subjetiva, expressa na unilateralidade do homem, decorrente do distancia-
mento e da perda da raiz que o derivou e da adoção da fala
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que se faz a
partir da conciência subjetiva, em cujo centro, orientando-a, reside o ego.
Acontece, entretanto, que este constitui apenas um irrisório derivado da
ancestral consciência objetiva, una e livre de polaridade, em cujo centro
reside o self, regendo todos os processos objetivos. Esta última, também
denominada Energia Primordial, Tao, Deus, Ki, Brahman, Espírito, Eterni-
dade, porta em si tanto os princípios e processos que propiciam e garan-
ou impulsos, oriundos do inconsciente, como objetivas formas de expressão. Nesse
sentido Campbell dotou as plantas e animais de uma consciência extremamente
objetiva. Ocorreu-me uma compreensão análoga quando assisti a um vídeo intitula-
do Os Bichos são Gente Boa O vídeo mostrava certos aspectos da vida pun-
gente num oásis do deserto da Pré-Namíbia, que se forma temporariamente após a
estação das chuvas, no qual determinado pássaro "ajuda" um animal de carapaça
dura, semelhante a um ouriço, a encontrar o alimento, indicando-lhe o percurso que
leva ao favo de mel. O pássaro, apesar de conhecer o caminho, não possui recursos
para extrair o favo, isento de ferroadas das abelhas. O "ouriço", apesar de desco-
nhecer a fonte, detém em si esse recurso. Uma cooperação em torno de uma ne-
cessidade comum passa a se estabelecer. Nessa associação, tanto um como o ou-
tro "sabe" de antemão a parte que lhe cabe, seja "fazer ou "usufruir". Uma vez
extraído o alimento, o"ouriço" se beneficia do grosso do mel e deixa o resto para o
pássaro que passa a se alimentar daquilo que lhe foi deixado. O mesmo ocorre com
o mundo das plantas: determinadas plantas noturnas, ao exalarem odor, atraem o
seu polinizador noturno, e este por sua vez se orienta pelo odor que elas exalam e
se alimenta do seu néctar. Portanto, ao falar em consciência objetiva estaremos nos
referindo àquela realidade subjacente à forma manifesta, portadora de princípios
extremamente sutis, harmônicos e objetivos que determinam a relação e o curso dos
fatos. Referimo-nos ao universo onde o dar e o receber constituem aspectos de um
só princípio, o qual, por sua vez, encontra-se conectado a um sentido maior, a na-
tureza como um todo. Nele, a manifestação e a afirmação das potencialidades vir-
tuais constituem o fundamento da existência e da evolução do universo e do indiví-
duo, cujo centro diretor é a Energia Primordial, I manancial da vida e território li-
vre de polaridade, em nós, o self, a unidade essencial última, livre de unilateralida-
des, que contém em si, tanto o universo objetivo como o subjetivo. Este último é co-
mumente denominado de consciência, à qual nos referiremos como "consciência
subjetiva", em cujo centro reside o ego. A diferença da "consciência objetiva", esta
não abarca a totalidade da consciência e encontra-se sob o domínio dual, espacial,
temporal. Por ter despontado do grande e obscuro oceano, base de toda a vida, ad-
quiriu a capacidade de começar a "ver" de fora, diferenciando-se de animais e
plantas, ainda submersos no obscuro oceano, mas passou a ignorar que ela mesma
constitui apenas uma ínfima parte desse oceano e só pode existir e fluir a partir dele.
A "fala", aqui, inclui o pensamento, a fala e o gesto.
tem a existência e a continuidade da vida, como o sentido para o qual
caminha o universo. Se tentarmos compreender o sentido implícito nas
máscaras
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pelas quais esse universo se faz comunicar, poderemos até
conhecer a sua natureza, mas da natureza última de sua realidade ja-
mais teremos condições humanas de saber.
A partir de então pudemos reconhecer a existência de um outro plano da
realidade, subjacente ao mundo manifesto e dotado de princípios próprios:
objetivo e impessoal, distinto daquele estabelecido pela "razão" humana,
a reger, em última instância, todas as coisas existentes no universo "ru-
mo ao sentido apontado pela natureza" (Campbell, 1990). A esse plano
da realidade Campbell denominou consciência objetiva. Dele, o fenômeno
da sincronicidade
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, o qual escapa a qualquer controle, previsão ou men-
suração científica, constituía apenas uma de suas manifestações.
Dentro dessa perspectiva, é como se todas as coisas existentes compu-
sessem um grande mosaico vivo, do qual somos um sopro no tempo e
um microgrão no espaço, conectados a uma Grande Consciência que
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Emprestamos esse termo de Campbell (1990) ao nos referirmos à forma como a
realidade última se faz comunicar, conectar, através de "máscaras", nunca de modo
direto. Os arquétipos, os mitos, a poesia, as metáforas, os símbolos constituem essas
máscaras, a penúltima verdade, "penúltima, porque a última não pode ser trans-
posta em palavras. Está além das palavras, além das imagens, além da borda limi-
tadora da Roda do Devir dos budistas. A mitologia lança a mente para além dessa
borda, para aquilo que pode ser conhecido mas não contado" (p. 173). Essa verda-
de última tem o mesmo sentido da ETERNIDADE expressa por Jorge Luis Borges
(1953, p. 23). "A eternidade é um mero hoje, é o fruir imediato e lúcido das coisas
infinitas", portanto o viver o aqui e o agora, isento de polaridade, que integra tudo o
que pertence àquela fração de momento, íntegro e livre do domínio temporal e es-
pacial.
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Para fazer entender esse conceito com a menor margem de incompreensão, Jung
(1988b) o abordou de diferentes maneiras. Primeiramente, tomou-o como sendo uma
diferenciação moderna dos conceitos obsoletos de correspondência, simpatia
e harmonia, mas distinguiu-o deles por basear-se não em pressupostos filosóficos,
mas na experiência concreta e na experimentação (p. 94). Depois, a escolha desse
nome foi atribuída à simultaneidade de seu caráter, "para designar um fator hipotéti-
co de explicação equivalente à causalidade" (p. 14). Feita essa distinção, caracteri-
zou o fenômeno da sincronicidade como a aparição simultânea de dois aconteci-
mentos, ligados pela significação, mas sem ligação causai" (p. 19).
Em Aberto, Brasília, v. 10, n. 49, jan./mar. 1991