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EDUCAÇÃO ESCOLAREDUCAÇÃO ESCOLAR
EDUCAÇÃO ESCOLAREDUCAÇÃO ESCOLAR
EDUCAÇÃO ESCOLAR
INDÍGENAINDÍGENA
INDÍGENAINDÍGENA
INDÍGENA
Marilda Almeida Marfan
Organizadora
Brasília
2002
Volume 4
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Livros Grátis
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PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete
COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosangela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello
COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira
Edição: Elzira Arantes
Projeto Gráfico: Alex Furini
Editoração: José Rodolfo de Seixas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI)
Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação: formação
de professores (1. : 2001 : Brasília)
Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação :
formação de professores: educação indígena. / Marilda Almeida
Marfan (Organizadora). __ Brasília : MEC, SEF,
2002.
204 p. : il. ; v.4
1. Formação de Professores. 2. Qualidade da Educação.
3. Educação Escolar Indígena. I. Título. II. Brasil.
Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental.
CDU 371.13
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 5
Iara Glória Areias Prado
SIMPÓSIOS
SIMPÓSIO 1 9
EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA DIVERSIDADE CULTURAL
Héctor Muñoz Cruz
SIMPÓSIO 2 19
POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL
Jean Paraízo Alves
Maria Helena Fialho
SIMPÓSIO 3 29
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE CULTURAL E CIDADANIA: OS POVOS INDÍGENAS E A ESCOLA
Inge Sichra
SIMPÓSIO 4 41
EXPERIÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR INDÍGENA
Edivanda Mugrabi
Elias Renato da Silva Januário
Maria Inês de Almeida
Marilda C. Cavalcanti
SIMPÓSIO 5 61
AS ORGANIZAÇÕES DE PROFESSORES NO BRASIL:
RELAÇÕES COM AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS ESCOLAS INDÍGENAS
Jaime Costódio Manoel
Cristóvão Teixeira Abrantes
PAINÉIS – RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
PAINEL 1 71
A QUESTÃO INDÍGENA NA SALA DE AULA
Ana Vera Macedo
Rosani Moreira Leitão
Betty Mindlin
José Ribamar Bessa Freire
PAINEL 2 101
AS EXPERIÊNCIAS DOS CONSELHOS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
Elias Renato da Silva Januário
PAINEL 3 107
O PAPEL DA ANTROPOLOGIA, DA LINGÜÍSTICA E DA PEDAGOGIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Judite Gonçalves de Albuquerque
PAINEL 4 113
POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS E A ESCOLA INDÍGENA
Wilmar da Rocha D’Angelis
Marcus Maia
PAINEL 5 129
LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Luís Donisete Benzi Grupioni
Darci Secchi
Vilmar Guarani
PAINEL 6 145
OS ETNOCONHECIMENTOS NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello
José Augusto Laranjeiras Sampaio
Roseli de Alvarenga Corrêa
PAINEL 7 161
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber
Maria Cristina Troncarelli
Zélia Maria Rezende
Marlene de Oliveira
PAINEL 8 177
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula
Terezinha Furtado de Mendonça
PAINEL 9 187
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang
Arlene Bonfim
PAINEL 10 199
PRÁTICA DE SALA DE AULA NA ESCOLA INDÍGENA
Yolanda dos Santos Mendonça
Alzenira Felipe Marques
O Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação
de Professores, promovido pela Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação (SEF/MEC), foi realizado em Brasília no período
de 15 a 19 de outubro de 2001.
O Congresso tratou, em seus simpósios, palestras, painéis, oficinas e
atividades paralelas, de uma das principais variáveis que interferem na
qualidade do ensino e da aprendizagem: a formação continuada dos pro-
fessores. Buscou propiciar aos educadores e profissionais da área, tanto
nas oito séries do Ensino Fundamental, quanto na Educação Infantil, na
Educação de Jovens e Adultos, na Educação Especial, na Educação Indí-
gena e na Educação Ambiental, informações e conhecimentos relevan-
tes para subsidiá-los em sua prática. Promoveu um balanço geral dos
principais avanços alcançados nos últimos anos, com a implantação de
políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino, e
enfatizou, de forma especial, os programas de desenvolvimento profis-
sional continuado e de formação de professores alfabetizadores, que fo-
ram debatidos sob diferentes óticas e pontos de vista.
O Congresso envolveu cerca de 3 mil participantes, incluindo, além das
representações municipais, um significativo número de autoridades, es-
pecialistas nacionais e internacionais e representantes de organizações
não-governamentais, privilegiando, quantitativamente, os representantes
dos municípios que procuravam desenvolver em seus sistemas de ensino
as políticas de formação continuada propostas pelo MEC, a saber: o Pro-
grama de Desenvolvimento Profissional Continuado – “Parâmetros em Ação
e o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – PROFA.
Ao promover a organização desta publicação, a SEF faz um resgate de
todos os textos apresentados e entregues, em tempo hábil, pelos especia-
listas convidados e procura colaborar com aqueles profissionais da área
que valorizaram o evento e estão em busca de sua memória, ou que, por
diferentes razões, se interessam por reflexões e temas relativos à quali-
APRESENTAÇÃO
dade da educação e à formação dos professores, tais como: educação para
a mudança, transversalidade e interdisciplinaridade, educação escolar
indígena, livro didático, inclusão digital, alfabetização, organização dos
sistemas de ensino, educação inclusiva, escola reflexiva, enfim, compe-
tência profissional, o desempenho do professor e o sucesso escolar do
aluno, entre outros.
Como o público-alvo é muito diversificado, o volume de textos apre-
sentados muito grande, e como os principais eixos temáticos podem in-
teressar, de forma mais direta, a diferentes segmentos do Ensino Funda-
mental, os resultados do Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade na
Educação – Formação de Professores foram organizados em quatro volu-
mes: os volumes 1 e 2 referem-se a temas mais gerais, relativos à Educa-
ção Fundamental como um todo, e incluem temas específicos referentes
à Educação Infantil, à Educação de Jovens e Adultos, à Política do Livro
Didático e à Educação Especial; o volume 3 trata da Educação Ambiental;
e o volume 4 é dedicado à Educação Escolar Indígena.
Embora incompleta, pela ausência de alguns textos, e observando que
em alguns casos só apresenta os resumos dos participantes, a presente
edição reflete a importante contribuição e a competência de nossos es-
pecialistas, tanto pelas palestras proferidas nos simpósios, quanto pelos
relatos de experiências contidos nos painéis, e incorpora 25 textos apre-
sentados por renomados especialistas internacionais.
Ressalta-se ainda que os textos contidos nesta publicação são de in-
teira responsabilidade de seus autores e retratam reflexões e pontos de
vista de cada especialista envolvido.
Com a presente publicação, a SEF/MEC espera que os resultados do
Congresso de Brasília possam ser amplamente divulgados e cheguem ao
alcance dos principais interessados: professores do Ensino Fundamen-
tal, diretores de escolas, institutos de formação de mestres, pesquisado-
res, universidades, enfim, todos aqueles ligados à produção, à reprodu-
ção, ao consumo e à transmissão do conhecimento, paladinos da cons-
trução de uma escola de qualidade para todos.
Iara Glória Areias Prado
Secretária de Educação Fundamental
SIMPÓSIOS
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENAEDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENAEDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
9
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIO
1 1
1 1
1
EDUCAÇÃO NO CONTEXTO
DA DIVERSIDADE CULTURAL
Héctor Muñoz Cruz
10
Natureza e impacto
da diversidade
Este país encontra-se completamente despreparado
e, em alguns casos, sem vontade de atender às
necessidades educativas e sociais de sua população
multicultural de estudantes. Como resultado da
escassez de professores multiculturais e
multilíngües, os professores recebem referências de
emergência para lecionar. Esses professores têm
poucas oportunidades para desenvolver uma
compreensão do que significa lecionar em uma
sociedade multicultural e multilíngüe. Ademais, os
programas de formação de professores continuam
centrados no ensino e na aprendizagem de modelos
de instrução monoculturais e fora de contexto.
Quem necessita ser crítico e reflexivo se o uso
continuado de métodos, materiais e currículos
descontextualizados, “à prova de professores, é a
prática habitual nas escolas?
Gutiérrez, apud McLaren, 1995: 184.
O reconhecimento social, a documentação
e a pesquisa científica sobre a heterogeneida-
de das sociedades, os sujeitos e seus respec-
tivos indicadores aumentaram paulatinamen-
te nos últimos anos, tanto no âmbito global
quanto nas comunidades pequenas. O
multiculturalismo e as desigualdades irrom-
peram com tal impacto nas plataformas
sociopolíticas dos projetos globais, nacionais
e étnicos, que converteram a diversidade e o
multidirecionamento em descobertas sur-
preendentes, fascinantes, porém conflitantes.
A diversidade e o multidirecionamento cons-
tituem dois fatores substantivos do presente
que nos foi legado com dor por uma realida-
de multicultural abundante em pobreza, de-
sigualdades e exclusões. O quê e o quanto sa-
bemos sobre a diversidade histórica? Na rea-
lidade, a natureza e, sobretudo, as conseqü-
ências desse fenômeno extrapolam quase que
por completo a imaginação popular e as pes-
quisas mais rigorosas. Ainda assim, no pre-
sente trabalho procuro propor algumas impli-
cações dos aspectos contemporâneos da di-
versidade lingüística e cultural na teoria
educacional.
Em todas as latitudes do planeta, verifi-
ca-se um processo extremamente amplo de
assimilação e perda da diversidade cultural
e intelectual. Como interpretar essa tendên-
cia? Quais são as dimensões e implicações
para a humanidade? Um caso muito discuti-
do refere-se à angústia e ao deslocamento
que as línguas e culturas politicamente do-
minantes produzem sobre as línguas e cul-
turas indígenas locais (Hale, 1992; Ladefoge,
1992). Embora esse processo não esteja rela-
cionado com a perda simultânea de diversi-
dade nos mundos biológico e botânico, não
é de todo inadequado imaginar-se uma ana-
logia ecológica. Se é dramático imaginarmos
os perigos decorrentes da perda de diversi-
dade biológica no planeta, não é menos ca-
tastrófico visualizarmos os perigos inerentes
à perda de diversidade lingüística e cultural.
Entretanto, a preservação e a manutenção
das línguas e culturas continuam a ser um
tópico multifacetado sobre o qual diferentes
opiniões podem ser emitidas.
A partir de uma perspectiva sociolingüística
(Muñoz e Lewin, 1996), as conseqüências da
perda e da transformação da diversidade para
parâmetros de uniformidade se refletem em
três importantes dimensões da vida social: pri-
meiro, modificam a funcionalidade e a repro-
dução na comunicação e na continuidade cul-
tural; segundo, enfoca-se a racionalidade ou
reflexividade em torno de modelos lingüísticos
e culturais dominantes; e, terceiro, diversifi-
A educação no contexto
da diversidade
Héctor Muñoz Cruz
Universidade Autônoma Metropolitana/México
10
Educação no contexto da diversidade cultural
SIMPÓSIO 1
cam-se e especializam-se as capacidades
socioculturais dos sujeitos em relação às neces-
sidades dos projetos globais. Em suma, há todo
um campo a ser pesquisado no qual, entretan-
to, a maioria das preferências explicativas pro-
postas decorre de uma visão superficial e des-
critiva da diversidade.
A esse respeito, as possibilidades de in-
tervenção ou de prevenção implicam tarefas
tais como uma adequada compreensão da
perda de diversidade, rechaçando-se a con-
cepção de que seja uma condição normal do
mundo moderno e uma efetiva potencializa-
ção dos recursos e das identidades culturais
das comunidades afetadas. As soluções e as
estratégias estão longe de serem universais.
As decisões e as opções são prerrogativas cla-
ramente exercidas por povos e falantes. A hu-
manidade é surpreendentemente flexível no
que se refere à preservação da diversidade.
Enquanto diversas culturas morrem, sempre
estão surgindo outras, fato que não apresen-
ta correlação direta com a etnia ou o idioma
(Ladefoge, 1992).
Nesse contexto, a diversidade é conseqü-
ência da racionalidade humana para adap-
tar-se e responder de forma criativa a tudo
que a rodeia e às suas necessidades. Mas essa
não é a meta das relações humanas ou da
educação. A diversidade pressupõe funções
de intercâmbio e de equilíbrio tanto para o
indivíduo quanto para as interações de todo
o conjunto social.
Por outro lado, discussões mais ou menos
recentes sobre desenvolvimento social inclusi-
vo, pluralidade na política e interculturalismo
na educação em nosso continente colocam uma
ênfase clara sobre a necessidade de vincularem-
se, efetivamente, as alterações socioculturais e
as particularidades étnicas e lingüísticas à de-
mocratização e ao direito, à transformação em
prol da qualidade e da pertinência da educa-
ção nacional e à luta contra a pobreza e as de-
sigualdades.
1
No novo cenário político e econômico, a
migração, as políticas de preservação das lín-
guas, culturas e identidades das populações
originais adquiriram grande relevância, junta-
mente com o fomento da comunicação
intercultural e multilingüística e a eliminação
de ranços sociais e educacionais. Do ponto de
vista das ações governamentais, na realidade,
não existem no momento soluções harmôni-
cas para o reconhecimento e a reconciliação
das particularidades culturais e lingüísticas nas
novas estruturas nacionais.
Assim, já não podemos considerar que os seres
humanos criam seu entorno técnico e econô-
mico [...] a partir de agora são as indústrias cul-
turais (em particular o ensino, a assistência sa-
nitária e a informação) que criam novas repre-
sentações do ser humano e, por outro lado, des-
cobrimos que é possível inovar não apenas com
o novo... mas também com o velho (Touraine,
1999: 54).
A Unesco também tem contribuído para
chamar a atenção para esse fenômeno. A enti-
dade adverte que os estados estão deixando de
cumprir a política de Educação para Todos
(Jomtien) nos seguintes aspectos:
• descuido no que se refere a aprendizagens
informais;
• lentidão na redefinição das necessidades
educacionais, particularmente no que se
refere a um conteúdo educacional que re-
flita a diversidade cultural;
• aumento das desigualdades nos sistemas
educacionais: apenas os pobres, grupos
minoritários e não-capacitados foram con-
siderados;
• pouco desenvolvimento da educação ini-
cial nas zonas rurais; aumento da lacuna
tecnológica, que reduz as possibilidades
de que as tecnologias de informação e co-
municação atendam a necessidades espe-
cíficas;
1
Nossos países devem optar por um desenvolvimento sustentável e pela paz, e construir uma democracia multiétnica e pluricultural, o que
significa que os Estados devem se esforçar para entender a diversidade. Essa corrente, em seu afã para criar novos paradigmas, resgata a
autoridade, a diversidade cultural, a interação com a natureza e a pluralidade de saberes como expressões enriquecedoras e não-problemá-
ticas da humanidade (Cárdenas, 1995: 2-3). Cf. Touraine, 1999.
12
• e, por último, o financiamento da Educa-
ção Fundamental ainda é deficitário (SEP,
2000a e 2000b).
As experiências sociais mais freqüentes da
diversidade (auto-integração, assimilação, mi-
gração e ressocialização) comprometem obje-
tivos e atividades no âmbito da tecnologia dos
meios de comunicação, a educação em geral, o
ensino dos idiomas, o acesso ao trabalho em no-
vas áreas, a democratização da justiça e a diversi-
ficação dos serviços de informação e tradução.
As situações conflitantes do multicul-
turalismo aprofundam a desilusão e a frustra-
ção das comunidades no que se refere à vonta-
de e à orientação políticas do Estado. As deman-
das e as ações das alterações podem experimen-
tar um “viés comunitário e de identidade
(Gross, 2000), se seus próprios objetivos forem
frustrados. Ou seja, não é seguro que a popula-
ção discriminada se aproprie das mudanças ju-
rídicas e institucionais favoráveis à construção
e à participação em uma sociedade mul-
ticultural plural, devido ao fato de que essas
percebem convergências entre as reformas
constitucionais e o neo-indigenismo do Estado
com o ajuste econômico, a abertura neoliberal
e os custos econômicos e sociais que esses pro-
vocam.
Em suma, a educação sensível à diversida-
de é uma utopia recente e questão de justiça
para grande número de povos indígenas e afro-
americanos, bem como para movimentos so-
ciais que começaram a materializar-se na últi-
ma década, em novas bases jurídicas e em polí-
ticas públicas de educação escolarizada, rever-
tendo progressivamente um processo adverso
na educação pública que remonta ao início do
século XX. Até o século XVII, acreditava-se que
a diversidade era a causa da discórdia e das de-
sordens que levavam os Estados à ruína. Assim,
acreditava-se que a saúde do Estado exigia
unanimidade” (Sartori, 2001: 20-21).
Diversidade, direito e
compromisso com o
desenvolvimento educacional
As transformações na área da educação
sempre apresentam um referencial sócio-his-
tórico que pode impulsioná-las ou bloqueá-
las. A situação da formação de professores no
marco do multiculturalismo contemporâneo
não é exceção. Para educadores, funcionários
e líderes de movimentos sociais, o debate so-
bre a educação, sensível à diversidade cultural
das populações discriminadas, gira em torno
do direito e do reconhecimento do todo nacio-
nal, reivindicações que não foram atendidas e,
portanto, encontram-se bloqueadas. Seria in-
teressante estabelecer e criar o panorama des-
sa situação em nosso continente, como sugere
o relatório intitulado Nossa diversidade criati-
va (Unesco, 1997).
As alterações sociais e suas organizações
(etnias, imigrantes, gêneros, idiomas, reli-
giões) pelejam e negociam com os governos fe-
derais medidas como o status de sujeitos de
direito, a cidadania e a pertinência das políti-
cas públicas. Com efeito, os tempos políticos
na América Latina indicam que essa negocia-
ção será longa e não estará desprovida de con-
dicionamentos ideológicos do temor de supos-
tos privilégios diferenciados. Portanto, a aber-
tura e o pluralismo das políticas públicas cul-
turais e educacionais, no curto prazo, depen-
derão mais de negociações políticas do que de
razões educacionais (qualidade, igualdade e
pertinência).
2
Entretanto, a introdução de uma propos-
ta educacional suscita exigências que não se
satisfazem com as posturas ideológicas. A
questão essencial é que se precisa de concep-
ções sobre como opera uma mudança na edu-
cação e quantos processos devemos integrar
para assegurar uma reforma efetiva e favorá-
2
A crise na educação de hoje tem gerado profundas discrepâncias sobre o papel da escola na sociedade. É grande a necessidade de ajustar-
se a questão educacional às necessidades da sociedade e, especialmente, de abandonar a concepção e os conteúdos da escola pública
tradicional. Assim, no que se refere às escolas, inicia-se o progressivo consenso social de que sua atribuição não se limita a ensinar as
crianças e a fornecer-lhes as habilidades básicas necessárias em uma sociedade tecnológica complexa, mas inclui também a solução do
dilema da discriminação social e da violência, a fim de proporcionar oportunidades às mulheres e às populações étnicas, visando à sociali-
zação de gerações de migrantes do campo para a cidade e para canalizar a transformação de políticas sociais.
12
Educação no contexto da diversidade cultural
SIMPÓSIO 1
vel à população envolvida. Até o momento,
tem-se abusado de plataformas sociopolíticas
e descritivas para corroborar a necessidade de
transformar o sistema, os modelos acadêmi-
cos e as práticas escolares em relação à diver-
sidade. Mas talvez o melhor passo seja abrir
ou democratizar a gestão da educação
multicultural plural para atrair o compromis-
so e a criatividade demonstrados por muitos
professores.
Impacto da diversidade
lingüística e cultural no
desenvolvimento educacional
Na educação escolarizada, parece verifi-
car-se a impossibilidade de construir-se um
projeto de desenvolvimento coerente com
uma visão plural diferenciada do setor edu-
cacional, que permita vislumbrar as mudan-
ças socioculturais e as realidades escolares
das comunidades de base.
Contamos com parâmetros bem mais
atuais para discutir a reforma da educação,
com novas tendências curriculares do siste-
ma educacional e com ações institucionais
que tendem a oferecer Ensino Fundamental
àqueles que dele necessitem. Da mesma for-
ma, novas tecnologias surgiram para a elabo-
ração de material didático, especialmente do
livro didático.
Em geral, as propostas subordinam os ob-
jetivos tradicionais de cobertura e igualdade
que dominaram a educação durante grande
parte desse século e privilegiam objetivos
pós-modernistas” de eficácia, produtividade,
pluralismo cultural e, ocasionalmente, de ex-
celência acadêmica.
3
Para fins de avaliação e planejamento, há
um certo interesse em tornar a história da
educação sensível à diversidade cultural e lin-
güística (povos indígenas). A partir de seto-
res técnicos de projetos EIB, com apoio inter-
nacional, e, especialmente, de pesquisadores,
tentou-se estabelecer um tipo de história
científica das orientações principais ou, figu-
rativamente, paradigmas da Educação Indí-
gena escolarizada, a fim de sustentar o cará-
ter progressivo e alternativo da doutrina
intercultural bilíngüe.
Mas antes seria conveniente fazer duas
observações. Primeiro, essa preocupação tem
sua origem no desenho de ações e projetos de
desenvolvimento educacional inovadores e
diferenciados promovidos por agências inter-
nacionais. As comunidades indígenas foram
mais receptivas a essas preocupações. E, se-
gundo, no curso dessa preocupação, enfren-
tam-se antigos problemas da Educação Indí-
gena e, em tempo real, novos desafios e te-
mas. As discussões paradigmáticas, até certo
ponto, criam a ilusão de que os antigos pro-
blemas desaparecem pelo simples fato de
operar-se com novas categorias e modelos
educacionais.
4
Mas também devemos reconhecer um as-
pecto muito interessante: as diversas orien-
tações programáticas e metodológicas refle-
tem a vontade política de influir no futuro da
sociedade e da identidade indígena, rede-
finindo-se o papel da educação no grande es-
forço para permitir a formação do maior nú-
mero possível de indivíduos de origem indí-
gena e afro-americana dos atuais países lati-
no-americanos (Lesourne, 1993; e Albó, 1996).
Em trabalhos anteriores (Muñoz, 1998 e
2001b), sugeri que a história científica da Edu-
cação Indígena procura representar o desen-
volvimento progressivo da natureza indígena.
Assim, até o momento, o resultado ideológi-
co da aceitação da proposta intercultural bi-
3
Utilizo nessa idéia a terminologia de Kelly (1985), ou seja, a adequação entre a formação escolarizada e o desenvolvimento socioeconômico
da comunidade.
4
As dificuldades relativas à educação bilíngüe, como o ensino do espanhol como segunda língua e a normatização ortográfica das línguas
indígenas, continuam pendentes e são atendidas por antigas práticas pedagógicas, típicas do paradigma bilíngüe. De certa forma, continu-
am a reinar, na pedagogia das escolas indígenas de 2001, concepções e práticas criadas há cinqüenta anos.
14
des e sua identidade. Por razões de política
mundial, assume-se o princípio do intercultu-
ralismo dual ou polarizado, que circulou nes-
ses ambientes educacionais com a bicultura-
lização servindo de complemento à educação
bilíngüe. Entretanto, dadas a escassa experiên-
cia inovadora e a quase inexistente pesquisa
sobre a Educação Indígena àquela época, o
componente bilíngüe experimentou um de-
senvolvimento central, com princípios e
tecnologia da lingüística aplicada. Como resul-
tado, prevaleceram a castelhanização” e a
monoculturalização dos currículos e da apren-
dizagem. A Educação Indígena não escapou à
crise e ao ranço planetário em matéria de edu-
cação, talvez com mais profundidade devido
às desigualdades não-resolvidas. No fundo, a
escola pública indígena não se modificou.
A terceira orientação constitui a utopia ou a
virtualidade que desejamos construir e que pode
caracterizar-se como o paradigma da diversida-
de como direito. Uma das circunstâncias relevan-
tes dessa educação alternativa é a negociação ou
discrepância não concluída entre as instituições
educacionais e os movimentos e organizações
indígenas. No quadro, essa discrepância é apre-
sentada como a luta entre modelos neoliberais
de capital humano e modelos críticos de resis-
tência. Em todo o continente, pode-se observar
essa contradição, que está detendo e desvir-
tuando o desenvolvimento educacional nas re-
giões interculturais. Os dois componentes
cruciais dos modelos críticos de resistência pro-
postos pelas comunidades indígenas são a au-
tonomia e o controle endógeno, ou a autogestão
da educação. Para citar um exemplo, a Nicará-
gua é o único país que adotou, há quinze anos, o
estatuto de autonomia na Constituição Política.
5
Em suma, o conjunto de reorientações da
política educacional para populações indígenas
tem como principal meta lograr no Ensino Fun-
damental: “A universalização do Ensino Funda-
mental é o principal compromisso que assumi-
mos como mexicanos para garantir a viabilida-
de de uma nação [...]. A Educação Fundamen-
língüe é a substituição irreversível do
paradigma bilíngüe bicultural. Anteriormen-
te, nos anos 1970, a doutrina da Educação In-
dígena bilíngüe e bicultural havia sido subs-
tituída pela antiga proposta integracionista
dos anos 1930 chamada educação bilíngüe.
Apresento, no quadro abaixo, essa seqüência
histórica.
Na proposta gráfica acima, atribuímos gran-
5 Muñoz (2001a) e outros assinalam que não foi possível implantar essa política pública nos processos comunitários e escolares devido à
ausência de um projeto integral de desenvolvimento educacional.
Paradigmas da Educação Indígena
escolarizada na América Latina
A diversidade como problema
(educação bilíngüe)
A diversidade como recurso
(educação bilíngüe bicultural)
A diversidade como direito
(educação intercultural ou
multicultural bilíngüe)
Modelo democratizador
Modelo de capital humano e de
superação da marginalização
Modelos liberais de capital humano
versus
Modelos críticos de resistência
Quadro 1
de valor a três princípios: a centralização da
cultura (etnia-identidade), o papel da educa-
ção no desenvolvimento indígena e os proces-
sos de gestão e comunicação.
De acordo com esses princípios, a primei-
ra orientação admite a caracterização do para-
digma da diversidade como problema
educacional e de desenvolvimento. Ou seja, tan-
to a cultura como a língua indígenas são con-
sideradas obstáculos à integração dos povos in-
dígenas à sociedade nacional. Com base em
concepções democratizadoras, flexibiliza-se o
acesso à educação e à comunicação, mediante
estratégias bilíngües de transição para o mun-
do e o idioma hispânico.
A segunda orientação (educação bilíngüe
bicultural) pode caracterizar-se como o para-
digma da diversidade como recurso. Com base
na idéia de permitir o acesso das maiorias à
educação e ao desenvolvimento industrial,
procura-se potencializar a qualificação do ca-
pital humano, recuperando-se suas diversida-
14
Educação no contexto da diversidade cultural
SIMPÓSIO 1
tal é a possibilidade de construirmos uma socie-
dade cada vez melhor” (SEP, 2000a: 11).
Essas reorientações representam acordos e
objetivos assumidos pelos Estados nacionais
com a corrente internacional de humanização
do desenvolvimento e aprofundam a moderni-
zação educacional, com componentes de igual-
dade, qualidade e pertinência.
Com base nesse horizonte histórico não-
linear, vale ressaltar a importância de que se
trabalhe com uma perspectiva de processo
complexo e articulado em várias dimensões
educacionais, assimetricamente relacionadas,
cuja convergência ou divergência decorre do
êxito ou da crise da educação em geral. A esse
respeito, sugiro que a transformação da edu-
cação orientada para o multiculturalismo plu-
ral advirá principalmente do nível das realida-
des e práticas escolares específicas, na medi-
da em que se democratize a gestão educacio-
nal da sociedade civil e das comunidades de
base, mediante modalidades de participação
integral e controle comunitário, porque o
pluralismo afirma que a diversidade e a
discordância são valores que enriquecem o
indivíduo e também sua comunidade política
(Sartori, 2001: 19).
A partir da ótica do desenvolvimento edu-
cacional integral, aprendemos a identificar, a
expandir nossa compreensão e também a
relativizar os discursos dos diferentes setores
sobre as políticas públicas, as quais decorrem
de princípios e condições ideológicas para pro-
mover uma grande mudança educacional que
busca estabelecer novos termos com o desen-
volvimento econômico e político, no qual a
democracia de nossos países encontrará na
educação intercultural bilíngüe um dos princi-
pais instrumentos para sua consolidação
(Cárdenas, 1997: 29).
Inserção da diversidade no desenvolvimento
educacional
Dimensões do
desenvolvimento
educacional
Política educacional,
normatização
Sistema educacional
Modelos acadêmicos
de formação (ensino/
aprendizagem)
Práticas e processos
escolares
Metas e processos
Sociedade multicultural
Educação inicial e continuada
na formação de professores
Organização flexível do
sistema
Comunicação intercultural
(validade, discordância)
Ética do pluralismo
Ciclos participativos
Ações e ideologias plurais das
escolas e das comunidades no
que se refere à diversidade
Quadro 2
Objetivos globais de política educacional
relacionados à diversidade
Objetivos globais
Políticas gerais
1. Aumento da cobertura
e do financiamento misto
2. Abertura do sistema a todos
os setores
1. Aprimoramento da formação
de alunos e professores
2. Desenvolvimento de
habilidades para solucionar
problemas
Retenção e funcionalidade
flexível do sistema escolar
Desenvolvimento social com
vínculos estreitos com
a cultura, a identidade,
o trabalho, a paz, a co-
responsabilidade política e
o direito de todos os setores
sociais
Transmissão de qualidades
sociais compatíveis com o
pluralismo, a reciprocidade e a
aprendizagem cooperativa
Quadro 3
Valores
Eficiência externa
Eficiência interna
Qualidade
Igualdade,
suficiência, acesso
Essa idéia de desenvolvimento educacional
poderia nos levar muito longe se os debates
científicos e sociais influenciassem a elabora-
ção de políticas e projetos educacionais cujos
destinatários sejam as populações indígenas e
afro-americanas e os setores marginalizados.
A história, as teorias e as práticas dessas alte-
16
rações socioculturais são mais bem conheci-
das por meio de pesquisas científicas que nos
ajudam a compreender a situação multiétnica
e pluricultural do país. De sua parte, as insti-
tuições governamentais assimilaram e recria-
ram, dando-lhe forma, uma avançada política
sociocultural do Estado, mas que não se tra-
duz em uma política congruente de governo,
nem na necessária compreensão e aceitação
pela sociedade nacional.
Podemos concordar ou não com essa pro-
posta analítica, mas o que não podemos evitar
é, por um lado, imaginar o desenvolvimento
educacional como um todo com componen-
tes múltiplos e, por outro, definir de onde
advirão as tendências decisivas que promovam
a mudança educacional para o multiculturalis-
mo plural. Do sistema oficial? Das instituições
que criam a política? Dos movimentos sociais
e étnicos?
Sistemas educacionais
diferenciados
Sem a perspectiva de desenvolvimento
educacional, a análise do sistema educacio-
nal e de seu papel no tempo, do impacto e da
evolução das instituições escolares e de for-
mação pode privilegiar as questões de poder
e organização nas cúpulas das instituições
educacionais, postergando o próprio conteú-
do dessa mudança.
Os sistemas educacionais latino-ameri-
canos mostram quatro grandes disfunções
no que se refere à diversidade lingüística e
cultural:
1. A condução centralizada do sistema per-
mitiu a proposta de grandes objetivos, mas
revelou-se incapaz de conduzir harmoni-
osamente a mudança, e essa incapacida-
de gerou as principais dificuldades que os
afligem na atualidade. Na realidade, fun-
ciona como um sistema burocrático e
hierarquizado, com uma administração
onipresente que nem sempre compreen-
de as necessidades educacionais da comu-
nidade e dos pais.
2. Não se logrou a democratização e a eficiên-
cia do ensino.
3. Em matéria de avaliação, tende a confor-
mar-se com indicadores endógenos.
4. A construção de um grande sistema edu-
cacional exerceu uma influência negativa
sobre a condição do ensino. Apresenta-se
como um sistema complexo que não faci-
lita a transferência de suas funções, por-
que dispõe de objetivos múltiplos, ime-
diatos e imprecisos para atender à natu-
reza de seu objeto que é transformar se-
res humanos pobres, marginalizados e
discriminados.
Todas essas características condicionam
com grande força a forma pela qual o siste-
ma reage às demandas sociais, assimila ou
rechaça inovações e mudanças. Eis a propo-
sição submetida a debate: no domínio da
educação, a forma de encarar ou de difundir
uma mudança é tão importante quanto o
próprio conteúdo dessa mudança (Lesourne,
1993: 19).
Reflexões para concluir
Talvez um dos maiores desafios da educação
seja o de dar apoio concreto às alterações
introduzidas nas práticas educacionais. Sabemos
que o ensino modifica os princípios da política
e produz resultados nem sempre compatíveis
com os princípios. Na minha opinião, uma das
razões principais dessa lacuna reside na ausên-
cia ou nas deficiências dos níveis de concreção
do desenho curricular. De fato, as concreções
curriculares são promovidas e produzidas por
instâncias normativas ou técnicas do sistema
educacional descentralizado, o que tradicional-
mente nunca assegurou a perspectiva e as ne-
cessidades dos atores diretos da educação.
É importante observar que a expressão “di-
versidade lingüística e cultural” esconde uma
grande imprecisão no que se refere a seu alcan-
ce e a sua referência teórica. Na realidade, cria
a ilusão de que fazemos referência a um campo
bem delimitado de problemas e métodos. Pe-
las pesquisas realizadas, sabemos que os resul-
tados significativos se relacionam tanto com o
nível teórico quanto com as técnicas de pesqui-
sa e as aplicações desses conhecimentos, os
quais convertem a sistematização conceitual
16
Educação no contexto da diversidade cultural
SIMPÓSIO 1
em uma tarefa necessária, a fim de explicar a
variedade de casos concretos que compõe a re-
alidade das sociedades nacionais.
Finalmente, as experiências conflitantes do
multiculturalismo, o aspecto bilíngüe e a inte-
gração das alterações socioculturais converte-
ram-se em tópicos bastante atuais nas institui-
ções oficiais e em comunidades e organizações
sociais. Pouco a pouco, essas categorias vão
dando sustentação a um parâmetro de cidada-
nia para a sociedade do futuro próximo, em que
se estabelecem novos problemas nacionais e se
criam soluções recarregadas de valor democrá-
tico e participativo. No momento, os fenôme-
nos interculturais, o aspecto bilíngüe e a diver-
sidade étnica estão servindo para criar novos
parâmetros para a discussão da reforma da edu-
cação, novas tendências curriculares do siste-
ma educacional e ações por parte do governo
que tendem a oferecer Ensino Fundamental a
todos que dele necessitem. Esses fenômenos
não apenas enfocam o debate em torno do pa-
pel das instituições superiores na elaboração de
políticas educacionais, mas também sugerem a
questão sobre a responsabilidade que devem
assumir os diferentes setores da sociedade.
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19
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIO
22
22
2
POLÍTICAS PÚBLICAS EM
EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL
Jean Paraizo Alves
Maria Helena Fialho
20
Esse trabalho procurará demonstrar como
os entrelaçamentos entre novos atores – or-
ganizações indígenas e professores indígenas
– e políticas públicas têm produzido no Bra-
sil, nos últimos dez anos pelo menos, uma
nova escola indígena e conseqüentemente
uma concepção de cidadania que, sem abrir
mão de valores caros a esta, abre espaço para
o respeito à diferença, possibilitando uma efe-
tiva interculturalidade.
A Educação Escolar Indígena vem se con-
solidando na América Latina em estreita re-
lação com a reforma do aparelho de Estado,
bem como com as reformas educativas nacio-
nais. Em anos recentes, adquiriu uma dimen-
são política e institucional significativa para
as diversas etnias que podem ser percebidas
em novas bases jurídicas e em discussões vol-
tadas para a organização de currículos das
escolas indígenas e de formação de seus pro-
fessores.
Estamos assistimos, portanto, ao aumen-
to da visibilidade da Educação Escolar Indí-
gena, seja por meio da sua inscrição em cons-
tituições, leis, declarações e convenções de
organismos internacionais, seja incorporada
ao discurso reivindicativo de movimentos in-
dígenas (cf. Muñoz, 1998). Entre inúmeros
direitos assegurados aos povos originários
previstos em documentos de organismos in-
ternacionais, os Estados passaram a prever,
tácita ou expressamente, o direito ao uso das
línguas maternas e dos processos próprios de
aprendizagem, bem como o respeito, a valo-
rização e a preservação de suas culturas. Des-
sa forma, passou a ser assegurada aos povos
indígenas a prerrogativa de uma educação
escolar intercultural, bilíngüe, específica e
diferenciada. Os povos indígenas, de acordo
com esses princípios, devem ter acesso, por
meio da leitura e da escrita, tanto nas línguas
nativas quanto nas línguas oficiais, aos conhe-
cimentos produzidos pelo seu próprio grupo,
por outros povos originários e pela sociedade
envolvente (cf. Leitão, 1999).
De acordo com Monte, a educação inter-
cultural bilíngüe possui uma importante base
em países cuja população indígena apresenta
peso demográfico significativo, como é o caso
da Bolívia, do Peru, do Equador, da Guatemala
e do México. Em países como o Brasil, a Costa
Rica, o Panamá e a Venezuela, a educação
intercultural bilíngüe passou também a mar-
car presença. Todos esses países, de uma for-
ma ou de outra, asseguram em seus discursos
institucionais e legais o direito a uma modali-
dade específica de educação para as socieda-
des indígenas que estão dentro de suas fron-
teiras (Monte, 2000).
A educação intercultural bilíngüe passa a
ter reflexos políticos e legais, principalmente
a partir dos anos 1980, quando inúmeros pa-
íses americanos, reconhecendo o caráter
pluriétnico e multicultural de suas popula-
Novos atores e novas
cidadanias: o reconhecimento
dos direitos dos povos
indígenas a uma educação
escolar específica,
diferenciada, intercultural
e bilíngüe/multilíngüe
Jean Paraizo Alves
SEF/MEC
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
SIMPÓSIO 2
21
ções, introduziram alterações em seus orde-
namentos constitucionais e legais.
1
Além disso, pudemos assistir a uma in-
tensificação das interações entre sociedades in-
dígenas e não-indígenas, tanto no âmbito na-
cional quanto no internacional, que acirrou o
processo de construção de novas estratégias de
negociação de direitos e intermediação de con-
flitos, contribuindo para a criação de novos ato-
res para atuar nessas instâncias e situações.
2
Nas últimas três décadas, houve uma visí-
vel explosão no número de organizações indí-
genas em toda América Latina. Só nos estados
da Amazônia brasileira, Albert menciona a exis-
tência de 183 organizações indígenas. Para ele,
esse é um fenômeno que tem início, no Brasil,
principalmente a partir de fins dos anos 1980 e
ganha maior intensidade nos anos 1990. Fato-
res internos e externos têm progressivamente
impulsionado o surgimento dessas organiza-
ções indígenas. No âmbito interno, são apon-
tadas facilidades na constituição dessas asso-
ciações como pessoas jurídicas, a partir de al-
terações no sistema constitucional do país após
1988. Externamente, são mencionadas a exten-
são das questões relativas ao meio ambiente e
aos direitos das minorias étnicas para o âmbito
global, a reorientação da cooperação interna-
cional para a sociedade civil e para o desenvol-
vimento sustentável e a proposição e a imple-
mentação de microprojetos locais (Albert,
2001:195-217).
Além das organizações indígenas, um novo
e relevante ator social tem se firmado e renova-
do sua importância: o professor indígena. Esse
professor tem desempenhado os seguintes pa-
péis: promover o registro de sua cultura, atu-
ando como intermediário cultural entre as con-
cepções nativas e as dos não-índios; pressionar
o Estado no sentido de reconhecer de fato a es-
pecificidade das escolas indígenas, regulamen-
tando as prerrogativas de que estas deverão
gozar. Nesse sentido, pode-se afirmar que os
professores estão constituindo uma nova forma
de liderança no interior dessas comunidades.
3
No Brasil, a Constituição Federal (1988) tra-
çou um quadro jurídico novo para a regulação
das relações do Estado com as sociedades in-
dígenas contemporâneas. Rompendo com uma
tradição de quase cinco séculos de política
integracionista, ela reconhece aos índios o di-
reito à prática de suas formas culturais pró-
prias. O artigo 231 da Carta Magna afirma que
são reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições,
e os direitos originários sobre as terras que tra-
dicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os seus bens.
O artigo 210 assegura às comunidades indí-
genas, no Ensino Fundamental regular, o uso de
suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem, garantindo, ainda, a prática do
ensino bilíngüe em suas escolas. O artigo 215
define como dever do Estado a proteção das
manifestações culturais indígenas. A escola tor-
na-se, portanto, instrumento de valorização dos
saberes e dos processos próprios de produção
e reprodução da cultura, os quais formarão a
base para o conhecimento dos valores e das
normas de outras sociedades, possibilitando,
com isso, uma efetiva interculturalidade.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional – LDBEN (Lei nº 9.394/96) determina, em
seu artigo 78, que caberá ao Sistema de Ensino
da União, com a colaboração das agências fe-
1
Nesse particular, duas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foram de suma importância: a Convenção sobre a
Proteção e Integração das Populações Aborígines e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes (Convenção OIT nº
107, de 1957), que contém 37 artigos estabelecendo a proteção de instituições, pessoas, bens e trabalho dos povos indígenas, inclusive
com direito à alfabetização em línguas indígenas, e a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes (Convenção
OIT nº 169, de 1989), que reconhece que cabe aos povos indígenas decidir quais são suas prioridades em matéria de desenvolvimento.
2
Leitão aponta, além da criação de organizações indígenas, a participação no processo eleitoral e o surgimento das primeiras lideranças
encarregadas de intermediar o contato com os não-índios, como é o caso do “cacique”, por exemplo (cf. Leitão, 2001). No que se refere a
esse assunto, Wolf menciona a noção de
brokers
como de fundamental importância para a compreensão das relações estabelecidas entre
grupos específicos e sociedades nacionais, por meio de agentes que atuam como mediadores culturais que poderão passar despercebidos,
caso cada tipo de grupo ou sociedade seja analisado de forma isolada (cf. Wolf, 2001: 124-38).
3
O Ministério da Educação criou a Comissão Nacional de Professores Indígenas, que tem por finalidade subsidiar a formulação de políticas,
programas e ações na área de Educação Escolar Indígena.
22
derais de fomento à cultura e de assistência aos
índios, desenvolver programas integrados de
ensino e pesquisa para oferta de educação es-
colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-
nas, com os objetivos de:
• proporcionar aos índios, suas comunidades
e povos, a recuperação de suas memórias
históricas, a reafirmação de suas identida-
des étnicas e a valorização de suas línguas e
ciências;
• garantir aos índios, suas comunidades e
seus povos, o acesso às informações, conhe-
cimentos técnicos e científicos da socieda-
de nacional e demais sociedades indígenas
e não-índias.
O artigo 79 dessa mesma lei, ao afirmar que
a União apoiará técnica e financeiramente os
sistemas de ensino no provimento da educa-
ção intercultural às comunidades indígenas,
desenvolvendo programas integrados de ensi-
no e pesquisa, estabelece que as responsabili-
dades originárias da União devem estar com-
partilhadas com os demais sistemas de ensi-
no, determinando procedimentos para o pro-
vimento da Educação Escolar Indígena e
salientando que os programas serão planeja-
dos com a anuência das comunidades indíge-
nas. A Resolução nº 03/99 e as Diretrizes Naci-
onais para a Educação Escolar Indígena (Pare-
cer CEB/CNE nº 14/99) do Egrégio Conselho
Nacional de Educação normatizaram os prin-
cípios constitucionais e legais acima citados
criando a categoria da escola indígena, a car-
reira específica do magistério indígena, bem
como elaboraram referenciais específicos para
essa modalidade de educação.
As escolas indígenas, de acordo com o
Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNEI), devem ter as seguintes ca-
racterísticas: comunitária, intercultural, bilín-
güe/multilíngüe, específica e diferenciada
(MEC, 1998). No Brasil, a Educação Escolar In-
dígena proposta tanto por organizações da so-
ciedade civil quanto pelo Estado passa a se ori-
entar por novas organizações curriculares ba-
seadas nas noções de pluralismo cultural e de
diversidade étnica, o que resulta em concepções
pedagógicas específicas e novos referenciais
curriculares.
A escola indígena tem como objetivo a conquis-
ta da autonomia socioeconômico-cultural de
cada povo, contextualizada na recuperação de
sua memória histórica, na reafirmação de sua
identidade étnica, no estudo e valorização da
própria língua e da própria ciência, sintetizada
em seus etnoconhecimentos, bem como no
acesso às informações e aos conhecimentos téc-
nicos e científicos da sociedade majoritária e das
demais sociedades, indígenas e não-indígenas
(MEC, 1993: 12).
O Plano Nacional de Educação (PNE), apro-
vado pela Lei nº 10.172/01, apresenta, na área
de Educação Escolar Indígena, 21 objetivos e
metas que deverão ser perseguidos no próximo
decênio. De acordo com as determinações do
PNE, a coordenação das ações de Educação Es-
colar Indígena é responsabilidade do Ministé-
rio da Educação, cabendo aos estados e muni-
cípios
4
a sua execução.
A proposta de uma escola indígena diferencia-
da, de qualidade, representa uma grande novi-
dade no sistema educacional do país e exige das
instituições e órgãos responsáveis a definição de
novas dinâmicas, concepções e mecanismos,
tanto para que estas escolas sejam de fato in-
corporadas e beneficiadas por sua inclusão no
sistema oficial, quanto para que sejam respei-
tadas em suas particularidades.
Assim sendo, para cumprir os princípios e
os objetivos estabelecidos pela legislação e pôr
em prática uma política nacional de educação
escolar indígena, o Ministério da Educação
(MEC) tem se empenhado em desenvolver
ações e programas caracterizados pela descen-
tralização, pelo respeito ao processo de lutas e
4
O parágrafo 1º do artigo 9º da Resolução CEB/CNE nº 03/99 dispõe que “os municípios poderão oferecer Educação Escolar Indígena, em
regime de colaboração com os respectivos estados, desde que se tenham constituído em sistemas de educação próprios, disponham de
condições técnicas e financeiras adequadas e contem com a anuência das comunidades indígenas interessadas”.
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
SIMPÓSIO 2
23
conquistas dos povos indígenas e pelo atendi-
mento de demandas que contemplem a educa-
ção intercultural e bilíngüe e que visem primor-
dialmente investir na formação inicial e conti-
nuada dos profissionais de Educação Indígena,
estimular a produção e a publicação de materi-
al didático específico e divulgar para a socieda-
de nacional a existência da diversidade étnica,
lingüística e cultural no país.
Como vimos acima, a Constituição Federal
e a atual LDBEN asseguram o uso e a manuten-
ção das línguas maternas e o respeito às formas
próprias de aprendizagem das sociedades indí-
genas no processo escolar. O artigo 8º, caput,
da Resolução CEB/CNE nº 03/99 afirma o prin-
cípio de que a atividade docente na escola in-
dígena será exercida prioritariamente por pro-
fessores indígenas oriundos da respectiva etnia.
Isso exige a elaboração de programas diferen-
ciados de formação inicial e continuada de pro-
fessores. Essa formação deve fornecer aos pro-
fessores índios as habilidades necessárias para
a elaboração de currículos e programas especí-
ficos para as suas escolas para o ensino bilín-
güe, para a condução de pesquisas, visando à
sistematização e incorporação dos conheci-
mentos e saberes tradicionais das sociedades
indígenas e à elaboração de materiais didático-
pedagógicos, bilíngües ou não, para uso nas es-
colas instaladas em suas comunidades, bem
como o uso dos conhecimentos universais. A
escola é percebida por vários povos como o es-
paço privilegiado em que as novas gerações são
preparadas para enfrentar os desafios do futu-
ro, tornando-se aptas a transitar com seguran-
ça em dois mundos e em duas culturas.
5
Assim sendo, torna-se necessário que, nos
próximos anos, para cumprir o determinado
no artigo 62 da LDBEN, sejam feitos investi-
mentos que possibilitem a formação, em ní-
vel médio e superior, dos professores índios.
6
Nesse sentido, é de fundamental importância
a articulação entre o Ministério da Educação,
universidades, Secretarias de Educação, orga-
nizações não-governamentais, associação de
professores indígenas e as próprias comuni-
dades, pois essa formação exige, além de uma
metodologia específica, profissionais alta-
mente qualificados.
7
Resta ainda salientar a importância da pro-
dução de livros didáticos para uso nas escolas
indígenas do país, produzidos pelos professo-
res indígenas e seus assessores. Uma formação
de qualidade deve estar associada à produção
e à publicação de material didático que reflita
e respeite a visão de mundo de cada povo in-
dígena envolvido no processo de escolarização.
Na elaboração desses materiais, os docentes
estarão expressando e registrando as diferen-
tes formas de linguagem, partindo de seus co-
nhecimentos étnicos e contando com a cola-
boração de especialistas com experiência nes-
ta atividade.
O programa de apoio à produção de mate-
rial didático realiza-se com a publicação dos
materiais didático-pedagógicos elaborados pe-
los professores índios, durante os cursos de for-
mação, apoiados pelo MEC ou por outros órgãos
5
De acordo com Leitão, “a aprendizagem da escrita da língua materna e dos conteúdos das tradições, na escola indígena, é uma necessida-
de, pois ela pode contribuir para reforçar os vínculos dos jovens com a cultura tradicional e formar uma identidade étnica comprometida com
os interesses da comunidade. Por outro lado, a escola também deve proporcionar o conhecimento da língua oficial e dos conteúdos que
servirão como base para a aprendizagem dos padrões de funcionamento da sociedade envolvente e de conhecimentos técnicos e científicos
especializados [...]” (Leitão, 1999).
6
O artigo 4
o
da Resolução CEB/CNE nº 03/97 define que “o exercício da docência na carreira de magistério exige, como qualificação mínima:
I – ensino médio completo, na modalidade normal, para a docência na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental;
II – ensino superior em curso de licenciatura, de graduação plena, com habilitações específicas em área própria, para a docência nas séries
finais do ensino fundamental e no ensino médio; III – formação superior em área correspondente e complementação nos termos da legisla-
ção vigente, para a docência em áreas específicas das séries finais do ensino fundamental e do ensino médio. [...] § 2
o
A União, os Estados
e os Municípios colaborarão para que, no prazo de cinco anos, seja universalizada a observância das exigências mínimas de formação para
os docentes já em exercício na carreira do magistério”.
7
No que diz respeito à formação continuada, o Ministério da Educação brasileiro está oferecendo o Programa Parâmetros em Ação de
Educação Escolar Indígena. Esse programa busca criar uma cultura de formação continuada no interior das escolas e sistemas de ensino,
bem como fomentar o estudo em grupo, a leitura compartilhada de textos e a reflexão, por parte dos profissionais da educação, acerca de sua
prática docente.
24
e entidades. Esses materiais passam por uma
análise quanto à qualidade pedagógica, lingüís-
tica e antropológica, realizada pela Comissão de
Análise de Projetos de Educação Escolar Indí-
gena/MEC.
O Ministério da Educação tem fomentado
ainda a divulgação da temática indígena para a
sociedade nacional, buscando, com isso, com-
bater a discriminação e o preconceito, ainda
vigentes, em relação às sociedades indígenas, e
procurando valorizar a diversidade socio-
cultural do país. A temática indígena, nessa
perspectiva, deve ser abordada de maneira
que crie condições para a reflexão sobre a ri-
queza que a diversidade étnica possibilita, apro-
veitando a comporta de troca e aprendizado re-
cíproco entre os diversos segmentos que cons-
tituem o país.
Assim sendo, estamos assistindo a um pro-
cesso em que as organizações indígenas, junta-
mente com a recém-criada categoria dos pro-
fessores indígenas, em articulação com instân-
cias estatais, têm participado da formulação de
políticas públicas que, vinculadas com as refor-
mas educativas, possibilitam a construção de
uma nova escola indígena e, portanto, de uma
nova concepção de cidadania.
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Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
SIMPÓSIO 2
25
Considerando o contexto atual, orientado
pela nova legislação da qual destacamos o De-
creto nº 26/91, a Resolução nº 03/CNE/99 e a
Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, a Funai,
por meio do Departamento de Educação,
redefine seu papel como órgão indigenista fe-
deral, o qual, além de zelar pelos direitos e in-
teresses das comunidades indígenas, estabele-
ce parceria com as Secretarias Estaduais/Mu-
nicipais de Educação, organizações indígenas,
ONGs e universidades na maioria das regiões,
desenvolve ações complementares onde as
agências ainda estão em fase de implementa-
ção da política de Educação Escolar Indígena,
executando o recurso orçamentário contempla-
do com a aprovação das ações da Educação Es-
colar Indígena por meio do programa Etnode-
senvolvimento das Sociedades Indígenas, no Pla-
no Plurianual 2000/2003. Essas ações estão or-
ganizadas da seguinte forma:
1. Capacitação de professores das escolas in-
dígenas. A Funai é parceira de pelo menos
treze projetos de cursos de formação para
professores indígenas e vem apoiando téc-
nica e financeiramente a realização de en-
contros, reuniões, seminários, colóquios,
congressos e outros, visando à formação de
professores indígenas. Além desses even-
tos, a Funai firmou convênio com a Uni-
versidade do Estado de Mato Grosso
(Unemat), visando formar os 200 profes-
sores cursistas indígenas que foram apro-
vados no vestibular do Projeto de Cursos
de Licenciaturas Específicos para Profes-
sores Indígenas em Mato Grosso, nas áre-
as de Ciências Sociais, Ciências da Mate-
mática e da Natureza e Línguas, Literatura
e Artes, inicialmente por um período de
cinco anos. A Funai está também partici-
pando da discussão do 3º Grau Indígena
em Roraima.
2. Assistência a estudantes indígenas fora de
suas aldeias. Atualmente, são mais de 12
mil estudantes fora das aldeias, cursando
os níveis Fundamental, Médio e Superior,
esse com mais de 400 universitários. Ape-
sar da melhoria do ensino nas aldeias, em
decorrência da formação/capacitação de
professores, há um grande número de es-
tudantes indígenas que se deslocam para
centros urbanos para continuarem seus
estudos, uma vez que a maioria das esco-
las nas aldeias só atende à 1ª fase do Ensi-
no Fundamental (1ª a 4ª séries). Esse apoio
técnico e financeiro é concernente ao cus-
teio de despesas com os estudos, sendo
que, em geral, refere-se a transporte, aqui-
sição de material escolar, uniforme, ali-
mentação, hospedagem e, em sua maioria,
ao pagamento de mensalidades em univer-
sidades particulares.
3. Funcionamento de casas de estudantes in-
dígenas. Em diversas regiões do país, a
Funai mantém um total de 34 casas para
indígenas que estudam em locais distan-
tes de suas aldeias, e essa manutenção
corresponde ao pagamento de aluguel,
energia, água, equipamentos, gêneros ali-
mentícios, material de higiene e limpeza e
material escolar. Incluem-se nessa ação o
A Funai e o novo contexto
de políticas públicas em
Educação Escolar Indígena: uma
questão de direito e cidadania
Maria Helena Fialho*
* Especialista em Línguas Indígenas Brasileiras, mestranda em Lingüística na UnB e chefe do Departamento de Educação da Funai.
26
acompanhamento e o desenvolvimento de
projetos específicos, os quais já estão sen-
do viabilizados em alguns locais. Uma
grande preocupação do Departamento de
Educação é com o ingresso desses estudan-
tes em escolas não-indígenas, levando em
consideração os seguintes fatores: esses
alunos se submetem a programas escola-
res que não estão associados à realidade
sociocultural e econômica vivenciada em
suas comunidades; muitos não concluem
o ano letivo, desmotivados pela falta de
assistência pedagógica e financeira en-
quanto permanecem na cidade e pela difi-
culdade de adaptação à escola; por ficarem
distantes de seus familiares e não partici-
parem das atividades diárias da aldeia, ou
seja, das festas, dos rituais e de tantos ou-
tros importantes momentos sociais de seu
grupo étnico. E, por fim, grande parte dos
que se formam não tem chance de traba-
lho no mercado nacional, em face do pre-
conceito e da discriminação por parte da
sociedade envolvente; e, ao retornarem
para suas comunidades nem sempre têm
oportunidade de colocar em prática os
novos conhecimentos adquiridos. Por es-
ses e outros problemas decorrentes dessa
nova convivência, torna-se emergencial a
implementação de ações que garantam a
oferta de cursos, de propostas profissiona-
lizantes a partir do contexto indígena no
interior de suas terras, conforme prevê a
legislação referente aos direitos indígenas,
e que também propiciem acesso às infor-
mações e aos conhecimentos universais
para que o estudante indígena possa
interagir com o mundo que o cerca.
4. Funcionamento das escolas nas comuni-
dades indígenas. Existem mais de 1.600 es-
colas e boa parte delas encontra-se com
infra-estrutura inapropriada e preca-
ríssima, sem equipamentos e sem materi-
al escolar. Necessitam de urgentes refor-
mas ou novas edificações. Muitas dessas
escolas ainda contam com o professor não-
indígena atuando em sala de aula, o qual
em muitos casos, por falta de formação lin-
güística, antropológica ou em outras áreas
relativas ao contexto, acaba por reprodu-
zir uma prática adquirida e vivida na es-
cola onde foi formado. Na maioria das ve-
zes, o acompanhamento pedagógico nes-
sas escolas ainda é precário. Falta pessoal
qualificado para assessorar os professores
na construção de uma metodologia de en-
sino coerente com as discussões realizadas
nos cursos de formação e que reconheça a
escola como um espaço de afirmação,
revitalização e fortalecimento da cultura e
da língua da etnia em questão e não so-
mente como o lugar onde se ensina” ou
se aprende” a ler e escrever.
E, partindo do fato de que as secretarias
vivem situações diferenciadas, algumas já
estando mais envolvidas com a nova tare-
fa e outras em fase de estruturação, o De-
partamento de Educação desenvolve ações
complementares nas regiões que ora apre-
sentam as maiores demandas, buscando
atender da melhor forma possível às rei-
vindicações das respectivas comunidades.
Há um aumento expressivo do número
de alunos nas escolas nas aldeias e, consi-
derando a especificidade de cada etnia,
bem como os aspectos constitucionais, a
Funai (em parceria com algumas secretari-
as) está viabilizando a implantação da se-
gunda fase do Ensino Fundamental nas al-
deias que já possuem professores indígenas
com formação em Magistério específico, as-
sessorando as escolas na elaboração de pro-
postas que respeitem os princípios da Edu-
cação Escolar Indígena, cujo instrumento
teórico são os preceitos e os avanços da le-
gislação e das diretrizes vigentes. Por meio
de convênios com o Fundescola, a Funai
vem garantindo a construção de algumas
escolas, por exemplo, em Sergipe, Alagoas
e, brevemente, na Bahia.
5. Edição e distribuição de material didáti-
co específico. Em parceria com outras
agências, a Funai tem publicado diversos
materiais didáticos específicos em línguas
portuguesa e indígena, produzidos por
professores, assessores e alunos indígenas,
para uso nas próprias escolas e/ou na co-
munidade. Tem incentivado os professo-
res e alunos indígenas a produzirem ma-
terial para a publicação periódica de jor-
nais e revistas dos quais constam relatos,
experiências, dificuldades, artigos e outros
assuntos didático-pedagógicos relaciona-
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
SIMPÓSIO 2
27
dos à arte e à cultura, para circulação en-
tre as escolas nas aldeias.
Com o objetivo de otimizar a aplicação
dos recursos dessa ação e reordenar a gran-
de demanda de materiais apresentados
para publicação, o Departamento definiu
alguns critérios essenciais à publicação, en-
caminhando as devidas orientações aos or-
ganismos interessados para que sejam apre-
sentados os dados necessários à aprovação
do material pelo Conselho Editorial, orga-
nizado na própria instituição, com técnicos
e especialistas experientes nessa área.
Os critérios estabelecidos, entretanto,
buscam garantir uma publicação de mai-
or qualidade, com a participação direta da
comunidade indígena, seja pela via esco-
lar, seja por outros autores também indí-
genas, desde que o material sirva para uti-
lização pela escola e/ou pela comunida-
de leitora.
A Funai conta hoje com uma equipe de pro-
fissionais que se vem especializando por meio
de cursos em universidades e outras institui-
ções e por meio de experiências indigenistas
acumuladas ao longo dos anos de convívio
com as sociedades indígenas. Esse quadro é
formado por doutores, mestres, mestrandos
nas áreas de Educação, Lingüística, Antropo-
logia e História. Conta, ainda, de forma efeti-
va, com o apoio técnico especializado, em Ar-
quitetura Indígena, de um arquiteto e um en-
genheiro civil da Funai, que se especializaram
nesse tipo de construção, o que muito tem va-
lorizado e reconhecido os padrões e/ou as so-
luções arquitetônicas de cada etnia.
São esses especialistas que atuam na asses-
soria e na docência de cursos de formação para
professores, assessoram organizações indígenas
e estão contribuindo de forma competente para
a melhoria desse processo.
Além disso, esse quadro especializado está
promovendo a capacitação/formação dos de-
mais técnicos em educação intercultural que
atuam nos setores e/ou seções de educação das
unidades regionais da Funai e, no segundo se-
mestre de 2000, realizou encontros regionais,
contemplando todas as regiões que possuem
escolas indígenas. Na ocasião, foram trabalha-
dos temas pontuais, como: aspectos da legali-
dade desde a Constituição de 1988; os princípi-
os da Educação Escolar Indígena (bilingüismo,
interculturalidade, diferença e especificidade)
dentro das diretrizes da política pública da Edu-
cação Escolar Indígena; demandas locais; PPA
– Plano Plurianual 2000/2003; fatores relevan-
tes apresentados no Referencial Curricular Na-
cional para as Escolas Indígenas (RCNEI); cur-
rículos; temas transversais; e, dessa forma, de-
sencadeou uma avaliação coletiva da atuação
da Funai no processo, tanto em nível central
como regional. A continuidade da referida
capacitação será por meio de minicursos em
Antropologia, Lingüística, Sociolingüística, Po-
lítica Indigenista e Fundamentos Pedagógicos,
áreas importantes para o trabalho de Educação
Escolar Indígena, inclusive com propostas de
cursos de graduação e/ou especialização a dis-
tância, em parceria com universidades, no mo-
mento já em fase de articulação.
Fazem parte da linha de pesquisa da Funai:
a Documentação e Descrição de Línguas Indí-
genas; e as Políticas Educacionais de Revita-
lização de Línguas Indígenas. Assim, a Funai
desenvolve há cinco anos um Projeto de
Revitalização de Língua Indígena que visa o
resgate cultural relacionado a atividades de
auto-sustentação, meio ambiente e auto-esti-
ma do cidadão indígena.
No que se refere à formação continuada do
professor indígena, existem questões urgentes
que precisam ser repensadas e mais bem dis-
cutidas, especialmente o contexto de diversida-
de sociocultural, o multiculturalismo, os prin-
cípios da interculturalidade, a diferenciação, o
bilingüismo e a especificidade, os quais são
importantíssimos e necessários ao processo, e
cujo valor semântico, todavia, muitas vezes não
passa de palavras-chave para os agentes que as
utilizam. Existem casos em que as propostas
desenvolvidas nessa formação são descontex-
tualizadas e, conseqüentemente, refletem uma
prática em que o período de formação não tem
uma interface com a realidade escolar e a de-
manda das comunidades indígenas envolvidas.
Não se pode correr o risco de viabilizar a for-
mação do professor apenas para atender às exi-
gências legais e, sim, possibilitar que esse pro-
fissional seja pesquisador e autor de sua pró-
pria história, um interlocutor da comunidade,
se considerarmos que escola e comunidade não
são separadas e estanques, porém constituídas
numa única base socioeconômica e cultural,
como uma luta pela auto-afirmação étnica e
pela conquista da autonomia indígena.
Vale ressaltar que a Funai, especificamente
o Departamento de Educação, não tem inten-
ção de atropelar ações de nenhuma outra insti-
tuição, muito pelo contrário, seu desejo é sem-
pre o de desenvolver um trabalho em parceria
e o de atender às reivindicações e necessidades
das organizações indígenas, dos professores,
dos estudantes e das lideranças indígenas por
uma educação de qualidade.
A Funai continua sendo, para os indígenas,
um centro de referência, apoio, consulta e arti-
culação, dada a sua longa trajetória indigenista.
As demandas são levadas tanto às regionais
como ao próprio departamento. São constan-
tes as solicitações de organizações indígenas,
professores, estudantes e lideranças por melhor
atendimento à educação em suas terras. A todo
momento, informamos sobre as mudanças de
papéis institucionais; apresentamos a legislação
vigente, principalmente as diretrizes e metas,
que são claramente atribuídas aos estados. Ade-
mais, intercedemos junto das Secretarias, su-
gerindo encaminhamento para os problemas
identificados ou propondo parceria.
Portanto, entendemos que a implementa-
ção da política educacional para os povos indí-
genas é um processo longo e demorado, e que,
no entanto, as esferas competentes devem as-
sumir realmente o que regulamenta a lei. Cabe
destacar que a Funai, no seu papel institucio-
nal de zelar pelos direitos e interesses das co-
munidades indígenas, e compromissada com as
sociedades indígenas, vem exercendo junto
dessas outras esferas a parceira, o apoio finan-
ceiro, a assessoria técnica em cursos para pro-
fessores e técnicos, disponibilizando os conhe-
cimentos adquiridos nessa prática de pesquisa
e na reelaboração de conceitos construídos com
o saber indígena.
29
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIO
33
33
3
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE
CULTURAL E CIDADANIA:
OS POVOS INDÍGENAS E A ESCOLA
Inge Sichra
30
Resumo
As relações entre povos indígenas e o Esta-
do na Bolívia nos permitem entender a inter-
culturalidade como um espaço de permanente
conflito em torno de temas como identidade ét-
nica, direito e diferença, afirmação cultural, ter-
ritório e nação. Esse conflito cristaliza-se prin-
cipalmente na educação porque, mais que uma
esfera pedagógica, ela é uma instituição políti-
ca, social e cultural, um espaço de construção e
reprodução de valores, atitudes e identidades e
do poder histórico-hegemônico do Estado
(Walsh, 2000: 165).
Esta dissertação examina os marcos históricos
Educação, diversidade cultural
e cidadania Considerações
sobre a educação na Bolívia
Inge Sichra*
do processo de subordinação e “cidadania” dos
povos indígenas andinos, oferece uma visão atual
do plurilingüismo e da multiculturalidade da so-
ciedade andina boliviana e indica certos riscos da
educação intercultural bilíngüe oferecida pelo Es-
tado. Concluímos que só um enfoque de educa-
ção intercultural de transformação poderá fazer
frente ao desafio da igualdade na diferença. Num
plano mais concreto, resgatamos, também, algu-
mas experiências desenvolvidas na área da forma-
ção de formadores, no nível do Ensino Superior,
que poderão ser levadas em consideração em pro-
cessos de formação de professores.
Os povos nativos:
desenvolvimento histórico de
sua singularidade lingüística
e cultural
O espoliamento de terras
das comunidades indígenas
A luta pela escolarização indígena nos tem-
pos republicanos da Bolívia tem estado associa-
da à luta pelo direito à terra, à necessidade de
munir-se de ferramentas para recuperar terras
cujos títulos pertenciam a comunidades indí-
genas ou à obtenção de títulos de propriedade
para terras que ocupavam.
A erosão do direito à terra antecede em mui-
to o problema da erosão de terras que assola a
Bolívia. Embora no momento da proclamação da
independência três quartos de todas as terras do
país pertencessem a comunidades indígenas, já
em 1847, metade de suas terras férteis estava em
mãos privadas (Pando, 1972: 913). Naquele ano,
a expansão da propriedade sob o amparo de uma
ideologia liberal de fortalecimento oligárquico
estava em seu auge. Era imperativo proteger-se e
lutar pela propriedade tradicional e aprender a
ler e escrever em castelhano parecia ser um re-
quisito fundamental.
A escola indigenista castelhanizante” que
os índios do século XIX reivindicavam repre-
sentava um meio de se deter o espoliamento
de terras ancestrais e promover a justiça so-
cial. “É importante assinalar que, no período
de 1825 a 1870, as populações indígenas do
* Assessora, coordenadora de cursos de mestrado e docente na área da linguagem do Proeib Andes. As opiniões expressadas neste docu-
mento são de inteira responsabilidade da autora e não representam, necessariamente, as opiniões da GTZ ou da Universidade Maior de San
Simón, contrapartidas do Proeib Andes.
30
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
SIMPÓSIO 3
altiplano e do vale exigiram educação para eli-
minar o analfabetismo, que representava sua
meta mais urgente. A idéia era que a unifica-
ção da sociedade pela leitura e escrita em
castelhano promoveria a igualdade entre as di-
ferentes raças e grupos sociais” (Mesa et al.,
1999: 423).
Surge, a partir daí, a identificação da esco-
la com a aprendizagem do castelhano e a equi-
valência da aprendizagem do castelhano com
o aprender a ler e escrever. Essa dupla equa-
ção imprimiria uma característica inconfundí-
vel à escola boliviana em toda a sua história.
Até hoje, a escola para todos” é vista como
símbolo de igualdade na sociedade e difusora
da leitura-escrita em castelhano como instru-
mento de defesa.
A mestiçagem desafia
a separação de raças
No século XX, surge na Bolívia uma corren-
te mestiça que luta para escolarizar o índio com
o intuito de civilizá-lo” por meio da “castelha-
nização” e alfabetização, para que ele possa in-
tegrar-se à sociedade nacional. Ela defende a
idéia de que a educação deveria preparar todos
os cidadãos, inclusive os índios, para se encai-
xar” na nova nação. A intenção era transformar
o índio (que ainda era chamado por esse nome),
incorporá-lo ao mercado e “libertá-lo” de sua
condição inferior. A Warisat’a, a escola ayllu em
La Paz (1931-1939), com todo seu esforço para
ser um instrumento político de transformação
estatal e de legitimação do movimento indíge-
na, das autoridades tradicionais e do direito à
terra (Zalles, 2000: 142), foi criada a partir des-
sa corrente mestiça de salvação” (Howard-
Malverde e Canessa, 1995: 232). Essa escola
indigenista desafiava a rígida divisão de raças
com o objetivo de promover a assimilação pela
castelhanização”:
Naqueles tempos, os latifundiários, os patrões
e seus lacaios não permitiam que nossos ante-
passados aprendessem o que quer que fosse.
Eles afirmavam que um índio letrado era um
índio rebelado. Por isso havia muita repressão,
prisões e agressões contra lideranças que tenta-
vam estabelecer escolas secretamente. Os pa-
trões diziam que o “único índio bom era o índio
morto” (CSUTCB, 1991: 2).
Nacionalismo para civilizar o índio
Com a revolução de 1952, rebelião indígena
contra os latifundiários que inseriu o Movimen-
to Nacionalista Revolucionário (MNR) no cená-
rio político, propôs-se a criação de uma só na-
ção com uma só identidade. A história oficial
fala da opressão colonial do boliviano pela co-
roa espanhola, mas não do índio. O indígena
devia ser absorvido por todos os bolivianos em
nome de um Estado homogêneo. Assim, a es-
colarização universal e gratuita devia ter a meta
de “bolivinizar” os índios, ou seja, ensiná-los a
ler e escrever o idioma oficial do Estado, ensi-
nar-lhes coisas sobre seu país e fazê-los ter or-
gulho dele. O código educacional de 1955 esta-
beleceu os sistemas de educação rural e urba-
na com o claro objetivo de dar atenção especi-
alizada à população indígena, visando à sua
transformação e civilização. O objetivo de
mestiçagem era o mesmo da escola indígena de
origem mestiça, mas nesse caso como uma
obrigação assumida pelo Estado.
Transformações em curso
Diante da ausência de espaço para o
pluralismo interno na agenda do discurso mo-
dernista, da ampliação da economia de merca-
do e da afirmação da idéia de nação como algo
comum e unificador dentro de um espaço
territorial específico, as organizações indígenas
começam a tomar consciência de sua cultura
como elemento de luta política, contestando
um desenvolvimento que não beneficiou os in-
dígenas e uma sociedade que os discriminou em
decorrência de sua diversidade cultural
(Amadio, 1989: 430).
A ação contestatória é mais evidente no
âmbito político, em que as instâncias indígenas
organizadas exigem um projeto contra a assi-
milação estatal. Em setembro de 1990, uma
Marcha pelo Território e pela Dignidade, orga-
nizada por povos indígenas dos departamentos
amazônicos de Pando e Beni – as chamadas ter-
ras baixas (tierras bajas) da Bolívia –, percorreu
o país das planícies até o altiplano e forçou o
32
governo de Jaime Paz Zamora (1989-1993) e a
população andina do país a se conscientizarem
da existência desses povos indígenas e de suas
exigências territoriais. O Estado ratificou, em
1991, o Convênio nº 169 da OIT sobre povos in-
dígenas e promulgou a respectiva lei. Além dis-
so, reexaminou sua política, concedeu direitos
territoriais a algumas etnias amazônicas e co-
meçou a falar em unidade na diversidade, igual-
dade na diferença e integração com respeito.
Esse processo culminou, em 1994, com a intro-
dução de mudanças na Constituição Política do
Estado, que passou a reconhecer a Bolívia como
um país multiétnico e pluricultural. No artigo
171 da atual Constituição, lê-se o seguinte:
Serão reconhecidos, respeitados e protegidos,
no âmbito da legislação, os direitos sociais, eco-
nômicos e culturais dos povos indígenas que vi-
vem no território nacional, especialmente o di-
reito às suas terras comunitárias de origem, ga-
rantindo-se o uso e o aproveitamento susten-
táveis dos recursos naturais nelas existentes e
sua identidade, valores, línguas, costumes e
instituições.
Nesse período, foram promulgadas outras
leis enquadradas no postulado do respeito à di-
versidade e à participação cidadã, como a Lei
da Participação Popular (1994), a Lei Florestal e
a Lei INRA (ambas de 1996).
No âmbito educacional, a Confederação
Única dos Trabalhadores Rurais da Bolívia
(CSUTCB), a maior organização sindical do
país, apresentou, em 1989, sua proposta edu-
cacional, baseada na constatação de que não
podemos mais permitir que a escola continue
tirando nossos filhos e filhas do campo, mos-
tre-lhes o espelho da cidade e os faça sentir ver-
gonha de sua própria história, língua e cultura
(CSUTCB, 1991: 4).
Com base num amplo diagnóstico da situa-
ção da educação escolar básica, a Confedera-
ção propôs a educação intercultural bilíngüe
como um modelo educacional adequado para
promover melhorias na qualidade de vida dos
povos indígenas. Quanto à característica bilín-
güe da educação, ela se posicionou da seguinte
maneira: “O tratamento dado a essas línguas
(línguas nativas e castelhano) em todo o pro-
cesso educacional deverá garantir a igualdade
de oportunidades e uso, e nenhuma delas terá
um tratamento preferencial, de modo que as
línguas maternas gozem do mesmo status que
o castelhano” (CSUTCB, 1991: 20).
No que se refere à característica intercultural
da educação, a proposta estabelece que:
O currículo será intercultural e, portanto, aber-
to e voltado à afirmação da identidade cultural
e social dos educandos e à consolidação da cul-
tura nativa das crianças [...]. Essa afirmação cul-
tural permitirá que a criança valorize sua cultu-
ra, desenvolva um maior respeito próprio e afir-
me sua identidade, tornando-se um indivíduo
que respeita e tolera as diferenças culturais e lin-
güísticas existentes no país (CSUTCB, 1991: 21).
Após quatro anos de trabalho prévio e com
base no Projeto de Educação Intercultural Bi-
língüe, co-patrocinado pelo Unicef e pelo Mi-
nistério de Educação, o Estado boliviano em-
barcou na Reforma Educacional, na Lei nº
1.565, promulgada no governo de Gonzalo
Sánchez de Lozada em 1994 e atualmente em
vigor. Essa reforma unificou o sistema educa-
cional nacional e promoveu uma educação
intercultural em todo o país e bilíngüe nas zo-
nas nas quais predomina uma língua indíge-
na. Ela se baseou numa ampla participação
social, envolvendo desde o nível local até o
nacional, por meio de juntas escolares e con-
selhos, e promoveu a flexibilização dos calen-
dários escolares de acordo com as diferentes
condições regionais. Além disso, assumiu a
heterogeneidade sociocultural do país num
ambiente de respeito e tolerância, visando a
fortalecer a identidade nacional, exaltando os
valores históricos e culturais da Nação bolivi-
ana em sua enorme e diversificada riqueza
multicultural e multirregional” (Ministerio de
Educación, Cultura y Deportes, 1998: 11).
Transformações em curso?
A minoria dominante percebe o trabalhador
rural como improdutivo e atrasado, como um
obstáculo à modernização. Os trabalhadores
rurais e seu modo de vida representam tudo o
que o discurso dominante procura superar. O
32
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
SIMPÓSIO 3
Estado impulsiona a transferência tecnológica
para transformar o meio rural e cria uma nova
lei de terras que permite a comercialização do
chamado bem inerte (bien inerte, nas palavras
do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada,
1993-1997) na Bolívia. O consumismo é estimu-
lado pelos meios de comunicação, seguindo a
máxima de Galeano: quem não compra não
existe e quem não tem não é”.
A identificação da singularidade é estabe-
lecida por dois conjuntos de sistemas, um sis-
tema de remanescentes culturais obsoletos e
um sistema de carências (Varese, apud López,
1996: 64). Por um lado, a economia de subsis-
tência, baseada num sistema de reciprocida-
de com forte controle social, o agrocentrismo,
a personificação e deificação da natureza, a
concepção cíclica do tempo e as demais carac-
terísticas culturais andinas não podem gerar a
mesma modernidade gerada pelo mundo oci-
dental; por outro lado, as províncias com mai-
or população indígena são tipificadas numa es-
cala graduada, enquadrada na categoria de
pobreza, rótulo imposto com o objetivo ób-
vio de justificar ações desenvolvimentistas por
parte dos financiadores que dirigem os desti-
nos do Estado.
Em vez de se conceitualizar a cultura dos
povos indígenas como um recurso, estabele-
cem-se, em primeira instância, suas deficiên-
cias, que resultam justamente da alienação à
qual ela foi exposta. É contraproducente essa
identificação com a carência que os próprios
povos indígenas chegam a assumir: afirmar o
existente é, como os psicólogos e pedagogos já
descobriram há muito tempo, o ponto de par-
tida para qualquer intenção séria e efetiva de
aprendizagem, desenvolvimento, mobilização,
por mais subjugada e alterada que a cultura de
um povo possa estar.
Darcy Ribeiro nos fala de povos indígenas
como testemunhas, povos que dão testemunho
do que conservaram deles próprios, das altas
civilizações que prenunciam como será o futu-
ro: “Uma vez libertos da opressão representada
pela expectativa de assimilação dos Estados
nacionais e por todas as formas de repressão
utilizadas contra eles, emergirão para as tare-
fas de auto-reconstrução como povos que, fi-
nalmente, existirão para eles próprios” (Ribei-
ro, 1989: 56).
As culturas indígenas representam o orgu-
lho da Bolívia. Elas têm conquistado espaço nas
capitais e nos teatros e tornam-se produto de
exportação quando estão devidamente “folclo-
rizadas” na forma de música e dança. Já os in-
dígenas são... um problema.
Desde o ano passado, a direção da CSUTCB,
liderada por Felipe Quispe Huanca, vem promo-
vendo, por meio de ações políticas, uma revi-
são do conceito de “indígena” na sociedade
boliviana, exigindo que o Estado assegure igual-
dade de condições econômicas e sociais ao
povo aimara. Sem entrar no mérito de suas po-
lêmicas ações e intervenções, o senhor Huanca
promoveu, em todo o país, uma discussão em
torno do espaço a ser ocupado pelos povos na-
tivos. Sem dúvida alguma, ele trouxe à baila...
um problema.
Por trás da reforma educacional
As reformas da década de 1990 poderiam
implicar uma transformação radical de atitudes
e uma afirmação do indígena, mas, acima de
tudo, poderiam promover uma mudança efeti-
va no sistema nacional de educação. A reforma
educacional boliviana teve reconhecimento
como modelo regional. No país como um todo,
gerou ceticismo nos mesmos grupos que reivin-
dicavam uma educação inclusiva, que respei-
tasse a heterogeneidade. Qual é o interesse do
Estado em considerar o significado histórico,
social, econômico e político da diferença cul-
tural e em construir a interculturalidade – não
apenas entre indivíduos, mas também entre
suas estruturas e instituições sociais, políticas
e jurídicas? Não haveria uma contradição cons-
tante entre a demanda reivindicativa dos povos
que enfrentam discriminação, racismo e desi-
gualdade e o léxico oficial da interculturalidade
como algo que o Estado se compromete a fo-
mentar em âmbito nacional?
Uma reforma educacional como a bolivia-
na poderia também implicar uma maior inci-
dência e funcionalidade do esquema de domi-
nação, em vez de sua transformação. As orga-
nizações indígenas percebem o caráter instru-
34
mental e mediador dos planos e programas; as
bases indígenas de algumas organizações iden-
tificam seu objetivo oculto de minar a cultura
dos povos indígenas e dominá-los lingüisti-
camente, usando inicialmente sua língua ma-
terna, já que, tradicionalmente, a escolarização
era um cenário privilegiado para o glotocídio
(Green, 1996).
Inicialmente uma vitória, o caráter de polí-
tica estatal da educação intercultural bilíngüe
(EIB) torna-se um “problema sério e permanen-
te com efeitos práticos em propostas organiza-
cionais, porque as comunidades resistem, por
mais que a proposta seja boa, a qualquer pro-
grama do Estado” (Green, 1996: 1-2). Esse aler-
ta das lideranças indígenas colombianas, ex-
presso no II Congresso Latino-Americano de
Educação Intercultural Bilíngüe de Santa Cruz
de la Sierra, Bolívia, em 1996, resume o proble-
ma: a desconfiança inerente em relação a qual-
quer ação do Estado, gerada pelo temor de que
seus propósitos não correspondam às intenções
e às demandas dos povos indígenas, conside-
rando que historicamente isso nunca aconte-
ceu nesse lado do mundo. “Quando se pensa no
Estado, afirma Bourdieu, suspeitar até demais
é sempre pouco [...]” (Zambrano, 2000: 158).
