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Presidente da República
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Ministro da Educação
PAULO RENATO DE SOUZA
Secretária Executiva
MARIA HELENA GUIMARÃES DE CASTRO
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CONGRESSO
BRASILEIRO
DE QUALIDADE
NA EDUCAÇÃO
FORMAÇÃO PE PROFESSORES
SIMPÓSIOS
Marilda Almeida Marfan
Organizadora
Volume 1
Brasilia
2002
PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete
COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosângela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello
COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira
Edição: Elzira Arantes
Projeto Gráfico: Alex Furini
Editoração: José Rodolfo de Seixas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação: formação de professores (1. : 2001 : Brasilia)
Simpósios [do] Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação: formação de professores. /
Marilda Almeida Marfan (Orgonizodoro). __ Brasilia : MEC, SEF, 2002.
384 p.: il.;
v.l
1. Formação de Professores. 2. Qualidade da Educação.
3. Educação Básica. I. Titulo. II. Brasil. Ministério do Educação. Secretario de Educação Fundamental.
Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDl)
SUMARIO
APRESENTAÇÃO
Iara Glória Areias Prado
SIMPÓSIO 1
EDUCAÇÃO PARA A MUDANÇA
Andy Hargreaves - Canadá
Álvaro Marchesi - Espanha
SIMPÓSIO 2 25
UMA ESCOLA REFLEXIVA
Juan Casassus - Chile
José Tavares - Portugal
SIMPÓSIO 3 43
DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA LEITORA E ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman - Unicamp/SP
Beatriz Cardoso - Cedac/SP
Euzi Rodrigues Moraes - Ried/ES
PALESTRA 55_
MEDIANDO A LEITURA: RUMO À AUTONOMIA DO LEITOR
Tânia Mariza K. Ròsing - Universidade de Passo Fundo/RS
SIMPÓSIO 4 59
METODOLOGIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ENFOCANDO o TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho - Portugal
Maria Kliana Matos de E Lima - UFPE/PE
Ana Claudia Rocha -CEEV/SP
SIMPÓSIO 5 73_
TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE: DIFICULDADES, AVANÇOS E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson - Inglaterra
SIMPÓSIO 6 81_
o LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Angela Paiva Dionísio - UFPE/PE
Kazumi Munakata - PUC/SP
Márcia de Paula Gregório Razzini - Unicamp/SP
SIMPÓSIO 7 103
o DESENVOLVIMENTO DA EJA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA AMÉRICA LATINA
José Rivero - Unesco/Peru
Maria Dulce Borges - Unesco/Brasil
Graciela Messina - Unesco/Chile
SIMPÓSIO 8 123_
o FUNDEF E A VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini - Fundef/MEC
Oswaldo José Fernandes - Jundiaf/SP
SIMPÓSIO 9 129_
DESEMPENHO DO PROFESSOR E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji - França
Maria Helena Guimarães de Castro - Inep/MEC
SIMPÓSIO 10 151
ARTICULAÇÃO ENTRE AS FORMAÇÕES INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário - Portugal
Célia Maria Carolino Pires - PUC/SP
Charles Hadji I rança
SIMPÓSIO 11 175
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM, CURRÍCULO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Andy Hargreaves - Canadá
Iza Locatelli - Inep/MEC
SIMPÓSIO 12 187
FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho - Instituto Avisa Lá/SP
Ana Paula Soares da Silva - USP/Ribeirão Preto
Aricélia Ribeiro do Nascimento - SEF/MEC
Rosaura de Magalhães Pereira - SME/Belo Horizonte/MG
APRESENTAÇÃO
o Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação - Formação
de Professores, promovido pela Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação (SEF/MEC), foi realizado em Brasília no período
de 15 a 19 de outubro de 2001.
o Congresso tratou, em seus simpósios, palestras, painéis, oficinas e
atividades paralelas, de uma das principais variáveis que interferem na
qualidade do ensino e da aprendizagem: a formação continuada dos pro-
fessores. Buscou propiciar aos educadores e profissionais da área, tanto
nas oito séries do Ensino Fundamental, quanto na Educação Infantil, na
Educação de Jovens e Adultos, na Educação Especial, na Educação Indí-
gena e na Educação Ambiental, informações e conhecimentos relevantes
para subsidiá-los em sua prática. Promoveu um balanço geral dos princi-
pais avanços alcançados nos últimos anos, com a implantação de políti-
cas públicas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino, e enfatizou,
de forma especial, os programas de desenvolvimento profissional conti-
nuado e de formação de professores alfabetizadores, que foram debati-
dos sob diferentes óticas e pontos de vista.
o Congresso envolveu cerca de 3 mil participantes, incluindo, além das
representações municipais, um significativo número de autoridades, es-
pecialistas nacionais e internacionais e representantes de organizações
não-governamentais, privilegiando, quantitativamente, os representantes
dos municípios que procuravam desenvolver em seus sistemas de ensino
as políticas de formação continuada propostas pelo MEC, a saber: o Pro-
grama de Desenvolvimento Profissional Continuado - "Parâmetros em Ação"
e o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA.
Ao promover a organização desta publicação, a SEF faz um resgate de
todos os textos apresentados e entregues, em tempo hábil, pelos especia-
listas convidados e procura colaborar com aqueles profissionais da área
que valorizaram o evento e estão em busca de sua memória, ou que, por
diferentes razões, se interessam por reflexões e temas relativos à quali-
dade da educação e à formação dos professores, tais como: educação
para a mudança, transversalidade e interdisciplinaridade, educação
escolar indígena, livro didático, inclusão digital, alfabetização, organi-
zação dos sistemas de ensino, educação inclusiva, escola reflexiva, en-
fim, competência profissional, o desempenho do professor e o sucesso
escolar do aluno, entre outros.
Como o público-alvo é muito diversificado, o volume de textos apre-
sentados muito grande, e como os principais eixos temáticos podem
interessar, de forma mais direta, a diferentes segmentos do Ensino Fun-
damental, os resultados do Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade
na Educação - Formação de Professores foram organizados em quatro
volumes: os volumes 1 e 2 referem-se a temas mais gerais, relativos à
Educação Fundamental como um todo, e incluem temas específicos
referentes à Educação Infantil, à Educação de Jovens e Adultos, à Políti-
ca do Livro Didático e à Educação Especial; o volume 3 trata da Educa-
ção Ambiental; e o volume 4 é dedicado à Educação Escolar Indígena.
Embora incompleta, pela ausência de alguns textos, e observando
que em alguns casos só apresenta os resumos dos participantes, a pre-
sente edição reflete a importante contribuição e a competência de nos-
sos especialistas, tanto pelas palestras proferidas nos simpósios, quanto
pelos relatos de experiências contidos nos painéis, e incorpora 25 tex-
tos apresentados por renomados especialistas internacionais.
Ressalta-se ainda que os textos contidos nesta publicaçãoo de
inteira responsabilidade de seus autores e retratam reflexões e pontos
de vista de cada especialista envolvido.
Com a presente publicação, a SEF/MEC espera que os resultados
do Congresso de Brasília possam ser amplamente divulgados e cheguem
ao alcance dos principais interessados: professores do Ensino Funda-
mental, diretores de escolas, institutos de formação de mestres, pes-
quisadores, universidades, enfim, todos aqueles ligados à produção, à
reprodução, ao consumo e à transmissão do conhecimento, paladinos
da construção de uma escola de qualidade para todos.
Iara Glória Areias Prado
Secretária de Educação Fundamental
SIMPÓSIO 1
EDUCAÇÃO PARA A MUDANÇA
Andy Hargreaves
Álvaro Marchesi
A Nova Ortodoxia
da Mudança Educacional
Andy Hargreaves
International Centre for Educational Change/Canadá
Resumo
o presente documento descreve o que chamo
de Nova Ortodoxia da Mudança Educacional, com
sua ênfase sobre padrões elevados de aprendiza-
gem, currículo centralizado, avaliações alinhadas
e obrigatoriedade de punições e recompensas.
Em todo o mundo, o efeito dessa nova ortodo-
xia é arrebatador, mas o caráter positivo ou negati-
vo desse efeito depende de como ela é integrada e
implementada. Em seus piores aspectos, quando
imposta de forma excessivamente rigorosa ou de-
A Nova Ortodoxia da
Mudança Educacional
Uma nova ortodoxia oficial da reforma edu-
cativa está sendo rapidamente implementada
em muitas partes do mundo. Isso é particular-
mente verdadeiro em países anglo-saxões, mas
alguns elementos dessa ortodoxia estão sendo
crescentemente levados também para muitos
lugares menos desenvolvidos do mundo, por
meio de órgãos de financiamento internacio-
nal, como o Banco Mundial, e pela distribui-
ção global de estratégias de política. Os princi-
pais componentes dessa nova ortodoxiao os
seguintes:
Padrões elevados, prescrição de padrões
elevados de qualidade na aprendizagem
que todos os alunos (exceto aqueles com as
mais agudas disfunções mentais) teriam de
alcançar (Tucker e Codding, 1998; 1999).
Aprendizagem mais aprofundada, que vá
além da mera memorização do conteúdo,
com ênfase na compreensão conceituai, na
resolução de problemas e na aplicação de
conhecimentos que serão essenciais para
uma participação exitosa na nova econo-
finida com excesso de detalhes, a nova ortodoxia
pode tornar a aprendizagem demasiadamente ace-
lerada, enfatizar apenas seus aspectos mais clíni-
cos e destruir o discernimento profissional dos pro-
fessores, queo responsáveis por sua implemen-
tação. Entretanto, quando definida de forma mais
aberta, meus próprios estudos com professores de
7ª e 8ª séries que se destacaram entre os demais
mostram que ela lhes pode aprimorar o senso de
profissionalismo.
mia, ou na sociedade do conhecimento
(Schlechty, 1990).
Currículo centralizado, que elimine a situa-
ção caótica apresentada pelas diferentes
opções de curso no Ensino Médio, assegure
a existência de um compromisso comum e
consistente, bem como a abrangência ne-
cessária do que os alunos deveriam saber e
sejam capazes de fazer, e atinja os altos pa-
drões necessários para a sociedade de hoje.
Alfabetização e rudimentos numéricos e, em
menor medida, a ciência, como principais al-
vos para as reformas e para que se alcancem
padrões de aprendizagem significativamente
mais elevados (Hill e Crévola, 1999).
Indicadores e rubricas do desempenho do
aluno e planejamento curricular que possi-
bilitem aos professores, e a outros, verificar
com clareza quando os padrões foram ou
o atingidos.
Avaliações associadas, que devem estar ri-
gorosamente vinculadas ao currículo prescri-
to, aos padrões de aprendizagem e aos indi-
cadores, assegurando que os professores te-
nham em mira o objetivo de alcançar pa-
drões elevados de aprendizagem para todos.
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
Prestação de contas conseqüêncial, na qual
o desempenho global da escola, no que se
refira à elevação dos padrões, esteja estrei-
tamente conectado com os processos de
credenciamento, de inspeção e de vincula-
ção do financiamento aos níveis de suces-
so (e fracasso).
Essa nova ortodoxia consiste em certas
mudanças fundamentais e louváveis em rela-
ção a detalhes mais específicos da aprendiza-
gem em sala de aula e à características mais
gerais de configuração da administração edu-
cacional. Ela valoriza altos padrões para quase
todos os alunos eo apenas para uns poucos
e conduz os professores e suas escolas a com-
binar excelência com eqüidade no decorrer de
seu trabalho com alunos dos mais variados
backgrounds. No currículo, desloca a priorida-
de da conveniência e das convenções acerca
daquilo que os professores ensinam para a qua-
lidade e o caráter daquilo que se espera que os
alunos aprendam. Veicula os tipos de aprendi-
zagem aplicada e endereçada para a resolução
de problemas, queo mais apropriados para
uma sociedade eletrônica e informacional do
que para uma sociedade mecânica e industrial.
Ao tornar muitas avaliações baseadas mais no
desempenho do que no lápis-e-papel, tal orto-
doxia tenta conseguir que a avaliação seja usa-
da como a cauda que irá "balançar o cachorro",
sendo que o cachorro seria, no caso, o novo
currículo. Por último, maso menos impor-
tante, um currículo de âmbito nacional ou es-
tadual tenta assegurar que, independentemen-
te da escola, de sua localização, de seus profes-
sores ou de sua direção, todos os alunos serão
conduzidos a satisfazer os mesmos padrões ele-
vados - e que ninguém "irá cair pelas falhas do
terreno".
Em princípio, esses desenvolvimentos edu-
cativos prometem um progresso significativo
na reforma educacional, no que diz respeito à
melhoria da qualidade e dos padrões de apren-
dizagem e de oportunidades para todos os ti-
pos de alunos. Entretanto, a nova ortodoxia
educativa falha em relação a algumas dimen-
sões importantes da aprendizagem e do ensi-
no: dentro do seu pacote de reformas, acarreta
outros componentes de maior preocupação
que ameaçam solapar seus objetivos educacio-
nais mais positivos.
Questionando a ortodoxia
É difícil questionar o movimento concerta-
do em prol de padrões mais elevados. Quem
poderia ser contrário a uma reforma baseada
nos padrões? Posicionar-se contra os padrões
parece eqüivaler a ser a favor do pecado!
Porém existem diferenças entre apoiar o
princípio de padrões educacionais elevados e
inclusivos e os programas particulares de refor-
ma nos quais esses princípios se encontram
freqüentemente incorporados. Vejamos alguns
dos problemas.
0 currículo apressado
Nos seus escritos acerca da família pós-mo-
derna, David Elkind (1989; 1997) descreve
como, na sociedade contemporânea, as crian-
ças estão sendo crescentemente empurradas a
fazer mais coisas, mais cedo e mais rapidamen-
te - como namorar mais cedo, despertar para o
sexo mais cedo, aprender muitas coisas antes,
aderir a mais e mais clubes, equipes e ativida-
des mais organizados e, em geral, experimen-
tar uma infância mais apressada, mais acelera-
da e com uma agenda cheia de compromissos.
Antecipar conteúdos curriculares para séries
cada vez mais iniciais, ele argumenta, é parte
desse processo e dissocia os jovens de aspectos
importantes de sua infância - perambular de
forma inocente, brincar sozinhos e com outros
em ambientes não-estruturados, ir atrás de
aprendizagens levados por seus próprios inte-
resses e curiosidades, e assim sucessivamente
(Elkind, 1997).
Escrevendo na Inglaterra, após mais de uma
década de reforma baseada em padrões, Dadds
(2000) critica o que chama de "currículo apres-
sado", no qual a abrangência vem a ser mais im-
portante do que a aprendizagem. Esse currícu-
lo, ela salienta, leva os professores a empurrar as
crianças por meio do material sem que elas o
compreendam e reduz o período vital do "tem-
po de espera" que os bons professores concedem
às crianças antes que estas respondam às per-
guntas aqueles lhes fazem (Guttierrez, 2000).
Esse currículo elimina qualquer espaço para a
voz do aluno no processo de aprendizagem
(Rudduck, Day e Wallace, 1997) e inibe o desen-
volvimento de habilidades duradouras de apren-
dizagem que, justamente, essa reforma baseada
em padrões elevados pretende promover.
0 currículo convencional
e clínico
o currículo mais comum baseado em pa-
drões é, freqüentemente, na prática, um currí-
culo clínico e convencional. Trata-se de um cur-
rículo no qual se concede a maior importância
à alfabetização, aos rudimentos numéricos e à
ciência. Com efeito, em trabalhos-chaves sobre
esse assunto, Tucker e Codding (1998, 1999) sa-
lientam que essas deveriam efetivamente ser as
áreas básicas para a configuração de padrões.
As artes e as ciências sociais, argumentam, de-
veriam ser as áreas nas quais os aprendizados
fundamentais dos alunos deveriam aplicar-se.
Isso, obviamente, designa de forma arbitrária
as habilidades nas ciências como fundamentais
e aquelas das artes como sendo "aplicadas", sen-
do que o contrário - no que se refere, talvez, às
habilidades artísticas relativas à inventividade
e à criatividade - seria igualmente plausível. Hill
e Crévola (1999) também concedem primazia à
alfabetização no currículo do ensino primário
e defendem que outras disciplinas do "montão"
(tais como artes) sejam removidas ou reduzi-
das no currículo, para abrir espaço para a tal
alfabetização.
Na Inglaterra e no País de Gales, essas redu-
ções, que se tornaram comuns, precederam a
introdução do Currículo Nacional em 1988.
Num trabalho anterior, documentamos o quan-
to as desdenhadas matérias do "montão", que
abriram espaço para o regime padronizado das
disciplinas do Currículo Nacional - matérias
como Educação Política, Estudos para a Paz,
Educação Pessoal e Social e, ultimamente, Ar-
tes -, eram de natureza emotiva, social ou críti-
ca, o verdadeiro âmago da educação escolar
democrática, que desenvolve mentes críticas e
expressivas (Hargreaves, Earl e Ryan, 1996). Pe-
culiarmente, e causando perplexidade, as dis-
ciplinas básicas desse novo Currículo Nacional
eram uma réplica quase exata do currículo para
as escolas secundárias que foi desenhado em
1907, quando a intenção, para a política educa-
cional, tinha sido a de definir um currículo que
qualificasse para a universidade e que excluís-
se disciplinas técnicas, mais apropriadas e re-
levantes para estudantes da classe operária
(Goodson, 1988).
Nos Estados Unidos, a especificação dos
novos padrões de aprendizagem tem sido fei-
ta em grande medida sob a alçada das asso-
ciações nacionais das disciplinas - revivendo
e perpetuando a sua influência sobre o currí-
culo escolar e sobre aquilo que conta como
conhecimento dentro dele. Conteúdos abar-
rotados e um ritmo acelerado de movimento
por entre os diversos padrões deixam pouco
espaço ou incentivo para que os professores
possam interligar a aprendizagem com os in-
teresses dos alunos (Rudduck, 1997), para
contextualizá-la e torná-la relevante em rela-
ção a suas diversas vidas (Tharp, Dalton e
Yamauchi, 1994), ou para criar programas de
estudos integrados ou interdisciplinares que
tornem possível essa profunda contextualiza-
ção. Porém Tucker e Codding (1999: 31) che-
gam a descartar tal currículo interdisciplinar,
de um só golpe, com citações debochadas.
Mais ainda, a imensa maioria dos focos
cognitivos e clínicos da maior parte dos con-
juntos de padrões de aprendizagem empurra
as preocupações com a aprendizagem emo-
cional e com o desenvolvimento pessoal para
a periferia das preocupações dos professores
em sala de aula. Maso justamente esses ti-
pos de experiência curricular, emocionalmen-
te engajadores para os alunos e inseridos nos
contextos de suas vidas, que serão especial-
mente valiosos para a melhoria da aprendi-
zagem de alunos oriundos de minorias e de
setores desfavorecidos. Essas experiências de
aprendizagem e de vida dos alunos dentro de
suas famílias, culturas e comunidades defini-
tivamenteoo padronizadas na sua natu-
reza (Cummins, 1998; Nieto, 1998). O grande
progresso que se pode alcançar baseando um
currículo de ciências, para crianças de agri-
cultores imigrantes, em torno da sua própria
base de conhecimentos culturais na agricul-
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
tura, por exemplo,o encontra nenhum es-
paço dentro de um currículo demasiadamen-
te padronizado (Stoddart, 1999). Currículos
excessivamente padronizadoso se inserem
bem em sociedades culturalmente diversifi-
cadas. Eleso admitem que, especialmente
nesses contextos, a aprendizagem é uma prá-
tica social eo apenas uma prática intelec-
tual (Lave e Wenger, 1991).
Em geral, abordagens muito densas en-
fatizam em demasia aquilo que Sergiovanni
(2000), citando Habermas (1975), chama de
"mundo-sistêmico" de conhecimento, cogni-
ção, habilidades técnicas e sistemas. Sob um
ponto de vista comparativo,o se concede
muita importância ao "mundo-vital" da mo-
ral, dos valores, da aprendizagem emocional
e da experiência social. Na sociedade infor-
macional de hoje, teremos piores democra-
cias e economias mais fracas seo puder-
mos educar os alunos tanto para o mundo-
vital artístico, crítico e sociocientífico quan-
to para o mundo-sistêmico da alfabetização,
dos rudimentos numéricos e das ciências na-
turais!
Padronização e desprofissionalização
Por mais bem fundamentados que os no-
vos conjuntos de padrões de aprendizagem
possam ser, os professores desanimam e per-
dem eficácia se pressentirem que jáo pos-
suem voz no desenvolvimento de padrões,
bem como se esses padrões forem prescritos
de formao hermética queo dêem espaço
ao exercício de seu discernimento sobre como
devem ser implementados e interpretados
dentro de suas próprias salas de aula. Até ago-
ra, contudo, uma evidência crescente aponta
para a existência de um profundo abismo en-
tre a confiança e, inclusive, a grandiosidade
com que os encarregados da política educacio-
nal prescrevem seus planos-mestres baseados
em padrões, por um lado, e a confusão e desi-
lusão dos professores encarregados de imple-
mentá-los em sala de aula, por outro.
Na Inglaterra, Marion Dodds (2000) regis-
trou a percepção de uma professora sobre si
mesma como nada mais do que uma abelha
operária, após mais de uma década de um sis-
tema excessivamente padronizado.
Eles nos dizem para ir e para nos ocuparmos
ali, portantos todos vamos fervilhando ali e
nos ocupamos. Depois eles mudam de opinião
e dizem: "Não, é para lá!". Assim vamos todos
fervilhando para lá e nos mantemos ocupados
de outra maneira. E, é "por aqui" e, depois,
em algum outro lugar. Es todos nos mante-
mos fervilhando, enquanto eles apontam para
novas direções. De tempos em tempos, eles
m observar ses estamos fervilhando cor-
retamente.
Na Inglaterra e no País de Gales, mais de
uma década de minuciosa prescrição cur-
ricular tem feito muitos professores se senti-
rem desqualificados profissionalmente (Nias,
1991), menos confiantes (Helsby, 1999), cini-
camente complacentes (Woods et al., 1997) e
estressados de forma crescente (Troman e
Woods, 2000) - até chegar ao ponto, atualmen-
te vigente, de uma séria crise de contratação
para o ensino (Suplemento Educacional do Ti-
mes, 31 de março de 2000), na qual os jovens
demonstram pouco entusiasmo em aderir à
profissão (Hargreaves e Evans, 1997).
Algumas crises semelhantes afligem tam-
m os Estados Unidos, especialmente em áre-
as urbanas (Darling Hammond, 1997). Uma
imagem comum entre o grande público (e, tam-
bém, na própria sala de aula) é a do ensino
como uma atividade altamente estressante,
sobrecarregada e sujeita a crescente regulamen-
tação e controle externo, o que pouco ajuda. Ao
escrever acerca dos padrões, uma professora da
cidade de Los Angeles, Myranda Marsh (1999:
192), faz um alerta incisivo aos seus pares aca-
dêmicos e aos formuladores de políticas ao res-
saltar que "se reformas de quaisquer índoles
precisam ter sucesso, os professores precisam
acreditar que serão significativamente ouvidos
nas decisões e queo se transformarão em
bodes expiatórios por qualquer lacuna em se
atingir metas".
Os professores, Marsh salienta, ressen-
tem-se de ser tachados de "opositores" sim-
plesmente porque adotam atitudes realistica-
mente cautelosas acerca das reformas. "Opo-
sição aos padrões", ela diz, "não está funda-
mentada num desejo de evitar um espírito de
prestação de contas, mas sim num receio de
ficar de fora da discussão acerca do que cons-
titui, de fato, o sucesso" (Marsh, 1999: 194).
Como complemento aos padrões, Marsh e
outros (McLaughlin e Lieberman, 2000) pro-
põem um enfoque nos processos de consulta
aos professores (especialmente em torno do
significado de dados sobre o desempenho)
bem como a construção de comunidades de
prática profissional nas quais os professores
experimentariam, em termos de tempo, mo-
tivação e urgência baseada em padrões, tra-
balhar sobre padrões e reformas conjunta-
mente. Isso pareceria ter maior atrativo. To-
davia, para que seja possível ligar os padrões
de aprendizagem aos tais padrões profissio-
nais de colegialidade e de consulta no ensi-
no, os próprios padrões de aprendizagem pre-
cisam oferecer liberdade de ação suficiente
para permitir a apreciação e o envolvimento
profissional. Mais ainda, é essencial providen-
ciar níveis suficientes de apoio e de financia-
mento para que a consulta dos professores e
a discussão colegiada se efetivem no perío-
do escolar. Se, de um lado, evidenciam-se re-
sultados promissores em iniciativas especiais
e programas-piloto que combinam reformas
baseadas em padrões com consultas aos pro-
fessores, do outro, existem poucos sinais de
que níveis de apoio que sejam, ao mesmo
tempo, regulares e extensivos, direcionados
para tais tipos de profissionalismo aprimo-
rado, sejam iminentes no curto prazo em ou-
tros lugares.
Contextos contraditórios
As reformas baseadas em padrõesom
sido nem estão sendo implementadas em con-
textos que sejam neutros. Assim, os níveis de
apoio financeiro com base na arrecadação de
impostos e naqueles direcionados para a edu-
cação pública, bem como os investimentos so-
ciais em geral e em outros setores públicos, in-
felizmente, permanecem baixos em muitos pa-
íses (Hargreaves, 2000). Na sua brilhante trilogia
sobre a sociedade de redes, Castells (1998) for-
neceu dados para mostrar que o Estado da
Califórnia gasta mais com o sistema penitenci-
ário do que com escolas. As escolas públicas,
em algumas áreas urbanas, como aquelas de Los
Angeles, foram quase totalmente abandonadas
pela população branca. Quando um des che-
gou a trabalhar recentemente com um grupo
grande de diretores de escolas da área urbana
de Los Angeles, dois terços deles disseram, com
base na sua experiência em super-regulamen-
tação e apoio escasso, que, se pudessem esco-
lher, em nova oportunidadeo voltariam a ser
diretores.
Os contextos crescentemente ampliados
para as reformas baseadas em padrões são, na
prática, aqueles de recursos e apoio decrescen-
tes para a educação pública, paralelamente ao
desenvolvimento de sistemas de quase-merca-
do de competição entre escolas, por alunos
matriculados, por recursos, ou por ambos
(Whitty et al, 1997). Na Nova Zelândia, por
exemplo, a evidência indica que, após anos de
experiência com tais reformas,o houve di-
minuição nas diferenças de aprendizagem en-
tre alunos de setores privilegiados e aqueles
menos favorecidos (Wylie, 1997). Na Austrália,
extensos sistemas de apoio para escolas mais
pobres, incluindo assistência para as escolas
trabalharem com famílias e alunos que apresen-
tam múltiplos problemas,m sido substituí-
dos por iniciativas de reforma especificamente
direcionadas à melhoria da alfabetização, como
se os padrões de desempenhoo fossem afe-
tados por esses fatores contextuais de longo al-
cance (Thomson, 1999).
Enquanto isso, as propaladas reformas ba-
seadas em padrões do Estado norte-americano
de Kentucky foram, logo após um período de
sucesso, sufocadas por um excessivo controle
central, redirecionadas por imperativos de com-
petição resultantes da aplicação de testes pa-
dronizados e asfixiadas por surtos de controle
e de convergência políticos (Whitford e Jones,
2000).
Na Inglaterra, o Suplemento Educacional
do Times relata regularmente taxas crescentes
de exclusão e de interrupção dos estudos es-
colares (desproporcionalmente altas entre alu-
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
nos oriundos das classes operárias e das mi-
norias culturais), enquanto as escolas mantêm
a luta para aumentar seus níveis de desempe-
nho. Mais ainda, registra-se um aumento da
"alienação" entre os adolescentes, nos primei-
ros anos de um sistema de ensino secundário
orientado por um currículo de densos conteú-
dos, fenômeno que se observa nos sistemas
parcialmente sujeitos às regras de mercado dos
países anglo-saxões (Cumming, 1996). Nos
nossos atuais projetos, estamos observando o
surgimento de evidências dessa natureza no
contexto das reformas que estão impondo pa-
drões em Ontário, Canadá, junto com recur-
sos reduzidos, pouco apoio para o desenvolvi-
mento profissional e menos tempo para que
os professores trabalhem com os seus colegas
ou se encontrem com os estudantes fora dos
períodos de aula.
Conclusão
As questões que devem ser formuladas a
respeito de reformas baseadas em padrões de
qualidadeoo aquelas referentes aos seus
princípios básicos, os quaiso freqüentemente
admiráveis - focalizar um ensino que beneficie
todos os alunos e ligar isso a indicadores claros
de progresso nos sistemas de avaliação e de
prestação de contas. As perguntas, de preferên-
cia, devem referir-se ao número e ao alcance
desses padrões: o quão voltados são, ou não,
para disciplinas utilitárias; se privilegiam alguns
tipos de aprendizagem sobre outros; e se, como
resultado dessas influências, os padrões favo-
recem ou inibem as perspectivas em favor de
uma aprendizagem profunda, compromissada
com os pobres, em particular com alunos de
setores pobres, desfavorecidos e pertencentes
às minorias. As reformas baseadas em padrões
também precisam ser questionadas quando es-
o associadas a menos recursos e níveis de
apoio para a educação pública, aos sistemas de
política de semimercado queo proporcio-
nam nenhuma evidência de diminuir as dife-
renças na aprendizagem e aos processos de des-
profissionalização que corroem os recursos
mais poderosos que temos nas escolas - os seus
professores.
Além de padrões
Como seria possível conciliar os anseios por
reformas baseadas em padrões sem ficar preso
aos seus freqüentes problemas práticos de ex-
cessiva padronização, escassos recursos, des-
profissionalização e estreiteza curricular? Como
é que podemos ir além das dificuldades e re-
trocessos dos programas que estabelecem pa-
drões e efetivar as virtudes dos melhores prin-
cípios da padronização?
Para responder a essas questões e ir além
dos padrões tal como eles estão sendo interpre-
tados na atualidade, poderíamos aprender mui-
to ao analisar os esforços por reformas que em
muitos lugares precederam imediatamente a
"debandada" em prol de padrões (Sergiovanni,
2000) e que ainda subsistem como importan-
tes iniciativas por mudança educacional em
outros lugares. Esses esforços alternativos por
reformas definem e interpretam os padrões de
uma maneira mais ampla como resultados; in-
cluem e valorizam um espectro mais amplo do
currículo; defendem uma integração curricular
eo apenas uma especialização das discipli-
nas; e permitem um maior espaço para que os
professores exerçam seus julgamentos e orien-
tações profissionais. Retornar a este momento -
antes que os padrões fossem estreitados, retesa-
dos, transformados em algo mais específico e
prolífico e impostos com maior força - significa
recapitular os princípios dos padrões de uma
época e de um lugar onde os professores eram
capazes de se comprometer, entender e efetivar
esses padrões, bem como de aproveitá-los. Exa-
minando esse momento essencial, esperamos
fazer ressurgir os debateso apenas sobre aqui-
lo pelo que valia a pena lutar na educação, antes
dos padrões específicos por matéria, mas, tam-
bém, acerca daquilo pelo que ainda vale a pena
lutar, ao lado e além desses padrões.
o tempo e o lugar que usamos para nossa pes-
quisa é Ontário, Canadá, em meados dos anos
1990. Antes da eleição de um governo
ultraconservador, os esforços de reforma educa-
cional de amplo alcance da 7ª à 9ª série coloca-
vam ênfase em basear o currículo em torno de
resultados de aprendizagem comum definidos de
forma ampla, incentivando ações em prol de uma
maior integração curricular, implementando
obrigatoriamente iniciativas tendentes a reverter
processos de separação dos alunos de uma mes-
ma série em turmas mais homogêneas, de me-
lhor a pior, em função de seu nível de capacida-
de, e desenvolvendo um conjunto de avaliações
baseadas no desempenho. Todas essas medidas
buscavam criar um sistema educacional de alta
qualidade, inclusivo, que permitisse reter e
engajar jovens adolescentes dos mais variados
backgrounds no processo educativo.
A nova política curricular incluía quatro
componentes estreitamente inter-relacionados:
Resultados: a política curricular especifica-
va dez "resultados essenciais" muito am-
plos, organizados em quatro áreas progra-
máticas também amplas: Artes, Linguagem,
Matemática/Ciência/Tecnologia, o Eu e a
Sociedade. Dentro de cada uma dessas áre-
as, especificavam-se resultados, tais como
o conhecimento, as habilidades e os valo-
res que se esperava que os alunos tivessem
desenvolvido ao concluir a, a 6ª e a 9ª-
ries.o havia diretrizes prescritas para o
ensino e a aprendizagem, nem recursos re-
queridos. Esperava-se que os professores
revisassem os resultados e planejassem ati-
vidades letivas que permitissem aos alunos
atingir os resultados.
Currículo integrado: a política curricular
promovia uma aprendizagem integrada, por
meio do agrupamento de matérias em qua-
tro amplas áreas programáticas, e incenti-
vava explicitamente os professores a fazer
conexões empregando quatro abordagens
para a integração curricular - conteúdos
paralelos entre as matérias, conexões de
conteúdos entre matérias similares, cone-
xões conceituais entre várias matérias e co-
nexões intercurriculares completas. A polí-
tica curricular mapeava as possibilidades
amplas de integração, mas isso proporcio-
nava pouco ou nenhum direcionamento ou
incentivo específico para que os professo-
res superassem sua resistência à integração.
Avaliação: o papel dos professores na ava-
liação foi reforçado no currículo. Esperava-
se que avaliassem os progressos nos resul-
tados, o que seria alcançado desenvolven-
do o currículo, planejando rubricas, identi-
ficando indicadores para alcançar os resul-
tados planejados, desenvolvendo modifica-
ções adequadas para as necessidades indi-
viduais dos alunos, avaliando tanto o pro-
cesso quanto o produto da aprendizagem,
incentivando a auto-avaliação e o uso de
avaliações freqüentes e variadas. Além dis-
so, os professores eram responsáveis pela
comunicação das mudanças na avaliação
aos pais de seus alunos.
Na época do estudo, as escolas em Ontário
vinham experimentando, historicamente, um
status elevado, já que havia tradicionalmente um
forte compromisso com a educação pública por
parte dos governos, dos contribuintes e dos pais
dos alunos. Durante anos, os professores tinham
sido bem educados e bem pagos. O grande-
blico parecia estar contente com a educação que
os seus filhos recebiam (Livingstone, 1999). A
política curricular foi concebida de forma cen-
tralizada pelo Ministério da Educação, com uma
ampla participação de educadores da província.
Essas diretrizes gerais eram enviadas às escolas
e aos distritos para ser implementadas. Então,
os grandes distritos escolares escreviam docu-
mentos de "segunda geração" que traduziam a
política em diretrizes mais específicas, elabora-
das para se ajustar aos distritos locais. Os pro-
fessores recebiam níveis variados de apoio e de
capacitação, dependendo dos recursos local-
mente disponíveis para a capacitação em servi-
ço ou para apoio de consultoria. A avaliação tor-
nou-se competência exclusiva do professor em
sala de aula.o havia nenhum programa de
avaliação no âmbito da província além de algu-
mas avaliações amostrais realizadas para a revi-
o dos currículos.
0 estudo
o nosso estudo concentra-se em 29 profes-
sores que ensinavam em salas de aula da 7
a
e
da 8º séries no contexto da reforma curricular.
Os professores foram escolhidos em quatro
grandes distritos escolares (mais de 50 mil alu-
nos cada um) com a participação do The
Learning Consortium (Consórcio da Aprendiza-
gem) - uma parceria para o desenvolvimento
dos professores estabelecida entre The Ontario
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
Institute for Studies in Education (Instituto de
Ontário para Estudos em Educação), a Univer-
sidade de Toronto e os quatro distritos. Todos
esses distritos eram urbanos e dois deles apre-
sentavam populações estudantis extremamen-
te multiculturais. O propósito do estudo foi exa-
minar a compreensão que os professores desen-
volveram sobre as mudanças inseridas na nova
política curricular; determinar como e até que
ponto foram capazes de integrar as mudanças
em suas práticas; identificar que condições,
apoio e processos eram necessários para efeti-
var tal integração; e entender suas experiências
acerca das mudanças envolvidas.
Os professores da nossa amostra tinham
sido identificados por administradores, nos
seus distritos, como sendo aqueles que partici-
pavam ativamente de esforços para incorporar
as mudanças curriculares em suas práticas. So-
licitou-se que, em cada uma das escolas de cada
um dos distritos, dois professores permitissem
que visitássemos suas salas de aula e os entre-
vistássemos a respeito de suas experiências no
momento em que tentavam atender às diretri-
zes curriculares. À exceção de três, todos con-
cordaram em participar do estudo.
Os professores foram entrevistados, duran-
te uma a duas horas, sobre suas interpretações
pessoais das políticas de integração curricular
em curso; os resultados comuns da aprendiza-
gem e a reforma da avaliação; onde é que ti-
nham adquirido tal interpretação; como é que
integravam essas mudanças nas suas práticas;
quais eram essas práticas; que êxitos e dificul-
dades encontraram durante o processo de im-
plementação e em que medida recebiam apoio
dos seus colegas e da direção do estabelecimen-
to nos seus esforços por introduzir as mudan-
ças. De forma mais geral, perguntamos aos pro-
fessores a respeito de seus registros de mais lon-
go prazo sobre mudanças e da relação entre
seus compromissos profissionais e seus com-
promissos e obrigações mais amplos da vida
corriqueira. Três dos professores autorizaram-
nos a observá-los nas suas aulas e participaram
de várias entrevistas adicionais para nos forne-
cer uma visão mais aprofundada sobre os seus
trabalhos e suas experiências com respeito às
mudanças educacionais.
Obviamente, a nossa amostragemo é re-
presentativa dos professores que lecionam na
7ª e na 8ª séries. Os professores do estudo fo-
ram identificados justamente porque eles de-
monstravam ter um compromisso sério e per-
manente em implementar as mudanças nos
Transition Years (Anos de Transição). Assim sen-
do, o estudo oferece noções significativas sobre
as experiências de professores altamente com-
prometidos. Entretanto, se a mudança cria di-
ficuldades para esses professores, ou para as
relações intrínsecas ao seu trabalho, é provável
que essas dificuldades sejam ainda maiores no
caso daqueles professores menos receptivos, ou
menos entusiasmados, com as mudanças aqui
descritas, ou até mesmo com a mudança edu-
cacional em geral.
o nosso propósito, portanto, é entender
como os professores orientados para a mudan-
ça compreendem as requeridas e complexas
mudanças educacionais, como é que as efeti-
vam ou realizam em suas turmas, o que os aju-
da e o que os atrapalha e o que o processo de
mudança requer e demanda deles.
Tipicamente, enquanto os formuladores das
reformas agem como se a mudança fosse um as-
sunto simples para os professores - uma ques-
o de ingerir e cumprir como solicitado -, as
situações de mudança que os professores en-
frentamo extremamente complexas. Os pro-
fessores que estudamoso estavam apenas
tentando implementar inovações isoladas, uma
de cada vez: estavam enfrentando mudanças
múltiplas e multifacetadas nas suas práticas de
integração curricular, nos resultados comuns da
aprendizagem e em sistemas alternativos de
avaliação e de apresentação de relatórios. Mais
ainda, esse conjunto de mudançaso poderia
ser implementado de forma isolada em relação
a todos os demais aspectos do trabalho dos pro-
fessores nas suas escolas. Algumas das escolas
também estavam envolvidas no desenvolvi-
mento de estratégias cooperativas de aprendi-
zagem. A maioria já estava começando a se
acostumar com o uso de computadores e com
outras novas tecnologias. Uma prioridade pa-
ralela era a construção de relações com os pais
de alunos e o estabelecimento obrigatório de
conselhos de pais. Muitos diretores das escolas
haviam assumido o cargo recentemente ou es-
tavam prestes a fazê-lo - o que acarretava mu-
danças no estilo de liderança e na focalização
das mudanças nessas escolas. Numa crise cada
vez mais profunda de retração econômica, os
recursos tornavam-se crescentemente escassos
(e continuam a sê-lo no momento em que es-
crevo este trabalho). Havia rumores e, às vezes,
mais do que rumores de aumento no tamanho
das turmas, de cursos que seriam eliminados,
de professores que seriam transferidos ou que
perderiam os seus empregos. O apoio de con-
sultores distritais para assessorar os professo-
res durante o processo de mudança estava de-
saparecendo e os dias dedicados ao desenvol-
vimento profissional estavam sendo reduzidos.
Através dos olhos e da experiência dos pro-
fessores queremos criar e recriar uma imagem
de como alguns dos nossos melhores professo-
res entendem - e freqüentemente lutam contra
- o duro trabalho intelectual e emocional de
empreender conjuntos complexos de reformas
educacionais como as que descrevemos. Que-
remos retratar o que a ortodoxia emergente de
mudança educacional - baseada no que se deve
aprender,o no que deve ser ensinado - pare-
ce ser, vista no contexto mais nítido das suas
salas de aula. Partimos das experiências desses
professores para alcançar, acompanhar e ultra-
passar os padrões e examinar a Nova Ortodoxia
da Mudança Educacional quando ela inclui e
apoia os professores em vez de ser simplesmen-
te imposta a eles. Mostramos, ainda, como os
professores lutam para conectar reformas cur-
riculares e de avaliação aos diversos estilos de
vida dos seus alunos, como desenvolvem pro-
gramas integrados de qualidade que se inter-
relacionam com as vidas e a aprendizagem de
todos os seus alunos e como procuram manei-
ras de envolver os alunos e seus pais, de forma
integrada, nos processos de aprendizagem e de
avaliação.
Mostramos como, com apoio adequado e
uma suficiente capacidade de discernimento, os
professores podem alcançar grandes progres-
sos, fazendo que a Nova Ortodoxia da Mudança
Educacional funcione com os seus alunos, de
modo que a aprendizagem em sala de aula se
torne animada para eles. Também mostramos
onde definições mais claras de resultados, do
tipo incorporado em esforços subseqüentes por
implantar padrões,o requeridas com urgên-
cia, onde os números de resultados (como os
atuais números de padrões) podem proliferar
até se tornarem excessivos, onde o apoio pode-
ria ser inadequado e onde o ritmo de mudança
poderia ser rápido demais, mesmo para os me-
lhores professores.
Nesse sentido, nosso trabalho nos ajuda a
penetrar nas complexidades da mudança edu-
cacional nos dias de hoje, tal como os professo-
res a experimentam dentro da nova ortodoxia
educacional. Ele nos levará para dentro, para
antes e para além dos padrões. Reconhecer o que
uma complexa reforma educacional significa
para os professores e o que realmente requer
deleso é uma tentativa nem cínica, nem
elogiosa. Os nossos achados estão longe de cons-
tituir um catálogo de tragédias - de um entusi-
asmo em declínio, de esperanças perdidas ou de
boas intenções queo deram certo. Tampouco
eles descrevem nossos professores como exces-
sivamente otimistas - que avançam imper-
turbáveis por problemas ou contratempos que
surgem no seu caminho. Nossas descobertas,
sim, abrem uma janela para as realidades eo
apenas para a retórica da Nova Ortodoxia da Mu-
dança Educacional do começo do século.
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
Educação para a mudança
Álvaro Marchesi
Universidade Complutense de Madri/Espanha
o ex-presidente Sanguinetti (Uruguai) pro-
feriu há pouco tempo uma frase carregada de
significado: "o futuro jáo é como era antes".
No passado talvez fosse possível prever o que
aconteceria a seguir. Atualmente, o ritmo das
mudanças éo acelerado que poucos ousam
fazer prognósticos. Todavia, é necessário anali-
sar as características mais relevantes da socie-
dade e da educação, definir as diferentes alter-
nativas colocadas aos sistemas educativos, op-
tar por aquela considerada mais vantajosa e co-
locar em prática as mudanças que podem torná-
la possível. Esseso os temas que serão trata-
dos nesta palestra. Em primeiro lugar, descre-
veremos os principais traços da situação atual,
bem como seus riscos e possibilidades. Em se-
gundo lugar, apresentaremos três possíveis ce-
nários educativos do futuro: o liberal, o buro-
crático e o comunitário. Finalmente, ressaltare-
mos as mudanças mais importantes que devem
ser implementadas para que as escolas venham
a constituir comunidades de aprendizagem.
Uma realidade social
e educativa ambivalente
Uma das características mais importantes da
atual sociedade talvez seja sua ambivalência,
isto é, sua capacidade tanto para aprofundar as
atuais desigualdades como para se dirigir rumo
a uma melhor distribuição dos bens coletivos. O quadro abaixo retrata os traços mais
relevantes que caracterizam o sistema
educativo e os riscos existentes, bem
como suas possibilidades.
o primeiro traço que caracteriza as
relações entre a sociedade e a educação
é a exigência de qualidade. Existe uma
profunda convicção de que uma educa-
ção de qualidade constitui garantia para
o desenvolvimento econômico de um
país, para o fortalecimento da democra-
cia e para maior coesão social. Além disso, as
expectativas que a sociedade deposita na edu-
caçãoo cada vez maiores. Tem-se a esperan-
ça de que a escola possa resolver praticamente
todos os problemas que suscitam alguma pre-
ocupação: se houver violência, a escola deve
combatê-la e reduzi-la; se aparecerem novas
doenças, a escola deve preparar seus alunos
para evitá-las; se houver desigualdades, xeno-
fobia, acidentes de trânsito, desrespeito ao meio
ambiente etc, a escola torna-se responsável
pela diminuição dessas atitudes e comporta-
mentos.o obstante, além disso, os alunos
devem ser bons cidadãos, humanistas, leitores
interessados, falar diversas línguas, demonstrar
habilidade no manuseio de novas tecnologias,
além de ser dotados de senso crítico.
o risco existente é o de que a sociedade e os
podêres públicoso estejam conscientes das
enormes dificuldades que a busca desses obje-
tivos acarreta, nem das novas condições que de-
veriam ser criadas para atingi-los. O que acon-
tece com crescente freqüência é que as exigên-
cias se mantêm e, até mesmo, aumentam, sem
que haja um apoio decisivo para lidar com elas.
No entanto, seria possível pensar que essa maior
exigência poderá algum dia transformar-se num
efetivo empenho pela mudança.
o segundo traço diz respeito à crescente in-
corporação da competitividade no sistema edu-
cativo. Partindo do funcionamento da econo-
mia, esta regida pelas leis da oferta e da procu-
Principais traços da realidade educativa,
seus riscos e possibilidades
Traços
Exigência na qualidade
Competitividade
Demanda das famílias
Valorização dos docentes
Demanda por inovação
Melhor escola pública
Riscos
Falta de apoio
Desigualdade
Ausência dos famílias
Escasso reconhecimento
Repetição
Marginalização
Possibilidades
Mudança
Qualidade para todos
Colaboração
Profissionalismo
Relevância
Transformação
i
ra, pela ausência de protecionismo e pelo do-
mínio das regras do mercado, a educação tem
sido pressionada a reger-se de acordo com nor-
mas semelhantes. As escolas lutam por matri-
cular alunos e por conseguir bons resultados.
Caso contrário, poderiam vir a ser suprimidas
ou desprezadas.
o risco desse enfoque é o aumento das de-
sigualdades. A liberdade de escolha que os pais
m à sua frente transforma-se em liberdade das
escolas para escolher seus alunos, o que leva al-
gumas delas a poder selecionar os melhores de-
les, enquanto outrasom saída senão ma-
tricular alunos com os maiores problemas, o
que só faz aumentar o hiato existente entre
umas e outras. Existe, entretanto, a possibilida-
de de que essa pressão pelo sucesso venha a se
traduzir num maior empenho para que a edu-
cação de melhor qualidade chegue a todos os
alunos.
o terceiro traço aponta para a demanda das
famílias. Os pais também estão conscientes de
que a melhor herança para os seus filhos é uma
boa educação e exigem das escolas que assegu-
rem para estes bons resultados escolares. No
entanto, existe o risco de que os pais repassem
para as escolas toda a responsabilidade pela
educação dos seus filhos, dadas as dificuldades
que eles mesmos encontram tanto em termos
de (falta de) tempo como de pouco preparo para
se dedicarem eles mesmos a tal tarefa. Contu-
do essa mesma demanda pode converter-se
num poderoso instrumento para uma maior
cooperação entre as famílias e a escola.
Acompanhando de perto essa maior exi-
gência de educação vem a importância do tra-
balho dos professores. Os sinais nessa direção
o contínuos. Porém, na maioria das vezes,
essa suposta valorização do trabalho dos do-
centeso se traduz em ações de reconheci-
mento e de apoio. É preciso modificar essa si-
tuação e transformar o reconhecimento verbal
da importância dos professores num esforço
contínuo, em que se favoreça o seu desenvol-
vimento profissional.
As atuais mudanças na sociedade, especial-
mente aquelas que resultam da influência dos
sistemas de comunicação e de informação, exi-
gem dos docentes novas formas de ensinar. A
necessidade de um processo contínuo de ino-
vação em sala de aula é evidente. Contudo, a
escassa formação e a falta de tempo dedicado à
reflexão podem vir a impedir essa dinâmica e
manter os professores utilizando modelos de
ensino que sejam ao mesmo tempo tradicionais
e repetitivos.
Finalmente, existe uma exigência de melho-
ria da qualidade do ensino público, onde uma
grande parte dos alunos de um país aprende,
especialmente aqueles que se encontram em
condições sociais mais desfavorecidas. Quan-
do as horas diárias durante as quais os alunos
se encontram em escolas públicaso inferio-
res às de seus colegas de escolas privadas, quan-
do seus recursoso insuficientes e o número
de alunos por turma excessivo eo se faz qua-
se nada para resolver tal situação, existe o risco
de que a escola pública rume para a margina-
lização, na medida em que os pais com alguns
recursos optem por escolas privadas para seus
filhos. Todavia, a exigência por escolas de qua-
lidade para todos os alunos permite a possibi-
lidade de que os podêres públicos responsáveis
pela educação se empenhem na melhoria das
escolas públicas.
Diferentes cenários
Em que direção irão orientar-se os sistemas
educativos? Será que prevalecerão os riscos aci-
ma descritos ou serão aproveitadas as oportu-
nidades positivas existentes?o é possível
sabê-lo. Enquanto nos anos 1980 grande parte
das reformas educativas baseou-se em políti-
cas liberais, ao começar o novo milênio despon-
ta uma possível mudança de orientação. Seja
qual for o futuro, existem três possíveis cená-
rios, um dos quais predominará, dependendo
das iniciativas que venham a ser adotadas nos
próximos anos.
0 cenário liberal
Esse cenário supõe, em síntese, fortalecer os
elementos competitivos no funcionamento da
educação. Os principais objetivos seriam me-
lhorar o rendimento escolar dos alunos e am-
pliar as opções de escolas para os pais. Para
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
alcançá-los, seria necessário reforçar os siste-
mas de avaliação baseados nos resultados es-
colares dos alunos, comparar o que foi obtido
em cada escola e torná-los públicos, para que a
sociedade pudesse conhecer e controlar o fun-
cionamento dos estabelecimentos.
0 cenário burocrático
As suas principais característicaso a ma-
nutenção da atual situação e a incapacidade de
empreender reformas profundas. De um lado,
existe receio em avançar com o modelo liberal,
seja pela pressão da sociedade ou dos sindica-
tos dos professores, seja pela convicção de suas
conseqüências negativas no âmbito da eqüida-
de. De outro, tampouco existe vontade política
em modificar os ajustes existentes: situação
ruim dos professores, abandono da escola-
blica, poucos investimentos, rigidez na organi-
zação da escolas e no desempenho profissional
dos professores, sistemas de formação obsole-
tos etc. A falta de decisão, normalmente asso-
ciada ao receio de conflitos e à falta de perspec-
tiva futura, leva à conclusão de que as escolas e
os professores continuam agindo como sempre,
embora se permitam e estimulem projetos li-
mitados de inovação e de mudança realizados
por equipes de professores empreendedores.
0 cenário da comunidade
de aprendizagem
Esse cenário implica acreditar que a apren-
dizagem dos alunos, de todos eles, exige um
modelo diferente de ensino. O objetivoo é
que os professores lecionem e os alunos apren-
dam, mas que toda a comunidade educativa -
professores, pais e alunos - participe no proces-
so de aprendizagem. Além disso, a responsabi-
lidade pelo ensino e pela aprendizagemo re-
cai com exclusividade na escola, mas conside-
ra-se que deveriam existir mais instituições
comprometidas com esse objetivo. Sob essa
perspectiva, o papel da escola se vê modifica-
do, o que, por sua vez, exige mudanças na sua
organização, nas suas relações com o mundo
externo, nos seus objetivos educativos, na sua
forma de ensinar e na sua maneira de avaliar.
o avanço em direção a escolas que sejam co-
munidades de aprendizagemo pode efetivar-
se com exclusividade a partir das escolas, mas
exige a ativa participação de outras instituições.
Esse seria o cenário mais desejável, aquele que
melhor garante o equilíbrio entre a qualidade e
a eqüidade na educação, porém o que exige mu-
danças mais profundas e de mais longo alcan-
ce. Essas mudanças serão descritas de forma su-
cinta nas páginas que seguem.
As condições da mudança
A mudança para a configuração mais
abrangente de comunidades de aprendizagem
o é algo que se produz em si. É necessário
um projeto global, no qual se integrem dife-
rentes estratégias que confluam para o objeti-
vo desejado. As principais características das
mudanças que devem ser impulsionadaso
as seguintes: a mensagem e a ação educativa,
as novas estratégias para a formação do pro-
fessorado, o tempo dos professores, as redes
de escolas, a participação da comunidade edu-
cativa, os modelos eqüitativos de avaliação e a
atenção à diversidade.
A mensagem e a ação educativa
A mudança educativa em determinado sen-
tido exige que as mensagens e a ação também
se orientem na mesma direção. Quando a ênfa-
se se limita ao rendimento acadêmico dos alu-
nos, quando se responsabilizam exclusivamen-
te as escolas pelos problemas existentes e quan-
do se esquece, sistematicamente, de outras con-
dições, os avanços se tornam difíceis.
Ao contrário, a mudança das escolas no sen-
tido de virem a se tornar comunidades de
aprendizagem supõe um discurso alternativo.
Os objetivos das escolaso além da transmis-
o de conhecimentos e estendem-se em três
direções complementares: o desenvolvimento
do desejo de saber, o reforço da sensibilidade e
do afeto e a construção de valores pessoais.
Nesse processo, é preciso que o conjunto da
comunidade educativa esteja comprometido.
Esses objetivos condicionam o trabalho dos
professores, a organização das escolas e sua
conexão com o entorno, os sistemas de avalia-
ção, a assessoria e o apoio que as escolas rece-
bem, bem como as relações com a administra-
ção educativa.
0 compromisso com as escolas
A ampliação da escolarização dos alunos, a
melhoria da qualidade do ensino ou a redução
do fracasso escolaroo tarefas que as esco-
las e os professores possam realizar de forma
isolada. Ao contrário, exigem o apoio decidido
das administrações educativas e dos poderes
públicos. Esse compromisso pode se concreti-
zar, prioritariamente, em duas direções. Em
primeiro lugar, deve propiciar o aumento dos
orçamentos educacionais de forma sustentada,
possibilitando, assim, o alcance dos objetivos
previstos. Esse incremento do investimento
público em educação deve ser acompanhado de
uma progressiva e eficiente distribuição, de for-
ma que aqueles que possuem menos possam
receber mais. De toda maneira, o incremento
dos recursos deveria se destinar a ampliar a
Educação Infantil nos setores mais desfavo-
recidos, a fortalecer a Educação Básica, a au-
mentar a oferta da Educação Secundária, a ele-
var o nível de formação das mulheres jovens,
especialmente aquelas com menor nível de es-
colaridade, e a reforçar os recursos e o funcio-
namento das escolas públicas.
Em segundo lugar, esse compromisso deve-
ria supor uma nova forma de relação com as es-
colas. A administração educacional deve ser ca-
paz de negociar e estabelecer, por acordo, um
programa específico com cada escola, de ma-
neira que elas possam desenvolvê-lo no perío-
do de tempo compactuado - procedimento este
que supõe uma aposta decidida em favor da au-
tonomia das escolas e de sua maior responsa-
bilidade sobre os assuntos educacionais. A
contrapartida deve ser uma avaliação rigorosa
de seu funcionamento, na perspectiva de co-
nhecer e melhorar, eo de comparar e selecio-
nar. Portanto, é preciso que as escolas públicas
deixem de ser um número - entre muitos - que
depende da administração educacional para ter
personalidade própria, capacidade de
interlocução e um projeto estável que permita
a participação de setores sociais interessados
em colaborar com ele. Mas, para alcançar o ex-
posto, é preciso uma maior estabilidade e de-
dicação dos professores a sua escola e um tem-
po disponível para elaborar e colocar em práti-
ca os projetos educacionais. Quando os profes-
sores devem ministrar a docência em várias es-
colas, é muito difícil assegurar essa forma de
colaboração.
A redução do abandono escolar
Altas taxas de abandono escolaro incom-
patíveis com uma educação de qualidade, mas
o abandono escolaro é responsabilidade ex-
clusiva do sistema educativo, nem das escolas.
Uma alta porcentagem de fracasso escolar tem
sua origem diretamente ligada às carências eco-
nômicas, sociais e culturais de que sofrem de-
terminados grupos populacionais. Os estudos
que analisam a influência social no acesso à
educaçãom demonstrado que alunos que vi-
vem em piores condições sociais apresentam
maior probabilidade de estudar menos anos e
de estar situados em grupos de alunos cuja
valoração acadêmica é mais baixa: turmas cujos
alunosm nível acadêmico inferior, grupos
especiais ou sem qualificação final reconheci-
da. O informe do Banco Interamericano do De-
senvolvimento (BID, 1998: 30) assinala que os
10% da população mais pobre, com mais de 25
anos, no Brasil, estudaram em média apenas
durante 1,98 ano, enquanto os 10% mais ricos
estudaram durante 10,53 anos.
Esses dadoso significam que as famílias,
o sistema educacional, as escolas, os profes-
sores e os próprios alunoso tenham nada a
fazer diante de tal realidade sociocultural des-
favorável. O abandono escolar prematuro deve
ser entendido numa perspectiva multidimen-
sional e interativa, em que as condições so-
ciais, a atitude da família, a organização do sis-
tema educacional, o funcionamento das esco-
las, a prática docente em sala de aula e a dis-
posição do aluno para a aprendizagem ocupam
papel relevante. Cada um desses fatoreso
pode ser considerado de forma isolada, mas
em estreita relação com os demais. O caso da
disposição do aluno é um bom exemplo desse
modelo explicativo e interativo. Sua falta de
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
motivação ou de interesseo é simplesmen-
te responsabilidade de sua história individual,
mas é também a expressão do contexto social,
cultural e familiar em que vive, bem como do
funcionamento do sistema educacional, da
escola em que estuda e do trabalho de seus
professores.
A formação e o tempo dos professores
As maiores exigências para a educação re-
caem sobre os professores, queo os que po-
dem colocá-las em prática. Na atualidade o en-
sino requer diálogo e participação dos alunos,
orientação e tutoria, relação com os pais, cola-
boração na gestão da escola, contato com ati-
vidades formativas que se desenvolvem fora da
escola, trabalho em equipe com companheiros
e programação de atividades em aula capazes
de suscitar o interesse e o esforço dos alunos.
Os professores devem fazer frente a um ensino
sujeito a mudanças e que transcende os limites
de sua sala de aula, na qual um número signifi-
cativo de alunoso manifesta nenhum inte-
resse em aprender. Antes, o professor era qua-
se o único responsável por ensinar. Agora, ele
deve compartilhar sua função e conseguir que
o aluno analise e integre a variada e dispersa
informação que recebe.
Dentro desse contexto, a formação dos pro-
fessores e o desenvolvimento de suas perspec-
tivas profissionais adquirem importância fun-
damental.o seria possível imaginar que a
mudança nas funções e nas exigências para os
professores possa ser implementada sem mo-
dificar sua situação laborai e os sistemas de for-
mação. Os professores precisam de tempo para
refletir em comum acerca de suas práticas de
ensino, para elaborar projetos educativos e para
participar de programas de avaliação, bem
como para transformar suas estratégias de en-
sino. A distribuição do tempo dos professores,
seu vínculo com apenas uma escola, a garantia
de condições econômicas razoáveis e a implan-
tação de sistemas de promoção profissional
constituem alguns dos grandes desafios dos sis-
temas educativos modernos e uma tarefa que
aindao teve início nas escolas públicas da
maioria dos países de América Latina.
As redes de escolas
Nos tempos atuais de mudança e de exigên-
cia, será difícil que uma escola isolada possa atin-
gir os objetivos propostos. Por isso, é importan-
te que as escolas deixem de se isolar e que se re-
lacionem entre si para melhor alcançar alguns
objetivos específicos. As redes de escolas podem
ter objetivos muito variados quanto a informa-
ção, inovação, intercâmbio de experiências e
avaliação.o redes que se baseiam na partici-
pação do conjunto da escola, de alguns profes-
sores ou de algum grupo de alunos. A evolução
dos sistemas de comunicação e da informática
está abrindo enormes possibilidades nessa área.
A organização e o fortalecimento das redes
de escolas exigem tempo, empenho e dedica-
ção permanente. Elaso surgem espontanea-
mente nem perduram de forma permanente. Ao
contrário, é difícil criá-las e ainda mais difícil
mantê-las ativas. Normalmente, as redes que
surgem em torno de um projeto concreto e que
o atendidas pelos que as promovemm mais
probabilidades de subsistir e de aportar bene-
fícios para os participantes. O contato com ou-
tras comunidades de aprendizagem constitui
um importante estímulo pois abre horizontes,
contribui para tornar relativos os problemas e
promove um encontro com novos grupos com
os quais se possa colaborar e progredir. A parti-
cipação numa rede de escolas também obriga a
modificar os esquemas próprios de organização
e incorpora a necessidade da participação de
outras escolas na cultura de cada uma.
A participação
da comunidade educativa
o capital cultural de uma família tem gran-
de influência na formação dos filhos. A comu-
nicação entre os membros da família, o nível da
linguagem, o acompanhamento nos estudos, as
atividades culturais às quais assistem, os livros
lidos ou o intercâmbio de informaçãoo fato-
res que exercem uma influência muito impor-
tante na educação dos alunos. Embora o impor-
tanteo seja o capital cultural possuído, mas
como ele é transmitido, é preciso reconhecer
que as famílias com menor capital cultural e
social têm, no início, mais dificuldades para
contribuir com o progresso educativo dos seus
filhos. Por isso, melhorar a formação dos pais e
envolvê-los no processo educativo dos filhos é
uma condição necessária para melhorar seu
aprendizado e reduzir o abandono escolar. Esse
é um objetivo cuja responsabilidade cabeo
só aos poderes públicos, mas também às esco-
las. As escolas devem incluir, entre suas tarefas
prioritárias, a participação dos pais, sua coope-
ração em múltiplas atividades, de acordo com
suas habilidades, e a organização de reuniões
de formação e de intercâmbio de experiências.
Junto com a participação dos pais, é preci-
so deixar que os próprios alunos falem. Estes
oo os receptores passivos dos ensina-
mentos que os professores programam. Acre-
ditar na construção ativa do conhecimento por
parte dos alunos implica estender essa visão ao
conjunto das atividades educativas. Os alunos
devem se sentir participantes de um projeto em
que suas opiniõeso consideradas para orga-
nizar as atividades, para estabelecer os regula-
mentos, para decidir as premiações e os casti-
gos e para que o ensino seja mais motivador.
oo poucas as vezes em que se ouve dos
alunos com menor motivação escolar seu habi-
tual aborrecimento nas horas de aula. Talvez
seja necessário oferecer-lhes novos canais de
participação para que vislumbrem maior sen-
tido no esforço de aprender.
As escolas devem procurar aliados e cola-
boradores para levar adiante seu projeto edu-
cativo. Em primeiro lugar, os pais e os alunos.
Mas, depois, todos aqueles que desejem con-
tribuir, com sua atividade, para a tarefa educa-
tiva. A participação de ex-alunos, de voluntá-
rios e de profissionais constitui grande ajuda
para realizar atividades complementares das
mais diversas índoles com os alunos. Da mes-
ma forma, a cooperação com empresas, ateliês,
escritórios e instituições pode ser útil para a
educação de alguns grupos de alunos.
Os modelos eqüitativos de avaliação
A avaliação das escolas e do sistema educa-
tivo reflete a concepção que se possui acerca das
funções prioritárias do ensino, bem como das
variáveis que exercem influência sobre ele. De
acordo com o salientado até aqui, a tarefa edu-
cativa está fortemente afetada pelo contexto
socioeconômico das escolas e dos alunos, pe-
los recursos disponíveis, pelas condições de tra-
balho dos professores, pelos aspectos da orga-
nização e pela maneira de ensinar dos profes-
sores. Os resultados obtidos pelos alunos são,
sem dúvida, uma dimensão fundamental do
processo de ensino, porém devem ser necessa-
riamente interpretados a partir da busca do
conhecimento do conjunto de variáveis que os
condicionam.
Todavia, as opções implementadas por mui-
tos paíseso se coadunam com esse modelo e
focalizam quase exclusivamente a avaliação ex-
terna de suas escolas em testes sobre o rendi-
mento escolar dos alunos. Além disso, em al-
guns casos, esses países tornam públicos os re-
sultados obtidos por cada escola. Trata-se de
uma abordagem mais simples do que outras e,
portanto, mais fácil de ser colocada em prática
- porém claramente desapropriada. Sem dúvi-
da, a aplicação de testes padronizados a todos
os alunos e a apresentação pública e ordenada
dos resultados obtidos por cada escola consti-
tuem grande ajuda para cada comunidade edu-
cativa. No entanto, o problema consiste em que,
aoo se considerar o contexto socioeco-
nômico em meio ao qual se desenvolvem as es-
colas e ao se centrar exclusivamente nos resul-
tados acadêmicos dos alunos, as comparações
tornam-se inadequadas e injustas. Além disso,
esse processoo apenas empurra as escolas a
melhorar seus métodos para conseguir que seus
alunos atinjam melhores resultados, mas tam-
m a buscar um atalho mais seguro: selecio-
nar aqueles alunos com maiores probabilida-
des de êxito, o que aprofunda ainda mais as de-
sigualdades entre as escolas.
É preciso, portanto, desenvolver novos mo-
delos de avaliação que proporcionem às esco-
las uma informação contextualizada, isto é, que
levem em consideração seu contexto socioeco-
nômico e, no caso do Ensino Médio, o nível ini-
cial dos alunos ao ingressar na escola; uma in-
formação confidencial que será interpretada,
ponderada e completada pelas próprias esco-
las; uma informação ampla e convergente, re-
lativa aos resultados acadêmicos dos alunos e
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
também a suas atitudes e estratégias de apren-
dizagem, processos educativos da escola e da
sala de aula e às ponderações de pais, professo-
res e alunos. Uma avaliação que tenha por ob-
jetivo principal colaborar com as escolas para
que se conheçam melhor e possam elaborar
estratégias de mudança. Uma avaliação queo
seja feita apenas num momento pontual, mas
que prossiga ao longo dos anos. A organização
de redes de avaliação de que participem dife-
rentes escolas é uma das possíveis estratégias
para colocar em prática esse modelo de múlti-
plos níveis de avaliação.
A atenção à diversidade
em sala de aula
As mudanças apresentadas até agora fica-
riam incompletas seo impulsionassem a
transformação do ensino em sala de aula. O pro-
fessor terá de ser capaz de assistir os alunos para
que encontrem o significado das suas múltiplas
e dispersas experiências. Por esse motivo, o seu
ensinamento deve estar conectado com os co-
nhecimentos prévios dos alunos, bem como com
a realidade que estão vivenciando. O ensinoo
pode estar desvinculado das suas experiências,
nem alheio a suas preocupações. Porém esse ob-
jetivo desejável complica-se quando se constata
a existência de uma grande heterogeneidade de
alunos nas salas de aula. Ademais, essa diversi-
dade dos alunos tende a aumentar, na medida
em que a educação obrigatória de dez anos de
escolaridade se transforme em realidade.
A criação de comunidades de aprendizagem
que buscam um ensino de qualidade para to-
dos os alunos enfrenta seu principal desafio
quando as escolas exercem sua função em con-
textos sociais e familiares desfavorecidos. Nes-
tes casos, torna-se ainda mais urgente e
prioritário o trabalho conjunto de todas as ins-
tituições, tanto para apoiar e fortalecer o tra-
balho dos professores quanto para melhorar as
condições de vida das famílias. O desenvolvi-
mento de políticas de emprego, de habitação,
de saúde, de proteção social e de educação em
favor dos grupos de pessoas com maiores ca-
rências irá colaborar de maneira insubstituível
com o esforço levado a cabo pelo estabeleci-
mento escolar.
SIMPÓSIO 2
UMA ESCOLA REFLEXIVA
Juan Casassus
José Tavares
L
Uma escola reflexiva
e desigualdade educacional
Juan Casassus
Unesco/Oreolc/Chile
Nos últimos tempos, tenho concentrado
meu trabalho na análise e no desenvolvimen-
to conceituais. Por esse motivo, quando rece-
bi o convite para participar deste Congresso
e concordamos em que eu desenvolveria o
tema da escola reflexiva, tive que me pergun-
tar que conceitos poderia trazer a este Con-
gresso que fossem, de alguma maneira, úteis
para a reflexão sobre o que estamos chaman-
do de escola reflexiva.
Como seu nome indica, este Congresso
tem como eixo o conceito da qualidade da
educação e, por essa razão, parece-me impor-
tante abordar alguns elementos vinculados ao
que chamamos de qualidade da educação.
Assim, esta apresentação se insere no contex-
to de uma reflexão sobre a qualidade da edu-
cação e o movimento da prática reflexiva.
Nesse marco, gostaria em primeiro lugar
de ilustrar alguns aspectos vinculados à cons-
trução do conceito de qualidade e caracteri-
zar o problema da qualidade como um pro-
blema de desigualdade. Em segundo lugar,
gostaria de formular alguns conceitos que nos
permitam construir a idéia de uma escola re-
flexiva ligada à desigualdade.
A qualidade
é um construto cultural
A qualidade é um conceito cultural. Isso
significa que ela se desenvolve no plano da
cultura. Essa idéia tem várias implicações.
Em primeiro lugar, precisamos compre-
ender que tipo de entidade seria um con-
ceito cultural. Quando falamos de quali-
dade na educação, estamos nos referindo
a algo que construímos conceitualmente.
É relativo à nossa cultura e, portanto, tem
um significado particular, um significado
queo está presente em outra cultura.
o é algo que tem um tipo de existência
como a de uma montanha ou de uma ár-
vore. Qualidadeo existe "lá fora" de uma
maneira objetiva e independente de nós.
Contudo, qualidade tampouco existe "aqui
dentro" de uma maneira subjetiva, como
é o caso de uma emoção ou de um estado
de espírito. Qualidade existe como um
construto que ocorre quando alguém ob-
serva um espaço determinado a partir da
ótica, dos conceitos, da qualidade. É im-
portante compreendermos que a qualida-
de é um conceito construído que se apli-
ca a algo, como, por exemplo, a um auto-
móvel, a uma casa, a uma pessoa ou à edu-
cação. No entanto, sua forma de sero
está na coisa em si (objetiva), nem no ob-
servador (subjetiva): ela existe sob a for-
ma de uma relação entre um observador e
o observado.
Em segundo lugar, a relação entre o obser-
vador e o observado ocorre no plano da lin-
guagem. Ela é, particularmente, espe-
cificada na formulação de um juízo, ou seja,
um observador observa uma situação com
seus conceitos de qualidade, que lhe ser-
vem de óculos, e sobre ela emite um juízo
em função das lentes que usa. Observemos
que a qualidade aparece com o juízo: sem
eleo há qualidade.
Em terceiro lugar, os juízosm a capaci-
dade de determinar se algo é de qualida-
de ou não. Nesse sentido,o atos
lingüísticos poderosos e, por essa razão,
precisamos entender queoo "objeti-
vos". Eleso construídos e apresentam
determinadas características.
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
0 juízo produz a qualidade
1
Podemos afirmar que o juízo sobre a quali-
dade da educação tem as seis características
descritas a seguir.
E sempre um sujeito que formula
o juízo da qualidade
Considerando que uma pergunta como "até
que ponto a qualidade da educação é boa em...?"
só pode ser respondida por um sujeito que formu-
le um juízo, a determinação de quem é o sujeito
chamado a formular o juízo é muito importante. A
diferença na respostao reside apenas no fato de
que todos os indivíduoso diferentes, mas tam-
m no fato de que elesm visões e interesses
estruturalmente diferentes. É muito diferente o
juízo formulado pelo diretor de uma escola (que é
o sujeito que a observa a partir de onde ocorre o
processo, a partir de dentro da escola), pelo pai de
um aluno (que é o sujeito que denota um
beneficiário externo), por um jornalista (que é um
sujeito orientado para a comunicação externa) ou
por um agente do Estado (que é um sujeito cuja
função é controlar a partir do interior do sistema,
embora externamente em relação à escola).
Será necessário, então, distinguir duas situa-
ções: uma que consiste em identificarmos e ava-
liarmos o sujeito que é chamado a emitir o juízo
de qualidade, ou seja, que assinala se existe
qualidade ou não, e outra que consiste no pro-
blema de determinarmos quem tem razão
quando mais de um sujeito emite o juízo, ou de
determinarmos qual das opiniões é a mais po-
derosa. Quem estiver em condições de decidir
sobre ambas as situações utilizará algum crité-
rio para orientar sua decisão. Na maioria das
vezes, esse critério será de natureza política.
Para obter um juízo válido sobre a qualida-
de da educação em uma escola, qualquer que
seja ela, precisamos considerar dois elementos:
em primeiro lugar, o juízo deve estar bem fun-
damentado e, em segundo, deve ser formulado
por um sujeito investido de algum tipo de au-
toridade para fazê-lo.
Afirmar que um sujeito precisa fundamen-
tar seu juízo é como afirmar que a fundamen-
tação confere maior valor a esse juízo. Isso é
importante porque é a validade de um juízo que
conduz à realização de ações.
0 juízo da qualidade depende
de critérios e padrões
A formulação de um juízo sobre qualidade
é sempre feita com base em algum critério. Os
critérios designam o campo de ação no qual se
formula o juízo. Por exemplo, um critério pode
se referir ao campo do trabalho, outro ao cam-
po cognitivo e outro ao campo dos valores. No
entanto, para se formular um juízoo basta
delimitar o campo ao qual ele se refere. É preci-
so, também, contar com algum padrão.
Os padrõeso formulações escritas que
constituem códigos ou condições de satisfa-
ção que os usuários estabelecem e que lhes
servem de referência para formular o juízo.
Existem diversas maneiras de se estabelecer
padrões, de acordo com seu uso e procedên-
cia. Eles podem ser usados para determinar
desempenhos que somente alguns serão ca-
pazes de alcançar (padrões de excelência) ou
para estabelecer o que deve ser alcançado por
todos (padrões básicos). Podem estar basea-
dos no estado da arte das disciplinas ou nos
currículos oficiais; podem estar baseados em
distribuições empíricas (referenciados em cri-
térios) ou em resultados ideais (referenciados
em normas).
A determinação de padrões também exige
juízos e, assim como ocorre com estes, essa de-
terminação depende igualmente do sujeito
que os formula. Nesse sentido (e de modo se-
melhante ao que ocorre com a pergunta sobre
qualidade), os padrões, uma vez formulados,
para que sejam válidos - ou seja, aceitos pelos
usuários como uma referência para emitir
juízos sobre a educação -, devem também ser
percebidos como procedentes de uma fonte
autorizada. Somente nesse contexto sua apli-
cação torna-se válida e, portanto, útil.
Para uma discussão mais detalhada sobre o tema ver Casassus e Arancibia, 1997. Ver também Casassus, Lenguaje. poder y calidad de Ia
educación. Boletin del Proyecto Principal de Educación, 50, Santiago de Chile: Unesco, 1999.
o exposto anteriormente constitui uma
condição importante pois. definitivamente, é o
grupo social que determina a validade ou a
pertinência de um padrão. Se um país adota
padrões, por mais bem formulados que sejam,
eleso se tornarão uma referência aceita se
o forem percebidos como válidos e úteis pe-
los usuários. Nesse sentido, é interessante ob-
servar as tensões que ocorrem, por exemplo,
nos Estados Unidos, onde, de um lado, existe
um movimento que tenta estabelecer padrões
nacionais e, de outro, há resistência de docen-
tes para validá-los e permitir que sejam usados
como referência.
0 grupo social constrói
os juízos sobre a qualidade
Quando, em países como Argentina, Chile ou
Venezuela, foi realizada uma consulta junto aos
pais sobre a qualidade da educação de seus fi-
lhos, as respostas foram bastante parecidas nos
três países e verificou-se que, quanto mais bai-
xo o nível socioeconômico das pessoas, mais fa-
voráveis eram as respostas, e vice-versa. As ra-
zões dessa discrepância precisam ser explicadas.
Para esclarecê-las, precisamos fazer uma
análise dos elementos contextuais que influen-
ciam esses juízos. Uma educação considerada
"menos boa ou ruim" pode ser julgada "boa"
pelo grupo mais imediato de seus usuários. Ao
contrário, uma educação considerada "boa" do
ponto de vista de sua localização, infra-estru-
tura, salários ou materiais, tende a ser conside-
rada "ruim" pelos pais de um grupo favorecido.
Assim, podemos concluir que os juízos sobre a
qualidade da educaçãoo socialmente cons-
truídos e variam de acordo com a cultura e o
nível social.
A qualidade é um conceito histórico
Freqüentemente, afirma-se que "a educação
de hojeo éo boa quanto a de antigamen-
te". No entanto, fazer referência a critérios do
passado é aludir a um certo tipo de educação e
aos frutos que dela podiam ser colhidos em
outro período histórico.
No que se refere ao emprego, por exemplo,
dizer que a educação de antes era melhor é afir-
mar que os que tinham educação podiam ter
acesso a determinados empregos e meios soci-
ais. Além disso, como "antigamente" a educa-
ção era predominantemente elitista e limitada
em sua oferta e por seus conteúdos, as elites
eram privilegiadas.
Afirmar que a educação de hojeo éo
boa é, além do mais, emitir um juízo baseado
em critérios e padrões do passado, desconhe-
cendo o que aconteceu em decorrência da
massificação e da democratização da educação.
Uma afirmação dessa natureza seria, portanto,
um juízo mal fundamentado.
o juízo é formulado com base em um pa-
drão, porém os padrõesm uma referência
temporal, histórica. Se a qualidade é histórica,
isso significa, por um lado, que elao é algo
abstrato, atemporal e, por outro, que ela faz sen-
tido em uma situação concreta específica e
podeo fazer sentido em outra situação con-
creta. Como os critérios e os padrões variam
segundo as circunstâncias,o se pode aplicar
um padrão de um contexto em outro contexto.
Podemos dizer que qualidadeo é um concei-
to absoluto, e sim relativo e dinâmico.
Múltiplas qualidades,
múltiplos pontos de vista
Partindo da conclusão de queo é válido
afirmar que a qualidade é absoluta, cabe per-
guntarmos se seria conveniente impor um cri-
tério único de qualidade em vez de concebê-la
como flexível, relativa, dinâmica e ajustável às
diferentes necessidades dos usuários.
o critério atualmente predominante é o de
que a educação deve satisfazer a diversidade;
portanto, podemos afirmar que a qualidade é
multidimensional e que existem múltiplas qua-
lidades. Há qualidades para cada pessoa e para
cada grupo. Cada pessoa tem uma idéia dife-
rente da qualidade porque seus critérioso
diferentes, bem como suas necessidades, sua
história e suas perspectivas.
Além disso,o é necessário considerar pes-
soas diferentes para apreciar a diversidade dos
juízos sobre a qualidade. Cada pessoa tem concep-
ções diferentes da qualidade, segundo o campo
considerado e o propósito do juízo nesse campo.
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Alguns pais poderão considerar que uma
escola com disciplina autoritária é boa para seu
filho mais velho, mas podem também pensar
que essa mesma disciplina é um fator negativo
em se tratando do segundo filho mais velho.
Além do mais, embora a escola possa ser consi-
derada boa para o mais velho, pela sua capaci-
dade de "disciplinar", pode muito bem ser con-
siderada de má qualidade em outros aspectos,
como, por exemplo, se o jovem estiver interes-
sado em aprender informática e a escolao
possuir os equipamentos necessários para sa-
tisfazer a esse interesse.
Qualidade e eqüidade
o tema da qualidade na educação também
está ligado ao tema da eqüidade. Todas as pes-
soasm direito a uma educação de qualidade.
Além disso, na prática, é muito difícil distinguir
a qualidade da educação da igualdade de opor-
tunidades.
A partir dessa perspectiva, quando se fala
em qualidade,o se está fazendo referência
apenas a esquemas tutoriais, a uma relação per-
sonalizada e unipessoal entre professor e alu-
no, e sim ao sistema como um todo. Nesse sen-
tido, convém observar que, embora a qualida-
de deva ser entendida como algo ligado à eqüi-
dade, esta também pode ser vista como algo
separado da qualidade. Em estudos internacio-
nais, podemos observar países que apresentam
um rendimento baixo (baixa qualidade) e pou-
ca diferença de rendimento entre as escolas
(alta eqüidade). No outro extremo, há países
com poucas diferenças entre as escolas (índi-
ces de alta eqüidade) que apresentam, ao mes-
mo tempo, altos rendimentos (índices elevados
de qualidade). Este é um objetivo de política
educacional.
A massificação, por sua vez, suscita proble-
mas pedagógicos completamente diferentes.
Um deles é a busca de qualidade para os estu-
dantes como um todo. O público assume o tema
da qualidade da educação e transforma-o em
objeto de política pública; além disso, procura
qualidade educacional com distribuição eqüi-
tativa na sociedade. Isso ocorre porque as es-
colas fazem diferença na vida das crianças: uma
escola boa é uma vantagem e uma escola defi-
ciente é uma desvantagem.
Em outro sentido, as maneiras de se chegar
a essa qualidadeo precisam ser as mesmas
para todos. Qualidade para todos, num contex-
to de diversidade, é como chegar à qualidade
definida para todos mas adaptada ao sujeito
individual ou coletivo que dela necessita. No
contexto da diversidade, a qualidade exigida
por grupos interessados em questões de gêne-
ro implica considerações da problemática do
gênero; por grupos religiosos, do tema de sua
religião; por pessoas superdotadas, de um cur-
rículo que garanta seu pleno desenvolvimento.
A desigualdade e a qualidade
da educação
Gostaria, agora, de examinar o aspecto que
pode ser considerado o maior problema da qua-
lidade na educação. Esse problemao é tanto
o da qualidade em si, que é um assunto com-
plicado, mas o de como garantir qualidade para
o sistema como um todo: o problema da desi-
gualdade na geração ou no acesso à qualidade.
Se alguém se pergunta "qualidade na educa-
ção, para quem?", a resposta é: "para todos". Nos
relatórios dos sistemas de avaliação, a primeira e
mais constante informação é a da desigualdade
nos resultados acadêmicos obtidos pelas escolas.
Vemos, assim, que estamos diante de um proble-
ma sério, porque as oportunidades de acesso a
essa qualidadeoo iguais para todos.
Há um acesso diferençado às possibilidades
de produção da qualidade que o sistema ofere-
ce. Algunsm acesso a boas escolas, enquanto
outros sóm acesso a escolas deficientes. Essa
situação é muito delicada, pois os setores ca-
rentes, os que mais precisam das melhores es-
colas, sóm acesso a escolas de baixa qualida-
de, produzindo-se, assim, um "duplo risco" de
fracasso (Willms, 1992). Os que mais precisam
o os que menos recebem. As crianças caren-
teso estão apenas expostas a um risco de fra-
casso; na verdade, estão expostas ao duplo ris-
co duplo de fracasso escolar e de gerar desigual-
dade educacional. Portanto, as ações para pre-
venir esse quadro devem levar em considera-
ção essa situação específica.
Ocorreram mudanças em nossa forma de
compreender o fracasso escolar. Numa primei-
ra etapa, as políticas promoveram a busca da
"igualdade de oportunidades". A questão da
qualidade - a primeira qualidade - era a do
acesso à escola. A desigualdade era vista como
desigualdade no acesso à educação. A resposta
foi a ampliação do sistema, de modo que ele
pudesse oferecer acesso à escola a todos que
desejassem. Em alguma medida, a desigualda-
de no contexto do acesso persiste, se conside-
rarmos como se dá o acesso dos alunos ao En-
sino Médio. Essa diferença é ainda maior no
acesso ao ensino superior.
Posteriormente, até o fim da década de
1980, estimou-se que a oferta era suficiente para
todos os alunos que quisessem ter acesso ao sis-
tema. Quando isso aconteceu, o problema da
qualidade foi desvinculado da questão do aces-
so e vinculado à necessidade de se oferecer qua-
lidade no interior do sistema. No entanto, para
que isso acontecesse, seria necessário, em pri-
meiro lugar, tornar visível algo que corres-
pondesse a alguma idéia de qualidade "quali-
tativa", em vez da qualidade "quantitativa" an-
terior. Com essa idéia em mente, foram então
estabelecidos os sistemas de avaliação da qua-
lidade da educação, produtos de uma mudan-
ça em nossa forma de ver o problema da desi-
gualdade.
A mudança consistiu na introdução da idéia
de que a qualidade devia ser mensurada. Para
que os sistemas de avaliação funcionassem, foi
então necessário gerar alguma idéia de quali-
dade que se pudesse medir. Assim, o que fosse
medido seria considerado produto ou resulta-
do do processo educacional. Então, a desigual-
dade foi desvinculada do acesso à educação e
passou a ser vista como uma "desigualdade
quanto aos resultados" da educação.
Uma educação centrada em resultados,
como parece ser o critério predominante hoje,
é uma educação centrada na idéia da hierar-
quização das pessoas e da educação como um
processo de seleção, preparatório para a distri-
buição da população de alunos em posições
sociais e em lugares de trabalho hierarquizados.
Essa visão contemporânea está muito ligada à
noção que Durkheim tinha da educação, a sa-
ber, a educação como uma atividade destinada
a desenvolver, no indivíduo, as capacidades e
as atitudes dele exigidas pela sociedade políti-
ca e pelo meio ao qual ele está destinado. Tam-
m se parece com a visão de Parsons, de acor-
do com a qual a educação é meio de socializa-
ção e de diferenciação seletiva. Segundo essas
visões, a igualdade de oportunidades é esta-
belecida inicialmente e a diferenciação de re-
sultados surge, no final, como uma conseqüên-
cia da desigualdade de status. Nessa perspecti-
va, a avaliação "objetiva" das provas padroni-
zadas apenas consagra e mantém, na prática, o
princípio da desigualdade.
Este último comentário merece explicação
mais detalhada. Quando as chamadas provas de
avaliação "objetivas" foram desenvolvidas, a
idéia da igualdade residia na possibilidade de
todos os alunos passarem numa mesma prova
que contivesse os mesmos itens. Assim, evita-
va-se que a avaliação caísse naquilo que no iní-
cio da revolução behaviorista chamou-se de
"tergiversações subjetivas". As provas "objeti-
vas" foram, assim, concebidas numa perspecti-
va de igualdade de oportunidades baseada na
aplicação de uma mesma prova, e a discrimi-
nação que se lograva com esse esquema devia-
se às deficiências que os alunos apresentavam
em suas respostas à prova. No entanto, os alu-
noso chegam iguais às provas. Assim como
ocorre com o conceito do "duplo risco", também
se produz um "duplo privilégio". É importante
observar que um sujeito situado no topo desse
"duplo privilégio", apenas por esse fato e inde-
pendentemente de qualquer outra considera-
ção, está numa situação qualitativamente qua-
tro vezes melhor que outro situado na base do
duplo risco. Essa desigualdade é patente nos
sistemas de avaliação, uma vez que eles geram
uma constatação estatística da existência de
desigualdades.
A explicação para as desigualdades também
está sofrendo mudanças. Desde a década de
1960, diversos estudos realizados em nível
macro oferecem explicações para as diferenças
nas estruturas sociais, econômicas e culturais.
Em um estudo recente para a América Latina
(Casassus, 2001) estima-se que essas estruturas
expliquem cerca de 30% da variação observada
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
nos resultados. Essa estimativa empírica é con-
sideravelmente menor que a que se tem usado.
É importante observarmos que o tipo de refle-
o que tem sido feita nesse âmbito tende a afir-
mar algo como: as crianças de determinadas
comunidades apresentam resultados baixos
porquem de comunidades carentes. Desse
modo, muitas pessoas estimam que os baixos
resultados podem ser atribuídos à comunida-
de de origem do aluno. O problema é geralmen-
te formulado da seguinte maneira: "a escola de
baixos resultados é uma escola cuja comunida-
deo alcança os padrões ou níveis estabeleci-
dos para essa escola". Assim, a dificuldade é atri-
buída à comunidade e a suas limitações para
alcançar o nível estipulado. No entanto, pode-
ríamos também pensar exatamente ao contrá-
rio: podemos pensar que os padrões e os pro-
cedimentos é queoo adequados para as
necessidades da comunidade.
o mesmo estudo mostra também que, em
nível micro, ou seja, no nível da escola, os pro-
cessos que nela ocorrem explicam cerca de 60%
das variações observadas nos resultados. Essa
constatação implica que, sem descontarmos o
impacto da macroanálise, é na microanálise que
podemos encontrar diversas pistas para ações
que podem reduzir as desigualdades.
Uma escola reflexiva
Consideremos agora o tema da escola re-
flexiva e de como esta pode nos ajudar nesse
contexto.
Em primeiro lugar, precisamos nos pergun-
tar seo seria tolice afirmar que uma escola
pode refletir.o seria um abuso de linguagem?
É legítimo falar sobre uma escola reflexiva? Não,
o é tolice, tampouco abuso de linguagem. Para
compreender essa afirmação, precisamos inicial-
mente esclarecer o que se entende por escola,
da mesma maneira que inicialmente nos pergun-
tamos o que seria a "qualidade na educação".
Assim como, quando falamos em qualida-
de,o nos estamos referindo a uma coisa que
existe "fora", como uma árvore, devemos nos
perguntar sobre de que tipo de entidade
estamos falando quando nos referimos a "uma
escola". Ao fazer esta locução, em geral fazemos
referência a algo que existe, que tem edifica-
ções, um lugar onde aulaso dadas, onde gru-
pos de pessoas de diferentes gerações intera-
gem. No entanto, o que caracteriza uma escola
oo essas coisas, que freqüentemente ve-
mos em desenhos de escolas. A existência da
escola reside no fluxo de interações entre pes-
soas. Devemos observar que o aspecto funda-
mental dessa noção de escola é a idéia de que
nos elementos que a constituemo as pessoas
que interagem. Na verdade, a interação de duas
pessoas, a interação de dois sujeitos. A interação
entre dois (ou mais) sujeitos é chamada de
intersubjetividade.
Quando consideramos a interação que carac-
teriza o tipo de entidade que uma escola é, impli-
ca que estamos considerando qualquer fluxo de
interações de maneira genérica. Trata-se de um
tipo de fluxo particular, modelado por um conjun-
to de normas, culturas e pautas que lheo coe-
rência. A escola constitui-se, em primeiro lugar,
como entidade que se apresenta como uma
interação intersubjetiva (entre sujeitos), desenvol-
vida num padrão que regula o fluxo de interações
e lhe confere identidade - unidade - como escola.
Efetivamente, podemos dizer que uma escola tem
edificações, normas e coisas assim. No entanto, sua
unidade, o que permite a uma pessoa afirmar que
se trata de "uma escola", é definida pelo padrão de
interações intersubjetivas. O fenômeno "escola"
emerge do padrão das interações humanas. O
modo de existir da escola é definido por um pa-
drão de interações entre sujeitos. Uma escola as-
sim concebida é o que no campo das ciências
cognitivas é chamado de "fenômeno emergente"
(Varela, 2000). Outros nomes dados a esse modo
de existência seriam "auto-organização", no cam-
po da biologia, "complexidade", no campo da filo-
sofia, ou "rede comunicacional", na teoria das or-
ganizações.
É importante observar que, nesse sentido,
"a escola" é um nível de análise caracterizado
pelo tipo de interações próprio do sentido da
interação. É próprio do "porquê" e do "para que"
da interação. O "porquê" e o "para que"o de-
terminados pelo que é próprio da escola. Por
exemplo, uma interação entre professores para
ir jantar num restauranteo é - em princípio
- regida pelo padrão do fluxo de interações,
como seria uma reunião de professores para
discutir o projeto do estabelecimento. No nível
da escola, interagem as pessoas que formam a
comunidade educacional. A interação constitui
a escola, confere a ela identidade como
interação regida pelas preocupações dessa co-
munidade educacional. Portanto, quando dize-
mos "uma escola", estamos denotando um pa-
drão específico de interações entre sujeitos e
o entre edifícios, livros e coisas desse tipo.
Observemos esse fato no nível da sala de aula.
Nesse nível, um sujeito, como professor, interage
com outros sujeitos como alunos. Eles fazem com
que a "aula" exista: literalmente criam a aula na
medida em que sua interação esteja regida pelo
padrão que orienta o processo de ensino-apren-
dizagem. Observemos que, independentemente
do nível de análise, o que sempre a constituio
os sujeitos interagindo segundo um padrão de
ação determinado.
No entanto, esses sujeitos podem interagir
de forma reflexiva ou não-reflexiva. A escola
reflexiva tem lugar quando os sujeitos que for-
mam a comunidade educacional entram em
processo de interação, reflexivamente.
0 que seria o processo
reflexivo?
o processo reflexivo refere-se ao processo
de conscientização da ação que está sendo de-
senvolvida. J. Dewey distingue a ação reflexiva
da ação rotineira. A ação rotineira é dirigida pela
reação reflexa, pela convenção, pela tradição e
pela autoridade. Por exemplo, na prática, os
docentes de uma escolam diferentes postu-
ras em relação aos problemas de aprendizagem
com os quais se defrontam. Dentre essas pos-
turas, existe a cultura da escola, expressa na fra-
se "aqui fazemos as coisas desta maneira", que
passa a constituir a cultura oficial dessa escola.
Essa cultura é, freqüentemente, percebida
como um "freio" a mudanças. Os professores
não-reflexivos aceitam automaticamente a vi-
o que se adota como regra geral numa deter-
minada situação.
A ação reflexiva, por sua vez, expressa uma
consideração ativa, persistente e cuidadosa dos
fundamentos queo base a uma crença sobre
uma prática e das conseqüências que ela gera.
A perspectiva reflexivao constitui um con-
junto de procedimentos específicos. Trata-se,
como indica Schõn, de uma epistemologia da
prática, uma epistemologia diferente, que se
caracteriza por ser um estado mental, uma for-
ma de enfrentar e responder a problemas. A
ação reflexiva constitui um processo mais am-
plo que o da solução lógica e racional dos pro-
blemas. A reflexão implica intuição, sentimen-
to, paixão. Nesse sentido,o é algo que se pos-
sa delimitar precisamente e ensinar, como um
conjunto de técnicas a serem usadas por pro-
fessores; ao contrário, trata-se de uma posição
de consciência.
A ação reflexiva é, acima de tudo, uma posi-
ção mental que coloca o professor em estado
de consciência em relação ao que ele está fa-
zendo e a como está fazendo.o uma consci-
ência quanto a estar fazendo o que lhe disse-
ram para fazer ou a estar usando a técnica ade-
quada, mas uma consciência do que está fazen-
do em relação à aprendizagem de seus alunos.
Isso é o que Schõn descreve como reflexão na
ação, diferentemente da reflexão sobre a ação,
que é uma reflexão posterior ao que se realizou,
queo ocorre na ação e, sim, posteriormente,
para melhorar a próxima ação.
A reflexão na ação significa pensar no que se
faz enquanto se está fazendo, o que produz uma
sensação especial: a sensação de se estar numa
situação singular, num momento singular, num
momento incerto, aberto à criação pessoal. Essa
sensação tem a particularidade de produzir uma
certa tensão, um tipo de tensão que permite al-
ternativas. Por um lado, pode fazer brotar o me-
lhor do ser docente no professor, pois nessa ten-
o prevalecem a criação e a relevância da solu-
ção. Por outro lado, se o professor tiver perdido
a confiança em si mesmo, a tensão pode fazê-lo
cair na tentação de se apoiar exclusivamente em
técnicas aprendidas, queo estão formuladas
para situações particulares como as que ele pode
estar vivenciando num determinado momento,
mas para situações gerais que, concretamente,
o existem.
É importante observar que a racionalidade
positivista subjacente à racionalidade técnica
pressupõe que o professor é um instrumento na
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
aplicação da técnica, eo um profissional cri-
ativo. Ao nos refugiarmos na técnica, corremos
o risco de perder as virtudes do conhecimento
profissional adquirido na prática, perdemos a
oportunidade da criação, da relevância, e a ação
passa a ser orientada no sentido de produzir
soluções preconcebidas.
Quero deixar claro queo estou dizendo
queo devemos usar técnicas. Ao contrário, é
importante dominar o uso de técnicas, pois elas
facilitam o desenvolvimento dos recursos pes-
soais do docente. O que estou dizendo é que o
pensamento reflexivo é caracterizado por uma
atitude, por um estado mental consciente. O uso
de técnicas é secundário. Usá-las não-reflexiva-
mente é desconhecer uma outra capacidade de
análise que a realidade permite. Se traçarmos um
paralelo com outras atividades profissionais,
como a medicina ou a advocacia, podemos no-
tar que os profissionais de sucesso sempre atu-
am com base na interpretação profissional dos
problemas que precisam enfrentar.
Como todo estado mental consciente, a
ação reflexiva sustenta-se, nutre-se de atitu-
des. Dewey identifica três delas: abertura in-
telectual, responsabilidade e sinceridade.
Abertura intelectual: desejo ativo de consi-
derar mais de um ponto de vista, visualizar
alternativas, reconhecer a possibilidade de
erro, perguntar-se por que se faz o que se
faz e - o que talvez seja mais importante -
identificar as emoções que estão na base do
que se faz, uma vez que a ação é determi-
nada pela emoção.
Responsabilidade: avaliação e cuidadosa
consideração das conseqüências produzidas
por nossa ação. Conseqüências nos planos
emocional, intelectual e social dos alunos.
Sinceridade: ser honesto consigo mesmo
em relação ao que se está fazendo. Essa ati-
tude é o suporte da abertura intelectual e
da responsabilidade.
Uma escola reflexiva diante
da desigualdade educacional
Uma escola reflexiva é aquela capaz de
ensejar respostas para os principais problemas
da desigualdade. Formulando a afirmação ao
contrário, a idéia fica mais clara: uma escola
não-reflexiva caracteriza-se pela aceitação de
um estado de coisas na realidade cotidiana.
Uma escola não-reflexivao questiona as cau-
sas da desigualdade educacional e do fracasso
escolar. Uma escola não-reflexiva atua nos sin-
tomas de um estado de coisas, sem indagar as
causas desses sintomas. Uma escola não-refle-
xiva é a que funciona no espaço das interações
rotineiras.
Na perspectiva do pensamento reflexivo, o
padrão que rege o fluxo das interações pode ser
modificado pela reflexão. O padrão pode ser alte-
rado pela ruptura entre interações rotineiras para
que se estabeleçam interações reflexivas. Quan-
do o padrão de interações gera desigualdade, é
necessário entrar num processo reflexivo.
o padrão que rege a desigualdade, o proces-
so de produção da discriminação, ocorre coti-
dianamente na prática da sala de aula. Ele se
dá quando o professoro percebe que um alu-
noo está entendendo um teorema de álge-
bra. Em contrapartida, a superação da desigual-
dade ocorre quando o professor, ao ouvir a per-
gunta de um aluno, identifica onde está a dúvi-
da. Essa percepção de onde está a dúvida do
aluno é como uma compreensão intuitiva, e a
solução dessa dúvida resulta de um processo
criativo, da arte do professor ao enfrentar a si-
tuação. Nesse processo, o professor cria, testa
novas estratégias para esclarecer a confusão. O
não-atendimento e o não-esclarecimento da
confusão estigmatizam o estudante como um
"mau aluno". Embora a desigualdade certamen-
teo se restrinja à sala de aula nem necessa-
riamente se origine nela, é ali que ela se produz
e reproduz.
Como mencionamos anteriormente, o ris-
co duplo faz os alunos chegarem com carências
à escola e à sala de aula. Esse assunto é matéria
o apenas da sala de aula, mas também da es-
cola. Num texto anterior (Casassus, 2001), de-
monstrou-se que os processos desenvolvidos
nas escolas e nas salas de aula podem reverter
as dinâmicas da desigualdade. Determinadas
práticas de gestão, a vinculação da escola à co-
munidade, o tipo de pedagogia e, principalmen-
te, um clima emocional positivoo algumas
das áreas que permitem identificar o que pode
ser feito para alterar a produção e a reprodução
da desigualdade educacional. As dificuldades
dos alunos e suas carênciaso experiências
particulares (eo gerais). Elas ocorrem em
uma situação concreta. O diagnóstico adequa-
do das experiências particulares (não- gerais),
a forma como um problema é situado e formu-
ladoo é, por si, uma questão técnica. É um
problema de reflexão que combina aspectos
políticos, administrativos e pedagógicos e que
exige atitudes de abertura, responsabilidade e
sinceridade. Esse é um pensamento sistêmico,
porque a realidade é complexa. Maso pode
acontecer se a escolao reflete sobre si mes-
ma, seo aprende consigo mesma. Essa é uma
postura semelhante à proposta nos planos de
gestão das organizações que aprendem (ver, por
exemplo, Senge, 1996). É na reflexão sobre si
mesmo que se abre o espaço da aprendizagem.
Se a desigualdade se apresenta concreta-
mente na prática de uma escola como lugar de
risco duplo é só nela que se pode tentar rever-
ter o processo - e isso só pode ocorrer numa
escola que reflita sobre si mesma e que apren-
da consigo mesma. O desânimo e a falta de
ambição que podem ser observados em muitas
escolas precisam ser abordados promovendo-
se uma mudança emocional e uma atitude re-
flexiva. Uma escola reflexiva só pode apoiar-se
em seus profissionais e em suas competências.
Gostaria de terminar com este pensamen-
to: para que a reflexão seja uma forma de ser
das escolas, seus profissionais precisam assu-
mir a responsabilidade da reflexão. Estamos
atravessando um período paradoxal, caracteri-
zado pela coexistência de políticas que cami-
nham em sentidos aparentemente opostos. Por
um lado, as autoridades do sistema educacio-
nal procuram aperfeiçoar práticas de descen-
tralização e autonomia; por outro, propõem, em
número crescente, soluções baseadas nas "me-
lhores práticas" e nas "escolas bem-sucedidas"
de outros contextos. Essa situação paradoxal só
poderá ser superada à medida que a prática re-
flexiva se estabeleça nas escolas, pois só ela
pode produzir conhecimentos relevantes para
a situação concreta dos alunos.
Só podemos aprender a refletir sobre a ação
fazendo. Ninguém pode fazê-lo por outra pessoa.
Cada pessoa precisa fazê-lo por si mesma. No
entanto, poderá receber apoio, e o apoio de que
precisa é do tipo oferecido por um treinador
(coach). Aprendemos fazendo e também refletin-
do sobre o que fizemos. É importante observar
que estou propondo uma mudança na forma de
apoiar o trabalho da comunidade educacional.
o se trata de ensinar dizendo o que se deve fa-
zer; trata-se de conversar de modo que os que
precisam fazer descubram, por eles mesmos, as
possibilidades de que dispõem para detectar, for-
mular e resolver os problemas de sua escola. Tal-
vez seja uma proposta um pouco utópica, porque
pressupõe professores muito competentes para
aprender por conta própria, mas a utopia come-
ça pela mudança emocional e pela atitude de
abertura, responsabilidade e sinceridade.
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CASASSUS, Juan. La revalorizacion de Ia escuela: los
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ZEICHNER, Kenneth. El maestro como profesional reflexi-
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SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Escola reflexiva
resiliência e sentimento de si
Um objetivo que os profissionais
da educaçãoo poderão perder de vista
José Tavares
Universidade de Aveiro/Portugal
Introdução
0
A escola reflexiva, como extensão da pes-
soa humana - ser essencialmente consciente,
responsável e livre - faz apelo também, como
uma condição sitie qua non, à consciência de
si, da sua realidade de escola, como coletivi-
dade inteligente de pessoas que aprende e
ajuda a aprender, auto-regula-se e constrói-
se. Só assim poderá constituir-se numa ver-
dadeira comunidade de aprendizagem, edu-
cativa, presencial ou on-line, nessa socieda-
de do conhecimento, da informação e da co-
municação. Essa consciência da escola como
a consciência das pessoas que a integramo
pode ser uma pura abstração, mas, ao contrá-
rio, terá de ter uma verdadeira alma -o
apenas física, mas também psicológica, so-
cial, cultural e axiológica - que lhe possibilite
um genuíno e autêntico sentimento de si
como escola consciente, cordial, flexível,
resiliente, livre, responsável. Daí que a
reflexibilidade, a flexibilidade, a resiliência,
numa escola que se quer reflexiva, flexível e
diversa,oo possíveis sem estar ligadas
intimamente ao conhecimento, à emoção e à
vontade dos sujeitos que a habitam e, sobre-
tudo, que a vivem e a sentem.
A esta luz,o é viável uma escola reflexi-
va sem sujeitos, digamos, sujeitos-pessoas, e,
por conseqüência, conscientes, responsáveis,
livres, reflexivos. É, como escreveu Roberto
Carneiro, antigo ministro da Educação em Por-
tugal, em 1997, "nesse mundo denso de infor-
mação, numa humanidade globalizada, num
caldo de multicultura e numa economia seden-
ta de formas de aprendizagem ao longo da
vida", quem assentar algumas noções cen-
trais e transversais, as quais, segundo Isabel
Alarcão, atravessam-na em todas as suas di-
mensões:
A centralidade da pessoa na sua globalidade e na
sua comunicabilidade, a racionalidade dialógica
inerente ao discurso crítico-construtivo, a
reflexibilidade, a autonomia e a responsabilida-
deo apenas de atores isolados, mas também
de organizações, a humildade e o relativismo
frente ao ato de compreender a realidade, o rela-
cionamento interativo com a técnica, a valoriza-
ção do inter-relacionamento evidente em vários
aspectos e traduzido na linguagem através de ter-
mos como interdisciplinaridade, interdepar-
tamentalismo, interculturalismo, interpessoa-
lidade, interinstitucionalidade, interatividade e
interconectivividade.
E, para terminar, Isabel Alarcão acrescenta
que, se tivesse de "eleger uma dessas últimas ca-
racterísticas, elegeria a interatividade, pois pen-
so que nela se concentra a essência da atual
mundividência" (2001:13-14). Ou seja, sem pro-
fessores, alunos e todos os outros agentes edu-
cativos reflexivos, interativos, interconectados
e contextualizados,o é possível falar de uma
escola reflexiva, livre, justa, em que a qualida-
de e a excelência sejam um direito e um dever
de todos, dentro das reais possibilidades e com-
petências de cada um.
Na verdade,o parece ser possível con-
tinuar a pensar a escola à imagem da estra-
tégia sistêmica que é um produto refinado de
uma globalização interesseira, calculista e
antidemocrática que, no fundo, continua a
favorecer o desenvolvimento de pequenos
nichos de excelência, deixando fora a maio-
ria da humanidade, queo dispõe sequer
do mínimo indispensável para poder sobre-
viver. Uma escola reflexiva que seja capaz de
se pensar e de sentir a si própriao pode
aceitar essa cultura que, na realidade, assen-
ta na idéia da exploração do homem pelo
homem,o muito longe do homo homini
lúpus de Thomas Hobbes, da exclusão social
que é uma das maiores formas de violência
que afligem a humanidade e constitui um
atentado direto e escandaloso contra a dig-
nidade humana.
Por isso uma escola reflexiva, como a de-
fine Isabel Alarcão, na linha de Senge, terá
de ser, certamente, "uma organização [esco-
lar] que continuamente se pensa a si própria,
na sua missão social e na sua organização, e
se confronta com o desenrolar da sua ativi-
dade em um processo heurístico simultane-
amente avaliativo e formativo" (2001: 25). Ou
seja, exige atores reflexivos, inteligentes, cor-
diais, responsáveis, exigentes e tolerantes,
que se procurem compreender a si próprios
na sua interação com os outros de uma for-
ma assumida, sentida e reflexiva, coletiva e
solidariamente. É precisamente esse o pro-
cesso heurístico que deverá ser constante-
mente prosseguido e avaliado para poder ser
verdadeiramente formativo, no sentido da
formação do novo cidadão de que se neces-
sita para a construção de uma nova ordem
mundial.
Uma tal concepção abre-nos, com certe-
za, uma perspectiva inovadora que se nos afi-
gura altamente desafiadora e rica para nos
servir de guia na reflexão que tentaremos par-
tilhar com vocês nesta palestra. É o que ire-
mos fazer, utilizando as três grandes idéias ou
campos conceituais que destacamos no pró-
prio tema, pela ordem inversa, a saber: o sen-
timento de si, a resiliência e a reflexibilidade.
Finalizaremos com alguns considerandos so-
bre as suas implicações na formação dos fu-
turos professores e educadores que terão, cer-
tamente, de ser reflexivos numa escola que se
quer também ela própria mais reflexiva,
interativa, interconectada e relacionai,o
isolada, insular ou "ilhada".
A construção
do sentimento de si
Como é do conhecimento de todos, ainda
que, por vezes, de forma tácita ou implícita, no
ser humano tudo evolui, ergue-se e constrói-
se no sentido da emergência da consciência,
e, designadamente, seguindo uma trajetória,
hoje, bem conhecida a partir das investigações
de Antônio Damásio, que procura estudar essa
realidade de uma maneira objetiva, científica,
que parte da protoconsciência, passa pela
consciência nuclear e vai até a consciência
alargada ou autobiográfica ondem ancorar-
se, respectivamente, os diferentes níveis do
sentimento de si, isto é, o proto-si, o si nuclear
e o si autobiográfico. Digamos, tudo se cons-
trói dentro dessa dinâmica fundacional sujei-
to-objeto em que acontece a maravilha do co-
nhecimento mediada pelo organismo (o cor-
po) e a mente (o espírito), o minded brain, o
cérebro espiritualizado e pela cultura ou
multicultura.
Em outras palavras, sobre os substratos da
bioquímica levanta-se a complexa e diversa
construção dos padrões neurais que, por sua
vez, possibilitam as representações sensoriais
e mentais e as suas interseções e interconexões
socioculturais, com as quais o sujeito represen-
ta, concebe, ajuíza, infere e se pronuncia sobre
o objeto e o transforma em coisa-a-ser-conhe-
cida. Ou, como escreve Vitor da Fonseca:
Tal interação está na origem de uma estrutura
mental complexa e hierarquizada, dum órgão
extremamente organizado, o mais organizado do
organismo, ou seja, o cérebro, o órgão da
cogniçâo, que simultaneamente se transformou
também no órgão da civilização. O cérebro, que
só se desenvolveu e desenvolve através da
aprendizagem individualizada, é fruto da me-
diatização dos e com os outros seres humanos
. O cérebro determinou e determina assim a
aprendizagem humana, mas a aprendizagem
contextualizada e mediatizada determinou e
determina inexoravelmente a sua plasticidade
funcional. Em síntese, a cogniçâo humana
aprende-se e ensina-se por meio da media-
tização (2001: 94).
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Parece ser nessa grande aventura, que vem
do fundo da realidade e dos tempos, porventura
milenares, que hojeo ciberespaços e ciber-
tempos, que emerge o conhecimento em que
assenta o sentimento de si que atravessa e go-
verna toda a atividade do ser humano, e, por
conseguinte, as suas capacidades de conhecer
e as suas aprendizagens, em que a mediação
bioneural, psicossocial e cultural assume
primacial importância.
Pelo menos metaforicamente, poderíamos
considerar também, em relação à construção de
uma escola reflexiva como uma organização
aprendente, esses três níveis de conscien-
cialização que possibilitariam um proto-si, um
si nuclear e um si autobiográfico na evolução
reflexiva da própria escola. Para ser consisten-
te, uma escola reflexiva terá, em nossa opinião,
de ancorar-se nesse conjunto de idéias se se
quer que ela assuma o seu verdadeiro sentido.
De qualquer modo, por trás de toda essa
aventura do sentimento do si pessoal e escolar,
existe igualmente a idéia de mediação ou
mediatizaçâo social, cultural e pedagógica que
atravessa toda a atividade do conhecimento e
da aprendizagem e que constitui uma das tra-
ves-mestras de um dos últimos livros de Vitor
da Fonseca - talvez um dos que, a meus olhos,
é mais sintético, denso, explícito e atual e que,
de certa forma, condensa as idéias maiores da
sua vasta obra, intitulada Cognição e aprendi-
zagem -, em que pretende responder a uma
questão central: "Educação cognitiva, por que
e para quê?" A esse propósito, as palavras que
alinha na sua aberturao bem esclarecedoras:
Abordar a cognição e a aprendizagem com uma
visão multifacetada que inclua uma introdução
teórica com bases filogenéticas e neuropsi-
cológicas e que integre duas componentes prá-
ticas - um novo modelo de diagnóstico do po-
tencial de aprendizagem e uma nova interven-
ção pedagógica -o é tarefa fácil, num momen-
to de grandes incertezas e de grandes desafios
educacionais (2001: 7).
É efetivamente sobre esses pressupostos
que Vitor da Fonseca organiza os três capítulos
do referido livro, a saber: Modificabilidade
cognitiva: abordagem neuropsicológica da
aprendizagem humana; Avaliação Psicope-
dagógica dinâmica e Pedagogia mediatizada,
que aconselho vivamente.
o irei deter-me diretamente sobre essas
problemáticas, embora elas se encontrem
subjacentes a qualquer tentativa de aborda-
gem de uma escola reflexiva, mas simplesmen-
te reproduzirei o parágrafo final em que o au-
tor resume, de certa forma, as idéias centrais
de uma pedagogia mediatizada que, em nossa
opinião, é fundamental para desenvolver uma
escola verdadeiramente reflexiva. A esse res-
peito escreve:
[...I a pedagogia mediatizada aplicada no con-
texto familiar e escolar pode evitar muitas per-
turbações emocionais e comportamentais,
deixando rastros numa infância dolorosa ou
numa adolescência atípica, ao mesmo tempo
que pode criar crianças e jovens mais compe-
tentes, alegres e motivados para aprender, isto
é, mais solidários. Como a vida familiar cons-
titui a primeira escola de aprendizagem, os
pais devem investir mais na interação media-
tizada para os tornar socialmente mais hábeis;
também na escola os professores, por meio da
mediatização, podem criar futuros adultos
mais solidários e mais aptos a responderem
aos desafios complexos da sociedade futura.
Em síntese, se queremos uma sociedade mais
solidária, a família e a escola terão de ser mais
mediatizadas (2001: 106).
A mediatização que se realiza, sobretudo,
por meio de um processo de questionamento
constante, do estabelecimento de pontes
(bridging) entre os diversos conteúdos, con-
ceitos e atividades, da fundamentação das po-
sições assumidas ou das respostas dadas, da
descoberta de regras e da enfatização da or-
dem, da preditividade, da sistematização e da
seqüencialização e transposição das idéias
para outras situações semelhantes e do uso
das estratégias, exprime bem o modo de tra-
balhar dos professores e dos alunos numa es-
cola reflexiva.
Mas uma escola reflexiva é também uma
escola mais resiliente, flexível, inteligente e
emocional. A resiliência é outra das caracte-
rísticas fundamentais que, na sociedade emer-
gente,o poderá estar ausente de uma esco-
la que se quer reflexiva.
Os sentidos e os significados
de resiliência
Os sentidos e os significados de resiliência
decorrem também diretamente da ascensão da
emergência da consciência e do sentimento de
si que lhe permite tornar-se e otimizar-se
como pessoa. Resiliência é apenas uma con-
seqüência e uma das expressões mais fortes
dessa realidade vista sob um outro olhar e,
quiçá, em um nível distinto. Quanto mais a
pessoa se desenvolve, mais flexível, reflexiva e
resiliente se torna. Reflexibilidade, flexibilida-
de e resiliência implicam-se mutuamente e
exprimem, de fato, uma mesma visão da reali-
dade. As mais diversas instituições e as suas
respectivas formas organizacionais como ex-
tensões da pessoa serão igualmente tanto mais
reflexivas, flexíveis e resilientes quanto mais
refletirem as dimensões da pessoalidade. As
próprias realidades materiais e biológicas ins-
crevem-se dentro da mesma dinâmica. É esse
precisamente o sentido profundo de resiliência
como flexibilidade, como capacidade de refle-
xão, nos seres conscientes e livres que a sua
própria etimologiao bem elucida.
Vejamos, pois, antes de tudo, o sentido ou
os sentidos que ainda vivem na etimologia da
palavra resiliência. Resiliência é um substan-
tivo derivado do prefixo re e do verbo salio,
resilio "voltar para trás", "voltar ao ponto de
partida", "saltitar", remetendo-nos para algo
mais fundo, original e autêntico de uma reali-
dade que nos escapa e se liga com idéias como
flexibilidade, reflexibilidade, inteligibilidade,
abertura, disponibilidade, acolhimento, es-
pontaneidade, quer em relação aos objetos,
quer em relação às pessoas e organizações,
quer em relação aos próprios acontecimentos
e a toda a trama de relações que se entretecem.
Essa flexibilidade, por sua vez,o poderá des-
ligar-se também da idéia de resistência, per-
sistência, endurance física, biológica, psicoló-
gica, social, cultural, ética. Resiliência tem, a
nosso ver, relação com a percepção da própria
essência da realidade pessoal, relacionai,
organizacional e material que o desenvolvi-
mento filosófico e científico confirma por meio
das investigações mais avançadas, sobretudo
nos domínios da ciência cognitiva e das
neurociências. A própria evolução da ciência
física, química e biológica e a sua interseção
caminham nesse sentido.
No mundo humano, efetivamente, o desen-
volvimento desse novo conhecimento que im-
plica novas formas de aprender e desaprender,
de ser, de estar e de comunicar assenta na
consciência do sentimento de si. Daí que o
sentido e a pertinência de aprofundarmos o
conceito de resiliência e suas implicações na
educação - e, por conseguinte, numa escola
reflexiva - relacionam-se com a busca e com a
afirmação da nossa própria identidade, que
constituem o nosso afazer fundamental. Saber
o que queremos, o que temos, o que podemos
e o que somos, de onde vimos, onde nos en-
contramos e para onde vamoso os ingredi-
entes existenciais básicos em que assenta o
sentido realista da nossa auto-estima, do nos-
so autoconceito fundamental, do nosso verda-
deiro equilíbrio humano, social e comunitário.
Essa busca de si próprio, do seu si conheci-
do e sentido em níveis, em certa medida, incons-
cientes, subconscientes e conscientes mais ou
menos alargados, ou do proto si, do si nuclear e
autobiográfico damasianos, tem lugaro ape-
nas no tempo da adolescência, mas ao longo de
toda a vida. Hoje, porém, refletir sobre a busca
de si, da sua própria identidade,o nos evoca
apenas pensadores como Sólon, na sua célebre
máxima "Conhece-te a ti mesmo" como princí-
pio da sabedoria, em que assenta a pedagogia
socrática, ou como Erikson nos seus conhecidos
estudos sobre a adolescência, mas, nos nossos
dias, reporta-nos a um autor que, de certa for-
ma, está a contribuir determinantemente para
uma nova maneira de sentir e de pensar e a exi-
gir um novo reordenamento da ciência, na socie-
dade contemporânea: Antônio Damásio, por
meio, sobretudo, de duas obras bem conhecidas,
Erro de Descartes e Sentimento de si, em que
condensa boa parte da sua prática investigativa,
do seu pensamento e da sua reflexão.
Nesse sentido, o conceito de resiliência nos
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
conduz diretamente ao conceito de sentimen-
to de si em que assentam os diversos níveis de
realização da personalidade dos sujeitos, os
quais efetivamente possibilitam toda e qual-
quer organização que se quer reflexiva e, por
conseguinte, também a escola reflexiva que
aqui se procura fundamentar e compreender.
Escola reflexiva
e a nova racionalidade
que lhe está subjacente
o entrarei na complexa arquitetura
neurocerebral que serve de suporte e possibi-
lidade ao psiquismo humano e às marcas e
configurações que ele imprime em todas as
suas realizações.o é esse o nosso objetivo,
nem o momento apropriado. Existem estudos,
investigações, reflexões e conclusões disponí-
veis sobre esse domínio, dentre os quais des-
tacaria os de Damásio anteriormente indica-
dos e a vasta obra de Vitor da Fonseca, sobre-
tudo um dos seus últimos livros, Cogniçâo e
aprendizagem, que, como referi, constitui uma
excelente síntese das idéias maiores que o au-
tor tem desenvolvido ao longo de mais de vin-
te anos. Quando abordamos assuntos dessa
natureza,o podemos, na verdade, perder de
vista contribuiçõeso relevantes, especial-
mente quando nos debruçamos sobre temas
como os da reflexibilidade, flexibilidade,
resiliência, que nos remetem para níveis mais
ou menos conscientes e alargados de consci-
ência e do sentimento de si individual ou co-
letivo.
Como tivemos a oportunidade de insistir, a
etimologia de resiliência prende-se diretamen-
te às idéias de reflexibilidade e flexibilidade, que
o atributos próprios da pessoalidade. Por sua
vez, a pessoa humana, como sabemos, é incom-
preensível sem a referência a um conjunto de
dimensões psicológicas que lheo próprias,
tais como a consciência, a afetividade e a capa-
cidade volitiva ou de tomada de decisão. É o
que, de certa forma, Damásio traduz por senti-
mento de si nos níveis do proto-self, do coreself
e do autobiographical self, que pressupõem a
existência de três instâncias de consciência: a
protoconsciência, a consciência nuclear e a
consciência alargada.
A protoconsciência é a consciência mais
antiga ou mesmo a ausência de consciência,
que decorre diretamente do si neural, o proto-
si, que Damásio descreve como "um conjunto
coerente de padrões neurais que cartografa, a
cada instante, o estado da estrutura física do
organismo nas suas numerosas dimensões"
(2000: 184).
A consciência nuclear, segundo o mesmo
autor, "surge quando os dispositivos de repre-
sentação do cérebro geram um relato
imagético e não-verbal de como o estado do
organismo é afetado pelo processamento do
objeto e quando esse processo resulta no real-
çar da imagem do objeto causativo, colocan-
do-a, de forma saliente, num contexto espa-
cial e temporal" (2000: 200). A consciência
alargada "é a faculdade que nos dá a saber uma
larga gama de entidades e acontecimentos, isto
é, a faculdade de criar um sentido de perspec-
tiva individual, bem como um sentido de per-
tença e capacidade de ação individuais relati-
vamente a uma extensão de conhecimento
muito maior do que aquela que é examinada
na consciência nuclear" (Damásio, 2000: 230).
Na formação da consciência alargada, as
memórias autobiográficas da experiência de
vida da pessoa e a sua capacidade de raciocínio
o determinantes. É com essa consciência
alargada ou consciência propriamente dita que
evocamos todo o nosso passado experiencial,
antecipamos o futuro, construímos os mais di-
versos significados e damos sentido à nossa
existência e à dos outros, nos diferentes con-
textos de vida em que nos encontramos.
Por trás desses diferentes níveis de cons-
ciência e do sentimento de si está toda uma com-
plexa arquitetura neural cujas correspondências
oo lineares e constituem o objeto maior das
hipóteses de trabalho do próprio Damásio, que,
como refere, por exemplo, nas páginas 210 e 211
do seu livro Sentimento de si, estão longe de ser
óbvias e conclusivas, mas abrem a grande possi-
bilidade de discutir científica e rigorosamente os
problemas da consciência.
o tenho grandes dúvidas de que a escola
reflexiva que se pretende implementar como
exigência da sociedade emergente em que vi-
vemos terá de partir desses pressupostos
neuropsicológicos e filogenéticos que possibi-
litam uma nova racionalidade, a qual, por sua
vez, procura explicar e compreender a realida-
de à luz de uma outra epistemologia, menos li-
near e mais espiralada, menos metonímica,
denotativa, digital, lógica e mais metafórica,
conotativa, analógica e cibernética, por meio de
novos paradigmas. Essa é uma idéia forte que
ultimamente nos habita, em que trabalhamos
e sobre a qual temos falado e escrito (Tavares,
2000; 2001), mas é também algo que faz já par-
te de um patrimônio coletivo pertencente a
outros autores e estudiosos que se debruçam
sobre essa problemática, entre os quais desta-
caria, se me é permitido alinhar aqui apenas al-
guns nomes brasileiros que, neste momento,
mem espontaneamente ao espírito, Paulo
Freire, Moacir Gadotti, Ivani Fazenda, Selma
Garrido, Vera Placco, Emília Engers, Bernadette
Gatti, Iria Brzezinski, Dermeval Saviani, Luís
Carlos Menezes, Eunice Ribeiro Durhan, Elsa
Garrido, entre muitos outros.
Penso que é tempo de reconhecer a nossa enor-
me valia de povos latinos e, designadamente, os de
língua portuguesa, eo ficarmos constantemente
a referir e a parafrasear autores anglo-saxônicos que,
de fato,o nos ensinam nada de novo. Só há uma
pequena grande diferença:s os lemos e sabemos
o que dizem, pensam e sentem; eles nem nos lêem
nem nos entendem e por issoo sabem o que pen-
samos, sentimos e somos, verdadeiramente. Preci-
samos marcar o nosso lugar no mundo sem com-
plexos nem subserviências.
Implicações para os
profissionais da educação, os
professores e os educadores
Na perspectiva que acabamos de apresentar,
as implicações da escola reflexiva para os profis-
sionais da educaçãoo óbvias quer no nível da
sua formação, quer no nível do seu desempenho
profissional. Ou seja, hoje, como ontem,o é
possível formar um cidadão para as sociedades
dos nossos dias sem atender a que essa forma-
ção terá de ser, essencialmente, flexível, reflexi-
va, resiliente, comprometida, social, solidária.
Aliás, é esse o sentido profundo do próprio de-
senvolvimento humano que vem das fundamen-
tações neurobiológicas do proto-si e vai até a sua
expansão em desenvolvimento constante no si
autobiográfico, passando pelo si nuclear que se
vai construindo e representando, expresso pro-
gressivamente por meio de narrativas neurais,
imagéticas e mentais em níveis mais ou menos
abstratos, como se pretende explicitar no esque-
ma da figura abaixo.
Modelo do desenvolvimento da consciência e construção do sentimento de si
como condição sine qua non para uma escola reflexiva
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Parece ser essa a enigmática e maravilhosa
dialética da ascensão humana, aliás coerente
com outras muitas abordagens e representações
em que a capacidade de reflexão pessoal e co-
letiva é proporcional ao desenvolvimento da
consciencialização, possibilitando, nessa mes-
ma medida, comunidades verdadeiramente
humanas e, por conseguinte, escolas mais re-
flexivas em que os seus principais atores este-
jam mais interconectados, conscientes, motiva-
dos, livres.
Educar, formar profissionais da educação
para a reflexãoo apenas pessoal, mas tam-
m social e comunitária, implica com certeza
fazê-lo de um modo mais reflexivo, flexível,
consciente, responsável e livre. É um caminho
que parece reabrir-se a essa sociedade e a essa
escola, para o qual os seus principais atores, os
professores e os educadores,o poderão ficar
insensíveis. Daí que seja urgente pensar a sua
formação sob uma outra luz que lhes permita
preparar-se de modo diferente para responder
a esses novos desafios.
Que formação? É a questão que se coloca de
imediato, e penso que é também a essa ques-
o que este Congresso Brasileiro de Qualidade
na Educação - Formação de Professores - pro-
curará dar respostas.
Essa resposta passa pela concepção da es-
cola, da sua organização e atuação de uma for-
ma diferente, apontando claramente na direção
do que Senge chama de organização
aprendente e qualificante e define como
"organization that is continually expanding its
capacity to create the future" (1994: 14). A esco-
la aprendente de Senge integra várias compo-
nentes (disciplines):
a do domínio pessoal, isto é, capacidade de
"saber o que se quer", de criar condições que
encorajem os membros da organização a
caminhar no sentido traçado e de manter a
motivação, implicando, por conseguinte,
equilíbrio pessoal e aceitação do seu papel
na inovação;
a dos modelos mentais, digamos, capaci-
dade de continuamente refletir, clarificar e
aprofundar as suas idéias e as dos seus
membros;
a de uma visão partilhada (shared vision),
ou seja, construção coletiva de visões para
o futuro e de princípios e linhas orien-
tadoras da sua implementação, enquadra-
doras do empenhamento de cada um dos
membros;
a da aprendizagem em grupo, capacidade
de pensar em conjunto, de "rendibilizar" as
situações de diálogo e de pensamento cole-
tivo em que a competência desenvolvida no
grupo é superior à soma dos talentos indi-
viduais;
a do pensamento sistêmico (systems
thinking), capacidade de ter a visão de
conjunto e de compreender as inter-rela-
ções das partes entre si e delas no conjun-
to do todo.
Nessa concepção destacam-se, claramente,
os componentes de pensamento, reflexão, re-
lacionamento social e cultural e diálogo, queo
também os ingredientes postos em relevo por
Isabel Alarcão na sua definição de escola refle-
xiva que transcrevemos e comentamos acima.
De qualquer modo, o essencial dessa con-
cepção consiste em mudar a nossa maneira de
pensar, de sentir, de agir e de interagir. Essa é,
com certeza, a condição sine qua non para mu-
dar as organizações e, portanto, a escola. De
uma escola burocratizante e de aprendizagens
de conteúdos estáticos para uma escola mais
reflexiva e desburocratizada, um lugar de ver-
dadeira construção, produção social do conhe-
cimento e de preparação para a vida ativa numa
dinâmica colaborativa, partilhada e solidária.
Realizar essa mudança, que constitui uma
verdadeira transmutação, porventura genética,
psicológica, social, cultural, no dia-a-dia das
nossas escolas, das nossas organizações e das
nossas vidas é o grande desafio que se nos co-
loca de modo premente e urgente, designa-
damente, aos professores, aos educadores e a
todos os outros agentes educativos. Parece-me
também que os principais atores da educação,
nomeadamente os professores e os educadores,
estão a assumir esse desafio com grande digni-
dade, entusiasmo, disponibilidade e sentido de
responsabilidade, e aqui queria referir-me mui-
to concretamente, pelo que conheço, aos pro-
fessores e educadores da escola brasileira,o
obstante as enormes dificuldades que o desem-
penho da sua profissão ainda acarreta nas es-
colas onde trabalham.
A esta luz, desenvolver estratégias de forma-
ção mais reflexivas e resilientes por meio de um
maior desenvolvimento do sentimento de si,
pessoal e coletivo, nos diferentes níveis ou-
ries do sistema educativo e avaliar os resulta-
dos obtidos é, sem dúvida, um dos caminhos a
seguir. Os instrumentos para avaliar esse tipo
de experiência aindaoo muito fiáveis. Exis-
tem, no entanto, já alguns trabalhos, entre os
quais os de Grotberg, Cobassa, Tavares e
Albuquerque, em que se tem procurado elabo-
rar instrumentos de avaliação em torno do con-
ceito de auto-estima dos sujeitos em relação ao
ter, ao poder, ao querer e ao ser, que sem re-
velado sensíveis para compreender essa dimen-
o da personalidade que nos parece essencial
para configurar a escola reflexiva que defende-
mos. Afigura-se-nos efetivamente que é por essa
via que será necessário continuar, porventura,
recorrendo às teses defendidas por Damásio em
torno da consciência e do sentimento de si e das
suas mútuas implicações no nível do si neuronal
ou do proto-si, do si nuclear e autobiográfico,
uma nova via para perceber como se constrói a
pessoa do sujeito humano e, conseqüentemen-
te, o sentido profundo da emergência da consci-
ência, da emoção, da reflexibilidade, da flexibi-
lidade, da resiliência, queo só exprimem as
modalidades do desenvolvimento humano, mas
também as diversas formas que deverão confi-
gurar a formação e a educação do novo cidadão
numa escola que se quer mais inteligente,
aprendente, qualificante, cordial, solidária, exi-
gente e tolerante, reflexiva. Para que essa escola
aconteça e se desenvolva, certamente os profes-
sores e os educadores terão de rever o seu real
envolvimento e desempenho e preparar-se, for-
mar-se continuadamente, ao longo da vida, para
realizar essa missão.
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SIMPÓSIO 3
DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA LEITORA E
ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman
Beatriz Cardoso
Euzi Rodrigues Moraes
A competência leitora:
desafios para o professor
Ângela B. Kleiman
Universidade Estadual de Campinas/SP
Dada a importância da leitura para o desen-
volvimento pleno do aluno, para a cidadania
crítica e para a participação nas práticas soci-
ais das instituições que usam a escrita, a pro-
cura de soluções para a chamada "crise de lei-
tura" das três últimas décadas compete a todo
professor, no seu domínio específico de ação, e
ao professor de português, no seu domínio re-
lativo ao ensino de aspectos lingüísticos e
discursivos da modalidade escrita da língua.
Pode-se pensar no ensino de leitura na esco-
la como tendo dois objetivos básicos: um deles
é o incentivo e o desenvolvimento do gosto pela
leitura e o outro, o desenvolvimento da capaci-
dade de compreensão do texto escrito. Para atin-
gir o primeiro objetivo, precisamos de pessoas,
atividades e infra-estrutura que permitam o con-
tato prazeroso com o livro, a experimentação, o
manuseio de muitos e variados suportes e reper-
tórios de textos: professores que contagiem com
seu entusiasmo pela leitura, contadores de his-
tórias, bibliotecários prestativos, bibliotecas
bem-aparelhadas, atividades lúdicas que envol-
vam a leitura,o todos eles essenciais. Para atin-
gir o segundo objetivo, precisamos de tudo o que
foi anteriormente citado e, ainda, de um profes-
sor bem-formado que seja, além de leitor, for-
mador de novos leitores, orientando os muitos
caminhos que se pode tomar para chegar à cons-
trução de um sentido.
Esta apresentação visa a discutir três aspec-
tos da leitura relevantes para o seu ensino na
escola e para a formação do professor: os aspec-
tos cognitivos, os aspectos textuais e, por últi-
mo, os elementos sociais a serem levados em
conta no desenvolvimento de atividades didáti-
cas com o objetivo de formar leitores. Discutire-
mos as contribuições de estudos sobre os aspec-
tos sociocognitivos da leitura, aos quais foi sen-
do progressivamente incrementada uma dimen-
o cultural e, mais tarde, uma perspectiva so-
cial crítica, própria dos estudos do letramento,
visando ao fortalecimento do professor.
0 leitor
Nas décadas de 1970 e 1980, o ensino foi for-
temente influenciado pelos resultados de pes-
quisas da Psicologia Cognitiva e da Psico-
lingüística, ciências que forneceram, nessa épo-
ca, as principais vertentes teóricas em relação ao
estudo da leitura. Tanto na Psicolingüística como
na Psicologia Cognitiva, o sujeito leitor ocupa
lugar preeminente e central, daí o interesse pelo
seu funcionamento cognitivo durante a compre-
ensão e pelas relações entre linguagem e pensa-
mento durante a leitura. Essas abordagens pres-
supunham um leitor inteligente, que reagiao
apenas aos estímulos externos - as letras no pa-
pel -, fazendo todas as permutações e combina-
ções possíveis já aprendidas, mas que se anteci-
pava, elaborava hipóteses, enfim, usava, em no-
vas e imprevisíveis combinações, todo o seu co-
nhecimento e experiência acumulados. O impac-
to dessa pesquisa no ensino foi considerável para
a ampliação da concepção do que era leitura: por
exemplo, em vez de se exigir apenas a oralização
certa da leitura, passaram a ser desenvolvidas
abordagens para o ensino de estratégias para tra-
balhar o texto.
Aliás, se um programa de leitura estiver fun-
damentado nos estudos cognitivos, um de seus
objetivos certamente será o desenvolvimento de
um leitor independente, capaz de entender tex-
tos de diversos gêneros sem a mediação de um
adulto, professor ou leitor mais experiente, por
meio de programas que propiciem atividades para
o aluno a desenvolver um conjunto de estratégias
de compreensão de língua escrita envolvendo o
uso, monitorado ou não, de sua memória, de sua
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
capacidade de inferência, de sua atenção. Visan-
do àquele momento de independência, um pro-
grama de leitura nessas linhas deverá incluir ati-
vidades de leitura mediadas pelo professor, por
meio das quais ele cria e modela estratégias de
leitura cada vez mais complexas e que exigem
cada vez mais independência do aluno.
0 texto
No fim da década de 1980 e início dos anos
1990, foram sendo realizadas novas pesquisas
sobre as formas naturais de se testar leitores,
envolvendo situações reais de leitura de textos
autênticos, e o tipo de texto lido passou a ocu-
par um lugar mais importante. As característi-
cas do texto, a sua legibilidade, os diversos me-
canismos de textualização, as relações de
similitude e diferença entre o oral e o escrito, as
relativas dificuldades de leitura de determinados
gêneros tornam-se relevantes na pesquisa. A área
que trouxe e traz importantes subsídios para es-
sas questões é a Lingüística Textual.
Uma contribuição importante nesse sentido
é o conceito de intertextualidade (a remissão de
um texto a outro), extremamente relevante para
determinar a dificuldade de um texto. Segundo
Vigner (1988), a intertextualidade é a condição
do texto que diz respeito às suas relações com
outros textos e fator essencial da sua legibilidade,
primeiro, porque o texto funciona segundo leis,
códigos e convenções de um gênero (uma nor-
ma a ser seguida ou subvertida) cujo reconheci-
mento regula as expectativas do leitor; e, segun-
do, porque o texto traz em si fragmentos de sen-
tidos de outras fontes - reescrituras de outros
textos - cuja percepção e interpretação facilitam
ou dificultam o ato de ler.
A interação e a prática social
Mais recentemente, os estudos sobre a ca-
pacidade de compreender, de inferir e de de-
duzir numa situação individual de leitura ce-
dem lugar para perguntas sobre a construção
social do conhecimento nas diversas institui-
ções em que os textos escritos tipicamente cir-
culam. Em decorrência desse interesse, surgem
pesquisas sobre os usos da escrita pelos varia-
dos grupos sociais nas diversas práticas cultu-
rais. A prática cultural passa a ter lugar central
na investigação e, portanto, as áreas que se ocu-
pam das práticas discursivas, do impacto social
e cultural da escrita e da história da escrita e
dos leitoreso as que passam a fornecer as
vertentes teórico-metodológicas mais impor-
tantes para a investigação dos usos da escrita,
em geral, e da leitura, em particular.
As questões tornam-se mais amplas, porque
as áreas que subsidiam as pesquisas fazem
questionamentos mais abrangentes,o ape-
nas sobre a compreensão da leitura, mas tam-
m sobre o papel e o impacto da escrita na vida
social. Parte-se do pressuposto de queo se
pode estudar o leitor sem história nem identi-
dade:o investigadas, então, as práticas leito-
ras da mulher jovem, ou do professor rural, em
algum momento do seu percurso escolar, pro-
fissional ou social, em face de um determinado
gênero em voga numa determinada época. Aos
focos de interesse que incidiam sobre o leitor e
o texto, agrega-se agora o contexto, seja ele o
mais imediato da atividade de leitura, seja o
macrocontexto institucional, histórico, social.
Os impactos desses estudos (conhecidos como
estudos do letramento) no ensino, segundo
Kleiman e Moraes (1999: 57),o os que seguem.
As práticas de leitura e de produção de tex-
tos escritoso extremamente abrangentes.
Numa sociedade complexa, a "tecnologia"
da escrita permeia todas as instituições e
relações sociais e determina até modos de
falar sobre os assuntos e os textos.
A relação entre oralidade e escritao é de
opostos, mas de um contínuo. Portantoo
há oposições totais entre textos orais e es-
critos - haveria redes de relações que os
aproximariam gradativamente.
As práticas de uso da escritao dependen-
tes do contexto e da instituição e, portanto,
a aprendizagem de práticas de leitura im-
plica a aprendizagem das normas das insti-
tuições que legitimam essas práticas.
o, do ponto de vista do ensino, incom-
patibilidade entre esses enfoques. Eles se com-
plementam. Um programa de ensino da leitura
que vise introduzir o aluno nas práticas sociais
valorizadas na sociedade é perfeitamente con-
sistente com a focalização, em algum momento
do programa, de algum aspecto da capacidade in-
dividual do leitor, como, por exemplo, os aspec-
tos cognitivos envolvidos na compreensão, a fim
de desenvolver estratégias cognitivas eficientes no
processo de compreensão do texto escrito.
Há vinte anos, a pesquisa sobre a leitura
apontava exclusivamente os problemas, mos-
trando, por exemplo, aquilo que os leitoreso
conseguiam compreender e/ou aquilo que os
professoreso conseguiam ensinar., nesse
tipo de pesquisa, o risco de os sujeitos partici-
pantes das pesquisas - os alunos e seus profes-
sores - emergirem fragilizados; contudo os pos-
síveis efeitos negativos diminuirão se houver
posicionamento crítico diante do fato social. Isso
envolve uma tomada de posição ao lado dos
menos poderosos, dos menos escolarizados, dos
menos letrados, bem como a ajuda, a promoção
ou o avanço desses mesmos grupos. Essa é a ca-
racterística que devemos exigir hoje da pesqui-
sa sobre a leitura. Se a pesquisa é entendida
como uma restituição para os sujeitos pesqui-
sados (Portelli, 1997), então, ao não-leitor deve-
ríamos estar devolvendo o direito ao prazer da
leitura; ao cidadão comum, o direito a continuar
aprendendo ao longo da vida através da leitura;
ao professor, o direito a sentir-se capaz e seguro
na sua profissão de formador de leitores.
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dade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas:
Mercado de Letras, 1999.
PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas
reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História,
n. 15, p. 13-33,o Paulo, abril 1997.
VIGNER, G. Intertextualidade, norma e legibilidade. In:
GALVES, o (Org.). O texto: escrita e leitura. Campinas:
Pontes Editores, 1988.
Desenvolvimento da
competência leitora e escritora
dos professores
Beatriz Cardoso
Cedoc
Resumo
Hoje há um consenso de que o professor pre-
cisa desenvolver sua competência leitora e escri-
tora. É preciso identificar com maior precisão as
formas de que dispomos nos processos de
capacitação, para poder ajudá-lo a se aprimorar
nesse campo. Apoiada na reflexão sobre experiên-
cias de capacitação continuada de docentes, pro-
curarei discutir as características do texto escrito
que a profissão docente requisita e as possibilida-
des e limites de inserção desse profissional no
mundo da escrita.
o processo de formação implica necessaria-
mente uma interlocução do sujeito com as suas re-
presentações, à luz das dos outros. Dentro dessa
perspectiva, a escrita pode e deve ser incorporada,
no trabalho de capacitação, como um instrumento
privilegiado. A questão é justamente refletir sobre
como e quando essa tarefa pode ser produtiva.
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
Desenvolvimento da
competência leitora e escritora
Euzi Rodrigues Moraes
Rede Interdisciplinar de Educação (Ried)/ES
Quem escreve, assim como quem, o faz
basicamente movido por um incontrolável de-
sejo de se comunicar. Escritores e leitores nun-
ca estão sozinhos, por mais solitários que pare-
çam ser esses momentos interativos de criação
de significados. Ler e escrevero procedimen-
tos indissociáveis e de alta significação social.
o podem tampouco se desvincular da comu-
nicação por meio da fala. Gostaríamos, então,
de discutir competência leitora e escritora no
contexto mais amplo da comunicação humana
e do desenvolvimento da competência comu-
nicativa.
Ensinar a ler e escrever é um dos papéis mais
fundamentais da escola, seo o mais funda-
mental.o se pode, portanto, pensar a forma-
ção de comunicadores competentes sem refle-
tir sobre a ação da escola. Essa reflexão se apoia,
pois, em três focos: os alunos, os professores e
a escola.
Os alunos
Como lêem e escrevem os alunos de nossas
escolas? Que desempenhom na sociedade,
como leitores e escritores? Exemplos é queo
faltam. Estou pensando agora em Bianca - 16
anos, 6ª série, aluna da escola pública.
Bianca veio trabalhar e morar na minha casa
há dois meses. Chegou e, por iniciativa própria,
mergulhou nas estantes de livros. E passou a
"ler" avidamente, livro após livro. Pelo menos
era a impressão que se tinha, pois ela se posta-
va em algum canto da casa, virando páginas,
enquanto deslizava os olhos sobre o texto es-
crito. Intrigada, perguntei um dia à garota: "Que
livro é este que você está lendo?" Era um exem-
plar da revista Trabalhos em Lingüística Apli-
cada, da Unicamp. "Está dando pra entender?"
- provoquei. "Mais ou menos" - disse ela.
Procurei sugerir a Bianca alguns livros que
eu julgava mais interessantes para a idade dela.
o surtiu efeito. O próximo livro que ela esco-
lheu foi Linguagem total, de Francisco Gutierrez,
e o seguinte, Educar para quê?, de Reinaldo
Matias Fleuri.
E o tempo foi passando, enquanto Bianca
devorava os livros, até que um dia ela me disse,
com olhos iluminados: "Agora estou escreven-
do! Já escrevi cinco páginas". "Posso ler o que
você escreveu?" - perguntei.
Com a permissão dela, fui virando as pági-
nas e descobrindo que o que ela fizera fora co-
piar partes dos livros. Dava para notar que ela
estava orgulhosa do seu feito. A letra era boa e a
escrita caprichada. "Dá pra você escrever algu-
ma coisa da sua cabeça?" - perguntei. Ela sorriu.
Dias depois, Bianca me trouxe outra página
escrita. Era a transcrição de um poema inti-
tulado Solidão. Queria minha opinião sobre a
sua letra, que era firme e insinuante, com tre-
jeitos... letra sestrosa de menina-moça.
Elogiei a letra dela - merecidamente. Li o
poema. Fiz alguns comentários pouco relevan-
tes, e insisti: "Por que vocêo escreve uma
coisa da sua cabeça?". "Euo sei" - ela disse.
Como formar leitores e escritores? Sabemos
que temos pela frente um sério desafio.
Em 1988, a 33ª Convenção Anual da Associa-
ção Internacional de Leitura aprovou uma Re-
solução que levava o título Sobre o apoio dos
pais ao desenvolvimento da linguagem da cri-
ança. Ao conclamar as famílias a uma parceria
com a escola, diz a Resolução que "as crianças
aprendem mais durante os seus primeiros cin-
co anos do que em qualquer outro período de
sua vida, por issoo os pais seus primeiros e
mais importantes professores". O papel dos pais
foi definido, no documento, como "provedores
de um ambiente rico em linguagem".
Os relatos de Biancao conta de que fal-
tou a ela esse ambiente alfabetizador, rico em
linguagem. Segundo o que apurei, elao tem
e nunca teve uma família estruturada, nunca
viveu em ambiente letrado nem manteve jamais
qualquer contato com materiais escritos.
Biancao é um caso isolado. Ela represen-
ta um grande contingente de alunos da escola
pública brasileira.
A vida na creche é outra situação típica da
rotina de numerosas crianças em nosso país, a
maioria delas filhas e filhos do analfabetismo.
É confortador saber que jáo se pensam mais
as creches somente como lugar onde as crian-
çaso cuidadas enquanto os pais trabalham,
mas também como espaço de educação, de
aprendizagem. Creche é hoje sinônimo de Edu-
cação Infantil. Vamos torcer para que elas se
tornem, no lugar dos pais, as provedoras desse
ambiente rico em linguagem de que fala a As-
sociação Internacional de Leitura.
Os professores
No artigo "A evolução da leitura e da escrita
de um grupo de professores: estudo de caso",
publicado na Revista Brasileira de Estudos Pe-
dagógicos, n. 195, encontramos uma tipologia
de textos que tenta identificar as característi-
cas da produção escrita de um grupo de pro-
fessores participantes do Projeto Formar, um
projeto de formação continuada de professores,
desenvolvido no Espírito Santo.
Esse grupo de professores foi acompanha-
do, durante um período de dez meses, por meio
da análise das sínteses que eles produziam após
leitura e discussão de textos programados para
estudo durante aquele período.
A tipologia apresenta oito categorias de tex-
to: texto-cópia, texto-imitação, texto alienado,
texto-lamento, texto-colagem, texto-colcha-de-
retalhos, texto-montagem e texto com autoria.
Como se pode perceber, a classificação pro-
cede da cópia e segue até atingir o texto com
autoria. Isso quer dizer que, no início dos estu-
dos, em março de 1998, as sínteses que os pro-
fessores faziam eram montagens de trechos lite-
ralmente copiados do texto original, enquanto
no final do ano já escreviam "de sua própria ca-
beça", isto é, escreviam. Cópia, montagem, imi-
tação, colagem, colcha de retalhoso todos-
tulos para a produção escrita não-independen-
te, amarrada às palavras do autor sintetizado:
produto de leitura de palavras,o de idéias. O
texto chamado alienado e o lamentoo válvu-
las de escape para um discurso político que in-
felizmente já virou clichê sem produzir resulta-
dos: as reivindicações por melhores salários ou
condições de trabalho. As idéias do texto a sin-
tetizar? Nem menção a elas. A "síntese" da "lei-
tura" feita mostra queo aconteceu o diálogo
escritor/leitor,o houve comunicação.
o foi mencionada no estudo uma forma
de composição escrita que resolvemos chamar
de texto-fala, em virtude da semelhança com a
língua que se fala. É um texto autônomo, tem a
marca de seu autor, maso é elaborado como
os textos construídos na linguagem com que se
escreve.
Esse ponto precisa ser mais investigado.
Será que uma estratégia para o desenvolvimen-
to da competência escritora dos professores
seria estimulá-los a escrever a fala e, então,
tematizar o texto, submetendo-o a um proces-
so de "tradução" para a escrita padrão?o se-
ria esse o caminho para libertar os professores
de sua arraigada formação na cópia (na cópia
mecânica)?
Assim como ensinar a ler é, em sua essência,
um empreendimento político, como dizem John
Chapman e Pam Czerniewska no livro Leitura:
do processo à prática, ensinar a escrever com au-
tonomia, isto é, ensinar a escrever, também o é.
Em seus escritos, Paulo Freire sempre insistiu: é
preciso ter voz, é preciso ler o mundo.
Refletindo sobre o trabalho dos professores
de leitura, Chapman e Czerniewska fazem a se-
guinte pergunta: "Para que vale a leitura?" Fa-
zendo eco,s perguntamos: "Para que vale a
escrita?"
E eles prosseguem:
Quando nos damos conta de que a segunda
maior causa de morte entre adolescentes nos
Estados Unidos é o suicídio, ou que mais pes-
soaso hospitalizadas para tratamento de
doenças mentais do que devido a todas as ou-
tras doenças juntas, ou que um em cada 22
SIMPÓSIO 3
homicídios é cometido contra a criança pelo seu
próprio pai ou mãe, ou que mais da metade dos
alunos do ensino médio já experimentou drogas,
ou que no final do ano haverá mais de um mi-
lhão de alunos evadidos de nossas escolas, pode-
se desconfiar da ação formativa da escola.
Interpretando: pode-se desconfiar da ação
formativa dos programas de leitura da escola e
da pertinência dos textos para a vida dos alu-
nos. O que ler? Esta é uma pergunta igualmen-
te importante.
