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Edições MEC/BID/UNESCO
Conselho Editorial da Coleção Educação para Todos
Adama Ouane
Alberto Melo
Dalila Shepard
Katherine Grigsby
Osmar Fávero
Ricardo Henriques
Volumes publicados
1 - Educação de Jovens e Adultos: uma memória contemporânea
2 - Educação Anti-Racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/2003
3 - Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos
4 - Educação popular na América Latina: diálogos e perspectivas
5 - Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Centro de Documentação e Biblioteca em Educação (CIBEC)
Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas/ Organizador,
SalesAugustodosSantos.–Brasília:MinistériodaEducação,Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
400p.–(ColeçãoEducaçãoparaTodos)
1. Negros. 2. Ações afirmativas. 3. Educação dos negros. I. Brasil. Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. II. Série.
CDU 37(=96)
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Brasília
2005
Copyright 2005. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC)
DepartamentodeEducaçãoparaDiversidadeeCidadania–ArmênioBelloSchmidt
Coordenação-GeraldeDiversidadeeInclusãoEducacional–ElianeCavalleiro
Pareceristas: Ahyas Siss, Alecsandro J. P. Ratts, Amauri Mendes Pereira, Ari Lima, Carlos Benedito R. da Silva,
Fernanda Felisberto, Gislene Aparecida dos Santos, Jeruse Romão, Joaze Bernardino Costa, Maria de Lourdes
Siqueira, Maria Palmira da Silva, Marly de Jesus Silveira, Osmundo A. Pinho e Wilson Roberto Mattos.
Equipe Técnica: Ana Flávia Magalhães Pinto
Denise Botelho
Edileuza Penha de Souza
Maria Lúcia de Santana Braga
Coordenação editorial: Ana Flávia Magalhães Pinto
Maria Lúcia de Santana Braga
Sales Augusto dos Santos
Revisão: Lunde Braghini
Diagramação e Capa: Thiago Gonçalves da Silva
Tiragem: 5.000 exemplares
SECAD–SecretariadeEducaçãoContinuada,AlfabetizaçãoeDiversidade
SGAS Quadra 607, Lote 50, Sala 205
Brasília–DF
CEP: 70.200-670
(61) 2104-6183
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como
pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da Secad, nem comprometem a Secretaria.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de
qualqueropiniãoporpartedaSecadarespeitodacondiçãojurídicadequalquerpaís,território,cidade,
região ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitação de suas fronteiras ou limites.
Sumário
Apresentação
Eliane Cavalleiro ........................................................................................................ 9
Introdução
Sales Augusto dos Santos ....................................................................................... 13
Parte Ações afirmativas e Direito ......................................................... 31
Ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos
Flavia Piovesan ......................................................................................................... 33
A receão do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional
brasileiro
Joaquim B. Barbosa Gomes ................................................................................... 45
Rumo ao multiculturalismo: a adão compulsória de ões afirmativas pelo Estado
brasileiro como reparação dos danos atuais sofridos pela populão negra
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior ............................................................................. 81
Parte Em defesa de ações afirmativas para a inclusão dos negros no
ensino público superior brasileiro ............................................................... 101
Raçaeeducação:oslimitesdaspolíticasuniversalistas
Mário Theodoro e Luciana Jaccoud .................................................................. 103
AçãoafirmativanoBrasil–umdebateemcurso
Carlos Alberto Medeiros ...................................................................................... 121
Ações afirmativas e diversidade étnica e racial
Valter Roberto Silvério ......................................................................................... 141
Branquitudeepoder–aquestãodascotasparanegros
Maria Aparecida Silva Bento ............................................................................... 165
Racismoeimprensa–argumentaçãonodiscursosobreascotasparanegros
nas universidades
André Ricardo Nunes Martins ........................................................................... 179
3º Parte Para além das cotas ....................................................................... 209
EducaçãoePolíticasPúblicasAfirmativas:elementosdaagendadoMinistério
da Educação
Ricardo Henriques e Eliane Cavalleiro ............................................................ 211
A difusão do ideário anti-racista nos pré-vestibulares para negros e carentes
Renato Emerson dos Santos ............................................................................... 229
Auniversidadepúblicacomodireitodos(das)jovensnegros(as)–aexperiência
do Programa Ações Afirmativas na UFMG
Nilma Lino Gomes ............................................................................................... 251
ProjetoPassagemdoMeio–umapolíticadeaçãoafirmativanaUniversidade
Federal de Goiás (UFG)
Sales Augusto dos Santos ..................................................................................... 269
Avaliaçãodapolíticadeaçãoafirmativaparapermanênciadealunosnegros
na UFF
André A. Brandão e Iolanda de Oliveira .......................................................... 289
4º Parte – Ações afirmativas e combate ao racismo na
América Latina ............................................................................................. 311
Domarcohistóricodaspolíticaspúblicasdeaçõesafirmativas–perspectivas
e considerações
Carlos Moore Wedderburn .................................................................................. 313
Ações afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
Mónica Carrillo Zegarra ...................................................................................... 343
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas: convite
à reflexão e ao debate
Tomás Fernández Robaina ................................................................................... 367
Sobre os autores ................................................................................................ 395
9
Eliane Cavalleiro
ApreSentAção
Quinto volume da Coleção Educação para Todos, o livro Ações Afirmativas
e Combate ao Racismo nas Américas continuidade ao esforço da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) de promover
ações concretas de combate ao racismo na educação brasileira e subsidiar
professores e professoras com informações e conhecimentos estratégicos para
o enfrentamento dessa tarefa. Mais que isso, os dezesseis artigos que compõem
aobracompreendemumaespéciederespostacoletiva–nocalordahora,e
deumpontodevistaintelectualepolíticonegro–aquestõescolocadaspelo
debate aberto com as propostas e a implementação no Brasil de medidas de
ação afirmativa no combate ao racismo.
Boapartedessapolêmicacertamenteganhoufôlegocomaintroduçãode
cotas para o acesso a determinadas universidades públicas. A medida atiçou
uma reação discursiva imediata, da parte de juristas, jornalistas, cientistas sociais
eformadoresdeopiniãocomprometidos–àesquerdaeàdireitadoespectro
político–comaeternizaçãodostatus quo sociorracial brasileiro; verdadeiros
porta-vozes, em outros termos, de um bloco histórico cujo ponto de vista é
expressivo da “branquitude”, discutida por Maria Aparecida Silva Bento em
seu ensaio neste livro: uma perspectiva histórica e majoritariamente esquiva
à extensão e ao aprofundamento da cidadania, especialmente quando o foco
recai sobre a população negra.
Sob esse aspecto, esta obra empreende um vigoroso esforço de arejamento do
debatepolíticoemtornodasaçõesafirmativas,comaveiculaçãodeinformações,
perspectivas, avaliações eopiniões comumente diluídas, sufocadas ou sub-
representadas nos meios de comunicação em geral. Na primeira de suas quatro
seções, os artigos de Flavia Piovesan, do ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Joaquim Barbosa Gomes e de Ronaldo Jorge A. Vieira Jr. abordam, do
ponto de vista do Direito, os argumentos que justificam a adoção das ações
afirmativas no Brasil.
10
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
À luz do combate ao racismo, esse primeiro conjunto de ensaios aborda a
relação entre justiça, redistribuição e reconhecimento de identidades; a dialética
entre igualdade abstrata e igualdade concreta; a articulação entre medidas
promocionais e repressivo-punitivas; a tradição constitucional brasileira de
promoção de segmentos prejudicados; a relação entre o Direito Interno e o
Direito Internacional; o viés civilista presente na leitura do papel do Estado na
reparação dos danos da escravidão e do racismo; e, claro, a própria definição
de ação afirmativa.
As ações afirmativas, de acordo com o ministro Joaquim Gomes,
“definem-secomopolíticaspúblicas(eprivadas)voltadasàconcretizaçãodo
princípioconstitucionaldaigualdadematerialeàneutralizaçãodosefeitosda
discriminaçãoracial,degênero,deidade,deorigemnacionaledecompleição
física”.Portanto,asaçõesafirmativasvoltam-separaaneutralizaçãodaquilo
que–deacordocomostatus quo sociorracial –nãosequerneutralizar.Os
trabalhos de Mário Theodoro e Luciana Jaccoud; Carlos Alberto Medeiros;
Valter Roberto Silvério; Maria Aparecida Silva Bento; e André Ricardo Nunes
Martinsrealizamumenormeesforçodeleituracríticaedecontra-argumentação
dapletoradeargumentoslevantadoscontraaimplementaçãodepolíticasde
ação afirmativa contra o racismo no Brasil.
Alguns autores optaram por discutir o mérito de cada um dos muitos
argumentos arrolados pelos opositores das ões afirmativas, segundo os
quais,porexemplo,essasfeririamoprincípiodaigualdade;subverteriamo
princípiodomérito;seriamdeaplicaçãoimpossível;prejudicariamospróprios
negros; desviariam a atenção do “problema social”; teriam fracassado nos
Estados Unidos; levariam à formação de uma elite negra; discriminariam os
brancos pobres; seriam inconstitucionais; seriam humilhantes para os negros;
prejudicariam a qualidade das instituições que as adotassem, etc. Outros, como
André Martins, privilegiam a identificação de mecanismos formais operantes
na argumentação, mostrando como funcionam os mecanismos de concessão
aparente; a alegação de manobra diversionista; de evocação do medo do efeito
contrário; da antecipação do futuro negativo; e da comparação desmedida.
Osmomentosdemuitovigoranalíticoebrilhopessoal,noreferidoconjunto
deartigos,tambémrefletemacentralidadedaatitudedeleituracrítica,traço
que o combate efetivo ao racismo sempre fez necessário integrar e desenvolver,
e, por isso, cultivado pelo movimento negro. Mostra dessa atitude, tanto na
forma quanto no conteúdo, é o ensaio sobre “A difusão do ideário anti-racista
nos pré-vestibulares para negros e carentes”, com o qual Renato Emerson dos
11
Eliane Cavalleiro
Santosinauguraapenúltimaseçãodolivro.Segundooautor,épossíveldizer
queosdefensoresdasaçõesafirmativastêmsidoacusadoscomamesmaretórica
conservadoracomquesecombateuaadoçãodosprincípiosuniversalistasda
Revolução Francesa. São atacados por futilidade (“o problema no Brasil não
é racial, é social; de nada adianta promover uma elite negra, o fundamental é
acabar com a pobreza”); por perversidade (“vão prejudicar brancos pobres”); e
porconstituíremumaameaça (“vai-se criar um problema racial onde ele não
existe;haveráquedanaqualidadedasinstituições,comprejuízoparatodaa
sociedade”).
Intitulada Para além das cotas, a penúltima parte da obra concentra sua
atenção em aspectos anteriores (preparação para o vestibular) e posteriores
(permanêncianafaculdadeouuniversidade)àquelepropriamentedoingresso,
por cotas ou não, no ensino superior. O artigo de Ricardo Henriques e Eliane
Cavalleiro esboça o histórico da transformação institucional relativamente
recente,com aqualoEstado conformoumeiosdeação– comoaprópria
SecretariadeEducaçãoContinuada,AlfabetizaçãoeDiversidade(Secad)–no
campo da promoção da luta contra o racismo na escola, e traça o panorama
das ações presentemente implementadas nos espaços de ação configurados no
campodaspolíticaspúblicasafirmativasnaeducação.
Comumapolíticadeapoioàsaçõesafirmativas,aSecadtemprocurado
colaborar com os movimentos sociais que lutam pelo acesso do(a) estudante
negro(a) à universidade, como o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC),
decujaexperiênciapartemasreflexõescrítico-analíticaspresentesnoreferido
ensaio de Renato Emerson dos Santos. A seguir, os trabalhos de Nilma Lino
Gomes, sobre programa Ações Afirmativas na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG); de Sales Augusto dos Santos, sobre o programa Passagem do
Meio, na Universidade Federal de Goiás (UFG); e de Iolanda de Oliveira e
AndréA.Brandão,sobreainiciativadeaçãoafirmativaparaapermanência
de universitários pobres e de baixa renda na Universidade Federal Fluminense
(UFF), dão um quadro das linhas de atuação e dos resultados alcançados nas
iniciativasdessesprojetosvoltadosparaaviabilizaçãodapermanênciadoaluno
negro na universidade.
Um conjunto de informações praticamente inéditas no contexto brasileiro
–dodebatefundadorsobreaçõesafirmativas,entreBhimraoRamjiAmbedkare
Mahatma Mohandas Gandhi, na Índia, à trajetória dos negros cubanos na luta
contra a discriminação racial, passando por fina análise das relações entre os
movimentosafro-descendente,indígenaefeminista–éaportadoàleiturados
12
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
estimulantes ensaios de Carlos Moore Wedderburn, Tomás Femández Robaina
eMónicaCarrilloZegarra.Apublicaçãodessatríadefinaldetrabalhostambém
atesta o movimento de aproximação intelectual entre os povos da diáspora
negra, um passo a mais na compreensão das lutas comuns e da ancestralidade
que nos irmanam.
Eliane Cavalleiro
Coordenadora-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional
13
Sales Augusto dos Santos
introdução
O racismo contra os negros no Brasil tem sido praticado desde o primeiro
momento da chegada forçada destes seres humanos nopaís, uma vez que
foram trazidos como escravos. A escravidão foi “a mais extrema das formas de
opressão racial na história brasileira”
1
. A profunda desigualdade racial entre
negros e brancos em praticamente todas as esferas sociais brasileiras é fruto
de mais de quinhentos anos de opressão e/ou discriminação racial contra os
negros, algo que não somente os conservadores brasileiros, mas uma parte
significativa dos progressistas recusam-se a admitir. Assim, a discriminação
racialeseusefeitosnefastosconstruíramdoistiposdecidadanianestepaís,a
negra e a branca. Basta observarmos o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) brasileiro, desagregado por cor/raça, para facilmente notar esta lamentável
situação de injustiça. Conforme indicou o estudo “Desenvolvimento Humano
e Desigualdades Étnicas no Brasil: um Retrato de Final de Século”, do professor
Marcelo Paixão, do departamento de economia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), apresentado no II Foro Global sobre Desenvolvimento
Humano,noanode2000,oBrasilocupavao74ªlugarnorankingdaONU
no que tange ao IDH. No entanto, analisando separadamente as informações
de pretos, pardos e brancos sobre renda, educação e esperança de vida ao nascer,
o IDH nacional dos pretos e pardos despencaria para a 108º posição, figurando
entreaquelesdospaísesmaispobresdomundo,enquantoodosbrancossubiria
para a 48º posição
2
.Ouseja,oIDHnosindicaquehádoispaísesnoBrasil,
quando desagregamos por cor/raça a população brasileira. O Brasil branco,
não discriminado racialmente, e o Brasil negro, discriminado racialmente, que
acumula desvantagens em praticamente todas as esferas sociais, especialmente
na educação e no mercado de trabalho, em função do racismo.
ANDREWS,GeorgeReid.OprotestopolíticonegroemSãoPaulo–888-998.Estudos Afro-Asiáticos,
(21): 27-48, dezembro de 1991, p. 40.
2 Jornal O Globo. 10 de outubro de 2000, p. 23.
14
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
Oinequívocoracismocontraosnegrosjánãoémaisnegadopelamaioria
dapopulaçãobrasileira,emborasejaaindadifícilencontrarbrasileirosque
admitem que eles mesmos discriminam os negros, haja vista que 89% dos
brasileiros concordam que a sociedade é racista e somente 10% admitem ser,
eles mesmos, racistas, conforme constatou a pesquisa realizada pelo jornal
Folha de S. Paulo, por meio do seu instituto de pesquisas, o Datafolha
3
.
Esse racismo brasileiro, sem racista auto-identificado, auto-reconhecido,
ou seja, sem aquele que se reconhece como discriminador, faz-nos lembrar
da paradigmática concluo de Florestan Fernandes sobre as relações raciais
no nosso ps: no Brasil surgiu “uma espécie de preconceito reativo: o
preconceito contra o preconceito ou o preconceito de ter preconceito”.
4
Discrimina-seosnegrosmasháresistênciaentreosbrasileirosemreconhecer
a discriminação racial que se pratica contra esse grupo racial. Ou seja, os
brasileiros praticam a discriminação racial, mas só reconhecem essa prática
nos outros, especialmente entre os estadunidenses brancos.
Como afirmamos em outro lugar,
5
passou a fazer parte do nosso ethos.
A indiferença moral em relão ao destino social dos indivíduos negros
é tão generalizada que não ficamos constrangidos com a constatação das
desigualdades raciais brasileiras. Elas não nos tocam, não nos incomodam,
nem enquanto cidadãos que exigem e esperam o cumprimento integral da
Constituição Brasileira. É como se os negros não existissem, não fizessem parte
nem participassem ativamente da sociedade brasileira. A “invisibilidade” do
processo de discriminação racial reaviva o mito da democracia racial brasileira
6
,
impedindo uma discussão séria, franca e profunda sobre as relações raciais
brasileirase,maisdoqueisso,inibeaimplementaçãodepolíticaspúblicas
específicasparaosnegros.Aliás, a negaçãoda existência dos negrosou, se
sequiser,asuadesumanização,édaessênciadoracismo.Eéessanegação
3 TURRA, Cleusa e VENTURI, Gustavo. Racismo Cordial. São Paulo: Ática, 1995, p. 13.
4 FERNANDES, Florestan.
O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972,
p. 42.
5 SANTOS, Sales Augusto dos Santos. Ação afirmativa e mérito individual. In: SANTOS, Renato Emerson
e LOBATO, Fátima (Orgs.) Ações Afirmativas. Políticaspúblicascontraasdesigualdadesraciais.Riode
Janeiro: DFP&A, 2003, p. 87.
6 O conceito de mito da democracia racial brasileira que adotamos é o mesmo utilizado por Carlos A.
Hasenbalg: “A noção de mito para qualificar a ‘democracia racial’ é aqui usada no sentido de ilusão ou
enganoedestina-seaapontarparaadistânciaentrerepresentaçãoerealidade,aexistênciadepreconceito,
discriminação e desigualdades raciais e a sua negação no plano discursivo. Essa noção não corresponde,
portanto, ao conceito de mito usado na Antropologia.” (HANSEBALG, Carlos A. Entre o Mito e os Fatos:
Racismo e Relações Raciais no Brasil. In: MAIO, Marcos e SANTOS, Ricardo Ventura (Orgs.). Raça, Ciência
e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1996, p. 237).
15
Sales Augusto dos Santos
dos negros enquanto seres humanos que tem nos “anestesiado” quanto às
desigualdadesraciais. Esses fatostêm um enormepeso no momentode se
decidirsobrequalpolíticaadotarparasolucionaradiscriminaçãoracialaque
estão submetidos os negros.
Contudo, embora a discuso ampla, franca e profunda sobre a questão
racialbrasileiraaindasofrafortesresistênciasnoseiodanossasociedade,
tanto entre os setores conservadores como entre parte significativa dos
setores progressistas, como afirmamos acima, nãovidas de ela entrou
na agenda política brasileira após a III Conferência Mundial contra o
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que
foirealizadanacidadesul-africanadeDurban,noperíodode30deagosto
a 07 de setembro de 2001.
Sob a pressão dos movimentos negros
7
, o governo Fernando Henrique
Cardoso iniciou publicamente o processo de discussão das relações
raciais brasileiras, em 1995, admitindo oficialmente, pela primeira vez
na história brasileira, que os negros eram discriminados. Mais do que
isso,ratificouaexistênciadediscriminaçãoracialcontraosnegrosno
Brasil durante o seminário internacional Multiculturalismo e racismo:
o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos,
organizado pelo Ministério da Justiça, em 1996. Apesar desse primeiro
passo, de reconhecimento oficial do racismo no Brasil, pode-se dizer que
até agosto de 2000 o governo brasileiro não havia empreendido grandes
esforços para que a discussão e implementação de ações afirmativas
entrassenaagendapolíticae/ounacionalbrasileira.Segundooprofessor
José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da UnB, quatro
anos depois da realização daquele seminário não se via, ainda, nenhuma
ação concreta de implementação de algum tipo de ação afirmativa para
negros na sociedade brasileira por parte do governo
8
.
7 OLIVEIRA, Dijaci David de; LIMA, Ricardo Barbosa de; e SANTOS, Sales Augusto dos. A Cor do Medo:
O Medo da Cor. In: OLIVEIRA, Dijaci David de et al. (Orgs.). A Cor do Medo.Homicídioserelações
raciaisnoBrasil.Brasília:EditoradaUnB,Goiânia:EditoradaUFG,998.
8 CARVALHO, José Jorge. O Sistema de Cotas e a Luta pela Justiça Racial no Brasil. In: Correio Braziliense,
15 de novembro de 1999, p. 16.
16
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
Ao que tudo indica, somente em setembro de 2000, e em atendimento à
Resolução 2000/14
9
, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, o
governo brasileiro volta a manifestar-se oficial e publicamente sobre as relões
raciais brasileiras. O então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso,
pormeiodeDecreto,de08desetembrode2000,criouoComiNacionalparaa
PreparãodaParticipãoBrasileiranaIIIConferênciaMundialcontraoRacismo,
DiscriminaçãoRacial,XenofobiaeIntolenciaCorrelata.Competiaaocomi:
Assessorar o presidente da república nas decisões relativas à formulação
das posições brasileiras para as negociões internacionais e regionais
preparatóriaseparaaConferênciaMundial.Outraresponsabilidadeatribuída
aocomitêépromover,emcooperaçãocomasociedadecivil,semináriose
outras atividades de aprofundamento e divulgação dos temas de discussão
eobjetivosdaConferênciaMundial
10
.
Ao contrário do que afirmaram Maggie e Fry
11
, esse comitê organizou
diversasPré-conferências TemáticasRegionais,emvários estadosbrasileiros,
afimdediscutiraspectosrelevantesparaoBrasil,naagendadaConferência
Mundial contra o Racismo
12
.Dessemodo,aspré-conferênciasconstituírama
9Estaresoluçãosolicitouaos países queiriamparticiparda Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata“paraquedelimitassemastendências,prioridades
eobstáculosqueestãoenfrentandoanívelnacionalequeformulassemrecomendaçõesconcretasparaas
atividades a serem desenvolvidas no futuro na luta contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata” (Sabóia, 2001:05).
0MOURA,CarlosAlveseBARRETO,JônatasNunes.A Fundação Cultural Palmares na III Conferência
Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.Brasília:
Fundação Cultural Palmares (FCP), 2002, p. 67.
SegundoMaggieeFry,“antesdaConferênciadeDurban,ocomitênomeadopelogovernofederalpara
prepararaposiçãodoBrasilpromoveutrêsseminários,emBelém,SalvadoreSãoPaulo.Maspoucos
souberam ou participaram, além de ativistas negros”. MAGGIE, Yvonne e FRY, Peter. “A reserva de vagas
para negros nas universidades brasileiras”. Estudos Avançados.DossiêOnegronoBrasil.SãoPaulo:USP.
Instituto de Estudos Avançados. nª 50, 2004, p. 69.
2OcomitêsupracitadoteveapoiodoInstitutodePesquisasdeRelaçõesExteriores(IPRI),doConselho
NacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq),daFundaçãoCulturalPalmares(FCP),entre
outrosórgãosfederais.AsPré-conferênciasTemáticasRegionaisforamasseguintes:)CulturaeSaúdeda
PopulaçãoNegra,de3a5/09/2000,emBrasília-DF;2)Racismo,GêneroeEducação,de5a6/0/2000,
noRiodeJaneiro-RJ;3)Cultura,EducaçãoePolíticadeAçõesAfirmativas,de7a8/0/2000,emSão
Paulo-SP; 4) Desigualdade e Desenvolvimento Sustentável, de 19 a 21/10/2000, em Macapá-AP; 5) Novo
Papel da Indústria de Comunicação e Entretenimento, de 24 a 25/10/2000, em Fortaleza-CE; 6) Direito à
Informação Histórica, de 17 a 20/11/2000, em Maceió-AL; 7) Religiosidade e Imaginário Social, de 08 a
10/01/2001, em São Luiz-MA; e 8) Cultura do Desenvolvimento, Racismo e Eqüidade, de 15 a 16/01/2001,
em Porto Alegre-RS. Delas, “participaram membros ativistas do movimento negro e de organizações
não-governamentais,sacerdotesreligiososafro-brasileiros,especialistasacadêmicos,profissionaisliberais,
diplomatas,parlamentares,gestoresdepolíticaspúblicaserepresentantesdesindicatos,osquaisderam,ao
conjunto dos debates, qualidade, atualidade e realismo” (MOURA; BARRETO, op. cit.: p. 48-49 e 68).
17
Sales Augusto dos Santos
basetemáticaparaaestruturaçãodaConferênciaNacionalContraoRacismo
eaIntolerância,queserealizounoperíodode06a08/07/200,noestadodo
RiodeJaneiro–RJ,tendocomosedeaUniversidadeEstadualdoRiodeJaneiro
(UERJ).Porsuavez,osdebatesocorridosnaConferênciaNacionalsubsidiaram
aformulaçãododocumentobrasileiroquefoiencaminhadoàconferênciade
Durban. Conforme Moura e Barreto (2002),
registrando-se a participação de mais de duas mil e quinhentas pessoas,
entredelegadoseouvintes,aConferênciaNacionalmobilizouvárias
vertentes dos movimentos sociais negros. Após a plenária de abertura,
realizaram-se discussões divididas em grupos temáticos, em que
os delegados oficiais e ouvintes puderam detalhar as propostas da
comunidade para os diversos temas, que foram levadas à plenária
final, onde foram apresentadas e sofreram também revio de
redação propostas por todos os delegados. Após a redação final, o
documento com todas as propostas foi apresentado novamente à
assembléia para a votação de sua aprovação final, gerando assim o
documento denominado “Plano Nacional de Combate ao Racismo
eaIntolerância–CartadoRio”.
13
Ao que parece, foi a partir dessa demanda externa da Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas, associada às históricas pressões internas dos
movimentos sociais negros, que a questão racial entrou novamente na agenda
pública brasileira.
Poroutrolado,tambémemfunçãodaconferênciamundialdeDurban,a
imprensa brasileira, especialmente a escrita, passou a divulgar mais informações
sobre a questão racial brasileira no ano de 2001, retroalimentando a inclusão
daquestãoracialnaagendapolíticanacional
14
. Mais do que isso, os principais
jornaisescritosbrasileirosnãosódivulgavaminformaçõessobreaconferência
de Durban, como também passaram a debater a questão racial no Brasil. Dados
sobre as desigualdades raciais brasileiras, entre outros tipos de informação e
conhecimentos, foram divulgados sobremaneira pelos periódicos nacionais entre
os meses de julho e setembro de 2001
15
, principalmente. Assim, estabeleceu-
13 MOURA; BARRETO, op. cit., p. 67.
14 Alguns jornais de expressão nacional chegaram a contratar, em 2001, especialistas sobre a questão racial
brasileira para comentá-la mensalmente. O Correio Braziliense, o jornal mais importante da capital da
república,Brasília,contratouapós-graduandaemfilosofiadaeducaçãopelaUniversidadedeSãoPaulo,
ediretoradoGeledes–InstitutodaMulherNegra,SueliCarneiro.
15 Em janeiro de 2001, jornais como o Correio Braziliense e a Folha de S. Paulo já estavam divulgando de
forma incipiente algumas informações sobre as relações raciais brasileiras.
18
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
senesseperíodoumadiscussãointensasobreaquestãoracialbrasileira,que
contribuiuparaqueessaentrassedefinitivamentenaagendanacionaldopaís
16
ou,nomínimo,quesetrouxesseàtona,devez,odebatesobreasituaçãodos
negros no Brasil
17
.
Todavia, o tema que predominou na imprensa brasileira, no que tange a
questão racial, foi a proposta de estabelecimento de cotas para negros ingressarem
nas universidades públicas brasileiras. A grande imprensa escrita brasileira não
sóconvidouintelectuais,políticosemilitantesdosmovimentossociaisnegrosa
se pronunciarem sobre o assunto, como também posicionou-se sobre a proposta
de implementação de cotas para negros que estava contida na “Carta do Rio”
18
.
O jornal O Globo, no editorial do dia 24 de agosto de 2001, manifestou-se
contraumapolíticaqueassegurasseoingressodosnegrosnasuniversidades
por meio de cotas, que, segundo o esse jornal, eram uma vantagem artificial.
Conforme o jornal O Globo,
Quanto à outra tese, não é fácil encontrar quem negue à comunidade negra o
direitoacompensaçãopelasinjustiças.Poroutrolado,nãoépontopacífico
que essa reparação deva ser feita, como defendem muitos militantes, por
vantagens artificiais, como um sistema de quotas no mercado de trabalho
e na universidade. Garantir o caráter universal do direito à educação e a
habilitação para o mercado de trabalho são caminhos custosos e complicados;
poroutrolado,eliminardeficiênciasserámaisjustoeeficazdoquefingir
que elas não existem
19
.
O posicionamento adotado por outro jornal do estado do Rio de Janeiro,
oJornaldoBrasil,foinaquelaépoca,favorávelàimplementaçãodepolíticas
de cotas para os negros ingressarem no ensino superior público brasileiro.
Apoiando a decisão do presidente Fernando Henrique Cardoso que,
conforme a imprensa, havia autorizado a inclusão da proposta de adoção
decotas para negrosno documentoqueo Brasil levaria à IIIConferência
Internacional Contra o Racismo, o Jornal do Brasil em seu editorial do dia
28 de agosto de 2001 afirmava que:
6Talvezsejaprematurofazermostalafirmação.Contudo,háfortesindíciosdequeaquestãoracialno
Brasiltenhasidocolocadadefinitivamentenaagendapolíticadopaís,vistoquepassouaserpontode
pauta dos candidatos a presidente da república no Brasil. Vários deles, inclusive o presidente eleito, Luiz
Inácio Lula da Silva, apresentaram propostas de combate ao racismo e de inclusão de negros nas áreas de
prestígio,poderemando,pormeiodeaçõesafirmativas,dentreasquaisconstaatéaimplementaçãode
cotas para os negros ingressarem nas universidades públicas brasileiras.
17 MOURA; BARRETO, op. cit.: p. 183.
8Cartaestaque,conformevimos,serviudesubsídioparaorelatóriobrasileiroàIIIConferênciaMundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.
19 Jornal O Globo, 24 de agosto de 2001, p. 6.
19
Sales Augusto dos Santos
A posão do presidente Fernando Henrique a favor da ação de cotas para
facilitar o acesso de negros à universidade é sem dúvida um dos pontos
altos da luta contra o preconceito racial no Brasil. Ao encampar a proposta,
autorizandosuainclusãonodocumentoqueoBrasillevaráà3ºConferência
internacional contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, é como se
estivesse,apesardealgumasresistênciasinternas,dandoopontapéinicial
numa nova era.
20
Apesardealgunspoucos meios de comunicação impressa(de prestígio)
do país, como o Jornal do Brasil, concordarem com a implementação de
cotas para os negros ingressarem no ensino público superior brasileiro,
prevaleceu, e tem prevalecido até hoje, entre a maioria absoluta dos meios
de comunicação uma posição contrária a esse tipo de política de ão
afirmativa
21
,mesmohavendooreconhecimentoexplícito,entreosjornaisde
grande circulação nacional, de que os negros são discriminados racialmente
no Brasil. O jornal Folha de S. Paulo, um dos mais lidos e prestigiados
meios de comunicação impressa do país, publicou mais de um editorial
posicionando-se contra cotas para os negros ingressarem nas universidades
públicas brasileiras
22
. Segundo esse jornal, a implementação de cotas para
negros implicaria reparar uma injustiça com a criação de outra:
O governo brasileiro, por exemplo, leva a Durban a proposta de criar cotas
para negros e seus descendentes nas universidades públicas. Esta Folha se
opõe ao sistema de cotas. Isso não significa, entretanto, que todo tipo de ação
afirmativa, de discriminação positiva, deva ser descartada. A idéia de instituir
cursos pré-vestibulares dirigidos a negros, por exemplo, parece oportuna. (...)
O Brasil precisa sem dúvida envidar esforços para promover a integração
racial. Ações afirmativas devem ser consideradas e implementadas. O limite
deve ser o da justiça. Admitir que se deve reparar uma injustiça com a criação
de outra, uma variação de “os fins justificam os meios”, é um argumento
filosoficamentetíbioehistoricamentecomplicado.
23
Foram entrevistados e/ou convidados a se pronunciar sobre a questão racial no
Brasil e/ou sobre as cotas, nas páginas dos jornais de grande circulão nacional,
militantesdosmovimentossociaisnegros,políticosdeexpresonacional,ministros
de Estado, magistrados e intelectuais, entre outros. Entre eles, o ex-vice-presidente
da república, Marco Maciel; o ex-ministro da Educação, Paulo Renato de Souza; o
ex-governadordeBraliaeatualsenadordarepública,CristovamBuarque;oex-
20 Idem, Ibidem, p.8.
21 Vide o texto de André Ricardo N. Martins publicado neste livro.
22 Vide o editorial do dia 28 de janeiro de 2002, entre outros.
23 Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2001, p. A2.
20
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio de Mello; o então
presidente do Superior Tribunal de Justa, ministro Paulo Costa Leite; a economista
ecolunistadojornalOGlobo,MiriamLeitão;ajuízafederalMônicaSifuentes;
os(as) intelectuais/professores(as) de várias universidades brasileiras, entre os quais,
Jo Jorge de Carvalho (UnB), Rita Segato (UnB), Lilia M. Schwarcz (USP), Flávia
Piovesan (PUC/SP), Jorge da Silva (UERJ), Peter Fry (UFRJ), Jo Roberto P. de es
(UERJ), Marcelo Paio (UFRJ), Henrique Cunha Jr. (UFCE), Nilcéa Freire (reitora
da UERJ), Timothy Mulholland (vice-reitor da UnB); e os(as) militantes negros(as)
Edna Roland (Fala Preta), Sueli Carneiro (Geledés), Hédio Silva Jr. (CEERT), Carlos
Alberto Medeiros e Ivanir dos Santos (CEAP), entre outros.
Embora sem o esclarecimento e a profundidade que o tema requer, o debate
entreosintelectuais,militantes,políticos,juízeseautoridadespúblicas,nos
meiosdecomunicaçãodemassa,nomínimocontribuiuparaaqueaquestão
racial entrasse na agenda nacional. As posições eram variadas. De uma maneira
geral,polarizaram-seentreasquedefendiampolíticaspúblicasespecíficasparaos
negros ingressarem no ensino superior, especialmente por meio de cotas, e as que
eramcontraestetipodepolíticapública.Deumlado,poucosautorestentaram
discutir profundamente o conceito de ação afirmativa, buscando esclarecer que
as ações afirmativas não se limitam às cotas. De outro lado, a grande maioria
dos autores que participaram deste debate posicionou-se contra a proposta de
implementação de cotas para negros ingressarem nas universidades.
Seguindo orientação e prática contrárias às do ministro do Desenvolvimento
Agrário, Raul Jungmann
24
, o ex-ministro da Educação do governo Fernando
Henrique Cardoso, Paulo Renato de Souza, foi uma das autoridades do
poder executivo que mais se opuseram a este tipo de ação afirmativa
25
. Para
ele“oproblemaparadaracessoaosnegrosnauniversidadeemnossopaís
24 O ex-ministro Raul Jungmann foi a primeira autoridade do primeiro escalão do governo federal que
implementou cotas para negros terem acesso preferencial a cargos em seu ministério: “Concursos públicos,
cargosdeconfiançaeempresasprestadorasdeserviçosterceirizados:todosterãocotamínimade20%
para negros no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e no Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA). Pela primeira vez, o Executivo brasileiro adota um programa de ações
afirmativas para negros”, (Correio Braziliense, 05 de setembro de 2001, p. 10).
25 O ex-ministro Paulo Renato, da Educação, foi uma das autoridades do primeiro escalão do governo federal
quemaispublicaramartigoscontráriosàscotasnocaderno“Tendências/Debates”,dojornalFolhadeS.
Paulo (30/08/2001, 11/12/2001, 30/01/2002). Além disso, desde janeiro de 2001, o Ministério da Educação,
pormeioseusecretáriodeeducaçãosuperior,AntônioMacdowelldeFigueiredo,jáseposicionavacontra
as cotas. Segundo o secretário, “a Constituição impede qualquer tipo de discriminação positiva, que
beneficia as minorias (...) Isso é uma questão de solução mais estrutural do que de medidas como cotas”
(Folha de S. Paulo, 14/01/2001, p. C2).
21
Sales Augusto dos Santos
infelizmente não é a cota, é acesso à educação básica” (Correio Braziliense, 8 de
setembro de 2001). Apesar de o ex-ministro Paulo Renato de Souza reconhecer
que historicamente os negros são discriminados no Brasil, para ele não
necessidade de implementação de cotas para os negros terem acesso preferencial
ao ensino superior. Conforme o ex-ministro,
Aspropostasparaumapolíticadeaçãoafirmativaquereduzaaextrema
desigualdaderacialemnossopaísvêmaoencontrodeumajustaaspiração
nãosódeafro-descendentes,masdetodobrasileirocomconsciênciasociale
moral. A maior mortalidade infantil e materna, as altas taxas de desemprego,
as diferenças salariais injustas, a pobreza e a fome, o tratamento desigual frente
ajustiçaeapolícia,afaltadeacessoaospostosdemaiorresponsabilidade
no mercado de trabalho são cargas pesadas que os brasileiros descendentes
de escravos carregam até hoje. (...) Oxalá nossa sociedade não precise, como
outras, chegar à instituição de cotas raciais na universidade. Temos metas de
inclusão e as estamos cumprindo rapidamente. Pelo que tenho acompanhado,
acredito na capacidade de desempenho do estudante brasileiro de qualquer
origem social ou racial, quando estimulado e apoiado. Se isso não for
suficiente, serei o primeiro a defender as cotas. Entretanto, desde que tenham
condições para isso, não por que imaginar que os estudantes pobres, negros
ou pardos não entrem na universidade por seus próprios méritos (Folha de
S. Paulo, 30 de agosto de 2001).
Nopoderjudicriotambémhouvedivernciasobreaimplementaçãodecotas
paranegrosteremacessoaosesposdepodereprestígio,especialmentenoacesso
ao emprego. De um lado, o então presidente do Superior Tribunal de Justa (STJ),
ministro Paulo Costa Leite, alegou que o sistema implementado pelo Minisrio
do Desenvolvimento Agrário era inconstitucional. Segundo Costa Leite, “é uma
medida absurda. o nenhuma norma na Constituão ou na lei prevendo essa
cotade20%narealizaçãodeumconcursopúblico,porexemplo.Épossívelrecorrer
contra isso(Costa Leite, O Globo, 7 de setembro de 2001, p.5). Por outro lado, o
ex-ministro-presidentedoSupremoTribunalFederal(STF),amaisaltacortedopaís,
o afirmava a constitucionalidade deste tipo de ão afirmativa, como, depois,
implementou o sistema de cotas para negros ingressarem no STF (Correio Braziliense,
7 de dezembro de 2001). Segundo o ministro Marco Aurélio de Mello,
Falta-nos, (...) para afastarmos do cenário as discriminações, uma mudança
cultural, uma conscientização maior dos brasileiros; urge a compreeno de
que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem
assumirodevercívicodebuscarotratamentoigualitário,demodoasaldar
vidashistóricasparacomasimpropriamentechamadasminorias,ônusque
é de toda a sociedade. (...) É preciso buscar a ão afirmativa. A neutralidade
estatal mostrou-se um fracasso. de se fomentar o acesso à educação; urge um
programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horio integral, de modo
22
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
a tirar-se meninos e meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a
ombrear com as demais criaas. E o Poder blico, desde , independentemente
de qualquer diploma legal, deve dar à prestação de serviços por terceiros uma
outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar os que
msidodiscriminados.(...)Deve-sereafirmar:todaequalquerleiquetenhapor
objetivo a concretude da Constituão o pode ser acusada de inconstitucional.
Entendimento divergente resulta em subestimar ditames maiores da Carta da
República, que agasalha amostragem de ão afirmativa, por exemplo, no artigo
, inciso XX, ao cogitar da protão de mercado quanto à mulher e da introdão
deincentivos;noartigo37ª,incisoIII,aoversarsobreareservadevagas–e,
portanto,aexisnciadequotas–,nosconcursospúblicos,paraosdeficientes;
nos artigos 170ª e 22, ao emprestar tratamento preferencial às empresas de
pequeno porte, bem assim à criança e ao adolescente
26
.
Entreosdirigentesdeuniversidadeblicatammhouvedivergênciasobreuma
provável implementão de cotas para negros terem acesso preferencial no ensino
superior brasileiro. A eno reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Nilcéa Freire, por exemplo, posicionou-se contra a implementação de ão
afirmativa para negros ingressarem no ensino superior, por meio de cotas, apesar
do governo do Estado do Rio de Janeiro ter implementado, naquela época, este
tipodepoticapúblicaespecíficaparanegrosnaUERJ.ConformeFreire,
segundo dados do MEC, a evasão atinge mais brutalmente pobres, negros e
nordestinos,desdeoensinofundamental.Noensinomédio,ofenômenose
repete e prejudica a entrada de novos alunos na universidade. É questionável,
portanto, que a simples reserva de vagas consiga democratizar o acesso à
educaçãosuperiorparagruposque,historicamente,vêmpermanecendoà
margem desse processo. (...) Instrumentos de promoção da cidadania e de
recursos intelectuais são sempre bem-vindos, porém não consenso, mesmo
entrepaísesqueadotaramaaçãoafirmativa,sobreaeficiênciadetalpolítica
de cotas. (...) Nada pode substituir o regime de mérito. É preciso selecionar
os melhores, escolhidos dentre todos os contingentes.
27
Poroutrolado,ovice-reitordaUniversidadedeBrasília(UnB), Timothy
Mullholland
28
, posicionou-se francamente favorável ao sistema de cotas. Utilizando
um dos fundamentos do postulado distributivo para sustentação e implementação
26 MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. A Igualdade e as ações afirmativas. In: Correio Braziliense, 20
de dezembro de 2001. Veja-se também: MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. Ótica Constitucional
–aIgualdadeeasaçõesafirmativas.In:TRIBUNALSUPERIORDOTRABALHO(TST).Discriminação
e Sistema Legal Brasileiro.Brasília:TST,200.
27 FREIRE, Nilcéia. Exclusão é reflexo. In: Jornal do Brasil, 21 de setembro de 2001, p. 13.
28 O vice-reitor da UnB, professor Timothy Mullholland, tem sido um dos raros dirigentes de instituição
de ensino superior pública a defender cotas como um tipo de ação afirmativa para os negros terem acesso
preferencial ao ensino superior no Brasil.
23
Sales Augusto dos Santos
depolíticasafirmativasparanegros,ovice-reitorTimothyMullhollandafirmou
que“nossauniversidadeébranca.Brasíliaémuitomaismestiçaemultirracialdo
que a UnB. Temos que ser uma expressão mais fiel da sociedade e ajudar a formar
uma classe média negra com formação universitária(Correio Braziliense, 27 de
dezembro de 2002, p. 6).
Comose,houveumdebateintenso sobreaquesoracialbrasileirano
peodosupracitado,especialmentenoquetangeaoacessopreferencialparanegros
no ensino superior público brasileiro. Algumas vezes este debate foi direto, com
dos um dos interlocutores posicionando-se abertamente contra a posição e/ou
argumentos de outro interlocutor e vice-versa; outras vezes este debate foi indireto,
com um dos interlocutores contrapondo-se aos argumentos de outro, sem citar o
nome de quem estava sendo contra-argumentado. Esta última forma de debate foi
a que prevaleceu, pois raros foram os momentos em que um dos interlocutores
dirigiu-se diretamente a outro para sustentar ou discordar de argumentações acerca
das ões afirmativas. Percebe-se também que este debate ocorreu entre vários agentes
sociais importantes que participam do espaço blico brasileiro, ou seja, o ficou
restritoaosintelectuaise/ouaomeioacamico.
Embora se posicionando explicitamente contra as cotas para os negros
ingressarem no ensino superior brasileiro, em certo sentido a grande imprensa
brasileira ajudou a publicizar o debate sobre a questão racial brasileira, bem
comoforçouaacademia,oumelhor,umapartesignificativadosacadêmicos
brasileiros, a se posicionar a respeito da implementação do sistema de cotas para
negrosnovestibulardasuniversidadespúblicas.Osilêncioacadêmicosobre
o tema foi, assim, interrompido e parte significativa de intelectuais do campo
das relações raciais, bem como de outras áreas de pesquisa e conhecimento,
manifestou-se radicalmente contra a implementação de cotas para negros como
uma forma de inserção sócio-racial no ensino público superior.
Este terceiro livro da coleção Educação Para Todos também tem como
objetivo ajudar a publicizar e solidificar a inclusão da questão racial brasileira na
agendanacional,bemcomodefenderaçõesafirmativasdeacessoepermanência
para negros nas universidades públicas. Como se verá, é um livro no qual a
totalidade dos autores posiciona-se em defesa de ações afirmativas de acesso e de
permanênciaparaosnegrosnoensinopúblicosuperiorbrasileiro.Maisainda,
éumlivroquedemonstraquenãosóoBrasil,masváriospaísesdaAmérica
Latina e do mundo estão discutindo e implementando ações afirmativas para
os seus grupos sociais que foram e/ou ainda são discriminados em função de
cor, sexo, origem étnica, racial, entre outros.
24
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
A obra se compõe de quatro partes. A primeira, ções afirmativas e Direito,
contémtrêstextosquefundamentamalegalidadeealegitimidadedasações
afirmativas no Brasil, bem como a sua da implementação. O primeiro, “Ações
afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos”, da doutora em Direito
Constitucional Flavia Piovesan, busca compreender a conceão contemponea
de direitos humanos; modo como podemos conceber as ões afirmativas
sob a perspectiva dos direitos humanos; bem como quais as perspectivas e
os desafios para a implementação da igualdade étnico-racial na ordem social
contemporânea. O segundo, “A recepção do instituto da ação afirmativa pelo
direito constitucional brasileiro”, é de autoria do doutor em Direito Público
e Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim B. Barbosa Gomes.
O ministro Gomes não somente nos brinda com uma discussão ampla e
profunda sobre o conceito e os objetivos das ações afirmativas, mas também
examinaapossibilidadejurídicadeintroduçãonosistemajurídicobrasileiro
desse mecanismo de integração social. O terceiro e último artigo dessa primeira
parte, “Rumo ao multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas
pelo Estado brasileiro como reparação dos danos atuais sofridos pela população
negra”, é de autoria do mestre em Direito e Estado e Consultor Legislativo do
SenadoFederal–RonaldoJorgeA.VieiraJunior,quebuscaanalisaraevolução,
no Brasil, da idéia de reparação dos danos causados à população negra no
âmbitododireito,bemcomoosfundamentosjurídico-filosóficosparaaadoção
das ações afirmativas, além de sustentar as ações afirmativas como importante
mecanismo de promoção da igualdade substantiva, do reconhecimento e da
valorização da cultura dos negros.
A segunda parte do livro, Em Defesa de Ações Afirmativas para a Inclusão dos
Negros no Ensino Público Superior Brasileiro, contém cinco textos. O primeiro,
“Raçaeeducação:oslimitesdaspolíticasuniversalistas”,édeautoriadodoutor
em economia e Consultor Legislativo do Senado Federal Mário Theodoro,
em parceria com a Técnica em Planejamento e Pesquisa do IPEA, Luciana
Jaccoud.Comooprópriotítulodoartigoindica,trata-sedeumtextoquebusca
demonstraroslimitesdaspolíticasuniversalistasparaincluirdemocraticamente
os negros no ensino público de terceiro grau no Brasil. Partindo da premissa de
queoBrasiléumdospaísesmaisinjustosdomundoe,maisdoqueisso,que
discriminações raciais contra os negros não somente na sociedade brasileira
mas também no âmbito do sistema escolar, Theodoro e Jaccoud afirmam que
apolíticasocialdecunhouniversalista,basedaaçãodoEstadoreformatada
apartirdaConstituiçãode988,carecedeaçõescomplementaresquedêem
conta das especificidades da questão racial. O segundo texto desta segunda parte,
25
Sales Augusto dos Santos
“Ação afirmativa no Brasil: um debate em curso”, de Carlos Alberto Medeiros,
oferece um panorama da ação afirmativa, do aparecimento dessa expressão nos
Estados Unidos, na década de sessenta, até as medidas recentemente adotadas
no Brasil – e a polêmica por elas suscitada. Mostra também as diferentes
políticasdessanaturezaimplementadasemdiferentessociedades,incluindoos
precedentes na própria legislação brasileira, bem como discute seus fundamentos
jurídico-filosóficoseapresentaumresumodadiscussãoqueorasetrava,com
os argumentos favoráveis e contrários. Pretende, assim, contribuir para um
debate que, apesar dos termos acalorados com que se costuma travá-lo entre
nós, prossegue marcado pela desinformação.
Os artigos seguintes desta parte do livro, “Ações afirmativas e diversidade
étnicaeracial”,“Branquitudeepoder–aquestãodascotasparanegros”e
“Racismoeimprensa–argumentaçãonodiscursosobreascotasparanegros
nas universidades”, de autoria, respectivamente, dos professores doutores Valter
Silvério, Maria Aparecida S. Bento e André Ricardo N. Martins, focalizam em
certa medida, discussões semelhantes às de Medeiros. São textos que visam a
descontruir os argumentos contrários às cotas para os negros nos vestibulares
das universidades públicas brasileiras. Eles buscam mostrar as fragilidades dos
argumentos dos opositores das cotas para negros, as suas visões de mundo
marcadas pela branquitude e fundamentadas mais em cenários imaginados e
opiniõessemevidênciasconcretas,queemdadosdepesquisasqueassustentem.
O professor Silvério não defende cotas para os negros, mas sustenta que
a implementação de ações afirmativas deve ser entendida como reparação,
indenização devida pela sociedade brasileira aos negros, ante as injustiças raciais,
entreoutras,dequeestesforameaindasãovítimasnoBrasil.Oseuartigo
tem por objetivo descrever de forma inicial alguns dos aspectos fundamentais
do debate sobre as ações afirmativas a partir de autores, de diferentes áreas do
conhecimento, que se preocupam com o tema. Procura, tamm, localizar alguns
aspectos da implementação das ações no Brasil, inclusive oferecendo um quadro
inicial de ações de promoção da igualdade racial na educação. Em seguida, temos
o artigo da doutora Maria Aparecida S. Bento. Para Bento, os argumentos contra
as cotas para os negros são fundamentados no que ela chama de branquitude,
queéterritóriodosilêncio,danegação,dainterdição,daneutralidade,domedo
edoprivilégio(racial).Masessesilêncioétãosignificantequantoaspalavras,
dado que ele cala a defesa de privilégios raciais. Finalizando esta parte do livro,
o professor Ricardo Martins, baseando-se em uma pesquisa na qual logrou o
graudedoutoremlingüística,pelaUniversidadedeBrasília(UnB),apresenta-
nos um artigo no qual se propõe a examinar o discurso da imprensa sobre a
26
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
políticadecotas,destacandocomo,pormeiodaargumentação,amedidaé
desqualificada, o racismo que atinge os negros é silenciado e a representação
dos negros no discurso da imprensa é subvalorizada.
