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CONVIVENDO COM OS USOS DA
ESCRITA ANTES DA ESCOLA
Tereza Nêuman Cândido Pereira (coord.)
Liana Nise Martins Albuquerque
Série Documental: Relatos de Pesquisa, n.21, out./1994
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CONVIVENDO COM OS USOS DA ES-
CRITA ANTES DA ESCOLA
Tereza Nêuman Cândido Pereira (coord.)
Liana Nise Martins Albuquerque Ângela
Sousa, Dorivaldo Salustiano, Isolda Souza,
Ivanilda Oliveira, Olga Bezerra, Renata
Santos e Sônia Melo (auxiliares de pesquisa)
O artigo-síntese, exigência do convênio de financia-
mento de pesquisa n° 28/91, firmado entre o INEP
e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), cuja
conclusão se deu em janeiro de 1994, é de responsa-
bilidade de sua coordenadora. O relatório final en-
contra-se à disposição, no INEP, para consultas in
loco. Os interessados em adquirir fotocópias poderão
solicitá-las à Coordenadoria de Pesquisa ou à Sub-
gerência de Disseminação e Circulação, deste Insti-
tuto, mediante pagamento.
Brasília/1994
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DIRETOR
Divonzir Arthur Gusso
COORDENADORA DE PESQUISA
Margarida Maria Sousa de Oliveira
COORDENADOR DE ADMINISTRAÇÁO
Luís Carlos Veloso
COORDENADOR DE AVALIAÇÃO
Orlando Pillatí
COORDENADOR DE ESTUDOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Tancredo Maia Filho
GERENTE DO PROGRAMA EDITORIAL
Arsênio Canísio Becker
SUBGERENTE DE DISSEMINAÇÃO E CIRCULAÇÃO
Sueli Macedo Silveira
GERENTE DO CENTRO DE INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS EM EDUCAÇÃO
Gaetano Lo Mônaco
RESPONSÁVEL EDITORIAL
Cleusa Maria Alves
CAPA
Carla Vianna Prates
NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Maria Ângela T. Costa e Silva
REVISÃO
Cleusa Maria Alves
José Adelmo Guimarães
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Mírian Santos Vieira
APOIO GRÁFICO
Maria Madalena Argentino
Mirna Amariles Beraldo
Tiragem: 450 exemplares
INEP - Gerência do Programa Editorial
Campus da UnB, Acesso Sul - Asa Norte
70910-900-Brasília/DF Fone: (061) 347 8970
Fax: (061) 273 3233
Série Documental: Relatos de Pesquisa, n.21, out/1994 ISSN - 0104-6551
Uma das funções institucionais do INEP consiste em prover e estimular a
disseminação e discussão de conhecimentos e informações sobre educação, visando
a seu desenvolvimento e domínio público, através de sua produção editorial.
Com o objetivo de contribuir para a democratização de parte desses
conhecimentos, de modo mais ágil e dinâmico, o INEP criou recentemente as Séries
Documentais, com o mesmo desenho de capa: elas formam um novo canal de
comunicações, diversificado quanto a público, temática e referenciação; abrangendo
vários campos, elas podem alcançar, com tiragens monitoradas, segmentos de
público com maior presteza e focalização; cada série poderá captar material em
diferentes fontes (pesquisas em andamento ou concluídas, estudos de caso, papers de
pequena circulação, comunicações feitas em eventos técnico-científicos, textos
estrangeiros de difícil acesso, etc).
São as seguintes as séries:
1. Antecipações tem o objetivo de apresentar textos produzidos por
pesquisadores nacionais, cuja circulação está em fase inicial nos meios acadêmicos
e técnicos.
2. Avaliação tem o objetivo de apresentar textos e estudos produzidos pela
Gerência de Avaliação.
3. Estudo de Políticas Públicas tem o objetivo de apresentar textos e
documentos relevantes para subsidiar a formulação de políticas da Educação.
4. Eventos tem o objetivo de publicar textos e conferências apresentados
em eventos, quando não se publicam seus anais.
5. Inovações tem o objetivo de apresentar textos produzidos pelo Centro de
Referências sobre Inovações e Experimentos Educacionais (CRIE).
6. Relatos de Pesquisa tem o objetivo de apresentar relatos de pesquisas
financiadas pelo INEP.
7. Traduções tem o objetivo de apresentar traduções de textos básicos sobre
Educação produzidos no exterior.
RESUMO................................................................................................................ 9
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS ............................. ................................. 11
CONHECENDO AS FAMÍLIAS ........................................................................ 12
Famílias do Grupo 1 .................................................................................. 12
Famílias do Grupo 2.................................................................................. 12
Famílias do Grupo 3.................................................................................. 13
Famílias do Grupo 4.................................................................................. 14
A CONVINCIA COM A ESCRITA................................................................. 14
Materiais Escritos Existentes nas Casas.................................................... 15
Os Usos da Escrita pelos Grupos e pelas Crianças Não
Escolarizadas ................................................................................... 16
Atividades Escolares....................................................................... 16
Entretenimento................................................................................ 17
Comunicação Interpessoal.............................................................. 18
Vida Diária...................................................................................... 18
Informão....................................................................................... 19
Atividades Religiosas .................................................................... 19
Outros Usos: Compra e Venda, Auxílio à Memória,
Identificação de Objetos Pessoais e Confirmação ............ 19
DISCUSSÃO ......................................................................................................... 20
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 24
RESUMO
Este estudo busca contribuir para a com-
preensão de como se elabora o conhecimento
sobre a língua escrita em situações informais.
Tem como objetivo estudar a convivência da
criança com a escrita antes do seu ingresso
na escola, a partir da caracterização dos usos
da escrita em diferentes grupos. Partindo do
pressuposto de que grupos sócio-econômicos
diferenciados têm diferentes relações com a
escrita no seu cotidiano, foram constituídos
quatro grupos de quatro famílias com di-
ferentes graus de escolaridade, faixas salariais
e locais de moradia. Utilizou-se uma aborda-
gem etnográfica em que 16 crianças ainda
não escolarizadas, com idade entre sete meses
e cinco anos, foram observadas no seu am-
biente familiar, durante oito meses. Os dados
indicam que, embora todas as crianças te-
nham experiências de letramento antes de sua
entrada na escola e demonstrem interesse pela
língua escrita, os usos e valores atribuídos a
esse objeto se diferenciam entre os grupos,
assim como o tipo de material escrito ao qual
as crianças têm acessa Discutem-se os dados
tendo como perspectiva o trabalho da escola.
INTRODUÇÃ0
A necessidade de compreender como o
conhecimento sobre a língua escrita é
elaborado, em situações informais, fora
do contexto escolar, tem sido apontada
por vários trabalhos na área de alfabeti-
zação (Rego, 1988; Ferreira e Teberosky,
1985; Smolka, 1989).
A discussão sobre os significados sociais
da leitura e da escrita tem gerado críti-
cas tanto à noção de alfabetização restri-
ta à aquisição da língua escrita no inte-
rior da escola, quanto aos programas
amplos de alfabetização desenvolvidos
com objetivos alheios ao interesse do
grupo para o qual se dirigem (Street
1984; Anderson e Teale, 1987; Cook-
Gumperz, 1991). Fazendo a distinção en-
tre "alfabetização" e "letramento", Tfouni
(1988, p.22) afirma que
enquanto a alfabetização ocupa-se da
aquisição da escrita por um indivíduo
ou grupo de indivíduos, o letramento
focaliza os aspectos sócio-históricos da
aquisição de um sistema escrito por
uma sociedade.