Ler e escreveroo procedimentos neu-
tros, como mostra o texto acima. Esse livro foi
publicado pela primeira vez em 1978 e retrata a
vida em uma outra sociedade, a norte-ameri-
cana. Mas acho que a pergunta que originou o
alerta que acabo de compartilhar com os cole-
gas continua oportuna: "Para que vale a leitu-
ra? Para que ensinar a ler e escrever?" Para de-
senvolver a competência leitora e escritora de
alunos e professores, precisamos ensinar-lhes
a pensar, a organizar o pensamento, a selecio-
nar suas leituras, a fazer recortes adequados na
realidade que eles querem retratar em sua es-
crita, a ser leitores críticos. Em síntese, leitor e
escritor competente é leitor e escritor cidadão.
A escola
Comoo nossas escolas? Queremos que
as práticas escolares sejam semelhantes às
práticas sociais. E podemos afirmar, hoje, que
está em curso um processo de renovação pe-
dagógica em todo o mundo e, evidentemen-
te, em nosso país e que, em muitas escolas,
esse nosso desejo está virando realidade. Pro-
gramas inovadores estão sendo implemen-
tados, provocando e subsidiando essa reno-
vação - eo sem razão. Mas temos um ca-
minho longo a trilhar.
Uma pesquisa realizada no Programa de
Mestrado em Educação da Universidade Fede-
ral do Espírito Santo faz algumas revelações
sobre um contrato didático ainda em vigor na
maioria das escolas brasileiras.
Como estamos discutindo processos co-
municativos, podemos (e acho que devemos)
incluir também a interlocução falante/ou-
vinte em seus vários níveis, que é o que nos
mostram os dados dessa pesquisa. Numa
tentativa de retratar graficamente o percur-
so do alfabetizando desde a sua chegada à
classe até a sua saída, a autora elaborou a
seguinte figura:
o que nos mostra a figura da página ante-
rior? Ela desenha três perfis: o perfil da criança
ao entrar na escola, o perfil da classe e o perfil
da criança feita aluno, no fim do ano. Charles
Hockett (1959) diz que a criança é lingüis-
ticamente adulta na faixa dos 4 aos 6 anos. Atu-
alizando essa afirmação e aplicando-a à escola,
poderíamos dizer que a criança é comuni-
cativamente adulta quando chega à escola. É
assim que a vemos no primeiro círculo.
E que relação tem isso com o desenvolvi-
mento da competência leitora e escritora na
escola? o que é que esse quadro nos diz? Ele nos
diz queoo apenas conteúdos conceituais
os que os professores ensinam. Seus gestos, seus
procedimentos, suas atitudes, sua fala também
ensinam, assim como o contexto da sala de aula
e da escola. (Sobre tipologia de conteúdos, ver
Zabala, 1998.)
A seta que atravessa os três círculos represen-
ta a passagem da criança pela escola. Essa passa-
gem é descrita como um processo de robotização. O aluno, a aluna, entra criança e sai robô.
Os dados recolhidos nas interlocuções en-
tre professora e alunos durante a aulao
categorizados como traços do dialeto, do dis-
curso e da cultura na comunidade da sala de
aula. Que dadoso esses, invocados para fun-
damentar esta leitura?
0 dialeto
Segundo a pesquisa, há três dialetos con-
correntes na sala de aula: o dialeto pessoal da
professora, o dialeto dos alunos e um dialeto
que se convencionou chamar de dialeto da al-
fabetização. A professora utiliza o dialeto da
alfabetização quando está "ensinando a lição",
mas de vez em quando se descola de seu pa-
pel de professora para fazer algum comentá-
rio mais pessoal. Ela diz, por exemplo
[tezoura], quando está ensinando, e [tfizora)
quando está sendo mais informal. Os alunos
dizem sistematicamente [t/izora], porqueo
capixabas em sua quase totalidade. O diálogo
que se segue mostra a insegurança da profes-
sora diante da variação dialetal que incide
sobre a pronúncia de d + i:
P: Como é que se faz, certo mesmo?
A: [ d i ]
P: É, mas acontece queso somos
paulistas. O certo é [ d i ]. Masso faze-
mos esse som carregado assim, [ d i ]. O [ d i ]
paras é [ dZi ], mas o certo, o som mesmo
seria [ d i ].
Instala-se então a oposição certo/errado, já
com conotações sociais.
Exemplos:
1. P: Hoje faltou quem?
A: Ineis.
P: Inês.
2. P: E isto aqui o que é?
A: Iscada.
P: Iscada não. Iscadao existe. Iscada é uma
maneira errada da gente dizer.
Uma das causas desse problema é uma con-
cepção equivocada do funcionamento da lin-
guagem.
0 discurso
o discurso em classe é regido por um acor-
do tácito entre professora e alunos, válido so-
mente dentro das fronteiras da sala de aula: o
importanteo é interagir pensando, resolven-
do problemas. O que vale na sala de aula é en-
tender as dicas da professora e aceitar passi-
vamente as regras do jogo: ou ficando em si-
lêncio ou dando a resposta previamente
estabelecida, para agradar a professora e fe-
char a interlocução.
Exemplos:
1. A: Ela me chamou de adrona!
P: Ladrona?
A:É!
P: (Silêncio).
2. A: Tia, sabe onde eu moro? Tia, sabe onde eu
moro? Num apartamento!
P: (Silêncio).
3. A: Tia, tá perto da hora da merenda?
P: Não, tá longe!
A: (Silêncio).
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
4. A: Tia, tá quase na hora do recreio?
P: Não.
A: (Silêncio).
5. P: Camilo podia ter usado o cordão grande?
Classe (em coro): Não!
P: Por quê?
Classe (em coro): Podia!
Observamos que, na interação nº 5, a per-
gunta "Por quê?"o é uma pergunta verda-
deira, problematizadora. Elao pede uma ex-
plicação para a resposta dada. E os alunos en-
tendem muito bem isso. Eles sabem que, na
cultura da sala de aula, o "Por quê?" da profes-
sora significa rejeição à sua resposta. E, como
a escolha era binaria, eleso perderam tem-
po. Recorreram à única possibilidade que res-
tava: "Podia!"
Estudiosos dos usos da linguagemm
mostrado como se estrutura um diálogo entre
pessoas. Uma regra básica da conversa pode
ser explicada assim: cada pessoa tem sua vez,
o seu turno. Se uma delaso sabe ouvir e es-
perar sua vez ou se mantém em silêncio -
quando a outra encerra a sua fala -, o sucesso
da conversa fica comprometido. Uma sempre
espera da outra que cumpra o seu turno, que
use a sua vez: fazendo um comentário, lem-
brando um fato, pedindo um esclarecimento,
dando uma sugestão, concordando, discordan-
do... ou simplesmente manifestando, de algu-
ma forma, seu interesse no assunto. O silêncio
o é sem sentido. É constrangedor. Pode sig-
nificar negação ou rejeição do diálogo.
Em síntese, o relatório da pesquisa mostra
que as práticas escolares, em geral,m pouca
relação com as práticas sociais. As palavras
candentes de Chapman e Czerniewskao
pintam cenas de um filme de terror. De fato,
escolarizaçãoo tem sido sinônimo de de-
senvolvimento pessoal.o tem significado
educação para a vida. Os resultados estão di-
ante de nossos olhos.
Essesoo dados de hoje. Poderíamos,
então, questionar sua legitimidade nos dias
atuais. No entanto, temos de admitir que eles
ainda ilustram a atividade docente em boa par-
cela de nossas escolas.
A cultura
o dialeto e o discurso da classe de alfabeti-
zação geram uma cultura da incomunicação, na
qual o autoritarismo, o dogmatismo, o
artificialismo e o silêncio ensinam - e muito
bem - a criança a copiar ou a produzir escritos
queo comunicam nada. A escola tem estra-
tégias poderosas de ensino. Esse poder e essa
força poderiam muito bem ser utilizados na cri-
ação de um ambiente escolar propício ao de-
senvolvimento da competência comunicativa
dos alunos na fala, na leitura, na escrita.
A prática da comunicação
verbal na escola
A comunicação verbal (a produção de tex-
tos orais e escritos) precisa ser praticada na es-
cola, eo só na escola básica. Essa foi uma
conclusão a que chegaram outros educadores
após uma pesquisa desenvolvida em uma escola
técnica, cujo relatório foi divulgado na revista
Transactions on Education, de agosto de 1988,
do qual transcrevemos um resumo:
A escrita e a fala como meios de descobrir e
clarificar idéiaso elementos essenciais ao pro-
cesso de aprendizagem. O corpo docente da Fa-
culdade de Tecnologia em Ward está aumentan-
do a ênfase na escrita como método de melhorar
a aprendizagem. A abordagem tem três eixos: pri-
meiro, expandir a parte escrita dos relatórios de
pesquisa experimental; segundo, incluir exercí-
cios de escrita livre nas aulas teóricas; e terceiro,
introduzir exposições orais no laboratório.
Como resultado desses esforços, os alunos es-
o ficando mais organizados e críticos em seu
pensamento e escrita, o que se reflete em maior
precisão nos seus procedimentos destinados a re-
solver problemas c cm suas análises técnicas. No
conjunto, melhoria mais importante é vista na
auto-imagem do aluno: à medida que escrevem
mais, eles se tornam mais confiantes e fazem me-
lhor juízo de si mesmos e de suas habilidades. Os
estudantes estão ficando mais articulados e mais
capazes de participar na nova era da tecnologia.
É a prática da construção de textos como
fator de desenvolvimento cognitivo e pessoal.
A 33
9
Convenção da Associação Internacio-
nal de Leitura amplia seu espectro em uma ou-
tra Resolução cuja introdução leva o título So-
bre leitura e escrita no currículo.
Diz o documento:
Sabemos que os processos de leitura e escrita
são, em si mesmos, uma maneira de aprender e
que os alunos necessitam de muitas oportuni-
dades de ler e escrever para se tornarem leito-
res bem-sucedidos e escritores hábeis e eficien-
tes... Se todos os professores ensinassem leitura
e escrita em cada uma de suas disciplinas, os
alunos aprenderiam os conteúdos em profundi-
dade e, ao mesmo tempo, se tornariam leitores
e escritores mais eficientes.
Essa proposta curricular parece alinhar-se
com a idéia de que o texto de fato transcende
as disciplinas escolares. Portanto, escrever e ler
textoso pode ser uma atividade restrita à dis-
ciplina Língua Portuguesa. Professores de His-
tória, Ciência, Arte, Matemática etc, todos pre-
cisam ser professores de texto, o que exige um
trabalho interdisciplinar, em equipe, variável
essencial da prática educativa. Mas, é bom que
se diga, esse trabalho com texto deve ir muito
além da caça a erros ortográficos.
De que professores e de que escola estamos
falando?
Por uma escola formadora de
comunicadores competentes:
algumas sugestões
No decorrer deste texto, tentamos mostrar
que o primeiro passo para o desenvolvimento
da competência leitora e escritora é o envolvi-
mento com práticas de leitura e escrita, em casa
e na escola, da Educação Infantil até os cursos
universitários de formação de professores.
Procuramos situar nossa reflexão no contex-
to concreto da educação pública em nosso país,
lembrando que a educação tem avançado em
qualidade, mas que, infelizmente, ainda se apli-
cam à maioria das escolas de hoje críticas
dirigidas às escolas de dez ou vinte anos atrás.
Por meio do olhar de pesquisadores compro-
metidos com a educação, penetramos numa sala
de aula onde predomina a incomunicação e, de
relance, vimos também que a intensificação da
prática de leitura e escrita pode melhorar o de-
sempenho dos alunos até de uma escola técnica.
Além disso, procuramos considerar a
conotação política da formação do leitor e do
escritor: "o que ler? o que escrever? Para que
ler? Para que escrever?"
Finalmente, concentramos-nos no lugar do
texto, no currículo e no papel dos professores di-
ante do desafio de formar alunos competentes
para ler e escrever, ou seja, para pensar, para se
comunicar. Dessa reflexão acredito ser possível
concluir quaiso os pressupostos de um projeto
político-pedagógico desencadeador da compe-
tência leitora e escritora: a educação dos pais, o
incremento da parceria escola-família, o investi-
mento na Educação Infantil e na formação de pro-
fessores. É preciso investir na Educação Infantil e
na formação de quadros para o Magistério. Do
contrário, os investimentos na Educação Funda-
mental podemo trazer o desejado retorno.
A formação de professores ganha relevo nes-
se cenário, porqueo eles gestores da sala de aula
e é para a sala de aula que convergem essas vari-
áveis que, combinadas,o determinar a invari-
ável que todos buscamos: qualidade na educação.
Sugestões para um programa
de formação de professores
Introdução do estudo científico da
linguagem (fala e escrita) no currículo
de formação inicial e continuada de
professores
A linguagem humana é desconhecida na es-
cola desde a sua essência, que é a variabilidade
(a plasticidade), até a sua prática nas modalida-
des oral e escrita. A escola opera como se exis-
tisse uma só forma de estruturar a língua, um só
padrão (e é natural e necessário que sua escolha
recaia sobre a chamada norma culta). No entan-
to, essa concepção escolar de linguagem tem
comprometido o objetivo da educação lingüís-
tica: sem o conhecimento do objeto linguagem,
professores e alunoso encontram a porta de
acesso a esse objeto. Em geral, a prática rotinei-
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
ra da fala, nas interações sociais, ajuda os seus
usuários a avançar como comunicadores na
modalidade oral. A interação via escrita, no en-
tanto, Fica paralisada.
Desde os seus primeiros anos escolares, os
alunos aprendem a confundir fala e escrita. Ao
assumir o papel de ensinar a escrita, a escola
expulsou de seus domínios a língua oral. E, as-
sim, a escrita passou a ditar regras para a fala:
deve-se falar como se escreve. Mas sem sucesso.
Os sons da fala, anteso claramente per-
ceptíveis aos ouvidos dos alunos, perdem suas
características. Os alunos ficam surdos:o
descobrem na fala as onze vogais do Português
porqueo apenas cinco as letras que as repre-
sentam. Professores e alunos se descobrem sem
chão quando percebem que uma coisa é o som,
outra coisa é a letra... uma coisa é o som da le-
tra, outra coisa é o nome da letra.
Tematização da leitura e da escrita nos
cursos de formação inicial e continuada
de professores
"Aprende-se a escrever escrevendo" - este foi o
primeiro slogan que a reação à cartilha produziu,
que logo seria reformulado para: "Aprende-se a es-
crever escrevendo e refletindo sobre o escrito". E as
novas informações que nos chegam da psicogênese
da língua escrita, em outra formulação e referindo-
se a leitores em seus primeiros contatos com a lín-
gua escrita, dizem que os aprendizes de leitura de-
vem "ler antes de saber ler" e que o aluno avança à
medida que sua parceira mais experiente, a profes-
sora, o faz pensar sobre o que está lendo, levantan-
do problemas. Portanto "aprende-se a ler lendo e
refletindo sobre o lido". Entendemos que a elabora-
ção escrita de sínteses de leituras é uma prática que
deve ser freqüente e que, unindo-se os dois proce-
dimentos e as duas estratégias, pode dar uma con-
tribuição significativa à formação de leitores e de
escritores competentes.
Tematização da escrita e da leitura
dos alunos
Na verdade, parece-me que a análise com-
petente dos textos das crianças pode ser a me-
lhor estratégia para o desenvolvimento da com-
petência escritora dos professores que os ana-
lisam. Professores que já investem na sua prá-
tica, hoje, os conhecimentos teóricos construí-
dos com base nos novos paradigmasm esti-
mulado os alunos a produzir muitos textos. Mas
o sabem o que fazer com esses textos para
ajudar os alunos a avançar.
o legítimas as perguntas: "o que pensam
as crianças sobre a comunicação entre as pes-
soas? E sobre a textualidade? Que hipóteses for-
mulam nas suas primeiras interações com o
objeto texto? Que hipóteses ortográficas, que
hipóteses textuais? o que pensam as crianças
sobre o que é escrever, o que é compor um tex-
to, o que é comunicar-se por escrito, o que é
fazer um resumo, o que é fazer anotações, o que
é um parágrafo, qual a diferença entre escrever
e copiar, para que serve a pontuação...?"
Gestão da sala de aula
o basta ao professor conhecer o objeto lin-
guagem e refletir sobre a fala, a escrita e a leitu-
ra. É preciso que ele saiba que na sala de aula
outros conteúdos se articulam e contribuem ou
para desenvolver a competência comunicativa
dos alunos ou para condená-los ao silêncio. Sua
relação com a língua falada e escrita, sua atitude
diante de um texto, sua disponibilidade para a
prática de ler, escrever e falar, seu envolvimento
com os alunos, sua história de falas e leituras,
sua capacidade de transformar a aula em um
momento de cooperação e partilhao situações
de aprendizagemo significativas quanto aque-
las em que tradicionalmente se pretendeu ensi-
nar conteúdos conceituais.
Conclusão
É impossível desenvolver competência lei-
tora ou escritora sem o envolvimento de pro-
fessores e alunos com a prática da leitura e es-
crita e sem que eles conheçam bem o objeto lin-
guagem.o me refiro necessariamente ao co-
nhecimento gramatical, embora esteja segura
de que a gramática tem uma contribuição úni-
ca a dar à reflexão sobre a linguagem. Estou
pensando na natureza desse objeto que a gra-
mática tenta explicar.
E quando uso a palavra gramáticao tenho
em mente aqueles conteúdos que levam esse
nome na escola e que tanto a descaracterizam,
nem a didática escolar usada no ensino da gra-
mática. Reporto-me ao modo de ser da lingua-
gem: varia no tempo, no espaço (geográfico, so-
cial, psicológico...), varia no formato dos textos,
opera ambigüidades, redundâncias, sutilezas,
usa metáforas, comunica mais por meio do que
o diz do que daquilo que diz - explicitamen-
te, é um sistema de contrastes.
E cada movimento, cada gesto comunicati-
vo na direção do outro, é um movimento ou um
gesto inteiramente novo, nunca acontecido an-
tes e fadado ao acontecer outra vez (Chomsky,
1967). E cada texto que se constrói é uma obra
de engenho e arte, é cria do seu autor, é gerado e
vem à luz com identidade própria, mesmo quan-
do é a síntese de um texto escrito por outro.
É original, sim, mas issoo quer dizer que
em sua tessiturao se entrecruzem persona-
gens, pensamentos, eventos, que passam pelo
autor do texto, percebida ou despercebidamen-
te, eo recriados, fazendo de cada um des
- escritor e leitor - um espécimen humano, um
ser social e cultural, um comunicador.
Então, para que a leitura e a escrita na escola
sejam fatores de desenvolvimento pessoal e
sociocultural de alunos e professores,o basta
expormos a portadores de textos os leitores e os
escritores em formação, muito menos dizer-lhes
que é preciso desenvolver uma intimidade com a
língua escrita. Um pensador anônimo expressa,
em três pequenas frases, o que é fundamental:
Me diz como é, e eu vou esquecer
Me mostra, e eu vou me lembrar
Me envolve, e eu aprenderei.
o leitor e escritor competente é uma pes-
soa que se envolve no mundo letrado, é um
comunicador eficiente nas trocas sociais:
como usuário de discursos que produzem
efeitos nos seus interlocutores, na sala de
aula, na coletividade;
como construtor de sentidos: de textos ver-
dadeiros, autênticos, que comunicam;
como usuário dos diferentes registros da lin-
guagem, sempre sensível à necessidade de
adequação da fala ao seu contexto (não é só
a roupa que usamos que deve estar de acor-
do com o ambiente em que estamos; a lin-
guagem também);
como falante de um dialeto natural, que seja
a marca de sua identidade sociolingüística
e cultural;
como escritor sensível à diversidade de mo-
dos de usar a língua e às relações entre o pen-
samento e as variadas formas de expressá-lo
por escrito;
como pessoa que descobriu a alegria de ler
e de escrever.
Supomos que estes sejam alguns dos tra-
ços que formam o perfil do comunicador com-
petente.
Bibliografia
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SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
PALESTRA
Mediando a leitura:
rumo à autonomia do leitor
Tânia Mariza K. Rosing*
A escola brasileira
e a biblioteca
Sempre que se fala em leitura na escola bra-
sileira,o se pode considerar que a situação
seja igual nas diferentes regiões. É visível o es-
forço desenvolvido pelas autoridades educacio-
nais no sentido de desenvolver ações que resul-
tem na melhoria da qualidade do ensino, am-
pliando o número de vagas nas escolas públi-
cas, garantindo a um grande número de crian-
ças o acesso à alfabetização e ao letramento.
Constata-se, também, um esforço no sentido de
dotar o espaço da escola com equipamentos
capazes de contribuir com um melhor desem-
penho dos alunos na educação básica.
o responsável pelo desencadeamento do
processo em que se constitui a leitura é o pro-
fessor, uma vez que, nas escolas brasileiras, é
na sala de aula que se estrutura o currículo es-
colar. A biblioteca, setor que deveria assumir
essa função, ouo existe no espaço escolar, ou
é confundida com uma prateleira em que se
deposita um acervo composto por poucos li-
vros, às vezes de qualidade discutível, que vei-
culam muitos textos de natureza didática.
Os profissionais queo designados para
atuar nesse espaço, considerado uma sofrível
biblioteca,o apresentam, em sua maioria,
nem o perfil necessário para a dinamização do
acervo existente, reduzido em número de títulos
e pobre em qualidade, nem ao menos a capaci-
dade de estimular o gosto dos usuários pelo pra-
zer de ler. A formação desses profissionais carece
de informações quem de uma cultura de leitu-
ra, ou mesmo de uma preparação específica para
atender às necessidades dos alunos acerca do ma-
nuseio da informação, ou do processo de seleção
dos textos literários, entre outros, a serem lidos.
o havendo a efetiva instalação de biblio-
tecas nas escolas,o, conseqüentemente,
preocupação com a formação de profissionais
capacitados para animar o acervo disponível, ou
mesmo para viabilizar a sua ampliação em-
mero de livros e de outros suportes de nature-
za diversificada, importantes no processo de
estabelecimento do prazer de ler, resultantes
das inovações tecnológicas que cercam todos os
segmentos da sociedade.
A solução mais fácil é pressupor que a maio-
ria das escolas brasileiras está desenvolvendo
ações de leitura eficazes, pressupondo, tam-
bém, que os profissionais da educação, atuan-
do dentro ou fora da sala de aula,o leitores,
ou melhor, "aprendizes de leitor". Pratica-se,
portanto, na maioria das escolas brasileiras, a
pedagogia da pressuposição.
A biblioteca nas escolas
francesas
Para a atuação de profissionais como agen-
tes de leitura na biblioteca, o sistema educacio-
nal da França apresenta uma solução diferen-
ciada. Reconhecidos por sua cultura de leitura,
profissionais egressos do Ensino Superior, de-
monstrando interesse em trabalhar em biblio-
tecas, precisam passar por um processo de for-
mação específica. Após concluírem um curso de
graduação em instituições de Ensino Superior,
os profissionais interessados em dinamizar os
diferentes acervos das bibliotecas precisam re-
alizar um curso de dois anos, a fim de se capa-
citarem como "professores documentalistas".
Doutora em Letras pela PUC/RS, professora de Literatura Brasileira da Universidade de Passo Fundo/RS.
Essa denominação "professor documenta-
lista" é bastante ampla: a formação dos profissio-
nais interessadoso se restringe ao conhecimen-
to específico para a realização do arquivamento
de documentos ou catalogação de materiais di-
versificados. Tal processo abrange, também, téc-
nicas de dinamização dos materiais existentes no
espaço da biblioteca, por meio de vivências de
leitura multi e interdisciplinares, e a realização de
práticas de leitura integradoras dos conteúdos de
diferentes disciplinas de um mesmo nível de es-
colaridade, a partir de um tema central, só para
citar um exemplo significativo.
Para que essa dinamização aconteça, é im-
prescindível, em primeiro lugar, que o professor
documentalista seja, efetivamente, um leitor.
Quem é contagiado pelo prazer de ler desde a
primeira infância circula entre livros, revistas e
outros suportes com entusiasmo, dialoga com os
seus conteúdos com muita curiosidade, buscan-
do sempre outros materiais que possam enrique-
cer o conhecimento acerca de determinado as-
sunto. Em segundo lugar, adota uma perspecti-
va interdisciplinar e transdisciplinar em suas in-
vestigações, poiso deve se apropriar do co-
nhecimento a partir da sua fragmentação. Deve
ter, ainda, a iniciativa de organizar práticas lei-
toras multi, inter e transdisciplinares, a partir do
envolvimento de professores de diferentes áre-
as, ao lado de profissionais emergentes dos mais
variados setores da sociedade, demonstrando o
processo em rede e suas implicações na cons-
trução do conhecimento.
Toda essa competência profissional, aufe-
rida durante a formação específica, é dirigida
ao desenvolvimento do potencial natural da
criança, que precisa ser alimentado e desenvol-
vido. É importante, nesse caso, lembrar que tal
processoo é desenvolvido individualmente,
apenas, mas é construído a partir da vivência
da criança entre seus pares, em grupos os mais
diversificados possíveis.
Os referenciais dos alunos, em diferentes
faixas etárias,o respeitados e se configuram
como resultados de ações de leitura que pro-
movem o ser humano sem o desconhecimento
de aspectos fundamentais de sua identidade
cultural.
o caso francês é um modelo a ser conside-
rado pelas autoridades educacionais brasileiras
no que diz respeito ao processo de implanta-
ção de uma política de leitura no Brasil, parale-
lamente à formação dos agentes de leitura, no
contexto das diversidades territorial e cultural
brasileiras e, em especial, das condições dos
professores que atuam nas escolas e nas biblio-
tecas existentes nesse contexto plural.
0 compromisso dos
mediadores com a seleção
de textos
Tanto no espaço da sala de aula quanto na
sala de leitura ou numa biblioteca, os acervos
disponíveis precisam ser dinamizados por um
profissional leitor. Essa constatação apresenta
sentido amplo. Ser leitoro significa apenas
ser portador de uma erudição que vem de uma
cultura livresca. Ser leitor implica ter uma vi-
o de mundo ampla, que prioriza o ser huma-
no com todo o seu potencial, identificando o
perfil de cidadão necessário à promoção de
mudanças na sociedade, a fim de transformá-
la para melhor, garantindo um convívio de uni-
dade na diversidade.
Que tipo de mediação é necessária? Enten-
de-se, atualmente, que o grande objetivo do
mediador, seja ele professor ou bibliotecário, é
o de selecionar textos, apresentados em livros
ou em outros suportes, capazes de desencade-
ar uma perspectiva crítica no olhar do leitor
sobre o mundo em toda a sua complexidade,
sobre os demais seres humanos, sobre si mes-
mo. Para tanto, é necessário conhecer o que está
disponívelo apenas nos acervos existentes na
escola, mas também no mercado editorial em
termos de publicações: do texto literário ao tex-
to científico, passando pelos textos de nature-
za explicativa, argumentativa, entre tantos ou-
tros, impressos no papel ou apresentados na
tela eletrônica. É preciso acionar o conhecimen-
to prévio adquirido ao longo de toda a sua for-
mação profissional e pessoal, além de chamar
a atenção sobre o que conhece, mas queo
explicita em seus diálogos com os diferentes
textos, democratizando-os com seus pares.
o importante é identificar, no texto escrito, nas
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
ilustrações que complementam o seu significado,
nos recursos possíveis oferecidos pelo hipertexto,
as marcas das quais emergem nuanças com que o
leitor constrói a intencionalidade sugerida pelo
autor, as quais poderão tomar rumos imprevisíveis
se forem utilizados, no ato de ler, os recursos
hipertextuais referidos, existentes em programas
específicos para uso em computadores.
Nesse processo, há que se selecionar autores
cujos textos, ao serem reconstruídos pelo leitor
durante a leitura, possam sensibilizá-lo a apro-
priar-se de idéias transformadoras que sejam
eficazes na promoção de mudanças substanci-
ais na sociedade, a partir do meio em que atua.
Textos emancipatórios,
provocadores da autonomia
do leitor
Inspirados na proposta inovadora de Mon-
teiro Lobato ao escrever livros para o público
infanto-juvenil, um grupo de escritores, cada
um de acordo com a sua criatividade e num
tempo específico, a partir dos anos 1970, em
diferentes lugares do território brasileiro, sen-
tiram o desejo de criar livros e de publicar li-
vros para crianças reconhecidas por seu poten-
cial de liderança, por sua curiosidade, por sua
tendência investigativa.
E assim as crianças, os professores, os pais,
os bibliotecários começaram a ter a oportuni-
dade de dialogar com a turma que passou a es-
crever textos emancipatórios: Ana Maria Ma-
chado, Ziraldo, Ruth Rocha, Lygia Bojunga
Nunes, Ângela Lago, Maurício de Souza, Joel
Rufino dos Santos, Sérgio Capparelli, Liliana
Iaccoca, Ricardo Azevedo, Elias José, Moacyr
Scliar, Marcos Rey, entre tantos outros neste
imenso Brasil.
E o queo textos
emancipatórios?
Textos emancipatórioso os que oferecem,
por meio dos signos gráficos, uma perspectiva
ideológica na qual se constata uma visão de
mundo sem preconceitos de cor, raça, religião,
sexo, situação econômico-financeira, política e
cultural. Tais textos apresentam os seres huma-
nos respeitados e valorizados a partir de seu po-
tencial natural e adquirido socialmente, de seus
referenciais físicos, sociais e culturais específi-
cos. Revelam o ser humano no âmbito de suas
relações, a partir de adaptações às necessidades,
preferências e desejos atuais, enfocando o mun-
do atual e suas implicações, destacando o po-
tencial de liderança, de criatividade, de sensibi-
lidade existente em cada indivíduo e nos grupos
com os quais interage.o textos cujo conteúdo
é apresentado de forma inusitada, criativa, usan-
do vocabulário e construção sintática trabalha-
dos com finalidade estética, provocando um
estranhamento no leitor.
Textos emancipatórios garantem a autono-
mia do leitor para que possa conduzir as suas
práticas individuais e sociais, o seu estar-no-
mundo de tal modo que seja útil e reconhecido
por suas contribuições - para um mundo mais
humano, em que prevaleçam os interesses do
coletivo impulsionados por idéias de constru-
ção e de promoção da vida.
o diálogo do leitor em formação com tex-
tos emancipatórios garante mudanças para
melhoro apenas no indivíduo, mas na socie-
dade como um todo. Essa constatação provoca
uma indagação preocupante: qual é a turma
responsável pela autoria dos livros e dos demais
suportes com os quais crianças, pré-adolescen-
tes, pais, professores e bibliotecários estão se
envolvendo?
SIMPÓSIO 4
METODOLOGIA DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES ENFOCANDO
o TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho
Maria Eliana Matos de E Lima
Ana Claudia Rocha
Por que uma formação centrada
nos coletivos de formação?
Abílio Amiguinho
Escola Superior de Educação de Portalegre/Portugal
Esta intervenção é composta por duas par-
tes. Numa primeira parteo inicialmente
identificados os aspectos suscetíveis de análi-
se crítica no que se refere aos desenvolvimen-
tos recentes das práticas de formação contínua.
Sublinha-se como, apesar da proliferação de
um discurso científico e de uma retórica polí-
tica que fazem uso de concepções inovadoras
de formação, no campo das práticas de forma-
ção persistem, inquestionavelmente, modos de
trabalho concreto individualmente dirigidos e
em exterioridade relativamente aos contextos
de trabalho. Em segundo lugar, apontam-se a
lógica de fundo e algumas características de
dispositivos de formação alternativos que po-
dem vir a contribuir para contrariar esse esta-
do da questão.
Numa segunda parte, recorre-se a três
exemplos de situações e experiências de for-
mação, vivenciados pelo autor em diferentes
contextos, marcados por uma perspectiva de
inflexão das práticas, fazendo uso do traba-
lho em grupo ou em equipe, de modo a aliar
trabalho e formação. No primeiro caso, em-
bora se trate de formação em sala, o propó-
sito do pequeno dispositivo de formação foi
reavivar a memória profissional pela media-
ção do grupo, com o objetivo de concluir so-
bre o que, no percurso pessoal e profissional,
foi ouo formativo e por que razões ou
motivos. Nos outros dois casos, o projeto de
intervenção transformou-se em oportunida-
de de formação, elemento desencadeador do
processo e do qual, concomitantemente, se
alimentou. A interação e as relações inter-
pessoais, como ingredientes fundamentais da
dinâmica individual e coletiva de formação,
que mutuamente se suportam, foram aqui
notas dominantes.
Um olhar crítico sobre
as práticas de formação
Ao sintetizar o diagnóstico crítico sobre o
estado da questão da formação e do desenvol-
vimento profissional dos professores, Antônio
Nóvoa (2000) utilizava a expressão "excesso de
discursos, pobreza de práticas". Dessa forma
pretendia salientar o modo como, na década de
1990, evoluiu-se extraordinariamente no domí-
nio das concepções nessa matéria,o se veri-
ficando correspondente avanço ou inovação no
campo das práticas.
A academia foi a principal responsável por
essa evolução conceituai, fruto de um trabalho
considerável em nível de investigação, o que
conduziu à construção de enunciados e de nar-
rativas sobre a necessidade da mudança nesse
âmbito. Mas esses incitamentos à mudança,
com freqüência produzidos e veiculados num
quadro típico de divisão técnica do trabalho de
formação entre academia e escolas, ou entre
peritos e práticos, foram também apropriados
pelo campo político, sendo comum encontrá-
los, no discurso reformador, transformados em
excelentes peças de retórica.
Basta que nos lembremos da forma como
"a formação centrada na escola", "descen-
tralização", "diversificação de estratégias", "for-
mação baseada na prática profissional" "inves-
tigação-ação", "projetos", "auto-reflexão de co-
letivos", "trabalho em equipe", "trabalho coope-
rativo ou Colaborativo" etc. tornaram-se expres-
sões de uso corrente nos documentos da refor-
ma das políticas educativas, independentemen-
te da sua área de incidência.
Em Portugal, onde a designada "reorganiza-
ção curricular" se converteu em menina dos
olhos da última vaga reformadora (embora
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
desmentida e apelidada de "revisão curricular"),
julga-se que algumas das suas potencialidades,
para além da flexibilização curricular, serão,
com toda a certeza, essa diversificação e essa
transversalidade que pretendem, na gestão e no
desenvolvimento do currículo escolar, arrastar
consigo o trabalho cooperativo dos professores
e a ruptura com a cultura do isolamento e do
individualismo profissional.
Mais ou menos a par, nos últimos dois a três
anos, as designadas modalidades inovadoras de
formação foram promovidas à condição de
prioritárias em termos de elegibilidade finan-
ceira na gestão dos fundos da União Européia
investidos nesse campo. Curiosamente, as es-
tatísticas sobre as ações acreditadas e financia-
das remeteram para registros insignificantes os
cursos, os módulos de formação e até mesmo
os seminários, enquanto as oficinas de forma-
ção, os círculos de estudo e os projetos, por na-
tureza modos de formação dirigidos a coletivos,
tomam uma larga dianteira, ofuscando clara-
mente os primeiros.
Todavia, a realidade é bem distinta, e essa
operação cosmética disfarça muito mal o pre-
domínio de modalidades escolares de forma-
ção. A transformação da lógica de formação
centrada na escola, ou a partir de coletivos de
intervenção, em mais uma tecnologia for-
mativa reflete-se, agora, na subversão dos mo-
dos de trabalho de formação que a poderiam
concretizar. A sua banalização e vulgarização,
quando os procedimentos de formação que
veiculamo do mais fino recorte informati-
vo, expositivo e transmissivo, podem contri-
buir para desencantar quem neles participa e
desacreditar ainda mais formas promissoras e
efetivamente inovadoras de intervenção for-
mativa.
Na verdade,o ainda irrelevantes os pro-
cessos formativos centrados nos problemas e
nas necessidades ou nas dinâmicas das esco-
las ou de territórios educativos. É débil (ou
inexistente) a mobilização/implicação de
equipes ou de coletivos das escolas em pro
cessos conjuntos de formação. Visa-se m ais à
promoção dos indivíduos (vejam-sa os crédi-
tos que em Portugal se tornaram indispensá-
veis para a progressão na carreira). Prevalece
o caráter esporádico e pontual em detrimen-
to da longa duração e da continuidade, em
que o programa de formação se sobrepõe ao
dispositivo de formação.
Continuam ao se potencializar forma-
tivamente modos e modalidades de planifica-
ção (e de intervenção) na escola como momen-
tos e oportunidades de formação. Em suma,
o ainda muito raros os projetos de formação.
Provavelmente, o que é ainda pior, trata-se do
reiterar de uma crítica que reconhece o redu-
zido impacto das formações. Tudo isso num
tempo sem precedentes no que se refere aos
avultados investimentos de toda ordem, mas
principalmente financeiros, no domínio da
formação.
Assim, a literatura da especialidade con-
tinua a caracterizar a formação que se prati-
ca como individualmente dirigida e em
exterioridade em relação aos contextos de tra-
balho e aos coletivos de intervenção, pensa-
da e organizada para ser desenvolvida sepa-
rando claramente o tempo de formar e o tem-
po de trabalhar.
Uma feliz expressão de Mulford, produzi-
da em 1980, conserva ainda, infelizmente,
toda a sua atualidade. O formando, individu-
almente considerado, "era como a peça de
puzzle que se retira do seu sítio para a trans-
formar, para tentar, depois, que ela encaixas-
se de novo, sem ter transformado também as
demais peças" (Garcia Alvarez, 1992: 133).
Assim, pretendia-se enfatizar a ignorância da
forma como o ambiente - da escola, mas tam-
m da própria sala de aula - freqüentemente
anula quaisquer intentos inovadores, induzi-
dos pela formação do professor isoladamen-
te ou separado do seu contexto.
Os efeitos perversos dessas formações fo-
ram identificados pela investigação. Entre
eles, o do reforço da postura de isolamento
profissional e da cultura individualista ou
"balcanizada", o refúgio nos saberes discipli-
nares e a valorização do especialista numa
área específica do conhecimento, a recusa do
que na profissão equivalha a trabalho social,
a desqualificação e a desprofissionalização
em face da subestimação dos saberes da prá-
tica, o agravamento da culpa profissional etc.
Suportes teóricos de
formações mobilizadoras
de coletivos em contextos
de trabalho
Contudo, também investigações recentes
continuam a enfatizar o impacto positivo de
determinados dispositivos de formação, ape-
sar da sua raridade, na perspectiva dos que se
formam. Num trabalho sugestivamente inti-
tulado Será útil a formação contínua de pro-
fessores?, Lise Demailly e seus companheiros
de pesquisa (Demailly et al., 2000) confronta-
ram, em diferentes momentos do percurso
profissional e de formação dos professores, a
influência, sobre estes, dos modos e modali-
dades de formação de que participaram.
Com base na técnica da entrevista, em três
momentos puseram-se à prova, comparativa-
mente, os designados estágios na academia
(IUFM) e os processos de formação nas esco-
las, supervisionados pela academia e por com-
panheiros, centrados no diagnóstico de situa-
ções, elaboração e desenvolvimento de proje-
tos, com incidência, nas diferentes etapas de
realização, em processos de trabalho de grupo
ou em equipe.
Para os autores, tornaram-se evidentes as
vantagens da forma interativa/reflexiva que
presidiu as seqüências formativas das moda-
lidades de trabalho a partir das escolas. Des-
tacaram a apreciação positiva do processo ge-
nérico de decisão negociada das áreas, das
temáticas e dos conteúdos de formação, a ar-
ticulação com as práticas, os processos de
interação que daí decorrem, quer com os
companheiros, quer com os acompanhantes.
Esse acompanhamento foi valorizado na sua
dimensão de apoio e ajuda metodológica e
técnica e, particularmente, na sua dimensão
da gestão, por facilitadores externos, das re-
lações interpessoais. Referiram, além disso,
um maior reconhecimento dos efeitos sobre
as práticas, a promoção de mudanças passo a
passo, mas com maior suporte e, também, por
isso, mais eficientes. Os autores concluem
ainda pelo fato de práticas de formação que
podem ser interpretadas à luz da forma inte-
rativa/reflexiva estarem mais bem colocadas
para ajudar "a reorganização das defesas e dos
sentidos e a reorganização dos prazeres".
o evidências que corroboram outras
conclusões provenientes de outros contextos.
É por isso que a própria Lise Demailly (1997)
considera que as redes profissionais coope-
rativas de intervenção constituem o melhor
antídoto, em se tratando de ambiente de tra-
balho e de formação, para um exercício pro-
fissional em que o prescritivo e o normativo,
bem como o controle hierárquico e burocrá-
tico,m avolumado o sentimento de culpa-
bilidade nos professores. Julga, por isso, que
essas redes de trabalho podem contribuir para
travar a espiral de efeitos perversos desen-
cadeada pela solitude subie/volue (Demailly,
1997; Hargreaves, 1998, fala do isolamento
como estratégia de refúgio), com origem no
fechamento e em estratégias profissionais
defensivas.
A "regulação local" permitida pelo trabalho
em rede pode favorecer a "emergência de uma
flexibilidade identitária" que abala a rigidez
das identidades normalmente defensivas. O
dogmatismo, o espírito de corpo, a incapaci-
dade de negociar, o isolamento defensivo e a
culpabilidade latente podem vir a dar lugar à
tolerância à diferença, à abertura a parcerias,
à capacidade de negociar, à tomada de inicia-
tivas individuais ou em pequenos grupos. Su-
blinha, além disso, a hipótese de construção
do conhecimento profissional, no contexto do
trabalho em rede, pela formalização de sabe-
res profissionais de experiência. Trata-se de
um conhecimento difuso, inconsciente, difícil
de comunicar e de colocar sob forma escrita
publicável, mas é um saber profissional que
o é mais de tradição ou de rotina: é feito de
bricolage e de invenção coletiva, adequado à
criação de um ambiente profissional ativo.
Demailly (1997) conclui assim por um triplo
efeito do trabalho em equipe ou dos "coleti-
vos": a criação de identidades abertas, a qua-
lificação profissional e uma démarche moral de
consensualização de valores.
Kherroubi, por seu turno, sobre aquilo que
considera uma real aposta profissional, escreve:
"[...] é manifesto que a dinâmica coletiva inter-
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
m sobre os elementos estruturantes da profis-
o propriamente dita e sobre a motivação de
exercer: relação positiva com os alunos, sentimen-
to de eficácia e sentimento de desenvolvimento
profissional" (1997:157). Sublinha ainda que par-
ticipar como escola e nos seus projetos, embora
com níveis de implicação diversos, significa a pre-
sença do "nível da escola" no "núcleo duro da pro-
fissão". A título de conclusão, remata: enfrentar
problemas cria desestabilização, mas "confere
todo o sentido à profissão" (Kherroubi, 1997:157).
Três experiências
de formação
As experiências a seguir relatadaso de di-
mensão variável, constituindo, nos dois pri-
meiros casos, situações pontuais de um curso
mais abrangente, no primeiro, e de um proje-
to de maior envergadura, no segundo. No ter-
ceiro, a situação corresponde à componente
formal de formação inerente à construção de
um projeto local de âmbito concelhio.
0 que é ouo formação
Esta primeira experiência foi o resultado
do desenvolvimento de um pequeno disposi-
tivo de formação em sala, adaptado de uma
proposta de Philippe Merieu, inserida no-
mero de dezembro de 1998 dos Cahiers
Pédagogiques. Consistia num conjunto de ati-
vidades que combinava trabalho individual e
em grupo, com vista à elucidação, pelos
formandos, do que é, ou não, formação.
Com base num pressuposto genérico de
análise de práticas durante três sessões de duas
horas cada uma, no ano letivo de 1995/1996,
num curso de pós-graduação para professores
do lº ciclo do Ensino Básico, os formandos
confrontaram, em grupos que se constituem e
refazem, referências ao que cada um conside-
rou ter provocado uma situação de pesquisa
e/ou de mudança de práticas, para concluir
com os traços comuns do que é uma situação
formadora e em que diverge de outra conside-
rada como não-formadora.
o objetivo era partir das concepções de
cada um para encetar um processo de discus-
o crítica das noções em voga sobre forma-
ção, bem como das práticas a queo origem.
A tabela de freqüências dos aspectos comuns
colocou na dianteira a construção de respos-
tas para problemas da prática, ou mesmo a
possibilidade de equacionar problemas, como
as situações de maior potencial formativo. O
trabalho com os pares e com outros parceiros
do processo educativo foi identificado como
fonte de conhecimento e de produção de com-
petências profissionais em contraste com a
irrelevância, para esse efeito, dos cursos ma-
gistrais, cuja persistência denunciam, a par da
de outras modalidades de formação, ser de ine-
ficácia igualmente reconhecida. Ou seja, o gru-
po reconheceu o impacto da dimensão coleti-
va da formação.
A partir desse ponto foi possível entrar na
discussão pela constatação de Dominicé de
que a formação corresponde àquilo ques fa-
zemos daquilo que os outros queríamos que
s fizéssemos, ou, de forma mais clara, que
somos sempres a proceder à síntese e à in-
tegração das diferentes influências exteriores,
embora com a mediação dos demais.
Aprender a utilizar o correio
eletrônico enviando mensagens
No presente caso, trata-se de um disposi-
tivo simples, destinado a formar tecnicamen-
te no quadro do desenvolvimento de um tra-
balho em rede entre escolas, em que se pre-
tende introduzir o correio eletrônico como
vertente privilegiada de comunicação e de in-
formação, entre professores e entre alunos das
diferentes escolas que participam num mes-
mo projeto.
Eram pequenas escolas rurais de um ou
dois professores, às vezes um pouco mais.
Tendo em vista favorecer uma dinâmica
participativa de formação, os professores or-
ganizaram-se em grupos - em número de três
ou de quatro -, sediados em escolas hospe-
deiras já equipadas e com o correio em fun-
cionamento, para onde se deslocaram profes-
sores de outras escolas (visitantes), a fim de
perfazerem um número razoável de elemen-
tos por grupo.
Desse modo, em alguns casos, o único pro-
fessor de uma pequena escola teve consigo,
durante um dia inteiro, mais quatro a cinco co-
legas que com que ele partilharam, sob a su-
pervisão de um formador, conhecimentos e ex-
periências sobre correio eletrônico. Quatro
momentos foram considerados para o desen-
volvimento da formação: a) familiarização com
procedimentos técnicos específicos; b) peque-
na navegação na net; c) envio "livre" e recep-
ção de mensagens entre grupos nas escolas
hospedeiras; d) envio de mensagens com pro-
duções de alunos e de professores.
Em suma, o trabalho de formação consistiu
na implementação de uma estratégia simples,
isto é, a de aprender a trabalhar o correio ele-
trônico enviando mensagens - aprender fazen-
do, portanto.
Na nota de campo redigida num dos dias de
trabalho de formação, escrevemos:
"Os postos de trabalho" estavam sediados nas
próprias salas, com os computadores que alguns
dos professores utilizam com os seus alunos. Era
com as suas próprias máquinas, nos seus locais
de trabalho, que procurávamos iniciar ou aprofun-
dar processos técnicos próprios das TIC, na ex-
pectativa de que daí se evoluísse para um uso mais
freqüente dessas tecnologias, uma vez superados
os obstáculos da rede. Nos computadores em que
se trabalhouo permanecer os históricos da con-
sulta na net, endereços de correio, as mensagens,
as respostas etc, que podem ser projetados nou-
tras direções. Quem sabe?
À semelhança do que tínhamos experimen-
tado no ano anterior, este ano, apesar de tudo,
com mais equipamento, tencionávamos ocupar
o dia de formação iniciando com a navegação
na net para nos concentrarmos no uso do cor-
reio eletrônico - abrir a caixa do correio, ler
mensagens recebidas, enviar mensagens, ane-
xar textos ou outros materiais etc. Tínhamos
também combinado que tanto a exploração da
net como as mensagens de correio tivessem
os projetos como motivo. Como conseqüência,
organizamos um pequeno dossiê com esses
materiais. Procurávamos, assim, aliar formação
técnica com uma tentativa de sistematização
da informação, fazendo-a circular entre esco-
las, intentando que tal se projetasse no traba-
lho futuro.
Sabíamos da existência de diferentes estágios
de relação com a máquina e disso fizemos um ele-
mento de gestão do trabalho de formação, de modo
que os "mais" experientes pudessem auxiliar os
menos experientes ou sem qualquer experiência.
A mobilização dos professores do agrupa-
mento superou as expectativas mais otimistas,
inclusive da T. Até mesmo a professora L, que
apresentou o senão do teste dos complemen-
tos de formação, acabou por estar presente, as-
sim como a professora Z.
Efetivamente, apesar das dificuldades de
natureza técnica - arcaísmo das linhas telefô-
nicas - a dezena de mensagens que uma esco-
la enviou num só dia e as três dezenas, aproxi-
madamente, que cada uma recebeu, foram um
convite à continuidade da comunicação. Essa
comunicação passou a ter como alvo, nos ca-
sos em que as condições técnicas o permitem,
propostas pedagógicas de características co-
muns ou semelhantes.
Construir e desenvolver um projeto de
intervenção de dimensão concelhia
Esse dispositivo, de muito mais largo alcan-
ce do que os anteriores, teve origem na solici-
tação à escola de formação em que trabalho -
a Escola Superior de Educação de Portalegre
(Esep) - de apoio à construção de um projeto
de intervenção no concelho.
A atividade de colaboração institucional
que então foi gerada resultou do cruzamento
das intenções da principal escola do concelho
e do projeto da escola de formação, particu-
larmente no que diz respeito a sua intenção de
apoiar as inovações nas escolas e o desenvol-
vimento educativo.
Assim, num primeiro momento, a interven-
ção da Esep centrou-se na situação-problema
de partida, nomeadamente:
compreender e interpretar a situação pro-
blemática - ajudar à sua clarificação e
explicitação;
participação em reuniões - o olhar exte-
rior e mais distanciado;
disponibilização de diversos materiais de
apoio;
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
integração no grupo que elaborou o projeto;
auxílio na redação e na revisão final do do-
cumento do projeto.
Posteriormente foi constituída uma equipe
da Esep destinada a apoiar o desenvolvimento
futuro do projeto, ou seja, garantir o acompa-
nhamento formativo/metodológico, que teve,
por meio da implementação de um Círculo de
Estudos, como principais finalidades:
promover a discussão/apropriação do pro-
jeto global;
diagnosticar situações conducentes à sua
operacionalização;
conceber e redigir os subprojetos;
desenvolver formação técnica;
constituir equipes de subprojetos;
planificar atividades;
desenvolver momentos de reflexão/avaliação.
Paralelamente, foi concebido, planificado e
instalado um Centro de Recursos Educativos
(CRE), dinamizado por uma equipe educativa
local, constituída por elementos que coorde-
nam e dinamizam diferentes subprojetos, trans-
formando-se estes, assim, progressivamente,
em motivos principais de dinamização do pró-
prio CRE.
o trabalho em curso, iniciado em 1998, per-
mitiu incrementar uma dinâmica de formação
e de intervenção que poderemos caracterizar do
seguinte modo:
criação de equipes de trabalho entre pro-
fessores (e outros e atores);
trabalho do habitus profissional - a dimen-
o coletiva/competência coletiva;
autonomização progressiva (da equipe do CRE);
incremento de processos de colaboração/
cooperação;
formação com os pares e com os outros;
articulação da intervenção escolar e extra-
escolar num território;
inserção do/da desenvolvimento/autono-
mia das escolas num processo de desenvol-
vimento local;
ambiente para novos projetos.
Grande parte da contribuição da Esep para
essa dinâmica formativa está relacionada, no
fundo, com o fato de o papel de assessoria da
instituição formadora assentar num compro-
misso institucional em relação à mudança, as-
sumindo-se como reguladora da intervenção
formativa e do trabalho dos formadores/
"interventores".
Bibliografia
DEMAILLY, L. Construire des reseaux coopératits. In: VAN
ZANTEN, A. (Coord.). La scolarisation dans les milieux
"difficiles". Politiques, processus et pratiques. Paris:
INRP, 1997. p. 67-81.
DEMAILLY, L. et al. Será útil a formação contínua de pro-
fessores? Porto:s Editora, 2000.
GARCÍA ALVAREZ, J. La formacion del profesorado: mas allá
de Ia reforma. Madrid: Editorial Escuela Espanola, 1992.
HARGREAVES. A. Os professores em tempos de mudan-
ça. O trabalho e a cultura dos professores na idade pós-
moderna. Lisboa: MacGraw-Hill, 1998.
KHERROUBI, M. De 1'école populaire à Técole difficile: emergence
du niveau 'établissemenf. In: VAN ZANTEN, A. (Coord.). La
scolarisation dans les milieux "difficiles". Politiques, processus
et pratiques. Paris: INRP, 1997. p. 139-58.
Trabalho em grupo no âmbito
da formação ae formadores
Maria Eliana Matos de F. Lima*
Resumo
Introdução
o contexto profissional e a formação de competên-
cias: a análise das situações mostra a banalização
do trabalho em equipe na escola e em outros espa-
ços profissionais.
É a partir da fragilidade da experiência do trabalho
em grupo que se geram razões para focalizarmos e
nos preocuparmos com o trabalho em grupo nos
espaços profissionais, sobretudo o escolar.
Desafio da contemporaneidade em relação ao tra-
balho em equipe.
Desenvolvimento
Desenvolvimento da competência de trabalho em
grupo: níveis de interdependência.
Papel da trocas verbais no processo de comunica-
ção em grupo.
Introdução
A busca da competência de trabalhar em
grupo é uma manifestação freqüente em minha
prática de formação de professores. Este item
de minha prática, contudo, muitas vezes tem-
me deixado em alerta. E sabe por quê?
Ando meio preocupada com a banalidade do
trabalho em equipe na escola e desejando saber
o que bem fazer para torná-lo de qualidade.
Quando penso nisso, logo passa um "filme" em
minha mente. Vejo-me, por exemplo, diante de
uma situação de avaliação bastante descon-
fortável, em que leio, com incerteza, os traba-
lhos realizados por meus alunos "em grupo".o
sei se todos ganharam, igualmente, com as
A co-responsabilidade dos membros do grupo ten-
do em vista os desafios que surgem no horizonte do
trabalho em equipe.
o papel da regulação no desenvolvimento dos níveis
de competências do trabalho em grupo.
o projeto de trabalho realizado em cooperação e o
projeto de cooperação como projeto de trabalho.
Projeto de cooperação: o desafio da construção de
representações comuns no grupo e a preservação
da identidade pessoal e profissional.
A condução não-burocrática do trabalho em grupo.
Conclusão
o entendimento da competência do trabalho em
equipe no seio da cultura, da negociação e da
regulação da aprendizagem.
aprendizagens realizadas e que aprendizagens
interativas conquistaram. É uma incerteza!
Sei, contudo, que há uma cultura escolar de
organização fragmentada da tarefa realizada
pelos participantes do grupo, quando os itens
do trabalho são, mais ou menos, divididos en-
tre os membros do grupo, assim: uns digitam
ou passam a limpo o trabalho, outros realizam
o exercício e um confecciona a capa...
Por conta dessa vulgarização do trabalho em
equipe, de uns tempos para cá resolvi que o
exercício de avaliação seria individual: assim
pelo menos eu saberia o que um aluno tinha
aprendido e poderia ajudá-lo a melhorar a sua
Maria Eliana Matos de Figueiredo Lima é professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Equipe de Forma-
dores da Rede Nacional de Formadores do Programa PCN em Ação da SEF/MEC. em Pernambuco.
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
aprendizagem. No entanto, eu continuava in-
quieta porque sabia que a aprendizagem se faz
em processos de interação.
o aprendizado humano pressupõe uma nature-
za social específica e um processo através do
qual as crianças penetram na vida intelectual
daqueles que as cercam (Vygotsky, 1935: 99).
Convivendo com essa problemática, parti
para reorganizar a minha ação docente num só
momento didático, no qual ensino, aprendiza-
gem e avaliação estavam presentes e articula-
dos no mesmo tempo e no mesmo espaço
interativo da sala de aula.
Ao invés de dar uma tarefa às crianças e medir
quão bem elas fazem ou quão mal elas se saem,
pode-se dar uma tarefa às crianças e observar
quanta ajuda e de que tipo elas necessitam, para
completar a tarefa de maneira bem-sucedida.
Sob esse enfoque, a criançao é avaliada sozi-
nha. Antes, o sistema social do professor e da
criança é avaliado dinamicamente para deter-
minar quanto ele progrediu (Brooks e Brooks,
1997: 97).
Como atuo em várias equipes de uma Rede
Nacional de Formadores do Programa PCN em
Ação, fui, então, fazendo algumas leituras, co-
meçando a refletir sobre algumas idéias a res-
peito do trabalho em equipe e experimentando
alguns dispositivos didáticos em outros espa-
ços de relação, como, por exemplo, com os gru-
pos de coordenadores-gerais e de coordenado-
res de grupo que eu conduzo e com a equipe de
coordenadores da Rede Nacional de Formado-
res do Programa PCN em Ação em Pernambuco.
Uma primeira idéia que me ocorreu foi so-
bre as razões que nos levariam a realizar, de fato,
o trabalho pedagógico da escola em grupo, seja
no âmbito da escola, seja no âmbito da sala de
aula. Vejamos, pois, algumas dessas razões:
Uma turma de lª série do Ensino Funda-
mental do nosso atual sistema educacional
tem aproximadamente 38% de reprovação
anual, no meu estado. Esse cenário deman-
da diversas colaborações em torno desse
problema, que pode ser considerado como
uma violência simbólica praticada pela es-
cola, a ser enfrentada em equipe.
Pensando bem, nós, professores, podería-
mos reinventar nossas práticas a partir de nos-
sas decisões em equipe acerca das aprendiza-
gens realizadas por nossos alunos, do início ao
fim de sua escolaridade.
Uma das mudanças que suscita mais resistên-
cia nesse ofício individualista éo ser mais o
único responsável por um grupo de alunos,
como é o caso na divisão tradicional de tarefas
e de responsabilidades nos estabelecimentos
escolares (Thurler, 2001: 17-21).
Constatamos cada vez mais, entre os pro-
fessores, o sentimento e a presença de me-
canismos a favor da continuidade do proje-
to educativo da escola, de um ano a outro,
como fator indicativo da garantia de apren-
dizagem dos alunos.
Nesse contexto, nasce, pois, entre os
professores, a necessidade de se sentirem
responsáveis pelas decisões coletivas a res-
peito do ensino, da aprendizagem e da ava-
liação praticados na escola, até mesmo de
uma gestão política a outra.
Por fim, a presença dos pais na escola, seja
de forma organizada ou não, solicitando res-
postas sobre seus filhos, suscita também
entre os professores o desejo de participar
e de manter esse diálogo de forma unida e
bem pensada.
Todas essas fortes razões me levam a perce-
ber que trabalhar em equipe torna-se um im-
portante imperativo para os que estão na esco-
la, num trabalho pedagógico, ou para aqueles
que estão se formando para, no futuro próxi-
mo, dela participar. Estes últimos estão nos cur-
sos de formação de professores e nas licencia-
turas das universidades, preparando-se para
participar de atividades pedagógicas que os le-
vem a desenvolver níveis de cooperação bastan-
te complexos, condizentes com as tarefas
exigidas pelas sociedades contemporâneas.
Aprender a viver juntos, aprender a viver com
os outros: sem dúvida, esta aprendizagem repre-
senta, hoje em dia, um dos maiores desafios da
educação (Delors. 1998: 96-98).
Como desenvolver a
competência de trabalhar
em grupo?
Há vários níveis de interdependência da
competência de trabalho em equipe, alguns do
quais citamos.
Um deles pode ser o seguinte: um grupo
pode se juntar para decidir como vai repar-
tir ou dividir, por exemplo, um material es-
colar ou organizar a gravação de um con-
junto de fitas. Em que base o material vai
ser dividido ou organizado? Essa pergunta
sugere várias outras perguntas:
a. de acordo com as necessidades dos mem-
bros da equipe?
b. por projeto dos membros da equipe?
c. por mérito de alguns membros?
d. igualmente para todos?
A conduta escolhida por um grupo pode de-
terminar o tempo de vida de uma equipe, que pode
se dissolver poro alcançar uma divisão equâni-
me, que garanta certa justiça ao seu trabalho.
Um outro nível de competência de traba-
lho em equipe pode se limitar às trocas e
discussões de idéias e às práticas no interi-
or de um grupo, sem que haja o exercício
da decisão. Essa prática, contudo, possibi-
lita o desenvolvimento da competência co-
municativa. Podemos observar as trocas
verbais estabelecidas pelos membros da
equipe para inferir como as articulações
entre as representações vão-se tecendo.
As trocas verbais, porém, exigem eqüi-
dade na tomada de palavra e, portanto, im-
plicam riscos para os membros da equipe.
É preciso, pois, por uma parte, verificar se
o sempre os mesmos participantes que
falam, queo o seu "recado", submetem
um problema ao grupo etc. e se, por outra
parte, há aqueles que sempre escutam e cri-
ticam eo pensam em nada para encami-
nhar, porque dizem queo sabem...
Nesse nível, uma troca verbal pode pre-
judicar a auto-imagem de um membro do
grupo, mesmo queo atinja formalmente
sua autonomia. Mas, na verdade, se todos se
protegerem, as trocas permanecerão vazias.
Num nível mais complexo, uma equipe
pode funcionar como um verdadeiro cole-
tivo, em proveito do qual cada membro re-
nuncia - aliena, voluntariamente, uma par-
te de sua liberdade profissional. O tempo de
vida dessa equipe pode vir a ser curto!
Um outro nível de situação de trabalho em
grupo é revelado num contexto em que a pro-
posição pedagógica exige, por todo um ano
escolar, uma divisão flexível do trabalho, ne-
gociação e acordo, por exemplo, sobre os
programas das disciplinas, as atividades es-
colares e a avaliação adotada. Aqui, a co-res-
ponsabilidade dos professores pelos mesmos
alunos exige um nível mais complexo da
competência de trabalho em equipe.
Comentando a
interdependência dos níveis
da competência de trabalho
em equipe
Em todos os níveis do desenvolvimento da
competência do trabalho em equipe, é preciso
que cada membro encontre seu espaço nas re-
lações interativas, proteja sua parcela de fanta-
sia e até mesmo as suas neuroses... enfim, ga-
ranta a construção de sua autonomia e, por con-
seguinte, a sua identidade pessoal e profissio-
nal. É possível também que os grupos vivenciem
esses diferentes níveis nas mais surpreenden-
tes situações profissionais e de vida.
Sabemos que, mesmo em se tratando de
uma equipe com propósitos democráticos, al-
guns membros do grupo exercem mais influên-
cia sobre a decisão dos outros e os membros
minoritários acabam por aderir às decisões des-
tes. Além disso, podem também estar sendo
geradas na equipe situações em que outros
membros sintam estar aderindo à "lei do gru-
po" ou à de seu líder.
Nesses e em outros casos, é preciso sempre
ficar atento, vigilante mesmo, para que funcio-
ne a regulação das interações entre os membros
do grupo, que vai permitir a estes emitir impres-
sões, comunicar o mal-estar e propor um equi-
líbrio melhor entre si. Do contrário, a equipe
terá dois caminhos: dissolver-se ou fazer um
simulacro de ajudas mútuas.
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
Trabalhar em equipe é uma questão de compe-
tência e pressupõe a convicção de que a coope-
ração é um projeto profissional a ser desenvolvi-
do nas situações vividas nas interações internas
das equipes que atuam na escola e nas interações
internas das diversas equipes de alunos organi-
zadas em sala de aula (Thurler, 2001: 17-21).
Adotando a cooperação como
projeto de vida e de trabalho
A adesão ao princípio do trabalho em equi-
pe permite-nos descobrir que nem sempre con-
seguimos atuar de modo cooperativo ou que,
vez por outra, agimos cooperativamente nas si-
tuações que vivenciamos. Em outras palavras,
descobrimos que trabalhar em equipe é tam-
bém, paradoxalmente,o trabalhar em equi-
pe quandoo valer a pena. E quando será que
o vale a pena atuar em equipe?
Pode-se definir uma equipe como um gru-
po reunido em torno de um projeto comum,
cuja realização passa por diversas formas de
acordo e de cooperação.
Os projetosoo diversos quanto as situa-
ções e as ações do trabalho pedagógico. Nesse
horizonte, podemos distinguir dois tipos de
projetos de cooperação:
Projetos que se organizam em torno de uma
atividade pedagógica específica na escola
ou num grupo de formadores. Exemplo: a
organização de um seminário sobre educa-
ção. Nesse tipo de projeto, a cooperação é,
então, o meio para realizar o evento, pois
ninguém tem a experiência ou o desejo de
fazê-lo sozinho. Nesse caso, a cooperação
encerra-se no momento em que o projeto é
concluído.
Há projetos cujo desafio é a própria coo-
peração eom prazos fixos para termi-
nar, já que o seu objetivo é instalar uma
cultura ou uma forma de "atividade profis-
sional interativa" (Thurler, 1996, apud
Perrenoud, 2002: 83) entre os membros do
grupo. Neste caso, a cooperação é mais um
modo de vida e de trabalho do que uma
ação eventual.
Podemos, efetivamente, vivenciar esses dois
tipos de projeto. Em ambos, participamos de
uma cultura de projeto em que todos desejam
e sabem elaborá-lo de forma coletiva e negocia-
da. Todavia, o segundo tipo de projeto requer o
desenvolvimento da cooperação em um nível
mais complexo.
Articular representações
dos membros do grupo
Saber que a cooperação é o que os partici-
pantes de um grupo querem fazer juntos é con-
dição importante para iniciar o desenvolvimen-
to dessa competência. Articular as idéias e as
representações acerca da vida de seus membros
é o grande desafio do grupo. Para isso, é neces-
sário ouvir as propostas de todos, descobrir os
desejos menos confessos dos parceiros e bus-
car acordos mútuos.
Essa competência, como se pode ver, ultra-
passa a competência comunicativa entre os
membros do grupo. Ela supõe uma certa com-
preensão do funcionamento das pessoas no
grupo e das diversas fases do ciclo de vida de
um projeto, sobretudo o seu início, que muitas
vezes é cheio de incertezas. Enfim, para iniciar
o desenvolvimento dessa competência numa
equipe, é preciso haver no grupo uma relação
transparente e um certo equilíbrio para com-
preender os desejos de uns e de outros.
Falar, vez por outra, do medo da perda da auto-
nomia, da proteção de territórios pessoais, de
assumir podêres ou de se submeter aos podêres
dos outros é uma condição importante para tra-
balho de cooperação (Perrenoud, 2000: 84).
Adotando o desafio de dirigir
um grupo de trabalho
É importante que todos os membros de um
grupo sejam coletivamente responsáveis pelo
seu funcionamento, de modo que cada um exer-
ça, pessoalmente, uma parte do comando e de
sua condução. Isso supõe, então, que todos os
participantes:
sigam os horários e as pautas de reunião;
desejem tomar decisões claras;
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
Metodologia de formação
de professores enfocando
trabalho de grupo
Ana Claudia Rocha
Centro de Estudos da Escola da Vila/SP
Resumo
A atividade a ser relatada neste simpósio
pela palestrante pretende enfocar as ações de
capacitação do Programa Praticar- Programa de
Formação e Atualização Profissional Permanen-
te -, realizadas pelo Centro de Estudos da Esco-
la da Vila em várias redes públicas de ensino,
tematizando as suas estratégias em favor do tra-
balho coletivo: a socialização da visita à escola,
as reuniões de grupo, o registro individual que
é veiculado coletivamente, a exposição de resul-
tados de sucesso da própria rede na situação de
simpósio interno.
o trabalho de grupo é momento de cons-
trução de significados compartilhados para
qualquer comunidade que deseja constituir
uma ação parceira entre seus membros. Po-
rém, nesses casos que o Programa Praticar
acompanhou, é uma forma de valorizar a
produção do professor diante de sua própria
realidade, por vezes pouco favorável, e de
comunicar que a intervenção docente inten-
cional e refletida pode ser, de fato, cons-
truída pelos professores do sistema público
de ensino.
SIMPÓSIO 5
TRANSVERSALIDADE
E INTERDISCIPLINARIDADE
DIFICULDADES, AVANÇOS
E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson
Transversalidade e
interdisciplinaridade: organizando
formas de conhecimento para o aluno
Ralph Levinson
Instituto de Educação - Universidade de Londres/Inglaterra
Resumo
Os conceitos de transversalidade e de inter-
disciplinaridadeo discutidos identificando-se
as diferenças teóricas entre transferência e
cognição situada. O progresso social e tecnológico
impulsiona a necessidade de uma forma de cola-
boração mais bem coordenada entre professores. O presente documento apresenta uma solução,
com base no apoio às habilidades argumentativas
do aluno e às necessidades de desenvolvimento
profissional afins.
Introdução
o termo transversalidade implica uma
transferência de conceitos, habilidades, atitu-
des ou atributos de um domínio ou contexto
para outro., portanto, um elemento de ge-
neralização associado a essa transferência. As-
sim, o que se aprende em uma área do currícu-
lo poderia ser aplicado ou utilizado em outra
área. Por exemplo, um aluno que tenha adqui-
rido o domínio de habilidades gráficas na es-
cola deve necessariamente ser capaz de trans-
ferir essas habilidades para a manipulação de
dados científicos, para a programação de ins-
trumentos analíticos ou para a interpretação de
dados geográficos sobre populações humanas.
Contudo, a experiência e a prática mostram-
nos que essa simples transferência de uma ha-
bilidade processualo é direta. Certa feita, os
gerentes de uma grande indústria química co-
mentaram comigo, em tom de reclamação, que
alguns de seus funcionários com curso superi-
or e diploma de graduação ou pós-graduação
em Química Analíticao conseguiam realizar
análises simples exigidas pela empresa. Esses
funcionários precisaram passar por um novo
treinamento. O emprego de conhecimentos e
de habilidades em um ambiente acadêmico
o envolve a resposta às necessidades do cli-
ente, a improvisação e as tomadas de decisão
exigidas em um cenário industrial. Entretanto,
se nenhum conceito ou habilidade fosse passí-
vel de generalização, todo o valor do processo
educacional seria questionável.
A interdisciplinaridade está associada à
transversalidade, se considerarmos que profes-
sores de diferentes disciplinas podem trabalhar
em conjunto para tornar viável a aprendizagem
de um conceito ou de uma habilidade, ou para
desenvolver uma atitude, um atributo ou uma
disposição específica. O fato de haver pelo
menos um entendimento comum entre profes-
sores sugere a possibilidade de generalização.
No Reino Unido, certamente, há poucas evi-
dências empíricas que permitam julgar o su-
cesso de grupos interdisciplinares na promo-
ção da aprendizagem na faixa etária de 11 a 18
anos. Uma vez que o ensino de conhecimentos
e de habilidades transferíveis seria de grande
valor material para quem aprende e que os pro-
fessores estariam trabalhando em conjunto
para trazer sua ampla gama de experiências,
entendimentos e habilidades para a sala de
aula, como poderia haver qualquer obstáculo
no caminho de objetivoso valiosos?
Transferência ou cognição
situada?
Grande parte do trabalho sobre a transfe-
rência de habilidades e de conceitos está asso-
ciada à teoria dos estágios de Piaget. Piaget des-
creveu competências e habilidades em estágios
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
específicos do desenvolvimento cognitivo, pe-
dindo a algumas crianças que operacio-
nalizassem tarefas do tipo conservação, por ele
consideradas como habilidades abstratas e
generalizáveis. Sem abalar a base teórica do tra-
balho de Piaget, outros teóricos posteriormen-
te demonstraram que, modificando-se o con-
texto da tarefa por meio do emprego, por exem-
plo, de figuras mais conhecidas ou da não-uti-
lização de um adulto para fazer as perguntas,
um número bem maior de crianças tinha con-
dições de realizar essas tarefas abstratas com
mais sucesso do que se pensava anteriormen-
te. As tarefas começaram a fazer "sentido hu-
mano", em vez de ser vistas como remotas ou
difíceis (Donaldson, 1978). Donaldson encara-
va os crescentes progressos intelectuais que
acompanham o desenvolvimento das crianças
como um desencravar progressivo de competên-
cias lógicas latentes. Em outras palavras, as cri-
anças aprimoram seu pensamento abstrato.
Os construtivistas sociais foram ainda mais
longe ao questionar a realidade de um "concei-
to abstrato", sugerindo que as habilidades inte-
lectuaisoo descontextualizadas mas, sim,
culturalmente emolduradas e "re-contextuali-
zadas" (Walkerdine, 1988; Solomon, 1989). As-
sim, 2 + 2oo 4 se a operação for realizada
em uma máquina fotocopiadora (22 cópias se-
o produzidas), ou apertando o botão "2" se-
guidamente, em um elevador (você continuará
no 2- andar).
o contexto de aprendizagem e o meio cul-
tural constituem fator crucial na competência
de tarefas, conforme indicam pesquisas no
campo do construtivismo social. Os estudos
clássicos de Carraher et al. (1991) sobre crian-
ças de rua no Recife demonstraram que essas
crianças eram bem mais competentes para so-
lucionar problemas matemáticos em situações
de comércio do que para resolver problemas
formais com lápis e papel. Entretanto, esses es-
tudos mostram que a aritmética praticada na
escola é mais eficiente na forma pela qual os
cálculoso efetuados. Concluem dizendo que
as escolas devem introduzir sistemas formais de
matemática em contextos diários de "sentido
humano". Um estudo sobre adultos solucionan-
do problemas de coeficiente isomórfico em si-
tuações autênticas de compras demonstrou que
essas mesmas pessoaso conseguiam solucio-
nar problemas semelhantes em um cenário
mais formal (Lave, 1988). Ao fornecer explica-
ções, em diferentes contextos, para fenômenos
baseados em princípios científicos semelhan-
tes, crianças na faixa etária de 12 a 16 anoso
conseguiram apresentar explicações consisten-
tes (Clough e Driver, 1986). Alunos de 12 e 13
anoso foram capazes de aplicar os conceitos
e as habilidades aprendidos em Ciências a um
projeto afim na área de Tecnologia, exceto da
forma mais rotineira e algorítmica (Levinson,
Murphy et al., 1997). Os alunos com um bom
conhecimento e entendimento dos conceitos
científicos ficaram confusos ao empregar os
conceitos em Tecnologia. Alunos nessa faixa
etária aprendem, por exemplo, que a águao
conduz eletricidade. Entretanto, ao construir
um sensor de umidade, os alunos aprendem
que a água fornece uma ponte de condutividade
entre os fios na base do sensor. Assim, para eles,
os conceitos ensinados em Ciência e em Tecno-
logia eram aparentemente contraditórios entre
si. Ao descrever a relação entre o conhecimen-
to científico e o conhecimento para a ação prá-
tica, Layton utilizou um modelo que "envolve a
desconstrução e a reconstrução do conheci-
mento científico adquirido, a fim de que se al-
cance sua articulação com a ação prática em
tarefas tecnológicas" (Layton, 1993).
Outros argumentam que algumas funções
cognitivaso generalizáveis. A aprendizagem
de princípios lógicos, por exemplo, é tida como
necessária, emborao ofereça condições su-
ficientes para o pensamento crítico (Ikuenobe,
2001). O projeto Aceleração Cognitiva por meio
de Educação Científica (Cognitive Acceleration
through Science Education - CASE) vem de-
monstrando que, para alunos na faixa etária de
12 a 13 anos, as intervenções do pensamento
lógico nas aulas de Ciências produziram um
aumento das notas de crianças em grupos de
controle, quando estas fizeram seus exames
nacionais dois anos após a intervenção. Como
o aumento das notas ocorreuo apenas em
Matemática e em Ciências, mas também em
Inglês, considera-se que as habilidades adqui-
ridas parecem ser transferíveis (Shayer, 1996).
Nem os educadores responsáveis pela introdu-
ção do CASE nem outros educadores apresen-
taram, até o momento, uma estrutura teórica
capaz de explicar essas constatações. Entretan-
to, a teoria da motivação, ela própria associada
ao contexto, tem sido empregada para explicar
as diferenças, em termos de sucesso, entre
aqueles alunos que apresentaram melhor de-
sempenho como resultado do CASE e aqueles
para os quais o projetoo fez nenhuma dife-
rença (Leo e Galloway, 1996). Outros sugerem
que a associação estratégica entre o conheci-
mento do processo científico e o conhecimen-
to conceituai produzirá resultados semelhantes
àqueles alcançados pelo CASE (Jones e Gott,
1998). Os dois postulados teóricos - transferên-
cia cognitiva ou re-localização/re-contextuali-
zação de conhecimento - constituem os
paradigmas predominantes e opostos na pes-
quisa educacional sobre esse fenômeno.
Interdisciplinaridade
A identificação de disciplinas sugere que há
alguma distinção entre a gama de conceitos e
habilidades incluídos em cada disciplina e uma
"divisão fundamental de categorias" (Hirst e
Peters, 1970). Estes autores identificam sete áre-
as ou "formas de conhecimento" assim diferen-
ciadas, tais como Lógica Formal e Matemática,
Ciências Físicas e Estética. Embora essas formas
de conhecimento sejam consideradas indepen-
dentes entre si, isso impede que haja inter-re-
lações. Fatos empiricamente comprovados, por
exemplo, podem ser utilizados para justificar
um princípio moral. Issoo significa que a
melhor maneira de organizar um currículo seja
ensinar essas áreas de conhecimento separada-
mente, exatamente porque há inter-relações
entre elas.
Uma crítica a essa abordagem feita pela
Nova Sociologia diz queo há nada de funda-
mental sobre a distinção entre áreas de conhe-
cimento. A pergunta, tratada a partir de uma
abordagem do currículo como conhecimento
socialmente organizado (Bernstein, 1973), é:
por que motivo algumas matérias curriculares
m mais valor e prestígio que outras e por quais
mecanismos algumas matérias se isolam de
outras? Na Inglaterra, por exemplo, a Física é
vista como a ciência que corrobora todas as
demais áreas científicas. A área de Ciências ge-
ralmente é ensinada separadamente no currí-
culo, enquanto entre as matérias de Humani-
dades há um certo grau de fusão. A autoridade
em Ciências, emanada de órgãos de prestígio
tais como a Sociedade Real, tem um status so-
cial pelo qual ela é gradualmente difundida para
as escolas, maso deve ser contaminada por
outras matérias. Quanto mais passíveis de ser
atravessadas forem as fronteiras de uma maté-
ria, menor será seu prestígio.
A despeito do status da Ciência como ma-
téria de prestígio e de seu isolamento em rela-
ção a outras áreas do currículo, há uma neces-
sidade real de que algumas questões sejam
abordadas. Os progressos mais recentes nas áre-
as de Biomedicina e Biotecnologia indicam a
necessidade de que futuros cidadãos tenham
um entendimento básico, no nível pessoal e
público, das controvérsias decorrentes dessas
novas tecnologias e das ciências que as corro-
boram. Entender as implicações de um progra-
ma de controle genético, por exemplo, e a pos-
sibilidade de ser portador de uma condição ge-
nética hereditária é algo que diz respeitoo
apenas ao indivíduo, mas também à sua famí-
lia e à sociedade. Qualquer tomada de decisão
num caso desses provavelmente envolverá a
moralidade privada dos indivíduos envolvidos,
seus contextos socioeconômicos específicos,
seus relacionamentos pessoais e sociais e sua
bagagem cultural. Os debates atuais sobre
clonagem humana e alimentos geneticamente
modificados indicam que as decisões políticas
para sua aprovaçãoo sensíveis à opinião-
blica. A disseminação de informações resultan-
tes de testes genéticos traz importantes impli-
cações para a área de direitos humanos. A for-
mulação de políticas públicas e a criação de
condições para a responsabilização democrá-
tica dessas questões pressupõem cidadãos que
tenham algum controle sobre a ciência a elas
subjacente e uma conscientização da base de
valores envolvidas nessas questões. Os jovens
que abraçam profissões nas áreas médica, do
serviço social e do ensino precisarão de uma
bagagem apropriada que lhes permita lidar com
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
as muitas questões éticas, sociais e legais que
devem surgir. Se os alunos, como futuros cida-
dãos, precisam lidar com essas questões con-
temporâneas, como e onde elas devem ser en-
sinadas pelas escolas?
Descobertas empíricas
Um projeto de pesquisa recente (Levinson
e Turner, 2001) estudou as formas pelas quais
assuntos queo alvo de controvérsia científi-
ca foram ensinados no currículo. Após um le-
vantamento quantitativo em larga escala nas
escolas da Inglaterra e do País de Gales, entre-
vistas direcionadas sobre o ensino de questões
científicas polêmicas foram realizadas com pro-
fessores individualmente e com grupos de pro-
fessores de diferentes matérias, essencialmen-
te de Ciências, Inglês e Humanidades. Uma-
rie de diferenças importantes surgiu:
Os professores de Inglês e de Humanidades
ensinavam temas queo objeto de contro-
vérsia científica a seus alunos pelo menos
com a mesma freqüência com que o faziam
os professores de Ciências.
Os professores de Humanidades e de Inglês
sentiam-se muito mais confiantes debaten-
do e discutindo questões científicas polêmi-
cas do que os professores de Ciências e em-
pregavam uma gama bem mais ampla de
estratégias ao fazê-lo.
A maioria dos professores de Ciências en-
trevistados considerou o ensino de Ciências
neutro em termos de valor; a maioria dos
professores de Humanidades e de Inglês
concordou com essa avaliação, mas atribuiu
alto valor a sua própria abordagem.
Os professores de Ciências mostraram-se pre-
ocupados com o fato de que a abordagem de
questões controversas em outras matérias que
o Ciências, como, por exemplo, a clonagem
de seres humanos adultos, pudesse levar o
aluno a assimilar informações incorretas.
Apenas uma das vinte escolas visitadas abor-
dava formalmente o ensino de questões ci-
entíficas polêmicas de forma interdisciplinar.
o havia técnicas de avaliação satisfatórias
para o entendimento de controvérsias cien-
tíficas. Essas avaliações eram muito abran-
gentes eo abordavam nenhum entendi-
mento substantivo da Ciência associado à
questão, ou apenas abordavam os fatos e
o os valores a eles associados.
As citações a seguir exemplificam as diferen-
tes abordagens adotadas por professores de Ci-
ências e de Inglês.
Quando falamos da ética de qualquer coisa,
damos uma opinião em vez de apresentar algo
baseado em fatos. Quando você emite uma opi-
nião, expressa discordância. Então, toda a maté-
ria será tratada da mesma forma que sua opi-
nião, sobre a qual há discordâncias pessoais.
Assim, o que você apresenta com base em fatos
acaba sendo tratado da mesma forma (professor
de Ciências, Escola A).
[...] essas aulas (sobre controvérsias cientí-
ficas)o geralmente as melhores. E isso por-
que as crianças ficam absolutamente elétricas,
vivas, e isso realmente as motiva. E você precisa
gerenciar o debate, o que em uma sala de 20-30
alunos requer algum esforço. Maso ossos do
ofício. Você então precisa dirigir o debate, por-
que você tem a amplitude de entendimento de
toda a questão (professor de Inglês, Escola J).
Essas observações foram profundamente
representativas das diferenças entre professo-
res de Inglês e de Ciências: os professores de
Inglês e de Humanidades apreciavam mais o
debate e o gerenciamento da sala de aula, en-
quanto os professores de Ciências mostravam-
se cautelosos em relação a fatos e opiniões con-
fusas. Questões sociais e éticas corriam o risco
de ser negligenciadas porqueo foram subs-
tancialmente avaliadas. Os professores de Inglês
lidam com a controvérsia todo o tempo, e avan-
ços como o Projeto Genoma Humano e a
clonagem forneceram material para suas dis-
cussões.
Os professores de Ciências, Inglês e Huma-
nidades poderão possuir conhecimento e habi-
lidades complementares: os professores de Ci-
ências possuem um conhecimento e um enten-
dimento mais completo do potencial e das pos-
sibilidades da área de Ciência e Tecnologia, en-
quanto os professores de Humanidades podem
conectar esse conhecimento da Ciência ao con-
texto social e de valores. Mas essas conexões
raramente acontecem, como explicou uma
vice-diretora:
Em uma escola como a nossa, com departa-
mentos rígidos, departamentos independentes,
com suas próprias matérias, às vezes é difícil
encontrar lugar para coisas queo constam do
currículo... e muitas dessas questões prestam-
se a abordagens curriculares cruzadas,o é
verdade? (vice-diretora, Escola E).
Desse modo, um importante obstáculo à
integração é a compartimentalização, em razão
da forma como o currículo está organizado na
Inglaterra e no País de Gales, com os alunos sen-
do submetidos a exames em diferentes maté-
rias., portanto, pouca motivação para que a
integração ocorra.
Uma forma de colaboração e de coordena-
ção curricular que parece promissora e estava
sendo desenvolvida por uma das escolas duran-
te nossa pesquisa é o modelo intitulado "Dia do
Colapso", que apresenta as seguintes caracterís-
ticas:
grupo de aprendizagem fora do calendário
curricular;
planejamento entre professores de diferen-
tes matérias, particularmente de Inglês,
Educação Religiosa e Ciências;
um modelo integrado de ensino;
avaliação por meio de uma matéria espe-
cífica;
participação igualitária de todos os par-
ceiros da aprendizagem na tomada de de-
cisões.
Esses pontos dispensam maiores explica-
ções. Como as matérias curriculares nacionais
o rigidamente controladas para fins de cum-
primento do calendário escolar, a forma mais
apropriada para reunir grupos de professores é
a ruptura do calendário regular. O calendário
formal é suspenso por um período de tempo -
geralmente um dia - a fim de que professores
de diferentes matérias possam ensinar seus gru-
pos de alunos em conjunto. Para tanto, os pro-
fessores devem planejar o trabalho coletiva-
mente, geralmente fora do horário escolar. Mas
a avaliação é uma questão crucial: tanto pro-
fessores quanto alunos levarão uma matéria
mais a sério se esta for formalmente avaliada e
se tiver um status elevado no currículo. A apren-
dizagem do Dia do Colapso, portanto, é avalia-
da por meio de uma dessas matérias de prestí-
gio elevado. Na escola que adotou esse esque-
ma, a avaliação foi feita por meio da Educação
Religiosa, emborao haja razão para que ava-
liaçãoo possa ser feita por meio de Ciências,
Inglês ou de qualquer outra matéria. Finalmen-
te, professores de diferentes matérias devem ser
parceiros iguais ao decidir o que deve ser ensi-
nado no curso e como o ensino deve ocorrer.
Isso pode ser mais difícil do que se espera - a
pesquisa sugere que os professores de Educa-
ção Religiosa achavam que deveriam ter maior
controle sobre o material, uma vez que as ava-
liações seriam feitas por meio da matéria que
lecionam.
A formação de equipes interdisciplinares,
portanto, pode trazer benefícios substanciais
para a aprendizagem, assim como pode tam-
m produzir um clima escolar positivo, maior
satisfação com o trabalho entre professores e
pontuações de desempenho mais altas do que
as escolas não-interdisciplinares (Flowers,
Mertens et al., 1999).
Mais pesquisaso necessárias para que se
possa avaliar a eficácia de abordagens interdis-
ciplinares, mas a disposição de professores de
atravessar as fronteiras tradicionais das disci-
plinas, além do apoio político - inclusive uma
maior valorização das oportunidades de avali-
ação em um trabalho de natureza interdiscipli-
nar -o precondições para que esse esquema
funcione. Uma abordagem interdisciplinar tam-
m oferece oportunidade para que conheci-
mento e habilidades sejam re-contextualizados
de forma mais efetiva.
Implicações
o desafio identificado no presente artigo é
como ensinar os aspectos sociais e éticos da
Ciência em áreas aparentemente distintas. A
Ciência é vista como a tentativa de descrever e
entender a natureza, enquanto os procedimen-
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
tos éticos operam com base em regras que aju-
dam a distinguir aquilo que deve ser daquilo
queo deve ser. Entretanto, embora a evidên-
cia empírica da Ciência possa nos ajudar a to-
mar decisões éticas, conforme dito anterior-
mente, há procedimentos comuns de pensa-
mento tanto no ensino da Ciência quanto no
ensino da Ética e da Moral. Os argumentos ci-
entíficos dominam o cenário politico, quer lo-
cal ou globalmente, pessoal ou publicamente,
em assuntos como tecnologia genética, preser-
vação de florestas tropicais, mudanças climáti-
cas e saúde mundial. Um grupo de cidadãos em
desenvolvimento deve entender a natureza do
argumento nos diferentes contextos, seja cien-
tífico, seja ético. No argumento científico, isso
significa a justificativa de uma demanda decor-
rente dos dados (Osborne, Erduran et al., 2001).
Um argumento ético pressupõe uma formu-
lação lógica do problema ético, e um argumen-
to lógico tem uma conclusão corroborada por
uma declaração de apoio (Beardsley, 1975). No
quadro acima, duas evidências - uma científi-
ca e outra sociológica -o empregadas, em-
bora a declaração de apoio e a conclusão pos-
sam ser contestadas. Há paralelos para a loca-
lização das estruturas de argumentos científi-
cos e éticos, mas também em outras áreas tais
como História, Matemática e Estética.
o papel do professor é explicitar os elos en-
tre os argumentos. Todos os estágios, nesses
tipos de argumentos indutivos, estão abertos
a questionamento e, empregando-se as estra-
tégias didáticas adequadas, geram uma abor-
dagem liderada pela pesquisa. Cursos de de-
senvolvimento profissional podem apoiar os
professores na identificação dos compo-
nentes de um argumento, na avaliação da
validade das conclusões e na identificação
de falácias. Acima de tudo, os professores
deveriam ser capazes de ensaiar esses ar-
gumentos para si próprios. Se por um lado
há componentes comuns em diferentes
áreas, por outro, as formas como os argu-
mentoso abordados seriam exclusivas do
contexto de cada argumento.
No exemplo do quadro acima podemos
ver de que forma um professor de Ciências
e um professor de Humanidades podem
apoiar uma discussão ética no que se refe-
re à escolha do sexo de uma criança. Am-
bos os professores teriam experiência nos
limites e na confiabilidade da evidência.
Idealmente, essa aula deveria envolver-
rios professores na sala de aula com os alu-
nos, mas, com um planejamento inter-
disciplinar suficiente,o há motivos para
que elao possa funcionar com professores
com a mesma turma em aulas diferentes. Os
alunos adquirirão experiência para julgar
questões polêmicas porque estarão exploran-
do o mesmo argumento em diferentes con-
textos, assim aprendendo os limites da gene-
ralização da tomada de decisão. Novas pes-
quisas empíricas devem ser realizadas sobre
essa estrutura interdisciplinar e seu impacto
na capacidade racional dos alunos para tomar
decisões.
Bibliografia
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SIMPÓSIO 6
o LIVRO DIDÁTICO E A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ângela Paiva Dionísio
Kazumi Munakata
Márcia de Paula Gregório Razzini
livros didáticos de Português
formam professores?
Ângela Paiva Dionísio
Universidade Federal de Pernambuco
Introdução
A parceria livro didático-professor atraves-
sa um momento de encontros e desencontros,
uma vez que ambos estão em fase de transição,
buscando uma identidade que revele as trans-
formações teóricas e políticas ocorridas no pa-
norama nacional. O Programa Nacional do Li-
vro Didático, os Parâmetros Curriculares Nacio-
nais, o PNLD em Ação e os diversos sistemas de
avaliação implantados recentementeo algu-
mas dessas mudanças políticas.
No âmbito dos estudos sobre a linguagem, a
análise meramente estrutural cede espaço para
a análise da língua em contextos de usos natu-
rais e reais, postura já consolidada nos PCN, que
refletem as teorias lingüísticas mais recentes.
Numa reação em cadeia, os manuais didáticos
transitam pelas teorias lingüísticas, tentando
atender aos critérios estabelecidos pelo PNLD e
às diretrizes dos PCN. Uma breve análise pano-
râmica do sistema educacional brasileiro, volta-
da para o Ensino Fundamental e Médio, revela
que o desencontro entre professor e livro didáti-
coo é um traço apenas do sistema educacio-
nal atual. Os artigos de Magda Soares "Que pro-
fessores de Português queremos formar?" (2001a)
e "o livro didático como fonte para a história da
leitura e da formação do professor-leitor" (2001b)
guiaram-me nesse breve percurso.
Até a década de 1940, o ensino de Língua
Portuguesa consistia na gramática da língua e
na análise de textos de autores consagrados.
Soares (2001a: 151-52) lembra que as instâncias
de formação de professor só surgiram na déca-
da de 1930; portanto os professores
[...] eram estudiosos autodidatas da língua e de
sua literatura, com sólida formação humanística,
que, a par de suas atividades profissionais (mé-
dicos, advogados, engenheiros e outros profissio-
nais liberais) e do exercício de cargos públicos que
quase sempre detinham, dedicavam-se também
ao ensino 1...1. O professor da disciplina Portu-
guês era aquele que conhecia bem a gramática e
a literatura da língua, a retórica e a poética, aque-
le a quem bastava, por isso, que o manual didáti-
co lhe fornecesse o texto (a exposição gramatical
ou os excertos literários), cabendo a ele - e a ele
só - comentá-lo, discuti-lo, analisá-lo e propor
questões e exercícios aos alunos.
Na década de 1950, as gramáticas e antolo-
giaso substituídas por um único livro que apre-
sentava conhecimentos gramaticais, textos para
leitura, exercícios. Afirma Soares (2001a: 153):
Assim jáo se remete ao professor, como anterior-
mente, a responsabilidade e a tarefa de formular
exercícios e propor questões: o autor do livro didá-
tico assume ele mesmo essa responsabilidade e
essa tarefa, que os próprios professores passam a
esperar dele, o que surpreende, se se recordar que
já então os professores tinham passado a ser pro-
fissionais formados em cursos específicos.
Neves (2000: 1) assevera que "a questão da
formação do professor de Ensino Fundamental e
Médio nos cursos de Letras está longe de ter en-
contrado uma fixação de caminhos minimamente
satisfatória". Ao discutir o desempenho dos cur-
sos de Letras na formação do professor, a referi-
da autora questiona se "os alunos sabem, mini-
mamente, o que fazer com a lingüística no ensi-
no da língua", uma vez que a separação em Lin-
güística e Língua Portuguesa se evidencia dentro
dos próprios cursos de Letras. Recai, pois, sobre
os cursos de formação de professores e especifi-
camente sobre o curso de Letras a responsabili-
dade de tratar o ensino de Lingüística de forma
que os graduandos possam perceber como sele-
cionar e como orientar os conteúdos de lingua-
gem para o Ensino Fundamental e Médio.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
Esta é uma necessidade cada vez mais urgen-
te na formação do professor, pois os Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
simbolizam a aplicação direta das teorias lingüís-
ticas no ensino de língua materna. Também
Marcuschi (2000: 10) alerta para a importância
de o professor saber o que deverá fazer com as
orientações dadas pelos PCN em suas aulas:
Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais
orientações tratadas pelos usuários em suas sa-
las de aula; seria nefasto se as indicações ali fei-
tas fossem tomadas como normas ou pílulas de
uso e efeito indiscutíveis. Pior ainda, se com isso
se pretendesse identificar conteúdos unificados
para todo o território nacional, ignorando a he-
terogeneidade lingüística e a variação social.
Mais uma vez, recorro aos questionamen-
tos de Neves (2000: 4) para ilustrar um tópico
recorrente nas preocupações do professor de
Português - o ensino de gramática: "o profes-
sor de Português recebe na universidade uma
formação que lhe permita compreender - com
todas as suas conseqüências - o que é língua
em funcionamento e, a partir daí, que lhe per-
mita saber o que é ensinar a língua materna
para os alunos que lheo entregues?"
Outro fato que contribui para esse des-
compasso consiste na não-aplicação (ou na pre-
cária aplicação) das correntes lingüísticas con-
temporâneas, como a Lingüística Textual, a
Análise do Discurso, a Sociolingüística, nos cur-
rículos de formação de professores. Faz-se, no
entanto, necessário ressaltar que, por serem
estudos recentes, ainda carecem muitos deles
de propostas de aplicação ao ensino de língua
materna (Soares, 2001b).
Nesse momento, retomando o tema deste
Simpósio - a relação livro didático e formação
de professor-, pergunto-me: é também função
do livro didático formar professores? Numa res-
posta bastante simplificada, diria queo e
acrescentaria que é função dos cursos de for-
mação de professores preparar seus alunos, fu-
turos professores, para elaborar o material di-
dático a ser utilizado em suas aulas. No entan-
to, sei que essa respostao se encontra ainda
(eo sei se isso ocorrerá um dia) dentro do
campo das possibilidades concretas de realiza-
ção de um percurso pedagógico real no contex-
to sociopolítico brasileiro.
Responder que sim, que o livro didático
tem também a função de formar professor, se-
ria reconhecer que ainda estamos com oss
na década de 1950, uma vez que caberiam ao
autor do livro didático a seleção e a prepara-
ção dos conteúdos a serem ministrados. Porém
o posso deixar de reconhecer que os manu-
ais didáticos exercem funções de formação de
professor. Gérard e Roegiers (1998: 89, apud E.
Marcuschi, 2001: 141) asseguram que os ma-
nuais escolaresm o objetivo "de contribuí-
rem com instrumentos que permitam aos pro-
fessores um melhor desempenho do seu papel
profissional no processo de ensino-aprendiza-
gem". Dentre os recursos empregados pelos au-
tores de livros didáticos que podem contribuir
para a formação dos professores, destaco:
Indicação de referências
bibliográficas comentadas
(1) Miranda et al, v.1-4, p. XXIX:
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gos-
tosuras e bobices. 4. ed.o Paulo: Scipione,
1994.
A partir da apresentação dos diversos tipos de
textos de literatura infantil, a autora leva a uma
reflexão sobre a relação texto/leitor. Aponta a
importância de se partilhar experiências de lei-
tura, enfatizando a necessidade de um espaço
de "leitura-prazer" na sala de aula. [...]
Listagem de sites
(2) Soares, v. 1-4, p. 29:
Ciber-espacinho de Ângela Lago.
Livro de histórias infantis eletrônico, com ilus-
trações que se movimentam nas páginas.
<http://www.ez-bh.com.br/-angelago>
Doce de Letra.
Revista de literatura infanto-juvenil. Apresen-
ta sites de diversos autores.
<http://www.docedeletra.com.br>
(acessado em setembro de 2002)
Indicação de revistas para alunos e
professores
(3) Soares, v. 1-4, p. 29:
REVISTAS PARA o ALUNO
Ciência Hoje cias Crianças. Revista de divulgação
científica para crianças. Rio de Janeiro: Socieda-
de Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Galileu. Rio de Janeiro. Globo. [...]
PARA o PROFESSOR
Amae Educando. Belo Horizonte: Fundação
Amae para Educação e Cultura.
Nova Escola.o Paulo: Abril Cultural. [...]
Indicação de livros, vídeos, músicas
relacionados ao tema da unidade em
estudo:
(4) Cereja e Magalhães, v. 3, p. 15:
FIQUE LIGADO! PESQUISE!
Para você saber mais sobre a década de 1930 e
a prosa da segunda fase do Modernismo bra-
sileiro, sugerimos:
VÍDEOS
Revolução de 30, de Sylvio Back; São Bernardo,
de Leon Hirschman; Vidas secas e Memórias do
cárcere, de Nelson Pereira dos Santos; [...]
LIVROS
o Quinze, de Rachel de Queiroz (Siciliano); Vi-
das secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos
(Record); [...]
MÚSICA
Ouça os compositores de música popular
brasileira da época, como Noel Rosa, Ari Bar-
roso, Ataulfo Alves, Leonel Azevedo, Heitor
dos Prazeres, Ismael Silva, Orestes Barbosa,
e os compositores que tratam de temas nor-
destinos, como Luís Gonzaga, Luís Vieira,
Eleomar, Dominguinhos, além do poeta po-
pular Patativa do Assaré.
Emissão de recados ao professor com
maior (exemplo 5) ou menor (exemplo
6) grau de informatividade:
(5) Soares, v. 3, p. 65:
Observação: Foram escolhidas palavras que se
supõe que ainda sejam conhecidas pelos adul-
tos com que os alunos convivem, a Fim de que
identifiquem mais vivamente o processo de va-
riação da língua ao longo de um tempo de que
m uma compreensão mais fácil (o tempo dos
pais, tios, avós); por isso,o palavras aindao
inteiramente desconhecidas, mas em processo
de desuso; o professor pode enriquecer o exer-
cício mencionando palavras já em inteiro desu-
so, como janota, cinematógrafo, escarradeira,
botica, etc.
(6) Miranda et. al., v. 3, p. 261:
Professor, há várias outras possibilidades de
passagem da linguagem informal para a formal
no texto. Se quiser, explore-as com os alunos.
Formar um professor requer a articulação de
dois componentes curriculares, como destaca
Reinaldo (2001:2), queo o conhecimento teóri-
co (domínio de conhecimento do objeto lingua-
gem) e o conhecimento de ensino e de pesquisa
sobre ensino (desenvolvimento da habilidade de
ensino e o conhecimento de pesquisa sobre ensi-
no-aprendizagem na área da linguagem).
Em uma das minhas experiências com Prá-
tica de Ensino de Português, na Universidade
Federal de Pernambuco, encontrei uma clien-
tela heterogênea, com experiências diferentes
no que se refere à concepção de ensino de lín-
gua. De acordo com a experiência que traziam,
classifiquei os alunos em:
Aluno-professor, ou seja, aquele graduando
que já ensina ou já ensinou e que tem o li-
vro didático como instrumento único de
orientação metodológica. Apesar de ter es-
tudado as correntes lingüísticas contempo-
râneas durante o curso de Letras,o sabe
o que fazer com elas no dia-a-dia de suas
aulas (ou pior,o acredita que possam -
ele e as teorias lingüísticas - alterar as prá-
ticas já cristalizadas no Ensino Fundamen-
tal e Médio). Tem no livro didático o com-
panheiro salvador, especialmente naqueles
livros de orientação apenas prescritivista.
Aluno-pesquisador, ou seja, aquele gradu-
ando com vasta experiência em pesquisa
científica, como Iniciação Científica, hábil
proferidor de comunicações em congressos
e similares, mas sem a menor noção de
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
como se portar como professor de língua.
No geral, tambémo percebe as possíveis
relações entre as pesquisas que desenvol-
ve e o ensino de língua. Para este, o livro
didático tem a função de instrumentalizar
o professor.
Aluno-aluno, ou seja, aquele graduando que
o tem experiência de ensino nem de pesqui-
sa. Espera pela disciplina de Prática de Ensino
como a grande inspiradora para a sua forma-
ção como professor.o percebe também a
relação entre os estudos feitos nos semestres
antecedentes como responsáveis pela sua for-
mação. O livro didático apenas representa um
recurso metodológico para o ensino.
o maior desafio consistia em fazer esses alu-
nos perceberem o papel do professor como me-
diador. Como cerca de 50% da turma se enqua-
drava na categoria aluno-pesquisador, decidi,
então, solicitar aos alunos a construção de duas
organizações didáticas especiais, apontadas
pelos PCN - projeto de pesquisa e módulos di-
dáticos -, na tentativa de atrelar o conhecimen-
to teórico e o conhecimento sobre ensino de lín-
gua, bem como inserir aqueles alunos queo
tinham tal experiência no campo da pesquisa,
porque esses futuros professores necessitarão
desenvolver pesquisas em suas atividades de
ensino de língua materna.
Um traço comum existia entre as três cate-
gorias de alunos: como ensinar meus alunos a
pesquisarem? Foram montados seis grupos
temáticos (Adivinhas e ensino de língua; Quem
está falando no texto?; Era uma vez... As fábu-
las e os contos de fada na sala de aula; As histó-
rias em quadrinhos na sala de aula; Entre a pa-
lavra e a imagem: o filme na sala de aula e o
Dicionário no ensino de línguas) envolvendo
alunos das três categorias. Em cada grupo fo-
ram desenvolvidas as seguintes etapas: revisão
da bibliografia sobre os temas (momento que
contou muito com a colaboração dos alunos-
pesquisadores), análise de livros didáticos para
verificar o tratamento dado por estes aos tópi-
cos selecionados, elaboração de um projeto de
pesquisa com vista ao desenvolvimento do
tema no Ensino Fundamental e Médio, monta-
gem de um módulo didático que foi ministrado
para alunos de Letras e Pedagogia e professo-
res do Ensino Fundamental e Médio num perí-
odo de seis horas. Dentre os resultados, inte-
ressa-me apenas registrar um deles, nesse
momento: a constatação, por parte dos alunos,
de que, na relação com o livro didático, o pro-
fessor deverá sempre ser superior a ele em co-
nhecimento e em desempenho metodológico.
Como afirma Rose Marie Muraro, em Memórias
de uma mulher impossível, "a prática é sobera-
na na medida em que o conhecimento se cons-
trói no exercício da prática".
Os múltiplos olhares sobre
a encruzilhada diabólica dos
livros didáticos
É preciso reforçar a tese de que a formação
do professor é tarefa da instituição de ensino,
quer seja nos cursos de Magistério quer seja nos
cursos universitários. Deve ser, pois, com base
nas orientações recebidas nessas instituições
que o professor poderá saber o que fazer com o
livro ou com os livros didáticos em suas aulas.
O professor deveria saber o porquê dos conteú-
dos selecionados e as implicações das estraté-
gias utilizadas nos livros didáticos. Os autores
de livros didáticos costumam apresentar um
Manual do professor, em que esclarecem sobre
as correntes teóricas em que fundam suas
obras, mas nem sempre há uma correlação en-
tre tais teorias e as atividades propostas no li-
vro do aluno. Algumas vezes, parece haver uma
estratégia de marketing eo uma orientação
teórico-metodológica. Listar referências biblio-
gráficas atuais recheadas de autores de renome
nacional e internacional, apresentar um texto
didático resumindo as referências citadas ou
carimbar a capa do livro com expressões como
"Aprovado pelo PNLD" ou "De acordo com os
PCN"o asseguram a tal obra coerência entre
pressupostos teóricos e práticas metodológicas.
Tais inquietudes revelam, parafraseando
Neves (2000), a "encruzilhada diabólica" que se
instaurou na construção dos manuais didáticos
produzidos na década de 1990. Os autores de
livros didáticos, por um lado, precisam atender
às exigências do PNLD e dos PCN, os quais, por
seu turno, requerem a aplicação de programas
de ensino respaldados nas contribuições das
correntes lingüísticas mais recentes.
Para ilustrar tal encruzilhada, relatarei, bre-
vemente, uma pesquisa realizada por um gru-
po de professores e pesquisadores da Universi-
dade Federal e Pernambuco e da Universidade
Federal da Paraíba {campus Campina Grande).
Tomando por base 25 coleções destinadas ao
Ensino Fundamental, publicadas ou
reformuladas entre 1996 e 1999, o grupo deci-
diu investigar quais eram as tendências teóri-
cas e metodológicas para a abordagem dos se-
guintes temas:
Delineadas as tendências, os especialistas
apresentaram um conjunto de reflexões e suges-
tões visando contribuir com as tentativas de mu-
dança no ensino de língua. Os resultados dessas
investigações estão compilados em o livro didá-
tico de português: múltiplos olhares, publicado
pela Editora Lucerna, em abril deste ano. Tomarei
apenas os tópicos "língua falada" e "variedades lin-
güísticas" para ilustrar essas tendências.
No tratamento dado à oralidade, constatou-
se que os livros didáticos atuaiso conside-
ram "de maneirao incisiva a fala como o lu-
gar do erro., no entanto, que suspeitar do
mérito dessa postura, pois ela se deve muito
mais ao silêncio dessas obras sobre a fala do
que à avaliação da fala em suas condições de
uso" (Marcuschi, 2001: 24), pois o espaço des-
tinado à língua falada raramente supera 2% do
total de páginas. Uma tendência dos livros di-
dáticos é tratar a língua falada apenas como
uma questão lexical restrita ao uso de gírias e
de expressões coloquiais, como no exemplo a
seguir.
(7) Cereja e Magalhães, v. 5, p. 34:
1. O texto abaixo é parte da carta de uma lei-
tora que elogia a matéria publicada sobre-
rias numa revista. Leia o texto e, em seguida,
reescreva-o, substituindo as gírias por pala-
vras e expressões da norma culta.
É massa!
Dessa vez a Atrevida "arrepiou". Foi "da hora"
a matéria NA PONTA DA LÍNGUA, com as-
rias "maneiras" de todos os lugares É por isso
que me "amarro" cada vez mais nesta revista:
descolada, divertida, diferente e "trilegal".
Uma postura ainda pouco freqüente consis-
te na demonstração de "uma consciência siste-
mática das relações entre fala e escrita como
duas modalidades de uso da língua com fun-
ções igualmente importantes na sociedade,
sendo ambas responsáveis pela formação cul-
tural de um povo" (Marcuschi, 2001: 27).
o exemplo 8 ilustra tal postura:
(8) Soares, v. 3, p. 65
3. Descubra o significado de algumas palavras
que envelheceram, palavras que você, prova-
velmente,o conhece, que quaseoo
mais usadas:
Pergunte a pessoas mais velhas, ou procu-
re no dicionário, o significado destas pala-
vras: vitrola, patinete, caneta-tinteiro,
aeroplano, galocha, pó-de-arroz, cristaleira,
bibelô, ruge.
Compare suas "descobertas" com as de seus
colegas e discutam:
Só as palavras deixaram de ser usadas ou
as coisas que elas nomeiam também deixa-
ram de ser usadas? Ou essas coisas ainda
o usadas, apenas mudaram de nome?
Quanto à apresentação das variedades lin-
güísticas (VL), basicamente,o duas as possi-
bilidades de encaminhamento metodológico: a)
utilização de um texto sobre VL, acompanhado
por perguntas de compreensão; e b) utilização
de texto com VL, seguido por perguntas de com-
preensão, por atividades de identificação e
Tema
1. Tratamento da oralidade
2. Seleção de textos
3. Compreensão de textos
4. Abordagem do poema
5. Variedades lingüísticas
6. Produção de textos
7. Análise do discurso reportado
8. Pontuação e construção de sentido
9. Tratamento de classe de palavras
10. Avaliação no Manual do professor
Por
Luiz Antônio Marcuschi
Maria Auxiliadora Bezerra
Luiz Antônio Marcuschi
José Helder Pinheiro
Ângela Paiva Dionísio
Maria Augusta Reinaldo
Dóris Carneiro Cunha
Márcia Rodrigues Mendonça
Luiz Francisco Dias
Elizabeth Marcuschi
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
reescritura de VL. Nem sempre, na abordagem
do texto, respeita-se a relação entre VL e carac-
terísticas textuais. Tal fato decorre, a meu ver,
de análises equivocadas que resultam em erros
conceituais e em inadequações metodológicas,
como se verifica, infelizmente, no exemplo 9.
(9) Azevedo, v. 5, p. 34-35:
1. Leia a piada abaixo e responda às pergun-
tas:
Aquele homem humilde, simples, sotaque cai-
pira, foi eleito governador. Um dia, um desses
políticos de palácio chega bem perto e surpre-
ende o governador vendo televisão. Faz sua
média:
- E aí governador, firme?
- Firme, não. Novela!
a. Qual o código usado entre o político e o go-
vernador?
Resposta do Manual do professor. A língua fa-
lada.
b. Houve comunicação entre eles? Por quê?
Resposta do Manual do professor.o houve
comunicação entre os dois porque, embo-
ra falem a mesma língua, pertencem a gru-
pos sociais diferentes.
c. Classifique a linguagem dos dois falantes.
Resposta do Manual do professor: o político
usa a linguagem culta, e o governador, a po-
pular.
, é lógico, o uso de VL nessa piada, tema
tratado na unidade do livro didático em que se
encontra tal exercício, maso se pode descar-
tar o gênero textual no processo de análise. As
piadas, como já afirmou Possenti (1998),o
textos que envolvem temas socialmente contro-
versos e que operam com estereótipos. Uma
análise dessa piada exige que o leitor/ouvinte
identifique dois sentidos para o termo "firme":
cumprimento informal e variante popular de
"filme". E é justamente essa confusão de senti-
do que causa o humor.o quero negar com
isso a caracterização do governador como cai-
pira nem negar o preconceito existente, pois
seria negar a piada em si. Quero apenas cha-
mar a atenção para a necessidade de atrelar
adequadamente os domínios de linguagem aos
gêneros textuais, quando da elaboração de ati-
vidades. Afirmar que "não houve comunicação
entre os dois porque, embora falem a mesma
língua, pertencem a grupos sociais diferentes"
e que "E aí governador, firme?" é linguagem
culta compromete, seriamente, a formação do
professor e do aluno.
Fazendo um contraponto, apresento, a se-
guir, um exercício em que se encontram atrela-
dos respeito ao gênero textual, fidelidade à lin-
guagem dos personagens e atividades de refle-
o sobre o uso da VL. A partir da letra da músi-
ca Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, o li-
vro didático propõe o seguinte:
(10) Carvalho et. al., v. 3, p. 71:
1. Uma das primeiras coisas que chamam a
nossa atenção na letra dessa música é ela es-
tar escrita em uma linguagem queo é da
norma culta, ou seja, essa que costuma apa-
recer nos livros. Escreva o que você observa
de diferente nela.
2. Experimente ver como Ficaria a letra se fos-
se escrita na norma culta, reescrevendo a se-
gunda estrofe nessa linguagem.
3. Adoniran poderia ter escrito dessa forma
como você escreveu,o poderia? No entan-
to,o o fez. Por que será?
4. Vamos comparar as duas formas de grafar
as palavras:
senhor - senho
apreciar - apreció
contar - contá
ligar ligá
gritar - gritó
cobertor - cobertô
Explique por que, ao escrever em linguagem
popular, as palavras queo tinham acento na
norma culta passam a ter.
Diferentemente do que ocorre no exemplo
9, neste caso o Manual do professor (p. XXXV)
esclarece os objetivos das atividades de manei-
ra coerente, informando que o uso da letra da
música de Adoniran Barbosa abre "espaço para
a discussão sobre questões atuais no país e di-
ferentes normas da língua". Alerta ainda que
"trabalhar com a norma culta e popular eo
com o certo e o errado é fundamental, parao
trair, entre outras coisas, o espírito da música".
Dizem, ainda, as autoras sobre o fato de que a
música está escrita na norma não-padrão:
"Acreditamos que muitos aspectos possam ser
observados pelas crianças: está escrita como se
fala;o aparecem o "r" e o "1" final de muitas
palavras; algumas palavraso escritas diferen-
temente de como costumam aparecer nos li-
vros, como tauba em vez de tábua; [...]." Traz,
portanto, este Manual do professor algumas in-
formações que contribuem para a formação do
professor. Recorro, nesse momento, às palavras
de Lajolo (1996: 5) sobre o Manual do profes-
sor: "Precisa ser mais do que um exemplar que
se distingue dos outros por conter a resolução
dos exercícios propostos", já que o professor é
"uma espécie de leitor privilegiado da obra di-
dática, já que é a partir dele que o livro didático
chega às mãos dos alunos".
Enfim, de acordo com a análise realizada
pelo grupo anteriormente mencionado, cons-
tatou-se que, mesmo com avanços relativos à
presença de teorias mais recentes de língua, os
conceitos, na maioria das vezes, aindao vis-
tos sob um olhar prescritivista. É preciso, pois,
que os livros didáticos saibam enfrentar, como
ressalta Rangel (2001: 13), "os novos objetos di-
dáticos do ensino de língua materna: o discur-
so, os padrões de letramento, a língua oral, a
textualidade, as diferentes 'gramáticas' de uma
mesma língua etc." Na parceria livro didático-
professor, parece-me que ambos ainda estão
acertando o passo na travessia entre as teorias
lingüísticas e o ensino de língua materna.
Bibliografia
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didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janei-
ro: Lucerna, 2001.
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Oralidade e ensino de língua: uma questão
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Maria A. (Orgs.). O livro didático de português: múlti-
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REINALDO, Maria Augusta. Teoria e prática na formação
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NEVES, Maria H. M. Examinando os caminhos da discipli-
na Lingüística nos cursos de Letras: por onde se per-
dem suas lições na formação dos professores. Anais
da 18 Jornada de Estudos Lingüísticos do Nordeste.
Salvador: UFBA, 2000.
SOARES, Magda. Que professores de português queremos
formar? Revista Movimento, n. 3, p. 149-55, 2001.
SOARES, Magda. O livro didático como fonte para a histó-
ria da leitura e da formação do professor-leitor. In: MA-
RINHO, M. (Org.). Ler e navegar: espaços e percursos
da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001, p.
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CARVALHO, Carmen S. et al. Construindo a escrita.o
Paulo: Ática, 1998. v. 1-4.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: linguagens.
o Paulo: Atual, 1998. v. 5-8.
Português: linguagens.o Paulo: Atual,
1999. v. 3.
MIRANDA, Cláudia et al. Vivência e construção: Língua
Portuguesa.o Paulo: Ática, 2000. v. 3.
SOARES, Magda. Português: uma proposta para o
letramento.o Paulo: Moderna, 1999. v. 1-4.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
Livro didático e formação
do professoro incompatíveis?
Kazumi Munakata
Pontifícia Universidade Católica deo Paulo
Aos companheiros professores e funcionários das Universidades
Federais que, no momento em que este trabalho foi apresentado no
Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação, encontravam-se em
greve pela dignidade no exercício de suas atividades profissionais e,
conseqüentemente, pela qualidade na educação.
"Costumo esclarecer que à perda crescen-
te da dignidade do professor brasileiro con-
trapõe-se o lucro indiscutível e estrondoso
das editoras de livros didáticos" - o esclare-
cimento é do professor Ezequiel Theodoro da
Silva (1998: 58), num artigo originariamente
publicado na revista Em Aberto (n. 69), de
1996, data em que ele era titular da Secreta-
ria da Educação da Prefeitura Municipal de
Campinas (São Paulo), na gestão do prefeito
Magalhães Teixeira, do PSDB. O fato de ele ter
sido, então, diretamente responsável pela
dignidade da parcela campineira do profes-
sorado brasileiro pareceo importar muito
quando se trata de prosseguir sua obstinada
cruzada contra o livro didático - tema que
ocupa considerável espaço da sua produção
acadêmica.
Para ele, o livro didático associa-se direta-
mente com o período militar e seu projeto edu-
cacional:
Ainda que as cartilhas, os manuais de ensino
e as coletâneas de textos tivessem presença
na escola brasileira desde o início do século
19, é na segunda metade da década de 1960,
depois da Revolução de 1964 e com a assina-
tura do acordo MEC-Usaid, em 1966, que os
livros didáticoso ganhando o estatuto de
imprescindíveis e, por isso mesmo,o sen-
do editados maciçamente, a fim de respon-
der a uma demanda altamente previsível, a
um mercado rendoso, lucrativo e certo (Sil-
va, 1998: 44).
A ditadura, ao mesmo tempo que introdu-
zia a "pedagogia tecnicista", impôs, mediante
compressão salarial, "o solapamento contínuo
e crescente da dignidade profissional dos pro-
fessores", transformando-os em "dadeiros de
aulas, sem muito tempo para atualizar-se e, por
isso mesmo, lançandoo dos livros e manu-
ais que lhes chegavam prontamente" (idem: 45)
- o que teria contribuído para a elevação dos
lucros das editoras. Para esses professores as-
sim desqualificados, "coxos por formação e/ou
mutilados pelo ingrato dia-a-dia do magistério"
(idem: 57), o livro didático tornou-se "bengala,
muleta, lente para miopia ou escora queo
deixa a casa cair" (p. 43). Silva (1998) remata:
"Não é à toa que a imagem estilizada do pro-
fessor apresenta-o com um livro nas mãos, dan-
do a entender que o ensino, o livro e o conheci-
mentoo elementos inseparáveis" (idem: 58).
o que o secretário Silva quis exatamente
dizer? Que educação e livroso incompatíveis?
Que o professor que se deixa flagrar carregan-
do livro é um desqualificado, "coxo por forma-
ção"? Talvez ao secretário Silva repugne ler li-
vros ou ele considere indigno da sua sabedoria
recorrer a livros para adquirir novos conheci-
mentos ou para preparar aulas -o cabe aqui
discutir idiossincrasias pessoais. O queo é
muito elegante para um intelectual como ele é
desconsiderar toda a história do ensino esco-
lar, recortando-lhe apenas a fatia que seja do
seu interesse (o período da ditadura militar no
Brasil e suas seqüelas), a fim de favorecer a sua
tese de que o livro didático e a formação do pro-
fessoro antípodas.
1
Segundo Guy Vincent, Bernard Lahire e
Daniel Thin (1994), a instituição que hoje co-
nhecemos como "escola" apareceu na Europa
no decorrer dos séculos 16 e 17. Eles advertem
que o fato de certas palavras do vocabulário
educacional terem existido desde a Antigüida-
deo significa que elas indicassem sempre as
mesmas coisas. A "escola", por exemplo: essa
palavra deriva do grego skholê, que significava
"lazer", "entretenimento", num sentido muito
próximo ao do latim otium, que daria origem à
palavra portuguesa "ócio". Esses termos indica-
vam a condição privilegiada dos "homens li-
vres", isto é, aqueles queo dependiam do tra-
balho para sobreviver e que, por isso, podiam-
se dar ao luxo de dedicar-se ao cultivo das ar-
tes, da leitura, do pensamento.
A escola que se idealizou e foi se constituin-
do nos séculos 16-17 opôs-se de certo modo a
esse elitismo dos "bem-nascidos". Numa época
marcada pelos movimentos de Reforma e de
Contra-Reforma, o protestante Comenius (1592-
1670) imaginou uma "arte de ensinar tudo a to-
dos", como diz o subtítulo da sua principal obra,
Didática magna, propondo a escolarização in-
distinta de ricos, pobres, meninos e meninas. No
lado católico, os Irmãos das Escolas Cristãs, de
Jean-Baptiste de la Salle (1651-1719), criaram
uma escola gratuita para todos, cujo ensino re-
queria freqüência prolongada de vários anos.
Algumas características dessa escola que a tor-
naram uma instituição nova, inédita, com uma
forma própria - a forma escolar- são:
"A escola como lugar específico, separado
de outras práticas sociais" (Vincent et al.,
1994: 30). Isso significa que a escola produz
e organiza práticas peculiares, com regras
próprias, num âmbito queo se confunde
com a família, com a profissão ou com a re-
ligião.
A separação entre o fazer e o ensinar. Até
então, o aprendizado (de saberes, valores,
comportamentos etc.) efetivava-se pela ob-
servação do fazer e pelo treino do próprio
fazer, em seus respectivos ambientes (o
aprendizado de um ofício artesanal fazia-se
numa oficina; o de um cavaleiro, na casa de
um nobre etc). Na escola, ao contrário, en-
sina-se a todos um conjunto de saberes e
valores independentemente da especializa-
ção a que cada aluno se destina ou almeja,
e esse conteúdo genérico a ser ministrado,
sem referência a nenhum ofício em parti-
cular, inviabiliza o aprendizado centrado no
fazer.
"Escrituralização-codificação dos saberes e
das práticas" (Vincent et al., 1994: 31). Exa-
tamente na medida em que o fazer e o ensi-
nar se separam, os conteúdos a ser minis-
trados passam a ser codificados num siste-
ma de registro que é a escrita. "Uma peda-
gogia do desenho, da música, da atividade
física, da atividade militar, da dança etc.o
se faz sem uma escrita do desenho, uma es-
crita musical, uma escrita esportiva, uma
escrita militar, uma escrita da dança. Escri-
tas que implicam quase sempre gramáticas,
teorias das práticas. O modo de socializa-
ção escolar é, pois, indissociável da nature-
za escriturai dos saberes a transmitir"
(Vincent et al., loc. cit.).
Por isso mesmo, a escola é antes de tudo
uma instituição de ensino do ler e do escrever.
Afirmam Vincent et al. (1994: 36):
o objetivo da escola é aprender a falar e a escre-
ver segundo regras gramaticais, ortográficas,
estilísticas etc. [...]; a escola é o lugar de apren-
dizagem da língua. [...] A forma escolar de rela-
ções sociais é a forma social constitutiva do que
se pode denominar uma relação escritural-esco-
lar com a língua e com o mundo.
Num lugar assim instituído, o livro neces-
sariamente se faz presente,o como um aces-
sório a mais, mas como um dispositivo funda-
mental. Em Ratio studiorum, uma espécie de
manual de ensino dos colégios jesuítas, redigi-
' o seu recorte histórico, que só conhece o período da ditadura militar, obscurece, por isso, o fato notório de que o grande boom dos livros
didáticos (e, portanto, da lucratividade das editoras) aconteceu com a redemocratização. com a instituição, em 1985, do Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), por meio do qual o governo federal chegou a adquirir, em 1999. quase 110 milhões de exemplares.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
do entre 1548 e 1599, grande parte foi dedicada
aos livros a ser adotados. Mais do que isso, ha-
via uma série de recomendações sobre o modo
como eles seriam lidos, com a indicação de tre-
chos que deveriam ser omitidos por conter in-
conveniências (principalmente em relação à
doutrina cristã). Também Comenius, em Didá-
tica magna, discutiu os prejuízos causados pela
leitura de livros pagãos e recomendou que se
produzissem livros especialmente adequados
ao ensino. Por sinal, ele mesmo foi o autor de
um livro que julgou adequado aos propósitos
didáticos: a obra intitulada Orbis sensualiimi
pictus (o mundo sensível em imagens), de 1658.
Segundo Narodowski, esse livro, em que cada
capítulo refere-se a um assunto a ser ensinado
e contém ilustração correspondente,
|...| é a matriz mediante a qual se reproduzirão
os livros de textos didáticos que deverão formar
as crianças da sociedade ocidental moderna
durante trezentos e cinqüenta anos.
Do ponto de vista de seu conteúdo, o livro di-
dático expressa as temáticas estipuladas para o
ensino em cada nível da escolaridade. Isto sig-
nifica que o livro didático é uma mensagem
construída ad hoc, pelo que tanto sua elabora-
ção como sua posterior utilização somenteo
compreensíveis no contexto do processo geral
de escolarização. Em outros termos, o livro de
texto didáticoo possui um valor literário ou
científico autônomo: já desde o século 17 e a
partir da empresa comeniana o texto se legiti-
ma na medida em que contribui eficientemente
para o processo de produção de conhecimentos
escolares. Mais ainda, o texto possui um estilo
literário e uma retórica singular (...]. O livro de
texto didático constrói uma estética que lhe é
própria (Narodowski, 2001: 83-84.).
Nos Estados Unidos, como mostra Stray, a
constituição e o desenvolvimento desse gênero
de livro podem ser constatados pela consolida-
ção da própria terminologia que o designa: con-
sultando o catálogo da Biblioteca de Nova York
referente ao período de 1880 a 1920, ele consta-
tou a passagem do termo "text book para text-
book, depois textbook, evolução que reflete [...] a
emergência de uma categoria e de um produto
específicos" (Stray, 1993: 74, nota 2). Na França,
de acordo com Chervel e Compère (1997), vários
autores, hoje tornados "clássicos", dedicaram-se
a produzir obras especialmente destinadas a fins
didáticos: Ester e Atália, de Racine, ou Aventuras
de Télémaque, de Fénelon, e Discurso sobre a his-
tória universal, de Bossuet,o exemplos.
Essas considerações, longe de pretenderem
esgotar uma possível história do livro didático,
servem apenas para indicar que este faz parte
da vida escolar desde que a escola é escola. Nes-
se sentido, ao contrário do que imagina o se-
cretário Silva, de fato "o ensino, o livro e o co-
nhecimentoo elementos inseparáveis" na for-
ma escolar, e o professor carregando livroo
é imagem estereotipada da sua deficiência a ser
compensada com muleta, mas a afirmação da
sua distinção profissional!
Certamente, o livro didático sofreu altera-
ções na sua forma e no modo de sua produção
e edição, além de ter acompanhado as mudan-
ças na maneira como os conteúdos do ensino
eram organizados. Por exemplo, a passagem dos
livros de texto, com trechos de obras para lei-
tura abrangendo conteúdos os mais variados,
para livros especializados por disciplina expres-
sa a constituição, a partir do final do século 19,
das disciplinas escolares (Chervel, 1990). O li-
vro didático também foi um importante supor-
te da organização das práticas escolares. Quan-
do eleo existia, cada aluno devia trazer de
sua casa algo escrito - manuscrito ou impresso
- que pudesse servir de material de ensino, e
este era necessariamente individualizado. A
adoção, entre outros materiais, do livro didáti-
co único para uma turma inteira possibilitaria
o ensino simultâneo, pelo qual muitos passa-
ram a estudar uma mesma matéria ao mesmo
tempo (Hébrard, 2000).
Como suporte da organização das práticas
escolares, o livro didático destina-se tanto ao
aluno como ao professor.
2
Os usos que um e
Segundo Gérard e Roegiers (1998). no Vietnã, os livros didáticos "são especialmente concebidos para os pais a (im de os ajudarem a
assegurar as aprendizagens escolares dos filhos" (p. 30). Pode-se também suspeitar que, no Brasil, desde que o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) passou, a partir de 1995/1996. a avaliar os livros didáticos, os avaliadores tornaram-se os destinatários prioritários.
outro fazem do livro didáticoo diversos, múl-
tiplos: nem sempre se lêem esses livros porque
se desconhece o seu conteúdo. Dito de modo
mais claro: se um professor usa um livro didá-
tico, issoo significa necessariamente que ele
seja malformado, ignorante, como fazem supor
as metáforas de "muleta", "escora" etc.o há
apenas uma maneira de ler um livro - ainda
mais em se tratando de livros didáticos, para o
que é mais conveniente falar em "uso" do que
em "leitura" (Lajolo, 1996). Esses livroso car-
regados de um lado para outro;o rabiscados
(embora o governoo goste disso...); raramen-
teo lidos de ponta a ponta ou na seqüência
em que seus conteúdos estão ordenados.
o estudo sistemático sobre os usos dos li-
vros didáticos está ainda por ser realizado, mas
algumas informações ainda díspareso surpre-
endentes. Esse é o caso da pesquisa realizada
por Araújo (2001) sobre os usos de livro didáti-
co de História em algumas escolas estaduais de
Ensino Fundamental na cidade deo Paulo.
Nesse trabalho, um professor conta que ele uti-
liza livro didático apenas como fonte de ilus-
trações. Outro relata que o emprega para fazer
exercícios de leitura - habilidade que, segundo
diz, seus alunos aindao dominam bem. Um
terceiro esclarece que mescla trechos de vários
livros ao mesmo tempo.
Esses exemplos revelamo a suposta defi-
ciência do professor que requer, por isso, mule-
tas; ao contrário, mostram a extrema criatividade
no manuseio desse material, por cuja escolha
esses professores nem sempre foram responsá-
veis.
3
No limite,o é impossível que a partir de
um livro considerado ruim o professor consiga
desenvolver uma excelente aula. Essas questões,
no entanto, raramenteo levadas em conta na
avaliação dos livros didáticos. Sintomático nes-
se sentido é o "descompasso entre as expectati-
vas do PNLD e as dos docentes", reconhecido por
um documento do próprio Ministério da Edu-
cação (MEC, 2001), isto é, o baixo índice de es-
colha, pelos professores, dos livros recomenda-
dos pela avaliação do PNLD:
Tendo era vista o PNLD/97, cerca de 72% das
escolhas docentes recaíram sobre os livros não-
recomendados e apenas cerca de 28% sobre os
recomendados. No PNLD/98, embora a soma
dos livros recomendados (com distinção,
21,88%; com ressalvas, 22,15%; ou simplesmen-
te recomendados, 14,64%) tenha constituído o
grupo mais escolhido pelos docentes, a catego-
ria que, isoladamente, mostrou-se a mais repre-
sentada continuou a ser a dos não-recomenda-
dos (41,33%). No PNLD/99, por Fim, as escolhas
dos docentes, com a eliminação da categoria dos
não-recomendados, recaíram, predominante-
mente, sobre a dos recomendados com ressal-
vas (46,74%), a dos recomendados com distin-
ção representando apenas 8,40% das escolhas
(MEC, 2001:33.).
o que ressalta nesses dados é, mais do que
um "descompasso", uma inversão completa en-
tre os critérios da escolha dos professores e os
da avaliação do PNLD. O que isso significa? A
incompetência dos professores, incapazes de
optar pelo melhor? o documento do MEC
(2001), embora cauteloso, insinua que sim:
Assim, uma visão de conjunto da escolha do li-
vro didático assim como alguns dados relativos
ao seu uso em sala de aula apontam claramente
para a formação docente como um dos fatores
relevantes para a compreensão do referido
descompasso (MEC, 2001: 33.).
o documento prossegue apresentando os
indicadores que apontam para a precariedade
da formação dos professores.
Embora essa hipóteseo possa ser descar-
tada, o que surpreende é a ausência gritante da
possibilidade de equívocos nas avaliações rea-
lizadas pelo PNLD.o é possível que os pró-
prios avaliadores tenham uma formação inade-
Araújo (2001) descreve uma situação muito comum em que, em razão da intensa rotatividade dos docentes em relação às unidades de
ensino, os professoresm de adotar livros queo escolheram. Além disso, essa pesquisa constatou que nem sempre há livros suficientes
para todos os alunos, o que faz com que os professores retenham os exemplares na escola, distribuindo-os e recolhendo-os a cada aula.
Convém esclarecer que a escolha e a distribuição dos livros didáticos no Estado deo Pauloo realizadas de modo autônomo, cabendo
ao PNLD apenas repassar a verba correspondente.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
quada? Como o avaliador é avaliado? Como é
recrutado? A esse respeito, o Guia de livros di-
dáticos, em várias edições, é extremamente
lacônico. Na edição referente ao PNLD 2000/
2001 afirma-se que os avaliadoreso
[...] especialistas que atuam tanto no Ensino
Fundamental como na universidade e é basea-
dao só na experiência docente e no conheci-
mento especializado das equipes, mas, princi-
palmente, naquele conjunto de princípios e cri-
térios já referidos (Introdução Geral).
Na edição do Guia do PNLD/2002,o há
menção à figura do avaliador, mas há um escla-
recimento de que "o Ministério adotou uma
nova sistemática para o processo de avaliação",
buscando, "por meio de parcerias com univer-
sidades públicas, impulsionar o interesse da
pesquisa universitária sobre o tema, bem como
incentivar a transferência do conhecimento e
experiência acumulados" (p. 11). Que pesqui-
saso essas e como isso se manifesta na esco-
lha dos avaliadoreso é dado a conhecer.
Em todo caso, é possível aqui reiterar que
o há no momento, com toda a certeza, ne-
nhuma pesquisa em andamento que examine
sistematicamente os usos efetivos dos livros
didáticos pelos professores. Isso significa que
na melhor das hipóteses os avaliadores conti-
nuam examinando os livros com base apenas
na sua experiência e intuição - o que geralmen-
te é denominado "achômetro". É também pos-
sível que alguns avaliadores simplesmenteo
levem em conta o caráter escolar e didático des-
ses livros, lendo-os como se fossem obras cien-
tíficas, que devem conter os resultados das mais
recentes pesquisas de ponta na respectiva área.
Do lado da formação dos professores, é pre-
ciso fazer distinção entre formação inadequada
e atitudes por vezes inesperadas que eles tomam
perante necessidades do dia-a-dia. Podemoso
concordar com o uso de um livro didático como
suporte de exercícios de leitura, mas issoo sig-
nifica que esse professor tenha tido necessaria-
mente uma formação inadequada.o se pode
esquecer de que a aula no Ensino Fundamental
(e freqüentemente até mesmo no Ensino Supe-
rior e na Pós-Graduação)o se presta somente
ao ensino dos conteúdos de uma disciplina, mas
é também ocasião de desenvolvimento de cer-
tas habilidades - por exemplo, de leitura. Antes
mesmo de os Parâmetros Curriculares Nacionais
preconizarem atitudes, transversalidades e toda
a sua parafernália neotecnicista, os professores
já desenvolviam essas práticas, sem o que mi-
nistrar sua própria disciplina específica ficava
muitas vezes inviabilizado.
o que a formação esteja às mil maravilhas;
ao contrário: é com muita apreensão que se as-
siste hoje ao incentivo à proliferação desenfrea-
da de cursos improvisados de formação docente,
muitos de curta duração, apenas para fazer cum-
prir estatisticamente o preceito da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que exi-
ge formação superior de todos os docentes em
todos os níveis de ensino.o é assim que os pro-
fessores terão oportunidade de discutir as possi-
bilidades de uso - e, portanto, de escolha - dos
livros didáticos. No máximo haverá tentativas de
doutrinação dos professores, pelas quais se pro-
curará "ensinar" como eleso sabem escolher
livros e que por isso devem seguir as orientações
dos avaliadores do PNLD. Nesse sentido, o referi-
do documento do MEC (2001: 36) recomenda
"programas de capacitação para a escolha e o uso
do livro didático, destinados aos docentes e téc-
nicos dos sistemas educacionais", subentenden-
do-se que docentes e técnicoso "incapazes".
Sugerem-se também "alterações no Guia de livros
didáticos, descrevendo-se mais adequadamente
as obras que dele constam e utilizando-se uma
linguagem mais adequada ao professor e a suas
expectativas" (p. 36), pois, os professores, supõe-
se,o incompetentes para entender a linguagem
o elevada dos avaliadores.
Enquanto o "descompasso entre as expectati-
vas do PNLD e as dos docentes" for entendido
como descompasso deo única, isto é, como
incapacidade do professor em relação à sapiência
do PNLD,o haverá propostas de formação do-
cente que consigam levar em conta as poten-
cialidades, a criatividade e a autonomia dos pro-
fessores. Estes continuarão, como sempre, sendo
vistos como um "mal necessário", "coxos por for-
mação", eternamente deficientes a requerer mule-
tas, ao mesmo tempo que constituem item indis-
pensável para ornar estatísticas eleitoreiras.
Bibliografia
ARAÚJO, Luciana Telles. O uso do livro didático no ensino
de história: depoimentos de professores de escolas
estaduais de Ensino Fundamental situadas emo
Paulo/SRo Paulo. Dissertação (Mestrado em Edu-
cação). Programa de Pós-Graduação em Educação:
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Calouste Gulbenkian, 1985.
FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas: o
"Ratio Studiorum": introdução e tradução. Rio de Janei-
ro: Agir, 1952.
GÉRARD. François-Marie; ROEGIERS, Xavier. Conceber e
avaliar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998.
A contextualização das práticas escolares
em segmentos de tempo diferentes do nosso,
além de nos lembrar o fato, às vezes incômo-
do, de que nossas práticas escolares também
estão condicionadas à nossa época, pode for-
necer uma visão crítica e reflexiva sobre práti-
cas atuais.
Nesse sentido, o livro didático torna-se ma-
terial de pesquisa privilegiado, quer seja como
fonte documental na definição de práticas do
passado, quer seja como representação de tais
práticas.
Nos últimos vinte anos, influenciado pela
sociologia e pela história da leitura, o livro di-
dático tem sido objeto de várias teses universi-
HÉBRARD, Jean. Três figuras de jovens leitores: alfabetiza-
ção e escolarização do ponto de vista da história cultu-
ral. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história
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Brasil, 1998.
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historique du manuel. Histoire de l'Éducation, n. 58, maio
1993.
VINCENT, Guy et al. Sur 1'histoire e Ia théorie de Ia forme
Scolaire. In: VINCENT, Guy (Dir.). [.'éducation prisionnière
de Ia forme Scolaire? Scolarisation et socialisation dans
les sociétés industrielles. Lyon: Presses Universitaires
de Lyon, 1994.
tárias, ganhando cada vez mais status de obje-
to de estudo e ocupando papel de destaque na
recente história das disciplinas escolares. Hoje,
o estudo e a constituição da história do livro
didático, assim como a preservação de acervos,
tem reunido pesquisadores em torno de núcle-
os institucionais, sobretudo nas Faculdades de
Educação, de Letras e de Comunicação, sendo
que alguns grupos de universidades diferentes
desenvolvem projetos em parceria.
A memória da escola e do livro didático tem
merecido também a atenção de Secretarias de
Estado da Educação, como atestam a inaugu-
ração do Museu da Escola de Minas Gerais, em
1994, que funciona junto do Centro de Refe-
0 livro didático e a memória
das práticas escolares
Márcia de Paula Gregório Razzini
Universidade Estadual de Campinos /SP
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
rência do Professor, em Belo Horizonte, e a ex-
posição histórica, da qual participo como con-
sultora, intitulada "A escola e o saber: trajetória
de uma relação", que procura mostrar momen-
tos marcantes do ensino público emo Paulo
por meio de fotos, móveis, objetos e livros di-
dáticos, inaugurada no final de outubro de 2001,
juntamente com o Centro de Referência do Pro-
fessor Paulista. Interessante notar que ambas as
iniciativas ocorrem em espaços destinados à
formação continuada do professor, voltados
portanto para o presente e para o futuro, mas
que vêem o passado como um ângulo privile-
giado de pesquisa e de formação.
Para afinar a discussão, escolhi dois mo-
mentos constitutivos da escola pública: a orga-
nização do ensino primário emo Paulo, logo
após a Proclamação da República, e a centrali-
zação do ensino secundário a partir do Colégio
Pedro II, no Rio de Janeiro. E, como ítalo Calvino
diz sobre a cidade de Maurília em As cidades
invisíveis, convido-os a visitar essa escola do
passado como quem "observa uns velhos car-
tões-postais ilustrados que mostram como esta
havia sido" ou, ainda, a se perguntar como es-
colaso diferentes habitaram o mesmo lugar
(Calvino, 1990: 30).
De fato, impulsionada pela economia
cafeeira e pelos ideais republicanos, a expan-
o da escola pública primária no Estado de
o Paulo, traduzida na invenção dos grupos
escolares, marcaria as três primeiras décadas
da República, fazendo surgir na paisagem ur-
bana "templos de saber" (Souza, 1998), cujas
imagens seriam difundidas em cartões-pos-
tais.
A tabela a seguir, além de fornecer dados
sobre o desenvolvimento dos grupos escolares
emo Paulo, mostra a grande ampliação de
matrículas:
Estado deo Paulo - Resumo estatístico dos Grupos Escolares de 1898 a 1910
Anos
1898
1899
1900*
1901
1902
1903
1904
1905
1906
1907
1908
1909
1910
N- de Grupos
Capital
8
8
10
10
10
11
11
13
15
16
18
24
25
Interior
30
27*
35
39
41
47
51
55
57
60
63
68
77
Total
38
35
45
49
51
58
62
68
72
76
81
92
102
Alunos matriculados
Sexo masculino Sexo feminino
6.134
6.647
8.526
9.468
9.898
11.654
10.589
11.696
12.565
13.278
15.666
21.229
27.244
5.319
5.908
6.754
7.372
9.454
10.019
10.100
11.083
11.971
12.220
14.794
20.046
26.201
Total
11.453
12.555
15.280
16.840
19.352
21.673
20.689
22.779
24.536
25.498
30.460
41.275
53.445
' Foram dissolvidos os Grupos Escolares deo José dos Campos, Bananal e Ubatuba [Nota de rodapé original do Anuário, que acompanha esta tabela]
Fonte: Anuário do Ensino do Estado deo Paulo 1910/1911.
Segundo Rosa Fátima de Souza, a nova es-
cola pública
[...] é uma escola para a difusão dos valores re-
publicanos e comprometida com a construção
e a consolidação do novo regime; é a escola da
República para a República. [,,.] era preciso fun-
dar uma escola identificada com os avanços do
século, uma escola renovada nos métodos, nos
processos de ensino, nos programas, na organi-
zação didático-pedagógica; enfim, uma escola
moderna em substituição à arcaica e precária
escola de primeiras letras existente no Império
(...) (Souza, 1998: 29).
Para coordenar as mudanças, em 1894, foi
inaugurado na capital o novo e suntuoso pré-
dio da Escola Normal Caetano de Campos, na
então retirada e recente Praça da República,
topônimo perfeito para abrigar uma instituição-
modelo encarregada de irradiar o projeto edu-
cacional dos republicanos e suas inovações di-
dáticas. Além de cuidar da formação dos futu-
ros professores primários, a Escola Normal
mantinha uma escola primária anexa, chama-
da de Escola-Modelo, onde os normalistas dos
últimos anos faziam estágio, e um Jardim da
Infância, primeira escola pública infantil, inau-
gurada em 1896.
Interessante salientar que somente após
exatos cem anos da fundação da primeira es-
cola pública infantil é que a Educação Infantil
foi incluída como primeira etapa da Educação
Básica, na Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional (Lei nº 9.394) de 1996.
A centralização do ensino primário a partir
da Escola Normal Caetano de Campos colocou
em relevo um grupo de normalistas que lá se
formaram e que depois vieram a exercer cargos
públicos da administração escolar. Muitos de-
les se tornariam também autores didáticos de
sucesso, como foi o caso de Arnaldo Barreto e
de Mariano de Oliveira.
Os novos espaços escolares, cuja simetria
dos edifícios aponta a separação entre a seção
feminina e a seção masculina, generalizaram
a aceitação do método simultâneo como for-
ma de organização do tempo escolar, permi-
tindo "a ação do professor sobre vários alunos
simultaneamente' (Faria Filho, 2000: 142) e,
como conseqüência, a progressão seriada dos
conteúdos.
Quanto ao processo de aprendizagem, pro-
cura-se difundir com entusiasmo o "método in-
tuitivo", ancorado nas idéias de Pestalozzi e as-
sim chamado porque dava muita importância
à intuição, à
|...| observação das coisas, dos objetos, da na-
tureza, dos fenômenos e para a necessidade da
educação dos sentidos como momentos funda-
mentais do processo de instrução escolar.
Essa etapa da observação minuciosa e orga-
nizada é condição para a progressiva passagem,
pelos alunos, de um conhecimento sensível
para uma elaboração mental superior, reflexi-
va, dos conhecimentos. Tal etapa inicia-se pe-
las "lições de coisas", momento em que o pro-
fessor deve criar as condições para que os alu-
nos possam ver, sentir, observar os objetos.
Podia-se realizar tal procedimento utilizando-
se dos objetos escolares ou dos objetos levados
para a escola (caneta, carteira, mesa, pedras,
madeira, tecidos...), ou realizando visitas e ex-
cursões à circunvizinhança da escola, ou, ain-
da, possibilitando aos alunos o acesso a gravu-
ras diversas, que tanto poderiam estar nos pró-
prios livros, de "lições de coisas" ou de outros
conteúdos, ou em cartazes especialmente pro-
duzidos para o trabalho com o método (Faria
Filho, 2000: 143).
A expansão da escola pública no Estado de
o Paulo procurava, portanto, articular o pro-
grama ideológico da República com as inova-
ções pedagógicas em voga na Europa, dando à
escola primária uma finalidade cívica e moral,
reorganizando o espaço e o tempo escolar e di-
fundindo um novo método de ensino-aprendi-
zagem.
Tal ponto de inflexão da escola primária
exigiao só móveis específicos, mas também
o uso de novos materiais didático-pedagógi-
cos, como cadernos, livros e impressos icono-
gráficos (mapas e cartazes). Se no início da
República os móveis e alguns suportes de en-
sino eram importados da Europa e dos Esta-
dos Unidos, os livros tinham de ser traduzidos
e adaptados para nossa realidade. A conse-
qüência imediata dessa expansão foi o desen-
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
volvimento do mercado editorial e a profissio-
nalização do escritor didático.
Prosperaram bastante nesse período edito-
ras já tradicionais no segmento dos livros didá-
ticos, como a Livraria Francisco Alves, fundada
em 1854 no Rio de Janeiro, cuja filial emo
Paulo foi aberta em 1893. Se até 1889 a Livraria
Francisco Alves havia publicado apenas 67-
tulos (sendo 59 de ensino), nas três décadas se-
guintes ela acompanhou a expansão escolar,
publicando 538 títulos, 295 dos quais eram di-
dáticos.
Outras empresas, como a editora Melhora-
mentos (1915) e a editora de Monteiro Lobato
(1918) aparecem emo Paulo nessa época, fa-
zendo do livro didático um importante ramo de
seus negócios.
A leitura e a escrita, ensinadas simultanea-
mente,o as principais atividades dos alunos
na escola primária. Para as aulas de caligrafia
foi eleito o método americano, chamado de ca-
ligrafia vertical, cujos cadernos graduados per-
maneceriam no mercado até os anos 1990,
como é o caso dos cadernos de Caligrafia verti-
cal de Francisco Viana, publicados de 1909 até
1999 pela editora Melhoramentos, segundo a
qual essa série teve mais de 110 milhões de
exemplares vendidos.
No início do século XX, a alfabetização vai
abandonando a toada da soletração das car-
tas de ABC (bê-a-bá), conhecida por método
sintético, substituindo-o pelo método analí-
tico, da silabação, adotado oficialmente no
Estado deo Paulo (Mortatti, 2000), cujos
expoentes são: a Cartilha das mães e a Car-
tilha analítica, de Arnaldo Barreto, a Cartilha
ensino rápido da leitura e a Cartilha analíti-
co-sintético, de Mariano de Oliveira, além da
Cartilha infantil, de Gomes Cardim, e da
Cartilha fácil, de Claudina de Barros, autores
ligados à Escola Normal Caetano de Campos.
Destas, a cartilha que parece ter alcançado
maior sucesso foi a Cartilha ensino rápido da
leitura, de Mariano de Oliveira, que, publi-
cada em 1917, permaneceu no mercado até
1996, atingindo 2.230 edições e a produção de
mais de 6 milhões de exemplares. Nas pági-
nas 43 e 44 dessa cartilha encontra-se a se-
guinte "lição" patriótica:
Ofélia já está no grupo escolar.
2. Ela já sabe ler, escrever e contar.
3. Hoje ela teve uma lição de geografia.
4. Sabem vocês como foi a lição?
5. Primeiro, a professora lhe mostrou o globo
geográfico.
6. Mostrou-lhe no globo os mares e os continen-
tes.
7. Depois mostrou no globo a América do Sul e o
Brasil.
8. Ofélia está agora com um globinho na mão.
9. Ela mostra ao Hipólito onde fica o Brasil.
10. Hipólito ficou muito alegre e lhe disse:
11. Vamos
ao gabinete, onde está o quadro-negro.
12. Vou fazer no quadro-negro a carta do Brasil.
13. Como o Brasil é belo e grande!
14. Viva a nossa Pátria! Viva o Brasil!
Além das cartilhas, os livros de leitura
também tiveram papel importante na conso-
lidação da ideologia republicana, fazendo
com que várias gerações lessem, escrevessem,
decorassem e recitassemo só velhos ensi-
namentos como, por exemplo, as Fábulas de
Esopo e de La Fontaine ou as Máximas do
Marquês de Maricá, mas também textos que
construíam a idéia de pátria moderna e civi-
lizada, ou seja, livros que veiculavam conteú-
dos morais e cívicos e que privilegiavam o
método intuitivo.
A República nacionalizou o ensino (sobre-
tudo o ensino de Língua Materna, de Geografia
e de História) e, para isso, foi imprescindível a
nacionalização do livro didático. A leitura oral
e coletiva, possível graças à nova organização
do espaço e do tempo escolar com o ensino si-
multâneo, tinha lugar de destaque, pois por
meio dela eram transmitidos e reforçados os
novos (e velhos) conteúdos.
Portanto, a difusão dos conteúdos morais
e cívicos e do método intuitivo, patrocinada
pelo novo regime,o se restringiu aos livros
de "lições de coisas"; verifica-se sua influên-
cia nas várias publicações do período, atingin-
do desde cartilhas de alfabetização até livros
de leitura de várias áreas e destinados a vários
graus.
Assim, além do objetivo ideológico, presen-
te, por exemplo, logo na abertura das Primeiras
leituras, de Arnaldo Barreto,
"Nossa Bandeira"
Pátrio pendão sacrossanto
Da família Brasileira!
Nossa adorada bandeira!
há nos livros didáticos uma preocupação
maior com a materialidade, tanto na escolha
do papel, da capa cartonada, do acabamen-
to esmerado, quanto na importância das ilus-
trações e fotografias (tecnologia de ponta, na
época, que deu emprego a muitos ilustrado-
res), tudo para tornar os livros mais atraen-
tes e em sintonia com as novas exigências
educacionais.