A terceira parte do livro, Para Além das Cotas, conm cinco textos: dois
sobreospré-vestibularesparanegrosepessoasdebaixarendaeosoutrostrês
sobre experiências bem sucedidas de ação afirmativa para permanência de
estudantesnegrosemuniversidadespúblicas.Oprimeirotexto,“Políticasblicas
Afirmativas no Ministério da Educação”, de autoria de Ricardo Henriques e
Eliane dos Santos Cavalleiro, ambos protagonistas do processo de coordenação
eimplementaçãodaspolíticasafirmativasnoMEC,dáciênciadolequedeações
e medidas tomadas, implementadas ou planejadas. Bem como mostra como se
configuraram–ematritocomochamado“racismoinstitucional”–osespaços
de atuação em que o Estado tem lidado com a heterogeneidade de demandas,
instituições e projetos oriundos de diferentes setores da sociedade civil no campo
da educação. Dentre estes espos, inclui-se a própria Secretaria de Educação
Continuada,AlfabetizaçãoeDiversidade(Secad),instituídaemfevereirode2004,
quesurgecomodesafiodedesenvolvereimplementardepolíticasdeincluo,
considerandoasespecificidadesdasdesigualdadesbrasileiras,comênfaseàquelas
oriundasdoracismo,doetnicismo(indígenas)edoregionalismo(educaçãodo
campo). O segundo texto, de autoria do professor e pesquisador Renato Emerson
dos Santos, “A difusão do idrio anti-racista nos pré-vestibulares para negros e
carentes”, trabalha as diferentes formas de como as idéias da luta anti-racismo
emergem no cotidiano de construção dos pré-vestibulares populares. Partindo de
uma contextualizão histórica, o professor Renato Emerson dos Santos busca
mostrar que a difusão dos cursos pré-vestibular para negros, nos anos 90 do século
XX, teve como protagonista central o Movimento Negro. Ele mostra também que
esta iniciativa se constitui de um conjunto de momentos de constrão, onde
diretrizes e bandeiras ideológicas são negociadas, nos quais a discuso racial
apareceenquantolatênciae/oupotênciaquepodesermobilizadaeemergir,
mesmo nos cursos em que a coordenação não a tem como mote central.
Em seguida temos o artigo “A Universidade pública como direito dos jovens
negros(as).AexperiênciadoProgramaõesAfirmativasnaUFMG,deautoria
da professora doutora Nilma Lino Gomes, que busca demonstrar que esse projeto
de ação afirmativa, sem financiamento direto do governo federal, é fruto da luta
dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Neabs). A professora Gomes relata neste
artigo as principais ações desenvolvidas pelo projeto, que visavam, entre outros
objetivos, ao investimento no potencial dos universirios negros de baixa renda
27
Sales Augusto dos Santos
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), possibilitando-lhes uma
formação de qualidade. Dessa forma, ela compartilha com os leitores e as leitoras
umpoucodaexperiênciadepermanênciabemsucedidaparajovensnegros(as),
desenvolvidapeloPrograma,mesmocomtodasasresistências“veladas”queo
projeto enfrentou no interior da UFMG. O quarto texto dessa parte do livro,
“ProjetoPassagemdoMeio–umapolíticadeaçãoafirmativanaUniversidade
Federal de Goiás (UFG)”, é de minha autoria e tem como objetivo descrever o
impactoresultantenodesempenhoacamicoenavisãodemundodosdiscentes
bolsistas do projeto de ão afirmativa Passagem do Meio, que es sendo executado
naUFG.Otextodescrevetammoimpactodesseprojetonomeioacamico
dessa universidade, em especial, entre os docentes coordenadores e tutores do
projeto.AquitambémorelatadasalgumasresistênciasnointeriordaUFG
contra esse projeto de ação afirmativa para negros de baixa renda durante a sua
primeirafase.Oquintoeúltimoartigo,“Avaliaçãodapolíticadeaçãoafirmativa
parapermanciadealunosnegrosnaUFF”,deautoriadosprofessoresdoutores
Iolanda de Oliveira e André A. Brano, discute os efeitos do projeto de ação
afirmativa para universitários negros, do Programa de Educação sobre Negro na
Sociedade Brasileira (PENESB), da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre
os universitários bolsistas do PENESB, bem como os efeitos deste projeto sobre a
própria UFF, que, como as demais universidades supracitadas, pela primeira vez
na sua história teve que se relacionar, do ponto de vista institucional, com ações
afirmativasparaapopulãonegra.Valeressaltarquetodosessestrêsprojetos
deãoafirmativadepermanênciaparaalunosnegrosdebaixarendanessas
universidades federais foram financiados por uma fundação privada, ou seja, eles
não receberam nenhum financiamento direto do governo federal. Mais ainda,
estes programas de ações afirmativas, mesmo com poucos recursos financeiros,
possibilitaram mudanças significativas não na vida dos universitários negros
–possibilitando-lhesumacompreensãodasrelaçõesraciaisbrasileiras,elevando
a sua auto-estima, qualificando-lhes academicamente, preparando-lhes para o
ingressonosprogramasdepós-graduação,entreoutrosbenefícios–,mastambém
no interior das universidades onde eles foram implementados. Como se também
verá,senumprimeiromomentohouvefortesresistênciasaessesprogramasno
interior das universidades, num segundo, ante a perseverança dos professores e
alunos engajados nos mesmos, começaram a surgir diálogos no interior dessas
universidades na tentativa de compreender o que são ações afirmativas e porque
os negros devem ser seus beneficiários.
A quarta e última parte do livro, Questão Racial e Ações Afirmativas na
América Latina,contémtrêstextosqueabordamadiscussãodaquestãoracial
28
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
e das açõesafirmativasem alguns paíseslatino-americanos. Nestebloco se
perceberáqueháumatendêncianaAméricaLatina,bemcomoemoutraspartes
do planeta, de implementação de ações afirmativas para grupos socialmente
segregados – como negros, mulheres, entre outros –, visando a mitigar a
discriminaçãoqueestesvêmsofrendoemfacedasuacor/raçaeoseusexo.
Portanto,aimplementaçãodestetipodepolíticapúblicaparanegros,anteao
racismoaqueestesestãosubmetidos,nãoé,comoalgunscríticosnativosdas
ações afirmativas afirmam, uma simples importação de idéias estadunidenses
quenãosãocabíveisnoBrasil.Comoseverá,háaçõesafirmativasemdiversos
paísesdomundo,algumas,inclusive,reivindicadaseimplementadasantesde
meados da década de 1960, quando o Estados Unidos começaram a pensar
nestetipopolíticapública.
O primeiro texto desta quarta e última parte, “Do marco histórico das
políticas públicas de ações afirmativas – perspectivas e considerações”, de
autoria do professor doutor Carlos Moore Wedderburn, busca demonstrar que
as ações afirmativas estão em plena expansão no mundo inteiro e que, com
exceçãodamaiorpartedospaísesdaAméricaLatina,praticamentetodosos
paísesdochamadoterceiromundoemumdadomomentodesuahistória
implementaramessaspolíticaspararesolveroumitigardesigualdadesdecorrentes
de discriminações de raça/cor, sexo, entre outras. Para o professor Carlos Moore
Wedderburn,aimplementaçãodeaçõesafirmativasempaísescomacentuadas
desigualdades sociais e raciais decorrentes do racismo, do sexismo, entre outros,
pode ser capaz de conter prováveis conflitos sociais, impedindo assim a implosão
da sociedade. O segundo texto desta parte, “Ações afirmativas e afrodescendentes
na América Latina: análise de discursos, contra-discursos e estratégias”, é de
autoria da especialista em Direito Internacional Mónica Carrillo Zegarra. Como
a própria autora afirma no texto, este tem o objetivo de dar um panorama
geral dos discursos e contra-discursos em relação às ações afirmativas, levando
em conta a particularidade da América Latina com relação a outras regiões e as
posições que tratam de deslegitimar ou reduzir a potencialidade das mesmas.
Além disso, busca-se analisar as tensões existentes com os movimentos sociais
quetêmemsuaagendaalutacontraadiscriminação.Oterceiroeúltimotexto
desta parte e do livro, “A Luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações
afirmativas: convite à reflexão e ao debate”, de autoria do pesquisador Tomás
Fernández Robaina, apresenta-nos uma visão das relações raciais em Cuba,
pouco conhecidas entre nós brasileiros. O autor busca demonstrar que sempre
houve discriminação contra os negros em Cuba, mesmo depois da revolução
socialista de 1959, o que levou o presidente Fidel Castro a se pronunciar sobre
29
Sales Augusto dos Santos
aproblemáticaracialnopaís,solicitandoatémesmoaosintelectuaiscubanos
quecontribuíssemparaaerradicaçãodopreconceito,dadiscriminaçãoraciale
doracismonestepaís.Busca-sedemonstrartambémquemesmodepoisdastrês
primeiras décadas da revolução cubana, a presença de negros é muito precária
em algumas áreas profissionais e de estudos universitários. Mesmo os negros
quelograramêxitonosestudosuniversitáriosetécnicosnemsempretêmas
mesmas possibilidades no acesso a postos de trabalhos significativos a que os
brancoscubanostêm.Robainamostra,também,queapesardaintroduçãoda
discussão de ações afirmativas para negros, com objetivo integrá-los plenamente
nasociedadecubanaedesuperaroumitigaradiscriminaçãoracial,estapolítica
públicasofrefortesresistênciasemCuba.
Como afirmamos anteriormente, esperamos com este livro ajudar a
publicizar e solidificar a inclusão da questão racial brasileira na agenda nacional,
bemcomodefenderaçõesafirmativasdeacessoepermanênciaparanegrosnas
universidadespúblicas,nãosóporserumamedidalegalelegítima,maspor
ser uma questão de justiça.
Sales Augusto dos Santos
Organizador
ÕES AFIRMATIVAS E DIREITO
Parte I
33
AçõeS AfirmAtivAS Sob A perSpectivA doS direitoS
HumAnoS
1
Flavia Piovesan
introdução
Este artigo objetiva desenvolver uma análise a respeito das ações afirmativas
sob a perspectiva dos direitos humanos.
Otemaserá,assim,enfocadoapartirdetrêsreflexõescentrais:
1) Como compreender a concepção contemporânea de direitos humanos?
2) De que modo conceber as ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos
humanos?
3) Quais as perspectivas e desafios para a implementão da igualdade étnico-
racial na ordem contemponea?
como compreender A concepção contemporâneA de direitoS
HumAnoS?
Enquanto reivindicões morais, os direitos humanos nascem quando
devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos
não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas (1998: 30). Para
HannahArendt,osdireitoshumanosnãosãoumdado,masum“construído”,
uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução
1 Este texto embasou a intervenção “Ações Afirmativas sob a Perspectiva dos Direitos Humanos”, realizada
naConferênciaInternacionalsobreAçãoAfirmativaeDireitosHumanos,noRiodeJaneiro,em6e7
de julho de 2004.
34
Ações Afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos
(1979)
2
.Compõemumconstruídoaxiológico,frutodanossahistória,denosso
passado, de nosso presente, a partir de um espaço simbólico de luta e ação
social.NodizerdeJoaquíHerreraFlores,osdireitoshumanossimbolizamuma
racionalidadederesistência,namedidaemquetraduzemprocessosqueabrem
e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Realçam, sobretudo, a
esperança de um horizonte moral, pautado pela gramática da inclusão, refletindo
a plataforma emancipatória de nosso tempo.
Ao adotar este prisma histórico, cabe realçar que a Declaração de 1948
inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos, ao introduzir
a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela
universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade, porque clama
pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição
de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser
humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e
dignidade. Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e
políticoséconjugadoaocatálogodosdireitoseconômicos,sociaiseculturais.A
Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania,
conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade.
A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros
instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro
axiológico e unidade valorativa a esse campo do Direito, com ênfase na
universalidade,indivisibilidadeeinterdependênciadosdireitoshumanos.
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de
um sistema internacional de proteção desses direitos. Este sistema é integrado
portratadosinternacionaisdeproteçãoquerefletem,sobretudo,aconsciência
ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam
o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, fixando
parâmetrosprotetivosmínimos.Nestesentido,cabedestacarque,até2003,o
PactoInternacionaldosDireitosCivisePolíticoscontavacom49Estados-parte;
2 A respeito, ver também Celso Lafer (1988: 134). No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: “Não se
insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são
conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual
as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem
reconhecidos como direitos” (1998: 156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre
progressivo. (…) O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte
e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente” (1995: 243).
35
Flavia Piovesan
oPactoInternacionaldosDireitosEconômicos,SociaiseCulturaiscontava
com 146 Estados-parte; a Convenção contra a Tortura contava com 132 Estados-
parte; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com
167 Estados-parte; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra
a Mulher contava com 170 Estados-parte e a Convenção sobre os Direitos da
Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-parte (UNITED
NATIONS, 2003). O elevado número de Estados-partes destes tratados simboliza
o grau de consenso internacional a respeito de temas centrais voltados aos
direitos humanos.
Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de
protão, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos
regionais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim,
a convivência do sistema global da ONU com instrumentos dos sistemas
regionais, por sua vez, integrado pelos sistemas americano, europeu e africano
de proteção aos direitos humanos.
Ossistemasglobaleregionalnãosãodicotômicos,mascomplementares.
Inspiradospelosvalorese princípios da Declaração Universal,compõemo
universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional.
Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em
benefíciodosindivíduosprotegidos.Aoadotarovalordaprimaziadapessoa
humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional
deproteção,afimdeproporcionaramaiorefetividadepossívelnatutelae
promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia
próprias do Direito dos Direitos Humanos.
Considerando a concepção contemporânea de direitos humanos e a ética
dos direitos humanos, passa-se, neste momento, à segunda questão:
de que modo conceber AS AçõeS AfirmAtivAS Sob A perSpectivA
doS direitoS HumAnoS?
Como mencionado, a partir da Declaração Universal de 1948, começa
a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a
adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos
fundamentais.
Aprimeirafasedeproteçãodosdireitoshumanosfoimarcadapelatônica
da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia
36
Ações Afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos
sidoorientada para oextermínio),combasenaigualdade formal.A título
de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração de 1948, bem
como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime
deGenocídio,tambémde948,quepunealógicadaintolerânciapautadana
destruição do “outro”, em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou religião.
Torna-se,contudo,insuficientetrataroindivíduodeformagerica,geral
e abstrata. Faz-se necesria a especificação do sujeito de direito, que passa a
ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica determinados
sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma
respostaespeficaediferenciada.Valedizer,naesferainternacional,seuma
primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de
proporcionar uma proteção geral, gerica e abstrata, refletindo o próprio
temordadiferença(quenaeraHitlerfoijustificativaparaoextermínio
e a destruição), percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir, a
determinados grupos, uma proteção especial e particularizada, em face de
sua própria vulnerabilidade. Isto significa que a diferença não mais seria
utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção de
direitos.
Nesse cenário, por exemplo, a população afro-descendente, as mulheres, as
crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e peculiaridades
de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também, como
direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à
diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.
Destacam-se,assim,trêsvertentesnoquetangeàconceãodaigualdade:
a) a igualdade formal, reduzida à fórmula todos são iguais perante a lei
(que, ao seu tempo, foi crucial para abolão de privilégios); b) a igualdade
material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade
orientada pelo critério sócio-econômico); e c) a igualdade material,
correspondente ao ideal de justa enquanto reconhecimento de identidades
(igualdadeorientadapeloscririosgênero,orientaçãosexual,idade,raça,
etnia e demais critérios).
Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuão e
reconhecimento de identidades. Como argumenta a autora:
37
Flavia Piovesan
O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na
sociedade não decorre simplesmente em função da classe. (...) Reciprocamente,
a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos
recursos não decorre simplesmente em função de status.
3
Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao
reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos afirma que
apenasaexigênciadoreconhecimentoedaredistribuiçãopermitearealização
da igualdade
4
. Acrescenta ainda Boaventura:
temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos
odireitoaserdiferentesquandoanossaigualdadenosdescaracteriza.Daía
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
5
É neste cenário que as Nações Unidas aprovam, em 1965, a Convenção sobre
a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, ratificada hoje por
167 Estados, dentre eles o Brasil (desde 1968).
Desde seu preâmbulo, esta Convenção assinala que qualquer “doutrina de
superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente
condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para a
discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum”. Ressalta-se a
urgênciaemseadotartodasasmedidasnecessáriasparaeliminaradiscriminação
racial em todas as suas formas e manifestações e para prevenir e combater
doutrinas e práticas racistas.
O artigo 1ª da Convenção define a discriminação racial como
qualquerdistinção,exclusão,restriçãooupreferênciabaseadaemraça,cor,
descendênciaouorigemnacionalouétnica,quetenhaopropósitoouo
efeitodeanularouprejudicaroreconhecimento,gozoouexercícioempé
de igualdade dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
3 Explica Nancy Fraser: O reconhecimento não pode se reduzir à distribuão, porque o status na
sociedade o decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro
afro-americano de Wall Street, que o pode conseguir um taxi. Neste caso, a injustiça da falta de
reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuão. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode
se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de
status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desempregado em
virtude do fechamento da brica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa.
Neste caso, a injusta da distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. (...)
Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta conceão trata da
redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimenes distintas da justa. Sem reduzir
uma à outra, abarca ambas em um marco mais amplo(s/d: 55-6).
38
Ações Afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos
Vale dizer, a discriminação abrange toda distinção, exclusão, restrição ou
preferênciaquetenhaporobjetoouresultadoprejudicarouanularoexercício,
em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais,
noscampospolítico,econômico,social,culturalecivilouemqualqueroutro
campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.
Esta mesma lógica inspirou a definição de discriminação contra a mulher,
quando da adoção da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, pela ONU, em 1979.
A discriminão ocorre quando somos tratados iguais, em situações
diferentes; e como diferentes, em situações iguais.
Como enfrentar a problemática da discriminação?
No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacam-se
duas estratégias: a) a estratégia repressivo-punitiva (que tem por objetivo punir,
proibir e eliminar a discriminação); b) a estratégia promocional (que tem por
objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade).
Navertenterepressivo-punitiva,háaurgênciaemseerradicartodasasformas
de discriminação. O combate à discriminação é medida fundamental para que
segarantaoplenoexercíciodosdireitoscivisepolíticos,comotambémdos
direitossociais,econômicoseculturais.
Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito
à igualdade, todavia, por si , é medida insuficiente. Vale dizer, é fundamental
conjugar a vertente repressivo-punitiva com a vertente promocional.
Faz-senecessáriocombinaraproibiçãodadiscriminaçãocompolíticas
compensarias que acelerem a igualdade enquanto processo. Isto é, para
assegurar a igualdade o basta apenas proibir a discriminação, mediante
legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de
estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços
sociais.Comefeito,aigualdadeeadiscriminãopairamsobobimio
inclusão-exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social,
a discriminão implica a violenta exclusão e a intolerância à diferença e à
diversidade. O que se percebe é que a proibição da excluo, em si mesma,
o resulta automaticamente na incluo. Logo, o é suficiente proibir
a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com
a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente
padrãodeviolênciaediscriminação.
39
Flavia Piovesan
Neste sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se
as ações afirmativas. Estas ações constituem medidas especiais e temporárias
que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o
processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de
grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, as mulheres, dentre
outros grupos.
As ações afirmativas, enquanto políticas compensatórias adotadas para
aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório,
cumprem uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático, que é a
de assegurar a diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas
que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve
se moldar no respeito à diferença e à diversidade. Através delas transita-se da
igualdade formal para a igualdade material e substantiva.
Por estas razões, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial prevê, no artigo ª, parágrafo 4ª, a possibilidade de
“discriminação positiva” (a chamada “ação afirmativa”), mediante a adoção
demedidasespeciaisdeproteçãoouincentivoagruposouindivíduos,com
vistasapromoversuaascensãonasociedadeatéumníveldeequiparaçãocom
os demais. As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias
que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o
processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de
grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, dentre
outros grupos.
Note-se que a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Contra a
Mulhertambémcontemplaapossibilidadejurídicadeusodasaçõesafirmativas,
pela qual os Estados podem adotar medidas especiais temporárias, com vistas
a acelerar o processo de igualização de status entre homens e mulheres. Tais
medidas cessarão quando alcançado o seu objetivo. São, portanto, medidas
compensatórias para remediar as desvantagens históricas, aliviando o passado
discriminatório sofrido por este grupo social.
Quanto ao prisma racial, importa destacar que o documento oficial
brasileiroapresentadoàConferênciadasNaçãoUnidasContraoRacismo,
em Durban, na África do Sul (31 de agosto a 7 de setembro de 2001), defendeu,
do mesmo modo, a adoção de medidas afirmativas para a população afro-
descendente,nasáreasdaeducaçãoetrabalho.Odocumentopropôsaadoção
de ações afirmativas para garantir o maior acesso de afro-descendentes às
universidades públicas, bem como a utilização, em licitações públicas, de
40
Ações Afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos
um critério de desempate que considere a presea de afro-descendentes,
homossexuais e mulheres, no quadro funcional das empresas concorrentes.
A Confencia de Durban, em suas recomendações, pontualmente nos
seus pagrafos 107 e 108, endossa a importância de os Estados adotarem
ões afirmativas, enquanto medidas especiais e compensatórias voltadas a
aliviaracargadeumpassadodiscriminatório,daquelesqueforamvítimas
da discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de intolerância
correlatas.
No Direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece importantes
dispositivos que demarcam a busca da igualdade material, que transcende a
igualdadeformal.Atítuloderegistro,destaque-seoartigo7ª,incisoXX,que
trata da proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos
específicos, bem como o artigo 37, inciso VII, que determina que a lei
reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras
dedeficiência.Acrescente-seaindaachamada“Leidascotas”de995(Leinª
9.100/95), que obrigou que ao menos 20% dos cargos para as candidaturas
às eleições municipais fossem reservados às mulheres. Adicione-se também o
ProgramaNacionaldeDireitosHumanos,quefazexpressaalusãoàspolíticas
compensatórias, prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas
em favor de grupos socialmente vulneráveis. Some-se, ademais, o Programa de
Ações Afirmativas na Administração Pública Federal e a adoção de cotas para
afro-descendentesemUniversidades–comoéocasodaUERJ,UNEB,UnB,
UFPR, dentre outras.
Ora, se a raça e etnia sempre foram critérios utilizados para exclusão de
afro-descendentesemnossopaís,quesejamhojeutilizados,aorevés,paraa
sua necessária inclusão.
Na esfera universitária, por exemplo, dados do IPEA revelam que menos
de 2% dos estudantes afro-descendentes estão em universidades públicas ou
privadas. Isto faz com que as universidades sejam territórios brancos. Note-
se que a universidade é um espaço de poder, que o diploma pode ser um
passaporte para ascensão social. É fundamental democratizar o poder e, para
isto, que se democratizar o acesso ao poder, vale dizer, o acesso ao passaporte
universitário.
Emumpaísemqueosafro-descendenteso64%dospobrese69%
dosindigentes(dadosdoIPEA),emquenoíndicededesenvolvimento
humanogeral (IDH,2000)opaísfiguraem74ª lugar,mas que,sob o
recorte étnico-racial, o IDH relativo à população afro-descendente indica
41
Flavia Piovesan
a 108º posição (enquanto o IDH relativo à população branca indica a
43ºposição),faz-senecessáriaaadãodeaçõesafirmativasembenefício
da população afro-descendente, em especial nas áreas da educação e do
trabalho. Quanto ao trabalho, oMapa da Populão Negra no Mercado
de Trabalho, documento elaborado pelo INSPIR (Instituto Sindical
Interamericano pela Igualdade Racial) em convênio com o DIEESE
(DepartamentoIntersindicaldeEstatísticaeEstudosSócio-Econômicos),
em 1999, demonstra que o(a) trabalhador(a) afro-descendente(a) convive
mais intensamente com o desemprego; ocupa os postos de trabalho mais
precários ou vulneveis em relação aos não afro-descendentes; tem mais
instabilidade no emprego; está mais presente no chão da brica ou
na base da produção; apresenta níveis de instrução inferiores aos dos
trabalhadores não afro-descendentes e tem uma jornada do trabalho maior
do que a do trabalhador não afro-descendente.
ainda que se endossar a complexa realidade brasileira, que traduz um
alarmante quadro de exclusão social e discriminação, como termos interligados
acomporumcírculovicioso,emqueaexclusãoimplicadiscriminaçãoea
discriminação implica excluo.
Nesse cenário, as ações afirmativas surgem como medida urgente e
necessária.Taisaçõesencontramamplorespaldojurídico,sejanaConstituição
(ao assegurar a igualdade material, prevendo ações afirmativas para outros
grupos socialmente vulneráveis), seja nos tratados internacionais ratificados
pelo Brasil.
A experiência no Direito Comparado (em particular a do Direito
norte-americano) comprova que as ações afirmativas proporcionam
maior igualdade, na medida em que asseguram maior possibilidade de
participação de grupos sociais vulneráveis nas instituições públicas e
privadas. A respeito, a Plataforma de Ação de Beijing, de 1995, afirma,
emseuparágrafo87,queemalgunspaísesaadoçãodaaçãoafirmativa
tem garantido a representação de 33,3% (ou mais) de mulheres em cargos
da Administração nacional ou local.
Logo, estas ações constituem relevantes medidas para a implementação do
direito à igualdade. Faz-se, assim, emergencial a adoção de ações afirmativas,
que promovam medidas compensatórias voltadas à concretização da igualdade
racial.
42
Ações Afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos
quAiS AS perSpectivAS e deSAfioS pArA A implementão dA iguAldAde
étnico-rAciAl nA ordem contemporâneA?
A implementação do direito à igualdade é tarefa fundamental à qualquer
projeto democrático, já que em última alise a democracia significa a
igualdade—aigualdadenoexercíciodosdireitoscivis,políticos,econômicos,
sociaiseculturais.Abuscademocráticarequerfundamentalmenteoexercício,
em igualdade de condições, dos direitos humanos elementares.
Se a democracia se confunde com a igualdade, a implementação do direito
à igualdade, por sua vez, impõe tanto o desafio de eliminar toda e qualquer
forma de discriminação, como o desafio de promover a igualdade.
Para a implementação do direito à igualdade, é decisivo que se intensifiquem e se
aprimorem ações em prol do alcance dessas duas metas que, por serem indissociáveis,
o de ser desenvolvidas de forma conjugada. assim que se combinar estratégias
repressivas e promocionais, que propiciem a implementão do direito à igualdade.
Reitere-se que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
Racial, ratificada hoje por mais de 167 Estados (entre eles o Brasil), aponta esta
dupla vertente: a) a repressivo-punitiva (concernente à proibição e à eliminação da
discriminação racial) e b) a promocional (concernente à promão da igualdade).
Vale dizer, os Estados-parte assumem não apenas o dever de adotar medidas que
prbamadiscriminaçãoracial,mas,tamm,odeverdepromoveraigualdade,
mediante a implementação de medidas especiais e temporárias, que acelerem o
processo de constrão da igualdade racial.
Sob a perspectiva racial, considerando as especificidades do Brasil, que é o
segundopaísdomundocomomaiorcontingentepopulacionalafro-descendente
(45% da população brasileira, perdendo apenas para a Niria), tendo sido, contudo,
oúltimopaísdo mundoocidentalaaboliraescravidão, faz-se emergenciala
adão de medidas eficazes para romper com o legado de exclusão étnico-racial,
quecomprometenãosóaplenavinciadosdireitoshumanos,masaprópria
democracianopaís--sobpenadetermosdemocraciasemcidadania.
Senoinício este texto acentuavaque os direitos humanosnão são um
elementodado,masconstruído,enfatiza-seagoraqueaviolaçãodessesdireitos
também o é. Isto é, as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias,
osracismos,asinjustiçasraciaissãoumconstruídohistórico,aserurgentemente
desconstruído,sendoemergencialaadoçãodemedidaseficazespararomper
com o legado de exclusão étnico-racial. que se enfrentar essas amarras,
43
Flavia Piovesan
mutiladoras do protagonismo, da cidadania e da dignidade da população afro-
descendente. Destacam-se, neste sentido, as palavras de Abdias do Nascimento,
ao apontar para a necessidade da
inclusão do povo afro-brasileiro, um povo que luta duramente cinco
séculosnopaís,desdeosseusprimórdios,emfavordosdireitoshumanos.
É o povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao
longodahistóriadopaís:opovoqueduranteséculosnãomereceunemo
reconhecimento de sua própria condição humana.
A implementação do direito à igualdade racial de ser um imperativo
ético-político-social, capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem
negadoàmetadedapopulaçãobrasileiraoplenoexercíciodeseusdireitose
liberdades fundamentais.
referênciAS bibliográficAS
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concepto integrado de la justicia. In: UNESCO. Informe Mundial sobre la
Cultura — 2000-2001. s/d.
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pensamento da Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
PAIXÃO, Marcelo. Brasil 2000 — novos marcos para as relaçoes raciais.
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Humanos no Século XXI, 1998.
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cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: 2003.
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2003.NewYork/OxfordUniversityPress,2003.
45
A receão do inStituto dA Ação AfirmAtivA pelo
direito conStitucionAl brASileiro
1
Joaquim B. Barbosa Gomes
introdução
Demorou, mas finalmente foi dada a partida! O Direito Constitucional
brasileiro começa a discutir, com um certo atraso, é bem verdade, as chamadas
“questões de sociedade”. O pontapé inicial foi dado pelo Supremo Tribunal
Federal, na histórica decio em que se debateu acerca do crime de racismo.
2
Outra
questão de grande impacto social é a que se refere às medidas compensatórias,
mais particularmente às denominadas ações afirmativas, destinadas a promover
aimplementaçãodoprincípioconstitucionaldaigualdadematerial.Poderoso
instrumentojurídico,suaaplicaçãoemproldacomunidadenegratemsido
objetodasmaisacirradascontrovérsiaspolíticas,sociaisejurídicas.
OtemaédetranscendentalimportânciaparaoBrasil,porterincidência
direta sobre aquele que é seguramente o mais grave de todos os nossos problemas
sociais, o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador
quadro social. Trata-se dos diversos mecanismos pelos quais, ao longo da nossa
história, a sociedade brasileira logrou proceder, através das mais variadas formas
de discriminação, à excluo e ao alijamento, do processo produtivo conseqüente
e da vida social digna, de um expressivo percentual de sua população (cerca de
45%dototal):osbrasileirosportadoresdeascendênciaafricana.
Assim, neste despretensioso ensaio tentaremos examinar a possibilidade
jurídicadeintrodução,nonossosistemajurídico,demecanismosdeintegração
social largamente adotados nos Estados Unidos sob a denominação de
1 Um versão anterior deste artigo foi publicado em Santos e Lobato (2003).
2HC82.424.Relator:Min.MoreiraAlves.RedatorparaoAcórdão:Min.MaurícioCorrêa.TribunalPleno.
DJ 30/09/2003.
46
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
affirmative action (ação afirmativa) e na Europa, sob o nome de discrimination
positive (discriminação positiva) e de action positive (ação positiva).
Ação AfirmAtivA e princípio dA iguAldAde
A noção de igualdade, como categoria judica de primeira grandeza,
tevesuaemergênciacomoprincípiojurídicoincontornávelnosdocumentos
constitucionais promulgados imediatamente após as revoluções do final do
séculoXVIII.Comefeito,foiapartirdasexperiênciasrevolucionáriaspioneiras
dos EUA e da França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma
construçãojurídico-formalsegundoaqualalei,genéricaeabstrata,deveserigual
paratodos,semqualquerdistinçãoouprivilégio,devendooaplicadorfazê-la
incidirdeformaneutrasobreassituaçõesjurídicasconcretasesobreosconflitos
interindividuais. Concebida para o fim específico de abolir os privilégios
típicosdoancien régime e para dar cabo às distinções e discriminações baseadas
na linhagem, no rank,narígidaeimutávelhierarquizaçãosocialporclasses
(classement par ordre),essaclássicaconcepçãodeigualdadejurídica,meramente
formal, firmou-se como idéia-chave do constitucionalismo que floresceu no
século XIX e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX.
Por definição, conforme bem assinalado por Guilherme Machado Dray,
oprincípiodaigualdadeperantealeiconsistirianasimplescriaçãodeum
espaçoneutro,ondeasvirtudeseascapacidadesdosindivíduoslivremente
se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso, representavam
nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas,
susceptíveisdecriaremdesigualdadesartificiaisenessamedidaintoleráveis.
3
Em suma, segundo esse conceito de igualdade, que veio a dar sustentação
jurídicaaoEstadoliberalburguês,aleideveserigualparatodos,semdistinções
de qualquer espécie.
Abstrata por natureza e levada a extremos por força do postulado da
neutralidade estatal (uma outra noção cara ao ideário liberal), o princípio
da igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo, como a garantia
da concretização da liberdade. Para os pensadores e teóricos da escola liberal,
bastaria a simples inclusão da igualdade no rol dos direitos fundamentais para
que a mesma fosse efetivamente assegurada no sistema constitucional.
3 Veja-se a bem elaborada e exaustiva monografia de Dray, Guilherme Machado, O Princípio da Igualdade
no Direito do Trabalho (1999).
47
Joaquim B. Barbosa Gomes
Aexperiênciaeosestudosdedireitoepolíticacomparada, contudo,m
demonstradoque,talcomoconstruída,àluzdacartilhaliberaloitocentista,a
igualdadejurídicanãopassademeraficção.«Paulatinamente,po,sustentao
juristaportugsGuilhermeMachadoDray,
aconcepçãodeumaigualdadepuramenteformal,assentenoprincípiogeral
da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou
queaigualdadededireitosnãoera,porsisó,suficienteparatornaracessíveis
a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os
indivíduossocialmenteprivilegiados.Importaria,pois,colocarosprimeiros
aomesmoníveldepartida.Emvezdeigualdadedeoportunidades,importava
falar em igualdade de condições.
Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma conceão substancial de igualdade,
que levasse em conta em sua operacionalização o apenas certas condões fáticas
eeconômicas,mastambémcertos comportamentosinevitáveisdaconvincia
humana, como é o caso da discriminação. Assim, assinala a ilustre Professora de
Minas Gerais, Carmen Lucia Antunes Rocha,
concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter
aefetividadedoprincípiodaigualdadejurídica.Oquenaquelemodelose
tinhaesetemétão-somenteoprincípiodavedaçãodadesigualdade,ou
da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou
comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo
quegarantiraigualdadejurídica(996:86).
Comosevê,emlugardaconcepção«estática»deigualdade,extraídadas
revoluções francesa e americana, cuida-se, nos dias atuais, de se consolidar a noção
de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo
e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista,
recomenda,inversamente,umanoção«dinâmica»,«militante»deigualdade,
na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades
concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam
tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a
perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade. Produto
do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna
redobrada atenção por parte do legislador e dos aplicadores do Direito à
variedade das situações individuais e de grupo, de modo a impedir que o
dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa
dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas.
Natransiçãodaultrapassadanoçãodeigualdade«estática»ou«formal»aonovo
conceitodeigualdade«substancial»,surgeaidéiade«igualdadedeoportunidade,
48
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade
deseextinguiroudepelomenosmitigaropesodasdesigualdadeseconômicase
sociais e, conseentemente, de promover a justiça social.
Dessanovavisãoresultouosurgimento,emdiversosordenamentosjudicos
nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos
4
,depoticas
sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados.
Vale dizer, da conceão liberal de igualdade, que capta o ser humano em sua
conformaçãoabstrata,genérica,oDireitopassaaperce-loeatratá-loemsua
especificidade,comoserdotadodecaracterísticassingularizantes.Nodizerde
Flávia Piovesan,
doenteabstrato,genérico,destituídodecor,sexo,idade,classesocial,dentre
outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado,
comespecificidadeseparticularidades.Daíapontar-senãomaisaoindivíduo
genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo «especificado»,
considerando-secategorizaçõesrelativasaogênero,idade,etnia,raça,etc.
(1988: 130).
O«indivíduoespecificado»,portanto,seráoalvodessasnovaspolíticassociais.
Aessaspolíticassociais,quenadamaisodoquetentativasdeconcretização
daigualdadesubstancialoumaterial,dá-seadenominaçãode«açãoafirmativa»
ou,naterminologiadodireitoeuropeu,de«discriminaçãopositiva»ou“ação
positiva”.
Aconsagraçãonormativadessaspolíticassociaisrepresenta,pois,ummomento
de ruptura na evolução do Estado moderno. Com efeito, como bem assinala a
Professora Carmen Lúcia Antunes Rocha,
em nenhum Estado Democrático, até a década de 60, e em quase nenhum
até esta última década do século XX se cuidou de promover a igualação e
vencerem-se os preconceitos por comportamentos estatais e particulares
obrigatórios pelos quais se superassem todas as formas de desigualação
injusta. Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por
opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências
físicas ou psíquicas, por idade etc. continuam em estado de desalento
jurídicoemgrandepartedomundo.Inobstanteagarantiaconstitucional
da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos, não
são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso às iguais
oportunidadesmínimasdetrabalho,departicipaçãopolítica,decidadania
4 Vejam-se especialmente a Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial (1965); a Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra
aMulher(979);oPactoInternacionalsobreDireitosEconômicos,SociaiseCulturais(966);oPacto
InternacionalsobreDireitosCivisePolíticos(966).
49
Joaquim B. Barbosa Gomes
criativaecomprometida,deixadosquesãoàmargemdaconvivênciasocial,
daexperiênciademocráticanasociedadepolítica.
Nessa nova postura o Estado abandona a sua tradicional posição de neutralidade
edemeroespectadordosembatesquesetravamnocampodaconvivênciaentre
oshomensepassaaatuar«ativamentenabusca»daconcretizaçãodaigualdade
positivada nos textos constitucionais.
Opaíspioneironaadãodaspoticassociaisdenominadas«açõesafirmativas»
foicomoésabido,osEstadosUnidosdaAmérica.Taispolíticasforamconcebidas
inicialmente como mecanismos tendentes a solucionar aquilo que um lebre
autorescandinavoqualificoude«odilemaamericano»:amarginalizaçãosociale
econômicadonegronasociedadeamericana.Posteriormente,elasforamestendidas
àsmulheres,aoutrasminoriasétnicasenacionais,aosíndioseaosportadoresde
deficiência.
Asaçõesafirmativassedefinemcomopolíticasblicas(eprivadas)voltadas
àconcretizaçãodoprinpioconstitucionaldaigualdadematerialeàneutralização
dosefeitosdadiscriminaçãoracial,degênero,deidade,deorigemnacionalede
compleiçãofísica.Nasuacompreensão,aigualdadedeixadesersimplesmente
umprincípiojurídicoa serrespeitadoportodos,e passaaserumobjetivo
constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Segundo Renauld,
Il semble clair que les discriminations positives invitent à penser l’égalité comme
un objectif à atteindre en soi. Le simple constat que nos sociétés rent encore
de nombreuses inégalis de traitement devrait s lors inciter les pouvoirs publics
comme les acteurs privés à adopter et à mettre en oeuvre des mesures susceptibles
de crééer ou de mener à plus d’égalité (1997: 425).
5
Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por
entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações
flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fundo cultural,
estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas
deumcaráterdeexemplaridade,mcomometa,também,oengendramentode
transformações culturais e sociais relevantes, aptas a inculcar nos atores sociais a utilidade
eanecessidadedaobservânciadosprinpiosdopluralismoedadiversidadenasmais
diversasesferasdoconviohumano.Poroutrolado,constituem,porassimdizer,a
mais eloqüente manifestão da moderna idéia de Estado promovente, atuante, eis
5 “Parece claro que as discriminações positivas nos convidam a pensar a igualdade como um objetivo em si.
A simples constatação de que nossas sociedades ainda produzem numerosas desigualdades de tratamento
deveriaapartirdeentãoincitarospoderespúblicoseatoresprivadosaadotareacionarmedidassuscetíveis
de conduzir à maior igualdade” (tradução de Tânia Ludmila Dias Tosta).
50
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
quedesuaconcepção,implantaçãoedelimitaçãojurídicaparticipamtodososóros
estataisessenciais,aíseincluindooPoderJudicrio,queoraseapresentanoseu
tradicionalpapeldeguardiãodaintegridadedosistemajudicocomoumtodo
e especialmente dos direitos fundamentais, ora como instituição formuladora de
poticastendentesacorrigirasdistorçõesprovocadaspeladiscriminão.Trata-se,
emsuma,deummecanismocio-jurídicodestinadoaviabilizarprimordialmente
a harmonia e a paz social, que o seriamente perturbadas quando um grupo social
expressivoseàmargemdoprocessoprodutivoedosbeneciosdoprogresso,bem
comoarobusteceroprópriodesenvolvimentoeconômicodops,namedidaem
que a universalizão do acesso à educão e ao mercado de trabalho tem como
conseênciainexorávelocrescimentomacroecomico,aampliaçãogeneralizada
dosnegócios,numapalavra,ocrescimentodopaíscomoumtodo.Nessesentido,
o se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era
contemponea, nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condão
periricaàdepotênciaeconômicaepolítica,dignaderespeitonacenapolítica
internacional,mantendonoplanodomésticoumapolíticadeexclusão,abertaou
dissimulada, legal ou meramente informal, em relação a uma parcela expressiva
de seu povo.
As ações afirmativas constituem, pois, um remédio de razoável eficácia para
esses males. É indispensável, porém, uma ampla conscientização da própria
sociedade e dasliderançaspolíticasdemaior expressãoacercadaabsoluta
necessidade de se eliminar ou de se reduzir as desigualdades sociais que operam
em detrimento das minorias, notadamente as minorias raciais. E mais: é
preciso uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização sócio-
econômicoaquesãorelegadasasminorias,especialmenteasraciais,resultade
umúnicofenômeno:adiscriminação.
Com efeito, a discriminão, como um componente indissociável do
relacionamento entre os seres humanos, reveste-se inegavelmente de uma roupagem
competitiva. Afinal, discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as
perspectivasdeunsembenefíciodeoutros.
6
Quanto mais intensa a discriminação e
mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se
6Aesserespeito,confira-seadefiniçãodediscriminaçãoextraídadadecisão“Andrews”,proferidapela
Corte Suprema do Canadá: discrimination est “une distinction, intentionelle ou non, mais fondée sur
des motifs relatifs à des caractéristiques personnelles d’un individu ou d’un groupe d’individus, qui a
pour effet d’imposer à cet individu ou à ce groupe des fardeaux, des obligations ou des désavantages non
imposés à d’autres ou d’empêcher ou de restreindre l’accès aux possibilites, aux bénéfices et aux avantages
offerts à d’autres membres de la société” (Corte Suprema do Canadá, Andrews v. Law Society of British
Columbia, 2-2-89, RCS, p. 143, Dominion Law Reports, 56, 4d, p. 1).
51
Joaquim B. Barbosa Gomes
mostraaclivagementrediscriminadorediscriminado.Daíresulta,inevitavelmente,
que aos esforços de uns em prol da concretizão da igualdade se contraponham
os interesses de outros na manutenção do status quo. É crucial, pois, que asões
afirmativas,mecanismojudicoconcebidocomvistasaquebraressadinâmica
perversa, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável
resistência,sobretudoda partedaquelesquehistoricamentesebeneficiaramda
exclusão dos grupos socialmente fragilizados.
Ao Estado cabe, assim, a opção entre duas posturas distintas: manter-se firme
na posição de neutralidade, e permitir a total subjugação dos grupos sociais
desprovidosdevoz,deforçapolítica,demeiosdefazervalerosseusdireitos;
ou, ao contrário, atuar ativamente no sentido da mitigação das desigualdades
sociaisque,comoédetodossabido,têmcomopúblicoalvoprecisamenteas
minorias raciais, étnicas, sexuais e nacionais.
Com efeito, a sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de
suas idéias-chave a noção de neutralidade estatal, que se expressa de diversas
maneiras:neutralidadeemmatériaeconômica,nodomínioespiritualenaesfera
íntimadaspessoas.Namaioriadasnaçõespluriétnicasepluriconfessionais,
o abstencionismo estatal se traduz na crença de que a mera introdução, nos
respectivostextosconstitucionais,deprincípioseregrasasseguradoresdeuma
igualdadeformalperantealei,seriasuficienteparagarantiraexistênciade
sociedades harmônicas, onde seria assegurada a todos, independentemente
deraça,credo,gêneroouorigemnacional,efetivaigualdadedeacessoaoque
comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo. Esta
era, como dito, a visão liberal derivada das idéias iluministas que conduziram
àsrevoluçõespolíticasdoséculoXVIII.
Mas essa suposta neutralidade estatal tem-se revelado um formidável fracasso,
especialmente nas sociedades que durante muitos séculos mantiveram certos
grupos ou categorias de pessoas em posição de subjugação legal, de inferioridade
legitimadapela lei, em suma,em paísescom longopassado de escravidão.
Nesses países, apesar da existência de inumeráveis disposições normativas
constitucionaiselegais,muitasdelasinstituídascomoobjetivoexplícitode
fazer cessar o status de inferioridade em que se encontravam os grupos sociais
historicamente discriminados, passaram-se os anos (e séculos) e a situação desses
grupos marginalizados pouco ou quase nada mudou (FREEMAN, 1978).
Tal estado de coisas conduz a duas constatações indisputáveis. Em primeiro
lugar,àconvicçãodequeproclamaçõesjurídicasporsisós,sejamelasdenatureza
constitucional ou de inferior posicionamento na hierarquia normativa, não são
52
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural
decadapaís,noimagináriocoletivo,emsuma,napercepçãogeneralizadade
que a uns devem ser reservados papéis de franca dominação e a outros, papéis
indicativos do status de inferioridade, de subordinação. Em segundo lugar,
ao reconhecimento de que a reversão de um tal quadro só é viável mediante a
renúncia do Estado à sua histórica neutralidade em questões sociais, devendo
assumir, ao revés, uma posição ativa, até mesmo radical, se vista à luz dos
princípiosnorteadoresdasociedadeliberalclássica.
Desse imperativo de atuação ativa do Estado nasceram as ações afirmativas,
concebidas inicialmente nos Estados Unidos da América, mas hoje adotadas
emdiversospaíseseuropeus,asiáticoseafricanos,comasadaptaçõesnecessárias
àsituaçãodecadapaís.
7,
8
OBrasil,paíscomamaislongahistóriadeescravidão
das Américas e com uma inabalável tradição patriarcal, mal começa a admitir,
pelomenosemnívelacadêmico,adiscussãodotema
9
.
definição e objetivoS dAS AçõeS AfirmAtivAS
Aintroduçãodaspolíticasdeaçãoafirmativa,criãopioneiradoDireitodos
EUA,representou,emessência,amudaadeposturadoEstado,queemnomede
umasupostaneutralidade,aplicavasuaspolíticasgovernamentaisindistintamente,
ignorando a importância de fatores como sexo, ra, cor, origem nacional. Nessa
nova postura, passa o Estado a levar em conta tais fatores no momento de contratar
seus funciorios ou de regular a contratão por outrem, ou ainda no momento
de regular o acesso aos estabelecimentos educacionais blicos e privados. Numa
palavra,aoinsdeconceberpolíticaspúblicasdequetodosseriambeneficiários,
independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado passa a levar em conta esses
7 V. Bergmann (996);Eastland(996);Caplan(997);Rosenfeld(99);Urofsky(99);Bowen,Bok(998);
Gunther,Sullivan(997);Tribe(988);Lockhart,Kamisar,Choper,Shiffrin(995);O’Brien(997);Carter
(1991); Crenshaw, Gotanda, Peller, Thomas (1995); Harris, Narayan (1994); Hellman (1998); Higginbotham,
Jr.(996);Issacharoff(s/d);Kostka(996);Liu(998);Reskin(998);Abraham(s/d);Strum,Guinier(996);
Stephanopoulos, Edly, Jr. (995);Mishkin(s/d);Beaud(984);Shmidt(987).
8 Para um tratamento da queso de minorias na perspectiva do Direito Internacional, veja-se Wucher
(1999).
9 V. Carmen Lúcia Antunes Rocha (1996), Ação Afirmativa o Conteúdo Democrático do Princípio da
Igualdade Jurídica. Vejam-se, igualmente, numa perspectiva mais ampla, a excelente obra A Constituição
Aberta e Atualidades dos Direitos Fundamentais do Homem, de Carlos Roberto de Siqueira Castro (2003);
de Wania Sant’Anna e Marcello Paixão, Muito Além da Senzala: Ação Afirmativa no Brasil; e de Flávia
BeatrizEckhardtdaSilva,A Isonomia Constitucional e a Efetivação dos Direitos das Mulheres no Brasil.
Ações Afirmativas sob a Perspectiva de Gênero. Dissertação de Mestrado ainda não publicada (2003).
53
Joaquim B. Barbosa Gomes
fatores na implementão das suas decies, não para prejudicar quem quer que seja,
mas para evitar que a discriminão, que inegavelmente tem um fundo hisrico e
cultural,enãorarosesubtraiaoenquadramentonascategoriasjurídicasclássicas,
termine por perpetuar as iniqüidades sociais.
Definição–Inicialmente,asaçõesafirmativassedefiniamcomoummero
“encorajamento”, por parte do Estado, a que as pessoas com poder decisório nas
áreas blica e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas
sensíveiscomooacessoàeducaçãoeaomercadodetrabalho,fatoresatéentãotidos
comoformalmenteirrelevantespelagrandemaioriadosresponsáveispoticose
empresariais, quais sejam: a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal
encorajamentotinhapormeta,tantoquantoposvel,verconcretizadooidealdeque
tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representão
de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho.
Numsegundomomento,talvezemdecornciadaconstataçãodaineficiados
procedimentosclássicosdecombateàdiscriminão,deu-seinícioaumprocessode
alteração conceitual do instituto, que passou a ser associado à iia, mais ousada,
derealizãodaigualdadedeoportunidadesatrasdaimposãodecotasrígidas
de acesso de representantes de minorias a determinados setores do mercado de
trabalhoeainstituõeseducacionais.Datatambémdesseperíodoavinculão
entreãoafirmativaeoatingimentodecertasmetasestasticasconcernentesà
presea de negros e mulheres num determinado setor do mercado de trabalho ou
numa determinada instituição de ensino (GLAZER, 1991).
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de
poticaspúblicaseprivadasdecatercompulrio,facultativoouvolunrio,
concebidascomvistasaocombateàdiscriminaçãoracial,denero,pordeficiência
sicaedeorigemnacional,bemcomoparacorrigiroumitigarosefeitospresentes
da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal
de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.
Diferentementedaspolíticasgovernamentaisantidiscriminariasbaseadasemleis
de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas
timastãosomenteinstrumentosjurídicosdecaterrepararioedeintervenção
ex post facto,asaçõesafirmativastêmnaturezamultifaceria(RESKIN,apud
HERINGER, 1999), e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas
usualmenteconhecidas–istoé,formalmente,pormeiodenormasdeaplicação
geralouespecífica,ouatravésdemecanismosinformais,difusos,estruturais,
enraizadosnaspráticasculturaisenoimagináriocoletivo.Emsíntese,trata-sede
54
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
poticasedemecanismosdeincluoconcebidosporentidadesblicas,privadas
eporórosdotadosdecompenciajurisdicional,comvistasàconcretizaçãode
um objetivo constitucional universalmente reconhecido — o da efetiva igualdade
deoportunidadesaquetodosossereshumanosmdireito.
Entre os teóricos do Direito Público no Brasil, coube à ilustre professora
CarmenLúciaAntunesRochaodesafiodetraduzirparaacomunidadejurídica
brasileira, em sublime artigo, a mais completa noção acerca do enquadramento
jurídico-doutrináriodasaçõesafirmativas.Classificando-ascorretamentecomo
amaisavançadatentativadeconcretizaçãodoprincípiojurídicodaigualdade,
ela afirma com propriedade que
a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais,
histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma
para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados
por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta
desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-
se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social,
política,econômicanoesegundooDireito,talcomoasseguradoformale
materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é,
então,umaformajurídicaparasesuperaroisolamentoouadiminuição
social a que se acham sujeitas as minorias (ROCHA, 1996).
Essaengenhosacriaçãojudico-potico-socialrefletiriaainda,segundoaautora,
uma“mudaacomportamental dos juízesconstitucionais detodoomundo
democrático do pós-guerra, que teriam se conscientizado da necessidade de uma
transformação na forma de se conceberem e aplicarem os direitos, especialmente
aqueles listados entre os fundamentais.o bastavam as letras formalizadoras
dasgarantiasprometidas;eraimprescindívelinstrumentalizarem-seaspromessas
garantidasporumaatuãoexigíveldoEstadoedasociedade.Naesteiradesse
pensamento, pois, é que a ão afirmativa emergiu como a face construtiva e
construtoradonovoconteúdoaserbuscadonoprincípiodaigualdadejurídica.
