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CADERNOS DA
TV ESCOLA
ESTE CADERNO COMPLEMENTA A SÉRIE DE VÍDEOS DA TV ESCOLA
ÍNDIOS NO BRASIL 2
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL
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Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso
Ministro da Educação
Paulo Renato Souza
Secretário de Educação a Distância
Pedro Paulo Poppovic
Secretária de Educação Fundamental
Iara Glória Areias Prado
Departamento de Políticas da Educação Fundamental
Walter Kiyoshi Takemoto
Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas
Ivete Campos
Diretor de Produção e Divulgação de Programas Educativos
José Roberto Neffa Sadek
Coordenação Geral
Vera Maria Arantes
Projeto e Execução Editorial
Elzira Arantes (texto) e Alex Furini (arte)
Informações:
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Fundamentai
Secretaria de Educação a Distância
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, sobreloja, sala 100 CEP 70047-900
Caixa Postal 9659-CEP 70001-370-Brasília/DF-Fax: (061)410.9158
Internet: http://www.mec.gov.br/seed/tvescola
Índios do Brasil 2 / Secretaria de Educação a Distância,
Secretaria de Educação Fundamental. - reimpressão. -
Brasília : MEC . SEED . SEF, 2001.
96 p.: il. - (Cadernos da TV Escola, ISSN 1517-
2333)
1.Diversidade Linguistica 2 Educação indígena.
3Terra e Território Título II. Série
CDU 316.343.43 (=81-82)
SUMARIO
As línguas indígenas
Bruna Franchetto
Povos, aldeias, histórias e culturas
Bruna Franchetto
Novos e velhos saberes
Dominique T. Gallois
Terra e território
Virgínia Valadão
Fontes das ilustrações
Capítulo 1
AS LÍNGUAS INDÍGENAS
desenvolvimento das pesquisas de ciências
como a antropologia, a etnologia e a linguísti-
ca permite que tenhamos hoje informações e
conhecimentos aprofundados a respeito das popula-
ções indígenas que vivem no Brasil. Infelizmente, é
raro que essas informações e esses conhecimentos cir-
culem fora dos ambientes académicos, onde traba-
lham os pesquisadores especializados.
É frequente encontrarmos perguntas e afirma-
ções contendo erros e equívocos, expressando pre-
conceitos ou imagens estereotipadas, que nadam
a ver com a realidade indígena. Fala-se de 'índio',
uma palavra geral e genérica, no singular, como se
existisse somente uma sociedade ou um tipo de po-
pulação indígena. Frases como 'o índio mora em
ocas', 'o índio come mandioca' etc, pretendem afir-
mar que todos os índioso iguais e vivem da mes-
ma maneira. Esse 'índio genérico' é contraposto aos
civilizados, aos membros de nossa sociedade, mo-
derna e complexa.
A humanidade é formada por homens iguais entre
si, na medida em que pertencem à espécie huma-
na e, ao mesmo tempo, diferentes, na medida em
queo muitos os povos e que suas culturaso
bem distintas.
As línguas indígenas
sa. Por exemplo, no noroeste do estado de Amazonas
temos 23 mil índios tikuna (ou ticuna), dos quais ou-
tros 10 mil vivem na Colômbia e no Peru; e quase 3 mil
tukano, dos quais também há mais de 6 mil vivendo na
Colômbia. Os terena, no Mato Grosso do Sul,o mais
de 15 mil; cerca de 15 mil makuxi (ou macuxi) vivem em
Roraima, e mais de 8 mil habitam a Guiana Inglesa.o
4 mil os kayapó dos estados de Mato Grosso e Pará.
No extremo oposto, há etnias muito pequenas, que
sobrevivem com os poucos remanescentes de povos
outrora numerosos: por exemplo, seis arikapu em
Rondônia, 43 apiaká em Mato Grosso, 15 kwazá em
Rondônia. Muitas vezes, pequenas etnias se juntam a
outras maiores, para conseguir sobreviver e crescer.
Em várias aldeias vivem pessoas pertencentes a
mais de uma etnia nas quais se fala em consequên-
cia, mais de uma língua. Por exemplo, nas aldeias dos
waiwai, no Amazonas, vivem também os xereu, os
katuena e os mawayana, todos falantes de línguas
karib; e os warekena, de língua aruák.
Há ainda situações em que povos distintos for-
mam um sistema social multiétnico (muitas etnias) e
multilingue (muitas línguas), com várias aldeias. Um
exemplo conhecido ocorre no Alto Xingu, no Mato
Grosso. Ali, ao longo de pelo menos cinco séculos,
povos de língua aruák (como os mehinaku, os waurá
e os yawalapíti), outros de língua karib (como os
kuikúro, os kalapálo, os matipú e os nahukwá), e ou-
tros ainda de língua tupi (como os kamayurá e os
awetí) passaram a ter relações amistosas, de paz, fa-
zendo alianças, trocando artefatos, casando-se entre
si e celebrando rituais em conjunto.
Os povos do Alto Xingu passaram a compartilhar
histórias (ques chamamos de mitos), formas de pa-
rentesco e de organização familiar, festas, crenças,-
bitos alimentares, técnicas agrícolas, artes e artesanato,
Capítulo 1
desenvolvendo assim uma história em comum.o
obstante, cada povo do Alto Xingu continua mantendo
sua própria identidade, sua língua, seu território e suas
especialidades na fabricação dos objetos que usam
como meio de troca e que circulam por todas as aldeias.
Sistemas sociais como o do Alto Xingu, que inclui
grupos parecidos, maso iguais, existem em outras
partes do Brasil e constituem verdadeiras redes de co-
municação entre etnias distintas.
A grafia dos nomes indígenas que utilizamos aqui
obedece aos critérios da Associação Brasileira de An-
tropologia; o princípio básico consiste em transcre-
ver na escrita alfabética os sons das línguas originais.
A maioria dos nomes que usamoso corresponde
às denominações que os próprios povos indígenas uti-
lizam para se referir a si mesmos; foi dada pelos con-
quistadores, ou pelas populações não-indígenas que
moram na região. Muitas vezeso nomes que os bran-
cos ouviram de outros povos (como txukarramãe, nome
pelo qualo conhecidos os metuktire, povo kayapó);
ou inventaram a partir de alguma característica (como
cinta-larga, beiço-de-pau); ouo nomes de aldeias
(como kuikúro, uma aldeia antiga que foi habitada no
século passado pelos lahatuá ótomo, no Alto Xingu).
A maioria dos brancos - com exceção de pesquisa-
dores antropólogos, ou linguistas -o sabe as línguas
indígenas e nem se interessa em investigar a maneira
pela qual o povo se autodenomina. Como diz o antro-
pólogo Beto Ricardo, "nem sabemos o nome deles".
A diversidade linguística
Outra informação errada que encontramos com frequên-
cia é que "o índio brasileiro é tupi", ou que "os índios
As línguas indígenas
falam tupi (ou tupi-guarani)". Também ouvimos dizer que
os índios falam dialetos, eo línguas. Ou se usa o ter-
mo 'idioma' para se referir a uma língua indígena.
Aqui, mais uma vez, transparecem consequências
da ignorância e do preconceito. Assim comoo há
um índio genérico, mas muitas etnias indígenas dis-
tintas, tambémo há apenas uma língua indígena.
Todo ser humano nasce com capacidade de falar
uma língua.o existe sociedade humana sem língua
eo existe indivíduo queo possa adquirir e che-
gar a falar plenamente a língua de seu povo - a me-
nos que tenha problemas físicos.
Uma vez exposto a seu meio linguístico, qualquer
ser humano adquire uma língua; e pode aprender
outras, ao longo da vida. E toda língua é uma estrutu-
ra complexa que compreende:
um sistema que organiza os sons (os linguistas
chamam de sistema fonológico);
um sistema que permite a construção de pala-
vras (que os linguistas chamam de sistema
morfológico);
regras e princípios que permitem construir fra-
ses e discursos (que os linguistas chamam de
sistema sintático).
O ser humano sabe usar sua própria língua para ex-
pressar pensamentos, emoções e sentimentos, dese-
jos e intenções; sabe usá-la com sucesso para se co-
municar satisfatoriamente com os outros, e até para
persuadir, enganar e mentir; sabe usá-la para construir
discursos políticos, criar, fazer poesia, narrativas, can-
tos, rezas, descrições e relatos.
As línguas indígenaso línguas no sentido pleno do
termo, como qualquer outra língua falada no mundo.
Capítulo 1
o existem línguas mais pobres ou mais ricas; lín-
guas com poucas palavras ou com vocabulário extenso;
línguas sem gramática, ou com gramática simples, em
oposição a línguas com gramática complexa; ou línguas
com sons esquisitos e outras com sons normais.
o existe língua primitiva. Toda língua é completa
e rica, servindo plenamente para todos os usos que
dela se possa fazer.
As línguas naturais humanas mudam no tempo, e
cada uma tem sua história. Elas incorporam palavras
emprestadas (empréstimos linguísticos) de outras;
além disso, com o tempo, seus sistemas gramaticais se
modificam. O tempo da mudança linguística é longo,
trata-se de um processo que ocorre muito lentamente.
Uma língua apenas desaparece se desaparecerem
seus falantes: ou fisicamente, em consequência de
genocídio (como aconteceu com muitas etnias indígenas
a partir da conquista por parte dos europeus), ou cultu-
ralmente, quando seus falanteso assimilados à força
por outro povo mais forte, dominador e colonizador.
Na história brasileira da colonização, muitos po-
vos indígenas foram submetidos a esses processos
de assimilação, sendo com frequência proibidos de
falar suas línguas nas missões ou nas escolas.o
obstante, o Brasil indígena continua a ser um país
multilingue.
Etnias e línguas
Existem no Brasil cerca de 210 etnias e 170 línguas in-
dígenas ainda faladas, sendo que a grande maioria se
concentra na Amazônia Legal. A diferença entre
número de etnias e número de línguas se deve a dois
fatores. O primeiro é que há etnias que falam varian-
As línguas indígenas
tes dialetais de uma mesma língua. Cabe aqui a per-
gunta: qual a diferença entre língua e dialeto?
Quando dois indivíduos declaram que estão falando
diferente (o que é perceptível tanto por quemo conhece
a língua, quanto pelos linguistas que querem estudá-la),
mas podem se comunicar e se entender com facilidade, ou
seja, há entre eles inteligibilidade mútua, temos dois dia-
letos, ou duas variantes dialetais da mesma língua.
Quandoo há inteligibilidade mútua, estamos
diante de línguas distintas, mesmo se os falantes (ou
s que estamos ouvindo, ou o linguista que estuda)
percebem semelhanças entre ambas.
Por exemplo: no Alto Xingu, os kuikúro, os
kalapálo, os matipú e os nahukwá falam variantes dia-
letais de uma mesma língua, que é da família karib.
Essas variantes se distinguem pelas denominações
diferentes de um mesmo objeto: cesto é atáu em
kalapálo e nahukwá, e tatohongo em kuikúro (as le-
tras ngo pronunciadas com o mesmo som de nos-
sa letra 'n' antes de 'g' na palavra 'manga').
Outra diferença se nota ao prestar atenção ao rit-
mo das falas. É o que ocorre com os ritmos diferentes
(sotaques) que caracterizam as variantes do português
falado por nordestinos e por gaúchos, por exemplo.
Mais um fator faz o número de etnias ser maior que
o de línguas: alguns povos indígenas deixaram de falar
suas línguas de origem, ao sofrer uma história muito
violenta de colonização. Contudo, o fato deo falarem
mais suas línguas originaiso significa que tenham
deixado de ser índios; eles se reconhecem eo reco-
nhecidos como índios, com organizações sociais e cul-
turas distintas entre si e diferentes, ao mesmo tempo, da
sociedade nâo-indígena envolvente.
É o caso de alguns povos que habitam o Nordeste
brasileiro, remanescentes dos que ocupavam a costa
atlântica e foram os primeiros a sofrer os efeitos da co-
Capítulo 1
Ionização, como os kariri de Alagoas e Ceará, os pan-
kararu de Pernambuco, ou os pataxó da Bahia. Atual-
mente, vários desses povos estão querendo reaprender
sua língua, ou aprender outra de algum povo vizinho.
Os pataxó, por exemplo, procuram saber o que ainda
existe de documentação de sua própria língua, perten-
cente ao tronco, ou visitam os maxakali em Minas
Gerais, que também falam uma língua.
Falamos de línguas karib,, tupi. O que quer dizer
isso? Com base em semelhanças de vocabulário e, às
vezes, até de gramática, as línguas indígenas faladas
no Brasil se agrupam em famílias e as famílias se
agrupam por sua vez em troncos linguísticos. Há tam-
m línguas que os linguistas chamam de 'isoladas',
queo pertencem a uma das famílias linguísticas
conhecidas.
A linguística dedicou, e continua dedicando, mui-
to estudo ao que chama de classificação genética das
línguas indígenas. O linguista compara listas de pala-
vras de línguas diferentes para ver se pertencem a uma
mesma família. Compara também línguas de uma
mesma família com outras de outra família, para ver
se há semelhanças suficientes para considerar que tais
famílias pertencem a um mesmo tronco.
Supõe-se que, assim como diferentes dialetos se
formaram pelo fato de os falantes de uma mesma lín-
gua se dividirem em grupos que foram se distancian-
do para habitar regiões diferentes, o mesmo deve ter
acontecido com línguas pertencentes a uma mesma
família ou a um mesmo tronco.
Quando fala em família linguística, o linguista está
dizendo que as línguas dessa famíliam uma origem
comum; houve uma língua-mãe que, em tempos an-
As línguas indígenas
Capítulo 1
tigos, pertencia a uma etnia. Depois, ao longo de
centenas de anos, foi se dividindo em povos que mi-
graram para outras regiões e, na maioria dos casos,
deixaram de ter relações entre si, ou mantiveram re-
lações esporádicas.
A história das línguas e de suas mudanças no tem-
po é um assunto fascinante. Supõe-se que a língua-mãe
de um tronco linguístico, composto de famílias, tenha
existido, com o povo que a falava, em um passado bem
longínquo, talvez na pré-história. Os povos foram cres-
cendo, se dividindo, migrando e povoando territórios;
As línguas indígenas
suas línguas foram mudando e se diversificando.
O tronco tupi, o maior e o mais conhecido, inclui
dez famílias, e cada uma agrupa várias línguas; em al-
gumas delas há diferentes dialetos [veja o diagrama
da página 13).
A língua que os missionários jesuítas estudaram
nos séculos 17 e 18 era o tupinambá, também co-
nhecido como tupi antigo; pertencia à família tupi-
guarani, do tronco tupi. A família tupi-guarani, a mais
famosa, inclui umas vinte línguas e a língua guarani,
por exemplo, possui vários dialetos. Encontramos
línguas tupi em quase todo o território brasileiro, de
norte a sul e de leste a oeste.
O tronco macro-jê é também grande e importante,
com nove famílias [diagrama à esquerda).
A família das línguas jê é a maior, com cerca de 25
línguas. Elaso faladas no Centro-Oeste, no sul (o
kaingáng e o xokléng), no Pará e na Amazônia meridio-
nal. O kayapó, uma língua jê falada no sul do Pará e no
norte de Mato Grosso, possui muitos dialetos.
As famílias karib e aruáko constituem troncos;
a cada uma delas pertencem várias línguas.
As línguas karib (diagrama abaixo)o faladas no
As línguas indígenas
Existem três línguas da família nambikwara no
norte de Mato Grosso e no sul de Rondônia.
Da família mura só restam os falantes da língua
pirahã, na Amazônia .
Há também línguas isoladas que. como dissemos,
parecemo ter parentesco com outras línguas ou
famílias:
Aikaná (Ir
Arikapú RO)
Capítulo 1
Irántxe (ou Mynky, MT)
Jaboti (RO)
Kanoê (RO)
Koazá (RO)
Máku (RR)
Trumái (MT)
Tikúna (AM)
A língua geral, ou nheengatú
Em algumas regiões da Amazônia , como no baixo
Tocantins, no baixo Tapajós, nos vales dos rios Negro e
Solimões, Uaupés e Içana, a população indígena e a ri-
beirinha em geral falam o nheengatú, também conheci-
do como 'língua geral', que tem sua base em línguas da
família tupi-guarani.