Assim, letramento diz respeito às práticas
e concepções sociais sobre leitura e escrita
— que dependem do contexto histórico,
psicológico, social e político de determina-
da sociedade. Não se limita aos eventos e
práticas discursivas de comunicação via
texto escrito, mas permeia também as for-
mas orais de uma sociedade letrada (Klei-
man et al, 1990). Nesta perspectiva, diver-
sos autores têm analisado programas de
alfabetização desenvolvidos em diferentes
países, criticado sua suposta neutralidade
e os objetivos políticos e econômicos a
eles subjacentes (por ex, Graff, 1990; Co-
ok-Gumperz, 1991; Street 1984). Têm
questionado também a criação de dicoto-
mias entre analfabetos/alfabetizados e so-
ciedades orais/letradas, uma vez que tais
distinções deixam de considerar os entre-
laçamentos das formas de comunicação na
sociedade contemporânea (Graff, 1990) e
contribuem para a discriminação social
daqueles que não dominam o código es-
crito (Oliveira, 1992).
Baseados num outro modelo de letra-
mento
1
, os trabalhos referidos a seguir
têm-se voltado para estudar as práticas
de leitura e escrita, reconhecendo sua
natureza ideológica e o significado do
processo de socialização na construção
do sentido do ler e escrever. Eles partem
da hipótese de que a escrita tem signifi-
Considerado por Street (1984) como Modelo Ideológico e
que se contrapõe ao anterior, o Modelo Autônomo.
cados particulares para grupos sociais
distintos e enfatizam a necessidade de se
compreender o papel do letramento nos
diferentes grupos e sociedades, bem co-
mo as formas pelas quais as crianças ad-
quirem esse conhecimento em suas co-
munidades. Salientam que a escola pode
trabalhar com a linguagem de maneira
semelhante as práticas da comunidade;
pode exigir uma certa adaptação por par-
te das crianças; ou pode até mesmo ir di-
retamente contra os padrões da comuni-
dade. Essas atitudes trariam conseqüên-
cias diferentes para o sucesso escolar das
crianças.
Através de investigações longitudinais
em grupos diversos, Heath (1982), An-
derson e Teale (1987) e Woods (1987) en-
contraram diferenças no modo como as
crianças interagem com a escrita no con-
texto familiar. Diferenças na forma de re-
ferir-se aos textos, buscar informações e
negociar o seu sentido, assim como na
maneira como se estabelecem relações es-
paço-temporais e interações entre os
membros da comunidade refletem-se, se-
gundo Heath, nas primeiras experiências
das crianças com a língua. Revelam-se no
modo como as crianças participam de
eventos de letramento, aprendem a atri-
buir significado ao material escrito e são
preparadas para a escola. Anderson e
Teale afirmam ser importante a presença
da criança (como observadora ou partici-
pante) em eventos nos quais a leitura e a
escrita desempenham diferentes funções,
por considerarem que estes eventos se re-
alizam dentro de atividades que vão
muito além da aprendizagem do ler/es-
crever e inserem esta aprendizagem num
contexto de utilização da língua escrita
com fins práticos. Desta forma, tem-se
considerado relevante estudar a partici-
pação da criança em eventos, como ouvir
estórias, nomear, fazer de conta, dramati-
zar, consultar livros, rótulos, manuais de
instruções, ver televisão, ouvir rádio, mú-
sica, etc (Snow, 1983; Wells, 1985; Carva-
lho, 1989).
Trabalhos desenvolvidos no Brasil têm
estudado interações da criança com a es-
crita, investigando o desenvolvimento
do letramento em crianças que vivem
em ambientes muito letrados (Rego,
1988; Maryrink-Sabinson, 1990), ou pou-
co letrados (Terzi, 1992; Castanheira,
1992). Eles destacam a influência do le-
tramento do grupo no processo de de-
senvolvimento da criança na área da lei-
tura/escrita e discutem a atuação da es-
cola neste campo. Consideram impor-
tante desenvolver-se estudos comparati-
vos que favoreçam a compreensão dos
significados sociais da escrita para dife-
rentes grupos (Miranda, 1992) e que in-
diquem semelhanças e especifícidades
no desenvolvimento do letramento das
crianças destes grupos.
Neste contexto, investigar a maneira como
as crianças aprendem a língua escrita im-
plica alguns pressupostos a respeito do
que é ler, para que se lê, como se lê e co-
mo se aprende a ler. Implica compreender
a leitura não como uma simples decodifi-
cação de signos lingüísticos, mas como
um processo de produção (Orlandi, 1984),
no qual se destacam, como elementos bá-
sicos, a situação, o contexto histórico-so-
cial e os interlocutores. Significa também
considerar, na alfabetização, o processo de
elaboração cognitiva da criança que busca
compreender o que é e como funciona o
sistema de escrita (Ferreiro e Teberosky,
1985), o qual, antes de ser um objeto esco-
lar, é um objeto social.
Estudar a aprendizagem da língua escrita
implica também, nesta perspectiva, focali-
zar o seu caráter histórico-social apontado
por Vygotsky (1989), para quem a leitura
e a escrita, como processos psicológicos
superiores, se desenvolvem inicialmente
no nível interpsicológico (isto é, nas inte-
rações entre as pessoas alfabetizadas e a
criança), passando então, através de um
processo de internalização, a desenvolver-
se no nível do funcionamento intrapsico-
lógico (individual). É neste contexto, que
Smolka (1989, p.28) se refere à atividade
de leitura,
como forma de linguagem originária na
dinâmica das interações humanas — por-
tanto, de natureza dialógica — que em
processo de emergência e transformação
no curso da História, marca os indiví-
duos (em termos culturais mas não gené-
ticos) e configura as relações sociais (...)
como atividade inter e intrapsicológica,
no sentido de que os processos e os efei-
tos desta atividade de linguagem trans-
formam os indivíduos enquanto mede-
iam a experiência humana.
Estudando o cotidiano da sala de aula,
na perspectiva de Vygotsky, a autora
também destaca a necessidade de se ana-
lisar a constituição do sujeito-leitor, o que
implica o estudo das condições sociohis-
tóricas em que a atividade de leitura se
produz, do processo de mediação aí exis-
tente, e da dinâmica das relações inter-
pessoais envolvidas na elaboração do co-
nhecimento da/pela escrita.
Conhecer as práticas de letramento das fa-
mílias parece ser, portanto, um dos passos
para a compreensão de como a criança se
constitui leitora, pois de acordo com De
Lemos (1989), o desenvolvimento do pro-
cesso de letramento da criança parece es-
tar relacionado ao grau de letramento da
família e aos diferentes modos de partici-
pação da criança nas suas práticas de lei-
tura e escrita.
Partindo do pressuposto de que diferen-
tes grupos sócio-econômicos têm dife-
rentes graus de familiaridade com a lín-
gua escrita, nosso trabalho tem o objeti-
vo de estudar como se dá a relação com
a escrita em crianças ainda não escolari-
zadas, pertencentes a diferentes grupos
sócio-econômicos, no contexto do Muni-
cípio de Campina Grande, Paraíba.
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
Para esta análise, utilizamos uma aborda-
gem de caráter etnográfico (Marta, 1987),
em que 16 crianças ainda não escolariza-
das foram observadas em seu ambiente fa-
miliar, tanto em casa, quanto nas suas
brincadeiras na rua, com os irmãos ou
com outras crianças da vizinhança. As ob-
servações foram feitas em 1991, através de
visitas semanais de aproximadamente 60
minutos, em diferentes horários e dias da
semana, por duplas de observadores, du-
rante um período de oito meses, perfazen-
do em média 58 horas de observação por
grupo. As observações foram registradas
em áudio, ou por meio de anotações de
campo, e incluíram também entrevistas se-
mi-estruturadas com as pessoas da família.