O Direito Constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se fazer
permanentemente adequado às demandas sociais, o podia persistir no conceito
estático de um direito de igualdade pronto, realizado segundo parâmetros
hisricos eventualmente ultrapassados.
E prossegue a ilustre autora:
O conteúdo, de origem bíblica, de tratar igualmente os iguais e
desigualmenteosdesiguaisnamedidaemquesedesigualamsempre
lembradocomosendoaessênciadoprincípiodaigualdadejurídica
encontrouumanovainterpretaçãonoacolhimentojurisprudencial
concernente à ação afirmativa. Segundo essa nova interpretação, a
desigualdade que se pretende e se necessita impedir para se realizar
55
Joaquim B. Barbosa Gomes
a igualdade no Direitonãopodeserextraída,ou cogitada,apenas
no momento em que se tomam as pessoas postas em dada situação
submetida ao Direito, senão que se deve atentar para a igualdade
jurídica a partir da consideração de toda a dinâmica histórica da
sociedade, para que se focalize e se retrate não apenas um instante
da vida social, aprisionada estaticamente e desvinculada da realidade
histórica de determinado grupo social. Há que se ampliar o foco
davidapolíticaemsuadinâmica,cobrindoespaçohistóricoquese
reflita ainda no presente, provocando agora desigualdades nascentes
de preconceitos passados, e não de todo extintos. A discriminação
deontempodeaindatingirapelequesede cordiversada que
predominaentreosquedetêmdireitosepodereshoje.
Objetivos das Ações Afirmativas–Emregrageral,justifica-seaadoçãodas
medidasdeãoafirmativacomoargumentodequeessetipodepoticasocialseria
apta a atingir uma rie de objetivos que restariam normalmente inalcançados caso
a estratégia de combate à discriminão se limitasse à adoção, no campo normativo,
de regras meramente proibitivas de discriminação. Numa palavra, o basta proibir,
épreciso tammpromover,tornando rotineiraaobservânciadosprinpios
da diversidade e do pluralismo, de tal sorte que se opere uma transformação no
comportamento e na mentalidade coletiva, que são, como se sabe, moldados pela
tradão, pelos costumes, em suma, pela história.
Assim, além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria
entreosobjetivosalmejadoscomaspoticasafirmativasodeinduzirtransformões
de ordem cultural, pedagógica e psicogica, aptas a subtrair do imaginário coletivo
a idéia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação à outra, do homem
em relação à mulher. O elemento propulsor dessas transformações seria, assim, o
cater de exemplaridade de que se revestem certas modalidades de ão afirmativa,
cuja eficácia como agente de transformação social poucos ahoje ousaram negar.
Ouseja,deumladoessaspolíticassimbolizariamoreconhecimentooficialda
persisnciaedaperenidadedaspticasdiscriminariasedanecessidadedesua
eliminão. De outro, elas teriam também por meta atingir objetivos de natureza
cultural, eis que delas inevitavelmente resultam a trivialização, a banalizão, na
polis,danecessidadeedautilidadedepoticaspúblicasvoltadasàimplantação
do pluralismo e da diversidade.
Poroutrolado,asaçõesafirmativastêmcomoobjetivonãoapenascoibir
a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os “efeitos persistentes”
(psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que
tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada “discriminação
56
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
estrutural, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos
dominantes e grupos marginalizados.
10
Figura também como meta das ações afirmativas a implantação de uma certa
“diversidadee de uma maior “representatividade” dos grupos minoritários nos
maisdiversosdomíniosdeatividadepúblicaeprivada.Partindodapremissa
de que tais grupos normalmente não são representados em certas áreas ou
sãosub-representadossejaemposiçõesdemandoeprestígionomercadode
trabalho e nas atividades estatais, seja nas instituições de formação que abrem as
portasaosucessoeàsrealizaçõesindividuais,aspolíticasafirmativascumprem
o importante papel de cobrir essas lacunas, fazendo com que a ocupação das
posiçõesdoEstadoedomercadodetrabalhosefaça,namedidadopossível,
em maior harmonia com o caráter plúrimo da sociedade. Nesse sentido, o
efeitomaisvisíveldessaspolíticas,alémdoestabelecimentodadiversidadee
representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as “barreiras artificiais e
invisíveis”queemperramoavançodenegrosemulheres,independentemente
daexistênciaounãodepolíticaoficialtendenteasubalternizá-los.
Argumenta-seigualmentequeopluralismoqueseinstauraemdecorrência
das ações afirmativas traria inegáveis benefícios para os próprios países
que se definem como multirraciais e que assistem, a cada dia, ao incremento
dofenômeno do multiculturalismo.Para essespaíses,constituiria um erro
estratégicoinadmissíveldeixardeofereceroportunidadesefetivasdeeducação
e de trabalho a certos segmentos da população, pois isto pode revelar-se,
em médio prazo, altamente prejudicial à competitividade e à produtividade
econômicadopaís.Portanto,agir“afirmativamente”seriatambémumaforma
dezelarpelapujançaeconômicadopaís.
Por fim, as ações afirmativas cumpririam o objetivo de criar as chamadas
personalidades emblemáticas. Noutras palavras, além das metas acima mencionadas, elas
constituiriam um mecanismo institucional de criação de exemplos vivos de mobilidade
social ascendente. Vale dizer, os representantes de minorias que, por terem alcançado
posiçõesdeprestígioepoder,serviriamdeexemploàsgeraçõesmaisjovens,queveriam
em suas carreiras e realizações pessoais a sinalização de que não haveria, qaundo chegada
asuavez,obstáculosintransponíveisàrealizaçãodeseussonhoseàconcretizaçãode
seus projetos de vida. Em suma, com essa conotação, as ões afirmativas atuariam
como mecanismo de incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes
de grupos minoririos, que invariavelmente assistem ao bloqueio de seu potencial de
10 V. American Apartheid, Massey & Denton, 1993; America Unequal,Danziger&Gottschalk,995.
57
Joaquim B. Barbosa Gomes
inventividade, de criação e de motivação ao aprimoramento e ao crescimento individual,
vítimasdassutilezasdeumsistemajurídico,político,econômicoesocialconcebido
paramantê-losemsituaçãodeexcluídos.
A problemáticA conStitucionAl
As ações afirmativas situam-se no cerne do debate constitucional
contemporâneo, e interferem em questões que remontam à própria origem da
democracia moderna, suscitando questionamentos acerca de temas fundamentais
domodelodeorganizaçãopolíticapreponderantenohemisférioocidental.A
presente reflexão não visa a examinar com profundidade esses temas. Sobre eles
faremos, portanto, breves considerações. Vejamos.
As afirmações afirmativas suscitam, em primeiro lugar, o debate crucial acerca
da destinação dos recursos públicos. Recursos, frise-se, escassos por definição.
O Estado Moderno, como se sabe, resulta do imperativo iluminista de que o
conjunto dos recursos da Nação deve ser convertido em prol do interesse de
todos,dobem-estargeraldacoletividade.AHistóriaeoDireitoComparadoaí
estão para nos fornecer algumas pistas e nos alertar contra o perigo da inércia
nestedomínio.Comefeito,éatéenfadonhorelembrarquearupturabrutalcom
o ancien régime se materializou precisamente na abolição dos privilégios que,
porlei,eramatribuídosacertasclassesdecidadãos.Ademocraciaqueseseguiu,
sobretudo na concepção ulterior que deu margem ao surgimento do Estado
de bem estar social, tem como um dos seus pilares a tentativa de distribuição
equânime e generalizada dos recursos originários do labor coletivo.
Por outro lado, o se deve perder de vista que a amoldagem do atual Estado
promovente (uma realidade quase universal) é em grande parte tributária desse
rigorosozeloqueasverdadeirasdemocraciastêmparacomocorretomanuseio
de recursos públicos. De fato, questões-chave do constitucionalismo moderno
derivamdessamatriz:qualseriao“propósitolegítimo”dodispêndioderecursos
nacionais? Em que medida se pode questionar a constitucionalidade de certos
programasgovernamentaisàluzdaexatarelaçãodelesextraívelentredispêndio
de recursos públicos e incremento do bem-estar coletivo? Até que ponto pode o
órgão representante da Nação compelir atores blicos e privados beneficiários
dessesrecursosaseconformaremàsregrasdeeqüidadeínsitasatodaequalquer
democracia? Das múltiplas respostas a essas questões, como se sabe, emergiu o Estado
interventivoereguladoreoseucorolário–oEstadodeBem-EstarSocial.
58
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
Ora, o país que ignora essas noções básicas e reserva a uma pequena
minoria os instrumentos de aprimoramento humano aptos a abrir as portas à
prosperidade e ao bem-estar individual e coletivo, e, além disso (e também em
conseqüênciadisso),adota,aindaqueinformalmente,umapolíticadeemprego
impregnadadevisíveleinsuportávelhierarquizaçãosocial,praticanadamais
nada menos do que uma nova forma de tirania.
NoBrasil,aexclusãosocialdequeosnegrossãoasprincipaisvítimasderiva
de alguns fatores, dentre os quais figura o esquema perverso de distribuição
de recursos públicos em matéria de educação. A educação é a mais importante
dentreasdiversasprestaçõesqueoindivíduorecebeoutemlegítimaexpectativa
de receber do Estado. Trata-se, como se sabe, de um bem escasso. O Estado
aleganãopoderfornecê-loatodosnaformatidacomoideal,istoé,emcaráter
universal e gratuito. No entanto, esse mesmo Estado que se diz impossibilitado de
fornecer a todos esse bem indispensável, institucionaliza mecanismos sutis através
dos quais proporciona às classes privilegiadas aquilo que alega não poder oferecer
à generalidade dos cidadãos. Com efeito, o Estado “financia”, com recursos que
deveriam ser canalizados a instituões públicas de acesso universal, a educão dos
filhos das classes de maior poder aquisitivo, por meio de diversos mecanismos. Isto
se principalmente através da renúncia fiscal” de que são beneficiárias as escolas
privadas altamente seletivas e excludentes. Certo, não seria justo negar às elites
(supostas ou verdadeiras) o direito de matricular os seus filhos em escolas seletivas,
onde eles se sintam chez eux, longe da populace. O direito de escolher uma educão
“diferenciadapara os filhos constitui, a nosso sentir, uma liberdade fundamental
a ser garantida pelo Estado. O que é questionável é o compartilhamento do custo
desse “luxo com toda a coletividade: através dos tributos de que essas escolas são
isentas,dassubvençõesdiversasquelhesopassadaspelosGovernosdastrêsesferas
poticas,peloabatimentodasrespectivasdespesasnomontantedevidoatulo
de imposto de renda! Esses são alguns dos elementos que compõem a formidável
machine à exclurequetemnosnegrosassuasvítimaspreferenciais.Essaformade
“exclusão orquestrada e disciplinada pela lei” produz o extraordinário efeito de
contrapor, de um lado, a escola pública, republicana, aberta a todos, que deveria
oferecer ensino de boa qualidade a pobres e ricos, a uma escola privada, elitista,
discriminatória e... largamente financiada com recursos que deveriam beneficiar
a todos. Este é o primeiro aspecto da exclusão.
Osegundoaspectoocorrenaselãoaoensinosuperior.todosjásabem:
os pais se invertem. O ensino superior de qualidade no Brasil está quase
inteiramentenasmãosdoEstado.EoquefazoEstadonessedomínio?Institui
59
Joaquim B. Barbosa Gomes
um mecanismo de seleção que vai justamente propiciar a exclusividade do
acesso,sobretudoaoscursosdemaior presgioeaptosaassegurarumbom
futuro profissional, àqueles que se beneficiaram do processo de exclusão acima
mencionado, isto é, os financeiramente bem aquinhoados. O vestibular, este
mecanismo intrinsecamente inútil sob a ótica do aprendizado, não tem outro
objetivo que não o de “excluir”. Mais precisamente, o de excluir os socialmente
fragilizados, de sorte a permitir que os recursos blicos destinados à educação
(canalizados tanto para as instituições públicas quanto para as de caráter comercial,
comovimos)sejamgastosoemproldetodos,masparabenefíciodepoucos.
Emsuma,trata-sedeumasubversãototaldeumdosprincípiosinformadoresdo
Estado moderno, sintetizado de forma lapidar em feliz expressão cunhada pela
Corte Suprema dos EUA: the power of Congress to authorize expenditure of
public moneys for public purposes.
Essa é, pois, a chave para se entender por que existem tão poucos negros
nas universidades públicas brasileiras, e quase nenhum nos cursos de maior
prestígioedemanda:osrecursospúblicossãocanalizadospreponderantemente
para as classes mais afluentes, restando aos pobres (que são majoritariamente
negros) “as migalhas” do sistema.
Esse o aspecto perverso do sistema educacional brasileiro. Os negros são
suasprincipaisvítimas.Eesteé,semdúvida,umproblemaconstitucional
de primeira grandeza, pois nos remete à noção primitiva de democracia, a
saber:emque,porquemeembenefíciodequemsãodespendidososrecursos
financeiros da Nação.
Agir“afirmativamente”significaterconsciênciadessesproblemasetomar
decisões coerentes com o imperativo indeclinável de remediá-los. Além da
vontadepolítica,queéfundamental,éprecisocolocardeladooformalismo
típico da nossapráxis jurídico-institucional e entender quea questãoé de
vitalimportânciaparaalegítimaaspiraçãodetodos,deque,umdia,oPaísse
imponha no cenário internacional e ocupe o espaço, a posição e o respeito que
asuahistória,oseupovo,suasrealizaçõeseoseupesopolíticoeeconômico
recomendam.
Noplanoestritamentejurídico(quesesubordina,anossosentir,àtomada
deconsciênciaassinaladanaslinhasanteriores),oDireitoConstitucionalvigente
noBrasil, é perfeitamentecompatível com oprincípio da ação afirmativa.
Melhor dizendo, o Direito brasileiro contempla algumas modalidades de
ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.
60
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
Aquestão se coloca,é claro, no terrenodoprincípio constitucional da
igualdade.Esteprincípio,porém,comportaváriasvertentes.
Igualdade formal ou procedimental x Igualdade de resultados ou
material – O cerne da questão reside em saber se na implementação do
princípioconstitucionaldaigualdadeoEstadodeveassegurarapenasumacerta
“neutralidade processual” (procedural due process of law) ou, ao contrio, se sua
açãodeveseencaminhardepreferênciaparaarealizaçãodeuma“igualdadede
resultados” ou igualdade material. A teoria constitucional clássica, herdeira do
pensamentodeLocke,RousseaueMontesquieu,éresponsávelpeloflorescimento
deuma concepção meramente formalde igualdade–achamadaigualdade
perante a lei. Trata-se em realidade de uma igualdade meramente “processual”
(process-regarding equality). As notórias insuficiências dessa concepção de
igualdade conduziram paulatinamente à adoção de uma nova postura, calcada
nãomaisnosmeiosqueseoutorgamaosindivíduosnummercadocompetitivo,
mas nos resultados efetivos que eles podem alcançar. Resumindo singelamente
aquestão,diríamosqueasnaçõesquehistoricamenteseapegaramaoconceito
deigualdadeformalsãoaquelasondeseverificamosmaisgritantesíndicesde
injustiçasocial,eisque,emúltimaanálise,fundamentartodaequalquerpolítica
governamental de combate à desigualdade social na garantia de que todos
terão acesso aos mesmos “instrumentos” de combate corresponde, na prática,
a assegurar a perpetuação da desigualdade. Isto porque essa “opção processual”
nãolevaemcontaaspectosimportantesqueantecedemaentradadosindivíduos
no mercado competitivo. a chamada “igualdade de resultados” tem como
notacaracterísticaexatamenteapreocupaçãocomosfatoresexternosà
luta competitiva tais como classe ou origem social, natureza da educão
recebida—,quetêminegávelimpactosobreoseuresultado.
11
InteressantesoboprismadareflexãojurídicadenaturezacomparativaéainteligênciadadapelaCorte
Suprema do Canadá ao art. 15 da Carta de Direitos e Liberdades, de 1982, assim vazado: “La loi ne fait
acceptiondepersonneets’appliqueégalementàtous,ettousontdroitàlamêmeprotectionetaumême
bénéfice de la loi, indépendamment de toute discrimination, notamment des discriminations fondées sur
la race, l’origine nationale ou ethnique, la couleur, la religion, le sexe, l’âge ou les déficiences mentales ou
physiques”. Bernadette Renauld nos dá conta do modo como a Corte Suprema do Canadá interpreta o
princípiogeraldaigualdade,corporificadonoartigodaCartaaquitranscrito,verbis:“Ilressortdel’arrêt
Andrews que les droits garantis à l’article 15 de la Charte existent exclusivement au profit des groupes
quisontsusceptiblesd’êtreouquisonteffectivementvictimesdediscriminationauseindelasociété
canadienne. Par là, la Cour interprète cette disposition non pas comme un droit general à l’égalité, mais
bien comme une protection spécifique contre la discrimination au profit des groupes minorisés ou plus
faibles. Est discriminatoire une mesure qui aggrave la situation de groupes au détriment desquels existe
dans la société une discrimination historique, sociétaire ou systémique” (1997:456, s/grifos).
61
Joaquim B. Barbosa Gomes
Vários dispositivos da Constituição brasileira de 1988 revelam o repúdio
do constituinte pela igualdade “processual” e sua opção pela concepção de
igualdade dita “material” ou “de resultados”.
Assim, por exemplo, os artigos 3ª, 7 - XX., 37-VIII e 170 dispõem:
«Art.3ªConstituemobjetivosfundamentaisdaRepúblicaFederativadoBrasil:
I–construirumasociedadelivre,
justa e solidária;
(...)
III–
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
eregionais».
«Art. 70— A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humanoenalivreiniciativa,temporfimasseguraratodosexistênciadigna,
conforme os ditames da justiça social,observadososseguintesprincípios:
(...)
VII–
redução das desigualdades regionais e sociais(...)
IX–tratamentofavorecidoparaasempresasdepequenoporteconstituídas
sobasleisbrasileirasequetenhamsuasedeeadministraçãonoPaís».
12
«Art.7ª-Sãodireitosdostrabalhadoresurbanoserurais,alémdeoutros
que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XX–Proteção do mercadode trabalho da mulher,medianteincentivos
específicos,nostermosdalei;»
«Art.37(...)
VIII–Aleireservarápercentualdoscargoseempregospúblicosparaas
pessoasportadorasdedeficiênciaedefiniráoscritériosdesuaadmissão».
É patente, pois, a maior preocupação do legislador constituinte originário
com os direitos e garantias fundamentais, bem como com a questão da igualdade,
especialmente a implementação da igualdade substancial. Flavia Piovesan
assinalacomosímbolodessapreocupação
2Eisaíumamodalidadeexplícitadeaçãoafirmativa,tendocomobeneficiárionãoumindivíduoouum
grupo social, mas uma determinada categoria de empresa.
62
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
(a) ‘topografia’ de destaque que recebe este grupo de direitos (fundamentais)
e deveres em relação às Constituições anteriores; (b) a elevação, à ‘cláusula
pétrea’, dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV); (c) o aumento
dos bens merecedores de tutela e da titularidade de novos sujeitos de direito
(‘coletivo’), tudo comparativamente às Cartas antecedentes
13
(apud CUNHA;
FRISONI, 1996).
Some-se a isso a previsão expressa, em sede constitucional, da igualdade entre
homens e mulheres (art. 5ª, I) e, em alguns casos, da permissão expressa para
utilização das ações afirmativas, com o intuito de implementar a igualdade, tais
como os citados artigos 37, VIII (reserva de cargos e empregos públicos para
pessoasportadorasdedeficiência)e7ª,XX(“proteçãodomercadodetrabalho
damulher,medianteincentivosespecíficos,nostermosdalei”)
-se,portanto,queaConstituãoBrasileirade988nãoselimitaaproibir
a discriminação, afirmando a igualdade, mas permite, tamm, a utilização de
medidas que efetivamente implementem a igualdade material. E mais: tais normas
propiciadorasdaimplementaçãodoprincípiodaigualdadeseachamprecisamente
notuloIdaConstituição,oquetratadosPrincípiosFundamentaisdanossa
República, isto é, cuida-se de normas que informam todo o sistema constitucional,
comandando a correta interpretação de outros dispositivos constitucionais. Como
bem sustentou a ilustre professora de Direito Constitucional da PUC de Minas
Gerais, Carmen Lúcia Antunes Rocha (1996: 93):
a Constituição Brasileira de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração
que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de
que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali
elaboradoparaquesechegueatê-los(...)Oprincípiodaigualdaderesplandece
sobrequasetodososoutrosacolhidoscomopilastrasdoedifícionormativo
fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras, mas de quase todos
osoutrosprincípiosqueinformameconformamomodeloconstitucional
positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se a servir: o da dignidade
da pessoa humana (art. 1ª, III, da Constituição da República).
E prossegue a ilustre jurista, fazendo alusão expressa aos dispositivos
constitucionais acima transcritos:
Verifica-sequetodososverbosutilizadosnaexpressãonormativa–construir,
erradicar, reduzir, promover – o de ação, vale dizer, designam um
comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações
3AsautorasmencionamastrêsimportantesobservaçõesacercadadeclaraçãodedireitosdaConstituição
de 1988, feitas pela ilustre profressora Flávia Piovesan, em aula por esta proferida para o Concurso para
Assistente-Mestre, cadeira de Direito Constitucional, na PUC/SP, em dezembro de 1994.
63
Joaquim B. Barbosa Gomes
transformadoras do quadrosocial e político retratado pelo constituinte
quando da elaboração do texto constitucional. E todos os objetivos
contidos,especialmente,nostrêsincisosacimatranscritosdoart.3ª,da
Lei Fundamental da República, traduzem exatamente mudança para se
chegar à igualdade. Em outro dizer, a expressão normativa constitucional
significa que a Constituição determina uma mudança do que se tem em
termosdecondiçõessociais,políticas,econômicaseregionais,exatamente
para se alcançar a realização do valor supremo a fundamentar o Estado
DemocráticodeDireitoconstituído.Seaigualdadejurídicafosseapenasa
vedaçãodetratamentosdiscriminatórios,oprincípioseriaabsolutamente
insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da
República constitucionalmente definidos. Pois daqui para a frente, nas novas
leis e comportamentos regulados pelo Direito, apenas seriam impedidas
manifestações de preconceitos ou cometimentos discriminatórios. Mas
comomudar,então,tudooquesetemesesedimentounahistóriapolítica,
socialeeconômicanacional?Somenteaação afirmativa, vale dizer, a atuação
transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade
doprincípiodaigualdade,parasechegaràigualdadequeaConstituição
Brasileira garante como direito fundamental de todos. O art. traz uma
declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se,
ali,implícita,masclaramente,queaRepúblicaFederativadoBrasilnãoé
livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto
fundamentalparaoexercíciodosdireitos,peloque,nãodispondotodosde
condiçõesparaoexercíciodesualiberdade,nãopodeserjusta.Nãoéjusta
porqueplena de desigualdades antijurídicasedeploráveisparaabrigaro
mínimodecondiçõesdignasparatodos.Enãoésolidáriaporquefundada
em preconceitos de toda sorte(...). O inciso IV, do mesmo art. 3ª, é mais
claro e afinado, até mesmo no verbo utilizado, com a ação afirmativa. Por
ele se tem ser um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Verifica-se, então, que não se repetiu apenas o mesmo modelo
principiológicoqueadotaramconstituintesanteriormenteatuantesnopaís.
Aqui se determina agora uma ação afirmativa: aquela pela qual se promova
o bem de todos, sem preconceitos (de) quaisquer...formas de discriminação.
Significa que se universaliza a igualdade e promove-se a igualação: somente
com uma conduta ativa, positiva, afirmativa, é que se pode ter a transformação
social buscada como objetivo fundamental da República. Se fosse apenas
para manter o que se tem, sem figurar o passado ou atentar à história, teria
sido suficiente, mais ainda, teria sido necessário, tecnicamente, que apenas
se estabelecesse ser objetivo manter a igualdade sem preconceitos etc. Não
foi o que pretendeu a Constituição de 1988. Por ela se buscou a mudança do
conceito,doconteúdo,daessênciaedaaplicaçãodoprincípiodaigualdade
jurídica,comrelevodadoàsuaimprescindibilidadeparaatransformação
da sociedade, a fim de se chegar a seu modelo livre, justa e solidária. Com
promoção de mudanças, com a adoção de condutas ativas, com a construção
denovofigurinosócio-políticoéquesemovimentanosentidodeserecuperar
o que de equivocado antes se fez.
64
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
Esta,portanto,éaconcepçãomodernaedimicadoprincípioconstitucional
da igualdade, a que conclama o Estado a deixar de lado a passividade, a renunciar à
sua suposta neutralidade e a adotar um comportamento ativo, positivo, afirmativo,
quase militante, na busca da concretização da igualdade substancial.
Note-se, mais uma vez, que este tipo de comportamento estatal não é
estranho ao Direito brasileiro pós-Constituão de 1988. Ao contrário, a
imprescindibilidade de medidas corretivas e redistributivas visando a mitigar
a agudeza da nossa “questão social” foi reconhecida em sede normativa,
através de leis vocacionadas a combater os efeitos nefastos de certas formas
de discriminação. Nesse sentido, é importante frisar, o Direito brasileiro
contempla algumas modalidades de ação afirmativa. Não obstante tratar-se de
experiênciasaindatímidasquantoaoseualcanceeamplitude,oimportantea
serdestacadoéofatodaacolhidadesseinstitutojurídicoemnossoDireito.
Ação AfirmAtivA e relAçõeS de gênero
Adiscriminaçãodegênero,frutodeumalongatradiçãopatriarcalquenão
conhece limites geográficos, tampouco culturais, é do conhecimento de todos
os brasileiros. Entre nós, o status de inferioridade da mulher em relação ao
homem foi por muito tempo considerado como algo qui va de soi, normal,
decorrentedaprópria«naturezadascoisas»(SILVA,2003).
A tal ponto que essa
inferioridade era materializada expressamente na nossa legislação civil.
A Constituição de 1988 (art. 5ª, I) não apenas aboliu essa discriminação
chancelada pelas leis, mas também, através dos diversos dispositivos
antidiscriminatórios já mencionados, permitiu que se buscassem mecanismos
aptos a promover a igualdade entre homens e mulheres. Assim, com vistas a
minimizar essa flagrante desigualdade existente em detrimento das mulheres,
nasceu, entre nós, a modalidade de ação afirmativa hoje corporificada nas leis
9.00/95e9.504/97,queestabeleceramcotasmínimasdecandidatasmulheres
para as eleições.
14
As mencionadas leis representam, em primeiro lugar, o reconhecimento pelo
4Alei9.00/95expressamenteinstituiuopercentualmínimode20%demulherescandidatasàseleições
municipais do ano de 1996, com o objetivo de aumentar a representação das mulheres nas instâncias de
poder.Posteriormentealei9.504/97,aumentouopercentualpara30%(ficandodefinidoummínimode
25%, transitoriamente, em 1998), estendendo a medida às outras entidades componentes da Federação,
e também ampliando em 50% o número das vagas em disputa.
65
Joaquim B. Barbosa Gomes
Estadodeumfatoinegável:aexistênciadediscriminaçãocontraasbrasileiras,
cujoresultadomaisvisíveléaexasperantesub-representaçãofemininaemum
dossetores-chavedavidanacional–oprocessopolítico.Comefeito,olegislador
ordinário,conscientedequeemtodaahistóriapolíticadopaísfoisempre
desprezívelaparticipaçãofeminina,resolveuremediarasituaçãoatravésdeum
corretivo que nada mais é do que uma das muitas técnicas através das quais,
em direito comparado, são concebidas e implementadas as ações afirmativas:
o mecanismo das cotas.
As Leis 9.100/95 e 9.504/97 tiveram a virtude de lançar o debate em torno
das ações afirmativas e, sobretudo, de tornar evidente a necessidade premente
deseimplementardemaneiraefetivaaisonomiaemmatériadegêneroem
nossopaís.Ascotasdecandidaturasfemininasconstituemapenasoprimeiro
passo nesse sentido. Se é certo que é preciso tempo para se fazer avaliações
mais seguras acerca da sua eficácia como medida de transformação social,
não dúvida de que se anunciam alguns resultados alvissareiros, como
o incremento significativo, em termos globais, da participação feminina nas
instâncias de poder
15
.
Assim, as mencionadas leis consagram a recepção definitiva pelo Direito
brasileirodoprincípiodaaçãoafirmativa.Aindaquelimitadaaumaforma
específica de discriminação, ofato é queessa política social ingressounos
moeurs politiques da Nação, uma vez que vem sendo aplicada sem contestação
nos últimos pleitos eleitorais.
Ação AfirmAtivA e portAdoreS de deficiênciA
Omesmoprincípiotambémvemsendoadotadopelalegislaçãoquevisaa
protegerosdireitosdaspessoasportadorasdedeficiênciafísica.
Com efeito, a Constituição Brasileira, em seu artigo 37, VIII, prevê
expressamente a reservas devagas para deficientesfísicos na administração
pública. Neste caso, a permissão constitucional para adoção de ações
afirmativasemrelaçãoaosportadoresdedeficiênciafísicaéexpressa.Daía
15 Por exemplo, na esfera municipal, após as eleições de 1996, verificou-se um aumento de 111% das
vereadoraseleitasemrelaçãoàseleiçõesmunicipaisanteriores.Assim,tomando-secomoreferênciaoanode
982,porquecoincidecomoiníciodaaberturapolíticanopaís,verifica-sequeopercentualdevereadoras
correspondiaa3,5%dototal;em992,oíndicesituava-senafaixados8%;enaseleiçõesde996e2000,
este percentual passa a corresponder a mais de 11% do total de representantes nas Câmaras Municipais.
66
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
iniciativa do legislador ordinário, materializada nas leis 7.835/89 e 8.112/90,
que regulamentaram o mencionado dispositivo constitucional. De fato, a Lei
8.2/90 (Regime Jurídico Único dosServidoresPúblicos Civis da União)
estabelece em seu art. 5ª, § 2ª que
àspessoasportadorasdedeficiênciaéasseguradoodireitodeseinscrever
em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam
compatíveiscomadeficiênciadequesãoportadoras;parataispessoasserão
reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.
Comentandoodispositivotranscrito,MônicadeMelo(998),commuita
propriedade, afirma:
Desta forma, qualquer concurso público que se destine a preenchimento de
vagas para o serviço público federal deverá conter em seu edital a previsão
dasvagasreservadasparaosportadoresdedeficiência.Note-sequeoartigo
fala em até 20% (vinte por cento) das vagas, o que possibilita uma reserva
menor e o outro requisito legal é que as atribuições a serem desempenhadas
sejam compatíveis com a deficiênciaapresentada.Há entendimentos no
sentido de que 10% (dez por cento) das vagas seriam um percentual razoável,
àmedidaquenoBrasilhaveria0%depessoasportadorasdedeficiência,
segundo dados da Organização Mundial de Saúde.
Esta outra modalidade de discriminação positiva tem recebido o
beneplácito do Poder Judiciário. Com efeito, tanto o Supremo Tribunal Federal
quanto o Superior Tribunal de Justiça tiveram oportunidade de se manifestar
favoravelmente sobre o tema, verbis:
Ementa:
Sendo o art. 37, VII, da CF, norma de eficácia contida, surgiu o art. 5ª, § 2ª,
donovelEstatutodosServidoresPúblicosFederais,atodaevidência,para
regulamentar o citado dispositivo constitucional, a fim de lhe proporcionar a
plenitude eficacial. Verifica-se, com toda a facilidade, que o dispositvo da lei
ordinária definiu os contornos do comando constitucional, assegurando o
direitoaosportadoresdedeficiênciadeseinscreverememconcursopúblico,
ditando que os cargos providos tenham atribuições compatíveis com a
deficiênciadequesãoportadorese,finalmente,estabelecendoumpercentual
máximo de vagas a serem a eles reservadas. Dentro desses parâmetros, fica
o administrador com plena liberdade para regular o acesso dos deficientes
aprovados no concurso para provimento de cargos públicos, não cabendo
prevalecer diante da garantia constitucional, o alijamento do deficiente por
não ter logrado classificação, muito menos por recusar o decisum afrontado
que não tenha a norma constitucional sido regulamentada pelo dispositivo da
lei ordinária, tão-só, por considerar não ter ela definido critérios suficientes.
Recurso provido com a concessão da segurança, a fim de que seja oferecida
à recorrente vaga, dentro do percentual que for fixado para os deficientes,
67
Joaquim B. Barbosa Gomes
obedecida, entre os deficientes aprovados, a ordem de classificiação se for
o caso.
(RMS 3.113-6/DF, 6ª T., 06.12.1994, cujo Relator foi o Min. Pedro Acioli)
“Concurso Público e Vaga para Deficientes
Por ofensa ao art. 37, VIII, da CF (“a lei reservará percentual dos cargos
e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá
os cririos de sua admissão”), o Tribunal deu provimento a recurso
extraordinário para reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais que negara a portadora de deficiência o direito de ter
assegurada uma vaga em concurso público ante a impossibilidade aritmética
de se destinar, dentre as 8 vagas existentes, a reserva de 5% aos portadores
dedeficiênciafísica(LC9/92doMunicípiodeDivinópolis).OTribunal
entendeu que, na hipótese de a divisão resultar em número fracionado não
importando que a fração seja inferior a meio —, impõe-se o arredondamento
para cima.
(RE 227.299-MG, rel. Min. Ilmar Galvão, 14.6.2000.)
Como se vê, a destinação de um percentual de vagas no serviço
público aos portadores de deficiência não viola o princípio da isonomia.
Em primeiro lugar, porque a deficncia sica de que essas pessoas o
portadoras traduz-se em uma situação de nítida desvantagem em seu
detrimento, fato este que deve ser devidamente levado em conta pelo
Estado, no cumprimento do seu dever de implementar a igualdade material.
Em segundo, porque os portadores de deficiência física se submetem aos
concursos públicos, devendo necessariamente lograr aprovação. A reserva de
vagas, portanto, representa uma dentre as diversas técnicas de implementação
daigualdadematerial,consagraçãodoprincípiobíblicosegundooqualdeve-se
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Poisbem.Seesseprincípioéplenamenteaceitável(inclusivenaesferajurisdicional,
como vimos) como mecanismo de combate a uma das ltiplas formas de
discriminação, da mesma forma ele have de ser aceito para combater aquela que é
a mais arraigada forma de discriminação entre nós, a que tem maior impacto social,
econômicoecultural—adiscriminãodecunhoracial.Istoporqueosprincípios
constitucionais mencionados anteriormente são vocacionados a combater toda e
qualquer disfunção social originária dos preconceitos e discriminações incrustados
no imagirio coletivo, vale dizer, os preconceitos e discriminões de fundo
históricoecultural.osetratadeprincípiosdeaplicãoseletiva,bonsparacurar
certos males, mas inadaptados a remediar outros.
68
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
Ação AfirmAtivA e relAçõeS rAciAiS
A queso racial reveste-se de grande complexidade e dificuldade de
tratamento no Direito brasileiro.Tema espinhoso,raríssimas foramas
ocasiões em que tivemos a oportunidade de analisar normas jurídicas
ou políticas públicas especificamente destinadas à inclusão social da
população negra e à minimização da desigualdade socioestrutural entre
negrosebrancosemnossopaís.
AConstituiçãode988,comovimos,deixouexplícitaaidéiadeigualdade
em todos os sentidos, afirmando inequivocamente a isonomia racial (art. 5ª,
caput) e incriminando firmemente a prática do racismo (art. 5ª, XLII). Ademais,
emtodootextoconstitucional,verifica-seapredisposiçãosistêmicaemgarantir
a efetivação da igualdade material, de modo que a adoção de medidas nesse
sentidorevela-seemconsonânciacomoespíritodaConstituição.
É curioso ressaltar que, diferentemente do que ocorreu com as demais
políticas de ação afirmativa acima mencionadas, a problemática racial
adentrou o debate blico de uma forma um tanto abrupta, após a adoção,
por algumas universidades públicas brasileiras, em especial a Universidade
doEstadodoRiodeJaneiroUERJ,domecanismodereservadevagas
noensinosuperiorparaindivíduospertencentesàsminorias.
Em breve síntese, o mecanismo das cotas, no Rio de Janeiro,
foi instituído por três sucessivas leis estaduais que destinaram uma
percentagem determinada de vagas nos cursos superiores das universidades
estaduais para estudantes provenienentes de escolasblicas (40%),
16
para
16 Lei 3.524/01: “Art. 2ª - As vagas oferecidas para acesso a todos os cursos de graduação das universidades
públicas estaduais serão preenchidas observados os seguintes critérios: I - 50% (cinqüenta por cento), no
mínimoporcursoeturno,porestudantesquepreenchamcumulativamenteosseguintesrequisitos:
a) tenham cursado integralmente os ensinos fundamental e médio em instituições da rede pública dos
Municípiose/oudoEstado;
b)tenhamsidoselecionadosemconformidadecomoestatuídonoart.ªdestaLei;
II) - 50% (cinqüenta por cento) por estudantes selecionados em processo definido pelas universidades
segundo a legislação vigente”.
69
Joaquim B. Barbosa Gomes
aqueles que se declarassem negros ou pardos (40%)
17
e para os deficientes
físicos(0%).
18
A aplicação dessas leis no vestibular de 2002 causou uma grande controvérsia
nomundojurídico,gerandoinúmerasaçõesjudiciaisdeestudantesquese
julgaram prejudicados e, inclusive, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
no Supremo Tribunal Federal
19
. Os argumentos contrários às cotas, sustentados
nessas ações, se fundamentam, basicamente, na existência de violações
ao princípio da igualdade, ao sistema meritocrático e ao princípio da
proporcionalidade, bem como numa suposta impossibilidade de determinar a
afrodescendênciadoscandidatosaovestibular,emrazãodamiscigenaçãoda
sociedade brasileira.
Devidoàrepercussãodedeciesjudiciaisspares,umasconcedendoaos
autores o direito a freqüentar a universidade mesmo sem aprovação no vestibular e
outras lhes negando essa possibilidade, aliado a inúmeras manifestações contrárias
ao sistema veiculadas na imprensa escrita e nos demais meios de comunicação,
foi apresentada proposta de alteração da legislão sobre o tema.
Assim, em setembro de 2003, foi promulgada a Lei 4.151 do Estado do
Rio de Janeiro, revogando as mencionadas leis estaduais e instituindo nova
disciplina sobre o sistema de cotas para ingresso nas universidades públicas
estaduais. A norma atual é mais bem elaborada, tentando preservar a autonomia
das universidades e estabelecer critérios mais razoáveis e objetivos, tanto para
a aferição dos beneficiados pelo sistema de cotas como para a definição e
elaboração do processo seletivo correspondente. A lei estabelece uma reserva de
20% (vinte por cento) das vagas para estudantes oriundos da rede pública de
ensino, 20% (vinte por cento) para negros e 5% (cinco por cento) para pessoas
portadorasdedeficiênciaeintegrantesdeminoriasétnicas,perfazendoumtotal
de 45% das vagas de todos os cursos e turnos oferecidos (art. 5ª c/c art. 2ª, II).
7Lei3.708/0.Comapenastrêsartigos,assimdeterminava:“Art.ª–Ficaestabelecidaacotamínimade
até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no preenchimento das vagas relativas aos
cursosdegraduaçãodaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro–UERJedaUniversidadeEstadualdo
NorteFluminense–UENF.Parágrafoúnico–Nestacotamínimaincluídostambémosnegrosepardos
beneficiadospelaLeinª3.524/2000.Art.2ª–OPoderExecutivoregulamentaráapresenteLeinoprazode
30(trinta)diasdesuapublicação.Art.3ª–EstaLeientraráemvigornadatadesuapublicação,revogadas
as disposições em contrário”.
18 Lei 4.061/03. “Art. - As Universidades Públicas Estaduais deverão reservar 10% (dez por cento) das
vagasoferecidasemtodososseuscursosparaalunosportadoresdedeficiência”.
9ADI2858-RJ.Rel.Min.CarlosVelloso.EmrazãodasuperveniênciadaLei4.5/03,querevogouas
leis 3.524/00, 3.708/01 e 4.061/03, essa ADI 2858 restou sem objeto, tendo sido julgada prejudicada. DJ
01/10/2003.
70
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
A lei traz, ainda, dispositivo especialmente condizente com os propósitos e fins
dasaçõesafirmativas,qualseja:oestabelecimentodeumperíodomínimode
aplicação desses percentuais (cinco anos), os quais, posteriormente, poderão ser
alterados.Emoutraspalavras,prevê-seumaavaliãodosresultadosdautilizão
dapolíticadecotase,senecessário,poderáhaverumarevisãodosparâmetros
entãofirmados,comaanuênciaindispensáveldoPoderLegislativo.
Pode-se dizer, portanto, que a iniciativa pioneira do Estado do Rio de
Janeiro em estabelecer cotas para negros e pardos no vestibular das universidades
do Estado teve avirtude deinstalar no cenário político-social brasileiro o
debate acerca dessa modalidade de ação afirmativa, bem como de demonstrar,
inequivocamente, a maior dificuldade na análise da questão racial e na aplicação
deaçõesafirmativasembenefíciodapopulaçãonegra.
Ação AfirmAtivA e direito internAcionAl doS direitoS
HumAnoS
O problema aqui tratado, como se sabe, transcende o Direito interno
brasileiro e envolve o Direito Internacional, especialmente o chamado Direito
InternacionaldosDireitosHumanos.Eletraduzàperfeiçãoofenômenoque
Hélène Tourard com muita propriedade classificou como l’internationalisation
des constitutions.
20
Comefeito,nãoobstanteasdivergênciasdoutrináriasejurisprudenciais
que pairam sobre o assunto, não podemos deixar de consignar a contribuição
trazidaàmatériaporumaavançadainteligênciadoartigo5ªdaConstituição
de988,queemseusparágrafosªe2ªtrazdisposiçõesimportantíssimaspara
a efetiva implementação dos direitos e garantias fundamentais. Com efeito,
o parágrafo estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentaistêmaplicaçãoimediatanopaís.Jáoparágrafo2ªdispõeque“os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
doregimeedosprincípiosporelaadotados,ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Como resultado da conjugação do § com o § do artigo do texto
constitucional, uma interpretação sistemática da Constituição nos conduz à
20 V. Tourard (2000); Steiner, Alston (2000). Entre nós, vejam-se Trindade (1997); Mello (1994); Castro
(1995); Piovesan (1996); Sarlet (2000).
71
Joaquim B. Barbosa Gomes
constatação de que estamos diante de normas da mais alta relevância para a
proteção dos direitos humanos (e, consequentemente, dos direitos das minorias)
no Brasil, quais sejam: os tratados internacionais de direitos humanos, que,
segundoodispositivocitado,têmaplicaçãoimediatanoterritóriobrasileiro,
necessitando apenas de ratificação.
Com efeito, esse é o ensinamento que colhemos em dois dos nossos mais
eruditos scholars, especialistas na matéria, os ProfessoresAntônio Augusto
Cançado Trindade
21
e Celso de Albuquerque Mello, verbis:
O disposto no art. 5ª, § da Constituição Brasileira de 1988 se insere na
novatendênciadeConstituiçõeslatino-americanasrecentesdeconcederum
tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno
aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A
especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos
direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela
Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral,
se tem exigido a intermediação pelo poder Legislativo de ato com força de
leidemodoaoutorgarasuasdisposiçõesvigênciaouobrigatoriedadeno
planodoordenamentojurídicointerno,distintamentenocasodostratados
de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte os
direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5ª, §
e 5ª, § 1ª, da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos
constitucionalmenteconsagradosdiretaeimediatamenteexigíveisnoplano
doordenamentojurídicointerno.
A Constituição de 1988 no § 2ª do art. 5ª constitucionalizou as normas de
direitos humanos consagradas nos tratados. Significando isto que as referidas
normas são normas constitucionais, como diz Flávia Piovesan citada acima.
Considero esta posição como um grande avanço. Contudo sou ainda mais
radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma
constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional
posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada. A nossa
posiçãoéaqueestáconsagradanajurisprudênciaetratadointernacional
europeu de que se deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja ela
interna ou internacional. A tese de Flávia Piovesan tem a grande vantagem de
evitar que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar a constitucionalidade
dos tratados internacionais (MELLO, 1999).
22
2Note-se,porém,quenestepontodoutrinaejurisprudênciadivergem,eisqueoSupremoTribunalFederale
oSuperiorTribunaldeJustiçavêmseposicionandonosentidodequeostratadosinternacionaispossuem,
nonossoordenamentojurídico,status de lei ordinária.
22 Veja-se também, sobre o tema, Flavia Piovesan (1996).
72
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
Assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-se concluir que o Direito
Constitucionalbrasileiroabriga,nãosomenteoprincípioeasmodalidades
implícitaseexplícitasdeãoafirmativaaquejáfizemosalusão,mastambémasque
emanamdostratadosinternacionaisdedireitoshumanosassinadospelonossopaís.
Com efeito, o Brasil é signatário dos principais instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos, em especial a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, os quais permitem
expressamente a utilização das medidas positivas tendentes a mitigar os efeitos
da discriminação.
De fato, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, dispõe
em seu artigo 1ª, nª 4, verbis:
Art. - 4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais
tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos
grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que
possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo
ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que
tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos
separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido
alcançados os seus objetivos.
Dispositivo de igual teor também figura no artigo 4ª da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979),
ratificada pelo Brasilem 984, com reservasna áreade direitode família,
reservas estas que foram retiradas em 1994, verbis:
Artigo 4ª - 1. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter
temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a
mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção,
mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de
normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos
de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.
É,portanto,amploediversificadoorespaldojurídicoàsmedidasafirmativas
que o Estado brasileiro decida empreender no sentido de resolver esse que
talvezsejaomaisgravedetodososnossosproblemassociais–oalijamento
e a marginalização do negro na sociedade brasileira. A queso se situa,
primeiramente,naesferadaAltaPolítica.Ouseja,trata-sedeoptarporum
modèle de société, um choix politique”, como diriam os juristas da escola
73
Joaquim B. Barbosa Gomes
francesa.Noplanojurídico,nãohádúvidasquantoàsuaviabilidade,comose
tentou demonstrar. Resta, tão somente, escolher os critérios, as modalidades
e as técnicas adaptáveis à nossa realidade, cercando-as das devidas cautelas e
salvaguardas.
critérioS, modAlidAdeS e limiteS dAS AçõeS AfirmAtivAS
Ao debruçar-se sobre o tema, o Professor Joaquim Falcão (1999) sustentou que
se,porumlado,étranqüilaaconstataçãodequeoprincípiodaigualdade
formal é relativo e convive com diferenciações, nem todas as diferenciações
são aceitas. A dificuldade é determinar os critérios a partir dos quais uma
diferenciação é aceita como constitucional.
O autor apresenta solução ao problema, afirmando que a justificação
23
do estabelecimento da diferença seria uma condição sine qua non para a
constitucionalidade da diferenciação, a fim de evitar a arbitrariedade. Esta justificação
deve ter um conteúdo, baseado na razoabilidade, ou seja, num fundamento razoável
para a diferencião; na racionalidade, no sentido de que a motivação deve ser
objetiva, racional e suficiente; e na proporcionalidade, isto é, que a diferencião
seja um reajuste de situações desiguais. Aliado a isto, a legislação infraconstitucional
deverespeitartrêscritériosconcomitantesparaqueatendaaoprinpiodaigualdade
material: a diferenciação deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional,
nosentidodequedeveobediênciaaumanormaprograticaquedetermina
aredãodasdesigualdadessociais;(b)serespefica,estabelecendoclaramente
aquelassituaçõesouindivíduosqueserão“beneficiados”comadiferenciação;e(c)
sereficiente,ouseja,énecesriaaexisnciadeumnexocausalentreaprioridade
legalconcedidaeaigualdadesocioeconômicapretendida.Entendimentosemelhante
é esposado por B. Renauld no artigo mencionado:
Trois éléments nous permettent de donner um contenu à la notion de
discrimination positive telle qu’elle sera utilisée par la suite. Pour identifier
une discrimination positive, il faut que l’on soit en présence d’un groupe
d’individus suffisamment défini, d’une discrimination structurelle dont
les membres de ce groupe sont victimes, et enfin d’un plan établissant des
23CelsoAntônioBandeiradeMello,em“DesequiparaçõesProibidas,DesequiparaçõesPermitidas”,afirma
que “o que se tem que indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com
ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for “justificável”, por existir uma correlação lógica
entreo“fatordediscrímen”tomadoemcontaeoregramentoqueselhedeu,anormaouacondutasão
compatíveiscomoprincípiodaigualdade;sepelocontrário,inexistirestarelaçãodecongruêncialógica
ou–oqueaindaseriamaisflagrante–senemaomenoshouvesseumfatordediscrímenidentificável,a
normaouacondutaserãoincompatíveiscomoprincípiodaigualdade.
74
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
objectifs et définissant des moyens à mettre en oeuvre visant à corriger la
discrimination envisagée. Selon les cas, le plan est adopté, voire imposé par
une autorité publique ou est le fruit d’une initiative privée.
24
Sem dúvida, os critérios acima estabelecidos são um ótimo ponto de partida
para o estabelecimento de ações afirmativas no Brasil. Porém, falta ao Direito
brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem
ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase
exclusivamente do sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que
venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo, deve ser
objeto de uma utilização marcadamente marginal.
Comefeito,oessencialéqueoEstadoreconheçaoficialmenteaexistênciada
discriminaçãoracial,dosseusefeitosedassuasvítimas,etomeadecisãopolítica
deenfrentá-la,transformandoessecombateemumapolíticadeEstado.Umatal
atitude teria o saudável efeito de subtrair o Estado brasileiro da ambigüidade
que o caracteriza na matéria: a de admitir que existe um problema racial no
paíseaomesmotempofurtar-seatomarmedidassériasnosentidominorar
os efeitos sociais dele decorrentes.
Em segundo lugar, é preciso ter claro a idéia de que a solução do problema
racial não deve vir unicamente do Estado. Certo, cabe ao Estado o importante
papel de impulsão, mas ele não deve ser o único ator nessa matéria. Cabe-lhe
traçarasdiretrizesgerais,oquadrojurídicoàluzdoqualosatoressociais
poderão agir. Incumbe-lhe remover os fatores de discriminação de ordem
estrutural, isto é, aqueles chancelados pelas próprias normas legais vigentes no
país,comoficoudemonstradoacima.Masaspolíticasafirmativasnãodevem
se limitar à esfera blica. Ao contrário, devem envolver as universidades
públicas e privadas, as empresas, os governos estaduais, as municipalidades, as
organizações governamentais, o Poder Judiciário etc.
No que pertine às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem
ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de
preferências,osistemadebônuseosincentivosfiscais(comoinstrumentode
motivação do setor privado). De crucial importância é o uso do poder fiscal,
24‘Trêselementosnospermitemdarumconteúdoànoçãodediscriminaçãopositivatalcomoelaseusadaa
seguir.Paraidentificarumadiscriminaçãopositiva,éprecisoqueseestejanapresençadeumgrupodeindivíduos
suficientementedefinido,deumadiscriminaçãoestruturaldaqualosmembrosdestegruposãotimase,enfim,
de um plano estabelecendo os objetivos e definindo os meios a utilizar visando a corrigir a discriminação
considerada. Segundo o caso, o plano é adotado, talvez até mesmo imposto, por uma autoridade pública, ou é
fruto de uma iniciativa privada” (tradução de nia Ludmila Dias Tosta).
