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OS CADERNOS DE CULTURA
Direção de José Simeão Leal
1 —JOSÉ JANSEN ........................................ A máscara no culto, no teatro e na
tradição
2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e
THOMPSON ......................................... José Lins do Rego
3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores
4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-
DRADE ..................................................... Viola de Bolso
5 — Lúcio COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira
0 — Lúcio COSTA ....................................... Considerações sobre a Arte Contem
porânea
7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto
8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado
9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes
10 — ANTÔNIO CÂNDIDO .............................. Monte Cristo, ou do Vingança
1) — Luís COSME ......................................... Música e Tempo
12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... Miro
13 — OTÁVIO DE FARIA ................................. Significação do Far-West
14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte
15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro. Realidade Mágica
16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantes
17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto
18 — GILBERTO FHETRE .............................. José de Alencar
19 — CLARISSE LISPECTOR ........................ Alguns Contos
20 — MÁRIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna
21 — ROSÁRIO FUSCO ................................. Introdução a Experiência Estética
22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................... Realidade e Ficção
23 — DANTE COSTA .................................... O Sensualismo Alimentar
24 __ LEDO Ivo ........................................... Lição de Mário de Andrade
25 — EUGÊNIO GOMES .................................. O Romancista e o Ventríloquo
26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens. Seres e Coisas
27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias
28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ...................... Cinqüenta Anos de Literatura
29 _ ALEXANDRE PASSOS .............................. A Imprensa no Período Colonial
30 — MANOEL DIÉGUES JÚNIOR _______ Etnias e Culturas no Brasil
31 CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo
Continua na 3
a
página.)
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ROBERTO ALVIM CORRÊA
HEBE
OU DA EDUCAÇÃO
(Fragmentos de um diário)
MINIS T É R IO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
S E R V I Ç O DE DOCUMENTAÇÃO
A Brito Broca
\
"Je veux accomplir mon destin qui
est de dire ce qui est en moi". . .
"Tout ce que j'écris procède en
droite ligne de mon enfan-ce"... (1)
Julien Green
Não se trata nas notas e citações que se seguem nem
mesmo de um esboço de estudo pedagógico ou didático, mas de
fragmentos mal ordenados de um diário que escrevi pensando
em jovens e também em mais velhos. Em companhia de Hebe,
deusa da juventude, apenas registrei durante umas semanas,
um pouco do que tive ensejo de observar, nos outros e em mim.
( 1 ) Só vêm logo reproduzidas em portugués as citações cuja tradução
não parecia alterar nem o tom nem o ritmo originais. Encontra-se a tradução
das outras no fim destas páginas.
que entendo eu de educação? Pouco. Tão pouco quanto
entendo a mim mesmo.
Então ? Mas esse pouco importa e me faz crer que o
assunto permanece inseparável daquilo que sabemos e
conseguimos de nós mesmos. Assim, sei que na minha vida,
que vejo como se fosse uma árvore, já alta no tempo que me fôr
concedido, tentei cortar galhos, consolidar outros, orientar o
conjunto, e até deixá-lo simplesmente crescer. Essas atitudes
correspondiam a ritmos diferentes de uma educação particular :
educando a mim mesmo eu aprendia a viver e vivendo educava-
me. O que digo a fim de que as linhas que se seguem sejam
consideradas apenas como observações pessoais, e algumas
talvez demasiadamente, que só empenham quem as fêz e nem
sempre se relacionam bastante, aparentemente pelo menos, com
educação.
DUCAR : fornecer ao próximo meios de "governar a vida".
Esta arte de viver supõe a procura da felicidade (palavra
ambígua mas não encontro outra). Existem figuras exemplares,
os santos — Paulo, Agostinho, Francisco de Assis. Será que
mergulharam mais fundo em nós do que homens quais Epicuro
(segundo parece), Montaigne, Goethe? Não. Mas, para o santo,
o problema difere. O ponto de partida è um ato de fé (que
implica amor e esperança) na palavra do Cristo, numa
mensagem divina. O santo desiste do que chamamos a
personalidade para se submeter em tudo e por tudo a uma
ordem de vida considerada integral, infalível, libertadora.
RATEMOS de desenvolver, antes de tudo, na criança,
valores morais (cs sentimentos da justiça, da solidariedade, o
gosto da verdade, a consciência da responsabilidade) . Nada
mais urge do que formar o caráter, e aliás, não só o caráter, mas
também a inteligência, ambos simultaneamente.
LAÜDE Edmonde Magny observa judiciosamente : '0
melhor pai não é aquele que quer seus filhos em tudo parecidos
com êle".
PROBLEMA social da educação não deixa de ser também
eminentemente, um problema pessoal que nunca para de
colocar o educador diante da sua consciência e da consciência
alheia. Uma criança de dez anos precisa entender por que
procedem com ela de certa maneira. Tem, o sentimento da
justiça e da cooperação. Já não obedece apenas passivamente.
DUCAR os filhos dos outros é uma coisa, outra,
educar os nossos.
ossos filhos custam a entender que poderiam nos ajudar em
ajudá-los. Mas será que temos sempre razão contra eles?
EDUCAÇÃO coletiva (internatos, casas de correção, etc.) é
indispensável e até salutar em muitos casos, mas também
lastimável em muitos outros por favorecer na? crianças a
hipocrisia, a delação, a covardia, as humilhações e quase todas
as misérias. E sem ir tão longe, lembro-me: no colégio, as
observações de certos professores tinham o dom de gerar
veneno em alguns de nós.
Á tendo ouvido naquele dia muitas repreensões merecidas,
meu caçula observou: "Mas, papai, porque você me fêz assim
?"
NSINAM coisa aos escolares, menos a observarem a
realidade visível, o que lhes desenvolveria a faculdade de
perceber e raciocinar — a sensibilidade e a inteligência.
A sala de espera do Ministério da Educação, várias
pessoas sentadas (padres, religiosas e, suponho eu, professores)
esperam sua vez de serem chamadas. Mas ninguém, nem um
segundo sequer, manifesta o mínimo interesse pelo
monumental mural de Portinari. E' exatamente como se este
não existisse. Nem sei como conseguem não vê-lo. Mas a
verdade é que não vêm nem o mural de Portinari, nem lá no
fundo da
sala, a estátua do profeta Isaias, do Aleijadinho, nem o rico
tapete em forrna de palhête, sinuosamente repartido em
diferente cores, azul, cinzento, marron, verde, O mundo
exterior não parece existir para esses educadores .
ESDE menino, logo ao entrar num quarto desconhecido, c
que faço primeiro é abrir a janela e olhar para fora. O prazer da
descoberta e não sei bem que instinto de defesa talvez
expliquem, em parte, meu gesto. E' por vezes útil tentar,
interpretar nossos gestos, até aqueles que parecem os mais
insignificantes.
Ão parou de chover estes últimos dias. A chuva quando
discreta, exerce um efeito libertador. Modifica o ritmo da
existência exterior que passa, assim, para o seu plano
verdadeiro que é o segundo. A chuva intensifica a vida do
espírito, da arte, dos sentidos. Nunca leio melhor, olho mais
espontaneamente para um quadro, e percebo o que êle me traz
de mais durável, do que quando chove suavemente lá fora. A
chuva é minha melhor introdução a mim mesmo, como a noite
a um tempo, minha perigosa e fecunda amiga.
HEGA o dia em que os pais têm juizes nos filhos — e está
certo.
UANDO os pais prestam, os filhos também os educam.
Obrigam os pais a terem virtudes que talvez começassem
apenas por fingir. Mas os filhos denun-
ciam cedo as verdadeiras tendências paternas, repentinamente
surpreendidas num gesto, num olhar, num silêncio, numa
entonação. Antes que o percebam os adultos, chega a idade em
que falta pouco para quo os filhos saibam muita coisa dos pais,
aos quais só resta amar deveras as virtudes que eles nem
sempre amaram por inclinação espontânea.
ossos filhos nos educam. E nós queremos, por vezes,
educar nossos velhos pais.
GALO de Esculápio, símbolo de incessante vigilância,
poderia ser o de Minerva educadora, na ocorrência
impiedosamente conscia do culto a que tem direito.
S cue pouco aprenderam da vida, também pouco
aprenderam de si mesmos.
s crianças não opõem resistência nem às heredita-riedades
que elas carregam, nem às influências da hora. O passado
ancestral atua nelas tanto quanto o momento presente, e desse
amálgama resulta uma química tanto mais incontrolável que,
durante a infância, cada instante parece apagar aquele que o
precedeu, como se a criança fosse apenas o espelho do minuto
que passa. Aos poucos, porém, vem se compondo a figura para
a qual nem sempre o que chamamos a educação terá a eficácia
por nós desejada, E, no fundo, convém que assim seja, nesse
sentido que é bom que exista uma
margem em todo ser humano que escape à educação, boa ou
má. E como, em geral, a educação não é boa, essa margem
recalcitrante e misteriosa — o que temos de mais pessoal —
constitui o elemento de uma salvação possível. O que seria das
inúmeras crianças — a maioria — mal educadas, ou sem
educação alguma, não existisse essa margem donde resulta o
pior mas também o melhor, essa fonte da pessoa em que vivem
a inteligência, a sensibilidade e tudo quanto faz que essas
crianças mais tarde, homens e mulheres, terão que responder
por seus atos ?
UCEDE que um filho de avarento seja generoso e um
enjeitado um grande homem como, por exemplo uma das mais
nobres figuras da história nacional, o padre Feijó, filho de pais
incógnitos.
S linhas minúsculas des anúncios nos grandes jornais
seguem-se mas não se parecem. Silenciosamente, a verdadeira
eloqüência dos anunciantes, hoje, por motivos econômicos e
outros, tornou-se mais ainda do que pascaliana: não comenta.
Preste atenção, entenda, medite quem quizer. Que sacrifícios e
misérias não escondem ou não revelam essas linhas perdidas
nos jornais como crianças numa cidade? Que tragédia ou feliz
mudança de destinos não são capazes de suscitar? Que
mistérios e quantas vidas não empenham? E de que modo? Que
arte supera a do acaso em contrastes, em antíteses? Exemplo:
entre um anúncio que esqueci e outro, exatamente este:
"Marmita. Fornece-se cozi-
nha farta, sadia e variada", leio o seguinte, no Correio da
Manhã: "A um casai sem filhos, ou a uma família rica, oferece-
se uma menina clara e bonitinha, com 2 meses, com a condição
que seja adotada como filha, tratar à rua da Matriz. 90,
Botafogo".
DIREÇÃO da vida de um adolescente e até de um adulto
pode depender de uma simples frase, por eles ouvida ou lida —
frase que, nesse caso. nascera para ouvir ou lei .
ELO menos no plano considerado natural é justa a
observação — quantas vezes milenar ? — modernizada por
Cocteau, nos Entretiens autour du cinema, que leio hoje :
"Trop nettoyer risquerait de tuer les microbes et les pourritures
qui composent la vie. On a connu de ces Américaines qui
mouraient à force de se purifier les organes. Elles expulsent
d'elles le principe même de la vie qui relève de la vermine,
quelquer désobligeante qu'en soit la constatation". E mesmo na
vida moral — independentemente das origens — é verdade que
também existe o "etiam pecata" agostiniano, o mal utilizado
pelo bem, — e não há nada que nos dê maior idéia de Deus.
NAS crianças quase sem salvação possível? Deve-se
tentar explicar-lhes que os próprios pais herdaram a ignorância
e a miséria, males de todos, porém menos virulentos em uns do
que em outros. E' preci-
so que saibam o que pode ser um homem. Requerem essas
crianças, por parte de quem a elas se dedicam sempre mais
amor e competência. São vítimas, como o foram os genitores.
Vamos ver que a linguagem destes por vezes é clara e, sem
dúvida, em certos casos, excepcional, mas sem deixar por isso
de ser significativa. Leio o seguinte no Correio da Manhã de
17 de abril de 1952 : "Temos, diz o padre Pedron, diretor do
Serviço de Assistência ao Menor, de ir às vezes as raízes do
mal, a fim de apurar as verdadeiras causas do desajustamento
do menor. Tais causas são mais de educação moral, podendo-se
destacar entre elas: a) os filhos de mães solteiras; b) as
madrastas; c) os filhos adotivos; d) a falta de repressão na rua;
e) o desequilíbrio na família; f) as desavenças entre os pais.
Justificando suas considerações o padre Pedron citou o
caso de um cidadão que se estava desquitan-do, o qual ao ser
interrogado sobre se podia aguardar um pouco mais a
internação dos filhos que se achavam em sua companhia,
declarara : "Esperar posso. mas estou separado da minha
mulher e quero me ver livre das crianças. . .". Entre outros
casos citou ainda o padre Pedron o de um menor que veio de
Minas a pé, completamente abandonado. Respondendo a
interrogatório que lhe foi feito, limitou-se a declarar que o pai
se achava no Norte e a mãe no Rio Grande do Sul,
acrescentando que sempre tivera mais confiança no seu
cachorro e companheiro do que em qualquer outra pessoa.
NSISTE, ignoro por que, uma pessoa amiga em me repetir
que não lhe interessam as exceções (como se ela própria, com
sua forte personalidade, não fosse excepcional). Mas ela devia
saber que todos os casos excepcionais são interessantes e fazem
entender melhor os casos considerados comuns. Além do mais,
na escala ascendente dos valores, o mundo depende tanto dos
seres excepcionais quanto dos outros — mais até que dos
outros. Não se trata de negar a sempre necessária educação do
maior número. Os problemas do povo são os mais urgentes,
sem que nos impeçam perguntarmos se o plural importa sempre
mais que o singular. Milhares de homens não substituiriam un:
Moisés, um Platão ou um Bach na elaboração das leis que
presidem ao mundo da moral, das idéias e da música. Aliás,
plural e singular são solidários, embora comecem por se opor.
Implica no plural o singular que não exclui o trabalho frutuoso,
particularmente nas ciências, de equipes e que, superior,
adquire um valor representativo, por exemplo, através de uma
elite à qual pode estar eficientemente entregue o destino da
humanidade.
PACIÊNCIA dos filhos para com os pais é angélica.
Sucedem-se os: "Não faça isto... Donde vem?... Com quem
andou ?. . . Porque ?. . . Tanto tempo?.. . Será possível que não
possa fazer isso para sua mãe ?. . . Para seu pai ?. . . Ajude em
vez de atrapalhar. . . Menino desajeitado. . . Responda!. . . Náo
responda!... Me traga isso... não, aquilo... Já lhe disse mil
vezes. . não, assim... Só pensa em brin-
car... Só aparece na hora das refeições. . ." E mais tarde:
"Preguiçoso... egoísta". Mais tarde ainda: "Ingrato". E até quase
o fim haverá queixas. Paciência filial : a de quem sabe ser esse
o preço, apesar de tudo módico, do amor demasiadamente
atento, assim mesmo insubstituível, dos pais e sobretudo da
mãe.
ABENDO que o filho o faria passar pela vergonha de não
atendê-lo, o pai doente desse marmanjo desistiu de lhe pedir
diante de nós, de levar creio que uma trouxa que não podia
ficar onde estava. Quem, silencioso, carregou o embrulho foi o
velho — resultado de lamentável fraqueza, sem dúvida. Mas
qual de nós nunca poupou o filho para não expô-lo à censura
pública?
NTEM estive na A.B.I. Crianças tocavam piano no
auditório. Algumas delas, felizmente, tocavam mal.
Deliciosamente mal e, per conseguinte, como convi-nha.
Resistiam sem o saber aos conselhos professorais. Surpreendia-
se nelas o instinto de querer tocar como crianças que eram. Elas
é que tinham razão. As crianças não devem tocar, nem pensar,
sentir, falar, se comportar como adultos. E nós devemos
respeitar a sua condição de crianças, em vez de procurar matá-
la. Em mais de um adulto há uma criança morta que. todavia,
tinha algo a revelar.
OMOVE-ME tudo quanto, mesmo errado, faz viver em
profundidade uma criatura.
INFÂNCIA levou séculos para pertencer à literatura. Mas
hoje. pertence-lhe para sempre e duplamente. Primeiro, como
fonte de inspiração. O que v. literatura deve à infância e à
adolescência é imenso. Em segundo lugar, existem livros
admiráveis especialmente escritos para crianças.
OSTRAM-ME mais uma vez desenhos de crianças. Para
elas, desenhar é brincar, tudo, aliás, se transforma no ato de
brincar. Sentir, pensar, comer, dormir, existe em função de uma
realidade que é brincar. Têm razão os pedagogos que baseiam
no jogo a vida infantil, mesmo espiritual. Têm razão porque
para as crianças náo podem ser coisas reais o que chamamos
geografia, aritmética, zoologia ou física. São palavras abstratas
que pertencem a um mundo tão distante de meninos de oito
anos quanto a via láctea. Reais são uma fruta que se come, o
gelo que derrete, uma montanha, um cachorro.
ARA a criança existe também o que pode ser imaginado.
Imaginado, brincando. Imediatamente a gata se transformará
em princesa, ou em onça, conformo o temperamento.
CRIANÇA desenha menos o que vè que aquilo que imagina.
Assim mesmo precisa de um ponto de partida, como quando
brinca. Para quem tem menos de dez anos brincar é o meio de
participar de uma realidade que desenvolve as possibilidades
do ser. Pro-
curemos entender os jogos das crianças esperando que, por sua
própria vontade, por seu próprio sentimento ou pressentimento,
elas nos confiram a autoridade que há de fazer com que sejam
ouvidos nossos conselhos.
UDO quanto se afasta por demais de princípios segundo os
quais as crianças adquirem a consciência das suas
responsabilidades para com seus mestres é processo de
carcereiros com prisioneiros.
MUNDO é imagens" disse o poeta que naquele dia não se
esqueceu de todo da infância, daquele tempo em que a imagem
era mais verdadeira do que o pretexto que a provocara.
EM mesmo para uma criança é sempre fácil desenhar. E é
bom que não o seja. O fácil não deve interessar nem a criança
nem o adulto, e toda a questão, justamente, está no fato de que
os educadores não devem deixar as crianças confundirem o di-
fícil com o fastidioso.
TRAÇO infantil começa por ser uma linguagem quase
cifrada. A imaginação acende-se logo : um círculo, e nesse
círculo a criança vê um rosto, o sol, uma ilha. Vive ela numa
intensidade que costumamos ignorar. Se um dia o mundo
esgotar as suas possibilidades lineares, talvez a salvação nesse
domínio venha
da observação de desenhos de crianças. Com alguns traços
felizes elas nos farão participar de uma emoção suscetível de
acordar novamente nossa alma.
ESCA a infância, desde os cursos primários, seria bom
prever uma iniciação lírica (não seria difícil sendo natural, nas
crianças, o estado poético) por meio de uma educação da
sensibilidade e da imaginação que permitissi; a essas
faculdades ser o que devem : criadoras.
CABO de explicar por que me parece certo, certíssimo, o
fato de instruir divertindo, como o preconizava Rousseau. Em
compensação, não salientei o que nunca há de ser
demasiadamente lembrado : a necessidade, bastante cedo, da
intervenção da vontade, da disciplina, consideradas não apenas
como armas sem es quais ninguém consegue nada, mas como
meios de exigirmos sempre um pouco mais de nós mesmos.
ouço adianta ensinar à criança a não mentir, se perceber
nossas mentiras e, quando lhe falamos nossas inúteis mentiras.
Concordo com Gustavo Cor-ção quando, no seu livro Lições de
Abismo, escreva com acerto e amor (o amor sempre acerta):
"Por que se riem das crianças ? E sobretudo por que mentem ?
Eu gostaria que alguém me explicasse esse tenebroso mistério.
Mas agora é tarde, e eu morrerei sem saber por que é que
não podemos ver
criança sem que lego nos venha à boca uma mentira". Mas o
remédio para a lealdade infantil consiste, não só em não
mentirmos, mas em colocarmos a criança em condições em que
não precise mentir. O que cia deve não é recear dizer a verdade,
mas, pelo contrário, ter bastante confiança para confessá-la. O
sentimento de ser irremediavelmente o mais fraco é que
provoca a mentira, essa defesa humilhante mas, às vezes, a
única, a última do mais fraco perante o mais forte — o qual, em
certos casos, terá de responder pelas mentiras de suas vítimas.
ULTIVAR nas crianças o "espírito de família". Mas elas o
têm naturalmente. Os que o perdem e se "livram" da família
(em geral para criar outra) são os adultos. E em que consiste
esse espírito ? Qual o espetáculo oferecido pela família em toda
sua extensão: pais, filhos, irmãos, cunhados, sogros, tios,
primos, padrastos, madrastas, enteados, meio irmãos, sem falar
nos casamentos errados, nos desquites, etc? Um espetáculo que,
no conjunto, nos faz pensar fosse mais fácil educar um
regimento. A família é um laboratório das reações e
experiências mais diversas, nem todas portanto edificantes (ó
intrigas, inveja, e esse odioso "egoísmo familiar" denunciado
por Gide!). Mas entre essas reações e experiências, muitas tam-
bém estimulam sentimentos de dedicação e solidariedade, bem
como a consciência das obrigações e da responsabilidade — e
para cada um de nós, durante a infância, a família foi nosso
universo na espera de tornar a sê-lo na última etapa da viagem.
EiO nas Nouvelles Littéraires essa observação que dizem
ser de Alphonse Daudet: "La vanité se porte EU dehors,
encombrante comme un sac d'écus, l'orgueil se porte au dedans
et reste invisible". Na verdade, forma ridícula e barata do
orgulho, mais do que isso, proliferação devastadora, a vaidade
obriga muitos a se comportarem de um modo que, se neles
ainda existisse o orgulho, o golpearia intoleràvelmente.
OMO despertar nos jovens o sentimento da honra e, ao
mesmo tempo procurar matar neles o orgulho? A honra pessoal
ou coletiva (familial, nacional, social) sem orgulho é frágil. A
palavra honra, aliás, perdeu o prestígio e anda substituída pelo
substantivo dignidade. Falam muito, hoje, na "dignidade
humana", assim mesmo mais do que nunca humilhada.
Á fora, hoje de manhã, abriu-se de repente o céu vivo,
luminoso, marinho — e em mim uma janela sobre um mundo
imenso, figurado por esse oceano azul com suas nuvens
geográficas navegando.
s crianças não fogem à realidade; somos nós, adultos que a
limitamos ao esquecer que tudo quanto nos faz viver ou morrer
é suscetível de se tornar, um dia, realidade.
ECERI hoje uma carta do Carlos Alberto e outra do
Walmyr. Nesses jovens como em outros que me escrevem ou
me procuram, dominam a solidão, a angústia,
o desejo de entenderem a si mesmos e ao mundo, de serem
lúcidos, sinceros, se expressarem, saberem quem são.
IERRE de Borsdeffre tem ra2ão quando escreve no segundo
volume de Métamorphoses de Ia Httérature: "L'adolescence
est l'àge tragique par excellence. . . Rien n'est donné, tout est à
conquérir, et chaque conquête s'accompagne d'un déchirement:
il faut choisir, se choisir, se laisser mutiler, élire sans plaisir,
repousser avec désespoir. L'adolescent a peur de vivre, il se
heurte aux choses comme un grand animal maladroit, à 1'étroit
dans des vêtements étriqués".
M que condições terão de viver esses jovens ? Num mundo
em que nossos atuais filósofos pretendem não existirem mais
leis morais válidas para todos e, por isso mesmo já não ter
sentido a expressão "a natureza humana"; num mundo a um
tempo feroz e frágil, num mundo desnorteado, O que ensinar
aos nossos filhos ? Por exemplo, a redescobrirem em pro-
fundidade o fenômeno cristão (ainda tão pouco estudado na
realidade de cada um), a procurarem viver o que reivindicam,
entre os escritores, homens como Dostoiewski, Bloy, Péguy,
Claudel, Bernanos, Simone Weil. Escreve o sr. R. M. Albérès
que entramos "na zona de tempestades e ciclones onde não
adianta mais termos bússola". Alcançamos, sim, a zona pró-
xima do tufão. Mas a verdade é que depois do cata-clismo,
mais do que nunca nossos filhos precisarão
de bússola, pois apesar do que pensa o sr. R. M. Albérès, a
humanidade não pode "aprender a viver e e governar sem
bússola".
EXATO que temos sempre de verificar de novo a
autenticidade dessa bússola, relativamente ao que ela pretende
indicar. O que seriam as palavras do Cristo se deixassem de ser
sempre, novamente, experimentadas como verdadeiras ?
IVRE, o santo, pelo amor, rompe a solidão do homem .
Ninguém mais do que êle tem o sentimento da solidariedade e
da responsabilidade humana. Um cristão só se liberta e se salva
procurando salvar os outros.
s adolescentes receiam os interrogatórios, direta ou
indiretamente, indiscretos daqueles que, animados das
melhores intenções, gostariam tudo saber deles. Mas querer
esvasiar uma criatura dos seus mistérios e segredos, não
necessariamente censuráveis, que lhe compõem a
personalidade prejudicaria essa criatura, sobretudo na primeira
fase da mocidade, durante a formação laboriosa do organismo,
na zona noturna e fecunda do ser.
ARA a maioria, a questão do instinto sexual consiste apenas
em satisfazê-lo. Para outros, a descoberta das suas exigências
será a mais decisiva da vida. Procuremos então evitar que esse
instinto se torne pérfido. Recalcado, é capaz de se
transformar em
veneno. Sucede também que, aparentemente domado, disfarça-
se, anda fantasiado de virtudes que o escondem, aliás mal.
Ê-SE no Soulier de Satin, de Claudel :
Dona Prouhèje — Eh quoi! Ainsi c'était permis? cet
amour des créatures l'une pour l'autre, il est donc vrai que Dieu
n'en est pas jaloux? l'homme entre les bras de la femme. . .
L'ange gardien — Comment serait-il jaloux de ce qu'il a
fait ? et comme aurait-Il rien fait qui ne lui serve ?
Dona Prouhèje — L'homme entre les bras de la femme
oublie Dieu.
L'ange gardien — Est-ce l'oublier que d'être avec Lui ?
est-ce ailleurs qu'avec Lui d'être associé au mystère de Sa
création...?"*
RANDEZA e misèria da vida sexual.
NDE começa e acaba a vida sexual ?
Ais do que em qualquer outro domínio o que aqui salva
um mata o vizinho.
OMO observa Colette : "Ces plaisirs qu'on nommer à la
légère, physiques".
ONVENCER, se possível, os moços que o instinto
sexual poupado pode se tornar um reservatório de
força, alegria, criação.
UNCA humilhar aqueles que têm dificuldades ou
fraquejam. O desejo pode se confundir com o que temos de
melhor em nós.
ONTHERLANT faz dizer a um padre educador: 'li n'y a
qu'une chose qui compte en ce monde: l'affection qu'on a pour
un être; pas celle qu'il vous porte, celle qu'on a. Avoir une
affection, c'est cela qui donne le plus l'idée de ce que doit être
le ciel".
ENDO a inteligência, a sensibilidade e a imaginação
tributárias do instinto sexual, e vice-versa, acontece que este
empenha todo o ser.
PUREZA (aquela que é amor, aliás não há outra) é chama:
rói o que nos diminui, rói o que nos engana, escraviza, e ela
entretem o que nos deixa inconscientemente crescer, nos faz
conhecer a verdade, nos liberta.
QUELE que ousaria se considerar mais puro que os outros,
não o seria. A pureza só pode ser inconsciente.
A pureza há sempre uma ferida e uma aventura : uma
ferida no coração aberta, é a mais louca, mais intensa, mais
nobre das aventuras.
STAMOS de acordo e já o disse, especificando por que : a
vontade é a "mola", a 'peça" humana essencial. Sem vontade,
nem grandeza, nem obra, nem vida pessoal, familiar, social.
Sem vontade nada é possível. Mas a utilização da vontade
requer prudência. Terrível o homem que pensa : "Je suis maitre
de moi comme de 1'univers." Nada mais funesto para os outros
e para nós mesmos do que nossa vontade em estado de tensão
excessiva, ou mal dirigida.
EIO no Paris-Match uma das últimas frases pronunciadas
por Gide ainda lúcido: "Sempre a luta entre o razoável e aquilo
que não o é". Luta imprescindível e fecunda. O menos
razoável, porém, é que me parece o mais significativo, fora ou
dentro do cris-tianismo, nos outros e em mim.
EU filho mais velho, 17 anos, falando de um com-
panheiro da mesma idade :
"— V. sabe papai, o R. não costuma comer carne nas
sextas-feiras.
Gosto de católico assim.
Mas êle não acredita em nada. E' porque mora com
os pais, católicos fervorosos, então..." O' exemplo!
QUE é que afasta tantos jovens da religião? Nem sempre
motivos baixos mas — quem sabe ? — o que fizemos do
cristianismo, nós que pertencemos a uma
época em que a maior parte da humanidade proclamou a
morte de Deus.
Ão é paradoxo : tudo quanto é puro me perturba (o olhar
de uma criança, a santidade, um diamante, um dia sem nuvens,
etc.) — e a esse estado, quando dele tenho consciência, devo o
pouco que sei de mim e dos outros.
NTRE os adolescentes educados na fé, muitos não a
conservam. Os motivos que invocam em geral decepcionam.
Na verdade não se lembram onde deixaram Deus, contudo
ainda manifestamente perto deles.
ERÁ em mim ou a razão, ou um instinto, ou a lassidão, ou
o eterno, ou ainda de um modo que pode parecer contraditório,
isso tudo junto, que me faz aderir tão profundamente (como se
eu não me cansasse de vivê-la com inesgotável avidez) à
observação de Santo Agostinho reproduzida no romance Já
citado de Gustavo Corção: "A Razão pergunta: "o que queres
tu saber afinal?" e Agostinho responde: "conhecer Deus e
minha alma, eis tudo o que quero saber".
HÁBITO é uma segunda natureza". Certíssimo. Tratemos
de incutir bons hábitos aos nossos semelhantes, sobretudo se
esses hábitos forem nossos (só o exemplo impressiona,
segundo dizem). Acontece porém, que há criaturas que pensam
mudar de natureza
mudando de hábitos. Enganam-se: é mudando de hábitos que
hão de ter maior consciência do que, irremediavelmente, elas
são.
s pedagogos deveriam estudar a necessidade e os
diferentes sentidos da evasão. A parábola do filho pródigo
deixa entrever solicitações até certo ponto legítimas na
mocidade. E' o que salientou Gide no seu livro A volta do filho
pródigo. Sublinha em que consiste a tentação justificada e
deixa no segundo plano o fim da parábola como o quis o Cristo
— fim que ultrapassa a razão e coincide com a misteriosa e
incompa-rável palavra do Evangelho: "Eu vô-lo digo haverá
mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que
por noventa e nove justos". Aliás, "Na casa do meu pai há
muitas moradas".
STRÊLAS : folhas ou flores claras da arvore noturna, pálida
e leve renda do infinito, companheiras e imagens do quase
informulado em mim, porém, do mais vital.
TEMPO, a memória, a sensibilidade, o azul profundo e
vasto (em que fogem as nuvens em debandada), o mar, poucos
objetos trazidos da infância, a fé, o amor, a necessidade de me
expressar, estabelecem a ligação entre aquele que fui e aquele
que sou.
SSE rumor em mim sem o qual não vivo realmente e nada
escrevo: rumor por assim dizer silencioso como o das estrelas,
rumor da alma.
Há no vento forte algo feroz, voluptuoso, cego, triste que me
faz viver.
ERÁ poesia ? Nasce do mais profundo do ser, não se sabe
quando, no bonde, na rua, de dia, de noite, quando estamos
brigando ao telefone, pagando impostos ou namorando. De
repente, aquele mal estar, provocado por uma requisição íntima,
uma descoberta que ainda não se moldou numa imagem ou num
ritmo que tenha em nós o caráter de uma revelação. Nossa
dociüdade é súbita a essa ordem imperiosa que suprime o
tempo e faz com que, por exemplo, a avenida Rio Branco ou o
Café Vermelhinho (onde escrevo estas linhas) se tornem
milagrosamente um mar de silêncio. No momento essa ordem
desperta em mim um princípio de canto ainda indeciso, e
percorro bastidores de teatros desconhecidos, assisto a
espetáculos que nunca foram dados, vejo quadros, estátuas,
monumentos imaginários, rostos que nem sei se já foram
sonhos; e dramas shakespereanos rastejam em mim, e carrego
um universo de mentira mas que é o que possuo de mais
verdadeiro e que está compondo aquele que sou. Isso dito,
ainda que sujeito a estados parecidos com aquele que acabo de
evocar, inspirado (no sentido usual da palavra) não me lembro
o ter sido. Retribuo as visitas que me faz a sorte. Mais do que
isso, preciso buscar, cavar, e com infinita paciência, o que
encontro. E' meu modo, e não só quando escrevo, de ser quem
sou e, com força, de me sentir livre. Livre. Muito embora eu
navegue no escuro, certas palavras e atos, alheios ou meus,
são como estrelas que, na
minha noite, me indicam o caminho, aquele que liberta. E como
diria Mauriac, esse é afinal o problema: a consciência de nossa
responsabilidade perante nosso destino, como se tivéssemos
que aprender a tecê-lo.
NSiNAMOs inconscientemente aos nossos filhos coisas
que preferíamos não lhes ensinar.
OBRE as condições capazes de prolongar, tornar fecundos,
humanizar os estudos, nunca li nada mais justo e comovente do
que estas linhas de Simone Weil. Em nenhum país, porém, que
eu saiba, os programas oferecem a essas condições
possibilidades de existência. A execução desses programas
sobrecarregados supõe até a supressão pura e simples do espí-
rito de vida que animaria os estudos como os prevê a autora da
Attente de Dieu:
"Bien qu'aujourdhui on semble l'ignorer, la formation de
la faculté d'attention est le but véritable et presque l'unique
intérêt des études. . . S'il y a vraiment désir, si l'objet du désir
est vraiment la lumière, le désir de lumière produit la lumière. Il
y a vraiment désir quand il y a effort d'attention. C'est vraiment
la lumière qui est désirée si tout autre mobile est absent. Quand
même les efforts d'attention
en apparence stériles pendant des années, un jour une
lumière exactement proportionnelle à ces efforts inondera l'âme.
Chaque effort ajoute un peu d'or à un trésor que rien au
monde ne peut ravir.
Les efforts inutiles accomplis par le Curé d'Ars, pendant de
longues et douloureuses années, pour apprendre le latin, ont
porté tout leur fruit dans le discernement merveilleux par lequel
il apercevait l'âme même des pénitents derrière leurs paroles et
même derrière leur silence. . . L'intelligence ne peut être menée
que par le désir. Pour qu'il y ait désir, il faut qu'il y ait plaisir et
joie. L'intelligence ne grandit et ne porte de fruits que dans la
joie. La joie d'apprendre est aussi indispensable aux études que
la respirations aux coureurs"... *
ITES de chegar ao Ministério da Educação paro diante do
Monumento à mocidade brasileira, de Bruno Giorgi. Essa
escultura representa dois jovens, ela e êle, que mal saem da
infância e caminham desarmados e confiantes. Tudo neles
vibra e canta. Abeiram ainda despreocupados do mundo
sempre mais ameaçador que aos nossos filhos legamos.
QUE teriam sido as obras de homens como Pascal, Byron,
Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Dostoiewski, Proust (para só
falar em escritores) sem as taras fisiológicas e sem os
imponderáveis espiritualmente mórbidos que traziam em si? E'
claro, diferentes, porém maiores
SSE menino, apático, tímido e que só fala com infinita
dificuldade, acaba, por medo e em estado de choque, de se
defender com eloqüência em voz forte e clara.
CRIANÇA e o adolescente estão mais perto de tudo quanto
importa — a procura da verdade, de Deus, do sentido do que
chamamos o bem e o mal, do essencial — do que o adulto. Em
geral éste é realista — é assim que dizem — e falta-lhe tempo
para ser inutilmente incomodado. A vocação do filho o inte-
ressa, lucrativa; raramente no que faria dele um homem. A não
ser exceções, nem os pais nem a escola formam os jovens, eles
os deformam. Impressionam-me estas linhas de Julien Green :
"Je demandais l'autre jour à l'un d'eux (un philosophe), qui est
fort eminent, si les questions que se pose l'enfance ne sont pas,
très souvent, celles-là qui préoccupent les grands penseurs de
l'humanité (j'avais en tête Descartes et Kirkegaard) et sur ce
point il était d'accord avec moi, mais comment les intuitions
géniales de l'enfant se perdent-elles si souvent? N'est-ce pas
l'éducation qui en est responsable ?"
STOU relendo clássicos franceses. Quase todos, aliáa,
mesmo quando escrevem comédias e fábulas, pensamentos ou
sermões, são críticos, nesse sentido que não aceitam logo o que
sentem e pensam. Resistem. E até em amor, muito embora
acabem, naturalmente, cedendo. Vejam as comédias de
Molière. Tanto Arnolfo como Alceste não aceitam facilmente
sua condição de homens apaixonados por uma mulher. Sofrem
de mais e, outro motivo, permanecem lúcidos. A lucidez nasce
da resistência ao convencionalismo social ou particular, bem
como da insatisfação, da in-
quietação. Os clássicos franceses são clarividentes e, ao
contrário do que muitos pensam, inquietos. Até parecem
necessitar, em pleno século XVII, ser inquietos para ser
representativos. E não só escritores como Pascal, La
Rochefoucauld ou Racine, mas até como La Fontaine e
Molière, bastando talvez aqui relembrar que La Fontaine é o
autor de Adonis e até de fábulas como Les deux pigeons e
outras, e de cartas a Boileau; e Molière, o autor de Dorj Juan,
de 1'École des femmes e, embora no plano da farça, do Malade
jtneginaire. Os clássicos franceses em 1830 teriam sido quase
tão atormentados quanto os românticos. A serenidade, na
literatura francesa, constitui exceções, como antigamente,
Montaigne e, hoje, Valery, serenos (relativamente) sem
deixarem por isso de resistir, e até de um modo para sempre
instrutivo, a tudo quanto é fácil. Esses escritores e tantos outros
que não citei são representativos do povo francês — um povo
que resistiu às tentações necessárias à formação de uma grande
nação.
OMOS em parte o que queremos ser, pois trai uma
disposição íntima aquilo que tomamos por nossa vontade.
S adultos só excepcionalmente entendem as crianças e as
criaturas que, por exemplo, como os doentes ou os animais,
deles diferem. Será por incapacidade ou por outro motivo?
Como observa Julien Green:
"Savoir parler à un enfant est le don rarissime entre tous. Ce
qu'on fait quelquefois "pour leurs bien" est tout simplement
atroce. On leur poignarde l'âme avec d'autant plus de zèle que
cette espèce d'assassinat se commet au nom de la vertu".
Ão são poucos os adolescentes cuja alma prevalece sobre
o corpo e favorece o excesso do sentimento, que neles então
adquire a perigosa e intensa pureza da chama.
UANTo a Julien Green sua opinião é clara : "La fureur du
plaisir n'a tout son sens et ne peut être absolument comprise si
l'on ne reconnaît pas qu'il s'y mêle du divin, la nostalgie du
divin".
MAR é desejar. E o desejo pode resultar do casamento da
matéria com o espírito, fascinado por essa obra prima de
Deus, o corpo humano.
Ão é fácil especificar em que consiste a repercussão em
nós, aliás tão variável e diversa, do instinto sexual. E, todavia,
de nosso modo de reagir às solicitações carnais depende nossa
vida moral, afetiva, intelectual, — nosso destino.
IM, o desejo pode ser demasiadamente exigente, e
humilhar. Costumamos ignorar o sentido e as conseqüências
nos outros dessas humilhações; nem sempre
porém. Baudelaire, esse cristão, escreveu "Minhas hu-
milhações foram graças de Deus".
AS, assim mesmo, porque, em alguns, esse ódio constante
do instinto sexual, todavia inseparável do que intensifica nossa
vida nas suas mais altas, autênticas e fecundas reivindicações ?
Sem esse instinto o que seria a arte, a religião, o amor ?
s verdadeiros mestres: essas experiências quase sempre
decorrentes da humilhação, do desejo, do medo, e que
deveriam ficar gravadas em nós como tatuagens.
VIDA, essa grande mestra, especialmente quando nos
deixa amar quem conosco não liga. Educador inexorável: o
amor não retribuído.
E o sal perder a sua força, com que outra coisa se há de
salgar?"
(S. Mateus, cap. v. Vol. 13).
APiTAL a observação que encontrei há dias em Claudel :
"On ne prouverait quelque chose contre l'Église que si on
prouvait qu'il y a quoi que ce soit dans son enseignement et
dans ses pratiques qui aillent contre l'amour du Christ".
QUELES que disseram ter produzido uma fatalidade cega
todos os efeitos que vemos neste mundo disseram um grande
absurdo pois será que existe maior
absurdo do que uma fatalidade cega que teria produzido seres
inteligentes?" Quem escreveu isso? Montesquieu, no Espírito
das Leis (I, 1).
GRANDEZA da Igreja consiste em pedir-nos legitimamente
tudo. Insaciável mas inautêntico, o cristianismo infernaria a
vida como, em política, todo regime totalitário. O cristianismo
gerou a maior das revoluções alvejando o coração. Este é que
está em jogo e escapa a qualquer espécie de conformismo,
precisamente graças ao Evangelho que repele o homem como o
mundo o reduziu.
ARA certas criaturas tudo é luminoso. Para mim, quase
nada o é. Cega-me o que consideram luz. Lembro-me que, em
outros tempos, sucedia-me passar da luz estonteante de uma
tarde de verão para uma daquelas igrejinhas medievais que
tanto me confortavam. Ao penetrar no santuário todo
mergulhado na penumbra, na verdade, eu quase nada
distinguia. Mas aos poucos, como no ácido a chapa fotográfica,
ia-se revelando uma vida intensa, presente num crucifixo, numa
estátua ou num ramo de flores, e ainda em linhas, formas e,
graças aos vitrais, em cores que acabavam por sugerir-me um
mundo de coisas e me permitiam medir em profundidade a
nossa realidade humana.
QUE é a morte ? Para os ateus nada mais do que aquilo
que podem saber ao examinarem o corpo de um homem ou
de um animal morto. E para nós?
O que nos ensina nossa fé, ou seja que a morte não é a morte. E
essa interpretação, não o negamos, só é indiscutível para os
fieis. Confesso que para mim falar da morte foi sempre viver
mais, aprofundar e enriquecer o domínio da vida. E creio que
também o pode ser para figuras aparentemente pouco
ortodoxas como Cocteau de quem vi ontem o filme Orfeu, o
qual, aliás, está motivando as presentes observações. A arte de
Cocteau consiste em nos fazer penetrar numa zona entre a vida
e a morte, em impor-nos a realidade de um mundo feito de
forças e leis desconhecidas e em virtude de que, no caso
particular de Orfeu, por exemplo, os espelhos se assemelham a
túneis que estabelecem a ligação entre uma fronteira e a outra,
entre a vida e a morte. E nesse mundo não é de se estranhar se
ouça esse fragmento de diálogo entre Orfeu e a Princesa :
Orphée Tu es
toute puissante.
La princesse À vos yeux. Chez nous il y a des
figures innom-brables de Ia mort. Des jeunes, des
vieilles, qui reçoivent des ordres.
Orphée
Et si tu désobéissais à ces ordres ? Ils ne peuvent pas te
tuer. Cest toi qui tue.
La princesse Ce qu'ils
peuvent est pire.
Orphée D'oü viennent
ces ordres ?
La princesse Tant de sentinelles se les transmettent
que c'est le tam-tam de vos tribus d'Afrique, l'écho de
vos montagnes, le vent des feuilles de vos forêts.
Orphée J'irai jusqu'à celui qui donne
ces ordres.
La princesse Mon pauvre amour. . . il n'habite
nulle part. Les uns croient qu'il pense à nous, d'autres qu'il
nous pense. D'autres qu'il dort et que nous sommes son
rêve. . . son mauvais rêve.
-Mais uma vez o verificamos: a morte, interpretada na
linguagem dos homens une-se ao mistério da vida, essa chama
só aos poucos roída, a menos que, de repente, a apague, desta
feita numa linguagem que não é a nossa, o vento que leva tudo.