Constituímos quatro grupos de quatro fa-
mílias, caracterizados da seguinte forma:
Grupo 1: habitantes da zona rural, com
renda mensal de até dois salários míni-
mos e escolarização até a 2ª série;
Grupo 2: habitantes da periferia, com
renda de até dois salários mínimos e ní-
vel de escolarização até a 2
a
série;
Grupo 3: habitantes de bairro considera-
do de classe média, com renda de qua-
tro a sete salários mínimos e nível de es-
colarização médio/ 2
a
grau;
Grupo 4: habitantes de bairro considerado
de classe média, com renda acima de 10
salários mínimos e nível de escolarização
superior.
Os dados coletados a partir desse proce-
dimento serão apresentados a seguir, ob-
jetivando conhecer
a) as famílias que constituem os grupos,
as condições em que vivem e suas idéias
sobre o ler e escrever;
b) os materiais escritos disponíveis nas
residências;
c) os usos da escrita pelos grupos e pe-
las crianças que ainda não freqüentam a
escola.
O estudo dos usos da escrita tem por base
os eventos de letramento observados nas
famílias, identificados a partir da definição
usada por Heath (1982, p.50), que conside-
ra um evento de letramento "qualquer
ocasião em que a língua escrita faz parte
da natureza das interações dos participan-
tes e de suas estratégias e processos de in-
terpretação".
CONHECENDO AS FAMÍLIAS
Famílias do Grupo 1
As famílias que constituem o Grupo 1 vi-
vem na zona rural, em pequenos sítios.
São agricultores que criam animais, ven-
dem alguns produtos, e às vezes, traba-
lham como pedreiros para aumentar a ba-
ixa renda familiar. Moram em casas mo-
destas, distantes umas das outras, mas os
vizinhos se visitam com freqüência, para
conversarem e se ajudarem. Têm de três
a nove filhos, dos quais os que ainda mo-
ram com os pais têm idade variando entre
um mês a 16 anos. Desde pequenos, os fi-
lhos acompanham a família ao roçado,
ajudando na plantação e colheita e, quan-
do estão em casa, auxiliam nos trabalhos
domésticos e brincam nos "terreiros" das
casas.
A maioria das crianças está na escola e
algumas a deixaram porque, segundo os
pais, a família não tinha condições finan-
ceiras, ou as crianças não se intessavam
em estudar. As crianças ainda não escola-
rizadas deste grupo, são todas do sexo
masculino (WEL, CRI, MAR e CLD)
2
e no
início das observações tinham idade en-
tre dois anos e 11 meses e cinco anos.
Famílias do Grupo 2
As famílias do Grupo 2, todas oriundas
da zona rural, moram num bairro pobre
da periferia de Campina Grande, com
ruas sem calçamento ou esgoto, casas bem
pequenas e sem muros. Há muito contato
entre os vizinhos, que se visitam a qual-
quer hora, trocam presentes e se revezam
para cuidar das crianças. Os pais, com
idade entre 25 e 33 anos, vivem com mui-
tas dificuldades financeiras e sem renda
fixa. Os homens trabalham como pedreiro,
motorista ou consertando aparelhos eletro-
domésticos, enquanto as mulheres são do-
nas de casa. Cada família tem três filhos,
cuja idade varia de cinco meses a oito
anos; os maiores já ajudam nas tarefas do-
mésticas e se responsabilizam por fazer
pequenas compras nas mercearias próxi-
mas. As crianças brincam freqüentemente
nos arredores das casas, num entrar e sair
constantes para buscar objetos ou falar
com as mães.
Neste Grupo, as crianças em estudo têm
de três a cinco anos, sendo uma do sexo
masculino (ALN) e três do sexo feminino
(JAN, EDA e SOC).
Todas as crianças em idade escolar fre-
qüentam a escola, e os pais fazem questão
disso, mostrando-se orgulhosos quando os
filhos começam a ler, criticando a irregu-
laridade do calendário escolar e a negli-
gência da escola quanto à educação geral
das crianças. Para as famílias dos Grupos
1 e 2, as crianças devem ir para a escola
porque precisam "aprender a ler, escrever,
falar melhor" e "ser bemeducadas". A ne-
cessidade de estudar e aprender a ler está
associada a objetivos a longo prazo, rela-
cionados à ascensão social como nos dizia
a mãe de uma das crianças da zona rural:
(Ex.Ol) — DIO: Eu acho que vale, né? O
"caba" estudar... por que um dia pode o
cara querer trabalhar e já tem letra... O
"caba" ser burro de um tudo, aí não dá,
né? (Entrevista 1C, 21/08/91).
Apesar de expressarem esse desejo, as
famílias são conscientes da inacessibili-
dade dos filhos a um grau de instrução
superior e, ao mesmo tempo, conside-
ram que os filhos não precisam saber ler
para exercerem as profissões que lhes
cabem nesta sociedade. É o que nos diz
uma moradora do bairro, a respeito do
irmão motorista, que é analfabeto:
(Ex.02) — SEV: É o melhor motorista
que tem, aonde ele trabalha. Onde tem
outros que lêem e dirigem mal demais...
Se soubesse ler ajudasse, meu marido
não tava desempregado. E tanto faz sa-
ber ler como não, o salário é o mesmo
para todos. (Entrevista 2B, 12/06/91).
Essas perspectivas contraditórias a respei-
to do valor atribuído ao estudo e à escri-
ta revelam-se também quando, por um
lado, afirmam que "quem não lê é moco
ou cego" e quem sabê ler "sabe entrar e
sair em qualquer parte do mundo", mas,
por outro lado, dizem que se alguém
"não sabe ler, não significa dizer que não
sabe nada". Reconhecem haver "gente
que sabe ler, tem a maior leitura assim e
não sabe ir prá um canto".
A possibilidade tão difundida de mobili-
dade social através do estudo é também
discutida pelas famílias que apontam fa-
tores pessoais e sociais ao se referirem a
este aspecto, afirmando que "o homem
trabalhador não falta emprego prá ele.
Agora, se for preguiçoso, falta". Mas às
vezes não se trabalha porque "falta em-
prego mesmo" e estudar e não ter em-
prego "não é problema do estudo, é pro-
blema do país".
Na zona rural, discute-se também o valor
do estudo contrapondo-o à importância
do trabalho no campo, o único considera-
do trabalho real, segundo a fala de um vi-
zinho:
(Ex.03) — SBA: O povo só quer saber de
emprego: eu vou procurar um emprego,
eu vou estudar, vou estudar e o povo...
só um meio quarto de gente prá traba-
lhar para o resto do mundo. Por isso tá
essa calamidade, não tem feijão, não tem
farinha, falta açúcar, falta as coisas. É fal-
ta de trabalho... É o estudo que aumen-
tou e a agricultura diminuiu, por causa
do estudo. (Entrevista Grupo 2, 1991).
Parecem haver, portanto, conflitos em
relação à importância conferida ao estu-
do e à escrita: de um lado, as idéias, de-
correntes de concepções ideológicas di-
fundidas ressaltam o seu valor; de outro
lado, são questionadas pelo cotidiano da
realidade dessas famílias.
