonosor, ao
cortar a cabeça do comandante Holofernes, enquanto este dormia.
II
O Egito, com as suas maravilhosas pirâmides e todos
os admiráveis documentos com que o enriqueceram os
faraós, os Ptolomeus e o seu mais famigerado conquistador,
Sesóstris,
7
cujas proezas encheram seu século de assombro e
os povos de terror, imitou, com o resto da África, toda a
Ásia na apreciação da mulher. Também o Egito jazeu sempre
submergido, apesar da profunda sabedoria de seus
sacerdotes, em completa ignorância a respeito da educação
que convém à mulher. Seus hieroglíficos, suas curiosas
múmias, e todos os fragmentos de sua admirável e extinta
grandeza, e conhecimentos que os sábios arqueólogos
modernos
8
com tanta perseverança estudam, não revelam
que a inteligência da mulher fosse aí devidamente cultivada.
A beleza física, entre esses povos, era o único mérito
real da mulher, e, ainda assim, aquela que a possuía entrava
em concorrência com outras e devorava depois, como nos
tempos presentes, torturantes amarguras no fundo dos
serralhos e dos haréns. Essa nobre porção da humanidade
ainda é hoje, para opróbio daqueles povos, sujeita à aviltante
lei da poligamia.
7
Nome helenizado de três faraós da 12
a
dinastia egípcia - a quem os gregos
(Heródoto, Diquearco, Aristóteles) parece haverem tomado como uma só pessoa - e
que, juntos, se associam àqueles poucos que, na História, chegaram a dominar todo o
mundo então conhecido.
8
Tendo-se em mente a data do Opúsculo, recorde-se que foi em 1822 que Jean
François Champollion (1770-1832) deu como descobertos os hieróglifos da Pedra de
Rosetta.
Os Ciros, os Nabucodonosores, os Xerxes, os
Alexandres, os Danos
9
etc, que tiveram o poder de assolar e
subjugar com seus numerosos exércitos tantas nações
diversas, não compreendiam em seu furor de conquista que,
conservando no embrutecimento o sexo que os alimentara,
privavam-se de maior glória do que lhes davam suas armas.
Na Pérsia, a sabedoria dos Magos, na índia os
princípios contidos nos Vedas e explicados por Diaimine e,
depois, por Viasa da 2ª Escola Mimansa ou filosofia
vedanta,
10
os Profetas mesmos, anunciando por toda parte
aos homens a palavra de Deus, nada fizeram para melhorar a
condição da mulher.
Enquanto estes últimos exortavam os reis e os povos
a armar-se para castigarem outros reis e outros povos, ou
lhes prediziam a destruição dos impérios a fim de abater-lhes
o orgulho, olvidavam que a sabedoria do Eterno, na última
de suas criações, quando formou a admirável máquina do
universo, harmonizando todas as suas partes entre si, deu ao
Os nomes estão no plural nio apenas por efeito literário. Os nomes de Ciro, Dario e
Nabucodonosor referem-se, de fato, a mais de uma figura histórica. As mais famosas
são Ciro, o Grande (6007-530? a.C), Dario, também dito o Grande (550?-486 a.C.) e
Xerxes (519?-465? a.C), filho de Dario, lembrados pelas guerras travadas entre persas
e gregos. Em torno de Ciro, tomando-o de forma idealizada, Xenofonte (430-354 a.C.)
escreveu um romance pedagógico, a Ciropedia. O mais famoso dos Nabucodonosores
será certamente o rei da Babilônia (604? 562? a.C), mencionado nos textos bíblicos de
Ezequiel e Daniel. De Alexandre Magno (356-323 a.C.) se guarda sobretudo que foi
sob seu domínio que se deu a expansão do helenismo para além das fronteiras da
Grécia.
10
No sentido amplo, tradicional, a palavra veda designa um complexo de
monumentos literários que, partindo do Rigveda, vão dos Brahmana e dos Aranyaka
até os Upanishads, tidos como o fim (anta) do Veda e constituintes da base
doutrinária para o Vedanta ou Uliara-Mimansa, filosofia cuja sistematização foi
atribuída a Badarayana, também conhecido por Vyasa (entre o século III e V d.C),
nome provavelmente fictício.
par ditoso que devia ser o tronco do gênero humano o
mesmo sentir, a mesma inteligência, as mesmas
prerrogativas.
O homem, ainda semi-selvagem, arrogou a si a
preeminência da força física e tudo lhe foi submetido, a
moral, assim como a inteligência da mulher, que ele quis
permanecesse sempre inculta, para que mais facilmente
desempenhasse a humilhante missão a que a destinava.
III
Levantou-se então no horizonte da Europa aquele
brilhante meteoro que surpreendeu e deslumbrou o mundo
com as luzes que despedia de seu foco. A Grécia teve leis
mais brandas. Solon,
11
mais sábio legislador que os sábios
do Oriente, e menos severo que Licurgo,
12
foi o primeiro
que melhor soube harmonizar os interesses da pátria com as
vantagens da civilização.
Depois dele muitos sábios ilustraram essa pátria que
Homero, Sócrates, Aristóteles e Platão imortalizaram: o
primeiro, por suas inimitáveis poesias; o segundo, pelo amor
da sabedoria, pela qual morreu instruindo os homens; os
últimos, pelo grande desenvolvimento que deram à filosofia
11
Solon (640?-560? a.C): reformador político cujas medidas liberalizadoras
serviram de base para o advento da democracia (século V a.C.) em Atenas.
12
Licurgo: figura talvez lendária (as datas de sua existência divergem, entre diferentes
historiadores, do século XII ao VII a.C), à qual se atribuem as normas de formação
do Estado espartano, classicamente notório por sua férrea disciplina e pelo controle
da máquina do governo sobre o indivíduo.
socrática, apresentando em resultado os dois grandes
sistemas que esses mais belos gênios do maior século da
filosofia grega
13
elevaram à mais alta potência, sem o caráter
exclusivo que alguns filósofos lhes impuseram.
Algumas mulheres apareceram na Grécia, tais como
Aspásia, mestra do Filósofo Mártir,
14
Safo,
15
Pericione,
16
Telesila,
17
e outras, cujo espírito, enriquecido dos mais
variados e profundos conhecimentos, lhes atraiu a admiração
da posteridade.
Os costumes da Grécia adoçaram-se, a mulher já não
era ali um instrumento só de prazeres vãos e materiais. Ela
associou-se aos trabalhos do espírito, que ocupavam os
13
Pode-se situar esse período entre o nascimento de Sócrates (469-399 a.C.) e a
morte de Aristóteles (384-322a.C.).
Embora a tradição conserve que Sócrates teria freqüentado a casa de Aspásia e
dela aprendera o método filosófico da ironia, é sobretudo como amante de Péricles
(495-429 a.C.) que ela é lembrada. Isso se deve principalmente aos comediógrafos
do século V, que traduziam a insatisfação dos homens atenienses com o fato de uma
mulher - forasteira, além do mais - ter tido, por intermédio de Péricles, tanta
interveniéncia na política de Atenas.
15
Diferentemente do que se diz com freqüência a respeito de Safo (620?-S65a.C),
os poucos fragmentos que de sua poesia chegaram até nós não nos revelam senão
uma mulher de fina sensibilidade poética. Platão chamou-a a 10ª Musa. O fato de ter
a poetisa de Lesbos aberto uma escola só para moças é estranho porque se tratava
de uma mulher. No mesmo tempo e na mesma cidade de Mitilene, homens como
Gorgas e Andromeda tinham também escolas só para mulheres. O que não deve ser
esquecido, no contexto de lesbianismo que envolve a figura de Safo, é a sua
participação na política da época, o que chegou até a lhe custar o exílio (c. 580
a.C.) na Sicília.
Perictione (a autora usa a forma latinizada Pericione) sabe-se que foi a mãe de
Platão, parente do filósofo Crítias e descendente de um irmão de Solon.
Telesila, além de poetisa dos tempos semilendirios anteriores às guerras medo-
persas, foi a heroína que, com um exército composto só de mulheres, defendeu a sua
cidade natal contra o rei Cleómenes, de Esparta. Nísia Floresta assinou também
alguns dos próprios escritos com o nome de Telesila.
homens, e a civilização da Grécia apresentou-se sem rival ao
mundo inteiro.
Mas a Trindade, anunciada entre todos os povos
debaixo de diversos símbolos, não se tinha manifestado
ainda aos homens no mais admirável e paternal sacrifício do
Regenerador da humanidade. O brilhante facho do
cristianismo não havia ainda baixado à terra.
Os gregos, cultivando a sua inteligência e atingindo a
perfeição que os modernos tanto se têm esforçado por imitar,
tropeçaram, entretanto, nas trevas do paganismo e, como os
mais adiantados povos do Oriente, grosseiros erros
cometeram.
A inteligência da mulher, conquistando a ciência,
começava a distinguir-se, mas faltava-lhe o tipo da mulher
cristã: sua mais nobre missão não podia ser ainda cumprida
na terra.
O mesmo aconteceu depois entre o mais bélico povo
da antigüidade, cujo nome bastava para fazer tremer os
outros povos.
IV
As mulheres romanas assinalaram-se por heróicas
virtudes, de que as mulheres modernas não têm dado ainda,
como elas, exemplos. Porém, déspotas tais como os
romanos não podiam compreender e ministrar à mulher a
educação que lhe convém. Os déspotas querem escravos que
se submetam humilde e cegamente à execução de suas
vontades, e não inteligências que se oponham a elas e
ensinem aos povos a sacudir o seu jugo. Fácil lhes foi, pois,
deixarem na ignorância essa parte da humanidade a quem
Deus em sua paternal previdência aquinhoou de maior
porção de bondade e doçura.
O egoísmo desse grande povo a respeito do sexo
revela-se autenticamente em duas palavras do sábio e austero
Catão.
18
Esse oráculo disse: "Tratemos as mulheres como
nossas iguais, e para logo elas tornar-se-ão nossas senhoras
e exigirão como tributo o que hoje recebem como uma
graça."
Infeliz Catão! Pensando assim da mulher, bem longe
estavas de prever o leito de desesperação, que em Utica te
preparavam os profundos desgostos causados pelos
ambiciosos, inimigos de teus austeros princípios, a quem,
como a ti, faltaram desde a infância esses anjos de paz que
tão salutar poder exerceriam sobre os destinos dos homens,
se os homens soubessem compreender bem sua grande
missão na sociedade!
Nesse terrível momento, em que o estóico
republicano, perdendo toda a esperança de libertar a pátria,
e, não querendo dever a vida ao tirano que detestava, rasgou
suas próprias entranhas, depois de ter lido o diálogo
19
do
sublime Platão sobre a imortalidade d'alma,
20
nem ao menos
18
Marco Pórcio Catão, ou Catão de Útica (95-46 a.C): conhecido por seu caráter
incorruptível como homem público e pelo apego à legalidade republicana. Não deve
ser confundido com o outro Catão, o Censor (234-149 a.C), famoso por terminar os
seus discursos no Senado romano pedindo a destruição de Cartago.
Este, como todos os itálicos da presente edição, são do texto original.
Na guerra civil contra César (102-44 a.C), Calão foi partidário de Pompeu. Ao
dar-se conta de que estava derrotado, encerrou-se em seus aposentos (em Útica, na
pensou que, se uma mãe religiosa e esclarecida lhe tivesse
dirigido os primeiros passos na vida, talvez tivesse ele feito
melhor uso de suas virtudes e da leitura daquele admirável
escrito.
Assim a orgulhosa Roma - apresentando nos fastos
de sua história os pacíficos Numas, adoçando por suas
instituições religiosas a natural ferocidade dos romanos,
21
os
Brutos, crendo servir à república por um furor que enluta a
natureza,
22
os Césares, subjugando o mundo pelo poder de
suas armas, sempre vitoriosas, os Cíceros, extasiando os
povos por sua eloqüência - julgava-se quite para com a
África Meridional), leu alguns capítulos do Fédon, de Platão e, chegada a meia noite,
atravessou o próprio corpo com uma espada. Quando os familiares acudiram com
um médico para cuidar-lhe do ferimento, ele rasgou os curativos com as próprias
mios, para nio cair nas mios dos inimigos e ter que assistir i queda da República
romana.
21
Numa Pompílio, sucessor de Rômulo como Rei de Roma (7157-673 a.C): figura
lendária, segundo a moderna crítica histórica. A lenda lhe atribui as instituições
religiosas de Roma e todo o direito sagrado, além do calendário estabelecido por seu
antecessor, ao qual teria acrescentado os meses de janeiro e fevereiro. .
22
Marco Júnio
Bruto (86-42 a.C): sobrinho de Catão de Útica, filho de outro Bruto do mesmo nome
e de Servília, amante de Caio Júlio César, embora seja tardia na História a tradição
de que Bruto era filho desse general romano. Apesar de lembrado por sua
participação no assassinato de César, fato descrito invariavelmente como "furor que
enluta a natureza", Bruto serviu i República de Roma por outros feitos mais dignos.
Foi fílósofo e orador notável, tendo mantido estreita correspondência com Marco
Túlio Cícero (106-43. a.C).
mulher unindo a esses nomes os das Lucrécias,
23
das
Comélias,
24
das Vetúrias
25
etc.
A detestável Fúlvia,
26
picando com um alfinete a
língua do mais ilustre orador romano,
27
não seria antes para
vingar o sexo,
28
cuja condição aquela grande eloqüência
nunca procurou melhorar, do que para satisfazer o furor que
se lhe atribui pelas Filípicas publicadas pelo célebre escritor?
E essa ação horrorosamente repugnante, sobretudo em uma
mulher, não lança como que um espesso véu sobre as
severas virtudes daquelas respeitáveis matronas? Em uma
sociedade em que a educação e o espírito das mulheres
fossem rigorosamente cultivados, poderiam aparecer
23
A história de Lucrécia foi contada pela primeira vez por Quinto Flávio Pictor, o
mais antigo historiador romano (cerca de 200 a.C.). Segundo esse autor, Lucrécia,
dama virtuosa, ao ser violentada por Sexto, filho de Tarqufnio, o Soberbo, suicidou-
se diante do marido e do filho, para nio sobreviver à ofensa á sua honra. Este fato
provocou a queda da monarquia em Roma.
24
Das muitas Comélias que povoam a História de Roma, a mais notável é a mãe dos
Gracos - Tibério (Tribuno da Plebe em 133 a.C.) e Caio (Tribuno da Plebe em 123
a.C.)- apresentada como personificação das virtudes da matrona romana do século II
a.C. Casada com Tibério Sempronio Graco (210?-164? a.C), teve 12 filhos, dos quais
apenas três sobreviveram. Ao ficar viúva, dedicou-se à educação de sua prole, tendo
recusado até casar-se com o rei do Egito.
25
Vetúria, segundo a lenda, foi a mãe de Coriolano. Condenado ao exílio, este
general romano ganhou a simpatia dos bolscos e os conduziu a invadir Roma, como
vingança contra os seus inimigos. O seu intento não foi consumado porque ele se
rendeu aos rogos da mulher, Volúmnia, e de Vetúria.
Mulher de Marco Antônio (86-30 a.C), antes que este a abandonasse para unir-se
a Cleópatra (69-30 a.C).
26
Conta-se que, não satisfeita em ter forçado o marido a ordenar a decapitação de
Marco Túlio Cícero (por causa das Filípicas - set. 43 - abr. 42. a.C- por este
pronunciadas contra Marco Antônio, ao qual também exprobrava a vida escandalosa
de sua mulher), Fúlvia ainda se deu ao requinte de furar com um alfinete a língua do
orador romano.
28
O sexo feminino.
monstros tais como as Messalinas,
29
as Túlias,
30
as
Agripinas?
31
V
É uma verdade incontestável que a educação da
mulher muita influência teve sempre sobre a moralidade dos
povos e que o lugar que ela ocupa entre eles é o barômetro
que indica os progressos de sua civilização.
Entre os bárbaros do Norte, e os selvagens da
América e da Oceania, que papel representou e representa
ainda a mulher, principalmente nas duas últimas regiões?
À fé, que muito humilhante seria para uma mulher
dizê-lo!
29
Existem duas Messalinas famosas na História de Roma. A primeira, Estatuía
Messalina, foi a terceira esposa de Nero (66 d.C). A segunda, Valeria Messalina, foi a
terceira esposa do imperador Cláudio (41 d.C), de cujo matrimônio teve os filhos
Otávia e Britânico. Apontada como mulher dominadora e de costumes dissolutos, foi
assassinada pelo marido, quando este tomou conhecimento de que ela havia contraído
núpcias com C. Sílio (48 d.C).
30
A Túlia a que se refere a autora é a filha menor de Sérvio Túlio, lendário rei de
Roma. Tendo, por imposição paterna, se casado com um filho ou neto de Tarquínio
Prisco, apaixonou-se pelo cunhado Júlio Tarquínio - futuro Tarquínio, o Soberbo - e
com ele se casou, depois que ambos mataram os respectivos cônjuges, além do
próprio pai de Túlia, sobre cujo cadáver ela passou com um carro, na via pública.
''Também duas são as Agripinas mais conhecidas de Roma. Uma, Vipsánia Agripina,
dita a Maior (14 a.C?-59 d.C), foi a mãe de Calígula e de Júlia Agripina (15-59 d.C),
que, por sua vez, foi a mãe de Nero, nascido de seu matrimônio com Domício
Aenobarbo. Morta Messalina, Agripina junta-se ao tio Cláudio, numa união tida
como incestuosa. Por sua influência, o imperador chegou a preterir, na sucessão do
trono, ao filho Britânico, em favor de Nero. Quando mais tarde, ela insistia em se
imiscuir da mesma forma no governo de Roma, foi assassinada pelo próprio filho.
Aqueles que têm viajado por esses países, ou lido a
narração que de seus povos fazem verídicos historiadores,
lamentam tanta degradação da espécie humana.
Deixaremos em silêncio a sorte da mulher da Europa
na Idade Média, sob os Clóvis,
32
Carlos Magno,
33
Oton o
Grande,
34
Godofredo de Bouillon,
35
Rodolfo de Habsburgo e
Maomé II, vencedor de Constantino XII, último imperador
grego, com o qual acabou o império cristão de Bizâncio,
para dar lugar, entre as monarquias européias, à primeira
monarquia otomana.
36
Os cruzados - trazendo à sociedade ocidental o
desenvolvimento da navegação, da indústria, das artes, das
ciências, e as línguas que lhes foi preciso aprender para
estabelecerem uma comunidade de idéias entre os povos de
gênio e línguas diversas, preparando-lhe assim a época da
Renascença, em que a Itália, e depois a França tanto
32
Clóvis (466?-511?), rei dos francos: ganhou importância quando, casando-se com a
princesa Matilde, converteu-se ao catolicismo e com isso recebeu apoio para unificar o
território francês, estendendo-o até o Mediterrâneo.
33
A Carlos Magno (742?-814) se
atribui o restabelecimento do antigo Império de Roma no contexto da Idade Média.
Disso foi fato representativo a sua coroacio como Imperador do Ocidente pelo papa
Leio III, no Natal do ano 800.
34
O nome de Oton I, o Grande (912-973) corre paralelo, do lado alemão, ao de
Carlos Magno na Franca: no dia 2 de fevereiro de 962, o controvertido papa João
XII (955-962) o coroou como fundador do chamado Sacro Império Romano-
Germânico.
35
Godofredo de Bouillon (1060?-1100) participou da 1ª Cruzada, em 1096, tendo sido
o primeiro comandante cristão a entrar vitorioso em Jerusalém, fato que o levou a
ser celebrado por Dante (Paraíso, XVII, 47) e Torquato Tasso (Jerusalém Libertada).
36
Com a rendição de Constantino XII (ou XI, segundo outra contagem, 1403-1453) a
Maomé II (1430-1481) e a conseqüente tomada de Constantinopla pelos turcos
(29.5.1453), convenciona-se assinalar o término da Idade Média.
brilharam - nenhum melhoramento fizeram na sorte da
mulher.
À voz de Pedro Eremita, Urbano II, S. Bernardo
37
etc. corriam os reis e os povos cristãos à longínqua
Palestina, para libertar os lugares santificados pelo Cristo,
enquanto deixavam por libertar de férrea educação as
mulheres, que Deus havia tão altamente enobrecido na
Divina Mãe do mesmo Cristo.
Quanto sangue derramou a humanidade! Quantas
vítimas sacrificadas sem nenhum resultado para ela! Que
aberração, enfim, do espírito do cristianismo!
Mas era então assim que compreendiam a sua missão
na terra os grandes senhores do Ocidente, longe ou dentro de
seus suntuosos e sombrios castelos, cujo eco nos repetem
ainda as legendas desses tempos.
No Oriente, as çiçnçias e as artes fugiam espavoridas
do solo que sanguinolentas guerras devastavam.
A Grécia esclarecida havia desaparecido, e povos
bárbaros ou reis fanáticos profanavam o alcáçar das letras.
Aos filósofos, que encheram o mundo de admiração
por sua sabedoria e pela beleza de seus escritos, sucederam
imperadores tais como Miguel o Gago,
38
que, não sabendo
ler, proibiu se ensinasse a ler às crianças, e Miguel III,
39
que, minado de vergonhosos vícios e desprezando como os
seus antecessores a educação da mulher, mandara construir
37
Pedro Eremita (1050?-1115) foi o paladino da 1ª Cruzada (1095-1100), convocada
pelo papa Urbano II (1042-1099), no Concilio de Clermont (1095). São Bernardo de
Claraval (1090-1153) foi o pregador da 2ª Cruzada (1147-1149).
38
Miguel II, o Gago:
imperador bizantino de 820 a 829.
Miguel III, o Ébrio (839?-867), imperador bizantino. Durante o seu reinado, deu-
se o cisma do patriarca Fócio, de Constantinopla, com a Igreja de Roma (863).
para os seus cavalos, que ele amava mais que a seus súditos,
uma cavalherice
40
cujas paredes eram incrustadas de
pórfido.
O espírito das Anas Comnenes
41
despontava nessas
regiões manchadas por toda a sorte de crimes, como
desponta em noite tenebrosa o clarão de uma estrela que
brilha a furto no espaço.
A caridade, virtude personificada no sexo pela mãe
do Redentor do mundo, e o heroísmo com que algumas
santas mulheres suportavam o martírio, na esperança de uma
vida melhor, podiam então somente consolar a mulher cristã.
Feliz aquela que de fato o era, porque achava na fé, essa luz
divina que nos esclarece a alma, um poderoso antídoto
contra a degeneração do homem e um porto seguro de
salvação.
Enquanto a civilização dormitava sob o anticristão e
nunca assaz detestável regime feudal, que oprimia
cruelmente as mulheres, e as cruentas guerras de religião
proporcionavam ao feroz instinto de uma o sanguinolento e
bárbaro triunfo da horrorosa Noite de São Bartolomeu,
42
o
mais funesto de todos os erros, o fanatismo, vomitava na
Espanha e em Portugal o monstruoso flagelo que tem jamais
oprimido a humanidade.
40
Essa é a palavra que está no texto original. Os dicionários registram cavalariça.
Outros, mais raramente, cavalhariça e cavalharice.
41
Ana Comnene (1083?-1148): ilustrada princesa bizantina, filha de Aleixo 1
(imperador de 1048 a 1118), em memória de quem deixou escrita uma obra chamada
Hyle Historiae (Floresta da História), também conhecida como Alexlada.
42
A autora
refere-se ao massacre dos huguenotes, calvinistas franceses, ordenado por Catarina
de Médicis a 24 de agosto de 1572, dia em que, no martirológio romano, se comemora
a festa do apóstolo Bartolomeu.
O tremendo tribunal do Santo Ofício,
43
esse
vergonhoso parto dos tempos modernos do cristianismo, tão
fatal aos progressos da civilização, não queria encontrar nas
vítimas que imolava a moral esclarecida, a virtude obstinada
das Bororquias.
44
Assim, a educação da mulher ficou estacionaria,
principalmente nesses países, que a natureza enriqueceu de
seus mais belos dons.
43
O Tribunal do Santo Ofício ou da Santa Inquisição foi instituído em fins do século
XII, como órgão de combate (com o recurso freqüente a tortura e à morte na fogueira)
a quem fosse considerado hereje. Em Portugal e na Espanha, durou até o século
XVII. Atualmente, modificado, sobrevive na Cúria Romana, através da Sagrada
Congregação do Santo Ofício, à qual está entregue a vigilância sobre a ortodoxia
católica.
44
As Bororquias, com este nome, são personagens de ficção. De existência real
mencionam-se Maria de Bohorques, vítima do 1° auto-de-fé da Inquisição realizado
em Sevilha (24 de setembro de 1559), jovem de 21 anos incompletos, e sua irmã,
Joana Bohorques, vítima do 2° auto-de-fé na mesma cidade (22 de dezembro de
1560), feita prisioneira ainda grávida, torturada e morta apenas quinze dias após ter
dado à luz. Os seus próprios juizes, depois, reconheceram-lhe a inocência.
Numa história da Inquisição escrita por Philippe Limborch se reúnem como
sendo uma só pessoa - Cornélia Bororquia - os nomes de Maria Comei e Maria de
Bohorques, duas vítimas distintas do mesmo auto-de-fé. Esse equívoco foi depois
consagrado numa novela espanhola, baseada em nomes e fatos inverídicos, conforme
o testemunho de D. Jean-Antoine Llorente, em sua Histoire critique de l'Inquisition
d'Espagne (Paris, Treuttel et Würtz, 1818, 2ª ed., tomo 2º, pp. 266-71 e 293-95), que
afirma ter tido em mãos os autos do processo das duas irmãs Bohorques.
VE
Lancemos agora os olhos sobre as três grandes
nações da Europa moderna e os Estados Unidos, em nossos
dias. Vejamos se podemos aí encontrar alguma consolação à
lembrança do quadro aflitivo que, da mulher, nos
apresentam os tempos que felizmente já vão longe para nós.
A Alemanha, esse país clássico das idéias e da
reflexão, é também o país por excelência nos respeitos
tributados à mulher.
A moralidade sentimental, cujo nome e idéia só
existem na Alemanha, constituindo a sensibilidade um dever,
não podia deixar de produzir ali os mais salutares efeitos no
sexo que possui incontestàvelmente maior soma dessa
faculdade.
Os alemães, mais entusiásticos que fanáticos, mais
pensadores que galantes, concederam à mulher privilégios
reais, baseados na educação sólida desse povo por demais
profundo e morigerado para compreender toda a importância
da mãe de famílias, da matrona esclarecida edificando os
filhos e o sexo com exemplos de uma sã moral, derramando
em tomo deles as luzes de um espírito reto e superior, os
efeitos de um coração formado e generoso.
O legislador alemão, quando estabeleceu no
casamento a igualdade entre os sexos, compreendeu, melhor
que nenhum outro, a sabedoria do Eterno, doando ao
homem e à mulher a mesma inteligência.
Uma das duas primeiras escritoras francesas de
nosso século, Mme. de Staël,
45
atribui à facilidade do
divórcio entre os alemães a introdução, nas famílias, de uma
sorte de anarquia que nada deixa subsistir em sua verdade
nem em sua força.
46
A ilustre escritora, a cujo talento rendemos sempre a
mais profunda homenagem, escrevendo essas linhas abstraiu
sem dúvida da anarquia de outra espécie, e até certo ponto
muito mais perigosa, que lavra pelo centro das famílias de
sua nação, a despeito da doutrina dos grandes pensadores,
Montesquieu, Rousseau, Voltaire e Diderot, combatida
depois pelos dois eminentes espíritos, Condorcet e Sieyès,
cujas vozes foram sufocadas pelos três fortes órgãos do
século XVIII, Mirabeau, Danton e Robespierre.
47
Os alemães, baseando a sua felicidade doméstica na
moral esclarecida das mulheres, antes que em um jugo
imposto pela lei, as subtraem, em geral, ao conhecimento de
estratagemas que certas mulheres do Sul
48
sabem com raro
45
Germaine Necker, Baronesa Staël-Holstein, conhecida como Madame de Staël
(1776-1817) é tida como a introdutora do romantismo na França. A sua obra mais
citada, Sobre a Alemanha, foi publicada em 1810.
46
No original, o parágrafo vem em itálico a partir de "uma sorte", sugerindo uma
citação, não literal, de Madame de Suël.
47
Mencionados diversas vezes no Opúsculo, Montesquieu (1689-1755), Rousseau
(1712-1778), Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), Condorcet (1743-1794),
Sieyès (1748-1836), Mirabeau (1749-1791), Danton (1759-1794) e Robespierre (1758-
1794), se evidenciam, por um lado, a erudição de Nísia Floresta (exemplo pertinente,
aliás, como comprovação pessoal de sua tese sobre a igualdade intelectual entre os
dois sexos), mostram também, em muitos aspectos, a fonte do seu pensamento.
Sobretudo, todavia, são citados porque a lembrança dos enciclopedistas, liberais e
revolucionários franceses era uma provocação à prática social e política do tempo da
autora.
48
Mulheres do Sul" e "homens do Sul": da França, contrapostos aos "do Norte": da
Alemanha.
talento empregar para triunfar em segredo desse jugo, a que
parecem em público submeter-se com grande satisfação.
Quantas vezes temos nós visto os homens do Sul,
que mais inexoravelmente exprobram a instrução e a
liberdade de que gozam as mulheres do Norte, serem vítimas
do capricho ou da dissolução, resultado quase sempre
infalível da ignorância e da educação estacionadas das
suas!
49
Deixemo-los expiar suas crenças a respeito da
mulher, e sem contestarmos a opinião da ilustre escritora
francesa, cujo coração mais de uma vez contraiu-se sob a
influência dos princípios dos homens de sua pátria, tão
diametralmente opostos aos que ela censurava,
continuaremos a demonstrar a influência que tem a educação
das mulheres sobre a moralidade e a civilização dos povos.
VII
A Alemanha é um exemplo que comprova essa
asserção.
A mulher germânica teve sempre grandes vantagens
sobre as mulheres antigas e modernas.
"Nesta como noutras passagens do Opúsculo, Nísia Floresta insinua com discrição a
sua posição antecipadora como divorcista, sugerindo ser o divórcio uma prática
moralmente mais recomendável que o casamento com vinculo indissolúvel.
Chateaubriand,
50
em uma das suas obras, faz o seu
elogio, e o célebre autor do Gênio do Cristianismo não pode
ser um juiz suspeito.
Em nenhuma outra nação o sentimento maternal, essa
centelha divina, apresentou exemplos mais tocantes do que
na Germânia. Assim também, a ternura filial, caracterizada,
entre outros, no barão Croneck,
51
poeta que pela suavidade
de seus versos foi intitulado o Young alemão.
52
Deveu ele a
melhor parte de sua educação a sua mãe, mulher verdadeira
germânica, a cuja perda sucumbiu, na idade de 26 anos,
depois de ter consagrado à sua memória os Cantos das
Solidões, seu último poema.
É ainda na Alemanha que se encontra o verdadeiro
tipo do espírito de família e do respeito tributado à velhice,
tão rigorosamente exercido pelos espartanos, tão
menoscabado nas gerações presentes do Sul.
Foi uma mulher germânica o patriarca feminino que
mais importância teve na grande emigração. A história
moderna não apresenta um homem cuja eloqüência iguale à
que ela desenvolveu então.
53
O Visconde de Chateaubriand (François-René, nascido em 1768), cujos escritos
serviram de roteiro intelectual para o movimento romântico na literatura francesa,
havia falecido em 1848, cinco anos antes da publicação do Opúsculo.
51
Johann
Friedrich, Barão de Croneck (1731-1758) foi poeta dos mais apreciados na
Alemanha de seu tempo. Das suas obras, publicadas em 1760, destaca-se a
tragédia Codrus. que assinala o começo do período clássico na dramaturgia alemã.
52
Edward Young (1683-1765): poeta inglês, notável pelo caráter melancólico de
seus poemas, marco do pré-romantismo na Inglaterra. Exerceu larga influência na
literatura de sua época.
"O esforço desenvolvido na pesquisa em rastrear os passos da autora na
elaboração do seu ensaio não foi facilitado pela vaga indicação contida nas linhas
Na época mais notável da história dessa nação, no
momento supremo da emigração, ela levantou-se em
assembléia e arengou ao povo para que deixasse o seu país e
fosse conquistar uma nova pátria. O povo germânico, ainda
bárbaro, conservava, mais que os gregos e os romanos, o
respeito e o amor pela família.