HARLEs Du Bos possuia a arte de citar. Citava e
comentava, muito e admiràvelmente. Creio que as citações que
fazemos dos outros são significativas do que somos. Citamos
para provar, aprovar, desaprovar, manifestar nossas opiniões,
as quais refletem um pouco nossos sentimentos. Pessoalmente
cito para repartir meu prazer em 1er textos que vêm
acrescentando alguma coisa ao que penso e sinto. Assim há de
parecer, presumo, um pouco menos arbitrário o que eu então
disser, pois apóia-se numa autoridade. Além do mais, uma
citação varia o tom e o ar. Entra por essa janela um demônio
(sobretudo no sentido em que se diz entregar-se um escritor ao
demônio interior) ou
um anjo, inesperado. Bem escolhida, no devido lugar, unia
citação é coisa sugestiva e assimilável. Desde cedo o
verifiquei. Não devo pouco às citações. Para mim. citar é pagar
um pouco meu tributo a Cesar.
MENSAGEM de um poeta tem o caráter de uma
reivindicação em cujo contacto o que mal existia em nós se
anima c se expressa, e, por vezes, desde cedo. Bem moço. li
pela primeira vez o célebre título de uma peça de Calderón, A
vida é um conho. Confirmava o que antes eu experimentara, já
tendo tido a impressão, ao sair de um sonho, de deixar mesmo
a realidade para entrar no estranho nevoeiro da vida. Agora
falava uma grande poeta graças a quem, era-me dado saber que
a vida é sonho, e que a poesia talvez seja a realidade desse
sonho — hipótese para mim decisiva.
Abril — junho 1952.
TEXTOS TRADUZIDOS
Quero cumprir meu destino que é dizer o que esto em mim. Tudo quanto
escrevo procede cm linha reta da minha infância.
Muito limpar arriscaria matar os micróbios o as podrídões que compõem
a vida. Conheceram-se americanas que morriam de tanto purificar os órgãos.
Expulsavam de si o próprio princípio da vida que permanece tributária da
vermina, embora seja desagradável verificá-lo.
A vaidade externa-se pesada como um saco de moedas. O orgulho
manifesta-se por dentro, e permanece invisível.
A adolescência é a idade trágica por excelência. Nada é gratuito, tudo
tem que ser conquistado e cada conquista se acompanha de uma dilaceração: é
preciso escolher, escolher-se, deixar-se mutilar, eleger sem prazer, repelir com
desespero. O adolescente tem medo de viver, fere-se nas coisas, qual um bicho
desalentado, castigado nas suas roupas acanhadas.
DONA PROUHÈJE — O que' Então era permitido ? O amor das criaturas
umas pelas outras, será realmente verdade que Deus não tem ciúmes ? O
homem nos braços da mulher. . .
O ANJO DA GUARDA — Como teria ciúmes do que íèz e o que teria feito
que não o sirva ?
DONA PROUHÈJE — O homem nos braços da mulher esquece Deus.
O ANJO DA GUARDA — Será esquecê-lo estar com éle? Será que não está
com êle quem participa do mistério da sua criação ?
"Estes prazeres que chamamos levianamente físicos".
Uma só coisa importa neste mundo — o amor que temos por alguém —
não o amor que inspiramos, mas aquele que temos. E' amando que melhor
temos a idéia do que pode ser o céu.
"Sou dono de mim como do universo".
Embora hoje pareçam ignorá-lo, a formão da faculdade de atenção é o
fim verdadeiro e quase o único interesse dos estudos... Se existe
verdadeiramente o desejo, se o objeto do desejo é verdadeiramente a luz, o
desejo da luz produz a luz. Há verdadeiramente desejo quando há esforço da
atenção. E' realmente a luz que é desejada, mesmo se não houver outra
finalidade. Mesmo se os esforços de atenção ficassem aparentemente estéreis
durante anos, um dia, uma luz exatamente proporcional a este esforço há de
invadir a alma. Cada esforço acrescenta um pouco de ouro a um tesouro que
nada deste mundo poderá arrebatar. Os esforços inúteis do Cura de Ars durante
longos e dolorosos anos, para aprender o latim, frutificaram no seu
maravilhoso discernimento em perceber a alma dos penitentes por eles
disfarçada atrás do aue diziam e até silenciavam. . . A inteligência só pode ser
levada pelo desejo. Para que haja desejo é preciso que haja prazer e alegria. A
inteligência só medra e consegue frutos na alegria. A alegria de aprender é tão
indispensável aos estudos quanto a respiração aos atletas.
Eu indagava o outro dia a um deles (um filósofo) muito eminente, se as
perguntas feitas pelas crianças, não são muitas vezes as mesmas que
preocupam os maiores pensadores da humanidade (tinha em mente Descartes e
Kirkegaard), e neste ponto concordava comigo, mas como as intuições geniais
das crianças se perdem tão a miúdo ? Não terá responsabilidade nisso a
educação ?
Saber falar às crianças é dom raríssimo. O que se faz as vezes "por elas"
é simplesmente atroz. Não seríamos capais de ferir-lhes com uma faca a perna
ou o braço, mas apunhalamo- lhes a alma com tanto mais zelo que esta espécie
de assassíno se comete em nome da virtude".
O furor do prazer só adquire todo sentido e poderá ser integralmente
compreendido se reconhecermos nè!e algo de divino, a nostalgia do divino.
Só se provaria alguma coisa contra a Igreja, provando que existe no seu
ensinamento e nas suas práticas algo que seja contra o amor do Cristo.
ORFEU — Você é toda poderosa.
A PRINCESA — A seus olhos. Para nós, inúmeros são os
aspectos da morte. Há velhas e jovens que recebem ordens. ORFEU
E você desobedece a essas ordens ? Não podem
matá-la, é você quem mata. A PRINCESA — O que podem c pior.
ORFEU — Donde vêm essas ordens ? A PRINCESA — Tantas sentinelas as
transmitem que elas são
o tambor de vossas tribus da África, o éco de vossas
montanhas, o vento nas folhas de vossas florestas.
ORFEU — Falarei com aquele que dá essas ordens.
A PRINCESA — Meu amor. . . não mora em parte alguma. Talvez pense
em nós, ou nos pense. Talvez ainda durma e sejamos seu sonho, seu
péssimo sonho.
OS CADERNOS DE CULTURA
Direção de José Simeão Leal
1 — JOSÉ JANSEN ....................................... A máscara no culto, no teatro e na
tradição
2 — ÁLVARO LINS, CARPEAÜX e
THOMPSON .......................................... José Lins do Rego
3 — PAULO RONAI ..................................... Escola de Tradutores
4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-
DRADE .................................................... Viola de Bolso
5 — LÚCIO COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira
6 — LÚCIO COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-
porânea
7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto
8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado
9—H. VON KLEIST ..................................... Teatro de Marionetes
10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................. Monte Cristo, ou da Vingança
11 — Luís COSME ........................................ Música e Tempo
12 — JOÃO CABRAL DE MELO ...................... Miró
13 — OTÁVIO DE FARIA .................................. Significação do Far-West
14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte
15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro. Realidade Mágica
16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantcs
17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto
18 — GILBERTO FRETBE .............................. José de Alencar
19 — CLARISSE LISPECTOR ......................... Alguns Contos
20 — MÀrio PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna
21 — ROSÁRIO Fusco ................................. Introdução á Experiência Estética
22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................... Realidade e Ficção
23 —DANTE COSTA ..................................... O Sensualismo Alimentar
24 — LEDO Ivo ........................................... LiçAo de Mário de Andrade
25 — Eugênio GOMES .................................. O Romancista e o Ventríloquo
26 —JOSÉ LINS DO REGO ............................. Homens. Seres e Coisas
27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias
28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura
29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Colonial
3O — MANOEL DIÊGUES JÚNIOR _______ Etnias e Culturas no Brasil
31 — CYRO DOS ANJOS ............................... Explorações no Tempo
[Continua na 3° pág..)
LUIZ COSME
HORIZONTES
DE MÚSICA
M I N I S T É R I O DA EDUCAÇAO E CULTURA
SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO
Para Augusto Meyer
ALLEGRO CON BRIO
DA ESCOLA. DURAÇÃO BERGSONIANA. DOS
ELEMENTOS SONOROS
OMPREENDE-SE como Escola musical uma determi-
nada comunidade em procura de estilos de com posição, que
individualiza e define um grupo de músicos. Cada um preserva,
dentro dessa Escola, as suas características peculiares, porém,
essas mesmas características sujeitam-se a certos princípios:
resultado de uma preparação histórica.
No ciclo Renascentista, Ockeghem, Obrecht, Josquin e
Isaac têm, cada um, qualidades próprias e muito marcadas em
suas obras, sem o que seria dificílimo diferençá-las. Há
contudo, nessas obras, qualidades comuns, que são exatamente
as qualidades da Escola. Além do mais, uma Escola evolue de
acordo com uma norma própria, esta norma particulariza, em
sentido uniforme, a expressão coletiva, que pertence ao tempo
e à história.
O critério originado pelo vínculo de tempo e espaço, sob a
mesma forma, é notório — o de Bergson, por exemplo, o
qual denomina duração ao tempo
psicológico, e que seria, também, uma forma de nossa maneira
de sentir.
Duração bergsoniana "O filósofo tem a psicologia como
a base da filosofia. Sem dúvida, como em geral acontece com
os filósofos espiritualistas, foi a psicologia que conduziu à
metafísica, partindo da duração. Em carta a Hoffding, insiste
em atribuir à duração, e não à intuição, o ponto de partida de
sua doutrina. Daí muitos chamarem de preferência ao
bergsonismo "filosofia da duração".
"O conceito de duração (continuidade), oposto ao ponto
temporal (instante que passa), é antigo na história da filosofia.
A novidade de Bergson está em ter tornado claro, dentro do
sentido de seu sistema, o caráter do tempo como duração
meramente espacial a de que o homem e a ciência se utilizam ;
e, principalmente, a novidade bergsoniana afirma-se em julgar
que, acima de semelhante duração ou temporalidade, existe a
duração pura, a duração concreta, que é uma evolução de
momentos. Na duração pura ou concreta cada um dos
momentos contém o precedente e anuncia o que vai seguir.
Trata-se de um devir orgânico, estranho ao espaço e refratário
ao número, "heterogeneidade pura".
"No bergsonismo, poder-se-á distinguir mais de um tipo
de intuição, sem que um anule o outro. A intuição do super
instinto, a que estabelece contato com o absoluto, é espécie de
instrumento do conhecimento; a intuição da duração "é o
próprio espírito e, em certo sentido, a própria vida". A intuição
como
"espécie de simpatia intelectual, pela qual a pessoa se
transporta ao interior de um objeto para coincidir com o que êle
tem de único e, conseqüentemente, de inex-primível*', parece
expressar o sentido do papel da intuição da duração, como
sendo o próprio espíri-to". (1)
O campo pesquisado por Gisèle Brelet em sua obra : Le
Temps Musica], Essai d'une csíhóíique nowelle de Ia Musique
— como tive ocasião de observar em Música c Tempo (1952)
— é vastíssimo. As antigas noções de espaço e tempo; os
grupos evidentemente definidos — mas muito arbitrários — já
foram estudados por filósofos de todas as disciplinas porém, a
ciência moderna fêz suprir premissas mais complexas.
"Pour Bergson comme pour Schopenhauer, Ia musique est
le témoin et le symbole le plus adéquat de 1'absolue réalité; et
le philosophe de Ia durée purê fait volontiers appel au temps
musical pour nous faire comprendre 1'essence de Ia durée ou
plutôt pour nous en communiquer 1'intuition". (2)
"Pour Bergson, 1'idée d'un certain ordre de sueces-sion
implique Ia spatialité. Entre Ia continuité purê de Ia durée et le
discontinu de 1'espace, entre Ia sucession de Pune et Ia
simultanéité de 1'au're, il n'y-a pas de moyen terme. Percevoir
dans Ia mélodie un
(1) OREIS SOARES Dicionário de Filosofia. Instituto Nacional do
Livro, Rio, 1952, pg. 163.
(2) GISÈLE BRELET — Le Temps musica!, Alcan, Paris, 1949, pg.
46.
ordre entre sons distincts., c'est faire violence à la durée pure
qui est en elle, c'est quitter le temps où les sons se succèdent
pour un espace où on les juxtapose, transformer le sucessif en
simultané, étaler "l'un à côté de l'autre'' ce qui était "l'un dans
l'autre". Mais, comme nous le verrons mieux plus tard, l'ordre
temporel ne manifeste nullement l'intrusion de l'espace dans le
temps: l'ordre bien au contraire est une notion essentiellement
temporelle, et l'on peut dire que tout ordre vient du temps. De
plus en face de l'ordre statique de l'espace, il est un ordre
spécifique de la durée, — le rythme, ordre dynamique qui
l'affirme, loin de la contredire et de l'anéantir". (3)
.. ."Per il Bergson la durata si oppone al tempo in quanto
la prima è il carattere stesso della successione, quale è
immediattamente appressa che noi se ne facciamo per ragionare
e comunicare coi nostri simili, traducendola in imagini spaziali;
quindi la durata è per lui il tempo concreto il tempo reale,
costituito da una pura sucessione di cangiamenti qualitativi
senza alcuna tendenza ad esteriorizzarsi gli rispetto agli altri,
senza alcuna parentela col numero, l'hétérogénéité pure sans
aucune parenté avec le nombre". (4)
"Si notre existence se composait d'états séparés dont un
"moi" impassible eût à faire la synthèse, il n'y aurait pas pour
nous de durée. Car un moi qui ne
(3) Id., Ibid., pg. 48.
(4) G. RANZOLI Dizionario di Scienza lilojoíiche,
Hoelpi, Milão. 1926,, 3.
a
ed., pg. 332.
change pas ne dure pas, et un état psychologique qui reste
identique à lui-même tant qu'il n'est pas remplacé par l'état
suivant ne dure pas davantage. On aura beau, dès lors, aligner
ces états les uns à côté des autres sur le "moi" qui le soutient,
jamais ces solides enfilés sur du solide ne feront de la durée qui
coule. La vérité est qu'on obtient ainsi une imitation artificielle
de la vie intérieure, un équivalent statique se prêtera mieux aux
exigences de la logique et du langage, précisément parce qu'on
en aura éliminé le temps réel." (5)
A mùsica dirige-se a princípio, ao nascer de uma Escola,
no sentido de fixação. Fase de metamorfose que procura, no
estado da realidade subjetiva, os elementos sonoros de
expressão. Essa fase evolutiva é em geral longa e complexa. O
empenho coletivo, dos grandes músicos, se encaminha, agora,
ao exame da realidade objetiva, a fim de separarem os
elementos sonoros e os amoldarem à forma de expressão.
Ainda é o ciclo Renascentista um exemplo característico,
período que, por interferência das escolas : Borgonhesa,
Flamenga e Veneziana, pode ser dividido em três etapas: a)
Pré-Renascentista; b) Renascença; c) Renascença e Reforma,
perpassando, dessa maneira, por longas fases analíticas. Esse
espaço de tempo, aos poucos, demarca os princípios sonoros,
distinguindo, assim, o processo evolutivo escolástico.
(5) HENRI BERGSON L'Évolution Créatrico, Alean, Paris, 77.
a
ed.,
1948, pg. 4.
O andamento histórico da música possue vários
elementos para determinar um argumento ou basear rio
ambiente da observação, que nos fornece a experiência
histórica, os assuntos para apontamentos aos horizontes de
música.
TEMPO MODERATO, QUASI ADAGIO ARS
ANTIQUA
MÚSICA na Idade Média era geralmente baseada no
conceito da notação modal ou seja no canto gregoriano. de
onde sobrevêm os modos gregorianos, com os quais se
designavam as escalas que lhes serviam de base. A heterofonia
medieval era rigorosamente linear e de livre invenção,
apoiando-se. mais tarde, no princípio da imitação e na
independência da permuta ritmo-melódica.
Em seu livro '"História Popular da Música" Luiz de
Freitas Branco diz o seguinte, com relação à Escola de Notre
Dame: ". . .No início do século XII tinha-se atingido na igreja
de Nossa Senhora de Paris, que não era a atual, embora se
erguesse no mesmo lugar, uma grande perfeição no
contraponto organai, tanto para vozes como para órgão. A
escola de Notre Dame é cronològicamente a primeira
importante que se conhece na histeria da polifonia. Os seus
vultos principais são os magistri (mestres) Léonin e Pérotin".
"Pérotin, que foi o sucessor de Léonin como mestre de
capela de Notre Dame, excedeu-o no gênio e na
perfeição técnica, a ponto de merecer o cognome de "grande"
(Pérotin le grand, Perotinus magnus). Este grande músico
medieval estava em plena atividade cerca do ano de 1220".
"Da escola de Notre Dame foram-nos conservadas
numerosas composições, tanto vocais como instrumentais,
sobre cantos firmes, e vários conducti sobre poesias latinas
rimadas em estilo lírico. Os compassos em valores ternários
reinavam exclusivamente na escola de Notre Dame". (6)
Na música para vozes se observa que, no canto
melismático. a palavra desdobra-se e possue maior valor em
sonoridade como unidade vocal. Não obstante perder o sentido
de texto, a musicalidade aumenta à proporção que desaparece a
acepção lingüística; pelo desdobramento da palavra em canto
silábico, consideradas unidades sonoras: elementos
aproveitados como integrantes à heterofonia.
O Organum era um tipo de composição decorativa, para
embelezar certas cerimônias religiosas, executada vocal ou
instrumental mente em intervalos de quartas, quintas e oitavas
paralelas, sobre uma melodia dada ou Cantus firmus (canto
firme), no qual se baseava o trecho. A palavra organum. ou
veio dos textos litúr-gicos que mandam louvar a Deus in
oréanis, isto é, no órgão, ou, o que é mais provável, teve a sua
origem no fato de ser próprio da música primitiva do órgão.
Em La Cathédrale Engloutie, de Claude Debussy os
métodos impressionistas se assemelham aos proces-
(6) Luiz DE FREITAS BRANCO História Popular da Música, Lisboa,
pg. 53, 1947.
sos tradicionais da voz de "tenor"' no organum. A palavra
"tenor", aqui, não significa a voz masculina, a que hoje se dá
esse nome, mas por ser o cantus firmus, ou canto principal,,
palavra que significa em latim: tenere, que quer dizer: segurar;
sustentar. Pode-se considerar La Cathédrale engloutie um
organum do século XX, ou uma irrupção vulcânica depois de
mil anos de inatividade.
O conjunto instrumental, usado na Idade Média e no Pré-
Renascimento, era composto de Vièles; Alaú-des e Recorders,
a este último os italianos denominavam de Flauto dolce; os
franceses de Flúte à bec. Este instrumento era muito usado na
época Tudor e nas peças de Shakespeare e possue a sonoridade
semelhante à ccarina.
Outro tipo de composição do período medieval era o
Conductus, que representara um grande passo no
desenvolvimento da polifonia livre, sendo que a sua
característica era a ausência do cantus iirmus e o contraponto
das diversas vozes juntas, quase sílaba a sílaba. O conductus,
ao contrário do organum, não era baseado em cantos litúrgicos
e sim em melodias de livre invenção.
No fim do período da ars antiqua floresce o mo-tete, que
devia suplantar as outras formas mais importantes de então: o
organum e o conductus. O motete era, afora a fixação de uma
voz. o nome dado a fragmentos de música para diversas vozes
que divergiam especialmente na execução e na acentuação.
Pode-se dizer que o Motete significa um trecho
polifônico
vocal, cem ou sem acompanhamento de instrumento, religioso
ou profano, mas de caráter lírico. O primeiro tipo do motete, o
tipo medieval, era comumente a três vozes, diferençando-se dos
organa a três partes, pela liberdade das duas vozes acima do
"tenor".
O Motete, o Conductus e o Rondeau são as primitivas
formas da composição polifônica, vindas da Escola de Paris
(século XIII). Formas que apresentam a base estética da
polifonia. O Rondeau como o princípio da imitação das partes
(Cânone e Fuga); o Motete como a liberdade de movimento, de
ritmo e de texto e o Conductus como invenção
1
livre. Segundo
Alfred Lorenz a forma medieval da polifonia coral e o princípio
de seccionamento temático seriam os elementos básicos da
música instrumental do século XVIII.
Do mesmo modo, a heterofonia medieval, rigorosamente
linear e de livre invenção, demonstra grande tendência
combinatória com as manifestações polifó-nicas da arte musical
de hoje.
EXPRESSÕES FORMAIS DA MÚSICA
E
ACORDO com a "Gestalttheorie" são as formas ou
estruturas da música que nos dão um cabal aspecto do
panorama histórico, e não apenas os sistemas de Notação
Alfabética, Neumática, Coral Alemã, Mensuralista ou
simplesmente as reações emocionais--estéticas. Vários são os
aspectos pelos quais as expressões formais da música se podem
manifestar ao conhecimento. Havendo evidências na duração
sonora das categorias seculares, a forrna musical vem a ser
uma condição do tempo. Estas formas encerram siste-
matizações que se lhes sucedem historicamente, por exemplo: a
suite é um acontecimento para a Sinfonia; o Poema sinfônico
uma conseqüência natural desta. Não se concebe facilmente o
aparecimento destas formas musicais sem a existência de uma
precedente.
A primeira manifestação da Fuga instrumental se deu na
Itália, como peças polifónicas em estilo de Cânone, derivadas
dos antigos Ricercare, forma usada nos séculos XVI e XVII. A
Fuga consiste, esquemáticamente, na apresentação de um
tema, por uma voz isolada, depois outra emite a resposta,
continuando a primeira elaborando um contraponto. Uma série
destas
apresentações e respostas alternadas — segundo leis tonais
rigorosas, em várias vozes — constitue a exposição da Fuga.
Em meados do século XV se tem notícia de pequenos
agrupamentos instrumentais, destinados à execução de suites.
Com Morley na Inglaterra, Dalza na Itália, Schein na
Alemanha e Arbeau na França, a forma da sufre esboça-se com
a execução das danças: Alemandas, Branles, Correntes,
Pavanas, Galhardas, Passacalhas, Gigas e Saltarelos. Foram os
Cravistas do século XVII que desenvolveram a forma de suite,
mas, Johann Sebastian Bach é quem dá a musicalidade suprema
para a suite germânica, que é uma série de danças com ritmos
determinados.
A palavra Sonata, vinda do verbo tocar (suonare) nasceu
na península itálica, e designava apenas uma peça instrumental.
Sua característica era a seriação de andamentos diferentes,
entretanto, a Sonata clássica consiste em três tempos, distintos
no andamento e condicionados uns aos outros pela tonalização
modulatória .
Foi Johann Kuhnau, antecessor de Bach, o autor das
primeiras Sonatas para piano, que eram antes peças descritivas
do que pròpriamente Sonatas. Num depoimento de Hans
Rosenwald as Sonatas bíblicas de Kuhnau são importantes
documentos da música de programa.
E' ainda Johann Sebastian Bach quem fixa as formas
vocais e instrumentais mais importantes da música pura, como
sejam a Ária e a Sonata, todavia.
seu filho Philipp Emanuel — possuidor de excepcional
invenção rítmica — foi o criador das Sonatas para cravo em
vários andamentos, dentro de um novo estilo. Philipp Emanuel
adaptou a técnica ou os moldes antigos às exigências de suas
tendências estilísticas; fêz mudanças radicais na forma
horizontal para a forma vertical, e definiu as linhas estruturais
da forma Sonata como sua característica.
Não será demais citar a opinião de Serguei Pro-cofiev,
quando diz : "Não quero nada melhor, nada mais flexível ou
mais completo que a forma da Sonata, que contém tudo que é
necessário ao meu propósito estrutural".
Na Itália aparecia a forma da Toccata, genuinamente
italiana, do mesmo modo que a suite era alemã. Os germânicos
estavam, desde então, demonstrando ' sua tendência metódica
que criaria as grandes formas da arquitetura sonora, com a
Fuga, a Sonata e a Sinfonia. Os processos formais de escrever
para orquestra se desenvolveram na Alemanha, sob a influência
da Escola de Mannheim, porque foram fixados os métodos de
tratar sinfônicamente a orquestra, pela tematização curta, pelo
seccionamento dos elementos melódicos e pelos naipes
orquestrais, assim como a constituição da forma da sinfonia.
A Fuga, a variação, a sonata e o concerto — grosso —
este último forma primitiva do Concerto — são as formas da
música instrumental pura que despontaram no século XV e
culminaram nos fins do século XVI e princípios do XVII.
A existência de um único solista, na forma do concerto,
foi concebida pelo veneziano Antônio Vivaldi, que também
criou o esquema de três movimentos: AHegro Adagio
Allegro. E' também à Itália que se deve o desenvolvimento de
instrumentos solistas, porém, os processos formais da Sonata ou
do Concerto desenvolveram-se sob o impulso, ainda, da Escola
de Mannheim, um dos primeiros centros da arte instrumental,
do qual cumpre salientar a família Stamitz, entre eles citaremos
Johann, Karl e Anton. Este último foi mestre do célebre
Rodolfo Kreutzer.
Essencialmente de estilo concertante é a música das
épocas setecentista e oitocentista, período no qual se realizaram
as grandes promessas do Renascimento.
CLÁSSICOS VIENENSES E ROMANTISMO MUSICAL
O ANO de 1781 encontraram-se pela primeira vez os dois
expoentes da música clássica do século XVIII: Haydn e
Mozart. Encontro que marcou o princípio de sólida amizade e
admiração entre ambos. Cada um deles procurava novas formas
de manifestar suas idéias musicais. Não obstante sofrer a
influência um do outro, manifestavam, claramente em suas
obras instrumentais, o contraste fundamental de suas persona-
lidades artísticas.
Haydn e Mozart viveram e escreveram numa época de
absoluto academicismo e formalismo intelectual, por isso,
produziram verdadeiras obras primas de música acadêmica.
Enquanto que Haydn dirigia seus estudos para as criações
formais da Escola de Mannheim, Mozart dominava, com seu
extraordinário talento inventivo, a composição de quartetos,
chegando mesmo a fazer mudanças nos moldes iniciados
por Haydn.
Mozart dedicou vários de seus quartetos de corda a
Haydn, talvez em reconhecimento pelo muito que dele
aproveitou, entretanto, esse oferecimento repre-
senta a maior admiração e estima, pois, naquela época quase
todas as músicas, dos dois mestres, foram escritas por
encomenda de nobres, para os quais eles trabalhavam
(Prematuro exemplo da ''Gebrauschsmusik" de hoje,
movimento introduzido por Hindemith e outros em 1923).
A música de Mozart representa a sujeição do sentimento à
forma.
Haydn com seu espírito criador reformou e deu os
definitivos retoques nas criações formais da Escola de
Mannheim, ocupando-se com o desenvolvimento temático do
primeiro andamento da Sonata, cuja função primordial é o
afastamento da reexposição dos dois temas.
Não só o primeiro andamento da Sonata — o Allegro —
estava sendo impulsionado interiormente pelas idéias
renovadoras de Kaydn; também os outros tempos que a
constituem sofreram sua influência. Infiltra-se o princípio
duotemático na parte Lenta, derivada da canção unitemática, se
expandindo com maior liberdade a inspiração do compositor. O
Rondo (derivado das antigas formas de dança) teve seus
elementos ampliados, sofrendo alterações e acréscimos de
movimentos desconhecidos das danças da Suite. O Minueto,
incorporado à estrutura da Sonata, como andamento moderado,
completou-a de maneira admirável, tornando-a, desse modo,
mais fecunda que qualquer outra forma musical.
Bach anunciando o novo sentido das transformações
musicais, manifestadas na Fuga, representa o
ponto culminante das formas polifônicas., enquanto que
Beethoven, nas suas últimas obras, marca o apogeu das formas
harmônicas reveladas na Sonata, e com o en-grandecimento e
enriquecimento da idéia musical anuncia as futuras direções da
Sonata, pelo vigor e plasticidade dos temas, pelas modulações
audaciosas. pela precisão contrapontística, se revelando um
digno sucessor de Bach.
E' interessante se observar que os quartetos desses três
clássicos vienenses soam muito mais modernos e atuais do que
seus trabalhos orquestrais. Isso, entretanto, é um reflexo de,
acharem-se, naquele tempo, os instrumentos de corda
totalmente desenvolvidos, enquanto que a orquestra apenas
começava a adotar caráter de música em conjunto que hoje
conhecemos.
Na história da música Haydn é considerado o criador da
música instrumental moderna; Mozart tem a reputação de
leveza e gracilidade e Beethoven o precursor do Romantismo.
Diferentes fatores exteriores à música contribuíram para a
formação da mentalidade romântica. Nesse gênero musical as
variações temáticas e interpretativas não tinham como no
classicismo: frisar as intenções musicais e sim caracterizar e
apresentar os diferentes estados psicológicos.
A música torna-se, então., instrumento da literatura, com
a finalidade de descrever e transmitir emoções, porém, a
estética formal novecentista atingiu o limite das suas
possibilidades nos Poemas sinfônicos
de Richard Strauss, ande as preocupações literárias e
descritivas são levadas até aos extremos realistas.
Desde os períodos trovadorescos até aos nossos dias o
romantismo tem sido manifestado na sua forma característica e
emocional, mas, foi no século XIX, depois da Revolução
Francesa, que êle atingiu o seu apogeu.
Na Renascença ou no período imitativo a capeíla,
aperfeiçoou-se de maneira tão concreta a forma severa da
missa, que de um modo geral,, se pode qualificar de românticas
as formas menos rigorosas do motete, do madrigal e da canção.
Em Schubert se vê nitidamente a tendência harmônica dos
românticos, podendo-se dizer que ela se encontra nele muito
marcada. Considera-se esse genial criador um clássico dentro
do romantismo, pela facilidade e largueza com que tratou as
grandes formas da música pura, a verdade, porém, é não ter
sido a perfeição formal sua principal condição.
E' na sua música instrumental de câmara que vamos
encontrar algumas das mais belas obras da música de todos os
tempos, como os quartetos de corda e os dois quintetos, muito
embora as melodias para canto e piano constituam a parte mais
importante e característica do gênio de Schubert.
Ao ouvirmos a música de Schubert verificamos que, para
êle, as emoções são o próprio tema, o que nos faz lembrar o
conceito romântico do século XIX, isto é, que a completa
personalidade de um compositor se pode refletir através de
suas composições. Liszt
se refere a Schubert como "le musicien Ie plus poete que fut
jamais", porque a sua música transmite a qualidade subjetiva e
introspectiva que se encontra na poesia lírica.
E' inegável que o fenômeno harmônico-melódico seja
observado não somente nos seus "lieder" como tamm
abundantemente em suas obras instrumentais, como meio de
construção, acusando os temas a personalidade do compositor,
com a revelação imediata de sua maneira característica.
Embora a sua melhor e mais completa música seja a que se
encontra em seus "lieder", nas sinfonias ou quintetos as
melodias cantam como se fossem canções.
Não obstante ter Robert Schumann escrito que havia
tentado se fortalecer e se requintar através da música de Bach, e
embora reflita sua obra um tanto da harmonia polifônica desse
mestre, ainda assim, dentro do temperamento romântico que o
caracterizava, foi éle.. na essência, a verdadeira antítese do
grande músico. A obra de Bach reflete ordem e precisão; em
Schumann se encontra a liberdade com que se deliciavam os
românticos. Foi o período byroniano em que o artista primava
por "épater les bourgeois" ao mesmo tempo que escrevia para
essa classe. Foi o período artístico em que a forma se sujeitava
ao sentimento ou expressão e em que a nota lírica predominava
em todas as manifestações de arte.
Assim, enquanto que o classicislmo revela a intensidade
da música pura, o romantismo é precisamente o alargamento
das condições emocionais.
POCO VIVACE (SCHERZO)
"O RABELAIS DA MÙSICA MODERNA"
s
MANIFESTAÇÕES formais, nascidas pela justeza de fases
históricas, na realidade, não podem representar o espírito
contemporâneo, entretanto se os compositores de hoje
designam formas renovadas, ou anteriores à expressão formal
que tiveram no classicismo, é porque esses meios correspondem
a uma real necessidade de exprimir os seus sentimentos
musicais.
Heitor Villa-Lobos — cognominado por Irving Schwerke
"O Rabelais da música moderna" — é, sem dúvida, o
representante mais categorizado no panorama da música
brasileira contemporânea.
Percebe-se na maioria das obras de Villa-Lobos o
processo de interpenetração dos elementos musicais
provenientes do folclore brasileiro e o conteúdo enérgico, por
vezes áspero, adquirido pelo progresso do idioma musical em
sua órbita de desenvolvimento.
Não obstante grande parte das obras desse compositor
estar situada na fase nacionalista de aspecto folclórico —
marcando assim o ciclo mais original e
mais fortemente consciente da história musical do Brasil
contemporâneo — revela ainda a sua universalidade artística
pelas criações e descobertas dos elementos formais plásticos
em que tece os motivos sugeridos.
Villa-Lobos conquistou com a série das Bachianas
Brasileiras uma verdadeira assimilação do vigor da obra de
Johann Sebastian Bach.
O crítico de arte Boris de Schloezer assim se manifestou
em relação à volta a Bach: "Nós bem sabemos que há em Bach
coisa muito diversa, que Bach é um poeta, um cristão, um
místico. Geração virá que se voltará um dia para esse Bach;
era, porém, do Bach dos Allegros de que tinham necessidade os
músicos do após-guerra; e o que os atraía, o que em verdade os
fascinava nesses "allegros", nessas fugas, era o seu movimento
contínuo, o seu impecável desenvolvimento que parece
interdizer aos elementos psicológicos toda a intrusão nessa
trama sonora na qual em vão se procuraria o menor interstício".
(7)
Villa-Lobos, em suas Bachianas Brasileiras, não estiliza e
sim desfigura com indescritível liberdade certos processos
contrapontísticos aplicados ao folclore brasileiro.
A série das nove Bachianas, de Heitor Villa-Lobos, está
distribuída para os seguintes conjuntos instrumentais: Bachiana
n.° 1, para orquestra de cellos; Bachiana, n.° 2, para orquestra
de câmara; Bachiana n.° 3,
(7) ANDRÉ COEUROY — Panorama da Música Contemporânea,
Cultura Brasileira, São Paulo, s/d, pg. 134.
para piano e orquestra; Bachiana n.° 4, para grande orquestra;
Bachiana n.° 5. para canto e orquestra; Bachiana n.° 6, para
flauta e fagote; Bachianas ns. 7 e 8 para orquestra e Bachiana
n.° 9 para orquestra e vozes.
Uma das características da forma clássica da toccata se
percebe na Bachiana n.° 7 na qual Villa-Lobos introduz, entre o
piston e o trombone e entre os violinos e violoncelos, desafios
nordestinos. Pelos meios da técnica empregada na tocata,
desenvolvimentos à maneira de Bach são bem visíveis.
Também dilatou, na sua Bachiana n.° 9 a arte de combinar a
orquestra com a voz humana, obtendo, dessa forma, excelentes
efeitos vocais.
Na Missa a São Sebastião escrita em 1937, para três vozes
a seco, Villa-Lobos emprega o caráter da música coral do
século XVI, segue, no entanto, a estrutura formal de Bach,
omitindo apenas as aberturas tradicionais dos versículos
GLÓRIA e CREDO, respectivamente: "Gloria in Excelsis Deo" e
"Credo in unum Deum".
Outros compositores deste século, como Stravins-qui com
sua Missa, e Kodály com seu Pange Lingua, não foram tão
grandiloqüentes quanto alguns compositores do primeiro
barroco. Por exemplo: Orazio Benevoli (1602-72) com a Missa
Solene a 32 e 48 partes vocais, destinada à inauguração da
catedral de Salzburgo. Essa partitura de Benevoli foi composta
para dois corpos corais, acompanhados por colossal massa
instrumental, indicada por baixo curado, na
qual se combinam : contra-baixos, violoncelos, fagotes,
alaúdes graves (chitarrones), dois órgãos, cravos,
harpas, etc.
Das possibilidades vocais é bem reflexo a missa
do compositor brasileiro, em que se processa mais a
estrutura litúrgica do que mesmo o estilo Villalo-
beano.
COERÊNCIA ARTÍSTICA
ONSTITUIRIA, sem dúvida, observação atraente pes-
quizar até onde os compositores contemporâneos se cor-
respondem nos processos de coerência artística.
A pureza incondicional, ideal, ninguém atinge. Ela forma
um marco para as nossas capacidades e para as nossas
aspirações. Se a exatidão artística ideal é inabalável, não o são
os modos de expressão do pensamento e dos conceitos
musicais.
A fim de pesquisar os processos dos compositores
contemporâneos para atingirem a uma real coerência artística,
nada melhor do que ouvi-los. Paul Hindemith, um dos mais
categorizados compositores contemporâneos, diz :
"A base de toda a composição de valor deve ser, por certo,
a inspiração e idéias musicais boas; depois disso vem a técnica.
E' idéia geral de que hoje existe técnica demais, porém, a minha
impressão é de que ainda não há técnica bastante. Não se pode
chegar a ser um compositor, no sentido moderno, com alguns
anos de harmonia, contraponto e teoria num Conservatório, e
sim com anos de intimidade diária com a música de toda
espécie. Não somente com processo de
tocá-la ou ouvi-la, mas com o de investigar e estudar essa
música como um grande fenômeno natural.
Quando um compositor escreve, êle deve ser capaz de
fazê-lo sem nenhuma consciência de técnica. Um grande
novelista ou dramaturgo certamente nunca pensa na gramática,
sintaxe ou retórica. E' lamentável que tantos compositores
esperem se inspirar num teclado. Teclas de marfim ou de ébano
e cordas de violino são pobres fontes de originalidade. No meu
caso, estou quase sempre em viagens e se tivesse que esperar
por um teclado ou um instrumento, nada pode-ria compor. Para
mim, o compositor deve ser inteiramente independente de
quaisquer artifícios mecânicos.
Provavelmente a música mais iconoclasta, a mais radical,
a mais revolucionária, já foi escrita durante os últimos vinte e
cinco anos. Todos os extremos já foram aparentemente
atingidos. Isto não significa que todas as combinações rítmicas
ou harmônicas já foram realizadas, que o compositor de
amanhã não poderá encontrar novo e convidativo campo para
penetrar, mas significa que os meios fundamentais já foram
estabelecidos.
Algumas novas cores tonais podem ser adicionadas à
paleta do compositor, porém elas não podem fazer mudanças
concretas na base estrutural da música. Instrumentos elétricos
fornecem um campo interessante para especulação. Estive por
anos, muito interessado neles, mas ainda é muito cedo para
profetizar o que pode ser feito, desenvolvendo-se um novo
"modus operandi". Certamente, nada pode tomar o lugar dos
exe-
cutantes, quer eles toquem individualmente ou em
grupos". (8)
Béla Bartók manifesta sua opinião da maneira seguinte :
"Estritamente falando, o período de 1910 em diante não
foi nada revolucionário. Em arte existem progressões lentas ou
rápidas. Existe essencialmente evolução, não revolução.
Eu próprio, acredito, tenho progredido de um modo
consistente e numa direção, exceto talvez de 1926 era diante,
quando minha obra tornou-se mais contrapontística e também
mais simples no seu todo. Uma maior importância dada à
tonalidade é também característica dessa época. Antes disso,
cerca de 1918 a 1924, minha obra foi mais radical e mais
homofônica.
Com a maturidade, parece-me, vem o desejo de
economizar — de ser mais simples. Sim, isto poder-se-ia referir
a tendências semelhantes na música de outros compositores da
minha geração. A maturidade é o período em que se encontra a
medida justa, o caminho que melhor expressa a própria
personalidade musical. O compositor novo é inclinado a dar
tudo de uma vez. Se eu pudesse escrever meu primeiro
Quarteto novamente, por certo não escreveria do mesmo modo.
Hoje vejo nele algum material supérfluo e alguma semelhança
com Wagner. Meu Quinto Quarteto é uma obra individual.
Quanto ao estilo do compo-
(8) DAVID EWEN The Book oi Modern Composers, Knopf. 1945,
pg. 303.
sitor não há outra explicação senão de que deve partir do
próprio compositor". (9)
Já Serguei Procófiev diz :
"Luto pela maior simplicidade e por mais melodia. Tenho
por minha vez usado também a dissonância, mas em geral esta
tem sido utilizada demais. Bach empregava-a em sua música
assim como se emprega sal na comida. Outros aplicavam-na
como pimenta, temperando os pratos mais e mais fortemente.
Creio que disto a sociedade tem tido bastante. Queremos um
estilo de musica mais simples e mais melódico, uma atmosfera
emocional menos complicada, e a dissonâri'-" cia relegada ao
seu lugar próprio, como um elemento da música, aparecendo
principalmente no encontro de linhas melódicas. Stravinsqui
disse-me, certa vez, que sonhava com um estilo tão simples e
puro que deveria consistir somente de duas melodias.
Poder-se-á dizer o que bem entender do ouvido humano e
da sua capacidade de se adaptar à música mais e mais
complicada, porém, não creio que essa capacidade de adaptação
cresça tanto e tão rapidamente. Três melodias é o máximo que
o ouvido normal pode perceber e seguir ao mesmo tempo. Isto
pode acontecer quando as melodias são claramente tocadas e
contrastadas em timbres e côr. Por um curto tempo o ouvido
pode perceber e assinalar o efeito de quatro partes diferentes,
porém, isto não continuará, se as quatro partes ou melodias
forem de igual importância.
(9) Id., Ibid., pg. 216.
Ouvindo uma fuga a quatro, cinco ou mesmo seis partes, o
ouvido é, possivelmente, conscio da presença de todos os sons,
porém, somente percebe e segue com precisão a melodia mais
importante. As outras partes enchem enriquecem o fundo
musical e a harmonia, mas vão se tornando traços apagados na
imaginação do ouvinte. Não ficam claramente registradas como
distintas linhas melódicas na construção tonai.. Isto sendo
verdade leva o compositor a descobrir que na construção
polifônica. assim como na estrutural, deve-se guardar certos li-
mites". (10)
Esses três mestres enriquecem com elementos estilísticos
as suas obras, perfazendo uma conexão formal com os
princípios históricos da música.
O conceito rítmico-melódico, na obra desses com-
positores, estabelece uma expressiva prova dos processos de
composição, em que se verifica a mudança orgânica de uma
nova expressão sonora, pelo vínculo de períodos históricos, ao
mesmo tempo contrários e correspondentes.
Avaliar ou indagar qual desses compositores seja o melhor
me parece insensato, pois, cada um deles possue suas virtudes
próprias e seus méritos pessoais.
(10) Id., Ibid., pg. 141.
ALLEGRO ENERGICO E PASSIONATO
(FINALE)
EUTERPE E TERPSÍCORE
MÙSICA desempenha uma substancial função na dança,
uma função de tal maneira inequívoca que, excluindo-a, a arte
de Terpsícore cairia em pura mímica, ou na categoria da dança
introvertida. De acordo com Curt Sachs: "El cultor de Buda
olvida el mundo con su sonido peculiar su OM!, y el danzarín
samoano sentado con su MM! El derviche profiere un sonido
UU! el antiguo sacerdote de Cibeles y el danzarín hipnotizado
de Bali su HUU! y el indio del noroeste del Brasil, PUU! Tal
vez las danzas de zumbido de los maidus meridionales de
California pertenezcan también a esta categoria". (11)
A identidade entre a poesia cantada, dança e mùsica, já se
encontra no Velho Testamento da Bíblia Sagrada: Primeiro
livro de Samuel, Cap. XVIII. v. 6: "Succedeu porem que, vindo
elles, quando David voltava de ierir os philisteos, as mulheres
de todas as
(11) CURT SACHS Historia Universal de Ia Danza,
Centurión, Buenos Aires, pg. 189.
cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando, e
em danças com adufes, com alegria e com instrumentos de
musica".
Também nas obras da escultura primitiva de Sakkâra
(cidade do Egito), cerca de 1500 anos a.C, foram descobertos
vários relevos que deixam bem claro figuras que tocavam
instrumentos em sincronis-mo rítmico, o qual se unia ao gesto
articulado da dança. Tal harmonia se verificava através da
imitação, isto é, através da mímica.
Os poetas gregos — na opinião de Jules Com-barieu —
usavam artifícios tais como a repetição de certas palavras para
contrabalançar o paralelismo rígido das frases, completando um
ângulo de consonâncias, as quais denominavam de rimas
líricas. Deste modo, as acentuações da poesia, oriundas da
simples repetição, constituem as formas elementares do
equilíbrio entre a dança, poesia e, naturalmente., a música.