Famílias do Grupo 3
O grupo 3 é constituído por famílias que
moram num bairro considerado de classe
média, numa rua de casas simples, onde
as famílias residem há muitos anos, junta-
mente com os avós e tios das crianças. As
casas são bem próximas e os vizinhos têm
muito contato entre si, visitando-se, con-
versando pelas janelas, usando o mesmo
telefone. As crianças brincam nas calça-
das, algumas vezes nas casas vizinhas e
freqüentemente no interior das casas. Os
pais têm entre 23 e 30 anos. As mulheres
trabalham como recepcionista, em serviço
de contabilidade, vendendo confecções e
uma delas não trabalha fora de casa. Três
dos casais são separados e os homens mo-
ram noutra cidade. O que vive com a fa-
milia é pequeno comerciante. Os avós têm
origem rural, são alfabetizados e se res-
ponsabilizam pela supervisão das crian-
ças, no dia a dia. Três das quatro famílias
têm filhos únicos enquanto a outra tem
três filhos (dois dos quais com oito e nove
anos freqüentam uma escola pública do
bairro). Apesar de fazerem críticas à esco-
la, principalmente às freqüentes greves e
à ausência de rigor quanto ao comporta-
mento dos alunos, as mães gostariam que
seus filhos pequenos já estivessem na es-
cola mas, por dificuldades financeiras, es-
peram que fiquem maiores para matricu-
lá-los, incentivando-os, enquanto isto,
através de conversas sobre o assunto e
compra de materiais escolares.
Ao discutirem sobre a importância da
aprendizagem da leitura, as famílias apon-
tam alguns objetivos mais próximos como
"assinar documentos" e "estar atualizado"
e outros mais distantes relativos a "ter um
futuro melhor", mediante a conclusão de
um curso superior. Ao mesmo tempo, po-
rém, questionam a relação entre "se for-
mar" e "conseguir emprego", (conflito tam-
bém visto nos grupos anteriores, embora
em proporções diferentes) apresentando
outros fatores como os verdadeiros res-
ponsáveis pela mobilidade social: ter pis-
tolões, sorte e saber negociar, porque "fa-
culdade não garante emprego".
As crianças não escolarizadas deste grupo,
com idade entre um a quatro meses e qua-
tro anos, são dois meninos (T7G e AND) e
duas meninas (RAY e RAN). Apenas AND
tem irmãos.
Famílias do Grupo 4
As famílias que constituem o Grupo 4
moram em dois bairros considerados de
classe média, em casas amplas, recém-
construídas ou reformadas. Os vizinhos
raramente se visitam e as crianças brin-
cam geralmente no interior das suas
próprias casas, nos terraços e jardins. Os
pais são engenheiro, comerciante, fiscal
da Receita Federal e bancário, enquanto
as mães são dentista, médica, bancária e
professora universitária. Suas idades va-
riam entre 27 e 39 anos. Como ambos,
pai e mãe, trabalham fora, este foi o
Grupo em que menos freqüentemente os
pais estiveram presentes por ocasião das
observações. Em uma das casas, a avó
mora com a família e em praticamente
todas há duas empregadas domésticas,
pelo menos uma alfabetizada, sendo
com estas que as crianças permanecem
a maior parte do dia.
As famílias têm de dois a quatro filhos,
com idade entre zero mês e 12 anos, cur-
sando, os que estão na escola, do pré-es-
colar à 6ª série de escolas particulares es-
colhidas principalmente pela estrutura físi-
ca, espaço disponível e educação religiosa.
Os pais receiam que a escola "deforme" a
educação proporcionada pela família, mas,
apesar disso, matriculam cedo as crianças
na escola, até para que não se sintam dife-
rentes. Deste modo, estudar, aprender a
ler, faz parte do dia a dia das crianças
deste grupo. Em casa, os pais, as crianças
e as empregadas domésticas fazem fre-
qüentes referências ao estudo e à escola e
se engajam na realização das tarefas esco-
lares.
As crianças aqui observadas têm entre se-
te meses e dois a sete meses, sendo todas
do sexo feminino (UNA, LAN, RAS e LUI).
A CONVIVÊNCIA COM A ESCRITA
Procuramos estudar a convivência da
criança com a escrita, a partir do levan-
tamento dos materiais escritos disponí-
veis nas suas casas e da caracterização
dos usos da escrita pelas famílias. Este
olhar simultâneo sobre os quatro grupos
não tem o objetivo de estabelecer com-
parações baseadas em julgamentos de
valor ou em termos de carências e defi-
ciências mas de tentar delinear as carac-
terísticas de cada um e compreender a
relação da criança não escolarizada com
a escrita em cada grupo.
Materiais Escritos Existentes nas Casas
Os materiais escritos existentes nas casas
variam muito em termos de quantidade
e diversidade. Alguns são comuns a to-
dos os grupos, embora não a todas as
casas: materiais escolares, bíblia, cartas,
documentos, rótulos de embalagem,
marcas de eletrodomésticos, calendários
e revistas. Embora comuns, estes mate-
riais apresentam grandes diferenças em
termos de quantidade e variação depen-
dendo do poder aquisitivo do grupo e
das funções da escrita nas suas vidas.
Os livros escolares (às vezes apenas ca-
dernos) foram os únicos encontrados em
algumas casas dos grupos da zona rural
e da periferia, tal como foi observado
também por Castanheira (1992), Miran-
da (1992) e Terzi (1992) em bairros peri-
féricos de Belo Horizonte e São Paulo.
Por outro lado, alguns materiais de cará-
ter religioso só foram encontrados no
Grupo 1 (quadros com inscrições expos-
tos na parede) e nos grupos 2 e 3 (folhe-
tos e discos religiosos).
Assim como Miranda observou que al-
guns objetos se prestam ao uso e ao en-
feite, revelando valores do grupo como
o culto da modernidade, da religiosida-
de e do letramento, também verificamos
que determinados materiais escritos têm
este duplo papel. Calendários nas pare-
des das casas dos grupos 1, 2 e 3 pare-
cem ter, além da finalidade de orientar
datas, a de decoração, como é o caso
também dos jarros com inscrições (Gru-
po 1), dos porta-toalhas com "Lar Feliz",
dos cartazes e figuras coladas na parede
(Grupo 2), dos nomes em gesso (grupos
1 e 4), da bíblia e de outros textos ex-
postos nas estantes (grupos 2, 3 e 4) e
das caixas com brinquedos, expostos nas
prateleiras dos quartos (Grupo 4).
Outros suportes de escrita foram obser-
vados no Grupo 1 (catálogo de roupas e
"caderneta de fiado"), e no Grupo 2 (ca-
tálago de cosméticos, carne e alguns
exemplares da coleção Conhecer). Mate-
riais como catálogo telefônico, manual
de instrução, revista educativa, receitas
médicas, livros de receitas culinárias fo-
ram encontrados nas casas do Grupo 3
(embora poucos) e nas do Grupo 4, on-
de observamos também a presença de
jornais, revistas informativas e de deco-
ração, romances, livros técnicos, enciclo-
pédias e dicionários.
A escrita está também nas caixinhas e pa-
péis com as quais as crianças dos grupos
da zona rural constroem o material para
suas brincadeiras e nos brinquedos indus-
trializados das crianças dos grupos 3 e 4.
Quanto aos materiais escritos não escola-
res destinados às crianças, praticamente
não foram encontrados nos grupos da zo-
na rural e da periferia (apenas uma revis-
ta de história em quadrinhos em cada um
dos grupos). No Grupo 3, observamos
além de uma revista de história em qua-
drinhos, um álbum de figurinhas, um ma-
nual de instrução de brinquedos e uma
caixa com cadernetas e revistas usadas.