O nheengatú tem uma história interessante, pois
descende do tupinambá, a língua tupi-guarani mais fa-
lada na costa do Brasil na época da conquista, e foi a
língua da colónia, utilizada pelas populações indígenas
remanescentes submetidas ao jugo colonial por missio-
nários e militares.
A preservação
Como todas as línguas minoritárias, as línguas indí-
genas sofrem ameaças de extinção, pois seus próprios
falantes correm o risco de desaparecimento físico ou
cultural. Toda vez que uma língua deixa de existir, o
mundo fica mais pobre, em sua diversidade.
Atualmente vem se buscando praticar no Brasil uma
política de preservação e de defesa das línguas indígenas,
combatendo o preconceito, incentivando a pesquisa e o
estudo, fazendo com que a alfabetização seja na língua
materna das crianças, nas escolas indígenas. Nessas esco-
As línguas indígenas
las, as línguas indígenas começam a entrar no currículo de
disciplinas básicas eo utilizadas para o ensino.
A mudança da política oficial fez com que se criasse,
no Ministério da Educação, uma.assessoria especial para
as escolas indígenas. Além disso, há diretrizes para a
adoção do ensino bilíngue e da interculturalidade. uma
maneira de concretizar o respeito à diversidade linguís-
tica e cultural que os povos indígenas representam.
A mudança na política educacional oficial aconteceu
sobretudo graças às reivindicações de povos indígenas
que jám escola, ou que querem frequentar escolas, e
ao trabalho de algumas instimições não-governamentais.
Nas escolas indígenas bilíngues se usa tanto o
português como a língua do povo que habita a região.
Se a mesma escola for frequentada por falantes de
várias línguas diferentes, haverá aulas em todas elas.
Hoje, muitos povos indígenaso bilíngues (falam
duas línguas) ou até multilingues (falam mais de duas
línguas). A maioria dos bilíngues fala em sua própria
língua e em português. Existem povos que só falam sua
língua e outros ainda que estão aprendendo na escola
a língua de seu povo, que estava deixando de ser utili-
zada, sobretudo pelos mais jovens.
Para saber mais
sobre línguas indígenas
RODRIGUES, Aryon Dal lgna. Línguas Brasileiras. Para
o conhecimento das línguas indígenas. Loyola,o
Paulo. 1986.
. "Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas",
Ciência Hoje, 16: 95, novembro de 1993 (pp. 20-26).
URBAN, Greg. "A história da cultura brasileira segun-
do as línguas nativas", in Carneiro da Cunha (org.),
História dos índios no Brasil.o Paulo, Fapesp/
SMC/Cia. das Letras, pp. 87-102, 1992.
Lugares em queo feitas pesquisas
sobre as línguas indígenas no Brasil
Museu Nacional, Setor de Linguística, Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universida-
de de Campinas (São Paulo)
Museu Paraense Emílio Goeldi. Setor de Linguística,
Departamento de Ciências Humanas, Belém (Pará)
Universidade de Brasília, Departamento de Línguas
Vernáculas
Universidade Federal de Pernambuco
Universidade Federal do Pará
Bruna Fram
Museu Nacional /UFRJ-CNPq
Capítulo 2
POVOS, ALDEIAS,
HISTÓRIAS E CULTURAS
osso objetivo é mostrar, aqui, um pouco das
diferentes soluções que as sociedades indí-
genas encontraram para organizar sua manei-
ra de viver e de se relacionar com outros povos, com
a natureza e com o mundo invisível dos seres sobre-
naturais.o diversas maneiras de trabalhar, de pro-
duzir e consumir, de formar família, de morar, cons-
truir casas, fazer aldeias, conhecer e explicar o mun-
do, celebrar festas e rituais, curar doenças, fazer po-
lítica, imaginar espíritos e divindades, amar, brigar
e brincar.
Essa grande diversidade marca a diferença entre
as sociedades indígenas; assim podemos afirmar, de-
finitivamente, queo existe um índio genérico, como
o estereótipo construído na história da conquista e da
colonização. Marca também a diferença entre as socie-
dades indígenas e nós, universo que as encapsula em
territórios reduzidos e controlados.
Em vez de falar genericamente dessa diversida-
de, resolvemos conduzir o leitor ao conhecimento
de três povos. Os kuikúro serão nosso ponto de par-
tida; os enawenê nawê e os parakanã serão uma es-
pécie de contraponto, com suas semelhanças e con-
trastes.
A única intenção é oferecer exemplos. Se pudés-
semos falar de mais povos, teríamos um quadro ain-
da mais rico de diversidade. Ao leitor resta a tarefa de
Capítulo 2
pesquisar, procurar livros e outras informações, em
suma, viajar pelo Brasil indígena, mesmo que seja
somente por livros, filmes e vídeos.
Cada povo tem sua história
Os kuikúro constituem um dos quatro povos que falam
uma língua da família karib e que habitam às margens do
rio Culuene, formador do rio Xingu, tributário meridional
do rio Amazonas, no norte do estado de Mato Grosso.
Os outros três povos de língua karib que moram perto
Povos, aldeias, histórias e culturas
dos kuikúroo os kalapálo, os matipú e os nahukwá. Eles
continuam vivendo no território que ocupam há séculos e
que hoje faz parte da Terra Indígena do Xingu, nova deno-
minação do Parque Indígena do Xingu, criado em 1961.
Os povos do Alto Xingu conhecem os brancos
pelo menos desde o final do século 18, quando ban-
deirantes incursionavam por seu território, matan-
do e aprisionando. No entanto, os contatos entre
brancos e índios se tornaram mais frequentes nes-
te século e a população foi drasticamente reduzi-
da, até a década de 50, por sucessivas epidemias de
doenças contagiosas contra as quais os índioso
tinham qualquer defesa.
Os povos de língua karib do Alto Xingu vivem com
outros que falam línguas tupi e aruák.o ao todo dez
etnias que habitam hoje treze aldeias, com uma po-
pulação total de cerca de 1.700 pessoas. Todos falam
suas línguas nativas, sendo que os mais jovens falam
também português.
Em quase todas as aldeias há escolas. Os povos
do Alto Xinguo bem parecidos entre si, vivendo de
maneira muito semelhante. É como uma rede de al-
deias em queo faladas várias línguas. É por isso
que os índios alto-xinguanos gostam de saber de ou-
tras línguas,m curiosidade em saber a tradução das
palavras nas línguas do mundo e conhecer gramáti-
cas de línguas diferentes.
Os kuikúro, em sua língua, chamam de kuge todos
os índios alto-xinguanos. expressando, assim, o sen-
timento e a noção de uma unidade maior que a de
cada aldeia, ou de cada povo específico.
A língua kuikúro possui hoje uma representação
escrita, resultado do trabalho conjunto entre os ín-
dios - sobretudo os que estudam nos cursos para
formação de professores indígenas - e os pesquisa-
dores linguistas.
Algumas palavras da língua kuikúro
huati pajé
ete aldeia
ngune casa
kanga peixe
hugé flecha
tahaku arco
ikine beijú
ailu festa
isie dele
isuii pai dele
umugu meu filho
(o homem fala)
umukugu meu filho
(a mulher fala)
apitsi avô
kokojó avó
kangamuke criança
itão mulher
totó homem
kahuu
ngongo terra
Os enawenê nawê falam uma língua que pertence à
família aruák e vivem em uma única grande aldeia,
perto do rio Iquê, no noroeste de Mato Grosso, em
uma reserva de aproximadamente 75 mil hectares que
corresponde a uma parte do território ocupado há
muitos séculos por eles.o seus vizinhos os myky,
os nambikwara do campo e os rikbaktsa, povos que
falam outras línguas.
Em 1974 ocorreu seu primeiro contato com
brancos, que foram missionários jesuítas. Esses
missionários decidiram manter os índios isolados
da sociedade nacional e se concentrar no atendi-
mento à saúde e na proteção do território. Graças
a esse tipo de assistência, os enawenê nawêo
foram vitimados por epidemias; ao contrário, hou-
ve crescimento demográfico e os índios mantive-
ram intacto seu modo de vida tradicional e seus
belos rituais.
A atual população dos enawenê nawê é de cerca
de 250 indivíduos, que até hojeo falam português.
Trata-se de um povo alegre e dinâmico, que mantém
Povos, aldeias, histórias e culturas
sua cultura sem muitas das interferências negativas de
nossa sociedade.
Os parakanão um povo de língua tupi-guarani que
habita tradicionalmente a região interfluvial
Tocantins-Xingu, no estado do Pará. Uma cisão no fi-
nal do século passado deu origem a dois blocos: os
parakanã ocidentais e os parakanã orientais.
Contatados entre as décadas de 70 e 80, vivem hoje
em duas reservas: uma na bacia do rio Xingu e outra
na bacia do rio Tocantins.o ao todo cerca de 650
pessoas, em seis aldeias.
Os parakanã orientais foram contatados em 1971,
na época da construção da rodovia Transamazônica.
e perderam um terço de sua população nos dois anos
seguintes, em consequência das doenças
introduzidas pelos brancos. O grupo mais ocidental
foi contatado de forma bem-sucedida em 1984, qua-
se sem mortes. No entanto, os parakanã ocidentais
enfrentam hoje a invasão de garimpeiros e madei-
reiros que ameaçam ocupar suas terras e destruir
seus recursos.
A aldeia
Os kuikúro. como todos os alto-xinguanos, gostam de
fazer suas aldeias em áreas altas, abertas, junto a la-
goas e igarapés de águas claras e ricas em peixes. O
Alto Xingu é um mundo de águas.
A aldeia é um grande círculo ovalado de mais de
vinte casas em volta de um espaço central, uma espé-
cie de praça. No meio da praça, mantida sempre lim-
pa, está uma construção menor, com a mesma forma
das casas, que se chama kwakútu na língua kuikúro -
os brancos lhe deram o nome de casa dos homens'.
porque é nela que os homens da aldeia se reúnem
durante o dia, e mais ainda a partir do final da tarde,
para conversar, contar histórias, tomar decisões de
interesse comum e fazer trabalhos de artesanato.
A aldeia está crescendo, há muitas crianças e as
famílias aumentam; hoje há casas uma em frente à
outra e vai se formando um segundo círculo. A popu-
lação atual é de quase quatrocentas pessoas. Se uma
determinada família, ou mais de uma família, decidir
ir morar em outro lugar, em busca de melhor terra
para plantar, pode originar uma nova aldeia.
As casaso bonitas e amplas, de base ovalada,
feitas de uma estrutura de madeira e cipós e com
uma cobertura espessa de inhe (sapé), que chega até
o chão. Em média elas medem 22 metros no eixo mais
comprido, 11 no mais curto e 5 de altura. A casa
maior tem 37 metros de comprimento, 14 de largura
e 7 de altura. Na frente há uma porta, que dá para a
praça, de onde se pode ver tudo que acontece nos
espaços públicos da aldeia, e há uma porta também
nos fundos.
Nos fundos das casas há jiraus sobre os quais a
massa de mandioca é posta para secar e sob os quais
as mulheres trabalham quandoo chove, ao ar li-
vre mas protegidas do sol forte. Dos fundos das ca-
sas, entre pequenas plantações de milho e algumas
árvores frutíferas, partem os caminhos que levam
para as roças e para os lugares escondidos nos quais
as pessoas fazem suas necessidades e onde é joga-
do o lixo.
A escola e a farmácia, construções novas queo
existiam há alguns anos, seguem o mesmo padrão tra-
dicional das casas. Na escola há mesa, bancos, uma
lousa e cartazes pendurados com palavras, o alfabe-
to, mapas, materiais didáticos em língua kuikúro e em
português. Nela fica também a televisão, o vídeo e a
antena parabólica.
Povos, aldeias, histórias e culturas
A energia é obtida por meio de baterias e placas
solares. A aldeia dispõe de rádio, que permite a comu-
nicação com outras aldeias e com as cidades. Os kuikúro
contam também com outros serviços modernos:o
longe da aldeia se estende uma bem-cuidada pista para
pouso de pequenos aviões. Há grandes festas quando
chegam convidados pelo ar; em situações de emergên-
cia, é possível chamar um avião de socorro.
A aldeia dos enawenê nawê é parecida com a
xinguana: um grande círculo formado por dez gran-
des casas retangulares e uma casa circular no centro,
na qual ficam guardadas as flautas rituais. No pátio
central os índios realizam seus rituais e disputam
partidas de futebol de cabeça, esporte tradicional dos
enawenê nawê, com bolas feitas de látex extraído das
seringueiras.
Quanto à aldeia dos parakanã, tradicionalmente era
constituída por três espaços distintos: uma só casa
coletiva, as roças e a tekatawa, lugar a certa distân-
cia da habitação, destinado às reuniões masculinas.
A aldeia parakanã tradicional se distingue da
xinguanao apenas por ter uma só casa, na qual
podem morar mais de cem pessoas, mas também
pelo fato de o espaço público masculino, dos rituais
e da política,o estar no centro. A distância que se-
para a tekatawa da casa deve ser suficiente para que
as mulhereso ouçam as conversas e os cantos dos
homens.
Atualmente, os parakanã orientais continuam a
fazer a tekatawa, mas em lugar de viverem todos em
uma só casa se dispersam em várias casas nas quais
moram uma ou duas famílias. Já os parakanã ociden-
tais abandonaram a tekatawa como espaço físico di-
ferenciado na década de 60, antes do contato.
A partir do contato, as aldeias ganharam novas
edificações, no espaço do Posto Indígena da Funai; ali
há moradias para os funcionários e o chefe do posto,
além de escola, enfermaria e casa do rádio.
A casa, a família e o trabalho
O espaço interno das casas dos kuikúro conserva a
temperatura fresca mesmo no auge do verão. Dois
grupos de postes sustentam a estrutura ovalada. Em
volta deles ficam estendidas as redes, agrupadas por
família, mas sem paredes divisórias.
Observemos a casa do chefe hugogo oto ('dono da
praça'). Ele mora com suas duas mulheres (queo
irmãs), seis dos seus sete filhos, inclusive os casa-
dos, com seus filhos e netos, além de seus sogros
com os outros filhos destes. É a chamada família
extensa.
A família nuclear é aquela composta apenas por ma-
rido, mulher e filhos. A família extensa agrupa várias
famílias nucleares.
Povos, aldeias, histórias e culturas
Cada família nuclear tem seu lugar na casa; suas
redes ficam juntas, a da mulher embaixo da do espo-
so e, bem perto, as redes dos filhos maiores; os bebés
de colo dormem grudados ao corpo da mãe, para se
sentir protegidos e aquecidos e também para ser
amamentados quando quiserem.
Ao lado das redes de cada família há um pequeno fogo.
que serve para as pessoas se aquecerem e para cozinhar
pequenas refeições. Atrás das redes, sobre jiraus ou pen-
durados, podemos ver uma grande quantidade de obje-
tos de uso particular de cada família, ou de cada indiví-
duo: armas, arcos e flechas, arpões, roupas, panelas, facas.
livros, cadernos, fotografias, desenhos, cestos, esteiras,
peneiras, rolos de algodão, bolas de urucum, jenipapo,
tabatinga para a pintura, espelhos e outras coisas.
Em malas ou estojoso guardados os bens mais
valiosos: colares de caramujo, cintos de buriti, penas de
arara, rei-congo e papagaio, rádios, gravadores, pilhas,
fitas, colares e saquinhos de miçangas, documentos.
máquinas fotográficas, sapatos e roupas para ir à cidade.
Aqui e acolá perambulam animais domésticos. Os
kuikúro apanham filhotes e os criam quase como
parentes, jamais pensariam em comê-los: pássaros,
macacos, coatis, cachorros, galinhas.
Algumas frases dos kuikúro
una etetagü? Para onde você está indo?
kagnaki utetagü Eu estou indo pescar
ege atütüi? Você está bem?
e, atütü ugei Sim, eu estou bem
tuki itige hanügü eheke? Com que você faz a rede?
togokigeki, ijagüki gehale Com algodão e com cor-
das de buriti também
Capítulo 2
O fogo principal fica no meio da casa, funcionando
como uma cozinha coletiva. Alio assados os beijus
de farinha de mandioca e os peixes, é preparado o ála
(uma espécie de pirão com peixe) eo feitas bebidas
com o produto derivado da massa de mandioca. No cen-
tro da casa estão também os silos feitos de madeira e
embira, forrados de folhas, ondeo conservados o
polvilho e a farinha de mandioca, durante os meses de
chuva. Em grandes jiraus centrais, ou no chão, há
panelões de ferro e barro, além de grandes peneiras.