Desde a heterofonia gregoriana às magistrais construções
polifônicas de Machault, Dufay, Palestrina, De Lasso ou aos
mestres de "ballet" de Luiz XIV. o conteúdo substancial da
música é sempre o mesmo, apenas as expressões formais se
desarticulam e se alargam, abandonando a noção clássica da sua
arquitetura interior. O bailado puro não deixou de ser cultivado,
mantendo, entretanto, um caráter inteiramente à parte. O Ballet
de cour, bailada palaciano, pantomina dançada e cantada, teve o
seu começo em 1653 com o Ballet de Ia Nuit.
Com Marius Petipa prepondera a expressão dinâmica,
combinada com outros elementos : o bailado é, por assim dizer,
uma síntese de gestos. A regularidade rítmica dos movimentos
se fixa a relações definidas da obra coreográfica. Às
correlações do port de bras e grand battement sucedem-se os
passos simplificados de rond de jambe à terre, assemblé,
ballonné e changement do ALLEGRO. Assim, o significado da
dança clàssica estabelece um nexo determinado nos sete
movimentos básicos, que são: — plié; tendu; relevé glissé;
sauté; élancé e tournant. Os battement tendu, quatrième devant
e petit jeté do ALLEGRO, aparecem, também, em função dos
elementos fundamentais. Esses elementos, que em conjunto
formam o alfabeto da coreografia, equilibram-se sempre dentro
da obra, mas geralmente esta se apoia num ou noutro desses
elementos e adquire a sua supremacia. Note-se que, em todas as
danças de cunho clássico, os bailarinos têm uma função mais
ou menos estável.
Somente no princípio do século XX, sob a influência dos
célebres "Ballets Russes", o bailado alcançou uma excelente
reputação artística na preferência das multidões.
Nos trabalhos de Nijinsqui, como nos de Foquine, o
elemento coreográfico predomina, num contrabalanço de linhas
e de saltos representados no espaço. Uma sólida construção
domina a dança. Em Massine, o caráter coreográfico e o
musical igualam-se, como em Balanchine. Já em Serguei Lifar,
e de uma maneira geral nos impressionistas, a expressão
musical da obra
bailada domina quase exclusivamente, não obstante a tentativa
de volta ao bailado puro, com o seu ÍCARO.
Quanto ao levantamento do padrão estético do "ballet"
deve-se a um processo mais sério no seu tratamento, a uma
grande compreensão dramática da pan-tomima e a uma nova
construção, conferindo-lhes, ao mesmo tempo, o aspecto de
sinfonias coreográficas, onde se une o canto solístico ou coral,
como em : Les Noces de Stravinsqui; El Amor Brujo de Falia e
.Aeneas de Roussel.
DO ESTILO
DE autoria do eminente ensaista e crítico Eduard Hsnslick
a seguinte observação: "...Quisiéramos que se considerara el
estilo en Ia musica desde el ângulo de sus propiedades
musicales, como la tècnica perfecta, tal como aparece a modo
de hábito en la expression de la idea creadora. El maestro
acredita "estilo" cuando al realizar la idea claramente concebi-
da, suprime todo lo mezquino, inconveniente, trivial,
conservando así uniformemente en cada pormenor técnico la
actitud artística del conjunto. Emplearíamos el término de
"estilo", como Vischer (Aesthetik, inc. 527) también en el
tocante a la musica, de un modo absoluto para decir, con
abstracción de las divisiones históricas o individuales: este
compositor tiene estilo, en el sentido en que se dice de alguien
que tiene carácter".
"El aspecto arquitetônico de lo musicalmente bello ocupa
en la cuestión del estilo, visiblemente,, um primer plano.
Siendo un imperativo superior al de la mera proporción, el
estilo de una composición se malogra con un sólo compás que,
siendo intachable de por sino armonice con la expresión del
conjunto. Igual que
a un arabesco inadecuado en un edificio, llamamos falta de
estilo a una cadencia o una modulación, que se aparta como
inconsecuencia del desarrollo uniforme de la idea básica.
Esa uniformidad, por supuesto,, debe entenderse en un
sentido superior y más amplio, de modo que eventualmente
comprenda el contraste, el episodio y no pocas libertades".
(12)
O ponto de vista estilístico foi introduzido na música por
escritores do século XVII, os quais inventaram uma sèrie de
vocábulos para determinar as várias expressões da mùsica: Stile
antico (obligato, grave, osservato, romano), estilo antigo, do
periodo "Palestrina", de contraponto rigoroso; Siile concertante
(moderno), é um estilo tipico da mùsica Barroca; Stile conciato,
estilo do gesto e da expressão dramática (Monteverdi). "Il
Combattimento di Tancredi e Clorinda"; Stile nuovo
(espressivo, rappresentativo, recitativo), estilo em que se
pretende encontrar um símbolo de lirismo monódico
expressivo; Stile galante ou Stile sueto, estilo do século XVIII,
período Rococó (Haydn, Mozart).
Cada época divisa na história da música seus problemas e
seus_ horizontes, por isso, a música barroca, do período de sua
plenitude, bem vista hoje, mostra o seu ritmo e sua móvil
plasticidade, assim a Inglaterra vinha, desde o começo da
polifonia, enriquecendo a arte dos sons de processos e formas
com uma plêiade de compositores polifónicos e instrumentais,
entre os
(12) EDUARD HANSLICK De to Bello en Ia Musica,
Buenos Aires, 1947, págs. 85-86.
quais se nos apresenta Henry Purcell, um dos compositores
mais famosos da melodia acompanhada.
O barroco é anterior ao século XVII, isto é, se define
claramente na música desde o fim do século XVI. E' um estilo
ornamental, que se pode manifestar, e se manifesta em todos os
campos da atividade humana, por exemplo: o barroco,
empregado à literatura. não envolve unicamente a poesia
transcendental, envolve também formas diferentes que
enobrecem a literatura de então. Como aditamento citarei um
trecho de "Aspectos da Literatura Barroca", de Afrânio
Coutinho : "Mostra Roy Daniels as diferenças do barroco inglês
e do barroco continental, diferenças devidas a seu ver, a
condições diversas; a posição geográfica, a concomitância do
movimento renascentista e da reforma protestante, a monarquia
tudor e a igreja anglicana como influências moderadoras, a
ausência do papado vitorioso e de movimentos jesuísticos
triunfantes, a persistência de elementos medievais, "góticos", a
dentro do Renascimento, o hábito inglês do acordo e da
conciliação, tudo fazendo com que o barraco na Inglaterra se
apresentasse distinto. Em todo o caso, como sinal de que
também lá surgiu uma expressão dessa sensibilidade artística
peculiar, aponta o sentimento de triunfo e esplendor, um
esforço árduo para unificar tendências paradoxais, um afã
exagerado de virtuosismo técnico". (13)
A música barroca inglesa teve o seu apogeu em Haendel
(1685-1759) com a criação da "Academia
(13) AFRÂNIO COUTINHO Aspectos da literatura barroca, A Noite,
Rio, 1950, pg. 97.
Real de Música", semelhante a que Lully criara em Paris, sob o
patrocínio de Luiz XIV, sendo que os principais teóricos do
estilo barroco são: o francês Marino Mersenne, amigo de
Descartes, autor da Har-monie universelle (1636); o alemão
Kircher, autor da Musurgia universalis (1650) e da Phonurgia
nova (1673) e o inglês Tomas Mace, autor do Music's
monument (1676).
Todavia, a música inglesa desapareceu com seu interesse
histórico universal.
No campo da música instrumental, em contraposição ao
dualismo enternecedor da sonata do século XIX, a toccata, a
ária e a variação — bases técnicas da música barroca, três
conjuntos de formas da arte musical — são os modelos
preferidos pelos compositores ingleses contemporâneos.
A origem remota da ópera se encontra na tragédia grega e.
portanto, no ano 534 A.C., data em que Téspis teria feito
representar a primeira tragédia entretanto, a ópera florentina
teve origem, indiretamente. nos espetáculos das festas
suntuárias barrocas e, diretamente, pela necessidade de
encontrar um tipo de lirismo monodico expressivo, no qual o
sentido harmônico provêm de um novo elemento: a harmonia
instrumental como fonte de expressão dramática, ambiente
poético e colorido.
Na técnica de Benjamin Britten, particularmente nos
recitativos, e na estrutura dos coros e da instrumentação, sente-
se o estilo da ópera barroca. Em sua obra Peter Grimes, na
qual êle incorpora a técnica
clássica barroca, me parece, sob o ponto de vista musical e
dramático, tão atraente quanto The Rape of Lucretia, onde se
encontram, também, bafejos dos métodos barrocos, tanto no
estilo musical como no teatral.
Outros compositores ingleses contemporâneos : Michael
Tippet, William Walton e Alan Rawstborne surgem, nestes
últimos anos, numa perfeita compreensão dos conceitos
tradicionais da música barroca e dos conceitos renovadores
radicais da música atual, retomando a música inglesa, dessa
forma, sua eficiência musical histórica.
MUSICA ANTIGA E MÙSICA ATUAL
M 1180, confrontando o monumento polifonico mais
avançado que se conhece : Magnus Liber Organi "de gradali"
et "de, antifonario", o mestre Léonin (com quem começou a
celebridade da escola de Notre Dame em 1150) emprega,
constantemente, agudas dissonâncias como uma engenhosa
estrutura polifònica, que vem emprestar uma rara analogia com
a música atual do compositor Arnold Schoenberg. Esta
dissonância está, pois, manifesta, isto é, se desenvolve num
espaço de tempo que só o processo evolutivo permite oferecer,
e ela é a expressão, em suma, de um e/an contínuo para um
limite sem fim.
A Escola Expressionista de Arnold Schoenberg caminha
necessariamente no sentido de fixação. (Considerando os
termos "expressivo" e "expressionista" na mesma relação que
"emoção" está para "complexo psicológico" se verifica que a
designação de música expressionista é, talvez, menos
expressiva do que a música impressionista ou romântica). Essa
fixação não é uma finalidade estética, mas uma etapa transitória
para o desenvolvimento do período de transformação. Quando
os elementos sonoros atingirem o grau de amadure-
cimento e de flexibilidade — suficientes para se adaptarem à
finalidade estética — começam a se afastar da objetividade que
caracteriza a fase de fixação, e o conceito de Escola se define,
verificando-se, assim, a evolução do sentimento harmônico,
que encerra em si a complexidade estrutural, através de um
fluxo, cuja qualidade principal, no caso, é a dissonância.
Augusto Meyer, em seu ensaio O Valor da Incom-
preensão, define muito bem, do ponto de vista literário. o
processo evolutivo: "...Na história da literatura, — diz êle —
impõe-se igualmente outra face positiva desse valor, que
decorre da própria fatalidade da incompreensão. Com a
distância no tempo, de geração a geração, acentua-se o conjunto
de circunstâncias que tende a retocar, modificar e às vezes
deformar o sentido original das grandes obras, a pureza genuína
das intenções que animavam o autor, ou dos sentimentos de
afinidade que o ligavam ao leitor contemporâneo, numa espécie
de harmonia pré-estabelecida. Com a mudança inevitável, e
apesar de todas as tentativas de reconstituição crítica, nunca
podemos afirmar com certeza que o compreendemos como êle
desejou ser compreendido, e é quase certo que jamais o
interpretamos como o interpretaram a seu tempo os
contemporâneos.
Mas é justamente essa forma dialética da incompreensão,
necessária, cambiante, imperceptível na sua marcha miúda, o
principal fator de enriquecimento progressivo no conteúdo das
grandes obras, e na sua cumplicidade com o tempo que passa,
nós sentimos, por força de uma intuição contraditória mais
viva, o seu
valor mais concludente — o verdadeiro valor da in-
compreensão". (14)
Era opinião de Arnold Schoenberg não existir distinção
entre música antiga e moderna, somente boa e ruim. Toda a
música, como resultado da imaginação realmente criadora, é
nova. Bach, segundo Schoenberg, é tão novo atualmente como
sempre o foi — uma contínua revelação.
Ao terminar este escorço de música confirmo, uma vez
mais, a minha opinião, dizendo: E' certo que se não surgissem
personalidades excessivamente independentes, no campo da
sensibilidade musical, a arte dos sons cairia numa eterna
substância sem desenvolvi-mento. A influência histórica dos
conceitos clássicos musicais, sem passar por períodos
sucessivos de crescente aperfeiçoamento, geraria um
dogmatismo e, posto em contradição com épocas de crescentes
conclusões, criaria um academicismo monótono ou uma
escolástica asfixiante, tenderia a impedir e condenar a
transformação histórica normal.
(14) AUGUSTO MEYER À Sombra da Estante, José
Olympio, Rio, 1947, pgs. 112-113.
INDICE
Paga.
ALLEGRO CON BRIO
Da Escola. Duração Bergsoniana. Dos elementos
sonoros ................................................................................ 3
TEMPO MODERATO, QUASI ADAGIO
Ars antiqua ............................................................................. 9
Expressões formais da mùsica ............................................. 13
Clássicos vienenses e Romantismo musical ...................... 17
FOCO VIVACE (Scherzo)
O Rabelais da Mùsica moderna .............................................. 22
Coerência artística .................................................................... 26
ALLEGRO ENERGICO E PASSIONATO (Finale)
Euterpe e Terpsicore ............................................................... 31
Do estilo .................................................................................. 35
Mùsica antiga e música atual ............................................. 40
OS CADERNOS DE CULTURA
Direção de Jose Simeão Leal
1 — JOSÉ JANSEN ...................................... A máscara no culto, no teatro e na
tradição
2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e
THOMPSON .......................................... José Lins do Rego
3 — PAULO RONAI ..................................... Escola de Tradutores
4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-
DRADE ................................................... Viola de BOLSO
5 — LÚCIO COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira
6 — Lúcio COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-
porânea
7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto
8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado
9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes
10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................. Monte Cristo, ou da Vingnnça
11 — Luís COSME ........................................ Música e Tempo
12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... Miro
13 — OTÁVIO DE FARIA ................................ Significação do Far-West
14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte
15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica
16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Teatro de Cervantes
17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto
18 — GILBERTO FRETBE .............................. José de Alencar
19 — CLARISSE LlSPECTOR ...................... Alguns Contos
20 — MÁRIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna
21 — ROSÁRIO Fusco ................................. Introdução á Experiência Estética
22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................... Realidade e Ficçao
23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar
24 — LEDO IVO ........................................... Liçáo de Mário de Andrade
25 — EUGÊNIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventríloco
26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens, Seres e Coisas
27 — OTÁVIO TABQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias
28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Lite
29 — ALEXANDRE PASSOS ........................... A Imprensa no Período
30 — MANOEL DIÉGUES JÚNIOR ________ Etnias e Culturas no Brasil..
31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo
(Continua na .3° pág.)
CELSO KELLY
TRÊS GÊNIOS
REBELDES
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃC
GOYA
A UNIVERSALIDADE DE GOYA
OR que Goya, neste tempo e neste meridiano ? Nos dois
séculos que decorreram de seu nascimento (1) aos nossos dias,
a crônica inscreveu tantos nomes, festejados na época,
registrados com entusiasmo e perdidos, de fato, na posteridade.
Todavia, o filho do lugarejo modesto (Fuendetodos), de família
simples, de origem humilde, torna-se uma das expressões da
Espanha e, mais que isso, um dos autênticos "artistas
universais", dessa galeria privilegiada dos que falam uma
linguagem de todos, em qualquer século ou sítio do mundo. O
artista universal é o que viveu e produziu fora das receitas e das
limitações convencionais da sua época, afirmação própria de
uma personalidade, confissão de uma vocação ardente e de um
talento criador. Desapegado de "escolas", longe dos
preconceitos, da expansão à sua sensibilidade, no traço original,
sem as transigencias da moda. Daí, a "universalidade" de Goya,
que reagiu contra a pintura barroca em que se iniciou, e deixou,
em toda a sua obra, lições que perdurarão, emoções que não se
apagarão, pelos tempos afora, questões que continuam no
debate e na curiosidade dos
(1) Em 1746.
estudiosos. Espirito impulsivo e rebelde, temperamento
complexo, censor impiedoso, tem em si, ao lado do gênio, que
deslumbra, a controvérsia que seduz. Goya figura entre os
artistas da "nossa permanente indagação".
A PINTURA OU A GRAVURA ?
Por isso, deve-se formular, desde logo, essa questão:
pintor de telas famosas, desenhista de séries memo ráveis de
gravuras, em qual das duas artes — a gravura ou a pintura —
Goya terá encontrado o clima natural e espontâneo para a
expansão do seu talento criador, dentro das condições difíceis
de seu temperamento? Aqui, há que consignar, antes de iríais
nada, as contingências do pintor. Estreitamente ligado às figuras
dominantes da época, o artista busca o desenvolvimento gradual
de suas relações, o prestígio mundano, a ascensão oficial. Goya,
malgrado a bravura de seu temperamento, percorreu todos os
degraus dessa escalada penosa. Se, realmente, aquela tímida
Josefa tanto o impressionou, por ocasião do primeiro encontro,
nos salões aristocráticos da senhora Isabel Montes, desposou-a
Goya, por afeto, mas também por ser ela irmã de Bayeu. pintor
real, que facilitaria ao cunhado o acesso fácil e seguro à Corte e
à família reinante. Os anseios, legitimados pelo mérito real,
confirmaram-se. Goya tornou-se pintor oficial e pintor
mundano, requisitado para fazer retratos, recebendo as mais
significativas encomendas. Sua bela obra de pintura encerra
alguns dos melhores retratos de todos os tempos, composições
de
assunto religioso e quadros de gênero. Todavia, os que
conhecem a surda luta que qualquer artista empreende para
alcançar a simpatia e o favor dos contemporâneos, "possíveis
consumidores'' de sua produção, não ignoram as pequenas, e por
vezes grandes concessões do criador a essas criaturas. O
implacável Goya, severo nos seus julgamentos, irredutível a
ponto de sua sogra (2), ante um dos momentos de recolhimento
e tristeza do artista, haver exclamado à filha: — "Sofre porque
não pode perdoar ao mundo" — teria transigido diante das
contingências, ou ter-se-ia mantido fiel às suas impressões
espontâneas? Em algumas telas, inclusive no retrato da família
real, sente-se, por detrás dos personagens, na imponência
majestática das situações, a irreverência, o estigma da crítica e
da verdade, a inevitável confissão do juízo nada lisonjeiro que
lhe fazia o artista. Na maior parte dos seus trabalhos pintados,
não há louvor a cometer fora dos esplendores singulares de sua
técnica.
A GRAVURA E O TEMPERAMENTO DO ARTISTA
O temperamento de Goya está muito mais vivo na gravura.
E' aqui que o psicólogo descobre o "humano" e o analista social
disseca os "fatos" e a sociedade. Na série "Caprichos".
Bersier (3) lhe aponía o "único
desejo de chicotear um estado social abominável": sátiras
políticas, cenas de costumes, visões monstruosas,
(
(2) Max White, "En la luz deslumbrante", pg. 172.
(3) Bersier, "La gravure", pg. 208.
caricaturas da idade do vício ou do defeito; "despedida violenta
e amarga do século XVIII", na expressão de Enrique Laíuente
Ferrari (4). Nos '"Desastres da Guerra", o artista consegue fixar
as mais alucinantes cenas de horror, de impiedade, de
destruição, os sentimentos de maldade e de dor, a ronda sinistra
da marte, das mutilações. De suas pranchas, não avulta nenhum
herói. Não há vencedores nem vencidos. Não há qualquer
parcela de nobreza ou simpatia, em meio à luta; somente o
quadro penoso da guerra, que é a sua própria condenação. Um
dos comentadores dos "Desastres da Guerra" afirmou ter Goya
deixado, nessa série, o seu "testamento", isto é, a mensagem às
gerações posteriores, alertando-as contra as misérias das lutas
internas e dos conflitos armados. Don Antônio de Trueda, que
fixou vários aspectos da Espanha, colheu, da visita que fizera à
Quinta do Surdo, o diálogo que lhe fora referido ainda pelo
jardineiro de Goya: — Senhor, para que pinta essas
barbaridades dos homens?
— Para poder dizer eternamente aos homens que não
sejam bárbaros. (5)
Na "Tauromaquia", o tema é o assunto favorito do seu
povo. Num bando de toureiros, havia viajado, no começo da
sua carreira artística, para alcançar Roma. (6). Em torno dele,
as corridas de touros se sucediam na vída normal da Espanha.
Essa série, embora caracterizada pelo movimento
impressionante das cenas, cons-
(4) E. L. Ferrari, "Catalogo", pg. 11.
(5) E L. Ferrari, "El dos de Mayo", pg. 17.
(6) Franc. Esteve Botey — "História del Grabado", Pg.
317.
titui um "remanso" (7) na motivação atroz das outras coleções.
Nos "Disparates", de novo a loucura humana se desenvolve,
com violência e brutalidade, com delicadeza e finura. De
qualquer modo, em todas essas séries, palpita a "vida" no
comentário mais quente e incisivo, da forma mais apaixonada e
veemente. Ali há mais do que a guerra, dos que os vícios, do
que os touros: há a dramaticidade interior de Goya. E' essa dra-
maticiclade pessoal (que teria faltado a Rembrandt) o fator
característico de sua gravura, permitindo ver o que escapara aos
outros, e fixar o que fugia à sensibilidade do comum. Mas,
nessa arte de Goya, a afirmação técnica é extraordinária: na
composição e no claro-escuro, na distribuição das manchas
negras e luminosas, na energia de certos desenhos, na poesia de
determinadas composições. A gravura, porém, lhe foi o campo
aberto às criações geniais. Nelas, Goya, pintou e escreveu,
conciliou a arte e o pensamento, a técnica e a filosofia, os
sentimentos estéticos e o ardor crítico. Poderia ter essa
desenvoltura nas telas? A pintura cerceia aos mais audaciosos.
Há limitações, por vezes insuperáveis. A gravura recolheu,
muito melhor, o turbilhão de emoções que Goya sentia
necessidade de traduzir.
A DIFERENÇA DE LINGUAGEM
Os trabalhos de Goya, distribuídos entre a pintura e a
gravura, documentam, de maneira soberba, as propriedades e
peculiaridades de cada uma dessas artes.
(7) E. L. Ferrari, "Catalogo", pg. 11 e 12,
Refiro-me à pintura na sua expressão natural, desde as telas de
museu até os grandes murais. E, quanto à gravura não
considero o processo de simples reprodução de obras pintadas,
mas a gravura autônoma, a que é, em si mesmo criação. Então
se desenha o contraste das aparências numa e noutra arte, a
diferença de linguagens; a diversidade de efeitos sobre o
espectador.
Enquanto as telas, na amplidão de sua superfície, no vigor
de seu colorido, no brilho de sua matéria, no esplendor de sua
composição, deslumbram os que as vêem, já de longe, como se
falassem a grupos ou, talvez, a multidões, no simples relancear
dos olhos, curiosos e atraídos, pela magia da técnica pictórica,
— as gravuras escondem-se numa humildade discreta. En-
quanto as telas, destinadas a palácios e templos, convidam
cortesãos e fiéis ao culto dos poderosos ou das crenças,
conclamando, pelo efeito das vastas superfícies pintadas, à
contemplação, paradoxalmente imediata e ilimitada — as
gravuras não desfrutam desse poder de sedução, decorrente,
naquelas, da festa das cores aos olhos do público. Enquanto as
telas, dominadas pelo sentimento de beleza, procuram
corresponder aos temas nobres da mitologia, da religião, da
história, da aristocracia, do poder, ou aos motivos estáticos da
figura, da paisagem ou das flores, com que buscam deslumbrar
o espectador e conquistar o favor fácil dos amadores de arte —
as gravuras se permitem os mais diversos registros, na efetiva
modéstia de seus processos. Sim, a gravura é bem diferente!
Intima, reservada, reduzida a pranchas pequenas, permite toda
sorte de aproveitamento. Não oferece obstáculos materiais: a
placa
está diante do artista, para que ele faça o que quiser.
Desenvolve-se o traço com liberdade. Não se sujeita às
limitações fundamentais da composição pictórica. Admite a
sátira, o humorismo, o pitoresco, sem quebra de sua dignidade;
até com proveito do interesse que desperta. A pintura proclama
um tema. A gravura sussurra os seus assuntos, confidencia, fala
baixo, conversa com o apreciador, dialoga com ele,
transmitindo-lhe, não só o efeito estético de uma solução, mas
muito mais: uma anedota da vida, com o vigor, a controvérsia,
a inquietação das cenas e dos fatos. Contemplamos a pintura,
isto é, nós a "vemos". Mas, com relação à gravura, a atitude é
outra: é a de quem perquire, indaga, "lê" nos traços o episódio,
"descrito" admiravelmente através dos deliciosos acidentes de
uma água-forte. . . A gravura não convoca multidões: fala de
um a um. Não podemos alcançá-la à distância, nem dela ter im-
pressões súbitas e fugazes: ao contrário, somente bem perto
dela, debruçado sobre ela ou frente a ela, é que travamos
conhecimento. E esse conhecimento nada vale, até que não se
torne "conhecimento íntimo". A gravura possibilita uma
palpitarão subjetiva intensa em seu bojo modesto. De par com
o mais precioso, sob o ponto de vista da arte e da técnica,
encerra um conteúdo espiritual profundo. Pelas gravuras, Goya
transborda todo o seu complexo temperamento. São, muitas
vezes, obras-primas na composição, no jogo do ctaro--escuro,
na vibração do traço; mas são sempre mais do que isso, na
linguagem que não cessam de falar, no diálogo que mantém,
desde o homem do século XVIII fcté as gerações futuras dos
dois mil. . .
A ATUALIDADE DE GOYA
A obra de Goya permanece, no grande acervo da pintura
universal, como urna nota de vivo interèsse, despertando
paixões, polemizando. Ninguém a transfere para os domínios
do que "passou em julgado". Permanece fresca e viva, como
foco perene de inspiração aos próprios artistas, como motivo de
indagação para os críticos, como surpresa para o público. Esti-
mando realçar a expressão característica dos quadros de Goya,
Henrique Lafuente Ferrari propõe-se assinalar a impressão de
um visitante normal, diante das obras fundamentais do famoso
Museu dei Prado, a passear através de suas ricas e variadas
galerias: o ingênuo e delicado mundo dos primitivos, a
dignidade e nobreza de Rafael, o espírito analítico de Durer, a
opulencia coloristica de Ticiano, os mestres do barroco com a
excessiva humanidade de Rubens, a elegância de Van Dycik, a
altivez e a individualidade de Velasquez e, enfim, a frágil
delicadeza dos pintores do século XVIII, inclusive o próprio
Goya, em suas obras de juventude e madureza. Satisfeito do
gozo alcançado nesse percurso de suaves transições, o visitante
perturba-se subitamente diante dos dois grandes quadros de
guerra de Goya. Terá explodido uma tempestade? Terá dobrado
o Cabo das Tormentas na história da arte? Uma tremenda
dissonância com a evolução histórica da pintura ! Um grito de
desespero, desgarrado, naquele concerto de vozes! Algo de
grave e importante terá ocorrido na maneira de enfrentar-se o
homem com o mundo. A arte é profética. OS dois quadros
"representam, pela pri-
meira vez no Museu, o que chamamos de arte moderna,
palavra explosiva e concreta, que, então, o homem começa a
aplicar-se a si mesmo" (8).
Desde os cartões feitos para a Real Fábrica de Tapetes,
entre 1776 e 1791, Goya alternou os "assuntos festivos" e as
"cenas obreiras e populares", com a "graça juvenil e campestre"
(9) que muitas vezes lhe imprimiu. O afastamento dos temas
convencionais acentuava-se, sempre que as circunstâncias o
permitiam. Se era menos freqüente na pintura, era comum na
gravura. A natureza, o nu, o motivo alegórico — pouco
pesaram em sua obra. Êle buscava emancipar-se dos "temas
habituais" para ganhar plena "liberdade de motivação". E, com
essa, a "liberdade de interpretação" e de "execução". Isso se
verifica, plenamente amadurecido, nos dois quadros históricos
referidos acima: "El dos de Mayo" e "Los fusilamientos", frutos
de urna violenta comoção interior — a de testemunha real das
sangrentas ocorrências daquela data e dos dias seguintes (10).
Aqui são íntimas as afinidades de Goya com o realismo
francês. Aqui sua obra seria, por igual, n precursora do
"impressionismo", quando, segundo a observação de Malraux,
salvo o significado das respectivas telas, a "Execução de
Maximiliano" de Manet é o "Três de Mayo" de Goya, e
"Olimpia" é a "Maja desnuda", e o "Balcão" as "Majas no
balcão". O grande crítico francês afirma: "Goya pressente a arte
moderna".
(8) "El dos de Mayo", pgs. 5 e 6.
(9) Bersier — "La Gravure", pg. 207. (10) "...toda a
crueldade e o horror, cuja 'embrança
Goia conserva" (Bersier, pg. 208).
E, depois explica: "o que é moderno nele é a liberdade de sua
arte" (11).
Duas tendências, rigorosamente contemporâneas — o
expressionismo e o surrealismo — encontramo-las pre-
cursoramente em Goya. As gravuras — domínio natural de
Goya — dão uma lição, alternada, de surrealismo e de
expressionismo. Deste, em várias peças das quatro coleções
fundamentais (12), Daquele, muito especialmente na coleção
intitulada "Os disparates", expressos em "esquemas a que
chamaríamos hoje surrealistas", segundo Lafuente (13).
Todavia, as duas grandes conquistas renovadoras de Goya
estão na pintura histórica e na evolução da própria gravura.
Goya rompeu com a tradição da pintura histórica, caracterizada
pela dignidade e pelo heroísmo. Os antecedentes da arte
comemorativa, desde os romanos, foram sempre a glorificação
dos conquistadores e guerreiros. A pintura do renascimento e a
do barroco não fogem às alegorias, que são, no fundo, "aclama-
ções". O artista espanhol substitui aquelas duas constantes da
arte histórica ou comemorativa — a vaidade dos homens e o
orgulho nacional — pelo trágico intrínseco das guerras e lutas
entre irmãos. Assim nas gravuras — "Desastres de guerra",
assim nas telas de Maio. Rompendo esses limites, violou
frenèticamente "as fronteiras adiante das quais se encontra o
moderno" (14).
(11) "Les Voix du Silenc*", pg. 97.
(12) F. E. Botey — "História dei Grebado", pg. 313.
(13) Lafuente, "Catalogo" pg. 12.
(14) Lafuente, "El dos de Mayo", pg. 7.
O GRAVADOR PANFLETÁRIO
A gravura vinha sendo, salvo raras exceções, inclusive a
de Rembrandt, a "reprodução"' de quadros célebres e de
monumentos. Não era arte "criadora". Melhor poderíamos
considerá-la "documentária". Em período em que ainda não
existiam os recursos admiráveis da fotografia e suas aplicações
mais ou menos mecânicas, a habilidade do gravador passava a
ser solicitada para a missão de divulgar e difundir. "Com "os
Caprichos", Goya inaugura a gravura de "modo completo", não
apenas para êle, mas para todos os gravadores do mundo" (15).
Em verdade, uma arte só se torna verdadeiramente arte quando
atinge a sua autonomia. Quando se revela "criadora" em si
mesma. E' Goya, em toda a vasta galeria dos gravadores, quem
mais fèz da gravura arte própria, autônoma, independente, com
todas as sutilezas e mistérios da técnica, ao mesmo tempo que
com expressão e destinação específica. As gravuras de Goya
assemelham-se às memórias. Talvez a crônica mais viva e
inquieta do tempo. Possivelmente seu criador se poderia
comparar a um panfletário incendiado, vendo e registrando, à
maneira de um repórter, o turbilhão dos acontecimentos (16).
"O gênio de Goya — assinala com realismo André Malraux —
quer arrancar ao mundo sua máscara de hipocrisia" (17). Essa é
a tarefa dos jornalistas impenitentes e sinceros. Fazendo
(15) Bersier — "La Gravure*', pg. 207.
(16) Escreveu, embaixo de uma de suas pranchas: "Eu vi
isso!"
(17) André Malraux — "Les Voix du Silence".
da gravura esse instrumento poderoso, abriu novas perspectivas
à arte. Numa como noutra, o ímpeto criador não encontrou
limites. Os impulsos interiores e o gênio construtivo fizeram de
Goya o artista inédito. O tempo corre e Goya continua a
merecer de cada geração a maior curiosidade e o mais franco
debate. Haverá melhor prova de vitalidade e de atualidade?
SEUS MESTRES
Tem-se repetido, nos estudos sobre Goya, que o artista
costumava eleger, dentre os seus mestres, a natureza, Velasquez
e Rembrandt — a natureza, que, num sentido muito largo, é a
mestra de todos; Velasquez, cuja obra ocupa na pintura
universal e, especialmente na Espanha, uma dessas
culminâncias, que sempre se projetam sobre os artistas; e
Rembrandt, que terá exercido a mais forte influência na
evolução da gravura moderna, sem esquecer a posição
admirável do pintor. Se é certo que qualquer dos três elementos
indicados representou muito na obra de Goya, todavia não
podemos considerar a trindade como característica de sua vasta
produção. A Juan de la Encina (18), parece injusto que Goya
haja omitido Tiépolo (19), e se tenha esquecido das afinidades
que existem entre os seus retratos e os retratistas ingleses do
século XVIII. Em Goya, cujo talento buscava "recursos livres"
de exteriorização,
(18) "La pintura espafíola". pg. 203.
(19) Tiepolo e Gallot também tiveram os seus "Caprichos".
não seriam estranhos os pintores de gênio, que formam a
grande galeria da arte. Nenhuma influência causariam os
artistas sem personalidade, os seguidores de escolas
fracassados, os que se confinavam às possibilidades restritas de
um país, de uma época ou de uma escola. Reagiu contra as
tendências afrancesadas que, no momento, tinham curso na
península, por sua fragilidade. Retomou o "sentido espanhol",
não por que existissem condições específicas a justificar essa
expressão ("sentido espanhol"), mas porque, sendo liberto de
preceitos e preconceitos e tocado de gênio, se encaminhou para
a plenitude da expressão, sem modelos, cânones ou receitas.
Nisso coincide com El Greco e Velasquez, com eles formando
os três grandes de Espanha. mas deles se distancia
substancialmente em espírito e em técnica. "Não há ponto mais
rico nem mais delicado na pintura espanhola; mas. também,
não há mais rude e, até mesmo, grosseiro".
Por seu turno, Jean E. Bersier. depois de recordar que
"comparou a liberdade de sua técnica, a espontaneidade de seu
traço e o seu senso do drama aos de Rembrandt", afirma
categòricamente: "nada mais falso". E justifica-se: "entre os
holandeses, o traço febril, tenro e poderoso não cessa de buscar,
na forma, a alma e o coração humano; uma adoração constante
o força a perseguir, pela técnica mais sóbria e mais complexa, o
lugar desta alma, um rosto, uma mão, um céu, uma árvore. A
vida fremente é freqüentemente o resultado de pacientes e
longas repetições, e nunca deformará, a seu serviço, o menor
gesto humano. Sua violência, ela
própria, terá sido respeitosa". Agora, a oposição: "Em Goya,
tudo ocorre de outra forma; o drama está nele, sem que ele
sonhe, um instante, em edificá-lo. Nenhum desejo de amor,
nem piedade; a indignação veemente será a da inteligência
diante da estupidez; êle se servirá da injustiça para profligar a
injustiça; do ódio para aplacar seus defeitos; da volúpia para
condenar a luxúria; da crueldade para descrever o massacre". E
conclui: "As armas de que ele se serviu são opostas às de
Rembrandt. A espécie humana aparece quase sem rosto, seus
membros freqüentemente atrofiados, desde que o essencial do
gesto se tenha encontrado; Goya não parece reservar nenhum
cuidado senão às formas que o colocam pessoalmente em cena,
êle ou o objeto de seus desejos" (20).
A SOCIEDADE, SIM
A natureza, compreendida como o mundo físico, está
muito pouco presente na obra de Goya. Até mesmo a disciplina,
decorrente da "realidade" do meio, êle desprezou mais do que
buscou. Mais que essa disciplina, que se traduz em cânones,
Goya insistiu em atingir a "expressão" mais subjetiva que
objetiva, e essa não estava no mundo exterior, mas no seu
espírito e sensibilidade. Foi um tremendo fixador, não de figu-
ras, porém de tipos; não de físicos, porém de caracteres; não
de indivíduos, porém de personagens. E,
(20) "La Gravure", pg. 208.
acima deles, palpitavam as cenas e os latos, com todas as
circunstâncias atraentes e os efeitos deduzíveis. A natureza lhe
fugiu à observação aguda e à preferencia reiterada. O "humano"
e o "social" dominam sua obra. A "sociedade" (21), e não a
natureza, deveria figurar como uma de suas mestras, pelo que
proporcionou às suas criações — como estímulo, como tema,
como mensagem, enchendo-as de um conteúdo palpitante que
atravessa os séculos, e que permite — quando, hoje, nos
perdemos, sem saber explicar o mistério da cabeça de Goya,
arrancada do corpo e per-(dida — dizer, apentando-lhe a obra:
— "se não sabemos da cabeça, pelo menos o espírito está aí!"
(21) "A sociedade espanhola do seu tempo está agudamente retratada em
sua obra, desde o Rei até corte, aristocracia, burguesia, povo" — Juan de la
Encina. "La Pintura Española", pg. 202.
O ALEIJADINHO
A CIDADE BARROCA
OURO Preto, a cidade tradicional do Brasil,
encerrando em sua estranha paisagem tantas evocações
históricas e tesouros artísticos, está zelosamente guardada,
pelas montanhas que a envolvem (1), como o fruto raro da
civilização do século XVIII, transformado em jóia de arte,
lavrada ao calor da imaginação ardente dos homens que
sonharam com as maravilhas das pedras e metais preciosos. Em
sua opulência senhoria!, ainda se sente o delírio do ouro,
imprimindo ao ambiente o preciosismo dos adornos. o exagero
das soluções arquitetônicas. No período feliz das descobertas, a
riqueza natural parecia interminável, capaz de justificar todas as
ambições e gerar todos os gastos, nutrindo de desmedido luxo
aquela comunidade, perdida nas terras a dentro do país. Do colo
das mulheres até o recinto sagrado dos templos. as jóias se
espalhavam como índices de uma riqueza súbita, que estonteou
o homem de então. O ouro pródigo dera, até para compor
almôndegas nos banquetes e fabricar ferraduras para o cavalo
dos bem sucedidos
(1) "... como se a natureza desejasse esconder do resto do mundo,
avaramente. Vila Rica" — Fern. Jorge — "Notas sobre a obra de
Aleijadinho", pág. 16.
exploradores da época. Rompendo as ladeiras da região, as
igrejas e as casas iam-se incrustando em meio àquela estranha
natureza, como peças de fino lavor que o homem plantava,
reveladoras da mentalidade dominante, misto de fausto e fé,
afirmação da capacidade criadora nas paragens remotas das
Minas Gerais. A cidade, com o número elevado das edificações
que se concentraram, em área relativamente pequena, culmi-
nando nos templos; com a topografia acidentada das ladeiras,
em estilo de presepe; com a variedade de côr das fachadas,
seguidas umas as outras, em colares poli-crômicos; com os
rendilhados da pedra-sabão lavrada; com os desenhos
escultóricos de certos frontespícios e do interior fecundíssimo
das naves católicas; com as festas de impressionante esplendor;
com os banquetes que denunciavam, a propósito de tudo, a
presença do ouro; com a soberba e famosa festa do Triunfo
Euca-rístico, qualquer coisa de inédito na suntuosidade do
cortejo e da decoração, a mais alegórica e rutilante parada
artística e religiosa dcs tempos; com toda essa riqueza de
conteúdo e de forma, a cidade é mais uma escultura gigantesca
do que arquitetura; é, na sua totalidade, das igrejas de
exuberante decoração aos hábitos de assinalado fausto, a grande
demonstração plástica da imaginação barroca. Impossível viver
mais barroca-mente do que naquele cenário e naquela época. O
barroco encontrou o clima adequado: de um lado, o ouro fácil, a
brotar da terra e a possibilitar as fantasias mais delirantes; de
outro lado. a natureza luxuriante.. acidentada, de morros
redondos, e movimentos sinuosos de rios serpenteados e
macios; e de permeio, a aven-
tura da epopéia dos bandeirantes, mesclando sonho, ambição e
misticismo. Desenhava-se, sobre essas circunstâncias capitais, o
barroco, na sinuosidade de suas linhas, no movimento de sua
composição, na riqueza espetacular des elementos que o
integram. Ouro Preto resulta de tais circunstâncias. Nasceu e
cresceu subitamente. Parou como um flagrante do tempo. E' a
*mais rica expressão barroca do Brasil, com sabor próprio. Não
se trata da transplantação artificial de um estilo. Em verdade o
meio encontrou no estilo a sua satisfação natural. Não se limitou
a copiá-lo: reinventou-o entre nós de uma maneira peculiar. Os
desvelos da cultura, precurando as raízes da imaginação criadora
da nova nacionalidade, transformaram Vila Rica, já de si
monumento escultórico, de proporções gigantescas, em autêntico
monumento nacional.
PRENUNCIO DE NACIONALIDADE
Ouro Preto prenunciou a nacionalidade. A idéia da
independência política decorre de tantos fatores, especialmente
a consciência econômica e a formulação própria de conceitos e
símbolos. A comunidade pensava e sentia dentro de ritmos
comuns, justificando, pois, anseios maiores. Os eruditos, cem
Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, teciam as
razões em acontecimentos históricos e de natureza jurídica.
Outros, menos graduados, comungavam na aspiração comum,
levados pelos impulsos irresistíveis da emancipação. No
episódio da Inconfidência, está,
dentre éstes
:
o herói máximo, Tiradentes. Fora das lutas
políticas, outra figura humilde afirma que o Brasil
am.Mciurecera: é o Aleijadinho (2), Antônio Francisco Lisboa,
filho de escrava negra e de pai português, presença viva das
duas raças que se amalgamariam em procura de um
denominador comum. O pai o libertou na pia, mediante
declaração expressa no assento imediato do batismo (3).
Cresceu com as características da mestiçagem.: pernosticidade,
revolta, arrogância, convencimento. Teria que vencer o
pigmento da pele, graças ao talento. Fora um emancipado da
escravidão. Seria um emancipado da arte? Qualquer idéia de
dominação encontra em seu sangue repulsa imediata. Pertence a
uma classe não definida: num extremo, colocavam-se os
fidalgos, proprietários de minas, juizes, poetas, homens cultos;
noutros, os escravos destituídos de tudo. A classe intermediária
congregava os egressos da servidão, os mestiços sem situação
própria. Aleijadinho viveu a liberdade de direito, dentro das
contingências desses preconceitos. Seu talento criador
responderia aos vestígios dessas limitações e comprovaria que
acima das circunstâncias de colônia um homem novo
começava a afirmar-se no Brasil e na
(2) "Esse diminutivo de "O Aleijadinho*' explica-se pela gentileza e
pela doçura brasileira. Mas o homem não tinha nada de pequeno, nem nada de
fraco. Era prodigioso até na sua deformidade. Nem seu físico nem sua moral,
nem sua arte revelam qualquer fraqueza sentimental. Toda sua obra de arquiteto
e de escultor exprime saúde, robustez, dignidade, que jamais atingiu qualquer
outro de nossos artistas plásticos" — Manuel Bandeira, "Guia de Ouro
Preto", página 54.
(3) Dasílio Magalhães, Conferência no Instituto Histórico, 1930.
América: o emancipado que conquista posição por si mesmo.
Náo é a sorte que o empurra: é êle que salta sobre os
obstáculos. Urna nova e rutilante mentalidade se anuncia. Só
mais tarde, com o recuo dos séculos foi possível sentir esse
clarão.
DUAS ATITUDES DE UMA EXISTÊNCIA
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, assume duas
atitudes sucessivas diante da vida. Esse contraste resulta da
precária condição de saúde, a partir dos quarenta. Na sua
mocidade, é alegre, jubiloso do destino, praticamente da
liberdade, que alcançou ao nascer, expansivo, aproveitando
todas as oportunidades do meio em que vivia. Dança, saboreia
vinhos e pratos, ama com efusão. A arte está em meio a tudo
isso como o imperativo normal da sua sensibilidade. A
imaginação criadora já denuncia o seu poder espressio-nal.
Contudo, mestre Aleijadinho não conhece, ainda, as razões da
amargura. Plenamente extrovertido, mais ou menos normal nas
suas exteriorizações, experimenta apenas os limites dos
recursos possibilitados pelo desenvolvimento da técnica. Falta
alguma coisa para despertá-lo.