Surgem, então, vozes de alerta sobre um
novo modelo de dominação pós-moderna es-
trategicamente promovida por meio do reco-
nhecimento da diversidade de múltiplos po-
vos indígenas à custa da unidade política de
organizações de trabalhadores rurais como a
CSUTCB, de caráter nacional (Green, 1996;
Zizek, 1998; Walsh, 2000), e sobre a divisão e a
desmobilização geradas pela nova participação
política partidária (Walsh, 2000). Inicialmen-
te, no entanto, a suspeita surge no contexto
neoliberal, no qual predomina a lógica do
mercado globalizado que prepara as pessoas
para um mercado de trabalho destinado a um
grupo privilegiado – ao qual a maioria não terá
acesso – enquanto esvazia o restante da oferta
de trabalho” (Zambrano, 2000: 158).
Além do ideal constitucional
de uma Bolívia multilíngüe
e multicultural
1
A camisa-de-força da educação
intercultural bilíngüe
A educação bilíngüe, considerada como um
modelo educacional adequado à diversidade lingüís-
tica, fica enriquecida em seu enfoque mediante a in-
clusão do aspecto intercultural que leva em conside-
ração a pluralidade de conhecimentos e manifesta-
ções culturais e coloca “um educando concreto, de
carne e osso, e não um construto teórico, no centro
da reflexão pedagógica” (López, 1994: 9).
Advoga-se um modelo educacional basea-
do na demanda dos povos indígenas, das comu-
nidades de base (a partir da Conferência Mun-
dial sobre Educação para Todos, realizada em
Jomtien em 1990) e não, como havia ocorrido
até então, baseado em propostas elaboradas em
escritórios ministeriais, tendo como pano de
fundo a política estatal predominante. A diver-
sidade cultural e lingüística começa a ser vista
como uma riqueza e não como um problema,
uma possibilidade em potencial de que o alu-
no, enraizado em seu meio ecológico, social,
cultural e lingüístico imediato, possa ser con-
frontado com outras realidades e manifestações
e enriquecer-se com esse conhecimento.
No entanto, muitos grupos questionam se a
tolerância e o respeito que deveriam sustentar
esse modelo de educação e o diálogo intercul-
tural e interétnico que ele poderia propiciar se-
riam possíveis na Bolívia. Hornberger e López
(1998: 208) formulam esse questionamento da
seguinte maneira:
Specifically, there are tensions and contradictions
inherent in transforming what has been and con-
tinues to be a tool for standardisation and
national unification into, simultaneously, a
vehicle for diversification and emancipation.
1
Em uma população de aproximadamente 6,4 milhões de pessoas, correções aplicadas ao censo de 1992 por Xavier Albó (1995, v.1, p. 19)
indicam que 38% delas usam o idioma quéchua, 26% usam o idioma aimara e 41% só usam o castelhano.
34
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
SIMPÓSIO 3
O próprio caráter da escola concebida como
instituição fechada, como instrumento do Es-
tado e da ordem mundial a serviço da hegemo-
nia, suscita dúvidas.
Como a educação intercultural bilíngüe
manteve as características da escola, a cultura
indígena foi submetida a uma camisa-de-força
que tende a desvirtuá-la e até desintegrá-la.
Green (1996) fala da fatalidade” da EIB em de-
corrência de suas características semelhantes às
da escola de sempre:
• professor formado ao longo de anos de re-
clusão em instituições centralizadas e aca-
dêmicas com a missão de transmitir conhe-
cimentos;
• aula que reúne as crianças durante deter-
minadas horas em espaços fechados entre
quatro paredes;
• currículo estruturado, sistemático e com-
partimentalizado, estabelecido com o intui-
to de promover uma aprendizagem dirigida
a um fim específico ou purposeful learning
behaviour;
• horários e cronogramas fixos;
• ênfase no desenvolvimento de habilidades
cognitivas;
• intermediação da escrita e da abstração.
Se levarmos a sério a proposta da intercul-
turalidade discutida em todos os âmbitos, e se
a educação intercultural pretende estender uma
ponte entre diferentes culturas, precisamos
aceitar, também, o fato de que a educação
intercultural é qualitativamente diferente.
Podemos concordar apenas parcialmente que a
Educação Intercultural Bilíngüe tornou-se um
instrumento de libertação, de afirmação étnica e
de facilitação de relações interculturais, porque,
embora tenha isolado outras propostas aberta-
mente integracionistas, ela persistiu em cortar e
deixar de lado laços com as raízes, com a sabe-
doria dos velhos e com a cosmovisão dos povos...
Podemos afirmar nesta ocasião que, a menos que
nasça da raiz, a educação – e qualquer projeto
político-cultural – não serve (Green, 1996: 1).
Green denuncia a falta de senso crítico da
EIB em relação à escola, aos currículos, às pe-
dagogias e aos professores estabelecidos pelo
sistema estatal e questiona o avanço em dire-
ção à construção de um novo currículo amplo,
com base no eixo central da escola e da leitura-
escrita, por tratar-se de um discurso circular: a
flexibilidade dos currículos só é concebida no
contexto de uma escola, com espaço e tempo
segmentados.
No caso da Bolívia, muitos professores que
trabalham em escolas públicas lidam, em pri-
meira instância, com jovens que aspiram à as-
censão social e a deixar para trás sua origem
rural e linhagem indígena. Ainda que mal re-
munerados e sem prestígio na sociedade domi-
nante, os inspetores educacionais ocupam um
espaço de poder como organismo sindical em
constante processo de reivindicação trabalhis-
ta junto ao Estado. Por outro lado, no que se
refere ao seu posicionamento individual, o pro-
fessor tipicamente não faz parte da comunida-
de. Ele se “estabelece” nela temporariamente,
enquanto aguarda sua transferência para esco-
las situadas num vilarejo mais imponente, para
a capital da província e, finalmente, para a ca-
pital do departamento. Talvez como resquício
de sua formação nos Institutos Normais regi-
dos pelo código educacional de 1955, e consi-
derando sua motivação para optar por essa pro-
fissão, o ressurgimento étnico da década de
1990 não “vingou” entre os professores.
Por outro lado, a reforma educacional esta-
belece um currículo de vigência nacional (ou
tronco comum”) e um currículo local (ou “ra-
mos complementares”) elaborado regional-
mente com o aval de juntas escolares dirigidas
pelo diretor de cada núcleo educacional e que
deve ser aprovado pelas instâncias educacionais
estatais. Em alguns casos, esse currículo regio-
nal começa a ser elaborado por autoridades
educacionais a partir de levantamentos de ne-
cessidades básicas de aprendizagem desenvol-
vidos pelos mesmos professores sobre os quais
falamos antes! Com exceção de alguns conteú-
dos mínimos, é provável que um currículo ge-
rado dessa maneira tenha muito pouco de con-
teúdo próprio.
Mais uma vez, o Estado é que define o que,
como, onde, quando e com quem ensinar, sem
permitir o desenvolvimento de outras opções
36
ou programas educacionais contestatórios no
nível básico ou da formação de docentes.
Apoiando o caráter universal que a educação
deve ter, é inquietante observarmos que embo-
ra aceitemos o fato de que existem outras
cosmologias, outras éticas de saber, outros sis-
temas axiológicos, quando chega a hora de cons-
truir os projetos educacionais, deixamos esse
fato de lado (Green, 1996: 3).
O enfoque da assimilação entre os
protagonistas da educação
Entre os professores formados no espírito
do código educacional de 1955 persiste a idéia
fixa de fazer dos índios bons bolivianos. Fala-
mos sobre a utilidade da escola para as crian-
ças com professores dos núcleos Raqaypampa
e Tukma Baja, situados na Província Mizque,
Departamento de Cochabamba, num workshop
sobre interculturalidade realizado em outubro
de 1995. Seus comentários a respeito do tema
foram os seguintes:
Não queremos que elas sejam iguais aos seus
pais... Não queremos que elas abandonem a es-
cola após a quinta série do Primeiro Grau e se
casem como seus pais... Há pais de família que
não vêem a escola como o futuro de seus filhos,
afirmando que ela os torna frouxos e os faz pa-
rar de plantar e pastorear... Queremos que se-
jam algo na vida, que não fiquem aqui como seus
pais, que tenham uma profissão.
O menosprezo do camponês, de seu modo
de vida, de seu apego à terra e à sua cultura, é
uma constante facilmente perceptível na Bolí-
via. A emigração, o abandono de áreas rurais –
mesmo que isso signifique romper com sua fa-
mília , é uma condição para civilizar-se, para
aproximar-se da periferia, do subcentro urba-
no ou do centro urbano (Aronowitz, 1987). O
professor, juntamente com as demais autorida-
des educacionais, personifica e representa o
centro, o avalista e o transmissor de valores e
da cultura da metrópole. Ele percorreu pesso-
almente esse caminho até se tornar um profes-
sor. Em seu trabalho diário, constrói a consci-
ência comum da nação” (Dave, apud Bourdieu,
1991: 49). Assim, leva a cabo uma missão
civilizadora, na qual a escola é a capela da
modernização” (Howard-Malverde e Canessa,
1995: 234).
A escola é um elemento a mais do sistema
de mobilidade social moldado pelos processos
políticos e sociais e pelas condições de forma-
ção da nova economia e do mercado após 1952,
cuja orientação se resume a deixar de ser ín-
dio. Essa situação persiste, como bem escre-
vem Hornberger e López (1998: 208).
Although, in fact, only a small percentage of
the population attains social advancement
through formal education, schooling, and the
Spanish language with which it is identified,
are nevertheless perceived as the route to so-
cial mobility.
Ao estabelecer um sistema igualitário uni-
versal de sociedade com a educação como ele-
mento-chave para o êxito e a civilização, o fra-
casso dos povos indígenas em seu afã de pro-
gredir não é visto apenas como uma desvanta-
gem social, mas também como uma falta de
adaptação pessoal. Uma vez que os valores
modernos da metrópole cheguem à periferia
em suficiente medida, uma vez que os grupos
marginais reconheçam o valor de um sistema
educacional e a língua e cultura que ele repre-
senta, eles também começarão a colaborar
para a destruição de seus instrumentos de ex-
pressão” (Bourdieu, 1991: 49).
Os pais desestimularão seus filhos a usar sua
língua materna – alguns deles já os socializam
num castelhano incipiente. Uma mãe analfabe-
ta de Cayacayani, Província de Esseban Arce,
Departamento de Cochabamba, ao explicar por
que fazia questão de falar com seus filhos num
castelhano fora de contexto, que dominava mal,
afirmou: “O que posso ensinar a meus filhos?
Sou ignorante, não sei ler nem escrever. Um
professor com ampla experiência docente no
meio rural escreve numa carta de apresentação
para um programa de mestrado em educação
intercultural bilíngüe: “Meus pais eram analfa-
betos... mas souberam me ensinar os valores do
respeito...
36
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
SIMPÓSIO 3
Quanto à diversidade lingüística, seu po-
tencial não é reconhecido pelo professor. Pelo
contrário, eles acham que línguas indígenas
na sala de aula e no território nacional pro-
vocam atraso.
Os idiomas subjugam, porque, se eu sou um
quéchua ou aimara e quero ir à universidade,
não vou encontrar nenhum livro escrito em
aimara ou quéchua. Portanto, minha vida vai fi-
car frustrada e vou ser forçado a trabalhar no
campo. O que precisaram fazer com os gaúchos
na Argentina? Precisaram eliminá-los e, assim,
a Argentina começou a surgir como uma nação
que se entende, que fala um só idioma. Aqui é
como a torre de Babel: todos falam idiomas di-
ferentes e ninguém se entende e, por isso, a Bo-
lívia é tão desunida, não é mesmo? E parece que
é isso que o governo quer fazer: desunir os boli-
vianos (professor de Ensino Médio José Manuel
Pando, Apolo, Departamento de La Paz).
As observações acima, que foram feitas
por um profissional em educação entrevista-
do em 1999, denotam uma postura pouco
contemplativa em relação aos povos nativos
e parecem ter sido feitas há séculos.
Esse cenário “real”, que contrasta com o
ideal promovido nas leis, também surge com
força nas observações de dirigentes da princi-
pal responsável pela reforma educacional, que
deveria procurar potencializar os efeitos das
mudanças educacionais: a Central Regional
dos Trabalhadores Rurais de Raqaypampa, Pro-
víncia de Mizque. Quando se perguntou ao seu
diretor até quando seriam mantidos assenta-
mentos dispersos em sua região (11 mil pes-
soas), por que a Central não impulsionava a
concentração da população em torno dos nú-
cleos educacionais e por que, seis anos após a
promulgação da lei, a reforma educacional não
chegava” ao norte da Província de Ayopaya,
no Departamento de Cochabamba, conside-
rando que sua população inclui indivíduos de
origem quéchua e também aimara, sua respos-
ta foi a seguinte: fica longe demais, a cinco
horas da capital da província!
Situações desse tipo nos levam a presumir
que o enfoque subjacente à reforma é o da as-
similação. García Castaño e outros (1999a: 50-
51) caracterizam esse enfoque como a preten-
são de igualar oportunidades educacionais
para alunos culturalmente diferentes, o que se
traduz na intenção de suplantar diferenças im-
pondo formas culturais dominantes. A base
desse enfoque é a substituição do termo de-
ficiência” por diferença, mantendo-se a con-
vicção de que a pobreza se explica pelo fato de
os diferentes grupos culturais não contarem
com as mesmas oportunidades para adquirir
os conhecimentos e habilidades necessários.
O objetivo da educação será o de assegu-
rar compatibilidade entre a dinâmica da sala
de aula e a dinâmica cultural dos grupos de in-
divíduos diferentes” do grupo cultural domi-
nante/majoritário que serve de referência na
escola. A idéia, em última análise, é desenvol-
ver sistemas de compensação educacional por
meio dos quais o diferente” possa desenvol-
ver, com uma certa rapidez, competência na
cultura dominante, sendo a escola o veículo
que facilita o “trânsito” de uma cultura à outra
(idem, ibidem).
A ironia da educação boliviana é que ela não
está, efetivamente, preocupada em melhorar a
qualidade de vida dos povos indígenas, e sim
em provocar mudanças culturais e sociais
estabelecidas conforme os ditames da socieda-
de dominante.
Conclusão
Quem determinará que conteúdos cultu-
rais serão válidos ou adequados para inclusão
no currículo dos ramos complementares”?
Como diferenciaremos o culturalmente acei-
tável do que as políticas de desenvolvimento
estabelecem como norma (pobreza, diferenci-
ação de gênero etc.)? Quem tomará as medi-
das necessárias para que o cultural na educa-
ção intercultural não se reduza à expressão ar-
tística e folclorizada” ou à manifestação lin-
güística da cultura? Quem ensina e como?
O reconhecimento territorial, a determina-
ção cultural e a justiça social dos povos indíge-
nas fazem parte de um complexo conjunto de
demandas que inclui uma educação adequada
às suas necessidades de participação na socie-
dade nacional e internacional, de acordo com
38
sua própria concepção e a partir do fortaleci-
mento de sua identidade. Isso pressupõe uma
educação cuja natureza deve ser determinada
pelos próprios indígenas, especialistas em sua
forma singular de vida. São eles, é cada povo
indígena, que devem definir como continuarão
educando suas crianças e jovens e os mecanis-
mos de seleção e formação de seus professores,
livres das garras da escolaridade e do currículo
ocidental. É respeitando e valorizando o siste-
ma de reprodução de cada povo, de cada comu-
nidade, que a educação escolarizada pode as-
sumir seu papel de facilitadora no processo de
sua inserção na sociedade nacional e interna-
cional, percebendo-se como agente de sociali-
zação e não de expulsão.
A partir da perspectiva oficial, os progra-
mas de EIB, como parte dos projetos de rei-
vindicação idiomática e cultural, são concebi-
dos como uma espécie de licença ou conces-
são a favor dos grupos vernáculo-falantes, e
não como parte medular e integral de seus pro-
jetos educacionais, como programas que efe-
tivamente assumem o problema das minori-
as. Persiste a falta de uma concepção clara do
alcance de uma autêntica EIB e de seus méto-
dos e procedimentos didáticos por parte dos
professores, endividados com os valores e pre-
conceitos da educação oficial secular.
Embora o objetivo declarado da educação
seja libertar os povos andinos da discriminação,
os valores culturais desses mesmos povos são
solapados e denegridos ativamente na escola.
Qualquer ação de transmissão de cultura impli-
ca, necessariamente, uma afirmação dos valo-
res da cultura transmitida; em outras palavras,
qualquer tipo de ensino deve gerar uma ne-
cessidade de seu próprio produto e, portanto,
construir a cultura que deseja transmitir como
um valor, o que é logrado por meio do próprio
ato de ensinar (Bourdieu, 1967).
O enfoque de uma educação intercultural
bilíngüe adequada a uma posição como a
esboçada é o da educação como transformação
(García Castaño et al. , 1999a: 59-60), com base
na teoria do conflito e na teoria da resistência.
Segundo essas propostas, os grupos oprimidos
(no nosso caso, os povos indígenas) não se aco-
modam passivamente ao controle exercido pe-
los grupos dominantes que estruturam institui-
ções sociais para manter ou aumentar esse con-
trole. O que os grupos oprimidos, no nosso caso
os povos nativos, fazem é opor-se e lutar pelo
controle dos recursos do poder, da riqueza e do
prestígio que existem na sociedade.
Concordamos plenamente com García
Castaño e outros (1999b) quando afirmam que
impor culturas deficitárias sobre culturas
não-deficitárias é uma prática de desigualda-
de, não de diferença. A forma singular de
adaptação de cada povo a contextos diferen-
tes faz justamente a diferença entre os povos.
A interculturalidade de modo geral e a edu-
cação intercultural bilíngüe em particular de-
vem fundamentar-se nessa diferença, e não
na desigualdade.
Reconhecer o déficit de uma cultura minori-
tária em relação a uma outra presumidamente
majoritária como dominante equivale a não
admitir a capacidade de qualquer cultura de
gerar novas estratégias de adaptação em novos
contextos e negar o plano de igualdade em que
se encontram todas as culturas e os grupos hu-
manos que as criaram (García Castaño et al.,
1999b: 205).
É de se esperar que o Estado, com seu apa-
rato centralizado de funcionários especiali-
zados em encontrar soluções para os proble-
mas dos outros, relute em ceder espaços de
decisão que propiciem a transmissão da cul-
tura e da ideologia dos povos indígenas. No
entanto, o caminho para uma verdadeira edu-
cação intercultural bilíngüe implica a supe-
ração de sua perspectiva limitada e seu esta-
belecimento no âmbito das comunidades in-
dígenas, aceitando as distintas educações”
que nelas existem. Por outro lado, como ex-
posto acima, as organizações indígenas tam-
bém relutam em participar de possíveis ins-
tâncias ou espaços estatais.
Não há dúvida de que o professor tem um
papel fundamental a desempenhar numa edu-
cação transformadora. E estamos convencidos
de que a visão geral aqui apresentada não in-
valida os esforços que devem ser envidados no
campo da formação dos professores para
transformar a educação. Nossa experiência na
38
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
SIMPÓSIO 3
formação de formadores no curso de Mestrado
do Programa de Formação em Educação Inter-
cultural Bilíngüe para os países andinos
(Proeib Andes) tem como fio condutor a iden-
tidade questionada, resgatada e afirmada do
estudante de origem indígena. Acreditamos
que o caminho para o fortalecimento das
potencialidades dos povos indígenas é a recu-
peração de sua auto-estima e identidade e
também da de seus professores. A educação
intercultural oferece possibilidades para esse
complexo processo de conscientização étnica
e lingüística. Essa educação intercultural deve
ser adotada nos Centros de Formação de Pro-
fessores, sejam eles Institutos Normais Supe-
riores ou Instituições de Ensino Superior. No
entanto, não é um caminho fácil e tampouco
plano. Caracteriza-se pela sinuosidade de sua
natureza conflituosa. Como proposta pedagó-
gica e política, a interculturalidade não pode
se esquivar dessa característica. A noção do
conflito é inerente ao ser intercultural, que
precisa reconhecer e conviver com o conflito,
seja ele intrapessoal, interpessoal, intragrupal
ou intergrupal.
No Proeib Andes, identificamos a pesquisa
como um campo muito fértil para o desenca-
deamento de processos de afirmação da iden-
tidade e também para gerar novas perspectivas
em relação ao que consideramos conhecido e
que está instalado em nossa mente na forma de
preconceitos.
Finalmente, e como lição mais evidente, o
professor deve lançar-se plena e resolutamen-
te nesse empreendimento intercultural, deixan-
do-se levar por todos os questionamentos que
surjam na confrontação de culturas, esquemas
mentais, valores e formas de ver o mundo. O
desafio é promover um intercâmbio no plano
horizontal, deixando para trás o afã assimila-
cionista” da educação tradicional. Como des-
taca López (2001), o caráter social da aprendi-
zagem, base da corrente pedagógica do cons-
trutivismo e da educação intercultural, implica
a necessidade de se enfocar a comunicação do-
cente -estudantes e dos estudantes entre eles,
aceitar o fato de que o estudante traz consigo
conhecimentos e experiências – social e cultu-
ralmente determinadas – e, além disso, relacio-
nar constantemente conhecimentos prévios e
novos. O desafio é imbuir-se, como professor,
do que possa significar um modo de fazer edu-
cação num mundo que articula as diferenças e
não as combate.
Não podemos concluir esse documento sem
afirmar que enquanto perdure o desequilíbrio
sociopolítico e econômico dos grupos étnicos
em relação a setores sociais dominantes, e en-
quanto esses concebam e executem programas
educacionais e se sintam no direito de respon-
der às necessidades de aprendizagem dos po-
vos indígenas a partir da sua própria visão e in-
teresses, a interculturalidade será, na melhor
das hipóteses, um diálogo de surdos e, na pior,
um novo e sutil mecanismo de dominação, uma
passagem de uma só via.
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41
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIO
44
44
4
EXPERIÊNCIA DO ENSINO
SUPERIOR INDÍGENA
Edivanda Mugrabi
Elias Renato da Silva Januário
Maria Inês de Almeida
Marilda C. Cavalcanti
42
* Doutora em Educação pela Universidade de Genebra, professora do Departamento de Fundamentos e Orientação Educacional e do Mestrado
em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo.
O Ensino Superior Indígena
no Espírito Santo e o papel
da universidade
Edivanda Mugrabi*
Resumo
O presente texto visa, a um só tempo, siste-
matizar a experiência de construção do Ensino
Superior Indígena no Espírito Santo e discutir os
limites e as possibilidades dessa construção. Em
um primeiro momento, apresentaremos sucin-
tamente uma retrospectiva da luta dos povos
Tupinikim e Guarani em prol de uma educação
escolar diferenciada. Sem perder o fio da histó-
ria, em seguida trataremos de enfocar o papel da
Universidade Federal do Espírito Santo nesse
processo. Num terceiro momento, centramo-nos
nas idéias essenciais que estão sendo discutidas
em torno do formato das Licenciaturas que pre-
tendemos criar. À guisa de conclusão, apresen-
tamos alguns dilemas e dificuldades que atraves-
sam o processo.
Os Tupinikim e os Guarani e a
educação escolar diferenciada
No estado do Espírito Santo, no município
de Aracruz, vivem atualmente 1.793 índios
aldeados, dos quais 1.615 são do povo Tupinikim
e 178 pertencem ao povo Guarani.
A preocupação desses povos com a educação
escolar é antiga, mas ela se traduz em fatos a par-
tir dos anos 1990. No bojo dessa preocupação,
aparece em destaque a formação de educadores
para atuar nas escolas das aldeias. Em 1994, foi
estabelecida uma parceria entre os índios, o Ins-
tituto para o Desenvolvimento e Educação de
Adultos (Idea) e a Pastoral Indigenista para a cri-
ação de um projeto de formação de índios para
atuarem no âmbito da Educação de Jovens e
Adultos. Segundo Cota (2000: 110), essa forma-
ção representa um momento de ruptura impor-
tante para o povo Tupinikim, na medida em que,
de um lado, os próprios índios começam a assu-
mir a educação nas aldeias, e de outro, as ques-
tões culturais começam a ser introduzidas no
processo ensino-aprendizagem nas escolas.
Em 1996, estrategicamente amplia-se a
parceria, incluindo o poder público, repre-
sentado pela Secretaria Municipal de Educa-
ção de Aracruz e pela Secretaria de Estado da
Educação, para pensar a formação de profes-
sores para o Ensino Fundamental. Em dezem-
bro de 1996, dá-se início ao Curso de Habili-
Tupinikim
Caieira Velha
Comboios
Irajá
Pau Brasil
Subtotal
Guarani
Boa Esperança
Três Palmeiras
Subtotal
Total
708
342
262
303
1.615
96
82
178
1.793
N
o
de habitantes
Aldeias
150
60
62
64
336
24
14
38
374
População
N
o
de famílias
Tabela 1
43
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
tação Profissional para o Magistério de 1ª a 4ª
séries do 1º Grau – Formação Específica em
Educação Indígena. Esse curso foi fundado
nos princípios da interdisciplinaridade, da
interculturalidade e da participação dos edu-
cadores e das comunidades indígenas em to-
das as decisões das diferentes atividades pro-
gramadas. Foram habilitados, em outubro de
2000, 37 índios (32 Tupinikim e 5 Guarani),
ampliando-se significativamente os quadros
para atuar na educação escolar, que até aquele
momento encontrava-se irremediavelmente
nas mãos de professores não-índios (do total
de 19 professores apenas 4 eram índios).
Com a formação de professores índios a
partir de 2000, há uma inversão significativa
na proporção entre professores índios e pro-
fessores não-índios: dos 23 professores que
passaram a atuar nas escolas das aldeias, 20
são índios. Essa apropriação nas mãos da
educação escolar pelos índios foi marcada
pela realização de um concurso público – o
primeiro no Brasil! –, inaugurando-se assim
oficialmente a carreira de Magistério diferen-
ciada no município de Aracruz, com isono-
mia salarial.
O atendimento escolar às crianças das al-
deias é realizado pela Prefeitura Municipal de
Aracruz, por meio da Secretaria Municipal de
Educação. As escolas existentes (uma em cada
aldeia) atendem a crianças da Educação Infantil
(187 crianças) e do 1º ciclo do Ensino Fundamen-
tal (309 crianças). Os alunos que concluem o 1º
ciclo do Ensino Fundamental e desejam dar con-
tinuidade a seus estudos têm de se deslocar das
aldeias para a zona urbana, havendo, dessa for-
ma, uma ruptura no atendimento à educação
diferenciada e específica prevista em lei. Os da-
dos abaixo, refe-
rentes à demanda
escolar de Ensino
Fundamental, ofe-
recem indicações
incontestes quan-
to à urgência da
continuidade do
processo de for-
mação dos docen-
tes indígenas.
Mais da metade dos alunos que concluem o
1º ciclo do Ensino Fundamental não prosse-
guem seus estudos. A taxa de índios que ascen-
dem ao Ensino Médio é também extremamen-
te baixa. Agregue-se a esses dados o número de
25 alunos que freqüentam o Ensino Superior em
faculdades particulares cuja qualidade é duvi-
dosa e que não estão preocupadas com o pro-
jeto político das comunidades indígenas.
O papel da Universidade
Federal do Espírito Santo
(Ufes)
Na década de 1990, a universidade não se
envolveu com a questão da Educação Escolar
Indígena. A fala de um índio Guarani, pronun-
ciada recentemente nas dependências dessa
instituição, revela bem o seu descaso para com
os povos indígenas do Espírito Santo:
Quando entramos na Universidade pela pri-
meira vez, diziam que não havia indígenas no
Espírito Santo. A Universidade não vive em outro
mundo, em outra lua, vivemos todos num mundo
só. Por que um índio não pode estudar na Uni-
versidade? (Antonio Carvalho, vice-cacique da
aldeia de Boa Esperança, 18/6/2001).
Com efeito, nenhuma das iniciativas em
prol da educação diferenciada dos povos indí-
genas do Espírito Santo contou com a partici-
pação de professores representando a Ufes. Os
únicos dois professores universitários que atu-
aram no curso de formação de professores em
nível médio deram a sua contribuição por ou-
tras vias institucionais.
No início de 1999, por inicia-
tiva dos próprios índios e dos di-
ferentes parceiros de instituições
não-governamentais – notada-
mente o Idea –, um grupo foi-se
constituindo para discutir acer-
ca da necessidade de a universi-
dade assumir a continuação da
formação dos educadores índios.
Mas, naquele momento, somen-
te alguns poucos professores se
sentiram interpelados por essa
Número de índios que estudam
Nas aldeias
Educação Infantil
Ensino Fundamental (1
a
a 4
a
série)
Fora das aldeias
Ensino Fundamental (5
a
a 8
a
série)
Ensino Médio
Total
187
309
208
66
770
Tabela 2
44
questão. As reuniões que se realizaram nas
dependências da própria universidade conta-
vam com participação pouco expressiva dos
quadros universitários.
Nesse contexto institucional, ocorreu, em
outubro de 1999, a primeira formulação do pro-
jeto de formação universitária de educadores
índios Tupinikim e Guarani, em resposta a um
edital da Capes, que reivindicava projetos ino-
vadores para a melhoria da graduação. Infeliz-
mente, o projeto não seduziu a equipe que fez a
triagem das diferentes iniciativas apresentadas.
Em 2000, novos esforços foram feitos para que
esse documento fosse discutido e aprovado pe-
las instâncias universitárias. Num primeiro mo-
mento, foi necessário encontrar um centro/de-
partamento que o encaminhasse formalmente
às demais instâncias universitárias. Por pressão
das lideranças indígenas, no final de 2000 o Cen-
tro Pedagógico aprovou o projeto e o encami-
nhou novamente à Pró-Reitoria de Graduação.
A partir de março de 2001, na qualidade de
coordenadora do projeto junto à Universidade,
articulamos a retomada das discussões, convo-
cando encontros sistemáticos para detalhar a
proposta curricular das licenciaturas. Desses
encontros, têm participado representantes dos
alunos indígenas que freqüentarão os cursos, li-
deranças indígenas e os diferentes parceiros de
instituições governamentais e não-governamen-
tais. Progressivamente, estamos tentando en-
contrar novos aliados nos distintos departamen-
tos da universidade para compor a equipe que
viabilizará a proposta.
Em junho do mesmo ano, promovemos es-
trategicamente um seminário, com o objetivo
de apresentar a proposta em construção à co-
munidade acadêmica e à sociedade em geral.
A idéia era a de que o seminário pudesse cons-
tituir fato que chamasse a atenção da socieda-
de capixaba, implicasse as autoridades públi-
cas e atraísse novas parcerias e novos profes-
sores universitários. A imprensa local parece
ter considerado a temática do seminário como
relevante, pois, durante dois dias sucessivos,
o evento assumiu destaque na mídia.
O projeto ainda não foi aprovado pelo Con-
selho de Ensino e Pesquisa, uma vez que o
detalhamento do currículo ainda não foi con-
cluído. Nossa expectativa é de que os cursos
venham a ser criados até o final deste ano e
que possam ser iniciados em março de 2002.
O formato das licenciaturas
em grandes linhas
As licenciaturas que estamos tentando cri-
ar na Universidade Federal do Espírito Santo
priorizam uma formação diferenciada que
atenda à especificidade da cultura Tupinikim
e da cultura Guarani, sem renegar o conheci-
mento das ciências tal como se constituíram
em suas áreas especializadas. Nosso grande
desafio é construir um espaço de formação que
não se restrinja a reproduzir a divisão das ci-
ências (formando pedagogos”, matemáticos”
etc.), mas que considere a especialização a par-
tir de uma nova abordagem do saber funda-
mentada no diálogo intercultural.
No estágio atual em que o projeto se en-
contra, estão sendo pensadas as idéias que
apresentaremos a seguir.
Não haverá vestibular para o ingresso dos
alunos; as comunidades indicarão os índios in-
teressados pautando-se por dois critérios es-
senciais: tenham concluído o ensino médio e
estejam comprometidos com o projeto políti-
co das aldeias.
As licenciaturas visam à formação em nível de
terceiro grau – Licenciatura Plena – de professo-
res indígenas que atuam e/ou venham a atuar nas
escolas de Ensino Fundamental e Médio.
Os alunos terão a possibilidade de concluir
duas licenciaturas plenas no período de seis anos:
nos três primeiros anos, todos farão a licenciatu-
ra plena de Pedagogia; nos três últimos anos, eles
se especializarão em uma área específica do co-
nhecimento (Licenciatura Plena em Línguas e
Linguagens, Licenciatura Plena em Matemática,
Licenciatura Plena em Ciências Naturais, Licen-
ciatura Plena em Ciências Sociais).
As áreas de conhecimento que estarão
norteando as diferentes licenciaturas terão os
enfoques a seguir.
Fundamentos. A formação de um profes-
sor indígena exige características específi-
cas para responder de maneira adequada
45
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
às necessidades de uma educação diferen-
ciada bilíngüe e intercultural. A abordagem
deverá levar em conta essas características,
aprofundando conhecimentos que permi-
tam uma compreensão mais abrangente do
fenômeno educativo em geral e em espe-
cial dos povos indígenas. O objetivo essen-
cial dessa área é desenvolver conhecimen-
tos e capacidades para compreender e par-
ticipar de maneira qualitativa e crítica no
processo de educação em geral e da Edu-
cação Indígena em particular. Os conteú-
dos das diferentes disciplinas serão trata-
dos confrontando-se o universal com o par-
ticular das culturas Tupinikim e Guarani. As
disciplinas de Fundamentos que serão es-
tudadas deverão considerar a Filosofia (te-
orias do conhecimento), a Sociologia da
Educação, a Etnologia, a Psicologia e a His-
tória da Educação.
Línguas e Linguagens. Essa área enfocará o
estudo do Português como língua majoritá-
ria do país, o Tupi como língua dos ances-
trais Tupinikim e o Guarani como língua
materna dos Guarani. Não será perdida de
vista a história do contato das línguas indí-
genas entre si e com a língua portuguesa.
Neste último caso, será de fundamental im-
portância o estudo da influência das línguas
indígenas de origem Tupi na constituição de
um saber sobre a língua portuguesa do Bra-
sil e na própria construção de uma língua
nacional, como imaginário de unidade na
constituição da nação denominada “brasilei-
ra. O espanhol também será estudado, com
o fim de ampliar o diálogo intercultural. O
estudo dessas diferentes línguas será
norteado pela constituição dos diferentes
gêneros orais e escritos (gêneros literários e
não-literários), sem perder de vista a ques-
tão da oralidade e da escrita em sociedades
de tradição ágrafa. A linguagem não-verbal,
circunscrevendo o mundo das artes e outros
campos discursivos (mídia impressa,
Internet, tevê etc.), em diálogo com o verbal
no processo de produção de sentidos,
complementará os conhecimentos aborda-
dos nesta área, englobando-se assim as dife-
rentes formas de expressão do ser humano.
Ciências Sociais. Essa área terá como um dos
pontos de partida a realidade do educador em
formação em suas múltiplas relações socio-
culturais. Serão estudadas as diversas formas
de conceber o espaço e o tempo a partir de
uma perspectiva crítica, tentando apreender
as relações complexas entre a estrutura polí-
tica, ideológica e econômica de povos diver-
sos, assim como suas relações com o espaço
(ambiente natural) em que vivem. As Ciências
Sociais pretendem dar conhecimentos e ins-
trumentos para compreender o social como
um todo a partir de suas diversas dimensões
(história, geografia, etnologia, sociologia, po-
lítica etc.). Uma ênfase essencial será compre-
ender e questionar a história dos povos indí-
genas em relação à história de outros povos.
Serão analisadas as características dos tem-
pos históricos e de diferentes fontes históri-
cas (memória oral, história escrita, arqueolo-
gia, mitos etc.), tentando compreender as
contradições, complementaridades e limita-
ções dessas fontes.
Ciências Naturais. Essa área do conheci-
mento propõe uma abordagem sistêmica
que contemple os níveis de organização e
de complexidade de conhecimentos rela-
tivos às Ciências Naturais. As problemáti-
cas a serem levantadas junto com as comu-
nidades indígenas serão agrupadas em
grandes eixos temáticos, tais como, o ensi-
no de Ciências: tendências e concepções;
Terra e Universo; Seres Vivos e Ambiente;
Sociedade e Tecnologia. Os estudos serão
desenvolvidos de maneira integrada, con-
siderando as demandas dos alunos indíge-
nas, suas vivências e informações na área,
garantindo, assim, sua articulação com as
outras áreas do conhecimento. As situações
de aprendizagem proporcionarão confron-
tos entre os conhecimentos científicos e os
conhecimentos culturais acumulados pe-
los povos Tupinikim e Guarani. A tec-
nologia, os modelos de desenvolvimento,
a dimensão ambiental e os paradigmas do-
minantes serão considerados como fatores
de influência na formação da racionalidade
científica e do conhecimento científico. As
práticas educativas desenvolvidas durante
o curso devem incorporar os princípios te-
óricos e metodológicos do ensino de Ciên-
cias Naturais e sua afinidade com a Educa-
ção Ambiental.
46
Matemática. Todas as disciplinas dessa área
terão como ponto de partida o contexto es-
pacial, histórico e cultural das comunidades
indígenas. O ensino da Matemática visará ao
desenvolvimento do pensamento numérico,
algébrico, geométrico; da competência mé-
trica; do raciocínio que envolva a proporcio-
nalidade; do raciocínio combinatório, esta-
tístico e probabilístico. Será garantido o aces-
so ao conhecimento matemático, igual àque-
le fornecido às comunidades não-indígenas,
mas com uma abordagem centrada na
Etnomatemática. A matematização dos pro-
blemas privilegiará as questões de moradia,
alimentação, saneamento, trabalho, saúde,
vestuário, comércio e espaço vivenciadas
pelas comunidades, visando à elaboração de
projetos interdisciplinares e interculturais. A
proposta incluirá conteúdos de três grandes
blocos do saber: Matemática, Epistemologia
e Educação Matemática, permitindo a arti-
culação entre os diferentes saberes e propi-
ciando atividades de prática de ensino nas
escolas das comunidades indígenas ao lon-
go de todo o curso.
Cada licenciatura terá a carga horária de
3.210 horas, prevendo-se, no entanto, aprovei-
tamento de cerca de 1.260 horas da primeira li-
cenciatura na segunda licenciatura (720 horas
de Fundamentos da Educação e 540 horas de
uma área específica).
A Licenciatura de Pedagogia habilitará para
o ensino das séries iniciais do Ensino Funda-
mental.
A área de Línguas e Linguagens habilitará o
cursista ao trabalho com as línguas Tupi ou
Guarani, mas os cursistas terão uma formação
complementar em língua espanhola (como lín-
gua estrangeira) e em diferentes linguagens (li-
terária, artística, imagética etc.).
A área de Matemática visa à formação de
professores de Matemática.
A área de Ciências Naturais visa à habilita-
ção de professores de Ciências para o Ensino
Fundamental, e de Biologia para o Ensino Mé-
dio; uma formação complementar será dada em
Física e Química.
A área de Ciências Sociais terá como focos
privilegiados os campos da História e da Geo-
grafia e habilitará os cursistas para o trabalho
com essas duas disciplinas, mas haverá estudos
complementares em Antropologia, Política, So-
ciologia e Economia.
Os cursos de Licenciatura seguirão um ca-
lendário específico, composto por duas moda-
lidades letivas:
• aulas presenciais ministradas nas depen-
dências da universidade e aulas presenciais
ministradas nas aldeias, as quais ocorrerão
ao longo do ano, prevendo-se uma carga-
horária intensiva no período de férias e re-
cessos escolares dos cursistas;
• atividades cooperadas, possibilitando aos
cursistas conciliar suas atividades docentes
Pedagogia
1
a
a 4
a
série
Habilitação
Matemática
Habilitação
Línguas
Habilitação
Ciências Naturais
Habilitação
Ciências Sociais
Carga horária de todos os cursos
Fundamentos
Línguas
Matemática
Ciências
Naturais
Ciências
Sociais
Estágio
Carga
horária
total
720
550
550 550 3.220300550
240
1.400
1.400
1.400
1.400 300
300
300
300
3.210
3.210
3.210
3.210
Tabela 3
47
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
nas escolas com as atividades do curso de
formação (preparo de seminários, leituras,
pesquisas solicitadas etc.).
Será prevista uma bolsa de estudos para os
cursistas e uma bolsa de pesquisa para os pro-
fessores que atuarem no curso.
Dificuldades e dilemas
no processo de criação das
licenciaturas
À guisa de conclusão, gostaríamos de levan-
tar algumas dificuldades e dilemas que deve-
riam ser superados para facilitar o processo de
formação dos educadores Tupinikim e Guarani.
Sem pretensão à universalização, pensamos que
algumas de nossas reflexões são válidas para
outras experiências em nível nacional.
Ausência de políticas públicas em nível es-
tadual. O estado do Espírito Santo tem sido
omisso na definição de políticas para a edu-
cação. Até hoje, não tem havido nenhum
esforço para a regulamentação no âmbito do
CEE da Resolução nº 3 do CNE, assim como
não têm sido formuladas leis e portarias que
possam assegurar aos povos indígenas do
estado um Ensino Fundamental diferencia-
do, tal como prescreve a Constituição Fede-
ral. Isso gera problemas de diferentes or-
dens. Um dos mais sérios, que pode com-
prometer a viabilização do projeto de cria-
ção de cursos, é a alocação de recursos fi-
nanceiros. Os recursos destinados à Educa-
ção Escolar Indígena não estão sendo bem
administrados pelo Estado. A prova disso é
que até hoje a Secretaria de Estado da Edu-
cação não pagou cerca de R$ 16.509,00 aos
formadores que atuaram no curso de Ma-
gistério nos anos 1999 e 2000. Ora, isso com-
promete a formação superior, uma vez que
ela necessitará de recursos financeiros
oriundos de parcerias, convênios e acordos
negociados com agências estaduais, nacio-
nais e internacionais.
Ausência de articulação no interior do pró-
prio MEC. As universidades brasileiras têm
autonomia para criar novos cursos, mas es-
ses deverão passar por um processo de re-
conhecimento e de avaliação na esfera do
MEC. Ora, pelo que se sabe até a presente
data, a Secretaria de Educação Superior
(Sesu) não dispõe de pessoal competente
para lidar com a educação diferenciada. O
reconhecimento dos cursos levará em con-
ta variáveis interculturais? Que parâmetros
serão considerados para avaliar os conteú-
dos mínimos de cada licenciatura? Somen-
te as diretrizes curriculares dos cursos con-
vencionais, tais como estão sendo definidas
atualmente? Os conteúdos mínimos defini-
dos para o Exame Nacional dos Cursos? O
“Provão, a que certamente os alunos da
educação superior diferenciada serão sub-
metidos, será diferenciado? Pensamos que
a Coordenação-Geral de Apoio às Escolas
Indígenas deveria articular-se com a Sesu
para a facilitar o processo de reconhecimen-
to dos cursos.
O perfil do professor que se quer formar.
Todos – índios e não-índios – querem um
profissional que possa competir no merca-
do de trabalho da educação formal, inde-
pendentemente de ter tido uma formação
diferenciada ou não. Isso gera dificuldades
na determinação dos conteúdos e da carga
horária necessária para tratá-los convenien-
temente. Tomemos o caso da Licenciatura
de Línguas e Linguagens. Convencional-
mente, os cursos de Letras, nas universida-
des brasileiras, habilitam para o ensino da
Literatura, de uma Língua Estrangeira e da
Língua Portuguesa, mas no caso de nosso
curso aparece como prioridade a habilita-
ção em Língua Indígena. Como então con-
ciliar tantas habilitações com uma carga
horária não muito extensa?
Interculturalidade. O respeito à diversidade
étnica e cultural preconizado pela Constitui-
ção de 1988 trouxe à baila uma questão con-
trovertida: como deve ser o relacionamento
dos povos indígenas com a sociedade brasi-
leira e vice-versa? Há intelectuais que defen-
dem uma “inversão necessária”: se antes
eram os índios que tinham como prerrogati-
va conhecer a sociedade envolvente, depois
de 1988 o esforço para a compreensão e con-
vivência com os povos indígenas passou a ser
da sociedade brasileira” (Silva, 1999: 12). Essa
48
posição nega, no entanto, o princípio da
interculturalidade e não contribui para a su-
peração do etnocentrismo. O curso univer-
sitário será um palco extraordinário para ín-
dios e não-índios operacionalizarem o con-
ceito de interculturalidade, que aparece nos
documentos oficiais, mas que tem sido fon-
te de confusão nos planos teórico e prático.
Perspectiva bilíngüe versus currículo
intercultural. Um currículo verdadeiramen-
te intercultural implicaria a adoção de um
ensino bilíngüe, ou seja, a estruturação do
processo ensino-aprendizagem baseada na
estratégia da alternância de línguas, o que
não é possível nas condições concretas
atuais. A língua de ensino de todos os con-
teúdos curriculares será o Português, e a lín-
gua indígena terá a função de disciplina
curricular. Para os Tupinikim, as disciplinas
envolvendo a língua indígena terão um
status particular, na medida em que o Tupi
constitui para eles um objeto de conheci-
mento inteiramente novo. Eles terão de
aprender o Tupi como uma língua estran-
geira. A valorização da língua Guarani e a
recuperação da língua Tupi colocam desafi-
os novos para a questão do bilingüismo no
ensino das escolas nas aldeias.
Formação dos professores universitários
para atuar nas licenciaturas. Em matéria de
quadros nacionais para atuar nos cursos
superiores indígenas, nos deparamos com
um dilema sério: de um lado, temos profes-
sores que ignoram completamente as cul-
turas e as problemáticas em torno das cul-
turas indígenas e, de outro, temos profissio-
nais que estão comprometidos com a causa
indígena, mas não conhecem as questões
relativas ao ensino ou não valorizam o en-
sino formal de conteúdos da cultura ociden-
tal para os índios. No caso concreto dos pro-
fessores da Ufes, eles não têm a prática do
diálogo intercultural com os povos indíge-
nas. Em outras palavras, eles são especialis-
tas em suas áreas de conhecimentos, mas
nunca tiveram a necessidade de tratar es-
ses conhecimentos na perspectiva de outros
povos. Metodologicamente, seria necessá-
rio abordar o geral a partir do específico, e
isso, à primeira vista, aparece como um de-
safio para todos. Para enfrentar essa situa-
ção, estamos prevendo seminários de for-
mação da equipe que vai atuar no projeto,
nos quais tentaremos discutir a questão da
interculturalidade, do bilingüismo, da inter-
disciplinaridade etc. Alguns desses seminá-
rios serão realizados nas dependências da
Ufes e outros serão realizados nas próprias
aldeias indígenas, para facilitar a imersão
dos professores nas questões propriamente
culturais.
A pesquisa norteando o processo ensino-
aprendizagem. Em nosso projeto, a pesqui-
sa é considerada como uma modalidade
privilegiada na formação dos professores e
dos alunos índios. Ela visa uma melhor
compreensão das comunidades e dos pro-
blemas socioculturais, históricos, lingüís-
ticos e ambientais que as circundam. Os re-
sultados desses trabalhos de investigação
deverão constituir um material educativo
importante a ser utilizado por todos os ato-
res implicados na proposta. Resta, no en-
tanto, saber se os professores universitários
estarão dispostos a re-aprender seus obje-
tos de ensino.
Pensamos que estas e outras questões de-
verão ser respondidas com uma certa urgência,
a fim de que sejam criadas condições mais fa-
voráveis às diferentes experiências de Ensino
Superior Indígena que seguramente emergirão
em diferentes estados do país.
Bibliografia
COTA, M.-G.
Educação escolar indígena:
a construção de
uma educação diferenciada e específica, intercultural e
bilíngüe entre os Tupinikim do Espírito Santo. Vitória,
2000. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do
Espírito Santo.
FAUNDEZ, A. Diálogo intercultural e educação na socieda-
de brasileira
. Debate en Educación
de Adultos
. Medellin,
n. 10, p. 14-19, 1999.
MUGRABI, E. Bilingüismo o multilingüismo: una prerrogati-
va de minorias lingüísticas?
Debate en Educación
de
Adultos
. Medellin, n. 12, p. 14-19, 2000.
SILVA, R. H. D
. Balanço dos movimentos dos povos indíge-
nas no Brasil e a questão educativa.
Caxambu: Anped,
1999.
49
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
Preliminares
O processo de educação escolar entre os
ameríndios do Brasil, iniciado com a chegada
dos colonizadores portugueses, estabeleceu
uma ação educacional fundamentada nos va-
lores do mundo ocidental e da doutrina cristã,
tendo os missionários jesuítas como os respon-
sáveis pela implementação da prática educaci-
onal por meio da catequese. Essa ação educa-
cional tinha, entre outros propósitos, a submis-
são dos povos indígenas, revelando claramente
o seu caráter etnocêntrico, integracionista e
civilizatório.
A Educação Escolar Indígena, sistematiza-
da nos moldes tradicionais da catequese e da
civilização, perpetuou-se do período colonial
ao republicano, contando também com a atu-
ação de instituições governamentais de forte
cunho positivista em seus ideais educacionais.
Em outras palavras, a ação educacional volta-
da para as sociedades indígenas brasileiras, do
século XVI até meados do século XX, foi
marcada por uma prática que desconsiderava
a diversidade étnica e cultural existente no ter-
ritório brasileiro, em favor de uma política
pública de homogeneização social.
Somente a partir da segunda metade do sé-
culo XX é que se vislumbra a possibilidade de
pensar a Educação Escolar Indígena distante
das doutrinas religiosas e positivistas que ha-
viam embasado a prática educacional até en-
tão. A promulgação da Constituição Federal de
1988 abre um novo contexto na educação es-
colar voltada para os povos indígenas, fazen-
do surgir propostas que passaram a conside-
rar a diversidade étnica e cultural dos índios
brasileiros, respeitando a cultura, a língua, as
tradições e os processos próprios de aprendi-
zagem de cada etnia.
Essa mudança de paradigma na relação en-
tre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas
teve amplos reflexos no contexto da educação
escolar, abrindo novas possibilidades de se pen-
sar uma nova escola indígena, longe das doutri-
nas positivistas, civilizatórias e evangelizadoras
que até então se faziam presentes na educação
ofertada às populações indígenas.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB/1996) veio reforçar a legislação educaci-
onal disposta na Constituição Federal, acen-
tuando a diferenciação da escola indígena das
demais escolas do sistema de ensino brasilei-
ro, incentivando uma educação bilíngüe,
intercultural, com calendários adequados às
particularidades locais e aos projetos
societários de cada comunidade.
Mato Grosso tem apresentado conquistas
significativas no que diz respeito à Educação
Escolar Indígena específica e diferenciada. Em
1995, teve início a implementação de um am-
plo programa de formação de professores in-
dígenas, por meio do Projeto Tucum e do Pro-
jeto Urucum/Pedra Brilhante, que possibilitou
qualificar uma considerável parcela dos índi-
os de Mato Grosso que atuam nas aldeias, mi-
Terceiro grau indígena:
cursos de licenciatura
específicos para a formação
de professores indígenas*
Elias Renato da Silva Januário**
* Texto-síntese do Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos para a Formação de Professores Indígenas, Governo do Estado de Mato
Grosso, Cuiabá, 2000.
** Coordenador do Terceiro Grau Indígena – Unemat.
50
nistrando aula para mais de 5 mil crianças in-
dígenas.
Não é tarefa fácil implementar um progra-
ma de Educação Escolar Indígena específico e
diferenciado, pautado pelos princípios da plu-
ralidade cultural. Requer ousadia e determina-
ção por parte dos dirigentes do poder público
para que se consolide uma educação inter-
cultural, bilíngüe e de qualidade, fundamen-
tada na percepção de outras lógicas, numa prá-
tica pedagógica de valorização de calendários
e conteúdos curriculares de caráter indígena,
afastando-se, assim, da ação civilizatória e
integracionista presentes durante todos esses
anos na prática da educação escolar brasileira
voltada aos povos indígenas.
Apesar de tantas evidências quanto à ne-
cessidade de formação docente, as iniciativas
desenvolvidas no Brasil encontram-se ainda
em fase embrionária, quando não, trata-se de
cursos” desconexos e descontínuos. Urge,
portanto, implementar programas extensivos
a todas as sociedades indígenas que contem-
plem conteúdos curriculares, metodologias
de ensino, materiais didáticos etc., adequa-
dos aos seus interesses. O Programa de For-
mação de Professores Indígenas de Mato
Grosso foi concebido e está sendo implemen-
tado a partir desse entendimento. Busca aten-
der a todas as demandas educacionais, por
meio de projetos específicos e diferenciados,
elaborados, implementados e avaliados por
todos os segmentos envolvidos com a Educa-
ção Escolar Indígena.
O programa caracteriza-se, portanto, pela
oferta de cursos de formação em serviço, isto é,
os professores cursistas desenvolvem ativida-
des docentes nas escolas das aldeias e os con-
teúdos curriculares dos cursos são organizados
de forma que acompanhem o progressivo de-
senvolvimento de seus alunos.
Dando continuidade ao processo de for-
mação, impõe-se agora a organização de cur-
sos superiores voltados para as séries/ciclos
finais do Ensino Fundamental e para o Ensi-
no de Nível Médio, que se vêm implantando
em diversas escolas indígenas. Tal demanda
representará um contingente de aproximada-
mente duzentos novos professores indígenas
que atenderão a mais de 5,5 mil alunos oriun-
dos das escolas das aldeias ou de outras, lo-
calizadas em vilas e cidades circunvizinhas.
A oferta de cursos superiores específicos
para professores indígenas representa a possi-
bilidade de atendimento adequado a essa cli-
entela, como também a continuidade do pro-
cesso de formação dos atuais e dos novos pro-
fessores que comporão o corpo docente indí-
gena em Mato Grosso.
Apesar de tratar-se de uma antiga reivin-
dicação de povos indígenas, o acesso a uma
escola diferenciada e de qualidade foi abor-
dado por políticos e educadores como uma
demanda de caráter individual, localizado e
transitório.
Com o advento da oferta de Ensino Médio
regular em escolas das missões ou em proje-
tos específicos (nos moldes do Tucum), a de-
manda pelo Ensino Superior deixa de ser ex-
pectativa de alguns poucos, para tornar-se uma
prioridade de dezenas, centenas de estudan-
tes, professores, agentes de saúde etc.
Os cursos de Licenciatura aqui propostos
e os demais reivindicados poderão constituir
um marco estratégico para que, a médio pra-
zo, seja estruturado um espaço autônomo de
ensino e pesquisa voltado para os interesses e
necessidades das comunidades indígenas, a
exemplo de outras instituições de Ensino Su-
perior existentes em outros países.
O perfil do professor
a ser formado
Nessa perspectiva, o professor idealizado
deve apresentar o seguinte perfil tipológico:
ser um profissional competente, comprome-
tido, com postura ética, com reconhecimento
social e com engajamento político.
De forma sintética, podemos dizer que o
professor a ser formado nos cursos de Licen-
ciatura deverá desenvolver capacidades e
competências que o habilitem a: a) elaborar
projetos de pesquisa e levantamento de infor-
mações sistematizadas em sua área de forma-
ção específica; b) elaborar e utilizar materiais
didáticos específicos para uso nas suas esco-
51
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
las; c) definir, organizar e implementar pro-
postas curriculares adequadas aos níveis de
ensino e aos interesses das suas comunidades
(Grupioni, 1999).
Justificativa do projeto
e dos cursos
O Programa de Formação de Professores
Indígenas de Mato Grosso está calcado numa
práxis pedagógica que respeita as formas tra-
dicionais de organização social e cosmológica
dos povos ameríndios e os modos próprios
com que produzem e transmitem seus conhe-
cimentos. Portanto, fundamenta-se na inter-
culturalidade, trilha pelos caminhos da inter-
subjetividade e da percepção de outras lógi-
cas, e instiga o educador a interpretar os con-
teúdos a as práticas a partir da sua própria con-
cepção de mundo (Bandeira, 1997).
Trata-se de cursos que vêm ao encontro
das expectativas dos povos indígenas, têm
como ponto de partida e de chegada o que
pensam e o que esperam tais povos da edu-
cação escolar, e proporcionam o diálogo en-
tre as culturas.
Longe de serem instrumentos de aliena-
ção “reprodutivista, etnocentrista ou integra-
cionista, os cursos buscam reelaborar os pro-
cessos históricos e atuais dos contatos inter-
culturais e fortalecer a consciência de índios-
cidadãos que mantêm as suas culturas, lín-
guas e projetos societários.
Como implementação de políticas públi-
cas no campo da educação diferenciada, os
cursos superiores para a formação de profes-
sores indígenas representam uma necessida-
de inadiável.
Além do enorme contingente de alunos
matriculados nas escolas das aldeias, existe
uma crescente demanda hoje atendida em es-
colas regulares nas cidades. Nos últimos anos,
tal fluxo tem assumido dimensões alarmantes,
quer pela restrição da oferta de educação es-
colar nas aldeias, quer pelo adiamento de uma
reflexão mais apurada sobre o papel da educa-
ção escolar na perspectiva de cada sociedade.
Um levantamento preliminar, realizado pelo
Setor de Educação da Administração Regional
da Funai de Cuiabá no ano de 1999, constatou
a existência de 53 estudantes indígenas cur-
sando diferentes séries do Ensino Fundamen-
tal e Médio apenas na cidade de Cuiabá e
adjacências. Se considerados os que estudam
em outras cidades mato-grossenses (além de
Goiânia e Brasília), esse número chega a cen-
tenas de alunos.
Portanto, o modelo de atendimento indi-
vidualizado utilizado até aqui para acomodar
a demanda de Educação Escolar Indígena
deve ser imediatamente substituído por no-
vas estratégias que assegurem a oferta de en-
sino regular nas próprias aldeias e garanta às
sociedades indígenas o direito a uma educa-
ção específica, diferenciada e em todos os ní-
veis. É preciso democratizar o acesso e garan-
tir o percurso escolar a todos os interessados.
Perfil dos cursos
De forma sintética, podemos caracterizar
o perfil do professor indígena egresso dos cur-
sos de Licenciatura como um educador capa-
citado técnica, científica, étnica e culturalmen-
te para desenvolver processos de reflexão, pes-
quisa, produção e reprodução cultural no âm-
bito da escola, do povo indígena e da socieda-
de em geral.
Portanto, os cursos de formação deverão
expressar esse perfil e garantir uma práxis fun-
dada nos seguintes pressupostos:
• afirmação da identidade étnica e da valo-
rização dos costumes, língua e tradições de
cada povo;
• articulação entre conhecimentos e conteú-
dos culturais autóctones no cotidiano das
aldeias, entendidas como laboratórios
vivenciais entre cursistas, alunos e comu-
nidades indígenas;
• busca de respostas para os problemas e ex-
pectativas das comunidades;
• compreensão do processo histórico de-
senvolvido pelas comunidades indígenas
entre si e com a sociedade envolvente,
bem como do processo de incorporação
da instituição escolar no cotidiano indí-
gena;
52
• estudo e utilização das línguas indígenas
no trabalho docente nas escolas das al-
deias;
• debate acerca dos projetos de vida e de fu-
turo de cada povo.
Do ponto de vista organizacional, os cursos
terão a seguinte configuração:
• são concebidos como mais uma etapa do
Programa de Formação de Professores In-
dígenas que se desenvolve em Mato Grosso
e serão implementados com a participação
das universidades públicas, do poder públi-
co estadual e federal, de organizações não-
governamentais e de representantes indíge-
nas;
• visam à formação em nível de terceiro grau
– Licenciatura Plena – de professores indí-
genas que atuam e/ou venham a atuar nas
escolas de Ensino Fundamental e Médio;
• estão organizados de forma a contemplar
um ciclo básico de caráter geral e uma
terminalidade específica. O ciclo básico terá
a duração de quatro anos e objetiva a for-
mação geral do professor indígena no Ensi-
no Fundamental; a terminalidade específi-
ca, por sua vez, terá a duração de um ano e
visa à conclusão do curso mediante o apro-
fundamento de estudos em uma das áreas
das ciências que compõem aquele nível de
ensino.
Os cursos terão uma carga horária total de
3.570 horas, assim distribuídas:
• estudos presenciais (10 etapas intensivas):
1.900 horas;
• estudos cooperados de ensino e pesquisa:
1.250 horas;
• estágios supervisionados: 420 horas.
Uma vez concluídos, os cursos conferirão ao
cursista o título de Licenciado numa das três
áreas de terminalidade, a saber:
• Licenciatura Plena em Ciências Matemáti-
cas e da Natureza;
• Licenciatura Plena em Ciências Sociais;
• Licenciatura Plena em Línguas, Artes e Li-
teraturas.
Objetivos dos cursos
Os cursos de Licenciatura têm por objetivo
geral a formação e a habilitação de professo-
res indígenas para o exercício docente no En-
sino Fundamental e em disciplinas específicas
do Ensino Médio, conforme a área de termina-
lidade em que fizeram opção.
Os objetivos específicos dos cursos expres-
sam uma dinâmica de formação de qualidade
crescente, ancorada na permanente relação te-
oria-prática, manifesta em três níveis de com-
petência:
• compreensão do processo de educação es-
colar, dos seus limites e possibilidades,
como uma nova prática social e cultural, que
se expressa em novas relações econômicas,
políticas, administrativas, psicossociais, lin-
güísticas e pedagógicas;
• domínio de conhecimentos autóctones e
das ciências que integram o currículo dos
cursos de Licenciatura e de sua adequada
utilização na realidade sociocultural espe-
cífica em que atua como professor;
• capacidade de organização e dinamização
do currículo escolar e de implementação de
estratégias didático-pedagógicas consonan-
tes com as demais práticas culturais utili-
zadas por uma sociedade ou por uma de-
terminada comunidade.
Esses objetivos serão traduzidos no currícu-
lo dos cursos como núcleos de estudos ou ei-
xos temáticos e desenvolvidos nas disciplinas
que os compõem. Tal prática fará com que o li-
cenciando indígena articule a formação teóri-
ca de cada núcleo de estudo com outros conhe-
cimentos, valores e habilidades disponíveis em
sua realidade sociocultural.
Princípios curriculares
O currículo dos cursos, entendido aqui
como o projeto que preside as atividades
educativas, explicita suas intenções e propor-
ciona orientações para o desenvolvimento do
processo de ensino-aprendizagem (Seduc,
1995), expressa-se pelo conjunto de conheci-
mentos, habilidades, atitudes e valores que se-
rão selecionados, organizados, debatidos e
53
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
apreendidos pelos participantes dessa comuni-
dade educativa especial (cursistas licenciandos,
docentes, assessores, coordenadores).
Por tratar-se de uma construção social e
culturalmente situada, e por envolver sujeitos
históricos com diferentes pedagogias e formas
de organização, a práxis curricular deverá reve-
lar o seu compromisso com esses sujeitos e com
as suas histórias, sociedades e culturas (SMED,
1996). Portanto, os cursos de Licenciatura,
como ademais todo o processo educacional es-
colar, não são entendidos como um espaço ho-
mogêneo de mera reprodução ou de plena li-
berdade e criação humana. Como parte de um
processo aberto e flexível, traz em seu interior
tensões e conflitos de ordem étnica, política,
lingüística, entre outras, que expressam a dinâ-
mica da interculturalidade (Monte, 1996).
Estruturas curriculares
dos cursos
A estruturação de um currículo diferencia-
do para os cursos de Licenciatura é fundamen-
tal no processo de construção e reconstrução
das escolas indígenas. Deve ser estabelecida a
partir do repertório nacional” (EBI/Equador,
1997) e dos processos pedagógicos próprios”
(Diretrizes/MEC, 1993) dos cursistas e das suas
comunidades educativas, abrindo-se progres-
sivamente para o aprofundamento de outros
conhecimentos de caráter geral e de caráter es-
pecífico, assim como de habilidades e atitudes
próprias do exercício docente.
A incorporação nos cursos dos conheci-
mentos étnicos” e das pedagogias próprias
garantirá a vivência da interculturalidade e
permitirá reordenar e reinterpretar as meto-
dologias e os conhecimentos de cada curso à
luz do contexto em que este se situa (RCNEI/
MEC, 1998).
Portanto, as opções curriculares devem ex-
pressar um acordo intercultural” que define quais
serão os conhecimentos de caráter geral e espe-
cífico de cada núcleo de estudo e as estratégias
mais adequadas para obter os melhores resulta-
dos na aprendizagem. Tal acordo será construído
e reconstruído em cada uma das etapas de pla-
nejamento, execução e avaliação curriculares.
Assim concebidos, os cursos serão estrutu-
rados em duas etapas: uma de formação geral,
com duração de quatro anos, e uma de forma-
ção específica, com duração de um ano.
A etapa de formação geral compõe-se de
dois núcleos curriculares que se articulam com
o objetivo de proporcionar aos cursistas a com-
preensão dos elementos construtivos da Edu-
cação Escolar Indígena e os conhecimentos ne-
cessários para a prática docente no Ensino Fun-
damental.
• O primeiro terá como objeto a reflexão acer-
ca dos processos pedagógicos que com-
põem a práxis escolar e os projetos socie-
tários que a orientam.
• O segundo enfocará o tratamento dos con-
teúdos das diversas áreas do conhecimento
que integram o currículo escolar indígena
do Ensino Fundamental.
Nessa etapa, portanto, serão aprofundados
os conceitos e os conteúdos necessários para
a formação desse novo agente de produção e
reprodução cultural denominado professor
indígena.
A etapa de formação específica será desen-
volvida no último ano do curso e terá como
enfoque principal o desenvolvimento de uma
pesquisa teórica e/ou de campo numa das
áreas das ciências que compõem o currículo
do Ensino Fundamental. Para tanto, os cur-
sistas farão a opção por uma das três termi-
nalidades: Ciências Matemáticas e da Natu-
reza; Ciências Sociais; ou Línguas, Artes e Li-
teratura, e nela desenvolverão o estudo
monográfico que será apresentado como tra-
balho de conclusão de curso.
A exemplo do que ocorre nos demais proje-
tos de formação de professores em Mato Gros-
so, os cursos de Licenciatura seguirão um ca-
lendário específico, composto por duas moda-
lidades letivas. A primeira, de caráter presencial
e trabalho intensivo, ocorrerá semestralmente,
coincidindo com o período de férias e recessos
escolares dos cursistas. A segunda, de ativida-
des cooperadas, nos períodos intermediários
entre uma etapa intensiva e outra, possibilitan-
do aos cursistas conciliar suas atividades docen-
tes nas escolas com as atividades do curso de
formação (preparo de seminários, leituras, pes-
54
quisas solicitadas etc.). Desse modo, a práxis
docente e o processo de formação ocorrerão si-
multaneamente, num contínuo exercício de
comunicação dialógica.
Temáticas centrais
do primeiro ciclo
O primeiro ciclo de estudos constará de oito
etapas letivas de caráter intensivo e de oito eta-
pas de estudos cooperados, pesquisa e ativida-
des docentes dos cursistas, desenvolvidas en-
tre uma etapa intensiva e outra.
Cada semestre letivo é composto por uma
das etapas letivas intensivas e uma de estudos
cooperados, e terá uma temática central sobre
a qual serão desenvolvidos os conteúdos cur-
riculares das três áreas de estudo.
Temáticas centrais
do segundo ciclo
O currículo do segundo ciclo de estudos es-
tará centrado na definição, desenvolvimento e
apresentação de um trabalho monográfico de
final de curso.
Para tanto, no final da oitava etapa letiva
intensiva, os cursistas, acompanhados pelos
docentes daquela etapa, definirão a área de
terminalidade (Ciências Matemáticas e da Na-
tureza; Ciências Sociais; ou Línguas, Artes e Li-
teraturas) a partir da qual cada um desenvolve-
rá a sua pesquisa e o seu trabalho final. No iní-
cio do nono semestre letivo, os cursistas, agora
agrupados por áreas de concentração, terão o
acompanhamento dos docentes que os orien-
tarão ao longo do desenvolvimento de todo o
trabalho monográfico.
Cada uma das áreas de terminalidade deci-
dirá sobre a sua estratégia de trabalho, definirá
seus temas e problemas de estudo, os objetivos
a serem alcançados, a metodologia de trabalho
e todos os demais itens que compõem a produ-
ção de uma monografia.
Ao término da nona etapa letiva intensiva,
o cursista deverá estar em condições de retornar
à sua comunidade e desenvolver as atividades
programadas, incluídas, aí, uma versão prelimi-
nar do trabalho de conclusão de curso.
A décima etapa intensiva será dedicada pri-
oritariamente à redação final da monografia, à
sua apresentação e apreciação e à avaliação fi-
nal do programa, dos cursos e dos cursistas.
Os estágios
supervisionados
Os estágios supervisionados compõem o
currículo dos cursos e serão desenvolvidos
nas unidades escolares em que os cursistas
atuam como professores. Integram as ativida-
des das etapas de estudos cooperados e con-
tam com o acompanhamento regular das
equipes de supervisão dos cursos. Tais equi-
pes atuarão regionalmente, conferindo unida-
de e sistematização aos trabalhos teórico-prá-
ticos desenvolvidos nas escolas, de tal forma
que a atividade docente dos cursistas e o seu
estágio supervisionado expressem-se em
práxis pedagógica.
Buscando maior integração entre as ativi-
dades vinculadas aos cursos de Licenciatura e
as demais atividades de ensino, pesquisa e ex-
tensão das universidades, as equipes de acom-
panhamento de estágio serão apoiadas por do-
centes e pesquisadores que, em seus proces-
sos de qualificação, optarem por desenvolver
estudos relacionados com a temática indíge-
nas.
Nessa perspectiva, beneficiam-se os profes-
sores indígenas e as suas comunidades, uma vez
que em seus estágios supervisionados poderão
contar com o acompanhamento regular e sis-
temático de docentes das universidades em
processo de qualificação; beneficiam-se tam-
bém as instituições, seus mestrandos e douto-
randos, por disponibilizarem excelentes cam-
pos de pesquisa e extensão universitária, asso-
ciando as suas atividades de campo com um
amplo e inédito programa de formação de pro-
fessores indígenas em serviço.
Para efeitos da integralização dos cursos, o
desempenho de cada cursista e os produtos exi-
gidos ao final do estágio supervisionado serão
avaliados com base no processo adiante descri-
to. De forma sintética podemos apresentar o
programa curricular dos cursos conforme qua-
dro a seguir.
55
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
Tabela 4
Quadro-síntese do programa curricular e respectivas cargas horárias
Semestre
Temática
Estudos
presenciais
(horas)
Estudos
cooperados
(horas)
Estágio
supervisionado
(horas)
Total (horas)
1
o
2
o
3
o
4
o
5
o
6
o
7
o
8
o
9
o
10
o
TOTAL
125
125
125
125
125
125
125
125
125
125
1.250
60
60
60
60
60
60
60
420
315
375
375
375
375
375
375
375
315
315
3.570
Processo de avaliação
A avaliação do Programa de Formação de
Professores Indígenas de Mato Grosso e dos seus
respectivos projetos e cursos é vista como uma
ação fundamental da atual política de educação
escolar. Trata-se da oportunidade de tomar de-
cisões sobre o encaminhamento dos trabalhos,
tendo em vista a construção do projeto político
e pedagógico de cada comunidade indígena.
No que diz respeito aos cursos de Licencia-
tura, tal estratégia não é diferente. A avaliação
permanente e continuada é condição funda-
mental para a tomada de decisões ao longo do
processo de desenvolvimento curricular e cons-
titui parte integrante dessa atividade.
A avaliação não deverá ser entendida como
um objeto de tensões e de inseguranças, mas
como um processo contínuo, em que todos os
envolvidos, em todas as atividades, são avalia-
dos (não apenas os cursistas e o resultado de
seus trabalhos, mas também os docentes dos
cursos, as etapas dos cursos, o projeto de for-
mação etc.). A avaliação constituir-se-á opor-
tunidade de observar e avaliar os avanços e os
empecilhos no decorrer do curso, possibilitan-
do, assim, definir as ações mais adequadas para
alcançar os objetivos propostos.
Formação dos docentes
que atuarão nos cursos
Um projeto com a amplitude e as caracte-
rísticas aqui apresentadas, além de recursos fi-
nanceiros e esforços coletivos para a sua for-
mulação, demanda uma ampla rede de profis-
sionais especializados para a sua implementa-
ção. Em virtude da especificidade dos cursos, é
preciso também que esses profissionais este-
jam dispostos a compartilhar suas experiênci-
as, reorientar suas práticas, enfim, adequar o
seu fazer pedagógico para atender a uma cli-
entela” especial, qual seja, 200 professores in-
dígenas de 20 diferentes etnias.
A formação dos profissionais que atuam
como docentes nos cursos de Licenciatura
ocorre sempre antes do início de cada período
de atividades presenciais e intensivas e é de-
nominada etapa de formação e planejamen-
to. Dela participam, além da equipe coorde-
nadora dos cursos, todos os docentes e asses-
sores que atuarão naquele semestre letivo. Têm
duração média de uma semana (40 horas) e vi-
sam a debater e a planejar os conteúdos (pre-
viamente definidos) e as estratégias a serem
adotadas naquele período letivo.
Gênese
Tempo
Espaço
Cotidiano
Sociedade
Água
Território
Autonomia
Monografia
Monografia
190
190
190
190
190
190
190
190
190
190
1.900
56
A coordenação do projeto acompanhará
permanentemente as atividades programadas
para as etapas intensivas, os estágios supervi-
sionados e os estudos cooperados, garantindo,
assim, o cumprimento das diretrizes gerais do
projeto. Portanto, a etapa de formação e plane-
jamento é parte fundamental do projeto de for-
mação, quer por responder às demandas ine-
rentes a cada período letivo, quer por formar e
disponibilizar em nossas instituições um qua-
dro de docentes e assessores especializados em
Educação Escolar Indígena.
Considerações finais
A criação de cursos superiores específicos e
diferenciados para a formação de professores
indígenas significa a oportunidade de empre-
ender um diálogo da interculturalidade. Repre-
senta a construção de novos marcos conceituais
mediante a compreensão da alteridade. Será um
novo espaço onde frutificará a investigação ci-
entífica e a preparação técnica.
A presença de 200 professores indígenas de
35 etnias na universidade significa o reconheci-
mento público da existência de outras identida-
des e de outras formas de saber que não apenas
a do “homem branco. Significa a oportunidade
de empreender o fortalecimento e a valorização
da auto-estima dos povos indígenas do Brasil,
fustigado pelo processo colonizador empreen-
dido nos últimos séculos aos ameríndios.
Será na perspectiva da problematização e da
investigação, com uma postura dialógica de en-
tendimento e compreensão dos modos de
inteligibilidade dos professores índios, que es-
taremos estabelecendo um novo paradigma na
forma de pensar a diferença, particularmente
no campo da educação escolar.
Serão os próprios professores indígenas for-
mados pelos cursos de Licenciatura novos ato-
res sociais com habilidades de redefinir as rela-
ções sociais de poder existentes, que estarão
tornando a universidade indígena uma realida-
de. O que se está garantindo hoje é a base para
esse percurso, ao se criarem os instrumentos
teóricos e analíticos que permitam a compre-
ensão dos conhecimentos do mundo ocidental,
sem violentar a cosmovisão e os valores
etnoculturais das diferentes etnias.
A criação, num futuro próximo, de um cen-
tro de excelência indígena é fundamental, na
medida em que será um espaço de luta e de es-
tabelecimento de relações recíprocas de valo-
res, onde as culturas estarão se fortalecendo
mutuamente e, principalmente, os povos indí-
genas estarão traçando, eles próprios, os seus
projetos societários de vida.
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cultural: interculturalidade como episteme.
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Escolas da floresta
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Projeto EBI – Educação Bi-
língüe e intercultural
. Quito/Equador: EBI/GTZ/DINEIB/
ENICEF/UNESCO, 1997.
57
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
A partir da necessidade de uma formação
universitária, explicitada pelos professores indí-
genas formados em Magistério pelo Programa de
Implantação de Escolas Indígenas de Minas Ge-
rais, propomos à Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) a elaboração conjunta de um
projeto para criação de um curso experimental,
específico e diferenciado, cujo eixo temático será
a Educação Intercultural e Bilíngüe.
O objetivo da proposta é viabilizar, por meio
do apoio dos órgãos competentes da UFMG, a
elaboração de um projeto de criação de um cur-
so de graduação específico e diferenciado, com
ensino presencial e a distância, para habilitação
do educador intercultural indígena.
Em dezembro de 1999, a Secretaria de Esta-
do da Educação de Minas Gerais concedeu o di-
ploma de Magistério (considerado Nível Médio
de Ensino) a 66 professores Xacriabá, Maxakali,
Pataxó e Krenak, que, desde 1997, nas suas al-
deias, já atuam em classes de 1ª a 4ª séries do
Ensino Fundamental.
Esses professores foram formados por um
programa da Secretaria de Educação, em convê-
nio com a UFMG, o IEF, a Funai, e com o apoio do
MEC, que teve por princípio básico a construção
teórica e conceitual conjunta entre formadores,
formandos e respectivas comunidades, a partir da
experimentação e da pesquisa, sempre com um
sentido de processo em direção à criação coleti-
va da chamada Educação Escolar Indígena.
Um dos aspectos mais significativos dessa
construção simbólica coletiva tem sido a auto-
ria indígena: o esforço para se imprimirem as
marcas das diferentes tradições étnicas nos pro-
dutos dessa escola. Os programas curriculares,
os projetos pedagógicos centrados nos elemen-
tos Língua Indígena e Terra, as diferentes formas
de organização escolar (em que tempos e espa-
ços correspondem à lógica da aldeia e não à da
cidade), o material didático (livros, cartilhas, jo-
gos, vídeos, discos, CD-ROMs, feitos pelos pró-
prios professores) e outros instrumentos peda-
gógicos (constantes reuniões com as respectivas
comunidades, professores de língua e cultura
indígenas contratados para atuar na escola, de-
vido a sua representação política/espiritual, e a
sua sabedoria lingüística ou medicinal), tudo isso
exemplifica uma prática que, na realidade, apon-
ta um caminho para uma forma mais eficiente
de conjugar tradições até agora conflitantes no
cenário escolar brasileiro.
As ciências e as artes, campos que se deline-
aram na chamada civilização ocidental por meio
da escrita alfabética, e os saberes que, no seio
mesmo dessa civilização, continuam a se desen-
volver e a se transmitir oralmente, podem se co-
locar em diálogo, desde que se criem instâncias
adequadas e produtivas.
Ao longo dos cinco anos de duração do cur-
so de Magistério indígena, uma metodologia ra-
dicalmente baseada na pesquisa e na experiên-
cia, a cada momento era repensada e reestru-
turada a partir de informações da prática auto-
ral dos professores. Suas técnicas de ensino, suas
conversas com as lideranças e com os velhos da
aldeia, suas práticas escriturais, seus contatos
interculturais (com os formadores, na maioria
docentes da UFMG; com técnicos de órgãos pú-
blicos; com os colegas de outras etnias; com edi-
tores e jornalistas etc.) são algumas das práticas
novas que a criação da escola indígena transfor-
mou em laboratório do conhecimento sobre a
interculturalidade e o plurilingüismo.
A formação universitária
para os povos indígenas na UFMG
Maria Inês de Almeida*
* Professora de Literatura Brasileira na UFMG. Coordenadora de formação dos professores Krenak e da área de Múltiplas Linguagens no
Programa de Implantação das Escolas Indígenas de MG, da SEEMG.
58
São, portanto, esses 66 professores indígenas
que reivindicam agora o direito de continuar essa
experiência em direção à criação de um novo
campo de estudos, qual seja a educação
intercultural bilíngüe, tão necessário, na nossa
opinião, para a consolidação de um paradigma
mais inclusivo para o desenvolvimento de uma
forma brasileira de produzir pensamentos váli-
dos, diante, por exemplo, da comunidade cien-
tífica internacional. É um sonho que, para ser
realizado, necessariamente, deverá ser incorpo-
rado pela universidade. Isso explica o enorme
interesse dos índios em se introduzirem nesse
espaço privilegiado da pesquisa científica.
Pretendemos que essa elaboração se dê como
um processo que, ao mesmo tempo, defina o for-
mato do curso, atividades, cronogramas e parce-
rias e seja em si mesmo parte da formação dos
professores. Isso se efetivará com a ajuda e a par-
ceria do Programa de Implantação das Escolas In-
dígenas da Secretaria de Estado da Educação de
Minas Gerais, aproveitando parte de sua progra-
mação e de recursos já previstos para a educação
continuada dos professores formados.
As aldeias ficam distantes de Belo Horizonte
e os índios são os professores das escolas, por-
tanto, não podem se ausentar de suas ativida-
des. A experiência piloto é a própria elaboração
do projeto, em que os índios serão seus princi-
pais agentes. Prioritariamente, será necessária a
aquisição de equipamentos de gravação de vídeo
e áudio para que eles procedam ao diagnóstico
em cada uma das aldeias, visando a definir os
temas a serem abordados durante a formação
universitária. O diagnóstico será uma atividade
de educação continuada, parte fundamental da
formação dos professores, tanto no que diz res-
peito ao domínio metodológico da pesquisa,
como dos instrumentos técnicos de registro. Há
uma grande necessidade e, portanto, uma ênfa-
se, na produção coletiva e original de material
didático para as escolas indígenas, o que justifi-
ca o investimento nessa área.
Uma questão política fundamental é a insta-
lação de telefones em todas as áreas, já que esse
será o instrumento principal dos módulos de
ensino a distância, viabilizando o contato dos
professores com a equipe da UFMG, no mínimo
semanalmente. Essa articulação deverá se dar
nos diversos níveis de poder público municipal,
estadual e federal.
Em março de 2001, houve um encontro de
representantes dos professores indígenas com
representantes da Secretaria de Educação e da
UFMG, e, por um dia inteiro, pensamos juntos
sobre como iniciar o debate em torno desse pro-
jeto. Consideramos de fundamental importân-
cia a construção processual dessa proposta, para
não corrermos o risco de perder a oportunidade
de criar algo novo: uma educação que seja fruto
das parcerias estabelecidas com os sujeitos in-
teressados e os professores da UFMG. Devemos
considerar a enorme dívida social que o Estado
brasileiro tem com essas populações e a deman-
da e busca de uma saída com verdadeira auto-
nomia por parte das nações indígenas, como
bem expressam as palavras de Marcos Krenak:
A comunidade não quer ver o branco, um en-
fermeiro sem conhecer a nossa realidade. A gen-
te quer que os próprios índios assumam o contro-
le, não só da saúde, mas da agricultura, para fa-
zer projetos com a Emater. Eu sou professor, mas
existem outras funções que eu deveria exercer, ou
um outro. Mas é preciso ter algum curso superior.