Não foram encontrados livros infantis em
qualquer das casas destes grupos, mas
quando o observador, durante as visitas,
tinha algum em mãos, tanto as crianças
quanto os adultos, principalmente do gru-
po da periferia, folheavam, nomeavam as
figuras e liam, numa demonstração de in-
teresse pela escrita, observado também
por Castanheira (1992). No Grupo 4, há
uma grande variedade de material escrito
destinado às crianças, mesmo àquelas que
ainda não ingressaram na escola: livros e
revistas infantis, álbuns de figurinhas, jo-
gos de letras e palavras, livros e revistas
usadas, além dos brinquedos com suas
instruções.
Para rabiscar, enquanto as crianças do
Grupo 4 dispõem de quadro-negro e fo-
lhas de papel, as do Grupo 3 dispõem
de cadernos e as da zona rural e da pe-
riferia aproveitam tudo o que podem:
telhas, pedaços de madeira, o chão, as
paredes, cadernos e livros usados.
Os Usos da Escrita pelos Grupos e pe-
las Crianças Não Escolarizadas
A partir dos eventos de letramento regis-
trados e da bibliografia sobre o assunto
(Heath, 1982 Anderson e Teale, 1987) os
usos da escrita foram organizados em ca-
tegorias, conforme seus objetivos. Em to-
dos os grupos, observamos a escrita sen-
do usada para realização de atividades
escolares, entretenimento, comunicação
interpessoal, realização de atividades da
vida diária, obtenção de informações e
atividades religiosas. Com menor fre-
qüência e não em todos os grupos, regis-
tramos o seu uso também para compra e
venda, auxilio à memória, identificação
de objetos pessoais e confirmação do que
se diz oralmente.
Trataremos em primeiro lugar do uso da
escrita pela família e, logo em seguida,
pela criança não escolarizada.
Atividades Escolares
É no contexto da realização de atividades
escolares que os grupos mais se asseme-
lham. Se incluirmos aquelas situações que,
embora não sejam de tarefas escolares, en-
volvem material ligado à escola e preocu-
pação com a aprendizagem da língua, é
aqui que teremos, em todos os grupos, o
maior número de eventos de letramento.
As crianças escrevem e lêem textos escola-
res, mostram cadernos e provas, pergun-
tam sobre letras e palavras e brincam de
escola reproduzindo nos exercícios o pa-
drão escolar, o qual também foi observa-
do por Castanheira (1992).
As crianças não escolarizadas de todos os
grupos se engajam em atividades do tipo
escolar, olhando livros e cadernos, mos-
trando-os, respondendo e fazendo pergun-
tas sobre letras e números, resolvendo ta-
refas passadas para elas, etc Nos grupos
da zona rural e da periferia, são os irmãos
que já freqüentam a escola que abrem es-
paço para as crianças participarem de
suas brincadeiras de escola. Embora pou-
cas, são estas as experiências de letramen-
to mais freqüentes para estas crianças e,
nessas ocasiões, elas rabiscam nos cader-
nos usados dos irmãos, recebem orienta-
ções suas na identificação de letras e na
tarefa de cobri-las, como nos mostram os
exemplos abaixo:
(Ex.04) — AND (7a) está lendo na carti-
lha e começa a ensinar ao irmão CRI
(3a8m):
AND: Lê essa palavra aqui. CRI:
Ba... ba... o... i... o... ! (começam a
rir) AND: A. Diga a. CRI:
(incompreenvel). AND: A, i, a, i:
CRI: O, i, o, i: aí AND: Não, oi
... (Observação 1D, 29/09/91)
(Ex.05) ALN (3a8m) pega um bloqui-
nho da irmã, senta no sofá e, à medida
que "escreve", fala sozinho:
— Assim, ó! Assim como eu. Aí faz um
negocim... aí coloca... aí bota assim... um
aqui, outro aqui ... (Observervação 2B,
19/12/91)
Nos grupos 3 e 4, além dos irmãos, os
adultos também entram em cena. Não
há muitas brincadeiras de escola, talvez
porque a maioria das crianças são filhos
únicos ou têm irmãos também peque-
nos, mas elas fazem exercícios conside-
rados preparatórios para a alfabetização
(ligar pontos, pintar, etc), participam de
conversas sobre tarefas escolares, letras,
palavras, etc, utilizando materiais varia-
dos como os exemplos 6 e 7 abaixo de-
monstram:
(Ex.06) SDO (7a) e SDY (10a) discutem
sobre a tarefa escolar e AND (4a) inter-
fere:
AND: Mas SDO não sabe o de casa, não.
SDY: Eu sei fazer as contas de vezes.
(Observação 3D, 26/11/91)
(Ex.07) UNA (1a1m) está com a mãe e a
irmã THA (4a6m) no quarto dos pais.
Abre a gaveta da mesa de cabeceira, de
onde tira correspondências: UNA:
Baba... ba... babá... bá... THA: Olha,
UNA, as letra! Olha as letra! (abre uma
agenda e pergunta) Que letra é essa,
UNA (Observação 4A, 21/11/91)
Entretenimento
O uso do texto escrito para entretenimen-
to aparece poucas vezes entre os adultos
e basicamente no Grupo 4, quando as pes-
soas lêem alguma revista ou participam
de jogos com as crianças. Estas, no entan-
to, utilizam-no bastante nas suas brinca-
deiras e atividades de manipulação e ex-
ploração dos objetos que as cercam.
As crianças não escolarizadas participam
dessas atividades, às vezes como obser-
vadoras, às vezes como agentes. Em al-
gumas ocasiões, elas usam os portadores
de texto, mas sem dar aparentemente
atenção à escrita, como quando colam
adesivos na parede, constroem pipas e
móveis para as casinhas com caixas va-
zias (situações mais comuns nos grupos
da zona rural e da periferia), apontam
figuras nos livros ou olham revistas. Ou-
tras vezes, as crianças fazem uma refe-
rência clara à escrita, apontando nomes
de personagens das revistas e álbuns de
figurinhas, "lendo" histórias nos gibis,
brincando com jogos educativos de le-
tras e números (eventos mais freqüentes
no grupo 3 e principalmente no 4).
Entretanto, em todos os grupos, tanto os
adultos quanto as crianças envolvem-se
em atividades de entretenimento em que
a língua escrita aparece de modo indire-
to, ou seja, através de textos orais nos
quais a escrita está subjacente, como
quando se vê televisão e se ouve rádio.
As adivinhações e as histórias contadas
sem o apoio do texto escrito aparecem de
uma forma bastante rica entre as famílias
da zona rural — o que foi também obser-
vado por Weid (1987) na zona rural de
Belo Horizonte — envolvendo os adultos,
as crianças e até os vizinhos. Ao redor de
quem as conta, todos ouvem, completam,
corrigem e dão palpites.
As crianças não escolarizadas da zona rural
participam destes eventos, observando
atentamente, mas ainda sem fazer inter-
venção. Nesse campo da oralidade, no en-
tanto, há situações dirigidas especialmente
para elas, nas quais, de uma forma lúdica,
as pessoas jogam com o sentido das pala-
vras, mas sem focalizar a escrita às vezes
presente no objeto em que se apóia o jogo.
Na situação seguinte, por exemplo, não se
leva em consideração o rótulo, mas a cor
da bebida:
(Ex.08) WEL (2a11m) está com seu
irmão TOM e N/V, um amigo na
mercearia que funciona no interior da
casa. Os rapazes perguntam à criança se
quer bebida, apontando para diferentes
garrafas: TOM: Essa, é? WEL: Da
pequena.
TOM: É dessa é? (apontando um litro de
vinho)
NIV: Ah! Ele não tá sabendo não.