Na curva da madureza, o temperamento muda. Torna-se
taciturno, retirado do bulício mundano, reservado, desconfiado,
progressivamente introvertido. Após os 47 anos, quando a
doença começa a desferir sobre êle os penosos efeitos da
deformação, recolhe-se a um isolamento desesperador.
Esquiva-se ao encontro dos
amigos. A introversão passa a alimentar um mundo interior,
cada vez mais rico de sombras e imagens, de-senvôlto nos
desdobramentos das concepções estranhas. O sofrimento faz
com que abandone os aspectos amáveis e superficiais da
existência, em busca de realidades mais profundas. Essa
"dimensão interior" se revela em sua obra, amadurecida sob o
ponto de vista artístico, portadora de um conteúdo espiritual e
de uma potencialidade emotiva, que só então se afirmam em sua
plenitude. O introvertido se compensa no deli rio do
"expressionismo", com que se antecipa genialmente à
concretização desse movimento na arte moderna .
Qual a causa de tamanhas mudanças? A enfermidade. A
enfermidade explica melhor esse mundo atormentado do
Aleijadinho do que a afirmação lírica da (influência da mal
definida condição social. O mestiço não havia, até então,
renunciado à vida. Antes, ao contrário, vivera intensamente. O
fato novo é a presença da dor. E' o contraste. E' a precariedade
do físico e da locomoção. E' a reclusão forçada pelas
circunstâncias. Um de seus analistas teria afirmado: — "Sofreu,
na reclusão de sua enfermidade, de uma forma que supera, em
espanto, a qualquer tragédia" (4). Trabalha às escondidas. Sai e
volta a horas em que o sol está recolhido, quando a escuridão
impede que êle seja visto pelos olhos profanos de sua gente.
Usa de uma indumentária que o envolve todo, desde o chapéu
desabado, unido à gola da capa, até os ex-
(4) Newton Freitas, "El Aleijadinho", pg. 12.
tremos desta, tocando os pés. Ao trabalhar, isolava-se atrás de
uma tenda, afastando qualquer possibilidade de ser visto. Por
fim, mandava que lhe amarrassem o macete nas mãos
imperfeitas, e produzia com a bravura de um estóico.
Foi-se, aos poucos, mutilando. Que importa, nos dias de
hoje, perquirir qual a sua doença? Três ou quatro hipóteses
tentam explicá-la. Importam os efeitos. Importa a relação com
as artes. Perdeu dedos do pé e da mão. Andou de joelheiras,
galgando andaimes para trabalhar. Sentiu-se mutilado,
grotesco, desagradável. Experimentou, pois, as mais cruciantes
dores físicas e morais. E, apesar disso, esculpia. E esculpia
admiravelmente!
Longe de abater-lhe o ânimo, a enfermidade — observa
Manuel Bandeira — foi uma espécie de estímulo para sua
formidável capacidade de trabalho. Vida amarga, sem outro
refúgio que a arte. Todas as energias, de um espírito insaciável,
só tinham, daí por diante, um campo de aplicação: a escultura.
O cotidiano estava praticamente fechado para êle: só o plano
superior da arte lhe permitia possibilidades e perspectivas
ilimitadas. Fêz da arte a linguagem de seu mundo interior. Não
poderia deixar de ser, no campo puro da forma, um
"expressionista". Os loucos, os emancipados, os sofredores
constróem abstraindo o mundo objetivo real. E' uma atitude,
consciente ou inconsciente, de represália contra o insucesso ou
o desajustamento. Planam acima do banal e do efêmero.
Buscam no sobrenatural o reajustamento de sua condição
humana. Daí. a nota de modernidade latente, palpi-
tante, que há na obra de Aleijadinho. Não teve mestres de seu
porte Não deixou discípulos da sua fibra (5). Catalizou a força
criadora que despontava no povo em formação; quebrou os
preconceitos; afirmou vitalidade do nativo, acima das razões
raciais; demonstrou que a terra passava a ter sua linguagem;
bebeu no meio envolvente a riqueza da natureza e dos recursos
econômicos; soube transformar essa sociedade, ávida de ouro,
que passa, em pretexto e clima de uma grande e bela obra de
arte; convergiu em si a exuberância do meio, e proclamou, sem
o saber, a existência de um homem novo, que não era nem o
colonizador português, nem o sofredor africano, nem o caçador
de minas, mas o intérprete soberbo de uma comunidade
telúrica, estonteante de forças interiores, buscando forma — a
forma que êle soube dar, como poeta e criador de beleza,
matizado do sabor do solo, com o estranho gosto metálico do
ambiente, em cambiantes magnificas de opulencia, candura,
ingenuidade e malícia.
FORMAÇÁO E AFIRMAÇÃO
Nada assimila mais e melhor do que uma inteligencia
plenamente despertada. A de mestre Aleijadinho esteve sempre
aberta a toda sorte de curiosidade. Se não mereceu as
vantagens de um aproveitamento regular através de cursos,
(que não existiam na terra nova, capazes de corresponder aos
seus reclamos),
(5) "Nenhum antes dele; nenhum depois! Extinguiu-se como havia
surgido, quase urns aberração em seu meio" Newton Freitas, obs. cit.;
pg. 9.
conquistou o justo louvor que se há de dispensar no seu
extraordinário autodidatismo. Buscou, por quaisquer meios, na
limitação da comunidade em que vivia, todos os elementos que
permitissem o pleno florescimento de sua sensibilidade e o
desdobramento fecundo de sua imaginação. A curiosidade
intelectual supriu a escola. Teve mestres? Apontam-lhe alguns:
seu pai Manuel Francisco, carpinteiro, construtor, arquiteto
improvisado, embora de algum merecimento, (6), João Gomes
Batista (7), gravador, educado na Europa; Francisco Xavier de
Brito, ornamentista. Algumas pre-sunções fazem supor a
filiação espiritual de Aleüadinho a esses três artistas .Certos
fatos destroem as hipóteses. A verdade é que nenhum deles
chegou à culminância de Antônio Francisco. O mestiço os
supera; deixando-os em plano secundário; traz uma mensagem,
não é um subproduto; é uma afirmação estranha de vitalidade
própria.
Mas onde estão seus mestres? Diluídos, imponderáveis,
através de impressos, através de terceiros. São as estampas, os
missais, as miniaturas, os livros religiosos, fornecidos pelas
írmandades a que pertencia. "Por intermédio das gravuras
bíblicas, góticas e bizantinas, Antônio Lisboa se informa para o
tratamento das cenas dos púlpitos de São Francisco de Assis de
Ouro Preto, da matriz de Sabará, das figuras dos pro-
(6) Sobre Manuel Francisco Lisboa, consultar os sub
sídios para sua biografia, no vol. 4 da Revista do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1940, pg. 121 e
seguintes, colaboração de Judite Martins.
(7) "João Gomes Batista", por Luís C. Oliveira Neto,
em "Revista do S. P. H. A. N.", v. 4, pg. 83 e segs.
fetas e dos personagens da via crucis de Congonhas (José
Mariano Filho) . Ajuda-o, entusiasma-o, estimu-la-o o
depoimento precioso e piedoso dos jesuítas, beneditinos e
franciscanos com que mantinha íntimas relações. Os povoados
das Minas Gerais "enchiamrse'', segundo Augusto de Lima
Júnior, "de frades das diversas ordens e conventos do Brasil, de
Portugal e da [tália", que traziam consigo o gosto pelas artes e
pelas pompas do culto. Colhendo relatos e descrições, ana-
lisando estampas e gravuras, lendo o texto e encantándole com
as iluminuras do exemplar da Bíblia que o acompanhava por
toda a vida, o Aleijadinho viu chegar até êle, na insulada Ouro
Preto, o Velho Mundo, a caótica riqueza gótica, o preciosismo
bizantino, a dignidade da renascença, sem a rigidez dos
cânones, que isolam e cerceiam, mas de uma maneira tênue,
sugestões ligeiras batidas de leve na sua sensibilidade, exci-
tando a imaginação, sem, contudo, limitá-la à fatalidade de
certas escolas e tendências estratificadas. Por sobre tudo isso,
uma influência mais forte: o deslumbramento da terra! Outro
fator poderoso: o seu drama interior, variável na
caracterização, semelhante, entretanto, com o drama de
quantos procuravam o seu lugar firme na nova nacionalidade.
Ao Aleijadinho, faltou uma formação escolar, mas não faltou a
afirmação artística, conseqüente de tão variadas e venturosas
circunstâncias.
Críticos tentam agora descobrir na obra do Aleijadinho
correlações que revelem os veios da criação. Pretendem
estabelecer relações entre a sua obra e as gravuras de Diogo
Borazzio, hoje descobertas em Minas
Gerais; ou querem assemelhar os seus profetas aos de Dijon, na
Borgonha; de Klaus Sluter, da escola flamenga da Idade Média.
Pretendem outros que êle houvesse trabalhado com equipe de
artistas. Nenhuma dessas conjecturas assume importância
maior. Para que tais indagações? Sabemos que nunca saiu das
cidades mineiras onde trabalhou e reconhecemos em sua obra
indiscutível originalidade. E' um fenômeno singular: ter
produzido tanto e de tão superior qualidade no meio em que
viveu e com as limitações de sua saúde. Antônio Francisco deu
ao Brasil um barroco típico. Esse barroco, prenuncio do
expressionismo contemporâneo, coincide com muitas
aspirações dos movimentos modernistas. Dele cuida
presentemente um dos mais autorizados pesquisadores de arte,
Germain Bazin, conservador do Louvre. Veio ao Brasil, em 46,
e voltou impressionado com o fenômeno do mestiço genial.
Considera os seus profetas, pela força de expressão e
intensidade dramática, do nível dos profetas de Sluter, e de
Donatelo; ou do quilate de Sibilas de Giovani Pisarro. Luca
delia Robia, Houdon e outros mestres. Inconvencional e
criador, o destino colocou Antônio Francisco na galeria dos
grandes realizadores da escultura. E o Brasil, antes de ser
nação, já tinha os seus "nacionais", e, com o Aleijadinho, entra
atualmente nas histórias universais de arte, desde os capítulos
do século dezoito (8).
(8) Para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa, consultar os
apontamentos da Revista do S. P. H. A. N., vol. 3.°, 1939, pg. ISO e
segs.
COMPREENSÃO E INCOMPREENSÃO
Tem-se estranhado que o nome de Antônio Francisco
Lisboa não figurasse, ou figurasse superficial e
pejorativamente, na crônica que viajantes ilustres escreveram
sobre o Brasil colonial. Nemsse referido e citado pelos
eruditos da época. Traduzirão essas circunstâncias
incompreensão ou negação do seu mérito? Os viajantes ilustres
eram, na sua totalidade, naturalistas, em missão científica,
mantendo apenas relações com as artes documentárias,
empenhados, pois, na precisão, — precisão de que tanto se
afastava o Aleijadinho. nos seus impulsos expressionistas. Os
eruditos da época estavam apegados às convenções da cultura
que haviam logrado em escolas daquém e dalém-mar, cultura
baseada, como de comum, no endeusamento dos cânones e na
consagração dos preconceitos (9).
O Aleijadinho fora, porém, compreendido pelo povo,
tocado da mística do ouro, que também sentia barrocamente;
que buscava o estilo festivo dos templos coloniais; que
estimava a sátira plástica de Antônio Francisco; que via na
deformação, não o erro ou a insuficiência, mas a expressão
intensa, a sugestão de uma forma ou de um sentimento, a nota
crítica, a fertilidade criadora. Era nas igrejas sob o
deslumbramento dos adornos e diante das imagens
espontâneas, por vezes de cândido primitivismo, que o povo
encontrava os melhores motives de admiração. A fé se
confundia
(9) Ler, a propósito, "o primeiro depoimento estranjeiro sobre o
Aleijadinho", de Afonso Arinos de Melo Franco, in Revista do S. P. H.
A. N. v. 3, pg. 173.
com o sentimento estético. Este se educa no fulgor excepcional
da liturgia. "Na casa do Senhor, resplandecia também o museu
do povo": eis como Ronald de Carvalho associa as duas
funções — a artística e a religiosa (10).
O caricatural — tão ao sabor irreverente do povo —
alternava com as melhores afirmações de pureza e
construtividade plásticas. Na expressão irreverente ou na
suntuosidade de certas composições, os fiéis encontravam mais
alguma coisa que a adoração.
Compreendido das gentes daquela época, o Alei-jadinho
veio a ser compreendido de novo, hoje, quando se aceitam
como legítimas as liberdades do expres-sionismo. Quando se
procura recolocar a escultura nas idéias fundamentais do ritmo
e da composição. Quando atendidas essas idéias fundamentais,
assegurada a construtividade, a liberdade retoma o mais vasto
mundo subjetivo. Quando, cessados os artifícios de um
divórcio impossível, se tenta repor a escultura no conjunto
arquitetônico. Aleijadinho respondeu, por antecipação, às
inquietações e anseios da atualidade.
EXPANSÃO E EXTENSÃO
Nada mais atesta eloqüentemente a compreensão do
Aleijadinho pelos seus contemporâneos, particularmente a
igreia e o povo, do que a impressionante ex-
(10) "Arte brasileira", in "Teira de Sol", 1924, obs., Pg.
17.
pansão de sua obra. Vila Rica, o ouro e Antonio Francisco
experimentaram a mesma incontida irradiação. Iam ao sítio
maravilhoso levas e levas de pessoas, que, depois,
caminhavam, de retorno, com a mística ouro-pretense, em
vários sentidos, pelas terras do Brasil. O ouro atraía e o ouro
transbordava além dos limites da cidade. "Frades de diversas
ordens vinham esmolar nas Minas; arrecadavam elevadíssimas
quantidades de ouro em pó, origem da suntuosidade de
conventos da Bahia e do Rio de Janeiro" (11). Dali, também o
espírito barroco irradiou pela Capitania e por terras vizinhas. O
fenômeno econômico correu paralelo ao fenômeno artístico. E,
com o barroco, andou igualmente pelas Minas Gerais o nome
de Antônio Francisco — ouro puro maciço, da escultura
brasileira (12).
Filho de Ouro Preto, (13), da localidade chamada Bom
Sucesso (vaticinio do êxito que alcançaria), o Aleijadinho
recebe as solicitações de outras localidades: Congonhas do
Campo, Sabara, Mariana. A arte do mestiço de gênio, se não
contava com os alaridos da celebridade, era sussurrada, de uns
para outros, como a expressão exuberante, de que careciam
aquelas comunidades, sob o impacto de riquezas súbitas e
tocadas do sentimento da gratidão. Casas do Senhor,
casas do
(11) Heitor Pedrosa, "O Aleijadinho", pg. 21.
(12) De Jules Supervielle. "Carnet de voyage", 1930: '•Comme
Rothemborg en Allemagne et .Tolete en Espagne, Ouro-Prêto ne semble pas
gouverné par ses habitants actuels, mais par de belles et puissantes
Abstractions, des personnages morts dans les siècles passés et surtout par un
grand sculpteur et architecte, gloire de l'art barroque, Aleijadinho".
(13) 1730. Falecido em 1814. 84 anos de existência.
povo. As encomendas choveram de toda a parte. Há quem
indague: — Por que todo trabalho bom lhe é atribuído? Há
quem queira ver, em torno dele, uma legião de artífices de
valor. As investigações, porém, afirmam e confirmam, com
aquela capacidade excepcional, apenas a existência do
Aleijadinho. Mas do que isso; a sua inconfundível
superioridade. Figura dominante, foi êle próprio que construiu
seus cânones e seu estilo. Perderam-se dentro de suas formas os
auxi-liares prestimosos. Sua obra exerceu naquele tempo uma
poderosa influência. Só isso explica o ser requisitado para
tantas igrejas. Uma expansão inccn-teste (14).
Se a geografia lhe abriu territórios, o talento lhe assegurou
cs mais diversos domínios dentro da arte: púlpitos,
frontispícios, lavabos, altares, estátuas. Estendeu-se a sua
escultura, desde o motivo central e dominante, até o sistema de
adornos que o enquadrava. No conjunto, não foi um imaginoso,
que prosseguisse, ao capricho da criação fácil, "adicionando"
pelo gosto de fazer mais: tudo nele obedeceu a um sentimento
superior de "composição" (15). Há um
(14) Sobre a controvérsia relativa à tendência de lhe serem atribuídas
todas as boas esculturas mineiras, ler, em abono de nossa conclusão, o capítulo
"As obras do Aleijadinho na igreja do Carmo do Sabará". "Em torno da história
do Sabará", de Zoroastro Viana Passes. 1940, pg. 133 e segs .
(15) "O adro da igreja ._ refere-se ao Santuário do Bem Jesus de
Matozinho, em Congonhas — não se apresenta apenas como uma construção
ornada e enriquecida por doze esculturas de pedra. Entre estátuas e muros
existe clara interdependência de formas e contornos, unindo, como
partes do
enlaçamento, estreito e perfeito, entre todas as partes. Não se
trata de "adição", mas de visão globalizada. O frontispício de
São Francisco de Assis, de Ouro Preto, e o átrio do Santuário
de Bom Jesus de Matozinho, em Congonhas, denunciam
alguma coisa mais que o escultor. "Não foi jamais arquiteto",
afirma José Mariano (16). "Só foi escultor e santeiro", adverte
Heitor Pedrosa (17). Não. Foi além. Foi o artista plástico mais
completo de seu tempo. No estilo barroco, confundem-se os
limites entre a escultura e a arquitetura. Por sua formação
autodidata, pela força de seu gênio, pela "confusão rica" da
época, chegou a ser, à semelhança de Miguel Ângelo, o tipo
enciclopédico de artista. Do ornato atingiu aos "riscos".
Planejando adornos, previu a arquitetura em si mesma. A escul-
tura inspira a composição geral. A arquitetura comanda as
composições escultóricas. Numa e noutra, o Aleijadinho
requinta-se de sentimento e de expressão. Desdobra-se no
espaço: as cidades mineiras. Desdobra-se no plano artístico
:todos os domínios plásticos. Foi o regente incomparável da
grande sinfonia de pedra que o homem novo, então nascente no
Brasil, levantou, na fase colonial, como prenuncio de si, da
nacionalidade e da cultura, aclimatados, de maneira própria,
naquelas estranhas e incontidas paragens.
um mesmo todo, os elementos de uma só criação plástica". José de Sousa Reis,
"O adro do Santuário de Congonhas", in Revista do S. P. H. A. N., pg. 207.
(16) ''Estudos brasileiros", ano II, vol. IV.
(17) Heitor Pedrosa, obc. cit., pg. 24.
VAN GOGH
A ASSIMILAÇÃO DE UM EXPRESSIONISTA
TEMPO não tardou muito em fazer-lhe justiça. Van
Gogh, cujo centenário de nascimento o mundo artístico está
celebrando esta ano, não teve em vida a satisfação de ver
reconhecidos os seus altos méritos, e curtiu a ansiedade dos
insatisfeitos, buscando em suas reservas interiores as forças
com que enfrentou dissabores e decepções. Sua curta
existência, de 37 anos, de 1853 a 1890, e sua carreira de artista,
que foi pouco além de um fecundíssimo trienio, não
conheceram o aplauso, o louvor, a consagração. Nos últimos
meses de vida, em janeiro do ano fatídico do suicídio, é que
aparece, no "Mercure de France", o primeiro artigo sobre sua
obra, de Albert Aurier, tocado do mais sincero entusiasmo.
Também neste ano derradeiro, teria sido adquirido, segundo
Maurice Raynal (1), na Exposição dos XX, em Bruxelas, o
único quadro que lograra vender, "La Vigne Rouge", o qual lhe
valeu quatrocentos francos. Sheldon Cheney, todavia, eleva
para quatro o total dos quadros que lhe foram comprados em
vida. Um ou quatro, para quem produziu várias centenas. . . e
a preços insignificantes. Só a
(1) "De Baudelaire à Bonnard", pg. 14.
partir de 1910, conta com o favor declarado do público. Em
1920, a critica lhe dá a posição que desfrutaria daí por diante,
no cenário da arte moderna. Ern 1936, seu nome está no auge
do prestígio. O Museu de Aite Moderna, de Nova York, atrai,
para urna exposição retrospectiva sua, 123.000 pessoas,
empenhadas em conhecer-lhe os quadros (2). A multidão,
mènes de meio século depois, vingara a incompreensão e o
desprestígio, registrados em seu período áureo de produção. E,
desde 20, a cotação de suas telas sobe a cifra astronômica,
disputadas pelos principais museus da Europa e da América.
"A ação de Van Gogh é comparável, em importância, à de
Cézanne e a de Gauguin", assim o situa, no panorama
contemporâneo Pierre Lavedan (3). E um dos três grandes do
modernismo, na força criadora, na contribuição pessoal, no
conteúdo técnico e emotivo. "A despeito de sua filiação
impressionista, ocupa um lugar junto a Cézanne na solidez e no
caráter renovador Se sua obra", eis a opinião do crítico norte-
americano E. H. Swift (4) e "a diferença está em que suas
formas são mais fluídas e emotivas, as de Cezanne mais
geométricas e estáticas".
Que lhe assegurou essa posição excepcional, de "mestre
criador"? William Boitho, em um estudo sobre sua pintura, dá
a amarga e impiedosa resposta: "somente a loucura escapa
completamente do lugar
(2) "Hist, da Arte", trad. de S. Milliat, vol. II, página 375.
(3) "Histoire de l'Art", v. II., pg. 527.
(4) "Arte e Civilização", pg. 265.
comum". Sim, o seu temperamento, que, desde a juventude,
revelou o "inconformado" — vítima suces-liva de tentativas e
malogros, inquieto por encontrar na vida o caminho e na arte a
expressão — afastou do pintor de Breda a tendência
"continuista" ou seja a contaminação fácil e definitiva com as
"maneiras" em voga. Recusando estilos, padrões, cânones,
manteve-se um "inconvencional". Só os que fogem às con-
venções encontram o caminho generoso da criação e da
originalidade. São condenados, de início. Atravessam um largo
período sob o fogo impiedoso dos ataques ou no frio
desanimador da indiferença. Van Gogh "foi o mais
brilhantemente "inconvencional" e o mais apaixonadamente
subjetivo dos predecessores dos modernos" (5). Êle pinta com
espontaneidade, tocado de uma irreverência sadia, iluminado de
uma luz interior, sob o impulso de forças arrebatadoras,
ingênuo, sem petas, nem limitações, como se estivessem em
estado de pureza, a desdobrar-se segundo o conduziam os seus
sentidos exasperados e potentes. As impressões visuais, que
constituíram a delícia de Manet e seus seguidores não bastavam
como recurso ou linguagem para o temperamento perscrutador
de Van Gogh, que não via paisagem comum, mas a da sua
fixação interior. Com êle "a pintura se prepara a fim de passar
da sensação impressionista para o pensamento ex-pressionista",
na aguda interpretação de Maurice Ray-nal: "abandonará o
lirismo da técnica pura para a expressão do que chamarão de
caráter" (6).
(5) Sheldon Chene), obs. cit. pg. 372.
(6) Obs. cit. pg- 63.
O expressionismo encontrou em Van Gogh um dos seus
melhores realizadores. Até então sob o império do motivo, a
arte dera várias modalidades de realismo, cuja base estaria
sempre na afinidade de forma com o objeto. Essa forma
decorria da sensação — desde a simples sensação comum até a
sensação privilegiada de certos artistas. A luz deslumbrou os
impressionistas, mas não os afastou do jogo elementar da
sensação: apenas exigiu maiores sutilezas para o seu exercício.
O expressionismo é bem diverso. O objeto não existe no objeto,
no seu formalismo aparente: existe no artista, na maneira por
que êle o sente. na sua "encarnação" pessoal. Do objeto poderão
ficar diversas imagens. O artista a exteriorizará intuitivamente,
poeticamente, apaixonadamente. O que resulta é a sua "criação
sensível". Van Gogh tinha muita coisa dentro de si para
transmitir através de sua arte: era menos o que via, era mais o
que sentia, menos o que estava em torno de si, mais o que
estava dentro de si. E' a isso que historiadores da arte chamam
expressionismo subjetivo, a que filiam "as produções de Van
Gogh e Kokoschka, com a deformação deliberada, ou não da
visão fotográfica" (7). Dentro dessa concepção, o
expressionismo teve sérios adeptos na Alemanha.
A lição que decorre de Van Gogh consiste, pois, em
primeiro lugar nesta reivindicação: a arte pode ser uma
expressão individual, isto é, a maneira própria de ver. de
sentir, e de exteriorizar; mas consiste ainda,
(7) S. Cheney, pg. 357.
em aplicar essa verdade, não com a precariedade de "meios" ou
com soluções insubsistentes na sua fraqueza e inconsistência;
porém com os recursos admiráveis da sensibilidade e da
imaginação, associadas febrilmente em artistas como Van Gogh
de que emana a linguagem forte, quente, atrevida, audaciosa de
seus quadros. Os gênios têm direito de ser "inconformados". Os
pesquisadores devem cumprir a tarefa da "procura" como que
enriquecem a técnica. Mas, para criar, é necessário que a
pesquisa seja fecunda ou que o gênio ilumine a obra. Em Van
Gogh, sente-se que a sua arte, de vigor manifesto, ainda não
correspondia à imaginação ardente e à sensibilidade sem limites
que constituiam a personalidade invulgar do artista: esta, que
tanto deu, exigia mais. A morte procurada foi o último quadro
de sua galeria trágica.
TORTURA DA EXPRESSÃO
Van Gogh é um torturado da expressão. Antes de tudo,
porém, é um torturado da vida. E' êle quem, em carta a seu
irmão, pergunta: "terei alguma utilidade no mundo, poderei
servir a algum propósito ou produzir algum benefício?" Sofre
— confessa-o — por se sentir "aos olhos da maioria uma
nulidade ou um homem excêntrico e desagradável". Esclarece,
todavia: "há em mim uma harmonia e uma música calma e
pura". Que harmonia seria essa em oposição ao seu
temperamento vulcânico e desesperado? Dentro dele, a forrna
vivia latente, buscando realizar as grandes sinfonias de côr que
depois se revelam. "Êle sincera e
loucamente quis um meio de expressão espiritual e. ao mesmo
tempo, um meio de dedicação desinteressada à "humanidade"
(8). Sempre à procura da expressão. Sempre a tentar "destinos"
e "criações". Foi instável na "vida"; foi instável na "pintura".
"Sua carreira de pintor só durou seis anos, ao longo dos quais
sua arte, submetida ao perpétuo frêmito de uma sensibilidade
super-aguçada, não cessou de se "transformar". Apaixonado, de
início, pelo apostolado "moral" e "social", êle emprega, depois,
até o extremo limite, forças e razão na persecução da "luz" e da
"cor" (9). A aspereza sombria dos primeiros tempos, segue-se,
com a influência impressionista, a pintura clara, envolve-se nos
efeitos do japonismo, inflama-se ao sol mediterrâneo, arde de
luz e de fantasia, delira de côr. Essa inquietação, refletida nas
suas telas, — de que resulta uma das mais belas contribuições à
pintura, de todos os tempos — tem causa, não apenas no virtuo-
sismo pictorico que o anima e empolga, mas igualmente nos
seus sofrimentos. Angustiado, decepcionado, infeliz, sublima-
se na arte, o único domínio, ao seu alcance. que êle subjuga.
"Sua vida é um calvário", observa Gustave Coquiot, "nasce,
pinta, morre só, terrivelmente só" (10). "Talvez a figura mais
trágica na arte moderna" (11). "E' todo nervos, suscetibilidade,
exaltação", afirma Maurice Raynal (12), objetivando: "os
(8) S. Chenel, obs. cit. vol. II, pg. 376.
(9) Lavedan. vol. II, pg. 527.
(10) "Les independants'', pg. 74.
(11) Swift, pg. 265.
(12) "De Baudelaire à Bonnard", pg.63.
mínimos acontecimentos assumem nele proporções excessivas,
fora da medida humana" (13). Daí, a "deformação" quando
bem entende ; a "violência" em quase todas as telas; a "ânsia"
de penetração e profundidade; o apelo ao "fantástico" para
atingir ao "real". Mas que realidade é essa? A "sua" realidade
interior, a que nutriu uma das mais ricas produções
"expressionistas" do século passado. Com a pintura, só com ela
e por ela, respondia ao sofrimento e à derrota humana no
cenário da vida. O gênio fulgurava para aniquilar a mesquinhez
do cotidiano. "A pintura será para êle uma espécie de
tratamento médico do mal profundo que o mina; poderá aliviá-
lo algum tempo, mas náo lhe poupará uma crise de angústia
desesperada" (13a).
O COMPLEXO GERA UM GIGANTE
O complexo de inferioridade acabou por fazer de Van
Gogh um dos gigantes da arte contemporânea. Várias vezes,
sentiu e confessou essa inferioridade: intimamente, lutou, como
um leão, para superá-la. Onde as determinantes desse
complexo? Na série de "tentativas" frustradas.
Tentou constituir família. Em 1874, pede em casamento a
filha de sua senhoria, Ursula Loyer, tocado de uma paixão
violenta. Fácil é de avaliar a violência da decepção, ao ser
friamente repelido. Dez anos depois, tece um curto e delicioso
idilio com Margot.
(13) obs. cit. pg. 64. (13
a) Idem.
sua vizinha, mas esta quase se suicida. Pouco antes, em Etten,
fora vítima de outro drama emocional: sua prima recusara,
peremptòriamente, a paixão que êle lhe devotara.
Não é menos infeliz no amor boêmio. Cristina, que pousa,
na sua vida, durante vinte meses, decorre de uma noite vadia
(1882), aventura banal de mulher ébria, que se propõe servir de
modelo; Segattori, outro modelo que se transforma em paixão,
para "terminar uma noite, não sem violência" (14).
A procura da profissão proporcionou outros episódios
negativos.
Tentou o "comércio". "Iniciou-se como vendedor numa
loja de quadros (1869). Não teve absolutamente êxito: cada vez
que um cliente se propunha a adquirir uma tela má, Van Qogh
lhe fazia grandes discursos para dissuadi-lo" (15). Tentou o
"magistério". Atraído por anúncio, rumou para a Inglaterra,
como mestre-escola auxiliar, em Ramsgate, depois em
Isieworth (1876). Nenhum êxito. Tentou a vocação de seu pai :
seria pastor, como o velho e austero Theodorus. Segue para
Amsterdam, a fim de preparar-se e ser admitido ao seminário
de teologia da Universidade (1877). "Quero consolar os
humildes. Penso que o ofício de pintor ou de artista é belo,
porém, creio. que o oficio de meu pai é mais sagrado. Estimaria
ser como êle" (16). Esse propósito vem confirmado nou-
(14) "Lettres", Charles Terasse, pg. 13.
(15) V-M. HiUyer e E-G. Ilvey. 'Petite Histoire de
rArf, "La Peint", pg. 157.
(16) De suas cartas.
tra de suas missivas: "Não estou só, porque Deus está comigo.
Quero ser pastor. Pastor como meu pai". Os estudos seriam
demorados; não se ajustam ao temperamento de Van Gogh.
Troca o ideal de "pastor" pelo de "missionário". Em vez da
Universidade de Amsterdam, bastariam os três meses da escola
preparatória evangelista de Bruxelas. Em 1879, consegue uma
missão temporária em Wasmes. Foi missionário junto dos
mineiros daquela região belga. "A vida dessa pobre gente era
tão miserável que distribuía entre ela tudo que possuia: só
faltava morrer de fome êle próprio" (17). Desses infelizes fêz
esboços vigorosos. O desenho acode em sinal de protesto.
Como os mineiros, olhou profundamente para dentro da terra.
A terra, com seus veios de riqueza e seus vermes de destruição,
passa a ser uma realidade nova. A missão cessa ao fim de seis
meses. Estava, contudo, aberto o "caminho definitivo da
pintura". Ela responderia aos insucessos. Seria mais forte que a
miséria e o fracasso. Charles Terrasse, o analista de suas
"Lettres", recompõe o período que sucede ao malogro da
Missão e que indica a alvorada da Arte: "Começa, então, a mais
sombria época de sua vida. Êle vai daqui para aí, Ventos de
outono, ventos de inverno. . . Deita, ao acaso dos caminhos,
pelos celeiros, debaixo dos carros. Que tem para subsistir? O
dinheiro ralo que lhe envia Theo. Theo encontra meio de se
juntar a êle, de dizer-lhe algumas palavras amigas, de encorajá-
lo, enfim, na sua vocação de pintor. Vincent caminha oito
dias
(17) V-M. Hillyer, obs. cit., pg. 158. s
para ir a Courrières, a fim de ver Jules Breton; a fachada
imponente da casa o intimida, a ponto de êle não ousar tocar-
lhe a campainha, e volta a Cuesmes. Depois, toma o rumo do
Norte, na primavera, e volta a Etten. . . Algumas semanas mais
tarde, está de novo em Borinage. Que angústias! Que lutas!
Descobriu. enfim, seu caminho. Será pintor, nada além de
pintor" (18). Ao lado de Vincent, define-se, daí por diante.
outra figura histórica: a de Theo, seu irmão, o único amparo do
irmão, em quem acredita, passando por todos os insucessos; "Fé
em Vincent! Admirável fé! E' graças a ela que o gênio de
Vincent vai agigantar-se!". Apreciando a um e a outro, traçou-
lhes F. Fels, nestas palavras, o paralelo: "O gênio é Vincent,
mas o herói é Theo, e nada teria sido criado sem êle".
A obra que realiza, fulminantemente, em tão poucos anos,
responderá à pergunta que o artista formulava: "Há alguma
coisa dentro de mim, que é que é"? Não é o mundo lá de fora; é
o expressionismo interior, subjetivo. "A pintura não será para
êle senão outro meio, o último meio, de viver, de dizer ao
mundo seu amor e sua piedade, de testemunhar-se a Deus"
(19).
INTENSIDADE VITAL
Considerado um dos três grandes precursores do
modernismo, Van Gogh deixou, entre oscilações, uma pintura;
contudo, é característica, peculiar, típica. Nela
(18) "Lettres", C. Terrasse, pg. 12.
(19) Jean Leymarie, '"Van Gogh", pg. 12.
sentimos várias influencias mas nenhuma delas limitativa ou
restritiva. Dfeslumbra-se ali a presença do impressionismo e do
japonismo mas um e outro superados pelo artista. Marca a
presença dessa ou daquela corrente a sua assimilação pela
sensibilidade do pintor; nunca, a imitação apenas. Van Gogh
incorpora conquistas técnicas; não fica, porém, confinado aos
seus recursos.
A condição primordial de expressionista e incon-
vencional o distancia de regras acadêmicas, afasta-o do
realismo objetivo, transplanta-o para o subjetivismo
exteriorizado. Se êle tem raízes remotas em Rubens, a quem
tanto admirou em certa fase da vida, não foram estranhos à sua
formação Rembrandt, Delacroix, Millet, Daumier e outros. Os
mestres de sua época, como Lautrec, Degas, Seurat, Signac,
Gauguin, sobretudo Gauguin, não se transferiram em Van Gogh
mas o excitaram no caminho da pesquisa e da originalidade. O
artista holandês experimentou a intensa elaboração pictórica de
Paris. "Seguir" este ou aquele — não se ajustava ao seu
temperamento. Dentro dele, vivia um mundo, empenhado em
exteriorizar-se.
Conta-se que, desde criança, fora um observador atento da
natureza. O sofrimento o levou a ver as coisas e os homens,
não apenas pela amável face das aparências, mas no agudo
realismo de suas condições intrínsecas. Êle, que desejou
espalhar o bem entre os homens, fêz do semeador um dos tipos
constantes de sua obra. Porque tivesse volvido os olhos para as
entranhas do solo, pressentiu, a bem dizer, a anatomia da terra,
traçando, em seus quadros, os movimentos da
forma corno se fossem músculos da natureza, no anseio de
afirmar a sua vitalidade, através da consciência dos contornos.
Vê, em bloco. O efêmero, o acidental, o secundário, êle os
baniu da paisagem ou da figura. A visão global conduz à
construtividade. Van Gogh, em meio às suas alucinações, tem o
instinto da organização dos volumes e dos espaços; os planos se
colocam facilmente; uma estrutura bem urdida rege o quadro.
Por isso, em tudo mais, êle se permite as maiores liberdades:
despreza o acabamento, deforma as figuras, incen-deia o
ambiente. A deformação náo enfraquece, nem desfigura,
porque o quadro, além do mais, está composto .
A matéria, a côr e a luz desempenham, em sua técnica, o
mais relevante papel: êle persegue a matéria, orientando as
pinceladas segundo a direção essencial. Que será a direção
essencial? O sentido de profundidade. E' um novo valor tátil na
pintura. Talvez mais forte e realista que a falsa e positiva
perspectiva. A pasta tem um vigor excepcional. "Carregando o
pincel aplica-o em traços nervosos e vibrantes, espessos e
graciosos, de modo que cada mancha do pigmento ressalta em
relevo sobre a superfície da tela" (Swift). Procura atender a um
dos objetivos primordiais da pintura moderna, "tirar do próprio
instrumento e do próprio material uma valorização específica,
uma intensidade peculiar de efeito" (20). Os sentidos contra-
ditórios das pinceladas, em obediência à anatomia da
(20) S. Cheney, v. II, pg. 353.
natureza, por êle criada, enchem de movimento a paisagem:
são forças diferentes, disputando a visão do espectador. Essa
disputa dá, no fundo, a nota trágica (de luta) que as paisagens
vangoguescas encerram.
Lavedan realça a proeminência da côr na obra de Van
Gogh: "desprovido de intenções literárias, é um pintor puro e,
até na pintura, os valores não o interessam; somente a côr" (21).
O desenho, simplifica-se ao extremo. "Eu não procuro atingir
senão o essencial" (22). A côr tem, para éle, sentido novo e
peculiar: passa a ser "um elemento regulador de sua vida afe-
tiva", "remédio para seu mal", "o álcool em que acreditava
achar um derivativo" (23). O mestre proclama: "A côr, por si
mesma, exprime alguma coisa". Precursor do fauvismo. Os
sentimentos dispõem de correspondentes em sua paleta. O
amarelo representa a amizade e o amor. "Como é belo o
amarelo!" O vermelho e o verde traduzem as terríveis paixões
humanas. A paixão da côr envolve a da luz. Êle busca a luz, na
natureza ("E' no meio-dia que se deve instalar o atelier do
futuro", de Lautrec a Van Gogh), e na própria cor, tirando de
certas flores o ouro ardente do sol que êle tanto amou e quase
deificou".
Daí, resulta a intensidade vital de sua arte: matéria,
movimento (as estrias), côr, luz, volume, organização. Junte-se
a essa vitalidade técnica a qualidade individual de sua visão ou
seja sua visão peculiar e potente. Essa visão, que é estranha,
dispõe dos melho-
(21) Lavedan, vol. II, pg. 528.
(22) Cartas.
(23) M. RaynaJ, ''De Baudelaire à Bonnard'', pg. 65.
res recursos. Conseqüência: o inesperado de sua exposição. A
expressão, pessoal e subjetiva, é, ao mesmo tempo, ardente e
clara. Há brilho e há frescura em suas telas. Há alucinação e há
ordem. Há drama, vida, mensagem.
SINGULARIDADE
O sol de Aries — aquele meio dia que Van Gogh tanto
estimava interpretar e captar — realizou sobre o artista a
complementação de seu crescente processo de exaltação. Sol
ardente, que excita os nervos ultras-sensíveis do pintor. A
loucura progride. Aries, Auvers, as últimas etapas da vida
infeliz. O episódio da orelha que êle corta em si mesmo e envia,
embrulhada, como presente, a uma criatura; o incidente com o
amicissimo Gauguin, lançando-lhe ao rosto um copo;
finalmente, o suicídio (24) — são as manifestações culminantes
da loucura. Alternam momentos de lucidez, mas, mesmo em
plena alucinação, "nunca pintou melhor, com mais sensibilidade
e potência".
Suas cartas constituem a prova cabal da exuberância de
seu cérebro: "revelam um homem que pensa e coloca a vida
mais alto que a própria pintura" (25).
São objeto de uma edição monumental : "o sobrinho do
pintor, portador de seu nome, que devota a seu culto todo o
generoso fervor herdado de Theo, preparou para a data
centenária de 1953, uma reedição
(24) 1890.
(25) F. Fels, "Vida de Van Gogh", pg. 28.
monumental da correspondência, aumentada de numerosos
inéditos e de todas as recordações e de depoimentos diretos
recolhidos sobre Vincent" (26). A confissão das cartas, a
confissão da pintura extrovertem o mundo misterioso e
angustiado de Van Gogh. O destino o tornou louco, para que o
seu gênio pudesse caminhar sem as limitações convencionais
da cultura. E sua posição assume, com o tempo, a singularidade
de um artista. sem antecedentes e sem conseqüentes. Nada de
semelhante antes; nada de semelhante após (27). O crítico
francês desdobra o conceito: "Tal como Artur Rimbaud, nas
letras francesas, que é um poeta, acima e fora da literatura,
Vincent Van Gogh é, na pintura francesa (não encontrou êle
sua originalidade absoluta em Arlês-en Provence e em Auvers-
sur-Vise?), um gênio singular. fora e acima, êle também, de
toda pintura".
Os Van Gogh — Vicent e Theo, o gênio iluminado e o
coração exemplar — jazem um ao lado do outro em Auvers. O
irmão sobreviveu apenas alguns meses ao trágico
desaparecimento de Vincent. O destino, que os uniu tão
estreitamente em vida, avizinhou-os na morada derradeira.
Charles Terrasse os irmana pela posteridade afora: "na
admiração universal, seus dois nomes não fazem senão um".
A pintura vangoguesca traduz um dos temperamentos
mais estranhos da humanidade. Foi a mais bela e edificante
reação de espirito criador contra as
(26) Jean Leymarie, "Van Gogh", pg. 5.
(27) Gustave Coquiot, "Les Indeps", pg. 74.
amarguras de uma existência. Mais que a técnica, ful-gura a
vitalidade excepcional de uma alma. Recorda Maurice Raynal a
sentença, lacônica e justa, de Cézanne sobre Monet, o mágico
colorista do impressionismo: "Não é senão um olho, mas que
olho!". E acrescenta, com relação ao holandês: "Não é senão
uma alma, mas que alma!" (28).
28) M. Raynal, ob. cit., pg. 63.
ÍNDICE
GOYA ...................... ........................................................... 3
O ALEIJADINHO ................................................................ 18
VAN GOGH ........................................................................... 34
Departamento de Imprensa Nacional
Rio de Janeiro — Brasil — 1953
OS CADERNOS DE CULTURA
Direção de José Simeão LI
1 —JOSÉ JANSEN ....................................... A máscara no culto, no teatro e na
tradlçao
2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e
THOMPSON ......................................... José Lins c!o Rego
3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores
4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-
DRADE ................................................... Viola de Bolso
5 —Lúcio COSTA ...................................... Arr-ultetura Brasileira
6 — Lúcio COSTA ..................................... Conílderações sobre a Arts Contem-
porânea
7 — PAULO MENDES CAMPOS .................. Forma e expressão do Soneto
8 — DJACIR MENESES .............................. Formação profissional do Advogado
9 — H. VON KLEIST ................................. Teatro de Marionetes
10 — ANTÔNio CÂNDIDO .......................... Monte Cristo, ou da Vingança
11 — Luis COSME ........................................ Músico e Tempo
12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... Miro
13 — OTÁVIO DE FARIA ............................... significação do Far-West
14 — SANTA ROSA ..................................... Roteiro de Arte
15 — SANTA ROSA ..................................... Teatro. Realidade Mágica
16 —JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Teatro de Cervantes
I" — JOSÉ CARLOS LISBOA ......................... Isabel a do Bom Gò?»o
18 — GÍLBERTO FREYHE ............................. José de Alencar
19 - CLAriSSE LisPECTCR .......................... Algun.' C
2J — MARIO PEEROSA ............................... Panorama da Pintura Moderna
21 —ROSÁRIO FUSCO ................................. Introdução à . Esteuca
22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................ Realidade e Ficção
23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar
24 — LEDO Ivo ......................................... Lição de Mario de Andrade
25 - Eugênio GOMES ......................... o Romancista e o Ventriloquo
26 - José LINS DO REGO ................................ Homens Seres e Coisas
27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. DE VÁRIAS Províncias
28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura
29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Colonial
30 — MANOEL DIÊGUES JÚNÍOR ... Etnias e Cuturas no Brasil
31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no tempo
(Continua na 3° pág.)