A diferença entre o respeito pela avó e a veneração
pela mulher, nas raças teutônicas e nas raças greco-latinas,
sobressai ainda hoje nos povos que delas descendem. Estes
princípios foram de tal sorte infiltrados no coração e no
espírito da mocidade, que, apesar da degeneração dessas
raças e do filosofismo que contaminou o século XVIII, ainda
constitui atualmente a superioridade da educação do homem
do Norte sobre a educação do homem do Sul.
As mulheres deviam naturalmente participar dessa
salutar influência e serem, portanto, o que na realidade são:
melhores esposas, melhores mães, pensadoras mais
profundas, mulheres mais completamente educadas do que o
são em geral as mulheres do Sul.
acima, redigidas, ademais, de forma que pode levar à confusão quanto ao período
histórico aludido. A passagem parece sugerir uma referência a Mathilde Franziska
Anneke (1817-1884), ativista política, que, à época em que Nísia Floresta visitava a
Europa, fundou na Alemanha Die Fauen Zeitung, jornal que serviu de instrumento
revolucionário na disseminação das idéias liberais, antes de 1848. Perseguida pelo
governo prussiano, Anneke fugiu para a França e depois fixou residência nos Estados
Unidos, onde fez conferências em favor do movimento sufragista feminino, aqui
também editando o seu jornal (1849), na cidade de Milwaukee, Estado de Wisconsin.
Na pátria dos Leibnitz, Kant, Klopstock, Goethe e
Humboldt
54
- essa terra que, pelo alto grau a que os seus
nacionais têm levado o estudo e a meditação, é justamente
denominada a pátria do pensamento - a parte da humanidade
que nutre em seu seio, e guia depois os primeiros passos da
outra, foi e é ainda considerada como devidamente o merece.
Também é a Alemanha a terra por excelência de um
povo viril, franco, honesto e virtuoso.
VIII
A Grã-Bretanha, marchando à frente de todas as
nações pela sua força material, marcha igualmente em
primeira ordem na civilização européia. Devendo todas as
vantagens de que goza tanto ao grandioso comércio como à
estima pelas ciências e letras, ela não tem negligenciado a
educação da mulher e o cultivo de sua inteligência.
O povo inglês, entre o qual existe menos influência
das castas privilegiadas, mais espírito de ordem, mais
atividade e mais convicção de seus próprios direitos, não
podia deixar de facultar à mulher a liberdade e os meios de
segui-lo nos progressos da civilização moderna.
O sexo a que pertencia aquela que, segundo a
expressão de Voltaire, a Europa contava na ordem de seus
Da mesma forma que os franceses quanto ao pensamento político, os nomes de
Leibnitz (1646-1716), Kant (1724-1804), Klopstock (1724-1803), Goethe (1749-1832)
e Humboldt (Alexandre: 1765-1859; Guilherme: 1767-1835) servem a Nísia Floresta
para chamar a atenção sobre a importância da ciência e da filosofia na construção do
progresso da humanidade.
maiores homens, Elizabeth - a cujo gênio deveu a Inglaterra
a elevação de sua marinha, fazendo-a rivalizar com as de
Holanda, de Gênova e de Veneza, então no apogeu de sua
glória, o princípio de seu comércio nas índias Orientais,
Pérsia, Rússia e América, o grande desenvolvimento de sua
literatura, com Bacon, Raleigh e Shakespeare, e o
aperfeiçoamento de sua língua - tinha por sem dúvida
incontestáveis direitos a essa consideração da parte de seus
concidadãos.
Demais, mulheres que têm de participar da sorte de
um povo que reúne as duas maiores potências - a força e o
querer - ao mais acrisolado critério, quando se trata de
empregar os seus recursos para sustentar a própria dignidade
ou para consolidar os seus interesses, assim materiais como
morais, mereciam receber a educação que as distingue, e
cujos felizes resultados convergem todos para o
engrandecimento de sua nação.
A mulher inglesa, educada nos severos princípios de
uma sã e esclarecida moral, dá provas, desde sua mais tenra
mocidade, de uma discrição e modesta altivez, que as
mulheres das outras nações lhe não podem disputar.
Gravando-se-lhe no espírito, quase logo ao sair do berço, a
consciência de sua própria dignidade, ela compreende muito
cedo a nobreza do sexo a que pertence e a importância do
cumprimento de seus deveres.
Sem os argos
55
que velam constantemente sobre as
donzelas de quase todas as outras nações, a donzela inglesa
55
Na mitologia grega, Argos, neto do rei do mesmo nome, foi apelidado Panoptes
(que tudo vê), por ser dotado de cem olhos, sempre abertos. Por extensão, refere-se a
autora aos vigilantes da moralidade pública.
sabe impor, ainda ao mais dissoluto, o decoro que lhe é
devido. A sólida educação que lhe é ministrada, servindo-lhe
de égide, a subtrai à humilhação de uma vigilância que
degrada a mulher, porque faz pensar ser-lhe necessário um
guarda para que ela permaneça pura.
Assim também, compreendendo melhor que as suas
ilustradas vizinhas do Continente a importância dos sagrados
deveres de esposa e de mãe, a mulher inglesa não vê, como
geralmente aquelas, no casamento, um estado que as liberta
do jugo de solteira e lhes permite uma liberdade de que nem
sempre fazem bom uso. Pelo contrário, é neste novo estado
que começa para ela a prática de todas as virtudes da vida
doméstica. Pode dizer-se que o primeiro dever maternal e
inato à mulher inglesa, a quem a civilização nada tendo feito
perder do sentimento que o ordena, não foi necessário um
Emílio
56
de Rousseau para indicar-lho.
A donzela e a esposa representam, em França e
Inglaterra, um papel diametralmente oposto no seu
respectivo estado, e é ainda só à educação eminentemente
religiosa da mocidade inglesa que se deve atribuir essa
grande diferença. Além disso, o espírito de galanteio que
caracteriza os homens da primeira nação sendo estranho aos
da segunda, as mulheres inglesas têm a vantagem de respirar
desde os seus primeiros anos na atmosfera da sinceridade,
que, com o sentimento de independência, forma o principal
caráter de sua nação.
56
O Emílio, publicado em 1762, corresponde, no campo pedagógico, ao que é O
Contrato Social para a ciência política. Rousseau escreveu também um tratado sobre
a educação feminina, intitulado Júlia ou a Nova Heloísa (1760).
Da mesma sorte que a Inglaterra é o modelo da
religião, do comércio e da liberdade, as suas mulheres o são
das virtudes domésticas e da nobre altivez de seu sexo.
Modernas gregas e romanas na beleza e na severa
continência, elas são superiores às primeiras pela
morigeração dos seus costumes, e às segundas pela
instrução de seu espírito.
A educação da mulher inglesa é, como a liberdade
política dos ingleses, fundada em sua moral, e, assim
como a verdadeira base de um governo é a liberdade
política, conforme observa o ilustre autor do Espírito das
Leis,
51
assim também a religião deve ser a base da
educação da mulher.
O povo inglês compreendeu, e mais que nenhum
outro demonstra praticamente, esta verdade. Daí a causa
primeira das vantagens de sua educação sobre a dos outros
povos.
A mor parte de suas grandes escritoras tem feito
sobressair em suas obras a moral dessa religião inoculada
em sua alma. Deste número são, entre outras, Mrs.
Inchbald,
58
cuja conduta honrosa, em uma profissão rodeada
de perigos, dá uma nova autoridade a seus escritos e os
torna
57
Montesquieu.
58
Mrs. Inchbald (Elisabeth Simpson, 1753-1821), casada com o ator Joseph
Inchbald, foi também atriz, autora de teatro e romancista. Entre os seus romances
mais conhecidos figuram A Simple Story (1791), Nature and Art (1796). I'll Tell You
What (1785) é a sua peça teatral mais divulgada.
recomendáveis; Miss Maria Edgeworth,
59
cujo grande mérito
consiste em sua moral doce e agradável: "É impossível ler,
diz um crítico da Revista d'Edimburgo, dez páginas de seus
escritos, sem se ficar persuadido de que eles tendem a tornar
melhor, e não só a corrigir fatais erros, prejuízos funestos à
felicidade, mas ainda a inculcar a virtude e a bondade,
apresentando-as sob os mais persuasivos e familiares
aspectos;" Miss Jane Austin
60
de uma intenção moral menos
elevada talvez, porém mais eficaz que a de Miss Edgeworth:
a profunda delicadeza de sentimentos dessa escritora é o
predicado ordinário das mulheres; Mrs. Elizabeth
Hamilton,
61
que foi a primeira a pintar justa e vivamente a
vida das classes baixas da Escócia; e Mrs. Hannah More,
62
que continua a classe notável de moralistas femininos: aos 17
59
Maria Edgeworth (1767-1849), terceira dos 22 filhos de Richard Lovell Edgeworth,
foi, acima de tudo, porta-voz das vontades intelectuais de seu pai, que a controlava
como censor prévio de seus escritos. Entre esses, são dignos de menção: Letters for
Literary Ladies (1795), Castle Rackrent (1800), Moral Tales for Young People (5 vols.,
1801) e Belinda (1801).
60
Jane Austin (1775-1817), a mais conhecida das escritoras citadas, dintingue-se pela
percepção moral e pela sutileza na descrição das relações humanas. Os seus
romances mais notáveis foram Sense and Sensibility (1811), Pride and Prejudice
(1813), Emma (1815) e Northanger Alley (1818).
61
Elizabeth Hamilton (1758-1816), moralista inglesa de família escocesa, foi
romancista de numerosas obras, entre as quais Letters on Education (1801), Memoirs
of the Life of Agrippina, the Wife of Germânicas (3 vols., 1804), The Cottagers of
Glenburnie (1808), e Examples of Questions Calculated to Excite and Exercise the
Infant Mind (1815).
62
Hannah More (1745-1833), piedosa escritora britânica, defendeu os valores
tradicionais de sua sociedade, apresentando uma visão conformista das diferenças
sociais. De suas numerosas obras, além da citada pela autora, constam The Inflexible
Captive (1775), Persy (1777), Thoughts on the Importance of the Manners of the Great
to General Society (1788), Strictures on the Modern System of Female Education (2.
vols. 1779), Village Politics (com o pseudônimo de Will Chip, 1792).
anos era ela já autora, e sua principal obra - Celebs em
busca de uma esposa - mostra as disposições, os costumes,
os princípios que podem assegurar a felicidade doméstica.
X
Os dois grandes admiradores da constituição inglesa
e dos costumes da Inglaterra, Voltaire e Montesquieu, nas
brilhantes páginas que escreveram a respeito, não quiseram
dar uma prova de imparcialidade, atribuindo também à
influência da educação da mulher o engrandecimento daquele
povo.
Mas todos conhecem a opinião desses dois célebres
escritores, de moral e crenças diversas, a respeito do sexo. O
primeiro assinala esta opinião nos sarcasmos contra todas as
mulheres, com os quais julgava punir aquela que lhe havia
consagrado a vida. O segundo, nas linhas seguintes,
contidas em seu admirável livro de O Espírito das Leis:
"La nature, qui a distingue les hommes par la force et la
raison, n'a mis à leur pouvoir d'autres termes qui celui
de cette raison et de cette force. Elle a donné aux femmes
des agréments, et a voulu que leur ascendant finit avec
ces agréments."
O virtuoso Montesquieu, pensando assim da mulher,
autorizava ao degenerado espiritualista Rousseau, quando
A natureza, que distinguiu os homens pela força e pela razão, nio entregou ao
seu poder outros meios que os da razão e da força. Às mulheres, concedeu as
qualidades do atrativo e quis que a sua influência termine onde termine esse
atrativo."
disse: "La femme est faite spécialement pour plaire à
l'homme; si l'homme doit lui plaire a son tour c'est d'une
nécessité moins directe; son mérite est-dans sa puissance; il
plait par cela seul qu'il est fort."
64
Quanto a Montesquieu, lastimamos, sem admirar,
um tal desvio da justa apreciação da mulher, porque estamos
habituados a ver, na história de todos os povos, eminentes
capacidades, como o ilustre escritor, caírem no mesmo erro
quando tratam dela.
Do autor de O Contrato Social, cujas obras mere-
ceram tanta consideração dos homens pensadores, julga-
mos que não podia ele melhor descrever a mulher no
estado selvagem de que foi tão grande apologista.
Anteporemos, entretanto, àquelas linhas suas, já
citadas, a observação seguinte do muito espirituoso e distinto
literato Philarette Chasles.
65
"La femme n'est rien pour le
sauvage; esclave au début de la civilisation, elle acquiert ses
droits et sa valeur en parcourrant les degrés qui effacent la
tyrannie de la force physique et font régner l'intelligence."
66
64
"A mulher é feita especialmente para cativar ao homem; se o homem a deve, por
sua vez, cativar, é de necessidade menos direta; o mérito dele está na força; ele cativa
pelo simples fato de ser forte."
65
Philareste Chasles (1789-1873) era muito lido ao tempo de Nísia Floresta.
66
"A
mulher não i nada para o selvagem; escrava no começo da civilização, ela adquire
seus direitos e seu valor percorrendo os degraus que apagam a tirania da força física
e fazem reinar a inteligência."
Mas deixemos a Wollstonecraft,
67
Condorcet,
68
Sièyés,
69
Legouvé,
70
etc. a defesa dos direitos do sexo. A
nossa tarefa é outra, e cremos que mais conveniente será às
sociedades modernas: a educação da mulher.
XI
A França, essa fagueira região dos belos espíritos,
onde todas as fisionomias sorriem ao estrangeiro e a
afabilidade da mais acessível civilização o acolhe e o consola
das saudades da pátria, esse viveiro moderno de grandes
notabilidades, em todas as ciências e artes, não tem chegado
ao apogeu da glória de ser o centro luminoso donde se
desprendem as brilhantes centelhas que vão esclarecendo os
demais povos na marcha progressiva das idéias, senão
67
Mary Wollstonecraft (1759-1797) terá sido, sem dúvida, uma das figuras mais
importantes do pensamento feminista no século XVIII. O seu livro A Vindication of
the Righis of Wóman (1792), obra seminal na história do igualitarismo feminino,
foi traduzido para o português pela própria Nísia Floresta, sob o título Direitos das
mulheres e injustiças dos homens.
A 3 de julho de 1790, o Marquês de Condorcet (Maríe-Jean-Antoine-Nicolas
Caritat, 1743-1794), havia publicado, no Jornal da Sociedade de 1789, um artigo
"Sobre a Admissão das Mulheres ao Direito da Cidadania", documento pioneiro
sobre os direitos políticos da mulher, de tal forma avançado para o pensamento de
sua época, que, traduzido para o inglês em 1912, foi utilizado como propaganda
ideológica na campanha pelo voto feminino na Inglaterra.
69
Emmanuel-Joseph Sièyés (1748-1836), político e reformador social francês, havia
retornado à França em 1830, catorze anos depois de exilado pela Restauração.
70
Ernest-Wilfrid Legouvé (1807-1903), poeta e romancista francês, havia escrito em
1848 uma História Moral das Mulheres, reunião de conferências que pronunciara no
Colégio de França.
porque a mulher é ali admitida de comum com os homens a
cultivar a sua inteligência.
Se a severidade de uma página da legislação francesa
exclui a mulher da supremacia de que gozam as mulheres das
duas nações de que falamos ultimamente,
71
o império do
espírito, em cujo trono ela se assenta como absoluta
soberana, prodigamente a indeniza dessa parcialidade,
depondo em suas mãos, como por vezes tem acontecido, de
uma maneira indireta, os destinos dessa bela nação. E o
mundo tem visto se as Poitiers, as Médicis,
72
as d'Estrées,
73
as
Pompadour,
74
etc, e as virtuosas Maintenon,
75
Antoinette
76
e Adelaide,
77
esclarecida conselheira de Luís
Filipe, têm dirigido, mais que os reis, o governo da França.
A mulher francesa reina de fato pelo espírito e, muita
vez, mais plenamente que as soberanas de direito sobre os
outros povos.
'A severidade da legislação que ainda não admitia o divórcio.
72
Diana de Poitiers
(1499-1566) foi amante de Henrique II (1519-1559), de França, e rainha de fato em
lugar da legítima esposa Catarina de Médicis (1518-1589)que, por sua vez, foi regente
durante a menondade de seus filhos Francisco II, Carlos IX e Henrique III.
73
Gabrielle d'Estrées (1573-1599) foi amante de Henrique IV (1553-1610), de quem
teve três filhos, legitimados pelo rei.
74
Jeanne-Antoinette Poisson, Marquesa de Pompadour (1721-1764) foi amante de
Luís XV, tendo exercido grande influência na política de sua época.
Françoise d'Aubigné, Marquesa de Maintenon (1635-1719), dona de um salão
intelectual dos mais freqüentados na França do século XVIII, foi amiga e depois
esposa de Luís XIV. Como educadora, fundou o Instituto Saint-Cyr para moças da
nobreza e escreveu Cartas sobre a Educação, Conselhos às Moças e Cartas
Edificantes.
76
Antoinette d'Orléans (1572-1618) filha do Duque de Longueville e de Maria de
Bourbon, foi a fundadora da Congregação das Filhas do Calvário.
Eugênia-Luísa Adelaide (1777-1847), Princesa de Orléans, era irmã do rei Luís
Filipe, da França.
Sem embargo de todos os antagonistas do
desenvolvimento intelectual da mulher, entre os quais tão
despoticamente sobressai o célebre Córsego,
78
acérrimo
inimigo da superioridade do espírito feminino, a França
esclarecida compreendeu a distância que mediava dela à
França feudal, e as luzes das ciências espalharam-se por
todas as inteligências, sem distinção de sexo nem de classes.
Depois que Descartes
79
abriu à filosofia uma nova era
e os homens do progresso, afrontando doutrinas
retrógradas, caminham avante na obra do aperfeiçoamento da
sociedade moderna, a mulher francesa não se limitou
somente aos exemplos da coragem que deu a Joana d'Are a
glória de libertar a pátria do poder dos ingleses, e segurou o
punhal na mão de Carlota Corday para expurgar o
sanguinário Marat.
80
Outras virtudes, outros triunfos, mais
dignos da mulher, obtêm e distinguem as francesas de
nossos dias.
As afetuosas páginas, inspiradas pelo amor maternal
da sensível Sevigné,
81
fizeram brotar em mais de um coração
feminino sazonados frutos, com que muitas de suas
78
Napoleão Bonaparte (1769-1821).
79
René Descartes (1596-1650) empresta seu nome a um dos treze meses do
Calendário Positivista, organizado por Augusto Comte, tendo, por isso, uma
estatua nos templos da Religião da Humanidade.
80
Nesta passagem, em que o feito de Joana d'Arc (1412-1431) é posto em paralelo
com o de Carlota Corday (1768-1793), a mulher que expurgou da França "o
sanguinário Marat" (1744-1793), nota-se o anticlerícalismo de Nísia Floresta,
componente específico de suas concepções liberais em matéria de religião.
81
Mine. de Sevigné (Marie de Rabutin-Chantal, 1626-1696) deixou, nas suas
Carlos, obra-prima do gênero epistolar, ricas reflexões sobre a vida familiar e os
costumes de sua época.
conterrâneas alimentaram o espírito da mocidade de seu
sexo.
Além de outras, Mmes. Maintenon, Genlis
82
e
Campan
83
concorreram, por seus dedicados desvelos e
preciosos escritos, para o desenvolvimento da educação, que
Saussure,
84
Tastu,
85
Guizot
86
etc., mulheres todas notáveis
pelos seus talentos e virtudes, têm melhor adaptado à
civilização moderna.
XII
Como a Inglaterra, a França apresenta grande
número de mulheres moralistas, poetas e escritoras em todos
os gêneros, procedentes das diversas classes da sociedade -
nobre, burguesa, operária - todas tendo fornecido autoras
82
A Condessa de Genlis (Stéphanie-Felicité du Crest de Saint-Aubin (1746-1830)
foi prolífica escritora (dela se publicaram 80 volumes) e educadora de avançadas
idéias. Entre os seus discípulos incluía-se Luís Filipe, rei de França.
83
Mme. Campan (Jeanne Genet, 1752-1822) foi camareira de Maria Antonieta.
Depois da Revolução, abriu um pensionato e escreveu ensaios pedagógicos.
Napoleão lhe confiou a educação de sua enteada Horténsia (a mãe de Napoleão III) e
a nomeou superintendente do Colégio Imperial de Ecouen.
84
Albertine-Adrienne de Saussure (1766-1841), também conhecida por Mme.
Necker, era prima de Mme. de Staél e autora de uma Educação progressiva ou estudo
sobre o curso da vida, na qual se ocupa também da "vida das mulheres," e que lhe
valeu um prêmio da Academia Francesa em 1832.
85
Mme. Tastu (Sabine Volart, 1798-1885) foi autora de diversos volumes para a
educação da juventude, entre os quais A educação materna (1835) e Leituras para as
Moças (1840).
86
Mme. Guizot (Pauline de Meulan, 1773-1827) foi autora de contos para a
infância e de obras pedagógicas, entre as quais Educação domésticas ou Cartas
familiares sobre a educação (1836) e Conselhos de Moral (1828).
mais ou menos distintas pelos seus trabalhos na grande obra
da civilização.
Apresentaremos, porém, as duas escritoras que
sobressaem a todas pela fertilidade e solidez de seu espírito,
como uma prova de que a educação moral deve ser, como já
temos observado, a base de toda a instrução da mulher, a fim
de que ela se não desvie da senda das virtudes que a farão
sair vitoriosa do labirinto da vida, onde tem de lutar com o
monstro da sedução.
Staël e George Sand,
87
de condições e caracteres
diferentes, chegaram ambas, por diversos caminhos, ao
pináculo da glória literária. O mérito da primeira atraiu, ainda
em 1850, tantos anos depois de sua morte, a ilustrada
corporação do Instituto de França a consagrar uma de suas
sessões ao seu elogio. A segunda é já denominada a primeira
escritora do século.
A pena de ouro que escreveu Lélia, a mais sublime
de suas concepções,
88
repousou compondo os seis dramas
morais que fizeram reviver na cena de Paris os símplices
costumes rurais e perdoar à sua autora alguns de seus
escritos, julgados, pelos severos moralistas, por demais
livres.
87
A autora faz, entre Mme. Staël e George Sand (Aurore Dupin 1804-1876), um
contraste difícil de sustentar-se, se considerada a tumultuosa biografia da primeira,
sobretudo suas ligações com Benjamin Constant (1767-1830) e A.W. Schlegel (1767-
1845).
88
0 romance Lélia foi publicado, numa primeira versão, em 1833 e, em sua forma
definitiva, em 1839. Nísia o considera "a mais sublime das concepções" de George
Sand porque, à época em que escrevia, nio lhe haviam certamente chegado as mãos O
charco do Diabo (1846), François, o bastardo (1847) e A pequena Fadette (1849), que
são, reconhecidamente, as melhores obras da romancista francesa.
34
Se, com tão transcendente talento, a educação de
Mme. de Staèl tivesse sido ministrada a George Sand, ter-se-
ia esta deslizado da conduta circunspecta que constitui o
primeiro mérito da mulher? Não, por certo, e aquela cujos
escritos atraem a admiração do mundo literato faria brilhar,
por entre a coroa de imortalidade que lhe cinge já a fronte, a
mais preciosa de todas as pérolas, que lhe falta, e que
somente a educação religiosa pode oferecer à mulher.
Assim, é quase sempre da educação que nascem os
desvarios, os erros, alguma vez os crimes, que ofuscam as
qualidades do espírito, mancham a vida da mulher e a tornam
bem vezes infeliz, ainda quando rodeada da fascinadora
auréola da fortuna.
Dê-se ao sexo uma educação religiosamente moral,
desvie-se dele todos os perniciosos exemplos que tendem a
corromper-lhe, desde a infância, o espírito, em vez de
formá-lo à virtude, adornem-lhe a inteligência de úteis
conhecimentos, e a mulher será não somente o que ela deve
ser - o modelo da família - mas ainda saberá conservar
dignidade, em qualquer posição em que porventura a sorte a
colocar.
Quando o grande herói do século XIX, fazendo
revolver o mundo e curvar ao seu despotismo as cabeças
coroadas da Europa, temeu a influência de uma mulher e a
desterrou em Coppet, essa mulher achou em seu espírito
assaz de recursos para suportar o exílio, e em sua dignidade
assaz de energia para recusar-se depois ao seu chamado.
89
89
As divergências políticas entre Mme de Staël e Napoleão Bonaparte (que
atravessaram toda a vida pública de ambas as personalidades) custaram muitos
Essa grande potência, perante quem tudo se curvava, teve
que devorar a recusa de uma mulher, cujo mérito havia a
princípio desdenhado. Napoleão ignorava, como diz
Chateaubriand, que o verdadeiro talento só no gênio
reconhece Napoleões.
Se muitas outras se não têm portado, em casos
semelhantes, com a mesma dignidade e energia, é porque
lhes faltam a educação e as luzes que ornavam o espírito da
célebre filha de Necker.
XIII
Se considerarmos agora as mulheres da França sob o
ponto de vista filantrópico, vê-las-emos derramando cada dia
nas classes des validas o bálsamo salutar da beneficência.
A caridade, essa virtude sublime que nunca é tão
devidamente exercida como pela mão da mulher, tem no
coração da francesa um templo onde ela lhe queima o mais
puro incenso.
dissabores à escritora, entre os quais o exílio, por mais de uma vez, em Coppet, perto
de Genebra, na Suíça. Quando, em 1810, foi publicado o seu ensaio Sobre a Alemanha,
Mme. de Suèl mandou um exemplar do livro ao imperador, rogando-lhe uma
audiência. A resposta foi nio somente a recusa em receber a autora, mas a ordem de
novo confinamento em Coppet, acrescida do confisco policial de toda a ediçio da obra,
tida como desfavorável à boa imagem da França no estrangeiro. Mais tarde, durante
os Cem Dias, Napoleão lhe comunicou que ela podia voltar à França e que lhe pagaria
os dois milhões de francos por ela reclamados como débito da monarquia francesa ao
seu falecido pai Jacques Necker (1732-1804), o famoso banqueiro e Ministro das
Finanças de Luís XVI. Dessa vez a recusa coube a Mme. de Stael.
Prescindindo dos inúmeros exemplos que
incessantemente apresentam desta verdade as associações
femininas de beneficência, bastar-nos-á indicar as dignas
irmãs de S. Vicente de Paula.
90
Quem tem mais justos títulos à estima e veneração da
sociedade do que essas admiráveis mulheres, de uma
abnegação verdadeiramente cristã, separando-se de suas
famílias, no centro das quais grande parte de entre elas
gozava de todas as vantagens de uma vida cômoda e
deliciosa, para dedicarem-se aos mais laboriosos e rudes
trabalhos, socorrendo a humanidade sofredora? Quem
jamais, possuindo um coração sensível e a consciência do
bem, viu essas sublimes mulheres, em rigorosa
simplicidade, correrem de um a outro lado de Paris, ainda
nos dias mais nevosos, em noites mais tenebrosas, nas
ocasiões mais difíceis, em que a cólera dos povos reaparece
vomitando a morte e a desolação, para acudirem aqui e ali
aos infelizes que reclamam seus cuidados, ou deixarem a
pátria e a comunicabilidade com aqueles que falam o seu
idioma, para voar também a países longínquos, alguns
mesmo selvagens, com o único fim de serem úteis ao seu
semelhante? Quem jamais, dizemos, viu tanta dedicação à
verdadeira prática dos preceitos do Homem-Deus, que não
sentisse o desejo de ajoelhar-se perante essas virgens
modelos e adorá-las?
90
Nào muito versada na hagiologia católica, Nísia Floresta confunde, como
ocorre comumente, os nomes de S. Francisco de Paula (1416-1507), assim
dito porque originário dessa cidade italiana, e S. Vicente de Paulo (1581-
1660), religioso francês, fundador da Congregação dos Lazaristas e das
Irmãs de Caridade.
Talvez um sorriso de motejo roce lábios ímpios de
alguns dos que lerem a última linha que deixamos escrita.
Mas até quando a sociedade será de tal modo
organizada, que os homens espalhem flores aos pés e
arrastem os carros das cantoras e dançarinas, para significar
os seus triunfos, e dêem um sorriso, ou apenas uma fraca
aprovação à virtude em toda a beleza de sua simplicidade?
As irmãs de caridade, mulheres, pela mor parte, de
uma grande instrução, bastariam para impor silêncio aos que
pretendem (mesmo em França, no seio de sua sociedade
ilustrada) que a instrução da mulher é mais prejudicial que
útil. Jamais a instrução da mulher pode ser prejudicial
quando tem por base uma bem dirigida educação. E se esta
regra apresenta exceção, como naturalmente deve, é ela tão
diminuta que escapa à generalidade.
Apesar do apreço em que temos as mulheres das três
últimas nações em que tão de passagem falamos,
reconhecemos, todavia, que muito tem ainda a sociedade que
fazer para que cheguem ao aperfeiçoamento da educação, ali
mesmo onde ela tão altamente sobressai à que recebem as
mulheres dos outros países.
Assim, compartindo de coração as idéias, a respeito
da mulher, do progressista e eloqüente Júlio Michelet,
91
concluiremos a nossa ligeira análise sobre elas, citando uma
de suas reflexões, que traz o selo do vivo entusiasmo de sua
alma, impregnada do eletrismo de uma convicção a que se
9l
Júlio Michelet (1798-1874), historiador francês. Além de suas grandes
obras, como a História da França ou a História da Revolução Francesa,
deixou ainda as seguintes, relacionadas com a problemática da mulher: Du
prêtre, de la femme, de la famille (1838), Femmes de la Révolution
(1854), e La femme (1859).
não pode resistir quando uma vez se ouve a sua voz:
"Philosophes, physiologistes, économistes, hommes d'Etat,
nous savons tous que l'excellence de la race, la force du
peuple, tient surtout au sort de la femme."
92
"Etre aimée, enfanter, puis enfanter moralement,
élever l'homme (ce temps barbare ne l'entend pas bien
encore) voilà l'affaire de la femme.
"Fons omnium viventium! Quest-ce qu'on ajoutera à
cette grande parole?..."
Passemos à América, essa poderosa rainha que se
apresenta por último no palco da civilização, grandiosamente
ataviada de todos os ricos dons da natureza e pulsando-lhe
no peito um coração superabundante de nobres e virginais
sentimentos.
Os naturais dos Estados Unidos, que com nobre
orgulho arrogam-se o nome exclusivo de americanos, por
serem os únicos de todo este vasto continente que têm até
hoje sabido devidamente compreender a grande missão a que
está destinada esta parte do mundo, dão à mulher uma
situação intermédia, na qual ela goza das vantagens da
92
Filósofos, fisiólogos, economistas, estadistas, todos nós sabemos que a
excelência da raça, a força do povo, fundamenta-se sobretudo na condição
da mulher. Ser amada, dar a luz, depois dar a luz moralmente, educar o
homem (este tempo bárbaro não o entende 'ainda bem) eis a tarefa da
mulher. Matriz de todos os viventes! O que se haverá de acrescentar a tão
grande expressão?..."
educação que herdou da metrópole, sem imitar os costumes
aristocráticos da Europa.
Os prejuízos e afetação do bom tom das velhas
sociedades não têm podido ainda conseguir inocular-se no
seu espírito eminentemente positivo.
Como tudo o que é novo e vigoroso, de uma origem
boa e fecunda, o espírito anglo-americano tende a
desenvolver as qualidades que lhe são inatas, em ordem a
obter a realização das altas concepções do gênio europeu.
Mas, permanecendo fiéis aos sábios princípios do imortal
Washington, os filhos da União distinguem-se de todos os
povos civilizados na preferência que sabem dar a tudo o que
tem o cunho da verdade e do útil.
A fórmula não tem ainda um culto entre esse grande
povo e o que alguns franceses lhe notam de rigidez de
princípios, levada às vezes até à grosseria, não é mais que a
expressão da simplicidade e franqueza que constituem o
caráter deste povo livre e independente. Grande diferença há
entre a polidez dos franceses e a sequidão de maneiras que
em geral conservam os americanos de seus antepassados.
Todos sabem que quanto mais ociosa é uma nação
tanto maior é o espírito de galanteio que a domina: os
importantes trabalhos que ocupam os americanos do Norte
não lhes deixam tempo para a polidez dos franceses.