WEL: Daquela que eu "tomi".
NIV: Daquela preta? (refere-se a coca-cola).
WEL:Sim.
NIV: Tem carvão ai? (risos).
(Observação,
1A, 30/05/91)
Nos grupos 3 e 4, o contar histórias está
geralmente apoiado no texto escrito e en-
volve apenas a criança e seu interlocutor
(Ex.09) LUI (3a4m) e seu pai gravam
histórias:
NAS: Conta a tua história pra depois eu
escutar.
LUI: Era uma vez um ursinho muito,
muito chato. Ai, uma vez, ele foi catar
morango. Ai, quando ele foi catar, o
príncipe no show da Xuxa vem colorido
de "xutaches"... Então, uma própria ve-
lhinha deu um docinho para os ursi-
nhos.. (Observação 4E, 12/91).
Notamos que a menina usa o marcador
"era uma vez" e expressões que estariam
mais próximas da modalidade escrita, co-
mo "um ursinho muito, muito chato" e
"uma própria velhinha''. Elementos espe-
cíficos da narrativa são empregados por
RAS (2a2m) que conta uma história, en-
quanto rabisca numa caderneta, suspiran-
do como se fizesse um grande esforço:
(Ex.10) RAS (2a2m) ... Eu conte... a his-
torinha... aqui [...] Aí... aí... bicho co-
meu... aí... aí... aí [...] contou... ponto!
(Observação 4D, 17/09/91)
A escrita subjacente a atividades de en-
tretenimento aparece também quando as
crianças de todos os grupos imitam pro-
gramas de TV e cantam músicas de es-
cola e de ciranda (grupo 1 e 2) e músi-
cas sertanejas que estão na moda (gru-
pos 2, 3 e 4).
Comunicação Interpessoal
Para comunicação interpessoal a língua
escrita veiculada através das cartas, bilhe-
tes e cartões tem uma importante função
em todos os grupos, seja como uma das
referências à importância do saber ler/ es-
crever (grupos 1 e 2), seja para dar e re-
ceber notícias de parentes distantes (gru-
pos 1 a 4), trocar mensagens (grupos 2, 3
e 4), ou participar de sorteios na TV (gru-
pos 3 e 4).
Mas são as crianças não escolarizadas dos
grupos 3 e 4 que revelam sua familiarida-
de com este uso da escrita, na medida em
que "escrevem", "lêem" e fazem perguntas
sobre cartas, dedicatórias e cartões.
(Ex.11) RAN (4a5m) está "lendo" uma
carta:
RAN: Agora, eu vou mandar essa: "Eu
quem te amei, um beijo (beija o papel). Eu
quem te amo. (Observação 3E, 05/11/91)
(Ex.12) A mãe de LUI (3alm) nos falou
que estava tentando escrever uma carta
para sua prima, mas a menina não dei-
xou; tomou o papel e escreveu um bi-
lhete para a prima, mostrado pela mãe
com muito orgulho: era uma série de ra-
biscos com o nome da criança. (Diário
de Campo, 4E, 15/10/91)
Vida Diária
Os grupos apresentam algumas diferen-
ças quanto ao uso da escrita para reali-
zação de atividades da vida diária. Na
zona rural, os eventos nessa categoria são
muito poucos: as pessoas consultam ca-
lendários, perguntam as horas e se refe-
rem à necessidade de ler documentos e
placas, quando vão à cidade. Mas mesmo
a necessidade da leitura com este objeti-
vo é questionada por alguns, talvez por-
que tenham desenvolvido estratégias de
sobrevivência que prescindam da escrita.
Na periferia, há uma variedade um pou-
co maior de eventos deste tipo, uma vez
que os pais também olham rótulos de
produtos, notas fiscais e carnes. Às vezes,
não há uma leitura enquanto decodifica-
ção do texto, mas discussões sobre ele,
em que as pessoas ora se guiam pelas le-
trás, ora pelo icônico, num processo de
negociação do seu sentido:
(Ex:13) Enquanto conversavam, chega o
funcionário da CAGEPA, entregando a
conta da água. Há uma breve discussão
porque o irmão da dona da casa diz que
é a conta da luz e a vizinha afirma que é
a da água. Teimaram alguns minutos, e a
dona da casa, depois de olhar bem para o
carne, diz com veemência que é da água.
Então ela pede que eu olhe o valor a ser
pago. (Diário de Campo, 2C 18/07/91)
Esta partilha observada na construção do
sentido do texto também se verifica noutras
ocasiões em que as pessoas dividem o pou-
co alimento, dinheiro e espaço disponíveis.
Nos grupos 3 e 4, além desses usos, ob-
servamos leitura de catálogos, bulas, ma-
nuais de instrução e receitas culinárias.
As crianças não escolarizadas do Grupo 1
não se envolveram em eventos nessa ca-
tegoria; as do Grupo 2 envolveram-se
em alguns, embora poucos olhando, por
exemplo, embalagens de produtos:
(Ex.14) EDA (4a6m) e a irmã olham as
capas de discos da estante, um por um,
até me mostrarem todos. (Diário de Cam-
po, 2E, 25/11/91).
As crianças dos grupos 3 e 4, no entanto,
explicitam seu conhecimento neste sentido
de várias maneiras, dizendo que no calen-
dário "tem os dias", "vendo" número no
termômetro, "lendo" manuais de instrução,
'lendo" e "escrevendo" receitas culinárias:
Ex.15) LAN (1a6m) vai ao quarto dos pais,
olha o relógio de cabeceira, volta para a
sala e diz: "teis". (Diário de Campo, 4C,
16/09/91).
Informação
Para obtenção de informações, a escrita
é utilizada de forma indireta quando as
pessoas dos diversos grupos ouvem no-
ticiários de rádio e televisão. Alguns epi-
sódios relativos ao uso de jornais e re-
vistas informativas ocorreram, com pou-
ca freqüência no Grupo 4 e ainda menos
no Grupo 3. Nesta categoria de eventos,
envolvem-se particularmente os adultos,
tendo crianças do Grupo 4 reconhecido
esses textos como pertencentes aos pais.
Atividades Religiosas
Ligada a atividades religiosas a escrita
parece ter uma função importante, nos
grupos 1, 2 e 3, os quais, como também
foi observado por Miranda (1992), expli-
citam nas suas práticas o grande valor
simbólico associado ao material religioso:
os pais referem-se ao desejo de aprender
a leitura para "ler na Bíblia", indicam tex-
tos de "literatura", isto é, folhetos evangé-
licos e têm a bíblia entre as mãos en-
quanto escutam fitas evangélicas. As cri-
anças não escolarizadas presenciam estes
eventos como observadoras.
(Ex.16) A tia sentou no chão com 77G
(2a2m) no colo. Por alguns instantes, ela
pareceu estar lendo a bíblia; fechou-a e
colocou-a sobre a radiola. (Diário de
Campo, 3A, 06/08/91).
Outros Usos: Compra e Venda, Auxílio à
Memória, Identificação de Objetos Pessoais
e Confirmação
Outros usos da escrita foram observados
apenas ocasionalmente, como os relati-
vos à compra e venda e auxílio à memó-
ria. Não podemos dizer se, no turno da
noite, quando há uma presença maior
dos pais, principalmente os da zona ur-
bana em casa, esses eventos ocorrem,
com maior freqüência, uma vez que as
nossas visitas às famílias não incluíram
esse horário. Talvez por isso, eventos de
letramento ligados a atividades profis-
sionais, quase não tenham sido registra-
dos, salvo algumas referências feitas pe-
los adultos a partir de perguntas do ob-
servador.