RUBEM BB \(. \
TRÊS
PRIMITIVOS
M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E SAÚDE
SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO
NOTA
PENAS três "primitivos" brasileiros estão reunidos aqui
: o velho Cardosinho, de um gosto "suburbano", pequeno
burguês salvo por uni curioso surrealismo, que vem
ùnicamente da composição, o sambista negro Heitor dos
Prazeres, pintor desse mundo de operários e malandros onde
nasce o samba do Rio, e o caipira paulista José Antônio da
Silva, intérprete de temas exclusivamente rurais.
Seria possível ter acrescentado outros, como o So-i-za, de
Itanhaém, e o velho Luís Soares, do Recite, em sua última fase,
e mais alguns. Há, ainda, artistas que oscilam em zona
intermédia e evoluem em uma direção ou outra quando não
involuem. As limitações naturais de um tal trabalho reduziram
nossa escolha. De cada um fizemos uma sucinta biografia,
baseada em informações 6 no conhecimento pessoal que, em
grau menor ou maior, temos ou tivemos dos três.
Deixamos de lado qualquer exame técnico da obra desses
três homens, o que estaria, de resto, fora de nosso campo.
Apenas procuramos dar aos seus quadros, aqui reproduzidos,
o fundo de uma vida e ambiente que são, afinal, zonas
legítimas da realidade e do sentimento
brasileiros. E ficamos humildes perante esses artistas humildes
que talvez possam, em sua ingenuidade, dar lições úteis a
todos. Falta-lhes a sabedoria sem a qual não se faz grande
arte. Mas eles nos emocionam e nos ensinam a ver com olhos
mais puros este mundo de Deus, tão belo e tão triste.
O VELHO CARDOSO
B
RASIL tem muitos pintores, mas, pelo menos até há
pouco, o único representado na Galeria Tate, de Londres, não
chegava a ser um pintor : era um fazedor de quadros. Um
compositor, se assim preferirem.
Não vai nisso nenhum desprezo pela arte de José Bernardo
Cardoso Júnior, o velho Cardosinho. Sua arte de jogar com as
tintas é primária; seu desenho é o de um escolar que não tem
pendor para o desenho. E mais: êle raramente busca seus
motivos na natureza. Prefere chegar a e!a indiretamente. Serve-
se de fotografias ou gravuras que recorta em velhas revistas e
álbuns. A velha fotografia de uma artista de cinema o interessa
mais que a jovem que passa sob a sua janela. Tem um gato em
casa; mas prefere copiar o desenho de um gato que viu em um
anúncio de fios de lã. Quis fazer um auto-retrato diante do
espelho, e não fêz. Pegou uma fotografia velha de si mesmo e
fêz assim o esplêndido auto-retrato vinte anos mais moço. Não
tem qutetlquer imaginação plástica, e a despreza.
Apesar de tudo isso, Cardoso fêz quadros que ninguém
sonharia — e que fazem sonhar. Vamos ver um
desses quadros. Chama-se "Vai haver barulho" — e logo vos
direi porque tem esse nome. E' a moça que pensa isso, olhando
o gato que ameaça brigar com o cachorro. Essa moça, por
menos que o pareça, foi tirada da fotografia de uma artista de
cinema americana que êle viu numa revista e achou bonita. Os
dois gatos e o cachorro foram inspirados diretamente em
gravurinhas que êle recortou de revistas velhas. Para pintar a
Baía de Guanabara, que aparece ao fundo, Cardoso não se deu
ao trabalho de pegar um bonde e ir à Avenida Beira Mar :
copiou de uma fotografia. Quanto às borboletas, êle não copiou
de livro nenhum. Comprou as borboletas, espetou as na parede
e pintou-as. A maior custou-lhe 3 mil réis — é o que me
informou.
A mesa, a coluna — e com esses elementos o velho
Cardoso, aos 82 anos, criava um mundo novo. E' um mundo de
sonho de infância, cheio de pureza e de luz.
Pintou, dos 70 aos 86 anos, cerca de 600 quadros, dos
quais a grande maioria sem o menor interèsse e alguns de um
emocionante lirismo plástico. Declarou uma vez que a arte é
uma cópia da natureza. A gente copia a natureza "mas bota nela
uma coisinha'\ Essa "coisinha" fêz do velho Cardoso um
inocente surrealista lírico.
José Bernardo Cardoso Júnior (1861-1947) nasceu em
Coimbra, Portugal, de pai brasileiro e mãe portuguesa — o Dr.
José Bernardo Cardoso e Dona Matilde Augusta Estrada da
Silva Cardoso. Veio para o Brasil
aos 3 anos de idade, e foi morar em Valença. Passou depois
para Rio Bonito, onde esteve na escola durante dois anos.
Aos 9, 10 anos, mudou-se para Cabo Frio.
Em 11 de agosto de 1873 o patacho Feliz União foi
abalroado pelo paquete francês Bourgogne. Nesse naufrágio
morreu uma senhora que vinha de Cabo Frio para o Rio de
Janeiro com três filhos e uma filha. Das crianças só se salvou
uma — um garoto de 12 anos — que conseguiu ficar agarrado
a uma tábua das 8 da noite até a 1 da madrugada. Cardoso me
contou que um jornal da época publicou a notícia com os
títulos: "Naufrágio de um navio — A coragem de uma
criança". E acrescentou: "a criança era eu. . . ." Também disse,
talvez com certa satisfação, que o navio francês que pôs a
fundo o patacho acabou naufragando anos depois . . .
Cardoso estudou no Seminário São José, do Rio
Comprido, durante três anos. Em 1877 foi para Roma, ende se
matriculou na Universidade de Pontificia Gregoriana. Já era
bacharel em Filosofia quando "perdeu a vocação". O motivo
imediato disso foi uma jovem romana morena, vizinha do
internato. Cardoso não lhe sabe o nome, e ela nunca soube do
caso. De sua janela êle nem sequer tentou se corresponder por
sinais com n morena que via à distância Mas a visão da moça o
roía por dentro, e êle acabou dizendo ao seu confessor "que
achava que daria era um bom pai de família".
Voltando para o Brasil, foi professor de latim e francés
no Ateneu Mineiro de Juiz de Fora, e professor primário no
Colégio Amorim Carvalho, no Rio.
Casou-se em Paraíba do Sul, aos 27 anos de idade, com Dona
Felisbela Peixoto. Vieram os dois morar no Rio, e ambos se
formaram na Escola Normal de Niterói. Êle foi inspetor escolar
em Campos, e professor do Colégio Batista, do Rio.
Chefe de uma família feliz, formou um filho em
Medicina e três filhas na Escola Normal.
Aos 70 anos, aposentado, começou a fazer uns
quadrinhos para matar o tempo. Dois pintores o animaram :
Portinari e Fujita. Este trocou um de seus gatos por um quadro
do Cardosinho.
"— È!e gcostou tanto do quadro que eu dei para êle.
Depois fiz um outro igualzinho, e vendi. Já fiz mais dois
iguais".
Isso o velho me contou quando passei uma tarde
visitando-o. junto com Augusto Rodrigues, na garage de sua
casa, que éle transformou em "atelier", em 1947. O quadro
representa um assassinato em uma canoa, no rio Araguaia. As
cores são do Cardosinho; o desenho, êle me mostrou, foi
copiado de um jornal velho, um jornal de 20 de março de 1927,
El Telégrafo, de Buenos Aires. Ilustra a notícia de um ''crime
dos asseclas de Borges de Madeiros, o bárbaro assassinato de
Pedro Arão". Cardoso acrescentou uma lua — e uma cabeça
decepada. . . Para copiar. o desenho, qua-driculou-o.
Cardoso deixou inéditos um livro de poesia, onde há
poemas dedicados ao marechal Floriano Peixoto
e a Bidu Sayão, e um romance. Não creio que tenham qualquer
importância. Os quadros que, sem saber desenhar nem pintar,
esse homem suave e bom compôs na velhice é que são, às
vezes, tocados de uma graça inefável.
Como se um anjo guiasse sua mão trêmula. . .
HEITOR DOS PRAZERES
EiTOR
DOS PRAZERES (com esse belo nome, comparável
ao de um outro negro carioca, Domingos da Guia), nasceu em
1898 na Cidade Nova, filho de Dona Celestina Gonçalves
Martins e Eduardo Alexandre dos Prazeres.
O pai era marceneiro e tocava clarinete e caixa na banda
da Polícia Militar; o filho herdou o ofício e o ouvido do pai.
Aprendeu o ofício de marceneiro e carpinteiro, mas se
especializou como polidor de madeira — "enversizador
técnico", para usar uma expressão sua. Apesar de trabalhar
desde os 7 anos foi, devido a más companhias, preso aos 13
anos como vadio e passou dois meses na Colônia Correcional
da Ilha Grande.
Cresceu entre a Praça Onze e o Mangue, que naquele
tempo "era simplezinho" e onde "choromingavam os primeiros
choros dos carnavais cariocas" e os "sambas da ti Ciata". Se o
poeta Manuel Bandeira andou em 1910 ouvindo os sambas da
Tia Ciata é capaz de se lembrar de um negrinho magro, muito
limpo e muito bem vestido, com uma cabeça curiosamente
talhada,
as orelhas muito miúdas e presas ao crâneo; numa delas pendia
o cigarro aceso enquanto tocava cavaquinho, ou na hora de
esticar o braço para aceitar uma dose de cachaça.
Mais para o Norte tudo era considerado roça ("Houve
tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do que todas
as Meritis da Baixada"), quase ninguém morava nos morros, o
Mangue era família, e Heitor saía com seu cavaquinho num
choro para fazer serenatas. Ia inventando músicas e letras que
às vezes outros repetiam e cantavam. Surgiam os ranchos, a
princípio simples, com suas fantasias feitas às escondidas nas
casas das famílias, cada um inventando sua roupagem de
príncipe, com veludo, e brocados de ouro, sapatos de entrada
baixa, depois enormes, caros, necessitando livros de ouro, com
enredos de histórias bíblicas e medievais, rainhas de Sabá, reis
de França e Cupidos.
Sinhó era pianista ("pianeiro") no "Congresso" da Praça
Onze, a Polícia ainda perseguia os violeiros, a gente que vinha
do Norte começou a morar nos morros para onde fugiam os
perseguidos, os ritmos da roça se misturavam com os sagrados
e profanos das cidades, e na festa da Penha eram lançadas as
músicas que depois dominariam o Carnaval.
Quando começaram a ser gravados discos, Heitor dos
Prazeres ouviu, um tanto alteradas, duas músicas suas gravadas
como o nome de Sinhô. Procurou-o para brigar, mas o outro
disse: — "Heitor, eu não sabia, que isso era seu ou de quem, eu
peguei isso no ar como um passarinho" e se ofereceu para
pagar a êle. Um dos sambas era "Ora vejam só" em que êle se
queixa da
'mulher que eu arranjei" e que "me faz carinho até demais",
samba composto quando voltou a casa em que vivia com sua
amiga depois de sumir uma semana em farras e serenatas. O
outro era "Gosto que me enrosco" em que nos previne que
"não se deve amar sem ser amado, é melhor morrer
crucificado. . ."
Assim de cavaquinho em punho, Heitor atravessou toda a
fase heróica do Carnaval, depois quando ficava sem dinheiro
arrumava um samba e ia vender para o generoso velho Figner
na "Casa Edison", Rio de Janeiro", como diziam os
gramofones, e como o gerente reclamava que êle fazia sambas
demais, dava os sambas para outros irem vender como se
fossem seus. ficava lá fora esperando para dividir o dinheiro.
Êle ajudou a fundar as primeiras escolas, na Portela e na
Estação Primeira da Mangueira, compôs a "Canção do
Jornaleiro" lembrando os tempos de moleque em que, às vezes,
pegava uns jornais para vender, e que depois veio ser
inspiração musical do movimento de proteção aos jornaleiros.
Uma vez se encontrou com Noel Rosa, e Noel perguntou o que
êle tinha para o Carnaval. Batendo na caixa de fósforos dentro
do bolso começou a resmungar uma marchinha que tinha na
cabeça: "Um pierrot apaixonado. . . que vivia só cantando..."
Os dois ajeitaram a segunda parte, e a música de parceria
atravessou vários Carnavais. Compôs "Mu'her de malandro",
"Deixaste meu lar", "Progresso" (por ocasião da revolução de
30). "Lá em Mangueira", "Tristeza", "Nossa Separação",
"Desperta Dodô". . .
Depois de muitos amores casou, teve seis filhos, (fora uns
dez que teve antes e depois, pois hoje em dia é até vovô), levou
o samba a Montevidéu e jamais pensava em pintura. Foi em
1937 que começou a fazer uns quadrinhos "para enfeitar a
parede". O jornalista e desenhista Carlos Cavalcanti o
estimulou, disse que êle tinha jeito; suas primeiras aquarelas
ficaram com Vicente Leite. Começou a fazer uns óleos muito
escuros.
Hoje é funcionário do Ministério da Educação, onde um
arquiteto inteligente, Jorge Ferreira, lhe deixa tempo para
pintar, e é ritmista da Rádio Nacional. Ganha pouco, tem
mulher e uma filharada, mas sempre bem vestido, com os
paletós desenhados por êle mesmo, bolces nos bolsos,
invariavelmente limpo e correto, como um "gentleman negro"
que tivesse, como tem, um "Método de Cavaquinho".
Em uma das suas letras de samba Heitor diz à amada :
"meu amor por ti são flores, tudo flores naturais". Sua pintura é
uma flor natural de seu samba e de sua vida, de seu meio e de
suas mulatas de quem êle desenha com amor todos os
dentinhos brancos. Se às vezes exprime algum drama social,
como "Os refugiados" em que aparece a gente pobre
carregando seus trastes, expulsa do barraco de uma favela
qualquer, ou uma reivindicação racial, como naquela sala de
jantar em que uma família preta é servida por uma copeira
branca, quase sempre reflete momentos amenos da vida da
gente do samba, não bem a de hoje, mas os do tempo já antigo,
em que para além de São Cristóvão o Rio de Janeiro era muito
rural.
Esse homem que começou a pintar quarentão conta em
suas telas, muitas vezes, recordações da vida, e me disse que o
quadro que fêz da Praça Onze no Carnaval, e que vi na casa de
Carlos Drummond de Andrade, já fêz depois que a Praça Onze
não era mais assim. Como em tanta música urbana (vide
Catuío), há em sua pintura, às vezes, uma ressonância da roça
em que êle nüfcca viveu, luares de sertão e frisos de cana de
açúcar, caboclas do mato; assim é mais fiel à sua cidade, cujo
sentimento rurai os pobres que vêm vindo renovam sem cessar,
e mesmo um homem nascido na Cidade Nova ainda é no
Brasil, como somos todos, uns vagos exilados do país
"essencialmente agrícola".
Se há um homem que não precisava ser pintor era esse,
cuja vida e amores já conta de maneira tão boa em outra arte,
mas sua imensa riqueza interna veio ganhar na pintura uma
expressão irmã do samba, e seria fácil reconhecer o ritmista na
composição dos quadros, o "envernizador técnico" no seu
acabamento caprichado, o boêmio nos motivos malandros que
o inspiram. Êle não faz pintura "do Partido Alto", para deleite
dos ricos, nem trás para a tela as cenas das macumbas e
candomblés que freqüentou, apenas conta essa vida solta e
heróica de cavaquinho na mão e cachaça e mulata, sua vida de
seresteiro e trovador de muitas conquistas "não pela cara que
tenho, mas pela conversa que eu sei fazer".
Sua arte é, porisso, como êle mesmo, uma expressão
legítima de um Rio de Janeiro atrapalhado e saboroso a que a
miséria nunca pôde tirar o gosto intensissimo da vida.
O PINTOR SILVA
M Sales de Oliveira, na zona da Mogiana, no interior de
São Paulo, o dia 12 de março de 1909 amanheceu com pássaros
gorgeando e galos cantando, a saudar o sol daquela bonita
manhã — a acreditarmos no depoimento de uma testemunha,
que entretanto náo estava em boas condições para perceber as
coisas.
Quem nos descreve essa manhã é a pessoa que leva
"belíssimo nome" (conforme êle mesmo diz) de José Antônio
da Silva, que no livro "Romance de minha vida", editado pelo
Museu de Arte Moderna de São Paulo, conta assim o seu
nascimento.
Sua mãs era Dona Brasilina Custódio da Silva; o pai,
Isaac Antônio da Silva, era carreiro de profissão, trabalhador
"nos serviços mais pesados da vida e mais perigosos"; o
menino, naturalmente, logo que teve algum entendimento foi
ser "candieiro", puxando seis juntas de bois, que eram (êle
ainda se lembra, 30 anos depois) Manijo e Prateado, Pacote e
Balão, Negrinho e Rolinha, Bordado e Invejoso, Despacho e
Dobrado, Violento e Moreno.
Tombos de cavalo, mordida de cobra, judiação com
bichos, reinações de toda ordem êle sofreu e fêz na
infancia na roça. A primeira viagem de trem, em que teve
medo do chefe que cobrava as passagens, porque estava
vestido de caqui e portanto parecia um soldado da polícia;
médo da velivi doida e do bandido Jacó Bravo que fazia
tiroteios. O pai mudava de fazenda, o menino ia debaixo do sol
quente levar comida para êle na roça, a família inteira pegou
amarelão. Depois, emburra fazenda saía às 5 da manhã, com
um carrinho de leite, distribuía o leite na cidade, depois
amarrava o animal na sombra de uma mangueira e ia para a
escola. Depois voltava sozinho as três léguas levando os
oitenta litros vazios, a noite ia escurecendo, êle tinha medo da
estrada deserta.
Dtpois o pai, em outra fazenda, tirou o menino da escola
porque o serviço era muito e lhe pôs uma enxada na mão. O
irmãozinho morto e incendiado pela vela que tombou. O pai
devendo à fazenda no fim do ano de trabalho duro, nova
mudança, mais três meses de escola, depois outra vez o
trabalho na roça, levantando às quatro da manhã, indo para o
serviço tiritando de frio. descalco e em mangas de camisa,
outras crises de impaludismo, e pelos 16 anos as longas
caminhadas para ir a um baile no povoado. Então o menino se
separa do pai, vai trabalhar sozinho em outra fazenda e começa
sua peregrinação que é a de todo trabalhador rural brasileiro,
de fazenda em fazenda, de miséria em miséria.
Aqui está êle derriçando café a oitenta réis o pé,
dormindo sobre sacos de estopa, ameaçado de morte pelo
fazendeiro cuja filha começou a namorar; aqui está
cavocando terra com enxadão, pegando em dormentes e trilhos
na construção de uma estrada de ferro, ganhando 7 mil réis a
seco, das seis da manhã às seis da tarde, com quarenta minutos
de intervalo para o almoço e trinta minutos às duas horas da
tarde. Aqui passa fome e dorme entre imigrantes lituanos. Aqui
vende sua conta no armazém da Estrada pela metade do
dinheiro. Aqui está de terno de roupa branca, gra-vatinha
borboleta e sapato de bico fino "'sistema almofadinha" em uma
festa da cidade; aqui trabalha no balcão da vendinha de "seu"
Andreucci, aqui tem sua grande paixão por Lica Castabalate,
aqui joga futebol, aqui derruba mato e faz queimada, aqui se
encontra com uni lobisomem na estrada à meia noite, aqui se
junta com uma moça e tem uma filhinha que morre com trinta
dias de nascida, e trabalha numa turma de camaradas a 5 mil
réis a seco, e se separa da mulher, e foge com outra moça,
depois se casa com ela e começa a ter filhos, e começam a
trabalhar em outra roça, e depois carrega cana na moenda, num
engenho tocado a vapor, cs ombros inchados, recebendo em
lugar de dinheiro um papel branco chamado "ordem", depois
passa a ser meladeiro, depois trabalha na evaporadeira, depois
como ajudante de alambiqueiro, depois de bagaceiro, depois
foguista de vapor. depois nas Jorras, tudo trabalho de engenho
de açúcar.
Em 1934 é nomeado meseiro de eleição, depois, como o
patrão ganhou a eleição, arranjou um emprego na Prefeitura,
depois o patrão o chama outra vez para c engenho, tem uma
encrenca em que fere um homem, é preso e processado, o
patrão consegue tirá-lo, depois
quer que êle volte para trabalhar nas dornas, depois fica na
cidade sem emprego uns seis meses, vai para uma fazenda,
depois para uma chácara trabalhar num brejo, depois para outra
chácara, depois para outra fazenda, depois para outra, onde
ganha seis mil réis por dia, e carpe café com mato da altura de
um homem a 20 mil réis por mil pés, e ainda vai trabalhar em
mais duas fazendas, junto com a mulher, depois vai ser
ajudante de campeiro, depois trabalha na máquina de beneficiar
café, depois vai ser carroceiro. . . E já cheio de filhos e cansado
de andar de fazenda em fazenda fica uns tempos na cidade do
Rio Preto, está doente do coração e é porteiro da noite em um
hotel, vê um vitral numa igreja e tem vontade de pintar, pega
um pedaço de flamela, compra umas tintas e faz uns quadros.
O leitor deve estar cansado nessa enumeração, aliás muito
incompleta, dos empregos de José Antônio da Silva, que até
angariador de auxílio para um Centro Espírita êle foi. Assim,
entretanto, compreenderá melhor o caso que lhe sucedeu
quando tinha 37 anos de idade, ganhava 235 cruzeiros por mês
e pagava 150 de aluguel por uma casinha em que morava com
a mulher e cinco filhos : com os dois metros de flanela que
comprou fêz três quadros e sabendo que ia haver em Rio Preto
uma exposição de pintura a que todo mundo podia concorrer
mandou esses quadros.
Do júri faziam parte dois críticos de arte de São Paulo,
Lourival Gomes Machado e Paulo Mendes de Almeida. Não
conseguiram fazer com que o primeiro lugar coubesse ao Silva,
mas o animaram e tempos depois êle fazia, na Galeria Domus,
de Fióca, em São
Paulo, uma exposição em que vendeu todos os quadros e
ganhou vinte contos. Desde então vive principalmente de
pintura, foi a São Paulo, viu o mar em Santos, fêz exposição
no Rio de Janeiro, no Ministério da Educação.
Pela primeira vez no Brasil um traba'hador rural conta sua
história em um livro e em pintura. Aí começa o grande valor
desse caipira paulista muito branco, de cabelos castanhos e
olhos castanhos, quieto e des-cunfiadíssimo. Seu desenho é
ingênuo, êle não conhece perspectiva, mas descobre os
milagres simples da composição e tem um senso de cores
notável. Se um excessivo êxito levou alguns críticos do Rio a
tratar o Silva com severidade, como se êle fosse um artista
erudito, ninguém pode negar suas qualidades plásticas a
serviço de uma sensibilidade perfeitamente caipira.
Trechos de uma carta sua: "Volto para meu can-tinho. . .
pintarei muito devagar e com muita atenção. . . pintarei sempre
o que eu gostar e achar que para mim esteja certo. . . porque eu
pinto para me agradar, e me curar de mágoas passadas. . . eu
pinto por distraimento e por umas recordações do meu tempo
de criança. . . não tenho vaidade pelo dinheiro porque já estou
acostumado a viver sem êle..."
Nem todos os pintores de escola poderiam — hélas!
dizer essas mesmas coisas que saem da alma do caipira Silva.
REPRODUÇÕES
CIRANDA — Heitor dos Prazeres
VASO DE FLORES José Bernardo Cardoso Junior
PÃO DE AÇÚCAR — José Bernardo Cardoso Junior
ENSAIO — Heitor dos Prazeres
SAMBA DISCRETO Heitor dos Prazeres
Morro - Heitor dos Prazeres
O HOMEM DO BURRO - Heitor dos Prazeres
SAMBA NOTURNO — Heitor dos Prazeres
CHOPANA Heitor dos Prazeres
A MULHER DO POÇO - Heitor dos Prazeres
FAZENDA MODERNA — José Antonia da Silva
CAVALO NO CERCADO - José Antonio da Silva
PEÃO REZANDO PARA NÃO CAIR — José Antonio da Silva
CARNEIRINHOS EM BAIXO DA CHUVA — José Antonio da Silva
CENTRO ESPIRITA - Jose Antonio da Silva
OS CADERNOS DE CULTURA
Direção de José Simeão Leal
1 — JOSÉ JANSEN ...................................... A máscara no culto, no teatro e na
tradição
2 — ALVARO LINS, CARPEAUX e
THOMPSON ......................................... José Lins do Rego
3 — PAULO RONAI ..................................... Escola de Tradutores
4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-
DRADE .................................................... Viola de Bolso
5 — Lúcio COSTA ..................................... Arquitetura Brasileira
6 — Lucio COSTA ..................................... Considerações sobre a Arte Contem-
poranea
7 — PAULO MENDES CAMPOS .................. Forma e expressão do Soneto
8 — DJACIR MENESES ............................... Formaçáo profissional do Advogado
9 —H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes
10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................ Monte Cristo, ou da Vingança
11 — Luis COSME ........................................ Música e Tempo
12 — JOÃO CABRAL DE MELO ...................... Miró
13 — OTÁVIO DE FARIA ............................... Siguificação do Far-West
14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte
15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica
16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... Teatro de Cervantes
17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... Isabel a do Bom Gosto
18 — GILBERTO FREYRE ............................. José de Alencar
19 — CLARISSE LISPECTOR ......................... Alguns Contos
20 — MARIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna
21 — ROSARIO FUSCO ................................ Introdução à Experiência Estética
22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................. Realidade e Ficçáo
23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar
24 — Lino Ivo ........................................... Liçáo de Mário de Andrade
25 — EUGENIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventriloquo
26 — JOSÉ LINS DO RECO ............................ Homens, Seres e Coisas
27 — OTÁVIO TAHQUINTO DE SOUSA .. De várias Províncias
28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura
29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Colonial
30 — MANOEL DIECUES JÚNIOR .... Etnias e Culturas no Brasil
31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo
32 — OSWALDINO MARQUES ....................... O poliedro e a rosa
33 — FERNANDO SABINO ............................ Lugares comuns
34 — PERICLES MADUREIRA DE PINHO Notas à margem do problema agrário
35 — VITORINO NEMESIO ............................. Portugal e o Brasil na História
36 — WILLY LEWIN .................................. Ensaios de Circunstâncias
(Continua na 3
a
pág.)
ADONIAS F I L H O
JORNAL DE UM
ESCRITOR
MI N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA
S E R V I Ç O D E DOCUMENTAÇÃO
Retira o A., do "Jornal" que vem
escrevendo há muitos anos, estes
fragmentos. Intencionalmente, e por
razões que não deseja discutir, divulga
apontamentos críticos relacionados com
livros e escritores estrangeiros.
1943, janeiro, 5 — Relendo "Don Quixote de la
Mancha", nãc como um leitor em disponibilidade, mas como
um aluno interessado em aprender, com Cervantes, o
mecanismo da aplicação da aventura. Detenho-me, sem pressa,
sobre os episódios. E, à proporção em que os examino,
convenço-me da observação de Menéndez y Pelayo :
"Cervantes fué hombre de mucha lecturas". Vejo-o lendo a
"História dei invencível cavallero don Polindo" ou "La
Crônica de los nobles cavalleros Ta-blante de Ricamonte e de
Joíre" — vejo-o sobretudo inspirando-se em si mesmo, em sua
vida agitada transfigurando o próprio destino. Guerreiro,
escravo, poeta, Cervantes não deixa dúvida quanto a Don
Quixote.
1943, janeiro, 10 — Curioso como um dos lados mais
obscuros da estante obriga-me a reexaminar os livros, uns sobre
os outros, desarrumados. Sim, são os livros de Marcel
Jouhandeau. E' um romancista, o meu grande romancista
Jouhandeau. Nenhum outro conheço tão insensível como a
própria morte. Homem rude e trágico, de frieza de gelo, que
inunda porém o seu drama com um sopro que se diria de febre.
Inson dável e distante, quase sem nervos e sepulto de alma.
esse Jouhandeau — perdido no inferno e nas fantásticas trevas
— talvez silencie agora definitivamente.
Contenham-se, neste instante, quando a noite começa a
crescer, as suas insatisfações. Imobilize as mãos cansadas de
procurar, sobre as criaturas, o limite e a medida da eternidade e
da vida. De resto, nele as mãos se tornam inúteis. Tateiam no
vazio como se as coisas do mundo escapassem e fugissem. Em
verdade; a predição metafísica dos castigos e das penas, a
aflição que parece aguardar enquanto rolam os minutos de cada
dia, êle como que as sente sobre a carne viva e o coração que
lateja. E' possível que isso o aterrorize. Amedronte-o como a
violência amedronta os tímidos. E também é possível que nasça
desse temor, dessa força que no fim é uma recusa à própria
timidez, a fria indiferença que o reveste com uma
insensibilidade de rocha. Surge, então, o místico. Já não é mais
o homem, o cego porém que perdeu a luz porque desejou ver
em excesso. Condenado que transpôs as fronteiras proibidas.
Deus é a sua obcessão.
O conflito não é com o irmão, o amigo, ou a humanidade
de todos os semelhantes. Êle mesmo escreverá: o conflito é este
entre Dieu et moi. E se faz um perverso, um bruto de maldade,
um possesso que escreve livros onde só há poeira e sombra.
Livros sem claras nuvens e sem sol, onde o vento passa como
uma música capaz de enlouquecer e matar. Julga-se quase um
senhor dos homens e das mulheres. Alguém capaz de deformar
as crianças. Sim, Marcel Jouhandeau desejaria ser Deus — ser
Deus por um momento para nos recusar a vida ou nos entregá-
la de um modo ainda mais incompreensível e trágico. Mas,
como não o consegue,
à semelhança de um demônio batido, foge da própria carne e se
exila no sonho e na loucura, e não teme confessar que prefere o
fantasma ao homem, o duende ao sangue.
Agita-se em ânsia, como Dostoievski, tentando com-
preender o extraordinário tema da liberdade. O seu "Monsieur
Godeau intime" caminha nesta direção. Não sabe, entretanto, o
que seja recuar. Enfrenta os perigos, desconhecendo o tempo e
a memória, as fraquezas e os tumultos das paixões, dando-nos
essa impressão de liberdade que os pequenos peixes devem
sentir entre os vidros de um aquário. A liberdade completa —
dir-nos-á nos contos de "Astaroth" — só se consegue através
da fuga. A grande fuga dos suicidas, das mulheres
envergonhadas que procuram conservar no vício as últimas
alegrias.
Detenho-mt, as mãos sobre os livros empoeirados. Entre
eles — percebo agora — está a "Introduction a une mystique
de Venier", de Claude Mauriac. Lembro-me que nos fala de
Rimbaud como o maior predecessor do romancista. Procura
irmaná-lo a Gide. Também a Nietzsche. Mas, dentre todos,
apenas Berdiaeff não receou chamá-lo gênio.
Afasto-me, a cabeça descida, e a mim mesmo digo que
Marcel Jouhandeau é um homem sozinho, insensível como o
deserto, sobre o qual podemos arremessar os nossos grites e
bater com os punhos fechados. Não recuará um passo e nem os
lábios moverá numa palavra. O mármore talvez seja mais vivo
—- e apenes a morte, em verdade, poderá ser tão insensível
como êle.
1943, Janeiro, 28 — Charles Dickens sabe que a criança
jamais perece dentro de nós. E tenho a confirmação nesse "A
Christmas Carol" ("A Ghost Story oi Christmas") que leio
como um prolongamento do Natal que acaba de passar. A
conversão de Scrooge é uma extraordinária lição. Mais uma
vez, como diria Chesterton, estamos em face da "natural human
dignity of the poor". Franciscano sem hábito, certo do êxito da
sua peregrinação e convicto da irmandade da justiça e das
lágrimas. Dickens não compreende a bondade sem o pranto,
sabe que a humildade é mais forte que a força, não esquece que
nem todas as velas se apagam ao primeiro sopro. Outro
qualquer não distinguiria, corn sua espontaneidade, a invencível
presença da criança no fundo da nossa tragédia comum. O
fantasma de Marley leva-me aos vivos : Copperfield Twist,
Peg-gotty, o bom Micawber.
1943, fevereiro, 3 — Novamente sobre a mesa o
problema da poesia. Inutilizei, sem que ao menos soubesse
porque, todas as anotações feitas nos últimos dias. Mas o
problema se impõe, inflexível. E volto a pensar em um lógico
por vocação que me interrogasse :
— Para que a poesia ?
A pergunta encerra toda a condenação ao ilogismo.
Repressando os termos compreensivos, dispensando a
impressão objetiva, eliminando a significação na linguagem,
desprezando a relação inteligível, sacrificando o conceito e a
imagem — destruindo, em resumo, a lógica
formal —, os poetas modernos, em um grupo reduzido, outra
coisa não feriram senão a poesia em sua própria constituição. O
acontecimento, em parte decorrente do abstracionismo plástico,
a êle não se identifica em virtude de sua natureza verbal. Ao
contrário do pintor e do escultor que visualizam a forma e
dispõem naturalmente da côr e do relevo, o poeta conta apenas
com um veículo de expressão que é a linguagem. O instru-
mento lírico é a palavra em seu esforço de representação.
Deformando esse instrumento, impedindo-o de organizar
em conceitos as noções abstratas, creio ser impossível discutir
a conseqüência : anulou-se a poesia como valor racional, "un
ordre logique". Extinguiam-se simultaneamente o pensamento
e a imagem. Perdida a ideação, abrindo nova freqüência em um
mecanismo antipsicológico e meramente auditivo (como era
meramente visual uma parcela do abstracionismo plástico). o
que se tornou inevitável foi a poesia despir-se também da
reação afetiva e, efeito imediato, da própria sensibilidade.
Intelectualizou-se, sem a menor dúvida, em função do vazio. E
o mais impressionante, nesse divertimento inteligente, é a sua
dinâmica.
Movendo a máquina de hermetismos, trabalhando matéria
impermeável à análise — a estrutura verbal nua de logicidade
— começa por negar o conhecimento instintivo
(Dwelshauvers) e fugir à intuição bergsoniana. Afastado esse
ponto convergente indispensável a qualquer artista, sobretudo
um poeta, termina por esterilizar-se numa espécie de
composição sem nexo. Isolando o poeta, sua audiência
começando e termi-
nando em si mesmo, elimina por outro lado a comunicação. A
poesia é bem uma onda insintonizável, à margem da linguagem
convencional, sem a menor possibilidade de repercussão. O
"puzzle".
Essa dinâmica, a meu ver, produz um estado anti-poético
porque se traduz numa manifestação ilógica. Não rjá o
encadeiamento que concretiza a figuração mental. Ausentam-se
os elementos de fixação. E, o que é mais grave, falta ao verso o
lastro perceptivo — a linguagem poética, simbólica ou não,
escapando à sistematização que resulta inevitavelmente da
"lógica social". O ato poético, em conseqüência, será factual.
Estão sepultas as bases residuais que robustecem os dados
lógicos e conceituais.
1943, fevereiro, 10 — A determinação foi tomada há
muito tempo: leitura obstinada, regular, diária, dos modernos
romancistas dos EE. UU. Cumprindo-a. posso dizer agora que
conheço Theodore Dreiser na inti-timidade. Jamais será um
reformador, não será também um professor de moral pública.
Homem feito pela vida, lutando desde criança, não conseguiria
apreender as coisas do mundo senão através dos próprios olhos.
E é bem esse encontro, quase um choque com a realidade, que
afasta dos seus romances o caráter de absoluta ficção. Estranha
a sua lealdade para com os sentidos. Rigorosa valorização de
todos os caminhos que nascem dos instintos. Um "finalista" —
na classificação psicológica de Mc Dougall.
Homem que não se exalta, bem um romancista do nosso
tempo não faz do romance um refúgio. Mas
o utiliza de modo quase hostil e— embora não seja um
reformador ou um professor de moral pública — utiliza-o como
um instrumento de luta. Não que escreva um protesto, ou um
libelo, ou levante simplesmente uma crítica. O que vem à tona,
porém, é um senso de condenação quase velado, acima das dis-
cussões, a vida imprimindo em si mesma os próprios
movimentos. Não há uma moldura exterior que embeleze, não
há também qualquer interesse em fundamentar uma concepção
filosófica. O que ressalta em verdade, são as histórias comuns
de algumas crianças. alguns homens e algumas mulheres.
No entanto, para chegar aí entrosar essas criaturas em
imensa atmosfera social — não precisa valer-se da técnica de
esquartejamento tão sensível, por exemplo, em alguns
romancistas modernos. Foge ainda aos detalhes psicológicos,
afasta-se dessa ânsia de intro-versão que caracteriza a obra
inteira de Mauriac. O que permanece, a matéria que deixa ficar,
é bem o indispensável. A intensidade no retrato de Glyde
Griffiths, em "An American Tragedy".
Algumas vezes, como em "Sister Carrie", podará haver a
divagação, o debate restritamente intelectual. Dir-se-ia mesmo
a linha de ensaio na estrutura do romance. Problemas que se
erguem com grande impulso, presença de medidas que correm
num plano lógico. Mas o que se enxerga, fora de qualquer
dúvida. é o romance em sua unidade, o perfeito acabamento
que se diria corporal em livro como "Jennie Gerhardi".
Em "Jennie Gerhardt" sempre acho que encontro o mais
humano de todos os Dreiser. Esse romance,
como observou Frabrégues, poderá iludir e provar falsas
perspectivas. Assemelhando-se ao "Tesa d'Urbervilte". de
Thomas Hardy (ambos constituindo uma reação ao
puritanismo) parece-me que sua força vem da resignação. O
terrível drama de consolar na aridez do coração a insatisfação
do nosso maior desejo. A fixação da vida que nasceu
irremediavelmente perdida. O grito do senador Brander: "Por
que morrer insatisfeito?" E a vida apanhada como um peixe,
em plena agitação, palpitante, movimentos caindo até a morte.
Afinal, verdade que em plano inferior ao extraordinário
romance de Malégue, mas ainda é aqui que sentimos bem alto a
humildade. Criaturas que possuem olhos de cão e desconhecem
a salvação ante a insensibilidade de tudo. Tão humildes que
não sabem sonhar. E ignoram ser a esperança o que nos salva
em face da pobreza do mundo. Não, esses romances de
Theodore Dreiser não passam como passa a água de um rio.
Ficam, e ficam como no corpo as cicatrizes das grandes feridas.
1943, fevereiro, 22 — Não fosse um tímido, e Kafka
seria um homem crucificado pelo orgulho. Seria talvez o mais
violento de todos, o mais bruto, o que melhor soubesse viver o
ódio e a cólera. Seu pensamento não seria móvel, indo e vindo
como uma bola de tênis, mas seria inflexível, de dureza
extrema, com resistência de ferro. Nasceu tímido, porém. Dir-
se-á da sua timidez ser uma espécie de verniz que reveste com
dificuldade o orgulho sensível, oculta com esforço a excitação,
o protesto quase inumano contra a presença de tudo.
O íntimo desejo, que ferve e queima nas profundezas do seu
sangue, é bem esse de criar um universo próprio — um
universo que fosse um trabalho seu, inferno movente que o
ajudasse a vencer a danação.
E' a exigência da "metamorfose". E' o ódio dissimulado.
E' a fraqueza reconhecida provocando esse temperamento que
Wladimir Weidlé chamou de gênio noturno. A miserável
grandeza de alguém que chora o próprio sofrimento, lamenta a
própria condição. E, como uma resposta ao tormento de todos
os dias, ao açoite que bate a consciência já ferida e quase em
estado de loucura, a paixão pelo abstrato, o estranho amor por
Kierkegaard. Leu Kierkegaard como um alucinado, procurou
completá-lo, superá-lo, vencê-lo.
Mas Kierkegaard, que não temeu acusar Deus — e
bem o disse Gustave Thibon — como um ser decaído entre a
imutabilidade e o amor, não foi totalmente um cego. E, o que é
verdadeiramente muito mais grave, não foi um romancista. Na
verdade, apenas um romancista, e um romancista assim como
Kafka, poderia chegar ao fundo invisível que chegou, tornar-se
uma espécie de sombra de outra sombra. Em qualquer dos seus
livros — "O Processo", "O Castelo", "América", "A
Metamorfose" —, livros escritos sob o domínio da mesma
angústia que coagira Kierkegaard, o que mais se sente não é a
atmosfera melancólica, a vida fictícia, mas e sobretudo isso que
Max Brod disse ser a insigni-ficância da conclusão material. O
oposto, digamos em uma tentativa de exemplo, precisamente o
oposto do Faulkner de "Men Working".
E, como conseqüência, a fragmentação de tôdas as
realidades, o ritmo desconexo, essa indisciplinada pulsação que
faz lembrar a música de Debussy. A existência acima do solo,
a incompreensão para com os mais simples atos humanos, a
negação de todos os estados psicológicos, o ¡material se
valorizando como se Kafka nada soubesse das coisas do
mundo e dos elementos da Vida.
Um morto que viesse do mais longínquo passado e
renascesse sùbitamente entre nós com os olhos abertos de
medo, não se sentiria tão afastado como Kafka. Sentir-se-ia
bem mais próximo, de certo. Kafka, porém, será um homem
distante em qualquer época, estranho que perdeu o caminho e
sente a obscuridade crescer em cada minuto que passa. Não
distingue as formas com segurança, as linhas dançam, o mundo
se apresenta como um disfarce. Dir-se-á que tateia como o
Joergensen das primeiras novelas. Perde a noção do exterior e
do espaço, salta sobre a própria consciência, e permanece no
derradeiro e definitivo limite. Então, por todos os lados, é o
perigo que o cerca. Já não pode recuar como Charles
Huysmans. Debate-se, tentando esclarecer, e cada vez mais
submerge. E' um afogado na própria angústia, é o orgulho o
que ainda o sustenta — mas, já agora, compreende ser inútil
recompor os dados e reiniciar outra análise.
Nesse instante, agarra-se à morte, faz da morte o seu
tema, ama-a e odeia-a ao mesmo tempo, resigna-se e protesta.
E é dentro da morte, em paixão de insano, que busca a força
capaz de conservá-lo vivo dentro da vida.
Como esse homem esteve perto da crucificação!
1943, junho, 8 — Se falo de magia a propósito da Jacob
Wassermann é porque a magia, afinal, não é o sortilégio. Ao
lado da alegria e do medo pode tornar-se uma virtude:
aproximar ainda mais o homem de si mesmo despertando no
coração a idéia da origem e do fim. Pode, desse modo, colocar-
se entre os únicos e verdadeiros abismos que nos encerram a
nós dentro da vida e do tempo. E constituir, por assim dizer,
um espaço capaz de abrigar os sonhos e as esperanças, as
alucinações e os grandes pressentimentos.
Senti-la, como visão nos olhos ou simplesmente como um
corpo pesando entre os dedos, não será difícil a alguém que se
contemple e tente rasgar a obscuridade que envolve todos os
nossos destinos. Virá menos como uma angústia, mas virá
dolorosamente como sendo o reflexo dessa loucura e dessa
cólera que em nós se ocultam com as paixões e o próprio
sangue. Surgir. porém, e distender-se abaixo do sol — isso não
é o bastante.
Talvez que exija o máximo. E a experiência desse mundo
que é o máximo, seu retrato bruto animado pela lentidão dos
próprios movimentos, nós o encontramos — verdade que de
um modo patético e terrível — mas sempre o encontramos em
Jacob Wassermann. Antes de ser o adversário da injustiça (e
como será possível esquecer O Processo Maurizius?), o
inimigo quase apocalíptico da crueldade humana, o
desesperado criador de uma outra ontologia, êle é o romancista
da fascinação, dos dramas ocultos, de um encantamento
místico que se prolonga em crispação e fúria muito fora da
terra.
Sua obra de romancista, por isso, é um imenso delírio.
Desde o início, quando esboçara em Os Judeus de Zirndorf a
estranha atmosfera que apenas sugeria os livros do futuro, já o
podíamos aceitar como um apaixonado da transfiguração e um
poeta. O esclarecimento viria depois. Chegaria com os três
romances do ciclo para. apontá-lo, apesar de toda a desordem e
todo o tumulto, como um apóstolo de fé que apregoa e crê na
restauração da criatura humana. O universo de piedade e ódio,
renúncia e desespero, abnegação e sofrimento, tristeza e amor,
aquela força das paixões que oscilam como ondas — tudo isso,
fechando-se em um bloco único, revelaria o tema decisivo de
Jacob Wassermann .