Sobre o fogo, o tacho para fazer beiju.
Os índioso pescadores excelentes.
Quase toda a proteína que consomem vem
do peixe e de animais de água doce como
a tracajá, um tipo de tartaruga. Pescam
com linha e anzol, com armadilhas, com
arco e flecha ou com arpão.
A pescaria sempre é feita pelos ho-
mens: por um, por grupos de pa-
rentes entre si, e às vezes por um
grande número, nas pescarias de
festas coletivas, quando é preciso
alimentar a aldeia inteira e até ou-
tras aldeias convidadas, ao longo
de vários dias.
Para pescar, os homens saem com as canoas, ou
com um barco a motor, e podem ficar até cinco dias,
longe da aldeia. Ao voltar trazem muito peixe
moqueado, queo defumando durante a pescaria,
nos acampamentos à beira dos rios.
No final da seca a pesca é feita com o timbó, uma
espécie de veneno (extraído de um cipó que é batido
com paus), na água de pequenas lagoas e igarapés. O
timbóo mata os peixes, apenas os deixa tontos, boian-
do, facilitando sua captura até por crianças e mulheres.
A aldeia inteira participa da pesca com timbó.
Povos, aldeias, histórias e culturas
Como todos os índios do Alto Xingu, os kuikúro
conhecem muito bem o ciclo das águas e a vida de
seus habitantes;m centenas de nomes para cente-
nas de espécies e subespécies.
Os alto-xinguanos, inclusive os kuikúro,o gos-
tam de comer carne de animais que andam na terra
ou que voam, com exceção do macaco e de duas aves:
o mutum e o jacu. Mas só aceitam o macaco, o mutum
ou o jacu seo puderem comer peixe. Apenas os ho-
mens caçam, no mato e nas margens dos rios, com
arco e flecha (hoje, também com armas de fogo, como
espingardas).
O alimento que um homem ou uma mulher traz,
animal ou vegetal, é preparado nas casas pelas mu-
lheres, e primeiramente distribuído no âmbito da fa-
mília nuclear; quase sempre há o suficiente também
para os outros parentes que habitam a casa. Se hou-
ver sobras, um pouco é guardado e o restante é dis-
tribuído para parentes de outras casas e vizinhos.
A generosidade é uma das qualidades que todo kuge,
como os kuikúro chamam os que pertencem à socieda-
de alto-xinguana, deve ter. Os kuge devem ser também,
além de generosos, discretos e respeitosos, sobretudo
com os parentes afins (cunhados do mesmo sexo, so-
gros, genros e noras);o devem expressar raiva ou
agressividade em excesso. Todas essas qualidades defi-
nem o que os kuikúro chamam de ihüsu, uma espécie
de 'vergonha', atributo básico de um kuge.
As mulheres cozinham e se mantêm atarefadas
praticamente durante o dia inteiro, para preparar os
alimentos, cuidar das crianças e fazer inúmeros ou-
tros trabalhos - tecer redes, preparar cuias que servi-
o como utensílios etc.
A casa é o reino das mulheres, e também das crian-
ças pequenas. Estas, quandoo estão com a mãe,
circulam, brincam, comem, mas sempre sob o olhar
atento das mulheres: mães, tias. avós, irmãs, primas
ou sobrinhas.
Os meninos maiores se lançam em brincadeiras mais
ousadas: pescarias, banhos na lagoa, expedições nas re-
dondezas para caçar lagartixas ou borboletas. Em cada
brincadeira aprendem algo novo. Embora também brin-
quem, as meninas cuidam cada vez mais dos menores
e participam das atribuições femininas, aprendendo as
tarefas que irão assumir pouco a pouco.
Assim, os homens e as mulheresm tarefas dis-
tintas, dois mundos distintos e até espaços distintos;
é o que chamamos de divisão sexual do trabalho, que
leva a um certo tipo de divisão sexual do mundo. A
mulher trabalha os alimentos vegetais e cozinha; o
homem pesca e caça.
Ser homem e ser mulher, plenos, férteis, trabalhado-
res e produtivos é algo fundamental para os kuikúro,
e para todos os índios.
Povos, aldeias, histórias e culturas
Homens e mulhereso diferentes, mas se
complementam de modo profundo.o há um sem
o outro. O homem sempre procura sua esposa e o
amor de uma mulher; igualmente a mulher sempre
procura seu esposo e o amor de um homem. A mu-
lher deve parir e criar filhos; o homem deve proteger
sua família e prover seu sustento.
As casas dos enawenê nawêo muito grandes e bo-
nitas, feitas de troncos de várias grossuras amarrados
com cipó e cobertas com palha de buriti.m duas
entradas: uma de frente para o pátio, e outra nos fun-
dos. No interior da casa, um longo e largo corredor
central vai de uma porta a outra; nessa área de circu-
lação comum estão dispostos grandes jiraus, nos
quais ficam bolos assados de milho e massa de man-
dioca para secar.
Em cada casa moram várias famílias ligadas entre si
por relações de parentesco. Em uma das casas, por
exemplo, junto à entrada da frente, mora um senhor e
sua esposa; perto da entrada traseira vive outro senhor,
sua esposa e um filho pequeno. Ao lado de um e outro
se alinham quartinhos com paredes feitas de esteira, nos
quais vivem outros casais mais jovens - neste nosso
exemplo a maioria é de filhos e filhas das duas famílias
instaladas perto das entradas. As filhas ficam perto dos
pais e, portanto,o os jovens esposos queo para o
outro lado da casa, ou para outra residência.
Cada família, composta de pai,e e filhos, tem
seu próprio fogo, suas redes, perto uma da outra, e um
jirau no qual guardam seus pertences. O interior da
casa é cheio de atividade. Durante o dia, as casas pro-
tegem do calor. À noiteo iluminadas por tochas
cheirosas, feitas de resina enrolada em folhas de
pacova, e as famílias se reúnem para conversar e co-
mentar os acontecimentos do dia.
Entre os enawenê nawê, como entre os xinguanos,
homens e mulheres fazem trabalhos diferentes. As
mulheres cozinham os alimentos, cuidam das crian-
ças, tecem redes e pulseiras de algodão, fabricam pa-
nelas de barro, pescam pequenos peixes nas lagoas.
plantam e buscam alimentos nas roças.
Uma boa parte do trabalho das mulheres é reali-
zada dentro das casas. Os homens recolhem lenha,
acompanham as mulheres nas roças, derrubam e quei-
mam as roças, pescam de diversas formas, recolhem
resinas, cogumelos, mel, frutas, cipó e palha no mato,
fazem canoas e muitas outras coisas.
Tradicionalmente, os parakanã comiam pouco peixe,
ao contrário dos xinguanos e dos enawenê nawê.
Como caçadores especializados em mamíferos terres-
tres, desprezavam a maior parte dos animais aquáti-
cos e arborícolas da floresta. Entre as aves, comiam
apenas o mutum e o jacu; os peixes representavam
uma pequena parcela de sua alimentação.
Os parakanão caçadores muito seletivos, esco-
lhendo antas, porcos selvagens, algumas espécies de
tatu, pacas e, raramente, cotias; após o contato passa-
ram a comer carne de veado. Complementam sua ali-
Povos, aldeias, histórias e culturas
mentação com as tartarugas terrestres (jabutis).
O contato trouxe uma mudança significativa: eles
se tornaram mais sedentários. Antigamente, passavam
boa parte do ano em longas .caçadas, vivendo em
acampamentos na mata, onde encontravam grande far-
tura de alimento. Hoje, embora continuem a fazer lon-
gas excursões de caça, estão muito mais presos à al-
deia, onde encontram assistência, sobretudo médica.
Para compensar a menor fartura de animais nas
proximidades da aldeia se tornaram pescadores, com
linhas e anzóis fornecidos pela Funai. A pesca, a caça
e a coletao atividades basicamente masculinas; às
mulheres cabe o trabalho agrícola e o processamento
dos alimentos. Embora os homens abram as roças e
participem do plantio e da colheita, a horticultura é
identificada com as mulheres, tal como a produção de
farinha e a preparação dos alimentos.
O dia-a-dia
Como é um dia comum para os habitantes de uma
aldeia kuikúro? De manhã bem cedo, antes mesmo do
sol raiar, pessoas sozinhas, pequenos grupos e famí-
liaso se banhar nas águas frias da lagoa e, em se-
guida, se aquecem ao calor de fogueiras improvisa-
das nas margens. As mulheres aproveitam para levar
água para suas casas. O sol acabou de se erguer aci-
ma do horizonte e os grupos familiares se dirigem
para as roças, nas quais predomina a mandioca, ali-
mento fundamental dos kuikúro, tal como de muitos
outros povos indígenas.
De maio a julho, primeiros meses da seca, os ho-
mens abrem clareiras na mata com machado e facão.
Em agosto, queimam a vegetação que ficou na clarei
ra; a área de queimada é reduzida, circunscrita e con-
trolada. O fogoo se alastra eo provoca incendi-
Capítulo 2
os devastadores, como aqueles causados por fazen-
deiros.
Uma roça é infinitamente menor que uma fazen-
da. Cada roça tem, em média, pouco mais de meio
hectare. Depois da queimada, o solo permanece co-
berto de cinzas e carvão, fertilizantes naturais.
O plantio, trabalho de homens e mulheres, é feito
nos meses de outubro e novembro, antes de as chu-
vas começarem. Uma roça é cuidada e utilizada por
uma ou mais famílias.
o existe a noção de propriedade da terra, embora
cada povo tenha de fato direito de controle e uso do
território em que estão suas aldeias, inclusive os-
tios das antigas roças, as fontes de matéria-prima e
de alimentos.
Em relação às roças, há uma noção parecida com
a de uma posse temporária, um direito que dura en-
quanto a roça produzir e que pertence a quem plan-
tou. Quem plantou árvores de pequi tem também,
digamos, a posse daquele pequizal.
Em média, cada roça produz durante três anos;
depois disso ela é abandonada e é aberta uma nova.
o precisos cerca de dez anos para que a mesma área
possa ser cultivada novamente.
Os trabalhos de colheita das plantas cultivadas e
de sua transformação em alimentos cabem às mulhe-
res, as 'alimentadoras', como dizem os kuikúro. Em sua
rotina diária, elas voltam das roças antes que o sol
fique quente demais, carregando na cabeça as cestas
cheias de tubérculos; uma rodela de embira serve de
apoio à cesta, equilibrando e amortecendo o peso.
Dentro de casa começa mais uma fase do traba-
lho diário feminino: descascar e ralar os tubérculos,
lavar em água abundante a massa espalhada em es-
Povos, aldeias, histórias e culturas
teiras por cima de panelões, espremê-la e preparar
bolas de massa, queo colocadas ao sol para secar.
Nos meses da seca as mulheres fazem um estoque
de polvilho, para os meses da chuva. Os kuikúro co-
nhecem 46 variedades de mandioca, embora apenas
seis forneçam a maior parte da colheita. Todas essas
variedades nativaso venenosas, exigindo um preparo
cuidadoso: lavar e secar bem, para retirar a substância
tóxica, que é o ácido prússico. A mandioca representa
cerca de 80 por cento da alimentação. Os restantes 20
por centoo complementados por milho, batata-doce,
peixe, algum tipo de caça, mel e frutos.
As tarefas de cada período do ano dependem da sa-
fra das plantas: frutas, milho, algodão, pimenta, ba-
tata-doce ou urucum.
Capítulo 2
No mato se encontra o mel. Em outubro, o pequi está
maduro e todos passam boa parte do dia nos pequizais;
com o pequi se faz uma massa que pode ser guardada
em cestos dentro da água, de um ano para outro. É a
base de uma bebida forte e nutritiva. Com o pequi se
faz o turno, uma espécie de melado; sua castanha, torra-
da e esmagada, é um ótimo tempero.
Em novembro as saúvas saem de seus ninhos para
suas revoadas e toda a aldeia se mobiliza para pegá-
las e degustá-las: torradas, acompanhando o beiju.
As mulheres cozinham, tecem algodão e fazem
cordas de fibra da palmeira buriti. De algodãoo as
bandas que comprimem e enfeitam braços e pernas
de homens e mulheres. De buritio as pequenas
tangas usadas pelas mulheres. De algodão e buritio
as redes. Com algodão, buriti e talaso fabricados
pentes e esteiras.
A viagem do sol pelou marca as fases do dia, o tem-
po de trabalho e o de lazer. As estrelas observadas de
madrugada em um certo ponto do horizonte indicam
as fases da seca e das chuvas, o ano kuiküm, guiando o
trabalho das roças, anunciando a maturação de frutos,
a vida dos peixes e de outros animais, os ciclos das fes-
tas, das comemorações e dos rituais.
A vida cotidiana na aldeia é, ao mesmo tempo,
calma e animada. Além dos trabalhos diários, os
kuikúro todos os dias dedicam um tempo ao lazer, ao
descanso e às conversas. Nas conversaso notícias,
apresentam intenções e planos, se faz política eo
contadas inúmeras histórias. Como dizem os kuikúro,
"tudo tem história".
Saber contar, ser um bom narrador, é uma arte;
todos gostam de contar, mas os verdadeiros 'donos de
histórias' são, entre os mais velhos, os que realmente
Povos, aldeias, histórias e culturas
conhecem e utilizam todos os recursos da narração
oral, uma arte que conquista a atenção dos ouvintes,
os embala em um sonho, uma viagem da imaginação.
Contar história é também ensinar, explicar, mostrar o
certo e o errado, passar conhecimentos de uma gera-
ção para outra, construir o passado, preparar para o
futuro, divertir.
Saber as histórias é saber ser kuikúro. Os kuikúro
chamam qualquer história de akinhâ. Há histórias da
criação do mundo e dos seres, de tempos ancestrais,
muito antigos, nos quais os animais falavam e eram
amigos e parentes dos humanos. Há histórias para
contar a origem de quase tudo - das plantas, dos can-
tos, das águas, das plantas cultivadas e silvestres, das
festas, dos enfeites, das rezas que curam ou destro-
em, das estrelas e constelações, do fogo.
Há histórias que contam como cada espécie ani-
mal adquiriu suas características, como cada pássaro
tem seu canto. Há histórias de antigos heróis, os "do-
nos do arco', e das brigas antigas com outros povos,
Capítulo 2
os 'donos da borduna'. Há histórias que falam de
quando os europeus, que os kuikúro chamam de
kagaiha, chegaram pela primeira vez no Alto Xingu
(isso aconteceu no século passado).
A sociedade kuikúro é de tradição oral, ou seja,
todo o saber se transmite de uma geração para
outra pela oralidade, de boca a ouvido, ou de boca
em boca.
A escrita, uma novidade trazida pelos brancos,
agora é a atividade principal na escola da aldeia.
Ao entardecer, enquanto os homens conversam, na
frente da 'casa dos homens' ou dentro dela, as mulhe-
res seo um tempo de descanso: se arrumam, se
enfeitam e sentam com os filhos diante das casas,
conversando e observando a vida da aldeia, os movi-
mentos, os sinais de novidades. Essa observação cui-
dadosa dará origem a comentários, conselhos, admo-
estações e decisões politicamente importantes, que só
as mulheres podem suscitar, mais tarde, dentro de
suas casas.
À noite, nas horas que antecedem o sono, um in-
tenso conversar se desenrola em cada casa. Deitados
nas redes, em volta dos fogos, comendo, todos
conversam, até que o dia se acabe.
O trabalho dos enawenê nawê visa produzir alimentos
o só para o consumo, mas também para oferecer e
trocar, por ocasião dos rituais. Produtos agrícolas, pei-
xes e produtos da coletao bens de consumo e de tro-
ca. Há uma estreita relação entre a produção e a distri-
buição de bens e alimentos e os ciclos da vida ritual.