Nota-se o novo formato dos livros didáticos
tanto nos livros das grandes editoras, como a
Livraria Francisco Alves e a Melhoramentos,
quanto nos das pequenas editoras, como a Edi-
tora Duprat e a Tipografia Siqueira, ambas de
o Paulo, destacando-se alguns exemplos,
como: Noções da vida prática, de Félix Ferreira,
Contos infantis, de Adelina Lopes Vieira e Júlia
Lopes de Almeida, Poesias infantis, de Olavo
Bilac, Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel
Bonfim, Pequenas leituras, de Ramon Roca
Dordal, Livro dos principiantes, de Nestor
Martins de Araújo, Nossa Pátria, de Rocha Pom-
bo, e os difundidos livros de leitura de João
Kopke, Tomás Galhardo, Hilário Ribeiro,
Arnaldo Barreto.
Interessante salientar que mesmo quando
há poucas ilustrações, como é o caso do Livro
decomposição, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim,
o conteúdo é montado e apresentado gradual-
mente, para atender tanto aos objetivos morais
e instrutivos quanto à observação minuciosa e
organizada requerida pelo método intuitivo, o
que explica a grande atenção dada à descrição.
Nesse livro, uma rápida consulta ao índice
pode ilustrar a apreensão sensível de objetos,
pessoas e cenas que estão presentes na escola,
no lar e na sociedade:
Enumerações: material escolar, sala de
aula, corpo humano, peças do vestuário
masculino, quarto de dormir, cozinha etc.
Exposições: trabalhos escolares, conduta na
rua, trajeto da escola, serão em família, as-
seio etc.
Descrições: caneta, livro de leitura, mesa de
jantar; praça pública, sala de aula; descri-
ção geográfica, paisagem da minha janela;
borboleta, papagaio; Machado de Assis,
Deodoro da Fonseca; tempestade, acende-
dor de lampiões, noite e estrelas; mendiga
etc.
Cartas: de saudações, ao professor, a um
amigo etc.
Dissertações: caridade, amor filial, escola
e instrução etc.
A tendência desses livros didáticos se con-
servaria vigorosa até a década de 1930, sendo
que vários deles, transformados pelo uso em
best-sellers didáticos (como os da Francisco
Alves e da Melhoramentos aqui citados), sobre-
viveriam pelo menos até os anos 1970.
o último aspecto importante a ser salien-
tado diz respeito à progressiva rarefação das
matrículas à medida que o curso primário
avançava, o que causava inchaço nas classes
de primeiro ano e esvaziamento significativo
a partir do segundo ano, como mostra a tabela
a seguir, de 1936:
Estado deo Paulo - Resumo do movimento de todos os cursos ou
unidades de ensino primário geral mantido pelo Estado em 1936
Discriminação
Matrícula inicial
1 ano
2ºano
3º ano
4ºano
Total
Urbanos
Most
47.341
35.937
26.304
16.733
126.315
Fem.
41.557
33.113
24.962
16.622
116.254
Geral
88.898
69.050
51.266
33.355
242.569
Distritais
Masc.
9.806
5.579
3.529
1.792
20.706
Fem.
8.500
4.860
3.038
1.582
17.980
Geral
18.306
10.439
6.567
3.374
38.686
Rurais
Masc.
37.506
11.466
4.331
384
53.687
Fem.
30.976
9.527
3.672
406
44.581
Geral
68.482
20.993
8.003
790
98.268
Total
Masc.
94.653
52.982
34.164
18.909
200.708
Fem.
81.033
47.500
31.672
18.610
178.815
Gerai
175.686
100.482
65.836
37.519
379.523
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
Essa situação, perpetuada durante décadas,
acabava se refletindo na tiragem dos livros de
leitura que, sem dúvida, ia diminuindo à medi-
da que o livro era direcionado para as classes
mais adiantadas. Em 1946, por exemplo, a Li-
vraria Francisco Alves reeditou os Livros de lei-
tura, de Felisberto de Carvalho, amplamente
adotados nas escolas primárias, sendo que o
primeiro volume, indicado para o lº ano, esta-
va na 130ª edição, o segundo volume (para o 2º
ano) na 107
a
edição, o terceiro volume (para o
3º ano) na 75ª edição e o quarto volume (para o
4º ano) na 42ª edição.
A longevidade de cartilhas e livros de leitu-
ra para o curso primário, concebidos ou impul-
sionados a partir da República (e alguns, como
vimos, sobreviveram bravamente até a década
de 1990), vem nos alertar para a permanência
desses modelos na escola. A principal razão
dessa permanência deve-se, provavelmente, ao
fato de que tais modelos puderam ser
readaptados e postos a serviço de subseqüen-
tes ideologias, métodos e organização escolar.
Deixando de lado a escola primária, passe-
mos agora para o segundo tópico da discussão,
que focalizará algumas questões de leitura no
ensino secundário, a partir do Colégio Pedro II,
no Rio de Janeiro.
o ensino de Português no Brasil, como dis-
ciplina curricular institucional, é recente e con-
temporâneo à fundação do Colégio Pedro II, em
1837, escola secundária padrão da elite brasi-
leira. A duração do curso secundário era equi-
valente ao período que hoje compreende as
quatro últimas séries do Ensino Fundamental
mais o Ensino Médio.
o estudo dos programas de ensino do Colé-
gio Pedro II aponta que até 1869 as aulas de
Português eram insignificantes no currículo, no
qual predominavam as disciplinas clássicas,
principalmente o Latim. A partir de 1870, logo
após a inclusão do exame de Português entre
os "preparatórios" - exames que davam acesso
aos cursos superiores no Brasil (Direito, Medi-
cina, Engenharia) -, verificou-se a ascensão do
ensino de Português no currículo do Colégio
Pedro II, cujo desenvolvimento, ainda que su-
jeito a variações, foi sempre crescente.
Já a literatura nacional era ensinada no cur-
rículo de Retórica e Poética, disciplina exigida
nos "preparatórios" das Faculdades de Direito
até 1890, exigência que, entre nós, parece ter
sido responsável pelo estreitamento de laços
entre a preparação retórico-literária e os cur-
sos jurídicos.
o ensino da língua e da literatura nacionais
(portuguesa e brasileira) sempre se pautou pelo
ensino das línguas clássicas, sobretudo o Latim.
A "gramática nacional" era estudada a partir das
categorias gramaticais da língua latina e
explicada como uma transformação desta, en-
quanto a literatura nacional era apresentada se-
gundo os critérios fixos da Retórica e da Poética
clássicas, dividida por gêneros. A leitura literá-
ria, base do ensino de Latim e Grego e base do
ensino de Retórica e Poética, também se trans-
formou em base do ensino da língua e da litera-
tura nacionais, erigindo os "clássicos nacionais".
Inicialmente, as aulas de Português no Co-
légio Pedro II, restritas ao primeiro ano, dedi-
cavam-se apenas ao estudo de alguns tópicos
gramaticais, especialmente dos verbos. Aos
poucos, foram absorvendo práticas de ensino e
conteúdos das aulas de Retórica e Poética. Pri-
meiro, em 1855, vieram a leitura literária e a
recitação para auxiliar o ensino da língua. De-
pois, em 1870, quando houve ampliação da car-
ga horária da disciplina no currículo do Colé-
gio Pedro II por causa de sua inclusão nos "exa-
mes preparatórios", entraram no currículo de
Português a redação e a composição. Em 1890,
quando a Retórica e a Poética foram substituí-
das pela História da Literatura Nacional, a gra-
mática histórica também foi transferida para o
currículo de Português.
A leitura literária, desde sua introdução em
1855, reinou absoluta nas aulas de Português,
sobretudo em antologias organizadas por pro-
fessores portugueses e, mais tarde, por profes-
sores brasileiros. As seletas mais antigas se-
guiam os preceitos retóricos, apresentando os
excertos divididos por gêneros, como é o caso
da Seleta nacional, de Caldas Aulete, e as mais
modernas seguiam a orientação da história li-
terária, dividindo os textos cronologicamente,
por séculos.
Em ambos os modelos havia a preocupação
de separar a prosa da poesia.
Uma das seletas escolares de maior sucesso
no Brasil foi a Antologia nacional, de Fausto
Barreto e Carlos de Laet. Sua permanência no
ensino secundário por mais de setenta anos (lª
edição, 1895; última edição, 1969) é testemu-
nho da longa estabilidade do modelo de ensino
que privilegiava a leitura "intensiva" (Chartier
e Hébrard, 1995) dos clássicos da literatura na-
cional do século XVI ao século XIX.
A leitura da Antologia nacional, porém,o
era complemento do manual de História da Li-
teratura Nacional e sim ponto de partida, nas
aulas de Português, para a aquisição e para o
treinamento da norma culta vigente, em exer-
cícios como leitura e recitação, ditado, estudo
do vocabulário, da gramática normativa, da gra-
mática histórica, exercícios ortográficos, análi-
ses sintáticas e morfológicas, redação e compo-
sição.
A leitura literária nas aulas de Português
procurava, portanto, oferecer "bons modelos"
vernáculos (e morais) para a "boa" aquisição
da língua, além, é claro, de oferecer a seus lei-
tores uma certa formação literária, mas sem
priorizá-la.
Só depois da Reforma Capanema, em 1943,
é que a História da Literatura Nacional tornou-
se a principal atividade das aulas de Português
das três últimas séries do curso secundário (atual
Ensino Médio) e passou a ser exigida nos exa-
mes vestibulares de todos os cursos superiores,
assinalando com isso a sua ascensão na escola.
A dependência do Ensino Médio em relação
ao vestibular, como testemunhamos hoje, tem
origem institucional nas reformas de ensino do
Estado Novo. Porém o critério literário nacio-
nalista, que norteava as aulas do curso secun-
dário na década de 1940, esbarrava no modelo
tradicional de ensino da língua, engessada pela
leitura dos clássicos e defendida em nome da
vernaculidade brasi-lusa, impedindo que os
autores do modernismo entrassem nos livros
didáticos.
o ensino da gramática era supervalorizado
e intenso, fazendo com que os já memorizados
textos e poemas fossem retalhados e divididos
por extensas análises morfológicas e sintáticas.
Até o final dos anos 1940, era comum nas
aulas de Português o uso de uma antologia e de
uma (ou várias) gramática(s). Na década de
1950, houve a fusão entre textos e gramática
num só compêndio, mas ainda divididos em
duas partes (Soares, 1996). A década seguinte
(1960) trouxe uma nova organização aos livros
didáticos, muito próxima da que conhecemos
hoje, dividindo o ensino de Português por uni-
dades, com leitura de texto literário, atividades
de interpretação e estudo de tópico gramatical,
dando continuidade ao privilégio da língua cul-
ta (Soares, 1996).
Apenas na década de 1970 é que a leitura
dos clássicos começou a ser substituída pela
"leitura extensiva" (Chartier e Hébrard, 1995),
sintonizada com os meios de comunicação de
massa e com as inovações tecnológicas.
o novo modelo implantado no Brasil a par-
tir de 1971, com a Lei nº 5.692, que redirecionou
as Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
considerava a língua vernácula um "instrumen-
to de comunicação" e "em articulação com as
outras matérias", o que multiplicava as opções
de textos para leitura em classe, tornando a lei-
tura literária mais uma dessas opções.
Além disso, a lei estabelecia também que
o ensino da Língua Portuguesa, disciplina que
passou a ser denominada Comunicação e Ex-
pressão, deveria preocupar-se, daí em dian-
te, com a "expressão da Cultura Brasileira", li-
bertando, portanto, do domínio clássico por-
tuguês a língua e a literatura ensinadas em
nossas escolas, facilitando e incentivando a
leitura dos escritores e poetas modernistas e
dos autores vivos.
Dessa maneira, o ensino de Português pas-
sou a admitir, cada vez mais, um número mai-
or e mais variado de textos para leitura, desde
os tradicionais textos literários, consideravel-
mente ampliados com a literatura contempo-
rânea pós-1922, até todo tipo de manifestação
gráfica, incluindo textos de outras disciplinas
do currículo, textos de jornais, revistas, quadri-
nhos, propaganda etc.o foi por acaso, por-
tanto, que o chamado boom da literatura infan-
til tenha ocorrido nessa época, pois ela viria a
entrar na sala de aula como mais uma das op-
ções de leitura.
É ainda nos anos 1970 que aparecem técni-
cas e engrenagens que parecem substituir o pro-
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
fessor na função de preparar aulas: estudo diri-
gido, instrução programada, exemplar do pro-
fessor com exercícios resolvidos e respostas
impressas em caracteres vermelhos. Essa nova
concepção de livro didático reflete a má forma-
ção dos professores, decorrente da democrati-
zação do ensino e da multiplicação de agências
formadoras sem compromisso com a qualida-
de (Soares, 2001).
Quanto à leitura, literária ou não, nota-se o
aparecimento de uma "ficha de leitura", que
passa a acompanhar os textos, propondo ativi-
dades de leitura e de interpretação.
Nos anos 1990, verificam-se duas tendências:
uma de abandono do livro didático, devido às
concepções baseadas na "construção" de conhe-
cimentos por alunos e professores; outra de con-
trole e avaliação dos vários níveis de ensino pe-
los órgãos oficiais, incluindo a avaliação dos li-
vros didáticos do Ensino Fundamental.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), instituídos em 1996, indicam que o en-
sino de Língua Portuguesa deveria preocupar-
se com os "textos que caracterizam os usos-
blicos da linguagem", orais e escritos. Baseados
nas teorias de Bakhtin, os PCN para o 3
a
e 4º
ciclos (5º a 8º séries) privilegiam alguns gêne-
ros para a leitura em sala de aula: cordel,
"causos", texto dramático, canção, conto, nove-
la, romance, crônica, poema, entrevista, deba-
te, notícia, editorial, artigo, reportagem, charge,
tira, verbete, relatório, didático, propaganda.
Além de parecer novidade (que, como vi-
mos,o é), a apresentação de textos por gêne-
ros, sem contextualização histórica, pode gerar
muita confusão, uma vez que a definição de-
nero é historicamente variável, quer porque es-
teja ligada à circulação em cada época, quer
porque dependa da intenção de cada usuário,
sem contar que é comum haver num mesmo
texto mais de um gênero.
Outro incômodo desse tipo de divisão é o
privilégio que alguns gêneros acabam tendo
sobre outros, como parece ser o caso dos gêne-
ros veiculados em jornais, cada vez mais pre-
sentes na escola e nos livros didáticos. O uso
excessivo e indiscriminado do jornal na sala de
aula, além de prejudicar a formação dos alunos,
que deveria basear-se na diversidade de textos
e de gêneros, escamoteia um componente eco-
nômico importante na definição dos custos do
livro didático: os gastos com o pagamento de
direitos autorais dos textos. Sem dúvida, os di-
reitos autorais de textos de jornalo muito
mais baratos do que, por exemplo, os direitos
autorais de um texto literário.
Quanto à leitura literária, sobretudo a lite-
ratura adulta (em oposição à literatura produ-
zida para o público infantil e juvenil),
acantonada no currículo do Ensino Médio des-
de a Reforma Capanema (1943), vem manten-
do seu cunho elitista, uma vez que uma parcela
significativamente menor da população tem
acesso a esse nível de ensino. Suas diretrizes e
seu currículo, ao que tudo indica, permanece-
o dependentes do exame vestibular. As listas
de obras literárias destinadas a questões do ves-
tibular, publicadas pelas universidades, acabam
influenciando o currículo do Ensino Médio.
Creio que a expansão do ensino, atualmen-
te em curso nos centros urbanos, obrigar-nos-á
a refletir sobre o passado e a prever práticas de
ensino de Português capazes de transmitir e
compartilhar com públicos de diferentes clas-
ses sociais e de diferentes faixas etárias diferen-
tes tipos de textos, inclusive da literatura cano-
nizada, pois é no espaço da escola que a demo-
cratização pode e deve começar, uma vez que:
"A leiturao é prática neutra. Ela é campo de
disputa, é espaço de poder" (Abreu, 1999).
Bibliografia
ABREU. Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura.
Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/ALB/Fapesp,
1999.
CALVINO, ítalo. As cidades invisíveis.o Paulo: Compa-
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n. 2. p. 177-229, 1990.
CORRÊA. Maria Elizabeth Peirão; NEVES. Hélia Maria
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século 19. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FI-
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tura no Brasil.o Paulo: Ática, 1996.
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antologia nacional e o ensino de português e de litera-
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Paulo (1890-1910).o Paulo: Editora da Unesp, 1998.
SIMPÓSIO 7
o DESENVOLVIMENTO DA EJA E
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA AMÉRICA LATINA
José Rivero
Maria Dulce Borges
Graciela Messina
Formação ae professores para
a Educação de Jovens e Adultos
José Rivero*
Unesco/Peru
No início da última década, foram apresen-
tados os resultados da única pesquisa regional
latino-americana realizada na área de Educa-
ção Básica de Adultos (EBA).
1
Os professores entrevistados durante essa
pesquisa indicavam como principais motiva-
ções e aspirações: a) a necessidade de um em-
prego estável; b) uma maior participação na
geração de processos administrativos; e c) a
necessidade de dispor de mais tempo livre para
realizar outras atividades. Uma maioria signi-
ficativa dos entrevistados também declarou
que seu interesse em trabalhar com jovens e
adultos havia influenciado sua decisão de tra-
balhar com a EBA, especialmente em vista do
acréscimo que essa atividade representava em
seus exíguos salários. Coerentemente com o
interesse em trabalhar com jovens e adultos,
as respostas à pergunta "Com que grupo você
se sente mais capacitado para desempenhar
suas tarefas?" incluíram tanto jovens e adultos
da educação básica quanto alunos do Ensino
Médio. Por sua vez, as fontes de maior insatis-
fação para os professores consultados foram as
condições ruins de trabalho (associadas a pro-
blemas de infra-estrutura, à carência de ma-
terial didático, à instabilidade funcional e, in-
clusive, à segurança pessoal) e, em segundo
plano, a dispersão e a falta de interesse dos
participantes.
Pode-se afirmar que existe um desconheci-
mento grave a respeito dos professores como
profissionais e queo raros os países que pos-
suem dados sobre as condições sociodemo-
gráficas, profissionais e ocupacionais básicas do
magistério e da composição das equipes docen-
tes das escolas. Esse desconhecimento afeta
também os sindicatos e as associações de clas-
se, que tendem a tratar seus associados como
sujeitos de classe. Mesmo nas associações do-
centes, as áreas de Educação de Jovens e Adul-
tos (EJA)o são, normalmente, levadas em
conta para fins da própria organização sindical.
Quais as características mais marcantes dos
professores que trabalham com educação de
adultos em instituições de ensino públicas?
o educador de adultos na América Latina
apresenta heterogeneidade de formação, de-
veis, de funções e de práticas docentes, assim
como divergência de pontos de partida, concep-
ções, enfoques, experiências educativas e metas.
Se houvesse traços comuns que o identificassem
coletivamente, esses seriam a não-especializa-
ção como professores de jovens e adultos bem
como a tradição de utilizar a transmissão de co-
nhecimento como procedimento pedagógico
único para desenvolver a capacidade do educan-
do em reproduzir o que lhe foi transmitido.
Às insuficiências técnicas ter-se-ia que
acrescentar, no caso da educação básica ou fun-
damental de adultos, a situação marginalizada
em que se encontra o professor, em uma mo-
dalidade também marginalizada nos sistemas
educacionais. Assim, a nomeação de professo-
res obedece mais a critérios administrativos do
que à busca de profissionais que reúnam requi-
sitos específicos. Em alguns casos, o número de
anos na docência é determinante para que o
professor obtenha uma colocação na área de
EJA. Em outros casos, deve-se a gestões pesso-
ais dos professores para obter uma colocação
adicional àquela desempenhada em institui-
ções educacionais infantis ou juvenis em horá-
rios diurnos ou, ainda, a critérios arbitrários
* José Rivero ó educador peruano e consultor internacional na área de Educação.
1
Essa pesquisa (oi desenvolvida pela Unesco como marco do Projeto Principal de Educação na América Latina e no Caribe e contou com a
participação de 12 países da região.
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
pessoais e político-partidários por parte das
autoridades da área educacional.
Apesar dos excelentes casos de identifica-
ção com seu trabalho, especialmente no que se
refere a docentes de instituições de ensino re-
gulares, a situação dos professores dessa mo-
dalidade de ensinoo escapa à grave situação
do conjunto de docentes. As condições salari-
ais sumamente deterioradas, um alto grau de
instabilidade funcional em vários dos países
estudados, a jornada de trabalho dupla com
grupos absolutamente heterogêneos de crian-
ças e jovens, durante o período da manhã, e de
jovens e adultos com pouca ou nenhuma esco-
laridade nas instituições vespertinas ou notur-
nas, a deterioração das condições materiais de
trabalho - geralmente em instituições de ensi-
no que "sofrem" durante o dia com a freqüên-
cia de diferentes tipos de alunos de outras tan-
tas instituições de ensino - constituem parte da
dívida regional para com esses professores.
A atual formação
do professor de jovens
e adultos
A formação recebida em universidades, em
instituições superiores de formação de profes-
sores ou em instituições de aperfeiçoamento
o habilita os professores para atender aos re-
quisitos especiais que caracterizam um ensino
no qual os participanteso os próprios
educandos eo o educador.
Os docentes com título pedagógico foram
formados para educar crianças - com as sérias
deficiências reconhecidas em sua formação ini-
cial - e, ao chegarem às instituições vesperti-
nas ou noturnas, tiveram de se adaptar e de or-
ganizar seu trabalho pensando em adultos
quando, como mostra a realidade, a maioria dos
participantes é composta de jovens.
Os critérios de formação estão fortemente
associados à teoria e à prática da escolaridade,
sendo o "rendimento acadêmico-intelectual"
do educando o principal objetivo da formação.
Observa-se, entretanto, uma débil e deficiente
formação inicial do docente, agravada nesse
caso pela circunstância de eleo haver rece-
bido especialização para o trabalho com jovens
e adultos com as características dos participan-
tes. Em alguns casos, impera a habilitação in-
formal ou extracurricular de docentes não-
especializados na EJA (não nos esqueçamos de
que a média de professores sem formação na
América Latina é de 21,3% e que essa situação
está associada ao fato de esses professores atu-
arem em áreas carentes ou marginalizadas).
Ademais, existe uma profunda heterogeneida-
de na formação pedagógica dos professores, que
resulta em uma nítida diferença entre os que
possuem formação e os queo a possuem. Os
primeiros estariam mais próximos de conhecer
e de motivar-se com outros conteúdos mais crí-
ticos e com técnicas mais participativas de en-
sino. Entretanto, em ambos os casos, pesa mui-
to o uso cotidiano da instrução tradicional.
Um problema que afeta a imagem e o rendi-
mento profissional é o não-reconhecimento da
atual educação de adultos como uma modalida-
de necessária e fundamental da atividade educa-
cional sob a responsabilidade do Estado. Orça-
mentos baixos e níveis escassos de supervisão e
requisitos profissionais, acrescidos à ausência de
poder de organização e pressão por parte dos usu-
ários potenciais,o apenas uma faceta do pro-
blema. Mas é importante salientar-se que a EJA
o logrou obter credibilidade social e tampouco
é vista como útil ou necessária pela comunidade.
A organização escolarizada tradicional, por meio
de aulas ministradas por professores sem forma-
ção especializada, tende a diminuir a demanda
por esses serviços e a acentuar a desigualdade na
aprendizagem entre grupos populacionais que
demandam atenção prioritária e uma educação
de melhor qualidade.
Rumo a novas estratégias
de formação de educadores
de jovens e adultos
Uma premissa básica nesse caso é que a EJA
deve concentrar-se em processos de ensino e
aprendizagem, os quais, por sua própria natu-
reza, demandam dedicação, disciplina e espe-
cialização profissional, além de tempo suficien-
te. Essa afirmação é particularmente importan-
te, sobretudo se considerarmos a tendência de
outorgar-se à educação capacidade para resol-
ver mais problemas do que esta pode efetiva-
mente suportar. Assim, o crescente desempre-
go e subemprego de seus usuários - reais ou
potenciais - pode influenciar para que se exi-
jam da EJA soluções ou contribuições específi-
cas para a solução desse problema estrutural,
ou de outros graves problemas sociais, o que
extrapola, em muito, suas possibilidades.
Outras premissas a serem consideradas in-
cluem:
A crescente universalização do acesso à
educação básica e secundária - bem como
as características dos jovens e adultos que
dela participam - tem como conseqüência
uma heterogeneidade do alunado atendido.
Esses alunos, além de pertencerem às cama-
das baixas ou pobres da sociedade, apresen-
tam idades, experiências de vida e interes-
ses distintos. Assim, é fundamental que os
professores estejam habilitados a encontrar
e utilizar novas formas de ensino e aprendi-
zagem que lhes permitam lidar com a diver-
sidade cultural, com as diferentes compe-
tências dos alunos e com as distintas situa-
ções de vida que estes enfrentarão ao con-
cluir um grau ou ciclo escolar.
Uma das principais disposições de Jomtien
determina que os conteúdos curriculares se-
jam cada vez mais associados à lógica da sa-
tisfação das necessidades fundamentais de
aprendizagem dos participantes. No caso de
jovens e adultos, esseo é um tema despro-
vido de conceitos, de enfoques teóricos ou
de experiências realizadas. A partir das prá-
ticas sistematizadas da "Educação Popular"
na América Latina, emerge com vigor a idéia
de que as necessidades fundamentais do
adulto constituem um todo inter-relaciona-
do. A resposta que satisfaz uma necessidade
de aprendizagem específica gera um ciclo de
reações queo permitindo a manifestação
de novas necessidades que devem, igual-
mente, ser satisfeitas. Esse processo estrutu-
ral e interdependente do processo de forma-
ção de adultos permite visualizar a ação edu-
cacional como um processo que transcende
a EJA, operacionalizada em uma realidade
econômica e política que desafia, contradi-
toriamente, a modernidade. Isso obriga a
propor-se um trabalho de formação em um
plano duplo e segundo a realidade institu-
cional da EJA em cada país. Esses planos po-
dem ser seqüenciais ou programas que se de-
senvolvem de forma paralela. De imediato,
e como forma de iniciar a EJA vinculada a ne-
cessidades básicas circunstanciais, o objeti-
vo é formar esses jovens e adultos como ato-
res com valores, atitudes, conhecimentos e
competências que os habilitem a enfrentar
suas necessidades de aprimoramento profis-
sional, de uma maior participação no exer-
cício da cidadania e de um intercâmbio cul-
tural que, em última análise, lhes permitam
participar da transformação de suas ativida-
des profissionais e de suas condições de vida.
Considerando-se a relação direta entre a
motivação para participar e a real utilida-
de de um ensino e de uma aprendizagem
centrados no aluno, é imprescindível que
sejam redefinidas as atuais estruturas e os
atuais procedimentos escolares, tanto da
educação básica quanto da educação se-
cundária de jovens e adultos. A concepção
atual de instituições de ensino para adul-
tos, com horários e currículos fixos que de-
mandam a assistência diária e em períodos
de tempo que cobrem vários anos de esco-
laridade, teria de ser seriamente redefinida.
Hoje, o baixo impacto desse tipo de pro-
grama requer sua modificação, por meio de
modalidades semipresenciais e com con-
teúdos curriculares e materiais de auto-
aprendizagem adequados às demandas e às
necessidades básicas de aprendizagem,
com uma melhor qualidade de vida dos
participantes.
A tendência à descentralização impõe novos
desafios a professores e diretores, que devem
ser levados em conta nas propostas de for-
mação de professores. Uma das conseqüên-
cias dessa mudança é que as instituições
educacionais começam a usufruir de um cer-
to grau de autonomia organizacional e ad-
ministrativa. Essa nova autonomia dá a dire-
tores e a professores mais espaço para a to-
mada de decisões, para a organização de pro-
jetos educativos capazes de gerar e atrair re-
cursos ou para a adoção de iniciativas de
ajustes curriculares.o restam dúvidas,
entretanto, de que esses mesmos diretores e
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
professores necessitarão de maior compe-
tência para planejar, administrar e imple-
mentar decisões, sem a tradicional depen-
dência dos níveis centrais. E será também
necessário modificarem-se os critérios de
seleção e nomeação de diretores, professo-
res e supervisores envolvidos no próprio pro-
cesso de aperfeiçoamento de docentes.
Esses processos de descentralização pode-
o estar associados a crescentes esforços
para priorizar políticas sociais, em um am-
biente regional com visíveis resultados de
frustração em relação a políticas neoliberais.
Serão também necessárias harmonizações
e alianças mais efetivas e eficazes com as
experiências de outros setores públicos e de
associações da sociedade civil com vasta
experiência em trabalhos participativos no
nível local, municipal ou estadual.
Estimular a priorização do público a ser aten-
dido e o compartilhamento de responsabili-
dades pressupõe acordos voltados para ações
comuns e complementares entre órgãos go-
vernamentais e organizações não-governa-
mentais. Um desafio ainda a ser superado
por ambos os tipos de instituição é a intro-
dução de novos processos lógicos que trans-
formem microexperiências em experiências
mais abrangentes (macroexperiências), que
permitam a superação da tendência para
prescrever, ensinar e transmitir conceitos e
práticas ao educando e que utilizem a expe-
riência de vida, os saberes, os conhecimen-
tos, as informações, os valores e as atitudes
dos educandos, tanto jovens quanto adultos.
Como reposicionar o educador
de jovens e adultos em uma
profissão compatível com uma
educação entre pessoas
adultas?
1. Entendendo que o jovem e o adulto, tanto
individual como socialmente,o atores
sociais com conhecimentos, informações,
habilidades, valores e atitudes - produto
de sua experiência de vida - e com baga-
gens significativas de sua história pessoal
e coletiva.
2. Admitindo que todos os elementos que os
participantes trazem consigoo factíveis
de ser intercambiados, fortalecidos e
redefinidos e que isso somente será possí-
vel na medida em que esses participantes
forem capazes de analisar esses elementos
de forma crítica e de buscar novas infor-
mações, novos conhecimentos, novas ha-
bilidades, novos valores e novas atitudes
que satisfaçam suas necessidades de
aprendizagem.
3. Partindo do pressuposto de que o aporte
pedagógico central dos educadores da EIA
é gerar mecanismos de formação que per-
mitam ao participante:
criticar os elementos que constituem
suas experiências de vida;
buscar as informações e os conhecimen-
tos necessários para gerar habilidades,
valores e atitudes que afirmem sua con-
dição de sujeito em processo de transfor-
mação;
confrontar essas novas informações, es-
ses novos conhecimentos e valores com
aqueles que possui, os quais foram anali-
sados de forma crítica;
reconstruir sua competência pessoal e
coletiva em uma síntese teórica e prática
específica, que o habilite a superar a pro-
blemática reconhecida (e que serviu de
base para o processo educativo).
4. Preparando o educador como gerador de
processos pedagógicos que permitam rea-
lizar uma educação entre adultos, com os
jovens e os adultos em formação.
Como preparar esse educador
de jovens e adultos?
Há que se fazer uma dupla aproximação
estratégica entre a capacitação para o exercício
da profissão e a formação inicial de novos edu-
cadores de EJA.
Ambas as modalidades de formação exigem
a definição, nos programas de EJA, do caráter
da formação específica desse educador bem
como das novas conceituações políticas, estra-
tégicas, institucionais e metodológicas que in-
tegram as definições e os processos subjacentes
à modernização econômica e sociopolítica de
nossos países.
Essa perspectiva deveria ir além das propostas
de re-profissionalização regular e/ou capacitação
para o exercício da profissão, geralmente ofereci-
das pelos centros de formação gerados nos siste-
mas educacionais. Será necessário superarem-se
tanto a insistência da visão "escolarizante" quanto
os mecanismos pedagógicos que continuam a ig-
norar a especificidade da demanda por parte de
participantes jovens e adultos.
o desenvolvimento de novos projetos de
"formação para o exercício da profissão" para
educadores que assumirem essas tarefas deve-
riam levar em conta - teórica e operacional-
mente - a necessidade de aprofundar pelo me-
nos os três aspectos seguintes:
Por um lado, as hipóteses teóricas ou
metodológicas nas quais devem estar
apoiadas a nova EJA e a própria formação
específica de seus educadores.
Por outro lado, determinar as "demandas
dos educadores de EJA" em relação a suas
novas tarefas de educar jovens e adultos ca-
rentes.
Finalmente, formular as perguntas que de-
verão orientar tanto as estratégias de
capacitação quanto os processos pedagógi-
cos que inspirem as políticas e as práticas
de formação/aprimoramento, à luz dos no-
vos desafios da EJA na América Latina.
As estratégias e metodologias que deveriam
orientar as políticas de formação inicial dos
novos educadores de EJAo deveriam referir-
se apenas a certas "adaptações curriculares" de
planos e programas de formação, mas também
tentar modificar radicalmente esse tipo tradi-
cional de formação de professores. Do mesmo
modo, a formação de seus professores deveria
ajudar a EJA a superar o atual isolamento das
instituições públicas de ensino para jovens e
adultos em relação a outras experiências insti-
tucionais que possam enriquecer sua imple-
mentação.
Nesse sentido, sugere-se considerar aspec-
tos como os que seguem:
Estudar a possibilidade de vincular e inte-
grar a formação de educadores regulares
valendo-se de experiências de formação de
"educadores polivalentes", capazes de traba-
lhar com crianças, jovens e adultos, capa-
zes de organizar projetos educativos e de
trabalhar com suas próprias comunidades,
capazes de estimular a participação ativa
dos pais e a educação de seus filhos.
Na política pública destinada à formação de
educadores de jovens e adultos,o se pode
continuar a privilegiar objetivos ligados ex-
clusivamente à recuperação de uma esco-
laridade compensatória. A confluência da
satisfação das necessidades de formação
dos jovens e adultos exige que o participan-
te seja considerado na multiplicidade de
funções "protagonísticas" que lhes cabe de-
sempenhar, tanto em sua condição de agen-
te produtor de bens (materiais e culturais)
como em sua situação de reprodutor social
de bem-estar cultural e material.
Caracterizar os processos educativos que
operacionalizem as estratégias metodoló-
gicas da formação de educadores de EJA,
enfatizando-se: a) as necessidades educa-
cionais dos participantes como sujeitos so-
ciais; b) os modelos curriculares que sirvam
a uma concepção e a uma ação educacio-
nais entre adultos; c) os modelos de avalia-
ção e controle dos processos de aprendiza-
gem; d) os mecanismos de gestão educacio-
nal que propiciem a maior participação dos
sujeitos em formação; e) a crescente intro-
dução de tecnologias e meios educacionais
que conduzam à autonomia na aprendiza-
gem.
Refletir sobre os modelos de formação, no
sentido de esclarecer as opções teóricas que
condicionam as práticas de formação e que
possam responder a perguntas como:
- Qual a situação dos modelos tradicionais
ante os modelos personalizados?
- Como avaliar experiências sociais versus
saberes pertinentes para os jovens de ori-
gem popular nas escolas?
- As escolas e a aprendizagemo funda-
mentalmente eficientes?
- A autonomia institucional está vinculada
à transformação social do desenvolvimen-
to local?
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
Determinar os processos pedagógicos que
o prioridade às relações teoria/prática
de formação social, à heterogeneidade de
saberes e à integração de conhecimentos,
à dimensão de modalidades de formação
não-presenciais, com especial ênfase sobre
a produção de material educativo auto-ins-
trucional e sobre a coordenação com ou-
tros atores sociais e econômicos que os cor-
roborem.
Novos requisitos de
aprendizagem na Educação
de Jovens e Adultos
o impacto das novas condições sociais, eco-
nômicas e políticas dos países latino-america-
nos, nas políticas e nos programas educativos
destinados a jovens e adultos, deve repercutir
de modo direto na situação profissional dos
professores encarregados desses programas.
Tanto a Conferência Internacional sobre
Educação de Adultos realizada em Hamburgo
(1998) como a estratégia de acompanhamento
adotada nos países da América Latina possibi-
litaram uma nova agenda da Educação de Jo-
vens e Adultos.
Será indispensável, em primeiro lugar, in-
cluir, nos programas de estudos e nas novas es-
tratégias de formação de educadores de jovens
e adultos latino-americanos, a associação dire-
ta da EJA com um conceito de educação per-
manente, ou educação que persistirá por toda
a vida, como parte da redefinição dos concei-
tos educacionais em curso, superando a atual
associação restrita a práticas escolarizadas.
É importante destacarem, como inspiração
para a formação de educadores de EJA, as se-
guintes agendas temáticas definidas como
prioritárias na EJA regional:
a. A alfabetização considerada como acesso
à cultura escrita, à educação básica e à in-
formação.
b. A vinculação da EJA ao trabalho, tendo
como referência básica as reais possibi-
lidades da EJA nos locais de produção e
seu potencial para a melhoria da quali-
dade de vida da população em situação
de pobreza.
c. A educação cidadã, os direitos humanos e a
participação de jovens e adultos,
enfatizando-se a formação em valores de-
mocráticos e o efetivo exercício das res-
ponsabilidades e dos direitos humanos.
d. A EJA voltada para populações rurais e in-
dígenas, com o objetivo de revigorar o tra-
balho produtivo e organizacional em áre-
as rurais e de ratificar e solidificar culturas
e identidades indígenas.
e. A afirmação dos jovens como público
prioritário da modalidade educativa EJA,
assumindo suas próprias particularidades,
necessidades, diversidades e realidades,
com ênfase especial sobre sua vinculação
com o trabalho produtivo, sua maior inser-
ção como cidadãos e a conclusão de sua
educação básica e secundária.
f. Incorporar a igualdade de gênero à EJA, re-
conhecendo as participantes do sexo femi-
nino como sujeitos sociais com direito de
desenvolver seus conceitos, suas idéias e
seus interesses singulares, bem como pos-
sibilitando uma redistribuição mais justa
de responsabilidades.
g. Finalmente, associar intimamente os con-
teúdos e as atividades da EJA a um desen-
volvimento local e sustentável. Trata-se,
aqui, de atribuir novo valor à importân-
cia do local e à necessidade de construir
sociedades locais em um mundo que se
globaliza, e de afirmar a idéia de desen-
volvimento associada a uma geração de
capacidades em permanente diálogo com
a natureza.
Considerações finais
Uma "re"-valorização da situação profis-
sional dos docentes de EJA exige a supera-
ção da atual situação de abandono oficial
em que se encontra a Educação de Jovens e
Adultos e também que sociedades, governos
- sobretudo estes últimos - destinem os es-
forços e recursos necessários para igualar e
incrementar os serviços educacionais ofe-
recidos às camadas mais carentes das zonas
rurais e urbanas, aos núcleos indígenas e,
em geral, a todos os excluídos dos benefí-
cios de uma sólida educação básica.
Vale destacar que o Plano Regional de Ação
latino-americano apresentado no Fórum Mun-
dial de Dakar (2000) estabelece seis objetivos a
serem alcançados na primeira década do sécu-
lo que inicia. Dois desses seis objetivos estão
diretamente relacionados com a EJA:
Proporcionar um acesso eqüitativo aos pro-
gramas de educação básica e permanente
para adultos e, no transcorrer do presente
decênio, reduzir pelo menos à metade as
atuais disparidades entre os gêneros.
Zelar para que as necessidades de aprendi-
zagem de todos os jovens sejam satisfeitas,
mediante um acesso eqüitativo a uma
aprendizagem adequada e a programas de
Maria Dulce Borges
Unesco/Brasil
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) deve
ser vistao apenas como uma atividade suple-
tiva, mas como uma educação permanente in-
cluindo necessariamente uma formação sólida
que permita o desenvolvimento de conhecimen-
tos específicos, suscetíveis de serem comprova-
dos em atividades concretas. Essa é uma das
conclusões de um estudo conduzido pela
Unesco em sete países da América Latina, inclu-
indo o Brasil, publicado sob o título Alfabetismo
funcional em sete países da América Latina.
A década de 1990 foi testemunha de um cres-
cimento exponencial na demanda de educação.
Indivíduos, economias e sociedades viram-se
praticamente forçados a elevar os níveis de edu-
aquisição de competências práticas.
Da mesma forma, segundo o Pronunciamen-
to Latino-Americano feito por um numeroso
grupo de educadores e intelectuais latino-ame-
ricanos, "enquantoo se oferecer uma educa-
ção de melhor qualidade aos menos favorecidos
eo se assegurar uma educação igualitária a
homens e mulheres, dificilmente poderemos
avançar na meta de lograr eqüidade educacio-
nal e, sem eqüidade educacional, dificilmente
avançaremos na conquista da justiça social".
A existência de professores mais qualificados,
para que jovens e adultos possam receber uma
educação de melhor qualidade, está diretamen-
te relacionada à execução plena dessas priorida-
des bem como à satisfação dessas demandas.
cação, o que teve como conseqüência um cres-
cimento da participação individual e coletiva,
num leque cada vez maior de atividades de
aprendizagem envolvendo pessoas de todas as
idades, sem a preocupação de tempo e de lugar.
O desafio recorrente da formação de pro-
fessores estava colocado com muito mais
acuidade e complexidade que nunca. Nos paí-
ses que participaram na avaliação dos indica-
dores de educação* cujo relatório foi publica-
do no texto da OCDE em colaboração com a
Unesco - Professores para as escolas de amanhã
-, os professores representam uma proporção
alta da força de trabalho em geral. Em média,
um em cada 25 trabalhadores de todos os seto-
Educação de Jovens e Adultos
e formação de professores
Dezoito países: Argentina. Brasil, Chile. China. Egito, índia. Indonésia, Jordânia, Malásia, Paraguai, Peru, Filipinas. Rússia, Sri Lanka,
Tailândia, Tunísia. Uruguai e Zimbábue.
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
res é professor; além disso, os professoreso
em geral os trabalhadores mais qualificados:
mais de metade dos trabalhadores com ensino
superior trabalha em educação.
No entanto, a grande questãoo está ape-
nas na formação de professores, mas em como
criar condições para retê-los no sistema.
Na realidade, as expectativas em relação ao
papel do professor continuam altas apesar, ou por
causa, de todo o desenvolvimento tecnológico. Do
professor se exige que, além de ser competente,
atualize seus conhecimentos em alta velocidade
e que, para além de suas capacidades técnicas e
pedagógicas, saiba lidar individualmente com
alunos como pessoas, com seus valores e cultu-
ras próprias. Essas expectativas da sociedade em
geralm atingido níveis que se confrontam com
a própria "profissionalidade" do professor.
Analisemos rapidamente este termo relativa-
mente novo - profissionalidade. A partir de que
momento um ofício passa a ser uma profissão?
Estudos realizados nomeadamente em
França, mostram que passamos a ser profissio-
nais quando deixamos de seguir regras
preestabelecidas e passamos a ter estratégias
que seguem determinados objetivos dentro de
uma certa ética. Ou seja, de modo abstrato e
bastante genérico, há pelo menos três níveis de
diferença entre ofício e profissão: uma primei-
ra diferença no tipo de ocupação (manual e in-
telectual ou artística); uma segunda diferença
na natureza do saber, misterioso para o ofício e
publicamente dominado e professado para a
profissão; e uma terceira ligada à legitimação
social, que depende da utilidade para o ofício e
do prestígio para a profissão. Exemplos flagran-
tes de profissões que seguem esses critérios são,
por exemplo, a advocacia e a medicina.
Um processo de profissionalização deve
transformar um ofício numa profissão, um ar-
tesão num profissional; mais propriamente,
profissionalização é um processo de racionali-
zação dos saberes. Um profissional é uma pes-
soa que adquiriu competências específicas,
especializadas, com base em saberes racionais
reconhecidos, legitimados pela universidade e
pelo exercício.
o profissional responde, adapta-se à de-
manda, ao contexto, a problemas complexos e
variados, tem autonomia e responsabilidade
pessoal, insere-se em normas coletivas que lhe
o identidade profissional e num grupo que
desenvolve estratégias de promoção, de valori-
zação e de legitimação.
Para a função docente o processo é igual. Ou
deveria ser igual. Isto é, teoricamente, o pro-
fessor é um profissional quando a atuação dele
obedece aos critérios de racionalização dos sa-
beres e de legitimação social, sumariamente
descritos acima, que definem uma profissão.
A formação tem, assim, uma importância
crítica na profissionalização do professor. Ela é
um dos suportes da trilogia ação/formação/
pesquisa e da articulação entre suas respecti-
vas lógicas na busca de uma mudança qualita-
tiva que envolva a reflexão sobre valores, nor-
mas, modelos.
A profissionalidade é tudo o que está para
além da profissionalização, é o que está na base
da mudança, na consciência de si e dos outros,
no desejo ou motivação para a função e na com-
preensão da significação do que se faz. Ela, a
profissionalidade, é também um dos fatores
mais presentes na capacidade dos governos de
atrair e reter professores qualificados na pro-
fissão, o que por sua vez influi na capacidade
de captar os melhores estudantes para se tor-
narem professores.
Vejamos um pouco essa questão da reten-
ção de professores, que afeta de maneira mui-
tas vezes dramática a educação e a alfabetiza-
ção de adultos.
Por força do direito de todos à educação, os
sistemas educativos expandiram-se mundial-
mente, o que exacerbou a necessidade de pro-
fessores qualificados para atender o nível pri-
mário e, sobretudo, o nível secundário, atual-
mente sob pressão em quase todas as latitudes.
O equilíbrio entre o que se espera dos profes-
sores e o que lhes é oferecido em troca tem gran-
de impacto na força de trabalho docente e na
qualidade desse trabalho. Alguns países do Nor-
te desenvolvido estão mesmo encarando a pos-
sibilidade de atrair professores qualificados de
outros países, já que os profissionais nacionais
estão pouco a pouco perdendo a motivação
para esse trabalho! A constatação é que 30% do
total do corpo docente deixam a profissão an-
tes de completar cinco anos (nos centros urba-
nos essa porcentagem sobe para 50%!).
Apesar de o papel dos professores ser reco-
nhecido na sociedade, ainda há dificuldade em
assumir que a qualidade tem um preço. Nem
todos podem exercer a função docente, e nenhu-
ma associação profissional aceitaria entre seus
pares candidatos despreparados para a função.
Falando de desenvolvimento da EJA, essa
questão do recrutamento e da retenção de pro-
fessores qualificados torna-se ainda mais críti-
ca, já que nem sempre os recursos financeiros
disponíveis num determinado país permitem a
implementação de uma educação verdadeira-
mente para todos, crianças, jovens e adultos. No
entanto, à medida que cresce o papel da edu-
cação na dinâmica das sociedades modernas,
ela, a educação, ocupa cada vez mais lugar, na
vida dos indivíduos, ao longo de toda a vida.
Deixou de existir a delimitação de tempo, ida-
de ou lugar, para aprendermos, para nos quali-
ficarmos - a competência passou a ser
evolutiva, exigindo um grau elevado de adap-
tabilidade. É o que se chama comumente o
continuum educativo. A EIA constitui, assim,
uma excelente ocasião para abordar questões
ligadas ao meio ambiente e à saúde, à educa-
ção em matéria de população, à educação para
os valores e culturas diferentes.
o nível de participação do adulto na vida da
nação depende em larga medida do nível de es-
colaridade anterior, que produz um efeito cu-
mulativo reconhecido por todos: quanto mais
escolarizado o indivíduo, mais vontade ele tem
de aprender. Por isso os progressos na escolari-
zação de jovens, os progressos na alfabetização
de adultos e qualquer impulsao à educação-
sica estimulam eo estimulados pelo cresci-
mento da demanda de educação de adultos, nas
sociedades de hoje e de amanhã. Daí que o anal-
fabetismo nos países em via de desenvolvimen-
to, o iletrismo nos países desenvolvidos e os li-
mites da educação permanente constituem ver-
dadeiros obstáculos a políticas de promoção de
eqüidade e igualdade.
Nesse processo, o que é que, racionalmente,
a sociedade pode esperar dos seus professores?
Que nível de exigência é preciso colocar no tra-
balho que fazem? Que contrapartida podem os
professores pretender - condições de trabalho,
direitos, estatuto - na sociedade? E a grande per-
gunta: quem pode ser um bom professor e como
encontrar essa pessoa, formá-la, preservar a sua
motivação e a qualidade do seu ensino?
Teve lugar, de 5 a 8 de setembro de 2001, em
Genebra, no Bureau Internacional da Educação
da Unesco, a 46
ê
Conferência Internacional de
Educação, dedicada ao tema "Educação para
todos para aprender a viver juntos". As conclu-
sões dos debates, das sessões plenárias e das
oficinas que se realizaram durante a Conferên-
cia, preparadas para os organismos governa-
mentais e não-governamentais, para os profes-
sores e suas organizações, para a mídia e todos
os parceiros da sociedade civil interessados na
qualidade e na pertinência da educação e em
seu potencial para levar indivíduos e socieda-
des a aprenderem a viver juntos, foram de gran-
de relevância e oportunidade marcante - sobre-
tudo se pensarmos nos acontecimentos ocorri-
dos em setembro. É evidente que há urgência
cada vez maior de pormos de pé o conceito de
"aprender a viver juntos", um dos pilares da edu-
cação, tal como definidos pelo Relatório Inter-
nacional da Unesco, publicado sob o título Edu-
cação, um tesouro a descobrir.
o há dúvida de que o direito de todos à
educação ainda tem um longo caminho a per-
correr, apesar da certeza generalizada que se
tem hoje de que a educação é o caminho para
combater a pobreza e promover a participação
de todos nos níveis político, social e cultural.
No entanto, o objetivo da educação para todos
vai além da universalização pura e simples. Em
cada país a luta pela coesão social e contra a
desigualdade, o respeito pela diversidade cul-
tural e o acesso a uma sociedade do conheci-
mento, que pode ser facilitada pelas tecnologias
de informação e comunicação, estão direta-
mente relacionadas com a qualidade da educa-
ção. A própria diversidade lingüística e o fosso
ainda existente no âmbito do desenvolvimento
científico e tecnológico dependem muito des-
sa qualidade da educação.
Nesse contexto, as reformaso mais pro-
cesso que produto. O importante, paralelamen-
te à definição dos conteúdos, continua sendo o
envolvimento de todos os atores.
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
Sendo assim, à parte a necessidade de se
fazer um levantamento das práticas de ensino
e aprendizagem na linha do aprender a viver
juntos, visando seu estudo e divulgação mes-
mo em nível nacional, os processos de reforma
devem necessariamente facilitar e promover o
envolvimento de professores, ao mesmo tem-
po que a área da formação deve desenvolver
com os professores os comportamentos, as ati-
tudes e os valores que se quer ver praticados
pelos alunos, no âmbito do respeito à diversi-
dade. O uso das tecnologias de informação e
comunicação na formação e na sala de aula con-
tribuirão também para a mudança necessária
da relação aluno/professor, acompanhando a
evolução da sociedade nos últimos tempos.
o nos esqueçamos de que a educaçãoo
pode estar sozinha nesse processo de aprendi-
zagem coletiva, para melhor viver juntos. Os
professores, as comunidades, as famílias, o se-
tor econômico, a mídia, as ONGs e as autorida-
des intelectuais e espirituais devem trabalhar
juntos, cada um na sua área de competência,
visando a um mesmo objetivo - a construção de
sociedades diversas mas solidárias, em paz con-
sigo mesmas e com os outros.
o que pensam os professores a propósito de
tudo isso? Seria interessante e extremamente
elucidativo perguntar aos professores como eles
se vêem na sociedade e no sistema educativo e
como vêem a profissão docente, suas demandas
e incentivos, como se vêem na sala de aula. A
Unesco estaria interessada em participar de um
esforço como esse, pela importância que ele
poderia ter na definição da identidade profissio-
nal do professor e, portanto, na compreensão
ainda mais aprofundada de seu papel e de sua
profissionalidade.
A formação de educadores:
um caminho para a
transformação da educação de
pessoas jovens e adultas
Graciela Messina
Unesco/Orealc/Chile
A tese principal:
a mudança na Educação de
Jovens e Adultos começa
pelos educadores
A educação de pessoas jovens e adultas tem
enfrentado uma crise estrutural nos últimos
vinte anos: em repetidas ocasiões, discutiu-se
o sentido dessa modalidade e em diversas ou-
tras os governos privilegiaram a educação da
população escolar. No entanto, a educação de
pessoas jovens e adultas desafiou o tempo e
continuao presente quanto na década de
1960, embora enfraquecida em alguns países da
região e marginal na maioria deles.
A tese desta apresentação é que estamos
atravessando um momento favorável na Amé-
rica Latina para gerar uma transformação posi-
tiva na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Essa transformação deve começar nos pró-
prios educadores. Ela deve ser gerada por pro-
cessos integrados de formação, sistematização
e credenciamento da experiência, que possibi-
litem uma guinada radical tanto no trabalho e
na profissão docentes como na EJA.
A mudança educacional tem habitualmen-
te ocorrido a partir da concepção e da imple-
mentação de novos planos de estudo, da ela-
boração de materiais ou da implementação de
programas de formação educacional. O currí-
culo, os modelos de gestão e os materiais di-
dáticosm sido usados como estratégias para
melhorar a qualidade da educação, a qualida-
de dos sistemas educacionais, suas estruturas
e suas funções. Os sujeitosm sido relegados
a um segundo plano e tem prevalecido o pon-
to de vista do "sistema" e de sua eficiência e
eficácia. A formação dos professores tem sido
abordada da mesma maneira, vista como uma
estratégia para melhorar a qualidade dos sis-
temas educacionais, maso como um espa-
ço para o educador e seu trabalho educacio-
nal, para a reflexão e para a sistematização de
sua prática.
A formação tem-se assemelhado mais a
uma missão salvadora para educadores ca-
racterizados como pseudoprofissionais ou
semiprofissionais do que a um espaço para os
educadores se assumirem como os intelectu-
ais necessários que são, necessários para a so-
ciedade e merecidamente participantes de um
processo de aprendizagem permanente. A for-
mação tampouco tem sido vista como parte le-
gítima do trabalho docente e integrada a ele
como elemento da tarefa institucional e da ta-
refa coletiva dos profissionais da área. Além
disso, os educadoresm sido vistos principal-
mente como um insumo ou fator do processo
educacional, ou seja, apenas como recursos
humanos eo como sujeitos e protagonistas
da mudança educacional e social.
A principal limitação dos processos de for-
mação reside nesse enfoque "de fora para den-
tro", que privilegia mais a formação que o tra-
balho docente e que considera a formação
como um meio destinado a preparar os educa-
dores para os programas de reformas educa-
cionais. Os governosm procurado formar
professores de acordo com os requisitos das re-
formas e, assim, a formação tem sido definida
"de cima para baixo", seguindo a mesma ori-
entação daquelas.
A formação docente tem reproduzido esse
esquema e as práticas mais habituais de ino-
vação e renovação nessa áream consistido
na definição de novos perfis para os educado-
res, em mudanças nos planos de estudo, no es-
tabelecimento de conteúdos mínimos para a
formação, na elaboração de materiais, em con-
cursos de projetos para instituições de forma-
ção, no credenciamento institucional ou na
promoção de pesquisas educacionais como
requisito ou norma estabelecida a partir do
nível central dos ministérios de educação. Em
todas essas estratégias, os educadoresm sido
relegados a um segundo plano. A formação dos
formadores e o desenvolvimento de espaços de
reflexão nos próprios locais de trabalho ainda
o ações marginais.
Nesse contexto, no qual a formação tem-
se tornado cada vez mais importante como es-
tratégia de melhoramento ao mesmo tempo
que os educadores continuam sendo executo-
res eo protagonistas e em que a formação
de educadores de jovens e adultoso foi abor-
dada em toda a sua especificidade e comple-
xidade, insere-se a tese que vamos analisar.
Estamos imbuídos da visão a partir do sis-
tema, que anula os sujeitos e os encerra em
categorias de níveis e modalidades educacio-
nais, nichos chamados educação formal e
não-formal ou informal, educação inicial,-
sica, primária, secundária, superior, intercul-
tural, para adultos, e outros. A inovação edu-
cacional está ameaçada por sua própria som-
bra e, em muitos casos, corre o risco de se tor-
nar apenas cópia ou réplica de algo já produ-
zido em outro lugar, ou seja, a inovação pode
tornar-se repetição e, como qualquer repeti-
ção, ficar mais próxima das classificações
dicotômicas e autoritárias que de espaços
multidimensionais e abertos. O exposto aci-
ma insere-se num campo educacional que,
em nivel teórico, é "fraco", já que reproduz
conceitos das Ciências Naturais e segue mo-
delos explicativos mecânicos próprios do es-
tilo do modelo de insumo-produto. A produ-
ção de teorias no campo da educação, a par-
tir da prática e do diálogo interdisciplinar, é
a grande tarefa pendente sobre a qual se as-
senta o tema que estamos analisando.
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
Para transformar a educação de adultos,
precisamos questionar as categorias habituais
que nos permitem organizar nossa prática edu-
cacional e hierarquizá-la de acordo com os es-
quemas conhecidos e aceitos como naturais.
Atribuímos às normas contingentes a condi-
ção de leis da natureza. "Desnaturalizar" as
noções e os nomes que constituem o campo
da educação seria o primeiro passo para qual-
quer mudança.
A transformação da EJA produzirá mudan-
ças na educação como um todo, em sua tarefa
social e em suas relações com a vida cotidiana
e o trabalho. Para transformar a educação de
adultos, precisamos, em primeiro lugar, ques-
tionar suas fronteiras, articular suas diversas
expressões e reintegrá-la ao conjunto de pro-
cessos educacionais dos quais ela está se-
gregada ou separada. Essa é uma tarefa coleti-
va a ser levada a cabo por todos os profissio-
nais da área pensando juntos, por educadores
que estão investigando o que devem fazer.
Embora a tese aqui apresentada se baseie
na noção de que a transformação da EJA deve
ocorrer a partir dos educadores e com sua par-
ticipação, a tarefa situa-se num espaço de con-
vergência entre dois campos: a chamada "edu-
cação de adultos" e a formação docente, am-
bos em processo de revisão e debate.
A educação de adultos
A educação de adultos tem sido, desde
suas origens, um espaço com fronteiras per-
manentemente redefinidas, um espaço con-
traditório, tenso, propício tanto para a pro-
moção de novas oportunidades para grupos
excluídos e para a experimentação de novas
práticas como para a reprodução de práticas
escolarizadas e para a degradação e o empo-
brecimento dessas práticas. Há dez anos, uma
pesquisa publicada pela Unesco chamou, em
seu título, a educação básica de adultos de "a
outra educação" (Messina, 1993). Esse nome
permanece: a "outra", sempre determinada
pela educação oficial e vinculada a ela, desti-
nada às novas gerações; a "outra", para abran-
ger também a possibilidade da saída, de ser
outra e perder-se nessa singularidade, tornan-
do-se finalmente livre e legítima para criar sua
própria configuração.
A educação de adultos tem sido caracteri-
zada pelo princípio da "compensação" e usa-
da como um ato de "reparação" social princi-
palmente pela escolaridadeo alcançada por
parte da população adulta. Desde sua origem,
a educação de adultos tem estado vinculada
aos setores sociais mais excluídos. Educação
de adultos é um nome que oculta o que todos
sabemos: que seus únicos destinatáriosm
sido adultos em situação de pobreza e que, na
maioria dos casos, tem consistido em esforços
orientados pela perspectiva compensatória
("uma educação pobre para pobres").
Os sistemas educacionais foram organiza-
dos para formar as novas gerações por meio de
uma instituição especializada, a escola, que
distribui a educação de acordo com a classe
social e com outras formas de classificação-
discriminação. Nesse marco, a educação de
adultos tem sido a educação dos que estão
"fora", uma tarefa definida como "supletiva" ou
"compensatória", concebida para reparara fal-
ta de oportunidades dos grupos queo tive-
ram acesso à escola ouo puderam continu-
ar seus estudos numa instituição escolar. Em
sua aplicação, uma parte da educação de adul-
tos cumpriu seu mandato social como "educa-
ção compensatória" e outra se desvinculou
desse mandato e se comprometeu com os se-
tores sociais excluídos. A educação popular
deste século faz parte dessa educação de adul-
tos que procura um outro caminho. A pedago-
gia da libertação, promulgada por Paulo Freire,
e a educação popular, construída a partir da
teoria e da prática freireanas, caracterizam-se
por sua explícita intencionalidade política de
conscientizar e promover a organização dos
setores populares (Garcia Huidobro, 1994).
Desde a década de 1960, observamos a convi-
vência de duas práticas de educação de adul-
tos: uma compensatória e outra vinculada aos
setores excluídos e a suas organizações.
Considerada em seu conjunto, a educação
de adultos tem sido um espaço educacional
heterogêneo, fragmentado e sensível a mudan-
ças políticas e sociais; retrai-se em tempos de
ditadura e expande-se em períodos de demo-
cracia formal, em tempos de mobilização po-
pular. Ao mesmo tempo, tem constituído um
foco de atenção educacional e de atrito social
para os setores mais vulneráveis.
No entanto, a educação de adultos apresen-
ta-se com uma configuraçãoo diversificada
quanto a enfoques, instituições e programas
queo seria válido, na América Latina, abordá-
la como uma "educação de adultos em geral".
Devemos considerá-la fazendo referência a eta-
pas, países, grupos de países, modalidades,
ações do Estado ou da sociedade civil. Nesse
contexto, a primeira diferença significativa
pode ser identificada entre duas produções que
coexistem e se contrapõem na década de 1980
e começam a se complementar na década de
1990: os programas do Estado e os programas
da sociedade civil.
Na maioria dos países, a educação de adul-
tos oferecida pelo Estado tem sidoo apenas
compensatória, mas também seletiva. Sua ofer-
ta concentrou-se nos centros urbanos e os gru-
pos mais excluídos ("os pobres dos pobres")o
tiveram acesso a ela. Por sua vez, as pesquisas
indicam que as mulheres preferem participar de
programas comunitários de alfabetização ou de
capacitação para ofícios domésticos, enquanto
os homens predominam na educação básica e
secundária formal e nos programas de educa-
ção profissionalizante de grande porte (Pieck,
1996). Na educação básica formal de adultos,
participam em maior número pessoas que já
m alguma escolaridade ou que foram expul-
sas da escola recentemente. A educação secun-
dária ou de segundo grau de adultos conta com
um número maior de estudantes que a educa-
ção básica, comprovando que a escolaridade
prévia condiciona a participação na educação
de adultos (Messina, 1993). A educação-traba-
lho para os setores mais excluídos continuou
sendo terra de ninguém na década de 1990
(Pieck, 2000), da mesma maneira que a educa-
ção pós-alfabetização esteve desconectada do
trabalho na década de 1980 (Schmelkes, 1988).
Nesse marco, a educação de adultos apresenta-
se como uma modalidade na qual predominam
os jovens e na qual os "adultos adultos" e os
adultos mais velhosm pouca ou nenhuma
participação.
Além de compensatória e seletiva, a educa-
ção de adultos tem desempenhado papel mar-
ginal no conjunto das ações dos países da re-
gião e nas reformas implementadas na década
de 1990. Desempenhou um papel marginal,
também, em projetos regionais ou internacio-
nais de longo prazo implementados na Améri-
ca Latina, como o Projeto Principal de Educa-
ção para a América Latina e o Caribe - PPE
(1980-2000) e a proposta da Educação para To-
dos (1990-2000).
o PPE, definido na reunião de ministros de
Educação realizada no México em 1979, resul-
tou de um grande desejo dos governos da re-
gião de trabalhar em conjunto. Esse projeto
contemplava uma proposta de "educação para
todos" organizada em torno da educação bási-
ca e inserida na linha da educação permanen-
te. Desde suas origens, o PPE propôs-se a dar
uma resposta ao analfabetismo e a melhorar a
oferta da educação de adultos. Sua proposta
original compromete-se com os setores mais
excluídos e assume a perspectiva de "eliminar"
o analfabetismo e "ampliar os serviços" da edu-
cação de adultos. Esse enfoque reduz o analfa-
betismo a um sintoma e a educação de adultos
a uma oferta que deve ser ampliada, com base
na mesma lógica que imperou para o sistema
educacional formal: a expansão da cobertura.
Além disso, o discurso e a prática do PPE con-
centraram-se progressivamente, nas duas últi-
mas décadas, no sistema educacional formal, na
escola e nos processos de ensino e aprendiza-
gem.
Essa posição secundária desenvolveu-se de
tal forma que, em alguns países, a educação de
adultos descentralizou-se a ponto de dissolver
as estruturas nacionais da modalidade (Argen-
tina, dissolução da Dinea) Em outros países, no
entanto, foram mantidas estruturas fortes e
centralizadas, com uma gestão progressiva-
mente descentralizada (Inea, México; Conafe;
outras instituições). Nesse sentido, o interesse
do Estado em relação à educação de adultos é
muito diferente na região. Nos países em que
continua funcionando como um espaço "regu-
lar", a educação de adultos é um espaço "à par-
te". Em alguns países a segregação éo acen-
tuada que foi definida em lei como um "regime
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
educacional especial", como a educação espe-
cial, a educação artística e a educação para po-
pulações indígenas.
Marginal, compensatória, seletiva e segre-
gada: esses atributos se conjugam e definem um
espaço para a educação de adultos. A con-
trapartida social é um alto contingente de jo-
vens e adultos queo analfabetos ouo che-
garam a concluir o primeiro grau. Segundo es-
timativas da Unesco, essa população totalizava
150 milhões no início da década de 1990 e se
manteve nos mesmos níveis até o final dessa
década. Ainda de acordo com essas mesmas
estimativas, a maioria desses jovens e adultos
vive no Brasil e no México. Essa demanda silen-
ciosa - queo demanda - deve ser alvo da ta-
refa que precisamos levar a cabo. É a partir des-
sa caracterização que devemos abordar a for-
mação dos docentes.
Um outro aspecto fundamental a ser leva-
do em consideração ao se falar sobre a forma-
ção dos educadores de adultos é o fato de o cha-
mado "analfabetismo" incluir tanto as popula-
ções que desconhecem a escrita da língua ofi-
cial (os chamados "analfabetos absolutos")
como as populações cuja escolaridade é insufi-
ciente para possibilitar sua inclusão na socie-
dade (os chamados analfabetos funcionais, cujo
indicador é a escolaridade básica incompleta,
assumindo-se a conclusão de sete séries como
elemento discriminador) (Infante, 2000).
Além disso, o analfabetismo de indivíduos e
grupos é sempre um "problema" social, um sin-
toma de exclusão social e de colonização cultu-
ral queo pode ser reduzido a habilidades de
aprendizagem ou a competências sociais. No
mesmo sentido, a alfabetizaçãoo se resume à
possibilidade de ter acesso a um código e de
administrá-lo: ela implica a capacidade de pen-
sar a partir de um código e a possibilidade de
poder contar com espaços de trabalho e famili-
ares nos quais a língua escrita faça parte da vida
cotidiana. A formação docente deve contemplar
a preparação para essa maneira de conceber e
contextualizar o analfabetismo e a alfabetização.
É importante, também, que concebamos a alfa-
betização como elemento da distribuição social
do conhecimento. Ser alfabetizado é condição
necessária para participar da produção e da cir-
culação do conhecimento e também do mundo
do trabalho e dos sistemas de poder (Infante,
2000; Kalman, 2000).
A educação de adultos caracteriza-se pela
heterogeneidade e fragmentação, desde as cam-
panhas maciças de alfabetização até os progra-
mas de continuação de estudos primários ou
básicos e secundários e os programas de edu-
cação profissionalizante. Embora os países se
tenham proposto a criar sistemas integrados de
educação de adultos, suas diferentes modalida-
des continuam, na prática, desvinculadas.
Essa desarticulação se soma à exclusão en-
frentada pela maioria dos países. Além disso, a
falta de ações intersetoriais parece caracterizar
a educação de adultos: enquanto os Ministérios
da Educação ou instituições semelhantes se
encarregam da alfabetização e da educação for-
mal de adultos, os Ministérios do Trabalho e os
institutos de formação profissional assumem a
educação profissionalizante. Embora alguns
Ministérios da Mulher ou da Juventude assu-
mam tarefas de alfabetização ou de educação
profissionalizante, em convênio com Ministé-
rios da Educação ou independentemente, e
embora a atuação de Ministérios do Trabalho
ou da Mulher nessa área tenha sido registrada
como uma novidade na década de 1990, ainda
o existe uma agenda intersetorial efetiva.
Some-se a esse fato a sobreposição de uma
grande quantidade de instituições e progra-
mas. No caso da formação profissional na Amé-
rica Latina, temos um verdadeiro emaranha-
do de instituições (Gallart, 2000) e no México
a situação é semelhante (Pieck, 1996). Ao mes-
mo tempo, os governos optaram, no campo da
educação de adultos, por políticas de "omis-
são" (não fazer nada e direcionar recursos para
outras áreas), de eliminação (dissolução de es-
truturas, centros e programas) ou de emergên-
cia (programas maciços de curto prazo cen-
trados em resultados rápidos eo em proces-
sos). Tanto as campanhas de alfabetização
como os programas de educação profissiona-
lizanteo exemplos de ações desse tipo. O ob-
jetivo das campanhas é que as pessoas mudem
de categoria, a saber, da categoria de analfabe-
tas à de alfabetizadas; e os programas profissio-
nalizantes do estilo acima mencionado obje-
tivam também uma mudança na classificação
das pessoas: de desempregadas a "inseridas no
mercado de trabalho".
Já afirmamos anteriormente que a educa-
ção de adultos tem estado sujeita a um proces-
so de permanente redefinição de suas frontei-
ras. Na década de 1990, o termo "educação de
adultos" foi alterado para "educação de jovens
e adultos", em decorrência da presença majori-
tária de jovens nessa modalidade, fato confir-
mado por pesquisas educacionais (estudo re-
gional da Unesco em 13 países, sobre a educa-
ção básica de adultos; cf. Messina, 1993).
Durante o processo de acompanhamento
regional da Conferência Mundial sobre a Educa-
ção de Adultos (ConfinteaV, Hamburgo, 1997),
que gerou um foro permanente entre 1998-2000,
coordenado e impulsionado pela Unesco/Crefal/
Ceaal/Inea, surge um novo nome: "educação de
pessoas jovens e adultas", para levar em consi-
deração a dimensão do gênero.
A preocupação com as fronteiras dessa mo-
dalidade educacional vai além de denomina-
ções e referências a seus destinatários. No pro-
cesso de acompanhamento da ConfinteaV, hou-
ve um questionamento radical em relação ao
campo da EJA. Argumentou-se que: a) a EJA tor-
nou-se uma referência abstrata, já que jovens e
adultos estão em todos os espaços; b) a EJA rei-
vindica espaços nos quais instituições setoriais
já estão atuando; c) é necessário pensar na EJA
como algo que vai além da alfabetização, da
educação básica ou dos cursos profissio-
nalizantes; d) a articulaçãoo pode limitar-se
a vinculações curriculares e deve envolver ne-
xos institucionais; e) a necessidade de repen-
sar a EJA abre-nos diferentes alternativas, que
incluem sua conservação como modalidade,
complexas articulações entre seus distintos pro-
gramas e submodalidades e sua dissolução em
algo novo e inédito; f) essas transformações
devem ser promovidas mantendo-se o compro-
misso com os setores mais excluídos. Esses de-
bates, que continuam em andamento, foram
parcialmente assumidos por um documento
redigido numa reunião regional organizada pela
Unesco (Marco Regional de Ação, 2000).
Com base nessas reflexões, precisamos nos
perguntar até que ponto a educação de adultos
é uma categoria criada a partir de uma perspec-
tiva da educação como uma soma de progra-
mas, muitos dos quaiso se identificam com
esse espaço (Unesco, Marco Regional de Ação,
2000). Os educadores e os instrutores de cursos
profissionalizantes identificam-se como educa-
dores de adultos, o queo acontece com os
educadores dos Ministérios da Saúde, da Mu-
lher, da Juventude e outros. Podemos pensar a
educação de adultos como algo diferente de
uma soma de alfabetização, educação básica e
cursos profissionalizantes, como programas
sobrepostos.
A necessidade de articulação éo pertinen-
te quanto manter o compromisso com os seto-
res excluídos e, ao mesmo tempo, evitar qual-
quer segregação: as propostas de uma "educa-
ção para a vida" precisam incluir essas reflexões.
A tarefa é proporcionar a pessoas que estão fora
dos sistemas educacionais a oportunidade de
reintegrar-se a eles, lógica que também é váli-
da para pensarmos a respeito da participação
dos educadores.
Os governos concentraram seus esforços na
população em idade escolar. Um novo projeto
de educação de adultos implicao apenas um
orçamento maior ou sua inclusão nos proces-
sos de reforma: ele pressupõe a redefinição dos
sistemas educacionais e da tarefa educacional
como um todo; pressupõe uma perspectiva de
educação permanente e inclusiva que conside-
re os setores mais excluídos como o centro de
suas ações sem que isso signifique oferecer uma
educação pobre para pobres.
A formação docente
o segundo núcleo a partir do qual devemos
considerar a formação dos educadores de adul-
tos é a própria formação docente. É evidente
que os educadoresm sido eternamente rele-
gados a um plano inferior numa hierarquia cujo
escalão mais baixo é a educação de adultos.
Elesm sido desfavorecidoso apenas
em termos de condições de trabalho e de salá-
rios. A questão fundamental é o abismo entre
a educação necessária em nossos tempos, as
demandas colocadas aos educadores e as con-
dições a eles proporcionadas pelo Estado. O
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
vínculo entre o magistério e o sistema educa-
cional,o forte no século XIX, hoje jáo exis-
te. Os sistemas educacionais contribuíram
para a criação e a consolidação dos estados
nacionais e os professores, por sua vez, foram
"a mão" dos sistemas educacionais, uma con-
gregação leiga disposta a executar um manda-
to e uma doutrina. Os sistemas educacionais
parecem ter-se esquecido de que precisarão de
seus professores. Pode-se conjeturar queo
se trata de uma confusão, e sim de uma opção
sistemática por uma outra coisa: os meios de
comunicação e os sistemas virtuais. Nem mes-
mo os sindicatos de professores, ainda pode-
rosos em alguns países, conseguiram mudar
essa situação.
Salários baixos, condições de trabalho que
obrigam o professor a ter mais de um empre-
go, falta de uma formação sistemática e o fato
de a formaçãoo fazer parte do trabalho do-
centeo representam questionamentos legí-
timos, e sim elementos a serem organizados
para satisfazer às novas exigências do currícu-
lo e da gestão. A profissão docente tem sido
questionada e considerada um ofício ou uma
semiprofissão, enquanto o profissionalismo
tem sido visto como um processo de fora para
dentro: o processo de profissionalizar quem
o é profissional. O que se propõe, com base
em outros marcos de referência, é a promoção
do "profissionalismo" como um caminho a ser
percorrido a partir dos próprios educadores
por duas vias: a epistemológica, que implica a
sistematização a partir da reflexão da prática
docente nos espaços de grupos docentes, e a
política, ou da organização e participação dos
educadores nas políticas públicas por meio dos
sindicatos de professores (Hargreaves; Pérez
Gómez, outros). Embora prevejam a participa-
ção de docentes, as reformas a limitam ao
âmbito da escola eo permitem que os pro-
fessores participem efetivamente na definição
dos projetos educacionais nacionais ou das
grandes políticas educacionais e que desem-
penhem o papel que lhes cabe na educação
para a vida social.
A formação docente tem estado sujeita a
uma hierarquização formal nos últimos vinte
anos, em decorrência de duas estratégias-
sicas: a transferência à educação superior e a
ampliação dos anos de escolaridade dos pro-
gramas. Ao mesmo tempo, a profissão docen-
te continuou sendo categorizada como uma
profissão de segunda ordem no conjunto das
profissões.
Em todos os países da região, foram desen-
volvidos programas de renovação da formação
docente (inicial e continuada) na década de
1990; no entanto, a separação entre a forma-
ção inicial e a formação em serviço foi man-
tida, bem como a separação entre a escola e as
instituições de formação e entre as carreiras
que formam para os diferentes níveis e moda-
lidades do sistema educacional. A formação
docente reproduz a estrutura fragmentada do
sistema educacional.
Por último, as inovações na formação do-
cente inicialo incorporaram a problemáti-
ca da educação de pessoas jovens e adultas
nem a perspectiva da educação permanente.
A formação de educadores de adultos conti-
nuou segregada ou passou a fazer parte da for-
mação geral dos professores.
No entanto, a conjuntura atual é favorável,
já que foram introduzidas mudanças na forma-
ção docente em quase todos os países da região.
Surgiram, também, experiências de formação
nos próprios espaços de trabalho, workshops
nas escolas que, em alguns casos, geraram es-
truturas de autogestão interconectadas em re-
des. Essas experiências foram organizadas em
torno da reflexão da prática pedagógica. Em que
pesem essas "boas notícias", no entanto, a prin-
cipal limitação dos processos de formação é o
enfoque de fora para dentro, que privilegia mais
a formação que o trabalho e considera a forma-
ção como um meio para preparar os educado-
res para programas de reformas. Por essas ra-
zões, os novos modelos de formação recebem
críticas por terem sido definidos "de cima para
baixo", seguindo a orientação das reformas.
o debate sobre a formação de educadores
insere-se nesse contexto, no qual a formação
adquiriu relevância e, ao mesmo tempo, os edu-
cadores continuam sendo executores eo pro-
tagonistas e no qual a formação de educadores
de pessoas jovens e adultaso foi abordada em
toda a sua especificidade e complexidade.
A formação dos educadores de
pessoas jovens e adultas
o temos uma situação comum em todos
os países da região. Apenas alguns países estão
debatendo o tema neste momento. Além disso,
o debate se diferencia de acordo com a situa-
ção dos docentes e do papel que desempenham.
Enquanto em alguns países, como a Argentina,
os educadoreso formados e atuam como pro-
fessores da educação formal de adultos, em
outros, como México, os educadores de adul-
tos (os assessores do Inea) são, em sua maioria,
"voluntários", pessoas da comunidade, sem di-
ploma e com salários baixíssimos.
Conseqüentemente, enquanto na Argenti-
na se discute a formação inicial dos educado-
res de adultos (em que tipo de instituição, que
tipo de estrutura curricular etc), no México o
tema em questão é o credenciamento ou
certificação da experiência dos educadores de
adultos no contexto de um programa integral
de formação, sistematização e credenciamento
da experiência.
Qual é a formação inicial dos educadores de
adultos? No caso dos educadores diplomados,
eles são, em sua maioria, professores formados
nas escolas normais e nos institutos de forma-
ção, queo oferecem formação específica ini-
cial em educação de adultos. Existem poucas
carreiras em toda a região da América Latina
exclusivamente formadas para a educação de
adultos. Em outros casos, temos as carreiras de
pós-graduação. Os educadores não-diplomados
o bacharéis formados em serviço aos quais,
em alguns casos,o oferecidos cursos de pós-
graduação.
A partir desse breve diagnóstico, o que se
propõe é o seguinte:
1. Definição da tarefa em nível nacional e re-
gional (América Latina), a partir de um
amplo processo participativo que envolva
instituições educacionais e sociais e edu-
cadores, visando à identificação da com-
plexa situação da formação de professores
para a educação de adultos. Essa tarefa
pressupõe a determinação do estado atual
da educação de adultos e da formação de
educadores de adultos.
2. Criação de um espaço de diálogo e siste-
matização de experiências tanto no nível
dos países como da região (América Lati-
na), com a participação de profissionais
das diferentes instituições que atuam no
campo da educação de adultos (Ministé-
rios de Educação e outros, ONGs, univer-
sidades), educadores e sindicatos de pro-
fessores.
3. A tarefa de formação é específica e, ao
mesmo tempo, concebida para diferentes
tipos de educadores. Um de seus propósi-
tos é criar um espaço de intercâmbio, for-
mação e produção de conhecimentos en-
volvendo educadores de adultos de dife-
rentes origens e tipos de formação (edu-
cadores comunitários, educadores profis-
sionais, educadores interculturais, educa-
dores da formação profissional, outros). A
reflexão a partir da prática é um enfoque-
chave para a realização dessa tarefa.
4. A outra tarefa é integrar a problemática da
educação de pessoas jovens e adultas ao
conjunto dos programas de formação ini-
cial, promovendo, particularmente, carrei-
ras de formação de educadores com um
ciclo comum e menções, uma das quais
seria a educação de adultos. No ciclo co-
mum,o apenas se recuperaria a tradi-
ção da educação popular e a sistematiza-
ção educacional como também os estu-
dantes seriam sensibilizados para perceber
os jovens e adultos como sujeitos legítimos
de sua tarefa, desconcentrando-se das cri-
anças e encarando a educação como um
processo que envolve todas as gerações.
A reafirmação da responsabilidade do Esta-
do no campo da formação dos educadores de
adultos e da educação de adultos é o núcleo a
partir do qual estas reflexões foram organiza-
das. Além disso, a formação de educadores é o
caminho para se repensar e dinamizar a educa-
ção de adultos. Habitualmente, as mudanças
m sido geradas a partir do currículo ou do
desenvolvimento institucional, maso a par-
tir dos educadores e com eles. Estamos fazen-
do alusão a um programa integral que conjuga
a formação, a sistematização da experiência e
o credenciamento. Isso implica tanto a pesqui-
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
sa de quemo e de que necessitam os educa-
dores como a criação de uma proposta de edu-
cação de adultos que parta dos interesses e dos
conhecimentos das pessoas e que esteja orien-
tada para os setores mais excluídos. Esse pro-
cesso é o inverso da definição de perfis docen-
tes ou da predeterminação de conteúdos míni-
mos para a formação. Trata-se de uma forma-
ção docente para educadores de adultos como
sujeitos de direitos, cidadãos plenos e inter-
locutores do Estado na definição de políticas
educacionais, ou seja, o oposto de uma forma-
ção de educadores como executores de progra-
mas num espaço "sala de aula", em lugares
escolarizados, ainda queo inseridos fisica-
mente na escola. Essas propostas precisarão
estar articuladas com uma formação geral e
comum de todos os educadores e profissionais
das Ciências Sociais e de Saúde em torno da
tarefa social inadiável e específica que a educa-
ção de pessoas jovens e adultas implica.
Bibliografia
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SIMPÓSIO 8
o FUNDEF E A VALORIZAÇÃO
DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini
Oswaldo José Fernandes
o Fundef e a valorização
do Magistério
Ulysses Cidade Semeghini
Fundef/MEC
o Fundef foi criado para garantir uma
subvinculação dos recursos da educação para
o Ensino Fundamental, assim como para asse-
gurar uma melhor distribuição desses recursos.
Com esse fundo de natureza contábil, cada es-
tado e cada município recebem o equivalente
ao número de alunos matriculados na sua rede
pública do Ensino Fundamental.
Além disso, é definido um valor mínimo
nacional por aluno/ano. O Fundef foi criado
pela Emenda Constitucional n
9
14/96, regula-
mentado pela Lei nº 9.424/96 e pelo Decreto
n
9
2.264/97 e implantado automaticamente
em janeiro de 1998 em todo o país.
o Fundo é composto, no âmbito de cada
estado, por 15% das seguintes receitas:
Fundo de Participação de Estados e Muni-
cípios (FPE e FPM).
Imposto sobre Circulação de Mercadorias
e Serviços (ICMS).
Imposto sobre Produtos Industrializados,
proporcional às exportações (IPIexp).
Ressarcimento pela desoneração de ex-
portações de que trata a Lei Complemen-
tar nº 87/96 (Lei Kandir).
Complementação da União (quando neces-
sário).
Em cada estado, os recursos do Fundefo
distribuídos entre o governo estadual e os go-
vernos municipais, de acordo com o número de
alunos do Ensino Fundamental público aten-
dido em cada rede de ensino (estadual ou mu-
nicipal), conforme os dados constantes do Cen-
so Escolar do ano anterior. Esse censo é reali-
zado a cada ano pelo Instituto Nacional de Es-
tudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do MEC,
em parceria com as Secretarias Estaduais de
Educação. O valor referente ao Fundef é credi-
tado em conta específica, sempre que houver
arrecadação e repasse de recursos das fontes
que alimentam o Fundo. Ou seja, o crédito da
parcela do Fundef originária do FPM acontece
na mesma data do repasse do FPM, o mesmo
ocorrendo com relação às outras fontes.
Os recursos devem ser utilizados da seguin-
te maneira:
Sessenta por cento, no mínimo, para remu-
neração dos profissionais do magistério em
efetivo exercício no Ensino Fundamental
público. Até dezembro de 2001, parte dessa
parcela também pode ser utilizada para ha-
bilitação de professores leigos.
Quarenta por cento, no máximo, em outras
ações de manutenção e desenvolvimento do
Ensino Fundamental público, como, por
exemplo, capacitação de professores, aqui-
sição de equipamentos, reforma e melhorias
de escolas da rede de ensino e transporte
escolar.
A Lei nº 9.424/96 faculta, até dezembro de
2001, a utilização de parte da parcela dos 60%
dos recursos do Fundef na habilitação de pro-
fessores leigos. Porém é necessária a identifi-
cação desses professores com base na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
e na Resolução-CNE nº 03/97, que considera
como leigos, para efeito de atuação no Ensino
Fundamental, os professores que:
tenham apenas o Ensino Fundamental, com-
pleto ou incompleto;
lecionem para turmas de 1
a
a 4ª séries e nao
possuam o Ensino Médio, modalidade Nor-
mal (antigo Magistério);
lecionem para turmas de 5ª a 8ª séries sem
que tenham concluído o Ensino Superior, em
cursos de Licenciatura em área específica.
SIMPÓSIO 8
o Fundef e a valorização do Magistério
A partir de 2002, a possibilidade de apoiar a
habilitação de professores leigoso mais será
possível com a parcela dos 60% do Fundef. En-
tretanto todos os investimentos voltados à for-
mação inicial dos profissionais do Magistério
poderão continuar sendo financiados com a
parcela dos 40% dos recursos do Fundo.
A atualização e o aprofundamento dos co-
nhecimentos profissionais deverão ser promo-
vidos a partir de programas de aperfeiçoamen-
to profissional continuado, assegurados nos
planos de carreira do Magistério público. Po-
dem ser usados os recursos da parcela dos 40%
do Fundef, inclusive para o desenvolvimento da
formação, em Nível Superior, dos professores na
docência de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamen-
tal, obedecendo nesse caso às exigências legais
estabelecidas.
Em relação a esses cursos (queo tenham
como finalidade a habilitação do professor), o
MECo realiza o credenciamento de institui-
ções que ofereçam cursos de capacitação; no
entanto, torna-se necessária a verificação sobre
eventuais exigências relacionadas ao credencia-
mento dessas instituições nos Conselhos Esta-
duais e Municipais de Educação.
A LDB (art. 62) estabelece que os docentes
da Educação Básica deverão ser formados em
Nível Superior (Licenciatura Plena), mas admi-
te como formação mínima a de Nível Médio,
modalidade Normal, para a docência nas qua-
tro primeiras séries do Ensino Fundamental.
Dessa forma, os professores deverão, no futu-
ro, ser formados em Licenciatura específica ou
em curso Normal Superior, pois a melhoria da
qualidade do ensino constitui um compromis-
so que passa também pela valorização do Ma-
gistério. Portantoo há prazo para os sistemas
de ensino deixarem de aceitar a formação em
Nível Médio, modalidade Normal, para quem
faz parte do quadro do Magistério, com atua-
ção nas quatro primeiras séries do Ensino Fun-
damental.
Os profissionais do Magistérioo aqueles
que exercem atividades de docência e aqueles
que oferecem suporte pedagógico a tais ativi-
dades, como as de administração ou direção de
escola, planejamento, inspeção, supervisão e
orientação educacional.
o efetivo exercício é caracterizado pela exis-
tência de vínculo definido em contrato próprio,
celebrado de acordo com a legislação que dis-
ciplina a matéria e pela atuação, de fato, do pro-
fissional do Magistério no Ensino Fundamen-
tal. Os afastamentos temporários previstos na
legislação, tais como férias, licença-gestante ou
paternidade, licença para tratamento de saúde,
o caracterizam ausência ao efetivo exercício.
A legislação do Fundefo estabelece valor
mínimo (piso) ou valor máximo (teto) de salá-
rio para o Magistério. As escalas salariais deve-
o integrar o Plano de Carreira e Remunera-
ção do Magistério que cada governo (estadual
e municipal) deve implantar. Assim, os salários
serão definidos de acordo com a realidade de
cada um desses governos, ou seja, de acordo
com o número de profissionais e de alunos, a
receita, a jornada de trabalho, entre outras va-
riáveis.
o MEC, por intermédio do Fundescola, de-
senvolveu um software para auxiliar os gover-
nos que precisem criar um novo Plano de Car-
reira e Remuneração do Magistério. O progra-
ma permite a realização de criterioso estudo da
realidade do estado ou do município e a simu-
lação de alternativas de planos, tomando como
base as diretrizes e dispositivos legais vigentes.
A Lei n
9
9.424/96 estabelece a obriga-
toriedade de implantação de novos Planos de
Carreira e Remuneração para o Magistério em
estados e municípios. Portanto, se o prefeito ou
o governador aindao tomaram essa providên-
cia, a sociedade, particularmente a comunidade
escolar, deverá mobilizar-se, envolvendo o Po-
der Legislativo local, no sentido de buscar o cum-
primento desse mandamento legal.
A maior parte dos recursos do Fundef (par-
cela anual mínima de 60%) deve ser utilizada
na remuneração dos profissionais do Magisté-
rio do Ensino Fundamental, ou seja, na cober-
tura da folha de pagamento desses profissio-
nais. Assim, as tabelas salariais do Magistério
constantes do Plano de Carreira e Remunera-
ção deverão incorporar os eventuais ganhos fi-
nanceiros alcançados em razão do Fundef. Des-
sa forma, podem ser adotados mecanismos e
formas de concessão de ganhos adicionais em
favor desses profissionais, como abonos, por
exemplo, em caráter temporário e excepcional,
sempre sob o princípio da transparência e com
o respaldo legal exigido (lei municipal no caso
de rede municipal de ensino).
Com o objetivo de analisar as principais
mudanças e os avanços ocorridos em favor do
Ensino Fundamental no período compreendi-
do entre a implantação do Fundef, em janeiro
de 1998, e junho de 2000, o MEC contratou pes-
quisa amostrai nos estados e municípios. Uma
das idéias centrais na concepção do Fundo é a
valorização do Magistério, tema que orientou a
maior parte do esforço da pesquisa. A seguir,
sintetizam-se seus principais resultados, no que
se refere a salários, capacitação e aumento do
número de docentes.
Os indicadores referentes à evolução do
número de professores do Ensino Fundamen-
tal, no período de dezembro de 1997 a junho
de 2000, indicam um crescimento global nes-
se contingente da ordem de 10% - mais de 100
mil novos postos de trabalho apenas entre os
docentes, sem contar auxiliares, profissionais
de apoio administrativo e pedagógico etc. As
duas categorias mais numerosas - professores
com formação em Nível Médio (modalidade
Normal) e professores com Nível Superior (Li-
cenciatura Plena) - representavam, em junho
de 2000, cerca de 49% e 35%, respectivamen-
te, do total de professores do Ensino Funda-
mental e tiveram índices de crescimento qua-
se idênticos, cerca de 11,5% (acima da média,
portanto), em relação aos números de dezem-
bro de 1997.
Em face da permissão legal de utilização de
parte da parcela de 60% do Fundef (vinculada
ao pagamento do Magistério), para fins de ha-
bilitação de professores leigos (até o ano 2001),
nota-se que, se antes de 1998 apenas 23% das
redes de ensino desenvolviam atividades vol-
tadas à capacitação de professores leigos, em
junho de 2000 nada menos do que 73% delas o
faziam. Assim, uma das prioridades vinculadas
à criação do Fundef, que é a extinção da cate-
goria de professores leigos, com a conseqüente
melhoria na qualificação do corpo docente, está
sendo rapidamente atingida em todo o país.
Verifica-se que, se, em dezembro de 1997, pro-
fessores com formação até o Ensino Fundamen-
tal representavam 6,3% do total lecionando no
conjunto das redes públicas do país, em junho
de 2000 essa proporção já estava reduzida a
3,1%.
Ainda que se reitere que uma das metas
mais ambicionadas pelo Fundef seja a de pro-
mover a erradicação, como vem de fato ocor-
rendo, da categoria de docentes não-qualifica-
dos, os maiores percentuais de aumento aca-
baram por beneficiar os professores cuja esco-
laridade máxima era o Ensino Fundamental
completo. Isso se explica com facilidade, uma
vez que grande parcela desses profissionais re-
cebia remunerações inferiores aos requisitos
mínimos,o raro muito menores que o salá-
rio mínimo. O percentual nacional médio de
acréscimo para essa categoria situou-se entre
50 e 60%, com grande destaque para a Região
Nordeste.
Há várias formas para se obterem informa-
ções sobre o Fundef:
Os Conselhos de Acompanhamento e Con-
trole Social do Fundef (estaduais e munici-
pais) devem receber, do Poder Executivo,
relatórios periódicos de comprovação da
aplicação dos recursos. Também podem so-
licitar o extrato da conta do Fundef direta-
mente à agência do Banco do Brasil onde os
recursoso depositados.
Representantes do Legislativo local, Tribu-
nais de Contas e o Ministério Público tam-
m podem obter informações do Banco do
Brasil, quando solicitadas.
o público em geral pode ter acesso aos va-
lores repassados a estados e municípios pela
Internet, no seguinte endereço: <www.mec.
gov.br/sef/fundef>, onde é possível o aces-
so ao Banco do Brasil e à Secretaria do Te-
souro Nacional.
Nas cidades com menos de 100 mil habi-
tantes, a comunidade pode acompanhar os
valores repassados ao município em carta-
zes fixados nas agências dos Correios.
Na cartilha intitulada Fundef- Manual de
Orientação, elaborada pelo MEC e distribuída
às Secretarias de Educação dos estados e mu-
nicípios,o oferecidas orientações gerais. En-
tretanto, se necessário, pode-se procurar o De-
partamento de Acompanhamento do Fundef,
SIMPÓSIO 8
o Fundef e o valorização do Magistério
em Brasilia, pelo telefone (61) 410-8648, pelo fax
(61) 410-9283, por e-mail<[email protected]>
ou, ainda, pelo Fala Brasil (0800-616161).
Em caso de descumprimento dos dispositi-
vos legais sobre o Fundef, recomenda-se:
procurar, primeiramente, os membros do
Conselho de Acompanhamento e Controle
Social do Fundef, para que este solicite ao
responsável, se necessário, a correção das
irregularidades praticadas;
na seqüência, se necessário, procurar os
representantes do Poder Legislativo local,
para que estes, pela via da negociação ou
pela adoção de providências formais, pos-
sam buscar a solução junto ao governante
responsável;
1
ainda, se necessário, recorrer ao Ministério
Público (Promotor de Justiça), diretamente ou
com a ajuda e intermediação do Conselho do
Fundef, formalizando suas denúncias, enca-
minhando-as, também, ao respectivo Tribunal
de Contas (do estado ou dos municípios).
DEBATE
0 Fundef e a valorização
do Magistério
Oswaldo José Fernandes
Secretário Municipal de Educação, Cultura e Esportes - Jundiaí/SP
o há nenhuma possibilidade de mudan-
ça, no interior da sala de aula, queo seja por
meio do professor, eo há nenhum profes-
sor capaz de promover mudanças, dentro de
sua sala de aula, ao ser por meio da
capacitação permanente, bem como da forma-
ção de um novo quadro do Magistério, adequa-
do às exigências do novo século, do novo mi-
lênio.
Essa capacitação tem custo,o é feita gra-
tuitamente. O sistema de ensinoo pode co-
brar de seus professores qualquer coisa, ne-
nhum centavo, em relação à formação e à
capacitação - isto é inadmissível. É preciso que
os sistemas, quer municipais, estaduais ou fe-
deral de ensino, respondam de maneira soli-
dária à formação e à capacitação desses pro-
fissionais.
Qual é o papel do Fundef em relação a isso?
A instituição do Fundef encontrou resistên-
cia por parte de muita gente, estranhamente
de educadores conseqüentes, porém permitiu,
primeiro, que socializássemos parte da renda
nacional, uma vez que criou uma bolsa, um
fundo que leva as pessoas a participar de ma-
neira direta de nossa sociedade de consumo.
Outra mudança importante, além da dis-
tribuição de renda, é que ele provocou o re-
torno de professores que estavam afastados
por conta dos baixos salários, tanto no Norte e
no Nordeste quanto nos estados do Sul e do
Sudeste, pois os salários melhoraram e as pes-
soas passaram a integrar o mercado consumi-
dor, a ser cidadãs. O Fundef resgata a cidada-
nia, especialmente dos trabalhadores em edu-
cação.
Além disso, o Fundef coloca em cena o En-
sino Fundamental, que é, fazendo aqui um tro-
cadilho, como o nome diz, fundamental, im-
portante.o há quem caminhe no sentido
contrário. O Fundef permitiu que fossem
alocados recursos para a melhoria da qualida-
de de ensino. Mesmo antes do Fundef, o go-
verno Fernando Henrique Cardoso cuidava da
universalização do ensino, mas o grande dra-
ma está colocado em duas pontas: uma delas
é a da permanência, como evitar a evasão; ou-
tra é a permanência com qualidade.o basta
garantir a permanência e evitar a evasão. É pre-
ciso fazer isso com qualidade. Essa é uma ques-
o central e está relacionada, efetivamente,
com a formação do profissional, porque o alu-
noo está na escola só para aprender a ler e
a escrever, tem de aprender a viver, a somatizar
conhecimentos e isso passa pela qualidade do
professor.
o alunoo vai aprender sozinho; o profes-
sor é uma figura imprescindível na vida do es-
tudante. Ele precisa estar ali para monitorar o
conhecimento das crianças, da apropriação cul-
tural, do saber, da leitura, da Matemática, da
Literatura, dos conceitos de boa qualidade de
vida. O Fundef, colocando no cerne da questão
o Ensino Fundamental, vai permitir a médio e
longo prazos que a educação tenha outro per-
fil, porque com professores melhores qualifica-
dos, mais bem informados teremos uma socie-
dade melhor do ponto de vista do conhecimen-
to. Esse é um papel importante que o Fundef
está desenvolvendo, neste momento, nacional-
mente, no que tange à educação.
o governo federal acertou, como balizador
das políticas públicas, ao colocar na ordem do
dia a educação. Também por conta disso houve
um estímulo muito grande para a municipa-
lização do ensino. Embora sem embutir em seu
contexto de legislação, o Fundef criou facilida-
des para que os municípios, principalmente do
Sul e do Sudeste, aderissem ao processo de
municipalização. A municipalização, no caso da
educação, coloca os agentes fazedores da edu-
cação próximos dos consumidores de educação
e as duas pontas se juntam: a ponta dos fazedores
de educação e a ponta dos consumidores de edu-
cação, aqueles queo usuários dos diversos sis-
temas de ensino, especialmente dos sistemas
municipais.
o Fundef, ao sinalizar para um piso míni-
mo (piso podeo ser o termo mais conveni-
ente, mas refere-se ao mínimo em termos de
salário), fez com que houvesse uma correção
rápida nos salários dos trabalhadores em edu-
cação, estabelecendo, à época, um valor-refe-
rência em torno de R$ 320,00.
Outra questão que o Fundef também colo-
ca é que, ao se estabelecer que o governo fe-
deral teria recursos complementares para a co-
bertura de Fundos Estaduais, isso gerou segu-
rança nos agentes educacionais dessas áreas.
Ao colocar em cinco ou seis estados brasi-
leiros recursos para a educação, o governo fe-
deral permite que, a médio e longo prazos, te-
nhamos uma sociedade mais educada, cujos
resultados poderãoo ser vistos rapidamen-
te, mas serão no dia-a-dia das comunidades. No
desempenho das crianças e dos jovens é que
vamos poder observar qual a importância real
da distribuição de renda por meio da educação.
Vale lembrar que o Fundef é transitório,
decenal. Do Fórum de Secretários Municipais
de Educação das Prefeituras do PSDB deo
Paulo, realizado em 29 de setembro de 2001, em
Jundiaí. foi extraída uma carta, propondo que
se dê prioridade ao Fundef, para que se torne
artigo permanente, no capítulo relacionado à
Educação, consagrado na Constituição Federal,
e sugerindo, ainda, no caso deo Paulo, que
fizéssemos o mesmo em relação à Constituição
Estadual. Nesse mesmo Fórum, deliberou-se
que o deputado federal por Jundiaí, Dr. André
Benassi, fosse o encaminhador dessa proposta
ao Congresso Nacional.
Acredito que isso tem de ser feito dessa for-
ma, a fim de queo fiquemos ao sabor dos
governantes, daqueles queo contra ou a fa-
vor do Fundef.
SIMPÓSIO 9
DESEMPENHO DO PROFESSOR
E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji
Maria Helena Guimarães de Castro
Desempenho do professor
e sucesso escolar dos alunos
Charles Hadji
Universidade Pierre Mendès/Grenoble/Franca
Resumo
Partiremos de dois fatos que, na atualidade,
constituem consenso na comunidade de pesqui-
sadores. De um lado, "certos professores conse-
guem fazer com que seus alunos progridam mais
do que outros" (Felouzis, 1997: 57). A esse respei-
to, existem diferenças significativas de um profes-
sor a outro. Esse é o chamado "efeito-professor".
Do outro,o podemos senão constatar "a dificul-
dade de se estabelecerem resultados reais,
acumuláveis e generalizáveis, sobre a questão da
eficácia dos professores" (idem: 28). E, de fato, pou-
cos dados indiscutíveis se encontram realmente
disponíveis "sobre os professores e seu papel no
sucesso ou fracasso dos alunos" (idem: 35). Isso nos
conduzirá a uma indagação sobre três grandes as-
suntos:
Como foram construídos os saberes atual-
mente disponíveis?
o que sabemos hoje, exatamente, sobre a in-
fluência dos professores no sucesso dos alunos?
Como poderíamos chegar a saber mais e
melhor a respeito dessa questão?
0 problema dos marcos de
observação, de análise e de
interpretação
A primeira questão levantada pela pesquisa
das ligações entre desempenho do professor e
sucesso escolar dos alunos é aquela do marco
paradigmático adequado. Será que esse marco
se encontra disponível?
Se uma indagação sobre a condição de
produção dos saberes no campo que nos pre-
ocupa aqui se mostra, de partida, necessária,
issoo significa que nos devamos perder em
considerações de índole epistemológica. Po-
demos nos contentar com duas questões sim-
ples, para as quais Clermont Gauthier (1997)
contribuiu com elementos de resposta perti-
nentes.
Quais as principais etapas que
marcaram a evolução da pesquisa?
Situando-se numa perspectiva histórica,
Gauthier distingue cinco grandes períodos no
que se refere, em particular, à evolução da pes-
quisa nos Estados Unidos.
Um primeiro período (até meados dos anos
1950) no qual a eficácia estava associada a
certos traços da personalidade. A pesquisa
estava orientada para a identificação de va-
riáveis de prognóstico constituídas, no es-
sencial, pelas características individuais
(por exemplo, o professor cordial). Todavia,
chegou-se rapidamente a detectar os limi-
tes de tais trabalhos, que eram muito
freqüentemente baseados na opinião, igno-
rando o trabalho concreto dos professores
em aula.
Posteriormente, deu-se preferência a me-
dir a eficácia a partir da eficiência dos-
todos. A pedagogia experimental acreditou
poder calcular a eficácia diferencial de di-
versos métodos, definidos de acordo com
uma tipologia geral, comparando seus resul-
tados com base em dados objetivos. Porém,
de um lado, percebeu-se que essa aborda-
gemo permitia detectar diferenças signi-
ficativas. De outro, compreendeu-se, em
particular graças às pesquisas sobre a
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
interação "aptidões-procedimentos",
1
que
o era possível considerar um "método de
ensino" como variável causai independen-
te (Bru, 1990).
Durante os anos 1960, diversos estudos dedi-
caram-se à observação do ensino em sala de
aula. Nessa época, 79 sistemas de observação
diferentes foram elaborados e implementados
(Gauthier, 1997: 33). Entretanto, se o esforço
tinha o mérito de centrar-se na "caixa preta"
do trabalho em aula, os trabalhos ignoraram
a questão dos efeitos produzidos pelo ensi-
no, pois as práticas descritaso foram com-
paradas com o sucesso escolar.
Nos anos 1970, a questão central tornou-se,
então, saber se eram os professores os que
realmente faziam a diferença, dentro de uma
perspectiva processos-produto. Tentou-se,
assim, identificar comportamentos estáveis
do professor (processos) que pudessem con-
duzir a um melhor aproveitamento escolar
dos alunos (produto). Quaiso as variáveis
de processo (instruções, perguntas, tempo
concedido aos alunos etc.) suscetíveis de "fa-
zer diferença"? Se essas pesquisas, baseadas
no cálculo de correlações,m produzido boa
parte do saber atualmente disponível e fe-
lizmente se prolongaram na elaboração de
meta-análises que permitiram chegar a re-
sultados importantes, elas foram, no entan-
to, objeto de múltiplas críticas sobre as quais
voltaremos a falar.
Uma crítica importante foi no sentido de que
ignorava o processo de pensamento dos pro-
fessores, com o surgimento, nos anos 1980,
de uma quinta abordagem ilustrada pelos
trabalhos de Schõn (1983; 1987) e centrada
precisamente no conhecimento dos proces-
sos de pensamento mobilizados pelos pro-
fissionais na sua atividade concreta. Com o
risco de ignorar, de um lado, o papel dos sa-
beres objetivos e, de outro, aquele das variá-
veis quantificáveis.
Esse rápido histórico permite constatar que
nenhuma das abordagens que se sucederam na
história recente da pesquisa sobre o ensino é to-
talmente satisfatória, bem como nenhuma de-
monstrou-se capaz de fornecer uma resposta
totalmente fundamentada e definitiva para a
questão da eficácia do ensino e dos professores.
Quais foram, e são, os principais
paradigmas da pesquisa?
Os autoreso se colocam de acordo sobre a
natureza e o número dos grandes paradigmas de
pesquisa no campo da eficácia. Isso levaria a
mostrar que nenhum deles se impõe de manei-
ra indiscutível!
Para Bressoux (1994), pode-se detectar, com
respeito aos trabalhos sobre os efeitos-professor,
quatro grandes paradigmas.
o paradigma do critério de eficácia, caracte-
rizado pela pesquisa de uma variável que seria a
chave para o bom ensino, ou para o bom profes-
sor, e que permitiria prognosticar sua eficácia-
paradigma dominante quando da primeira fase
acima descrita.
Posteriormente, o paradigma processo-pro-
duto (dominante a partir da quarta fase).
Em terceiro lugar, o paradigma dos proces-
sos mediadores, que se centra sobre a pesquisa
daquilo que se interpõe entre os estímulos pe-
dagógicos (a ação direta dos professores) e a
aprendizagem dos alunos (por exemplo: envol-
vimento na tarefa; "perseverança"). Para Durand
(1996: 15), esse paradigma corresponde apenas
a "uma notável evolução no âmbito da corrente
'processo-produto'".
Por último, o paradigma ecológico, de inspi-
ração etnográfica, que se dedica à interação de-
mandas meio ambiente—respostas dos atores,
referindo-se aos contextos suscetíveis de outor-
gar sentido às ações.
Considerando o primeiro paradigma fora de
cogitação, Durand (1996), essencialmente, um
estado em que se sucedem as pesquisas "proces-
so-produto", as quais, se "continuam", revelam-se
doravante menos criativas (1996: 17); uma abor-
NT Interação Aptidões-Tratamentos (I.A.T.). Vários grupos de sujeitos equivalentes ou, ao contrário, diferenciados do ponto de vista das
características pessoais consideradaso expostos a condições pedagógicas diferentes para assimilar um conteúdo de aprendizagem idên-
tico. A seguir, avaliam-se os desempenhos de cada sujeito para poder identificar os tratamentos pedagógicos que melhor convém às carac-
terísticas pessoais apresentadas pelos alunos.
dagem caracterizada pelo enfoque nas cognições
e no funcionamento cognitivo dos professores, ten-
do sempre a preocupação de identificar os elemen-
tos de eficácia. Entretanto, esse autor salienta o
surgimento de uma terceira atitude, de perspecti-
va etnográfica (idem: 32), caracterizada pelos tra-
balhos de Schõn. Os defensores dessa terceira ati-
tude estariam menos interessados nos problemas
de eficácia e de avaliação.
Eis por que poderemos ficar finalmente de
acordo com Gauthier (1997), que distingue três
grandes abordagens nas pesquisas sobre Peda-
gogia:
A abordagem processo-produto, centrada na
pesquisa de correlações entre comportamen-
tos observáveis e resultados quantificáveis.
A abordagem cognitiva, centrada na análise,
em nível mais profundo, de processoso
observáveis diretamente, o que privilegia um
trabalho de inferência, freqüentemente fun-
damentado na análise das produções verbais
dos atores.
A abordagem interacionista-subjetivista,
sensível às interações entre atores e à força
de suas representações e, de forma mais pre-
cisa, à importância da história de cada um.
o que podemos deduzir a partir dessa pri-
meira análise?
a. Nenhum paradigma chega a ser totalmente
satisfatório, ou seja, nenhum deles oferece
todas as chances de aportar uma resposta ver-
dadeiramente pertinente à questão da eficá-
cia. Cada um, além de seu inegável interesse,
tem "sérias limitações", muito bem analisadas
por Gauthier. Fiquemos simplesmente com
aquelas do paradigma que, por ora, permitiu
produzir mais saber(es): o paradigma proces-
so-produto. Gauthier (1997) identifica nele
sete limitações: visão redutora da eficácia (de-
sempenhos cognitivos medidos com a aplica-
ção de testes padronizados); nenhuma expli-
cação sobre a maneira pela qual o ensino pro-
duz seus efeitos; subestima da influência dos
alunos no processo de aprendizagem; esque-
cimento do contexto; superestima da freqüên-
cia na apreciação da importância de um fa-
tor; impacto fraco na formação dos professo-
res do ensino primário; desdém com a histó-
ria. Bressoux (1994) acrescenta outras três:
confusão (possível) entre causa e correlação;
negação da experimentação; ausência de
marco teórico interpretativo. Acrescente-se a
isso o que Durand (1996) vem finalmente res-
saltar sobre o fato de se ignorarem as ativida-
des desenvolvidas quando da interação com
os alunos (por exemplo: atividades de plane-
jamento).
b. É por isso que podemos clamar, junto com
Gauthier, por uma complementaridade das
abordagens e, até mesmo, dos esforços por
progredir no sentido de "um modelo
eclético" (1997: 125).
c. Isso nos parece: um comprometimento mai-
or do que a construção de um modelo descri-
tivo exaustivo (do processo ensino-aprendi-
zagem), poiso permite o esquecimento de
nada e integra as três grandes abordagens
identificadas; mais do que o surgimento de
um novo e mais poderoso paradigma de pes-
quisa; simplesmente a elaboração de um mo-
delo de trabalho suscetível de fazer aparecer
claramente os espaços de análise prioritária
ou, dito de outra forma, os grandes canteiros
de obras nos quais deveria empenhar-se a
pesquisa para contribuir com respostas mais
satisfatórias à questão da eficácia. É isso que
faremos no nosso terceiro ponto, após ter evo-
cado rapidamente alguns resultados já produ-
zidos por esse esforço.
Alguns resultados
interessantes produzidos
pelos trabalhos sobre
os efeitos-professor
o que se sabe hoje, de maneira comprova-
da? Duru-Bellat e Mingat (1994), Bressoux (1994),
Felouzis (1997) e Gauthier (2001)m apresen-
tado sínteses a respeito, ao mesmo tempo, dos
problemas colocados pela análise dos tais "efei-
tos-professor" e dos resultados obtidos.
Rumo a uma base de conhecimentos:
alguns resultados
Uma coisa é certa: "os efeitos-professor fo-
ram provados e ficou demonstrado que o seu
impacto é mais poderoso do que aquele das es-
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
colas" (Bressoux, 1994:127). Na explicação esta-
tística da variância do aproveitamento escolar
em turmas de seconde,
2
o ganho da variância
explicada pelo estabelecimento é só de 5%, en-
quanto é de cerca de 15% para a turma (e, por-
tanto, para o professor) (Felouzis, 1997: 57). A
última estimativa confirmada por Duru-Bellat e
Mingat para o CP
3
: a inclusão da pertença a uma
turma aumenta em 19% o poder explicativo de
um modelo estatístico. Numa pesquisa que in-
cluiu 102 turmas do ensino primário, constatou-
se, "para um aluno de desempenho exatamente
médio num teste inicial, um-desvio de 30 pon-
tos no teste final, dependendo de o aluno ter sido
escolarizado com o professor mais, ou com o
menos, eficaz" (Bressoux, 1994: 135).
Mas quais são, de um lado, os fatores
explicativos dessas diferenças e, de outro e
conjuntamente, quaiso as características dos
professores eficazes?
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar, para
evitar qualquer contra-senso, que a eficácia pe-
dagógica efetiva do professor é apenas parcial-
mente dependente de variáveis de identificação
pessoal, tais como o sexo, o meio social de ori-
gem, a formação pedagógica inicial ou os anos
de experiência na profissão (Bressoux, 1994:
138). Esse resultado foi confirmado por Felouzis:
as características individuaiso exercem um
verdadeiro efeito (1997: 26).o existe o bom
professor do ponto de vista da idade, do sexo, da
origem social ou do status (idem: 32). Isso por-
que "a eficácia dos professores se constrói na
interação escolar" (idem: ibidem).
Portantoo as características pedagógicas que
contam. O mestre,o como indivíduo, mas como
professor, colocando em prática um "comporta-
mento pedagógico". Este já foi analisado sob uma
infinidade de pontos de vista (Durand, 1996: 12).
Inúmerasm sido as variáveis de processo estu-
dadas: instruções; perguntas; intercâmbios verbais;
modalidade direta ou indireta do ensino; natureza
das retroações; nível de dificuldade das tarefas; taxa
de redundância das explicações; clareza e freqüên-
cia dos exemplos; tempo concedido aos alunos
para responderem; organização do curso; modali-
dades de estabelecimento e de manutenção da
matéria; clima da turma; modalidade de decisões;
taxa de comportamentos entusiastas.
o que podemos deduzir? Os alunos terão
melhor desempenho escolar (de uma maneira
geral) se o seu professor:
Efetivamente ensinou os conteúdos avalia-
dos: os alunosm mais chances de apren-
der e, portanto, de ter sucesso, quando o pro-
fessor "executa" o currículo.
Concedeu tempo suficiente para sua disci-
plina (sendo que esse tempo varia de forma
considerável de um para outro professor).
Levou seus alunos a concederem o máximo
de tempo na tarefa (esse tempo pode variar
de 50 a 90% para um ensino de Matemática).
Destinou muito tempo a tarefas interativas.
Manifestou expectativas positivas e elevadas
com respeito aos seus alunos. Esse ponto foi
intensamente confirmado pelos trabalhos de
Felouzis (1997) que, tendo distinguido dois
grupos de professores do ensino secundário
francês, os eficazes e os não-eficazes, pôde
detectar nos 18 professores eficazes intensas
expectativas positivas com respeito aos alu-
nos (visão ponderada do nível de suas capa-
cidades; um tipo de relação que exclui qual-
quer desdém ou rejeição; julgamentos posi-
tivos em relação às potencialidades e às ca-
pacidades para cada um progredir; práticas
pedagógicas centradas nos alunos e tenden-
tes a valorizá-los; nível alto de exigência do
ponto de vista do trabalho e do nível de com-
petência esperado, mas impondo-se sem
autoritarismo). Por sua vez, os 16 professo-
res ineficazes desenvolvem concepções mui-
to negativas sobre os alunos, seu fraco nível
de competências e sua incapacidade para
aprender, o que se traduz em práticas peda-
gógicas menos intensivas.
Soube apresentar suas exposições de forma
clara.
2
NT Antepenúltima série do ensino secundário francês, equivalente ao 2
9
ano do Ensino Médio brasileiro.
1
NT CR: Cours Préparatoire. Última série da escola maternal francesa, antes do ensino primário, equivalente ao penúltimo ano da pré-escola
brasileira.
Fez elogios ajustados,o muito freqüentes,
que acompanharam os efetivos sucessos dos
alunos.
Propôs retroinformações (feedbacks) corretivas,
de um modo afetivamente neutro e deixando
ao aluno tempo suficiente para corrigir-se.
Estruturou as atividades: propondo exercí-
cios de entrada nas seqüências; procedendo
por etapas curtas, mas com ritmo permanen-
te e sem digressão, sempre sem temer a re-
dundância; com um tempo importante de
prática dirigida coletiva, seguida de exercí-
cios individuais, mas cuidando de manter os
alunos envolvidos na tarefa; por último, ter-
minando com sínteses.
Soube interrogar os alunos de maneira efi-
caz: ao colocar numerosas perguntas; ao con-
ceder tempo entre uma e outra pergunta; ao
interrogar todos os alunos, numa ordem
estabelecida; articulando o lugar concedido
às intervenções orais espontâneas segundo
o público (pois essa prática só é positiva com
um público desfavorecido); e desconfiando
das respostas colegiais.
Clermont Gauthier (2001) faz uma apresen-
tação do conjunto dessas qualidades e atitudes
que tornam o professor eficaz, ordenando-as
segundo duas grandes funções (gestão da maté-
ria; gestão da turma), sendo que cada uma é
abordada sob um triplo ponto de vista: planeja-
mento, interação e avaliação. Nesse conjunto,
Bressoux (1994) vê dois fatores que surgem de
forma constante e positiva:
o tempo de envolvimento na tarefa;
a estruturação do ensino.
Que uso podemos fazer desses
resultados?
Será que temos de nos conformar com o per-
fil que parece assim resultar do professor eficaz?
Será que tudo isso tem de ser feito (Gauthier,
2001: 214) e será que assim estaremos assegura-
dos do sucesso? Acreditar nisso seria recair na
trilha do cientificismo (a ciência tem resposta
para tudo) e do aplicacionismo (seria suficiente
apenas aplicar modelos científicos para ter su-
cesso). Sem dúvida, há também muitas outras
coisas a serem feitas para se ter sucesso; e a efi-
cácia nunca poderá estar garantida. Em rigor:
As situações de ensino em sala de aulao
tais que essa atividade constitui uma tarefa
complexa, de múltiplas dimensões. Durand
(1996) ressalta algumas: um número elevado
de elementos interagindo; o caráter pluridi-
mensional de cada situação, a que se acres-
centa o caráter heterogêneo dos alunos; a si-
multaneidade dos acontecimentos; a fra-
ca previsibilidade da situação; uma forte pres-
o temporal. Essa complexidade é tal que
somente uma e mesma forma de agir nem
sempre pode produzir os mesmos efeitos.
, no ensino, uma "primazia do operativo"
(Durand, 1996: 69). A ação é guiada por crité-
rios pragmáticos, eo lógicos ou formais. Ela
é freqüentemente conduzida na urgência, por
operadores com uma "racionalidade limitada"
(idem: 73), que trabalham com uma "alça de
mira prática" (idem: 34) dominante. O essen-
cial é, para o professor em campo, encontrar
em cada caso, ou em cada categoria de casos,
"respostas satisfatórias" (idem: 34), eo apli-
car um modelo, a priori, que seja válido inde-
pendentemente de qualquer contexto.
Justamente, os efeitos dos diversos fatores
identificados variam com o contexto de sua
aparição (Bressoux, 1994: 106) em função,
dentre outros fatores, do nível da série ou ano
de escolaridade considerado e das caracte-
rísticas sociais do alunado. É por isso que "en-
sinar constitui uma profissão que acontece
num contexto demasiado complexo para que
se permita reduzir a uma lista de competên-
cias" (Gauthier, 2001: 214).o se pode iso-
lar fatores que seriam geralmente eficazes de
forma independente da particularidade das
situações onde eventualmente poderão agir.
Em situações e contextos de grande comple-
xidade, nenhum fator poderá agir isolada-
mente: "esses fatores estão interligados, de
tal forma que suas combinações demons-
tram ser mais importantes que o seu efeito
isolado" (Bressoux, 1994: 106).o as com-
binações, as constelações de fatores que po-
dem, de preferência, produzir efeitos. Con-
tudo, se levarmos em consideração que os
processos escolares caracterizam-se por
múltiplos efeitos de interação (idem: 128), de
onde se deduz a existência de "efeitos de
composição" (Duru-Bellat e Mingat, 1994:
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
143), pode-se confirmar que toda pesquisa
geral do "bom professor" será em vão.
Finalmente, é por isso que seria convenien-
te, aqui e sempre, fazer, segundo a expressão
de Clément Gauthier, um "uso prudente"
(1997:217) dos resultados da pesquisa. O que
isso quer dizer?o se deve sucumbir nem
à "mística" da todo-poderosa ciência, nem à
mística simétrica do professor condenado à
impotência e à hesitação pela complexidade
da sua profissão; mas, sim, utilizar os resul-
tados dos trabalhos de pesquisa como ferra-
mentas intelectuais ou como grades de
inteligibilidade para estar informado e tam-
m para refletir sobre a sua própria prática,
tendo em vista, eventualmente, reajustar as
práticas e os meios implementados refe-
renciando-os às finalidades perseguidas.
"Trata-se de tentar incorporar na sua práti-
ca, em função de seu contexto e de suas prá-
ticas profissionais, alguns saberes, savoir-
faire ou formas de ser, a fim de aumentar seu
'efeito-professor' " (Gauthier, 2001: 214).
Entretanto, será que temos grades de
inteligibilidade suficientemente pertinentes e
potentes?
Para progredir na questão
da eficácia dos professores
Temos rigorosamente que reconhecer, citan-
do Bressoux, que se os efeitos-professor foram
já provados e se, assim, nossos conhecimentos
apresentaram progressos, "temos ainda muito
pouco conhecimento a respeito dos fatores que
favorecem os desempenhos dos alunos" (1994:
108). Por meio de que processos mediatários os
fatores identificados (e isolados) pelas pesqui-
sas sobre os efeitos-professor chegam a produ-
zir, justamente, seus efeitos? Seria precisoo
apenas, como salientam Duru-Bellat e Mingat,
descrever de forma sistemática e precisa "a efe-
tiva variedade das práticas", mas também "de-
terminar [...] as práticas eficazes, ou seja, aque-
las que se revelarem efetivamente ligadas à qua-
lidade do ensino" (1994: 139). É preciso, ainda,
ir além dessa pesquisa de correlações (que en-
cerra no paradigma processo-produto) para ten-
tar identificar as causalidades que estão efetiva-
mente operando, isto é, as vias e os mecanismos
pelos quais, e graças aos quais, existe um "efei-
to". O que implica sabermos mais, de fato, "so-
bre os fatores que influem no aproveitamento
escolar dos alunos" (Bressoux, 1994: 128).
Duas grandes questões são, então, apresentadas:
1. Quaiso os fatores que incidem na apren-
dizagem dos alunos? E qual seria a impor-
tância relativa da qualidade do desempe-
nho do professor no sucesso escolar dos
alunos?
2. Quais seriam as vias e os mecanismos den-
tro da importância relativa da eficácia even-
tual dos professores?
No que se refere à questão dos fatores
que incidem no desempenho escolar
dos alunos
Temos de considerar, junto com Jean
Cardinet, que um desempenho (do aluno) obser-
vado "é uma função com muitas variáveis" (1991:
210). Poderíamos considerar o "valor escolar" do
aluno; mas, também, a sua história escolar; o con-
texto social da prova de avaliação; as interações,
presentes e passadas, com o(s) professor(es); a
capacidade do aluno em decodificar o problema
que lhe é colocado etc. Em todos os casos, torna-
se necessária uma leitura plurifatorial do sucesso
(ou do fracasso). Isso permite entender que o de-
sempenho do professor vem a ser apenas um fa-
tor dentre vários outros, e queo podemos
supervalorizá-lo (se é queo devemos,o
obstante, subestimá-lo). O professoro é o úni-
co responsável. E ele é só em parte responsável.
Dentre todos esses fatores que interagem, po-
deríamos distinguir dois subconjuntos: os fatores
relativos ao educando e aqueles relativos aos con-
textos dos aprendizados. Pelo lado do educando,
poderíamos evocar: a bagagem hereditária (com
todas as discussões que ela suscita); a personalida-
de; as aptidões; a história, em particular a escolar;
as atitudes, e a relação com a "coisa escolar"; os pro-
jetos; a vontade; o nível de comprometimento. Pelo
lado dos contextos, podemos identificar três gran-
des séries de fatores: o contexto de vida (o meio so-
cial e cultural); o contexto da aprendizagem (escola,
currículo, professor e "método"); o contexto da ava-
liação. O professor, em rigor, só viria a ser mais um
fator de contexto entre muitos outros, o que torna
redutora a pesquisa febril das correlações entre o
desempenho do professor e o aproveitamento es-
colar dos alunos. Essa pesquisa deve situar-se num
plano mais amplo, que tenha em conta, pelo me-
nos, algumas dimensões principais dos processos
intervenientes. Só então é que, talvez, possamos
responder mais facilmente à segunda pergunta.
No que se refere à questão das vias
reais da eficácia pedagógica:
três grandes áreas de pesquisa
Seria necessário permitir-se uma visão de con-
junto do processo geral de ensino-aprendizagem.
Vários pesquisadores contemporâneosm
proposto tais modelos. Bru (1991) propõe um
modelo da "interação contextualizada", o qual,
no âmbito de uma abordagem sistêmica, conce-
de importância igual a três subsistemas: ensino;
aprendizagem; e contexto. Gauthier (1997) pro-
e um modelo "eclético", fazendo da classe o
marco de observação privilegiada, sendo que ele
próprio está inscrito dentro de um marco finali-
zado, privilegiando duas funções de base do en-
sino: a gestão da matéria e a gestão da classe.
Ao levantar a questão da necessidade de evitar
formalizações redutoras que fariam esquecer a
complexidade da profissão de professor (Gauthier,
1997:17), preferimos ressaltar que um melhor co-
nhecimento dos "efeitos-professor" reside nos pro-
gressos que serão atingidos em três grandes "can-
teiros de obras", suscetíveis de nos esclarecer so-
bre a natureza e a realidade de um "modo de agir
didático" do professor (Hadji, 1992: 158).
Três grandes áreas de pesquisa
Área 1: pesquisas sobre a qualidade do
desempenho de um professor
o que seriam um ensino e um professor de
qualidade? A respostao é evidente. Isso de-
pende dos fins e dos objetivos a que nos propo-
mos (Avanzini, 1991).
A eficácia só existe quando está vinculada a
objetivos. Mas será que a qualidade se resume em
eficácia? É nisso que consiste a totalidade do pro-
blema das competências do professor, e do pro-
fessor especialista. Essas competênciaso po-
dem mais ser estudadas de forma simplesmente
apriorística e no abstrato ("competências social-
mente definidas", Felouzis, 1997: 19). É preciso
descrever e analisar os comportamentos realmen-
te praticados quando se ensina a alunos concre-
tos: reencontramos a necessidade de descrever de
maneira sistemática a efetiva variedade das prá-
ticas. Porémo é fácil descrever o professor es-
pecialista: qual seria a importância relativa dos
conhecimentos, das competências, da experiên-
cia, das rotinas (Durand, 1996: 27-32)?
Por último, como medir a eficácia (de um
ensino de qualidade)? Além de essa questão abrir
a segunda área de pesquisa (o que significa ter
sucesso, para o aluno?), teríamos de reconhecer
que a identificação de indicadores da eficácia do
ensino é problemática (Durand, 1996: 9). Assim
como também é problemática a escolha dos
métodos da pesquisa. Duru-Bellat e Mingat pro-
puseram medir "a eficácia pedagógica" por meio
da preeminência dos desempenhos finais-
dios obtidos por alunos com características in-
telectuais e sociais médias. Mas isso iria, então,
diferenciar eficácia de eqüidade, que é a capaci-
dade de igualar os resultados para alunos com
características diferentes (1994:134-35). Por sua
vez, Felouzis mede o "efeito-professor" pelo di-
ferencial que existe entre a média da turma e a
média dos exames comuns em finais de ano,
todo o resto permanecendo igual (sexo, idade,
origem social, escore inicial). Essas maneiras de
proceder demonstram uma certa astúcia e levam
a resultados interessantes. Mas a área de pesqui-
sao se encontra, ainda, fechada.
Área 2: as pesquisas sobre o sucesso
escolar dos alunos
Se o professor "faz a diferença", qual
seria ela? Como imaginá-la? Como
evidenciá-la?
Gauthier, 1997:131
Em primeiro lugar, o que significa ter suces-
so?o deveríamos falar em fracassoo cedo
nemo rapidamente, parao sermos vítimas
de imagens e de hierarquias sociais polêmicas.
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Toda noção de sucesso ou de fracasso é relativa.
Podemos vislumbrar uma trajetória, um lugar
ocupado, um poder adquirido, algumas compe-
tências adquiridas: tudo isso vem a ser assunto
de apreciação.o devemos nos deixar sucum-
bir ao mito da trajetória ideal. Isso porque só
existe sucesso ou fracasso em relação a projetos.
Por último, o fracasso escolaro é uma doen-
ça, é preciso fazer uma leitura "em positivo"
(Charlot, 1997) das experiências escolares.
Podemos então tomar como único indica-
dor de sucesso os desempenhos escolares dos
alunos?o seria necessário considerar pelo
menos três espaços de investigação: a ativida-
de ou os comportamentos; as aprendizagens; o
desenvolvimento (Durand, 1996: 83)? Bressoux
salienta que nós, com freqüência, nos conten-
tamos com resultados obtidos em testes de lei-
tura e de matemática, e que isso provoca uma
visão restritiva da eficácia (1994: 125). Indo na
mesma direção, Gauthier deplora a utilização
única de testes padronizados centrados em pro-
cessos intelectuais (1997: 105). Pois, tal como
escreve Cardinet,o deveríamos nos conten-
tar com "desempenhos escolares brutos, exces-
sivamente ligados ao conteúdo curricular de
cada disciplina e à mercê de seu estudo em aula"
(1991: 210). E, em último caso, seria melhor ra-
ciocinar em termos de "progresso dos alunos"
(Felouzis, 1997: 39), do que em termos de re-
sultados brutos.
Área 3: as pesquisas sobre a "causalidade"
pedagógica
Finalmente, tudo conduz a esta área, pois a
dificuldade é a de fazer o nexo entre algumas
práticas de professores (área 1) e o aproveita-
mento escolar de alunos (área 2)
Seria preciso poder mostrar como, em rigor,
os professores fazem as diferenças; como o en-
sino produz seus efeitos (Gauthier, 1997: 39 e
105). Ora, os resultados escolares obedecem,s
já vimos, a um sistema de causalidade comple-
xo (Durand, 1996: 5). Isso porque,s já ressal-
tamos,oo os comportamentos pedagógi-
cos isolados, mas sim alguns pattems, ou mistu-
ras de práticas, que podem produzir seus efeitos
(Duru-Bellat e Mingat: 141). Quais variáveis en-
o escolher para explicar as diferenças na eficá-
cia? Eis todo o problema das variáveis de coman-
do e das modalidades de regulagem da ativida-
de pedagógica. A área é extensa. Durand distin-
gue cinco níveis de regulagem (ordem; partici-
pação; trabalho; aprendizagem; desenvolvimen-
to). Teremos de nos indagar acerca da perti-
nência da escolha dos meios e dos objetivos in-
termediários (Durand, 1996: 134).
Portanto,o é fácil identificar "os mecanis-
mos pedagógicos que atuam na eficácia dos pro-
fessores" (Felouzis, 1997:30). Porém surge já um
resultado essencial: essa eficácia se constrói na
interação escolar. É esse espaço de interações
que deve tornar-se objeto privilegiado de pes-
quisas, mesmo quando essas interaçõeso
muito difíceis de ser identificadas.
Conclusão
Além de resultados às vezes discordantes
(Felouzis, 1997: 30), podemos considerar
como comprovada a existência de efeitos-pro-
fessor. Entretanto, issoo significa que pos-
samos colocar à disposição dos professores
um modelo a ser aplicado. As mesmas manei-
ras de agiroo obrigatoriamente eficazes
com todos e em todos os contextos. É difícil
generalizar. Se, de um lado, é necessário, nes-
sa área, ajudar os professores a se livrarem de
suas crenças espontâneas, cuja força e fre-
qüência se explicam (Durand, 1996: 192) pelo
caráter "não-observável e retardado no tem-
po dos efeitos das ações que visam ao apren-
dizado dos alunos" (ou, dito de outra forma,
pela distância que sempre existirá entre ensi-
no e aprendizagem), do outro, pela "ausência
de conhecimentos científicos confiáveis e
exaustivos para organizar essas ações" (a au-
sência de um modelo científico de ação),o
se pode, justamente, dar a acreditar que os re-
sultados dos trabalhos atuais sobre a eficácia
do ensinoo suficientes para fundar práti-
cas de formação e de ensino totalmente
confiáveis. Se a pesquisa tem produzido re-
sultados notáveis (o nosso ponto 2), ainda res-
ta muito para ser compreendido (o nosso pon-
to 3) no marco de paradigmas de pesquisa a
serem atualizados (o nosso ponto 1).
Isso porque "a pesquisa da eficácia ou da
competência, na base de saberes positivos veri-
ficados, constitui um objetivo legítimo e desejá-
vel" (Gauthier, 1997: 248).
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As
f
docentes
e sua formação
Maria Helena Guimarães de Castro"
Inep/MEC
o esforço empreendido na direção da
universalização do ensino básico para a popula-
ção de 7 a 14 anos, no país, obteve ótimos resul-
tados no final da década. De 1991 a 1999, a taxa
de escolarização líquida, que fornece a propor-
ção real de crianças, nessa faixa etária, estudan-
do no Ensino Fundamental, saltou de 84% para
95%. Foi um crescimento extraordinário, dado o
atraso que tivemos na década anterior, com a es-
colarização variando apenas de 80% a 84%. Em
1998, o Brasil conseguiu antecipar e superar a
meta estabelecida pelo Plano Decenal de Edu-
cação para Todos, que previa elevar a, no míni-
mo, 94% a cobertura da população em idade es-
colar até 2003.
Garantida a entrada na escola, o problema
passa a ser de assegurar as condições de perma-
nência no sistema, bem como o sucesso esco-
lar. Houve uma evolução bastante positiva nos
indicadores de fluxo, principalmente nas primei-
ras séries do Ensino Fundamental. A promoção
passou de 60% para 74%, na média do Ensino
Fundamental, entre os anos de 1991 a 1999. Na
1ª série, a repetência diminuiu de 48% para 39%,
"Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e Secretária de Ensino Superior do MEC.
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
no mesmo período, enquanto na 5ª série caiu de
38% para 23%. A taxa de distorção idade/série
caiu de 64,1%, em 1991, para 46,6%, em 1998, e
41,7% em 2000. A redução continua acentuada
nas séries iniciais, tendência que certamente
está associada à iniciativa de muitos sistemas de
ensino de implantar o sistema de ciclos, elimi-
nando dessa forma o problema da reprovação. O melhor fluxo, como a menor pressão
demográfica, vem influenciando uma nova
tendência de diminuição das matrículas nas
séries de lª a 4ª (gráfico 1). Nas séries de 5ª a
, delineia-se uma fase de estabilidade, evi-
denciada pela menor pressão das séries ini-
ciais.
Fonte: Inep/MEC
Entretanto, ainda é necessário completar a
universalização da educação básica em dois sen-
tidos. No plano regional, o Norte e o Nordeste
do país permanecem com taxas inferiores à meta
estabelecida eo essas duas regiões que con-
centram cerca de 60% dos cerca de um milhão
de crianças fora da escola. Segundo os últimos
cálculos de escolarização, cruzados com as esti-
mativas populacionais do IBGE, para o ano de
1999,
1
os estados de Rondônia, Acre, Maranhão
e Piauí eram os que ainda mantinham a escola-
rização abaixo dos 92%.
Embora sejam os últimos a completarem a
tarefa da universalização do ensino, os estados
do Norte e do Nordestem melhorando, ano
a ano, suas posições. Estados como Acre, Ama-
zonas, Maranhão, Ceará e Alagoas, que em
1998 tinham menos de 90% de crianças de 7 a
14 anos no Ensino Fundamental, conseguiram
superar esse patamar em 1999. Se examinar-
mos as taxas de escolarização de 1994, verifi-
camos que o Nordeste superou em muito o
patamar em que se encontrava, que era de 77%
de escolarização líquida.
Contudo, a universalização do ensino
precisa avançar verticalmente, na direção do
Ensino Médio. Na faixa etária dos 15 aos 17
anos, os jovens que estão matriculados na
escola representam 84,5% do total (taxa de
atendimento escolar de 1999). Entretanto, a
grande maioriao está efetivamente cur-
sando o Ensino Médio: eles ainda estão ten-
tando completar o Ensino Fundamental.
Apenas 32,6% dos jovens podem ser compu-
tados nas escolas do Ensino Médio.
Mas uma outra tendência apontada pelos
últimos dados é que os alunos em atraso escolar
estão buscando cada vez mais o ensino de jovens
e adultos, diminuindo a demanda sobre o ensi-
no regular. A matrícula inicial nos cursos presen-
ciais de 1ª a 4
a
série apresentou um aumento de
37%, de 2000 a 2001. A matrícula nos cursos de
nível médio cresceu 15%. A Educação de Jovens
e Adultos (EJA) incorporou ao sistema perto de
410 mil pessoas - 70% no Ensino Fundamental e
26% no Ensino Médio - interessadas em concluir
seus estudos. No mesmo período, o Ensino-
dio regular cresceu apenas 2,7%.
A maior demanda deve voltar-se, assim, para
o Ensino Superior. Há cada vez mais Concluintes
no Ensino Médio para as vagas disponibilizadas
pela universidade. Mesmo assim, as universida-
des públicas preenchem todas as suas vagas, no
início do ano, mas perdem alunos no meio do
curso, por causa da evasão. As universidades pri-
vadas, por sua vez, sequer conseguem preencher
todas as suas vagas nas matrículas iniciais, e fi-
cam, assim, com vagas ociosas durante o ano.
Para cada 100 estudantes que ingressaram na
universidade em 1994, 70 concluíram seus cur-
sos no ano de 1999. Nas instituições federais, essa
As taxas de escolarização e de atendimento para o ano 2000 serão conhecidas apenas quando o IBGE disponibilizar os dados da
contagem populacional por idade.
relação (Concluintes por ingressantes) alcança-
va 78%, enquanto nas instituições privadas fi-
cava em 70%.
Gráfico 2
Concluintes no Ensino Médio - Vagas no
Ensino Superior - Brasil - 1991-2000
Fonte: Inep/MEC
Com esse quadro, o grande compromisso é
com a qualidade do ensino. É preciso diminuir a
evasão e melhorar o desempenho escolar. Com
relação aos docentes, os desafioso principal-
mente o aprimoramento da formação inicial e
continuada de professores, articulado a uma
política de apoio e incentivo ao seu desenvolvi-
mento profissional, tanto em termos das condi-
ções de trabalho, como salário e carreira.
Um dos grandes sinalizadores da política
nesse sentido tem sido o Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério (Fundef). Os resulta-
dos apontam tanto para a elevação do nível sa-
larial do Magistério quanto para o aumento de
gastos em atividades de capacitação docente,
reforma e ampliação de escolas e aquisição de
equipamentos e de material didático.
A implantação de sistemas nacionais de ava-
liação na educação básica (Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica - Saeb; Exame Na-
cional do Ensino Médio - Enem) permite identi-
ficar as principais deficiências na aprendizagem
dos alunos. O nível de escolaridade do professor
exerce, aqui, grande influência. O ganho no ren-
dimento dos alunos manter-se-á ascendente à
medida que se elevar a escolaridade do professor
e seu grau de satisfação profissional.
Base legal da formação para
a educação básica
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação (LDB - Lei n
9
9.394/96), artigo 62, e o De-
creto n
8
3.276, de 6 de dezembro de 1999, a for-
mação de docentes para atuar na Educação Bási-
ca será feita em nível superior, em curso de Li-
cenciatura, de graduação plena, em universida-
des e instituições superiores de educação. A úni-
ca exceção admitida pela LDB para que se formem
professores queo em Licenciaturas Plenas para
o exercício de Magistério na educação básica, é a
que se faz em nível médio, na modalidade Nor-
mal, que passa a ser formação mínima para o exer-
cício do Magistério na Educação Infantil e nas
quatro primeiras séries do Ensino Fundamental.
A Licenciatura curta ou de lº grau - criada
pela Lei nº 5.692/71, artigo 30, como formação
mínima para o exercício do Magistério no ensi-
no de lº grau, da lª à 8ª séries - foi extinta em
conseqüência do que dispõe o artigo 62 da LDB.
Apesar disso, ainda continua a ser ministrada em
algumas instituições de Ensino Superior.-
A Licenciatura Plena - a ser ministrada pelos
institutos superiores de educação, segundo o
artigo 7
9
da Resolução CNE/CP n
9
1, de 30 de
setembro de 1999 - pode ser de dois tipos: o cur-
so Normal Superior, para Licenciatura de profis-
sionais em Educação Infantil e de professores
para os anos iniciais do Ensino Fundamental; e
os cursos de Licenciatura, destinados à forma-
ção de docentes dos anos finais do Ensino Fun-
damental e do Ensino Médio, organizados em
habilitações polivalentes ou especializadas, por
disciplina ou área de conhecimento. Ambos de-
verão ter duração mínima de 3.200 horas, com-
putadas as partes teórica e prática.
Além desses, nos termos da Resolução
CNE n
9
2/97, poderão ser desenvolvidos pro-
gramas especiais de formação pedagógica (es-
quemas I e II), destinados aos portadores de
diploma de nível superior que desejem ensi-
nar nas séries finais do Ensino Fundamental
ou no Ensino Médio, em áreas de conheci-
' Ver Pareceres CNE/CES nº 630/97 e CNE/CES nº 431/98, com recomendação para se tornar plena por meio da Resolução CNE/CES nº 2,
de 19/5/1999.
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
mento ou disciplinas de sua especialidade.
A Lei nº 9.424, de 1996, que regulamentou o
Fundef, estipulou um prazo de cinco anos para
que os professores leigos obtivessem a habilita-
ção necessária ao exercício das atividades docen-
tes. Para isso, incentivou a aplicação de recursos
do Fundo para a capacitação mínima dos pro-
fessores "leigos", isto é, sem Magistério ou sem
Licenciatura, para atuar nos níveis de ensino
apropriados. A LDB foi mais longe ao prever que
até o fim da Década da Educação - dezembro de
2006 - somente serão admitidos professores ha-
bilitados em nível superior ou formados por trei-
namento em serviço.
Tabela 1
Carência de formação
Até o ano 2000, o número de professores sem
habilitação ainda se encontrava na casa do um mi-
lhão. Desses, cerca de 250 mil necessitavam comple-
tar ao menos a formação mínima do Normal Médio,
para se habilitarem ao exercício das funções docen-
tes na escola infantil ou no fundamental de lª a 4ª
série. Entretanto, se observamos os níveis escolares
de 5
a
a 8
a
série e de Ensino Médio, as necessidades
de capacitação aumentam para, pelo menos, 350 mil
docentes, que precisarão obter Licenciatura para se
habilitar ao exercício das funções docentes nas esco-
las em que já atuam.
Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares.
As regiões mais carentes de professores
com pelo menos o Magistérioo o Norte e o
Nordeste. Os estados do Acre e do Maranhão
apresentam mais de 30% de docentes sem Ma-
gistério, atuando no ensino de 1
a
a 4
a
série. Os
estados de Tocantins, Pará, Rondônia, Amazo-
nas, Piauí e Ceará estão com pelo menos 20%
dos docentes de 1
a
a 4ª série sem Magistério.
No ensino de 5
a
a 8
a
série, também o Norte e o
Nordesteo carentes de professores com formação
superior em Licenciatura. Os estados do Tocantins e
Roraima, no Norte; Maranhão e Piauí, no Nordeste,
apresentam mais de 70% de docentes sem Licencia-
tura. Os estados do Amazonas, Bahia, Sergipe e Goiás,
este último já no Centro-Oeste, necessitam formar
mais de 60% dos seus docentes. Outros estados do
Norte e do Nordeste ainda apresentam pelo menos
50% de docentes sem Licenciatura.
No Ensino Médio, a situaçãoo é diferen-
te. Estados do Norte, do Nordeste e do Centro-
Oesteo os que apresentam maior carência de
docentes com Licenciatura. Nos casos de
Roraima, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia e
Goiás, em cada dez funções docentes, cinco nao
m Licenciatura, embora pelo menos dois te-
nham algum curso superior. Outros estados,
como Amazonas, Rio Grande do Norte, Sergipe
e Mato Grosso, apresentam, em cada dez fun-
ções docentes, quatro sem Licenciatura, com
pelo menos dois tendo algum curso superior.
A formação de professores
Os cursos de Magistério estão diminuindo. De
1998 a 2000, a proporção de cursos nessa habilita-
ção caiu de 30% para 17%, no conjunto dos cursos
de nível médio. As escolas estão se adaptando às
novas demandas do mercado de trabalho, enquan-
to, na área da Educação, a demanda está sendo
direcionada para a formação de nível superior. Es-
o sendo criados cursos na modalidade Normal
Tabela 2
Superior, destinados à formação de docentes para
a Educação Infantil e para as primeiras séries do
Ensino Fundamental.
Número de escolas e matrículas no Ensino Médio e na habilitação Magistério
Brasil -1998-2000
Ano
1998
1999
2000
Nº de escolas
Ensino Médio
17.602
18.603
19.456
Magistério
5.261
4.085
3.228
Matrículas
%
30
22
17
Ensino Médio
6.968.531
7.769.199
8.192.948
Magistério
741.625
615.411
518.775
%
11
8
6
Fonte: Inep/MEC - Seec
Os cursos superiores com Licenciatura
Plena correspondem a 41% dos cursos de
graduação do país, segundo dados do Cen-
so do Ensino Superior de 1999. As matrícu-
las apresentaram grande crescimento nas
regiões Sul e Centro-Oeste, nesta última
principalmente por influência do Distrito
Federal. Mas o Sudeste continua concen-
trando grande parte dos estudantes nessa
habilitação (mais de 40%). O Nordeste vem
Tabela 3
em segundo no volume de matrículas (pou-
co mais de 20%). É bom lembrar que do to-
tal de professores que aindao possuem
Licenciatura e atuam na 5ª até a 8ª série do
Ensino Fundamental, bem como no Ensino
Médio, cerca de 40% estão na Região Nor-
deste, enquanto outros 30% ainda podem
ser encontrados no Sudeste. A oferta ainda
está, portanto, invertida, em relação à ca-
rência.
BRASIL
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Brasil-1994-1999
Licenciatura plena
Matriculo 1994
524.140
5,2%
21,1%
48,8%
16,6%
8,4%
Matrícula 1999
712.192
5,1%
21,2%
44,1%
20,1%
9,6%
Taxa de
crescimento
36%
33%
36%
23%
65%
55%
Pedagogia
Matrícula 1999
167.319
6,5%
18,2%
44,1%
21,2%
9,9%
Concluintes
1998
29.032
6,5%
14,2%
52,1%
15,9%
11,3%
Fonte: Inep/MEC - Seec
Os cursos de Pedagogia, por sua vez, apre-
sentaram, em 1999, 167 mil alunos matricu-
lados, sendo 74 mil no Sudeste e 30 mil no
Nordeste. A Região Sudeste cresceu 37%, des-
de 1994, abaixo da média do país, mas ainda
concentra grande parte dos estudantes. O
Nordeste cresceu 48%, porém manteve a mes-
ma participação de 18% nas matrículas. Pelo
lado dos Concluintes, estes foram 29 mil no
ano de 1998.0 Sudeste formou 15 mil e o Nor-
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
deste, 4 mil. Em resumo, o Sudeste matricu-
lou cerca de 44% do total de estudantes em
Pedagogia, no ano de 1999, enquanto forma-
va 52%, no ano anterior. O Nordeste, por sua
vez, matriculou 18% dos estudantes, enquan-
to formava 14%.
Perfil atual das funções
docentes segundo a
formação
Os dados preliminares do Censo Escolar
de 2001 indicam um total de 2,6 milhões de
funções docentes no país,
3
com um cresci-
mento de 4,2% em relação ao ano anterior e
de 21,6% acumulados desde 1996. O ensino
de jovens e adultos cresceu muito nos últimos
anos, sendo acompanhado do maior cresci-
mento registrado pelas funções docentes, en-
tre todos os níveis de ensino. Desde 1996, as
matrículas da EJA
cresceram 35%, en-
quanto os docentes
praticamente dobra-
ram seu número. Esse
crescimento de do-
centes na EJA foi
acompanhado de
maior qualidade no
grau de formação dos
próprios professores,
na medida em que se
constata um cresci-
mento ainda maior
entre os docentes de
nível superior (tabe-
las 4 e 5).
Tanto na Educa-
ção Infantil, como na
Educação Especial, os
dados apontam tam-
m para um grande
Tabela 4
crescimento de docentes com nível superior.
Na Educação Especial, com um número bem
menor de alunos e professores, a proporção
destes com formação superior é bem maior,
chegando a 60% nas escolas públicas; as es-
colas particulares fizeram um ajuste, com
crescimento de 75% dos professores com
grau superior, atingindo agora uma propor-
ção de 40%.
A partir da LDB, iniciou-se a integração
das creches no sistema educacional brasilei-
ro. Os censos escolares passaram a incluir to-
dos os dados referentes a creches. Os anos de
1998 e 1999 foram de regularização do cadas-
tro de estabelecimentos, docentes e matrícu-
las. A partir de 1999, os registros de matrícu-
las se regularizaram, alcançando em 2001 mais
de um milhão de crianças atendidas. As fun-
ções docentes cresceram 30,5% nas creches e
16% nas pré-escolas, de 1999 a 2001.
4
Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares. Notas: * dados preliminares. " 0 crescimento nos creches só pode ser mensurado
em relação ao ano de 1999. Obs: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade
de ensino e em mais de um estabelecimento escolor.
3
o conceito de função docente ó utilizado para contabilizar todas as situações de docentes que atuam em mais de uma área de conhecimen-
to ou em mais de um estabelecimento escolar.
dados preliminares do Censo Escolar de 2001.
Número de funções t
Nível de ensino
Total
Creche**
PRÉ-ESCOLA
Classes de alfabetização
Fundamental de 1ª a 4ª série
Fundamental de 5ª a 8ª série
Ensino Médio
Educação Especial
Educação de Jovens e Adultos
ocentes por nivel d
Brasil -
Números absolutos
2.582.369
63.012
248.470
41.094
809.061
770.077
448.328
42.628
159.699
e ensino e proporção no setor público
2001
Funções docentes em 2001*
Crescimento
1996-2001
18,7
30,5
13,2
-45,6
4,2
25,9
37,2
30,1
99,9
Proporção no
setor público
80,0
57,2
66,4
61,6
87,1
83,5
75,0
46,4
85,0
Proporção
com formação
superior
53,7
12,7
24,7
9,8
27,1
74,4
88,8
48,5
63,7
Tabela 6
o crescimento foi Tabela 5
bem maior entre os pro-
fessores com nível supe-
rior. O crescimento foi de
73% nas creches e de 29%
nas pré-escolas. Porém os
docentes com nível supe-
rior representam peque-
na proporção no quadro
de professores que aten-
dem nas creches. Nos es-
tabelecimentos públicos,
esses professores repre-
sentavam 8% em 1996 e
passaram a 11 % em 2001.
Nos estabelecimentos
privados, os docentes
com formação superior
passaram de 12% para
15% entre o total de pro-
fessores.
Nas pré-escolas, os
docentes com formação
superior representam 25% do total. Na
Região Sudeste, as pré-escolas públi-
cas chegam a 40%. No Sul e no Cen-
tro-Oeste esse índice está acima dos
32%. O Norte e o Nordeste mantêm,
ainda, baixa proporção de docentes
com nível superior, que só é atenuada
nos estabelecimentos privados. No
Nordeste, nas pré-escolas públicas,
eleso passam dos 6%. Nas pré-es-
colas particulares atingem a propor-
ção de 11% (tabela 6).