Seu tema, como se pode julgar, está relacionado com a
magia. Adere aos extremos que cercam o homem dentro da
existência e do tempo. E' o tema da restauração do homem.
Não uma restauração meramente contingente, ao modo do que
acontece com os agonizantes que se tornam convalescentes,
mas restauração que deve começar nos ossos e prosseguir até o
infinito. Como conseqüência dessa mística singular, a tremenda
inquietude que o obriga abrir os braços entre as suas próprias
figuras. Entre elas, algumas como evadidas do inferno, Jacob
Wassermann não permanece impassível. Também êle tem seus
momentos de alegria, sonho e medo. Conhece na própria carne
a agonia de Gaspar Hauser, ao órfão se dirige como um irmão
de igual miséria e mesmo destino. Aceita seus sofrimentos, não
como o espelho a uma imagem, mas como um olhar humano
cheio de ternura e compaixão.
E' possível que esta solidariedade pela humanidade
nascida de si mesmo explique, em parte, a tortura que nos vem
dos seus livros. Lê-los, não será apenas rir e chorar. E não será
ainda a necessidade tantas vezes sentida de ocultar o rosto
forçado pelo pudor da nossa condição. Será compreender,
antes de mais nada, que o homem só não é totalmente
miserável porque sonha, sonha e enlouquece, durante alguns
momentos da vida.
1943, junho, 16 — Inicio a tradução da novela Golovin,
de Jacob Wassermann. O melhor do seu gênio aí está. Breve,
embebida naquele sentimento de tortura que faz lembrar
Strindberg, rasgando-se como uma cortina entre duas
consciências que são duas concepções de vida, a si mesmo
ultrapassa na apresentação de um dos maiores personagens da
novelística moderna: Maria de Krüdener. O tema,
aparentemente entregue à história de uma família aristocrática
que foge dos bolche-vistas, amparado no cenário da revolução
soviética, se revela no diálogo que fecha o livro. O duelo
verbal entre Maria e Golovin — que lemos tão ansiosamente
como se fôssemos um ou outra das personagens — reflete uma
estranha força que, vencendo nossa própria maldade, consegue
negar, pelo entendimento, a mais primitiva coação dos
instintos.
As palavras, escapando ao papel, chegam aos ouvidos.
Sentimos sua presença como a uma voz poderosa, soprada ao
mesmo tempo com nobreza e aflição. A confirmação, sem
dúvida, da existência daquela alma que já se apontara em
Schaefer, e que também se apontaria em Jacob Wassermann:
simultaneamente paga e mística, lírica e contemplativa.
1943, outubro, 19 — O que se faz preciso é transigir com
o próprio destino. Aceitá-lo como aceitamos a fome e a
tristeza, saber que incarna uma realidade de maior valor porque
também mais lírica. Seu universo, em constante clima de
inverno, poderá encher-se de sombras e cores. Poderá ser ainda
a própria realidade absorvida. Ou apenas uma cavidade deserta.
Sim, as faces do destino são muitas. Transfigurando-se em afli-
ção, pode nascer como sendo crime e remorso, simples
inquietude ou um outro inferno mais trágico. Pode ser também
o vazio. Mas, ainda que venha tão vivo e decisivo como a
forma de um corpo, jamais estancará dentro de si o sofrimento
transformando-o, desse modo, em zona de mansidão e paz.
A criatura que delira é a criatura que sofre. Engano pensar
seja o delírio um corte na dor. E' excessivamente estranho e
desconhecido para não deixar uma marca, forçar o calor no
sangue e o peso dos pés no chão.
Quem quer que o tenha conhecido, em estado de ira como
Strindberg ou no afastamento quase monstruoso de Kafka, por
certo não o sentiu assim como esse singular Hermann Hesse.
Acurvando-se sobre si mesmo como uma serpente, perdido nas
voltas do desvario que frenèticamente criara, tentando reprimir
com as mãos as paixões que se extravazam como lava,
Hermann Hesse só possui olhos para alcançar e ver "o lobo da
estepe". O lobo da estepe não é Harry, também não será Paulo,
nem Armanda — mas será Armanda, Paulo e Harry ao mesmo
tempo porque o lobo da estepe somos bem todos nós que
vivemos e amamos. Nós, criaturas que estamos
acima das árvores e das pedras porque, afinal, possui-mos o
delírio.
O delírio, que encontra a sua plenitude no "teatro
mágico", é a fronteira que distingue. Não é a morte, nem a
conformação tão humana do próprio corpo — e parece que
escuto Hermann Hesse gritar do fundo da sua cólera — o que
nos distingue da areia do mar ou das estrelas do céu. E' o
delírio, a imaginação se movendo no espaço, rodando e
dançando como uni acrobata no circo.
Hermann Hesse, porém, não fundamenta o delírio em
raízes objetivas como Julien Green, certamente, o faria.
Começando embora pela poesia, da poesia agora escapa para
tombar, como um fugitivo, entre os pesadelos de um refúgio
cada vez mais obscuro e quimérico. Abrigado nessas sombras
que são o seu mundo, não lhe assiste um cenário amplo, um
imenso cenário que nos fizesse lembrar, por exemplo, as
montanhas. As paredes são lisas, o céu que enxerga é tão
áspero como o próprio coração, a mão com que escreve é
ríspida como o frio olhar de uma testemunha. O sopro poético,
que suaviza as novelas de Gerard de Nerval, as histórias de
Hoffmann, mesmo a violência dos romances das irmãs Brontè,
não conseguem subsistir no seu delírio sinistro.
Resta apenas a descaracterização. O desconhecimento da
norma, a sensível ignorância de tudo isso que eu chamaria os
limites. E, como conseqüência, o que nasce é uma beleza quase
inimaginável, mas tão forte que arrebata e aprisiona. Vem para
ferir a realidade, marcá-la com dureza, afirmar que o homem
pode vencer a própria vida porque traz dentro de si o mundo do
delírio.
O delírio é a salvação, o triunfo sobre "o lobo da estepe".
Esta, em verdade, a indicação que Hermann Hesse põe no seu
livro. Mas, embora o fechemos em sua última página, e dele
escapemos como do fundo de uma pesada cerração, sentimos
bem sobre a face que o sortilégio permanecerá ainda por muito
tempo. Talvez por muitos anos.
Acabei de ler agora O lobo da Estepe. Hoje, certamente,
o sol nascerá ao meio-dia.
1943, novembro, 9 — Não sei se André Gide conheceu
Rozanov. Difícil mesmo saber se, estudando Dostoievski, em
Rozanov não pensara ao escrever que "il n'y a pas d'oeuvre
d'art sans participation démonia-que". E isso porque o
refugiado do mosteiro da Trindade, sem dúvida um artista tão
alto quanto Nietzsche, nasceu com o sangue do demônio dentro
das veias. Em verdade, que se saiba, ninguém sentiu o demônio
come êle. A mensagem de Santa Catarina — sangue e fogo —
já não existe em face desse visionário que percebia, com os
olhos do rosto, a trágica imagem da própria consciência em
pânico. Amigo da morte, querendo organizar religiosamente a
vida erótica, paradoxalmente entre a prece e a blasfêmia, talvez
ignorasse o que realmente pudesse ser. Aparece-me como um
homem que acendeu o incêndio no abismo do coração, no
fundo de todos os ensinamentos do mundo, e ficou a gritar
como o suicida que já não pode chorar.
E' o selvagem — e como ousar defini-lo, a êle, Rozanov,
a não ser em um diário íntimo? — que não consegue torcer a
cólera, que a si mesmo se aceita em plena misericórdia. Um
condenado voluntário. O es-
tranho humilde que avisa sempre: o homem, qualquer
homem, só é digno de piedade.
Não compreende, como aquele Verkhovenski, de
Dostoievski, a vergonha de uma opinião própria. O que tem a
dizer, êle o diz com violência, brutalmente, a linguagem quase
primitiva. Mas, como observa Schloezer, êle o diz com ritmo, o
estilo aberto através da sonoridade musical. Chamaram-no, por
isso, de poeta. Acusaram-no de possuir um espírito infantil. E'
provável que esses intérpretes tenham razão. Rozanov, porém,
que começara estudando pedagogia, e fizera depois seus tra-
balhos nos jornais, não, não pode aceitar qualquer clas-
sificação! Um poeta não escreveria Os Homens da Luz Lunar,
não escreveria um livro como o Apocalipse do Nosso Tempo e
não deformaria, como êle, a eterna fisionomia do cristianismo.
Rozanov, que todos precisam conhecer como uma vítima
de si mesmo, que a vida inteira lutou para des truir o veneno do
próprio sangue, acabou tranqüilo como poucos acabam. "A
morte não é triste" — dissera no seu Apocalipse. E quando a
alcançou, perseguido pelos bolchevistas, em um dos mosteiros
da santa Rússia, nos arredores de Moscou, já não podia falar.
Morreu em 1918, sem medo, de inanição, pensando talvez no
destino do seu povo. As mãos, finalmente, submersas no corpo
da Igreja.
1943, dezembro, 2 — E' possível que Wladimir Weidlé
tenha razão. Muito provável que a criação imaginária esteja
fugindo do romance, e o interesse do depoimento, o retrato
bruto, a substituam, assim valorizando a realidade como o
grande tema. No entanto,
apesar da força do seu livro, continuo acreditando ex
cessivamente no homem, e no destino da sua inteligência, para
aceitar a realidade como o sangue do romance moderno. Em si
mesma, nos seus detalhes infinitos, a íealidade é muito mais
que um universo insondáve*. Quase desconhecida, transfigura-
se — e é uma para cada homem, e é outra para cada época, e
ainda outra para cada novo conhecimento que adquirimos.
Alguma coisa, como se vê, a supera. E o que a sacrifica é bem
isso que em nós é a nossa afirmação universal, o equilíbrio da
nossa palavra, o impulso da criação, essa centelha ignorada que
fazia Schiller cantar o mar sem que o mar houvesse visto uma
única vez (lendo o "Essai sur le Destin actuel des Lettres e des
Arts", de Wladimir Weidlé).
1943, dezembro, 7 — O que melhor êle escrevera em
prosa, seus grandes poemas místicos, não, não darão uma idéia
do verdadeiro Charles Peguy. Não que se imponha a
dificuldade tão conhecida do seu estilo, menos ainda o corpo
fracionado de idéias. Mas, essencialmente, porque Charles
Peguy sempre esteve, na maior parte de sua presença, distante
e muito distante dcs seus próprios livros. Não o encontraremos,
como a Léon Bloy, na expressão solidamente fundida à própria
vida. A história do seu pensamento, o ideal franciscano de
bondade, o interesse em consolar todos os corações, iremos
encontrar no mundo que se move em sua volta, nos amigos que
freqüentam sua livraria.
Êle, esse Peguy insubstituível aos olhos dos amigos. o
Notre cher Peguy de Jean e Jerome Tharaud, a ser descoberto
numa visão perfeita, só poderá ser encon-
irado nos depoimentos desses mesmos amigos, Hu milde,
somente ao morrer naquele setembro de 14, e que começará a
crescer. Avançará sobre si mesmo. sobre as obstinadas páginas
dos Cahiers de Ia Quinzaine, sobre os dois poemas de Jeanne
d'Arc, sobre sua própria morte na frente de batalha, para então
distender-se sobre os amigos. Desse dia em diante, nós o
encontraremos em todos os caminhos, sentiremos bem perto o
movimento dos seus lábios ditando as grandes verdades.
Charles Peguy, desse minuto para toda a eternidade, começará
a viver.
E' de sua presença que sairá Maritain. Um lógico como
André Suarés, seu amigo de antigas conversas, nele se
inspirará para escrever os ensaios críticos sobre Dostoievski e
Ibsen. Em outra fonte Romain Rolland, também colaborador
dos Cahiers, não buscaria seu ideal de humanidade. E o nosso
extraordinário Stanilas Fumet, o maior intérprete moderno do
sentido metafísico da arte, distribuiria entre êle e Léon Bloy
alguns dos seus livros que um dia serão apontados como os
mais definitivos do seu tempo. Esses, para não falar mos dos
mais afastados, não falarmos, por exemplo, de Daniel Rops
que, dentre todos os seus livros, o mais humano será mesmo o
que se chama Charles Peguy.
Charles Peguy, porém, aquele que lutara para "rendrai
mon sang pur comme je l'ai reçu", que associava simpatia de
homens tão distantes como André Gide e Maurice Barres, não
será aceito com facilidade. Sua aceitação, que exigirá
confiança e um total abandono. virá lentamente como uma
criação e lentamente se expandirá sobre muitos. Exatamente
em Le Mystére de
la Charité de Jeanne d'Arc, dirá Charles Péguy: "Il faut des
créatures de toute sorte pour faire une création".
1943, dezembro, 20 — Anotação para um pequeno
estudo sobre Stanislas Fumet: Sem dúvida, é o man li umano e
o mais compreensivo de todos os seus companheiros de
geração. Mais ainda que o próprio Charles Du Bos. Não que
seja um ensaísta de estilo fácil como Denis de Rougemont, ou
um pouco ingênuo como Daniel Rops, mas alguém que se
habituou excessivamente às interrogações eternas para não
saber medir as palavras e normalizar os próprios movimentos.
E o grande exemplo que poderíamos citar seria Le Procès de
l'Art.
Nessa época não escrevera ainda Mission de Leon Bloy,
ainda não condensara toda a sua energia intelectual no estudo
simplesmente extraordinário que é L'Amour. Era o autor que
oscilava em dois livros: um, sobre Notre Baudelaire; outro,
sobre Sainte Jeanne d'Arc. O livro básico — para somente
depois nos de-termos em face do Ernest Hello — deverá ser o
ensaio sobre a arte.
Mas a arte, para Stanislas Fumet, não é um tema restrito
de estética. Não é um tema filosófico. Ou apenas um tema. A
arte é, como queria Ernest Hello, a plenitude patética. Deve ser
grave como a sabedoria, uma amplidão assim como o milagre
que começa no âmago do bem e da verdade e vai acabar no
insondável abismo de Deus.
A sua catoiicidade, nesse ponto, é indiscutível. Tão
indiscutível como a catolicidade que estudou na
poesia de Baudelaire e na vida de Léon Bloy. No entanto, se
para com Léon Bloy revela ainda a gratidão de amigo e
discípulo, já no Ernest Hello é o mesmo liomem de atitudes
recolhidas e determinadas. Nesse livro, que não é bem um
estudo crítico, nem a comum exibição de um drama, sentimos
perfeitamente a agu-deza de meditação e a obediência à norma
clássica que caracterizam os intérpretes e os mestres.
1944, janeiro, 2 — Ainda mais que Henri Delacroix,
Georges Dvvelshauvers viria mostrar a associação inevitável
entre a psicologia e a crítica literária. Crítico êle próprio,
sobretudo na última fase, sua crítica se transformaria numa
espécie de modelo para a crítica de análise, de penetração tão
profunda que venceria mesmo elementos aparentemente
imperceptíveis. Não se contenta, pelo menos no ensaio sobre
Rousseau e Tolstoi, com a intimidade dos problemas no
revestimento meramente estético ou social. A crítica precisa
descer. E descer muito, descer sempre, até a sondagem de-
finitiva.
1944, janeiro, 8 — Admira-me que os historiadores,
ainda mais que os sacerdotes, sempre acreditem no homem.
Vendo-o no seu passado, nesse passado cheio de traições —
como diria Dreed, uma personagem de H. G. Wells — de
heroísmos inúteis e muito sangue, não esmorecem um só dia,
sempre esperançados, como se fossem médicos lutando para
regenerarem os velhos tecidos de um corpo decrépito.
Deveriam ser céticos. Mas, estejam nos caminhos mais opostos
— tão afastados como Coulanges de Spengler —, o que
sempre de-
rnonstram é uma crença infalível, mesmo total, na capacidade
de aperfeiçoamento e equilíbrio do homem na eterna agitação
do seu meio social. Nesse ponto, e não há para onde fugir,
todos os historiadores se assemelham a Bossuet.
1944, fevereiro, 10 — Agitada, participante como
nenhuma outra de uma época de mudança, de discussão
agressiva e violenta das idéias, a inteligência pensou encontrar
na crítica o seu caráter mais forte, o instrumento mais
apropriado à sua expressão e ao seu trabalho. A imagem ainda
tão presente da guerra, que agravou universalmente o desejo de
reforma, a transposição do ideal de vida, deviam aperfeiçoar
sua vocação de exame e ampliar seu interesse pelo julgamento.
Perturbavam-na, sobretudo em face do mundo artístico, as
experiências fracassadas, as tentativas empobrecidas, quase em
branco o espaço destinado às realizações verdadeiras. Não
reconhecia, porém, a falência das fórmulas, das
especializações, do pensamento secularizado nos processos
clássicos de criação. E, como uma compensação, talvez como
último obstáculo ao ceticismo, a ilimitada confiança na crítica
que é, fora de qualquer dúvida, o grande tema contemporâneo.
' A crítica, historicamente variável em sua essência,
sempre condicionando sua significação a um estado estético
momentâneo, tornou-se, como os sistemas filosóficos e as
doutrinas políticas, uma espécie de lógica rígida — de método
que sacrifica a compreensão livre em favor do esquema quase
matemático. Criticar já não é sentir, a virtude de aceitar ou não
uma paixão humana ou uma atitude de beleza, mas
simplesmente
uma mecânica. Instrumento que mata na criação a presença e a
responsabilidade do espírito tão indispensáveis à dignidade da
própria arte.
Alargaram, no fundo do seu universo, que é inspirado
como o da poesia e da ficção, o valor da técnica —
substituindo, como observaria Jacques Maritain, o "ato de agir"
pelo "ato de fazer". Mensurável, talvez para atender às
imposições do racionalismo moderno, a crítica poderá ter se
tornado mais fácil. Acessível ao exercício de todos, a ninguém
dificultando o seu caminho outrora extensivo e profundo. Mas,
sob esse deslocamento, o que dramaticamente se percebe é a
controvérsia: de um lado, a confiança ilimitada que em si a
inteligência deposita; e, do outro lado, a pobreza de meios
impedindo possa corresponder àquela confiança.
Deseja-se a crítica, espera-se de sua interferência uma
solução e de sua atuação um esclarecimento — mas,
empobrecida quando os problemas crescem e se avolumam,
tenta encontrar uma porta de saída na uniformização, no
processo endurecido e invariável. Restringe-se a sua ação. E se
restringe de tal modo, de tal maneira a asfixia numa
acomodação medíocre que, por incapacidade, deixa ficar à
margem as teses e as situações que estruturam o pensamento e
a arte do tempo. Em face de um período de sensibilidade
anormal, de constante preocupação revolucionária, de
alarmante nevrose política, a crítica já não constitui um
equilíbrio na ortodoxia dos seus princípios. Entrega-se, indo a
reboque, sem perceber que a própria arte reage, sobretudo a
arte literária e, nesta, principalmente a poesia e o romance.
1944, maio, 9 — Custava-me compreender a distância em
que colocávamos Ibsen, o desinteresse revelado pelos seus
dramas, sua influência quase não contando entre nós. Difícil
explicar sua ausência, a preferência se inclinando para alguns
dos seus discípulos, êle próprio surgindo raramente em uma ou
outra referência crítica. O exílio que impúnhamos, como volun-
tariamente se impusera o exílio de sua própria pátria, não
poderia perdurar muito tempo. Não devíamos exigir, porém,
para êle que sempre foi um homem sozinho, uma compreensão
imediata. Conhecem-se a complexidade do seu universo, a
injustiça que sofreu quase até à morte, a preferência que se
demonstrara pelo rival Bjoernsson, a tragédia que inunda a
alma das suas figuras, para que nem todos o aceitem na força
de um primeiro impulso. Incapaz de trair, revelaria por isso
mesmo os sentimentos humanos sem ocultar o fundo de
miséria, aquele abismo de degradação que Hovstad encarnou
para todos os tempos.
Mas, em Ibsen, no seu teatro, o que primeiro se deve
observar — como anotaria André Suarés no seu admirável
Portrait d'Ibsen — é precisamente o registo das revoltas
morais. Não importa que a análise supere a açáo. O que
importa é o movimento das idéias, a agonia interior que sabia
apanhar sem piedade, o diálogo exteriorizando, no plano da
operação mental, os conflitos mais violentos da consciência e
do coração. As conseqüências, dessa quase hipnose pelos
combates íntimos da criatura humana, explicam o
universalismo da sua obra e a peregrinação da sua vida.
Os caminhos das suas viagens — Skien, Grimsad,
Cristiània, Roma, Nápoles, Dresden, Munique — não
refletem outra preocupação. Possível que a mistura de sangue,
a que se refere seu amigo o conde Prezor, antes mesmo da
primeira viagem, já trabalhasse para a for rnação daquele
universalismo que permitiria o comparassem a Nietzsche e a
Tolstoi. De qualquer modo, esse universalismo, que faria
correr sua influência sobro o melhor teatro europeu,
constituiria na realidade o centro da sua obra. E' a êle que
devemos a decomposição, na maioria das vezes lúcida e
penetrante, de todos os elementos que formam as idéias e as
imagens e as relações entre as idéias e outras imagens.
A ação interior é captada em um espantoso movimento de
unidade. Exteriorizada, essa ação não convence apenas em
virtude da clareza e da estrutura sintética, mas, e sobretudo,
pela articulação que executa entre o ritmo da frase c a
organização do pensamento. E* desse modo que devemos
explicar o grande êxito de Ibsen, a simpatia que sempre
acabava conquistando, mesmo quando o drama foi Os
Espectros e a primeira manifestação veio em forma de
indignação popular. Mas Henrik Ibsen confirmou
principalmente que se não pode reduzir o teatro tão somente à
comédia. Torna-se indispensável o alargamento do espaço da
cena. Como Racine e Corneille, demonstrou que o teatro
sempre pediu — e continua a pedir a sombra de alta poesia.
1944, agosto, 13 — O injusto será classificar. Descobrir
um espaço para situar. Determinar uma posição, um grupo,
uma origem, uma tendência. Escrever como, por exemplo,
Sampson: "Shaw é um discípulo de Ibsen. não um imitador".
Ou, como o mesmo crítico, afirmar ter sido Shelley sua
primeira influência. A verdade,
pore in, é que Bernard Shaw, como todo homem que se perde
na criação de muitos mundos, não tem precisamente uma
origem. Podemos encontrá-lo sempre igual em todos os
momentos. Seu trabalho literário, que corre dos fins do século
passado até os nossos dias, não desce em curvas, não se
prolonga em extensão que vá acima de si mesmo. Dir-se-ia um
plano horizontal, de nível batido, que não oscila. Uma
planície.
No entanto, esse equilíbrio não se presta apenas ao
novelista, ao ensaísta, ao crítico de música, ao crítico — mas, e
sobretudo, ao homem de teatro, ao autor de Arms and the Man.
O teatro seria seu verdadeiro clima, estrada que lhe permitiria
alcançar todos os rumos, ferir todas as teses, atingir os altos
problemas humanos. Como John Galsworthy, e bem observou
E. R. Church, Shaw possuiria o destino não de renovar, mas de
fazer ressurgir o velho teatro inglês. Abrir urna outra
perspectiva ao lado de Spender e Sherriíf. Argumentos que se
sucedem, temas que se cruzam em grandes voltas, a criação
tanto mais poderosa porque não sofreada, e é uma forma de
liberdade que transforma o diálogo em um movimento que logo
identificamos com a vida. Não há um instante irregular, a
eclosão patética, como em Eugene O'Neill. Os efeitos não são
premeditados, seu enorme espetáculo não conhece prudência .
Bernard Shaw, porém, não é um revolucionário. Sua
técnica é antiga, o jogo de combinações, a sátira montada em
base tradicional. Qualquer francês moderno, Giraudoux ou
Cocteau, é mais revolucionário do que êle. No entanto, apesar
da ausência de força levo-lucionária, não perdendo as raízes
clássicas, força neces-
sàr laments um clima próprio. Em certos limites, é um autor de
transição. Alguém que tudo enxerga: os problemas da vida
moderna, sociais ou religiosos, com suas paixões e seus ódios,
suas grandezas e seus ridículos. E recua também, como no caso
de Cesar and Cleopatra, peça que flutua num extraordinário
fundo de emoções e debates. Ou se detém então no leito
psicológico. E' Pygmalion. A penetração no mundo interior,
livre de qualquer preocupação crítica, o problema da lingua-
gem explicado como uma tese, a experiência individual se
transfigurando em face da experiência social.
A análise seria infindável, teria que crescer tão am-
plamente quanto o universo do seu teatro. Quando leio Shaw
— e eu o venho fazendo nestes últimos dias — parece-me que
os olhos sacrificam a minha compreensão em favor dos
sentidos.
1944, setembro, 2 — O Papa do Cketto, de Gertrud von
Le Fort, levantando a vida do antipapa Anacle-to II, fugindo a
qualquer plano literário estabelecido, movendo-se em estranho
clima poético, é na verdade um livro sem família. Escrito há
quatorze anos, desde então traduzido da língua original alemã
para inúmeras outras línguas, não o entenderemos assim no
primeiro exame. Torna-se necessária certa intimidade, uma es-
pécie de aceitação sem censura. Impressionante, ao leitor
desprevenido, a rutura que abre em sua rotina comum de vida.
Literaràriamente, é uma inovação que se agarra à fidelidade
histórica, verdadeiro drama que evolui conservando, em
equilíbrio, duas atitudes. De um lado, a face da Igreja, imutável
e eterna, distendida sobre três gerações. De outro lado, a
contribuição lite-
rária, seu extraordinário esforço em corresponder, sobretudo
pela poesia, à elevação do tema e do livro. Melhor que
ninguém, a romancista — que dispõe de excelente formação
clássica — sentiu a exigência da nivelação.
E não temeu realizá-la. Para isso, suavizando a tragédia
com o gênio lírico, modelou aquela espécie de crénica que já
asseguraram ser nova no romance universal. Em verdade,
estamos em presença de uma arte física, que se materializa em
volume e pesa como um corpo. A utilização de um aparente
surrealismo que se manifesta no corte rápido das imagens é
batido pela necessidade da expressão adequada à moldura ex-
terior. O romance, porém, não se reduz tão somente a essa
organização técnica. Mas exerce a penetração na própria vida
íntima da Igreja, a queda dos olhos em um espaço que se situa
entre o homem e o tempo, entre as paixões que correm do ódio
para o amor e do amor para esse sofrimento que estará
eternamente simbolizado no canto de Miriam.
Naturalmente, aí penetrando, Gertrud von Le Fort visava
a sondagem, com segurança e frieza, da consciência de um
homem. A história de Pier Leone, do nascimento até o instante
do grande cisma de Roma, em todos os minutos, é a história de
uma consciência. Os acontecimentos que se combinam, as
sombras vagas que er-ram longinquamente, a transformação de
certos períodos em estranha linguagem musical, tudo se
concentra em torno daquela consciência. Seu desenvolvimento
é descrito em todos os detalhes, fixadas todas as reações, apa-
nhadas as intenções mais ocultas.
1944, novembro, 11 — Tarde esplêndida, lendo as
Memoires, de Saint-Simon. Antes que fale no livro, penso no
destino do autor. Homem metódico, escritor medíocre, entrará
na corte de Luiz XIV pela mão do pai, feito duque por Luiz
XIII. E a história daquela Corte, a narração "écrit jour aprés
jour", no tempo largo que corre de 1691 a 1723, constitui o
livro — as Memoires. Vivendo uma existência vazia de aventu-
ras, a não ser quando fêz a guerra e pediu a mão da filha do rei
da Espanha para Luiz XV, o mundo que aproveita para inundar
de tinta as páginas do seu livro vale naturalmente pelo rigor
das observações e sua natureza histórica.
Sem dúvida alguma, trata-se de um notável depoimento.
Não psicológico, como o de Amiel, mas de fundo sobretudo
político e social. Revisto no castelo de La Ferté-Vidame, é
provável que Saint Simon tenha pressentido o destino que
aguardava essas Memoires. Não, a publicação não seria fácil.
Não o publicando em vida, pois Deus o levava em 1755,
Choiseul o confiscaria como papéis do Estado. Sete anos
depois, em 1762, é entregue ao público, em forma de
fragmentos porque censurado. O primeiro resumo, em três
volumes, é publicado vinte e seis anos decorridos. Mas.
completo, só seria publicado em 1829, em vinte e um volumes,
numa iniciativa do marquês de Saint-Simon.
Foi então que o mundo o leu — e pôde conhecer. em todo
seu desregramento, o melhor, o mais rude, o mais objetivo
retrato de Luiz XIV. O estilo é árido, sem qualquer
preocupação literária. Terrível inquiridor, porém, amando as
minúcias, não oculta o extraordinário realismo, o
conhecimento da miséria da cria-
tura humana. Êle mesmo dirá: "Chaque visage vous rappelle les
soins, les intrigues, les rueurs employes à l'avancement des
fortunes..." Cortesão, levando Luiz XIII ao elogio que se
confunde com a idolatria, Saint-Simon não pouparia Luiz XIV.
Não sendo injusta, sua pintura não perdoa. Ao rei que é "un fort
gros homme, blond et court, l'air grossier et paysan",
representaria com toda crueldade. Alain, no estudo que sobre
êle escreveu, dirá: "Saint-Simon a represente cruelement ce
roi".
A representação desse rei e de sua Corte, no livro desse
homem que viu o rei e viveu na Corte, provará ainda uma vez
ser muito difícil a morte de um passado. E — Deus louvado —
como os homens são iguais!
1944, novembro, 22 — Não sei bem onde buscar as raízes
da aventura no romance católico. E ignoro mesmo ser possível
falar, exatamente, de um romance católico. Mas o que se
percebe, no plano católico, é a contemplação sobrenatural da
própria vida, uma sombra descendo sobre a grande excitação
dos sentidos. Talvez seja difícil alcançar a sua natureza
essencial. No entanto, sei que sua presença não se pode
caracterizar através de um destino problemático. Hoje mais do
que ontem, seu destino é coisa tão certa quanto sua penetração
na alma e no coração da criatura (após a leitura de Job, íe
Predestine, de Baumann).
1944, dezembro, 15 — Hawthorne e Poe (nota a ser
aproveitada no ensaio Ficcionistas da América): No ano em
que Edgar Allan Poe morreu, exatamente
em 1849, Hawthorne concluía The Scarlet Letter. A meu ver,
embora os críticos aceitem uma atitude menos ampla, embora o
autor de Fanshawe contasse com melhores recursos técnicos,
The Scarlet Letter afirmaria, na ficção americana, quando não
toda a obra, pelo menos a impressão universal que se começara
a sentir em Nar rative of Arthur Gordon Pym. Hawthorne, no
meado do século passado, como Faulkner nos nossos dias, ao
lado das grandes reservas extraídas da própria vocação.
auxiliaria melhor conhecimento do gênio de Poe. Ambos estão
debruçados sobre a mesma fonte.
1944, dezembro, 20 — Todos nós, que lemos e rp lemos
seu romance, que primeiro alcançamos sua poesia no drama
quase inumano de Wuthering Heights, não devemos pensar,
como o biógrafo da sua família Robert de Traz, em influências
literárias. Não será justo pronunciar o nome de Byron. Muito
menos lembrar a presença de alguns românticos alemães. Seu
sonho, que poderá ser de silêncio como nos poemas, ou de
pesadelo como na angústia de Heathcliff, será tão somente seu.
Ela apenas — essa enigmática Emily Bronte — o sentiria,
com violência, desde a infância tão triste até a morte que a
venceu aos vinte e nove anos de idade. Encerrar-se-ia nele
como em uma habitação inacessível à realidade. Dir-se-ia o
único abrigo possível à tragédia imposta pelo destino, o
espetáculo cotidiano de um irmão louco, o pai rude e quase
cego, a tuberculose herdada da mãe espreitando os seus e os
passos da delicada Anne. Haworth, os túmulos que cercavam
sua casa mesmo a charneca, não violariam o asilo interior que
erguera numa série de imagens ainda hoje vibrante como
o ritmo dos seus poemas.
Esses poemas, menos que o romance, serviriam sempre
para explicar — como Virgínia Moore tentaria fazer em um
ensaio desgraçadamente mediocre e desonesto — uma parte,
qualquer parte, a menor parte daquele infinito sonho. As portas
e as janelas fechadas'seriam entreabertas. Sentir-se-ia neles, e
de um modo que nos faz lembrar as lições paternas, a profunda
consciência em Deus. Abaixo porém dessa impressão
teândrica, que exclui a possibilidade de uma aproximação com
William Blake (como Swinburne jamais pensara), reside por
certo o outro polo essencial da sua poesia. Não perceberemos,
como em Blake, a menor preocupação filosófica ou mística.
Descobriremos o nascimento das emoções em pleno clima
original, as imagens conservando isso que só poderemos
chamar a experiência da introspecção.
Nenhum conceito a ser transmitido. Nenhuma expressão
simbólica. Nada de uma predisposição intelectual ou crítica
que facilmente degenera no artifício da poesia de escola. O que
existe, sobretudo em Remembrance, é o sentimento
aparentemente confessado. O abandono da forma convencional
e, em resposta, a estrutura composta como as linhas de um delí-
rio. Não espanta, pois, o entusiasmo com que Charles Morgan
acolheu a poesia de Emily Bronte. O que espanta. no flagrante
de uma injustiça, é o paralelo já feito entre a sua e a poesia de
Christine Rossetti.
Seu maior privilégio, entretanto, será outro. A de-
terminação de uma origem que não poderá ser herdada,
que nenhum outro poeta conseguirá prolongar. Nascendo do
sonho que foi a evasão de uma vida, subsistindo como em
estado de vigília, não, não alcançaria a realidade por nenhum
caminho. Aviso poderoso de que sempre esteve fora do tempo.
1945, janeiro, 3 — Em resposta à desordem moderna,
aos intelectuais que sacrificam a verdade crítica numa atitude
de passividade ideológica, aos tolos que não querem admitir a
inteligência como submissa a um pastado histórico de cultura,
eu gostaria de aconselhar a leitura dessas lições pronunciadas
por Igor Strawinski na Universidade de Harvard. Aos que se
intitulam revolucionários, e que são na verdade autênticos cria-
dores de implacável tirania estética, Strawinski aparecerá, não
como o admirável humanista que ocupava a cadeira de poética
Charles Eliot Norton, mas como o reacionário que se apegava
tragicamente à aventura da restauração.
A verdade, porém, é que a voz de Strawinski, em
Poéíique Musicale (Harvard University Press), não corre como
moeda falsa. Articulada no fundo de um estilo espontâneo,
imprime-se com extraordinária consciência. Ao mesmo tempo,
investigação e procura de solução lógica para todos os
problemas — sobretudo para o problema da arte.
Particularmente, o que me surpreendeu foi a identidade de
compreensão com Stanislas Fumet. Estou para escrever — e
provavelmente o direi, também, em artigo — que Poétique
Musicale completa, não se contando o clima metafísico, Le
Procés d'Art. Completa ainda, numa ligação certamente mais
profunda, o conceito de Ernest Hello. A arte, para
Hello, Fumet e Strawinski é organicamente anti-revolucionária
.
Não, a arte náo justificará — e Strawinski insiste no seu
ponto de vista — qualquer atmosfera revolucionária. Escreve:
"L'art est constructif par essence. La révolution implique une
rupture d'équilibre. Qui dit révolution dit chaos provisoire. Or,
l'art est le contraire du chaos". E adiante: "J'avoue donc que je
suis complètement insensible au prestige de la révolution".
Melhor que ninguém, criador êle próprio no sentido mais puro,
Strawinski sabe que a revolução corta a continuidade, elimina a
ordem estabelecida, impiantii o barbarismo na mudança
arbitrária e violenta.
Este, em verdade, o livro que gostaria fòsse lido por todos
esses que, de um ou de outro modo, concorrem para a
desordem moderna. Os que não refletem sobre o drama da
inteligência, na traição que realizam quando a exilam de suas
raizes históricas. E se apegam a isso que é o pensamento em
sua representação imediata, matando o grande universo que
Strawinski afirma ser
a
un élément de communion avec le
prochain — et avec 1'Ètre".
1945, março, 14 — Apontamentos para o capítulo
"Renovação do Espírito da Tragédia" (do ensaio "São João da
Cruz e o Mundo Inocente"): a) Difícil precisar com firmeza
onde começa a renovação do espírito da tragédia. Morta por
assim dizer a medida clássica, o equilíbrio das formas, aquela
permanência da língua numa tradição quase estratificada de
cultura, o que se sentiu foi um estado ainda desconhecido na
expressão literária e filosófica. Fugindo-se à hierarquia
imposta
pela antigüidade helênica, conservada de algum modo na
disciplina medieval, assistia-se pela primeira vez a um
acontecimento que influiria decisivamente na história
intelectual do Ocidente.
Não, como queria Nietzsche, o desprezo à ilusão das
artes. Nem tampouco um corte no refinamento grego que ainda
hoje sentimos (em um dos melhores trechos de Homero, nas
lágrimas de Ulysses ao ser reconhecido pelo cão ausente há
vinte anos). Mas, e tão somente, na desfiguração da palavra
realizada por Pe-trarca. A palavra, sugestivo reflexo da
linguagem viva, seria ferida em suas raízes. Cantando Laura,
ela o inspirando na criação do seu novo humanismo, Pe-trarca
— que se diria viesse de Tito Livio —, como muito bem
observa Denis de Rougemont, reformava totalmente o latim.
Não se pode afirmar, com justiça, tenha sido êle o
responsável pelo perecimento da medida clássica. Concorria,
porém, anatematizando o espírito metafísico da escolástica,
concorria para favorecer, muito depois, a onda cartesiana.
Facilitava a vinda de um círculo filosófico que se apoiava na
determinação geométrica. A inspiração lírica, de aventura tão
espantosa na epopéia, que avançava sobre a realidade batida
como em Sófocles, já reduzida em Eurípedes, não mais
reafirmaria sua posição de domínio.
O essencial, entretanto, na mudança radical que se
processava, concentrava-se, como vimos, na desfiguração da
palavra. Petrarca, associando a vida contemplativa à natureza,
concedendo à língua um valor formal secundário, reduzindo a
palavra a um movimento flu-
tuante, impunha a desordem. Não pressentia talvez o que
iniciava. Sua visão, tão arrebatada na arte de poematizar o
amor, não alcançava as conseqüências. b) À noite. Na verdade,
o germe mais antigo da negação do clássico — e, em
conseqüência, da própria tragédia — se encontrava nas
profundezas da alma grega. Nietzsche não o esqueceu.
Mostrava-se palpitante na paixão lógica do raciocínio, naquela
obstinada atividade mental subordinada à razão. E' o racionalis-
mo socrático concedendo ao homem de pensamento o direito
de influir no valor absoluto da palavra, deformá-la cem vezes
na simultânea criação de cem novos sentidos. Nesse ponto,
Petrarca torna-se um discípulo de Sócrates e socráticos seriam
os seus coníinuadores, isto é, todos os modernos, esses que,
partindo da Renascença, chegariam até nós, até este momento
em que cê processa a renovação do espírito da tragédia. Sua
força poética, despojada de qualquer depuração de estilo, seria
o sinal bem aberto da involução que a linguagem adotava. Digo
linguagem, não digo uma língua. Mas linguagem nesse
conceito atual, criado por Humboldt, de paralelismo
estabelecido entre o pensamento e a língU3, entre a língua e os
próprios estados afetivos. Não uma conseqüência social, na tese
de Dwelshauvers, uma longa conseqüência da evolução
coletiva. Nem tampouco uma subordinação, como queria Karl
Vossler, ao fenômeno estético puro.
1945, junho, 8 — Quase um mendigo, aquele vagabundo
que Henri Clouard aproxima de Villon, Gerard de Nerval é
alguém que já não distingue o sonho da vida. Inúmeros os
pesadelos. Singulares, os pressenti-
inentos. Na verdade, o trágico alucinado que deforma os
autênticos elementos do mundo, vítima de espantosa
dominação imaginária. Impossível calcular a extensão áo seu
sofrimento. De um visionário sem salvação, a sua experiência.
Que encontro extraordinário o da sua vida com a sua obra!
Órfão ainda criança, jamais conseguiu disciplinar as paixões.
Leitor de Klopstock, de Schiller, também de Goethe. Publica,
aos vinte anos — já então colaborando no "Mercure de Franco''
—, uma tradução do Fausto, de Goethe, ainda hoje não
superada. Ama Jenny Colon, pobre e medíocre atriz que. em
conseqüência do seu instinto poético, se transfiguraria na eterna
Adrienne. E viaja. Enorme o itinerário. Alemanha, Áustria, o
Egito, Constantinopla, a Ásia. E' a saúde que falta. São os
livros compostos nos intervalos da febre e da fome. Sente as
primeiras alucina-ções. E' um homem sem domicílio. Escreve
nos cafés. Abriga-se, nos dias de maior miséria, na casa de Ale-
xandre Dumas. Refugia-se na residência do seu antigo colega
de colégio, Théophile Gautier. Finalmente, o suicídio.
E pergunto-me, como se estivesse a ver o corpo de Gerard
de Nerval na rua Vieille-Lanterne: houvesse sido um
banqueiro, Gérard de Nerval seria assim tão digno da
admiração do mundo e dos homens?
1945, junho, 9 — Não sei se o estilo é uma invenção —
como Brunetiére atribuiu a Rabelais — ou se nasce com o
escritor como qualquer dos seus órgãos
1945, junho, 11 — E' realmente surpreendente como o
tema da morte se restringe na inspiração dos
poetas. Ern nossa época — esse periodo sanguinario, violento,
anti-evangélico —, a última e insuperável devoção da morte foi
exercida por Rainer Maria Rilke. Em uma das Elegías de
Duino, servindo-se daquela paixão transfiguradora que anima
as variações da sua poesia, Rilke revela a morte. Mas não
encontro na transformação definitiva, que o poeta empresta à
morte, o alimento que a mantém como uma visão extraordiná-
ria. A morte me parece mais simples, menos apocalí-tica, um
bem de Deus tão pobre e comum quanto meu corpo e minha
própria vida. Eu a sinto, em caso extremo, no monólogo do
Hamlet.
1945, agosto, 26 — A crítica francesa já observara de
maneira quase unânime que The Fountain é, sem a menor
dúvida, o melhor dos livros de Charles Morgan. Relendo-o,
verifico que se liga ao resto da obra do romancista inglês pela
mesma expressão poética, aos outros romances se associando
pelo retorno ao ideal estético platônico. Ao contrário dos
outros, porém, consegue vencer a fase meramente literária. E' o
começo de uma penetração. O debate de todos os problemas,
estéticos ou metafísicos, que os neo-naturalistas vêm
desprezando. A indicação finalmente, de não ser possível ao
romance subsistir sem um grande esforço de criação nascendo
de um grande esforço de cultura.
1945, setembro, 4 — Se R. me perguntar porque voltei a
1er, quase de um fôlego, Adolphe, por certo não saberei
responder. Simples curiosidade, talvez, de leitor viciado. Mas a
história de Adolphe, que já se provou recolhida da
experiência sentimental do próprio
Benjamim Constant, e que impressionaria Byron, adquiria
como caminho mais direto a tragédia do coração. Pouco
importa — sei bem agora — o espaço de agonia que a abriga.
Também importaria menos surgisse em forma de confissão,
episódios lembrando o tímido e incompreendido Amiel. Nela,
na narração que se realiza através da força de um só impulso, o
que se guardaria seria naturalmente a fidelidade em trazer para
o sol uma zona humana complexa em sua distância e difícil em
sua obscuridade. Examinando-a, um crítico como Sainte-Beuve
— que também tentara, com Volupté, o romance de igual
densidade psicológica — não temeu escrever: "il trouvait
moyen d'atteindre et de fixer les impressions intérieures les
plus fugitives et les plus contradictoires". E não exagerava. Os
elementos, aparentemente erguidos na disciplina que o estilo
impõe, realmente nascem de uma inquirição que se extrema
nos menores detalhes. Uma penetração que disseca, feita com
sutileza, mas bastante poderosa para não permitir que a vida
dos sentimentos se ocultasse.
1945, outubro, 12 — Embora ficcionista (como já
demonstrara em Barometer Rising, seu livro de estréia) e
ficcionista capaz de atingir plenamente o universo /da poesia,
da aventura e da grande imaginação, Hugh Mac Lennan não
pode fugir ao apelo do Canadá. A solicitação vem da história e
da terra, poderosa em demasia a presença do meio físico e
humano. E outro não é o motivo porque Tuo Solitudes, antes
de ser rigorosamente um romance, é o melhor retrato, em
beleza e vida, dos últimos anos do Canadá. Lendo-o, sentia
não ter sido
traído na impressão que me deixara o lapis de Frank
Hennessey.