Meu irmão sempre fala, um dia eu quero ser ad-
vogado, ele quer fazer um curso, e quem sabe ele
vai ser mesmo um advogado e defender os direi-
tos nossos? Existem outras pessoas com diferen-
tes vontades também. Quantas vezes eu já che-
guei perto de um parente lá e fiquei ouvindo ele
falar: nós precisamos de um que lute por nós, que
corra atrás dos problemas que temos. A gente pre-
cisa do branco também, mas tem que ter alguém
que tenha conhecimento lá fora. Como é que eu
vou chegar num ministro da Cultura? Eu não te-
nho força, então, através de outros colegas bran-
cos, é que eu vou chegar lá.
Nós fizemos um projeto com o Ministério da
Agricultura que não foi adiante. Eles compraram
uns tratores que, quando quebra uma peça, tem
que buscar a tal peça lá num sei onde. Isso é por-
que não tem entre nós alguém que entenda, que
vai lá, mexe, conserta.
O branco chega lá e diz, vocês têm aqui um
projeto de tantos mil reais, o que vocês vão fazer
com o projeto? Nós vamos fazer plantio, eles vão
lá para comprar adubo, não sei mais o quê, coisa
que nem sequer precisa. Nós mesmos temos de
59
Experiência do Ensino Superior Indígena
SIMPÓSIO 4
conhecer, de tomar conta, de fazer da nossa ma-
neira. Um técnico agrícola, um índio mesmo, pode
ser um agrônomo, isto é que é importante para nós.
Ensino bilíngüe
A língua apresenta a oportunidade de um jogo
na vida social. Sua representação, como mais um
bem simbólico, entre outros possíveis, não quer
exatamente comunicar. Serviria antes para acres-
centar mais uma regra no jogo da comunicação.
Mesmo a ressonância de um dado, uma cifra,
como “180 línguas faladas, no Brasil, além do Por-
tuguês, veiculada pela mídia, modifica o contex-
to literário e cultural do país. Cria no leitor da in-
formação a expectativa de que novas formas apa-
recerão. Daí a possibilidade da presença de ou-
tras vozes, outros corpos, outros textos. Esse foi
um dos sentidos que norteou o Programa de Im-
plantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais,
ao investir na produção de livros em Krenak,
Pataxó ou Maxakali, por exemplo, dirigidos não
só às escolas indígenas em criação, mas também
ao público brasileiro. Esses textos, ícones, prefi-
guram a presença corporal de um novo inter-
locutor, que, no entanto, sempre esteve ali. Uma
nova reaproximação é tentada. E somente o de-
senvolvimento dos diferentes estilos garantiria a
relação intercultural, em vez do englobamento ou
da sobreposição de uma forma por outra.
O que, para nós, garante a relação intercultural,
porque se encontra na sua base, é o diálogo entre
as diferentes vozes. Um projeto de curso cuja
metodologia de ensino se baseie na produção tex-
tual e audiovisual, na autoria coletiva, no domínio
das técnicas escriturais, eletrônicas e digitais nas
suas diversas bases e instrumentos, não se justifi-
ca apenas pela necessidade de se viabilizar o aces-
so dos povos indígenas à universidade, mas, an-
tes, pela oportunidade de produzirmos, conjunta-
mente, novos conhecimentos e metodologias.
Augusto de Campos, poeta e tradutor, na
conferência Morte e vida da vanguarda: a ques-
tão do novo (1998: 161), dá uma pista que nos
ajuda a fundamentar o ponto de vista de nossa
proposta de ensino a distância:
Para mim, o fato novo para a produção artística
que, emergindo mais claramente na década de
80, vem reativando e potencializando as propos-
tas de vanguarda é precisamente a tecnologia.
[...] O que ocorre é a viabilização, num grau sem
precedentes, das linguagens e procedimentos da
modernidade – a montagem, a colagem, a
interpenetração do verbal e do não-verbal, a
sonorização de textos e imagens – em suma, a
multiplicação do processo artístico. [...] Outro
fator relevante é a maior autonomia que a
informatização pode proporcionar aos artistas.
À medida que estes possam ter a sua própria
miniestação computadorizada, ou em que se as-
sociem a ilhas de produção e edição de outros
artistas independentes para a realização de suas
experiências, terão muito melhores condições
para resistir à convencionalização dos meios de
informação, cujos implementos técnicos até
aqui lhes foram negados. E para insistir na des-
coberta de novas formas de o homem conhecer
e se conhecer, livres quer dos constrangimen-
tos da linguagem convencional quer das máqui-
nas de produção massificada pela ideologia do
lucro imediato.
Segundo esse autor, os textos produzidos a
partir das novas formas escriturais escapam ou
destoam de uma tradição milenar, do desenho
histórico que vem dos embriões mesopo-
tâmicos da escrita ou dos primeiros alfabetos
consonantais e vogais da Fenícia e da Grécia.
Uma outra tradição, além da escrita alfabética,
se coloca no espaço não-linear das novas
mídias, estimulando o espírito em outras dire-
ções, rumo ao espaço aberto de uma outra ló-
gica, a do a-racionalismo.
Por que essa discussão nos interessa, quan-
do trabalhamos com a formação dos professo-
res indígenas?
O que estamos propondo, de certa maneira,
se integra a um esforço das próprias vanguardas
artísticas, de transformar em vantagem as supos-
tas limitações de uma cultura que só tardiamente
ingressou no mundo da escrita. Acreditamos que
as comunidades indígenas – pelas dificuldades
de integração à sociedade brasileira, as quais lhes
são impostas por todas as instituições que as
cercam, inclusive escola e Estado (sistematica-
mente escriturais), e pela impressionante resis-
tência com que souberam conservar formas
(míticas, artísticas), linguagens, princípios mo-
rais e religiosos – possuem hoje um enorme ar-
senal de conhecimentos tradicionais pratica-
mente intocados pelas relações interculturais,
ainda que façam parte do enorme caldeirão em
que se faz a mestiçagem no Brasil.
Resumo
Focalizando a educação continuada, pós-magis-
tério indígena, no contexto acreano, em curso desen-
volvido e organizado pela Comissão Pró-Índio do
Acre, este trabalho objetiva uma reflexão sobre a par-
ticipação de treze professores de seis etnias
(Asheninka, Katukina, Kaxinawá, Manchineri,
Shawãdawa e Yawanawá) no desenvolvimento de um
projeto coletivo de pesquisa sobre a sala de aula e
suas extensões. Esse projeto é parte da disciplina de
Iniciação à Pesquisa. Neste trabalho, examina-se o
projeto coletivo por meio de uma metapesquisa, vi-
sando à derivação de implicações para o Ensino Su-
perior indígena no cenário brasileiro.
A pesquisa, foco da metapesquisa, é uma
etnografia escolar nas comunidades das diferen-
tes etnias envolvidas e será examinada a partir dos
olhares dos professores indígenas. São também
parte do desenho da pesquisa os olhares das co-
munidades, dos alunos de escolas indígenas, de
assessores não-índios em visita às aldeias e de téc-
nicos da Secretaria da Educação. Como a pesquisa
ainda está em andamento, não será possível foca-
lizar todos esses pontos de vista.
É importante apontar que os comentários que
faço são relativos somente ao contexto de pesqui-
sa focalizado, preparatório para o Ensino Superi-
or. A situação pode ser muito diferente com ou-
tros povos indígenas em outros lugares do país.
Como acontece em trabalhos etnográficos, não se
buscam generalizações. Busca-se, no máximo, uma
possibilidade de estabelecer convergências/diver-
gências entre as etnias focalizadas.
Na apresentação da metapesquisa, ou seja, da
pesquisa etnográfica em desenvolvimento pelos
professores indígenas, aponto a importância da
pesquisa do professor em sua formação, que, ge-
ralmente, ocorre em serviço durante o curso de
Magistério. Se há aí um início de trabalho, relevan-
te seria haver uma continuação no curso superior
indígena. Em resumo, propõe-se que a educação
do professor indígena vá além da educação do pro-
fessor não-índio (que, geralmente, não contempla
espaço para pesquisa). Por outro lado, há pelo me-
nos duas questões para discussão: a) o perigo de se
naturalizar” o fazer pesquisa pelo professor indí-
gena e a conseqüente obrigatoriedade da pesquisa
na formação do professor; e b) a “naturalização” do
Ensino Superior e o conseqüente peso colocado no
professor indígena para que faça um curso de gra-
duação Em outras palavras, o que é importante, do
ponto de vista da sociedade dominante, pode não
o ser, do ponto de vista dos professores indígenas.
Na obrigatoriedade decorrente da naturaliza-
ção de se fazer um curso superior, surgem duas per-
guntas: 1) Essa obrigatoriedade” não corre o risco
de apagar o pressuposto de que os professores in-
dígenas passaram pela Educação Indígena, educa-
ção essa que prescinde da escola? 2) Qual é a rela-
ção dessa obrigatoriedade” com o mito do
letramento ocidental?
Nem ciência, nem arte, talvez uma rede de
trocas simbólicas, em que, de posse dos meios
de comunicação, os diferentes povos, com suas
diferentes linguagens, poderão expressar seus
desejos.
A pesquisa na formação do professor
como parte da educação continuada
preparatória para o curso superior
Marilda C. Cavalcanti
Unicamp/SP
61
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIOSIMPÓSIO
SIMPÓSIO
55
55
5
AS ORGANIZAÇÕES
DE PROFESSORES NO BRASIL:
RELAÇÕES COM AS POLÍTICAS
PÚBLICAS E AS ESCOLAS INDÍGENAS
Jaime Costódio Manoel
Cristóvão Teixeira Abrantes
62
Resumo
A Organização Geral dos Professores Ticuna Bi-
língües (OGPTB) foi criada em 1986, com o objetivo
de congregar os professores ticunas, lutar pela implan-
tação de uma educação diferenciada nas escolas e pro-
mover ações que garantam o cumprimento dos direi-
tos constitucionais assegurados aos povos indígenas.
Por meio dos cursos promovidos pela OGPTB, 225 pro-
fessores concluíram o Ensino Fundamental, dos quais
170 terminaram o Ensino Médio com habilitação para
o Magistério em julho de 2001.
Apesar dos esforços do Ministério da Educação
no sentido de implantar uma nova política de Edu-
cação Escolar Indígena, os princípios de uma edu-
cação diferenciada ainda não fazem parte das polí-
ticas públicas locais. Com isso, os professores ticunas
ainda enfrentam uma série de dificuldades para con-
duzir suas escolas com maior autonomia pedagógi-
ca e administrativa, mesmo que a OGPTB tenha to-
mado várias providências no sentido de buscar mai-
or articulação com as prefeituras municipais, às
quais estão vinculadas as escolas indígenas.
Em 1983, um grupo de professores Ticuna
reúne-se na aldeia de Santa Inês para discutir
os problemas de suas escolas e de sua forma-
ção. Mais adiante, em 1986, um grupo maior de
professores reúne-se novamente, dessa vez para
fundar a Organização Geral dos Professores
Ticuna Bilíngües (OGPTB). Em 1993, a OGPTB
constrói na aldeia de Filadélfia, no município
de Benjamin Constant, o Centro de Formação
de Professores Ticuna-Torü Nguepata e, em
1994, cria seu próprio estatuto.
Hoje em dia, a OGPTB congrega cerca de 260
professores ticunas, que trabalham com 7.997
alunos de 1ª a 4ª séries, em 103 escolas distribu-
ídas nos municípios de Benjamin Constant,
Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá e
Santo Antônio do Içá, no estado do Amazonas,
região onde se concentra a maior parte da po-
pulação Ticuna que vive em território brasileiro.
A OGPTB tem por objetivos principais de-
senvolver projetos e programas destinados à
formação dos professores Ticuna, à preparação
de materiais didáticos específicos, organizar
propostas curriculares, além de outras ações
que possibilitem maior autonomia pedagógica
e administrativa das escolas. A OGPTB vem lu-
tando pela valorização da língua materna, da
arte e dos conhecimentos tradicionais; por uma
escola que participe da vida da comunidade, da
defesa da terra e da saúde do povo Ticuna; pelo
cumprimento dos direitos constitucionais as-
segurados aos povos indígenas.
Por meio dos cursos promovidos pela
OGPTB, 225 professores já concluíram o Ensi-
no Fundamental, dos quais 170 concluíram o
Ensino Médio (2º Grau – Magistério) em julho
de 2001. Em julho de 2002, mais 35 professores
concluirão o Ensino Médio.
O Curso de Formação de Professores Ticuna
foi criado por iniciativa dos professores mem-
bros da OGPTB, em face da inexistência, na re-
gião, de cursos que oferecessem uma formação
em serviço.
Forçados pelo descaso e pelo abandono dos
órgãos governamentais, que atuam direta ou indi-
retamente na região, e conscientes da necessida-
de de aperfeiçoar seus conhecimentos e sua práti-
ca pedagógica, os professores reuniram-se em 1993
para iniciar um projeto específico que os levasse à
conclusão do então 2º Grau, com habilitação para
o exercício do Magistério. Nesse tempo, 97% dos
professores não possuíam o 1º Grau completo, sen-
do que 30% do total exercia o Magistério há mais
de dez anos e 32% encontrava-se na faixa de cinco
a nove anos de serviço. Os professores estavam
convencidos de que, para transformar a escola
Ticuna, seria preciso investir na sua formação, de
A luta dos professores Ticuna
Jaime Costódio Manoel*
* Representante da OGPTB na Secretaria de Educação do Município de São Paulo de Olivença/AM; membro da equipe de supervisão escolar.
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas
SIMPÓSIO 5
63
modo que eles próprios fossem os principais agen-
tes dessa mudança.
Mas para levar adiante esse projeto, os
professores enfrentaram uma série de dificul-
dades. A proposta do curso sofreu diversas
modificações para se adequar ao modelo tra-
dicional exigido pelo Conselho Estadual de
Educação. O curso teve de ser dividido em
dois níveis e, para cumprir a carga horária
exigida, foram necessárias 15 etapas, realiza-
das no período das férias, ou seja, quase oito
anos de curso. Enquanto a formação dos pro-
fessores prosseguia, pois se tratava de uma
situação emergencial, a OGPTB esperava a
autorização do Conselho. O curso em nível de
1º Grau obteve essa autorização em 1996, e a
do 2º Grau saiu somente no ano 2000. Foram
anos de espera. Se de um lado havia um am-
plo movimento do Ministério da Educação
para estabelecer uma nova política de Educa-
ção Escolar Indígena no país, de outro, havia
um distanciamento de algumas instituições e
sérias dificuldades na compreensão desse
movimento e na adequação de suas estrutu-
ras internas.
Até hoje a mudança no quadro da Educa-
ção Escolar Indígena ainda constitui um pro-
cesso difícil de ser assimilado, especialmente
pelas prefeituras municipais, às quais estão vin-
culadas as escolas ticunas, com exceção de duas
que são estaduais.
Desde o início do projeto, a OGPTB vem lu-
tando para que as prefeituras reconheçam a im-
portância do Curso de Formação de Professores
Ticuna, a importância dos materiais didáticos
produzidos pelos professores, a importância de
um programa curricular diferenciado, a importân-
cia do Programa de Supervisão Escolar desenvol-
vido por uma equipe de professores, a importân-
cia da língua materna na escola, a importância da
presença do professor índio na escola, a impor-
tância de um concurso diferenciado, a importân-
cia de um pagamento em dia para os professores,
a importância de prédios escolares em condições,
entre outras tantas coisas importantes que fazem
parte da vida da escola indígena.
A OGPTB, durante esses anos todos, vem
cumprindo as determinações da legislação bra-
sileira com relação à Educação Escolar Indíge-
na. Seus esforços se deram também no sentido
de buscar sempre uma articulação com as pre-
feituras e suas Secretarias de Educação, assim
como com a Secretaria Estadual de Educação,
promovendo reuniões, encontros regionais e
outras ações.
Fica evidente, portanto, que a transforma-
ção dessa escola e a autonomia dos professores
não correspondem aos interesses políticos lo-
cais; na maior parte dos casos, os princípios da
Educação Indígena não foram incorporados às
políticas públicas locais. Assim, a implantação
de uma escola diferenciada, de qualidade, es-
pecífica e pluricultural, como consta dos tan-
tos documentos oficiais, dependerá não somen-
te do esforço e da luta dos professores índios
no sentido de melhorar sua formação, desen-
volver métodos e conteúdos específicos ou pro-
duzir materiais didáticos diferenciados, mas de
uma mudança mais rigorosa na postura das ins-
tituições às quais estão vinculadas as escolas
indígenas.
Dessa forma, os professores Ticuna esperam
que sua luta de tantos anos venha a ter o reco-
nhecimento que merece, e que suas escolas
possam existir como Escolas Ticuna.
Premiações da OGPTB
O Livro das Árvores
2º Prêmio no Concurso Experiência Viva,
com a participação de 15 países da Amé-
rica Latina e Caribe, realizado em Iquitos,
Peru, agosto de 2001. Promoção: Procasur,
Fida, CAF, Praia, Progenero.
Projeto Educação Ticuna
Prêmio Destaque do Programa Gestão Pú-
blica e Cidadania – 2000, conferido por
Fundação Getúlio Vargas e Fundação Ford.
O Livro das Árvores
Prêmio Melhor Livro Informativo e Prêmio
Melhor Projeto Editorial – 1997, conferi-
do pela Fundação Nacional do Livro Infan-
til e Juvenil.
64
Organização dos professores
indígenas de Rondônia e noroeste
de Mato Grosso: relações com
políticas públicas de educação e
as escolas indígenas
Cristóvão Teixeira Abrantes
Opiron/RO
Durante a década de 1970, foram realiza-
das as primeiras assembléias e a estruturação
de diferentes organizações indígenas no país,
visando à defesa das terras e dos direitos dos
povos indígenas. A partir da realização das
reuniões da União das Nações Indígenas
(UNI), em São Paulo, o movimento ganhou
corpo e visibilidade nacional. Essa organiza-
ção conquistou e reuniu grande número de
povos indígenas em defesa de seus direitos
culturais e territoriais tradicionais. A partir da
UNI-Norte, outras organizações indígenas de
caráter regional ou dos povos indígenas co-
meçaram a surgir. É na mesma década de 1970
que despontam as primeiras tentativas de
construção de uma educação escolar sintoni-
zada com os interesses e as especificidades
dos povos indígenas (Silva, 1998: 19).
No final da década de 1980, surgem as pri-
meiras organizações de professores indígenas
em diversas regiões do Brasil, com a intenção
de discutir a implantação de uma política na-
cional específica para a Educação Escolar In-
dígena, visando à melhoria da qualidade da
educação diferenciada para suas comunida-
des. Na ocasião, era perceptível a necessida-
de e a importância de uma mudança nos mo-
delos de escola implantados pelos órgãos go-
vernamentais e não-governamentais (ONGs)
em suas aldeias. Os currículos escolares não
correspondiam à realidade local, ignoravam
a vida cultural do povo e não levavam em con-
sideração os seus conhecimentos e seus pro-
cessos próprios de ensino e aprendizagem,
construídos a partir da experiência milenar,
inerentes às culturas ameríndias.
Em busca de alternativas viáveis que so-
lucionassem os problemas, foram organiza-
dos os primeiros encontros regionais de pro-
fessores, visando ao intercâmbio cultural, à
troca de experiências e a uma sistematização
da proposta que resolvesse a atual situação.
Em várias regiões do Brasil, começaram a
acontecer os Encontros de Professores Indí-
genas, ou Encontros de Educação Escolar In-
dígena, propiciando o debate com ênfase na
implantação de uma escola ideal e adequada
à realidade dos povos indígenas. Os professo-
res não encontravam nas escolas implantadas
em suas aldeias uma resposta às suas expec-
tativas, portanto estavam dispostos a reagir
diante do contexto acima citado.
A Coordenação da União dos Povos Indí-
genas de Rondônia, Noroeste de Mato Grosso
e Sul do Amazonas (Cunpir), juntamente com
outras instituições que compõem o Núcleo de
Educação Escolar Indígena de Rondônia
(Neiro), criou todas as condições para a reali-
zação da I Assembléia de Professores Indíge-
nas de Rondônia, em outubro de 1999. Esse
evento resultou do não-cumprimento da rea-
lização da segunda etapa do Curso de Forma-
ção dos Professores – Magistério Indígena –
Projeto Açaí, planejada para os meses de ju-
nho/julho daquele mesmo ano. Obviamente,
isso gerou um clima de angústia e temor en-
tre os professores, principalmente quanto à
perspectiva de a Secretaria de Estado de Edu-
cação não realizar as etapas previstas ou
quanto à possibilidade de interrupção do re-
ferido Projeto. Em vista disso, pode-se afirmar
que as primeiras reflexões em torno da neces-
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas
SIMPÓSIO 5
65
sidade de institucionalização do movimento
de professores indígenas em Rondônia acon-
teceram nesse evento.
No estado de Rondônia, a organização dos
professores se efetiva a partir do momento em
que eles têm a oportunidade de se encontrar
durante a realização dos cursos de formação
inicial.
Em março de 1999, ocorreu o I Encontro de
Professores Indígenas de Rondônia e Noroes-
te de Mato Grosso, deliberando a criação da
Organização de Professores Indígenas de
Rondônia e Noroeste de Mato Grosso (Opiron),
o que representa um marco importantíssimo
na história da Educação Escolar Indígena no
Estado. A partir da realização da primeira as-
sembléia, adotaram a sistemática de realiza-
ção dos encontros (duas vezes ao ano) confor-
me programação das etapas do Curso de For-
mação Inicial – Projeto Açaí, executado pela
Secretaria de Estado de Educação em parceria
com organizações governamentais e não-go-
vernamentais indígenas e indigenistas que fa-
zem parte do Núcleo de Educação Escolar In-
dígena de Rondônia.
Nesse cenário político, a trajetória que os
professores indígenas de Rondônia percorrem
desde o reconhecimento por parte da Secreta-
ria de Educação, até a efetivação de seus con-
tratos, é marcada pelo preconceito historica-
mente estabelecido nas relações da população
nacional com os povos indígenas. Assim, ta-
chados de incapazes por essas instâncias, es-
tão provando o contrário do que deles dizem,
mostrando que há formas diferentes de ensi-
nar e aprender e que a seleção dos conteúdos
não deve partir das Secretarias. Essa consciên-
cia é resultado de um processo de muito tra-
balho e luta dos professores, mediante a par-
ticipação no movimento de professores.
O sucesso da escola indígena está intima-
mente ligado aos cursos de formação de pro-
fessores, uma vez que, por meio deles, os pro-
fessores terão instrumentos para promover
uma política de educação diferenciada e de
qualidade para as suas escolas. Em
contrapartida, sabe-se que nunca foi interes-
se do Estado assegurar essa qualidade e mui-
to menos o diferenciamento de modelo, já que
os cursos são promovidos pelo Estado, que
não pretende, como representante de um gru-
po hegemônico no poder, fortalecer e instru-
mentalizar grupos minoritários” capazes de
construir uma contra-hegemonia. Por isso, a
importância da participação dos professores
na escolha e seleção dos quadros de profissi-
onais que vão trabalhar nos cursos de forma-
ção de professores indígenas.
A política de educação implementada pe-
las Secretarias não tem considerado o fato de
a escola representar um elemento novo na or-
ganização social dos povos indígenas de
Rondônia, e os atuais modelos de atendimen-
to têm interferido e modificado hábitos cul-
turais do sistema tradicional de educação,
obrigando-os, de certa forma, a viverem em
função da escola, acarretando, portanto, uma
inversão de papéis – em vez de a escola ser
adaptada à vida do povo, é exatamente o con-
trário, o povo é que tem de se adaptar à vida
da escola.
Todos esses fatores têm contribuído para
que a escola se apresente como um corpo es-
tranho no interior das aldeias. A escola de-
veria ser, então, um espaço para a discussão
pelos índios da sua situação presente e das ex-
periências de vida às quais eles estariam ex-
postos devido ao contato” (Capacla, 1995: 58).
Diante da inoperância e da negligência
histórica dos órgãos governamentais respon-
sáveis pela implementação das políticas pú-
blicas para a Educação Escolar Indígena, foi
necessário viabilizar mecanismos e instânci-
as legais que garantissem às sociedades indí-
genas a participação nas decisões relaciona-
das à educação escolar para o seu povo. Des-
sa forma, foi surgindo a necessidade objetiva
de criar organizações de professores indíge-
nas e, conseqüentemente, fluindo o processo
de construção das políticas para suas escolas.
Acredita-se que a organização e a efetiva
participação dos professores juntamente com
suas comunidades vão, de certa maneira, de-
cidir sobre as políticas públicas de educação.
Por meio da mobilização dos professores e
criação da Opiron, passaram a perceber que
as decisões sobre Educação Escolar Indígena
não são meramente técnicas, mas, sobretudo,
66
políticas. Por isso, faz-se necessário se orga-
nizar para participar e decidir.
Durante a realização das assembléias, os
professores foram percebendo que seria pos-
sível a criação de mecanismos de participação,
ainda que em sistemas tão fechados e cristali-
zados, nos quais as decisões mais importantes
ficam nas mãos de tão poucas pessoas.
Mesmo com a criação da Opiron e o reco-
nhecimento dos professores da necessidade
de participar das discussões acerca da educa-
ção escolar, a presença e a participação indí-
genas (professores e lideranças) nas discus-
sões em torno da educação ainda têm sido
muito inexpressivas. Esse fato ocorre devido
à dificuldade que os professores enfrentam
para se deslocar de suas aldeias até a cidade,
pelo difícil acesso, e às limitações financeiras
e de apoio logístico. Por outro lado, essa situ-
ação vem sendo mantida pelas administra-
ções como estratégia de exclusão das popu-
lações indígenas do processo de construção
das políticas públicas. Não estou defenden-
do a construção e a pavimentação de estra-
das ligando as aldeias aos centros urbanos
nem o paternalismo estatal no sentido de doar
meios de transportes para que as lideranças e
os professores possam participar do proces-
so de construção das políticas públicas. Mas
defendo uma política séria, de forma que os
beneficiados possam participar das decisões
inerentes à vida do seu povo ou comunidade.
Finalmente, a estratégia de organização dos
professores indígenas consiste no caminho
para a autonomia, porque prima pela cons-
trução de uma nova relação dos povos indí-
genas com a sociedade envolvente, em que os
professores e as comunidades têm uma fun-
ção estratégica fundamental de agente de
transformação e construção das políticas de
Educação Escolar Indígena, na busca da me-
lhoria da qualidade de vida de seus respecti-
vos povos. O impacto gerado, embora gra-
dativo, será a possibilidade da autogestão do
trabalho de educação, reduzindo a dependên-
cia de intervenções externas e, por fim, sen-
sibilizados com seus problemas e conscien-
tes de suas necessidades e demandas sociais,
atuarão sem perder de vista seus valores cul-
turais específicos. Essa autonomia é extensi-
va a qualquer comunidade, uma vez que não
só os povos indígenas são violados com as
políticas públicas.
Para se fazer uma educação verdadeira-
mente indígena, com características próprias
de cada povo em Rondônia, é indispensável a
participação efetiva de todos os segmentos
envolvidos, sobretudo dos professores e de
suas comunidades, para que se possa formu-
lar uma política estadual que venha contribuir
para a construção de uma educação diferen-
ciada e de qualidade para os povos indígenas.
Como as organizações dos professores in-
dígenas podem intervir nos órgãos responsá-
veis pela execução das políticas de educação
que interferem nas relações sociais do grupo
e nos processos próprios de elaboração dos
seus conhecimentos?
Mesmo reconhecendo o esforço e a serie-
dade nas intenções dos envolvidos direta e in-
diretamente na elaboração do documento Re-
ferenciais Curriculares Nacionais para a Esco-
la Indígena (RCNEI), construído a partir de
uma ampla discussão, com a participação de
representantes indígenas e orientado por es-
pecialistas do Comitê Nacional de Educação
Escolar Indígena, ainda gostaria de questio-
nar se há pistas que apontem para efetivas
mudanças, de forma que os povos indígenas
estejam participando da implementação e da
construção de um modelo de educação que
se aproxime dos valores indígenas, no senti-
do de estar se construindo uma educação ver-
dadeiramente diferenciada, que leve em con-
sideração os processos próprios de ensino e
de aprendizagem e os conhecimentos dos
povos indígenas?
As atuais propostas de formação inicial
apresentadas pelas instituições de educação
para os povos indígenas correspondem aos re-
ais interesses das comunidades indígenas?
Elas têm contribuído para o processo de cons-
trução da autodeterminação e resgate da
identidade dos povos indígenas?
Do ponto de vista avaliativo, esses ques-
tionamentos devem fazer parte das reflexões
de encontros e de todos os momentos em que
professores e assessores estejam repensando
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas
SIMPÓSIO 5
67
a Educação Escolar Indígena. De fato, com
essa prática de reflexão e avaliação constan-
tes, o risco de errar será, potencialmente,
menor.
Pelo fato de a Educação Escolar Indígena,
como modalidade de ensino, apresentar sin-
gularidades educativas, heterogeneidade ét-
nica e, ainda, em função da problemática le-
vantada, trabalha-se com a hipótese de que o
modelo de Educação Escolar Indígena im-
plantado pelos órgãos governamentais e não-
governamentais para os povos indígenas não
tem contemplado o universo socioeconômico,
cultural e lingüístico desses grupos, anulan-
do a construção de uma escola com um perfil
indígena. Pelo contrário, vem desagregando
progressivamente os processos próprios de
ensinar e aprender desses povos.
Exatamente por tratar-se de uma institui-
ção responsável pela socialização do saber
formal, em que há seleção desses saberes, par-
timos do pressuposto que os impactos causa-
dos nos valores culturais desses povos se ori-
ginaram, principalmente, da escola. Nesse
sentido, cabe às organizações de professores
indígenas estabelecer novas relações com es-
sas instituições responsáveis pela norma-
tização e implementação das políticas públi-
cas de Educação Escolar Indígena. Penso que
ao estabelecerem essa relação com os seus
parceiros diretos e indiretos – governamen-
tais e não-governamentais – poderão discutir
com autonomia e autoridade uma educação
escolar pautada em suas diferenças e espe-
cificidades.
Bibliografia
ABRANTES, Cristovão Teixeira.
A educação escolar in-
dígena em Rondônia e o processo educacional dos
Cinta Larga
: uma abordagem sociocultural. Monografia
apresentada em curso de especialização. Porto Ve-
lho: UNIR, 1998.
CAPACLA, Marta Valéria.
O debate sobre a educação in-
dígena no Brasil (1975-1995):
resenhas de teses e
livros. Brasília/São Paulo, MEC – Mari/USP, 1995.
SECCHI, Darci (Org.).
Ameríndia
: tecendo os caminhos
da Educação Escolar. In: CONFERÊNCIA AMERÍNDIA
DE EDUCAÇÃO. Cuiabá: Seduc/MT e CEEI/MT, 1998.
SILVA, Rosa Helena Dias da.
A autonomia como valor e
a articulação de possibilidades:
um estudo do movi-
mento dos professores indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre, a partir dos seus encontros anuais.
Abya – Yala, 1998.
PAINÉIS
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENAEDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENAEDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
71
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
11
11
1
A QUESTÃO INDÍGENA
NA SALA DE AULA
Ana Vera Macedo
Rosani Moreira Leitão
Betty Mindlin
José Ribamar Bessa Freire
72
A infatigável luta pelos direitos indígenas,
marcadamente a partir da década de 1970, re-
sultou na consagração dos direitos constituci-
onais indígenas, trazendo em seu bojo aqueles
que se referem à Educação Indígena.
1
A Cons-
tituição Federal de 1988, a LDB, e a farta legis-
lação que tem sido produzida estabelecendo
parâmetros para que aqueles direitos assegura-
dos se tornem realidade têm sido os nortea-
dores de muitos dos cursos de formação de pro-
fessores. Evidentemente, não podemos deixar
de lembrar experiências bem-sucedidas, ante-
riores àquelas conquistas formais, como o tra-
balho realizado com os Tapirapé, como a for-
mação de professores índios do alto Rio Negro
e também a atuação da Comissão Pró-Índio do
Acre, entre outras.
O respeito às diferenças, lema tão valoriza-
do por muitas instâncias que se têm envolvido
com a Educação Indígena, é, muitas vezes, difí-
cil de ser atingido. Apesar das explicitações, le-
gislação, RCNEI, divulgação de resultados de
projetos ligados à educação, podem-se ainda
encontrar em diferentes espaços interações en-
tre índios e não-índios que não correspondem
às diretrizes que, no papel, nos parecem tão
acertadas.
Desde 1995, tenho sido convidada a minis-
trar cursos de formação para professores índi-
os e também para professores não-índios que
trabalham nas aldeias. Amapá, Maranhão e in-
terior do estado de São Paulo têm sido os locais
onde tenho atuado com maior freqüência.
A busca na concretização de alguns princí-
pios tem pautado minha atuação nos diferen-
tes cursos ligados à História e à Alfabetização.
Entre eles, os mais constantes, porque funda-
mentais, têm sido:
• o interesse em pesquisar e conhecer as
etnias envolvidas com os cursos;
• a procura de fontes de difícil acesso para
aqueles povos;
• o planejamento cuidadoso;
• a utilização de metodologias pedagógicas
modernas;
• a preocupação em possibilitar compara-
ções, criações, complementações e espaços
para as mais diversas participações.
Para maior clareza na aplicação dos princí-
pios anteriormente citados, exemplificarei, es-
tabelecendo alguns recortes e apresentando
dados extraídos de dois cursos de História para
professores índios que ministrei nos anos de
1997 e 1999.
2
Cursos de formação de
professores índios em História:
experiências e considerações
Ana Vera Macedo
Mari/USP
1
Para maiores informações sobre esse processo, ver Aracy Lopes da Silva,
Educação para a tolerância e povos indígenas no Brasil
, documen-
to interno do Mari/USP, 4º Relatório Científico (1998-1999), volume II, Fapesp (Processo nº 94/3.492-9).
2
Curso Supletivo para professores indígenas do Estado do Maranhão, patrocinado pelo Grupo de Educação Indígena da Secretaria de Educa-
ção daquele estado (entre 14/4 e 2/5/1997), objetivando a capacitação em História do Brasil para a posterior realização de exames e
certificados de conclusão do Ensino Fundamental. Participação de 85 professores Guajajara, Canela, Gavião, Timbira e Krikati. Locais:
Imperatriz, Santa Inês e Barra do Corda. O convite foi efetuado pela Secretaria de Educação do Maranhão ao Mari/USP, por indicação da
Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do MEC.
Curso de Formação de Professores Índios das etnias Kaingang, Terena e Krenak, realizado na Terra Indígena de Icatu, município de Braúna,
interior do estado de São Paulo, em dezembro de 1999, patrocinado pelo MEC. Atendidos professores das Terras Indígenas de Icatu e
Vanuíre (município de Arco-Íris).
73
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
O interesse em pesquisar e
conhecer as etnias envolvidas
nos cursos
Como os convites a que se referem os cur-
sos de História representavam novas experiên-
cias e os primeiros contatos com etnias diferen-
tes daquelas que eu já conhecia, a pesquisa tor-
nava-se de fundamental importância, constitu-
indo-se na primeira providência sobre a qual se
construiria toda a elaboração futura. A possibi-
lidade de recorrer à bibliografia e aos pesquisa-
dores do Mari/USP representava uma certa fa-
cilidade. Algumas publicações, como Aconteceu,
do Instituto Socioambiental, trazem referênci-
as bastante recentes e diversificadas sobre a si-
tuação de diferentes povos indígenas brasilei-
ros. Acrescente-se, ainda a respeito dessa obra,
o conjunto de notícias atuais recolhidas em di-
ferentes jornais do país, fornecendo a base ini-
cial sobre a qual as pesquisas eram construídas.
Outras publicações, ainda gerais, ajudavam no
início da pesquisa.
O prazer em pesquisar e, agindo como de-
tetive, seguir as pistas deixadas por diferentes
autores, favorece a construção de um conheci-
mento que proporciona certa segurança e faci-
lita a escolha dos conteúdos que devem ser tra-
balhados. Tanto no curso realizado no
Maranhão como no de São Paulo, tal procedi-
mento facilitou a compreensão das realidades
vividas pelos professores índios, que viriam a
ser alunos daqueles cursos. A pesquisa referen-
te à história Kaingang, entretanto, foi marcada
por pesquisa mais abrangente, visto que havia,
ao contrário do que acontecera no Maranhão,
um recorte histórico mais preciso: os Kaingang
e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil. Aqui, além da formação dos professores
índios, e diante da situação extremamente difí-
cil das comunidades de Icatu e Vanuíre, convi-
ve-se com uma situação social que apresenta
sérios agravantes. Discriminados, sofrendo co-
tidianamente as conseqüências da difícil vida
de bóias-fria e dos preconceitos correntes nas
mais diversas situações, pensou-se em utilizar
a reescrita da história do início do século XX,
como explicaremos adiante, para possibilitar
uma revisão do papel daqueles povos indígenas
e sua participação na história regional. A possi-
bilidade da utilização de um livro, resultado de
textos históricos reescritos sob a ótica daque-
les povos indígenas, poderia servir como ins-
trumento para uma revisão e reavaliação da his-
tória estudada nas escolas estaduais do oeste
paulista.
A procura de fontes de difícil
acesso para os professores
índios de diferentes etnias
O rastreamento bibliográfico leva a novas
fontes. A consulta a teses de Mestrado e Douto-
rado recentes proporciona material rico, com
novos e modernos enfoques teóricos. Entretan-
to, como tornar acessíveis os resultados de lon-
gas pesquisas? Que conteúdos destacar, esco-
lher, trabalhar? Como criar estratégias ou pro-
cedimentos de maneira a garantir a apropria-
ção daqueles conteúdos pinçados em meio a
tantos conhecimentos?
Evidentemente, o trabalho ficou muito en-
riquecido com a possibilidade de se utilizar te-
ses de Doutorado cujos conteúdos estavam di-
retamente ligados aos públicos dos cursos do
Maranhão e de São Paulo, como as de Perrone-
Moisés (1997) e Andrade (1990); Souza Lima
(1992) e Pinheiro (1992), respectivamente. Es-
sas teses constituíram um desafio que mereceu
atenção e muito preparo. A linguagem precisa
e requintada dos autores requeria adaptações
e traduções” para que se tornassem acessíveis
aos professores índios que têm na língua por-
tuguesa sua segunda língua. Reescrever alguns
trechos que nos pareciam os mais instigantes e
representavam acréscimos ao conhecimento
histórico que os alunos possuíam se tornou um
dos grandes motivadores da preparação do cur-
so. Frases curtas, diretas e claras, cujo entendi-
mento se tornava imediato, não necessitando
de explicações suplementares, caracterizaram
o material elaborado para a utilização nos cur-
sos. O entendimento e a compreensão do ma-
terial evidenciaram o acerto da medida.
O mesmo trabalho foi realizado no curso
de Icatu. Aqui, além das teses, visamos a ofe-
74
recer para reflexão textos escritos no início do
século XX, época da construção da Estrada de
Ferro Noroeste do Brasil.
Os objetivos que nos moviam e a demons-
tração da presença e da força Kaingang na his-
tória regional do oeste paulista constituíam a
diretriz das escolhas. A opção por temas, recor-
tes, enfoques mostra, mais uma vez, o papel e
as motivações que nortearam a ação a ser de-
senvolvida nos cursos.
O planejamento cuidadoso
À medida que as leituras e as escolhas de
temas e textos caminhavam, o planejamento ia
sendo traçado. Nele, os conteúdos e as estraté-
gias caminham juntos, pois se pensava que a um
passo, a uma ação deveria suceder outra que
dependesse dos conhecimentos e das ações
anteriores, resultando, assim, em processo co-
eso, lógico e coerente.
Se tomarmos uma das atividades aplicadas
nos diferentes cursos, poderemos, por meio de
um exemplo, concretizar a assertiva anterior.
Uma das primeiras atividades consistiu na lei-
tura de um pequeno texto, que foi realizada aos
poucos, parágrafo por parágrafo. Lido um tre-
cho, as idéias principais eram “traduzidas
oralmente, em poucas palavras. Como, geral-
mente, aqueles professores com os quais tra-
balhei seguem um modelo de escola tradicio-
nal, em que o professor é o centro do saber e
as respostas esperadas, muitas vezes, devem
ser elaboradas repetindo ipsis litteris o texto, a
solicitação de que os alunos dos cursos não uti-
lizassem as mesmas palavras do texto para
traduzi-lo” já se tornava um desafio. Ao final
da leitura, foram levantados alguns problemas,
pequenos e simples, porém não explicitados
no texto. Os participantes percebiam, aos pou-
cos, que suas sugestões, deduções e contribui-
ções tinham de brotar da capacidade de refle-
xão. Sendo todas as contribuições muito valo-
rizadas, anotadas, comentadas, estimuladas,
foi surgindo uma interação respeitosa e muito
criativa.
Uma nova estratégia foi proposta para que
as idéias principais do texto, agora apropriado
pelo grupo, fossem aplicadas em uma nova si-
tuação: os professores, individualmente ou em
duplas, deveriam elaborar histórias em quadri-
nhos com as idéias principais do texto que, ao
ficarem prontas, seriam afixadas na classe. Li-
das e comentadas, deram origem a brincadei-
ras, sugestões, comentários.
Ao dar continuidade ao trabalho, partia-se
da experiência e do conhecimento anteriores
para que novos desafios fossem colocados para
a ação pedagógica.
É certo que, muitas vezes, se verificava que
o planejamento, mesmo cuidadoso, precisava
ser revisto e reorientado diante das respostas e
das contribuições dos professores.
A utilização de metodologias
modernas
A simples leitura nem sempre possibilita um
pensar criativo e reflexivo. É preciso encontrar
caminhos para que os textos, uma vez entendi-
dos, propiciem momentos de reflexão, acrésci-
mos e trocas entre os participantes.
Durante os cursos do Maranhão e de São
Paulo, os desafios colocados por diferentes es-
tratégias seriam o caminho escolhido para que
se tornasse possível a apropriação daqueles tex-
tos e dos conteúdos selecionados. Leituras
infindáveis de textos ou mesmo aulas
expositivas não provocam o entusiasmo, a ale-
gria de descobrir e criar, a colaboração e os
adendos que os conhecimentos dos professo-
res podem proporcionar.
Dentre as inúmeras estratégias pedagógicas
aplicadas naqueles cursos, algumas se destacam
por se terem revelado ricas quanto a sua execu-
ção e a seus resultados, como, por exemplo, a
comparação entre diferentes mapas. Tanto nos
três pólos onde foram realizados os cursos no
Maranhão como no interior de São Paulo, ao
serem expostos, lado a lado, os mapas de Curt
Nimuendaju (1987) e outro, atual, que retrata a
situação das Terras Indígenas Brasileiras (ISA,
1997), o choque se tornou evidente.
A comparação entre mapas falava por si. As
perdas, inúmeras, principalmente aquelas que se
referiam às terras e aos povos, gritavam. O pri-
meiro deles, que representava a ocupação do
Brasil pelos povos indígenas desde sua descober-
75
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
ta até 1944, as diferenças lingüísticas e, princi-
palmente, as migrações e o desaparecimento de
inúmeras etnias, mostrava dados claros, eviden-
tes. Instados a revelar suas conclusões diante da
observação, à medida que alguns expunham suas
conclusões, outros descobriam outras, que eram
acrescentadas, no quadro, às primeiras. Um
grande número de deduções pôde ser escrito por
todos. Começava-se assim um modus operandi
que se tornaria a tônica das aulas. Aqui, mais um
dos princípios que norteavam o trabalho era
vivenciado: todas as conclusões, os raciocínios,
as relações, as deduções tornar-se-iam conteú-
dos que todos deveriam anotar, por serem
originais e únicos, produto de reflexões
bem fundamentadas pelos alunos e pela
professora.
Ainda trabalhando com mapas em
Icatu, sugeri que os professores comparas-
sem dois mapas da mesma região, porém
com datas diferentes. À solicitação de que
estabelecessem semelhanças e diferenças
entre os mapas, logo ficou evidente o que
ocorre costumeiramente com os mais di-
ferentes alunos – índios ou não-índios. A
formulação das semelhanças ou das dife-
renças pode ser rasteira, pobre. Ao aceitar
respostas como, por exemplo, em tal mapa
os Kaingang tinham muita terra e naquele outro
não, o resultado do exercício exigia apenas o que
estava evidente e não grandes elaborações. Ao
serem instados a explicar o não, os professores
precisavam pensar, relacionar, elaborar, deduzir
as causas da diminuição do território.
Por diversas razões, alguns textos eram ne-
cessariamente longos, e sua simples leitura
desmotivaria os alunos. Uma das maneiras uti-
lizadas para minorar o problema consistiu em
dividir trechos do texto entre diferentes grupos.
A cada grupo se encarregava de ler seu trecho,
previamente estipulado, entendê-lo e desenhá-
lo, em seqüência, transportando para o dese-
nho os conhecimentos e as idéias do trecho sob
sua responsabilidade. Acabados os trabalhos
dos diversos grupos, os “filmes” foram apresen-
tados, e o longo texto foi, dessa maneira, en-
tendido e apreendido por muitos. Os desenhos,
durante alguns dias, ficaram expostos, e era
possível observar que, por diversas vezes, alu-
nos de diferentes grupos aproximavam-se e tro-
cavam informações.
A observação de gravuras e fotos foi outro
recurso utilizado para que professores obser-
vassem, inferissem, concluíssem e percebessem
que a capacidade de refletir é a grande aliada
nas descobertas e, conseqüentemente, na apre-
ensão de conhecimentos históricos.
No curso ministrado em Icatu, São Paulo, a
gravura de uma casa Kaingang foi apresentada.
Diante dela, perguntas foram sendo feitas com
o objetivo de dirigir o olhar e estimular as de-
duções.
Alfred Métraux. “The Caingang”. In: Steward, Julian H.
(Editor),
Handbook of South American Indians
.
New York, 1963, p. 447.
Para melhor entendimento dessa ação,
exemplifico com algumas perguntas que foram
respondidas pelos professores: De que mate-
rial seria essa construção? Como aquela cons-
trução se mantinha em pé? Por que estaria vol-
tada para essa direção? Essa construção seria
resistente? Seria a moradia permanente ou
provisória?
As respostas precisariam ser fundamentadas
e, no momento em que os porquês iam surgin-
do, muita história Kaingang também brotava.
O registro nos cadernos, aos poucos, tornava-
se evidente, era fonte de saber, de relembrar.
O passo seguinte consistiu na inversão dos
papéis: os professores índios elaboravam as per-
guntas para que fossem respondidas por mim
que, nem sempre, tinha o conhecimento tão
76
amplo que pudesse solucioná-las. Os professo-
res, então, explicavam com os conhecimentos
que os mais velhos, tantas vezes, lhes haviam
relatado. Quanta oportunidade para aprender!
À medida que os trabalhos iam sendo pro-
postos, a percepção de que o respeito aos mo-
dos de ser, agir e pensar e aos resultados que as
diferentes atividades faziam surgir criaram uma
interação positiva, alegre, aberta. Problemas
criados a partir daqueles textos eram colocados
e as respostas tinham de ser encontradas por
meio do raciocínio. A elaboração de problemas
apresentados aos colegas, a observação de fo-
tos, as conclusões pessoais ou grupais que se
transformavam em conteúdos anotados por to-
dos, o relato de situações que determinados
conteúdos traziam à luz, a descoberta de que
se é capaz de pensar e que o próprio pensamen-
to é assunto a ser considerado e refletido por
todos criavam, aos poucos, uma participação
ativa e interessada.
A difícil situação em que vivem Kaingang,
Terena e Krenak, moradores de Icatu e Vanuíre,
muitos deles trabalhando como bóia-fria nas
usinas de açúcar da região e recebendo salários
irrisórios, trazem em sua esteira a desesperan-
ça, a discriminação e o preconceito dos não-
índios dos municípios vizinhos. Como um sim-
ples curso de História poderia contribuir para
a mudança possível da situação? Vistos com
desdém, desrespeitados e cansados de esperar
por mudanças que, muitas vezes prometidas,
nunca chegam, os professores receberam o cur-
so de formação como mais uma das atividades
das quais participariam, mas que, como já
acontecera anteriormente, não teria conseqü-
ências ou resultados palpáveis.
Um dos objetivos do curso era a leitura de
textos históricos do início do século XX e sua
reescrita pelos professores índios, como fora
estabelecido anteriormente em reuniões prepa-
ratórias na aldeia de Icatu. Como resultado prá-
tico, a publicação de um livro didático prove-
niente da produção do curso, que seria com-
plementada pelos dados e fatos recolhidos en-
tre os mais velhos, tudo isso constituindo o
material do livro que se propunha organizar.
É interessante salientar a atitude interessa-
da, porém descrente, dos participantes duran-
te as aulas. Trabalharam, reescreveram textos,
observaram mapas e gravuras, dramatizaram,
elaboraram atividades didáticas, criaram pro-
blemas cujas soluções exigiam raciocínios.
Ao acabar o curso, conforme fora combina-
do, um boneco do livro foi organizado e envia-
do para Icatu e Vanuíre para que circulasse en-
tre professores e os mais velhos das comunida-
des envolvidas. A resposta foi inesperada: inú-
meros acréscimos ocorreram, tornando a publi-
cação
3
rica em aspectos, fatos e descrições que,
presentes na memória dos professores e das
pessoas mais velhas, não haviam sido lembra-
dos por ocasião do curso.
Alguns comentários finais
Neste momento em que se organiza um
congresso voltado à educação, tendo a Educa-
ção Indígena um espaço definido, talvez seja um
momento privilegiado para pensarmos nos re-
cursos que têm sido despendidos com a forma-
ção de professores índios ou não-índios ligados
à Educação Indígena, suas ações, resultados e
mudanças.
Ao analisarmos os materiais didáticos vol-
tados às escolas indígenas, na língua nativa ou
em português, é possível notar que, nem sem-
pre, eles se destacam por sua qualidade. Os
avanços pedagógicos, as metodologias, a orga-
nização desses materiais demonstram, muitas
vezes, uma visão tradicionalista da educação
e dos métodos pedagógicos. Muitas vezes, os
professores índios têm como modelo de atua-
ção ações pedagógicas ultrapassadas, como,
por exemplo, as cópias infindáveis de conteú-
dos do quadro, a postura do professor, depo-
sitário do saber, a desconsideração pelo conhe-
cimento que os alunos trazem, a falta de desa-
fios, a ausência de atividades didáticas en-
volventes e desafiadoras. A escola, muitas ve-
zes, tem oferecido atividades repetitivas, pou-
co envolventes, monótonas, que, ao invés de
3
MACEDO, Ana Vera (Org.).
Uma história Kaingang de São Paulo:
trabalho a muitas mãos.
Brasília: Mari/MEC (no prelo).
77
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
atrair os alunos, tendem a afastá-los. Afinal,
fora da escola há tanto a fazer, aprender, des-
cobrir, se envolver.
Um outro agravante, que é necessário des-
tacar neste momento, está ligado à continuida-
de dos cursos. Ao contrário do que ocorreu com
a experiência ligada ao trabalho com os profes-
sores de Icatu e Vanuíre, cujos resultados cons-
tituíram retorno valorizado pelo grupo, quantas
vezes pudemos deparar com projetos cujos pla-
nejamentos previam a continuidade em mui-
tas etapas consecutivas, que não ocorreram.
Fatores vários, nem sempre ligados aos profes-
sores índios ou capacitadores, impossibilitam
a continuidade. O início da ação, a primeira eta-
pa, ocorre bem organizada, o curso flui, as ava-
liações e os resultados imediatos são positivos,
porém se perdem pela ausência de continuida-
de, de novas avaliações e ajustes/acertos do
processo. Muitas vezes nos perguntamos: terá
sido em vão o trabalho realizado? Que garanti-
as os professores índios poderiam ter de que
não ficarão sós ao enfrentar desafios em seu tra-
balho cotidiano, quando acolhem sugestões de
mudanças em sua ação didática? Como mudar
a ação pedagógica sem uma certa garantia de
novos cursos que avaliem o que ocorreu nas
salas de aula, nos caminhos trilhados por ele e
seus alunos, sem a continuidade da troca com
os assessores/capacitadores responsáveis pelos
projetos que sugerem mudanças?
Um outro aspecto, neste momento, merece
nossa atenção. Em situações localizadas, a
desconsideração da literatura que se tem pro-
duzido sobre Educação Indígena e, muitas ve-
zes, sem conhecer as etnias de seu estado,
pedagogos, assessores, professores, alguns nú-
cleos ligados a diferentes governos estaduais,
além de descumprirem as leis, oferecem cami-
nhos e um ensino contrários aos interesses das
etnias com as quais deveriam construir a esco-
la indígena.
Em encontro recente
4
com pequeno grupo
de professores Guarani, Sonia Barbosa de Sou-
za, Aramirim, professora da Aldeia Barragem,
Morro da Saudade, Grande São Paulo, disse:
[...] fui professora na escola da Barragem
por seis anos, direto. Sempre vim lutando pela
educação indígena, pela escola diferenciada. A
Secretaria de Educação praticamente retirou o
espaço do meu trabalho [...] A cultura está se
perdendo aos pouquinhos depois da entrada da
Secretaria de Educação. Era uma coisa que a
gente não queria. Quando não tinha professora
do Estado, a gente sabia controlar, dava aula
normal. Éramos nós que tomávamos conta da
escola. Depois que chegou o Estado, eles to-
maram conta, não deixaram espaço. [...] A am-
pliação [do prédio da escola], que era para dar
aula em guarani, agora é para colocar 5ª a 8ª.
Eles decidiram [...].
Poder-se-ia considerar, diante da quantida-
de e diversidade de escolas indígenas no Brasil,
que esse é um caso isolado. Mas... será?
Bibliografia
ANDRADE, Maristela P.
Terra de Índio –
terra de uso co-
mum e resistência camponesa. 1990. Tese (Doutorado
em Antropologia Social). Universidade de São Paulo,
São Paulo.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA).
Terras indígenas no
Brasil –
situação jurídico-administrativa em 25/2/1997.
São Paulo: Instituto Socioambiental, 1997.
LIMA, Antonio C. de S.
Um grande cerco de paz.
Poder tu-
telar e indianidade no Brasil. 1992. Tese (Doutorado).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro:
Museu Nacional.
NIMUENDAJU, Curt.
Mapa etno-histórico
. Rio de Janeiro:
IBGE e Fundação Pró-Memória, 1987.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz.
Relações preciosas:
france-
ses e ameríndios no século XVII
.
1997. Tese (Doutora-
do em Antropologia). Universidade de São Paulo, São
Paulo.
PINHEIRO, Niminon S.
Os nômades.
Etno-história Caingang
e seu contexto: São Paulo, 1850-1918
.
Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Estadual
Paulista, 1992.
4
Encontro de professores Guarani para elaboração de Projeto de Alfabetização. Cajamar, São Paulo, 27 de junho de 2001.
78
Este trabalho pretende oferecer elementos
para a compreensão dos mecanismos de poder
hoje presentes entre as sociedades indígenas e
as estratégias buscadas por essas sociedades para
intermediar suas relações com os não-índios. A
compreensão de tais estratégias de convivência,
de negociação e de mediação de conflitos é de
fundamental importância, uma vez que, atual-
mente, as sociedades indígenas estão submeti-
das a processos de interação cada vez mais in-
tensos com as sociedades não-indígenas, e es-
sas interações não se limitam às fronteiras das
comunidades regionais ou dos Estados nacio-
nais, mas se situam cada vez mais no âmbito de
um mundo globalizado. Dessa forma, tanto as
sociedades locais quanto as sociedades nacio-
nais só podem ser adequadamente compreen-
didas se inseridas no âmbito da discussão acer-
ca do relacionamento entre ambas e se conside-
radas as implicações decorrentes dessas inte-
rações para a própria definição e redefinição de
seus espaços e instituições, como recomenda
Wolf.
1
Esse autor ressalta que as instituições na-
cionais, além de instituições formais, são tam-
bém espaços de interação entre diferentes gru-
pos. Assim, o relacionamento entre comunida-
de local/comunidade nacional possibilita con-
figurações de organização social e engendra a
criação de sujeitos sociais específicos. Analisan-
do a situação do México, Wolf recorre à noção de
brokers para referir-se a importantes agentes
mediadores nas relações de comunidades espe-
cíficas com comunidades nacionais, que pode-
rão passar despercebidos caso cada tipo de so-
ciedade seja analisado isoladamente.
Levando em conta essas considerações, o ob-
jetivo mais específico do trabalho é discutir mu-
danças ocorridas nos modos tradicionais de for-
mação, escolha e atuação de lideranças indígenas
bem como formas de apropriação da instituição
escolar e do saber escolarizado por elas. Para tan-
to, foram analisados discursos de lideranças in-
dígenas gravados em uma aldeia Karajá, da Ilha
do Bananal, no rio Araguaia, em Tocantins.
2
Depoimentos de velhos Karajá indicam que
sempre existiram tipos distintos de lideranças
voltadas para o desempenho de papéis e funções
específicas em situações e espaços diferenciados,
seja no âmbito da aldeia, intermediando as rela-
ções sociais e cerimoniais, seja nas atividades ex-
ternas à aldeia, liderando operações militares ou
atuando como espécies de diplomatas que do-
minavam várias línguas e saberes voltados para
as relações exteriores e para as interações com
outros grupos indígenas vizinhos, fossem essas
relações baseadas em alianças ou em conflitos.
Entretanto, o encontro entre as culturas in-
dígenas e o Ocidente, fundado na escrita e numa
cultura letrada, passa a exigir das sociedades in-
dígenas saberes, técnicas e domínios que alte-
ram sensivelmente as formas de distribuição de
status, poder e prestígio, bem como os mecanis-
mos e as estratégias de formação e escolha de
líderes no interior dessas comunidades. Expos-
tas a um contato prolongado com o “mundo dos
brancos, elas incorporam às suas estruturas tra-
Educação escolar e formação
de lideranças indígenas
Rosani Moreira Leitão*
* Pesquisadora do Museu Antropológico da UFG, professora do Departamento Pedagógico da UEG, doutoranda em Antropologia pelo Centro
de Pesquisa e Pós-Graduação sobre América Latina e Caribe da Universidade de Brasília.
1
WOLF, Eric. Aspects of group relations in a complex society: México. In:
Pathways of power
: building an anthropology of the modern world. Berkeley:
University of California Press. p. 124-138.
2
Uma reflexão preliminar sobre esse tema – tendo com o título “O papel da educação escolar na formação de lideranças indígenas” – foi por mim apresentada
em setembro de 2000 em Caxambu, na 23ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). O texto original
foi reelaborado a partir de leituras e discussões sobre cultura e poder realizadas no curso Seminários Avançados em Teoria I, do curso de Doutorado em
Antropologia Social da Universidade de Brasília, ministrado pelo professor Gustavo Lins Ribeiro.
79
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
dicionais de poder novos mecanismos de medi-
ação dessas relações de poder. Dentre esses me-
canismos, está a construção de novos tipos de
lideranças que têm como objetivo intermediar
o contato com a sociedade envolvente. As lide-
ranças do contato índio/branco ocupam um lu-
gar cada vez mais significativo tanto nas instân-
cias de negociação de espaços e direitos da soci-
edade majoritária como nas decisões políticas no
interior da aldeia.
A atuação dessas lideranças dentro e fora da
aldeia coloca-as na delicada situação de ter sem-
pre de operar com códigos, símbolos e valores
de universos culturais distintos e com raciona-
lidades orientadas por interesses que, ainda que
interdependentes, são muitas vezes contraditó-
rios. Esses representantes vivem assim uma am-
bígua situação. Por um lado, devem ser porta-
vozes coerentes com as aspirações, os desejos e
as necessidades do seu povo – autênticos repre-
sentantes do seu grupo étnico –, por outro lado,
devem ter competência para fazer uma apropri-
ação adequada dos mecanismos de funciona-
mento da sociedade não-indígena e, a partir daí,
atuar com eficiência nas negociações externas à
aldeia em defesa dos direitos indígenas. Consci-
entes da relação de assimetria historicamente
estabelecida entre índios e brancos no Brasil e
desejosos de uma relação menos desvantajosa
para eles, os Karajá demandam de suas lideran-
ças competências diversas no desempenho das
suas atividades: elas devem conhecer as leis e os
direitos indígenas; dominar o discurso na língua
oficial; impressionar os seus interlocutores para
conseguir destes uma posição favorável aos seus
interesses; construir estratégias de negociação e,
acima de tudo, atrair aliados para suas causas.
Devem, enfim, influenciar positivamente nos
processos e nas tomadas de decisões nas instân-
cias de poder da sociedade envolvente que te-
rão conseqüências diretas sobre suas vidas.
Do ponto de vista das lideranças indígenas
mais velhas, o desejo de conhecer o modo de pen-
sar do outro, neste caso do “branco civilizador”,
não é uma preocupação recente. Um velho Karajá
relata a sua experiência quando, em sua juventu-
de, na década de 1940, e após obter bolsa de es-
tudos do governador de Goiás, é enviado por sua
família para a cidade de Goiás, onde deveria ini-
ciar um programa de estudos. Dificuldades
advindas da separação da família, da adaptação
ao individualismo de um modo de vida urbano e
o medo do preconceito vindo de professores e
colegas acabaram inviabilizando sua permanên-
cia no colégio interno, que não passou de um se-
mestre letivo. Entretanto, vários motivos são
apontados no seu discurso para justificar a deci-
são familiar. Diante de acontecimentos que trou-
xeram drásticas conseqüências para a sociedade
Karajá, como alcoolismo, epidemias, invasão dos
territórios tradicionais e outras arbitrariedades e
violências, as quais eram atribuídas à presença
progressiva do “branco, era necessário conhe-
cer o seu modo de pensar, aprender a sua língua,
conhecer a lógica do seu pensamento e, a partir
daí, compreender as suas ações.
3
Era necessário,
enfim, formar novas gerações aptas a construir
estratégias de resistência.
4
Esse interesse conti-
nua presente nos projetos dos atuais líderes
Karajá, a despeito da rejeição por parte da maio-
ria da população aos primeiros projetos de edu-
cação escolar implementados nas aldeias. Nos
anos mais recentes, já no contexto das experiên-
cias com a educação bilíngüe
5
e, sobretudo, a
partir da década de 1980, com a previsão legal do
respeito às identidades culturais e com a possibi-
3
Nesse período, os Karajá de Santa Isabel receberam visitas de importantes dirigentes políticos. As visitas fizeram parte de ações voltadas
para o desenvolvimento da região central do Brasil. “A partir da década de 40 deste século, são empreendidos novos esforços de desenvol-
vimento da Ilha do Bananal e do Vale do Araguaia. Não são raros os propósitos de desenvolvimento econômico e de integração da região à
economia do estado e do país [...]. A Fundação Brasil Central é criada em 1943, para dar continuidade à ‘Marcha para o Oeste’, que tem
início com a ‘Expedição Roncador Xingu’. A visita de Getúlio Vargas, na década de 40, e depois a de Juscelino Kubitschek, na década de 60,
se inserem no âmbito destes esforços de integração e desenvolvimento da região” (Leitão, 1998:37).
4
Não só as tentativas de escolarização fora das aldeias, mas também as experiências do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no interior delas, nessa
época foram frustradas (Leitão, 1998).
5
Essas experiências inicialmente não romperam com os esforços de aculturação. Começaram oficialmente em 1970, quando foi assinado convênio entre
a Funai e o
Summer Institute of Linguistics
(SIL), um instituto de estudos lingüísticos ligado a uma instituição religiosa protestante norte-americana, que
visava à produção de materiais religiosos escritos em línguas indígenas. Possuía, pois, um caráter civilizatório e evangelizador (Leitão, 1998).
80
lidade do desenvolvimento de projetos educacio-
nais concebidos com a participação das próprias
comunidades indígenas ou totalmente por elas,
alguns avanços vêm ocorrendo nesse sentido. Au-
menta assim o número de pessoas alfabetizadas
e o grau de escolarização de algumas delas. Tam-
bém aumentam as expectativas com relação ao
saber escolar, bem como o valor atribuído a esse
tipo de saber.
Todas essas questões impulsionam no seio das
sociedades indígenas contemporâneas uma gran-
de demanda por educação escolar nos órgãos ofi-
ciais competentes. Conhecimentos técnicos, le-
gais e burocráticos próprios das sociedades oci-
dentais – que fazem parte de um conjunto de sa-
beres que só serão adquiridos pelo acesso ao co-
nhecimento escolarizado – são percebidos como
necessários para a formação das habilidades e das
competências indispensáveis àqueles que são res-
ponsáveis pela mediação das relações com os
não-índios. Entretanto, a emergência dessas no-
vas lideranças não rompe com as formas tradicio-
nais de poder, apesar de elas restringirem-se agora
muito mais aos limites da aldeia. Bruce Albert,
tomando como objeto de análise o discurso de
um líder Yanomami, oferece importante con-
tribuição nesse sentido. Ele demonstra que as
novas lideranças indígenas constroem um dis-
curso que realiza uma passagem da resistên-
cia especulativa, caracterizada por uma
simbolização etnocêntrica do branco como
subumano, para uma adaptação resistente, ca-
racterizada por uma simbolização relativista e
por um discurso sobre si para o outro. Este
autor, recorrendo à história de vida do líder,
identifica os conteúdos do seu discurso como
compostos por uma junção de elementos da
tradição Yanomami com os modelos “brancos
de indianidade, constrói um discurso político
sobre a etnicidade para a sociedade envolvente
e para o resto do mundo. Ele também lembra,
entre os Yanomami, a coexistência de líderes
tradicionais com as novas lideranças quando
ressalta a influência do discurso xamânico de
uma liderança religiosa interna sobre o discur-
so do novo líder, este último traduzido para
uma forma inteligível fora do grupo. O líder
Yanomami é apontado assim como um “medi-
ador cultural por excelência” (Albert, 1995).
Velhas e novas lideranças:
processos de formação e
espaços de atuação
Os discursos analisados ressaltam duas
modalidades gerais de chefias e lideranças
atualmente existentes entre os Karajá, as quais
apresentam distinções claras no que se refere
aos espaços de atuação e aos papéis a serem
desempenhados por cada uma delas. Existem,
por um lado, as chefias tradicionais que atu-
am nos espaços internos e tradicionais da al-
deia e, por outro, lideranças que possuem um
raio de atuação que extrapola os limites físi-
cos da aldeia e está voltado para as negocia-
ções com as instâncias e os poderes da socie-
dade nacional. Essas últimas são mediadoras
culturais que atuam entre dois universos, tra-
dutoras de conteúdos culturais do mundo in-
dígena para o mundo ocidental e deste para o
universo indígena. Do ponto de vista da aldeia,
são elaborados mecanismos que absorvem as
mudanças em um processo de acomodação
dessas novas lideranças no âmbito do sistema
de chefia e poder já estabelecido. Assim, elas
atuam paralelamente às instâncias tradicionais
de poder existentes na aldeia.
Existe um discurso legitimador e organizador
das mudanças que dá ordem à realidade e às re-
presentações nativas sobre o assunto, o que faz
que as lideranças Karajá elaborem as suas pró-
prias concepções acerca da forma como o po-
der, o status e o prestígio estão distribuídos en-
tre as pessoas da aldeia e como essas questões
interferem na delimitação dos espaços e nas to-
madas de decisão.
Dessa forma, as chefias tradicionais são
classificadas como “lideranças rituais e da
cultura, enquanto as novas lideranças são
identificadas em função dos seus papéis como
intermediadores das relações nativas com o
mundo dos brancos. A principal liderança tra-
dicional é o Ixydinodu, palavra traduzida para
os brancos” como “cacique geral” ou “o che-
fe do povo. O cacique geral” é o “líder da
aldeia e dos rituais. Deve possuir atributos
especiais e situa-se na faixa etária dos
matuari (dos velhos). Existe também o
81
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
Deridu ou Ioló.
6
O Deridu deve ser uma crian-
ça. Ambos (cacique geral e Deridu) devem per-
tencer a famílias de grande prestígio na aldeia.
O Ixydinodu, “cacique geral” da aldeia de
Santa Isabel do Morro, define suas atribuições e
as do Deridu em oposição às atividades desem-
penhadas pelo Tori Wedu, afirmando que o ou-
tro” é o cacique de branco, enquanto ele pró-
prio é “o cacique geral da aldeia.
Internamente, Ixydinodu (cacique geral) e
Deridugovernam juntos” nos assuntos referentes
não só aos rituais, mas também às relações sociais
entre as famílias e o povo da aldeia em geral. Ao
mesmo tempo em que desempenha o papel de lí-
der ritual, o cacique geral”, nas suas próprias pa-
lavras, atua como um juiz”, ou a lei”, nos desen-
tendimentos familiares. Para isso, ele procura a aju-
da do Deridu, representado pelos seus familiares,
uma vez que ele é uma criança. Especialmente em
casos de agressões entre membros das famílias, as
pessoas ameaçadas de perigo buscam a proteção
do Ixydinodu, e, caso seja necessário, ficam tem-
porariamente sob guarda da família do Deridu, en-
quanto esta última e o cacique geral procuram os
agressores para solucionar o problema.
As lideranças emergentes do contato com a
sociedade nacional podem ser divididas, no caso
analisado, em:
Tori Wedu (“cacique de branco”) e seus au-
xiliares;
• aqueles que se legitimam como lideranças
por meio da participação em processos eleito-
rais de municípios vizinhos às aldeias;
• representantes de associações indígenas.
O Tori Wedu, “chefe ou cacique ‘de branco’”,
é apontado como o principal intermediador das
relações entre aldeia e sociedade envolvente. O
Tori Wedu da aldeia de Santa Isabel do Morro
assim define os espaços de atuação das lideran-
ças Karajá:
A divisão aqui é a seguinte: Tebukua [o caci-
que geral] é cacique, é chefe da aldeia, da cultu-
ra. Ele chefia negócio de dança [...] É ele quem
organiza. Agora eu, sou cacique representando do
lado do branco. Quando vem alguma autoridade
aqui e quer conversar, aí me procura. [...] Tebukua
é só da aldeia mesma, quando não tem festa ele
fica livre. Quando chega na época de Hetohoky,
7
continua chefiando a aldeia [...] (Xiari Karajá).
As lideranças auxiliares do Tori Wedu nas re-
lações externas da aldeia, como é o caso do vice-
cacique, entre outros, também definem a divi-
são de papéis e poderes:
Cacique é aquele que tem poder, que toma con-
ta. É como prefeito, por exemplo. [...] Idjahina é o
cacique de Santa Isabel do Morro. O resto é lide-
rança, os outros que trabalham. Eu, Lahuri, Koxieru
[...], somos lideranças. Quando Idjahina viaja, a
gente fica na responsabilidade [...]. Por exemplo,
quando tori [branco] chega e Idjahina está viajan-
do, a gente responde. [Somos] substitutos do caci-
que. A gente [...] trabalha assim (Koribete Karajá).
As outras duas modalidades de representan-
tes acima mencionadas também desempenham
papéis significativos nas decisões da aldeia e se
configuram como lideranças principalmente a
partir das duas últimas décadas.
A participação de indígenas como candidatos
na política partidária ocorre não só entre os
Karajá, mas pode ser situada no âmbito de um
processo mais amplo, que tem início na década
de 1980 com a eleição de Juruna, o primeiro indí-
gena brasileiro a ser eleito para um mandato no
Congresso Nacional. Nos últimos anos, as candi-
daturas indígenas aumentaram progressivamen-
te, demonstrando uma disposição dos povos in-
dígenas em ocupar espaços políticos institucio-
nais e assumir suas próprias representações.
8
6
As palavras
Ixytyby
e
Ixydinidu
são traduzidas por Toral (
op. cit
., 78-91) como o “pai do povo” e o “líder do povo”. O Deridu também é chamado
de Ioló. Os Karajá não traduzem as palavras
Ioló
e
Deridu
. Às vezes, o
Deridu
é associado a entidades sagradas Karajá, ou comparado aos
reis das antigas sociedades ocidentais, por ter um poder hereditário. Todas as questões internas da aldeia, de desavenças familiares até
deliberações sobre rituais, são decididas em comum acordo entre
Ixydinodu
e a família do
Deridu
.
7
O Hetohoky é um ritual Karajá de iniciação masculina. (Lima Filho, 1994).
8
Conforme Albert (2001), esse processo ganha progressiva importância a partir dessa década, e só no ano 2000 foram registradas mais de 350 candidaturas
indígenas, sendo que 75 deles se elegeram. A maioria desses candidatos concorreu ao cargo de vereador, e um número menor, ao de vice-prefeito.
82
Entre os Karajá, candidaturas em processos elei-
torais de cidades vizinhas ocorrem freqüen-
temente, e alguns desses candidatos conseguem
se eleger, como é o caso mencionado a seguir:
[...] E entrei no meio político. Primeiro, me
candidatei e fui derrotado. Fiquei com 86 votos
[enquanto o outro candidato, também da aldeia]
ficou com quinze votos [...]. Uma diferença muito
grande. Eu acredito que o povo aqui me queria
como representante dele. Então, quando houve
uma política, novamente, ganhei essa eleição
9
com 142 votos (Iwyraru Karajá).
Na concepção das lideranças Karajá, dispu-
tar cargos eleitorais nas esferas regionais e nacio-
nais de poder significa que o “índio está ganhan-
do espaço, conquistando direitos e, sobretudo,
garantindo melhorias para a qualidade de vida
do povo da aldeia.
Através de políticos, eu consegui um motor
(gerador de energia elétrica) para o posto de saú-
de. E, graças a Deus, está funcionando. E a medi-
cação... consegui aumentar o número de consul-
tas, através da prefeitura. E assim, eu ajudei um
pouco [...]. E agora está aí, sem representante. Não
tem ninguém na Câmara [...] Eu consegui cesta
básica [...] Distribuía na aldeia [...] Porque eu es-
tava como vereador (Iwyraru Karajá).
E assim, esse representante segue destacan-
do estas e outras vantagens, como a abertura de
estradas para facilitar o transporte de doentes em
casos de emergência, como decorrência da sua
participação no processo eleitoral do município
vizinho.
Os representantes de associações indígenas
também são mencionados nos discursos Karajá
quando se referem à criação de uma Associação
Indígena Karajá como uma entidade que pode
oferecer uma alternativa ao assistencialismo da
Fundação Nacional do Índio (Funai), que atra-
vessa, no momento, uma crise por causa dos
cortes de verbas no orçamento federal. Assim, é
no âmbito da associação, recentemente criada,
que as lideranças Karajá planejam desenvolver
tais projetos.
[...] temos a Associação que está em anda-
mento nesta aldeia, eles me elegeram para [...]
assumir. E este trabalho terá condições de fazer
alguma coisa. [...]. Através disso aqui poderemos
trabalhar e desenvolver o ecoturismo. [...] Temos
projeto aprovado pelo Ibama para piscicultura. Tem
um projeto aprovado através do Prodeagro [...]
para fazer roça de mandioca e fazer farinha. Va-
mos trabalhar em cima disso (Kuhãlue Karajá).
As organizações indígenas têm objetivos
reivindicatórios. O surgimento delas na Amazô-
nia é mencionado por Albert como uma muta-
ção do movimento indígena da etnicidade po-
lítica: um movimento conflitivo de organizações
e mobilizações etnopolíticas que tinham como
objetivo reivindicações legalistas e territoriais e
como principal interlocutor o Estado; para a
etnicidade de resultados: composta por jovens
quadros (interessados em administração e ges-
tão de projetos), na qual a afirmação identitária
é colocada como pano de fundo para a busca do
acesso ao mercado, sobretudo de projetos, aber-
tos nacional e internacionalmente, pelas novas
políticas descentralizadas de desenvolvimen-
to.
10
Dessa forma, a partir das dificuldades
vivenciadas pelas comunidades e pelas novas
possibilidades que se apresentam, vão se confi-
gurando outros e novos espaços de atuação que
reivindicam a incorporação de novos saberes,
9
Quando os relatos foram gravados, Iwyraru, pela terceira vez, disputava o cargo de vereador em São Félix do Araguaia, MT, com outros dois
candidatos da aldeia. Essas disputas eleitorais nem sempre ocorrem de forma tranqüila. Em alguns momentos acirram rivalidades existentes
entre grupos familiares e facções políticas tradicionais da aldeia (Notas de campo, set. 1997).
10 Albert menciona a existência de 183 organizações indígenas atualmente, só nos estados da Amazônia. De acordo com ele, esse é um fenômeno que
tem início no Brasil, a partir do final da década de 1980 e é intensificado nos anos 1990, sendo impulsionado, principalmente, por fatores internos e
externos. No primeiro caso, ele menciona a possibilidade de criação dessas associações como pessoas jurídicas a partir da promulgação da Constitui-
ção Federal de 1988 e do esvaziamento político orçamentário da Funai. No segundo caso, são mencionadas: a globalização das questões relativas ao
meio ambiente e aos direitos das minorias, a descentralização da cooperação internacional (reorientada para a sociedade civil e para o desenvolvimento
sustentável) e a implementação de microprojetos locais (Albert, 2001: 195-217).
83
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
novas estratégias de sobrevivência e novos me-
canismos de relacionamento com a sociedade
majoritária. Em função dessa complexificação
crescente, as formas tradicionais de chefia pas-
sam, cada vez mais, a conviver com modalida-
des alternativas de poder e liderança. Ao mes-
mo tempo, as sociedades indígenas passam a
adotar critérios e mecanismos distintos para a
escolha dos seus representantes e a recorrer a
processos diferenciados de formação, de acordo
com o cargo a ser ocupado, com as atividades a
serem desempenhadas e com as modalidades de
poder a ser exercido por cada um deles.
No que se refere à formação dessas lideran-
ças e aos critérios adotados para sua escolha, a
interpretação dos depoimentos aponta para
duas questões principais: por um lado, parece
existir uma associação entre padrões tradicio-
nais de aprendizagem e formas tradicionais e
internas de poder e, por outro lado, entre for-
mação escolar e lideranças responsáveis pela
mediação das relações índios/não-índios.
Quando o cacique geral” fala da sua própria
trajetória de vida, não menciona nenhuma ex-
periência com a educação escolar. Ele relata um
longo e complexo processo de formação que,
baseado nos padrões tradicionais nativos de so-
cialização, permitiu a ele, na vida adulta, assu-
mir um cargo de chefia. Ele fala de sua infância e
juventude quando, na companhia de outros
meninos da sua geração, era forçado” a ouvir,
na casa de Aruanã,
11
durante horas a fio, todos
os dias, durante anos, os ensinamentos sobre a
cultura, os rituais e as tradições.
Fiquei na casa de Aruanã, não sei quantos
anos. O velho Maluá, pai de Maluaré, mandava
me chamar [...] Nós éramos eu, finado Kumahira
e Lawakate. Chamava todo mundo: “Senta aqui,
que eu vou contar muitas histórias pra vocês ve-
rem como é que é”. E, então, a gente sentava. Todo
dia, sentava [Dizia: ] “Não quero isso, já sei de
tudo”. E o velho Maluá falava: “Ah, meu filho, não
é assim não. Eu tô velho, daqui a um tempo, eu
vou embora, vou morrer. Vocês têm que aprender
alguma coisa que eu conto pra vocês, pra vocês
contarem para os seus filhos”. Todo mundo [os
outros] saía brincando e eu ficava sempre com ele.
E ele contava tudo [...], como é a festa de Hetohoky,
a festa do mel, a festa da puba... (Tebukua Karajá).
E foi graças ao conhecimento cultural acu-
mulado ao longo de anos somado às caracterís-
ticas da sua própria personalidade (“calmo,
educado, generoso”) e aos vínculos familiares
com detentores de posições de status e prestí-
gio, no presente e no passado, que Tebukua é,
hoje, um dos principais líderes da sua aldeia. De
acordo com ele, para que uma pessoa se torne
cacique geral são dela exigidos ainda outros atri-
butos baseados em critérios de idade e em rela-
ções de parentesco. O posto é tradicionalmente
ocupado por velhos, pelos primeiros filhos de
famílias respeitadas. O seu relato faz uma inte-
ressante descrição do processo de discussão tra-
vado por sua família e pela aldeia, que antece-
deu à sua escolha para o cargo. Nesse processo,
eram debatidos os impasses decorrentes do fato
de ele ser o caçula e não o primeiro filho.
[...] Nesse tempo, o meu tio Maluaré adoeceu
e não tinha ninguém para liderar o Hetohoky. En-
tão, minha sogra falou com meu primo, conversou
lá e falou pra mim ser cacique. Não! Não posso
ser. Sou o caçula. Não sou o primeiro filho do meu
pai. [...]. Então, minha sogra veio [...] ela me falou:
“vai ser você mesmo. Você aprendeu. O velho
Maluá contou muitas coisas pra você [...]” (Tebukua
Karajá).
Este relato ressalta os critérios de escolha,
baseados no parentesco, na hereditariedade do
cargo, no conhecimento da cultura tradicional e
em personalidade socialmente aprovada.
12
No
caso de Tebukua, mesmo ele não sendo o primei-
ro filho, tratava-se do candidato mais apropriado
dentro da sua linhagem e devia assumir o cargo,
garantindo assim o status da sua família.
[...] Aí, chegou o meu outro tio. Wataú:
“Tebukua, venha cá! Você vai ser cacique. [...] Por-
que toda a sua família foi cacique. Seu tio Belehiro
11
Espaço público e ritual interditado a mulheres e a crianças, um dos espaços de socialização dos meninos Karajá.
12
Os atributos mencionados por Tebukua como necessários ao líder se aproximam daqueles apontados por Clastres. (1978) e por Service (1993: 112-134).
84
foi cacique, que faleceu. Depois, foi o finado dr.
Kuryala, que também foi cacique geral até morrer.
Depois disso, foi Arutana que morreu também.
Então, você também serve. Nosso avô Maluá con-
tou muitas coisas para você. Então, você vai ser”.