As funções docentes com nível supe-
rioro requisito necessário, pela LDB.
Entretanto, creches e pré-escolaso
compostas em sua maioria por profes-
sores de nível médio, com Magistério
completo. Representam mais de 60% do Fonte: Inep/MEC - Seec, Censo Escolar 2001 (resultados preliminares)
total de docentes. Essa é a formação-
nima recomendada para o exercício das funções
docentes no ensino infantil. Nas creches, cerca
de 30% dos docentes aindao contam sequer
com o curso Normal Médio. Nas pré-escolas, esse
percentual cai pela metade - cerca de 15% pos-
suem o nível médio, mas sem Magistério, ou
apresentam apenas o nível fundamental.
Número de funções docentes com e sem curso específico
Brasil e Regiões - 2001
Unidade da
Federação
BRASIL
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Pré-Escola
Pública
Total superior
(%)
165.011
13.242
54.410
66.962
22.564
24,5
2,9
5,9
40,5
32,1
7.833 32,8
Médio
67,2
82,7
75,9
58,8
64,3
61,2
Privado
TOTAL ! Superior Médio
83.459
3.524
23.960
38.858
11.028
6.089
25,0
8,3
10,7
31,8
36,9
26,7
70,1
85,6
81,1
65,4
58,4
69,3
Os docentes no Ensino
Fundamental
o Ensino Fundamental, de acordo com os
dados preliminares do Censo Escolar de
2001, ocupa 1,6 milhões de funções docen-
tes. Nas séries de lª a 4
a
, cerca de 25% pos-
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
suem formação em nível superior, enquanto
nas séries de 5
a
a 8
a
, os docentes com forma-
ção superior representam 74%. O número de
funções docentes cresceu 14%, no período de
1996 a 2001, enquanto o crescimento dos
professores de nível superior, no mesmo pe-
ríodo, foi de 30%.
As escolas particulares possuem menor-
mero de professores do que as escolas públi-
cas, porém o ajuste foi maior no sentido do au-
mento do grau de formação. Nas séries de lª a
, em que a proporção das funções docentes
com formação superioro é alta, as particu-
lares registraram alteração de 26% para 41%,
no período de 1996 a 2001. Nas escolas públi-
cas, a proporção aindao superou os 25%.
Nas séries de 5
a
a 8
a
, em que uma maior quali-
ficação dos docentes é necessária, as escolas
particulares alteraram a proporção de 79%
para 84%, no mesmo período, enquanto nas es-
colas públicas o percentual manteve-se próxi-
mo dos 73% (tabela 5).
Dentro do que recomenda a lei vigente,
as funções docentes em exercício nas séries
de 1
a
a 4
a
precisam ter, no mínimo, Magisté-
rio completo. Atualmente, quase 90% das
funções docentes estão enquadradas nesse
requisito. Se formos considerar apenas os
docentes com formação superior, com Ma-
gistério ou Licenciatura, esse percentual cai-
ria para 24%. Em uma perspectiva mais fle-
xível, restam pelo menos 11% de professores
que precisam agregar o curso Normal aos
seus currículos (tabela 7).
Tabela 7
Proporção das funções docentes segundo o grau de formação
Brasil 1996-2000
Grau de formação
Total de docentes
No máximo Fundamental completo
Médio sem Magistério
Magistério
Superior
- Sem Magistério e sem licenciatura
- Com Magistério e sem licenciatura
- Com licenciatura
Pré-Escola
1996
219.517
100,0
16,1
4.3
61,4
18,2
0,3
1,7
16,3
2000
228.335
100,0
9,3
4,4
63,2
23,1
0,5
3,5
19,1
Ensino Fundamental
a 4ª série
1996
776.537
100,0
15,3
3,3
61,1
20,3
0,3
1,5
18,5
2000
815.079
100,0
8,1
3,3
64,0
24,6
0,4
2,9
21,3
5ª
a8ª
1996
611.710
100,0
1,0
6,6
18,7
73,7
2,2
3,5
68,0
- série
2000
749.255
100,0
0,6
6,1
19,2
74,1
2,2
4,7
67,2
Ensino
1996
326.827
100,0
0,3
6,4
6,9
86,4
7,5
4,6
74,3
Médio
2000
430.467
100,0
0,1
6,1
5,3
88,4
6,2
6,4
75,8
Fonte: Inep/MEC - Seec. Obs.: As funções docentes contobilizam professores que atuam em mais de uma modalidade de ensino
e em mais de um estabelecimento escolar.
Nas séries de 5
a
a 8
a
, em que a determina-
ção legal vai no sentido de que todos os profes-
sores tenham formação superior com Licenci-
atura completa, o percentual de cobertura da
legislação está ainda em 67%. No período 1996-
2000, houve uma tendência para o crescimen-
to dos docentes com Magistério, com ou sem
curso superior. Parece estar havendo um ingres-
so de professores com Magistério na universi-
dade, mas esse movimento aindao conse-
guiu causar impacto na proporção dos docen-
tes que já possuem Licenciatura completa. Des-
se modo, cerca de 25% dos docentes, com for-
mação média, com ou sem Magistério, preci-
sarão se adequar à legislação, formando-se no
nível superior. Outros 7% precisarão se adequar
à legislação apenas acrescentando o curso de
Licenciatura a seus currículos.
Os docentes no Ensino Médio
o Ensino Médio incorporou 3,5 milhões
de novas matrículas, desde 1994. Em sete
anos, cresceu o equivalente ao registrado nos
14 anos anteriores, ou seja, 70% de cresci-
mento. Também o número de estudantes que
concluem esse nível de ensino cresceu. De
1991 a 1994, o número de Concluintes havia
aumentado 40%, passando de 660 mil para
917 mil Concluintes. A partir de 1994, o siste-
ma promoveu um melhor fluxo escolar, al-
cançando em 2000 um número duas vezes
maior de Concluintes (1.850 mil).
o Ensino Médio apresenta perto de 450
mil funções docentes, pelos dados ainda
preliminares do Censo Escolar de 2001. Des-
ses, quase 90%m formação superior. O-
mero de funções docentes cresceu 37%, no
período de 1996 a 2001, refletindo pratica-
mente o mesmo crescimento dos professo-
res de nível superior (41%). No ano de 2000,
de cada 100 novas funções docentes, 95 fo-
ram preenchidas com professores de nível
superior, sendo que 81 com Licenciatura.
Enquanto isso, outros 5% continuaram sen-
do de docentes com formação média, sem
Magistério. As escolas ainda estão absorven-
do professores com nível médio, principal-
mente em estados do Nordeste e do Centro-
Oeste (tabela 8).
As escolas particulares de Ensino Médio
também possuem menor-
mero de professores do que
as escolas públicas, porém
também aqui o ajuste foi
maior no sentido do aumen-
to do grau de formação. As
particulares alteraram a pro-
porção de docentes com-
vel superior de 86% para 90%,
enquanto nas escolas públi-
cas o percentual passou de
86% para 88%.
Dentro do que a LDB de-
termina, as funções docen-
tes em exercício no Ensino
Médio devem ter formação
superior com Licenciatura
Tabela 8
completa. Atualmente, cerca de 76% das
funções docentes estão enquadradas nesse
requisito. Restam pelo menos 12% de pro-
fessores que precisam agregar à sua forma-
ção o curso de Licenciatura. Outros 11% de
docentes aindao possuem graduação su-
perior e, portanto, precisarão se adequar à
legislação (tabela 7). Professores com Ma-
gistério estão ingressando na universidade
e adquirindo formação superior. A propor-
ção dos docentes com nível médio e Magis-
tério vem decrescendo, enquanto aumenta
aqueles com Magistério e formação superi-
or. Entretanto, ainda lhes falta o curso de Li-
cenciatura.
Os docentes
no Ensino Superior
A expansão da matrícula no Ensino Médio,
que se acentuou nos últimos cinco anos, vem
provocando um aumento na demanda por va-
gas no Ensino Superior. Em 1990, havia cerca
de 640 mil alunos Concluintes no nível médio e
aproximadamente 520 mil vagas no Ensino Su-
perior, o que estabelecia uma relação de prati-
camente 1,2 alunos por vaga. Em 1999, mais de
1,7 milhão de estudantes concluiu o Ensino-
dio para cerca de 900 mil vagas oferecidas para
o Ensino Superior, fazendo a relação aproximar-
se de 1,9 alunos por vaga.
Número de funções docentes no Ensino Médio por grau de formação
Brasil e Regiões - 2000
Unidade da
Federação
BRASIL
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Ensino Médio
Formação média
N° absoluto
49.176
3.722
19.279
14.037
5.641
6.497
(%)
11,4
16,2
21,4
6,5
8,2
20,1
Crescimento
1996-2000
13%
10%
12%
10%
11%
31%
Formação superior
N° absoluto
380.679
19.268
70.767
201.871
62.932
25.841
(%)
88,4
83,8
78,4
93,4
91,5
79,8
Crescimento
1996-2000
35%
45%
34%
40%
19%
34%
Fonte: Inep/MEC - Seec. Censo Escolar 2001 (resultados preliminares}
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Nos seis anos queo de 1994 a 2000, o
Ensino Superior incorporou um milhão de
estudantes nos cursos de graduação. De 1997
a 2000 - o período de maior crescimento - a
taxa média de expansão foi de 11,5% ao ano.
Esse percentual é praticamente o mesmo
atingido pelo sistema em toda a década de
1980 (11,8%).
A rápida expansão da matrícula repercu-
te, obviamente, no aumento do número de
professores no Ensino Superior, que também
vem se dando de forma acelerada. Em 1994,
contavam-se 141 mil professores em exercí-
cio em todas as instituições. Em 1999, esse
número passou para 174 mil. O crescimento
médio no período 1994-1999 foi de 4,2% ao
ano, sendo que de 1998 a 1999 o crescimen-
to foi de 5,3%.
Tabela 9
Nesse universo, a proporção dos profes-
sores com pós-graduação, em cursos de
Mestrado ou Doutorado, cresceu substanci-
almente. Em 1999, 50% das funções docen-
tes já eram ocupadas por professores com
grau de mestre ou de doutor, sendo que os
professores com título de doutor represen-
tavam 20% do total (tabela 9). Nas institui-
ções públicas federais e estaduais, a propor-
ção de professores titulados é bem mais alta.
De cada dez funções docentes, pelo menos
seiso de mestres ou doutores e, entre es-
tes, pelo menos trêso doutores. Nas insti-
tuições privadas, de cada dez funções docen-
tes, pelo menos quatroo de mestres ou
doutores, entre os quais pelo menos um
apresenta titulação no Doutorado.
o percentual de professores sem pós-gra-
1994
1998
1999
Total
Pública
Federal
Privada
Total
Pública
Federal
Privada
Total
Pública
Federal
Privada
Brasi
Total
N° absoluto
141.482
75.285
43.556
66.197
165.122
83.738
45.611
81.384
173.836
80.883
46.687
92.953
%
100,0
53,2
30,8
46,8
100,0
50,7
27,6
49,3
100,0
46,5
26,9
53,5
ntes com mestrado
- 1994-1999
Mestrado
N° absoluto
33.531
21.268
14.899
12.263
45.482
25.073
16.371
20.409
50.849
24.231
16.496
26.618
%
23,7
28,2
34,2
18,5
27,5
29,9
35,9
25,1
29,3
30,0
35,3
28,6
do
1
Doutorado
N° absoluto
21.326
16.850
9.147
4.476
31.073
23.544
13.170
7.529
34.937
25.360
14.651
9.577
%
15,1
22,4
21,0
6,8
18,8
28,1
28,9
9,3
20,1
31,4
31,4
10,3
Fonte: Inep/MEC
duação apresentou uma grande queda, de
34,5% para 15%, no período de 1990 a 1999.
Esses professores mantêm o mesmo percen-
tual de 15% tanto nas instituições públicas
como nas particulares.
A categoria dos professores com especia-
lização mostrou uma pequena elevação, de
31,6% para 35%, no período 1990-1998, man-
tendo-se nessa proporção em 1999. Nas insti-
tuições públicas, os docentes com especiali-
zação representam 23%, enquanto nas parti-
culares somam 45%. A proporção de profes-
sores com mestrado cresceu de 21% para 29%
e a de professores com doutorado, de 13%
para 20% (gráfico 3).
Gráfico 3
Fonte: Inep/MEC
A qualidade do ensino
A busca de qualidade e a promoção de
maior eqüidade do sistema de ensino pas-
saram a ocupar lugar de destaque na nova
agenda das políticas de educação básica. A
correção do fluxo escolar foi uma das medi-
das pelas quais se buscou combater a baixa
eficiência dos alunos e a pouca efetividade
do ensino. Como um dos resultados dessa
política, o número de Concluintes do Ensino
Fundamental cresceu a uma taxa de 10% ao
ano, desde 1994. Por sua vez, a proporção de
estudantes em atraso escolar, que era de 60%
em 1994, baixou para 42% no ano de 2000.
Mas outras estratégias também se interliga-
ram nesse esforço:
o aprimoramento do sistema de forma-
ção inicial e continuada de professores,
articulado a uma política de apoio e in-
centivo ao seu desenvolvimento profis-
sional.
o desenvolvimento de sistemas de ava-
liação de aprendizagem e do desempenho
docente, referenciados em padrões de
qualidade.
Novas tecnologias de informação nas es-
colas e como suporte a programas de edu-
cação a distância, inclusive voltados para
a formação continuada e para a capacita-
ção de professores.
Elaboração e disseminação de diretrizes
e parâmetros curriculares nacionais,
abrangendo desde a Educação Infantil até
o Ensino Médio, passando pelo Ensino
Fundamental, pela Educação Indígena,
pela Educação de Jovens e Adultos e pela
formação de professores.
Implantação de sistemas nacionais de ava-
liação na educação básica: o Saeb e o Enem.
' A criação do Fundef, no sentido de promo-
ver maior eqüidade no financiamento do
ensino obrigatório e de assegurar condi-
ções mínimas para a remuneração mais
digna dos profissionais da educação, bem
como para sua formação.
Resultados obtidos
o Fundef pel
A lei que instituiu o Fundef (Lei nº 9.424,
de 24/12/1996) assegura a utilização de, pelo
menos, 60% (sessenta por cento) dos recur-
sos do Fundo para a remuneração dos pro-
fissionais do Magistério em efetivo exercício
de suas atividades no Ensino Fundamental
público.
Estudos recentes realizados pelo MEC e pelo
Inep analisaram dados sobre os níveis salariais
dos docentes e chegaram a conclusões anima-
doras a respeito desses níveis assim como sobre
a formação desses docentes.
Um dos trabalhos
5
analisou os dados de uma
pesquisa amostrai, realizada pela Fipe/USP em
300 redes públicas de Ensino Fundamental, com-
preendendo a totalidade das redes estaduais e
do Distrito Federal e as redes municipais perten-
centes às 26 capitais e mais 273 municípios.
Uma das conclusões do estudo foi que:
Semeghini, Ulysses. Fundef, uma revolução silenciosa. Departamento de Acompanhamento do Fundef/MEC.
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Os reajustes foram maiores nas redes munici-
pais em todas as regiões, o que é ainda mais sig-
nificativo, levando-se em conta que foi nessas
redes que aumentou substancialmente o núme-
ro de docentes. Entretanto, mesmo as
redes estaduais reajustaram seus sa-
lários em níveis superiores ao da in-
flação no período. Os maiores índices
foram concedidos aos profissionais
dos municípios e regiões mais pobres,
com o que reduziu-se a distância en-
tre seus vencimentos e a média das
demais regiões. No Norte e no Nor-
deste, em que pese transferirem re-
cursos aos municípios, os estados
concederam aumentos médios em
suas redes bem maiores do que os es-
tabelecidos no Sul, no Sudeste e no
Centro-Oeste.
cenciatura Plena. Dessa forma, a remunera-
ção média total na região, que correspondia
a 49% da média nacional em 1997, ascende-
ra a 61% em 2000.
Segundo o trabalho, a remunera-
ção média dos professores das redes
públicas aumentou 29,5%, entre de-
zembro de 1997 e junho de 2000. As
duas categorias funcionais mais repre-
sentativas - os profissionais com for-
mação em nível médio na modalidade
Normal e os portadores de curso supe-
rior com Licenciatura Plena - obtive-
ram, nesse período, elevações salariais
de 23% e 27%, respectivamente. A re-
muneração média nacional dos profes-
sores com nível médio completo na
modalidade Normal, que em dezem-
bro de 1997 era de R$578,00 para a jor-
nada de 40 horas, passou a R$710,00 em junho
de 2000. Já os docentes de formação superior
com Licenciatura Plena passaram de R$1.005,00
para R$1.278,00, no mesmo período e para idên-
tica jornada.
Quando se analisaram os dados referen-
tes às várias regiões do país, constatou-se
que o maior percentual de aumento da remu-
neração ocorreu no Nordeste, onde a eleva-
ção média foi de 59,7%, sendo de cerca de
54% para os professores com modalidade
Normal e de 36% para os docentes com Li-
Tabelo 10
Remuneração média, em reais, dos professores com licenciatu-
ra do Ensino Fundamentai - 40h semanais 1997/2000
BRASIL
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Municipal
Estadual
Total
Municipal
Estadual
Total
Municipal
Estadual
Total
Municipal
Estadual
Total
Municipal
Estadual
Total
Municipal
Estadual
Total
Dez./1997
1.079
965
1.005
821
780
778
626
522
560
1.268
1.125
1.165
955
811
855
750
924
880
Jun./2000
1.299
1.266
1.278
985
968
973
824
722
763
1.531
1.554
1.545
1.168
954
1.030
1.002
1.186
1.141
Taxa de
crescimento
20%
31%
27%
20%
24%
25%
32%
38%
36%
21%
38%
33%
22%
18%
20%
34%
28%
30%
Fonte: DAF/MEC, Pesquiso Fipe/USP, 2000
Analisando comparativamente a evolução da
remuneração dos docentes pertencentes às re-
des estaduais e municipais, verificou-se que, no
período, houve aumento médio de 33,3% nas
redes municipais e de 25,2% nas estaduais. Esse
foi um dos reflexos diretos da redistribuição dos
recursos que beneficiou intensamente os muni-
cípios, justamente os que dispunham de meno-
res possibilidades para arcar com essas eleva-
ções, antes da criação do Fundef.
6
No tocante aos professores com Licenciatu-
ra Plena, as redes sediadas na Região Sudeste
0
Segundo informa o estudo, a inflação no mesmo período, medida pelo INPC/IBGE, foi da ordem de 12%.
Tabela 11
concederam, no período de dezembro de 1997
a junho de 2000, uma elevação salarial média
de cerca de 33%. No Nordeste, os docentes com
essa mesma formação pertencentes às
redes estaduais foram os que obtiveram
os maiores aumentos, alcançando 38%
em média. Já dentre as redes munici-
pais, as maiores elevações salariais nes-
sa categoria aconteceram na Região
Centro-Oeste, atingindo 34%, e no Nor-
deste, 32%.
Outro estudo
7
analisou dados
extraídos das Pesquisas Nacionais por
Amostra de Domicílio (PNAD), realiza-
das pelo Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística (IBGE). Chegou a con-
clusões que indicam melhorias salari-
ais e de formação profissional.
maior da eqüidade nos salários dos professores
no país, que é um dos objetivos declaradamente
almejados na criação do Fundo.
do Ensin
BRASIL
Norte
Nordeste
Centro-Oeste
Sudeste
Sul
Salário médio, em reais, dos professores
o Fundamental, em escolas públicas - 40h semanais
Brasil-1996-1999
1996
557
510
345
559
709
604
1997
585
482
354
551
778
665
1998
626
516
423
628
845
656
1999
670
593
451
672
893
749
Taxa de crescimento
1996-1999
20%
16%
31%
20%
26%
24%
Fonte: Estimativas Inep/MEC-Seec a partir de dados IBGE/PNAD 1996, 1997, 1998 e 1999.
Os dados mostram um claro e progressivo au-
mento dos salários médios dos professores no
país com a implantação do Fundef e a diminui-
ção das diferenças regionais. Antes do Fundef,
a evolução dos salários cios professores era mais
lenta no conjunto do país, além de muito hete-
rogênea.[...]
Os números mostram evolução contínua da me-
lhoria na formação docente, embora de forma
mais clara e acentuada entre os professores de
lª a 4ª série.
Segundo o trabalho, na vigência do Fundef,
em 1998, registrou-se o maior aumento de salá-
rio na Região Nordeste (19,5%), bem como au-
mentos variáveis nas demais regiões, com exce-
ção do Sul. Nos dois anos anteriores ao Fundef,
a relação entre o menor e o maior salário médio
regional - Nordeste e Sudeste, respectivamente
- havia aumentado (chegando a 2,2 vezes em
1997), ocorrendo o inverso nos anos posteriores
(caindo a relação para 1,98 em 1999).
Nos anos de 1998 e 1999, observa-se a ocor-
rência de ganhos positivos em todas as regiões,
sendo esses maiores nas regiões mais pobres
(27% no Nordeste; 23% no Norte; 22% no Cen-
tro-Oeste). Está havendo, portanto, um alcance
o trabalho observa, também, que o
Fundef teve impacto positivo sobre a forma-
ção dos professores. Entre 1996 e 2000, o-
mero de professores de lª a 4ª série sem for-
mação mínima (Ensino Médio completo) re-
duziu-se em 44,1%; enquanto o número de
professores com formação adequada aumen-
tou em 13,8%. Já o número de docentes de 5
a
a 8- série sem formação mínima (Ensino Su-
perior completo) chegou a crescer 20,6%; en-
quanto o de docentes com a formação míni-
ma aumentou em 23,2%.
o acréscimo de funções docentes para as
séries iniciais do Ensino Fundamental, entre
1996 e 2000, foi de apenas 5%, acompanhando a
redução da demanda nessas séries. Assim, foi
possível que o investimento na melhoria da for-
mação daqueles professores tivesse um impac-
to mais evidente nas estatísticas. Já nas séries
Finais, as funções docentes precisaram crescer
22%, o que certamente exigiu a incorporação de
professores sem a formação mínima recomen-
dada, uma vez que a oferta de profissionais com
a qualificação necessária tem sido menor que a
demanda, principalmente nas regiões e cidades
mais carentes.
' Coelho. Ricardo. O Fundef e a nova orientação das políticas educacionais nos anos 90: princípios e resultados. Inep/Gabinete
da Presidência.
SIMPÓSIO 10
ARTICULAÇÃO ENTRE AS
FORMAÇÕES INICIAL E
CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário
Célia Maria Carolino Pires
Charles Hadji
o papel da prática
profissional na formação
inicial e contínua de
professores
Rui Canário
Universidade de Lisboa, Portugal
Resumo
Nesta intervenção procede-se a uma análise da
importância e do papel da prática profissional na
formação dos professores, entendendo esta como
um processo permanente que integra, de modo
articulado, a formação inicial e a formação contí-
nua. Encarando a formação como um processo de
socialização profissional, defende-se a tese de que
as escolas constituem os lugares onde os professo-
res aprendem a sua profissão. Essa perspectiva
aponta para a necessidade de construir relações
estratégicas entre a formação e o trabalho, a partir
da exploração das potencialidades formativas do
exercício profissional. O modo como é concebida
e concretizada a componente da prática profissio-
nal na formação de futuros professores pode con-
figurar-se como um elemento estruturante de po-
líticas integradas de formação inicial e contínua,
de investigação e de intervenção nas escolas.
o desenvolvimento da investigação e da re-
flexão sobre as práticas formativas tem contri-
buído para colocar no centro da problemática
da formação profissional (nomeadamente da
formação de professores) a questão da
revalorização epistemológica da experiência.
Assim, nesta intervenção, procurarei, por um
lado, explicitar qual a pertinência dessa
revalorização da experiência na formação de
professores e quais os modos da sua tradução
curricular, no âmbito da formação inicial. Por
outro lado, considerando a formação inicial de
professores como a primeira etapa de um em-
preendimento de formação contínua, desenvol-
verei argumentação no sentido de defender a
idéia seguinte: a articulação entre a formação e
o exercício do trabalho (quer dizer, a designada
"prática pedagógica") constitui o ponto
nevrálgico da organização curricular dos cursos
de formação inicial de professores. O modo de
abordar essa questão pode ser estruturante, quer
de uma política de investigação, quer de uma
política de formação contínua e intervenção jun-
to dos estabelecimentos de ensino da região.
Na base da minha argumentação estarão
subjacentes duas teses: a primeira é a de que os
professores aprendem a sua profissão nas es-
colas e a segunda (que decorre da primeira) é a
de que o mais importante na formação inicial
consiste em aprender a aprender com a experi-
ência. A enfatização e o desenvolvimento da
formação de professores, que marcaram, em
Portugal, as décadas de 1980 e 1990, situaram-
se nos antípodas dessas duas teses.
Com efeito, prevaleceu uma visão dicotômica
entre a formação inicial e a formação contínua,
sustentada por uma concepção cumulativa do
processo formativo em que este é encarado como
a adição de duas etapas complementares, relati-
vamente estanques, articuladas de modo
seqüencial e linear. Essa visão da formação, como
uma sucessão hierarquizada de etapas cuja ordem
determina a natureza e a importância das moda-
lidades formativas, nega a continuidade da for-
mação como algo que é inerente a todo o ciclo de
vida profissional e baseia-se em duas idéias es-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
senciais: a primeira é a de afirmar a predominân-
cia estratégica da formação inicial que precede e
determina as posteriores situações formativas; a
segunda é a de pensar a formação inicial a partir
de um paradigma de racionalidade técnica, em
que se procede a uma justaposição hierarquizada
de saberes científicos, mais saberes pedagógicos,
mais momentos de prática (entendida como uma
"aplicação").
da primeira idéia decorre o caráter supleti-
vo da formação contínua à qual se atribui uma
função corretiva quer das inevitáveis "lacunas"
da formação inicial, quer da, igualmente inevi-
tável, obsolescência dos conhecimentos adqui-
ridos. da segunda idéia decorrem modalidades
de ação que limitam a eficácia da formação na
medida em que, reduzindo tendencialmente o
papel do professor ao de um técnico, ignoram a
vertente "artística", inquiridora e reflexiva da
sua intervenção, em situações reais marcadas
pela complexidade, pela incerteza e pela singu-
laridade. Pérez Gomez sintetiza bem os limites
desse paradigma de racionalidade técnica:
Os problemas da prática socialo podem ser
reduzidos a problemas meramente instrumen-
tais, em que a tarefa profissional se resume a
uma acertada escolha e aplicação de meios e
procedimentos. De um modo geral, na prática
o existem problemas, mas sim situações pro-
blemáticas que se apresentam freqüentemente
como casos únicos queo se enquadram nas
categorias genéricas identificadas pela técnica
e pela teoria existentes. Por essa razão, o profis-
sional práticoo pode tratar essas situações
como se fossem meros problemas instrumen-
tais, suscetíveis de resolução através de regras
armazenadas no seu próprio conhecimento ci-
entífico-técnico. (1992: 100)
No que diz respeito ao debate sobre as polí-
ticas e as práticas de formação de professores,
a intervenção das instituições do Ensino Supe-
rior tem revelado tendência a pautar-se, em lar-
ga medida, por critérios de defesa de interesses
corporativos. Para as instituições formadoras
está em causa a criação de condições que lhes
permitam instituírem-se como lugares legíti-
mos de produção dos saberes legítimos,
estruturantes da profissão docente. Esse pen-
dor corporativo tem vindo a empobrecer, quer
em termos estratégicos, quer em termos meto-
dológicos, o debate sobre a formação profissio-
nal dos professores.
No quadro de um paradigma de educação
permanente, a formação profissional, nomea-
damente de professores,o pode ser entendi-
da como circunscrevendo-se a uma primeira e
curta etapa, prévia ao exercício do trabalho,
mas, pelo contrário, como um processo que é
inerente à globalidade do percurso profissional.
Tendem, portanto, a esbater-se as fronteiras que
tradicionalmente separam a formação inicial da
formação contínua o que conduz à conclusão
lógica de que ambas as vertentes deverão ser
asseguradas, de modo integrado, por uma mes-
ma instituição. Cada vez mais a tendência será
para que nos públicos do Ensino Superior haja
uma importância crescente da fração de pes-
soas adultas quem ou tiveram uma experi-
ência profissional e que, ao longo da sua vida,
recorrerão às escolas do Ensino Superior como
instituições especializadas de formação.
Essas emergem como instituições deforma-
ção permanente (nas quais a formação
profissional contínua ocupa um lugar estraté-
gico fundamental) eo como escolas de for-
mação profissional inicial que, de forma subsi-
diária, desenvolveriam atividades de extensão
educativa dirigidas aos profissionais em exer-
cício. No caso das escolas de formação de pro-
fessores, dessa situação decorrem naturalmen-
te conseqüências importantes relativamente à
concepção das funções das instituições, das
suas políticas, do perfil e formação do seu pes-
soal docente, do desenho curricular dos seus
cursos, da construção da sua oferta formativa.
Formação e mundo do
i
trabalho: da previsibilidade
à incerteza
Em termos de evolução recente, a mais im-
portante mudança registrada no campo da for-
mação profissional é a da passagem de uma re-
lação de previsibilidade, em relação ao mundo
do trabalho, para um outro tipo de relação mar-
cado pela incerteza. Com efeito, o "fim das cer-
tezas" (Prigogine, 1996) é algo que afetao ape-
nas o modo como percebemos hoje o mundo da
natureza, mas também toda a vida social. Essa
nova relação de incerteza vemr em causa os
dois elementos que foram os pilares de uma re-
lação outrora tida como harmoniosa. O primei-
ro elemento corresponde a conceber a relação
entre os sistemas de formação e o sistema mer-
cado de trabalho de acordo com um modelo de
adequação. O segundo elemento corresponde a
ler a articulação entre a formação e o desempe-
nho profissional de acordo com um modelo de
adaptação funcional. Ambas as perspectivas es-
tão, hoje, postas em causa em face das evoluções
que se registraram quer no mundo do trabalho,
quer no mundo da formação profissional.
A primeira perspectiva supõe uma atitude oti-
mista relativamente às virtualidades de um plane-
jamento da formação capaz de responder às "ne-
cessidades" do mercado de trabalho, o que impli-
caria que este fosse relativamente estável ou que,
em alternativa, se apresentasse com uma evolu-
ção previsível. A segunda perspectiva implica pres-
supor a possibilidade de proceder à transferência
quase automática das aquisições realizadas duran-
te a formação, para o "posto de trabalho" (onde
seriam aplicadas), fazendo abstração das condi-
ções sociais (organizacionais) em que se exerce o
trabalho, bem como do caráter indeterminado e
"construído" dessas condições. Desse ponto de vis-
ta, a formação é encarada como um processo cu-
mulativo e linear que mantém com o desempenho
profissional uma relação meramente adaptativa.
instrumental e funcional. É essa perspectiva que
está presente no desígnio ingênuo, por parte de
responsáveis por cursos de formação inicial de pro-
fessores, de, a partir de um conhecimento relati-
vamente exato e prévio do que se faz em contexto
de trabalho, pretender organizar os cursos de ma-
neira que eles se ajustem funcionalmente às "exi-
gências" do exercício do trabalho.
É precisamente a impossibilidade de cum-
prir esse desígnio que apela à construção de uma
relação estratégica entre a formação e o trabalho,
em que o essencial consiste na capacidade de de-
senvolver um reflexo de aprendizagem perma-
nente que permita aprender a identificar o que
é necessário saber e a aprender a aprender com
a experiência. Quer isso dizer queo é possível
continuar a conceber o trabalho humano como
algo suscetível de ser objeto de uma descrição
fina, a priori, para, em seguida, traduzir essa
descrição em termos de estratégias pedagógicas,
de objetivos pedagógicos, de conteúdos a ensi-
nar, de gestos a adquirir, de tal modo que os
formandos venham a poder encaixar-se nos per-
fis profissionais previamente definidos. Essa
perspectiva de descrição a priorio sóo se
coaduna como é contraditória com processos de
exercício do trabalho que mudam de forma ace-
lerada, adquirindo contornos e configurações
queo é possível prever de modo preciso. A
emergência da incerteza na relação formação-
trabalho é alimentada por três grandes fenôme-
nos:o eles a intensificação da mobilidade pro-
fissional, a rápida obsolescência da informação
e as mutações das organizações de trabalho.
A mobilidade profissional intensificou-se de
forma muito rápida nas três últimas décadas.
Hoje, em vez de se afirmar que as pessoas
aprendem uma profissão, será cada vez mais
pertinente pensar na diversidade de atividades
que cada pessoa desenvolve no quadro da sua
trajetória profissional. Quer isso dizer que a ati-
vidade profissional de cada um só faz sentido
se for encarada numa perspectiva diacrônica
que abrange todo o período de vida profissio-
nal ativa. Ao longo desse ciclo as pessoas mu-
dam as suas qualificações, constróem (em con-
texto) uma combinatória diversa de competên-
cias, mudam de ambiente de trabalho, realizam
processos de reconversão e alteram as suas fun-
ções de natureza profissional. Em muitos casos,
acabam por fazer coisas que poucom a ver
com a sua formação profissional inicial.
A emergência do conceito de trajetória pro-
fissional, que é concomitante com a emergên-
cia do conceito de percurso deformação de cada
indivíduo, permite romper com uma visão es-
tática que tem sido predominante no modo de
conceber a relação entre a formação e o traba-
lho. As abordagens quem como referência as
histórias de vidam vindo fundamentar e re-
forçar a importância de pensar a atividade pro-
fissional e a atividade de formação numa pers-
pectiva, por um lado, integrada (as duas verten-
tesoo hoje dissociáveis) e, por outro lado,
numa perspectiva diacrônica, isto é, inseridas
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
na flecha do tempo, como fenômenos únicos e
dotados de irreversibilidade. Essa maneira de
ver conduz a deixar de encarar a formação como
um somatório de momentos formais não-arti-
culados (as chamadas "ações" de formação). No
quadro de um percurso de formação, em que
esta é entendida como um processo, cada pes-
soa e cada profissional torna-se o sujeito da sua
própria formação e é esse ponto de vista que
nos permite deslocar o centro das atenções, em
termos formativos, das atividades de ensino
para as atividades de aprendizagem.
Reside aqui o fundamento para que possa-
mos distinguir um processo de educação per-
manente daquilo que é a sua caricatura, ou seja,
a extensão dos processos escolares ao conjunto
da vida (profissional). Essa escolarização
massiva da formação profissional constitui, a
meu ver, um fenômeno negativo que se tem ma-
nifestado de forma particularmente gritante no
caso da formação profissional contínua de pro-
fessores (Barroso e Canário, 1999).
Um segundo fenômeno diz respeito ao cres-
cimento exponencial do volume de informação
disponível, o que traz como conseqüência uma
rápida obsolescência dessa mesma informação.
Coloca-se, então, como questão central, saber
como transformar sistemas formativos que fun-
cionam tradicionalmente segundo uma lógica
cumulativa de informação em sistemas
formativos orientados para a produção de sabe-
res, privilegiando os processos de tratamento e
mobilização da informação. É no quadro dessa
problemática que se inscreve a importância es-
tratégica atribuída à pesquisa, entendida como
um eixo metodológico da formação. Tornam-se,
hoje, cada vez mais evidentes os limites de es-
tratégias de formação baseadas em pressupos-
tos de acumulação de informação, precisamen-
te por causa da sua rápida desvalorização.
Um terceiro fenômeno consiste num proces-
so de mudança acelerada das organizações de tra-
balho. O modelo de organização fordista, típico
da produção em massa, por meio de processos
estandardizados e baseados na economia de es-
cala, tem sofrido um conjunto de mutações que
se orientam no sentido de substituir as relações
burocráticas e hierarquizadas por redes, no inte-
rior das organizações, o que tende a transformá-
las em sistemas auto-regulados em que deixa de
haver um centro único, funcionando com base
numa cadeia de comando vertical. A passagem da
lógica de "castelo" a uma lógica de "rede" (Butera,
1991) supõe que o exercício do trabalho deixe de
ser segmentado e atomizado, passando-se a va-
lorizar a polivalência e o trabalho em equipe. O
trabalho coletivo faz apelo a que cada um dos
membros da organização possa construir uma
intelegibilidade global do processo de trabalho,
queo ocorria, nem era desejável que ocorres-
se, no sistema da linha de montagem. Neste, cada
pessoa realiza um trabalho parcelar e só conhece
o âmbito restrito daquilo que faz no seu "posto
de trabalho".
Estamos, assim, em presença de uma evolu-
ção tendencial de uma cultura de dependência e
de execução para uma cultura de interação e de
resolução de problemas, o que apela a capacida-
des de natureza analítico-simbólicas para
equacionar problemas imprevisíveis eo ape-
nas capacidades que permitam mobilizar as res-
postas "certas", aprendidas na formação, para dar
resposta a situações estandardizadas. Essa evo-
lução, por um lado, torna obsoleta a concepção
de formação para o "posto de trabalho", por ou-
tro lado, obriga a que a formação deixe de ser pen-
sada exclusivamente em termos de capacitação
individual. Na medida em que se passa a consi-
derar as dimensões coletivas do exercício do tra-
balho, a formação orienta-se, também, para a for-
mação de equipes de trabalho que se formam em
exercício e no contexto de trabalho.
Construir competências
em contexto profissional
Enquanto o processo de qualificação está
relacionado com a aquisição e a certificação de
saberes, normalmente obtidos por via escolar,
a competência, como escreveu Lise Demailly
(1997: 61), refere-se a "um não-sei-quê através
do qual a qualificação se torna eficiente e se
atualiza numa situação de trabalho". Nessa
perspectiva, podemos sustentar que as qualifi-
cações se adquirem por um processo que pode
ser cumulativo (as qualificações podem ser pos-
tas em estoque e armazenadas), enquanto as
competências só podem ser produzidas em
contexto, a partir da experiência de trabalho.
Quando se afirma que a escola é o lugar onde
os professores aprendem é, precisamente, esse
processo de produção de competências profissio-
nais que está a ser referido. É no contexto de tra-
balho, eo na escola de formação inicial, que
se decide o essencial da aprendizagem profissio-
nal (que é coincidente com um processo de so-
cialização profissional). Como todos sabemos, a
sabedoriao garante a competência. Muitas
pessoas qualificadaso se revelam competen-
tes, e o inverso também se verifica. Além disso,
a experiência também nos ensina que nenhum
professor é definitivamente competente ou in-
competente, independentemente dos tempos e
dos lugares. Com efeito, as qualificações obtidas
por via escolar correspondem à certificação de
competências escolares queoo suscetíveis
de uma transferência linear e direta para o exer-
cício profissional, na medida em que dizem res-
peito ao campo pedagógico, que goza de relati-
va autonomia. Como afirma Berthelot, a defini-
ção, a produção, o reconhecimento e a
certificação de competênciaso feitos pela es-
cola independentemente da sua "efetividade
prática exterior". Por isso "a idéia de uma corres-
pondência e de um isomorfismo naturais e racio-
nais entre as competências escolares e as com-
petências socioprofissionais é um postulado que
assenta no desconhecimento da existência de
duas lógicas radicalmente diferentes, em presen-
ça nos dois sistemas" (Berthelot, 1994: 200).
É justamente por também considerar que as
competênciaso da ordem do "saber mobili-
zar" (é possível armazenar informação, maso
competências) que Guy Le Boterf (1994) lhes
nega um caráter de universalidade, indepen-
dentemente de sujeitos e de contextos concre-
tos. Segundo esse autor, a competênciao
corresponde a um estado, nem a um saber que
se possui, nem a um adquirido de formação.
Apenas é compreensível, e suscetível de ser pro-
duzida, "em ato", do que decorre o seu caráter
finalizado, contextual e contingente. Essa ma-
neira de ver contraria a idéia de que as compe-
tênciaso algo de prévio ao exercício profissio-
nal. Elas aparecem, pelo contrário, como algo
que é emergente de processos de mobilização e
confronto de saberes, em contexto profissional.
A compreensão do caráter emergente das com-
petências profissionais, relativamente aos contex-
tos de trabalho, pode ser reforçada a partir do con-
ceito de zelo no trabalho, evocado por Christophe
Dejours (1998). Esse conceito fundamenta-se na
existência de uma distância, empiricamente ob-
servada pelos sociólogos do trabalho, entre traba-
lho real e trabalho prescrito, que conduz a que a
execução estrita dos procedimentos recomenda-
dos pelas instâncias de enquadramento produza a
paralisação dos processos de trabalho, conforme
pode ser constatado nas situações em que os tra-
balhadores utilizam como recurso a designada
"greve de zelo". Segundo Dejours, o processo de tra-
balho só funciona se os trabalhadores fizerem a or-
ganização de trabalho beneficiar-se com a sua in-
teligência individual e coletiva.
Esse exercício da inteligência no trabalho só
é possívelo apenas à margem do cumprimen-
to estrito dos procedimentos prescritos, mas a
partir de uma atitude de infração às normas
estabelecidas. O conceito de zelo no trabalho de-
signa a" inteligência eficiente no trabalho", em que
é possível distinguir, por um lado, características
cognitivas, como "fazer face ao imprevisto, ao iné-
dito, àquilo queo é ainda conhecido, nem in-
tegrado na rotina", e, por outro lado, característi-
cas afetivas, como "ousar transgredir ou infringir,
agir de forma inteligente mas clandestina ou, pelo
menos, discreta" (Dejours, 1998: 74). É a
constatação de que a prática profissional se ali-
menta de um conjunto de "saberes tácitos" e de
que há um "saber escondido no agir profissional"
(Schon, 1996) que confere fundamento à estraté-
gia de otimizar o potencial formativo dos contex-
tos de trabalho. Essa estratégia torna-se, então, o
eixo estruturante do percurso formativo, modifi-
cando-se de maneira profunda o papel atribuído
à formação inicial, prévia ao exercício profissio-
nal. Como escreveu Berthelot (1994: 201),
Jáo se trata, para a escola, de jogar puzzle,
produzindo peças preconcebidas e recortadas
!...), mas sim de jogar xadrez, quer dizer, de pro-
duzir peças dotadas de regras genéricas de fun-
cionamento, suscetíveis de serem atualizadas de
modo diverso, consoante a configuração do jogo
em que serão integradas, e de adquirir outras
regras segundo a evolução deste último.
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
As situações profissionais vividas pelos pro-
fessores ocorrem no quadro de sistemas coleti-
vos de ação (organizações escolares), cujas re-
gras são, ao mesmo tempo, produzidas e apren-
didas pelos atores sociais em presença. Estamos,
portanto, em presença de um "jogo coletivo"
suscetível de múltiplas e contigentes configura-
ções, em função da singularidade dos contextos.
É à medida que a produção de práticas profissio-
nais, realizada em contexto, é atravessadao
apenas por fatores individuais (dimensão biográ-
fica), mas também por fatores organizacionais
(dimensão contextual), que se permite pensar o
funcionamento da organização de trabalho (nes-
te caso, as escolas) como um processo de apren-
dizagem coletiva do qual emergem competên-
cias individuais (configurações de saberes) e
também competências de natureza coletiva. Es-
tas correspondem a um valor acrescentado que
"estruturado como uma linguagem [...] emerge
das articulações e das trocas fundadas nas com-
petências individuais" (Le Boterf, 1994: 249). Se,
como defende Claude Dubar (1991: 1997), acei-
tarmos que a produção de práticas profissionais
remete, no essencial, a processos de socializa-
ção profissional, então, a formação consiste ba-
sicamente em reinventar formas novas de socia-
lização profissional, o que apela a instituir e a
desenvolver nos contextos de trabalho uma di-
nâmica simultaneamente formativa e de cons-
trução identitária que torne possível essa
reinvenção. Elao pode fazer-se senão na ação,
de onde resulta, no caso dos professores, que a
formação passa a ser "centrada na escola" e que
os processos formativos passam a ser conside-
rados como processos de intervenção nas orga-
nizações escolares.
A articulação e mesmo coincidência entre si-
tuações de trabalho e situações de formação, ou
melhor, a transformação de situações de traba-
lho em situações de formação passa a ser uma pre-
ocupação comum quer à formação inicial, quer à
formação contínua. A componente da prática pro-
fissional tende a deixar de ser encarada como um
momento de aplicação, para ser considerada,
cada vez mais, como o elemento estruturante de
uma dinâmica formativa tributária de uma con-
cepção de alternância. Nessa perspectiva, a prá-
tica profissional, no quadro da formação profis-
sional inicial de professores, ganhará em ser en-
tendida como uma tripla e interativa situação de
formação que envolve, de forma simultânea, os
alunos (futuros professores), os profissionais da
área (professores "cooperantes") e os professores
da escola de formação.
Currículo e revalorização
da experiência profissional
Assistimos, no quadro da concepção e da ges-
o das situações educativas, a uma revalorização
epistemológica da experiência cuja concretização
em termos operacionais tem como referência
principal o conceito de alternância. A afirmação
desse conceito está ligada, na sua origem, ao cam-
po da formação profissional e as práticas a que
dá fundamento remetem, com freqüência, para a
existência de um movimento pendular de vai-e-
vem entre dois espaços fisicamente distintos: por
um lado, a escola profissional; por outro lado, o
contexto de exercício profissional. Essa dimensão
de desenvolvimento alternado de atividades na
situação de formação e na situação de trabalho é,
sem dúvida, essencial. Porém, sem negar esse fato,
deve reconhecer-se que essa concepção de
alternância é simplificadora e redutora,o ex-
primindo toda a riqueza potencial do conceito.
Entendida como um simples vai-e-vem en-
tre dois lugares físicos, a alternânciao supera
a exterioridade da formação relativamente ao
contexto de trabalho. Ela deve ser encarada,
numa acepção muito mais ampla, como um vai-
e-vem entre idéias e experiências, ou seja, entre
teoria e prática, tornando possível o ciclo
recursivo entre aprendizagem simbólica e apren-
dizagem experiencial de que nos fala Gérard
Malglaive (1990) e que deve ocorrer também no
interior da escola de formação inicial. É essa
maneira de encarar o conceito de alternância
que é suscetível de lhe conferir uma maior uni-
versalidade (não o restringindo às formações de
orientação profissionalizante). Ela permite, si-
multaneamente, utilizar esse conceito como eixo
estruturante de novos modos de pensar e con-
cretizar o currículo dos cursos de formação ini-
cial de professores. O objetivo de "traduzir", em
termos curriculares, a riqueza e as implicações
do conceito de alternância constitui um proble-
ma indeterminado, que admite uma grande di-
versidade de soluções, que é, portanto, refratá-
rio a receitas. Permito-me apenas, e de forma
muito sintética, enunciar três grandes orienta-
ções que podem servir de referência para a tra-
dução da revalorização da experiência em ter-
mos curriculares e que se situam numa perspec-
tiva de superação da forma escolar.
A primeira orientação diz respeito à necessi-
dade de construir uma outra inserção espacial das
atividades de formação, encarada numa vertente
dupla: por um lado, trata-se de fazer evoluir os
espaços escolares tradicionais para espaços edu-
cativos; por outro lado, está em causa a constru-
ção de uma relação interativa entre a escola e os
restantes espaços sociais. A primeira vertente con-
vida a encarar a escola de formação inicial como
um meio de vida que articula diferentes graus de
formalização da ação educativa e valoriza a arti-
culação entre modalidades de auto, eco e
heteroformação e remete para uma concepção
ampla de currículo, que engloba tudo o que "acon-
tece" no quadro da instituição escolar.
A esse alargamento do conceito de currícu-
lo (tradicionalmente circunscrito às "discipli-
nas", a que se acrescenta a "prática pedagógi-
ca") associa-se a segunda vertente, atrás referi-
da, que consiste num movimento de aproxima-
ção entre os espaços da escola de formação e
os contextos "reais" de exercício profissional.
Um novo tipo de relacionamento entre situa-
ções e momentos "escolares" e situações de tra-
balho implica, no caso da formação profissio-
nal de professores, que as escolas sejam vistas
como os lugares fundamentais de aprendiza-
gem profissional eo como meros lugares de
"aplicação". A aceitação desse pressuposto im-
plica que os contatos estreitos com os contex-
tos de trabalho sejam o mais precoces possível
e estejam presentes ao longo de todo o percur-
so de formação inicial,o se circunscrevendo
a uma etapa final. Só dessa forma é possível fa-
vorecer um percurso iterativo entre formação e
trabalho que permite o movimento duplo de
mobilização, para a ação, de saberes teóricos,
e, ao mesmo tempo, a formalização (teórica) de
saberes adquiridos por via experiencial.
o pressuposto de que os professores apren-
dem nas escolas a sua profissão implica tam-
bém, necessariamente, uma ruptura com a de-
signada "pedagogia do modelo". Os contextos
de trabalho onde os futuros professoreso cha-
mados e a observar e a intervirom de ser
"exemplares", na medida em que na realidade
tambémo há escolas "exemplares". Todas as
situações (desde que a regra seja a de lidar com
a diversidade a partir de um olhar crítico) pro-
piciam aprendizagens e a formação deliberada
de profissionais, como sublinham Lesne e
Mynvielle (1990), ganha em ser pensada a par-
tir da reconstrução de situações de socialização
profissional, o que é o contrário de uma forma-
ção "em laboratório".
Uma segunda orientação consiste em orga-
nizar o currículo com a preocupação de, siste-
maticamente, multiplicar as ocasiões de dar a
palavra aos alunos e à expressão de suas
vivências e expectativas.
Como referiu Berger (1991), "a experiência
de usar da palavra, da leitura de textos, da retó-
rica pela qual convencemos o outro da nossa
razão" constituem alguns exemplos de ativida-
des mais significativas, para os alunos, do que
os exercícios escolares tradicionais, baseados na
repetição e no treino. A forma mais pertinente
de analisar o currículoo consiste em averi-
guar o que fazem os professores, mas sim em
inquirir o que fazem os alunos e em que medi-
da e de que forma lhes é "dada a palavra". dar a
palavra aos alunos tem como atitude comple-
mentar, lógica e necessária, uma atitude de es-
cuta, por parte dos professores da formação ini-
cial, quer em relação aos alunos, quer em rela-
ção aos profissionais da área. A tendencial su-
peração da forma escolar apela à instituição da
possibilidade de favorecer a reversibilidade dos
papéis entre quem ensina e quem aprende. Só
uma atitude de escuta permite ao formador ter
em conta os saberes "tácitos" dos formandos,
construídos de modo intuitivo na ação cotidia-
na, que, como referia Donald Schon, se tradu-
zem na situação-tipo do aluno que "sabe fazer
trocos, maso sabe somar números".
Uma terceira orientação consiste em tentar
estruturar o currículo a partir da articulação in-
terativa entre situações de informação, situações
de interação e situações de produção. É essa ar-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
ticulação que poderá permitir fazer o sistema
de formação evoluir de uma lógica de repeti-
ção de informações para uma lógica de produ-
ção de saberes. Só no quadro dessa transforma-
ção é que o formando (no caso, o futuro profes-
sor) deixa de ser tratado (para utilizar a termi-
nologia de Lesne) como objeto de formação
para adquirir o estatuto de sujeito e de agente
de formação. Nesta última perspectiva, o futu-
ro professor interage com as escolas na dupla
condição de "aprendiz" e de agente socializador
dos profissionais que atuam naquela área. Ao
interrogar criticamente a sua prática, confron-
tando-a com outras maneiras de pensar e de
agir, o jovem formando contribui para mudar
representações e comportamentos dos profis-
sionais já "veteranos". Essa capacidade de ques-
tionar criticamente as práticas de profissionais
experimentados, aprendendo com elas e contra
elas, só é possível se, dentro da escola de for-
mação inicial, os alunos forem tratados como
produtores de saberes.
A prática profissional como
elemento estruturante da
escola de formação
A pertinência e a possibilidade de a concep-
ção e a organização das modalidades de prática
profissional poderem instituir-se como
estruturanteso apenas do currículo dos cur-
sos de formação inicial, mas da própria escola
de formação, tem o seu fundamento no fato de
esta atividade contemplar, potencialmente, to-
das as dimensões da missão cometida a essas
escolas, facilitando a construção de um projeto
educativo próprio (à semelhança do que se es-
pera das escolas do ensino básico e secundário).
Às escolas de formação de professoreso
cometidas atribuições no domínio da formação
inicial e contínua, bem como atividades de inves-
tigação e de intervenção regional (serviços à co-
munidade). Uma das dificuldades consiste em dar
cumprimento a essa missão concretizando de for-
ma integrada e harmoniosa todos os valores pre-
vistos. E esta dificuldade decorre da dissociação
entre a formação inicial e a formação contínua,
por um lado, e, por outro, da dissociação entre as
atividades de formação, as atividades de investi-
gação e as atividades de intervenção educativa. A
organização da prática profissional dos futuros
professores pode constituir um elemento de res-
posta para essas dificuldades precisamente devi-
do à sua vocação para associar aquilo que, quase
sempre, aparece dissociado.
Assim, a prática profissional é, sempre (de
forma deliberada e consciente ou não), um pro-
cesso deformação inicial e contínua que envol-
ve, obviamente, os alunos da formação inicial,
mas também os profissionais que os recebem,
bem como os professores da escola de forma-
ção, para quem esta é, freqüentemente, o prin-
cipal elo de ligação à realidade naquela área.
Torna-se, portanto, possível e desejável que a
organização da prática profissional possa fun-
cionar como a base para construir uma política
de formação contínua ("centrada na escola"),
em articulação com a formação inicial.
Em segundo lugar, a prática profissional
constitui, sempre, um processo de intervenção
nas escolas da região e, seo for pensada como
tal, pode muito bem transformar-se num ele-
mento de perturbação da vida das escolas. Pa-
rece aconselhável que a organização da prática
profissional se faça tendo como referentes os
estabelecimentos de ensino, como organiza-
ções, eo os professores "cooperantes" indi-
vidualmente considerados.
Por fim, a organização da prática profissio-
nal numa perspectiva de ruptura com a pedago-
gia do modelo de valorização dos saberes
experienciais supõe que ela se estruture a partir
de um eixo metodológico de pesquisa que tenha
como referencial as situações de trabalho e en-
volva a tríade já referida (professores, alunos,
profissionais que atuam na área), na perspecti-
va de Barbier: "o ato de trabalho transforma-se
em ato de formação desde que seja acompanha-
do por uma atividade de análise, de estudo ou
de pesquisa sobre ele próprio" (1996: 3).
Em síntese
A revalorização da experiência na formação
profissional dos professoreso pode ser con-
fundida com a defesa da aprendizagem como
mero processo de continuidade, em relação à
experiência anterior. Valorizar a experiência sig-
nifica, sobretudo, aprender a aprender com a
experiência, o que, freqüentemente, só é possí-
vel a partir da crítica e da ruptura com essa ex-
periência. Aprender com a experiênciao
pode, então, ser sinônimo de imitação, mas sim
de uma ação em que o prático se torna um in-
vestigador no contexto da prática.
A segunda observação destina-se a esclare-
cer que a valorização da experiência no proces-
so de formação profissional dos professoreso
significa qualquer subestimação da teoria. O pro-
fessor, como profissional, encaro-o como um
analista simbólico a quem compete equacionar
e "construir" problemas, no terreno da prática,
marcado pela incerteza e pela complexidade, e
o a dar respostas previamente aprendidas para
situações inteiramente previsíveis.
Finalmente, gostaria de reafirmar a minha
convicção de que o modo como é pensado e or-
ganizado o processo de prática profissional
será, talvez, o mais pertinente analisador dos
cursos de formação profissional inicial de pro-
fessores, bem como um ponto de entrada para
a implantação, por parte das instituições forma-
doras, de políticas integradas de formação ini-
cial e contínua de professores.
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SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
Formação inicial e continuada
de professores - uma síntese
das diretrizes e dos desafios
serem enfrentados
Célia Maria Carolino Pires
Pontifício Universidade Católica deo Paulo
Resumo
As mudanças propostas para a educação bási-
ca no Brasil trazem enormes desafios à formação
de professores. No processo de discussão dos Parâ-
metros Curriculares Nacionais, um ponto foi
consensual: seo houver um grande incentivo à
carreira do Magistério e também um investimento
significativo na formação de professores, dificilmen-
te ocorrerão as transformações que se deseja na
educação básica.
No segundo semestre do ano 2000, o Conselho
Nacional de Educação (CNE) elaborou as Diretrizes
Curriculares para a Formação Inicial de Professores
da Educação básica. Um dos subsídios para esse tra-
balho do CNE foi o documento enviado pelo MEC.
Esse documento tomou como base documentação já
existente no MEC: textos elaborados por colaborado-
res individuais, comissões de especialistas e grupos
de trabalho, no âmbito das diferentes Secretarias da
estrutura do MEC, e estudos desenvolvidos pelo Inep.
O documento se caracteriza por buscar construir
uma sintonia entre a formação inicial de professo-
res, os princípios prescritos pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN), as normas ins-
tituídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e para
o Ensino Médio, bem como as recomendações cons-
tantes dos Parâmetros e dos Referenciais Curricula-
res para a educação básica, elaborados pelo MEC.
Licenciatura: um curso em
busca de identidade e da
superação de problemas
Os cursos de Licenciaturam funcionado,
em geral como apêndices dos cursos de Bacha-
relado eo como cursos com identidade pró-
pria que visam à formação de professores. O
documento do MEC destaca:
As questões a serem enfrentadas na formação ini-
cialo históricas. No caso da formação nos cur-
sos de Licenciatura, em seus moldes tradicionais,
a ênfase está contida na formação nos conteúdos
da área, onde o Bacharelado surge como a opção
natural que possibilitaria, como apêndice, também
o diploma de licenciado. Refere-se aqui a "diplo-
ma" eo a "formação", pois se trata muito mais
de uma certificação formal após o cumprimento
de créditos burocraticamente definidos para a área
pedagógica do que preparação integrada que pro-
picie uma reflexão dos conteúdos da área com a
realidade específica da atuação docente.
AJém dessa questão, outros desafios deve-
o ser enfrentados. Resumidamente eleso os
seguintes:
A segmentação da formação de professores (de
Educação Infantil, Ensino Fundamental e En-
sino Médio), que provoca descontinuidade na
formação dos alunos da educação básica.
A proposta pedagógica em geral se subme-
te à organização institucional, que impos-
sibilita muitas vezes a implementação de
propostas pedagógicas inovadoras.
As escolas de formação em geralo mui-
to isoladas, especialmente em relação às
escolas das redes pública e privada, além
de serem isoladas entre si.
o distanciamento entre os cursos de forma-
ção e o exercício da profissão de professor no
Ensino Fundamental e Médio.
o distanciamento entre os cursos de forma-
ção de professores e as instâncias de gestão
dos sistemas de ensino da educação básica
(MEC, Secretarias de Educação, Diretorias
Regionais de Ensino etc).
o repertório de conhecimentos dos profes-
sores em formação, tendo em vista que, em
geral, há sérios problemas decorrentes de uma
formação bastante deficiente que tiveram no
Ensino Médio e no Ensino Fundamental.
o tratamento inadequado dos conteúdos, com
ênfase quase exclusiva em conceitos, em infor-
mações, nem sempre os mais significativos e
relevantes para a formação do professor.
A desarticulação entre conteúdos pedagógi-
cos e conteúdos de ensino, mantendo-se
uma dicotomia entre eles, quandoo até
mesmo incoerências.
A falta de oportunidades que durante os cur-
sos poderiam ser oferecidas, visando ao de-
senvolvimento cultural dos professores.
o tratamento restrito da atuação profissio-
nal do professor, voltado apenas para sua
atuação no interior da sala de aula.
A concepção restrita de prática e a inadequação
do tratamento da pesquisa na formação do
professor.
A ausência de conteúdos relativos ao uso dos
recursos tecnológicos e informacionais.
A desconsideração das especificidades próprias
dos níveis e/ou modalidades de ensino em que
o atendidos os alunos da educação básica.
A desconsideração das especificidades pró-
prias das áreas do conhecimento que com-
põem o quadro curricular na educação básica.
Princípios orientadores
dos cursos de formação
de professores
o documento elege princípios orientadores
dos cursos de formação de professores.o eles:
A concepção de competência
é nuclear na orientação do curso
de formação inicial de professores
As competências tratam sempre de alguma
forma de atuação, só existem "em situação" e,
portanto,o podem ser aprendidas apenas pela
comunicação de idéias. Para construí-las, as
ações mentaisoo suficientes - ainda que
sejam essenciais.o basta a um profissional ter
conhecimentos sobre seu trabalho; é fundamen-
tal que saiba fazê-lo.
É imprescindível que haja coerência
entre a formação oferecida e a prática
esperada do futuro professor
A preparação do professor tem uma peculia-
ridade muito especial: ele aprende a profissão no
lugar similar àquele em que vai atuar, porém em
situação invertida. Isso implica que deve haver
coerência absoluta entre o que se faz na forma-
ção e o que dele se espera como profissional.
o conceito de simetria invertida ajuda a des-
crever um aspecto da profissão e da prática de
professor que inclui o conceito de homologia de
processos, mas vai além deste. A primeira dimen-
o dessa simetria invertida refere-se ao fato de
que sua a experiência como aluno,o apenas
nos cursos de formação docente mas ao longo
de toda a sua trajetória escolar, é constitutiva do
papel que exercerá futuramente como docente.
A compreensão desse fato, que caracteriza a
situação específica da profissão docente, descrita
por alguns autores como homologia de proces-
sos, evidencia a necessidade de que o futuro pro-
fessor experiencie, como aluno, durante todo o
processo de formação, as atitudes, os modelos
didáticos, as capacidades e os modos de organi-
zação que se pretende que venham a ser desem-
penhados nas suas práticas pedagógicas.
Ninguém promove o desenvolvimento da-
quilo queo teve oportunidade de desenvol-
ver em si mesmo. Ninguém promove a aprendi-
zagem de conteúdos queo domina nem a
constituição de significados queo possui ou a
autonomia queo teve oportunidade de cons-
truir. É portanto imprescindível que o professor
em preparação para trabalhar na educação-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
sica demonstre que desenvolveu ou tenha opor-
tunidade de desenvolver, de modo sólido e ple-
no, as competências previstas para os egressos
da educação básica, tais como estabelecidas nos
artigos 27, 32, 35 e 36 da LDBEN, nas diretrizes,
nos parâmetros e nos referenciais curriculares
nacionais da educação básica. Isso é condição
mínima indispensável para qualificá-lo como
capaz de lecionar na Educação Infantil, no Ensi-
no Fundamental ou no Ensino Médio.
A pesquisa é elemento essencial na
formação profissional de professor
A pesquisa na formação de professores deve,
portanto, ser contemplada de modo a garantir:
a aprendizagem dos procedimentos neces-
sários para acompanhar o processo de de-
senvolvimento e aprendizagem dos alunos e
para a produção de conhecimento pedagó-
gico;
a compreensão dos processos de produção
de conhecimento nas ciências: naquelas com
as quais interagem os conhecimentos esco-
lares que ensina (Matemática, História); na-
quelas queo suporte a seu trabalho de
educador (Psicologia, Sociologia, Filosofia) e
naquelas que se dedicam a investigar os pro-
cessos de aprendizagem dos diferentes ob-
jetos de conhecimento (Didáticas);
o conhecimento atualizado dos resultados
desses processos, isto é, as teorias e as infor-
mações que as pesquisas nas diferentes ci-
ências produzem.
Diretrizes gerais para a
formação de professores
o documento ressalta que a formação de
professores para a educação básica deverá vol-
tar-se para o desenvolvimento de competências
que abranjam todas as dimensões da atuação
profissional de professor, que se referem a dife-
rentes aspectos, como, por exemplo:
comprometimento com os valores estéticos,
políticos e éticos inspiradores da sociedade
democrática;
a compreensão do papel social da escola;
domínio dos conteúdos a serem socializa-
dos, de seus significados em diferentes con-
textos e de sua articulação interdisciplinar;
domínio do conhecimento pedagógico;
conhecimento de processos de investigação
que possibilitem o aperfeiçoamento da prá-
tica pedagógica;
gerenciamento do próprio desenvolvimen-
to profissional.
Outra diretriz importante é a afirmação de
que a escola de formação de professores para a
educação básica deve, sempre que necessário,
responsabilizar-se por oferecer aos futuros pro-
fessores condições de aprendizagem dos conhe-
cimentos da escolaridade básica, de acordo com
a LDBEN e as Diretrizes Curriculares Nacionais.
o desenvolvimento das competências pro-
fissionais de professor pressupõe que os estu-
dantes dos cursos de formação docente tenham
construído os conhecimentos e desenvolvido as
competências previstos para a conclusão da es-
colaridade básica. Entretanto, a realidade atual
do sistema educacional brasileiro é marcada por
uma formação básica precária e muitas vezes in-
suficiente como base para qualquer formação
profissional.
Sendo assim, a formação de professores terá
de garantir que os aspirantes a professor domi-
nem efetivamente esses conhecimentos: sempre
que necessário, devem ser oferecidas unidades
curriculares de complementação dos conheci-
mentos relacionados ao uso eficaz da linguagem
e aos demais conteúdos.
Como em qualquer campo de atuação, o co-
nhecimento profissional de professor representa
o conjunto de saberes que o habilita para o exer-
cício da docência e de todas as suas funções pro-
fissionais: os saberes produzidos nos diferentes
campos científicos e acadêmicos que subsidiam
o trabalho educativo; os saberes escolares que
deverá ensinar; os saberes produzidos no campo
da pesquisa didática; os saberes desenvolvidos
nas escolas, pelos profissionais que nelas atuam;
os saberes pessoais construídos na experiência
própria de cada futuro professor. Assim, na for-
mação de prfessores para a educação básica de-
vem ser contemplados diferentes âmbitos do co-
nhecimento profissional de professor, ou seja:
cultura geral e profissional;
conhecimento sobre crianças, jovens e adul-
tos;
conhecimento sobre a dimensão cultural, so-
cial, política e econômica da educação;
conteúdos das áreas de ensino;
conhecimento pedagógico;
conhecimento experiencial (conhecimento
construído "na" experiência, queo pode ser
construído de outra forma e de modo algum
pode ser substituído pelo conhecimento "so-
bre" a realidade).
Outro aspecto apontado refere-se à seleção dos
conteúdos das áreas de ensino que compõem a
Educação básica e que, na formação de professo-
res, devem ir além daquilo que os professores irão
ensinar nas diferentes etapas da escolaridade.
Polivalente ou especialista, aquilo que o pro-
fessor precisa saber para ensinaro é equivalen-
te ao que seu aluno vai aprender:o conheci-
mentos mais amplos do que os que se constróem
até o Ensino Médio, tanto no que se refere ao-
vel de profundidade quanto ao tipo de saber. Por-
tanto, sua formação deve ir além dos conteúdos
definidos para as diferentes etapas da escolarida-
de nas quais o futuro professor atuará, incluindo
conhecimentos necessariamente a eles articula-
dos, que compõem um campo de ampliação e
aprofundamento da área.
Isso se justifica porque a compreensão do pro-
cesso de aprendizagem dos conteúdos pelos alu-
nos da educação básica e a transposição didática
adequada dependem do domínio desses conhe-
cimentos. Sem isso fica impossível construir si-
tuações didáticas que problematizem os conhe-
cimentos prévios com os quais, a cada momento.
crianças, jovens e adultos se aproximam dos con-
teúdos escolares, desafiando-os a novas aprendi-
zagens queo constituindo saberes cada vez
mais complexos e abrangentes.
No documento defende-se a idéia de que os
conteúdos a serem ensinados na escolaridade
básica devem ser tratados de modo articulado
com suas didáticas específicas. Nas últimas-
cadas, cresceram os estudos e as pesquisas que
tomam a aprendizagem e o ensino de cada uma
das diferentes áreas de conhecimento como ob-
jeto de investigação. Em algumas áreas, e para
determinados aspectos do ensino e da aprendi-
zagem, esse crescimento foi mais significativo que
em outras. Porém é possível afirmar que em to-
das elas há investigações em andamento.
Essas pesquisas ajudam a criar didáticas es-
pecíficas para os diferentes objetos de ensino da
educação básica e para seus conteúdos. Assim,
por exemplo, estudos sobre a psicogênese da lín-
gua escrita trouxeram dados para a didática na
área de Língua Portuguesa, especialmente no que
se refere à alfabetização. Do mesmo modo, na área
de Matemática, tem havido progressos na produ-
ção de conhecimento sobre aprendizagem de
números, operações etc. que fundamentam uma
didática própria para o ensino desses conteúdos.
Os professores em formação precisam conhe-
cer tanto os conteúdos definidos nos currículos da
educação básica, pelo desenvolvimento dos quais
serão responsáveis, quanto as didáticas específi-
cas que permitirão um ensino eficaz. Em outras
palavras, a melhor estratégia é tratá-los de modo
articulado, o que significa que o estudo dos con-
teúdos da Educação básica que irão ensinar deve-
rá ser feito a partir da perspectiva de sua didática.
Com relação à avaliação, num curso de for-
mação de professores, o documento destaca que
ela deve ter como finalidades a orientação do tra-
balho dos formadores, a autonomia dos futuros
professores em relação ao seu processo de apren-
dizagem e a habilitação de profissionais com con-
dições de iniciar a carreira.
Tomando como princípio o desenvolvimento
de competências profissionais, é importante colo-
car o foco da avaliação na capacidade de acionar
conhecimentos e de buscar outros, necessários à
atuação profissional, eo na quantidade de co-
nhecimento adquirido ao longo do curso.
Os instrumentos de avaliação da aprendiza-
gem devem ser diversificados, para o que é ne-
cessário transformar formas convencionais e cri-
ar novos instrumentos. Avaliar as competências
profissionais dos futuros professores é verificar se
(e quanto) fazem uso dos conhecimentos cons-
truídos e dos recursos disponíveis para resolver
situações-problema - reais ou simuladas - relacio-
nadas de alguma forma com o exercício da pro-
fissão. Sendo assim, a avaliação deve pautar-se
por indicadores oferecidos pela participação dos
futuros professores em atividades regulares do
curso, pelo empenho e desempenho em ativida-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
des especialmente preparadas por solicitação dos
formadores, pela produção de diferentes tipos de
documentação, pela capacidade de atuar em si-
tuações-problema.
A avaliação deve ser realizada mediante cri-
térios explícitos e compartilhados com os futu-
ros professores, uma vez que o que é objeto de
avaliação representa uma referência importante
para quem é avaliado, tanto para orientação dos
estudos como para identificação dos aspectos
considerados mais relevantes para a formação em
cada momento do curso. Isso permite que cada
futuro professor vá investindo no seu processo de
aprendizagem, construindo um percurso pessoal
de formação.
Assim, é necessário, também, prever instru-
mentos de auto-avaliação do processo de forma-
ção pelos futuros professores, o que favorece a
tomada de consciência do percurso de aprendi-
zagem, a construção de estratégias pessoais de
investimento no desenvolvimento profissional, o
estabelecimento de metas e o exercício da auto-
nomia em relação à própria formação. Por seu
turno, o sistema de avaliação da formação inicial
deve estar articulado a um programa de acompa-
nhamento e orientação do futuro professor para
a superação das eventuais dificuldades.
Diretrizes para a organização
curricular dos cursos de
formação de professores
Os cursos devem ser organizados de forma
que propiciem aos professores em formação
vivenciar experiências interdisciplinares. A cons-
trução da maioria das capacidades que se preten-
de que os alunos da Educação Infantil, do Ensino
Fundamental e do Médio desenvolvam atravessa
as tradicionais fronteiras disciplinares e exige um
trabalho integrado de diferentes professores.
A construção de competência profissional re-
quer da formação a utilização da estratégia didá-
tica de resolução de situações-problema contex-
tualizadas, que necessitam de abordagens inter-
disciplinares. Sobretudo os cursos de formação de
professores especialistas devem promover ações
direcionadas para o desenvolvimento de verda-
deira postura interdisciplinar, pois há uma idéia
bastante generalizada de que algumas áreas pou-
ca relaçãom com as demais áreas de conheci-
mento ou com o tratamento de questões sociais
urgentes.
o documento destaca que o tempo destina-
do pela legislação à parte prática (800 horas) deve
permear todo o curso de formação, de modo que
promova o conhecimento experiencial do profes-
sor. A finalidade desse tempo de prática é possi-
bilitar aos alunos da formação a construção da-
queles conhecimentos experienciais conforme
definidos anteriormente, essenciais a sua atuação
como professores.
Os cursos de formação de professoreso
podem mais propor um espaço isolado para a ex-
periência prática, que faz com que, por exemplo,
o estágio se configure como algo com finalidade
em si mesmo e se realize de modo desarticulado
com o restante do curso. Tambémo é possível
deixar ao futuro professor a tarefa de integrar e
transpor seu "saber" para o "saber fazer", sem ter
oportunidade de participar de uma reflexão co-
letiva e sistemática sobre esse processo.
Nessa perspectiva, o planejamento dos cursos
de formação deve prever situações didáticas em
que os professores coloquem em uso os conheci-
mentos que aprendem, ao mesmo tempo que pos-
sam mobilizar outros, de diferentes naturezas e
oriundos de diferentes experiências, em diferen-
tes tempos e espaços curriculares, tais como:
no interior das áreas ou disciplinas, durante
o próprio processo de aprendizagem dos con-
teúdos que precisa saber;
nos estágios a serem feitos nas escolas de edu-
cação básica;
num tempo e espaço curricular específico
chamado de "supervisão", em trabalhos ori-
entados pelos diferentes formadores.
A organização dos currículos deve contemplar
atividades curriculares diversificadas. Ao elaborar
seu projeto curricular, a equipe de formadores tem
como primeira ação necessária a de buscar novas
formas de organização, em contraposição a formas
tradicionais concentradas exclusivamente em cur-
sos de disciplinas, a partir das quais se definem
conteúdos que nem sempreo significativos para
a atuação profissional dos professores.
Issoo significa renunciar a todo ensino
estruturado, nem relevar a importância das dis-
ciplinas na formação, mas considerá-las como
recursos que ganham sentido em relação aos
domínios profissionais visados. Os cursos com
tempos e programas predefinidos para alcançar
seus objetivoso fundamentais para a apropria-
ção e a organização de conhecimentos. Têm, as-
sim, papel fundamental na atualização e no
aprofundamento dos conhecimentos relaciona-
dos com o trabalho de professor, queo chaves
de leitura necessárias à atuação contextualizada
e condição para a prática reflexiva do professor.
o desafio principal da elaboração de um pla-
no de formação profissionalo é dar lugar a
todos os tipos de disciplinas, mas conceber um
desenho curricular que permita construir, colo-
car em uso e avaliar as competências essenciais
ao seu exercício.
Para contemplar a complexidade dessa for-
mação, é preciso renunciar à idéia de repartir o
tempo disponível entre as disciplinas. Ao con-
trário, é preciso instituir tempos e espaços cur-
riculares diferenciados, como oficinas, seminá-
rios, grupos de trabalho supervisionado, grupos
de estudo, tutorias e eventos, entre outros capa-
zes de promover e ao mesmo tempo exigir dos
futuros professores atuações diferenciadas, per-
cursos de aprendizagens variados, diferentes
modos de organização do trabalho, possibilitan-
do o exercício das diferentes competências a se-
rem desenvolvidas. As oficinas, por exemplo, ofe-
recem ótimas possibilidades de colocar em uso
tipos de conhecimento, construindo instrumen-
tos e materiais didáticos, vivenciando procedi-
mentos próprios de cada área de ensino.
o currículo de formação deve ainda prever
atividades autônomas dos alunos ou a sua par-
ticipação na organização delas: a constituição de
grupos de estudo; a realização de seminários
"longitudinais" e interdisciplinares sobre temas
educacionais e profissionais; a programação de
exposições e debates de trabalhos realizados ou
de atividades culturaiso exemplos possíveis.
Convém ainda destacar a importância de ati-
vidades individuais como a produção do
memorial do professor em formação, a recupe-
ração de sua história de aluno, projetos de in-
vestigação sobre temas específicos e até mesmo
monografias de conclusão de curso.
o documento defende ainda que a organi-
zação dos currículos de formação deve incluir
uma dimensão comum a todos os professores de
educação básica.
Um dos grandes desafios da formação de
professores é atender às especificidades do tra-
balho educativo com as diferentes etapas de vida
dos alunos, sem nela reproduzir uma visão seg-
mentada do desenvolvimento e da aprendiza-
gem humanas. Muitos conhecimentoso igual-
mente necessários, muitas das temáticaso
igualmente pertinentes, assim comoo comuns
os pressupostos para a formação do professor.
Só é possível pensar na formação de profes-
sores da educação básica porque existe algo de
comum a todo professor, atue ele na Educação
Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino
Médio. Portanto, há competências profissionais
que todos eles precisam desenvolver.
Ao mesmo tempo, é preciso considerar que
há desafios próprios dos professores de atuação
multidisciplinar e outros dos especialistas, tanto
em função da etapa da escolaridade em que atu-
am quanto do domínio de conteúdos a ensinar.
Finalmente, há competências ligadas à espe-
cificidade da docência em cada etapa da escola-
ridade. Contemplá-las de modo integrado exige
manter o princípio de que a formação deve ter
como referência a atuação profissional, na qual a
diferença se dá principalmente no que se refere à
dimensão da docência. É aí que as especificidades
se concretizam e, portanto, é ela (a docência) que
deverá ser tratada no curso de modo específico.
Isso pede uma organização curricular que possi-
bilite, ao mesmo tempo, um aprofundamento em
relação aos segmentos da escolaridade e uma for-
mação comum a todos os professores.
o detalhamento que segue está expresso em
termos de competências indicativas da defini-
ção de conteúdos, uma vez que é por meio da
aprendizagem deles que se dá o desenvolvimen-
to dessas diferentes competências. Os projetos
pedagógicos dos cursos de formação de profes-
soreso podem, portanto, deixar de definir e
explicitar os conteúdos ou conhecimentos es-
senciais à constituição dessas competências, de
modo que garantam sua qualidade.
Para que os futuros professores tenham uma
visão ampla eo fragmentada da vida e dos pro-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
cessos de aprendizagem dos seus alunos e do tra-
balho escolar que realizam, os cursos deverão
contemplar essas diferentes dimensões da for-
mação, de modo articulado e complementar.
Em decorrência, a organização curricular dos
cursos deve incluir sempre:
espaços e tempos em que se garanta uma
formação comum aos professores de todas
as etapas da educação básica;
nos cursos para atuação multidisciplinar, por
sua vez, uma formação comum a esse tipo
de atuação, seja da Educação Infantil, seja
das séries iniciais do Ensino Fundamental;
analogamente, nos cursos para atuação es-
pecializada por áreas ou disciplinas, deverá
haver uma formação comum a todos os pro-
fessores especialistas;
assentada na base comum, os cursos deve-
o oferecer formação específica de Licencia-
tura de professores para Educação Infantil,
anos iniciais e anos finais do Ensino Funda-
mental e Ensino Médio, esta, por sua vez,
especializada por áreas de conhecimento ou
disciplinas;
cursos optativos, a critério da instituição,
para atuação em áreas específicas.
Entre a formação inicial
e a formação continuada dos
professores: qual conexão?
Por uma estratégia de formação
continuada, com acompanhamento
Charles Hadji
Universidade Pierre Mendès-France/Grenoble/Franca
Resumo
Com o aparecimento de novos públicos esco-
lares e o desenvolvimento das novas tecnologias
de informação e de comunicação, as atividades de
ensino desdobram-se hoje em condições transfor-
madas, que convidam a uma reflexão sobre as mo-
dalidades de formação de professores que sejam
as mais apropriadas a esse novo contexto. A dupla
necessidade de uma maior profissionalização e de
levar em conta as novas tecnologias, por exemplo,
o parece ser absolutamente contestada. Mas
como a formação poderia, concretamente, levar
em conta essas duas necessidades? Em particular,
qual poderia ser a estruturação adequada das ati-
vidades de formação na sua organização tempo-
ral? Será que devemos aceitar sempre o esquema
de uma dicotomia entre uma formação inicial, mi-
nistrada a iniciantes ou a novatos, para armá-los
bem para o exercício da profissão, e uma formação
continuada oferecida alguns anos depois para per-
mitir a "reciclagem" dos professores cujas compe-
tências teriam se desgastado com o tempo? Defen-
deremos uma melhor repartição do esforço de for-
mação no tempo (da vida dos profissionais). Pois
ingressamos na era da "formação acompanhante",
ou seja, de uma formação concebida como um fa-
tor contínuo de desenvolvimento profissional. Isso
exigirá que nos situemos numa problemática de
formação continuada e, portanto, de repensar a
formação inicial situando-a num marco temporal
muito mais amplo.
Repensar a atividade de
formação na sua relação
orgânica com o campo
profissional
A formação: uma atividade dinâmica
o que significa formar? Às vezes define-se a
formação como um conjunto de conhecimen-
tos e de competências que um ensino permite
adquirir com anterioridade ao ingresso na vida
ativa. Uma definição como essa é triplamente
problemática:
Primeiramente, a formaçãoo é do gêne-
ro do conteúdo (uma bagagem a ser adqui-
rida), mas do gênero da ação (ou das ativi-
dades) visando adquirir essa bagagem.
Essas atividades podem assumir a forma de
um ensino; mas estao é nem necessária,
nem a única, nem necessariamente a mais
útil. Poderemos realizar atividades especí-
ficas de formação, diferentes daquelas ati-
vidades tradicionais de ensino, sobretudo
com um público constituído de adultos.
Finalmente, se a formação antes de ingres-
sar na vida ativa (formação inicial) é impor-
tante, inclusive essencial, seria redutor de-
mais esquecer a formação durante a vida
profissional (formação contínua ou forma-
ção continuada).
Assim sendo, a formação é triplamente di-
nâmica:
Dinâmica no sentido de uma ação que se
exerce sobre um sujeito tendo em vista pro-
vocar e/ou acompanhar mudanças nas suas
maneiras de pensar e de fazer, para torná-
lo capaz de agir com eficácia em certas ca-
tegorias de situações bem definidas.
Dinâmica no sentido do processo de evo-
lução e de autotransformação do formado,
sendo este sócio ativo dessa construção de
si como mais competente. Isso faz da for-
mação um parceria formador/formado, de
tal forma que este últimoo vem a ser,
absolutamente, um simples aluno: ele será
um novato (versus o especialista), ou um
iniciante (versus o veterano), ou um apren-
diz (versus o profissional experiente); ja-
mais um simples aprendente.
Dinâmica no sentido de uma série de ações
que se inscrevem na duração de uma vida
profissional (formação permanente): o pro-
blemao reside em simplesmente prepa-
rar para o exercício profissional, mas em
manter e inclusive desenvolver o nível de
qualificação profissional ao longo de todo o
período da vida ativa.
A formação: uma objetivação
profissional
o que especifica essa atividade dinâmica
é a sua objetivação. A formação só existe em
referência a um campo profissional. Formar
significa acompanhar alguém no seu trabalho
de construção de uma determinada compe-
tência social. Significa ajudá-lo a progredir no
domínio das competências necessárias para
se tornar profissional numa determinada
área. Significa, portanto, em primeiro lugar,
fazer adquirir ou aperfeiçoar habilidades pro-
fissionais. É essa relação com a profissão (fu-
tura ou atual) que é essencial. Isso foi clara-
mente salientado por Guy Avanzini (1996). A
formação está sempre restrita a um objetivo
preciso. Ela propicia uma qualificação que só
tem sentido dentro da perspectiva de exercer
a profissão para a qual essa qualificação é
requerida. Assim, a formação é uma ativida-
de conduzida tendo em vista conceder ao su-
jeito uma competência que seja: a) precisa e
limitada (visa-se um determinado objetivo
profissional); e b) predeterminada (viemos
para adquirir aquilo que é necessário para o
exercício desta profissão que se deseja exer-
cer, ou que já exercemos).
A força dessa relação orgânica com o cam-
po profissional manifesta-se justamente no
tema da necessária profissionalização. Dese-
ja-se hoje "formar professores profissionais"
(Paquay et al., 2001). Indagamo-nos acerca da
inserção profissional dos professores jovens
(Hétu et al., 1999). Os ofícios (que se originam
primeiramente de uma camaradagem e que
m uma dimensão técnica predominante)
transformam-se em profissões quando a com-
plexidade do seu exercício exige o recurso a
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
uma base de saberes profissionais especia-
lizados, que será a prerrogativa de um grupo
de profissionais, com uma identidade reco-
nhecida pelo corpo social. Assim, podemos
entender por:
Profissão: uma prática social complexa, ori-
entada na direção de fins precisos, e que
exige o domínio de um conjunto (em evo-
lução) de saberes específicos e de savoir-
faire especializados, de alto nível (daí a ne-
cessidade der uma formação institucional-
mente organizada).
Profissionalidade: o conjunto de atributos
do profissional, que lhe permite exercer
essa atividade douta de maneira autônoma,
eficaz e respeitando um certo número de
regras de tipo deontológico.
Profissionalismo: o resultado do processo
de socialização profissional, que se carac-
teriza pela adesão ativa dos membros do
corpo de profissionais às regras, normas e
atitudes que definem uma consciência pro-
fissional; ou, dito de outra forma, uma cer-
ta maneira socializada de ser, de pensar e
de agir (Gauthier, 1997: 43 e 51). Ou, ainda,
sob um outro ponto de vista, a capacidade
do profissional em satisfazer a essas normas
e padrões próprios da profissão.
Profissionalização:
para os indivíduos, o processo dinâmi-
co de aquisição de competências (sabe-
res, savoir-faire, capacidades) e de atri-
butos (autonomia, altruísmo, autorida-
de sobre os "clientes") necessários para
o exercício da profissão;
para uma prática social, o processo pelo
qual tal prática se institucionaliza numa
profissão, mediante a especificação de
normas, regras e padrões de trato social
de certos problemas;
para um determinado grupo social, a
construção de uma identidade e a ob-
tenção de um conjunto de direitos e de
privilégios, indo de par com um certo
número de obrigações, e ligados ao do-
mínio de um know-how profissional de
alto nível.
Toda a questão reside em saber, concreta-
mente, como formar, hoje, professores profis-
sionais tendo em conta essa dimensão dinâmi-
ca da formação e essa relação orgânica com o
campo profissional do ensino.
Superar os riscos
de contradição devidos
r
à presença de lógicas .
em tensão
Para atingir o objetivo que acabamos de
identificar, será preciso, em primeiro lugar, re-
solver três dilemas. Todo processo de formação
é, de fato, atravessado por tensões resultantes
da presença de lógicas antagônicas. Isso nos
leva ao inevitável confronto com aquilo que
Ferry (1983) denomina como "dilemas
organizacionais". Podemos detectar três dile-
mas principais, que se devem às tensões entre
três séries de lógicas em operação.
A tensão entre saberes e savoir-faire
(ou práticas)
Existe, para toda profissionalização, um ver-
dadeiro paradoxo. A profissionalização é carac-
terizada pelo surgimento de saberes (profissio-
nais) de alto nível ("um sólido núcleo de conhe-
cimentos" - Gauthier, 1997: 51). Porém esses
saberes são, antes de mais nada, de ordem prá-
tica, pois se trata, concretamente, de confron-
tar-se com tarefas sociais contextualizadas. Ora,
o laboratório (onde se constróem os saberes)
o é o campo profissional (onde se exercitam
as práticas). Mesmo que a formação, em parti-
cular, no momento em que ela constrói seus
programas e escolhe seus currículos, deva es-
tar atenta a duas séries de evoluções:
a evolução dos "saberes doutos" que se
constróem nos campos disciplinares (novos
conhecimentos referentes ao homem em
desenvolvimento, pontos de vista neuro-
biológicos, psicológicos, sociais etc);
a evolução das práticas sociais de referên-
cia, tal como elas se modificam concreta-
mente no campo profissional.
Certamente, essas práticas estão relaciona-
das com os saberes. Maso muito poucas as
ligações unidimensionais saberes-práticas.
Uma mesma prática depende de vários saberes.
Um mesmo saber pode estar implicado em di-
versas práticas. As evoluções de uns e de outros
o estão sincronizadas. E, sem dúvida, temos
de distinguir entre saberes de ação e saberes
teóricos (Barbier, 1996).
Isso implica, para a formação, a dupla ne-
cessidade de:
ter um cuidado pela profissionalização, en-
tendida como atenção ao surgimento de
"saberes doutos" úteis para a profissão;
ter um cuidado pela operatividade (Durand,
1996), objetivando a construção das "ima-
gens operativas" e dos savoir-faire concre-
tamente úteis para os profissionais.
A superação dessa tensão será precedida
pela construção de saberes diretamente opera-
tivos, que designamos como "saberes de ação
pedagógica" (Gauthier, 1997) ou "saberes da
ação" (Barbier, 1996).
A tensão entre o centro (de formação)
e o trabalho de campo
(de exercício da profissão)
Sendo "científica" e visando o domínio de
saberes (acadêmicos, próprios das discipli-
nas ensinadas; sobre o tema ensinado, pro-
duzidos pelas disciplinas contributivas; so-
bre a atividade do ensino, produzidos pela
Pedagogia e pela Didática) a formação será
ministrada num "centro", diferente do lugar
de trabalho de campo e, se possível, próxi-
mo das universidades (até mesmo verdadei-
ramente universitário, para notabilizar a
dignidade dos saberes em causa).
Sendo "profissional" e visando ao domínio
de uma atividade complexa no terreno pro-
fissional, essa formação deve: a) estar em
contato com o trabalho de campo; e b) fa-
zer intervir profissionais do trabalho de
campo.
Tentar-se-á uma superação dessa tensão
com uma melhor articulação centro/traba-
lho de campo, o que redundará num duplo
empenho: do centro, para levar em consi-
deração os problemas de campo e admitir
que está a serviço do trabalho de campo. E
deste, para tornar-se formativo e admitir a
necessidade de relegar temporariamente ao
segundo plano as exigências da produção a
fim de dar aos novatos o tempo necessário
para a construção de si mesmo (o que im-
plica um direito ao erro, proibido ao profis-
sional em exercício). Huberman (1986) pro-
pôs, nesse sentido, um modelo original que
articula de maneira feliz um centro, conce-
bido como "sistema com recursos", ao tra-
balho de campo, concebido como "sistema
do usuário".
A tensão entre a dimensão
profissional (aprender um ofício)
e a dimensão pessoal (desenvolver
sua personalidade) da formação
Toda formação tem uma dimensão educati-
va. E a educação constitui o substrato, como o
trampolim, da formação. Entretanto, o objetivo
essencial da formação é, tal como assinala
Avanzini (1996), o de incrementar os "haveres" do
sujeito (aquisição de competências precisas e pre-
determinadas). Ora, os formados também podem
ter um objetivo, num certo sentido privado, por
mais educação (aumento da polivalência da pes-
soa). Trata-se, então, de um desenvolvimento do
"ser". Esses dois objetivos podem entrar em con-
flito, tal como podemos ver no uso que às vezes
os professores fazem de um catálogo de ofertas
de formação (continuada), ou nas tentativas de
"desvio" de certos estágios em prol de objetivos
mais pessoais.
Essas ambigüidades da articulação oferta/
demanda, bem como esses conflitos entre ob-
jetivos profissionais e objetivos pessoais, po-
derão ser superados tornando mais transpa-
rentes os objetivos da formação e, talvez, dis-
tinguindo, como proposto por Avanzini (1996),
de um lado, educação (com fins indetermi-
nados, focada no desejo de mudar) e forma-
ção (com fins predeterminados, focada na ne-
cessidade de mudar) de adultos; do outro, no
nível da formação, distinguindo ações de for-
mação de adultos (visando melhorar direta-
mente a qualificação) e ações de formação per-
manente (visando melhorar indiretamente a
qualificação pelo expediente de uma evolução
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
da personalidade). O problema da articulação
entre objetivo social e objetivo pessoal deve-
, portanto, ser sempre claramente colocado.
Inscrever-se decididamente
numa dinâmica de projetos
Essa necessidade pode ser analisada sob o
duplo ponto de vista da dinâmica do processo
de formação e da dinâmica do processo de evo-
lução individual dos formados.
Do ponto de vista da dinâmica do
processo de formação
Junto com Lesne (1984), podemos conside-
rar quatro grandes momentos correspondentes
a quatro subconjuntos de atividades.
0 momento do projeto no sentido estrito
Trata-se de saber com que objetivo forma-
mos os professores; isso implica determinar três
questões:
a) os valores queo sentido ao projeto e
que justificam as finalidades escolhidas.
Faz-se necessária aqui uma reflexão cole-
tiva para obter um consenso mínimo sobre
os fins, sem o qualo haverá projeto de
formação que tenha verdadeiramente sen-
tido (Avanzini, 1991);
b) o ideal do "bom professor", na direção do
qual se desejaria que os formados se orien-
tassem. A consideração dos resultados de
trabalhos sobre os "efeitos-professor" seria
aqui especialmente útil (Bressoux, 1994);
c) as modalidades eficazes de ação pedagó-
gica, o que implica um recurso a trabalhos
de pesquisa de ordem pedagógica ou, mais
especificamente, didática (Durand, 1996).
o projeto se traduzirá concretamente numa
política (especificação de objetivos em função
do triplo trabalho acima mencionado) e numa
estratégia.
É aqui que se coloca de maneira intensa o
problema do tipo de formação privilegiado, se-
gundo o peso e a prioridade concedidos à for-
mação inicial. Poderíamos considerar três gran-
des casos:
Estratégia 1: o essencial - inclusive a tota-
lidade - do esforço de formação é feito an-
tes da entrada na vida escolar. O que é ad-
quirido então é considerado como definiti-
vamente adquirido eo será jamais ques-
tionado. Trata-se da estratégia histórica na
França, de uma formação inicial que se se-
gue imediatamente à aprovação num con-
curso de emprego.
Estratégia 2: A formação torna-se continu-
ada, como continuação de uma formação
inicial anterior à qual reconhece-se um pa-
pel privilegiado, sendo que oportunidades
de formaçãoo oferecidas ao longo de uma
carreira, eventualmente sob a forma de "cré-
dito formação".
Estratégia 3: A formação é contínua, após
um início, que é uma primeira fase, maso
essencial, com o qual ela está em continui-
dade; ela intervém regularmente durante o
desenvolvimento da vida profissional, em
momentos de igual importância.
Baseando-nos em todas as considerações
anteriores, a primeira estratégia nos parece ob-
soleta e ultrapassada. Portanto, temos hoje a es-
colha entre uma formação continuada e uma
formação contínua. Essas duas estratégiasm
o mérito de permitir a consideração da "subver-
o das tarefas, das missões e das ocupações",
que produz uma prática docente caracterizada
pela passagem de uma obrigação de meios para
uma obrigação de resultados (Demailly, 2001:19)
e a irrupção de novos públicos que transformam
as condições e as formas da atividade docente.
As duas implicam a organização de uma cone-
o entre formação inicial e tempo (ocasião) de
formação continuada. Elas traduzem uma con-
sideração da temporalidade e das mudanças,
tanto coletivas (tecnológicas, econômicas e so-
ciais) quanto individuais (evolução pessoal e
profissional).
Entretanto, devido à importância particular
do primeiro tempo, aquele durante o qual se
adquire aquilo sem o qual o exercício da ocu-
paçãoo seria possível, preferimos, por nossa
vez, uma estratégia do tipo formação continua-
da, que: a) coloca a questão do viático inicial-
mente necessário para o exercício da ocupação;
b) obriga a pensar esse momento de formação
inicial, articulando-o com os momentos de for-
mação continuada que se seguirão; e c) convi-
da a construir os momentos seguintes em coe-
rência com aqueles que os antecederam.
0 momento do planejamento
A escolha de uma estratégia de formação con-
tinuada conduz a uma concepção necessariamen-
te dinâmica do planejamento. De fato, será pre-
ciso considerar pelo menos duas séries de objeti-
vos: no curto prazo (constituição do "viático") e a
médio ou longo prazos (garantia da "forma-
bilidade" e da "evolutividade" profissional e pes-
soal: o profissional deve estar, em certo sentido,
preparado para adaptar-se às futuras evoluções,
inclusive aquelas dificilmente previsíveis). E a
modalidade incluirá o conjunto dos momentos
de formação. Além disso, em suma, toda modali-
dade deverá ser concebida como suscetível de
desenvolver-se em função das evoluções concre-
tamente identificadas no contexto.
0 momento do processo pedagógico
o que já falamos sobre a diferença entre en-
sino e formação tem aqui grande relevância. A
educação visa à construção do saber ser; o ensi-
no visa à construção dos saberes; e a formação,
as competências socioprofissionais (Hadji, 1995).
Portanto,o se pode conceber, para as ativida-
des de formação propostas, que se baseiem ape-
nas no único modelo das atividades de ensino.
As atividades de formaçãom de ser mais
envolventes, mais práticas, estando diretamen-
te relacionadas com problemas profissionais. Por
outro lado, poderíamos imaginar, além das ati-
vidades que visam aquisições precisas, ativida-
des que privilegiem um modo de proceder, no
curso do qual nos exercitaríamos; por último,
atividades de análise que priorizem "a capacida-
de de observar e de analisar as situações" (mo-
delos focados na aquisição, no procedimento ou
na análise) (Ferry, 1983).
0 momento das atividades de regulagem
Tais atividades deverão ser concebidas de
forma precisa,o como um momento à parte
e isolável, mas operando continuamente para
permitir uma condução (pilotagem) adequada
do processo. Evidentemente, trata-se do proble-
ma da condução conjunta das operações de for-
mação que deveria ser colocado. O processo
pedagógico é regulado com referência ao pla-
no. Mas este,o sendo imóvel, é, ele mesmo,
regulado com referência às evoluções das reali-
dades (ferramentas e tecnologias disponíveis;
novos públicos; condições de exercício) e às re-
presentações (fins e valores de referência).o
se trata de regular um sistema fechado, mas um
sistema verdadeiramente aberto.
Do ponto de vista da dinâmica dos
adultos em formação
o se pode esquecer de que, se a forma-
ção, de um lado, é uma atividade instituída que
se exerce sobre um ator com vista a sua profis-
sionalização, do outro, ela também é uma ati-
vidade pessoal que o formado exerce sobre si
mesmo, no âmbito de sua própria história. A
facilitação desse trabalho sobre si, produtor de
novas representações, atitudes e condutas
(Ferry, 1987), deverá, portanto, apoiar-se em
tudo aquilo que aprendemos com a pesquisa
sobre a formação de adultos.
Trata-se de obter o engajamento do sujeito
para adquirir a "forma" julgada socialmente
desejável sem confiná-lo num molde rígido. E,
também, de permitir a ele encontrar sua pró-
pria forma sem por isso afastar-se, perigosa-
mente, da forma ideal do profissional eficaz.
Para isso, será preciso respeitar as três condi-
ções necessárias para a efetivação de aprendi-
zagens no adulto (Bourgeois, 1996):
um suficiente embasamento na experiên-
cia de sua própria vida, o único suscetível
de tornar possível um investimento pessoal
num trabalho de construção da identidade
(isso implica levar em conta a biografia es-
colar e universitária dos formados);
a possibilidade de estabelecer laços de con-
fiança recíproca com os formadores;
a realidade de um trabalho pessoal.
Portanto, a formação continuada deverá ter
a inteligência de outorgar um lugar essencial
para a experiência dos formados, partindo das
suas próprias indagações, no âmbito de suas
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
problemáticas pessoais. Isso porque aprender,
para um adulto, significa construir um sentido,
num ato criativo que se inscreve numa dinâmi-
ca de (trans)formação pessoal. Isso significa:
que a formação só pode ser contínua, no
sentido de que é preciso dar um tempo para
que os formados façam sua experiência, sem
a qual se permanece no artificial;
que,, o tempo de formação inicial deve
tornar possível o desenvolvimento dessa
experiência, em comparação com um tra-
balho de campo (no âmbito da articulação
orgânica centro / trabalho em campo);
que, a todo momento, deve-se dar priori-
dade aos problemas encontrados pelos pro-
fessores no campo, sem o que se permane-
ce no abstrato;
que, a todo momento, deve-se dar um lu-
gar importante aos pares, que conhecem
esses problemas, para vivê-los. Uma forma-
ção continuada dará pelo menos importân-
cia igual aos pares e aos especialistas.
Gerir inteligentemente o
"suporte em falso"
A formação se situa sobre um paradoxo
constitutivo. Como se encontra necessariamen-
te defasada com respeito ao trabalho de cam-
po, sem o qual ela se reduziria a uma formação
"em serviço" (a necessidade da produção iria
impor então suas leis, o que seria contra o di-
reito ao erro pressuposto pela aprendizagem: o
que quer dizer que é impossível, em última ins-
tância, ter uma boa formação "em serviço"!), ela
se coloca como um "suporte em falso" (desali-
nhada, em situação de desequilíbrio) em rela-
ção a tal trabalho de campo. Durante a forma-
ção em geral, e no centro em particular, anali-
samos, preparamo-nos para tarefas que só se-
o assumidas quando sairmos da situação de
formação. Embora naveguemos sempre no
meio de dois grandes riscos:
o risco de nos afogarmos no exercício da
ocupação em campo, seo houver o míni-
mo de defasagem e de distanciamento ne-
cessários para "domesticar" a tarefa;
o risco de se perder e de perder seu tempo
em situações de formação abstratas, artifi-
ciais e, finalmente, sem interesse, se a lógi-
ca do ensino vier se impor e seo houver a
mínima relação com os problemas e com as
práticas de campo, sem as quaiso pode-
ríamos nos preparar para a tarefa.
Toda a dificuldade, e toda a arte, reside em
pensar, organizar, gerir esse duplo afastamen-
to espacial (centro versus trabalho de campo) e
temporal (tempo da paciente construção das
competências versus a urgência das tarefas de
produção profissional). É preciso de tempo para
fazer - e continuar a fazer - um bom profissio-
nal, nas atividades de formação ligadas ao tra-
balho de campo.
Saber encontrar a boa distância nos parece
ser o maior desafio para a formação de docen-
tes no século XXI. Isso resulta, dentre outras, em
três áreas de trabalho que irão condicionar uma
conexão feliz entre os tempos de formação ini-
cial e continuada.
A área da elaboração de programas de
formação centrados no essencial e
preservando o essencial
Os "perfis dos egressos" queo sentido à
formação inicial devem ser, de um lado, evolu-
tivos, para ter em conta mudanças objetivas do
contexto profissional e da evolução dos saberes;
de outro, devem ser "econômicos", no sentido de
que eleso podem visar a, nem cobrir, todas as
situações imagináveis (a experiência deverá ser
construída), nem prover de know-how pronto e
acabado, nem colocar à disposição todas as téc-
nicas de trabalho existentes.
Seria desmesurado visar à exaustão. E isso
cingiria na rigidez algumas técnicas que, pela
força das circunstâncias, tornar-se-iam rotinas.
Para fugir ao mesmo tempo a uma especializa-
ção precoce, um fator de rigidez, e a uma ex-
cessiva fragmentação, um fator de incoerência,
a formação deverá objetivar algumas compe-
tências centrais integrativas, mais do que uma
pluralidade de saberes particulares ou de habi-
lidades demasiado específicas (Hadji, 1997).
Será preciso identificar essas competências
centrais e estar atento ao surgimento de possí-
veis novas competências (Perrenoud, 1999).
A área da invenção de modalidades
adequadas de trabalho pedagógico
As atividades a ser implementadas em fase
de "processo pedagógico" devem responder a
uma dupla condição:
o se limitar a atividades de ensino;
estar em relação de analogia estrutural com
as práticas profissionais que se deseja de-
senvolver, segundo um princípio de isomor-
fismo (Ferry, 1983).
Isso eqüivale a solicitar aos formadores uma
intervenção, aplicando os princípios suscetíveis de
tornar eficaz o trabalho do professor. Portanto, isso
exige progressos nas pesquisas sobre a eficácia do
ensino e um grande esforço de ativa apropriação
dos resultados dessas pesquisas pelos formadores!
A área da criação de centros de
formação ligados orgânicamente ao
campo do exercício profissional
Trata-se (e podemos pensar aqui no "novo
modelo para o desenvolvimento profissional dos
professores", de Huberman, 1986) de articular,
de maneira suficientemente forte, o centro de
formação (imaginado como "centro de desenvol-
vimento profissional", ou sistema de recursos) e
o trabalho de campo (pensado como espaço de
emergência dos problemas, ou sistema do usu-
ário) para tornar possível, entre atividades de
formação e atividades profissionais, uma relação
queo seja de aplicação (da teoria em direção
à prática), nem simplesmente de alternância (um
ir-e-vir entre teoria e prática), mas, sim, de
regulagem (uma conduta constante da prática à
luz de referenciais teóricos) (Ferry, 1983).
Assim, uma estratégia de formação continua-
da nos parece ser do tipo de ligar orgânicamen-
te a atividade de formação ao campo profissio-
nal: superando, tanto quanto possível, as tensões
derivadas das lógicas antagônicas que estiverem
em ação (e sem sacrificar, em nada, cada um dos
fatores dinâmicos em causa); inserindo-se numa
verdadeira dinâmica de projeto; concedendo à
temporalidade das evoluções todo o espaço ne-
cessário; propiciando os meios de gerir de ma-
neira inteligente o "suporte em falso" formação/
exercício profissional.
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SIMPÓSIO 11
AVALIAÇÃO da APRENDIZAGEM,
CURRÍCULO E FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Andy Hargreaves
Iza Locatelli
A avaliação em sala de aula:
o que está em jogo?
Andy Hargreaves
International Centre for Educational Change - Toronto/Canadá
A reforma liderada pela avaliação dos alu-
nos é atualmente uma das estratégias mais
favorecidas para promover padrões de ensino e
aprendizagem mais elevados, um aprendizado
mais consistente e formas mais confiáveis de
prestação de contas para o público em geral
(Murphy e Broadfoot, 1995; Gipps, 1994; Black,
1998). Embora avaliações prescritas pela legis-
lação e feitas em grande escala recebam uma
maior atenção, as avaliações em sala de aulao
as que mais importam nesse caso.o estas que
determinarão tanto a pedagogia a ser
implementada em sala de aula quanto a apren-
dizagem dos alunos (Stiggins, 1991). Muitas re-
formas educacionaism anunciado a chegada
de novas abordagens de avaliação em sala de
aula, para além das tradicionais técnicas de-
pis e papel, incluindo estratégias como a avalia-
ção de desempenho e a avaliação baseada em
portfolio (Marzano, Pickering e McTighe, 1993;
Stiggins, 1995). Tais avaliações alternativas têm,
freqüentemente, o objetivo de incentivar os alu-
nos a assumir maior responsabilidade pela sua
própria aprendizagem, de assumir a avaliação
como parte integrante da experiência de apren-
dizagem e de inseri-la em atividades autênticas
que valorizarão e estimularão as habilidades dos
alunos em criar e aplicar uma ampla gama de
conhecimentos, eo apenas participar em
ações de memorização e de desenvolvimento de
habilidades básicas (Earl e Cousins, 1995;
Stiggins, 1996).
As mudanças na avaliação em sala de aula
representam mudanças importantes no
paradigma da forma de pensar em relação à
aprendizagem, às escolas e ao ensino. Avaliações
alternativas em sala de aula requerem que os pro-
fessores usem o seu julgamento no que se refere
ao nível de conhecimento das crianças, que com-
preendam como incorporar retroinformação
(feedback) no processo de ensino, que decidam
como satisfazer às diversas necessidades de
aprendizagem dos alunos (Tunstall e Gipps,
1996) e que aprendam como compartilhar o pro-
cesso da tomada de decisões sobre o ensino e a
aprendizagem com os colegas, pais e alunos
(Stiggins, 1996; Gipps, 1994). Tais métodos alter-
nativos também implicam repensar para que
servem a avaliação e o ensino: de que maneira
ambos podem vir em apoio a uma melhor apren-
dizagem e que tipos de objetivos, cobertura e
padrões curriculares a avaliação e o ensino po-
dem contribuir para melhor cumpri-los (Wiggins
e McTighe, 1998).
Essas mudanças na avaliação em sala de
aula colocam grandes desafios para os profes-
sores. Eleso os únicos a terem contato per-
manente e conhecimento íntimo com seus alu-
nos e com o currículo, ambos requisitos para a
elaboração de um quadro nítido da aprendiza-
gem de cada um no decorrer do tempo (Earl e
Cousins, 1995). Ao mesmo tempo, os educado-
res estão ficando menos confortáveis com a sua
habilidade em alcançar bons julgamentos por
meio de métodos de testar tradicionais. Testes
universais e neutroso difíceis de ser desenha-
dos e manuseados quando as turmas de alunos
o diversificadas. O que está sendo testado
encontra-se em mudança. Na atualidade, os
alunos também devem analisar e aplicar a in-
formação, além de se lembrar dela. As aparen-
tes certezas acerca do que devia ser avaliado e
como devia ser avaliado estão desmoronando,
e muitos professoreso têm, hoje, clareza ou
certeza daquilo que devem fazer enquanto lu-
tam para atender bem a todos os seus alunos.
As atuais mudanças que ocorrem na avalia-
ção em sala de aula apresentam oportunida-
des fascinantes para os professores, pois os
confrontam com grandes dificuldades técnicas
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
e exigem intensamente o uso de sua energia
intelectual e emocional. Este capítulo analisa
como os professores do nosso estudo lidaram
com a reforma na avaliação, às vezes introdu-
zindo-a, eles mesmos, em suas turmas, e exa-
mina as condições que vieram ouo em apoio
aos seus esforços.
A avaliação em sala de aula é um fenômeno
multifacetado. Muitas questões entram em jogo
ao reformá-la, o que pode ser visto examinan-
do-se a reforma dessa avaliação à luz de dife-
rentes óticas. Baseando-nos no tratamento clás-
sico da inovação educacional feita por House
(1981) e na discussão de Habermas (1984) a res-
peito das diferentes dimensões da ação huma-
na, queremos chamar a atenção para três pers-
pectivas em inovação educacional - a técnica,
a cultural e a política - às quais acrescentamos
uma quarta: a perspectiva pós-moderna.
A perspectiva técnica
Segundo House, a perspectiva técnica (ou
tecnológica) supõe que o ensino e a inovação
o tecnologias com soluções previsíveis, que
podem ser transferidas de uma situação para
outra. O foco dessa perspectiva está dirigido à
própria inovação, nas suas características e
componentes e na sua produção e introdução,
como tecnologia. A suposição subjacente den-
tro da perspectiva técnica é que todos compar-
tilham um interesse comum pelo avanço da ino-
vação e de que os objetivos desta estão ou já
fixados, ou além de qualquer questionamento.
Tudo o que resta a fazer é determinar a melhor
maneira de implementá-la (House, 1981).
No campo da reforma da avaliação, a pers-
pectiva técnica se concentra em questões de or-
ganização, estrutura, estratégia e habilidade em
desenvolver novas técnicas. Aqui, a avaliação
alternativa é uma tecnologia complexa, que exi-
ge perícia sofisticada em, por exemplo, dese-
nhar medições válidas e confiáveis para avalia-
ções baseadas no desempenho em sala de aula,
as quais irão captar as complexidades do de-
sempenho do aluno (Torrance, 1995). O desa-
fio é criar tecnologias defensáveis que sejam
significativas e justas, e também ajudar os pro-
fessores a desenvolverem a compreensão e as
habilidades necessárias para integrar, na sua
prática, novas técnicas de avaliação, tais como
as avaliações baseadas no desempenho, com
portfolio, a auto-avaliação, os videojornais e as
exibições. Stiggins escreve a respeito do "anal-
fabetismo na avaliação", que permeia as esco-
las, e sugere que:
|...] sem uma visão muito clara do significado do
sucesso na escola e sem a capacidade de tradu-
zir essa visão em avaliações de alta qualidade,
permaneceremos incapazes de ajudar eficaz-
mente os alunos a atingirem níveis mais eleva-
dos de aproveitamento escolar e a serem capa-
zes de integrar tais avaliações em suas práticas
(Stiggins, 1995: 238).
As avaliações alternativas apresentam um
emaranhado de questões técnicas:
demandam muito tempo (Stiggins, 1996);
levantam preocupações sobre sua confia-
bilidade e validade (Linn, Baker e Dunbar,
1991);
às vezes, é difícil separá-las do próprio en-
sino e aprendizagem (Khattri, 1995);
na maioria da vezes,oo adequadamen-
te descritas (Stiggins e Bridgeford, 1985).
freqüentemente pressupõem que os profes-
sores já possuem as suficientes habilidades
para implementá-las (Earl e Cousins, 1995).
A avaliação alternativa em sala de aula cons-
titui um mundo novo para os professores, sen- ,,
do que a maioria deles possui pouco (se é que
possui algum) treinamento em avaliação. Fal-
tam-lhes, freqüentemente, os conhecimentos
básicos do processo de medição e, em geral,
sentem-se pouco confortáveis com a qualida-
de de suas avaliações (Stiggins, 1991). Os pro-
fessores estão sendo compelidos a se tornarem
mais sofisticados quanto à implementação de
novas estratégias de avaliação (Cunningham,
1998). Além de seu empenho em dominarem as
habilidades necessárias para se tornarem ava-
liadores competentes, muitas restrições insti-
tucionais criam problemas técnicos que tornam
difícil a implementação de tais avaliações. Al-
guns dos problemas seriam a falta de tempo, a
escassez de recursos, de desenvolvimento pro-
fissional e de orientação para os professores se
tornarem profissionais mais eficazes com as
novas estratégias de avaliação (Stiggins, 1996).
Em suma, a perspectiva técnica requer
atenção para as dificuldades em elaborar e
aprimorar formas válidas de medição; para os
desafios que os professores enfrentam quan-
do adquirem uma variedade maior de habili-
dades e estratégias de avaliação; para a neces-
sidade de harmonizar as expectativas da ava-
liação entre o lar e a escola, bem como entre
os níveis escolares; e para a questão do tempo
e dos recursos que contribuem ou restringem
a implementação de novas práticas de avalia-
ção nas rotinas da escola.
A perspectiva cultural
A perspectiva cultural orienta a atenção para
a maneira como as inovaçõeso interpretadas
e integradas no contexto social e cultural das
escolas. Essa perspectiva está basicamente pre-
ocupada com questões de significado, de com-
preensão e de relações humanas. House (1981)
sugere que o processo de inovação é realmente
uma interação de culturas, na qual a mudança
mistura novas idéias com o histórico cultural da
escola. Sob a perspectiva cultural, o desafio re-
presentado pela reforma da avaliação é o de
reculturar (Fullan, 1993; Hargreaves, 1994) as
relações humanas envolvidas nos processos de
avaliação - entre e no meio de alunos, profes-
sores e pais.
A avaliação alternativa em sala de aulao
acontece no final da aprendizagem de uma clas-
se, de uma unidade, de um semestre ou ano leti-
vo. Ela é parte integrante de ou uma janela que
dá para a própria aprendizagem durante o pro-
cesso (Earl e LeMahieu, 1997; Wiggins e McTighe,
1998; Broadfoot, 1996). Ela se preocupa menos
em categorizar os alunos ou os resultados do
conhecimento do que em desenvolver uma com-
preensão comum entre pessoas sobre quando e
como ocorre a aprendizagem. Tal avaliação deve
ser suficientemente sensível para detectar as re-
presentações mentais que os alunos formam so-
bre idéias importantes. Ela terá de ser capaz de
discernir até que ponto os alunos aplicam bem
aquilo que compreenderam para resolver pro-
blemas (Sheppard, 1991). Esse tipo de avaliação
tem sido descrito como "autêntico". Wiggins de-
fine a avaliação autêntica como:
[...] o trabalho dos alunos que imita / estimula
tarefas / critérios / contextos básicos realizados
por aqueles que desempenham atividades na-
quelas áreas do conhecimento. Assim sendo,
encontrar um problema de pesquisa, desenhar
o experimento, eliminar os defeitos do desenho,
publicar os resultados, defendê-los contra evi-
dências e argumentos contrários constitui o ato
de "fazer" Ciência autenticamente (ao contrário
de laboratórios que fazem Ciência como se fos-
sem livros de receita, transformados realmente
em apenas lições já prontas). Dessa forma, os
matemáticoso ganham a vida preenchendo
planilhas - eles aplicam modelos matemáticos
a problemas teóricos e práticos etc. Na minha
opinião, a avaliação autênticao deveria ser
definida como de importância ou dotada de sen-
tido para crianças, tal como alguns autores a
definem. Para mim, esse é um erro bastante
revelador, indicando que aquele que a está de-
finindoo pensa como um avaliador preocu-
pado com a validez e a previsibilidade (em vez
de pensar como um professor que torne o ver-
dadeiro trabalho acessível e interessante em
aula). (Wiggins, 1999, comunicação pessoal).
Nesse sentido, a avaliação "autêntica" é
multidirecional, direta, profunda e depende em
grande medida dos julgamentos dos professo-
res. Os alunos se envolvem em "tarefas reais"
sob o olhar atento de um professor (ou vários
professores) que controla a agenda e faz uso
positivo das oportunidades para propiciar uma
retroinformação, ou feedback (Torrance e Pryor,
1998). Os critérios de avaliaçãoo estão ocul-
tos nemo misteriosos. Os professores se en-
contram motivados a ensinar para o teste já que
as tarefas dos alunos incluem situações reais
que precisam dominar para obter sucesso
(Cunningham, 1998). Essa abordagem envolve
o diálogo com e entre os alunos e inclui uma
reavaliação constante, uma permanente auto-
avaliação e uma avaliação mútua entre colegas
de turma. Neste caso, os alunos contribuem de
maneira ativa, engajada e desafiadora para a sua
própria aprendizagem.
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
Em suma, a perspectiva cultural de avalia-
ção em sala de aula enfatiza a interação entre
pontos de vista, valores e crenças. A tarefa de
desenvolver avaliações alternativas vai muito
além de questões técnicas de medição, habili-
dade, coordenação e das relações existentes ao
se estabelecer uma comunicação e construir um
entendimento entre todos aqueles que estão
envolvidos no exercício da avaliação.
A perspectiva política
Toda avaliação acarreta atos de julgamen-
to. O que, por sua vez, envolve o exercício e a
negociação de poder, autoridade e interesses
competitivos entre diferentes grupos. Isso nos
leva ao cerne da perspectiva política sobre a
avaliação alternativa. Essa perspectiva vai além
dos temas de coordenação técnica e de comu-
nicação humana para abranger as lutas de po-
der entre grupos ideológicos e de interesses nas
escolas e sociedades. Ela também trata a avalia-
ção alternativa em sala de aula como uma es-
tratégia potencialmente problemática que, em
vez de outorgar podêres às pessoas, pode se
transformar em uma nova e sofisticada forma
de seleção e de patrulhamento. Três aspectos
da perspectiva políticao importantes para o
debate em torno da avaliação.
Em primeiro lugar, a avaliação alternativa
ou divergente, em sala de aula (Torrance e
Pryor, 1988), coloca ênfase na compreensão do
aluno mais do que na agenda do avaliador. Ela
se concentra em descobrir o que a criança
sabe, compreende e pode fazer. Os alunosm
de assumir alguma responsabilidade pela
aprendizagem, e os professores estão encarre-
gados de criar as condições para que isso ocor-
ra. A avaliação é parte essencial do processo
da aprendizagem, que permite que os profes-
sores, os alunos e os pais identifiquem em que
grau ocorreu essa aprendizagem e, assim, es-
tabeleçam os rumos para o próximo estágio
(Earl e LeMahieu, 1997; Gipps, 1994; Stiggins,
1995). Nessa abordagem, será importante que
os critérios da avaliação sejam transparentes,
disponíveis por igual para todos e publicamen-
te contestáveis em sua aplicação; que os crité-
rios de avaliação sejam conhecidos pelos alu-
nos e freqüentemente desenvolvidos com a co-
laboração deles, para que assim possa haver
uma melhor compreensão e o poder na sala de
aula possa ser redistribuído; que os julgamen-
tos da avaliação sejam atos de negociação ex-
plícita entre todos os envolvidos; e que os pro-
cessos de avaliação se movam em múltiplas
direções, por exemplo, de aluno para aluno, de
aluno para professor e entre pais de alunos e
professores, bem como de professor para alu-
no. Essa é uma mudança fundamental na polí-
tica de avaliação à qual se recorreu durante
décadas de prática, quando os professores se
utilizavam de seu poder para julgar e classifi-
car os alunos com base em critérios e proces-
sos que eram misteriosos, secretos e freqüen-
temente arbitrários.
Em segundo lugar, se, de um lado, a avalia-
ção alternativa se compromete a estabelecer
relações micropolíticas mais positivas entre
professores, alunos e pais, do outro, a política
também pode minar a implementação dessas
novas estratégias. Por exemplo, as escolas de
Ensino Médio quase sempre pressionam as do
Ensino Fundamental para usarem formas mais
convencionais de medição e de elaboração de
relatórios. O mesmo fazem os pais. A coorde-
nação das expectativas de avaliação entre co-
munidades e sistemas é um desafio político
considerável para os reformadores, bem como
um desafio técnico.
Muitas dessas contradições que surgem
com os nossos dados estão embutidas na pró-
pria política de avaliação. Elas representam
diferentes pontos de vista acerca da avaliação
defendidos pelos professores, de um lado; e os
pontos de vista tanto dos formuladores de po-
lítica educacional quanto do público real e
imaginário aos quais eles atendem, do outro.
Essas forças contraditóriasm tornado a re-
forma da avaliação uma atividade esquizo-
frênica (Earl e LeMahieu, 1997; Firestone,
Mayorowetz e Fairman, 1998). Será difícil ter a
esperança de que os professores possam har-
monizar suas práticas avaliatórias, enquanto
os formuladores de políticas educacionais e o
público em geralo o conseguem.
Essas inconsistências estão profundamen-
te embutidas na política educacional (Nuttall,
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
tes nos hospitais, em vez de revelações repen-
tinas e chocantes acerca de doenças terminais
(Hopfl e Linstead, 1993). As avaliações alterna-
tivas poderiam encenar revelações graduais do
insucesso escolar, assim como a medicina mo-
derna nos encena a revelação da morte.
Em resumo, a perspectiva política desperta
a atenção para os atos e para as relações de po-
der incorporadas nos processos de avaliação,
tomem eles a forma de delegação de podêres
para práticas de avaliação compartilhada, aber-
ta e negociada e de produção de relatórios de
resultados, de jogos de poder entre grupos de
interesses concorrentes e suas expectativas no
campo da avaliação ou de formas mais sutis e
sinistras de poder que possam impregnar e
infectar as próprias práticas de avaliação alter-
nativa com processos de patrulhamento
comportamental e com práticas de seleção
disfarçadas e "terapêuticas", as quais se tornam
a antítese daquilo que a avaliação alternativa
alega ser.
A perspectiva pós-moderna
A perspectiva pós-moderna da avaliação al-
ternativa baseia-se na visão de que, no mundo
complexo, diverso e incerto de hoje em diao
se pode conhecer integralmente os seres huma-
nos. Em salas de aula culturalmente diversas, a
maneira como as crianças aprendem, pensam,
sentem e acreditam é reconhecida como sendo
complexa (Ryan, 1995). O que é importante ou
real para as crianças de hoje em seu mundo da
"realidade virtual" - de CDs, MTV, walkmans,
discmans, computadores, videogames e televi-
o de múltiplos canais - também é complexo
e está em constante mutação (Castells, 1997).
"Os alunos mudaram", dizem os professores.
Eles jáo mais parecem ser conhecíveis ou
previsíveis. Muitos professores atualmente sen-
tem quem "seres estranhos em suas turmas"
(Green e Bigum, 1993).
Nesse cenário complexo e mutável, nenhum
processo ou sistema de avaliação pode ser com-
pletamente amplo, de incontroversa precisão
ou inabalavelmente revelador da "verdade", da
essência da aprendizagem ou do aproveitamen-
to escolar das crianças. De fato, os significados
e as experiências de avaliação que alguns des-
crevem como "autênticos" são, em diversos sen-
tidos, problemáticos. Assim, muito pouco é
inquestionável ou indiscutivelmente "verdadei-
ro" num mundo pós-moderno. Existem poucas
respostas "corretas" ou, inclusive, processos de
avaliação que possam ser considerados como
"os melhores". A avaliação alternativa pode ser
diversificada, de largo alcance, negociada, in-
clusiva e multifacetada, mas é exatamente por
isso que elao pode ser "autêntica" no senti-
do de revelar alguma verdade imperativa.
Na era da educação eletrônica, quando os
alunosm o poder de colher informação ins-
tantânea proveniente de diversas fontes
clicando num mouse, ou de fazer um download
de fotografias e gráficos em formato de pizza,
em vez de os professores mesmos compilarem
e representarem os dados, é mais difícil para
eles decidir o que é real e o que é falso, perce-
ber quando o trabalho dos alunos é efetivamen-
te deles, determinar se as fontes das quais ex-
traíram os dados de seu trabalhoo bem con-
ceituadas e decidir se essas coisasm impor-
tância. da mesma forma, no paradigma pós-
moderno, é patente que as avaliaçõeso po-
dem ser "autênticas", nesse sentido de ser sua
origem indiscutível.
Nesse sentido, enquanto um dos significa-
dos de "autêntico", segundo o dicionário
Webster's, é "em estreita conformidade com o
original: reproduz de forma precisa e satis-
fatória os traços essenciais", como num retra-
to, as avaliações alternativaso realmente
menos fotografias "realistas" ou retratos "fiéis"
e, sim, mais pinturas cubistas - representan-
do e interpretando, em vez de reproduzir a rea-
lidade, a partir de múltiplos ângulos e perspec-
tivas.
Por último, ainda segundo o Webster's, "au-
têntico" também pode significar que possui
"sinceridade completa, sem disfarce nem hipo-
crisia". Entretanto, o mundo pós-moderno da
simulação é aquele onde a ilusão é dissemina-
da e aceitável, onde calças jeans novaso des-
botadas para parecer velhas, onde alguns pré-
dios modernos recebem fachadas tradicionais,
onde a música digital soa melhor do que o con-
certo ao vivo e onde rochas falsas adornam os
saguões espetaculares de hotéis em Las Vegas,
porque parecem mais reais do que as próprias
reais (Retzer, 1998). Avaliações "autênticas" si-
mulam a realidade tanto quanto a criam, pro-
duzindo, por exemplo, lindas falsificações de
publicações de livros, representações teatrais
ou portfólios artísticos. Em todas essas manei-
ras, será importante tratar a avaliação "autênti-
ca"o como um clichê, mas, sim, como uma
questão de indagação crítica (Meier, 1998).
A perspectiva pós-moderna aponta tanto
para os riscos quanto para as oportunidades na
reforma da avaliação. Pelo lado dos riscos, as
avaliações alternativas, especialmente aquelas
com portfolio, podem simular mais do que es-
timular o aproveitamento escolar. Os alunos e
os professores podem ser induzidos a valorizar
a forma mais do que a essência, a imagem mais
do que a realidade - com trabalhos em capas
brilhantes, com fontes elegantes, entremeados
de gráficos e diagramas multicores, que pode-
riam mascarar conteúdos e análises medíocres. O portfolio pode se transformar num dispositi-
vo que serve para conduzir e definir o aprovei-
tamento dos alunos de forma tal que eles che-
guem a prestar serviços à comunidade ou a rea-
lizar atividades extracurriculares,o por cau-
sa de seu valor moral, mas porque querem ter o
curriculum vitae ou o portfolio certo. Dessa for-
ma, as avaliações com portfolio e aquelas de
desempenho podem chegar a banalizar e mi-
norar a essência da aprendizagem, reduzindo-
a a aparências superficiais e a uma "autentici-
dade artificialmente elaborada" (Mestrovic,
1997), num mundo sem rigor, de melhorias que
apenas induzam a "sentir-se bem", bem como a
aquilo que Ritzer (1998) chama de cultura
Disneyesca da "leveza".
Em termos mais positivos, as práticas pós-
modernas de avaliação podem oferecer múlti-
plas representações da aprendizagem dos alu-
nos, de maneiras tais que resultem em dar mais
voz e visibilidade para suas diversas atividades
e realizações, através de meios de comunicação
escritos, numéricos, orais, visuais, tecnológicos
ou teatrais, os quais incorporariam uma mistu-
ra de estilos num portfolio diversificado quan-
to a atividades e aproveitamento. Distinções
hierárquicas de valor entre essas diferentes for-
mas de representação seriam reduzidas ou eli-
minadas, fazendo com que o aproveitamento de
alunos vindos de culturas visualmente orienta-
das, por exemplo,o fosse minorado quando
comparado com o aproveitamento de alunos
cujo ponto forte reside nas áreas da escrita e da
aritmética. Essa abordagem permite que o tra-
balho e o aproveitamento dos alunos sejam vis-
tos através de múltiplas perspectivas, bem
como permite que a complexidade de suas ap-
tidões e identidades seja reconhecida com mais
facilidade.
Tal abordagem pós-moderna envolve, ain-
da, a participação dos alunos no processo de
avaliação e na determinação de como os pro-
dutos da avaliação poderão ser compilados e
utilizados. Esse envolvimento dos alunoso é
apenas um ato de cessão de podêres: ele é tam-
m uma maneira de os professores admitirem
queo podem começar a conhecer seus alu-
nos sem terem acesso ao auto-entendimento
feito por eles.
Conclusão
Em vista das contradições e das complexi-
dades que vieram à tona com essas diferentes
perspectivas,o é surpresa nenhuma que os
professores, em nosso estudo, nos tenham dito
que a avaliação foi a parte "mais difícil" de seu
trabalho. A maioria das conversas que tivemos
centraram-se na tentativa de ligar suas práticas
de avaliação e de produzir relatórios dos resul-
tados; de tentar superar expectativas contradi-
tórias; de estabelecer um canal de comunica-
ção com os pais; de fazer com que os alunos
participem; de usar uma variedade de procedi-
mentos de avaliação alternativa; e de questio-
nar tanto suas próprias práticas de avaliação
quanto as dos outros. Os professores também
se manifestaram acerca de suas sensações de
desconforto e de incerteza com relação à avalia-
ção dos alunos e à avaliação do próprio traba-
lho pedagógico e confessaram que essa ansie-
dade já existia muito antes dos episódios recen-
tes de mudança curricular. É preciso olhar de
perto a maneira como essas complexidades e
contradições se fizeram sentir no trabalho des-
ses professores.
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
Avaliação escolar no contexto
de novas competências:
o diálogo entre as escolas
e os sistemas de avaliação
Iza Locatelli*
A avaliação dos sistemas de ensino é algo
recente no Brasil. Temos apenas uma década de
avaliações sistemáticas, entendendo-se estas
como um processo amplo de tomada de deci-
sões no âmbito do sistema federal e dos siste-
mas estaduais e também municipais. A partir da
constituição do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (Saeb), começou-se a esten-
der o âmbito da avaliação para além da avalia-
ção de alunos, com a introdução de novas ques-
tões que permitiram detectar fatores associados
ao seu desempenho. Hoje, mais do que conteú-
dos,o analisadas competências e habilidades,
o próprio currículo, os hábitos de estudo dos
alunos, as estratégias de ensino dos professores,
o tipo de gestão dos diretores e os recursos a eles
oferecidos para melhor realizarem seu trabalho.
A coleta, a análise e a disseminação desses da-
dos compõem, hoje, uma parte expressiva da
agenda de desafios compartilhada por todos os
sistemas de avaliação, em seus diferentes níveis.
Apesar desses avanços e embora se fale mui-
to em mudanças e inovações do sistema educa-
cional estimuladas pela avaliação, qualquer
mudança tem de ser assumida e implementada
dentro das escolas. Mudar a educação é mudar
a escola. Se tivermos a intenção de usar a avalia-
ção para melhorar a educação, ela terá que ser
trabalhada dentro das escolas, além do nível em
que vem sendo executada.
A avaliação, segundo Nevo (1995), deve pas-
sar " [...] de um discurso de descrição e julgamen-
to para um discurso de diálogo". A avaliação do
sistema de ensino deve se basear também na ava-
liação das escolas por si próprias. Neste caso,
além das avaliações nacionais, estaduais e mu-
nicipais e além de avaliar sistematicamente os
alunos, cada escola deve se auto-avaliar em fun-
ção de seus programas, projetos, materiais pe-
dagógicos, recursos, professores, gestão, pesso-
al de apoio, alunos e infra-estrutura.
A importância de a escola se auto-avaliar está
no fato de que, sendo o local onde as coisas acon-
tecem, é na escola que se dará o diálogo entre a
equipe, pais, alunos e autoridades gestoras do
sistema. Toda a comunidade da escola deve ser
preparada para poder combinar os produtos das
avaliações externas (como a realizada pelo Saeb)
e de suas próprias avaliações internas. Só uma
boa e séria avaliação interna permitirá às esco-
las a construção de um diálogo efetivo com a ava-
liação externa. Quando issoo ocorre, a avalia-
ção externa pode gerar atitudes defensivas,o
atingindo seus objetivos.
A avaliação intra-escolar é um processo que
exige tomada de consciência da importância da
avaliação para que se estruturem processos de
mudanças. Envolve, ainda, descentralização e
treinamento de equipes escolares.
Cabe aos gestores de políticas públicas em
educação, agora que a avaliação já está sendo
institucionalizada, tomar iniciativas para que
grupos de escolas se reúnam, discutam seus
problemas, formulem estratégias de avaliação,
utilizem a linguagem da avaliação, descubram
suas potencialidades e façam as adequações
necessárias de suas ações às necessidades es-
pecíficas de suas clientelas.
Diretora de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Daeb/lnep). Doutora em Educação
pela PUC/RJ.
Ninguém, na realidade, aprende a avaliar dis-
cutindo conceitos de avaliação. É preciso experi-
mentar, tentar, criar estratégias, envolver a equi-
pe, tendo como horizonte melhorar a qualidade
da educação e diminuir índices negativos, sejam
de desempenho, evasão ou repetência. Normal-
mente, deve-se selecionar alguma questão e
envidar esforços para praticar a avaliação interna
sobre essa questão.o é difícil organizar uma
base de dados por escola, base esta que deverá
conter os índices de matrícula, evasão, desempe-
nho, repetência, projetos implementados, currí-
culo praticado e tudo que for julgado pela equipe
como insumo necessário à avaliação da escola.
Envolver professores, pais e alunos na tare-
fa de avaliação intra-escolaro é fácil, maso
é impossível. Quando se descobre onde estão
os "nós", é mais fácil desatá-los e criar laços.
À medida que as escolas começarem a efe-
tuar suas próprias avaliações, haverá maior faci-
lidade em obter subsídios a partir das avaliações
externas, de tal forma que o processo avaliativo
cumpra sua função: mudar o que precisa ser
mudado, aperfeiçoar o que precisa ser aperfei-
çoado, construir o que precisa ser construído.
A avaliação, portanto, deve servir de base para
o diálogo eo para dar origem a descrições
assertivas e unilaterais. Escolas habilitadas à ava-
liação interna entenderão que avaliar é um pro-
cesso contínuo, coletivo eo uma atividade iso-
lada. Desta forma, se envolvidas em sua própria
avaliação, as escolas terão condições de se con-
frontar com diferentes perspectivas e conclusões.
No âmbito da avaliação específica dos alunos,
tarefa a que as escolas se dedicam com mais vi-
gor, é preciso levar em conta a mudança de
enfoque nos processos avaliativos. Jáo basta a
avaliação dos conteúdos aprendidos mas torna-
se cada vez mais necessário avaliar as competên-
cias e habilidades desenvolvidas pelos alunos.
o objetivo primordial do processo de edu-
cação deve ser o de desenvolver nos alunos es-
tratégias para aprender a pensar e para saber o
que fazer com a imensa quantidade de infor-
mações recebidas na sociedade contemporâ-
nea. Jáo cabe mais à escola ensinar ao aluno
diferentes conteúdos, em geral desvinculados
das práticas sociais, políticas, econômicas e
culturais. O serviço educacional tem como ta-
refa buscar o equilíbrio e a harmonia entre o
desenvolvimento humano sob a égide da res-
ponsabilidade com a vida em sociedade. Edu-
camos ou devemos educar para a vida coletiva.
Devemos, portanto, avaliar, também, as com-
petências sociais eo apenas os conhecimen-
tos operacionais.
Se educamos para a vida social, imensa é a
tarefa de lidar, por exemplo, com a competência
comunicativa queo se esgota no ensino das
regras e normas da Língua Portuguesa. Para que
os estudantes ascendam à cultura e obtenham
sua própria autonomia, toda a educação deve
converter-se num processo comunicativo, pois
é com e através da linguagem que os estudantes
constróem e desenvolvem seus conhecimentos
num diálogo consigo próprios, com o "outro" e
com o mundo, seja este "outro" o professor, a fa-
mília, a televisão, a internet, os colegas.
É através da linguagem que os alunoso
significado a sua própria experiência eo sen-
tido às experiências dos outros. A linguagem está
na base da formação do universo conceituai do
homem e dá suporte à função cognitiva, permi-
tindo ao sujeito abstrair o mundo, conceituar
sobre ele, simbolizá-lo, transformá-lo e
comunicá-lo. A linguagem, entendida como
mediação necessária,o é instrumento apenas
de comunicação ou de transmissão de informa-
ção, mas é ação que transforma, lugar de confli-
to, de confronto ideológico.
Na avaliação da competência comunicati-
va, isto é, na análise das possibilidades que tem
um estudante para compreender, interpretar,
organizar, negociar e produzir atos de signifi-
cação, por meio de distintas formas de lingua-
gem, destacam-se a leitura e a escrita. A leitura
e a produção de textoso se fazem apenas na
escola, maso há dúvida de que este é um lo-
cal privilegiado para que crianças, adolescen-
tes e jovens se apropriem das ferramentas ne-
cessárias para serem sujeitos ativos na compre-
ensão e na produção de textos.
o desenvolvimento desses processos, den-
tro da ótica da competência comunicativa, é
resultado de um processo histórico de sociali-
zação e depende das oportunidades que se ofe-
reçam na escola, e fora dela, de ler/viver textos
com compreensão e de produzir textos em fun-
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
ção da construção de novos saberes queo se
fazendo através da vida em si e da vida na esco-
la. Se a função primeira da linguagemo é a
informação e se tomamos o texto como unida-
de significativa constituída pela interação,o
há por que considerar um sentido literal e seus
efeitos: há múltiplos sentidos, há polissemia.
Embora a escolao seja o único centro de
produção de saberes, é ela que dá ao estudante
os instrumentos necessários que lhe irão per-
mitir ser um sujeito ativo na construção de co-
nhecimentos. Esses instrumentos envolvem
muito mais do que a memorização de regras
descontextualizadas. O ensino e a avaliação em
Língua Portuguesa envolvem processos concre-
tos de comunicação que solicitam do sujeito o
exercício de determinadas habilidades.
Issoo significa desconhecer a importân-
cia do conhecimento sobre a língua mas é pre-
ciso que esteo se faça sem uma consciência
das condições pragmáticas da enunciação em
contextos particulares e específicos.
o processo de interpretação textual supõe
uma série de operações que o leitor executa
sobre o texto. O leitor dialoga com palavras,
ilustrações, gráficos etc. e constrói efeitos de
sentido em que se mesclam os saberes do leitor
e os saberes do texto. Sempre o leitor estará se
confrontando com seus conhecimentos e as cir-
cunstâncias da enunciação. "Quando se diz
algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade
para outro alguém também de algum lugar da
sociedade e isso faz parte da significação"
(Orlandi, 1987:26).
Para que ocorra o processo de compreen-
são, o aluno precisará utilizar conhecimentos
prévios, representações sobre diferentes expe-
riências vividas ou percebidas e saberes cons-
truídos nas relações com outros sujeitos e com
o mundo. Através desses intercâmbios é que o
leitor irá construindo hipóteses de leitura so-
bre o que estará dizendo o texto.
As hipóteses de leitura de cada umo mui-
to amplas. No entanto,o se estreitando à me-
dida que o leitor avança com a leitura.o sen-
do descartadas certas hipóteses e outraso sen-
do construídas. O leitor constrói o sentido do
texto num jogo de ensaios e erros, de generali-
zações e abstrações. Se num primeiro momento
o texto é apenas tinta sobre papel, num segundo
momento, aquele vazio é preenchido com uma
troca entre o que é dito e o que se pensa sobre o
que é dito.o há homogeneidade entre o que
diz o texto e o que o texto diz ao leitor. A partir
do reconhecimento dessa heterogeneidade, o
leitor consegue interpretar o texto reconhecen-
do que quem fala através do texto é alguém di-
ferente de si próprio.
As competências de leitura dos alunos expres-
sam-se por meio do reconhecimento explícito das
informações contidas no texto até o desvelamento
de suas estratégias de sentido das condições prag-
máticas que geraram sua produção.
Em relação às competências na área de Ma-
temática, já há alguns anos a escola vem mu-
dando a postura antes adotada.o mais a
Matemática da memorização e da resolução de
séries intermináveis de exercícios para fixar
determinados conhecimentos, mas uma outra
vertente que visa à contextualização do objeto
de estudo. A educação matemática hoje está ou
deve estar voltada para a vida.
o conhecimento matemático caracteriza-se
por dois componentes inseparáveis: conceitos
e procedimentos, e deve ser construído a partir
de situações que permitam aos estudantes
construir significados.
o conhecimento conceituai caracteriza-se
por um conjunto de fatos, conceitos, estrutu-
ras e teorias. Já o conhecimento dos procedi-
mentos caracteriza-se por habilidades, estraté-
gias e métodos que permitem aos alunos ma-
nifestar as relações e conexões existentes entre
esses fatos, conceitos e estruturas.
No que toca à avaliação, é importante tra-
balhar com as situações queo sentido aos
conceitos matemáticos, entendendo-se que o
sentidoo está nem nas situações nem nas
representações simbólicas e, sim, na relação do
sujeito com as situações e os significados. As-
sim, a avaliação em Matemática deve estar
centrada na resolução de situações problemas.
Estas, por sua vez, devem exigir do estudan-
te diversos níveis de raciocínio, tentando fazer
emergir diferentes competências. Em cada si-
tuação- problema devem estar subjacentes dis-
tintas estruturas matemáticas. Assim, pode-se
avaliar os alunos em vários níveis referenciados
à Aritmética, à Estatística, à Geometria etc. Em
muitos momentos, pode-se levar o aluno a ape-
nas realizar operações; em outros, a identificar
representações, a estabelecer equivalências e
relações matemáticas simples ou complexas, a
buscar estratégias que relacionam vários con-
ceitos e fatos, operações.
A resolução de problemas está presente em
nossa vida o tempo todo: resolvemos problemas
pessoais, problemas sociais, problemas cientí-
ficos, e só se aprende a resolver problemas, re-
solvendo-os. Todo o ensino de Matemática deve
pois centrar-se na resolução de problemas.
A avaliação escolar no contexto de utiliza-
ção de novas competências deveria, portanto,
ser trabalhada em duas vertentes: a avaliação
intra-escolar envolvendo as ações e relações
realizadas e estabelecidas no âmbito da escola
e a avaliação centrada na análise das compe-
tências e habilidades desenvolvidas pelos alu-
nos no transcurso de sua trajetória escolar.
Se a escola começar a se auto-avaliar e a ava-
liar as competências e habilidades de seus alu-
nos, serão ampliadas as possibilidades de diá-
logo entre ela e os sistemas de avaliação, po-
dendo cada escola reconhecer seus avanços e
suas dificuldades em relação às demais, tornan-
do-seo apenas objeto de avaliações externas
mas sujeito destas, reconhecendo-se como úni-
ca e singular. A avaliação assim entendida, sem
dúvida, contribuirá para que os diagnósticos
feitos nos ajudem a tomar decisões em prol de
uma escola de qualidade. Melhorar a avaliação
das escolas é melhorar a educação. Sob este as-
pecto, cabe lembrar o papel dos cursos de for-
mação de professores, que precisam incluir ur-
gentemente em seus currículos discussões so-
bre este tema.
Currículo, avaliação e formação de profes-
sores baseados em novas competências pode-
o servir à transformação de nossas escolas.
Mudar a educação é mudar a escola e essa mu-
dança só ocorre com participação, compromis-
so e competência de todos os envolvidos no
processo educacional.
Somente assim, com a participação ativa
das próprias escolas no processo avaliativo será
possível o diálogo com os dados coletados pe-
los sistemas de avaliação, instituindo-se um
espaço promissor e comprometido com mu-
danças para uma educação de qualidade.
Bibliografia
BAKHTIN. Filosofia da linguagem. Porto Alegre: Artmed,
1988.
NEVO, D. Diálogos em avaliação. daeb/lnep (mimeo.).
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PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente
e formação. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
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abordagem sistêmica de mudanças pedagógicas. In:
ESTRELA; NÓVOA (Orgs.). Avaliação em educação:
novas perspectivas. Porto: Porto Editora, 1993.
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1978.
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culo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Ja-
neiro: Vozes, 1999.
SILVA, E. O ato de ler.o Paulo: Cortez, 1987.
SIMPÓSIO 12
FORMAÇÃO CONTINUADA
DO PROFESSOR
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho
Ana Paula Soares da Silva
Aricélia Ribeiro do Nascimento
Rosaura de Magalhães Pereira
Programa de formação
continuada na Educação Infantil
Silvia Pereira de Carvalho*
Instituto Avisa Lá/SP
Quero, antes de mais nada, agradecer ao
convite do MEC para participar deste im-
portante evento. Para quem conhece e par-
ticipa da difícil trajetória da Educação In-
fantil rumo aos caminhos da educação, fa-
zer parte deste evento é motivo de regozi-
jo. Parece que a complexidade de educar
crianças pequenas e a importância dos pri-
meiros anos da infância começam a ter
mais espaço e reconhecimento. Vou discor-
rer brevemente sobre nossa experiência em
formação continuada, esperando contri-
buir com os colegas que se interessam pelo
assunto em sob sua responsabilidade a
formação continuada de educadores.
Breve histórico
o Crecheplan, hoje Instituto Avisa, por
iniciativa do Instituto C&A de Desenvolvimen-
to Social, iniciou em janeiro de 1994 um pro-
jeto de formação continuada em entidades so-
ciais nas cidades deo Paulo e Osasco. Essas
entidades possuíam, então, 254 trabalhadores
- 144 educadores, 88 profissionais de apoio,
22 gerentes e coordenadores - e atendiam
2.100 crianças e adolescentes em 12 creches e
6 centros de juventude. A necessidade de um
trabalho de formação partiu das próprias en-
tidades, preocupadas em melhorar o desem-
penho de seus profissionais e, conseqüente-
mente, em oferecer um bom atendimento às
crianças. O projeto tornou-se um programa na
nossa instituição. Tem sido, desde essa épo-
ca, uma parceria entre empresas finan-
ciadoras, o Instituto Avisa Lá - que desenvol-
ve a formação -, entidades que atendem dire-
tamente as crianças e participam da formação,
instituições culturais e escolas particulares que
colaboram com a ampliação cultural e didáti-
ca dos educadores.
o projeto inicial tinha como principais ob-
jetivos a criação de um espaço de reflexão dos
educadores com vista a mudanças paulatinas na
prática e o apoio para o desenvolvimento de um
projeto coletivo na instituição. A formação teve
como base uma proposta de trabalho com as
crianças, a partir da qual foram delineadas di-
ferentes estratégias de capacitação de todos os
envolvidos: educadores, gerentes e pessoal de
apoio. O processo de formação foi presencial,
aconteceu nas entidades, com toda a equipe
compartilhando momentos comuns e específi-
cos. Considerando que a formação envolvia
mudanças e ressignificações em relação a ensi-
no, aprendizagem, visão de criança e tantas
outras, optou-se por um processo de dois anos,
com extensão para os coordenadores pedagó-
gicos no terceiro ano. A carga horária total de
cada categoria profissional nos dois anos foi de
352 horas para gerentes e coordenadores, 33
horas para pessoal de apoio, 154 a 190 horas
para educadores. Trabalham, em cada institui-
ção, quatro formadores do Avisa, dois na área
de educação, um na área de saúde e um em
gerenciamento.
Todo o trabalho foi documentado por meio
de diagnóstico inicial, avaliações periódicas, re-
latórios de campo, projetos de trabalho, produ-
ções das crianças e dos educadores. Parte do
material foi publicada no livro Por um triz e na
revista Avisa lá, ou editada em vídeos para for-
mação. O projeto inicial gerou também três te-
ses de mestrado. Com a experiência acumula-
da, elaboramos para os educadores um currí-
" Coordenadora do Crecheplan/lnstituto Avisa,o Paulo.
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
culo com as competências nas diferentes áreas,
que ainda é material de uso interno. Nossa equi-
pe passou por grandes aprendizados, de um iní-
cio de trabalho seguindo uma linha mais tradi-
cional, transmissiva, para uma atuação cada vez
mais centrada na resolução de problemas
advindos da prática dos educadores. Buscamos
cada vez mais a coerência entre o modelo de
ensino e aprendizagem preconizado para as cri-
anças e o modelo da formação. A partir dessa
primeira experiência fomos construindo uma
metodologia de formação continuada que tem
sido desenvolvida em diferentes instituições de
Educação Infantil, em programas de ação com-
plementar à escola e, mais recentemente, em
escolas de Ensino Fundamental.
Concepção do programa
de formação continuada
Baseado em um projeto pedagógico
para as crianças
Uma importante decisão foi tomada no iní-
cio do programa de formação quando a equipe
responsável optou por eleger os conteúdos da
capacitação a partir de um projeto pedagógico
para as crianças. Emborao fosse um currícu-
lo pronto e acabado, as linhas mestras estavam
claramente delineadas.
1
Assim, em vez de
centrarmos em temas gerais como desenvolvi-
mento infantil, história da educação, teorias de
aprendizagem etc, conteúdos mais apropria-
dos a uma formação inicial, demos um enfoque
maior à construção de conhecimentos pela cri-
ança e à ação didática do educador no proces-
so. Os conhecimentos de caráter mais geral en-
traram como temas transversais ao longo de
todo o projeto.
A opção por uma visão construtivista dos
processos de desenvolvimento e aprendizagem
foi outro fator decisivo para dar unidade e con-
sistência à proposta. A relação entre o projeto
pedagógico e as mais atualizadas teorias e pes-
quisas em educação é condição fundamental
para que a ação pedagógica seja coerente e efe-
tiva. Delia Lerner, em seu texto sobre capaci-
tação de professores em língua escrita, discor-
re com muita propriedade sobre a dificuldade
de se considerar a educação como ciência, que
tanto quanto outras áreas produz conhecimen-
tos que deveriam entrar no cotidiano escolar.
Parece essencial, então, criar consciência de que
a educação também é objeto da ciência de que
se produzem cotidianamente conhecimentos
que, se entrassem na escola, permitiriam melho-
rar substancialmente a situação educativa. É
necessário, além disso, fazer conhecer, da ma-
neira mais aceitável que seja possível, quaiso
as práticas escolares que deveriam mudar para
adequar-se aos conhecimentos que hoje temos
sobre a aprendizagem e o ensino da leitura e da
escrita, assim como mostrar os efeitos nocivos
dos métodos e procedimentos tradicionais que
se tornamo "tranqüilizadores" para a comu-
nidade e tornar públicas as vantagens das estra-
tégias didáticas que realmente contribuem para
a formação de usuários autônomos da língua
escrita (Lerner, 1993).
o acesso à pesquisa e à produção de conheci-
mento, que poderiam contribuir para uma me-
lhoria substancial da prática educacional, tem
sido difícil nas escolas. Nas instituições de Edu-
cação Infantil, ondeo há consenso sobre a sua
função educacional, a possibilidade da entrada de
novos conhecimentos torna-se ainda mais remo-
ta. Do nosso ponto de vista, resumindo, podemos
dizer que hoje em dia projetos pedagógicos teo-
ricamente bem fundamentadosm como base
as seguintes premissas: construção de conheci-
mentos pela criança; integração entre cuidados e
educação; apropriação dos saberes socialmente
valorizados pela sua comunidade e pela socieda-
de como um todo; contato o mais direto possível
com as reais produções culturais; proximidade
das práticas educacionais com as sociais; impor-
tância da intervenção especializada do educador
no processo de aprendizagem das crianças; con-
1
A proposta que adotamos para o trabalho com as crianças acabou referendada anos mais tarde pelo Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil (RECNEI), MEC.
sonância entre conteúdos mais tradicionais com
questões sociais e culturais, locais e gerais; exer-
cício da cidadania.