1945, outubro, 14 — Na verdade, não se pode permitir
citar Là-Bas como sendo o romance normal de Huysmans.
Èsse, como se sabe, publicado em 1891, é o último livro da
fase materialista. Ern 1892, conver-tia-sei E, já em 1895,
narrava a conversão nesse livro extraordinário da literatura
católica contemporânea: £n Route. O autêntico Huysmans é o
segundo.
1945, outubro, 20 — Lettres à Véronique numa leitura
que poderia ter sido calma, não fosse Leon Bloy gritar nos
meus ouvidos, incapaz de confessar-me vencido. Levantei-me
inúmeras vezes, o livro na mão. E Leon Bloy, que logo depois
ensinaria a Maritain o caminho da Igreja; Leon Bloy tão nobre,
tão digno, tão humano no seu destino; Léon Bloy que tudo
arriscou contra a ignorância e a crueldade do mundo; Leon
Bloy faminto e amargurado; esse Leon Bloy que teve mais que
nós outros o Cristo na sua loucura — o Leon Bloy que
proclama ter sido apenas um mendigo. Recusaram tudo,
emprego, audiência, a própria esmola. Mas não venceram a sua
coragem, seu direito à verdade, sua voz que compensava a
miséria denunciando os poderosos.
1945, outubro, 20 (um pouco mais tarde) Lettres ù
Véronique novamente na estante. E volto a escrever este diário,
humilde, como se Leon Bloy estivesse perto. Adianta,
adiantará alguma coisa a enorme ambição que se divide entre o
poder e a glória? O egoísmo dos que.* não se envergonham
com a miséria da própria condição?
Adianta, se as ofertas do mundo são pobres e tão raras? Cada
um responde a seu modo, depõe com o seu destino, testemunha
com a sua própria existência. Na base, o que assim deforma
monstruosamente a criatura humana é a incapacidade de sentir
o tempo, de conhecer a debilidade do corpo, de calcular o
espaço que ocupa no universo. Mas — perversa e inconcebível
determinação —, sempre cego e rude, o homem se ilude para
subsistir. Sua alegria é dramática. Dolorosa, a sua esperança.
Triste, o seu amor. Fosse possível olhar-se, medir sua loucura,
e não perdoaria a si mesmo o pavor que encontraria na
descoberta de si próprio.
1945, novembro, 5 — Muitas vezes, nestes últimos dias
de inquietação política, intolerância intelectual, tanta covardia
e má-fé, tenho pensado inexplicavelmente em Cézanne.
Expulsaram-no de Paris — os senhores da pintura, os críticos
eruditos, os donos das galerias. Refugiou-se, para não morrer
de fome, em sua aldeia de Aix. Mas, fiel à sua vocação, não
abandonou um só dia o pincel. Pintava para si próprio, para
satisfazer a exigência que vinha do fundo do sangue,
abandonando as telas no campo, sobre os cavaletes, sem saber
talvez que rudes e analfabetos camponeses as recolhiam, co-
movidos, guardando-as. Hoje, cinqüenta anos depois, os sábios
que o repeliram não podem ser confrontados com os
camponeses. . . Em que Cézanne me faz pensar — êle, tão só,
em um mundo assim hostil — é precisamente na fragilidade
dos julgamentos, na melancólica estupidez das "autoridades". .
. Consagraram-no, afinal, quando já tinha os pés na sepultura.
Melhor sorte,
porém, que Van Gogh, somente aceito depois que paralisou o
coração com uma bala.
1945, novembro, 18 — Moderno, no sentido eni que a
palavra possa indicar atualidade, Daniel de Foe criou um
processo objetivo e humano de ensino. Disciplinando a
imaginação — que o arrastava à ficção romanesca, aos livros
como Moll Flanders e A Journal of the Plague Year — seria
èle próprio que o traria até nós. Desde que Selkirk lhe narrou a
história do marinheiro náufrago, e essa história entregou às
crianças do mundo, que Daniel de Foe é moderno. Publicado
no século XVII, Rousseau, no século seguinte, aconselhava ao
Emílio a leitura do Robinson. Baden Powell, nos dias de hoje,
incluiu-o como indispensável na bibliografia dos escoteiros.
Seu autor vem sendo assim um contemporâneo de três séculos.
Se esses séculos o aceitaram, e o transfiguraram numa
tradição, foi porque lógica era a sua lição. Montaigne, como
éle, desejou fosse o mundo o único livro do seu discípulo. A
criança, como o marinheiro da sua história, conceberia,
prepararia e executaria sua própria ação. Alcançou, assim, os
mais recentes sistemas científicos de educação. Vendo-o,
poderemos situá-lo entre Maria Montessori e Helena Parkhurst.
Colocá-lo mesmo ao lado de Dewey. No entanto, quero dizer
apenas ter sido Daniel de Foe muito mais que um simples
precursor de sistemas.
Em educação, foi um humanista e um idealista. Peter
Petersen assim o definiria porque, afinal, êle fêz da educação
um problema autônomo de ser humano. Associou, talvez sem o
pressentir, o ato de educar-se à
experiência da criação independente, identificando-se com a
mais atual psicologia genética. Mas, escrevendo talvez para
todos os tempos, Daniel de Foe o fazia porque conseguira aliar
qualidades literárias — a poesia das idéias e da aventura — à
realidade psicológica. Antes da própria história que ouvira, não
se esquecera de colocar o mundo da criança. E, trabalhando
como em função de um princípio didático, como antevendo a
significação pedagógica da literatura, marcou o livro infantil
como um veículo decisivo de influência e educação.
1945, novembro, 22 — Alguém cita Faulkner a propósito
de Agnes Smedley. A romancista de Daughter of Earth poderá
ter revelado um trecho brutal da América. Traga-se o nome de
Michael Gold, de Caldwell, bem. Mas Faulkner, não. Como
seu antecessor Sherwood Anderson — um dos maiores
contistas do nosso tempo (Winesburg, Ohio, Horses and Men e
Death in the Woods), retratando a personagem em um traço,
dispondo de capacidade emotiva excepcional, superando
definitivamente companheiros de geração como Dreiser e
Sinclair Lewis — William Faulkner é um fic-cionista que
utiliza o social apenas como um meio, a chave que abre a porta
a esse mundo oculto que é o conflito interior dos homens. Leia-
se, por exemplo, Aa I Lay Dying. Veja-se, por exemplo, o
raciocínio de Vardaman, o amor (que Agnes Smedley ignora)
de Cash pelas ferramentas. A humanização com que impregna
os corpos materiais, canoa ou caixão, mesmo uma corda. Em
Faulkner, no respeito selvagem que demonstra pela vida,
aceita-se uma inocência quase ir-
reconhecível. Sempre a violação do nosso grande inferno. Um
homem que sente o abismo como Dostoievsky Jacob
Wassermann e, em outra latitude, André Gide.
1945, dezembro, 4 — Guy de Maupassant, que começou
a escrever sob os olhos de Flaubert, transformaria o conto,
caracterizando-o. Em suas mãos, o conto adquiria uma
estrutura revolucionária, a plasticidade sem excesso, a
expansão contida naquele equilíbrio que representa um limite
literário justo. Dar-se-ia a morte do conceito sintético, a
compreensão que o asfixiava numa espécie de romance sem
espaço. Mas, o que é verdadeiramente singular, foi encontrar-
se Maupassant com o naturalismo. E o naturalismo francês.
Tchekov, por exemplo, mais moço do que êle apenas dez anos.
realizando em outro plano um trabalho quase idêntico ao seu,
não encontraria assim tão vivo um ambiente literário.
Maupassant não podia evitar o contato* a presença do
naturalismo impondo uma reação inevitável. Seu
anticlericalismo é um sintoma expressivo.
1946, abril, 2 — Escrito durante a guerra, o pequeno
livro de Jacques Maritain — Christianisme et Démocratie — é
um dos primeiros sintomas àa preocupação universal, talvez a
primeira palavra ferindo o mundo de idéias que animará a
discussão entre os homens. O filósofo francês, responsável em
parte pela existência do melhor pensamento moderno,
entregava-nos, dentro mesmo da violência do século, uma
espécie de manifesto, vontade de esclarecer, quando nada uma
plataforma que, julgando, procurava reconstruir. Co-
meça, com esse livro, a discussão rigorosamente especulativa
sobre os maiores problemas sociais do mundo.
Sente-se, antes de tudo, em conseqüência da extensão e
profundidade dos assuntos — o destino da democracia ao lado
de uma idade que se esgota, o problema comunista atualizado
em oposição aos interesses das novas elites —, já não ser
possível admitir o julgamento dos fatos no círculo da
reportagem. Ao trabalho de jornalismo devia suceder a análise
desinteressada, o exame sem ortodoxia condicionado à pes-
quisa legítima, todo o pensamento teórico fundamentado na
objetividade e na consciência da verdade. A amplitude das
considerações invalida ensaios como o Lost Continent?, de
Noel Busch; House of Europe, de Paul Mowrer; ou planos
como aquele de Morgenthau Júnior em German is Our
Problem.
Nesse ponto, Christianisme et Democratic abre uma zona
digna no pensamento moderno e, na bibliografia do autor de Le
Docteur Angélique, é o livro capaz de completar Le
Crépuscule de la Civilisation, publicado em 1939. No ano
mesmo em que se dava a explosão da guerra, o filósofo do
Antimoderne, que castigava a pedagogia dos partidos e
criticava a divinização do chefe, não esquecia a censura ao
comunismo existencialmente ligado ao ateísmo. Pedia uma
ressurreição espiritual e social. Clamava pela renovação
profunda das energias interiores do ser humano.
Entre as tendências contraditórias, Maritain, como os
escritores do grupo Esprit, colocava-se numa posição que
agora, com Cliristianisme et Démocratie, se esclarece de modo
inequívoco. Mostra claramente que velhos perigos de antes da
guerra fazem, de repente, vir
à tona tremendas possibilidades. E, afirmando que assistimos à
liquidação do mundo moderno, detendo-se sobre a tragédia das
democracias modernas, conclui pela necessidade em descobrir-
se a organicidade da democracia — encontrá-la, como queria
Bergson, na inspiração evangélica. Já que as classes dirigentes
faliram moralmente, o que resta é apelar para as reservas
morais do povo, encontrar "homens", as "novas elites
dirigentes".
Opor-se sobretudo — e como são justas as palavras de
Maritain! — ao comunismo que, sendo uma filosofia de vida, é
uma doutrina irreformável e logicamente dominada pelo
ateísmo. Catástrofe "totalitária e ateísta". o comunismo não
pode participar da "democracia renovada". E, preocupado com
o regime que não ofenda a lei natural e a lei de Deus, Maritain
exige das democracias o esforço "para reintegrar o povo russo
na comunidade ocidental". Esta será a grande prova da
generosidade dos outros povos e dos cristãos do mundo.
Na austeridade dos problemas abordados, o livro de
Maritain recomeça o ciclo dos grandes estudos interrompidos
pela guerra. Antes de ser uma exposição de idéias extraída das
próprias condições sociais universais, é na verdade uma
apresentação de problemas. Maritain, nesse pequeno livro,
entrega-os à compreensão e à inteligência dos homens.
OS CADERNOS DE CULTURA
Direção de José Simeâo Leal
1 —José JANSEN ....................................... A mascai a no culto, no teatro « na
tradição
2 — ALVABO LINS, CARPEAUX a
THOMPSON ......................................... José Lins do Rego
3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores
4 — CARLOS BRUMMOND DE AN-
DRADE ................................................... Viola de Bolso
5 — Lúcio COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira
6 — Lúcio COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-
porânea
7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto
8 — DJACIR MENESES ................................ Formação profissional do Advogado
9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes
10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................ Monte Cristo, ou da Vingança
11 —Luis COSME ......................................... Música e Tempo
12 — JOÃO CABRAL DE MELO ...................... Miro
13 — OTÁVIO^ DE FARIA ............................... Significação do Far-West
14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte
15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica
16 — José CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantes
17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto
18 — GILBERTO FREYBE ............................. José de Alencar
19 — CLARISSE LISPECTOR .......................... Alguns Contos
20 — MARIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna
21 — ROSAHIO FUSCO ................................ Introdução à Experiência Esteilca
22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................... Realidade e Ficção
23 — DANTE COSTA .................................... O Sensualismo Alimentar
24 —LEDO IVO ............................................ Lição de Mário de Andrade
25 — EUGÊNIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventriloquo
26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens, Seres e Coisas
27 — OTAVIO TABQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias
28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura
29 — ALEXANDRE PABSOS ........................... A Imprensa no Período Colonial
30 — MANOEL DIÈGUES JÚNIOR ... Etnias e Culturas no Brasil
31 —CYHO DOS ANJOS .............................. Expio: ações no Tempo
32 — OSWALDINO MASQUES ....................... O poliedro e a rosa
33 — FERNANDO SABINO ............................. Lugares comuns
34 — PÉHiCLEs MADUBEIRA DE PINHO ... Notas á margem do problema agrário
35 — VitoRiNO NEMÉSIO ............................ Portugal e o Brasil na Historia
36 —Willy LEWIN ------------ ........... ... Ensaios de Circunstâncias
{Continua na 3° pág.)
JOSÉ FERNANDO CARNEIRO
APRESENTAÇÃO
DE
JORGE DE LIMA
MINiSTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO
Esta "Apresentação" me fora encomendada por Simeão
Leal quando Jorge de Lima ainda vivia, embora acometido de
terrível enfermidade e aguardando a morte com a
tranqüilidade de um verdadeiro cristão.
Estava tudo em fase de impressão quando ocorreu o
falecimento do poeta. O número de depoimentos e estudos que
a respeito de Jorge foram publicados nestas poucas semanas
que se seguiram à sua morte mostra abundantemente que êle
não precisa de "Apresentação". Sob esse nome convencional o
que se procura é oferecer uma pequena antologia de seus
versos precedida de uma introdução na qual se estudam alguns
aspectos de sua obra.
Presidiu à escolha dos versos um critério de gosto
pessoal e assim é possível, provável até que nem sempre
minhas escolhas hajam sido as mais acertadas. Mas confesso
que tanto a introdução como a antologia foram feitas com
entusiasmo e amor. E não podia ser de outro modo, pois quem
conheceu de perto Jorge de Lima não podia deixar de amá-lo.
Êle foi, em nosso meio, a encarnação da bondade. Outros
serão ou terão sido maiores do que êle em erudição, cultura ou
até importância literária. Ninguém poderá disputar-lhe a
primazia em matéria de generosi-
dade d'alma, lhaneza no trato, simplicidade nas atitudes. Tudo
em Jorge de Lima estava envolto num halo de bondade, até a
sua tristeza, até as suas fraquezas. Convivi com é/e mais de 20
anos nesta metrópole, em contado ao mesmo tempo com outras
figuras do nosso mundo literário, científico e político, figuras,
algumas delas, qpe despertaram e ainda hoje despertam a
minha admiração. Mas ninguém encontrei tão bom quanto
Jorge de Lima, tão constante na sua bondade. Sempra deu
mais do que recebeu. Como isso era possível, não sei. Deve
necessariamente haver um equilíbrio nas nossas trocas, uma
correlação entre o que se recebe de uns e o que se gasta com
outros. Mas a bondade de Jorge de Lima realizou esse milagre
quotidiano de ter sempre o que dar ,a todos os que dele se
acercaram, recebendo embora tão pouco.
Nunca tive com Jorge de Lima um só conflito, um só mal-
entendido, um momento sequer de mal-estar.
Bom, simples e sem orgulho. Era preciso uma ausência
total de orgulho para ter começado a pintar quando ele
começou e como ele começou. Desejou entrar para a Academia
de Letras. Mais de uma vez foi derrotado, mas voltava a bater
às portas da Academia sem dar às derrotas mais importância
do que elas realmente tinham, mas também sem arrogância e
sobretudo sem ressentimento. Porque um homem tão simples,
tão inteligente, tão bom quanto Jorge queria vestir o íardão
acadêmico, foi coisa que Bernanos nunca entendeu. Talvez
para ser fiel a algum sonho de infância, a algum desejo de
mocidade que nele seria bem mais atuante
que a consciência que a idade madura lhe terá dado, sem
dúvida, sobre o PGUCO valor das arcádias. José Lins do Rego
que tão bem o conheceu e tanto o amou, explicava que Jorge
queria entrar na Academia com o mesmo entusiasmo e a
mesma simplicidade d'alma de seus conterrâneos menos
letrados que, ao chegar ao Rio, desejam entrar no Batalhão
Naval.
Um aspecto de Jorge de Lima que não posso esquecer era
a graça com que sabia contar histórias, fossem histórias de
gente ou de bicho. Contou-me mil histórias, algumas que êle
lera, outras ouvidas, outras imaginadas. Cada qual a melhor.
Sen mundo de seres imaginados era imenso e só relativamente
poucos de entre eles foram chamados à vida romanesca.
Do bem que êle queria à humanidade, di-lo seu 'Poema
do Cristão".
A saudade que êle nos deixa é enorme. Sua presença nos
fazia acreditar em Deus porque era possível, no seu caso, ver
como o homem realmente foi feito à imagem e semelhança de
Deus. Um pecador feito à imagem e semelhança de Deus! De
todos os seus pecados, aliás, êle se humilhou em "Invenção de
Orfeu", poema que é o resumo de sua vida e de sua obra. O
talento de Jorge de Lima era grande, era mesmo sur-
preendente, mas os homens maus também têm talento algumas
vezes, e ninguém dirá que Satanás não seja talentoso. Não era
por causa dos seus talentos variados que Jorge de Lima nos
fazia acreditar em Deus. Era pela existência neste pecador de
uma qualidade ausente nos anjos maus: a bondade, o amor.
Sem essa
qualidade os seres se tornam opacos e não é mais possível ver
neles a marca da sua origem divina.
Jorge agora está no céu. Foi diretamente para lá. Seu
purgatório Deus lhe deu aqui mesmo, na terra, e foi a doença
final, a miséria orgânica, sua angústia infinita, tudo aliás
previsto em "Invenção de Orfeu".
Jorge de Lima, que estais no céu, rogai pot nós e pelo
Brasil.
JOSÉ FERNANDO CARNFIRO
MA análise da poesia de Jorge de Lima não é tarefa
simples. Segundo Murilo Mendes só a exegese de Invenção de
Orfeu exigirá o trabalho, feito com amor, ciência e intuição de
uma equipe de críticos. Se isso é verdade do seu ùltimo livro,
que dizer de uma análise que visasse o conjunto de sua obra
poética ? E de outra que visasse não apenas o poeta mas o
romancista, o crítico, o ensaísta, o tradutor, o pintor, o médico
e ainda o político que chegou a ser deputado em sua terra e ve-
reador e presidente da Câmara Municipal aqui no Distrito ?
Que homem variado ! Raimundo Magalhães Júnior
escreveu que não se espantaria se algum dia ouvisse alguém
anunciar: ^Meus amigos, agora vamos apresentar Jorge de
Lima como comedor de fogo e engulidor de espadas". E como
tinha tempo para tudo isso ! Creio que foi José Lins do Rego
quem certa vez disse que os dias de Jorge de Lima pareciam ter
48 horas e as horas 120 minutos.
Mas na sua atividade tão vária Jorge de Lima foi acima
de tudo um poeta e dizer isso é dizer bastante, pois estamos a
falar nada menos que do romancista de Calunga, do ensaísta de
Proust, do historiador de An-
8 —
Por isso mesmo sempre preferi a poesia negra de Jorge de
Lima àquela de Castro Alves. Embora devoto, um humilde
devoto do baiano que morreu com 24 anos mas deixou versos
danunzianos (danunzianos antes de D'Annunzio, no dizer de
Agripino), como sua boca era um "pássaro escarlate" e
shakespearianos como aquelas duas linhas referentes à
Inglaterra — compreendo que, a rigor, Castro Alves jamais fêz
poesia negra.
Disse-o muito bem Roger Bastide no seu livro Poetas do
Brasil: "o que interessa a Castro Alves não é o africano, é o
escravo. Não é tanto uma raça, é o fato social. O que há de
original e quiçá de novidade poética no âmago de um coração
africano, Castro Alves não viu. Suas negras, por exemplo, no
fundo têm a alma de "Mi-dinette" ou lembram as mulheres
perdidas tão caras aos românticos, que têm alma de santas".
Castro Alves não foi apenas um grande poeta, senão uma
grande figura humana e política. Em 1863, com 16 anos de
idade apenas, começou a sua pregação em prol da Liberdade,
um precursor, portanto, das grandes figuras que vieram depois.
Colocou seu estro a serviço dos escravos que, no Brasil,
acontecia serem pretos. Nesse sentido social, unicamente, é que
esteve identificado com os pretos. Sua poética é antinegra. Em
seus poemas acerca da escravidão fala em etrusca pira, em
barretes frígios, em harpas, em Medina e conseqüentemente em
bizantina, em Himeto, em Eumênides, em Lucano, em Corinto,
em Fórum, em Haidéia e em Coliseu. Esse o seu mundo
poético, de onde êle via o
Brasil e via os negros. Generosamente, bravamente, defendeu
os negros, protestando contra o fato de a bandeira do Brasil
servir para proteger navios negreiros:
"Meu Deus! Meu Deus mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia ?
Silêncio, Musa. . . chora e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto !. . .
Auriverde pendão de minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança. . .
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha !. . .
Que servires a um povo de mortalha!. . ."
Combatendo o bom combate e ao lado de versos geniais,
Castro Alves outras vezes fêz versos bastante inferiores, cheios
de "Salve ! Salve ! Salve !" ou "cala a boca furacão!" em estilo
de "meeting", rimando fra-guedos com silvedos, livores com
estridores, tombadilho com brilho e baunilha com granadilha.
"E as trancas mulheris da granadilha !. . . E os
braços fogosos da baunilha !. . ."
Ou então:
"Tu choras porque um ramo de baunilha
Não pudeste colher. Ou pela
flor gentil da granadilha ?"
E, por sinal, o que é granadilha ?
Enfim, na poesia de Castro Alves há por vezes a presença
lamentável da eloqüência, tal como existiu aliás na obra de um
Vítor Hugo ou de um Guerra Junqueiro.
Em Jorge de Lima, no também jovem poeta Jorge de
Lima, porque neste tópico só nos serviremos dos seus poemas
anteriores a 1930, nada disso. Poeta moderno, dos grandes, dos
genuínos, êle, como Carlos Drummond de Andrade, "não
rimará a palavra sono com a incorrespondente palavra outono".
E fará versos não sobre a condição social dos negros, mas
sobre os negros, a alma dos negros, as superstições dos negros.
tornando-se então o poeta humano dos negros. Por isso, porque
os pôde amar assim como eles são, Jorge de Lima os
apresentará como eles são, de cabelo pixaim e não de cabelos
anelados como Castro Alves quando falava da sua Lúcia.
Jorge de Lima percebe tudo quanto a economia brasileira
ficou a dever ao negro e por isso diz:
"Pai João remou nas canoas,
cavou a terra, íêz brotar do chão a
esmeralda das lôlhas:
café, cana, algodão. Pai João cavou mais
esmeraldas que Pais Leme."
Mas não é por essa razão econômica ou social que Jorge
canta o preto. Êle sentiu o preto e através do preto chegou até
aos aspectos sociais do trabalho es-
cravo. Castro Alves olhou a condição social do preto e mais ou
menos se deteve por aí, não foi adiante, não tocou na alma do
preto, não se pôs em contacto com esse subsolo riquíssimo da
poesia e da sensibilidade africanas.
Jorge sabe que exploravam o africano, sua mulher e sua
filha e nos conta tudo isso desse Pai João negro velho seco
"como um pau sem raiz":
"A filha de Pai João tinha um peito de vaca
para os filhos de ioiô mamar.
Quando o peito secou a filha de Pai João
também secou agarrada num ferro de engomar
A pele de Pai João ficou na ponta dos chicotes.
A força de Pai João ficou no cabo da enxada e da foice.
Pai João foi cavalo
para os filhos de ioiô montar:
Pai João sabia histórias tão bonitas
que davam vontade de chorar.
Pai João vai morrer
Há uma noite lá fora como a pele de Pai João,
Nem uma estrela no céu.
Parece até mandinga de Pai João."
Como isso é belo! Como a gente fica querendo bem a Pai
João e a todos os pretos velhos que nos contarem histórias,
daqui por diante. A pele de Pai João ficou na ponta dos
chicotes. E Jorge de Lima não esbravejou contra esses chicotes.
Não fêz "meeting" contra esse chicote que bateu tantas vezes
na pele de Pai João. Com que cólera, Castro Alves, a cabeleira
ao vento, anatematizaria esse chicote!
Vejamos alguns temas equivalentes tratados pelos dois
grandes poetas, o baiano Castro Alves e o alagoano Jorge de
Lima. Primeiro Castro Alves, com a sua Manuela:
"Provocante, mas esquiva
Viva Como um doudo
beija-ílor. . Manuela — a
moreninha
Tinha Em cada peito um
amor.. .
Manuela, Manuela
Bela Como tu ninguém
luziu... Minha travessa morena,
Pena Pena tem de quem
te viu.'. . .
Manuela. . . Eu não per juro !
Juro Pela luz dos olhos
teus.. . Morrer por ti, Manuela,
Bela Se esqueces os
sonhos meus.
Vamos pois. .. ó moreninha
Minha. .. Minha esposa
ali serás. . . Ao vale a relva tapisa
Pisa. . . Serão teus Paços
reais!
Por padre uma árvore vasta
Basta!... Por igreja o
azul do céu. . . Serão as brancas
estrelas
— Velas Acesas
pra o himeneu.
Companheiros! se inda agora Chora
Minha viola a gemer, É porque um dia. . .
Escutai-me
Dai-me Sim ! Dai-me antes que
beber !. . .
Ê que um dia. . . mas bebamos
Vamos. . . No copo afogue-
se a dor !. . . Manuela, Manuela
Bela, Fêz-se amante do senhor!.
. ."
A Negra Fuló também se íêz amante do senhor. E não era
apenas moreninha, essa negra Fulô, que chegou, isso já faz
muito tempo, no bangüê dum nosso avô e que forrava a cama
da Sinhá, ajudava a Sinhá a tirar a roupa, a pentear os cabelos,
a pôr os meninos para dormir, e que quando alguma coisa na
casa desaparecia, levava uma surra do feitor:
"O Sinhô foi ver a negra levar
couro do feitor. A negra tirou a
roupa O Senhor disse: Fulô ! (A
vista se escureceu que nem a
negra Fulô)
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulò? Ó Fulô? Cadê meu lenço de
rendas, Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê meu terço de ouro Que teu Sinhô
me mandou? Ah! foi você que roubou. Ah
! ioi você que roubou.
Essa negra Fulò!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuínha a negra Fulô.
Essa negra Fulô í Essa
negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
Que nosso Sinhô me mandou ?
Ah! Foi você que roubou
ioi você, negra Fulô!
Essa negra Fulô!"
Leia-se também "Saudação a Palmares" de Castro Alves e
compare-se isso com a "Serra da Barriga", belo poema que
certamente por descuido não aparece na coletânea de Poemas
Negros de Jorge de Lima, organizado pela "Revista
Acadêmica". Comenta Roger Bas-tide. no livro já citado:
"Castro Alves transforma o quilombo dos negros
fugitivos em um navio imóvel; é a seqüência e a con-
tinuação do navio negreiro, mas libertado de seus maus
senhores:
"Palmares1 a ti msu grito ! A ti,
barca do granito, Que no scçôbro
infinito Abriste a vela ao trovão. . ."
Mas para Jorge de Lima, a "Serra da Barriga"
"... bojuda, redonda
do jeito de mama, de anca, de ventre de negra"
que ele vê
"bulindo, mexendo, gozando Zumbi",
não é mais o navio que traz a África, e sim um ventre de
mulher que concebe, na dor e ao mesmo tempo na alegria, algo
de novo. Castro Alves voltou-se para o Paraíso Perdido;
Palmares é um retorno à vida tribal. Jorge de Lima olha para o
futuro; a Serra da Barriga é a mulher grávida de afro-
brasilianismo".
Nessa rápida série de contrastes entre Castro Alves e
Jorge de Lima poderíamos lembrar o poema "Adormecida" do
primeiro e "Madorna de Iaiá" do segundo:
"Uma noite, eu mo lembro... Ela dormia Numa rede
encostada molemente. . . Quaae aberto o roupão. ..
solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina.. . ao longe num
pedaço do horizonte, ria-se a noite plácida e divina.
De um jastnineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala, E de leve
oscilando ao tom das auras, Iam na lace
trêmulos beijá-la."
E em mais três estrofes corre o poema, esplêndido aliás
no seu lirismo. A madorna de Iaiá é também numa rede, mas é
diferente, sem cheiro do jasmim. Vem o cheiro de mel da casa
das caldeiras:
"Iaiá está na rede de tucum. A mucama de
Iaiá tange os piuns, balança a rede, canta um
lundum,
tão bambo, tão molengo, tão dengoso, que
Iaiá tem vontade de dormir. Com quem?
Que preguiça, que calor ! Iaiá
tira a camisa, toma alua, prende
o cocô, limpa o suor, pula pra
rede,
mas que cheiro gostoso tem Iaiá! Que
vontade doida de dormir. . . Com quem ?
Cheiro de mel da casa das caldeiras!
O sagüim de Iaiá dorme num coco.
Iaiá ferra no sono
pende a cabeça
abre-se a rede
como uma ingá.
Pára a mucama de cantar,
tange os piuns,
abre a janela,
olha o curral,
um bruto sossego no curral!
Muito longe um peitica íaz si-dó. . -si-dó. . .
si-dó. . . si-dó... Antes que Iaiá corte a
madorna, a moleca de Iaiá balança a rede,
tange os piuns, canta um Iundum, tão bambo,
tão dengoso
que Iaiá sem se acordar, se coca
se estira
e se abre toda, na rede de tucum. Sonha
com quem ?"
Julgo que o exame desses poemas nos quais Castro Alves
e Jorge de Lima tratam de temas análogos, serve para mostrar a
superioridade da boa poesia moderna brasileira sobre a poesia
que nos antecedeu. Há um progresso, sem dúvida, não no
sentido de que Jorge de Lima seja superior a Castro Alves, mas
no sentido de que a posição na qual Jorge de Lima se colocou
para apreciar por exemplo o preto brasileiro é, no ponto de
vista poético, menos artificial, mais genuína.
Quanto à estatura poética e humana de Castro Alves, não
pretendo, de forma alguma, desconhecê-la. Mas exatamente
num homem desses, de lirismo tão puro, simples, cristalino, tão
liberto de qualquer influência pedante ou gongórica, tão longe
do chamado "estilo da época" (sirva de exemplo a "Canção do
Violeiro", e tantos outros de seus poemas), num homem desses
se pode ver como a mania de invocação e da apóstrofe, a
serviço de uma causa política — embora da
mais nobre das causas — pode levar a linguagem do poeta a
aproximar-se perigosamente do discurso de propaganda, senão
do bestialógico.
*
* *
A poesia regional e ainda a poesia negra de Jorge de Lima
terminaram, por assim dizer, com a mocidade do autor. Veio
depois sua poesia de madureza da qual o monumento mais
expressivo é Túnica Inconsútil. O poeta saiu do mundo natural
em que vivia e ingressou num mundo preternatural, povoado
de seres fantásticos. Esses seres o mais importante é Mira Celi.
Eles apareciam no decorrer de um poema e pegavam a mão do
poeta:
"Alta noite, quando escreveia um poema qualquer
sem sentirdes que o escreveis,
olhai vossa mão que vossa mão não voa pertence mais;
olhai como parece uma asa que viesse de longe.
Olhai a luz que de momento a momento
sai entre os seus dedos recurvos.
Olhai a Grande Mão que sobre ela se abate
e a íaz deslizar sobre o papel estreito,
como o clamor silencioso da sabedoria,
com a suavidade do Céu
eu com a dureza do Inferno!
Se não credes, tocai com a outra mão inativa
as chagas da Mão que escreve."
Estes seres passaram depois a viver, a existir no mundo
de Jorge de Lima e não mais se afastaram de
sua vida. Passaram a ser reais e se não partiram sua
personalidade em heterônimos, fizeram-no sofrer muitas vezes,
foram os causadores da tristeza e da angústia dos seus últimos
anos.
Era à noite sobretudo que o poeta os via e sentia:
" "Acontece que uma face
alta noite vem juntar-se à minha lace.
Magia: ela penetra em meus lábios, em
minha fronte, em meus olhos, e eu não sei
se é a minha face ou se é a íace do meu
sono ou da morte. Ou quem diria ? se
de alguma criatura composta apenas de
face incorpórea como o sono, face de
Lenora obscura que penetra em minha
sala e do outro mundo me espia."
Há nessa Túnica Inconsútil alguns poemas admiráveis e
que jamais serão esquecidos, entre outros "A Ave", "O nome
da Musa" e a "Morte da Louca". Cito esses três por uma
questão puramente pessoal de gosto, embora outros tenham até
feito maior sucesso e merecido tradução em várias línguas.
Se Túnica Inconsútil é sua obra de madureza, Invenção de
Orleu é seu livro de despedida. Jáo poeta, ainda com a
recordação dos mundos em que andou, aproxima-se do
sobrenatural, da vida eterna. Sobretudo no canto "Missão e
Promissão" há diversas formas de
um ser humano que se aproxima do Cristo através da poesia. E
o Cristo invade o poema e o purifica:
"Èle-o-sem-mêdo quer meu próprio medo Êle-a-
poesia quer o meu delírio Éle-a-verdade quer
minhas mentiras."
A presença da Trindade, do Cristo, de Nossa Senhora não
estão todavia explicitadas no livro. São presenças intensas mas
discretas, fortes mas quase invisíveis .
Invenção de Orfeu é sem dúvida um livro bastante
obscuro. Se dele se pode retirar por vezes uma poesia lógica,
tão clara quanto a de Racine, o poema outras vezes adquire
involuntariamente uma forma hermética, o que nos leva a uma
indagação de natureza mais geral sobre a linguagem poética e
de modo particular sobre o problema da obscuridade em poesia.
Não se trata evidentemente, no caso de Jorge de Lima, de
obscuridade procurada, desejada, tal como se usa para
disfarçar, tornar aceitáveis velhos temas poéticos de
conhecimento geral. Não se podendo ser original quanto à
mensagem procura-se quanto ao estilo. Representa esse
linguajar abstruso, elaboradamente obscuro de certa poesia
uma forma moderna de parnasianismo, se considerarmos que o
defeito capital do parnasianismo consistia numa desproporção
entre matéria e forma, dando-se a essas expressões, caso me
seja permitido o seu uso nesse domínio da arte, valor apenas
análogo ao que possuem na filosofia tradicional.
Parecerá talvez estranhável que se fale em desproporção a
propósito dos poetas parnasianos, quando se
medita no extremo apuro, no pulimento de forma que
caracterizou aquele movimento surgido como reação contra os
exageros e os desmandos do romantismo. Mas era exatamente
nessa confiança excessiva na excelência do estilo que residia a
desproporção referida. No fundo, esse formalismo literário era
um artifício, uma defesa, uma fuga e também uma forrna de
pedantismo, hoje superaãa, na qual todavia as palavras
conservavam seu sentido. Fugindo ao desagradável mundo do
século XIX alguns poetas se refugiaram num monte simbólico,
habitado por musas; agora, no século XX, outros se refugiam
numa mata meio agreste, confiando mais na astucia das
camuflagens e nas guerrilhas de despistamento do que na
proteção das velhas armaduras clássicas.
Mas Jorge de Lima nunca teve tempo a perder com essa
mistificação vocabular comum quer nos parnasianos quer
nalguns modernos.
Êle sentia, aliás, muito vivamente, que a manipulação do
poema faz perder muita poesia. E quer o Livro de Sonetos quer
Invenção de Orfeu foram escritos ao correr da pena, de um jato,
por incrível que pareça. Ká no livro versos de vários autores,
versos de Camões, de Dante, de Murilo Mendes e essa autoria
nem sempre é devidamente assinalada. Há por exemplo à
página 390 três versos de Barbieri, aliás banalíssimos e que
Jorge de Lima só depois, relendo o livro, assinalou. São versos
que aparentemente não têm poesia, encerram somente ruído e
que numa próxima edição deverão sair entre aspas conforme
desejo expresso de Jorge de Lima. Recordo-me da sua
confissão: "Ri-
mado ou não rimado, tudo saiu espontaneamente de dentro de
mim, embora o que estivesse dentro de mim nem sempre me
pertencesse."
No caso vertente pois, o que há de plágio no livro
demonstra a espontaneidade, a sinceridade desse poema, que
saiu como uma lava da alma do poeta.
Deixemos também de lado a obscuridade que traduz
simples imaturidade de forma, incapacidade de traduzir bem o
assunto, o conteúdo. Esse, muito menos, é o caso de Jorge de
Lima.
Mas há a obscuridade que deriva da tentativa de exprimir
coisas que estão no limite da nossa percepção, da tentativa de
dizer o indizível. A obscuridade aqui é inerente ao mistério.
Mesmo o artista mais bem aparelhado sente que a matéria
excede a forma, que o objeto excede o vocabulário, que a
mensagem como que ultrapassa sua vivência profunda. No seu
esforço de captar uma realidade cujo centro escapa a todos os
instrumentos disponíveis, o artista às vezes passa a usá-los em
vão, numa insistência, que é um exorcismo, de quem procura
trazer à aurora da poesia um horizonte apenas entrevisto, por
um instante, na noite transluminosa.
Nesse uso insistente da linguagem poética à procura de
sua matéria corre-se o risco de cair no nefeli-batismo, num
simples palavreado sem sentido. Em vez de pernosticismo há
logorréia. Porque a palavra, como os outros instrumentos da
arte, nunca valeu por si só. Um encontro de palavras como um
encontro de cores e de sons, só tem valor quando determina um
encontro de idéias e de sentimentos. E de novo se faz
sentir, em toda sua força, a exigência de um equilíbrio entre
matéria e forma.
A obscuridade que se nota na poesia de Jorge de Lima
resulta sem dúvida de sua tentativa de alcançar terras não
ocupadas, de encontrar a ilha que ninguém achou, de
"reivindicar um mar para essa ilha que possui "cabos-não" a ser
dobrados". A bordo de sua ébria embarcação, de seu veleiro
sem velas, o poeta sabe contudo que
"Mesmo nesse íim de mar qualquer ilha
se encontrava mesmo sem mar e sem
íim mesmo sem terra e sem mim.
Mesmo sem naus e sem rumos, mesmo
sem vagas e areias, há sem pro um
copo de mar para um homem navegar."
Os defeitos de sua poesia são os defeitos próprios de
quem chegou "nesse fim de mar" e se Jorge jamais cai no
pernosticismo, tende algumas vezes a cair nas associações de
palavras puramente foneticas, na logorréia, traindo através
desse cacoete, que reponta de raro em raro, a direção dos seus
esforços.
Mas o que êle procura é:
"Não a vaga palavra, corrutela vã,
corrompida íôlha degradada, de raiz
deformada, abaixo dela, e de vermes, além,
sobre a ramada;
mas a que é a própria ilor arrebatada pela fúria dos
ventos: mas aquela cujo pólen procura a chama
iriada, flor de fogo a queimar-se como vela :
mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas larva, mas inferno,
mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,
esta é que é a tier das flores mais ardida,
esta veio do inicio para o eterno,
para a árvore da vida que há em mim."
Quando, recuando um pouco em sua pesquisa, Jorge de
Lima pisa terra mais firme ou navega águas mais conhecidas,
quando de um primitivo da nova poesia volta a ser um clássico
da velha poesia, produz então poemas admiráveis que poderiam
servir como exemplos de adequação entre matéria e forma.
Veja-se por exemplo o soneto XXVI de Invenção de Orfeu, que
aparece na presente antologia.
Ou então esse outro, inspirado pela recordação de um
efebo de beleza indeterminada, e que veio a morrer afogado:
"Vinha boiando o corpo adolescente belo
pastor e sonho perturbado. Deus abaixou-lhe os
cílios alongados para que é/e dormindo
flutuasse.
Ressuscita-o Senhor, essa medusa de sangue juvenil
em rosto impúbere, desterrado da vida, flor perdida,
irmão gêmeo de Apoio trimagista.
Seca-lhe a espuma que lhe inunda o peito e as
convulsões mortais que o imolaram às sodomas ardidas
em seu leito.
Anjo adoecido, alheio dançarino
que dançaste em Gomorras incendiadas,
estás cansado; deita-te, menino!"
Já que assinalei esses dois sonetos quero também recordar
aquele da página 177. Não tentarei analisá-lo, transcrevo sem
discuti-lo, como um presente a mim mesmo, pois êle constitui,
tanto quanto eu possa julgar e sentir, uma das coisas mais
belas, mais estranhas e misteriosas que jamais li:
"A tristeza era tanta, tanta a mágua que seu
anjo da guarda resolvera lutar cem êle, lutar
para lutar, que o interesse da vida perecera.
Ave e serpente, círculo e pirámide, os olhos em
fuzil e os doces olhos, os laços, os vôos livres e
as escamas.
Que doida simetria nesses ódios !
Que forças transcendentes aros e ángulos
alguém quis que lutassem nesse dia!
Ave e serpente, círculo e piràmide:
Que divina constante simetria
nessa luta soturna, nessa liça
em que Deus reconstrói o eterno cisne!"
Vê-se por essas amostras a maturidade de sua forrna, a
excelência de linguagem desse poeta que é a um tempo
um clássico e um primitivo. Aliás Jorge de Lima cria, nesses
dois livros, novos tipos de soneto, seja o soneto inconsútil, do
qual se encontram bons exemplos à página 92 de Invenção de
Oríeu e à página 609 de Obra Poética, seja o soneto que João
Gaspar Simões denomina jorgeano, tais os das páginas 26 e
179 de Invenção de Orfeu ou o da página 583 de Obra Poética.
Os três sonetos acima transcritos, os dois primeiros pelo
menos, constituem sem dúvida exemplos de claridade.
Voltando porém à questão da obscuridade e procurando
compreendê-la melhor, direi que cumpre distinguir a poesia
dos estados conscientes e a poesia dos estados de sonho.
Na poesia dos estados conscientes, para que haja
adequação entre matéria e forma, mensagem e estilo, exige-se
que esse último seja compreensível e através da razão fale às
nossas emoções.
Mas há a poesia dos estados crepusculares que possui
símbolos e leis próprias e usa necessariamente uma linguagem
de qualidade diferente.
Entretanto, quer a linguagem do homem acordado quer a
do homem que sonha, têm valor universal. Em todas as
latitudes os outros homens compreendem a linguagem diurna e
sentem a linguagem obscura da noite. O que é falso é o
emprego da linguagem noturna para exprimir os pensamentos e
os desejos do homem acordado. Isso cria uma falsa
obscuridade. Por isso certos versos obscuros, que pretendem
transmitir pesadelos, mas que foram pacientemente fabricados
ao meio-dia, não convencem .
Temos em Jorge de Lima um bom exemplo, creio mesmo
que o nosso melhor exemplo de autêntica poesia noturna, na
qual o autor apenas se limitou, humildemente, a escrever aquilo
que sua memória ainda guardava dos sonhos de véspera,
coibindo-se de qualquer colaboração posterior. A forrna
metrificada e rimada na qual as imagens guardadas pela
memória estão colocadas, não custou esforço ao poeta e por
isso não representa uma elaboração maior dos restos noturnos
do que se tivessem sido colocadas em prosa.
A esse respeito é curioso relatar que os 77 sonetos que
formam o livro Sonetos e que figuram na Obra Poética e mais
25 outros não publicados, ao todo mais de 100, foram escritos
em estado de hipnagose, no espaço de 10 dias apenas, Jorge de
Lima levantando-se às vezes de madrugada e compondo de
uma vez dois a três sonetos. Não sei se seria do gosto do poeta
a narrativa das circunstâncias que cercaram a produção desses
sonetos. Li-mitar-me-ei a referir que foram escritos em
momento de grande angústia quando seu autor começou a
sonhar acordado e a ver, diante de si, entre outras coisas, o galo
da igreja do Rosário em Maceió, um galo de orientação dos
ventos, que Jorge de Lima achava belíssimo e que muito
ocupou sua imaginação de criança. Tinha 7 anos e, segundo me
disse, ia dormir com aquele galo na memória. De dedo em riste
um vereador petebista ameaçava seu adversário udenista: "Sr.