As crianças não escolarizadas presenciam o
uso do dinheiro como portador de escrita
e neste campo de compra e venda vêem
as pessoas confirmando preços ou fazen-
do compras. Registramos episódios em
que as crianças dos grupos 2, 3 e 4 expli-
citam seu conhecimento neste sentido:
(Ex.17) — SOC (4a6m), vendo os tíque-
tes de ônibus da observadora, diz: —
Pia, Sônia, isso é de leite, né? Sônia, isso
né de leite? (Observação 2D, 03/09/91).
(Ex.18) — RAS (2a3m) e sua irmã, MAI
(3a) fazem de conta que vendem bana-
nas, usando um carrinho de bebê: MAI
— Manana, manana, tem verde. RAS
— Ei, tem manana ai? MAI —
Tem batinha fita. RAS — Me dê
manana (MAI entrega). Quanto é?
MAI — É dez mil. (Observação D4,
04/09/91)
As crianças não escolarizadas dos grupos 3 e
4 demonstram nas suas brincadeiras o
uso da escrita como auxílio à memória:
(Ex.19) — RAN (4a6m) faz de conta que
está telefonando para a mãe, enquanto
consulta um papel:
RAN — Onde... cadê minha...? Ah! O
trabalho dela é... é: 1, 2, 3... 1, 7, 8... 7, 8.
(Observação 3E, 05/11/91).
O uso da escrita para identificar objetos
pessoais foi observado nos grupos 3 e 4
e as crianças não escolarizadas destes gru-
pos mostraram materiais marcados com
seus nomes (grupos 3 e 4) e chamaram
a atenção para os nomes expostos nos
quartos (grupo 4).
Finalmente, a utilização da escrita para
confirmar o que se diz oralmente nos é
revelada por uma das mães do grupo da
periferia que não é alfabetizada mas
que, numa demonstração do poder atri-
buído à escrita (Gnerre, 1985), aponta
um cartaz exposto na parede da casa pa-
ra convidar a observadora a participar
de uma novena.
DISCUSSÃO
Os dados coletados nos mostram que,
desde cedo, as crianças de todos os gru-
pos têm experiências de letramento pro-
porcionadas pela presença de materiais
escritos em suas residências e pelos usos
que tem a escrita nas suas famílias.
Tendo como perspectiva o trabalho da
escola, cabe-nos discutir aqui alguns
pontos. O primeiro deles é a noção de
que as crianças, principalmente as da
periferia e da zona rural, chegam à esco-
la sem qualquer conhecimento a respeito
da língua escrita. Observamos que, mes-
mo aquelas crianças que vivem em am-
biente menos letrados, como as da zona
rural e da periferia, se inserem/vão sen-
do inseridas de algum modo no mundo
da escrita, antes de ingressarem na esco-
la, seja presenciando eventos de letra-
mento em que os protagonistas são ou-
tras pessoas, seja participando desses
eventos por sua própria iniciativa ou pela
de outrem, principalmente os irmãos
escolarizados. Mas a escola desconsidera
as experiências anteriores das crianças,
pretende iniciar o seu processo de alfa-
betização partindo do zero e restringe o
acesso da criança à escrita, sob a alega-
ção de que convém prepará-la antes pa-
ra a alfabetização. Essa atitude se aplica
tanto às crianças provenientes de lares
letrados, como destaca Rego (1988),
quanto, e talvez principalmente, às cri-
anças que vêm de ambientes pouco le-
trados. Para Castanheira (1992), a escola
tem idéias preconcebidas sobre as crian-
ças pobres e ao invés de ampliar o que
elas já sabem, afasta-as da escrita, pro-
pondo-lhes exercícios mecânicos e sem
significado. Segundo Moreira (1988), a
escola não dá condições de tornar signi-
ficativo o uso da escrita nem para as
crianças pobres nem para as de classe
média, que teriam de ultrapassar a
escola para retomar os usos significati-
vos da escrita, descobertos em ativida-
des familiares.
Outra noção sobre a qual os dados nos
levam a refletir é a do interesse /desin-
teresse das crianças pelo mundo da
escrita. Seja fazendo usos diversos da
língua escrita, como acontece entre as
crianças cujas famílias têm maior fami-
liaridade com este objeto, seja quase
apenas usando-a com uma função esco-
lar, como é o caso das crianças de famí-
lias com menor nível de letramento,
observamos que as crianças demonstram
interesse pela escrita e têm nela uma
fonte de entretenimento no seu dia-a-
dia. Na mesma direção da tese defendi-
da por Parto (1973) e Sena (1992), nossos
dados parecem contradizer a hipótese
de que o fracasso escolar das crianças
pobres deve ser atribuído a sua falta de
interesse ou à de seus pais. Há interesse,
sim. Naturalmente, não se pode avaliá-
lo pelo engajamento dos pais na orien-
tação dos trabalhos escolares, uma vez
que esta tarefa exige um nível de letra-
mento que muitos deles não possuem.
Tal engajamento acontece nos grupos 3
e 4. No entanto, nos grupos da zona
rural e da periferia o envolvimento com
a vida escolar das crianças se revela
quando os pais demonstram orgulho
pelo desempenho dos filhos; apoiam os
castigos porque os consideram necessá-
rios para a aprendizagem (grupos 1 e 2);
obrigam as crianças a freqüentarem a
escola; apesar das dificuldades financei-
ras, compram algum material escolar ou
preparatório para a escola e afirmam
que só desejam a aprovação das crianças
"se souberem mesmo" (grupo 2). Por ou-
tro lado, como nos lembra Terzi (1992,
p.181), precisamos
relativizar a afirmação de que toda cri-
ança ao chegar à escola já traz um co-
nhecimento sobre a escrita, uma vez que
esse conhecimento difere bastante de
criança para criança já que são diferen-
tes as possibilidades de letramento ofe-
recidas pela família e pela comunidade.
Neste sentido, podemos apontar algu-
mas prováveis características dos grupos
estudados:
a) na zona rural (Grupo 1), a riqueza
dos jogos orais envolvendo todos os
membros da família e voltados para a
construção do significado das palavras;
b) nas famílias da periferia (Grupo 2), a
partilha de objetos, de alimentos, de lei-
tura dos textos cujo sentido é negociado
pelas pessoas que precisam ler, têm pou-
co conhecimento do código e coletivizam
suas dificuldades.
Nos dois grupos, a escrita é valoriza-
da/questionada principalmente como
uma referência, pelo que seu acesso po-
deria permitir no futuro;
c) nas famílias menos pobres e com
maior familiaridade com a escrita (Gru-
po 3), várias experiências de leitura e es-
crita, mesmo sendo relativamente pou-
cos os materiais escritos disponíveis;
d) nas famílias de maior nível salarial e
escolar (Grupo 4), muitos e diversifica-
dos portadores de texto (inclusive mate-
riais específicos para crianças) e diversos
usos da leitura e escrita.
As crianças não escolarizadas, conseqüente-
mente, têm experiências particulares com
a língua escrita, parecendo haver diferen-
ças principalmente quando tratamos do
uso do texto escrito de forma direta e não
apenas subjacente às ações. As crianças da
zona rural convivem com o texto escrito
relacionado principalmente a atividades
escolares e de entretenimento proporcio-
nadas pelas brincadeiras de escola dos ir-
mãos. As da periferia têm alguma convi-
vência com a escrita usada também para
realização de atividades ligadas à vida
diária, religião, comunicação interpessoal,
compra e venda e como auxílio a memó-
ria. Mas são poucos os eventos nessas ca-
tegorias. Para as crianças dos outros gru-
pos, a convivência se dá, além disso,
quando a escrita é usada para obter infor-
mações. Enquanto as crianças dos grupos
mais letrados têm maior quantidade e va-
riedade de experiências de letramento e
vivenciam estes eventos como algo usual,
do seu cotidiano, as dos grupos menos le-
trados parecem ver a escrita principal-
mente como algo que trará benefícios no
futuro. Estar na escola teria esse objetivo.