Reflexão "na" e "sobre" a ação
Compartilhamos das concepções que en-
tendem que a formação continuada depende
substancialmente das questões que emergem
da atuação direta do educador com as crianças.
Os educadores estão em um real contexto de
aprendizagem onde "se aprende a fazer fazen-
do: errando acertando, tendo problemas a re-
solver, discutindo, construindo hipóteses, ob-
servando, revendo, argumentado, tomando de-
cisões, pesquisando" (Crecheplan, 1998).
o processo de refletir sobre a prática, procu-
rar compreendê-la e analisá-la em busca de aper-
feiçoamento, esteve desde o início do nosso pro-
grama atrelado ao trabalho desenvolvido junto às
crianças. Partindo dos problemas reais enfrenta-
dos pelos educadores, foi possível, por um lado,
valorizar sua experiência e, por outro, garantir
maior participação e uma atitude investigativa
como base para novas aprendizagens. Os conhe-
cimentos teóricos eram trazidos pela formação
como instrumentos valiosos de ressigniflcação da
prática. Considerando essa concepção, o progra-
ma privilegiou as estratégias centradas em troca
de experiências, supervisão da prática, observa-
ção de sala, desenvolvimento de projetos de tra-
balho, análise de situações-problemas, parcerias
com educadores mais experientes.
Saber fazer - desenvolvimento de
competências
Ao longo do processo de formação, foi-se
delineando a importância do desenvolvimento
das diferentes competências que os educadores
deveriam construir para desempenhar bem sua
função. A aprendizagem de conteúdos por si só
o significa uma prática eficiente. É fundamen-
tal aliar os conteúdos ao saber fazer. É a capaci-
dade de resolver problemas que surgem na ação
que pode transformar a prática. Para desempe-
nhar a contento a função de ajudar as crianças a
construírem significados a partir dos conteúdos
disponíveis para as aprendizagens, o educador
precisa conhecer como elas pensam e constró-
em conhecimentos e necessita saber intervir
para que as crianças avancem. Nesse sentido, é
fundamental o conhecimento das didáticas es-
pecíficas, além de um contato sistemático com
produções culturais que possibilitem variedade
de conteúdos. Privilegia-se na formação o pro-
fissional ativo, autor e transformador de sua pró-
pria prática. Com isso possibilita-se maior con-
fiança e o desenvolvimento de sua auto-estima
como profissional competente.
Contexto de formação coletiva
A formação em serviço, mais do que a inicial,
depende de questões institucionais, de modifica-
ções estruturais que possibilitem a construção
coletiva e o desenvolvimento de um projeto com-
partilhado entre todos os profissionais da insti-
tuição. Questões de gerenciamento, estruturação
da rotina, possibilidade de horas para reuniões,
suficiência de materiais necessários à formação
constituem elementos importantes que podem
limitar o trabalho. Além dos educadores, pessoal
de apoio, coordenadores e diretores passaram
juntos pelo processo de formação.
É importante enfatizar que esse processo
possibilita um intercâmbio de idéias entre os di-
ferentes atores, envolvendo tanto o desenvolvi-
mento de procedimentos para aprendizagem
coletiva como as reflexões individuais. Construir
um projeto compartilhado implica tomada de
decisões em conjunto, esforço Colaborativo en-
tre os parceiros e hábito de ouvir e de fazer críti-
cas construtivas. Além do trabalho com a equi-
pe interna feito em cada unidade, os encontros
de formação, as reuniões com as coordenações
e com o pessoal de apoio eram feitas intercreches
(três instituições juntas).
Estratégias formativas
Ao longo do processo de formação, foram
desenvolvidas diferentes estratégias formativas.
Algumas delas estão presentes desde a primeira
capacitação, outras foram sendo reformuladas e
novas estratégias foram incorporadas.
Levantamento das práticas em curso. Por
meio de entrevistas, questionários, filma-
gens, fotos e análise das produções das cri-
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
anças é feito um levantamento das princi-
pais práticas em uso, seguido de análise da
equipe formadora. A partir daí estruturam-
se os projetos de trabalho com os conteú-
dos da formação.
Desenvolvimento de projetos de trabalho.
Esta estratégia incorporada bem recentemen-
te vem comprovando sua eficácia principal-
mente para que a formação mantenha o foco
e possa avaliar melhor as aprendizagens de
todos os envolvidos, crianças e adultos. Tra-
ta-se do desenvolvimento de pequenos pro-
jetos de trabalho queo elaborados por to-
dos os envolvidos no processo: educadores,
coordenadores das entidades, profissionais de
apoio. Esses projetosm duração de quatro
a seis meses. Por exemplo, se os educadores
o desenvolver projetos de linguagem oral
com as crianças, é a partir desses projetos que
o formador estrutura o seu trabalho. O pró-
prio formador também escreve e desenvolve
seu projeto de formação. Assim, em dois anos,
temos projetos de diferentes áreas que possi-
bilitam aprendizagens diversas. É importan-
te ressaltar que, embora a ênfase dos projetos
esteja em uma área, usam-se conhecimentos
diversificados em cada trabalho, assim como
os conteúdos atitudinais e procedimentaiso
partes inerentes de toda a ação.
Análise teórica de situações práticas. Nes-
se modelo de formação, a teoria tem lugar
para servir de confronto, afirmação e eluci-
dação das questões cotidianas. O trabalho
com conteúdos e com textos serve para au-
xiliar problemas didáticos concretos e sub-
sidiar a análise de diferentes pontos de vis-
ta e estratégias. Portanto, a teoria se reveste
de significância e pode possibilitar uma
apropriação original e criativa por parte do
educador.
Supervisão da prática. Análise de registros
dos educadores, observação em sala e aná-
lise conjunta das atividades possibilitam
desenvolver a capacidade de observação e
reflexão sobre as reais situações de ensino e
aprendizagem que o educador propõe para
as crianças. Permite também que o forma-
dor investigue com maior proximidade a
real participação das crianças na constru-
ção de conhecimentos.
Atuação de professor de apoio. Essa moda-
lidade formativa é uma das mais interessan-
tes porque alia a atuação direta de um pro-
fessor experiente com a prática reflexiva
conjunta de três profissionais. Durante oito
encontros, o chamado "professor de apoio"
(formador da nossa equipe) desenvolve um
projeto de trabalho com as crianças de uma
das salas (ao todo, passam por essa modali-
dade quatro grupos de crianças em dois
anos). Esse projeto é elaborado com ajuda
do educador da turma, que desenvolve ati-
vidades complementares quando o educa-
dor de apoioo está. A atuação direta com
as crianças é quinzenal, durante duas ho-
ras. Após esse momento, há uma reunião de
uma hora com o educador da sala e com o
coordenador pedagógico da instituição.
Produção de documentação de caráter
formativo. É incentivada a produção de
materiais a partir da capacitação, tais como:
reflexões, registros, projetos com as crian-
ças, sugestões de atividades, planos anuais,
estudos específicos etc. A sistematização e
socialização permitem que os profissionais
se reconheçam como produtores de conhe-
cimento.
Fruição cultural. Ampliamos e facilitamos
as possibilidades de acesso a bens culturais
durante o processo de capacitação: idas a
museus, teatros, rodas de leitura, sessões de
cinema, música, contato permanente com
livros, jornais e demais publicações e aces-
so a redes de informação e cultura.
Incentivo a mudanças na organização da ins-
tituição. Como decorrência da capacitação,
o necessárias mudanças na rotina das cri-
anças e dos adultos, na organização do espa-
ço físico, na oferta, disposição e uso de mate-
riais pedagógicos, livros, brinquedos, TV,
vídeo, nas relações com os pais e a comuni-
dade. O projeto trabalha transversalmente os
conteúdos procedimentais, atitudinais e
conceituais que possibilitam a reorganização.
Formação de formadores. Projetos de
capacitação em serviço precisam envolver
toda a unidade, a equipe dirigente, os pro-
fissionais de apoio, pois só isto vai possibi-
litar a permanência da formação na organi-
zação institucional. A instrumentalização
do diretor para a criação e implantação do
projeto pedagógico e a capacitação de co-
ordenadores vai permitir a continuidade do
projeto na instituição. Portanto, ao longo do
projeto é dada ênfase na atuação da equipe
dirigente; no terceiro ano há um tempo de-
dicado aos coordenadores pedagógicos.
Aplicação de avaliações. A partir do diagnós-
tico inicial, as avaliações devem garantir o
acompanhamento do trabalho do ponto de
vista da produção das crianças, das compe-
tências desenvolvidas pelos profissionais, do
grau de coerência entre a prática e o projeto
pedagógico, das mudanças nas relações en-
tre escola, pais e comunidade.
Relato de experiências. Saber explicar o que faz,
como e por quê é para educadores um desafio
de sistematização e explicitação de sua práti-
ca. Ao se organizarem para apresentar seus pro-
jetos a profissionais de outras instituições, os
educadores desenvolvem diferentes compe-
tências, entre as quais a de saber comunicar-
se profissionalmente. Fazem parte da forma-
ção seminários, mostras e exposições.
Conclusões
A permanência do programa na nossa insti-
tuição atesta, em certa medida, sua aceitação
tanto por parte dos financiadores como das
entidades que participam da formação. Até o
momento, atuamos diretamente em 60 creches
e 22 centros de juventude. Cerca de 85% das
entidades participantes mudam substancial-
mente sua prática com as crianças, apresentan-
do uma qualidade efetiva no trabalho. A apren-
dizagem das crianças passa a ser o foco da ação
de toda a instituição. Os educadoresm sua
auto-estima fortalecida, tornam-se mais com-
petentes; muitos voltam a estudar, seguindo
carreira na educação. A motivação para o tra-
balho se desenvolve em um crescendo que pros-
segue mesmo após o término do projeto. Con-
tinuamos mantendo contato com a maioria,
incorporando os profissionais em outros pro-
jetos, acompanhando o crescimento constante
das equipes.
Como todo trabalho que envolve educação,
em algumas entidades (15%)o temos resulta-
doso brilhantes. Talvez o limite mais cerceador
ao bom resultado esteja vinculado à dificuldade
ou mesmo à impossibilidade de o educador re-
ver sua prática, o que se constituiria em falta de
motivação interna, de um real desejo de trans-
formação. Algumas representações sobre o pa-
pel da educação, a concepção de criança, o pa-
pel do professor podem sero fortes e arraiga-
das que inviabilizam a transformação. Em outras
situações, a equipe dirigenteo assume efeti-
vamente os compromissos, tendo uma atuação
frouxa que acaba desmotivado a equipe. Em
ambos os casos, nossos formadoresm apresen-
tado dificuldade para reverter a situação.
Sentimos também falta de maior apoio de pes-
quisas nacionais sobre a formação continuada, já
queo poucos os estudos que se dedicam à cons-
trução de conhecimentos pelos educadores. Esse
tipo de formação em que a tematização da prática
é o eixo principal, carece ainda de mais estudos e
de pesquisas, o que, conseqüentemente, traz limi-
tações. Temos lançadoo da literatura existente
em Portugal, França, Argentina, entre outros paí-
ses, que muito tem subsidiado nossa atuação, mas,
evidentemente, teríamos muito benefício com es-
tudos voltados para a nossa realidade.
Bibliografia
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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil. Brasília, DF: SEF/MEC, 1998.
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LERNER, D. Capacitação em serviço e mudança na pro-
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mação de professores.o Paulo: Casa do Psicólogo,
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ZABALA, P. A prática educativa: como ensinar. Porto Ale-
gre: Artmed, 1998.
ZEICHENER, K. A formação reflexiva: idéias e práticas. Lis-
boa: Educa, 1993.
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Formação dos profissionais da Educação
Infantil: a pessoa no centro da ação
Ana Paula Soares da Silva
Universidade deo Paulo/Ribeirão Preto
Resumo
Em decorrência da nova identidade que a Edu-
cação Infantil vem procurando construir, especial-
mente após alguns avanços legais, uma série de
exigências e desafios se impõem no que se refere à
formação, colocando os profissionais em uma po-
sição bastante diferenciada daquela ocupada até
alguns anos atrás, ou ainda dominante em várias
instituições. No país, existem experiências diver-
sificadas, apontando para uma rica pluralidade de
concepções e projetos de formação. A experiência
do Centro de Investigações sobre Desenvolvimen-
to Humano e Educação Infantil da Universidade de
o Paulo (Cindeci/USP) em formação de educa-
dores tem-nos mostrado que a qualidade na ela-
boração e execução de um programa ou política de
formação se estabelece, principalmente, quando se
tem como princípio a formação de uma pessoa ci-
dadã eo apenas a de um profissional. É a con-
cepção de pessoa, intrinsecamente articulada a
nossa concepção de desenvolvimento, que vem
norteando nosso modo de pensar e de agir sobre
formação, entendendo-a como processo que:
1. busque fazer com que o educador construa
uma visão ética e política de sua prática;
2. possibilite que o educador tome a sua prática
como objeto de reflexão, tornando-a peça fun-
damental na construção do seu conhecimen-
to, do conhecimento das crianças e da propos-
ta pedagógica;
3. produza condições para que o educador ori-
ente suas ações pelo princípio da promoção do
desenvolvimento e do respeito à diversidade
social e cultural;
4. possibilite espaços de socialização, de troca e
de encontro;
5. forneça instrumental e conhecimentos que
permitam ao educador criar e produzir, ligan-
do-o ao mundo;
6. crie condições para a vivência da curiosida-
de criativa e para sua inserção na cultura ci-
entífica;
7. insira o educador em um caldo cultural que
favoreça sua apropriação da cultura mundial e
do seu grupo social;
8. dê oportunidades para a construção de uma
identidade e de um autoconceito positivos,
promovendo o seu desenvolvimento como pes-
soa e como profissional engajado socialmente.
Profissional de Educação
Infantil: exigências atuais
A formação do profissional em Educação In-
fantil tem se tornado um dos temas atuais mais
discutidos dentre aqueles relacionados ao cuida-
do e à educação de crianças pequenas em ambi-
entes coletivos. De acordo com Fúlvia Rosemberg
(1999), na Educação Infantil, a equalização de
oportunidades sociais, princípio que a nosso ver
é fundamental para nortear as ações públicas,
torna-se possível apenas se contemplar a equa-
lização do padrão de qualidade de suas institui-
ções. É consenso entre os pesquisadores na área,
seja em nível nacional ou internacional, que a
qualidade está intrinsecamente relacionada à for-
mação profissional. A formação bem como aspec-
tos ligados à regulamentação, à identidade pro-
fissional, à estrutura e aos conteúdos necessários
para o exercício do trabalho assumem novos con-
tornos na última década, ganhando destaque em
todos os fóruns e espaços de defesa de uma Edu-
cação Infantil de qualidade.
A formação de uma identidade profissional
está associada à formação de uma identidade
institucional (Silva, 1999). Comoo poderia
deixar de ser, o novo papel da Educação Infantil,
sistematizado nas normativas atuais, traz consi-
goo apenas uma nova visão de criança, mas
também uma nova concepção de profissional. As
expectativas atuais em relação a esse profissio-
naloo poucas. Zilma M. R. Oliveira, por
exemplo, argumenta que a sua formação deve
incluir o conhecimento técnico e o desenvolvi-
mento de habilidades para realizar atividades
variadas, particularmente expressivas, e para
interagir com crianças pequenas (1994: 65). O
documento Subsídios para Credenciamento e
Funcionamento de Instituições de Educação In-
fantil afirma que "as crianças precisam de edu-
cadores qualificados, articulados, capazes de
explicitar a importância, o como e o porquê de
sua prática [...]" (SEF/MEC/Coedi, 1998: (1)18).
Por sua vez, Maria Lúcia Machado (1999), a par-
tir de uma postura interacionista, propõe que o
educador seja um mediador eficiente das
interações entre as crianças, capaz de organizar
ambientes que promovam essas interações, além
de trazer sempre um elemento de conhecimen-
to novo. A importância do educador é enfatizada
também por Moysés Kuhlmann Jr., alertando-
nos que, ao refletir sobre a formulação de pro-
postas pedagógicas que tomem como ponto de
partida a criança, "não é a criança que precisaria
dominar conteúdos disciplinares, mas as pessoas
que a educam" (1999: 65).
Além das exigências advindas das novidades
introduzidas na área, os professores de Educação
Infantil sofrem também aquelas exigências oriun-
das das transformações no mundo do trabalho. O discurso prevalente aponta que as competên-
cias do novo trabalhador passam pela autonomia,
criatividade e produtividade, além da capacida-
de de adequar-se às mais variadas situações. Nas
palavras de Pedro Demo, "o que está em jogo é
um tipo de formação que garanta a competência
humana em questão. Pesquisa e elaboração pró-
pria constituem as pilastras desse trajeto e fun-
damentam também a capacidade de re-
capacitação permanente, que deveria ser primo-
rosa em todo educador. O fulcro da competência
humana moderna está na capacidade de refazer
todo dia. Estudar sempre é condição essencial
profissional" (1996: 143). Para Maria Victoria Pe-
ralta (1996), especialista chilena, as novas exigên-
cias que se apresentam na Educação Infantil, na
América Latina como um todo, requerem um edu-
cador capaz de criar modalidades curriculares e
promover o auto-estudo e a avaliação permanen-
te dos avanços e das limitações de sua prática.
A importância da formação profissional é
reforçada quando se considera que, a partir de
todas essas transformações legais, as institui-
ções deverão elaborar e efetuar sua própria pro-
posta pedagógica. Para a efetivação de uma pro-
posta que esteja realmente afinada com a nova
função social da creche e da pré-escola e com
as diretrizes estabelecidas na Política Nacional
de Educação Infantil, um profissional qualifi-
cado é claramente solicitado. E essa solicitação
se dáo apenas no que se refere ao momento
de elaboração da proposta mas, principalmen-
te, em sua gestão diária, posta em prática no
dia-a-dia da instituição (MEC, 1996).
Como se observa, trata-se de exigências que,
dependendo do modo como as encaramos, tor-
nam-se bastante pesadas. Mais do que isso, co-
locam os profissionais em uma posição bastante
diferenciada daquela ocupada até alguns anos
atrás, ou ainda dominante em várias institui-
ções. Essas exigências constituem um reflexo de
diversas conquistas de pesquisadores e militan-
tes da área e, ao mesmo tempo, traduzem a ne-
cessidade de um profissional bastante diferen-
te daquele apontado nos levantamentos de per-
fil profissional de que dispomos.
Como atender a essas
exigências?
As exigências acimao se restringem ape-
nas ao aspecto da formação inicial, mas indicam
fundamentalmente posturas que deveriam ori-
entar a formação continuada. No primeiro caso,
a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) tem provocado
modificações profundas, obrigando municípios
a se adaptarem às exigências legais que, embora
em ritmo lento,m possibilitando a adequação
da formação inicial dos profissionais.
Quanto à formação continuada, as experi-
ências no paísm sido diversificadas, apontan-
do para uma rica pluralidade de concepções e
projetos de formação. Algumaso explicitadas
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
predominantemente em termos de aquisição de
conteúdo, tais como conhecimentos sobre edu-
cação e desenvolvimento infantil. Outras,o
necessariamente exclusivas, priorizam treina-
mentos para a atividade prática e para o desen-
volvimento de habilidades específicas como
instrumentos da ação diária do educador.
Essas e outras concepções, e até mesmo a
ausência total de uma política deliberada de
formação,m sido constatadas há alguns anos
pelos membros do Cindeci (FFCLRP/USP), em
seu trabalho junto às cidades da região de Ri-
beirão Preto (SP) e também a outros municípios
e estados do país, seja na formação de educa-
dores, pessoal de apoio, coordenadores e equi-
pe técnica ou mesmo na formação de estudan-
tes para atuarem na área.
Esses longos anos de experiência nos foram
possibilitando verificar que o processo de for-
mação vai muito além do estabelecimento de
um rol de reuniões ou estratégias cujo objetivo
maior é a socialização do conhecimento atra-
s de informações e treinamento.o basta
uma política de formação. É necessária, tam-
bém, uma formação com qualidade. Acredita-
mos que a qualidade na elaboração e na execu-
ção dessa política se estabelece, principalmen-
te, quando nos preocupamos com a formação
de uma pessoa cidadã, eo apenas com a de
um profissional. É a concepção de pessoa, in-
trinsecamente articulada a nossa concepção de
desenvolvimento, que vem norteando nosso
modo de pensar e de agir sobre formação.
Temos assumido que o desenvolvimento
humano só se dá através da apropriação da cul-
tura; a pessoa torna-se humana, portanto, a par-
tir de sua imersão em um mundo simbólico e
de um processo de contínua significação e
ressignificação do mundo, dos seus parceiros de
interação e de si mesma. A natureza humana é
essencialmente histórica e cultural, de onde de-
corre que tanto os pensamentos como as atitu-
des e os sentimentos de uma pessoam uma
origem social. Assim, as questões relacionadas
ao humano, à sua constituição, ao seu desen-
volvimento e à sua profissionalização devem ser
lidas em relação às vivências do indivíduo e ao
seu momento de vida, dentro da realidade con-
creta da qual faz parte. Portanto, devem levar
em consideração o contexto ideológico, histó-
rico e cultural específico em que ele está inse-
rido (Valsiner, 1987).
o existe um profissional independente da
pessoa que exerce esse trabalho. A identidade
profissional está, assim, associada à identida-
de pessoal. Dessa forma, crenças, valores, pro-
jetos de vidao elementos importantes quan-
do tratamos de formação, uma vez que se ex-
primem na qualidade do trabalho desses pro-
fissionais. No capítulo "A formação nossa de
cada dia", do livro Fazeres na Educação Infantil
(2000: 27), Rosa Virgínia Pantoni e colaborado-
res estabelecem um conjunto de concepções no
trabalho de formação, destacando-se a forma-
ção como processo que: 1) busque fazer com
que o educador construa uma visão ética e po-
lítica de sua prática; 2) possibilite que o educa-
dor tome sua prática como objeto de reflexão,
tornando-o peça fundamental na construção do
seu conhecimento, do conhecimento das crian-
ças e da proposta pedagógica; 3) produza con-
dições para que o educador oriente suas ações
pelo princípio da promoção do desenvolvimen-
to e do respeito à diversidade social e cultural.
As novas formas de conceber os relacionamen-
tos como mais democráticos, horizontalizados e
abertos, formas estas enraizadas nas transforma-
ções sociais e numa concepção de pessoa humana
como sujeito de direitos,o permitem estratégias
de formaçãoo condizentes com essas novas for-
mas. A formação deve caminhar, assim, para pro-
mover o professor como sujeito-cidadão. Maria
Clotilde Rossetti-Ferreira, em recente artigo para
o jornal USP Ribeirão, ao defender o papel da es-
cola pública com qualidade, propõe que ao pro-
fessor dessa escola sejam possibilitados: 1) um es-
paço de socialização, de troca e de encontro; 2) um
instrumental e conhecimentos que lhe permitam
criar e produzir, ligando-se ao mundo; 3) condi-
ções para a vivência da curiosidade criativa e para
sua inserção na cultura científica; 4) um caldo cul-
tural que favoreça sua apropriação da cultura mun-
dial e do seu grupo social; 5) oportunidades para a
construção de uma identidade e auto-conceito po-
sitivos, promovendo o seu desenvolvimento como
pessoa e como profissional engajado socialmente.
Como se observa, tanto no texto de Maria Clo-
tilde Rossetti-Ferreira como no de Rosa Virgínia
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Bibliografia
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Fundamental. Subsídios para credenciamento e funcio-
namento de instituições de Educação Infantil. Brasília,
DF: SEF/MEC/Coedi. 1998. v. I e II.
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processo de exclusão. Cadernos de Pesquisa, n. 100,
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(Mestrado). FEMG/UFMG, 1999.
VALSINER, Jaan. Culture and the development of children's
action. New York: John Wiley, 1987.
Educação Infantil:
algumas reflexões sobre a formação
continuada em serviço*
Aricélia Ribeiro do Nascimento
4
Pensando por onde iniciaria este texto,
flagrei-me consultando o dicionário, onde li:
"infantil: ingênuo, tolo". Nossa, que susto! Será
que a trilha da formação continuada em servi-
ço do professor de Educação Infantil tem sido
permeada pela ingenuidade, pela tolice?
Ufa, que bom!!! Tudoo passou de um sus-
to do século passado. É possível identificar si-
nais de construção de uma nova era na forma-
ção continuada. Dificuldades muitas mas, so-
mos fortes, conseguiremos chegar à vitória. E
quem falou que os vitoriosos vivem só alegrias,
o é mesmo?
o patinho feio da formação em serviço está
trocando as penugens por belas penas! E sabem
por quê? Porque as professoras estão lutando
para construir espaços de fazeres educativos. Um
lugar ideal para um bom ninho, um cantinho
protegidoo do mundo, mas no qual a exclu-
oo tenha vez.
Para a elaboração deste texto muito me valeu a experiência vivida e os cadernos produzidos pelo Programa de Formação Continuada - PCN
em Ação. da Secretaria de Educação Fundamental do MEC.
* Técnica da Coedi/SEF/MEC, formadora nacional do Programa PCN em Ação. da SEF/MEC, e mestranda da Universidade de Brasília.
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
como se soubessem que precisam mudar o rumo
dessa prosa na rodinha dos educadores de Edu-
cação Infantil. Cobram-se, sabem que precisam
mudar. Dessa inquietude origina-se um segun-
do aspecto da formação continuada: a necessi-
dade de sensibizar os professores para que pos-
sam, também, a partir do estudo de suas práti-
cas no dia-a-dia, promover mudanças mais sig-
nificativas.
Há que perguntar: como trabalhar na pers-
pectiva da sensibilização? Quem sabe - se os pro-
fessores tivessem espaço para refletir uns com
os outros, diante de cada atividade trabalhada,
diante da reação das crianças, da observação di-
ária do movimento do currículo vivido na insti-
tuição, do olhar duvidoso sobre seus fazeres -
analisando, questionando os erros e acertos.
Nessa perspectiva, os professores de Educa-
ção Infantil precisariam firmar, ainda mais, um
namoro com a reflexão dos seus fazeres educa-
tivos. Assim, terão maiores possibilidades de
avançar de um lugar individual de "pensar edu-
cação" para uma compreensão mais ampla das
interações das relações de conteúdo, de contex-
to e de aprendizagem.
Entendemos que a reflexão requer imersão
consciente do homem no mundo da sua experi-
ência, mundo este impregnado de conotações,
valores, intercâmbios simbólicos, correspondên-
cias afetivas, interesses sociais e cenários políti-
cos. Mas faz-se necessário provocar nos profes-
sores o desejo pelo desenvolvimento da obser-
vação, pelo desenvolvimento da pesquisa de suas
práticas, pelo estudo de suas situações didáticas.
Mesmo percebendo os professores de Edu-
cação Infantil em uma busca maior pelo conhe-
cimento na perspectiva de constituírem uma
postura investigativa e reflexiva diante do desa-
fio deo simplesmente estar professor, mas de
ser professor e de admitir que carecem formar-
se diariamente, percebemos que falta a eles uma
maior compreensão na direção da complexida-
de e da provisoriedade do conhecimento para
assumirem a manivela da engenhosa máquina
do saber como um espaço no qual também po-
dem e devem construir saberes.
A formação continuada do professor de Edu-
cação Infantil precisa de maior reflexão prático-te-
órica sobre a própria prática mediante a análise, a
compreensão, a interpretação e a intervenção so-
bre a realidade, como cita Imbernón (2000: 48). E,
além disso, a formação continuada deve ocupar o
seu espaço na participação efetiva da construção
da qualidade da educação, para o que faz-se ne-
cessário conceber, como afirma Alarcão (2001:53),
que a desburocratização e a humanização das so-
ciedades emergentes pressupõem novos conheci-
mentos e novas formas de conhecer, investigar,
aprender, ensinar e desaprender para empreender,
construir e desenvolver.
Uma parcela considerável desses novos conhe-
cimentos tranforma-se em desafios diários para os
professores e os leva na direção da construção de
planejamentos mais sensíveis às aprendizagens
dos meninos e das meninas com quem trabalham.
No entanto, as propostas de formação continuada
consideram ainda muito pouco o processo de
teorização preexistente em cada professor.
Para que a formação continuada sensibilize
os professores na lógica do olhar sobre suas prá-
ticas, ela deve reforçar a construção de atitudes
reflexivas também por meio da ênfase no desen-
volvimento da leitura e da escrita desses profes-
sores. Suponho que muito nos auxiliaria e seria
um passo significativo para enfrentarmos com
êxito mais esse desafio, apresentado como o ter-
ceiro aspecto para o repensar da formação con-
tinuada em serviço, a concepção de Nóvoa (1997:
83), ao referir-se ao professor como um sujeito
que se permite ser surpreendido pelos fazeres,
saberes e atitudes, que pensa sobre a complexi-
dade e, simultaneamente, procura compreender
a razão por que foi surpreendido. Maso satis-
feito, parte em busca de formular o problema
suscitado pela situação na perspectiva de inves-
tigar sobre o modo de pensar do sujeito, seja ele
criança adolescente ou adulto.
Estamos diante do desafio de promover uma
formação continuada na qual os professores de
Educação Infantil desenhem, pintem, bordem,
escrevam um novo quadro de seus fazeres edu-
cativos, aprendendo a "brigar" contra o como-
dismo da cópia, da memorização, dos exercícios
mimeografados, dos cadernos de planejamento
descontextualizados.
A formação continuada propiciando reflexões,
mesmo angustiantes, irá cutucar os pensamen-
tos dos professores, deixando-os a matutar, e eles
buscarão profissionalmente um novo lugar da
praxis, da leitura e da escrita. Mesmo acanhada-
mente, perceberão o sentido da ação coletiva, o
sentimento e a importância de pertencer a um
grupo, a magia do registrar e o significado da par-
ticipação efetiva e consciente no processo de for-
mação de sua identidade profissional, forjada e
lapidada no cotidiano educativo e na literatura.
Revisitando fragmentos de minha história
profissional como professora formadora em di-
versos grupos de professores e de minha prática
pedagógica como docente de crianças e adoles-
centes, percebo, na criação e na negociação de-
mocrática de ações que proporcionem a organi-
zação intencional e sistematizada da formação
em uma perspectiva prático-reflexiva, um tercei-
ro aspecto que possibilitaria o avanço da forma-
ção continuada. Dessa maneira os professores
seriam motivados a ver o processo de aprendi-
zagem como trabalho prático de modificação, de
mudança, de reconstrução continuada, sem fim
(Schon, 2000: 227). Para tanto, reafirmo que o
investimento no desenvolvimento da competên-
cia leitora e escritora do professor seria um pro-
cedimento bem promissor.
Nessa intencionalidade, o agir e o pensar pre-
cisam estar interligados, permeados pelo apro-
fundamento teórico, articulados com a prática
do "chão" da sala de aula, um dos ambientes
organizacionais de formação, a meu ver, privile-
giado para o exercício diário da reflexão na ação,
partindo do pressuposto de que deve haver uma
significativa e substancial relação entre a forma-
ção do professor, os seus fazeres pedagógicos e
os resultados educativos efetivamente observa-
dos junto às crianças.
É importante promover uma formação con-
tinuada, de acordo com Imbernón (2000: 49),
que valorize a descoberta, a organização dos
conhecimentos, a fundamentação teórica, a re-
visão e a construção de teorias, com a intencio-
nalidade de remover o sentido pedagógico co-
mum, recompor o equilíbrio entre os esquemas
práticos predominantes e os esquemas teóricos
que os sustentam, imprimimindo uma nova
matriz na qual o olhar e o registro reflexivo so-
bre a prática ocupem lugar central, com vista à
tomada de decisões pedagógicas mais conscien-
tes, criativas e menos espontaneístas.
Faz-se necessário, para tanto, questionar as
propostas de formação nas quais os professores
ficam sujeitos a programações assistemáticas,
pontuais e externas. Neste alinhavo apresenta-
se a necessidade de constituir o professor como
um sujeito reflexivo. Diante do exposto, acredi-
to ser este um quarto aspecto relevante para uma
formação continuada sensível ao sujeito-profes-
sor que se organiza, se forma, se constrói e se
constitui, também, no espaço institucional, com
toda a complexidade multifacetada do humano.
Preocupações vividas por mim freqüente-
mente levaram-me a pensar: como se caracteri-
za e se constitui um sujeito reflexivo? Na tentati-
va de responder a esta questão, elaborei outros
questionamentos:
Seria um ator que se inquieta em buscar
compreender as questões que compõem o
cenário formativo, o seu cotidiano?
A constituição de um professor reflexivo no
cotidiano da formação continuada teria de
comportar as dúvidas e as reflexões de sua
prática?
Um professor reflexivo observa a organiza-
ção de seu trabalho pedagógico?
As dificuldades por parte dos professores em
estabelecerem articulação entre a teoria e a
prática deveriam compor o seu cenário de
investigação?
o professor deve se preocupar em criar es-
tratégias problematizadoras?
É preciso refletir sobre procedimentos nos
quais os professores registrem o seu próprio
processo e percurso formativo?
o professor precisa produzir projeto peda-
gógico próprio?
Visitando a literatura com a intenção de am-
pliar a compreensão, mesmo que ainda superfi-
cial, de algumas das questões apresentadas no
parágrafo anterior, lendo Imbernón (2000:50) foi
possível perceber que um sujeito se constitui
como profissional reflexivo se for orientado para
o desenvolvimento de capacidades de proces-
samento da informação, análise e reflexão críti-
ca, diagnóstico, decisão racional, avaliação de
processos e reformulação de projetos. Também
seria constituído na multiplicidade de suas fun-
ções e inquietudes, como define Freire (apud
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Alarcão, 2001: 17), vivenciando um processo de
formação permeado pela dor, pelo prazer, por
sensações de vitórias, derrotas, dúvidas, alegrias
e também disciplina.
Nesse sentido, a constituição do professor
reflexivo passaria pela compreensão de que ele
é "um profissional da ação cuja atividade impli-
ca um conjunto de atos que envolvem seres hu-
manos. Como tal, a racionalidade que impregna
a sua ação é uma racionalidade dialógica, inte-
rativa e reflexiva" (Alarcão, 2001: 23).
Parece-me que neste viés precisaríamos cons-
truir, coletivamente, durante a formação continua-
da, procedimentos de registros individuais e cole-
tivos. Estes teriam a função de acompanhar e ava-
liar o processo educativo dos professores e em es-
pecial seriam referenciais dinâmicos para a
autoformação. A meu ver, estamos diante do quin-
to aspecto para o qual as propostas de formação
continuada deveriam dedicar mais esforços.
o desenvolvimento do registro reflexivo
como um procedimento formativo está direta-
mente relacionado à organização do trabalho
pedagógico, que deve possibilitar o exercício do
"pensar" para que o "vir a ser" se torne realidade
no "hoje" da prática docente. Tal atitudeo é
tarefa fácil. Ao contrário, exige muitos rompi-
mentos, a começar por desinstalar a certeza de
que a formação se encerra ao término de um
curso. Compreender que o conhecimentoo
está pronto requer criar lugar para a proviso-
riedade, assumir atitudes de investigação como
necessárias ao profissional professor.
Se considerássemos esses aspectos na orga-
nização de propostas de formação continuada,
estaríamos organizando um novo espaço no qual
os professoreso apenas estivessem mas que
pudessem vivê-lo de forma a movimentar-se re-
petidamente entre a reflexão-na-ação e a refle-
xão-sobre-a-ação (Schon, 2000: 227).
Dessa forma, os outros aspectos até aqui
apresentados neste texto se articulam a este
quinto aspecto. Concebo a organização do tra-
balho pedagógico como uma estrutura na qual
cotidianamente se exercite a reflexão dos faze-
res educativos e se concretize essa reflexão no
registro escrito, supondo que este viabilizaria a
análise do percurso formativo, ajudaria na iden-
tificação de problemas, reafirmaria objetivos,
encaminharia soluções, auxiliaria nas dificulda-
des de problemas individuais e coletivos e en-
volveria os sujeitos em um processo vivo de pro-
dução e de reconstrução de conhecimento.
Assumir uma prática reflexiva na formação
continuada, a meu ver, indica a necessidade de
reestruturação da organização do trabalho pe-
dagógico, organização que carece, como cita
Nóvoa (1997:23-31), de saberes e de saber-fazer
pedagógico. Precisa de saberes teóricos e tam-
m de colocar em prática esses saberes para
construir um "saber fazer" teorizado, o que, em
linhas gerais, significaria um conjunto de sabe-
res relacionados com a organização: do trabalho
individual e em grupo, da organização espaço-
temporal, do conhecimento, dos procedimentos,
dos instrumentos, das tecnologias, das metodo-
logias, da construção de novas estratégias, do
incentivo às interações e às relações.
Considero que, para o desenvolvimento do
registro reflexivo, precisamos abrir espaço para
a formação de um professor reflexivo, o qual se
utiliza do próprio registro de maneira reflexiva,
para pensar e ampliar o seu processo educativo.
Nesse sentido, percebe-se nas propostas de for-
mação continuada pouco espaço para o pensar,
pois este está relacionado ao perguntar, ao in-
quietar, ao buscar, à incerteza.o há conheci-
mento queo esteja, de alguma maneira, amea-
çado pelo erro. O conhecimento, sob a forma de
palavra, de idéia, de teoria, é fruto de uma re-
construção, e reconstrução comporta a inter-
pretação, o que introduz o risco do erro na sub-
jetividade do conhecedor, de sua visão do mun-
do e de seus princípios de conhecimento.
É necessário refletir que, em tempos recentes,
ora se concebia a prática como uma aplicação da
teoria, como uma conseqüência, ora, ao contrá-
rio, como inspiradora da teoria. Porém, como afir-
ma Foucault (2000: 70), "nenhuma teoria pode se
desenvolver sem encontrar uma espécie de muro
e é preciso a prática para atravessar o muro." Acres-
cento: para tanto é preciso que a formação crie con-
dições para transpor esse muro.
Ainda na mesma obra, o autor nos faz refletir
sobre a relação entre a teoria e uma caixa de fer-
ramentas: se estao servir,o funcionar, de
nada serve a teoria para sua utilização, assim
como, seo há pessoas para fazer uso da teoria,
estao tem nenhuma validade. Continuando,
Proust (apud Foucault, 2000:71) acrescenta: "tra-
tem meus livros como óculos dirigidos para fora
e, se eleso lhes servirem, consigam outros, en-
contrem vocês mesmos seu instrumento, que é
forçosamente um instrumento de combate."
Nesse olhar, o registro reflexivo, se utilizado
para o acompanhamento e a avaliação do pro-
cesso formativo dos professores em espaços de
formação continuada em serviço, pode vir a ser
uma possibilidade de promover um processo
dinâmico no qual, de fato, os professores pos-
sam perceber o sentido da prática reflexiva nos
espaços formativos.
Formar professores reflexivos decertoo é
tarefa rápida, de curto prazo, e provavelmente
as dificuldades de produção de registro reflexi-
vo dos professores existirão, mas insisto que seja
por falta de oportunidade de eles vivenciarem,
nos espaços de formação continuada, formas de
organização das propostas metodológicas que
desenvolvam atitudes para a produção de regis-
tros reflexivos.
Esse teria de ser um exercício contínuo, dia
após dia, encontro após encontro; teria de ser
concebido como uma construção;o pode-
ria desmerecer o momento de formação de
cada professor; teria de promover o avanço
para que o professor saísse da preocupação
centrada exclusivamente na simples anotação
da fala do outro para a descoberta das suas
competências como produtor de escrita, para
que percebesse as funções formativas que o
registro reflexivo ocupa no processo de forma-
ção profissional.
Propor a experiência do registro reflexivo
como uma prática na formação continuada em
serviço é permitir o ensinar e o aprender simul-
taneamente, é estabelecer uma curiosa relação
de alguém consigo mesmo. Larrosa (2000: 140)
afirma: "a experiência da leitura, quando está
envolvida com o ensinar e o aprender, implica a
relação de cada um consigo mesmo e com os
outros". Para produzir registro reflexivo o profes-
sor teria de vivenciar um processo semelhante
de envolvimento com a beleza da aprendizagem
da leitura e da escrita na formação continuada.
o exercício cotidiano do registro reflexivo
precisa ser construído como procedimento
formativo pelos professores, na perspectiva de
retomadas reflexivas com vista ao avanço de sua
formação. É caminho para o exercício do pen-
sar, da busca de soluções, de auto-avaliação, de
elaboração de perguntas.
o desafio em aceitar a formação continua-
da em serviço como uma proposta de aprendi-
zagens reflexivas que considere os aspectos
abordados neste texto parece-me que exige
abrir espaço político-pedagógico, assumindo
que é um trabalho que leva tempo. Tempo para
viver os choques iniciais de confusão e misté-
rio, tempo para desaprender expectativas ini-
ciais e começar a maestria de uma prática do
ensino prático, tempo para viver os ciclos de
aprendizagem, tempo para aprender a ver o
processo de aprendizagem como um processo
formativo e autoformativo que requer mudan-
ça e reconstrução continuada.
Na tentativa de bordar um pontoo final,
para esse texto, mas de continuidade, diria que
a qualidade da construção de propostas de for-
mação continuada para o profissional da Edu-
cação Infantil, que o provoquem a olhar com
os olhos da diversidade, da reflexão, do belo,
por ser multifacetada a realidade, será possí-
vel se garantirmos espaços para o pensar re-
flexivo, seo formatarmos os espaços de for-
mação com um único referencial de criação,
pois, assim, estaremos mutilando seres por
natureza pensantes.
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SIMPÓSIO 12
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A política de formação continuada
e em serviço da rede municipal de
ensino de Belo Horizonte
Rosaura de Magalhães Pereira
Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG
Em 1995, foi implantada em Belo Horizon-
te a Escola Plural, programa de governo para a
educação na rede municipal de ensino.
o projeto político-pedagógico Escola Plural
foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educa-
ção como experiência de inovação pedagógica,
tendo como princípios:
1. Concepção da educação como direito de
todos visando à universalização da escola
básica no Brasil (inclusão).
2. Processos de escolarização, entendidos
como um tempo/espaço de formação das
crianças e dos jovens como sujeitos sociais.
3. Concepção de educação escolar articula-
da com um projeto de cidadania em que o
educando é considerado como sujeito so-
cial em formação, que estabelece uma re-
lação dinâmica com o conhecimento, num
processo de aprendizagem permanente,
permitindo seu desenvolvimento integral.
4. Gestão democrática da escola, articulada
com os processos de construção dos proje-
tos pedagógicos em sintonia e com a parti-
cipação da comunidade escolar, de onde a
busca por uma nova formação do profissio-
nal da educação como um sujeito social que
reflete sobre a prática pedagógica, que age e
interage com o seu aluno e a família, que for-
ma e se forma na dinâmica dessas relações.
A proposta se constitui a partir dos seguin-
tes eixos norteadores:
1º Uma intervenção coletiva mais radical.
2º Sensibilidade com a totalidade da forma-
ção humana.
3º A escola como tempo de vivência cul-
tural.
4º A escola como experiência de produção
coletiva.
5º As virtualidades educativas da materiali-
dade da escola.
6º A vivência de cada idade de formação sem
interrupção.
7º Socialização adequada a cada idade-ci-
clo de formação.
8º Nova identidade da escola, nova identi-
dade do seu profissional.
Para isso, propõe:
Uma reorganização dos tempos escolares a
partir dos ciclos de idade de formação e uma
reorganização do trabalho dos professores
de modo a permitir o trabalho coletivo e a
flexibilização da organização dos alunos.
Uma nova relação da escola com o conhe-
cimento, que valorize a formação global dos
educandos, rompendo com um modelo
cognitivista e transmissivo, propondo uma
nova lógica processual. Para isso, aponta a
valorização da escola como espaço de socia-
lização e de vivência de experiências corpo-
rais e manuais, considerando-as como in-
trínsecas ao processo de formação huma-
na. Sugere, ainda, os projetos de trabalho
como uma concepção metodológica que
permite o rompimento com a lógica disci-
plinar e fragmentada do modelo hegemôni-
co e cristalizado da cultura escolar vigente.
Uma nova lógica de avaliação do aluno que
rompe com o atual modelo classificatório e
excludente, visando à construção
de um novo modelo processual,
qualitativo que propicie a identi-
ficação de avanços e problemas,
permitindo o redimensionamento
da ação educativa de forma a ga-
rantir a todos a aprendizagem e
um rico processo formativo.
o Centro de Aperfeiçoamento dos
Profissionais de Educação (Cape), cri-
ado em 1991, foi parceiro da construção dessa
proposta, coletando e analisando experiências
significativas presentes nas escolas e organizan-
do grupos de professores que participaram efe-
tivamente de sua elaboração.
Nesses dez anos, e em especial nos últi-
mos seis anos, o Cape vem passando por cons-
tantes reestruturações no sentido de enfren-
tar os desafios de construção de uma nova
escola organizada conforme os princípios aci-
ma relacionados.
Uma característica interessante do Cape é a
sua composição: somos atualmente 33 profes-
sores da rede municipal selecionados para tra-
balhar nas equipes por um período de quatro
anos, depois do qual se volta para a escola.
Atualmente, estamos organizados em cin-
co grupos de trabalho (GTs) e em quatro co-
missões.
Os GTs são: Educação Infantil, Ensino Fun-
damental, Educação de Jovens e Adultos, Ensi-
no Médio e Educação Especial.
As comissões são: Registro e Publicações,
Rede de Trocas, Curso de Aperfeiçoamento da
Prática Pedagógica (CAPP) e Formação Inter-
na; as comissõeso compostas por profes-
sores dos GTs.
Temos, provisoriamente, no Cape, uma ou-
tra equipe composta por 24 professores, selecio-
nados especificamente para trabalhar no Cur-
so de Formação de Educadores Infantis que vai
habilitar, na modalidade Normal, todos os pro-
fessores leigos que trabalham nas instituições
conveniadas com a Prefeitura de Belo Horizon-
te. Esse município instituiu em 1998 seu siste-
ma municipal de ensino, criando o Conselho
Municipal de Educação.
o sistema municipal de ensino está assim
composto:
179 Escolas
municipais
620 instituições
de Educação
Infantil
13 só de Educação Infantil
1 só de Educação de Jovens e Adultos
3 só de Educação
162 de Ensino
Fundamental
Especial
27 com turmas de Ensino Médio
65 com turmas de Educação
de Jovens e Adultos
28 com turmas de Educação Infantil
186 filantrópicas ou comunitárias conveniadas
74 filantrópicos ou comunitárias não-conveniadas
360 particulares
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
A política de formação que ora desenvol-
vemos tem na relação com as escolas munici-
pais e com as Instituições de Educação infan-
til (IEI) conveniadas com a Prefeitura de Belo
Horizonte sua estratégia privilegiada de imple-
mentação e formulação.
Os princípios da política
de formação
r
Nesses dez anos de existência do Cape, fo-
ram construídos os princípios da formação que
praticamos:
Reconhecimento da formação continuada
como direito e condição para construirmos
uma escola pública democrática de quali-
dade e cada vez mais inclusiva. Uma for-
mação que provoque, sensibilize e nos faça
pensar sobres mesmos como pessoas e
como profissionais.
Uma relação de diálogo entre os sujeitos,
suas práticas e seus contextos, buscando
o conhecimento e a problematização da
realidade e das diferentes tendências pe-
dagógicas hoje em debate na sociedade,
criando assim novas perspectivas de refle-
o crítica sobre a prática. Refletir sobre a
práticao se resume a falar sobre ela,
mas situá-la num contexto em que seja
possível entender e nomear o que está
sendo vivido. Trata-se de um processo de-
safiador que exige amadurecimento, sen-
sibilidade, comprometimento, perseve-
rança e, acima de tudo, desejo de mudan-
ça por parte de todos que o vivenciam. A
mudança da prática pedagógicao ocor-
re em um passe de mágica, conduzido pe-
las mãos de um "outro", detentor de sabe-
res "superiores"; trata-se, isto sim, de um
caminho complexo, cheio de idas e vindas,
avanços e recuos, que vamos construindo
no processo.
Construir uma nova identidade profissional
é uma importante e complexa tarefa que exige
o estabelecimento de uma nova relação com o
conhecimento, uma postura investigativa,
questionadora, problematizadora e criativa,
transformando uma identidade construída em
séculos em uma outra, nova: de transmissores
para produtores de conhecimento.
Sendo assim, entendemos que:
1º A escola deve ser o local privilegiado para
as ações de formação docente. As ações de
formação desenvolvidas e propostas pelo
Cape/SMED devem privilegiar a realidade
das escolas - seus problemas, construções
e desafios - proporcionando debates e re-
flexões sobre ela.
2º Todas as ações de formação precisam con-
siderar o professor como sujeito do seu
próprio processo de formação. É preciso
levar em consideração o que o professor
sabe, o que deseja saber, como constrói co-
nhecimentos e, sobretudo, como constrói
sua identidade profissional.
3º A formação é um direito do trabalhador.
Ela é um instrumento importante de valo-
rização do trabalho docente, inerente ao
exercício da profissão e essencial para a re-
alização pessoal e profissional dos traba-
lhadores em educação.
Os objetivos estratégicos
da política de formação
Desses princípios, decorrem sete objetivos
primordiais:
assegurar aos profissionais da educação o
direito à formação:
dialogar com os saberes construídos pelos
profissionais;
intermediar os saberes construídos no co-
tidiano pedagógico e os princípios educa-
cionais que norteiam a política pedagógi-
ca da rede municipal de educação;
socializar esses saberes e os conhecimen-
tos teóricos construídos em outros espaços
de formação;
propiciar elementos para que a escola
construa o seu projeto de formação conti-
nuada e em serviço;
estimular os espaços de formação no coti-
diano escolar;
ampliar a política de formação da SMED
para o Sistema Municipal de Ensino, parti-
cularmente, para as Instituições de Educa-
ção Infantil conveniadas com a Prefeitura
de Belo Horizonte.
o desafio da política de formação é cons-
truir estratégias que nos permitam atingir to-
das as escolas e IEI conveniadas e, para isso,
faz-se necessária a articulação das várias
equipes pedagógicas da SMED (atualmente
existem nove equipes regionais com um Cen-
tro de Educação Infantil (CEI) cada, bem
como outras equipes político-pedagógicas e
administrativas, no órgão central, quem
interlocução com as escolas), responsáveis
pelo apoio pedagógico e administrativo às
escolas e IEI. Para tanto, instituímos na SMED
um fórum interno de formação que organiza
e desenvolve, de forma articulada, a política
de formação que praticamos.
As ações de formação que
estão sendo desenvolvidas
Encontro regionalizado mensal, com todas
as coordenações pedagógicas das escolas
(incluídos diretores e vice-diretores que fa-
zem parte dessas coordenações).
Acompanhamento sistemático de escolas
que o demandarem, com planejamento
construído conjuntamente e em torno de
questões ou temáticas levantadas pela es-
cola ou por parte dela.
Rede de trocas: evento organizado para tro-
ca de experiências entre as escolas, para o
qual é produzido um relato que é debatido
e problematizado com a participação de um
mediador. Cada escola que participa da
Rede de trocas tem o registro de sua experi-
ência publicado em um caderno. O evento
inclui, ainda, a Rede de trocas de inclusão,
desenvolvida especificamente com as esco-
las que trabalham com alunos portadores de
deficiência.
Encontros de Formação: para profissionais
que trabalham com alunos portadores de
deficiência. É um desdobramento da Rede
de trocas de inclusão, objetivando estudos
e aprofundamentos no conhecimento das
diversas síndromes e deficiências e nas prá-
ticas pedagógicas adequadas.
Curso de Aperfeiçoamento da Pratica Pe-
dagógica: curso anual com carga horária de
180 horas, que se desenvolve em encontros
semanais e duas semanas intensivas, no
horário de serviço do professor. Atualmen-
te, temos seis turmas (duas turmas por tur-
no) com participação de representantes in-
dicados pelas escolas.
Curso de libras e braille: destinado a pro-
fessores que trabalham com alunos cegos
e surdos e a intérpretes da língua de si-
nais.
Os projetos que estão sendo
construídos
Estamos organizando, para responder às
demandas das escolas apontadas nos encon-
tros regionalizados, dois grandes projetos:
Projeto de investigação e formação em al-
fabetização e letramento, para enfrenta-
mento de problemas apontados pela es-
cola, relacionados às dificuldades dos alu-
nos no processamento da leitura e da es-
crita.
Projeto Rede pela Paz, para equacionar
problemas relacionados à violência e ao
consumo de drogas.
o é só o Cape que faz
formação na rede (sistema)
Como informamos acima, além do Cape,
existem outros setores da SMED que, direta ou
indiretamente, trabalham com formação de
professores, bem como com outros profissio-
nais da escola.
o eles:
Regionais. Organizam e implementam,
através das Gerências de Educação e dos
CEI, ações além das organizadas em conjun-
to com o Cape.
Coordenadoria de Eventos. Desenvolve
projetos, como a Mostra Plural de Educa-
ção e o BH para Crianças, quem como
objetivo construir uma interlocução entre
a escola e a cidade. Implementa, como
ações de formação com os professores, a
Rede de Artes e o curso Horizontes da Ci-
dadania em parceria com outras secreta-
rias e equipamentos públicos da cidade.
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Coordenadoria de Bibliotecas. Promove
cursos para bibliotecários e auxiliares de
biblioteca, objetivando a revitalização des-
se espaço.
Gerência do Programa Bolsa-Escola. De-
senvolve projetos de alfabetização com as
famílias dos alunos assistidos e projetos de
geração de emprego e renda.
Gerência de Funcionamento Escolar. De-
senvolve ações de formação com secre-
tários de escola e, em conjunto com o
Cape e outros setores, com diretores de
escola.
Gerência de Planejamento c Administra-
ção. Desenvolve ações com diretores e
membros da caixa escolar
Gerência de Coordenação de Política Pe-
dagógica. Organiza diversos fóruns e en-
contros para tratar de questões específicas
ou gerais da política educacional.
Questões que estão nos
desafiando hoje
A partir da avaliação feita pelo Grupo de
Avaliação e Medidas Educacionais (Game), da
Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais e também da institui-
ção do sistema municipal de ensino, alguns
desafios novos estão se colocando para nós:
1º lugar da formação dos profissionais da
educação no processo de desenvolvimen-
to curricular da Escola Plural.
2º A relação do Cape com o sistema munici-
pal de ensino.
3º A descentralização da política de formação
tendo a escola como seu locus privilegiado.
4º o lugar e a estrutura institucional do Cape
de forma a garantir-lhe a necessária auto-
nomia e exercício de crítica às políticas
educacionais, bem como a intervenção
política na construção destas.
SIMPÓSIO 13
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
VINCULADA AO TRABALHO
Enrique Pieck
Problemática e considerações
sobre programas educacionais
vinculados ao trabalho
Enrique Pieck
Universidade Ibero-Americana - México
Introdução
Entre outros questionamentos freqüentes
da Educação de Jovens e Adultos (EJA) desta-
ca-se o que diz respeito à sua falta de eficácia
para contribuir no sentido de melhorar os-
veis de vida da população em zonas excluí-
das, destinatários importantes desse campo
da educação. Observa-se atualmente um
questionamento generalizado das atividades
de educação de adultos queo estejam vin-
culadas ao trabalho produtivo. O desafio é
enorme, à luz de inúmeras experiências fra-
cassadas e de uma trajetória que tem
priorizado o aspecto educacional, em detri-
mento de aspectos técnico-produtivos e de
vinculação ao trabalho, deixando pouco espa-
ço para demandas relacionadas ao trabalho,
à produção, à participação política e à supe-
ração da exclusão e da desigualdade social
(Weinberg, 1994). A capacitação para o traba-
lho continua sendo a área menos atendida no
campo da educação de adultos, enquanto a al-
fabetização e a Educação básicam recebi-
do mais atenção (Garcia Huidobro, 1986).
Esta dissertação pretende abordar vários
aspectos fundamentais que configuram o
marco contextual - a problemática básica - da
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao
Trabalho (EDJAT). Além disso e com o objeti-
vo de trazer informação e elementos que apoi-
em o trabalho educacional realizado pelos do-
centes no setor social, serão tecidas algumas
considerações relevantes para o desenho e de-
senvolvimento de programas orientados para
a formação para o trabalho em setores de po-
breza.
Problemática
e pontos de partida
A terra de ninguém
Um primeiro ponto de partida para abordar
a problemática da EDJAT é o reconhecimento
de que, nos setores em situação de pobreza, a
capacitação técnica - a capacitação para o tra-
balho - é uma prática quase inexistente. Essa
situação é resultado de duas ausências particu-
lares: por parte das instituições de educação de
adultos observa-se, na prática, uma ausência do
tema trabalho em seus programas, queo
constitui uma área prioritária; no caso dos ins-
titutos de formação profissional, as populações
excluídaso constituem suas populações-alvo,
dada a orientação predominante de seus pro-
gramas para o mercado formal de trabalho, re-
sultando na ausência de atividade nesses espa-
ços (Pieck, 1998). Embora em zonas rurais e ur-
banas excluídas exista, de um modo geral, uma
oferta, em alguns casos vasta, de programas de
educação não-formal - a chamada educação
não-formal não-vocacional -, esses programas
estão longe de oferecer uma efetiva capacitação
para o trabalho em decorrência dos poucos re-
cursos de que dispõem para operar (Pieck, 1996;
Stromquist, 1988).
" Apresentação feita no Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação - Formação de Professores, realizado em Brasilia no período de 15
a 19 de outubro de 2001.
Os elementos para a elaboração desta apresentação baseiam-se no relatório final sobre a problemática regional da "educação de jovens e
adultos vinculada ao trabalho", documento elaborado no marco do "Acompanhamento Latino-Americano da Confintea" (v. Pieck. 2000).
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
Parece existir um espaço sem responsável
entre ambas as estratégias educacionais - uma
terra de ninguém - que deixa sem atenção, no
campo da capacitação para o trabalho, os gru-
pos populacionais que vivem em regiões de
pobreza: a contraposição entre uma educação
para os pobres e uma educação para o desen-
volvimento, entre uma lógica tradicionalmen-
te orientada para a sobrevivência e o
assistencialismo e outra cuja natureza e razão
de ser é o trabalho. A oferta de uma EDJAT exi-
ge articulação adequada entre ambas as ofer-
tas educacionais. De certa maneira, exige a
criação de uma lógica diferente, que envolva
duas racionalidades aparentemente opostas,
uma conjunção de estratégias que permita a
combinação e a articulação de perspectivas e
de metodologias com o objetivo de liberar o
potencial produtivo dos programas de educa-
ção de adultos e fortalecer o impacto e a pre-
sença dos institutos de formação profissional
nos setores em situação de pobreza.
Os contextos da EDJAT
e suas implicações
Atualmente, a preocupação com a EDJAT re-
side na dualidade de um contexto mundial carac-
terizado pela coexistência do fenômeno da
globalização e da polarização das sociedades
(Unesco, 1997). Trata-se, na verdade, de duas di-
mensões de um mesmo processo: I) o processo
de globalização e desenvolvimento tecnológico;
e II) o marco de pobreza que caracteriza as socie-
dades latino-americanas. Ambas as perspectivas
m implicações socioeconômicas importantes,
com base nas quais se vislumbram novos desafi-
os para a educação de adultos que exigirão uma
reconceitualização de sua noção e de sua prática.
No que se refere à primeira dimensão, as
mutações observadas no mundo do trabalho.
decorrentes do desenvolvimento de novas
tecnologias e de novas pautas de produção, exi-
gem que a Educação de Jovens e Adultos desem-
penhe um papel claro na formação de compe-
tências e aptidões para incorporar esses jovens
e adultos ao mercado de trabalho e facilitar sua
mobilidade social. A "mundialização" dos inter-
câmbios, a globalização das tecnologias e o ver-
tiginoso desenvolvimento da informática pro-
porcionaram um acesso sem precedentes à in-
formação, exigindo novas competências e ge-
rando novos desafios nos espaços de trabalho.
O limitado acesso de amplos setores da popu-
lação a essas novas possibilidades de acesso à
informação e ao conhecimento gera situações
intoleráveis de exclusão - novos analfabetismos
e novos processos de exclusão. Esses atributos
certamente incidirão nas novas condições de
empregabilidade e representarão um risco par-
ticularmente alto para populações em regiões
de pobreza.
Esses elementos mexem nas estruturas do
sistema produtivo e do mercado de trabalho,
bem como dos sistemas educacionais e de for-
mação, gerando a premente necessidade de
redefinir papéis, perspectivas e estratégias. A
educação geral e a formação para o trabalho
deixam de ser opostas e a formação do cida-
o e do trabalhador se entrelaçam. Estar
apto para a mudança e para a aprendizagem
permanente, para adaptar-se e ser competen-
te numa sociedade organizada em torno do
conhecimento torna-se condição básica para
a vida em sociedade e cotidiana, para o de-
senvolvimento da convivência democrática e
para a empregabilidade. Nessa ótica, a edu-
cação de adultos adquire uma nova dimensão,
constituindo-se em instrumento de grande
potencial para permitir o acesso de amplos
setores excluídos e marginalizados aos conhe-
cimentos e competências exigidas no novo
cenário mundial (Silveira, 1998).
De outro ângulo, o aumento do desempre-
go, a precariedade do emprego e a pobreza
endêmica suscitam tarefas fundamentais para
este campo educacional no desenvolvimento
de capacidades que permitam a jovens e a
adultos, homens e mulheres, incorporar-se
produtivamente na sociedade; nos países em
desenvolvimento,o se trata somente de en-
contrar um emprego e, sim, de garantir o sus-
tento de todos.
A importância desse vínculo assumiu ma-
tizes particulares diante uma realidade na qual
a população que vive em condições de pobre-
za é cada vez maior e mais pobre a cada dia
que passa. Nesses setores, o mundo do traba-
lho adquire uma especificidade própria, que
define as características que um programa con-
cebido para responder às necessidades de for-
mação que prevalecem nos diferentes espaços
deve ter. Nesse sentido, o trabalho adquire um
significado particular nas áreas marginais, es-
pecialmente na área rural, por estar estreita-
mente ligado às características do contexto e
ao desenvolvimento de estratégias de sobre-
vivência. A incorporação produtiva transfor-
ma-se no grande desafio dessa dimensão es-
pecífica, pois envolve amplos setores da popu-
lação, principalmente em áreas rurais e nas
periferias urbanas, que exigem programas de
formação relevantes que lhes permitam satis-
fazer suas necessidades específicas de inser-
ção econômica.
À luz dessas duas dimensões, as tarefas da
educação técnica nos setores de baixa renda se-
riam as seguintes: \) adequar-se e responder às
necessidades e possibilidades dos contextos
marginais, ou seja, disponibilizar uma oferta
educacional relevante e de qualidade; l\) permi-
tir o acesso da população desses setores às no-
vas competências e ao Alfabetismo tecnológico,
com vista a promover a empregabilidade nesses
setores eo desenvolver novos processos de
exclusão social.
A EDJAT e a pobreza
É importante ressaltar que, nos países la-
tino-americanos, o tema da EDJAT passa, ne-
cessariamente, pela lente da pobreza: a po-
pulação que vive em situação de pobreza em
nossos países está se tornando maioria. Nes-
se contexto, a educação de adultos está
inextricavelmente ligada à pobreza e se defi-
ne a partir de sua relação com ela. Hoje em
dia, é difícil pensar numa educação desliga-
da do trabalho e das atividades e necessida-
des econômicas das pessoas.
A pobreza e a exclusão apresentam-se
como problemas subjacentes, associados à
aplicação prática de uma EDJAT. Por isso, é
importante que as propostas estejam sintoni-
zadas com uma visão de desenvolvimento e se
enquadrem num projeto ético e político. Elas
devem fortalecer as economias populares e le-
var em consideração possibilidades disponí-
veis em contextos de pobreza. Se o mercado
formal de trabalho apresenta restrições para a
incorporação de novos trabalhadores, o setor
informal e as atividades produtivas próprias
dos meios informais oferecem espaços em po-
tencial que podem redinamizar capacidades
produtivas inibidas no contexto do mercado
globalizador. Atualmente, a idéia de mercado
tende a subestimar a riqueza desses espaços,
a esquecer e a mascarar a sociedade, a diluí-la
e a fazê-la perder sua especificidade. A varie-
dade de produtos locais, atividades produtivas,
competências informais ficam perdidas num
conceito de mercado queo tem relação -
o define nem inclui - com as miríades de
atividades que compõem o cotidiano social
dos setores informais.
A especificidade do trabalho nos
setores de pobreza
Nos setores de pobreza, conceitos como o
trabalho e a empregabilidade adquirem espe-
cificidades próprias. Enquanto o mercado for-
mal de trabalho apresenta demandas específi-
cas ao campo da educação, no terreno da
informalidade (nos setores de pobreza) o mun-
do do trabalho - e suas necessidades - mantém
uma estreita relação com o próprio cotidiano
dos sujeitos. Sob essa luz, a formação para o tra-
balho está mais relacionada às atividades pro-
dutivas das pessoas - suas estratégias de sobre-
vivência - ou a outras atividades realizáveis e
que se desprendem da natureza do contexto do
que à necessidade de capacitar para um mer-
cado formal de trabalho ou de responder às exi-
gências próprias do desenvolvimento tecnoló-
gico na corrente da modernidade.
Nos setores de pobreza, a possibilidade de
incorporação produtiva está relacionada à ad-
ministração de competências para a vida que
atendam à diversidade dos espaços de trabalho
na esfera da vida cotidiana. A noção e a prática
de uma "educação ao longo da vida" definem-
se a partir da realidade de pobreza que caracte-
riza a grande maioria dos países latino-ameri-
canos, tornando-se um conceito subordinado
às nossas realidades e relacionado às compe-
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
tências necessárias para a incorporação produ-
tiva, para a eliminação da exclusão social, para
ajudar a melhorar as condições de vida e para
permitir que os indivíduos ocupem seu lugar na
vida da sociedade.
Nesse sentido, precisamos oferecer progra-
mas que resgatem as esferas do trabalho coti-
diano das pessoas e o vinculem a atividades
econômicas estratégicas que possibilitem a
transcendência das modestas inserções eco-
nômicas e sua inserção com outros tipos de
apoios. Isso nos leva, necessariamente, a
questionar e a redefinir os conceitos de traba-
lho, emprego e empregabilidade nesses seto-
res. No cenário dos setores de pobreza, a no-
ção de emprego perde força e se sujeita ao con-
ceito de trabalho, entendido como as ativida-
des produtivas das pessoas na vastidão que as
caracteriza e sem limitá-las ao vínculo que elas
tenham com o mercado formal de trabalho. É
na esfera do cotidiano que residem os conteú-
dos relevantes para uma EDJAT. A empre-
gabilidade nos setores de pobreza acaba por
traduzir-se na possibilidade de acesso aos es-
paços do trabalho, na geração de condições
(formação de competências, apoios orga-
nizativos e financeiros etc.) que viabilizem o
exercício de uma atividade produtiva.
Algumas considerações sobre
estratégias educacionais
vinculadas ao trabalho
A capacitação técnica, por si,
nao é suficiente
Como estratégia específica de uma EDJAT,
a capacitação técnica, por si,o é suficien-
te,o cria empregos,o garante melhores
condições de vida para a população eo gera
atividades produtivas.o se trata de contar
com uma população capacitada, mas desem-
pregada, e nem de promover ações cuja finali-
dadeo vá além da esfera dos registros esta-
tísticos em termos de cursos oferecidos.
Pouca utilidadem as ofertas de capaci-
tação de baixa qualidade, que capacitam fraca-
mente a população em ofícios geralmente mar-
ginais e com perfis de conclusão igualmente
baixos. Uma capacitação técnica desvinculada
da promoção humana e do melhoramento da
qualidade de vida se transforma numa oferta
educacional assistencialista e de contenção so-
cial; ao contrário, uma estratégia de formação
associada à Educação básica e devidamente
enfocada constitui um elemento importante da
empregabilidade.
Mais uma vez, a capacitação isolada certa-
menteo cria empregos.o necessários me-
canismos laterais de apoio e articulações ins-
titucionais para que melhores possibilidades
sejam geradas para a incorporação produtiva
da população de baixa renda. A capacitação
precisa, também, estar orientada para o forta-
lecimento de atividades econômicas vincula-
das ao setor informal, às atividades tradicio-
nais das pessoas, às características próprias de
áreas rurais. Sabemos que a capacitaçãoo
pode estar desligada dos processos, pois ela
está estreitamente vinculada a eles. É impos-
sível separar a capacitação dos espaços nos
quais ela pretende incidir.o eles que defi-
nem suas características e configuram as ba-
ses para se medir seu impacto.
A vinculação aos projetos das pessoas
A oferta de capacitação técnica nos setores
de pobrezao deve proporcionar apenas ha-
bilidades vinculadas aos setores de ponta, e sim
orientar-se predominantemente no sentido de
satisfazer necessidades de formação relaciona-
das às atividades econômicas e produtivas da
população e às características dos contextos
locais. Para ser eficaz, a capacitação técnica
deve ser uma capacitação no trabalho das pes-
soas, satisfazendo necessidades específicas de
capacitação vinculadas aos problemas enfren-
tados pelos diversos microempreendimentos,
em muitos casos estratégias de sobrevivência
de amplos setores da população em regiões de
pobreza cuja atividade econômica desenvolve-
se predominantemente no terreno da informa-
lidade. É o caso de produtores de leite que de-
sejam começar a produzir laticínios; artesãos
que precisam de apoio técnico e de apoio na
comercialização de seus produtos; trabalhado-
ras rurais que precisam de apoio financeiro para
desenvolver pequenos empreendimentos; orga-
nizações sociais que precisam de assessoria téc-
nica na gestão de projetos de ecoturismo etc. O
apoio dado a essas pequenas inserções econô-
micas certamenteo impedirá o desemprego,
mas poderá gerar espaços de participação so-
cial e proporcionar às pessoas caminhos autên-
ticos para o exercício de sua cidadania de uma
forma diferente (Chourin, 1996).
Trata-se, particularmente, de criar estraté-
gias para o desenvolvimento de unidades eco-
nômicas a partir dos pequenos esforços que as
pessoas podem fazer, mas sem limitar-se a eles;
é fundamental transcendê-los. As estratégias de
sobrevivência estabelecem um ponto de parti-
da orientado para a constituição de opções de
desenvolvimento. Isso pressupõe a articulação
da EDJAT com os circuitos da economia popu-
lar, os projetos locais de desenvolvimento e os
movimentos cooperativos, com vista ao forta-
lecimento e à promoção de programas educa-
cionais que contemplem projetos produtivos
(como programas de auto-emprego e de micro-
empresas).
A dimensão integral das atividades
econômicas
Uma estratégia de EDJAT deve partir de
uma perspectiva integral das atividades eco-
nômico-produtivas da população. É de pou-
ca utilidade responder a demandas imediatas
dos projetos (créditos, cursos específicos etc.)
seo se parte de um diagnóstico que permi-
ta uma resposta integral aos problemas en-
frentados nos diferentes projetos da popula-
ção. Nesse sentido, é importante considerar
os projetos a partir de sua organização, pro-
dução, comercialização, processos técnicos,
sistemas contábeis, divisão do trabalho etc,
independentemente do tamanho dos diferen-
tes empreendimentos. Em alguns casos, pro-
curar-se-á apoiar tecnicamente o desenvolvi-
mento de pequenos produtores; em outros,
oferecer-se-á assessoria contábil a projetos
em vias de consolidação. A capacitação téc-
nica, uma EDJAT, torna-se, assim, uma capa-
citação-consultoria que apoia projetos a par-
tir de um enfoque integral. Em outras pala-
vras,o se trata de oferecer uma resposta
imediata a uma necessidade técnica ou eco-
nômica de um projeto - uma necessidade
"sentida" -, queo constitui garantia de que
os recursos e apoios canalizados sejam utili-
zados eficazmente, mas de oferecer uma res-
posta com base numa análise-diagnóstico in-
tegral da atividade econômico-produtiva, que
leve ao desenvolvimento de um plano de
melhorias desenhado para propor soluções
que desloquem qualquer atividade econômi-
ca na direção de um projeto de desenvolvi-
mento econômico. A perspectiva integral das
atividades da EDJAT revela claramente a in-
suficiência da capacitação técnica isolada,
dos cursos pontuais e do financiamento.
Essa premissa básica - a visão integral dos
projetos - tem constituído a grande ausência no
desenvolvimento de programas de capacitação
técnica em áreas de pobreza. Isso tem ocasio-
nado uma oferta de programas cujo interesse
restringe-se aos cursos em si e, em algumas oca-
siões, uma oferta até sem interesse na perti-
nência dos cursos promovidos.
As articulações institucionais
Um complemento da consideração anteri-
or é a necessidade de a EDJAT estar apoiada
na interinstitucionalidade. A coordenação
interinstitucional garante que os programas
incidirão no desenvolvimento de atividades
econômicas e promoverão melhorias nas con-
dições de vida das pessoas. A coordenação com
instituições de financiamento, de organização,
de comercialização contribui para que os co-
nhecimentos adquiridos pela capacitação le-
vem à incorporação produtiva e à geração e de-
senvolvimento de empreendimentos. A coor-
denação interinstitucional potencializa a esfe-
ra de possibilidades da capacitação técnica e
permite que ela seja complementada com ati-
vidades de saúde, habitação, Educação básica,
certificação etc. Reconhecendo que os recur-
soso escassos e que a educação de jovens e
adultos é limitada em seu alcance, é importan-
te envolver a participação tanto dos ministé-
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
rios da Educação e do Trabalho, de organiza-
ções da mulher e da juventude, de trabalha-
dores rurais e de sindicatos como de empre-
sários e de instituições de crédito e comer-
cialização, visando desenvolver estratégias co-
ordenadas e extrair aprendizagens de diferen-
tes experiências.
A dimensão educacional das
estratégias de EDJAT
A EDJAT deve ser concebida como uma es-
tratégia de longo prazo que transcenda ativida-
des estritamente capacitadoras - inclusive a
incorporação produtiva - e faça com que os pro-
gramas se tornem estratégias de formação com
laços importantes nos âmbitos da formação de
competências básicas, da formação da cidada-
nia e da promoção da participação social. Nos
programas de Educação de Jovens e Adultos vin-
culada ao Trabalho a dimensão educacional está
presente nas seguintes dimensões:
a. No conteúdo da formação ao longo do pro-
jeto, de forma que os programas transcen-
dam sua natureza puramente técnica e
incidam no desenvolvimento de compe-
tências básicas gerais que ajudem no pro-
cesso decisório e na utilização de habili-
dades em diversos contextos. Sob esse
prisma, a EDJAT deve promover uma cul-
tura do trabalho (Weinberg, 1994) e ser
concebida como uma atividade de forma-
ção no âmbito dos direitos humanos, do
exercício da cidadania e da problemática
de gênero.
b. Na participação da população ao longo do
processo produtivo, que nos leva a pensar
nas atividades educacionais como uma
série de ações transformadoras que impli-
cam práticas educacionais em si mesmas.
Essa participação é a que garante, de algu-
ma forma, o crescimento e o fortalecimen-
to da população que vive em locais de po-
breza no processo de superar gradualmen-
te os desafios enfrentados no desenvolvi-
mento de seus pequenos empreendimen-
tos econômicos.
c. Na incorporação ao currículo de outras di-
mensões educacionais que permitam seu
enriquecimento e a superação de limites
no terreno da capacitação técnica. Isso
pode ser logrado a partir da inclusão de
temas como saúde, nutrição, estimulaçao
precoce, sexualidade etc, que comple-
mentam a EDJAT e conferem o caráter edu-
cacional que essas intervenções devem ter.
A educação básica nas estratégias
de EDJAT
A educação técnica representa apenas um
complemento da educação geral. Elao pode
substituir a educação geral e esseo é o seu
propósito. Qualquer programa educacional vin-
culado ao trabalho em setores de pobreza deve
incluir a educação geral ou básica como a que
permite a abertura de novos horizontes de sen-
tido, que dá acesso a novas noções de alfabeti-
zação e possibilita o desenvolvimento de com-
petências básicas. Essa educação geral, no en-
tanto, deve estar ambientada nos novos cená-
rios, noções e práticas do trabalho e apoiar-se
- complementar-se - em sistemas de educação
técnica que desenvolvam nas pessoas compe-
tências pertinentes para os diferentes contex-
tos e para a dinâmica dos novos mercados de
trabalho.
Diversidade e qualidade
Uma estratégia de EDJAT deve basear-se na
premissa de que a pobreza é heterogênea e de
que é necessário especificar as ações no interi-
or dos grupos vulneráveis, diferenciando e es-
tabelecendo prioridades entre jovens, trabalha-
dores rurais, mulheres, o que implica uma es-
tratégia de territorialidade que, entre outros
aspectos, assinale as diferenças existentes no
interior de cada um desses grupos. A definição
dos diversos perfis da população-alvo torna-se,
assim, um processo-chave para que as experi-
ências de aprendizagem efetivamente potenci-
alizem as capacidades. Isso gera a necessidade
de se planejarem diferentes modelos curricu-
lares e pedagógicos e diferentes objetivos e
orientações para os programas.
Em atenção à diversidade, uma estratégia de
EDJAT deve contar com uma gama de opções
que permitam a satisfação de expectativas de
diferentes grupos da população. Ela deve dite-
renciar jovens que abandonaram seus estudos
de segundo grau e desejam capacitar-se num
ofício; desempregados com experiência de tra-
balho que querem continuar sua formação ou
estão em busca de opções de auto-emprego;
adultos desempregados interessados em atua-
lizar-se; mulheres responsáveis por suas famí-
lias que desejam capacitação e apoio para im-
pulsionar e desenvolver atividades econômicas;
pessoas interessadas em certificar estudos para
entrar no mercado formal de trabalho; jovens
de baixa renda que precisam de opções de
capacitação rápidas que lhes possibilitem uma
rápida incorporação produtiva; pessoas interes-
sadas em opções de ensino médio que ofere-
çam articulação com espaços de trabalho; etc.
As situaçõeso múltiplas e podem variar mui-
to mais dependendo dos contextos envolvidos.
Assim, é importante dispor-se de uma am-
pla gama de opções nos diferentes espaços, que
os programas tenham vínculos com opções su-
periores de formação, que melhorem os perfis
de conclusão, que sejam oferecidos com base
em critérios de integralidade e que as popula-
ções pobres tenham múltiplas possibilidade de
entrada e saída nos diferentes sistemas de edu-
cação técnica.
Precisamos, portanto, articular e distribuir as
diferentes ofertas de EDJAT de uma maneira
mais justa, como um caminho para a superação
da exclusão social, evitando que as oportunida-
des de uma melhor formação fiquem restritas
àqueles que contam com melhores condições de
vida. Nesse sentido, os programas de EDJATm
a dupla missão de: a) ajudar as pessoas a passar
da favela ao computador; e b) contribuir no sen-
tido de que a população possa sobreviver. Em
outras palavras, trata-se, por um lado, deo
excluir as populações pobres do acesso a novas
competências e de proporcionar oportunidades
de incorporação ao mercado formal de trabalho,
ou de formação superior, a quem deseje. Por
outro lado, trata-se de proporcionar elementos
que permitam à população de baixa renda en-
frentar sua necessidade de incorporação produ-
tiva a partir de ofertas que correspondam às ne-
cessidades locais e às características do traba-
lho nas diferentes localidades.
Bibliografia
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de Chile, 1994.
SIMPÓSIO 14
DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS PARA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
EM NIVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares
Sylvia Figueiredo Gouvêa
Formação de professores em
nível médio na modalidade
Normal: um novo paradigma?
Edla de Araújo Lira Soares*
A pretensão de elaborar um projeto de for-
mação de docentes que implique a melhoria do
atendimento escolar, tem-se constituído, histo-
ricamente, uma das principais dimensões do
debate a respeito do processo de construção da
qualidade social da educação brasileira.
No caso, várias iniciativas, informadas cada
uma delas por um modo de entender a com-
plexa relação entre a formação de professores e
a democratização da educação escolar, foram
desencadeadas nos diversos sistemas de ensi-
no do país.
No âmbito desses esforços, aponta-se como
uma das principais mudanças pretendidas, a
"universitarização" da formação inicial e a
institucionalização de um processo continuado
de estudos e aperfeiçoamento que assegure, in-
dependente do patamar de ingresso desses pro-
fissionais na carreira, o diálogo permanente en-
tre a produção contemporânea do conhecimen-
to e a fecunda reflexão sobre a sua prática. E, as-
sim sendo, a "postura de investigador", que toma
como objeto de estudo e reflexão a proposta pe-
dagógica da escola e a sala de aula, passa a inte-
grar, entre outras, o perfil dos professores.
No Brasil, aproximando-se do debate pre-
sente no conjunto da sociedade, as exigências
da formação para o exercício da docência na
Educação básicao estabelecidas, principal-
mente, nos artigos 13, 22, 26, 27, 29, 32, 35, 36,
39, 61, 62, 63, 67 e 87 da Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional (LDBEN) e nas Reso-
luções do Conselho Nacional que estabelecem
as Diretrizes Curriculares Nacionais orientado-
ras dos cursos nessa área.
o artigo 13, inspirado no parágrafo único do
artigo lº da Carta Magna, define as incumbên-
cias dos professores, reconhecendo, a partir do
inciso I, a importância da participação de to-
dos e o compromisso compartilhado, median-
te um processo coletivo de elaboração da pro-
posta pedagógica, com a aprendizagem do alu-
no e o atendimento das necessidades educacio-
nais da população.
Essa compreensão, como se, retira do pro-
fessor a exclusividade das responsabilidades com
a tarefa de assegurar o bom desempenho dos sis-
temas de ensino, reconhecendo, desde o início,
a dimensão coletiva da escolha a respeito de
quais elementos da cultura - em suas múltiplas
dimensões - devem ser transformados em valo-
res, competências e conhecimentos a serem con-
siderados pelas gerações que atualizam a traje-
tória da humanidade. Há que registrar, neste
momento, a possibilidade de o educador fazer
opções que possam vir a consolidar ou reorientar
o projeto civilizatório em curso no país, exercen-
do sua condição cidadã de protagonista de um
projeto social mais geral.
Art. 13. Os docentes incubir-se-ão de:
I - participar da elaboração da proposta pe-
dagógica do estabelecimento de ensino;
II - elaborar e cumprir plano de trabalho,
segundo a proposta pedagógica do estabe-
lecimento de ensino;
III - zelar pela aprendizagem dos alunos;
IV - estabelecer estratégias de recuperação
para os alunos de menor rendimento;
V - ministrar os dias letivos e horas-aulas
estabelecidos, além de participar integral-
' Membro do Conselho Nacional de Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, Secretária de Educação de
Recife/PE. Professora da Universidade Federal de Pernambuco (aposentada).
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nível médio e superior
mente dos períodos dedicados ao planeja-
mento, à avaliação e ao desenvolvimento
profissional;
VI - colaborar com as atividades de articula-
ção da escola com as famílias e a comunidade.
É também do mesmo artigo, como se verifi-
ca nos demais incisos, a rigorosa vinculação que
a citada lei estabelece entre a liberdade de en-
sinar e o zelo pela aprendizagem do aluno. Ao
fazê-lo, exige, no nível do plano de trabalho, o
cumprimento dos acordos firmados coletiva-
mente na proposta pedagógica e a colaboração
dos docentes nas atividades de articulação com
a comunidade. Na verdade, o texto legal sinali-
za para a importância do entorno que dá signi-
ficado à autonomia escolar e determina as res-
ponsabilidades dos docentes, sem descuidar do
projeto institucional dos estabelecimentos de
ensino.
Quanto ao artigo 61, antes de mais nada,
há de se convir que retoma, no território da for-
mação de professores, a concepção de educa-
ção declarada no artigo lº da LDBEN. Seu pro-
pósito é ajustar os cursos às finalidades e mo-
dalidades de cada uma das etapas da Educa-
ção básica, bem como à faixa etária, aos pro-
cessos próprios de aprendizagem e ao modo
particular de inserção no mundo social dos(as)
respectivos(as) alunos(as), tomando como re-
ferência dos programas de formação inicial e
continuada o disposto nos artigos 22, 26, 27,
29, 32, 35, 36 e 39.
Art. 61. A formação de profissionais da educa-
ção, de modo a atender os objetivos dos diferen-
tes níveis e modalidades de ensino e as caracte-
rísticas de cada fase do desenvolvimento do
educando, terá como fundamentos:
I - a associação entre teorias e práticas, in-
clusive mediante a capacitação em serviço;
II - aproveitamento da formação e de expe-
riências anteriores em instituições de ensi-
no e outras atividades.
Além disso, tal dispositivo reafirma a impor-
tância da relação entre teoria e prática e torna
possível o aproveitamento de experiências e
aprendizagens vivenciadas ao longo da vida e
em diferentes situações.
o artigo 62, por sua vez, elimina as Licencia-
turas curtas como possibilidade e nível de for-
mação aceitável pelos sistemas de ensino, pre-
vendo que esta aconteça em nível superior, em
cursos de Licenciatura Plena.
Contudo, ao admitir, no mesmo dispositivo,
sem estabelecer nenhuma excepcionalidade, que
a modalidade Normal em nível médio é a forma-
ção mínima exigida para o exercício da docência
na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensi-
no Fundamental, contradiz, nas diposições per-
manentes do texto, segundo alguns estudiosos, o
que está disposto no § 4º do artigo 87.
Assim, enquanto o artigo 62 da LDBEN dis-
e que a formação de docentes para atuar na
Educação básica far-se-á em "nível superior, em
curso de Licenciatura, de graduação plena, em
universidades e institutos superiores da educa-
ção, admitida como formação mínima para o
exercício do magistério na educação infantil e nas
quatro primeiras séries do ensino fundamental,
a oferecida em nível médio, na modalidade Nor-
mal", o mesmo texto, no § 4
9
do artigo 87, das dis-
posições transitórias, determina que até o fim da
década da educação "somente serão admitidos
professores habilitados em nível superior ou for-
mados por treinamento em serviço".
Em conseqüência disso, várias instituições,
apoiadas numa interpretação que desconsidera
a substituição, na lei, da confusa habilitação de
Magistério até então vigente por um respeitá-
vel curso, mesmo que na trajetória de um pro-
cesso de formação cuja perspectiva é a Licenci-
atura Plena, pronunciaram-se sobre a extinção
imediata do curso Normal em nível médio. Com
isso, assumiram a postura que nega a definição
da matéria no artigo 62 e subordinaram, por
inteiro, o estabelecido nas disposições perma-
nentes da Lei à desejabilidade expressa em suas
disposições transitórias.
Coube ao Conselho Nacional, por meio do
Parecer n
9
1/00 e da Resolução n
9
2/99, salva-
guardar o disposto no artigo 62, incorporando
essa alternativa de curso sem descuidar da im-
portância dos níveis mais elevados de formação.
Assim, reafirmados os níveis e as perspecti-
vas de formação docente previstos, nos termos
da legislação vigente, cabe analisar quaiso as
repercussões dessa discussão, seja na definição
de políticas mais gerais de desenvolvimento
profissional dos docentes, seja no patamar de
aprendizagem alcançado até então pelos estu-
dantes, nos diversos sistemas de ensino. Na
verdade, as taxas de reprovação, abandono e
distorção série/idade continuam preocupantes.
Acrescidas da manutenção das desigualdades
regionais nos termos do atendimento escolar,
terminam por evidenciar, entre outros, os limi-
tes das análises e das políticas de valorização
dos profissionais da educação, fixadas apenas
na problemática da formação.
No contexto desse debate, o artigo 67 da
LDBEN extrapola os limites acima menciona-
dos e aborda a política de valorização dos do-
centes sob uma nova ótica, ampliando, com
certeza, o leque de possibilidades de que venha
a provocar impactos nos sistemas de ensino.
Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a va-
lorização dos profissionais da educação, assegu-
rando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos
e dos planos de carreira do magistério público:
I - ingresso exclusivamente por concurso
público de provas e títulos;
II - aperfeiçoamento profissional continua-
do, inclusive com licenciamento periódico
remunerado para esse fim;
III - piso salarial profissional;
IV - progressão funcional baseada na
titulação ou habilitação, e na avaliação do
desempenho;
V - período reservado a estudos, planeja-
mento e avaliação, incluído na carga horá-
ria de trabalho;
VI - condições adequadas de trabalho.
Parágrafo único. A experiência docente é
pré-requisito para o exercício profissional
de quaisquer outras funções de magistério,
nos termos das normas de cada sistema de
ensino.
Na verdade, o artigo acima mencionado alar-
ga significativamente a compreensão do que seja
uma política de valorização do magistério e, mais
do que uma preocupação que se esgota em pro-
postas de formação inicial e continuada, inclui
condições de trabalho, salário e carreira.
Por fim, na medida em que o Ministério da
Educação disponibiliza recomendações para a
organização do ensino, mediante a divulgação
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, e o
Conselho Nacional de Educação estabelece Di-
retrizes Curriculares Nacionais com caráter
mandatório para cada uma das etapas da Edu-
cação básica, bem como para a formação de
professores, convém refletir sobre a organiza-
ção curricular dos cursos de formação de do-
centes à luz desse novo paradigma.
Se nos ativermos às Diretrizes para Forma-
ção de Professores seja em nível médio na mo-
dalidade Normal, seja em nível superior, em
Licenciatura Plena, observa-se, nesse para-
digma, que ambas trazem no seu bojo grandes
desafios. Sua inspiração nos valores queo
sustentação à convivência social nas socieda-
des democráticas é traduzida, em primeiro lu-
gar, no respeito à diferença e ao direito à igual-
dade assegurados no conjunto das ações que
viabilizam a política de educação escolar.
Além disso, essas diretrizes estabelecem o
foco nas competências básicas necessárias ao
exercício da docência; privilegiam o domínio
dos conteúdos próprios de cada uma das eta-
pas da Educação básica e o seu tratamento nos
diversos contextos de atuação dos professores;
propiciam, nos níveis em que cada curso é ofe-
recido, o conhecimento a respeito dos alunos e
dos respectivos processos de aprendizagem;
possibilitam o acesso aos mecanismos de pro-
dução do conhecimento e à tecnologia; incen-
tivam, na sociedade da comunicação e da in-
formação, a construção solidária da autonomia
intelectual e a busca do desenvolvimento pro-
fissional permanente.
Na verdade, a perspectiva é instaurar o diá-
logo entre todos os que participam do projeto
educativo das instituições de ensino, eliminan-
do as fronteiras que isolam os professores e
compartimentalizam o trabalho pedagógico,
reinventando a sala de aula como espaço
constitutivo da identidade cidadã dos alunos e
dos profissionais da educação. Isto é o que se
pretende, por exemplo, com a definição das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Forma-
ção de Professores em nível médio, na modali-
dade Normal.
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nivel médio e superior
Formação de professores -
o grande desafio
Sylvia Figueiredo Gouvêa
Conselho Nacional de Educação
Todas as crianças,
jovens e adultosm direito
à educação escolar
Este é um direito garantido pela Constitui-
ção Brasileira de 1988, reconhecido pelo gover-
no como seu dever e exigido pela sociedade
como um todo.
Num contexto marcado pela redemocra-
tização do país, por profundas mudanças nas de-
mandas educacionais e por inúmeras descober-
tas a respeito das formas de aprendizagem, nem
todos se lembram de que:
Todo professor tem o direito de ser
preparado para ensinar
o novos os desafios dos professores para
o milênio que inicia. Jáo basta o conheci-
mento dos conteúdos que deve ensinar. É pre-
ciso compreender o mundo contemporâneo,
utilizar novas metodologias, saber elaborar e
executar projetos para desenvolver os conteú-
dos. O professor deve lidar com a diversidade,
focar e comprometer-se com a aprendizagem
dos alunos, além de ser capaz de trabalhar em
equipes multidisciplinares. Um novo perfil de
competências é requerido e, na verdade, exige-
se um profissional capaz de "agir na urgência e
decidir na incerteza".
Em dezembro de 1996, a nova Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)
finalmente introduziu mudanças significativas
em vários aspectos da educação e estabeleceu
novo paradigma de formação de professores:
definiu todas as Licenciaturas como plenas;
reafirmou o ensino superior como nível de-
sejável para a formação de professores;
criou os Institutos Superiores de Educação;
postulou a articulação entre teoria e prática;
garantiu o aproveitamento das experiên-
cias anteriores dos docentes;
estabeleceu:
- a continuidade entre as etapas da Educa-
ção Básica;
- a participação dos docentes na elabora-
ção da proposta pedagógica da escola e no
seu plano de trabalho;
- novas aprendizagens para os alunos e no-
vas tarefas atribuídas à escola;
- ampliação da atuação dos docentes em di-
reção à família, à comunidade e ao mundo
em geral.
Para que essas transformações aconteçam, as
questões mais urgentes a ser enfrentadas na forma-
ção dos docenteso as de romper a segmentação
da formação atual e aproximar as instituições de
formação dos sistemas de ensino; dar tratamento
atualizado, significativo, contextualizado e interdis-
ciplinar aos conteúdos de formação e ampliar o tra-
tamento das práticas e dos estágios; incluir o estu-
do das especificidades cognitivas, emocionais e so-
ciais dos alunos queo atendidos na Educação-
sica. Urge que a formação também se preocupe com
a formação cultural e com as várias dimensões da
atuação profissional do professor.
Nessa direção, o Conselho Nacional de Edu-
cação, no uso de suas atribuições legais, insti-
tuiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores da Educação básica,
em nível superior, curso de Licenciatura, de gra-
duação plena, baseado nos princípios orien-
tadores que: conceituam competência como ca-
pacidade de mobilizar ações que resultem em
aprendizagem dos alunos; apontam a necessi-
dade de coerência entre a formação oferecida e
a prática esperada; e postulam a pesquisa como
elemento essencial do curso.
Para que a educação brasileira se transfor-
me, para que a qualidade da relação ensino-
aprendizagem esteja à altura das expectativas
do nosso povo e de toda a nação, é preciso que
as instituições formadoras de professores cons-
truam projetos inovadores que garantam os
conhecimentos da Educação básica, tratem os
conteúdos articulados com suas didáticas es-
pecíficas e concebam a avaliação como orien-
tação de trabalho. Sua meta deve ser a de for-
mar profissionais capazes de cuidar do seu pró-
prio desenvolvimento, com ampla cultura ge-
ral e profissional, assim como sólidos conheci-
mentos sobre crianças, jovens e adultos.
Se esse é o professor de que o Brasil preci-
sa, urge preparar as novas gerações de docen-
tes e, ao mesmo tempo e com igual empenho,
oferecer meios para aqueles que já estão lecio-
nando refletirem sobre suas práticas e poderem
adequá-las às novas exigências do ensino.
Esse é o nosso maior desafio dos próxi-
mos anos.
SIMPÓSIO 15
ALFABETIZAÇAO NO CONTEXTO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz
Ana Teberosky
José Rivero
Alfabetização no contexto
das políticas públicas
Telma Weisz
PROFA/MEC
No Brasil, recém se descobriu que a repetência
reiterada gera um fantástico desperdício de di-
nheiro público. No entanto, desde que dispomos
de estatísticas
1
temos a seguinte situação:
Taxa de reprovação ao final da 1- série do Ensino Fundamental
2
1956
56,6%
1987
51%
1988
52%
1989
49%
1990
48%
1991
48%
1992 1993 , 1994
48%
49%
46%
1995
46%
1996
41%
Fonte: IBGE - Inep
Esses dados estão e sempre estiveram dis-
poníveis. No entanto, só muito recentemente
começou-se a considerá-los, a reconhecer o ab-
surdo neles expresso e a pensar concretamente
em buscar caminhos para mudar essa situação.
Considerando que nenhum país do mundo,
mesmo aqueles mais pobres que o Brasil, tem índi-
ces de fracasso escolar no lª ano de escolaridade
como os nossos, as questões que se colocam são:
1. Como foi possível aceitar esses índices pas-
sivamente por quase cinqüenta anos?
2. Que explicações se construíram para o fe-
nômeno?
3. o que se fez - do ponto de vista das políti-
cas públicas - para mudar essa situação?
Vamos tentar responder a uma questão de
cada vez, se é que isso é possível.
Para refletir sobre a primeira: "Como foi
possível aceitar esses índices passivamente por
quase cinqüenta anos?", torna-se necessário
pensar o funcionamento do sistema escolar bra-
sileiro anterior à Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional atual.
A LDB anterior, de 1971, quando eliminou
a separação entre primário e ginásio, acaban-
do com o exame de admissão e tornando obri-
gatório o ensino até a 8
a
série, produziu uma
política de garantia de
acesso - o que foi essen-
cial - maso de sucesso.
Ela garantiu a todas as cri-
anças a entrada na escola,
maso a progressão.o
garantiu que elas chega-
riam ao fim da escolaridade obrigatória de oito
anos nem que aprenderiam o que precisavam
aprender na escola.
o mecanismo pelo qual era possível dar aces-
so sem garantir o sucesso era a crença na repro-
vação como único dispositivo capaz de garantir
a qualidade da educação. A idéia, muito popular
ainda hoje, como se pode notar quando se lêem
os jornais dirigidos à classe média, é que a ame-
a da reprovação é a única forma de obrigar os
alunos a estudar. Que sem ela ninguém vai
aprender nada e a qualidade da educação vai fi-
car péssima. Aliás, da mesma forma que em 1971,
com a LDB anterior, dizia-se que, sem o exame
de admissão, deixando qualquer um entrar em
massa no ginásio, ia cair a qualidade.
Vemos hoje muita gente, inclusive jornalis-
tas que prestam serviços educacionais à classe
média, a discorrer com saudade sobre a mara-
vilhosa escola pública dos tempos de antanho,
esquecidos do fato de que para entrar em um
ginásio público de boa qualidade como, por
exemplo, aquele no qual eu estudei, era neces-
' As estatísticas do IBGEo anteriores a 1956. mas os dados parecem mais seguros a partir desse ano.
7
o temos estudos que permitam afirmar com segurança, mas o ganho de 11 pontos percentuais que aparece entre 1988 e 1996 poderia ser
atribuído à introdução dos ciclos em vários estados. Por exemplo, no estado deo Paulo, a simples introdução do Ciclo Básico, em 1984,
diminuiu em 10% a retenção, que passou a acontecer apenas ao fim de dois anos.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
sário concorrer, como eu concorri, com 3.500
candidatos por uma das 120 vagas disponíveis.
da mesma forma que as outras 119 meninas
que, como eu, foram premiadas com uma vaga,
precisei fazer curso de admissão, isto é, um cur-
so preparatório para o exame, onde se estuda-
va durante um ano. Um curso vestibular parti-
cular, inacessível aos alunos da escola pública.
Os maravilhosos ginásios públicos de antiga-
mente, pagos com os impostos de todos, eram
freqüentados principalmente pelos alunos de
maior poder aquisitivo, como eu, que vinham
das escolas privadas. Exatamente como acon-
tece hoje com as universidades públicas.
Ainda tentando responder à nossa primeira
questão: "Como foi possível aceitar esses índi-
ces passivamente por quase cinqüenta anos?",
torna-se necessário considerar que os formado-
res de opinião, que lêem jornais em poder de
influir nas políticas governamentais, sempre ti-
veram uma visão elitista da educação. Uma vi-
o excludente, fantasiada de meritocrática.
Pois via-se como "natural" um ginásio (5
a
a 8ª
séries) de alto padrão de excelência para os pou-
cos, pouquíssimos, capazes de competir por ele
e nenhum ginásio para os outros todos, a abso-
luta maioria.
É apenas dentro dessa falsa meritocracia que
se pode entender o massacre intelectual de me-
tade dos alunos no fim do primeiro ano da esco-
laridade obrigatória. A escola era obrigatória mas
issoo significava que era para todos: apenas
para os mais capazes. Que por acasoo os mais
ricos. Ou melhor, os menos pobres.
Agora vamos tentar responder à segunda
questão: "Que explicações se construíram para
o fenômeno?" Sem querer esgotar a questão,
podemos classificar essas explicações em dois
grupos: as científicas e as do senso comum.
o fracasso escolar é fonte de preocupação em
muitos e diferentes países. Em especial nos EUA,
onde a questão da igualdade de oportunidades
costuma ser levada a sério. Nos anos 1960 essa
preocupação se acentuou e muito dinheiro foi
investido em pesquisa para tentar compreender
o que havia de errado com as crianças queo
aprendiam. Buscava-se no aluno a razão de seu
fracasso. Desse períodoo as teorias que hoje
chamamos "teorias do déficit". Supunha-se que
a aprendizagem dependeria de pré-requisitos
(cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores,
lingüísticos...) e que as crianças que fracassavam
o faziam poro dispor dessas habilidades pré-
vias. O fato de o déficit se concentrar nas crian-
ças das famílias mais pobres era explicado por
uma incapacidade das próprias famílias para es-
timular suas crianças, tanto cognitiva quanto
lingüisticamente. Baterias de exercícios de
estimulaçao foram criados como remédio para
curar o fracasso, como se ele fosse uma doença.
Esta abordagem, que já se anunciava no teste
ABC de Lourenço Filho, teve muita penetração
no Brasil onde, nos anos 1970, foi largamente
difundida a idéia de que todas as crianças deve-
riam passar, no início da escolaridade, por esses
exercícios aqui conhecidos como "prontidão (do
inglês readiness) para a alfabetização". Uma es-
pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-
felizmente, era inócua.
Uma outra explicação, esta especificamen-
te brasileira, relacionava o fracasso à pobreza:
era a explicação nutricional. Segundo essa ex-
plicação, as criançaso aprendiam porque ti-
nham fome. Portanto era preciso alimentá-las.
No entanto, quando se perguntava diretamen-
te às professoras por que seus alunos eram re-
provados em massa, a explicação campeã é a
que fala em problemas afetivos e familiares e
na falta de interesse da família pela vida esco-
lar dos filhos, que se expressaria nas faltas fre-
qüentes e no fato de as famíliaso ajudarem
nas lições. Famílias com baixíssima ou nenhu-
ma escolaridade eram responsabilizadas por
o ensinar os conteúdos escolares aos filhos.
Em resumo: a culpa seria da família queo
estimula,o alimenta eo cuida adequadamen-
te dos filhos, nunca da escola. É interessante ob-
servar que no Brasil, emo Paulo pelo menos, as
chamadas famílias desestruturadas (pais separa-
dos, famílias chefiadas pelas mães)o igualmen-
te freqüentes nas classes altas e baixas. Quando se
conversa com orientadores educacionais das es-
colas da elite, o que se ouve é uma enxurrada de
queixas com relação às famílias e aos problemas
emocionais dos alunos. No entanto, os números
do fracasso se concentram nas classes baixas.
Vamos cuidar agora da nossa terceira ques-
tão: "o que se fez - do ponto de vista das políti-
cas públicas - para mudar essa situação?".
A crença de que o fracasso escolar era fruto
da fome, que incapacitava os alunos para a apren-
dizagem, levou os sucessivos governos a expan-
dir continuamente o Programa da Merenda Es-
colar. Travestido de programa educacional, tor-
nou-se um dos maiores programas sociais do país:
é a maior cadeia de restaurantes do mundo. Como
os pesquisadores da área médica cansaram de
avisar,o fez nenhuma diferença nos números
do fracasso escolar. Nada contra alimentar as cri-
anças brasileiras, mas o fato é que a fomeo era
responsável pelas dificuldades de aprendizagem,
nome que se dava então ao problema.
Políticas públicas voltadas para o fracasso es-
colar e mais especificamente para o fracasso de
50% dos alunos na alfabetização inicial estão
agora dando os primeiros passos. Um dos fato-
res que contribuiu para isso foi a mudança no
olhar da sociedade brasileira para a questão da
educação. Finalmente se começa a compreen-
der o papel econômico da educação no desen-
volvimento do país e, com isso, ela começou a
ser levada mais a sério. Também a crescente pre-
ocupação com as questões da cidadania, da par-
ticipação social e a compreensão, pela elite, de
que a exclusão de grandes contingentes da po-
pulação volta-se contra essas próprias elites de
duas formas: em primeiro lugar, porque só um
grande mercado consumidor permite a econo-
mia de escala sem a qual as empresasoo
competitivas e, em segundo lugar, o medo. Por
isso a Bolsa-Escola, uma política pública de as-
sistência social com foco
na permanência das cri-
anças na escola.
Essas preocupações
permitiram que se rom-
pesse o imobilismo e se
conseguisse, finalmente,
aprovar no Congresso
uma nova Lei de Diretri-
zes e Bases. Nesta nova
LDB, buscou-se garantir
o só o acesso universal
à escola mas também favorecer a progressão den-
tro dela. O esforço de desmontar a armadilha
excludente da repetência aparece na LDB como
possibilidade. É a progressão continuada dentro de
ciclos. É interessante notar que foram os estados
mais desenvolvidos que optaram pela organização
da escola em ciclos.
E com ela recomeça a gritaria sobre a perda
da qualidade da escola pública. Revistas e jor-
naism andado cheios de matérias sobre alu-
nos analfabetos na 6
§
e na 7- séries. Como é pos-
sível que alguém passe cinco ou seis anos na
escola eo aprenda nem a ler?
Em recente experiência acompanhando
projeto de formação em serviço em um muni-
cípio nordestino' foi possível analisar um fenô-
meno de que tínhamos notícia, mas que nunca
havia sido empiricamente verificado e, princi-
palmente, nunca tinha sido quantificado: os
professoresm dificuldade para reconhecer o
quanto seus alunos aprenderam e se estão ou
o em condições de serem aprovados para a
série seguinte.
o que vemos no quadro abaixo é o resulta-
do de uma ação cujo objetivo era ao mesmo
tempo de avaliação e de formação. A intenção
primeira era informar o olhar dos educadores
em formação, utilizando um instrumento que
permitisse analisar as idéias dos alunos sobre
o sistema de escrita - e, portanto, avaliar com
razoável precisão se todas as crianças do mu-
nicípio que estavam na escola estariam ouo
alfabetizadas.
l
série
2
9
série
3ª série
4
a
série
Total
Alunos com escritos
anteriores à
fonetização
586 (45%)
30
(4%)
Alunos com
escritas
silábicas
276 (22%)
21 (3%)
Alunos com
escritos silábico-
alfabéticas
189(15%)
103(14%)
Alunos com
escritas
alfabéticas
225(18%)
578
(79%)
452(100%)
162(100%)
% de alunos
1.276(49%)
732 (28%)
452(17%)
162(6%)
2.622 (100%)
3
Projeto desenvolvido no município de Batalha. Alagoas. Alguma informação sobre esse projeto pode ser encontrada no número 129
(mar./abr. 2000) da revista Nova Escola, Editora Abril.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
o que encontramos aponta para a enorme
dificuldade quem os professores de verificar
o que os alunos já sabem e o que eleso sa-
bem. Se considerarmos os alunos que produ-
zem escritas silábico-alfabéticas e alfabéticas na
lª série, no início do ano - 414 alunos, 33% dos
alunos da lª série - e que poderiam perfeita-
mente acompanhar uma 2- série pois podem ler
e escrever, ainda que com precariedade, verifi-
camos que esses alunos foram retidos porque
os professoreso tiveram condições de avali-
ar adequadamente e acabaram utilizando indi-
cadores como "letra bonita" ou "caderno bem
feito" para decidir o destino escolar de seus alu-
nos. Quando o professor trabalha com este tipo
de indicador, até avanços na aprendizagem aca-
bam prejudicando o aluno. Por exemplo, quan-
do o aluno aprende a ler, é comum que ele co-
mece a "errar" na cópia. Isto é, deixa de copiar
letra por letra e começa a ler e a escrever gran-
des blocos de palavras, em geral unidades de
sentido, o que faz com que cometa erros de or-
tografia ou escreva palavras grudadas. Isto, que
é na verdade indicador de progresso, acaba sen-
do interpretado como regressão, pois o profes-
soro tem clara a diferença entre copiar e es-
crever. Constatação reforçada por outro dado
interessante: a presença de 51 alunos não-lei-
tores (7%) na 2ª série. Estes alunos foram pro-
movidos porque eram bons copistas e isso pa-
rece ter impedido o professor de perceber que
o sabiam ler e escrever.
Os números da última coluna da tabela aci-
ma, queooo diferentes do que acontece
no resto do país, mostram o impacto da cultura
da repetência: 49% dos alunos estão na 1
a
série,
28% estão na 2ª série, 17% na 3
a
série e apenas
6% conseguiram chegar à 4ª série.
É de situações como essa que estamos
partindo ao buscar saídas para a cultura da
repetência, com a ambição de criar uma edu-
cação menos exclusora. E nossa falta de cla-
reza sobre a questão vem, também, de longa
data. Darcy Ribeiro costumava dizer que atri-
buir nossos extraordinários índices de fracas-
so escolar a uma hipotética incompetência da
escola era uma rematada tolice. Que a nossa
escola erao só competente como eficiente
pois preparava 50% da população para acei-
tar a exclusão social e atribuí-la à sua própria
incapacidade.
Na mesma época em que os dados acima
foram colhidos, começou a ser desenvolvido
um programa do MEC chamado PCN em
Ação, que tinha dois objetivos:
1. Oferecer - principalmente às Secretarias
Municipais de Educação - uma referência
metodológica para a formação de profes-
sores em serviço.
2. Ajudar a compreender os marcos teóricos
dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
À medida que o Programa era desenvolvi-
do em dois mil municípios, foi ficando clara
- principalmente para os próprios professo-
res - a dificuldade que eles tinham com a al-
fabetização. Começou-se então a produzir um
programa específico de formação de profes-
sores alfabetizadores, com duração de um
ano, que ficou conhecido como PROFA. Es-
pera-se que este Programa - que está, neste
momento, sendo desenvolvido em 1.188 mu-
nicípios de 22 estados, atingindo 75.436 pro-
fessores - ajude a desmontar a armadilha que
tem tornado a escola pública brasileira uma
fábrica de analfabetos. Um instrumento po-
deroso na perpetuação da miséria.
A alfabetização e a formação
de professores nas diferentes
etapas educacionais
Ana Teberosky
Universidade de Barcelona/Espanha
As últimas reformas educacionais propuse-
ram objetivos como o de lograr melhores resul-
tados escolares, acomodar as respostas instrucio-
nais à diversidade dos estudantes e fazer com que
os alunos aprendam criativa, produtiva e reflexi-
vamente. Esses objetivos educacionais implicam
enormes pressões e exigências tanto para os alu-
nos como para os professores. Exigem professo-
res muito bem formados, com muitas capacida-
des e habilidades, professores que entendam tan-
to de aprendizagem como de ensino, que este-
jam familiarizados com perspectivas interdisci-
plinares e possam criar pontes entre as experiên-
cias dos alunos e os objetivos curriculares
(darling-Hammond, 1994:5). A área de ensino da
linguagem oral e escrita apresenta, além das exi-
gências anteriores, algumas particularidades. É
uma área na qual ocorreram, nos últimos anos,
profundas mudanças em decorrência dos novos
conceitos e resultados de pesquisas sobre apren-
dizagem e também da reflexão sobre a importân-
cia do papel que ela desempenha na cultura e na
educação. Essas mudanças suscitam uma série de
necessidades no terreno da formação dos profes-
sores: a necessidade de um conhecimento mais
formal e teórico para que os professores se atua-
lizem e adquiram mais conhecimentos diversifi-
cados; e a necessidade de desenvolver esse co-
nhecimento no contexto menos formal da práti-
ca na sala de aula.
A formação do professor implica um aspec-
to teórico e formal e outro prático e contextual.
Embora freqüentemente influenciemos o pri-
meiro tipo de conhecimento (o teórico), o co-
nhecimento que se desenvolve com a prática
geralmenteo é assistido. Nesse contexto, o
professor continua isolado e sozinho com um
conhecimento práticoo contrastado ou de-
batido publicamente e que muitas vezes é im-
plícito. Contudo, as maiores exigências profissio-
nais impostas aos docentes dizem respeito a este
segundo tipo de conhecimento: o conhecimen-
to prático e a habilidade necessária para desen-
volver aprendizagens nos alunos, fazer uma ava-
liação razoável dessas aprendizagens e ser flexí-
vel para adaptar-se ao desenvolvimento de no-
vas tecnologias da informação e da comunica-
ção, entre outros aspectos. Na oportunidade des-
te seminário, pretendo abordar algumas ques-
tões relacionadas ao ensino da linguagem, levan-
do em consideração esses dois aspectos da for-
mação. Essas questões se referem:
às adaptações necessárias dos conhecimen-
tos teóricos para adequar a formação dos
professores ao estado atual da questão; e
a algumas experiências de intervenção que
exemplificam adaptações introduzidas no
nível da prática na sala de aula.
Adaptações de conhecimentos
teóricos na formação
dos professores
Entre as adaptações dos conhecimentos
necessários para adequar a formação dos pro-
fessores à situação atual, vamos abordar o que
os professores precisam saber sobre a lingua-
gem e o que precisam saber sobre os processos
dos alunos na aprendizagem e sobre seus pró-
prios processos psicológicos.
0 que os professores precisam saber
sobre a linguagem para ensiná-la
Todos os locutores, como falantes de uma
língua, possuem um conhecimento intuitivo ou
espontâneo da linguagem, que é diferente do
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
conhecimento abstrato, reflexivo e formal do es-
pecialista (Reichler-Béguelin, 1993). Um tipo de
conhecimento é implícito, o outro, explícito.
Entre um e outroo existe uma dicotomia to-
tal, e sim um contínuo, uma gradação de situa-
ções que tomam a linguagem como objeto sem
chegar a uma representação reflexiva totalmen-
te analítica. No meio desse contínuo podemos
situar a linguagem escrita, a linguagem poética
e determinadas criações que subvertem o uso
cotidiano (como a ironia, as piadas).
Onde situamos a aprendizagem do aluno
nessa gradação? As discussões sobre a aprendi-
zagem, por exemplo, da leitura ou do vocabulá-
rio dividem os autores entre os que defendem
uma aprendizagem intencional e reflexiva e os
que defendem uma aprendizagem incidental e
implícita. Os primeiros defenderiam o ensino
fônico na leitura inicial e os segundos defende-
riam a linguagem integral. No entanto, muitos
estudos demonstraram que pouco se aprende
como resultado de uma instrução direta.
Onde podemos situar as exigências impos-
tas ao professor nessa gradação? É suficiente que
o professor seja um locutor intuitivo, com per-
cepções intuitivas ou ele deve ser um locutor
reflexivo, analítico e consciente de sua língua?
Durante muito tempo, acreditou-se que o conhe-
cimento intuitivo seria suficiente e que a utili-
zação de um método introspectivo de consulta
proporcionaria um acesso objetivo a esse saber
subjetivo. Essa consulta permitia ao professor
diferenciar o correto do incorreto, o gramatical
do não-gramatical. No entanto, muitos autores
atuais questionam essa idéia: além deo ser su-
ficiente, a intuição do adulto freqüentemente
interfere. Interfere na compreensão do processo
de aprendizagem dos alunos. Pesquisas
sociolingüísticas, por sua vez, evidenciaram que
nem todas as pessoasm a mesma intuição so-
bre a língua, por tratar-se de um conhecimento
queo está homogeneamente distribuído en-
tre a população: ele varia de acordo com diver-
sos fatores contextuais, como a idade, a classe
social, o nível educacional, o gênero, a profissão,
o lugar e a situação (Duranti, 2000).
o que provoca essa interferência? Quando se
faz uma consulta ao saber intuitivo para se deci-
dir se algo é correto, gramatical, adequado etc,
já ocorre um mínimo de reflexão. No entanto, a
que podemos atribuir a heterogeneidade na re-
flexão sobre a linguagem, na representação so-
bre as unidades da língua? Existe alguma rela-
ção entre a capacidade de reflexão e as práticas
letradas? Esse problema é diferente em grupos
humanos nos quais a escrita está reservada a
uma pequena parcela da sociedade? Ele é dife-
rente em países que apresentam um baixo nível
de alfabetização? (Blanche-Benveniste, 1998).
Entre o conhecimento intuitivo e o reflexivo,
entre o conhecimento do aluno e o conhecimen-
to do professor e entre os conhecimentos dos
mesmos professores, considerados em suas di-
ferenças individuais e sociais, está a escrita
(Halliday, 1993; Blanche-Benveniste, 1998). A
aprendizagem e o uso da escrita marcam dife-
renças claras entre os locutores; por exemplo,
o se pode estudar (refletir, analisar, ensinar) a
linguagem sem a ajuda da escrita.o se pode
fazer uma análise das palavras, dos componen-
tes de uma palavra ou de diferentes formas de
consciência lingüística sem a ajuda de algum tipo
de representação escrita.
o reconhecimento do papel fundamental de-
sempenhado pela escrita na reflexão e análise da
língua provoca uma segunda tensão no ensino da
linguagem: o que os professores estão ensinando
em suas aulas de linguagem? Durante muito tem-
po, essa tensão foi deixada de lado pela orienta-
ção prescritiva do ensino: ensinava-se o que a
norma convencional estabelecia. No entanto,
muitos autores atualmente acreditam que a re-
presentação normativa escrita da língua também
interfere no seu ensino. Novamente, esses auto-
res evidenciaram, por exemplo, que a represen-
tação normativa escrita impede que o professor
"ouça" o verdadeiro discurso oral do aluno e afe-
ta sua capacidade de "ler" os textos escritos dos
iniciantes ou de "permitir" erros como constru-
ções provisórias e o espontâneo como expressão
do nível real de produção etc. Essa representação
normativa escrita interfere porque exige que o
professor assuma uma atitude de correção das
produções dos alunos, eo de interpretação
num contexto de aprendizagem.
As pesquisas educacionais e sociolingüísticas
mostraram que a norma lingüísticao é neutra
do ponto de vista social e cultural: alguns gru-
pos estão mais próximos que outros da norma
escolar porque receberam instrução de acordo
com essas convenções.
Portanto, hoje sabemos que o conhecimen-
to necessário da linguagem para o ensinoo
pode consistir na intuição do professor e tam-
pouco num saber inconsciente da diferença en-
tre norma e dados lingüísticos. No entanto, in-
tuição, reflexão e norma intervêm no ensino
como conhecimentos necessários, ainda que
distribuídos de outra maneira. Dissemos acima
que as necessidades de formação dos professo-
res consistiam num conhecimento formal e te-
órico e num conhecimento prático e contextual.
No ato de ensinar, esses conhecimentosoo
simples. Na verdade,o bem complexos. O co-
nhecimento teórico implica um saber sobre um
saber: um saber sobre o saber intuitivo e implí-
cito do aluno como sujeito que aprende no pro-
cesso de apresentarmos a ele o saber da lingua,
como objeto de ensino. No entanto, em seu de-
senvolvimento contextual e prático,o é um
simples processo de transmissão direta, e sim
um complexo processo de participação ativa
tanto do professor como do aluno, no qual o
professor desempenha um papel de modelo e
uma função de modelação. Na função de
modelação, o professor participa como sujeito,
como ouvinte/falante e leitor/escritor da lín-
gua. Por isso, todo ato de ensino e aprendiza-
gem é intersubjetivo, numa intersubjetividade
desigual no que diz respeito ao conhecimento
e diferente no que diz respeito às funções.
Portanto, os professores precisam ter um co-
nhecimento psicológico e um conhecimento do
conteúdo (a linguagem oral e escrita) que lhes per-
mitam fundamentar suas decisões curriculares e
sua função pedagógica. Alguns desses conheci-
mentos que o professor deve possuir e funções que
ele deve desempenhar para satisfazer as necessi-
dades atuais do ensino e da aprendizagem da lín-
guao os que seguem (Fillmore e Snow, 2000).
Conhecimento lingüístico
e função comunicativa
A mudança nas perspectivas de ensino da lín-
gua pode ser descrita como da normativa ao in-
tercâmbio comunicativo e deste à linguagem for-
mal. De fato, já se reconhece, há muito tempo,
que o conhecimento lingüístico do professoro
reside somente na gramática ou na ortografia
normativa, mas também em suas habilidades
pragmáticas de intercâmbio comunicativo, rela-
cionadas a sua função de promover a maior par-
ticipação possível dos estudantes em situações
de produção e intercâmbio de linguagem. Para
alcançar esse objetivo, segundo Fillmore e Snow
(2000), o professor precisa estruturar sua própria
linguagem com clareza e, ao mesmo tempo, en-
tender o que os alunos dizem.
No entanto, sabemos atualmente que esse
princípio de intercâmbio comunicativo entre
professor e alunoo é suficiente para se alcan-
çarem os objetivos de ensinar a linguagem. Os
requisitos acadêmicos exigem que se vá além da
situação comunicativa, porque nem todo regis-
tro de linguagem serve para a aprendizagem aca-
dêmica. Somente o discurso formal e os textos
escritos oferecem o vocabulário, as estruturas
gramaticais, a fraseologia e a retórica que se as-
sociam ao registro acadêmico (Fillmore e Snow,
2000), ou seja, os contextos acadêmicos exigem
uma linguagem oral formal e uma linguagem es-
crita queo diferentes da linguagem cotidiana.
Conhecimento pedagógico
e função avaliadora
Uma das maiores responsabilidades dos
professores está relacionada à função de avalia-
ção: um juízo do professor pode ter enormes
conseqüências para a vida das crianças, afir-
mam acertadamente Fillmore e Snow (2000).
Por exemplo, a afirmação de um professor de
que um aluno é disléxico, imaturo ou lento pode
ter grandes repercussões em seu destino edu-
cacional. As decisões pedagógicas relacionadas
à avaliação, como a promoção ou a repetição, a
classificação para a inserção de um aluno num
grupo ou outro etc. tambémm grandes con-
seqüências para ele.
o conhecimento pedagógico que intervém no
processo de avaliaçãoo reside somente na pron-
tidão para detectar erros e corrigi-los; reside na
capacidade de distinguir diferentes tipos de erros,
de diferenciar erros e desvios, de separar o conhe-
cimento insuficiente do obstáculo cognitivo.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
Conhecimento letrado e função de
socialização
o objetivo do professor é a aprendizagem do
aluno. Poucas dessas aprendizagens podem ser
adquiridas por meio de uma instrução direta; a
grande maioria ocorre em conseqüência de pro-
cessos de reorganização de conhecimentos an-
teriores. Esses processoso individuais, mas
também sociais.
Por exemplo, a aprendizagem inicial da lei-
tura e da escrita pode ser vista como uma ini-
ciação num código por instrução direta ou
pode ser orientada como a aprendizagem de
comportamentos letrados, na qualo existe
uma delimitação clara entre pré-leitor e leitor,
entre pré-escritor e escritor, e na qual também
o há um início, um ponto zero. A separação
em dois momentos só é aceitável para os que
m uma postura normativa e esperam que
todas as aprendizagens sejam convencionais.
É por isso que o professor deve desempenhar
uma função de socialização, para dar lugar à
elaboração de conhecimentos a partir de prá-
ticas letradas: uma função de interação com
leitores, com material escrito e com os conhe-
cimentos socialmente transmitidos pelos adul-
tos. Esses conhecimentos parecem estar influ-
enciados pelas condições do ambiente: desen-
volvem-se melhor quando o ambiente
alfabetizador é rico em materiais escritos e em
interações e práticas letradas.
0 conhecimento psicológico necessário
no ato pedagógico
A intersubjetividade do ensino que mencio-
namos anteriormente implica uma capacidade
própria dos seres humanos: a capacidade de
atenção conjunta que lhes permite entrar numa
tríade de interação com outro ser humano, a
partir de um objeto. Davidson (1985, apud
Olson e Kamawar, 1999: 160) chama essa capa-
cidade de "metáfora da triangulação". Trata-se
de uma capacidade que exige duas perspecti-
vas e um objeto, ou seja, duas criaturas que cri-
am um conhecimento comum sobre uma reali-
dade objetiva compartilhada. Diferentemente
de qualquer ação casual, uma ação com fins
pedagógicos entre duas pessoas, com duas pers-
pectivas e um conteúdo, implica intenção.
A intenção nas relações triangulares pode ter
diversas formas de expressão. Por exemplo, ela
pode expressar-se por ações ou por ações e pa-
lavras. Essas formas de expressãom significa-
dos (Feldman, 1999). Ao ter significados, exigem
uma interpretação, porque, para compreendera
intenção, é preciso que se tenha uma interpre-
tação de seus significados. Isso se aplica tanto à
intenção simples de uma ação individual como
a um complexo conjunto de intenções sociais.
A intencionalidadeo pode estar desvin-
culada da interpretação (Feldman, 1999: 312),
mas a aprendizagem da interpretação é um
exercício psicológico complexo, que implica a
capacidade de entender a vida interna de ou-
tra pessoa, a partir da expressão verbal ou da
ação. Interpretar é um exercício complexo, mas
ele ajuda o intérprete a considerar as ações ou
os enunciados dos outros antes ou depois de
sua ocorrência.
Qual seria, então, a relação entre a linguagem
e a intenção? A linguagem depende da intenção,
porque falar é expressar idéias, crenças, pensa-
mentos e interpretar é atribuir idéias, crenças
etc. Inversamente, a intençãoo depende da
linguagem, ou seja, pode haver intenção sem lin-
guagem, como vemos, por exemplo, ocorrer en-
tre primatas, queo capazes de entender e de
expressar intenções (Tomasello, 1998).
Na relação educacional entre um adulto e
uma criança, a interpretação da intenção apre-
senta algumas particularidades. Podemos atri-
buir à criança conhecimentos (crenças, senti-
mentos e intenções) que elao pode atribuir
a si própria; inversamente, ela pode atribuir-
se conhecimentos quando lhe atribuímos erro
ou ignorância. Olson e Kamawar (1999: 157)
analisam essas assimetrias: no primeiro caso,
a criança está numa posição intencional dife-
rente da do adulto, mas o adulto decide atuar
como se estivessem na mesma posição, como
se ela tivesse conhecimentos, sentimentos e
intenções. Por exemplo, ae que fala com
seu bebê como se ele pudesse entender tudo
que ela diz. No segundo caso, a criança já de-
senvolveu a capacidade de se atribuir inten-
ções, embora possa equivocar-se no conteú-
do. Quando percebe o erro, ela pode sofrer uma
decepção ou reconhecer seu erro; em ambos
os casos, ela é capaz de saber que sabe, ou seja,
ela é capaz de uma metarrepresentação ou de
uma representação sobre a representação (um
conhecimento sobre o conhecimento). Por
exemplo, quando as crianças dizem "achei que
se escrevia com 's', mas depois vi que era com
'c'". É o "dar-se conta" de sua própria crença. O adulto aproveita essa capacidade para influ-
enciar as crenças, sentimentos e conhecimen-
tos das crianças. Portanto, o ato de ensinar é
um ato psicológico.
A distinção entre o conhecimento intuitivo
do usuário da linguagem, a intervenção do pro-
fessor para ampliar os contextos de uso no sen-
tido de que incluao só a linguagem cotidia-
na, mas também a linguagem oral formal e a lin-
guagem escrita, e a atuação sobre o "dar-se con-
ta" ou a metarrepresentação corresponde à dis-
tinção feita por M. Halliday (1982) entre três
fases do desenvolvimento da linguagem e dos
propósitos educacionais relacionados: aprender
a linguagem (conhecimento intuitivo), apren-
der por meio da linguagem (linguagem oral for-
mal e escrita) e aprender sobre a linguagem
(metarrepresentação).
Experiências de intervenção
que exemplificam adaptações
de diferentes etapas
educacionais na prática
As pesquisas atuais sobre propostas de in-
tervenção educacionais fazem dos processos
psicológicos de aprendizagem dos alunos o
centro e foco do currículo escolar. Hiebert e
Taylor (2000; Hiebert, 2000) chamam de "in-
tervenção" os projetos que consistem: a) na
análise desses processos de aprendizagem dos
alunos; e b) na análise das tarefas escolares
para adaptá-las a esses processos de aprendi-
zagem. Seu objetivo é programar a instrução
com base no conhecimento dos processos psi-
cológicos, eo tanto no estudo de uma téc-
nica ou método específicos.
Atualmente, dispomos de modelos de
aprendizagem da linguagem, da leitura e da es-
crita, bem como de experiências de ensino nos
contextos escolares. Apoiados em ambos, os
programas de intervenção com adaptação de
objetivos e atividades aos diferentes níveis
evolutivos começaram a oferecer respostas e
resultados alentadores (Snow, 1998). Mais que
dar suporte exclusivo a um processo singular,
esses programas pretendem considerar o con-
junto dos processos de aprendizagem simulta-
neamente. Nesse sentido, as propostas de in-
tervenção (que procuram integrar diferentes as-
pectos) constituem um bom ponto de partida
em relação às propostas instrucionais do pas-
sado, que enfatizavam exclusivamente um com-
ponente, como, por exemplo, o ensino da
decodificação de forma explícita e exclusiva.
Esses projetos geralmenteo experimentais e
implicam a formação de professores (as) e a as-
sistência de pesquisadores.
Para exemplificar essa consideração simul-
tânea de todos os componentes, podemos pen-
sar nas competências dos alunos e dos profes-
sores como usuários da linguagem: sua capaci-
dade de ouvir, falar, ler e escrever e os conteú-
dos sobre o que se ouve, fala, lê ou escreve. Uma
das funções do professor é criar contextos nos
quais essas competências se relacionem e se de-
senvolvam. Uma segunda responsabilidade re-
side na intervenção para oferecer modelos que
direcionem esses desenvolvimentos, como vi-
mos no parágrafo anterior. E, finalmente, uma
terceira função consiste em escolher conteúdos
apropriados e de interesse para os alunos
(Richmond, 1990).
Experiências que exemplificam
adaptações do ponto de vista da
relação entre componentes
Uma consideração simultânea dos compo-
nentes do ponto de vista dos contextos deve
apresentá-los de maneira estreitamente relacio-
nada, como proposto na figura à direita (adap-
tada de Richmond, 1990).
Vejamos alguns exemplos dessa abordagem
da consideração simultânea.
Na pré-escola
Embora na pré-escola os programas de in-
tervenção sejam díspares, muitos deles promo-
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
vem essa abordagem integral com atividades
como: a) leituras em voz alta de narrativas e
comentários orais sobre essas leituras; b) es-
crita de palavras de um vocabulário estabele-
cido como vocabulário-chave extraído dessas
leituras; c) identificação dessas palavras e co-
mentários sobre a relação letra/som em algu-
mas palavras aprendidas. Alguns estudos in-
cluem também: d) atividades de consciência
metalingüística de forma indireta, com tarefas
como a recitação oral de poemas, rimas e
aliteração e atividades diretas como o "canti-
nho da escrita"; e e) reescrita das narrações li-
das. Outros estudos enfatizam aspectos soci-
ais, como, por exemplo, as relações com a fa-
mília e o empréstimo de livros nos fins de se-
mana, bem como a releitura desses livros na
escola e em casa.
Entre os objetivos dessas intervenções,
Hiebert e Taylor (2000) e Teberosky (2001)
mencionam o desenvolvimento de concei-
tos sobre a palavra impressa, experiência
com a linguagem escrita, experiências com
livros e sua manipulação, aprendizagem dos
nomes das letras, desenvolvimento da cons-
ciência fonológica, reconhecimento e escri-
ta de palavras.
As atividades mais freqüentes são:
leitura de livros, incluindo períodos de
conversação e comentários sobre o que foi
lido, juntamente com leituras e releituras
repetidas de forma independente por par-
te da criança;
escrita de palavras, pequenos enunciados
e textos, após a leitura;
reconhecimento de palavras;
jogos de palavras e reconhecimento de re-
lações entre letras e sons.
No primeiro grau
Seguindo a linha da pré-escola, as propostas
para o primeiro grau incluem leituras de livros
familiares e não-familiares, escrita de palavras e
textos, instrução sobre a relação letra/som e re-
conhecimento de palavras. A seleção de livros e
a utilização de diversos textos, eo de um úni-
co texto,o muito enfatizadas. Os programas
caracterizam-se por tentar integrar os diferen-
tes aspectos da alfabetização: leitura e escrita,
linguagem oral, metacognição e automatismos,
consciência fonológica e escrita etc.
Os objetivos consistem em garantir os pa-
drões da relação entre letras e sons, a denomi-
nação das letras, o desenvolvimento de estra-
tégias adequadas ao sistema de escrita, o re-
conhecimento de palavras e o desenvolvimen-
to de estratégias de compreensão.
No segundo grau
Nesse período, enfatiza-se, principalmente,
o desenvolvimento de automatismos de reco-
nhecimento de palavras, maso no sentido
estreito da ênfase fonológica, com exclusão do
significado, e sim num sentido amplo, sem pre-
judicar a leitura e a compreensão de textos.
Os objetivos dessa etapa concentram-se
em promover o reconhecimento de palavras,
a fluidez e a automatização, e também a com-
preensão dos textos.
Nos graus médios
Uma consideração simultânea dos compo-
nentes do ponto de vista dos conteúdos deve
apresentá-los no contexto de sua relação com
outras áreas do currículo escolar.
Nas últimas décadas, o enfoque do ensino
da linguagem mudou no sentido de enfatizar
mais a diversidade de tipos de textos e gêneros,
em oposição à pedagogia do texto único; e de
estabelecer uma maior relação entre alfabeti-
zação, literatura e outras áreas do currículo, em
oposição à pedagogia baseada no ensino direto
de habilidades específicas. A inclusão de textos
literários nos currículos de leitura e escrita foi
favorecida pela disponibilidade de literatura
infantil de qualidade, pela difusão de movimen-
tos pedagógicos do tipo "linguagem integral" e
pela importância da resposta do leitor, propos-
ta pela teoria da leitura participativa (Morrow e
Gambrell, 2000). Esse movimento aponta para
resultados promissores, como observado em
diferentes pesquisas. Esses resultados indicam
que o interesse das crianças aumentou, que
suas atitudes mudaram e que elas apresenta-
ram desenvolvimentos importantes em relação
a aspectos lingüísticos (vocabulário, sintaxe) e
cognitivos (conhecimento conceituai).
Essa mudança exige uma melhor forma-
ção dos(as) professores(as) em relação à li-
teratura infantil, à sua capacidade de selecio-
nar livros adequados (diferentemente do tex-
to único previamente selecionado pelo Mi-
nistério da Educação e pelas editoras), ao
tipo de materiais, ao ambiente na sala de
aula e às relações sociais com as crianças e
suas famílias.
Propostas para a relação entre
alfabetização e ciência
Vamos descrever mais detalhadamente a
relação entre a alfabetização e a Ciência. Além
da literatura, o ensino da linguagem pode
também estar relacionado à Ciência. A Ciên-
cia e a linguagem oral e escritaoo domí-
nios fechados e separados no contexto da ati-
vidade cognitiva da criança; pelo contrário, o
interesse pelos objetos do mundo é um bom
aliado da leitura e da escrita. A leitura e a es-
critao instrumentos básicos para a apren-
dizagem, a reflexão e a comunicação do co-
nhecimento científico.
Atualmente, fala-se em "alfabetização cien-
tífica" (por exemplo, o Project 2061) como um
meio de se alcançarem objetivos letrados na
área da Ciência. Para lograr uma "alfabetiza-
ção científica", um aspecto importante é a ca-
pacidade de compreender e representar pro-
blemas científicos em termos lingüísticos e de
recursos gráficos escritos na forma de textos,
tabelas ou diagramas.
Como podemos alcançar esses objetivos da
"alfabetização científica"? Para alcançá-los,
os(as) professores(as) precisam estar bem in-
formados sobre o desenvolvimento dos conhe-
cimentos científicos da criança e sobre sua re-
lação com a linguagem e a escrita.
Precisam saber, por exemplo, que entre os
cinco e seis anos de idade os meninos e as me-
ninas estão em pleno processo de descobri-
mento e exploração do mundo. Os objetos e
os espaços, o mundo dos seres vivos, os fenô-
menos da natureza e os outros seres huma-
nos atraem sua atenção e interesse. Do ponto
de vista do conhecimento, cada tipo de obje-
to do mundo tem suas particularidades. O
menino ou a menina percebe, por exemplo,
que os seres vivos se diferenciam dos objetos
inertes por sua capacidade de (auto) movi-
mento, que as plantasm capacidade de
crescimento e que os seres humanos se dife-
renciam dos objetos inertes e das plantas pe-
las intenções que colocam em seus movimen-
tos e ações (Wellman e Gelman, 1998). As cri-
anças desenvolvem conceitos ao perceberem
os distintos conteúdos do mundo, constróem
esses conceitos sobre explicações causais (por
exemplo, um ser vivo é caracterizado como tal
"porque se move") e aprendem que os conteú-
dos do mundom nomes diferentes. Ou seja,
para entender o mundo, as crianças desenvol-
vem conceitualizações que relacionam con-
ceitos, causas e nomes.
A linguagem intervém nessas conceitua-
lizações do mundo num conhecimento que
chamamos de declarativo, para diferenciá-lo
do conhecimento procedimental e do conhe-
cimento estratégico. Por exemplo, numa situa-
ção de interação entre crianças, Josep, de cin-
co anos, aponta para um letreiro e diz a um
amiguinho: "Ali diz 'elefante'. É seu nome". Esse
tipo de intercâmbio pode ser categorizado
como conhecimento declarativo, porque indi-
ca que Josep "sabe" o que o letreiro contém e
sua função.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
Em suas atividades, as crianças também
demonstram conhecimento sobre como fazer
alguma coisa ao desenvolverem uma série de
ações relacionadas. Por exemplo, o mesmo me-
nino Josep abre um livro, gira-o de modo a
colocá-lo na posição correta para a leitura, co-
meça a lê-lo pela página da esquerda e depois
passa para a página da direita; em ambos os
casos, orienta seu olhar de cima para baixo e
da esquerda para a direita. Essa série de ações
indica que o menino tem um conhecimento
procedimental, que ele "sabe como" se deve ler
um livro, que tem informação sobre a rotina
da leitura de livros.
Além disso, Josep tem objetivos comuni-
cativos com seu colega. Por exemplo, ele o
corrige quando está escrevendo um texto:
"Não é assim que se escreve B. Olha como se
faz (pega o lápis e escreve B)". Apresenta, tam-
bém, comportamentos de controle sobre seu
próprio processo de aprendizagem quando
afirma: "Droga! Errei. Queria colocar 'elefan-
te' e coloquei...o sei, errei". Comentários
desse tipo indicam conhecimento estratégi-
co, indicam saber sobre como algo deve ser ou
sobre como se deve fazer algo para se chegar
a um fim. Como vimos anteriormente, trata-
se de um tipo de conhecimento intencional,
que revela consciência de objetivos e compre-
ensão do que se deve fazer para alcançá-los. O controle da própria conduta, a ajuda, a
autocorreção, a correção de coisas que outros
estão fazendo,o expressões desse tipo de
conhecimento estratégico.
A aprendizagem da linguagem, da leitura
e da escrita, bem como a aprendizagem da
Ciência, implicam esses três tipos de conhe-
cimento.
A alfabetização científica
A resposta mais clássica do ensino da Ci-
ência consistia em encará-la como conteú-
do: um conjunto de fatos, princípios e leis
que descrevem o mundo. Essa perspectiva di-
ficultava a alfabetização científica dos mais
pequenos, pois elesom a capacidade de
entender e aprender esse conteúdo em tex-
tos escritos. Como reação a essa postura
enciclopedista, uma segunda resposta con-
sistiu em recomendar aos professores que
encarassem a Ciência como ela é vista no
contexto do próprio método científico. A re-
comendação é que eles deveriam "fazer ci-
ência" imitando o método científico, mais
que ensinar ou aprender fatos, princípios ou
leis. Nessa segunda perspectiva, enfati-
zavam-se os aspectos mais ativos da apren-
dizagem, mas ainda assim a alfabetização
científica era difícil. Um exemplo consistia
em encarar o contato com a Ciência como
um processo prático que oferecia ao menino
e à menina oportunidades para observar, ex-
perimentar e manipular as coisas do mundo,
começando pelo ambiente mais próximo,
sem afastar-se demasiadamente do saber in-
tuitivo e usando "as próprias palavras" dos
alunos (Halliday e Martin, 1993). Uma das
conseqüências dessa segunda perspectiva foi
uma aprendizagem totalmente prática e oral,
que adiava qualquer contato com textos ci-
entíficos para um momento posterior do pro-
cesso de escolarização.
Essas duas perspectivas passaram ao lar-
go do que hoje é conhecido como "alfabeti-
zação científica", que faz referência ao fato
de que a Ciência é texto científico também.
A representação que se tinha da Ciência es-
tava associada ao laboratório, ao uso de apa-
relhos, à observação e à experimentação.
Muito raramente ela era associada à lingua-
gem ou à escrita. No entanto, os instrumen-
tos dos cientistaso se resumem a apare-
lhos: as palavras e os textoso instrumen-
tos técnicos também, particularmente os ter-
mos técnicos e os textos explicativos. Para
explicar e comunicar resultados científicos,
o necessários textos e diagramas, tabelas
etc, que normalmente os acompanham. Para
aprender Ciênciao necessários textos pe-
los quais resultados, processos e fatoso
difundidos. Atualmente, a perspectiva é mais
equilibrada e se enfatiza igualmente tanto a
aprendizagem oriunda da experimentação
como aquela oriunda do conteúdo e dos tex-
tos científicos.
A alfabetização científica exige um tipo de
escrita diferente da escrita de outras discipli-
nas do currículo. Ela exige um gênero próprio,
o expositivo, com termos técnicos e um tipo
especial de gramática. Por exemplo, para
compreender termos técnicos, precisamos in-
troduzir sua definição.
As definições implicam enunciados
relacionais que geralmente condensam mui-
tas informações. A função das definições é
trasladar o conhecimento de sentido comum
ao conhecimento científico por meio dessa
condensação. Por exemplo, em vez de expli-
carmos que "a fêmea do canguruo tem pla-
centa e sim uma bolsa externa no ventre onde
ocorre o desenvolvimento embrionário de
suas crias"; essa explicação é compactada na
expressão "o canguru é um mamífero marsu-
pial". A aprendizagem do vocabulário e das
definições é ampla e complexa: usa-se um ter-
mo técnico para definir outro termo técnico.
Assim, para sabermos o que um "canguru" é,
precisamos saber o significado das palavras
"mamífero" e "marsupial".
Além de definições, os textos científicos
utilizam diagramas, que servem para tornar
uma classificação visível, como os diagramas
da taxonomia dos seres vivos, que indicam re-
lações entre classes e subclasses, ou as tabelas
de duas colunas, que tornam visível uma cor-
respondência entre termos não-relacionados.
Usam, também, desenhos para mostrar rela-
ções entre partes e o todo. Esses diagramas,
tabelas ou desenhoso acompanhados por
textos explicativos. Ser capaz de ir do diagra-
ma ao texto e do texto ao diagrama é um as-
pecto fundamental da alfabetização científica.
Os textos que apresentam conhecimentos
científicos tambémm suas particularidades.
De acordo com os diferentes aspectos científi-
cos que abordam, suas característicaso dife-
renciadas. Ser capaz de ler e escrever diferen-
tes tipos de textos relacionados aos diferentes
campos científicos é um aspecto fundamental
da alfabetização científica. Existem relatórios de
pesquisas, artigos científicos, relatos de expe-
rimentos, cada um dos quais com suas particu-
laridades "gramaticais". De todos os tipos de
textos usados no campo da Ciência, o relato de
experimentos é o mais adequado para se traba-
lhar com crianças em idade escolar.
Vejamos o seguinte relato de experimen-
to: "A haste do ramo foi cortada e colocada em
água e depois inserida num tubo de cristal fe-
chado numa de suas extremidades. A outra ex-
tremidade foi conectada a um outro tubo de
borracha flexível onde se colocou água".
A característica mais importante do rela-
to de um experimento consiste no uso de ver-
bos na voz passiva, em vez do modo impera-
tivo próprio da linguagem que acompanha ou
organiza a ação. Ao passar a ser um texto es-
crito, a atividade desenvolvida na realização
do experimento, que exigia imperativos (cor-
tar, colocar, inserir, fechar, conectar, colocar),
passou a ser um relato do que se fez. Trata-se,
assim, de uma modificação que dá lugar a um
texto instrutivo expositivo.
Os alunos mais novos entram em contato
com domínios pouco familiares quando co-
meçam a estudar a partir de textos. Inicial-
mente, possuem pouco conhecimento sobre
o tema ou sobre o domínio apresentado no
texto: além disso, esse pouco conhecimento
é fragmentado e superficial. Em grande par-
te, seu esforço é canalizado no sentido de
construir uma base de conhecimento
conceituai em relação ao vocabulário. Con-
seqüentemente, elesm dificuldade para
distinguir uma informação relevante de uma
informação irrelevante, ou o grau de impor-
tância de diferentes conceitos. O pouco co-
nhecimento quem costuma também gerar
pouco interesse pelo que lêem. Um terceiro
fator reside na falta de conhecimento estra-
tégico para procurar e localizar informações
importantes no livro e no texto, a partir de
indicadores estruturais (lingüísticos) e/ou
gráficos.
Os livrosm uma ordem racional (têm di-
visões) e sua apresentação varia de acordo
com seu tipo (ou gênero) para cada campo de
conhecimento. Além disso,m outros ele-
mentos, como notas de rodapé, referências e
citações, que indicam registros textuais visi-
velmente distintos. A função desses elemen-
tos gráficos é validar as informações que apre-
sentam, citando fontes e referências.
o problema dos leitores mais novos é que
elesm pouco conhecimento do conteúdo e
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
desconhecem a função das divisões, dos-
neros e das referências; por essa razão, preci-
sam de uma assistência maior (do professor e
do texto) para poderem construir uma repre-
sentação das informações que leram.
Conclusão
Os requisitos culturais, educacionais e so-
ciais impostos à escolao cada vez maiores,
a população escolar apresenta uma diversida-
de crescente e as autoridades educacionais
continuamente sugerem reformas que pres-
sionam os professores no sentido de dar uma
instrução adequada aos alunos. Para que pos-
sam oferecer essa instrução adequada, os pro-
fessores precisam ter uma formação sempre
atualizada e constante. Nesta apresentação,
defendemos a noção de que a preparação
deve ser tanto teórica como prática, tanto de
informação sobre o conteúdo quanto da for-
mação psicológica necessária para fundamen-
tar decisões pedagógicas.
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As diferentes faces
do analfabetismo
José Rivero*
Unesco/Peru
o analfabetismo é a expressão máxima da
vulnerabilidade educacional. O problema do
analfabetismo reside na desigualdade. A desi-
gualdade no acesso ao conhecimento está vin-
culada à desigualdade no acesso ao bem-es-
tar. Observa-se, nos mapas, uma estreita coin-
cidência entre a localização das populações
mais pobres e a das populações analfabetas e
sem instrução suficiente.
A origem do analfabetismo está associada
à realidade socioeconômica e ao grau de de-
senvolvimento das diferentes regiões de um
país, às diferenças entre os processos de urba-
nização e o atraso rural, às desigualdades edu-
cacionais e aos problemas étnico-culturaiso
resolvidos.
A concepção tradicional que definia as po-
pulações analfabetas em função da ausência da
escrita contrapõe-se à vigência e influência das
práticas orais na região. Essa oralidade, além
de ser um patrimônio de culturas indígenas
ágrafas - com seus modos concretos de criar,
organizar, transmitir e conservar conhecimen-
tos -, também está presente em pessoas de co-
munidades rurais e urbanas que permanece-
ram vários anos no sistema educacional e apre-
sentam sérias dificuldades para utilizar códi-
gos escritos.
No entanto, o analfabetismo também está
associado à ausência de oportunidades de
acesso à escola e sua problemática tem vin-
culação com a baixa qualidade do ensino es-
colar e com os fenômenos da repetência e da
evasão. As concepções tradicionais e a aplica-
ção insuficiente de diversos métodos utiliza-
dos na didática da leitura-escritao possibi-
litaram a muitos estudantes o desenvolvimen-
to de leitura e escrita adequadas.
o fenômeno do analfabetismo "funcional"
é um dos principais resultados dessa situação
acumulada. É produto tanto de insuficiências
no ensino da leitura e da escrita a crianças
como de processos deficientes de alfabetiza-
ção para adultos que, aoo contemplarem
ações sustentadas de reforço e acompanha-
mento, geram consideráveis contingentes de
analfabetos "regressivos", ou seja, de pessoas
que em algum momento aprenderam a ler,
mas, por falta de reforço e uso prático da lei-
tura, perderam a leitura e a escrita como ar-
mas fundamentais para transformar suas con-
dições de existência.
1
o alfabetismo tem sido, por sua vez, fre-
qüentemente qualificado como "direito huma-
no fundamental", por constituir um bem ines-
timável para o indivíduo e para a sociedade
como um todo. Um melhor nível de alfabeti-
zação representa um dos principais indicado-
res do estado de desenvolvimento humano de
um país. No entanto, para influir na melhora
dos distintos níveis da vida humana, a alfabe-
tização precisa caminhar lado a lado com os
demais fatores sociais.
Valorizando-se cada vez mais as expressões
culturais orais e admitindo-se a existência de
novos códigos de comunicação que podem ser
' José Rivero é educador peruano e consultor internacional na área de educação.
' Luis Oscar Londono (1990) apresenta uma concepção atualizada do analfabetismo funcional: "o analfabetismo funcional deve ser entendido
a partir de duas perspectivas. Em primeiro lugar, a partir da modernização e 'tecnologização' da sociedade, que exigem o domínio mais
completo possivel das habilidades, das atitudes, do gosto pela leitura, pela escrita e pela Matemática e, acima de tudo, o desenvolvimento de
processos de pensamento associados à sua aprendizagem: a lógica, a gramática, a argumentação, o diálogo, a crítica, o método. Em
segundo lugar, dado o caráter excludente e de discriminação do modelo vigente em quase todos os países da América Latina, precisamos
entender o analfabetismo funcional a partir de uma perspectiva de transformação, de busca de modelos alternativos de economia, de cultura.
de educação e de sociedade".
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
mais amplamente usados por pessoas queo
possuem códigos escritos, os conceitos de "al-
fabetização", "alfabetismo" e "analfabetismo"
começam a ser relativizados. É mais adequado
falar em "alfabetismos" e "analfabetismos" para
expressar as diferentes formas de expressão e
os distintos níveis que exigem, bem como a
multiplicidade de sentidos que podem adqui-
rir em diferentes culturas. Seguindo essa linha
de raciocínio, todos somos, de alguma manei-
ra, "analfabetos" em relação a alguns tipos de
informação e de conhecimento. O desenvolvi-
mento tecnológico e a expansão ilimitada da
informação disponível ou o uso generalizado de
meios eletrônicos, como computadores, acres-
centam novas matizes à idéia do alfabetismo.
0 analfabetismo em números
dados da Unesco para 1995 indicam que
nossa região tem 43 milhões de pessoas em
condição de analfabetismo absoluto - nenhum
acesso ou domínio de códigos de leitura e es-
crita - e que a idade média das pessoas analfa-
betas aumentou de 43 anos em 1980 para 45
anos em 1995. A América Latina é a única re-
gião do hemisfério sul que registra uma queda
no número total de analfabetos nos últimos
quinze anos; em 1980, esse número era de 44
milhões de pessoas analfabetas (Unesco, 1995).
o caso mais dramático em matéria de anal-
fabetismo é o do Haiti, que apresenta taxa de
alfabetização inferior a 50%. A Guatemala e a
Nicarágua aindao chegam a ter uma taxa de
70% de alfabetização. O Brasil, embora apre-
sente taxas de alfabetização entre 70 e 90%,
ainda tem 20 milhões de analfabetos absolu-
tos, situados, principalmente, em áreas caren-
tes da Região Nordeste. Áreas indígenas de
países como Bolívia, Equador, Peru, México e
Guatemala continuam apresentando conside-
ráveis percentuais de analfabetismo feminino.