Presidente, todos nesta casa são testemunhas. . .". Mas o
presidente da Câmara, involuntariamente alheio àquela
algazarra, via apenas, diante de si, girando, o galo da igreja do
Rosário.
E Celidônia. E Elisa. Também a draga da praia de Pa-jussara.
Na praia de Pajussara defronte de sua casa, havia uma
draga, que lhe parecia fantástica e em redor da qual os meninos
brincavam. Um dia Elisa, mais afoita, entrou na draga e não
pôde sair senão depois de muitas horas. Jorge tinha 8 anos e
sentiu o pavor da cena.
Celidônia era uma pretinha muito bonita que morreu
afogada no rio Mandaú e que Jorge nunca esqueceu. Foi a
primeira tristeza forte de sua vida.
No momento de angústia a que me referi, há 4 anos atrás,
Celidônia, Elisa, a draga, o galo da igreja e muitas coisas mais
começaram a aparecer em frente de Jorge de Lima e êle teve
medo. Era sua infância que vinha em seu socorro, mas no
primeiro momento, êle não compreendeu. Sonhando acordado,
angustiado, amedrontado mesmo, fêz os sonetos e ao cabo de
10 dias a crise havia passado. Sua infância se interpusera entre
êle e o presente e a angústia se desvanecera.
Não tenho todavia o direito de contar mais do que aí está,
o que aliás estou fazendo por conta própria. Mas basta o que
foi dito para deixar assinalado o caráter onírico dos seus
Sonetos, nos quais os mesmos temas se repetem e o mesmo
sonho é sonhado duas ou três vezes, com pequenas variações.
Muitas imagens desses sonhos são de novo relembradas em
Invenção de Orfeu.
Aquelas moças bonitas, de cabelos longos, que o menino
Jorge pensava que iam ser raptadas, aparecem debruçadas nas
janelas em muitos versos, quer em Sonetos (ver Obra Poética,
páginas 590 e 596) quer em Inven-
ção de Orieu (páginas 34 e 344). O poeta sabe que elas o
acompanharão até o fim, êle as verá ainda no dia do Juízo
Final, mas, ao afirmar isso, nada pretende acrescentar às
profecias, nada, pois conhece e teme a advertência do
Apocalipse.
O cavalo todo feito em chamas, recoberto de brasas e de
espinhos, aparece outras tantas vezes (Invenção de Orieu,
páginas 156 e 157, Obra Poética, página 614). tantas vezes
pelo menos quanto o galo.
Este galo que havia na igreja do Rosário, aquela draga
encalhada na praia de Pajussara, os cavalos rodando em torno
de sua vida parada, as meninas ainda debruçadas nas janelas, a
tristeza pela morte de Celi-dônia, estas e outras reminiscências
constituem a armadura poderosa que defende o poeta nesse
mundo de adultos, nesse mundo que só é possível habitar
porque nele ainda vivem os ecos de sua infância. E basta a
Jorge de Lima querer escutá-los, registrá-los de novo, uma,
inúmeras vezes, para reencontrar a paz, a graça, o minuto de
eternidade no tempo.
Com essa certeza de encontrar a paz, Jorge de Lima
lançava-se em suas aventuras poéticas. Sempre encontrava a
paz mesmo quando não encontrava a ilha.
Em seu inconsciente sua infância estava costurada à
infância do Brasil, à aventura portuguesa nos mares do sul.
Certamente a história do Brasil, tal como era contada pelos
homens da geração de Capistrano, encantou a infância de Jorge.
Inseridas na raiz mesmo de sua sensibilidade estavam as
imagens do descobrimento, da conquista, da evangelização.
E Jorge de Lima se sentia português, no fundo, na
essência, "Barão ébrio, mas barão". No início êle não tinha
talvez essa consciência, mas sua lírica e sua religiosidade já
estavam impregnadas de uma ternura tipicamente lusitana. Por
exemplo, sua maneira carinhosa de conversar com o Menino
Jesus (ver adiante, nesta antologia, o "Poema de Natal") é bem
brasileira, mas é, igualmente, bem portuguesa. E bem
antiespanhola.
O Cristo espanhol, sempre em seu papel trágico, não
permitiria tais intimidades aos seus poetas.
O pecado não conseguiu destruir a infância, a pátria, a
em Deus. Sua fé era penhor de salvação, embora Satanás,
como seria de esperar, não estivesse indiferente:
"Ouço o meu nome. Volto-me. Chemarsm-me.
A cara viperína é tão visível
que lhe falo da porta devagar:
Lúcido ser, agudo ser terrível
e sempre antecedente Sagitário,
por que vens visitar o meu poema ?
De que círculo de horror ou de que treva
trazes a inquietação ao meu silêncio?
A que eu amo não mora nesses dramas, e em meio às
potestades preexistiu; nada podes dizer-me de seus
hortos; que pretendes demônio, serpe ou nada ?
Ouço o meu ncme. Volto-me. Chamaram-me, ou me
chamei ou o tempo me chamou ? ou abriram a porta
devagar? Visitante noturno onde te ocultas,
em que obscura vertente te assinalas? Ó
dorme antigo ser permanecido, lúcido ser,
agudo ser terrível, ó sempre antecedente
Sagitário.
Regresso ao meu zodíaco de espelhos contemplo a noite vasta e
simultânea à solidão me entrego, sacra névoa, * respiro os
horizontes superados, sossego a ventania despertada, e eis que
escuto o meu nome; certo é o nome de alguém perdido em mim,
algum lamento, algum adeus que de outro lado vem.
Loucura efêmera antes não viesses reintegrar-me no
senso verdadeiro. Quero voltar a ti, a calma branca
sem apelos a mim, de mim, de quem ? Amo-vos
virgens campos da poesia com os tules das
mensagens pressentida. Reacendo esta Lâmpada. E
Esta. E Esta. Sabeis quais são as Três. Laudamus
te."
* *
Esta posição religiosa de Jorge de Lima assinala sua
profunda diferença com outro grande poeta da língua
portuguesa. Creio até que encontraremos aqui um exemplo
muito sugestivo das diferenças conseqüentes à posição
religiosa em dois poetas que, de outra maneira, muito se
pareciam.
A formação filosófica não altera a trajetória dos homens
medíocres. Parece que, quaisquer que sejam as crenças dos
homens medíocres, farão ao cabo as mesmas
coisas. Mas não é impunemente que o artista adere a tal ou qual
filosofia.
Assim temos que enquanto em Jorge de Lima a poesia é,
do ponto de vista do afeto, um termo e não uma procura, ou, se
dissermos em outras palavras, uma procura na qual já existe
plenitude, uma procura na qual o poeta já encontra sua
recompensa, em Fernando Pessoa a poesia, toda ela é uma
ascese, uma "noite escura", mas uma noite além da qual nada
espera encontrar, além da qual êle nada pode vislumbrar. Uma
procura sem a virtude teologal da Esperança. Por isso mesmo
"no seu céu interior nunca houve uma única estrela".
Fernando Pessoa procurou sentir o absoluto nas coisas
transitórias, pois essa sede estava nele presente e queimou sua
alma e partiu sua personalidade em diferentes heterônimos.
Mas por um segredo que escapa ao nosso conhecimento nunca
recebeu indicação alguma do lugar onde poderia finalmente
saciar a ardente sede. O resultado dessa procura vã foi o
cansaço:
"O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer do tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, êle mesmo
cansaço.
Há sem dúvida quem ame o iníinito, Há sem dúvida quem
deseje o impossível Há sem dúvida quem não queira nada
Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêlea : Porque eu
amo infinitamente o finito, Porque eu desejo
impossivelmente o possível.
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada, Para êles o sonho sonhado
ou vivido, Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto. . . Para
mim só um grande, um profundo E, ah com quo felicidade
infecundo cansaço Um supremíssimo cansaço, íssimo, íssimo,
íssimo, cansaço."
Um homem tão lúcido e um poeta tão grande —
desprovido de Fé — teria que em face da vida dilacerar-se. E
foi o que aconteceu. Êle era grande demais para contentar-se
com sucedâneos. Lúcido demais para encontrar na descrença
um motivo de júbilo, à semelhança, para citar um exemplo
qualquer, do brilhante autor de Le Neveu de Rameau ou de
algumas outras figuras que o século dezoito particularmente
nos oferece. Foi um personagem múltiplo, o que sem dúvida
indica riqueza mas representa um empobrecimento. Os hete-
rônimos, no caso de Fernando Pessoa, não valem como pilhéria
literária ou como indicação do poder e da versatilidade de sua
inteligência, mas significam uma tragédia espiritual. Essa
tragédia Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e
Álvaro de Campos a enunciam numa linguagem limpa de
atavios. O estilo deles é sempre claro, transparente.
Transparência de palavras como talvez conviesse melhor à
indagação filosófica.
Como já o notou Ra'issa Maritain, as palavras para o
poeta têm côr, têm certo brilho, daí resultando que não podem
ser substituídas impunemente por sinônimos e daí também a
dificuldade que existe nas traduções.
Na filosofia a palavra é transparente à significação do objeto.
Não há obscuridade alguma no estilo dos filósofos. Bastam as
dificuldades próprias da indagação metafísica. Por isso, quem,
a essa obscuridade acrescenía à do seu próprio estilo, não pode
ser considerado um filósofo e deve ser eliminado sem piedade.
A poesia de Fernando Pessoa era também uma procura
filosófica desesperada e daí a deflação, o desnudamento. E
sobretudo porque é um agnóstico, seu idioma poético é
conceituai. Recordo-me de Caeiro insistindo em que
... "o único sentido oculto das coisas ê elas não terem
sentido oculto nenhum."
Ou então:
"As coisas não tem signifícação; têm
existência."
Ria-se muito dos poetas místicos:
"Os poetas místicos são filózofos doentes, e os
filósofos são homens doidos."
Sua poesia adquire freqüentemente aspectos críticos,
outras vezes de revolta. Tenho em mente aquele magnífico
poema de Álvaro de Campos dizendo que não quer nada e que
não lhe venham com conclusões. Ou então aquele outro,
quando êle nos conta como deu generosamente todo o dinheiro
que havia na algibeira onde éle guardava pouco dinheiro.
Senão a alegria, pelo menos uma certa tranqüilidade na
descrença, bem que o poeta a desejou:
"Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele
quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria
falar comigo E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou !
"Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deus
quis que o não conhecêssemos, Por isso se nos não
mostrou. . .
"Sejamos simples e calmos
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos
E dar-nos-á verdor na sua primavera
E um rio onde ir ter quando acabemos.'..."
Mas nesse mesmo poema, apenas linhas adiante, Alberto
Caeiro irrompe em insultos ao Espírito Santo e à Nossa Senhora
que, do ponto de vista de sua gravidade teológica, de muito
ultrapassam os insultos de um Car-ducci, de um Leconte de
Lisle, de um Louis Menard ou, para citar um exemplo
português, de um Guerra Jun-queiro, ao Cristianismo, à Igreja
Católica e a Nosso Senhor Jesus Cristo. Insultos, a gente bem o
percebe, que não são proferidos "Pour épater" ou pelo desejo de
polemizar mas que têm o valor espiritual de uma blasfêmia
autêntica.
Nos grandes momentos de Fernando Pessoa há contudo a
aceitação, literária embora, do mistério. Assim, diante da
aventura e da glória lusitana o poeta recupe-
rava sua unidade, voltava a usar seu nome de batismo, tornava-
se mais humilde em face do universo. Então êle compreendia
que "as nações todas são mistérios" e que "todo começo é
involuntário; Deus é o agente" e compreendia ainda como
nasce a obra:
"Deus quere, o homem sonha, a obra nasce".
E houve um minuto, um instante em sua vida em que
Fernando Pessoa sentiu não apenas o vazio das coisas possíveis
que êle amava impossivelmente mas qualquer coisa mais:
"Quando é que passará esta noite inteira, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado ?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei à casa?
Onde ? Como ? Quando ?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo
9
É esse ! É esse !
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia.'"
A poesia de Jorge de Lima nunca é polêmica. Sequer
social. Sua poesia é um transbordamento. O próprio autor não
sabia realmente, algumas vezes, o que queria
dizer. Ressonâncias de palavras, de imagens, de formas, êle
humildemente as deixava passar, fluir, delir. Não dominava a
poesia como Fernando Pessoa. Contentava-se Jorge
freqüentemente com frases que não tinham sentido lógico, mas
apenas qualidade musical ou força de mistério. Na sua
simplicidade, isso lhe bastava.
Também nunca Jorge de Lima fêz poesia religiosu, é
preciso que se assinale. A fé é subjacente, a esperança é
imanente no seu poema, mas nem os motives religiosos nem os
sociais constituem o objeto formal de sua poesia. Podem
quando muito constituir, aqui e acolá, pretextos. motivos para a
poesia.
Tudo aliás serve de motivo para sua poesia. Seu apetite
poético era universal e quando um cacto se mostrava muito
duro, o poeta, mesmo assim, o cobria de ternura:
"Mandacarus, mandacarus, que
técnica vos fêz tão torres nesse verde
marfim de caule que não dá lenho
para quem deseje um poema, um navio
manso, mas encarnais ossuárioa com
tutanos de seiva oculta manancialmente
para bois."
No seu livro Jorge canta também o reino mineral e
indaga:
"Quem te fêz assim soturno quieto
reino mineral, escondido chão
noturno?
Que bico rói o teu mal ? Quem antes
dos sete dias Te argamassou em seu
gral?"
Mas se Jorge não foi um polemista, nem um filósofo, nem
pretendeu nos oferecer mais do que poesia, poesia diurna e
noturna, ora em sonetos de perfeição clássica ora em poemas de
sabor nascente, seus dois últimos livros nos levam a estudar
certos problemas, quais entre outros, o da obscuridade na
poesia e o da significação da posição filosófica e religiosa do
seu autor. Os críticos encontrarão realmente material para
exame nesse livro inesperado e generoso que é Invenção de
Orfeu, o qual vem tornar definitivamente inaceitável entre' nós
essa poesia, como dizia Bernanos, "aux petits cubes, aux petits
poèmes ironiques, aux petits bonbons lyriques".
J. F. C.
ANTOLOGIA
BONECA DE PANO
Boneca de pano dos olhos de conta,
vestido de chita, cabelo de fita, cheínha
de lã.
De dia, de noite, os olhos abertos,
olhando os bonecos que sabem marchar,
calungas de mola que sabem pular.
Boneca de pano que cai:
não se quebra, que custa um tostão.
Boneca de pano das meninas infelizes que
são guias de aleijados, que apanham pontas
de cigarro, que mendigam nas esquinas, coitadas !
Boneca de pano de rosto parado como essas meninas.
Boneca sujinha, cheínha de lã.
Os olhos de conta caíram. Ceguinha
rolou na sargeta. O homem do lixo a levou,
coberta de lama, nuínha,
como quis Nosso Senhor.
(Dos "Poemas")
PAI JOÃO
Pai João secou como um pau sem raiz.
Pai João vai morrer. Pai
João remou nas canoas.
Cavou a terra.
Fêz brotar do chão a esmeralda
Das folhas café, cana, algodão. Pai
João cavou mais esmeraldas
Que Pais Leme.
A filha de Pai João tinha um peito de
Turina para os filhos de ioiô mamar:
Quando o peito secou a filha de Pai João
Também secou agarrada num
Ferro de engomar.
A pele de Pai João ficou na ponta
Dos chicotes.
A força de Pai João ficou no cabo
Da enxada e da foice.
A mulher de Pai João o branco
A roubou para fazer mucamas. O sangue de Pai
João se sumiu no sangue bom
Como um torrão de açúcar bruto.
(Dos "Poemas")
ESSA NEGRA FULÔ
Ora, se deu que chegou (isso
já faz muito tempo) no bangüê
dum meu avô uma negra
bonitinha chamada negra
Fulô.
Essa negra Fulô! Essa
negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da
Sinhá) Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos vem
ajudar a tirar a minha roupa,
Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô! ficou
logo pra mucama para vigiar
a Sinhá pra engomar pro
Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da
Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem
abanar o mau corpo que eu estou
suada, Fulô ! vem cocar minha
coceira, vem me catar caíuné, vem
balançar minha rede, vem me contar
uma hiatóría, que eu estou com
sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
"Era um dia uma princesa que vivia
num castelo que possuía um vestido
com os peixinhos do mar. Entrou na
perna dum pato saiu na perna dum
pinto o Rei-Sinhô me mandou que
vos contasse mais cinco."
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
t Ó Fulô
? Ó Fulô ?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô !
"Minha mãe me penteou minha
madrasta me enterrou pelos figos da
figueira que o Sabiá beliscou."
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Fulo? Ó Fulô? (Era a fala da
Sinhá chamando a negra Fulô).
Cadê meu frasco de cheiro que
teu Sinhô me mandou?
Ah! Foi você que roubou! Ah !
Foi você que roubou !
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor. A
negra tirou a roupa. O
Sinhô disse : Fulô ! (A vista
se escureceu que nem a
negra Fulô)
Ensa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô ? Ó Fulô ?
Cadê meu lenço de rendas,
cadê meu cinto, meu broche, cadê
meu terço de ouro que teu Sinhô
me mandou? Ah! foi você que
roubou. Ah! foi você que roubou.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar sozinho
a negra Fulô. A negra tirou
a saia e tirou o cabeção. De
dentro dele pulou nuínha a
nogra Fulô.
Essa negra Fulô !
Essa negra Fulô !
Ó Fulô ? Ó Fulô ?
Cadê, cadê teu Sinhô !
que nosso Senhor me mandou ?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?
Essa negra Fulô !
(Dos "Novos Poemas")
INVERNO
Zeía, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno !
Lama e mais lama,
chuva e mais chuva, Zela!
Vai nascer tudo, Zeía!
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zeía,
que eu quero bem !
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zeía !
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojes,
e chuva e mais chuva !
Vai nascer tudo:
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zeial
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar tudo,
moça e viúva !
Chegou o inverno!
Covas bem íundas
pra enterrar cana;
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nela se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João ! E tudo isto,
Zefa. . . E mais gostoso que isso
tudo: noites de frio, lá fora o
escuro, lá fora a chuva, trovão,
corisco, terras caídas, corgos
gemendo os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa !
Os cururus cantando, Zefa !
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brazas,
farinha d'água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa. . .
. . . rede gemendo . . .
Tempo gostoso! Vai
nascer tudo ! Lá fora
chuva, chuva e mais
chuva, trovão, corisco,
terras caídas e vento e
chuva, chuva e mais
chuva! Mas tudo isso,
Zefa, vamos dizer, só
com os poderes de
Jesus Cristo!
(Dos "Novos Poemas")
MADORNA DE IAIÁ
Iaiá está na rede de tucum.
A mucama de Iaiá tange os piuns,
balança a rede,
canta um lundum
tão bambo, tão molengo, tão dengoso,
que iaiá tem vontade de dormir.
Com quem ?
Ram-rem.
Que preguiça, que calor ! Iaiá
tira a camisa, toma alua, prende
o cocô, limpa o suor, pula pra
rede.
Mas que cheiro gostoso tem Iaiá ! Que
vontade doida de dormir. ..
Com quem ?
Cheiro de mel da casa das caldeiras! O
sagüim de laia dorme num coco.
laia ferra no sono,
prende a cabeça, abre-
se a rede, como uma
ingá.
Pára a mucama de cantar,
tange os piuns,
cala o ram-rem,
abre a janela,
olha o curral:
um bruto sossego no curral!
Muito longe uma peitica faz si-dó. . . si-dó. .
. si-dó. . . si-dó. . .
Antes que laia corte a madorna, a moleca
de laia balança a rede tange os piuns,
canta um lundum tão
bambo, tão molengo, tão
dengoso, que laiá sem se
acordar, se coca, se estira
e se abre toda na rede de tucum.
Sonha com quem ?
(Dos "Novos Poemas")
JOAQUINA MALUCA
Joaquina Maluca, você ficou lesa
não sei porque foi!
Você tem um resto de graça menina,
na boca, nos peitos,
onde sei onde é. . .
Joaquina Maluca, você ficou lesa, não é?
Talvez pra não ver
o que o mundo lhe faz.
Você ficou lesa, não foi ?
Talvez pra não ver o que o mundo lhe fêz.
Joaquina Maluca, você foi bonita, não foi?
Você tem um resto de é
r
aça menina
não sei onde é. . .
Tão suja de vício, nem
sabe o que foi.
Tão lesa, tão pura, tão limpa de culpa, nem
sabe o que é!
(Dos "Novos Poemas")
POEMA DE DUAS MÃOZINHAS
E aquelas mãozinhas, tão leves,
tão brancas, riscavam as
paredes, quebravam os bonecos,
armavam castelos de areia na
praia, viviam as duas qual João
mais Maria.
À boca da noite o
Cata-piolhos rezava
baixinho : "Pelo sinal
da Santa-Cruz livre-
nos Deus Nosso-
Senhor".
E aquelas mãozinhas dormiam
unidinhas qual João mais
Maria.
"Dedo-mindinho, Sêo
vizinho, o Pai-de-todos,
Sêo-fura-bolos, Cata-
piolhos, quede o
toicinho? o gato
comeu."
Nas noites de lua cheinhas de
estrelas, Sêo Fura-bolos contava
as estrelas. . . O Pai-de-todos
cuidava dos outros: nasciam
berrugas no Cata-piolhos.
E aquelas mãozinhas viviam
sujinhas qual João mais Maria. ..
Um dia (que dia!)
o Dedo-mindinho
ieriu-se num espinho. . .
E à boca da noite
o Cata-piolhos deixou de rezar;
e João mais Maria, juntinhos, ligados,
pararam em cruz cobertos de
fitas que nem dois bonecos
sem molas, quebrados. . .
Quem compra um boneco da loja de Deus ?
(Dos "Novos Poemas")
MEUS OLHOS
Nossa Senhora, minima madrinha,
tu vês as coisas verdes, não ê?
Meus olhos pretos, coitados deles!
Teus olhos verdes, íelizes deles,
minha madrinha, Nossa Senhora da Conceição!
Nossa Senhora, dá-me teus olhos para eu ver
com eles meus pobres olhos. Coitados deles,
minha madrinha, só vêem 33 coisas como
elas são.
Nossa Senhora, minha madrinha, pinta meus
olhos, que eu quero ver verdes os dias que
inda virão. Nossa Senliora, minha madrinha,
tu vês as coisas verdes, não é?
Teus olhos verdes, felizes deles! Meus
olhos pretos, cor de carvão! Nossa
Senhora, minha madrinha, tu vês meus
olhos como eles são ?
(Dos
<¿
Novos Poemas")
CANTIGAS
As cantigas lavam a roupa das lavadeiras. As
cantigas são tão bonitas, que as lavadeiras ticam
tão tristes, tão pensativas!
As cantigas tangem os bois dos boiadeiros ! Os
bois são morosos, a carga é tão grande! O
caminho é tão comprido que não tem fim. As
cantigas são leves. . . E as cantigas levam os bois,
batem a roupa das lavadeiras.
As almas negras pesam tanto, são tão
sujas como a roupa, tão pesadas como os
bois. . . As cantigas são tão boas. ..
Lavam as almas dos pecadores! Levam
as almas dos pecadores!
(Dos "Novos Poemas")
POEMA DE NATAL
Ó meu Jesus, quando você
ficar assim maiorzinho
venha para darmos um passeio
que eu também gosto das crianças.
Iremos ver as feras mansas que há
no jardim zoológico. E em qualquer
dia feriado iremos, então, por
exemplo, ver Cristo Rei do
Corcovado.
E quem passar
vendo o menino
há de dizer: ali vai o filho
de Nossa-Senhora da Conceição 1
Aquele menino que vai ali (diversos
homens logo dirão) sabe mais coisas
que todos nós!
Bom dia, Jesus ! dirá uma voz.
E outras vozes cochicharão:
É o belo menino que está no livro
da minlxa primeira comunhão!
Como está forte! Nada mudou!
Que boa saúde! Que boas cores!
(Dirão adiante outros senhores).
Mas outra gente de aspecto vário há
de dizer ao ver você :
É o menino do carpinteiro!
E vendo esses modos de operário
que sai aos Domingos pra passear,
nos convidarão para irmos juntos
os camaradas visitar.
E quando voltarmos
pra casa, à noite,
e forem pra o vício os pecadores,
eles sem dúvida me convidarão.
Eu hei de inventar pretextos sutis pra
você me deixar sozinho ir. Menino
Jesus, miserere nobis, segure com
força a minha mão.
(Dos "Poemas Escolhidos")
POEMA DO CRISTÃO
Porque o sangue de Cristo jorrou sobre os meus olhos, a minha
visão é universal e tem dimensões que ninguém sabe. Os
milênios passados e os futuros não me aturdem porque nasço e
nascerei, porque sou uno com todas as criaturas, com todos os
seres, com todas as coisas que eu decomponho e absorvo com
os sentidos e compreendo com a inteligência transfigurada em
Cristo. Tenho os movimentos alargados. Sou ubíquo: estou em
Deus e na matéria; sou velhíssimo e apenas nasci ontem, estou
molhado dos limos primitivos, e ao mesmo tempo resôo as
trombetas finais, compreendo todas as línguas, todos os gestos,
todos os
[signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas. Posso
enxugar com um simples aceno c choro de todos os irmãos
distantes. Posso estender sobre todas as cabeças um céu
unânime
[e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros como os
[estrelas do mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, amém.
E tendo a vida eterna posso transgredir leis naturais :
a minha passagem é esperada nas estradas,
venho e irei como uma profecia,
sou espontâneo como a intuição e a Fé.
Sou rápido como a resposta do Mestre,
sou inconsútil como a sua túnica,
sou numeroso como a sua Igreja,
tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada
[e refeita
todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos
[cardeais;
e sobre os ombros A conduzo
através de toda a escuridão do mundo, porque tenho
[a luz eterna nos olhos,
E tendo a luz eterna nos olhos sou o maior mágico :
ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e [omega,
peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou
ridículo, sou tentado e perdoado, sou
derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púr-[pura e
de estamenha, sou burríssimo como São [Cristóvão e
sapientissimo como Santo Tomás. E [sou louco, louco,
inteiramente louco, para sempre. [para todos os séculos,
louco de Deus, amém.
E sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a
[ordem e a medida, sou
a balança, a criação, a obediência, sou o arrependimento, sou a
humildade sou o autor da paixão e morte de Jesus, sou a culpa
de tudo, Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordtam
[tuam!
(Da "Túnica Inconsútil")
A AVE
Para J. Fernando Carneiro
Ninguém sabia donde viera a estranha ave. Talvez o último ciclone a
arrebatasse de incógnita Ulta ou de algum golfo, ou nascesse das
algas gigantescas do mar; ou caísse de uma outra atmosfera, ou de
outro mundo ou de outro mistério. Velhos homens do mar nunca a
haviam visto nos gelos nem nenhum andarilho a encontrara jamais :
era antropomorfa como um anjo e silenciosa como qualquer poeta.
Primeiro pairou na grande cùpola do templo mas o pontífice tangeu-a
de lá como se tange um demônio
[doente.
E na mesma noite pousou no cimo do farol; e o farofeiro tangeu-a :
ela podia atrapalhar as naus. Ninguém lhe ofereceu um pedaço de
pão ou um gesto suave onde se dependurasse. E alguém disse: "essa
ave é uma ave má das que devoram
[o gado".
E outro : "essa ave deve ser um demônio faminto". E quando as
suas asas pairavam espalmadas dando
[sombra às crianças cansadas,
até as mães jogavam pedras na misteriosa ave perseguida
y
[e inquieta.
Talvez houvesse fugido de qualquer pico silencioso entre
[as nuvens
ou perdesse a companheira abatida de seta. A ave era
antropomorta como um anjo e solitária como qualquer poeta. E
parecia querer o convívio dos homens que a enxotavam como
se enxota um demônio doente. Quando a enchente periódica
afogou os trigais, alguém
[disse:
"A ave trouxe a enchente".
Quando a seca anual assolou os rebanhos, alguém disse:
"A ave comeu os cordeiros".
E todas as fontes lhe negando água, a ave desabou sobre o
mundo como um Sansão sem vida. Então um simples pescador
apanhou o cadáver macio e
[falou:
"Achei o corpo de uma grande ave mansa".
E alguém recordou que a ave levava ovos aos anacoretas. Um
mendigo falou que a ave o abrigara muitas vezes
[do frio.
E um nu: a ave cedeu as penas para mau gibão. E o chefe do
povo: "era o rei das aves, que desconhe-
[cemos".
E o filho mais moço do chefe que era sozinho e manso : dá-me
as penas para eu escrever a minha vida tão igual à da ave em
que me vejo mais do que me vejo em ti, meu pai.
(Da "Túnica Inconsútil")
O NOME DA MUSA
Para Adalgisa Nery
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida, nem de fada, nem de
deusa, nem de musa, nem de sibila,
[nem de terras,
nem de astros, nem de fíôres.
Mas te chamo a que desceu do luar para causar as nutres e iníluir nas
coisas oscilantes.
Quando vejo os enormes campos de verbena agitando
[as corolas,
sei que não é o vento que bole mas tu que passas com
[os cabelos soltos.
Amo contemplar-te nos cardumes das medusas que vêo
[para os mares boreais, ou no bando das gaivotas e dos
pássaros dos polos re-[voando sobre as terras geladas. Não te chamo
Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida. O teu nonne deve
estar nos lábios dos meninos que
[nasceram mudos, nos
areiais movediças e silenciosos que já foram o fundo
[do mar,
no ar lavado que sucede as grandes borrascas, na palavra dos
anacoretas que te viram sonhando
v e morreram quando despertaram, no traço que os raios
descrevem e que ninguém jamais
[leu.
Em todos esses movimentos há apenas sílabas do teu
[nome secular
que coisas primitivas escutaram e não transmitiram às
[gerações.
Esperemos, amigo, que searas gratuitas nasçam de novo, e os
animais da criação se reconciliem sob o mesmo
[arco-íris :
então ouvireis o nome da que não chamo Eva nem lhe dou
nenhum nome de mulher nascida.
(Da "Túnica Inconsútir')
A MORTE DA LOUCA
Para María Helena Nelson Pinto
Onde andarás, louca, dentro da tempestade ? És tu
que ris, louca?
Ou será a ventania ou algum estranho pássaro desco-
[nhecido ?
Boiar ás em algum rio, nua, coroada de flores? Ou no mar as
medusas e as estrelas palparão os teus
[seios e tuas coxas?
Louca, tu que fôste possuída pelos vagabundos sob as
[pontes dos rios,
estarás sendo esboieteada pelas grandes forças naturais ?
Algum cão lamberá os teus olhos que ninguém se lem-
[brou de beijar?
Ou conversaras com a ventania como se conversasses
[com tua irmã mais velha ? Ou
te ris do mar como de um companheiro de presídio ? Onde
andarás, louca, dentro da tempestade?
(Da "Túnica Inconsútil")
DUAS MENINAS DE TRANCAS PRETAS
Eram duas menit\as de trancas pretas. Veio uma
febre levou as duas. Foram as duas para o
cemitério: ambas ficaram na mesma cova. Por
sobre as pedras da sepultura brotou bonina,
brotou bonina, nasceram plantas, nasceram
mais plantas, flores do mato, canas da várzea :
a sepultura virou canteiro. Aves vieram cantar
nas plantas, levaram sementes por sobre o mar.
Os peixes levaram estas sementes até as Ilhas de
Karakantá. Ali brotaram flores estranhas.
Donde vieram flores tão raras ? Ah! só o poeta
saberá. Pois nesse mundo desconhecido
casos desses que ninguém vê : vieram insetos
beijar as flores, e um belo dia veio um poeta
pegar insetos para sua amada. A borboleta mais
rara que há naquelas ilhas de Karakantá é cor
de amaranto com olhos azuis.
Mas heis de saber que a tal borboleta
contém veneno dentro dos olhos;
aí o poeta beijando tais olhos
ficou dormindo como um cadáver.
E então sonhou com as duas meninas:
que ambas dormiam na mesma cova,
que flores nasceram na sepultura,
que a sepultura virou canteiro,
que peixes levaram sementes das flores
para aquelas ilhas de Karakantá.
O sonho do poeta o vento levou,
levou para um astro desconhecido.
E aí chegando tornou-se um mar :
a água do mar virou arco-íris.
Então uma deusa pegou o arco-íris
e fez um pente para se pentear.
E tanto se penteou a deusa do astro
que deu a luz a duas meninas.
Sabeis quem são as duas meninas?
As duas meninas mais belas que há ?
Ah ! só o poeta saberá.
(Da "Túnica Inconsútil")
A case esíá em sombras imergida. Na sala de
visitas os retratos pendem. Pendem as flores
ressequidas. A luz morreu. O ambiente é
timorato.
Na alcova em que viveu a bem-querida se
esvaem gestos, há signos abstratos errando na
penumbra; há outras vidas pressentidas no
fúnebre aparato.
A aparência das coisas coagulou-se em
desesperado hiato. Não há passos, nem mãos,
nem seu olhar, seu olhar doce,
nem nada; nem o som de sua tala nem a
lembrança vaga de seus traços nem Tua Voz,
meu Deus, para acordá-la.
(Do "Livro de Sonetos")
Nas noites enluaradas cabeleiras das moças
debruçadas, dos sobrados desciam como
gatas borralheiras por sobre os nossos
lábios descuidados.
Beijávamos os cachos; das olheiras delas
caíam prantos obstinados. Calmávamos com
eles as fogueiras dos nossos próprios olhos
assustados.
Românticos demais. Nós os meninos
urdíamos as trancas, e em seus braços
ouvíamos suspiros desolados.
Elas tinham soluços repentinos e nos
acalentavam nos regaços. Ó
meninos, ó noites, ó sobrados!
(Do "Livro de
Sonetos") 74 —
Nas noites enluaradas as olheiras das
donzelas suicidas dos sobrados
iluminavam aves agoureiras e cães
vadios tísicos e odiados.
E também vinham claunes embriagados e
sonámbulas gatas borralheiras, sombras
errantes, sombras forasteiras, rostos em cal e
cinza transformados.
Nós éramos meninos evadidos
nas insônias das febres e das asmas,
os olhos pelas noites acordados.
Musas de infância ungiam meus sentidos. Eram
musas infantes ou fantasmas? Õ meninos, ó
noites, ó sobrados!
(Do "Livro de Sonetos")
Essa pavana é para uma defunta infanta,
bem-amada, ungida e santa, e que foi
encerrada num profundo sepulcro recoberto
pelos ramos
de salgueiros silvestres para nunca ser
retirada desse leito estranho em que
repousa ouvindo essa pavana recomeçada
sempre sem descanso,
sem consolo, através dos desenganos, dos
reveses e obstáculos da vida, das ventanias
que se insurgem contra
a chama inapagada, a eterna chama que
anima esta defunta infanta ungida e bem-
amada e para sempre santa.
(Do "Livro de Sonetos")
Devolve-me tea hálito, delunta companheira
tombada nos joelhos do Senhor, companheira de
mãos juntas e enfaixados os ombros e os
artelhos.
Um arcanjo augural teus lábios unta de bem-
ungidos bálsamos vermelhos, mas não falas, não
choras, não perguntas, não te miras nas fontes,
nos espelhos,
Presença angelical, formosa esquiva,
fonte da eterna vida, origem e causa,
rosa que desfolhada se reaviva.
Nestes ermos, sem ti, 6 rosa airosa é-me
consolo te chamar sem pausa: ó lâmpada
marinha, ó oculta rosa.
(Do ""Livro de Sonetos")
I
Um barão assinalado
sem brasão, sem ¿ume e íama
cumpre apenas o seu fado :
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que ê de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.
Nobre apenas de memórias, vai
lembrado de seus dias, dias que
são as histórias, histórias que são
porfías de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.
Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vária mastreacão,
mastros que apontam caminho*
a países de outros vinhos.
Esta é a ébria embarcação.
Barão ébrio, mas barêo, de
manchas condecorado; entre o
mar, o céu e o chão fala sem ser
escutado a peixes, homens e
aves, bocas e bicos, com chaves,
e ê/e sem chaves na mão.
(De "Invenção de Orfeu")
II
A ilha ninguém achou porque
todos a sabíamos. Mesmo nos
olhos havia Uma clafa
geografia.
Mesmo nesse fim de mar qualquer
ilha se encontrava, mesmo sem
mar e sem fim, mesmo sem terra e
sem mim.
Mesmo sem naus e sem rumos,
mesmo sem vagas e areias, há
sempre um copo de mar para um
homem navegar.
Nem achada e nem não vista nem
descrita nem viagem; há aventuras
de partidas porém nunca
acontecidas.
Chegados nunca chegamos eu
e a ilha movediça. Móvel
terra, céu incerto, mundo
jamais descoberto.
Indícios de canibais, sinais de
céu e sargaços, aqui um
mundo escondido geme num
búzio perdido.
Rosa de ventos na testa, maré
rasa, aljôfre, pérolas,
domingos de pascoelas. E
esse veleiro sem velas!
Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias tão
tristes, tão alegrias ?
(De "Invenção de Orfeu")
XV
 garupa da vaca era palustre e bela, urna penugem havia
em seu queixo formoso: e na Ironie lunada onda ardia
unia estrela pairava um pensamento em constante
repouso.
Esta a imagem da vaca, a mam pura e singela que do
fundo do sonho eu às vezes esposo e conlunde-se à noite à
outra imagem daquela que ama me amamentou e jaz no
último pouso.
Escuto-lhe o mugido era o meu acalanto,
e seu olhar tão doce inda sinto no meu :
o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.
Contundo-os nessa ganga iníorme que é meu canto :
temblante e leite, a vaca e a mulher que me deu o leite e a
suavidade a manar de dois seios.
(De "Invenção de Orfeu")
XVIII
Éguas vieram, à tarde, perseguidas.
depositaram bostas sob as vides. Logo após
borboletas vespertinas, gordas e veludosas
como ortigas
sugar vieram c estéreo íumegante. Se as vísssis,
vós dineis que o composto das asas e dos restos
eram flores. Porque parecem sevos; nesse
instante,
os nsjis belos centauros do alto empíreo, pelas
pétalas desceram atraídos, e agora debruçados
formam círculos; depois as beijam como beijam
lírios.
(De "Invenção de Orfeu")
XXVI
Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios; e ao chegar os
serões e os fiéis enganos amar os sonhos que
restarem frios.
Porém se não surgir o que sonhamos e os
ninhos imortais forem vazios, há de haver
pelo menos por ali os pássaros que nós
idealizamos.
Feliz de quem com cânticos se esconde e julga
tê-los em seus próprios bicos, e ao bico alheio
em cânticos responde.
E vendo em torno as mais terríveis cenas, possa
mirar-se as asas depenadas e contentar-se com
as secretas penas.
(De "Invenção de Orfeu")
Ill
Vinha boiando o corpo adolescente, belo
pastor e sonho perturbado. Deus abaixou-lhe
os cílios alongados para que ê/e dormindo
flutuasse.
Ressuscita-o Senlior, essa medusa de sangue
juvenil em rosto impúbere, desterrado da
vida, flor perdida, irmão gêmeo de Apoio
trimagista.
Seca-lhe a espuma que lhe inunda o peito e as
convulsões mortais que o imolaram às sodomas
ardidas em seu leito.
Anjo adoecido, alheio dançarino
que dançaste em Gomorras incendiadas.
estás cansado; deita-te, menino!
(De "Invenção de Orfeu")
XV
Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia e a comida
que acaso desejares, e algum poema que
ilumine os ares menos que a luz malsá riessa
candeia.
Aqui teres o peixe desses mares
e o mais gostoso mel de toda a aideia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia ?
Como te chamas vida da outra vida, espelho
noutro espelho transmudado, lume na minlia
luz anoitecida?
Serás o dia à noite do outro i ado
de meu ser que nas trevas se apagou?
Ou serás qualquer lume que não sou?
(De "Invenção de Orfeu")
I
Um monstro tlui neste poema íeito de
úmido sal-gema.
A abóbada estreita mona a loucura
cotidiana.
Pra me salvar da loucura como sal-
gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.
Mas desde quando esse rio corre no
leito vazio ?
Vede que arrasta cabeças, frontes
sumidas, espessas.
E são minhas as medusas, cabeças
de estranhas musas.
Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema, não
entreis nesse poema.
(De "Invenção de Orfeu")
XIII
A tristeza era tanta, tanta a mágoa que seu
anjo da guarda resolvera lutar com êle, lutar
para lutar, que o interesse da vida perecera.
Ave e serpente, círculo e pirâmide, os olhos
em fuzil e os doces olhos, os laços, os vôos
livres e as escamas.
Que doida simetria nesses ódios!
Que forças transcendentes aros e ângulos
alguém quis que lutassem nesse dia!
Ave e serpente, círculo e piràmide :
Que divina constante simetria
nessa luta soturna, nessa liça
em que Deus reconstrói o eterno cisne!
(De "Invenção de Orfeu")
XIV e XV
Nasce do suor da febre urna alimaña que a
horas certas volta pressurosa. Crio no jarro
sempre alguma rosa. A besta rói a flor
imaginária.
Depois descreve em torno ao leito uma área do
picadeiro em que galopa. Encare-a o meu espanto,
vem a besta irosa e desbasta-me o juízo em sua ¿rosa.
Depois repousa as patas em meu peito e me oprime
com fé obsidional. Torno-me exangue e mártir no
meu leito,
repito-lhe o que sou, que sou mortal. E ela me
diz que invento èsse delirio : e planta-se no
jarro e nasce em lírio.
(De 'Invenção de Orfeu")
XVI
Se essa tabula continua matem antes seu
cavalo, não só o cavalo mas sua
presença, ausência e intervalo; não faz
mal que eu me desmonte e me e
esquecido, quero apenas que me conte
alguém tè-lo acometido, que o arrancou
de seus cascos, que o derrubou de seus
topes, que lhe assacou feios ascos,
privando-o de seus galopes; e que depois
o atingiu com lança baixa no peito que
dentro dele a imergiu com ial fereza e tal
jeito, que relinchos e nobrezas sob os
pauis se esconderam e em dormentes
correntezas para sempre se perderam*.
Praticai esse jocundo íeito, ó amigo, sem
olhá-lo : Não hâ olhos nesse mundo mais
tristes que os do cavalo
Nem eleveis enternecer-vos para
mais fundo extingui-lo em seu
sangue, carne e nervos, cauda, crina
e gorgomilo e seu peito espostejado
desprovido de medalhas, o chão da
casa salgado, as asas duas
cangalhas, sua carreira um despojo
podrido de seus orgulhos. Se houver
além das crinas coisas ainda a matar
jogai-as sobre as ravinas que se
despenham no mar. Cumpre de novo
afogá-lo com destino mais preciso, e
seu cavaleiro acordá-lo no último
dia de Juízo.
(De "Invenção de Orfeu")
Era uma vez um povo de marujos que quis
passar às índias impossíveis, dobrando cabos,
moçambiques, bacos, nadando em Áfricas
desertas e armadilhas. Ó herança em meu
sangue, devastada! Ó piloto afogado, ó rei sem
nau!
Mas é preciso vento, não torpores,
caravelas mais bêbadas no mar. Ó
manjares de Goa, ó iel de mouros! Ó
melindanos, ó grandezas minhas ! Ô
naufrágios finais com os vastos sons da
tuba dos avós descobridores!
Amo-vos sons e formas de aventuras, heróis
de mares, terras de mourama, silvos de
ventos, vagas fugidias, paz de combates,
chinas inventadas, ocidentes, orientes, suis
sem água, e nortes, nortes nunca
conquistados.
Amo-te "idioma-vasco", sempre ouvido no
clima dessas quiloas afogadas, esses mares
antigos navegados, escorbutos comendo a
língua viva, sebastianismos vendo irreais
reinos, essa linguagem toda, minha fala.
lingua remota, língua de presenças, de
suscitadas ressonâncias, amo-a, que me deu a
experiência dos abismos e também das
realidades inefáveis e também da saudade
amarga e doce, e também das verdades mais
ardentes.
Em suas ressonâncias ouvi esses países que ficaram no
subsolo enoitados, sonhados, pressupostos, dentro
em mim, encrustados, refrangidos, contrapostos,
aliás inquisidores, aliás, à outra língua, doce língua.
(De "Invenção de Orfeu")
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