75
Joaquim B. Barbosa Gomes
não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa
tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação
de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da
discriminação de cunho histórico.
Noutras palavras, ação afirmativa não se confunde nem se limita às cotas.
Confira-se, sobre o tema, as judiciosas considerações feitas por Wania Sant’Anna
eMarcelloPaixão,nointeressantetrabalhointitulado«MuitoAlémdaSenzala:
AçãoAfirmativanoBrasil»,verbis:
Segundo Huntley, “ação afirmativa é um conceito que inclui diferentes tipos
de estratégias e práticas. Todas essas estratégias e práticas estão destinadas a
atender problemas históricos e atuais que se constatam nos Estados Unidos
em relaçãoàs mulheres,aos afro-americanose a outrosgrupos que têm
sido alvo de discriminação e, conseqüentemente, aos quais se tem negado
a oportunidade de desenvolver plenamente o seu talento, de participar em
todas as esferas da sociedade americana. (...) Ação afirmativa é um conceito
que, usualmente, requer o que nós chamamos metas e cronogramas. Metas
são um padrão desejado pelo qual se mede o progresso e não se confundem
com cotas. Opositores da ação afirmativa nos Estados Unidos freqüentemente
caracterizammetascomosendocotas,sugerindoqueelassãoinflexíveis,
absolutas, que as pessoas são obrigadas a atingi-las”.
Apolíticadeaçãoafirmativanãoexige,necessariamente,oestabelecimentode
um percentual de vagas a ser preenchido por um dado grupo da população.
Entre as estratégias previstas, incluem-se mecanismos que estimulem as
empresasabuscarempessoasdeoutrogêneroedegruposétnicoseraciais
específicos, seja para compor seus quadros, seja para fins de promoção
ou qualificação profissional. Busca-se, também, a adequação do elenco de
profissionais às realidades verificadas na região de operação da empresa. Essas
medidas estimulam as unidades empresariais a demonstrar sua preocupação
com a diversidade humana de seus quadros.
Isto não significa que uma dada empresa deva ter um percentual fixo de
empregados negros, por exemplo, mas, sim, que esta empresa está demonstrando
a preocupação em criar formas de acesso ao emprego e ascensão profissional
paraaspessoasnãoligadasaosgrupostradicionalmentehegemônicosem
determinadas funções (as mais qualificadas e remuneradas) e cargos (os
hierarquicamente superiores). A ação afirmativa parte do reconhecimento de
queacompetênciaparaexercerfunçõesderesponsabilidadenãoéexclusiva
deumdeterminadogrupoétnico,racialoudegênero.Tambémconsidera
que os fatores que impedem a ascensão social de determinados grupos estão
imbricadosnumacomplexarededemotivações,explícitaouimplicitamente,
preconceituosas.
Por fim, no que diz respeito às cautelas a serem observadas, valho-me mais
uma vez dos ensinamentos da prof. Carmem Lúcia Antunes Rocha, verbis:
76
A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro
É importante salientar que não se quer verem produzidas novas
discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das maiorias,
que, sem serem marginalizadas historicamente, perdem espaços que antes
detinhamfaceaosmembrosdosgruposafirmadospeloprincípioigualador
no Direito. Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos
e programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e em outros
Estados,primaramsemprepelafixaçãodepercentuaismínimosgarantidores
da presença das minorias que por eles se buscavam igualar, com o objetivo
de se romperem preconceitos contra elas ou pelo menos propiciarem-se
condições para a sua superação em face da convivência juridicamente
obrigada. Por ela, a maioria teria que se acostumar a trabalhar, a estudar,
a se divertir etc. com os negros, as mulheres, os judeus, os orientais, os
velhosetc.,habituando-seavê-losproduzir,viver,seminferioridadegenética
determinadapelassuascaracterísticaspessoaisresultantesdogrupoaque
pertencessem. Os planos e programas das entidades públicas e particulares de
ação afirmativa deixam sempre à disputa livre da maioria a maior parcela de
vagas em escolas, empregos, em locais de lazer etc., como forma de garantia
democráticadoexercíciodaliberdadepessoaledarealizaçãodoprincípio
danãodiscriminação(contidonoprincípioconstitucionaldaigualdade
jurídica)pelaprópriasociedade(996:88).
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WUCHER, Gabi Wucher. Minorias – Proteção Internacional em Prol da
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80
81
rumo Ao multiculturAliSmo: A Adoção compulSóriA de
õeS AfirmAtivAS pelo eStAdo brASileiro como repArAção
doS dAnoS AtuAiS SofridoS pelA populAção negrA
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
fundAmentoS e evolução dA idéiA de repArAção
A idéia de responsabilização pelos efeitos e danos gerados pela escravidão é
antiga em nossa história. As atrocidades e privações impostas aos negros escravos
e aos seus descendentes sempre suscitaram, nos mais diversos campos do saber,
a idéia de reparação e de compensação pelos danos causados.
Nesse sentido, em 1823, José Bonifácio (SILVA, 2000:33-39) apresentou à
Assembléia Constituinte, projeto de lei que buscava flexibilizar os rigores da
escravidão, e de certa forma, criar condições para que houvesse uma transição
entreoantigoregimeeoregimedeliberdade.Propôsalgumascompensações,
não aceitas pelos legisladores da época.
1
O tempo passou, o tráfico foi extinto, veio a abolição e nada foi feito em
favor dos negros, ex-escravos e descendentes de escravos, que pudesse compensar
o mal feito e minimamente prepará-los para a vida como homens livres.
1 José Bonifácio (SILVA, 2000:24) assim se manifestou à Assembléia Constituinte de 1823: “Mas como
poderáhaverumaConstituiçãoliberaleduradouraemumpaíscontinuamentehabitadoporumamultidão
imensa de escravos brutais e inimigos? Comecemos pois desde esta grande obra pela expiação de nossos
crimes e pecados velhos. Sim, não se trata somente de sermos justos, devemos também ser penitentes;
devemos mostrar à face de Deus e dos outros homens que nos arrependemos de tudo o que nesta parte
temos obrado séculos contra a justiça e contra a religião, que nos bradam acordes que não façamos aos
outros o que queremos que não nos façam a nós”.
82
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
ApósasprimeirastrêsdécadasdoséculoXX,quandosequisexterminaros
negros pelo “branqueamento”,
2
esses se viram acolhidos pelas novas formulações
doutrináriaseteóricasquereconheciamsuaexisncia,porémcomointegrantes
de uma ra inferior, assimilável pela raça branca dominante.
Anovafase— inauguradapelaobradeGilbertoFreyre(2003)noinício
da década de 30 do século passado amorteceu o pleito pela compensão e
reparação na medida em que se entendia que a escravidão não tinha produzido
efeitos danosos duradouros. Os danos, segundo a doutrina freyreana, tinham
sido impostos aos escravos, mas com sua libertação e assimilação pela sociedade,
seus efeitoso tinham se perpetuado.
Nofinaldadécadadesetentaeiníciodadécadadeoitentadoséculopassado
os estudos sociogicos demonstraram, estatisticamente, que os danos existiam
e que os efeitos do racismo estavam, mais do que nunca, presentes na sociedade
brasileira (HENRIQUES, 2001:1).
É importante que se registre que os danos decorrentes do preconceito racial e
de práticas discriminatórias são suportados atualmente pelos negros. As causas o
remotas, mas os danos são vivenciados cotidianamente pelos negros brasileiros.
A perspectiva de responsabilização pelos danos gerados à população negra após
a abolição acompanhava a lógica do enfoque conferido pela legislação ao longo
das oito primeiras décadas do século passado, vale dizer, uma lógica individualista
motivada por aspectos penais.
Então,adiscussãonomeiojurídicosobrearesponsabilização,podeserassim
resumida: durante a primeira metade do século passado, embalada pelo mito da
convivênciaharmoniosadasras,nãohaviaquesefalaremdiscriminação,em
danos e menos ainda em reparação.
A partir da segunda metade do século XX, o enfoque jurídico sobre a
questãotinhaumatriplacaracterística:quantoaossujeitos,fundava-seematose
práticas discriminatórias e racistas realizadas entre particulares, individualmente
considerados; quanto ao aspecto temporal da lesão ou da amea de lesão a
direitos dos negros, referia-se ao momento presente; e, quanto ao campo do
Direito, estava-se, predominantemente, na esfera do direito penal.
2 O conceito de branqueamento adotado neste texto é o desenvolvido por autores como Maria Aparecida
SilvaBento,EdithPizaeFúlviaRosembergeconsistenumconjuntodepolíticasestataisimplementadas
nofinaldoséculoXIXeiníciodoséculoXX,algumas,inclusive,sobaformadediplomaslegais,que
objetivavam reduzir a participação de pretos e pardos na composição da população brasileira, por intermédio
de,p.ex.,estímuloàimigraçãodebrancoseuropeusedarestriçãoàimigraçãodenegroseasiáticos.
83
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
Quando comprovadas as práticas discriminatórias e racistas, as mesmas eram
consideradas, inicialmente, contravenções
3
e, depois de 1989, com a edição da
Lei nª 7.716, de 1989 — conhecida como Lei Caó,
4
que regulamentou o inciso
XLII do art. da Constituição Federal de 1988, crimes, que poderiam repercutir
no campo do direito civil, suscitando reparação de natureza pecuniária.
Aperspectivadareparaçãojurídicareferenteàquestãoracialeratípicadas
relações privadas, fundada em práticas racistas contemporâneas, apreciada,
majoritariamente, sob a ótica criminal e considerada em sua dimeno
individual. Pode-se acrescentar que a reparação pretendida, quando incidente
a responsabilização civil, era a de natureza pecuniária.
fundAmentoS jurídico-filoSóficoS pArA A Adoção dAS
AçõeS AfirmAtivAS: AS eSpécieS e A críticA Ao fundAmento
compenSAtório
Muito se escreveu nas cadas de sessenta e setenta nos Estados Unidos, e
maisrecentementenoBrasil,sobreosfundamentosjurídico-filosóficosparaa
adoção de ões afirmativas para negros (ABREU, 1999; CRUZ, 2003; DERRIDA,
2004; DWORKING, 2000; GOMES, 2001; MENEZES, 2001; SILVA JR., 2002;
TELLES, 2003).
Várias foram as hipóteses aventadas: tentativa de evitar conflitos raciais;
constatação de desigualdades raciais na apropriação de bens, renda e servos no
presente, geradas por um contexto social injusto (justa distributiva); promoção do
princípiodaigualdadeemsuadimensãosubstantiva;promoçãodeumaimagem
positiva dos negros (utilitarismo); reparação pelos danos causados no passado
pela escravidão e por práticas segregacionistas (justiça compensatória).
Entre os fundamentospossíveis, oque recebeumais críticas e foi visto
com maiores ressalvas era, sem dúvida, o fundamento compensatório que
visava a reparar os danos causados pela escravidão e por sistemas institucionais
segregacionistas (CRUZ, 2003; GOMES, 2001).
3 De acordo com a Lei nª 1.390, de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos.
4 Em homenagem ao autor do projeto de lei, o então deputado federal constituinte Carlos Alberto Oliveira
(PDT/RJ), o Deputado Caó, que foi um dos maiores defensores da inclusão do inciso XLII ao art. 5ª da
ConstituiçãoFederal,quecaracterizaapráticadoracismocomocrimeinafiançáveleimprescritível.
84
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
Alegava-se a dificuldade em identificar os autores das violações e
responsabilizá-los pelos danos sofridos pelos negros no passado. Como seriam
responsabilizados os atuais cidadãos, no presente, pelos atos cometidos por
outros, no passado? E se não houvesse mais danos no presente? Quais seriam
os beneficiários?
Segundo Gomes (2001a, p. 65),
Embora a noção de justiça compensatória figure como justificativa
filosófica de um grande número de programas de ação afirmativa vigentes
nosdiversospaísesqueadotamessetipodepoticasocial,inclusivenos
EstadosUnidos,dopontodevistaestritamentejudico,pom,trata-
se de uma concepção o isenta de falhas. Com efeito, em matéria de
reparaçãodedanos,oraciocíniojurídicotradicionaloperacomcategorias
gidastaiscomilicitude,danoeremédiocompensatório,estreitamente
vinculados uns aos outros em relação de causa e efeito. Em regra, somente
quem sofre diretamente o dano tem legitimidade para postular a respectiva
compensação. Por outro lado, essa compensão só pode ser reivindicada
dequemefetivamentepraticouoatoilícitoqueresultounodano.Tais
incongruências,exacerbadaspelodogmatismooutrancierpicodapráxis
judica ortodoxa, finam por enfraquecer a tese compensatória como
argumento legitimador das ações afirmativas.
Postodessaforma–aresponsabilizaçãojurídicaembasescivilistas,com
a perfeita identificão do agente do dano e de quem o sofreu, fundada no
doloounaculpa,característicadasrelaçõesentreparticulares,aadoçãode
ões afirmativas como reparação sofria limitações quase incontornáveis.
Abria-se, contudo, uma exceção nessa lógica individualizante e privatista
da responsabilização pela escravidão e pela segregão. Era quando se podia
responsabilizar o Estado por práticas segregacionistas e, dessa forma, impor-
lhe a reparação por intermédio da adoção das ações afirmativas.
No entanto, essa perspectiva, segundo seus defensores, era muito limitada
que havia que se demonstrar a implementação de sistemas institucionais
que segregassem segmentos étnico-raciais da população (MENEZES,
2003).
Em outras palavras, para que se pudesse adotar as ações afirmativas
com base no fundamento compensario, havia que se provar o racismo de
Estado, fundado em um sistema legal que impusesse segregação na educação,
no transporte, na moradia, como o praticado na África do Sul, com regime
do apartheid, ou nos Estados Unidos, com o sistema dos separados, mas
iguais.
85
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
Os Estados que não tivessem adotado essa prática segregacionista não
estariam legitimados a implementar ações afirmativas; essa é uma das
principaiscríticasquesefazàpropostadeadoçãodeaçõesafirmativasno
Brasil.
5
A conferênciA de durbAn e A reSponSAbilizAção doS eStAdoS
que AdotArAm A eScrAvidão
Adquire força no mundo, a partir da aprovação da Declaração e do Plano de
AçãodaIIIConferênciaMundialcontraoRacismo,aDiscriminaçãoRacial,a
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, em setembro
de 2001,
6
o movimento que objetiva responsabilizar os Estados que adotaram a
escravidão pelos danos gerados aos descendentes das populações escravizadas.
A reparação pelos danos causados seria feita mediante a implementação
compulsória de ações afirmativas que propiciassem a correção das desigualdades
raciais e a promoção da igualdade de oportunidades; nessas hipóteses o
caráter compensatório é o principal fundamento à implementação de ações
afirmativas.
Trata-se,então,demovimentoquesecontrapõeàtendênciaanterior,que
limitava, quase impossibilitava, a adoção do fundamento compensatório para
a implementação das ações afirmativas.
Nessanovaperspectiva,osfundamentosjurídico-filosóficosquelegitimam
a adoção de ações afirmativas no continente americano, em virtude de questões
raciais, partem de uma premissa comum: a necessidade de reparação dos danos
causados pela desumanização imposta ao negro desde a escravidão.
Todos os demais fundamentos como as desigualdades reais na
apropriação de bens e servos; o risco de conflito racial; a necessidade de se
projetar imagem positiva dos negros; a necessidade de promover a igualdade
substantiva; todos, sem exceção, decorrem da discriminação, preconceito e
5ADeclaraçãodeDurbanabordaaquestãodadiscriminaçãoexistenteempaísesemquenãohásegregação
declarada:“56.Reconhecemosaexistênciaemmuitospaísesdeumapopulação mestiça com diversas origens
étnicas e raciais e sua valiosa contribuição para a promoção da tolerância e do respeito nessas sociedades,
e condenamos a discriminação de que é vítima, especialmente porque a natureza sutil dessa discriminação
pode fazer que se negue sua existência (ONU, 2001, p. 13, tradução e grifo nosso).
6Disponívelem<http://www.un.org >. Acesso em 04 de maio de 2004.
86
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
racismo gerados pela inferiorizão dos negros que, historicamente, foram
colocados na parte inferior de uma hipotética escala de raças, abaixo de
todas as outras.
A Declarão de Durban faz importante afirmação nesse sentido, ao
reconhecer na escravidão uma das principais fontes das manifestações de
racismo e de discriminação:
13. reconhecemos que a escravidão e o tfico de escravos, em particular o
tráfico transatntico foram tradias atrozes na hisria da humanidade,
o só pela barbárie, como tamm por sua magnitude, seu cater
organizado e especialmente, sua negação da essência das timas, e
reconhecemos que a escravidão e o tráfico de escravos, especialmente
o tfico transatlântico de escravos constituem e sempre deveriam ter
constitdo, um crime de lesa humanidade e são uma das principais
fontes e manifestões de racismo, discriminão racial, xenofobia e
formas conexas de intolerância, e que os africanos e os afrodescendentes,
os asticos e as pessoas de origem asiática e os povos ingenas foram
timas desses atos e continuam sendo de suas conseqüências;
14. reconhecemos que o colonialismo levou ao racismo, à discriminação
racial, à xenofobia e às formas conexas de intolencia, e que os africanos
e os afrodescendentes, as pessoas de origem asiática e os povos ingenas
foram vítimas do colonialismo e continuam sendo de suas conseqüências.
Reconhecemos os sofrimentos causados pelo colonialismo e afirmamos
que onde e quando quer ocorreram, devem ser condenados e há que
impedir-se que ocorram de novo. Lamentamos tamm que os efeitos e a
persistência dessas estruturas e práticas sejam consideradas entre os fatores
que contribuem para as desigualdades sociais e econômicas duradouras
em muitas partes do mundo de hoje;
18. realçamos que a pobreza, o subdesenvolvimento, a marginalizão,
a excluo social e as desigualdades econômicas estão estritamente
vinculadas com o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as práticas
conexasdeintolerânciaecontribuemparaapersistênciadeatitudese
práticas racistas, que por sua vez geram mais pobreza (ONU, 2001:7-8,
tradução e grifo nossos).
Na verdade, não há como isolar os fundamentos para a adoção de
ões afirmativas, bem como os efeitos decorrentes de sua adoção. Quando
ões afirmativas o adotadas promove-se, de certa forma, a igualdade
substantiva, mitigam-se as desigualdades na apropriação de bens fundadas
em bases raciais, projeta-se positivamente a imagem dos negros, reparam-se
os danos causados pela escravidão e por eventuais sistemas segregacionistas
posteriores.
87
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
Essa pletora de fundamentos que justifica a adoção das ações afirmativas
representa,nadamais,doqueoesforçodainteligênciahumanaparapromover
aigualaçãosubstantivadoshomens,admitidososprincípiosfundantesdas
nações contemporâneas, de que não há raças diferenciadas, de que o homem é
integrantedeumaúnicafamíliaedequetodosnascemlivreseiguais.
7
Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
3.198, de 2000, de autoria do então Deputado Federal Paulo Paim (PT/RS), que
institui o Estatuto da Igualdade Racial.
8
Trata-se de um dos textos mais avançados
no que concerne à promoção da igualdade racial no Brasil e que condensa as
expectativas de todos aqueles que há anos lutam para que o Estado brasileiro
reconheça institucionalmente a necessidade de reparar os danos causados pela
escravidão e pelos mais de cem anos de discriminação e preconceito (BRASIL,
2002).
Oprojetoassume,então,namesmalinhapropostapelaConferênciade
Durban (ONU, 2001), a necessidade de que tanto o Estado, como o setor
privado, adotem medidas especiais, ações afirmativas, com o objetivo de reparar
os danos gerados pela escravidão e promover a igualação de direitos entre os
brasileiros de todas as raças, cores ou etnias.
O Estatuto da Igualdade Racial adota expressamente a reparação, a
compensação, a inclusão das timas da desigualdade e a valorizão da
7NaDeclaraçãodeDurbanreafirmou-sequeoracismonegaaverdadedequetodososindivíduosnascem
livreseiguaisemdignidadeeemdireitosequetodosospovoseindivíduosconstituemumaúnicafamília
humana rica em sua diversidade (ONU, 2001:3 e 6). Lembrou-se que ainda hoje em dia persistem os casos
de racismo e de discriminação racial e que ainda seguem-se propondo teorias de superioridade de raças,
etniaseculturasqueforamfomentadasepraticadasduranteoperíodocolonial(idem: 4). Afirmou-se que
essas teorias são cientificamente falsas, moralmente condenáveis e socialmente injustas. Demonstrou-se
preocupaçãocomofatodeoracismoestarganhandoterrenoevoltandoaterreconhecimentopolítico,
moraleinclusivejurídicoemmuitasformas,entreoutras,porintermédiodosprogramasdealgumas
organizaçõesepartidospolíticoseadifusãodeidéiasbaseadasnoconceitodasuperioridaderacialmediante
as modernas técnicas de comunicação. Rechaçou-se energicamente toda doutrina baseada na superioridade
racialassimcomoasdoutrinasquepretendemdemonstraraexistênciaderaçashumanassupostamente
distintas (ibidem: 4, 6 e 9).
8 O substitutivo, que será submetido à apreciação do Plenário da Câmara dos Deputados, foi elaborado
apósseremrealizadasaudiênciaspúblicas, seminário, viagens eseremouvidos,pormais de umano,
representantes dos diversos segmentos envolvidos com a questão racial no Brasil como: sociólogos, juristas,
antropólogos, membros do Ministério Público, membros da administração pública federal, entidades de
pesquisa, representantes do movimento social e do movimento negro.
88
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
diversidade racial como diretrizes político-jurídicas
9
de sua ão (BRASIL,
2002).
o fundAmento AdequAdo Ao cASo brASileiro: neceSSidAde de
SuperAção dA lógicA civiliStA dA repArAção
AosediscutiraresponsabilizaçãodoEstadoemtermosjurídicospelosdanos
causados aos negros em face da discriminação racial, deve-se lançar mão dos
fundamentosdisponíveis,domaisrígido,queéofundamentocompensatório,
atéomaisflexível,queéofundamentodistributivo,para,adotando-seomais
adequado ao caso concreto, pleitear que o Estado promova as medidas de
correção necessárias.
Assim, naqueles Estados e sociedades em que, pelos mais diversos
motivos, ainda não seja óbvia e natural a persecução da igualdade
substantiva entre os seres humanos e predomine a perspectiva positivista
e dogmática do Direito, basta que o ordenamento constitucional preveja
a promoção do bem de todos, rechaçada qualquer prática discriminatória,
equeseconstateaexistênciadedesigualdadesfundadasnaraçapara
queasaçõesafirmativas,comopolíticaspúblicasdoEstadooucomo
iniciativa dos particulares, sejam adotadas para promover a igualação
substantiva.
Essaperspectiva,maisflexível,deveserainspiradoradetodosaquelesque
almejam a igualação substantiva dos seres humanos e seria suficiente para
justificar a implementação de ações afirmativas no Brasil.
Entretanto,estudosepesquisastêmdemonstrado,especialmenteapartir
daalisedalegislaçãoimperialbrasileiracompreendidanoperíodode822
a 1851,
10
que o Estado brasileiro, além de patrocinar a escravidão por motivos
econômicos,políticos,sociaiseculturais,promoveuseuaprofundamento
e sua institucionalizão por intermédio de atos oficiais que conformaram
9 Cf. Art. do Substitutivo aprovado pela Comissão Especial destinada a apreciar e proferir parecer ao
Projeto de Lei nª 3.198, de 2000, que “institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem
preconceitooudiscriminaçãoemfunçãodesuaetnia,raçae/oucor,edáoutrasprovidências”,nareunião
dodia03dedezembrode2002.Informaçãodisponívelem<http://www.camara.gov.bt>.Acessoem30
de julho de 2004.
10 Ver nesse sentido a dissertação de mestrado de Vieira Jr. (2004) intitulada “Responsabilização objetiva do
Estado brasileiro pela segregação institucional do negro e a adoção de ações afirmativas como reparação
aosdanoscausados”,especialmenteoscapítulos2e3.
89
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
um sistema de restrições aos direitos fundamentais dos negros e de sua
preteriçãoembenefíciodeoutrossegmentossociais.
Esses atos, poticas e legislação geraram danos que o sentidos pela
populaçãonegranosdiasdehojeesãodecorrênciadiretadessaaçãoestatal.
No caso brasileiro, todos os requisitos necessários à adoção do fundamento
mais rigoroso e mais criticado, que legitima a adoção das ações afirmativas
peloEstado–queéofundamentocompensatóriodareparaçãopelapráticade
discriminaçãoinstitucional–,estãoatendidos.
Nesse caso, seguindo-se a linha firmada em Durban e refoada no texto do
projeto do Estatuto da Igualdade Racial, não é facultado ao Estado optar entre adotar
ou não as ões afirmativas. Sua adão, como reparação, é compulria.
O texto constitucional de 1988 que propugna pela constituão de um Estado
democrático pluralista, multicultural, sem discriminões e que aja para superar as
desigualdades es a legitimar esse avanço.
A efetivão do conceito de igualdade substantiva e a conformação de uma
sociedade plurtnica e multicultural é uma questão de Estado e o uma questão
em que se deva recorrer acriticamente a institutos do direito privado.
Dworkin(200:45),aocomentaradeciodaSupremaCorteAmericanano
casoBakke,
11
ressaltou a prepondencia do interesse coletivo, prioririo do Estado,
sobre expectativas individuais:
É lamentável quando as expectativas de um cidadão são derrotadas por novos
programas que atendem a algum interesse mais geral. É lamentável, por
exemplo, que empresas pequenas e estabelecidas fracassem porque estradas
novasesuperiores são construídas(...).Nãohá,naturalmente,nenhuma
sugestãonesseprogramadequeBakkedividealgumaculpaindividualou
coletiva pela injustiça racial nos Estados Unidos, ou que ele tem menos direito
a ser tratado com consideração ou respeito que qualquer estudante negro aceito
no programa (...). Todos ficam desapontados, porque as vagas em escolas de
medicina são recursos escassos que devem ser usados para oferecer a sociedade
aquilo que ela mais necessita. Não é culpa de Bakke que a justiça racial agora
seja uma necessidade especial mas ele não tem o direito de impedir que sejam
usadas as medidas mais eficazes para assegurar essa justiça (grifo nosso).
11 Caso emblemático nos Estados Unidos envolvendo a questão das ações afirmativas. O caso envolvia
osRegentesdaUniversidadedaCalifórniacontraAllanBakke.AEscoladeMedicinadaUniversidade
desenvolvia programa de ação afirmativa que reservavam dezesseis vagas para as minorias em desvantagem
educacionaleeconômica.Bakke,candidatobranco,candidatou-seaumadasoitentaequatrovagasrestantes
e foi rejeitado, mesmo tendo tirado notas que o habilitariam, caso as dezesseis vagas não tivessem sido
reservadas às minorias. Irresignado recorreu à justiça.
90
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
É importante, então, promover a superação da lógica civilista embutida
no conceito de reparação, que ainda persiste no Brasil, no que concerne à
responsabilização do Estado pelos danos impostos à população negra, nos
seguintes termos:
a)asubjetividade,namedidaemquesebaseavanaexisnciadodoloouda
culpadoagente,devesersubstituídapelaobjetividade,bastandoaconstatação
da ação estatal, do dano e do nexo causal entre ambos, em face do previsto no
texto da Constituição Federal de 1988;
12
b)anaturezaprivada,jáqueeradecorrênciadedanogeradoporparticulares,
deve ser alterada para a natureza pública, na medida em que foi constatada a
participão do Estado como agente causador dos danos aos negros;
c) o cater individualista, visto que os danos eram apreciados sob a perspectiva
doindivíduonegroafetado,devesersubstituidopelocoletivo,tendoemvista
que os danos incidem sobre toda populão negra ou parte dela;
d)ocortenegativodaaçãoestatal,calcadanosprinpiosdaigualdadeformal
e da não-discriminação, deve passar a ter natureza positiva, com o objetivo de
promover a igualdade substantiva entre os integrantes das diferentes raças;
e) o enfoque criminal, na medida em que, na maioria das vezes, a reparação
era oriunda do cometimento de crimes motivados por preconceito racial,
devesersubstitdopeloenfoquecivil,emqueanecessidadedereparaçãoseja
independente do cometimento de crimes de racismo;
f) o objeto não deve ser unicamente os danos gerados no presente, mas
tammcompreenderdanosatuaisgeradoscomodecorncialógicadepráticas
desumanizadoras e segregacionistas pretéritas que remontam à época da
escravidão.
Essas devem ser as novas balizas da responsabilização objetiva do Estado
brasileiro em face dos danos impostos à população negra nos dias de hoje.
É interessante constatar que o projeto de lei que institui o Estatuto da Igualdade
Racial segue essa mesma linha e inova ao prever a tutela coletiva dos direitos
e interesses dos segmentos étnico-raciais que sofrerem lesão, asseverando que a
apreciação judicial das lees e ameaça de leo aos direitos dos negros dar-sesob a
égide da ação civil pública. Nessas ações, prevalecerá o critério da responsabilidade
objetiva, consoante o disposto em seu art. 64, §, inciso I (BRASIL, 2002).
12 O art. 37 § 6ª da Constituição Federal de 1988 estabelece a responsabilidade objetiva do Estado.
91
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
Resta uma última indagação a ser feita quanto à oportunidade da adoção
das ações afirmativas tendo em vista os resultados alcançados nos lugares onde
foi implementada.
Trata-se de responder a seguinte questão: serão as ações afirmativas medidas
efetivas no combate à discriminação, na promoção da inclusão dos negros no
Brasil e na construção de uma sociedade multicultural?
Importantereferêncianodeslindedessaquestãoéorecenteestudoelaborado
peloProgramadasNaçõesUnidaspeloDesenvolvimento–PNUD(2004:69-
72)emquesãoanalisadasasexperiênciasdepaísesqueadotaramhámuito
tempo as ações afirmativas como a Índia, a Malásia e os Estados Unidos e as
experiênciasrecentescomoadaÁfricadoSul:
A ação afirmativa reduziu as desigualdades entre grupos nos locais onde tem
sidoeficazmenteexecutada.Masestudosdepaísescomdadosrecolhidos
extensivamenteecomumalongahistóriadeaçãoafirmativa–Índia,Malásia
eEstadosUnidose,numperíodomaiscurto,aÁfricadoSul–mostram
que as desigualdades entre as pessoas (desigualdades verticais) por oposição
às desigualdades entre grupos (desigualdades horizontais) aumentaram ou
mantiveram-se estáveis. (...) É verdade que essas desigualdades poderiam
ter piorado sem as poticas de ação afirmativa. Mas para reduzir as
desigualdades individuais e construir sociedades verdadeiramente inclusivas e
eqüitativas,sãonecessáriasoutraspolíticascomoaspolíticasquepromovem
odesenvolvimentoeconômicoeqüitativo.(...)Apesardestaspreocupações,
aspolíticasdeaçãoafirmativatêmtidobastanteêxitonarealizaçãodeseus
objetivose,provavelmente,consideraçõesdenaturezapolíticaimpedirão
sua eliminação. E sem elas é provável que as desigualdades e exclusões
socioeconômicasdegruposfossempioresdoquesãohoje.Por isso não
dúvida de que a ação afirmativa tem sido necessária nos países aqui
examinados (grifo nosso).
As conclusões do PNUD (ibidem: 72) apontam para a necessidade de
combinarpolíticasdeaçõesafirmativascompolíticaseconômicasestruturais
quepromovamodesenvolvimentodospaíses.Essaconstatação,contudo,não
elide a necessidade de adoção de medidas compensatórias temporárias.
No que concerne ao argumento recorrentemente veiculado de que seria mais
efetiva a adoção de critério de promoção da igualdade substantiva baseado na
classeenãonaraça,oestudodoPNUDfazumacríticaàtendênciaverificada
nos Estados Unidos de abandonar o modelo de ações afirmativas referenciados
na raça em favor de outro modelo que adote como critério de promoção da
diversidade a classe econômica dos beneficiários. Em relação ao acesso às
universidades, o estudo constata que o número de estudantes brancos pobres é
92
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
seisvezesmaiorqueodehispânicosedenegrosedessaforma“apreferência
baseada na classe não promoverá a igualdade racial” (ibidem: 72).
A A d o ç ã o c o m p u l S ó r i A d e A ç õ e S Af i r m At i v A S e o
multiculturAliSmo
Nofinaldosanosoitentaeiníciodosanosnoventadoséculopassado,
começou a ganhar força o movimento pela adão de ações afirmativas
para negros no Brasil com o intuito de proporcionar condições reais
de superação de desigualdades raciais em diversos aspectos da vida
nacional.
Nesseperíodo,omundojáconviviacomexperiênciasdeiniciativado
Estadoembenefíciodesegmentosdiscriminados:porquestõesdeclasse,
como na Índia, desde 1949; por questões de ra, como nos Estados Unidos,
desdeadécadadesessenta;porquestõesdegêneroeminoriasétnicas,no
casodediversospaíseseuropeus,desdeosanossetenta.
Na Índia, fortemente marcada por suas castas sociais que se apropriam
de forma extremamente diversa e desigual dos recursos nacionais,
previo constitucional, desde 1949, para a adoção de medidas especiais em
favor das classes desfavorecidas, as chamadasbackward classes (ZWART,
2000:236; PIERRÉ-CAPS, 2004:310).
Ao analisar a temática dos direitos reconhecidos às minorias
nacionaiseuropéias,Pierré-Caps(2004:308-309)concluiqueoprincípio
da discriminação positiva tem papel fundamental na conciliação do
aparenteconflitoentreprincípiodeigualdadedetodososcidadãoseo
reconhecimento do direito à diferença.
Lembre-se que o Brasil, desde o século XIX, havia vivenciado a
experiência de o Estado intervir, por intermédio da legislação, para
favorecer a integrão de determinado segmento da população.
13
3VeroCapítulo3dadissertaçãodeVieiraJr.(2004),queapresentaalgunsexemplosdeatosnormativos
editados entre 1822 e 1851 em favor da integração de colonos brancos europeus.
93
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
Vale dizer então que, para o Brasil, não é novidade a ação do Estado com
o intuito de promoção de determinado segmento social, que, em um dado
momento histórico, se quis privilegiar.
NemadimensãoracialdessaaçãoestatalénovaparaoBrasil.Apolítica
imperial de estímulo à imigração de colonos brancos ao longo do culo
XIX e também a política de imigração da incipiente República brasileira
demonstraramqueadimensãoracialerapriorizadanaformulaçãodepolíticas
públicas, sem que em nenhum momento de nossa história tivesse sido argüida
ainconstitucionalidadedessaspolíticascomfundamentonasupostaviolação
doprincípio isonômico.O queénovo para oBrasil éacor – preta –dos
beneficiáriosdapolíticaestatal.
Entre os movimentos anti-racistas surgidos no Brasil no final da década de
oitentaeiníciodadécadadenoventadoséculopassado,háquesedestacaro
movimentopelareparaçãoàsvítimasdaescravidão,lançadoemSãoPauloem
novembrode993,queobjetivava,segundod’Adesky(200:56),aprofundar
a reflexão sobre a impunidade de autores de atos atentatórios aos direitos dos
negros no Brasil, especialmente a impunidade do Estado e seus agentes diretos
e indiretos.
Essemovimentoexigiuaadoçãodepolíticascompensatóriasatítulode
reparação, bem como a indenização no valor de cento e dois mil dólares a ser
paga pelo Estado brasileiro a cada um dos descendentes de africanos escravizados
no Brasil.
14
Esse movimento do início da década de 90 é de grande relevância na
construçãodahipótesequeobjetivacaracterizaraadoçãodepolíticasdeações
afirmativas como a espécie de reparação mais adequada aos fins que se propõe,
qual seja, contribuir para a instituição de uma sociedade multicultural, em que
sereconheçaaidentidade,aculturaeosvaloresdebrancos,negros,índiose
outros grupos étnicos, sem qualquer espécie de hierarquização.
14 À época, o Deputado Federal Paulo Paim (PT/RS) apresentou projeto de lei que continha essa reivindicação
eobjetivavaatribuir,atítulodereparação,centoedoismilreaisparacadadescendentedeescravosno
Brasil.Trata-se do Projeto de Lei nª 1.239, de 1995.
94
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
É interessante perceber que a população brasileira, como um todo, ainda é
arredia à essa idéia defendida da necessidade de o Estado brasileiro reparar os
danoscausadosàpopulaçãonegra.Noentanto,essaresistênciasedápelofato
de se atrelar a idéia de reparação à indenização em dinheiro.
15
A Declaração de Durban (ONU, 2001:19-20) reafirma a importância da
adoção de ações afirmativas como estratégia para lograr obter uma igualdade
plena e efetiva nas sociedades e de modo a integrar os segmentos populacionais
discriminados:
107. destacamos a necessidade de desenhar, promover e aplicar no plano
nacional, regional e internacional estratégias, programas e políticas,
assim como legislação adequada, que pode incluir medidas especiais
e positivas, para promover um desenvolvimento social eqüitativo e a
realização dos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais
de todas as vítimas do racismo, da discriminação racial, da xenofobia
e das formas conexas de intolerância, dando-lhes, particularmente, um
acessomaisefetivoàsinstituiçõespolíticas,judiciaiseadministrativas,
assim como a necessidade de incrementar o acesso efetivo à justiça
edegarantirque osbenefíciosdodesenvolvimento, daciênciaeda
tecnologia contribuam efetivamente para melhorar a qualidade de vida
de todos sem discriminação;
108. reconhecemos a necessidade de adotar medidas afirmativas ou
medidas especiais em favor das timas do racismo, da discriminação
racial, da xenofobia e das formas conexas de intolerância para promover
sua plena integração na sociedade. Essas medidas de ação efetiva que
hão de incluir medidas sociais, devem estar destinadas a corrigir as
condições que minimizam a fruição dos direitos e a introduzir medidas
especiais para permitir a igual participação de todos os grupos raciais
eculturais,linísticosereligiososemtodosossetoresdasociedade
5D’Adesky(200:8-83)inseriunosquestionáriosquefornecerambaseempíricaàsuatesededoutoramento,
umaquestãosobreapertinênciadaexigênciadereparaçãodasperdasadvindasdaescravidão,pleiteadapor
certos grupos do Movimento Negro. A questão foi formulada da seguinte forma: “os negros devem exigir
do governo brasileiro reparação em dinheiro para compensar os sofrimentos de seus antepassados durante
a escravidão?” As respostas variaram segundo a cor dos entrevistados. Para os brancos entrevistados: 24,7%
concordam totalmente; 3,1% concordam em parte, 2,6% discordam em parte; 30,1% discordam totalmente;
32,%nãotêmopiniãoformadasobreoassuntoe3,5%nãoresponderam.Paraosnegrosentrevistados:
22% concordam totalmente; 15,3% concordam em parte; 17,4% discordam em parte; 41,8% discordam
totalmentee3,5%nãotêmopiniãoformada.D’Adeskyconcluiuqueamaioriadosentrevistadosrecusava
reivindicaçõesconsideradasexorbitantescomoaexigênciadopagamentodeumaindenizaçãomonetária
emfunçãodeprejuízospassados,comreceiodequeissoservissecomopretextoparaorecrudescimento
deconflitosétnico-raciaisexplícitos.
95
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
e para situá-los em de igualdade. Entre essas medidas deveriam
figurar medidas especiais para lograr uma representação apropriada
nas instituõesdeensino,dehabitação, nospartidospolíticos,nos
parlamentos, no mercado de trabalho, em particular nos órgãos judiciais,
napolícia,noexércitoeemoutrosserviçoscivis,oqueemalgunscasos
pode exigir reformas eleitorais, reformas agrárias, e campanhas em prol
da participão eqüitativa (tradução e grifo nossos).
A adoção de ações afirmativas por parte do Estado como forma de reparação
dos danos que persistem desde a escravidão e ainda hoje são constatáveis tem
a vantagem adicional de contribuir para a conformação de uma sociedade
multicultural e pluriétnica.
Nomulticulturalismoobjetiva-seaconvivênciaentrediferentes.Diferentes
“ras”, etnias, valores, costumes, bitos, religes e culturas em que se
tentaextrairapartirdodiálogodasdiferençaspontosdeconvergênciaque
impulsionem o desenvolvimento das nações.
Nesse sentido, importa atentar para o alerta de Clodoaldo Cardoso
(2003:164):
A solidariedade multicultural libertadora o significa uma harmonia
sólida entre as culturas, mas contém antagonismos e incertezas. Ela está
mais orientada em potencializar pontos de interação do que harmonizar
interesses conflitantes.
Assim, se a reparação dos danos gerados pelas práticas racistas e
discriminatórias impostas ao negro com a participação do Estado brasileiro
ficasse limitada ao pagamento de indenizações em dinheiro, correr-se-ia o risco
de manter o germe do preconceito e do racismo em nossa sociedade. Nada seria
feitonosentidoderomperasbarreirasqueseparamosnegrosdoexercíciode
direitos sociais básicos, do acesso ao mercado de trabalho e à renda.
A adoção de ações afirmativas pelo Estado, além de reparar danos atuais e
prestarcontascomahistória,promoveainclusão,aintegraçãoeoconvíviode
diferentes; é, por sua vez, um claro compromisso do Estado com a conformação
de uma sociedade diversificada e plural.
A Declaração de Durban, por seu turno, reconhece que a diversidade cultural
é um elemento valioso para o desenvolvimento e bem-estar da humanidade em
geral, enriquece a sociedade, e que a preservação e o fomento da tolerância, do
pluralismo e do respeito à diversidade podem produzir sociedades mais abertas
(ONU, 2001:3 e 6).
96
Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de ações afirmativas pelo Estado brasileiro como
reparação dos danos atuais sofridos pela população negra
Percebe-se que a reparação fundada na adoção de ações afirmativas é a mais
adequada e razoável, levando-se em consideração o tipo de dano que se pretende
compensar–asegregação,opreconceitoracialeaprivaçãodedireitos.
16
concluSão
Focou-se, neste artigo, a necessidade de responsabilizão objetiva do ator que
diretamente contribuiu para a conformação da sociedade racialmente desigual e
excludente identificada nos estudos sociológicos recentes: o Estado brasileiro.
A positivação das ações afirmativas no Brasil, assunto que vem sendo
objetodecalorososdebatesnoParlamento,naacademia,nosmeiosjurídicos,
e na própria sociedade, fará com que o Estado brasileiro inicie o processo de
reparaçãoedêosprimeirospassosqueestãoaoseualcanceparaaconsolidação
de uma sociedade multicultural e verdadeiramente democrática.
Sustenta-se que a valorização da identidade individual e coletiva dos negros
noBrasilsomenteserápossívelapartirdaadoçãodepolíticaspúblicaseações
privadasespecíficasediferenciadasdemodoarepararosdanosquelhesforam
secularmente causados.
Segundod’Adesky(200:236),
O reconhecimento da pluralidade de culturas no seio das sociedades e a
instauração de medidas concretas para promover a participação social e
econômicadosgruposculturaisminoritáriosoudascomunidadesétnicas
depreciadas, como demandas do multiculturalismo democrático, visam
exatamente que a diversidade étnica e cultural da população seja respeitada e
garantida, sem implicar tentativas de depreciar ou eliminar esses grupos. Em
termosdepessoahumana,omulticulturalismopossibilitaqueoindivíduo
venha a se identificar segundos seus próprios critérios, de forma que possa ser
reconhecido pelo que é, sem ser obrigado a se fazer passar pelo que não é.
16 Essa participação dos afro-brasileiros e de outros grupos discriminados deve ser promovida, consoante o
art. 4ª do Substitutivo do Estatuto da Igualdade Racial, mediante as seguintes ações: inclusão da dimensão
racialnaspolíticaspúblicas;adoçãodemedidas,programasepolíticasdeaçãoafirmativa;modificação
das estruturas institucionais do Estado para enfrentar e superar as desigualdades raciais decorrentes de
preconceito e discriminação racial; ajuste da legislação de combate à discriminação; eliminação de obstáculos
históricos e sócio-culturais que impedem a representação da diversidade racial nas esferas pública e privada;
estímuloàsiniciativasdasociedadecivildirecionadasàpromoçãodaigualdaderacialmedianteaconcessão
de incentivos e prioridade de acesso aos recursos e contratos públicos; implementação de programas de
ação afirmativa para enfrentar as desigualdades raciais na área de educação, cultura, esporte, lazer, saúde,
trabalho, financiamento público e contratação de obras públicas (BRASIL, 2002).
97
Ronaldo Jorge A. Vieira Júnior
Essaspolíticaspúblicaseprivadasespecíficasdevem sertemporáriasaté
que sejam eliminadas as distorções na apropriação de bens e serviços, na oferta
de oportunidades e reconhecimento de direitos e devem ser implementadas
simultaneamenteapolíticaseconômicasesociaisestruturaiseuniversalistasque
objetivem a ampliação da oferta de emprego, o aumento da renda da população
e a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação.
Mais do que o simples pagamento de uma indenização pecuniária que
direciona erroneamente o instituto da responsabilidade civil do Estado para
umaperspectivacivilista,aadoçãocompulsóriadepolíticaspúblicasespecíficas
embenefíciodosnegrostemanítidavantagemdeproporcionarcondiçõespara
o desmonte, mediante processos educativos e de comunicação, do estigma de
inferioridade que carrega a população negra no Brasil e, dessa forma, contribuir
efetivamente para a instituição de uma sociedade mais igualitária, multicultural
edemocrática,emquesejareconhecidaaexistênciadediversasculturaseaelas
seja conferido o mesmo grau de importância.
A idéia de respeito às diferenças proposta neste artigo é sintetizada por
Boaventura de Souza Santos (2003:458) quando propõe a reconceitualização dos
direitoshumanoscomomulticulturaisenãouniversaiscomoatéhojetêmsido
compreendidos, pois, dessa forma, tendem a expressar unicamente os valores
ocidentaisdominantes.Nessaperspectivacontra-hegemônicaproposta,oautor
alerta para a necessidade da preservação das diferenças e para a importância de
tentar eliminar as hierarquizações culturais feitas com base em critérios raciais
e sexuais.
Para Santos (ibidem), o multiculturalismo progressista será obtido a partir
de um diálogo intercultural em que sejam respeitadas as diferenças e aceito o
imperativo transcultural que afirma que “temos o direito a ser iguais quando
a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade
nos descaracteriza”.
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EM DEFESA DEÕES
AFIRMATIVAS PARA A INCLUSÃO
DOS NEGROS NO ENSINO
PÚBLICO SUPERIOR BRASILEIRO
Parte II
103
rA ç A e ed u cA çã o: oS l i mi te S dA S p ol ít icA S
univerSAliStAS
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
introdução
AassertivadequeoBrasiléumpsdesigualéhojebastanteconsensual,
compartilhada inclusive pelo discurso oficial governamental. De fato, as
informações gerais sobre a questão social brasileira traçam um quadro
inelutável. Sob os mais diversos pontos de vista, a iniqüidade desponta
comoumadasprincipaiscaracterísticasdessepaís-continente.Ospobres
representam hoje algo em torno de 1/3 da população, o que significa um
contingentedaordemde55milhõesdepessoas.Os0%maisricosdetêm
cerca de 46% da renda nacional. Com um PIB per capta da ordem de US$
3,2 mil, cerca de 15% da população se coloca abaixo da chamada “linha
daindigência.
Entretanto, a reprodução da pobreza e da miséria, no caso brasileiro,
é um processo amplo e complexo. Não é fruto de guerras, catástrofes
climáticas prolongadas ou qualquer outro tipo de evento de largo espectro.
Trata-se,efetivamente,deumfemenohistóricoesocialqueexpressa,em
última alise, uma regulão perversa; uma sociedade que produz pobres
nosperíodosdecriseeconômica,mastammemfasesdecrescimento.
Aausênciadeumaâncorainclusiva,ao-resoluçãodealgumasquestões
distributivasbasilarescomooacessoàterraeaotrabalhoparagrandes
parcelasdaforçadetrabalho(TheodoroeDelgado,2003)–eappriaação
do Estado, em um sentido geral, contribuem para o cenário descrito.
Mas essa reprodução da pobreza e da miséria é, em sua complexidade,
permeada por fatores diversos. A desigualdade tem um forte componente
regional, consubstanciado na concentração da riqueza na região Sudeste, em
detrimento principalmente do Nordeste. Tem também um forte viés local,
sobretudo nas grandes áreas urbanas onde proliferam as favelas, habitat de
104
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
milhõesdepessoas.Háaindaocomponentedegêneroquefazcomqueuma
parcela significativa das mulheres,sobretudoaquelas que chefiam famílias,
permaneçam nos estratos de mais baixa renda.
Nesse contexto, outro importante aspecto manifesto da desigualdade no
Brasil diz respeito aos diferenciais em função da origem étnica. A reprodução da
desigualdade,pautadaemgrandemedidapelaexistênciadadiscriminaçãoracial,
constituiumdosgrandesdesafiosaseremenfrentadospelaspolíticaspúblicas.
Apolíticasocialdecunhouniversalista,basedaaçãodoEstado,reformatada
a partir da Constituição de 1988, parece carecer de ações complementares que
dêemcontadasespecificidadesdaquestão.
Esse será o tema do presente artigo. O enfrentamento da questão racial no
Brasileseusdesdobramentos–os aspectosassociadosàdiscriminação,aos
diferenciaisderendaedeoportunidades–eoslimitesdaspolíticasuniversalistas.
Paratanto,seráenfocadoocasodapolíticaeducacional,reconhecidamenteum
dos principais instrumentos de equalização de oportunidades e, portanto, de
combate à desigualdade social. Compõem o artigo quatro partes além desta
introdução. Na primeira, é apresentado um quadro geral com dados mais
recentes acerca dos diferenciais de renda e de educação para negros e brancos
no Brasil. Na parte seguinte, é feita uma discussão sobre os diferentes tipos
de discriminação e das formas de manifestação do racismo. Na terceira parte,
expõe-seostermosdodebateatualacercadaspolíticasnecessáriasaumaefetiva
promoção da igualdade racial no âmbito educacional. Finalmente, à guisa de
conclusão, são apresentadas, de forma resumida, as principais considerações
arroladas.
AS deSiguAldAdeS de rendA e de educAção pArA negroS e
brAncoS
Nos últimos anos, os dados e as informações produzidos pelo IBGE
e pelo IPEA expressam com clareza a perversidade da chamada questão
racial no Brasil. Os negros aqui considerados como o somatório
dos pretos e pardos mantêm-se em geral em uma condição social
significativamente pior que a da população branca, sejam quais forem
os indicadores utilizados. Além dos expressivos diferenciais no que diz
respeito à renda, os negros são sempre os mais penalizados em termos
do acesso aos bens e serviços públicos. Veja-se o que mostram as análises
105
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
realizadas a partir dos levantamentos realizados pelo IBGE, para o ano
de 2001.
1
Quanto à renda, observa-se que para aquele ano, enquanto a média da
renda domiciliar per capita da população branca foi de R$ 481,60, a média
per capita da população negra era de R$ 205,40, isto é, os afrodescendentes
ganharam, em média, menos da metade do que os brancos. Ademais, os negros
são sobre-representados nos extratos mais pobres da população, independente do
recorte de pobreza utilizado. Assim, por exemplo, dos 24 milhões de brasileiros
considerados indigentes, ou seja, aqueles que se localizam abaixo da “linha da
indigência”,quase70%,ou6,5milhões,eramnegros.
Detentores das piores posões no mercado de trabalho, com rendimentos
inferiores à metade daqueles percebidos pelos trabalhadores brancos, maiores taxas
de desemprego e, quando ocupados, mais afetos ao trabalho informal, os negros
apresentamaindaosmaisbaixosíndicesdecoberturadosistemaprevidencrio
eosmaioresíndicesdetrabalho infantil.Paralelamente,apopulaçãonegraé
sobre-representada na populão favelada, e sub-representada nos indicadores de
cobertura de serviços públicos. Assim, o percentual da populão negra favelada
é o dobro do verificado para a populão branca (respectivamente 6,1% e 3,0%).