Assim, levam eles o amor do útil a tal ponto que,
sendo a sua nação uma das que possuem maior número de
escolas primárias e secundárias, de sociedades científicas e
literárias, aprofundam somente as ciências de que podem
tirar resultados aplicáveis ao engrandecimento de seu país.
Já se vê, pois, que um tal povo não podia
negligenciar os meios mais eficazes de colocar a mulher em
um estado correspondente ao seu plano de prosperidade.
"Na América, diz F. Cooper,
93
a mulher parece
ocupar o seu verdadeiro lugar na ordem social. Mesmo nas
condições inferiores é ela tratada com as atenções e respeitos
devidos aos seres que cremos depositários dos princípios
mais puros de nossa natureza. Nos limites sagrados de sua
esfera, ela está ao abrigo da corrupção que nasce de um
comércio demasiadamente freqüente com o mundo. É
sempre a amiga de seu marido, algumas vezes seu
conselheiro."
Outro escritor diz ainda: "Em nenhuma parte a
mulher é mais completamente a companheira do homem; em
nenhuma parte é ela mais livre de dispor do seu coração e de
sua mão; mas em parte alguma também ela tem um
sentimento mais profundo de seus deveres, da santidade de
sua missão providencial, quando transpõe o limiar da casa
conjugai."
No momento em que escrevemos estas linhas, um
precioso livro de uma americana do Norte vem oferecer-nos
uma amostra da educação e do desenvolvimento da
inteligência de suas mulheres.
93
James Fenimore Cooper (1789-1851), escritor americano da fase
romântica. A passagem consta do livro Notions of the Americans, picked
up by a travelling bachelor. London, Henry Colburn, 1828. lv. p. 141.
41
Mrs. Stowe
94
é o verdadeiro tipo da americana e o
mais perfeito modelo que se pode apresentar a todas as
mulheres.
Educação religiosa e moral, espírito eminentemente
cultivado, amor do trabalho, de que deu exuberantes provas
desde sua primeira juventude, dirigindo com zelo e
perseverança o ensino da mocidade, prática das virtudes
domésticas no estado de esposa e de mãe, solidez de uma
razão esclarecida, coragem heróica, de que deu exemplo
publicando (em face dos terríveis abusos de uma lei que
nodoa sua nação e que sua nação tolera ainda) um livro em
que a censura acremente nesta imperdoável falta - tudo isso
se reúne nesta admirável mulher que acaba de conquistar a
aprovação dos filósofos, a estima dos corações bem
formados e um nome imortal na posteridade.
A raça anglo-saxônia, amando a verdade, tem achado
meio de fazer a guerra à mentira.
A célebre autora de A Cabana do Pai Tomás?
5
digna descendente desta raça, guiada pelo nobre e gran-
dioso sentimento de humanidade, tentou resgatar sua pá-
tria da nódoa que a deslustra na marcha do espantoso
progresso em que ela se mostra aos povos.
Quando um tal modelo de perfeições morais se
patenteia nos Estados Unidos, julgamos ocioso tudo o que
94
Harriet Beecher-Stowe (1811-1896), educadora e romancista americana,
autora de A Cabana do Pai Tomás.
95
A Cabana do Pai Tomás apareceu primeiro em 1850, como folhetim no
The National Era. jornal anti-escravagista de Washington, e só dois anos
depois foi reunido em livro. A referência a essa obra no Opúsculo,
publicado em 1853, dá bem uma idéia de como Nísia Floresta se mantinha
em dia com a literatura de seu tempo.
pudéssemos acrescentar, para provar o desenvolvimento
progressivo da educação da mulher nessa Europa da
América, que excederá bem cedo a todas as nações do
mundo pelo gênio empreendedor de seus habitantes e pelo
espírito de associação e de comércio que vai tão grandemente
desdobrando.
XVI
O livro de Mrs. Stowe é um primor de moral, de
delicadeza de estilo, de sentimentos sublimes, de preceitos
cristãos, simples e habilmente dirigidos por mão feminina,
que sabe toda a superioridade que tem a doce eloqüente voz
da persuasão, demonstrando os crimes em presença de suas
vítimas, debaixo das formas mais capazes de inspirar o
interesse e a compaixão, sobre o brado da rígida moral que
severamente acusa a sociedade de qualquer povo de havê-los
praticado. Essa obra pode ser considerada como um
moderno Evangelho, em que todos os corações americanos
deveriam ir beber as lições do Cristo, transmitidas pelo
apóstolo feminino a quem Ele as inspirou.
Nós outros brasileiros, que lemos esse livro corando
do opróbrio que igualmente pesa sobre a nossa terra, nas
reproduções daquelas cenas de horror que tão pateticamente
descreve a insigne Stowe, deveríamos fazer nossos filhos
decorar algumas de suas páginas mais salientes, a fim de
podermos guardar a consoladora esperança de que as
gerações futuras farão apagar, nos que lerem um dia a nossa
história, a impressão dolorosa dos crimes cometidos pelas
gerações presentes sobre a mísera raça africana.
Possa a mocidade brasileira, essa flor esperançosa do
nosso grandioso futuro, aprender do filântropo Saint-Claire,
do senador Bird e de sua esposa, de Mrs. Shelby, da digna
quaker Raquel, da celeste pequena Eva, tipo sublime do
amor da caridade, e, sobretudo do jovem George,
96
os
sentimentos que devem distinguir o verdadeiro cristão.
XVII
É tempo de voltarmos ao nosso caro Brasil, cujo
interesse inspirou-nos este trabalho, e repetir a exclamação
com que começamos este opúsculo:
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados!
Governo, que vos dizeis liberal! Onde está a doação mais
importante dessa civilização, desse liberalismo?
Temos já transposto metade do século XIX, século
marcado pelo Eterno para nele revelar ao homem estupendos
segredos da ciência, tendentes a aplainar as grandes
dificuldades que se opõe
97
à universalidade do
aperfeiçoamento das idéias, em ordem a fraternizar todos os
povos da terra.
96
Os nomes citados são de personagens do romance de Harriet Beecher-
Stowe. Ao identificar neles "os sentimentos que devem distinguir o
verdadeiro cristão", Nísia Floresta toma posição contra a escravatura
vigente em seu país: a recente lei (1850) Eusébio de Queiroz apenas proibia
a importação de escravos africanos.
97
No original o verbo está no singular.
Temos testemunhado o empenho dos homens
pensadores das nações cultas em harmonizar a educação da
mulher com o grandioso porvir que se prepara à
humanidade.
Nada, porém, ou quase nada temos visto fazer-se
para remover os obstáculos que retardam os progressos da
educação das nossas mulheres, a fim de que elas possam
vencer as trevas que lhes obscurecem a inteligência, e
conhecer as doçuras infinitas da vida intelectual, a que têm
direito as mulheres de uma nação livre e civilizada.
Deus depôs no coração da brasileira o germe
98
de
todas as virtudes. Vejamos o impulso que o governo e os
homens da nossa nação têm dado a este germe precioso,
como têm eles cultivado e feito desabrochar as flores,
madurar os frutos que se deve" esperar de uma planta de
abundante seiva, sob os cuidados de um hábil e sábio
horticultor.
XVIII
Não ignoramos que imos encetar uma matéria tanto
mais difícil quanto teremos de ferir prejuízos
100
inveterados e o
mal entendido amor próprio daqueles que julgam as coisas
em muito bom estado só porque tal era a opinião de seus
98
No original, está gérmen (duas vezes nesse parágrafo), forma então
preferida.
99
No original o verbo está no singular.
100
Preconceitos.
antepassados. Mas o desejo ardente que nos cala n'alma, de
ver o nosso país colocado a par das nações progressistas,
nos impõe a obrigação de franca e imparcialmente analisar a
educação da mulher no Brasil, esperando excitar, com o
nosso exemplo, penas mais hábeis que a nossa a escreverem
sobre um assunto que infelizmente tão desprezado tem sido
entre nós.
Aqueles que escrevem tão-somente pelo bem da
humanidade - que não por orgulho ou pela triste vaidade de
fazerem-se um nome, ainda mesmo nos países onde um
nome literário tem pátria e glória - não cogitam do juízo
parcial dos que limitam os interesses da humanidade no
mesquinho círculo de seus interesses pessoais.
Não nos embala a vã pretensão de operar uma
reforma no espírito de nosso país. Por demais sabemos que
muitos anos, séculos talvez, serão precisos para desarraigar
herdados preconceitos a fim de que uma tal metamorfose se
opere. Esperamos somente que os zelosos operários do
grande edifício da civilização em nossa terra atentem para os
exemplos que a História apresenta do quanto é essencial aos
povos, para firmarem a sua verdadeira felicidade, o
associarem a mulher a esse importante trabalho.
A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil,
ela assumirá a posição que lhe compete nos pode somente
consolar de sua sorte presente. Entretanto, sigamos o
exemplo do pobre e corajoso explorador de nossas virgens
florestas, exposto aqui e ali à mordedura de venenosos
reptis, para rotear um campo que outros terão de semear e de
colher-lhe os sabororos frutos... Felizes nós se pudéssemos
conseguir o primeiro resultado desse trabalho, que muito nos
lisonjearíamos de oferecer às nossas conterrâneas como
penhor do verdadeiro interesse que elas nos inspiram.
Mais de um moralista tem estabelecido o princípio
que julgamos ter já demonstrado, isto é, que a educação da
mulher muita influência tem sobre a moralidade dos povos e
que é ela o característico mais saliente de sua civilização.
Isto posto, indaguemos, à vista do estado atual da
educação das nossas brasileiras, quais os meios que se
tem
101
empregado, há mais de três séculos, para promover o
seu desenvolvimento, em ordem a conseguir os resultados
felizes que dela se deve
102
esperar, quando dirigida por
instituições sábias e liberais.
Retiremos por agora os olhos das tristes páginas de
nossa História, concernentes à situação da mulher indígena,
depois que o farol do cristianismo veio esclarecer esta mais
deliciosa porção do novo mundo. Nós a analisaremos em
lugar competente e com o coração profundamente
compenetrado da sua sorte.
Tratemos primeiramente das mulheres a quem os
homens da civilização, entre nós, denominam brasileiras,
isto é, as mulheres não indígenas que nascem de famílias
livres, ou aquelas que a bondade dos pais resgata, na pia
batismal, do triste selo da escravidão.
No original o verbo está no singular. No
original o verbo está no singular.
Não é na história de nossa terra que iremos estudar a
situação de nossas mulheres, porque infelizmente os poucos
homens que têm escrito apenas esboços dela não as acharam
dignas de ocupar algumas páginas de seus livros.
Assim, recorreremos aos viajantes estrangeiros que
consagraram alguns de seus escritos à narração, por vezes
alterada, do caráter e costumes das brasileiras, para tratarmos
delas nas províncias em que não temos nós mesmo viajado e
sido testemunhas oculares da maneira por que é dirigida ali a
sua educação.
É uma triste verdade ter o Brasil herdado de sua
metrópole o desprezo em que teve ela sempre a educação do
sexo.
Os portugueses, levando suas armas e seus
missionários a outras regiões do mundo, explorando a glória
pela reunião destas duas forças heterogêneas que eles sabiam
tão bem empregar para subjugar os povos, embriagavam-se
demasiadamente em seus grandes triunfos para poderem
ocupar-se, como deviam, da instrução da mulher, que,
segundo a opinião da maioria de seu país - mais afeita aos
costumes mouriscos que aos dos povos do Norte - não há
mister de outros conhecimentos além daqueles que a
habilitam a ser a primeira e mais útil servente de sua casa.
A glória das armas e das conquistas era a única a que
aspirava o seu gênio belicoso. Dessa glória, porém,
nenhuma vantagem resultava à mulher, a não ser a dos
efêmeros triunfos que lhe davam os combatentes das justas e
torneios, quebrando lanças que depunham a seus pés como
uma homenagem a suas graças ou a seu amor.
Essa homenagem, que os homens da Idade Média
criam render ao verdadeiro mérito da mulher, caracteriza-se
na conduta de Magriço
103
e de seus companheiros, que tanto
orgulho inspirou aos cavaleiros daquele tempo. Esses doze
famigerados guerreiros, indo tão dramaticamente
desafrontar as damas inglesas, em vez de empregarem o seu
valimento e a sua bravura em pugnar pela reforma da
educação das damas portuguesas, que jaziam envoltas no
espesso véu da ignorância, forneceram um exemplo mais da
leviandade do homem, procurando a glória onde menos ela
reside.
Mas fora sempre este o espírito de sua nação, onde
as ciências e as artes nunca tiveram grande incremento fora
do claustro, essa barreira insuperável ao progresso das
idéias. Entretanto, se aquelas eram ali suplantadas pelas
armas, mesmo sob o reinado de seus mais ilustrados
soberanos, alguns gênios sobressaíram na terra tão altamente
decantada por Camões, a despeito dos obstáculos que se
opunham aos seus mais altaneiros vôos.
103
Apelido de uma das personagens da história de cavalaria Os doze de
Inglaterra, os quais tomaram a missão de irem desafrontar doze damas na
terra dos britânicos. O nome de Magriço era Álvaro Gonçalves Coutinho.
A ele se refere Camões n'Os Lusíadas: "Pois pelos doze Pares, dar-vos
quero / Os doze de Inglaterra e o seu Magriço." (I, 12).
O sexo, a quem era vedado transpor o pórtico de
qualquer estabelecimento científico ou literário, forneceu
também, posto que em pequeno número, alguns espíritos
superiores. Citaremos Públia Hortência de Castro,
104
que,
sob os trajes masculinos, freqüentou com seu irmão a
Universidade de Coimbra, onde obteve os grandes
conhecimentos que excitaram a admiração dos homens de
sua época, inclusive Filipe II.
Esta escritora, superior - pelas dificuldades que teve
a vencer para penetrar no santuário da ciência - às
Catarina,
105
Lacerda,
106
Balsemão,
107
Alorna
108
etc, provou
104
Públia Hortênsia de Castro (+1595) foi um dos assombros femininos da
História de Portugal. Como quisesse obter um diploma científico e isso fosse
proibido para as mulheres de seu tempo, vestiu-se de homem e, com seu irmão
Jerônimo de Castro, matriculou-se na universidade, tendo se graduado muito
jovem e com retumbante êxito. Deixou manuscritos poéticos em latim e
português, além de um opúsculo teológico. Filipe II, de Espanha, premiou-a com
uma pensão de vinte mil réis.
105
Duas Catarinas de Portugal deixaram nome de
versadas no terreno das letras: a infanta Catarina (1436-1463), filha de D.
Duarte, de quem se publicou uma tradução do Livro da regra e perfeição da
conversação dos monges (1531), de São Lourenço Justiniano; e a Duquesa de
Bragança (1540-1614), autora de diversos manuscritos, entre os quais um em
que defendia o seu direito à coroa de Portugal como sucessora de D. Sebastião.
106
Bernarda Ferreira de Lacerda (1595-1644) teve extraordinária reputação
como poliglota e poetisa. Conta-se que recusou o convite de Filipe II da Espanha
para ser a mestra dos filhos deste, D. Carlos e D. Fernando. Lope da Vega
dedicou-lhe a écloga Filis (1635) e muito a enalteceu no Laurel de Apoio. Dela,
a obra mais conhecida intitula-se Soledades de Bucaço (1634).
107
A Viscondessa de Balsemão (1749-1824), chamada a "Safo
Portuguesa" foi, junto com a Marquesa de Alorna, figura das mais
que, se as mulheres portuguesas não puderam colher os
louros literários que ornam as mulheres do Norte, não é
porque lhes falte capacidade intelectual, mas porque os
prejuízos de sua pátria as restringem no acanhado círculo de
errôneos preconceitos.
Com a negligência do povo português a respeito da
educação do sexo se pode somente comparar a desapreciação
(deixamos aos de seu próprio país uma classificação mais
forte) em que ele teve sempre os seus maiores homens que
tanto o ilustraram. O estrangeiro, que percorre o histórico
Portugal em procura dos monumentos elevados aos
Henriques,
109
Nuno Alvares,
110
Castro,
111
Gama,
112
Camões,
113
Pombal
114
etc., não pode deixar de aprovar a
imparcialidade do vate português,
115
quando em seu
salientes no mundo literário do século XVIII, em Portugal. Publicou
poesias e dramas, além de uma tradução de As Solidões, de Croncck.
l08
A Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida (1750-1839) foi a
"Mme. de Staèl Portuguesa." As suas Obras Poéticas constituem a ponte
entre o classicismo e o romantismo em Portugal.
109
D. Henrique, o Navegador (1394-1460), fundador da Escola de Sagres.
110
Nuno Alvares Pereira (1360-1431), guerreiro, condestável, lido como
santo português.
111
Inês de Castro (1320?-1355), amante de D. Pedro (1320-1367, rei de
Portugal de 1357 a 1367).
112
Vasco da Gama (1469-1524), descobridor do caminho das índias.
113
Luís Vaz de Camões (1524-1580), o poeta de Os Lusíadas.
114
Sebastião José de Carvalho e Mello, Marquês de Pombal (1699-
1782), ministro de Estado, representante do iluminismo no governo
português.
115
Almeida Garrett (1799-1854). O seu poema Camões foi publicado em
1825.
entusiasmo patriótico, revoltou-se contra a injustiça de seus
conterrâneos, nesta virulenta apóstrofe contida no seu
Camões:
"Onde jaz, portugueses, o moimento
116
Que do imortal cantor as cinzas guarda?
Homenagem tardia lhe pagastes
No sepulcro sequer... Raça d'ingratos!
Nem isso, nem um túmulo, uma pedra,
Uma letra singela. A vós meu canto,
Canto de indignação, último acento
Que jamais sairá da minha lira,
A vós, ó povo do universo, o envio."
117
XXII
As idéias estacionaram na linda terra dos Afonsos.
Os cantos de seus altos feitos, retumbando peias montanhas
alcatifadas de flores, sob o poético céu de Portugal, iam
morrer no seio de outras terras e de outros povos,
eternizando o nome português, sem que após esses feitos o
farol da filosofia iluminasse o espírito dessa nação e a
guiasse à única verdadeira glória.
Baldo de tão sábio e poderoso guia, que pode só
conduzir os povos à felicidade, esse formidável colosso de
armas caiu, como cai o pano de um teatro, depois da
116Monumento.
117
A citação é de parte da última estrofe do poema de Garrett.
representação admirável de um grande drama cujas cenas
extraordinárias haviam prendido a atenção e extasiado a alma
dos espectadores.
Os prejuízos de Portugal estenderam-se sobre as
vastas plagas do Brasil debaixo de um aspecto mais
desfavorável, pois que tiveram de envolver nossa límpida
atmosfera no tenebroso manto da escravidão, que Portugal
repelia de seu seio e que seus filhos traziam a infestar a
nossa sociedade, manchando-a perante as sociedades da
Europa, onde mais de uma vez tivemos de corar, ouvindo
incluir os brasileiros na censura em que ali incorrem, e
horror que inspiram, os povos traficadores da espécie
humana.
118
O Brasil recebeu de sua metrópole tudo o que lá
havia menos capaz de desenvolver o espírito e fazer
sobressair as vantagens deste novo e rico solo, tão
ardentemente disputado aos sucessores de Cabral pelos
povos do Norte, que o teriam incontestàvelmente melhor
preparado para um mais glorioso porvir.
119
Concordamos, bem a nosso pesar, nesta verdade,
porque fazemos justiça e rendemos profunda homenagem
aos dignos antepassados dos três grandes escritores que
118
Mais outro depoimento em que transparece a posição abolicionista de
Nísia Floresta.
119
Neste ponto, a autora incorre na ingenuidade tradicionalmente
arraigada no seio de sua cultura: a de atribuir as mazelas da formação
social brasileira à colonização lusitana, imaginando que "os povos do
Norte" teriam feito melhor figura como exploradores do Brasil. Este
complexo antilusitano lhe será perdoado, todavia, se comparado, por
exemplo, com a germanofilia de Tobias Barreto.
representam atualmente a trindade literária de Portugal, A.
Herculano, A. Feliciano de Castilho, e A. Garrett.
120
Mas todos sabem que não de homens tais e, sim, de
pessoas vulgares, de aventureiros intrépidos, ou de
condenados pelas leis do seus país se compunha a maior
parte das expedições que aportavam às praias brasileiras e
iam povoando, pouco a pouco, este imenso território,
disputando-o muita vez atrozmente a seus legítimos
possuidores, que por tanto tempo gemeram sob o jugo
iníquo do cativeiro.
Pouco avultavam, pelo meio dessa geral invasão, os
sentimentos humanitários dos dedicado Nóbrega e exemplar
Anchieta, esses verdadeiros apóstolos do Cristianismo.
XXIII
A sede de ouro, a ambição de domínio, ou o caráter
despótico dos que anelavam por um vasto teatro para nele
representarem suas cenas, por vezes mais bárbaras que as
dos próprios selvagens, atraíam então ao Brasil, com
algumas exceções, os colonos, donatários, governadores,
capitães-generais e vice-reis. Conferia-se quase sempre
(cremos que mais por ignorância do que por cálculo) a
execução da lei, no interior, a homens brutais ou
120
Ainda hoje a história da literatura consagra os nomes de Alexandre
Herculano (1810-1877), Almeida Garrett (1799-1754) e Antônio
Feliciano de Castilho (1800-1875) como os representantes máximos da
primeira fase do romantismo português.
54
sanguinários, que, arvorados da autoridade de capitão-mor,
decidiam a seu livre arbítrio (como tivemos a infelicidade de
testemunhar ainda em nossos dias na província de
Pernambuco) da vida de honestos cidadãos, de virtuosos
pais de família que caíam em seu desagrado.
121
O nobre coração do príncipe regente D. Pedro se
havia bem penetrado desta verdade, quando disse em seu
Manifesto de 6 de agosto de 1822: "Quando, por um acaso,
se apresentara pela primeira vez esta rica e vasta região
brasílica aos olhos do venturoso Cabral, logo a avareza e o
proselitismo, móveis dos descobrimentos e colônias
modernas, se apoderaram dela por meio da conquista, e leis
de sangue, ditadas por paixões e sórdidos interesses,
firmaram a tirania portuguesa. (....) E, porquanto a ambição
do poder e a sede de ouro são sempre insaciáveis e sem
freio, não se esqueceu Portugal de mandar continuamente
bachás desapiedados, magistrados corruptos e enxames de
agentes fiscais de toda espécie, que no delírio de suas
paixões e avareza, despedaçavam os laços da moral assim
pública como doméstica" etc.
Bem se vê, pois, que de tais homens não podia
provir vantagem alguma para o progresso das idéias e, por
conseguinte, da educação da mulher.
Saber habilmente manejar os bilros com que faziam
grosseiras rendas, girar o fuso para reduzir o algodão a
grosso fio, pegar na agulha sem o conhecimento dos
121
Nessa passagem, Floresta está se referindo, obviamente, ao assassinato
de seu próprio pai, Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa, pelo capitão-mor A.
Uchoa Cavalcanti, fato ocorrido no dia 17 de agosto de 1828.
delicados trabalhos que dela se podem obter, conhecer o
ponto da calda para as diferentes compotas e doces secos,
laborar a lançadeira do tear, bambolear a pequena urupema e
a fina peneira para preparar depois as massas, colorir as
escamas dos peixes ou adaptar as variegadas penas dos
lindos pássaros tropicais à simetria das flores que fabricavam
com umas e outras etc. - tais eram geralmente as ocupações
que revelavam o talento da jovem brasileira.
As excelentes qualidades que se perpetuavam, muita
vez, em algumas famílias patriarcais, atraindo-lhes a estima
geral, permaneciam, entretanto, como o diamante não
lapidado, ocultando o seu verdadeiro brilho.
XXIV
O Brasil, cuja importância aumentava de dia em dia
pela sua população e pelas vantagens que ofereciam as suas
copiosas minas e ricos produtos, permanecia ainda
inteiramente dependente dos caprichos de Portugal, pigmeu
insuflado de suas glórias passadas, conservando a vaidosa
pretensão de continuar a reprimir o gigante que, a duas mil
léguas, parecia dormitar sob a pressão de suas pesadas
cadeias.
A longa resignação de seus filhos - quase sempre
preteridos quando em concorrência com os da metrópole na
distribuição de suas graças, sempre submetidos ao
despotismo que invadia e devorava o mesmo campo da
ciência, tal como o do Conde de Resende,
122
perseguidor
atroz daqueles que, como o nosso ilustre moralista Marquês
de Maricá,
123
se distinguiam nos trabalhos da inteligência -
deixava Portugal laborar naquele erro que tão fatal tinha de
ser à sua prosperidade.
Sabe-se que nenhuma academia nem escola regular
possuía a nossa terra até os princípios do presente século,
124
onde os seus filhos, explorando com vantagem as ciências a
que se dedicavam, pudessem obter um título que os
distinguisse no mundo científico e literário.
Não somente para esse fim como para terem
conhecimentos exatos até dos estudos preliminares, eram
eles obrigados a ir em longínqua distância à metrópole. Se
era isso uma medida política do seu governo, a nós não
compete ventilá-lo. Queremos somente concluir que, nesse
estado, nenhum recurso podia o Brasil oferecer à mulher que
desejasse cultivar a sua inteligência.
122
D. José Luís de Castro, 2º Conde de Resende (1744-1819), vice-rei do
Brasil, figura muito impopular como governante, perseguidor dos que
simpatizavam com as idéias do enciclopedismo francês.
123
Mariano José
Pereira da Fonseca, Marquês de Maricá (1773-1848): em 1843, saíram em
livro as suas Máximas, Pensamentos e Reflexões, coletânea de lugares-
comuns de cunho moraíizante, muito apreciadas desde então. Em que pese
tomá-lo como "nosso ilustre moralista," Nísia Floresta desenvolve seu
pensamento e sua ação em claro desacordo com as banalidades reacionárias
do famigerado marquês, de modo especial no tocante ao papel social da
mulher.
124
Foi só após a transferência da Família Real portuguesa para o Brasil, em
1808, que se abriram no Brasil as primeiras academias, voltadas à formação
do quadro de pessoal necessário à máquina burocrática do Estado. Em 1827
passaram a funcionar, em São Paulo e Olinda, as primeiras escolas
destinadas à formação de bacharéis em ciências jurídicas.
Embalde tentaria ela instruir-se em qualquer outra
coisa, a não ser nas ocupações materiais da vida doméstica,
porquanto as lições que recebiam algumas meninas, nas
casas intituladas escolas - onde, sentadas por terra em
pequenas esteiras ou toscos estrados, abrindo de vez em
quando, sobre a almofada de renda ou de costura que faziam
com rigorosa tarefa, errados manuscritos, e a cartilha do
Padre Inácio
125
que lhes iam materialmente explicando -
eram tão mal dirigidas e por vezes tão perniciosas, que
tendiam antes a estreitar do que a dilatar-lhes o espírito, a
viciá-lo, antes do que enobrecê-lo.
XXV
As escolas de ensino primário tinham antes o aspecto
de casas penitenciárias do que de casas de educação. O
método da palmatória e da vara era geralmente adotado como
o melhor incentivo para o desenvolvimento da inteligência.
Não era raro ver-se nessas escolas o bárbaro uso de
estender o menino que não havia bem cumprido os seus
deveres escolares em um banco e aplicarem-lhe o
vergonhoso castigo do açoite.
Se as meninas que em muitos desses repugnantes
estabelecimentos eram admitidas de comum com o outro
sexo ficavam isentas dessa sorte de barbaria, não deixavam,
entretanto, de presenciá-la por vezes e de receber uma
125
Inácio de Loiola (1491-1556), fundador da Companhia de Jesus:
referência crítica ao jesuitismo impcrante na educação brasileira.
impressão desfavorável que muito concorria para enervar-
lhes a delicadeza e modéstia, que, de outra sorte dirigidas,
tanto realce dão às qualidades naturais da mulher.
A palmatória era o castigo menos afrontoso
reservado às meninas por mulheres, em grande parte,
grosseiras, que faziam uso de palavras indecorosas,
lançando-as ao rosto das discípulas onde ousavam imprimir
alguma vez a mão, sem nenhum respeito para com a decência
nem o menor acatamento ao importante magistério que, sem
compreender, exerciam.
O sistema inquisitorial das torturas infringidas às
inocentes vítimas do Santo Ofício, que sob outra forma e
com diverso fim transpusera o Atlântico, presidia ao ensino
da mocidade brasileira, ministrado por severos jesuítas ou
por mestres charlatães, cujo mérito consistia em saber
soletrar alguns clássicos portugueses e asssassinar
pacificamente Salústio, Tito Lívio, Virgílio e Horácio.
Esta inaudita e brutal severidade era sancionada por
um grande número de pais cuja educação tinha sido assim
feita e cujo rigor doméstico não era menos cruel.
Com algumas modificações continuou infelizmente
este regime muito tempo depois. Pais e filhos estavam ainda
por educar, como se vê desta observação do Conde dos
Arcos
126
a um mestre d'escola da Bahia, que se lamentava
do pouco resultado de seus grandes esforços para bem
dirigir a educação de seus discípulos: "Será preciso
126
D. Marcos de Noronha c Brito, 8º Conde dos Arcos (1771-1828):
último vice-rei do Brasil (1806-1808), depois governador geral da
Capitania da Bahia. Em 1817, foi Ministro da Marinha de D. João VI e,
com o regresso deste a Portugal, presidente do Ministério junto ao
príncipe D. Pedro.
primeiramente educar os pais, para que se possa conseguir a
boa educação dos filhos."
Não deixaremos, entretanto, passar esta observação,
posto que justa, sem que acrescentemos outra, e que vem a
ser que não era a um filho do país a quem o Brasil deve
todos os seus erros e prejuízos que cabia censurar uma falta
dele procedente, e tão geralmente nele cometida.
Demais, o célebre introdutor das primeiras comissões
militares no Brasil, digno sectário da doutrina de Hobbes
127
-
que pretende ser o despotismo ordenado pela religião - não
devia censurar a falta de uma educação esclarecida, sem a
qual mais facilmente os homens se submetem ao absolutismo
de seus governantes.
127
Thomas Hobbes (1588-1679), autor de O Leviatá (1651), entre outros
ensaios filosóficos. A sua concepção da sociedade se fundamenta numa
visto pessimista, o que o levou a ser um dos pregoeiros do absolutismo.
XXVI
Quanto mais ignorante é um povo tanto mais fácil é a
um governo absoluto exercer sobre ele o seu ilimitado poder.
É partindo deste princípio, tão contrário à marcha
progressiva da civilização, que a maior parte dos homens se
opõe a que se facilite à mulher os meios de cultivar o seu
espírito. Porém, é este um erro que foi e será sempre funesto
à prosperidade das nações, como à ventura doméstica do
homem.
O país onde o soberano é mais absoluto é justamente
aquele em que o seu poder está menos seguro. É esta a idéia
do próprio Fénélon,
128
depois de ter apoiado a aristocracia.
A força não pode nunca persuadir, mas sim fazer
hipócritas.
Assim como um governo paternal é o mais próprio a
fazer a felicidade dos povos e a inteligência destes,
devidamente cultivada, o melhor incentivo para o exato
cumprimento de seus deveres - assim também a educação
moral é o guia mais seguro da mulher, a estrela polar que lhe
indica o norte, no frágil batei em que ela tem de navegar por
esse mar semeado de abrolhos, a que se chama vida.
A falta de uma boa educação é a causa capital que
contribui para que a mulher, no meio da corrupção da
128François de Salignac de la Mothe Fénélon (1651-1715), bispo e
literato francês, autor de livros pedagógicos, como Da Educação das
Moças (1687) e, a mais famosa, AS aventuras de Telêmaco (1699), escrito
como texto educativo para os três filhos do grande Delfim da França.
sociedade, perca esse norte, o qual não é outro mais que a
moral.
Procurando-se sempre prender-lhe a inteligência,
enfraquecer-lhe os sentidos, inabilitam-na para ocupar-se,
como devia, antes de tudo do cuidado de purificar o seu
coração, o que nunca poderá ela vantajosamente conseguir,
se a sua inteligência permanecer sem cultura.
Bem diversas desta doutrina são as de Rousseau e
Gregory,
129
quando lhe aconselham o gosto pelos adornos
(que ambos pretendem ser natural às mulheres) e embelecer
os dotes do corpo, tirando da beleza física e do artifício os
meios para subjugar os homens.