De acordo com projeções da mesma fonte,
os seguintes países entrarão no século 21 com
taxas superiores a 10% de analfabetismo: Jamaica
(13,6%), Brasil (14,6%), Bolívia (14,4%), Repúbli-
ca Dominicana (16%), Honduras (24,4%), El Sal-
vador (25,9%), Nicarágua (32,8%), Guatemala
(42,1%) e Haiti (50,6%).
Duas situações merecem uma análise mais
detalhada:
Esses dados foram extraídos de censos na-
cionais de países nos quais basta que uma
pessoa responda que sabe ler e escrever
para ser registrada como alfabetizada.
Além disso,o se sabe que qualidade de
alfabetização ou que nível da capacidade
de ler e escrever é registrado. Por isso, os
níveis de analfabetismo podem ser mais
significativos e preocupantes que os indi-
cados nos dados estatísticos oficiais.
o problema do analfabetismo caracteriza-
do como "funcional"o é registrado ape-
nas em países com taxas mais altas de anal-
fabetismo absoluto, mas também nos que
registram taxas elevadas de escolarização
(na Argentina, no Chile, na Costa Rica e no
Uruguai, a proporção de adultos com es-
colaridade básica incompleta situa-se na
faixa de 40%).
A necessidade de promover
políticas públicas e de
superar preconceitos
institucionais e ideológicos
Em que pesem os avanços registrados no
reconhecimento e na análise desses fatores,o
esporádicas as iniciativas empreendidas para
enfrentar o analfabetismo como um problema
que envolve múltiplos atores e soluções, que
o está centrado exclusivamente nas pessoas
adultas e exige políticas públicas concretas.
Há muitos obstáculos a serem superados,
um dos quais merece particular atenção. Re-
firo-me à clara tendência, observada em-
cleos tecnocráticos influentes em administra-
ções centrais do setor público educacional e
em organismos internacionais de financia-
mento, de minimizar e até ignorar o proble-
ma do analfabetismo em suas prioridades
para ação. Essa atitude pode ser observada,
inclusive, em países com importantes bolsões
de analfabetismo absoluto.
As razões apresentadas para sustentar es-
sas decisõeso a considerável ampliação da
cobertura escolar, o fato de que uma propor-
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
contradiz o otimismo dos mandatários, a au-
sência de estudos sobre as características do
chamado analfabetismo "funcional" dificulta
sua abordagem.
A Unesco desenvolveu uma primeira pes-
quisa regional sobre alfabetismo funcional
em sete países da região.
2
o objetivo da pes-
quisa foi dimensionar e analisar esse fenô-
meno por meio de abordagens quantitativas
e qualitativas, estabelecendo, em bases
empíricas, um perfil da população quanto a
suas habilidades de leitura e relacionando
essas habilidades com determinadas compe-
tências sociais e profissionais supostamente
exigidas nos centros urbanos onde foi desen-
volvida. O estudo aplicou instrumentos que
envolveram os campos da economia, da pro-
dução e da vida cotidiana e se propôs a indi-
car níveis de escolaridade necessários para
se alcançarem os domínios que possibilitem
uma alfabetização efetiva.
Com os instrumentos de leitura/escrita e
Matemática, a pesquisa procurou, fundamental-
mente, avaliar níveis de desempenho nas habi-
lidades relacionadas a diferentes domínios.
3
Os resultados preliminares indicam que,
embora os itens do teste preliminar fossem con-
siderados relativamente "fáceis", apenas um
percentual flutuante de 39% (no caso do Méxi-
co) a 72,3% (no caso da Argentina)
4
da popula-
ção pesquisada conseguiu apresentar respostas
corretas para os itens necessários.
5
Nesses resultados, as variáveis mais asso-
ciadas aos níveis de alfabetismo foram a esco-
laridade e o posicionamento no trabalho.
A escolaridade determina fortemente os-
veis e afeta significativamente os resultados em
todos os domínios. Nos sete países, os que ti-
nham seis ou sete anos de escolaridade ainda
se situam, numa proporção de 50% ou mais, no
primeiro e no segundo níveis.
Isso significa que, para uma pessoa se situ-
ar no terceiro nível - com algum domínio do
alfabetismo -, ela deveria ter cerca de oito anos
de escolarização e mais anos ainda em alguns
países da amostra. Quanto ao quarto nível de
competência em todos os domínios, que
corresponde a uma inserção alta no trabalho,
verificou-se que, na maioria dos países, as pes-
soas precisavam ter onze, doze ou mais anos de
escolaridade.
Um dos resultados mais importantes da
pesquisa foi a constatação efetiva de que po-
demos distinguir, na população adulta dos
países envolvidos, níveis estatisticamente di-
ferentes de habilidades nos domínios da pro-
sa, dos documentos e da Matemática. Isso é
projetado para toda a população adulta. Por
essa razão, a clássica diferenciação estatísti-
ca entre pessoas alfabetizadas e analfabetas
o é suficiente. De acordo com a pesquisa,
todoss temos algum grau de alfabetismo,
segundo nosso grau de escolaridade, a qua-
lidade de nossas aprendizagens e o uso que
fazemos de nossas habilidades, principal-
mente no trabalho.
' A pesquisa foi coordenada pela pesquisadora Isabel Infante e abrangeu os seguintes sete países: Argentina. Brasil (Estado deo Paulo),
Colômbia, Chile. México, Paraguai e Venezuela. As amostras selecionadas, em númeroo inferior a mil pessoas, foram representativas da
população adulta de zonas urbanas na faixa etária de 15 a 54 anos (no Paraguai, a pesquisa limitou-se à faixa etária dos 15 aos 34 anos).
3
o instrumento de leitura/escrita procurou medir algumas das habilidades que as pessoas adultas devem ter para lidar com textos escritos em
diferentes formatos, com diferente organização e diferentes graus de complexidade lingüística. Eles consistiram em textos curtos sobre
sinais de um ataque de coração, notícias de jornais sobre indígenas e o meio ambiente e anúncios em jornais para diferentes empregos em
restaurantes. Na área da Matemática, a pesquisa incluiu operações de numeração, adição, subtração, multiplicação, proporções, adição e
divisão seqüenciada (cálculo de médias), quadro de distâncias aproximadas em quilômetros, leitura de textos esquemáticos, como tabelas
gráficas e niveis de habilidades na compreensão de textos com informações numéricas (depósitos bancários, ingredientes para receitas
culinárias).
' No Brasil, 67% da amostra conseguiram apresentar respostas corretas para os itens exigidos. No Chile. 70%; na Colômbia, 55%; na Venezuela,
43%; e no Paraguai, 49,7%.
5
Em seu relatório preliminar sobre a pesquisa. Isabel Infante assinala as seguintes possíveis explicações para esses fracos resultados:
- os que responderamo tinham familiaridade com provas escritas ou fazia muito tempo queo se submetiam a uma prova;
- as pessoas deviam seguir instruções, e essa "talvez seja a primeira das habilidades exigidas";
- para muitos, os formatos podem ter sido novos;
- possivelmente, medo de provas dessa natureza.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
Emília Ferreiro contribuiu, com suas pes-
quisas e estudos sobre alfabetização inicial de
crianças, com a mais importante solução para
o problema da alfabetização paliativa de ado-
lescentes e adultos. Ela nos indica elementos
substantivos sobre a natureza do objeto de co-
nhecimento envolvido na aprendizagem
alfabetizadora. A distinção que faz entre siste-
ma de codificação e sistema de representação
pressupõe conseqüências na concepção e na
ação alfabetizadora. Quando a escrita é conce-
bida como simples transcrição do sonoro para
um código visual, a linguagem é reduzida a uma
série de sons e os programas de preparação para
a leitura e a escrita ficam centrados na discri-
minação das formas audiovisuais e auditivas
"sem jamais questionar sua natureza".
o sentido da alfabetização será outro se
concebermos a aprendizagem da língua escrita
como a compreensão da construção de um sis-
tema de representação. "Em última análise, a
conseqüência dessa dicotomia se expressa em
termos ainda mais dramáticos: se a escrita é
concebida como um código de transcrição, sua
aprendizagem é concebida como a aquisição de
uma técnica; se a escrita é concebida como um
sistema de representação, sua aprendizagem se
transforma na apropriação de um novo objeto
de conhecimento, ou seja, numa aprendizagem
conceituai" (Ferreiro, 1989).
Na Conferência Regional de Brasília, prepa-
ratória para a Confitea V, a alfabetização foi vin-
culada "ao acesso aos códigos da modernidade".
A conferência propôs, também, que se deveria
"revisar o conceito de 'alfabetização* como ação
descontínua e limitada no tempo, bem como
seu conteúdo, no sentido de se promover uma
concepção mais ampla de ações inseridas nos
processos de educação básica contínua duran-
te toda a vida".
A declaração de Hamburgo assinala que "a
alfabetização, concebida em termos gerais
como os conhecimentos e as capacidades bási-
cos que todas as pessoas que vivem num mun-
do em rápida evolução precisam ter [...] e como
fundamento dos demais conhecimentos exigi-
dos pela vida diária I...1 é, além disso, um
catalisador da participação em atividades soci-
ais, culturais, políticas e econômicas".
Na estratégia regional de acompanhamento
dos acordos de Hamburgo, uma das sete áreas
definidas como prioritárias na estratégia regio-
nal acordada para a América Latina é a da "Alfa-
betização: acesso à cultura escrita, à educação e
à informação". Judith Kalman, como especialis-
ta encarregada da coordenação técnica dessa
área, assinala que a recente discussão em torno
da alfabetização indica que devemos abandonar
a visão mecanicista da aprendizagem da leitura
e da escrita, que presumia unicamente - num
processo linear - a apropriação do código, o tra-
çado das letras e sua correspondência sonora e
posteriormente, por meio da apropriação de ora-
ções controladas, o uso da língua escrita.
A postura atual, sem negar as letras ou os
sons, aborda o problema da alfabetização como
um processo sociocultural mais complexo, que
assume uma multiplicidade de formas, usos e
significados e se insere ou é aplicado em dife-
rentes contextos sociais. Esse processo consi-
dera a diversificação de usos e formas e de en-
tendimentos em relação às raízes da vida co-
municativa das pessoas. A aprendizagem da lei-
tura e da escrita é vinculada à vida cotidiana e
seu uso constitui uma forma de participação no
mundo.
Ser um leitor e escritor competente implica a
possibilidade de participação em situações so-
ciais nas quais a utilização da língua escrita tem
um peso fundamental; significa ler e escrever
para relacionar-se com outros, para aprender,
para conhecer e para expressar-se. Por isso, já
o se pode falar da alfabetização e da pós-al-
fabetização como um processo linear, pelo qual
primeiro se aprendem as letras e, depois, como
usá-las. Atualmente, sabemos que a língua es-
crita é um conjunto de práticas contextualiza-
das que variam de forma, significado, uso e pro-
pósito de acordo com situações específicas.
O desafio que enfrentamos atualmente é de pro-
por políticas públicas e levar a cabo as ações
necessárias para promover uma melhor distri-
buição da língua escrita, da educação e da in-
formação no sentido de garantir o direito à edu-
cação mediante a criação de oportunidades edu-
cacionais viáveis para as pessoas jovens e adul-
tas no contexto de suas vidas. (Kallman, 1998)
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
universidades e outros centros de educa-
ção superior e associações de professo-
res, visando organizar estratégias e a pró-
pria execução da alfabetização para che-
gar a acordos sobre os propósitos, os pro-
cedimentos e os métodos a serem
adotados para a certificação.
Criando mecanismos que possibilitem a
participação dos educandos jovens e adul-
tos em decisões que afetem tanto os pro-
gramas como os processos educacionais.
Organizando registro de materiais utili-
zados e sistematizando experiências e
intercâmbios desses materiais.
Priorizando programas especiais para a
alfabetização feminina em populações
indígenas e rurais.
Conhecimento do problema dos níveis de
alfabetismo funcional e estratégias para
enfrentar os baixos resultados escolares:
Desenvolvendo diagnósticos e pesquisas
para caracterizar as distintas expressões e
diferentes níveis de alfabetismo alcança-
dos, no sentido de visualizar a gravidade
do problema do analfabetismo funcional.
Formulando uma estratégia nacional com
elementos locais e municipais para fazer
frente aos efeitos de má educação básica
em populações em situação de pobreza.
Optando por dar atenção preferencial a
jovens com baixa escolaridade.
Promovendo modalidades semipre-
senciais de educação básica e média para
jovens e adultos em situação de margi-
nalidade.
Promovendo, nos últimos graus da edu-
cação primária e secundária, mais estí-
mulos para a leitura de romances, contos
e lendas, superando a leitura exclusiva e
obrigatória de textos escolares.
Desenvolvendo estratégias para progra-
mas educacionais de aprendizagem ace-
lerada para quem apresente, reconheci-
damente, uma aprendizagem por expe-
riência de vida.
Desenvolvendo acordos com estações pri-
vadas de televisão para desenvolver pro-
gramas educacionais contra o analfabetis-
mo funcional caracterizado em cada país.
Gerando ambientes favoráveis à leitura
e à educação básica com o apoio dos
meios de comunicação e de bibliotecas
populares.
4. Assumir as demandas de alfabetização as-
sociadas ao conhecimento e acesso à
informática e aos meios de comunicação
nos setores populares:
Promovendo ações educacionais com se-
tores populares tendentes à alfabetização
científico-tecnológica, ao domínio
computacional, à "audiovisão" crítica dos
meios de comunicação, particularmente
a televisão, ao conhecimento de deveres
e direitos da cidadania e do que fazer para
proteger o meio ambiente.
Transformando a escola pública no princi-
pal mecanismo institucional para que as
novas gerações de crianças e jovens em si-
tuação de pobreza tenham acesso à
informática e ao uso dos meios eletrônicos.
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Confltea V. Santiago de Chile: Unesco/Ceaal/Crefal/
Inea, 1998.
UNESCO. Compendium of statistics on illiteracy. Paris, 1995.
SIMPÓSIO 16
PROJETO PEDAGÓGICO:
POR QUÊ, QUANDO E COMO
Márcia Cristina da Silva
Como um programa de formação pode
auxiliar na reflexão sobre
o projeto pedagógico da escola
Márcia Cristina da Silva
PEQV/Fundação Vale do Rio Doce/Cedac
Resumo
o Programa de Formação do Programa Esco-
la que Vale (PEQV) - parceria entre a Fundação Vale
do Rio Doce e o Centro de Educação e Documen-
tação para a Ação Comunitária (Cedac), organiza-
ção não-governamental ligada à educação - ini-
ciou seu trabalho em junho de 1999, em seis cida-
des brasileiras, com professores de escolas muni-
cipais de 1ª a 4ª séries. Inicialmente privilegiou o
trabalho de formação de professores e teve como
eixo a realização de projetos didáticos em sala de
aula, centrados na área de Língua Portuguesa.
Essa escolha deve-se ao fato de acreditarmos que
tal modalidade organizativa garante o sentido das
aprendizagens dos alunos e, ao mesmo tempo, resga-
ta o sentido do ensino por parte dos professores.
Colocar em prática os projetos em sala de aula
fez com que o paradigma vigente nas escolas envol-
vidas fosse, pouco a pouco, sendo revisto. Esse pro-
cesso de revisão de algumas práticas já institucio-
nalizadas partiu da análise e reflexão de ações
implementadas pelo PEQV: a necessidade de esco-
Introdução
INTRODUÇÃO
A apresentação estará centrada na tentativa
de fazer uma reflexão sobre como um projeto
de formação de educadores pode contribuir
com algumas transformações do projeto peda-
gógico da escola. A partir dessa reflexão, tenta-
rei contextualizar o Projeto Escola que Vale.
Contextualização do PEQV: o que é,
diretrizes e funcionamento
o Programa de Formação de Educadores
(professores, supervisores e diretores) foi ela-
borado pela equipe do Cedac e financiado pela
Ias e profissionais se encontrarem semanalmente
para planejar suas ações, a inserção da comunidade
nas diferentes etapas dos projetos, a utilização de al-
guns recursos tecnológicos como ferramentas para a
aprendizagem, o desenvolvimento de projetos liga-
dos à gestão escolar por parte dos diretores, a forma-
ção de supervisores, a necessidade de estabelecer par-
ceria entre os diferentes interlocutores participantes
(técnicos da Secretaria de Educação, diretores,
supervisores, professores, outros funcionários da es-
cola, alunos, pais e comunidade escolar em geral). A
implantação paulatina dessas ações fez com que
muitas questões gerenciais, de concepção, de atitu-
des fossem revistas para que os projetos pudessem
ser desenvolvidos.
Esta palestra tem como objetivo central a apre-
sentação desse histórico do PEQV sob a ótica da
mudança de paradigma vigente e da formação de
equipes reflexivas que se comprometam e se respon-
sabilizem por essas transformações, necessárias
para reinventar o papel do professor e da escola.
Fundação Vale do Rio Doce. Atualmente esse
programa desenvolve-se em 8 municípios bra-
sileiros e atende a 33 escolas, 300 professores,
8.500 alunos, 114 diretores e 116 supervisores.
O projeto deve ser desenvolvido em dois anos
de trabalhos intensos em cada município, contan-
do com mais meio ano de manutenção. O PEQV
tem uma intencionalidade clara no sentido de pro-
mover a autonomia dos profissionais envolvidos,
uma vez que uma intervenção externa ao sistema
escolar costuma ser provisória e ter um tempo de
duração definido. Por essa razão, há uma preocu-
pação explícita em criar mecanismos para que as
aprendizagens se institucionalizem de fato.
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
Contexto de formação: trabalho com
projetos didáticos de leitura e escrita
o contexto da formação de professores cria-
do pelo programa consiste no trabalho com pro-
jetos didáticos de leitura e escrita e na supervi-
o permanente do desenvolvimento desses
projetos pelos professores.
Projetos de leitura e escrita. Ao iniciar o tra-
balho, os professores recebem um "cardápio"
com diversos projetos didáticos de leitura e
escrita e escolhem um deles para ser desen-
volvido em classe. Todos obedecem a uma
estrutura básica, com sugestões didáticas que
devem ser detalhadas e transformadas em
seqüências de atividades específicas junto
com cada grupo de professores. O que garan-
te a transformação do "cardápio" inicial no
que acontece em aula é o planejamento se-
manal realizado pelos professores e super-
visores. Nesse percurso, os professores apro-
fundam diversos conteúdos de leitura e escri-
ta com seus alunos. Os alunos aprendem de
forma contextualizada, sabendo o que, para
que e para quem estão escrevendo. Os pro-
fessores aprofundam conhecimentos, já que,
para a realização do projeto, é preciso plane-
jar, prever, dividir responsabilidades, adqui-
rir conhecimentos específicos relativos ao
tema em questão, desenvolver capacidades e
procedimentos determinados, usar recursos
tecnológicos, aprender a trabalhar em grupo,
de acordo com as normas, os valores e as ati-
tudes esperados, organizar o tempo, dividir e
redimensionar as tarefas e avaliar os resulta-
dos em função do plano inicial. Tudo isso fa-
vorece ao sujeito que se comprometa com sua
própria aprendizagem, pois essa é muito mais
produtiva quando o grupo que realiza tal pro-
jeto conta com a participação de cada um para
alcançar a meta comum.
Para que o projeto pedagógico
da escola e por que o projeto
pedagógico na escola
o projeto pedagógico de uma escola torna-
se visível no próprio acontecer cotidiano da es-
cola. Ao entrarmos em uma escola, já é possí-
vel antecipar qual o seu projeto pedagógico.
Basta observar as aulas dadas ou olhar o que está
exposto nas paredes, por exemplo, pois tudo isso
revela o que as professoras ensinam e o que as
crianças aprendem e, portanto, qual a concep-
ção de criança e o que esta escola pensa e faz a
respeito da aprendizagem delas, ou seja, qual o
seu projeto pedagógico.
Sabemos que até há pouco tempo, pouquís-
simos profissionais de educação sabiam qual o
projeto pedagógico da sua instituição que, quan-
do o tinha, desempenhava função puramente
burocrática. O que víamos, então, era os profis-
sionais trabalharem, sem saber explicar o que
faziam, por que optaram por trabalhar daquela
maneira eo de outra, e a única explicação
possível para sustentar sua prática estaria pau-
tada na tradição: "Faço assim porque sempre fi-
zemos desta forma".
Quando a política nacional de educação pas-
sou a exigir que as escolas apresentassem seus
projetos pedagógicos registrados, as instituições
entraram em desespero, porqueo sabiam nem
como nem para que fazer tal tarefa. Muitas escre-
veram o projeto, mas sem atribuir sentido ao do-
cumento e sem fazer uso dele para a reflexão con-
tínua. O projeto pedagógico, então, passou a ser
mais uma tarefa burocratizada e realizada pelo
diretor da escola, maso se transformou em
referencial a ser consultado cotidianamente pe-
los membros da equipe, seja para recuperar seus
princípios ou para reformulá-los de acordo com
as reflexões realizadas a partir das práticas e es-
tudos realizados pelos funcionários da escola.
Atualmente, diversas frentes de formação
m contribuído para que a instituição escolar
pare, pense e reflita sobre seu projeto pedagógi-
co: PCN em Ação, PROFA e programas diversos
contratados pelas prefeituras locais.
Sabemos que a formação é importante, por-
que auxilia os profissionais a tomarem consci-
ência do conhecimento didático e faz com que
as ações relacionadas ao ensino e à aprendiza-
gem ganhem sentido. Por meio da formação, é
possível que os profissionais parem para pensar
no porquê, no para que e no como fazer. Ao dis-
cutir as práticas realizadas na escola, é possível
avaliar qual a concepção de ensino, de aprendi-
zagem e de criança que a escola assume; con-
frontar essa realidade com as intenções da esco-
la será um fértil caminho para que ela reflita so-
bre o seu próprio projeto pedagógico.
o PEQV faz um recorte na formação: traba-
lha somente com os conteúdos de Língua Por-
tuguesa. Essa opção está relacionada à impor-
tância social e política dessa área. Um outro pon-
to é que sabemos que, para trabalhar com uma
área de conhecimento com um grau relativo de
aprofundamento, é necessário tempo.
Ao optarmos em trabalhar com projetos di-
dáticos de língua, é inevitável o confronto entre
diferentes concepções, assim como o questiona-
mento da gestão de sala de aula, da rotina da
escola, da relação entre família e escola, comu-
nidade e escola, além da concepção de criança.
As transformações ocorridas até o momento ain-
dao pequenas e podem ser efetivas dentro das
escolas, mas para isso é preciso que estas saibam
como manter o grau de reflexão e discussão que
já vem sendo conseguido pelos seus profissio-
nais. A questão fundamental é como
institucionalizar essa reflexão dentro da escola,
porque só assim os profissionais terão como pre-
ocupação cotidiana o que querem para seus alu-
nos. Tudo isso passa pela reinvenção do papel
do professor, do supervisor, do diretor, da rela-
ção que a escola estabelece com os pais e com a
comunidade. Sabemos hoje que a reflexão per-
manente é fonte de conhecimento importante
para o professor e issoo está necessariamen-
te nas mãos de especialistas, mas, sim, na for-
mação contínua desse profissional, que faz par-
te de uma escola com identidade e tem, como
um dos princípios de seu projeto pedagógico, a
formação de uma equipe reflexiva e autora de
suas práticas.
0 projeto pedagógico
e o papel do professor,
do supervisor e do diretor
o programa de formação trabalha com esses
três profissionais. Vou especificar o trabalho com
cada um deles, maso descreverei o processo
de trabalho, e, sim, as principais questões
desencadeadas pelo programa de formação - no
sentido da reflexão da prática educativa que te-
nha relação com o projeto educativo da escola.
Reflexão sobre o trabalho
com professores
o trabalho com projetos. O que é projeto? A
primeira questão apontada pelos professores
dizia respeito ao próprio trabalho com proje-
tos, pois, afinal, até então desenvolviam pro-
jetos predeterminados pela supervisão, dire-
ção ou secretaria e eram realizados em prazo
curto de tempo, sem produto final, com eta-
pas fixas, sem a possibilidade de reavaliar o
planejamento e também sem pensar na toma-
da de decisões por parte dos alunos. Assim, o
primeiro choque referia-se a essa maneira di-
ferente de trabalhar com a Língua Portugue-
sa, onde há uma seqüência lógica que privile-
gia as situações de aprendizagem com um
sentido social. Essa prática confrontou-se
com a proposta vigente na qual o trabalho
com temas geradores aspirava a uma falsa in-
terdisciplinaridade e apresentava uma lista de
conteúdos sem fim, além da proposta de tra-
balhar, a cada dia, com um conteúdo, sem
importar o sentido de por que fazer aquilo e
para que fazer daquela forma, tanto para os
alunos quanto para os professores.
A realização de projetos sugere problemas
concretos e o formador atua em função das
questões que emergem desse processo de
implementação. O importante para os profes-
sores é compreender o que elesm de ensi-
nar e por que ensinar. Se é isso que faz senti-
do para os professores, torna-se necessário,
então, conciliar duas classes de propósitos: a
dos que ensinam e a dos que aprendem.
Para que planejar? Um outro ponto que
avaliamos nestes quatro semestres de tra-
balho com os professores refere-se à neces-
sidade do planejamento. Inicialmente, al-
guns grupos de profissionais pouco plane-
javam: ou porqueo tinham prática de pla-
nejamento e/ou porque pouco se encontra-
vam para discutir sobre o próprio trabalho
e/ou o próprio espaço físico da escolao
favorecia esses encontros. Outros grupos
conseguiam produzir e compartilhar mais
as idéias entre os participantes. Iniciamos
trabalhando com grupos da própria escola
e pouquíssimas experiências agrupavam
duas escolas numa mesma reunião. Perce-
bemos rapidamente que propiciar maior
interação entre escolas seria o melhor, por-
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
que poderia haver troca de experiências,
além da observação de como se posicio-
navam, como organizavam o material. Tudo
isso fez com que todos no grupo tentassem
imitar uns aos outros, trocassem materiais,
endereços; enfim, começaram a ver que ha-
via outras formas de se relacionar com o
saber e a organização. Ou seja, o fato de ve-
rem outros colegas de outras escolas expli-
citava que cada instituição poderia ter a sua
própria forma de organização e construção
de saberes, que muitas vezes é necessário
sair do próprio universo para ampliar expe-
riências e referenciais para, posteriormen-
te, poder voltar para a sua própria institui-
ção e refletir sobre seus pressupostos.
Formação de uma equipe colaborativa. De
forma geral, os professores tinham pouca ou
nenhuma prática de trabalho reflexivo feito
coletivamente, sofriam muito no planeja-
mento individual a ser compartilhado pos-
teriormente. Mudamos o pedido e autoriza-
mos que planejassem em duplas e, depois,
as duplas compartilhavam com o grupo todo
para chegar a um planejamento comum. As
discussões sobre a elaboração desses plane-
jamentos procuravam antecipar quais difi-
culdades/desafios os alunos enfrentariam
em determinadas situações, assim como
quais intervenções os professores poderiam
fazer para atingir as aprendizagens dos alu-
nos. Essas discussões eram coletivas e base-
adas na prática já vivenciada.
Neste semestre, a estratégia de colocar
juntos os diferentes grupos de escolas e exi-
gir de maneira mais enfática a realização de
planejamentos por parte dos professores fez
com que, inicialmente, houvesse muitas re-
sistências, porque até então estavam habi-
tuados ao planejamento realizado pelo
supervisor ou ditado pelo livro didático. Co-
locar-se como autor de sua prática foi uma
grande novidade para todos e avaliar que
suas decisões, no momento do planejamen-
to, poderiam ouo favorecer a aprendiza-
gem dos alunos foi um grande marco no per-
curso de formação desses professores.
o que se aprende quando se escolhe. A partir
do 2º semestre, os projetos escolhidos foram
restritos a um por série. Para isso se efetivar, os
professores das quatro escolas se juntaram e
tiveram de discutir e decidir entre 13 propos-
tas por apenas um projeto por série. Essa reu-
nião foi bastante difícil, porque os professores
o estavam acostumados a negociar entre si
e nem a argumentar sobre suas escolhas. Fi-
cou evidente queo sabiam como exercer
essas ações. Esta foi, então, a primeira questão
do semestre: o professor é o responsável tam-
m pelo que desenvolve em sala de aula e tem
de ter poder de voz e decisão, pois estará à fren-
te das crianças cotidianamente. Tudo isso pode
parecer óbvio, mas, dependendo do projeto pe-
dagógico da escola, o poder de decisão nunca
passa pelo educador.
Tematização da prática. A análise de vídeo
de sala de aula foi uma das estratégias utili-
zadas na formação. Pudemos observar que
os professores já conseguem ver a si mesmos
nos encaminhamentos que deram certo,
como também entender os equívocos e falar
sobre isso. O grande avanço aqui é o fato de
poderem se expor, conseguirem ouvir uns
aos outros e saberem que issoo é pura gen-
tileza, mas, sim, a própria construção de co-
nhecimento do grupo sobre pedagogia.
A questão da discussão sobre o confronto
entre o que se planeja e o que se realiza em sala
de aula também desestabilizouo só os pro-
fessores, como também os supervisores, já que,
até então, as observações de sala de aula e a
análise das produções das criançaso eram
vistas como ferramentas importantíssimas
para refletir sobre como se faz e por que se faz.
Um outro mito que veio abaixo é queo bas-
ta um planejamento burocrático, mas, sim, que
este precisa estar vinculado a avaliações peri-
ódicas de como cada criança aprende. Ou seja,
uma escola que tem como projeto pedagógico
a concepção de que a avaliação está centrada
no percurso, eo apenas no resultado final,
está preocupadao só com o planejamento,
mas também como esse planejamento ganha
sentido no cotidiano da sala de aula.
Um outro ponto importante foi a utiliza-
ção da análise de produção das crianças
como instrumento de investigação sobre
como as crianças aprendem e pensam.
Essa supervisão constitui um dos grandes
diferenciais que o PEQV oferece para que os
problemas advindos da prática em sala de aula
sejam nomeados, interpretados e transforma-
dos. Nessa interlocução, o professor é ajudado
tanto do ponto de vista da implementação da
prática, quanto da compreensão da teoria que
a sustenta. A configuração de um espaço de
troca e de aprendizagem dessa natureza é mui-
to comum em diversas profissões e em muitas
escolas que oferecem ensino de qualidade.
Para quase todos os profissionais, o seu desen-
volvimento conta com a possibilidade de diá-
logo entre pares, pois isso estimula a troca de
saberes. O fato de configurar uma arquitetura
de funcionamento do programa apoiada na
idéia de que a possibilidade de troca, a refle-
o compartilhada e o acesso à informação
devam ser pilares do processo tem feito com
que as respostas e o nível de compreensão dos
professores envolvidos nessa experiência se-
jam surpreendentemente rápidos.
Construção de autonomia. Todo programa
de formação precisa refletir sobre o encerra-
mento de suas atividades no município e
também sobre como poderá multiplicar pela
rede as suas ações. Para conseguir atingir es-
ses pontos, é importante que a clientela for-
mada conquiste sua autonomia em relação
aos formadores e passe a criar a própria rede
de comunicação e formação na cidade.
No caso do PEQV, pudemos perceber que,
nos municípios em que houve maior integra-
ção entre Secretaria e PEQV, essa passagem se
efetivará com maior consistência, porque ine-
vitavelmente refletirá na mudança de algumas
práticas vigentes dentro das secretarias: defi-
nir de quadros fixos para supervisores, garan-
tir hora-atividade, saber priorizar o que se
quer com relação ao ensino e à aprendizagem,
saber priorizar onde investir recursos pró-
prios, saber que uma política municipalo
é equivalente a querer homogeneizar todas as
escolas - afinal todoss queremos o fortale-
cimento da escola como "uma organização-
aprendiz que tem que ser alvo de uma forma-
ção adaptada para ela e suas características
próprias e do conjunto de seus professores".
Reflexão sobre o trabalho desenvolvido
com supervisores
Redefinição de função e tempo para o tra-
balho. Em relação aos supervisores, até en-
o a maioria das escolas ignorava a neces-
sidade da prática de planejamento e de re-
flexão coletiva, ou seja, eram escolas que
o valorizavam a formação. Isso se refletia
na representação que o supervisor tinha de
seu papel: aquele que deve fornecer o tra-
balho pronto para os professores, se possí-
vel até com as matrizes de atividades já
prontas: aquele que entende como obser-
vação de sala aquela passada rápida para
verificar a lista de presença, se o professor
está sentado ou em, se o professor está
dando a aula correspondente à lista de con-
teúdos elaborados pelo supervisor, que sim-
plesmente copiou o que a Secretaria indi-
cou como um possível currículo.
Atualmente, alguns supervisores ainda
oscilam entre esse paradigma de escola e
outro, em construção, que é aquele em que
a escola tem tempo para planejar e refletir
sobre a coerência do trabalho pedagógico e
que, por conta disso, cria um contexto de for-
mação e desenvolvimento profissional. Os
supervisores estão em plena reinvenção do
seu papel e atuação dentro das escolas, es-
o sendo cobrados sistematicamente pelos
professores assim como pelos diretores. Al-
guns já conseguiram montar uma rotina mais
próxima da necessidade real de formação de
seus profissionais. Estão iniciando filmagens
em salas de aula, transferindo para outras
áreas alguns procedimentos vistos no desen-
volvimento do trabalho com o projeto em
língua; outros estão fazendo registros e co-
locando questões para além das descrições
e percebendo que algumas questões, antes
vistas como problema de um determinado
professor, são, na realidade, de mais profes-
sores e que, portanto, a melhor estratégia é
promover uma reunião geral com os profes-
sores e com uma pauta de reunião em que se
discuta o assunto a partir das observações em
sala de aula. Alguns supervisores estão en-
contrando dificuldades em desenvolver o tra-
balho nestes moldes, porque os diretores es-
o se sentindo ameaçados e exigindo que os
supervisores saiam do PEQV, uma vez que
este implica mudanças que inicialmente
desestabilizam e fazem com que todos pre-
cisem rever suas propostas, assim como a
própria escola.
Um exemplo de atuação de supervisores
e professores de uma escola que está em fase
de transição eo aceita mais alguns padrões
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
externos de forma impositiva é a resolução
de eleso fazerem remanejamento de alu-
nos de 1º ciclo durante o ano (ainda há esco-
las que transferem alunos até quatro vezes
ao ano). Esses profissionais apresentaram
suas justificativas por meio da produção dos
alunos e do quanto a heterogeneidade é uma
condição importante para o processo de al-
fabetização. O diretor dessa escola concor-
dou com os profissionais e argumentou com
o técnico da Secretaria sobre a não-partici-
pação da escola nessa tarefa. Nessa situação,
podemos ver uma escola utilizando-se de ex-
periências práticas dos professores e
supervisores, assim como dos conteúdos de
formação já incorporados e transferíveis para
outras situações. Por meio dessa atitude, a
escola deixa de ser anônima e passa a cons-
truir sua identidade, diferenciada de tantas
outras da cidade - e essa ação passa a fazer
parte do projeto pedagógico da escola.
Trabalho com diretores
o trabalho com projetos e a eleição de prio-
ridades. A partir de algumas avaliações, o
PEQV elaborou também um cardápio de pro-
jetos para diretores: Comunidade leitora, Re-
lação família e escola, Lazer e convívio e Co-
municação no espaço da escola. Os direto-
res de toda a rede foram convidados a parti-
cipar e a desenvolver o projeto que mais se
aproximava de suas realidades. O desenvol-
vimento dos projetos colocou, logo de início,
diversos problemas para os diretores:
até então, os diretores só desenvolviam
projetos pontuais - desfile, festa para pais,
festa para alunos;
esses projetos pontuais geralmente eram
determinados e já planejados pelas Secre-
tarias de Educação;
escolher o projeto e executá-lo demandaria
participar de reuniões sistemáticas e fazer re-
gistros das ações desencadeadas na escola.
o próprio fato de o diretor ter de esco-
lher um projeto já demanda uma série de
decisões que o coloca em outro lugar, até
entãoo vivenciado por muitos profissio-
nais: eleger uma prioridade e persegui-la
por um tempo mais longo (alguns diretores
desistiram de continuar no PEQV, porque
o conseguiram sustentar o projeto como
prioridade, e continuaram atuando nas
emergências do cotidiano), saber escolher
um projeto que tenha relação com a neces-
sidade real da escola e fazê-lo por meio da
discussão com a equipe escolar. Deve fazer
parte de qualquer projeto pedagógico de
uma escola saber olhar a realidade para de-
finir em quais prioridades investir, seja no
campo do ensino-aprendizagem seja em
questões operacionais e administrativas.
0 papel do diretor
Formação de uma equipe Colaborativo. O
projeto de diretores proposto pelo PEQV
como estratégia freqüentemente utilizada
tem de ser o tempo todo compartilhado com
os profissionais da escola, e as ações futuras
m de ser fruto das reflexões do grupo. Essa
estratégia utilizada (que é favorecida por meio
do trabalho com projetos) fez com que os di-
retores enfrentassem dificuldades até então
o vivenciadas por eles: a impossibilidade de
ter um horário para encontro com o grupo da
escola ou, então, a descoberta de que os re-
sultados alcançadoso foram os esperados,
porque as decisões tomadas foram u nilaterais.
Essa questão de formação de equipe
colaborativa é um dos pressupostoso só do
projeto de diretores, mas de todos os outros
segmentos do PEQV. Nesse caso. porém, al-
guns estereótipos surgiram e até impediram
o andamento do projeto com maior eficiên-
cia. Por exemplo, uma escola queo valori-
za, no seu projeto pedagógico, a formação de
uma equipe reflexiva e colaborativa acaba cri-
ando dentro de si nichos queo interagem,
ao ser quando obrigados pela Secretaria;
ou seja, houve escolas em que os supervisores
ou professoreso participaram das ações e
diziam: "Aquele é o projeto de diretores e, por-
tanto, é ele que tem que fazer eo eu, como
professora!".
Um outro ponto importante desencade-
ado pela própria prática do projeto foi quan-
to à representação que os diretores tinham
sobre a comunidade escolar. Para eles, essa
comunidade era composta pelos diretores,
supervisores, professores, pais e alunos, ex-
cluindo os profissionais de limpeza, cozi-
nha, portaria e outras pessoas da comuni-
dade. Contudo, algumas etapas, para serem
desenvolvidas, necessitavam dos saberes,
da contribuição e da reflexão destes impor-
tantes profissionais, que também compõem
a comunidade escolar, como ocorreu nos
casos do projeto Família e escola e do em-
preendimento do Self-Service. Atualmente,
alguns diretores estão fazendo roda de his-
tórias com os setores operacionais.
Essa questão da formação de equipe,
que surgiu na própria ação do projeto e evi-
denciou-se na reflexão, fez com que algu-
mas escolas, que estavam funcionando sob
o paradigma que privilegia ações compar-
timentalizadas e isoladas, passassem a re-
fletir e a tentar elaborar estratégias em que
o trabalho Colaborativo em equipe fosse
fundamental para o desenvolvimento das
ações, como, por exemplo, o trabalho de re-
creio monitorado.
Saber avaliar o processo. Alguns diretores
o realizaram registros e sempre justifica-
vam o não-fazer ou os fracassos, assumindo
uma postura de alunos que deixaram de fa-
zer a lição de casa, enquanto outros direto-
res passaram a querer observar o insucesso,
o fracasso de outra forma. Uma escola, por
exemplo, dentro do projeto Comunidade de
leitores, planejou como uma etapa as leitu-
ras, nas segundas séries, de obras de Mon-
teiro Lobato para, no final do projeto, fazer
uma exposição do autor, de reescritas, ilus-
trações e recontos, mas, durante o desenvol-
vimento do trabalho, as professoras disse-
ram, em uma das reuniões de equipe, que os
alunos estavam detestando o autor e a reali-
zação do projeto Comunidade de leitores
estava ficando inviável. A partir dessa infor-
mação dos professores, a diretora e a vice
resolveram observar os momentos de leitu-
ra e descobriram que os professoreso pre-
paravam a leitura previamente, escolhiam
livros inadequados para a faixa etária,o
sabiam ler em voz alta, ou seja, as duas pre-
cisariam refazer o planejamento inicial, in-
cluindo nele um trabalho sistemático de lei-
tura com os professores. Aqui a aprendiza-
gem foi bastante grande, porque a escola saiu
do lamento, procurou avaliar o próprio tra-
balho e, a partir disso, buscar novos encami-
nhamentos.
o papel cios diretores e a identidade das es-
colas. Alguns problemas iniciais enfrentados
pela formação estavam relacionados à con-
cepção que se tem do papel de diretor dentro
de uma escola: é aquele profissional respon-
sável pelos eventos, que executa as normas da
Secretaria, que está ligado a questões buro-
cráticas, como matrículas e transferências,
maso registra nenhuma ação da escola;
também está ligado ao bom andamento da
escola (entendendo por isso a presença de
todos os profissionais da escola no horário de
trabalho, o fornecimento da merenda, etc).
Com o andamento do projeto de forma-
ção, o papel do diretor passou a ser refor-
mulado na própria ação, já que, pela primeira
vez, os diretores passaram a elaborar um pro-
jeto a longo prazo, registrando suas ações, re-
fletindo sobre a prática realizada, elaborando
ações diferenciadas em relação às que até en-
o vinham sendo feitas. Isso fez com que esse
grupo de profissionais passasse a olhar para
suas escolas de outra forma. O desafio, neste
momento, do programa é fazer com que os
diretores passem a refletir sobre quais estra-
tégias devem utilizar para garantir a manuten-
ção de algumas ações já conquistadas, assim
como também discutir e refletir sobre o fato
de que alcançar um resultado positivo inicial
o significa que o projeto está concluído. Ou
seja, dentro de uma escola tudo precisa ser
revisto o tempo todo, porque novas idéias e
concepções surgem e é preciso estar em con-
sonância com as reflexões externas para
utilizá-las e até mesmo refutá-las, de acordo
com os pressupostos do projeto pedagógico
adotado pela escola.
Conclusão
Estamos finalizando o projeto-piloto do PEQV
e podemos avaliar que, com todos os acertos e
equívocos nos encaminhamentos da formação,
sabemos, hoje, que, se um programa de forma-
ção pretende criar uma metodologia de trabalho
que discuta a formação de uma maneira mais pro-
funda, é necessário que inclua, em suas estraté-
gias, ações que auxiliem a escola no aprimora-
mento sistemático de seu projeto pedagógico real
e que essas escolas passem a valorizar a reflexão
contínua como parte de sua ação pedagógica.
SIMPÓSIO 17
LEITURA NA ALFABETIZAÇAO
Isabel Cristina Alves da Silva Frade
Priscila Monteiro
Leitura na alfabetização -
velhos e novos problemas
Isabel Cristina Alves da Silva Frade*
Ceale/UFMG
Resumo
Mediante análise de alguns movimentos de
pesquisa e de inovações pedagógicas dos últimos
anos e sua materialização na sala de aula, preten-
de-se analisar o que se lê na alfabetização do pon-
to de vista de gêneros, que materiaiso lidos, do
ponto de vista dos suportes, ondeo lidos, quais
o as modalidades de leitura e quaiso os leito-
res. Num contexto teórico em que se discutem o
letramento e novos letramentos e numa conjun-
tura de implantação de ciclos, pretende-se solu-
cionar alguns problemas que permanecem no en-
sino da leitura e outros que surgem pela introdu-
ção de novas práticas culturais de leitura e que
constituem desafios a serem enfrentados pelos
professores alfabetizadores.
Problematizando o tema "leitura na alfabe-
tização" para comunicação neste simpósio,
ocorre perguntar: o que há de novo sobre o
tema "leitura na alfabetização", nestes últimos
anos, que jáo tenha sido explorado ou de-
batido? Na tentativa de encontrar alguns pon-
tos de reflexão - talvez de inquietações -, op-
tei por fazer uma breve análise de como os mo-
vimentos de inovação pedagógica na alfabeti-
zaçãom tratado a leitura, uma vez que par-
ticipo de movimentos de alfabetização e tam-
m tenho feito pesquisas sobre inovações.
Além disso, os trabalhos de extensão possibi-
litam tomar conhecimento de dilemas dos pro-
fessores em torno dos problemas de ensino e
aprendizagem da leitura. Como as escolas li-
dam com problemas de ensino da leitura?
Como as práticas sociais de leituram alte-
rando as práticas escolares? Como as práticas
escolares de leitura reordenam os modos de
ler? Quaiso os velhos/novos problemas que
surgem no contexto atual?
Assim, mediante análise de alguns movimen-
tos de pesquisa e de inovações pedagógicas dos
últimos anos e sua materialização na sala de aula,
pretende-se aqui analisar o que se lê na alfabeti-
zação, do ponto de vista de gêneros, que materi-
aiso lidos, do ponto de vista dos suportes,
ondeo lidos, quaiso as modalidades de lei-
tura e quaiso os leitores. Num contexto teóri-
co, em que se discutem o letramento e novos
letramentos, numa conjuntura de implantação
de políticas, como a de ciclos, pretende-se solu-
cionar alguns problemas que permanecem no
ensino da leitura e outros que surgem pela in-
trodução de novas práticas culturais de leitura,
constituindo desafios a serem enfrentados pe-
los professores alfabetizadores.
0 que se lê na alfabetização?
Partindo do ponto de vista de que a escrita
e a leiturao práticas sociais, das quais fazem
parte as práticas escolares, constata-se que se
ampliou, sobremaneira, a entrada de textos na
escola. Nos últimos anos, pode-se afirmar que
a abertura para os textos que circulam na so-
ciedade está presente, seja porque se pergun-
ta aos alunos sobre os textos que circulam em
seu ambiente e solicita-se que sejam trazidos
alguns para a sala de aula, seja porque os pro-
fessores levam esses textos para a sala de aula,
fazendo uso pedagógico deles. Assim, pode-se
dizer que circulam na escola panfletos, folhe-
tos publicitários, cartazes, folders de divulga-
ção, revistas, jornais, livros de literatura, bu-
las, entre outros.
" Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Ceale/FAE/UFMG.
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
Como conseqüência, percebe-se uma am-
pliação dos tipos de suporte, como jornal, li-
vro, cartaz, folheto, revista, embalagens, e dos
gêneros queo lidos: textos narrativos
jornalísticos e literários, publicitários,
epistolares, informativos, instrucionais, entre
vários outros. Nesse conjunto de novos supor-
tes, permanece o livro didático, hoje estrate-
gicamente denominado "livro de alfabetiza-
ção", em contraponto a uma idéia de cartilha,
que se pretende combater simbolicamente, já
que o problemao é o nome, mas o conteú-
do existente no suporte "livro didático" ou
mesmo o uso que se faz dele.
Onde e como se lê e quem le?
Uma observação sobre os espaços de lei-
tura revela sua concretização em espaços va-
riados, mediante esforço dos professores para
criar um "ambiente lingüístico/alfabetizador".
Esse ambiente comporta sala de aula, corre-
dores, pátios escolares, bibliotecas, escritos do
bairro e da cidade, ou seja: onde quer que os
textos existam, também existem espaços de
leitura. Parece óbvio dizer que os espaços de
leitura acompanham a presença dos escritos
na sociedade. Entretanto,o basta que exis-
tam materiais escritos em diversos lugares, se
esses materiaiso se tornam observáveis
como objeto de interesse e façam sentido para
os alunos.
Nesse caso, faz diferença o trabalho do pro-
fessor: como esse profissional trabalha com a
tarefa de criar um motivo para que os apren-
dizes olhem com outros olhos coisas (supor-
tes/textos) aparentemente "naturais", que fa-
zem parte do cotidiano da escola e da socie-
dade, da zona urbana e mesmo da zona rural?
o relato de uma professora sobre o desconhe-
cimento do suporte "embalagem" por crianças
de uma favela do interior de Minas é
elucidativo dessa tarefa: as criançaso ti-
nham acesso a embalagens porque seu contex-
to era "pobre" em estímulos ou porque nunca
tinham parado para observá-las? Uma pesqui-
sa nos locais de moradia evidenciou que essas
embalagens chegavam às casas dos alunos,
maso eram evidenciadas nas práticas cul-
turais vividas no bairro ou no espaço domésti-
co. Essa constatação levou a professora a criar
um projeto de estudo, envolvendo outros alu-
nos de outra escola, que passaram a enviar
embalagens para troca.
Em um curso de formação de professores,
listamos alguns tipos de textos existentes na
zona rural e conseguimos encontrar muito
mais textos do que se imaginava circular na-
quele ambiente: a Bíblia, folhetos religiosos
utilizados nas missas ou em outras celebra-
ções, calendários da Folhinha Mariano, instru-
ções sobre uso de produtos agrícolas, embala-
gens de alimentos e de produtos usados na-
quele contexto, contas de água e luz, informa-
tivos dos movimentos rurais e de sindicatos,
cartas, entre outros. Também nesse caso, cres-
ce a responsabilidade dos professores em fa-
zer dessa circulação um objeto de curiosidade
e investigação.
Nas regiões urbanas, vem se diversifican-
do o trabalho com leitura mediante a visita a
livrarias, bancas e a eventos como feiras de li-
vros, demonstrando que, para a compreensão
de determinados aspectos da leitura, também
contribui o conhecimento sobre as instituições
envolvidas na fabricação, distribuição e divul-
gação dos impressos e sobre determinadas so-
ciabilidades criadas em torno dos livros, como
a de falar sobre eles e a de saber que existem
autores e ilustradores, entre outros. Essa pers-
pectiva é reforçada por Chartier (1996), quan-
do apresenta uma série de atividades de dis-
cussão sobre o funcionamento do mundo da
escrita no espaço urbano, doméstico e esco-
lar. Uma parte das propostas de intervenção
envolve a descoberta e a identificação de su-
portes, a convivência com eles e a compreen-
o do modo como os textos circulam, como
o armazenados e classificados, atividades
que podem ser desenvolvidas paralelamente
ao trabalho de construção do sentido dos tex-
tos e da decodificação. Essaso práticas que
trabalhamo só a leitura em si, mas também
o que a antecede e o que pode prolongá-la.
Houve e há também uma crescente amplia-
ção das situações pelas quais a leitura ganha
significado na própria escola. Josette Jolibert,
autora que enfrenta a dimensão didática do
trabalho com leitura e escrita de forma mais
explícita e é, por isso, muito utilizada por pro-
fessores, apresenta, em seu livro Formando cri-
anças leitoras (1994: 31), um tipo de classifi-
cação para esses usos escolares, tais como os
de ler:
para responder à necessidade de viver com os
outros na sala de aula e na escola;
para se comunicar com o exterior;
para descobrir informações das quais neces-
sita;
para fazer (brincar, construir, levar a termo
um projeto ou empreendimento);
para alimentar e estimular o imaginário;
para documentar-se no quadro de uma pes-
quisa em andamento.
A introdução de novos usos escolares da
leitura também é decorrente de outros tipos
de preocupação, que extrapolam seus aspec-
tos específicos. Os professoresm se preocu-
pado em introduzir materiais que respondam
a alguns desafios inerentes às inovações peda-
gógicas, com foco na interdisciplinaridade, em
novas metodologias - como a de trabalho com
projetos -, em conteúdos próprios da con-
temporaneidade, respondendo a uma neces-
sidade de contextualização das aprendizagens.
Com essas inovações, os materiais de leitura
o reordenados no âmbito das necessidades
pedagógicas gerais. Algumas dessas necessida-
des tambémo interferir nas práticas cultu-
rais de leitura na escola. Essas preocupações
m se baseado nos seguintes focos:
Funcionalidade: materiais de leitura que
apresentam valor funcional, com ênfase
nos aspectos práticos e em necessidades
pedagógicas e de leituras mais emergentes,
a partir da utilização de manuais de jogos
e de instruções para trabalhos, de listas, re-
ceitas, cartazes, obras de referência etc.
Atualidade: materiais de leitura, como jor-
nais e revistas, que focalizem aspectos da
ordem do dia e que possam, ao mesmo
tempo, informar e manter a escola e os alu-
nos em ligações mais estreitas com deter-
minados acontecimentos sociais.
Foco na ficção, no humor e no imaginário:
material de leitura que possibilita a saída
do real e do emergente, com foco no
ficcional, no imaginário, no nonsense, no
humor.o os livros de literatura, os qua-
drinhos, quem o potencial de trabalhar
com representações, com sentimentos e
com a dimensão estética.
Aspecto interdisciplinar: material que pos-
sibilita o trabalho com diversos aspectos da
formação eo apenas com a leitura.
Produção coletiva: materiais produzidos
por professores, por alunos e por turmas,
que passam a ser lidos, socializados e con-
sultados por outras turmas.
Por motivos pedagógicos, mais do que
lingüísticos ou de alfabetização, verifica-se,
nos últimos anos, uma certa tendência de uti-
lização de materiais de leitura de uso mais prá-
tico e/ou informativo, na sala de aula. Isso
pode contribuir para uma ampliação dos usos,
mas pode também fazer com que certos tex-
tos, antes mais presentes e valorizados na es-
cola (como as poesias, as narrativas), percam
espaço. O fato de serem também utilizados
materiais produzidos no interior da escola co-
loca em dúvida sem sido bem considerados
determinados aspectos editoriais que se con-
figuram nos impressos e constituem elemen-
tos importantes para os sentidos e para sua
apreciação estética.
Por outro ângulo, quando se consideram as
práticas de leitura realizadas a partir de dife-
rentes suportes e gêneros, cabe perguntar: as
leituraso as mesmas para todos? Com que
concepção de leitura se trabalha? Nesse aspec-
to, constata-se que a produção de sentidos na
leitura extrapola o próprio texto, uma vez que
o é necessário lê-los para ter acesso a deter-
minadas camadas de sentido. Quando os pro-
fessores alfabetizadores introduzem diferentes
suportes nem sempre o foco a ser privilegiado
é o conteúdo textual. Muitas vezes, o uso pe-
dagógico é o de classificar materiais de leitu-
ra, identificando sua materialidade, como ob-
jetos, seus usos sociais, suas semelhanças e di-
ferenças talvez para antecipar, assim, o seu
conteúdo. Essa pode ser considerada uma nova
forma de leitura, introduzida em sala de aula
de alfabetização.
E a leitura dos textos, propriamente dita,
como vem se dando? Uma primeira mudança
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
nesse aspecto é a de queo se espera que as
crianças saibam ler para que tenham acesso
aos conteúdos dos textos. Os professores as-
sumem, eles mesmos, o papel de leitores, me-
diando o aspecto da decodificação para que os
alunos tenham acesso aos diferentes aspectos
da significação. Os textos tambémo lidos por
alunos que "já sabem ler" (da mesma turma ou
de outras turmas, ou ciclos e séries), alteran-
do papéis e posições de quem pode ler para o
outro.
Verifica-se grande crescimento no uso da
modalidade oral e coletiva da leitura, em
contrapartida a uma prática de leitura silencio-
sa e individual, priorizada em outras situações
e momentos da história da escola, porqueo
se faz mais leitura oral para verificação de com-
petências, ou seja, para avaliar leitura, mas
como uma prática que visa a favorecer e de-
mocratizar o acesso a conteúdos e gêneros,
logo nas primeiras oportunidades, sem que se
estabeleça a velha lógica dos pré-requisitos -
no caso, a decodificação. Essa lógica de pré-
requisitos excluiu, por muito tempo, os alunos
do acesso a textos plenos de sentidos e a usos
mais elaborados da leitura. Issoo quer di-
zer que a ênfase nas modalidades individual e
silenciosa deixe de ser buscada e de ser um dos
principais objetivos da leitura.
0 que falta pesquisar
e tratar
Nos últimos anos, vêm-se alterando as prá-
ticas culturais de leitura e modos de ler, sina-
lizando para novos desafios de letramento,
pouco enfrentados nas práticas de alfabetiza-
ção. Magda Soares (1998: 47) considera
letramento "estado ou condição de quemo
apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exer-
ce as práticas sociais que usam a escrita". Se as
ações de cultivar e exercer práticas sociais de
leiturao também vinculadas ao movimento
de transformação dos textos e das formas de
ler, novos desafios se colocam. Ler em telas de
computadores ou de televisão, por exemplo,
envolve outros movimentos de leitura. A lei-
tura de legendas de filmes, de games e de
videoquê exige, entre outras habilidades, ra-
pidez e coordenação entre a recepção do texto
s vezes fixo, às vezes em movimento) e da
imagem em movimento.
Apesar da ampliação de usos e de supor-
tes, novas linguagens devem suscitar, em pro-
fessores e alunos, intervenções pedagógicas
específicas. É crescente, nos textos oferecidos
à leitura, a introdução de apelos gráficos e vi-
suais que alteram os movimentos dos olhos e
os sentidos do texto, assim como a presença
de uma certa esquematização na apresentação
das informações. De forma especial, destaca-
se um outro desafio que precisa tornar-se ob-
jeto de reflexões: a iconização e/ou a introdu-
ção de imagens.o se pode dizer, a partir
dessa constatação, que a aprendizagem de ou-
tros códigoso altere as formas de recepção.
A imagemo possibilita apenas a entrada
plástica nos livros de leitura, sobretudo como
um substitutivo para quem "aindao sabe
ler", mas constitui, junto com o texto, signifi-
cados especiais para qualquer leitor.
As necessidades
de decodificação
e da sistematização:
o ler para aprender a ler
Verifica-se, então, que se ampliam os espa-
ços de leitura, os tipos de suportes, os usos so-
ciais dos textos, assim comoo ressignificadas
as modalidades coletiva/individual, oral e si-
lenciosa de leitura na escola, entre outros as-
pectos aindao explorados.
No discurso teórico, é comum a idéia de
que se aprende a ler lendo e se aprende a es-
crever escrevendo. Entretanto, a afirmação de
que devemos ler "para valer" na escola e o re-
forço da perspectiva de que os textos para ser
lidos estão por todo lado, desde que saibamos
procurá-los, resolvem os problemas do "ler
para aprender a ler". Estaríamos falando das
mesmas coisas? Qual o sentido que os profes-
sores e as pesquisasm dando às necessida-
des pedagógicas de ensinar a decodificação e
às necessidades de o leitor aceder a ela para se
tornar cada vez mais autônomo em relação à
leitura de outrem?
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
soras chegaram a entender, mediante a análi-
se de alguns livros enviados por editoras, que
o havia mais cartilhas no PNLD, desmo-
bilizando-se para a escolha, que ficou a cargo
de alguém que, na falta de "cartilha", escolheu
um livro de alfabetização para 2001. Antes al-
gum livro do que nenhum.
Seriam essas professoras conservadoras? o
que procuram num livro de alfabetização para
seus alunos?
Uma segunda escola pesquisada, que já ha-
via vivenciado significativas inovações nos
anos 1980, optando naquela época por banir a
cartilha em favor de textos de uso social, en-
contra-se, em 2001, em outro processo. Apa-
receu, no discurso das professoras, o mesmo
argumento da necessidade de textos de leitu-
ra mais curtos. Explicitando melhor os senti-
dos de tais comentários, algumas professoras
alegaram que, se é para o professor ler para os
alunos, é melhor que peguem bons livros de
literatura ou que os textos venham como ane-
xos no livro, para que os alunoso tenham
que enfrentá-los sozinhos, no começo. Uma
delas mencionou que alguns de seus alunos lhe
disseram: "Adoro quando você, porque as-
sim eu entendo" (referindo-se às dificuldades
de enfrentamento de um texto longo, que faz
os alunos perderem o sentido devido à dificul-
dade de decodificar).
Destaco, a seguir, alguns argumentos em
torno do tamanho dos textos: "Os textosm
que ser pequenos senão os alunos se cansam,
o apenas até a metade"; "Os textos menores
funcionam melhor, todos lêem eo conta";
"Textos menores, porque textos grandes abor-
recem e queremos que os alunos iniciem len-
do, porque é preciso que criem coragem de ler,
para que mantenham a disponibilidade de ler".
Foram destacados também os gêneros de
um texto e evidenciou-se que alguns gêneros
facilitam a leitura, como pequenas trovas,
parlendas e poesias, que agradam pelo ritmo,
entonação e musicalidade. "Os alunos gostam
e favorece a pontuação, que ajuda na compre-
ensão. No texto maior, o aluno, em período ini-
cial, passa de uma frase para outra, sem per-
ceber o significado."
Nota-se, nessa segunda escola, um proces-
so diferenciado. Até 1987, já havia experimen-
tado diferentes formas de ensinar a leitura,
com diversos processos, entre eles o global, o
musical, o silábico e os ecléticos. Passou tam-
m por um processo de inovação com um
rompimento da idéia de métodos rígidos para
ensinar a leitura. As professoras mantêm de-
terminadas posições, quando destacam a im-
portância de respeitar o processo de constru-
ção do aluno e a necessidade de que as tare-
fas escolares tenham significado.o dizem
que seus alunosm problemas de compre-
ensão dos textos, quando as professoraso
as leitoras. Em contrapartida, deparam-se
com a necessidade de ensinar a decodificação
para muitos alunos, o que significa questio-
nar a idéia de que "se aprende a ler lendo". Ar-
gumentam justamente sobre a necessidade de
que os alunos criem coragem de ler, tenham
disponibilidade para ler eo se cansem com
o esforço.
As alfabetizadoras precisam negociar pon-
tos de convergência entre o sentido e a
decodificação. Poderíamos dizer, então, que se
aprende a ler lendo, mas issoo é válido
igualmente para todos?
Anne-MarieChartieretal. (1996) dedicam,
em seu livro, uma parte para atividades mais
amplas com os textos, incluindo-se aí as
sociabilidades inerentes ao mundo da leitura.
Apresentam também formas de leitura que
buscam destacar mais o sentido que a
decodificação. No entanto,o negam as
dificuldades que os aprendizes possam
apresentar no esforço de juntar decodificação
e compreensão. Exemplificam os problemas de
compreensão, destacando que, enquanto os
aprendizes concentram-se na decodificação,
podem perder o sentido do conteúdo do texto
ou mesmo esquecer o que leram antes. Leitura
com compreensão envolve memorização, e
facilita-se a compreensão se a leitura é feita
com maior rapidez e quando se podem
antecipar conhecimentos em relação ao
conteúdo e ao gênero textual.
A partir dessa breve argumentação teóri-
ca, poderíamos entender a preocupação das
professoras das duas escolas como legítima?
Ou continuaríamos a enquadrar suas necessi-
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
sino da leitura, mas de começar a enfrentar
discussões negadas ouo priorizadas, nos
últimos tempos. É preciso reconhecer que de-
terminados aspectos técnicos do trabalho com
a aquisição do código podem ser reapro-
priados no contexto de novos suportes, de no-
vos conteúdos, temas e gêneros, enfim, num
contexto de novos modos de ler.
Reflexões finais
Alguns resultados de hoje nos obrigam a
uma reflexão. Os alunos de muitas escolas ino-
vadoras presenciam atos de leitura,m aces-
so a vários gêneros, com níveis de complexi-
dade compatíveis com seus interesses e pro-
cessos cognitivos, mas falta ainda para muitos
a autonomia de leitura. Os resultados para a
auto-estimaoo os esperados. Os alunos
sabem queo sabem ler, apesar de toda a
valorização em outros aspectos. Também os
professores que trabalham em ciclos posterio-
res sabem queo sabem alfabetizar. Ou seja,
há também um conhecimento metodológico
sobre o ensino da leitura, entre eles o da
decodificação, que precisa ser enfrentado com
e por quem entende de alfabetização. Os ma-
teriais e conteúdos temáticos podem ser apro-
priados a diversas idades de formação, mas
algumas condutas metodológicas de sistema-
tização precisam ser recuperadas, sem radica-
lismos.
A história da utilização dos métodos de al-
fabetização no Brasil, desde o final do século
19, demonstra-nos que a pretensão do novo/
moderno contra o tradicional marca diferen-
ças nos campos teórico e prático e intenta eli-
minar, a cada disputa, um tipo de conhecimen-
to pedagógico anterior, muitas vezes pertinen-
te para determinadas situações. No entanto,
percebe-se até hoje, no plano prático, a busca
pela conservação de saberes que funcionam
pedagògicamente.
Contudo, com o advento de tantas pesqui-
sas sobre os processos de construção do senti-
do na leitura,o é mais possível empregar
apenas as estratégias de antes. Se alguns pro-
fessores se reapropriam de estratégias ditas
tradicionais de forma menos sistemática e es-
pontânea, mesmo negando-as, e obtêm suces-
so no ensino da leitura, é preciso que outros
as tomem sistematicamente, abordando ques-
tões do sistema sem se sentirem intimidados
e entendendo a especificidade de um conhe-
cimento pedagógico para ensinar leitura para
"iniciantes", seja com crianças, com adolescen-
tes ou com adultos.
Pode-se interpretar, mediante texto de
Magda Soares (1990), que as propostas socio-
interacionistasoo incompatíveis com
condutas metodológicas específicas para alfa-
betizar. Afinal, o conceito de letramento com-
porta o conceito de alfabetização, também
definido pela mesma autora (1998: 47) como
"ação de ensinar/aprender a ler e a escrever".
Bibliografia
CHARTIER, Anne-Marie et al. Ler e escrever: entrando no
mundo da escrita. Porto Alegre: Artmed, 1996.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e
bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Mudança e resis-
tência à mudança na escola pública: análise de uma
experiência de alfabetização "construtivista". 1993.
Tese (Mestrado). Faculdade de Educação, Universida-
de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
JOLIBERT, Josette et al. Formando crianças leitoras. Por-
to Alegre: Artmed, 1994.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa-
betização (São Paulo, 1876/1994).o Paulo: Unesp/
Comped, 2000.
SOARES, Magda. Alfabetização: em busca de um méto-
do? Educação em Revista, n. 12, p. 44-50, dez. 1990.
Letramento: um tema em três gêneros. Belo
Horizonte: Autêntica, 1998.
Leitura na alfabetização
Priscila Monteiro
Programa Crer para Ver/Fundação Abrinq/São Paulo
Resumo
o podemos falar de leitura na alfabetização
sem nos remetermos à importância da leitura de
mundo que cada um des tem, que se encontra
encharcada do nosso contexto sociocultural, mar-
cando nosso corpo e revelando, assim, a forma
como aprendemos e apreendemos o mundo.
É na relação dialética entre a leitura de mundo e a
leitura da palavra que construo e reconstruo significa-
dos. É na gostosura das brincadeiras e dos encontros
marcados entre esses dois tipos de "leituras" que me
"experiencio" no aprendizado de ler a palavra escrita.
Isso porque: o que é ler, senão construir signi-
ficados?
Se acreditamos que leitura é construção de sig-
nificados, o desafio que temos, então, em sala de
aula, é o de ensinar a ler sem realizar a dicotomia
0 que é o Crer para Ver
o Programa Crer para Ver é uma iniciativa
da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança
e da Natura Cosméticos. Essa parceria foi cri-
ada em 1995, com a missão de contribuir para
a melhoria da qualidade do ensino público no
Brasil, por meio da participação da sociedade
civil e do diálogo com o poder público.
Os recursos arrecadados voluntariamente
pelas consultoras Naturao destinados ao
apoio financeiro e pedagógico de projetos que,
vindos da comunidade, contribuam para a me-
lhoria da escola pública brasileira e possam ser
referência para a elaboração de políticas-
blicas em educação.
o acompanhamento pedagógico se dá por
meio da leitura de relatórios, troca de e-mails
ou telefonemas, visitas aos projetos, reuniões
entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. É
possibilitar que uma seja a continuidade da outra,
permitindo, assim, que a leitura da palavra seja a
leitura da "palavramundo".
Outro aspecto importante da leitura é o apren-
dizado daquele que se exercita como leitor, a dialo-
gar com o texto. É por meio do exercício desse diálo-
go que se descobre a inter-relação existente entre
texto e contexto. Relação essa que, quando negada,
leva-nos a uma leitura não-crítíca. Porém, quando
reconhecida, possibilita o aprendizado de tecer per-
guntas sobre o que se. É muito mais interessante
aprender a fazer perguntas sobre o texto lido do que
responder às perguntas do professor.o é a habili-
tação à leitura que torna o aluno um leitor crítico; é
necessário o intercâmbio de idéias e de significados.
regionais e encontros nacionais.
Anualmente o Programa Crer para Ver rea-
liza um seminário de divulgação das experiên-
cias apoiadas e de prestação de contas à socie-
dade e elabora publicações impressas e
audiovisuais como forma de sistematização dos
projetos e estímulo da comunicação entre eles.
Números.
1
Desde 1995,o 142 os proje-
tos apoiados, beneficiando 770 mil crianças,
3.500 escolas em 21 estados (não temos proje-
to em Sergipe, Maranhão, Roraima, Piauí, Dis-
trito Federal e Rio Grande do Norte).
0 protagonismo da comunidade
escolar
o Programa Crer para Ver acredita que a so-
lução para os problemas de cada escola vem da
própria comunidade escolar. A comunidade es-
' Números referentes a 18 de outubro de 2001, quando foi ministrada a palestra.
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
colar precisa se organizar para pensar nas suas
necessidades e possíveis soluções para elas.
Por isso, os projetos apoiados pelo Crer
para Ver, espalhados por todo o Brasil,o um
panorama da escola pública brasileira.
De acordo com essa característica, o Pro-
grama Crer para Ver tem como objetivos: ofe-
recer à sociedade oportunidades concretas de
participação em ações que levem à sua pró-
pria transformação, contribuindo para uma
escola de qualidade; apoiar a iniciativa e a
criatividade da comunidade escolar, assim
como sua capacidade de diagnosticar os pró-
prios problemas e apontar, ela mesma, as so-
luções; financiar e apoiar tecnicamente pro-
jetos que contribuam para melhorar as rela-
ções de aprendizagem na Educação Infantil e
no Ensino Fundamental das escolas da rede
pública, que sejam referências positivas para
a criação de políticas educacionais de boa
qualidade; sistematizar, avaliar e divulgar ex-
periências educacionais bem-sucedidas.
É importante ressaltar que a metodologia
de cada projetoo é imposta pelo Progra-
ma Crer para Ver, mas discutida com cada
proponente.
A leitura nos projetos
apoiados pelo Crer para Ver
A escola tem a responsabilidade social de
ensinar significativamente os objetos de co-
nhecimento. É sua responsabilidade ensinar
a ler e a escrever, assegurando uma ampla
gama de textos e de situações permanentes de
leitura para que as crianças tenham a opor-
tunidade de se transformar em leitores críti-
cos de nossa cultura.
Um dos grandes problemas de nosso país
é garantir o letramento para todos os cida-
dãos. Muitas crianças saem da escola alfabe-
tizadas de forma precária ou não-alfabetiza-
das. A impossibilidade de ler ou ler precaria-
mente aprisiona e confina. Nega-se a essas
crianças a ampliação dos limites, a possibili-
dade de conhecerem novas realidades, do in-
tercâmbio de idéias e de significados, de es-
tabelecerem novos sentidos para a vida.
Lero é decifrar. Ler é construir signifi-
cados.o é a habilitação à leitura que trans-
forma uma pessoa num leitor crítico. É neces-
sário o intercâmbio de idéias e de significados.
A leitura supõe um processo ativo de cons-
trução de significados, um processo comple-
xo de coordenação de informações de distin-
tas naturezas, de reorganizações e ressig-
nificações de saberes em jogo, em que o tex-
to, o leitor e o contexto contribuem para a
compreensão.
É por meio desse diálogo que se descobre
a inter-relação existente entre texto e contex-
to. Relação esta, que, negada, nos leva a uma
leitura não-crítica. Porém, quando reconhe-
cida, possibilita o aprendizado de tecer per-
guntas sobre o que se. É muito mais inte-
ressante aprender a fazer perguntas sobre o
texto lido do que responder às perguntas do
professor. Fazer perguntas quer dizer signifi-
car o que se lê - no que este texto me toca,
por que eu gosto ouo gosto dele, ao que
ele me remete, por que eu quero compartilhá-
lo com os outros -, pois a mágica da leitura
o está no livro nem no leitor. Está justa-
mente na significação, no diálogo único que
cada um estabelece com o livro.
No momento em que um leitor pega um
livro, traz vida a ele pois estabelece seus pró-
prios sentidos.
A autonomia para escolher o que se quer
ler, a possibilidade de identificação com oque
se, passa, necessariamente, pela diversida-
de e riqueza de um acervo de livros.
Mas ler o quê? A maioria de nossas esco-
las só tem acesso a livros didáticos. O livro di-
dático pede respostas fechadas, exclui a inter-
pretação e, nesse sentido, exila o leitor.
Porém tampouco basta prover as escolas
de acervos de livros; é necessário que os pro-
fessores saibam trabalhar com eles.
A identificação com a leitura passa pela
sensibilidade de cada um; portanto, para tra-
balhar com leitura na escola, sem impor, mas
propondo, é necessário que o professor tam-
m se identifique com a leitura. Por ser um
processo de identificação pessoal,o se en-
sina a gostar de ler.
Projetos apoiados
2
Selecionamos alguns projetos apoiados pelo
Programa Crer para Ver para exemplificar o
tema em questão:
Lazer e Recreação Infantil: Círculo de Pais e
Mestres da Escola Estadual de lº e 2º Graus
Modelo, Ijuí/RS. A introdução na oficina de
leitura e a recuperação da pracinha infantil
da escola estimulam a descoberta e a apren-
dizagem infantis.
Capacitação dos Professores Leigos para
Alfabetização do Projeto Seringueiro: Cen-
tro dos Trabalhadores da Amazônia, Rio
Branco/AC. Na Amazônia, as lendas, casos
e histórias dos seringais viram livros a par-
tir dos relatos de professores.
Aprender a Ler Lendo: Associação de Pais e
Mestres da Escola Municipal "Bairro Planal-
to", Pato Branco/PR. Biblioteca circulante
leva livros às escolas, introduzindo crianças
no mundo mágico da leitura.
Oficinas de Leitura: Aprendendo a Gostar de
Ler: Centro de Cultura Luiz Freire, Olinda/
PE. A partir da literatura infanto-juvenil, pro-
fessores e alunos estão debatendo temas so-
ciais e pedagógicos em Pernambuco.
Compartilhando significados
Por fim, gostaria de compartilhar com vocês
uma história do professor Noberto Sales Tene
Kaxinawá (projeto Uma Experiência de Autoria
dos índios do Acre-Comissão Pró-índio do Acre):
História do mundo
Vou escrever sobre a história do mundo no
meu pensamento quando eu era menino.
o mundo que eu pensava era que nem tocaia.
A Terra remendava com o céu.
o Sol, eu pensava que eram muitos, passan-
do dias e dias. A noite, eu pensava que era que
nem fumaça, porque quando o Sol ia embora a
noite vinha cobrir o mundo. Ou eu pensava
que era que nem ferro. Que nunca acaba.
A chuva eu pensava que era alguma pessoa
que mora nou e derramava água.
A água eu pensava que era alguns bichos
mijando, em cima do rio. Bichos: queixada, vea-
do, anta.
o trovão eu pensava que era alguns bichos
grandes estourando em cima do céu.
o homem, eu pensava que sós mesmos
vivíamos, sós o povo Kaxinawá.
A língua eu pensava que todo mundo só fa-
lava a língua kaxinawa.
Um dia eu vi um branco chegando na nossa
casa falando diferente, mas pensei que eu che-
gasse na casa dele ele ia falar kaxinawa.
Um dia fui viajar com meu pai para ver onde
estava a terra remendando com o céu. Fomos
viajando e, no segundo dia de viagem, perguntei
para meu pai onde a Terra remendava com o céu.
Meu pai disse queo está remendando, não.
Que o mundo é muito grande eo tem fim. Hoje
em dia eu entendo isso mais ou menos. É estu-
dando Geografia que entendemos sobre a Terra,
sobre seu movimento
Norberto Sales Tene Kaxinawa
2
Para saber mais sobre os projetos apoiados, consulte o site do Programa - <www.fundabrinq.org.br/crerparaver>
SIMPÓSIO 18
LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro
Rosaura Soligo
o conceito de letramento e
suas implicações pedagógicas
Vera Masagão Ribeiro
Ação Educativa/São Paulo
Resumo
A exposição tem como objetivo geral discu-
tir o conceito de letramento e suas implicações
pedagógicas. Para isso, discute-se, em primeiro
lugar, o surgimento do conceito de letramento.
evidenciando a natureza interdisciplinar do cam-
po teórico em que é desenvolvido. Nesse campo,
o letramento se configura como um fenômeno
cultural complexo, com diversas implicações psi-
cológicas e sociais. Em segundo lugar, defende-
se que a apropriação desse conceito pelo campo
pedagógico encerra grandes potencialidades, à
medida que favorece o cotejo entre práticas es-
colares e práticas socioculturais, provocando o
desenvolvimento curricular no sentido de con-
ferir maior relevância às aprendizagens escola-
res. Defende-se, por último, a posição de que o
conceito de letramento pode ser o eixo condutor
do desenvolvimento curricular de toda a Educa-
ção Básica e que, portanto, as problemáticas nele
envolvidaso dizem respeito apenas a alfabeti-
zadores e professores de Português.
o conceito de letramento foi desenvolvi-
do num campo teórico para o qual contribuí-
ram diversas disciplinas das ciências huma-
nas: a Sociologia, a História, a Antropologia,
a Psicologia, a Lingüística e os Estudos Lite-
rários. Mais recentemente, no Brasil, vem sen-
do também apropriado pelo campo pedagó-
gico, no qual ganha novas conotações, passan-
do a ser referência principalmente para a re-
flexão sobre práticas de alfabetização e de
ensino de língua.
A tese central que animou esse campo teó-
rico na década de 1960 foi a de que a dissemi-
nação da linguagem escrita na sociedade e sua
aquisição por parte dos indivíduos tinham um
impacto crucial no desenvolvimento social e
psicológico. Uma posição clássica nessa linha
é a de Jack Goody, antropólogo americano, que
elaborou uma teoria segundo a qual a escrita
seria um elemento-chave para diferenciar as
sociedades ditas primitivas ou tradicionais das
sociedades modernas ou históricas (Goody e
Watt, 1968). Argumentava esse autor que o re-
gistro do legado cultural por meio da escrita
permitiu que as sociedades desenvolvessem
sua consciência histórica, a autoconsciência,
o pensamento crítico e científico, além da
autonomização das instituições.
Um autor mais conhecido entre nós, brasi-
leiros, que também assumiu essa perspectiva
no âmbito da Psicologia, foi Vygotsky. Com
base em estudos realizados por Luria com
camponeses analfabetos, esse autor postulou
que a aquisição da escrita promovia o desen-
volvimento psicológico dos indivíduos, espe-
cialmente no que se refere ao raciocínio lógi-
co-científico (Vygotsky e Luria, 1993). Influen-
ciados pelo materialismo dialético, tanto
Vygotsky quanto Luria reconheciam também
a coletivização do trabalho, no contexto da re-
volução soviética, como fator de desenvolvi-
mento cognitivo. Mesmo assim,o deixaram
de conferir um papel crucial à escolarização e
à aquisição da escrita, o que se coaduna com
sua teoria sobre o papel dos instrumentos sim-
bólicos no desenvolvimento da psique huma-
na. No âmbito dos estudos da linguagem,o
faltaram também estudos que trataram de de-
finir as características da linguagem escrita em
contraposição à linguagem oral, agregando ar-
gumentos para os que postulavam o poder do
registro escrito de moldar o pensamento e a
comunicação (Ong, 1993).
Esse tipo de otimismo em relação ao valor
da escrita impulsionou diversas campanhas de
alfabetização de adultos em todo o mundo e
SIMPÓSIO 18
Letramento
sempre esteve presente nos discursos em prol
da universalização da educação elementar. En-
tretanto,o tardaram a surgir questionamen-
tos a essa posição, baseados em estudos his-
tóricos, antropológicos, psicológicos e
lingüísticos mais rigorosos. Demonstrou-se,
por exemplo, com base em análises históricas
de dados estatísticos, que as relações entre-
veis de alfabetização e desenvolvimento eco-
nômico ou decréscimo de taxas de natalidade
ou criminalidade, para citar alguns exemplos
de indicadores sociais,o eram nada linea-
res e dependiam sempre de outros fatores so-
ciais (Graff, 1994). No campo da Psicologia,
Scribner e Cole (1981) demostraram que o tipo
de habilidade cognitiva que até então se atri-
buíra ao aprendizado da escrita era, de fato,
resultado da escolarização de tipo ocidental. O inglês Brian Street (1993) elaborou uma das
mais contundentes críticas a essa visão de
letramento, segundo a qual a escrita encerra-
ria em si o poder de transformar as pessoas e
as sociedades. Ele denominou essa perspecti-
va sobre o letramento de modelo autônomo e,
em contraposição, propôs o modelo ideológi-
co, que compreende o letramento como fenô-
meno cultural complexo, cujos efeitos estão
relacionados aos contextos sociais em que se
realiza.
Desse modelo emerge o interesse pela di-
versidade das práticas culturais relacionadas
à escrita: passa-se então a falar em "letra-
mentos". Além de Scribner, Cole e de Street,
que estudaram o letramento em sociedades
tradicionais, Shirley Heath (1996) realizou pes-
quisas interessantes em segmentos da socie-
dade americana, demonstrando que, ao lado
das práticas escolares - normalmente tomadas
como padrão único para a análise do fenôme-
no do letramento -, existiam outras modalida-
des de uso social da escrita, às quais estavam
associadas outras habilidades cognitivas, ou-
tros modos de relação entre os participantes
da interlocução e desses com o texto, outras
representações e atitudes por parte dos leito-
res e escritores.
Outro resultado das críticas ao modelo au-
tônomo de compreensão do letramento foi a
relativização da dicotomia rígida entre
oralidade e escrita e um crescente interesse
pelo tema dos gêneros textuais. O conceito de
gênero aparece como mais apropriado para a
análise das diferentes práticas sociais nas quais
a linguagem escrita participa, implicando mo-
dos específicos de se posicionar na situação
discursiva. Evidencia-se, por exemplo, que cer-
tos gêneros orais, tais como essa exposição que
faço agora,m muitos elementos em comum
com o gênero ensaístico escrito, enquanto uma
carta pessoal guarda muitas das característi-
cas de uma conversa entre amigos.
David Olson (1997) sintetiza bastante bem
essa mudança de perspectiva verificada nos es-
tudos sobre o letramento, expressando a posi-
ção de queo importa tanto o que a escrita
faz com as pessoas, mas, sim, o que as pessoas
fazem com a escrita.
Mas que implicações esse desenvolvimen-
to teórico em torno do conceito de letramento
pode ter para as práticas pedagógicas? Antes
de tentar responder diretamente a essa per-
gunta, vale a pena fazer uma retomada sinté-
tica das múltiplas dimensões que o conceito
abarca. Para isso, é útil adotarmos a análise
proposta por Magda Soares (1998), que distin-
gue basicamente duas dimensões do
letramento: a individual e a social. A dimen-
o individual diz respeito à posse individual
de capacidades relacionadas à leitura e à es-
crita, que incluemo só a habilidade de
decodificação de palavras, mas um amplo con-
junto de habilidades de compreensão e inter-
pretação, como, por exemplo, estabelecer re-
lações entre idéias, fazer inferências, reconhe-
cer linguagem figurada, combinar informação
textual com informação extratextual etc. Tais
habilidades podem ainda ser aplicadas a uma
ampla gama de textos. A dimensão social do
letramento diz respeito às práticas sociais que
envolvem a escrita e a leitura em contextos
determinados. O que está em jogo, nesse âm-
bito,o os objetivos práticos de quem utiliza
a leitura e a escrita, as interações que se esta-
belecem entre os participantes da situação
discursiva, as demandas que os contextos so-
ciais colocam, as representações e os valores
associados à leitura e a escrita que um deter-
minado grupo cultural assume e dissemina.
As pesquisas na áream enfocando uma
ou outra dessas dimensões e ainda, dentro de
uma delas, uma infinidade de aspectos espe-
cíficos. Quando se trata de estabelecer parâ-
metros para a prática alfabetizadora, entre-
tanto, é fundamental buscar as conexões en-
tre essas duas dimensões, pois o fazer peda-
gógico consiste exatamente na orientação sis-
temática do desenvolvimento de indivíduos
no sentido de sua inserção num contexto
sociocultural específico. No caso da educação
escolar própria das sociedades letradas, esse
projeto consiste prioritariamente na capaci-
tação dos indivíduos para transitar, com al-
gum nível de autonomia, nesse contexto ca-
racterizado pelo uso intenso e diversificado
da linguagem escrita.
Este é, sem dúvida, o aspecto crucial das
implicações pedagógicas do conceito de
letramento: ele nos convida a refletir sobre o
grau de autonomia que as práticas escolares
m podido promover por meio da alfabetiza-
ção inicial e, posteriormente, por meio do en-
sino das disciplinas curriculares. Tradicional-
mente, a educação escolar concentrou-se no
desenvolvimento de um conjunto delimitado
de habilidades de leitura e escrita: na alfabeti-
zação inicial, o foco eram os mecanismos de
codificação e decodificação de letras, sílabas
e palavras. O professor de Português seguia
com o treino da ortografia, fluência da leitura
em voz alta e, finalmente, compreensão e in-
terpretação de textos principalmente narrati-
vos e literários. Os professores das demais dis-
ciplinas, por sua vez, apesar de fazerem uso
intenso de textos didáticos para ensinar e ava-
liar os conteúdos,o focalizavam os proces-
sos de leitura propriamente ditos.
Esse tipo de prática escolaro produziu
os resultados esperados em um grande núme-
ro de alunos: eleso adquiriam o hábito da
leitura,o se tornavam leitores e escritores
autônomos,o conseguiam utilizar, com efi-
ciência, a leitura como meio de aprender os
demais conteúdos escolares nem a escrita
para demonstrar as aprendizagens realizadas.
Essa crise do ensino da leitura ficou mais pa-
tente à medida que chegavam à escola alunos
oriundos de famílias com baixo grau de
letramento, queo podiam contar com o
ambiente familiar para sua socialização na
cultura da escrita.
Ao evidenciarem queo é a aprendizagem
da linguagem escrita em si que transforma as
pessoas, mas, sim, os usos que elas fazem des-
se instrumento, os estudos sobre o letramento
abrem novas perspectivas para a reflexão crí-
tica sobre o papel da escola e também para o
desenvolvimento de práticas pedagógicas que
respondam com mais eficiência às demandas
sociais relativas ao letramento. Esses estudos
convidam a escola a refletir sobre os gêneros
textuais que circulam no meio social, sobre os
diversos usos sociais da leitura e da escrita e
também sobre as habilidades cognitivas, ati-
tudes e valores neles implicados. Convidam,
ainda, a uma a análise das inter-relações entre
oralidade e escrita e entre o letramento e ou-
tras esferas da cultura.
A preocupação de que a escola trabalhe com
maior diversidade de gêneros textuais já apare-
ce plasmada nas orientações curriculares e nos
critérios de avaliação dos livros didáticos que se
implantaram recentemente em nosso país (MEC,
1997). Essa orientação é especialmente valiosa
para alunos oriundos de ambientes familiares
pouco letrados, que podem encontrar na escola
oportunidade única de se familiarizarem com
suportes de escrita, tais como, por exemplo, re-
vistas, jornais, sites de internet, livros outros além
dos didáticos, com toda a diversidade de gêne-
ros que neles figuram.
Com relação à diversidade de usos sociais
da escrita, às habilidades cognitivas e aos con-
teúdos culturais a eles associados, há ainda um
campo enorme de pesquisa e experimentação
a ser explorado pelos educadores. Em estudo
sobre o letramento realizado com a população
paulistana, identificamos quatro domínios
atitudinais relacionados ao uso da leitura e da
escrita no cotidiano de pessoas jovens e adul-
tas: a expressão da subjetividade, o planeja-
mento e controle, a busca de informação e a
aprendizagem. O domínio da subjetividade diz
respeito à leitura e escrita de cartas, diários,
livros religiosos ou de auto-ajuda, atividades
nas quais o que está em jogo é expressar a pró-
pria experiência e evocar sentimentos ou.
SIMPÓSIO 18
Letramento
Trata-se de usos que mesmo pessoas com bai-
xo grau de escolarização realizam em alguma
medida em seu cotidiano. Já a utilização da lin-
guagem escrita para planejar e controlar pro-
cedimentos é a dominante no universo do tra-
balho e das organizações sociais. Podem ser
tomados como exemplos desse domínio des-
de o ato de fazer uma lista de compras até es-
tratégias mais complexas de controle de pro-
cessos coletivos, tais como a contabilidade de
uma empresa, o plano de um curso etc.
Esseso usos da escrita que muitas pes-
soas fazem, lidando com textos de complexi-
dade variável, dependendo do grau de exigên-
cia das atividades, da maior ou menor neces-
sidade de planejamento e possibilidade de
controle das atividades pelo próprio indivíduo.
Finalmente, a utilização da linguagem escrita
para se informar, tanto para orientar a ação
imediata como para atualizar-se e formar opi-
nião sobre assuntos públicos, é prática restri-
ta a pessoas com níveis mais altos de escolari-
zação, assim como o ler para aprender, para
adquirir novos corpos de conhecimento. Pu-
demos observar que esses usos da linguagem
escrita exigem atitude específica do leitor di-
ante do texto: postura analítica, disponibilida-
de para examiná-lo e retomá-lo na busca de
informações e relações específicas, interesse
pelo cotejo objetivo entre as idéias expressas
no texto e os conhecimentos prévios do leitor.
Essa tipologia parece útil para analisarmos
até que ponto a escola oferece as oportunida-
des para as pessoas se desenvolverem em cada
um desses domínios. Quaiso as oportunida-
des de expressão de subjetividade e, principal-
mente, quaiso as oportunidades dadas aos
estudantes de planejar e controlar algo nos es-
paços escolares? Certamente, serão muito limi-
tadas se a aprendizagem dos conteúdos é pra-
ticada, dominantemente, como uma atividade
repetitiva, controlada pelo livro didático ou pelo
professor. Mesmo a leitura realizada para apren-
der ou informaro é suficientemente tratada
do ponto de vista pedagógico, embora sejam
essas duas funções da leitura as dominantes no
contexto escolar. Professores das diversas dis-
ciplinas quase sempre partem do princípio de
que, tendo aprendido a decodificar as palavras
e oralizar o texto com certa fluência, o aluno
está pronto para utilizar esse instrumento para
aprender os conteúdos das ciências e encontrar
informações em quaisquer tipos de texto. Ora,
o estudo mencionado acima e outros que foca-
lizam a temática (Kleiman, 1989) mostram
quantas habilidades cognitivas específicas e
disposições detêm aqueles que normalmente se
servem da escrita para aprender ou informar-
se, conservando o interesse por aprender e se
informar após o período da escolarização. É pre-
ciso que todos os professores estejam consci-
entes de que a capacidade de ler para buscar
informação e aprender com autonomia é nor-
malmente resultado de um investimento edu-
cativo alongado, que pode durar toda a Educa-
ção Básica ou ainda a educação superior, quan-
do se requer um maior grau de aprofundamen-
to e especialização.
Uma proposta pedagógica que certamen-
te abre um amplo leque de possibilidades de
aproximar as práticas escolares dos usos da
escrita mais relevantes socialmente é a
metodologia dos projetos. Envolvidos numa
proposta dessa natureza, alunos e professo-
reso incitados a estabelecer um projeto de
construção de conhecimento ou intervenção,
definir produtos esperados e um plano para
chegar a eles. O livro Leitura e interdiscipli-
naridade, de Angela Kleiman e Silvia Morais
(1999), ilustra o potencial dessa metodo-
logia, focalizando especialmente a leitura de
textos jornalísticos como base de exploração
das relações entre as disciplinas, entre dife-
rentes textos escolares e não-escolares que
devem compor o universo de um leitor au-
tônomo e criativo, com maiores possibilida-
des de utilizar suas aprendizagens para além
dos muros da escola. As autoras destacam a
presença, nas revistas e jornais, de diversos
recursos comunicativos e fontes de informa-
ção, que ampliam o universo de relações pos-
síveis eo lugar a experiências com muitos
modos de ler e escrever.
Um último aspecto que os estudos sobre
o letramento destacam e que as práticas pe-
dagógicas podem tratar de modo mais produ-
tivo é o da relação entre a oralidade e a escri-
ta. Muitos alunos jovens e adultos, ao
Bibliografia
reavaliarem a sua passagem pelo Ensino Fun-
damental, destacam ganhos relativos à capa-
cidade de comunicação oral entre os princi-
pais benefícios que a escola lhes trouxe, por-
que, mesmo sem intervenção mais sistemáti-
ca sobre o desenvolvimento da oralidade, a
escola promove ocasiões de fala em contex-
tos públicos ou de trabalho coletivo, quase
sempre permeados por referências a textos
escritos, que certamente ampliam os recur-
sos expressivos dos alunos. Esse desenvolvi-
mento da oralidade, por sua vez, apoia o
aprendizado da leitura e da escrita, possibili-
tando a partilha do trabalho de compreensão
e interpretação da palavra escrita, principal-
mente por meio do comentário oral.
o circunscrito aos problemas da alfabe-
tização ou do ensino de línguas, portanto, o
processo de letramento, ou seja, de apropria-
ção da linguagem escrita como ferramenta de
pensamento e comunicação, pode ser tomado
como o vetor principal do currículo de toda a
Educação Básica. A leitura direcionada para a
exploração das relações intertextuais presta-se
como base comum para o tratamento interdis-
ciplinar dos temas, para o desenvolvimento de
projetos de ensino e aprendizagem que favo-
reçam a formação dos alunoso só como lei-
tores e escritores autônomos, mas também
como sujeitos criativos e aptos a formularem
e realizarem seus projetos de vida.
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SIMPÓSIO 18
Letramento
o direito de se alfabetizar na escola
Rosaura Soligo
PROFA/MEC
Um pouco de história
o modelo escolar de alfabetização
1
nasceu
há pouco mais de dois séculos, precisamente
em 1789, na França, após a Revolução France-
sa. A partir de então,
[...] criançaso transformadas em alunos,
aprender a escrever se sobrepõe a aprender a
ler, ler agora se aprende escrevendo - até esse
período, ler era uma aprendizagem distinta e
anterior a escrever, compreendendo alguns
anos de instrução através do ensino individua-
lizado. É, então, no jogo estabelecido pela Re-
volução entre a continuidade e a descontinui-
dade do tempo, onde a ruptura vai sendo atro-
pelada pela tradição, que a alfabetização se tor-
na o fundamento da escola básica e a leitura/
escrita, aprendizagem escolar. (Barbosa, s. d.)
2
Analisando a evolução da investigação e do
debate em relação à alfabetização escolar no
século XX, é possível definir, em linhas gerais,
três períodos.
o primeiro período corresponde, aproxi-
madamente, à primeira metade do século,
quando a discussão dava-se estritamente no
terreno do ensino. Buscava-se o melhor "mé-
todo" para ensinar a ler, com base na suposi-
ção de que a ocorrência de fracasso se relacio-
nava com o uso de métodos inadequados. A
discussão mais candente travou-se entre os
defensores do método global e os do método
fonético.
3
No Brasil, essa discussão caiu em
desuso a partir da difusão do método que, na
época, foi identificado como "misto" - nada
mais que nossa conhecida cartilha, baseada
em análise e síntese e estruturada a partir de
um silabário.
o segundo momento, cujo pico foi nos anos
1960, teve por centro geográfico os Estados
Unidos. A discussão das idéias sobre alfabeti-
zação foi levada para dentro de um debate
mais amplo, em torno da questão do fracasso
escolar. A luta contra a segregação dos negros,
com a conseqüente batalha por sua integração
nas escolas americanas, contribuiu para que
se tornassem mais explícitas as dificuldades
escolares dessas minorias. Muito dinheiro foi
investido em pesquisas para tentar compreen-
der o que havia de errado com as crianças que
o aprendiam. Buscava-se no aluno a razão
de seu próprio fracasso.
o desse período as teorias que hoje cha-
mamos "teorias do déficit". Supunha-se que
a aprendizagem dependeria de pré-requisitos
(cognitivos, psicológicos, perceptivo-moto-
res, lingüísticos...) e que certas crianças fra-
cassavam poro disporem dessas habilida-
des prévias. O fato de o fracasso concentrar-
se nas crianças das famílias mais pobres era
explicado por uma suposta incapacidade de
as próprias famílias proporcionarem estímu-
los adequados.
Baterias de exercícios de estimulaçao fo-
ram criadas como "remédio" para o fracasso,
como se ele fosse uma doença. Essa aborda-
Este texto é um fragmento do documento Apresentação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, desenvolvido, em todo o
país, pelo Ministério da Educação, em parceria com Secretarias de Educação e Universidades, a partir de 2001.
' Embora o termo "alfabetização" tenha diferentes sentidos, neste documento ele está usado com o significado de "processo de ensino e
aprendizagem do sistema alfabético de escrita", ou seja. O processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita.
2
A referência é apenas ao Ocidente: Europa e Américas do Norte e do Sul.
o método global ou analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a íotalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que
ele fizesse uma análise e chegasse às partes, queo as sílabas e letras. O método fonético ou sintético, ao contrário, propunha que o aluno
aprendesse primeiro as letras ou sílabas e o som delas para depois chegar à palavra ou frase.
gem, que já se anunciava no teste ABC, de Lou-
renço Filho - um conjunto de atividades para
verificar e, principalmente, medir a "maturida-
de" que a ciência de então supunha necessária
à alfabetização bem sucedida -, teve muita in-
fluência no Brasil. Nos anos 1970, foi largamen-
te difundida a idéia de que, no início da escola-
ridade, toda criança deveria passar pelos exer-
cícios conhecidos como "prontidão" (do inglês,
readiness) para a alfabetização. Seria uma es-
pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-
felizmente, era inócua.
o terceiro período começa em meados dos
anos 1970, sendo marcado por uma mudança
de paradigma. O desenvolvimento da investi-
gação nessa área mudou radicalmente seu
enfoque, suas perguntas. Em lugar de procurar
correlações que explicassem o déficit dos que
o conseguiam aprender, começou-se a ten-
tar compreender como aprendem os que con-
seguem aprender a ler e a escrever sem dificul-
dade e, principalmente, o que pensam a respei-
to da escrita os que aindao se alfabetizaram.
Um trabalho de investigação que desenca-
deou intensas mudanças na maneira de os edu-
cadores brasileiros compreenderem a alfabeti-
zação foi o coordenado por Emília Ferreiro e Ana
Teberosky (1985). A partir dessa investigação, foi
necessário rever as concepções nas quais se
apoia a alfabetização. Isso tem demandado uma
transformação radical nas práticas de ensino da
leitura e da escrita no início da escolarização, ou
seja, na didática da alfabetização. Jáo é mais
possível conceber a escrita exclusivamente como
um código de transcrição gráfica de sons, jáo
é mais possível desconsiderar os saberes que as
crianças constróem antes de aprender formal-
mente a ler, jáo é mais possível fechar os olhos
para as conseqüências provocadas pela diferen-
ça de oportunidades que marca as crianças de
diferentes classes sociais. Portanto, jáo se
pode mais ensinar como antes.
[...] as mudanças necessárias para enfrentar so-
bre bases novas a alfabetização inicialo se
resolvem com um novo método de ensino, nem
com novos testes de prontidão, nem com novos
materiais didáticos. É preciso mudar os pontos
por ondes fazemos passar o eixo central das
nossas discussões. Temos uma imagem
empobrecida da língua escrita: é preciso
reintroduzir, quando consideramos a alfabetiza-
ção, a escrita como sistema de representação da
linguagem. Temos uma imagem empobrecida da
criança que aprende: a reduzimos a um par de
olhos, um par de ouvidos, umao que pega
um instrumento para marcar e um aparelho
fonador que emite sons. Atrás disso há um su-
jeito cognoscente, alguém que pensa, que cons-
trói interpretações, que age sobre o real para
fazê-lo seu. (Ferreiro e Teberosky, 1985)
A alfabetização
e o fracasso escolar
Infelizmente,o é injusto afirmar que, ao
longo da história, a escola brasileira tem fracas-
sado em sua tarefa de garantir o direito de to-
dos os alunos à alfabetização. Em um primeiro
momento, porque o acesso à escolao estava
assegurado a todos; depois, porque, mesmo
com a democratização do acesso, a escolao
conseguiu - e aindao consegue - ensinar efe-
tivamente todos os alunos a ler e escrever, es-
pecialmente quando provêm de grupos sociais
o letrados.
Desde a época em que as estatísticas estão
disponíveis, é possível constatar que aproxima-
damente metade das crianças que entra na lª
série do Ensino Fundamental é reprovada no
final do ano, como indica a tabela abaixo.
Taxa de aprovação ao final da 1 - série do Ensino Fundamental
1956
41,8%
1987
47%
1988
46%
1989
49%
1990
51%
1991
51%
1992
51%
1993
50%
1994
53%
1995 1996
53% 58%
1997*
65%
1998*
68,7%
Fonte: IBGE - Inep. ' Nos anos de 1997 e 1998 algumas secretários de Educação passaram a adolor o sistema de ciclos, previsto no Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
SIMPÓSIO 18
Letramento
o fato é que, há muito tempo, os índices de
fracasso escolar na alfabetizaçãoo inaceitá-
veis e as medidas tomadas no âmbito dos siste-
mas públicosom contribuído para trans-
formar esse quadro de forma significativa. A
tabela anterior parece indicar que é completa-
mente falsa a crença de que "antigamente to-
dos aprendiam na escola". Desde 1956, com es-
tatísticas mais precisas a respeito dos índices
de promoção e retenção na escola pública bra-
sileira, constata-se que os alunos reprovados
(ou "retidos", como se preferiu chamar anos
depois) já representavam mais da metade do
total - e isso sem contar o grande número de
crianças brasileiras que nem freqüentava a es-
cola.
A falta de explicações para as causas do fra-
casso da escola em alfabetizar todos os alunos
fez com que essa responsabilidade, direta ou
indiretamente, fosse a eles atribuída (à sua su-
posta incapacidade de aprender e e/ou às suas
perversas condições de vida). Apesar de todas
as razões sociais e políticas parao se deposi-
tar a responsabilidade pelo fracasso apenas no
aluno, as teorias do déficit cognitivo e/ou da
"carência cultural" acabaram por consolidar a
crença de que a possibilidade de os indivíduos
aprenderem teria direta relação com a sua con-
dição econômica, social e cultural.
Em oposição a uma concepção de escola
"conteudista", ou seja, preocupada, acima de
tudo, com a transmissão de conteúdos escola-
res, foi se configurando uma concepção - e-
rias experiências - de uma escola transforma-
dora, progressista. Mas, infelizmente, nem as-
sim se conseguiu garantir a todos os alunos o
direito de desenvolver diferentes capacidades
na escola, o que, evidentemente, pressupõe
aprender a ler e a escrever.
Com isso, consolidou-se progressivamente
uma cultura escolar da repetência, da reprova-
ção, que acabou por ser aceita como um fenô-
meno natural. O país foi se acostumando com
o fato de cerca de metade de suas criançaso
se alfabetizar ao término do primeiro ano de
escolaridade no Ensino Fundamental.
Essa cultura teve uma enorme influência no
universo de representações que os educadores
foram construindo sobre o fracasso escolar e
sobre os alunos que fracassam, bem como na
sua relação com eles: freqüentemente, essas
representações expressam-se em falta de con-
fiança nas reais potencialidades que elesm
para as aprendizagens de um modo geral. Se é
verdade que esses alunos chegam à escola sem
muita intimidade com os usos sociais da escri-
ta e com os textos escritos, também é verdade
que eles trazem um repertório de saberes que
as crianças e jovens de classe média e altao
possuem, saberes queoo valorizados e
nem validados do ponto de vista pedagógico.
Todo aluno tem direito a uma educação escolar
que, pautada no princípio da eqüidade, garan-
ta o conhecimento necessário para que desen-
volva suas diferentes capacidades - uma edu-
cação queo acentue as diferenças provocadas
pela desigualdade de oportunidades sociais e
culturais, queo as tome, sob nenhum pretex-
to, como diferenças relacionadas às suas possi-
bilidades de aprendizagem.o se pode espe-
rar que os alunos iniciem a escolaridade saben-
do coisas que nunca tiveram a chance de apren-
der: quando eleso sabem o que se espera, é
preciso ensiná-los.
Por que éo difícil
alfabetizar todos os alunos?
A análise de quemo os alunos que a esco-
lao tem conseguido alfabetizar ao longo dos
anos (em geral, 50%) indica queo se trata de
uma metade qualquer, aritmeticamente neutra:
essa metade é formada, majoritariamente, pe-
los mais pobres. E por que seria mais difícil al-
fabetizar esses alunos?
Como se sabe, até vinte anos atrás, profes-
sores, especialistas e pesquisadores se empe-
nhavam em tentar compreender o que havia de
errado com esses alunos, em descobrir por que
eleso aprendiam. A compreensão dos pro-
cessos pelos quais se aprende a ler e a escrever,
possível somente a partir das últimas duas-
cadas, foi fundamental para que se deixasse de
olhar para as crianças das classes populares
como seo pertencessem à raça humana. Sim,
porque até então um dos raros consensos entre
os estudiosos brasileiros acerca dessa questão
era: o que servia para ensinar as crianças de
classe média e altao servia para as crianças
pobres. Acreditava-se que os processos de
aprendizagem das diferentes classes sociais se-
riam decididamente diferentes, e isso explica-
ria desempenhoso díspares.
No entanto, a descrição psicogenética do
processo de alfabetização mostrou que o pro-
cesso pelo qual se aprende a ler e escrever é o
mesmo, em linhas gerais, para indivíduos de
diferentes classes sociais - inclusive, tanto para
crianças como para adultos. A aparente diferen-
ça é conseqüência da diferença no repertório
de conhecimentos prévios, que faz que os alu-
nos pobres cheguem à escola geralmente em
fase menos avançada do processo, o que lhes
dificulta a assimilação de certas informações.
Se antes se acreditava que o fundamental
para alfabetizar os alunos era o treino de deter-
minadas habilidades - memória, coordenação
motora, discriminação visual e auditiva, noção
de lateralidade -, a recente pesquisa sobre a
aprendizagem da leitura e da escrita mostrou
que a alfabetização (como tantas outras apren-
dizagens) é fruto de um processo de constru-
ção de hipóteses; que esseo é um conteúdo
simples - ao contrário, é extremamente com-
plexo - e demanda procedimentos de análise
também complexos por parte de quem apren-
de; que, por trás dao que escreve e do olho
que, existe um ser humano que pensa e, por
isso, se alfabetiza.
Hoje sabemos que, no processo de alfabeti-
zação, as crianças e adultos - independente-
mente da classe social a que pertencem e da
proposta de ensino do professor - formulam
hipóteses muito curiosas, mas também muito
lógicas. Progridem de idéias bastante primiti-
vas pautadas no desconhecimento da relação
entre fala e escrita para idéias surpreendentes
sobre como seria essa relação: alguns preocu-
pados com a quantidade de letras, outros com
a qualidade das letras, outros em conflito com
a coordenação entre quantas e quais letras se
usam para escrever.
4
Depois de uma longa trajetória de reflexão
a respeito dessas questões, finalmente é possí-
vel compreender a natureza da relação entre
fala e escrita, desvendando o mistério que o
funcionamento da escrita representa para to-
dos os analfabetos, quando se alfabetizam, no
sentido estrito da palavra.
E por que, então, os alunos pobres custam
mais a conquistar a condição de alfabetizados,
se nada deixam a desejar do ponto de vista da
capacidade intelectual? o quem a menos que
os demais? Em geral, esses alunos começam tar-
diamente a pensar sobre a escrita e desenvol-
vem procedimentos de análise desse objeto de
conhecimento muito depois das crianças de
classe média e alta.
o as situações de uso da leitura e da es-
crita e o valor que se dá a essas práticas sociais
que configuram um ambiente alfabetizador, um
contexto de letramento e um espaço de refle-
o sobre como funcionam as coisas no mundo
da escrita: os materiais em que se, as situa-
ções em que se escreve e se, a forma como os
adultos lêem e escrevem, a direção da escrita e
da leitura em nossa língua (da esquerda para a
direita), como se escrevem os nomes das pes-
soas queridas, quantas e quais letras se colocam
para escrever, por que há mais letras do que
parece necessário nos textos escritos, o que está
escrito aqui e ali, que letra é essa, como se lê
essa escrita, e assim por diante.
Enquanto as crianças de classe média e alta
passam a primeira infância aprendendo coisas
desse tipo, em suas casas, com seus pais, tios e
avós, as crianças pobres estão aprendendo o
que seria impensável a uma criança pequena de
classe média e alta: cozinhar para os irmãos
menores, dar banho sem derrubá-los, acordar
de madrugada para ir trabalhar na roça ou na
rua, vender objetos nos semáforos. As primei-
ras ocupam seu tempo desenvolvendo proce-
dimentos que as farão se alfabetizar muito cedo;
as últimas, por sua vez, estão desenvolvendo
procedimentos que permitem sua sobrevivên-
4
Quando aindao tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas, dizia-se que eles eram
portadores de "dificuldade de aprendizagem". Os índices desses "distúrbios" chegavam a 30%, segundo os especialistas. Depois que se pôde
compreender o que acontecia com os alunos aindao alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo,
oscilando de 1% a 3%, segundo os mesmos especialistas (Cadernos Idéias, n. 2 e 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993, respectivamente).
SIMPÓSIO 18
Letramento
cia como crianças pobres que são. O repertório
de saberes é outro, é outra a bagagem de vida,
como se dizia há algum tempo.
Em outras palavras, as crianças pobreso
aprendem a ler e a escrever aos seis ou sete anos
pela mesma razão que as outraso aprendem
a cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpir
o roçado, desviar-se dos carros na rua, porque
a vida exige delas coisas muito diferentes e lhes
oferece oportunidades de aprendizagem mui-
to diferentes.
Quando a escolao valoriza os saberes que
os alunos pobres trazem, fruto de sua experi-
ência anterior, faz que eles se sintam entrando
em novo mundo, estranho e hostil. Poro po-
derem corresponder ao que os professores es-
peram deles e percebendo que frustram as ex-
pectativas da escola, é de se esperar que aca-
bem se sentindo incapazes. Respeitar e, de fato,
considerar as diferenças, valorizar os saberes
que os alunos possuem e criar um contexto es-
colar favorável à aprendizagemoo apenas
valores de natureza ética:o a base de um tra-
balho pedagógico comprometido com o suces-
so das aprendizagens de todos.
Uma cultura escolar centrada
no direito de aprender
Nas duas últimas décadas, a pesquisa a res-
peito dos processos de aprendizagem da leitu-
ra e da escrita vem comprovando que a estraté-
gia necessária para um indivíduo se alfabetizar
o é a memorização, mas a reflexão sobre a
escrita. Essa constataçãos em xeque uma
antiga crença, na qual a escola apoiava suas prá-
ticas de ensino, e desencadeou uma revolução
conceituai, uma mudança de paradigma. Esta-
mos agora passando por esse momento, com as
vantagens e os prejuízos que caracterizam um
período de transição, de transformação de idéi-
as e de práticas cristalizadas ao longo de mui-
tos anos.
Mas, seo é por um processo de memo-
rização, como funciona o aprendizado da lei-
tura e da escrita?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que
alguns conteúdos escolares são, de fato, apren-
didos por memorização. Tudo o queo requer
construção conceituai, por ser de simples assi-
milação, depende da memorização de informa-
ções: nomes em geral (das letras, por exemplo),
informações e instruções simples (como, "em
português, escrevemos da esquerda para a di-
reita"), respostas a adivinhações, números de
telefone, endereços.
o grande equívoco, no qual a concepção tra-
dicional de ensino e aprendizagem se apoiou
nas últimas décadas, consiste em acreditar que
os conteúdos escolares de modo geralo
aprendidos por memorização.o são, hoje
sabemos.
Para aprender a ser solidário, a trabalhar em
grupo, a respeitar o outro, a preservar o meio
ambiente, a gostar de ler e escrever é preciso
vivenciar situações em que essas ações repre-
sentam valores.o adianta memorizar infor-
mações, como a de que é preciso ser solidário,
respeitar os outros, dar importância à leitura e
à escrita- Isso pouco representa, pois a consci-
ência de quais atitudeso necessárias e ade-
quadaso garante que elas existam.
Para aprender a interpretar textos, redigir
textos e refletir sobre eles e sobre a escrita con-
vencional,o basta memorizar definições e
seqüências de passos a serem desenvolvidos. É
preciso exercitar essas atividades com freqüên-
cia para chegar a realizá-las com habilidade e
desenvoltura. Procedimentos - quaisquer pro-
cedimentos -o aprendidos com o uso.
Para aprender conceitos e princípios com-
plexos - como é o caso do sistema alfabético de
escrita -, ou seja, para se alfabetizar,o basta
memorizar infinitas famílias silábicas. Propor
que se aprenda a ler e escrever dessa forma sig-
nifica tratar um conteúdo de alto nível de com-
plexidade como se fosse uma informação sim-
ples, que supostamente poderia ser assimilada
com facilidade apenas pela memorização.
A compreensão das regras de geração do sis-
tema de escrita em português depende de um
processo sistemático de reflexão a respeito de
suas características e de seu funcionamento.
Quer dizer: para se alfabetizar, o indivíduo pre-
cisa aprender a refletir sobre a escrita (um pro-
cedimento complexo, que requer exercício),
além de compreender o funcionamento do sis-
tema alfabético da escrita (um conteúdo tam-
m complexo, cujo aprendizado requer a cons-
trução de interpretações sucessivas, que se su-
peram umas às outras).
Portanto, a afirmação de que se aprende a
ler e escrever lendo e escrevendo textoso
quer dizer que se trata de um processo simples,
como o enunciado pode enganosamente suge-
rir. Aprender a ler e escrever lendo e escreven-
do requer um conjunto de procedimentos de
análise e de reflexão sobre a escrita - um objeto
de conhecimento que, por suas características
e seu funcionamento, exige alto nível de elabo-
ração intelectual por parte do aprendiz, seja ele
criança ou adulto.
Para poder ler textos quando aindao se
sabe ler convencionalmente, é preciso utilizar
o conhecimento de que se dispõe sobre o valor
sonoro convencional das letras e ter informa-
ções parciais acerca do conteúdo do texto, po-
dendo assim fazer suposições a respeito do que
pode estar escrito. Em outras palavras, é preci-
so utilizar simultaneamente estratégias de lei-
tura que implicam decodificação, seleção, an-
tecipação, inferència e verificação e, em alguns
casos, ajustar o conteúdo que se sabe de cor ao
que está escrito.
Para poder escrever textos, quando ainda
o se sabe escrever, é preciso escolher quantas
e quais letras utilizar e, se a proposta for escre-
ver junto com um colega que faz outras opções
de uso das letras, refletir a respeito de escolhas
diferentes para as mesmas necessidades.
Para poder interpretar a própria escrita (ler
o que escreveu), quando aindao se sabe ler e
escrever, é preciso justificar as escolhas feitas,
para si mesmo e para os outros, com todas as
explicações que isso demanda: por que sobram
letras, por que elas parecem estar fora de ordem,
por que parece estar escrito errado conforme
seu próprio critério etc.
Como se pode ver, nada há de fácil ao se al-
fabetizar lendo e escrevendo textos, como tam-
m nada há de fácil (aliás, é seguramente mui-
to mais difícil) ao se alfabetizar memorizando
sílabas: em ambos os casos, trata-se de uma
aprendizagem complexa.
o desafio consiste em organizar as propos-
tas didáticas de alfabetização a partir do que
hoje se sabe sobre as formas de aprender a lín-
gua.o basta ensinar aos alunos as caracte-
rísticas e o funcionamento da escrita, pois, em-
bora fundamental, esse tipo de conhecimento,
por si,o os habilita para o uso da lingua-
gem em diferentes situações comunicativas. E
o basta colocá-los na condição de protago-
nistas das mais variadas situações de uso da lin-
guagem, pois o conhecimento sobre as carac-
terísticas e o funcionamento da escritao de-
corre naturalmente desse processo. Em outras
palavras, isso significa dizer que é preciso pla-
nejar o trabalho pedagógico de alfabetização,
articulando as atividades de uso significativo da
linguagem com as atividades de reflexão sobre
a escrita. Isso significa dizer que a alfabetiza-
ção - tomada como aprendizagem inicial da lei-
tura e escrita - deve ocorrer em contextos de
letramento que potencializem o domínio da lin-
guagem.
É a resposta ao desafio de promover, ao
mesmo tempo, um processo de alfabetização
e de letramento que pode conferir eficácia ao
ensino nas séries iniciais, instaurando uma
cultura escolar centrada no direito à apren-
dizagem.
Para assegurar aos alunos seu direito de
aprender a ler e escrever, é indispensável que
os professores tenham assegurado seu direito
de aprender a ensiná-los. Cabe às instituições
formadoras a responsabilidade de preparar
todo professor que alfabetiza crianças, jovens e
adultos para:
encarar os alunos como pessoas que preci-
sam ter sucesso em suas aprendizagens para
se desenvolverem pessoalmente e para te-
rem uma imagem positiva de si mesmos,
orientando-se por esse pressuposto;
desenvolver um trabalho de alfabetização
adequado às necessidades de aprendizagem
dos alunos, acreditando que todoso ca-
pazes de aprender;
reconhecer-se como modelo de referência
para os alunos: como leitor, como usuário
da escrita e como parceiro durante as ativi-
dades;
utilizar o conhecimento disponível sobre os
processos de aprendizagem dos quais de-
pende a alfabetização, para planejar as ati-
vidades de leitura e escrita;
SIMPÓSIO 18
letramento
observar o desempenho dos alunos duran-
te as atividades, bem como as suas
interações nas situações de parceria, para
fazer intervenções pedagógicas adequadas;
planejar atividades de alfabetização desafia-
doras, considerando o nível de conhecimen-
to real dos alunos;
formar agrupamentos produtivos de alunos,
considerando seus conhecimentos e suas
características pessoais;
selecionar diferentes tipos de texto, que se-
jam apropriados para o trabalho;
utilizar instrumentos funcionais de registro
do desempenho e da evolução dos alunos,
de planejamento e de documentação do tra-
balho pedagógico;
responsabilizar-se pelos resultados obtidos
em relação às aprendizagens dos alunos.
o desenvolvimento dessas competências
profissionais é condição para que os professo-
res alfabetizadores ensinem todos os seus alu-
nos a ler e a escrever.o é possível ensinar a
todos quando se sabe ensinar apenas àqueles
que iriam aprender de qualquer forma, por vi-
verem em um contexto que prove condições e
favorece suas aprendizagens.
A importância e a insuficiência
da formação de professores
É certo que a qualidade da formação dos
educadoreso garante, por si, a qualidade
da educação escolar, mas é condição indispen-
sável a ela. As outras condições são: valoriza-
ção profissional, adequadas condições de tra-
balho, contexto institucional favorável ao espí-
rito de equipe, ao trabalho em colaboração, à
construção coletiva e ao exercício responsável
da autonomia. As transformações que a reali-
dade hoje exige só poderão ser conquistadas
com investimentos simultâneos em todos esses
aspectos -, há alguns anos, a prática vem
comprovando queo bem poucos os efeitos da
priorização de um determinado aspecto em
detrimento dos demais.
Isso significa que as políticas públicas para a
educação só terão eficácia real se tiverem como
meta melhorias relacionadas, ao mesmo tempo:
ao desenvolvimento profissional e às condi-
ções institucionais necessárias para um tra-
balho educativo sério: consolidação de pro-
jetos educativos nas escolas, formas ágeis e
flexíveis de organização e funcionamento da
rede, quadro estável de pessoal e formação
adequada dos professores e técnicos;
à infra-estrutura material: adequação do
espaço físico e das instalações, qualidade
dos recursos didáticos disponíveis, existên-
cia de biblioteca e de acervo de materiais
diversificados de leitura e pesquisa, tempo
adequado de permanência dos alunos na
escola e proporção apropriada na relação
alunos-professor;
à carreira: valorização profissional real, sa-
lário justo e tempo previsto na jornada de
trabalho para o desenvolvimento profissio-
nal permanente, o planejamento, o estudo
e a produção coletiva.
Sempre que see em foco a formação dos
educadores, é fundamental contextualizá-la,
considerando o conjunto de variáveis que inter-
ferem na qualidade das aprendizagens dos alu-
nos. Do contrário, corre-se o risco de responsa-
bilizar unicamente os educadores por resultados
que, apenas em parte, lhes dizem respeito.
Evidentemente, os educadores são, sim, res-
ponsáveis pelo fracasso escolar, maso pes-
soalmente responsáveis. A grande pergunta a
ser respondida é: por que os cursos de forma-
ção inicialo habilitam adequadamente os
profissionais da educação para o exercício do
magistério? É essa distorção (cursos de habili-
tação que, de fato,o habilitam) que provoca,
em nosso país, uma outra distorção, com a qual
temos nos debatido há vários anos: o papel
compensatório da formação em serviço.
Em geral, os jovens professores - queo
maioria em várias regiões do país - já foram alu-
nos de uma escola pública queo lhes garantiu
os conteúdos básicos a que todo cidadão brasi-
leiro tem direito (conforme revelam os indica-
dores de desempenho escolar das últimas-
cadas); passaram por um curso de Magistério
que, além deo habilitá-los adequadamente
para o exercício profissional, roubou-lhes o di-
reito à formação de nível médio (ao ocupar o
espaço do Ensino Médio com as disciplinas di-
tas profissionalizantes); eo contam com um
processo assistido de inserção na carreira, como
professores iniciantes.o é raro que essa in-
serção ocorra por "tratamento de choque": nas
escolas mais distantes, nas classes mais difíceis,
sem apoio para o trabalho pedagógico.
Nessas condições, manter-se professor é um
ato de valentia.o seria justo que os sistemas
de ensino e seus gestores assumissem uma po-
sição de responsabilizar pessoalmente os edu-
cadores pelo fracasso do ensino. Se a sociedade
demanda profissionais bem formados para
prestarem serviço de qualidade à população, é
preciso que as instituições formadoras cum-
pram a tarefa de habilitá-los adequadamente
para o exercício da profissão.
Bibliografia
BARBOSA, José Juvêncio. A herança de um saber: a alfa-
betização. In: Alfabetização - Catálogo de base de da-
dos.o Paulo: FDE, s. d. v. 1.
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da lín-
gua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.
SIMPÓSIO 19
ESCOLHA E USO DO LIVRO
DIDÁTICO -
IMPLICAÇÕES PARA A
FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Lucília Helena do Carmo Garcez
Marildes Marinho
Lívia Suassuna
o livro didático e a construção
social da autoria na produção
de textos
Lucília Helena do Carmo Garcez
Universidade de Brasília/DF
Em uma terceira série do Ensino Fundamental de uma pequena escola
pública da periferia, próxima a um hospital, uma jovem professora aplica
um exercício de redação do seu livro didático: redigir um texto a respeito
de projetos pessoais para o futuro a partir do poema "Verbo ser",
de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim:
"Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor".
Antônio, de 11 anos, entrega seu texto em poucos minutos.
Nele estava escrito um único período:
"Eu queria ser doutor, mas sei que não dá".
Estaria nossa professora
preparada para lidar com
essa situação?
A formação do professor, no que se refere
ao trabalho com a língua portuguesa, com a ex-
pressão, com a autoria, exige uma sólida base
de conhecimentos lingüísticos em todos os
seus aspectos: especialmente os discursivos.
Além disso, é essencial uma fundamentação
pedagógica que lhe permita, com tranqüilida-
de e segurança, tomar decisões adequadas,
originais, flexíveis e eficientes nas diversas si-
tuações. Mais que isso, exige profissionalismo
e compromisso com os objetivos educacionais
transformadores.
Na educação comprometida com a cons-
trução da cidadania, o professor favorece as
condições para que o aluno possa desenvolver
e ampliar continuamente seu universo existen-
cial, cognitivo e de ação interindividual. É o
professor que catalisa o processo pelo qual os
indivíduos se constituem como sujeitos, com
capacidade de pensar sobre as questões do
mundo e, conseqüentemente, com capacida-
de de agir sobre o mundo e no mundo, condi-
ção imprescindível para o exercício pleno da
cidadania. Sob esse ponto de vista, o papel do
educador é o de interlocutor privilegiado, ca-
paz de diagnosticar as necessidades dos alu-
nos, de orientá-los interativamente, reorien-
tando também suas próprias diretrizes peda-
gógicas para criar situações favoráveis ao cres-
cimento e à reflexão sobre a linguagem, o co-
nhecimento e o mundo social.
Todo o percurso de aquisição, desenvolvi-
mento e construção do conhecimento inicia-
se na interação social para então realizar-se,
consolidar-se no interior do indivíduo, ou seja,
internalizar-se,o como cópia, mas como
reelaboração. É assim, nesse movimento do so-
cial para o individual, pela mediação do ou-
tro, que se constróem o pensamento abstrato,
a memorização, a atenção voluntária, o com-
portamento intencional, as ações consciente-
mente controladas, a generalização, as associa-
ções, o planejamento, as comparações, ou seja,
as funções superiores da mente, as que nos fa-
zem humanos, como afirma Vygotsky.
o trabalho pedagógico atualm procura-
do, cada vez mais, privilegiar o desenvolvimen-
to do raciocínio, em detrimento da memori-
zação e da automatização pura e simples de
conteúdos isolados e descontextualizados, in-
centivando a construção de competências e
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
habilidades. Em decorrência dessa postura,
o favorecidas as atividades interativas e
interdisciplinares.
Esses procedimentos situam a aprendiza-
gem significativa como aquela em que concei-
tos mais inclusivos, ou seja, com maior poder
de generalização e aplicação, funcionam como
base prévia à qualm se articular e agregar os
conceitos novos, a partir de intensas operações
cognitivas do próprio aprendiz mediadas pelo
outro. Nesse processo há uma profunda
interação entre os conhecimentos novos e os
prévios, por meio de uma adesão total do su-
jeito à atividade de incorporação desses novos
conceitos, e é essa participação individual que
torna a aprendizagem realmente significativa.
Para que seja assim, o processo exige um en-
volvimento real do educador no empreendi-
mento pedagógico, pois é nessa interação hu-
mana, nessa mediação qualificada e solidária,
que os limites dos conhecimentos prévios re-
aiso revelados e pode ser determinado o ho-
rizonte em que o desenvolvimento é possível
com maior apoio e participação do professor,
ou seja, o que Vygotsky (1930) chama de zona
proximal de desenvolvimento.
Essa nova atitude pedagógica está em fran-
ca oposição aos procedimentos tradicionais,
behavioristas, que privilegiam a memorização
de itens isolados, arbitrários, pouco inclusivos,
com menor poder de generalização e baixa pos-
sibilidade de articulação com conhecimentos
anteriores. Tais práticas, que a reflexão atual
procura afastar de forma definitiva do cotidia-
no escolar, enfatizam o adestramento, a
automatização e exigem do professor uma ati-
tude de treinador, caçador de erros, cobrador,
repressor, vigia, punidor, eo propriamente
de educador. Nesse universo, a interação fica-
ria excluída em nome da hierarquia e da
assimetria entre professor e aluno. Compreen-
de-se hoje que tal métodoo assegura a du-
rabilidade, a solidez e a utilidade dos conheci-
mentos, de forma que esses se tornam voláteis
e desaparecem logo depois da "prova", poiso
m raízes nem aplicabilidade ou significação
real no repertório cognitivo do estudante.
Em contraposição, a aprendizagem signi-
ficativa acontece com a combinação dos no-
vos conteúdos com conceitos, idéias e conhe-
cimentos que o aluno já adquiriu em experi-
ências anteriores. Leva o aluno a reformular
idéias anteriores, substituindo-as por uma vi-
o nova e diferente, e assim a adquirir as ha-
bilidades necessárias à constituição das com-
petências básicas, que serão gradativamente
consolidadas de acordo com o grau de matu-
ridade e queo essenciais para uma educa-
ção integral de qualidade.
Tendo como horizonte essa concepção de
educação e de aprendizagem, para que o pro-
fessor escolha com segurança o livro didático,
que poderá ser um auxiliar efetivo do seu tra-
balho, o ideal seria que ele desenvolvesse uma
ampla reflexão sobre o próprio objeto de aná-
lise, em consonância com suas concepções de
língua e de aprendizagem. Inúmeraso as
questões que podem orientar essa reflexão, no
que se refere, por exemplo, ao livro de Língua
Portuguesa.
Uma ordem preliminar de indagações di-
ria respeito à própria validade do instrumen-
to: o livro didático (LD) é necessário? Poderia
ser dispensado? Por que, quando, em que cir-
cunstâncias? Por queo poderia ser dispen-
sado? Como o LD tem sido escolhido na práti-
ca? Como o LD é usado na prática? Qual a sua
relação com os programas de ensino? Ele fun-
ciona como "o" programa de ensino propria-
mente? Qual a relação entre LD, em geral, e
projeto pedagógico do professor e da escola?
Tais reflexões, evidentemente, exigem do
professor desnaturalização da rotina e ampla
visão de suas próprias potencialidades e com-
petências, bem como das condições de traba-
lho em que atua.
Quanto ao conhecimento da proposta pe-
dagógica do LD, seria importante analisar: o
LD apresenta um projeto pedagógico claro,
explicitado, organizado? Quaiso as informa-
ções de apoio ao professor? Elas contribuem
para o processo educacional? Há sugestão de
estratégias de trabalho por aula, por semana,
por unidade ou pors e semestre?o
exeqüíveis? Quais os fundamentos psico-
pedagógicos e lingüísticos implícitos no LD?
Qual a visão da escola refletida no LD? A pro-
posta pedagógica é crítica e flexível ou acrítica
e imobilizante?
No que diz respeito à área de conhecimen-
to específica - Língua Portuguesa -, há aspec-
tos extremamente relevantes que devem ser
observados no LD: Quais as concepções de lín-
gua, de linguagem, de aprendizagem implíci-
tas no LD? o LD contempla as diversas verten-
tes da língua: expressão oral, leitura informa-
tiva, literária e história literária; a produção
escrita em todas as suas habilidades; a siste-
matização gramatical?
Expressão oral: Estão previstas atividades
de expressão oral? o LD considera as diferen-
ças entre modalidade oral e escrita da língua?
As atividades estabelecidas prevêem o desen-
volvimento do discurso oral de forma plena ou
apenas da leitura em voz alta e da declamação?
Leitura: Quais as concepções de leitura
subjacentes à proposta do LD? Qual o tipo de
leitura privilegiado? Qual a variedade e a quan-
tidade de textos versus gênero versus temas
versus autores? Os textoso integrais? Qual é
a qualidade dos textos?o adequados às ha-
bilidades de leitura dos alunos e ao interesse?
Há valorização da literatura brasileira? Quais
o os temas enfatizados? Eles configuram uma
ideologia predominante? Qual? A proposta de
interpretação de textos é coerente? Há coerên-
cia nos princípios teóricos focalizados? Há va-
riedade ou conduzem à rotina e à reprodução
mecânica? Há oportunidade de reflexão e in-
terpretação ou a ênfase está na decodificação?
Os exercícios auxiliam o desenvolvimento
cognitivo e afetivo? Há estímulo à leitura de
outros textos?
Produção de textos: A produção de textos
é vista como um processo? As várias etapas da
produçãoo contempladas: enriquecimento
de informações, motivação, planejamento, or-
ganização das idéias, idealização do
interlocutor, estabelecimento de objetivos,
elaboração, análise, revisão, reescritura? Há
critérios de avaliação? Há variedade de propos-
tas e de objetivos?
Reflexão sobre a lingua: Qual a relação da
gramática com o texto? Qual a concepção de
língua e de aprendizagem subjacente aos exer-
cícios? Quais os conceitos enfatizados? A vari-
ação lingüística é considerada? Há coerência
teórica? Há variedade de exercícios? Como é a
seleção e ordenação dos assuntos? Quaiso
as capacidades cognitivas enfatizadas? Qual a
relevância dos tópicos em relação às dificul-
dades reais dos alunos? Como se dá a contex-
tualização quanto à função estilística dos ele-
mentos enfocados? Há progressão e articula-
ção entre os exercícios e as explicações? Há
relação com a escrita real do aluno? o livro
propõe atividades complementares de enri-
quecimento? Há coerência entre os objetivos
estabelecidos na proposta do autor e as ativi-
dades realmente apresentadas no livro?
o professor deve levar em conta também a
qualidade material do LD: A durabilidade de
material do LD é satisfatória? A programação
visual é interessante, atraente e adequada aos
objetivos? o tipo de letra está de acordo com o
nível de leitura do aluno? A ilustração tem qua-
lidade estética? É apropriada? Relaciona-se de
forma ideal com os textos? Pode ser utilizada
como uma introdução à linguagem visual? o
livro é consumível ou não-consumível?
Essa listagem preliminar de questões de-
monstra como a análise do LD depende de co-
nhecimentos, valores, representações, concei-
tos e atitudes do professor diante do seu obje-
to de ensino, diante do ato de ensinar e do que
entende por aprender. Ou seja, depende de sua
formação como profissional, de sua clareza em
relação aos objetivos que estabelece para a sua
prática em sala de aula e da amplitude de sua
reflexão a respeito dos diversos aspectos de sua
própria ação como professor.
Vamos focalizar mais detidamente a ques-
o do desenvolvimento da produção de tex-
tos. Durante muito tempo, a escola enfatizou,
no ensino da escrita, o produto, a redação, a
primeira versão do texto. As práticas didáticas
tradicionais ignoravam a natureza recursiva es-
sencial da escrita (cheia de idas e vindas) e
consideravam a redação do aluno o momento
em que ele demonstrava seus conhecimentos
de língua e de organização de texto
internalizados nas aulas e nas tarefas voltadas
para a leitura e para as noções gramaticais. A
partir de um tema, geralmente escolhido pelo
professor, o aluno deveria demonstrar sua
competência na produção de textos corretos,
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
sem que, para o desenvolvimento dessa habi-
lidade, tivesse compartilhado uma reflexão
direcionada para os aspectos discursivos ou
recebido orientações mais específicas sobre o
ato de escrever. Esse texto, em sua primeira ou,
no máximo, segunda versão, serviria natural-
mente para o processo de avaliação.
o livro didático de Língua Portuguesa cris-
talizou essa tradição, localizando a produção
de textos como simples adendo, exercício fi-
nal, encerramento da unidade de ensino. Caso
o professor acompanhasse rigorosamente as
propostas do LD, todo o processo de desenvol-
vimento da escrita ficaria reduzido ao mínimo,
e muitas das habilidades necessárias para a
constituição da competência na produção de
textos seriam ignoradas.
o resultado disso foi que a pesquisa de de-
sempenho na escrita, nas décadas de 1970 e
1980, explorou as possibilidades de constituir
um inventário de problemas a partir da análi-
se de textos produzidos em situação de exa-
me, teste, concurso. Compreendeu-se, com o
avanço dos estudos dos resultados dos candi-
datos aos exames vestibulares, que aquela prá-
tica tradicional de ensino de redação estava
sendo insuficiente e que a escrita exigia novas
perspectivas de trabalho.
Hoje, a questão que se coloca retrocede às
origens da construção da autoria no percurso
escolar do aprendiz. As novas investigações
procuram compreender como e por que ele
chega a produzir um texto empírico com de-
terminadas características insatisfatórias e
como seria possível transformar práticas esté-
reis em um trabalho interativo e produtivo.
Nesse sentido, compreender a natureza da es-
crita foi o passo inicial.
Uma primeira aproximação revela que o
aprendiz apresenta uma dificuldade básica de
adaptação do gênero/modelo à situação de
ação (Bronckart, 1999), em vista de o "texto
escolar" ter sido assimilado como um formu-
lário a ser preenchido, o que impedia o exercí-
cio da autoria. O texto somente se constrói e
tem sentido inscrito em uma prática social, em
que o envolvimento do redator se realiza em
vários níveis, pois lida com a capacidade sim-
bólica e com a habilidade de interação media-
da pela palavra, mas também com a experiên-
cia de vida do indivíduo.
Escrever é um processo complexo inserido
em práticas sociais que elegeram, no decorrer
da história coletiva, formas relativamente es-
táveis de ação pela linguagem, a que chama-
mos gêneros. Por meio dos gêneros disponí-
veis na sociedade, o redator pode agir: expres-
sar, imaginar, informar, expor, relatar, narrar,
persuadir, descrever, dialogar, dissertar, argu-
mentar, contratar, atestar, declarar, convidar,
solicitar, registrar etc.
Empreender uma ação de escrita envolve:
motivação, interesse e necessidade; a configu-
ração do destinatário e o estabelecimento dos
objetivos do texto; o uso intenso da memória;
múltiplas e infinitas escolhas e decisões base-
adas no conhecimento acerca do tema, da lín-
gua e das estruturas textuais e discursivas pos-
síveis; diversas releituras avaliativas para
reformulação e reescrita, até que o produtor
do texto se sinta satisfeito na comparação en-
tre seus objetivos iniciais e o resultado obtido.
o redator estabelece inicialmente um base
de orientação: Qual é o assunto em linhas ge-
rais? Qual o gênero mais adequado aos objeti-
vos? Quem provavelmente vai ler? Que nível de
linguagem deve ser utilizado? Que grau de sub-
jetividade ou de impessoalidade deve ser atin-
gido? Quais as condições práticas de produção:
tempo, apresentação, formato?
Cada redator desenvolve, na sua história
pessoal de consolidação da habilidade de es-
crever, determinado percurso de trabalho, que
é diferente de pessoa para pessoa.o há um
único caminho a ser percorrido e é necessário
conhecer seus próprios procedimentos: fazer
anotações soltas, independentes; fazer uma
lista de palavras-chaves; anotar tudo o que vem
à mente, desordenadamente, para depois cor-
tar e ordenar; elaborar um resumo das idéias
para depois acrescentar detalhes, exemplos,
idéias secundárias; construir um primeiro pa-
rágrafo para desbloquear e depois ir desenvol-
vendo as idéias ali expostas; escrever a idéia
principal e as secundárias em frases isoladas
para depois interligá-las; elaborar inicialmen-
te uma espécie de sumário ou esquema geral
do texto; organizar mentalmente os grandes
blocos do texto, escrevê-lo e reestruturá-lo
várias vezes.
Qualquer que seja o procedimento utiliza-
do, ou o conjunto de procedimentos conjuga-
dos entre si, para que o autor fique satisfeito
com o seu próprio texto, o trabalho de ajuste é
imprescindível. Nesse momento, que é o mais
produtivo em termos de aprendizagem do fun-
cionamento do texto, a colaboração de um lei-
tor próximo com o qual seja possível trocar
idéias é fundamental (Garcez, 1998). As trans-
formações percebidas como necessárias pelo
autor ou sugeridas pelo leitor/colaborador
podem levar a: enfatizar as idéias principais;
reordenar as informações; substituir idéias
inadequadas; eliminar idéias desnecessárias;
alcançar maior exatidão para as idéias; acres-
centar exemplos, conceitos, citações, argu-
mentos; eliminar incoerências; estabelecer
hierarquia entre as idéias; criar vínculos entre
uma idéia e outra.
Para efetivar esses aperfeiçoamentos, ge-
ralmente é preciso: acrescentar palavras ou fra-
ses; eliminar palavras ou frases; substituir pa-
lavras ou frases; transformar períodos, unin-
do-os por meio de conectivos ou separando-
os por meio de pontuação; acrescentar transi-
ções entre os parágrafos; mudar elementos de
lugar, reagrupando-os de forma diferente; cor-
rigir problemas gramaticais, entre outras
transformações.
Nessa etapa do processo de escrita, há uma
adesão total do sujeito à atividade, uma inten-
sa participação do autor. Essa atitude permite
a interação entre situações novas de inter-
locução e os conhecimentos prévios em rela-
ção à lingua, ao tema, ao gênero e à prática
social e torna a aprendizagem realmente sig-
nificativa. É o momento também de um envol-
vimento real do educador no empreendimen-
to pedagógico, já que é a interação humana, a
mediação qualificada e solidária, que cria a
oportunidade para que os limites dos conhe-
cimentos prévios reais sejam revelados e se
possa determinar o horizonte em que o desen-
volvimento é possível com maior participação
do professor. Uma leitura compartilhada
(Garcez, 2001) com o professor levará o apren-
diz a analisar as decisões tomadas e o nível de
sucesso da realização dessas decisões no texto
quanto:
ao leitor: Inseri-lo no texto ou tratá-lo de
forma neutra e distanciada. A opção esco-
lhida foi mantida durante todo o texto? o
leitor que se tem em mente é atendido du-
rante todo o texto?
ao gênero de texto: Que plano de escrita
utilizar para a situação. O formato é ade-
quado à situação? As exigências referentes
ao gênero foram respeitadas ou há ambi-
güidades e inconsistências?
às informações: o que informar e o que
considerar pressuposto. As informações
fornecidaso suficientes ou o texto ficou
muito denso, exigindo muito do leitor? A
introdução de informações novas é bem
realizada? Há informações irrelevantes que
podem ser dispensadas? Há excesso de in-
formação? Há informações incompletas ou
confusas? As informações factuais estão
corretas?
à linguagem: Formal ou informal. A lingua-
gem está adequada à situação? A opção es-
colhida tornou o texto harmonioso ou há
oscilações súbitas e inadequadas? Os efei-
tos de sentido construídoso satisfatórios?
à impessoalidade on subjetividade: o
posicionamento adotado como predomi-
nante mantém-se ou essa opçãoo ficou
consistente no texto?
ao vocabulário: As escolhas estão adequa-
das ou há repetições enfadonhas e pobre-
za vocabular? Algum termo pode ser subs-
tituído por expressão mais exata? Há
clichês, frases-feitas, excesso de adjetivos,
expressões coloquiais inadequadas, jargão
profissional?
às estruturas sintáticas e gramaticais: o
texto está correto quanto às exigências da
língua padrão? As transições entre as idéias
estão corretas e claras? Os conectivoso
adequados às relações entre as idéias? A di-
visão de parágrafos corresponde às unida-
des de idéias?
ao objetivo e à situação: Está de acordo
com o objetivo estabelecido inicialmente?
As idéias principais estão evidentes?
Como é evidente, produzir um texto envol-
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
ve diversas etapas,o necessariamente
seqüenciais, e múltiplos aspectos discursivos
que precisariam ser considerados no processo
pedagógico e na formação inicial e continua-
da do professor (Nóvoa, 1999). Para que o re-
dator aprendiz vivencie a constituição da au-
toria pelas decisões e escolhas pessoais, é im-
prescindível a participação colaborativa do
professor e é essencial que esse professor tam-
m tenha tido oportunidade de constituição
de sua própria autoria.
Tanto na formação inicial, como nas situa-
ções de qualificação contínua em serviço, quan-
do o professor vivência a escrita de diversos-
neros, com diversos objetivos, aprofundando sua
própria experiência de produtor de texto, com-
preende melhor o objeto com o qual trabalha
com o aluno e amplia suas condições de colabo-
ração efetiva no crescimento do outro.
Nesse sentido, tanto a escolha como o uso
do livro didático serão enriquecidos a partir de
uma formação que considere o professoro
só como mediador da produção do aluno, mas
como efetivo autor.
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Martins Fontes, 1978.
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to. 1979.
Livro didático: uma possibilidade
de formação do professor?
Maríldes Marinho
Universidade Federal de Minas Gerais/MG
A temática desta mesa nos sugere abordar
as implicações decorrentes da escolha e do uso
do livro didático na formação do professor. Ao
final do percurso que tracei para a reflexão so-
bre esse tema, percebi que ele foi de muitas
perguntas e de poucas respostas; talvez uma
resposta apenas, se é que podemos considerá-
la assim. O próprio título já é uma interroga-
ção: Livro didático: uma possibilidade de for-
mação do professor?
0 lugar do livro didático no
cenário da cultura brasileira
Um novo momento para a história do li-
vro didático no Brasil parece ter começado.
Basta observar o quanto ele tem se tornado
alvo das atenções em conferências, seminá-
rios, pesquisas, políticas governamentais,
ações do mercado editorial, da mídia etc. Este
seminário é um exemplo. Mas essa atenção
o parece capaz de atribuir ao livro didático
os mesmos significados e valores queo atri-
buídos a outros livros e aos sujeitos que deles
se ocupam. Ou seja, o livro didáticoo goza
de prestígio nem no âmbito das práticas de
leitura a que se destina, nem no âmbito da
pesquisa. Batista (2000: 529-30) define com
perspicácia esse desprestígio:
oo poucos, portanto, os indicadores do
desprestígio social dos livros didáticos. Livro
"menor" dentre os "maiores", de "autores" eo
de "escritores", objeto de interesse de "colecio-
nadores" maso de "bibliófilos", manipulado
por "usuários" maso por "leitores", o pres-
suposto parece ser o de que seu desprestígio,
por contaminação, desprestigia também aque-
les que dele se ocupam, os pesquisadores ne-
les incluídos.
Diante desse interesse, seria razoável supor
que os tempos mudaram, mas issoo é bem
verdade, quando se observa que esse interesse
tem endereço bastante conhecido e forma bem
direcionada, as políticas de melhoria das con-
dições de existência (seu conteúdo e seu uso
"eficaz" na escola), de renovação de determina-
do olhar sobre o livro didático: "como deve ser",
o que fazer para aperfeiçoar um manual esco-
lar específico, que seleciona e organiza, de ma-
neira progressiva, os conteúdos e as atividades
que os alunos realizam no dia-a-dia da sala de
aula; de um manual que, normalmente, se di-
vide em dois, o do aluno e o do professor.
Ao observar essa tendência histórica com
que se olha para o livro didático, no Brasil, Mag-
da Soares (1996) chama a atenção para a ausên-
cia de um olhar distanciado da pesquisa sobre
o livro didático, um olhar que reflita sobre as
suas condições sócio-históricas, saindo do "de-
ver ser" para "o que tem sido" esse livro na his-
tória da educação e da cultura brasileiras. Uma
pesquisa dessa natureza poderia, quem sabe,
aprofundar a desconfiança de que o livro didá-
tico teria um prestígio compatível ao prestígio
atribuído à escola, às funções, aos papéis e às
representações a ela atribuídos no campo do
letramento. Nesse sentido, a escola despres-
tigiaria os próprios objetos e práticas que pro-
duz, como ocorre com a escolarização da lite-
ratura, da "ciência" etc.
Provavelmente, em função desse interesse
visivelmente pragmático do foco com que se
toma o livro didático, nesse momento pode-se
observar uma tendência ao problematizar a
sua forma de existência, a sua concepção; ao
contrário, busca-se solução para os problemas
da "vida cotidiana" desse objeto, como se ela
fosse naturalmente dada e necessária. Que ra-
zões políticas, ideológicas e pedagógicas esta-
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
riam por detrás desse movimento histórico em
que - diferentemente de um outro anterior -
bastante se escreve e se fala, com convicção, da
necessidade do livro didático, ou seja, de um
livro didático com características bem especí-
ficas?
Quemo se lembra da "ousadia" daqueles
que imaginavam uma escola sem livro didáti-
co, com um professor mais autônomo nas suas
ações pedagógicas? Mesmo nesse momento,
parece que pouco se escreveu a favor do livro
didático e, provavelmente, nada se escreveu
contra ele. Encontram-se, sim, análises sobre a
ideologia e o preconceito do livro didático ou
sobre os conteúdos específicos a cada área de
ensino (Faria, 1991; Molina, 1987; Nosella,
1988). No entanto, foram significativas as expe-
riências que ensaiaram essa "liberdade" e "au-
tonomia". Que fim e que sentidos teriam tido
essas experiências? Teríamos mesmo superado
essa polêmica ou existiriam razões ainda pou-
co compreendidas para o seu esfriamento ou
até mesmo "esquecimento"? Teria o professor
superado essa polêmica (para ele, dificuldade)
ou ele estaria lançandoo de novas estraté-
gias de relação com esse objeto, deixando cada
vez mais de utilizá-lo, a exemplo do que aqui
relatou o pesquisador Jean Hébrard sobre o li-
vro didático na França? o que sabemos sobre
os usos do livro didático na sala de aula é mui-
to pouco.
Enfim, a pergunta maior entre todas que
aquim se apresentando poderia ser assim
resumida: como transformar o livro didático em
objeto de estudo para melhor compreensão da
história das práticas escolares, compreensão
esta que possa se reverter em ações para a
reinvenção do aprendizado da leitura e da es-
crita por meio de um novo livro didático?
Para compreender as condições de existên-
cia desse objeto escolar, seria importante: a)
conhecer as características desse livro e como
ele se insere no conjunto dos objetos pedagó-
gicos e das práticas escolares de ensino-apren-
dizagem; b) conhecer a história de construção
do modo de ser desse livro, particularmente no
que diz respeito aos sujeitos a quem se destina
(professor e aluno). Essas e outras pesquisas
poderiam, cerfamente, sustentar discussões e
ações transformadoras do livro didático e da sua
inserção na história das disciplinas escolares e
das políticas educacionais. Enquanto elaso
existem, continuamos ousando algumas postu-
ras e perspectivas, a exemplo das posições con-
tra ou a favor do uso do livro didático.
Contra ou a favor do livro
didático. Por quê?
Posicionar-se contra o uso de um manual
didático na escola foi e será por algum tempo
uma ousadia. Uma das explicações - como já
dito antes - para essa ousadia é o investimento
ainda tímido das pesquisas das universidades
com o livro didático, ao ser para destinar a
ele críticas severas. Se a pesquisa ainda é pou-
co significativa, o que falar da própria produ-
ção de livros ou textos didáticos para o profes-
sor e para o aluno? A escrita acadêmica legíti-
ma, que rende tributos para o acadêmico, é a
da pesquisa, aquela que ele produz para os seus
pares, principalmente se for publicada no mer-
cado editorial estrangeiro (Soares, 2000).
Assim, temos que nos reportar a um antigo
(e ainda muito importante) refrão para justifi-
car por que é ousadia ser contra o livro didáti-
co. Do ponto de vista do professor, as suas con-
dições de exercício da profissão: para sobrevi-
ver, ele se ocupa quase que estritamente da ta-
refa de ministrar aulas, ou seja,o pode pla-
nejar as suas aulas, escolher e produzir o seu
material. As escolaso disponibilizam, ade-
quadamente, materiais didáticos de que o pro-
fessor possa lançar mão, de forma ágil, dentro
de uma condição de trabalho "sem planejamen-
to prévio", "improvisado".o há livros, jornais,
revistas, internet, vídeos, etc. e, quando, eles
o se encontram organizados de forma a per-
mitir o seu uso no cotidiano da sala de aula. O
livro didático torna-se, então, o material mais
visível e garantido, porque ou está na mochila
do aluno, ou no armário/estante da sala de aula.
Dessa forma, a ausência de planejamento, a
"improvisação"o seria também o resultado
dessas condições precárias de organização e
disponibilização dos espaços e dos materiais
indispensáveis para o trabalho na "sala de aula"?
Do ponto de vista do aluno, como ousar di-
zer "não" ao livro didático, quando se reconhe-
ce, por explicações sociológicas, políticas, an-
tropológicas, o significado da posse de livros,
ainda que de um livro desprestigiado e doado?
(Ou também desprestigiado porque é doado?)
A grande maioria de alunos só conta com esse
livro didático como material de leitura. Esse li-
vro, por sua vez, extrapola o seu espaço escolar
e ganha função específica nas práticas de leitu-
ra fora da escola, na família.
A questão do valor do livro didático em es-
colas e em grupos sociais distintos - tanto para
o professor quanto para o aluno - é muito im-
portante para se pensar a política do livro di-
dático no Brasil. Que efeitos tem uma política
governamental de doação de livros, e de quais
livros? Que relações os estudantes, as famílias
dos estudantes e os professores mantêm com
os livros distribuídos gratuitamente pelo gover-
no? Seriam diferentes, se comprassem os livros?