Ele me abraçou e aí não tinha mais jeito e eu fi-
quei. Foi mais ou menos há uns cinco anos atrás
(Tebukua Karajá).
A escolha e a sucessão do Deridu obedecem,
em linhas gerais, aos mesmos critérios anterior-
mente descritos. Baseiam-se no parentesco e na
hereditariedade. O Deridu deve pertencer à últi-
ma geração de uma família de prestígio, deven-
do ser também o primeiro filho.
Por outro lado, as lideranças que atuarão nas
relações políticas externas devem possuir outras
qualidades de acordo com as atividades a serem
desempenhadas por elas. Se vão intermediar o
contato com a sociedade dos brancos, devem
principalmente possuir requisitos que permitam
a compreensão das regras e dos padrões de fun-
cionamento dessa sociedade ou o conhecimen-
to dos códigos que as capacitem a transitar nos
dois mundos” (do índio Karajá e do não-índio).
Portanto, nas suas trajetórias de vida, todos pos-
suem, em maior ou menor grau, alguma experi-
ência com a escolarização. Mesmo aqueles que
não foram completamente alfabetizados fre-
qüentaram a escola por algum tempo e ressal-
tam nos seus discursos essa necessidade, bem
como os obstáculos enfrentados por aqueles que
não têm um domínio satisfatório da leitura e da
escrita.
13
Os mecanismos pelos quais se tornaram re-
presentantes, embora tenham alguma relação
com as influências exercidas pelos grupos fami-
liares tradicionais, são bem distintos dos critéri-
os tradicionais, aproximando-se, em maior grau,
das formas ocidentais de escolha de represen-
tantes. Assim, se o cacique geral” e o Deridu
possuem um poder hereditário, o cacique (de
branco) ocupa um cargo temporário e é escolhi-
do por meio de eleições, nas quais “todo mundo
vota, homens ou mulheres.
O próprio cacique (Tori Wedu), ou “cacique
de branco, relata o seu caminho de acesso ao
cargo de chefia no momento por ele ocupado:
Primeiro, [...] Na época, do Ixãriri, quando ele
era cacique, ele me convidou pra ser liderança.
14
Depois o Idjahina, quando assumiu como cacique,
ele me convidou como vice dele. [Quando fui es-
colhido], foi feita uma reunião. Então, eu assisti à
reunião deles para escolher o cacique. A comuni-
dade, os homens, os jovens, as mulheres. Fui es-
colhido assim (Xiari Karajá).
Um professor Karajá, que também atua como
auxiliar das atividades do Tori Wedu, relata a for-
ma pela qual explica aos seus alunos como sur-
giram as aldeias e como “hoje” os Karajá utili-
zam outras formas de poder, de acordo com ele
copiadas dos brancos.
Nosso cacique de antigamente, chamava Ioló
e Deridu. Não existiam as lideranças, vice-caci-
que e cacique. [...] Mas, nesse tempo [hoje] mu-
dou. Formou igual [na] sociedade branca. Por
exemplo, antigamente, existia rei. Eu falei assim
para eles [os alunos]. Nesse tempo, [hoje] mudou
para presidente. Antigamente, passava [o poder]
de família a família. Nós, também, a mesma coisa.
Quando morria, passava para outro herdeiro. E
nesse tempo, mudou [...]. Nós escolhemos o can-
didato de nossa confiança. Por exemplo, Idjahina
enfrentou uma disputa com Iwyraru e o povo ele-
geu Idjahina. (Woubedu Karajá).
Quanto aos processos de formação, perce-
be-se que, enquanto o cacique geral foi educa-
do nos moldes tradicionais Karajá, tornando-
se um profundo conhecedor da sua cultura e
não tendo que, para isso, passar pela escola,
nem dentro e nem fora da aldeia, a maioria das
novas lideranças passou por um processo de
escolarização e, portanto, domina a leitura e a
13
Outra característica que distingue essas lideranças, no caso dos Karajá, é o fato de todos eles serem relativamente jovens, tendo em média
entre 25 e 35 anos de idade.
14
Assim, após ser escolhido pela comunidade por meio do voto, o cacique escolhe outras pessoas para auxiliar na administração da aldeia, desempe-
nhando até mesmo funções burocráticas; nas relações com a Funai e com outras instâncias governamentais, controle de gastos e prestação de contas
no que se refere aos recursos da comunidade etc.
85
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
escrita, tanto na língua nativa como na língua
oficial. O grau de escolarização de alguns coin-
cide com a etapa escolar oferecida pela escola
da aldeia, que vai até a 4ª série do Ensino Fun-
damental. Outros, após passarem pela escola
indígena, prosseguiram os estudos em cidades
vizinhas:
Eu não tenho muito estudo. [...] Eu estudava
naquela época [1972], naquele tempo. Mas, meu
estudo é muito pouco. Parei na 4ª série. [...] Parei
porque casei. Naquele tempo, índio quando casa-
va, parava de estudar [...]. Aprendi a ler e escre-
ver com Ijyraru, que é antigo professor [da aldeia].
[...] Depois, estudei com professora tori [branco]
(Xiari Karajá).
Eu estudei aqui mesmo, na minha aldeia. Na
escola que funciona aí. Quem me ensinou foi o
professor Ijyraru. Ele é antigo professor da escola
indígena. Quando terminei aqui o primário, fui para
São Félix. Lá, assistia aula e voltava para a al-
deia. Tô terminando a 8ª série (Koxieru Karajá).
Em casos menos freqüentes, prosseguem es-
tudos em cidades grandes, às vezes não chegan-
do a concluir a educação básica e atingindo, ra-
ramente, o Ensino Superior.
Bem, minha alfabetização começou aqui mes-
mo, na aldeia [...] Eu estudei o nosso idioma. [...].
Assim, facilitou como tradução para o Português.
Aí, fui estudando com dificuldade [...]. Fui passan-
do de ano em ano e aprendendo. Terminei o pri-
mário e fui estudar na cidade próxima. Estudei lá
fora também, em Goiânia. Morei quatro anos lá.
[...] Fiz o curso Técnico em Contabilidade e parei
no 2º ano. Não terminei (Koribete Karajá).
As novas lideranças ressaltam a importância
da escola indígena bilíngüe
15
como base para o
prosseguimento dos estudos em escolas da ci-
dade e lamentam a falta de oportunidade e apoio
para irem além da educação básica:
Estudei aqui. Estudei indígena durante quatro
anos, depois fui estudar em São Félix, cidade vi-
zinha e, após isso, eu fui para Goiânia estudar.
Ganhei bolsa de estudos da Funai. [...] Estudei e
hoje estou colaborando com a minha turma, que
são os índios. [...]. É através dos estudos que a
gente tá tomando espaço. Eu, como outros estu-
dantes, que já foram, estudaram e voltaram, ou
estão se formando em faculdades. No meu caso,
não deu. Por falta de apoio. Mas, pelo menos, ter-
minei o 2º
grau (Kuhãlue Karajá).
Um desses líderes diz ter freqüentado a es-
cola por pouco tempo e lamenta não ter apren-
dido a ler e a escrever, o que implica muitas difi-
culdades, pois não dominando a escrita não do-
mina o discurso no português padrão:
Estudei quando era criança [...] Minha mãe não
dava incentivo, nem meu pai. Eu parei onde era alu-
no de Ijyraru [1ª série bilíngüe], que inclusive, até
agora, está dando aulas [...]. Fiquei ali mesmo e
nunca mais estudei [...]. Dificultou muita coisa, quan-
do eu entrei na política e vivi no meio dos brancos,
sem saber ler e nem escrever [...]. Tento aprender
até agora. Às vezes, troco a língua [...] estou come-
çando a escrever (Iwyraru Karajá).
As lideranças Karajá
16
afirmam a necessida-
de de garantir às crianças e aos jovens condições
de acesso ao saber escolarizado e concebem a
escola indígena e o ensino bilíngüe como instru-
mento destinado a fornecer não só os conteú-
dos elementares básicos para etapas escolares
posteriores, como também para a preservação
da língua e o fortalecimento dos vínculos com a
cultura tradicional. Existe uma compreensão de
que é na infância que esses vínculos culturais são
sedimentados. E é em contato com a aldeia, com
os ensinamentos da família, da escola e dos pro-
fessores indígenas que a identidade étnica Karajá
se constitui. A passagem pela escola indígena
pressupõe a formação de uma consciência com-
prometida com os interesses indígenas e com os
problemas da comunidade. Assim, de acordo
com as lideranças Karajá, mesmo saindo da al-
15 Nas escolas Karajá bilíngües, as crianças são alfabetizadas na língua materna e aprendem o português oralmente nas séries iniciais. A
partir da segunda série, começam também a aprender o português escrito.
16 Os professores indígenas também gozam de grande prestígio em suas comunidades. Às vezes, atuam também como lideranças e, mesmo não
ocupando cargos de chefia, são sempre convidados a participar das decisões nas reuniões comunitárias que se referem às relações índios/não-índios.
86
deia para prosseguir estudos em cidades”, esse
compromisso garante o retorno dos jovens tão
logo eles concluam os seus cursos além de uma
futura atuação em benefício da comunidade.
Para apoiar em termos de trabalho e defen-
der a questão indígena [...] Tudo isso depende
dessa escolinha. Todos nós, que estudamos fora,
estudamos nessa escolinha. [...]. Os outros tam-
bém estudaram aí, saíram e retornaram. Todos,
que estudam aqui, vão para fora e retornam. Por-
que nós saímos daqui pensando em ajudar nosso
povo. [...]. É por isso que a educação das crianças
[...] é muito importante (Kuhãlue Karajá).
Assim, a escola indígena deve proporcionar
aos jovens condições necessárias para a apren-
dizagem do português oral e escrito, um requi-
sito necessário à atuação competente nas
intermediações do contato entre índios e bran-
cos e um aspecto relevante nas decisões no que
se refere à escolha de lideranças.
A escola indígena vista como
lugar de aprendizado da língua
oficial e de reafirmação étnica
As lideranças indígenas Karajá atribuem um
alto status à linguagem escrita e ao saber escolar.
As vantagens de aprender o português na escola
são enfatizadas, pois aqueles que aprenderam fora
da escola “trocam a língua” e falam muito enro-
lado. Assim, a escola (da aldeia ou da cidade) deve
formar uma habilidade discursiva na Língua Por-
tuguesa, o que futuramente possibilitará ao alu-
no a eloqüência do discurso nessa língua.
Às vezes eu converso com os alunos, com o
povo: “as crianças têm que estudar”. Temos que
dar o maior incentivo às crianças. Eu estou dando
para o meu filho. Tenho orgulho do meu filho, pe-
quenininho, mas está indo bem no colégio. Acre-
dito que ele vai praticar dos dois lados. Vai saber
ler, escrever e falar o Português, corretamente.
Antes, quando alguém sabia falar, falava muito
enrolado. Agora, quem aprendeu a falar no colé-
gio fala bem. Eu tenho um irmão que fala correta-
mente. Ele aprendeu dentro da escola (Iwyraru
Karajá).
O convívio dos Karajá quase cotidiano com
os “brancos” de cidades vizinhas onde nego-
ciam benefícios para a aldeia, buscam tratamen-
tos médicos, freqüentam/freqüentaram escolas,
vendem peixes e artesanato e adquirem produ-
tos industrializados para o consumo familiar –
impõe o domínio da língua do branco” como
uma necessidade.
[...] eu falo duas línguas e acho que é bom,
porque quando eu falo pra branco, eu falo na lín-
gua dele, no Português, e quando eu falo para o
índio, para a gente da aldeia eu falo o Karajá. Eu
acho que é muito bom. Pra nós falar só uma lín-
gua, eu acho que não é bom (Koxieru Karajá).
Portanto, para interlocutores diferencia-
dos, devem-se usar línguas diferenciadas. O
conhecimento, por mais profundo que seja,
da cultura nativa não capacita o cidadão
Karajá de hoje para os desafios que ele enfren-
ta nas interações com a sociedade branca.
O desafio de ser, ao mesmo tempo, índio e
brasileiro requer habilidades que são cons-
tantemente buscadas pelos Karajá, conforme
os discursos de suas lideranças, que permi-
tam transitar com segurança em dois mundos
e em duas culturas.
[...] eu tenho o maior orgulho de ser índio. [...]
Eu tenho que dançar, quando tem festa. Tenho que
estar lá e dançar. Quando eu tô no meio do bran-
co, eu tenho que tentar entrar no costume do bran-
co. Agora, quando eu estou no meio dos índios,
eu sou índio. [...] Então, meu filho tem que apren-
der os dois costumes, os dois lados. Não pode
deixar nosso costume e a nossa tradição. [...] Ago-
ra, temos que escrever e estudar. Tem que apren-
der, também, para conversar com autoridades
(Iwyraru Karajá).
Assim, são ressaltadas as práticas tradici-
onais da cultura nativa como critérios neces-
sários para a continuidade de uma identida-
de indígena específica. A necessidade de “in-
tegrar-se no mundo da civilização’” para
conseguir viver” é enfatizada, ao mesmo
tempo em que é ressaltado, por outro lado, o
sentimento de identidade Karajá e de perten-
cimento étnico.
87
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
Considerações finais
De acordo com a situação analisada, três as-
pectos são relevantes no que refere à compre-
ensão dos processos e das estratégias de convi-
vência que caracterizam atualmente as intera-
ções entre comunidades indígenas e sociedade
nacional:
• A apropriação de instituições e de discursos
da sociedade envolvente pelas sociedades in-
dígenas, bem como a gestão entre estas últi-
mas de agentes mediadores culturais (as
quais podem ser compreendidas a partir da
noção de brokers, utilizada por Wolf). Esses
agentes atuam como verdadeiros tradutores
culturais dos significados do pensamento
ocidental para as suas comunidades e do sig-
nificado dos valores nativos para o resto do
mundo, o que vai resultar num discurso que
permite uma comunicabilidade interétnica
de conteúdo singular que articula o discurso
étnico cosmológico com o discurso baseado
em categorias ocidentais de indianidade.
Essa capacidade de articular essas duas di-
mensões em um só discurso é, segundo
Albert, o que garante a eficiência dos gran-
des líderes interétnicos.
• A despeito da crescente importância do pa-
pel dessas lideranças mediadoras do conta-
to interétnico, não ocorre sempre uma divi-
são entre estas e as lideranças tradicionais,
uma vez que o discurso político e reivin-
dicatório construído sobre a etnicidade pode
ter como substrato as categorias nativas e, ao
mesmo tempo, se alimentar do saber tradi-
cional que as velhas lideranças detêm, o que
permite uma eficiência político-simbólica
no discurso indígena.
• O conhecimento escolar, ou a leitura e a es-
crita, neste cenário, são percebidos como um
bem altamente valioso que pode permitir o
acesso aos significados da cultura ociden-
tal.
17
O domínio desses significados é de fun-
damental importância, uma vez que, subme-
tidas a processos de intensa interação com a
sociedade nacional, as comunidades indíge-
nas necessitam adaptar constantemente as
suas instituições e redefinir os seus discur-
sos a partir de uma etnicidade genérica e ju-
rídica garantida legalmente pelo Estado Na-
cional. Nesse aspecto, o domínio da língua
oficial falada e escrita é um desses códigos,
talvez considerado o mais precioso no dis-
curso indígena. Nesse sentido, a análise de
Bourdieu, que situa a linguagem como um
campo específico no mercado dos bens sim-
bólicos, pode contribuir para uma melhor
compreensão das concepções das lideranças
Karajá no que se refere à língua dominante.
Para Bourdieu, o domínio da linguagem no
padrão socialmente valorizado bem como
das regras intuitivas referentes a uma situa-
ção comunicativa determinada constitui um
capital lingüístico que permite a produção de
discursos ajustados a situações específicas e
garante ao seu detentor a manipulação da
situação de forma a obter proveitos.
Dessa forma, o alto status atribuído à Língua
Portuguesa na sua versão oficial está, na concep-
ção das lideranças Karajá, intimamente relacio-
nado à possibilidade de acesso, via saber esco-
lar, aos conhecimentos técnicos e especializados
próprios da cultura ocidental.
Assim, o domínio das regras tanto objeti-
vas como subjetivas da linguagem na modali-
dade oficial representa a possibilidade de
construir discursos políticos reivindicatórios,
bem como o acesso a conhecimentos burocrá-
ticos, jurídicos, de contabilidade e administra-
ção necessários à elaboração e ao desenvolvi-
mento de projetos voltados para a alocação de
recursos e para a realização de atividades
dirigidas para a ampliação de direitos e para a
auto-subsistência do grupo. Nesse contexto, as
demandas crescentes por educação no Estado,
por parte das sociedades indígenas, podem ser
compreendidas como um esforço de amplia-
ção do capital lingüístico dessas sociedades,
considerado de fundamental importância para
a formação das lideranças jovens, cujas fun-
ções se voltam para a intermediação das rela-
ções entre sociedades indígenas e o mundo
dos brancos.
17
Uma das lideranças entrevistadas afirma que “é por isso que o pessoal está na escola que existe em todo o Brasil para o índio”. Outra
ressalta a percepção de que “vale mais é o que está escrito” e que a comunicação oral “não vale para entidades do governo”. Por outro lado,
“um documento escrito, com assinatura, é válido”.
88
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89
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
A riqueza cultural brasileira, com mais de
duzentos povos indígenas e quase o mesmo nú-
mero de línguas indígenas, é imensa, e hoje se
reconhece que as escolas brasileiras deveriam
desde cedo incluir no seu currículo o conteúdo
dessa tradição milenar.
Houve um grande avanço no país na afirma-
ção dos direitos dos índios e de sua participação
na cidadania brasileira. Nos últimos vinte anos,
surgiram muitos projetos multiculturais e
multilíngües de Educação Indígena, impensáveis
há algumas décadas, quando praticamente to-
das as iniciativas educacionais entre os índios
eram de caráter religioso e feitas quase sempre
apenas em português.
A instituição pelo MEC dos Parâmetros Cur-
riculares Nacionais, em particular os referentes
a diversidade cultural, ampliou a consciência da
importância de conhecer em profundidade as
formas de vida e de pensamento dos índios. É
desde a infância que se criam atitudes de res-
peito à diferença e de combate ao racismo e ao
preconceito, ao desvendar e ao admirar o que são
os outros, em vez de ver como ameaçadores ou
desprezíveis conteúdos que não são bem com-
preendidos.
Já existe uma extensa documentação da tra-
dição cultural e da situação material dos índios,
e cresceu a reflexão sobre os limites e a combi-
nação possível entre a tradição e o conhecimen-
to na sociedade tecnológica. Além de pesquisa-
dores, estudiosos, antropólogos, hoje os índios
começam a escrever em suas línguas e em por-
tuguês e tomam a si a tarefa de expor sua visão
do mundo em trabalhos de boa qualidade.
Apesar de todos esses aspectos promissores,
não tem sido fácil promover no sistema educa-
cional um conhecimento aprofundado e verda-
deiro do mundo indígena, nem há tantos livros
e material didático para esse aprendizado.
A dificuldade em parte explica-se pela pró-
pria complexidade da vida e da cultura indíge-
nas, com características muito distintas das que
predominam na sociedade brasileira, exigindo,
para sua compreensão, um estudo e uma refle-
xão mais longos. Basta pensar, por exemplo, nos
muitos sistemas de parentesco, que por vezes são
análogos a modelos matemáticos, tão misterio-
sos para os que não são índios e tão fundamen-
tais e claros para cada povo. Ou nas relações so-
ciais igualitárias, sem propriedade, com coope-
ração comunitária, com rituais e produção en-
trelaçados, com economia, religião, arte e lazer
simultâneos, compondo um todo indissociável.
Ou, ainda, na religião e na feitiçaria, com os má-
gicos vôos xamânicos, o interesse pelo além e
pela vida depois da morte, pela influência de es-
píritos no quotidiano, pelas formas de cura e
explicações da doença ligadas ao sobrenatural,
às plantas, às aparições. Há, entre os índios, re-
gras de alimentação com proibições e prescri-
ções que não entendemos bem. Espanta-nos a
sexualidade relativamente mais livre, sem rou-
pas, sem censura na expressão do amor, do cor-
po, do contato físico, mas com muitas regras,
proibições e repressão. E assim muitos outros
aspectos parecem surpreendentes. Não se passa
tanta substância fascinante e sem semelhança
com o já conhecido se não houver um preparo e
uma decisão de tradução cultural.
A mitologia,
ou literatura indígena
A questão indígena é vasta, podendo ser exa-
minada sob vários ângulos. É sobre o uso da mi-
tologia indígena em sala de aula que este texto
procura concentrar-se.
Os mitos exercem um fascínio irresistível so-
bre adultos e crianças, desencadeiam imagens,
estimulam a curiosidade e o aprendizado. Con-
siderados a verdadeira história do mundo pelos
povos que os contam, uma tradição sagrada, são
uma maneira artística de começar a penetrar na
A questão indígena na sala de aula
Betty Mindlin
Iama
90
sociedade indígena e ir aprendendo seus costu-
mes.
1
Os temas são variadíssimos, e mesmo alguns
exemplos ao acaso dão idéia do interesse que po-
dem suscitar.
A criação da humanidade e do mundo apa-
rece com variações em praticamente todas as
mitologias. Às vezes, a idéia de infinito e de co-
meço inconcebível é clara: os Suruí, por exem-
plo, dizem que os quatro primeiros seres nas-
ceram de si mesmos. Simplesmente brotaram.
Dois deles, irmãos ou companheiros, é que cri-
aram tudo o que existe, sendo um mais sábio e
o outro provocando desastres e pregando pe-
ças; um mais ponderado e o outro malandro e
sem-vergonha, porém muito mais inventivo e
menos preguiçoso. É como se fossem sementes
do bem e do mal, mas sem este sentido
maniqueísta de oposição que existe, por exem-
plo, quando falamos de Deus e do Diabo. A du-
pla de irmãos ou companheiros existe em mui-
tos povos. São eles, por exemplo, que extraem a
humanidade do subterrâneo, povoando o mun-
do, em narrativas como as dos Kadiwéu, dos
Macurap, dos Tupari, dos Aruá, dos Jabuti e
muitos outros. Há povos, como os Gavião-
Ikolen, que acreditam que uma parte da huma-
nidade ainda está presa debaixo da terra e pode
ser ouvida. É que uma mulher grávida, ao sair,
ficou entalada em virtude do tamanho da bar-
riga, impedindo a passagem. Os Gavião acredi-
tam que é possível visitar, ainda hoje, a rocha
de onde emergiram os primeiros seres.
Outros povos têm uma explicação oposta a
essa para o nascimento da humanidade: os ho-
mens teriam vindo do céu, caindo no que é hoje
a terra, ao caçar um tatu num buraco, como rela-
tam os Kaiapó e muitos outros povos que falam
línguas do tronco jê. Ou pelo menos as primeiras
mulheres, no início inexistentes, teriam descido
dos céus, roubando a comida dos homens. Ao
serem surpreendidas, casaram-se com eles.
Os mitos sobre a origem da mulher são curi-
osos, indicando que mesmo na sociedade indí-
gena, mais igualitária que a nossa, os homens
têm precedência. É comum em vários povos di-
zer-se que não havia mulheres, que os criadores
viviam sozinhos com a mãe. Um deles namora
um oco de árvore (Suruí de Rondônia, por exem-
plo), e nove meses depois aparecem duas meni-
nas, cujo choro a mãe ouve. Nos Aruá, um dos
dois irmãos copulou com um monte de cupim,
engravidando a terra da humanidade, que se ori-
gina no subterrâneo. Em outros povos, como al-
guns do Xingu, as mulheres foram feitas de ár-
vores, ou de conchas, pelo grande Criador,
Mavutsinim.
Enquanto a Bíblia nada nos conta sobre a
origem dos órgãos sexuais e da cópula, esse é um
tema forte na mitologia indígena, podendo dar
ocasião, em sala de aula, a conversas muito vi-
vas sobre sexualidade e educação sexual.
Muitos povos dizem que antigamente os ho-
mens é que ficavam menstruados, e por várias
razões essa função passou às mulheres
(Macurap, Kaiabi, Suruí, Tupari, Gavião e Arara
de Rondônia, para dar apenas alguns exemplos).
Contam também que, inicialmente, os homens
namoravam as mulheres entre os dedos do pé,
até que os órgãos sexuais fossem inventados
como são hoje...
Temas predominantes são a origem da água,
1
Saber o que é o mito como forma de pensamento é uma das grandes preocupações de antropólogos e artistas, um debate que seria impossível
resumir em tão curto trabalho. Vale a pena, porém, reter uma definição sucinta publicada na
Nova Enciclopédia da Folha de S. Paulo
: “Mito:
narrativa tradicional sobre o passado que freqüentemente inclui elementos religiosos e fantásticos. Alguns tipos de mito são encontrados em
todas as sociedades, embora funcionem de diferentes maneiras em cada uma delas. Os mitos podem tentar explicar a origem do universo e da
humanidade, o desenvolvimento de instituições políticas ou as razões das práticas rituais. Os mitos muitas vezes descrevem as façanhas de
deuses, de seres sobrenaturais ou de heróis que têm poderes suficientes para se transfigurar em animais e para executar outras proezas
extraordinárias. Antropólogos passaram muito tempo tentando diferenciar mito de história, mas a história pode exercer as mesmas funções do
mito, e os dois tipos de narrativa sobre o passado algumas vezes se confundem. Teóricos como Frazer interpretavam os mitos como formas de
antigos pensamentos científicos ou religiosos. Essa abordagem foi posteriormente criticada por Malinowski, que via o mito como explicação
para a ordem social. O historiador romeno norte-americano Mircea Eliade (1907-1986) via o mito como um fenômeno religioso, isto é, como a
tentativa de o homem retornar ao ato original da criação. Lévi-Strauss afirmou que a importância do mito não está em seu conteúdo, mas em sua
estrutura, uma vez que ela revela processos mentais universais. Em Psicologia, os mitos são vistos como uma importante base para o compor-
tamento humano. Tanto Freud quanto Jung utilizaram largamente os mitos em seus trabalhos. Quaisquer que sejam as teorias a respeito das
origens e das funções dos mitos, esses permanecem fundamentais para a consciência humana.
91
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
em geral privilégio de algum deus ou espírito so-
vina, ou o roubo do fogo, pertencente a animais
avaros que o escondiam (o urubu, a onça, o sapo,
o jacaré e muitos outros), o aparecimento dos
alimentos básicos como mandioca, milho, feijão,
a invenção da caça (gente que vai se transfor-
mando em animais, esses quase sempre tendo
sido originariamente seres humanos).
Catástrofes surgem nos enredos: dilúvios,
incêndios exterminadores, castigos em virtude
de incestos (embora muitas vezes a humanida-
de recomece também com um incesto). Fenô-
menos cósmicos são explicados, como o
surgimento da Lua ou do Sol, e há explicações
que ligam a origem física à estrutura social. As-
sim, é freqüente, por exemplo, a lua originar-se
de um incesto entre irmão e irmã.
Muitos mitos contam a separação entre o céu
e a terra, que no início dos tempos seriam uni-
dos. Parte da humanidade sobe por um cipó, que
tem o papel de escada, e os cantos de pajés fa-
zem o céu afastar-se. Há mitos em que o céu
ameaça cair sobre a terra e exterminar os mor-
tais, fazendo-nos lembrar do mito bíblico da
queda do paraíso, do fim da vida perfeita em que
céu e terra eram um só. Entre os Guarani ou os
Tukano, há esteios que seguram o céu, mito que
é reproduzido na arquitetura das casas, e em
muitas mitologias uma grande árvore, que al-
guns seres maléficos ameaçam derrubar, é que
segura o céu e impede um desastre final.
Poderíamos falar também da origem da diver-
sidade lingüística, com os dois criadores compa-
nheiros ensinando a língua: um deles, a mesma a
todos os homens; o outro, o sem-vergonha, uma
língua diferente a cada povo que emerge do sub-
terrâneo (tradição dos Macurap, Tupari, Arikapu,
Gavião-Ikolen e muitos outros), criando o desen-
tendimento entre etnias. Versão da torre de Babel
que atribui diretamente aos deuses a responsa-
bilidade pela incompreensão universal...
Outra vertente importante da tradição indí-
gena é a que diz respeito à vida depois da morte.
Os povos indígenas ocupam-se muito do que
ocorre com o além, que não é um domínio mui-
to destacado da vida quotidiana. Os pajés per-
correm a estrada das almas, em reinos míticos
dos céus, das águas ou da floresta, para curar os
mortais. Transformam-se em animais, fazem
vôos e andanças mágicas para buscar espíritos e
convencê-los a curar as doenças. A cura não ter-
mina na morte – ao contrário, é na fusão de mor-
te e vida, na crença na alma que são encontra-
dos recursos para prolongar o tempo de vida. A
poesia e a magia da espiritualidade indígena são
um contraponto à homogeneidade religiosa im-
posta por doutrinas de religiões monoteístas,
apresentadas como verdade única. Quem ouvir
e imbuir-se do clima das narrativas de pajés aca-
bará por julgá-los mais atraentes que padres ou
pastores, fará a analogia com pais e mães de san-
to, com fios culturais que guiam grande número
de brasileiros.
A lista de temas e exemplos poderia esten-
der-se por muitas páginas e horas sem diminuir
o encantamento. O que tem aparecido em ma-
terial publicado, em antologias escolares, é ape-
nas uma pequena amostra, um punhado de ter-
ra de uma gigantesca montanha.
Formas de transmissão
dos mitos
Para o aprendizado nas escolas, é preciso in-
sistir muito em ter qualidade nas narrativas a
serem divulgadas. Complexas como são, de
modo algum devem ser simplificadas nem obs-
curecer a riqueza original que têm nos povos de
origem, com sua substância tão inimaginável
dentro do repertório que construímos a partir de
uma tradição européia, judaico-cristã,
tecnológica e industrial. Preservar a fidelidade
ao conteúdo básico é fundamental.
Os mitos são contados, sua transmissão é
oral, e esse caráter é precioso em si, não deveria
ser perdido com a passagem para a escrita. A fa-
cilidade de falar e persuadir que têm os índios é
um traço a ser aprendido, multiplicado,
metamorfoseado em uma nova tradição literá-
ria a ser construída. Vale a pena incorporar ao
português bem escrito o estilo das narrativas in-
dígenas, influenciado pela estrutura de línguas
tão diferentes.
Todos esses aspectos, nada fáceis de levar em
conta e de tornar concretos, são cruciais para a es-
colha do material didático. Ao mesmo tempo, é
preciso que a leitura seja compreensível, que os
professores sejam preparados para deixar de lado
92
preconceitos e penetrar em mundos diferenciados.
A sexualidade marcante que caracteriza os
mitos é um desafio constante quando se pensa
em difundir as narrativas indígenas nas institui-
ções escolares. Na sociedade indígena, há gran-
de liberdade no que diz respeito ao corpo, à ex-
pressão verbal do amor, da fisiologia, dos impul-
sos e desejos – pouca ou nenhuma censura, um
clima lúdico, de brincadeiras e risadas. Atitudes
que podem entrar em choque com o moralismo
de grande parte do sistema educacional – tão
falso quando se pensa na violência da cultura de
massas. É preciso inventar formas de expandir e
manter a liberdade, em vez de banir a diferença.
Para as crianças, as histórias engraçadas sobre o
corpo humano ou sobre a sexualidade exercem
grande fascínio e abrem portas para conversas e
conhecimentos que mobilizam muitas emoções.
Literatura indígena disponível
e sugestões para ampliar a
elaboração de documentação
Há duas antologias de mitos indígenas bas-
tante conhecidas, a de Alberto da Costa e Silva e
a de Herbert Baldus. Ambas se baseiam em pes-
quisas de antropólogos de qualidade e não re-
criam os textos, apenas os reproduzem. São tra-
balhos que deveriam continuar a serem usados.
Entre os livros escritos pelos índios, com apoio
de antropólogos, são excelentes os mitos dos
Kaxinawá e dos Xavante.
As antologias que eu mesma preparei a partir
dos relatos, em muitas línguas, de narradores in-
dígenas, que são os verdadeiros autores e rece-
bem os direitos autorais, podem parecer longas
ou complicadas demais, mas penso que a maio-
ria dos mitos é de fácil compreensão para crian-
ças, com exceção do livro com conteúdo sexual
mais forte, por vezes violento, que é Moqueca de
maridos. Mesmo esse, se os professores forem
preparados para explicá-lo, poderia ter utilização.
A última antologia, O primeiro homem, que re-
produz textos e não é, como as outras, uma pes-
quisa original, foi feita com o fim precípuo de uso
em sala de aula, sendo sem dúvida de fácil com-
preensão. Um livro encantador, embora difícil de
encontrar e que deveria ser reeditado é de mitos
dos Karajá, de João Américo Peret.
Os livros de Darcy Ribeiro, como Os Kadiwéu
ou Diários índios, têm mitos que poderiam ser
facilmente lidos nas escolas sem alteração, bas-
taria editá-los separadamente. Os mitos escritos
pelos irmãos Villas Bôas certamente poderiam
ser lidos.
Muitas outras obras são importantíssimas,
mas de leitura bastante difícil, como as que exis-
tem sobre os Guarani ou sobre os Tukano, como
o livro de Berta Ribeiro ou o de Stradelli. Há mui-
tos mitos esparsos em teses e monografias sobre
os índios, como as histórias Yanomami documen-
tadas por Bruce Albert ou Jacques Lizot, mas que
não foram publicadas em português e com o tem-
po poderiam aparecer em antologias.
O importante seria realizar oficinas com os
professores, aprofundando o conhecimento das
sociedades indígenas, estimular pesquisas, do-
cumentando a tradição ainda viva entre os índi-
os, e elaborar livros didáticos que mantivessem
o conteúdo, o caráter e a forma própria das his-
tórias indígenas. Certamente a participação cres-
cente dos índios nesses trabalhos há de enrique-
cer o resultado.
Algumas sugestões de leitura
BALDUS, Herbert.
Estórias e lendas dos índios
. São Paulo:
Edigraf, 1963.
COSTA E SILVA, Alberto da.
Antologia de lendas do índio
brasileiro
. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.
MINDLIN, Betty.
Tuparis e Tarupás.
São Paulo: Brasiliense/
Edusp/Iama, 1993.
.
O primeiro homem.
São Paulo: Cosac & Naify,
2001.
MINDLIN, Betty e narradores indígenas.
Vozes da origem
.
São Paulo: Ática/Iama, 1996.
.
Moqueca de maridos.
Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos/Record, 1997.
.
Terra grávida.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tem-
pos/Record, 1999.
MINDLIN, Betty; GAVIÃO, Catarino Sebirop; GAVIÃO, Digüt
Tsorobá e outros narradores indígenas.
Couro dos espí-
ritos
. São Paulo: Senac/Terceiro Nome, 2001.
PERET, João Américo.
Mitos e lendas Karajá, Inã Son Wera.
Rio de Janeiro: Edição do autor, 1979.
SEREBURÃ; HIPRU; RUPAWÊ; SEREZABDI; SEREÑIMIRÃMI;
WAMRÊMÉ ZA’RA
. Nossa palavra.
Mito e história do povo
Xavante
.
Trad. de Paulo Supretaprã Xavante e Jurandir
Siridiwê Xavante. São Paulo: Senac/SP, 1998.
93
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
SHENIPABU MIYUI.
História dos antigos.
(Autoria coletiva
da Organização dos Professores Indígenas do Acre) 2.
ed. rev. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000.
VILLAS BÔAS, Orlando; VILLAS BÔAS, Cláudio.
Xingu, os
índios, seus mitos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
Algumas fontes importantes
ABREU, Capistrano de.
Rã-txa hu-ni-ku-i
. Rio de Janeiro:
Livraria Briguiet, 1941.
AGOSTINHO, Pedro.
Mitos e outras narrativas Kamaiurá.
Sal-
vador: Universidade Federal da Bahia, 1974.
CADOGAN, León.
Ayvu
Rapyta.
Textos míticos de los Mbyá-
Guaraní del Guairá. Edição preparada por Bartomeu
Melià. Assunção/Paraguai: Ceaduc-Cepag, 1992.
CLASTRES, Pierre.
A fala sagrada
. Campinas: Papirus, 1990.
NIMUENDAJU UNKEL, Curt.
As lendas da criação e des-
truição do mundo como fundamentos da religião dos
Apapocuva-Guarani
. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1987.
NUNES PEREIRA.
Moronguêtá, um Decameron indígena.
Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 2 v.
RIBEIRO, Darcy.
Kadiwéu
. Petrópolis, Vozes, 1980.
___________.
Diários índios.
Os Urubus-Kaapor
.
São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
RODRIGUES, J. Barboza.
Poranduba amazonense
. Rio de
Janeiro: Typographia Leuzinger, 1890.
STRADELLI, Ermanno.
“La leggenda del Jurupary” e outras
lendas amazônicas
. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-
Brasileiro. 1964. Caderno 4.
UMÚSIN PANLÕN KUMU; TOLAMÃN KENHÍRI.
Antes o mun-
do não existia.
São Paulo: Cultura, 1980. Introdução de
Berta G. Ribeiro.
A imagem do índio e o mito da escola
José Ribamar Bessa Freire*
* O autor é ex-professor da Universidad Nacional de Educación e da PUC/Peru (Lima-Peru, 1974-1976) e da Universidade do Amazonas
(Manaus, 1977-1986). Lecionou, entre outras, as disciplinas Etno-história, História do Amazonas e Etnoeducação. Fundou e foi o primeiro
editor do
Porantim
, jornal do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dedicado à causa indígena. Atualmente, é professor da Uni-Rio e da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena desde 1992 o Programa de Estudos dos Povos Indígenas. Realizou seus
estudos de graduação na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1966-1969) e de pós-graduação no Irfed
(1970-1973), em Paris, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (1980-1983). Publicou artigos em revistas especializadas
nacionais e estrangeiras (França, Alemanha, Japão, México, Venezuela e Peru) relacionados à temática de história indígena, e coordenou
vários projetos de pesquisa, entre os quais o Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em arquivos do Rio de Janeiro,
elaborado nacionalmente pelo Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP.
Resumo
Este trabalho discute as representações sobre
o índio construídas pela escola no Brasil, formulan-
do algumas indagações relativas à imagem do ín-
dio difundida em sala de aula após a promulgação
da Constituição Federal (1988) e depois da publi-
cação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997-
1998). Toma como referência para suas reflexões a
prática dos professores de alguns municípios do Rio
de Janeiro, com os quais o autor trabalhou nos últi-
mos três anos, em oficinas destinadas a repensar a
temática indígena em sala de aula. Recupera, ainda,
o discurso feito pelos índios sobre a escola, desta-
cando a narração mítica andina, que focaliza essa
instituição como devoradora” da identidade étnica
e da própria identidade nacional. Enfatiza, finalmen-
te, alguns equívocos sobre os índios que a escola
continua veiculando, o que poderia deixar de ocor-
rer se o caráter intercultural presente nas escolas in-
dígenas fosse ampliado para todo o sistema nacio-
nal de educação escolar.
94
Introdução
Nas aldeias dos Guarani Mbyá, localizadas
nos municípios de Angra dos Reis e Parati, RJ,
funcionam três escolas indígenas, cujas ativi-
dades são apoiadas, entre outras instituições,
pela Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro. Preocupada com a formação de professo-
res indígenas, a UERJ editou, em convênio com
o FNDE, um livro paradidático intitulado Os
aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro (Freire
e Malheiros, 1997), com base em documenta-
ção manuscrita encontrada em arquivos
fluminenses pelos pesquisadores do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas (Pró-Índio).
A intenção do livro é valorizar os saberes
indígenas e redimensionar a contribuição his-
tórica dos índios para a cultura regional. Por
isso, sua distribuição começou pelas escolas
indígenas e pelos professores Guarani. Ao re-
ceber seu exemplar, o responsável pela Esco-
la Kyringue Yvotyty, Algemiro Poty, depois de
uma rápida leitura, agradeceu educadamente,
sugerindo, no entanto, com um leve tom de
ironia, que o livro fosse distribuído às esco-
las do “Juruá” (do branco), onde poderia ser
mais útil:
O que está escrito neste livro o nosso aluno
já sabe; ele aprendeu a ter orgulho de ser
Guarani. Mas cada vez que sai da aldeia e vai
vender artesanato em Angra ou em Parati, ele
desaprende lá tudo o que aprendeu aqui. Essa
lição está no olho do “Juruá”, que trata o Guarani
como inferior. A escola do “Juruá” não ensina
pros seus alunos quem somos nós e nem mos-
tra a importância dos índios para o Brasil. Aí, o
aluno que sai dessa escola trata o índio com
desprezo, com preconceito, e aí acaba ensinan-
do a gente a ter vergonha de ser índio, estra-
gando todo o trabalho da escola Guarani. Por
isso, é bom levar esse livro pra lá, pra escola
dos brancos, pra ver se eles aprendem a conhe-
cer o índio e a tratar a gente com respeito.
Os argumentos de Algemiro Poty foram tão
convincentes que a UERJ decidiu seguir a re-
comendação dele, criando novas atividades de
extensão destinadas a professores do Ensino
Fundamental de vários municípios do Rio de
Janeiro, com o objetivo de repensar com eles a
questão indígena na sala de aula. Dessa forma,
nos últimos três anos, o Pró-Índio da UERJ re-
alizou inúmeras oficinas, começando justa-
mente com os professores não-índios de An-
gra e Parati, cuja população tem contato siste-
mático com os Guarani. O resultado desse tra-
balho permitiu-nos elaborar algumas refle-
xões, que aqui apresentamos para o debate,
discutindo tanto a imagem do índio construída
pela escola como a representação da escola
elaborada pelos índios.
A imagem do índio
construída pela escola
A quase totalidade da população brasileira
jamais visitou uma aldeia indígena nem teve
contato pessoal com qualquer índio. A repre-
sentação que cada brasileiro tem do índio,
como regra geral, é aquela que lhe foi transmi-
tida na sala de aula pelo professor, com a aju-
da do livro didático, e é reproduzida pela
mídia. Dessa forma, cabe à escola uma grande
responsabilidade na construção da imagem
que os brasileiros têm sobre os índios e sobre
si mesmos como produtos que são, entre ou-
tras, da matriz cultural indígena.
Sobre esse papel da escola, foram realiza-
dos dois diagnósticos – o primeiro publicado
em 1987 e o segundo em 1995 – que constitu-
em referências obrigatórias para o tema. No
espaço de tempo entre um e outro, surgiu a
nova Constituição Federal, promulgada em
1988, registrando alguns avanços significati-
vos nas relações do Estado com as minorias
étnicas. É interessante indagar se os especia-
listas detectaram mudanças substanciais nes-
se período.
O primeiro levantamento da situação, or-
ganizado por Aracy Lopes da Silva, da Comis-
são Pró-Índio de São Paulo (Silva, 1987), con-
tém críticas aos manuais didáticos, além de
propostas para um novo tratamento da ques-
tão, formuladas por nove pesquisadores. A
conclusão é que, embora não exista uma ima-
gem única do índio no livro didático, o que
predomina é uma representação no mínimo,
95
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
enganadora e equivocada. São afirmações
inexatas, detalhes exóticos e incompreensíveis,
projeções de valores estranhos, todos eles
apresentando o índio como ser inferior” (Sil-
va, 1987: 40 e 89).
Oito anos depois, apesar das novas diretri-
zes constitucionais, a situação não havia mu-
dado substancialmente. O segundo diagnósti-
co, organizado pelo Mari – Grupo de Educa-
ção Indígena da USP –, com artigos de 22 es-
pecialistas, reafirma o que havia sido assina-
lado anteriormente. Constatou-se a amplia-
ção, nos últimos anos, do número daqueles
que escrevem sobre os índios, o que não con-
tribuiu, no entanto, para alterar o quadro de
desinformação, marcado pelo preconceito e
pela discriminação, porque os manuais didá-
ticos ainda tratam os índios, suas sociedades
e seu papel na história a partir de formulações
esquemáticas e baseadas em pressupostos ul-
trapassados (Silva e Grupioni, 1995: 30, 483).
Os dois diagnósticos destacam o fato de que,
no Brasil, a escola tem contribuído historica-
mente para apagar a participação dos diferen-
tes povos indígenas na formação cultural bra-
sileira, com conseqüências graves não apenas
para a sociedade nacional, mas também para
os próprios índios que com ela hoje interagem.
Depois desses dois balanços, foram elabo-
radas as propostas dos Parâmetros Curricula-
res Nacionais para o ensino de 1ª a 4ª séries
(1997) e de 5ª a 8ª séries (1998), os Referenciais
para Formação de Professores (1999) e os Parâ-
metros em Ação (1999), destinados a apoiar a
capacitação profissional de professores e espe-
cialistas em educação. São documentos que in-
corporaram conquistas significativas, reconhe-
cendo o caráter pluricultural da sociedade bra-
sileira e posicionando-se claramente contra
qualquer discriminação baseada em diferenças
culturais, de classe social, de crenças, de sexo e
de etnia” (SEF, 1997). Sugerem, por exemplo, no
eixo temático referente à história local e do co-
tidiano, que a escola identifique os grupos in-
dígenas da região e que, ali onde existem aldei-
as indígenas, se realizem visitas a elas, para co-
nhecer melhor o seu modo de vida social, eco-
nômico, cultural, político, religioso e artístico
(SEF, 1997, p. 54-55, v. 5).
Seria recomendável proceder a um exame
mais detalhado para avaliar se essas propos-
tas, de alguma forma, foram traduzidas em
ações concretas, com resultados palpáveis so-
bre a imagem do índio, que é veiculada em sala
de aula. Essa avaliação, evidentemente, não
pode se limitar ao registro das mudanças no
livro didático, na estrutura curricular, na
metodologia de ensino ou na conduta do pro-
fessor, mas deve prospectar entre os próprios
índios, pois eles – quando em situação de con-
tato – constituem os indicadores mais interes-
santes sobre como o sistema nacional de edu-
cação está se comportando em relação à ques-
tão indígena. Eles sabem, pelo olhar do bran-
co” que com eles interage, se essa imagem con-
tinua sendo preconceituosa ou não.
No caso muito particular dos dois muni-
cípios do Rio de Janeiro onde atualmente exis-
tem aldeias indígenas – Angra dos Reis e Parati
–, algum esforço foi feito para a atualização dos
professores e para um contato direto e mais
qualificado dos seus alunos com essas aldeias.
Apesar disso, vários índios, como Algemiro
Poty, tendo como base a sua experiência pes-
soal, continuam desconfiando da escola bra-
sileira e do papel que ela desempenha, hoje,
no Brasil, o que parece confirmar as suspeitas
já manifestadas por índios de outras regiões do
continente americano.
A imagem da escola
construída pelo índio
Numa intervenção realizada no 10º Con-
gresso de Leitura do Brasil (Cole), realizado em
Campinas em julho de 1995, o professor
Kaingang Bruno Ferreira, integrante do Comi-
tê de Educação Escolar Indígena do MEC,
questionou o papel da escola:
[...] os índios não sabem para que serve uma
escola; eles não conhecem a escola; não sabem
quais os objetivos da escola; o que ela quer fa-
zer lá; se quer melhorar ou quer piorar, ou quer
afundar ou quer acabar ou quer exterminar os
índios, ninguém sabe. Mas quem coloca a esco-
la sabe o que quer com a escola (D’Angelis e
Veiga, 1997: 214).
96
Representação similar da escola pode ser
observada em outros discursos, como na conhe-
cida carta em que os índios norte-americanos
das Seis Nações agradecem, mas rejeitam as
vagas oferecidas no Colégio de Williamsburgo
pelo governo da Virgínia em 1774, porque –
como afirmaram – tinham concepções diferen-
tes sobre educação:
Muitos dos nossos jovens foram educados
por vossos professores nos colégios das pro-
víncias setentrionais e aprenderam as vossas
ciências. Mas, quando eles regressaram para
nós, já não eram ligeiros na corrida, esquece-
ram a maneira de viver a vida da floresta e tor-
naram-se incapazes de suportar o frio e a fome.
Não sabiam construir uma cabana, colher um
fruto, caçar um animal, matar um inimigo e fala-
vam a nossa língua muito mal. Eles eram, por-
tanto, absolutamente inúteis: não serviam como
guerreiros, como caçadores, nem como conse-
lheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela
vossa oferta e, embora não possamos aceitá-
la, para mostrar a nossa gratidão, oferecemos
aos nobres senhores da Virgínia que nos envi-
em alguns dos seus jovens, que lhes ensinare-
mos tudo o que sabemos e faremos deles ho-
mens (Vanderwert, 1971).
No mundo andino, os índios também cons-
truíram vários discursos sobre a escola, mere-
cendo ser aqui lembrado o discurso mítico,
porque reflete uma visão mais “universal” so-
bre as formas como essa instituição se tem re-
lacionado com a alteridade e com a diferença.
Embora tenha sido produzido por cultura bas-
tante diferente daquelas que viviam em terri-
tório brasileiro, esse discurso situa a escola
como a grande devoradora das identidades in-
dígenas, revela o quanto os índios se sentem
enganados por ela e destaca, até mesmo, a fun-
ção aniquiladora do livro didático.
O mito da escola” – tradição oral andina
da região de Ayacucho (Peru) que vem sendo
transmitida desde o período colonial – preten-
de explicar as origens e as causas do medo e,
às vezes, do ódio que as crianças sentem,
freqüentemente, em relação à escola. Uma de
suas versões foi narrada, em quéchua, por
Isidro Huamani e registrada em 1971 pelo an-
tropólogo peruano Alejandro Ortiz (Ortiz,
1973: 244).
De acordo com essa narração mítica, o Cria-
dor do mundo, depois de completar sua obra, teve
dois filhos. O primogênito, chamado Inka, casou-
se com a Mãe Terra – a
Mama Pacha –
com quem
teve também dois filhos, a quem ensinou a falar,
a cultivar a terra e a domesticar os animais, sem
necessidade da escola. Com isso, despertou
muita inveja em seu irmão mais novo, chamado
Sucristo, que, cheio de ódio, matou o Inka e es-
pancou
Mama Pacha
, cortando-lhe o pescoço e
ferindo-a mortalmente.
As duas mortes foram comemoradas por
Ñaupa Machu,
que até então vivia escondido
numa montanha chamada Escola, sem poder
mostrar sua cara. Quando saiu de seu esconde-
rijo, viu os dois filhos do Inka andando à procura
do pai e da mãe. Detentor da informação sobre o
destino deles,
Ñaupa Machu/Escola
, sedutora-
mente lhes disse:
Venham aqui, crianças, venham, que eu vou
contar para vocês onde estão o Inka e a Mama
Pacha
.
Os meninos, muito contentes, obedeceram.
Foram à Escola em busca de notícias de seus
pais. Para confundi-los,
Ñaupa Machu
apresen-
tou-lhes uma versão deturpada dos fatos:
O Inka está vivo e ficou amigo de Sucristo.
Os dois estão unidos, vivendo juntos, como dois
irmãozinhos. Olhem no livro. Leiam aqui. Está
tudo escrito aqui.
Os meninos, desconfiando da mentira, fugi-
ram porque compreenderam que se tratava de
uma armadilha. A verdadeira intenção de
Ñaupa
Machu
era devorá-los.
A raiz da rejeição à escola está nesse mo-
delo, simbolizado na fuga das crianças. Os te-
mas clássicos tradicionais e coletivos da mito-
logia andina estão presentes nesse relato, cuja
visão sobre a escola pode, no entanto, ser ge-
neralizada para outros contextos.
Todos esses discursos formulados pelos ín-
dios, míticos ou não, acabam representando a
escola como devoradora” não apenas da iden-
tidade étnica, mas da própria identidade na-
cional, uma vez que ela oculta as matrizes for-
madoras desta última e falsifica sua procedên-
cia. No caso do mito andino, com a promessa
97
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
de contar-lhes a verdade sobre seus pais e so-
bre suas origens, a escola atrai os que estão em
busca dessa informação, mas o que faz, na re-
alidade, é criar uma armadilha para apagar a
memória e organizar o esquecimento coletivo,
de forma planejada. Dessa maneira, exerce um
controle quase absoluto sobre a memória, uti-
lizando a escrita como instrumento para legi-
timar os enganos sobre o passado, a genea-
logia, os ancestrais, as raízes culturais, enfim,
a própria identidade.
Os enganos da sala de aula
No Brasil, sobre os índios, existem alguns
equívocos profundamente enraizados na cons-
ciência da sociedade e dos professores que dela
fazem parte. Eles já foram identificados e dis-
cutidos pelos especialistas, embora essa dis-
cussão não tenha chegado até a sala de aula.
Gostaríamos de destacar alguns desses equí-
vocos que persistem em diversos municípios
do Rio de Janeiro, de acordo com as observa-
ções realizadas durante as oficinas com pro-
fessores do Ensino Fundamental no período de
1997 aos dias atuais (Freire, 2000).
1
º
equívoco: culturas atrasadas. Os povos
indígenas produziram no passado e conti-
nuam produzindo no presente saberes, ci-
ências, arte refinada, literatura, poesia, mú-
sica, religião, mas o desconhecimento dis-
so faz que a escola continue veiculando a
imagem de que essas culturas são primiti-
vas e atrasadas. De todos os equívocos di-
fundidos pela escola e pela mídia, esse tal-
vez seja o que está mais internalizado. As
línguas indígenas, por exemplo, continuam
sendo vistas como línguas “inferiores, po-
bres, atrasadas, da mesma forma que as
religiões. Não importa se os Guarani Mb
são considerados pelos estudiosos como os
teólogos da América. A população regio-
nal de Angra e Parati continua vendo essas
práticas religiosas como manifestações de
superstição, o que é reforçado, lamentavel-
mente, pela escola, que ignora como a reli-
gião tradicional Guarani é responsável pelo
ensino da convivência com os outros, da
tolerância, da generosidade e da solidarie-
dade. Os saberes indígenas também são tra-
tados de forma preconceituosa pela escola
e pela sociedade brasileira. Os conhecimen-
tos indígenas são desprezados, como se fos-
sem a negação da ciência e da objetividade.
O preconceito, reproduzido pela escola, tem
impedido que a sociedade brasileira usufrua
do legado cultural acumulado durante mi-
lênios, inclusive da arte e da literatura indí-
genas. A sofisticada literatura Guarani, por
exemplo, continua fora da sala de aula. As
várias formas de narrativa e de poesia indí-
gena, transmitidas oralmente, não são con-
sideradas como parte da história da litera-
tura nacional, não são veiculadas nas esco-
las, não são reconhecidas e valorizadas.
2
º
equívoco: culturas congeladas. O segun-
do equívoco é o congelamento das culturas
indígenas. A escola continua reproduzindo
a imagem do índio segundo a descrição de
Pero Vaz de Caminha. E essa imagem foi
congelada. Qualquer mudança nela provo-
ca estranhamento. No caso dos Guarani de
Angra e Parati, como não se enquadram
mais nessa imagem, têm sua identidade
questionada. O “índio autêntico” é o índio
de papel da carta de Caminha, não aquele
índio de carne e osso que vende artesanato
na estrada Rio–Santos. Dessa forma, a escola
não trabalha aquela idéia defendida por
Octávio Paz de que as civilizações não são
fortalezas, mas encruzilhadas, de que ne-
nhuma cultura vive isolada, fechada entre
muros de uma fortaleza. Historicamente,
cada povo mantém contato com outros po-
vos. Às vezes essas formas de contato são
conflituosas, violentas. Às vezes, são coope-
rativas, estabelece-se o diálogo, a troca. Em
qualquer caso, os povos influenciam-se
mutuamente. Mas a escola não trabalha
com o conceito de interculturalidade, que
nos permite pensar e entender esse proces-
so, entendendo por interculturalidade não
apenas uma mera transferência de conteú-
do de uma cultura para outra, mas uma
construção conjunta de novos significados,
em que novas realidades são construídas,
sem que isso implique abandono das pró-
prias tradições. Essa liberdade de transitar
em outras culturas que gostamos de usu-
fruir, a escola não concede aos índios, quan-
do congela suas culturas.
98
3
º
equívoco: o índio genérico. Apesar de
existir uma literatura expressiva em sen-
tido contrário, a escola continua transmi-
tindo para a maioria dos brasileiros a
imagem de que os índios constituem um
bloco único, com a mesma cultura, com-
partilhando as mesmas crenças, a mesma
língua, os mesmos costumes. Hoje, vivem
no Brasil cerca de 220 etnias, falando 188
línguas diferentes. Cada povo desse tem
sua língua, sua religião, sua arte, sua ci-
ência, sua dinâmica histórica própria,
que são diferentes de um povo para ou-
tro. No entanto, essa identidade étnica
particular é diluída dentro da classifica-
ção genérica de “índio. Tanto o profes-
sor como os livros didáticos não distin-
guem, para o caso do Rio de Janeiro, os
Guarani de hoje dos Tupinambá, dos
Goitaká ou dos Puri de ontem.
4
º
equívoco: o índio pertence ao passado.
O quarto equívoco consiste em situar os
índios no passado do Brasil e, dessa for-
ma, considerá-los como a negação da
modernidade. Num texto de 1997 sobre a
biodiversidade vista do ponto de vista de
um índio, Jorge Terena escreveu que uma
das conseqüências mais graves do colo-
nialismo foi justamente taxar de primiti-
vas” as culturas indígenas, considerando-
as como obstáculo à modernidade e ao
progresso.
[Eles] vêem a tradição viva como primitiva,
porque não segue o paradigma ocidental. As-
sim, os costumes e as tradições, mesmo sen-
do adequados para a sobrevivência, deixam
de ser considerados como estratégia de futu-
ro, porque são ou estão no passado. Tudo
aquilo que não é do âmbito do Ocidente é
considerado do passado, desenvolvendo uma
noção equivocada em relação aos povos tra-
dicionais sobre o seu espaço na história
(Terena, 1997: 5).
Os índios, é verdade, estão encravados no
nosso passado, mas integram o Brasil mo-
derno, de hoje, e não é possível imaginar-
mos o Brasil no futuro sem a riqueza das
culturas indígenas. Mas esse aspecto é ig-
norado pela escola.
5
º
equívoco: o brasileiro não é índio. Por úl-
timo, o quinto equívoco difundido ainda
hoje pela escola é não considerar a existên-
cia do índio na formação da identidade na-
cional. Há quinhentos anos, não existia no
planeta Terra um povo com o nome de povo
brasileiro. Esse povo novo foi se formando
nos últimos cinco séculos com a contribui-
ção, entre outras, de três grandes matrizes:
européias, africanas e indígenas. A tendên-
cia da escola continua sendo identificar o
brasileiro apenas com a matriz européia,
ignorando as contribuições das culturas
africanas e indígenas na sua formação.
Dessa forma, essa visão escolar acaba re-
duzindo e empobrecendo o Brasil, porque
apresenta aquilo que é apenas uma parte,
como se fosse o todo.
Considerações finais
Com essas idéias equivocadas difundidas
pela escola, não é possível entender o Brasil
atual. O desconhecimento da história indíge-
na dificulta a explicação do Brasil contempo-
râneo, já que as sociedades indígenas consti-
tuem um indicador extremamente sensível da
natureza da sociedade que com elas interage.
A sociedade brasileira desnuda-se e revela-se
no relacionamento com os povos indígenas. É
aí que o Brasil mostra a sua cara. Nesse senti-
do, tentar compreender as sociedades indíge-
nas não é apenas procurar conhecer o outro,
o diferente, mas implica conduzir as indaga-
ções e as reflexões sobre a própria sociedade
em que vivemos.
O professor Guarani Algemiro Poty, em sua
fala transcrita no início desta comunicação,
chama a atenção para o fato de que pouco adi-
anta criar uma escola indígena diferenciada,
específica, bilíngüe e intercultural, como es-
tabelece a lei, se a escola brasileira, que com
ela convive, continua sendo monocultural e,
sobretudo, etnocêntrica. Nessa perspectiva,
não é só a escola indígena que deve ser
intercultural, mas todo o sistema nacional de
educação. Da mesma forma que os índios –
graças à proposta de um currículo inter-
cultural em suas escolas – são orientados para
conviver com a sociedade regional envol-
99
A questão indígena na sala de aula
PAINEL 1
vente, os brasileiros também estariam mais
habilitados para um contato qualificado com
os índios se freqüentassem uma escola inter-
cultural, sem a qual não é possível sequer um
conhecimento mais profundo da própria
identidade nacional.
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101
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
22
22
2
AS EXPERIÊNCIAS DOS
CONSELHOS ESTADUAIS DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
Elias Renato da Silva Januário
102
O estado do Amazonas possui a maior po-
pulação indígena do país. De fato, os dados es-
tatísticos comprovam as características e as ri-
quezas étnicas do Amazonas, onde vive 30% de
toda a população indígena existente no Brasil,
hoje estimada em 330 mil índios. Um universo
cultural diversificado, com 62 etnias diferentes,
que marca todo um processo de luta pela sobre-
vivência empreendida durante séculos por esses
povos diante do contato com o não-índio.
É na valorização desse rico contexto étnico
que reside toda a preocupação do governo do es-
tado do Amazonas em procurar mecanismos e
não medir esforços para que se institua uma po-
lítica pública concreta em atenção às comunida-
des indígenas presentes em nosso estado. Essa
preocupação tornou-se evidente quando o gover-
nador Amazonino Mendes criou, em maio de
1998, o Conselho Estadual de Educação Escolar
Indígena (CEEEI/AM), em atendimento a uma
antiga reivindicação das comunidades indígenas.
Dos seus 27 conselheiros, a maioria é composta
por lideranças indígenas. Esses conselheiros in-
dígenas recebem ajuda financeira do estado para
desenvolver trabalhos de acompanhamento de
projetos, levantamento da realidade socioeduca-
cional de sua comunidade, como também o apoio
para a realização de encontros pedagógicos. Isso
tem dado grande importância e representati-
vidade aos conselheiros indígenas. Essa repre-
sentatividade também só foi possível por meio de
um processo de escolha em que a própria comu-
nidade indígena elege seu representante, e a di-
visão por sub-regiões, como Alto e Médio Rio
Solimões, Alto, Médio e Baixo Rio Madeira, Alto e
Médio Rio Negro e Baixo Rio Amazonas, propor-
ciona uma melhor representação dos vários gru-
pos étnicos existentes no Amazonas.
Além do CEEEI, o governador criou a Gerência
de Educação Escolar Indígena, na Secretaria de
Educação do Estado (Seduc) que desenvolve um
trabalho articulado com o Conselho. Com isso,
têm-se promovido outras conquistas importantes
no que diz respeito à escolarização dos povos in-
dígenas e tem-se dado ao trabalho de educação
escolar indígena desenvolvido no estado do Ama-
zonas visibilidade como uma das principais ações
da política pública governamental. É nesse contex-
to que está inserido o processo de discussão, con-
sulta às comunidades indígenas e formulação teó-
rica, que deu ao Amazonas o posto de primeiro
estado a aprovar, em fevereiro de 2001, a regula-
mentação, a criação e o funcionamento da Escola
Indígena no âmbito da educação básica do esta-
do, fato que contou com a participação de repre-
sentantes de órgãos governamentais, organizações
indígenas e não-governamentais.
Há alguns anos, era difícil pensar na constru-
ção de um modelo de escola para as comunidades
indígenas sem que esse não interviesse na organi-
zação desses povos. No entanto, os esforços e as
parcerias promovidos pelo governo do estado têm
conseguido garantir a realização de um projeto de
escolarização que possibilita o resgate e a valori-
zação etnocultural dos povos indígenas. Nesse con-
texto é que o Conselho vem prestando consultoria
e assessoria técnica sobre as questões relativas às
ações e aos projetos de educação escolar desen-
volvidos com as comunidades indígenas do esta-
do, além de deliberar sobre temas relacionados ao
assunto, o que possibilitou a obtenção de avanços
concretos, tornando-o uma referência nacional. No
entanto, para garantir uma educação escolar de
qualidade, intercultural, bilíngüe, específica e di-
ferenciada aos povos indígenas, o estado precisa-
va de uma estrutura maior que viesse dar respaldo
Educação escolar indígena
é realidade no Amazonas
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
SEPI/AM e CEEEI/AM
103
As experiências dos Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena
PAINEL 2
ao processo de construção de uma política públi-
ca voltada à valorização e ao respeito a esses po-
vos, possibilitando não só a escolarização, mas
também o desenvolvimento de projetos econômi-
cos sustentáveis para as comunidades indígenas,
o que fortalece a luta pela autonomia dessas co-
munidades. Com essa finalidade, foi criada a Fun-
dação Estadual de Política Indigenista do Amazo-
nas (Fepi), que é a responsável pela promoção da
política indigenista do estado, em parceria com as
comunidades indígenas e as entidades governa-
mentais e não-governamentais. Essa parceria cri-
ará condições favoráveis para que o Amazonas
consiga realizar atividades voltadas à preservação
de valores culturais e históricos desses povos tra-
dicionais.
Os avanços obtidos no campo da educação
escolar indígena permitirão que o Amazonas, até
o final de 2002, alcance a última etapa do Progra-
ma de Formação de Professores Indígenas, capa-
citando 800 professores indígenas do estado. Uma
conquista que beneficiará, diretamente, mais de
25 mil alunos que freqüentam as 600 escolas indí-
genas existentes no Amazonas. É interessante sa-
lientar que 38% das escolas indígenas existentes
hoje no país estão localizadas no estado do Ama-
zonas. Até o final de 2001, uma parceria feita entre
o governo do estado e a Universidade Federal do
Amazonas permitirá que 400 professores dos mu-
nicípios localizados nas áreas dos rios Solimões e
Rio Negro iniciem os cursos de graduação e pós-
graduação em Educação Indígena. Mas para aten-
der a toda essa demanda e garantir um ensino de
qualidade aos povos indígenas, o estado precisa
vencer alguns entraves burocráticos da adminis-
tração federal, possibilitando a inserção das lide-
ranças indígenas nos órgãos de deliberação, como
o Conselho Nacional de Educação, além da cria-
ção de fundo de incentivo à publicação de livros
didáticos para as escolas indígenas. Uma vez que
um universo cultural de rica complexibilidade re-
quer um atendimento diferenciado do sistema
convencional de educação, ou seja, que permita o
resgate etnocultural desses povos, são necessári-
os, fundamentalmente, o respeito e a preservação
de antigas tradições, como é o caso específico das
línguas faladas. A evidência de que, ao longo do
tempo, elas têm perdido espaço diante das trans-
formações do mundo moderno faz que se torne
imprescindível a criação de condições de sobrevi-
vência cultural de antigas tradições dos povos in-
dígenas por meio de um trabalho de registro
etnográfico e lingüístico dessa realidade específi-
ca. Isso requer que se firme um novo pacto social
com as comunidades indígenas de nosso estado,
resgatando seus direitos fundamentais e garantin-
do o acesso à escola como um instrumento forma-
dor da cidadania indígena.
Todas essas conquistas ressaltam a legitimi-
dade do processo de reconstrução da memória
histórico-cultural dos índios. Nada mais legíti-
mo do que a eleição de um indígena para a pre-
sidência desse Conselho, fato que tem dado no-
toriedade ao trabalho de formulação das políti-
cas públicas do Amazonas, uma vez que se pre-
tende consolidar na esfera governamental do
estado a parceria com as comunidades indíge-
nas, entidades governamentais e não-governa-
mentais, instituindo novos parâmetros para a
política indigenista do estado e demonstrando
claramente a intenção do Amazonas em não atu-
ar de maneira isolada, mas de contribuir para a
conquista da autonomia econômica e
sociocultural dos povos indígenas.
Nesse contexto de articulação e de represen-
tatividade no trabalho de construção da escola in-
dígena – que no estado ganhou grande reforço após
a aprovação da resolução que regulamenta a esco-
la indígena –, o Conselho Estadual de Educação
Escolar Indígena instituiu uma comissão interins-
titucional específica para a proposição de uma re-
solução estadual que regulamente a escolha e o
processo de formação do professor indígena, va-
lorizando, sobretudo, a experiência adquirida com
o Projeto de Formação de Professores Indígenas
Pira-Yawara, gerenciado pela Seduc. Para tanto,
todo um trabalho de sensibilização e cons-
cientização tem sido feito com as prefeituras mu-
nicipais e com os professores indígenas a fim de
que a criação e o reconhecimento da escola e da
categoria professor indígena representem, sobre-
tudo, o combate à discriminação e ao preconceito
em favor da dignidade e do respeito à cultura e às
formas de organização, como também ao conhe-
cimento tradicional dos povos indígenas. Pela nos-
sa história e em reconhecimento aos nossos direi-
tos fundamentais, no Amazonas, a Educação Indí-
gena é uma realidade.
104
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu
novos parâmetros no que se refere à relação do
estado com os povos indígenas, sob os mais di-
ferentes pontos de vista, particularmente no
que diz respeito à educação escolar, que passa
a ter um novo papel com o fim da política que
previa como meta a assimilação dos índios à so-
ciedade envolvente. Foi viabilizada, assim, uma
proposta de educação escolar voltada para o re-
conhecimento dos índios, garantindo a utiliza-
ção de suas línguas maternas no Ensino Fun-
damental e o respeito aos seus próprios proces-
sos de aprendizagem.
Destaca-se como o primeiro texto legal que
explicita a relação do estado com os povos in-
dígenas, reconhecendo a diversidade étnica e
cultural, respeitando a diferença e afastando-
Conselho de Educação Escolar
Indígena de Mato Grosso:
um espaço de cidadania
Elias Renato da Silva Januário*
Unemat/MT
Resumo
Passados mais de dez anos de sua promulga-
ção, a Constituição Federal ainda prescinde daque-
las conquistas que assegurem os direitos dos povos
indígenas em relação à sociedade envolvente, como
está previsto em seu texto legal.
Foi no campo da Educação Escolar Indígena que
constatamos os maiores avanços, com a implemen-
tação de políticas públicas que têm garantido a rea-
lização de projetos voltados para a formação espe-
cífica de professores indígenas e a organização de
instâncias colegiadas de gestão escolar.
O Conselho de Educação Escolar Indígena de
Mato Grosso – CEI/MT, criado em 1995, é um órgão
consultivo, deliberativo e de assessoramento técni-
co, cujas ações estão garantidas na Constituição Es-
tadual. Dele fazem parte 12 professores indígenas
indicados por suas comunidades, os quais têm um
importante papel de orientação e articulação dos pro-
gramas referentes à Educação Escolar Indígena no
estado, em todos os níveis e modalidades de ensino.
O CEI/MT configura-se em uma instância de luta
dos povos indígenas pela participação efetiva nas
ações da Educação Escolar Indígena implementada
nas aldeias, dialogando com o poder público e com a
sociedade não-índia, garantindo um espaço perma-
nente de articulação e representatividade no contexto
do movimento dos professores indígenas por uma
educação diferenciada e de qualidade.
se da perspectiva integracionista preconizada
ao longo de vários séculos no país.
Passados mais de dez anos de sua promul-
gação, a Constituição Federal ainda não viu re-
alizadas as conquistas que assegurem os direi-
tos dos povos indígenas em relação à socieda-
de envolvente, como está previsto em seu tex-
to legal.
Foi no campo da Educação Escolar Indíge-
na que constatamos os maiores avanços, com
a implementação de políticas públicas que têm
garantido a realização de projetos voltados para
a formação específica de professores indígenas
e a organização de instâncias colegiadas de ges-
tão escolar.
Essa mudança de postura na relação entre o
Estado brasileiro e os povos indígenas teve am-
* Unemat, vice-presidente do CEI/MT.
105
As experiências dos Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena
PAINEL 2
plos reflexos no contexto da Educação Escolar
Indígena, abrindo novas possibilidades de se
pensar a escola indígena longe das doutrinas
positivistas, civilizatórias e evangelizadoras.
A LDB/96 veio reforçar a legislação educa-
cional disposta na Constituição Federal, acen-
tuando a diferenciação da escola indígena das
demais escolas do sistema educacional brasi-
leiro e apoiando uma educação com calendári-
os adequados à realidade de cada povo, enfim,
uma educação cidadã.
Ainda que se tenha conseguido assegurar
avanços na definição de políticas, no estabeleci-
mento de diretrizes e metas, bem como na am-
pliação da oferta de vagas e de programas edu-
cacionais que respeitem as especificidades dos
indígenas, muito ainda há por fazer. No âmbito
administrativo, por exemplo, muitas ações pre-
cisam realizar e avançar com respeito à inclusão
das escolas indígenas no sistema educacional do
país, especialmente no que diz respeito à espe-
cificidade da organização e da gestão dessas es-
colas, empreendimento que requer a atuação de
técnicos habilitados nas mais diferentes esferas
da administração pública, em especial no âmbi-
to das escolas indígenas.
Desde meados dos anos de 1960, inúmeras
instituições missionárias e indigenistas fize-
ram-se presentes no cenário mato-grossense, a
fim de discutir a Educação Escolar Indígena.
Também com esse intuito foi criado em 1987,
em Mato Grosso, o Núcleo de Educação Esco-
lar Indígena (NEI/MT), que se caracterizava
como um espaço no qual as diversas institui-
ções, as ONG e os representantes indígenas tra-
çavam juntos os possíveis caminhos da política
de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso.
A criação do NEI/MT foi um marco funda-
mental na consolidação de uma política edu-
cacional voltada ao atendimento das comuni-
dades indígenas. Por meio dele, consolidaram-
se as bases para a criação do Conselho de Edu-
cação Escolar Indígena, um órgão de caráter
oficial, institucional e com a efetiva participa-
ção dos professores indígenas.
O Conselho de Educação Escolar Indígena
do estado de Mato Grosso (CEI/MT), criado
pelo Decreto nº 265 de 20 de julho de 1995, é
um órgão consultivo, deliberativo e de
assessoramento técnico, cuja finalidade princi-
pal é promover o desenvolvimento das ações
referentes à Educação Escolar Indígena em to-
dos os níveis e modalidades de ensino. A com-
posição do CEI/MT é interinstitucional de ação
conjunta, vinculado à Coordenadoria de Políti-
ca Pedagógica (CPP), da Secretaria de Estado de
Educação de Mato Grosso. É constituído por
representantes de órgãos e entidades públicas
(Seduc, CEE/MT, Funai, Caiemt, Undime,
Unemat, UFMT, ONGs) e pelos representantes
indígenas (12 titulares e 12 suplentes), todos
professores de Escolas Indígenas. As reuniões
plenárias do CEI/MT acontecem duas vezes a
cada semestre, nas quais são discutidas as ques-
tões trazidas pelos conselheiros, além dos pro-
jetos e dos programas na área de Educação Es-
colar Indígena desenvolvidos no estado.
Entre os seus objetivos, destacam-se o
acompanhamento e a avaliação das ações refe-
rentes à educação escolar nos municípios; o
estabelecimento de metas anuais da Educação
Escolar Indígena no estado; o encaminhamen-
to das diretrizes que garantam uma educação
diferenciada, específica, intercultural e de qua-
lidade; a deliberação sobre os parâmetros e os
fundamentos que irão nortear o Conselho Es-
tadual de Educação na aprovação e no reconhe-
cimento das escolas, dos cursos e dos projetos
relativos à Educação Escolar Indígena, entre
outros.
O Conselho Indígena, nos seus seis anos de
existência, teve um papel importante no forta-
lecimento da educação escolar específica e di-
ferenciada. Atuou na realização do primeiro di-
agnóstico da Educação Escolar Indígena em
Mato Grosso. Articulou politicamente para a
concretização do Projeto Tucum (formação em
nível de Magistério) e, recentemente, pelo iní-
cio do 3º Grau Indígena.
Por meio de discussões, grupos de estudo,
informativos e entrevistas que ocorrem no âm-
bito das reuniões plenárias do CEI/MT, os pro-
fessores indígenas conselheiros mantêm suas
comunidades atualizadas, procurando cada vez
mais fortalecer o movimento dos professores
indígenas dentro do estado. Também faz parte
da função dos conselheiros ajudar a comunida-
de escolar a elaborar os currículos específicos e
o acompanhamento pedagógico às escolas, for-
talecendo a condução escolar de base diferen-
ciada, assegurando às escolas indígenas a pos-
sibilidade de gerirem os seus processos escola-
res e pedagógicos com autonomia.
Mesmo limitado em decorrência das amar-
ras do poder público, o CEI/MT tem-se manti-
do firme, fomentando discussões a respeito da
formação de professores e da regulamentação
das escolas indígenas.
Por tratar-se de uma instância colegiada de
caráter interinstitucional, as ações do CEI/MT
partem da interculturalidade, isto é, do diálogo
e do entendimento entre as culturas, buscando
o intercâmbio entre as diversas sociedades na
perspectiva de um futuro com maiores possi-
bilidades de melhoria social.
O CEI/MT configura-se como um espaço de
luta dos povos indígenas pela participação efe-
tiva na educação escolar implementada em
suas comunidades, dialogando constantemen-
te com o poder público e com a sociedade não-
índia, em busca de uma educação escolar es-
pecífica e diferenciada, de qualidade e em con-
sonância com os projetos societários de suas
comunidades.
Bibliografia
MATO GROSSO.
Regimento Interno do Conselho de Edu-
cação Escolar Indígena
. Cuiabá: Secretaria de Estado
de Educação, 1995.
MATO GROSSO.
Projeto de Cursos de Licenciatura para a
Formação de Professores Indígenas
. Cuiabá: Governo
do Estado, 2000.
107
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
33
33
3
O papel da Antropologia, da
Lingüística e da Pedagogia na
Educação Escolar Indígena
Judite Gonçalves de Albuquerque
108
No processo formal de escolarização indí-
gena, que tem sido objeto de preocupação e
de ações concretas tanto por iniciativa das pró-
prias comunidades e organizações indígenas
quanto do Ministério da Educação e das secre-
tarias de estado e municipais, penso que o de-
safio, hoje, por parte de todos, índios/não-ín-
dios, é investir na descolonização da escola
indígena” (Orlandi, 1999) e, superando os mo-
delos de escola que foram/são transportados
para as aldeias, batalhar pela construção da
verdadeira escola indígena, na especificidade
de cada povo, de cada comunidade, fazendo
sair do papel as propostas de uma educação di-
ferenciada. Algumas áreas do conhecimento
podem contribuir para isso de modo especial:
a Antropologia, a Lingüística, a Pedagogia. Para
fazer algumas considerações a respeito do pa-
pel dessas áreas na formação dos professores,
parto de algumas práticas e reflexões das quais
tenho tido ocasião de participar no Mato Gros-
so, no Mato Grosso do Sul e no Amazonas.
1
Os dados que trago para reflexão e análise
são basicamente de dois projetos de formação
de professores indígenas que se desenvolve-
ram no Mato Grosso, no nível de Magistério: o
Projeto Inajá, no período de 1987-1995, e o
Projeto Tucum, entre os anos de 1996-2001.
Cerca de duzentos índios de treze etnias dis-
tintas,
2
em diferentes regiões do estado, termi-
naram o Ensino Médio por meio desses dois
projetos.
Durante todo o período de formação, foi
possível contar sempre com a presença e a par-
ticipação de antropólogos, sobretudo nas eta-
pas letivas presenciais; a coordenação dos pro-
jetos sempre entendeu que a Antropologia é
importante. Em qualquer processo educativo
e nos cursos de formação de professores indí-
genas, ela é indispensável, tanto para os índi-
os quanto para os não-índios chamados a co-
laborar para a formação daqueles. A presença
do antropólogo nos cursos de Magistério con-
tribuiu especialmente para estimular a sensi-
bilidade individual e o desenvolvimento de
uma consciência crítica entre os professores
índios e os não-índios, gerando a compreen-
são de que o conhecimento, sendo historica-
mente construído e determinado, é também
apropriado e reinterpretado de diferentes ma-
neiras, o que permite o confronto de diferen-
tes conhecimentos de maneira eqüistatutária,
embora isso não ocorra necessariamente (e
nem com tanta facilidade).
3
Será necessário
pensar antropologicamente os processos de
formação de professores para que se possa le-
var em conta suas formas próprias de viver e
de pensar, suas formas tradicionais de produ-
zir o conhecimento e de ensinar, adequando-
se às novas situações, instaurando o diálogo
Educação no contexto
da diversidade cultural
Judite Gonçalves de Albuquerque
Unemat
1
Tomo como base experiências vividas nos seguintes projetos de formação de professores: no Mato Grosso, Projeto Inajá I e II (1987-1993);
Projeto Tucum (1996-2001). No Mato Grosso do Sul, Projeto Ára Verá. No Amazonas, Projeto Indata’hua, no Rio Madeira; Escola Panhali, de
5ª a 8ª séries, no Rio Içana, Alto Rio Negro (Oficinas de Formação de Professores Baniwa e Coripaco); Curso de Formação Antropológica e
Pedagógica para Professores do distrito de Iauareté, Rio Uaupés, Alto Rio Negro.
2
Do Projeto Inajá participaram os índios Karajá (do tronco lingüístico macro-jê) e Tapirapé (do tronco lingüístico tupi); do Projeto Tucum
participaram índios de 11 etnias e línguas diferentes: os Apiaká, Bakairi, Bororo, Irantxe, Kayabi, Munduruku, Nambikuara, Paresi, Rikbatsa,
Umutina e Xavante.
3
As reflexões desenvolvidas neste
paper
sobre o papel da Antropologia na Educação Indígena são o resultado de longas conversas com o
antropólogo Edmundo Peggion, que participou do Projeto Tucum, e cuja sensibilidade para as questões da educação fez que a sua contribui-
ção, sobretudo nas etapas de preparação e no acompanhamento do trabalho com os Xavante, fosse tão profícua!
109
O papel da Antropologia, da Lingüística e da Pedagogia na Educação Escolar Indígena
PAINEL 3
intercultural, fazendo da escola o lugar de
manifestação das diferenças, do confronto
interétnico, como também o espaço privilegi-
ado para se inventar novas formas de convívio
social e cultural.
É comum em cursos de formação de pro-
fessores indígenas uma visão dicotômica em
relação à transmissão do corpus do conheci-
mento de diferentes grupos humanos. O co-
nhecimento tradicional é freqüentemente tido
quase como folclórico ante o conhecimento
ocidental, este, sim, exato, verdadeiro. É papel
da Antropologia ajudar a romper com essa vi-
são, fazendo que haja a valorização das cultu-
ras em seu tempo presente. É tão forte a idéia
da excelência do conhecimento ocidental que
ela exerce uma espécie de fascínio mesmo en-
tre os índios, em detrimento dos próprios co-
nhecimentos.