Para organizar suas atividades agrícolas, os índios
plantam roças familiares e outras coletivas - os pro-
dutos destas últimaso destinados ao consumo du-
Povos, aldeias, histórias e culturas
rante os rituais. Os principais produtos da roçao a
mandioca e o milho; a primeira está ligada aos espí-
ritos Yakairiti, o segundo, aos espíritos Enore.
A roça coletiva de mandioca se inicia em agosto, com
o ritual Lerohi, e termina de ser plantada no ano seguin-
te, no ritual do Yãkwá. Os trabalhos de roça envolvem
derrubada, queimada, limpeza e plantio. Durante o
Yãkwá, os homens plantam as primeiras ramas durante
a noite e rezam, além de derramar bebida de mandioca
e peixe assado na terra para a mandioca-mãe.
Segundo os enawenê nawê, a primeira mandioca foi uma
menina que pediu para que sua mãe a enterrasse até o
pescoço e pediu ao pai para sempre levar-lhe peixes.
E ela sempre produziria mandioca. Assim foi, e sua mãe
ia e arrancava os tubérculos com carinho.
Um dia, porém, outra mulher veio roubar as raízes
e derrubou a planta com força. A menina chorou, pa-
rou de falar e morreu. Foi assim que, a partir daquele
momento a mandioca não nasce mais sozinha e os
homens são obrigados a plantá-la, todos os anos.
Todo o plantio é feito com extremo cuidado; os
enawenê nawê tocam flautas, cantam e dançam, para
que nada comprometa a plantação.
Nas roças de mandioca, que ficam perto da aldeia, os
índios cultivam a mandioca mansa e mais de dez varie-
dades de mandioca brava. Da mandioca fazem diversos
tipos de comida - uma bebida fermentada que consomem
ao longo do dia, em lugar de água; o beiju; e mingaus e
sopas. A mandioca mansa é comida assada ou cozida.
Para o milho, planta que exige terra boa,o plan-
tadas roças familiares próximo às matas de galeria,
que cercam os rios. O milho está relacionado aos es-
píritos do céu, os Enore, e está ligado aos rituais
Salumã e ao ritual das mulheres, o Kateoku.
As terras mais férteis em geral ficam longe da ai-
Capítulo 2
deia; por isso os índios constroem abrigos perto da
plantação, nos quais acampam por vários dias.
Os enawenê nawê conhecem quatro variedades de
milho: vermelho, preto e dois tipos de amarelo. Com o
milho fazem mingaus, bolos, refrescos fermentados, so-
pas misturadas com mandioca, feijão fava e peixe. O
milho novo é consumido na forma de espiga assada.
Assim como na agricultura, as atividades de pes-
ca podem ser rituais, quando é necessária uma gran-
de quantidade de alimento, e não-rituais, quando a
pesca é realizada por grupos familiares.
Conhecedores dos processos de reprodução e dos
movimentos migratórios dos peixes, utilizam esse
saber para organizar as pescarias, com técnicas e ins-
trumentos variados e adequados, como venenos ve-
getais, arco e flecha, anzóis, armadilhas cônicas e bar-
ragens em rios, riachos e lagoas.
Tal como os xinguanos, os enawenê nawê consideram
o peixe como alimento nobre, fundamental para a
realização dos rituais e como objeto de troca nas re-
lações sociais e amorosas.
Povos, aldeias, histórias e culturas
No final do período das chuvas, entre fevereiro e
março, os homens enawenê nawê se dividem em gru-
pos e partem em direção a diferentes rios, para reali-
zar a maior de suas pescarias. A hora da descida é
indicada pelas chuvas e, principalmente, pelo apare-
cimento da flor de um pequeno capim. É a pesca co-
letiva do ritual Yãkwá. Nessa época, os cardumes es-
o migrando e os índios pescam e defumam grande
quantidade de peixe, que é levada para a aldeia e
consumida durante os quatro meses seguintes, os
meses dos cantos e das danças do Yãkwá.
Os homens viajam em canoas grandes, fabricadas
antigamente com cascas de jatobá e feitas hoje de
madeira de imburana, de araputanga e outras. Perma-
necem dois meses nos acampamentos; alguns espe-
ram na aldeia, com as mulheres, preparando o sal
vegetal, limpando o pátio e os caminhos. Perto dos
acampamentos de pesca, os homens constroem bar-
ragens e fabricam armadilhas; eles se alimentam de
mel, frutos de buriti e produtos de mandioca que trou-
xeram da aldeia.
Os enawenê nawêo comem carne e, portanto,
o caçam; raramente, e cercados por restrições, co-
mem mutuns, macucos e jacamins, em geral captura-
dos em armadilhas colocadas no mato.
Os produtos da coletao muito importantes. Entre
eles se destaca o mel, que é misturado com água, pro-
duzindo um refresco. Cascas, raízes e folhas se transfor-
mam em remédios; de certas palmeiras extraem sal ve-
getal. Com a palha de buriti confeccionam cordas, ces-
tos, peneiras, raquetes para assar peixe, saias e enfeites
de braço que os homens usam nos rituais.
Coletam resinas, para o fogo, e látex para fazer
bolas e enfeites de perna das mulheres. Certas madei-
ras especiais servem para construir canoas, bancos,
remos, bordunas, arcos, flechas, ralos etc. Com o al-
Capítulo 2
godão cultivado em suas roças fazem pulseiras, saias
e redes. Fabricam vasilhas de barro para cozinhar e
para usar como prato. Do urucum extraem tintas ver-
melhas e do jenipapo tintas pretas.
Dentes de animais, frutos e penaso usados para
fabricar colares e cocares. Os enawenê nawê criam
araras e papagaios, dos quais retiram as penas para
os enfeites, sem precisar matar as aves. Tratam as pe-
nas do rabo dos papagaios com uma secreção extraí-
da das pererecas, convertendo a cor verde em amare-
lo-ouro.
Em comparação com os alto-xinguanos e os enawenê
nawê, os parakanão lavradores descuidados. Na
verdade, os parakanã ocidentais chegaram mesmo a
abandonar por completo a horticultura, entre 1965 e
1984, para viver exclusivamente de caça e de coleta.
Para eles, o trabalho da roça envolve muito menos
interesse que as aventureiras expedições de caça.
As roças dos parakanã nunca foram muito exten-
sas, nem eles dedicavam muito trabalho a elas. Plan-
tam vinte variedades de seis espécies alimentícias
(mandioca, milho, cará, batata-doce, banana e fava). É
uma diversidade restrita, em comparação com a obti-
da por outros povos da floresta tropical, que chegam a
cultivar cem variedades de espécies alimentícias.
No caso das mulheres, o maior trabalho é, sem
dúvida, a criação dos filhos, que costumam ser alei-
tados nos três primeiros anos, até a chegada do pró-
ximo bebé.
O cultivo principal é o da mandioca amarga, ou
brava, que precisa ser submetida a um processamento
especial, para a retirada do veneno, para depois ser
transformada na farinha que é conhecida no norte
como farinha puba.
Tradicionalmente, os tubérculos ficavam imersos
Povos, aldeias, histórias e culturas
na água de rios pequenos, para amolecer, durante
três ou quatro dias; então, a massa era produzida e
levada para a aldeia. As mulheres espremiam a mas-
sa entre as mãos para retirar a água e faziam peque-
nas bolas, colocadas para secar sobre moquéns. A fa-
rinha era então peneirada e torrada em tachos de
cerâmica.
Esse método antigo ainda é utilizado pelas mulhe-
res mais velhas, mas hoje há outros instrumentos
para o processamento da mandioca, como tipitis ad-
quiridos de outros povos indígenas, prensas mecâni-
cas e fornos de metal fornecidos pela Funai.
Os ciclos da vida
Entre os kuikúro, o nascimento, a gravidez e o parto
o fenómenos naturais eo requerem comemora-
ções, especiais ou públicas. Na aldeia há pessoas que
conhecem os poderes de remédios vegetais e as
kehegé, as 'rezas', que sempre ajudam a tratar doenças
e a resolver dificuldades. Deitada em uma rede espe-
cial, a parturiente é assistida por mulheres mais ve-
lhas e experientes e, quando necessário, por um 'dono
de rezas'.
Quando a criança nasce, ae é a primeira a re-
ceber cuidados e, logo em seguida, o recém-nascido
é colocado em seu peito. Hoje em dia, para enfrentar
um parto difícil ou complicações previsíveis, se recor-
re ao hospital da cidade.
Meninos e meninaso submetidos a um período
de reclusão na fase da puberdade - que pode durar al-
guns meses, ou até dois anos, de acordo com a vontade
e o status da família. Durante a reclusão pubertária, os
adolescentes permanecem em um espaço fechado den-
tro de suas próprias casas, na penumbra, alimentados e
cuidados pelas mães, avós, tias e irmãs.
Capítulo 2
Para os dois sexos, a reclusão pubertária marca a pas-
sagem da infância para a vida adulta; por meio dela
'são feitos', como dizem os alto-xinguanos, homens
e mulheres que ingressarão na sociedade como pes-
soas plenas, completas e férteis.
Durante a reclusão, os corpos 'são feitos', com téc-
nicas e substâncias destinadas a torná-los fortes e bo-
nitos. É claro que cada cultura tem suas próprias no-
ções e gostos. Os alto-xinguanos acham que escarificar
a superfície do corpo, arranhando-a levemente com
dentes de peixe-cachorro, aumenta a resistência físi-
ca e fortalece o caráter. Acham também que o uso de
eméticos, plantas que estimulam o vômito, serve para
limpar o organismo.
O recluso segue uma dieta alimentar, excluindo
comidas fortes. Deve evitar excessos, como falar alto
ou namorar, se expor ao sol e à vista pública. Esse
tempo é utilizado para aprender tarefas e obrigações
específicas de cada sexo, comentando e interpretan-
do os sonhos e ouvindo histórias tradicionais.
Mas a reclusãoo existe apenas para os que atra-
vessam a puberdade. Ela é praticada ainda pelos pa-
rentes mais próximos de um falecido, durante cerca
de um ano. Quem pretende se tornar pajé também
passa por um período de reclusão.
Para a menina, um acontecimento certo e incontes-
tável indica o início da reclusão: a primeira menstrua-
ção (menarca). A partir desse momento, o sangue mens-
trual marcará sua condição diferente.
A cada mês, a mulher menstruada, 'com sangue',
deve ficar em uma espécie de breve reclusão, até o
sangue acabar;o pode se banhar onde os outros se
banham, nem tocar a água que os outros usam; só
pode cozinhar para si mesma, ficando proibida de
Povos, aldeias, histórias e culturas
comer peixe;o pode se aproximar dos reclusos em
geral. O mesmo ocorre depois do parto, outro momen-
to 'de sangue'.
Para o menino, a idade de entrada na reclusão
varia. Antes da reclusão os garotoso submetidos,
em grupo, ao ritual do furo da orelha, que em kuikúro
se chama iponhe. Trata-se de uma festa com danças e
cantos, na qual padrinhos e familiares acompanham
e assistem os meninos, para ajudá-los a enfrentar com
coragem essa experiência dolorosa. O clima de sole-
nidade coletiva e de festa, ao mesmo tempo, contri-
bui para que superem essa verdadeira iniciação a
uma nova vida.
A jovem reclusa sai de vez em quando para dan-
çar, enfeitada, com seu corpo branco, seus cabelos
negros que cobrem o rosto sem nunca ser cortados
durante a reclusão, em festas ou cerimônias impor-
tantes da aldeia. Nesses momentos sua beleza, física
e moral, é mostrada em público.
Em uma grande festa intertribal, isto é, da qual
participam várias aldeias, os cabelos da jovemo
cortados e sua reclusão se encerra, publicamente.
Uma nova mulher, plena, fértil, está pronta para o
casamento e para a maternidade.
O jovem recluso também sai de vez em quando, para
participar de festas, treinando e depois se apresentan-
do como lutador. A luta kindene, mais conhecida como
huka-huka, que é palavra da língua kamayurá (outro
povo do Alto Xingu) é uma espécie de esporte e, ao
mesmo tempo, um acontecimento festivo e ritual. Ser um
bom lutador é um ideai masculino.
Os lutadores de todas as idades se enfrentam sem
agressividade e ordenadamente, nas festas de qual-
quer aldeia; há vencedores e perdedores, mas sem
vergonha ou prevaricação. O recluso é o lutador em
formação; o jovem recém-recluso está no ponto-
Capítulo 2
ximo de suas capacidades e habilidades como luta-
dor, bem como de sua beleza.
Contudo,o se exige que todos, indiscrimina-
damente, sejam lutadores. O mundo kuikúro tem
lugar também para os queo querem ouo con-
seguem ser lutadores: os pescadores, os que sabem,
os bons pais de família e os bons genros, os chefes,
os pajés etc.
O destino de todos é o casamento e a formação
de uma família. As relações familiareso o centro da
vida individual em sociedade. As relações dentro da
família nuclear, dos consanguíneos (quem o mes-
mo sangue), do grupo doméstico que habita uma
mesma casa,o as que dominam até chegar a hora
de pensar em casamento.
Cada sociedade, cada cultura, tem suas próprias re-
gras e normas, seu sistema de parentesco peculiar. De
uma sociedade para outra mudam também os termos
com os quais se fala de parentes e com parentes.
Para os kuikúro (e os alto-xinguanos em geral) os
irmãos do paio chamados de pai, as irmãs dae
Povos, aldeias, histórias e culturas
o tratadas como mãe, eo como irmãos os filhos
de todos os queo chamados de pai oue - ou
seja, os ques chamamos de primos paralelos. Mas
todos reconhecem quem é o pai ou ae verdadei-
ros, ou os irmãos verdadeiros; a denominação é uma
maneira diferente de classificar os parentes.
A palavra 'tio' é usada para o irmão da mãe, 'tia'
para a irmã do pai, 'primo' e 'prima' os filhos des-
tes:o os chamados parentes cruzados. Tios e tias
o os que os kuikúro consideram os futuros sogros
preferenciais; 'primos' (cruzados)o os esposos
ou esposas preferenciais.
Embora seja possível casar com alguém queo
seja parente, é difícil encontrar no Alto Xingu duas
pessoas queo sejam absolutamente parentes en-
tre si, mesmo que morem em aldeias diferentes e dis-
tantes. Os casamentos com brancoso muito raros;
só acontecem quando um índio resolve morar na ci-
dade, abandonando seu povo e sua aldeia.
Os casamentoso feitos por arranjo e por amor.
Duas famílias podem combinar o casamento de seus
filhos (ou netos, ou sobrinhos) quando estes aindao
crianças. Os prometidos se casarão após a menina sair
da reclusão, mas apenas se os jovens concordarem; é
deles a última palavra, ninguém é forçado a um casa-
mento contra a vontade.
Amores e paixões imprevistos podem levar ao
casamento, assim como à separação. Desgosto e de-
cepção também podem causar a separação. Há dispu-
tas, discussões, brigas, ciúmes, mágoas, como em
qualquer sociedade. Amores e paixões aproximam
homens jovens a mulheres velhas e vice-versa, e às
vezes se mantêm clandestinos por longo tempo.
Um homem pode ter mais de uma esposa. Mas
isso ocorre em geral com chefes ou pajés importan-
tes, pois manter duas ou três esposas exige grande
Capítulo 2
capacidade de trabalho, um grupo doméstico forte e
numeroso - pelo menos para poder produzir mais
alimento. Embora seja algo raro, também há mulhe-
res com mais de um marido, maso sempre mulhe-
res de grande prestígio e poder.
Homens e mulheres somenteo considerados de
fato como adultos completos após o nascimento do
primeiro filho. O segundo filho em geralo nasce
antes de o primeiro ter começado a andar e a falar,
pelo menos no estilo de vida tradicional. E assim por
diante.
Os nomes passam de avó para neto e de avô
para neta.o é apenas um nome, pois os nomes
mudam ao longo da vida. O primeiro é o nome de
criança, seguido pelo de púbere, depois há um
novo ao nascer o primeiro filho, e ainda o que se
recebe ao nascer o primeiro neto.
Os nomes podem ser trocados, vendidos e com-
prados ou inventados, dependendo do desejo indivi-
dual, ou porque acabou o estoque de nomes dos avós.