Todos os que têm escrito sobre a educação da
mulher, pregando tão errôneas doutrinas e considerando-a
debaixo do ponto de vista puramente material, não têm feito
mais do que tirar-lhe toda a dignidade de sua natureza.
Mulheres assim educadas seriam próprias para fazer
as delícias de qualquer epiçurista em um harém, mas cremos
que nenhuma de nossas brasileiras amará semelhante
existência, a não ser a que é indigna de outra melhor. Qual é
aí o homem razoável e honesto, que se contente de uma
esposa, que prefere passar no seio dos prazeres do mundo
entregue às futilidades de uma vida de dissipação e
indolência, antes que no empenho constante de restabelecer
seu direito aos gozos razoáveis, e de ilustrar-se pela prática
das virtudes que honram a espécie humana e contribuem para
a felicidade?
129
Floresta deve estar aludindo a Olinthus-Gilbert Gregory (1774-1841),
matemático e astrônomo inglês, que escreveu também diversos artigos e
comentários no Gentlemen's Diary e no Ladies' Diary, de que foi editor.
A mulher é, como o homem, conforme se exprime o
sublime Platão, uma alma servindo-se de um corpo.
É um absurdo, pois, uma profanação mesmo,
pretender-se que essa alma, obra-prima do Criador, para o
seio do qual tem de volver, consagre o corpo que anima na
rápida passagem desta vida, unicamente a fúteis adornos, a
graças factícias, para deleitar as horas de ócio de uma
criatura sua igual, que vemos ceder mais ao império dos
sentidos que ao da razão.
Todos esses princípios subversivos, espalhados com
tanta profusão por penas mais ou menos hábeis de
pretendidos melhoradores da educação da mulher,
confirmando o antiquado e funesto prejuízo de que ela deve
somente aspirar ao império das graças exteriores, só têm
130
feito com que se aumente o número, já tão considerável, de
escravas, procurando iludir despóticos ou fanáticos senhores
a fim de haverem, pela fraude, um cetro que elas deveriam
conquistar pela razão, se lhes deixassem a liberdade de
aperfeiçoarem as suas faculdades morais.
A fraqueza física é um dos pretextos de que se
prevalecem certos sofistas para subtraírem a mulher ao
estudo, para o qual a julgam imprópria. Não é a natureza
130No original consta o verbo no singular.
física, como pretende Helvécio,
131
que faz a superioridade
do homem, mas sim a inteligência. Voltaire, Racine, Pascal e
outros muitos, de uma compleição demasiadamente delicada,
comprovam esta verdade. E a inteligência, que não tem sexo,
pode ser igualmente superior na mulher, salvo a opinião de
alguns materialistas cujo espírito fraco identificou-se,
permita-se-nos a expressão, com o escalpelo afeito a revelar-
lhes a organização animal, que não a inspirar-lhes os
sublimes pensamentos de Duvernoy,
132
Schoenlein,
133
Orfila
134
e do eloqüente Serres,
135
quando, na indagação
dessa nobre ciência que reclamam as dores físicas da
humanidade, eles enlevam a alma de seus admiradores por
suas filosóficas considerações.
131
Claude-Adrien Helvetius (1715-1771). A sua obra capital, De l'Esprit
(1758) foi queimada em público por ordem do Parlamento, devendo o autor
retratar-se por ofensas à religião e ao regime político imperante. Autor
também de um estudo Sobre o homem, suas faculdades intelectuais e sua
educação (1772). Helvetius era filósofo hedonista e utilitário, cujo
sensualismo tudo reduzia ao puro orgânico, no plano individual, e ao
egoísmo mais exarcerbado, na esfera social.
132
Georges Louis Duvernoy (1777-1855): anatomista francês. Ocupou a
cadeira de História Natural no Colégio de França a partir de 1837.
133
Johann Lukas Schoenlein (1793-1864): médico alemão. Deixou seu nome
ligado a um novo sistema nosológico, em que as enfermidades estão
divididas em classes, famílias, grupos e gêneros.
134
Mathieu Joseph
Bonaventure Orfila (1787-1853), médico francês. Autor de um Tratado dos
venenos (1813), tido como consulta obrigatória para os estudiosos de
Medicina Legal, no campo da toxicologia.
135
Com o sobrenome de
Serres, dois cientistas franceses, contemporâneos de Nísia Floresta,
podem ser objeto desta referência: Pierre Marcel Toussaint de Serres
(1783-1862), professor de História Natural em Montpellier, e Augustin
Serres (1786-1868), especialista em Anatomia Comparada e Embriologia.
64
Se a natureza deu à mulher um corpo menos robusto
que ao homem, não tem ela, por isso mesmo, mais precisão
do exercício de suas faculdades intelectuais para que possa
melhor preencher os deveres de filha, esposa e mãe, sem
descer ao artifício?
Porém, um erro ainda mais funesto vem, adornado
dos atrativos que podem melhor lisonjear os sentidos e
triunfar da razão, sobreestar os progressos da educação do
sexo: é o axioma ridículo de que a fraqueza constitui um de
seus primeiros encantos.
"A fraqueza pode excitar e lisonjear o arrogante
orgulho do homem, diz uma célebre escritora inglesa, mas as
carícias de um senhor, de um protetor, não satisfarão uma
alma generosa que quer e merece respeito."
Não, por certo, e o homem delicado e justo,
compreendendo devidamente este respeito, sabe-o tributar à
energia da razão que combate, e não à fraqueza que se
humilha.
XXVIII
Repelindo com profunda indignação o princípio
daqueles que apresentam a mulher naturalmente inclinada a
fixar a atenção do homem pelas graças exteriores, incapaz de
reflexão e apta somente para oferecer-lhe agradáveis
passatempos, fazemos justiça à maioria dos nossos
conterrâneos para pensar que, não eles, mas somente os
libertinos podem assim agredir os domínios da razão e
profanar a dignidade da virtude. Destes temos piedade,
porque passam por esta transitória vida envolvidos na densa
atmosfera das paixões sensuais, sem que os seus olhos
descortinem jamais o radiante sol da verdade.
Se todos os homens, porém, tivessem o espírito
justo, como pensa Helvécio, veríamos nós todos os dias o
grande edifício social ameaçado aqui e ali de desabar sobre
os seus mais bem fundados alicerces? Se assim fosse, qual
teria sido o fim de Aristóteles, dando-se ao trabalho de
compor sua Lógica, tão preciosa e tão útil ao esclarecimento
das idéias e à perfectibilidade da razão? E para que ainda
precisariam os homens do estudo da filosofia, que
infelizmente tão poucos aprofundam e praticam?
Não compartindo a doutrina de Helvécio sobre a
igualdade da inteligência em todos os homens, sabemos que
todas as mulheres não podem ser igualmente instruídas,
ainda mesmo quando a todas se proporcionasse os meios de
cultivar o seu espírito. O que pretendemos é possível, justo
e de rigorosa necessidade, isto é, que todas sejam bem
educadas em suas respectivas situações.
A nossa digressão parecerá talvez longa, mas não
estranha ao objeto que nos ocupa. Tomemos, pois, o fio de
nossa análise sobre a educação de nossas mulheres, e,
transpondo os tempos coloniais, falemos primeiramente de
um grande extraordinário acontecimento que veio mudar
a categoria do Brasil, mas não a sorte de suas mulheres.
66
XXIX
A nação da Europa que se tem como que constituído
o termômetro das idéias políticas de quase todos os povos
modernos levantava-se, ainda gotejante de sangue, do
tenebroso pélago em que a haviam engolfado os prejuízos e
as tiranias passadas, para elevar-se, sob o braço déspota do
maior guerreiro dos tempos modernos,
136
ao ponto mais
culminante do poder e da glória que jamais têm dado as
armas em nossos dias.
Estava marcado pela Providência que o longínquo
Brasil, sofrendo tão cristãmente as dores da pesada cadeia
que lhe arrochava os fortes pulsos, participaria da influência
daquele acontecimento por um modo indireto e benéfico.
Uma lava do vulcão da Córsega, cuja erupção
ameaçava derribar todos os tronos da Europa, descendo a
Portugal, estendeu essa influência até as hospitaleiras praias
do Brasil, o qual abriu generosamente seus braços e seus
tesouros à Família Real, que vinha procurar um asilo em seu
seio.
Uma coroa européia brilhou sob o fulgurante sol
americano, o aparatoso fasto de uma corte desdobrou-se na
capital do Brasil, seus portos, fechados até então ao
estrangeiro, lhe foram para logo franqueados, e o nome de
reino substituiu depois o de colônia, tão indevidamente
conservado à vasta terra de Santa Cruz. Alguns
melhoramentos se operaram em diversos pontos, criaram-se
tribunais, escolas, academias etc. etc, sob a digna
136
Napoleão Bonaparte.
administração do ilustrado D. Rodrigo de Sousa
Coutinho.
137
Mas a educação da mulher permaneceu como
nos férreos tempos coloniais: isto é, entregue aos cuidados
de ineptos pedagogos femininos ou à direção das mães no
seio da família, onde a menina aprendia tudo, menos o que
pudesse torná-la digna, mais tarde, de ser colocada na ordem
de mulher civilizada.
O Brasil tinha já fornecido grande cópia de homens
ilustrados pelos conhecimentos adquiridos em diferentes
universidades da Europa, e a mor parte das brasileiras
(mesmo as das primeiras cidades) não logravam a vantagem
de aprender a ler.
Dizia-se geralmente que ensinar-lhes a ler e escrever
era proporcionar-lhes os meios de entreterem
correspondências amorosas, e repetia-se, sempre, que a
costura e trabalhos domésticos eram as únicas ocupações
próprias da mulher. Este prejuízo estava de tal sorte
arraigado no espírito de nossos antepassados, que qualquer
pai que ousava vencê-lo e proporcionar às suas filhas lições
que não as daqueles misteres, era para logo censurado de
querer arrancar o sexo ao estado de ignorância que lhe
convinha.
É esta uma das censuras que fazemos aos homens do
passado sem receio de desagradar aos do presente, porque,
salvas honrosas exceções, todos assim pensam ainda, não
obstante muitos terem trocado o papel de completa
ignorância, que representavam suas filhas, pelo de uma
137
Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares (1745-1812),
conselheiro de Dom João VI, seu Ministro dos Negócios Estrangeiros e
Guerra no primeiro ministério organizado por esse rei no Brasil.
instrução superficial e mal dirigida, que tende a viciar o
espírito sem nada deixar-lhe de sua simplicidade primitiva,
como demonstraremos quando chegarmos ao ponto de nossa
educação atual.
XXX
Era quase geral a opinião, como dissemos, que a
instrução intelectual era inútil, quando não prejudicial, às
meninas. Mas é porque aqueles que propalavam tão absurdo
princípio não faziam esta simples observação posta ao
alcance da inteligência ainda a mais míope, e para a qual lhes
não era preciso revolverem a história dos outros povos: as
mulheres brasileiras, baldas de toda a sorte de instrução,
eram elas citadas como as mais virtuosas e severas nos
princípios morais? Subtraíam-se assim melhor à cilada das
seduções armadas à inexperiência ou à credulidade do sexo?
Se assim tivera sido, se a estatística das faltas
cometidas pelas mulheres devidamente instruídas fosse mais
numerosa que a das outras, certo que não hesitaríamos em
ser do número dos apologistas da ignorância da mulher,
porque sendo a beleza da virtude a que mais atrai e extasia a
nossa alma, nós preferiríamos adorá-la, envolvida mesmo no
grosseiro manto da ignorância, a gozarmos de todas as
vantagens que a civilização oferece do alto de seu rico e
deslumbrante pedestal.
Mas todos sabem, a não serem os povos selvagens,
que é um paradoxo e paradoxo ridículo avançar-se que a
ignorância é o melhor estado para o desenvolvimento das
virtudes morais.
Ouvimos sempre bradar contra o progresso dos
vícios que a civilização traz, mas é porque não se quer
atentar para os que praticaram e praticam todos os povos,
não diremos selvagens, que vivem no pleno estado da
natureza, mas os que, ligados por vínculos sociais, viviam e
ainda vivem sem o influxo benéfico dessa poderosa
regeneradora do espírito humano.
Data de tempos imemoriais o costume dos velhos,
esquecidos das faltas de sua mocidade, censurarem
acrimoniosamente as da mocidade atual, preconizando aquela
entre a qual outrora viveram. Assim também acontece aos
povos que se vão libertando do império da ignorância: hoje
olham alguns como erro o que faziam por dever os seus
antepassados. Os homens foram sempre os mesmos, a
diferença está nas circunstâncias e no modo com que eles
praticam as ações, moldando-as à época em que vivem, à
educação que recebem, ao grau de civilização mais ou menos
considerável que os vai polindo.
Ninguém mais do que nós ama a antigüidade e se
entusiasma pelos grandes feitos que nela se praticaram, pelos
insignes gênios que a enobreceram. Mas quando vemos
entre nós o vício premiado e a virtude oprimida ou
desprezada, não somos daqueles que lançam o anátema da
maldição sobre as gerações presentes, crendo-as inficionadas
de vícios por elas inventadas, quando são eles somente a
reprodução dos que em maior escala cometeram as gerações
extintas.
Uma só coisa censuramos às atuais gerações, e muito
particularmente à nossa: é o não tirarem da experiência que
nos fornecem os erros de nossos antepassados o antídoto
precioso para minorar os nossos. Do número desses erros é
o que nos inspirou este escrito.
XXXI
Já vimos a dissolução ou inércia em que caíram os
povos que mais têm desprezado ou mal dirigido a educação
da mulher. E continua-se, entretanto, a olhar essa artéria vital
da morígeração dos povos, senão com a mesma incúria
revoltante de outrora, sem o firme propósito de incluir a
reforma de sua educação nos importantes melhoramentos
que ocupam atualmente os brasileiros.
Aqueles que se contentam de caminhar
vagarosamente quando as locomotivas transpõem o espaço
com incrível velocidade poderão dizer-nos que, há muitos
anos, possui o Brasil estabelecimentos pagos pelo governo
para instrução primária das meninas. Sabe-se a época em que
esses informes estabelecimentos começaram de aparecer
entre nós sob o nome de escolas regias.
138
Eram, porém,
138
AS escolas regias resultaram da reforma de ensino imposta pelo Marquês
de Pombal, após a expulsão dos jesuítas do reino português (1759). As
conseqüências práticas desse ato foram um dos maiores golpes contra a
educacio brasileira. A administração jesuítica foi substituída por uma
Diretora Geral de Estudos, exercida pelo vice-rei. As aulas nas novas escolas
regias passaram a ser ministradas por capelães nomeados pelos bispos. E o
imposto aplicado ao ensino, dito subsídio literário, era de todo insuficiente
para as despesas do novo sistema.
sumariamente raros, e, quanto às habilitações intelectuais das
professoras que os dirigiam, podem ser aquilatadas pelas
que apresentam as de hoje no simples interrogatório, a que
se chama entre nós exame público, pelo qual passam as
pretendentes às cadeiras de ensino primário em nossa terra.
Se ainda vemos a mor parte desses lugares
preenchidos por mulheres cuja principal habilitação consiste
no patronato dos que as admitem nele, hoje que se vai
crendo finalmente que as meninas devem aprender alguma
coisa mais além dos trabalhos materiais, qual não seria a
ignorância das mestras primitivas, a quem se confiava a
tarefa de instruir o sexo?
Daí o descrédito em que caíram as escolas públicas
de instrução elementar, freqüentadas somente, ainda hoje,
por meninas a cujos pais falecem os meios de as mandar às
escolas particulares, posto que, em geral, as diretoras destas
não sejam mais capazes de corresponder à sua expectativa.
Mas, ao menos, estas se esforçam por adquirir uma
reputação de que depende o progresso de seus
estabelecimentos, enquanto que as outras, certas do
ordenado que percebem, sem embargo do número de alunas,
não curam de aumentar essa reputação, que julgam, além
disso, ter bem firmado perante o ilustrado auditório que
assistiu a seus exames.
Falai a algumas dessas professoras sobre o exame
que as fez julgar superiores às candidatas em concorrência, e
vereis com que fatuidade atribuem o seu triunfo ao grande
estudo a que se deram das matérias exigidas pelos austeros
examinadores. Esquecidas das proteções a que recorreram,
as Bachellery, Ste. Claire, Lahaye
139
etc, de nossa terra
ostentam tudo quanto podem ostentar as examinandas do
Hotel de Ville e da Sorbonne, menos a sua instrução.
Com efeito, não podemos deixar de corar pela nossa
instrução pública, quando quisemos estabelecer um ponto de
comparação entre os exames de nossas professoras e os a
que assistimos naqueles lugares, das mulheres que se
propõem a exercer o magistério em França.
E, pois, como esperar que aquelas a quem faltava
sólida instrução das disciplinas que tinham de ensinar
pudessem preencher o fim para o qual o governo as nomeara
e apresentar, como deviam, do ensino primário, um
resultado capaz de servir de base a estudos mais elevados?
Mas devemos admirar-nos disso, quando grande parte dos
professores do mesmo ensino se achava em idênticas
circunstâncias? Não vemos nós ainda alunos que passam
para estudos superiores escreverem com péssima ortografia,
estropiando as regras da gramática e cometendo erros de
dicção que fariam rir os alunos das escolas primárias dos
países onde o estudo da língua materna é considerado como
primeiro na escala dos conhecimentos humanos?
O desleixo, em que continuava assim o ensino
público, estava, porém, de acordo com os princípios da
metrópole que regia então o Brasil. Era natural que as suas
139
As referencias a educadoras francesas servem não apenas para
evidenciar a procedência intelectual da formação autodidata de Nísia
Floresta, mas também, e sobretudo, dão uma clara idéia de como era
marcantemente francesa a educação brasileira, aquela, bem entendido, a
que tinham acesso os privilegiados filhos da burguesia nacional. Joséphine
Bachellery havia escrito, em 1840, umas Lettres sur l'éducation des femmes.
mulheres participassem de sua sorte e com ele aguardassem
um melhor futuro, confiados umas e outro nos inexauríveis
recursos que lhes prodigalizara a natureza e no amor de seus
filhos, desenvolvido sob a influência da brilhante aurora de
progresso que se levantou para o presente século.
Passemos a considerar se a sua expectativa tem sido
ou não iludida.
XXXII
Uma grandiosa época preparava-se de há muito ao
Brasil, época de regeneração e de glória para os povos que
longo tempo gemeram sob a brônzea mão do despotismo
estrangeiro, sem que este conseguisse nunca extinguir-lhes
no coração uma centelha só do sagrado fogo da liberdade.
O brado elétrico de independência, havia tanto
contido nos peitos brasileiros, saiu enfim do nobre peito
daquele que compreendeu e sustentou então os direitos de
um povo sofredor, pleiteados, entre outros, pelo ilustre
Andrada,
140
o escolhido da Providência para representar nas
gerações futuras do Brasil o patriarca de sua Independência.
O nome de um príncipe herói estampou-se no alto
desta página dourada de nossa história, e os venturosos
campos do Ipiranga repetirão sempre ufanos o eco desse
brado enérgico, que nos trouxe uma nova existência e que
tão arrefecido se solta hoje entre nós.
140
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838).
Muito teria podido fazer em prol da educação da
mulher D. Pedro I, em cujo coração suberabundavam amor e
entusiasmo pelas grandes e difíceis empresas. Mas uma triste
fatalidade pesava sobre a sorte das nossas mulheres, e outras
ocupações, outros fins, outro destino estavam reservados ao
célebre fundador do Império Brasileiro.
Homens, chamados então os homens do progresso,
prometiam ao Brasil os mais vantajosos resultados na
mudança política que premeditavam, sem refletirem que os
progressos e a felicidade de um povo não podem ser
baseados em um grande ato de ingratidão.
Após esse ato, deu-se outro que melhor caracterizava
em sua organização política o povo descendente do que
mandara ao desterro Pombal, o maior de seus estadistas, a
mais profunda de suas inteligências.
141
Ingratidão
semelhante à que oprimiu o grande ministro que deu nome a
um rei e glória a uma nação
142
veio lançar negra tarja nas
primeiras brilhantes páginas da história de nossa
Independência e suspender os vôos do gênio brasileiro que,
entre as suas concepções pela felicidade de nossa terra, não
teria deixado de incluir o plano de uma reforma na educação
da mulher.
141
Em 1779, já no governo de D. Maria 1 (1734-1816), tendo aparecido em
Londres um folheto intitulado Letters from Portugal on the late and present
state of that Kingdom, atribuíram-lhe a autoria a Sebasti&o José de
Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal, que, processado judicialmente, foi
condenado ao desterro em 1781.
142
Embora nio seja fácil um juízo imparcial
sobre o Marquês de Pombal como reformador e modernizador da nação
portuguesa, uma leitura atenta de sua biografia não parece confirmar o
entusiasmo que por ele manifesta a autora nas linhas acima.
75
Mas o brilhante planeta paulistano que havia indicado
ao Príncipe o caminho da glória e guiado o Brasil à sua
emancipação descrevia a sua órbita entre opacos planetas, os
quais interceptaram a sua luz quando dela mais precisão tinha
o nosso corpo político. E o sábio, a quem D. Pedro,
confiando a guarda de seu imperial filho nos dolorosos
momentos de sua separação, havia feito esquecer o desterro
a que o mandara, foi pelos seus próprios conterrâneos
arrancado de seu digno posto e exilado para aquela ilha
143
que gozará de justa celebridade quando os brasileiros
souberem celebrar tudo o que diz respeito a seus grandes
homens.
Por agora consolamo-nos do revoltante esquecimento
em que parece entre nós submergido o grande nome de José
Bonifácio de Andrada, lembrando-nos dos elogios que
tivemos o prazer de ouvir tecerem-lhe alguns sábios da
Europa. O grande estadista, o profundo filósofo, o suave
poeta setuagenário tem o seu nome escrito pela severa mão
da História nas páginas imortais da posteridade: os homens
do porvir o vingarão do indiferentismo antinacional dos
homens do presente.
José Bonifácio, junto com os Andradas seus irmãos, foi preso e expulso
do Brasil por ordem imperial de 20 de novembro de 1823. Exilado durante
quase seis anos, deteve-se em Talencè, perto de Bordéus, na França.
Reconciliando-se depois com o imperador, retornou ao país (1829) e fixou
residência na ilha de Paquetá. A partir de 8 de abril de 1831, foi feito tutor
dos filhos de Dom Pedro I. Mas um decreto da Regência, de 14 de
dezembro de 1833, suspendeu-o desse ofício. José Bonifácio foi preso e
depois confinado em sua casa de Paquetá, enquanto contra ele prosseguia
um processo-crime, que o acusava de conspirador e perturbador da ordem
pública.
XXXIII
Desde 1831 goza o Brasil de um governo inteiramente
nacional,
144
o que parecia ser o alvo para onde convergiam
os seus mais ardentes anelos. É, pois, sob este governo que
devemos criticar os progressos de nossa educação física e
moral, quer doméstica quer pública, incluindo nesta a que se
ministra nos intitulados, entre nós, colégios particulares.
Todos os homens conscienciosos de nossa terra
conhecem de há muito a necessidade urgente de uma
completa reforma no sistema de educação da nossa
mocidade. Muitos lamentam os erros e os prejuízos das
antigas doutrinas que, menos ostensiva porém quase
geralmente, continuam ainda em nossos dias a dominar nas
escolas do Brasil.
Entretanto, reconhecemos que o espírito de nossa
sociedade de hoje não é o mesmo da de outrora. A mor parte
dos pais (digamo-lo em abono do progresso de nossa
civilização) já não vê, como então, nos bárbaros castigos
escolares, um meio necessário para os bons resultados da
educação de seus filhos. A mor parte, dizemos, porque
alguns não somente toleram ainda que homens sem
princípios e de medíocre saber, arvorados entre nós em
diretores de casas de educação, imprimam a mão na face de
seus filhos, mas até exigem que os tratem com todo o rigor
para puni-los de suas desobediências domésticas, não
144
Desde 7 de abril de 1831, data da abdicação de D. Pedro I à coroa
imperial brasileira.
77
sentindo a humilhação que há em constituir um estranho
castigador de erros que somente eles deveriam ter sabido
corrigir.
Temos ouvido mais de uma vez pais de família,
mesmo nas classes elevadas da sociedade, em que muitos
sabem fazer-se obedecer por subalternos seus, confessarem
às pessoas a quem confiam a educação de seus filhos que,
não podendo contê-los no cumprimento de seus deveres,
esperam obter por meio delas este resultado. A fraqueza, que
os faz assim perder a força moral junto a essas tenras
criaturas confiadas por Deus a seus cuidados, é tão
repreeensível e desairosa, que não precisa de comentário.
Pais como esses precisam ser comparados ao sadio e
vigoroso dono de um terreno fértil mas inculto pela preguiça
de seus braços, que vai pedir ao seu vizinho, a quem falecem
iguais vantagens, o alimento necessário para a vida.
E quais são em geral essas pessoas encarregadas da
difícil missão de corrigirem erros inteiramente
negligenciados pelos pais e ampliados pelo contato de uma
sociedade onde o respeito pela inocência é ainda tão pouco
compreendido? Quais as casas de educação cujo regime e
instituições, baseados na previdência esclarecida do governo
e no bom senso dos pais, possam garantir a educação radical
da juventude? Não se tem visto, mesmo nesta Corte,
145
diretores dessas casas, transpondo todas as metas de seus
deveres, profanarem o mais sagrado princípio do magistério,
sem que de tão criminosa conduta lhes provenha nenhum
Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil.
prejuízo mais que o de verem eliminado o nome de um ou
outro aluno do livro de sua receita?
E é tal a hospitalidade dos brasileiros para com os
estrangeiros que, até no ponto de mais transcendente
interesse da educação, as faltas destes são mais toleradas que
as dos próprios nacionais.
Nenhuma lei geral tendente à investigação dos
colégios particulares foi ainda promulgada pelo governo,
nenhuma medida tomada para que o ensino da nossa
mocidade seja convenientemente dirigido.
Uma casa de educação entre nós é, em geral, uma
especulação como qualquer outra. Calcula-se de antemão o
número dos alunos prometidos ou em perspectiva, as
vantagens que podem resultar de uma rigorosa economia, em
que por vezes a manutenção daqueles é comprometida.
Fazem-se ostensivos prospectos e conta-se com a
credulidade do público, sempre solícito em acolher sem
exame tudo o que tem a aparência de novidade e de
ostentação.
À parte as devidas exceções, as nossas casas de
educação são dirigidas por pessoas sem a aptitude necessária
ao desempenho do mais melindroso emprego entre os povos
civilizados. Muitas dessas pessoas aportam às nossas praias
com o fim de especularem no comércio. Vendo depois
frustrados os seus planos de interesse nessa carreira, lançam
mão do ensino, e ei-los metamorfoseados, de negociantes e
até mesmo de artesãos, em preceptores da mocidade
brasileira, afetando para com os pais de família uma
distinção e sabedoria que nem a natureza nem a educação
lhes dera, mas cuja reputação aparatosas casas, enfáticos
anúncios e pretensiosas promessas sustentam e propagam.
Apreciamos em subido grau os talentos dos
estrangeiros. Quiséramos mesmo poder reunir em nossa
terra todos os que estivessem no caso de instruir-nos e
utilizar-nos com os seus conhecimentos, de que tanta
precisão tem o nosso povo. Mas quais são aqueles que
justamente merecem por esse lado a nossa consideração?
Poucos, muito poucos, e estes são os primeiros a
concordarem conosco nesta verdade.
Vivemos algum tempo na Europa
146
e sabemos que as
pessoas ali reputadas de letras e habilitadas para o
magistério têm sempre em que se empreguem com mais ou
menos vantagem. A idéia de deixarem o seu país para virem
instruir a nossa mocidade jamais lhes ocorreu. E se por
imperiosas circunstâncias alguma a concebe, para logo a
abandona, como aconteceu ao distinto poeta e literato A. F.
de Castilho,
147
porquanto o mesmo Portugal, em sua
decadência, compreende hoje quanto é desairoso a uma
nação deixar emigrar por escassez de recursos os gênios que
a ilustram.
146
De 1849 a 1852.
147
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) foi, cm 1846, autor de
um método de leitura que lhe valeu muitas polêmicas, além de um posto
no Conselho Superior de Instrução Pública portuguesa. O Método
Português Castilho já alcançava a quarta edição em 1854. No ano
seguinte, o autor veio divulgá-lo no Brasil, tendo recebido calorosa
acolhida por parte de D. Pedro II.
Se algum motivo político os expatria, passam de uns
a outros países da Europa, e, quando demandam a América,
preferem quase sempre os Estados Unidos, porque lá
encontram, a par de espíritos que melhor os sabem apreciar,
uma sociedade que lhes fala dos bens que na sua perderam.
Para o Brasil, o interesse material, e somente ele, conduz em
geral o estrangeiro, a não serem os curiosos viajantes e
naturalistas, cujo amor da ciência os indeniza, no meio de
nossa pomposa natureza, da falta da civilização européia.
XXXV
Em todos os pontos do Brasil, qualquer homem ou
mulher que saiba ler, embora não seja no português
classicamente belo de A. Herculano, e tem meios de montar
uma casa de educação, julga-se para logo habilitado a arrogar
o título de diretor de colégio, caricaturando o que na Europa
ilustrada assim se denomina. Nenhum exame em regra se
exige desses educadores da juventude que terá de fazer um
dia a glória do nosso país: eles ensinam pelos compêndios
que querem, instituem doutrinas à sua guisa. O pedante goza
das mesmas garantias, e quase sempre de maiores
vantagens, que as inteligências superiores.
Seria difícil explicar vantajosamente a negligência
com que um governo ilustrado deixa praticar assim abusos
que tanto se opõem a nossa futura prosperidade. E enquanto
vemos os nossos legisladores debaterem meses e anos sobre
diversos melhoramentos do país, uma só voz não se levanta
enérgica do meio dessa ilustrada corporação para reclamar
sérias medidas tendentes à reforma da educação da nossa
mocidade.
Sempre que brilha um novo dia e que nos bate à
porta o jornal, apoderamo-nos com solicitude dessa folha, e
avidamente percorremos a sessão das Câmaras do dia
antecedente, em procura do assunto que temos escrito no
coração e no espírito - a educação da mulher brasileira - e
dobramos a folha desconsolados e aguardamos o dia
seguinte, que se escoa na mesma expectativa, no mesmo
desengano.
Tem-se tratado de muitas coisas, menos disso, disso
que merece incontestàvelmente a mais circunspecta atenção
dos homens pensadores.
Um dia raiará mais propício para nós, em que os
escolhidos da nação brasileira se dignem de achar a educação
da mulher um objeto importante para deles ocuparem-se com
a circunspecção que merece.
Entretanto, lancemos os olhos para o que se acha
atualmente feito pelo governo em favor do ensino primário
das nossas meninas.
Pelo Quadro Demonstrativo do Estado da Instrução
Primária e Secundária das Províncias do Império e do
Município da Corte, no ano de 1852, vê-se que a estatística
dos alunos que freqüentaram todas as aulas públicas monta a
55.500, número tão limitado para a nossa população, e que
neste número apenas 8.443 alunas se compreendem.
Basta refletir nesta desproporção, para julgar-se do
atraso em que se acha a instrução do sexo, tão mal
aquinhoado na partilha do ensino pago pelo governo.
Nenhuma proporção há, como vamos ver, entre as escolas
primárias de um e de outro sexo.
Na província de Minas, onde a instrução se acha
mais geralmente difundida, entre 209 escolas de primeiras
letras, só 24 pertencem ao sexo feminino. Considerando-se
esta tão desproporcional diferença, o sexo parece permanecer
ali debaixo da influência do anátema que fulminara sobre ele
um dos mais notáveis presidentes daquela província.
Tratando das cadeiras públicas de ensino primário, dizia ele
que "deve-se ensinar às meninas tudo quanto convém que
saiba uma mulher, que tem de ser criada de si e de seu
marido." Este severo administrador abstraiu, por sem
dúvida, do século em que falava ou confundiu um povo
livre, o digno povo mineiro, com a malfadada população de
escravos que infelizmente o Brasil contém em seu seio.
Na ilustrada Bahia, de 184 escolas primárias, 26
somente são de meninas. Menos egoísta para com o sexo a
sua rival na glória, o heróico Pernambuco, fiel a suas
tradições, lhe sobressai em equidade, pois que, de 82
escolas, 16 pertencem ao sexo feminino.