O cuidado no tratamento de culturas dife-
rentes e formas de transmissão do conhecimen-
to é essencial na Educação Indígena, levando
em conta que são distintos os preceitos episte-
mológicos que dão suporte à tradição oral – um
processo dinâmico de circulação de saberes
contextualizados – e os que dão suporte à tra-
dição escrita – de apropriação individual e com-
petitiva – os quais, na escola, quase sempre se
apresentam como saberes compartimentados,
fragmentados, mas, que, no seu conjunto, for-
mam a imagem da civilização, da moderni-
zação” e do progresso” (Gnerre, 1991: 105). A
Antropologia pode contribuir para ajudar a evi-
denciar, na prática, o funcionamento das dife-
rentes formas de contato com o conhecimento,
relativizando, assim, a maneira ocidental e es-
tabelecendo as bases para o real diálogo inter-
cultural. Ou, então, essa proposta que foi pen-
sada e incentivada nas escolas indígenas será
mais uma falácia.
A Antropologia ajuda ainda a alertar para
o fato de que a educação escolar é um proces-
so que ocorre no âmbito da escola, é diferente
da educação tradicional e não a substitui. E
esse é um ponto fundamental a ser considera-
do, estimulando o professor a refletir sobre os
processos em que se dá a aprendizagem tradi-
cional, sobre si próprio e sobre seu povo, fa-
zendo que a própria escola valorize a cultura
tradicional e suas formas de transmissão.
A Pedagogia, freqüentemente, tem abdica-
do do seu caráter de ciência da educação para
se reduzir a um discurso afirmativo, sagrado,
definido, normativo. Necessitaria de assumir
mudanças profundas no seu enfoque e, antes
de tudo, abrir mão do que já está previsto,
alicerçado pelos poderes e saberes que têm de-
terminado como é/deve ser a educação esco-
lar. Para realizar a escola diferenciada, será pre-
ciso abrir-se ao atual, deixar-se afetar pelas
forças do seu tempo” (Rolnik, 1995). Lembrar
que o índio não está mais somente nas aldei-
as, está na cidade, está em relação com o mun-
do, com o Outro, com sociedades que têm suas
formas próprias de organização. Eles perten-
cem a sociedades que se estão (re)construindo
no conflito, na tensão do inevitável contato.
Trabalhar com Educação Escolar Indígena sig-
nifica para os não-índios deixar-se afetar tam-
bém pelo modo de ser índio; somente essa ati-
tude de abrir-se à verdade do Outro possibili-
tará um trabalho em cooperação, abrindo-se
para o devir do movimento contínuo que re-
cria a vida em sua intensidade, em cada tem-
po-espaço em que a educação escolar se está
constituindo.
Para isso, a Pedagogia tem de se abrir para
entender o seu papel de ciência da educação,
abandonando o discurso autoritário, esque-
cendo uma função de impositora de regras a
serem cumpridas que vem desempenhando
não apenas na escola indígena, mas na educa-
ção em geral. Os que trabalham na formação
de professores indígenas teriam de se dispor a
deixar-se modificar” na relação com as comu-
nidades indígenas, alterando a tradição da
educação escolar que, historicamente, sempre
se propôs a modificar o índio, tornando-o se-
melhante à imagem do homem letrado ociden-
tal. O Referencial Curricular Nacional para a
Educação Indígena estimula a realização da
escola diferenciada. Na prática, porém, esbar-
ra com a questão da representação que se tem
da escola, e esse talvez seja o peso mais difícil
de ser aliviado: somos todos – índios, não-ín-
dios, professores, alunos, pais – prisioneiros de
um modelo que nunca termina de ser descar-
tado, por mais que se diga, se prove e se veja
110
que é um modelo que não funciona. Nesse
modelo de escola, o professor aprendeu a dar
ordens, e as crianças aprenderam a responder.
E isso mata a magia da descoberta, mata a
criatividade.
Grupos indígenas organizados têm resisti-
do a esse modelo, e foi essa persistência na luta
por uma Escola Indígena verdadeira que deu
origem a uma legislação aberta, em condições
de garantir uma educação adequada às neces-
sidades atuais das comunidades.
Será preciso desmistificar o papel da Pedago-
gia naquilo que ela tem de autoritário, fixo e ge-
nérico que a impede de se abrir para o nasci-
mento do novo, para valorizar os espaços de li-
berdade nos quais os professores podem se
mover. Nesse sentido, eu não falaria em uma
pedagogia indígena, mas em pedagogias, res-
salvando a idéia de que não existe uma escola
indígena, mas escolas indígenas. Não existe
uma verdade pedagógica. Existe o vazio da ne-
cessidade a ser preenchido, e esse vazio é tam-
bém o espaço da possibilidade. Uma boa refle-
xão sobre os pontos considerados “verdade” na
literatura escolar pode ajudar a desfazer a ve-
lha cara das escolas e dar-lhes uma fisionomia
nova, humana, atenta e expressiva. Educação
escolar nas comunidades indígenas tornou-se
uma necessidade. Que ela possa, pois, respon-
der a que veio: contribuir para o desenvolvi-
mento mais pleno de um projeto social de cada
nação e comunidade, projeto sempre em mo-
vimento, como a vida (Albuquerque, 2001).
Cito um exemplo acontecido no Projeto
Tucum, pólo II, dos Xavante, numa etapa de Ci-
ências Sociais.
4
As professoras propuseram a
confecção de uma planta baixa do espaço onde
se realizava o curso, o Parque Municipal, para
trabalhar a compreensão de escala. A dúvida
havia surgido ao compararem tamanhos diferen-
tes de mapas com as mesmas informações: como
cabiam, num mapa pequenino, as mesmas in-
formações do grande mapa da parede? Fizeram
o recorte de um pedaço da área, incluindo os 15
cômodos onde trabalhavam. Mediram o espaço
pelo lado de fora e o reduziram 32 vezes, no bar-
bante. Então, montaram o desenho no chão, uma
planta baixa, bidimensional. A ação seguinte foi
medir alguns cômodos por dentro, reduzir as 32
vezes, desenhar no papel, recortar e colocar den-
tro das casinhas na planta. Se estivesse certo (e
os Xavante, como todo os índios, são muito per-
feitos no que fazem, muito exatos), os cômodos
caberiam como luva dentro das casinhas. E foi
exatamente o que aconteceu. Eles gritaram de
satisfação! Fascinados! Tinham provado para si
mesmos o que era uma representação de medi-
das com escala. Tinham finalmente percebido
como todas aquelas informações cabiam exata-
mente naquela planta baixa! E começaram logo
a extrapolar a planta, indo para as questões de
medição de terra, para a leitura e a construção
de mapas etc. O cursista Vitório não se confor-
mava, encantado com a lógica do branco. Num
certo momento, olhou bem para a professora
Dulce e exclamou: “Uh!... eu queria tirar a cabe-
ça do branco (fez o gesto de cortar) e colocar no
corpo do Xavante!”. Queria tudo, logicamente, a
força deles e a ciência do branco...
Quando o conhecimento é trabalhado den-
tro de um contexto, ele produz seus efeitos. As
professoras conseguiram provocar o diálogo
intercultural: a possibilidade do uso do conhe-
cimento. Eu entendo o que o Vitório sentiu: a
força de poder usar a ciência para resolver seus
problemas, entender a lógica do branco. O pro-
blema não está na ciência, está na forma como
essa ciência é apresentada. Dada aos alunos
(isso em qualquer sociedade) em fragmentos
desconectados, não serve para nada. Dada no
contexto da necessidade, provoca o fascínio e o
entusiasmo. Os cursos de formação de profes-
sores indígenas, para cumprir seus objetivos,
devem colocar a ciência universal à disposição
dos cursistas para uso, não para decoração.
Transcrevo a seguir um trecho de um texto
produzido coletivamente pelos Bororo (pólo III)
para constar em seus Projetos de Escola:
4
As responsáveis pela orientação da área de Ciências Sociais no pólo II dos Xavante foram as professoras Dulce M. Pompeo de Camargo/
PucCamp e Maynara Maria de Oliveira/UFMT.
111
O papel da Antropologia, da Lingüística e da Pedagogia na Educação Escolar Indígena
PAINEL 3
A escola Bororo organiza o seu currículo levan-
do em conta o jeito Bororo de educar. Assim,
a escola trata a criança com respeito, com ca-
rinho, com calma, com competência. Os pro-
fessores devem saber esperar o tempo da cri-
ança. Para transmitir os conhecimentos da sua
cultura e das outras culturas, para produzir
novos conhecimentos, a escola Bororo vai con-
tar histórias, incentivar a observação, fazer ex-
periências e pesquisas. A escola Bororo respei-
ta as diferenças de interesse, de idade, de sexo,
de clã, e organiza as atividades levando em
conta essas diferenças. O espaço escolar utili-
zado para a produção do conhecimento pode-
rá ser todo o universo da comunidade. Atuan-
do dessa forma, a escola Bororo estará sendo
fiel às suas tradições e ao seu jeito próprio de
pensar e se organizar socialmente (Texto co-
letivo, produzido pelos Bororo para o Projeto
Político Pedagógico).
Vale bem a pena levar a sério o convite da
antropóloga Aracy Lopes da Silva de construir
uma Antropologia da Educação no Brasil. O
momento é propício, as pesquisas antropológi-
cas estão avançadas, e as reivindicações dos
índios por seus direitos educacionais à especi-
ficidade e à manutenção de seu patrimônio
lingüístico-cultural servem de argumento para
dar sustentação a essa proposta (Silva, 2001: 38).
Os povos indígenas têm reivindicado,
cada vez mais, a educação escolar reconhe-
cida e de qualidade. Percebem-se nessas rei-
vindicações propostas muito mais amplas do
que simples processos educativos; o que se
lê aí é o direito de se inserir num mundo
homogeneizante, garantindo, porém, a sua
diferença (Peggion, 1999).
A questão da Lingüística nos projetos em
questão desloca-se do seu caráter meramente
formal para o funcional e situa-se no âmbito
mais amplo do que o do ensino do Português
como segunda língua ou, mesmo, do ensino
das línguas indígenas, isto é, situa-se no âm-
bito do funcionamento da linguagem nas di-
versas práticas dentro e fora da escola. O eixo
do trabalho com as línguas no Projeto Tucum,
mais do que se preocupar em ensinar língua
indígena foi levantar questões a respeito da
relação da escola com a escrita:
Qual a função planejada para o futuro dessa lín-
gua como língua escrita? As pessoas aprende-
rão a ler e a escrever para que finalidade? O que
elas lerão se não há escritos nessas línguas?
Quem produzirá esses escritos? Quem? Como?
A língua indígena passará a competir com o
Português como língua de ensino? Ou será vei-
culada na forma escrita em outro âmbito? Qual?
Quem deve aprender a escrita primeiro: as cri-
anças ou os adultos, que podem ressignificar
esse instrumento que é a escrita mais de acor-
do com suas necessidades culturais? (Camargo
e Albuquerque, 1998: 181).
Eram tantas as perguntas que o professor
Gilvan Oliveira, assessor de Lingüística no Pro-
jeto, propôs a realização de uma pesquisa co-
letiva, em cada comunidade, com o objetivo
primeiro de descobrir a perspectiva que os
povos têm para si mesmos e, conseqüente-
mente, para suas próprias línguas. Ou seja, re-
fletir sobre a situação lingüística dos povos em
questão para, então, poder construir políticas
lingüísticas adequadas. Tal pesquisa daria ele-
mentos para se decidir sobre o tratamento a
ser dado às línguas no interior de cada comu-
nidade e o papel da escola na implementação
das propostas. Naturalmente que essa era uma
tarefa que não terminaria com o curso de Ma-
gistério, mas os professores/cursistas estariam
certos e seguros de que lhes caberia a tarefa
de pensar sobre as questões e formular respos-
tas juntamente com as comunidades; ao cur-
so, a responsabilidade de colocar à disposição
dos professores o conhecimento técnico ne-
cessário.
Esse modo de encarar a linguagem acabou
por fazer pensar sobre outra questão, a do pa-
pel do lingüista nas comunidades indígenas
que, numa perspectiva tradicional, deveria des-
crever e ensinar a língua indígena aos índios.
Nessa nova perspectiva, reserva-se aos assesso-
res a contribuição solicitada e necessária, num
projeto que irá sendo construído passo a passo
pelos próprios sujeitos do processo.
Algumas comunidades conseguiram avan-
çar na pesquisa e apresentar propostas concre-
tas ao final do curso com relação às complexas
questões da linguagem na escola; outras con-
tinuam em processo de elaboração; outras ain-
da lutam com muita dificuldade para se des-
fazer da herança dos modelos recebidos, mas
cada qual segue seu ritmo na construção de sua
própria escola.
O que os projetos deixaram como experi-
ência maior foi a certeza de que não se pode
propor um sistema pedagógico pronto e aca-
bado, mas contribuir para que cada escola in-
dígena consiga construir os seus próprios sis-
temas autônomos, e que estes sejam integra-
dos e reconhecidos no sistema nacional.
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Judite G. O sentido da diferença na Pe-
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mas limitadas de operar com a diferença. (Comunica-
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113
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
44
44
4
POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS
E A ESCOLA INDÍGENA
Wilmar da Rocha D’Angelis
Marcus Maia
114
A máquina extraviada
José J. Veiga escreveu um delicioso conto, no
qual o compadre do interior escreve ao da ci-
dade, feliz por poder contar-lhe uma novidade
do sertão: Agora temos aqui uma máquina im-
ponente, que está entusiasmando todo o mun-
do. A tal máquina chegara à cidadezinha certa
tarde, em dois ou três caminhões, fora
descarregada, montada durante a noite e, na
manhã seguinte, ninguém ficara para dar expli-
cações: A máquina ficou ao relento, sem que
ninguém soubesse quem a encomendara nem
para que servia. Com o tempo, a cidade foi se
afeiçoando à coisa, a ponto de o prefeito desig-
nar um funcionário para zelar por ela. Diaria-
mente o homem espanava a máquina e duas
vezes por semana lhe aplicava caol nas partes
de metal dourado, esfrega, esfrega [...]” etc. Ao
fim, a máquina passou a ser o orgulho da cida-
de e parte importante das festividades nas da-
tas cívicas. Cidades vizinhas, e também de ou-
tros estados, mandaram para lá comissões, ten-
tando comprá-la, mas o prefeito não se deixou
levar por conversa macia, e surgiu até um
movimento para declarar a máquina monu-
mento municipal”.
O final do conto/carta é revelador:
O meu receio é que, quando menos esperarmos,
desembarque aqui um moço de fora, desses des-
pachados, que entendem de tudo, olhe a máqui-
na por fora, por dentro, pense um pouco e co-
mece a explicar a finalidade da máquina; e, para
mostrar que é habilidoso (eles são sempre habi-
lidosos), peça na garagem um jogo de ferramen-
tas e, sem ligar a nossos protestos, se meta por
baixo da máquina e desande a apertar, marte-
lar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se
isso acontecer, estará quebrado o encanto e não
existirá mais máquina.
Do lugar de nossas práticas, impossível ler
esse conto e não pensar na escola, em tantas
áreas indígenas, e não perceber que fazemos,
em muitos casos, o papel do moço de fora, des-
ses despachados, que vai explicar a finalidade
da máquina” e fazê-la funcionar. Quebrado o
encanto, a máquina ainda será útil?
Do que eu disse, é possível que lhes venha à
mente a imagem de alguém que vai desfazer ilu-
sões sobre uma escola “boa por si mesma,
aquela à qual as pessoas mandam os filhos,
convencidas de que só assim” eles vão ser al-
guém na vida. Certamente essa é uma aplica-
ção legítima da imagem da máquina e do moço
de fora” do conto de José J. Veiga.
Mas, em lugar disso, vou dirigir a reflexão
para o que queremos da escola e de qual escola
precisamos para conseguir o que queremos.
Com isso, quero também poder quebrar outros
encantos: o da nova máquina, ainda mais relu-
zente, dita escola diferenciada, quase carinho-
samente, como se a expressão revelasse o cari-
Quem vai de arrasto
não tem compromisso
Wilmar da Rocha D’Angelis
Unicamp/SP
As tentativas, os acertos e os erros ensinam
muito mais sobre a língua do que
o estudo do produto de uma reflexão
feita por outros, sem que se atine
com as razões que levaram à reflexão que se estuda.
João Wanderley Geraldi (1996: 136)
115
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
nho pelas diferenças. Se diferenciada” tivesse
aí o sentido de “valorizar a diferença, todas as
escolas deveriam ser – e ser chamadas – assim:
as dos índios e as dos não-índios. Mas, como só
se chama diferenciada” a escola indígena, é
evidente que o parâmetro de comparação é a
escola do branco, que seria a escola padrão
e “indiferenciada. Parece-me que o termo con-
segue cometer dois equívocos, um deles, com
conseqüências negativas bem concretas: 1) de-
finir a escola indígena pela diferenciação em
relação à dos brancos; e 2) afirmar a escola dos
brancos como o lugar da indiferenciação. Na
prática, o que temos visto é que a concepção
da escola indígena como a que tem algo dife-
rente da escola dos brancos tem sido a grande
motivação para os programas de Educação Es-
colar Indígena folclorizantes, ou seja, aqueles
programas que transplantam uma escola de
branco para a aldeia, com elementos da cultu-
ra” indígena, geralmente em torno de certas
práticas artesanais ou da presença de algumas
pessoas mais velhas que levam suas histórias
para a escola.
Seguindo uma distinção de ações – defensi-
vas x ofensivas – lembrada por Melià, tenho suge-
rido que a proposição da escola diferenciada
permaneça nos limites das políticas defensivas,
quando já é hora de o movimento indígena ado-
tar políticas ofensivas também na educação es-
colar
1
e, nesse caso, resgatar o sentido de escola
indígena, um projeto ainda não alcançado.
2
E no que se refere ao tema deste trabalho –
das relações entre política lingüística e escola in-
dígena –, quero sugerir que as ações ofensivas
são necessárias e oportunas, tanto no que se re-
fere ao estabelecimento de políticas lingüísticas,
como no que se refere à planificação lingüística,
aí incluído o ensino escolar das línguas.
Política lingüística do Estado ou
políticas lingüísticas no Estado?
A existência de uma política lingüística do Es-
tado brasileiro é, aparentemente, clara, embora
distinta, dependendo do lugar para onde se olhe.
Se olharmos para os textos legais, há evidên-
cia suficiente de que:
• o Estado entende ou pretende que o Brasil
seja um país monolíngüe: declara a língua
portuguesa como idioma oficial (Constitui-
ção Federal, art. 13);
• o Estado se recusa a admitir que povos ou
comunidades dentro do território nacional
tenham suas próprias políticas lingüísticas
e educacionais: universalizar, em dez anos,
a oferta às comunidades indígenas de pro-
gramas educacionais equivalentes às qua-
tro primeiras séries do Ensino Fundamen-
tal [...]” (Plano Nacional de Educação – Lei
nº 10.172/2001);
• o Estado se recusa a reconhecer uma escola
desvinculada de um projeto de unificação
ou integração nacional por meio da (única)
língua: determina que o ensino regular será
sempre ministrado em Língua Portuguesa,
embora garanta aos povos indígenas “tam-
bém a utilização de suas línguas maternas
(Constituição Federal, art. 210);
• a autonomia da escola indígena – se vincu-
lada ao Estado – é um projeto impossível,
pois está previamente (de)limitada, dado
que aprender Português ou instruir-se nes-
sa língua não é um direito, mas uma obriga-
ção: o Ensino Fundamental regular será
ministrado em Língua Portuguesa” (Cons-
tituição Federal, art. 210).
3
Por outro lado, se olharmos para outros do-
cumentos, em cujo processo de formulação o
1
Bartomeu Melià mencionou a distinção e sugeriu a necessidade e a oportunidade das políticas ofensivas, em conferência na abertura do IV
Encontro sobre Leitura e Escrita em Escolas Indígenas, realizado no 13° Congresso de Leitura do Brasil (Cole), na Unicamp, em julho/2001.
No mesmo encontro, propus analisar o projeto de “escola diferenciada” como uma política defensiva.
2
Refiro-me a recuperar do adjetivo “indígena” ou atribuir-lhe o sentido de “feito à maneira dos povos indígenas”. Atualmente, “escola indígena”
costuma ser sinônimo de “escola em comunidade indígena”, o que é uma grande licença poética, para dizer o mínimo.
3
Note-se que os surdos ficam em situação ainda pior: a Constituição nem sequer lhes garante o direito de também usarem sua língua de sinais
(Libras) no ensino regular. Em outro trabalho, discutimos a forma canhestra como, nos PCN, a Libra é admitida no ensino de pessoas surdas,
entre um conjunto de “recursos complementares” (Souza, D’Angelis e Veras, 2000).
116
Estado buscou ouvir as contribuições da socie-
dade civil, como é o caso dos Referenciais Cur-
riculares Nacionais para a Escola Indígena
(RCNEI), as posições são claramente mais
avançadas.
4
Igualmente, se olharmos para ini-
ciativas de sociedades indígenas – em geral,
com apoio de instituições educacionais e orga-
nizações não-governamentais – que recebem
aportes decisivos de recursos por meio do Mi-
nistério da Educação, incluindo programas de
formação e projetos de publicações de escolas
indígenas, encontraremos a evidência de que:
1. o Estado brasileiro apóia o fortalecimento
e a vitalização das línguas indígenas: se-
mestralmente recebe projetos e financia
iniciativas voltadas ao ensino de línguas
indígenas, à formação de professores indí-
genas nessa área e à publicação de livros
em língua indígena;
2. o Estado reconhece a autonomia dos po-
vos indígenas para construírem suas pró-
prias políticas lingüísticas: os projetos
apoiados pelo MEC incluem desde a alfa-
betização em língua indígena até o ensino
de língua indígena como segunda língua,
mas também alfabetização em Português
– mesmo em comunidades nas quais a lín-
gua indígena é falada –, material para en-
sino de Língua Portuguesa e publicações
de textos indígenas em Português.
5
Reformulando o que está dito anteriormente: o
Estado brasileiro tem uma política lingüística, mas,
como tudo que se abriga em um Estado multi-
facetado e já não mais monolítico, em razão das con-
quistas da sociedade civil, a política lingüística desse
Estado é contraditória e se mostra, claramente, como
um campo de debate e de disputas de projetos di-
ferentes.
6
Melhor isso do que a hegemonia mas-
sacrante de um projeto conservador.
Política e planificação
lingüística nas sociedades
indígenas
Para Monserrat, embora outras organiza-
ções, entidades ou segmentos específicos de
uma sociedade também possam definir e de-
fender uma política lingüística, só o Estado tem
poder para implementá-la, colocá-la em práti-
ca, através de um planejamento lingüístico
(2001: 129).
Isso porque, segundo entende, a planifi-
cação/implementação lingüística [...], para po-
der ser operacional, necessita de um manda-
do jurídico, a lei, que é apanágio do Estado
(op. cit.: 130).
Nesse ponto, minha proposição me faz di-
vergir dessa perspectiva. Ao defender a neces-
sidade e a oportunidade de ações ofensivas no
campo da política e planificação lingüística pe-
las sociedades indígenas, entendo que é possí-
vel planificação e ações concretas de implemen-
tação de políticas lingüísticas ao largo do Esta-
do. E mais: sugiro que tais tipos de iniciativas
são necessárias, indispensáveis mesmo, para as
sociedades indígenas experimentarem um pro-
jeto de autonomia. Isso não significa renunciar
às ações e articulações para consolidação de
políticas públicas democráticas valorizadoras
da diversidade lingüística e apoiadoras da
vitalização de línguas minoritárias. Mas signi-
fica, por outro lado, não reduzir a ação do mo-
vimento indígena e do indigenismo ao círculo
fechado de conversa com o aparelho do Esta-
do, ao oficialismo e à burocratização, que são
sempre redutoras e sufocadoras das posturas
mais criativas.
Mencionarei, por isso, duas iniciativas com as
quais fui chamado a colaborar como lingüista e
4
Ruth Monserrat observou, criticamente, que, mesmo nos RCNEI – que reconhece como o documento mais avançado –,
há um deslizar
imperceptível do enfoque inicial da língua indígena como questão fundamental estratégica na luta pela autonomia para um enfoque em que
ela aparece com um papel diluído ou pelo menos enfraquecido, situada que fica, em paralelo com a Língua Portuguesa, apenas como
uma
das disciplinas
da área de linguagem” [grifos da autora] (Monserrat, 2001: 135).
5
Não significa que não haja ações do Ministério que não apontem em sentido contrário. A recente extinção – em 2001 – do Comitê de
Educação Escolar Indígena do MEC – apesar dos muitos problemas pelos quais vinha sendo criticado – poderia ser incluída nas ações que
desfavorecem uma política democrática na gestão do apoio aos programas de Educação Escolar Indígena.
6
Monserrat (2001: 137) entende que
o Estado brasileiro não tem realmente uma política lingüística específica para as sociedades indígenas. Ele
tem, sim, no nível do discurso, uma política de Educação Escolar Indígena, qualificada como ‘bilíngüe, intercultural, específica e diferenciada’ [...]
.
117
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
educador e nas quais se pode falar de construção
autônoma de política e planificação lingüísticas.
Inhacorá (RS)
Em 1996, a convite da Secretaria de Educa-
ção do Rio Grande do Sul, por indicação de
membros do Núcleo de Educação Indígena
(NEI) daquela Secretaria, trabalhei como asses-
sor lingüístico de um encontro de professores
das escolas indígenas daquele estado. Em razão
de uma pesquisa de história Kaingang, aprovei-
tei a oportunidade para aproximar-me dos pro-
fessores da aldeia de Inhacorá, a mais ociden-
tal das comunidades Kaingang (município de
São Valério do Sul, RS). Na seqüência, estive em
sua aldeia – quase vinte anos depois de minha
primeira visita – e estabelecemos, rapidamen-
te, laços de amizade e cooperação. Quase um
ano depois desse encontro, fomos convidados,
7
pelos professores Kaingang de Inhacorá, a as-
sessorar uma avaliação das experiências que
vinham fazendo em alfabetização. Naquele
momento, tendo já atuado em outros dois en-
contros organizados pela Secretaria de Educa-
ção com os professores indígenas de todo o es-
tado, estávamos convencidos das dificuldades
de contribuir para mudanças nas escolas indí-
genas sem acompanhamento local e direto das
experiências. Decidimos aceitar o convite e – na
medida da limitação de nosso tempo e de nos-
sos recursos – propusemo-nos a acompanhar
permanentemente o programa de educação es-
colar naquela comunidade.
Em fevereiro de 1998, por quatro dias intei-
ros, na Escola Marechal Cândido Rondon, da área
de Inhacorá, trabalhamos junto com os oito pro-
fessores Kaingang e com a direção da escola da
comunidade.
8
Dos oito professores Kaingang, o
mais velho havia sido formado na primeira tur-
ma de monitores” de um curso promovido pela
Funai, pela IECLB e pelo Summer Institute, nos
anos 1970, e fora professor de todos os demais
nas primeiras séries. Apesar do programa de
bilingüismo para o qual fora formado, ele os al-
fabetizara em Português. Os outros sete haviam
sido formados em Magistério de 2º grau, em cur-
so promovido pela Unijuí, Funai e IECLB, que se
encerrara em 1996.
Na comunidade de Inhacorá, as crianças
chegam à idade escolar monolíngües em
Kaingang. O problema que nos colocaram, e
para o qual deveríamos colaborar na reflexão,
era o seguinte: em seu curso de Magistério não
ficou claro, para os novos professores, como
deveriam alfabetizar e, principalmente, em que
língua deveriam alfabetizar. Teriam ouvido, se-
gundo diziam, que se poderia alfabetizar nas
duas línguas ao mesmo tempo (Kaingang e Por-
tuguês), mas isso dificultava ainda mais imagi-
nar o processo. Assim, em seu primeiro ano
como professores (1997), eles haviam decidi-
do, por conta própria, fazer uma experiência
para verificarem o melhor resultado: dois pro-
fessores trabalharam alfabetização em Portu-
guês em suas turmas e um terceiro tentou al-
fabetizar a sua turma em Kaingang, que, dian-
te da falta de método e da deficiência da for-
mação, pensou poder traduzir uma cartilha do
Português para a sua língua, e assim levou adi-
ante seu trabalho. O que deveríamos avaliar no
encontro, portanto, eram os resultados das
experiências dos três professores e, a partir
disso, ajudá-los a planejar o ensino de línguas
na escola para os anos seguintes.
Nesse, e nos encontros que passamos a ter
semestralmente, o nosso trabalho era construir
com eles a reflexão e, quando possível e necessá-
rio, a teorização que contribuíssem para uma
compreensão cada vez mais profunda da ques-
tão lingüística e educacional com que estavam li-
dando. Nossos encontros nunca ocuparam me-
7
O convite foi dirigido a mim e a Juracilda Veiga, antropóloga, que, no ano de 1997, morara por alguns meses naquela comunidade para
realizar pesquisa de campo para tese de doutorado. Juracilda é coordenadora do Núcleo de Cultura e Educação Indígena da Associação de
Leitura do Brasil (ALB).
8
Como em todas as escolas de áreas indígenas no RS, havia ali uma diretora não-índia. Além disso, a escola contava com uma professora
não-índia pertencente aos quadros da Funai, que atuava como vice-diretora. Elas eram respectivamente, a profª
Maria Carmen dos Santos
e a profª Derli Berlezzi, que foram grandes apoiadoras e incentivadoras do nosso trabalho desde o primeiro momento, e sua contribuição ao
programa escolar indígena de Inhacorá é inestimável.
118
nos de trinta horas de trabalho e, em alguns de-
les, superamos as quarenta horas. Em nenhum
deles fornecemos certificados, ajuda de custo ou
qualquer compensação aos professores, senão
aquela de contribuir à sua busca sincera de cons-
truir uma escola adequada à sua comunidade e
aos interesses de seu povo. Por solicitação direta
que fez aos professores indígenas, a coordenado-
ra de Educação da Funai de Passo Fundo foi au-
torizada a assistir todos os encontros. Também
foram autorizados os supervisores da Delegacia
de Ensino da região, mas só participaram de al-
guns encontros, e sempre parcialmente. Todos os
encontros contavam com momentos de avaliação
do trabalho realizado, teorização, riquíssimos
debates e análises lingüísticas, estudo de textos
9
e planejamento.
Nesse processo, à margem das iniciativas,
sempre muito gerais e algumas improvisadas,
da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul,
a comunidade de Inhacorá foi reconstruindo
sua escola, definindo sua política e planifica-
ção lingüística e implementando-as na prática.
Menciona-se aqui a comunidade, pela praxe de
a escola interagir com os pais, pela presença do
cacique da comunidade em todos os encontros
realizados – e, na maior parte deles, em tempo
quase integral – e pela assembléia realizada em
um dos momentos de encontro, em dezembro
de 1999, em que a comunidade toda debateu e
aprovou o calendário escolar diferenciado da
escola de Inhacorá, o primeiro elaborado dessa
forma no Rio Grande do Sul. Ao longo desse
processo, os professores produziram um mate-
rial próprio de apoio à alfabetização e, como
fruto dessa experiência e da reflexão acumula-
da, a experiência de Inhacorá passou a ser refe-
rência para muitas escolas e nos encontros ge-
rais promovidos pela Secretaria do Estado. Um
professor de Inhacorá chegou a atuar como as-
sessor, a convite de seus colegas, para o plane-
jamento de material de alfabetização na comu-
nidade Kaingang mais próxima, de Guarita.
Não se trata de um processo realizado sem
dificuldades e, muito menos, já concluído e com
resultados totalmente positivos – e esse é um dos
motivos da epígrafe de Wanderley Geraldi. Foram
pouquíssimas as crianças alfabetizadas nas tur-
mas de primeira série do ano de 1997 – tanto em
Português como em Kaingang. Os problemas que
isso gerou, com a entrada de novos alunos, a ex-
pectativa dos pais com os novos professores e a
carência de preparação destes para alfabetizar,
foram acumulando dificuldades nos anos seguin-
tes, as quais se buscava corrigir para avançar.
Nada disso, porém, diminuiu o significado dos
ganhos mais importantes. A compreensão da si-
tuação sociolingüística de sua comunidade e das
demais comunidades Kaingang e a capacidade de
enfrentar os problemas de um planejamento
lingüístico e educacional e responder-lhes com
autonomia fizeram dos professores de Inhacorá
– os oito iniciais mais os novos candidatos que
acompanharam os encontros posteriores – edu-
cadores capazes de conduzir a sua escola.
10
No momento, trabalham na reflexão sobre o
que deve ser a continuidade” do ensino na lín-
gua materna e ainda debatem questões referen-
tes à introdução da Língua Portuguesa. Embora
quase se restrinja, nesse caso, à definição de uma
política de educação escolar bilíngüe, as preocu-
pações e debates que a fundamentam têm, no
horizonte, não apenas o futuro lingüístico da sua
comunidade, mas da sociedade Kaingang como
um todo, na qual se sentem plenamente inseri-
dos e, para cuja política e planificação lingüísti-
ca, sentem que têm uma colaboração a dar e se
orgulham, obviamente, do lugar social e político
que têm conquistado no conjunto dos professo-
res indígenas do Rio Grande do Sul.
Nesse processo, fruto de sua prática com a
reflexão lingüística stricto sensu,
11
eles também
9
Vários desses textos foram especialmente traduzidos do inglês para utilização com esses professores, naquelas oportunidades.
10
Para evitar confusão, é relevante anotar que a escola continua sendo custeada pelo estado, ainda que o financiamento, no Rio Grande do
Sul, seja pela forma de contratos precários para os educadores. Em outro trabalho, discuti o problema dos limites da autonomia das escolas
indígenas, inclusive acerca do seu financiamento (cf. D’Angelis, 1997).
11
Em encontro de pesquisadores de línguas Jê e Macro-Jê, realizado na UEL, em Londrina (PR), no mês de fevereiro de 2001, apresentei um trabalho
sobre o gênero em Kaingang que, em parte, refletia análises e discussões ocorridas no acompanhamento da escola de Inhacorá (cf. D’Angelis, 2001).
119
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
vêm assumindo o interesse de veicular, entre os
demais professores Kaingang, o debate em tor-
no da ortografia do Kaingang, que tanto descon-
tentamento tem gerado em muitas comunida-
des há anos. As preocupações mais amplas se
refletem, também, no interesse pela produção
de um jornal em língua Kaingang, usando um
computador que doamos e um programa espe-
cífico com uma fonte própria para as particula-
ridades ortográficas do Kaingang – que tem
quatro vogais nasais e, por isso, usa-se o til so-
bre elas, o que os programas convencionais não
permitem, a saber: e, i, u, y.
12
Nhandewa-Guarani
(São Paulo e norte do Paraná)
No primeiro semestre de 1997, em reunião
na Secretaria de Planejamento do Estado de
São Paulo, em que se tratava da constituição
do Núcleo de Educação Escolar Indígena nes-
sa secretaria, o representante indígena da área
Nimuendaju (ex-Araribá), Claudemir Marco-
lino Honório, provocou os presentes dizendo
que as universidades de São Paulo não esta-
vam interessadas nos índios do estado. No in-
tervalo, procurei-o para saber o que ele es-
perava das universidades. Disse-me que o di-
aleto Nhandewa-Guarani da sua comunidade
e de outras no estado estava desaparecendo e
que eles gostariam muito de que pessoas das
universidades se preocupassem em registrá-lo
e ajudá-los a pensar como ensinar aquele dia-
leto na escola. Assumi o compromisso de en-
contrar um auxiliar de pesquisa e, depois,
procurá-lo na aldeia.
A partir do segundo semestre de 1997, pre-
parei dois graduandos e, no ano seguinte, inici-
amos uma pesquisa na área do Nimuendaju.
Sem recursos específicos, o trabalho foi docu-
mentar o dialeto, tal como falado pelas pessoas
mais velhas da comunidade, e proceder a uma
análise fonológica e morfológica que pudesse
subsidiar o processo de definição ortográfica,
que antevíamos como indispensável.
A falta de recursos impediu-nos de avan-
çar mais rapidamente, mas, no segundo se-
mestre de 2000, realizamos um encontro – com
apoio da Coordenação Geral de Apoio às Es-
colas Indígenas e da Funai/Bauru –, que pas-
samos a chamar de Convenção Ortográfica
Nhandewa-Guarani. Por iniciativa dos Guarani
do Posto Nimuendaju, o encontro reuniu pro-
fessores e lideranças – três caciques – de cinco
das sete aldeias Nhandewa-Guarani de São
Paulo e do Norte do Paraná, que falam o mes-
mo dialeto e têm uma história comum:
Nimuendaju, Itariri e Piassaguera, de São Pau-
lo; Pinhalzinho e Laranjinha, do Norte do
Paraná.
13
Depois disso, outros dois encontros
foram realizados entre as comunidades para
produção de materiais de uso escolar. Regis-
tre-se que
[...] a escrita Nhandewa-Guarani de São Paulo e
Norte do Paraná foi decidida com acompanha-
mento de um lingüista, de forma a garantir às
comunidades a informação e as melhores con-
dições para realizá-la, mas foi um processo de
decisão dos professores indígenas. O principal
fruto desse procedimento é a desmistificação da
escrita, aqui vista por eles como uma ferramen-
ta da qual se apropriaram e sobre a qual podem
tomar decisões, de modo que as comunidades
não ficam vulneráveis ao poder de estrangeiros
sobre sua própria língua, como acontece em
muitos casos de escritas produzidas por lingüis-
tas para a comunidade, sobretudo nos casos em
que participam agentes de empreendimentos
missionários. Tal como foi feito, o processo ga-
rante aos Guarani liberdade para rever suas de-
cisões, porque foram eles que as tomaram e sa-
bem como o fizeram.
14
12
Uma reflexão e mais informações sobre esse trabalho encontram-se em Veiga (2001). Nas viagens a partir do final de 1999, contamos com
recursos da Unesco por meio da Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas e, em todos os encontros, de um modo ou de outro,
houve contribuição efetiva da Funai/Passo Fundo.
13
Problemas decorrentes da separação muito recente entre os grupos de Piassaguera e Bananal impediram a participação de representantes
deste último grupo, que é, no entanto, uma das menores aldeias e uma das que têm menor número de falantes.
14
Trecho do projeto “Publicação de material didático Nhandewa-Guarani”, apresentado ao MEC pelo Núcleo de Cultura e Educação Indígena
da ALB, em julho/2001.
120
O que pretendo destacar, principalmente, é
o fato de que a comunidade Nhandewa-Guarani
do Nimuendaju definiu a sua política lingüísti-
ca muito antes de encontrar um lingüista para
apoiá-la e, ainda antes que contasse com esse
apoio técnico, já iniciara, com seus conheci-
mentos e recursos – com base em trabalho vo-
luntário de três pessoas: Claudemir, Francisco
e Juraci –, um programa de ensino da língua
Guarani com as gerações mais novas. Duas a
três vezes por semana, regularmente, desde
1998, reúnem-se à noite, na escola, com as cri-
anças e com os jovens que retornaram do tra-
balho nas fazendas ou com os que vieram da
escola da cidade, e passam de uma hora e meia
a três horas lendo e escrevendo, copiando e tra-
duzindo frases.
Como parte dos esforços da comunidade
toda, o Guarani já pode ser ouvido nos cumpri-
mentos e em muitas conversas entre as pessoas
acima de 40 anos e está presente também na
tradução de orações cristãs – já que, naquela
aldeia, quase 100% da comunidade participa de
cultos da Congregação Cristã ou de algumas
igrejas pentecostais, como Só o Senhor é Deus
– e de cantos para a escola, aí incluída uma ver-
são Guarani, feita por eles mesmos, do Hino
Nacional brasileiro.
Política lingüística
e escola indígena
Anteriormente disse, de forma simplificada,
sobre política lingüística” definida na comuni-
dade tal ou qual. Porém, é importante dizer
duas palavras sobre o enfoque que foi assumi-
do aqui e sobre a complexidade e as tensões
desse processo.
Sobre o enfoque, é evidente que minha dis-
cussão privilegiou, até aqui, as situações em
que há duas línguas presentes na comunida-
de, das quais uma delas é a língua indígena
ancestral. Essa não é a única situação nas co-
munidades indígenas, mas, além de ser a mais
comum, é também o tipo de situação em que
mais tenho atuado.
Quanto ao outro aspecto, o da complexi-
dade e das tensões do processo, não é inco-
mum – ao contrário, provavelmente é o mais
comum – que os professores indígenas cons-
truam, por sua reflexão e pelas relações com o
mundo fora da aldeia e da região, uma com-
preensão diferente da maioria de sua comuni-
dade, em relação ao valor do trabalho com a
língua materna na escola. É comum, portanto,
que, nesses contextos, alguns pais indígenas
apresentem queixa aos professores ou ao ca-
cique: Meu filho não precisa aprender a nos-
sa língua, isso ele já sabe; eu mando ele na es-
cola para aprender Português.
A primeira reação é tomar essa fala como
um discurso integracionista, como se a comu-
nidade estivesse dizendo, com isso, algo como:
“Queremos que nossos filhos não sejam mais
índios (Kaingang, Wapixana, Terena...) e pas-
sem, de língua e alma, para o mundo dos bran-
cos. Quando entendida desse modo, essa fala
costuma gerar um distanciamento dos profes-
sores índios em relação à comunidade e, às ve-
zes, um isolamento da própria escola. No limi-
te, alguns pais cogitam de mandar os filhos para
a escola de fora da área, em lugar de mandar
para a escola da comunidade. No entanto, na
maior parte dos casos, esse discurso pode ser
traduzido por uma fórmula do tipo: “Nós que-
remos, para os nossos filhos, um ensino que os
prepare para enfrentar o mundo dos brancos e
se virar nele, e isso inclui a Língua Portuguesa,
nas modalidades oral e escrita.
15
Em outras palavras, aí está também em-
butida uma proposta de política lingüística.
Onde os professores indígenas saibam dialo-
gar com a sua comunidade e compreender as
suas preocupações e os seus interesses, será
sempre possível desenvolver um programa
escolar que dê conta daquela demanda e, ao
mesmo tempo, permita à escola trabalhar e
valorizar a língua indígena com as gerações
15
Nenhuma comunidade ou família deseja que seus filhos queiram guardar distância dela, alhear-se, enfim. Mas não se pode simplificar a
questão e esquecer que também há pais que aderem a projetos de cunho mais ou menos integracionista e, não por acaso, costumam ser
índios funcionários e, com alguma freqüência, casados com não-índio(a).
121
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
mais novas. Se esse programa escolar for bas-
tante bem-sucedido e avançar em políticas
ofensivas, uma tal escola experimentará, efe-
tivamente, um ensino intercultural eficaz e
capaz de formar pessoas críticas e ativas, que,
em muito, diferencia-se de um ensino em que
a cultura indígena é apenas folclore que dá
colorido a um processo de “inclusão” compul-
sória e desculturadora.
É preciso também reconhecer que, em boa
parte dos casos em que os pais manifestam des-
contentamento com o ensino da língua indíge-
na na escola, os professores revelam-se real-
mente despreparados, sem iniciativa e, muitas
vezes, incapazes de alfabetizar. Aqui, as pala-
vras de Geraldi, colocadas na abertura deste
texto, ecoam mais forte ainda. A escolha desse
autor não foi casual: as propostas e práticas con-
solidadas de ensino renovado de língua mater-
na no Brasil, que se coloca contra o ensino
gramaticalista” e no qual Geraldi é um dos no-
mes mais destacados, são as que julgo pertinen-
tes para a formação também de professores in-
dígenas, para que trabalhem no ensino de lín-
gua materna em suas comunidades, seja ela
uma língua indígena, seja ela uma variedade do
Português.
O caminho da descoberta, da experimenta-
ção e da busca de autonomia pode dar uma
única garantia aos educadores: de que o pro-
cesso acontecerá, independente dos resultados.
E, se o processo acontece, as pessoas não saem
dele “incólumes”: agir e refletir sobre a ação
transformam as pessoas, mesmo que elas não
consigam transformar o mundo da forma que
desejavam fazê-lo.
Finalmente, é importante dizer que um tal
programa escolar, entendido como parte im-
portante da política lingüística de uma socie-
dade indígena, não pode ser executado por pro-
fessores descomprometidos com seus objeti-
vos. As comunidades realmente interessadas
em um programa de educação escolar precisam
estar atentas e garantir que o lugar de profes-
sor” não seja um simples emprego, lugar de re-
cebimento de salários por pessoas não capazes
ou desinteressadas do processo. Como bem
ensina o professor Bruno Ferreira, Kaingang de
Votouro: “Quem vai de arrasto não tem com-
promisso,
16
ou seja: quem vai porque os outros
puxam não se compromete com os objetivos
nem com os resultados do trabalho.
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A.P. (Orgs.)
Questões de educação escolar indígena:
da formação do professor ao projeto de escola. Campi-
nas: ALB, 2001. p. 113-125.
16
Exposição oral em mesa-redonda sobre “Projeto Político Pedagógico e Autonomia”, no IV Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades
Indígenas (Campinas: Unicamp, 13
o
Cole, 16-20/7/2001).
122
Resumo
Este artigo reporta-se ao projeto de alfabetiza-
ção Werè Tyyritina, que foi desenvolvido na aldeia
Javaé de Boto Velho, na Ilha do Bananal, TO, entre
1983 e 1986. O projeto baseava-se no método Pau-
lo Freire e ensinou um grupo de dez crianças indí-
genas a ler e escrever em sua língua materna. Uma
cartilha e um livro de estórias na língua Javaé (fa-
mília Karajá, tronco Macro-Jê) foram elaborados e
posteriormente publicados, assim como um ma-
nual do professor bilíngüe, que é apresentado como
anexo a este artigo (página 127).
Introdução
O projeto foi proposto a mim e ao antro-
pólogo André Toral por ocasião de nossa pri-
meira visita à aldeia Javaé de Boto Velho
(Inywèbohona),
1
na Ilha do Bananal, TO, em
julho de 1983, para coletar dados lingüísticos
e etnográficos para projetos de mestrado liga-
dos ao Museu Nacional da UFRJ. Fixada no lo-
cal desde a década de 1940, aquela comunida-
de Javaé, de cerca de 60 pessoas, à exceção de
um período de seis anos (1973-1979) em que
fora obrigada a se transferir para o Posto Indí-
gena Kanoano, jamais recebera, por parte da
Funai, qualquer assistência educacional. Em-
bora situada em local considerado mítico
2
pela
etnia, na parte norte da Ilha do Bananal, pró-
ximo à localidade de Barreira da Cruz, na con-
fluência do rio Formoso com o rio Javaés, a al-
deia de Boto Velho encontrava-se, na ocasião,
fora dos limites do Parque Indígena do
Araguaia, sofrendo grande pressão de autori-
dades e de fazendeiros para abandonar a área,
que ficava no trajeto planejado para a estrada
BR-262, a Transaraguaia, que cortaria o Parque
Nacional do Araguaia.
Decididos a permanecer em sua aldeia tra-
dicional, a despeito de todas as pressões,
3
os
Javaé preocupavam-se com o fato de que as cri-
anças cresciam sem a oportunidade de se alfa-
betizarem nem na língua materna e nem na Lín-
gua Portuguesa. Entre 1981 e 1982, alguns pais
enviaram seus filhos para estudar na escola da
prefeitura municipal de Cristalândia, na locali-
dade de Barreira da Cruz, próxima à aldeia. O
Werè Tyyritina:
alfabetização na língua Javaé
Marcus Maia*
UFRJ
* PhD, professor adjunto de Lingüística do Setor de Lingüística do Museu Nacional e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da
Faculdade de Letras da UFRJ. Autor dos artigos: O acesso semântico no
parsing
sintático. In:
Revista
ALFA,
São Paulo, n. 42, p. 101-111,
1998, e Palavras interrogativas em Karajá. In:
Revista Laços
, Rio de Janeiro, n.1, p. 91-110, 2000.
1
A transcrição dos dados do Javaé apresentados neste trabalho segue o quadro de correspondências entre os símbolos ortográficos e
fonéticos abaixo:
Consoantes: b, d, t ([t^]), k, tx ([ts&]), j, s ([T]), x ([s&]), l, r, h, w.
Vogais: i, y ([ï]), u, e ([e]), à ([´]), o, è ([E]) [æ]), a, ò ([ç]).
Vogais nasalizadas: i, õ, ã.
2
Próximo à aldeia de Boto Velho há três grandes buracos onde, segundo o mito, foram enterrados os corpos de todos os homens, todas as
mulheres e crianças da etnia, após a revelação do segredo de Aruanã.
3
A Funai alegava só poder assistir aos Javaé se eles se transferissem para a aldeia de Kanoano; o IBDF, então responsável pela administra-
ção do Parque Nacional do Araguaia, não reconhecia a presença do grupo indígena no interior do parque, fazendo constantes apelos para
que os Javaé se retirassem; a construtora Andrade Gutierrez, encarregada da construção da BR-262, ligava as suas máquinas, paradas, do
outro lado do rio Javaés, causando um barulho ensurdecedor; fazendeiros e autoridades municipais (Cristalândia, então estado de Goiás,
hoje estado do Tocantins) iam constantemente à aldeia, tentando persuadir os Javaé a deixar o local.
123
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
curso, realizado com entusiasmo pelas crianças
Javaé, foi, no entanto, interrompido por moti-
vo de transferência do professor e não mais foi
retomado. A tentativa de enviar crianças para
estudar na sede do município de Cristalândia
fora, igualmente, malsucedida em decorrência
da distância de 110 quilômetros entre a aldeia
e o município.
No momento de nossa visita, era, portanto,
grande a ansiedade do grupo quanto à criação
de uma escola na aldeia. A comunidade enten-
dia que a existência de uma escola em funcio-
namento na aldeia, além de instrumentalizar as
crianças para o contato com a sociedade
envolvente, serviria para ajudar a legitimar a sua
presença na área. Foi em tal contexto, então,
que o cacique João Wataju nos solicitou que as-
sistíssemos à sua filha, Lucirene Behederu, na
organização de um projeto de alfabetização.
Lucirene, que concluíra os estudos de primeiro
grau (curso fundamental) durante a estada do
grupo em Kanoano, já vinha, desde há alguns
meses, ministrando, informalmente, aulas de
Javaé, Português e Matemática, usando o ma-
terial bilíngüe desenvolvido para os Karajá pe-
los lingüistas do Summer Institute of Linguistics
(SIL). Embora não tivéssemos, na ocasião, qual-
quer experiência prévia com alfabetização, em
face das dificuldades que presenciávamos, de-
cidimos aceitar a solicitação dos Javaé. Inicia-
mos o projeto assistindo às aulas de Lucirene e
tentamos avaliar a metodologia, os materiais
didáticos e o grupo de doze crianças e adoles-
centes com quem Lucirene vinha trabalhando.
Avaliação preliminar
O grupo de alunos era constituído por oito
meninas e três meninos com idade entre 4 e 9
anos e por uma mulher de 20 anos de idade que
também pediu para ser alfabetizada.
4
Oito des-
sas crianças já haviam sido expostas a alguma
forma de escolarização, outras quatro nunca
haviam freqüentado escola. Posteriormente,
durante a primeira fase do curso, registrar-se-
iam duas desistências: uma, de Wajurema, de-
corrente do engajamento do menino nas ativi-
dades de pesca da comunidade e a outra, de
Harawaki, cuja mãe queria a alfabetização ini-
cial diretamente em Português, em vez de Javaé,
como havia sido decidido de comum acordo
com a comunidade.
Nosso teste diagnóstico foi simples: pediu-
se aos alunos que desenhassem algo de sua li-
vre escolha e, em seguida, procurassem escre-
ver o nome do desenho em Javaé e/ou em Por-
tuguês, conforme desejassem ou soubessem.
Propusemos ainda que copiassem algumas pa-
lavras em Javaé escritas por Lucirene no qua-
dro. Observamos que a totalidade dos alunos
era monolíngüe em Javaé, exceto a mulher de
20 anos, que era capaz de compreender tam-
bém o Português oral. Três alunas se revelaram
mais aptas do que os demais no que se refere
ao domínio de habilidades motoras da escrita,
mas todos eram rigorosamente analfabetos.
A despeito do grande empenho de Lucirene,
avaliamos que as suas aulas não vinham obten-
do resultado satisfatório por duas razões:
• o curso não obedecia a qualquer critério
metodológico, era desenvolvido em bases
assistemáticas, sem regularidade, o que di-
ficultava a progressividade da aprendiza-
gem;
• o material do SIL desenvolvido para a lín-
gua Karajá não era adequado ao Javaé, pois
esse dialeto do Karajá apresenta traços ca-
racterísticos nos planos fonético e lexical; a
comunidade atribui grande valor à sua rea-
lidade lingüística própria, tomando-a como
um dos elementos para a afirmação de sua
identidade perante os Karajá.
Metodologia e programação
Antes de deixarmos a aldeia de Boto Velho,
no final de julho, acertamos que Lucirene iria ao
Rio de Janeiro no início de outubro, para a reali-
zação de treinamento e desenvolvimento da
metodologia, da programação e de materiais di-
4
É a seguinte a relação de nomes e respectivas idades dos alunos da escola de Boto Velho: Marilúcia Asiwaru (9 anos), Rosilda Beluá (9
anos), Rosamília Behé (4 anos), Harawaki (5 anos), Naiude Hariaru (6 anos), Luciana Kuaxiru (7 anos), Manoel Maireá (7 anos), Cleunícia
Seija (4 anos), José Inácio Wasuri (7 anos), Rosamíria Werià (6 anos), Roberto Wajurema (9 anos), Mariazinha Ximanaki (20 anos).
124
dáticos. Foi também estabelecido em conjunto
com a comunidade que o projeto visaria, em sua
primeira fase, à alfabetização em Javaé, para,
posteriormente, passar à alfabetização em Por-
tuguês. Precisamos argumentar com a comuni-
dade que não seria possível promover a alfabe-
tização inicialmente em Português, pois a tota-
lidade dos alunos não falava nessa língua, por
isso seria mais apropriado alfabetizá-los na lín-
gua materna e, em seguida, à medida que fos-
sem se tornando fluentes em Português, intro-
duziríamos a escrita nessa língua.
Durante os meses que antecederam a che-
gada de Lucirene ao Rio, dedicamo-nos a es-
tabelecer os fundamentos teóricos do projeto.
Avaliamos várias metodologias, procuramos
nos informar sobre projetos de alfabetização
em outras comunidades indígenas e termina-
mos por decidir tentar uma adaptação do mé-
todo Paulo Freire, originalmente concebido
para a alfabetização de adultos, à turma de cri-
anças indígenas. O método Paulo Freire con-
cebe o processo de alfabetização em termos de
conscientização, recusando, por princípio, a
excessiva centralização no professor e nos con-
teúdos programáticos, de um lado, e a mera re-
cepção passiva de técnicas e conceitos, de ou-
tro. Tal fato pareceu-nos decisivo, pois as ati-
vidades de alfabetização poderiam ser
introduzidas na comunidade como parte de
um contexto de questionamento e reflexão
mais amplo sobre a realidade da sociedade in-
dígena em face da realidade envolvente, além
de ser um método de base silábica que pare-
cia ideal às características fonético-fonológicas
do Javaé, língua de recorte silábico simples e
bem marcado. A literatura por nós revista apre-
sentava, ainda, várias experiências bem-suce-
didas na aplicação do método Paulo Freire em
comunidades indígenas. Uma dessas experiên-
cias foi-nos de particular valia: a realizada por
Isabel Hernandez com o grupo Mapuche, no
Chile (1981).
Concebido para ser desenvolvido em con-
junto com o grupo a partir de situações inici-
ais de aprendizagem, o programa seria mon-
tado progressivamente com a participação ati-
va da comunidade. Em consonância com o ca-
ráter experimental do projeto e em função do
amadurecimento da equipe, organizar-se-iam
cartilhas, livros de exercícios, de escrita e de
estórias. Inicialmente, no entanto, seria de-
senvolvida apenas a primeira etapa de um ma-
nual do professor, com roteiro de situações pe-
dagógicas a serem testadas e avaliadas. As eta-
pas seguintes desse manual seriam desenvol-
vidas a partir dos resultados da primeira fase.
Logo que Lucirene chegou ao Rio de Janeiro,
em princípio de outubro de 1983, passamos à
organização do programa. Discutimos com
Lucirene a proposta educacional do método
Paulo Freire, a que ela demonstrou receptivi-
dade desde o início. No decorrer das sessões,
fomos delineando o perfil do programa e re-
criando o método à feição dos Javaé. As 11 pa-
lavras geradoras escolhidas cobriam todos os
fatos fonológicos da língua Javaé, inclusive as
diferenças existentes entre a fala do homem e
da mulher, e eram ainda representativas da
realidade cultural da comunidade: Hãwa (al-
deia), Irasò (aruanã), Ijata (banana), Koworu
(roça), Wasureny (a nossa terra), Mahãdu (o
grupo, a turma), Ixyju (outros índios, índios
“bravos”), Bodòlekè (pirarucu), Krysa (Xavan-
te), Itxãtè (louco), Brèbu (medo).
Organizamos, como havíamos previsto, um
guia metodológico bilíngüe (cf. Anexo), em que
foram estipulados, item por item, os diversos
procedimentos de exploração de cada palavra
geradora a ser trabalhada com a turma de crian-
ças.
Basicamente, as atividades pedagógicas fo-
ram distribuídas nas seguintes etapas:
• atividades de reflexão oral: debate dos sig-
nificados de cada palavra pela turma, que,
em seguida, os representava pictorica-
mente;
• atividades de leitura: cada palavra era apre-
sentada para reconhecimento, desmembra-
da em seus constituintes silábicos, que eram
rearticulados em novas palavras criadas pe-
los alunos;
• atividades de escrita: os alunos copiavam
cada palavra e sílaba e depois produziam
novas palavras, recombinando os consti-
tuintes silábicos.
Ao longo de todas as fases eram realizados
jogos e brincadeiras pedagógicas.
125
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
Objetivando um máximo de envolvimento
da comunidade na implementação, pedimos
que as famílias dos alunos colaborassem com a
construção da casa e a fabricação da mesa e dos
bancos para o funcionamento da escola e envi-
amos aos pais fita gravada na língua Javaé, em
que informávamos sobre os detalhes do méto-
do e sobre a importância da alfabetização ini-
cial ser em língua indígena e da freqüência às
aulas. Desenvolvemos também um conjunto de
folhas de exercícios para cada palavra geradora
e estabelecemos que Lucirene nos enviaria, ao
término do trabalho com cada palavra, uma fo-
lha-teste preenchida pelos alunos. Esse proce-
dimento visava a nos permitir o acompanha-
mento das atividades, o que nos possibilitaria
a formulação de sugestões e correções. Junto
com os testes, Lucirene deveria ainda nos envi-
ar regularmente um relatório em que seriam
registradas as faltas eventuais de cada aluno,
além de observações gerais a respeito do anda-
mento do programa, dificuldades ou dúvidas na
aplicação do método etc.
Em janeiro de 1984, ao recebermos de
Lucirene o relatório e os testes corresponden-
tes à primeira palavra geradora, enviamos-lhe
uma carta contendo observações gerais e indi-
viduais, apontando problemas de grafia de le-
tras, falta de aderência das sílabas grafadas às
linhas, estímulo à maior diversificação dos de-
senhos etc. Sugerimos a Lucirene que dedicas-
se mais tempo às práticas de desenvolvimento
de coordenação motora, pois os testes revela-
vam grande tendência dos alunos em grafar as
sílabas com traços descontínuos ao invés de
segmentos cursivos, conforme planejado.
Submetemos, então, o projeto à apreciação
da organização não-governamental britânica
Oxfam, que o aprovou, repassando-nos recur-
sos financeiros destinados ao pagamento de
salário a Lucirene, que assim poderia dedicar-
se exclusivamente às atividades da escola. Ou-
tra parte dos recursos obtidos foi aplicada em
gastos com xerox, material escolar, camisetas
com impressão de desenho escolhido pelos alu-
nos para simbolizar a escola. Iniciávamos, as-
sim, o projeto de alfabetização da Werè Tyyritina
– a escola Werè, nome escolhido pela comuni-
dade para denominar o projeto.
Avaliação da primeira fase
do projeto
Na segunda quinzena de julho de 1984, vol-
tamos à aldeia a fim de avaliar a primeira etapa
do projeto de alfabetização e supervisionar a
organização da segunda fase. Pudemos consta-
tar, de imediato, que a comunidade, de um
modo geral, vinha se empenhando pelo suces-
so do projeto. A construção da escola havia sido
concluída e os bancos e mesas, fabricados com
capricho. Verificamos que as aulas haviam se
tornado atividades regulares, bem inseridas no
cotidiano da comunidade.
O grupo de alunos, extremamente motiva-
do, relutara até em aceitar as férias propostas
por Lucirene para o mês de julho, época de ve-
rão na região, quando a comunidade realiza ati-
vidades coletivas tradicionais nas praias próxi-
mas à aldeia. Convocados para uma reunião de
supervisão, chegaram todos bem cedo à esco-
la, uniformizados e portando cada um a sua
pasta. Sentados à mesa, participavam ativa-
mente da aula. As dispersões ocasionais eram
contornadas por Lucirene com habilidade. Ape-
sar do desconforto inicial causado pela presen-
ça dos supervisores, a sessão transcorreu com
naturalidade. A professora apontava a sílaba no
cartaz afixado na parede, os alunos a identifi-
cavam com presteza, habituados ao método.
Em caso de dúvida de um aluno, outro era ins-
tado a auxiliar. Na fase de redação de sílabas,
Lucirene verificava pacientemente cada cader-
no, sugerindo, corrigindo. Havia se estabeleci-
do um ritmo fluente de trabalho. Alguns aspec-
tos do método haviam sofrido adaptações di-
tadas pela prática, mas, indiscutivelmente, a
Werè Tyyritina era uma realidade na aldeia de
Boto Velho.
Entre novembro de 1983 e junho de 1984,
haviam sido ministradas cerca de 140 aulas com
duração aproximada de duas a três horas por
sessão. O índice de freqüência médio, rigorosa-
mente anotado pela professora no diário de
classe, estava em torno de 70%. Apontamos a
Lucirene alguns problemas que havíamos ob-
servado e discutimos a respeito da implemen-
tação de estratégias para o seu equaciona-
mento. Dessas discussões e da observação do
126
desempenho individual dos alunos, por meio de
exame dos cadernos e de sua participação em
aula, concluímos que grande parte das dificul-
dades encontradas era decorrente da hetero-
geneidade da turma. Por um lado, os alunos
mais adiantados não vinham se desenvolven-
do adequadamente, pois as atividades de coor-
denação motora, simples demais, não lhes des-
pertavam maior interesse. Terminada a cópia,
rapidamente ficavam sem ter o que fazer ou
dedicavam-se a ajudar os menores. Por outro
lado, os menos adiantados tinham poucas opor-
tunidades nas atividades de criação de novas
palavras a partir das sílabas conhecidas, ativi-
dades que ocupam posição central no método.
Os mais adiantados, geralmente, resolviam os
problemas apresentados nos jogos e exercíci-
os, restando aos menores a mera cópia dos re-
sultados. Procurando conciliar os dois pólos,
a professora terminava por não propiciar con-
dições para que os mais adiantados passassem
da fase de reconhecimento e cópia de vocábu-
los à fase de leitura e redação efetivas. Do mes-
mo modo, os mais novos acabavam por não
perceber a produtividade das combinações si-
lábicas para a formação de novas palavras e não
avançavam da fase de reconhecimento e cópia
para a fase de criação vocabular.
A segunda fase do projeto
Com o objetivo de corrigir os problemas
anteriormente indicados, decidimos distribuir
os alunos nas turmas “A” e “B”. A turma A” foi
constituída pelos alunos mais adiantados, que
avaliamos como tendo sido efetivamente alfa-
betizados na primeira fase: Asiwaru, Belua,
Kuaxiru, Mairea e Ximanaki. A estes se juntou
o menino Paulo Huruka, que, embora não ten-
do participado da primeira fase do projeto,
havia freqüentado anteriormente uma turma
de alfabetização em Português na escola da
prefeitura.
Para essa turma, foi desenvolvida uma se-
gunda etapa do projeto, fundamentada na lei-
tura e redação de textos. Assim, à noção de sí-
laba e palavra aprendida na primeira fase, so-
mava-se agora a noção de frase e estória. A
metodologia estabelecida para as aulas da tur-
ma A” integrava-se àquela desenvolvida para a
fase inicial, obedecendo a uma perspectiva de
complexificação crescente, assim estruturada:
1. leitura em voz alta de uma estória, coleti-
va e individualmente;
2. representação pictórica dos fatos evocados
pela estória;
3. percepção das sílabas como unidades for-
madoras das palavras;
4. percepção das palavras como unidades for-
madoras das frases;
5. percepção das frases como unidades com-
ponentes da estória;
6. redação das palavras e frases da estória;
7. formação de novas frases;
8. redação de novas frases;
9. redação de novas estórias.
Introduzimos a partir daí, também, o ensi-
no do Português. Organizamos uma apostila
com exercícios diversos de interpretação e re-
dação baseados em pequenas estórias do reper-
tório oral da comunidade. Outra apostila foi
preparada para uso dessa turma, incluindo pa-
lavras, frases e pequenas estórias em Portugu-
ês, além de outros gêneros discursivos, como
cartas, notícias de jornal, relatórios etc.
A turma “B” foi constituída pelos alunos
mais novos, ainda não efetivamente alfabeti-
zados e que requeriam atenção especial para
o desenvolvimento de coordenação motora e
para a compreensão da produtividade do sis-
tema de escrita: Wasuri, Behè, Hãriaru, Seija e
Weria. Nessa fase, ingressou na turma a meni-
na Hukanaru. Esses alunos, a despeito de es-
tarem familiarizados com o método, ainda não
haviam operacionalizado seus conhecimentos
de modo a serem capazes de ler e escrever no-
vas sílabas, palavras ou frases. Projetamos um
novo conjunto de palavras geradoras, solicita-
das em sessões escolares com os alunos, a sa-
ber: Korera (jacaré), Ijoti (barreira), Surona (sa-
bão), Wadò (minha comida), Helyrè (pato-sel-
vagem), Txiòrò (noitinha), Buhã (boto), Krukru
(um pássaro), Maiti (cana-de-açúcar), Bròrè
(veado). Organizamos, igualmente com a par-
ticipação ativa da turma, outra série de folhas-
teste, que nos seriam remetidas para avaliação
127
Políticas lingüísticas e a escola indígena
PAINEL 4
no decorrer do semestre seguinte. As ativida-
des das turmas A” e “B” foram previstas para
um período de aproximadamente um ano. Par-
te do material foi produzido durante nossa es-
tada na aldeia – cartazes, folhas de exercício –
e outros itens foram produzidos posteriormen-
te no Rio de Janeiro e remetidos, pelo correio,
para Lucirene.
Em 1986, o projeto Werè Tyyritina rece-
beu apoio do Museu do Índio (Funai/RJ),
quando se produziram também, com as as-
sessorias do professor Francisco Vieira, do
Departamento de Análise Matemática da
Universidade Federal Fluminense, e do an-
tropólogo André Toral (Mari/USP), materiais
didáticos, respectivamente, nas áreas de
Matemática e Estudos Sociais. Esse projeto
foi apresentado durante o I Encontro Nacio-
nal de Educação Indígena, realizado no Rio
de Janeiro, em 1987, sob o patrocínio do
Museu do Índio (Funai-RJ) e da Fundação
Pró-Memória (Ministério da Cultura). A
cartilha elaborada para uso na escola Javaé foi
publicada em 1990 pelo Museu do Índio
(Funai/RJ). Os alunos das duas turmas, bem
como os de outras turmas, foram alfabetiza-
dos na língua materna e em Português por
Lucirene Behederu, que foi, posteriormente,
contratada como professora pelo município de
Cristalândia, TO, para continuar atuando re-
gularmente na escola da aldeia de Boto Velho.
Bibliografia
HERNANDEZ, I.
Educação e sociedade
. São Paulo: Cortez,
1981.
Guia bilíngüe de alfabetização
1. Bitejikre ka quadro-ò rybè tykytàrasana.
Colocar no quadro a foto ou desenho do
tema da palavra geradora.
2. Bidesenhanykre rybè. Ibutumy iny rybè
bidesenhanybenykre.
“Pedir para a turma desenhar o tema da pa-
lavra geradora.
3. Bitejibenykre desenho ibutumy hetowèmy.
Colocar os desenhos nas paredes da casa
da escola para todos verem.
4. Bitejikre ka tykyritsõmo ibutumy ritina rybè
biritinykre ka quadro rybè.
Colocar o cartão ‘ibutumy ritina’ e escre-
ver no quadro-negro a palavra geradora.
5. Marybebenykre: ka rybè belàkyke ijykymy.
Conversar sobre a palavra geradora.
6. Karyberenykre ritinadi rybè ritèosinyrekre
debòmy ritina quadro-ò.
“Ler a palavra geradora mostrando com a
mão os pedaços no quadro- negro e no car-
tão ‘ibutumy ritina’.
Anexo
7. Raurubukre kà desenho, foto ixyby kua
àdekerenykijiboho lohoji, ibutumy.
Guardar a foto ou desenho e repetir com
as crianças, separadamente e em grupo.
8. Rykyraxire tiusè soemy iryy raukyratabo
rarybera rybè.
“Perguntar quantas vezes mexe a boca para
falar a palavra geradora.
9. Bitejikre tykyritisõmo iritina wiribi itxura
txura irawoò tykyriti rawòò ibutumy ritina.
Colocar o cartão da família de sílabas abai-
xo do cartão ‘ibutumy ritina.”
10. Kiriranykre wiribi itxuramy ibutumy
wiribi irareamy.
Ler as sílabas junto e separado.
11. Bitejikre tykyritisõmo iribi itxura txura
mahãdu.
Colocar o cartão da família de sílabas.
12. Rykyraxire titxi tahe iribi txura txura kaki
ròire imahãdu.
“Perguntar onde está cada sílaba da palavra
geradora nos cartões da sua família silábica.
13. Ibutumy rarybera ijõruy lohoji tule.
“Ler e repetir junto e separado as outras sí-
labas.
14. Ryryreri iny lohoji-ò riteòsira… kia
ixybylesyhe.
Chamar cada um para mostrar as sílabas
que são repetidas oralmente.
15. Bitejikre kia tyyritisõmo imahadu wiribi
itxura txura. Ritara kia tyyritisõmo ibutumy
ritina, wiribi itxura txura ratira quadro-ki
tyyriti ibutumy iribi.
Colocar o cartão da família de sílabas. Ti-
rar os cartões ‘ibutumy ritina e ‘wiribi itxura
txura. Ficam no quadro só os cartões
‘ibutumy iribi itxura txura mahãdu.”
16. Rykyraxire titxi rare kia iwiribi txura txura
imahãdu. Ryryra iny-õ tahe ritànynyra
wiribi itxura txura.
“Perguntar onde está cada sílaba na sua fa-
mília. Chamar alguém para mostrar cada
sílaba nos cartões.
17. Rykyraxire kà wiribi txura txura
raerynykre kia wiribi txura txura…
ritelenyra iusemy tahe rixihura iwitxiramy.
“Perguntar se os outros wiribiitxura txura
são iguais à sílaba em foco. Explicar que
cada sílaba de uma família começa igual,
mas termina diferente das demais.
18. Ibutumy ixybyle rarybekre.
“Repetir todas as leituras em grupo e sepa-
radamente.
19. Bitejikre ibutulemy ijoi.
Colocar os cartões de todas as famílias si-
lábicas da palavra geradora juntos.
20. Tahe kiwinykre nohõtimy ritina.
“Depois a gente faz os exercícios de revisão.
21. Raèrythykremy tyyriti.
“Exercícios para revisão
a. Tyyritidu rarybera ijõ ritèòsinyra.
“Um aluno vai lendo os pedaços e um ou-
tro aluno vai mostrando os pedaços que
ele está lendo.
b. Tyyritidu ritèòsinyra ijõ tuu rarybere.
“Um aluno mostra e o outro vai lendo os
pedaços que o outro mostra.
c. Ijõ mariabènyke wiribi itxura txura
mahadu.
“Pedir para os alunos lerem as famílias de
sílabas.
d. Ikyrèritèòsinykre tyyritinykydu rarybera
ikyrèmy.
O professor vai mostrando os pedaços e
os alunos têm que dizer como se fala.
22. Ibutumy wimy rakurikre wiribi itxura
txura ibutumy ijoi.
Repetir junto e separadamente as sílabas
das famílias. Primeiro em ordem, depois vai
juntando.
23. Ryryre inyõ-ò manake itànynykymy
aõbohe ijõ tykyrytidu rybè.
Chamar alguém para mostrar o som que o
outro diz. Um aluno fala um pedacinho e o
outro mostra onde é que está escrito o pe-
dacinho.
24. Rarybera tamy wideke ibutunyky
tykyritina rybè iribi. Wideke ibutunyky
iwitxira tyyritina tyyritisõmo irukyre.
Dizer para formar a palavra geradora e de-
pois formar outras palavras com os pedaci-
nhos. Escrever todas as palavras que os alu-
nos formarem no quadro.
25. Rarybera tamy kia tyyritidu kia ituera
inatxi imahadu aijõ itànynyky tykyritisõmo
debòribi lohoji.
“Falar para os alunos que as terminações das
duas famílias são iguais. Mostrar o cartão
das vogais.
26. Rarybera ibutumy wiribi itxura txura.
Repetir junto e separado.
27. Adehuna – tyyritinykydu rarybera: wiribi
itxura txura mesa-ki tyytidu mahadu
tyyritisõmodi tibo ròtakremy.
“Brincadeira – a professora espalha os
cartõezinhos em cima da mesa. Depois
vai falando os pedaços e os alunos têm de
pegar rapidamente. Cada aluno vai guar-
dando os pedacinhos que acerta. Ganha
o jogo o aluno que juntar mais pedaci-
nhos.
129
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
55
55
5
LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Luís Donisete Benzi Grupioni
Darci Secchi
Vilmar Guarani
130
O direito à educação
diferenciada nas leis
brasileiras
Passados mais de dez anos da promulgação
da atual Constituição brasileira, é possível afir-
mar que o direito dos povos indígenas no Brasil
a uma educação diferenciada e de qualidade, ali
inscrito pela primeira vez, encontrou amplo res-
paldo e detalhamento na legislação subseqüen-
te. É isso que percebemos quando reunimos a
legislação brasileira que trata da Educação Es-
colar Indígena em âmbito nacional.
Com a Constituição de 1988, assegurou-se
aos índios no Brasil o direito de permanecerem
índios, isto é, de permanecerem eles mesmos
com suas línguas, culturas e tradições. Ao reco-
nhecer que os índios poderiam utilizar as suas
línguas maternas e os seus processos de apren-
dizagem na educação escolar, instituiu-se a pos-
sibilidade de a escola indígena contribuir para o
processo de afirmação étnica e cultural desses
povos e ser um dos principais veículos de assi-
milação e integração.
Depois disso, as leis subseqüentes à Consti-
tuição que tratam da Educação, como a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Pla-
no Nacional de Educação, têm abordado o direi-
to dos povos indígenas a uma educação diferen-
ciada, pautada pelo uso das línguas indígenas,
pela valorização dos conhecimentos e saberes
milenares desses povos e pela formação dos pró-
prios índios para atuarem como docentes em
suas comunidades. Comparativamente a algu-
mas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira
* Antropólogo, pesquisador do Mari (Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo) e consultor do Ministério da Educação para
a política de Educação Escolar Indígena.
Do nacional ao local,
do federal ao estadual: as leis
e a Educação Escolar Indígena
Luís Donisete Benzi Grupioni*
SEF/MEC
transformação em curso, que tem gerado novas
práticas a partir do desenho de uma nova fun-
ção social para a escola em terras indígenas.
Nesse processo, a Educação Indígena saiu do
gueto, seja porque ela se tornou tema que está
na ordem do dia do movimento indígena, seja
porque há de se construírem respostas qualifi-
cadas a essa nova demanda por parte daqueles a
quem cabe gerir os processos de educação no
âmbito do Estado. Com isso, ganham os índios e
ganha também a educação brasileira, na medi-
da em que será preciso encontrar novas e
diversificadas soluções, exercitando a
criatividade e o respeito diante daqueles que pre-
cisam de respostas diferentes.
Esse novo ordenamento jurídico, gerado em
âmbito federal, tem encontrado detalhamento e
normatização nas esferas estaduais, por meio de
legislações específicas, que adequam preceitos
nacionais às suas particularidades locais. Esse é
o caminho para uma legislação que tem tratado
de princípios e cuja realização depende de cada
contexto específico.
Já se acusou essa legislação de ser excessiva-
mente genérica. Mas como contemplar a extrema
heterogeneidade de situações e de vivências his-
tóricas dos mais de 200 povos indígenas no Brasil
contemporâneo? Essa questão já encontrou uma
resposta no Referencial Curricular Nacional para
as Escolas Indígenas, lançado pelo MEC em 1998:
Os princípios contidos nas leis dão abertura para
a construção de uma nova escola, que respeite o
desejo dos povos indígenas de uma educação que
valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a
conhecimentos e práticas de outros grupos e so-
131
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
ciedades. Uma normatização excessiva ou muito
detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, ini-
bir o surgimento de novas e importantes práticas
pedagógicas e falhar no atendimento a demandas
particulares colocadas por esses povos. A propos-
ta da escola indígena diferenciada representa, sem
dúvida alguma, uma grande novidade no sistema
educacional do país, exigindo das instituições e
órgãos responsáveis a definição de novas dinâmi-
cas, concepções e mecanismos, tanto para que
essas escolas sejam de fato incorporadas e bene-
ficiadas por sua inclusão no sistema, quanto res-
peitadas em suas particularidades (RCNEI: 34).
Conhecer a legislação, formulada em âmbito
federal, sobre a Educação Escolar Indígena é o
único caminho para superar o velho e persistente
impasse que marca a relação dos povos indíge-
nas com o direito, qual seja, o da larga distância
entre o que está estabelecido na lei e o que ocor-
re na prática. Na medida em que os professores
indígenas e suas comunidades conhecerem os
direitos que a legislação lhes assegura, estaremos
caminhando para que eles se tornem realidade.
Por sua vez, o conhecimento da legislação gerada
na esfera federal é condição primeira para o esta-
belecimento da legislação estadual, que deve
normatizar o funcionamento das escolas indíge-
nas e dar efetividade ao direito a uma educação
diferenciada para os povos indígenas.
Direitos indígenas na
Constituição Federal de 1988
A atual Constituição da República Federati-
va do Brasil entrou em vigor em outubro de 1988,
quando foi promulgada, depois de mais de um
ano e meio de trabalho da Assembléia Nacional
Constituinte. A Constituição, também conheci-
da como Carta Magna, é a lei maior do país. Não
existe nenhuma outra lei tão importante quanto
ela e nenhuma outra lei pode ir contra o que nela
está estabelecido.
A Constituição estabelece direitos, deveres e
procedimentos dos indivíduos e do Estado, dos
cidadãos e das instituições. Ela substituiu a
Constituição promulgada em 1947 e reflete as
modificações ocorridas no tempo e na socieda-
de. Este é o sentido de elaborar uma nova Cons-
tituição: atualizar os direitos e deveres nela ins-
critos, de forma que ela seja útil para regular o
relacionamento dos cidadãos entre si e destes
com o Estado e com a sociedade como um todo.
Dividida em nove títulos, a Constituição tra-
ta dos princípios, direitos e garantias fundamen-
tais, da organização do Estado, dos poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, da defesa do
Estado e das instituições democráticas, da tri-
butação e do orçamento, da ordem econômica,
financeira e social.
A Constituição de 1988 remeteu para a le-
gislação complementar e ordinária algumas de-
finições, bem como o detalhamento de direitos
apresentados de forma ampla ou genérica, não
auto-aplicáveis, que precisam de detalhamento
por meio de lei complementar. Alguns desses
dispositivos ficaram para a legislação comple-
mentar, porque não cabia seu detalhamento na
Constituição; outros, porque não foi possível
chegar a um consenso entre os parlamentares
que elaboraram o novo texto. É o caso, por exem-
plo, da exploração mineral em terras indígenas,
que está prevista na Constituição, mas depende
de regulamentação do Congresso Nacional por
meio de legislação complementar.
O maior saldo da Constituição de 1988, que
rompeu com uma tradição da legislação brasi-
leira, diz respeito ao abandono da postura
integracionista, que sempre procurou incorpo-
rar os índios à comunidade nacional”, vendo-
os como uma categoria étnica e social transitó-
ria fadada ao desaparecimento. Com a aprova-
ção do novo texto constitucional, os índios não
só deixaram de ser considerados uma espécie em
via de extinção, como passaram a ter assegura-
do o direito à diferença cultural, isto é, o direito
de serem índios e de permanecerem como tal.
Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-
los à comunhão nacional, como estabeleciam as
constituições anteriores, mas é de sua responsabi-
lidade legislar sobre as populações indígenas no in-
tuito de protegê-las. A Constituição reconhece aos
índios os direitos originários sobre as terras que tra-
dicionalmente ocupam, definindo essa ocupação
não só em termos de habitação, mas também em
relação ao processo produtivo, à preservação do
meio ambiente e à reprodução física e cultural dos
índios. Embora a propriedade das terras ocupadas
132
pelos índios seja da União, a posse permanente é
dos índios, aos quais se reserva a exclusividade do
usufruto das riquezas aí existentes.
Outra inovação importante da atual Consti-
tuição foi garantir aos índios, às suas comunida-
des e organizações a capacidade processual para
entrar na Justiça em defesa de seus direitos e in-
teresses. O Ministério Público é chamado a par-
ticipar desse processo, mas não é condição para
a sua instauração. Ao Ministério Público cabe a
defesa dos interesses indígenas e a Justiça Fede-
ral é o fórum para resolver pendências judiciais
envolvendo os povos indígenas.
Além do reconhecimento do direito dos índi-
os de manterem a sua identidade cultural, a Cons-
tituição de 1988 lhes garante, no artigo 210, o uso
de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem, cabendo ao Estado proteger as
manifestações das culturas indígenas. Esses dis-
positivos abriram a possibilidade para que a es-
cola indígena constitua-se em instrumento de
valorização das línguas, dos saberes e das tradi-
ções indígenas e deixe de ser instrumento de im-
posição dos valores culturais da sociedade
envolvente. Nesse processo, a cultura indígena,
devidamente valorizada, deve ser a base para o
conhecimento dos valores e das normas de ou-
tras culturas. A escola indígena poderá, então,
desempenhar importante e necessário papel no
processo de autodeterminação desses povos.