De qualquer maneira, é forte a relação entre avós e
netos; pela identidade dos nomes, sentem que com-
partilham como se fosse de uma mesma substância e
de uma mesma personalidade social, significando a
continuidade das gerações e ajudando a rememorar
o passado.
A mulher 'velha', ou seja, que jáo é mais fértil,
adquire uma liberdade e um poder impensáveis para
as mais novas - pode circular livremente pela aldeia,
fazer discursos públicos, se impor politicamente, li-
derar discussões e influenciar definitivamente em to-
madas de decisões importantes.
O homem é 'velho' quando diminui sua participa-
ção nas atividades de sustento da família, tendo já
outros homens em plena maturidade dentro de sua
casa. Os velhosoo marginalizados; continuam
Povos, aldeias, histórias e culturas
ativos, rodeados de carinho, ouvidos com admiração,
como aqueles que mais sabem da vida e das tradições.
Os parakanão acreditam que o ato sexual baste
para criar uma nova vida. Eles pensam que esta co-
meça quando um princípio vital, uma alma, penetra
na vagina de uma mulher enquanto ela está se ba-
nhando no rio. O ato sexual dá corpo a esse princípio
vital e os parakanã crêem que o corpo é feito pelo pai.
Ae é um receptáculo, no qual a criança se forma; a
contribuição dae se dá depois do nascimento, pois
ela determina com seu leite o crescimento do filho.
Quando uma criança nasce, o pai e ae ficam
proibidos de comer uma série de alimentos e de fa-
zer certas coisas que poderiam levar o filho à morte,
ou prejudicá-lo seriamente. Tais interdiçõeso sen-
do gradativamente levantadas à medida que a crian-
ça 'ganha carne ', como dizem os parakanã.
O nome da criançao é dado logo após o nasci-
mento, em particular quando os paiso jovens; to-
dos os nomeso atribuídos após serem ouvidos em
sonho. Como somente os mais velhos sonham e se
encontram com animais e inimigos em suas experiên-
cias oníricas, apenas eles conhecem nomes novos
para dar. Um nome tem que ser novo, que ninguém
mais possua ou tenha possuído; e deve ser nome de
outro, de gente outra,o parakanã. A criança costu-
ma receber seu nome depois de três meses e, ao lon-
go da vida, ganhará outros nomes.
As meninas já nascem casadas; em geral, é ae
do futuro marido que levanta a recém-nascida do solo,
após o parto. Os parakanã dizem que ela está pegan-
do a menina para seu filho.
Os meninos, ao contrário, nascem descasados e só
conseguirão uma mulher quando já forem pré-ado-
lescentes, quando suae conseguir 'pegar' uma es-
posa para ele. Antes de ir morar com sua esposa, o
homemo tem obrigação de trabalhar; no entanto,
sempre que caçar ou pescar, deve dar um pedaço de
carne para sua pequena esposa criança.
Após a primeira menstruação, a menina passa a
viver com seu marido, formando uma nova família -
que poderá ser duradoura ou temporária. O divórcio,
queo é raro, ocorre por várias razões; a mais
conflituosa é aquela em que um homem casado ad-
quire uma segunda esposa. Muitas vezes a jovemo
quer ir morar com um homem bem mais velho e já
casado. Outras vezes é a primeira esposa que se sen-
te preterida pelo marido e procura novos parceiros.
Mas há também famílias em que os casamentos per-
duram até a morte de um dos cônjuges.
O mundo além do humano
Os ciclos da vida acabam, para todos chega a hora da
morte. Os kuikúro entendem que somente a morte por
velhice pode ser considerada um fato natural, previ-
sível e normal. Em todos os outros casos, a morteo
é um fato, mas um feito: como as doenças, é causada
por um querer e um poder negativos "de outros seres
que habitam o mundo.
Morte e doençaso feitas por alguém, talvez por
outro ser humano, ou por um ser kwegü, palavra difí-
cil de traduzir, pois é difícil entender completamente
seu significado. Podemos pensar os seres kwegü como
um tipo de 'espírito', talvez.o chamados também de
itseke.o seres de poder além do humano, que exis-
tiam antes de existirem homens e que sobrevivem nas
águas, na floresta, nas árvores, no raio e no trovão.
Podem ser animais ou ter a aparência de um ser hu-
mano, como por exemplo uma mulher lindíssima.
Podem ser objetos, como kagutu, ligado às flautas que
Povos, aldeias, histórias e culturas
só os homens podem tocar e que as mulhereso
podem ver.
Esses seres criam, se transformam, se mostram,
mas também ficam invisíveis, estão em diferentes lu-
gares ao mesmo tempo, cada um tem sua música e
podem falar a língua dos humanos.o caprichosos,
imprevisíveis, sempre perigosos; o contato com eles
causa doenças, e até a morte.
Qualquer indivíduo pode ser vítima de um espíri-
to, mas pode também ser vítima de um 'dono de feiti-
ços', outro indivíduo que lhe quer fazer mal movido
por inveja, ciúme, raiva ou desejo de vingança. Há
muitos comentários a respeito dos donos de feitiços,
que podem morar e agir em qualquer aldeia, mas nin-
guém assume esse caráter.
É muito grave acusar alguém de provocar doen-
ças, ou a morte; a família da vítima pode querer a vin-
gança e planejá-la. Se, em um caso extremo, alguém
for acusado, a pessoa se defende, argumenta, quer
fugir e se sente perseguida.o momentos de grande
tensão e preocupação na aldeia; sempre há os que
procuram apaziguar os ânimos e buscar explicações
alternativas.
Afinal, a causa pode ser um espírito, eo um
inimigo. Donos de feitiços e espíritos agridem suas
vítimas lançando minúsculas flechas para dentro de
seus corpos. Os primeiros podem também atingir
partes do organismo da vítima, ou o organismo intei-
ro, por meio de outras técnicas, como 'amarrar' fios
de cabelo, pedaços de roupa ou de enfeites.
O pajé entende o mundo dos espíritos e sabe
como fazer a cura. Qualquer pessoa pode se tornar
pajé - por vocação, desejo, ou um chamado dos espí-
ritos. A iniciação é feita por outro pajé já experiente e
consolidada durante um longo período de reclusão.
Enquanto recluso, o novo pajé aprende técnicas, can-
Capítulo 2
tos, os segredos da interpretação de sinais e sintomas
e a cura xamânica, estimulando poderes especiais,
sobretudo o da visão.
O pajé vê muito mais que um homem comum, pois
vê coisas e seres normalmente invisíveis. Aprende a
curar pelo sopro da fumaça do tabaco, por fórmulas e
cantos. Aprende a fumar longos cigarros de tabaco, in-
gerindo literalmente a fumaça, numa respiração inten-
sa e profunda que o leva a perder os sentidos, entrando
em um estado de consciência parecido com um transe.
É nesse estado que o pajé consegue ver os espíri-
tos e falar com eles. É assim que ele consegue desco-
brir qual espírito 'roubou a alma' de um doente,
procurá-la e tomá-la de volta. O trabalho do pajé é
difícil, e por isso muito bem pago. Uma sessão de pa-
jelança custa bens preciosos para quem a solicita. Pa-
s e chefes possuem prestígio e poderes diferentes.
Para apaziguar os espíritos e desarmá-los,o
basta chamar o pajé; às vezes é preciso realizar uma
festa, um ritual. A família do doente
se mobiliza para fornecer a grande
quantidade de comida e bebida que,
durante a festa, será distribuída
para a aldeia toda.o chama-
dos cantadores e músicos,
todos se enfeitam e se pin-
tam. Realizam-se então can-
tos e danças de um determi-
nado espírito, envergando
máscaras específicas.
Quase todo espírito tem sua másca-
ra, que é um modo de representá-lo,
exibindo suas características por meio
de desenhos e pela combinação de
cores, por objetos, movimentos e
canto. O espírito de alguma maneira
Povos, aldeias, histórias e culturas
é chamado, manipulado, depois levado para a periferia
da aldeia, para que retorne a sua moradia, após ter par-
ticipado de uma grande refeição coletiva, na qual os hu-
manos compartilharam seus alimentos e os espíritos
consumiram sua comida preferida, a pimenta.
Entre os enawenê nawê, até as atividades económicas
dependem do calendário ritual. Eles acreditam em ou-
tra vida após a morte: quando alguém morre, a carne e
os ossos ficam para os espíritos Yakairiti, que habitam o
patamar subterrâneo; e a pulsação, o impulso vital, o
último sopro, vai para ou e se transforma em Enore,
espíritos que habitam o patamar celeste.
Os espíritos interferem na vida dos humanos; para
manter a harmonia do mundo, a organização e as regras
da sociedade e para evitar que falte alimento, toda a
sociedade estabelece uma relação de troca constante
com os espíritos, por meio da troca generalizada entre
grupos rituais. É uma relação que se, portanto, nas
festas que ocupam quase inteiramente o ciclo anual.
Os parakanão acreditam que quando uma pessoa
morre haja algo - um espírito, uma alma - que se per-
petue eternamente. Crêem que o morto libera um es-
pectro, uma assombração, que vaga pelas proximidades
da aldeia durante um certo tempo, tentando fazer com
que seus parentes mais queridos o acompanhem.
Os espectroso considerados muito perigosos, e o
encontro com eles na mata pode ser fatal. O único modo
de evitar a própria morte é matar mais uma vez o mor-
to. Quando isso acontece, o espectro desaparece e a
pessoa deixa de existir completamente. Em outros ca-
sos, o tempo cumpre o papel: o morto é esquecido e
esquece os vivos. Por essa razão, os espíritos dos mor-
tosom lugar no xamanismo parakanã.
Entre os parakanão existem, a rigor, xamãs ou
Capítulo 2
pajés.o há alguém com poder curativo estável e de-
finitivo, que exerça a função pública de pajé. Existem,
por outro lado, pessoas que sonham e entram em rela-
ção com outros entes, jamais com espíritos de mortos.
Os sonhadores parakanã encontram em suas ex-
periências inimigos - seres humanos, animais ou
plantas - com os quais estabelecem uma relação de
familiaridade, passando a controlá-los como se con-
trola um animal doméstico. Os entes com que sonham
o considerados poderosos, doando os cantos com
os quais fazem os rituais, os nomes atribuídos às
crianças e as técnicas terapêuticas.
Os ciclos das festas
Festa é ritual, cerimônia, com a participação de todos,
ou quase todos, os habitantes da aldeia kuikúro. Nes-
sas ocasiões, a coletividade é o ator e o espectador;
o superadas as divisões entre famílias e entre gru-
pos domésticos ou casas, unidades que vivem quase
autônomas no dia-a-dia e nos meses da chuva.
Os meses da seca, de maio a outubro,o o tempo das
grandes festas. A aldeia se une no trabalho para armaze-
nar alimentos, os homens treinam sua resistência e habi-
lidade na luta e confeccionam enfeites. Cada festa tem seus
antigos cantos, transmitidos de geração a geração; em ge-
ralo cantos corais, mas há alguns individuais.
Os índios alto-xinguanosm vários instrumentos mu-
sicais, como diferentes tipos de flauta, chocalho e maraca.
Cantos e danças se desenrolam com intensidade crescente
até o crepúsculo e avançam pela noite, até a madrugada.
As festas de espíritosoo os únicos rituais
coletivos; há também festas das quais participam al-
deias convidadas. Mensageiros percorrem velozmen-
te os caminhos entre todas as aldeias alto-xinguanas,
levando a notícia e fazendo a convocação.o sole-
Povos, aldeias, histórias e culturas
nidades que acontecem nos últimos dias de longos
períodos de festa constante, e então os povos alto-
xinguanos se sentem parte de um mundo maior que
o da aldeia, preparando-se para o grande final.
O Egitsü é uma homenagem a mortos ilustres, per-
tencentes a famílias de chefes. É também conhecido
como Kwarup, uma palavra kamayurá. Dyamugikumalu
é a festa das mulheres; nela é representada, em danças
e cantos, a história antiga das mulheres de uma aldeia
que se transformaram em espíritos, em mulheres kwegü.
A narrativa conta que essas mulheres se afastaram dos
homens e ergueram uma aldeia só feminina, uma espécie
de sociedade na qual as mulheres fazem também tudo que
os homens fazem na vida real e que a elas é vedado.
Hagaka é uma festa que parece um torneio: os ho-
mens atiram lanças contra um boneco erguido no meio
da aldeia, e depois atiram-nas uns contra os outros.o
há perigo, pois as lançasm ponta de borracha. Os
homens se desafiam ruidosamente, excitados e alegres:
"Venha meu primo,o seja covarde, você tem cabeça
grande e nariz preto!".
Há festas apenas da aldeia, sem
convidados. Por exemplo, a festa do
Kwampü, um espírito, que lembra
um pequeno carnaval. Cada pes-
soa se enfeita e se mascara, do
jeito que quiser, canta o canto
que quiser, compondo inclusive
algo para a ocasião.
As máscaras e os cantos
sempre querem dizer alguma coisa a
alguém, em geral coisas queo po-
dem ser ditas em público. Mascarado
e cantando, qualquer um pode acusar,
se defender, comentar comportamen-
tos dos vizinhos, lembrar paixões
Povos, aldeias, histórias e culturas
Para realizar seus rituais, os enawenê nawê dispõem
de grandes cabaças de diferentes tipos e tamanhos,
das quaiso feitas flautas e chocalhos. Cada grupo
ritual toca um instrumento diferente e o som produ-
zido no pátio, quando acontece o ritual Yãkwa, é o de
uma verdadeira orquestra. Cada instrumento está as-
sociado a um grupo ritual, que por sua vez se relacio-
na a um grupo de espíritos.
Os rituais enawenê nawê se ligam a duas catego-
rias de espíritos: os Enore, celestes, e os Yakairiti, que
vivem embaixo da terra, de morros e de lugares inós-
pitos em geral. Os Enoreo celebrados nos rituais
Salumã e Kateokõ, sendo que este último é uma festa
das mulheres. Aos Yakairiti estão relacionados os ri-
tuais Yãkwa e Lerohi.
Em casos de doença, ou de outro tipo de proble-
ma, a responsabilidade é atribuída a espíritos Yakairiti
insatisfeitos, que ameaçam levar os humanos para
outro mundo. No ritual Yãkwa se faz uma troca entre
homens e espíritos, por meio dos grupos rituais de
todos os habitantes da aldeia. O objetivo é cumprir
os ensinamentos e satisfazer os Yakairiti, evitando dar
motivos para que esses espíritos ameacem a vida da
aldeia e garantindo a harmonia do mundo.
Tomando nosso calendário como base, os rituais
obedecem à seguinte sequência, ao longo do ano: no
período de janeiro a julho é a vez do Yãkwa; de julho
a setembro acontece o Lerohi; em outubro, o Salumã;
de novembro a dezembro, o Kateokõ. Este último
ocorre em anos alternados.
O mais longo e importante dos rituais enawenê
nawê é o Yãkwa. Realizado anualmente, de janeiro a
julho, ele se inicia com a colheita do milho novo e
termina com o plantio da roça coletiva de mandioca.
Os grupos rituais (nove, atualmente)o organizados
Capítulo 2
de acordo com a linhagem paterna.
Cada grupo ritual está associado a um grupo es-
pecífico de espíritos Yakairiti; esses espíritos também
se dividem em grupos, tendo cada um seu território
próprio, no interior do território dos enawenê nawê.
O nome genérico dos grupos rituais é Yãkwa, que
agrupa os clãs nos quais a sociedade enawenê nawê
se organiza - Ataina, Kawairi, Walitere, Toairinere e
outros. Os nomeso os dos grupos de origem, vin-
dos, em tempos míticos, de distintas partes do terri-
tório enawenê nawê, sobretudo das cabeceiras dos
rios; eles se juntaram e formaram os enawenê nawê.
Cada grupo ritual está associado, por sua vez, a um
conjunto específico de instrumentos musicais.
Para realizar o Yãkwa, isto é, a reunião dos clãs em
que cada qual reverencia seu grupo de espíritos
Yakairiti, os grupos se dividem entre os Harikare e os
Yãkwa. Os Harikareo os responsáveis pela organi-
zação do ritual, isto é, cuidam da lenha, acendem os
fogos, oferecem a comida, enquanto os Yãkwa cantam
e dançam no pátio.