A província do Rio de Janeiro, com 116 escolas, dá
ao sexo 36. No município da Corte, a sede do governo
imperial, onde devia-se mais facilitar a instrução do povo,
acham-se apenas criadas 9 aulas de meninas.
As demais províncias apresentam proporcionalmente
a mesma escassez de recursos para o cultivo da inteligência
da mulher, e algumas há cujo estado de instrução pública não
chegou ainda ao conhecimento do governo geral.
Acrescentemos agora ao medíocre número dessas
escolas a confusão dos métodos, das doutrinas seguidas
pelas professoras, quase sempre discordes em seus sistemas
e, como já observamos, em grande parte sem as necessárias
habilitações, e teremos, reduzido à expressão mais simples,
o número da nossa população feminina que participa do
ensino público e o grau de instrução que recebe.
No último relatório do ministro do Império, dando
conta, à Assembléia Geral, da comissão de que fora
encarregado às províncias do Norte o nosso distinto poeta
Gonçalves Dias,
148
achamos uma prova do que acabamos de
expender: "A desarmonia em que se acham as disposições
legislativas de cada província, relativas a tão importantíssimo
objeto, a deficiência do método de ensino das matérias, a
multiplicidade e má escolha de livros para uso das escolas, o
programa de estudos nos estabelecimentos literários, a
insuficiente inspecção em alguns lugares e a quase nenhuma
em outros, e, finalmente, a pouca freqüência e assiduidade
dos alunos, são outras tantas causas desse estado tão pouco
148
Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) havia voltado ao Brasil em
1845, formado pela Universidade de Coimbra. Aqui, além de distinguido
como poeta nacional, recebeu diversas incumbências oficiais, entre elas a
de levantar a documentação histórica e a situação educacional do Norte do
Brasil.
próspero. (...). De tudo isso resulta a necessidade de uma
reforma radical na instrução pública, dando-lhe um centro de
unidade e de ação que a torne uniforme por toda a parte, e vá
gradualmente extirpando os vícios e defeitos que têm até aqui
obstado ao seu progresso e desenvolvimento."
Todavia, apesar deste e outros documentos oficiais,
apesar do quanto se tem dito a respeito dos obstáculos que
retardam os progressos do nosso ensino público, muitas
pessoas recreiam-se aplaudindo a admirável rapidez com que
marcha a civilização entre nós.
Grande progresso tem feito a educação em nossa
terra - dizem os que confundem de ordinário a instrução com
a educação, a licença com a civilização. Possuímos na Corte
grande número de colégios, donde saem cada ano jovens
suficientemente instruídas e falando diversas línguas. Vê-se
multiplicarem-se os bailes e uma infinidade de pais
conduzirem, sem reserva, a eles suas famílias, já sem o
ridículo escrúpulo de outrora, que os fazia olhar essas
brilhantes reuniões como um escolho onde naufragava a
virtude. Não há representações de teatro e dança, por mais
livres que sejam, onde se não tenha o prazer de contemplar
hoje o belo sexo tomando parte no interesse dos espetáculos,
sempre aplaudidos pelo nosso ilustrado público. A nossa
mocidade já não precisa, para distinguir-se no mundo, de
moldar suas ações pelas de nossos antepassados que mais
merecerem os respeitos e os encômios de seus
contemporâneos.
Nós, porém, que não costumamos julgar da
educação e dos progressos de qualquer povo pelas
numerosas instituições de bailes, nem pelo desprezo da
mocidade pelas coisas mais respeitáveis, iremos por diante
em nossa ligeira análise, estendendo-a a todo o Brasil, em
muitos lugares do qual as gerações se vão ainda sucedendo
sem alteração sensível de progresso.
Quando o mesmo governo confessa, à vista de
provas autênticas, ser por toda parte do Brasil pouco
lisonjeiro o quadro que apresenta o estado da instrução
pública, devemos nós regozijar-nos da marcha progressiva
de nossa civilização? Cometeríamos um grande ato de
injustiça se, como aqueles seus apologistas, deslumbrados
da perspectiva fosforicamente brilhante das reuniões de
nossas capitais - entre as quais tanto sobressaem as desta
Corte, foco da civilização brasileira - esquecêssemos as
nossas meninas do interior das províncias, condenadas ainda
à sorte de suas mães sob o regime colonial.
Demais, sem precisar ir longe da capital do Império,
não vê-se ainda em algumas casas a mulher tal qual a
descreveu Ferdinand Denis,
149
quando viajou entre nós?
Depois de falar dos melhoramentos da sociedade do Rio
Janeiro, diz ele: "Si nous descendions de nouveau a
1'intérieur des maisons brésiliennes, nous verrions qu'au
João Ferdinand Denis (1798-1890): autor de numerosas memórias
históricas e descritivas sobre o Brasil e a América do Sul em geral, onde
esteve de 1816 a 1821, entre as quais O Brasil (1821) e O Brasil ou
modos e costumes dos habitantes deste reino (1822).
fond du sanctuaire de famille, à l'ombre des anciens pénates,
se conservent encore la plupart des vieilles coutumes. Là, on
voit faire encore la sieste, pendant des heures, sans que
l'activité toujours croissante des européens change rien à
cette coutume; là, les dames brésiliennes qui ont paru à
l'église vêtues de nos modes françaises retrouvent le
costume brésilien. (...) Rarement assise, presque toujours
accroupie sur les talons, la dame brésilienne fait de la
dentelle, comme on en fabriquait au seizième siècle. Elle
donne des férules à ses négresses" etc. etc.
150
Insistamos, portanto, em clamar energicamente
contra a escassez de meios de educação, que assim expõe
grande parte de nossas mulheres a merecer tão acre censura.
A desproporção que demonstramos haver entre as
escolas públicas de ensino primário apresenta-se mais
considerável ainda nos estabelecimentos particulares de
merecido renome, quer na Corte, quer fora dela.
Não somente os que pertencem ao sexo são em muito
menor número, mas também não oferecem geralmente um
estudo regular do ensino secundário, ensino vedado ainda
hoje às nossas meninas em estabelecimento público. E, nos
particulares, nenhuma aula existe de alguns dos ramos das
ciências naturais, cujo estudo tão agradável e útil seria às
150
"Se descermos de novo ao interior das casas brasileiras, veremos que no
fundo do santuário familiar, à sombra dos antigos pénates, ainda se
conservam, em sua maior parte, os velhos costumes. Lá, ainda se vê fazer
a sesta, durante horas, sem que a atividade sempre crescente dos europeus
mude nada desse costume; lá, as mulheres brasileiras que apareceram na
igreja vestidas à moda francesa retomam o vestuário brasileiro. (...)
Raramente sentada, quase sempre acocorada, a mulher brasileira faz renda
como se fazia no século XVI. Ela bate com palmatória nas suas negras."
mulheres que nascem, vivem e sentem no meio da nossa rica
natureza tropical.
Com grande prazer vamos vendo muitos dignos
brasileiros, animados hoje do verdadeiro espírito de
progresso, irem triunfando do indiferentismo e apatia de
seus antepassados para se porem à frente do ensino da
mocidade, em diversos pontos, principalmente desta
província e da de Minas. Congratulamo-nos por tão nobre
empresa e fazemos sinceros votos pelos prósperos
resultados de sua louvável dedicação. Mas não podemos
deixar de sofrer quando, enumerando esses novos
estabelecimentos, nenhum encontramos pertencente ao sexo
feminino. Nestas províncias encontram já meios de instruir-
se em diversos ramos do ensino os rapazes, que outrora iam
com mais ou menos dificuldades procurá-lo longe de suas
famílias, entretanto que as meninas, cujos pais por justas
considerações não ousam aventurá-las em uma longa
ausência de suas vistas, acham-se ainda privadas dessa
vantagem.
Os provincianos, mormente os que viveram algum
tempo na parte mais ilustrada da Europa, deviam desprezar
destarte a educação da mulher? Alguns, possuindo grande
fortuna, não poderiam em suas respectivas províncias
obviar-lhes os males provenientes da falta de educação,
atenuando, senão preenchendo em geral, a lacuna deixada
pelo governo?
Entregamos à consideração dos mais cordatos e
amigos do progresso este expediente, aliás de tanto momento
para as províncias a que se prezam de pertencer.
XXXIX
Falamos essencialmente das causas que estorvam os
progressos de nossa educação, concernentes à negligência
dos governantes e à inaptidão da maior parte dos
encarregados do ensino de nossa mocidade. Da mesma sorte
o faremos agora a respeito dos pais de família, a cujo bom
senso recorremos como a uma âncora de salvação, para
subtrair as gerações nascentes ao naufrágio de que as
ameaçam, apenas saídas do porto, os princípios subversivos
e funestos inculcados à infância.
Enquanto os homens do poder se ocupam dos
melhoramentos materiais, esperamos confiantes daqueles um
remédio mais pronto e porventura mais profícuo ao nosso
melhoramento moral.
A leviandade comum a quase todos os povos, de
julgarem as coisas pela aparência, tem grande elastério entre
nós. Apesar de nos ter a experiência inúmeras vezes
mostrado quanto há de perigoso nesta leviandade, nenhuma
precaução tomamos para triunfar dela, ao menos naquilo que
tanta influência pode ter no porvir de nossos filhos.
O geral dos pais avalia quase sempre da excelência
do estabelecimento onde manda educar suas filhas, pelo
grande número de alunas que contém. Ouvimos por vezes
dizer-se: "o colégio em que está minha filha é excelente, tem
muitas meninas," sem importar saber se essa afluência é
devida às condições materiais do estabelecimento e ao
atrativo sempre poderoso de ostensivas promessas, ou ao
mérito real da pessoa que o dirige.
Conhecemos outrora uma diretora
151
que, não
querendo fazer conhecido por fúteis exteriores o seu gosto
pelo magistério, grandes dificuldades teve a superar para
colocar-se, como depois se achou, à frente de um dos mais
freqüentados estabelecimentos desta Corte. Impelida então
pelo desejo de acelerar os progressos de suas alunas, ela
fixou um certo número, não admitindo outras sem vagar
algum dos lugares preenchidos. Este procedimento admirava
em extremo a todos de quem era conhecido, pois não se
compreende que no magistério deve haver um interesse mais
nobre que o do miserável ganho pecuniário, interesse
colocado pelos verdadeiros amigos da educação da mocidade
à frente de todas e quaisquer outras considerações.
Para que uma diretora hábil e solícita possa obter
grandes resultados da educação física e moral de suas
alunas, será preciso que o número destas se conforme com o
tempo que ela pode dar-lhes, velando por si mesma todo o
ensino, o que uma substituta não poderá fazer tão
completamente como ela. Daí a vantagem que achamos na
educação dirigida pelas próprias mães, quando estas
possuem os predicados para bem desempenharem tão difícil
tarefa.
151
Esta diretora não foi outra senão a própria Nísia Floresta.
XL
Sempre divergimos dos que preferem a educação
pública à particular,
152
para as meninas principalmente. Não
desconhecemos a vantagem da tão preconizada emulação das
classes como incentivo necessário aos progressos dos
estudos. Mas, como pouca diferença haja aparentemente da
emulação à inveja e mais pouca atenção ainda se tenha em
fazer os discípulos discriminarem aquela virtude deste vício,
muita vez confundidos em certos espíritos, não quiséramos
expor as nossas meninas às fatais conseqüências de uma
paixão que tem por mais de uma vez funestado a existência
da mulher.
Poucas diretoras sabem inspirar a emulação a suas
alunas, conduzindo-as com esclarecida prudência pelo
déclive perigoso das raias da inveja, de sorte a garanti-las de
resvalarem em seus funestos domínios. Porém, mais poucas
são ainda as discípulas capazes de compenetrar-se da
utilidade de uma e das tristes conseqüências da outra,
sujeitas como elas se acham às duas tão opostas atmosferas
em que respiram - a família e o colégio.
"A emulação - diz um escritor moralista - é uma
paixão nobre e generosa, que só tem por objeto a virtude.
Assim, não tende ela a rebaixar os outros, nem a desmerecê-
152
Louvável como seja a posição de Nísia Floresta, clamando pela
necessidade de educação da mulher, é lamentável não tenha ela também
emprestado a sua visão inovadora e sua longa experiência pedagógica à
causa da instrução pública, de que tanto carecia o Brasil, de modo especial
durante o Império.
los. Sem querer que sejam menos estimáveis, exproba-nos o
intervalo que medeia entre eles e nós. Se é suscetível de mau
humor, fá-lo-nos sentir somente, sem rancor aos que nos
excedem. A inveja, pelo contrário, é uma paixão baixa e
ignóbil que, por seu amargor, corrompe a virtude, desejando
manchar o lustre das boas ações com um sopro peçonhento.
A inveja aspira subir para ver os outros inferiores. A
primeira é uma filha do céu e um resto da grandeza para que
nascera o homem. A outra, um fruto do inferno e do
demônio que se perdeu a si por ela, servindo-se desse
veneno contagioso para perder o primeiro homem."
E, pois, como além de temermos esta arriscada
alternativa, estamos intimamente convencidos de que
nenhuma diretora poderá fazer de nossa filha aquilo que nós
poderíamos conseguir fazer, decidimo-nos pela educação
feita sob o teto paternal, pelas mães, em condições
apropriadas: para o que, desejaríamos proporcionar a todas
conhecimentos, aptidão e gosto a fim de preencherem elas
mesmas, como deviam, a honrosa e sublime missão de
preceptoras de suas filhas.
Uma mãe bem educada e suficientemente instruída
para dirigir a educação de sua filha obterá sempre maiores
vantagens, aplicando-se com tema solicitude a inspirar-lhe
como emulação o sentimento da própria dignidade, que
qualquer diretora não conseguiria obter de suas educandas.
Para provar esta asserção, bastaria a experiência de
duas meninas, de idênticos recursos intelectuais, submetidas
uma aos cuidados de sua mãe, mulher de bons costumes e
nas condições que acima apontamos, dando-se a
possibilidade de conservá-la sempre sob suas vistas, outra
sob a direção de uma preceptora (supomos também com
iguais habilitações), de comum com grande número de
companheiras, imitando ou sobressaindo a todas na
aplicação aos estudos. Aos 18 anos estas duas jovens
poderão ser perfeitamente instruídas, mas não igualmente
educadas e possuindo o mesmo grau de simpleza. A primeira
será a esquisita delicada flor da estufa, desabrochando as
lindas pétalas de uma corola não tocada por impuros insetos,
esparzindo o precioso aroma da inocência e da candura, a
segunda, a flor dos jardins, exposta aos contatos de
malignos insetos e às variações súbitas da atmosfera, que lhe
tiram por vezes o aroma, quando ela conserva ainda o
brilhantismo de suas cores.
Uma tal experiência seria, porém, quase impossível
fazer-se entre o povo em que a mulher não é ainda o que
deve ser - a primeira educadora de seus filhos, a mais útil
amiga do homem.
Enquanto, pois, ela não atingir a esse estado em que
esperamos vê-la um dia colocada, é de rigorosa necessidade
para os pais recorrerem aos colégios cujas diretoras sejam
reconhecidas por seu zelo e dedicação ao ensino. Ali ao
menos a menina gozará de duas vantagens, a de seguir os
estudos em horas para isso reguladas, e a de não se achar tão
em contato com os escravos, cláusula essencialmente
necessária para o bom resultado da educação.
Já que tocamos em uma das causas capitais da pouca
morigeração de nossa mocidade, desenvolvamo-la de
pronto, com o laconismo a que nos obriga o título deste
escrito.
XLI
Um prejuízo muita vez fatal à infância, um crime,
diremos nós altamente, introduziu-se no Brasil, porque não é
ele de origem brasileira: é o que leva as mães a negarem, por
miseráveis considerações mundanas, seu seio aos seus
recém-nascidos. Nada nos parece tão revoltante como ver
uma mãe, sem causa justificada pela natureza, consentir que
seu filho se alimente em seio estranho.
Se Rousseau, com o seu Emílio, fez corar as mães
francesas pelo esquecimento em que estavam desse primeiro
dever da maternidade, em França, onde as amas têm mais ou
menos alguma educação e se distinguem pelo asseio, o que
sentiriam as mães brasileiras que bem compreendessem
aquele livro, à vista de seus filhos pendentes do seio de
míseras africanas, que passam, muita vez, do açoite, na Casa
de Correção ou nas dos próprios senhores, ao berço do
inocente para oferecer-lhe seu leite?
Entretanto, é esta a primeira lição preparada ao
menino brasileiro, lição que bebe com esse leite impuro e lhe
vai com ele contaminando assim o físico como o moral.
Antes mesmo de saber articular sons distintos,
grande parte dos nossos meninos já se apercebe de ter
naquela que lhe dá o alimento uma escrava submissa a seus
caprichos. Antes de compreenderem o que é mandar e
obedecer, eles sabem com gestos exercer o comando e exigir
a obediência. O vocábulo imperioso - "quero" - é
pronunciado de comum com os de "mama" e "papá." Estes
têm quase sempre a imperdoável fraqueza de não somente
ensinar-lhes aquele som vago para a pequena inteligência que
o escuta e repete, mas ainda a de aplaudirem a sedutora graça
com que o fazem, ensinando-lhes assim a contraírem o
hábito da impertinência, e isto porque tais graças os
divertem.
É um erro muito vulgarizado, principalmente entre
nós, supor que as crianças nada perdem nessa primeira
idade, vendo, ouvindo e imitando os maus exemplos
praticados em torno delas. Não se advertindo que a
educação, para ser perfeita, deve começar do berço, persiste-
se em deixá-las em plena liberdade seguirem todas as suas
fantasias sob o pretexto de o saberem elas ainda o que
fazem. O sábio Fénélon, em seu livro De 1'éducation des
filies, falando desse primeiro período da infância, diz: "Ce
premier âge qu'on abandonne à des femmes indiscrètes et
quelques fois déréglées, est pourtant celui ou se font les
impressions les plus profondes et qui par consequent a un
grand rapport à tout le reste de Ia vie.
"Avant que les enfants sachent entièrement parler, on
peut les préparer à 1'instruction. On trouvera peut-être que
j'en dis trop: mais on n'a qu'à considerer ce que fait 1'enfant
qui ne parle pas encore: il apprend une langue qu'il parlera
bientôt plus exactement que les savants ne sauraient parler
les langues mortes, qu'ils ont étudiées avec tant de travail
dans l'âge le plus mur."
153
153
"Esta primeira idade em que se entrega [a criança] a mulheres
indiscretas e algumas vezes desregradas, é aquela em que se produzem as
impressões mais profundas e que, por conseqüência, tem grande relação
com todo, o resto da vida.
"Antes que as crianças sejam inteiramente capazes de falar, pode-se
prepará-las à instrução. E se se pensa que exagero, basta considerar o que
95
"O menino - diz ainda Santo Agostinho
154
- entre
seus gritos e seus brinquedos, nota a palavra que é sinal do
objeto: e o faz ora considerando os movimentos dos corpos
naturais, que tocam ou mostram os objetos de que se fala,"
ora sendo tocado pela freqüente repetição da mesma palavra
para significar o mesmo objeto. É certo que o temperamento
do cérebro das crianças lhes dá uma admirável facilidade
para a impressão de todas as imagens: mas que atenção de
espírito não é preciso para discerni-las e para referi-las aos
objetos?"
Não obstante ver-se todos os dias os atos dos nossos
meninos comprovarem a justeza dessas observações feitas
por dois grandes órgãos das verdades cristãs, obstina-se,
todavia, em fechar os olhos^a tais atos, sem dúvida simples
em seu começo, mas de tanto momento quando as idéias
abrangem um certo espaço no mundo moral.
Em piores condições que as do povo entre o qual
escrevia Fénélon acham-se os brasileiros. Entretanto, grande
parte destes vê ainda sem repugnância seus filhos nos braços
de desmoralizadas escravas ou, por elas acompanhadas, irem
de uma a outra parte na habitação e fora dela. Quanta vez
temos tido ocasião de ver e lamentar essas criaturazinhas,
impregnadas já do hábito contagioso das más companhias,
faz a criança que não fala ainda: aprende uma língua que logo haverá de
falar com mais exatidão do que os sábios falariam as línguas mortas, as
quais estudaram com tanto trabalho na sua idade mais madura." [A citão
do livro de Fénélon está à p. 17-18 da edição de 1687. (Paris, Chez Pierre
Aubouin, Pierre Emery et Charles Clousier)]. l^Agostinho d
c
Hipona (354-
430): entre os seus numerosos escritos, registra-se uma obra pedagógica, De
Magistro, do ano de 389. A referência acima, todavia, Floresta a extraiu do
próprio Fénélon, onde ela consta em continuação ao parágrafo anterior (p.
18-19 da edição citada).
96
inutilizarem as profícuas lições de uma moral pura e fácil de
seguir. Para essa desgraça muito concorrem as mães que se
achando no caso de moralizar suas filhas, em vez de retê-las,
como devem, junto a si, habituando-as aos bons costumes,
instruindo-as com ações e palavras edificantes, folgam de
poder desembaraçar-se do aborrecimento causado pelo choro
ou motim das crianças, encarregando as pretas de acalentá-
las ou distraí-las.
XLll
Todo o serviço do interior das famílias sendo feito
entre nós por escravos, a menina acha-se desde a primeira
infância cercada de outras tantas perniciosas lições, quanto
são as ocasiões em que observa os gestos, as palavras e os
atos dessa infeliz raça, desmoralizada pelo cativeiro e
condenada à educação do chicote.
Sua nascente sensibilidade se habitua gradualmente a
esse espetáculo afligidor, repetido quase diariamente à sua
vista. Não é raro ver ela (com horror o dizemos) infligir
155
o
mais cruel tratamento à própria ama que a amamentou, a
qual é alguma vez indiferentemente vendida ou alugada
como um fardo inútil, apenas acaba de ser-lhe necessária.
Esta revoltante ingratidão é um dos mais detestáveis
exemplos dados à menina, que, tendo um dia de ser mãe, o
transmite por seu turno a seus filhos.
No original está infringir, por evidente lapso de revisão.
De um lado os mais rudes tratamentos do senhor para
com o escravo, do outro a impotência deste em repelir um
jugo anticristão, sancionado pela mais tirânica das leis, e a
necessidade do artifício para iludir o senhor e atenuar os
sofrimentos da escravidão - tais são os quadros
constantemente apresentados na vida doméstica às crianças,
que crescem e se vão pouco a pouco insinuando em diversas
perigosas práticas, passando dos aposentos de seus pais aos
quartos das escravas que as pensam.
Assim, aquele embrião de inteligência envolvido na
epiderme
156
de uma graça factícia desenvolve-se nas
condições mais contrárias ao seu futuro engrandecimento.
E ninguém atenta para as desfavoráveis impressões
que destarte vai a infância recebendo e gravando na cera que,
conforme a expressão de Homero, tem-se na alma, onde se
conservam com traços mais ou menos distintos - impressões
que, semelhante a sutil veneno, lhe destroem por vezes as
melhores disposições naturais.
Trata-se de embelecer, por todos os meios da arte, o
exterior das nossas meninas, o qual poderíamos comparar à
haste ascendente de uma tenra planta, entretanto que se vai
deixando, com inqualificável negligência, a haste
descendente receber de um mau terreno, sem preparação
alguma, nutrição viciada que terá de transmitir à planta em
geral a sua perniciosa influência.
Aos tristes inevitáveis resultados do constante viver
dos meninos em contato com escravos reúnem-se outros
escolhos não menos funestos à sua educação, sendo um dos
No texto original está "no epiderme."
mais revoltantes o pouco respeito havido entre nós para com
a inocência.
Nada é mais comum no Brasil do que o uso por
demais condenável de se falar sem nenhuma reserva perante
as crianças. Há mesmo aí quem, pelo simples desejo de um
passatempo agradável, as entretém sobre assuntos que
fariam corar a homens bem morigerados, em qualquer idade.
Por toda a parte encontram elas uma ação, um gesto,
um riso indiscreto em certas ocorrências, que as vão
iniciando em tenebrosos conhecimentos, quando o espírito
não tem ainda suficiente luz para guiá-las nesse tremendo
dédalo, nem a alma assaz de energia para repelir insinuações
que tanto degradam a espécie humana e tanto horror deviam
inspirar aos povos cristãos.
XLIEH
Se é lamentável o quadro de indiferentes procurando
murchar com seu hálito pestífero a flor da inocência, quando
apenas desabrocha nessa mocidade que se vai enervando nos
vícios e abrindo, sem o prever, um abismo insondável a si e
à pátria, mais lamentável é ainda o espetáculo pungente de
uma conduta desregrada, dado por alguns pais a seus
próprios filhos.
Acumulando em torno deles matérias inflamáveis
prestes a incendiá-los ao contato de uma primeira centelha,
esses pais, engolfados no turbilhão das paixões ou entregues
ao torpor da ignorância, não prevêem, nas explosões parciais
repetidas todos os dias às suas vistas, a explosão geral que
surdamente se prepara pela viciada educação da nossa
mocidade.
Repugnando-nos enunciar os numerosos fatos que
comprovam esta verdade - fatos aliás patentes a todos,
mesmo no santuário da família - citaremos algumas linhas do
Dr. Rendu,
157
tiradas de seu livro Etudes sur le Brésil,
publicado em 1848: "Les jeunes brésiliens sont souvent
pervertis presque au sortir de 1'enfance; outre 1'exemple de
leurs pères qu'ils ont sous les yeux, garçons et filies, maitres
et esclaves passent ensemble Ia plus grande partie de Ia
journée à demi vêtus; Ia chaleur du climat hâte le moment de
Ia puberté, les desirs excites par une education vicieuse (...)
les precipite bientôt dans un abattement physique et moral.
Pour rémédier à cette dépravation qui atteint Ia population
jusque dans sa source, il faudrait une révolution complete
dans les moeurs du pays; mais tant que 1'esclavage
subsistera, en vain indiquera-t-on les causes du mal"
158
etc.
etc.
Essa revolução nós a desejamos ardentemente,
quaisquer que sejam os meios para isso empregados,
l;>/
Alphonse Rendu. O título completo do livro citado pela autora é Etudes
topographiques, médicales et agronomiques sur le Brésil (Paris, J. B. Baillière,
1848).
'""Os jovens brasileiros são muitas vezes pervertidos quase ao sair da infância;
além do exemplo que eles têm sob os olhos, rapazes e moças, senhores e
escravos juntos passam a maior parte do dia seminus; o calor do clima apressa o
momento da puberdade, os desejos excitados por uma educação viciosa (...)
cedo os precipita(m) num abatimento físico e moral. Para remediar esta
depravação que atinge a população até à sua fonte, seria necessário uma
revolução completa nos costumes do país; mas enquanto subsistir a escravidão,
em vão se indicarão as causas do mal."
contanto que possamos obter o melhor dos resultados a que
aspiramos para o porvir venturoso de nossa terra.
Todos os viajantes estrangeiros que têm vivido no
Brasil são mais ou menos de acordo na análise que fazem de
nossos costumes. Aqueles mesmos cuja simpatia pelos
brasileiros é uma garantia da imparcialidade de seu juízo
emitido a respeito - tais como o ilustre botânico A. de St.
Hilaire,
159
a quem ouvimos, ainda em 1851, falar dos
brasileiros com a mais entusiástica afeição - referem muitos
casos por eles testemunhados em Minas, Goiás, S. Paulo
etc, que demonstram evidentemente o triste estado da nossa
civilização.
Conquanto tais análises, por severas, nos revoltem,
temos a consciência de que são merecidas. Custa
infinitamente ouvir verdades que ferem o nosso orgulho
nacional, mas nós somos da opinião dos que transpõem as
raias da individualidade para ocupar-se do bem geral, e
pensamos que se deve sufocar o mal entendido orgulho que
nos faz persistir em inveterados erros, atraindo-nos a justa
censura das nações cultas. Tratemos de seguir-lhes o
exemplo, não no que elas conservam ainda de ridículo - que,
duplicadamente ridículo, tão bem imitamos, perdendo o
l;)y
Augustin (conhecido como Augusto) Saint-Hilaire (1799-1853) esteve no
Brasil por seis anos a partir de 1816, fazendo pesquisas botânicas. Retornando à
França, escreveu: Flora Brasiliae Meridionalis (1825-33); Voyage dans les
provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes (1830); Voyage dans le district
des diamants et sur le littoral du Brésil (1833); Voyage aux sources du Rio de
São Francisco (1847-48); Lagricullure et 1'élève du bétail dans Campos Geraes
(1849); Leçons de Botanique (1840).
nosso tipo americano sem obtermos a perfeição européia -
mas sim no que essas nações contêm de útil, belo e grande.
Copiemos antes de tudo a educação que naqueles
países se dá à mocidade. Imitemos principalmente os
ingleses no respeito à religião e à lei, os alemães no hábito de
pensar e no empenho de elevarem-se acima de todos os
povos pelo estudo e pela reflexão, os franceses em seu
espírito inventor e em suas generosas inspirações
civilizadoras: a todos, no gosto pelo trabalho e no desejo
sempre progressivo de engrandecerem-se por seu engenho e
atividade.
Quando vemos naquelas nações tomarem-se todos os
dias novas medidas para se melhorar mais a educação de sua
mocidade, a qual tão inferior se acha - e se achará talvez por
séculos ainda a nossa - o coração se nos contrai no peito ao
contemplarmos o nosso Brasil tão rico, tão grandiosamente
excedendo a todas as nações do mundo em recursos
naturais, precisando lutar, ainda no século XIX, com
grandes dificuldades para oferecer às suas mulheres uma
tênue parte da instrução que as classes mais baixas daqueles
países da Europa e dos Estados Unidos podem facilmente
obter.
Não é, porém, a falta de erudição que mais devemos
lamentar: ela poderá desaparecer mais tarde. A luz brilha nas
trevas e para logo as trevas deixam de existir. A ignorância
de nossas mulheres poderá ser um dia substituída por
conhecimentos que as tornem dignas de renome. Mas o
mesmo não acontecerá a respeito da viciada educação que,
como incêndio, vai lavrando pelo centro das famílias e
deixando-lhes consideráveis vestígios, que nenhuma
instrução conseguirá apagar.
O espírito pode enriquecer-se de belos e úteis
conhecimentos em todas as idades antes da decrepitude.
Voltaire aprendeu a música no último período de sua vida
longa de 84 anos. Muitas grandes inteligências cujos
preciosos legados a humanidade desfruta atingiram, como
Rousseau, a idade adulta sem as profundas luzes que fazem
hoje a nossa admiração. Só a educação para produzir
salutares efeitos deve acompanhar o indivíduo desde a
infância.
Nas condições, pois, já mencionadas, em que se
acham as nossas meninas, impossível lhes será adquirirem o
hábito das boas práticas, cujo todo constitui a base de uma
completa educação, por quanto grande parte das mães, longe
de se esforçarem por diminuir os prejudiciais efeitos de tais
condições, lhes vão por seu turno inculcando princípios
demasiadamente arriscados para elas no futuro. Aquelas que,
melhor que ninguém podiam inspirar-lhes sentimentos
simples e benignos, são quase sempre as primeiras em dar-
lhes, uma, o espetáculo de sua iracúndia, outra, o de
desleixo, ou de um luxo ruinoso, que levam as famílias à
miséria e à dissolução, esta, o de certas teorias levianas,
tidas como inocentes, mas de tão graves conseqüências para
a mulher que lá se está formando nesse pequeno ser
compilador atento chamado menina.
Outras ainda têm a indiscrição de deixar suas filhas
aperceberem-se de suas desinteligências domésticas. Quem
há aí que não tenha visto certas mães, esquecidas do que
devem a si mesmas e à moral de seus filhos, patentearem a
estes, bem vezes com desabrida imprudência, os seus
desgostos reais ou indiscretos ciúmes? Algumas cometem até
a imperdoável falta de inspirar-lhes antipatia por aquele que
lhes deu o ser, a fim de os atrair melhor à sua causa.
Nada por certo é mais prejudicial à educação das
filhas do que as repetições dessas cenas domésticas, natural
ou artificiosamente representadas pelas mães, manifestando
o resfriamento dos deveres impostos pela sociedade e
mantidos pelo bom senso e pela religião no seio das famílias
pensadoras, compenetradas do empenho de firmarem o
venturoso porvir dos tenros seres que se vão modulando
pelos exemplos daquela cuja voz mais império tem sobre
seus corações.