Esse direito ao uso da língua materna e dos
processos próprios de aprendizagem ensejou
mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional.
Educação Indígena na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 9.394)
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia
17 de dezembro de 1996 e promulgada no dia 20
de dezembro daquele ano. Ela estabelece normas
para todo o sistema educacional brasileiro, fixan-
do diretrizes e bases da educação nacional desde
a Educação Infantil até a Educação Superior. Tam-
bém conhecida como LDB, LDBEN ou Lei Darcy
Ribeiro, essa lei está abaixo da Constituição e é
de importância fundamental porque trata, de
modo amplo, de toda a educação do país.
A atual LDB substitui a Lei nº 4.024, de 1961,
que tratava da educação nacional. No que se re-
fere à Educação Escolar Indígena, a antiga LDB
nada dizia. A nova LDB menciona, de forma ex-
plícita, a educação escolar para os povos indíge-
nas em dois momentos. Um deles aparece na
parte do Ensino Fundamental, no artigo 32, es-
tabelecendo que seu ensino será ministrado em
Língua Portuguesa, mas assegura às comunida-
des indígenas a utilização de suas línguas ma-
ternas e processos próprios de aprendizagem. Ou
seja, reproduz-se aqui o direito inscrito no arti-
go 210 da Constituição Federal.
A outra menção à Educação Escolar Indígena
está nos artigos 78 e 79 do Ato das Disposições
Gerais e Transitórias da Constituição de 1988. Ali
se preconiza como dever do Estado o oferecimen-
to de uma educação escolar bilíngüe e intercultural
que fortaleça as práticas socioculturais e a língua
materna de cada comunidade indígena e propor-
cione a oportunidade de recuperar suas memórias
históricas e reafirmar suas identidades, dando-
lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico-
científicos da sociedade nacional. Para que isso
possa ocorrer, a LDB determina a articulação dos
sistemas de ensino para a elaboração de progra-
mas integrados de ensino e pesquisa, que contem
com a participação das comunidades indígenas em
sua formulação e tenham como objetivo desenvol-
ver currículos específicos, neles incluindo os con-
teúdos culturais correspondentes às respectivas co-
munidades. A LDB ainda prevê a formação de pes-
soal especializado para atuar nessa área e a elabo-
ração e publicação de materiais didáticos especí-
ficos e diferenciados.
Com tais determinações, a LDB deixa claro
que a Educação Escolar Indígena deverá ter um
tratamento diferenciado do das demais escolas
dos sistemas de ensino, o que é enfatizado pela
prática do bilingüismo e da interculturalidade.
Outros dispositivos da LDB possibilitam co-
locar em prática esses direitos, dando liberdade
para cada escola indígena definir, de acordo com
suas particularidades, seu respectivo projeto
político-pedagógico. Assim, por exemplo, o ar-
tigo 23 da LDB trata da diversidade de possibili-
dades na organização escolar, permitindo o uso
133
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
de séries anuais, períodos semestrais, ciclos,
alternância regular de períodos de estudo, gru-
pos não-seriados ou por critério de idade, com-
petência ou outros critérios. No artigo 26, para
darmos mais um exemplo, fala-se da importân-
cia de considerar as características regionais e
locais da sociedade e da cultura, da economia e
da clientela de cada escola, para que se consiga
atingir os objetivos do Ensino Fundamental. Ou
seja, outros dispositivos presentes na LDB evi-
denciam a abertura de muitas possibilidades
para que, de fato, a escola possa responder à de-
manda da comunidade e oferecer aos educandos
o melhor processo de aprendizagem.
Educação indígena no
Plano Nacional de Educação
(Lei nº 10.172)
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional instituiu, no artigo 87, a “Década da Edu-
cação, que teve início um ano após a sua publi-
cação. Ali também se estabeleceu que a União
deveria encaminhar ao Congresso Nacional um
Plano Nacional de Educação, com diretrizes e
metas para os dez anos seguintes.
Em 9 de janeiro de 2001, foi promulgado o Pla-
no Nacional de Educação, também conhecido pela
sigla PNE, que apresenta um capítulo sobre a Edu-
cação Escolar Indígena, dividido em três partes. Na
primeira parte, faz-se um rápido diagnóstico de
como tem ocorrido a oferta da educação escolar
aos povos indígenas. Na segunda, apresentam-se
as diretrizes para a Educação Escolar Indígena. E
na terceira, estão os objetivos e metas que deve-
rão ser atingidos a curto e a longo prazos.
Entre os objetivos e as metas previstos no
Plano Nacional de Educação, destaca-se a
universalização da oferta de programas educa-
cionais aos povos indígenas para todas as séries
do Ensino Fundamental, assegurando autono-
mia para as escolas indígenas tanto no que se
refere ao projeto pedagógico, quanto ao uso dos
recursos financeiros, e garantindo a participação
das comunidades indígenas nas decisões relati-
vas ao funcionamento dessas escolas. Para que
isso se realize, o plano estabelece a necessidade
de criação da categoria “escola indígena” para
assegurar a especificidade do modelo de educa-
ção intercultural e bilíngüe e sua regularização
nos sistemas de ensino.
O Plano Nacional de Educação prevê, ainda,
a criação de programas específicos para atender
às escolas indígenas, bem como a criação de li-
nhas de financiamento para a implementação dos
programas de educação em áreas indígenas. Es-
tabelece-se que a União, em colaboração com os
estados, deve equipar as escolas indígenas com
recursos didático-pedagógicos básicos, incluindo
bibliotecas, videotecas e outros materiais de
apoio, bem como adaptar os programas já exis-
tentes hoje no Ministério da Educação em termos
de auxílio ao desenvolvimento da educação.
Atribuindo aos sistemas estaduais de ensino
a responsabilidade legal pela Educação Indíge-
na, o PNE assume como uma das metas a ser
atingida nessa esfera de atuação a profis-
sionalização e o reconhecimento público do
magistério indígena, com a criação da categoria
de professores indígenas como carreira especí-
fica do magistério e com a implementação de
programas contínuos de formação sistemática
do professorado indígena.
Ao ser promulgado, o PNE estabeleceu que a
União, em articulação com os demais sistemas
de ensino e com a sociedade civil, deve proce-
der a avaliações periódicas da implementação do
plano e que tanto os estados quanto os municí-
pios deverão, com base no plano, elaborar seus
planos decenais correspondentes.
Parecer nº 14/99 do
Conselho Nacional de Educação
O Conselho Nacional de Educação foi insta-
lado em 26 de fevereiro de 1996. É composto por
duas câmaras: a Câmara de Educação Superior e
a Câmara de Educação Básica, cada qual com 12
membros nomeados pelo Presidente da Repú-
blica. Entre as competências do CNE, está a de
emitir pareceres sobre assuntos da área educa-
cional e sobre questões relativas à aplicação da
legislação educacional. Após a promulgação da
LDB, ambas as câmaras do CNE trataram de pre-
parar as normas necessárias à implantação da
nova estrutura da educação nacional instituída
por aquela lei. A Câmara de Educação Básica pre-
134
parou diretrizes curriculares para os diferentes
níveis e modalidades de ensino, entre as quais
as de Educação Indígena.
As diretrizes para a Educação Indígena cons-
tituem o resultado das discussões que ocorreram
na Câmara de Educação Básica do CNE, quando
essa se lançou na análise de dois documentos en-
caminhados pelo Ministério da Educação (a ver-
são preliminar do Referencial Curricular Nacio-
nal para as Escolas Indígenas e um documento
especialmente preparado pelo Comitê de Edu-
cação Escolar Indígena sobre a necessidade de
regulamentação da Educação Indígena), bem
como de uma consulta feita pelo Ministério Pú-
blico Federal do Rio Grande do Sul, para cuja
relatoria foi indicado o Pe. Kuno Paulo Rhoden.
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Edu-
cação Escolar Indígena foram aprovadas em 14
de setembro de 1999, por meio do Parecer nº 14/
99 da Câmara Básica do Conselho Nacional de
Educação. Dividido em capítulos, o parecer apre-
senta a fundamentação da Educação Indígena,
determina a estrutura e funcionamento da es-
cola indígena e propõe ações concretas em prol
da Educação Escolar Indígena.
Merecem destaque, no parecer que institui
as diretrizes, a proposição da categoria escola
indígena, a definição de competências para a
oferta da Educação Escolar Indígena, a forma-
ção do professor indígena, o currículo da escola
e sua flexibilização. Essas questões encontraram
normatização na Resolução nº 3/99, gerada no
âmbito das mesmas discussões que ensejaram
este parecer.
Resolução nº 3/99 do
Conselho Nacional de Educação
No Diário Oficial da União, de 17/11/1999, foi
publicada a Resolução nº 3/99, preparada pela
Câmara Básica do Conselho Nacional de Educa-
ção. Essa resolução fixa diretrizes nacionais para o
funcionamento das escolas indígenas. Importan-
tes definições foram aí inscritas e regulamentadas,
no sentido de serem criados mecanismos efetivos
para a garantia do direito dos povos indígenas a
uma educação diferenciada e de qualidade. Algu-
mas dessas definições merecem ser destacadas.
A primeira é relativa à criação da categoria
escola indígena, reconhecendo-lhe a condição
de escolas com normas e ordenamento jurídico
próprios” e garantindo-lhe autonomia pedagó-
gica e curricular. Disso resulta a necessidade de
regulamentação dessas escolas nos Conselhos
Estaduais de Educação, bem como a necessida-
de de instituir mecanismos de consulta e envol-
vimento da comunidade indígena na discussão
sobre a escola indígena.
Outro ponto importante da Resolução nº 3/99
é a garantia de uma formação específica para os
professores indígenas, podendo essa ocorrer em
serviço e, quando for o caso, concomitantemente
com a sua própria escolarização. A resolução es-
tabelece que os estados deverão instituir progra-
mas diferenciados de formação para seus pro-
fessores indígenas, bem como regularizar a situ-
ação profissional desses professores, criando
uma carreira própria para o magistério indígena
e realizando concurso público diferenciado para
ingresso nessa carreira.
Ao interpretar a LDB, o Conselho Nacional
de Educação, por meio dessa resolução, definiu
as esferas de competência e responsabilidade
pela oferta da educação escolar aos povos indí-
genas. Estabelecido o regime de colaboração
entre União, estados e municípios, o CNE defi-
niu que cabe à União legislar, definir diretrizes e
políticas nacionais, apoiar técnica e financeira-
mente os sistemas de ensino para o provimento
de programas de educação intercultural e de for-
mação de professores indígenas, além de criar
programas específicos de auxílio ao desenvolvi-
mento da educação. Aos estados, caberá a res-
ponsabilidade pela oferta e execução da Edu-
cação Escolar Indígena, diretamente ou por re-
gime de colaboração com seus municípios, in-
tegrando as escolas indígenas como unidades
próprias, autônomas e específicas no sistema
estadual” e provendo-as com recursos humanos,
materiais e financeiros, além de instituir e regu-
lamentar o magistério indígena.
Dessas disposições, decorre, entre outras, a
necessidade de cada Secretaria de Estado da Edu-
cação criar uma instância interinstitucional, com
a participação dos professores e das comunida-
des indígenas, para planejar e executar a educa-
ção escolar diferenciada nas escolas indígenas.
135
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
Do nacional ao local:
o lugar da legislação estadual
O conjunto da legislação nacional a respeito
do direito dos povos indígenas a uma educação
diferenciada, como visto anteriormente, está
estruturado a partir de duas vertentes, que ne-
cessariamente precisam convergir, para que esse
direito se materialize: de um lado, trata-se de
propiciar acesso aos conhecimentos ditos uni-
versais e, de outro, de ensejar práticas escolares
que permitam o respeito e a sistematização de
saberes e conhecimentos tradicionais. É da jun-
ção dessas duas vertentes que deve emergir a tão
propagada escola indígena.
O que a legislação nacional estabelece é um
conjunto de princípios que, de modo geral, aten-
de à extrema heterogeneidade de situações vivi-
das hoje pelos mais de 210 povos indígenas con-
temporâneos no Brasil. Essa legislação permite a
expressão do direito a uma educação diferencia-
da, a ser pautada localmente, em respeito às dife-
rentes situações socioculturais e sociolingüísticas
de cada povo indígena, bem como em relação aos
seus diferentes projetos de futuro.
Todavia, esses princípios precisam encon-
trar respaldo e acolhimento nas normatizações
estaduais que vão disciplinar o funcionamento
das escolas indígenas, como unidades integran-
tes dos sistemas estaduais de ensino, bem como
regularizar a situação dos professores indígenas
como profissionais contratados pelo estado ou
pelo município. É aqui, portanto, no âmbito es-
tadual, que os princípios federais precisam ga-
nhar efetividade, gerando normas e procedi-
mentos que lhes possam dar vazão. É nesse
âmbito que se consolida o direito a uma edu-
cação diferenciada, na medida em que se
implementa e se realiza o direito a uma escola
própria e diferenciada.
Esse é o momento em que diferentes esta-
dos da Federação se lançam a disciplinar a ma-
téria, seja por meio da inclusão da Educação Es-
colar Indígena nas leis orgânicas de educação,
por parte das Assembléias Legislativas, seja por
meio de resoluções estaduais, geradas no âmbi-
to dos Conselhos Estaduais de Educação. Esse é,
portanto, o momento de refletir sobre como os
avanços alcançados na esfera federal poderão
encontrar detalhamento nas esferas estaduais,
de forma a se potencializar as oportunidades de
os povos indígenas terem uma escola e uma edu-
cação que atenda aos seus interesses e às suas
aspirações de futuro.
Feito o itinerário do detalhamento do direito
dos índios a uma educação diferenciada, algumas
questões colocam-se para o debate, no momento
em que se caminha para novas formulações legais
e administrativas, agora nas esferas estaduais.
A primeira questão já foi anunciada: a da
persistente lacuna entre a lei e a realidade, en-
tre o direito explicitado e a prática vivida. Que
alternativas se colocam a esse direito? Será que
a busca de novas leis e normatizações seria um
caminho para que aquilo que já foi inscrito ga-
nhasse efetividade? Ou será que os povos indí-
genas contam com outros mecanismos que po-
deriam ser acionados para que o direito já
explicitado seja cumprido? Quais são os impas-
ses e as dificuldades que impedem o direito de
se realizar? São exclusivos do campo educacio-
nal ou dizem respeito à relação dos povos indí-
genas com o Estado brasileiro?
Outra ordem de questões diz respeito à esfe-
ra de normatização estadual. Se cabe aos siste-
mas estaduais de ensino a responsabilidade pela
oferta da Educação Indígena e pela formação e
regularização profissional dos professores indí-
genas, a eles cabe também definir, em plano es-
tadual, a matéria esboçada no plano federal. O
que caberia definir aos estados? Qual o espaço
de sua atuação? A qual nível de detalhamento aos
estados caberia chegar, na definição das ações
educacionais para os povos indígenas? Como
garantir que a legislação estadual não se restrin-
ja a princípios federais? Como garantir que a es-
cola indígena não sucumba diante das demais
escolas do sistema estadual?
Por fim, uma terceira ordem de questiona-
mentos nos deve conduzir a cada sociedade in-
dígena em particular, a cada projeto de futuro
e de escola, pois é aí que o direito a uma edu-
cação diferenciada se realiza. E a pergunta
deve inverter a ordem estabelecida: em que
medida o que já está inscrito no plano legal não
limita as aspirações e os desejos dos povos in-
dígenas relativamente à escolarização formal
de seus membros? E para que rumo segue a
136
Educação Indígena? Haverá espaço para aque-
les grupos que almejam simplesmente um
maior conhecimento do Português e das regras
de comércio com a sociedade envolvente? To-
das as escolas indígenas deverão formalizar
seu ensino, garantindo continuidade de estu-
dos dentro e fora das terras indígenas? Haverá
condições e espaços para que os índios dêem
um sentido próprio para a escola indígena, fora
das amarras administrativas e legais já con-
quistadas? Enfim, para onde caminha todo
esse processo?
Enfrentar essas questões está na ordem do dia.
Bibliografia
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Cadernos da TV
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Índios no Brasil
, Brasília, v. 3, p. 25-46, 1999.
MELIÀ, Bartomeu.
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São
Paulo: Loyola, 1979.
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL.
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. Brasília:
SEF/MEC, 1998.
.
O governo brasileiro e a Educação Escolar
Indígena 1995/1998.
Brasília: SEF/MEC, 1998.
Apontamentos acerca da
regularização das escolas indígenas
Darci Secchi*
Unemat
Resumo
Os povos ameríndios convivem com algum
tipo de escola há quase 500 anos. Nos últimos anos,
porém, a escola colonial recebeu novas adjeti-
vações (específica, diferenciada, intercultural, bi-
língüe), e a educação escolar passou a ser tratada
como política pública, como um direito de cida-
dania. Entretanto, o antigo paradigma colonial
não foi totalmente superado, uma vez que a le-
gislação atual apenas admitiu a alteridade e tole-
rou a diferença, isto é, manteve resguardado o
direito de outorgar direitos. O presente paper pre-
tende discutir o processo de regularização das
escolas indígenas no Brasil, destacando a neces-
sidade de conciliar os interesses de todos os su-
jeitos detentores de direitos, em especial, os das
sociedades indígenas.
Um breve sobrevôo
sobre o campo
Diversas sociedades indígenas brasileiras con-
vivem, há séculos, com a instituição escolar, e nós,
colonizadores, convivemos com a inquietação
quanto ao lugar que ela deve ocupar nos processos
de colonização e/ou de autonomia desses povos.
Na era dos descobrimentos, os debates acer-
ca da Educação Indígena tiveram como cenário
o confronto visual dos colonizadores com os ha-
bitantes das terras recém-conhecidas. Discuti-
am-se o estatuto desses seres naturais e o lugar
que lhes caberia no projeto de exploração. A
questão que se colocava era se eles seriam con-
siderados seres humanos e, tendo alma, se seria
* Professor da UFMT e doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP.
137
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
possível educá-los na fé cristã, ou se deveriam
ser simplesmente escravizados. A controvérsia
1
acerca da natureza humana dos índios perdurou
por dois séculos e, a partir dela, estabeleceram-
se os contornos do projeto colonizador em toda
a América e em outros continentes.
Nos últimos anos, porém, verificaram-se
significativas mudanças no tratamento da
temática educacional indígena. Os próprios ín-
dios entraram em cena para debater a política
de escolarização e para exigir uma educação
escolar voltada ao atendimento dos seus inte-
resses. A educação escolar passou a ser vista
como uma política pública, como um direito de
cidadania. Hoje já não se discute se os índios
têm ou não têm alma, se devem ou não ser civi-
lizados, mas trata-se de considerá-los cidadãos
detentores de direitos específicos.
Ainda assim, a secular matriz colonial não foi
totalmente superada. As atuais leis e regulamen-
tos foram produzidos apenas com a audiência dos
índios, ou contaram com a participação das co-
munidades. Ou, dito de outra forma, a legislação
admitiu a alteridade e tolerou a diferença, mas
manteve resguardado o direito discricionário de
conceder direitos. Nela, o reconhecimento à di-
versidade cultural, aos direitos específicos, à
liturgia diferenciada para as suas escolas etc. se-
riam como marcos ou garantias de um porvir de
cidadania, de respeito e de valorização das socie-
dades indígenas. Ao tempo em que se consolida-
va a tendência de considerar assuntos indígenas
2
apenas os de cunho jurídico e administrativo, viu-
se frutificar inúmeras parcerias e cooperações
entre o poder público, a militância indigenista e
acadêmica e as próprias organizações indígenas
na busca de novos horizontes para a causa indí-
gena. Nesse processo, surgiu também um novo
discurso oficial, que substituiu o antigo refrão
integracionista” por enunciados mais palatáveis
ao atual momento econômico, político e
epistemológico brasileiro.
3
O discurso que havia
insuflado as “bandeiras de luta da sociedade ci-
vil” passou a ser apropriado pelo poder público.
Seria o prelúdio de novos tempos?
Um pouco de história
O modelo integracionista de educação esco-
lar para o índio no Brasil está associado histori-
camente ao binômio proselitismo doutrinário
(religioso ou não) e preparação para o trabalho.
Com esse intuito, atuaram as missões católicas,
as escolas pombalinas, a educação positivista e,
mais recentemente, os missionários e lingüistas
de diferentes confissões.
A partir da década de 1950, insuflados pelos
ares da modernidade e das novas relações inter-
nacionais do trabalho, passaram a ser incorpora-
dos, nos países do chamado Terceiro Mundo, no-
vos instrumentos jurídicos e novos objetivos para
a educação escolar das populações tribais e
semitribais. A Convenção 107 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT/1957) preconizou,
entre outros dispositivos, a garantia de educação
em todos os níveis (art. 21); a realização de estu-
dos antropológicos prévios à elaboração de pro-
gramas escolares (art. 22); a alfabetização em lín-
gua materna seguida de educação bilíngüe (art.
23); e uma campanha de combate ao preconceito
(art. 25). Porém os artigos 24 e 26 não esconde-
ram o antigo paradigma integracionista. Vejamos:
Art. 24. O ensino primário deverá ter por objetivo
dar às crianças pertencentes às populações inte-
ressadas conhecimentos gerais e aptidões que as
auxiliem a se integrar na comunidade nacional.
[...]
Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...]
com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e
1
Para Clastres (1995), a controvérsia residia em afirmar que os índios eram como “criaturas de Deus” e, ao mesmo tempo, promover a sua
captura e escravização. A saída legal para esse dilema seria encontrada na declaração (unilateral) de “antropofagia”.
2
Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”; Lopes da Silva (1981) e outros preferem
“questão indígena”. Tomo-as aqui como sinônimos.
3
Para Brand (1988: 7), o avanço no arcabouço legal fez-se acompanhar de um crescente “confinamento geográfico e social”. Para ele, o
esgotamento do modelo integracionista está diretamente ligado ao atual estágio da globalização e do neoliberalismo, que encontrou, como
fórmula para solucionar o problema dos supérfluos, o seu confinamento em favelas, acampamentos e reservas. Integrar o índio em quê? –
pergunta. Como mão-de-obra, já não é mais necessário. Só se for como consumidores marginais, conclui.
138
obrigações especialmente no que diz respeito ao tra-
balho e os serviços sociais.
4
[Grifos meus.]
No Brasil, esses dispositivos ingressaram no
mundo jurídico somente uma década mais tar-
de e se materializaram de fato na Constituição
Federal de 1988. Mesmo assim, careciam de
maiores explicitações, o que seria formalizado,
em meados da década de 1990, com a publica-
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 9.394/96).
Ao longo desses 30 anos de maturação jurí-
dica e política, muitos atores compuseram o ce-
nário da Educação Escolar Indígena.
A década de 1970 foi marcada pela emergên-
cia do chamado “indigenismo alternativo” e por
ensaios dos primeiros movimentos indígenas, ti-
dos como estratégias de oposição e superação do
paradigma integracionista. Nesse período, as es-
colas oficiais foram vistas com cautela, quando
não com desconfiança. Propunha-se, em seu lu-
gar, a criação de escolas alternativas, mormente
de acepção freireana, desatreladas do espaço do
Estado e das instituições que o representavam.
Na década de 1980, a escola indígena anco-
rou-se no tripé organização indígena, reflexão
acadêmica e militância indigenista, parceria que
produziu uma vasta documentação, participou
do processo constitucional e ostentou a chan-
cela de ver as suas bandeiras contempladas na
nova Carta. As articulações surgidas nesse con-
texto resultaram na organização de “Núcleos de
Educação” ou “Núcleos de Estudos Indígenas
em diversos estados. Em alguns casos – como o
de Mato Grosso –, esses núcleos deram origem
aos atuais Conselhos de Educação Escolar Indí-
gena, fóruns multiinstitucionais e de composi-
ção paritária, que definem a política de Educa-
ção Escolar Indígena nos respectivos estados.
Na década de 1980, realizaram-se também
diversos cursos de capacitação de professores e
encontros de Educação Indígena, eventos que
deram suporte à organização dos atuais Progra-
mas de Formação de Professores Indígenas, de-
senvolvidos em Mato Grosso, no Acre e em ou-
tros estados.
Os direitos conquistados nesse período
recolocaram em novas bases o antigo conflito
entre o oficial e o paralelo, e as “relações perigo-
sas” entre escola e Estado passaram a ser vistas
como “relações possíveis.
Os anos 1990 caracterizaram-se como um
período de implementação do ideário gestado
na década anterior. As novas palavras de ordem
educação bilíngüe e intercultural”, currícu-
los específicos e diferenciados, “processos pró-
prios de aprendizagem” – precisavam ser ma-
terializadas no cotidiano das escolas. No entan-
to, nem o poder público estava preparado téc-
nica e administrativamente para assumir essa
tarefa, nem havia legislação específica que ori-
entasse tal procedimento. No contexto desse
“vazio normativo” e das pressões advindas das
comunidades indígenas, dos grupos de apoio,
de setores da academia e do próprio poder pú-
blico, o Governo Federal e o MEC passaram a
coordenar uma série de iniciativas que resulta-
ram na atual arquitetura jurídica e administra-
tiva para as escolas indígenas.
Dentre as principais medidas, destacaram-se:
• a publicação do Decreto nº 26/91 que trans-
feriu da Funai para o MEC a responsabilida-
de pela coordenação e aos estados e municí-
pios a responsabilidade pela execução das
ações de Educação Escolar Indígena;
• a publicação da Portaria Interministerial n
os
559/91 e das Portarias/MEC nº 60/92 e 490/
93, instituindo e normatizando o Comitê
Nacional de Educação Indígena, fórum que
viria subsidiar a elaboração dos planos
operacionais e as ações educacionais nos es-
tados e municípios;
• a elaboração pelo Comitê Assessor e a publi-
cação pelo MEC, em 1994, do documento
Diretrizes para a Política Nacional de Edu-
cação Escolar Indígena, a partir do qual de-
finiram-se os principais contornos do aten-
dimento escolar indígena;
4 Posteriormente, a Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989), revisou essas propo-
sições e acrescentou ao texto outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho
a decidir sus proprias prioridades [...].
139
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
• a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional (Lei nº 9.394/96), em que se esta-
beleceram as normas específicas para a oferta
de educação escolar para os povos indígenas;
• a aprovação, na Comissão de Constituição e
Justiça do Senado Federal, em 6 de dezem-
bro de 2000, após oito anos de tramitação,
da Disposição 169 da Organização Interna-
cional do Trabalho, estabelecendo os direi-
tos dos povos indígenas e tribais (PIT), entre
eles o da Educação Escolar Indígena em to-
dos os níveis e nas mesmas condições que o
restante da comunidade nacional.
Como vemos, nesta última década, multipli-
caram-se e aperfeiçoaram-se os instrumentos ju-
rídicos e administrativos concernentes à criação,
à implementação e ao reconhecimento das esco-
las indígenas. No entanto, as mudanças tiveram um
alcance maior apenas nos aspectos operacionais e
metodológicos e não parecem ter rompido total-
mente com o modelo conceitual anterior.
O paradigma da atual escola específica, dife-
renciada, bilíngüe e intercultural, isto é, da es-
cola adaptada formalmente à clientela, não se-
ria a antiga escola colonial, agora fantasiada de
novos atributos? Ou seria de fato uma escola do
outro, isto é, dirigida às populações indígenas?
E, nesse caso, qual será a matriz conceitual que
a inspira? Onde se funda essa nova instituição?
Admitindo a alteridade e
tolerando a diferença
Como vimos, o projeto hegemônico das atuais
escolas indígenas teve a sua origem associada à
Convenção 107 da OIT, que, há cinqüenta anos,
redefiniu as relações internacionais do trabalho e
ensejou incorporar as populações do Terceiro
Mundo ao projeto de desenvolvimento liberal.
Naquele movimento, a escola e os seus pro-
gramas educacionais foram definidos anterior e
exteriormente à participação das sociedades in-
dígenas. A mesma perspectiva foi explicitada na
atual LDB, ao propor que os programas escola-
res “serão planejados com a audiência das comu-
nidades indígenas” (art. 79, § 1º – grifo meu). Isto
é, coube às agências externas – governos, acade-
mias, conselhos – o planejamento dos programas
das escolas com a audiência indígena, e não o
inverso: as comunidades indígenas planejarão
seus programas com a audiência do poder pú-
blico, dos conselhos e da academia.
Dessa forma, a atual legislação deixou de
contemplar duas premissas fundamentais para
a superação do modelo escolar integracionista,
quais sejam, a da iniciativa e a do controle das
sociedades indígenas sobre o processo de con-
ceber, planejar, executar e gerir os seus progra-
mas educacionais. Os índios permaneceram na
qualidade de ouvintes, e não de propositores de
suas próprias políticas. Continuaram sendo
expectadores, atores coadjuvantes, sem direi-
to de propor, sem direito de vetar, sem direito
de outorgar os seus próprios direitos.
Um segundo aspecto problemático desse
modelo de escola diz respeito à sua adjetivação
como “escola bilíngüe.
A primeira versão da escola bilíngüe propu-
nha assegurar a transição progressiva da língua
materna ou vernacular para a língua nacional ou
para uma das línguas oficiais do país” (OIT, art.
23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída, no
Brasil, aos missionários lingüistas do Summer
Institute of Linguistics (SIL), por meio de uma
portaria da Funai (nº 75/72), que conferiu a essa
agência norte-americana o status, o privilégio e
o foro oficial” no que se tratasse de assuntos
lingüísticos. Segundo o antropólogo Márcio Sil-
va, a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha
que até mesmo as ferramentas analíticas desen-
volvidas pelos lingüistas do SIL passaram a figu-
rar nos documentos oficiais.
5
As críticas ao “bilingüismo de transição” – e
não a utilização regular de ambas as línguas –
não tardaram, afinal tratava-se da mais “repulsi-
va forma de etnocídio. Mesmo assim, esse mo-
delo perdurou por três décadas até que foi
substituído por sua abordagem antagônica, aqui
denominada de “bilingüismo compulsório.
5
Cf. Silva, 1999: 10. Uma análise crítica acerca da atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em outros trabalhos da autora.
140
Se antes o aprendizado dos alunos dirigia-se
no sentido de transitarem de uma situação
monolíngüe em língua indígena para uma situ-
ação de falantes do Português, agora a situação
se inverteria. Propunha-se que o bilingüismo
fosse uma característica inerente às escolas in-
dígenas, isto é, que essas fossem compulsoria-
mente bilíngües.
O documento Diretrizes para a Política Na-
cional de Educação Escolar Indígena, produzido
pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do
MEC e lançado em 1994, não deixou dúvidas:
A escola indígena tem que ser parte do sistema
de educação de cada povo, na qual, ao mesmo
tempo em que assegura e fortalece a tradição e o
modo de ser indígena, fortalecem-se os elemen-
tos para uma relação positiva com outras socie-
dades [...]. Como decorrência da visão exposta, a
Educação Escolar Indígena tem que ser necessa-
riamente específica e diferenciada, intercultural
e bilíngüe [grifos meus].
Parece óbvio que essa formulação generalista
carece de sustentabilidade, embora não se ques-
tione a adoção do bilingüismo em situações
sociolingüísticas diglóssicas. O seu ponto críti-
co reside na formulação como modelo tipológico
obrigatório e único para as escolas indígenas.
Como se daria o tratamento bilíngüe em es-
colas cujos alunos indígenas se definem como
monolíngües? Ou, inversamente, como se faria a
opção por apenas duas línguas em situações de
multilingüismo? São inúmeros os casos em que
coexiste, em um mesmo contexto, mais de uma
língua indígena e os casos em que a língua indí-
gena é a própria língua nacional” (Silva, op. cit.:
13). Portanto, a escola verdadeiramente indígena
não é necessariamente bilíngüe, embora o
bilingüismo possa ser atualmente recorrente em
muitas escolas. Ora, mais do que uma “adjetivação
emblemática” para as escolas indígenas, o ensino
bilíngüe deveria constituir-se numa opção das
comunidades e, como tal, poderia compor ou não
o currículo e o cotidiano de suas escolas. Essa
opção, porém, é mais uma vez subtraída das co-
munidades e impingida como um direito obri-
gatório. Mais uma vez, admite-se a diversidade e
domestica-se a diferença, sem, contudo, abrir
mão do direito de conceder direitos.
O mesmo ocorre com os dois adjetivos res-
tantes: as escolas indígenas devem ser específi-
cas e diferenciadas. Mais do que garantir novos
avanços, esses direitos compulsórios” ratificam
a histórica perspectiva discriminatória de
desqualificação das minorias étnicas e culturais.
As escolas indígenas – como também as escolas
rurais, ribeirinhas e das favelas – devem ser es-
pecíficas e diferenciadas para reproduzir os co-
nhecimentos próprios, isto é, para reproduzir a
negação cultural, a negação identitária e a nega-
ção da cidadania, elementos que compõem a
essência do cotidiano de quem se sabe e se re-
conhece historicamente discriminado.
Talvez resida aí a razão da dificuldade de os
índios perceberem as escolas diferenciadas
como algo positivo para os seus projetos socie-
tários. Como disse o líder xinguano Marawê
Kayabi, Até agora só sabemos o que é diferencia-
do para pior e nunca para melhor.
Será possível “regularizar”
o específico e o diferenciado?
Todos nós que atuamos no campo da Edu-
cação Escolar Indígena, por certo, já nos depa-
ramos com questionamentos para os quais não
obtivemos uma resposta satisfatória.
Relaciono a seguir alguns dos que ainda po-
voam os meus pensamentos, na expectativa de
compartilhá-los com meus pares e, assim, qui-
çá, construirmos um caminho mais seguro nes-
se terreno pantanoso.
O primeiro provém de uma indagação for-
mulada por um professor Guarani por ocasião
de uma etapa do curso de formação de profes-
sores em Amambaí/MS. Na ocasião, perguntou-
me o professor: “Você poderia me dizer como a
gente faz para regularizar uma escola, respeitan-
do o específico e o diferenciado?” Pensando ter
entendido a sua pergunta, passei a expor os pro-
cedimentos recomendados pela legislação etc.,
mas logo fui interrompido com uma observação:
“Eu sei, eu sei, mas não é isso que eu preciso sa-
ber. Eu preciso saber se uma escola indígena es-
pecífica e diferenciada deve ter tudo o que está
escrito nas Diretrizes, nos Referenciais, nos Pa-
râmetros, na Resolução nº 3. Se for preciso tudo
aquilo, acho que nunca teremos uma escola es-
141
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
pecífica e diferenciada. O professor Guarani co-
loca-nos o seguinte problema: como regularizar
as escolas sem disciplinar” a diferença? Seria
pelo caminho dos adjetivos formalizantes?
A segunda indagação tem por nascedouro
uma pergunta formulada por um professor
Parintintim quando se debatia a Resolução nº 3
da CEB/CNE, no curso de formação de professo-
res do Alto Rio Madeira. Depois de superar a difi-
culdade de entender a diferença entre ano civil”
e ano letivo, um professor perguntou aos cole-
gas: “Mas se a minha comunidade resolver que o
nosso ano letivo deva durar cinco anos, será que
pode?”. Após algum debate, quase todos profes-
sores concordaram que poderia. Então o profes-
sor perguntou: “Mas o meu pagamento vai ser
pelo ano letivo ou pelo ano civil?” Ninguém sou-
be formular uma resposta que convencesse o pre-
feito ou o secretário de Educação a pagar o mes-
mo salário ao professor indígena cujo calendário
escolar coincide com o ano civil e ao outro que
demora” cinco anos para concluir um ano letivo.
A última indagação veio do curso de formação
dos professores Xinguano após a conclusão dos
estudos sobre o tema “Legislação, em que nos de-
bruçamos – literalmente – sobre textos da legisla-
ção estadual de Mato Grosso, que tratavam da car-
reira do Magistério, de concurso público, do siste-
ma único, dos sistemas próprios, essas coisas. Após
uma semana de estudos, os professores chegaram
a algumas dúvidas, que pretendo compartilhar
também com vocês. A primeira diz respeito à legi-
timidade de se exonerar” um professor indígena
quando não há consenso entre o poder público e a
comunidade escolar: o poder público pode exone-
rar um professor indígena à revelia da comunida-
de? Ou a comunidade pode exonerar” um profes-
sor concursado à revelia do poder público?
A segunda questão trata das condições de os
municípios cooperarem com os estados na ofer-
ta de educação escolar, especialmente na exigên-
cia de constituírem sistemas próprios. Em Mato
Grosso, por exemplo, apenas três municípios
estão constituídos em sistemas próprios, ainda
que a maioria das escolas indígenas esteja vin-
culada aos municípios. A administração estadu-
al não tem intenção de assumir diretamente as
escolas indígenas e está propondo a consolida-
ção do Sistema Único de Educação Básica pre-
conizado pela LDB, mas não previsto na Resolu-
ção nº 3. Nesse contexto, perguntou-se como
proceder para que as escolas indígenas não se-
jam prejudicadas em termos de recursos, acom-
panhamento, concursos, carreira, serviços etc.
6
Por essa breve amostra, percebe-se que ain-
da perdura – se não se amplia – a necessidade de
normatização” das escolas indígenas, não
obstante as diretrizes, parâmetros, referencial,
resoluções etc. Grande parte dessa normatização
seria desnecessária, creio, se mudássemos o es-
pectro de nosso olhar e desistíssemos de ideali-
zar um único protótipo de escola diferenciada.
Creio que uma política pública de Educação
Escolar Indígena deva apoiar-se em outras ba-
ses que não a normatização da diferença e a su-
pressão da alteridade. Elas materializam o dis-
curso e a prática de um direito concedido e de
uma cidadania conferida e, portanto, tornam-se
veículos de dominação e de imposição.
Uma política pública de educação deve nas-
cer dos professores, das lideranças e das comu-
nidades indígenas e por elas ser controlada. Mas
isso não significa que o poder público, as insti-
tuições acadêmicas e a sociedade civil em geral
devem ignorá-la ou eximir-se de sua responsa-
bilidade. Ao contrário, cabe-lhes, conjuntamen-
te, discuti-la, consolidá-la, viabilizá-la, e não
apenas implementá-la enquanto tal, o que su-
põe uma estratégia de ação, que pode expressar-
se pelos seguintes princípios fundantes:
• a garantia da participação indígena em to-
das as etapas de elaboração, execução e ava-
liação dos programas;
• o reconhecimento da legitimidade de insti-
tuição parceira por meio da avaliação e da
avalização dos povos ou comunidades indí-
genas com as quais cada instituição atua;
• a apresentação e a aprovação dos programas
educacionais pelo Conselho de Educação
Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso
6
Até esta data, não obtivemos resposta à consulta formulada ao Conselho Nacional de Educação sobre a aplicação da Resolução nº 3 em
estados que constituírem o Sistema Único de Educação Básica.
142
(CEI/MT), fórum interinstitucional e pari-
tário composto por instituições e represen-
tantes indígenas;
• a manutenção de vínculo permanente entre
as atividades escolares e as demais iniciati-
vas do campo da saúde, da regularização
fundiária e da economia indígena;
• a compatibilização dos programas escolares
com o calendário sociocultural das socieda-
des indígenas;
• o compromisso da continuidade e termina-
lidade dos trabalhos e da manutenção de
equipes técnicas aptas a acompanhar as
ações de Educação Escolar Indígena desen-
volvidas no estado sob a coordenação da Se-
cretaria de Educação;
• a escolha do Conselho de Educação Escolar
Indígena do Estado de Mato Grosso (CEI/
MT) como foro privilegiado para dirimir dú-
vidas e controvérsias relativas à educação
escolar.
Para concluir, estendo essa reflexão para
além da temática da Educação Escolar Indígena
e me atenho especificamente aos contornos das
atuais políticas públicas no Brasil.
Como nos ensina Octavio Ianni, as políti-
cas públicas equacionam-se pela conjugação
de três elementos fundamentais, que ordenam
as relações entre o Estado e os cidadãos: a na-
tureza, o alcance e o conteúdo das ações pro-
postas; as formas de decisão e de atuação po-
lítica; e a disposição e a capacidade de com-
posição com as organizações da sociedade ci-
vil, sejam elas propositivas, reivindicatórias ou
de contestação.
Portanto, uma política de educação esco-
lar que se pretenda convergente com os inte-
resses de sua clientela não poderá descon-
siderar essa conjugação. No caso específico da
Educação Escolar Indígena, implica, entre ou-
tras iniciativas, um permanente exercício de
negociações, cooperações, parcerias etc. Sem
esses exercícios, não acredito ser possível o
exercício do controle indígena sobre as suas
escolas. E, como já foi dito antes, normatização
não é sinônimo de adequação. Para ser uma
boa escola indígena, é preciso antes que ela
seja indígena.
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143
Legislação escolar indígena
PAINEL 5
Legislação em Educação
Escolar Indígena
Vilmar Guarani
Funai
Resumo
Este resumo apresenta alguns enfoques da le-
gislação em Educação Escolar Indígena:
Enfoque histórico. Visa a demonstrar a reali-
dade da Educação Escolar Indígena em sua primei-
ra fase na história do Brasil, bem como no passado
recente, nos moldes da legislação então vigente,
com as suas características integracionista e
assimilacionista.
Enfoque atual. Desenvolvemos um relato so-
bre a legislação, observando principalmente a Lei
nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, a Constituição Fe-
deral, decretos, portaria interministerial, a Lei de
Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação,
entre outras. Veremos, ainda, os instrumentos in-
ternacionais de defesa e interesses dos povos indí-
genas elaborados com a participação ativa dos in-
dígenas e de suas organizações para que o Estado
brasileiro passasse a adotar uma posição mais aber-
ta em prol dos direitos indígenas. Ainda, no aspec-
to da atualidade, buscar-se-á compreender a ques-
tão da coexistência entre o Estado brasileiro e as
culturas diversas representadas nos mais de 200
povos indígenas, com seus usos, costumes, línguas,
crenças e tradições, e a importância da Educação
Escolar Indígena como um dos direitos coletivos
dos povos indígenas.
Enfoque da perspectiva. Discute a questão
da Educação Escolar Indígena no Projeto de Lei
nº 2.057/91 e a da aplicabilidade da legislação em
vigor e outras possibilidades.
145
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
66
66
6
OS ETNOCONHECIMENTOS
NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello
José Augusto Laranjeiras Sampaio
Roseli de Alvarenga Corrêa
146
Resumo
O etnoconhecimento é peça fundamental na
nossa proposta de construção de uma escola indíge-
na que seja algo mais que uma escola de brancos pen-
sada para índios. Propomos uma escola que incor-
pore o saber dos anciãos, as características da educa-
ção indígena ancestral, integrada à comunidade, e
que resgate da escola do branco os saberes necessá-
rios a seu empowerment e à prática da educação
libertadora.
O dicionário Aurélio traz como primeira
acepção da palavra escola”: estabelecimento
público ou privado no qual se ministra, sistema-
ticamente, ensino coletivo.
Estabelecimento de ensino coletivo” pressu-
põe alguns professores, muitos alunos, em local
determinado. A escola indígena tem o direito le-
gal de ser uma escola diferenciada. Isso lhe con-
fere um grau de liberdade para organizar os seus
currículos, administrar os seus horários e a pos-
sibilidade de organização bilíngüe com direito a
alfabetização na primeira língua etc.
A escola indígena é responsabilidade última
das prefeituras e dos estados e tem que se enqua-
drar nas diretrizes de orientações básicas educa-
cionais da Federação.
A tendência geral hoje é de que os professo-
res das escolas indígenas sejam índios e, priorita-
riamente, pertençam à mesma etnia dos alunos.
Mesmo assim, a escola indígena é a escola do
branco para o índio. É a mesma escola que o bran-
co pensou para ele, mas a serviço do índio. Essa
escola possuirá, então, muitos dos defeitos que
possui a escola do branco, a que está ligada gene-
ticamente, com alguns deles apenas suavizados
pelo direito à diferenciação.
A escola do branco prestigia o pensamento
cartesiano, o reducionismo mecanicista, a
disciplinaridade, traz implícita a idéia ou princí-
pios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o
acúmulo, o consumismo, a competição e, apesar
de propiciar a utilização dos meios globais de in-
formação, ignora o seu entorno imediato, ignora
o conteúdo cultural dos seus alunos e familiares
e tende a uma padronização estéril.
As correções de rumo, necessárias, foram re-
alizadas dentro do marco da pulverização disci-
plinar e do apelo a tendências para as quais nem
os professores nem as escolas estão preparados:
transdisciplinaridade e visões estreitas de
ambientalismo.
Escola indígena
A escola como uma estrutura humana,
conceitual, onde se aprende, sempre esteve pre-
sente na Educação Indígena, mas não propicia um
ensino coletivo, e sim uma educação artesanal,
preceptoral, individualizada, contextualizada e na
qual se fomenta o fazer. Professores são a família,
e a família estendida.
Essa escola, baseada na oralidade e na práti-
ca exaustiva, não pressupõe competitividade, não
é dividida em disciplinas e predispõe o
afloramento do pensamento complexo.
No momento, essa escola está em perigo de
extinção. O recente aparecimento da figura do jo-
vem professor índio assalariado cria outras instân-
cias de poder, saber, comunicação e liderança que
perturbam a estrutura ancestral (Bandeira, 1997).
Os anciões, os sábios, os antigos mestres sentem-
se ignorantes diante dos avanços da “Nova Educa-
ção” propiciada pela “Escola para Índios.
Passo a relatar duas experiências, duas situa-
ções vividas em locais completamente diferentes
e distantes.
Etnoconhecimento na Escola Indígena
Carlos Alfredo Argüello*
Unicamp – Unemat
* Coordenador da Área de Ciências Matemáticas e da Natureza das licenciaturas para professores indígenas da Unemat.
147
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
Uma, na escola das etnias Baníwa-Coripaco,
às margens do rio Içana, afluente do rio Negro,
nas terras indígenas do Alto Rio Negro, estado do
Amazonas, perto da fronteira com a Colômbia, em
meados do ano 2000.
A outra, na etapa de preparação das ativi-
dades dos cursos de licenciatura para profes-
sores indígenas, no campus de Barra do Bugres
da Universidade Estadual de Mato Grosso, em
maio de 2001.
Em ambas as ocasiões, antigas lideranças in-
dígenas, sábios anciões fizeram discursos pareci-
dos, solicitando publicamente que instruíssemos
os jovens professores das suas etnias, para que es-
tes não fossem tão ignorantes como eles. Mas não
são esses anciões os detentores do conhecimento
indígena que nenhum deles, enquanto tal, deve
ignorar? Não são eles os detentores do que a aca-
demia chama de etnoconhecimentos? Não são eles
os que conhecem os segredos da mata, dos rios,
dos animais, os que curam as doenças, os que co-
nhecem os segredos do céu, conhecem o calendá-
rio astronômico que rege, na Terra, as chuvas, as
migrações das aves, as piracemas, as enchentes, o
tempo certo de plantar? Não são eles os que co-
nhecem os rituais, as danças, as cerimônias, os que
falam com os deuses? Não são eles que conhecem
o segredo da caça e são os melhores artesãos?
Quem destruiu a sua auto-estima, quem mo-
dificou os seus valores de julgamento? Não será a
escola evangelizadora que os queria cristãos? Não
será a escola integracionista que os queria inte-
grados, indiferenciados? Não serão as diferentes
escolas que os queriam tratoristas, cortadores de
cana, engrenagens microscópicas na grande má-
quina da economia branca? Não estará também
a escola indígena, na sua versão “Escola para Ín-
dios, prestigiando em demasia os conhecimen-
tos e a cultura do branco em detrimento das pró-
prias culturas?
Quero citar uma experiência que está no co-
meço e irá frutificar somente dentro de cinco
anos. Espero então, daqui a cinco anos, poder ter
a oportunidade de informar e prestar contas.
É nosso trabalho formar professores indíge-
nas no 3
o
grau, licenciados em várias áreas do co-
nhecimento. Coube-me a delicada tarefa de co-
ordenar a área de Ciências dessas licenciaturas di-
ferenciadas.
Os cursos são ministrados em etapas intensi-
vas, no campus de Barra do Bugres, MT, para 200
professores índios de 35 etnias diferentes.
Nas etapas intermediárias, o professor índio,
enquanto leciona na sua escola, realiza tarefas,
trabalhos e pesquisas ligadas ao seu curso univer-
sitário. Também recebe em sua aldeia, na sua es-
cola, a visita e a orientação da equipe de profes-
sores do curso (docentes), que, desse modo, tam-
bém interagem com a comunidade.
O trabalho, nessa etapa intermediária, visa a
resgatar, para a escola, os conhecimentos ances-
trais indígenas, valorizar os detentores dos dife-
rentes saberes, diminuir a separação entre escola
e comunidade, permitir a docentes e professores
indígenas um conhecimento melhor da realida-
de nas aldeias e escolas e o diálogo direto com a
comunidade.
Nesses momentos, o olho atento e treinado
do docente poderá detectar, na comunidade, sa-
beres, valores, práticas que poderão ser objeto de
estudo sistematizado com a finalidade de sua in-
corporação escolar. Por exemplo, junto com as
professoras Marta Azevedo e Judite Albuquerque,
realizamos na Escola Paanhali, no rio Içana, no
Amazonas, da etnia Baníwa, um trabalho de res-
gate, com os professores da escola, do calendário
astronômico Baníwa. Trouxemos para as discus-
sões vários anciões”, que deram sua importante
contribuição.
Em etapa posterior, reunimo-nos em São
Gabriel da Cachoeira, AM, com alguns desses pro-
fessores indígenas e mais cinco anciões. Trabalha-
mos durante vários dias, até estabelecermos, em
forma definitiva, um calendário natural circular
e um calendário astronômico explicados em
Baníwa e em Português.
Da riqueza do calendário natural, surgiram
muitos importantes ensinamentos, como, por
exemplo, o equilíbrio ecológico presa/predador
na sua versão indígena, as constelações Baníwa
foram traduzidas” para as constelações acadêmi-
cas e vice-versa, possibilitando o diálogo intelec-
tual e a motivação para seguir estudando o céu,
os fenômenos astronômicos, climáticos etc., si-
multaneamente, a partir dos diversos olhares.
É interessante comentar que a introdução do
computador e um programa de simulação do céu
encantaram os mais velhos, que, em pouco tem-
148
po, foram capazes de utilizar esse novo instru-
mento sem constrangimento nenhum. Cito essa
passagem como um exemplo de saberes comple-
mentares.
Nossa proposta é incorporar, nas atividades da
escola, a comunidade, os velhos mestres, seus sa-
beres e ensinamentos, os conhecimentos tribais,
enfim, derrubar os muros
1
que a escola do branco
possui e que a separam da comunidade e da reali-
dade que a rodeia, o que a escola para índios, como
citei anteriormente, herdou em algum grau.
Em contrapartida vejo a escola para índios
como uma forma de “potencialização” ao estilo
freiriano. Segundo Paulo Freire, potencialização,
ou empowerment, é um processo que “permite ao
estudante interrogar e, seletivamente, se apropri-
ar daqueles aspectos da cultura dominante, que
vão lhe prover as bases para novas definições e
transformações, em vez de meramente servir à
ampla ordem social estabelecida.
Continuando com Paulo Freire, nosso grande
mestre, gostaria de citar, da Pedagogia do opri-
mido, a seguinte afirmação: “Ninguém educa nin-
guém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se
educam entre si mediatizados pelo mundo!”
Comentar essa sentença inspiradora ocuparia
horas, mas vamos nos perguntar tão-somente:
Qual é esse mundo mediatizador? Intermediador?
Existem tantos mundos como pessoas há. A
experiência de vida da pessoa constrói o seu mun-
do, e as comunidades étnicas mais ou menos iso-
ladas, culturalmente definidas, produzem mun-
dos individuais com alto grau de semelhanças.
Poderíamos, simplificando, então idealizar um
mundo “padrão” étnico ou tribal.
Mas o mundo do professor indígena é aber-
to a outras experiências e visões de mundo? E o
mundo do professor de professores indígenas?
Como se pode conceber ou construir um mun-
do mediatizador?
Na nossa tradição educacional, a escola desco-
nhece e ignora o processo de mediatização por
mundos que nem sequer ensinam a ler. Será neces-
sário que, entre os mundos a dialogar, exista uma
interseção que gere o mundo comum, que será o
mediatizador. Então, o diálogo de características
interculturais servirá para ampliar o mundo comum
a ambos, num processo cuja meta ideal, mas im-
possível, seja a união desses mundos individuais.
É nossa intenção que a escola seja o espaço
dialógico para a ação mediatizadora. Note-se que
essa iniciativa transborda os limites da educação
em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, da
experiência indígena na educação. Parafrasean-
do Bartomeu Melià (1998), “Não há um proble-
ma de Educação Indígena, há soluções indígenas
ao problema da educação”.
A abertura de 200 vagas para os cursos de li-
cenciaturas, reservadas aos professores indígenas,
equivaleriam, na população brasileira, à abertu-
ra de aproximadamente 100 mil vagas, resguar-
dando as proporções populacionais.
A necessidade de construir o seu próprio ma-
terial didático, os textos, os equipamentos, em
constante diálogo com a realidade em volta, in-
cluindo a pobreza, é um desafio que, uma vez ven-
cido, como tudo leva a pensar que o será, consti-
tuir-se-á em modelo a ser seguido por outras ins-
tâncias fora da Educação Indígena.
A revalorização da escola, de uma escola cul-
turalmente comprometida, mas aceitando a pers-
pectiva de Educação Libertadora, poderá servir de
modelo a outras minorias, movimentos sociais e,
basicamente, à escola tradicional, qualquer que
seja o nível econômico dos seus alunos, para que,
engajada social, crítica e construtivamente, torne-
se uma solução e deixe de ser um problema.
Bibliografia
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Formação de professores
índios: limites e possibilidades. In: CONSELHO DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DE MATO GROS-
SO.
Urucum, jenipapo e giz
: Educação Escolar Indíge-
na em debate. Cuiabá/MT: Seduc, 1997.
FREIRE, Paulo.
Pedagogia do oprimido
. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2002.
FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo.
Alfabetização:
leitura
do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra,
1990.
MELIÀ, Bartomeu.
Ameríndia
. Cuiabá/MT, 1998.
1
Ver Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola: Palestra “A escola sem muros”.
149
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
Tomo como ponto de partida para essas re-
flexões a idéia de que a Educação Escolar In-
dígena, concebida como específica” e “dife-
renciada, como a pretendemos e a buscamos
construir, não deixa de inscrever-se em um
campo intersocietário de diálogos e de dispu-
tas políticas e simbólicas.
Nesse campo, as próprias idéias de dife-
rença, de especificidade” e outras do gênero
aparecem como valores, como objetivos a se-
rem alcançados e garantidos e, também, exi-
bidos e realçados.
Aqui, a cultura indígena” aparece como o
domínio social por excelência, por meio do
qual tais valores se expressam, e a “escola in-
dígena, como a via institucional para a sua
formalização e reprodução.
Mas, sendo o campo da Educação Escolar
Indígena necessariamente intersocietário e,
mais que isso, definido pela presença, por um
lado, de um pólo dominante, o da sociedade
nacional, doador” e “prestador” de bens e
serviços – formação de professores, infra-es-
trutura, material didático, salários, alimentos
etc. –, e, por outro, de um pólo receptor, o
das sociedades indígenas, não se deve supor
que os valores e conceitos caros ao campo,
como “diferença, “especificidadee “cultura,
produzam-se e legitimem-se à margem dos
diálogos e disputas políticos e simbólicos ine-
rentes ao campo, sem que, sobre eles, impri-
mam-se as marcas ideológicas do pólo domi-
nante, ainda que tais diálogos e disputas re-
queiram, formal e necessariamente, expres-
sões de autenticação” dos ditos valores por
parte do pólo dominado.
Assim, em uma palavra, cabe indagar
como, nesses diálogos e nessas disputas,
sabidamente desiguais, e por meio de que ca-
nais de poder e de que recursos simbólicos se
produzem e se legitimam, para todo o campo
da Educação Escolar Indígena – e mesmo para
mais além dele –, as definições do que sejam
especificidade e diversidade culturais indíge-
nas e do que podem essas, enfim, estar a sig-
nificar para cada um dos pólos e no contexto
da relação entre esses.
Pretendo aqui demonstrar, com base em
minha própria experiência em programas de
formação de professores indígenas, como a so-
ciedade nacional imprime, por meio sobretu-
do de seus agentes diretamente engajados no
campo da Educação Escolar Indígena (profes-
sores formadores, agentes administrativos
etc.), as suas próprias concepções de cultura
indígena, “especificidade cultural” etc. e como
o pólo indígena tende a dialogar com tais con-
cepções, a reproduzi-las ou a contrapô-las.
Ao ser convidado para participar, como an-
tropólogo especialista” em povo Pataxó, do
Programa de Implantação de Escolas Indíge-
nas em Minas Gerais, descobri que uma das de-
mandas, talvez a mais importante delas,
dirigida a mim e a alguns outros colegas – e
não infreqüente em circunstâncias semelhan-
tes que eu próprio teria oportunidade de vir a
novamente vivenciar – por parte tanto de pro-
fessores indígenas em formação, quanto de
O “resgate cultural” como valor:
reflexões sobre experiências de um
antropólogo militante em
programas de formação de
professores indígenas no Nordeste
e em Minas Gerais
José Augusto Laranjeiras Sampaio
Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) – Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
150
muitos dos responsáveis por essa formação,
dizia respeito à minha possível contribuição
em um processo percebido como necessário às
ditas formação de professores e implantação
de escolas diferenciadas, claramente definido
por todas as personagens presentes no campo
como “resgate cultural”.
Em que consistiria, então, o resgate cul-
tural” sobre o qual se esperava que pudésse-
mos, eu e outros antropólogos, percebidos
como “especialistasem “culturas indígenas,
intervir favoravelmente?
Antes de tentar responder a essa questão,
cabem aqui duas digressões: uma, relativa a
como a sociedade brasileira vem reproduzin-
do suas concepções a respeito de idéias como
diferença e especificidade culturais” indíge-
nas, de larga aplicação e de eficácia simbólica
bastante perceptível, hoje, no campo da Edu-
cação Escolar Indígena; e a segunda, relativa a
como essa mesma sociedade e seus agentes
diretos, no dito campo, tendem a perceber a
configuração histórica e social tida como típi-
ca da maioria das sociedades indígenas con-
temporâneas em áreas como aquelas em que
tenho trabalhado, em estados do Nordeste e
em Minas Gerais.
No que diz respeito à primeira considera-
ção, sabe-se que não é difícil à maioria dos
agentes da sociedade nacional ora engajados
na implantação e na garantia de sistemas di-
ferenciados de Educação Escolar Indígena per-
ceber, de modo crítico, as clássicas visões
etnocêntricas que negativizam a cultura do in-
dígena em relação à de ego, por meio de opo-
sições, como preguiçoso” x “trabalhador”, “pri-
mitivo” x civilizado, atrasado” x desenvol-
vido, “fetichistaou “infiel” x “temente a
Deus, e muitas outras, que tendem mesmo a
aproximar a condição indígena à bestialidade
e a das sociedades civilizadas ou ocidentais à
própria plenitude da condição humana.
Por outro lado, ao abandonar tais visões
para transpor-se a outras tendentes a valorar
positivamente culturas indígenas” e sua di-
versidade, a consciência crítica de agentes da
sociedade nacional dificilmente percebe estar
com freqüência, ainda assim, arraigada a vi-
sões de cultura” e de diferença” muito pró-
prias às autopercepções de sua própria socie-
dade, permanecendo, pois, etnocêntrica e dis-
tante da produção de um real diálogo cultural
com as posições indígenas.
Na modalidade positivada” das concep-
ções etnocêntricas de “culturas indígenas, as
oposições anteriormente referidas dão lugar
a outras nas quais tais culturas” assumem,
em relação à cultura de ego, o pólo favorá-
vel”, como em autenticidade cultural x dege-
neração da cultura por colonialismo cultural,
cultura de massa ou globalização; harmonia
com a natureza x exploração predatória do
ambiente; igualitarismo, amor ao próximo e
altruísmo x desigualdade social, individualis-
mo e competitividade desumana; sabedoria
milenar x futilidades e modismos; vida sau-
dável em ambiente natural”, mata” x vida
insalubre em ambiente citadino, poluído; vida
espiritual rica x pragmatismo materialista;
etnoconhecimentos x cientificismo estéril etc.
Ao produzir tais oposições, o pensamento
dos agentes do pólo dominante, longe de ha-
bilitar-se à compreensão e ao diálogo com o
pólo dominado, apenas projeta sobre este,
idealizando-o, a própria má consciência” de
si mesmo.
Nessa modalidade, o pólo autêntico” é
percebido como idealmente vivido em uma
condição de quase encantamento, à qual toda
aproximação do pólo degenerado” é percebi-
da como “contaminação, “deturpação,
corrupção” e ameaça cultural”.
Aqui, os índices de maior ou menor auten-
ticidade, vale dizer, de maiores ou menores
taxas” de “diversidade cultural, medem-se
sempre por graus de afastamento do que se
percebe como sendo os domínios culturais do
pólo “corruptor”.
É evidente que os sinais diacríticos da di-
versidade” ou da “autenticidade” – poder-se-
ia dizer mesmo da pureza” – culturais são se-
lecionados de acordo com os próprios critéri-
os de diferença” e de “cultura” próprios ao
pólo dominante.
Assim se reproduz a clássica imagem de ín-
dio – nu, forte, emplumado e cercado de vege-
tação luxuriante – tão cara à nossa consciên-
cia nacional, desde, pelo menos, o Peri, de José
151
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
de Alencar, continuamente atualizado, inclu-
sive em personagens “reais” de nossa mídia
contemporânea, ao cacique Metuktire Raoni.
Em suma, são nos sinais diacríticos de di-
ferença cultural” cuidadosa e interessa-
damente selecionados pela consciência naci-
onal e por grupos organizados de seus agentes
que os projetam, em função de suas próprias
necessidades ideológicas de distinção interna
ou externa, positiva ou negativamente, sobre
as sociedades indígenas, em que parecem, em
princípio, residir as ditas concepções de es-
pecificidade” e de cultura” indígenas domi-
nantemente presentes no campo da Educação
Escolar Indígena.
Quanto à segunda digressão, quero assina-
lar que é justamente no contexto ideológico re-
ferido que se deve buscar a inscrição da per-
cepção que tem a consciência de tais grupos
de agentes da sociedade nacional a respeito de
sociedades indígenas imersas em segmentos
sociais regionais com longo tempo de consti-
tuição histórica por processos de colonização
de origem européia e capitalista.
Em que pese o que poderia ser percebido
como inestimáveis signos de especificidade
cultural” dessas sociedades, em seus ricos e
não raros intensos processos de produção e re-
produção, invenção ou reinvenção de suas pró-
prias identidades e de seus ordenamentos so-
ciais internos com relação à sociedade envol-
vente, a dita consciência nacional tende, em
função da imersão ou interpelação mais estrei-
ta dessas sociedades com segmentos sociais
regionais, a percebê-las apenas como resulta-
dos de processos de corrupção” sociocultural,
ou como “vítimas” do que costumam definir
como “aculturação.
Em síntese, em um modelo ideológico que
concebe “as verdadeiras culturas indígenas
como estados de encantamento, de pureza,
resultantes de isolamento, devendo ser, pois,
idealmente, imutáveis, e no qual a especifici-
dade” e a “diversidade” são funções desse mes-
mo distanciamento do contágio” com outros
sistemas culturais, ou do que se costuma defi-
nir como preservação da cultura, não pode
mesmo haver lugar para que se percebam cul-
turas como resultantes de processos históricos,
muito menos “especificidadese “diferenças”
como algo factível de se produzir em proces-
sos sociais de intensa inter-relação cultural e
simbólica entre os grupos “diferenciados, e
não necessariamente o contrário.
Assim, um tal modelo não consegue pro-
duzir a respeito de tais sociedades indígenas
nada mais do que o que se poderia chamar de
uma “visão lacunar”, por meio da qual essas são
percebidas apenas como sociedades da au-
sência” ou sociedades da perda. Aqui, vê-se
nelas não o que elas são” ou o que elas “têm,
mas sempre o que elas teriam deixado de ser”
ou deixado de ter”, o que teriam “perdido, que
é, invariável e genericamente, qualificado
como tendo sido a cultura.
Não é preciso enfatizar muito que, aqui,
culturas” não são percebidas como conjun-
tos semânticos resultantes de processos so-
ciais históricos, vale dizer necessariamente
dinâmicos, mutáveis, mas como algo dotado
de certa substância original”, perceptível em
traços” ou “elementos” culturais bastante
palpáveis, como “a língua, “os rituais, “os
conhecimentos tradicionais, consubstan-
ciados em visões próprias ou etnoconheci-
mentos, costumeiramente associados às nos-
sas próprias ciências, em especial às da na-
tureza, da Botânica à Astronomia.
Ora, se sociedades indígenas, como a mai-
oria das do Nordeste e de Minas Gerais, são
percebidas como sociedades da falta, e se os
processos históricos que, de fato, constituí-
ram-nas são, inversamente, tratados apenas
como processos de perda, de “perda da cul-
tura, não será difícil deduzir qual seja a idéia
de resgate cultural” presente em um tal mo-
delo ideológico, bem como nas concepções de
Educação Escolar Indígena dele derivadas.
Também não é difícil imaginar o que, em
tais circunstâncias, supõe-se que se possa es-
perar do antropólogo, ou seja, daquele que é
entendido como o especialista no conheci-
mento de culturas” e, portanto, como alguém
possivelmente apto a, por seus estudos, desen-
volver artes capazes de trazer de volta à cul-
tura indígena” a sua “substância” perdida.
Penso que, no âmbito da concepção de cul-
tura inerente ao modelo ideológico tratado, a
152
idéia de resgate cultural” pode ser percebida
como uma espécie de proposição de anulação
da história, um procedimento pelo qual se po-
deria, ao menos em parte, devolver” às socie-
dades indígenas a sua essência” perdida e, no
limite, fazê-las “retornar” ou “reviver” o seu es-
tado original” de encantamento” e de “ver-
dadeira” “diversidade.
Não posso deixar de assinalar também,
aqui, a presença de uma não infreqüente vi-
são, a um só tempo “piedosa” e “culpada, da
consciência nacional com relação às socieda-
des indígenas. Ao dispormo-nos a apoiá-las em
sua busca do “resgate cultural”, estaríamos
também, a um só tempo, contribuindo para o
seu retorno a um estado perdido de autentici-
dade, solucionando, por um lado, o que ten-
demos a identificar como a causa de sua su-
posta inadaptação ou, mesmo, infelicidade e,
por outro, expiando a nossa própria culpa se-
cular pelas perdas” que lhes causamos.
De fato, espero que possa estar claro que
não percebo aqui mais que a eloqüente expres-
são de formas bastante perversas e etnocên-
tricas de dominação simbólica – vale dizer
cultural” –, em que das sociedades indígenas
são expropriadas suas imagens, ou auto-ima-
gens, e sua historicidade, e transmutadas, con-
forme dito, em sociedades da falta, em fun-
ção da manutenção e da reprodução, no âm-
bito da ideologia dominante, das concepções
de cultura” e de diferença cultural” preva-
lentes na sociedade nacional – e potencialmen-
te abaláveis por uma compreensão histórica
mais adequada sobre muitas das sociedades
indígenas contemporâneas – ou mesmo de
imagens críticas dessa mesma sociedade, ca-
ras a alguns de seus segmentos.
Para as sociedades indígenas em questão,
o resgate cultural” tende, com freqüência, a
ser percebido, como seria de se esperar em
caso de segmentos sociais subalternos às con-
cepções ideológicas dominantes, nos mesmos
termos dessas concepções, ou seja, como algo
a ser perseguido dentro dos parâmetros de
uma idéia reificada de cultura” e em função
de sua própria incorporação da “visão lacunar”
que delas tem a consciência nacional.
Em especial, para muitos dos professores
indígenas que conheci, ainda como
ingressantes em programas de formação “es-
pecífica” e diferenciada, a empreitada do res-
gate cultural” parecia impor-se-lhes como um
desafio e uma missão inquestionavelmente ne-
cessários. Egressos, em sua imensa maioria, de
escolas regionais “indiferenciadas” ou daque-
las até recentemente mantidas pelo regime tu-
telar do indigenismo oficial e, enquanto tal, já
percebidas por eles como agências de destrui-
ção” de suas culturas, tinham incorporada uma
aguda consciência de seu papel como agentes
transformadores do sistema escolar até então
vigente, mas sem disporem de uma perspecti-
va crítica da idéia do resgate cultural” que, ao
contrário, lhes era apresentada, ainda que mui-
tas vezes sob formas bastante indiretas, como
requisito indispensável à própria implementa-
ção de uma Educação Indígena de fato espe-
cífica” e diferenciada.
Vê-se, então, assim, como curiosamente as
idéias de especificidade” e de diversidade
podem, de fato, vir a servir justamente ao seu
oposto, uma vez que o que se impõe pela de-
manda por resgate cultural” é, na realidade, a
adequação de sociedades indígenas de fato di-
ferenciadas a um padrão, a um estereótipo de
cultura indígena” imposto pelo sistema ideo-
lógico dominante.
Se já não se concebe a educação escolar
oferecida às sociedades indígenas como ins-
trumento para a sua necessária e inevitável”
dissolução sociocultural na sociedade envol-
vente, ao se lhes autorizar, ao contrário, uma
educação específica” e diferenciada, não se
deixa de se lhes impor, muitas vezes, até mes-
mo sem que se o perceba, a sua redução a um
ideal “cultural” “indígenaproduzido e impos-
to pela sociedade nacional, cujo imaginário
tende a identificá-lo e aproximá-lo de algumas
sociedades indígenas reais, como algumas da
Amazônia.
Opera aqui, então, um processo de domi-
nação cultural no qual os índios são levados a
se tornarem, a um só tempo, vítimas e cúm-
plices de seu seqüestro simbólico, ou, diria
melhor, a se tornarem verdadeiros “reféns”
nesse seqüestro, no qual o resgate” é de fato
percebido como um necessário preço a pagar”
153
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
pela obtenção de reconhecimentos à legitimi-
dade de seus pleitos, sobretudo pleitos por di-
reitos “diferenciados.
Não saberia relatar com precisão como re-
agi, de início, às diversas formas sob as quais
se me apresentavam demandas por contribui-
ções em processos de resgate cultural”. Diria
que tentava tratar criticamente” tais deman-
das sem, contudo, dispor de argumentos ou de
outros meios capazes de eliminá-las ou, mui-
to menos, de atendê-las.
É evidente também que não poderia, por
força apenas de minha própria consciência
crítica, intervir significativamente no quadro
ideológico que se me apresentava. Assim, foi
de fundamental importância todo um proces-
so de discussão com muitos outros professo-
res formadores e, sobretudo, com os próprios
professores indígenas.
Apesar da consciência crítica, não me fur-
tava a colaborar com o “resgate cultural”, apre-
sentando aos professores indígenas coisas,
como vocabulários de línguas de seus supostos
antepassados”, relatos dos seus” costumes,
feitos por viajantes, e a parca iconografia dis-
ponível sobre a maioria dos grupos da região
nos períodos colonial e imperial etc. Com isso,
o interesse inicial, totalmente dirigido à recu-
peração de perdas culturais, foi se complexi-
ficando em um interesse por conhecer melhor
os próprios processos históricos de tais per-
das, o que se me afigurou como uma tendên-
cia interessante no sentido da produção de
perspectivas mais críticas acerca da idéia de
resgate, ou melhor, de uma complexificação
dessa idéia, capaz, por exemplo, de pensar o
resgate” de suas historicidades ou de pensar o
resgate da cultura” como o resgate de informa-
ções necessariamente históricas e, portanto, di-
nâmicas, deixando, assim, de ser percebidas
como referentes a uma suposta “cultura de ori-
gem, descontaminada de influências e livre de
perdas.
De modo geral, um maior interesse de-
monstrado no conhecimento de suas históri-
as não é, por si só, suficiente para pôr em ques-
tão algumas concepções dominantes, como,
por exemplo, a de uma inquestionável conti-
nuidade histórica das atuais unidades sociais,
ou etnias, desde um período pré-colonial. A
consideração de que a própria constituição de
tais unidades sociais e étnicas possa ser algo
resultante dos próprios processos coloniais
tende, quase sempre, a ser rejeitada como um
dado incômodo e ameaçador.
Seja como for, penso que a Educação Es-
colar Indígena específica e diferenciada pode,
sim, caminhar no sentido da produção de um
conhecimento próprio das sociedades indíge-
nas sobre si mesmas. Um conhecimento, a um
só tempo, informado das concepções teóricas
de nossa História e de nossa Antropologia e,
assim, capaz de livrar-se das perversas tutelas
simbólicas de ideologias dominantes da soci-
edade nacional, mas capaz também de engen-
drar formas próprias de autopercepção de suas
próprias historicidades e culturas.
Se assim for, essa será, certamente, a pe-
dra angular para o tratamento de quaisquer
etnoconhecimentos” na escola indígena, ou
uma espécie de “metaetnoconhecimento”; sem
dúvida, uma expressão transformada e inova-
dora, e não tolamente revivalista, da velha
idéia de resgate cultural”.
154
O tema proposto “O etnoconhecimento e a
Educação Matemática na escola indígena
pode sugerir, num primeiro momento, uma
abordagem sobre o modo como os educado-
res se utilizam do etnoconhecimento de um
povo no exercício de sua prática pedagógica na
Educação Escolar Indígena. Esse, naturalmen-
te, é um dos focos para tal abordagem. No en-
tanto, penso que, antes de enfocar como a Edu-
cação Escolar Indígena pode estar se utilizan-
do do etnoconhecimento específico de um
povo, de aspectos de sua cultura, de seus mi-
tos e crenças, de seu saber e fazer, devo abor-
dar primeiramente a escola indígena, uma ins-
tituição garantida legal e constitucionalmen-
te nos dias atuais e pleiteada pela maioria dos
povos indígenas. Nessa perspectiva, a aborda-
gem ao tema proposto pede, antes de tudo, que
se pense e se pergunte e que se levantem al-
guns pontos de vista sobre a Escola Indígena.
A abordagem que farei assenta-se sobre a
minha própria vivência como educadora não-
indígena, que atua em cursos de formação de
professores indígenas na área de Matemática
e Educação Matemática. Dúvidas, reflexões,
críticas, questionamentos estavam e estão
sempre presentes no exercício dessa prática,
mas também há espaço para o sonho e o pos-
sível, e, se hoje já temos algumas respostas,
elas não se colocam como verdades absolutas,
universais, mas como verdades relativizadas
em cada cultura, espaço e tempo.
Nesse contexto, portanto, em que a crítica
e a possibilidade podem estar presentes, vejo
que uma das direções a ser trilhada para a Edu-
cação Indígena aponta para modos de apren-
dizagem abertos – para as experiências e os co-
nhecimentos das diversas culturas –,
investigativos e, sobretudo, críticos.
“Por que aprender Matemática na escola
indígena?”, “Que Matemática deve ser ensina-
da e aprendida?”, “Como trabalhar Matemá-
tica na escola indígena?” são perguntas feitas
com freqüência no âmbito mais restrito da
Educação Matemática. As respostas, temos ci-
ência disso, alojam-se em terreno mais am-
plo e delineiam-se à medida que as idéias se
voltam para a compreensão da educação e
escola indígenas na sua historicidade e com-
plexidade.
Quando se coloca a possibilidade de criar
e desenvolver situações pedagógicas, em cur-
sos de formação de professores indígenas, que
valorizem as experiências de vida dos alunos,
o conhecimento de seu povo, sua história e cul-
tura, e que levem em conta suas aspirações,
impõe-se a necessidade de conhecer tais aspi-
rações e escolhas do povo indígena para a sua
educação específica e como, historicamente,
eles se constituíram. Significa, por um lado, co-
nhecer melhor o indígena que se fez professor
em sua comunidade: no seu trabalho na aldeia
e na escola, na sua relação com as lideranças,
com os pais dos alunos, com o calendário es-
colar, com os materiais didáticos que selecio-
na, cria e constrói para a sua prática pedagó-
gica e, também, nas suas aspirações como pro-
fissional da educação e sujeito ativo de sua co-
munidade. Por outro lado, significa conhecer
o contexto histórico por meio do qual vem se
desenvolvendo a Educação Indígena no Brasil
e no qual se insere o modo de ser da escola e
do professor indígenas e dos cursos de forma-
ção de professores indígenas.
A construção dessa trajetória investigativa,
por sua vez, estrutura-se e articula-se também
a partir das visões e das concepções dos dife-
rentes segmentos além daquelas das comu-
nidades indígenas atuantes na Educação In-
dígena e, particularmente, das do educador
não-indígena. As representações e práticas
desse educador não-indígena – seu modo de
O etnoconhecimento e a Educação
Matemática na escola indígena
Roseli de Alvarenga Corrêa
Ufop/MG
155
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
ver e entender a Educação Indígena – são con-
cebidas como influenciadas e influenciando
outras representações e práticas. Na sua tota-
lidade, esses modos de ver e conceber a Edu-
cação Indígena e a Educação Matemática na
escola indígena dos diferentes segmentos que
dela se ocupam são também vertentes do ma-
nancial histórico das concepções educacionais
brasileiras e universais.
No momento atual, essa história se faz
por meio das idéias de educadores influen-
ciados pelos novos ares e rumos que toma-
ram, no século XX, algumas áreas de conhe-
cimento, como a Antropologia, a Sociologia,
a Psicologia, a Lingüística e outras. Esse mo-
vimento, que eu diria em espiral, chamando-
nos à reflexão sobre a escolarização formal
para as comunidades indígenas, remete-nos
a uma nova interrogação, qual seja: “É neces-
sária a escolarização formal para as popula-
ções indígenas?”.
Uma pequena incursão na história da Edu-
cação Indígena no Brasil assegura-nos que as
mudanças significativas iniciadas a partir da
década de 1970, época em que começaram a
surgir neste país os movimentos propriamente
indígenas e aqueles que resultaram na criação
de entidades civis de apoio à causa indígena,
começam a produzir seus frutos. No final dos
anos 1980, as várias experiências de implanta-
ção de escolas indígenas com currículos e pe-
dagogias próprias já aconteciam juntamente
com a produção de materiais didáticos especí-
ficos e produzidos pelos próprios índios.
A partir dos anos 1990, além da intensifi-
cação da pesquisa acadêmica na área, parti-
cularmente entre lingüistas, antropólogos e
sociólogos, essa pesquisa torna-se mais re-
flexiva e crítica de seu próprio trabalho. Os
dias atuais têm sido marcados por uma ava-
liação crítica das experiências educacionais
diferenciadas construídas nas décadas ante-
riores. Os debates, temas e problemas tor-
nam-se mais específicos, sofrem uma espé-
cie de detalhamento e sofisticação e têm
como fundo a diversidade de situações, de
cultura e de propostas oferecidas pelas co-
munidades indígenas.
No entanto, embora se considere o peso de
tais constatações, a questão que ainda se co-
loca, segundo o indigenista e lingüista Wilmar
da Rocha D’Angelis, é: “Para que uma comuni-
dade indígena quer escola? Que função a es-
cola tem ou a comunidade está disposta a lhe
conferir?” (D’Angelis, 1999: 20).
Essas perguntas, aliadas à nossa sobre a ne-
cessidade da escolarização formal para as po-
pulações indígenas, não tinham como ser for-
muladas no contexto e pensamento sobre Edu-
cação Indígena até a primeira metade do sécu-
lo passado. Antes da década de 1970, mais pro-
priamente, a escola indígena foi usada como um
dos principais instrumentos para a descarac-
terização e destruição das culturas indígenas na
história do contato com outras culturas, pois,
definida e gerida desde fora, imposta e estra-
nha aos índios” (Lopes da Silva, 1995: 10), as
escolas e programas oficiais de educação para
o índio” tinham como objetivo reforçar os pro-
jetos integracionistas gerados pelo pensamen-
to assimilacionista que dominava na relação
entre estado e povos indígenas.
Se a escola, desde o início da colonização
até poucas décadas passadas, foi imposta de
fora para dentro das comunidades indígenas,
hoje a escola torna-se, para essas mesmas co-
munidades, uma espécie de necessidade pós-
contato, que tem sido assumida pelos índios,
mesmo com todos os riscos e resultados con-
traditórios já registrados ao longo da história
(Dias da Silva, 1999: 64-66). Segundo a autora,
a escola pode vir a ser, “hoje,
1
um instrumen-
to decisivo na reconstrução e na afirmação das
identidades, apoiada que está pelo texto legal
que superou a perspectiva integracionista e re-
conheceu a pluralidade cultural.
E é nas idéias que se originaram nesse pe-
ríodo, pós-década de 1970 e, principalmen-
1
Esse “hoje” significa que, após a Constituição de 1988, se inaugurou no Brasil a possibilidade de uma nova fase nas relações entre os povos
indígenas, o Estado e a sociedade civil. A educação formal indígena está apenas começando a ser pensada e exercida de forma diferencia-
da, de modo a assegurar “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,
segundo o que diz a Constituição de 1988, Cap. III, § I.
156
te, pós-Constituição de 1988, que buscamos
estruturar as respostas para a pergunta que
fizemos sobre a necessidade da escolariza-
ção formal para as populações indígenas no
Brasil.
A pesquisa realizada nos vários segmen-
tos envolvidos com a Educação Indígena –
em particular nessa fase de mudanças e ne-
gociações que, segundo Lopes da Silva,
constituiu-se em “processo intenso, rápido,
política e criativamente inovador, [que]
transformou a escola indígena característi-
ca dos anos anteriores [...] em espaço de ar-
ticulação de informações, práticas pedagó-
gicas e reflexões dos próprios índios sobre
seu passado e seu futuro, sobre seus conhe-
cimentos, seus projetos e a definição de seu
lugar em um mundo globalizado” (1995: 10)
– apontou-nos uma variedade de motivos
favoráveis à presença da escola nas comu-
nidades indígenas, os quais procuramos
agrupar em categorias mais abrangentes.