Durante dois anos, um dos grupos rituais é o gru-
po de Harikare principal, responsabilizando-se pela
roça, pela produção do sal vegetal e pela organização
do ritual. Seus membroso participam da pesca co-
letiva de barragem. Quando os homens chegam das
barragens, esse grupo permanece como Harikare por
cerca de quinze dias.o os espíritos Yakairiti dos
Harikare que estão presentes no pátio. Para que to-
dos os grupos de espíritos Yakairiti sejam satisfeitos,
é necessário que todos os grupos de Yãkwa se reve-
zem no papel de Harikare.
Na primeira parte do ritual, nos de janeiro,
entre os trabalhos de construção de canoas e armadi-
lhas e a colheita da mandioca, os índios realizam as
primeiras oferendas de alimentos, cantos e danças
Povos, aldeias, histórias e culturas
aos espíritos Yakairiti. Também preparam o primeiro
sal vegetal, elemento fundamental de troca com os
próprios espíritos para a obtenção dos peixes, base
alimentar de todo o período ritual.
Na segunda parte, os homenso para os rios me-
nores, onde irão construir as barragens de pesca.
Após a volta dos pescadores para a aldeia acontece o
auge do ritual, ao longo de quatro meses, com troca
de alimentos, cantos e danças. Finalmente,o
construídas máscaras que representam os espíritos
associados aos trabalhos de plantio da roça coletiva
de mandioca.
Os parakanã realizam três rituais, ou festas, básicos.
O primeiro, chamado Opetymo, a festa do cigarro, é
um ritual guerreiro e xamânico associado ao tabaco,
diurno e com música vocal. O segundo, a festa das
tabocas - um tipo de flauta - é um ritual noturno de
música instrumental, no qual se consome um mingau
feito de palmito de babaçu com mel.
A festa do cigarro trata das relações entre os
parakanã e os não-parakanã, os inimigos, os animais
e as plantas queo os doadores dos cantos rituais. A
festa das tabocas trata das relações entre homens e
mulheres parakanã, do casamento, dos amantes, da
oposição entre os sexos. Esses dois rituais acontecem
anualmente na estação da seca, sendo que a festa do
cigarro é o primeiro.
O terceiro ritual acontece raramente, pois os
parakanã o consideram muito dispendioso: neste-
culo foi realizado, em média, a cada dez anos. Trata-
se do ritual do bastão rítmico, uma síntese entre o ri-
tual do cigarro e o das flautas. Ele é composto de três
partes: um Opetymo de dia, seguido de um ritual das
flautas, à noite; no dia seguinte o encerramento é fei-
to com uma festa na qual o elemento central é a per-
Povos, aldeias, histórias e culturas
Sepé Kuikuro
varia de uma cultura para outra. Para os
alto-xinguanos, o belo é a harmonia da
simetria e do equilíbrio de formas, é o
corpo abundante, sem a queimação
do sol, cabelos negros, reluzentes, pe-
sados, um homem forte, uma mulher
de formas generosas, formas escul-
pidas nos braços e nas pernas pelo
uso cuidadoso de braçadeiras,
joelheiras e tornozeleiras.
Beleza, saúde e desenvolvimento
dependem da manutenção de equilí-
brios e, ao mesmo tempo, do fortale-
cimento que resulta do tirocínio ao
qual se submetem os meninos em
reclusão pubertária.
0 equilíbrio físico, que é também moral e estéti-
co, é mantido limpando o organismo pelo uso de
eméticos (substâncias que fazem vomitar) e observan-
do as normas alimentares, que proíbem, por exemplo,
a ingestão de peixe quando há sangue no corpo. In-
fusões de plantas, cascas de árvores e resinas curam
e mantêm o bem-estar.
Entre os enawenê nawê, as mulheresm duas meias-
luas tatuadas nas laterais do umbigo, usam saias de
algodão tingidas com o vermelho do urucum, colares
pretos de tucum na cintura e brincos de conchas.
Os homens usam estojo peniano: uma palha en-
rolada feita de fibra do buriti que serve para amarrar
o pênis. Os meninos começam a usá-lo quando estão
ficando adolescentes, ao deixarem o mundo da liber-
dade e das brincadeiras e começarem a vida de tra-
balho e a preparação para o casamento. Depois dis-
so, andar sem o estojo peniano é como andar nu, algo
muito vergonhoso.
Capítulo 2
Os parakanão utilizam pinturas corporais no dia-
a-dia, mas apenas por ocasião de rituais. As mulhe-
res decoram os corpos dos homens com o negro do
jenipapo e o vermelho do urucum.
Existem vários padrões gráficos para a decoração do
corpo, das flechas ou do bastão rítmico. A maioria deles
está associada a motivos da natureza, como por exem-
plo o desenho do casco do jabuti, do couro da onça pin-
tada, da pele do filhote de anta. Apenas um padrão, o mais
valorizado de todos, é puramente decorativo, é 'puro de-
senho' para os parakanã; serve para decorar o bastão rít-
mico, a flecha do guerreiro e o corpo dos dançarinos.
A política e a chefia
A primeira coisa que um visitante deve fazer quando
chega a uma aldeia kuikúro, ou a qualquer aldeia alto-
xinguana, é ir até o meio da praça central, até a 'casa
dos homens', para ser recepcionado pelos chefes e
explicar-lhes o motivo de sua vinda. Depois de con-
versar com os outros moradores, os chefes decidirão
onde o visitante ficará hospedado; em geral, é na casa
de um deles.
A aldeia como unidade social se faz representar dian-
te de quem vem de fora por essas figuras prestigiadas e
importantes que os kuikúro chamam de anetü, 'chefe'. O
exercício da chefiao comporta autoritarismo, coerção,
violência ou arrogância; pressupõe outras qualidades,
como generosidade, habilidade política de fazer aliados
em torno de seu grupo familiar, capacidade de liderar
por meio de persuasão, sabedoria, conhecimento das
tradições e domínio do discurso público.
A oratória do chefe é uma forma de poética, de fala
cantada;o longos discursos feitos de fórmulas com-
plexas e eruditas, que o chefe deve aprender de outro
Povos aldeias, histórias e culturas
chefe e saber reproduzir com fluência. A tradição pas-
sa de chefe para chefe, ao longo das gerações.
Os moradores de uma aldeiaoo todos iguais,
mas nenhum pode mandar nos outros de modo agres-
sivo e direto. Os chefes descendem do que se pode
chamar de 'nobres', de gerações de chefes. A chefia
pode ser herdada tanto por mulheres como por ho-
mens. Sua morte é comemorada na festa do Egitsíi.
No entanto, herdar a chefiao é condição suficien-
te para alguém se tornar um chefe atuante, com autori-
dade e prestígio reconhecidos. A função depende de
vocação, propensão, talento e vontade. Exercer a chefia
é uma tarefa difícil, até penosa, sob tensão constante.
O chefe em exercício deve saber equilibrar a ma-
nutenção do prestígio, mesmo por meio de uma
certa riqueza, com uma generosidade e um des-
prendimento contínuos. Por ser um indivíduo em
destaque, é invejado e tem muitos inimigos, mani-
festos e ocultos.
O chefe deve saber equilibrar a defesa de seu
grupo familiar com os interesses coletivos. Deve ter
sensibilidade e inteligência para intervir adequada-
mente nos momentos de crise social, como porta-voz
de um desejo coletivo de convivência pacífica. De
fato, a aldeia como unidade parece existir concreta-
mente graças ao papel e à palavra dos chefes e nas
festas da seca.
As unidades mais sólidas e internamente menos
submetidas a divisõeso as famílias e, depois delas,
os grupos domésticos que moram em cada casa. Cada
casa tem seu chefe, seu 'dono', o homem maduro mais
importante, referência para os que com ele moram.
Mas a referência é apenas doméstica, de coordenação
para certas tarefas de produção ou para certos traba-
lhos de interesse de todos os moradores.
A família é a unidade de base da vida social, com
Capítulo 2
autonomia económica e política. Da família até a al-
deia como um todo há vários níveis de organização
social, com equilíbrios sempre instáveis. Há um mo-
vimento contínuo de alianças que se fazem e se des-
fazem, de histórias e destinos pessoais; tudo isso ali-
menta a dinâmica da vida política indígena, algo que
o visitante de fora raramente entende.
No que diz respeito à chefia e à organização da socie-
dade, há muitas diferenças entre os parakana ociden-
tais e os orientais.
Os parakana orientais possuem dois chefes, cada
um representando uma das metades patrilineares.
Cada pessoa pertence à metade à qual seu pai per-
tence. A função principal da chefia é organizar a reu-
nião masculina que ocorre todos as noites na tekatawa
e nas quais é vedada a participação das mulheres. Os
chefeso normalmente os homens mais velhos de
cada uma das metades, mas a transmissão da chefia
depende das capacidades pessoais de saber falar bem,
ou melhor, como dizem os parakana, 'saber fazer a
conversa'. Na reunião, os chefesoo ordens, per-
mitindo que todos falem:o propiciadores da con-
versa e especialistas na tradição e no ritual.
Já os parakana ocidentaiso possuem chefes,
nem líderes,o estão divididos em metades eo
totalmente igualitários. Nem mesmo os paism au-
toridade sobre os filhos adultos, nem os sogros so-
bre seus genros. Cada um faz o que quer, nos limites
da liberdade do outro.
Conclusão
Entramos na vida cotidiana de alguns povos indíge-
nas, nos eventos que marcam seus ciclos anuais, na
vida de seus membros, indivíduos comuns, chefes e
Povos, aldeias, histórias e culturas
pajés. Acompanhamos o nascimento, a vida e a mor-
te; contemplamos seu mundo de imagens, valores,
seres humanos e não-humanos.
Agora sabemos algo a respeito dos kuikúro, dos
enawenê nawê e dos parakanã. Muito mais e muitas
outras coisas descobriremos se entrarmos na vida
social e na cultura de outros povos. De cada viagem,
mesmo que seja nas páginas de um livro ou de um
artigo, voltaremos mais ricos, mais sábios, mais ad-
mirados com a diversidade cultural do Brasil indíge-
na e com vontade de saber mais, cada vez mais.
Para saber mais sobre
sociedades e culturas indígenas
Leituras
CASTRO, Eduardo B. Viveiros de. Araweté, o povo do
Ipixuna.o Paulo, Cedi, 1992.
LARA1A, Roque B. Cultura, um conceito antropológico.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986.
LOPES DA SILVA, Aracy. índios.o Paulo, Ática, Cole-
ção "Ponto-Por-Ponto", 1988.
LOPES DA SILVA, Aracy & GRUPIONI, Luís Donisete
Benzi (orgs.). A temática indígena na escola: novos
subsídios para professores de 1
o
e 2
o
graus. Brasília,
MEC/Mari/Unesco, 1995. (Ver especialmente o ar-
tigo de Antonella Tassinari, "Sociedades indígenas:
introdução ao tema da diversidade cultural").
MELATT1, Júlio César. índios do Brasil.o Paulo,
Hucitec, 1983.
RAMOS, Alcida. Sociedades indígenas.o Paulo, Ática,
Série "Princípios", 1986.
RICARDO, Carlos Alberto (ed.). Povos indígenas no Bra-
sil 1991/1995.o Paulo, Instituto Socioambiental
(ISA), 1996.
Lugares em queo feitas pesquisas
antropológicas e etnológicas
sobre povos indígenas no Brasil
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro. Departamento de Antropologia
Universidade de Campinas (São Paulo), Departamento
de Antropologia
Universidade deo Paulo, Departamento de Antro-
pologia
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamen-
to de Antropologia
Universidade de Brasília. Departamento de Antropo-
logia
Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém (Pará)
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal de Mato Grosso
Agradecimentos
Agradeço a Carlos Fausto e a Virgínia Valadão, pelas
informações a respeito dos parakanã e dos enawenê
nawê, respectivamente.
Bruna Franchetto
Museu Nacional/UFRI-CNPq
Capítulo 3
NOVOS E VELHOS SABERES
s modalidades culturais peculiares a cada so-
ciedade, que seus membros utilizam para inter-
pretar o mundo e também para agir sobre ele,
o consideradas como formas de conhecimento. As-
sim, o conhecimento varia de uma sociedade para
outra, tanto em seu conteúdo quanto em suas formas
de transmissão, definindo em cada agrupamento hu-
mano formas específicas de ação.
Por essa razão, a possibilidade de intercâmbio e
de transformação dos conhecimentos é uma das variá-
veis mais significativas do impacto do contato entre
culturas.
A questão da apropriação de novos conhecimen-
tos pelos índios costuma ser pensada de forma nega-
tiva, em termos da perda dos conhecimentos tradicio-
nais, irremediavelmente substituídos por saberes e
técnicas de nossa sociedade. É muito comum pensar
que os conhecimentos primitivos' dos índioso ne-
cessariamente subjugados diante da superioridade' da
tecnologia e da ciência ocidental.
Desde os relatos dos primeiros encontros, no sécu-
lo 16, até as imagens de contatos recentes divulgadas
pela mídia, a ênfase dada à sedução exercida por nos-
sos objetos e nossa tecnologia sobre os índios parece
indicar que eles próprios reivindicam tais novidades.
Sua curiosidade e seu interesse levam à ideia equivo-
cada da superioridade de nossa 'civilização'.
Capítulo 3
A maioria dos relatos de contatos novos com os
índios mencionao apenas a aceitação mas, sobre-
tudo, a rápida adaptação dos índios ao uso de instru-
mentos de metal e aos medicamentos. Fotos e discur-
sos dos índios confirmam que eles rapidamente subs-
tituem seus instrumentos de pedra e madeira pelos
queo trazidos pelos brancos.
Da mesma forma, as atuais reivindicações dos ín-
dios quanto às condições de assistência sanitária em
suas aldeias também parecem evidenciar sua adesão
à superioridade de nossa biomedicina. A importância
do 'saber dos brancos' para eles aparece ainda quan-
do mostram seu interesse por escolas, para ter aces-
so aos conhecimentos transmitidos por nosso ensino
formal.
Na avaliação do fascínio dos índios por obje-
tos, técnicas e saberes antes desconhecidos há dois
aspectos que merecem destaque. O primeiro diz
respeito às condições de acesso ao saber 'dos bran-
cos'. O segundo se refere à diferença entre formas
de transmissão de saberes queo são, necessa-
riamente, excludentes.
Um exemplo: remédios novos para
patologias antes desconhecidas
Um dos preconceitos mais correntes no que diz res-
peito ao processo de aquisição e adaptação a nossos
objetos e saberes consiste em lamentar que os índios
passem a 'depender' dessas aquisições. Entender o
contato dessa forma significa ignorar a profunda de-
sigualdade nas condições da troca de saberes entre
índios e brancos e, sobretudo, ignorar que a difusão
de nossa tecnologia e de nossos saberes sempre ocor-
re de forma hegemónica.
Um dos exemplos mais ilustrativos dessa desi-
Novos e velhos saberes
gualdade nas condições de intercâmbio cultural é a
difusão de nossas práticas terapêuticas, no contexto
do alastramento de doenças antes desconhecidas pe-
los índios.
Quandoo contatados, os grupos indígenas em sua
maioria já sofrem as consequências do contágio por
doenças antes desconhecidas, mesmo queo tenham
'visto' os membros de nossa sociedade. Nesse contexto,
e no decorrer do convívio com nossa sociedade, os po-
vos indígenas rapidamente aderem a técnicas curativas
e remédios que os agentes de contato lhes oferecem,
para controlar o alastramento de epidemias.
De fato, suas práticas terapêuticas tradicionais (cu-
ras espirituais realizadas pelos pajés, ou fitoterapia)
o podem dar conta de patologias tais como as for-
mas resistentes de malária, a tuberculose, as doenças
sexualmente transmissíveis ou a aids.
Ao aceitar as terapias oferecidas pelos agentes de
contato, os índios constroem uma nova categoria em
seu sistema tradicional de classificação das doenças:
as 'doenças do contato' (ou 'doenças de branco'), que
só podem ser combatidas por terapias não-indígenas.
Capítulo 3
A partir dessa inovação no sistema de causas das
doenças - e das técnicas de cura associadas -, há
uma tendência a deslocar os conhecimentos tradicio-
nais para uma esfera espiritual. Assim, em nosso sen-
so comum, costumamos atribuir aos pajés indígenas
a capacidade de diálogo com forças espirituais, em
contraposição à cura efetiva dos males que afligem
as aldeias.