Uma mãe é então o quadro mais eloqüente para lhes
servir de norma em sua conduta futura, o modelo que devem
primeiro copiar: se esse modelo não é perfeito, como poderá
a menina apresentar uma cópia perfeita?
XLV
Algumas naturezas privilegiadas se mostram,
entretanto, pelo meio de nós, isentas do contágio desses
perniciosos exemplos, não obstante acharem-se deles
rodeadas desde a infância, e se algum lenitivo podemos ter,
na desordem em que se acha o sistema de nossa educação, é,
por sem dúvida, o quadro que nos apresentam elas. Muitas
de nossas brasileiras, apesar da atmosfera de subversivos
princípios em que respiram, são, todavia, o modelo do sexo
e a honra da humanidade. Filhas, elas respeitam seus pais,
lamentando no silêncio d'alma suas faltas, seus crimes, se os
cometem, sem que a mais ligeira censura lhes escape dos
lábios. Esposas, seu coração se compenetra religiosamente
de seus deveres, e folgam de sacrificara seus esposos toda a
ventura de sua vida, antepondo à sua inconstância ou à sua
dureza a incessante prática das virtudes domésticas. Mães,
dirigem com perseverante zelo a educação de seus filhos,
afastando-os dos cardos que lhes juncam o trânsito da
primeira mocidade, e chorando seus desvios quando não
podem deles preservá-los. A vida é para tais naturezas uma
luta constante, de que saem sempre vitoriosas mas não
felizes, porque não podem harmonizar seus nobres
sentimentos com a degeneração de seu semelhante, que
amam e que desejariam ver trilhando a senda da moral e da
equidade.
Felizes os homens a quem tais naturezas cabem em
partilha. Mais felizes, as meninas, cujos pais, guiados por
um espírito reto e esclarecido, trabalharem para remover as
causas destruidoras das boas disposições com que as dotara
a natureza. Se a generalidade de nossas mulheres não pode
referir-se àquela exceção, é porque a isto se opõem não
somente os obstáculos já apontados, mas também o costume
nocivo, tão ridículo e geralmente admitido entre nós, de
emprestar às crianças maneiras contrafeitas e inspirar-lhes
gostos próprios da idade adulta. Assim, os meios
empregados de ordinário para o seu desenvolvimento moral
tendem palpavelmente a destituí-las de certa naturalidade, a
cujo encanto não consegue equiparar-se a aquisição de todas
as prendas ensinadas.
A menina alemã, inglesa, e mesmo a francesa é um
pequeno tesouro de graças naturais, respirando a mais pura
inocência, exprimindo com mais ou menos espírito, porém
sempre naturalmente, a ingenuidade de sua alma refletida em
sua fisionomia infantil, como os primeiros raios do soi da
primavera de seu país natal se refletem nos feiticeiros lagos
de seus aromáticos jardins.
E o que é da menina brasileira? À fé que a não
podemos encontrar nessas pequenas criaturas apertadas nas
barbatanas de um espartilho, penteadas e vestidas à guisa de
mulher, afetando-lhe os meneios e o tom, destituídas muita
vez de toda a simpleza e candura que constituem o maior
atrativo da infância.
"L'enfance avec ses grâces naïves n'existe pour ainsi
dire pas au Brésil (diz um dos viajantes já citados). A sept
ans le jeune brésilien a déjà la gravité d'un adulte, il se
promène majestueusement, une badine à la main, fier d'une
toilette qui le fait plutôt ressembler aux marionnettes de nos
foires qu'à un être humain; au lieu de vêtements larges et
commodes qui permettent aux membres de libres
mouvements, il est affublé d'un pantalon fixé sous les pieds
et d'une veste ou d'un habit qui l'emprisonne et l'étreint.
Rien de triste, selons nous, comme ces pauvres enfants
condamnés à subir les exigences d'une mode absurde."
160
etc. etc.
16U"A infância com suas graças ingênuas não existe, por assim dizer, no
Brasil. (...) Com sete anos o menino brasileiro tem já a gravidade de um
Infelizmente para o sexo, as nossas meninas
fornecem mais amplos e tristes exemplos para esta análise.
XL VI
Não há muito tempo, teve lugar em um colégio desta
corte,
161
em presença de oitenta alunas, um espetáculo
dolorosíssimo, cujo conhecimento ofereceria aos escritores
estrangeiros matéria para um capítulo assaz frisante sobre a
história dos nossos costumes.
Uma menina de 6 anos freqüentava como externa
aquele colégio. Anjo de gentileza e de candura baixado ao
mundo infecto dos homens, ela captava a simpatia de todos e
inspirava profundo interesse à diretora, que, vendo-a
respirar com dificuldade sempre que entrava para as classes,
tinha o cuidado de afrouxar-lhe o espartilho que lhe oprimia
o peito a tal ponto. Por vezes, ponderou à mãe da inocente
supliciada as funestas conseqüências que podiam resultar de
lhe comprimir assim os tenros órgãos, os quais tanto
necessitam de livres movimentos para bem desenvolver-se.
Baldadas foram tais observações, que os médicos de
nossa terra deveriam, em honra de sua nobre missão, fazer
adulto, passeia majestosamente, bengala à mão, orgulhoso de uma roupa
que o faz parecer-se mais com as marionetes de nossas feiras que com um
ser humano; em vez de roupas largas e cômodas que permitam o livre
movimento dos membros, ele se enrola numas calças que vão até os pés e
numa casaca ou num sobretudo que o aprisionam e o apertam. Nada mais
triste, a nosso ver, que essas pobres crianças condenadas a suportar as
exigências de uma moda absurda." *"*Foi este o próprio Colégio
Augusto, de Nísia Floresta.
incessantemente às mães de família, porquanto os conselhos
do homem da ciência, do consolador da humanidade,
obteriam em tais circunstâncias mais resultado do que os das
diretoras e amigas.
Depois de haver passado parte de uma noite no
teatro, constrangida no espartilho para atrair à indiscreta mãe
elogios pelo seu bom gosto em vesti-la, a pobre inocentinha
submeteu-se ainda, na manhã seguinte, a um novo processo
de aperto, ataviando-se para o colégio. Apenas entrou em
sua classe, a diretora viu-a vacilar, querendo sentar-se. Voa
a tomá-la nos braços, desabotoa-lhe o vestido... Era já tarde!
A pobrezinha, soltando um doloroso ai, tinha expirado,
vítima da vaidade de sua mãe.
Esta, sendo advertida, correu muito tarde para
receber o derradeiro ósculo de sua filha, porém muito cedo
para contemplar a obra de seu louco desvanecimento. A
martirizada cintura da inocente simulava as dos penitentes do
fanatismo, ou antes das vítimas do Santo Ofício. Espetáculo
lastimoso e revoltante, por ter origem na pretensão de uma
mãe a tornar sua filha notável pelo artifício do corpo. A
ocasião pareceu oportuna à diretora para tentar uma reforma
no espírito de suas alunas, abalado profundamente à vista
daquela triste florzinha, ceifada tão de chofre e
prematuramente pelo fatal abuso de uma moda, a quem, sem
escrúpulo, se sacrifica entre nós a saúde das meninas.
Falou-lhes dos deveres inerentes ao cristão, do
quanto é essencial conservar a pureza d'alma para que a
Eternidade nos surpreenda em paz em qualquer idade ou
situação da vida, e demonstrou-lhes o perigo que correm os
que se ocupam do físico em preferência ao moral. Suas
palavras eram verdadeiras porque partiam do coração,
eloqüentes porque lhas inspirava a presença de um féretro.
Não podiam deixar de produzir impressão.
As mães, a quem suas filhas noticiaram aquele
acontecimento, cuja vista as havia tanto sensibilizado,
lamentaram-no e conosco horrorizaram-se de uma tão grande
aberração da ternura e do bom senso materno. Mas em
pouco a impressão desapareceu e mães esqueceram aquele
resultado da criminosa vaidade de uma mãe.
Algum tempo depois os espartilhos, tirados às que
haviam testemunhado essa pungentíssima cena, voltaram de
novo a comprimi-las.
A imagem da morte havia desaparecido, e a moda
reconquistava todos os seus loucos e funestos excessos.
XLVII
As lições e os esforços de uma ou outra pessoa,
desta ou daquela família, nada podem contra a generalidade
dos princípios e hábitos seguidos por uma nação inteira.
Um ou outro pai conseguirá educar bem seus filhos,
mas, não estando esta educação no espírito de seu país, eles
permanecerão estrangeiros no meio de sua própria
sociedade, e nada terá o país ganho com estas frações
diminuídas da enorme soma dos prejuízos e erros que
presidem à educação geral. Para cortar as cabeças sempre
renascentes dessa hidra moral seriam precisos outros tantos
Hércules quantas são as idéias e práticas errôneas do nosso
povo.
Enquanto o governo e os pais não reconhecerem o
dano de tais práticas e se esforçarem por bani-las
inteiramente, em vão uma ou outra voz se levantará para
indicar os meios de um melhoramento, considerado ainda
por muitos como utopia.
"C'est la nature du govemement de chaque société -
diz Mme. Coicy
162
- qu'établit la nature de l'éducation, qui y
donne la faiblesse ou la force, les vices ou les vertus."
163
Este princípio é incontestável, mas, se na
insuficiência de enérgicas medidas do governo para a
reforma da nossa educação, apelamos para os pais de
família, é porque estamos convencidos de que, em um país
onde a escravidão é permitida, deles dependem
principalmente os meios de subtraírem seus filhos a grande
parte dos inconvenientes que os prejudicam. Um desses
inconvenientes é, por sem dúvida, a instrução superficial,
isolada de uma educação severamente moral, que constitui de
ordinário a superioridade das nossas meninas de hoje sobre
as de outrora.
Desconhecendo-se ou não se querendo seguir
comumente o bom método de educar, vai-se usando com
elas pouco mais ou menos daquele com que foram suas mães
educadas, acrescentando-se-lhe por vezes certa liberdade mal
l62
Mme. Coicy escreveu: Demande des femmes aux Etats Généraux
(1789) e Les femmes comme il convient de les voir, ou Apperçu de ce que
les femmes ont été, de ce quelles som, & de ce quelles pourraient êlre
(1785).
163
"É a natureza do governo de cada sociedade (...) que estabelece a
natureza da educação, que lhe confere força ou fraqueza, vícios ou
virtudes."
110
entendida e, por estar em moda, o ensino de algumas
prendas vedadas outrora ao sexo.
Certo, o que se chama por via de regra no Brasil dar
boa educação a uma menina? Mandá-la aprender a dançar,
não pela utilidade que resulta aos membros de tal exercício,
mas pelo gosto de a fazer brilhar nos salões; ler e escrever o
português, que, apesar de ser o nosso idioma, não se tem
grande empenho de conhecer cabalmente; falar um pouco o
francês, o inglês, sem o menor conhecimento de sua
literatura; cantar, tocar piano, muita vez sem gosto, sem
estilo, e mesmo sem compreender devidamente a música;
simples noções de desenho, geografia e história, cujo estudo
abandona com os livros ao sair do colégio; alguns trabalhos
de tapeçaria, bordados, croché etc., que possam figurar pelo
meio dos objetos de luxo expostos nas salas dos pais a fim
de granjear fúteis louvores a sua autora.
O desenvolvimento da razão por meio de bons e
edificantes exemplos da família; o hábito de raciocinar, que
se deve fazer contrair às crianças, ensinando-as a atentarem
no valor das palavras que proferem e ouvem proferir aos
outros; discriminar as boas das más ações, excitando-as a
imitar aquelas e a reprovar estas - tudo isto se deixa na mais
completa negligência: o que há de mais essencial a ensinar ou
a corrigir guarda-se para uma idade mais avançada,
repetindo-se sempre: "Ela é tão criança!"
Assim, quando a menina passa da casa paterna para o
colégio leva no espírito o germe, algumas vezes tão
desenvolvido, de mil pequenos vícios que impossível ou
muito difícil é desarraigar.
E quais são aí as educadoras, por mais dignas que
sejam de exercer tais funções, que ousam contrariar
inteiramente as opiniões e o gosto dos pais a respeito da
educação de suas filhas? Seria exporem-se a ver suas aulas
sem auditório, e, como já observamos, sendo o magistério
em nossa terra por via de regra um objeto de especulação,
grande cuidado se tem em transigir com os pais de família,
embora com detrimento dos alunos.
É partindo desta experiência que tiramos a conclusão
de que, no Brasil, não se poderá educar bem a mocidade
enquanto o sistema de nossa educação, quer doméstica, quer
pública, não for radicalmente reformado.
Debalde tentarão os diretores e mestres que
pertencem à exceção da regra enunciada fazer de seus alunos
indivíduos bem morigerados, conspícuos e modestos, se os
pais não forem os primeiros em inspirar-lhes estes
princípios. Debalde esperarão, os pais que tal fizerem, os
devidos progressos destes princípios, se os mestres não
possuírem as qualidades indispensáveis para preencherem os
encargos do magistério.
Será, portanto, da comunhão das boas práticas de
uns e de outros que somente poderão sair homens e
mulheres capazes de firmar o renome da Nação Brasileira, a
qual, tão grandemente elevada pela natureza, tão pequeno
espaço tem ainda conquistado no vasto e fértil campo da
civilização moderna.
xLvra
Por uma anomalia dos nossos costumes, no Brasil -
onde a mulher nada é ainda pelo espírito e nenhuma
liberdade goza das que utilizam e honram as mulheres do
Norte, aqui onde o seu nome não se alistou até hoje no
grande catálogo dos progressos humanitários por uma
instituição qualquer de beneficência - são as mães quase
sempre o árbitro exclusivo da educação das filhas,
prerrogativa de que muitas se ufanam, por não verem nela o
indiferentismo ou o desprezo hereditário de nossos homens
pela educação do sexo.
A elas, pois, incumbe particularmente prevenir ou
corrigir as faltas dos primeiros anos, convencidas de que é
um absurdo pretender que as meninas a cuja educação
doméstica não presidem os bons exemplos e o empenho
constante de bem dirigi-las possam depois aproveitar, em
toda a amplidão, as boas lições que por ventura venham a
receber.
Atentem todas as mães brasileiras - como convém ao
seu próprio interesse, à dignidade da família e à glória da
pátria na aurora do seu engrandecimento - para as
propensões de suas filhas, e empreguem todos os seus
esforços para arredá-las a tempo de tudo quanto possa
animar as más e enfraquecer as boas, evitem-lhes, sem que
elas se apercebam, até uma certa idade, as ocasiões de
acharem-se em companhia de quem quer que seja, longe de
suas vistas ou das de preceptoras esclarecidas e dignas de
sua confiança.
Transfundam nos tenros corações de suas filhas a
inata doçura e as boas qualidades do seu, furtando-as aos
exemplos de vaidade, de orgulho e dos erros que tendem a
destruir ou a inutilizar a sua obra. Resignem por amor delas
o gosto imoderado pelos prazeres do mundo, sem todavia
abstê-las completamente deles, sendo que um e outro
excesso lhes pode ser, da mesma sorte, prejudicial. É
harmonizando distrações inocentes com úteis ocupações que
uma mãe judiciosa deve procurar fortalecer o físico e o moral
de suas filhas desde a mais tenra infância.
Procurem, sobretudo, habituá-las ao trabalho,
apresentando-o como uma virtude necessária em todos os
estados da vida, qualquer que seja a opulência do indivíduo,
e não digno do desdém com que o olham certas classes.
As mulheres mais consideráveis das nações de que
falamos sabem ocupar útilmente o tempo. A esposa, irma e
noras de Luis Filipe rodeavam de noite uma mesa redonda,
no Palácio das Tulherias, para fazerem serão.
164
A esposa de
Lamartine,
165
e outras muitas mulheres que vivem na grande
sociedade e são obrigadas a sacrificar-lhe uma parte do seu
164
Luís Filipe de Orléans (1773-1850), rei de França de 1830 a 1848,
casou-se em 1809 com Maria Amélia (1782-1866), filha de Fernando IV
das duas Sicílias. A irmã dela, já mencionada pela autora, era Eugênia
Luísa Adelaide. Das cinco noras daquela rainha, duas tiveram intima
relação com a Casa Real brasileira: a princesa Vitória de Salsburgo,
casada com o Duque de Nemours, foi a mãe do Conde d'Eu, genro de D.
Pedro II; e a princesa Francisca (Chicá) de Bragança, casada no Rio de
Janeiro, a 1° de maio de 1843, com o príncipe de Joinville, era irmã do
segundo imperador do Brasil.
l65
Alphonse-Marie-Louis de Prat de Lamartine (1790-1869): político e
diplomata, compunha com Victor Hugo os dois maiores nomes da poesia
francesa de seu tempo. Casou a 5 de junho de 1820 com Mary-Anne-Elisa
Birch, jovem inglesa de formação protestante.
tempo, têm, todavia, horas reservadas para o trabalho assim
intelectual como material, alternando-o com obras de
beneficência, em que grande parte delas se ocupa.
Um dos primeiros trabalhos de escultura que
admiramos em Paris, na igreja de S. Germano L'Auxerrois,
foi um grupo de anjos de mármore sustentando uma pia
d'água benta, cinzelado pela digna companheira do
inimitável escritor francês. Por toda a parte encontram-se
naqueles países primores d'arte, em todos os gêneros, da
mão das mulheres, que provam não somente o seu gosto e o
estudo a que se dão, mas também o hábito do trabalho
adquirido desde os verdes anos.
Não é nas representações teatrais, principalmente as
de nossa terra, nem nas casas de baile, que entre nós muitas
meninas freqüentam de comum com o colégio - donde as
mandam buscar, interrompendo seus exercícios escolares,
para não perderem triunfos que inebriam as filhas e
lisonjeiam os pais, nesta atmosfera viciada onde a crocodílica
voz de improvisados galantes, ou de galantes parasitas,
destrói quase sempre o efeito das mais severas lições de
moral - que uma jovem donzela adquire o gosto e o hábito do
trabalho. Ainda menos, à janela, ordinariamente telégrafo
especial do resultado da ociosidade em que as deixam
vegetar. É, sim, no lar doméstico ou fora dele, mas
estimulada sempre pelos bons exemplos da família e pelo
nobre desejo de bastar-se a si mesma utilizando a
humanidade.
Para guiar as meninas em tão grande e digno
empenho, será preciso vencer-se a fraqueza que se tem de
inspirar-lhes gosto por futilidades - as quais, dando-lhes
apenas ligeiros matizes de boa educação, só lhes atraem
passageiros sucessos, que lhes preparam bem vezes, no
futuro, tristes e cruéis desilusões, senão a perda do repouso
da consciência, a ruína total de sua felicidade.
XLIX
Tocamos de passagem no triste exemplo apresentado
às crianças, do desprezo e excessiva severidade empregada
por alguns senhores para com os escravos, exemplo que tem
já produzido parciais e praza a Deus não produza gerais
funestas conseqüências.
Acrescentaremos agora que é muito para desejar que
certas mães de família, a quem alguns desses infelizes têm a
dupla desgraça de pertencer, retenham perante suas filhas os
freqüentes assomos de cólera que as levam a vomitar
grosseiras injúrias contra eles, acompanhadas muita vez de
castigos corporais que, com horror, temos visto consentirem
e até excitarem suas jovens filhas a aplicar-lhes elas mesmas!
Não se refletindo que o embrutecimento dos
escravos, privados de toda a educação moral e religiosa,
deve excusá-los de grande número de suas faltas, não se lhes
tolera a mais ligeira desobediência, quando por toda a parte
vêem eles os que receberam educação cometerem, em grande
escala, graves desobediências quer para com seus pais quer
para com as leis do Estado.
Porém, muitos senhores, não querendo reconhecer
que, sob o invólucro grosseiro do preto bate muita vez um
coração nobre, generoso e capaz das maiores virtudes que
honram a humanidade, crêem comprar no homem ou na
mulher sujeitos ao tirânico jugo da escravidão um animal de
carga, ou um necessário autômato, cujas molas devem
mover-se a gosto ou a capricho de seu dono.
É tempo de fazer sentir à nossa mocidade que, por
entre esses infelizes, a quem se oprime de trabalho e de maus
tratos, negando-se-lhes até a liberdade de refletir, existem
mães, filhos, irmãos etc., que sofrem em silêncio sem outra
defesa mais que suas lágrimas, sem outra garantia que a cega
obediência, sem outra vingança que a sua muda oração a
Deus,
Deus que nenhuma raça fez
Para sobre uma outra ter
Revoltante primazia,
Dimitado prazer.
166
Mães brasileiras, afastai dos olhos de vossos filhos o
espetáculo de uma opressão cruel que lhes énerva a
compaixão e agrava mais a triste sorte desses míseros a
quem deveis, como cristãs, caridosamente dirigir. Ensinai-
lhes cedo a olhá-los como nossos semelhantes e, por
conseguinte, dignos de nossa comiseração no estado a que
os reduziram nossos maiores.
A viva compaixão que mostráveis quando meninas,
como geralmente mostram todas as crianças vendo-os sofrer
166
Os versos sâo do poema A lágrima de um caeté, da própria Nísia Floresta,
publicado em 1849. [A passagem está à p. 87 da reedição feita por Adauto
Câmara na Revista da Federação das Academias de Letras, Rio de Janeiro,
(2-3): 66-88, 1938].
castigos, prova incontestàvelmente que uma conduta inversa
não pode ser resultado de propensão natural, mas, sim, da
fatal herança de antiquado
167
bárbaro prejuízo que, graças
aos progressos da civilização moderna, a voz da
humanidade, criando cada dia novos prosélitos, conseguirá
banir da face de todo o mundo cristão.
Procurai, enfim, refundir todos esses e outros
costumes, tão contrários à civilização dos povos, em um
quadro de edificantes e dignos exemplos, mais próprio a ser
copiado pela nossa mocidade de hoje e a tomá-la feliz em um
futuro que é só dela.
L
Em vez dos jogos de exercício, dos passeios
campestres e de pequenos agradáveis trabalhos de uma
utilidade real para a infância, acostumam-na em indolente
languidez que a faz por vezes contrair males precoces, a
depender inteiramente, ainda nas coisas mais fáceis, do
auxílio das escravas, sem as quais a mulher brasileira assim
habituada nada pode nem sabe fazer.
Não se adverte que a virtude e o saber são os únicos
bens indefectíveis, que somente eles podem acompanhar o
indivíduo através dos vórtices morais que aluem os palácios
e os mesmos tronos, reduzindo à miséria os mais orgulhosos
senhores de opulentas fortunas. Muitos pais, no meio dessa
167
Os dicionários antigos trazem antiquário também com o significado de
antiquado.
opulência, nas cidades, ou em suas fazendas e engenhos
onde alguns vivem à guisa de verdadeiros baxás, fazem
alarde de rodear suas filhas - cujo espírito deixam em
completo ócio - do prestígio frívolo da grandeza material,
grandeza que bem vezes lhes sufoca até o sentimento de sua
natureza, julgando-se de uma raça privilegiada, superior a
todos os seus semelhantes sujeitos às eventualidades da
fortuna.
Quando esses colossos de vaidade desabam da altura
a que os elevara a pura matéria, confundem-se no mundo das
inteligências com o pó levantado pelo tufão que passa,
pondo em evidência toda a sua nulidade e todo o horror de
sua situação.
Prescindindo de outros muitos, a história da França
moderna apresenta inúmeros exemplos da nenhuma
estabilidade dessa opulência que ensoberbece e desvaira
muitas famílias, quando só deveriam ver nela um meio de
tornarem-se melhores, consolando a indigência e cooperando
para o engrandecimento da pátria.
A nobreza francesa sob o Antigo Regime, educando
suas filhas nos princípios aristocráticos que tanto a
distínguiam, julgava bastante acrescentar ao conhecimento de
sua ilustre linhagem e dos feitos d'armas de seus varões o
ensino superficial de algumas prendas, adaptadas ao brilho
de seu nascimento, então primazia indisputável nos direitos
ao poder e à glória, apesar dos vícios e dos crimes que o
haviam muita vez manchado.
O verdadeiro soberano das nações, o povo - esse
vulto indelineável, como lhe chama o sábio A. Herculano -
abriu a cratera de sua reconcentrada cólera e em pouco as
grandes fidalgas que haviam escapado à mão do algoz
atrozmente descarregada sobre a linda cabeça de sua virtuosa
e infeliz rainha,
168
fugiam espavoridas
169
ocultando o nome
cujo prestígio as embriagara, ou definhavam de miséria e de
dor nas águas furtadas de Paris, e algumas, baldas de uma
instrução sólida, serviram de damas de companhia, de aias
de crianças nas casas de famílias burguesas, tão desdenhadas
outrora por elas.
A lição havia sido tremenda, não podia deixar de
aproveitar-lhes.
Desde então a nobreza compreendeu que não devia
limitar a instrução de suas filhas ao conhecimento das
etiquetas do grande mundo e ao da enumeração de seus
títulos, que de nada valem nem utilizam nas crises que
dissipam as ilusões de um nome herdado, de uma glória
factícia. Hoje são elas educadas em princípios mais
conformes à humanidade, e procuram adquirir sólidos
conhecimentos no gênero de instrução a que se dedicam,
sendo quase toda a nobreza de acordo em amestrar a
mocidade ao trabalho, do qual lhe deu exemplo a própria
rainha Amélia, até o dia de sua precipitada fuga pelos
subterrâneos das Tulherias.
170
168
Maria Antonieta (1755-1793), esposa de Luís XVI. A critica histórica está
longe de chamá-la virtuosa. Frívola, imprudente, intriguenta e dominadora,
ela terá sido, sim, infeliz, desde a intimidade de sua vida conjugai.
169
A rainha, prisioneira das forças da Revolução Francesa, intentou uma
fuga a 20 de junho de 1791, tendo sido recapturada cinco dias depois.
170
Com o triunfo da Revolução de 1848 na França, a rainha Amélia e o rei
Luís Filipe fugiram para a Inglaterra.
Se as mulheres da alta aristocracia das nações cultas,
cercadas da prestigiosa nobreza de tantos séculos, sustentada
por fortunas colossais e pelos grandes feitos de muitos de
seus maiores, compreenderam enfim que o trabalho é a única
égide invulnerável, assim nos grandes terremotos sociais
como na agressão dos vícios em todas as classes da
sociedade, como podem as nossas conterrâneas, cujo
orgulho não tem por base nenhuma daquelas vantagens,
desprezar o trabalho e passar todo o seu tempo ocupadas de
frivolidades, afetando muitas uma delicadeza que lhes não
permite mesmo, sem comprometer sua saúde, suportar os
descuidos ou o serviço mal feito das mucamas?
É na verdade para lastimar ver algumas de nossas
meninas - possuindo aliás os necessários elementos para
tornarem-se excelentes mães de famílias e mulheres notáveis
- entregues ao torpor de uma má educação, dormirem até alto
dia, levantarem-se maquinalmente e vagarem pelo meio da
família em completo desalinho, sem uma idéia do nobre fim
para que foram criadas, sem um estímulo para as crianças e a
ordem que as deviam conduzir a ele.
Se Helvécio - que diz ser o ócio necessário para o
desenvolvimento da inteligência - tivesse razão, por certo
que as mulheres das outras nações não poderiam levar a
palma às nossas, que se acham nas melhores condições,
conforme ele, para tal desenvolvimento.
Mas nem sempre os espíritos filosóficos vêem a
verdade onde ela está. Mme. de Staël, em vez do ócio,
julgava ser a melancolia necessário incentivo para obter-se o
mesmo resultado, e houve uma época em França em que a
melancolia e languidez passou por moda.
Os povos ainda os mais ilustrados têm também suas
fraquezas. Esta foi uma das mais ridículas daquele, entre o
qual felizmente certos escritores tomaram a peito banir das
sociedades a representação de uma farsa, quando o gênio
mais ou menos desenvolvido de seus atores a ia por demais
generalizando.
LU
A educação física é ainda entre nós tão mal
compreendida como a moral. Vemos crianças, podendo já
fazer uso das pernas, passarem a mor parte do dia nos
braços das diferentes pessoas da família, ou das escravas
designadas pelos pais, que ostentam uma certa fortuna real
ou aparente, para suportarem passivas esses fardos e todas
as suas exigências.
O costume mourisco de se fecharem as mulheres em
casa, que a civilização não desarraigou ainda inteiramente do
Brasil - salvo nas famílias cujos chefes, temendo conceder-
lhes a liberdade de um higiênico passeio cotidiano, deixam-
nas livremente freqüentar os espetáculos e as reuniões mais
perigosas - muito concorre para que as meninas não
adquiram um certo grau de energia e de força,
imperfeitamente obtido no trânsito que fazem algumas indo
às escolas, pelo meio dos miasmas da atmosfera de nossas
ruas, ou na constante vida caseira.
Há em todos os lugares habitados de nossa terra,
mesmo em suas primeiras cidades, muitas famílias que
passam anos inteiros sem transpor o limiar de suas casas a
não ser nos domingos para irem à missa, se isso fazem! A
vida se passa para grande parte delas sem outro exercício
sem outro trabalho afora o que algumas chamam, com
ênfase, governo da casa, consistindo este muita vez no
desgoverno, na confusão entre o nada fazer e o ordenar
constantemente sem método, sem pensamento.
Neste aprendizado e nesta indolência decorre a vida
da menina, a quem se repete de contínuo a velha arriscada
máxima: "Reprime todos os impulsos da natureza, e
embelece-te para seres mulher." Isto é, habitua-te desde a
infância à hipocrisia e procura reinar pela matéria, embora o
teu reinado seja de pouca duração.
Transcreveremos aqui um trecho da educação de uma
menina inglesa dirigida por seu respeitável pai, cujo exemplo
muito desejávamos ver seguido pelos pais brasileiros, ao
menos o da sua maneira de pensar a respeito do sexo:
"Tratei de dar a seu corpo e a seu espírito um grau de
força que raras vezes se acha no sexo" - diz esse venerável
ancião.
"Apenas foi ela suscetível de pequenos trabalhos de
agricultura, do cultivo do jardim, ajudou-me constantemente
nesta sorte de ocupações. Selena (tal era o seu nome)
adquiriu bem depressa, nesses exercícios, uma destreza
cujos progressos eu admirava. Se as mulheres são em geral
fracas de corpo e de espírito, é menos pela natureza que pela
educação. Nós alentamos nelas uma indolência e uma
inatividade viciosas, que falsamente apelidamos delicadeza.
Em vez de fortificar-lhes o espírito por meio dos severos
princípios da razão e da filosofia, só se lhes ensina as artes
inúteis, que alimentam a moleza e a vaidade.
"Na mor parte dos países que percorri, a música e a
dança formam a base de sua educação. Elas só se ocupam de
frivolidades e somente isso lhes pode interessar.
Esquecemos que das qualidades do sexo depende a nossa
consolação doméstica e a educação de nossos filhos. Serão
próprios para preencher tal fim seres corrompidos desde a
infância, não conhecendo nenhum dos deveres da vida?
"Tocar um instrumento musical, desenvolver suas
graças aos olhos de alguns moços ociosos e corrompidos,
dissipar os bens de seus maridos em loucas despesas - eis a
que se reduzem os talentos de grande parte das mulheres nas
nações mais civilizadas. As conseqüências de semelhante
sistema são tais quais se podem esperar de uma fonte tão
viciada: a miséria particular e a servidão pública.
"A educação de Selena foi calculada sobre outras
bases e dirigida por princípios mais severos, se todavia
pode-se chamar severidade o que abre a alma aos
sentimentos dos deveres morais e religiosos, e a prepara para
resistir aos males inevitáveis da vida."
Quão longe se está em nossa terra, não diremos
somente da prática, mas da razão esclarecida que ditou essas
linhas!
Não só a espécie de instrução que distingue algumas
de nossas jovens é, com pequenas exceções, reprovada por
aquele respeitável pai, mas também se entretem nelas, em
vez de procurar-se banir a indolência,
Que em nosso clima se espreguiça e o infesta, E
as portas à Ciência e às Artes fecha,
como tão propriamente disse o nosso poeta Magalhães.
171
LII
Volvamos agora um olhar para as nossas classes
pobres, e vê-las-emos quase por toda a parte perdendo o
precioso tempo de que poderiam tirar grande utilidade, se o
empregassem em um trabalho bem regulado e seguido.