Assim, com base na diversidade de pontos
de vista e no modo como procuramos sinte-
tizá-los, direi que a escola é necessária para
as comunidades indígenas, porque consti-
tui-se em:
• espaço de reafirmação/revitalização de sua
identidade cultural;
• espaço de articulação de informações;
• local de reflexão sobre o destino dos povos
indígenas/a escola como parte do projeto
de futuro dos povos indígenas;
• espaço que possibilita estruturar as rela-
ções com outras sociedades;
• local de pesquisa de suas próprias neces-
sidades e métodos.
A conquista de tais espaços, como já vi-
mos, não se deu casualmente. Nos debates
ocorridos no 1º Encontro Nacional sobre Edu-
cação Indígena, em 1979, começaram a se
delinear as questões norteadoras de debates
futuros. Nesse encontro, ficou claro o caráter
isolado das experiências realizadas até então.
Questionando as políticas da Funai e do Go-
verno Federal, firmava-se a postura de fazer
da escola indígena um meio de fortalecimen-
to dos próprios índios, livre da opressão e au-
tônoma” (Capacla, 1995: 21). A partir daí, for-
taleceu-se a idéia – ainda não consensual – de
que as próprias comunidades indígenas sele-
cionassem e preparassem seus professores
bilíngües. Algumas comunidades ainda relu-
tavam em querer uma escola como a dos
brancos” e reivindicavam o aprendizado mais
rápido do Português pela urgência da situa-
ção de contato.
Foi nas universidades e nas organizações
indigenistas não-governamentais que as idéi-
as de “fortalecimento cultural” dos povos in-
dígenas encontraram campo favorável.
Aprofundaram-se os debates em torno das
questões indígenas e fortaleceu-se, entre os vá-
rios segmentos da sociedade civil brasileira,
em seu processo de reorganização, a consci-
ência cultural e étnica indígena.
Assim, pelo menos no meio acadêmico e,
digamos, ainda na teoria, era unânime a idéia
de que:
De instrumento de dominação a escola indíge-
na passa a ser um instrumento de reafirmação
cultural e étnica, de informação sobre a socie-
dade envolvente e as relações internacionais,
como base para um diálogo em que os índios
são sujeitos que buscam construir seu destino
através da reflexão, escolhas e autodetermina-
ção (Capacla, 1995: 18).
Reconhecida, nos meios acadêmicos, a
necessidade de uma escola indígena apoia-
da em uma base de reafirmação e fortaleci-
mento cultural, a questão passa também a
ser considerada e expressa pelos próprios
índios, particularmente após a Constituição
de 1988. Como diz Jucineide Maria S. Freire,
professora Xukuru, de Pernambuco: A esco-
la indígena tem que ser parte do sistema de
educação de cada povo, no qual se assegura
e fortalece a tradição indígena” (RCNEI,
1998: 58).
As palavras da professora Marineusa
Gazzetta vêm reforçar, justificar e esclare-
cer a idéia, até então obscura, de como e a
partir de quando os índios e professores in-
dígenas se mostraram prontos a assumir,
157
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
diante da sociedade, a sua real identidade
indígena.
Diz Gazzetta que:
[...] é muito forte a cultura da identidade,
é muito forte! Depois, as outras coisas. [...]
desde que os portugueses chegaram aqui, os
povos indígenas estavam condenados a se-
rem extintos, isso até 1988, quando aparece
a primeira Constituição brasileira, que diz al-
guma coisa, que garante alguma coisa. Claro
que não é de graça; todo o movimento, prin-
cipalmente das organizações indígenas lá do
Norte, dos povos indígenas lá do Norte, é toda
uma mobilização; eles não ganham isso de
graça, mas você vê que é a primeira vez que
aparecem numa Carta oficial alguns direitos.
Então, o que acontece? De repente, com es-
ses direitos, eles começam a ver uma luz no
fim do túnel, eles se fortalecem. [...] E quan-
do eles começam a pensar no projeto de fu-
turo deles, a escola hoje faz parte desse pro-
jeto; é um elemento estranho, mas já incor-
porado e ressignificado pela maioria dos po-
vos indígenas [...]. E esse projeto de futuro é
a reafirmação identitária, é a questão da ter-
ra, é a questão dos marcadores todos, da or-
ganização social e tudo; então, a escola não
pode ser igual à escola do branco, tem que
ser uma escola coerente com esse projeto.
Isso parece muito claro para eles. [...] O pro-
blema esbarra no “como fazer isso”. Por cau-
sa dessa nossa escola, essa tradição, nós
não temos uma educação brasileira, não con-
seguimos criar isso (Gazzetta, entrevista gra-
vada em 2/9/1999).
É dentro dessa problemática do como fa-
zer”, apontada por Gazzetta, que evidenciarei,
neste trabalho, ações pedagógicas estruturadas
em idéias geradas pela experiência e conheci-
mentos incorporados no exercício de uma prá-
tica voltada para cursos de formação de pro-
fessores indígenas e, em particular, para o Cur-
so de Formação de Professores Ticuna da re-
gião do Alto Solimões, Amazonas – promovido
pela Organização Geral dos Professores Ticuna
Bilíngües (OGPTB).
Algumas das ações pedagógicas propos-
tas na área de Matemática, durante as eta-
pas do curso, e que estiveram assentadas no
etnoconhecimento do povo, expresso por
meio das suas receitas de comida da roça,
dos ornamentos, dos desenhos nos tururis,
do trançado das redes, dos pacarás, das al-
deias, da localização e medida de suas ter-
ras, da venda de produtos da roça e artesa-
nato etc., constituíram-se em elementos
vivificadores e significativos, por um lado,
para o desvendar e despertar” do pensa-
mento matemático Ticuna e, por outro, por
demonstrarem as características de um pen-
sar e fazer educação que pudessem permitir
à escola indígena, como específica e diferen-
ciada, ocupar os espaços aos quais realmen-
te tinha e tem direito.
Com o objetivo de discutir as possibili-
dades desse como fazer” na escola indíge-
na, mostro, nas linhas a seguir, um breve mo-
mento de um trabalho desenvolvido no Cur-
so de Formação de Professores Ticuna, ex-
pondo idéias de como o etnoconhecimento,
a Educação Matemática e a escola indígena
podem, juntos, numa situação de transcen-
dência, oferecer condições para a promoção
das diversas categorias que expressamos,
quando se perguntou da necessidade e im-
portância da escola indígena para os povos
indígenas. E é principalmente no enfoque
que damos à escola indígena como espaço de
reafirmação/revitalização de sua cultura que
a questão do etnoconhecimento na escola in-
dígena mais se fortalece.
Essa proposta que apresentamos também
pretendeu oferecer ao professor Ticuna mo-
mentos de reflexão sobre o seu trabalho como
professor, como criador de estratégias peda-
gógicas com base em seu saber, em elemen-
tos de sua cultura, expressos segundo sua pró-
pria visão de mundo, sua sensibilidade e
criatividade.
O trabalho foi desenvolvido com base no
texto “História do buriti”, um pequeno livro es-
crito e ilustrado pela aluna Hermelinda Ahuê
Coelho, em 1996, satisfazendo a uma das dis-
ciplinas do curso. Contando a história do
buriti, a autora traz para o leitor aspectos da
história do mundo Ticuna em sua relação com
a natureza e em suas relações sociais.
Eis o texto de Hermelinda:
158
História do buriti
Hermelinda Ahuê Coelho,
2
aldeia Canimarú, 1996
O buriti serve para o homem comer e fazer
vinho.
Serve também para alimentar os animais.
Tem buriti no buritizal, na terra firme e nas
restingas.
As pessoas plantam o buriti perto da casa.
Os animais que comem o buriti são: anta,
veado,
jabuti, paca, quati, porco-do-mato, arara.
O buriti quando está na água não morre.
As frutas, quando amolecem na árvore, caem.
Aí os animais comem, debaixo do buriti.
O tempo de buriti é quando as frutas estão
pretas. Aí as pessoas vão buscar.
Quando o buriti está muito alto, as pessoas
derrubam para tirar os frutos.
Aí as pessoas vão buscar o buriti e dividem
entre elas.
Juntam no aturá e levam para casa. E aí deixam
quatro dias para ficar preto.
Quando já está preto o buriti, deixa em uma
vasilha com água para amolecer.
Duas horas e ele já amolece bem.
Aí as pessoas comem e fazem o vinho para
beber e tomar com farinha.
Com base nesse texto e em suas ilustrações,
preparei um material para ser lido e discutido
em sala de aula com os alunos. Em sua primei-
ra parte, e tendo em vista os objetivos que pre-
tendia, faço as seguintes considerações:
A leitura do texto de Hermelinda nos dá
muitas informações sobre essa espécie de pal-
meira chamada buriti.
A autora diz para que serve o buriti, onde
ele é encontrado nativo na mata e, também,
que as pessoas o plantam perto de suas casas.
Fala dos animais que comem seu fruto e da
época em que as frutas estão boas para serem
colhidas pelas pessoas. As frutas são divididas
entre as pessoas e levadas para a aldeia. De-
pois de alguns dias, quando já amolecidas, as
frutas servem para comer e fazer vinho.
Com a intenção de escrever a “História do
buriti”, a autora conta também um pouco da
história de seu povo, fala da relação do homem
e dos animais com a floresta e com essa espé-
cie de palmeira, muito resistente às inunda-
ções. Por meio do texto, o leitor percebe que
derrubar um buriti muito alto para retirar seus
frutos ainda é uma prática, embora discutível
nos dias atuais, e salienta também, inclusive
por meio das ilustrações, alguns aspectos das
relações sociais da aldeia, quando diz da divi-
são dos frutos, de como lidar com eles e, por
fim, de tomar o vinho.
Para nós, leitores, o texto de Hermelinda
nos faz mais conhecedores do povo Ticuna, da
região onde vive e de uma espécie nativa da
floresta, quando traz algumas respostas para
questões do tipo:
– Para que serve o buriti?
– Onde existe buriti? Onde o homem planta
a palmeira?
– Quem come de seus frutos?
– Quando é tempo de o homem colher os
frutos?
– Como as pessoas fazem para colhê-los e
levá-los para a aldeia?
– O que as pessoas fazem de seus frutos?
Além das questões sociais e culturais en-
volvendo a relação entre as pessoas da aldeia
e a sua vida na floresta, o texto aponta tam-
bém para questões espaciais, temporais e
quantitativas presentes nessa relação.
Onde existe? Quando é tempo? Quantos
aturás? Quantos dias? São estas as perguntas
que podem ser feitas quando a intenção é co-
lher o fruto e aproveitá-lo como alimento.
Podemos fazer muitas outras perguntas.
Tudo depende do que já conhecemos sobre o
assunto e também de nossa vontade e neces-
sidade de conhecer mais, de pesquisar mais a
fundo e de ampliar nossos conhecimentos.
Assim, também, os inúmeros textos produ-
zidos pelos professores Ticuna e seus alunos,
contando a história de seu povo, a sua relação
2
Hermelinda Ahuê Coelho é professora de escola indígena e aluna do Curso de Formação de Professores Ticuna. Neste texto, deixo de
apresentar as ilustrações feitas pela autora.
159
Os etnoconhecimentos na escola indígena
PAINEL 6
com a floresta e os animais, seus mitos e lendas,
relatando suas festas, seu artesanato, a culiná-
ria, a fabricação de utensílios etc., constituem,
para o leitor indígena e não-indígena, fontes
inesgotáveis de conhecimento, de aprendizado,
de indagações, juntamente com outros textos
que trazem o conhecimento de outras culturas.
Aí entram os livros, os jornais, as revistas etc.
Com esse texto da professora Hermelinda,
entre muitos outros que poderiam ser coloca-
dos para nosso estudo, nossas considerações e
nossos questionamentos – e trabalhados em si-
tuação didática –, pretendemos expressar as
idéias que vêm orientando nosso jeito de ser e
agir durante as etapas do curso de formação de
professores, as quais visam ao aprendizado da
Matemática e, neste momento, estruturam tam-
bém a criação e a organização deste trabalho
(Corrêa, 1999).
Em sua segunda parte, denominada “O tex-
to na sala de aula, aponto para o uso interdis-
ciplinar de História do buriti”, pelos próprios
questionamentos suscitados nas mais diversas
áreas de conhecimento, incentivando o que-
rer saber mais e a pesquisa em novas fontes e
textos. No caso específico da Matemática, re-
fletimos com os alunos que:
A partir de agora, estaremos dando a este texto
um direcionamento para as questões matemá-
ticas presentes nas diversas situações descritas,
sem, no entanto, nos afastarmos do pensamen-
to de que as idéias matemáticas que se origina-
rão de nossos questionamentos estão imersas,
envoltas, relacionando-se com idéias que
estruturam conhecimentos e culturas diversas
que, na sua totalidade, podem nos oferecer con-
dições dignas de vida no mundo (Corrêa, 1999).
Sem dúvida, considero que tal encaminha-
mento dado ao trabalho abre possibilidades para
tornar a escola indígena um espaço para a
reafirmação e revitalização da identidade cultu-
ral do povo indígena, assim como para outras ca-
tegorias mencionadas. No caso do professor
Ticuna, a leitura, análise e discussão conjunta do
texto proporcionaram-lhe novas perspectivas so-
bre o que é a Matemática – em particular, nas
questões relacionadas com grandeza, posição,
direção e sentido – e que o estudo das matemá-
ticas” pode ser realizado com seus alunos, em
sala de aula, apoiado no etnoconhecimento de
seu povo, retomando, rediscutindo, revitalizando
aspectos de sua cultura e redimensionando-os
para o momento presente. Os trabalhos criados
pelos professores nas etapas posteriores do cur-
so para as séries iniciais do Ensino Fundamen-
tal atestam essas afirmações.
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161
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
77
77
7
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber
Maria Cristina Troncarelli
Zélia Maria Rezende
Marlene de Oliveira
162
O Curso de Formação
de Professores Ticuna
Jussara Gomes Gruber
Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB)
Resumo
Em 1993, os professores membros da Organi-
zação Geral dos Professores Ticuna Bilíngües
(OGPTB) reuniram-se para iniciar um curso que
lhes possibilitasse concluir o segundo grau com
habilitação para o exercício do Magistério. O curso
deveria ser desenvolvido em módulos, no período
das férias escolares, de modo que todos os profes-
sores pudessem freqüentá-lo sem prejuízo de suas
atividades docentes.
O Curso de Formação de Professores Ticuna é,
portanto, promovido pela OGPTB e conta com a par-
ticipação de 250 professores. Já concluíram o Ensi-
no Fundamental 225 professores Ticuna, dos quais
170 completaram o Ensino Médio em agosto de
2001. Em julho de 2002, mais 35 docentes conclui-
rão o Ensino Médio. O curso desenvolveu-se em 15
etapas, durante oito anos, totalizando 4.120 horas.
O curso de formação faz parte do Projeto Edu-
cação Ticuna, que envolve um conjunto de ativida-
des organizadas em programas especiais voltados
para as questões de saúde, terra, meio ambiente,
direitos indígenas, arte e cultura. No âmbito desse
projeto, desenvolvem-se também atividades de
capacitação de supervisores índios e a organização
do projeto político-pedagógico das escolas Ticuna.
Trata-se, portanto, de uma experiência bas-
tante abrangente, que traz como parte da forma-
ção do professor todos os aspectos que devem
constar de uma escola diferenciada, como a pro-
dução de materiais didáticos específicos, calen-
dário, programa curricular, planejamento, estudo
da legislação, entre outros, com a finalidade de
possibilitar a autonomia pedagógica e administra-
tiva das escolas Ticuna.
A formação de educadores
indígenas para as escolas xinguanas
Maria Cristina Troncarelli, Estela Würker e Jackeline Rodrigues Mendes
Instituto Socioambiental (ISA)/Xingu/MS
Introdução
O Parque Indígena do Xingu, localizado no
estado do Mato Grosso, na região do Rio Xingu e
seus formadores, tem uma extensão de 2.642.003
hectares. Nele vivem 14 etnias: Kuikuro,
Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá,
Aweti, Kamaiurá, Trumai, Ikpeng, Yawalapiti,
Suyá, Kaiabi e Yudjá. A população está estimada
em 3.800 pessoas distribuídas em 32 aldeias, três
postos indígenas e dez postos de vigilância.
A partir de 1994, foi iniciada a formação de
professores indígenas no parque, o que resultou
na criação de trinta escolas nas aldeias e nos
postos. Também participam desse processo pro-
fessores Panara, que atualmente residem na Ter-
ra Indígena Panara, vizinha ao parque, e dois
163
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
professores da Terra Indígena Kaiabi. Este texto
tem como objetivo mostrar o desenvolvimento
desse trabalho, enfatizando as práticas pedagó-
gicas da equipe de formadores e dos professores
indígenas.
Histórico
A primeira referência do processo de esco-
larização no Parque Indígena do Xingu foi a es-
cola do Posto Indígena (PIN) Leonardo, que, em
1976, começou a funcionar com a presença de
uma professora não-índia. Os alunos eram, em
sua maioria, filhos de lideranças das aldeias vin-
culadas a esse posto indígena. Nos outros pos-
tos, esse modelo se repetiu durante a década de
1980, sempre de forma intermitente, pois de-
pendiam de pessoas contratadas pela Funai.
Algumas dessas professoras elaboraram mate-
riais didáticos na Língua Portuguesa, usando o
Português regional. Os alunos, predominante-
mente monolíngües em Língua Indígena, eram
alfabetizados em Português.
No fim da década de 1980, todas as escolas
estavam desativadas por falta de professores. Ex-
alunos da escola do Posto Diauarum, das etnias
Kaiabi, Suyá e Yudjá, começaram a ensinar em
suas próprias comunidades o que aprenderam,
sem nenhuma orientação pedagógica. Eles reivin-
dicaram um curso para aprender a serem profes-
sores. Em função dessa demanda, a Fundação
Mata Virgem organizou reuniões com as lideran-
ças do parque, a fim de consultá-las sobre o inte-
resse no desenvolvimento de um projeto de for-
mação de professores indígenas. Em 1994, deu-
se início à primeira etapa do curso de Formação
de Professores para o Magistério nos PIN
Diauarum e Pavuru, contando com a participa-
ção de pessoas enviadas por todas as etnias do
parque, com exceção da Yawalapiti, cuja comu-
nidade deseja ter um professor não-índio. Esse
projeto, em 1995, ficou sob responsabilidade da
Associação Vida e Ambiente e, em 1996, passou a
ser desenvolvido pelo Instituto Socioambiental.
A equipe do projeto é composta por educa-
dores, antropólogos, lingüistas, agrônomos, bi-
óloga, médicos, muitas dessas pessoas já envol-
vidas há vários anos com algum tipo de trabalho
na área. Além da equipe do ISA, há consultores
ligados à CPI-AC e à Unicamp, UFRJ, PUC-SP,
Universidade de Londrina, Universidade
Metodista de Piracicaba, Museu Goeldi e
Unifesp.
Desenvolvimento
do curso de formação
O curso de Magistério desenvolve-se por
meio de duas etapas intensivas anuais de trinta
dias, sendo uma por semestre. Além das etapas
intensivas, é realizado o acompanhamento pe-
dagógico dos professores nas escolas das aldei-
as. Participam do curso 61 professores indígenas
de todos os povos do parque e os Panara, que
lecionam para 1.150 alunos entre crianças e ado-
lescentes, totalizando trinta escolas em funcio-
namento.
O princípio norteador do projeto é a gestão
territorial, por meio da conscientização sobre as
questões ambientais, da valorização das diver-
sas culturas existentes no parque e do desenvol-
vimento da autonomia dessas comunidades para
lidar com as relações de contato. A abordagem
de questões relativas ao meio ambiente tem o
objetivo de contribuir para a conscientização da
população xinguana para a importância da pre-
servação e do uso racional dos recursos naturais.
Essa iniciativa está sintonizada com a política de
vigilância da área e das fronteiras do parque e
com a mobilização em relação à proteção das
nascentes dos rios formadores do Xingu, por
meio de um projeto desenvolvido pela Associa-
ção Terra Indígena Xingu (Atix) e pelo Instituto
Socioambiental (ISA).
O projeto de educação está voltado à reali-
zação de um intercâmbio entre as várias cultu-
ras e à valorização das línguas indígenas, desse
modo reavivando o interesse dos jovens pelas
próprias histórias, danças, artesanato, língua,
pela vida social e cultural da comunidade.
Uma das formas de valorização das línguas
indígenas vem sendo o processo de construção
da sua escrita. Na década de 1980, havia, por
parte dos povos do PIX, resistência ao desenvol-
vimento da escrita em suas próprias línguas. O
referencial de escola para as comunidades
xinguanas era baseado nas experiências ante-
164
riores, em que professores não-índios ensinavam
Português e Matemática, por isso a escrita fazia
sentido apenas na Língua Portuguesa. Além dis-
so, o argumento das comunidades era de que
ninguém esqueceria a própria língua. O deslo-
camento da Língua Trumai pela Língua Portu-
guesa e da Língua Yawalapiti pela Língua Kuikuro
vem servindo de exemplo para enfatizar a neces-
sidade de valorizar o ensino da Língua Indígena
também nas escolas. Em assembléias de lideran-
ças de todo o parque, vários chefes têm reafir-
mado a necessidade de se aprender Português e
Matemática; entretanto, começam também a
apontar a necessidade de fortalecimento da Lín-
gua Indígena. Esse discurso tem sido mais
enfatizado por lideranças e comunidades da re-
gião do Médio e Baixo Xingu. O uso da escrita
nas línguas indígenas ainda é bastante
incipiente, restringindo-se ao âmbito escolar, e
a maioria das comunidades ainda não valoriza
essa prática, concentrando sua expectativa em
que a escola ensine a falar e escrever a Língua
Portuguesa.
Na avaliação dos professores indígenas, é
importante criar materiais didáticos na língua
materna, a fim de facilitar a compreensão de
vários conceitos pelos alunos (transmissão de
doenças, alguma operação matemática, por
exemplo).
O projeto de formação também tem traba-
lhado no sentido de preparar os professores para
a participação na sociedade nacional como ci-
dadãos, para que possam gerir seu território,
defender seus interesses e direitos. Essa prepa-
ração tem envolvido o aprendizado de diversas
habilidades necessárias para as relações de con-
tato e de gerenciamento do território (aprendi-
zado do uso da Língua Portuguesa – oral e escri-
ta – em diversas situações interacionais, o uso
do dinheiro nas situações de compra e venda,
conhecimento e compreensão de leis etc.).
Metodologia
No início do projeto, poucos eram os parti-
cipantes que tinham vivenciado algum proces-
so de escolarização, muitos aprenderam Portu-
guês e foram alfabetizados durante as etapas do
curso. A expectativa da maioria dos participan-
tes centrava-se apenas no seu aprendizado in-
dividual, mas aos poucos começaram a atuar
como professores em suas aldeias.
Passamos a observar, então, que os temas tra-
balhados durante as etapas do curso eram refe-
rência para os professores atuarem em sala de
aula. Em função disso, priorizamos a questão
metodológica de ensino no desenvolvimento dos
conteúdos em todas as disciplinas. Buscamos dar
ênfase à reflexão pedagógica, ao planejamento
de aulas, ao registro destas no diário de classe e
à produção de materiais didáticos.
Um caminho interessante que vem sendo
desenvolvido na abordagem de temas e conteú-
dos novos, relacionado à elaboração de materi-
ais didáticos em Língua Portuguesa, é a criação
de textos pelos professores sobre esses assuntos.
A equipe do ISA organiza apostilas, tratando de
conteúdos novos, para serem estudadas nos cur-
sos. Essas apostilas vão sendo reconstruídas pe-
los professores, com textos produzidos por eles,
tornando esses conteúdos mais acessíveis aos
alunos, uma vez que esses educadores conse-
guem imprimir em seus textos uma visão e um
modo próprio de se expressar sobre os temas.
Um exemplo desse trabalho foi a realização
do Livro de história – volume 1 (publicado pelo
MEC em 1997), que aborda reflexões sobre a im-
portância da história, o ensino, na escola, das
histórias tradicionais de início do mundo, as his-
tórias do contato de cada povo xinguano conta-
das pelos professores e pelos não-índios
(Orlando Villas-Bôas, Karl von den Steinen) e a
história da chegada dos europeus ao Brasil. O
segundo livro, Brasil e África – uma visão
xinguana, traz informações sobre a escravidão
indígena e africana no Brasil, as religiões afro-
brasileiras, o intercâmbio entre culturas e a for-
mação da sociedade brasileira, procurando mos-
trar a sua diversidade cultural, com o objetivo
de oferecer uma visão mais ampla do que a usu-
al dicotomia “mundo índioe “mundo branco.
Um dos professores do curso escreveu sobre a
formação do povo brasileiro, tema de redação de
uma das etapas do curso:
[...] Os primeiros moradores do Brasil são os po-
vos indígenas de várias etnias e idiomas diferen-
tes. Depois apareceram outros moradores de ou-
165
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
tro país, que foram os portugueses. Através dos
portugueses também vieram muitos estrangeiros
de vários países para se instalar no Brasil. Atual-
mente a população brasileira é formada por mui-
tas nações, línguas, costumes, tradições, conhe-
cimento e religiões diferentes [...] (Matari Kaiabi)
Em muitos desses livros, além dos textos dos
professores indígenas, temos mantido textos da
equipe do ISA ou de outras pessoas (escritores,
especialistas, historiadores, viajantes, pesquisa-
dores etc.) que possam trazer contribuição à
compreensão e à ampliação do tema tratado.
Outro exemplo de reelaboração de conceitos
foi observado no diário de classe do professor
Jeika Kalapalo. Em seu diário encontramos regis-
trada uma reelaboração do conceito de lixo orgâ-
nico e inorgânico, estudado nas aulas de saúde:
Há três tipos de lixo: lixo seco, lixo molhado e lixo
perigoso. O lixo seco é papel, plástico, vidro e lata.
O lixo molhado é resto de comida. O lixo perigoso
é pilha velha, remédio vencido, agulha e seringa
usada, espinha de peixe e veneno de formiga.
Por meio desses exemplos, pode-se observar
que a formação desenvolvida não é homoge-
neizadora. Cada professor adapta à sua realida-
de o que aprendeu durante os cursos.
Aturi Kaiabi, em seu diário de classe, relata
uma aula sobre a Constituição brasileira e os di-
reitos da criança. Usou nessa aula um texto reti-
rado de um livro didático da cidade. Em segui-
da, ele desenvolveu com os alunos uma reflexão
sobre os direitos da criança indígena, não se res-
tringindo ao livro didático. Ele usou também o
capítulo “Dos índios” da Constituição, texto es-
tudado durante uma das etapas do curso.
No processo de formação, há duas maneiras
de acompanhar e de compreender o desenvol-
vimento do trabalho do professor nas escolas: o
acompanhamento pedagógico das escolas reali-
zado por educadores da equipe e a leitura dos
diários de classe dos professores indígenas.
O acompanhamento pedagógico é uma ati-
vidade fundamental, pois é a oportunidade de
avaliar o resultado da formação desenvolvida por
meio da prática pedagógica do professor índio
nas escolas de suas respectivas aldeias. Durante
o acompanhamento, o assessor da equipe cola-
bora com orientações sobre planejamento de
aula, resolução das dificuldades do professor e
avaliação do aprendizado dos alunos, como tam-
bém procura ouvir a avaliação da comunidade
sobre a escola. Esses assessores elaboram rela-
tórios que fornecem subsídios importantes para
a avaliação do desenvolvimento do professor.
Como orientação pedagógica nos cursos de
formação, solicitamos aos professores que regis-
trassem suas aulas de maneira detalhada e nar-
rativa. Inicialmente, somente alguns deles fazi-
am esses registros de forma sintética. Aos pou-
cos, esse trabalho foi-se solidificando e, atual-
mente, todos os professores fazem registros de
suas aulas, trazendo os diários aos cursos de for-
mação. Esses diários estão servindo de base para
a discussão e a elaboração do projeto político-
pedagógico das escolas xinguanas pelos profes-
sores e também estão fornecendo elementos
para que, a partir do próprio trabalho, os profes-
sores exerçam na prática a reflexão pedagógica.
Por meio do acompanhamento pedagógico,
tem sido possível observar as diferentes estraté-
gias de aula usadas pelos professores. As aulas
são realizadas sempre num ritmo bastante lento
e tranqüilo. Os professores propõem atividades
coletivas, mas se preocupam em dar atenção es-
pecial a cada aluno por meio de um atendimen-
to individual. Muitas vezes, o professor propõe
aos alunos que façam atividades na lousa, ou
então o professor se senta com cada aluno para
ler e corrigir as atividades que ele realizou. Cada
aluno espera tranqüilamente que os outros co-
legas terminem a atividade proposta, prestando
muita atenção ao desempenho de cada um dos
colegas da classe. Isso acontece sem que haja
nenhum problema de indisciplina ou desatenção
por parte dos alunos. Sob o ponto de vista dos
não-índios, a dinâmica da aula pode parecer
muito lenta, mas acreditamos que ela é própria
da pedagogia diferenciada do professor índio,
processo que ocorre dentro da concepção de
tempo vivenciada no cotidiano das pessoas nas
aldeias.
Com relação ao ritmo de desenvolvimento
das aulas, existe uma diferença marcada entre
os povos do Alto e os do Baixo Xingu. No Alto, os
conteúdos são trabalhados num ritmo mais rá-
166
pido em comparação com as aulas dos profes-
sores da região do Baixo Xingu. Em contra-
partida, os diários de classe demonstram que, na
região do Baixo, o número de dias letivos é mai-
or que na região do Alto. Tal situação tem levado
a equipe a refletir sobre o fato de que os conteú-
dos dentro do currículo das escolas não podem
estar atrelados ao tempo e que o ano letivo nas
escolas do PIX vem sendo cumprido no período
de um ano e meio a dois anos, pois as escolas
param de funcionar no período de festas e ativi-
dades na roça.
O acompanhamento pedagógico e a leitura
dos diários de classe são instrumentos privilegia-
dos para compreender como o professor escolhe
os temas/conteúdos para trabalhar na escola, as
atividades que vai utilizar para ensinar esses te-
mas e a seqüência que pretende dar no desenvol-
vimento das aulas. Ambos servem de subsídios
para o planejamento dos cursos de formação.
Os cursos de formação e o acompanhamento
pedagógico às escolas vêm incentivando o desen-
volvimento de pesquisas pelos professores indí-
genas em suas comunidades. Alguns professores
dos povos Kuikuro, Matipu, Ikpeng, Kaiabi e Suyá
começaram a gravar e transcrever histórias nar-
radas pelos velhos. Um professor Kaiabi realizou
uma pesquisa sobre tatuagem a partir da grava-
ção da história sobre as guerras dos Kaiabi contra
os Apiaká. Ele levantou nomes e desenhos de qua-
renta tipos de tatuagem e registrou a história de
origem. Professores Kaiabi também estão desen-
volvendo uma pesquisa sobre trançado, assim
como os Kuikuro, os Kalapalo, os Matipu e os
Nahukuá, sobre a marcação do tempo pelos anti-
gos (calendário indígena) a partir das estrelas e
de fenômenos da natureza, como o desabrochar
das flores e os períodos de seca e chuva associa-
dos com os recursos naturais.
A maioria dos professores vem trabalhando
com temas relacionados à saúde e ao meio am-
biente, além de, nas disciplinas de Língua Por-
tuguesa e Matemática, direcionarem o trabalho
da escola na preparação dos alunos para as situ-
ações diversas de contato. Há uma preocupação
dos professores de contextualizar o conteúdo
ensinado no processo de alfabetização e de de-
senvolvimento da escrita dos alunos. Os acon-
tecimentos do cotidiano da aldeia também vêm
sendo abordados na escola como temas para a
leitura, a produção de textos e as dramatizações.
Os professores vêm desempenhando um pa-
pel importante no contexto da educação para a
saúde. Durante as aulas vêm trabalhando com a
compreensão das causas, sintomas e medidas de
prevenção de doenças como a cárie, as diarréi-
as, as DST, a malária, a hipertensão e a obesida-
de. Os agentes de saúde chegaram a participar
de algumas etapas do curso, num trabalho inte-
grado, e são convidados pelos professores a par-
ticipar das aulas sobre saúde nas escolas. Esse
trabalho articula-se com o da formação de agen-
tes de saúde e auxiliares indígenas de enferma-
gem, desenvolvido pela Unidade de Saúde e
Meio Ambiente da Universidade Federal de São
Paulo (antiga EPM).
Outro tema que tem merecido destaque nos
cursos é a relação entre recursos naturais, cultu-
ra e economia, abordada de maneira interdisci-
plinar na Geografia, Antropologia, Ecologia, Saú-
de e História. Os professores indígenas começam
a refletir sobre as mudanças na economia dos
povos no PIX e a influência do dinheiro nas rela-
ções sociais, econômicas e políticas. Esse traba-
lho tem caminhado no sentido de desenvolver
uma análise comparativa das diferenças entre a
economia tradicional das comunidades e a eco-
nomia de mercado e de que maneira a interfe-
rência da economia de mercado pode ocasionar
a desestabilização da economia tradicional.
Mudanças na economia do meu povo
Antes de entrar em contato com os não-ín-
dios, usávamos ou destruíamos os recursos na-
turais de acordo com as necessidades da co-
munidade. Fazíamos artesanato para o uso da
família, pescávamos, caçávamos para o consu-
mo da família, fazíamos os enfeites para nos
enfeitar, plantávamos para consumo da família
e também fazíamos canoa para o seu uso.
Quando a pessoa precisava de alguma coisa,
a gente dava, trocava, pagava ao pajé só com ar-
tesanato e comida.
Depois do contato com os não-índios, a vida
mudou muito, o povo começou a pensar em pro-
duzir mais pensando na venda, para poder ganhar
dinheiro para comprar anzol, linha, arma etc.
Depoimento de Aturi Kaiabi
167
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
Essa reflexão tem estimulado a pesquisa so-
bre as formas tradicionais de manejo dos recur-
sos naturais e caminhado em conjunto com o iní-
cio de novas experiências de manejo, como as fle-
chas e a taquara usada nas peneiras Kaiabi, ou a
apicultura, promovidas pela Equipe de Alternati-
vas Econômicas do ISA em parceria com a Atix.
O cuidado que o meu povo tem com a natureza
Na comunidade eu vejo a preocupação em rela-
ção à natureza, como não queimar em volta da aldeia,
para não queimar remédios que ficam perto do pátio.
Outra preocupação que apareceu agora para
o povo Kaiabi: cada um que tem semente da plan-
ta da roça é para cuidar e distribuir por família para
plantar. Assim, as sementes nunca acabarão.
Na época de roçado, eles perguntam uns aos
outros: “Quem vai precisar da palha para cobrir a
casa?” Aí eles vão e cortam a palha que está den-
tro da roça. Então alguma parte eles aproveitam,
mas de todo jeito queima.
Outra preocupação que eles têm: não derru-
bar mais o pé da palha quando estiver precisan-
do. Cortar só a palha e deixar um pouco da sua
palha para ser renovada. Isso eu já vi dentro da
minha aldeia que eu estou morando.
Depoimento de Jemy Kaiabi
O meu povo cuida para não queimar o pé de
pequi, para não acabar a fruta.
Cada ano o chefe pede para as pessoas não
tocarem o fogo.
Também o sapezal que tem em volta da aldeia,
se queimar o sapezal, vai faltar para cobrir casa.
Depoimento de Sepé Kuikuro
O meu povo tem cuidado com os pés de
buritizeiros. Eles não cortam os pés de buritizeiros,
somente eles estão cortando a palha de buritizeiro
quando eles estão fazendo construção de casa.
Também eles não queimam os buritizeiros, por-
que são muito importantes os buritizeiros para uti-
lizar nos artesanatos, como cesto e abanador. Por
isso, o meu povo Aweti tem cuidado com os pés
de buritizeiros.
Depoimento de Awayatu Aweti
O que é manejo
Manejo é o jeito de usar os recursos naturais.
Usar pode ser tirar, cuidar, respeitar, queimar,
transformar, plantar, guardar, colher, caçar, pes-
car. O manejo de antigamente era melhor do que
o de agora.
O manejo dos recursos mudou aqui no Par-
que do Xingu. Com a demarcação, a região de
cada povo ficou menor. A entrada do dinheiro in-
tensificou a exploração dos recursos naturais. Os
recursos naturais, que antes eram feitos só para
uso, agora estão sendo vendidos.
Hoje em dia está havendo mudança de inte-
resses dos adultos e dos jovens. A cultura não-
indígena está ficando mais forte do que a indíge-
na. Isso está contribuindo para que o conhecimen-
to das formas de manejar os recursos naturais
esteja sendo esquecido.
Criação coletiva dos professores indígenas
no 13º Curso
Ao mesmo tempo, vêm sendo estudados a
ocupação do entorno do PIX e os impactos
ambientais causados pelas atividades econômi-
cas (agropecuária, garimpo, hotéis de pesca, ci-
dades que jogam esgoto nos rios etc.), que colo-
cam em risco a vida da população xinguana, bem
como a mobilização de lideranças, professores e
comunidades na defesa das nascentes dos rios
formadores do Xingu que se encontram fora do
território demarcado.
Ocupação do espaço geográfico
Os povos indígenas do Brasil ocuparam ou
ocupam espaço desde o início do primeiro mundo.
Nós, índios, temos 100% de sabedoria de so-
brevivência com a natureza, sabemos aproveitar
a riqueza sem destruir. Da natureza tiramos o re-
curso para alimentar, remédio para curar doenças,
recursos para a construção de casas, terra para
plantar, materiais para fazer artesanato, frutos para
comer e caças do mato também.
Nós, índios, sabemos usar a riqueza, os re-
cursos naturais, sem poluir os rios, ou ar, ani-
mais, peixes e pessoas.
A ocupação do espaço geográfico dos não-
índios é muito diferente. Eles já vêm com um pen-
samento planejado para destruir a natureza, para
fazer pastos, plantar capim, plantar soja, arroz,
cana-de-açúcar, trigo etc.
Os não-índios destroem a natureza para
168
construir as grandes cidades e com eles trazem
muitos tipos de equipamentos que produzem pe-
tróleo, agrotóxicos. Isso traz muitos problemas
para os moradores do Brasil, que são a poluição
do ar, água, terra, a contaminação de pessoas,
animais, peixes. Esses equipamentos causam
grandes assoreamentos nas bacias dos rios e
principalmente os incêndios nas matas.
Isso está cada vez mais trazendo doenças
diferentes para o povo brasileiro.
Depoimento de Aturi Kaiabi
Espera-se que a escola seja um espaço po-
lítico de reflexão e de informação que instru-
mentalize a população xinguana para a mobi-
lização política que permita amenizar os im-
pactos ambientais causados pela ocupação do
entorno do PIX e possibilite a defesa das nas-
centes dos rios formadores do Xingu que se en-
contram fora do território demarcado. Um dos
objetivos da formação de professores é que es-
tes se tornem multiplicadores de conhecimen-
tos que fortaleçam a participação dos povos in-
dígenas na sociedade brasileira como cida-
dãos, com melhores condições de gerir e de-
fender seu território, seus interesses e direitos,
venda e aquisição de bens, uso adequado e
conservação dos recursos naturais, busca de
alternativas econômicas auto-sustentáveis e
melhoria da qualidade de vida.
Histórico da regularização do
curso e das escolas
A Proposta Curricular do Curso de Forma-
ção de Professores do PIX para o Magistério foi
aprovada pelo Conselho Estadual de Educação
de Mato Grosso em abril de 1998. Inicialmen-
te previsto com seis anos de duração, consta-
tamos a necessidade de seu prolongamento,
pois identificamos três grupos distintos de
professores: um grupo com dificuldade de
compreensão da Língua Portuguesa ou dificul-
dade de aprendizado; um grupo intermediá-
rio, que consegue entender e se expressar em
Português; e outro grupo com um desempenho
melhor, tanto na compreensão da escrita da
Língua Indígena quanto da Língua Portuguesa
e nas operações aritméticas. Para atender a
essa necessidade, procuramos trabalhar com
esses professores o mesmo tema, mas de ma-
neira que o ritmo de aprendizado seja respei-
tado, com um planejamento de trabalho espe-
cífico para cada grupo. Assim, em virtude dos
diferentes ritmos de aprendizagem dos parti-
cipantes do curso, vinte professores foram for-
mados até 2000, outros dezesseis concluirão o
curso em 2001 e outros 25 deverão ser avalia-
dos ao longo dos próximos dois ou três anos.
Dos vinte professores formados, 19 ingressa-
ram no Curso de Licenciatura promovido pela
Unemat, que deverá habilitá-los no prazo de
cinco anos para lecionar de 5ª a 8ª séries e no
Ensino Médio.
Com relação à regularização das escolas,
em 1996 a política estadual apontava como al-
ternativa o processo de municipalização. Em
razão da especificidade da situação jurídica do
parque, retalhado por dez municípios, o ISA
não acreditava ser a municipalização o melhor
caminho para as escolas, pois comprometia a
unidade política interna dos povos xinguanos.
Entretanto, o projeto seguiu essa orientação,
organizando, em conjunto com a Seduc, uma
reunião com os prefeitos e os secretários de
Educação dos municípios envolvidos, na qual
foi apresentado o Projeto de Formação e foram
feitas as reivindicações de criação das escolas,
contratação dos professores e manutenção da
infra-estrutura (materiais escolares, equipa-
mentos, construção de escolas etc.). Com ex-
ceção de um município, todos os outros cria-
ram as escolas por meio de decretos. No en-
tanto, somente alguns municípios atenderam
às solicitações de contratação e de envio de
materiais. A maioria deles é de difícil acesso
para o deslocamento dos professores.
Lideranças e professores da maioria das al-
deias avaliaram como problemático o proces-
so de municipalização das escolas. Assim, en-
viaram representantes a Cuiabá, que reivindi-
caram ao governador e ao secretário de Edu-
cação a estadualização das escolas do parque.
Essa proposta foi aceita pela Seduc/MT, que
propôs a criação de três escolas centrais; as
demais escolas ficaram anexadas a estas.
Em maio de 1998, os professores participa-
ram da 3ª Assembléia da Atix, na qual esteve
169
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
presente a maioria das lideranças do parque.
Esse encontro do grupo de professores e lide-
ranças propiciou a discussão sobre a vincu-
lação das escolas ao estado ou aos municípi-
os. Foi um processo difícil de discussão entre
a equipe do ISA, professores e lideranças. Para
a equipe de formação, foi um processo per-
meado de inquietações, tais como: como ex-
plicar da melhor maneira o funcionamento dos
órgãos governamentais em suas diversas ins-
tâncias? Como optar por um atendimento me-
lhor, sabendo-se que inexiste ainda uma polí-
tica adequada para as escolas indígenas? Ao
mesmo tempo, se o processo de regularização
das escolas não se iniciasse, a demanda por
escolarização levaria a um número maior de
crianças e jovens fora do PIX.
Nessa assembléia, foi decidida a estadua-
lização de 21 escolas e nove continuaram
municipalizadas, ligadas a três municípios
(Gaúcha do Norte, Feliz Natal e Querência). A
intenção das lideranças e dos professores foi
experimentar os dois tipos de vínculo. Para as
escolas estadualizadas, foram escolhidos três
diretores entre os professores índios. Eles têm
se responsabilizado pela compra de materiais
com recursos da Seduc/MT e pela prestação de
contas, além de terem redigido o pedido de au-
torização de funcionamento das escolas ao
CEE/MT, um dos passos burocráticos necessá-
rios. Uma das conquistas dos professores in-
dígenas do PIX foi o direito de adquirir meren-
da escolar nas próprias comunidades, evitan-
do a introdução de alimentos industrializados
por intermédio da escola. Para isso, foi flexibi-
lizada e adaptada a burocracia na prestação de
contas desses recursos. A Secretaria de Estado
de Educação de Mato Grosso tem-se mostra-
do disposta a incentivar a participação de li-
deranças e professores indígenas na gestão das
escolas, apoiando reuniões para discutir o
atendimento. Desde 1997 a Seduc/MT mantém
uma educadora que se integrou à equipe do
projeto e que participa dos cursos e do acom-
panhamento pedagógico às escolas e contribui
para o aprimoramento do trabalho.
A relação com os municípios tem sido di-
fícil: os secretários municipais não participam
das reuniões com professores e lideranças in-
dígenas no PIX; há diferenças salariais entre
os municípios; algumas prefeituras continu-
am enviando merenda escolar inadequada ao
contexto do parque (sal, açúcar, biscoitos,
carnes enlatadas etc.); não há critérios defi-
nidos para a contratação de índios ou não-
índios como professores, sendo contratados
até missionários; interferências do ponto de
vista pedagógico (não-aceitação dos diários
dos professores da forma como vêm sendo
elaborados, impressão de livros didáticos ina-
dequados, por exemplo), envio insuficiente de
materiais escolares; falta de clareza na apli-
cação de recursos governamentais no atendi-
mento das escolas.
À medida que as escolas se configuram
como entidades regularizadas no sistema de
ensino público, maiores contradições são en-
contradas no respeito à sua especificidade.
Apesar do avanço da legislação que legitima
o direito à especificidade, as contradições se
multiplicam, pois o modelo de atendimento
é o mesmo das escolas não-indígenas. Para
suplantar essas dificuldades, é necessária a
articulação entre órgãos governamentais e
instituições não-governamentais que atuam
na Educação Escolar Indígena e com lideran-
ças e professores indígenas, concretizando a
participação destes no processo de gestão
das escolas.
Um fator positivo de todo esse processo de
discussão sobre a escola no PIX vem sendo a
oportunidade de articulação entre professores
e lideranças. É importante que haja continui-
dade desse fórum de discussões, porque tem
possibilitado aos professores do PIX a percep-
ção de que seu trabalho está inserido num con-
texto maior da política dos povos que vivem
no PIX, de gerenciamento e defesa do territó-
rio, e que o seu vínculo profissional deve ser
com a sua comunidade, evitando que sua atu-
ação fique reduzida a um vínculo contratual
com os órgãos governamentais.
O estado de Minas Gerais, constituído por
diversos grupos socioculturais, abriga uma plu-
ralidade cultural e lingüística, compondo um
rico mosaico de diferentes tradições, conheci-
mentos, valores e línguas que pode ser sinteti-
zado na expressão “Minas são várias.
As sociedades indígenas destacam-se nesse
quadro de diversidade e riqueza cultural.
Em 1995, nascia o Programa de Implantação
de Escolas Indígenas em Minas Gerais, fruto de
uma parceria entre os Krenak, os Maxakali, os
Pataxó e os Xacriabá, a Secretaria de Estado da
Educação, a Universidade Federal de Minas Ge-
rais, a Fundação Nacional do Índio e o Instituto
Estadual de Florestas. Voltado para o objetivo
maior de apoiar a autodeterminação dos povos
indígenas mineiros, esse programa tinha como
proposta criar e colocar em funcionamento es-
colas indígenas vinculadas à rede estadual de
ensino nas quatro áreas do estado, procurando
construir democraticamente propostas experi-
mentais, diferenciadas, multilíngües e inter-
culturais para a formação específica do profes-
sor e para as escolas de cada povo indígena.
No escopo do programa, o projeto de formação
de professores indígenas ocupou e ocupa o espaço
central, tendo por princípio básico a construção te-
órica e conceitual conjunta entre formadores,
formandos e respectivas comunidades, a partir da
experimentação e da pesquisa, sempre com um sen-
tido de processo em direção à criação coletiva da
chamada Educação Escolar Indígena mineira.
O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-
tal para Professores Indígenas, realizado de 1996
a 1999, teve como pressupostos e intenções
educativas:
• a aprendizagem como um processo contínuo e
global que avança em função das experiências
vivenciadas pelos sujeitos em seu contexto his-
tórico e social, sendo o etnoconhecimento o
pressuposto metodológico que retrata essa con-
cepção de aprendizagem;
• a experiência escolar como um tempo de vivência
cultural e espaço de produção coletiva;
• a ampliação da compreensão crítica da rea-
lidade e da capacidade de atuação sobre ela;
• a apropriação crítica de instrumentos cultu-
rais e recursos tecnológicos nos diversos
âmbitos da vida sociocultural;
• a formação profissional de educadores capa-
zes de pensar e criar instrumentos e processos
próprios e adequados de conhecimento e de
transformação da realidade em suas aldeias.
Considerando as intenções educativas, cons-
tituíram objetivos específicos do curso:
• construir coletivamente a proposta curri-
cular do curso, substituindo, acrescentando
ou complementando as proposições do Pro-
jeto UHITUP (“alegria, na Língua Maxakali),
desenho inicial desse currículo;
• habilitar o professor cursista indígena ao exer-
cício do Magistério, mediante conclusão do
Curso de Magistério de Ensino Fundamental
para Professores Indígenas, em nível médio;
• viabilizar o ingresso do professor indígena na
carreira do Magistério e sua integração no pla-
no de cargos e salários do órgão contratante;
• construir propostas específicas para as es-
colas indígenas, por meio da elaboração de
propostas curriculares, materiais didáticos,
* Licenciada em História pela UFMG. Coordenadora-Geral do Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais. Consultora da
Coordenadoria de Apoio às Escolas Indígenas/SEF/MEC.
Curso de Magistério de Ensino
Fundamental para professores
indígenas de Minas Gerais
Zélia Maria Rezende*
Seduc/MG
170
sistemas de avaliação e calendários esco-
lares adequados às necessidades, aos inte-
resses e aos projetos de futuro de cada
povo;
• fortalecer os processos interativos nos calen-
dários naturais, sociais e rituais dos espaços
em que as escolas estão situadas.
A autonomia e a independência diante de seu
processo de formação são dimensões sempre
buscadas durante o curso de formação e para isso
foi de fundamental importância o exercício do es-
tudo autônomo, da pesquisa independente, do
registro individual e sistematizado, seja com a
presença e a coordenação dos formadores, seja
Múltiplas
linguagens
• Línguas indígenas
• Língua Portuguesa
• Literatura
• Artes
• Educação Física
Estudo da cultura
e da natureza
• Culturas indígenas
• Geografia
• História
• Ciências Químicas,
Físicas e Biológicas
• Uso do território
indígena
Pedagogia
indígena
• Fundamentos
da Educação
• Iniciação à pesquisa
• Prática pedagógica
• Estrutura e funciona-
mento da escola
TERRITÓRIO
ÁGUA
CULTURA
nos momentos de intervalos entre as etapas in-
tensivas do curso, viabilizando o que chamamos
de ensino não-presencial.
Tanto a gente tá ensinando como tá aprenden-
do. Então eu acho isso muito importante.
Antonio Aragão da Silva,
professor Pataxó em formação
O processo de avaliação do curso foi desen-
volvido a partir de três vertentes:
• a avaliação processual, mediante fichas de
auto-avaliação construídas coletivamente e
preenchidas tanto pelos cursistas como pelos
formadores, avaliando diferentes aspectos;
• a avaliação feita pela comunidade e conduzida
pela coordenação por etnia, por meio de reu-
niões registradas em fitas de áudio e/ou vídeo;
• a avaliação pelo Conselho de Formadores,
baseada em um memorial e em um trabalho
final. O memorial consiste na descrição, pelo
cursista, de sua história de vida inserida no
contexto de sua formação como professor.
Tendo como base os
principais problemas vivi-
dos pelos povos indígenas
de Minas Gerais, três
questões foram eleitas
para nortear todo o traba-
lho, em uma perspectiva
transdisciplinar, abran-
gendo três áreas de co-
nhecimento indicadas
pelo diagnóstico e nos de-
bates entre os povos indí-
genas, os formadores e os
órgãos envolvidos no pro-
grama, conforme a repre-
sentação a seguir.
Achei boa a idéia des-
se currículo, porque há mis-
tura das matérias, acho que
uma matéria puxa a outra mesmo, acho que é isso
mesmo. E a gente precisa, porque a gente tem que
aprender, sabendo pra que aquilo que a gente tá
aprendendo vai servir.
Creuza Nunes Lopes,
professora Xacriabá em formação
O diálogo, a negociação de significados e a
interação entre os múltiplos olhares sobre a rea-
lidade são alguns dos elementos presentes numa
postura metodológica coerente com a proposta
aqui desenvolvida.
Os projetos de trabalho, as oficinas e outras
atividades significativas foram algumas das
ações que possibilitam um enfoque globalizador
do conhecimento, em que, em um só processo,
atitudes, valores, conceitos e habilidades são
construídos no exercício de resolver questões ou
vivenciar situações. A investigação e a observa-
ção, os debates e os registros em múltiplas lin-
guagens, as vivências culturais, os jogos, as brin-
cadeiras e a criação de instrumentos foram pro-
cessos incentivados e muito valorizados.
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
172
Conclusões transcritas de dois memoriais
dão uma idéia de como os cursistas estão vendo
seu processo de formação, em sua etapa formal-
mente final:
Durante todo este curso aprendi muitas coi-
sas boas, uma delas foi trabalhar com meus alu-
nos. Na minha escola o aluno aprende a viver em
comunidade, aprende os ensinamentos do nosso
povo, aprende a resgatar a consciência do cida-
dão brasileiro Pataxó e aprende a analisar a his-
tória de outros grupos sociais. [...] Hoje ainda te-
nho algumas dificuldades, mas estou consciente
do que é bom para mim e meu povo. E, além do
mais, já tenho uma consciência de qual cidadão
que quero formar. [...] Mas ainda não aprendi tudo,
pois a escola que eu considero é aquela em que,
cada dia, a gente aprende um pouco mais. Uma
escola renovadora, de portas abertas, sempre
buscando novos horizontes.
Kanátyo, professor Pataxó em formação
O curso foi acontecendo e os nossos conheci-
mentos foram aumentando, cada módulo que acon-
tecia, cada visita que em área o projeto fazia, cada
disciplina que a gente estudava, cada pesquisa que
com os nossos mais velhos da aldeia se fazia, cada
pessoa que no projeto entrava, com o estágio na
escola da aldeia que a gente fazia, com os traba-
lhos de jornal e rádio que a gente produzia, com as
peças de teatro que a gente apresentava, com a
escrita de livros, com a briga com os políticos para
dar apoio ao nosso trabalho, com os congressos
que a gente participava, com o apoio dos nossos
aliados que nos incentivaram, com a tradicional roda
embaixo da árvore, que no decorrer dos módulos
todo dia a gente fazia, cada avanço e obstáculo
que via, muita coisa aprendia. [...] Me sinto muito
forte. A cada dia que passa, eu aprendo mais um
pouco e tenho o apoio da comunidade no
gerenciamento e na organização da escola. Eu
penso em estudar mais, me especializar na área
de Educação, como Pedagogia, e talvez me formar
em mestrado e doutorado. Eu sonho com isso, por-
que a necessidade do povo Xacriabá é muito gran-
de em expandir a educação dentro do seu territó-
rio. Nossos alunos precisam de terminar o Ensino
Fundamental e prosseguir os estudos até a univer-
sidade. Vamos lutar para isso acontecer.
José Nunes de Oliveira,
professor Xacriabá em formação
O trabalho final, desenvolvido em grupo,
consistiu em escolher um tema para desenvol-
ver com os alunos, planejar e executar o plane-
jado na sua sala de aula, registrando as diversas
etapas; recolher e anexar os trabalhos e as avalia-
ções dos alunos; avaliar, em grupo, a aplicação e
os resultados obtidos individualmente, prepa-
rando um único relatório crítico de todo o tra-
balho. O formato desse trabalho final para os
Maxakali foi diferente – gravação em vídeo so-
bre sua cultura.
O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-
tal para Professores Indígenas foi concebido
como um ciclo único e estruturado em:
• etapas intensivas: ensino presencial no Par-
que Estadual do Rio Doce;
• etapas intermediárias: ensino presencial em
área indígena e ensino não-presencial;
• estágios supervisionados.
As etapas intensivas foram organizadas em
oito módulos, concebidos como um processo
global de formação em que, partindo de situa-
ções-problema reais, os cursistas têm contato
com atividades e conteúdos disciplinares diver-
sificados, não havendo uma fragmentação entre
o que tradicionalmente a teoria curricular cha-
ma de objetivos, conteúdos e métodos. Efetiva-
mente, não há como falar em conteúdo, isto é,
de o quê” se ensina sem se discutir intenção
educativa e metodologia, ou seja, o “porquê” e o
como” se ensina.
A preparação de cada módulo envolve
toda a equipe docente que, partindo da ava-
liação do processo de ensino-aprendizagem
do módulo anterior e das demandas propos-
tas pelos cursistas, participa de um movimen-
to interdisciplinar e transdisciplinar, na pre-
paração e no desenvolvimento das ações
educativas propostas.
Durante as etapas intermediárias, realiza-
ram-se módulos de ensino presencial, envolven-
do disciplinas que ganham mais sentido e signi-
ficado dentro do cotidiano das aldeias: Cultura
Indígena, Língua Indígena e Uso do Território
Indígena. Apesar de essas disciplinas serem de-
senvolvidas fora das etapas intensivas, elas não
se tornaram apêndices” dentro do processo de
formação dos cursistas.
173
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
Durante as etapas intermediárias, acontece-
ram também atividades de ensino não-pre-
sencial. Orientados pelos formadores nas etapas
intensivas, os cursistas desenvolveram ativida-
des de pesquisa, literatura e escrita, coleta e pre-
paração de material didático, entre outras.
O estágio supervisionado constituiu-se em
um instrumento de formação em serviço. Após
o quarto módulo intensivo de ensino presencial,
a Secretaria de Estado da Educação criou esco-
las indígenas e designou os cursistas como do-
centes dessas escolas.
O estágio teve como foco central a reflexão
da prática pedagógica incidindo sobre todos os
aspectos da vida cotidiana da escola e possibili-
tando a construção gradativa de uma pedagogia
indígena, com características próprias e adequa-
das à Educação Escolar de cada povo.
O caminho do trabalho por povo indígena
foi ficando cada vez mais evidente, especial-
mente quando os cursistas começaram a atuar
como professores em suas escolas indígenas.
Sua prática escolar assim como suas deman-
das, interesses e objetivos diferenciados fo-
ram delineando a proposta de trabalho espe-
cífica por etnia. Os diferentes processos de
implantação das escolas nas quatro áreas pro-
vocaram intensa reflexão coletiva no sentido
de trabalhar com as especificidades dos qua-
tro grupos étnicos de maneira mais
aprofundada e levaram à criação das coorde-
nações por etnia, quando começam a se con-
figurar quatro cursos de formação distintos e
específicos e geradores de processos distin-
tos de escolas indígenas, refletindo o que o
projeto vem chamando de “Pedagogia Indíge-
na. No entanto, não foi perdida a visão do
todo, a unidade do processo, evidenciada nos
momentos de vivências conjuntas:
É muito bom saber que existem muitos grupos
indígenas junto de nós: Xacriabá, Krenak, Pataxó,
Maxakali, Kaxinawá, Kaingang, Bakairi, Guarani,
Tupinikim, povos da Bolívia etc. Foi uma alegria
muito grande conhecer todo esse povão. Aprendi
muitas coisas com as trocas de experiências.
Maria Aparecida Lopes dos Passos,
professora Xacriabá em formação
Troca de experiências e convívio com outras
culturas. Conheci muita gente diferente e elas,
de certa forma, colaboraram para que eu ocu-
passe um espaço que nunca havia ocupado an-
tes, dentro e fora da comunidade
Valmores Conceição da Silva,
professor Pataxó em formação
O trabalho específico por etnia no curso
de formação mostrou resultados positivos
imediatos no rendimento acadêmico, na
racionalidade de organização dos cursos, na
afirmação étnica e na valorização pessoal.
O Conselho Estadual de Educação de Mi-
nas Gerais, no Parecer nº 1.109/98, de apro-
vação do Curso de Magistério de Ensino
Fundamental para Professores Indígenas,
considera que essa escola torna-se real-
mente tempo de vivência e produção cole-
tiva transformando-se em espaço educati-
vo para todos que dela participam: os pro-
fessores não-índios, os professores indíge-
nas, os órgãos envolvidos e as comunidades
indígenas.
O curso teve a duração de quatro anos,
com cargas horárias presenciais e não-presen-
ciais, abrangendo um total de 3.216 horas.
Recebeu autorização de funcionamento do
Conselho Estadual de Educação em novem-
bro de 1998 e certificou os 66 professores in-
dígenas em dezembro de 1999.
A partir de 2000, vem sendo desenvolvida
a formação continuada desses professores nas
quatro áreas indígenas, por equipes específi-
cas por etnia, durante 44 horas a cada mês.
Essa formação tem sido centrada em ações de
planejamento mensal das atividades dos pro-
fessores indígenas, produção de material di-
dático, observação das aulas e reflexão cole-
tiva da prática pedagógica.
O processo contínuo de reflexão e de com-
promisso com a realidade da execução neces-
sariamente propõe mudanças, desafios, mais
perguntas que respostas, o que não deixa de
ser um bom sinal. Enfim, as questões não apa-
recem, a menos que se comece a caminhar.
E, ao nos colocarem o espelho da perplexida-
de, ajudam-nos a crescer.
174
Formação de Professores de séries
iniciais do Ensino Fundamental para
o contexto indígena Xokleng e
Kaingang: igualando oportunidades,
fortalecendo identidades,
consolidando o direito à diferença
Marlene de Oliveira
Seduc/SC
Resumo
O Curso de Formação e Habilitação de Professo-
res de Séries Iniciais do Ensino Fundamental para o
Contexto Indígena Xokleng e Kaingang vem sendo
desenvolvido pela SED/SC como experiência peda-
gógica em regime especial desde 1999, em cumpri-
mento ao que dispõe a LDB nº 9.394/96, no seu artigo
79, e concretizando as proposições do Plano Nacional
de Educação, no que diz respeito à Educação Escolar
Indígena, bem como atendendo às determinações do
Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e Valorização do Magistério que extingue, no prazo de
cinco anos, a categoria de professor leigo.
Foi aprovado pelo Parecer nº 248/98 do Conselho
Estadual de Educação/SC e destina-se a professores
indígenas leigos que já atuam nas escolas indígenas,
além de outros índios interessados, indicados por suas
comunidades de origem. Tem a duração de 2.590 ho-
ras/aula, sendo que 20% da carga horária de cada disci-
plina é realizada na modalidade de ensino a distância.
O trabalho é desenvolvido com base nos pressu-
postos que orientam o Referencial Curricular Nacional
para as Escolas Indígenas, no que se refere à elabora-
ção e à implementação de um programa de educação
que atenda aos anseios e aos interesses da comunida-
de indígena, bem como à formação de educadores ca-
pazes de assumir essas tarefas e de técnicos capacita-
dos a assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está pau-
tado no documento “Educação Escolar Indígena, que
integra a Proposta Curricular de Santa Catarina – Edu-
cação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas
multidisciplinares, elaborado com a colaboração de
professores índios.
Considerando os preceitos constitucionais
e as diretrizes do MEC, que apontam para a ela-
boração de um currículo intercultural, bilíngüe,
específico e diferenciado, a Secretaria da Edu-
cação e do Desporto do Estado de Santa
Catarina, por intermédio do Núcleo de Educa-
ção Indígena (NEI), tem buscado efetuar uma
proposta de educação que contemple o siste-
ma educacional da sociedade envolvente, va-
lorizando as culturas e as tradições das comu-
nidades indígenas.
Diante do quadro que se produz nas comu-
nidades indígenas, em que a maioria de seus
membros não possui sequer a escolarização
básica, e sabendo-se que a construção de uma
sociedade democrática envolve, também, o re-
conhecimento da diversidade étnica e a garan-
tia do direito de manifestação dos costumes e
tradições das diferentes culturas, faz-se neces-
sária a ampliação de oportunidades de educa-
ção a essas comunidades, fortalecendo o pro-
cesso educativo de cada etnia, pois sem a esco-
la esses povos estão excluídos do processo his-
tórico global e atual da sociedade na qual se
inserem.
É com base nesse entendimento e nas dis-
cussões promovidas pelo NEI com as comuni-
dades, desde 1994, que vimos propondo pro-
175
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 7
gramas específicos visando à formação de re-
cursos humanos para o exercício da docência
entre os próprios indígenas, considerando suas
tradições socioculturais e estimulando a emer-
gência de métodos de ensino que garantam a
produção de uma literatura nas línguas nativas.
O estado de Santa Catarina abriga três
etnias – Kaingang, Xokleng e Guarani – que
somam 8 mil índios.
Os Guarani não possuem áreas demarcadas,
o que faz com que ocupem terras de outros gru-
pos indígenas. Em virtude da sua grande mobi-
lidade social, não é possível proceder a um
mapeamento preciso e definitivo desse grupo.
Entretanto, em 1990, registra-se sua presença
em pelo menos 22 municípios, áreas de ocupa-
ção tradicional.
Os Kaingang, um dos maiores grupos que
sobrevivem no Brasil, somam 4.400 indivíduos,
aproximadamente, e ocupam as áreas de Xape-
có (Municípios de Ipuaçu e Entre Rios), Toldo
Chimbangue e Kondá (Chapecó), Toldo Pinhal
(Seara), Ibirama e Palmas (Abelardo Luz).
Os Xokleng somam aproximadamente 1.800
índios e constituem o único grupo Xokleng do
Brasil. Ocupam a área indígena de Ibirama e
Palmas.
Para viabilizar o atendimento educacional
a essas comunidades, a Secretaria de Estado da
Educação e do Desporto mantém 26 escolas
indígenas, que atendem a 722 alunos de 1ª a
4ª séries do Ensino Fundamental, e uma esco-
la que oferece toda a educação básica a apro-
ximadamente 505 alunos, totalizando 1.227
alunos. As ações voltadas para essas escolas são
propostas pelo Núcleo de Educação Escolar
Indígena (NEI), diretamente vinculado à Dire-
toria de Ensino Fundamental, constituído em
1996, no qual estão representadas as lideran-
ças indígenas, coordenadorias regionais de
Educação, escolas indígenas, universidades e
outras instituições comprometidas com a cau-
sa indígena.
O trabalho é realizado com base nos pres-
supostos que orientam o Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas, no que se
refere à elaboração e à implementação de um
programa de educação que atenda aos anseios
e aos interesses da comunidade indígena, bem
como à formação de educadores capazes de as-
sumir essas tarefas e de técnicos capacitados a
assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está
pautado no documento “Educação Escolar In-
dígena, que integra a Proposta Curricular de
Santa Catarina – Educação Infantil, Ensino Fun-
damental e Médio: Temas Multidisciplinares,
que considera fundamental a formação de re-
cursos humanos para o exercício da docência
entre os profissionais indígenas, considerando
suas tradições e estimulando a emergência de
métodos de ensino que garantam a produção
de uma literatura na língua nativa.
Entre os vários aspectos apontados pela Pro-
posta Curricular de Santa Catarina, destaca-se
a discussão sobre o caráter diferenciado da Edu-
cação Escolar Indígena, passando pela questão
da cultura como elemento determinante nas
relações educacionais estabelecidas entre a es-
cola e a comunidade indígena.
Propõe que o currículo, entendido como
toda a organização da escola seus conteúdos,
a forma como são distribuídos os períodos leti-
vos, o material didático, entre outros aspectos
, seja discutido e elaborado em parceria com
a comunidade indígena. Para tanto, trabalha-
se na perspectiva de construção desse currícu-
lo diferenciado com os professores que atuam
nas escolas indígenas, a partir da prática desen-
volvida nessas unidades escolares e da contri-
buição da comunidade indígena.
O Curso de Formação e Habilitação de Pro-
fessores de Séries Iniciais do Ensino Funda-
mental para o Contexto Indígena Xokleng e
Kaingang vem sendo desenvolvido pela SED/
SC como experiência pedagógica em regime
especial desde 1999, em cumprimento ao que
dispõe a LDB 9.394/96, no seu artigo 79, e con-
cretizando as proposições do Plano Nacional
de Educação, no que diz respeito à Educação
Escolar Indígena, bem como atendendo às de-
terminações do Fundo de Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e Valorização do Magis-
tério que extingue, no prazo de cinco anos, a
categoria de professor leigo. Foi aprovado pelo
Parecer nº 248/98 do Conselho Estadual de
Educação/SC e destina-se a professores indí-
genas leigos que já atuam nas escolas indíge-
nas, além de outros índios interessados, indi-
cados por suas comunidades de origem.
Tem a duração de 2.590 horas/aula, e 20%
da carga horária de cada disciplina é realizada
na modalidade de ensino a distância. Entre
uma etapa presencial e outra, os alunos desen-
volvem trabalhos, tais como: estudos orienta-
dos; coleta de dados nas suas comunidades,
buscando responder ou elucidar questões
surgidas no período presencial e estágios que
contemplem observação, participação e regên-
cia de sala de aula com o respectivo registro
dessas práticas.
Ocorre em etapas concentradas, durante o
recesso escolar – 26 dias em janeiro e 15 dias
em julho –, no Colégio Estadual Agrícola Cae-
tano Costa, e em etapas intermediárias nos
meses de maio e setembro – seis dias, perfazen-
do um total de 636 horas aula/ano.
A opção por etapas concentradas deve-se ao
fato de os alunos, em sua maioria, atuarem
como professores leigos, não alterando, assim,
o andamento dos seus trabalhos e, também,
para que não fiquem tempo demasiado sem o
contato com suas aldeias.
Todas as disciplinas de base comum, den-
tro do possível, procuram se adequar à ótica
das culturas Kaingang e Xokleng, estabelecen-
do relações com o já conhecido e fornecendo
instrumental para que o professor-aluno inda-
gue-se e busque conhecer mais sobre a sua
própria realidade.
Além dessas disciplinas de base comum, o
curso inclui as disciplinas de Sociologia Cultu-
ral, Língua Kaingang/Xokleng, História e Orga-
nização Social Kaingang/Xokleng, Metodologia
de Pesquisa, Saúde Pública, Metodologia do
Ensino da Língua Kaingang/Xokleng e Metodo-
logia do Ensino Bilíngüe.
Ocorreram miniestágios distribuídos ao
longo do curso, computados nas horas de en-
sino a distância, realizados em Língua Portu-
guesa e Língua Kaingang ou Xokleng, com a
produção de relatórios e a participação em se-
minários para apresentação e problematização
dessa atividade.
Os cursistas também participam de proje-
tos especiais de pesquisa e fomento cultural
em suas comunidades, além de oficinas para
produção de material de apoio e recursos pe-
dagógicos e oficinas de produção literária
Kaingang e Xokleng.
Os docentes do curso integram o NEI como
docentes e consultores, contam com reconhe-
cida experiência na área de Educação Indígena
e constituem uma equipe interdisciplinar para
a elaboração de proposta teórico-metodológica
para cada etapa de ensino, com o acompanha-
mento de dois auxiliares de ensino bilíngüe,
responsáveis por atividades extraclasse com
Língua Kaingang e Xokleng.
A avaliação perpassa todas as etapas pre-
senciais e não presenciais e é realizada pelo
conjunto dos participantes (cursistas, docen-
tes, coordenação) e pelas instituições envolvi-
das, tendo a função de redimensionar o pro-
cesso educativo, detectando dificuldades, en-
traves e redimensionando atividades e práti-
cas pedagógicas.
Todas as disciplinas e atividades desenvol-
vidas no curso propõem-se a capacitar o pro-
fessor-aluno a construir coletivamente uma
proposta curricular das séries iniciais especí-
fica e diferenciada, intercultural e bilíngüe, ou
seja, uma proposta com organização curri-
cular, conteúdos, metodologia, calendário es-
colar, avaliação e material didático que expres-
sem a visão de mundo e o modo de ser
Kaingang e Xokleng.
O curso integra o Programa de Formação
Continuada para Educadores que Atuam no
Contexto Indígena, em que se inserem: 96 ho-
ras/ano de capacitação a todos os educadores
que atuam na Educação Indígena e o Curso Su-
pletivo de 5
ª
a 8
ª
séries com Qualificação para
o Magistério Indígena, em módulos, que aten-
de à especificidade do contexto escolar indí-
gena, visando à qualificação, em nível de En-
sino Fundamental, dos profissionais que atu-
am nesse contexto. Inclui no quadro curricular
as disciplinas Língua Indígena Materna e Cul-
tura Indígena (Kaingang, Xokleng e Guarani, de
acordo com a comunidade à qual se destina) e
Metodologia de Ensino. Esse curso foi autori-
zado pelo CEE/SC, por meio do Parecer nº 217/
98, e inclui a capacitação das equipes vincula-
das aos Centros de Educação de Adultos
(Ceas), assim como a produção de material
específico.
177
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
88
88
8
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula
Terezinha Furtado de Mendonça
178
As reivindicações por uma escola indígena
com um ensino que atenda às expectativas dos
diferentes povos têm na figura do professor in-
dígena um dos seus eixos basilares. De fato, ao
pensarmos na longa trajetória desses quinhen-
tos anos, em que as políticas públicas destina-
das a essas populações, via de regra, foram
pautadas por ações que visavam à assimilação
e ao apagamento da diversidade étnica presen-
te neste país, constatamos que os diversos
agentes educacionais utilizados pelos coloni-
zadores cumpriram com eficácia seu papel,
implementando modelos educacionais favorá-
veis ao intento maior do projeto colonial.
Quando uma nova história começou a ser
traçada, há cerca de trinta anos, com os povos
indígenas exigindo escolas que estivessem a
serviço de seus projetos de vida, nada mais
coerente que pessoas das diversas etnias as-
sumissem essa função, considerando o domí-
nio lingüístico e cultural próprio a um mem-
bro interno ao grupo, sem dúvida, superior ao
de qualquer não-índio, que, mesmo dotado de
boas intenções e preparo técnico, não pode ser
comparado a quem nasceu e foi criado em ou-
tro chão cultural, passando por experiências
formativas únicas, como os rituais de inicia-
ção, os ensinamentos necessários à sobrevi-
vência, os conhecimentos mitológicos etc.
Entretanto, de modo bastante paradoxal,
constatamos que, se a figura do professor indí-
gena parece consensualmente aceita no discur-
so e na prática dos detentores do poder, encai-
xada nos programas de Educação Escolar Indí-
gena que se multiplicaram no país, o mesmo
não se pode dizer a respeito dos processos
formativos vivenciados por esse professor nos
anos que antecederam a sua prática pedagógi-
ca em sala de aula. Há uma concepção de for-
mação fortemente marcada pela depreciação
em relação ao professor que não passou por
processos de escolarização seriados, estabele-
cidos por nossa sociedade, em escolas fora das
aldeias, e que, portanto, estaria menos apto a
cursar um segundo grau com habilitação para
o Magistério em escolas indígenas. Como o que
se privilegia é a formação dada nos cursos or-
ganizados por não-índios, esse professor é, qua-
se sempre, considerado não-escolarizado ou
com escolaridade insuficiente. Queremos res-
saltar o contra-senso embutido nessa concep-
ção, pois se o que se espera é que ele seja um
bom professor indígena, o processo formativo
proporcionado pelas comunidades é que deve-
ria ser considerado relevante.
Concordamos que o exercício do Magisté-
rio acarreta responsabilidades variadas, que
têm que ser contempladas dentro do que as
comunidades expressam em relação às expec-
tativas do trabalho do professor, responsabili-
dades bastante diferentes das que ele pode en-
contrar entre os especialistas de Educação In-
dígena, como entender a vida dos brancos, por
exemplo. Sobretudo se considerarmos que a
escola é uma instituição que está sendo apro-
priada pelos povos indígenas, mas que, nesse
movimento de apropriação, carrega consigo
uma organização de conhecimentos em tempos
e espaços muito diferentes dos sistemas edu-
cativos tradicionais. A par dessas considerações,
ousamos afirmar que a formação dos profissio-
nais de Educação Escolar Indígena não pode ser
* Pedagoga, mestre em Estudos Lingüísticos pela UFG, assessora pedagógica da Escola Tapirapé, em Mato Grosso.
Professores indígenas:
processos formativos e algumas
indagações
Eunice Dias de Paula*
Cimi/MT
179
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 8
pensada de um modo desconectado do proces-
so formativo vivenciado pelos professores em
suas comunidades, sob risco de continuarmos
a agir do mesmo modo que os primeiros colo-
nizadores. Ou a escola se insere nos sistemas
educacionais indígenas, como algo necessário
na realidade de contato com nossa sociedade,
ou ela não será uma escola indígena, como aler-
ta Melià.
1
Queremos aqui destacar três experiências
formativas em que vimos atuando como asses-
soria e que têm buscado superar essa contradi-
ção, por meio de vários caminhos. Entre os
Tapirapé, povo com o qual convivemos há um
longo tempo, a escolha inicial de pessoas con-
sideradas aptas a serem professores aconteceu
após longas discussões com a comunidade e a
decisão se encaixou num padrão cultural típi-
co: os primeiros professores pertenciam a fa-
mílias tradicionais das quais podiam ser esco-
lhidas as lideranças. Após alguns anos, quando
necessitaram de novos professores, o critério de
escolha utilizado foi o fato de dois rapazes te-
rem ficado órfãos de pai. Queremos ressaltar,
nesses dois casos, o fato de que os critérios se-
letivos discutidos pela comunidade podem ser
completamente diferentes do que a simples
passagem por bancos escolares durante alguns
anos. A preparação deles foi sendo feita por
meio de um acompanhamento cotidiano,
permeado por um processo de reflexão e avali-
ação em reuniões com a comunidade. A habili-
tação para o Magistério aconteceu pela partici-
pação no Projeto Inajá (I e II), organizado pelas
prefeituras da região do Médio Araguaia em
Mato Grosso. Esse curso destinava-se também
a professores leigos das zonas rurais dos muni-
cípios envolvidos, portanto não tinha a carac-
terística de ser voltado exclusivamente a pro-
fessores indígenas. Um trabalho de tradução
do curso fez-se necessário e, assim, o elo com a
vida da aldeia foi se mantendo. Como havia
uma lacuna no tocante à formação lingüística,
organizamos, a pedido deles, cursos de Língua
Tapirapé, assessorados pela Profª Dra. Yonne
Leite, do Museu Nacional, UFRJ. No primeiro
desses cursos, realizado em 1997, os professo-
res desejavam tomar decisões ortográficas, mas
se sentiam inseguros a respeito de determina-
das palavras. Na avaliação, solicitaram que os
próximos cursos fossem realizados na aldeia, a
fim de facilitar a pesquisa com os mais velhos.
Esse fato é bastante significativo, pois demons-
tra a articulação que pode existir entre novos
conhecimentos, no caso, a aquisição de um ins-
trumental de análise lingüística, e o profundo
conhecimento da Língua Tapirapé, exercido
pelas pessoas idosas.
Os professores Kayabi, Apiaká e Mundu-
ruku, da região do rio dos Peixes, município de
Juara, em Mato Grosso, participaram do Proje-
to Tucum – Formação para Professores Indíge-
nas – desenvolvido pelo estado do Mato Gros-
so. Entretanto, queriam elaborar a proposta
curricular de suas escolas, uma vez que preten-
dem oficializá-las como escolas indígenas. Para
isso, solicitaram assessoria ao Conselho Indige-
nista Missionário (Cimi), Regional MT. O traba-
lho está sendo desenvolvido há dois anos em
encontros periódicos, dos quais participam não
só os professores, mas toda a comunidade.
2
São
momentos muito ricos, pois todas as pessoas
estão envolvidas na discussão a respeito de
como querem a escola para seus filhos, definin-
do todo o planejamento escolar, desde o calen-
dário até os conteúdos considerados importan-
tes no processo de aprendizagem concebido
como necessário para a realidade atual.
Os professores Guarani e Kaiowá, organiza-
dos no Movimento dos Professores Indígenas
Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul desde
a década de 1980, vinham lutando há muito
tempo para ter um curso de Magistério especí-
fico. O Projeto Ára Verá (“tempo iluminado”),
assumido pela Secretaria de Educação do Esta-
do em 1999, em parceria com vários municí-
1
Bartomeu Melià, em palestra proferida no I Congresso Latino-Americano de Educação Escolar Indígena, promovido pela UFMS, em Doura-
dos, MS, em maio de 1998.
2
Esse trabalho é desenvolvido em conjunto com Maria Regina Rodrigues e Maristela Sousa Torres, ambas da equipe de coordenação do Cimi,
Regional MT.
180
pios, passou por uma longa gestação, envolven-
do professores indígenas, lideranças e aliados
dos Guarani e dos Kaiowá e, com certeza, deve-
se a esse processo amadurecido a possibilida-
de de avanços significativos em relação ao que
conhecemos em termos de cursos para profes-
sores indígenas.
Segundo seus autores, o Projeto Ára Verá
constitui-se num processo integrado às práti-
cas vivenciadas pelos Guarani/Kaiowá, as quais
se baseiam em três grandes fontes – teko (cul-
tura), tekoha (território) e ñe’e (língua) – que são
também os eixos fundamentais pelos quais vão
se articular os conteúdos e a metodologia do
curso.
3
Essa proposta não ficou só no papel,
concretizando-se de várias formas: os alunos se
sentem absolutamente à vontade para se ex-
pressar em sua própria língua, durante as eta-
pas presenciais do curso; às vezes, temos a sen-
sação de estar participando de um grande
fórum de debates sobre a situação da língua, os
valores culturais, ou sobre os sistemas educa-
cionais próprios e o que representa a presença
da escola; a aula, não raras vezes, transforma-
se em assembléia, e ao professor ministrante
cabe aprender com verdadeiros mestres do
povo Guarani/Kaiowá.
A estreita ligação do projeto com a vida
Guarani está assegurada também pela possibi-
lidade da participação constante de caciques
rezadores durante as etapas presenciais do cur-
so, conforme afirmado num dos princípios me-
todológicos:
[...] da produção do conhecimento, que implica
criar condições favoráveis para desenvolver o
processo de descoberta, pesquisa, criação e apro-
priação dos conhecimentos. Para suprir essa ne-
cessidade, será assegurada, também, durante o
curso, a participação efetiva de caciques Guarani/
Kaiowá, os quais garantem a orientação de ques-
tões próprias da cultura tradicional, sob o seu
ponto de vista (idem, ibidem: 15).
Durante a etapa de Fundamentos da Edu-
cação, por mim ministrada em janeiro de 2000,
a presença de D. Júlia, rezadora de Amambaí,
foi incrível, pois, além de ela trabalhar na prá-
tica os Fundamentos da Educação Tradicional,
realizando diferentes tipos de danças e de ce-
rimoniais, alternava momentos de exposição
teórica para os cursistas, usando cartazes com
mitos desenhados. Em todas as etapas, tem
acontecido a presença desses caciques
rezadores, que realizam todas as manhãs um
ritual conhecido como jehovasa, uma bênção
matinal para que tudo corra bem durante o dia.