Se os retirassem emprestados na biblioteca-
blica, na biblioteca da escola? Como se compor-
tam as famílias e os estudantes que compram
os seus livros? Por que se atribui - se é que se
atribui - tanto valor à posse de livros? Seria re-
sultado das políticas precárias de socialização
do livro por meio das bibliotecas, dos emprés-
timos? o que significaria para os grupos
desfavorecidos socioeconomicamente, ou seja,
pais e filhos desses grupos, entrarem em uma
livraria para comprar o seu material escolar, os
seus livros, assim como o fazem os outros gru-
pos? Ou também o contrário: seria possível re-
criar formas mais coletivas de uso de livros, de
leitura, também nesses grupos de elite econô-
mica e intelectual que fazem do livro um obje-
to de posse, um fetiche? Em pesquisa sobre os
usos da escrita no cotidiano de camadas popu-
lares, pude observar famílias queimando livros
escolares ou porque, segundo elas,o tinham
espaços para guardá-los, ou porqueo tinham
tido eo teriam mais utilidade, diante do "fra-
casso" escolar dos filhos.
Em síntese, as políticas públicas de distri-
buição do livro didáticom um efeito simbó-
lico e precisam ser mais bem analisadas, se qui-
sermos desfazer algunss historicamente ata-
dos em torno das práticas sociais de leitura e
escrita em nosso país. Que efeitos teriam essas
políticas de compra e distribuição de livros -
didáticos ouo - sobre o processo de leitura,
sobre os usos que se fazem deles?
Ainda assim, neste momento, acredito que
as dificuldades de relação com o livro no Brasil
- particularmente quando se trata do poder
aquisitivo da grande maioria de professores e
alunos -o permitem ousar romper com uma
lógica das políticas de leitura e de acesso ao li-
vro, neste caso, de acesso a um livro didático.
Paradoxalmente, um livro que teria uma função
específica de organizar e sistematizar determi-
nados conteúdos de uma disciplina escolar
pode se transformar em símbolo e instrumen-
to de outras práticas de leitura fora da escola.
Contudo, mesmo se essas apropriações ou
reinvenções dos modos de ler livro didático sus-
pendem, de certa forma, nossas descrenças em
relação a efeitos positivos, é necessário reco-
nhecer que os problemas que a sua história nos
tem apresentadoo graves. O professor
Levinson, ontem, apresentou-nos alguns deles.
O mais evidente desses problemas se fez visível
no mercado editorial, que, apoiado pelas polí-
ticas de produção e distribuição do livro didá-
tico, pelas precárias condições de formação do
professor e do exercício da profissão docente,
tornou-se o responsável mais visível pelo perfil
desqualificado do livro escolar.
Nesse sentido, a avaliação do livro didático,
conforme o Programa Nacional do Livro Didá-
tico (PNLD), tem um papel fundamental ao atu-
ar diretamente na modificação do perfil desses
manuais. Penso que, neste momento, as conse-
qüências dessa avaliação recaem preferencial-
mente sobre os editores, que tentam adequar
os seus livros às orientações teórico-metodo-
lógicas indicadas por instituições de ensino e
pesquisa. No entanto, a influência dessas avalia-
ções na escola, no processo de seleção dos li-
vros, ainda vai levar algum tempo, por questões
de implementação de todo o processo de avalia-
ção e de escolha. Já sabemos de algumas difi-
culdades de finalização do processo de avalia-
ção, na distribuição do manual de resenhas, na
distribuição dos livros, na organização do tra-
balho de seleção nas escolas etc.
Imaginando, então, um momento em que o
processo de avaliação (do ponto de vista das
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
ações das equipes avaliadoras: MEC e universi-
dades) esteja consolidado, o foco de atenção
passa a ser o professor e a escola onde se dá a
escolha. O professor estaria preparado para ava-
liar um manual didático? É importante lembrar
que os critérios e as estratégias de escolha dos
professores estarão marcados pela sua forma-
ção inicial e capacitação em serviço. Já existem
dados disponíveis de pesquisas sobre escolha e
uso do livro didático que apontam a dificulda-
de de professores em adotar livros que exigem
um conhecimento de que eleso dispõem.
1
Disso se pode concluir que o conhecimen-
to sobre livro o didático, a sua história, as suas
condições de produção, os seus conteúdos de-
veriam fazer parte da formação desse profes-
sor. No entanto, sabemos (emborao tenha
feito uma pesquisa e nem tenha levantado pes-
quisas existentes sobre o assunto) que, mesmo
nos cursos de Pedagogia, esses manuaism
presença tímida. Nos cursos de licenciatura, a
ausência do livro didático é conseqüência da
própria concepção de que a licenciatura é uma
complementação dos bacharelados.
Assim, deixam-se para o final do curso os
conteúdos de natureza pedagógica, quem re-
lação com a escola, com o ensino-aprendizagem.
Assim também, mesmo que se queira abordar a
questão do livro didático, ela só pode se apre-
sentar no interior de um conjunto de todos es-
ses conteúdos. O mais provável é que o livro di-
dático ganhe existência, de fato, no momento em
que o aluno for para o estágio e esbarrar inevita-
velmente com esse objeto. Por isso, além dos
processos de avaliação e mudanças do livro, é
importante o processo de avaliação e de mudan-
ças nos cursos de licenciatura e nos processos
de capacitação em serviço dos professores.
É nesse espaço que se poderia pensar tam-
m em reconfiguração do conceito ou da con-
cepção do livro didático. Ao livro didático ain-
da se atribui uma função centralizadora,
monopolizadora do trabalho em sala de aula, o
que exige cobrar dele conteúdos, procedimen-
tos e materiais que a sua própria naturezao
permite assumir. Exemplos:
1. Um livro didático tende a selecionar uma
perspectiva teórico-metodológica, enquan-
to que a prática de sala de aula permite (ou
até mesmo exige) a diversidade; a prática de
ensino na sala de aula envolve uma história
(sujeitos e ações, num determinado mo-
mento, com determinadas expectativas,
objetivos e conhecimentos), enquanto o li-
vro é um material previamente definido,
endereçado a um perfil projetado de aluno
e de professor. Portanto,o pode ser o úni-
co material a ser "seguido".
2. o livro didáticoo é o material e nem o
conteúdo de ensino-aprendizagem, nem os
representa na sua amplitude: os livros, os
jornais, as revistas, os filmes, os cd-roms que
os alunos devem e podem ler, ver, ouviro
podem estar dentro dos livros didáticos,
assim comoo estão as bibliotecas, as li-
vrarias, as ruas, as editoras etc. Os livros di-
dáticos podem representar apenas parte do
conteúdo e dos procedimentos que envol-
vem o ensino-aprendizagem de uma disci-
plina.
3. Mesmo no espaço em que um livro didáti-
co pode operar, ainda existem restrições sig-
nificativas, pela própria diversidade de con-
cepções que o objeto de ensino em uma dis-
ciplina pode apresentar, além dos proble-
mas já cristalizados na história do livro di-
dático, o maior deles relacionado às orien-
tações dadas pelos próprios editores e à
competência ou ao perfil de autores que es-
crevem livros didáticos no Brasil.
Magda Soares (1996: 63) destaca o processo
de "desprestígio do lugar da autoria de livros di-
dáticos" no Brasil, em função da democratiza-
ção do ensino que amplia "enormemente o
mercado para o livro didático":
Como conseqüência dessa ampliação, altera-se
o valor social e cultural atribuído aos livros di-
dáticos, afastando-se por isso da autoria deles
os intelectuais de alta qualificação científica e
educacional, principalmente responsáveis por
sua produção na primeira metade do século.
Cresce, entretanto, o número de autores didáti-
o MEC/Ceale está finalizando uma pesquisa sobre o processo de escolha do livro didático em escolas brasileiras.
cos, quase sempre professores dos níveis em que
ensinam.
Além das questões que envolvem a produ-
ção do livro didático, outros fatores comprome-
tedores da sua qualidade e do seu uso na escola
geram dúvidas, sim, sobre a sua utilidade pe-
dagógica e cultural. Um desses fatoreso as
condições de formação do professor e de exer-
cício da sua profissão. Ou seja, muitas vezes,
vemos um professor com uma competência
maior do que a do próprio livro submetendo
seus alunos ao livro didático, porque é o recur-
so mais rápido e eficiente que ele tem para que
a sua aula aconteça. Ele só toma conhecimento
do conteúdo e da atividade que propôs ao alu-
no no momento de "corrigir" os exercícios.
0 livro didático é também
uma possibilidade para a
formação do professor
Concluindo, no seu sentido mais amplo (o
que se produz para a escola), o livro didático
também tem, historicamente, se constituído em
instrumento para a formação do professor. Es-
ses impressosm papel significativo nessa for-
mação, se considerarmos que é principalmen-
te por meio deles que o professor exerce e, mui-
tas vezes, aprende a sua profissão. Contudo,
nem sempre se pode garantir a qualidade des-
sa formação.
Nesse sentido, mais do que os seus conteú-
dos, é importante pensar como esses materiais
a que podemos chamar manuais didáticos es-
o organizados eo utilizados na prática de
sala de aula. Atualmente, as demandas e pro-
postas políticasm se pautado preferencial-
mente pelos guias curriculares e pelo livro di-
dático, ou seja, por uma definição mais clara dos
conteúdos e procedimentos didáticos que de-
vem reger a prática de ensino na sala de aula.
o importantes, sim, essas ações, mas elas po-
dem perder o seu alcance, quando tendem a ser
vistas como redutoras de todo o conjunto das
questões que cercam o universo pedagógico.
Nesse sentido, o problema do conteúdo do
livro didáticoo se encontra apenas no mer-
cado editorial, nos seus autores, mas também
nas condições históricas do seu leitor. O pro-
fessor, como leitor e usuário do livro didático,
define, de certa forma, os conteúdos e as estra-
tégias editoriais de produção desse livro. É prin-
cipalmente por ele e para ele que os editores/
autores formulam uma imagem de leitor, com-
patível com seus conhecimentos, expectativas
e condições de exercício da profissão.
o que adiantariam, então, propostas inova-
doras, materiais sofisticados nos livros didáti-
cos, se o professor (ou a escola)o apresentar
as disposições esperadas - entendendo-se dis-
posições como o conhecimento desejável para
a disciplina em que atua e as condições de exer-
cício da sua profissão (carga horária, número
de alunos, salário, infra-estrutura, materiais
etc.) - para utilizá-lo?
Dessa forma, somente uma mudança nas
condições de formação e de exercício da pro-
fissão docente pode propiciar uma melhoria na
concepção e no conteúdo do livro didático, já
que esses livros, a produção editorial, os pro-
cessos de escolha e seus usos refletem com bas-
tante evidência o estado da educação e da pro-
fissão docente no Brasil.
Bibliografia
BATISTA. Um objeto variável e inevitável: textos, impressos
e livros didáticos. In: ABREU, M. (Org.). Leitura, história
e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000.
BONAZZI. M.: ECO, U. Mentiras que parecem verdades.o
Paulo: Summus, 1980.
FARIA, A. L. de. Ideologia no livro didático.o Paulo:
Cortez. 1991.
MOLINA, Olga. Quem engana quem: professor x livro didá-
tico. Campinas: Papirus, 1987.
NOSELLA, Maria de Lourdes. As mais belas mentiras: a
ideologia subjacente aos textos didáticos.o Paulo:
Moraes, s. d.
SOARES, Magda. Trabalho apresentado na XXIII Reunião
da Anped. Caxambu/MG, set./2000.
Um olhar sobre o livro didático. Presença
Pedagógica, n. 12, p. 53-63, Belo Horizonte, nov./dez.
1996.
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
Escolha e uso do livro didático:
implicações para a formação
do professor
Lívia Suassuna
Universidade Federal de Pernambuco/PE
Resumo
Neste trabalho, pretendemos discutir o tema do
livro didático de Português - e, eventualmente, de
qualquer outra disciplina escolar, - a partir de pres-
supostos teóricos da análise do discurso. Em virtu-
de das muitas correntes de pensamento que se
estruturaram em torno do rótulo "análise do discur-
so", esclarecemos que será adotada aqui a linha fran-
cesa de estudo, caracterizada, grosso modo, pela ar-
ticulação do discurso com a história e a ideologia.
Inicialmente, faremos um rápido levantamen-
to de alguns estudos sobre livro didático para sali-
entar que, seja qual for a especificidade de seus
subtemas- produção, circulação, avaliação, escolha,
uso -, em grande parte deles é apontada ou persiste
a polêmica questão sobre se é válido ouo adotar
o livro didático nas aulas de Língua Portuguesa.
Em seguida, exporemos alguns conceitos bási-
cos da análise do discurso, a partir dos quais é pos-
sível pensar o livro didático e sua inserção na escola
brasileira, dando especial ênfase ao conceito de au-
toria. Nessa segunda parte, nosso objetivo é, de um
lado, ampliar o campo de análise do livro didático
para além de sua dimensão propriamente didático-
pedagógica e, de outro, relacionar alguns pressupos-
tos da análise do discurso com a prática pedagógica
e o papel do professor como elaborador de aulas e,
supostamente, responsável pela escolha e uso do li-
vro didático (daí a ênfase no conceito de autoria).
Nas conclusões, tal como sugerido no título do
trabalho, indicaremos algumas implicações do de-
bate para a formação do professor. Nosso foco re-
cairá sobre questões do tipo: o que significa, em
termos discursivos, adotar um livro didático? Como
os sentidos se constróem e circulam no livro didá-
tico e por meio dele? o que há de singular na práti-
ca pedagógica/discursiva de cada professor, ainda
que ele adote um livro didático? Há lugar para a
autoria no livro didático?
Alguns estudos
sobre o livro didático
e uma persistente questão
Historicamente, o livro didático (LD) tem
sido objeto de inúmeros estudos e pesquisas, re-
alizados sob os mais diferentes enfoques teóri-
cos e metodológicos. Para além da paixão que o
tema desperta, os autores desses estudos pare-
cem ter em conta, freqüentemente, que o LD
constitui, de fato, material instrucional impres-
cindível ao professor do Ensino Fundamental e
Médio, chegando mesmo a orientar a prática
pedagógica nesses níveis de instrução.
dado que, como parte integrante de uma
mesa-redonda, este trabalhoo pode ser mui-
to extenso, citaremos aqui alguns desses estu-
dos sobre LD, que consideramos relevantes e
exemplares da multiplicidade de perspectivas
em que as discussões se embasaram.
Um primeiro texto, datado de 1987, é, na
verdade, uma entrevista que João Wanderley
Geraldi deu a Ezequiel Theodoro da Silva,
publicada no periódico Leitura - teoria e práti-
ca. Nessa entrevista, Geraldi expôs algumas po-
sições que marcaram fortemente o debate em
torno do LD. Entre elas, figuram as seguintes:
a. "[...] a adoção de um LD [...] significa, na
teoria e na prática, a alienação, por parte
do professor, de seu direito de elaborar suas
aulas" (p. 4);
b. "[•••] uma vez adotado, o LD passa a condu-
zir o processo de ensino: de adotado passa
a adotar o professor e os alunos" (idem);
c. "o LD se organiza em função dos conteú-
dos a serem ensinados,o em função do
movimento do processo de ensino-apren-
dizagem." (p. 5);
d."(...1 o LD é adotado [...] porque dá as aulas
prontas, dispensando de criá-las segundo
as necessidades concretas do movimento
do ensino-aprendizagem." (idem);
e. "[•••] os professores de Língua Portuguesa e
os professores de Linguagem das séries ini-
ciais do 1
o
grau deveriam, a meu ver, trocar
o LD pelo livro (sem adjetivos)" (p. 7).
Outro trabalho importante é o de Britto
(1997). Depois de fazer uma retrospectiva do
debate nacional em torno do LD, o autor salien-
ta que alterações mais recentes na produção de
materiais didáticos (tais como a incorporação de
novas linguagens e o tratamento politicamente
correto de temas sociais)o evidenciam a exis-
tência de mudanças substanciais nos livros, nos
manuais e nas cartilhas. Para Britto, a questão
central repousa na relação que se estabeleceu
entre o LD e a prática pedagógica, e essa relação
interfere no estabelecimento de conteúdos e
programas, nas práticas de ensino e na própria
dinâmica do cotidiano escolar.
o vínculo entre o LD e a prática escolar se
explica por três razões principais: 1) a
estruturação do sistema escolar na sociedade
industrial de massa (que obriga a uma produ-
ção em série e faz o LD se impor como necessi-
dade pragmática para as políticas de educação e
os agentes pedagógicos); 2) o papel ideal e ideo-
logicamente atribuído à escola (que faz o LD to-
mar para si a tarefa de estabelecer uma ponte
entre as instâncias produtoras do conhecimen-
to e o processo pedagógico e funcionar como
formulador do currículo); 3) a visão do aluno
como ser em formação (que dá origem a um pro-
cesso de simplificação e padronização da expo-
sição do conteúdo, na forma de um "didatismo
reducionista", segundo o autor).
o que também vale destacar do estudo de
Britto é a riqueza de seus exemplos, que
extrapolam os manuais didáticos tradicionais e
se estendem aos livros paradidáticos, incluindo
análises de produções, traduções e adaptações
para o público infanto-juvenil.
Dentro da linha de pesquisa sobre o conteú-
do ideológico do LD, citamos os trabalhos de
Bonazzi e Eco (1980), Nosella (1981) e Faria
(1986). Ressalvadas certas peculiaridades de
cada estudo, os três apontam para a mistifica-
ção da realidade presente no LD, que funciona-
ria como veículo de transmissão da ideologia
dominante e, por extensão, da reprodução das
relações de produção da sociedade capitalista.
o estudo de Pérez (1991) tem como objetivo
identificar e compreender o projeto de ensino
de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira
subjacente a alguns manuais, pela análise de
suas fontes teóricas e das relações dessa produ-
ção com o contexto social, em geral, e com a in-
dústria cultural em particular. Segundo o autor,
a pretensão era captar o diálogo entre o "antigo"
e o "novo" saber, isto é, verificar como os discur-
sos contemporâneos sobre língua e literatura
foram incorporados ao LD, ou, como disse Joa-
quim Fontes, no prefácio da obra, como esses
discursos foram deslocados das universidades e
centros de pesquisa para o livro escolar.
Pérez concluiu, em sua análise, que esses sa-
beres constituem, na verdade, uma série de frag-
mentos sobre língua e literatura, agrupados em
dois blocos estanques. Considerando o LD um
fetiche cultural, ele afirma que mudar o LD im-
plica uma nova concepção de cultura e a trans-
formação desse material em instrumento que
propicie o enriquecimento cultural, a reflexão
sobre a sociedade e o acesso a formas efetivas
de participação no capital cultural.
o livro de Freitag, Costa e Motta (1997) cons-
titui um marco dos estudos acerca do LD. As au-
toras realizaram um "estado da arte" do LD no
Brasil, tomando para análise manuais e pesqui-
sas produzidos nos últimos quinze a vinte anos.
Nessa obra, defende-se que o estudo do LDo
faz sentido se isolado dos demais componentes
do sistema educacional e que, por isso, a exposi-
ção se organiza em torno dos seguintes eixos:
histórico do LD, política do LD, economia do LD,
conteúdo do LD, uso do LD pelo professor e pelo
aluno, o LD em seu contexto.
Em cada um dos eixos, as autoras procura-
ram indicar os trabalhos de maior projeção, as
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
lacunas de cada um e as críticas que merecem, à
luz do debate internacional, do funcionamento
do sistema educacional brasileiro e do LD no
contexto da alfabetização e da leitura em geral.
Por fim, as autoras apresentam as conclu-
sões, salientando que a pesquisa sobre LD no
Brasil tem longa tradição e veio apresentar mai-
or importância nos últimos cinco a dez anos. Elas
ainda ressaltam, ao lado da quantidade, a quali-
dade, a profundidade e a heterogeneidade dos
trabalhos empreendidos, dos quais tentaram fa-
zer uma síntese, agrupando conhecimentos
dispersos e buscando "inserir cada peça dessa
produção no imenso painel que representa a
questão do LD no Brasil, com vista à elaboração
de um quadro básico para a formação e infor-
mação do leitor".
Mais recentemente, o LD passou a ser estuda-
do na perspectiva teórica da análise do discurso.
Na coletânea Interpretação, autoria e legitimação
cio livro didático: língua materna e língua estran-
geira, busca-se compreender o LD e seus usos
como parte e momento do discurso escolar.
Destacamos, na obra, o trabalho de Coracini
(1999a), que considera o LD um lugar de estabi-
lização de sentidos - na medida em que ele mas-
cara a constitutividade heterogênea e polifônica
do sujeito do discurso - e de homogeneização
do discurso - na medida em que veicula verda-
des tidas como absolutas e inquestionáveis, res-
paldadas queo pela Ciência.
Outra autora que se refere, nesses termos, ao
LD é Souza (1999), para quem esse tipo de ma-
terial constitui elo importante na corrente do
discurso da competência, pois funciona como
espaço de um saber definido, pronto, acabado,
correto e, por isso, fonte última e, às vezes, úni-
ca de referência.
Citamos, ainda, dessa mesma coletânea, o
artigo de Carmagnani (1999), que tematiza as
concepções de professor e aluno no LD e o ensi-
no de redação em língua materna e língua es-
trangeira. Diz Carmagnani que o professor e o
alunooo vistos como sujeitos situados po-
lítica e ideologicamente, como ocupantes de lu-
gares específicos numa dada sociedade; ao con-
trário, amboso encarados como "executores
de tarefas" preconcebidas e padronizadas.
1
Para concluir esta parte, reafirmamos que
o múltiplos os enfoques a partir dos quais se
vem estudando e pesquisando o LD. Mas, a des-
peito dessa diversidade, de um modo ou de ou-
tro, os autores sempre colocam, para si e para
seus leitores, questões relativas à adoção ouo
do LD e ao que se poderia fazer diante de suas
limitações e problemas (Mudar ou melhorar o
LD? Aboli-lo? Preparar melhor o professor? dar-
lhe outras condições de vida e trabalho?).
No caso deste ensaio, por já termos feito um
outro estudo em que discutimos a adoção ouo
do LD e possíveis critérios de análise, avaliação
e escolha (Suassuna, 1994), vamos propor um
deslocamento no eixo do debate e nos interro-
gar sobre outros aspectos pertinentes ao tema.
Análise do discurso
e livro didático:
autoria e subjetividade
Pensamos que, embora já existam estudos
sobre o LD embasados em conceitos e pressu-
postos teóricos da análise do discurso (AD),
como já mostramos no item 1,o seria demais
propor mais este. A AD tem-se mostrado um
campo de conhecimento bastante produtivo no
que diz respeito à investigação sobre o ensino-
aprendizagem de línguas.
Em termos muito gerais, pode-se dizer que a
AD tem como objeto de estudo específico o dis-
curso como efeito de sentidos entre locutores. A
língua seria, na verdade, o lugar material em que
se realizam esses efeitos de sentido (Gregolin,
1995). Assim, diante do texto, tomado como for-
mulação do discurso, o analista deve-se perguntar
o apenas o que texto diz e como diz, mas tam-
m por que o texto diz o que diz (idem, ibidem).
É ainda em Gregolin (1995:20) que podemos ler o
que significa empreender AD: "(significa] tentar
entender e explicar como se constrói o sentido de
Silva e outros (1997) compartilham da mesma opinião e se referem à monofonizaçao do discurso do aparelho escolar, cujo tom único é dado
pelo material didático.
um texto e como esse texto se articula com a his-
tória e a sociedade que o produziu".
A AD coloca-se diferentemente em relação à
Lingüística tradicionalo apenas por articular
os campos da língua e da ideologia, mas tam-
m porque parte de uma outra concepção de
sujeito (Possenti, 1995):o se trata mais do su-
jeito idealizado, consciente, fonte dos sentidos,
mas de um sujeito dividido, heterogêneo, cons-
tituído pelo outro (e aqui se vê claramente a in-
fluência da psicanálise na AD).
A questão que nos interessa de perto neste
artigo é exatamente a do sujeito (da autoria, mais
precisamente), no seguinte sentido: consideran-
do que o processo de ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa é um discurso, que lugar (po-
sição discursiva) cabe ao professor que escolhe/
adota/usa o LD na aula? Seria o professor um
autor (sujeito do discurso)?
2
Para empreender a discussão, vamos tomar
como referência um trabalho ainda inédito em
que Possenti (2000) coloca questão parecida ao
tratar de textos de vestibulandos.
o autor inicia seu artigo afirmando que es-
crever (bem) é mais uma questão de como do
que uma questão de o quê. Segundo ele, houve
um tempo em que a escola valorizava mais o
conteúdo das redações, seja pela necessidade
de tornar o aluno sujeito de um discurso críti-
co, seja porque, a partir de um pressuposto-
sico da Teoria da Informação, sem mensagem
o haveria texto. O autor defende, todavia,
que, do mesmo modo como lero é exatamen-
te captar o conteúdo de um texto e, sim,
desmontá-lo para ver como ele se constrói, para
verificar a relação entre seu modo de ser
construído e os efeitos de sentido que ele pro-
duz, escrever seria, mais do que expor uma
mensagem, articular informações, idéias, dis-
cursos; trabalhar sobre e a partir de outros tex-
tos ou de textos de um outro.
A autoria residiria exatamente nessa opera-
ção de construção do dizer a partir de outros di-
zeres., portanto, uma relação intrínseca en-
tre autoria e locutor (como falante responsável
pelo que diz) e a singularidade (forma peculiar
pela qual o autor se faz presente no texto).
Possenti indaga em seu trabalho: Como co-
locar a questão da autoria nas redações de ves-
tibular?' Se antes se considerava bom um texto
gramaticalmente correto, pois as categorias de
julgamento eram claramente estabelecidas nas
gramáticas normativas, agora se trata de ir adi-
ante: um texto só pode ser avaliado em termos
discursivos, mais exatamente,"[...] a questão da
qualidade do texto passa necessariamente pela
questão da subjetividade e de sua inserção num
quadro histórico - ou seja, num discurso - que
lhe dê sentido" (Possenti, 2000: 3).
Trata-se, pois, para Possenti, de singularida-
de e de tomada de posição do sujeito. Isso por-
que o sujeito sempre enuncia a partir de posições
historicamente dadas, num aparelho discursivo
institucionalizado e prévio. Assim, assumindo
uma posição histórico-ideológica, o sujeito, em-
bora heterogêneo, cindido, pode ser ele mesmo,
ou seja, diferente de outro que esteja numa mes-
ma posição discursiva. O que vai distingui-los,
conforme Possenti, é exatamente o como.
Prosseguindo em sua argumentação, o autor
tenta mostrar como seria possível identificar a
presença do autor num texto, ou mesmo distin-
guir textos com e sem autoria. Para tanto, ele faz
algumas afirmações:
1.o basta que o texto satisfaça exigências
de ordem gramatical.
2.o basta que o texto satisfaça exigências
de ordem textual.
3. As
verdadeiras marcas de autoriao da or-
dem do discurso, eo do texto ou da gra-
mática.
Isso posto, Possenti estrutura sua tese: pode-
se dizer que alguém se torna autor quando as-
sume, fundamentalmente, duas atitudes:
a) dá voz a outros enunciadores, incorpora ao
seu texto discursos correntes;
Souza (1999) também aborda essas questões, mas de um ângulo diferente. Ela mostra que a autoria do LD está associada, predominante-
mente. ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua autoridade seja legitimada pela editora que o valida. Souza ainda situa o autor
como um "intérprete de conteúdos complexos", responsável pela configuração do conhecimento a partir da seleção do conteúdo a ser
veiculado na escola.
3
Pensamos que a indagação é cabível também na discussão sobre os textos escolares em geral.
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
b) mantém distância em relação ao próprio
texto.
Em termos da primeira atitude, o discurso do
autor, na verdade,o lhe pertence; pertence a
toda uma comunidade cultural; seu discurso é
atravessado pelo do outro. No entanto, nesse
gesto de dar voz a outros enunciadores, há algo
do autor: o jeito, o como. Quanto a manter dis-
tância, o locutor/enunciador constitui-se como
tal por marcar sua posição em relação ao que diz
e também ao seu interlocutor. Essa marcação de
posição é uma exigência do próprio discurso,
decorrente do fato de que a línguao é um-
digo transparente e sua relação com a posição/
ideologiao é direta.
Assim, o discurso e a intervenção no discur-
so se estruturam:
a) no sentido histórico, poiso se trata de
invenção individual (há um já-dito posto na
sociedade);
b) no sentido da singularidade, poiso se tra-
ta de intervenção idêntica à de um outro
sujeito que esteja na mesma posição.
Uma questão importante, então, passa a ser:
como dar voz ao(s) outro(s)? Para Possenti, é o
caso de fazer isso de modo variado, tomando
posições ou fazendo sentido de outras formas. O sujeito adequaria as suas escolhas ao contex-
to, conferindo densidade ao seu discurso e rela-
cionando-o com outros discursos e com a me-
mória social em que ele está inscrito.
Para finalizar, o autor afirma que há indícios
de autoria quando os diversos recursos da língua
o agenciados de modo mais ou menos pessoal.
Simultaneamente, o apelo a tais recursos só pro-
duz efeitos de autoria quando eleso agencia-
dos em contextos históricos definidos, pois só
assim é que fazem sentido.
Conclusão
Nosso intuito, já anunciado, foi discutir o LD
com base em conceitos e fundamentos da análi-
se do discurso. Especificamente, nossa questão
dizia respeito à autoria e a questão teórica que
nos preocupava era: o professor de Português, ao
usar o LD, é um autor?
A resposta, conforme nosso ponto de vista e
o diálogo com o texto de Possenti (2000), é não.
Retomemos o pressuposto de que o processo de
ensino de Português é um discurso. Acrescente-
mos que a aula seria um espaço de construção
da autoria do professor. Argumentemos agora
em defesa desse não.
o professoro é autor da aula, primeiramen-
te porque o comoo cabe a ele e, sim, ao autor
do LD, ou seja, este é quem articula discursos e
os entrega ao professor, mero repassador do-
dito e já-articulado.
Em segundo lugar, pensando o professor
como um leitor e tomando a concepção de leitu-
ra de Possenti (2000), verifica-se que o professor
o é o sujeito que desmonta os textos para ver
como eleso construídos, verificando a relação
entre a sua construção e os efeitos de sentido que
produzem. Estão fora do controle do professor a
escolha e a desmontagem dos textos, tendo em
vista que suas aulaso como momentos de um
projeto pedagógico. Os textos do LD, previamen-
te escolhidos por um outro leitor, devem fazer
sentido em qualquer aula pensada em abstrato.
Outro aspecto a ser pensado é o da relação
autoria-locutor-singularidade. O professoro
é o responsável pelo dizer do LD e, de modo
correlato,o se faz presente no fluxo do discur-
so escolar de modo peculiar,o havendo aí
marcas (indícios) de subjetividade.
Em quarto lugar, podemos fazer um paralelo
com o que Possenti diz sobre a qualidade de um
texto. Esta passaria, necessariamente, pela ques-
o da subjetividade e de sua inserção num qua-
dro histórico que lhe dê sentido. Se, de um lado,
como já visto, nao há subjetividade, por outro lado
é difícil acreditar que o professor (re)assumiria a
autoria da aula - esta, um quadro histórico - ao
reproduzir e repassar as escolhas de um outro
sujeito, o autor do LD.
Mais um ponto a debater: "As verdadeiras
marcas de autoriao da ordem do discurso, eo
do texto ou da gramática". Transpondo a tese para
a sala de aula, vemos que o LD, por mais bem fun-
damentado e elaborado que possa ser, por mais
que tenha coerência interna, está fora da ordem
do discurso instituída na aula e por ela. Sua ado-
ção é incompatível com a idéia do processo edu-
cativo e da linguagem como eventos discursivos.
Quanto às duas atitudes que fazem de alguém
um autor - dar voz a outros enunciadores e man-
SIMPÓSIO 20
POR UMA PROPOSTA
CURRICULAR PARA
o 2º SEGMENTO NA EJA
Célia Maria Carolino Pires
Maria Cecília Condeixa
Maria José M. de Nóbrega
Paulo Eduardo Dias de Mello
Por uma Proposta Curricular
para o 2- segmento de EJA
Célia Maria Carolino Pires - PUC/SP
Maria Cecília Condeixa - Especialista em Ciências Naturais
Maria José M. de Nóbrega - Especialisto em Lingua Portuguesa
Paulo Eduardo Dias de Mello - Especialista em História e Geografia
A Coordenação de Educação de Jovens e
Adultos (Coeja) da Secretaria de Educação
Fundamental do Ministério da Educação
disponibiliza às Secretarias de Educação do-
cumentos que subsidiam o trabalho no 1º seg-
mento (1ª a 4ª séries/lº e 2º ciclos) da Educa-
ção de Jovens e Adultos (EJA). No que se refe-
re ao 2º segmento (5ª a 8ª séries/3º e 4º ciclos),
o material que tem sido oferecido às equipes
pedagógicas das Secretarias de Educação, às
escolas e aos professoreso os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) de 5ª a 8ª série,
considerando-se que a Educação de Jovens e
Adultos é uma modalidade do Ensino Funda-
mental.
No entanto, a Coeja tem recebido inúme-
ras solicitações no sentido de elaborar orien-
tações de adequação das propostas contidas
nesse documento às especificidades dos alu-
nos - jovens e adultos - e também às limita-
ções de tempo que caracterizam os cursos de
Suplência, indicando critérios de seleção e or-
ganização de conteúdos e alternativas de tra-
tamento didático compatíveis com um ensi-
no de qualidade.
A oferta de ensino de qualidade em todas
as instituições que trabalham com a Educa-
ção de Jovens e Adultos constitui necessida-
de urgente em função do respeito que mere-
cem as pessoas que buscam a escola para re-
tomar sua trajetória escolar, muitas vezes
motivadas pela demanda crescente de um-
vel de escolaridade cada vez maior para in-
serção no mundo do trabalho e da cultura e
na própria sociedade.
Assim sendo, a Proposta Curricular do 2º
segmento tem a finalidade de apresentar ele-
mentos para a construção de uma proposta
curricular local que subsidie a implementa-
ção dos Parâmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Fundamental em turmas de jovens e
adultos que cursam etapas equivalentesao
terceiro e quarto ciclos (5ª a 8ª séries).
Introdução
A Proposta Curricular para o 2- segmento
da EJA parte do princípio de que a constru-
ção de uma educação básica para jovens e
adultos, voltada para a cidadania,o se re-
solve apenas garantindo a oferta de vagas,
mas, sim, oferecendo-se ensino de qualidade,
ministrado por professores capazes de incor-
porar ao seu trabalho os avanços das pesqui-
sas nas diferentes áreas de conhecimento e de
estar atentos às dinâmicas sociais e a suas
implicações no âmbito escolar. Além disso, é
necessário definir claramente o papel da Edu-
cação de Jovens e Adultos na sociedade bra-
sileira e de que modo os objetivos propostos
para o Ensino Fundamental podem ser atin-
gidos por esses alunos.
Como a Proposta Curricular para a Edu-
cação de Jovens e Adultos é construída a par-
tir das orientações dos Parâmetros Curricu-
lares Nacionais, é fundamental destacar que
estes se caracterizam por:
apontar a necessidade de unir esforços
entre as diferentes instâncias governa-
mentais e da sociedade, para apoiar a es-
cola na complexa tarefa educativa;
mostrar a importância da participação da
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2- segmento na EJA
comunidade na escola, de forma que o co-
nhecimento aprendido gere maior com-
preensão, integração e inserção no mun-
do; a prática escolar comprometida com
a interdependência escola-sociedade tem
como objetivo situar as pessoas como par-
ticipantes da sociedade - cidadãos - des-
de o primeiro dia de sua escolaridade;
contrapor-se à idéia de que é preciso estu-
dar determinados assuntos porque um dia
eles serão úteis; o sentido e o significado da
aprendizagem precisam estar evidenciados
durante toda a escolaridade, de forma a es-
timular nos alunos o compromisso e a res-
ponsabilidade com a própria aprendizagem;
explicitar a necessidade de que os jovens e
os adultos deste país desenvolvam suas di-
ferentes capacidades, enfatizando que a
apropriação dos conhecimentos social-
mente elaborados é base para a construção
da cidadania e da sua identidade e que to-
doso capazes de aprender; mostrar que
a escola deve proporcionar ambientes de
construção dos seus conhecimentos e de
desenvolvimento de suas inteligências,
com suas múltiplas competências;
apontar a fundamental importância de que
cada escola tenha clareza quanto ao seu
projeto educativo, para que, de fato, possa
se constituir em unidade com maior grau
de autonomia, e que todos que dela fazem
parte possam estar comprometidos em
atingir as metas a que se propuseram;
ampliar a visão de conteúdo para além dos
conceitos, inserindo procedimentos, ati-
tudes e valores como conhecimentoso
relevantes quanto os conceitos tradicio-
nalmente abordados;
evidenciar a necessidade de tratar de te-
mas sociais urgentes - chamados Temas
Transversais - no âmbito das diferentes
áreas curriculares e no convívio escolar;
apontar a necessidade do desenvolvimen-
to de trabalhos que contemplem o uso das
tecnologias da comunicação e da informa-
ção, para que todos, alunos e professores,
possam delas se apropriar e participar,
bem como criticá-las e/ou delas usufruir;
valorizar os trabalhos dos docentes como
produtores, articuladores, planejadores das
práticas educativas e como mediadores do
conhecimento socialmente produzido;
destacar a importância de que os docentes
possam atuar com a diversidade existente
entre os alunos e com seus conhecimentos
prévios como fonte de aprendizagem de
convívio social e meio para a aprendizagem
de conteúdos específicos.
A formação para o exercício da cidadania -
eixo condutor dos Parâmetros Curriculares Na-
cionais do Ensino Fundamental - é também a
linha mestra da Proposta Curricular para a
Educação de Jovens e Adultos apresentada.
o essas definições que servem de norte
para o trabalho das diferentes áreas curricu-
lares que estruturam o trabalho escolar: Lín-
gua Portuguesa, Matemática, Ciências Natu-
rais, História, Geografia, Arte, Educação Físi-
ca e Língua Estrangeira, e também para a
abordagem das questões da sociedade brasi-
leira, como aquelas ligadas a Ética, Meio Am-
biente, Orientação Sexual, Pluralidade Cultu-
ral, Saúde, Trabalho e Consumo ou a outros
temas que se mostrem relevantes.
A Lingua Portuguesa
na Educação de Jovens
r
e Adultos
Os cursos destinados à Educação de Jo-
vens e Adultos devem oferecer a quem os pro-
cura a possibilidade de desenvolver as com-
petências necessárias para a aprendizagem
dos conteúdos escolares, bem como a possi-
bilidade de aumentar a consciência em rela-
ção ao estar no mundo, ampliando a capaci-
dade de participação social, no exercício da
cidadania. Para realizar esses objetivos, o es-
tudo da linguagem é um valioso instrumen-
to. Qualquer aprendizagem só é possível por
meio dela, já que é com a linguagem que se
formaliza todo conhecimento produzido nas
diferentes disciplinas e que se explica a ma-
neira como o universo se organiza.
o estudo da linguagem verbal traz em sua
trama tanto a ampliação da modalidade oral,
por meio dos processos de escuta e de produ-
ção de textos falados, como o desenvolvimen-
to da modalidade escrita, que envolve o pro-
cesso de leitura e o de elaboração de textos.
Além dessa dimensão mais voltada às práticas
sociais do uso da linguagem, o estudo da lin-
guagem envolve, também, a reflexão acerca de
seu funcionamento, isto é, dos recursos estilís-
ticos que mobiliza e dos efeitos de sentido que
produz. Participamos de um mundo que fala,
escuta,, escreve e discute os usos desses atos
de comunicação. Para compreendê-lo melhor,
é necessário ampliar competências e habilida-
des envolvidas no uso da palavra, isto é, do-
minar o discurso nas diversas situações comu-
nicativas, para entender a lógica de organiza-
ção que rege a sociedade, bem como interpre-
tar as sutilezas de seu funcionamento. A tarefa
de ensinar a ler e a escrever e tudo que envol-
ve a comunicação favorece a formação dessa
estrutura de pensamento específico e ajuda a
desenvolver as habilidades que implicam tal
competência. O trabalho com a oralidade e a
escrita anima a vontade de explicar, criticar e
contemplar a realidade, pois as palavraso
instrumentos essenciais para a compreensão
e o maravilhamento.
Em uma série de circunstâncias, a necessi-
dade do uso da linguagem se manifesta: da lei-
tura do nome das placas à leitura de jornais,
textos científicos, poemas e romances; da ela-
boração de um bilhete à comunicação e expres-
o de pensamentos próprios e alheios. daí a
importância de um curso que permita ao aluno
da EJA ter uma experiência ativa na elaboração
de textos, um curso que discuta o papel da lin-
guagem verbal, tanto no plano do conteúdo
como no plano da expressão. É importante que
o aluno perceba que a língua é um instrumento
vivo, dinâmico, facilitador, com o qual é possí-
vel participar ativamente e essencialmente da
construção da mensagem de qualquer texto. As
experiências conseguidas por meio da escuta e
da leitura de textos, bem como do freqüente
exercício de expressar idéias oralmente e por
escrito,o grandes fontes de energia que im-
pulsionam novas descobertas, elaboração e di-
fusão de conhecimento. Um texto, como a de-
cifração de qualquer ato de comunicação, é,
antes de tudo, uma prática social que se dá na
interação com o outro. Conscientizar o aluno
da EJA sobre esse processo, tarefa da área de
Língua Portuguesa, é estabelecer a cumplicida-
de entre ele e a palavra.
A Matemática na Educação
de Jovens e Adultos
As exigências do mundo modernom
pressionado as sociedades a investir na ele-
vação dos níveis de escolarização de toda a
população. Os esforços de inclusão de jovens
e adultos nos sistemas escolares aos quais eles
o tiveram acesso quando crianças e adoles-
centes respondem por essas exigências e são,
em grande parte, definidos por elas. A quase
totalidade dos alunos desses programaso
trabalhadores, com responsabilidades profis-
sionais e domésticas, pouco tempo de lazer e
expectativas de melhorar suas condições de
vida. No entanto, esses programaso devem
se ater à preparação de mão-de-obra espe-
cializada nem se render, a todo instante, às
oscilações do mercado de trabalho, mas, sim,
desenvolver uma educação queo dissocie
escola e sociedade, conhecimento e trabalho
e coloque o aluno ante desafios que lhe per-
mitam desenvolver atitudes de responsabili-
dade, compromisso, crítica, satisfação e reco-
nhecimento de seus direitos e deveres.
A Matemática tem um papel fundamental
nessa formação. Aprender Matemática é um di-
reito básico de todas as pessoas e uma resposta
a necessidades individuais e sociais do homem.
Nesse aspecto, a Matemática pode dar sua
contribuição à formação dos jovens e adultos
que buscam a escola, ao desenvolver metodo-
logias que enfatizem a construção de estratégias,
a comprovação e a justificativa de resultados, a
criatividade, a iniciativa pessoal, o trabalho co-
letivo e a autonomia advinda da confiança na
própria capacidade para enfrentar desafios. Além
disso, para exercer a cidadania é necessário sa-
ber calcular, medir, raciocinar, argumentar, tra-
tar informações estatisticamente etc.
Outra contribuição da Matemática é au-
xiliar a compreensão de informações, muitas
vezes contraditórias, que incluem dados es-
tatísticos e tomadas de decisões diante de
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2- segmento na EJA
questões políticas e sociais que dependem da
leitura crítica e interpretação de índices di-
vulgados pelos meios de comunicação.
De modo geral, um currículo de Matemá-
tica para jovens e adultos deve procurar con-
tribuir para a valorização da pluralidade
sociocultural e criar condições para que o alu-
no se torne ativo na transformação de seu am-
biente, participando mais ativamente no
mundo do trabalho, da política e da cultura.
A Geografia na Educação de
Jovens e Adultos
No ensino de Geografia para EJA, é impor-
tante que o aluno observe, interprete e compre-
enda as transformações socioespaciais ocorri-
das em diferentes lugares e épocas e estabeleça
comparações entre semelhanças e diferenças
relativas às transformações socioespaciais do
município, do estado e do país onde mora.
Ele deve participar ativamente do procedi-
mento metodológico da construção de conhe-
cimentos geográficos, valendo-se da cartogra-
fia como forma de representação e expressão
dos fenômenos socioespaciais; da construção,
leitura e interpretação de gráficos e tabelas; da
produção de textos e da utilização de outros
recursos que possibilitem registrar seu pensa-
mento e seus conhecimentos geográficos.o
significa que, ao finalizar o Ensino Fundamen-
tal, ele terá se tornado um geógrafo, mas, de
acordo como os PCN, deve ser conduzido a
examinar um tema, a analisar e a refletir sobre
a realidade, utilizando diferentes recursos e
métodos da Geografia e valendo-se do modo
de pensar próprio dessa disciplina.
Para concretizar esse processo de trabalho
com o aluno, é fundamental que seja elabora-
do um projeto para estabelecer os objetivos e
conteúdos a serem tratados, as diferentes dis-
cussões sobre os temas escolhidos, as formas,
as possibilidades e os meios de trabalhá-los. É
necessário que o professor estude e reflita co-
letivamente, com áreas afins ou mesmo indi-
vidualmente, para escolher o objeto de estudo
que deve interessar os alunos da EJA e ampliar
o conhecimento deles sobre a realidade.
É fundamental que, no desenvolvimento da
aprendizagem dos alunos de EJA, sejam valo-
rizados os conceitos e categorias da Geografia
já apropriados por eles, estabelecendo um elo
com as noções dos diferentes espaços conhe-
cidos em seu cotidiano. A partir de sua reali-
dade, gradativamente e dialogando sobre os
conhecimentos que obtiveram de modo infor-
mal com os saberes geográficos já adquiridos
na escola, que esses alunos possam estabele-
cer ligações entre esse cotidiano e os diferen-
tes espaços geográficos - local, regional, nacio-
nal e internacional.
Esses conhecimentos geográficos que os
alunos da EJA já detêm irão contribuir para a
sistematização e ampliação dos conceitos e
noções necessários para ajudá-los a fazer a
leitura e a análise do lugar em que vivem, a
relacionar e a comparar o espaço local, o es-
paço brasileiro e o espaço mundial, ajustan-
do a escola às demandas sociais atuais.
Segundo os PCN, a Geografia estuda as re-
lações entre o processo histórico que regula a
formação das sociedades humanas e o funcio-
namento da natureza, por meio da leitura do
espaço geográfico e da paisagem. As percep-
ções, as vivências e a memória dos indivíduos
e dos grupos sociais são, portanto, elementos
importantes na leitura da espacialidade da so-
ciedade, tendo em vista a construção de pro-
jetos individuais e coletivos que transformam
os diferentes espaços em diferentes épocas,
incorporando o movimento e a velocidade, os
ritmos e a simultaneidade, o objetivo e o sub-
jetivo, o econômico e o social, o cultural e o
individual.
As Ciências Naturais
na Educação de Jovens
e Adultos
o ensino de Ciências Naturais vem pas-
sando por profundas transformações nas úl-
timas décadas. Tradicionalmente priorizam-
se a descrição dos fenômenos naturais e a
transmissão de definições, regras, nomencla-
turas e fórmulas, muitas vezes sem se estabe-
lecerem vínculos com a realidade do estudan-
te, o que dificulta a aprendizagem. As discus-
soes acumuladas sobre o ensino de Ciências
apontam para um ensino mais atualizado e
dinâmico, mais contextualizado, ondeo
priorizados temas relevantes para o aluno, li-
gados ao meio ambiente, à saúde e à trans-
formação científico-tecnológica do mundo e
à compreensão do que é Ciência e Tecnologia.
Busca-se a promoção da aprendizagem
significativa tal que ela se integre efetivamen-
te à estrutura de conhecimentos dos alunos e
o aquela realizada exclusivamente por
memorização, cuja função é ser útil na hora
da prova. A aprendizagem significativa é uma
teoria da Psicologia desenvolvida com base
em diversos estudos teóricos e práticos. Ela
afirma que toda aprendizagem real tem por
base conhecimentos anteriores, queo mo-
dificados, ampliados ou renegados mediante
a aquisição de novas informações e de novas
reflexões sobre um determinado conteúdo.
No caso de Ciências Naturais, esses conteú-
doso temas ou problemas relativos aos fe-
nômenos naturais e às transformações pro-
movidas pela ação humana na natureza.
A mesma tendência vem sendo conferida
no campo da EJA, com novas propostas, de
modo que a área de Ciências possa colaborar
com a melhoria da qualidade de vida do es-
tudante e a ampliação da compreensão do
mundo de que participa, profundamente mar-
cado pela Ciência e pela Tecnologia.
É preciso selecionar temas e problemas re-
levantes para o grupo de alunos, de modo que
eles sejam motivados a refletir sobre as suas
próprias concepções. Essas concepções po-
dem ter diferentes origens: na cultura popu-
lar, na religião ou no misticismo, nos meios
de comunicação e ainda na história de vida
do indivíduo, sua profissão, sua família etc.
o explicações muitas vezes arraigadas e
preconceituosas, chegando a constituir obs-
táculo à aprendizagem científica.
Os estudos, as discussões e a atuação do
professor devem ajudar os alunos a perceber e
a modificar suas explicações. Portanto, é es-
sencial oferecer oportunidades para que de-
senvolvam o hábito de refletir sobre o que ex-
pressam oralmente ou por escrito. Sob a con-
dução do professor, os alunos questionam-se
e contrapõem as observações de fenômenos,
estabelecendo relações entre informações. As-
sim, podem tornar-se indivíduos mais consci-
entes de suas opiniões, mais flexíveis para
alterá-las e mais tolerantes com opiniões di-
ferentes das suas. Essas atitudes colaboram
para que o aluno cuide melhor de si e de seus
familiares, permanecendo atento à prevenção
de doenças, às questões ambientais, e se utili-
ze das tecnologias existentes na sociedade de
forma também mais consciente.
A História na Educação de
Jovens e Adultos
Geralmente os alunos da EJA de 5ª a 8ª
séries, como também acontece com os ado-
lescentes e alunos de cursos noturnos do
Ensino Fundamental regular, trazem uma
concepção prévia de que a História estuda
o passado.
Isso é fruto, entre outras razões, do fato
de que na maioria das escolas brasileiras
ainda se ensina essa disciplina de forma
bastante tradicional, fundamentada numa
visão de tempo linear, e também verbalista,
com base em aulas expositivas sobre temas
desvinculados de problemáticas da vida
real, nas quais o professor entende ser seu
papel apenas fornecer conhecimentos aos
estudantes.
Outra idéia comum entre alunos da EJA e
de outras faixas etárias é a de que obras e do-
cumentos históricoso como verdades
inquestionáveis. O educador deve estar aten-
to a isso e planejar momentos em que essas
concepções prévias sejam questionadas. Tam-
m deve considerar que tanto os textos quan-
to os diferentes tipos de fontes constituem ver-
sões da realidade. Dois exemplos de ativida-
des, para ilustrar essas idéias: comparar tex-
tos didáticos que tenham visões diferentes so-
bre um mesmo tema; comparar matérias de
diversos jornais escritos que tratem de assun-
to atual de interesse dos estudantes e relacio-
nar o tema a outros momentos históricos.
Como apontam os Parâmetros Curricula-
res Nacionais de História, o conhecimento
histórico é "um campo de pesquisa e produ-
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2- segmento na EJA
ção de saber em permanente debate que está
longe de apontar para um consenso". Assu-
mir essa postura diante do conhecimento é
também perceber que, no espaço escolar, "o
conhecimento é uma reelaboração de mui-
tos saberes, constituindo o que se chama de
saber histórico escolar", elaborado no "diá-
logo entre muitos interlocutores e muitas
fontes", sendo "permanentemente recons-
truído a partir de objetivos sociais, didáticos
e pedagógicos".
Além de questionar as visões tradicionais da
História e do ensino dessa disciplina nas esco-
las, é fundamental que os professores da EJA
busquem entender a realidade do mundo atual
juntamente com seus estudantes e também que
os incentivem a se tornarem cidadãos ativos nas
suas comunidades. Nesse processo, é importan-
tíssimo buscar o resgate dos valores huma-
nísticos, principalmente entre aquelas pessoas
que vivem nos grandes centros urbanos do Bra-
sil e do mundo, regiões em que o consumismo,
o imediatismo e o "presentismo"m marcado
as relações sociais.
Como atualmente a maioria dos alunos da
EJAm mais idéias e percepções sobre o mun-
do atual, o professor deve aproveitar essa ca-
racterística para aprofundar suas capacidades
de refletir sobre as mudanças e as permanên-
cias nos temas e sociedades em estudo. Desen-
volvendo essa capacidade de comparar e a ha-
bilidade de opinar sobre determinado tema his-
tórico, estaremos contribuindo decisivamente
para o incentivo à participação de alunos e pro-
fessores na vida política, social, cultural e eco-
nômica de suas comunidades. Assim agindo, o
professor estará valorizando o estudo sobre a
variedade das experiências humanas.
SIMPÓSIO 21
A EJA COMO DIREITO:
DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS E PROPOSTA
POLITICO-PEDAGOGICA
Carlos Roberto Jamil Cury
Guilherme Costa
Leda Maria Seffrin
Por uma nova Educação
de Jovens e Adultos
Carlos Roberto Jamil Cury
CNE/PUC/MG
Muitos brasileiros, provavelmente, foram
um dia à escola. A esperança de concluir um
curso os animava. Contudo, fatores adversos fi-
zeram com queo pudessem terminar a sua
escolarização. Para uns, foi a necessidade do
trabalho precoce, para outros foi a falta de con-
dições materiais e para muitos a própria escola
o foi capaz de retê-los estudando. E muitos
brasileiros sequer puderam entrar na escola.
Para atender a estes, agora há a alternativa da
Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um
recomeço desse importante instrumento de ci-
dadania: a educação escolar.
A ausência da educação escolar representa
uma grande lacuna para o indivíduo e uma per-
da enorme para a cidadania. A Educação de Jo-
vens e Adultos representa um novo começo sob
uma alternativa legal, que vem acompanhada
de garantias legais. A lei buscou reparar esse
vazio e cabe ao indivíduo exigir seu direito à
educação escolar.
A EJAo é um presente e nem um favor,
tal como antes a própria legislação ou a prática
das políticas educacionais viam-na. Desde a
Constituição de 1988, ela se tornou um direito
de todos os queo tiveram acesso à escolari-
dade e de todos os que tiveram esse acesso, mas
o puderam completá-lo.
Esse direito está inscrito em duas tábuas: na
tábua da dignidade de cada um e na tábua da
lei. A primeira é a necessidade sentida em re-
parar ou completar essa lacuna. É a tábua da
vivência dos que sabem da importância da lei-
tura e da escrita e sentem a falta desse direito
que, muitas vezes, vêem efetivado nos outros.
A segunda é a tábua da lei brasileira: a Consti-
tuição Federal. Lá está dito e escrito que o En-
sino Fundamental obrigatório e gratuito é um
direito do cidadão e dever do Estado, valendo
isso também para os queo tiveram acesso a
ele na idade própria. Trata-se do artigo 208 da
Constituição Federal. Seo oferecido pelo
poder público eo atendido o cidadão em sua
demanda, outra lei importante, a das Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
explicita o que já está contido na Constituição.
O Ensino Fundamental é um direito público
subjetivo. Como tal, exigido o direito pelo ci-
dadão, o poder público responsável tem de
atender a essa demanda sob pena de se ver
acossado por ações civil e penal. Estamos, pois,
diante de um direito claramente protegido e
assegurado. O Ensino Médio também é gratui-
to nas escolas do Governo e, se exigido, essa
exigência deve ser atendida, porque essa etapa
do ensino é a coroação da Educação Básica que
todo brasileiro deve ter.
A escolao chegou a todos os brasileiros.
Essa realidade possui uma longa história. Ela
começa com o desapreço que nossos coloniza-
dores ibéricos tinham para com a leitura e a
escrita a ser dada aos habitantes deste país. Para
eles,o fazia sentido propiciar educação es-
colar a um país agrário, enorme, com a qual
poderia pleitear a sua independência política.
Além disso, sendo um país escravocrata, nega-
va-se a quemo fosse branco o direito de sen-
tar em bancos escolares.
Essa realidade tem a ver com um país que,
desde o seu início, foi bastante injusto com os
que, com seu trabalho, construíram as riquezas
da nação eo viram distribuídas essas rique-
zas acumuladas, de modo que todos pudessem
ter acesso aos bens sociais e necessários a uma
participação política consciente. Até hoje esse
padrão de desigualdade estende-se à educação
escolar. E a existência da Educação de Jovens e
Adultos visa reparar essa situação, que é, em si
mesma, intolerável do ponto de vista da cida-
dania.
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
Isso tem a ver também com um determi-
nado tipo de escola, que nem sempre conse-
guiu acolher e entender os diferentes perfis de
alunos que a procuram. Somos todos iguais e
diferentes ao mesmo tempo. Às vezes, a escola
confundiu igualdade com uniformidade e di-
ferença com inferioridade (para muitos) e su-
perioridade (para poucos). Por isso mesmo,
houve leis que proibiram o acesso de negros e
de índios à escola, que só incentivavam as es-
colas da cidade, deixando de lado as escolas
da roça.o se pode deixar de dizer que hou-
ve muito preconceito com relação às mulhe-
res, que deveriam ficar em casa e, por isso,o
necessitavam de leitura e de escrita. Durante
longos anos, quemo sabia escrever seu pró-
prio nomeo podia votar.
Hoje, todos sabem da importância da esco-
la. Para uns, é a empresa que está exigindo es-
colaridade cada vez mais elevada. Afinal, em um
mundo tornado próximo,o se pode deixar de
contar com as novas formas de comunicação e
as habilidades que se exigem para a própria
manipulação de aparelhos complexos.
Para outros, trata-se de um sentimento in-
dividual, mas bastante agudo: se alguémo
tiver completado estudos mais elevados estará
correndo risco com o seu emprego.
Entretanto, a qualificação para o trabalho é
incompleta seo vier acompanhada
concomitantemente das exigências da cidada-
nia. O sentimento de participação e o dever de
o estar sujeito a podêres estranhos implicam
a necessidade peremptória da educação esco-
lar. Elao só abre o caminho para ser votado,
como também abre mais espaços para tomadas
de decisão coletivas e para a ampliação dos es-
paços de participação. Além disso, ela é uma
fonte indispensável para que o cidadão possa
usufruir aspectos múltiplos da cultura, como a
estética e o lazer.
De qualquer modo, é certo que há um "es-
pírito do tempo" que implica a consciência do
acesso aos conhecimentos da escola como uma
chave importante para ler o mundo e a socie-
dade em que vivemos e neles atuar crítica e
dignamente.
Por isso a Educação de Jovens e Adultos é
um direitoo importante. Ela éo valiosa que
é condição prévia a muitas outras coisas de nos-
sa sociedade: ler livros, entender cartazes, es-
crever cartas, sentar-se ao computador, nave-
gar na rede mundial de computadores, votar
com consciência, assinar o nome em registros,
ler um manual de instruções, participar mais
conscientemente de associações, partidos e
desenvolver o poeta ou o músico ou o artista
que reside em cada um. Estes últimos aspectos,
uma vez reparada a falta social de que tantos
foram vítimas, devem ser encarados como o
caminho mais qualificado para se falar em Edu-
cação de Jovens e Adultos. Trata-se do desen-
volvimento das capacidades de cada um e do
usufruto prazeroso delas.
Ao entrar em um curso de Educação de Jo-
vens e Adultos, o estudanteo estará apenas
sendo alfabetizado. Isso é muito pouco para o
conteúdo do direito à educação. Além da alfa-
betização, etapa propedêutica, o aluno deve ter
acesso aos conhecimentos que todo o indivíduo
que freqüenta a escola na idade convencional
está recebendo. Conhecer o mundo em que vive,
para poder agir sobre ele com consciência, críti-
ca e efetividade, sobretudo em nosso tempo,o
pode dispensar a escolaridade plena. Conteúdos
importantes de Aritmética e de Matemáticao
muito além das quatro operações. A Geografia,
a História do Brasil e do mundoo conhecimen-
tos significativos para um posicionamento ante
a sociedade e o mundo de que participamos.
Expressar-se na língua portuguesa com precisão
e sem medo de cometer erros na fala ou na es-
crita é outro fator significativo, inclusive para as
relações pessoais ou corporativas. O mesmo se
deve dizer de conhecimentos importantes pró-
prios das Ciências Naturais e Exatas, que expli-
cam as coisas materiais, a fórmula de um remé-
dio, a composição de uma bebida e o som de uma
corda de viola. Além disso, ser cidadão do Brasil
e do mundo é poder se aproximar de outros po-
vos e de outras culturas. Nada melhor do que co-
meçar a aprender uma língua estrangeira. No fu-
tebol, quem chuta com os doiss pode fazer
mais e melhores jogadas e, em casa, quem bate
bolo com as mãoso se aperta, quando a ener-
gia elétrica desliga a batedeira. Assim também é
com quem fala o português e começa a apren-
der outra língua.
Isso éo importante que a Constituição
brasileira e, depois, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional reconheceram que todos
os brasileiros, de qualquer idade ou de qualquer
outra situação,o titulares desse direito. Por
isso,o devem abriro dele. Por isso, o cur-
so que será ministradoo pode ser uma "cai-
xa-preta". Antes do curso, todos devem saber
qual será a sua duração, quais conhecimentos
lhes serão passados, quais os tipos de avaliação
a que se submeterão e que tipo de certificado
de conclusão obterão ao seu final. Isso signifi-
ca que o ensino da Educação de Jovens e Adul-
tos deve ser de qualidade. E, para ser de quali-
dade, é preciso também contar com a idonei-
dade da instituição que oferece o curso. Essa
idoneidade implicar possuir um registro míni-
mo: a aprovação certa e determinada do Con-
selho de Educação com os respectivos prazos
de validade.
Durante muitos anos, a Educação de Jovens
e Adultoso se chamava assim. Ela já se cha-
mou Madureza, Suplência, Supletivo, Alfabeti-
zação, entre outros nomes. Poro representar
um direito, esse ensino nem sempre foi assu-
mido por profissionais. Era muitas vezes aten-
dido por pessoas de boa vontade, voluntários
ou mesmo por docentes que aplicavam para
adultos os mesmos métodos com que ensina-
vam crianças e adolescentes.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cionalo quis deixar esse campo em aberto.
Por ser a Educação de Jovens e de Adultos uma
modalidade da Educação Básica, por ser ela um
direito, por poder emitir um certificado de con-
clusão com validade nacional, é preciso que
seus professores sejam formados adequada-
mente e apresentem o diploma de licenciado e,
de preferência, um currículo adequado a essa
modalidade. O Parecer n° 11/2000 da Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação, ao regulamentar a Educação de Jo-
vens e de Adultos, insiste nesta tecla de acen-
tuar o perfil diferenciado desses alunos. Eles
devem ser tratados como tais eo como ex-
tensão de crianças e de adolescentes. Muitos
desses professoreso até mais jovens do que
seus alunos. Por isso, devem acolher a experi-
ência vivida dos estudantes e, quando esta for
adequada aos conteúdos estudados, poderão
atribuir créditos a ela, desde que submetida a
uma avaliação.
Assim,o convém que adolescentes e
adultos convivam nas mesmas salas. É por isso
que meninos ou meninas com menos de 14
anos completoso podem freqüentar a Edu-
cação de Jovens e Adultos, na etapa do Ensino
Fundamental, e é também por isso que nenhum
jovem com menos de 17 anos completos pode
estudar em salas de Educação de Jovens e Adul-
tos, na etapa do Ensino Médio.
No caso de um curso presencial e com ava-
liação em processo ter sido autorizado e reco-
nhecido pelo Conselho de Educação, ele po-
derá avaliar os estudantes e, ao final do curso,
emitir o certificado de conclusão do Ensino
Médio ou do Ensino Fundamental. Mas quem
estuda em curso presencial e é avaliado duran-
te toda a sua duração fará todo seu trajeto nes-
sa escola e ela mesma poderá certificá-lo. Mas,
atenção! Essa escola tem de ser autorizada e
reconhecida pelos podêres públicos, em espe-
cial pelos Conselhos e Secretarias de Educação.
Esses cursos devem apresentar as datas de va-
lidade dessa autorização e desse reconheci-
mento.
É verdade que alguém pode preferir estudar
em casa, sozinho ou com outros, tendo um cur-
so a distância, por correio, rádio ou televisão
como suporte. O autodidatismoo é proibi-
do. Neste caso, se essa pessoa quiser obter um
certificado de conclusão, ela deverá prestar os
chamados exames supletivos, "abatendo" ma-
téria por matéria.o podemos fechar as pos-
sibilidades e as alternativas de as pessoas estu-
darem e prestarem exames oficiais, mas é pre-
ciso verificar se tais exameso mesmo ofici-
ais, se estão autorizados, a fim de que certos
grupos pouco éticoso usem essa possibili-
dade para finalidades extorsivas.
Tanto num caso como no outro, o que se
avaliao os componentes curriculares nacio-
nais válidos para o Ensino Fundamental ou
Médio. O que muda para a EJA é o modo de en-
carar e de propor esses conteúdos.
Cabe aos Conselhos de Educação dizer o
tempo de duração dos cursos da EJA e a sua or-
ganização funcional, mas é importante obser-
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
var as orientações tanto do Parecer CEB/CNE
n° 11/2000 quanto da Resolução CEB/CNE n°
1/2000. Ambos ajudam na compreensão e no
significado maior da EJA.
Os certificadoso a expressão oficial de que
o estudante conseguiu transformar um direito
num exercício de cidadania, que deve continu-
ar a vigorar na família, no trabalho, na política
e no lazer e deve significar que a Educação de
Jovens e Adultoso pára. Ela poderá continu-
ar a ser praticada por meio de livros, filmes,
novas leituras, acesso à rede mundial de com-
putadores (Internet) e, por que não?, em novos
cursos.
Esse desafio de reentrada na vida escolar é
o reconhecimento de um direito desde sempre
havido, que, agora, poderá ser posto a serviço
de um cidadão mais ativo, tendo em vista uma
sociedade brasileira que venha a ser mais igual
e mais justa.
Sinopse do programa
de Educação de Jovens e Adultos
de Mato Grosso
Guilherme Costa
Seduc/MT
A rede estadual de ensino tem oferta de Edu-
cação de Jovens e Adultos (EJA) em 172 unida-
des escolares, onde atuam mais de 1.900 profes-
sores (Seduc/Asseplan/DMIE, 2000) e estudam
cerca de 52.500 alunos (Censo Escolar Inep/
2000), a maioria (2/3) dos quais cursa o Ensino
Médio.
A recente formulação do Programa de EJA
procurou responder simultaneamente a três de-
safios:
1. Ampliar o atendimento escolar a jovens e
adultos, de modo a tornar a oferta compa-
tível com os direitos educacionais dos cida-
dãos, consagrados na Constituição e na
LDB, e com as metas do Plano Nacional de
Educação (PNE) e, ao mesmo tempo, res-
ponder às exigências crescentes de escola-
ridade do mercado de trabalho.
2. Ajustar o atendimento da EJA das redes-
blicas de ensino às novas exigências do Pa-
recer n° 11/2000 do CNE e da Resolução n°
180/2000 do CEEMT.
3. Resgatar a identidade própria da EJA, que
nos últimos anos acabou diluída nos pro-
gramas de aceleração de estudos/correção
do fluxo escolar, e conferir qualidade à EJA,
superando a concepção que associa o su-
pletivo à ligeireza do ensino e à facilitação
na certificação.
0 primeiro objetivo do
programa é assegurar o
direito de todos à educação
A cobertura escolar pública atual no Ensino
Fundamental e no Médio para jovens e adultos
é deficitária em face da demanda potencial por
essa modalidade educativa, motivo pelo qual é
necessário ampliá-la substancialmente no trans-
correr da próxima década para assegurar aos ci-
dadãos seus direitos constitucionais e atingir as
metas do Plano Nacional de Educação.
A Lei n° 10.172/2001, que institui o PNE, es-
tabelece para a Educação de Jovens e Adultos as
seguintes metas prioritárias:
alfabetizar em cinco anos dois terços do con-
tingente total de analfabetos, de modo a
erradicar o analfabetismo em uma década;
assegurar, em cinco anos, a oferta de Educa-
ção de Jovens e Adultos equivalente às quatro
séries iniciais do Ensino Fundamental para
50% da população de 15 anos ou mais queo
tenha atingido esse nível de escolaridade;
assegurar, até o final da década, a oferta de
cursos equivalentes às quatro séries finais do
Ensino Fundamental para toda a população
de 15 anos ou mais que concluiu as quatro
séries iniciais;
dobrar em cinco anos e quadruplicar em dez
anos a capacidade de atendimento nos cur-
sos de Educação de Jovens e Adultos de nível
médio.
o analfabetismo absoluto atingia, em 1999,
193.601 pessoas, o que representava 11,78% da
população matogrossense com idade igual ou
superior a 15 anos (PNAD/IBGE).' Para atingir
as metas do PNE, será necessário que Mato Gros-
so alfabetize cerca de 25 mil jovens e adultos ao
ano, de modo a reduzir à terça parte o contin-
gente total de analfabetos nos próximos cinco
anos, viabilizando a erradicação do analfabetis-
mo em uma década.
No grupo etário com 10 anos ou mais, 70%
da população de Mato Grossoo havia conclu-
ído o Ensino Fundamental em 1999; 11,78%o
receberam qualquer instrução ou possuíam me-
nos de um ano de estudos. Quase um quinto da
população já havia freqüentado escolas, mas ti-
nha menos de quatro anos de estudos. Somados,
esses dois subgrupos totalizavam cerca de 600
mil pessoas, mais de 30% da população
matogrossense com mais de 10 anos de idade,
que potencialmente demandariam por progra-
mas de alfabetização do primeiro segmento do
Ensino Fundamental de jovens e adultos. O con-
tingente que tinha entre 4 e 7 anos de estudos e
necessitaria cursar o segundo segmento do En-
sino Fundamental era ainda maior, reunindo
mais de 734 mil pessoas, o que representava
38,6% da população com mais de 10 anos de
Mato Grosso. Na zona rural, os níveis de escola-
ridade dos jovens e adultoso ainda menores,
mas a maioria da população que necessita de
atendimento escolar vive nas zonas urbanas.
Ainda segundo a PNAD, 258.962 pessoas com
idade igual ou superior a 15 anos estavam estu-
dando no Ensino Básico em 1999, mas a maioria
delas eram jovens que freqüentavam o Ensino
Fundamental ou Médio regular na idade adequa-
da ou com alguma defasagem entre a idade e a
série ideal; apenas 25.859 pessoas freqüentavam
alguma modalidade de Ensino Supletivo
(presencial ou não) no nível de Ensino Funda-
mental; e outras 20.755 pessoas declararam es-
tudar no Ensino Supletivo de nível médio, so-
mando 46.614 pessoas.
Esses dadosoo discrepantes das esta-
tísticas do Censo Escolar realizado pelo INEP,
segundo o qual as matrículas no ensino
presencial de jovens e adultos, em Mato Grosso,
chegaram, em 1999, perto de 45 mil, 27 mil das
quais no Ensino Médio e cerca de 17 mil no En-
sino Fundamental.
0 segundo objetivo é ajustar-se
à legislação vigente
A princípio, o CNE julgou que a LDB era auto-
aplicável eo seria necessário emanar diretri-
zes para a EJA pois, sendo ela uma modalidade
da Educação Básica, deveria reger-se pelas mes-
mas diretrizes curriculares do conjunto do Ensi-
no Fundamental e Médio. A freqüência com que
o Conselho respondeu a consultas dos sistemas
estaduais de ensino levou à elaboração do Pare-
cer n° 11, que trata das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a EJA. O longo parecer elaborado
pelo Professor Carlos Roberto Jamil Cury tem os
seguintes traços principais:
defende o direito público subjetivo dos jo-
vens e adultos à Educação Básica gratuita;
limita o acesso ao Ensino Fundamental e
Médio aos jovens e adultos com mais de 14 e
17 anos, respectivamente;
abandona a nomenclatura "Ensino Supleti-
vo" em favor da expressão "Educação de Jo-
vens e Adultos";
1
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
afirma que a EJA é modalidade e parte
constitutiva da Educação Básica eo mais
um subsistema de ensino (como prescrevia
a legislação anterior);
requer contextualização curricular e
metodológica, bem como formação especí-
fica dos professores;
lista três funções para a EJA: reparadora,
equalizadora e qualificadora;
determina que a EJA obedeça aos princípios
de eqüidade, diferença e proporção.
Para adequar-se à nova norma federal, o
CEE/MT fez emanar a Resolução n° 180/2000,
que, entre outras medidas, obriga a Seduc a cri-
ar o programa de EJA. Para elaborar esse progra-
ma, a Seduc nomeou um grupo de trabalho
interinstitucional (Portaria n° 204/2000 Seduc/
GS/MT) e contratou uma assessoria externa -
Professora Maria Clara Di Pierro, da Ação Edu-
cativa. A plena vigência do programa foi adiada
para 2002 pela Resolução n° 272, de modo a pro-
piciar às escolas tempo adequado para conhecê-
lo, opinar sobre ele, adequar-se a ele e propiciar
à Seduc tempo para que possa disseminá-lo ade-
quadamente e desencadear ações prévias de for-
mação.
0 terceiro objetivo é propiciar
aos jovens e adultos uma
educação de qualidade
Com o objetivo de melhorar a qualidade do
ensino, a Resolução n° 180 elevou substancialmen-
te a carga horária mínima dos cursos presenciais
com avaliação no processo para seis fases anuais
de 800 horas cada, no Ensino Fundamental, e três
fases anuais de 800 horas cada, no Ensino Médio.
Um sistema flexível de avaliação por competên-
cias, com possibilidades de reclassificação dos
educandos a qualquer momento, deve propiciar
aos jovens e adultos percorrer trajetórias mais ou
menos aceleradas nesses cursos.
A EJA como direito: Diretrizes
Curriculares Nacionais e a proposta
político-pedagógica
Leda Maria Seffrin*
SEF/MEC
Nos últimos anos, a Educação de Jovens e
Adultos passou a fazer parte das agendas edu-
cacionais. De forma crescente e significativa, os
municípios começaram a comprometer-se com
esse segmento, dividindo a tarefa que antes era
quase que exclusivamente dos estados, sobre-
tudo nas Regiões Norte e Nordeste. Todos os
esforços devem convergir para a institucio-
nalização da EJA como política pública nos sis-
temas de ensino, para que seja definitivamente
integrada no conjunto das políticas da Educa-
ção Básica, a qual deve contemplar tanto a ex-
pansão do atendimento aos jovens e aos adul-
tos pouco ouo escolarizados quanto a quali-
dade da oferta.
Um dos grandes instrumentos disponíveis
aos sistemas, visando à construção de uma
identidade própria de EJA, refere-se à formu-
lação de propostas político-pedagógicas - con-
templada nas Diretrizes Curriculares Nacionais
* Pedagoga e Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação Fundamental do MEC.
para EJA - que fundamentem uma prática co-
erente com as características desse segmento
e assegurem o direito que os alunosm a um
ensino de qualidade.
A EJA, como modalidade da educação-
sica e por atender a um público jovem e adul-
to, excluído do sistema de ensino na idade pró-
pria, deve ter tratamento que atenda à sua es-
pecificidade, que considere as vivências, os co-
nhecimentos e a cultura que esses alunos tra-
zem para a sala de aula.
Uma das formas de agregar significado à
ação educativa nesse segmento é por meio da
execução de propostas político-pedagógicas.
No entanto, no contexto das escolas brasilei-
ras que oferecem EJA, ainda há um imenso ca-
minho a ser percorrido, pois a realidade mos-
tra que poucas escolas/sistemas embasam seu
trabalho em propostas político-pedagógicas,
sejam específicas ou integradas na escola
como um todo. Pouca importância é, ainda,
conferida tanto a sua elaboração quanto a sua
execução. da mesma forma, falta reflexão
quanto a sua importância; os planos, quando
existem,o meramente burocráticos e o tem-
po destinado à formulação dessas propostas é
curto, geralmente no início do ano, sem a par-
ticipação do coletivo da escola e sem sintonia
com a realidade na qual a escola está inserida.
o há preocupação com a avaliação, nem
durante nem no final do processo.
De acordo com a legislação, a elaboração e
a execução de uma proposta político-pedagó-
gica dá aos sistemas de ensino e às escolas a
oportunidade de concretizar a flexibilidade
responsável decorrente da autonomia pedagó-
gica. Ela deve ser a expressão de um conjunto
de princípios e objetivos já estabelecidos na le-
gislação federal, adequando-os à EJA e à etapa
que o sistema oferece em sua rede, definindo
o que quer alcançar, por que, como vai fazê-
lo, quando vai realizá-lo e com quem conta
para atingir seus objetivos.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para
EJA (CNE, 2000), no que se refere à orientação
curricular, remetem às Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Fundamental. Nes-
se sentido, as orientaçõeso as seguintes:
1. As escolas deverão estabelecer como prin-
cípios norteadores de sua ação pedagógi-
ca:
a) princípios éticos: autonomia, respon-
sabilidade, solidariedade; respeito ao
bem comum;
b) princípios políticos: direitos e deveres
da cidadania; criticidade; respeito à or-
dem democrática;
c) princípios estéticos: sensibilidade,
criatividade; diversidade de manifesta-
ções artísticas e culturais.
2. Ao definir a proposta político-pedagógi-
ca, as escolas deverão explicitar o reco-
nhecimento da identidade pessoal dos
alunos, dos professores e outros profissio-
nais e da sua própria identidade - unida-
de escolar- e dos respectivos sistemas em
que estiver inserida.
3. Ao elaborar a proposta político-pedagó-
gica, as escolas deverão partir do pressu-
posto de que:
as aprendizagenso constituídas na
interação entre os processos de conheci-
mento, linguagem e afetivos, como con-
seqüência das relações entre as distintas
identidades dos vários participantes do
contexto escolarizado, por meio de ações
intersubjetivas e intra-subjetivas;
as diversas experiências dos alunos, pro-
fessores e demais participantes do ambi-
ente escolar, expressas por meio de múl-
tiplas formas de diálogo, devem contri-
buir para a construção de identidades
afirmativas, persistentes e capazes de
protagonizar ações solidárias e autôno-
mas de constituição de conhecimentos e
valores indispensáveis à vida cidadã.
4. A proposta político-pedagógica da escola
deverá garantir a igualdade de acesso dos
alunos a uma base nacional comum, de
maneira que legitime a unidade e a quali-
dade da ação pedagógica na diversidade
nacional, bem como a parte diversificada.
Tanto a base nacional comum como a par-
te diversificada deverão integrar-se em
torno do paradigma curricular - Parâme-
tros Curriculares Nacionais - que visa es-
tabelecer a relação entre:
a vida dos alunos, por meio da circulação
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta politico-pedagógica
dos seus aspectos, como a saúde, a sexua-
lidade, a família, o meio ambiente, o tra-
balho, a ciência e a tecnologia, a cultura e
as linguagens;
as áreas de conhecimento de Língua Por-
tuguesa e Língua Materna (para a popu-
lação indígena), Língua Estrangeira Mo-
derna, Matemática, Ciências, História,
Geografia, Arte, Educação Física.
5. As escolas utilizarão a parte diversificada
de suas propostas curriculares para enri-
quecer e complementar a base nacional
comum, com a introdução de projetos e
atividades de interesse de suas comuni-
dades.
Além desse conjunto de princípios, objeti-
vos e orientações legais, nos quais toda ação
educativa deve estar embasada, apresentarei
alguns elementos constitutivos de uma pro-
posta politico-pedagógica, de uma forma am-
pla, lembrando que todo curso para jovens e
adultos oferecido pelos sistemas deve passar
por autorização dos respectivos Conselhos de
Educação - municipal ou estadual -, respeitan-
do a autonomia conferida pela legislação, para
que os estudos dos alunos sejam regularizados.
As orientações devem ser buscadas nos órgãos
competentes, responsáveis pela normatização
em cada estado ou município.
A proposta politico-pedagógica, como ex-
pressão das intencionalidades da escola, deve
partir de uma fundamentação teórica, na qual
serão explicitadas a concepção pedagógica que
norteia o processo de aprendizagem, a filoso-
fia que permeia o trabalho escolar, bem como
os princípios políticos, tendo em vista a for-
mação do cidadão.
A partir da fundamentação elaborada co-
letivamente, inicia-se o processo de constru-
ção de uma identidade para a escola, em con-
sonância com as expectativas dos alunos. Para
tanto, é imprescindível elaborar um diagnós-
tico da escola e da realidade em que ela está
inserida, contextualizando a situação socio-
econômica e cultural dos alunos e da comu-
nidade, o desempenho escolar, relativizando
a função social da escola em relação àquela
realidade.
Os objetivos gerais e específicos e as prio-
ridades serão estabelecidos tendo por base
esse levantamento, crucial para que a escola
possa cumprir seu papel social.
Definidos os objetivos pela equipe escolar,
os quais representarão onde a escola quer che-
gar, elabora-se o plano estratégico das ações,
que irá desenvolver para alcançar os objetivos
propostos, no qual serão explicitados todos os
passos necessários, como: planejamento
curricular, disciplinas, carga horária, duração
e organização do curso, matrícula, freqüência,
aproveitamento de estudos, estrutura e funcio-
namento do curso, composição do corpo do-
cente, documentos comprobatórios de esco-
larização, entre outros.
o processo de avaliação deverá estar des-
crito tanto no que diz respeito à avaliação da
aprendizagem dos alunos e a forma de expres-
o dos resultados, como à avaliação do desen-
volvimento da proposta politico-pedagógica.
A proposta politico-pedagógica é o resul-
tado de um processo contínuo de reflexão so-
bre a prática pedagógica, sua concepção e fi-
losofia, em que a equipe escolar propõe, reali-
za, acompanha, avalia e registra as ações que
irá desenvolver para atingir objetivos coletiva-
mente definidos, de acordo com a realidade na
qual a escola está inserida.
Assim, a proposta politico-pedagógica deve
ser a expressão do conjunto de atores do uni-
verso escolar, congregando professores, alu-
nos, funcionários e comunidade em torno de
objetivos e metas comuns.
No processo de construção da proposta po-
litico-pedagógica, a equipe escolar discute e
expõe valores coletivos, define prioridades, de-
limita resultados desejados, reflete sobre sua
realidade, dá sentido às ações contidas no pla-
nejamento e incorpora a auto-avaliação.
A vivência de uma proposta politico-peda-
gógica propicia que a equipe escolar produza
seu conhecimento pedagógico, construindo-o
e reconstruindo-o cotidianamente, com base
em estudos teóricos na área da educação e em
outras áreas, na troca de experiências entre os
pares e com outros agentes da comunidade, in-
cluídos os alunos, os quais devem ser a primei-
ra fonte de pesquisa.
Bibliografia
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional - LDBEN. Lei n
9
9.394/95. de 20 de dezembro de 1996.
Diretrizes Curriculares Nacionais para Edu-
cação de Jovens e Adultos. Parecer n° 11 e Resolução
n° 1/2000.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental. Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação Fundamental. Brasilia, 1998.
Proposta Curricular para o 2
a
segmento de
EJA. Brasília, 2001.
SIMPÓSIO 22
ALFABETIZACAO
DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman
Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio
A leitura como prática social
na alfabetização de adultos*
Ângela B. Kleiman
Universidade Estadual de Campinas/SP
Na alfabetização de adultos, assim como em
outros contextos de ensino, a leitura e a escrita
o introduzidas como capacidades ou compe-
tências. Na escola, a leitura e a escritao con-
cebidas como um conjunto de habilidades de
uso (compreensão e produção) da língua escri-
ta, progressivamente desenvolvidas até se che-
gar a uma competência ideal, a do leitor ou es-
critor proficiente. Em princípio, essa competên-
cia plenamente desenvolvida emanciparia o lei-
tor para continuar sua própria aprendizagem,
independentemente do professor. Argumenta-
rei neste trabalho sobre a necessidade de con-
ceber o ensino da língua escrita como uma prá-
tica social, focalizando o ensino da leitura e de
uma prática de leitura, ler para conseguir infor-
mações ou aprender um novo assunto.
Mesmo se a escola se propusesse apenas
a ensinar essa única competência, ler para
aprender, a complexidade das capacidades
envolvidas é impressionante. Assim, o leitor
competente:
é capaz de abordar um assunto desconheci-
do e de selecionar textos relevantes para en-
tender o assunto que lhe interessa conhecer;
é capaz de avaliar suas opções, descartan-
do, mudando de rumo, acrescendo quando
necessário;
é independente, pois é capaz de auto-ava-
liar seu nível de conhecimento, compará-lo
ao nível exigido pelo texto e tomar decisões
em relação ao seu projeto didático indivi-
dual, baseado nessas avaliações e compa-
rações;
é capaz de se engajar cognitivamente, utili-
zando estratégias complexas para atingir
seus objetivos pessoais, específicos;
conhece o funcionamento de diversos dis-
cursos, como o do discurso didático, do dis-
curso de vulgarização, do discurso científi-
co, entre outros;
conhece diversos gêneros e como eles fun-
cionam. Por exemplo, para atingir seu obje-
tivo de aprender um assunto novo, ele sabe
como funcionam o livro didático, a enciclo-
pédia, o manual de auto-ajuda, os suple-
mentos informativos ou de ciências no jor-
nal, o texto de divulgação, o texto intro-
dutório, o artigo científico etc;
conhece as formas de produção, consumo e
divulgação dos textos; ou seja, ele sabe se o
leitor previsto é o grande público, o iniciante
que começa sua formação na matéria, os
pares do autor, qual o conhecimento pres-
suposto etc. (ver Maingueneau, 2001).
Sem dúvida, trata-se de um conjunto de
conhecimentos, estratégias e habilidades im-
portantes. Maso é suficiente para formar lei-
tores, porque a noção de competência é estáti-
ca, implicando um conjunto de capacidades já
prontas para realizar um determinado fazer.
Ainda, ela é redutora no contexto da escola, que
fragmenta o saber e concebe sua aquisição por
meio de acréscimos por etapas, tanto nos con-
teúdos como nas habilidades visadas. Nesse
contexto, o desenvolvimento de uma compe-
tência consiste, na maioria das vezes, num pro-
grama de atividades em que se lê para desen-
volver a competência leitora; lê-se para apren-
der a ler.o se aprende lendo.
Assim, nos primeiros contatos com a leitura,
aprende-se o alfabeto para um dia, no futuro, po-
der compreender o texto e oraliza-se a leitura
para aprender a ler silenciosamente. Fragmen-
" Os resultados apresentados neste trabalho fazem parte do projeto Letramento do professor: implicações para a prática pedagógica, financi-
ado pela agência de fomento à pesquisa, CNPq.
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
ta-se o texto para aprender a perceber o todo,
um tema, uma idéia principal. Impõe-se um
mesmo texto ao grupo para desenvolver o gosto
individual pela leitura, a relação estética e de
prazer, íntima e privada. Procura-se fazer com
que o aluno responda somente ao que está pre-
visto na leitura do professor ou do autor do livro
didático e exige-se um leitor crítico e partici-
pativo. Trata-se de uma pedagogia da contradi-
ção, marcada por um conjunto de atividades de
"fazer de conta": o aluno escreve bilhetes que
ninguém lera, textos de opinião sem ter forma-
do uma opinião; responde às perguntas na se-
ção de "interpretação livre", já cerceado, sem li-
berdade e muitas vezes sem leitura. Ele "lê" sem
entendimento, interpreta sem ter lido e realiza
atividades sem nenhuma função na sua realida-
de sociocultural (cf. Foucambert, 1994).
Por isso, consideramos importante, para for-
mar e desenvolver leitores, partir de uma con-
cepção de leitura como prática social, com
múltiplas funções, relacionada aos contextos de
ação. Uma dessa funções pode ser a facilitação
da aprendizagem,o para um dia longe, no
futuro, se converter num leitor e aprendiz in-
dependente, mas para aprender dia a dia, mes-
mo quando ainda estiver soletrando a escrita,
durante todo o processo, aquilo que vale a pena
aprender.
Na perspectiva da leitura como prática
facilitadora da aprendizagem, o objetivo da ati-
vidade didática de leitura é aprender alguma
coisa nova.o se justifica a atividade de ler
para aprender a ler. O objeto da aprendizagem
é configurado pelas necessidades e caracterís-
ticas do grupo. Embora as atividades possam ser
diferentes, a prática tem o mesmo objetivo, ou
seja, o de aprender a usar a língua escrita para
fazer novos sentidos do mundo, para se desen-
volver a si mesmo e para contribuir com o de-
senvolvimento do grupo.
Na educação básica de jovens e adultos, a
concepção de leitura (e de produção da escri-
ta) que deve imperar para facilitar a aprendiza-
gem do aluno é a concepção da atividade como
prática social.
As práticas de leitura no cotidiano dos
adultos não-escolarizados sugerem que, para
eles, a função predominante na língua escrita
é a função referencial. Os textos escritos que
lheso conhecidos servem para registrar fa-
tos e eventos que acontecem, para fazer refe-
rência ao mundo real. Os textos conhecidoso
os formulários e papéis que registram informa-
ções vitais (certidão de nascimento, por exem-
plo), os bilhetes que a escola manda para casa
registrando fatos acontecidos ou por aconte-
cer; os anúncios de emprego nas bancas de jor-
nal. A leiturao tem como função importan-
te a de capacitá-los para adquirir novos conhe-
cimentos, nem a de legitimar esses conheci-
mentos. Isto é, a concepção de texto e de es-
crita desse alunoo prevê algumas importan-
tes funções da leitura, justamente aquelas que
lhe permitiriam continuar aprendendo e, com
isso, se desenvolver e ajudar o desenvolvimen-
to de seu grupo (ver Kleiman, 2000).
Ensinar a ler, nesse contexto, implica ajudar o
aluno a transformar essa visão mais utilitária da
leitura, enriquecendo-a de modo a incluir seu po-
tencial para a aprendizagem independente e con-
tinuada. Isso envolve partir das necessidades dos
alunos, mesmo que estas sejam de caráter
instrumentalizador e pragmático. É pela prática de
leitura que se pode alcançar a paulatina transfor-
mação da concepção do adulto não-escolarizado
numa concepção com funções sociais ampliadas,
que possibilite a aprendizagem independente. É
por meio da prática de leitura que podem ser cria-
das novas necessidades de leitura.
Um caso específico que ilustra essa dife-
rença deu-se numa aula de mulheres analfa-
betas num ano de eleição, em uma das tur-
mas acompanhadas num projeto a longo pra-
zo desenvolvido em uma pequena cidade do
interior do Estado deo Paulo (ver Kleiman
e Signorini, 2000). Nessa turma, as alunas
queriam votar mas, comoo sabiam ler a-
dula, pediram à professora que lhes ensinas-
se a reconhecer os nomes dos vários candi-
datos. Transcrevo, a seguir, o trecho pertinen-
te (Kleiman, 2000: 228):
A leitura da cédula sem uma reflexão consciente
sobre o voto é, para os sujeitos já aculturados pela
escrita, uma paródia do ato de cidadania que o ato
de votar representa. Essas alunas, no entanto,o
solicitaram ser preparadas para votar nesse senti-
do mais amplo, mas apenas naquele sentido por
elas delimitado, ou seja, o de reconhecer o nome
dos candidatos. A alfabetizadora então levou as
cédulas e realizou uma série de atividades de
decodificação dos nomes e números que consta-
vam na cédula, a fim de atender às necessidades
de leitura que haviam sido delimitadas pelo gru-
po. Porém, durante essa atividade, surgiu o inte-
resse, motivado pelas intervenções de professora
e alunas, de conhecer melhor as pessoas a quem
as palavras aprendidas nomeavam e, então, pe-
quenos artigos sobre os candidatos - biográficos
e programáticos - foram lidos.
A moral dessa história seria, segundo a au-
tora, que "se a alfabetizadora tivesse tentado
começar pela ampliação da concepção de voto
dessas mulheres, propondo primeiro a leitura
que permitisse conhecer os candidatos para
depois ler a cédula, provavelmente nem a pri-
meira nem a segunda atividade teriam sido re-
alizadas com sucesso".
Ou seja, a decisão dessa alfabetizadora, de
partir da função para a leitura tal qual delimi-
tada pelas mulheres, caracteriza a leitura como
prática social, a leitura para a aprendizagem. A
leitura criou a necessidade de mais leitura.
Engajar o aluno na prática social da leitura
significa, portanto, reverter a direção da ativi-
dade, começando pela necessidade e pela fun-
ção que atende a essa necessidade, mesmo que
aquela seja limitada. Quando houver uma fun-
ção para a leitura, as capacidades necessárias
para ler independentemente deixarão de ser um
problema. Os problemas se originam, muitas
vezes, na circularidade da atividade, que come-
ça e acaba focalizando os aspectos formais do
texto. É incoerente pensar que as razões para
ler, as funções da leitura tal qual percebidas
pelos grupos de tradição mais letrada, serão
encontradas pelos alunos membros de comu-
nidades de tradição mais oral.o é, de forma
alguma, evidente que seja necessário saber ler
para funcionar no cotidiano desses alunos, nas
suas comunidades de origem. E, quando ensi-
namos a leitura apenas para desenvolver a com-
petência, o aluno deve, por si próprio, construir
uma função para a atividade.
Finalizando, gostaria de apontar que uma
constante na alfabetização de jovens e adultos
é, a meu ver, o desejo e a necessidade do aluno
de se apossar da escrita e daquilo que ela re-
presenta na sociedade tecnológica (ver Street,
1994). Esse desejo fica evidente nos esforços
que o adulto sem escrita realiza e na variedade
de estratégias que ele cria a fim de funcionar
na sociedade letrada, às vezes escondendo sua
condição de não-escolarizado; fica evidente na
sua volta à escola; um retorno em geral associa-
do à sobrevivência, à promoção no trabalho, ao
convívio social. O incentivo para a leitura, por-
tanto, precede a entrada do aluno na escola.
Perde-se pela circularidade de um método de
ensino que só se preocupa com o objetivo final
- a competência - e que fracassa na criação de
atividades didáticas que permitam o
engajamento na prática social para se chegar à
competência individual que permitiria a intro-
dução dos alunos nas práticas socioculturais da
sociedade letrada.
Bibliografia
FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre:
Artmed, 1994 [Ed. francesa, 1989].
KLEIMAN, A. B. O processo de aculturação pela escrita:
ensino da forma ou aprendizagem da função?. In:
KLEIMAN. A. B.; SIGNORINI. I. (Orgs.). O ensino e a
formação do professor de alfabetização de adultos. Porto
Alegre: Artmed, 2000.
KLEIMAN, A. B.: SIGNORINI. I. (Orgs.). O ensino e a for-
mação do professor de alfabetização de adultos. Porto
Alegre: Artmed, 2000.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação.o
Paulo: Cortez, 2001.
STREET, B. V. Literacy in theory and practice. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994.
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
Programas de Educação de Jovens
e Adultos: um olhar sobre a
formação dos educadores
Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio
Ação Educativa/SP
A proposta de formação de educadoras
1
que vem norteando as atividades de assesso-
ria e formação desenvolvidas pelo Programa de
Educação de Jovens e Adultos de Ação Educa-
tiva, junto com outros programas de alfabeti-
zação de jovens e adultos, tem como pressu-
posto dois importantes aspectos. O primeiro
deles refere-se à sua finalidade: propiciar a
pessoas pouco ou não-escolarizadas o domí-
nio sobre conhecimentos e aquisição de apren-
dizagens que contribuam para ampliar a pos-
sibilidade de intervenção na sociedade da qual
fazem parte e continuar aprendendo ao longo
de suas vidas. O segundo aspecto refere-se à
concepção de alfabetização assumida pelo
programa, segundo a qual o aprendizado da
leitura e da escrita se realiza numa prática
constante de diálogo entre educadores e alu-
nos, de modo que os jovens e adultos possam
refletir maneira crítica sobre suas próprias ex-
periências e sobre suas relações com o meio
ambiente físico, cultural, social e político. Co-
erentemente com esses aspectos, para formu-
lar ou planejar qualquer ação que vise à for-
mação de educadoras, é preciso responder à
seguinte questão: com que tipo de educadora
os programas devem contar e como pretendem
formá-la durante o exercício de sua prática pe-
dagógica?
Um primeiro princípio que deve reger qual-
quer ação de formação das educadoras de pro-
gramas de alfabetização é o de que o tipo de
educação que se quer propiciar aos alunos
deve ser o mesmo que se propicia às educado-
ras. A formação da educadora deve pautar-se,
desse modo, pela prática do diálogo entre co-
ordenadoras e pares, bem como pela reflexão
sobre sua ação e os resultados obtidos, que
devem ser coerentes com os objetivos educa-
tivos e as opções metodológicas traçados pelo
programa. Nesse sentido, o investimento na
formação das educadoras deve ter a perspec-
tiva de que elas consigam construir uma prá-
tica diária, na qual sejam sujeitos e produto-
ras de sua própria ação educativa, historica-
mente contextualizada e justificada por conhe-
cimentos pedagógicos e outros, advindos de
diferentes áreas.
A formação entendida como a promoção
de aprendizagens, a reflexão sobre a própria
ação e a busca de informações e conhecimen-
tos para superação de problemas enfrentados
no fazer pedagógico partem de pontos comuns
ao processo de aprendizagem dirigido aos alu-
nos do programa. Se acreditamos que a etapa
inicial para a promoção de aprendizagens sig-
nificativas deve pautar-se pelo conhecimento
da realidade dos educandos (suas condições de
vida, de trabalho, sua experiência escolar an-
terior, sua bagagem cultural e de conhecimen-
tos prévios, entre outros aspectos), o mesmo
princípio deve nortear a formação das educa-
Este texto foi originalmente elaborado no âmbito da assessoria junto ao Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário - Conse-
lhos Comunitários de Educação, Cultura e Ação Social) e faz parte do documento: Alfabetização e escolarização de jovens e adultos:
diretrizes (São Paulo, 2001).
' o termo "educador" será utilizado no feminino já que a maior parte do corpo docente do programa é formado por mulheres; o mesmo critério
será aplicado ao termo 'coordenador".
doras. Logo de início, é importante privilegiar
momentos para que se possa conhecê-las, ten-
do como eixo central a concepção educativa
que carregam e as representações de aluno que
possuem e queo formadas:
pelos conhecimentos adquiridos em seu
processo de formação inicial (nos cursos de
habilitação para o Magistério);
pela experiência como educadora;
por sua trajetória e experiência como
aprendiz, em seu próprio processo de es-
colarização;
por sua representação de como se dá o pro-
cesso de aprendizagem de pessoas jovens
e adultas e suas necessidades de aprendi-
zagem;
por outras experiências como cidadãs e
suas histórias de vida.
Os momentos para levantar essas informa-
ções podem ser os mais variados, sendo al-
guns deles dependentes do próprio plano de
formação. É possível coletar informações no
momento em queo selecionadas ou incor-
poradas ao programa, por meio de entrevis-
tas e questionários. Mas apenas esse levanta-
mentoo basta. A cada reflexão ou aprendi-
zagem que se deseja promover no processo de
formação, é importante que as educadoras
possam expor e refletir sobre suas concep-
ções, representações e ações pedagógicas e,
caso seja necessário, problematizá-las, bus-
cando informações e conhecimentos que as
transformem.
Como conhecer melhor
as educadoras?
Quanto mais as coordenadoras pedagógi-
cas, pessoas responsáveis pelo acompanhamen-
to pedagógico, conhecerem as educadoras com
as quais trabalham, melhores serão suas con-
dições de realizar um bom trabalho de forma-
ção e promover aprendizagens significativas.
Esse é um conhecimento que deverá ser
construído informalmente, no convívio cotidia-
no, e formalmente nos momentos de visitas,
reuniões pedagógicas e capacitações das quais
participam.
Traçando o perfil
das educadoras
Quando a equipe de educadoras já estiver
selecionada é importante que as coordenadoras
pedagógicas possam lançaro de alguns ins-
trumentos para coletar e organizar algumas in-
formações básicas sobre elas. Traçar um diagnós-
tico do grupo com o qual irá trabalhar auxilia a
definição de estratégias e de temas importantes
para as reuniões de formação.
A seguir, sugerimos uma lista de informações
que podem ser levantadas com as educadoras:
nome completo; data de nascimento; raça e/ou
etnia; endereço; cidade e estado de nascimento;
tempo de moradia na cidade; escolaridade; es-
tado civil; número de filhos e suas idades; se ti-
veram experiências anteriores como educadoras
e especificamente com EJA; se lêem regularmen-
te jornais, revistas, livros (especificar); se fre-
qüentam regularmente livraria, cinema, teatro,
museus etc; se assistem à televisão, quais os pro-
gramas preferidos; o que fazem nos momentos
de lazer, se participam de alguma atividade cul-
tural de sua comunidade; quaiso os materiais
utilizados para preparar as atividades pedagógi-
cas que serão desenvolvidas com os alunos;
como planejam e avaliam as atividades pedagó-
gicas desenvolvidas com os alunos.
Tais informações podem ser coletadas por
meio de questionários, de entrevistas individu-
ais ou em pequenos grupos e registradas em re-
latórios ou quadros. Essas informações organi-
zadas e analisadaso importantes indicadores
sobre as necessidades de formação das educa-
doras e proporcionam conhecimentos sobre seu
cotidiano.o um importante subsídio para que
as coordenadoras pedagógicas conheçam me-
lhor quemo os profissionais com os quais es-
tarão trabalhando e também para que possam
elaborar uma proposta de trabalho a ser desen-
volvida sistematicamente com as educadoras.
Reuniões pedagógicas:
reflexão antes e sobre a ação
Será principalmente nas reuniões pedagógi-
cas que as educadoras terão a oportunidade de
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
falar a respeito dos alunos, de seus interesses, da
prática de sala de aula, do planejamento, da ava-
liação, de suas dúvidas e até de suas vidas. Além
disso, é o momento no qual elas explicam o
modo como realizam atividades, analisam os
resultados que obtiveram e apresentam a pro-
dução de seus alunos, trocam experiências e re-
fletem sobre elas, planejam novas atividades e
estudam os temas e conhecimentos de que ne-
cessitam para inovar e transformar sua ação.
Para promover a reflexão sobre a ação da edu-
cadora é possível seguir algumas estratégias:
Descrição ou relato da experiência. Esta é
uma etapa na qual a educadora descreve
sua prática em sala de aula, relatando como
a atividade que planejou foi desenvolvida,
que resultados obteve, o que deu certo e o
queo deu, de quais estratégias lançou
mão. É o momento em que ela pode perce-
ber as regularidades que dirigem sua pró-
pria prática (por exemplo, estratégias e eta-
pas que utiliza sempre para dar início às
atividades, o modo como introduz textos
escritos, conversas coletivas que introdu-
zem novas aprendizagens etc); as contra-
dições entre o que planejou e o que desen-
cadeou em sala de aula; e, ainda, selecio-
nar o que foi relevante e deve ser descrito
e o queo foi. Além de atividades, pode-
se descrever o desempenho do grupo de
alunos ante a atividade ou o desempenho
de parte do grupo ou de um dos alunos. A
descrição pode ser feita oralmente ou por
escrito: muitas educadoras descrevem sua
prática em forma de diários. As descrições
da prática em sala de aula podem ser
dirigidas à própria educadora, que tem a
oportunidade, nesse momento, de obser-
var de um outro ponto de vista a ação que
desencadeou. Mas, com seu consentimen-
to, pode ser um material utilizado em reu-
niões pedagógicas e em encontros indivi-
duais com a coordenadora pedagógica. Tor-
na-se, então, material de reflexão coletiva
e para elaborá-la é preciso prever o que o
leitor ou ouvinte precisa saber para com-
preender o que se quer comunicar.
Estudo e informação. Essa estratégia deve
resultar na identificação das teorias e con-
cepções que se expressam na prática peda-
gógica. Aqui, necessariamente, a educadora
precisa de um interlocutor, de alguém com
quem possa discutir e debater as razões que
a levam a agir desse ou daquele modo, ao
realizar uma atividade em sala de aula. O
interlocutor, a coordenadora ou o colega de
trabalho, fazem perguntas sobre a descrição
oral ou escrita que a educadora elaborou.
Para que a educadora responda com tranqüi-
lidade a essas questões é preciso confiança e
clareza sobre o que se pretende.o se trata
de modo algum de uma investigação visan-
do à censura da ação que ocorreu em sala.
Esse momento, quando pensado para forma-
ção e aprendizagem, ensina a educadora a
buscar em si mesma as justificativas para o
que faz, articulando sua prática às teorias e
às experiências que a informam, isto é, leva-
a a percebê-la como algo que é muito mais
do que o mero fazer por fazer.
Confrontação. É nesse momento que a for-
madora e os pares podem questionar, in-
dagar e problematizar aspectos desencade-
ados na atividade que se mostram contra-
ditórios aos objetivos e às opções meto-
dológicas descritas pela educadora. A
problematização deve levar à busca de no-
vos conhecimentos e informações que fo-
mentem a reconstrução da prática da edu-
cadora. É essa estratégia que motiva e pro-
porciona estudo, leitura e debates no gru-
po de educadoras.
Reconstrução. Por fim, a partir de estudos,
leituras, seminários e debates chega-se ao
momento de reorientar o fazer. Todas essas
perguntas devem ser respondidas a partir
das conclusões a que se chegou coletiva-
mente. Nesse momento, elaboram-se mo-
dos de atuar, firmam-se acordos, definem-
se metas que devem ser utilizadas coletiva-
mente, observadas e avaliadas pelo grupo.
0 que se espera
da educadora?
Às educadoras cabe o papel de diagnosti-
car, planejar, avaliar e criar situações de
aprendizagem que problematizem e interfi-
ram no processo de construção do conheci-
mento de seus alunos. Esse processo dinâmi-
co de produção e de acesso ao conhecimen-
to, em que educadora e alunoo agentes e
o meros espectadores, só será possível no
momento em que tiverem clareza quanto aos
objetivos a serem perseguidos, às opções
metodológicas e orientações didáticas que
deverão seguir para mediar a apreensão do
conhecimento, organizando-o e viabilizando-
o por meio de atividades.
Nesse sentido, o papel das coordenadoras
pedagógicas junto das educadoras seria o de
garantir o acesso ao conhecimento científico
e de relacioná-lo à prática cotidiana.
Deveríamos reconhecer a importância dos
elementos contidos nas suas práticas
educativas cotidianas, tentando perceber seus
limites e dificuldades, articulando-os com um
saber teórico que vem sendo construído ao
longo dos anos, nas diversas áreas do conhe-
cimento.
o espaço e as condições para que a forma-
ção ocorra devem possibilitar que as educado-
ras construam sua própria prática. Para isso, é
necessário definirmos outros objetivos para a
formação, como: capacitá-las para que sejam
seres autônomos, capazes de interagir e de res-
ponder às necessidades impostas pelo mundo
moderno.
Na atuação da educadora devem estar re-
fletidos os seguintes princípios que dizem res-
peito aos alunos:
A consideração do aluno como sujeito ati-
vo da aprendizagem.
o diagnóstico de quaiso seus conheci-
mentos prévios.
A promoção de situações nas quais os alu-
nos interajam entre si e consigo mesmos.
A consideração das práticas cotidianas dos
jovens e adultos, consolidando as aprendiza-
gens escolares a partir dessas experiências.
o respeito às diversidades de personalida-
des e de culturas.
A valorização da autonomia de seus alu-
nos.
A promoção da autoconfiança dos alunos
diante de seus saberes, valores e atitudes.
o incentivo à cooperação e à solidarieda-
de entre os alunos.
Considerações finais
9
A formação da educadora deve ter como
principal objetivo o de melhorar a qualidade
da sua intervenção educativa e pedagógica.
Para que isso ocorra, é fundamental que se pri-
vilegiem momentos e espaços específicos para
uma formação contínua e sistemática: por
meio de reuniões de estudo, de troca de expe-
riências; possibilitando a participação em se-
minários e cursos; buscando materiais de pes-
quisa; adquirindo livros; acompanhando o tra-
balho com jovens e adultos, pelo planejamen-
to, pelo registro e por visitas à sala de aula. Para
muitas educadoras de jovens e adultos o regis-
tro escrito pode vir a ser a primeira possibili-
dade e/ou necessidade de exercitar o uso da
escrita. O exercício da escrita deve ser consi-
derado e privilegiado como um dos principais
aspectos da formação, pois a prática da escri-
ta exige planejamento, reflexão e organização
de idéias de forma coerente.
o processo e o resultado do trabalho de sis-
tematização da prática devem ser discutidos e
refletidos pelo grupo de educadoras e coorde-
nadoras com o intuito de perceber e identifi-
car os avanços e as dificuldades, na perspecti-
va de traçar estratégias para atendê-las em
suas necessidades de formação.
Um outro aspecto a ser destacado é o in-
vestimento no acompanhamento do trabalho
específico das educadoras, por meio de super-
visão realizada pelas coordenadoras pedagó-
gicas. Esse trabalho pode contribuir para uma
maior segurança delas na integração e na arti-
culação das atividades desenvolvidas com os
alunos. Além disso, é fundamental que todo
profissional tenha espaços para discutir dúvi-
das, trocar experiências e pesquisar, ou seja,
para que continue aprendendo e aperfeiçoan-
do seu fazer.
É importante, ainda, que as coordenado-
ras pedagógicas estejam sempre atentas e pró-
ximas das educadoras, avaliando o queo
está bom no relacionamento pessoal, no tra-
balho cotidiano da sala de aula e procurando,
durante as reuniões, discutir e buscar, com o
grupo, alternativas para mudanças que alterem
o queo está funcionando bem.
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
As relações entre as educadoras, os alunos
e outras pessoas envolvidas no trabalho devem
ser objeto de reflexão cotidianamente. Esse
momento de avaliação é importante para que
possam entender o que lhes é mais fácil, quais
suas dificuldades e também para buscar co-
nhecer melhor seus alunos. É nesse momento
que se pode organizar e pensar tudo o que já
sabem e vivenciam no dia-a-dia. Esse espaço
ajuda na organização de idéias e na elabora-
ção do planejamento.
Nesse sentido, as educadoras devem estar
constantemente avaliando sua prática pedagó-
gica, buscando aprofundar teoricamente as-
pectos ligados à educação de jovens e adultos:
quemo eles; como pensam; como dimen-
sionam seu tempo; quais seus interesses; como
percebem o mundo a sua volta; quais suas ne-
cessidades; como constróem conhecimento;
etc. Seo sabemos quemo nossos alunos,
o que eles já sabem e quaiso as nossas ques-
tões em relação a esses aspectos, é muito difí-
cil pensar em objetivos e metodologias que
possibilitem desenvolver um trabalho mais
seguro e competente. Somente quando conse-
guimos explicitar nossas perguntas sobre a
prática pedagógica, num processo reflexivo, é
que podemos pensar sobre os recursos peda-
gógicos que de fato contribuem para o desen-
volvimento de um trabalho de qualidade.
Por último, a formação das educadoras deve
articular a prática e a teoria a todo momento,
pois o que queremos alcançar é um maior co-
nhecimento da realidade e de formas para in-
tervir nesse contexto, melhorando a qualidade
da prática das educadoras junto dos alunos.
Bibliografia
CONTERÁS, J. Condiciones y contrariedades dei
profesional reflexivo al intelectual critico. La autonomia
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VÓVIO, C. L. (Coord.). Viver e aprender: guia do educa-
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cativa/MEC, 1999.
SIMPÓSIO 23
CONCEPÇÃO DOS LIVROS
DIDÁTICOS: MODELO ATUAL
E NOVAS PERSPECTIVAS
Jorge Megid Neto
Luiz Percival Leme Brito
Luiz Roberto dante
Representações e novas
perspectivas do livro didático
na área de Ciências:
o que nos dizem os professores,
as pesquisas acadêmicas e
os documentos oficiais
Jorge Megid Neto
Universidade Estadual de Campinas/SP
Esta exposição toma por base um conjunto
de ações realizadas pelo Grupo Formar - Ciên-
cias (Estudos e Pesquisas sobre Formação de
Professores da Área de Ciências), da Faculdade
de Educação da Unicamp, e também minhas
experiências docentes como professor de Físi-
ca do Ensino Médio e professor da área de Di-
dática e Prática de Ensino de Ciências na uni-
versidade.
As reflexões serão norteadas por três aspec-
tos principais: a) o papel atribuído ao livro di-
dático e seu uso no contexto escolar; b) os cri-
térios de análise, de avaliação e de escolha de
livros didáticos adotados por equipes de espe-
cialistas do MEC, por pesquisadores da univer-
sidade e por professores de Ciências da rede
pública; c) as representações epistemológicas
e pedagógicas sobre livro didático presentes no
ideário de professores, pesquisadores e currí-
culos oficiais.
Cabe destacar, ainda, queo se pode de-
bruçar sobre o tema do Simpósio, particulari-
zando para os livros didáticos de Ciências no
Ensino Fundamental, sem externar explícita ou
implicitamente concepções de ciência, de am-
biente, de educação, de sociedade, das relações
entre ciência-tecnologia-sociedade, entre tan-
tas outras concepções de base pertinentes ao
campo da educação em Ciências, as quais de-
terminam a própria concepção de livro didáti-
co e de seu papel educacional.
Iniciando pelas concepções e práticas de
professores sobre o livro didático de Ciências,
apresento dados coletados por nosso grupo de
pesquisa durante cursos de extensão realizados
recentemente, com aproximadamente 180 pro-
fessores de Ciências do Ensino Fundamental,
em várias cidades da região de Campinas (SP).
Um dos temas desenvolvidos nos cursos
abrangia o livro didático e seu papel no ensino
de Ciências. Quando perguntados sobre os usos
que fazem do livro didático em suas atividades
docentes, os participantes apresentaram respos-
tas que podem ser aglutinadas em três grandes
grupos. Os professores fazem uso simultâneo de
várias coleções didáticas, de editoras ou auto-
res distintos, para elaborar o planejamento anu-
al de suas aulas e para a preparação delas ao lon-
go do ano letivo. Também comentam que o li-
vro didático é utilizado como apoio às ativida-
des de ensino-aprendizagem, seja na sala de
aula, seja extra-escola, visando à leitura de tex-
tos, à realização de exercícios e outras ativida-
des e ainda como fonte de imagens (fotos, de-
senhos, mapas, gráficos etc.) para os estudos es-
colares. Por fim, salientam que o livro didático
é utilizado como fonte bibliográfica, tanto para
o professor complementar seus conhecimentos,
quanto para os alunos, em especial na realiza-
ção das chamadas "pesquisas" bibliográficas.
Durante os mesmos cursos, os professores
eram instigados a estabelecer critérios para ana-
lisar e avaliar coleções didáticas e, a partir dis-
so, apresentar suas concepções sobre um "bom"
livro didático. Em linhas gerais, eles indicam os
seguintes critérios ou características de uma boa
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
coleção didática de Ciências: a) apresentar in-
tegração ou articulação dos conteúdos e assun-
tos abordados; b) trazer textos, ilustrações e ati-
vidades diversificados, que mencionem ou tra-
tem de situações do contexto de vida do aluno;
c) apresentar informações atualizadas e lingua-
gem adequada ao aluno; d) estimular a reflexão,
o questionamento, a criticidade; e) as ilustra-
ções devem ter boa qualidade gráfica, ser visua-
lmente atraentes, compatíveis com a nossa cul-
tura, conter legendas e proporções espaciais
corretas; f) as atividades experimentais devem
ser de fácil realização e com material acessível,
além deo apresentar riscos físicos ao aluno;
g) o livro deve ter isenção de preconceitos
socioculturais; h) a coleção deve manter estrei-
ta relação com as diretrizes e propostas curricu-
lares oficiais.
Praticamente todos os critérios e caracterís-
ticas mencionados pelos professores compare-
cem nos documentos de avaliação do livro di-
dático do MEC, integrantes do Programa Nacio-
nal do Livro Didático (PNLD). Desde 1994, te-
mos contado com esse trabalho de avaliação
nacional de livros didáticos direcionados ao
Ensino Fundamental.
Em 1994, o MEC publicou o documento
Definição de critérios para avaliação dos livros
didáticos, em que eram analisados livros didá-
ticos de lª a 4ª séries do Ensino Fundamental
nas várias disciplinas do currículo escolar. Os
critérios estabelecidos pela equipe de Ciências
distribuíram-se em quatro grupos:
Descritores da estrutura, envolvendo carac-
terísticas físicas e gráficas dos livros e aspec-
tos pedagógico-metodológicos, como ade-
quação e articulação dos conteúdos, presen-
ça de erros conceituais, inserção de precon-
ceitos, entre outros.
Descritores das concepções de natureza,
matéria/espaço/tempo/processo de trans-
formação, de seres vivos, de corpo huma-
no, de saúde, de ciência e tecnologia, de
cotidiano.
Descritores das atividades como práticas
propostas no livro, diversidade de ativida-
des, habilidades e capacidades intelectuais,
entre outros aspectos.
Descritores do Livro do Professor, envolven-
do aprofundamentos teóricos, discussão de
objetivos, sugestão de bibliografia, entre
outros.
Posteriormente, em anos subseqüentes,
como 1997, 1998, 2000 e 2001, o MEC produziu
novos documentos, agora denominados Guias
do livro didático, envolvendo avaliação de co-
leções ora de lª a 4ª séries, ora de 5ª a 8ª séries.
No caso da área de Ciências, uma nova equipe
de especialistas foi constituída, a qual estabe-
leceu dois conjuntos principais de critérios para
avaliação das coleções. Os critérios eliminató-
rios das coleções, segundo a equipe, consistem
de: conceitos e informações básicas incorretos;
incorreção e inadequação metodológicas; pre-
juízos à construção da cidadania; e riscos à in-
tegridade física do aluno. Os critérios
classificatórios envolvem adequação dos con-
teúdos; atividades propostas; integração entre
temas nos capítulos; valorização da experiên-
cia de vida do aluno; aspectos visuais das ilus-
trações; e manual do professor.
Quando questionamos os professores, du-
rante os referidos cursos de extensão, se os cri-
térios que estabelecemo específicos de livros
didáticos de Ciências ou se poderiam ser utili-
zados para avaliar e selecionar livros didáticos
de outras disciplinas escolares, eles se assustam.
Tomam consciência de que, à exceção da pre-
sença de "atividades experimentais" e "riscos
físicos", a relação de características/critérios de
um livro didático por eles indicada pode ser
também utilizada para análise de livros didáti-
cos de Português, Matemática, História e Geo-
grafia, por exemplo.
Se notarmos os critérios eliminatórios e
classificatórios dos Guias do MEC divulgados a
partir de 1997, encontramos um único critério
entre aqueles colocados em destaque - riscos à
integridade física do aluno que representa
uma especificidade do ensino de Ciências, mais
diretamente ligada à realização de atividades
experimentais com materiais ou equipamentos
passíveis de provocar danos à saúde do aluno.
Em suma, esses primeiros comentários in-
dicam que nem os professores de Ciências com
quem trabalhamos, nem os especialistas da
área de Ciências do PNLD conseguem estabe-
lecer - como critérios para avaliação de livros
didáticos - aquilo que há de mais específico
no ensino de Ciências, os fundamentos ou as
bases teórico-metodológicas que demarcam,
que distinguem o campo curricular das Ciên-
cias Naturais das demais disciplinas do currí-
culo escolar. Muito provavelmente os autores
e editores de livros didáticos tambémo con-
seguem fazer essa distinção, razão pela qual as
coleções de Ciênciasm sofrendo, nos últi-
mos anos, melhorias localizadas principal-
mente no aspecto gráfico e visual, na correção
conceituai, na eliminação de preconceitos e
estereótipos de raça, de gênero ou de nature-
za socioeconômica, na supressão de informa-
ções ou ilustrações que podem propiciar ris-
cos à integridade física do aluno. Muitas des-
sas melhorias foram certamente impulsiona-
das pelos Guias de avaliação do MEC.
Podemos afirmar que as coleções didáticas
o sofreram qualquer tipo de mudança subs-
tancial nos aspectos que determinam as pecu-
liaridades, as bases do ensino no campo das
Ciências Naturais. As diretrizes e orientações
estabelecidas nas atuais propostas curriculares
oficiais de vários estados e municípios do país
e também nos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (de Ciências) derivam dessas bases. Que
característicaso essas, que fundamentoso
esses, os quaiso esquecidos por professores
de Ciências, pelos autores de livros didáticos e
também pelas equipes de especialistas de as-
sessoria ao MEC?
Ora, como disse, basta ler os PCN de Ciên-
cias do Ensino Fundamental ou outros progra-
mas curriculares oficiais para encontrar, de
maneira bastante explícita, esses fundamentos
teórico-metodológicos. Por mais estranho que
possa parecer, esses mesmos critérios encon-
tram-se muito bem explicitados no citado do-
cumento, Definição de critérios para avaliação
dos livros didáticos, de 1994, do próprio MEC.
Dizem respeito às concepções de natureza, de
matéria/espaço/tempo/processo de transfor-
mação, de seres vivos, de corpo humano, de saú-
de, de ciência e tecnologia, ou ainda de ambi-
ente e das relações de todos esses elementos
com a educação e com a sociedade em última
instância.
Em breve artigo publicado no jornal Ciên-
cia & Ensino (Amaral e Megid Neto, 1997), tive-
mos oportunidade de comentar sobre essa
questão. Com base em estudos avaliativos de
coleções didáticas afirmamos, na época, que os
autores de livros didáticos até procuram incor-
porar nas páginas iniciais das coleções, nas ex-
plicações e na introdução ao professor e ao alu-
no, essas bases, esses avanços educacionais na
área de Ciências. Contudo, na implementação
dessas idéias ao conteúdo do livro (texto, ativi-
dades, orientações metodológicas etc.) comu-
mente issoo se efetiva.
Analisando várias coleções de Ciências de
5ª a 8ª séries, notamos a presença de erros
conceituais ou de preconceitos sociais, cultu-
rais e raciais, conforme a imprensa fartamen-
te divulgava naquele momento. Todavia, esses
erros e preconceitoso pontuais, podem ser
detectados diretamente no texto, na ativida-
de, na ilustração e podem ser corrigidos com
alguma facilidade. De modo semelhante, as de-
ficiências gráficas, qualidade inadequada do
papel ou uma diagramação cansativa podem
também ser corrigidos por intermédio de nova
editoração da coleção. Mas que dizer de con-
cepções errôneas, superadas, parciais, envie-
sadas, mitificadas sobre ciência, ambiente,
saúde, tecnologia, entre tantas outras? Como
alterar um tratamento do conteúdo presente
no livro, que configura o conhecimento cien-
tífico como produto acabado de algumas men-
tes privilegiadas, desprovidas de interesses
político-econômicos e ideológicos, que apre-
senta o conhecimento sempre como verdade
absoluta, sem contexto histórico e socio-
cultural? Como modificar um enfoque ambien-
tal fragmentado, estático, antropocêntrico,
sem localização espaço-temporal? Ou ainda,
como substituir um tratamento metodológico
que concebe o aluno como ser passivo, depo-
sitário de informações desconexas e des-
contextualizadas da realidade? Todas essas
deficiências no tocante aos fundamentos teó-
rico-metodológicos do ensino de Ciênciaso
extremamente difíceis de modificar nas cole-
ções hoje existentes no Brasil. Há necessida-
de, em quase todos os casos, de se reescrever
por completo cada livro, cada coleção.
Fica-nos, assim, a indagação: por que esses
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
critérios de cunho teórico-metodológico e bas-
tante inerentes e peculiares ao ensino de Ciên-
cias, estabelecidos por especialistas do próprio
MEC em 1994 e, posteriormente, reafirmados
pelos PCN - Ciências,o continuaram a cons-
tituir o eixo principal e norteador dos critérios
para avaliação de coleções didáticas de Ciên-
cias nos demais documentos do MEC?
Se isso tivesse ocorrido desde o Guia de Ava-
liação de 1997 e subseqüentes, talvez algumas
coleções já tivessem sofrido mudançaso ape-
nas em aspectos periféricos, como projeto grá-
fico e correções conceituais, mas também nos
elementos essenciais do ensino-aprendizagem
de Ciências. Poderíamos ter, assim, mais ele-
mentos para avaliar a viabilidade de investir em
um projeto de reformulação do modelo atual de
livro didático e de melhoria da sua qualidade,
em vez de vislumbrarmos tão-somente os ca-
minhos que iremos apontar na última parte
deste trabalho.
Quanto às representações pedagógicas e
epistemológicas do livro didático de Ciências,
pode-se dizer que os professores mantêm forte
expectativa - ou crença - de que as coleções
correspondem a uma expressão fiel das propos-
tas e das diretrizes curriculares e do conheci-
mento científico. Todavia, por julgar que isso é
de difícil consecução, atenuam suas pretensões,
acreditando que ao menos as coleçõeso ver-
sões adaptadas das propostas curriculares e do
conhecimento científico. Autores de livro didá-
tico e editoras, por sua vez, difundem até como
estratégia mercadológica que os livroso fiéis
representantes tanto do conhecimento cientí-
fico como das diretrizes curriculares oficiais. Do
ponto de vista do conhecimento científico, os
autores indicam que o livro apresenta informa-
ções científicas atuais e corretas, as quais so-
frem pequenas adaptações em vista de uma di-
vulgação de caráter didático. Quanto a acom-
panhar fidedignamente os programas curricu-
lares oficiais, autores e editoras reforçam que
os respectivos livros atendem aos avanços da
psicologia educacional, da metodologia do en-
sino e às diretrizes curriculares oficiais. Estam-
pam invariavelmente em suas capas expressões
como "de acordo com os PCN", ou "edição
reformulada para atender à avaliação do MEC".
De nossa parte, tomando por base estudos
e pesquisas acadêmicas realizadas em diversas
universidades brasileiras de diferentes regiões
geográficas, podemos dizer que as coleções di-
dáticas de Ciências da década de 1970 lograram
relativo êxito na sua aproximação com as dire-
trizes curriculares oficiais daquela época. Toda-
via, nos anos 1980, após os processos de
reformulação curricular em vários estados e
municípios e, mais recentemente, com a edi-
ção dos PCN, essa aproximaçãoo mais se
evidencia. Nos últimos dez a quinze anos, as
coleções didáticas de Ciênciaso conseguiram
acompanhar os novos princípios educacionais
difundidos pelos estudos e pesquisas acadêmi-
cas e pelos currículos oficiais. Pode-se dizer,
então, que os atuais livros didáticos de Ciências
correspondem a uma versão "livre" das diretri-
zes e dos programas curriculares oficiais em vi-
gência. Em linhas gerais, as atuais coleções ain-
da mantêm uma estrutura programática e teó-
rico-metodológica mais próxima das orienta-
ções curriculares veiculadas nos anos 1960 e
1970. A pretensão de que as coleções colabo-
rem na difusão das atuais orientações e currí-
culos oficiais, contribuindo para que o profes-
sor consiga perceber como essas diretrizes po-
dem tomar forma na prática escolar, de modo
algum é conseguida pelos livros didáticos hoje
presentes no mercado, mesmo entre aqueles
queo recomendados pelos Guias do MEC.
Quanto ao conhecimento científico propa-
lado nos livros didáticos de Ciências,o se
nota qualquer mudança substancial nas duas ou
três últimas décadas. As coleções enfatizam
sempre o produto final da atividade científica,
apresentando-o como dogmático, imutável e
desprovido de suas determinações históricas,
político-econômicas, ideológicas e socio-
culturais. Realçam sempre um único processo
de produção científica - o método empírico-
indutivo -, em detrimento de se mostrar a di-
versidade de métodos e ocorrências na constru-
ção histórica do conhecimento científico, como
formulações teóricas sem evidências empíricas,
ensaio-e-erro, acaso, compilação de resultados
de pesquisas, entre outras formas. Pode-se di-
zer, então, que o conhecimento trazido pelos
livros didáticos de Ciências situa-se entre uma
versão "adaptada" do produto final da ativida-
de científica e uma versão "livre" dos métodos
de produção do conhecimento científico.
Em suma, o livro didáticoo corresponde
a uma versão fiel das diretrizes e programas cur-
riculares oficiais, nem a uma versão fiel do co-
nhecimento científico.o é utilizado por pro-
fessores e alunos na forma intentada pelos au-
tores e editoras, como guia ou manual relativa-
mente rígido e padronizado das atividades de
ensino-aprendizagem. Acaba por se configurar,
na prática escolar, como um material de con-
sulta e apoio pedagógico à semelhança dos li-
vros paradidáticos e de outros tantos materiais
de ensino. Introduz ou reforça equívocos, este-
reótipos e mitificações com respeito às concep-
ções de ciência, ambiente, saúde, ser humano,
tecnologia, entre outras concepções de base
intrínsecas ao ensino de Ciências Naturais.
Ora, com tudo isso, podemos nos interro-
gar: para quê livro didático com esse modelo e
qualidade atuais? Indo mais a fundo, será que é
possível elaborar alguma coleção didática que
seja coerente com o conhecimento científico e
seus métodos de produção e também com as
diretrizes e orientações curriculares de cada
época?o seria mais prudente abandonar o
modelo em vigência de livro didático ou, pelo
menos, abandonar o investimento de recursos
públicos na sua aquisição e distribuição ampla
pelas escolas públicas brasileiras, e investir em
outros caminhos, em outros materiais e recur-
sos para apoiar o trabalho pedagógico de pro-
fessores e alunos?
Essas indagações e incertezas remetem-nos
à segunda parte do tema deste Simpósio, qual
seja, refletir sobre as perspectivas futuras para
o livro didático.
De início deve-se reforçar que nas escolas
públicas já se consagram mudanças na forma
de utilização do livro didático. Cada vez mais o
professor deixa de usar o livro como manual e
passa a utilizá-lo como material bibliográfico de
apoio a seu trabalho (leitura, preparação de
aulas etc.) ou material de apoio às atividades
dos alunos (confronto de definições e assuntos
em duas ou mais coleções; fonte de exercícios
e atividades; textos para leitura complementar;
fonte de ilustrações e imagens; material para
consultas bibliográficas; etc). Contudo, consi-
derando a baixa qualidade das coleções didáti-
cas da atualidade mesmo esse uso alternativo
o pode ser estimulado.
Com a difusão de princípios educacionais
como flexibilidade curricular, abordagem
temática interdisciplinar, vínculo com o cotidi-
ano (real) do aluno e com seu entorno sócio-
histórico, atendimento à diversidade cultural de
cada local ou região, atualidade de informações,
estímulo à curiosidade, à criatividade, à reso-
lução de problemas, entre outros, fica cada vez
mais difícil conceber um livro didático adequa-
do a todos esses princípios.
Penso, assim, em pelo menos dois cami-
nhos. A curto prazo, uma vez que as atuais co-
leções permanecerão em circulação por algum
tempo e pela dificuldade em se produzir novos
materiais em questão de dois ou três anos, pro-
põe-se manter esse uso alternativo do livro di-
dático com seu modelo atual, investindo na
ampla divulgação dos estudos de avaliação do
livro didático e em cursos de formação de pro-
fessores em exercício para discussão das defi-
ciências e limites das coleções didáticas atuais
e estímulo à produção coletiva de modos alter-
nativos de uso.
A médio prazo, várias ações podem ser em-
preendidas. Uma primeira consiste em inves-
tir na produção de livros paradidáticos, com
abordagem temática única para cada volume
de uma coleção ou série, com melhor qualida-
de gráfica e maior diversidade de textos/lin-
guagem, ilustrações e atividades. A abordagem
de cada tema focalizaria com maior particula-
ridade conhecimentos do campo das Ciências
Naturais, porém de maneira multidimensional,
de forma a articular essa área com as demais
áreas do conhecimento humano relacionadas
ao tema em questão. Esses livros paradidáticos
poderiam constituir livros didáticos "modula-
res", de maneira que o professor pudesse ir
compondo seu compêndio didático ao longo
do ano, a partir da sua realidade escolar, da sua
vivência profissional e das vivências de seus
alunos, do contexto sociocultural deles e das
ocorrências do processo de ensino-aprendiza-
gem ao longo do ano letivo nos últimos anos -
as quais nos fazem constantemente avaliar os
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais - 1
a
,
, 3º e 4º ciclos. Brasília, 1997/1998.
Guia de livros didáticos - 1ª a 4ª séries -
PNLD 2000/2001. Brasília: SEF/MEC/FNDE/Ceale/
Cenpec, 2000.
Guia de livros didáticos - 5
a
a 8
a
séries -
PNLD 2002. Brasília: SEF/FNDE/Cenpec, 2001.
FRACALANZA, Hilário. O que sabemos sobre os livros di-
dáticos para o ensino de Ciências no Brasil. Tese (Dou-
torado). Faculdade de Educação/Unicamp. 1993.
FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. As propostas curriculares
oficiais.o Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1996.
(Textos FCC, 10).
MEGID NETO, Jorge. Tendências da pesquisa acadêmi-
ca sobre o ensino de Ciências no nível fundamental.
Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Unicamp,
1999.
Luiz Percival Leme Brito
Universidade Estadual de Campinas/SP
o tema deste simpósio - "Concepção dos
livros didáticos: modelo atual e novas pers-
pectivas" - traz associado um conjunto de
afirmações possíveis ou necessárias sobre li-
vro didático, que é interessante explicitar:
em primeiro lugar, está o fato de que o livro
didático tem um modelo e de que existiria a
possibilidade ou o desejo de um livro didá-
tico em outro(s) modelo(s); mais que isso,
está sugerido nessa possibilidade que esses
outros modelos, que representariam a supe-
ração do atual, seriam mais interessantes e
apropriados a uma proposta pedagógica ino-
vadora; finalmente, está a idéia de que é pos-
sível transformar o ensino - ou contribuir
para sua transformação - pela redefinição de
livro didático.
o debate, contudo, só faz sentido se
extrapolar o campo em que se circunscreve
mediatamente, de modo que seja desenvol-
vido a partir da compreensão de como funcio-
na a educação na sociedade urbano-indus-
trial. Isso porque o livro didático é parte da
cultura escolar e só pode ser devidamente
compreendido se se considera esta. Assim,
antes de entrar propriamente no tema pro-
posto, cabe estabelecer alguns pressupostos
de minha análise.
A instrução formal nas
sociedades industriais
No mundo globalizado, ser escolarizado -
isto é, ter freqüentado a escola por uns tantos
anos e saber ler, escrever e operar com núme-
ros, bem como realizar determinadas tarefas em
que a leitura e a escrita estão pressupostas - é
condição de participação social com relativa in-
dependência e autonomia; isso implica, entre
outras coisas, a possibilidade de empregar-se,
de usufruir (consumir) dos benefícios da pro-
dução industrial e de manter acesso aos varia-
dos bens culturais.
Diferentemente dos anos 1960, quando,
para explicar os altos índices de analfabetismo,
se afirmava queo interessava às classes do-
minantes dos países periféricos - particular-
mente às oligarquias reacionárias - que os tra-
balhadores tivessem instrução, porque assim
seriam mais fáceis de controlar e de se subme-
ter ao poder, o discurso liberal atual é o de que
o trabalhador moderno deve ter autonomia,
iniciativa e capacidade de análise e decisão. A
educação regular, de massa, generalizada, pas-
sou a ser um das características mais significa-
tivas das sociedades ocidentais industriais.
o se deve compreender essa transformação
Livro didático e autonomia docente
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
como um processo de redução das desigualdades.
A demanda por qualificação resulta das necessi-
dades do modelo de sociedade. Do ponto de vis-
ta do sistema, a escolarização se faz necessária
para que o indivíduo seja mais produtivo, para
que saiba seguir instruções e movimentar-se no
espaço urbano-industrial, para que possa consu-
mir produtos e respeitar ou assumir os valores
hegemônicos. Do ponto de vista do trabalhador,
como indivíduo, a escolarização impõe-se como
condição de possibilidade de inserção no merca-
do de trabalho e, em tendo emprego, de partici-
pação - ainda que mínima - do mercado de con-
sumo. Se a escolarizaçãoo garante o emprego
de ninguém, nenhuma ou pouca escolarização é
um impedimento ao trabalho.
Em outras palavras: a instituição escolar na
sociedade urbano-industrial tem a dupla função
de atuar como instrumento de reprodução da
estrutura social, contribuindo para a manuten-
ção de diferenças e de privilégios, e de inserir no
mercado de trabalho e de consumo os diferen-
tes sujeitos, conforme sua condição de classe.
A educação regular cumpre, nesse quadro,
quatro funções complementares.
Em primeiro lugar, está a. função informati-
va, que supõe que todo indivíduo deve conhe-
cer o conjunto de informações que permite sua
participação apropriada na sociedade. Desde
essa perspectiva, a escola expressaria o "consen-
so" histórico (segundo a visão hegemônica) dos
saberes que, idealmente, devem ser de conheci-
mento comum, como a noção moderna de uni-
verso, os conceitos de corpo e de vida, a repre-
sentação de mundo, os fatos históricos represen-
tativos da sociedade, a língua considerada pa-
drão, entre outros. Esses saberes se organizam
nas disciplinas escolares - Português, Matemá-
tica, História, Biologia, Geografia-, as quaism
relativa autonomia nos processos de produção
de conhecimento extra-escolar.
Apesar de os saberes escolareso terem,
muitas vezes, aplicação prática para a maioria
dos cidadãos, o fato é que seu domínio contri-
bui para sustentar privilégios ou permitir ascen-
o social. Eles compõem o ideal social de pes-
soa culta e estão presentes em concursos e tes-
tes, além de serem constantemente reproduzi-
dos de diferentes maneiras pela mídia, que toma
a escola como paradigma do conhecimento. Nes-
se sentido, fazem parte do capital cultural histo-
ricamente estabelecido.
Além da função informativa, a escolarização
cumpre uma função que apenas tem sido objeto
de investigação, que é a função formativa, en-
tendida como o desenvolvimento de habilidades
cognitivas articuladas às formas do saber escri-
to (isto é, aquele que se constitui em função de
uma tradição de escrita, aí incluídas a Matemá-
tica, as Ciências, a Literatura, a Informática, a
imprensa, as leis).
Nesse sentido mais genérico, a escolarização
supõe o letramento do sujeito - entendido como
o estado ou a condição de quem interage com
diferentes discursos, saberes e comportamentos
articulados em função da cultura escrita. Quan-
to maior o letramento, maior será, entre outras
coisas, a freqüência de manipulação de textos
escritos variados, a de realização de leitura au-
tônoma (sem intervenção ou apoio de outra pes-
soa), a interação com discursos menos contex-
tualizados ou mais auto-referidos, a convivên-
cia com domínios de raciocínio abstrato, a pro-
dução de textos para registro, comunicação ou
planejamento, enfim, maior será a capacidade e
a oportunidade do sujeito de realizar tarefas que
lhe exijam monitoração, inferências diversas e
ajustamento constante.
Além das funções informativa e formativa,
a escolarização tem, complementarmente e de
modo articulado a elas, uma função valorativa,
pela qual se estabelece e se reafirma o conjun-
to de valores que informam o conceito hege-
mônico de sociedade, tais como o sentido de
liberdade, de respeito, de autoridade, de supe-
rioridade, de propriedade. Essa função, apesar
de menos explícita do que as anteriores, está
fortemente imbricada na organização escolar e
na razão de ser da escola. É em função dela que
se organiza o calendário escolar, que a escola
se relaciona com a comunidade e com as ins-
tâncias oficiais, que se estabelecem os critérios
de seleção e avaliação.
Ao lado da função valorativa e intrinsecamen-
te ligada a ela, está a função normativa, à qual
compete implementar o processo de socialização
das crianças, estabelecendo o lugar e o compor-
tamento de cada uma no meio imediato e na so-
ciedade como um todo. A dinâmica das aulas, a
repartição do espaço físico escolar, os sistemas de
avaliação e promoção, as categorias de punições
e censura, tudo isso concorre para a construção
de um modelo disciplinar e de relação com o co-
nhecimento e de comportamentos esperados.
João Wanderley Geraldi observa que se pode com-
preender a escolarização como uma aplicação
paradigmática das modernas técnicas de gover-
no, cujas estratégias, mais do que silenciar e cons-
tranger, agem pela liberdade, sintonizando dese-
jos e capacidades aos objetivos políticos da orga-
nização e construindo o autogoverno como for-
ma de realização da liberdade.
Deve-se destacar que tanto os valores como
os comportamentos esperados, diferentemen-
te do que ocorre com os saberes enciclopédi-
cos, raramente estão explicitados nos progra-
mas e currículos. Eles compõem o currículo
oculto e se manifestam nas práticas pedagógi-
cas (formas de ensinar, relação professor-alu-
no, processos de avaliação), na organização do
sistema escolar, no exercício da autoridade e
nas ações de garantia da disciplina, na come-
moração das datas cívicas.
0 livro didático na escola
de massa
Livro didático poderia ser, em princípio, todo
livro que se organiza em função do processo pe-
dagógico, visando a apresentar um conteúdo re-
lativo a uma área de conhecimento escolar. En-
tretanto, o modelo atual de livro didático obri-
ga-nos a fazer uma interpretação mais restrita
desse tipo de livro, diferenciando-o de outras
produções pedagógicas, inclusive as que supõem
seu uso do espaço da aula.
Para compreender apropriadamente o que é
e como funciona o livro didático, é necessário
perceber como se estrutura a educação escolar,
que tem na "aula" seu paradigma. Em trabalho
no qual se investiga a definição do objeto de en-
sino na aula de Língua Portuguesa, Antônio
Augusto Batista, em seu livro Aula de Português
(1996), identifica um conjunto de condições que
a cultura escolar estabelece para que um saber
possa ser transmitido em sala de aula:
a atribuição de uma natureza teleológica a
produção discursiva, cujo fim é definido pela
cumulação de um volume de conhecimentos;
sua acumulação progressiva por meio de for-
mas de desenvolvimento cumulativo;
a construção do tempo escolar como um es-
paço de tempo útil, delimitado pela conse-
cução de um objetivo e pela transmissão de
uma determinada porção de conhecimento;
a redução da dispersão e da heterogeneida-
de das formas de interlocução presentes na
situação imediata de uso da linguagem em
sala de aula, favorecendo a manutenção dos
dois pólos de produção discursiva, realizada
mediante a unificação do corpo de alunos;
a objetivação e a avaliação das relações dos
alunos com os conhecimentos a serem acu-
mulados;
a manutenção da finalidade corretiva da
interlocução entre professor e alunos, e a
conseqüente unificação de grupos e sua dis-
tinção de outros grupos, de acordo com a
distância maior ou menor que os separa des-
ses saberes;
o desenvolvimento de estratégias para ate-
nuar a contradição existente entre, de um
lado, a situação imediata de interlocução e a
necessidade de unificação dos alunos num
único pólo e, de outro, a finalidade corretiva
da interlocução, que cria uma permanente
instabilidade na produção do discurso;
o reforço da autoridade do professor e seu
domínio na interlocução;
a distribuição da realização do trabalho de
produção do discurso em instâncias que al-
ternam e em que se alternam diferentes
agentes na sua produção.
A semelhança entre esse conjunto de condi-
ções do discurso escolar e o modelo atual do li-
vro didático é imediata. Ele supõe o princípio da
acumulação progressiva, a repartição do tempo
(as unidades) em atividades bem definidas, a
ação normativa rotineira. Mas é na redução da
dispersão e da heterogeneidade das normas de
interlocução que o modelo do livro didático mais
se impõe: ele determina as falas e os comporta-
mentos possíveis, instituindo uma voz fixa e
norteadora de todas as ações; apresenta-se como
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
portador do conhecimento verdadeiro e neces-
sário; traz previamente estabelecidas as pergun-
tas e as respostas.
o livro didático funcionaria, desse modo,
como "antenas" da sociedade, estabelecendo
uma ponte entre as instâncias produtoras do
conhecimento e o processo pedagógico, sistema-
tizando e didatizando os saberes escolares.
Como o conteúdo e a organização escolaro
fruto das disputas e dos compromissos sociais,
o livro didático tende a trazer a versão
hegemônica, isto é, aquela que corresponde à
visão de mundo das forças político-sociais do-
minantes.
Enfim, o livro didático é a expressão maior
da cultura escolar, manifestando uma concep-
ção de ensino em que a exposição do conheci-
mento, distribuída em áreas específicas corres-
pondentes às disciplinas escolares, supõe uma
espécie de progressão curricular cumulativa,
numa estreita relação com o princípio de
seriação escolar. Seu uso supõe um tipo deter-
minado de aula padronizada, em que as ativida-
des propostas se enquadram em unidades
temáticas tipificadas, com seções sistematica-
mente repetidas, pautando o dia-a-dia da sala
de aula. Ao apresentar-se como um curso pron-
to, o livro didático assume responsabilidades
atribuídas aos professores, tais como o estabe-
lecimento do programa, a organização dos con-
teúdos e a elaboração dos exercícios.
Educação e autonomia docente
o teor das críticas ao modelo atual de livro
didático sugere equivocadamente que a solução
se encontraria na redefinição do padrão de livro,
incluindo a revisão dos conteúdos e do modo de
sua apresentação e a seleção acurada de textos
diversificados e representativos. Essa perspecti-
va é a que, mais freqüentemente, tem sido ado-
tada pelos editores, que tratam de ajustar seus
produtos às exigências do discurso institucional,
manifestado principalmente nos processos de
avaliação estatal dos livros didáticos.
De fato, temos testemunhado nos últimos
trinta anos um processo contínuo de denúncia
contra o livro didático, em função de questões
ideológicas ou de conteúdo (correção e proprie-
dade) e, complementarmente, de concepção
pedagógica. Ainda em razão desse debate, co-
nhecemos nesse período, diversas propostas de
livros com modelos diferentes e de outros mate-
riais didáticos, além de ações complementares
(sempre circunstanciais, mas significativas do
ponto de vista político-pedagógico), como a cri-
ação de bibliotecas, acervos de classe, salas de
criação, salas informatizadas. Devem-se regis-
trar, ainda, as propostas de abandono do livro
didático, seja em função de um modelo de aula
incompatível com ele, seja pela produção pelo
docente de seu próprio material didático.
Entretanto, nenhuma das ações de condena-
ção e substituição do livro didático foi, do ponto
de vista da organização do sistema escolar, bem-
sucedida. Os livros "diferentes" foram sempre
bem avaliados e serviram, muitas vezes, de mo-
delo para reajustes de aspectos periféricos de
outros produtos didáticos mais convencionais,
maso tiveram sucesso de mercado. As biblio-
tecas de classe e outras ações semelhantes fo-
ram muito bem recebidas e implementadas com
diferentes graus de radicalidade, maso trou-
xeram mudança para o modelo de aula, tornan-
do-se uma espécie de complemento. A produ-
ção do material pelos docentes, quando possí-
vel, costuma reproduzir o modelo didático e as
experiências diferenciadas de aula, centradas,
por exemplo, na pesquisa, mantêm-se limitadas
a lugares e modelos bem localizados.
A pergunta que faço é: por que - contra todo
o discurso que predominou no debate pedagó-
gico e à revelia do processo de condenação - o
livro didático sobrevive e tem seu uso expandi-
do, contando com enorme investimento estatal?
A questão principal para explicar esse
insucesso está na "autonomia docente", enten-
dida como possibilidade de uma ação educativa
em que os professores e alunos envolvidos no
processo pedagógico possam efetivamente to-
mar decisões e agir com independência.
A autonomia docenteo é um elemento
abstrato nem decorre de decisão individual. Ela
é um fato político-social e supõe um conjunto
de condições de exercício profissional, incluin-
do a formação cultural e acadêmica, a articula-
ção didático-pedagógica na unidade escolar, a
carga horária de docência, a quantidade de alu-
nos em sala e o total de alunos assistidos, as aco-
modações físicas, o mobiliário escolar, os recur-
sos de apoio (biblioteca, computador, televisão,
vídeo, DVD, CD-ROM, retroprojetor, mapas), a
conectividade (telefone, Internet, sistema de
tevê), o padrão salarial.
o que ocorre é que faz parte do processo de
massificação do ensino a depreciação da função
docente. O aumento da oferta de vagas signifi-
cou recrutamento mais amplo de professores, re-
baixamento salarial, condições de trabalho pre-
cárias e formação deficiente, obrigando os pro-
fessores a buscar formas de facilitação e de su-
porte de sua atividade docente, já que, no mais
das vezes,o existem condições objetivas de
construção de processo pedagógico autônomo
e criativo, nem ação coletiva do corpo docente.
o livro didático, muitas vezes a única fon-
te de informação e atualização, impõe-se como
necessidade pragmática tanto para as políticas
Luiz Roberto Dante
Universidade Estadual Paulista/SP
Há trinta anos, quando o uso do livro didá-
tico começava a se intensificar, ele era consi-
derado um dos maiores problemas da educa-
ção. Responsável por simplificar o conhecimen-
to, era visto por especialistas como uma espé-
cie de muleta para os professores que se aco-
modavam no exercício de sua profissão. Em
suas páginas eram divulgados erros conceituais
graves, reforçavam-se discriminações, precon-
ceitos e visões ideológicas comprometidas. Na
área de História, por exemplo, recorria-se às
páginas de um livro didático toda vez que al-
gum historiador precisava ilustrar o "atraso" do
senso comum em relação aos novos estudos de
sua disciplina. Em Matemática, a mecanização,
a decoreba, os problemas-tipo sem contextua-
de educação quanto para os próprios agentes
pedagógicos.
A diferença qualitativa do ensinoo esta-
, então, na melhor qualidade do livro didáti-
co, mas nas condições em que se dá o proces-
so pedagógico. Crianças ou adolescentes que
tenham à disposição o mesmo livro didático
terão experiências escolares completamente
distintas em função das condições de sua pró-
pria escola. Aliás, os resultados das avaliações
do sistema escolar sugerem exatamente essa
mesma conclusão.
o se deve, contudo, concluir desta expo-
sição que as produções didáticas sejam todas do
mesmo nível ou que uma política de livro didá-
ticoo seja importante. O que se postula é que
qualquer política de livro didático só terá efici-
ência se houver uma profunda reorganização do
sistema educacional, investindo-se maciçamen-
te na autonomia docente.
lização, o "siga o modelo", as centenas de exer-
cícios similares de adestramento em que ape-
nas os números eram trocados, o predomínio
de alguns assuntos (números e álgebra) sobre
outros (geometria, grandezas e medida, estatís-
tica, probabilidade e raciocínio combinatório)
eram motivos de severas críticas dos educado-
res matemáticos.
Nas duas últimas décadas, essa visão se
modificou, sobretudo pelo fato de o livro didá-
tico ter assumido papel crucial no processo de
ensino e aprendizagem e de a própria educa-
ção formal ter-se transformado, para muitos, no
grande trampolim para as melhorias das con-
dições sociais do indivíduo e, mesmo, para o
desenvolvimento nacional.
Concepção dos livros didáticos:
modelo atual e novas perspectivas
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
A crescente importância dos livros didáti-
cos aconteceu ainda pelo fato de este ser, para
muitos brasileiros, a única fonte de leitura e
informação sobre assuntos específicos nas áre-
as de Matemática, Português, História, Ciências
e Geografia. Graças ao seu alcance (representa
70% do que se publica no país e atinge um-
blico de 44 milhões de pessoas), tornou-se tam-
m o principal instrumento de consolidação
dos currículos escolares.
Nesse cenário, os olhares de especialistas
acabaram por se voltar para o livro didático,
com a preocupação de produzir um livro de
melhor qualidade. Exemplo disso é a política
estabelecida pelo atual governo. Enquanto os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) in-
centivam novas abordagens, a política de
avaliação do livro didático obriga autores e edi-
tores a publicarem livros sem erros conceituais,
sem preconceitos, sem discriminações, sem
simplificações de conteúdo e com metodologia
adequada.
Isso está levando à profissionalização da
produção do livro didático. Antes escrito por um
único autor experiente, mas nem sempre espe-
cialista na área, e publicado por editoras de
pequeno porte, o livro didático passou a ser fei-
to por equipes de especialistas da área e a ser
produzido por grandes empresas editoriais.