Aomesmotempo,osindicadoresdeproporçãodedomicílios,segundocorera
dochefedafamília,emdiversosservoscomoabastecimentodeágua,domicílio
com esgotamento sanirio ou com saneamento básico adequado, com acesso à
energia elétrica ou à serviço de coleta de lixo, mostram invariavelmente, uma menor
cobertura para a populão negra.
Mais pobres, mais propensos às situações de desemprego e informalidade,
habitando áreas carentes de infra-estrutura. Todos os indicadores mostram a
precária condição social da população negra brasileira. Para muitos analistas,
a reversão desse quadro de desigualdades passaria pela ação educacional na
medida em que políticaseducacionais de cunhouniversalista propiciariam
uma mobilidade social ascendente para os grupos mais desfavorecidos da
população,entreelesosnegros.Melhoresníveisdeeducaçãoresultariamem
melhores condições de disputa dos postos no mercado de trabalho, permitindo
desta forma, acesso à maior remuneração. Essa âncora universalista para as
políticaspúblicas,bastanteenfatizadapelaConstituiçãode988,deveriaser,
segundo alguns estudiosos, o elemento principal de uma ação de redução das
1 Os dados citados nesta seção podem ser encontrados no banco de dados “Desigualdade Racial: Indicadores
Sócio-econômicos.Brasil–99-200”,doIPEA.
106
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
desigualdades sociais. De fato, a equalização via universalização do acesso ao
sistema educacional é um dos pressupostos republicanos da generalização de
uma cidadania plena e atuante.
Contudo, no caso brasileiro, a despeito dos esfoos de montagem
de um sistema educacional universalizado para o ensino fundamental,
consolidado nos anos 90, os diferenciais anteriormente apresentados também
se reproduzem na área educacional. O analfabetismo atingia, em 2001,
18,2% da população negra com mais de 15 anos contra 7,7% no caso dos
brancos.Poroutrolado,osbrancostêmmelhoresíndicesdeescolaridade.
Tomando-se a populão de 25 anos e mais, constata-se que o segmento
branco tem em dia dois anos a mais de estudos do que os negros (em
2001, 6,9 anos contra 4,7 anos, respectivamente). Essa informação é ainda
mais alarmante quando se toma uma rie histórica apresentada pelo IPEA,
e que remonta os últimos 100 anos, como nos mostra o gráfico 1 (SOARES,
et alii, apud JACCOUD; BEGHIN, 2002:32). NelE se percebe que, não
obstante o aumento generalizado da dia de anos de estudo, o diferencial
entre negros e brancos tem permanecido em torno dos mesmos dois anos
ao longo de todo o culo XX.
GRÁFICO 1
Média de Anos de Estudo segundo Cor ou Raça e Coorte de
Nascimento para Nascidos entre 1900 e 1965,
Fonte: IBGE. PNAD, 1996. Elaboração DISOC/IPEA a partir dos microdados.
107
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
Com efeito, o grosso da população negra com acesso ao sistema escolar
se concentra no ensino fundamental. Dados mais recentes do IBGE (2003)
mostram que, tomando-se o grupo de 15 a 17 anos, enquanto 60% dos estudantes
brancos nesta faixa etária cursavam o ensino médio, no caso dos negros esse
percentual contemplava apenas 32% do total dos estudantes desta raça/cor. No
que se refere à educação superior, a situação é ainda mais restritiva. Na faixa
dos 20 aos 24 anos, 53,6% dos estudantes brancos estavam na universidade,
enquanto que para os negros, esse percentual era de até 15,8%.
Esses últimos dados engendram um outro aspecto importante que diz
respeitoàdistorçãoidade-série,índicequemedeadistânciaentreasituaçãoreal
do estudante, em termos da série cursada, e a situação ideal, tendo em vista sua
idade. Neste sentido, em 2001, 44% dos estudantes negros na faixa dos 20 a 24
anos cursavam o ensino médio e 34,2%, o ensino fundamental. Os negros com
acessoaosistemaeducacionalseconcentramnosextratosinferiores–sobretudo
ensinofundamental–comaltosíndicesdedefasagemidade-série.
A análise da distorção idade-série é particularmente importante de ser
observada no que se refere ao quadro atual da situação escolar das crianças.
ries históricas permitem observar que o acesso ao ensino fundamental
melhorou para os dois grupos, brancos e negros; o acesso, hoje, encontra-se
praticamente universalizado.
2
Contudo, tal quadro significa tão somente uma
melhora relativa no que diz respeito à situação escolar de negros e brancos. A
distância entre negros e brancos no indicador distorção idade-série no ensino
fundamental manteve-se praticamente inalterada durante toda a década de 1990,
e indicava, no ano de 2001, uma diferença de 20 pontos percentuais. Ou seja,
enquanto 25% dos estudantes brancos apresentavam alguma defasagem entre
sua idade e a série em que deveriam estar cursando, para os estudantes negros
esteíndiceerade45%.Estenúmeronãosódemonstra,apartirdedadosdo
interior do sistema educacional, a manutenção das enormes desigualdades que
marcam os grupos negros e brancos, como indica, para o futuro, a manutenção
de indicadores elevados de desigualdade educacional para a população adulta.
Issoporquenãoédifícilimaginarquetaisíndicesdedistorçãoidade-sériese
refletirão, no futuro, em maior número de crianças e jovens negros abandonando
a escola, reproduzindo as trajetórias de desigualdade de anos de estudo entre a
populaçãoadultaatéhojeobservadosnopaís.
2Vejam-sedadosdeeducaçãonobancodedados“DesigualdadeRacial:IndicadoresSócio-econômicos.
Brasil- 1991-2001”, IPEA.
108
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
Aanálisedosdadosdaescolarizaçãoquida
3
e da distoão idade-rie
para o ensino médio reforçam o quadro negativo acima descrito. Em 1992,
a taxa de escolarização líquida para o ensino médio era de 27%para a
população branca de 15 a 17 anos, e de 9% da população negra da mesma
idade. Em 2001, ambos os grupos melhoraram sua taxa de escolarização,
que passou, no caso dos brancos, para 51%, e, no caso dos negros, para
25%. Contudo, observa-se que, a despeito da melhoria generalizada dos
indicadores, a distância entre os dois grupos aumentou. Ela era de 18% no
anode992,eelevou-separa26%noanode200.Nestemesmoperíodo,as
diferenças entre os dois grupos quanto à distoão idade-rie mantiveram-se
praticamente inalteradas, atingindo, em 2001, 41% dos estudantes brancos
do ensino médio e 60% dos negros.
Uma análise superficial explicaria esse quadro de desigualdades na
educação pelos diferenciais sociais e de rendimentos entre negros e brancos
no Brasil. Ou seja, poder-se-ia pensar que os alunos negros são oriundos
defamíliasdemenorrendaedemenorníveleducacionalqueosbrancos,
e, por isso, encontrariam maiores dificuldades em sua trajeria escolar.
Entretanto,trabalhosrecentesderrubamestatese.Exercíciosdesenvolvidos
pelo IPEA, por Soares et alli,simulandoqualseriaoníveleducacional
dosnegrosseestesfossemorigináriosdefamíliascujospaistivessemos
mesmos níveis de escolaridade dos brancos, demonstram que a maior
parte do diferencial entre média de anos de estudo observada entre os
doisgruposnãopodeseratribuidaàdiferençasnoníveleducacionaldas
famíliascomosepodevernográfico2(SOARES,
et alli, apud JACCOUD;
BEGHIN, 2002:34).
3Escolarizaçãolíquidaéaparceladapopulaçãonafaixaetáriaconsideradaadequadaaonível/modalidade
de ensino a que se refere.
109
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
GRÁFICO 2
Média de Anos de Estudo segundo cor ou raça e coorte de
nascimento para nascidos entre 1900 e 1965 e anos de estudo de
negros segundo simulação de escolaridade dos pais
Fonte: IBGE. PNAD, 1996. Elaboração DISOC/IPEA a partir dos microdados.
Na mesma direção estão as conclusões do trabalho de Albenarez et alli
(2002), que analisam os dados de desempenho educacional dos alunos de
8
a
rie do ensino fundamental a partir dos dados do Sistema de Avalião
da Educão sica (SAEB). Observando as diferenças de desempenho entre
alunos brancos e negros, os autores deste estudo também concluem que
osalunosnegrosmdesempenhoinferioraodosalunosbrancos,mesmo
apóscontrole pelo nívelsócio-econômico.Os alunos negrosoteriam
apenas menos chances de estar na escola, “mas, além disso, os que chegam
àescolaelogrampermanecer,parecemterumdesempenhopiordoque
seus colegas brancos, mesmo controlando pelo nível sócio-econômico”
(ALBENAREZ, et alii, 2002:15).
Taissimulaçõesdemonstramqueascausasdasdesigualdades–passadase
presentes–entreastrajetóriasescolareseosindicadoreseducacionaisdebrancos
enegrosnãopodemserexplicadassomentepordiferençassócio-econômicasdas
famílias,mastambémdevemserprocuradasnoâmbitodosistemaescolar.De
fato, os dados indicam que parte significativa das diferenças encontradas neste
campopodemseratribuídasaalgumaformadediscriminaçãooudetratamento
110
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
da temática racial no interior das escolas que impactam negativamente o
desempenho dos alunos negros.
O racismo e a discriminação não determinam apenas as desigualdades
educacionais,mastambémasprópriasdesigualdadesderendaentreasfamílias
brancas e negras. Os indicadores de renda recém-levantados pelo IBGE (2003),
que comparam a renda da população branca e negra ocupada com mesmos
anos de estudo, mostram que, em qualquer dos grupos, negros auferem um
rendimento menor do que os brancos, e que quanto mais aumenta o número de
anos de estudo, mais aumenta a diferença de renda em detrimento dos negros.
Comparando o rendimento-hora de brancos e negros em 2001, para o grupo que
tem até 4 anos de estudo, o rendimento dos brancos era de R$ 2,3, enquanto
que o dos negros era de R$ 1,5. Para o grupo que tem de 5 a 8 anos de estudo,
os rendimentos dos brancos e dos negros eram, respectivamente, de R$ 2,9 e de
R$ 2,1. Para aqueles que tinham de 9 a 11 anos de estudo, o rendimento-hora
de brancos e negros era de R$ 4,4 e R$ 3,1 respectivamente. E, finalmente, no
grupo de mais de 12 anos de estudo, os brancos auferiam renda-hora de R$
11,8, contra R$ 8,3 dos negros do mesmo grupo.
Assim, mais uma vez, pode-se observar a impropriedade da tese segundo
aqualasdesigualdaderaciaisnoBrasilseriamprovenientesdeumcírculo
perverso existente entre a baixa renda e o menor vel educacional das
famíliasnegras.Aocontrio,osdadoseestudosrecentessobreestestemas
mostramquenemabaixarendadosnegrosexplicaosexpressivosíndices
de desigualdade educacional observados entre negros e brancos, nem as
desigualdades educacionais permitem explicar as gritantes disparidades
de renda entre os dois grupos. E, como os baixos resultados na esfera
educacional limitam o espectro de oportunidades (o que impacta por sua
vez nos baixos desempenhos educacionais
4
), a população negra é fortemente
penalizada pela incapacidade da escola em garantir aos grupos racialmente
discriminados uma efetiva igualdade de oportunidades.
Trata-se assim de uma tradia em dois atos. Primeiro, os negros são
discriminados nas escolas, nunca conseguindo apresentar indicadores que se
aproximam dos dos brancos. Segundo, os negros são discriminados no mercado
de trabalho, onde recebem menos que os brancos mesmo tendo escolaridade
idênticaàdeles.Apercepçãodaexistênciadediscriminaçãonaescolaeno
mercado de trabalho delineia algo maior e mais complexo: o racismo brasileiro.
4 Como bem mostram Albenarez et alli (2002).
111
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
Esse racismo, cuja presença ainda é tantas vezes negada, afronta diretamente o
mito da democracia racial brasileira. Racismo perene que, ao mesmo tempo em
que desconstrói o mito, serve de mote para a reconstrução de uma questão racial,
recolocando o problema como área de ação do Estado. E, nessa perspectiva,
sua especificidade engendra novos matizes para esta ação, pondo mesmo em
questãooslimitesdaspolíticasuniversais.
deSiguAldAdeS rAciAiS, rAciSmo e diScriminAção
Os dados anteriormente apresentados não deixam dúvidas sobre a gravidade
daquestãoracialtalcomoelaseconformahojenopaís.Chamamaatenção
não apenas porque as disparidades entre negros e brancos são gritantes em
praticamentetodososindicadoressócio-econômicoslevantados.Comefeito,
duas outras importantes constatações emergem. De um lado, o fato de que, na
maiorpartedestesindicadores,asdesigualdadestêm-semostradoconstantesao
longodotempoe,emalgunscasos,vêminclusiveseagravando.Ouseja,quando
analisadosemsérieshistóricas,osdadoslevantadosnãomostramtendências
deconvergênciaentrebrancosenegrosemnenhumaspectorelevante.Vê-se,
assim,queosindicadoressócio-econômicosnãotêmapresentadoevoluções
que permitam antever, a curto ou médio prazos, reduções expressivas das
desigualdades entre os grupos raciais. De outro lado, reafirma-se a tese de que
as desigualdades raciais no Brasil não são fruto apenas da situação de pobreza
à qual historicamente estão submetidos os afro-descendentes, mas sobretudo
daexistênciaativadoracismoedadiscriminaçãoracialemtodososespaços
da vida social.
Desta forma, refletir sobre as medidas a serem tomadas pelo poder público
para enfrentar tal quadro de iniidades implica analisar o processo de
reproduçãodoracismoedadiscriminaçãoracial,fenômenosque explicam
tantoaexistênciadosatuaisníveisdedesigualdadeentrebrancosenegrosno
Brasil como, também, sua manutenção e reprodução ao longo do tempo.
A literatura recente tem ressaltado a diferença entre o preconceito racial e
adiscriminação.Enquantoopreconceitoracial,emesmooracismo,têmsido
classificadoscomofenômenosdeordemsubjetiva,expressando-sepormeio
de valores, idéias e sentimentos, a discriminação racial tem sido entendida
comoaçãodeexclusão,restriçãooupreferênciaqueimpedeotratamentoou
112
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
acesso igualitário a direitos e oportunidades em função da cor.
5
E a própria
discriminação, enquanto ato de distinção e exclusão, expressa-se por intermédio
dediferentesformas,navidasocial.Aessesdiferentesfenômenos,cabeinterpor
ações públicas igualmente distintas. Como já alertou Silva Jr.,
tratar como sinônimos os termos preconceito e discriminação pode
implicar não apenas uma perigosa e totalitária devassa na esfera da liberdade
individual,comotambém–oqueémaisfreqüenteeperverso–naomissão
estatal pura e simples face da discriminação, motivada, entre outras razões,
pela indefinição dos limites, do papel e dos instrumentos estatais destinados
ao enfrentamento da desigualdade e à promoção da igualdade (2000:373).
Avançando na análise dos mecanismo de exclusão social que atingem
os negros, alguns autores têm insistido na diferenciação das formas de
discriminação, destacando a discriminação direta e a discriminação indireta.
6
Tem sido classificado como discriminação direta todo ato expresso de restrição
ou exclusão baseado na cor. É a chamada prática do racismo em sua forma
maisexplícita.Jáadiscriminaçãoindireta (algumas vezes também chamada de
discriminaçãoinvisíveloudiscriminaçãoinstitucional)temsidoidentificada
como aquela cuja desigualdade de tratamento não se realiza através de
manifestações expressas de racismo, mas sim de práticas aparentemente neutras.
Esta forma dissimulada de discriminação é mais dificil de ser identificada e
combatida, pois, como afirmou Barbosa Gomes, revestidas de aspectos culturais
e psicológicos, tais práticas ingressam no imaginário coletivo “ora tornando-se
banaise,portanto,indignasdeatençãosalvoporaquelesquedelasãovítimas,
ora se dissimulando através de procedimentos corriqueiros, aparentemente
protegidos pelo Direito” (2001: 20).
Ora, se a criminalização
7
destaca-se como importante e insubstitvel
instrumento de combate aos atos de discriminação, ela não pode, entretanto,
ser o único meio de enfrentamento da prática do racismo. A discriminação
indireta dificilmente é pasvel de punição legal. Dissimulada através de
mecanismos aparentemente neutros, como, por exemplo, processos de seleção
de mão-de-obra onde diversos requisitos de qualificação são demandados, a
discriminaçãoindiretasósetornasocialmentevisívelpormeiodeindicadores
de desigualdade que apontam o desfavorecimento de um grupo étnico em
5 Ver Silva Jr. (2000 e 2001), Gomes (2001), Santos (2001) e Jaccoud e Beghin (2002).
6 Ver, por exemplo, Gomes (2001).
7 A criminalização da prática de racismo foi consagrada pela Constituição de 1988 e regulamentada por
importantelegislação:lein°7.76de898(LeiCaó),lei9.029de995,lei9.455de997elei9.459de
1997.
113
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
relação a outro. O enfrentamento da discriminação indireta depende assim, de
umlado,deaçõesespecíficasvoltadasà“neutralizaçãodoefeitodadesigualdade
racial”,aschamadasaçõesafirmativase,deoutro,depolíticasdecombateaos
preconceitos, estereótipos e ideologias que legitimam, sustentam e alimentam
as práticas racistas.
As ações de combate ao preconceito e aos estereótipos de cunho racista
devemserevestirdeformasespecíficas:õesvalorizativasepersuasivas
(SILVA JR., 2000:372). Essas ações têm como objetivo combater os
estereótipos depreciativos, valorizar as diversas etnias em bases de igualdade
e valorizar a pluralidade étnica da sociedade brasileira. São ações que devem
ser desenvolvidas especialmente dentro do sistema educacional e junto
aosmeiosdecomunicão.Àdiferençadaspolíticasafirmativas,asações
valorizativasodevemterumatemporalidadeespeficaeotratamde
dispensar um tratamento diferenciado a um ou a outro grupo. Ao contrário,
elas buscam combater o tratamento diferenciado e depreciativo que vem
sendo dado, no caso brasileiro, ao negro, nas diversas esferas de construção
e reprodução da imagem nacional.
As chamadas ões afirmativas, por seu lado, engendram um conjunto
diferenciadodemedidasquetêmporobjetivoigualaroacessodegrupos
sociaisdiscriminadosacertasoportunidadessociais.Aspoticasafirmativas
visam a estimular a participão destes grupos em determinados espaços
sociais nos quais eso sub-representados. Podem ser elencadas comoões
afirmativas o estabelecimento de cotas em concursos públicos, a fixação
de cronogramas e metas para ampliação da representão destes grupos em
instituões ou empresas ou, ainda, programas diversificados de qualificão
dequeoexemploasexperiênciasdeconcessãodebolsasdeestudopara
afrodescendentes.
Dessa forma, duas constatações se impõem. Observa-se, de um lado, que
õesafirmativasnãosereduzemapolíticasdecotase,deoutro,queelas
oesgotamoconjuntodepolíticasblicasnecessáriasàpromoçãoda
igualdaderacial.Defato,asaçõesafirmativasopolíticasamplasquese
inserem no campo da promoção da igualdade de oportunidades, facilitando
o acesso dos grupos discriminados a certos espos da vida social. Tais
políticaspodemserentendidascomocomplementaresàspolíticasuniversais,
quando estas se mostram insuficientes para garantir, em uma dada sociedade,
a igualdade de oportunidade aos diferentes grupos étnicos. Ou seja, o
ões que devem ser promovidas em sociedades em que, a despeito do
114
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
desenvolvimentodepoticasuniversais,adiscriminaçãoracial,diretaou
indireta,atuacomoobsculoaqueosdiferentesindiduos,independente
de sua cor, acessem as mesmas oportunidades. Contudo, cabe ao Estado mais
quepromoveroacesso:eledevedesenvolverpoticasamplasdecombate
à discriminão e ao racismo.
educAção: um debAte Sobre A promoção dA iguAldAde rAciAl
A situação do meio escolar brasileiro é também permeada pelo racismo
e pela discriminação racial, como revelam o apenas as análises dos
dadosmasinúmerostrabalhosdepesquisaquemlevantadoasituão
de desconforto que vivem os estudantes negros em suas escolas
8
. O ensino
tem estado dissociado de sua realidade e de sua história. Livros e professores
raramentedialogamcomaexperiênciadestesalunosnoquedizrespeitoàsua
vivênciacotidiana,socialeracial.Osestudantesnãoencontramnomaterial
didático e, em especial, nos livros de hisria, um retrato consistente de sua
origem e da hisria de seus ancestrais. As crianças negras são confrontadas
a versões parciais, freqüentemente negativas, quando o claramente racistas,
tanto no que diz respeito aos povos que foram trazidos como escravos,
sua cultura e história, como no que se refere à sua luta pela liberdade, por
melhorescondõesdevidaedetrabalho,pelaconstruçãodopsepela
afirmação da República. As imagens de negros, quando presentes nos livros e
material ditico, estão fortemente marcadas por preconceitos e estereótipos
inferiorizantes. Atitudes racistas e práticas discriminatórias se reproduzem
o somente fora, mas também dentro da escola.o é surpreendente que
estecontextodraticoexerçaforteinfluênciasobreaauto-estimaesobre
oesmulodosestudantesnegrosemfreqüentaraescola.
Para enfrentar um quadro tão duro quanto complexo, é necessário que
o Estado além das tradicionais políticas universalistas, ampliando sua
intervenção e buscando implementar as medidas necessárias para garantir o
acessoeapermanênciadascriançasedosjovensnegrosnaescola,emtodosos
níveiseducacionais.Taismedidasimplicariamaadoçãodepolíticasdecombate
aos estereótipos, aos preconceitos e ao racismo, e a promoção de determinadas
políticasdepromoçãodaigualdade.Essanovaorientaçãovisariaaenfrentaro
8 Ver por exemplo Rosemberg (1985), Munanga (2000) e Igreja (2001).
115
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
retrato traçado pelos indicadores de desigualdade racial apresentados na primeira
seção, que apenas confirmam o que o Movimento Negro sempre denunciou
equeaspesquisasespecíficasjáapontavam:queaescola,hoje,emquepesea
universalização do acesso ao ensino fundamental, não tem funcionado como
um espaço de equalização de oportunidades. Ao contrário, como exprimem os
dados referentes a atraso (defasagem idade-série) e à evasão, a escola tem sido
uma das principais instâncias de reprodução da desigualdade racial. Isso não se
deve apenas às condições sociais desfavoráveis dos alunos negros, mas à forma
como tem sido enfrentada a questão racial no ambiente escolar.
Contudo, não são poucos os problemas que se colocam à implementação
depolíticasespecíficasnocampoeducacionalparacombaterasdesigualdades
raciais e seus mecanismos de reprodução, seja no campo da discriminação seja
no campo das imagens e valores. Uma primeira dificuldade se refere ao próprio
reconhecimentodanecessidadedestaspolíticas.ComoafirmaFúlviaRosemberg,
o pensamento educacional brasileiro ainda está marcadamente influenciado por
um enfoque que, reconhecendo “a concentração maciça do alunado negro nas
camadas mais pobres da populão, tende a identificar as dificuldades interpostas
à escolaridade dos negros com os problemas enfrentados pela pobreza, não
considerando a especificidade da origem racial” (2000:134).
Uma segunda dificuldade diz respeito à polarização do debate em torno
daspolíticasdecotaseaocaráteraindaincipientedodebatesobrepolíticas
educacionais integradas e amplas voltadas ao enfrentamento do problema das
desigualdadesraciaisnaeducação.Comoiníciodasprimeirasexperiênciasde
implementação de cotas em universidades, a opinião pública foi mobilizada.
Contudo, as cotas para universidades são apenas uma parte deste debate. De
fato, no ensino fundamental e médio, as discussões em torno da necessidade
de inclusão dos temas das relações raciais e da valorização da diversidade étnica
eculturaldopaísnosprojetospedagógicos,daimplementaçãodemedidasde
promoção da igualdade racial nas escolas, da sensibilização dos professores e
damudançadaspráticasescolares,malcomeçaram,emquepeseaexistênciade
iniciativas exitosas visando a propiciar condições mais favoráveis para garantir
oacessoeapermanênciadosestudantesnegrosnaescola.
9
É o que demonstra
ofatodeaindaem2003,nacapitaldopaís,estudantesdeescolaspúblicas
receberem livros de conteúdos explicitamente racistas, como exemplifica o
9Como,porexemplo,oscursinhospré-vestibularesoudeprojetosdeincentivoedivulgaçãodeexperiência
deinclusãodotema“relaçõesraciais”nasescolas,comoéocasodoprêmio“EducarparaaIgualdade
Racial”,instituídopeloCEERT.
116
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
casodolivroparadidáticodistribuídoemBrasíliaedenunciadopelosenador
Paulo Paim.
10
Umaterceiradificuldaderefere-seaoreconhecimentoaindatímidodeque
asmedidasespecíficasdecombateàsdesigualdadesraciaispodemedevemser
integradasaummodelouniversalistadapolíticaeducacional.Aspolíticasde
combate às desigualdades raciais na educação, como, de resto, nas demais áreas,
partem da constatação de que a postura de neutralidade estatal não tem sido
eficiente para enfrentar o quadro de exclusão social a que estão submetidos os
afrodescendentesnopaís.Ainsuficiênciadagarantialegaldenão-discriminação
e de tratamento formalmente igualitário de todos perante a lei deve assim
demandar, da parte do Estado, ações diferenciadas e complementares, integradas
aoprincípiodauniversalizaçãoeembuscadeumaampliaçãodaigualdadede
tratamento e de oportunidade.
concluSõeS
Emresumo,nãoháquesecontestaranecessidadedepolíticasuniversais
e de seu fortalecimento. Ao contrário, o fortalecimento do ensinoblico,
universal e de qualidade, é um fundamento da cidadania, uma garantia
de um espaço blico, sem o qual não possibilidade de realização de
construção de uma sociedade menos desigual. A reduzida mas efetiva
formaçãodeumaclassedianegranoBrasilfoifrutodaexistênciade
escolas públicas de qualidade, que permitiram a extratos desprivilegiados
da população capacitarem-se para a competição no mercado de trabalho.
Contudo, se a promoção da igualdade racial passa por escolas de qualidade,
elanecessitatammdepoticasespeficas.Se,comofoivisto,aspolíticas
universais parecem insuficientes para garantir a igualdade racial, outros
mecanismosdevemsermobilizadosparagaranti-la:políticasvalorizativas,
õesafirmativasepolíticasderepreso.
11
Aspolíticasvalorizativasvisamapromoveraidentidadepluriétnicada
sociedade brasileira, assim como a valorização da comunidade afro-brasileira,
além de destacar o papel histórico desta comunidade na construção nacional.
0EscolaspúblicasdoDistritoFederaldistribuíramlivroparadidáticoquecontinhailustraçõesondenegros
são mostrados com semblantes assemelhados aos de macacos. Correio Braziliense, 10 de março de 2003.
Sobreasdiferentespolíticasesuasdefinições,verJaccoudeBeghin(2002).
117
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
Estas ações podem ser entendidas, inclusive, como ações que apóiam o
fortalecimentodapolíticadeeducaçãoedaprópriaescolacomoespaçode
aprendizagemdaconvivência,decidadania,derespeitoedeparticipação.
Outrasaçõescomoaspolíticaspunitivas,emfacedadiscriminaçãodireta,e
as afirmativas, em face da discriminação indireta, são muitas vezes interpretadas
como ações que agravam o conflito racial e podem ter uma repercussão
num ambiente como o escolar, onde apenas o mérito e a isonomia deveriam
prevalecer. Porém, como apontou Santos (1997:43), hoje, apenas um pequeno
estrato da populão tem possibilidades de desenvolver plenamente suas
potencialidades, disputando os espaços da vida social à partir de seus próprios
méritos.Ainterferênciadeaçõesafirmativasvisaarecomporumasituação
onde o mérito poderá de fato vir a ser critério de acesso às oportunidades
oferecidas pela sociedade. Tendo em vista as renitentes situações onde, no
sistema educacional, o estudante negro está sendo prejudicado em relação ao
branco em razão de sua cor; ou, ainda, no mercado do trabalho, no qual, em
razão de sua cor, o trabalhador negro está sendo pior remunerado ou preterido
emseuacessoouascensãofuncional,cabeumapolíticacompensatória,uma
ação afirmativa.
Açõesafirmativassãoaquientendidascomopolíticasque
têmporobjetivogarantiraoportunidadedeacessodosgruposdiscriminados,
ampliandosuaparticipaçãoemdiferentessetoresdavidaeconômica,política,
institucional, cultural e social. Elas se caracterizam por serem temporárias
e por serem focalizadas no grupo discriminado; ou seja, por dispensarem,
num determinado prazo, um tratamento diferenciado e favorável com vistas
a reverter um quadro histórico de discriminação e exclusão (JACCOUD;
BEGHIN, 2002:67).
12
Elasnãosãosinônimodepolíticasdecotas.Podem,porexemplo,organizar-
senaformadeaçõesespecíficasdequalificaçãooudeestabelecimentodemetas
ao longo do tempo para ampliar a presença de negros em determinados espaços
da vida social.
Os mecanismos sociais que provocam a exclusão social do negro no
Brasil são complexos e poderosos, seja na educação, seja em outras esferas
davidasocial.Combatê-los exige, deumlado,amobilizão desetores
importantes da sociedade. De outro, requer a mobilização do Estado atras
12 Sobre o caráter temporário da ação afirmativa, ver artigo 1ª, item 4, da Convenção Internacional sobre
Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial, assim como comentário feito a esta norma legal
pelo Ministro Marco Aurélio Mello (TST, 2001).
118
Raça e Educação: os limites das políticas universalistas
de uma estragia que pressuponha a organização não apenas de uma, mas
deumconjuntodediferentespolíticaspúblicas.Ésomenteapartirdeste
quadrodepolíticasdiferenteseintegradasqueaintervençãopúblicaea
mobilização social podeo fazer frente ao desafio da promoção da igualdade
racial no Brasil.
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119
Luciana Jaccoud / Mário Theodoro
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negro no Brasil”).
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TST, 2001.
121
Ação AfirmAtivA no brASil: um debAte em curSo
Carlos Alberto Medeiros
A expressão “ação afirmativa apareceu pela primeira vez, nos Estados
Unidos da América, num decreto presidencial, a Executive Order 10.925, de 6
de março de 1961, com a assinatura do então presidente norte-americano John
F. Kennedy. Dizia o texto que, nos contratos com o Governo Federal, “(...) o
contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego
devido a raça, credo, cor ou nacionalidade”, e “adotará uma ação afirmativa
para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados
durante o emprego, sem consideração a sua raça, credo, cor ou nacionalidade”
(MENEZES, 2001:88).
A expressão acabaria ganhando um conteúdo definido a partir das conclues
da Comissão Nacional sobre Distúrbios Civis (National Commission on
Civil Disorders), conhecida como Comissão Kerner, criada no final dos anos
sessenta com o propósito de estudar os motivos dos conflitos raciais que então
explodiamnasgrandescidadesdosEstadosUnidos,exprimindocomviolência
a desesperança dos afro-americanos após o assassinato de Martin Luther King.
Umadasconclusõesapontavaanecessidadedecriar“estímulosespeciais”que
ajudassem a promover a população negra. Não tardou para que o conceito se
estendessenãoapenasaoutrasminorias,comohispânicos,indígenaseasiáticos,
mas também às mulheres.
Um marco decisivo nesse processo foi a famosa decisão do caso Brown
versus Board of Education of Topeka, que, em 17 de maio de 1954, declarou
inconstitucional a discriminação racial nas escolas blicas dos Estados
Unidos,assinalando“oiníciodeumnovoperíodonasrelaçõesentreaUnião
e os Estados, sobretudo os do Sul, no campo dos direitos civis”, a partir do
que “[T]oda a estrutura legal segregacionista criada depois da Reconstrução
paratirardosnegrosopoderpolítico,mantê-losiletradoseeconomicamente
subjugados, irá ser paulatinamente destruída” (RODRIGUES, 1991:170).
122
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
A decisão seria subseqüentemente ampliada, em sucessivos julgamentos, a
outras áreas da vida social, pondo fim a restrições raciais em parques, praias e
balneáriospúblicos,veículoscoletivos,restaurantesdeaeroportoseauditórios
municipais (MENEZES, 2001:85). Estava aberto, assim, o caminho para que as
lideranças afro-americanas desencadeassem o movimento pelos direitos civis, o
qual,ganhandoímpetonadécadaseguinte,acabariapressionandooCongresso
a adotar medidas que de fato poriam fim à segregação oficial, e também a
formas mais sutis de discriminação, ao mesmo tempo em que abririam espaço
a medidas de promoção dos segmentos historicamente discriminados.
As primeiras dessas medidas simplesmente autorizavam o Governo a
abrir processos judiciais no propósito de garantir aos afro-americanos o direito
de votar em eleições federais, sistematicamente boicotado pelas autoridades do
Sul. Em 1964, o Congresso votaria a primeira legislação ampla sobre igualdade
de direitos, referendada pelo presidente Lyndon Johnson: o Civil Rights Act,
ou Lei dos Direitos Civis, que tornava ilegal a discriminação no emprego,
nos estabelecimentos privados de uso público e em quaisquer instalações
governamentais.EraaprimeiravezemcemanosqueostrêsbraçosdoGoverno
–Executivo,LegislativoeJudiciário–sejuntavamparapôrfimaoaparato
jurídicoquesustentavaadiscriminaçãoeasegregação,dandoinícioauma
colaboração que viria a ser importante na implantação da ação afirmativa. A
lei–seguida,em965,daLeidoDireitodeVotoe,em968,doEstatutode
Direitos Civis (Civil Rights Law), que proscreveu a discriminação em matéria
demoradia–abrangiaorecursotantoaodireitocivil,pormeiodeordens
judiciais,açõesprivadascomapoiojurídicoeprocessosabertospeloGoverno,
quanto ao direito penal, mediante a abertura de processos criminais em casos nos
quais houvesse flagrante de discriminação. O Estado não se limitava, portanto,
a uma posição de neutralidade, mas assumia claramente a sua responsabilidade
na condução de um processo que deveria levar à superação das desigualdades
raciais.Paratantocontribuiuemmuitoochamado“ativismojurídico”,ouseja,
a adoção, pelo Judiciário, de uma postura construtiva, pela qual, ao interpretar
normaselaboradas com finalidade exclusivamente proibitiva, os juízes lhes
conferiamumanovanatureza“promocional”ou“restauradora”–queseráde
importânciacapitalparaaconstruçãodaspolíticasdeaçãoafirmativa.
Antes de prosseguir, trazendo essa discussão para o Brasil, é importante
assinalarquepolíticassemelhantestêmsidopostasempráticaemumasérie
depaíses,porvezesbemantesdeaexpressãoteraparecidonocontextonorte-
americano, como se pode verificar na coletânea International perspectives
123
Carlos Alberto Medeiros
on affirmative action: conference report,publicadaem984pelaRockefeller
Foundation. É o caso da Índia, cuja Constituição, em 1948, por meio de
seu artigo 16, reformulado em 1951, estabelece cotas para membros de “castas
catalogadas” e, mais tarde, também de “tribos catalogadas”, além de medidas
especiaisparaportadoresdedeficiência.Nadécadaseguinte,aMalásiacriaria
um sistema destinado a estimular, via cotas, a participação da etnia bumiputra
–osmalaiospropriamenteditos–numaeconomiadominadaporchinesese
indianos.NoLíbano,osistemadeacessoaoserviçopúblicoeàuniversidade
utiliza cotas que reproduzem a participação das diferentes seitas religiosas
na população. Na antiga União Soviética, quatro por cento das vagas da
Universidade de Moscou eram reservadas a alunos provenientes da Sibéria,
umadasregiõesmaisatrasadasdopaís.JánaNoruega,damesmaformaquena
Bélgica,ofocodessaspolíticassãoosimigrantes.Estesúltimos,desdequede
origemafricanaouasiática,tambémsãoalvodepolíticasespeciaisnoCanadá,
juntamente com “povos aborígines” (indígenas), mulheres e portadores de
deficiência.Maispertodenós,naAméricadoSul,aColômbiatemcadeiras
no parlamento reservadas para afro-colombianos, enquanto no Peru são os
indígenasoobjetodepolíticasparticulares.Nuncaédemaisrelembrarque,no
caso norte-americano, os negros não constituem o único segmento beneficiário
daaçãoafirmativa,aqualtambémseaplicaamulheres,indígenas,asiáticose
outros grupos.
No Brasil, embora a expressão ação afirmativa seja quase que
invariavelmenteassociadaàexperiêncianorte-americana,vistacomoalgoque
seaplicaexclusivamenteaosnegrosereduzidaàpolíticadecotas,aidéiade
dispensar um tratamento positivamente diferenciado a determinados grupos
emfunçãodadiscriminaçãodequesãovítimasjáestápresentenalegislação
brasileira muito tempo. Exemplo disso é a chamada Lei dos Dois Terços,
implementada na década de 1930 para garantir a participação majoritária de
trabalhadores brasileiros nas empresas em funcionamento no Brasil, numa época
em que muitas firmas de propriedade de imigrantes costumavam discriminar os
trabalhadores nativos, sobretudo em São Paulo e nos Estados do Sul. Também
existemleisgarantindooempregoaportadoresdedeficiência(cotadecincopor
cento nas empresas com mais de mil empregados e de até 20% nos concursos
públicos) e a participação de mulheres nas listas de candidatos dos partidos
(minímode30%emáximode70%paraambosossexos),paranãofalarna
discriminação positiva em relação a uma infinidade de outros grupos: crianças,
jovens, idosos, micro e pequenos empresários, etc., etc. Enquadram-se nessa
definiçãoigualmenteasagênciasdedesenvolvimentoregional,comoaSudam
124
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
e a Sudene, criadas com a finalidade de carrear investimentos para o Norte e
o Nordeste, regiões mais atrasadas. O próprio imposto de renda progressivo,
assim como diversas medidas destinadas a compensar a desigualdade social,
constitui essencialmente uma forma de discriminação positiva, tanto quanto o
dispositivoquepermiteàsmulheresaposentar-seaos30anosdeserviço–cinco
anosantesdoshomens.Defato,umaleiturarestritadoprincípioconstitucional
da igualdade significaria o fim de programas como o Bolsa Escola ou o Cheque
Cidadão, que discriminam negativamente quem ganhe acima de determinada
quantia.
A esse propósito, é oportuno ouvirmos a palavra do ministro Marco Aurélio
Mello, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, para quem é necessário
resgataroquechamade“dívidashistóricas”paracomas“minorias”.Afirma
ele textualmente:
(...) É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-
se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à
educação; urge contar-se com programa voltado aos menos favorecidos,
a abranger horário integral, de modo a tirar o menor da rua, dando-se-
lhe condições que o levem a ombrear com as demais crianças. O Estado
tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem liberar verbas
para os imprescindíveis financiamentos nesse setor; pode estimular,
mediante tal liberação, as contratações. E o Poder Público deve, desde já,
independentemente da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de
serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas
que visem a contemplar as minorias. O setor público tem à sua disposição,
ainda, as funções comissionadas que, a serem preenchidas por integrantes
do quadro, podem e devem ser ocupadas também consideradas as minorias
nele existentes (MELLO, 2001:5).
Para Marco Aurélio Mello, não problema de inconstitucionalidade,
que
(...) a Carta agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no
artigo 7ª, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher, e
ao direcionar a introdução de incentivos; no artigo 37, inciso III, ao versar
sobreareservadevagas–e,portanto,aexistênciadequotas–nosconcursos
públicos, para os deficientes; no artigo 170, ao dispor sobre as empresas de
pequeno porte, prevendo que devem ter tratamento preferencial; no artigo
227, ao emprestar também tratamento preferencial à criança e ao adolescente
(Ibidem: 6).
Mas o é a Constituição que, na vio do ex-presidente do Supremo, abriga
a ação afirmativa. O mesmo se com a legislão ordinária. Exemplifica ele:
125
Carlos Alberto Medeiros
(...) A Lei 8.112/90 (...) fixa reserva de 20% das vagas, nos concursos
públicos,paraosdeficientesfísicos.Aleieleitoral,denª9.504/97,dispõe
sobre a participação da mulher, não como simples eleitora, o que foi
conquistado na década de 30, mas como candidata. Estabelece também,
emrelaçãoaoscandidatos,omínimode30%eomáximode70%decada
sexo. (...) Por outro lado, a Lei
8.666/93 viabiliza a contratação, sem
licitação–meioqueimpedeoapadrinhamento–,deassociações,semfins
lucrativos,deportadoresdedeficiênciafísica,considerado,logicamente,o
preço do mercado. No sistema de quotas a ser adotado, deverá ser sopesada
aproporcionalidade,arazoabilidade,e,paraisso,dispomosdeestatísticas.
Tal sistema há de ser utilizado para a correção de desigualdades. Portanto,
deve ser afastado tão logo eliminadas essas diferenças (Ibidem).
Marco Aurélio Mello prossegue, sugerindo que o Judiciário brasileiro siga
o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos após a Segunda Guerra
Mundial, a qual percebeu a necessidade de “(...) sinalizar para a população, de
modo a que prevalecessem, na vida gregária, os valores básicos da Constituição
norte-americana”. Para ele, diante de um conflito de interesses, a postura do
“Estado-juiz” deve ser uma só: “idealizar a solução mais justa”, a partir de sua
formaçãohumanística,esódepoisbuscaroindispensávelapoionodireito
posto–enão“potencializaradogmáticaparaposteriormente,àmercêdessa
dogmática, enquadrar o caso concreto”.
Não é de hoje que se reivindica a implementação, por parte do Governo,
de medidas especiais destinadas à promoção dos afro-brasileiros. Ainda na
década de 1940, entre as reivindicações apresentadas no Manifesto à Nação
Brasileira, resultado da Convenção Nacional do Negro Brasileiro, organizada
pelo Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento, encontramos a
seguinte: “4) Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus,
sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os
estabelecimentosparticulareseoficiaisdeensinosecundárioesuperiordopaís,
inclusive nos estabelecimentos militares.” Mas a primeira proposta legislativa
com esse objetivo seria apresentada quase 40 anos depois, pelo mesmo Abdias
do Nascimento, agora deputado federal pelo Rio de Janeiro, com o Projeto
de Lei 1.332, de 1983, que “[D]ispõe sobre ação compensatória visando
àimplementaçãodoprincípiodaisonomiasocialdonegro,emrelaçãoaos
demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado
pelo art. 153, § 1ª da Constituição da República”. O projeto abrange as áreas
do emprego, público e privado, e da educação, estabelecendo cotas de 20%
para homens negros e de 20% para mulheres negras em todos os “órgãos da
administraçãopública,diretaeindireta,deníveisfederal,estadualemunicipal”,
126
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
incluindo as Forças Armadas, “em todos os escalões de trabalho e de direção”
(art. 2ª), assim como nas “empresas, firmas e estabelecimentos, de comércio,
indústria, serviços, mercado financeiro e do setor agropecuário” (art. 3ª).
Reserva também a estudantes negros 40% das bolsas de estudos concedidas pelo
Ministério e Secretarias de Educação, estaduais e municipais, assim como 40%
das vagas do Instituto Rio Branco, estas últimas igualmente divididas entre
homens e mulheres (art. 7ª). Não se restringe, contudo, a medidas numéricas,
pois obriga o Ministério e as Secretarias de Educação a estudar e implementar
“modificões nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os níveis
(primário, secundário, superior e de pós-graduação)”, com vistas a incorporar
ao conteúdo dos cursos de História do Brasil e de História Geral “o ensino
das contribuições positivas dos africanos e seus descendentes” e também das
civilizações africanas, “particularmente seus avanços tecnológicos e culturais
antes da invasão européia (...)” (art. 8ª). O projeto não chegou sequer a ser
apreciado, mas é interessante observar que algumas das medidas nele contidas
acabaram sendo implementadas, embora muito mais tarde, como é o caso das
bolsas de estudos para negros no Instituto Rio Branco, criadas no Governo
FernandoHenrique,edasmodificaçõescurricularesrecentementeinstituídas
pelo Governo Lula, por meio da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que,
alterando o artigo 1ª da Lei de Diretrizes e Bases (nª 9.394, de 20 de dezembro
de 1996), torna obrigatório, nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, o ensino de história e cultura afro-brasileiras.
Apesardetodaapolêmicaemtornodotema,odebatesobreaçãoafirmativa
no Brasil ainda é caracterizado pela desinformação. A maioria dos brasileiros
desconhece o que seja isso e, entre os poucos que já ouviram falar do assunto,
aidéiaédequesetratadeumsinônimode“cotas”,queteriamsidoadotadas
nos Estados Unidos, nas mais diversas áreas, para beneficiar exclusivamente os
negros–equenãoteriamdadomuitocerto,jáquevezporoutrasenoticiam
incidentesenvolvendoracismonaquelepaís.Asopiniõescontráriastendem
apredominar,tantoàdireitaquantoàesquerdadoespectropolítico,embora
um certo número de intelectuais de peso se venha manifestando a favor, alguns
até reconhecendo terem sido convencidos a mudar de posição no transcurso
do próprio debate, dada a força que identificaram na argumentação favorável.
Outro dado significativo nesse debate é que ele tem obrigado a “sair do armário
muitos defensores da suposta “democracia racial” brasileira, exatamente como
formuladaháquasesetedécadas–paraosquaisoBrasilseriamesmo,sobesse
aspecto,umverdadeiroparaíso–,ouligeiramentemodificada,paraadmitira
existênciadepreconceitoediscriminaçãoraciais,quenoentantonãoseriam
127
Carlos Alberto Medeiros
tão freqüentes ou significativos a ponto de desmentir a visão de senso comum
do Brasil como o campeão mundial do anti-racismo. Temos, assim, dois tipos
de opositores da ação afirmativa no Brasil: os que a julgam desnecessária num
paísque“nãotemessesproblemas”eosque,enxergandoalguns problemas dessa
natureza entre nós, prefeririam utilizar, para enfrentá-los, medidas universalistas,
comênfaseempropostasgenéricaspara“aperfeiçoaraeducaçãopública”ou
em campanhas publicitárias para “melhorar a imagem do negro”. Os defensores
dessa posição, tanto uns quanto outros, costumam compartilhar um desprezo
sumário pelas pesquisas numéricas sobre desigualdade racial, deixadas de lado
como “suspeitasou até mesmo “impatrióticas”, quando não apresentadas como
frutosdeumaconspiraçãoorquestradaporinteressesalienígenaspreocupados
emobstaratransformaçãodoBrasilnumagrandepotência...
Podemos resumir como segue os argumentos contrários à ação afirmativa no
Brasil. Segundo estes, ela: argumento 1 fereoprincípiodaigualdade,talcomo
definido no artigo da Constituição, pelo qual “todos são iguais perante a lei,
sem distião de qualquer natureza”; argumento 2 –subverteoprincípiodo
rito, ao possibilitar que uma pessoa se classifique num concurso, tal como o
vestibular,tendoobtidonotamenordoqueoutras–ecomissopodeprejudicaro
própriodesenvolvimentocienficoeculturaldopaís;argumento 3 –édeaplicão
impossível,devidoaoaltograudemiscigenão,queimpossibilitadistinguirquem
é negro no Brasil (uma variante desse argumento sustenta, com base em dados
daPNADde976–,muitasvezes,equivocadamente,referidoscomosendodo
censo–queascategoriasderaça/cornemmesmofazemsentidoparaamaioria
da populão brasileira); argumento 4 é,nofinaldascontas,prejudicialparaos
própriosnegros,queacabaovítimasdoestigmadaincapacidade;argumento 5
desviaasatençõesdoverdadeiroproblema,aquesosocial,quedeveserenfrentada
com medidas redistributivas de cater universalista; argumento 6nãodeucertonos
EstadosUnidosnicopaísutilizadocomoreferência),tesegeralmenteapresentada
sem meão a indicadores, ou sustentada apenas no fato gerico de o racismo
oteracabadonaquelepaís.
Examinemos agora o modo como os defensores da ação afirmativa se
defrontam com esses argumentos. O argumento 1, da inconstitucionalidade,
tem sido rebatido por uma série de juristas respeitáveis, entre eles os ministros
Marco Aurélio Mello, Celso Bandeira de Mello e Joaquim Barbosa Gomes,
do Supremo Tribunal Federal, que se manifestaram amplamente sobre o
tema. Navisão deles, o princípio constitucional daigualdade, contido no
artigo 5ª, refere-se à igualdade formal de todos os cidadãos perante a lei. Mas a
128
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
igualdade de fato é tão-somente um alvo a ser atingido, como se depreende do
artigo da mesma Constituição, cujo inciso IV define como um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação”. Nas palavras de Marco Aurélio Mello, “não basta não
discriminar, é preciso promover (...) as mesmas oportunidades”. E isso tem sido
feito, como vimos acima, em relação a diversos segmentos de nossa sociedade.
Emtodosessescasos,oquesefazédiscriminaçãopositiva–comousemesse
nome. Considerá-la constitucional para esses grupos e inconstitucional para os
negros é simplesmente indefensável, ética ou juridicamente.
O argumento 2, que se refere à queso do rito, tem sido empregado no debate
espeficosobreaquestãodascotasnauniversidade.Quemofazgeralmentedeixa
de lado uma outra discussão, que vem sendo travada anos, a respeito da validade
do vestibular como instrumento de admiso ao ensino superior. De acordo com
muitos especialistas, o vestibular o serve para avaliar as possibilidades de sucesso
doestudante,sejadopontodevistaacamicoou–principalmente–dofuturo
desempenho no mercado de trabalho. Para eles, o vestibular mede unicamente
a capacidade de fazer vestibular. Exemplo disso são reportagens recentemente
publicadas mostrando que os reitores de nossas principais universidades públicas,
caso se submetessem aos vestibulares de suas próprias instituições, não passariam.
E a maioria dos alunos aprovados num vestibular também não passaria, caso fosse
submetida a ele no ano seguinte. Comprova-se, assim, que o vestibular constitui
apenasummétododeseleçãoquepoderiasersubstitdoporoutros,jáquenão
guarda uma relação direta com a performance futura.
O que os proponentes da ão afirmativa defendem não é o abandono do rito
como critério de admissão à universidade (ou ao emprego), mas a reelaborão desse
critério de modo a tor-lo não somente mais justo, mas tamm mais eficaz como
instrumento de avalião. Isso significa levar em consideração fatores como filião
racial, origem, renda, local de moradia e outros, juntamente com a capacidade
de superar obstáculos. Vale referir como exemplo a conceso, pela PUC/Rio, de
bolsas de estudos para alunos provenientes dos chamados pré-vestibulares para
negrosecarentes–formadeãoafirmativasemutilizaçãodecotasquevemsendo
implementada há cerca de dez anos, tendo beneficiado mais de quatro mil alunos
até o momento. É significativo observar que esses alunos, cujas notas no vestibular
oquasesempremaisbaixasqueamédia,têmrevertido,aofinaldocurso,essa
situão, graduando-se com notas mais altas que a dia dos alunos pagantes. Isso
indica a validade de um dos argumentos em defesa da ão afirmativa: o de que as
129
Carlos Alberto Medeiros
pessoas por ela beneficiadas costumam agarrar-se à oportunidade, diferentemente
daqueles para quem fazer um curso superior, por exemplo, o “favas contadas”.
O argumento 3,dequeamiscigenaçãotornariaimpossívelidentificaros
possíveisbeneficiáriosdaaçãoafirmativanoBrasil,é,detodos,omaisfalacioso.