Isto, provavelmente, leva às diferentes
posturas assumidas pelos adultos nas suas
interações com as crianças cujo tema é a
língua escrita. Talvez por esse motivo, os
adultos dos grupos 1 e 2 dêem pouca
atenção às interações da criança não alfa-
betizada com o texto escrito (o que não se
verifica quando os filhos já freqüentam a
escola). Nos grupos com maior nível de
letramento, por outro lado, os adultos e as
crianças que já estão na escola dedicam,
desde muito cedo, atenção às interações
da criança com a escrita, seja proporcio-
nando jogos simbólicos, seja focalizando a
escrita e assumindo o papel de quem in-
forma, pergunta, explica, responde, nas si-
tuações reais.
Outro ponto que merece discussão é a for-
ma como acontecem as atividades perme-
adas pela língua escrita. A leitura de his-
tórias, por exemplo, no grupo de escolari-
dade superior é uma atividade dirigida à
criança pequena, na qual se engaja um
adulto ou outra criança. Na zona rural, a
atividade de contar histórias, como outros
jogos orais, envolvem toda a família e, em-
bora a criança pequena participe ainda
apenas como observadora, acreditamos
que está aprendendo formas de se relacio-
nar com a escrita. Segundo Snow (1983),
contar ou ler histórias para as crianças é
uma das maneiras de prepará-las para as
formas escritas do letramento, uma vez
que com isso as pessoas fornecem indica-
ções sobre aspectos da língua escrita no
discurso oral e provêem a descontextuali-
zação, pelo distanciamento do cenário e do
autor. Wells (1985) também estudou esta
questão e verificou que folhear livros, de-
senhar e colorir não estão significativa-
mente correlacionados com medidas de
compreensão de leitura realizadas posteri-
ormente na criança, nem com grau de ins-
trução dos pais. Mas ouvir histórias, prin-
cipalmente lidas, sim. Heath (1982) tam-
bém encontrou diferenças, neste sentido,
entre as comunidades estudadas e relacio-
na essas diferenças com o trabalho realiza-
do na escola, que estaria muito mais próxi-
mo das experiências das crianças de classe
média, favorecendo o seu desempenho.
Talvez este ponto deva ser melhor estuda-
do, se quisermos encontrar maneiras de
contribuir para a aprendizagem na área da
leitura dos alunos das nossas escolas, par-
ticularmente as públicas.
Nas famílias da periferia, praticamente
não registramos a ocorrência de jogos
orais como contar histórias, fazer adivi-
nhações ou brincadeiras de rima, salvo
algumas imitações de programas de TV.
Este dado nos causou estranheza uma
vez que aquelas famílias são oriundas
da zona rural, onde o trabalho com a
oralidade se desenvolve de maneira tão
rica. Talvez pudéssemos explicar essa
ausência na perspectiva da "perda de
identidade'' decorrente da migração da
família para a zona urbana (Nicolaci-da-
Costa, 1987). No entanto, levantamos a
possibilidade de lacunas na metodologia
do trabalho, cujas observações quase
não puderam se realizar no expediente
noturno, quando em geral todos os
familiares estão em casa.
Problemas de ordem metodológica,
aliás, em trabalhos deste tipo merecem,
a nosso ver, um estudo particular. Julga-
mos ser fundamental, por exemplo, es-
tudar o papel e as dificuldades da figura
do observador, o qual, necessitando pe-
netrar no cotidiano das famílias, precisa
manter-se distante para enxergar os fa-
tos com a necessária objetividade.
Ainda a respeito das formas de como se
desenvolvem as atividades no interior
das casas, salientamos a maneira como
as famílias de menor nível de letramento
se relacionam com o texto oral ou escri-
to, construindo em conjunto o seu signi-
ficado, partilhando as dificuldades, os
recursos, as interpretações, numa elabo-
ração coletiva de sentido, em que várias
pessoas, alfabetizadas ou não, intervém,
opinam, discordam, lêem. Miranda
(1992) também chama a atenção para es-
sas leituras partilhadas observadas em
seu estudo na periferia de Belo Horizon-
te. Enquanto isso, de acordo com Casta-
nheira (1992), a escola continua traba-
lhando a escrita de maneira que indivi-
dualiza a relação do aluno com o texto.
Impede-se a troca, a ajuda, a participa-
ção dos companheiros no ato de ler. O
papel do "outro" também salientado por
Anderson e Teale (1987), De Lemos
(1989) e Smolka (1989) não é considera-
do relevante.
Acreditamos que, a partir da importân-
cia atribuída por Vygotsky às condições
sócioistórícas, aos processos interpsicoló-
gicos e à mediação dos outros na apro-
priação pela criança do conhecimento
sobre a escrita, temos ainda muito a co-
nhecer neste campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho busca compreender a con-
vivência da criança com a língua escrita,
antes do seu ingresso na escola, a partir
da caracterização dos usos da escrita em
grupos com diferentes relações com esta
modalidade da língua. Por suas caracte-
rísticas metodológicas, não pretende fa-
zer generalizações ou estabelecer con-
clusões. É antes disso, um trabalho ex-
ploratório de "reconhecimento do terre-
no", através do qual esperamos ter for-
necido alguns indicadores do que as cri-
anças ainda não escolarizadas conhecem
a respeito dos usos da escrita.
No seu conjunto, os dados parecem vir
apoiar questionamentos levantados por
Woods (1987) e Soares (1993), a respeito
de se ter uma definição uniforme de al-
fabetização, uma vez que encontramos
indivíduos que, mesmo sem saber ler e
escrever são, de diversas formas, usuá-
rios da escrita. A noção de letramento
ou alfabetismo parece envolver, portan-
to, aspectos bem mais complexos do que
se poderia sugerir, fazendo simplesmen-
te uma dicotomia entre analfabetos e al-
fabetizados.
Além deste, e na perspectiva de entender
mais claramente as formas através das
quais a criança se constitui leitora, desta-
camos alguns aspectos relacionados a este
trabalho e que, a nosso ver, mereceriam
estudos posteriores. Parece ser importante,
por exemplo, ter uma melhor compreen-
são dos tipos de eventos de letramento
dos quais a criança participa ou apenas
observa; das informações contidas nos
eventos de letramento presenciados pela
criança; das experiências de letramento de
crianças da mesma comunidade, mas cu-
jos pais têm diferentes graus de escolari-
dade; do papel dos jogos orais no desen-
volvimento do letramento nas crianças e
das interações entre a criança não escolari-
zada e seus familiares quando se relacio-
nam com a escrita.
Acreditamos na necessidade de avançar
na compreensão dos aspectos aqui des-
tacados, bem como na discussão das
suas implicações para o trabalho na sala
de aula já que a escola não pode conti-
nuar encarando como "deficiência" mo-
dos particulares de se relacionar com a
escrita. Precisaria, sim, conhecê-los me-
lhor para poder reorientar a sua própria
prática e tornar-se mais competente no
que deveria ser a sua função: contribuir
para a diminuição das desigualdades so-
ciais, garantindo a ampliação do saber
sem destruir as experiências da criança.
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