Diferentes das mulheres pobres das nações que
mencionamos, as nossas pouco se ocupam em geral do dia
seguinte, isto é, de ajuntar, por meio de uma indústria
honesta e de razoáveis economias, com que prover no futuro
as suas necessidades.
Enquanto aquelas, considerando o trabalho como um
primeiro dever, procuram inspirar o gosto dele a seus filhos,
acostumando-os a fazerem uso de seus membros, apenas
andam, ensinando-os a entreterem-se em diversos brincos
úteis de invenção sua, estas trazem os seus ao colo de manhã
até à noite, e deixam-nos depois vagar até grandes, sem
nenhuma sorte de ocupação.
Vimos em França e em Inglaterra mães de quatro,
cinco e mais filhos, mamentando ainda um, saberem dividir
e utilizar tão bem o seu tempo, que os pensavam, faziam
todo o serviço interno da casa, e lhes sobravam horas para
ajudarem seus maridos no comércio, nas artes ou na lavoura,
171
Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882): seu livro
Suspiros poéticos e saudades (1836) é o marco de instauração do
movimento romântico na literatura brasileira.
apresentando no fim do dia um resultado de sua aplicação.
Verdade é que naqueles países não se inculca, como aqui, à
mulher, a falsa idéia de que ela nada pode ser por si mesma,
sendo indispensável o braço do homem para fazê-la viver,
como a sua razão para dirigi-la. Assim, quando a jovem, de
qualquer condição que seja, transpõe ali o limiar nupcial, não
leva, como as nossas, a presunção de que alcançou a única
glória a que deve aspirar a mulher, esperando do marido
todas as suas comodidades e a satisfação de todos os seus
caprichos, direito que julga indisputavelmente firmado
constituindo-se simples mãe de seus filhos.
Presunção bem vezes fatal àquelas que não procuram
firmar o seu direito em bases mais sólidas que não as das
palavras do homem, pronunciadas perante um sacerdote,
palavras que nenhuma felicidade real trazem à mulher
sensível quando não são o resultado do sentimento e
garantidas pela moral e constância daquele que as pronuncia.
Um exemplo bem eloqüente desta verdade acaba de
apresentar a infeliz esposa e mãe de cinco filhos, de um alto
funcionário, homem ilustrado, magistrado íntegro e afetuoso
pai.
Educada no meio da grandeza e amada depois por
esse homem, a filha de um dos primeiros cortesãos de seu
tempo devia por sem dúvida crer-se segura daquele direito,
desde que o desposou e lhe deu cinco filhos.
Volveu o tempo ... e a pobre mãe, que nunca tinha
deixado de ser esposa fiel, pereceu abandonada e
miseravelmente em uma pequena casa da mesma cidade,
onde o esposo e seus próprios filhos, ostentando o luxo e a
consideração da alta sociedade, só lhe apareceram em seus
últimos dias para tornar-lhe mais dolorosa a hora do
passamento.
Lição eloqüentemente triste para as mulheres, de
todas as condições, que se crêem ao abrigo das vicissitudes
da sorte só porque conseguiram tomar o nome de um homem
de mérito.
É trabalhando de dia em dia por adquirir a afeição e
os respeitos do companheiro que lhe coube por sorte, e por
tornar-se superior aos acometimentos do ciúme, que a
esposa consegue firmar a sua felicidade doméstica, e não por
laços julgados indissolúveis e santos
172
por aqueles que
facilmente os profanam quando as paixões os agitam.
Em geral os brasileiros não conhecem a economia do
tempo e é bem para lamentar que as classes pobres,
principalmente, não se compenetrem da necessidade dessa
economia e das vantagens que resultariam a seus filhos, se
lhes apresentassem sempre com nobreza a imagem do
trabalho, que devia caracterizá-las e distingui-las na
sociedade de seu país.
Se o desprezo do trabalho produz nas classes
abastadas funestas conseqüências, o que será das pobres,
máxime daquelas que, não se resignando com o estado em
que Deus as colocou, querem mostrar-se aos olhos do
mundo trajadas acima da sua condição?
172
Outra vez, Nísia Floresta demonstra a sua preferência divorcista.
Em França, nesse reino elegante das modas,
distinguem-se as classes operárias pelo seu trajar, e muitas
pessoas há dessa classe que, tendo adquirido fortuna,
conservam nobremente depois a mesma simplicidade.
Este bom senso é, porém, desconhecido entre nós.
Vê-se freqüentemente a filha do empregado inferior, e
mesmo do artesão, cujo trabalho apenas lhe dá para o
sustento cotidiano, ostentar o luxo da filha do abastado. Um
tal gosto imprudentemente inspirado pelos próprios pais
dessa inocente tem-na muita vez levado à declividade de um
abismo, donde não é mais possível retroceder.
É quase sempre dessa parte da sociedade, educada
nos princípios contrários aos que convém e honram a sua
posição no mundo, que sai o maior número das vítimas da
corrupção e da miséria, negras tarjas lançadas no painel
colorido das nações civilizadas, riso satânico do espírito do
mal transpondo inalterável os séculos para chasquear
incessantemente do espírito do bem, que procura guiar a
humanidade à perfeição.
Entregues à indolência e à ociosidade, na abnegação
do trabalho, e na falência total de meios empregados para
inspirar-lho, essas infelizes criaturas caem na degradação e
muita vez no crime, perpetuando a miséria e o opróbrio de
geração em geração por este vasto e rico solo do Brasil, que
em seu nascente progresso tanto há mister de braços e de
instituições morigeradoras.
Quanta vez, em diferentes pontos de nossas
províncias, tivemos ocasião de deplorar essas vítimas da
vida ociosa de suas mães, ou de seus vícios, cujo aspecto
enluta a natureza e punge a alma do homem virtuoso.
O imparcial A. de St Hilaire, em seu livro sobre S.
Paulo, tocando neste ponto, depois de algumas linhas que
nos répugna transcrever, diz: "Nulle part je n'avais vu un
aussi grand nombre de ... il y en avait de toutes les couleurs,
les pavés en étaient pour ainsi dire couverts. Il est pénible au
voyageur honnête de descendre dans de si tristes détails,
mais il doit avoir le courage de le faire lorsque c'est une
occasion de montrer dans quel état de dégradation peuvent
descendre les classes pauvres, si on les abandonne
entièrement à elles-mêmes, si on ne leur apprend point que le
travail en les éloignant du mal, les purifie et les honore, si
enfin l'on néglige complètement leur instruction morale et
religieuse. Les enfants de ces nombreuses femmes étaient à
peine nés qu'ils avaient sous les yeux des vices; s'ils
recevaient quelques leçons c'étaient celles de l'infamie; et le
prêtre, oublieux des préceptes de son divin maître, le prêtre
ne s'écriait pas comme lui: Ah, laissez approcher ces enfants
jusqu'à moi."
173
Em outra parte, tratando da causa primordial desta
corrupção, em um país tão grandemente favorecido da
natureza, o ilustre viajante acrescenta: "Depuis Villa Boa
173
Em nenhum outro lugar eu tinha visto um número tão grande de...
Havia de todos os tipos, as ruas pareciam cheias delas. É doloroso para o
viajante honesto descer a tão tristes detalhes, mas ele deve ter a coragem
de fazê-lo quando tem a oportunidade de mostrar a que estado de
degradação podem descer as classes pobres, abandonadas inteiramente a
si mesmas, se não se lhes ensina que o trabalho, afastando-as do mal, as
honra e purifica, se enfim se negligencia completamente a sua instrução
moral e religiosa. Mal os filhos dessas numerosas mulheres haviam
nascido e já tinham os olhos sobre os vfeios; e o padre, esquecido dos
princípios de seu divino mestre, não gritava como ele: Ah, deixai
aproximarem-se de mim essas crianças."
jusqu'au Rio das Pedras j'avais peut-être eu cent exemples
de cette indolence stupide. Ces hommes abrutis par
1'ignorance, par 1'oisivité, 1'éloignement de leur semblable et
probablement par des jouissances prématurées ne pensent
pas; ils végétent comme l'arbre, comme l'herbe des
champs."
174
E de feito assim é. O viajante brasileiro que tem
visitado os nossos sertões não poderá deixar de reconhecer o
cunho da verdade nessas linhas do digno St. Hilaire e
conosco fazer ardentes votos para que a narrativa do estado
abjeto em que vive grande parte desses povos desperte a
atenção e o patriotismo do nosso governo.
LIV
Dissemos que não limitaríamos a nossa análise sobre
a educação de nossas mulheres a esta ou aqueloutra
província, mas sim a todo o Brasil. Nunca nos assomaram
os epidêmicos delírios de mal entendido orgulho provincial,
funesto germe
175
fomentado outrora entre nós por
disfarçados inimigos da prosperidade desta grandiosa e rica
peça, tão invejada pelos estrangeiros e tão ameaçada por seus
174
"Depois de Vila Boa até ao Rio das Pedras eu podia ter cem exemplos
dessa indolência estúpida. Esses homens embrutecidos pela ignorância,
pela ociosidade, pelo distanciamento de seu semelhante e provavelmente
pelos prazeres prematuros não pensam: vegetam como a árvore, como a
erva do campo."
175
No original está gérmen, forma preferida à época da
autora.
próprios possuidores de perder em sua divisão o prodigioso
valor que o seu todo constitui.
Amamos com religioso entusiasmo a nossa pátria,
isto é, toda a vasta terra de Santa Cruz. Em qualquer ponto
dela consideramo-nos em nossa pátria e os povos aí
nascidos, nossos conterrâneos e irmãos. Que importa termos
visto pela primeira vez a luz nesta ou noutra de suas
províncias, se é o mesmo céu brasileiro que nos cobre, o
nosso verdejante solo que pisamos, e se o mesmo interesse
comum nos reúne e fraterniza?
Todos os brasileiros, qualquer que tenha sido o lugar
de seu nascimento, têm iguais direitos à fruição dos bens
distribuídos pelo seu governo, assim como à consideração e
ao interesse de seus concidadãos.
É, portanto, em favor de todas as mulheres
brasileiras que escrevemos, é a sua geral prosperidade o alvo
de nossos anelos, quando os elementos dessa prosperidade
se acham ainda tão confusamente marulhados no labirinto de
inveterados costumes e arriscadas inovações.
A classe, chamada na Europa, do povo, essa nobre
classe onde as virtudes se perpetuam sem o auxílio do
cálculo, sem o frívolo estímulo dos vãos títulos de avós, não
pode ter a mesma acepção em um país onde não há nobreza
hereditária e os títulos não se conferem somente ao
verdadeiro mérito.
Fazemos, portanto, menção de duas classes distintas
de brasileiros: rica e pobre. A primeira, podendo gozar,
pelos favores só da fortuna, de todas as vantagens materiais,
de todas as garantias obtidas com dinheiro, esse vil metal
que na terra compra tudo, exceto a virtude e o talento. A
segunda, podendo atingir pela inteligência ao cúmulo da
glória que dão as artes e as ciências, únicos inexauríveis
mananciais de poder e de prosperidade que enobrecem os
povos e elevam as nações.
Tratando da educação da mulher nessas duas classes,
a voz da humanidade, primeiro, e, depois, a da honra do
nosso país nos impõe o dever de insistirmos com mais
energia em reclamar o melhoramento da última,
principalmente daquela parte que vive sem recursos,
porquanto o seu abandono a expõe aos mais tristes
extremos, não possuindo o presgio de um título nem as
galas da riqueza, que disfarçam e fazem mesmo desculpar os
vícios abrigados nos salões.
Implorando, pois, a filantropia do governo para a
classe desfavorecida da fortuna, repetiremos a esta as
palavras do grande poeta Victor Hugo
176
:
"Laisse-toi conseiller par l'aiguille ouvrière
Presente à ton labeur, presente à ta prière
Qui dit tout bas: travaille! Oh! crois-la; Dieu, vois-tu,
Fit naitre du travail, que 1'insensé repousse,
Deux filies: la vertu, qui fait la gaite douce
Et la gaite, qui fait charmante la vertu!"
177
176
Victor Hugo (1802-1885): pontífice máximo do romantismo francês,
teve também intensa atuação política, destacando-se pela defesa das idéias
liberais e republicanas.
177
"Toma o conseino da agulha operária, presente em teu trabalho,
presente em tua prece, que diz baixinho: trabalha! Oh! Crê: Deus, vês?, do
trabalho, que o insensato repulsa, fez nascer duas filhas: a virtude, que
torna doce a alegria, e a alegria, que torna encantadora a virtude."
Se se instituísse uma classe pública de operárias
178
em toda a sorte de trabalhos, oferecer-se-ia a uma parte das
famílias des vai idas do Brasil não somente um meio seguro
de as livrar da miséria, mas ainda de habilitá-las para um
futuro que não está longe.
Preparada por uma sábia administração, essa classe
tiraria e faria ao mesmo tempo com que a pátria tirasse
proveito dos grandes recursos que encerra o nosso
riquíssimo solo.
Neste solo dileto do Criador, quando se tiver sabido
dar o conveniente desenvolvimento à indústria e às artes,
inspirando-se ao seu povo por meio de fortes incentivos o
amor ao trabalho, as classes operárias não temerão por sem
dúvida a mísera situação em que vive parte das operárias do
país mais poderoso da idade atual, a Inglaterra. Essas
infelizes criaturas vegetam, subtraídas aos olhos do público,
nesse bazar do mais ostensivo luxo aristocrático,
semelháveis ao corpo arruinado de úlceras, ocultando-se
debaixo das sedas e pedras preciosas de que vãmente se
adorna já ao tocar o limiar da eternidade.
Os progressos da civilização cristã nos deixam
lobrigar o grande espetáculo do nosso povo regenerado da
negra mancha que lhe imprimiram os nossos antepassados,
cancro moral minando-lhe as mais excelentes qualidades
d'alma.
179
178
"Diante do quadro social que vem sendo descrito pela autora, pode-se
ver como essa sua idéia era avançada para a época, sobretudo tratando-se
de uma classe pública para mulheres.
179
Observe-se que Nísia Floresta assim se expressava em 1853, sob o
império da escravidão no Brasil.
É mister habituar nossos filhos para esse feliz porvir,
em que todo o trabalho será feito por braços livres, porvir de
grandeza e de glória, no qual o brasileiro, extasiando-se na
contemplação da magnificência de sua natureza, não sentirá,
como nós, a aplicação que se nos pode hoje fazer, dos
seguintes versos de Byron,
180
inspirados nas deliciosas
margens do Tejo:
Poor, paltry slaves! Yet born'midst nobles scenes
Why, Nature, wast thy wonders on such men?
181
"Pobre povo de escravos, nascido em tão belo clima!
Para que prodigalizaste teus dons, ó Natureza, a semelhantes
homens?'
LV
Estamos certos de que as pessoas convencidas do
triste estado de nossa educação religiosa, depois que nos
alistamos no catálogo das nações cristãs, ter-nos-ão já
estranhado o silêncio que até aqui guardamos sobre uma das
causas capitais deste estado: a falta de instrução e de
exemplos edificantes dados pelo nosso clero à mocidade
brasileira.
180
George Noel Gordon, Lord Byron (1788-1824): um dos maiores
representantes do romantismo na Inglaterra.
181
Os dois versos começam a 18ª estrofe do Canto I do Childe Harold's
Pilgrimage, um dos livros mais apreciados de Byron.
134
Falaremos, pois, neste ponto tão importante à
morigeração de qualquer povo, não como rígidos censores
derramando o fel que lhes vai pela alma, ao contemplarem
por terra o monumento mais venerável das nações
civilizadas, mas como humildes fiéis, com o coração
pungido de dor pelos desvios de nosso povo, que vemos
crescer, prosperar, ensoberbecer-se pelos pingues dons que
lhe doou a pródiga natureza, sem refletir que é o trabalho do
homem, e não a riqueza natural do solo, que engrandece as
nações, e que, sem o respeito à religião e às leis, não poderá
ele jamais assumir a esse grau elevado de civilização a que
julgamos ter atingido porque arremedamos a Europa no que
a Europa encerra de menos importante.
"A religião é a cadeia de ouro que une a terra ao céu"
- repetiu o nosso Marquês de Maricá. Nós parodiaremos esta
bela máxima com a seguinte: A religião é a cadeia
indestrutível que liga a mulher a seus deveres, a coroa mais
preciosa que lhe cinge a fronte.
A mulher sem religião assemelha-se àquelas lindas
flores de nauseante cheiro que se deve admirar de longe,
sendo que o seu contato infecciona o ar que respiramos.
É a religião que fortifica e realça as qualidades
feminis, e ela ainda que sustenta e consola todo o indivíduo
nas circunstâncias mais difíceis da vida, a bússola invariável
que lhe indica os seus deveres e o conduz ao exato
cumprimento deles.
Entretanto, nada há em nossa terra mais desprezado
pelos pais e pelos párocos do que o ensino da religião.
Onde no Brasil o assíduo cuidado, de uns e de
outros, de inspirarem à mocidade os salutares princípios da
fé de Cristo?
Qual a freguesia cujo pastor observe pontualmente os
deveres que lhe impõe a sua santa missão?
Não há espírito religioso em nossa terra que não
lastime o desregramento e a ignorância da mor parte do
nosso clero. É ainda este um filho póstumo do clero de sua
antiga metrópole.
Não temos a sublime pena nem a tarefa do grande
historiador A. Herculano para esboçar sequer as calamidades
que acarreta a qualquer país um clero ignorante e
desmoralizado. Seja-nos, porém, permitido observar de
passagem, que é dessa fonte, principalmente, que manam os
incentivos, senão a causa primária da desordem das gerações
que se têm até hoje sucedido.
Podemos dizer, sem receio de que nos tenham por
exagerados, que em nenhuma paróquia do Brasil a nossa
religião é devidamente ensinada à mocidade. A explicação do
catecismo, de que com tanto interesse e assiduidade se
ocupam os padres de França, encarregados de difundir a
instrução religiosa por todas as classes da sociedade, é de tal
sorte desprezada no Brasil, que as nossas grandes meninas,
hábeis nas etiquetas dos bailes e nos manejos para obterem a
única conquista a que aspiram, fazem a sua primeira
comunhão sem o conhecimento dos princípios de nossa
santa fé.
Nunca esqueceremos a humiliação que sentimos
(pela ignorância dos nossos conterrâneos nesse ponto)
quando, em Paris, uma antiga dama da casa de Luís Filipe,
admirando a instrução de uma jovem brasileira que se achava
ali ao mesmo tempo que nós,
181
disse-nos, com certa
franqueza de que a fizemos arrepender-se, que surpreendia-
se ao ver uma moça do nosso país tão instruída, quando a
uma de nossas altas personagens, chegando à França, foi
necessário ensinar até o catecismo!
Há pouco mais ou menos doze anos vimos com
satisfação, posto que corando pela incúria do nosso clero,
um padre francês dar em uma das igrejas desta capital a
primeira instrução de catecismo, preparando com solicitude a
infância para um ato que, quando bem compreendido, tão
salutares bens derrama em seus tenros corações.
Quisemos para logo ali conduzir nossas filhas, mas
aguardamos que os brasileiros, tão imitadores do
estrangeiro, deste copiassem uma das mais edificantes
práticas que deveria ser também a nossa, desde que o Brasil
é nação católica.
Pensamos que os nossos párocos, impelidos por tal
incentivo, dessem enfim, como lhes cumpria, em suas
respectivas paróquias o digno espetáculo do bom pastor
instruindo suas ovelhas, ocupando-se principalmente da
educação religiosa da infância.
181
Pode-se presumir que esta jovem brasileira tenha sido a própria filha
da autora, Lívia Augusta de Faria Rocha, que acompanhou a mãe na
viagem à Europa em 1849.
Iludida foi, porém, a nossa expectativa, e algum
tempo depois, sacrificando mesquinhas considerações de
mal entendida nacionalidade ao bem espiritual de nossos
filhos, conduzimo-los a participarem das explicações dadas
pelo religioso Fournier, sucessor do reverendo
Guillaume.
182
Folgamos de ver que muitas famílias brasileiras, e
algumas diretoras de colégio, levavam suas filhas e
educandas a ouvirem aquelas instruções, mas bem depressa
apercebemo-nos com pesar de que muitos espectadores do
solene ato da primeira comunhão concorriam a ele com o
mesmo pensamento que leva a nossa mocidade às festas de
igreja, onde infelizmente pouca reverência se guarda, em
geral.
Daí as seguintes linhas publicadas, em 1851, ha
Revue des Deux Mondes:
183
"Un des principaux centres de la
vie sociale au Brésil, ce sont les églises. Avant de franchir le
seuil d'une maison brésilienne, entrez dan l'un des
nombreux temples de Rio de Janeiro au moment d'une
cérémonie rèligieuse, et déjà vous aurez saisi un des cotes
originaux de cette population.
(...)
182
Desde muito cedo na história do Brasil, o clero estrangeiro teve
participação ativa na vida do país, fato que ocasionou algumas vezes
severas disputas com o clero nacional, a quem ordinariamente estavam
entregues as tarefas eclesiásticas mais árduas e rotineiras.
183
A autora cita o
artigo "L'empire du Brésil et la societé brésilienne en 1850," publicado por
Emile Adêt na Revue des Deux Mondes. Tome Neuvième/21ème année-
Nouvelle période, pp. 1081-1105. [A passagem referida está à p.1084].
"On peut voir les femmes échanger de longs et doux
regards avec les jeunes gens, qui passent et repassent, ou
s'arrêtent même pour mieux continuer ce jeu pendant toute la
durée de l'office."
184
Lemos estas linhas em Paris, quando com mais
indulgência analisávamos outras repreensíveis faltas dos
franceses, mais dignas da censura desse escritor, pois que
são cometidas por um velho povo que tantos séculos conta
de civilização. Não obstante reconhecermos que uma parte
dos brasileiros merece aquela censura, todavia muito nos
revoltou ela, porquanto a nacionalidade de um coração
patriótico nunca tão altamente se revela como quando sente
ele, em país estrangeiro, ferir ou humilhar o seu próprio
país.
Os erros da pátria são como os de nossos filhos:
queremos nós mesmos censurá-los e puni-los, mas não
podemos sofrer vê-los estigmatizados por estranhos a quem
nada devem.
Não podemos, porém, com justiça exprobrar a nossa
mocidade de pouco religiosa, quando ela vê por toda a parte
em nossa terra alguns padres não somente descuidosos de
fazer-lhe sentir os sublimes preceitos do Homem-Deus, mas
ainda darem-lhe tristes exemplos de uma conduta desregrada
e criminosa.
184
"Um dos principais centros da vida social no Brasil são as igrejas.
Antes de ultrapassar o limiar de uma casa brasileira, entrai num desses
numerosos templos do Rio de Janeiro no momento de uma cerimônia
religiosa, e logo havereis captado um dos aspectos originais dessa
população. (...) Podem-se ver as mulheres trocar longos e doces olhares
com os rapazes que passam e tornam a passar, ou mesmo param para
melhor continuar este jogo por todo o tempo em que dura a cerimônia."
Como pretender que um clérigo que tem calcado aos
pés os deveres impostos ao seu santo ministério consiga,
falando do alto de um púlpito ou no confessionário,
moralizar os que o têm visto entregar-se a toda a sorte de
prazeres mundanos? Entretanto, não há província do Brasil,
freguesia quiçá, onde alguns desses homens, trajando as
vestes sacerdotais, não tenha dado esse espetáculo, e, o que
mais é para censurar entre um povo cristão, são eles
tolerados no exercício do digno ministério que profanam.
Não pretendemos delatar aqui as faltas do nosso
clero, mas visto que tratamos da educação no Brasil,
impossível nos era deixar de fazer menção de uma das
causas capitais que indubitavelmente concorrem para que ela
se não desenvolva escudada nos santos princípios da
religião, primeiro sustentáculo das nações e o meio mais
profícuo de tornar os homens melhores.
LVII
Os fatais abusos cometidos por uma parte do nosso
clero e o mau sistema de nossa educação doméstica
principalmente têm sido, e continuarão a ser se uma
regeneradora época não brilhar para nós, a causa primordial
do atraso de nossa civilização, a fonte de todos esses vícios
que infestam a nossa sociedade, pervertendo tão
freqüentemente o caráter natural de um povo, como é o
brasileiro, dócil, modesto e generoso. Os mesmos viajantes
ilustrados que se têm dado ao estudo do caráter dos
brasileiros fazem-lhes esta justiça, indicando de passagem as
causas, que todos conhecemos, de nossas mais salientes
faltas.
O Conde de Castelnau,
185
depois de tecer justos
encômios à nossa hospitalidade, diz: "Le brésilien est bien
loin d'avoir le caractère dur qu'on lui prête souvent en
Europe, car c'est certainement le plus indulgent" etc.
"Le désoeuvrement, le manque de moyens d'étude et
la plaie de l'esclavage ont eu la plus fâcheuse influence sur
l'état des moeurs en ce pays, et le clergé, loin de suivre le bel
exemple qui lui est présenté par celui d'Europe, n'est que
trop souvent le premier à donner l'exemple de la débauche et
du désordre.
"Avant mon départ de Rio, un des chefs de l'église
me disait avec un peu d'exagération sans doute: Vous
trouverez ici un clergé, mais pas de prêtres."
186
Esta franqueza agrada por ser a expressão da
verdade, mas não pode ao mesmo tempo deixar de revoltar
quando parte de um vigário que, em vez de se esforçar para
que ela marche na santa via prescrita pelo seu grande
185
Francis de Castelnau (1812-1880), naturalista francês, chefiou uma
expedição científica à América do Sul de 1843 a 1847, fazendo um percurso
do Rio de Janeiro a Lima e descendo pelo estuário do Rio Amazonas.
Publicou uma História da Viagem, em 6 volumes (1850-52).
186
"O brasileiro
está bem longe de ter o caráter duro que se lhe atribui com freqüência na
Europa, pois é certamente o mais indulgente." "A desocupação, a falta de
meios para estudar e a praga da escravidão têm tido a mais perniciosa
influência sobre os costumes deste país, e o clero, longe de seguir o bom
exemplo que lhe é apresentado pelo da Europa, é muitas vezes o primeiro a
dar o exemplo da dissolução e da desordem." "Antes de minha partida do
Rio, um dos chefes de igreja me dizia com um pouco de exagero, sem
dúvida: Aqui você encontra clero, mas não padres." [O trecho citado foi
extraído do livro de Castelnau, Tomo I, pp. 132 e 133 (Paris, Chez P.
Bertrand, 1850)].
Fundador, se apraz em ridicularizá-la perante um
estrangeiro.
É também ao desleixo de tais vigários que se deve a
desordem e o desrespeito tão censuráveis que reinam em os
nossos templos, principalmente nas ocasiões de certas festas
mais concorridas. Se eles soubessem impor o devido
respeito nessas solenidades, qual seria a pessoa, por mais
irreligiosa, que ousasse afrontá-lo? Mas, pelo contrário,
deixam inteiramente a todos, que não são ali levados pelo
espírito de verdadeira religião, a liberdade de conversarem
sobre qualquer assunto que seja e portarem-se com
irreverência no santo recinto.
Custa-nos a confessar que, antes de irmos à
Inglaterra, não havíamos sentido, ao entrar em um templo do
Senhor, esse profundo recolhimento que inspiram à alma
religiosa os lugares consagrados ao seu divino culto.
Parece-nos ouvir, de antemão, grosseira e inepta
censura de espíritos fracos ou parciais, que avaliam tudo
pelas suas próprias impressões. Mas, longe de ofendermo-
nos, perguntar-lhes-emos com a calma do filósofo e a
paciência do cristão: "Quando ides assistir às nossas
festividades de igreja, o que é que aí vedes em geral
praticarem os fiéis? Distinguis por acaso na fisionomia, na
atitude da mor parte deles, alguma coisa que vos prove irem
ali somente orar? Podereis furtar-vos à verdade não
confessando que esses grupos, amontoados às portas de
nossos templos e os que neles entram em tais ocasiões,
parecem ir antes assistir a uma representação teatral do que
às cerimônias do santo sacrifício do Filho de Deus para
resgatar o gênero humano? À fé que, se não tendes alguma
142
vez feito parte desses falsos cristãos, concordareis de pronto
conosco, e, ainda quando assim fosse, vossa consciência
apoiar-nos-á, a pesar vosso."
E aconteceria isto, se a maioria dos nossos padres
imitasse os dignos exemplos daqueles que entre nós honram
o seu ministério por suas virtudes e saber, fazendo tão
altamente sobressair o nome brasileiro na glória que
difundem sobre a pátria, a igreja e a humanidade?
Por certo que não.
O clero francês, o m?is instruído do mundo católico,
deveria ser para a desvairada parte do nosso o tipo pelo qual
ela modelasse a sua conduta. Não nos era preciso as
brilhantes conferências do eloqüente Lacordaire,
187
as do
persuasivo e piedoso Ravignan,
188
e de tantos outros que
extasiam a alma do cristão, quando lhe fazem ouvir as
edificantes verdades do Evangelho. Bastar-nos-ia que todos
os nossos padres dessem-nos o espetáculo da piedade e
verdadeira dedicação com que aqueles dignos prelados
procuram edificar o povo e inocular na mocidade os
princípios sólidos e fecundos de nossa santa fé.
Mas temos já assaz indicado as causas primárias que
retardam o conveniente desenvolvimento da educação e dos
progressos intelectuais de nossas mulheres civilizadas.
Cumpramos agora uma santa missão consagrando algumas
páginas àquelas que, tendo inegável direito às graças dos
187
Henri Lacordaire (1802-1861), frade dominicano: notabilizou-se como
orador sacro, sobretudo pelos sermões pregados na igreja de Notre Dame
de Paris, entre 183S e 1836. Foi membro da Academia Francesa.
188
Gustavo
Xavier Delacroix de Ravignan (1795-1858), sacerdote jesuíta: foi o
substituto do Padre Lacordaire como pregador em Notre Dame.
usurpadores de seu território, foram e são ainda em geral
tratadas por eles com o mais rude desprezo.
Falamos das que chamam caboclas, dessa
interessante e infeliz porção da humanidade que se tem de
mais em mais entranhado em nossas florestas, ou vive aqui e
ali decimada
189
em mesquinhas e desorganizadas aldeias.
Indígenas do Brasil, o que sois vós?
Selvagens? os seus bens já não gozais...
Civilizados? não... Vossos tiranos
Cuidosos vos conservam bem distantes
Dessas armas com que ferido têm-vos. De
sua ilustração, pobres caboclos, Nenhum
grau possuis. Perdestes tudo, Exceto de
covarde o nome infame...
190
Pobre raça infeliz, votada ao desprezo dos homens
que te usurparam quanto o homem tem de mais caro na vida:
pátria, liberdade, honra! Raça inocente e belicosa, que te
estendias descuidosamente pelo litoral do Atlântico desde o
Amazonas até o Prata, e em todas as direções por essas
189
O texto original registra deciminada, num evidente lapso de
revisão.
190
Nesse ponto e nos versos que seguem, Nísia Floresta faz outra vez
inserção de trecho de seu poema A lágrima de um caeté. [A passagem
citada esta à pp. 69 e 70 da reedição de Adauto Câmara, cit.].
vastíssimas majestosas florestas, atestando a onipotência de
Deus nos dias primitivos da criação - que lugar ocupas tu, há
três séculos e meio, nesta magnífica região onde te havia
colocado o Eterno e onde os homens da civilização vieram
com a religião do Cristo oferecer-te as suas vantagens para
fazer de ti um povo melhor?
Parece-nos ouvir a extinta e queixosa voz do bravo e
malfadado Caeté responder:
O terra de meus pais, ó Pátria minha, Que,
seus restos guardando, viste d'outros
Longo tempo a bravura disputar Ao feroz
estrangeiro a Pátria nossa, A nossa
Liberdade, os frutos seus!... Recolhe o
pranto meu, quando, dispersos, Pelas vastas
florestas tristes vagam Os poucos filhos
teus à morte escapos, Ao jugo de tiranos
opressores, Qu'em nome do piedoso céu
vieram Tirar-nos estes bens qu'o céu nos
dera, As esposas, a filha, a paz roubar-nos!
Trazendo d'além-mar as leis, os vícios,
Nossas leis e costumes postergaram!
Por nossos costumes singelos e simples
Em troco nos deram a fraude, a mentira,
De bárb'ros nos dando o nome que deles
Na antiga e moderna História se tira.