Seus propositores empregam, oportunisticamente, ao mesmo tempo, duas visões
de raça que eles próprios costumam apresentar como opostas: a brasileira e a
norte-americana. Assim, apesar de condenarem esta última como racista, pois
enxergacomonegroqualquerindivíduo,mesmoquefenotipicamentebranco,
apenas por ter um único e distante ancestral negro conhecido, não hesitam
emadotá-la,porpuraconveniência,invocandosupostosbisavósnegrospara
provar que também eles seriam negros, e desse modo confundir o jogo. Ora,
a construção de raça se deu de forma diferente, por motivos sócio-históricos,
nas duas sociedades, o que originou, nos Estados Unidos, a one drop rule e,
noBrasil,aregradaaparência–ébrancoquemparecebranco.Nenhumdos
dois sistemas é melhor ou pior, nem mais ou menos válido, em si, do que o
outro. O que não se pode é, sem atropelar a ética, utilizá-los alternativamente,
aosabordasconveniênciasdomomento.
AfirmarquenãosepodefazeraçãoafirmativanoBrasilporqueéimpossível
distinguir quem é negro ou branco é sustentar o paradoxo de que algo é ao
mesmotempopossíveleimpossível.Afinal,pessoasconsideradasnegras(ou
pretasepardas)sãotimasnoBrasildeumadiscriminaçãonegativaemresultado
daqualsevêeminferiorizadas,emrelaçãoàquelasconsideradasbrancas,em
praticamente todas as instâncias da vida social. Não há, para isso, nenhuma
dificuldade em identificá-las. No entanto, quando se fala em compensá-las pela
discriminação sofrida, propiciando-lhes mecanismos preferenciais de ascensão
no emprego, na educação superior e na arena empresarial, levantam-se as
mesmasvozesquesempredefenderamasingularidadedaexperiênciaracial
brasileira, mas agora para, adotando subitamente o critério norte-americano da
hereditariedade, impedir que tais mecanismos sejam implementados.
Isso não significa ignorar que, em certos casos, possa haver alguma dificuldade
nessa identificação. Tal dificuldade, contudo, não se limita à questão de raça.
Qual é, por exemplo, a linha que define a pobreza? Ou quais são os limites da
velhice? muita controvérsia em relação a isso, mas ninguém chega ao ponto
de defender a inaplicabilidade de programas destinados a combater pobreza
ouosmalesassociadosàvelhice.Seguindo-seamesmalinhaderaciocínio,a
existênciadegravesdesigualdadesraciais(jamaisdesmentidas,aomenosde
modoacademicamenteadequado)apontaparaanecessidade–eodever–de
130
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
se criarem mecanismos para enfrentar o problema da discriminação racial. Em
tom de ironia, chega-se a propor que se contratem, para tal identificação, os
próprios agentes principais da discriminação racial, como policiais, porteiros
deedifícioseprofissionaisderecrutamentoeseleção.
No caso das universidades fluminenses, a lei adotou o critério de
autoclassificação, pelo qual a própria pessoa declara qual é sua raça/cor. Isso
acabou dando origem a fraudes, como se viu pelo noticiário, com pessoas
fenotipicamente brancas, que decerto jamais tinham visto a si mesmas ou
se apresentado ao mundo como qualquer outra coisa, de repente sacando
dofundodobaúumesquecido–emuitasvezesdesprezado–bisavônegro
apenasparagarantirumbenefíciooriginalmentedestinadoaosquesofremos
obstáculos decorrentes do racismo. Um remédio para isso poderia ser o que
está proposto no Projeto de Lei do Senado 650, de 1999, que se encontra
em tramitação naquela Casa, pelo qual se considera afro-brasileiro toda
pessoa que assim se declare e que apresente documento de identificação no
qualapareçacomocaracterísticafenopicaacorpretaouparda”(artigoª,
parágrafo 1ª, grifos nossos). Mais adiante, no artigo 5ª, o projeto incumbe os
serviços de registro civil de “proceder, gratuitamente e a pedido, ao registro
da cor no assento de nascimento do interessado”. Trata-se, assim, de um
mecanismo inibidor da fraude racial, que obriga o interessado a portar
em documento a cor que declara ter diante de um vestibular ou concurso
de qualquer tipo.
O argumento 4 chama a atenção especialmente pelo fato de ser defendido
por pessoas que jamais revelaram qualquer preocupação com a sorte e o destino
dos afro-brasileiros, mas que subitamente se apresentam como verdadeiros
paladinos da igualdade racial. É um argumento, em geral, pouco elaborado,
e que não resiste ao menor confronto. Afinal, a lei adotada no Rio de
Janeiro–assimcomoasmedidasadministrativasaprovadaspelosconselhos
universitáriosdaUniversidadedeBrasíliaedaUniversidadedoEstadoda
Bahia–garanteapenasoingressodoestudante,masnãosuagraduação.Para
obtê-la,eleterádepreenchertodososrequisitosacadêmicosexigidosparaa
aprovação.Seconseguirfazê-lo,seudiplomaseráexatamenteigualatodosos
outros, sem que dele conste a marca do ingresso por meio de uma cota racial.
Como poderá o futuro empregador saber que foi esse o caso? E, do ponto de
vista da auto-estima, o que seria melhor: entrar na universidade por meio de
cota–ououtrasformasdeaçãoafirmativa–ousimplesmenteficarforadela,
graças aos mecanismos de exclusão racial amplamente descritos acima?
131
Carlos Alberto Medeiros
O argumento 5 padecedeumduplovício–baseia-seapenasnosensocomum
eéestritamentemaniqueísta.Emprimeirolugar,nãobasta,comovimos,afirmar
que “o problema é social e não racial”, como qualquer palestrante de botequim.
É preciso provar. E, para isso, demonstrar academicamente serem inválidos os
números da desigualdade racial, ou encontrar uma forma de explicá-los que
excluaaraçacomoprincipalfatorcausal.Atéagoranãoseconseguiufazê-lo.
Depois, é necessário demonstrar que medidas universalistas podem resolver
problemasespecíficosdedeterminadosgrupos.Dizerquemedidasdestinadas
a resolver os problemas da população pobre terão o poder de solucionar os
problemasdosnegrosapenaspelofatodeestesconstituíremamaioriadaquela
populaçãoéomesmoquedefenderumasoluçãoidênticaparaosproblemas
degênero:jáqueamaioriadospobresédesexofeminino,comorevelamas
estatísticas,asdesigualdadesdegêneroseriamreduzidasquandosereduzissem
as desigualdades sociais...
Omaniqueísmodessa
soluçãoéalgoquesaltaaosolhos–éumacoisa
ou outra, ou se ataca a pobreza ou se enfrenta a questão racial, quando é
evidente que se trata de problemas diferentes, ainda que relacionados, como
duas linhas sinuosas que se entrelaçam e se separam, e que portanto exigem
soluções distintas, embora coordenadas. Valeria lembrar ainda que medidas
universalistas de combate aos malefícios associados à pobreza tendem a
beneficiar desproporcionalmente os pobres brancos. Desse modo, por exemplo,
umapolíticaeducacionalqueproporcioneamelhoriageraldospadrõesde
ensino público acabará beneficiando mais os pobres brancos do que os pobres
negros. É isso, afinal, que tem acontecido nos últimos 70 anos, como vimos
pelo trabalho de Ricardo Henriques (2001).
Finalmente, o argumento 6, de que “isso não funcionou nos Estados Unidos”,
pode ser facilmente demolido por um simples exame da evolução dos números
referentes à população afro-americana. Como dissemos, quem faz esse tipo de
afirmação não costuma explicitar os indicadores que apontariam nesse sentido,
limitando-seafazerreferênciasgenéricasaofatodeoracismonãotersido
eliminadonaquelepaís.Trata-se,evidentemente,deumsofisma,jáqueaação
afirmativanãotemesseobjetivo–que,deresto,nãopoderiaseratingidosenão,
talvez,porumamploconjuntodeaçõesdecurto,médioelongoprazo–,mas
tão-somente o de proporcionar a igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho, na educação superior e no mundo empresarial. Examinemos, pois,
os indicadores relativos ao progresso da população afro-americana nas cinco
últimas décadas, conforme dados do U.S. Census Bureau.
132
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
Comecemos pelos rendimentos, fator-chave na avaliação das condições
de vida de qualquer segmento populacional. Entre 1967 e 2000, descontada
a inflação, a renda dos afro-americanos cresceu significativos 250%. o
percentual de negros abaixo da linha de pobreza caiu de 55,1% em 1959
para 30,9% (contra 9,5% dos brancos) no ano 2000. Embora ainda mostrem
uma distância significativa entre negros e brancos, esses percentuais revelam
dois fatos importantes em relação à sociedade norte-americana nos dias de
hoje: a maioria dos negros não é pobre e a maioria dos pobres não é negra,
pois 9,5% dos brancos significam mais, em termos absolutos, do que 30,9%
dos negros. Do ponto de vista educacional, o percentual de afro-americanos
com idades entre 18 e 24 anos freqüentando instituições de ensino superior
subiu, entre 1975 e 1997, de 20,4% para 29,8%, e o daqueles com mais de 25
anos que completaram o terceiro grau passou de 4,5% em 1970 para 14,7%
em998.Nessemesmoano,4,3%dosadvogadosejuízes,4,9%dosmédicos,
4,1% dos engenheiros, 19,4% dos policiais e detetives, e 5,8% dos professores
universitários dos Estados Unidos eram negros. Simultaneamente, o número
de negros ocupando cargos eletivos (que nos Estados Unidos incluem, além
daqueles que também existem no Brasil, posições como as de xerife, procurador
distrital e membro dos conselhos de educação) chega hoje a mais de oito mil,
incluindo os prefeitos de cidades importantes, como Washington, Atlanta,
Filadélfia, Detroit, Nova Orleans e São Francisco. Uma evolução considerável,
selevarmosemcontaque,40anosatrás–antes,portanto,daaçãoafirmativa
–essenúmeroeraestatisticamenteirrelevante.
Seria ingenuidade ou exagero, contudo, atribuir todos esses avanços dos afro-
americanosexclusivamenteàaçãoafirmativa.É,naverdade,muitodifícilseparar
osefeitosdessapolíticadaquiloqueocorreuemfunçãodaimplementação
de normas puramente antidiscriminatórias, do extraordinário crescimento
econômico(oboom) dos Estados Unidos no segundo pós-guerra ou mesmo
defenômenoshistoricamenteanteriores,comoamigraçãonegradeáreasrurais
para urbanas e do Sul para o Norte, que se tornou expressiva já nas primeiras
décadas do século XX, ou os ganhos da população afro-americana em termos de
escolaridade.Aessasdificuldadessesomaaprópriaabrangênciadotermo,que
engloba uma diversidade muito grande de iniciativas, especialmente no setor
privado, nem sempre apresentadas sob essa rubrica. Mas a maioria dos estudos
converge em estabelecer uma correlação positiva entre a ação afirmativa e a
melhoria geral das condições de vida da população negra dos Estados Unidos
que teve lugar, principalmente, entre as décadas de 1960 e 1980 (CAPLAN,
1997; ECCLES, 1991; WALTERS, 1995).
133
Carlos Alberto Medeiros
Corremnomesmosentidoasanálisesestatísticasdadesigualdaderacialnos
EstadosUnidosreferentesaosanosoitentaeiníciodosnoventa,períodoque
correspondeaopredomíniopolíticodacorrenteconservadoracapitaneadapela
dupla Reagan-Bush. Lincoln Caplan, por exemplo, nos mostra o modo como os
juízesqueReagannomeouparaaSupremaCortetrabalharamdiligentemente
nopropósitode,senãoeliminar,pelomenosrestringiroalcancedaspolíticas
de discriminação positiva (Caplan, 997). George Bush deu seqüência ao
trabalhodeReagan,nomeandoosdoisjuízesmaisconservadoresdaCorteatual:
AntoninScaliaeClarenceThomas–esteúltimo,curiosamente,umnegroque,
embora tenha sido favorecido pela ação afirmativa nos tempos de estudante, é
visceralmentecontrárioaessaspolíticas.Aoladodeoutrosjuristasdeigualperfil
nomeadosparapostos-chavedaáreajurídica,aduplaReagan-Bushpromoveu
uma verdadeira revolução conservadora no Judiciário norte-americano, o que
se traduziu numa série de decisões contrárias não apenas à ação afirmativa, mas
atodotipodepolíticadeinclusão.Comoresultadodisso,váriosindicadores
revelamque,nesseperíodo,adesigualdaderacialvoltouacrescerou,nasmelhor
das hipóteses, parou de diminuir (Walters, 1995; Heringer, 1999).
No entanto, como mostrou recente decio relativa à Universidade de Michigan,
a ão afirmativa o acabou nos Estados Unidos. Ao contrário, está o fortemente
arraigadanosmundosempresarialeacamico,naburocraciadoEstadoenas
Foas Armadas, apoiada sobre uma legislão tão vasta, com defensores de ambos
osladosdoespectropolítico,queseriavirtualmenteimpossívelelimi-la,como
gostariamReagan,Busheseusdiscípulos(ANDERSON,2004).Parafazê-lo,
segundo o atual ministro do STF Joaquim Barbosa Gomes, seria necesria uma
avassaladoramaioriacongressual,dotadadesuficienteforçapolíticapararealizar
umatarefadetãograndeenvergadura–oquepodeserconsideradoimposvel,
dadasascaractesticaspeculiaresdobipartidarismonorte-americano(GOMES:
200).Apróprianomeaçãodejuízesconservadoresnãoégarantiadevotos
contrios aos programas deão afirmativa na Suprema Corte estadunidense,
que,comotempo,algunsdelesmsetornadomais“progressistas”,oupelomenos
maissensíveisàsquesessociais.IssoficoupatentenovotodajuízaO’Connor
–primeiramulheraintegraraSupremaCortedosEstadosUnidos–queprovocou
airadosconservadorescomquegeralmentesealinhava,paradefenderoprincípio
da ação afirmativa , ou seja, que a raça pode ser considerada quando se trata da
admissão ao ensino superior (ANDERSON, 2004). Deve-se tamm ter em mente
que o Congresso pode contrapor-se à Suprema Corte nessa área, o que ocorreu em
1991, quando, em reação a uma série de decisões desta, foi promulgado um novo
Civil Rights Act, que na prática as tornava sem efeito, restaurando uma rie de
134
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
conquistas dasminorias” e de seus aliados. Portanto, pode-se afirmar com muita
seguraa que a ão afirmativa se tornou prática habitual em um sem mero de
instituições norte-americanas e que, apesar das controvérsias que provoca, deverá
continuar sendo, por muito tempo, parte integrante da paisagem social dos Estados
Unidos.
convençõeS internAcionAiS
Segundo reza a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5ª, parágrafo
“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifos
nossos). Em diversas manifestações, o Supremo Tribunal Federal tem reafirmado
o status dos tratados e convenções internacionais, que, para o ministro Celso de
Mello, “guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias
editadaspeloEstadobrasileiro”(STF–Extradiçãon.662–Rel.CelsodeMello
–DJUde30/maio/997,p.23.76).Entreostratadosinternacionaisdequeo
Brasil é signatário, figuram a Convenção 111 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão;
a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da
ONU; e a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, também das Nações Unidas. Um traço comum a todas elas
é referendarem, de uma forma ou de outra, a discriminação positiva. Deve-se
esclarecer que essas convenções são instrumentos vinculantes, ou seja, os Estados-
parte se obrigam a implementar as normas por elas impostas, devendo para
issoajustarsuapróprialegislação,etambémsuaspolíticaspúblicas.Sujeitam-se
igualmente ao controle internacional, que se comprometem a enviar relatórios
anuais prestando contas do cumprimento das normas nelas contidas.
Adotada pela Assembléia Geral da ONU em dezembro de 1965, a Convenção
Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial foi
um dos primeiros tratados multilaterais que se seguiram à adoção, em 1948,
daConvençãosobreGenocídio,erepresentaatentativamaisimportante,da
parte da comunidade internacional, no sentido de definir e combater essas
práticas. Ratificada logo em seguida pelo Brasil, ela afirma no item 4 de seu
artigo 1ª, que não serão consideradas discrminatórias:
135
Carlos Alberto Medeiros
Medidasespeciaistomadascomoobjetivoprecípuodeassegurar,deforma
conveniente,oprogressodecertosgrupossociaisouétnicosoudeindivíduos
que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos
humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições (...).
Ao mesmo tempo, em seu artigo 2ª, a Convenção obriga os Estados-parte não
apenas a se abster de discriminar, ou de apoiar de alguma forma a discriminação,
mas também a “pôr um fim, por todos os meios adequados, incluindo a
legislão, na medida em que as circunstâncias o tornarem necessário, à
discriminação racial da parte de quaisquer pessoas, grupos ou organizações”
e a tomar medidas especiais e concretas para assegurar o desenvolvimento e
a proteção adequados de certos grupos raciais(grifos nossos). Formulações
semelhantes aparecem na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher, pela qual a “adoção pelos Estados Partes
de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de
fato entre o homem e a mulher não será considerada discriminação (...)”.
O caso da Convenção 111 da OIT é especialmente relevante, pois mostra
como organizações da sociedade civil podem utilizar-se das convenções
internacionais para forçar o Governo brasileiro a cumprir normas do interesse de
segmentos especialmente concernidos. Para começo de conversa, essa convenção
define discriminação como sendo
todadistinção,exclusãooupreferênciafundadanaraça,cor,sexo,religião,
opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento
em matéria de emprego ou profissão (artigo 1ª).
Deixa de incorrer, assim, no mesmo pecado que caracteriza a legislação
brasileira, que pretende punir crimes motivados por uma conduta determinada,
porém indefinida. Mas vai além a Convenção 111, pois obriga os Estados
membros:
(...)aformulareaplicarumapolíticanacionalquetenhaporfimpromover,
por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade
de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com
o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria (artigo 2ª).
E também a “[e]sforçar-se para obter a colaboração das organizações de
empregadores e trabalhadores e de outros organismos apropriados, com
o fim de favorecer a aceitação desta política” (item a); “[p]romulgar leise
encorajar os programas de educação próprios a assegurar esta aceitação e esta
aplicação”(itemb);“[s]eguirareferidapolíticanoquedizrespeitoaempregos
136
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
dependentes de controle direto de uma autoridade nacional” (item d). Obriga,
assim, os Estados signatários a adotarem uma postura pró-ativa em favor da
igualdade de oportunidades. E utiliza como mecanismos de controle não
apenas os relatórios minuciosos que lhe devem ser enviados anualmente,
mas as próprias organizações sindicais, às quais a OIT concede a prerrogativa
de denunciar o descumprimento dos termos de suas diversas convenções.
O Brasil ratificou a Convenção 111 da OIT em 1964. Dada, porém, a visão
predominanteemmatériaderelaçõesraciaisnestepaís,nãosurpreendequeo
Governo brasileiro deixasse de cumprir os compromissos que ela implica. A
situaçãocomeçouamudarem992,quandoaCentralÚnicadosTrabalhadores
enviou à OIT uma reclamão formal denunciado o descumprimento, pelo Brasil,
da Convenção 111, tendo por base um documento elaborado pelo Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), fundamentado em
pesquisas quantitativas do IBGE e em análises do Departamento Intersindical de
EstatísticaseEstudosSociaiseEconômicos(DIEESE).Comoqueapanhadode
surpresa, o Governo brasileiro apresentou respostas “distintas e contraditórias”,
comoapontaHédioSilvaJúnior:naConferênciaMundialdaOIT,de993,
reconheceuaprocedênciadadenúncia;nade994,negouoproblema,mas
não conseguiu apresentar dados que refutassem as denúncias feitas pela CUT;
finalmente, em 1995,
durante seminário realizado em Brasília, com a participação de peritos
e dirigentes da OIT, centrais sindicais, organizações de empreendedores,
Ministério do Trabalho e CEERT, o Ministro do Trabalho reconheceu a
existênciadoproblemaeassumiuocompromissodecriarumgrupode
trabalho que se ocupasse da implementação da Convenção 111.
Esse grupo de trabalho acabou sendo criado em setembro de 1996: é o
Grupo de Trabalho para a Eliminão da Discriminação no Emprego e na
Educão–GTDEO,responsávelpelaelaboraçãodesugestõesdepoticas
antidiscriminatórias apresentadas ao Governo FHC. A estas se somaram as
do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População
Negra, conhecido pela sigla GTI, criado em novembro de 1995 como resposta
do Governo à Marcha Zumbi dos Palmares pela Igualdade, a Cidadania e
aVida,quereuniucercade30milmanifestantesemBrasíliaporocasião
do tricentenário da morte de Zumbi. A demora do Governo Federal em
concretizar as sugestões dos grupos de trabalho reforçou a incredulidade
com que uma parcela significativa da milincia afro-brasileira, em que
predominam os partidários do PT, havia recebido a criação destes, assim
como manifestações anteriores do presidente Fernando Henrique Cardoso,
137
Carlos Alberto Medeiros
aomesmotemporeconhecendoaexistênciadoracismoedadiscriminão
racial no Brasil e declarando-se favorável a uma ão afirmativa em prol
dos afro-brasileiros, mas com a ressalva de que se deveria fazê-lo “com
criatividade”, ou seja, sem copiarmodelos estrangeiros(SOUZA, 1997).
Assim, não deixaram de causar surpresa as iniciativas tomadas por esse mesmo
Governo, a partir do final de 2001, quando foram adotadas cotas para negros
nosMinistériodaJustaedoDesenvolvimentoAgrário–emambososcasos,
paraempregadoscontratadosporfirmas“terceirizadas”–,etambémbolsasde
estudo para afro-brasileiros no Instituto Rio Branco, que prepara candidatos para
odifícilconcursodoItamaraty.Nessemesmoperíodo–etambémnaesteirada
ConferênciaMundialcontraoRacismo,aDiscriminaçãoRacial,aXenofobiae
Intolerâncias Correlatas, que se realizara meses antes em Durban, na África do
Sul–,oentãogovernadordoRiodeJaneiro,AnthonyGarotinho,sancionava
uma lei oriunda da Assembléia Legislativa instituindo uma cota de 40% para
“negros e pardos(sic) nas universidades blicas do Estado, somando-se à reserva,
anteriormente aprovada, de 50% para alunos oriundos das escolas públicas. No ano
seguinte,medidasemelhantefoiinstituída,noâmbitodaUniversidadedoEstado
da Bahia (UNEB);seguida,em2003pelaUniversidadedeBrasília(UnB)epela
Universidade do Estado de Mato Grosso do Sul (UEMS), que implementava uma
cotaparaíndios;etambémpelaFundãoJoaquimNabuco,deRecife(40%para
afro-descendentesemtodososseuscursos).Simultaneamente,diversosmunicípios
doEstadodeSãoPaulo(Jaboticabal,Cubao,Jundiaí,Piracicaba)implantavam
cotas de 20% para negros nos concursos para o funcionalismo público, enquanto
o prefeito de Porto Alegre elaborava projeto de lei complementar, com o mesmo
propósito, estabelecendo esse percentual em 10%. Desde então, outras doze
universidadesadotaramcotasparanegroseíndios:asuniversidadesfederaisda
Bahia, do Paraná, de Alagoas, de Juiz de Fora e de São Paulo; e as universidade
estaduais de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Montes
Claros, enquanto a Universidade Estadual do Amazonas restringiu a medida aos
estudantesdeorigemindígena.Nestemomento,aUniversidadeFederaldaBahia
e a Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio) estudam a adoção de cotas para
negros, enquanto a Universidade Federal do Rio de Janeiro examina um projeto
de reserva de vagas para alunos provenientes da rede pública. As discussões teóricas
foram, enfim, ultrapassadas pela realidade: contrariando as previsões de um bom
númerodeestudiososderelaçõesraciaisnoBrasil–muitosdeles,favoráveisa
essetipodepolítica,comoThomasSkidmore,GeorgeReidAndrews,Antônio
SérgioGuimarães,CarlosHasenbalgeoutros–,aaçãoafirmativaembenefício
dos negros começava a se tornar uma realidade no Brasil.
138
Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
Iniciava-se,então,batalhatravadaprincipalmentenoscamposjurídicoeda
mídia,queseencontra,nestemomento,emplenocurso.Maisimportanteque
isso,contudo,équeapolêmicaemtornodaaçãoafirmativatemobrigadoa
elite intelectual brasileira a se engajar numa discussão considerada extremamente
incômodaedesconfortávelentrenós–adiscussãoderaçaederacismo,que
muitos consideravam definitivamente resolvida desde a década de 1930, com as
formulações de Gilberto Freyre. Para os que contestam a suposta “democracia
racial” brasileira, porém, nada poderia ser mais auspicioso, por nos oferecer uma
oportunidadeímpardeconfrontarumproblemaespinhoso,decujasolução
dependeoprópriofuturodestepaís.
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Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso
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141
Ações AfirmAtivAs e DiversiDADe Étnico-rAciAl
Valter Roberto Silvério
“A universidade brasileira sempre teve cotas! 100% para brancos.”
(Hélio Santos)
Negros e brancos o chegam ao mundo com a consciência das circunstâncias
que transformaram as diferenças fenótipicas em desigualdades de oportunidades
sociais com base na cor, na raça e no pertencimento étnico. O primeiro passo,
a meu ver, para (des) construir os efeitos perversos dessas desigualdades sociais,
que têm como fonte primordial hierarquias raciais, é reconhecê-las na magnitude
de sua influência na vida econômica, política e cultural daqueles que foram
construídos como subalternos.
Um dos temas mais importante na atualidade é precisamente a natureza
global da etnicidade
1
e a prevalência e permanência do conflito étnico no
mundo moderno.
Tal conflito gira, normalmente, em torno do poder, isto é, o principal foco
de disputa entre os grupos étnicos na sociedade. Assim, uma das preocupações
centrais de quem quer pesquisar o tema das relações étnicas e raciais deve incidir
sobre a natureza das relações de dominação e subordinação. As relações raciais e
étnicas, de certo modo, sempre foram vistas como manifestações de estratificação
1 É importante distinguir a etnicidade de diferenciação racial. Enquanto esta última ocorre em termos de
diferenças físicas que se acredita serem biologicamente herdadas, a diferenciação étnica se dá em termos de
diferenças culturais que têm de ser aprendidas. Essa distinção é confundida na teoria racista não-científica,
a qual pressume que o comportamento cultural, tanto quanto as características físicas, é biologicamente
herdado. Uma das características da etnicidade e dos grupos étnicos para cuja formação ela contribui
é, porém, que as peculiariedades étnicas são comuns aos que são parentes biológicos. O processo de
aprendizagem através do qual se adquire a cultura ocorre entre pais e filhos biológicos; portanto, não
surpreende que raças e grupos étnicos às vezes se sobreponham. Uma raça pode ser também um grupo
étnico e um grupo étnico pode constituir-se exclusivamente de indivíduos de uma mesma raça. Não
obstante as raças serem grupos bem mais amplos (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996:282-283).
142
Ação Afirmativa e Diversidade Étnico-Racial
e do conflito que se desenvolve em busca das recompensas societais poder,
riqueza e prestígio. Os estudos em geral enfatizam tanto o plano estrutural ou
macro do padrão de relações étnicas e raciais quanto o plano psicológico. Ou
ambos, uma vez que o último atravessa o primeiro.
Ao se discutir a natureza das relações étnicas rios autores observam
que elas ganham maior visibilidade em sociedades multiétnicas, isto é, que
compreendem numerosos grupos raciais, religiosos e culturais. Tal diversidade
pode ser chamada de étnica quando inclui diferenças lingüísticas, religiosas,
raciais e culturais entre os grupos. Como pode se ver a heterogeneidade étnica
é uma característica das sociedades em vários continentes e, portanto, em vários
estágios de industrialização.
O industrialismo, enquanto sistema de organização econômica e social
surgido da Revolução Industrial nos legou, dentre várias outras coisas,
tanto a influência do aspecto material sobre o moral e intelectual quanto a
“promessa” de superação de todos os particularismos presentes nas organizações
socioeconômicas anteriores. É por isso que vários cientistas sociais têm mantido
que a industrialização e as forças da modernização tenderiam a diminuir o
significado de raça e etnicidade em sociedades heterogêneas.Eles acreditavam
que com o desmantelamento de pequenas unidades sociais particularistas e a
emergência de grandes e extensas instituições burocráticas impessoais as lealdades
pessoais (e dos povos) e identidade seriam primariamente direcionadas para o
estado nacional mais que para comunidades raciais e étnicas. O desenvolvimento
oposto, no entanto, parece ter caracterizado o mundo contemporâneo.
Duas assertivas parecem emblemáticas ao apontarem evidências para
sustentar a tese de que a modernização resulta no aumento de demanda por
reconhecimento da diversidade étnico-racial e que a industrialização não
necessariamente propicia relações étnicas benignas ou substituição da ordem
étnica anteriormente estabelecida.
Quais são as evidências?
Em nações industrializadas, grupos étnicos, aparentemente bem absorvidos
naquelas sociedades nacionais, têm enfatizado sua identidade cultural,
novos grupos tem demandado reconhecimento político. Os exemplos são o
movimento pelos direitos civis dos negros americanos na década de 60 e as
várias manifestações racistas no continente europeu, nos anos 80, para muitos
em decorrência das mudanças políticas e econômicas que incidiram sobre
aquela região do globo.
143
Valter Roberto Silvério
No terceiro mundo após a Segunda Grande Guerra Mundial, com o fim
oficial da dominação imperialista exercida pelo poder europeu, o grande número
de novas nações e a artificialidade das fronteiras, as manifestações e demandas
por reconhecimento não têm sido menores.
Em resumo, foas étnicas e raciais, embora variando em escopo e intensidade,
são importantes bases tanto para clivagens (separão, diferenciação) quanto para
solidariedade grupal em quase todas as sociedades nos dias de hoje. Mais do
que isso, o impacto das transformações contemporâneas parece não diminuir as
lealdades pessoais e as identidades referidas a comunidades raciais e étnicas.
Os intensos e extensos debates acadêmicos e jornalísticos em torno da validade do uso
da categoria raça, por exemplo, são apenas um dos sintomas de que algo que se acreditava
equacionado, tanto no plano do pensamento quanto nas práticas sociais, aparentemente,
tem se revelado a face mais cruel do industrialismo. Paralelamente à degradação do meio
ambiente observamos um aprofundamento sem precedentes das desigualdades sociais,
com base nas hierarquias raciais e étnicas passadas que atravessam os dias do tempo
presente, mais visíveis entre os grupos branco e negro. O problema, portanto, é como
vamos pensar o nosso futuro, já que no presente observamos que as diferenças naturais
foram instrumentalizadas tecnologicamente visando a manutenção do poder, da riqueza
e do prestígio em mãos de poucos eleitos, coincidentemente brancos.
Pensar o futuro nos obriga a rever o passado de forma crítica sem o que não
será possível entender porque os subalternos procuram alterar suas condições
de acesso em diferentes dimensões da vida social.
No caso dos negros e do movimento social negro, o retorno do debate sobre raça
tem sido estratégico para desvendar os caminhos da constrão social da diferença que
se transformou em desigualdade. A compreensão crítica do passado é fundamental
para entender o presente e construir um futuro em que a raça efetivamente não seja
um operador permanente de desigualdades de oportunidades.
A demanda dos negros brasileiros por reparações, que hoje resultam em
políticas de ações afirmativas, não é fato recente, atravessa o século XX em
diferentes manifestações. Contudo governantes e sociedade mantiveram-se
indiferentes, até 2001, quando o Brasil assumiu, na Conferência Mundial de
Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,
o compromisso de elaboração e execução de políticas de combate ao racismo
e a toda sorte de discriminações.
O que é ação afirmativa?
144
Ação Afirmativa e Diversidade Étnico-Racial
Em uma definição formal as ações afirmativas referem-se a esforços
orientados e voluntários empreendidos pelo governo federal, estados, pelos
poderes locais, empregadores privados e escolas para combater discriminações
e promover oportunidades iguais na educação e no mercado de trabalho para
todos (APA, 1996:2). A meta da ão Afirmativa é eliminar discriminações
contra mulheres e minorias étnicas combatendo os efeitos das discriminações
passadas com vistas à (re) estabelecer o equilíbrio social (KRAVITZ, 1997:
vii).
Para o caso norte-americano, Reskin (1998)
delineou três tipos de AA
utilizados em organizações: aquelas requeridas pelo governo federal; as
ordenadas pelos tribunais; e as voluntárias.
Uma ordem executiva do Presidente Lyndon B. Johnson dos Estados
Unidos de 1965 (EO 11246) criou e orientou as primeiras políticas de AA,
e as legislações subseqüentes, tanto para aplicão junto aos órgãos públicos
quanto para todas as organizações privadas que negociavam contratos com
o governo.
No fundamental, os planos de AA orientados pela EO 11246 exigiam
dois procedimentos: a) que as organizações monitorassem estatisticamente
a composição étnico-racial e de nero de sua força de trabalho, prestando
especial atenção para a sub-representação daqueles grupos; b) se confirmada
a sub-representação de pessoas de cor e de gênero, ou ainda subutilização de
mulheres e de não-brancos qualificados, o segundo componente do plano
deve ser implementado, por meio de metas flexíveis não se constituindo em
cotas ou tratamento preferencial injustificado.
Os opositores destas políticas tendem a enxergá-las como de tratamento
preferencial e, também, monolíticas. O mecanismo primário pelo qual operam
as AAs é a auto-monitoração, mas todos os anos, um certo percentual de
empresas contratadas pelo governo federal o auditadas pela agência ou
escritório de governo que acompanha tais programas. Assim, uma distinção
importante é a diferença entre uma política de monitorização e uma política
preferencial.
Nos Estados Unidos da América o foco na escola elementar e secundária
é recente e se deu, aparentemente, por meio do No Child Left Behind Act
de 2001, que requer que as escolas monitorem seu sucesso entre diferentes
categorias de estudantes. Mas o foco principal tem sido a admissão nas
145
Valter Roberto Silvério
faculdades, centros universitários e universidades. A ão afirmativa na
educação superior tem sido modificada legalmente em inúmeras ocasiões
pelos norte-americanos.
Para Weisskopf (2004), que denomina sua perspectiva de pragmática, a
ação afirmativa envolve escolhas com benefícios e custos sociais. Esse autor
observa que os aspectos morais em qualquer escolha não favorecem uma
análise pragmática em termos de custos e benefícios.
Um aspecto relevante da estratégia argumentativa do autor é o uso do termo
discriminação positiva para englobar tanto a prática de seleção de membros
dos grupos étnicos sub-representados Under-Represented Ethnic Group
(EREG) que ele associa à ação afirmativa e aos Estados Unidos, quanto as
políticas de reserva de posições e/ou vagas praticadas na Índia. Desta forma,
o termo discriminão positiva compreende aqueles dois procedimentos de
seleção.
Nas sociedades contemporâneas existem inúmeros grupos elegíveis
para uma discriminação positiva. Na prática, no entanto, as políticas de
discriminação positiva quase sempre estão orientadas para membros de um
grupo identitário (ou grupo que assume uma identidade étnica e ou racial),
isto é, um grupo que é definido em termos de características que não o
matéria de uma escolha voluntária, geralmente determinada pelo nascimento
e raramente alterada ou altevel. As características que definem um grupo
identitário são tipicamente físicas ou culturais, tais como “raça
2
, casta, tribo,
etnicidade e gênero.
O autor, no caso específico, centra sua atenção nas políticas de
discriminação positiva em favor dos membros de grupos identitários definidos
em termos étnicos, incluindo raça, casta e tribo. E que estejam em situação
de desvantagens, portanto, sub-representados nas posições socialmente mais
almejadas, geralmente, ocupadas por membros dos setores dominantes
que formam uma elite social. No caso americano, os grupos que têm sido
favorecidos pela ação afirmativa são os africanos americanos, os hispanos
americanos e nativos americanos originários dos Estados Unidos da América.
No caso indiano, os dalits (anteriormente conhecidos como membros das
2 Como vários autores têm chamado a atenção, o termo “raça”, como usado no contexto de grupo identitário,
não corresponde a qualquer conceito biológico científico e geneticamente válido; a definão dos membros de
um grupo “racialé socialmente determinado. Veja-se, por exemplo, American Anthropological Association
(1988).
146
Ação Afirmativa e Diversidade Étnico-Racial
castas intocáveis e que, oficialmente, após a independência da Índia em 1947,
passaram a serem classificados como “castas programadas”) e adivasis (grupos
tribais que geralmente vivem em áreas afastadas, do ponto de vista geográfico,
e que oficialmente foram classificados como “tribos programadas”).
Dois aspectos fundamentais são levantados pelo autor ao se debruçar sobre
a origem e a natureza da política de discriminação positiva nos dois países.
O primeiro deles é, precisamente, em relação aos fundamentos sociais e ou
acontecimentos que estão na base e na origem da política em si. O outro
aspecto relevante está relacionado às possíveis variações ocorridas na política
de discriminação positiva ao longo de um determinado período de tempo.
A chave para entender possíveis mudaas ou (re)significações na política de
discriminação positiva é a permanente observação das alterações no contexto
histórico que lhe deu origem, provocadas pela própria política ou por outros
fatos ou fenômenos sociais.
Em contraste com a política de oportunidades iguais, a AA é uma
política que reconhece os obstáculos sociais, para determinados grupos,
de fato existentes. Uma pressuposição presente nas políticas de AA é que
existem impedimentos estruturais reais que nem sempre tomam a forma de
discriminação manifesta, inclusive em certas políticas que, aparentemente,
são neutras mas que podem operar desvantagens para indivíduos de gênero
e ou etnicidade diferente de outros.
No Brasil os afrodescendentes tiveram reiteradamente negado o direito de
viver e atuar enquanto cidadãos, ficando os avanços no sentido desta conquista
unicamente às expensas da própria população negra, por meio de iniciativas de
diferentes grupos que compõem o Movimento Negro. Uma sociedade tácita e
deliberadamente excludente como a brasileira, tal qual comprovam os estudos
realizados no IPEA, de mentalidade racista e discriminadora, cultiva valores
que justificam exclusão de muitos e privilégios para uns poucos que se têm
como superiores (HENRIQUES, 2001; JACCOUD; BEGGIN, 2002).
Os negros brasileiros, assim como outros grupos postos à margem pela
sociedade, resistem ao plano de ideais, papéis, condutas que se lhes pretende
impingir. Afirmam e querem ver confirmadas sua história e sua cultura, tal
como as herdaram e vêm reconstruindo em dolorosas relações que lhes são
impostas. Pretendem ter reparadas as injustiças de que são vítimas e assim
receber as condições devidas a todos os cidadãos de tomar parte da elite
intelectual, científica, política.
147
Valter Roberto Silvério
É neste quadro que deve ser interpretada a exigência dos negros brasileiros,
descendentes dos africanos que para foram trazidos escravizados, por
reparações, por políticas de ações afirmativas, por metas, tais como cotas nas
universidades.
Estas demandas têm de ser entendidas como indenizações devidas, pela
sociedade, àqueles a quem ela tem impedido vida digna e saudável, trabalho,
moradia, educação, respeito a suas raízes culturais, à sua religião. O pagamento
da dívida precisa ser concretizado mediante políticas, organizadas em
programa de ações afirmativas, que eliminem as diferenças sociais, valorizando
as étnico-raciais e culturais.
Os programas de ões afirmativas requerem metas a curto, médio e longo
prazos, recursos financeiros, materiais, além de profissionais competentes,
abertos à diversidade étnico-racial da nação brasileira; sensíveis aos graves
problemas sociais, econômicos que dela fazem parte; comprometidos com
justiça; capazes de combater seus preconceitos contra pessoas e grupos e de
com estes interagir, sem tentar assimilá-los a valores, objetivos, orientação
de vida que se prentenderiam universais; que, ao contrário, propõem-se, a
respeitar as diferentes raízes que constituem a nação brasileira indígena,
africana, européia, asiática e, com seus representantes, a redimensionar a
vida das instituições, reeducar as relações étnico-raciais, entre outras.
Um programa de ões afirmativas exige, pois, que se reconheça a
diversidade étnico-racial da população brasileira; que se restabeleçam relações
entre negros, brancos, índios, asiáticos em novos moldes; que se corrijam
distorções de tratamento excludente dados aos negros; que se encarem os
sofrimentos a que têm sido submetidos, não como um problema unicamente
deles, mas de toda sociedade brasileira.
As cotas para negros, política institucional de cada vez maior número de
universidades brasileiras, como se pode ver nos quadros 1, 2 e 3 abaixo e nos
anexos, têm tornado candente, a partir da aceitação ou rejeição desta meta de
programas de ações afirmativas, a discussão a respeito: das diferentes condições
de educação oferecidas a diferentes segmentos da população; de privilégios
que têm se restringido a alguns grupos; do papel da educação superior, de a
quem e a que ela serve; dos critérios para ingresso na universidade.
Universidades blicas com reserva de vagas:
148
Ação Afirmativa e Diversidade Étnico-Racial
Quadro 1 – Reserva de vagas sociais e étnico-raciais
(negros e indígenas)
Universidades Federais Universidades Estaduais
1)Universidade de Brasília (UnB)
1)Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ)
2)Universidade Federal da Bahia
(UFBa)
2)Universidade Estadual da Bahia
(UNEB)
3)Universidade Federal do Para
(UFPR)
3)Universidade Estadual de Londrina
(UEL)
4)Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP
4)Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul (UEMS)
5)Universidade Federal de Alagoas
(UFAL)
5)Universidade Estadual Minas
Gerais (UEMG)
6)Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) (2006)
6)Universidade Estadual de Montes
Claros (UNIMONTES)
7)Universidade Federal do Pará
(UFPA) (2006)
7)Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF)
8)Universidade Estadual de Goiás
(UEG)
9)Universidade Estadual do Mato
Grosso (UNEMAT)
Quadro 2 – Reserva de vagas sociais e étnico-raciais
(somente indígenas)
Universidades Federais Universidades Estaduais
1)Universidade Estadual do
Amazonas – UEA
149
Valter Roberto Silvério
Quadro 3 – Reserva de vagas para estudantes que realizam
o ensino médio em escolas públicas
Universidades Federais Universidades Estaduais
1)Universidade Federal do Tocantins – UFT
2)Escola Superior de Ciências da Saúde – ESCS/
DF(escola pública)
Os opositores das cotas para negros nas universidades formulam profecias
de que seriam nocivas para a excelência da formação acadêmica. Julgam tratar-
se simplesmente de cópia de políticas adotadas, nos Estados Unidos, a partir
dos anos 1960, sob pressão do movimento dos Direitos Civis. Entretanto, estes
críticos parecem ignorar que estão reagindo com atitudes e questionamentos
muito similares aos então expressos por estadunidenses e, como eles, baseando
suas posições em opiniões, sem evidências concretas, dados de pesquisa que
as sustentem.
Em suas contestações, há os que não reconhecem a existência de uma linha
divisória de cor ou de discriminação racial no Brasil; os que sobrepõem, a
qualquer outra forma de clivagem social, a problemática das classes sociais, em
especial da pobreza. Estes indagam, por exemplo: Por que não dar cotas para
escola pública em lugar de cotas para estudantes negros? Por que não dar cotas
para estudantes de baixa renda? Por que não melhorar o ensino público? As
cotas não “americanizam” o sistema de ingresso nas universidades brasileiras?
Como saber quem é negro no Brasil?
3
os que aceitam a existência de uma linha diviria de cor ou de
discriminação racial, mas consideram que tais processos, no Brasil, são menos
perniciosos aos negros do que nos Estados Unidos. Perguntam, eles: As cotas
não acirraram o racismo? Não acabam por inferiorizar ainda mais os negros?
Não vão levar a que os estudantes negros que ingressem pelo sistema de cotas
sejam discriminados dentro da universidade?
Outros reconhecem que raça tem sido um critério fundamental de alocação
de posições no mercado de trabalho e no sistema de poder e, implícita ou
explicitamente, ponderam, no entanto, que a admissão na educação superior
3 Quanto a esta última pergunta, particularmente, veja-se Parecer CNE/CP 003/2004 que trata de Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana.
150
Ação Afirmativa e Diversidade Étnico-Racial
que inclua raça entre seus critérios, beneficiando os negros, acarretará prejuízos
para os brancos. E procuram saber se não se estaria criando uma elite negra que
viria a competir com a elite branca, tendo esta de repartir privilégios.
Outros ainda acreditam que raça condiciona a capacidade intelectual das
pessoas e neste caso a ausência dos negros nos estabelecimentos de educação
superior dever-se-ia à natural incapacidade. Os defensores desta posição temem
que o nível acadêmico, a excelência da educação superior sejam prejudicados
com a presença de muitos negros nos bancos universitários. Embora não o
explicitem, retomam implicitamente argumentos do racismo científico do
século XIX.
Para responder a esses questionamentos, é preciso, antes de mais nada
problematizar: afinal qual é mesmo a função social da educação superior? Não
dúvida, salientamos, de que o seu foco é atender às necessidades da sociedade
no que tange ao desenvolvimento científico e tecnológico; ao desenvolvimento
econômico, sem descuidar, entretanto, do desenvolvimento humano, o que
implica ampliação sistemática da qualidade de vida, entendida não apenas
na dimensão do acúmulo da riqueza material. Isto exige que seja propiciada
formação para atuar numa sociedade multicultural e pluriétnica, para garantir
a participação de todos como cidadãos.
Assim sendo, para cumprir a função social da educação superior, que
capacidades e aptidões devem ser exigidas dos que nela ingressam? O que ela
oferece e tem a proporcionar? Questões como estas exigem, como conclui
Ribeiro (1999: 356) a respeito da universidade brasileira, que se realize análise
fundamentada da relação legitimidade X competência da universidade, “não
de forma abstrata, mas tendo como referência os interesses diferenciados e
até antagônicos de classes, dos gêneros, das etnias e das raças presentes nas
universidades”, ou porque representantes seus as freqüentam ou porque
desejam nelas ingressar.
Como se , uma universidade socialmente comprometida não pode desconhecer
a diversidade que come a sociedade, tampouco restringir seu reconhecimento
ao discurso. Pesquisas mostram ser a diversidade racial de professores e estudantes
essencial no ambiente universirio, tanto para otimizar o ensino e aprendizagens das
marias de estudos, como para educar convenientemente as relações entre pessoas
de diferentes heraas culturais e situões sociais, como tamm para criar um
ambiente acadêmico mais rico e profundamente desafiador. Entre formados por
instituições que incorporam o respeito e valorização da diversidade a suas metas, tem-
se verificado convio respeitoso no trabalho e na vida social, num mundo que cada
151
Valter Roberto Silvério
vez mais reconhece as diferenças que distinguem pessoas e grupos. Tem-se observado,
entre eles, também, marcante aperfeiçoamento de competências para liderança, além
de benecios nos ganhos salariais, tanto entre negros como brancos (AMERICAN
Council of Education; AMERICAN Association of Univerty Professors, 2000: 2-4;
BOWEN, W. G.; BOK, D., 2004; ORFIELD, Gary, 2001).
A educação superior que admite o ingresso diferenciado, incluindo reserva
de vagas, para negros e outros marginalizados, engaja-se na luta por justiça social
e racial, ao buscar corrigir e suprimir discriminações a que esses grupos m
sido submetidos. Isto não pode ser entendido como esmola ou favorecimento
indevido, uma vez que os ingressantes terão comprovado compencias mínimas
para empreender estudos em nível superior. Cabe ao estabelecimento de ensino
que os recebe fornecer todos os meios, apoio material, pedagógico e até mesmo
afetivo para que cumpram com êxito o percurso acamico.
Em nosso país, costumam alguns professores universitários deixar unicamente
por conta dos estudantes o sucesso ou insucesso nos estudos. Alguns exibem, por
incrível que pareça com certo orgulho, o alto número de reprovações ou abandono
nas disciplinas que lecionam. Outros chegam a culpar os professores da educão
média e até mesmo da fundamental, demonstrando que não se vêem de forma
alguma comprometidos com a aprendizagem de seus alunos. Estes estão entre os
críticos mais ferinos das ações afirmativas. Eles, como todos os docentes, estão
sendo compelidos a enfrentar a complexidade de conviver e compreender as
visões de mundo, os anseios e metas de grupos raciais e sociais diferentes, a rever
cririos de selão de ingresso, a retomar os métodos de ensino que adotam, a
redimensionar contdos, não para simplificá-los, ao contrário, para aprofundá-
los, incluindo as principais contribuões para a humanidade produzidas nos
diferentes continentes, por diferentes civilizações.
4
A mentalidade que põe os conhecimentos, compencias, valores a serem
aprendidos na vida universitária como que numa redoma dificilmente rompida
para ser alcançada tem de se extinguir. Os negros querem usufruir da vida
universiria e alcançar o melhor que a educação superior possa oferecer a seus
estudantes; não aceitam as simplificações de que se pretenderia, com currículos e
pedagogias racistas, benefic-los. Em outras palavras, as cotas para negros, índios e
outros grupos marginalizados requerem revisão das relações pedagógicas, das metas
e ações previstas nos planos institucionais dos estabelecimentos de ensino.
4 Veja-se Parecer CNE/CP 003/2004 que trata de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana.
152
Ação Afirmativa e Diversidade Étnico-Racial
Talvez o leitor se pergunte: E como fica o mérito? E a excelência
acadêmica?
Quanto ao mérito no ingresso, destacam Bowen e Bok (2004), ex-reitores de
prestigiosas universidades americanas, em pesquisa que realizaram, fica claro
que decidir quais são os alunos de maior “mérito” depende do que se esteja
tentando realizar em termos educacionais e sociais. Seu estudo, ao lado de
outros (AMERICAN Council on Education, 1999; ORFIELD, Gary; MILLER,
Edwarda, 1998), pondera que os testes de entrada são insuficientes para julgar
competências que venham a garantir sucesso no percurso acadêmico, uma vez
que medem apenas alguns desempenhos e potencialidades. Os autores salientam
que os testes servem para mostrar uma tendência e que conviria que ao lado
deles se encontrassem outras formas de avaliar capacidades. É o que, segundo
Nettles e outros (1998), fazem algumas universidades estadunidenses entre
cujos instrumentos de avaliação das condições para ingresso, além do teste
utilizam o currículo escolar da formação anterior notas, disciplinas cursadas,
atividades extra-curriculares história educacional e social da família, cartas
de recomendação.
Posições alarmistas em torno da queda da qualidade do ensino e perda
da excelência na pesquisa, inspiradas pelo desejo de manter a apropriação
permanente pelo grupo branco das recompensas e benecios advindos do
acesso à educação superior, e de consolidar uma aristocracia intelectual
arrogante e convicta de sua superioridade continuarão trazendo impactos
nefastos para o grupo negro, como demonstram sistematicamente os
indicadores sociais. O desafio, pois, é redefinir os critérios de excelência
acadêmica e cienfica, sem perder o rigor que é garantido por teorias
educacionais e científicas historicamente situadas, sistematicamente testadas,
questionadas, reformuladas.
A hisria detém as provas da obrigação da sociedade e também da
universidade para com os negros, o que assegura a autenticidade do seu direito de
acesso à educação superior, por meio de ações afirmativas
5
. Cabe lembrar, entre
tais provas, o crime contra a humanidade que constituiu a escravização e tráfico
dos africanos, a desumanidade do tratamento que receberam os escravizados
no Brasil, e o descaso com que vem sendo considerados seus descendentes, ao
longo dos 116 anos após a abolição do regime escravista, mantendo-os excluídos
dos direitos dos cidadãos.
5 Para aprofundar a discussão, consulte-se Silva e Silvério (2003).
153
Valter Roberto Silvério
Como bem salientou Franz Fanon, os descendentes dos mercadores de
escravos, dos senhores de ontem, não m, hoje, de assumir culpa pelas
desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a
responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e
juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir
relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres
humanos e cidadãos. Não fosse por estas razões, seria pelo fato de usufruírem
do muito que o trabalho escravo possibilitou ao país.
Immanuel Wallerstein afirmou recentemente que “o racismo es disseminado
por todo o sistema-mundo. Nenhum canto do planeta está livre dele, como
característica central das políticas locais, nacionais e mundiais” (Wallerstein,
2004: 262). Daí ele propor “fazer do anti-racismo a medida definidora da
democracia” (Wallerstein, 2004: 262). O modo mais eficaz para começar a lutar
contra esse racismo que se globalizou é tentar erradicá-lo do espaço local em
que atuamos e onde ele tem se reproduzido secularmente: nas universidades
públicas brasileiras e nos discursos das nossas Ciências Humanas e Sociais.