Para os índios, no entanto, o poder dos pajés
nem sempre se limita a essa esfera. Como afirmam
os índios waiãpi, os remédios dos brancos tratam
com eficácia os sintomas do mal - podem curar a
tosse, a febre e outras evidências de distúrbio no
corpo do doente. Maso servem para recuperar o
desequilíbrio - social e cosmológico - que uma
doença evidencia. Para eles, somente os pajéso
capazes de reparar os males que afetamo ape-
nas o corpo do doente, mas seu equilíbrio nas rela-
ções que mantém com a sociedade e com o univer-
so como um todo.
Esse exemplo mostra que, por trás da suposta efi-
cácia que motiva a utilização de nossa tecnologia
pelos índios, há outras dimensões de saber, queo
o necessariamente eliminadas peia apropriação de
conhecimentos de nossa sociedade.
Confronto entre formas
de conhecimento e de transmissão
Desde os primórdios da colonização, os europeus in-
troduziram o ensino da escrita, praticada em forma de
catequese, como parte de seu programa 'civilizador'.
A escrita foi um instrumento de dominação de que os
índios se apropriaram, da mesma forma que aceita-
ram nossas práticas terapêuticas.
Hoje, os povos indígenas reivindicam o acesso à
Novos e velhos saberes
educação escolar, que consideram como condição es-
sencial para sua autonomia. Estarão eles abdicando
de sua tradição de transmissão oral dos conhecimen-
tos, que se ocupa de saberes muito diferentes daque-
les ensinados nas escolas?
A introdução da escrita certamente representa um
dos exemplos mais evidentes de manipulação utiliza-
da por nossa sociedade para subjugar as populações
indígenas.
Até o presente, as instituições religiosas se ser-
vem desse instrumento para introduzir o cristianis-
mo. Missionários de várias organizações protestantes
fundamentalistas encontram no ensino da escrita o
meio privilegiado para difundir a 'palavra de Deus',
que consideram universal. Acreditam ser esse o úni-
co instrumento capaz de dominar e reduzir a nossas
formas de compreensão os diversificados sistemas
cosmológicos indígenas, considerados apenas como
superstições'.
Em decorrência da atividade missionária, mui-
Capítulo 3
tos grupos indígenas chegaram a incorporar certos
elementos do discurso cristão e algumas de suas
práticas. Mas é evidente que a atividade dos mais
diversos setores envolvidos na evangelização dos
índios, desde a conquista,o foi capaz de subju-
gar a diversidade das filosofias indígenas, nem o
movimento desses povos em afirmar sua identida-
de utilizando, justamente, o instrumento colocado
a seu dispor pelo empreendimento da 'catequese e
civilização': a escrita.
A apropriação desse instrumento de comunica-
ção permite que os índios produzam sua cultura em
formatos acessíveis aos não-índios: escrita de tex-
tos, de livros, de documentos os mais variados, nos
quais eles mesmos apresentam suas características
culturais.
No entanto, embora a produção cultural por esses
meios seja extremamente criativa, é essencial consi-
derar que ela transforma o património de saberes tra-
dicionais, que passam por um processo de seleção e
Novos e velhos saberes
adaptação diante das novas necessidades de comuni-
cação com o mundo de fora.
O interesse dos índios pelos objetos e pelas téc-
nicas dos brancoso se limita ao acesso aos instru-
mentos: ele se estende ao controle do conhecimento
novo. Assim, e preciso deslocar o foco para a mudan-
ça que resulta do contato entre saberes e tecnologias,
que gera novas formas de conhecimento.
Mudança e criatividade:
novas formas de conhecer
Um outro equívoco habitual quando se tenta avaliar
o conhecimento produzido e transmitido por uma
determinada sociedade consiste em olhar apenas para
o eixo do conhecimento tradicional. Nesse modo de
abordar o que pensamos ser a 'tradição' dos diferen-
tes povos indígenas encontraremos irremediavelmen-
te profundas transformações -o apenas no conteú-
do, mas também nas formas de transmissão.
Os conhecimentos acoplados a um determinado
modo de vida e de pensar o mundo estão sempre em
constante transformação, quer sejam transmitidos em
forma oral ou escrita.
A criatividade e a capacidade de adaptação exis-
tem potencialmente em qualquer cultura.
O elemento mais importante a ser considerado nas
formas de transmissão culturalo é o meio intelec-
tual em que se dá o repasse da informação, mas sim
seu destino.
Diferentes exemplos podem ser mencionados para
mostrar que os conhecimentos e seus usos estão em
constante processo de mudança, o que significa, so-
bretudo, um processo de seleção.
É o caso dos saberes associados ao uso de determi-
nadas tecnologias. Entre os índios que atualmentem
acesso a armas de fogo, a técnica da caça se modificou
sensivelmente, já que é muito diferente se aproximar de
um animal com um arco ou com uma espingarda.
Anteriormente, o uso da arma tradicional era en-
sinado pelos mais idosos e agora a relação se inver-
te: os jovens caçadores, que usam armas de fogo,
transmitem suas experiências e descobertas aos mais
velhos, que passam por sua vez a experimentar no-
vas técnicas de abordagem da caça.
No entanto, a aquisição de uma nova tecnologia
o ocorre sem a avaliação de seu impacto; por essa
razão, alguns grupos indígenas continuam a utilizar o
arco e a flecha para caçar determinados animais. Por
exemplo: para matar tucanos e passarinhos, cujas pe-
naso utilizadas em adornos, os waiãpi sempre usam
a flecha, após terem constatado que a arma de fogo é
prejudicial (pelo barulho que espanta as aves e por
danificar o corpo do animal) a esse tipo de captura.
Novos e velhos saberes
O processo de avaliação, seleção e adaptação que
ocorre na apropriação de conhecimentos também
ocorre na adaptação de novas formas de organização
das relações sociais.
Conhecer é. sobretudo, agir sobre o mundo.
Assim, a maneira pela qual os povos indígenas or-
ganizam as relações entre homens e mulheres, en-
tre jovens e velhos etc. se apoia na transmissão de
normas culturalmente definidas, que representam
modos de conhecimento da realidade social.
No contato com a sociedade envolvente (que pri-
meiro definem de forma genérica como 'os brancos',
para depois ir classificando: 'fazendeiros', 'garimpeiros'.
'agentes do governo, ou da Funai', 'missionários', 'pes-
quisadores', 'políticos' etc), esses povos incrementam
seu saber sobre a realidade do mundo exterior, com o
qual passam a ter intercâmbio constante.
O saber que os povos indígenas adquirem a res-
peito do mundo de fora gera transformações na prá-
tica de seu relacionamento com os não-índios, ou com
os diferentes segmentos de nossa sociedade que eles
passam a identificar. E essa mudança nas práticas de
relacionamento com os não-índios necessariamente
produz transformações nas relações internas.
Aprendendo a ser 'índios'
Na história dos povos indígenas, o exemplo mais evi-
dente da influência da transformação do saber e da
prática sobre a realidade social com a qual se con-
frontam após o contato reside no abandono das riva-
lidades que alguns povos mantinham entre si. Deixan-
do de lado antigos conflilos, passam a se tratar como
'parente
Capítulo 3
Ao se reconhecer como 'índios', por compartilhar o
impacto dos mesmos preconceitos e das mesmas
agressões sobre suas terras, os povos indígenas criam
novas formas de representação de si mesmos.
Tais representações envolvem a transformação de
todo um saber tradicional a respeito da humanidade.
em que cada grupo se distinguia de seus inimigos, ou
de seus aliados. Em todo caso, aprender a 'ser índio',
resulta sempre de um acúmulo de conhecimentos
adquiridos pela prática de relacionamento com a so-
ciedade envolvente.
Outro exemplo é o surgimento de 'capitães', 'ca-
ciques' que emergem com posições diferentes das
dos chefes tradicionais, para tratar das relações
externas. Sejam eles nomeados pelos não-índios
ou escolhidos por opção da própria comunidade
indígena, é evidente que se requer dessas lideran-
ças um perfil distinto do atribuído aos chefes tra-
dicionais.
Finalmente, o aparecimento e o fortalecimento de
inúmeras associações indígenas - algumas agrupan-
do vários povos - voltadas para o relacionamento
com o mundo externo tambémo resultado de no-
vos conhecimentos adquiridos pelos índios a respei-
to da particularidade de sua posição - minoritária -
no 'mundo dos brancos'.
No entanto, quando o conhecimento dos 'brancos'
e dos diferentes segmentos de nossa sociedade gera
novas formas de representação, será que estão sendo
necessariamente eliminadas as formas anteriores de
relações sociais, interna ou externamente?
O exemplo das organizações indígenas é interes-
sante, pois resulta da criação de um saber dos índios
a respeito dos 'brancos'. Esse saber é construído no
Novas e velhos saberes
contexto da busca de melhores condições de vida e
dignidade, quando os diferentes povos indígenas - em
função de suas próprias experiências de contato -o
levados a criar instrumentos capazes de melhorar sua
forma de relacionamento com a sociedade
envolvente.
Assim, fica evidente a relação entre conhecer - o
mundo dos brancos - e agir. Tais associações buscam
se impor às autoridades locais, regionais, nacionais e
internacionais, em defesa dos interesses cias comuni-
dades que representam e que, nas relações internas,
preservam boa parte de seus padrões tradicionais.
A organização interna das comunidades indíge-
nas - mesmo daquelas transformadas pela convivên-
cia permanente com a sociedade envolvente - conti-
nua marcada por elementos culturalmente diferen-
ciados. Nas aldeias, os jovens indígenas continuam
a se submeter aos ritos de iniciação, a escolha dos
parceiros para o matrimônio se preserva de acordo
com os princípios tradicionais de classificação social,
as concepções a respeito da pessoa humana e do
destino dos mortos se mantêm eo representadas
nos diferentes rituais.
Na grande maioria dos casos, assumir a si mesmo como
índio, como membro de uma minoria sujeita a precon-
ceitos e a toda sorte de injustiças, significa também
valorizar as práticas que diferenciam seu povo.
O conjunto de representações cio mundo que é pe-
culiar a cada sociedade indígena é reforçado, de manei-
ra seletiva e criativa, no contato com nossa sociedade.
Por esse motivo, continuamos identificando povos in-
dígenas diferentes entre si, eo apenas 'índios'.
Ao usar roupas, armas de fogo, medicamentos,
computador e GPS; ao escrever livros e produzir
vídeos, os índios se apropriam de nossos saberes,
mas continuam selecionando e preservando os ele-
mentos que identificam sua cultura, seu modo de
viver e pensar.
Os saberes, então,oo equivalentes. Esse
conhecimento sobre o mundo é o que permite ar-
ticular as culturas na forma de um intercâmbio en-
tre pessoas, etnias, povos e mundos, que conti-
nuam diferenciados.
Bibliografia
BARTH, F. "Other Knowledge and other Ways of
Knowing". Journal of Anthropological Research, vol.
51, 1995.
GALLOIS, D.T. "De arredio a isolado: perspectivas de
autonomia para os povos indígenas recém-
contatados", in índios no Brasil, Luís D.B. Grupioni
(org.), MEC, 1994.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). índios no Bra-
sil. Secretaria Municipal de Cultura deo Paulo,
o Paulo, 1992.
Pominique Gallois
Indigena e do Indigenismo/USP
Capítulo 4
TERRA E TERRITÓRIO
odoss sabemos que os índios precisam de
terra para viver. Sabemos que, tradicionalmen-
te, vivem do que plantam, pescam, caçam e co-
letam. Essas atividadeso desenvolvidas ao longo de
cada ano, seguindo um calendário que acompanha os
ciclos da natureza: chuva, vazante dos rios, seca e iní-
cio das chuvas, quando os rios voltam a subir.
Entre as muitas plantas que os índios cultivam
estão os vários tipos de mandioca, o amendoim, a
abóbora, o feijão e o milho. Os índios sabem que para
obter bons alimentos é necessário fazer o plantio em
um solo descansado. E, por isso, mudam suas roças
em determinados intervalos, dando tempo ao solo
para que se recupere.
Outra atividade importante é a pesca - em rios,
igarapés e lagoas -, para a qualo adotadas as mais
diversas técnicas, em diferentes épocas do ano, adap-
tando-se à variedade e à quantidade de peixes de cada
estação e de cada habitat.
Assim como a pesca e a agricultura, as condições
de caça também variam de acordo com as estações. O
conhecimento dos hábitos dos animais está intima-
mente associado ao conhecimento das árvores e de
seus frutos, das quais tanto os homens quanto os
animais se alimentam.
Os índios sabem, por exemplo, que os macacos
se criam nas serras, que os jabutis gostam de ficar
Capítulo 4
embaixo doss de frutas do mato, que as antas e
os porcos do mato ficam nos barreiros e assim por
diante.
A coletao se limita aos alimentos. Da palmeira
de buriti, por exemplo, além de colher os frutos - igua-
ria que comem com mel - retiram palha para cobrir
as casas, fabricar cestos e confeccionar roupas para os
rituais. Sabem exatamente onde encontrar as taquaras
ideais para fazer flautas e flechas, a madeira adequa-
da para fabricar canoas e arcos, o barro para modelar
panelas e também sabem reconhecer as plantas que
servem de remédio. Criam pássaros, dos quais retiram
penas para fazer enfeites.
Tudo está interligado e, para o índio, é indispensável
conhecer bem seu meio, para que possa se adaptar e
garantir a própria subsistência.
Esse conhecimento, baseado na observação e na
experiência, se acumulou ao longo de milhares de
anos, transmitido oralmente de geração para geração.
Além de acumular conhecimentos a respeito da
flora e da fauna, também houve, ao longo dos anos, a
evolução das técnicas de trabalho, das formas e regras
de convívio social e das teorias de origem do mundo.
vinculando-se sempre ao território em que vivem. Fo-
ram elaborados belos mitos e rituais, que contribu-
em para a formação das novas gerações.
Cada povo desenvolveu costumes, religiões e lín-
guas próprias e, com todos esses elementos, construiu
sua cultura peculiar.
Na ocupação tradicional dos territórios indíge-
naso havia limites precisos, pelo menos os limi-
tes tal como os entendemos. Os índios abriam suas
roças, seus caminhos de caça e as trilhas para visi-
tar outras aldeias. Quando o solo ou a caça se es-
Terra e território
gotavam, abriam caminho em outras direções; mas
conservavam de alguma forma os lugares das anti-
gas moradas e os cemitérios em que enterravam
seus mortos, percursos historicamente rememora-
dos e que assinalavam a área de ocupação de cada
grupo.
Fronteiras naturais, como serras, rios etc, demar-
cavam os territórios, que também iam sendo conquis-
tados e disputados com povos vizinhos.
Com o homem branco chegou um novo tipo de
inimigo que, além de invadir e ocupar os territórios,
espalhou doenças desconhecidas e destruiu o
ambiente por onde passava.
O confronto de conceitos:
territórios e reservas
E assim os índios foram sendo expulsos de seus ter-
ritórios, desde que o Brasil é Brasil. Para os portugue-
ses, os índios representavam povos a conquistar e
dominar; e seus territórios constituíam zonas de ex-
ploração, em benefício da Coroa portuguesa. Preten-
dia-se que fossem 'salvos' do paganismo e converti-
dos à religião católica: os jesuítas se dedicaram a
'amansar' e catequizar os nativos, em colaboração
com o projeto de conquista colonial.
Capturados e escravizados pelos colonos, ou se-
gregados pelos missionários jesuítas em 'aldeamen-
tos', os índios perderam o direito a falar sua língua de
origem, misturando-se a outros povos indígenas e
sendo todos explorados igualmente como mão-de-
obra; os que conseguiam escapar à dominação fugiam
para o interior.