De feito, o filósofo, o cristão que conhece a história
do nosso Brasil não pode deixar de revoltar-se contra os
abusos da civilização dos seus povoadores europeus,
continuados por seus sucessores. O que resta hoje dessas
numerosas nações de aborígenes, cujo préstimo e fidelidade
tantos fatos comprovam antes e depois dos frutos colhidos
pelo incansável zelo de Nóbrega e do virtuoso Anchieta?
Anchieta em quem Deus havia reunido os talentos do poeta,
do naturalista e do filósofo, para demonstrar que se devia
inspirar grandes e nobres sentimentos a um povo que tinha
direito à melhor sorte e os elementos necessários para, bem
dirigido, conosco marchar na via do progresso civilizador!
Alguns jesuítas procuraram imitar esse grande gênio
do cristianismo, e os poucos de nossos conterrâneos que têm
percorrido nossas províncias, dando-se ao estudo analítico
da história das primeiras tentativas para civilizar os nossos
indígenas, sabem que imensas aldeias floresceram debaixo
da sábia administração de dedicados catequizadores.
Mas onde estão hoje essas florescentes aldeias, os
descendentes desses povos que as habitavam submetidos a
paternal direção, desenvolvendo sua inteligência em diversos
gêneros de artes úteis e agradáveis? O que é feito dessas
raças, de que saíram os Tabireçá, os Araribóia, os Camarão,
que, fiéis aos seus ingratos aliados, tantos e tão relevantes
serviços prestaram à causa da civilização, nas províncias de
S. Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco etc. etc?
Estes célebres nomes não bastariam para fazer corar
alguns dos nossos escrevinhadores e modernos guerreiros
que apresentam os nossos aborígenes como um povo infiel e
covarde?
Nobre Caeté, tu tinhas razão quando exclamaste:
Tabaiares miserandos! Raça escrava! Que a
voz, incautos, desse chefe ouvistes
Mandando exterminar os irmãos teus Para
um povo estrangeiro auxiliar! O anátema do
céu feriu-te, ó mísera!
Para ele um país tu conquistaste:
Em paga deu-te ele a ignomínia!
Em eterno desprezo eis-te esquecido,
Como estão tantos outros teus iguais! Que,
perdendo na Pátria os seus costumes, As
vantagens não gozam desses homens A
quem sacrificaram Pátria, honra!...
Tocamos nos indígenas em geral, e é das suas
mulheres que queremos somente falar.
Dignas, por suas virtudes inatas, de receberem
educação moral e intelectual que as colocasse a par de nossas
mulheres civilizadas, as aborígenes do Brasil foram as
primeiras vítimas imoladas à licença dos homens da
civilização, que vieram trazer ao seu país as vantagens da
vida européia.
Companheiras submissas e fiéis de seus maridos, a
quem seguiam na guerra e ajudavam com incansável zelo e
natural dedicação em diferentes misteres da vida errante, na
cabana ou fora dela, sua sorte era preferível à que depois
lhes trouxe o cristianismo de seus vencedores, envolvendo-
as na atmosfera de seus vícios, ligando-as ao férreo poste da
escravidão, e vendendo-as, como faziam, com inaudita
atrocidade, sob o mesmo céu onde Deus as havia feito nascer
com seus irmãos no pleno gozo da liberdade.
Falando-se-lhes de Cristo e dos salutares bens de sua
santa religião, desmentia-se em geral, pela prática havida
com elas e com os seus, as máximas que as tinham chamado
ao grêmio da igreja.
Não obstante, porém, essa conduta e a falta absoluta
de educação moral, as indígenas fornecem exemplos de
virtudes e de heroísmo que poderiam ser colocados a par dos
que têm apresentado as mulheres civilizadas de todos os
tempos e nações, com o duplo merecimento de serem tais
exemplos promovidos pela espontaneidade, que não pelo
cálculo que preside de ordinário às grandes ações dos povos
civilizados.
Quereis ver a mãe na sublime simplicidade do amor
materno? Contemplai as indígenas em todas as correrias que
eram e são forçadas afazer, seguindo os maridos através dos
bosques, perseguindo ou fugindo ao inimigo,
sobrecarregadas dos filhinhos, além dos objetos que são
obrigadas a levar. Segui-as, entre outras, na grande
emigração aconselhada tão pateticamente pelo seu grande
chefe Japiaçu, resignadas a deixarem aos usurpadores de sua
pátria todos os bens de que nela gozavam a fim de
subtraírem seus filhos à opressão e ao opróbrio que tanto
havia já pesado sobre seus pais. Ide vê-las, hoje mesmo,
como nós as vimos, nos restos de algumas aldeias, ao norte
e ao sul do Rio de Janeiro, desenvolverem, no estado
intermediário do selvagem e civilizado, ligadas dia e noite a
seus filhinhos por mais fortes vínculos de natural afeição do
que muitas mães da nossa sociedade, não deixando-os,
como muitas destas, em seio estranho, alguma vez mesmo
enfermos, para irem tomar parte nos prazeres do mundo, ou
satisfazerem uma etiqueta da sociedade.
Quereis ver a esposa terna, previdente, dedicada e
fiel? Contemplai a célebre Paraguaçu,
191
captando para o
esposo as simpatias e os favores da sua tribo, ajudando-o em
sua missão civilizadora, e civilizando-se ela mesma para
amenizar-lhe os dias, privado como se achava ele das
comodidades européias. Circunspecta e fiel aos seus
deveres, quando passou à França e apresentou-se na corte de
Catarina de Médicis, que lhe deu seu nome servindo-lhe de
madrinha, ela atraiu a admiração de todos por seu tipo
americano, suas graças ingênuas e sua dedicada afeição pelo
esposo, com quem voltou à Bahia, no mútuo e constante
empenho de utilizar aquela nascente colônia.
Quereis admirar o amor em toda a sua
espontaneidade e na grandeza da abnegação pessoal? Vede
Moema, a sensível e infeliz Moema, lançando-se ao mar,
seguindo a nado o navio que lhe levava o homem por quem
191
Paraguaçu (1503-1583), cristianizada com o nome de Catarina
Alvares, foi a esposa de Diogo Alvares Correia, o Caramuru. A seu
respeito formou-se uma lenda, divulgada pelo poema épico Caramuru,
(1781), de Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), segundo a qual ela
teria ido com o marido visitar a corte de Henrique II e Catarina de
Médicis, onde teria sido batizada com o mesmo nome da rainha de França.
só prezava a existência e por quem queria morrer não
podendo com ele viver.
192
Quereis, enfim, admirar a guerreira em toda a glória
das armas? Atentai para a intrépida esposa do célebre
Camarão,
193
seguindo, à frente de outras, as pegadas do
esposo, e duplicando-lhe os loiros colhidos em tantos
combates sobre o famoso solo pernambucano.
As privações e perigos que ela arrostou nas mais
difíceis crises, a coragem e constância que desenvolveu
quando as armas do denodado guerreiro indígena faziam,
com as de Henrique Dias e Vieira,
194
o terror dos aguerridos
batavos, foram muito superiores, pelas circunstâncias em
que se achava e pelos combatentes que a rodeavam, às que
imortalizaram Joana d'Are. Elas mereciam por sem dúvida
de seus vindouros, se não estátuas, que não sabemos ainda
erigir aos nossos gênios, ao menos justos tributos de
homenagem, que fizessem corar aqueles que têm propalado a
falsa reputação de covardia e inaptitude dessa raça que
cooperou para que o Brasil não fosse então arrancado ao
povo que o havia descoberto.
De tantos triunfos, porém, de tanta dedicação e
fidelidade, nenhuma glória, nenhum feliz resultado ficou às
192
Moema é outra personagem do poema Caramuru (Canto VI).
193
Clara,
esposa de Antônio Filipe Camarão, o Poti (1580-1648), chefe indígena que
se distinguiu na luta pela expulsão dos holandeses do Brasil. Clara
acompanhou o marido em todas as campanhas, tendo se destacado na
batalha de Porto Calvo (1637), onde comandou um batalhão feminino.
194
Henrique Dias (? - 1661), africano, e João Fernandes Vieira (1602-1681),
português, também se destacaram na expulsão dos holandeses do Brasil.
futuras gerações, que em pouco desaparecerão talvez
inteiramente do solo brasileiro.
A fidelidade conjugai foi e é quase sempre seguida
pela mulher indígena. Todos os que têm conhecimento da
sua história sabem que, fáceis antes de tomarem marido,
respeitam depois os laços que as ligam a este, sendo o
adultério olhado com horror entre os selvagens.
Boas mães e esposas fiéis: eis aqui duas qualidades
preciosas, comuns às nossas indígenas, dois vínculos santos
que ligam e enobrecem a família, vínculos que sabem no
estado selvagem respeitar, apresentando exemplos que bem
merecem ser considerados pelas mulheres civilizadas de
todos os países.
Quanto ao que se tem inventado e dito de sua
preguiça natural, falta de fé e repugnância por fixarem-se em
qualquer lugar, responderemos que vimos, nas aldeias que
visitamos, mulheres aborígenes mais constantemente
ocupadas em diferentes trabalhos do que mesmo as mulheres
das classes pobres de nossas cidades que, todavia, não se
faz passar por preguiçosas.
Elas são aptas para todo o gênero de trabalho e
artefatos e, tanto as que tivemos a nosso serviço como as
que se educaram entre nossa família, deram-nos sempre
provas da mais constante dedicação.
Estamos, pois, convencidos de que, sé a sua raça
não tem dado sempre exemplos tais, é antes por causa do
mau tratamento que com ela se emprega do que por defeito
de sua índole geralmente dócil e boa.
Não podemos, portanto, ver sem mágoa e indignação
o desapreciamento em que se tem os aborígenes, quando de
grandes virtudes são capazes e tão úteis nos podiam ser.
As mulheres são não somente mais asseadas que as
africanas e mais próprias a ajudar-nos a criar nossos filhos,
servindo-nos com fidelidade e submissão, sem o servilismo
e vícios das infelizes escravas, mas também susceptíveis das
mais doces e nobres afeições. Sua alma encerra preciosos
tesouros, que uma educação bem dirigida abriria àqueles
mesmos que tanto desdenham a sua raça.
Os resultados do método paternal empregado pelos
verdadeiros apóstolos da civilização cristã nesta parte da
América atestaram que os aborígenes eram susceptíveis de
aperfeiçoarem-se em qualquer arte e dignos de concorrerem,
por sua bravura, docilidade e constância, para o
engrandecimento e glória do Brasil.
Que eles não mereciam o desprezo em que foram
depois deixados, desejamos que não o ateste geral, como já
parcialmente o tem atestado, a raça africana arrastada às
nossas praias
"Por sedenta ambição, por crime atroz!"
195
Quando, por sábio decreto de um rei justo e humano,
a revoltante escravidão dos nossos indígenas foi abolida e a
195
Outra transcrição de um verso do poema A lágrima de um caeté (p. 68 da
reedição de Adauto Câmara).
introdução dos infelizes africanos,
196
veio substituir o
vergonhoso tráfico que em todo o Brasil se fazia com
aqueles - julgou-se conveniente procurar exterminar os que
acabavam de libertar-se, de direito que não de fato,
porquanto a perseguição continuou debaixo de outro caráter.
E ainda em nossos dias - com horror o sabemos! - caçam-se
os selvagens em suas matas como animais ferozes, para
apreendê-los e arrancar-lhes as mulheres e filhos, que se
retêm e fazem servir como escravos... em muitas roças e
casas do interior das províncias.
197
Debalde um ou outro amigo da humanidade tem
querido generalizar o sistema conciliador que faria esquecer a
esses infelizes um passado de horror e de vergonha para
povos civilizados. Seus esforços têm sido quase sempre
frustrados. E digamo-lo com franqueza: enquanto os
louváveis esforços desses verdadeiros amigos da humanidae
não forem coadjuvados por uma vontade decidida do
governo em tomar medidas enérgicas para substituir, à
perseguição e barbaria havidas com esses infelizes, maneiras
conciliadoras e humanas, a missão de civilizar os selvagens
não passará de uma farsa com que se pretende entreter e
distrair os espectadores do trágico drama, horrorosamente
196
Foi em 1559 que a Coroa Portuguesa autorizou o ingresso de escravos
negros no Brasil.
197
Desde o século XVII se iniciou o movimento para a libertação do
cativeiro índio no Brasil. Os documentos régios e as bulas papais anteriores
eram desmentidos pela realidade da extcrminação do silvícola. Basta
comparar as palavras da autora, e o depoimento que traz em seguida, com o
fato de que era de 27 de setembro de 1831 a lei que extinguia a servidão dos
índios prisioneiros de guerra no Brasil.
repetido em nossas florestas e retiradas habitações pelos
dignos descendentes de seus primeiros exploradores.
LXI
Não comentamos - apenas simplificamos, e muito -
as causas que têm privado o Brasil de numerosos e fortes
braços, de que tanta precisão tem. Manda ele procurar no
estrangeiro - à custa de imensas somas e sacrifícios, exposto
a eventualidades desagradáveis que por mais de uma vez se
têm dado - soldados, quando possui em seu próprio seio
com que formar, querendo, numerosas e respeitáveis legiões
de bravos.
Negligenciando-se a civilização dos selvagens, tem-
se não somente tirado ao Brasil os seus mais legítimos e
empenhados defensores, mas também, a todos os seus
filhos, a vantagem de serem servidos por braços livres dos
que, nascendo em nosso mesmo solo, não nos teriam por
sem dúvida transmitido vícios estranhos, inextinguíveis
calamidades.
Aqueles que são levados pela avareza ou por um
funesto prejuízo - que a nossa civilização não tem até aqui
podido desarraigar do espírito de todos - olharão estas
considerações como verdadeira utopia. E nós, os amigos dos
infelizes aborígenes, não sabemos quais merecem ser mais
lamentados, se estes ou aqueles.
Sabe-se os terríveis abusos que se continua a cometer
procurando-se catequizar os selvagens. Todos terão lido a
narrativa que, a respeito, fizeram diversos e verídicos
viajantes, a quem, doando Deus sentimentos humanitários,
não pode deixar de profundamente magoar a sorte desses
infelizes.
Entre outros, ainda há pouco lemos o muito
interessante escrito do sr. Teófilo Benedito Ottoni
198
-
Viagens às Margens do Mucuri - em que este digno
brasileiro fala deles com uma imparcialidade e esclarecida
justiça, que muito nos tocou. Permita-se-nos citar aqui
algumas linhas do relatório dessa viagem, que comprovam
parte do que dissemos e pensamos a respeito deles: "Em
1849 um sargento e os poucos soldados que ficaram no
quartel de Santa Cruz traziam os selvagens em contínuos e
duros trabalhos, e castigaram-nos com palmatória, chicote e
tronco. No entanto, a medida dos sofrimentos dos infelizes
só transbordou quando os seus cruéis opressores também
lhes tomaram as mulheres e filhas, fazendo do quartel um
horroroso serralho.
(...)
"Atualmente o encontro dos homens da espingarda
com os selvagens prova o terror de que estão estes
possuídos e é uma confissão solene dos atentados cometidos
outrora por aqueles.
"Quando uma tribo bravia encontra nos matos um
homem de espingarda, o movimento instantâneo dos
selvagens é correrem e embrenharem-se. E o único meio de
198
Teófilo Benedito Ottoni (1807-1869): pensador brasileiro e político
liberal do século XIX. Teófilo Ottoni foi também empresário, tendo por
quase dez anos (1850-1859) se dedicado à colonização do vale do Rio
Mucuri, em Minas Gerais. Nesse período construiu uma cidade, abriu uma
rodovia, tratou de civilizar os índios e promoveu a imigração européia
para a região do Mucuri.
detê-los e obrigá-los a chegarem à fala é bradar-lhes
repetidas vezes estas palavras sacramentais: -Jac-jemenuck,
Jac-jemenuck - que querem dizer: - Já estamos mansos, já
não somos matadores.
"Ouvindo esta exclamação, em que os crimes antigos
são confessados pelos catequizadores, o selvagem cessa de
fugir, depõe o arco e ordinariamente responde: - Sincorana,
Sincorana - que quer dizer Tenho fome, tenho fome."
Em outra parte, falando ainda das perseguições que
tornaram infrutíferas suas medidas conciliadoras para atrair
os selvagens, ele acrescenta: "Traídos e decimados os
infelizes se concentraram pelas brenhas para fugirem à
escravidão, ao bacamarte e ao veneno, porque, para
vergonha da civilização, o veneno tem sido também
empregado contra os selvagens nas imediações do Mucuri.
"Conta-se até o horroroso caso de uma tribo inteira
vítima dos sarampos que, com o fim de exterminá-la, lhe
foram pérfida mente inoculados, dando-se-lhes roupas de
doentes atacados daquele mal.
"(...) A mor parte dos atentados cometidos pelos
selvagens nestes últimos anos tem sido atenuados pela
atendivel circunstância de haverem sido cometidos em defesa
da liberdade de seus filhos e da pudicícia
199
de suas
mulheres."
Tais são as causas que levaram quase sempre em
todos os tempos os nossos selvagens a mostrarem-se cruéis.
Tiveram e terão sempre razão para isso, enquanto os nossos
civilizadores cristãos não quiserem compreender que
texto original está pudícia, outra errata evidente.
somente palavras persuasivas e práticas evangélicas - e não o
ferro, o veneno, e a licença - devem empregar para a
civilização dos restos dessa grande e nobre raça.
Do pouco que havemos expendido relativamente às
qualidades naturais da mulher indígena, queremos concluir
que ela é digna de ocupar outra posição em nossa terra, e que
o desprezo com que foi sempre e continua a ser olhada a sua
raça pelas nossas outras populações, é um abuso
antinacional, anticristão, que os nossos governantes e o
nosso clero devem fazer desaparecer, empregando, por bem
da pátria e da igreja, meios mais próprios e seguros para
consegui-lo. A humanidade e a civilização reclamam
imperiosamente deles convenientes medidas para arrancar
essa pura, digna porção do povo brasileiro à vida em que
vegeta e torná-la útil, como incontestàvelmente pode ser, a
uma e a outra.
Oferecendo o nosso mesquinho obolo à nobre causa
das nossas aborígenes, temos concluído os pontos principais
que fazem o objeto deste Opúsculo, pontos que
procuraremos melhor desenvolver, se o tempo e a saúde,
que hoje nos são contrários, voltarem mais propícios e
risonhos.
Resta-nos, depois de uma observação mais, invocar
ainda uma vez para as nossas mulheres em geral - melhor
educação, destino mais digno delas.
LXII
Por mais rigorosas que tenham sido as instituições
dos povos, concernentes à exclusão absoluta da mulher de
toda a sorte de governo público, quem há aí que ignore ter
ela a maior influência nas ações dos homens e, por
conseguinte, nos destinos dos povos?
Desde o último subalterno até o mais alto dos
funcionários, são todos mais ou menos, não diremos
somente inspirados, mas dirigidos por seu amor - senão por
seus caprichos, que têm mais de uma vez desviado da senda
de seus deveres os maiores gênios, os caracteres mais
abalizados.
Passamos em silêncio o vergonhoso predomínio da
mulher sem mérito na vida privada do homem, para apontar
somente aquele que influi em sua vida pública.
Quanta vez a pena do circunspecto magistrado tem-
lhe tremido na mão, firmando uma sentença contra sua
consciência, para satisfazer o pedido de uma esposa que lhe
implora pelo réu de justiça! Quantas outras, o guerreiro
impávido à frente do inimigo da pátria, no campo de batalha,
curva o joelho e depõe a espada aos pés de uma mulher
amada, se esta exige dele o sacrifício de sua glória e mais
ainda o de sua honra! E os monarcas? Não têm alguns
fechado os ouvidos às reclamações de seus súditos, para
seguirem os ditames do coração que lhes fala por um desses
seres destinados a abaterem o orgulho do homem, curvando-
o à sua vontade?
Se, pois, apesar do quanto se tem dito e se
continuará a dizer da fragilidade da mulher e da preeminência
da razão do homem, este dobra quase sempre essa razão ao
amor daquela, árbitro de suas ações, quem mais do que a
mulher precisa de uma boa educação, correspondente às
condições em que se acha colocada? Quem mais do que ela
deve esclarecer o seu espírito, de sorte a não abusar do
império que exerce sobre o homem e dirigir este à sua
própria ventura e ao bem da humanidade?
A vós, pais de família, a vós cumpre remediar os
erros das gerações extintas! Educai vossas filhas nos sólidos
princípios da moral, baseada no perfeito conhecimento de
nossa santa religião, no exemplo de vossas virtudes, quer
domésticas, quer cívicas. Em vez da leitura de inflamantes e
perigosos romances que imprudentemente lhes deixais livre,
fornecei-lhes bons, escolhidos livros de moral e de filosofia
religiosa, que formem o seu espírito, esclareçam e
fortifiquem sua razão. A história, principalmente a de nossa
terra, de que bem poucas se ocupam, é um estudo útil e
agradável, mais digno de ocupar as suas horas vagas que
certos contos de mau gosto, inventados pela superstição ou
fanatismo ignorantes para recrear a mocidade sem espírito.
Fazei-lhes compreender desde a infância que a mulher não
foi criada para ser a boneca dos salões, a mitológica-ridícula
divindade a cujos pés queimam falso incenso os desvairados
adeptos do cristianismo. Inspirai-lhes o sentimento de sua
própria dignidade e a firme resolução de mantê-la intacta e
vantajosamente, por ações dignas da mulher, dignas da
cristã, dignas da humanidade.
Bani de seu espírito os errôneos preconceitos que por
aí vogam a respeito da fraqueza do sexo, fazendo-as
penetrar-se desta verdade evangélica: a fraqueza escudada
nas virtudes cristãs será sempre invencível.
Pais, governo, povos do Brasil! Elevai os olhos para
esse esplêndido firmamento que se estende variando
constantemente de mil encantadoras cores por sobre as
nossas cabeças. Volvei-os depois para essa perene pomposa
vegetação, incansável de expandir a vossos pés seus ricos
tesouros, esperando da vossa mão direção mais digna dela.
Contemplai todos esses prodigiosos dons da Providência,
desdobrados a olhos indiferentes, e recolhei-os depois em
vossos pensamentos, e meditai...
Não vos diz a consciência que a mulher nascida nesta
vigorosa terra superabundante de magnificências naturais,
respirando sob um céu radiante, no meio da poesia de tão
admirável natureza, não se pode limitar ao papel que tem até
hoje representado?
Não sentis que a sua missão nesta parte da América
civilizada, tão balda ainda de instituições caridosas, não deve
ser a de recolher factícios triunfos tributados à matéria,
quando o seu espírito pode e deve pretender a elevar-se a
mais dignas e nobres aspirações, promovendo na terra o bem
do seu semelhante?
À Providência, colocando-vos tão vantajosamente,
pareceu chamar-vos a comandar um dia os destinos de toda a
América do Sul, assim como aos filhos da União os de toda
a América do Norte.
Eia! Se, com mais rico solo do que o dos Estados
Unidos, faltou-vos a mola principal - a educação - para a par
deles marchardes, preparai-vos ao menos a satisfazer
dignamente a parte essencial da grande missão que vos fora
destinada.
Educai, para isto, a mulher e com ela marchai avante,
na imensa via do progresso, à glória que leva o renome dos
povos à mais remota posteridade!
POSFÁCIO
Ao conhecer o trabalho de Peggy Sharpe-Valadares
sobre o Opúsculo Humanitário, de Nísia Floresta, a pri-
meira coisa que me ocorreu foi como teria ela, uma ame-
ricana de Illinois, encontrado esta escritora tão pouco
conhecida entre nós, suas conterrâneas, e se interessado
por um texto tão antigo, voltado para questões da condi-
ção feminina brasileira.
Mais tarde, a própria Peggy esclareceu tê-la conhe-
cido de forma casual, em meio a pesquisas nas bibliotecas,
levada pelo interesse de saber mais sobre a história das
mulheres em nosso país. Durante três anos — de 1979 a
82 — ela residiu no Brasil como professora visitante-
adjunto da Universidade Federal do Maranhão e, mesmo
depois, quando retornou à Universidade de Illinois onde
leciona Língua Portuguesa e Literatura Luso-Brasileira,
continuou pesquisando e escrevendo ensaios sobre escri-
toras brasileiras.
Além de Nísia Floresta, Peggy Sharpe-Valadares
"descobriu" também Inês Sabino, Júlia Lopes de Almei-
da, Ercília Nogueira Cobra, Adalzira Bittencourt, Clarice
Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinon e Marina
Colasanti, que já tiveram alguns de seus textos reunidos
numa antologia e divulgados junto aos estudantes de por-
tuguês das universidades americanas.
Este seu trabalho de divulgação da Literatura Bra-
sileira escrita por mulheres é agora acrescido pela recupe-
ração de um texto de Nísia Floresta Brasileira Augusta,
o Opúsculo Humanitário, publicado em 1853 no Rio de
Janeiro, e que se mantinha até hoje — 136 anos depois
— esgotado em sua primeira edição.
Se assim inéditos estão os livros de Nísia Floresta,
não é de se estranhar que tão pouco se conheça sobre sua
autora, a norte-rio-grandense Dionísia Gonçalves Pinto
(ou Freire Pinto), que em meados do século passado es-
candalizava a sociedade carioca com idéias avançadas
para a época sobre a educação feminina, a abolição da
escravatura e publicava livros e mais livros a respeito.
Aliás, Nísia Floresta deve ter sido a primeira mu-
lher no Brasil a se utilizar do jornal para a divulgação de
idéias que hoje chamaríamos feministas. Seu Opúsculo
Humaniíário é o resultado da reunião de artigos publica-
dos primeiro no Diário do Rio de Janeiro e depois n'O Li-
beral, durante vários meses, em 1852 e 1853. Além desses
artigos publicou também alguns poemas, novelas e ensaios
acerca da condição feminina, que, sem dúvida, devem ter
repercutido entre os leitores da "grande imprensa" da épo-
ca, antecipando em muito um debate que só mais tarde
volta a acontecer.
O Opúsculo Humanitário pode ser considerado
como a síntese do pensamento da autora sobre a educação
formal e informal de meninas. Através dele podemos per-
ceber também sua grande erudição (adquirida em leituras
e nas viagens à Europa), que ela bem demonstra nas de-
zenas de citações que faz de autores, na análise e comen-
tários de vários livros, alguns bem recentes, do ano ante-
rior à publicação do Opúsculo. Neste livro Nísia nos conta
a história da condição feminina através dos séculos, em
diversas civilizações, da antigüidade clássica ao seu tem-
po, relacionando o desenvolvimento intelectual e material
do país (ou o seu atraso), ao lugar ocupado pelas mulhe-
res na sociedade. Por fim trata do Brasil, da brasileira, da
situação do ensino e das escolas para meninas, aliás o
motivo mesmo de toda a reflexão anterior.
As posições sustentadas por Nísia Floresta pode-
riam ser assim resumidas: o progresso de uma sociedade
depende da instrução que é oferecida à mulher e só a
educação moral e religiosa, incentivadas desde cedo na
menina, fariam dela melhor esposa e melhor mãe. Tal
tese, vista com olhos de hoje, não apresenta novidades e
até poderia sugerir um pensamento conservador. Mas se
a analisamos lembrando a sociedade patriarcal de meados
do século XIX, os preconceitos mouriscos que enclausu-
ravam as mulheres nas próprias casas, a total falta de
direitos de estudar, escolher o marido, criar os filhos e até
de manifestar uma simples opinião, as idéias de Nísia
Floresta crescem e adquirem uma dimensão inusitada, re-
velando uma mulher consciente que ousou erguer-se bem
acima da mediocridade imposta ao seu sexo, publicando
livros nos quais o defendia.
A educação das meninas, aliás, foi um dos grandes
temas liberais em nosso país na segunda metade do sé-
culo XIX, aliado à visão romântica de um ensino calcado
na religião e na moral, que estimulasse a dignidade femi-
nina e a preparasse para o papel que lhe era determinado
socialmente. Via-se não apenas a mulher em si, mas sua
função social de mãe responsável pela criação dos filhos,
ou melhor, do futuro homem. Mulheres sem instrução,
sem nenhuma "prenda de espírito", sem convívio social,
sem alguma ciência do mundo e da vida, não poderiam
jamais ser as educadoras do homem que a sociedade exi-
gia. Continuariam sem amamentar os próprios filhos, a
entregá-los a qualquer escrava para os criar, a interná-los
em colégios distantes de onde retornavam crescidos e es-
tranhos, a viverem isoladas, sem participar de nada que não
fosse exclusivamente o trabalho doméstico. Ou nas palavras
de Gilberto Freire, continuariam a viver "ignorando que
houvesse Pátria, Império, Literatura, e até rua, cidade,
praça".
É neste horizonte que devemos incluir o pensamento
de Nísia Floresta para melhor compreender suas colocações,
perceber sua intenção de influir na mentalidade
preconceituosa da época e as propostas de reformas —
sociais, morais e educacionais — presentes em sua obra. E
desta forma, o Opúsculo Humanitário surge para nós,
leitoras/es do século XX, investido de enorme importância
não só por conter revelações acerca das conquistas
femininas, como por nos revelar as reflexões educacionais de
Nísia, seu empenho nesta luta, suas expectativas e
frustrações.
O mérito maior desta iniciativa de Peggy Sharpe-
Valadares reside justamente aí, na divulgação deste im-
portante capítulo de nossa história intelectual, por tanto
tempo ignorado. Ao que se impõe acrescentar a cuidadosa
atualização do texto, bem como seu enriquecimento com as
informações adicionadas tanto na introdução como nas notas
de pé de página.
Enfim, rompe-se o silêncio e a voz de Nísia Floresta
de novo ecoa, fazendo-nos lembrar o pioneirismo de sua
luta: "Educai as mulheres!"
Constância Lima Duarte
Fevereiro de 1989.
Ao conhecer o trabalho de Peggy Sharpe-
Valadares sobre o
Opúsculo Humanitário,
de Nísia
Floresta, a primeira coisa que me ocorreu foi como
teria ela, uma americana de Illinois, encontrado esta
escritora tão pouco conhecida entre nós, suas
conterrâneas, e se interessado por um texto tão antigo,
voltado para questões da condição feminina brasileira.
(...)
Além de Nísia Floresta, Peggy Sharpe-
Valadares "descobriu" também Inês Sabino, Júlia
Lopes de Almeida, Ercília Nogueira Cobra, Adalzira
Bittencourt, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles,
Nélida Pinon e Marina Colasanti, que já tiveram
alguns de seus textos reunidos numa antologia e
divulgados junto aos estudantes de português das
universidades americanas.
Este seu trabalho de divulgação da
Literatura Brasileira escrita por mulheres é agora
acrescido pela recuperação de um texto de Nísia
Floresta Brasileira Augusta, o
Opúsculo Humanitário.
(...)
Se assim inéditos estão os livros de Nísia
Floresta não é de se estranhar que tão pouco se
conheça sobre sua autora. Nísia Floresta deve ter sido
a primeira mulher no Brasil a se utilizar do jornal para
a divulgação de idéias que hoje chamaríamos
feministas. Seu
Opúsculo Humanitário
é o resultado
da reunião de artigos publicados primeiro no
Diário
do Rio de Janeiro
e depois n'
O Liberal,
durante vários
meses, em 1852 e 1853. Além desses artigos, publicou
também alguns poemas, novelas e ensaios acerca da
condição feminina, que, sem dúvida, devem ter
repercutido entre os leitores da "grande imprensa" da
época, antecipando em muito um debate que só mais
tarde volta a acontecer.
O
Opúsculo Humanitário
pode ser
considerado como a síntese do pensamento da autora
sobre a educação formal e informal de meninas.
CONSTÂNCIA LIMA DUARTE
Em todos os pontos do Brasil,
qualquer homem ou mulher que saiba
ler, embora não seja no português
classicamente belo de A. Herculano, e
tem meios de montar uma casa de
educação, julga-se para logo habilitado a
arrogar o titulo de diretor de colégio,
caricaturando o que na Europa ilustrada
assim se denomina. Nenhum exame em
regra se exige desses educadores da
juventude que terá de fazer um dia a
glória do nosso país: eles ensinam pelos
compêndios que querem, instituem
doutrinas à sua guisa. O pedante goza
das mesmas garantias, e quase sempre de
maiores vantagens, que as inteligências
superiores.
ISBN 85-249-0165-9
Livros Grátis
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