Assim sendo, com o debate e as ações práticas no campo das relações
raciais podemos, brancos e negros, encontrar novos caminhos para construção
de uma sociedade na qual ninguém tenha que negar ou apagar sua identidade
étnico-racial e o hedonismo seja uma opção para todos que quiserem por ele
se orientar, e não uma “imposição” das “castas” que insistem em não permitir
que as instituições brasileiras sejam anti-racistas na consciência e multirraciais
em sua composição.
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- Primeira e segunda versão do anteprojeto da lei de educação superior,
também conhecido como “reforma universitária”, divulgadas pelo Ministério
da Educação brasileiro, 2005.
- Coletânea de textos do Programa São Paulo: educando pela diferença
para a igualdade. Os cursos são dirigidos à complementação da formação de
professores do ensino básico (fundamental e médio), da Secretaria Estadual de
Educação do Estado de São Paulo, para implementação da lei 10.639/03. O
programa foi organizado e é coordenado em sua implementação por professores
e pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos.
- Parecer CNE/CP 003/2004, que trata de Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
cultura Afro-Brasileira e Africana.
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BrAnquituDe e PoDer A questão DAs cotAs PArA negros
Maria Aparecida Silva Bento
Quando uma pessoa branca se detém diante de uma banca de jornal,
o estranha que, das dezenas de revistas expostas, quase 100% exibam
brancos na capa e com freqüência no seu interior. Este contexto é
supostamente natural para o observador. No entanto, quando a pessoa
visualiza, na mesma banca, uma única revista com imagem de negros na
capa, intitulada Raça A Revista dos Negros Brasileiros, ela imediatamente
reage: racismo às avessas! Uma revista só para negros? O que se observa
neste episódio guarda semelhaas com a dinâmica que se estabelece no
debate sobre cotas: cotas para negros e cotas para brancos. As cotas de
100% nos lugares de poder em nossa sociedade não o explicitadas. Foram
construídas silenciosamente, ao longo de culos de opressão contra negros
e ingenas, e foram naturalizadas.
Os brancos convivem com naturalidade com essa cota de 100%. Alguns
mais progressistas reconhecem que ela traz consigo o peso da exclusão
do negro, mas essa dimensão é silenciada. Isto porque reconhecer a
desigualdade é até posvel, mas reconhecer que a desigualdade é fruto da
discriminação racial, tem custos, uma vez que este reconhecimento tem
levado à elaborão de legislação e compromissos internos e externos do
Brasil, no sentido do desenvolvimento de ões concretas, com vistas à
alteração no status quo.
Em um contexto, onde os lugares de poder são hegemonicamente brancos,
e a reprodução institucional desses privilégios é quase que automática, as
mudanças exigem uma explicitação por parte dos excluídos, que aparece
na reivindicação de cotas para negros. Ou seja, no caso dos negros, as cotas
têm que ser declaradas. E daí surgem as barreiras. Barreiras em defesa dos
privilégios. As barreiras interpostas aos processos de mudança na distribuição
de negros e brancos no espaço institucional são barreiras fortes, profundas,
166
Branquitude e poder – a questão das cotas para negros
que não cedem com facilidade. A dimensão primária das forças que estão
em jogo ganância, soberba e voracidade combina-se com instâncias mais
circunstanciais, medo do desemprego, das “minorias” e da violência. E esta
combinação caracteriza alianças fortes e resistentes.
Quando se trata de pessoas progressistas, que proferem discursos contra
a opressão, contra a dominação do homem pelo homem, essas barreiras
são igualmente fortes, mas a resistência aparece de maneira difusa, como
pude constatar em minha tese de doutorado Branquitude e poder nas
organizações empresariais e no poder público (BENTO, 2002): “Não vejo os
negros, nunca convivi com negros”; “que estranho”; “não lembro da história
desse país, escravidão?”. Outras pérolas argumentativas também surgem: “o
problema atual é resultado do fato de que os negros foram escravos”; “as
mudanças nas relações raciais têm que ser lentas e graduais”; é necessário
competência para ocupar lugares de destaque e poder dentro da instituição”;
“estão querendo baixar o nível das nossas instituões” (sic) etc. E as reações
podem se intensificar, porque, ao defender as cotas de 100%, alguns brancos
em lugares de poder na dia ou seja, formadores de opinião revelam uma
virulência, uma voracidade assustadora que estimulam reações agressivas de
jovens brancos. Vislumbrar a possibilidade de ver seu grupo racial perder
o filão de privilégios que mantém séculos, torna as lideranças da nossa
mídia irracionais, à beira de um ataque de nervos. Como podemos observar
cotidianamente, embora muitas pessoas reconheçam que brancos têm
mais chances que negros em nossa sociedade, ante o racismo no Brasil, a
resistência à implementação de políticas que visem a corrigir o efeito desta
discriminação é bastante grande.
Os argumentos são nada criativos, e se repetem: “essas políticas são
assistencialistas, protecionistas, geram a discriminação às avessas”. Evoca-
se a justiça para os brancos, diante da possibilidade de políticas voltadas
especificamente para os negros “e os 19 milhões de brancos pobres, ficarão
excluídos das cotas?”.
Numa pesquisa realizada pelo CEERT (BENTO;
SILVA, 2002) a partir de
artigos de revistas e jornais de grande circulação nacional.
1
sites e mensagens
1 A pesquisa foi feita através de: mensagens via e-mail da Comissão Especial de Direitos Humanos do
Ministério da Justiça; mensagens via e-mail do grupo Mulheres Negras; e nos seguintes sites: revistas
Veja, Época e Isto É; jornais Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo. Os jornais foram:
Correio Braziliense, Folha de São Paulo, O Globo, O Estado de São Paulo, Jornal do CREMESP, Folha
de Pernambuco, BG Press, Correio do Povo/RS, O Estado de Minas, Jornal do Brasil, Jornal de Brasília
e O Norte/PB.
167
Maria Aparecida Silva Bento
transmitidas via e-mail, pudemos observar que o embate relativo às cotas para
negros nos oferece, como efeito colateral, a possibilidade de melhor conhecer
o branco.
Algumas estratégias e linhas de argumentações se repetem no discurso de
atores muito diferentes, que ocupam lugares sociais diversos jornalistas;
acadêmicos (cientistas sociais e políticos) brasileiros ou norte-americanos; juízes
e advogados; dirigentes sindicais, políticos (senadores, ministros, presidente da
República) de diferentes matizes político-partidárias –, mas que compartilham
algo entre si: a condição de brancos.
Uma forma comum utilizada por aqueles que criticam as cotas é iniciar
o artigo com um discurso aparentemente favorável a elas, ou “politicamente
correto”, como, por exemplo, ressaltando a gravidade e a “inaceitabilidade” da
situação de precariedade dos negros no Brasil, para em seguida afirmar que,
apesar disso... é contrário à adoção das cotas. Os artigos de posição contrária
referem-se em geral especificamente às cotas para negros, e muitos deles
parecem ora desconhecer o caráter mais amplo das políticas de ação afirmativa
(BENTO; SILVA, 2002), ora, em alguns casos, serem favoráveis a essas políticas,
mas contrários à adoção de cotas. As críticas mais virulentas referem-se mais
especificamente às cotas para negros nas universidades públicas, tema que
parece ter gerado mais debate neste período, especialmente porque em curto
prazo pode gerar alteração no perfil racial dos lugares de poder e mando e
também por ter sido mais amplamente divulgado pela mídia. O tema das
cotas para negros em determinados cargos públicos (em alguns setores federais)
também chegou à imprensa, mas parece não ter causado tantos debates nem
polêmicas.
Uma outra estratégia bastante comum nos discursos sobre ação afirmativa
e cotas é citar alguma experiência de adoção de cotas em andamento e/
ou alguns dos argumentos utilizados em sua defesa, para em seguida criticá-
los. Não temos como comentar detidamente cada um dos argumentos que se
seguem. Na verdade, cada um mereceria um artigo, uma vez que explicitam as
artimanhas da ocupação e manutenção de lugares de poder, e nos possibilitam
conhecer melhor como uma realidade condenável pode ser travestida, segundo
interesses nem sempre explicitados, e ser reproduzida incansavelmente:
O problema das desigualdades (e da situação dos negros) no Brasil, na
verdade, é de ordem social, e não racial. Portanto, sua solução viria através
de políticas voltadas para a população pobre.
168
Branquitude e poder – a questão das cotas para negros
São fartos os dados dos principais institutos de pesquisa reconhecidos
nacionalmente, como IBGE (1998) ou IPEA (2000), mostrando que entre os
pobres, os negros são a esmagadora maioria – de cada 10 pobres 7 são negros.
Negros são maioria entre os pobres por serem discriminados enquanto
negros.
Cotas e ações afirmativas vão permitir que se forme uma elite negra: a
grande massa negra continuará excluída.
Não vimos este argumento “socialista”, digamos assim, anteriormente, em
defesa da massa de excluídos, no que diz respeito aos brancos.
– E os 19 milhões de brancos pobres, ficarão excluídos?
Que bom que a discussão sobre as cotas para negros traz à tona a
preocupação com os jovens brancos excluídos. Os jovens negros têm que se
apropriar deste efeito democratizador que a sua luta vem provocando na
sociedade brasileira.
– Negros em geral não têm qualificação para entrar nas universidades e/ou
para ocupar cargos de chefia ou mais bem remunerados. Portanto, este
problema deve ser solucionado “pela raiz”, ou seja, através da melhoria
do sistema de ensino brasileiro, de maneira que atinja a todos igualmente,
independente de raça ou cor.
Este argumento parece conter a idéia de que os negros seriam incapazes
de cursar uma faculdade de qualidade ou ocupar cargos de chefia; bem como
a idéia de que a cor/raça da pessoa “não importa”, de que somos realmente
todos iguais. No entanto parece ignorar (talvez por interesses escusos?) que
se o investimento for igual para todos, os diferenciais entre brancos e negros
serão alterados.
Um estudo feito pelo IBGE (1996) trouxe um quadro bastante interessante.
A evolução da escolarização entre os grupos assume trajetória semelhante,
mantendo-se a diferença entre brancos e negros, ou seja, todos se beneficiam
com mais escolarização, mas a desigualdade entre negros e brancos permanece
inalterada.
Não sabemos quem é negro no Brasil, por conta da grande miscigenão.
Portanto, o podeamos pensar em cotas para um grupo de difícil
definição.
Os estudos da Fundação Seade e Dieese (1999), bem como os do
IBGE (1998), guardam uma grande coerência quanto ao perfil da
condição de negros e brancos, ao longo de décadas, e em diferentes
169
Maria Aparecida Silva Bento
Estados brasileiros. Mas nem precisaríamos deles, é só verificar o
perfil de empresários reunidos, reitores, autoridades governamentais,
comando das forças armadas reunidos etc.
Para detectar a discriminação, ou praticá-la, não dúvidas sobre quem
é negro. A dúvida surge no momento de reparar a violação de direitos e de
implementar políticas públicas.
As cotas são inconstitucionais, ilegais, contrariam o princípio de que
“todos são iguais perante a lei”.
Bastaria consultar a legislão ou a produção de juristas brasileiros (MELLO,
2001, 2001a; SILVA JR, 2003) que vêm se debruçando sobre o assunto, para
constatar a constitucionalidade da proposição de cotas. Conforme o ex-presidente
do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio de Mello, a Constituição
brasileira agasalha a constitucionalidade de ação afirmativas como, por exemplo,
as cotas. Para o ministro Marco Aurélio de Mello, do STF,
Falta-nos, então, para afastarmos do cenário as discriminações, uma
mudança cultural, uma conscientização maior dos brasileiros; urge a
compreensão de que o se pode falar em Constituição sem levar em
conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento
igualitário, de modo a saldar dívidas históricas para com as impropriamente
chamadas minorias, ônus que é de toda a sociedade. (...) É preciso buscar
a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se um fracasso. de
se fomentar o acesso à educação; urge um programa voltado aos menos
favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se meninos e
meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a ombrear com
as demais crianças. E o Poder Público, desde já, independentemente de
qualquer diploma legal, deve dar à prestação de serviços por terceiros uma
outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar
os que têm sido discriminados. (...) Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei
que tenha por objetivo a concretude da Constituição não pode ser acusada
de inconstitucional. Entendimento divergente resulta em subestimar
ditames maiores da Carta da República, que agasalha amostragem de ação
afirmativa, por exemplo, no artigo 7ª, inciso XX, ao cogitar da proteção
de mercado quanto à mulher e da introdução de incentivos; no artigo 37ª,
inciso III, ao versar sobre a reserva de vagas e, portanto, a existência de
quotas –, nos concursos públicos, para os deficientes; nos artigos 170ª e
227ª, ao emprestar tratamento preferencial às empresas de pequeno porte,
bem assim à criança e ao adolescente (MELLO, 2001:5).
2
2 Veja-se, também, Mello (2001b).
170
Branquitude e poder – a questão das cotas para negros
O argumento de incostitucionaldade das cotas para negros, ao que parece,
geralmente é lembrado quanto a proposta de cotas é sugerida para inclusao
dos negros nas universidades publicas brasileiras. Segundo o pesquisador Sales
A. dos Santos (2003),
Em que pese toda a discussão jurídica sobre a constitucionalidade das cotas,
este argumento, ao que tudo indica, não procede, visto que não se tem
conhecimento, até a presente data, de nenhuma ação de inconstitucionalidade
contra as cotas para trabalhadores negros implementadas no poder executivo:
no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e no Ministério da
Justiça (MJ). Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo
do poder judiciário que julga os casos de inconstitucionalidade no nosso
país, também implementou cotas para negros em seus quadros funcionais,
conferindo, na prática, constitucionalidade a este tipo de ação afirmativa
(SANTOS, 2003:108).
As ações afirmativas/cotas discriminam outros grupos também
discriminados – como índios, ciganos e homossexuais – que também
deveriam ter os mesmos direitos a cotas e/ou a políticas específicas.
Idéias e conseqüências associadas a este argumento:
a) “cotas e políticas específicas não resolvem, mas sim criam mais problemas,
uma vez que não seria viável fazer políticas para todos os grupos”;
b) “esta conduta (de criar políticas específicas para cada grupo de acordo
com suas necessidades e particularidades) é discriminatória, uma vez que
contraria o princípio do combate à discriminação.”
Novamente destacamos que o debate sobre cotas tem feito emergir nos
discursos a preocupação com outros grupos. Embora esta preocupação
seja, freqüentemente uma estratégia para relativizar e esvaziar o peso da
discriminação racial contra os negros no Brasil, não deixa de favorecer outros
grupos. Com freqüência as mulheres e indígenas são beneficiados nos processos
de implementação de ação afirmativa e cotas, e agora, com o PROUNI
Programa de Bolsas Universitárias do Governo Federal, com certeza os
jovens brancos pobres. Novamente, parabéns ao movimento de jovens negros,
democratizando o Brasil!
As cotas para negros em universidades diminuiriam a qualidade de seus
alunos e, conseqüentemente, do ensino universitário.
Precisamos definir o que é a tal qualidadedo ensino universitário, pois
a reforma universitária é um assunto permanente e um dos pontos nevrálgicos
é a baixa qualidade que se atribui aos nossos cursos. É salutar que o tema das
171
Maria Aparecida Silva Bento
cotas para negros acelere este debate. Por outro lado, uma pesquisa com cotistas
do Rio de Janeiro que concluíram o primeiro semestre na universidade mostra
que estudantes negros tiveram um desempenho ligeiramente superior quando
comparado ao grupo de brancos (Folha de S. Paulo, 14/12/2003).
3
Segundo
pró-reitor de graduão da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e conclusão
do coordenador de ações afirmativas da Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo), ao analisar-se o balao do processo seletivo da instituição para ingresso:
“Não há diferença entre os aprovados pelos métodos tradicionais e pelas cotas”
e essa igualdade se encontra tanto no desempenho em medicina como em
enfermagem.
As ações afirmativas e as cotas fazem parte de um modelo norte-americano,
que alguns querem artificialmente importar, mas que não funcionaria no
Brasil, uma vez que nossa realidade é outra.
Idéias comumente implícitas ou explicitadas que acompanham este
argumento:
a) “a (única ou mais próxima) experiência que conhecemos de ações
afirmativas (ou de cotas), dos EUA, não foi bem sucedida portanto, não
seria aqui também”;
b) “nos EUA funcionou porque lá a discriminação racial é sectária,
enquanto no Brasil não existe discriminação racial (ela é de ordem social)”;
c) “nos EUA funcionou porque o critério para classificação racial é
mais bem-definido. No Brasil não sabemos direito quem é negro, uma vez
que a miscigenação ‘misturou’ todas as raças (quase todos os brasileiros são
descendentes de africanos negros)”.
3 “De acordo com o estudo, no campus principal da UERJ, que concentra a maioria dos cursos, 47% dos
estudantes que entraram sem cotas foram aprovados em todas as disciplinas do primeiro semestre. Entre
os estudantes que entraram no vestibular restrito a alunos da rede pública, a taxa foi um pouco maior:
49%. ... Entre os que se autodeclararam negros ou pardos, a taxa foi também de 49%.
A comparação inversa também favoreceu aos cotistas. A porcentagem de alunos reprovados em todas
as disciplinas por nota ou freqüência entre os não cotistas foi de 14%. Entre os que ingressaram pelo
vestibular para alunos da rede pública, a porcentagem foi de 4%. Entre os autodeclarados negros ou pardos,
de 7%.
.... Além de terem um rendimento acadêmico ligeiramente superior, os cotistas abandonaram menos os
cursos, mesmo sem ter recebido apoio financeiro do Estado. Entre os não cotistas, a taxa de evasão no
primeiro semestre foi de 9% dos estudantes. Essa porcentagem foi de 3% entre os ingressantes pela rede
pública e de 5% entre os autodeclarados” (Folha de São Paulo, 14.12.2003).
172
Branquitude e poder – a questão das cotas para negros
Temos que ter uma solãotupiniquim”. É muito interessante que ardorosos
defensores da globalização, enquanto uma possibilidade de amplião de
horizontes, agora, frente às cotas, transformem-se em nacionalistas costumazes!
As cotas para negros em universidades seriam humilhantes para os negros
que delas desfrutassem, pois eles guardariam eternamente o ‘estigma’ de
‘parasitas do Estado’, ou de ter entrado na universidade não por mérito
próprio, mas por um ‘favor’ ou ‘concessão’ do Estado.
Se os brancos têm sobrevivido ao longo de séculos à humilhação de viver
sob um sistema que os privilegia, se têm sobrevivido às inquietações éticas
de ser preferenciado em todo e qualquer espaço de poder silenciosamente
preservado em nosso país, os negros poderão sobreviver às cotas, conquistadas
através de lutas do movimento social.
A adoção de cotas para negros em universidades contraria o princípio
da meritocracia, ou seja, de que entra nas universidades quem ‘faz por
merecer’, por capacidade e esforço pessoal o que seria muito mais justo
e democrático.
Se concordamos com esta premissa, vamos ter que concordar que o
segmento composto por homens brancos entre 25 e 50 anos é o único segmento
brasileiro que tem capacidade e portanto merece ocupar hegemonicamente
todos os lugares de poder (96%), que de fato ocupa. E vamos ter que
obrigatoriamente concordar com as premissas que se seguem:
a) o processo de seleção para as universidades brasileiras é eficiente e justo,
selecionando realmente quem merece e se esforça;
b) os negros não entram nas universidades porque não merecem, pois não
se esforçam e/ou não estudam suficientemente;
c) as cotas estariam discriminando os brancos esforçados e estudiosos, que
deixariam de entrar nas universidades para dar lugar aos negros (preguiçosos
e acomodados).
d) por último, temos que salientar que a esquerda brasileira sempre
combateu a idéia de sociedade brasileira meritocrática os que têm competência
se estabelecem, quem não o consegue não está devidamente preparado! No
entanto, lideranças dessa esquerda, ao que parece, perderam a memória e
inflamadamente defendem a meritocracia, quando se trata de cotas!
Alguns destes argumentos revelam absoluta falta de informação, a despeito
da abundância de dados e de estudos sobre relações raciais; outros argumentos
173
Maria Aparecida Silva Bento
revelam falta de reflexão, e provavelmente fé. Não raro, pensadores que
produzem textos sofisticados sobre outros temas, quando se trata de cotas,
revelam voluntarismo, ao reagir à proposta de cotas, e trazem argumentação
inconsistente, simplória, que reflete desinformação. Ou arrogância: “de preto
e de louco todo mundo entende um pouco”, e então nos brindam com
formulações descabidas. De qualquer maneira, o que fica evidente é uma intensa
reação emocional à perda de privilégios, travestida de “análise objetiva”!
Estes aspectos da atitude branca envolvem séculos de pensamentos e atos
racistas, e carregam consigo uma evidente lacuna afetiva, ética e moral.
Giroux (apud BENTO, 2002) nos possibilita fazer um paralelo entre o
que se observa hoje no Brasil e o debate sobre branquitude nos EUA. Ele
aponta que nacada de 80 brancos da classe dia se sentiram ameaçados
pela expansão dos direitos das minorias; sentiram-se perdendo privilégios. O
Partido Republicano capitalizou o medo dos brancos, lançando um ataque
agressivo às políticas de ação afirmativa, propondo redução de gastos sociais
e desmantelando o Estado de Bem-Estar. O discurso de branquitude estava
carregado de medo, ressentimento e amargura, e mascarava as profundas
desigualdades raciais que marcavam a ordem social. Alguns políticos
criaram um novo populismo, cujo discurso pautava a família, a nação,
valores tradicionais e individualismo, contra a democracia multicultural e a
diversidade cultural.
Os negros passaram a ser responsabilizados pelos problemas que o país
estava vivendo e alguns profissionais da mídia, diziam que queriam viver em
sociedades onde nenhum segmento racial fosse alienado e onde brancos não
tinham que se sentir mal por serem brancos.
Giroux aponta que neste período os brancos falavam de uma identidade
racial sitiada. Grupos de direita como skinheads, cruzadas anti-Partido
Comunista e outros, formaram um grupo a favor dos brancos. Ao mesmo
tempo em que manipulava os medos brancos, esse grupo aliviava os brancos
de qualquer responsabilidade frente as desigualdades raciais.
Na década de 90 ocorre um acirramento no debate e jovens brancos
foram ficando mais agudamente conscientes de sua condição de brancos.
Filmes, livros sensacionalistas mostravam negros como criminosos, drogados,
infectados, entre outras representações negativas, que ameaçavam os brancos.
Os negros passaram a ser representados como povos estrangeiros, menos
civilizados, essencialmente inferiores por herança genética. E os homens
174
Branquitude e poder – a questão das cotas para negros
brancos se definiram como vítimas de um preconceito racial às avessas. Por
outro lado, começava-se a produzir estudos onde branquitude aparecia como
um lugar de privilégio, de poder, construído historicamente.
Giroux mostra em seu artigo que foram produzidas matérias versando
sobre como os homens brancos tinham sua identidade saqueada por mulheres
rancorosas, comunistas, empregadores que utilizavam ação afirmativa,
japoneses, fundamentalistas islâmicos. E que esses homens brancos estavam
perdendo, bem como seu futuro estava comprometido.
Simultaneamente, estudiosos como Du Bois, Ralph Ellison, James Baldwin
(apud Bento, 2002) puseram a construção da branquitude na mesa para ser
investigada. Historiadores como David Roediger, Theodore Allen, Noel
Igratiev (apud BENTO, 2002), entre outros, enfocam como a identidade racial
branca foi historicamente moldada, e como a supremacia branca influi na
construção do “outro” não branco. Destacam ainda a branquitude como um
lugar de privilégio racial, econômico e político. Roediger avança mais, ao
destacar três aspectos importantes da ideologia da branquitude:
1. branquitude e negritude não são categorias científicas; a branquitude é
mais falsa e perigosa pela maneira como é construída;
2. branquitude e negritude não são equivalentes e a idéia de “racismo às
avessas” sugere o medo dos brancos de enfrentarem seu próprio racismo;
3. a branquitude é frágil como identidade social e pode ser combatida.
Para vários estudiosos, a branquitude é sinônimo de opressão e dominação
e não é identidade racial. É o reconhecimento de que raça, como um jogo de
valores, experiências vividas e identificações afetivas, define a sociedade. Raça
é uma condição de indivíduo e é a identidade que faz aparecer, mais do que
qualquer outra, a desigualdade humana.
Giroux entende que brancos têm que aprender a conviver com a branquitude
deles, desaprender ideologias e histórias que os ensinaram a colocar o outro
em lugar estético onde os valores morais não estão vigendo.
George Yudice (BENTO, 2002) discute que a branquitude tem que ser
articulada com uma redefinição de cidadania onde esteja incluída a discussão
referente à distribuição de recursos e a questão da propriedade. Questões como
falta de oportunidades, falta de trabalho, políticas de imigração, acordos de
comércio internacional, racismo ambiental têm que ser discutidas, porque
nessas áreas os brancos sempre tiraram vantagens sobre os negros.
175
Maria Aparecida Silva Bento
Ruth Frankenberg (1995) chama a atenção para o fato de que sistemas que
têm como base a diferença moldam os privilegiados tanto quanto os que são
por eles oprimidos. Ela entende branquitude como um posicionamento de
vantagens estruturais, de privilégios raciais. Também ressalta que é um ponto
de vista, um lugar a partir do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos
outros e a sociedade. Finalmente observa que a branquitude diz respeito a
um conjunto de práticas culturais que são normalmente não-marcadas e não-
nomeadas. Assim, observa-se que branquitude enquanto lugar de poder articula-
se nas instituições (universidades, empresas, organismos governamentais) que
são por excelência, conservadoras, reprodutoras, resistentes e cria um contexto
propício à manutenção do quadro das desigualdades.
As organizações são um campo fecundo para a reprodução das desigualdades
raciais. As instituições apregoam que “todos são iguais perante a lei”; e
asseguram que todos têm a mesma oportunidade, basta que a competência
esteja garantida. As desigualdades raciais persistentes evidenciam que alguns
são menos iguais que outros. Mas sobre isto há um silêncio. O silêncio não é
apenas o não-dito, mas aquilo que é apagado, colocado de lado, excluído. O
poder se exerce sempre acompanhado de um certo silêncio. É o silêncio da
opressão.
Desta forma, se buscamos compreender um discurso, no caso o discurso
contra as ações afirmativas e as cotas, devemos perguntar sistematicamente o
que ele “cala”, ou seja, a defesa de privilégios raciais. O silêncio não é neutro,
transparente. Ele é tão significante quanto as palavras. Desta forma, a ideologia
está em pleno funcionamento: no que obrigatoriamente se silencia.
Assim, quando destacamos que branquitude é território do silencio, da
negação, da interdição, da neutralidade, do medo e do privilégio, entre outros,
enfatizamos que se trata de uma dimensão ideológica, no sentido mais pleno
da ideologia: com sangue, ícones e calor.
r
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JornAis
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179
rAcismo e imPrensA
ArgumentAção no Discurso soBre As cotAs PArA negros
nAs universiDADes
André Ricardo Nunes Martins
introDução
Até o ano de 2002, o interesse pela adoção de políticas de ação afirmativa para
a comunidade negra no Brasil como forma de promover o desenvolvimento
de parcela considerável da população até hoje vítima de um racismo histórico
parecia se restringir à militância do movimento negro. Naquele ano eleitoral,
no entanto, a iniciativa do Governo do Rio de Janeiro de implantar nas
universidades do estado o sistema de cotas para negros e alunos egressos
de escolas públicas, aliada à expectativa e à consagrada vitória nas urnas da
candidatura a presidente do ex-líder operário Luiz Inácio Lula da Silva, trazem
para o proscênio da cena pública o debate sobre a necessidade de políticas
de ação afirmativa para os descendentes de escravos, como uma tentativa de
concretizar um acerto de contas com um atraso de mais de cem anos.
Enquanto o assunto é tratado por governantes e políticos que, ou tomam
a iniciativa de propor medidas nesse sentido ou assumem a proposta em suas
plataformas eleitorais, universidades públicas em vários estados começam a
examinar o tema e mesmo a implantar o sistemas de cotas. A imprensa tem
participação considerável nesse processo de debate público sobre as cotas. Ao
tempo em que tomam posição contrária à política de cotas, os jornais propiciam
um espaço de discussão, veiculando reportagens, entrevistas, artigos, colunas e
cartas aos(às) editores(as).
Considerando o secular atraso quanto à adoção de poticas de ação
afirmativa para a comunidade negra no Brasil e a ligação estreita entre esse tipo
de política e o contexto de racismo institucionalizado, o debate reacendeu na
180
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
esfera pública nacional a polêmica em torno do reconhecimento do racismo
vigente na sociedade brasileira. Defensores e oponentes das cotas travaram
uma luta por sentidos nos textos da imprensa, procurando demonstrar
a existência ou o de racismo e, por conseguinte, a necessidade ou o
desse tipo de política. As cotas também foram defendidas ou rejeitadas em
refencia a aspectos como exequibilidade, justeza e conformidade com a
legislação jurídica vigente.
Nesse sentido, a participação da imprensa enquanto instituição de modo
algum foi imparcial. Ao contrário, o exame dos textos evidencia como os jornais
se engajaram de modo explícito na representação desfavorável das cotas. De
quebra, não somente as cotas, mas a própria representação discursiva dos negros,
assim como o reconhecimento quanto à existência e relevância do racismo na
sociedade brasileira, sofrem a intervenção da imprensa, veiculando e impondo
alguns sentidos em detrimento de outros.
Neste artigo, propomo-nos a examinar o discurso da imprensa sobre a
política de cotas, destacando como, por meio da argumentação, a medida é
desqualificada, o racismo que atinge os negros é silenciado e a representação
dos negros no discurso é subvalorizada. O artigo baseia-se em resultados de
uma pesquisa mais ampla, que encetamos no doutoramento em Lingüística
1
que
desenvolvemos no Programa de Pós-Graduação em Lingüística na Universidade
de Brasília. No trabalho, analisamos 352 textos, de gêneros discursivos variados,
dos jornais Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e A Tarde no período que vai de
1º de janeiro de 2002 a 31 de dezembro de 2003
A pesquisa teve como marco trico os desdobramentos recentes da
reflexão sobre raça e racismo nas ciências sociais e o desenvolvimento dentro
da Lingüística da análise de discurso crítica. Na próxima seção, vamos tratar
especificamente da relevância do conceito de raça como categoria de trabalho
nas ciências sociais, do racismo como fenômeno social e da ação afirmativa
como proposta política de reparação e de compensação em favor de descendentes
de africanos que vieram à força para o continente americano e aqui foram
escravizados entre os séculos XVI e XIX.
A relação entre racismo, discurso e imprensa é discutida na seção seguinte.
Analisamos questões como poder e linguagem; sentidos a serviço do poder;
a construção do consenso em favor da hegemonia, cuja disputa preside as
1 A tese defendida teve por título: A polêmica construída Racismo e discurso da imprensa sobre a política
de cotas para negros.
181
André Ricardo Nunes Martins
movimentações na esfera pública; o problema do racismo e sua manifestação
como racismo discursivo. A seção ulterior é dedicada ao exame da participação da
argumentação nesse processo discursivo e à análise das estruturas argumentativas
que se manifestam, mostra como operam e que efeitos de sentido estabelecem.
A última seção sustenta a conclusão de que o debate sobre as cotas na esfera
pública trouxe consigo desde o primeiro instante o mérito de impor na agenda
política do país a discussão do racismo e da necessidade de políticas públicas
para combatê-lo.
rAçA, rAcismo e Ação AfirmAtivA
Nos últimos cem anos, o conceito de raça aplicado à espécie humana evoluiu
de uma categoria científica evocada na legitimação de práticas de racismo
para uma categoria científica de valor basicamente instrumental a serviço da
luta contra o racismo. A mudança de enfoque tem a ver com desdobramentos
ocorridos nas ciências sociais.
Michael Banton, ao enfocar o desenvolvimento do conceito de raça,
aponta uma certa tenncia entre os seres humanos de preferirem aqueles
de sua própria espécie, mantendo-se refrarios aos de fora. Cita autores
que mostram que antes mesmo do século XV alguns povos manifestavam
considerões de ordem racial. E situa a virada do culo XVIII para o
XIX como o tempo de mudança do significado de raça. Segundo Banton
(1977: 29), até então, “o termo foi utilizado primariamente no sentido de
‘linhagem’; as diferenças entre raças derivavam das circunstâncias da sua
história e, embora se mantivessem através das gerações, o eram fixas”. Com
a mudança, o conceito passou a expressar “uma qualidade física inerente.
Nas palavras de Banton:
Os outros povos passavam a ser vistos como biologicamente diferentes.
Embora a definição continuasse incerta, as pessoas começaram a
pensar que a humanidade estava dividida em raças. (...) O novo uso
da palavra “raça fazia dela uma categoriasica. Levou a negligenciar
o modo como o termo era socialmente utilizado como categoria para
organizar a perceão que as pessoas tinham da população do mundo
(idem: 30).
De acordo com D. T. Goldberg (2002), o conceito de raça surge na consciência
social européia de modo mais ou menos explícito no século XV. Anteriormente,
182
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
entre os gregos embora houvesse manifestações de discriminação etnocêntrica
e xenofóbica, e mesmo a reivindicação de uma superioridade cultural, não
haveria, de acordo com ele, evidências seguras de que tais desigualdades fossem
determinadas biologicamente. Na genealogia que traça para o racismo moderno,
C. West (2002)
observa a existência de duas fases específicas. A primeira está
relacionada ao papel da estética clássica e das normas culturais na legitimação da
supremacia branca. Também a ciência serviu como instrumento nessa operação.
Raça, denotando principalmente a cor da pele, foi empregada pela primeira vez
como um meio de classificar os seres humanos por um físico francês chamado
François Bernier, em 1684.
A segunda fase, segundo West, é possibilitada por desdobramentos na
antropologia, valorizando aspectos estéticos e defendendo a superioridade da
pessoa branca. A espécie humana seria única, mas as variações seriam causadas
por três fatores: clima, estado da sociedade e hábitos de vida. West mostra,
então, que o Iluminismo, através de vários de seus expoentes, deu guarida a
essas idéias e as legitimou.
R. Miles (1993)
, em sua abordagem histórica do conceito de raça, mostra que
o termo race aparece na língua inglesa no século XVII e, no século seguinte, é
usado nos escritos científicos na Europa e nos EUA, com o objetivo de nomear
e fornecer explicação para certas diferenças fenotípicas entre seres humanos.
No pensamento do século XIX, segundo Miles, a teoria da ‘raça’ é dominante.
A idéia em vigor na época é de que haveria na população mundial um número
de raças distintas, cada qual com uma capacidade biologicamente determinada
para o desenvolvimento cultural.
Miles observa que é o emprego da teoria pelos nazistas que vai provocar reações
críticas tanto na Europa quanto nos EUA. Esse movimento crítico leva à criação do
conceito de racismo na década de 1930. naquele momento, estudos passaram a
refutar a hierarquização de raças do ponto de vista da biologia, criticando o apelo à
ciência feito pelo nazismo para justificar o viés racista de sua política. No entanto,
os autores da época mostravam-se divididos quanto à exisncia ou o deraça’.
Miles propõe:
Não existem ‘raças’ e portanto não existem ‘relações de raça’. somente
uma crença de que essas coisas existem, uma crença que é usada por alguns
grupos sociais para construir um Outro (e portanto o Eu) no pensamento
como um precedente para a exclusão e a dominação, e por outros grupos
sociais para definir o Eu (e assim construir um Outro) como um meio de
resistência e exclusão. Por conseguinte, se usada de alguma forma, a idéia
183
André Ricardo Nunes Martins
de ‘raça’ deve ser usada apenas para referir de modo descritivo a certos usos
da idéia de raça (1993: 42).
Essed (2002) observa que a raça é notadamente uma construção ideológica e
não simplesmente uma construção social, porque a idéia de ‘raça’ nunca existiu
fora de uma estrutura de interesse de grupo.
Nota-se assim que a revisão de teorias em meados do século XX
determinou pouco a pouco o abandono do conceito de raça com base numa
perspectiva biológica. No entanto, a relevância atual das relações raciais e
do racismo impede que o uso da categoria seja descartado, mormente nas
ciências sociais.
Adotamos, assim, a perspectiva de raça como categoria de análise,
sem nenhum julgamento de valor do ponto de vista da biologia e mesmo
como distinção de ordem cultural entre os grupos humanos, para o que,
entendemos, o conceito de etnia seria mais pertinente. Defendemos,
portanto, um emprego estratégico do termo,
2
em reconhecimento ao papel
que considerões baseadas em questões de raça desempenham nas diversas
formações sociais. Assim, não é possível ignorar que, no dia-a-dia, as
comunidades continuam a ver a si mesmas e às demais como estruturadas
em torno de diferenças que o do aspecto estico aos valores culturais.
Tais diferenças são entendidas como sendo de ordem racial. Ademais,
as diferenças desempenham papel preponderante na disputa pelo poder
na sociedade e no acesso a bens materiais (meios de prodão, sarios,
condões de saúde, transporte e moradia) e simlicos (sistema de ensino,
cultura e lazer), o que tem levado ao racismo.
T. A. van Dijk observa que o racismo moderno abandona o pressuposto
da noção biológica de raça ou de suas hierarquias raciais associadas. Em vez
disso, aponta a perspectiva da construção sociocultural adaptada ao contexto
histórico presente:
Uma das implicões dessa transformação de racismo em etnicismo é
o desenvolvimento de uma ideologia que reconhece difereas cio-
culturais entre grupos étnicos diferentes, mas nega as diferenças de
poder, e conseqüentemente a dominação da cultura ocidental (VAN
DIJK, 1991: 28).
2 No debate realizado na imprensa, a discussão conceitual sobre raça também se faz presente. Como exemplo,
o caso do professor José Carlos Azevedo, articulista do Jornal do Brasil, que alega a superação do
conceito de raça no campo das ciências naturais para argumentar que não fazem sentido políticas públicas
baseadas nesse critério. Trata-se, na verdade, de um sofisma.
184
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
Para Essed, o racismo é tanto estrutura quanto processo. É uma estrutura,
uma vez que dominação racial e étnica, que é reproduzida pelo sistema
mediante a formulação e aplicação de regras, leis e regulamentos e por meio
do acesso a recursos e de sua alocação. Por sua vez, racismo é um processo,
porque estruturas e ideologias não existem à parte das práticas diárias mediante
as quais são criadas e confirmadas:
O racismo cotidiano é um complexo de práticas operativas mediante relações
heterogêneas (de classe e gênero), presentes em relações de raça e etnia e
produzindo essas relações. Tais relações são ativadas e reproduzidas como
práticas (ESSED, 2002: 50).
Para a manifestação do racismo cotidiano, segundo Essed, concorrem: (a)
noções racistas socializadas, que são integradas em sentidos que determinam
certas práticas; (b) práticas com implicações racistas que se tornam familiares
e repetitivas; e (c) relações raciais e étnicas subjacentes que ocorrem e são
reforçadas por meio dessa rotina ou dessas práticas familiares em situações
diárias” (ibidem: 52).
Considerando especificamente a realidade brasileira, nota-se que entre fins
do século XIX e começo do século XX, predominava entre os intelectuais um
certo desprezo pela miscigenação. A tese, baseada em fundamentos teóricos
naturalistas, era a de que a mistura das raças seria a responsável pela degeneração
das mesmas. Expressam tal pensamento, entre outros, intelectuais como Nina
Rodrigues, Sílvio Romero, João Batista Lacerda e Euclides da Cunha (Schwarcz,
2001; Freyre, 1990). Rompendo com essa linha de pensamento, Manuel Bonfim,
Alberto Torres, Edgar Roquette-Pinto e outros contestaram a perspectiva racista
então em voga (Skidmore, 1994). Por sua vez, o sociólogo Gilberto Freyre
passa a considerar a miscigenação como um traço constitutivo e positivo do
povo brasileiro. E de tal modo reconhece esse aspecto na população que o
generaliza:
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo
Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. (...) A
influência direta, ou vaga e remota, do africano (FREYRE, 1990: 307).
No entanto, ao tempo em que constrói a iia de um tipo nacional
distinto, formado a partir do amalgamento de povos europeus, africanos e
americanos, Freyre sugere que o racismo o é uma marca forte nas relões
raciais no Brasil, minimizando a violência, física e simlica, exercida
contra negros e ingenas ao longo dos séculos. Para Schwarcz, “Freyre
185
André Ricardo Nunes Martins
mantinha intocados em sua obra, porém, os conceitos de superioridade e
de inferioridade” (2001: 28). Nesse sentido, diz a autora, Freyre constrói a
miscigenão como sinônimo de tolerância. Opino também acentuada
por E. R. Bastos, que identifica na obra de Freyre uma visão de conflito
social marcada pelo equilíbrio. Segundo a autora, para Freyre, “é a mistura
de raças que possibilita a convincia pacífica de elementos contraditórios;
é ainda a miscigenação que constitui o elemento fundamental de nossa
nacionalidade (1986: 54).
Novas abordagens sobre o fenômeno do racismo no Brasil surgem em
meados do culo XX, com base em pesquisas patrocinadas pela Unesco.
O irônico é que a motivação inicial dos estudos era o de mostrar como a
sociedade brasileira poderia se constituir em modelo para outros pses que
enfrentavam rios problemas internos relativos às relações raciais, como
a África do Sul e os Estados Unidos. Segundo Schwarcz, enquanto alguns
dos estudos “engajaram-se no projeto desenvolvido pela instituição, outros
passaram a realizar uma revisão ampla (idem: 33). Entre esses autores
encontram-se Costa Pinto, Roger Bastide, Florestan Fernandes. A partir
daí, passa-se a apontar a questão das discriminações e as inconsisncias da
tese da democracia racial.
Apesar de toda a pesquisa que vem sendo feita nas últimas décadas, do
aporte de dados sobre a desigualdade entre negros e brancos, fornecido por
institutos de pesquisa aplicada e veiculados pela mídia, e do fortalecimento
do movimento negro nos últimos anos, o reconhecimento do racismo pela
sociedade brasileira ainda é uma questão que desperta polêmica. Schwarcz
apresenta dados de duas pesquisas realizadas no Brasil sobre a questão racial. A
primeira, feita em São Paulo por ocasião do centenário da Abolição, em 1988,
mostrou que “enquanto 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito,
98% disseram conhecer, sim, pessoas e situações que revelavam a existência
de discriminação racial no país” (2001: 76). A segunda pesquisa foi realizada
pelo jornal Folha de S. Paulo, em 1995, e trouxe resultados semelhantes. Para
89% dos entrevistados, existe preconceito de cor no Brasil, mas somente 10%
admitiram ter preconceito. Não obstante, de forma indireta, 87% manifestaram
algum tipo de preconceito racial.
Entendemos que a própria resistência ao debate sobre o racismo no Brasil e as
formas em que essa resisncia se tanto na opino pública, na imprensa, como
na academia, são em si evidências do racismo. A restrição ao reconhecimento
do desequilíbrio nas relações raciais e mesmo a recusa ao debate livre sobre o
186
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
tema não devem ser tomadas como um tabu social simplesmente e sim como
a manifestação de controle ideológico da esfera pública.
Outra perspectiva a se considerar no exame do racismo à brasileira é a
indiferença para com as desigualdades existentes entre a população negra e
a população branca. Nos últimos anos, têm sido freqüentes a realização e a
veiculação na mídia de pesquisas – de iniciativa tanto de instituições públicas
quanto de ONGs que retratam aspectos dessa realidade. Não dispomos de
estudos que informem e analisem o impacto da divulgação desses dados sobre as
elites ou sobre a população em geral. O fato é que, apesar disso, o mais corrente
é se apelar a políticas universalistas quando se fala de medidas para combater
esse quadro social, o que não deixa de ser coerente com a crença generalizada
de que o problema é antes de ordem social do que racial.
Nesse sentido, a luta contra o racismo e em favor de políticas específicas nesse
terreno envolve também ganhar o debate público em que a maioria, tanto dos
conservadores quanto dos progressistas, adversários que são em tantas causas,
parecem unidos em uma mesma percepção, a de que o racismo na sociedade
brasileira, se existente, não seria algo tão relevante assim.
De um modo mais abrangente, a ação afirmativa tem a ver segundo
G. Ezorsky (1991) não simplesmente com uma postura passiva de não
discriminação, mas sim com medidas ativas, com vistas a aumentar, de modo
significativo, o recrutamento e a promoção de minorias. A autora identifica
dois tipos de ação afirmativa: uma, não específica, que engloba esforços para
recrutar negros sem fixar metas numéricas ou cronograma de contratação; e
outra, específica, que determina alvos numéricos definidos e cronometrados
para aquele propósito.
Ezorsky destaca o impacto positivo dos programas de ação afirmativa. Negros
em posição de prestígio na sociedade servem como modelo para crianças negras,
o que é um reforço à auto-estima da criança e da comunidade, um incentivo
ao desenvolvimento de aspirações vocacionais e ao aprendizado por parte de
estudantes negros.
As políticas de ação afirmativa (AA) admitem uma perspectiva de reparão, o
que tem a ver com as injustiças do passado, e uma perspectiva de compensação,
voltada para corrigir os males do presente e construir um futuro com relações
inter-raciais mais equilibradas. Segundo Ezorsky, da perspectiva de compensão,
isto é, voltada para o futuro, o propósito da AA é reduzir o racismo institucional.
Isso acontece na medida em que os negros movimentam-se no propósito de
187
André Ricardo Nunes Martins
atingir a integração ocupacional. Uma vez atingido esse propósito, milhões de
negros já não serão mais impedidos injustamente, haja vista os efeitos de sua
história de racismo, de alcançar os benefícios do emprego. Já, de uma perspectiva
voltada para o passado, os negros têm uma reivindicação moral de compensação
pela ofensa do passado. A injustiça suprema perpetrada contra os negros a
escravidão – requer tal compensação (ibidem: 73).
Assim, a reação negativa é tanto contra o método como também contra
os beneficiários da medida. A corroborar essa interpretação, observamos no
discurso da imprensa uma animosidade contra as cotas para negros, deixando
fora da polêmica, no caso específico das universidades do Rio de Janeiro, as
cotas que beneficiam alunos egressos da rede pública de ensino em que o
fator racial não é o aspecto distintivo.
rAcismo, Discurso e imPrensA
Uma das perspectivas para se abordar o racismo nos dias de hoje é a
sua expreso no campo do discurso, como veremos na Seção seguinte. Por
ora, vamos considerar brevemente a contribuição de van Dijk,
que propõe
uma abordagem analítica do discurso como meio de examinar um novo
tipo de manifestação do racismo. Segundo ele, o ‘novo racismo pretende
ser democrático e respeitável, daí porque o primeiro passo, nesse sentido,
é negar que seja racismo. Definindo racismo como um sistema social de
desigualdade étnica ou racial, van Dijk identifica dois componentes
principais: o social e o cognitivo. O primeiro estaria relacionado a práticas
discriminatórias diárias, no nível micro de alise, e ainda a organizações,
instituições, estruturas legais e outras, no nível macro. O segundo
componente englobaria crenças, conhecimentos, atitudes, ideologias, normas
e valores.
O discurso desempenha, assim, um papel preponderante na reprodução do
racismo. Segundo van Dijk, “o discurso como uma prática social do racismo é,
ao mesmo tempo, a principal fonte para as crenças racistas das pessoas” (2000:
36). Em um trabalho anterior, van Dijk
já havia observado que a negação do
racismo é um aspecto constitutivo do novo racismo. Ele também aponta diversas
estratégias de negação entre as quais as do tipo ‘negação do ato’, ‘negação do
controle’, ‘negação da intenção’ e ‘negação do objetivo’; as mitigações por meio
do emprego de minimizações e eufemismos e de estratégias cognitivas e sociais
188
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
relacionadas: justificação, escusas, alegação de provocação e responsabilização
da vítima, inversão.
A linguagem detém um papel crucial na reprodução do racismo. Isso equivale
a dizer, primeiramente, que a linguagem opera na construção do racismo, ou
seja, ela desempenha um papel ativo na forma como o racismo se constitui, daí
porque podemos falar em uma dimeno discursiva do racismo. Em segundo
lugar, conquanto práticas e eventos racistas o devam ser reduzidos a uma questão
de linguagem, esta e aqueles desenvolvem uma relação entranhada e constante
de intervenção dialética. Assim, tanto a linguagem contribui para manter ou
modificar práticas racistas como essas influenciam a linguagem.
Assumindo como princípio a compreensão de que a linguagem não é, nem
pode ser neutra, propomos que a linguagem em sua prática social está a serviço
do poder. Aqui, poder é visto não em sua perspectiva individual, mas sim em sua
dimensão política, isto é, relacionada à sua manifestação na estrutura social.
Um conceito diretamente relacionado ao de poder é o de ideologia. Para
J. B. Thompson (1998), ideologia deve ser vista como “sentido a serviço do
poder”. Segundo o autor, “estudar a ideologia é estudar as maneiras como o
sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (idem: 76). No
caso específico dos estudos da linguagem, torna-se relevante examinar como a
ideologia opera por meio da linguagem e de que modo essas operações atuam
na constituição dos sujeitos sociais.
Identificamos a interveão predominante de uma ideologia racista na prática
discursiva da imprensa. Em contrapartida, uma ideologia anti-racista também
se manifesta, construindo sentidos opostos e que confrontam o consenso social
estabelecido. A mobilização e a fixação de sentidos de uma ou outra formação
ideogica levam-nos a considerar com especial atenção o conceito de hegemonia.
Com base na teoria de Gramsci
3
que na hegemonia uma característica
fundamental da luta pelo poder nas sociedade capitalistas modernas – Fairclough
(2001) considera a hegemonia tanto como lideraa quanto como dominação
nos vários âmbitos da sociedade (economia, política, cultura e ideologia). Nesse
sentido,
3 Fairclough (1997) mostra como em Gramsci “o poder político da classe dominante dessas sociedades
baseia-se numa combinação de ‘dominação’ – poder estatal no sentido mais restrito da expressão, controle
das forças de repressão e capacidade de fazer uso da coerção contra outros grupos sociais – e de ‘liderança
intelectual e moral’, ou ‘hegemonia’ (Forgacs, 1988: 249). Nesse sentido, o Estado é uma combinação de
‘sociedade política’ (o domínio público, o domínio do poder estatal, no seu sentido mais estrito) e de
‘sociedade civil’(o domínio privado, o domínio da hegemonia)” (id.: 79).
189
André Ricardo Nunes Martins
Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes
economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras
forças sociais, mas nunca atingido senão parcial e temporariamente, como
um ‘equilíbrio instável’. Hegemonia é a construção de alianças e a integração
muito mais do que simplesmente a dominação de classes subalternas,
mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento
(idem: 122).
No desenvolvimento de suas pesquisas, Foucault (1986) lança o do conceito
de enunciado, tomado não como uma frase, ou uma unidade, mas antes como
“uma fuão que cruza um donio de estruturas e de unidades possíveis e que faz
com que aparam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (idem: 99).
Segundo ele, o enunciado está presente “sempre que se possa reconhecer e isolar
um ato de formulação” (ibidem: 93). Podemos vislumbrar em sua obra a seguinte
queso que ele mesmo explicita:
segundo que regras um enunciado foi construído e, conseqüentemente,
segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos?
A descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem
diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não em outro lugar
(ibidem: 31).
Nesse sentido, valemo-nos de enunciados extraídos de textos sobre a potica
de cotas para os negros e que integram o processo discursivo na imprensa para
identificar e analisar um tipo espefico de racismo, o discursivo. No exame dos textos
de rios neros discursivos, encontramos enunciados que mesmo procedentes de
atores sociais diferentes, de posições de sujeito e de contextos distintos constroem,
no entanto, uma mesma cadeia de sentidos interligados, refoando, assim, uma
determinada perspectiva ideológica, seja contria ou favorável às cotas.