As mudanças podem ser verificadas ao se
compararem os atuais livros didáticos com os
de trinta anos atrás. Em época de ditadura, os
conteúdos dos livros didáticos de trinta anos
atrás refletiam uma visão "oficial" da socieda-
de. Pouco críticos, reproduziam um conheci-
mento enciclopédico, que facilitava os métodos
de memorização dos conteúdos escolares.
Com o processo de abertura política, na-
cada de 1980, os livros passaram a apresentar
um conteúdo mais crítico.
Nos anos 1990, a valorização desse material
didático por educadores e técnicos responsá-
veis pelas políticas educacionais foi crucial para
o surgimento de outras mudanças. O incentivo
à novas abordagens provocou a diversificação
do livro didático. Hoje, os professoresm à dis-
posição coleções em que se aplicam as mais
variadas metodologias, algumas com aborda-
gens mais críticas e que privilegiam o saber fa-
zer; isso sem contar com a diversidade de abor-
dagens existentes em cada disciplina do currí-
culo escolar.
Independentemente da metodologia, os li-
vros didáticos ganharam também em dinamis-
mo, ao incorporarem recursos diversificados. Os
livros de História, por exemplo, abandonaram
a antiga concepção de documento histórico e
passaram a utilizar, como fonte do conhecimen-
to, textos literários, objetos do uso cotidiano,
letras de música, imagens, etc. Os de Matemá-
tica buscam apresentar os problemas
contextualizados, estimulam a investigação, o
fazer pensar, a compreensão dos conceitos e dos
procedimentos, as aplicações, o desencadear
conceitos e procedimentos pela resolução de
problemas, o uso da história e dos recursos
tecnológicos. Isso confere ao professor maiores
opções para o trabalho em sala de aula, e ao alu-
no uma gama maior de conhecimento e estímu-
los para a aprendizagem.
Quanto aos recursos didáticos, estes sim
mudaram radicalmente. As antigas atividades
padronizadas foram sendo substituídas por ati-
vidades reflexivas, redações de textos, sugestões
de pesquisas e de trabalhos em grupo. A inter-
disciplinaridade e a contextualização passaram
a pautar todos os conteúdos. Agora, torna-se
indispensável aproximar o conhecimento da
realidade vivida pelos alunos e integrar as áre-
as do saber, em um projeto educacional mais
amplo.
De todas as mudanças verificadas nos últi-
mos trinta anos a respeito do livro didático, esta
que se testemunha atualmente é, sem dúvida,
a de maior envergadura. Aliada ào menos
importante mudança que se pretende atual-
mente na formação do professor da Educação
Básica, num futuro próximo, ela pode implicar
mesmo uma mudança do paradigma de educa-
ção brasileira. O certo é que agora se pretende
formar um sujeito capaz de agir com rapidez
num mundo em constante modificação e em
rápido processo de globalização, com intensa
circulação de pessoas, informações e mercado-
rias.
Prever quais as mudanças para os próximos
anos é sempre tarefa ingrata. Entretanto, a im-
portância que o livro didático ganhou dentro do
ensino parece ser, durante os próximos anos,
irreversível. Ele deve continuar a ser no Brasil
um dos principais recursos didáticos para pro-
fessores e alunos, apesar da crescente entrada
de novas opções, como a Internet, o CD-ROM e
os livros paradidáticos.
Quanto às mudanças verificadas na natu-
reza dos livros didáticos durante os últimos
anos, essas ainda continuam em franco de-
senvolvimento. Os modelos iniciados nos
anos 1990 aindao se consolidaram total-
mente. Os princípios construtivistas, por
exemplo, foram responsáveis por enterrar de
vez o questionário tradicional e as atividades
padronizadas, mas aindao conseguiram
impor um modelo que se possa dizer aceito
por grande parte dos educadores. A própria
experimentação desse material em sala de
aula pelos professores mantém em aberto es-
ses caminhos. Mas, independentemente dos
rumos que irão ser tomados, os próximos
anos devem testemunhar a consolidação des-
se livro didático diversificado e dinâmico que
os anos 1990 viram surgir.
SIMPÓSIO 24
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA PERSPECTIVA da EDUCAÇÃO
INCLUSIVA
Álvaro Marchesi
Carlos Roberto Jamil Cury
Soraia Napoleão Freitas
o necessário porém difícil avanço
em direção às escolas inclusiva;
Álvaro Marchesi
Universidade Complutense de Madri/Espanha
Resumo
o objetivo de estabelecer escolas inclusivas tor-
nou-se uma das principais aspirações de todos os que
defendem a eqüidade na educação. As escolas para
todos, sem exclusões, nas quais convivem e apren-
dem alunos de diferentes condições sociais, culturas,
capacidades e interesses, desde os mais capazes até
os que apresentam alguma deficiência, é um modelo
ideal que motiva muitas pessoas comprometidas com
a mudança educacional.
Avançar no sentido de se estabelecerem esco-
las inclusivaso é uma tarefa simples. Precisamos
estar conscientes de que existem resistências, con-
tradições e dilemas importantes que dificultam ou
mesmo impedem o desenvolvimento de políticas
eficazes em prol da inclusão. No entanto, o fator mais
importante para o progresso de uma educação para
todos, sem exclusões, é adotar uma atitude positiva
em relação a esse tipo de ensino, que se fundamen-
ta na justiça, na igualdade e na solidariedade.
Essa proposta foi explicitamente
delineada na Declaração Final da Conferência
Mundial sobre Necessidades Educacionais Es-
peciais realizada em Salamanca, Espanha, no
período de 7 a 10 de junho de 1994 (Unesco e
Ministério da Educação e Ciência, 1995). Essa
conferência contou com a participação de re-
presentantes de 88 países e de 25 organizações
internacionais atuantes na área da educação.
Um de seus compromissos foi formulado nos
seguintes termos:
Acreditamos e proclamamos que:
todas as crianças de ambos os gênerosm
um direito fundamental à educação e devem
ter a oportunidade de alcançar e manter um
nível aceitável de conhecimentos;
cada criança tem características, interesses
e necessidades de aprendizagem próprios;
os sistemas educacionais devem ser conce-
bidos e os programas aplicados de modo que
levem em consideração toda a gama dessas
diferentes características e necessidades;
as pessoas com necessidades educacionais
especiais devem ter acesso a escolas regu-
lares, que deverão integrá-las numa peda-
gogia centrada na criança e capaz de satis-
fazer suas necessidades;
as escolas regulares que baseiam sua didática
nessa orientação integradora representam o
meio mais eficaz para se combater atitudes
discriminatórias, criar comunidades receptivas,
construir uma sociedade integradora e garantir
uma educação para todos; além disso, elas ofe-
recem uma educação eficaz à maioria das cri-
anças, promovem a eficiência da educação e, em
última análise, melhoram a relação custo-bene-
fício de todo o sistema educacional.
Nestas páginas, abordaremos os principais dile-
mas e contradições enfrentados pelas escolas inclusi-
vas e as condições que possibilitam sua consolidação.
Reforma da educação especial
ou reforma da educação
o conceito das necessidades educacionais es-
peciais, da integração e da inclusão tem sua ori-
gem no campo da educação especial. De modo
geral, as reuniões científicas, as conferências in-
ternacionais e os comentários sobre o significa-
do e o alcance da inclusão envolvem profissio-
nais da educação especial. No entanto, como
também se defende em reuniões desse tipo, o
avanço no sentido de se estabelecerem escolas
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
inclusivas deve ocorrer a partir de uma reforma
educacional global e envolvero apenas os res-
ponsáveis pela educação especial, mas principal-
mente os responsáveis pela educação básica.
A reforma da educação especial, que inicial-
mente apontava para a transformação das escolas
no sentido de integrar alunos com necessidades
educacionais especiais, envolve um objetivo mais
radical. Sua meta é estabelecer escolas capazes de
educar todos os alunos com base em critérios de
qualidade. Seriam escolas dispostas a incorporar
todos os alunos, a despeito de sua cultura, origem
social e familiar ou capacidade, para participar,
conjuntamente, do processo de aprendizagem.
Os esforços para estabelecer uma educação
inclusivao advém exclusivamente do campo da
educação especial. Os modelos de educação
multicultural ou os movimentos progressistas que
acreditam na capacidade da escola de reduzir de-
sigualdades sociais também desenvolveram mo-
dalidades inclusivas de educação. Em todas essas
propostas, observa-se um claro reconhecimento da
diversidade de culturas, de grupos sociais e de alu-
nos que convivem nas escolas. A resposta educa-
cional a essa diversidade talvez constitua o mais
importante e difícil desafio atualmente enfrenta-
do por centros docentes. Essa situação impõe a
necessidade de se promoverem mudanças profun-
das para que todos os alunos, sem qualquer tipo
de discriminação, desenvolvam ao máximo suas
capacidades pessoais, sociais e intelectuais.
Precisamos considerar que os principais
problemas enfrentados por muitas escolas,
principalmente as de Ensino Médio,o estão
relacionados à aprendizagem dos alunos que
apresentam alguma deficiência e, sim, às difi-
culdades apresentadas por alunos com atrasos
acumulados, desmotivados ou não-adaptados.
Esse fato reforça o argumento de que as mudan-
ças necessárias para estabelecer escolas de qua-
lidade para todos os alunos devem ser impulsi-
onadas pelos principais responsáveis pelo sis-
tema educacional e afetar o currículo, os crité-
rios de avaliação, a formação dos professores, a
organização dos centros e os recursos disponí-
veis. Quando a educação na diversidade torna-
se o eixo da reforma educacional de um país, a
possibilidade de fortalecer as escolas inclusivas
torna-se muito mais factível.
Escolas inclusivas e qualidade
ou o dilema de que apenas
algumas ou todas as escolas
sejam inclusivas
o objetivo desejávelo se restringe a ga-
rantir a disponibilidade de um número cres-
cente de escolas inclusivas. Essas escolas de-
vem também ter uma qualidade reconhecida,
o que pressupõe, em grande medida, que elas
sejam atraentes para a maioria dos pais. No
entanto, precisamos reconhecer o risco de que
as escolas inclusivas concentrem um número
excessivo de problemas, porque, além de
escolarizar alunos com necessidades educa-
cionais especiais associadas a algum tipo de
deficiência, elas precisam integrar um per-
centual importante de alunos com dificulda-
des de aprendizagem, relacionadas, principal-
mente, a suas condições sociais ou culturais.
Quando os problemas superam as possibilida-
des de uma escola, os pais dificilmente dese-
jam escolarizar seus filhos nela.
A solução seria fazer com que todas as esco-
las públicas e mantidas com recursos públicos
fossem inclusivas e oferecessem condições se-
melhantes. Assim, os problemas seriam distri-
buídos equilibradamente eo condicionariam
a decisão dos pais.
Uma das estratégias que ajudam a promo-
ver uma maior valorização social das escolas
inclusivas é canalizar mais recursos para elas e
dar-lhes preferência em todas as iniciativas ino-
vadoras: computadores, programas de forma-
ção, incorporação de uma maior oferta de lín-
guas estrangeiras etc. Assim, a demanda dos
pais por essas escolas seria estimulada.
Diagnóstico dos problemas
dos alunos
A avaliação dos problemas de desenvolvi-
mento ou de aprendizagem dos alunos envolve
uma das controvérsias mais importantes no
campo da educação e, mais especificamente, no
campo da educação especial: a opção por situar
os alunos em uma determinada categoria de di-
agnóstico com base em diagnósticos médicos
ou a rejeição dessa alternativa em decorrência
do risco de classificar alunos. No segundo caso,
enfatiza-se, principalmente, a detecção das ne-
cessidades educacionais do aluno e a resposta
educacional mais adequada.
Na discussão desse dilema inicial, precisa-
mos reconhecer que a informação biomédica
nos permite conhecer o desenvolvimento de
um aluno em bases mais abrangentes. Além dis-
so, os avanços registrados na determinação do
genoma humano e as insuspeitas possibilida-
des que se abrem no campo da intervenção ge-
nética nos obrigam a levar essa informação em
consideração. No entanto, existe também o ris-
co, como assinalado acima, de que os avanços
genéticos levem a uma proliferação desneces-
sária e prejudicial de categorias diagnosticas,
gerando programas separados, aulas especiais
e professores especializados para cada
síndrome identificada. Precisamos evitar uma
nova "balcanização" da educação especial
(Forness e Kavale, 1994) e a perda da necessá-
ria transformação do ensino para educar todos
os alunos. Porém, a ênfase na etiologia reforça
a perspectiva de que a educação especial se re-
duz a um grupo específico e muito limitado de
alunos. Finalmente,o devemos nos esquecer
de que muitos problemas que podem ser abor-
dados a partir de uma perspectiva biomédica
podem também ser equacionados de uma ma-
neira mais completa a partir de um enfoque
sociocultural. A situação dos portadores de de-
ficiências auditivas profundas é um caso
paradigmático. Embora esses alunos efetiva-
mente apresentem graves problemas auditivos,
que condicionam o desenvolvimento de sua ca-
pacidade de comunicação e até mesmo seu de-
senvolvimento cognitivo, precisamos levar em
consideração que os portadores de deficiências
auditivasm uma linguagem própria, a dos si-
nais, e que eles vivem numa cultura própria na
qual estabelecem sólidos laços sociais, afetivos
e de comunicação. A incorporação da lingua-
gem dos sinais e da cultura dos portadores de
deficiências auditivas em seu desenvolvimen-
to e educação modifica drasticamente os pro-
blemas que normalmenteo enfrentados
quando a criança portadora de deficiência au-
ditiva profunda vive exclusivamente imersa na
comunidade dos que ouvem sem problemas.
o dilema do diagnóstico deve ser resolvido in-
sistindo-se em que seu objetivo principal é ori-
entar a resposta educacional mais adequada para
cada aluno. Para se lograr esse objetivo, no en-
tanto, precisamos colher o maior número possí-
vel de informações relevantes, que devem incluir
todas as dimensões significativas do aluno: a ori-
gem dos problemas de aprendizagem, suas carac-
terísticas, os estilos de aprendizagem do aluno, a
incidência do contexto social e cultural, o papel
da família e a influência da escolarização. O
enfoque mais correto é o contextual e interativo,
no qual nenhuma dimensão pode ser contempla-
da isoladamente das demais. No entanto, preci-
samos reconhecer também que, em alguns casos
específicos, as informações sobre as característi-
cas psicológicas associadas a determinadas
síndromeso extremamente úteis para a inter-
venção educacional.
Currículo comum
ou currículo diversificado
A integração baseia-se na adoção de um
currículo comum para todos os alunos. Os alu-
nos com problemas graves de aprendizagemo
incorporados à escola regular para terem, com
seus colegas, experiências semelhantes de
aprendizagem. A ênfase nos aspectos comuns
da aprendizagem constitui o aspecto mais
enriquecedor e positivo das escolas inclusivas.
Os alunos, no entanto,m ritmos diferen-
tes de aprendizagem e modos pessoais de enca-
rar o processo educacional. A atenção às diferen-
ças individuais constitui, também, um compo-
nente de todas as estratégias de aprendizagem
baseadas no respeito à individualidade de cada
aluno. Em alguns casos, o currículo comum pre-
cisa ser significativamente modificado para se
proporcionar um ensino adequado a alunos com
necessidades educacionais especiais.
Essas duas demandas podem, às vezes,o
ser nada compatíveis, já que a primeira reforça
a dimensão da igualdade e a segunda a dimen-
o da diferença. Um comentário apresentado
num bom livro sobre o tema das escolas inclu-
sivas sintetiza com clareza esse dilema:
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
É fácil ver como se pode acomodar o que é comum
-mediante a formulação de um currículo comum,
a criação de escolas completamente inclusivas e a
disponibilização de experiências idênticas de
aprendizagem para todas as crianças. É fácil, tam-
bém, ver que os caminhos mais óbvios para lidar
com a diferença baseiam-se em estratégias opos-
tas: a formulação de currículos alternativos, a cri-
ação de tipos diferentes de escolas para diferen-
tes alunos e a disponibilização de diferentes ex-
periências de aprendizagem para grupos ou indi-
víduos diferentes. No entanto, como se pode har-
monizar precisamente esses enfoqueso diferen-
tes de modo que os currículos sejam comuns e
múltiplos, as escolas sejam inclusivas e seletivas e
as aulas proporcionem experiências de aprendi-
zagem que sejam iguais para todos e, ao mesmo
tempo, diferentes para cada um? (Clark, Dyson,
Millward e Skidmore, 1997: 171).
Esse dilemao pode ser facilmente resol-
vido e tambémo nos podemos aprofundar
nas alternativas que podem ser sugeridas para
os distintos elementos que constituem um cur-
rículo: objetivos gerais, áreas curriculares, con-
teúdos, critérios de avaliação e metodologia. No
entanto, podemos destacar três estratégias que
podem nos ajudar a encontrar um equilíbrio
entre o comum e o diversificado.
As adaptações dos conteúdos se concreti-
zam no fato de os principais conhecimen-
tos serem apresentados com um nível dife-
rente de profundidade.
o trabalho cooperativo entre os alunos e a
possibilidade de os alunos mais capazes se-
rem tutores dos demaiso métodos de en-
sino habituais.
Os professores de apoio trabalham conjun-
tamente com o professor regular na aten-
ção a todos os alunos.
As condições das escolas
inclusivas
Os estudos sobre as mudanças educacionais
necessárias para se estabelecerem escolas inclu-
sivas coincidem em uma proposta: as iniciativas
mais individuais, orientadas no sentido de com-
pensar desigualdades iniciais entre os alunos ou
de propor adaptações curriculares específicas di-
ante de suas limitações, devem abrir caminho
para propostas mais amplas e globais de trans-
formação da escola, para se lograr uma maior
igualdade. O objetivo principalo é fazer com
que alunos diferentes tenham acesso ao currí-
culo estabelecido para a maioria dos alunos, mas
reformular o currículo visando a garantir uma
maior igualdade entre todos eles e respeito por
suas características próprias. A maior importân-
cia que se atribui às mudanças gerais da escola
estende-se à necessidade de se coordenarem
programas sociais e econômicos que reduzam as
desigualdades iniciais e ao reconhecimento da
participação dos pais no processo educacional
de seus filhos.
Seis fatoreso particularmente importantes:
a modificação dos valores culturais da sociedade;
a transformação do currículo; a importância da
cultura e da organização das escolas; a colabora-
ção de novos setores sociais; o desenvolvimento
profissional dos professores; e a revisão da ins-
trução na sala de aula.
A modificação dos valores
da sociedade
Os valores e as atitudes dos cidadãos consti-
tuem um fator importante que condiciona as
possibilidades de mudança. A prioridade da
competência em relação à solidariedade, a mai-
or importância atribuída às realizações acadê-
micas do que ao desenvolvimento social e da
personalidade e o conceito de que a presença de
alunos com maiores dificuldades prejudica o
progresso dos mais capazeso crenças, muitas
vezes implícitas, que afetam o alcance e a pro-
fundidade das reformas educacionais. Os valo-
res cívicos majoritários podem contribuir pode-
rosamente no sentido de que a integração esco-
lar seja posteriormente estendida à integração
social e do mercado de trabalho.
A transformação do currículo
Para favorecer a educação comum de todos
os alunos, é necessário que um currículo comum
para todos eles seja adotado e que posteriormen-
te seja ajustado ao contexto social e cultural de
cada instituição educacional e às diferentes ne-
cessidades de seus alunos. Uma vez estabeleci-
do esse currículo comum, cabe à comunidade
educacional e a sua equipe de professores refle-
tir novamente sobre o currículo, visando adaptá-
lo à população específica de estudantes que está
sendo escolarizada em cada instituição.
Um currículo aberto à diversidade dos alunos
o é apenas um currículo que oferece a cada alu-
no o que ele precisa de acordo com suas possibi-
lidades. É um currículo proposto para todos os
alunos no sentido de que todos aprendam quem
o os outros, e deve incluir, em seu conjunto e
em cada um de seus elementos, a sensibilidade
necessária às diferenças existentes na escola. A
educação para a diversidade deve estar presente
em todo o currículo e em todo o ambiente esco-
lar. A diversidade dos alunos é uma fonte de enri-
quecimento mútuo e de intercâmbio de experi-
ências que lhes permite conhecer outras manei-
ras de ser e viver e desenvolver atitudes de res-
peito e tolerância, além de uma ampla compre-
ensão da relatividade de seus valores e costumes.
As pessoas desenvolvem melhor seus conheci-
mentos e sua identidade em contato com outros
grupos quem concepções e valores diferentes.
A modificação da cultura e da
organização da escola
A cultura da instituição educacional consti-
tui a base principal sobre a qual se apoiará o de-
senvolvimento do currículo. Os valores, as nor-
mas, os modelos de aprendizagem, as atitudes dos
professores, as relações interpessoais existentes,
as expectativas mútuas, a participação de pais e
alunos e a comunicação desenvolvida na institui-
ção, entre todos os membros da comunidade edu-
cacional,o os elementos que determinam o tipo
de projeto que a instituição irá elaborar e a orien-
tação que será seguida na aplicação do currículo.
A reforma da educação e o avanço no sentido
de se estabelecerem escolas mais inclusivas pres-
supõem, ao mesmo tempo, uma transformação da
cultura das escolas, uma mudança no sentido de
uma cultura educacional que valoriza a igualdade
entre todos os alunos, o respeito pelas diferenças, a
participação dos pais e a incorporação ativa dos alu-
nos ao processo de aprendizagem. Trata-se de uma
mudança que potencializa a cooperação entre os
professores e que defende a flexibilidade organi-
zacional e a identificação conjunta de soluções para
os problemas colocados pelos alunos. Essa flexibili-
dade organizacional possibilita a incorporação de
novos colaboradores à tarefa educacional, amplian-
do, assim, as possibilidades dos alunos.
A incorporação de novos colaboradores
As escolas, que estão enfrentando desafios ex-
traordinários, como o de integrar alunos com ne-
cessidades educacionais associadas a deficiên-
cias,o poderão alcançar os objetivos aqui pro-
postos por conta própria, senão em casos excep-
cionais. Mesmo que os recursos a elas disponibi-
lizados sejam adequados, as dificuldades com que
se deparamo extremamente importantes. Uma
educação de qualidade para todos exige a parti-
cipação, na escola, de associações e pessoas dis-
postas a colaborar no sentido de estabelecer re-
lações com instituições externas à escola. A par-
ticipação de pais, ex-alunos, voluntários, organi-
zações não-governamentais e outros grupos sem
fins lucrativos pode ampliar a oferta educacional
para todos os alunos e enriquecer as experiências
dos quem problemas mais acentuados de
aprendizagem. Além disso, acordos ou convênios
com governos municipais, centros de lazer, em-
presas, oficinas etc. podem lhes oferecer novas
possibilidades de aprendizagem.
0 desenvolvimento profissional
dos docentes
A formação dos professores é imprescindível
para se fazer frente adequadamente às deman-
das educacionais dos alunos. Precisamos reforçar
essa posição e indicar claramente queo se pode
avançar no sentido de estabelecer escolas inclu-
sivas se todos os professores, eo apenas aque-
les especializados na educação especial, nao al-
cançarem um nível suficiente de competência
para ensinar a todos os alunos. Além disso, a for-
mação tem estreita relação com a atitude assu-
mida em relação à diversidade dos alunos. Sen-
tindo-se pouco competente para facilitar a apren-
dizagem dos alunos com necessidades educacio-
nais especiais, o professor tenderá a desenvolver
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
expectativas mais negativas, que se traduzirão em
uma menor interação e menos atenção para com
eles. O aluno, por sua vez, tenderá a enfrentar mais
dificuldades para levar a cabo as tarefas propos-
tas, reforçando as expectativas negativas do pro-
fessor. Essas considerações nos levam a afirmar
que a forma mais segura de se melhorarem as ati-
tudes e expectativas dos professores é desenvol-
vendo seu conhecimento da diversidade dos alu-
nos e sua capacidade de proporcionar-lhes um
ensino adequado.
Essa proposta, no entanto, deve considerar
todo o conjunto de condições que influenciam o
trabalho do professor. Sua remuneração econô-
mica, suas condições de trabalho, sua valoriza-
ção social e suas expectativas profissionais cons-
tituem, juntamente com a formação permanen-
te, fatores que facilitam ou dificultam sua moti-
vação e dedicação.
A revisão da instrução na sala de aula
As mudanças sociais e culturais, a flexibili-
dade organizacional, a possibilidade de adap-
tar o currículo e a preparação dos professores
devem, em última análise, contribuir no senti-
do de que todos os alunos participem do pro-
cesso de aprendizagem junto com seus colegas
da mesma faixa etária. O trabalho do professor
na sala de aula torna-se, assim, um fator fun-
damental. Isso ocorreo apenas em decorrên-
cia de sua possibilidade de desenvolver um cur-
rículo acessível a todos os alunos, mas também
porque sua experiência posteriormente influ-
enciará as atitudes de outros professores, a ela-
boração de projetos da escola e a avaliação dos
pais da experiência concreta de uma sala de
aula integradora.
Para lograr esse objetivo, os professores de-
vem manter uma atitude de revisão permanen-
te de sua prática docente com base nas seguin-
tes orientações:
Avaliação das necessidades educacionais
dos alunos.
A consideração de que seu desenvolvimen-
to pessoal e social éo importante quanto
seu desenvolvimento cognitivo.
A concepção de situações de aprendizagem
significativas, que o aluno possa posterior-
mente aplicar em outros contextos.
A utilização de materiais audiovisuais e de
informática, no sentido de ampliar o nível
de informação dos alunos e contribuir para
despertar seu interesse.
o planejamento do ensino de modo que a
aprendizagem ocorra por meio da colabo-
ração entre os colegas.
Coordenação dos objetivos didáticos, dos
métodos pedagógicos e dos critérios de ava-
liação com a participação de todos os pro-
fessores.
Algumas das condições indicadas nestas
páginas dependem mais diretamente das au-
toridades educacionais; outras, da direção das
escolas e dos professores, mas todas estão es-
treitamente relacionadas. Quando a política
educacional favorece mais firmemente as es-
colas inclusivas, a probabilidade de que o-
mero de escolas comprometidas com a inclu-
o aumente e se consolide é maior. Em situa-
ções menos favoráveis, as escolas e os profes-
sores tambémm uma margem de ação, em-
bora mais reduzida, que pode influenciar as au-
toridades educacionais. O esforço conjunto de
todos constituirá, sem dúvida alguma, a melhor
garantia para criar condições favoráveis para
uma educação para todos os alunos.
Bibliografia
CLARK. C; DYSON, A.; MILLWARD, A. J.; SKIDMORE, D.
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mainstream schools. London: Cassei, 1997.
FORNESS, S. R.; KAVALE, K. A. The balkanization of Special
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disorders. Education and Treatment of Children, n. 17,
p. 215-27, 1994.
Educação inclusiva
Carlos Roberto Jamil Cury
PUC/MG - CNE
Eugênia desataviou-se nesse dia por minha cau-
sa... Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera,
lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas
finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um
simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, ten-
do ao colo, em vez de broche, um botão de
madrepérola... Era isso no corpo;o era outra cousa
no espírito. Idéias claras, maneiras chãs, certa graça
natural... Saímos à varanda, dali à chácara, e foi en-
o que notei uma circunstância. Eugênia coxeava
um pouco,o pouco, que eu cheguei a perguntar-
lhe se machucara o. Ae calou-se; a filha res-
pondeu sem titubear:
Não, senhor, sou coxa de nascença.
Mandei-me a todos os diabos; chamei desastra-
do, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade
de ser coxa era bastante para lheo perguntar nada.
Palavra que o olhar de Eugêniao era coxo, mas
direito, perfeitamente são... O pior é que era coxa.
Uns olhoso lúcidos, uma bocao fresca, uma
composturao senhoril; e coxa. Esse contraste fa-
ria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso
escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se
bonita?... (Machado de Assis, 1992: 553-54)
Além de processos de conversão em direito posi-
tivo, de generalização e de internacionalização [...
manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha
de tendência, que se pode chamar de especificação;
ela consiste na passagem gradual, porém cada vez
mais acentuada, para ulterior determinação dos su-
jeitos titulares de direito. [...] Essa especificação ocor-
reu com relação ao gênero, seja às várias fases da
vida, seja à diferença entre estado normal e estados
excepcionais na existência humana. [...] Com rela-
ção aos estados normais e excepcionais, fêz-se valer
a exigência de reconhecer direitos especiais aos do-
entes, aos deficientes, aos doentes mentais etc.
(Bobbio, 1992: 62-63)
Todos somos portadores de necessidades:
manifestas ou não, especiais ou não.
Aristóteles conceitua a noção de necessida-
de: "Aquilo a que estamos forçados se diz que é
necessário quando uma força qualquer nos obri-
ga a fazer ou a sofrer alguma coisa que é contra o
instinto, de modo que a necessidade consiste nes-
te caso emo poder fazer ou suportar de outra
forma" (Aristóteles, Metafísica, V, 5, 1014 b 35).
De um lado, é preciso fazer a defesa da igual-
dade como princípio de cidadania. Mas issoo
é fácil, já que a heterogeneidade é visível, é sensí-
vel e imediatamente perceptível.
o pensamento "único" ou empiristao apre-
cia a abstração, preferindo o manifesto, o visível, o
palpável. O empírico é necessário e é até "porta"
de entrada para uma realidade mais ampla. Essa
realidade mais ampla para o gênero humano é o
reconhecimento da igualdade básica de todos os
seres humanos, fundamento da dignidade da pes-
soa humana. É dessa fonte, sem cujo reconheci-
mento e respeito seo as entradas para todas as
formas de racismo e correlatos, que se nutrem os
artigos lº e 5º da Constituição Federal Brasileira,
além do seu artigo 205, referente à educação. E a
igualdadeo se obtém ao ser por meio de exer-
cício teórico, abstrativo e que dê acesso ao caráter
universal e igualitário de todos e de cada um.
Contudo, a negação ou o esquecimento de
categorias gerais, universais, erroneamente con-
sideradas totalitárias, acabam por colocar, em
seu lugar, o micro, a subjetividade, o privado.
Estes últimos, por sua vez, desconectados daque-
la fonte igualitária, introduzem sérios problemas
para a conceituação e mesmo para as políticas
públicas.o há universal sem abstração.
As causas diferencialistas causam problemas
sérios quando elaso evidenciam como sua base
o direito à igualdade. A defesa das diferenças, hoje
tornada atual,o subsiste se levada adiante em
prejuízo ou sob a negação da igualdade.
Riscos sérios de:
identificar desigualdade e diferença;
descolar a eqüidade da igualdade;
propiciar a emersão de um fundamentalismo
diferencialista;
cultura do fragmento e essencialização da di-
ferença: classificação infinda...;
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
defesa da diferença pela diferença eo pela
igualdade;
no vazio do Estado do Bem-Estar Social, no
vácuo do genérico, na crise da esquerda, na
não-realização do projeto socialista de uma
maior igualdade material duradoura, além da
igualdade formal e jurídica: abre-seo da
igualdade em favor da diferença.
Os portadores de necessidade especial carre-
gam consigo alguma limitação, no plano físico ou
psíquico, temporária ou permanente, parcial ou
total, que pode afetar o modo de aprendizagem e
que, por meio de processo pedagógico, pode ser
reduzido ou eliminado.
A educação inclusiva responde por uma mo-
dalidade de escolarização em que os estudantes
e os professores freqüentam os mesmos estabe-
lecimentos sem nenhuma discriminação de sexo,
raça, etnia, religião e capacidade.
Trata-se de uma integração adaptada às ne-
cessidades específicas do aluno, que lhe permita
participar das atividades da maioria dos alunos
de sua idade.
A Constituição formaliza em si, como Lei
Maior, algo que os sujeitos sociais já defendiam
e em certo sentido haviam conquistado na prá-
tica. Dessa maneira, a Constituição Federal de
1988 vai incorporar em seu Preâmbulo, entre
outros princípios, o de assegurar no Brasil uma
"sociedade fraterna e pluralista".
1
o artigo lº da Constituição assinala como um
dos fundamentos do "Estado Democrático de Di-
reito" a "dignidade da pessoa humana" e o
"pluralismo político". O artigo 3º afirma ser "obje-
tivo fundamental" da República "promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discri-
minação".-
2
o artigo 4º estabelece como princípio
o "repúdio ao terrorismo e ao racismo".
o artigo 5
9
é uma longa e saudável lista de
incisos na defesa dos direitos e deveres indivi-
duais e coletivos. Para as finalidades deste texto,
cumpre destacar entre os 77 incisos que o com-
põem os seguintes:
Todoso iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade [...].
I - homens e mulhereso iguais em direitos e
obrigações, nos termos desta Constituição;
l.-.l
III - ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante;
XL1 - a lei punirá qualquer discriminação
atentória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei [...]
3
De acordo com esse artigo, as normas nele
definidasm aplicação imediata.
4
Esses direitos,
segundo o artigo 60 da Constituição,o podem
ser objeto de emenda constitucional e a própria
Constituição prevê entre as funções do Ministé-
rio Público a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individu-
ais indisponíveis (artigo 127).
o artigo 34 possibilita a intervenção da União
nos estados e municípios queo assegurarem a
observância dos "direitos da pessoa humana". De
mais a mais, eleso excluem outros direitos e
garantias fundamentais assinados pelo Brasil em
tratados internacionais.
Ao lado da defesa contra os atentados à digni-
1
o principio da fraternidade simboliza a igualdade universal dos "irmãos" (fratei) e o do pluralismo (plus = mais que um) já sinaliza a diferença.
Pode-se ler aqui uma relação dialética entre "o todo e as partes" no interior de uma sociedade democrática.
2
Ver a esse respeito o Programa Nacional dos Direitos Humanos no Decreto n
9
1.904, de 1996.
'' As Leis n" 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e n° 9.459, de 13 de maio de 1997, regulam os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de
cor. Já a Lei n° 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceitos
de raça, cor. religião, etnia ou procedência nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza. O
Decreto n" 40, de 15 de fevereiro de 1991, reforça a condenação à tortura e o Decreto Legislativo n° 26. de 22 de junho de 1994. visa à
eliminação de todas as formas de discriminação das mulheres.
* Pelo inciso LXXI, concede-se o mandato de injunção quando a efetivação de um desses direitos se torne inviável por falta de norma regula-
dora. Isso coloca nao dos sujeitos um instrumento jurídico importante na defesa de seus direitos individuais e coletivos
dade da pessoa humana, há outros direitos especi-
ficados no capítulo dos "Direitos sociais" e listados
no artigo. O inciso XX desse artigo reconhece di-
reitos específicos das mulheres no mercado de tra-
balho, o inciso XXX proíbe diferença de salários por
"motivos de sexo, idade, cor ou estado civil" e o
inciso XXXI proíbe a discriminação de salário e de
critérios de admissão para alguém que seja "porta-
dor de deficiência". Este último inciso reserva
"percentual dos cargos e dos empregos públicos"
para portadores de deficiência. O trabalho de me-
nores é proibido antes dos 16 anos, a fim de que
possam cumprir a escolaridade obrigatória.
5
A Lei n
9
9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, também reafirma o prin-
cípio do direito à diferença complementar e recí-
proco ao conjunto dos direitos comuns inerentes
à igualdade. Assim, seu artigo 3º reafirma vários
princípios constitucionais, entre os quais o
pluralismo. A lei introduz a referência à "tolerân-
cia" como princípio da educação, tanto quanto "a
gestão democrática" como princípio inerente ao
ensino público. O artigo 4
9
reconhece a necessi-
dade de atendimento diferenciado "aos edu-
candos com necessidades especiais" e adequação
às condições peculiares de jovens e adultos que
queiram se escolarizar. Tal especificidade é repos-
ta nos artigos 37 e 38.
Essa tomada axiológica se justifica porque por
meio dela se reconhecem a complexidade do real
e seu caráter matizado. A identificação histórica de
várias culturas presentes no paíso significa um
amálgama entre elas ou o esquecimento no modo
como elas se encontraram em distintas circunstân-
cias históricas ou mesmo tomar partido de uma
delas em detrimento de outras. daí a condenação
ao racismo e ao preconceito existentes no Brasil.
A relação entre condenação a práticas discri-
minatórias e a afirmação de direitos foi posta em
evidência por Bobbio (1987). Para ele, a valorização
afirmativa da pluralidade ganha substância cada vez
que ela serve parar abaixo uma discriminação
baseada em qualquer modalidade de preconceito.
É nesse sentido que ele aponta para uma dialética
entre liberdade e igualdade: "Considero liberdade
socialista por excelência aquela que, liberando,
iguala e iguala quando elimina uma discriminação;
uma liberdade queo somente é compatível com
a igualdade, mas que é condição dela" (1987:23).
Todas as formas impeditivas da igualdade, to-
madas pelo ângulo da uniformidade, ignoram o
valor das diferenças ou as condenam aos estreitos
espaços do privado, terminam em regimes auto-
ritários, ditatoriais ou mesmo totalitários. Porém
a excessiva consideração das diferenças pode re-
dundar no oposto de sua valorização, isto é, como
o não-enriquecimento do ser social do homem.
Algo que se pode verificar em sociedades toma-
das por fundamentalismos ou crispações identitá-
rias de qualquer espécie nas quais, como diz
Rouanet (1994), domina a ontologização da dife-
rença. É o mesmo autor que defende o que cha-
ma "universalismo concreto": "A utopia iluminista
é a de uma ética fundada na razão, voltada para a
felicidade, capaz de julgar e criticar o existente, e
tendo como telos uma comunidade argumen-
tativa sem fronteiras, em que a igualdadeo sig-
nifique nivelamento e em que a universalidade
o leve à dissolução do particular" (1994:162).
A democracia supõe tanto a igualdade para o
que é igual ou que deve ser igual, quanto a con-
sideração positiva da diferença como reveladora
da profunda riqueza de que se revestem todos
os seres humanos, desde que tal diferença se ex-
presse na matriz igualitária do ser humano.
6
Re-
tomando Aristóteles, pode-se dizer que o ente é
a síntese aberta entre o ser e o modo de ser. É
este o entendimento que se pode ter do texto
constitucional e da lei de educação.
Bibliografia
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
Rio de Janeiro: Aguillar, 1992. Obra Completa, v. I.
BOBBIO, Norberto. Reformismo, socialismo e igualdade. A/o-
vos Estudos, n. 19,o Paulo: Cebrap, dez. 1987.
A era dos direitos. 1992.
ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da moral iluminista. In:
NOVAES, Adauto. (Org.). Ética.o Paulo: Cia. das Le-
tras, 1994.
5
o artigo abre exceção para aprendizes que tenham completado 14 anos. O racismo e todos os seus correlatos nascem do não-reconhecimento da igualdade e da dignidade de todas as pessoas humanas.
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
A formação de professores
p
ara a Educação Especial na
Universidade Federal de
Santa Maria/RS, na perspectiva
da educação inclusiva
Soraia Napoleão Freitas
Universidade Federal de Santa Maria/RS
A Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM) vem formando recursos humanos para a
Educação Especial desde 1962, na gestão de seu
fundador, o professor José Mariano da Rocha Fi-
lho. A origem da Educação Especial foi no Insti-
tuto da Fala, que tinha como diretor o professor
Reinaldo Coser. No Instituto da Fala desenvolvi-
am-se atividades de ensino, pesquisa e extensão
nas áreas da audição, fala e linguagem.
Sensível à necessidade de atendimento edu-
cacional a um considerável número de crianças
com surdez, sem possibilidade de recuperação clí-
nica, o professor e médico otorrinolaringologista
Reinaldo Fernando Coser percebeu que a perspec-
tiva de integrar a criança deficiente auditiva na es-
cola exigia a habilitação de professores. Iniciou
então, com muito rigor e persistência, a formação
de professores para a Educação Especial.
o primeiro episódio dessa história de quaren-
ta anos foi possibilitar a duas pessoas a realiza-
ção de um curso no Instituto de Educação de Sur-
dos*(INES), no Rio de Janeiro, a única instituição
que oferecia oportunidade de formação na área. O curso durou três anos e uma das professoras
o retornou para Santa Maria, fixando-se no Rio
de Janeiro. Esse processo de formação de recur-
sos humanos era dispendioso e demorado e ha-
via necessidade urgente de integrar a criança sur-
da na escola regular. Em decorrência do elevado
custo, a alternativa encontrada para formar pro-
fessores foi a criação de cursos de extensão uni-
versitária. Um acordo com o Departamento de
Educação Especial da Secretaria Estadual de Edu-
cação possibilitou que o primeiro curso para a
formação de professores de deficientes auditivos
fosse realizado na Universidade Federal de Santa
Maria, em março de 1962. Esse curso, sem dúvi-
da, criou uma nova perspectiva para a Educação
Especial, na medida em que a Universidade, pela
seqüência de cursos que continuou a oferecer,
constitui uma referência para a cidade, para o es-
tado e mesmo para o país.
Em 1974 foi criada a habilitação em Deficien-
tes da Audiocomunicação no curso de Pedagogia.
Em 1976, após aprovação do Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão da UFSM, foi implantada, no
curso de Pedagogia, a habilitação específica para
a Formação de Professores de Excepcionais Defi-
cientes Mentais. No ano de 1977, o curso de For-
mação de Professores para Deficientes Mentais
passou a constituir um curso em separado, como
Licenciatura Curta. Nos anos seguintes, o curso
de Educação Especial passou por nova reestrutu-
ração, para transformar-se em Licenciatura Ple-
na, sendo reconhecido como tal pelo Parecer do
Conselho Federal de Educação (CFE) n
9
1.308/80,
e homologado esse reconhecimento pela Porta-
ria do MEC nº 141/81.
Em 1982, o Centro de Educação encaminhou
ao CFE proposta de reestruturação dos cursos de
Pedagogia e de Formação de Professores em Edu-
cação Especial: propunha-se um curso que reunis-
se a habilitação em Deficientes da Audioco-
municação, do curso de Pedagogia, e o curso de
Formação de Professores em Deficientes Mentais.
Houve aprovação de tal solicitação pelo Parecer do
CFE nº 65/82. A partir do ano de 1984, o ingresso
dos alunos passou a ser no curso de Educação Es-
pecial - Licenciatura Plena, nas habilitações Defi-
cientes Mentais (DM) ou Deficientes da Audioco-
municação (da), sendo oferecidas 40 vagas no con-
curso vestibular, assim distribuídas: 20 vagas para
a habilitação em Audiocomunicação e 20 vagas
para a habilitação em Deficientes Mentais.
o curso de Educação Especial, com as duas
habilitações - da e DM -, tem para cada habili-
tação os seguintes objetivos específicos:
Formar profissional, no plano biopsicossocial,
capaz de atuar na Educação Especial de defi-
cientes da audiocomunicação ou de deficien-
tes mentais.
Desenvolver atividades cognitivas, psicomotoras
e afetivas para o desempenho das atividades pro-
fissionais inerentes ao seu campo de atuação,
segundo diretrizes do sistema de ensino.
Aplicar metodologia científica na realização
das atividades de planejar, executar e ava-
liar o processo ensino-aprendizagem.
Investigar, cientificamente, novas estratégias
de ensino aplicáveis ao seu campo de atuação.
Participar, de forma integrada, dos programas
de Educação Especial no sistema de ensino,
na família e na comunidade (Guia Acadêmi-
co. Pró-Reitoria de Graduação/UFSM/1998).
A formação de recursos humanos para a Edu-
cação Especial desenvolveu-se acompanhada
pela prestação de serviços de extensão à comuni-
dade. Em 1980, foi criado o Serviço de Atendimen-
to Complementar ao Deficiente Auditivo
(SACDA), em convênio com a Legião Brasileira de
Assistência (LBA). O SACDA servia de local de es-
tágio aos alunos dos cursos de Educação Especial,
Fonoaudiologia e Pedagogia. No ano de 1983, as
atividades do SACDA foram reformuladas e am-
pliadas e o serviço recebeu nova denomina-
ção: Centro de Atendimento Complementar em
Educação Especial (CACEE), fundamentando suas
atividades de cunho complementar no modelo
médico-psicológico. Em 1993, o Departamento de
Educação Especial implantou no CACEE uma
nova metodologia de trabalho baseada em outro
paradigma teórico: o modelo pedagógico, com
ênfase definida em ensino, pesquisa e extensão.
Foi, então, criado o Núcleo de Ensino, Pesquisa e
Extensão em Educação Especial (Nepes).
Em nível de pós-graduação, o curso de especiali-
zação, criado em 1993, tem como objetivo possibili-
tar a compreensão das potencialidades, das limita-
ções e das diferenças dos portadores de necessida-
des especiais, propondo ações interativas com a so-
ciedade. O curso oferece dez vagas, das quais seis para
Deficientes Mentais e quatro para Deficientes da
Audiocomunicação, com ingresso anual. Ainda em
nível de pós-graduação, o Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação (PPGE) oferece curso de Mestrado,
nas linhas de pesquisa de Formação de Professores e
Práticas Educativas nas Instituições, um núcleo
temático denominado Educação de Pessoas em Cir-
cunstâncias Especiais, cujos estudoso orientados
para a produção e a aplicação de conhecimentos que
provocam a inserção social de pessoas impossibili-
tadas da realização de interações comuns para a cons-
trução de conhecimentos.
As décadas de 1970 a 1990, no Brasil, foram o
período em que a Universidade Federal de Santa
Maria se estruturou e elaborou os cursos de For-
mação de Professores em Educação Especial.
Sendo necessário entender o pensamento e a
prática educacional relacionados com a realidade
social, onde nascem e se desenvolvem;o poden-
do ignorar que a realidade é condicionada pelas
relações econômicas e políticas nacionais e inter-
nacionais, às quais se refere e também sobre as
quais influi, ocasionando transformações, essas
articulações ou relações do fenômeno educacio-
nal com condições internas e externas explicam a
sua constituição, os seus limites e as direções de
sua transformação. A educação influi sobre essa
realidade, podendo direcionar transformações.
Em síntese, a Educação Especial na Univer-
sidade Federal de Santa Maria se efetiva em mo-
mentos distintos. Privilegiou-se a formação de
recursos humanos como objeto de envolvimen-
to curricular regular, separando-se, para efeito
de análise, quatro momentos distintos:
Momento 1: Curso de Pedagogia - Habilita-
ção em Formação de Profissionais para Ex-
cepcionais - Deficientes Mentais (1975 a
1976) - 3.135 horas (2.280 horas no Núcleo
Comum + 855 horas na Habilitação DM).
Momento 2: Curso de Formação de Profes-
sores para Educação Especial - Deficientes
Mentais - Licenciatura Curta (5 semestres)
(1977 a 1980)-2.010 horas.
Momento 3: Curso de Formação de Profes-
sores de Educação Especial -Licenciatura
Plena - Habilitação em Deficientes Mentais
(1981 a 1983)-2.550 horas.
Momento 4: Curso de Educação Especial - Li-
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
cenciatura Plena - Habilitação em Deficientes
Mentais - Habilitação em Deficientes da
Audiocomunicação (1984 à atualidade) - 8 se-
mestres, com carga horária distribuída entre
disciplinas obrigatórias (3.525 horas) e disci-
plinas optativas (90 horas), totalizando 3.615
horas (carga horária total do curso na Habili-
tação Deficientes Mentais).
Procuramos verificar como se deu a forma-
ção docente, estabelecendo agrupamentos de dis-
ciplinas e tendo como preocupação captar: a con-
cepção de deficiência possivelmente envolvida;
se houve preocupação em proporcionar visão ge-
ral do ser humano, inserido num contexto social
por meio de disciplinas filosóficas, históricas e
sociológicas; como se desenvolveu a preocupa-
ção com a especificidade do ser humano, sujeito
da ação pedagógica, isto é, por meio de discipli-
nas e metodologias gerais e específicas.
Os momentos analisadoso reveladores da
forma de pensar a formação de professores e a
concepção de aluno.
Nas quatro grades curriculares analisadas,
percebemos, pelo número de horas e pelo con-
teúdo das ementas de cada disciplina, qual foi
a "visão" de excepcionalidade veiculada, como
também constatamos qual o enfoque prio-
rizado, ou seja, o deficiente mental como um
sujeito incompleto e a educação como uma
possibilidade de reabilitação desse sujeito.
Diante dessas evidências, reforça-se nossa
constatação de que o aluno da Educação Espe-
cial é visto ainda como defeituoso, doente e que
a intervenção educacional pontuou-se pelo diag-
nóstico e pelo emprego de técnicas. A nosso ver,
o alunado da Educação Especial permanece, ain-
da, centrado na idéia do defeito, da diferença.
A formação de professores oscilou entre a
ênfase específica e a ênfase metodológica,
priorizando ora uma, ora outra, em função dos
condicionantes sociopolíticos, das concepções
teóricas e da prática docente.
A análise dos grupos de disciplinas nos mo-
mentos considerados revela que para algumas
delas se percebe um movimento no sentido da
adequação de conteúdo ao momento histórico.
Para a implementação de uma ação pedagógi-
ca eficiente e de qualidade, a tendência atual da Edu-
cação Especial destaca como essenciais três elemen-
tos relacionados entre si, que são: desenvolvimen-
to, aprendizagem e ensino. Deste ponto de vista, o
currículo entendido como Projeto Curricular pode
efetivamente contribuir para a formação e o aper-
feiçoamento dos professores. Projeto Curricular é,
sobretudo, um projeto de ação educativa que enri-
quece o processo de desenvolvimento de todos os
alunos em todos os níveis de ensino, pois o traba-
lho do professor, se por um lado tem o aspecto inte-
lectual, por outro ladoo se limita a ele. O traba-
lho intelectual do professor exige deste uma atitu-
de prática de transformação estrutural da organi-
zação escolar, que tem uma íntima relação com a
sociedade da qual ele participa.
Sob esse ponto de vista, entendemos que o
trabalho do professoro se limita a uma ativi-
dade livre e descompromissada, mas, sim, é um
evento de grande responsabilidade social daque-
les que o exercem para com o conjunto da popu-
lação. Portanto, a Educação Especial, como uma
modalidade de ensino no contexto da educação
geral, tem o compromisso de dar a todos a opor-
tunidade de acesso e de permanência na escola.
Acreditamos que a formação do professor
para trabalhar com alunos portadores de defici-
ência mental deva enfocar o princípio ético, que
consiste emo considerar apenas os "meus in-
teresses" ou os "teus interesses", mas os interes-
ses de todo e qualquer aluno. A verdadeira igual-
dade de oportunidades exige a certeza da
inexistência de privilégios, em que uma desvan-
tagem inicial possa ser compensada por um tra-
tamento diferencial. Com essa perspectiva edu-
cacional é imprescindível ao professor o exercí-
cio investigativo, que compreende seu compro-
misso com pesquisas que possam contribuir para
o desenvolvimento de conhecimentos na área, da
sua realidade, bem como um intercâmbio com
aspectos políticos, administrativos e pedagógicos.
As políticas públicas e, portanto, a educa-
ção, deverão levar em conta fatores que visem
proporcionar a tais indivíduos uma vida plena-
mente feliz, isto é, possibilitar-lhe o gozo de
seus direitos e deveres de cidadão.
Entretanto, devemos evitar o reducionismo,
o colocando a deficiência quer somente como
patologia individual, quer como dominação social,
mas como resultado dos dois pólos, isto é, da situ-
ação de cada um (limites e potencialidades), den-
tro de uma sociedade que solicita modos de ser,
aspirações, modelos necessários a uma certa or-
ganização social.
o nosso desafio em educação é, respeitando
as individualidades do aluno, com suas potencia-
lidades e limitações, possibilitar-lhe os conheci-
mentos necessários para viver integralmente na-
quela sociedade, modificando-a nas "brechas" pos-
síveis de melhoria das condições de vida.o é
reproduzir indivíduos para o contexto, adaptando-
os, sufocando-os, mas permitir-lhes o desenvolvi-
mento pleno para viver e ser mais, ser além de-
pias, e isto vale para todos os educandos.
daí a importância deo ignorar o contexto,
com suas limitações e avanços. Em cada momen-
to histórico, em função das condições econômi-
co-sociais e político-culturais, "a sociedade pro-
duz a escola de que necessita e a transforma den-
tro das possibilidades concretas e dos limites im-
postos pelo avanço real da totalidade dentro da
qual ela se organiza no tempo" (Xavier, 1997:229).
Estão sendo realizados estudos para refor-
mulação curricular dos cursos de graduação e de
especialização em Educação Especial. Tais
reformulações visam à sua adequação às Dire-
trizes Nacionais para a Educação Especial na
Educação Básica e ao Plano Nacional de Educa-
ção (Lei nº 10.172/2001).
A formação de recursos humanos com capa-
cidade de oferecer atendimento aos educandos
especiais, a implantação e a ampliação de aten-
dimentos a alunos com necessidades especiais
o metas do Plano Nacional de Educação para
os próximos dez anos.
A formação de professores e alunos que apresen-
tam necessidades educativas especiais deverá ocor-
rer nos âmbitos da: formação inicial de todos os pro-
fessores; formação de professores de Educação Es-
pecial; e formação de professor dos professores. Na
formação inicial em nível médio ou superior, o pro-
fessor deverá construir conhecimentos que lhe dêem
possibilidade de identificar e reconhecer a existên-
cia de necessidades educacionais e também buscar
e implementar ações e apoios pedagógicos em clas-
ses comuns da Educação Básica. Para o atendimen-
to orientado a uma categoria específica de necessi-
dades, a formação do professor deverá se processar
na formação para a Educação Infantil e as séries ini-
ciais do Ensino Fundamental ou, de forma comple-
mentar, na formação de professores e especialistas
no planejamento, na gestão e na supervisão da edu-
cação, em nível de pós-graduação.
Tendo a Universidade Federal de Santa Maria sido
pioneira na interiorização do atendimento por meio
das atividades de extensão e ensino e tendo persistido
nesse trabalho ao longo de quarenta anos, julgamo-
nos habilitados para realizar a formação de recursos
humanos para a Educação Especial consoante as di-
retrizes políticas formuladas para a área. Também - e
avançando as atividades de extensão e ensino -, a pro-
dução e a divulgação de conhecimentosm sido per-
seguidas por meio de projetos e pesquisas que envol-
vem discentes e docentes da instituição.
Neste momento, parece-nos importante que a
atual formulação curricular que o curso de Educa-
ção Especial apresenta, com pequenas adequa-
ções, possa permanecer como reserva institucional
para referenciar o currículo de formação de pro-
fessores de forma que atenda às demandas pro-
postas na política educacional do país.
Bibliografia
BRASIL Lei n
9
9.394, de 20 de dezembro de 1966. Diretrizes e
Bases da Educação Nacional.
Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Plano
Nacional de Educação.
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na Educação Básica.
BREZINSKI, iria. Pedagogia, pedagogos e formação de profes-
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XAVIER, Maria Elizabeth; RIBEIRO, Maria L; NORONHA,
Olinda M. História da educação - a escola no Brasil.o
Paulo: FTD, 1994.
SIMPÓSIO 25
ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS
DE ENSINO E FORMAÇÃO
DOCENTE
João Barroso
Jean Hebrard
Miriam Schlickmann
da formação de professores
à formação das escolas
João Barroso
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade de Lisboa/Portugal
Resumo
As transformações em curso na formação de
professoreso determinadas, fundamentalmente,
por três ordens de razões: mudança nos processos
de trabalho de alunos e professores; mudança nas
organizações e modos de gestão; mudança nos mo-
delos de formação contínua, em geral.
No primeiro caso, a mudança do público escolar
resultante do alargamento da base de recrutamento
dos alunos e a perda da eficácia dos mecanismos de
seleção tornaram caducas uma organização pedagó-
gica e uma prática de ensino que se baseava numa
cultura de homogeneidade, cujo objetivo era "ensi-
nar a muitos como se fossem um" (Barroso, 1995a).
Hoje em dia, para atender à heterogeneidade dos alu-
nos, promover a igualdade de oportunidades e a jus-
tiça é preciso reinventar a organização escolar e alte-
rar os processos de trabalho de alunos e professores.
A escola torna-se um lugar de vida, uma "cidade polí-
tica" (Ballion, 1998). Os alunos deixam de ser vistos
como consumidores de conhecimentos transmitidos
pelos professores, tornando-se co-produtores dos
saberes necessários ao seu crescimento e desenvol-
vimento. Os professores tornam-se, cada vez mais,
gestores de situações educativas. O professor jáo é
o que transmite conhecimentos aos alunos, mas o que
cria as condições necessárias para que estes apren-
dam. Ele é, portanto, um organizador e um
disponibilizador de recursos, em conjunto com os
colegas ou outros técnicos de educação e em
interação com outras instituições educativas.
No segundo caso, as mudançaso no sentido
de reconhecer as organizações como construções
sociais e os seus membros como atores estratégicos
capazes de cálculo e escolha. A atividade de traba-
lho deixa de ser vista unicamente como um lugar de
execução (Moisan, 1993) e passa a ser vista como
um "sistema concreto de ação" (Crozier e Friedberg,
1977; Friedberg, 1995). Nesse sentido, para que a
mudança possa ocorrer numa organizaçãoo só é
necessário que se estabeleçam novas relações de
força que lhe sejam favoráveis, mas também que os
atores desenvolvam novas capacidades cognitivas e
relacionais, e que se estabeleçam novas formas de
governo. Por isso, como insistem Crozier e Friedberg
(1977), qualquer processo de mudança deverá re-
sultar de uma ação convergente sobre os homens e
as estruturas.
No terceiro caso, a formação contínua de adul-
tos valoriza cada vez mais as modalidades que favo-
recem a capacidade de os atores, nas organizações,
"produzirem" o seu próprio conhecimento, quer seja
pelos "métodos autobiográficos" e outras formas de
"formação experiencial", quer pela "aprendizagem
autodirigida" e outras formas de "autoformação".
Assiste-se, assim, a um processo sincrônico e recí-
proco de "destaylorização" das organizações e de
"destaylorização" das formações. Como notam Nelly
Bousquet e Colette Grandgérard (1990:79), "nas or-
ganizações do trabalho transformadas, o processo
de mudança, de modernização, torna-se em si mes-
mo um processo de formação, pondo Fim a uma con-
cepção demasiado estreita e tradicionalmente es-
colar de formação, que se limitaria às situações for-
mais de aquisição de conhecimentos".
É no contexto dessas três mudanças que se si-
tua a minha intervenção, subordinada ao tema "da
formação de professores à formação das escolas".
Com ela pretendor em evidência o isomorfismo
que deve existir entre "práticas de ensino", "mode-
los de formação" e "modos de gestão".
Numa primeira parte, irei analisar o paralelismo
existente entre a evolução dos modos de organiza-
ção e dos modos de formação.
Numa segunda parte, aplicando às escolas o
conceito de "organizações aprendentes", irei subli-
nhar a necessidade de incluir as práticas de forma-
ção na própria organização do trabalho dos profes-
sores e nas funções da gestão escolar.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
A formação e o
desenvolvimento
organizacional
o processo de institucionalização de um sis-
tema de formação contínua, que se desenvol-
veu, principalmente a partir da década de 1960,
na maior parte dos países industrializados de-
correu numa relativa marginalidade em relação
aos problemas das organizações e das situações
de trabalho.
Ao mesmo tempo, a excessiva formalização
da "educação permanente" e a sua transforma-
ção em "mito regenerador" de todos os proble-
mas individuais, profissionais e sociais, criaram
uma "sociedade pedagógica" que, como dizia
Beillerot (1982) no início da década de 1980,
parecia concorrer mais para a normalização do
que para o despertar crítico das consciências.
As concepções de formação dominantes
eram marcadas (como assinala Guy Jobert,
1987, na sua análise diacrônica do trabalho do
formador de adultos em França, entre 1950 e
1980) pelo "regresso à escola e adaptação ao
posto de trabalho" e por aquilo a que chama de
"estagificação": um processo formativo pouco
articulado com as situações de trabalho, que
mobiliza saberes de tipo disciplinar, utilizando
como modalidade pedagógica única o estágio.
Contudo, as modificações que se foram ope-
rando, quer no contexto político e econômico
das empresas, quer nos seus processos de ges-
tão, fizeram com que emergissem novas práti-
cas de formação mais integradas na organiza-
ção. Como assinala Dubar (1983: 28), caracteri-
zando a situação que se vivia em França, no iní-
cio da década de 1980: "jáo era a procura in-
dividual de formação que constituía o seu 'ob-
jeto', mas a oferta institucional de formação, em
ligação com a oferta de emprego e a definição
dos postos de trabalho, da sua qualificação e das
suas evoluções, sob o efeito conjunto das mu-
danças tecnológicas e da crise econômica".
A função de mediação que a formação exer-
cia entre a necessidade de desenvolvimento
pessoal e a necessidade de desenvolvimento
organizacional acelera-se no sentido de uma
maior integração, visando permitir aquilo que
as "modernas teorias das organizações" acon-
selham: "pensar ao mesmo tempo o indivíduo
e a organização".
Essa aproximação entre "formação" e "orga-
nização" é favorecida pelos próprios efeitos in-
diretos que, entretanto, a proliferação de cur-
sos (mesmo quando decorriam sem qualquer
relação imediata com a situação de trabalho)
passa a exercer nos processos de mudança
organizacional.
Esses efeitos da formação sobre as estrutu-
ras da organização foram estudados por
Sainsaulieu e outros sociólogos cujos trabalhos
sobre a formação profissional mostram que "as
ações de formação contínuao portadoras de
processos transformadores e de mudanças
organizacionais suficientes para que se possam
integrar no números de vias privilegiadas do
desenvolvimento social das empresas contem-
porâneas" (Sainsaulieu, 1987: 295).
Dentre essas mudanças, Sainsaulieu desta-
ca o efeito de sociabilidade e de abertura do sis-
tema, bem como a redistribuição do saber e das
profissões, com incidência visível no maior grau
de participação nas estruturas de organização
por parte dos trabalhadores.
Novos paradigmas
de análise organizacional
e práticas de gestão
Como é evidente, esses efeitos organizacio-
nais da formação contínua de adultos sóo
possíveis porque os paradigmas da análise
organizacional se encontravam em profunda
transformação e porque nas próprias empresas
se faziam sentir as transformações decorrentes
de novas práticas de gestão, abertas à partici-
pação dos trabalhadores e à mobilização da sua
inteligência e criatividade.
Assim, é a inexistência dessas alterações dos
princípios e práticas de gestão que explica a "re-
sistência à formação", em muitas empresas, que
mantém no essencial uma estrutura e organi-
zação do trabalho de tipo "taylorista". E, do
mesmo modo, é a alteração dessa estrutura que
permite avançar na integração estratégica da
formação como instrumento de gestão e de de-
senvolvimento organizacional.
Os aspectos das novas teorias das organiza-
ções e da gestão e da sua aplicação prática que
mais favorecem a integração da formação nas
situações de trabalho estão relacionados com a
importância que é dada aos "atores" nas orga-
nizações e com o abandono de uma visão
funcionalista delas.
As organizações passam a ser consideradas
como construções sociais eo como uma en-
tidade natural ("reificada") que existe para lá da
ação humana. O desenvolvimento da sociolo-
gia das organizações veior em causa alguns
dos "mitos" que durante o período anterior ser-
viram de modelos de referência às práticas de
gestão e à organização do trabalho.
Entre os princípios que mais alteraram a
nossa maneira de encarar as organizaçõeso
de referir: o da complexidade organizacional
que decorre da racionalidade limitadao só
dos indivíduos, mas também, e por conse-
qüência, dos conjuntos que eles formam (as or-
ganizações); a natureza "debilmente acoplada"
e "anárquica" das organizações, quee em
causa os modelos "clássicos" da tomada de de-
cisão e o caráter instrumental da própria orga-
nização; a dimensão fluida das fronteiras da or-
ganização e a diversidade e imprevisibilidade
das suas relações com o meio externo.
Dos vários princípios que decorrem dessa
nova perspectiva de análise organizacional e
cujo impacto numa redefinição dos modelos e
práticas de formação contínua de adultos me
parece mais relevante, gostaria de destacar dois
que, em França, muito ficaram a dever aos tra-
balhos de Crozier e de Friedberg (ver, entre ou-
tros, Crozier e Friedberg, 1977; Friedberg 1995):
1. O princípio segundo o qual os indivíduos
numa organizaçãoo atores capazes de
cálculo e de escolha, isto é, com um racio-
cínio estratégico. Este princípio tem reper-
cussões evidentes na atividade de trabalho,
que deixa de ser vista unicamente como um
lugar de execução (Moisan, 1993) e passa a
ser vista como um sistema de ação concre-
ta pelo qual os diferentes atores organizam
o seu sistema de relações para resolver pro-
blemas concretos colocados pelo funciona-
mento da organização.
2.0 princípio segundo o qual a mudança nas
organizações é um fenômeno político que
o pode ser reduzido a simples decisões
hierárquicas e que depende da capacidade
de aprendizagem, pelos atores, de novos
modos de relação e de novas formas de ação
coletiva. Para que a mudança possa ocorrer
numa organização,o só é necessário que
se estabeleçam novas relações de força que
lhe sejam favoráveis, mas também que os
atores desenvolvam novas capacidades
cognitivas e relacionais, e que se estabele-
çam novas formas de governo. Por isso,
como insistem Crozier e Friedberg (1977),
qualquer processo de mudança deverá re-
sultar de uma ação convergente sobre os
homens e as estruturas.
Mas essa mudança de paradigma na análise
organizacional tem também repercussões evi-
dentes na evolução das "ciências da gestão" e
nas suas práticas.
o vou enunciar aqui as profundas mu-
danças que estão a ocorrer nesse domínio e as
influências que elas exercem nas relações entre
"formação" e "organização", quer se trate da
"gestão estratégica", do "desenvolvimento
organizacional", da "gestão participativa", da
"gestão pela cultura" etc. Estamos perante prin-
cípios e modalidades de gestão que alteram
profundamente as relações na empresa e os
mecanismos de controle, o nível das qualifica-
ções dos trabalhadores e os seus processos de
trabalho - e conseqüentemente a procura e a
oferta de formação contínua.
As organizações também
aprendem
Um dos elementos essenciais dessas mu-
danças consiste na importância que é dada ao
"saber" nas organizações. Como afirma hoje
Donald Schon (que já em 1978 escrevera, com
Argyris, uma obra significativamente chamada
Organizational learning):
As sociedades comerciais, as associações sem
fins lucrativos, os governos, as regiões, as nações
no seu conjunto sentem a necessidade de se
adaptar às mudanças do meio externo e querem
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
tirar lições dos seus êxitos e dos seus erros do
passado, empreender certas experiências e em-
penhar-se numa inovação permanente. No
mundo acadêmico, como no mundo do traba-
lho, a aprendizagem organizacional, ou (o que
o é bem a mesma coisa) a "organização apta à
aprendizagem", tornou-se uma idéia corrente
(Schon, 1990: 220).
Para isso, como diz o mesmo autor (recor-
dando os contributos que a perspectiva
"sociotécnica" trouxe a este conceito de "orga-
nização apta à aprendizagem"), é preciso que
se desenvolvam processos de participação co-
letiva pelos quais grupos de indivíduos, em es-
pecial assalariados, desenvolvam novos esque-
mas de trabalho, novas perspectivas de carrei-
ra, capazes de melhor articular a sua vida fami-
liar e a sua vida profissional. Desse ponto de
vista, afirma Schon, "são os indivíduos, os as-
salariados e os seus superiores hierárquicos,
que podem e devem aprender a reconcei-
tualizar o seu trabalho, eo os gestores de alto
nível que devem aprender a criar os contextos
adequados" (1990: 220).
Nesse sentido podemos dizer com Koenig
(1994) que as organizações aprendem por meio
de um "fenômeno coletivo de aquisição e ela-
boração de competências que, de um modo
mais ou menos profundo e perdurável, modifi-
cao só a gestão como as próprias situações
em que ela se desenrola".
Para que as organizações aprendam é pre-
ciso desenvolver diversas atividades de traba-
lho coletivo que passam, no dizer de Garvin
(1993), por: resolução sistemática dos proble-
mas; experimentação com novos enfoques;
aprender com a sua própria experiência e his-
tória passada; aprender com as melhores expe-
riências e práticas dos outros; transferir rápida
e eficientemente o conhecimento para toda a
organização.
Mas, como assinala Bolívar (2000), "as orga-
nizações de aprendizagemo surgem do nada.
o fruto de um conjunto de atitudes, compro-
missos, processos e estratégias quem de ser
cultivados. Por isso é preciso construir um am-
biente que favoreça as aprendizagens em con-
junto: tempo para reflexão, visão partilhada,
aprendizagem em equipe, autonomia, novos
estilos de liderança".
É nessa perspectiva que se radicam, por
exemplo, várias formas de organização do tra-
balho que começam a ser divulgadas como "as
equipes autogeridas", "os círculos de qualida-
de" etc.
Outro exemplo da importância que o "sa-
ber" tem na concepção de novas formas
organizacionais nas empresas e na sua gestão é
dado por Handy (1989) e pelo seu modelo de
"organização do triplo I".
Segundo esse autor, a nova fórmula do su-
cesso e da eficácia das companhias do futuro
reside na capacidade de os trabalhadores usa-
rem a sua /indigência para analisar a /nforma-
ção adequada, com o fim de gerar /déias para
novos produtos e novos serviços. Inteligência,
Informação e Idéias constituem assim, para
Handy, o primado do capital intelectual nas
novas organizações.
Como sublinha Burnes, ao comentar essa
"fórmula" de Handy, nessas organizações será
necessário dedicar mais tempo e esforço à
aprendizagem e ao estudo, em todos os níveis:
"as novas organizações serão sociedades dinâ-
micas e interativas onde a informação está aber-
ta a todos, sendo recebida e fornecida livremen-
te. Na organização do 'triplo V espera-se que
toda a gente seja capaz de pensar e aprender
o bem como fazer" (Burnes, 1992: 77).
A "destaylorização"
das formações
Como se, a evolução recente nas teorias
das organizações, bem como nos princípios e
práticas de gestão, constituem um contexto fa-
vorável à busca de novos modelos e práticas de
formação.
Assiste-se assim, cada vez mais, a uma in-
tegração entre o campo da formação e o campo
da organização, o que leva a uma articulação (ou
mesmo simbiose) das situações de formação
com as situações de trabalho.
Uma das perspectivas que mais tem favore-
cido essa integração é a que encara a formação
como um investimento produtivo, integrada na
decisão política e na estratégia geral da empre-
sa (Jobert, 1987).
Como assinala Le Boterf (1988), os planos
de formação tendem a articular-se estreitamen-
te com o plano estratégico da empresa e orien-
tam-se para a resolução de problemas e reali-
zação de projetos.
Nesse sentido torna-se necessário identifi-
car nas empresas as "situações-problemas" que
o suscetíveis de tratamento educativo.
Viallet (1987) identifica as seguintes: proble-
mas ligados à gestão de topo; problemas pró-
prios das unidades de trabalho; o estado das
equipes; o profissionalismo do pessoal; o ser-
viço prestado ao consumidor; o futuro profis-
sional dos assalariados.
Mas, para esse autor, o objetivo dessa for-
mação centrada na resolução de problemaso
é o de propor um sistema novo que venha subs-
tituir o anterior, mas, pelo contrário, "está ori-
entada para a procura de soluções pelos pró-
prios atores, cada um com a sua forma de inte-
ligência, e que por contributos sucintos estão
em condição de reparar os defeitos dos siste-
mas em que vivem" (Viallet, 1987: 153).
A modalidade de formação que é desenvol-
vida, nesse contexto, é aquilo que alguns auto-
res chamam de "formação-ação". Essa modali-
dade de formação "apresenta-se como um pro-
cesso de resolução de problemas que associa os
atores queo afetados por eles" (Jobert, 1987:
27) e que integra, simultaneamente, as dimen-
sões formação, investigação e ação (Boterf,
1988).
Essas e outras práticas de formação que se
desenvolvem no interior das próprias organi-
zações (ainda queo confinadas aos seus es-
paços e aos saberes) constituem um claro exem-
plo da emergência de novos paradigmas no
campo da educação de adultos em geral, que
tem claros pontos de contato com o que se ob-
servou no estudo das organizações e na gestão.
É nesse contexto que na formação contínua
de adultos se valoriza cada vez mais as modali-
dades que favorecem a capacidade de os atores,
nas organizações, "produzirem" o seu próprio co-
nhecimento, quer seja pelos "métodos autobio-
gráficos" e outras formas de "formação
experiencial", quer por meio da "aprendizagem
autodirigida" e outras formas de "autoformação'.
Assiste-se, assim, a um processo sincrônico
e recíproco de "destaylorização" das organiza-
ções e de "destaylorização" das formações.
Como notam Nelly Bousquet e Colette
Grandgérard (1990: 79):
Nas organizações do trabalho transformadas, o
processo de mudança, de modernização, torna-
se em si mesmo um processo de formação, pon-
do fim a uma concepção demasiado estreita e
tradicionalmente escolar de formação, que se
limitaria às situações formais de aquisição de
conhecimentos. A formação é entendida como
uma dinâmica global que faz apelo a conteúdos
formalizados organizados em situações clássi-
cas de aprendizagem ou em situações de traba-
lho, mas também a conteúdos mais difusos li-
gados à evolução das tarefas, a uma maior dele-
gação da responsabilidade, à associação à vida
da empresa etc.
A formação de professores
Como é evidente, todas essas transforma-
ções no domínio da formação contínua de adul-
tos e nas suas organizações de trabalho tiveram
naturais conseqüências na formação de profes-
sores:
Por um lado, reforça-se a idéia de que os
modelos de formação de professoresm de
estar orientados para a mudança dos com-
portamentos e das práticas, o que exige um
trabalho simultâneo sobre a pessoa do pro-
fessor, sobre o seu universo simbólico e so-
bre as suas representações, mas também
sobre os seus contextos de trabalho e o
modo como se apropria deles (perspectiva
crítico - reflexiva).
Por outro lado, as escolaso consideradas
como lugares de formação por excelência,
o que está na origem dos modelos de "for-
mação centrada na escola" (perspectiva
experiencial).
Essa evolução da formação de professores
inverte a posição tradicional como era vista a
relação entre a formação de professores e a mu-
dança das escolas.
Jáo se trata de, primeiro, formar profes-
sores, para que depois eles possam aplicar o que
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
aprenderam na transformação das escolas, mas,
partindo do princípio de que, como diz Rui Ca-
nário (1994), "os indivíduos mudam mudando
o próprio contexto em que trabalham", de fazer
da mudança das escolas um processo de forma-
ção (e mudança) dos professores.
Essa perspectiva desloca o problema da for-
mação de professores para o problema da for-
mação das escolas.
Como assinalam Monica Thurler e Philippe
Perrenoud (1990) num texto apresentado ao
Congresso da Sociedade Suíça de Investigação
em Educação, que tinha o sugestivo título de
"L'instituition Scolaire est-elle capable
d'apprendre?":
Podemos recusar entrar no jogo da metáfora
Ias escolas também aprendem] e compreender
a questão num sentido clássico: como muda a
escola? quaiso os processos e as estratégias
de inovação?
Outra maneira de encarar o problema é inda-
gar como é que aprendem as pessoas que fazem
funcionar a escola, o que remete para a proble-
mática clássica da formação de professores e dos
quadros, da mudança das atitudes e das práti-
cas, da difusão das idéias no sistema escolar.
Parece-me mais interessante, para renovar o
debate, tentar aplicar a idéia da aprendizagem
da própria organização escolar. Encarando a es-
cola como um sistema social, de que modo ela
constrói as representações, os saberes, os sabe-
res-fazer, como capitaliza e teoriza a experiên-
cia, tanto na escala do estabelecimento de ensi-
no como na de organizações mais vastas?
Isso significa que é na mudança da escola
que o professor se forma. O que implica esta-
belecer uma integração entre o "lugar de
aprender" e o "lugar de fazer", criando condi-
ções para que se produza uma outra relação
entre "o saber" e o "poder", nas escolas. Para
isso, é preciso que as escolas disponham de
espaços significativos de autonomia e que a
sua gestão seja assegurada de modo
participativo, por meio de lideranças individu-
ais e coletivas (ver a esse propósito Barroso,
1995b; 1997). Só assim será possível empreen-
der as mudanças necessárias para que a for-
mação se possa finalizar na inovação e no de-
senvolvimento organizacional da escola.
Se é verdade que "a otimização do poten-
cial formativo das situações de trabalho passa,
em termos de formação, pela criação de dispo-
sitivos e dinâmicas formativas que propiciem,
no ambiente de trabalho, as condições neces-
sárias para que os trabalhadores transformem
as experiências em aprendizagens a partir de
um processo formativo" (Canário, 1994:26),o
nos podemos esquecer também que é preciso
criar dispositivos e dinâmicas organizacionais
que propiciem que os trabalhadores transfor-
mem as suas "aprendizagens" em "ação".
Nessa relação entre formação - gestão - mu-
dança (que está subjacente a essa perspectiva da
"formação centrada na escola") estamos peran-
te um problema típico do "ovo e da galinha"!
A questão que se coloca é a seguinte:
Para que seja possívelr em prática mo-
dalidades de formação que permitam aos tra-
balhadores aprender por meio da organização
e das suas situações de trabalho, é preciso que
a própria organização "aprenda" a valorizar a
experiência dos trabalhadores e a criar condi-
ções para que eles participem na tomada de
decisão.
Ora, as organizaçõeso aprendem por si
(seo queremos ir contra uma das regras es-
senciais do "individualismo metodológico", que
impede tratar os coletivos como indivíduos);
portanto há que mudar as organizações para
que por meio delas seja possível mudar as mo-
dalidades e dispositivos de formação. Mas isso
o deve ser cumulativamente, porém sim
integradamente, no quadro de uma abordagem
global do processo de mudança organizacional.
Para isso há que evitar duas coisas:
1. Assumir uma perspectiva "gerencialista" e
normativa da formação contínua de adul-
tos, vendo nela, unicamente, uma das
componentes de uma "tecnização da mu-
dança organizacional" (de que fala
Friedberg, 1995: 328-29), à semelhança da
"gestão por objetivos", dos "círculos de
qualidade" e de outras técnicas de gestão.
2. Assumir uma perspectiva "voluntarista" da
formação contínua de adultos, julgando
que todos os profissionais se deixam atra-
ir pela "bondade dos seus princípios", ca-
indo na "ilusão pedagógica" de mudar a
sociedade (e as organizações) porque se
mudam as práticas de formação.
Por isso, a "formação centrada na escola"
o deve ser vista unicamente como uma mo-
dernização das políticas e práticas de formação,
mas sim como um dos instrumentos de uma
estratégia mais geral de mudança
organizacional, entendida como uma ação po-
lítica que tira a sua racionalidade e legitimida-
de dos atores que a praticam e das característi-
cas dos seus sistemas concretos de ação
(Friedberg, 1995).
A principal finalidade da "formação
centrada na escola" deve ser a de animar e
estruturar o processo de mudança. A formação
deve permitir que os próprios professores dis-
ponham de um conhecimento aprofundado e
concreto sobre a sua organização, elaborem um
diagnóstico sobre os seus problemas e mobili-
zem as suas experiências, saberes e idéias para
encontrar e aplicar as soluções possíveis.
A integração da formação na organização-
escola faz-se, desse modo, por meio da sua mo-
bilização a serviço de um projeto de mudança.
Para isso é preciso utilizar dispositivos e moda-
lidades de formação adequadas, como vimos.
E, quanto ao resto, é de repetir o que Crozier
e Friedberg dizem do processo de mudança em
geral:
"[..] como na guerra e no amor, a arte da
mudança está na sua execução!".
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balanço, perspectivas
Jean Hebrard
Ministério da Educação Nacional/EHESS/Paris/França
Resumo
A formação dos professores deve hoje fazer
frente a missões complexas e freqüentemente con-
traditórias. No entanto, ela é o instrumento decisi-
vo para o sucesso das evoluções em curso. Tentar
definir as suas restrições implica situá-la nos con-
textos políticos de onde ela nasceu. A partir dessa
análise, torna-se possível revisar as suas grandes
problemáticas nas etapas anteriores da evolução
de nossos sistemas educativos. Dentro dessa pers-
pectiva, a comparação entre o Brasil e a França é
particularmente esclarecedora.
As políticas de recrutamento e de forma-
ção dos professores das escolas de Ensino
Fundamentalm evoluído muito na maioria
dos países nestes últimos anos. A Declaração
de Jomtiem, no final da década de 1980, tem
contribuído para essa evolução, que afetou a
maioria dos países signatários. O mesmo
aconteceu com aqueles países agrupados na
OCDE, os quais aceitam as avaliações e as di-
retrizes desse organismo internacional. O re-
latório que a Comissão Jacques Delors reme-
teu à Unesco em 1996 reforçou essas orienta-
ções. Certamente, essas profundas modifica-
ções produziram-se em países cujos passados,
em matéria de educação, eram muito diferen-
tes. Assim sendo, cada um encontrou-se dian-
te de tarefas específicas. Entretanto,o se-
ria inútil tentar fazer um comparativo dessas
evoluções, ainda que estas possuam um gran-
de contraste, pois, por trás das políticas apa-
rentemente diferentes, inclusive opostas, si-
tuam-se problemas freqüentemente simila-
res, bem como tendências de fundo que
concernem à evolução da educação em âm-
bito mundial. É nessa perspectiva que tenta-
rei comparar aqui as grandes evoluções das
políticas de formação em dois países que co-
nheço bem, mas que são, evidentemente,
muito diferentes, pelo seu tamanho, pelas
suas organizações políticas e administrativas,
pelas suas histórias, pelos desafios aos quais
se vêem confrontados: o Brasil e a França.
Limitar-me-ei a evocar apenas alguns dos
problemas que me parecem ser comuns: as ra-
zões da emergência de uma exigência crescen-
te de formação, as dificuldades que esses paí-
ses encontram para articular formação acadê-
mica e formação profissional, as contradições
que nascem das delicadas relações entre forma-
ção inicial, formação continuada e pesquisa em
educação. No entanto, é importante, em primei-
ro lugar, situar bem os contextos nos quais es-
sas problemáticas estão enraizadas.
0 contexto político e social
das novas exigências
de formação no Brasil
e na França
Desde a última guerra mundial, os nossos
dois paísesm conhecido, quase que no mes-
mo momento, períodos de forte crescimento
econômico que foram acompanhados por uma
intensificação do êxodo rural e do desenvolvi-
mento rápido dos empregos urbanos (cresci-
mento do setor terciário). Ora, os nossos dois
países tinham herdado do século XIX sistemas
educativos duais, pouco adaptados à formação
desses novos atores da vida econômica: um en-
sino primário (universalizado na França, por
muito tempo lacunar no Brasil) destinado à al-
fabetização limitada da maior parte da popula-
ção, um ensino secundário e superior (para os
quais a França serviu amplamente de modelo,
particularmente como pioneira da école
nouvelle - escola nova - nos anos 1920-1930)
destinado à formação das elites recrutadas no
meio das classes burguesas urbanas.
No melhor dos casos, o pólo secundário
1
só
escolarizava entre 2 e 3% da população, mas,
em geral, o fazia visando à excelência. A forma-
ção dos seus professores colocava poucos pro-
blemas, na medida em que dizia respeito a po-
pulações culturalmente homogêneas. Forma-
dores universitários (responsáveis pela prepa-
ração para as licenciaturas de ensino), profes-
sores e alunos do secundário possuíam as mes-
mas origens culturais, dedicavam-se às mesmas
leituras, compartilhavam as mesmas discus-
sões. A licenciatura para o ensino, uma forma-
ção acadêmica de prestígio, era suficiente para
legitimar os professores desse nível.
Porém o pólo primário, por sua vez, conhe-
ceu, nos nossos dois países, sortes muito
díspares. No Brasil, foi considerado, durante
muito tempo, como algo acessório e abandona-
do à boa vontade das autoridades municipais ou
à dos estados da federação. O resultado foi a
constatação de situações totalmente díspares
que nenhuma organização federal, até estes úl-
timos anos, veio a corrigir. O status dos profes-
sores, seu nível de recrutamento e sua formação
permaneceram, durante muito tempo, anárqui-
cos. Apenas os estados mais ricos souberam
criar, graças a escolas normais estreitamente
integradas na vida política e cultural, um
movimento de confiança na escola pública que
poderia ter permitido ao Brasil avançar mais ra-
pidamente rumo a soluções eficazes. No mo-
mento decisivo, as arbitragens do regime de Ge-
túlio Vargas em favor da liberdade de ensino cer-
tamente satisfizeram os meios católicos, maso
permitiram que o ensino público, único suscetí-
vel de alfabetizar milhões de crianças das famí-
lias mais desfavorecidas, encontrasse, no Brasil,
a imagem que deveria ter sido a sua. É interes-
sante ressaltar que, entre o regime de Vargas e o
regime militar, no momento em que tudo, de
novo, voltaria a tornar-se possível, os meios mais
influentes do Brasil (em particular, os intelectu-
ais) tenham escolhido apoiar um sistema dual
(público/privado) mais do que um sistema-
blico universalizado. A partir daí, e até um perí-
odo muito recente, a qualidade do ensino públi-
coo foi um problema prioritário no Brasil, na
medida em que as classes em ascensão social
(que cresciam com o nascimento de uma classe
média muito ativa) tinham à sua disposição um
ensino privado de qualidade que havia tomado
o lugar do sistema secundário público no mo-
mento em que este tinha começado a crescer e,
portanto, a perder seu caráter elitista.
Na França, a lei da obrigatoriedade escolar
de 1882 foi, muito cedo, respeitada. daí resul-
tou um sistema público certamente ignorado
pelas elites, mas muito presente no espaço-
blico e dotado de uma imagem muito poderosa.
As escolas normais transformaram-se em cen-
tros de formação, respeitados na medida em que
as primeiras constituíam um instrumento de
ascensão social das camadas populares (um fi-
lho de camponês podia, pela escola normal, che-
gar a ser professor do ensino primário; seu filho
tinha grandes possibilidades de incorporar-se ao
sistema secundário para nele tornar-se profes-
sor; e, com isso, seu neto podia ascender a car-
reiras que antes tinham acesso reservado, tais
como Direito ou Medicina). Todavia,o é certo
que essas escolas normais tenham preservado
sempre a qualidade da formação. Sabemos que,
na França, apenas a metade dos professores do
ensino primário foi formada nas escolas nor-
mais, a outra metade entrou na profissão certa-
mente com um nível de qualificação equivalen-
te (o brevet, ou seja, diploma de fim do Ensino
Fundamental até 1945 e, depois, com o
1
Na França, o ensino secundário recrutava seus alunos desde os 7 ou 8 anos de idade naquilo que se denominava petits lycées, permitindo,
assim, que as famílias burguesas evitassem as escolas comuns, as quais faziam parte da rede do ensino primário.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
baccaleuréat), porém sem a menor formação.
É depois da última guerra mundial e com o
crescimento econômico que caracteriza esse
período que profundas transformações sociais
m afetar os nossos dois países e contribuem
para modificar profundamente nossos sistemas
educativos. O nascimento das classes sociais
"médias", produzidas pelo crescimento do setor
terciário das economias, e o aumento do papel
dos executivos nas empresas criam novos reque-
rimentos de ensino. No Brasil, o regime militar
escolhe a rede de escolas privadas para oferecer
às famílias preocupadas com a ascensão social o
instrumento que lhes permitirá promover a for-
mação de seus filhos no nível exigido pelo rápi-
do crescimento de uma economia urbana em
pleno desenvolvimento. Assim, com esse instru-
mento, as famílias encontrarão aquilo que pro-
curam prioritariamente: nem tanto pedagogias
renovadas, mas um ambiente social preservado,
que, a seus olhos, é mais a criação do contexto
do qual seus filhosm necessidade para ter su-
cesso na escola e para se incorporarem às ma-
neiras de viver das elites. É interessante salien-
tar que as classes médias, tanto no Brasil quanto
na França, sempre acharam que as formas mais
clássicas de ensino (ou seja, aquelas queo her-
dadas do antigo ensino secundário elitista)o
as mais eficazes. A formação de professores sur-
ge, nas escolas privadas, como um problema se-
cundário com respeito à preservação de uma
homogeneidade social percebida como o prin-
cipal instrumento da educação. De forma para-
lela, o ensino público, abandonado pelas classes
médias, torna-se, progressivamente, na opinião
delas, um ensino de menor valor e para o qual
o é necessário aumentar a despesa pública.
:
Na França, durante o mesmo período, o
crescimento econômico produz uma primeira
transformação. Desde então, de país eminen-
temente rural, a França se transforma num país
urbano (desde 1954, mais de 50% das comunas
possuem mais de 2.000 habitantes). É, portan-
to, nessa interface entre mundo rural e mundo
urbano que as necessidades por educação se
tornam as mais sensíveis: o nível primário
mune-se de uma prolongação (o curso comple-
mentar), que conduz os alunos até o nível do
cours moyen (séries finais do Ensino Fundamen-
tal). Essa profunda evolução que, na França,
constitui o verdadeiro motor da democratiza-
ção do ensino, se faz com os professores
polivalentes das escolas primárias e sem a-
nima formação. Nesse período, o crescimento
demográfico éo forte que ele interdita toda
ação voluntarista de formação: a duras penas
encontram-se os professores necessários para
serem instalados na frente dos alunos, eo é
raro encontrar um recém-egresso do ensino se-
cundário, três meses após os exames de final de
curso (com 17 ou 18 anos de idade), ensinando
uma turma do ensino primário. Aliás, é duran-
te esse período que se inventa uma nova fun-
ção no sistema educativo: o orientador peda-
gógico, um professor do primário, experimen-
tado, que é encarregado de fazer o acompanha-
mento dos professores recentemente nomea-
dos, sem formação.
A partir da V República (1958), desenha-se
uma nova política. O general De Gaulle está
convencido de que a escola pública pode for-
necer os quadros médios de que o país necessi-
ta. Ele opta, então, por transformar a rede de
cursos complementares (assistida por mestres
polivalentes do ensino primário) numa verda-
deira rede de ensino secundário (assistida por
professores especializados egressos do secun-
dário).' Essa reforma, que seria progressiva-
mente implantada, terminaria após sua morte,
em 1975. Ela é conhecida sob a denominação
"reforma do colegial único". Visava reconstruir
um sistema público obrigatório unificado (dos
Essa análise tem de ser mais elaborada. Em função dos estados e dos municípios, constata-se que o ensino público pôde ser, durante esse
período, mais ou menos preservado, oferecendo assim, durante estes últimos anos, as bases mais ou menos sólidas para a sua renovação.
3
É interessante ressaltar que essa transformação se produz tendo, como pano de fundo, uma luta sindicalo forte que e inscreve na Guerra Fria:
os sindicatos do ensino primário francêso majoritariamente reformistas (ligados à social-democracia, representada na França pelo Partido
Socialista), os sindicatos do ensino secundário são, pelo contrário, majoritariamente revolucionários (e, portanto, muito ligados ao Partido
Comunista). A reforma gaulista vem então em apoio dos sindicatos comunistas e produz, em permanência, a minoração dos sindicatos reforma-
dos (essa política há de lembrar a posição muito especifica da diplomacia da gestão de De Gaulle durante a Guerra Fria).
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
âmago de todos os aprendizados. Por último,
realiza-se um esforço muito grande para alon-
gar a duração da Educação Infantil (que perma-
nece sendo não-obrigatória):
4
desde o final dos
anos 1980, a totalidade dos alunos de 4 e 5 anos
se encontram escolarizados; no final dos anos
1990,o todas as crianças com 3 anos de ida-
de queo acolhidas e, hoje, metade das crian-
ças de 2 anos de idade toma o caminho da es-
cola. As necessidades de formação explodem.
O IUFM, inicialmente encarregado apenas da
formação inicial e, depois, a partir de 1999, da
formação inicial e continuada, tem de inventar
novos dispositivos de formação. Para a forma-
ção inicial, os Institutos caracterizam-se pela
sucessão de um primeiro ano que visa dotar
cada estudante com uma "alfabetização profis-
sional" séria, ou seja, com uma capacidade de
ler com folga toda a literatura profissional e de
escrever os principais tipos de textos necessá-
rios para o exercício da profissão. É no fim des-
se primeiro ano que um concurso irá selecio-
nar os estudantes do segundo ano, que se trans-
formam em funcionários públicos estagiários.
O segundo ano é dedicado a perfazer a
polivalência dos jovens mestres e, por meio de
uma série de estágios, dos quais diversos com a
efetiva responsabilidade pelo ofício, a iniciá-los
nas práticas da ocupação, em contato com os
"professores-formadores" (professores experi-
entes, parcialmente desobrigados da turma).
Por sua vez, a formação continuada, que é efe-
tivada ao mesmo tempo pelos inspetores das
circunscrições e pelo IUFM, visa essencialmen-
te a fazer ingressar todos os professores na nova
pedagogia definida pela lei de orientação.
É só no final dos anos 1980 que o Brasil,
como conseqüência de importantes mudanças
políticas que o país conhece e da promulgação
de sua nova Constituição (1988), se encontra
realmente diante das opções políticas comple-
xas com as quais os países da Europa (em parti-
cular, a França) já se haviam confrontado. As
duas exigências - de universalizar a alfabetiza-
ção de base e de fazer passar a totalidade do sis-
tema educativo de uma alfabetização elemen-
tar a uma formação longa para todos os alu-
nos - demandam uma vontade políticao for-
te que se arrisca a tropeçar, com a dispersão
dos meios e dos esforços, num sistema de es-
cola fundamental mais desbaratado, na medi-
da em que é crescentemente municipalizado.
Os Cefam(s), criados experimentalmente em
alguns estados em 1983, e queo estender-se
progressivamente ao longo de toda a década,
tentam responder a todas as exigências ao mes-
mo tempo. Lamentavelmente, as escolhas fei-
tas anteriormente conduzem à coexistência de
realidades escolares totalmente heterogêneas.
O Brasil do início dos anos 1990 dispõe, de fato,
de diversos sistemas escolares que coabitam em
espaços diferentes (oposição norte/sul) ou, às
vezes, nos mesmos espaços (em particular, as
megalópoles) e que incluem tanto o ensino pri-
vado quanto o ensino público. Satisfazer ao
mesmo tempo todas as necessidades, com as
restrições dos financiamentos disponíveis, num
momento em que a inflação interdita as ações
de longo prazo, leva numerosos estados a orga-
nizar seus próprios dispositivos, ao mesmo
tempo que buscam, fora do Brasil, os financia-
mentos necessários (FMI, Banco Mundial etc).
Segundo o estado federado concernente, é um
ou outro objetivo que é prioritariamente visa-
do: valorização do antigo Magistério, utilização
de fundações que assumem a responsabilidade
por programas de formação continuada, cria-
ção de institutos estaduais, desenvolvimento de
institutos universitários especializados etc.
Paralelamente, assiste-se, na opinião públi-
ca, a uma forte valorização da escola pública
(graças, em particular, aos movimentos
associativos, sindicais ou políticos, sejam eles
de origem católica ou marxista). Entretanto, o
projeto de reunificação de ambos os sistemas
(privado e público) é raramente levantado, e as
classes médias, sempre crescentes, continuam
a pensar que é preferível um sistema dual.
Quando ele é formulado, o compromisso em
favor das escolas públicas (mesmo naqueles
estados ondeo os municípios que realmente
mantiveram esse setor) continua sendo um ob-
* Na França, a escolaridade obrigatória começa aos 6 anos de idade (primeiro ano da escola elementar), eo à idade de 7. como no Brasil.
jetivo em atenção às classes mais desfavoreci-
das, mais do que uma opção pessoal de educa-
ção para seus próprios filhos.
Assim sendo, a exigência de formação defi-
ne-se de maneira bastante complexa. Ela pode
visar à melhoria das competências profissionais
dos professores em exercício, já possuidores de
uma boa formação inicial (em geral, o Magisté-
rio) e dos quais se espera que sejam os media-
dores entre o Ensino Fundamental tradicional e
um ensino modernizado suscetível de favorecer
uma escolarização longa e aberta para o gina-
sial. Pode-se visar também à formação inicial de
jovens professores que irão, imediatamente de-
pois, desempenhar esse papel. Pode-se, ainda,
tentar propiciar aos professores menos forma-
dos (professores leigos) a base mínima a que eles
deveriam ter tido direito. Mas, ao mesmo tem-
po, tem-se de recrutar professores para abrir es-
colas naqueles lugares em que nunca existiram
(ou de onde há muito desapareceram), sabendo
que terão poucas probabilidades de receber um
salário equivalente ao salário mínimo. É claro
que o Plano Decenal de Educação para Todos,
que responde, em 1993, ao engajamento do Bra-
sil à Conferência de Jomtiem, está especialmen-
te atento a todas essas dimensões da formação;
dispõe, porém, de poucos meios de incorporar
os municípios ou, até, os estados federados que
demonstram as maiores necessidades dentro
dessa difícil dinâmica. É certo que o esforço fei-
to no âmbito do governo federal, nos anos se-
guintes (LDB de 1996), para traçar mais especi-
ficamente as grandes orientações (graças, em
particular, aos PCN), para controlar de maneira
mais firme as alocações financeiras para os mu-
nicípios mais pobres e criar os meios para um
reajuste dos salários dos professores (graças ao
Fundef), bem como para exigir uma progressiva
homogeneização do recrutamento e da forma-
ção (ao nível superior), torna possível o queo
era, na primeira metade da década dos 1990. Para
um observador estrangeiro como eu, a necessi-
dade de formação, que tinha crescido de manei-
ra importante durante a primeira parte do decê-
nio, mas que permanecia pulverizada entre a
multiplicidade de parceiros que estavam a car-
go dela e sujeita à boa vontade das
municipalidades ou dos estados, aparece, cada
vez mais, como uma necessidade absoluta. Ela
dispõe dos instrumentos (os PCN) que tornam
possível sua organização clara, visando objeti-
vos explícitos. O debate nacional que cresceu em
torno dos Parâmetros Curriculares permitiu, de
fato, que os múltiplos participantes que intervêm
na formação chegassem a um consenso (certa-
mente,o foi fácil) e que pudessem, depois,
apoiar-se num texto amplamente aprovado para
pensar, de uma maneira mais uniforme do que
no passado, o que podia ser a formação/ A faça-
nha efetuada nesse caso pelo governo federal foi
a de criar uma representação suficientemente
clara e poderosa dos objetivos da educação, para
que ela pudesse ser aceita, sem reserva, pelos
estados e municípios e também por instituições
tais como as universidades e ONGs. A muni-
cipalização do Ensino Fundamental, que se ace-
lerou durante esses mesmos anos, seguiu no
mesmo sentido, criando uma ligação direta, nova
no Brasil, entre os municípios e o governo fede-
ral que, acima das disparidades nacionais, ori-
enta-se no sentido de uma maior unificação da
política educacional brasileira e, portanto, faci-
lita o processo de formação.
Certamente, a complexidade da iniciativa
brasileira ainda subsiste. À imensa iniciativa de
elevar o nível dos professores com menos for-
mação vem se acrescentar a iniciativa igual-
mente importante de reorientação das práti-
cas educativas capazes de fazer do sistema
educacional público brasileiro um sistema de
formação de massas, que conduza cada crian-
ça ao nível de uma alfabetização do tipo se-
cundário (autonomia no uso da escrita, utili-
Na França, foi preciso esperar até o ano de 2001 para que parâmetros curriculares fossem elaborados no modelo brasileiro. Até
, a França produzia apenas "programas" que definiam os conteúdos de conhecimento a serem adquiridos, sem fornecer nenhu-
ma orientação acerca da organização dos aprendizados. Tendo tido a oportunidade de participar, na qualidade de especialista
internacional, da iniciativa brasileira, a experiência que obtive pôde ser reinvestida de forma muito útil na iniciativa francesa. Nas
negociações que se desenvolvem atualmente em torno desses programas, é possivel já enxergar que se reproduzem, na França,
os efeitos muito positivos que se produziram no Brasil, em particular, na área da formação inicial e continuada.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
zação da escrita para construir conhecimen-
tos). Pode-se ver também, dentro desse imen-
so esforço de formação, as premissas de uma
nova valorização do Ensino Fundamental-
blico, suscetível de reincorporar uma parte das
classes médias que dele se afastaram para, as-
sim, aceitar novamente correr o risco e ter in-
teresse por ele.
Dentro dessa nova exigência de formação
que caracteriza o atual estado dos sistemas edu-
cativos de nossos dois países, quaiso os prin-
cipais obstáculos que nos corresponde superar?
A articulação entre
a formação acadêmica e a
formação profissional
Com certeza, esse é o problema mais impor-
tante de toda formação inicial. Ele acontece na
maioria dos países que recorrem a um recruta-
mento de professores de nível universitário.
Devemos lembrar que essa evolução foi, em
grande medida, ligada às críticas feitas às anti-
gas escolas normais: estas só produziam pro-
fessores adaptados a metodologias rígidas, de-
finidas pelo uso restritivo de livros escolares
simples demais para permitir a todos os alunos,
sem exceção, ingressar numa alfabetização de
êxito. Ao situar o recrutamento e a formação no
nível universitário, esperou-se propiciar a cada
professor o domínio de sua competência pro-
fissional, isto é, a possibilidade de adaptar, de
forma permanente, seus savoir-faire aos públi-
cos que lhe fossem confiados. Ora, é amplamen-
te sabido que os professores que trabalham na
universidade vêem sua carreira evoluir em fun-
ção de suas competências de pesquisa e que
elesm a tendência natural para reproduzir
pesquisadores. A pergunta que se coloca então,
em todos os nossos países, é a seguinte: será
que, no caso, as competências de pesquisao
capazes de oferecer a um professor a possibili-
dade de dominar seu arcabouço profissional?
Por trás desse debate, em si muito acadêmi-
co, escondem-se de fato práticas de formação ex-
tremamente diversificadas.o é forçosamente
entre os agentes universitários que se desenvol-
vem as ações mais acadêmicas (transmissão, por
meio de aulas magistrais, das disciplinas de re-
ferência da educação: Sociologia, Psicologia, His-
tória da Educação...). Inversamente, pode-se
propor, nas faculdades de educação ou nos
IUFM, um treinamento profissional que, em ou-
tra época, caracterizava as escolas normais. Pa-
rece ser necessário hoje redefinir de maneira
mais precisa o que se entende por formação aca-
dêmica e por formação profissional.
No que se refere aos professores polivalentes
do Ensino Fundamental, é possível imaginar a
formação como um processo que deve obriga-
toriamente comportar diversos estágios. O pri-
meiro deles concerne à formação antes da es-
pecialização. Todos concordam hoje que ela
deve ser de nível universitário e conduzir o es-
tudante ao nível de uma licenciatura. De que,
então, se trata? É importante que esse estágio
seja visto como uma formação que permita ao
estudante dispor, numa área dada do saber, da
capacidade de ler e escrever de maneira autô-
noma, ou seja, da capacidade de poder consti-
tuir práticas de leitura e de escritura suscetíveis
de permitir a análise das produções de uma área
do saber. Em geral, os universitárioso exce-
lentes acompanhantes para a aquisição dessa
competência, pois ela corresponde a uma de
suas principais atividades: a inquietude cientí-
fica na sua área e a elaboração de sínteses dos
conhecimentos disponíveis.
o problema que aqui se coloca com os pro-
fessores polivalentes do Ensino Fundamental é
aquele da transferência dessas competências
para a totalidade das áreas do conhecimento
relativas à escola primária. Por exemplo, será
preciso propiciar licenciaturas polivalentes es-
pecíficas para os professores do Ensino Funda-
mental? Trata-se, de fato, de um falso proble-
ma. A licenciatura permite adquirir atitudes
intelectuais mais do que uma especialização. A
área na qual se exercem essas atitudes deve ser
suficientemente específica para que o estudan-
te tenha a possibilidade de assimilar as princi-
pais problemáticas, mas será preciso que, na
maioria dos casos, ele espere pela pós-gradua-
ção para adquirir um conhecimento realmente
científico de uma parte dessa área. A licencia-
tura universitária deve ser hoje concebida como
um mecanismo de aquisição de uma "alfabeti-
zação generalista" que se exerceu numa deter-
minada área do saber, mas que pode transferir-
se para outras áreas. O ideal seria que o estu-
dante licenciado pudesse ser um bom leitor de
qualquer texto de divulgação, de qualquer cam-
po científico (por exemplo, páginas especia-
lizadas dos grandes jornais e revistas).
A partir daí, o segundo estágio da forma-
ção, aquele de uma "alfabetização profissio-
nal", articula-se diretamente com o primeiro.
Os institutos de formação, quaisquer que se-
jam eles,m de, como missão primeira, en-
sinar aos seus estudantes em formação inicial
a capacidade de ler qualquer documento pro-
fissional e de elaborar sínteses de qualquer
campo do conhecimento ligado à vida profis-
sional. Portanto, corresponde a esses institu-
tos selecionar as noções e os conceitos cuja
aquisição é necessária para ingressar nessa
literatura e, também, de estruturar as gran-
des problemáticas que se situam no centro
dos principais debates que aí se produzem.
Esse é um trabalho muito específico, que tam-
m pode envolver tanto os campos de co-
nhecimento a serem transmitidos (Lingüísti-
ca, Matemática, História, Ciências, Literatu-
ra), quanto os processos de transmissão (psi-
cologia, sociologia, didática dos aprendizados
etc). O objetivo é de tornar o professor sus-
cetível de trabalhar permanentemente com a
literatura profissional que se desenvolve na
sua área, ou seja, torná-lo particularmente ca-
paz de descobrir, apenas pela simples leitura
da literatura profissional, as novas maneiras
de pensar seu trabalho e, inclusive, de inven-
tar práticas inovadoras.
É interessante constatar como os professores
recrutados sem nível universitário, isto é, sem a
primeira etapa de alfabetização, seja na França ou
no Brasil, raramente atingem essa autonomia ante
a literatura profissional e ficam, em grande me-
dida, dependentes de modelos de transmissão de
conhecimentos queo resultam da cultura es-
crita. Elesm necessidade de ver fazer e de ouvir
dizer. Eleso sabem identificar, a partir de uma
leitura, aquelas ações profissionais que, de outro
modo, poderiam efetuar.
Essa dupla alfabetização (geral e profissio-
nal) é a única capaz de oferecer a cada profes-
sor a possibilidade de adaptar sua ocupação às
rápidas evoluções das missões que lheo con-
fiadas. Uma grande parte da formação continu-
ada deve hoje ser confiada à escrita (seja ela
impressa ou informatizada).
o terceiro estágio de uma formação é o
de acesso às práticas profissionais (formação
inicial) ou de modificação das práticas pro-
fissionais (formação continuada). Hoje sabe-
mos melhor que as atitudes profissionais de
base só podem ser aprendidas no exercício
da profissão.o há nenhum curso teórico
que possa ensinar a um jovem professor a
maneira de construir uma relação de autori-
dade com os seus alunos. Tal relação envol-
ve milhares de ajustes, ao longo de uma hora
de aula, que constituem um mesmo número
de respostas a análises quase instantâneas de
situações em evolução permanente. A
ergonomia tenta atualmente abordar essa
questão para múltiplas profissões, reconhe-
cendo, ao mesmo tempo, que, se se conse-
gue descrever esses processos especialistas,
ainda se está muito longe de saber como é
que podemos transmiti-los de outra forma
queo seja pela repetição de tentativas, de
acertos e de erros. Sabe-se também que um
professor sem experiência raramente é capaz
de "ver", durante um estágio junto de um
mestre mais antigo, quaiso os atos que
produzem os efeitos pretendidos. A prática
profissional é um processoo complexo que
supõe muitos anos de experiência antes de
poder ser um pouco objetivada.
o que se tenta transmitir com maior fre-
qüência hoje em dia, tanto na formação inicial
quanto na formação profissional,o os proce-
dimentos mais estáveis da vida profissional,
aqueles que, em geral, constituem os marcos do
trabalho. É assim que, nos IUFM franceses,
grande parte da formação profissional consiste
em ensinar aos estudantes do segundo ano a
arte de escrever uma "preparação", isto é, o pre-
visível desenrolar de uma seqüência de apren-
dizagem. É interessante observar que os profes-
sores que ensinam esse savoir-faire são, em ge-
ral, professores especialistas numa disciplina
(um matemático ensina a arte de fazer prepa-
rações de Matemática), enquanto o estudante
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
permanece sendo polivalente. O resultado mais
freqüenteo profundas defasagens entre a
tecnicidade pretendida pelo professor e as com-
petências disponíveis no estudante. Ainda as-
sim, esses marcos de trabalhoo justamente
aqueles mais facilmente acessíveis na literatu-
ra profissional (nas revistas, nos manuais etc).
Pode-se, contudo, pressupor que, se um profes-
sor adquiriu a capacidade de conceber instru-
mentos desse tipo, ele será capaz de utilizar
melhor aqueles que achará em outro lugar, já
elaborados. Esse é, portanto, um aspecto não-
desprezível da formação inicial. Ele deve ser
também um aspecto importante da formação
continuada, quando surgem outros instrumen-
tos queo aqueles que constituem a cultura
tradicional da profissão.
Em geral, deposita-se confiança nos está-
gios para efetivar a transmissão daquilo que al-
guns chamam de a "pedagogia invisível", ou
seja, o conjunto de práticas da profissão que
dizem respeito diretamente à perícia no ofício.
Ora, devido à sua própria invisibilidade, essas
práticasoo transmissíveis nem nos está-
gios, nem em cursos teóricos. Os estágios em
geral asseguram a formação num mínimo pro-
fissional vital, ou seja, algumas atitudes mais
previsíveis da profissão. Eles são, certamente,
uma contribuição essencial, mas muito insu-
ficiente. Sabemos hoje que a formação para a
especialização depende do acompanhamento
profissional em início de carreira e foge, por-
tanto, com maior freqüência, aos institutos de
formação inicial. Alguns centros universitários
especializados e algumas ONGs, no Brasil, fi-
xaram-se como objetivo o de explorar essas no-
vas vias de formação. Na França, elas depen-
dem daquilo que se chama "dinâmica na cir-
cunscrição" {animation en circonscription) e
o colocadas sob a responsabilidade do ins-
petor da circunscrição e da sua equipe de for-
madores (em geral, dois a três mestres-forma-
dores). As práticas mais freqüentes consistem
em colocar um grupo de professores diante de
um dispositivo didático inovador. A primeira
fase é, portanto, uma fase de concepção de
preparos; posteriormente, numa segunda eta-
pa, a prática consiste em contatar esses mes-
mos professores de maneira regular, para ana-
lisar os efeitos desse novo dispositivo sobre os
alunos e para estabelecer as etapas sucessivas.
Esses procedimentos de formação também
supõem, por um lado, mestres capazes de as-
similar rapidamente a literatura profissional
disponível sobre o tema explorado e, por ou-
tro, mestres queo se sintam perturbados
pelas ações elementares do ofício. Podemos
ver, então, que tais procedimentosm mais
chances de ter êxito na formação continuada
do que na formação inicial.
Em suma, é claro que a formação chamada "te-
órica" e a formação práticao hoje duas vias de
trabalho que evoluem em paralelo. Seria talvez in-
teressante extrair disso todas as conseqüências, em
particular na medida em que nos interessarmos na
formação dos formadores. Os "alfabetistas" respon-
sáveis pela formação teóricao farão nunca o tra-
balho dos práticos aguerridos (mestres-formado-
res). Porém é crucial que eles sejam excelentes es-
pecialistas da literatura profissional e que esta os
remeta a realidades concretas nas quais terão ex-
periência. Com os universitários, a pesquisa per-
mite freqüentemente obter uma experiência dire-
ta da vida das escolas e das turmas. Por sua vez, os
mestres-formadores devem aprender a "falar" as
práticas invisíveis da profissão, de maneira a tor-
nar possível compartilhar as experiências direta-
mente vividas nas aulas. É essencial que eles per-
maneçam, para uma parte importante do seu tra-
balho, como professores responsáveis de uma tur-
ma. Essa é, para eles, a única forma de criar as con-
dições desse intercâmbio sobre a qualificação para
a profissão.
Uma das evoluções mais recentes das fun-
ções do professor é aquela que consiste em
confiar a ele menos a condução da seqüência
didática (que, com certeza, no futuro será
confiada a uma máquina) do que a interação
com o aluno singular ao longo de sua tarefa.
A qualidade da interação (análise do erro, re-
tomada da aprendizagem, explicitação das di-
ficuldades, diálogo didático) certamente se
tornará o ponto mais crucial da formação, se
é que se deseja ter profissionais capazes de
uma verdadeira diferenciação em sua ação.
Por enquanto,o sabemos como é que se
adquire esse tipo de qualificação num proces-
so de formação.
A articulação entre a
9
formação inicial, a formação
continuada e a pesquisa em
educação
9
A articulação entre a formação inicial e a
formação continuada é a segunda das dificul-
dades com as quais os nossos sistemas educa-
tivos se confrontam hoje. Ela se coloca com tan-
ta força que, para uma parcela do pessoal, a for-
mação continuada pode ser a primeira forma-
ção de que participa. É o caso de muitos pro-
fessores leigos no Brasil; é também o caso da-
queles professores que entraram na profissão
na condição de suplentes, na França.'
1
Evidentemente, a formação continuada tor-
nou-se atualmente um excelente dispositivo de
formação profissional. Com efeito, ela se apoia
numa primeira experiência da profissão e per-
mite ao jovem professor basear-se na sua baga-
gem profissional para analisá-la e melhorá-la.
Entretanto, tal formação supõe a existência de
formadores de altíssima qualidade e
freqüentemente exclui professores de índole
universitária, quem pouca experiência com a
vida em sala de aula. É claro que o formador-
modelo deve ser, nesse caso, um professor mu-
nido de boa experiência profissional no âmbito
da escola de Ensino Fundamental (se é que ele
forma professores para esse nível) e que, além
disso, tenha adquirido uma formação nas prin-
cipais didáticas bem como nas áreas de conhe-
cimento de referência da educação. Dentro des-
sa perspectiva, utilizam-se freqüentemente an-
tigos professores que adquiriram formação em
nível de pós-doutorado. Todavia,o é certo que
a pesquisa seja a melhor via de acesso para a
qualificação esperada. A França, de maneira to-
talmente experimental, está em via de explorar
a possibilidade de fazer evoluir o status de mes-
tre-formador
1
para responder a essas exigências.
A Universidade de Clermont-Ferrand inaugurou
um sistema de formação de mestres-formado-
res, no nível do Diplome d'Enseignement
Supérieur Spécialisé (DESS),* que os inicia na
análise ergonômica das práticas profissionais.
o interesse da formação continuada, quan-
do se visam aspectos mais complexos da
profissionalização, tem possibilitado levar ao
desenvolvimento de certas experiências de for-
mação inicial particularmente originais. É o
caso, na França, de formações atualmente de-
senvolvidas na Guiana Francesa (um departa-
mento da França onde o recrutamento perma-
nece deficitário), que visam colocar num mes-
mo cargo duas pessoas não-formadas. Cada um
dos membros dessa "dobradinha" passa, de for-
ma alternada, de uma situação de professor en-
carregado de turma à situação de estudante do
centro de formação. O ritmo das alternâncias
é, em geral, de três meses em cada uma das si-
tuações. A duração total da formação (para um
recrutamento após dois anos de estudos uni-
versitários) é de três anos. Esse sistema parece
ser muito apreciado pelos estudantes. No en-
tanto, para os formadores, a tentação de só se
empenharem no terceiro estágio da formação e
de menosprezarem a alfabetização geral e pro-
fissional é forte. Se a inserção no trabalho se
processa com maior rapidez,o é certo que,
no longo prazo, as bases assim adquiridas per-
mitam ao professor ter acesso à autonomia pro-
fissional que atualmente todos procuram.
a
É o que se observa com muita freqüência no departamento da Guiana Francesa.
7
Na França, um Instituteur-Maitre-Formateur - IMF (NT Professor de pré-escola ou de escola primária que ensina nos centros de formação de
professores) é um professor com pelo menos seis anos de experiência na profissão e que tem o diploma Certificat d'Aptitude aux Fonctions
dlnstituteur-Maitre-Formateur- CAFIMF [Certificado de Aptidão para as Funções de (MF). Esse certificado ó obtido após a defesa de uma
monografia profissional e de uma prova de análise e de conselho da atividade de um professor estagiário. Os IMF são, em parte, liberados
das atividades docentes para trabalhar nos centros de formação, mas mantêm pelo menos dois terços de sua carga normal, Eles podem se
tornar Conselheiros Pedagógicos de uma Circunscrição - CPC Nesse caso. eles estão capacitados a se tornarem adjuntos de um Inspetor
da Educação Nacional - IEN, que é encarregado de uma circunscrição. Uma circunscrição é um conjunto de escolas colocadas sob a
autoridade do IEN, que é responsável pela avaliação dos professores e pela sua formação. Em geral, um inspetor trabalha com 280 a 300
professores. Ele dispõe de uma equipe de circunscrição composta por uma secretária, e dois conselheiros.
8
o DESS é um diploma universitário de 3
o
Cycle (análogo ao Diplome d'Êtudes Approfondies - sigla DEA, em francês), mas que tem uma
objetivação profissional e. portanto,o permite, como o DEA, preparar uma tese de doutorado.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
Um dos principais problemas da formação
continuada é hoje, com certeza, o de negligen-
ciar os primeiros estágios de um dispositivo
completo de formação, em particular quando
essa formação visa prioritariamente a uma ele-
vação na qualificação de professores que tive-
ram pouco ou nenhuma formação inicial. Está
claro que os professores leigos ou, inclusive,
aqueles que já atingiram o nível de Magistério,
e queo hoje, no Brasil, efetuar a formação
para eles exigida pela Lei de Diretrizes e Bases,
encontram-se exatamente nessa situação. Eles
continuam a lidar de maneira difícil com a lite-
ratura profissional e se sentem incomodados
quando se trata de sintetizar as informações
oferecidas. Assim sendo, a tendência é a de
abandonar essa alfabetização para retornar à
análise das práticas profissionais.o é certo
que seja disso que eles mais necessitam. Reen-
contramos na França problemas idênticos
quando se deseja completar com uma forma-
ção continuada os conhecimentos das discipli-
nas dos professores. Na medida em que, entre
nós, a formação continuada exige uma candi-
datura por parte do professor, acontece, com
muita freqüência, ser impossível encontrar vo-
luntários que aceitem atualizar seus conheci-
mentos em Matemática, em Lingüística ou em
História. As propostas de formação que visari-
am a alfabetização geral ou a alfabetização pro-
fissional, e que foram mencionadas neste tra-
balho, seriam então ainda menos acolhidas.
É possível afirmar hoje que o principal pe-
rigo que ronda a formação continuada é o de
fechar-se em volta de um aspecto limitado do
processo de formação, que seria pouco capaz
de construir a necessária autonomia profissio-
nal, ou seja, a construção de progressões de
aprendizagens-modelo e a análise das supostas
práticas didáticas.
A formação inicial, à medida que se torna
de nível universitário, enfrenta um perigo bem
diferente. Certamente, ela pode negligenciar o
terceiro estágio da formação (a profissio-
nalização propriamente dita)o porque tal
formação possao desejar colocá-lo em prá-
tica, mas porque os estudantes na formação
inicialo possuem nunca a experiência pro-
fissional que lhes permitiria tirar pleno provei-
to do referido estágio. Talvez seja necessário
simplesmente aceitar que esse aspecto da for-
mação seja relegado a um acompanhamento
dos primeiros anos de carreira profissional.
Com efeito, o principal perigo refere-se direta-
mente aos formadores. Estes podem ser condu-
zidos a centrar suas atividades apenas sobre a
formação inicial e, a partir daí, perder os bene-
fícios do contato regular com os práticos expe-
rientes que, para esses formadores, constituem
um princípio de realidade que se opõe às su-
gestões queo levados a oferecer. Nesse senti-
do, pode-se considerar que a prática regular de
atividades de formação continuada constituí a
melhor formação possível para um formador de
formadores. Num certo sentido, ela vem com-
pletar seu trabalho de inquietude científica na
área que é sua, bem como seu trabalho de pes-
quisa, se ele for universitário.
A implantação, em algumas Faculdades de
Educação das universidades brasileiras, de cen-
tros consagrados à formação continuada dos
professores da escola fundamental é, a esse res-
peito, um avanço muito importante. Na Fran-
ça, os IUFM assumiram recentemente (em
1999) a responsabilidade pela formação conti-
nuada. Eles aindao integraram essa dimen-
o às suas atividades e ainda diferenciam em
demasia as pessoas que trabalham com a for-
mação inicial daquelas que assumem a forma-
ção continuada. Podemos considerar que a for-
mação inicial sofre de bastante irrealismo e que
os estágios dos estudantes que cursam o segun-
do ano de formaçãooo realmente condu-
zidos pelo instituto de formação.
A articulação entre formação e pesquisa em
educação coloca o mesmo tipo de problemas.
Durante muitos anos, privilegiou-se a visão um
pouco romântica da "pesquisa-ação", fazendo
com que todo professor que buscasse inovar
fosse um pesquisador em potencial. Está claro
hoje queso podemos desperdiçar os pou-
cos recursos para pesquisa, de que dispomos no
campo da educação, para substituir as pesqui-
sas de que realmente temos necessidade, por
ações disfarçadas de formação profissionali-
zante. Contudo, é pertinente que sejam os pró-
prios pesquisadores os encarregados de colo-
car os resultados de suas pesquisas à disposi-
ção, tanto dos formadores de formadores quan-
to dos professores cursando uma formação. Isso
é perfeitamente possível a partir do segundo
estágio do dispositivo (a alfabetização profissi-
onal), na medida em que um professor deve
aprender a ler e a utilizar os resultados de pes-
quisas divulgados. Todavia, para o pesquisador,
a qualidade da divulgação da qual é capaz vai
depender, em grande parte, do conhecimento
que ele pôde adquirir das representações de que
dispõe o público ao qual ele destina os conhe-
cimentos que produziu. Novamente, uma
prática assídua da formação continuada é a
única capaz de permitir-lhe transformar-se
num bom divulgador.
Conclusões
As despesas destinadas à formação serão cer-
tamente um dos fatores em jogo mais importan-
tes dos orçamentos das políticas educativas no
decorrer dos próximos anos. Esse será o preço a
pagar para alcançar a democratização do ensino
(um acessoo apenas à alfabetização, mas, tam-
Com a aprovação do Plano Nacional de
Educação e a recente definição das diretrizes
curriculares para formação inicial de profes-
sores da educação básica, o Brasil está com-
pletando a primeira geração de reformas edu-
cacionais iniciadas após a redemocratização
do país. Esse movimento teve dois ciclos bem
distintos: o primeiro estendeu-se de 1983,
com a posse dos governadores eleitos pelo
voto popular, a 1993-1994, com a mobilização
nacional em torno do Plano Decenal de Edu-
cação para Todos.
Nesse período, os estados e municípios
bém, à qualificação para todos), bem como para
permitir que o Ensino Fundamental prepare mais
e mais alunos para uma escolarização longa. O fato
de que essa evolução se faça no próprio âmbito dos
sistemas públicos de educação deveria permitir a
estes últimos reconquistar - ouo perder - as fa-
mílias das camadas médias que, desde meio sécu-
lo atrás, têm-se transformado nos principais con-
sumidores de educação. A presença de seus filhos
nas escolas públicas é o único meio de evitar que
os sistemas educativos reproduzam e ampliem
segregações sociais inaceitáveis. As escolhas que
serão feitas deverão fornecer às instituições de for-
mação as orientações capazes de permitir a esses
sistemas conduzir, para novas práticas pedagógi-
cas, mais exigentes e mais complexas, um pessoal
que já foi há algum tempo recrutado, ao mesmo
tempo em que forma jovens estudantes recruta-
dos em nível universitário avançado.o dispo-
mos ainda de instrumentos suscetíveis de satisfa-
zer a todas essas exigências. Cabe às instituições
de formação, tanto quanto aos podêres públicos,
orientar sua ação, no sentido de encontrar rapida-
mente o meio de constituí-los.
emergiram como importantes atores no de-
senvolvimento das políticas de Educação-
sica. Na verdade, do ponto de vista institucio-
nal, os estados e municípios assumiram uma
posição de liderança no processo de mudan-
ças. Como fruto dessa luta pela democratiza-
ção e descentralização das políticas educacio-
nais, que contava com forte apoio de organi-
zação da sociedade civil, e como decorrência
direta da renovação política, que começou
pelos governos estaduais e municipais, em
1986 seriam criados o Consed e a Undime. Em
2001, portanto, essas duas instituições come-
Organização dos sistemas
de ensino e formação docente
Míriam Schlickmann
Secretária de Educação do Estado de Santa Catarina/Vice-Presidente do Consed
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
moraram 15 anos. Durante esse período, ti-
veram uma participação destacada na lide-
rança das reformas.
Ao longo da década de 1980 e da primei-
ra metade dos 1990, alguns sistemas estadu-
ais e municipais de ensino se destacaram por
iniciativas inovadoras de gestão e de organi-
zação pedagógica, transformando-se em pre-
cursores e em referência nacional para as re-
formas que seriam desencadeadas a partir de
1995, quando teve início o segundo ciclo. Os
estados e municípios continuariam a desem-
penhar um papel central, mas a liderança das
reformas foi assumida pelo Ministério da
Educação.
Essa nova safra de reformas institucionais,
consubstanciadas por meio da Emenda Cons-
titucional nº 14, da criação do Fundef (Lei nº
9.424/96) e da LDB (Lei 9.394/96), incorpo-
rou as lições, as experiências e as inovações
trazidas pelas iniciativas pioneiras de alguns
estados e municípios. A nova Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional, sobretu-
do, beneficiou-se largamente das mudanças
que vinham sendo implementadas pelos sis-
temas estaduais e municipais de ensino. A fle-
xibilidade e o estímulo a formas inovadoras
de organização e gestão dos sistemas de en-
sino, que constituem as características bási-
cas da LDB, refletem tendências que já esta-
vam presentes desde a década de 1980.
Podemos afirmar, portanto, que a LDB ins-
tituiu e legitimou princípios que já haviam
sido incorporados à organização dos sistemas
de ensino. Todavia, é preciso reconhecer que
foi a partir da LDB e do Fundef que aconte-
ceu um verdadeiro surto de mudanças e ino-
vações em todo o país. O panorama atual é,
portanto, muito diferente daquele observado
há cinco anos. Essas mudanças na organiza-
ção dos sistemas de ensino, conforme preten-
do argumentar,m profundas conseqüências
- ou, pelo menos, deveriam ter - para a for-
mação de professores.
No que consistiu essa primeira geração de
reformas educacionais pós-redemocratização
do país? Em primeiro lugar, prevalece a ênfa-
se na constitucionalização do direito de to-
dos à educação como um direito básico de ci-
dadania. Em segundo lugar, pretendeu-se
comprometer o Estado com o adequado pro-
vimento desse direito, mediante vinculação
de parcela das receitas públicas para o finan-
ciamento da educação pública. As reformas
educacionais terão, portanto, como objetivo
prioritário assegurar a universalização do
atendimento escolar.
o cumprimento dessa meta, no entanto,
seria postergado pela desarticulação entre as
três esferas de governo, problema que só co-
meçaria a ser resolvido com a aprovação da
Emenda nº 14 e a criação do Fundef. Portan-
to, grande parte das energias que poderiam
ter sido canalizadas para fazer as reformas
avançar foram consumidas pelos impasses
gerados pela quase interminável disputa tra-
vada em torno do controle de recursos da
educação. O próprio processo de descen-
tralização, que havia tido forte impulso no
início dos anos 1980, acabaria bloqueado até
meados dos anos 1990. O Fundef, como sabe-
mos, deu novo alento à municipalização do
Ensino Fundamental.
A descentralização está associada a outro
componente fundamental dessa primeira ge-
ração de reformas, que é a reorganização dos
sistemas de ensino. Ao chegar a este ponto,
pretendo confrontar mais diretamente o tema
desta sessão que, de acordo com a minha in-
terpretação, problematiza a relação entre a
"organização dos sistemas de ensino e a for-
mação docente".
Se observarmos o que aconteceu na déca-
da de 1990, vamos verificar que profundas
mudanças estruturais e organizacionais foram
promovidas pelos sistemas de ensino. E, até
onde consigo enxergar, essas mudanças tive-
ram pequena, parao dizer nenhuma, reper-
cussão nos programas de formação docente,
seja ela inicial ou continuada.o quero di-
zer com isso que tenha havido ou que haja
descaso em relação ao problema da formação
de professores. Ao contrário, essa tem sido
uma preocupação permanente.
No entanto, é muito mais fácil para qual-
quer gestor educacional reorganizar o siste-
ma de ensino do que promover mudanças na
área de formação, sobretudo a formação ini-
cial, a cargo de instituições externas aos sis-
temas de ensino e com elevado grau de auto-
nomia, como é o caso das universidades.o
é surpresa, portanto, constatar que tem havi-
do um descompasso entre as mudanças
organizacionais e curriculares e a formação
docente.
Insisto, mais uma vez, que essa tem sido
uma preocupação central nos últimos anos.
Todavia, tem sido muito mais difícil avançar
na área de formação de professores do que nas
demais reformas. É bem verdade que tem ha-
vido certa coerência nos passos quem sido
dados, pois a definição das diretrizes e dos
parâmetros curriculares nacionais para as três
etapas da Educação Básica precedeu, como
o poderia deixar de ser, a elaboração das di-
retrizes curriculares para formação inicial de
professores. Essas diretrizes delineiam um
perfil profissional requerido pela nova pro-
posta organizacional e curricular da Educa-
ção Básica.
No entanto,o podemos esperar até que
as instituições formadoras implementem as
novas diretrizes curriculares definidas pelo
Parecer CNE/CP nº 9/2001 e comecem a for-
mar professores com um novo perfil. Numa
previsão bastante otimista, esses profissionais
deverão começar a sair das Faculdades de
Educação em 2005. Portanto, o novo modelo
de formação inicial deverá demorar para pro-
duzir impacto nos sistemas de ensino.
Devemos pensar, assim, em políticas de
formação continuada que dêem conta de ca-
pacitar em serviço os professores que estão
na ativa.o esses profissionais que estão
sendo pressionados a desenvolver a nova pro-
posta curricular para as diferentes etapas da
Educação Básica. O programa Parâmetros em
Ação é um exemplo das alternativas que de-
vemos explorar e expandir. Creio queo des-
merece essa iniciativa reconhecer que ela veio
como resposta à percepção de que os Parâme-
tros Curriculares Nacionaiso estavam sen-
do apropriados e incorporados pelos sistemas
de ensino porque muitos professoreso es-
tavam capacitados para desenvolver a nova
proposta curricular.
Para remediar esse problema, criou-se
uma estratégia inteligente que trabalha os
PCN dentro de um programa estruturado de
capacitação docente. Creio que os resultados
dessa experiênciao bastante encorajadores,
sobretudo por comprovar a viabilidade de
parcerias entre os sistemas estaduais e muni-
cipais de ensino e as instituições formadoras.
Esse trabalho também tem sido facilitado pela
qualidade das propostas e dos materiais de-
senvolvidos pelo Ministério da Educação.
Todavia, é preciso ainda muito esforço
para que se estabeleça uma fina sintonia en-
tre as mudanças organizacionais promovidas
pelos sistemas de ensino, as diretrizes e os
parâmetros curriculares e as atividades de
capacitação docente. O Censo Escolar apre-
senta um retrato, ainda que superficial, da di-
versidade existente hoje na organização dos
sistemas de ensino.
Em 2000, cerca de 38% dos alunos do En-
sino Fundamental estavam matriculados em
escolas que implantaram o sistema de ciclos
ou mais de uma forma de organização, en-
quanto 62% permaneciam no sistema tradi-
cional seriado. A organização do Ensino Fun-
damental em ciclos é mais comum na Região
Sudeste, onde cerca de 57% dos alunos já par-
ticipam desse modelo, enquanto 28% seguem
no sistema seriado e 15% em escolas que com-
binam mais de uma forma de organização. O
sistema de ciclos também avançou em alguns
estados de outras regiões, como Ceará, Rio
Grande do Norte, Amapá, Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul.
Paralelamente à implantação de ciclos, al-
guns sistemas de ensino decidiram ampliar o
Ensino Fundamental para nove anos, anteci-
pando-se à diretrizes do Plano Nacional de
Educação. Essa medida tem sido incentivada,
obviamente, pelo critério de distribuição de
recursos do Fundef. A ampliação para nove
anos e a redução da idade de ingresso para 6
anos permitem a esses sistemas de ensino au-
mentar o número de matrículas e, com isso,
receber mais recursos.
A organização do Ensino Fundamental em
ciclos aparece associada a diferentes propos-
tas pedagógicas nos sistemas de ensino que
implantaram essa medida. Emo Paulo, por
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
exemplo, o Ensino Fundamental foi organiza-
do em dois ciclos de quatro anos, combina-
dos com a adoção do regime de progressão
continuada ou de promoção automática. Essa
mudança foi precedida de um processo de re-
organização da rede escolar, que separou fi-
sicamente o primeiro segmento do Ensino
Fundamental (1ª a 4ª série) do segundo seg-
mento (5ª a 8ª série).
Já no Ceará, a proposta é organizar o En-
sino Fundamental em três ciclos, mudança
acompanhada da sua extensão para nove
anos. Encontramos ainda sistemas de ensino
que mantêm apenas o tradicional Ciclo Bási-
co de Alfabetização, que em geral congrega as
duas primeiras séries do Ensino Fundamen-
tal. É o caso do Paraná, um dos Estados que
foi pioneiro na adoção dessa política, no iní-
cio dos anos 1980.
Existe, portanto, uma variedade significa-
tiva de experiências que estão sendo desen-
volvidas por sistemas estaduais e municipais
de ensino. A organização em ciclos é uma ten-
dência que ganhou velocidade nos últimos
anos, graças à flexibilidade assegurada pela
LDB. Essa política, no entanto, tem profun-
das implicações pedagógicas. Na verdade, o
sistema de ciclos implica a reorganização
curricular. Uma das dificuldades mais óbvias
é a substituição dos livros didáticos, desen-
volvidos para atender o sistema seriado.
Mas é na área da formação de professores
que reside o maior desafio. Capacitar os pro-
fessores para trabalhar de acordo com a nova
proposta pedagógica e curricular é um impe-
rativo para que as mudançaso sejam ape-
nas formais. Essa é uma preocupação central
hoje dentro do Consed. Para conhecer algu-
mas experiências que possam inspirar alter-
nativas nessa área, o Consed estará promo-
vendo em breve uma missão técnica de Secre-
tários de Educação à Espanha, Inglaterra e
França. O objetivo será especificamente co-
nhecer programas e políticas na área de for-
mação docente.
Creio que a formação inicial e continuada
de professores, que poderíamos associar ao
tema mais amplo da valorização e da profis-
sionalização do Magistério, tornar-se-á um
tema-chave da segunda geração de reformas
educacionais que terão lugar nos próximos
anos no Brasil. Essas reformas serão indispen-
sáveis para que as metas traças pelo PNE se-
jam efetivadas ao longo desta década.
A primeira onda de reformas promoveu
como prioridade a universalização do aten-
dimento escolar. Para garantir o direito de
todos à educação, foram enfrentados os pro-
blemas do financiamento da educação, da dis-
tribuição de competências e responsabilida-
des entre as três esferas de governo e da or-
ganização dos sistemas de ensino.
A nova onda de reformas educacionais, na
qual de certa forma o Brasil já está inserido
desde meados da década de 1990, pois faz par-
te de uma tendência internacional, define
como prioridades a garantia de eqüidade de
oportunidades de aprendizagem e a melho-
ria da qualidade do ensino. A equalização do
financiamento, compatível com um padrão
mínimo de qualidade, é uma precondição. O
foco das políticas, portanto, passa da alocação
de recursos para os resultados do processo de
ensino-aprendizagem.
E é nesse sentido que a profissionalização
do Magistério assume uma importância vital.
Se se espera que o(a) professor(a) assuma res-
ponsabilidade pela aprendizagem dos alunos,
é indispensável que ele (a) seja munido dos
recursos necessários para atender a essa ex-
pectativa. O profissionalismo que o Magisté-
rio requer deve contemplar competência pe-
dagógica, conhecimento e valores.
Embora todoss tenhamos uma idéia
aproximada das competências e habilidades
que constituem requisitos básicos de um
professor eficiente, certamente nenhum de
s tem uma receita pronta de como formar
esse profissional. Certamente tambémo
encontraremos uma resposta satisfatória das
instituições formadoras. da mesma forma,
temos ouvido e repetido o chavão de que a
educação para o século XXI requer do pro-
fessor diferentes habilidades e conhecimen-
tos. Todavia, a definição desse perfil é ainda
muito vaga.
Finalmente, está em voga a idéia de que,
para atender às novas exigências que recaem
sobre ele, o professor deve cultivar um conhe-
cimento profundo e sofisticado sobre a disci-
plina que lhe compete lecionar. Formação es-
pecífica para o Magistério, ou seja, competên-
cia pedagógica, tem sido reputada por alguns
como requerimento secundário. Essa visão
simplista e distorcida precisa ser confronta-
da, antes que se torne um novo senso comum.
Creio que as novas diretrizes nacionais
para formação inicial de professores respon-
dem bem a esse desafio, ao reafirmar catego-
ricamente que a formação pedagógica é indis-
pensável. Essa orientação é clara no Decreto
n
8
3.276/99, alterado pelo Decreto nº 3.554/
2000, que regulamenta a formação básica co-
mum que, do ponto de vista curricular, cons-
titui o principal instrumento de aproximação
no processo de formação dos professores das
diferentes etapas da educação básica.
Essa regulamentação foi interpretada pelo
Parecer nº 133/2001, da Câmara de Educação
Superior do Conselho Nacional de Educação.
De acordo com o entendimento firmado pelo
CNE, a formação de professores para atuação
multidisciplinar terá de ser oferecida em cur-
sos de Licenciatura Plena, eliminando-se por-
tanto a possibilidade de uma obtenção medi-
ante habilitação. Portanto, foram bloqueados
os atalhos que levavam ao Magistério pessoas
com escassa formação pedagógica.
As Diretrizes Curriculares para a Forma-
ção Inicial de Professores da Educação Bási-
ca adota uma abordagem que enfatiza o de-
senvolvimento das competências necessárias
à atuação profissional, integrando os conteú-
dos das áreas de ensino da educação básica à
formação pedagógica. Portanto, a formação
pedagógicao é uma camisa que será vesti-
da sobre a formação específica, mas parte
constitutiva de todo o processo de desenvol-
vimento das competências que habilitam para
o Magistério.
o desenho do novo modelo de formação
inicial é coerente com as Diretrizes, com os
Parâmetros Curriculares Nacionais e com a
nova concepção integrada da educação bási-
ca, assentada pela LDB. No entanto, esse mo-
deloo responderá adequadamente às ne-
cessidades da educação básica se as institui-
ções formadoraso estiverem atentas às
novas formas de organização adotadas pelos
sistemas de ensino. Ou seja, é essencial que
seja estabelecida uma sintonia fina entre os
sistemas de ensino e as instituições formado-
ras em cada unidade da federação.
o Consed vem dialogando com o Conse-
lho de Reitores das Universidades Brasileiras
(Crub) com o objetivo de criar canais institu-
cionais que favoreçam essa indispensável in-
tegração entre as universidades e os sistemas
de ensino. Tem havido, por parte do Crub,
uma boa vontade muito grande em trabalhar
em conjunto com os sistemas de ensino na
implementação da nova proposta de forma-
ção inicial. Essa integração também é alta-
mente desejável em relação à formação con-
tinuada. As universidades, sobretudo as-
blicas,m uma enorme contribuição a dar
para a melhoria dos sistemas de ensino.
Finalmente, a descentralização da educa-
ção básicao deve ser uma desculpa para
que estados e municípioso trabalhem em
regime de colaboração na área de formação
docente. Creio que esse deve se tornar um
tema prioritário na agenda do Consed e da
Undime, bem como das Secretariais Estadu-
ais e Municipais de Educação. Sem essa cola-
boração, recursos preciosos continuarão sen-
do gastos em atividades de capacitação de
duvidosa validade.
SIMPÓSIO 26
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
E INCLUSÃO DIGITAL
Cláudio Francisco de Souza Salles
Luis Huerta
Formação de professores e inclusão
digital: a experiência do Prolnfo
Cláudio Francisco de Souza Salles
Seed/MEC
Implantado a partir de 1997, o Programa Nacio-
nal de Informática na Educação (Prolnfo) deu iní-
cio ao processo de universalização do uso das no-
vas tecnologias de informática e telecomunicações
nos sistemas escolares públicos e à introdução de
inovações pedagógicas e gerenciais nas escolas.
Seu objetivo principal é promover o desenvol-
vimento e o uso pedagógico das novas tecnologias
de informática e telecomunicações e também
utilizá-las como ferramentas para alavancar um
processo de inovação em todos os sentidos, den-
tro do ambiente escolar, visando:
melhorar a qualidade do processo de ensino-
aprendizagem;
propiciar uma educação voltada para o pro-
gresso científico e tecnológico;
preparar o aluno para o exercício da cidada-
nia numa sociedade desenvolvida,
valorizar o professor.
Partindo desses pressupostos, a importância
do programa para o desenvolvimento da informa-
tização da escola pública destaca-se principal-
mente quanto aos aspectos de:
apoio aos estados na informatização de suas
redes de ensino;
oportunização de acesso e familiarização dos
alunos do Ensino Fundamental e Médio da
rede pública com as novas tecnologias de
informática, numa dinâmica educacional que
poderá favorecer o surgimento de novas ha-
bilidades e competências;
valorização e atualização de milhares de pro-
fessores com a aprendizagem de novos conhe-
cimentos e técnicas para a melhoria de sua
prática pedagógica e para o desenvolvimento
de projetos e atividades com seus alunos, ou,
ainda, para o aperfeiçoamento dos modelos
de gestão escolar, que podem ser construídos
de acordo com a realidade de cada contexto;
utilização dos equipamentos pelas comuni-
dades, em programas e cursos que favoreçam
aos interesses locais.
o sucesso desse programa depende funda-
mentalmente da capacitação dos recursos huma-
nos envolvidos com sua operacionalização. Ca-
pacitar para o trabalho com novas tecnologias de
informática e telecomunicaçõeso significa ape-
nas preparar o indivíduo para um novo trabalho
docente. Significa, de fato, prepará-lo para o in-
gresso em uma nova cultura, apoiada em tecno-
logia que suporta e integra processos de interação
e comunicação.
A capacitação de professores para o uso das
novas tecnologias de informação e comunicação
implica redimensionar o papel que o professor
deverá desempenhar na formação do cidadão do
século XXI. É, de fato, um desafio à pedagogia tra-
dicional, porque significa introduzir mudanças no
processo de ensino-aprendizagem e, ainda, nos
modos de estruturação e funcionamento da es-
cola e de suas relações com a comunidade.
Os professores destinados à formação dos
multiplicadores serão selecionados em função de
sua qualificação profissional em informática e
educação. Os demais - multiplicadores e aqueles
que atuarão em salas de aula - deverão ter um
perfil que os leve a ser:
autônomos, cooperativos, criativos e críti-
cos;
comprometidos com a aprendizagem per-
manente;
mais envolvidos com uma nova ecologia
cognitiva do que com preocupações de or-
dem meramente didática;
engajados no processo de formação do in-
divíduo para lidar com a incerteza e a com
a complexidade na tomada de decisões e
com a responsabilidade daí decorrente;
capazes de manter uma relação prazerosa
com a prática da intercomunicação.
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital
Internet: educação informal
e formação de professores
Luis Huerta
INCITE, Inversiones en Ciência y Tecnologia e INVENCION, Aplicaciones en Ciência y Educación/Chile
Resumo
A Internet está se tornando uma das principais
matérias na formação de professores. As reformas
curriculares incluem sugestões freqüentes para que
os professores incluam recursos da Internet em
seus planos de ensino. De certa forma, a Internet
na sala de aula é um passo para a remoção de algu-
mas barreiras entre o sistema de educação formal
e o ambiente educacional externo. A influência do
ambiente na formação de hábitos e de interesses
nos alunos é consideravelmente forte, e as escolas
estão atrasadas nessa tarefa. Em nossos países, as
novas tecnologias de comunicação poderiam ser a
pedra angular para a massificação de mudanças
educacionais e para superar a atual escassez de re-
cursos humanos. Entretanto, novos esforços deve-
o ser empreendidos, a fim de que a Internet seja
validada como uma ferramenta de comunicação
que vá além da abordagem "enciclopédica" que se
faz da Rede. Um dos principais problemas é como
aproveitar a independência e a liberdade promo-
vidas pela Internet, considerando-se o fato de que
as novas tecnologias de aprendizagem eletrônica
colocam em xeque conceitos clássicos de aprendi-
zagem e ensino.
Globalização e educação
o mundo atual e o porvir colocam novas
exigências educacionais. Pela natureza da eco-
nomia global, essas necessidadeso fazem
parte do planejamento, ouo podem ser pre-
vistas adequadamente. É o mercado que as im-
e e, conseqüentemente, as respostas às de-
mandas normalmente exibem algum atraso.
Esses tempos de desajusteso um estímulo à
procura e à pesquisa.
A globalização incorpora à reflexão tam-
m os países de menor desenvolvimento.
Ainda hoje, as respostas às necessidades edu-
cacionais incluem a busca de novas tec-
nologias que certamente se encontram mais
ao alcance das economias desenvolvidas, en-
quanto o mundo mais atrasado deve encon-
trar uma forma de incorporar-se. As frontei-
ras econômicas abertas dos países não-de-
senvolvidos fazem-nos sensíveis às mudan-
ças ou orientações ditadas pelo virtual do-
mínio global exercido pelo mundo desenvol-
vido. Sabemos hoje que a globalização e a
tecnologia de Interneto aproximam, ao
contrário, podem distanciar as diferenças na
renda dos países mais pobres em relação à
dos países mais ricos.
Todavia, também existem oportunidades
provenientes da globalização e estas devem ser
consideradas com alguma hierarquização, de-
vendo-se centralizar esforços nas de maior re-
torno. Para a educação, a Internet é uma dessas
oportunidades.
Internet e reforma curricular
o é possível conceber a introdução de
novas formas de aprendizagem e novos currí-
culos, sem considerar o meio externo ao siste-
ma escolar. Atualmente, o meio externo tem
um ator de grande influência: a Internet.
Apesar da débil incorporação de nossos
países à Internet, ela pode ser considerada
relativamente acelerada. Quando a Internet
é acessível, a tendência é conectar-se e
utilizá-la, o que é especialmente importante
no sistema privado de educação. Isso gera,
dentro dos próprios países, diferenças que
afetam a igualdade de oportunidades ante o
conhecimento e a aquisição de habilidades.
Assim, um país pode crescer desequilibrada-
mente, o que, além dos efeitos desiguais na
área social, também produz dificuldades na
coordenação de recursos humanos competi-
tivos dentro desse país. Em termos de eqüi-
dade e equilíbrio, as novas tecnologias de
informaçãoo um dever nos novos planos
nacionais de educação.
Assim sendo, o conceito de currículo alcan-
ça hoje um significado maior, abrangendo os
domínios da auto-aprendizagem e da área
educativa informal. Naturalmente, a reforma
curricular deve possibilitar novos esquemas
formativos e de aquisição de conhecimentos
dentro e fora da escola, de maneira comple-
mentar. Portanto, o próprio conceito físico de
escola é colocado em questão.
Quanto aos processos de aprendizagem,
isso certamente sugere questões relevantes
que devem ser verificadas. Mas mudanças que
m ocorrendo pela aparição dos computa-
dores também podem proporcionar alguns
enquadramentos empíricos.
No ensino de Ciências, por exemplo, a
crescente introdução de computadores tem
substituído muitas operações experimentais
que eram usuais e consideradas sagradas nos
planos educacionais. Um sensor eletrônico
conectado a um computador, que produz um
gráfico devidamente organizado, tem substi-
tuído difíceis ações manuais. Será que essas
formaso menos eficazes em transmitir os
conceitos da Ciência ou em gerar habilidades
suficientes para o trabalho criativo, ou para
induzir uma atitude reflexiva e próxima da na-
tureza?
É claro que a resposta a essa pergunta pre-
cisaria de um espaço e de um tempo maior
do que aquele já transcorrido. Obviamente, tal
resposta está fora do âmbito desta apresen-
tação. Porém a verdade é que quaisquer que
sejam as respostas elaso significarão que
teremos de abriro das novas ferramentas.
Seria essa a premissa para o conjunto da re-
forma curricular em relação às novas tecno-
logias de informação.
A Internet e os recursos
humanos para a educação
Um único olhar sobre as relações hoje pre-
sentes na escola e a sua comparação com o que
se espera que elas sejam no futuro coloca enor-
mes desafios. Com certeza, a gestão escolar, os
atuais professores e as características dos alu-
nos revelam profundos desajustes que aparen-
tementeo encontrarão solução nos mesmos
atores da atualidade. Em alguns casos, a gravi-
dade do problemao apenas reside nas con-
dutas dos atuais profissionais, mas numa
quantidade de recursos humanos absoluta-
mente insuficiente para a implementação de
qualquer programa educacional novo. Por
exemplo, no Chile, o número de professores de
Física é 60% inferior ao requerido pelo novo
currículo.
Portanto, é evidente queo se trata ape-
nas de introduzir mudanças na própria forma-
ção dos professores mas, também, da incorpo-
ração de novas soluções em relação ao uso dos
recursos. É também evidente que a grande es-
cassez na quantidade de recursos implica um
esforço de longo prazo, num país queo pode
oferecer a profissionais estrangeiros condições
econômicas atraentes para vir trabalhar nele.
Portanto, a Internet desempenha um papel
relevante, se considerarmos o seu potencial
para tornar-se um elemento ativo em termos
de auto-aprendizagem ou de educação a dis-
tância, com o objetivo de aumentar a produti-
vidade dos recursos humanos disponíveis.
Todavia, fica evidente que os estabeleci-
mentos educacionais devem passar a conside-
rar os computadores e a Internet como recur-
sos fundamentais e de uso obrigatório. Con-
seqüentemente, os profissionais dos estabele-
cimentos devem passar a satisfazer as deman-
das de usuários que jáo relativamente es-
pecialistas com respeito à utilização dessas fer-
ramentas.
Na transição ao uso de novas tecnologias
na educação, cientistas e engenheiros podem
ser aproveitados num esforço de estender suas
experiências para, assim, assistir os professo-
res a compreender a tecnologia da Internet,
bem como sua utilização.
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital
A Internet e a educação
A Internet constitui uma comunicação re-
mota, um conceito diferente, em que os com-
putadoreso elementos de grande importân-
cia, mesmo quando, em termos tecnológicos,
essa significaçãoo seja imprescindível para
o estabelecimento da própria comunicação.
A comunicação via Internet inclui a web, a
qual permite compartilhar documentos em
formatos crescentemente poderosos. A infor-
mação em código, que viaja pela rede de fios
e cabos e por satélites, incorpora instruções
que devem ser processadas num computador,
e as tarefas resultantes dessa informação que
foi transferida envolvem todas as operações
das quais um computador é capaz. Podemos,
então, imaginar o que ocorrerá em cada pon-
to da rede com os futuros avanços na compu-
tação.
Com respeito à educação, existe bastante
identidade de recursos e formatos com as for-
mas tradicionais, sendo certamente aquela da
dimensão real tridimensional a que falta na
Internet. Esta última envolve certos aspectos
sensoriais cujo papel na aprendizagem pare-
ce ser importante, emborao existam expe-
riências claras a respeito dos efeitos de sua au-
sência nos processos educativos.
A Internet redunda numa revisão da vali-
dade de certas idéias longamente aceitas, ain-
da que o questionamento num ou outro sen-
tido venha com o transcurso da sua amplia-
ção. O importante éo se deter diante das
possibilidades abertas. Nesse sentido, nossos
países podem efetuar um esforço controlado,
o qual será necessariamente compartilhado
com formas mais tradicionais, sendo que es-
tas últimas teriam uma maior participação em
tal esforço.
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