Em "Cartas do Brasil ao padre Miguel de Torres"
(8 de maio de 1558), o padre Manuel da Nóbrega re-
gistrou:
Capítulo 4
[...] Esse gentio é de qualidade queo se quer
por bem, seo por temor e sujeição, como se tem
experimentado e por isso se S.A. os quer ver to-
dos convertidos mande-os sujeitar e deve fazer es-
tender os cristãos pela terra dentro e repartir-lhes
os serviços dos índios aqueles que os ajudarem a
conquistar e senhorear em outras partes de terras
novas [...], sujeitando-se o gentio, cessarão mui-
tas maneiras de haver escravos mal havidos mui-
tos escrúpulos, porque terão os homens escravos
legítimos, tomados em guerra justa e terão servi-
ço e vassalagem e a terra se povoará e Nosso
Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita
renda nessa terra [...]. A lei que lheso de dar, é
[...] fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois
m muito algodão, ao menos depois de cristãos,
tirar-lhes os feiticeiros, manter-lhes em justiça entre
si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos
sem se mudarem para outra parte, seo for para
entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bas-
tem e com estes padres da Companhia para os dou-
trinarem [...].
Na época do Império aumentou o empenho em em-
purrar ainda mais a colonização e a exploração de
terras em direção ao interior.
Em 18 de setembro de 1850 foi promulgada a Lei
de Terras, estabelecendo que todas as terras do Brasil
somente poderiam ser possuídas por compra; o gover-
no tinha toda a liberdade de leiloar as terras devolutas
(isto é, sem registro). Isso permitiu que fossem toma-
das e vendidas muitas posses indígenas - justamente
as daqueles que, aldeados anteriormente pelos padres,
o eram mais considerados 'selvagens', pois viviam
pacificamente em contato com os 'civilizados'.
Em ofício expedido em 1843 (in Mendes júnior,
1988, p. 71), o barão de Antonina argumenta:
Terra e território
[...] Devemos procurar criar entre os indígenas as
necessidades do homem civilizado,o para co-
modidade exclusivamente nossa, mas também
para comodidade deles; ao contrário, será impos-
sível queo prefiram ou a indolência da vida
conosco, ou a vida errante nos terrenos desconhe-
cidos [...].
Com essa Lei de Terras, somente os 'índios selvagens'
poderiam ter acesso à terra. Com isso o governo do
Império estabelecia em lei a diferença entre 'índio
bravo' e 'índio manso'.
O 'índio bravo' era selvagem, por defender suas ter-
ras, e lá permaneceria até ser 'amansado'. O 'índio
manso', queo brigava mais, podia ser expropriado.
A partir da República se passou a considerar que
os índios poderiam evoluir a "um grau superior" de
civilização, equiparando-se aos 'brancos'. Nesse sen-
tido, foram estabelecidas as seguintes diretrizes para
tratar da questão indígena:
1. abrir terras à colonização do interior, pondo fim
aos atritos entre índios e brancos;
2. realizar o "extermínio da selvageria", pacifican-
do os índios bravos e tornando-os "respeitosos
de nossa civilização";
3. situar os povos indígenas dentro da Nação bra-
sileira.
Em 1910 foi criado o Serviço de Proteção ao índio
(SPI), cuja direção foi entregue ao marechal
Rondon, que estivera à frente da Comissão das Li-
nhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao
Amazonas.
Terra e território
para tirar, em troncos de árvores gigantescas, os
favos preciosos de mel [...].o se podia exigir do
índio o mesmo gênero de atividade, o mesmo siste-
ma de trabalho europeu. Acostumado aos horizontes
sem fim de sua terra, julgar-se-ia asfixiado no estreito
âmbito de um lote eo haveria meio de o manter
, seo obrigando-o à força, a permanecer e tra-
balhar - o que seria sua morte [...].
A partir de 1912 o governo brasileiro começou a criar
reservas, com o principal objetivo de pacificar e fixar
os índios (liberando parte de seus territórios tradicio-
nais para a ocupação pelos demais brasileiros) e, ao
mesmo tempo, garantir um lugar para que eles pudes-
sem viver.
Para criar reservas era necessário estabelecer li-
mites, maso havia critérios para definir tais limi-
tes. Por outro lado,o se conhecia a cultura dos
povos indígenas que iam sendo contatados, nem
tampouco a dimensão de seus territórios tradicionais
de uso e ocupação.
A fixação de limites se tornou a base fundamental
para a criação das reservas, com o propósito de des-
tinar aos índios uma determinada quantidade de ter-
ras. Mas desde o início a demarcação se deparou com
um problema legal: perante a lei, os povos indígenas
eram considerados menores de idade; assim,o
poderiam ser proprietários das terras da reserva.
A existência das sociedades indígenaso dependia
de limites territoriais precisos. O conceito de 'limites'
aparece a partir do confronto com os invasores.
Território delimitado
e terra indígena
Capítulo 4
Em 1967 foi criada a Fundação Nacional do Indio
(Funai), em substituição ao SPI. Dois anos depois, a
Constituição imposta pelos militares encontrou uma
forma de superar a dificuldade legal da posse da ter-
ra pelos índios: as terras indígenas passaram a ser
consideradas de domínio da União Federal, cabendo
aos índios apenas seu usufruto.
Nos anos 70, o governo militar estabeleceu um
plano de desenvolvimento da Amazônia baseado na
abertura de estradas, as chamadas 'vias de
integração nacional'; os últimos povos indígenas
ainda isolados que habitavam essa área foram qua-
se todos extintos. Outros tiveram seus territórios
invadidos e retalhados pelos projetos de coloniza-
ção e exploração agropecuária e mineradora, in-
centivados pelo governo.
A meta da política indigenista do Estado brasi-
leiro nessa época era "integrar o índio à comunhão
nacional", ou seja, transformar os índios em 'civili-
zados'. Cabia à Funai acelerar essa integração, com
projetos de desenvolvimento que orientassem para
o mercado de consumo a economia interna das al-
deias.
Como dizia Costa Cavalcanti, ministro do Interior
do governo Medici: "O desenvolvimento da Amazônia
o pára por causa dos índios. E por que eleso de
ficar sempre índios? Eles devem ser integrados e
aculturados para colaborar no crescimento nacional"
(Jornal do Brasil, 18/09/73).
Os índios ficavam em um beco sem saída: se per-
manecessem como eram seus pais e avós, continua-
riam tendo a proteção do governo e seriam vigiados
por funcionários que lhes imporiam como obrigação
o abandono de sua condição de índios; e se deixas-
sem de ser índios perderiam a proteção do governo e
suas terras.
Terra e território
Em 1973 o Congresso Nacional aprovou a Lei 6.001,
o chamado Estatuto do índio, regulamentando os-
picos da Constituição relativos aos índios.
Entre outros itens, o Estatuto do índio fixou o pra-
zo de cinco anos para o Executivo (representado pela
Funai) demarcar todas as áreas indígenas do Brasil.
(Os empresários do Sul, que procuravam se estabele-
cer na Amazônia , pressionavam o governo para libe-
rar territórios indígenas). Esse prazo expirou em 1978,
sem ser cumprido.
Até a promulgação da Constituição de 1988, o re-
lacionamento do Estado brasileiro com as sociedades
indígenas se pautou pelo 'processo de pacificação', isto
é, pela transformação do índio em um ser manso e pa-
cífico, confinado em reservas de área muito inferior à
de seus territórios tradicionais.
A Constituição de 1988 passou a reconhecer os
índios como pessoas cujo modo de vida é diferente
do nosso, admitindo que elesm o direito de explo-
rar de sua própria maneira as terras em que vivem
(ver Artigo 231, no anexo da página 43 do volume índi-
os no Brasil 3). Mas a propriedade das terras indíge-
nas continua a ser da União.
A lei é em si suficiente para garantir o reconheci-
mento dos direitos territoriais indígenas, independen-
temente da demarcação física das terras. Mas a ação
demarcatória é um ato administrativo necessário para
a proteção dos territórios indígenas.
A demarcação das terras, estabelecendo e sinali-
zando seus limites, é importante para resistir à pres-
o da sociedade nacional no sentido de ocupar es-
ses territórios 'produtivamente'.
O tamanho da terra indígena a ser demarcada
sempre envolve uma disputa política entre o que os
Capítulo 4
índios reconhecem como seu território de ocupação
tradicional e o que os governos, sujeitos às pressões
dos investidores e das frentes de expansão económi-
ca, reconhecem como terra indígena.
o é raro que nessa disputa apareça o argumen-
to de que no Brasil "há muita terra para pouco ín-
dio", expressando a intolerância da sociedade nacio-
nal em reconhecer que, para os povos indígenas, é
fundamental permanecer em seus territórios tradici-
onais, para que possam garantir a sobrevivência de
suas culturas.
Por outro lado, como as terras indígenaso de
propriedade da União, os índioso controlam boa
parte das áreas que ocupam: eles nem mesmoo
consultados quando se decide abrir estradas, construir
hidrelétricas, passar linhas de transmissão etc.
A Constituição de 1988 estabeleceu o ano de 1993
como novo prazo para demarcar as áreas indígenas, mas
este tambémo foi cumprido. Em 1992, um ano antes
do prazo se extinguir, a Funai reconhecia a existência de
510 áreas indígenas no Brasil, sendo que apenas 191 (37
por cento) estavam demarcadas e homologadas.
O processo de demarcação
Um longo processo se desenrola até a demarcação de
uma terra indígena. Do reconhecimento da posse até a
completa regularização fundiária, uma terra definida
como área indígena passa por sucessivos estudos téc-
nicos e administrativos.
Em obediência ao disposto no Artigo 231 da Cons-
tituição Federal, precisam ser feitos estudos antropo-
lógicos, etno-históricos, cartográficos e fundiários
para definir a área ocupada tradicionalmente pelo
grupo. A realização desses estudos, que é de respon-
sabilidade da Funai, ocorre em várias etapas:
Terra e território
1. Identificação e delimitação
A identificação consiste no levantamento e no estudo
de sítios culturalmente relevantes para o grupo, en-
quanto a delimitação trata de estabelecer os limites
geográficos da área que irá conter os pontos do terri-
tório identificado nos estudos. Os estudoso enca-
minhados ao Ministério da Justiça.
2.. Demarcação
A demarcação consiste na materialização dos limites
definidos, por meio da abertura de picadas e da colo-
cação de marcos e placas de sinalização. A abertura
de picadas pode ser precedida da determinação de
pontos geodésicos, com a ajuda de sistemas de
rastreamento por satélite.
3. Homologação
A aprovação dos trabalhos demarcatórios ocorre com
a expedição, pelo Presidente da República, de um
Decreto de Homologação. Após a homologação, a área
é inscrita e registrada no Cartório Imobiliário da
Comarca correspondente e no Departamento do
Património da União (DPU).
No caso de diversas terras indígenas, transcorreram
mais de dez anos entre o início dos estudos e a ho-
mologação da área. Nesse meio tempo, muitas áreas
foram invadidas, ou se reduziram em relação à deli-
mitação proposta nos estudos originais.
Em 10 de março de 1996 estavam demarcadas e
registradas 221 terras, entre as 545 áreas indígenas
localizadas até então. Dessas terras, cerca de um ter-
ço havia sido ocupado por não-índios e/ou cortadas
por obras governamentais, como estradas etc.
Mesmo que impliquem uma redução de seus terri-
tórios tradicionais, a demarcação e os limiteso fun-
damentais para proteger as terras indígenas contra os
Capítulo 4
invasores. Conscientes disso, os índios se organizaram
sob novas formas, para cobrar seus direitos.
Discutindo entre aldeias, cada povo construiu uma
identidade para estabelecer os limites de sua convi-
vência com os não-índios, determinando:
estabelecer a proposta de um território coletivo
a ser demarcado;
continuar a existir como índios, decidindo seu
futuro por conta própria;
ser os donos de suas terras.
Criaram também associações indígenas para encami-
nhai suas reivindicações e estabelecer relações com
a sociedade nacional.
Diante da demora do governo em demarcar suas
terras, diversos grupos assumiram a iniciativa. Para
isso, contaram com o apoio de aliados das igrejas e
de organizações não-governamentais. Os índios foram
percebendo também o quanto é importante sua par-
ticipação nas demarcações realizadas pela Funai, tan-
to para acompanhar os trabalhos de colocação dos
marcos e limites quanto para manter a vigilância e a
defesa da terra demarcada.
Observando no mapa do Brasil as áreas em que
se preserva a cobertura vegetal fica evidente que, ao
exigir respeito a suas terras, os índiosm contribuí-
do para a defesa ambiental de grandes parcelas do
território nacional, bloqueando as frentes
desordenadas de expansão, que sempre deixaram ras-
tros de destruição.
A luta pela terra é permanente
Além da demora das demarcações, os povos indíge-
nasm enfrentado também sucessivas invasões, in-
clusive em terras já demarcadas, pois o governo, por
Terra e território
meio da Funai e da Polícia Federal,o consegue vi-
giar os territórios.
A defesa das terras depende muito da ação dos
próprios índios. Mas a entrega de uma terra
demarcada, sem a garantia de uma fiscalização per-
manente, nem sempre significa uma melhoria nas
condições de existência dos indígenas.
Pensar na proteção da terra é pensar ao mesmo tem-
po na sustentabilidade de um modo de vida no terri-
tório estabelecido.
A redução das áreas disponíveis para os povos in-
dígenas gera uma limitação de recursos naturais. Esse
problema, aliado às novas necessidades de bens in-
dustriais advindas do contato, obriga os indígenas a
buscar novas formas de sustentabilidade, combinan-
do suas atividades econômicas tradicionais com a
produção de bens voltados para o mercado externo.
Para viabilizar essas novas alternativas de desenvol-
vimento, é indispensável que elas sejam formuladas e
geridas pelas comunidades - quem demonstrado todo
interesse em garantir sua auto-sustentação -, segundo
seus próprios padrões e valores, mas permitindo seu
acesso aos mercados externos.
Bibliografia
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RONDON, CM. índios do Brasil. Vol. II, Rio de Janeiro,
Ministério da Agricultura, CNPI 99, 1953.
Documentários em vídeo
Meu amigo garimpeiro... (25'). Equipe do Programa
Waiãpi. Vídeo nas Aldeias, CTI, 1994.
Placa não fala (27') de Dominique Gallois e Vincent
Carelli. Vídeo nas Aldeias, CTI, 1996.
Demarcação Ticuna. Centro Maguta.
Terra dos índios. Zelito Viana, Embrafilme.
O Brasil grande e os índios gigantes (47'). Aurélio
Michiles, ISA, 1995.
Virgínia Valadão
Centro de Trabalho Indigenista/SP
FONTES DAS ILUSTRAÇÕES
As fontes das quais foram extraídas as ilustrações estão relaciona-
das abaixo. Os números entre parênteses correspondem às páginas
em que as ilustrações foram publicadas na obra original.
Aprendendo português nas escolas da floresta. Comissão Pró-Indio do
Acre. Rio Branco, 1997. Página 73 (60).
Dasa-Kmãnâr-ze - Receitas Xerente, de Lydia Poleck (org.). Proje-
to de Educação Indígena para o listado do Tocantins/MEC.
Goiânia, 1998. Página 74 (11).
História dos povos indígenas: 500 anos de luta no Brasil, de Eunice
Dias de Paula et al. (ed.). Brasília/Petrópolis. Conselho
Indigenista Missionário (Cimi)/Vozes, 1982. Páginas: 42
(32); 57 (76); 71 (126).
Madikauku: os dez dedos das mãos - Matemática e povos indígenas
no Brasil, de Mariana Karwall Leal. Brasília, MEC. 1998.-
gina 76 (49).
Pangyjêj Kue Sep: a nossa língua escrita no papel, de Ujatu Tamalisyn
(ed.); ilustrações de Mbedurap Zoró. Departamento para As-
suntos Indígenas, Núcleo de Educação Indígena de Rondònia,
1994. Página 28. 30 e 32 (47); 34 (22); 37 (78).
Tisakisü - Parque Indígena do Xingu.o Paulo. Instituto
Socioambiental (ISA). 1996. Páginas: 39 (98); 48 (92); 54
(77); 63 (35).
Capa
Pangyjêj Kue Sep: a nossa língua escrita no papel, de Ujatu
Tamalisyn (ed.); ilustrações de Mbedurap Zoró. Departa-
mento para Assuntos Indígenas. Núcleo de Educação Indí-
gena de Rondònia, 1994. Páginas 47 (personagens) e 71
(paisagem do fundo).
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( http://www.livrosgratis.com.br )
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