Além disso, são consultados sobre assuntos
que os professores, jovens em sua maioria, não
dominam. Durante a 5ª Etapa, quando discor-
ria sobre as relações entre grafismo e escrita,
exemplificando com motivos trançados em ar-
cos e cestos, o Sr. Jofre, cacique rezador de
Panambi, explicou em Guarani os nomes dos
motivos decorativos. Foi uma surpresa para
muitos, que não sabiam que havia denomina-
ções diferentes para identificar os desenhos
geométricos. Ainda nessa etapa, houve o lan-
çamento do livro de contos Ñe’ë Poty Kuemi
(Palavras floridas tradicionais), produzido pe-
los professores a partir de pesquisas nas comu-
nidades. O livro foi batizado pelos caciques
rezadores e rezadoras de várias aldeias, numa
cerimônia comovente chamada ñe’ë mongarai.
A dimensão desse ato excede qualquer plane-
jamento curricular que possa ser feito pelos
técnicos das Secretarias de Educação, pois sig-
nifica, de fato, algo produzido pela Educação
Escolar sendo introduzido no sistema simbó-
lico-religioso do povo, como ressaltado por
Melià (op. cit.).
Acreditamos que o breve relato dessas três
experiências de processos formativos de pro-
fessores indígenas mostra outros caminhos
possíveis de trilhar. Resta saber se os respon-
sáveis pelas políticas públicas em Educação
estarão dispostos a assumir realmente o que
preconiza a Constituição Federal, que garante
aos povos indígenas e, claro, aos seus profes-
sores o direito aos processos próprios de apren-
dizagem.
3
Projeto Ára Verá – Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Guarani/Kaiowá, Campo Grande, MS, 1999, p. 13.
181
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 8
Resumo
O presente artigo retrata a experiência de for-
mação de professores indígenas para o Magisté-
rio – Projeto Tucum. Esse projeto foi desenvolvi-
do de 1996 a 2000, em quatro pólos regionais do
estado de Mato Grosso: Tangará da Serra, Água
Boa, Rondonópolis e Paranatinga, para 11 etnias
diferentes: Paresi, Rikbaktsa, Irantxe, Kayabi,
Munduruku, Apiaká, Nambikwara, Umutina,
Xavante, Bakairi e Bororo. Dos duzentos cursistas
que iniciaram o Projeto Tucum, 176 se formaram
em nível médio e, destes, 70% ingressaram nos
cursos do terceiro grau indígena na Unemat.
A política brasileira, por muitos anos, igno-
rou as demandas apresentadas nas questões in-
dígenas, quando colocadas nas discussões; o
que prevalecia era um discurso integracionista
dessas populações, ignorando as diversidades
de sociedades aqui existentes.
Com a promulgação da Constituição Fede-
ral de 1988, foram assegurados os direitos in-
dígenas em um capítulo específico (Dos Ín-
dios). Passou-se a reconhecer o direito à dife-
rença, isto é, à alteridade cultural, estabelecen-
do-se a partir daí um novo paradigma rela-
cional. A União passa a ter a incumbência de
legislar sobre as populações indígenas, com
uma nova concepção que não aquela de incor-
poração à sociedade nacional.
No ano de 1991, a Educação Escolar Indí-
gena sai da esfera da Fundação Nacional do
Índio (Funai) e passa a ser de atribuição do Mi-
nistério da Educação (MEC), tendo as Secreta-
Projeto Tucum
Relato de uma experiência de formação
de professores indígenas em Magistério
Terezinha Furtado de Mendonça*
Seduc/MT
rias de Educação dos estados e municípios a
incumbência de sua aplicação, em consonân-
cia com a Secretaria Nacional de Educação do
MEC. Tal mediação foi resultado do Decreto nº
26/91, de 4 de fevereiro de 1991.
Também no mesmo ano, foram publicadas
a Portaria Interministerial nº 559/91 e as Porta-
rias nº 60/92 e 490/93, instituindo no Ministé-
rio da Educação o Comitê de Educação Escolar
Indígena, cuja finalidade é subsidiar as ações
educacionais indígenas, servindo de referência
aos planos operacionais dos estados e municí-
pios. A partir de então, foi elaborado pelo co-
mitê o documento Diretrizes para a Política
Nacional de Educação Escolar Indígena, nor-
teando as ações a serem implementadas nas
esferas federal, estadual e municipal.
No estado de Mato Grosso, o enfrenta-
mento da questão da Educação Indígena é an-
terior ao Decreto nº 27/91. A Secretaria Esta-
dual de Educação (Seduc), ainda que sem com-
petência legal, já atuava junto às populações
indígenas, atendendo a algumas de suas neces-
sidades no campo educacional.
Em setembro de 1987, em função das difi-
culdades e da multiplicidade de instituições e
entidades que vinham atuando nessa questão,
buscou-se uma articulação dos diferentes tra-
balhos pela criação do Núcleo de Educação In-
dígena de Mato Grosso (NEI/MT). Sem ter um
caráter oficial, o NEI/MT caracterizou-se como
um fórum de discussão de ações entre as di-
versas instituições.
* Assessora pedagógica na Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação, MT. Atuou na Coordenação-Geral do
Projeto Tucum.
182
A partir de 1989, a Secretaria de Estado de
Educação cria a Divisão de Educação Indíge-
na e Ambiental, extinta na reestruturação da
Secretaria, no ano de 1992. Essa divisão, em
sua curta história, procurou desenvolver sua
ação em consonância com o NEI, buscando
responder às reivindicações das sociedades in-
dígenas, encaminhadas por intermédio das li-
deranças de suas comunidades e por entida-
des de apoio ao índio. Esse trabalho foi desar-
ticulado e o grupo esfacelado, sob o argumen-
to da modernização do Estado” e da gestão da
qualidade total.
Com o atual governo, a questão indígena é
retomada, discutida e analisada sob um novo
enfoque, constatando-se a inexistência de uma
política indigenista estadual. O tema passa a
ser incluído no Plano de Meta. Nesse docu-
mento, algumas propostas são delineadas, ser-
vindo como diretrizes para a implantação de
políticas.
A Coordenadoria de Assuntos Indígenas do
Estado de Mato Grosso (CAIEMT), órgão liga-
do à Casa Civil, é reativada e orientada pelo
Programa de Governo, passando a articular
forças para a implementação da política
indigenista.
O estado de Mato Grosso congrega 38 soci-
edades indígenas, perfazendo uma população
aproximada de 28 mil pessoas, distribuídas em
41 municípios do estado. No que se refere à re-
alidade escolar, essa população dispõe de 150
escolas, entre estaduais e municipais, atenden-
do aproximadamente a 6.500 alunos.
Com o objetivo de assessorar as escolas in-
dígenas, prestar atendimento técnico aos do-
centes indígenas e às agências que trabalham
com a Educação Escolar Indígena, a fim de de-
liberar sobre a política indigenista estadual na
área da educação, foi criado o Conselho de
Educação Escolar Indígena de Mato Grosso
(CEI/MT), pelo Decreto n
o
265/95, de 20 de
julho de 1995.
Com a elaboração do Diagnóstico da Edu-
cação Escolar Indígena em Mato Grosso
(Secchi, 1995), Seduc e CAIEMT avaliam a ur-
gência da implantação de um Programa de
Formação de Professores Indígenas que con-
temple uma continuidade das ações educacio-
nais, bem como para agregar forças e habilitar
professores, levando em conta a diversidade
étnica e suas especificidades culturais, respei-
tando, dessa forma, o projeto educacional das
comunidades e sua necessidade de diferencia-
mento.
Em 1995, com o objetivo de reunir todas as
agências envolvidas com a Educação Escolar
Indígena, realizaram-se quatro seminários re-
gionais, a fim de pensar uma proposta comum
de formação de professores indígenas.
Criou-se o Projeto Tucum – Programa de
Formação de Professores Índios para o Magis-
tério. Tucum é o nome atribuído ao projeto por
se tratar de uma palmeira resistente, cujo fru-
to faz parte da matéria-prima na confecção dos
adornos, em todas as etnias do estado, e é na-
tiva tanto no cerrado quanto na mata.
A escolha do nome não foi por acaso. Há
uma associação do fazer criativo e cuidadoso
do artesanato com a formação de professores
indígenas que aponta para a significação da
educação como técnica, como prática social
e cultural. É uma relação metafórica entre cul-
tura e educação como técnica que deve ins-
trumentalizar o índio para a ação social do
contato.
Esse nome envolve sentidos, significações
que se aderem ao projeto, virtualizando
objetivações. Entretanto, no curso do proces-
so de construção do Projeto Tucum, esses sen-
tidos foram um desafio contínuo.
Colocando-se como resposta, como enca-
minhamento de reivindicações de direitos es-
pecíficos das populações indígenas no campo
educacional, o projeto foi pensado como or-
ganização coletiva da prática pedagógica, em
regime de co-responsabilidade dos diversos
atores em torno do processo de formação di-
ferenciada de professores da Educação Esco-
lar Indígena.
Coordenação-geral, coordenação regional,
docência, assessoria pedagógica, assessoria de
área de conhecimento, consultoria e monitoria
eram instâncias de gestão e execução da pro-
posta pedagógica funcionalmente articuladas,
numa dinâmica de cooperação, interação e
intercomplementaridade. O nexo de ligação
entre elas foi construído pela consciência da
183
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 8
importância do papel e do desempenho na
ação conjunta. Procurou-se superar o nexo de
ligação tradicional, construído segundo uma
concepção funcionalista de organização, por
meio de funções hierarquizadas.
O projeto teve como objetivos a capaci-
tação e a habilitação de professores índios, o
acesso e o desenvolvimento escolar por meio
do diálogo intercultural, condições de desen-
volvimento do processo educativo fundado nas
culturas e formas de pensamento indígena,
condições de produção do conhecimento de
processos interativos escola/comunidade e
fortalecimento desse processo, valorização do
profissional de educação das escolas indíge-
nas, elaboração de proposta curricular diferen-
ciada, bilíngüe e intercultural para as escolas
indígenas em que os cursistas atuam.
A proposta pedagógica do projeto visou
romper com a concepção dicotômica entre
educação e prática social, constituindo-se em
processo de conhecimento integrado às práti-
cas vividas. Os eixos fundamentais do desen-
volvimento das comunidades indígenas esta-
vam baseados em seu território, sua língua e
sua cultura, portanto estes foram os eixos que
nortearam o currículo do projeto (Governo do
Estado do Mato Grosso, Projeto Tucum, p. 30-
35).
Em se tratando do currículo, pretendeu-se
abordar conteúdos das culturas indígenas e de
outras, assim como os conhecimentos univer-
sais que interessavam às necessidades de con-
tinuidade e transformação daqueles grupos.
Para isso, usaram-se, durante todo o processo
educativo, as Línguas Indígenas e a Língua Por-
tuguesa, como instrumento de comunicação e
objeto de estudo, em busca da manutenção e
da dinamização dessas línguas e culturas. Por-
tanto, o Projeto Tucum teve por base um cur-
rículo diferenciado, específico, intercultural e
bilíngüe.
Entendendo a educação como um direito,
no projeto não coube avaliar para classificar,
excluir ou sentenciar, aprovar ou reprovar. Por-
tanto, a avaliação incidiu sobre aspectos glo-
bais do processo, inserindo tanto as questões
ligadas ao processo ensino-aprendizagem
como as que se referem à intervenção do pro-
fessor, ao currículo do projeto, à organização
do trabalho, à função socializadora e cultural,
à afirmação das identidades e dos valores e ao
trabalho docente do professor cursista. Assim,
o professor cursista e seu desempenho
cognitivo não foram os únicos aspectos a se-
rem avaliados.
O projeto buscou romper com a lógica da
avaliação somativa, pela qual o aluno precisa
ter número x” de pontos para ser aprovado.
Dessa forma, não se pensou na prova como
único instrumento de avaliação. Outros meios
precisaram ser construídos, sempre a partir de
critérios não mais ligados aos números de pon-
tos alcançados em si, mas aos objetivos defi-
nidos (idem, ibidem – ver Avaliação).
O curso foi desenvolvido de forma parce-
lada, para atender à realidade das comunida-
des, que não permitem ao professor índio au-
sentar-se de seu lugar de trabalho para fre-
qüentar um curso regular sem, com isso, cau-
sar-lhe sério prejuízo. Assim, o curso foi
estruturado em três etapas:
Etapa intensiva. Realizada no período de
férias e recessos escolares, com duração de
quatro a cinco semanas; foram trabalhadas
as disciplinas de ensino, sob a orientação
de docentes e o acompanhamento de
monitores. Antes de cada Etapa intensiva
foram realizados encontros preparatórios
de formação e planejamento da etapa para
docentes, monitores e coordenação, con-
tando com assessoria específica de cada
área disciplinar.
Etapa intermediária. Compreendeu todas
as atividades realizadas pelo cursista entre
uma Etapa intensiva e outra. Obedeceu a
uma carga horária prevista na grade
curricular e a um cronograma de ativida-
des, atendendo às necessidades específicas
do cursista e de cada comunidade. As ati-
vidades foram desenvolvidas na aldeia, sob
a coordenação do monitor.
Estágio supervisionado. Foi a atividade re-
alizada na aldeia, que contou com a pre-
sença do monitor que observou, discutiu e
analisou com os cursistas a sua atuação em
sala de aula, debateu os problemas encon-
trados no dia-a-dia do trabalho e na rela-
ção escola/comunidade.
184
O projeto foi organizado em quatro pólos
regionais, tendo por clientela 200 professores
indígenas, atingindo indiretamente um públi-
co aproximado de 4.500 alunos. O primeiro
pólo, situado no Município de Tangará da Ser-
ra, abrangia um total de seis municípios, en-
volvendo oito etnias. O segundo, situado no
Município de Água Boa, abrangeu quatro mu-
nicípios e uma etnia. O terceiro pólo, no Mu-
nicípio de General Carneiro, abrangeu quatro
municípios e uma etnia. Por fim, o quarto pólo
situou-se no Município de Paranatinga, abran-
gendo três municípios e duas etnias.
As etapas tiveram início em 1996, sendo
esse trabalho coordenado pelo estado, por
meio da Seduc e da CAIEMT, com a consultoria
PNUD/Prodeagro, contando ainda com a par-
ticipação da Funai, das prefeituras municipais
e das seguintes ONGs: Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), Operação Amazônia Nati-
va (Opan), Sociedade Internacional de Lingüís-
tica (SIL), Congregação das Missionárias
Lauritas, Missão Salesiana, Junta Missionária
Nacional (JMN), Congregação das Irmãs
Catequistas Franciscanas (Cicaf).
As assessorias do projeto estavam vincula-
das às seguintes instituições: Universidade Fe-
deral de Mato Grosso (UFMT), Universidade
Estadual de Mato Grosso (Unemat), Universi-
dade de Campinas (Unicamp) e Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).
O projeto contou com financiamento do
Banco Mundial, por meio do Programa de De-
senvolvimento Agroambiental (Prodeagro) e
com apoio do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD).
Posteriormente, já no ano de 1998, a polí-
tica de formação de professores indígenas es-
tendeu-se para o atendimento da demanda dos
catorze povos da Terra Indígena do Xingu.
A experiência da Secretaria de Estado de
Educação e da Coordenadoria de Assuntos In-
dígenas, em parceria com outros agentes e com
lideranças indígenas, em objetivar a proposi-
ção de formação de professores indígenas para
o Magistério, envolve o enfrentamento de de-
safios imensos. Sendo a primeira ação sistemá-
tica de Educação Indígena, em conformidade
com as diretrizes gerais definidoras de princí-
pios básicos da escola indígena do Ministério
da Educação, o curso de formação de profes-
sores indígenas para o Magistério assume, ne-
cessariamente, uma qualidade constituinte de
política pública em nível de estado e de muni-
cípio. O grande desafio a enfrentar, nesse ter-
reno, tem sido o do envolvimento das prefei-
turas de municípios com populações indíge-
nas. A sensibilização das prefeituras, no senti-
do de aprender a Educação Indígena como
dever, conseqüentemente como compromisso
público, tem exigido disposição constante.
A invisibilidade dos índios como cidadãos
mediatiza interesses e motivações de profes-
sores, repercutindo, por exemplo, na questão
da monitoria. O monitor deveria desempenhar
um papel estratégico no processo pedagógico
do projeto, com permissão de observar, acom-
panhar e avaliar o desempenho do professor
índio, como cursista e como profissional da
educação em atividade em sala de aula, forne-
cendo dados e indicações aos docentes acerca
das dificuldades, insuficiências e necessidades
específicas, enfim, colaborando com ajustes de
percurso. No desenvolvimento do projeto, con-
tudo, a monitoria se configurou como proble-
ma. Enfrentou-se, ao longo do processo, uma
rotatividade reiterada de monitores, com con-
seqüências pedagógicas críticas no âmbito de
ensino-aprendizagem, acompanhamento e
avaliação proposta. Essa flutuação teve dupla
face: de um lado, a precariedade e a indefinição
da situação funcional dos monitores nas pre-
feituras, a baixa remuneração, as dificuldades
de deslocamento para as aldeias e, de outro, a
baixa motivação de professores em trabalhar
com Educação Indígena.
A cada desistência ou afastamento de um
monitor, enfrentou-se o desafio de encontrar
um substituto, de resolver a situação funcio-
nal e de capacitação na metodologia do proje-
to. Essas dificuldades configuravam uma ten-
dência de acumulação de papéis, até que se
equacionasse a contratação de um novo
monitor. A acumulação da função de monitor
do projeto com a de assessor pedagógico ou
de docente na sede do município, ou em al-
guns de seus distritos, limitou, restringiu e
comprometeu o papel pedagógico de monitor.
185
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 8
A dedicação exclusiva à monitoria seria um
requisito fundamental, quer fosse sob o
enfoque das implicações pedagógicas, quer
sob o enfoque da dispersão geográfica das áre-
as indígenas e das aldeias no interior dessas
áreas, necessitando de deslocamentos perió-
dicos ao longo de cada mês.
Cada município deveria oferecer seu qua-
dro de monitores para atuar no projeto. Hou-
ve casos em que prefeituras “importavam
monitores, por não disporem de profissionais
no município. Essa solução foi inadequada
para preencher a vacância de monitoria. Era
imprescindível que o monitor fosse um profis-
sional local, com conhecimento da realidade
e experiência no Magistério. Alguns pólos
vivenciaram essa dificuldade de forma dramá-
tica, havendo monitor que atendia a cursistas
de três povos indígenas diferentes.
Outro grande desafio foi desenvolver o pro-
jeto em parceria com diversas organizações
não-governamentais de apoio aos índios. Es-
sas organizações possuíam orientações e agen-
das diferenciadas, exigindo, a cada fase do pro-
cesso, um trabalho intenso de construção de
consensos. Essas organizações, como já regis-
tramos anteriormente, participaram da cons-
trução do projeto, da sua proposta pedagógi-
ca e da sua execução.
Essa participação mais direta no processo
pedagógico deu-se por intermédio de asses-
sorias e monitorias. No que concerne à
monitoria, ainda que por motivos plenamen-
te justificáveis, registrou-se também a ocor-
rência de rotatividade, embora com implica-
ções menos dramáticas, uma vez que a ques-
tão da invisibilidade do índio não se colocou.
Mas, ainda assim, a flutuação desses moni-
tores implicou descontinuidade na sua ação
educativa.
Assim como os monitores, nem sempre os
representantes dessas organizações nas etapas
de planejamento foram os mesmos, implican-
do idas e vindas na discussão de aspectos mais
sensíveis, como a questão lingüística. Essas
idas e vindas permitiram ver diferentes dimen-
sões problemáticas da rica experiência de um
projeto em parceria. Permitiram ver, no con-
junto das organizações em si, que a flutuação
de representantes dificulta a consolidação de
posicionamentos em patamares de atualidade
das discussões e decisões. Permitiram ver, no
âmbito dialógico dessas organizações entre si
e com as outras, que a flutuação de represen-
tantes dificultou o avanço das discussões, li-
mitando a ampliação e o aprofundamento da
interlocução. Permitiram ver que a experiên-
cia do trabalho coletivo envolveu uma fase do
processo, um patamar específico de relação
pedagógica no interior do Projeto Tucum.
Esses desafios instigaram a capacidade de
resolução de dificuldades entre todos os envol-
vidos, permitindo rever passos, lidar com con-
flitos, perceber erros, reconhecer fragilidades
e contradições.
A avaliação de um projeto como o que ora
estamos apresentando supõe o tratamento de
diferentes enfoques que dão forma a essa com-
plexa realidade.
Para efeitos do presente trabalho, destaca-
rei alguns desses aspectos que tiveram maior
consenso e visibilidade quando da realização
da avaliação pelos diversos segmentos que par-
ticiparam do projeto (monitores, docentes,
cursistas, coordenação, consultores etc.).
Para melhor abordá-los, irei agrupá-los em
quatro núcleos temáticos, a fim de enfatizar as
suas diferentes naturezas – aspectos pedagó-
gicos, operacionais, políticos e financeiros. Ve-
jamos um pouco de cada um desses núcleos.
Pedagógicos. A avaliação de todos os seg-
mentos expressou enfaticamente a impor-
tância da adoção de uma metodologia de
estudos centrada na pesquisa e nos conhe-
cimentos culturais de cada povo. Esses dois
elementos constituíram as âncoras do pro-
grama e conferiram-lhe unidade e se-
qüenciação, não obstante as interrupções
sofridas ao longo do período, quer pela
alternação das etapas de realização, quer
por problemas de ordem administrativa e
financeira.
Operacionais. Talvez estes aspectos te-
nham sido os que trouxeram maiores pro-
blemas e que, portanto, exigiram maior es-
forço e cooperação interinstitucional para
superá-los. Embora o trabalho em parce-
ria tenha sido um grande avanço nesse pro-
jeto, a sua concretização no cotidiano não
tem sido uma das tarefas mais fáceis. Cada
instituição tem o seu próprio tempo insti-
tucional, seu ritmo, suas prioridades, en-
fim, o seu modo próprio de tratar as ques-
tões que lhe são apresentadas. Isso exige
um permanente esforço de todos os parcei-
ros para valorizar os pontos de consenso e
buscar superar os atritos e os dissensos.
Políticos. A implementação de políticas pú-
blicas envolvendo diferentes atores exige a
consolidação de um relacionamento que
respeite a diversidade e que transite por di-
ferentes administrações, partidos políticos,
interesses locais e regionais etc. Nesse sen-
tido, a realização do Projeto Tucum pode
ser considerada uma iniciativa que conse-
guiu angariar apoiadores e aliados de dife-
rentes espaços políticos, da mídia e de toda
a sociedade civil. A construção coletiva de
projetos nos quais todos podem obter re-
sultados mostrou-se um caminho viável
para atender a tantas demandas acumula-
das ao longo de cinco séculos de domina-
ção e de desrespeito para com os assuntos
indígenas.
Financeiros. Quando da elaboração do Pro-
jeto Tucum, optou-se por agregá-lo ao
Prodeagro
1
e por utilizar essa fonte de re-
cursos para custear os seus gastos. Mais tar-
de, porém, percebeu-se que a dependência
exclusiva de recursos externos traria uma
série de dificuldades operacionais (incom-
patibilidade da liberação dos recursos com
a programação dos gastos, inadimplências,
cortes, reduções, conjuntura econômica
mundial etc.), além de reforçar o já consa-
grado descompromentimento de recursos
próprios para o financiamento dos assun-
tos indígenas. Esse aprendizado fez com que
todos os projetos subseqüentes fossem fi-
nanciados por um leque de diversos apoia-
dores e com diferentes fontes de recursos.
Nesse sentido, o Projeto Tucum teve um
grande êxito ao apontar a necessidade de
fazer incluir nos orçamentos públicos recur-
sos específicos para os assuntos indígenas.
As reflexões e as ações que aconteceram ao
longo do percurso do Projeto Tucum desper-
taram para a necessidade de se elaborar polí-
ticas públicas específicas para a Educação Es-
colar Indígena no Estado de Mato Grosso.
Os Cursos de Licenciaturas Específicos
para Professores Indígenas, que tiveram iní-
cio em julho de 2001, são exemplos disso. Vi-
sam à formação e à habilitação de professo-
res indígenas para o exercício docente no En-
sino Fundamental e Médio. Abrangem três
áreas diferentes – Ciências Matemáticas e da
Natureza; Ciências Sociais; Línguas, Artes e
Literatura – e estão vinculados à Universida-
de do Estado de Mato Grosso em parceria com
outras instituições. Um dos objetivos do pro-
jeto é possibilitar o acesso dos povos indíge-
nas a esse nível de ensino e contribuir para o
fortalecimento dos projetos de vida e de fu-
turo de cada povo.
A implementação de uma política de Edu-
cação Escolar Indígena construída coletiva-
mente, que contempla os programas de Ade-
quação Institucional, Fortalecimento das Es-
colas e Formação de Professores, tem sido um
novo desafio na continuidade do processo
deflagrado a partir do Projeto Tucum.
Bibliografia
GOVERNO DO ESTADO DO MATO GROSSO.
Plano de
Meta, 1995/2006
– plano estratégico. Estudos prelimi-
nares. Cuiabá, 1994.
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balho pedagógico. Cuiabá: SEE/MT, 1996. p. 30-35.
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de Mato Grosso (CEI/MT).
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Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Entre-
linhas, 1997.
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A construção coletiva de uma política de
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SEE/MT, 2000a.
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Tucum:
monitores, docentes, consultores, cursistas e
coordenadores. Cuiabá: SEE/MT, 2000b.
SECCHI, Darci.
Diagnóstico da Educação Escolar Indíge-
na em Mato Grosso
. Cuiabá: PNUD/Prodeagro, 1995.
1
Trata-se de um programa de desenvolvimento agroambiental implementado em Mato Grosso, com recursos do Banco Mundial.
187
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
99
99
9
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang
Arlene Bonfim
188
Resumo
Este trabalho quer enfocar a situação pela
qual a Educação Indígena passou com a chegada
dos europeus às Américas, quando houve uma
grande desestruturação na educação. Marcado por
grandes conquistas de terra, esse momento fez
com que ocorressem drásticas transformações na
vida política, social e cultural dos povos indíge-
nas. Sendo assim, os povos indígenas foram sub-
metidos a uma nova visão de sociedade, seguin-
do o modelo europeu.
Essa nova visão de sociedade imposta obrigou
os povos indígenas a se organizar para fazer frente
aos novos desafios propostos pela sociedade oci-
dental. Nesse sentido, foram organizados vários
encontros e cursos de formação de professores
Kaingang, para garantir uma reflexão em face dos
desafios impostos aos povos indígenas do Brasil.
A Educação Indígena passou por um proces-
so de desestruturação desde a chegada da co-
lonização européia nas Américas, há quinhen-
tos anos. Esse momento de conquista das ter-
ras e extermínio dos povos e suas culturas fez
com que o mundo indígena passasse por uma
dura transformação política, econômica, social
e cultural. Assim, a educação tradicional dos
povos passou a ter uma nova visão, européia,
uma educação que não respeita as diferenças
existentes entre as sociedades, dessa maneira
criando conflitos de identidade cultural e de
nação. Se pensarmos no Brasil, veremos que não
existe uma educação que busque a formação do
cidadão e sim uma formação voltada para o
mercado de trabalho.
Quando se trata de Educação Indígena, ve-
remos que, passado o século XX, ainda não te-
mos uma Educação Indígena estruturada com
suas especificidades e cujos educadores possu-
am a devida formação que garanta um ensino
de qualidade para as mais variadas culturas e
realidades existentes no Brasil. Falando nisso,
ainda recentemente muitas escolas localizadas
em terras indígenas encontravam-se fora dos
sistemas de ensino dos estados, sendo, portan-
to, “clandestinas. Nessas escolas, a maioria dos
professores tem formação de Magistério, em
nível de Ensino Médio, mas parte desses docen-
tes não concluiu o Ensino Fundamental. Isso
dificulta o ensino e a aprendizagem dos alunos
indígenas e a prática da língua materna com a
alfabetização, como está garantida na Consti-
tuição de 1988. Isso sem contar que o professor
indígena não conta com estímulos para a sua
prática pedagógica.
A Constituição brasileira garante que a es-
cola indígena tem que ter tratamento diferen-
ciado, respeitando-se a especificidade de cada
sociedade indígena. No artigo 210, estabelece
que o Ensino Fundamental deve ser ministra-
do na Língua Portuguesa, respeitando e asse-
gurando às sociedades indígenas a utilização de
suas línguas maternas. Essa garantia é assegu-
rada e regulamentada na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, de 1996, que ain-
da estabelece a articulação dos sistemas de edu-
cação para a oferta da Educação Escolar Indí-
gena em forma bilíngüe e intercultural, de
modo que garanta a recuperação de sua cultu-
ra e sua história étnica.
Diante da situação que a Educação Indíge-
na estava vivendo no final do século XX, as co-
munidades indígenas, representadas por suas
lideranças, tomaram a iniciativa de buscar al-
ternativas para a situação educacional dos
Kaingang do sul do Brasil. As lideranças e os
professores Kaingang começaram uma longa
discussão com entidades interessadas na Edu-
cação Indígena. As alianças com universidades,
Experiência em formação
de professores
Bruno Kaingang
Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG)/PR
189
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 9
professores e organizações não-governamentais
possibilitaram que a educação Kaingang tomas-
se rumos mais consistentes, surgindo então o
primeiro curso de Magistério de Ensino Médio.
Essa necessidade é visualizada pela histó-
ria de luta dos Kaingang, pois a população es-
tava crescendo; hoje, são cerca de 30 mil pes-
soas e com índice de crescimento constante.
Situando-se em mais de trinta comunidades
Kaingang no sul do país, eles se encontram en-
tre os cinco povos indígenas mais populosos
do Brasil.
Além disso, o número de professores não-
indígenas era superior ao de professores indí-
genas. Grande parte destes professores não tem
nenhuma formação específica para trabalhar
com Educação Indígena, possuindo somente o
Magistério. Isso sem contar que a maioria de-
les vê o indígena com a mesma carga de estere-
ótipo que a população regional, o que seria su-
ficiente para prejudicar o desenrolar do proces-
so escolar sob sua orientação. Para piorar essa
situação, as escolas das comunidades indígenas
tinham a mesma organização curricular e o
material didático das demais escolas da rede
pública. Além disso, muitas escolas ainda con-
tinuam adotando orientação das Secretarias de
Educação sem nenhuma especificidade.
Diante disso, e apoiados na Constituição de
1988, os professores criam a sua própria orga-
nização jurídica, a Associação dos Professores
Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG), e come-
çam uma discussão mais acirrada sobre a im-
plantação do ensino específico diferenciado.
Dessa luta, surge então o primeiro curso de
Magistério específico para os professores
Kaingang, já citado, que começa em 1993, gra-
ças às alianças feitas pela Universidade de Ijuí,
o Conselho de Missão entre Índios (Comin), o
Conselho Indigenista Missionário, a Secretaria
da Educação do Estado do Rio Grande do Sul e
a APBKG, com apoio financeiro do Ministério
da Educação, formando então ou diplomando,
em 1996, 22 professores, com habilitação espe-
cífica para trabalhar educação bilíngüe e
intercultural nas escolas Kaingang.
Esses professores Kaingang passam a atuar
em suas comunidades e a ter uma ligação mais
afetiva com as pessoas da comunidade escolar,
criando, então, a necessidade de ampliar o qua-
dro de professores mais críticos no que se refe-
re às questões indígenas e não só à educação,
pois para os índios a educação não está
desvinculada da vida e de todas as relações exis-
tentes no seu mundo. Dessa maneira, formam-
se as novas lideranças em suas comunidades,
chamando para si a responsabilidade da cons-
trução das mais diversas demandas existentes
nas terras indígenas. Com o objetivo de fazer
uma educação de qualidade e uma formação de
cidadãos críticos na busca de melhoria para to-
dos, esses professores nunca perdem de vista
as alianças formadas em torno da educação.
Com uma clareza maior da Educação Indí-
gena, surge a necessidade de aperfeiçoamento
desses professores Kaingang e de ampliação do
quadro de professores; reiniciam-se as lutas por
formação continuada e formação inicial. Sur-
gem vários encontros de formação promovidos
pela Secretaria da Educação do Estado e outros
realizados pelos próprios professores Kaingang.
Nesses encontros, a participação das lideranças
(caciques) é muito importante, pois são elas que
vão garantir e dar suporte político para os pro-
fessores atuarem e pensarem novas alternativas
para as comunidades Kaingang.
Por outro lado, o número de professores ain-
da era insignificante, e o de professores não-in-
dígenas continuava sendo maior, como é até
hoje. A tão esperada educação de qualidade es-
tava – e permanece – distante, pois a desquali-
ficação dos professores para trabalhar com in-
dígenas ainda não tinha sido superada; para
piorar isso, possuem em suas mãos as direções
dessas escolas nas terras indígenas.
Com isso, surge a discussão sobre a auto-
nomia nas escolas indígenas, pois as escolas em
terras indígenas adotavam todo o sistema das
escolas tradicionais. Assim, a necessidade de
formação ainda é maior, pensando então em
garantir um controle da administração da es-
cola, seja pedagógico ou administrativo. Isso
garantiria uma aproximação maior às es-
pecificidades de cada comunidade Kaingang,
com maior qualidade do ensino e com a práti-
ca do bilingüismo em todas as escolas situadas
nas comunidades.
Pensando na ampliação, na conquista da
190
autonomia e na garantia da recuperação do es-
paço perdido ao longo do tempo na formação
dos professores Kaingang, surgiu no ano 2000 a
discussão sobre a formação de novos professo-
res Kaingang. Desse modo, a Funai, a Universi-
dade de Passo Fundo, a Universidade de Ijuí, as
lideranças indígenas e a APBKG, com o apoio
da Prefeitura Municipal de Benjamin Constant
do Sul, começam o processo de discussão, vi-
sando atingir a garantia da especificidade da
Educação Kaingang e a conquista da autonomia
educacional nas terras indígenas.
Essa idéia de formação de uma nova turma
de professores concretiza-se em janeiro de
2001, sendo iniciada, então, a formação de mais
uma turma de professores com um número de
cem professores Kaingang, divididos em dois
núcleos estratégicos no Rio Grande do Sul: um
na terra indígena de Guarita, Município de Re-
dentora, e outro no Município de Benjamin
Constant do Sul, RS.
Mais uma vez, as lideranças dessas comu-
nidades estão presentes com seu apoio aos pro-
fessores, acompanhando todas as discussões no
que diz respeito à educação e às questões que
envolvem suas comunidades, pois a situação
hoje enfrentada pelos indígenas não é diferen-
te daquela que todos nós estamos acostumados
a ver ao longo dos quinhentos anos de nosso
país. Certamente, não será essa luta por forma-
ção que irá garantir a existência das comunida-
des indígenas, mas também a insistência na
busca por uma sociedade mais justa em que
cada professor seja mais um instrumento de
luta por melhoria em todos os setores da socie-
dade.
A Educação Escolar Indígena
no Estado do Amazonas:
Projeto Pira-Yawara
Arlene Bonfim
Seduc/AM
Introdução
Integrando-se aos dispositivos legais da
Constituição de 1988 e à LDB/96, que asseguram
o uso e a manutenção das línguas maternas e o
respeito aos processos próprios de aprendiza-
gem das sociedades indígenas no processo es-
colar, é que o estado do Amazonas, por meio da
Secretaria de Estado da Educação e Qualidade
do Ensino (Seduc/AM), vem garantindo os direi-
tos indígenas, ao coordenar e executar a política
de Educação Escolar Indígena, com prioridade
atribuída à formação de professores.
Considerando não somente os preceitos le-
gais estabelecidos, o estado do Amazonas vem
atendendo, fundamentalmente, aos interesses e
às necessidades demonstradas pelas comunida-
des indígenas, que passam a gerir seus proces-
sos próprios de aprendizagem e a ocupar seus
espaços diante da sociedade majoritária, ao
mesmo tempo que lhes garante o direito a uma
escola com características específicas, que bus-
que a valorização de seu conhecimento tradici-
onal, fornecendo-lhes, ainda, instrumentos para
enfrentar o contato com outras sociedades.
Para atender a esse grande desafio, elaborou-
se o Projeto Pira-Yawara, que tem como objeti-
vo assegurar condições de acesso e de perma-
nência na escola à população escolarizável na
educação básica nas terras indígenas, garantin-
do uma educação diferenciada, específica,
191
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 9
Estrutura organizacional do programa
Ensino Fundamental
Ensino Médio/Normal
Total geral
Modalidade
N
o
de etapas
Etapa letiva
intensiva
Atividade
complementar
Total (h/a)
Etapa letiva intermediária
Estágio
superior
Estágio
não-
superior
5
4
9
2.300
1.710
4.010
900
250
300
140
440
3.200
2.400
5.600
intercultural, bilíngüe, comunitária e de quali-
dade que responda aos anseios desses povos.
Ações do Projeto Pira-Yawara
• Formação inicial de professores indígenas.
• Formação continuada de professores indí-
genas.
• Formação continuada de técnicos das Se-
cretarias Municipais de Educação.
• Assessoria técnico-pedagógica e adminis-
trativa às Secretarias Municipais de Educa-
ção (Semeds).
• Formação continuada de técnicos da Secre-
taria de Estado da Educação e Qualidade do
Ensino (Seduc/AM).
• Diagnóstico lingüístico e antropológico da
realidade indígena no estado do Amazonas.
• Desenvolvimento e fomento do uso das lín-
guas indígenas no estado do Amazonas.
• Produção, editoração, publicação e distri-
buição de material didático específico e di-
ferenciado.
• Publicações didático-pedagógicas.
• Distribuição de material escolar e didático-
pedagógico.
Formação inicial de professores
indígenas
Concepção
• Formulação de uma política cultural que
atribua lugar e função à escola indígena por
meio da participação efetiva dos professo-
res, em conjunto com suas comunidades.
• Programa de formação como espaço insti-
tucional, que sirva de fórum de discussão e
de debate, para que as comunidades indíge-
nas possam determinar a formulação de uma
política lingüística a serviço da qual a escola
estará atuando.
• A escola indígena deve ser diferenciada, es-
pecífica, intercultural, bi/multilíngüe, comu-
nitária e de qualidade.
• Aprendizado via pesquisa como forma de
compreensão da realidade, no qual os
etnoconhecimentos se aliem às diferentes in-
formações e aos conhecimentos técnico-cien-
tíficos. Nesse enfoque, a produção do conhe-
cimento é mais importante do que sua repro-
dução. Por meio da pesquisa, os componen-
tes curriculares passam a ter por função pos-
sibilitar a reflexão, a compreensão crítica da
realidade e a capacidade de atuação sobre a
situação sociocultural do povo em questão.
Objetivo
Formar os professores indígenas que estão
em sala de aula nas comunidades indígenas,
como professores pesquisadores de seu próprio
universo cultural, possibilitando-lhes condições
para gerir seus processos próprios de aprendi-
zagem e fortalecendo a identidade étnica de seus
membros.
Forma de execução
Etapas letivas intensivas. Ensino presencial,
num posto indígena ou numa aldeia, sob a
orientação de docentes das diferentes áre-
as do conhecimento.
Etapas letivas intermediárias. Atividades de-
senvolvidas pelo professor na comunidade.
1.150
192
Formação continuada de professores
indígenas
Ao reconhecer a necessidade de formação
inicial e continuada dos próprios índios para
atuarem como professores de suas comunida-
des, a Secretaria de Estado da Educação e Qua-
lidade do Ensino (Seduc/AM) vem implementar
a Política Estadual de Educação Escolar Indíge-
na, assegurando a autonomia das escolas indí-
genas tanto no que se refere à construção de seu
projeto político-pedagógico, quanto à partici-
pação plena de cada comunidade nas decisões
relativas ao funcionamento dessas escolas.
Adequado às peculiaridades culturais dos
diferentes grupos, o Programa de Formação
Continuada de Professores Indígenas tem
como objetivo capacitar os professores indíge-
nas para a elaboração de currículos específi-
cos para suas escolas, respeitando os modos
de vida dos índios, suas visões de mundo e as
situações sociolingüísticas específicas por eles
vivenciadas.
Os cursos têm duração de 120 horas/aula e
são realizados nas sedes dos municípios, ou em
alguma aldeia indígena, conforme decisões to-
madas pelas lideranças e pelos professores in-
dígenas, em conjunto com os representantes
das Secretarias Municipais de Educação, sob a
orientação da Gerência de Educação Escolar
Indígena – Seduc/AM.
Os processos de discussão e de reflexão crí-
tica da realidade ocorridos no contexto do cur-
so, no qual questões relevantes vão surgindo a
partir dessas discussões e da própria atuação
docente, são gerados com base nos pressupos-
tos históricos e legais da educação em geral e
da Educação Escolar Indígena em particular, os
quais auxiliarão os professores indígenas na
construção dos projetos político-pedagógicos
de suas escolas antes mesmo de sua formação
inicial.
Temáticas desencadeadoras do processo
de discussão do grupo
• Base legal e conceitual da Educação Esco-
lar Indígena
• Referencial Curricular Nacional para as Es-
colas Indígenas (RCNEI)
Formação continuada de técnicos das
Secretarias Municipais de Educação
A Portaria Interministerial nº 559/91, de 16
de abril de 1991, determina no seu artigo 7º:
[...] que os profissionais responsáveis pela
Educação Indígena, em todos os níveis, sejam
preparados e capacitados para atuar junto às po-
pulações étnicas e culturalmente diferenciadas
sejam eles da Funai, das Secretarias Estadu-
ais ou Municipais de Educação e ONG, a fim de
[...] garantir às comunidades indígenas uma
educação escolar básica de qualidade, laica e
diferenciada, que respeite e fortaleça seus cos-
tumes, tradições, línguas, processos próprios de
aprendizagem e reconheça suas organizações
sociais (artigo 1).
As Secretarias Municipais de Educação do Es-
tado, na sua maioria, às quais grande parte das es-
colas das terras indígenas está subordinada, ainda
apresentam sérias dificuldades quanto à compre-
ensão e à aceitação da existência dessas escolas e
criam resistências quanto à implementação de
novos modelos de educação, como também à ofer-
ta da Educação Escolar Indígena municipal.
Além do mais, os recursos humanos que
compõem o quadro técnico dessas Secretarias
são reduzidos e não possuem formação adequa-
da para atendimento às peculiaridades culturais
dos diferentes grupos indígenas, de modo que
possam garantir o apoio e o acompanhamento
pedagógico às escolas indígenas.
Com base nos preceitos legais estabelecidos e
nos direitos fundamentais conquistados pelos po-
vos indígenas, a Seduc/AM, por meio da Gerência
de Educação Escolar Indígena, vem garantindo e
assegurando a qualidade do Programa de Forma-
ção Continuada de Técnicos das Secretarias Mu-
nicipais de Educação, capacitando-os no domínio
da metodologia e das bases legais e conceituais que
regem a política de Educação Escolar Indígena no
estado e no país para o trato com essas popula-
ções e apoio às escolas indígenas na formulação
de seus projetos político-pedagógicos.
O Programa de Formação Continuada de
Técnicos das Secretarias Municipais de Educa-
193
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 9
ção tem como proposta a discussão de temas que
possam contribuir para a reflexão e a implemen-
tação de novas políticas e de práticas pedagógi-
cas e curriculares em áreas indígenas.
É executado nas sedes municipais, em cursos
de 120 horas/aula, e conta, geralmente, com a par-
ticipação de diretores e professores de escolas
municipais e professores indígenas, bem como de
representantes de instituições locais ligadas à pro-
blemática indígena, sejam governamentais ou
não-governamentais, sob a orientação da Gerên-
cia de Educação Escolar Indígena (Seduc/AM).
Temáticas básicas do programa
• Projeto Pira-Yawara, fundamentação e
operacionalização.
• Base legal da Educação Escolar Indígena,
cumprimento e legalidade constitucional.
• Base conceitual da Educação Intercultural,
com ênfase nos conceitos básicos de cultu-
ra, diversidade cultural, cultura lingüística,
etnocentrismo e relativismo cultural.
• Referencial Curricular Nacional para as Es-
colas Indígenas (RCNEI), como instrumento
formativo e de reflexão das novas intenções
educativas que devem orientar as políticas
públicas educacionais para as escolas indí-
genas brasileiras.
• Proposições para o desenvolvimento da Polí-
tica de Educação Escolar Indígena Municipal.
Também durante o Programa de Formação
Inicial e Continuada de Professores Indígenas,
são capacitados em serviço técnicos e coorde-
nadores pedagógicos das Secretarias Municipais
de Educação, de modo que possam participar
das discussões e, dessa forma, acompanhar as
atividades relativas ao processo de Educação
Escolar Indígena nas escolas indígenas.
Assessoria técnico-pedagógica e
administrativa às Secretarias
Municipais de Educação
Com o compromisso legal de instrumentalizar-
se, definindo metas e ações de Educação Escolar
Indígena que atendam às demandas das comuni-
dades indígenas e às diretrizes estabelecidas pelo
Ministério da Educação, a Secretaria de Estado da
Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM) vem
desenvolvendo uma política de articulação e de
cooperação técnico-administrativa e financeira
com os municípios do estado, apoiando e fortale-
cendo, na estrutura organizacional das Secretarias
Municipais de Educação, o desenvolvimento de
uma política municipal de Educação Escolar Indí-
gena, em consonância com a política estadual e
com as diretrizes nacionais, política essa que con-
sidere a diversidade étnica do estado do Amazo-
nas, os diferentes níveis de contato dessas etnias
com a sociedade local e nacional e as peculiarida-
des regionais.
Para atender a essa finalidade, a Secretaria
de Estado de Educação e Qualidade do Ensino
(Seduc/AM), por meio da Gerência de Educação
Escolar Indígena, vem desencadeando nos mu-
nicípios envolvidos no processo de escolariza-
ção dos povos indígenas uma série de ativida-
des que, direta ou indiretamente, servem de in-
centivo e promoção da melhoria da Educação
Escolar Indígena, fortalecendo e valorizando a
língua materna, as expressões culturais e artísti-
cas, a história, o exercício pleno da cidadania e
da interculturalidade e demais conhecimentos
desses grupos étnicos que habitam o Amazonas,
bem como apoiando outras atividades que tam-
bém participam do processo educacional, como
as de saúde, educação ambiental, cidadania e
direitos humanos.
Diante desse quadro, o Programa de Asses-
soria Técnico-Pedagógica e Administrativa às
Semeds tem como proposta o desenvolvimento
de ações que possam contribuir para o incenti-
vo, a promoção, a implantação e/ou a implemen-
tação de políticas e de práticas pedagógicas e
curriculares para as escolas indígenas.
Principais ações
• Assessoramento à elaboração e apoio aos
projetos de Educação Escolar Indígena em
andamento que tenham o reconhecimento
das comunidades indígenas.
• Incentivo à implantação de projetos que vi-
sem à melhoria da Educação Escolar Indíge-
na, bem como a realização de cursos de for-
mação de professores indígenas nas regiões
onde os grupos étnicos ainda não dispõem
de iniciativas dessa ordem.
194
• Incentivo a uma política de articulação en-
tre os vários segmentos locais à problemáti-
ca indígena, sejam governamentais ou não-
governamentais, bem como o estabeleci-
mento de parcerias, para que juntos possam
apoiar e garantir o desenvolvimento das
ações relativas à Educação Escolar Indígena.
• Incentivo e apoio à criação de uma coorde-
nação ou setor responsável pela implemen-
tação de programas de Educação Escolar In-
dígena na estrutura organizacional das Se-
cretarias Municipais de Educação.
• Orientações quanto à política indigenista
brasileira e à legislação de ensino atual que
trata da Educação Escolar Indígena, desta-
cando a importância de seu cumprimento e
legalidade constitucional.
• Orientações quanto aos princípios gerais a
serem observados no desenvolvimento de
projetos e programas municipais de Educa-
ção Escolar Indígena, conforme estabelecem
as Diretrizes para a Política Estadual e Nacio-
nal de Educação Escolar Indígena.
• Promoção de estudos e discussão sobre as
bases conceituais da educação intercultural.
• Orientações quanto ao reconhecimento ofi-
cial e à regularização legal de todos os esta-
belecimentos de ensino localizados no inte-
rior das terras indígenas, no que se refere ao
calendário escolar, metodologia e avaliação
adequados à realidade sociocultural das co-
munidades indígenas.
• Orientações quanto à utilização do Referen-
cial Curricular Nacional para as Escolas In-
dígenas (RCNEI) como instrumento de dis-
cussão e implementação de políticas e prá-
ticas pedagógicas e curriculares em terras
indígenas.
• Proposições para o desenvolvimento da Po-
lítica Pública de Educação Escolar Indígena
para o município, entre outras.
Formação continuada de técnicos
da Secretaria de Estado da Educação
e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)
O documento O Governo Brasileiro e Educação
Escolar Indígena (1995-1998), elaborado pela Secre-
taria de Educação Fundamental (SEF/MEC) afirma:
A proposta de uma escola indígena diferenciada
representa uma grande novidade no sistema edu-
cacional do País e exige das instituições e órgãos
responsáveis a definição de novas dinâmicas,
concepções e mecanismos, tanto para que essas
escolas sejam de fato incorporadas e beneficia-
das por sua inclusão no sistema oficial quanto
respeitadas suas peculiaridades.
Cabe lembrar, então, que a Educação Indíge-
na, por seu caráter diferenciado, requer um qua-
dro de técnicos devidamente preparados para atu-
ar nas comunidades indígenas. Dessa forma, é fun-
damental que o estado disponha de um programa
de formação para a sua equipe técnica, que sirva
de incentivo e apoio à implantação das novas po-
líticas públicas de Educação Escolar Indígena.
Daí a necessidade de a Secretaria de Estado
da Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)
manter e preparar uma equipe de técnicos es-
pecialistas das diferentes áreas do conhecimen-
to para atuar, no âmbito das Secretarias Munici-
pais de Educação, no assessoramento de seus
quadros técnicos para a oferta de educação es-
colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-
nas, produção de material de informação e
acompanhamento e avaliação da qualidade das
ações relativas à Educação Escolar Indígena.
O Programa de Formação Continuada de
Técnicos da equipe central tem como proposta
a construção e o desenvolvimento de habilida-
des e competências para que os técnicos bus-
quem e aprofundem seus conhecimentos, am-
pliando seu quadro de referência, de modo que
sirvam de incentivo e apoio à implementação
das novas Políticas Públicas de Educação Esco-
lar Indígena nas esferas estadual e municipal.
Sem a composição e a manutenção de equi-
pes de técnicos e consultores, não seria possível
executar as linhas de ações estabelecidas pela
Secretaria de Estado da Educação e Qualidade
do Ensino (Seduc/AM) para o desenvolvimento
da Política Pública de Educação Escolar Indíge-
na no Estado do Amazonas, dada a diversidade
de povos que habitam nossa região.
Para isso, vem contando com uma consultoria
especializada, integrada por profissionais com ex-
periência reconhecida e comprovada no campo
da Educação Escolar Indígena, composta por
195
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 9
sociolingüista, antropólogo, especialista em
etnoconhecimentos e Educação Escolar Indíge-
na, os quais realizam atividades temporárias de
capacitação da equipe técnica central e de acom-
panhamento e avaliação das ações de Educação
Escolar Indígena desenvolvidas pela Gerência, ou
mesmo executam trabalhos mais pontuais desti-
nados à estruturação e ao desenvolvimento da
própria Gerência de Educação Escolar Indígena –
Seduc/AM.
A formação continuada
e o aperfeiçoamento dos técnicos da
equipe central dão-se por meio de diversas
providências, de modo que possam:
• assessorar os professores indígenas na pro-
dução de materiais didático-pedagógicos, na
construção de currículos, metodologias e sis-
temas de avaliação, no contexto dos progra-
mas de formação;
• atuar como docentes em curso de formação
inicial e/ou continuada de professores indí-
genas;
• assessorar as Secretarias Municipais de Edu-
cação;
• colaborar com idéias criativas e buscar solu-
ções inovadoras que sirvam de base para im-
plantar e desenvolver uma educação transfor-
madora;
• participar de cursos e eventos relacionados
com Educação Indígena (seminários, congres-
sos, reuniões, encontros pedagógicos de pro-
fessores indígenas, debates etc.) ou com ou-
tras áreas afins ou de interesse da Gerência,
como lingüística, antropologia, ecologia, pe-
dagogia, saúde e outras;
• estagiar em instituições governamentais ou
não-governamentais com projetos em reali-
zação na área de Educação Escolar Indígena;
• realizar estudos e pesquisas para atualização
de informações, e outras.
Durante a realização dos cursos de capacitação
de equipe técnica central, também são convocados
os técnicos das Secretarias Municipais de Educação
que atuam nas escolas indígenas, bem como os pro-
fissionais representantes de instituições envolvidas
na questão da Educação Escolar Indígena.
Diagnóstico lingüístico
e antropológico da realidade indígena
no estado do Amazonas
O Governo do Amazonas, por meio da Secre-
taria de Estado da Educação e Qualidade do En-
sino (Seduc/AM), considera necessário realizar
um diagnóstico da situação da Educação Esco-
lar Indígena. A intenção é realizar um quadro de
expectativas para referenciar os procedimentos
da Gerência de Educação Escolar Indígena e,
conseqüentemente, levar a bom termo as ações
do governo do estado.
O diagnóstico tem como propósito não simples-
mente gerar dados, mas inserir a discussão e a ela-
boração das informações no contexto da formação
dos professores. Assim, é possível colocar os pro-
fessores indígenas em conexão com outras realida-
des – a aldeia, o povo, a região –, além de estabele-
cer um processo pedagógico por meio da coleta de
dados. Tal iniciativa corresponde ao método de tra-
balho que vem sendo desenvolvido na formação de
professores indígenas, qual seja, a ênfase na pesqui-
sa durante o processo de aprendizagem.
Para que o tratamento dado pelas políticas pú-
blicas à educação escolar esteja em consonância
com o que as comunidades indígenas, de fato,
querem e necessitam, é preciso que os sistemas
educacionais estaduais e municipais considerem
a grande diversidade cultural e étnica dos povos
indígenas no Brasil e revejam seus instrumentos
jurídicos e burocráticos, uma vez que tais instru-
mentos foram instituídos para uma sociedade
que sempre se representou como homogênea
(Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas, p. 12).
O planejamento da Educação Escolar Indígena,
em cada sistema de ensino, deve contar com a
participação de representantes de professores
indígenas, de organizações indígenas e de apoio
aos índios, de universidades e órgãos governa-
mentais. (Resolução CEB nº 3, de 10/11/1999)
Principais ações
• Realizar um levantamento e estabelecer con-
tato com todos os projetos de Educação Es-
colar Indígena em curso no Amazonas.
196
• Estabelecer prioridades junto às populações
que reivindicam Educação Escolar Indígena,
mas que não contam com nenhum apoio
institucional.
• A discussão da forma como deve se desen-
volver cada levantamento deve contar com
a participação de representantes indígenas,
que serão colaboradores em todos os senti-
dos: poderão dizer qual a melhor época para
a realização dos trabalhos (questões climá-
ticas e atividades econômicas, por exemplo,
podem influenciar) e poderão ajudar a defi-
nir quais as informações importantes para
constar no levantamento.
• Realizar um amplo diagnóstico da situação
da população indígena que habita zonas ur-
banas de todo o estado.
Desenvolvimento e fomento
do uso das línguas indígenas no
estado do Amazonas
Do Projeto Pira-Yawara decorre uma preocu-
pação com o uso efetivo das línguas indígenas
do povo em questão, normalmente a única lín-
gua conhecida pela criança que chega à escola,
o que implica dizer estímulo a que os professo-
res indígenas preparem seus materiais didáticos
e de leitura na Língua Indígena e não (somente)
em Português. Exemplos disso são os livros pu-
blicados até o momento pelo projeto.
No entanto, as línguas indígenas, que são lín-
guas de minorias muito pequenas diante do
grande número de falantes de Português, neces-
sitam de uma política de desenvolvimento e fo-
mento do uso para que possam ser utilizadas
com plenitude também em áreas outras que não
a da cultura tradicional, que se fazem necessá-
rias para a vida dos índios na e com a sociedade
contemporânea. Assim, como ocorreu em tan-
tos outros países, as línguas indígenas podem ser
instrumentalizadas para que expressem aspec-
tos da tecnologia e da sociedade brasileira e/ou
ocidental, o que permite que continuem sendo
utilizadas nas novas condições que vão se colo-
cando para os povos indígenas. O trabalho de
desenvolvimento lingüístico visa justamente
ampliar o campo de uso das línguas minoritárias
para que não deixem de ser utilizadas por insu-
ficiência expressiva (por exemplo: no ensino de
Matemática na escola em uma Língua Indígena,
ou para elaborar um projeto de piscicultura, pro-
jeto de informática etc.).
Tem sido demanda dos povos indígenas no
Amazonas, por exemplo, dos Munduruku de
Borba, ou dos Desano de São Gabriel da Cacho-
eira, bem como dos Mura de Autazes, que o Es-
tado colabore nos seus projetos político-lingüís-
ticos de recuperar, salvaguardar ou fomentar o
uso das suas línguas, de modo que elas possam
efetivamente ser utilizadas no processo educa-
tivo e em todas as outras situações.
Principais ações
• Responder às demandas dos povos indíge-
nas para apoiar o processo de recuperação,
desenvolvimento e fomento do uso das lín-
guas indígenas no estado do Amazonas.
• Elaborar e executar projetos na área de de-
senvolvimento das línguas indígenas, para-
lelamente ou não aos cursos de formação de
professores do Projeto Pira-Yawara, em par-
ceria com organizações indígenas e com en-
tidades especializadas na área.
• Manter um programa editorial próprio nas
línguas indígenas no estado do Amazonas.
Produção, editoração, publicação
e distribuição de material didático
específico e diferenciado
Esse programa tem como proposta instituir,
entre os professores, a formação de índios como
pesquisadores de seu próprio universo cultural
e, igualmente, como escritores e redatores de
material didático-pedagógico em suas Línguas
Maternas e/ou Portuguesa, referentes aos
etnoconhecimentos de suas sociedades.
Encaminhadas pelos vários componentes que
integram a estrutura curricular do Programa de
Formação de Professores, as atividades de pesqui-
sa, como princípio metodológico do programa,
desencadeiam a interpretação, a construção e a
reelaboração de conhecimentos gerados a partir
da reflexão sobre a realidade socioeconômica,
cultural e lingüística de cada povo indígena en-
volvido no processo, em que os etnoconhecimen-
197
Experiências de formação de professores indígenas
PAINEL 9
tos, aliados às diferentes informações oriundas
dos conhecimentos técnico-científicos, expres-
sam claramente a importância da produção des-
ses materiais, ao instituir entre os professores não
somente a autoria de cada um dos materiais por
eles próprios escritos, mas, principalmente, ao
eliminar a grande distância entre quem pensa e
quem executa a prática educativa.
A ênfase dada ao processo de pesquisa per-
mite a produção diversificada de materiais, ora
escritos na Língua Materna, ora escritos na Lín-
gua Portuguesa, por decisão dos próprios pro-
fessores, constituindo-se, assim, em instrumen-
tos de construção curricular desenvolvidos a
partir da realidade, prática social e cultural de
cada professor indígena e integrados à sua prá-
tica docente, para permitir a reflexão sobre seu
efeito pedagógico em sala de aula.
A política de apoio à produção, à editoração
e à publicação de literatura indígena realiza-se
com a distribuição e o acompanhamento desses
materiais nas escolas das aldeias.
Publicações didático-pedagógicas
A coleção Seres vivos é composta de três volu-
mes enriquecidos visualmente. Constituindo a pri-
meira produção escrita, a coleção apresenta, na sua
maioria, textos na Língua Portuguesa, por decisão
dos próprios professores indígenas. A variedade de
seus temas aborda a fauna e a flora da área indíge-
na Sateré-Mawé, que hoje fazem parte do quadro
natural das regiões compreendidas entre os rios
Marau e Urupadi e levam, por seu valor, conteúdo
e forma, à compreensão das inter-relações desse
povo com a natureza e com a cultura.
Huhu’e Hap é um jornal indígena no qual os
conhecimentos lingüísticos dos professores são
ampliados a partir de textos produzidos na lín-
gua materna. É um instrumento pedagógico-
educativo que veicula a divulgação de notícias,
como atividades culturais realizadas nas várias
aldeias encontradas ao longo dos rios Marau e
Urupadi, assembléias indígenas ocorridas na re-
gião, questões ligadas às atividades educativas e
o trabalho realizado pela escola, fatos sociais
cotidianos, entre outras. É seu objetivo servir
como instrumento de uso e aperfeiçoamento da
língua escrita.
Tupana Ewowi Urutuwepy é uma obra lite-
rária produzida inteiramente na língua Sateré-
Mawé. Apresenta cantos religiosos, cantos de
atividades recreativas, de valores que regem a
conduta humana, como a importância da soli-
dariedade, da união, da vida, da necessidade do
saber, da felicidade e do trabalho exercido pelo
professor em sala de aula.
O livro Poesia Sateré-Mawé apresenta uma
literatura em que a sensibilidade, aliada às ques-
tões étnicas e culturais desse povo, é retratada a
partir de cada uma das palavras e mensagens
produzidas. Esse livro reflete a longa trajetória
percorrida pelos professores durante o processo
de produção textual, considerando o desenvol-
vimento das modalidades da fala e escrita.
Sateré-Mawé Mawé Mowe’eg Hap é todo pro-
duzido na língua Sateré-Mawé. É um livro de lei-
turas acompanhadas de atividades escolares, nas
quais os alunos indígenas irão expressar de for-
ma escrita e oral suas idéias e experiências, bem
como reconhecer e aplicar os fatos da língua, de-
senvolvendo temas ligados aos textos.
Produzido na Língua Materna, Sateré-Mawé
Nemahara Hap Ko’i é um livro rico em cores e
detalhes ilustrativos, nos quais os autores apre-
sentam tipos de recreações e de lazer hoje prati-
cados pelas crianças, pelos jovens e pelos adul-
tos das várias aldeias da região.
Os Sateré-Mawé e a arte de construir é uma
obra que relata o poder da criança e o conheci-
mento do povo no domínio e na utilização dos
recursos oferecidos pela natureza, na construção
e na manifestação de sua cultura. Por meio de
textos informativos, que se harmonizam com as
ricas ilustrações, apresenta os mais variados ti-
pos de artesanato ainda hoje confeccionados e
utilizados por esse povo.
O poder curativo das ervas medicinais é na-
turalmente apresentado a partir das diferentes
plantas utilizadas pelos Sateré-Mawé na cura de
suas doenças. Os meios de tratamento, preparo
e uso dos remédios são orientados por meio de
dois livros produzidos, sendo um na Língua Por-
tuguesa, As plantas que curam, e outro na Lín-
gua Materna, Mikoi Mohag Wuat Waku Rakaria
Set Ko’i. O conjunto dessas obras contém ricas
ilustrações sobre as plantas medicinais usadas
pelos índios Sateré-Mawé da região.
A obra Histórias, lendas e mitos Sateré-Mawé
retrata de forma descritiva a riqueza mítica e a
tradição do povo Sateré-Mawé sintetizadas em
suas crenças, objetos sagrados e conhecimentos
acumulados. Os textos são produzidos na Lín-
gua Portuguesa, acompanhados de ilustrações.
Produzida na Língua Portuguesa, a obra Cul-
tura, ambiente e sociedade Sateré-Mawé apresen-
ta os valores da cultura tradicional Sateré-Mawé
relacionados aos modos de vida na aldeia, hábi-
tos, costumes, território habitado e explorado.
Apresenta ainda uma visão crítica do processo
de dominação ao qual os índios foram submeti-
dos ao longo de sua história.
Histórias de vida é uma obra ilustrada produ-
zida na Língua Portuguesa. Apresenta textos que
falam das experiências e dos fatos marcantes ocor-
ridos com os professores ao longo de suas vidas.
O livro Terras das línguas, ricamente ilustrado,
é uma produção recentemente publicada pela
Seduc/AM, produzido no contexto do Programa de
Formação de Professores Indígenas de São Gabriel
da Cachoeira. Apresenta textos escritos em onze
línguas: Baniwa, Desano, Hupd, Kubeo, Kuripako,
Nheengatu, Piratapuia, Tariano, Tukano, Tuyuka e
Wanano, possibilitando práticas pedagógicas
diversificadas e plurilíngües. Os textos abordam
assuntos diferentes, conforme a opção de cada
etnia, que vão desde receitas de remédios caseiros
à mitologia da região.
Aldeias Munduruku é uma obra didática que
retrata a situação atual das aldeias Munduruku,
localizadas ao longo dos rios Canumã e Mari-Mari,
da Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Município de
Borba. Rico em cores e detalhes, apresenta um
conjunto de textos descritivos sobre a história e a
geografia das aldeias, formas de organização, mo-
dos de vida, crenças e costumes práticos do povo.
Concebendo a terra como fonte que gera e
permite a vida, como também sagradas e pro-
fundas as relações que com elas estabelecem, os
professores Munduruku, da Terra Indígena
Coatá-Laranjal, decidiram produzir o livro
Kwata-Laranjal, história e reconquista da terra.
É uma publicação que sintetiza a intenção dos
autores de relatar o processo de demarcação de
suas terras, como também as lutas e os massa-
cres praticados contra eles e por eles contra os
invasores brancos em defesa do território, da
cultura e da própria existência, ao mesmo tem-
po em que demonstram sentimentos de digni-
dade ao partilharem com alegria a reconquista
de suas terras. A obra apresenta textos diversifi-
cados, ricos em detalhes e ilustrações, de valor
cultural e histórico para esse povo.
Sateré-Mawé E´Ko Nimuaria Ko´i,
Koity´iwuaria E´ko, foi escrito na Língua Indíge-
na pelos professores Sateré-Mawé da aldeia Vila
Batista, Rio Mari-Mari. Foi produzido com a in-
tenção de gerar junto aos alunos e à comunidade
processos de discussão e reflexão acerca dos há-
bitos e costumes praticados nos dias de hoje pe-
los habitantes da aldeia, em comparação com os
da cultura tradicional dos antigos.
O livro Chegada dos Sateré-Mawé no Rio Mari-
Mari e organização da Aldeia Vila Batista, escrito
na Língua Portuguesa, inicia-se com um relato so-
bre os acontecimentos que levaram um grupo fa-
miliar Sateré-Mawé a deixar a região do Rio Andirá,
aldeia Ponta Alegre, e a se instalar na Terra Indíge-
na Coatá-Laranjal, do povo Munduruku, Rio Mari-
Mari. Além disso, há uma descrição do caminho
percorrido durante a viagem, falando das dificul-
dades enfrentadas e da organização da nova aldeia,
além dos hábitos e costumes praticados. É uma
obra baseada em fatos reais, que retrata a realida-
de vivida pelos índios no Brasil e que permite uma
reflexão mais ampla sobre os conflitos que emer-
gem entre as culturas branca e indígena.
Distribuição de material escolar
e didático-pedágógico
A Secretaria do Estado da Educação e Quali-
dade do Ensino (Seduc/AM) vem implementando
ações no sentido de prover as escolas indígenas de
recursos materiais e didáticos, tanto no que se re-
fere ao material de apoio ao trabalho do professor,
quanto às necessidades dos alunos em sala de aula.
Para isso, são disponibilizados kits escolares
para professores e alunos indígenas:
Kit do aluno: apontador, borracha, caderno
vertical e de desenho, caneta, cola plástica,
lápis preto, lápis de cor, papel sulfite, régua,
entre outros.
Kit do professor: caderno universitário, car-
tolina, caneta, fita gomada, papel madeira,
pincel atômico e régua de 30 centímetros,
entre outros.
199
PP
PP
P
AINEL AINEL
AINEL AINEL
AINEL
1010
1010
10
PRÁTICA DE SALA DE AULA NA
ESCOLA INDÍGENA
Yolanda dos Santos Mendonça
Alzenira Felipe Marques
200
Resumo
Construir uma escola a serviço dos interesses
dos povos indígenas e gerenciada por índios, as-
sumindo um papel fundamental na medida em
que se cristaliza como um novo ator social, dinâ-
mico e atuante, em processo construtivo e infor-
mativo, voltado para uma educação específica, di-
ferenciada e de qualidade, visando à orientação e
à formação de cidadãos índios com espírito críti-
co e tomadas de decisões rápidas e eficazes no
convívio social; estimular e desenvolver compe-
tências que contribuam para a educação do povo
indígena Potiguara.
O professor índio tem papel desafiante e
articulador para tornar a Educação Escolar Indí-
gena indispensável ao progresso de seu povo, em
direção aos mais nobres ideais, transformando a
escola num espaço privilegiado para análise, dis-
cussão e reflexão da realidade, garantindo o ple-
no desenvolvimento do potencial dos alunos.
Graças à mobilização e à união dos profes-
sores indígenas junto aos Poderes Públicos é
que hoje já avançamos para a continuidade da
vida do planeta. A publicação RCNEI me fez
ver, a partir da análise feita nessa obra, que
seria um ponto de partida para minha profis-
são, na qual tomei como educação transforma-
dora aquela que permite que as informações
adquiridas no decorrer do processo de apren-
dizagem se tornem possibilidades de ações
para a recriação de uma realidade dramática
que nos interpela quotidianamente. Cada povo
indígena que vive no Brasil é dono de univer-
sos culturais próprios e memória de percursos
e experiências históricas diversas. Esse é um
processo sem fim.
Os momentos e as atividades do ensino-
aprendizagem combinam espaços e momen-
tos formais e informais com concepções pró-
prias sobre o que deve ser aprendido. A comu-
nidade é muito importante nesse processo,
pois possui sua sabedoria para ser transmiti-
da e distribuída por seus membros e mostra
valores procedentes próprios de sociedades
originalmente orais, noções próprias cultural-
mente formuladas e variáveis de uma socieda-
de indígena a outra, da pessoa humana e dos
seus atributos, capacidades e qualidades. Há
inúmeras particularidades, mas há caracterís-
ticas comuns. Cada experiência cognitiva e
afetiva carrega múltiplos significados econô-
micos, sociais, técnicos, rituais, cosmológicos.
Admite diversos seres e forças da natureza com
as quais estabelecem relação de cooperação e
intercâmbio, a fim de adquirir e assegurar de-
terminadas qualidades.
Temos que ter autodeterminação para esse
movimento de articulação, pois quem faz a
Educação Escolar Indígena ser específica, di-
ferenciada e de qualidade somos nós, e essa só
será concretizada com a participação direta
dos interessados para garantir a sua realização.
Devem ser oferecidas as condições necessá-
rias para que a comunidade gerencie sua escola,
demonstrando a vitalidade e o desejo de forta-
lecer sua identidade. Os direitos dos povos indí-
genas são coletivos. Temos o direito de decidir
sobre nossa história, nossa identidade, pensan-
do em nossas crianças como parte do presente
para não destruirmos nosso futuro. Temos que
ter a escola como projeto próprio, e dela nos
apropriarmos como instrumento de luta pela
autonomia. Para isso, temos um enorme desafio
diante de inúmeras tensões que podem surgir
* Professora na Paraíba.
Prática de sala de aula
na escola indígena
Yolanda dos Santos Mendonça*
201
Prática de sala de aula na escola indígena
PAINEL 10
com a introdução do ensino escolar. Temos que
ter postura e um trabalho adequado e responsá-
vel de comprometimento como articuladores,
facilitadores, intervindo, orientando, problema-
tizando, sem desconsiderar a atitude de curiosi-
dade dos alunos para com os novos conhecimen-
tos. Temos que formar uma escola da experiên-
cia, da convivência e da clareza.
É importante que nossas crianças apren-
dam sobre a vida de nossos antepassados e a
história mais nova, de mudanças nas aldeias e
dos chefes que lideram nosso povo. É impor-
tante preparar os alunos para que, no futuro,
eles possam continuar nosso trabalho. E a es-
cola pode ajudar a manter nossa cultura, para
que nós possamos manter nosso território. É
preciso abrirmos os olhos e vermos que nesse
território estão plantadas nossas raízes, que
hoje nasceram e se enramaram com uma for-
ça enorme, que cada vez mais desabrocham
para fortalecer a nossa sagrada identidade. São
inúmeras as falsas informações que distorcem
a realidade e impedem as pessoas de melhor
conhecer os índios. Grande parte do nosso
povo desconhece ou pouco sabe sobre os ver-
dadeiros donos desta terra. Devemos romper
com essas informações enganosas, acabar com
esse preconceito que foi e continua sendo res-
ponsável por mortes e doenças no mundo in-
teiro. A terra é nossa subsistência. Ela é supor-
te da vida social e está diretamente ligada às
crenças e aos conhecimentos. A terra somos
nós. Temos que ser dinâmicos e práticos para
que os alunos desenvolvam suas capacidades
e aprendam os conteúdos necessários, para
construírem instrumentos de compreensão da
realidade, com participação, e para assumir a
valorização da cultura de sua própria comuni-
dade, respeitando direitos e diferenças dos
outros povos indígenas.
Por meio de experiências da minha vida co-
tidiana e de contatos com diversas pessoas de
outras etnias, percebi que meu povo cada dia
mais estava sendo enganado e que nossas cri-
anças cada dia mais desconheciam quem eram
na verdade. Foi daí que fiz uma análise e to-
mei a iniciativa de ajudar meu povo, pois as-
sim estarei ajudando a mim mesma. Conver-
sei bastante, mostrei os perigos que estávamos
correndo e fui aos poucos me entrosando com
as lideranças e as comunidades.
Lembrei-me das músicas de Toré, já que as
crianças gostavam de cantar outras músicas e
representar outras danças. Então, a música foi
o meu suporte. Mas músicas que nos fizessem
tocar no coração à vontade e o pulsar do peito,
por uma versão nova. O Toré é uma cultura sa-
grada de cada povo. Tive que me desdobrar para
fazer com que as crianças entendessem que elas
vivem e viverão nossa cultura, até mesmo por-
que muitos não queriam nem saber, pois já es-
tavam muito influenciados pelo outro modelo
educacional. Foi aí que tive que introduzir pro-
cedimentos didático-pedagógicos para que eles
entendessem que somos um todo e, por meio
de leituras e escritas relatadas por eles mesmos,
juntos buscamos informações na nossa própria
família. Fomos montando e descobrindo novi-
dades que serviram de experiências e motiva-
ções para uma realidade da própria criança. No
momento em que trabalhamos cada estrofe da
música do Toré, as crianças ficam curiosas, e
sempre vem o porquê. Quando vamos cantan-
do e apresentando a história do passado do
nosso povo com clareza e confiança, fazemos
um trabalho para desenvolver o que elas ouvi-
ram e visualizaram. Aí começa o interesse para
saber mais: sempre perguntam o que fazer de
agora em diante para não passar pelo que nos-
sos antepassados passaram.
Temos que ter cuidado para não causar im-
pacto, pois muitas crianças se revoltam. O que
temos que fazer é conscientizá-las, para cuidar
do pouco que nos resta. Se assim o fizermos,
vamos conquistar mais, porque o que temos
não é o suficiente para o muito que nos leva-
ram, e só vamos conseguir se juntos lutarmos,
sem medo de conhecer e buscar nossos direi-
tos. Só temos esses direitos se antes cumprir-
mos os nossos deveres. O Toré não é uma dan-
ça qualquer, foi-nos deixada pelos nossos an-
cestrais. Deus deu essa sabedoria a eles e tam-
bém aos velhos e até às pessoas mais novas,
para invocarem os encantados e resolverem
algo. Isso é prova de que nunca estamos sozi-
nhos, sempre temos alguém do nosso lado.
Mostramos às crianças que a mata é a cobertu-
ra da terra. O vento é o respirar dos que já se
202
foram. A água e o rio são o sangue derramado
do nosso povo. A terra é o pó da carne e dos os-
sos dos nossos parentes que já foram plantados.
Gradativamente, fazemos com que as cri-
anças sintam amor pelo que é seu. Mas é pre-
ciso um trabalho árduo e longo, fazer compa-
rações entre o que ouviram e o que são no pre-
sente. Essa é a base, e só será feita se quiser-
* Educadora indígena Tupinikim, Aldeia Caeira Velha, ES.
mos, pois ela interfere na política envolvente
e encaracolada, porque, no momento em que
as crianças e as comunidades descobrem sua
verdadeira história e como ainda estão sendo
tratadas, passam a ter consciência e interfe-
rem nas tomadas de decisões, como também
vão sentir curiosidade em se conhecer melhor
e conhecer seu próprio território.
A Pedagogia do Texto na
prática da sala de aula na Escola
Indígena Tupinikim
Alzenira Felipe Marques*
Preocupados com o resgate da cultura de
nosso povo, estamos procurando enfocar, nas
escolas das aldeias, problemáticas que afetam
nossa vida cotidiana. O relato a seguir centra-
se num exemplo dessas práticas diárias reali-
zadas na comunidade indígena de Caeira Ve-
lha, composta de índios Tupinikim.
Durante um mês, desenvolvemos o tema
“Ecossistema Manguezal”, com o objetivo de
sensibilizar a comunidade indígena para a pre-
servação do mangue que circunda nossa aldeia
e que vem sendo usado como nosso meio de
sobrevivência e reprodução cultural. Nas inú-
meras atividades que foram realizadas, procu-
ramos envolver escola e comunidade.
A problemática levantada ao desenvolver
esse tema foi a seguinte: estudar e compreen-
der de que forma nós, moradores da aldeia,
podemos nos organizar para a preservação des-
se ecossistema, tendo como pano de fundo o
fato de que todo saber corre o risco de se per-
der com o tempo, caso não seja sistematizado
e passado de uma geração à outra.
Descrevendo o manguezal
Com o passar dos anos e com o crescente
número de diversas culturas invadindo nosso
território, o nosso mangue sofreu várias in-
fluências negativas. Buscando conhecer e pre-
servar uma parte de nossa cultura, nós nos pro-
pusemos a desenvolver um projeto em que cada
aluno e seus pais pudessem expor seus conhe-
cimentos e adquirir outros num anseio de pre-
servação da natureza e de sua riqueza cultural.
O manguezal a que estamos nos referindo
é o Piraqueaçu, situado entre Santa Cruz e o
Córrego Fundo, em Aracruz, no Espírito Santo.
Esse manguezal é conhecido por ser um dos
maiores da América Latina.
O manguezal é área preservada, conforme a
Constituição Federal (1988), a Resolução
203
Prática de sala de aula na escola indígena
PAINEL 10
Conama nº 004/85, a Lei nº 6.938/81, a Lei nº
4.771/65 e, no Espírito Santo, a Lei Estadual nº
4.119, de 23/7/1988. Mas acreditamos que essa
mina de tesouro” não deve ser preservada só
porque a lei assim reza, mas porque é um peda-
ço de nós, pois aqui aprendemos e descobrimos
que a vida está nas coisas simples e ao mesmo
tempo grandes.
Cada espécie encontrada nesse manguezal
tem sua beleza e importância. Nesse espaço, en-
contramos moluscos e crustáceos variados: os-
tra, sururu, ameixa (amêijoa), caramujo, buso,
papa-fumo, unha-de-velho, craca, chama-maré,
siri, sapateiro, caranguejo, goiamum etc. Esses
seres vivos podem ser encontrados ao longo de
toda a extensão do Mangue Piraqueaçu.
A maior parte da fauna do manguezal vem
do ambiente marinho, o que não exclui o ter-
restre, pois nele vivem aves, répteis, anfíbios,
mamíferos e insetos. A flora do manguezal é
constituída pela espécie denominada mangue,
a qual possui característica própria e é procu-
rada pelos mariscos para sua proteção. Apesar
de sua beleza e encanto, o manguezal possui
também perigos, o que não intimida aqueles
que dele dependem para o seu sustento.
A Pedagogia do Texto
no estudo do manguezal
Para que os alunos compreendessem o
manguezal do ponto de vista cultural e ao mes-
mo tempo científico, lançamos mão dos prin-
cípios da Pedagogia do Texto, na medida em que
esta valoriza o conhecimento local, cultural e
até mesmo individual do sujeito numa dimen-
são de crescimento.
Orientando-nos por esses princípios, em
um primeiro momento, tentamos descobrir o
conhecimento empírico que os alunos deti-
nham acerca do mangue. Esses conhecimentos
foram primeiro sistematizados em textos indi-
viduais e depois em textos coletivos. Buscamos
relacionar cada saber com o tempo, chegando
ao conhecimento coletivo, tudo isso respeitan-
do a faixa etária de nossos alunos.
Durante a sistematização desses conheci-
mentos, nossa fonte primeira foi a memória
oral dos alunos, dos pais e dos mais velhos da
aldeia, usando para isso entrevistas e pales-
tras. Fizemos também algumas visitas ao
manguezal, onde foram recolhidos diversos
tipos de recursos.
Num segundo momento, selecionamos,
agrupamos e desenvolvemos aulas contextua-
lizadas e interdisciplinares nas quais não havia
fragmentação dos conhecimentos, mas um só
saber. Nessa segunda fase, outro princípio da
Pedagogia do Texto que nos orientou foi o de
confrontar o saber empírico dos alunos e da
comunidade com outros saberes sistematizados
em livros (saberes considerados científicos).
Estudamos flora e fauna, clima, espaço geográ-
fico e outros conteúdos a partir de atividades
variadas, tais como a produção de diferentes
gêneros de textos (argumentativo, explicativo,
dissertativo etc.), teatro de varas, problemas
envolvendo medidas, compra, venda, sistema
monetário, jogos, quebra-cabeças, artesanato
com argila e sementes, desenhos variados.
Finalizamos o nosso estudo com um gosto-
so almoço em que foi servida uma saborosa
moqueca. Tudo isso foi realizado num clima de
seriedade e de busca de conhecimento.
Conclusão
Estivemos diante do desafio que foi para
nós, educadores e educandos, tentar compre-
ender o mangue a partir de diferentes perspec-
tivas. Podemos dizer que atingimos nosso ob-
jetivo e aprendemos, sobretudo, que a preser-
vação do manguezal será de fato uma conquis-
ta quando todos se conscientizarem da sua im-
portância.
Em suma, trabalhar o manguezal não foi ta-
refa árdua e penosa, mas prazerosa tanto para
nós, educadores, quanto para os alunos.
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