Mas os enunciados não se constituem de forma isolada. Eles irrompem em
textos, produtos de um discurso. O lingüista britânico N. Fairclough (1992),
define discurso na perspectiva de ‘linguagem como prática social’. Em vez de
fazer abordagens estritas dos fenômenos linísticos, a análise do discurso atribui
fazer especial relevo à contextualização (PEDRO, 1997). O sujeito caracteriza-
se como um agente social que é construído e que, por sua vez, contribui para
a construção dos processos discursivos. Fugindo ao caos da incomunicação,
um texto reúne e estabelece sentidos, conferindo uma necessária organização
interna e pondo a linguagem a serviço de algum interesse.
Na perspectiva que vem sendo abordada por Fairclough e outros, conhecida
como Análise de Discurso Crítica (ADC), notam-se duas implicações na noção
do discurso como prática social. A primeira delas é que o discurso é um modo
190
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
de ação; a outra é que existe uma relação dialética entre o discurso e a estrutura
social. O papel de construção do discurso pode ser considerado, ainda segundo
o autor, em três tipos de contribuição: primeiro, o discurso coopera para a
construção das ‘identidades sociais’ e ‘posições de sujeito’; segundo, o discurso
atua no campo das relações sociais entre as pessoas; e, terceiro, o discurso
intervém na construção de sistemas de conhecimento e crença. O resgate das
possibilidades de mudança e da atuação transformadora do sujeito impingiram
nuanças distintas na trajetória de investigação do discurso.
Eminentemente dinâmico, o processo discursivo é sempre um movimento de
fixação, deslocamento e domincia de sentidos em que os diversos textos, como
vimos anteriormente, não irrompem num vazio hisrico. Ao contrário, fazem
referência a outros textos, projetam-se, fortalecidos por aqueles que os antecederam e,
em si mesmos, são atravessados por sentidos provenientes de formações discursivas
distintas. E, ainda, a compreeno de cada texto torna-se posvel dentro da ordem
de discurso e da formação discursiva às quais o mesmo es ligado e que propiciam
a mobilização de alguns sentidos na constrão da mensagem.
A ADC firma-se então pelo exame linístico específico dos textos e pelas
análises das práticas discursivas e das práticas sociais que permitam compreender
as estruturas sociais de opressão, fornecendo, assim, subsídios para uma abordagem
crítica, numa tentativa de desvendar sentidos que engendram relações de poder.
Em Fairclough (1992), o processo discursivo é visto sob uma perspectiva
tridimensional por meio de três dimensões constitutivas, a saber, o texto, a prática
discursiva incluindo aqui, a produção, a distribuição e o consumo textual e a
prática social. Para analisar um discurso, é preciso levar em conta a descrão do
texto, a interpretação da prática discursiva e a explicação da prática social.
A imprensa participa como as demais instituições da mídia da formação
do consenso político que permite a reprodução do poder na sociedade, tendo
papel preponderante nesse processo. Constitui-se em um dos tipos de discurso
de elite, como o definiu van Dijk (2003). Daí porque examiná-lo é um dos meios
privilegiados para se compreender os mecanismos pelos quais a linguagem é
usada em favor de determinado segmento da sociedade ou de algum ponto de
vista específico. As notícias permitem uma representação do mundo por meio
da linguagem. Trata-se de uma construção, “não de um reflexo dos fatos, isento
de valor” (FOWLER, 1991).
O discurso da imprensa é, portanto, uma construção da realidade, constrão
essa que visa a atender determinados propósitos. A notícia é tanto o produto
191
André Ricardo Nunes Martins
resultante do tratamento que se a um fato histórico, como constitui ela
mesma um produto que se segue a uma outra elaboração, aquela que é feita do
fato em si, o recorte que se faz de determinado acontecimento histórico, como
propõe A. P. G. Ribeiro (2000):
Não existe fato histórico ‘bruto’. Ele é sempre produto de algum tipo de
elaboração teórica que o promove à categoria de histórico. Pressupõe um
sistema de referência e uma teoria, no quadro dos quais operam-se a seleção
e a valorização dos acontecimentos e processos (idem: 26).
Para Fairclough (1995), o jornalismo implica uma complexidade de propósitos
sociais. Dizer que os jornalistas apenas reelaboram os eventos é pouco:
Eles também os interpretam e explicam, tentam levar as pessoas a ver as coisas
e agir de determinadas formas e têm por objetivo entretê-las. O conceito de
uma ‘estória’ sugere essa multiplicidade de propósito, em que normalmente
pensamos nas esrias como formas de entretenimento e divero, e
freqüentemente no sentido mais de ficção do que factual (idem: 91).
O discurso da imprensa não é um discurso a mais na Babel do mundo
contemponeo, mas um que desempenha um papel de primeira linha na
formação do consenso na sociedade. E isso tanto por que a imprensa ocupa
o posto de principal instituição veiculadora de informação, ao dispor
de uma estrutura e um aparato que lhe possibilitam atingir milhões de
pessoas, como, por conseguinte, pelo grau de dependência que as pessoas
e as instituões m em relação a ela na formação e na sedimentação de
uma visão de mundo. Nesse aspecto, van Dijk (1991), por exemplo, observa
como, diante da realidade, a maioria das pessoas brancas acaba o sendo
confrontada com um sistema de discurso público que favoreça o surgimento
de uma ideologia anti-racista.
Em seu trabalho sobre racismo e imprensa, van Dijk (ibidem) desvenda
um fenômeno presente nas sociedades contemporâneas, mas enfaticamente
negado, qual seja, a articulação de um discurso racista por parte das elites
dominantes e a participação engajada da imprensa nesse processo. Ele sugere:
1ª) um país ou uma sociedade é tão racista quanto suas elites dominantes o são;
2ª) como representante da estrutura de poder dos brancos, a imprensa de modo
consistente – tem limitado o acesso tanto na contratação quanto na promoção
ou veiculação de pontos de vista de grupos étnicos minoritários. Ele demonstra
que as minorias ou os imigrantes são apresentados como um problema ou uma
ameaça e são retratados preferencialmente em associação com crime, violência,
conflito, diferenças culturais inaceitáveis ou outras formas de desvio.
192
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
Segundo van Dijk (ibidem), no racismo em vigor na imprensa e em outros
âmbitos da sociedade predominam estratégias de atenuação. Assim, é comum
observar pessoas com comportamento racista, que, no entanto, buscam
apresentar-se a si mesmas, por um lado, como pessoas tolerantes e que defendem
uma igualdade diante de um sistema político pluralista; sem, por outro lado,
serem anti-racistas de modo consistente. O papel da imprensa na reprodução
do poder, afirma, não é passivo. “Ela pode veicular interesses conflitantes,
representar grupos legítimos de oposição ou ainda algumas vezes falar pelas
pessoas” (ibidem: 41).
Referindo-se às sociedades contemporâneas, van Dijk atribui à imprensa um
controle quase exclusivo sobre os recursos simbólicos com os quais se produz o
consenso popular, especialmente no que diz respeito às relações étnicas. Também
van Dijk (1996), em outro trabalho, valoriza a questão do acesso aos meios de
massa, identificando nessa disputa por espaço a manifestação do poder, uma
vez que são as elites quem mais desfruta do acesso privilegiado ao mundo da
mídia como fonte de informação e com a possibilidade de ter suas opiniões
divulgadas e mais disponíveis para influenciar o público.
O autor busca mostrar a reprodução da dominação étnico-racial por meio
de padrões diferenciados de acesso ao discurso, distinguindo a população
majoritária e as minorias, argumentando, assim, que o racismo se manifesta ali
também e não apenas por causa do acesso diferenciado à moradia, empregos,
aluguéis, educação ou bem-estar. Ele arremata demostrando que o poder de
acesso preferencial à mídia está intimamente ligado ao poder que as elites
têm de definir a situação das relações étnicas e de, portanto, contribuir para a
reprodução do racismo.
A ArgumentAção no Discurso soBre As cotAs
A argumentação nasce na Grécia antiga ligada ao terreno da retórica política.
Alguns autores atribuem à mesma a relevância como um dispositivo para se
regular o próprio discurso ou um mecanismo usado para localizar e resolver
diferenças de opinião.
A análise de qualquer argumentação particular torna-se relativa, uma vez
que se localiza dentro do contexto de outro discurso mais amplo, que conduz
a análise ao definir o que é que está em jogo (MARTINS, 2004: 319).
193
André Ricardo Nunes Martins
Entre os gêneros discursivos correntes na instituição imprensa, é no editorial,
no artigo, na coluna e na carta ao(à) editor(a) que podem ser encontrados
exemplos de argumentação com maior regularidade. O editorial, por exemplo,
é um gênero argumentativo por excelência. a reportagem, por reproduzir
amiúde discursos de diversos autores, também veicula argumentos. O estranho
na reportagem é quando a argumentão faz-se presente não no discurso relatado,
mas no próprio texto do(a) repórter (idem).
Na pesquisa que fizemos sobre o discurso da imprensa sobre a política de
cotas para negros, a argumentação é examinada a partir de um modelo que
identifica a opinião estabelecida, também chamada tese, e os argumentos que
a sustentam. Tomemos o exemplo de um editorial da Folha de S. Paulo que
condena as cotas. Por economia de espaço, apresentamos apenas um pequeno
trecho do texto:
A criação de cotas é problemática. No plano teórico, a medida equivale
a tentar reparar uma injustiça criando outra, manobra que raramente
certo.(...) Não bastasse essa dificuldade de princípio, a criação de cotas esbarra
em sérias dificuldades práticas. Um exemplo: como definir um negro no
Brasil? O IBGE utiliza o critério da autodefinição, que, no fundo, é o único
democrático. Se um branco disser ao recenseador que é negro, assim será
considerado pelo instituto. O que impediria alguém de declarar-se negro
para ter acesso às cotas? Mesmo que todos fossem absolutamente honestos,
quão negro alguém precisaria ser para fazer jus às cotas? (Folha de S. Paulo,
20/01/02).
Para analisá-lo, devemos identificar a estrutura argumentativa presente
que é composta de uma tese, dois argumentos principais e argumentos
subjacentes:
Tese: a criação de cotas é problemática.
Argumento 1 no plano teórico, o problema está em tentar reparar uma
injustiça, criando outra.
1.1 – Trata-se de manobra que raramente dá certo.
Argumento 2 – a criação de cotas tem dificuldades práticas.
2.1 – É difícil definir quem é negro no Brasil.
2.2 – A auto-declaração pode ser usada por oportunistas.
2.3 Não se sabe que grau ou tonalidade de negritude em uma pessoa
permitiria o benefício da medida.
194
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
A estratégia argumentativa presente ao longo do texto visa a combater a
política de cotas, atribuindo-lhe problemas teóricos e práticos que, de tão
graves, a inviabilizam. A argumentação é precedida pelo reconhecimento da
realidade da discriminação na sociedade brasileira, o que atingiria não somente
os negros como tamm as mulheres. Paralelamente a esse pensamento, aparecem
números que ilustram a opinião. Constrói-se aqui uma imagem positiva para
o jornal, que firma de imediato a posição de reconhecimento da realidade
da discriminação e deixa explícito o repúdio a essa política.
na contextualização inicial do problema, o texto lança mão de uma
estratégia retórica, qual seja, a de igualar situações distintas, isto é, busca-
se apresentar como semelhantes, realidades que procedem de contextos
diferenciados. Nesse caso, a discriminação racial e a discriminação de gênero
são postas lado a lado como se fossem de um mesmo tipo quando, na verdade,
cada qual tem causas, conjunturas e processos distintos. O enfrentamento de
cada uma, portanto, remete a soluções próprias.
Uma vez que o restante do texto dedica-se apenas à análise de uma medida
que emerge da luta contra o racismo, silenciando-se quanto a medidas de
combate ao sexismo, torna-se evidente que o texto está voltado essencialmente
para a questão do combate ao racismo, sendo o propósito da estratégia mostrar
que a discriminação racial é apenas mais uma entre outras discriminações que
se deve combater.
Após esse reconhecimento do problema, o texto volta-se então para a
apresentação do problema. Esta é feita sem dar o devido crédito a quem seria o
autor/formulador da medida. Sempre que se percebem distorções tão gritantes,
a primeira idéia que vem à cabeça é a criação de cotas para minorias, seja na
universidade ou no trabalho.” A política de cotas é apresentada assim como uma
idéia que simplesmente vem à mente. Nota-se aí mais um recurso linguístico,
qual seja, o de silenciar sobre o contexto das políticas afirmativas, sobre quem as
propõe, com que propósito e com que finalidade. A política emerge assim como
algo descontextualizado, que surge do nada, de forma apressada, construção
essa que vai facilitar a caracterização da mesma como medida problemática,
cerne do argumento que embasa o texto.
A tese da argumentão é a iia de que a crião de cotas é problemática,
do que se pode depreender que é algo ruim e que deve ser evitado. A
argumentação justifica-se em dois pilares (os dois argumentos), sendo um
de ordem teórica e, outro, de ordem ptica. O primeiro aspecto remete
a uma questão de justa; ou seja, a medida é probletica porque tenta
195
André Ricardo Nunes Martins
reparar uma injustiça cometendo outra, o que raramente certo. Um
dos focos da argumentação é encerrado aí, não se alongando a discussão.
Resta impcita a discussão sobre a relevância político-jurídica das cotas,
em especial o debate sobre a pertinência de direitos para minorias frente a
direitos universais.
O uso da expressão ‘manobra’ faz lembrar outros termos assemelhados,
freqüentemente utilizados nesse discurso, tais como ‘expediente’, ‘artifício’,
‘invenção’, o que ajuda a caracterizar a medida como fruto de uma estratégia
política ardilosa, descaracterizando-a como política pública relevante.
O segundo aspecto da argumentação diz respeito a questões de ordem
prática. O texto as apresenta como “sérias dificuldades práticas”. As dificuldades
apresentadas derivam de uma mesma conjuntura: o que é ser negro no Brasil.
Esse enfoque discursivo é bastante recorrente no discurso da imprensa sobre as
cotas, ou seja, a mestiçagem figura como o grande distintivo étnico da sociedade
brasileira. E, uma vez que negros puros (negros mesmo, sem mistura) são bem
poucos no conjunto da população brasileira, não se justificaria, portanto, a
adoção de uma política social.
na questão lançada “como definir um negro no Brasil?” o implícito
de que não é fácil se saber quem é negro no Brasil. Ora, se se pergunta “como
definir” é porque a questão está sujeita a controvérsias, não sendo possível
definir com segurança quem efetivamente é negro(a) e portanto potencial
candidato(a) à política.
Existe também uma referência implícita ao racismo à brasileira, pois a
dificuldade não é quanto a se definir um branco no Brasil. Com base nessa
linha de argumentação, pode-se notar o apagamento da identidade negra como
uma realidade positiva. Se dificuldade em se definir quem é negro, é porque
assumir-se como negro pressupõe uma escolha que tem seus próprios riscos,
não sendo uma questão pura e simples de livre manifestação.
A política adotada pelo IBGE, ao tempo que é elogiada, é tamm
descartada por uma suposta ineficácia em combater o oportunismo de
alguns. Nessa linha de argumentão, a identidade étnica de uma pessoa
é coisa de somenos importância, algo que pode ser alegado ao sabor dos
contextos e que pode ser utilizado por pessoas oportunistas para se beneficiar
de determinadas políticas públicas. Implicitamente, o texto promove
o apagamento das identidades étnicas que compõem o povo brasileiro,
estratégia essa perfeitamente coerente com o senso comum de que ‘a fuo
196
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
das três ras a raça indígena, a raça branca e a ra negra teria resultado
no surgimento do povo brasileiro; fusão que necessariamente fez com que
‘as três raças’ deixassem de existir, restando apenas o povo brasileiro, como
amálgama dessa mistura racial.
Por fim, a argumentação critica a política de cotas porque esta não faz
referência ao grau ou tonalidade de negritude que seria preciso para que uma
determinada pessoa fizesse jus ao benefício. Existe o implícito de que a
identidade de uma pessoa negra define-se pela precisão cromática.
O desenvolvimento da argumentação ao mesmo tempo que serve para
desprestigiar a política de cotas deixa o povo negro sem opção. A auto-declaração
não serve porque dá margem à ação de oportunistas. Por sua vez, o alto grau
de mestiçagem na sociedade brasileira conduz à interpretação de que negros
mesmos existem bem poucos e quem mais pretender se assumir como tal correrá
o risco de ser acusado de estar fazendo assim tão somente como pretexto de
figurar como candidato potencial à política de cotas.
Na crítica a uma política pública para um segmento excluído, o texto acaba
contribuindo para o reforço da baixa auto-estima imposta à comunidade negra,
negando-lhe assim um direito fundamental qual seja, o da afirmação da própria
identidade.
estruturAs ArgumentAtivAs e estrAtÉgiAs DiscursivAs
Neste artigo, examinamos como estruturas argumentativas aliadas a
outras estratégias discursivas cooperam para a fixação de sentidos específicos.
Agrupamos, assim, por núcleo de estratégia discursiva, a intervenção no discurso
de algumas dessas estruturas. Vale dizer que os argumentos não se acham restritos
a núcleos estanques, podendo compartilhar nuanças de um ou outro núcleo
estratégico. Examinamos a seguir cinco desses núcleos:
Concessão aparente: Por esse tipo de estratégia, a argumentação admite a
existência de circunstâncias, situações e aspectos da realidade desfavoráveis aos
negros como indivíduos e à comunidade negra. Assim, o argumento reconhece
a presença baixa ou quase nula de negros nas universidades brasileiras e/ou
outras manifestações de racismo na sociedade, chegando, até mesmo, à defesa de
políticas de promoção do ingresso de negros na universidade sem, no entanto,
197
André Ricardo Nunes Martins
admitir a legitimidade das cotas como um instrumento dessa política. Ao
contrário, apesar da concessão inicial, a política de cotas é rejeitada. É um caso
bem típico dos editoriais, mas que ocorre também em outros gêneros.
O racismo é, sem dúvida, uma das graves mazelas que atingem o mundo.
E o “racismo cordial” brasileiro não é uma exceção. (...) É mais do que
louvável, portanto, o desejo do PT de instituir mecanismos efetivos de
combate ao racismo. Mas a proposta de criar cotas para estudantes negros nas
universidades públicas, em que pese sua justeza, apresenta tantas dificuldades
conceituais e práticas que o bom senso recomendaria reconsiderá-la. No
plano operacional, as cotas esbarrariam na definição de quem é negro. (...)
(Folha de S. Paulo, editorial, 11/11/02).
No texto, o racismo é chamado de ‘grave mazela’; a situação brasileira é posta
sob a mesma rubrica. As aspas sobre a expressão ‘racismo cordial’ mostram o
distanciamento do editorialista em relação a essa perspectiva, não reconhecida,
portanto, como uma interpretação plausível da realidade do país. Aqui, alude-
se a uma perspectiva – muito em voga em meados do século XX, mas que até
hoje, como se vê, tem seus seguidores que reivindica para o caso brasileiro
uma tipicidade única. Haveria sim racismo no Brasil, mas esse seria cordial,
mais dócil, humano, menos cruel do que os registrados em outros países. Ao
rejeitar a perspectiva, portanto, o autor credencia-se para emitir sua opinião de
que as cotas não se aplicam à realidade brasileira, e isso, em razão de ‘tantas
dificuldades conceituais e práticas’:
A proposta de vagas seletas para negros, muito mais que esbarrar em
problemas operacionais sobre a definição do que é ser negro, esbarra em
equívocos teóricos (...) Simpatizo com a causa dos negros, mas não será
dando vagas que resolveremos esse problema. Teríamos de dar condições
para os negros aumentarem seu poder de competição. Por que vamos tentar
evitar uma discriminação acarretando outra, uma vez que muitos pobres de
quaisquer raças também não conseguem chegar à universidade? (Folha de S.
Paulo, carta ao(à) editor(a) de Gilson Luiz Volpato, professor universitário,
de Botucatu, SP, 12/11/02)
Nesse exemplo, a crítica à política de cotas é precedida pela confissão de
simpatia à ‘causa dos negros’, seja o que isso possa significar para o leitor.
Mais uma vez, a opinião emitida pelo autor intervém no sentido de resguardar
sua imagem. O autor propõe ‘dar condições’ aos negros para aumentarem o
‘poder de competição’. Rejeita, porém, as cotas, porque estas, segundo ele,
acarretariam outra discriminação:
Estou sintonizado com a política de governo de que é preciso mudar a cor da
pele das pessoas que estão na universidade para mudar a cor da elite brasileira.
198
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
Mas percebi, nesses últimos anos, que muitos líderes de movimentos negros
são contra as cotas, porque consideram isso uma forma de discriminar.
(Folha de S. Paulo, entrevista dada pelo então futuro ministro da Educação
Cristovam Buarque, a Antônio Gois, 30/12/02).
No caso precedente, o ministro indicado parece equilibrar-se entre a
reivindicação do movimento negro, aliada a uma promessa de campanha do
presidente eleito, e suas próprias convicções, apresentadas sob o disfarce da
percepção de que ‘muitos líderes de movimentos negros’, segundo afirma, seriam
contrários às cotas. Além do simplismo evidenciado na concepção de que o
problema em exame estaria na cor da pele dos universitários, a argumentação
ocorre aqui mais a título de justificar a não adesão de quem argumenta sobre uma
política de viés racial do que a propósito de avaliar criticamente a medida.
Em síntese, a concessão é dita aparente porque, de fato, o reconhecimento das
desigualdades de ordem racial e da necessidade de mudar a situação não conduz,
de modo concreto, à apresentação de uma proposta nessa direção. Quando muito,
o que se faz é propor uma medida de caráter universalista, ou seja, uma política
que abrange os negros dentro de um universo mais amplo, representado pelos
pobres. Na prática, tal postura não reconhece a necessidade de uma política de
viés racial. Tem-se, assim, um reconhecimento formal da situão de desigualdade,
mas não se avança além dessa linha divisória. O efeito último parece ser o de
resguardar a imagem de quem vai, por fim, condenar a política de cotas.
Manobra diversionista: Esse núcleo engloba argumentos e outros recursos
lingüísticos que ocorrem no texto a propósito de fugir do centro mesmo da
discussão acerca do racismo à brasileira e sobre medidas para combatê-lo. Isso é
feito até mesmo quando se reconhece a existência de racismo ou a necessidade
de se instituir políticas de ação afirmativa. No entanto, a argumentação que
se desenvolve prioriza a apresentação e discussão de aspectos pouco relevantes
no contexto. Assim, vai-se tentar fornecer explicação para o problema da baixa
presea de negros nas universidades ou sugerir intervenções em outras estruturas
sociais para corrigir o problema. Ao final, toda a discussão desenvolvida passa
longe do foco central da questão que é o contexto do combate ao racismo:
O sistema de cotas segundo o critério étnico, para preenchimento de vagas
no ensino público e nas empresas, é insuficiente para resolver o problema das
desigualdades no Brasil, conforme reconhece o Ministério da Educação. (...)
Um sistema de cotas iguais para todo o Brasil vai se chocar, fatalmente, com as
diversidades regionais.(...) Como se vê, a raiz do problema é socioeconômica
e não apenas racial (A Tarde, editorial, 12/02/02).
199
André Ricardo Nunes Martins
Temos nesse trecho do editorial do jornal baiano a tese de que o sistema
de cotas “é insuficiente para resolver o problema das desigualdades no Brasil”.
nessa opinião o subentendido de que a proposta das cotas é a de resolver
‘desigualdades no Brasil’, o que é algo, no mínimo, muito abrangente. Ao alegar
a diversidade regional do país com populações nos Estados com composição
racial específica tem-se o gancho para rejeitar as cotas como uma política
séria, conseqüente e adequada à realidade nacional.
Desse modo, o articulista prioriza aspectos pontuais que, conquanto tenham
seu valor no que se refere-se ao sucesso de implantação do sistema de cotas, não
são em si fatores impeditivos da medida, posto que, como qualquer política
pública, as cotas podem sofrer adaptações de acordo com a realidade de cada
estado. Assim, o foco da intervenção do jornal volta-se não para a questão
central e sim para o que é periférico na discussão do assunto.
O regime de cotas em função da cor da pele revela oportunismo ou ignorância
de quem a apóia porque não existe ‘’raça’’ e nem a etimologia da palavra é
conhecida; (...) (Jornal do Brasil, artigo, de autoria de José Carlos Azevedo,
apresentado como professor, 27/02/03).
Nesse exemplo, temos um caso flagrante de sofisma. Duas premissas
aparentemente verdadeiras levariam à conclusão de que as cotas o fazem sentido.
A primeira premissa fixa a idéia de que o regime de cotas está ligado à cor da pele
ou à raça em última instância. A segunda premissa alude à inexistência de ‘raça
como conceito, mostrando que até mesmo a origem do termo é desconhecida. Daí
para chegar à mesma concluo do articulista é um passo: ou oportunismo
ou ignoncia no movimento de defesa das cotas.
Consideremos agora as premissas utilizadas. A primeira premissa es
correta ao afirmar que as cotas em discussão estão vinculadas à questão racial.
Mas se ela diz uma verdade, ela não expõe toda a verdade nesse particular. O
autor simplesmente não menciona nem aí, nem no restante do texto que é o
vínculo entre raça negra e a realidade da escravidão que dá origem às políticas
de ação afirmativa leiam-se ‘cotas’. Temos portanto uma verdade parcial nessa
primeira premissa.
a segunda é inverídica, simplesmente não se sustenta. Do fato de que
a ciência não reconheça distinções de ordem racial entre os seres humanos,
não se pode depreender que o conceito de raça seja uma ficção, sem qualquer
influência na forma como as pessoas e as sociedades vêem-se a si mesmas e às
outras. Pelo contrário, são pesquisas científicas que comprovam a realidade do
racismo em diversos lugares do mundo, fruto da valorização e da promoção
200
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
de visões e concepções de mundo baseadas em critérios de raça. Em suma, o
racismo é um fenômeno concreto, sujeito à investigação científica. É também
uma realidade histórica, injusta e passível de ser transformada. A ação afirmativa
aponta nessa direção.
se fez a sugestão de cotas para os negros, que estão entre os mais seriamente
discriminados pela porta estreita. Mas esse artifício não resolve os problemas
educacionais que indiquei, produzidos pelos vestibulares. E é provável que
crie uma séria consequência social: será impossível evitar que os “brancos”
que “quase entraram” desenvolvam um sentimento de raiva contra “os negros
que entraram por favor”, culpados de eles terem ficado de fora (Folha de S.
Paulo, coluna de Rubem Alves, apresentado como psicanalista e educador,
28/10/03).
Nesse outro exemplo, o renomado educador Rubem Alves em cuja coluna
a educação e outras questões sociais são temas recorrentes trata da questão do
acesso à universidade sob o título “A utopia do fim do vestibular”. O trecho
explorado aqui encerra o texto. Afora a alusão indeterminada aos proponentes
da política de cotas e a metáfora e metonímia na expressão ‘discriminados pela
porta estreita’ que esvazia o fenômeno da discriminação racial, a argumentação
desenvolvida aqui constrói a idéia de que a medida não é uma boa.
Primeiro, porque “não resolve os problemas educacionais”. Segundo, porque
provavelmente criaria ‘uma séria conseqüência social’ que, na verdade, vem a
ser o desenvolvimento de um sentimento de raiva contra os negros por parte
de alunos brancos que tenham perdido a vaga no curso superior em razão da
política de cotas.
O diversionismo aqui também atua em parceria com o simplismo. O
colunista resume toda a complexidade da realidade do racismo e de políticas de
combate ao mesmo a uma simples questão de mudança no vestibular e ao seu
possível impacto sobre alunos não negros. Enquanto isso, a discussão que, de
fato, importa passa ao largo das prioridades de uma prestigiosa coluna semanal
de um dos mais influentes jornais do país.
Efeito contrário: Por essa perspectiva, apela-se a temores subjacentes no
inconsciente coletivo, mostrando a política de cotas como uma ameaça, para,
dessa forma, argumentar que ela é um complicador a mais na conjuntura do
ensino superior ou mesmo das relações raciais. Trabalha-se, portanto, com idéias
opostas, mostrando que o efeito da política de cotas poderá ser o oposto do
pretendido, algo semelhante aos ditos populares “o feitiço voltou-se contra o
feiticeiro” e “o tiro saiu pela culatra”. Por esse prisma, a idéia de que as cotas
podem fazer crescer o racismo no Brasil ou exacerbar as tensões raciais na
201
André Ricardo Nunes Martins
sociedade brasileira é uma das mais recorrentes no discurso. É evidente que
tal linha de argumentação contribui, a seu modo, para minar um propósito
fundamental da política de cotas, que é, justamente, o combate ao racismo:
A maioria dos negros não entram nas universidades não porque são negros,
e sim porque são pobres e não têm condições para um estudo mais forte. É
nisso que o governo deve se concentrar: em oferecer a todos os pobres (de
qualquer cor de pele) as condições de estudo para que ingressem em um curso
universitário. O racismo é muito pequeno no Brasil e tende a desaparecer,
por favor não o instiguem. Abaixo a pobreza (Folha de S. Paulo, carta ao(à)
editor(a) de Mário Nogueira Neto, de Ponta Grossa, PR, 05/11/02).
O trecho publicado da carta sequer menciona as cotas, mas as referências
o inequívocas. À opinião contria à política que está subentendida
junta-se o argumento de que a saída para a exclusão dos negros das
universidades não passa por esse tipo de intervenção e sim por uma
perspectiva de universalização de um ensino público de qualidade. Como
refoo, vem outro argumento: o de que a instituão da potica de cotas
tende a fazer aumentar o racismo muito pequeno existente no país.
Descontada a avaliação superficial de que o racismo no Brasil é de pouca
monta, a argumentão engendra um apelo para que os defensores das cotas
para negros não insistam nesse movimento já que isso poderá suscitar ainda
mais racismo, justamente o que pretende evitar com esse tipo de política. Ora,
para os desavisados, a sugestão pode surtir o efeito de reprimir o esfoo e
a motivação que engendra uma situação imposvel de se confirmar uma
vez que o passa de pura especulação.
À luz da experiência americana, não é difícil prever que os programas de
ação afirmativa ora implementados irão intensificar, mais do que erodir,
sentimentos racistas nos brasileiros. O enfrentamento do problema da
desigualdade racial e social brasileira certamente requer muito mais
criatividade de nossos líderes, atributo, aliás, que é considerado característico
do povo brasileiro e motivo de orgulho nacional (Jornal do Brasil, artigo
de autoria de Leone Campos de Souza, apresentada como socióloga,
06/04/03).
O artigo como um todo separa como bem distintas a situação dos negros e
da ação afirmativa nos EUA e a situação no Brasil, mostrando que a política de
cotas não cabe na realidade brasileira. Enquanto no país do norte surge no bojo
do movimento pelos direitos civis, no Brasil a política estaria sendo implantada
como benesse do estado, sem a legitimidade de uma demanda reivindicada por
um movimento negro forte, que a articulista julga inexistente.
202
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
Deixando de lado o restante do artigo, concentremo-nos no excerto
selecionado. A comparação entre os dois países se não serve para apontar um
diagnóstico semelhante da discriminação sofrida pelos afrodescendentes, muito
menos para a defesa de uma solução como as cotas nas universidades, serve,
porém, para estabelecer um mal ajambrado paralelo entre a oposição à medida
lá e cá. O argumento firma a idéia de que as cotas têm tudo para fazer crescer
sentimentos racistas no povo brasileiro, como supostamente teria acontecido
entre os norte-americanos. Daí porque a política não deve ser adotada, pois o
risco provável é de que vá surtir efeito contrário.
Antecipação de eventos: Esse núcleo de argumentos guarda uma certa
semelhança com o tipo anterior. Por essa perspectiva, a argumentação construída
realça a política de cotas como algo negativo, um fator desestabilizador na
conjuntura nacional. Sua implantação pode suscitar prejuízos à realidade social,
incluindo até mesmo a complicação das relações raciais. Tratando-se de uma
expectativa a médio e longo prazo, quem argumenta se exime da responsabilidade
de ter que apresentar prova ou sustentação à previsão que faz.
Enquanto não houver uma aceitação da idéia, a gente não pode impor algo
que poderia ter um efeito de polarizar um conflito de raças (Folha de S.
Paulo, entrevista dada pelo então futuro ministro da Educação Cristovam
Buarque, a Antônio Gois, 30/12/02).
Nesse exemplo, à opinião de que as cotas não podem ser implantadas como
potica de Estado, junta-se o argumento de que um possível efeito negativo seria
suscitado com as cotas, sem que para tanto seja apresentada qualquer justificativa.
A argumentação do ministro possibilita-lhe uma imagem de autoridade sensata,
equilibrada, preocupada com os rumos das relões raciais no Brasil. Mas, ao mesmo
tempo deixa entrever que o racismo é algo subjacente no dia-a-dia da sociedade
brasileira, algo represado, adormecido, passível de ser despertado com uma até
certo ponto limitada potica de ão afirmativa. Se é assim, onde o professor
Cristovam vê a sombra de uma amea que paira sobre a sociedade brasileira, as
pessoas engajadas na luta contra o racismo em uma oportunidade de trazer para
o dia-a-dia da opinião pública o debate sobre as relações raciais no Brasil.
A estratégia de incluir pobres e negros nas universidades à força não vai
eliminar as deficiências culturais que tais alunos acumularam em suas vidas.
O resultado provável será o aumento da evasão nas universidades (Folha de
S. Paulo, editorial, 21/02/03).
Nesse exemplo, a política de ação afirmativa é apresentada de forma
pejorativa como “estratégia de incluir pobres e negros nas universidades à
203
André Ricardo Nunes Martins
força”. Já nessa opinião, tem-se um estupendo ataque à medida. Mas, o ataque
não pára aí. A argumentação prossegue. um pressuposto de que as cotas
vêm para corrigir supostas deficiências culturais que atingiriam alunos ‘pobres
e negros’ na negação que é feita. O argumento final é que as cotas acarretarão o
‘aumento da evasão’. Tudo isso, sem que o editorialista fundamente sua opinião
com dados de pesquisa ou projeções de alguma fonte institucional.
Comparação: Por esse tipo de estratégia, o caso brasileiro é comparado com
o exemplo dos Estados Unidos. Além do pressuposto de que a discriminação
contra negros no Brasil não é odiosa como a existente nos EUA, em alguns
exemplos, os adversários das cotas exploram, de forma parcial, o fato de as
políticas de ação afirmativa estarem sofrendo contestação naquele país como
um meio de se alertar a opinião pública, defendendo que não se pode adotar
no Brasil um tipo de política que supostamente não teria dado certo entre
os americanos. Nesse caso, a contestação ou resistência à ação afirmativa da
parte de setores da sociedade americana, e mesmo a persistência do racismo na
sociedade americana, são mostradas como sintomas da ineficiência desse tipo
de política pública:
Lamento que, no Brasil, tenhamos nos encaminhado no sentido de imitar os
Estados Unidos na questão das cotas “raciais”, quando eles já reconheceram
os resultados discutíveis dessas iniciativas, as quais, além do mais, não levam
em consideração as diferenças entre a realidade americana e a brasileira
(Folha de S. Paulo, artigo de autoria de Eunice R. Durham, apresentada
como pesquisadora sênior do Nupes Núcleo de Pesquisa sobre Ensino
Superior da USP, e membro do Conselho Nacional de Educação entre 1997
e 2001, 23/05/02).
A articulista, nesse exemplo, dá como certo o que seria no mínimo
algo controverso, ou seja, a idéia de que eles já reconheceram os
resultados discutíveis dessas iniciativas. Ora, o que tem crescido nos
EUA é um movimento forte de contestão sobretudo da parte de setores
conservadores da sociedade americana. Não consta que lideranças negras
de peso recomendem a suspensão das poticas de ação afirmativa. O fato
de existir ainda um fosso considevel entre as comunidades negra e o-
negra nos EUA não indicaria ineficácia das políticas, quando muito a
insuficiência delas para dar conta de uma realidadeo dratica. A rigor,
o há alternativa para a ação afirmativa. Sendo assim, todo o processo de
discussão sobre o tema na sociedade americana deveria servir à experiência
brasileira como meio de aperfeiçoar a política, nunca como desestímulo,
como sugere o texto.
204
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
A experiência dos Estados Unidos evidencia a falácia do argumento de que o
crescimento do número de “afrodescendentes” diplomados confere poder aos
negros. Lá, as cotas para negros nas universidades convivem harmoniosamente
com as “cotas” que os tribunais reservam para os negros pobres nas prisões
e no corredor da morte. (...)As cotas constituem um elemento das políticas
compensatórias e, por isso mesmo, são consistentes com a manutenção ou
o aprofundamento das desigualdades de renda (Folha de S. Paulo, artigo,
de autoria de Demétrio Magnoli, apresentado como doutor em geografia
humana pela USP e como editor do jornal Mundo Geografia e Política
Internacional, 29/07/03)
Nesse outro exemplo, a argumentação desenvolvida firma o pressuposto das
cotas para negros como panacéia, ou seja, política que tem por foco combater
o racismo em todas as suas manifestações. Ora, tal pretensão não se sustenta,
nem poderia. A ação afirmativa tem propósitos específicos, limites e alcances
estritos. Em geral, tem sido aplicada no mundo do trabalho e no sistema
educacional. Mas o racismo é realidade mais grave e profunda. Sua eliminação
envolveria o compromisso de todos os segmentos da sociedade e não apenas
ações governamentais. O autor utiliza o pressuposto como forma de enfraquecer
a relevância específica que a ação afirmativa tem como medida reparatória e
compensatória.
Como contraponto a essa visão pessimista do articulista, pode-se argumentar
que longe de se extinguir a ação afirmativa na sociedade, esse tipo de política
deve ser radicalizada. A própria situação citada no texto a super-representação
de negros entre a população carcerária americana – é um fato a ser examinado,
mas trata-se, vale ressaltar, de mais uma evidência do racismo na sociedade, não
de um efeito colateral da política.
conclusão
Em um discurso que se volta para o exame de uma política social passível de
controvérsia, nota-se um esforço e um certo desconforto sobretudo da parte
de quem rejeita a ação afirmativa em ter que criticar, rejeitar e mesmo assumir-se
contrário a essa demanda. Tal fato deixa entrever os melindres que o tema das
relações raciais suscita na opinião pública brasileira. Como combater as cotas
sem parecer racista ou insensível à sorte de milhões de pessoas em desvantagem
na população brasileira? A argumentação desenvolvida vai explicitar parte desse
esforço. Os argumentos e todos os recursos lingüísticos que são entretecidos
205
André Ricardo Nunes Martins
a sua volta são indícios de um mal-estar. O Brasil está passando da hora
de reconhecer e enfrentar as desigualdades raciais, desistindo assim de vez de
pleitear uma suposta harmonia entre negros e brancos.
O processo social e político que faz das relações raciais e do racismo temas-
tabu na sociedade brasileira instaura e faz circular no discurso da imprensa a
preocupação quanto a ser acusado de racista, o medo de parecer indiferente à
sorte de milhões de brasileiros em situação de carência, excluídos do usufruto
de bens simbólicos. De sua parte, os que se levantam contra o racismo
enfrentam um problema prático, o tema simplesmente ainda não goza de um
reconhecimento público geral, evidenciado no fato de que não é priorizado
como um problema grave, cujo combate requer políticas públicas específicas.
A imprensa por suas características peculiares de instituição social forçada a
veicular as muitas vozes da esfera pública emerge como um espaço privilegiado
de formulação e fixação de sentidos e de disputa do consenso em torno do
assunto. O discurso da imprensa sobre as cotas explicita tanto uma oportunidade
de construção quanto de combate a essa legitimidade. Assim, se o processo de
implantação da política de cotas é ocasião para se enfrentar concretamente
efeitos perversos do racismo, a discussão do tema na esfera pública traz a lume o
racismo subjacente nos sujeitos e nas práticas sociais. Sem dúvida, não é simples
pautar o assunto tanto na imprensa, como na esfera pública em sentido mais
amplo. Nesse sentido e malgrado o conjunto das manifestações de agressividade
e discriminação veiculadas nos textos da imprensa, implícita e explicitamente,
há um lucro na discussão das cotas – a evidência de que o assunto incomoda
e se incomoda é porque há feridas não cicatrizadas.
A argumentação é assim um dos instrumentos nesse processo discursivo,
um dos mais fortes recursos lingüísticos em que se pode notar o esforço dos
participantes em atacar a legitimidade da política de cotas. Os argumentos
erigidos e combinados com outros recursos da linguagem interferem na
construção de perspectivas sobre as relações raciais e o racismo no Brasil. A
identificação e a discussão das estratégias discursivas veiculadas nesse discurso
devem ser usadas pelas pessoas e instituições que combatem o racismo para
desconstruir o discurso de desqualificação das cotas como política pública ao
tempo que devem fortalecer o processo de construção ou de reforço de novos
sentidos que valorizem a luta dos negros pela igualdade racial.
206
Racismo e imprensa – Argumentação no discurso as cotas para nedros nas universidades
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PARA ALÉM DAS COTAS
Parte 3
211
eDucAção e PolíticAs PúBlicAs AfirmAtivAs: elementos
DA AgenDA Do ministÉrio DA eDucAção
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
Na últimacada, o debate sobre a dinâmica das relações raciais na sociedade
brasileira e as ões afirmativas tem ampliado o seu espaço na esfera blica. O
momento atual mostra-se promissor para redimensionar as ões voltadas à superação
das desigualdades entre negros e brancos e potencializar um comprometimento
manifesto do Estado brasileiro, que é signario, desde 1968, derios tratados e
convenções internacionais que objetivam a eliminação da discriminão racial.
1
A vasta evidência empírica dos indicadores sociais brasileiros
2
explicita a não-
realização da igualdade entre os grupos raciais especialmente entre os grupos
populacionais brancos e negros.
3
A dimica brasileira das relações raciais materializa,
em toda a sociedade, uma lógica de segregação amparada em preconceitos e estertipos
raciais disseminados e fortalecidos pelas mais diversas instituões sociais, entre elas: a
escola, a Igreja, os meios de comunicação e a família, em especial.
Esse quadro vai além da violão individual. Em termos coletivos, remete ao
cotidiano da populão negra, no qual a cor acaba por explicar parte significativa
das desigualdades encontradas nos veis de renda, educação, saúde, moradia,
1 Os Tratados de Direitos Humanos garantem direitos aos indivíduos; estabelecem as obrigações do Estado em
relação aos direitos; criam mecanismos para monitorar a obserncia dos Estados em relão às suas obrigões
e permitem que os indivíduos busquem compensações pela violação dos seus direitos. O Brasil é signatário
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminão Racial (l968), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poticos (1966), Convenção III da
OIT sobre Discriminão no Emprego e na Profissão (1968) e, mais recentemente, da Carta da III Conferência
Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolencias Correlatas (2001).
2 Consultar dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep/MEC).
3 Este texto enfoca a desigualdade étnico-racial a partir do recorte espefico da populão afro-
descendente.
212
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
trabalho, lazer, vioncia, entre outros.
4
As desigualdades raciais podem ser facilmente
percebidas nos indicadores sociais referentes aos mais variados vetores.
5
As mudanças sociais assistidas no Brasil no decorrer do século XX não
correspondem à trajetória da população negra nesse mesmo período. Os indicadores
relativos a esse grupo humano permanecem pouco alterados, sendo mantido um
quadro de condão social aviltante e degradante associado ao racismo.
Os indicadores educacionais, em particular, expõem com nitidez a intensidade
e o caráter estrutural do pado de discriminão racial no Brasil. Ao longo do
culo XX observa-se um contínuo aumento dos níveis de escolaridade dia de
todos(as) brasileiros(as), no entanto a diferença de escolaridade dia entre brancos
e negros manm-se perversamente estável entre as gerações.
6
Como nos indica Stuart Hall (2003:13), nossa identidade é formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam. Nesse sentido, diante da importância da
educação na constituão da subjetividade e da identidade individual torna-se evidente
o elevado ônus para a populão negra e para a sociedade como um todo decorrente
da intensidade e da estabilidade do padrão de desigualdade racial na educação.
O enfrentamento da desigualdade racial brasileira solicita uma potica blica
afirmativa que enfrente o desafio de integrar as perspectivas “universalista” e
“diferencialista” na constrão de uma potica educacional anti-racista orientada
pelos valores da diversidade e o direito à diferença.
Quanto ao tema violência perpetuada pelo Estado contra a população negra na forma do racismo
institucionalizado –, observa-se que a natureza dessa violação é individual, social e política. Dados estatísticos
constantes no relatório sobre violência apresentados pela ONU indicam que jovens negros entre 14 e 21
anos são as vítimas preferenciais da violência da policial. Como consta nesse relatório, o aparato repressivo
do Estado incide sobre a expectativa de vida e as perspectivas da população negra brasileira, pois esta não
encontra respaldo nas diversas esferas: legislativa, executiva e judiciária. Nos casos específicos, a atuação do
Estado tem sido inócua até a presente data no que tange ao extermínio, às torturas, detenções arbitrárias,
entre outras.
5 Entre outros, ver: Nós mulheres negras – diagnóstico e propostas da Articulação de ONGs de Mulheres
Negras Brasileiras rumo à III Conferência Mundial de Contra o Racismo. Brasil: 2001; Dossiê Assimetrias
raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas. São Paulo: Rede Feminista de Saúde, 2003.
6 De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios a escolaridade média de um
jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade
tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos. Apesar da escolaridade de brancos e negros
crescer de forma contínua ao longo do século, a diferença de 2,3 anos de estudo entre jovens brancos e
negros de 25 anos de idade é a mesma observada entre os pais desses jovens. E, de forma assustadoramente
natural, 2,3 anos de estudo é a diferença entre os avós desses jovens. Para mais detalhes sobres as desigualdades
raciais em termos educacionais e sociais. Ver Henriques (2001).
213
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
PolíticAs PúBlicAs AfirmAtivAs: oBstáculos PArA imPlementAção
Quando pensamos em fatores que podem dificultar – e até mesmo impedir
– a implementação de um conjunto de políticas públicas afirmativas em prol
do combate ao racismo e da promoção da população negra nos sistemas de
ensino, duas formas de racismo devem ser necessariamente consideradas: o
racismo institucional e o racismo individual, presentes nas instituições e nos
profissionais do sistema de ensino.
7
O primeiro tipo de racismo está ligado à estrutura da sociedade e não aos
seus indivíduos isoladamente. O racismo institucional engendra um conjunto de
arranjos institucionais que restringem a participação de um determinado grupo
racial, forjando uma conduta rígida frente às populações discriminadas. No
caso das políticas educacionais, nota-se uma fixidez de comportamento negativo
frente a propostas de implementação de políticas de ação afirmativa.
Quando conjugamos as duas formas de racismo, há de se considerar que a
implementação das políticas públicas pode enfrentar ações contrárias, na medida
em que muitos profissionais da educação brancos e também negros não
percebem as ações afirmativas como um elemento imperativo para a igualdade
de resultados entre brancos e negros no sistema de ensino. Perpassa ainda a idéia
de que as políticas públicas afirmativas correspondem a um privilégio dado à
população negra, e que desconsideram as desigualdades sociais como o elemento
potencializador das disparidades vividas pelos grupos branco e negro.
Na sociedade brasileira, em que predominam uma visão negativamente,
preconceituosa e historicamente construída a respeito do negro e, em
contrapartida, uma identificação positiva do branco, a identidade estruturada
durante o processo de socialização tem por base a precariedade de modelos
satisfatórios e a abundância de estereótipos negativos sobre negros.
Nesse sentido, outro aspecto de fundamental importância que figura
como obstáculo para a efetividade da política: o eixo da gestão educacional.
No planejamento da gestão escolar é que são definidos os recursos destinados à
formação continuada de professores, à elaboração e à distribuição de materiais
didáticos e paradidáticos; as prioridades e as teticas a serem abordadas no
decorrer de sua gestão. Para que a temática étnico-racial seja contemplada,
7 Para compreender a diferenciação entre Racismo Individual e Institucional, sugerimos ver Pettigrew
(1982).
214
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
identifica-se a necessidade de um corpo técnico com conhecimento e experiência
no trato dessa tetica, pois o desconhecimento e, sobretudo, as idéias atreladas às
ideologias racistas, impedem a elaboração de uma agenda de poticas educacionais
afirmativas para o respeito e a valorização da diversidade étnico-racial.
PolíticAs PúBlicAs AfirmAtivAs e os sistemAs De ensino
A educação como um direito de todo cidadão brasileiro, independentemente
de seu pertencimento racial, é destacada pela Constituição Federal. Em seu
artigo 205, assevera-se que: “A educação, direito de todos e dever do Estado
e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Em seu artigo 206, ratificam-se princípios de igualdade e de padrão de
qualidade:
O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: igualdade de
condições para o acesso e a permanência na escola; liberdade de aprender,
ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de
idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas
e privadas de ensino, gratuidade do ensino público em estabelecimentos
oficiais; gestão democrática do ensino público na forma da lei; garantia de
padrão de qualidade.
Esses princípios estabelecem um marco referencial para que os sistemas
de ensino tenham a possibilidade de assegurar, em conformidade com os
componentes estruturais da agenda estratégica da UNESCO, uma educação de
qualidade para todos.
A Constituição, em conformidade com os princípios de equidade e justiça para
a educação, refere-se ainda à necessidade de garantia e valorização da diversidade
cultural presente na sociedade, no artigo 210: “Serão fixados conteúdos mínimos
para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica e respeito
aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”.
Por sua vez, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), instituída
em 1996, representa o principal elemento qualitativo da transição institucional
215
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
da educação brasileira e permitiu a redefinição de papéis e responsabilidades
dos sistemas de ensino, concedendo maior autonomia à escola, flexibilizando
os conteúdos curriculares e estimulando a qualificação do magistério.
A história recente do Minisrio da Educão caminha no sentido de
seguir estes vários princípios. O MEC na década de 1990 incorporou,
ainda que de maneira incipiente, a tetica étnico-racial nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), mais especificamente no tema transversal
Pluralidade Cultural. Os PCNs representaram à época uma tentativa de
evidenciar as diferenças culturais e raciais, com a perspectiva de integ-las
ao currículo, dialogando com as antigas reivindicações dos movimentos
negros. Sobre esse documento, Souza afirma:
nesse documento uma vasta discussão teórica, mas por vezes fica-me a
impressão de bricolagem, caleidoscópio (...). O teor do documento soa-me
muito mais como discurso ideológico, lacunar, do que efetivamente uma
proposta curricular. Deve-se salientar, entretanto, que o fato de a questão estar
posta em um documento pedagógico nacional, mesmo que precariamente,
significa um grande avanço, pois é possível pensar sobre o que está
materializado (SOUZA, 2001: 54, 55 e 58).
O Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), por sua vez,
sinaliza um dlogo inicial sobre políticas blicas afirmativas no âmbito da
Educão. Na seção sobre educação, propõe “desenvolver ações afirmativas
para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e
às áreas de tecnologia de ponta (...) formular poticas compensatórias que
promovam social e economicamente a comunidade negra (...) e apoiar as
ões da iniciativa privada que realizem discriminão positiva (Brasil,
1996, p. 30).
Em 1999, o MEC, respondendo à reivindicação dos movimentos sociais
negros e a críticas severas de pesquisadores negros, publica um livro sobre
a tetica étnico-racial, Superando o racismo na escola.
8
Essa obra, em seus artigos, evidencia a ausência de materiais ditico-
pedagicos voltados para a temática em questão, bem como a diferença
abismal entre negros e brancos nos sistemas de ensino.
8 Este livro, coordenado pelo professor Kabengele Munanga, foi reeditado pelo MEC em 2005.
216
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
Como resposta ao processo de organização e de realização da
III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (2001)
9
, cuja pauta
explicitava a necessidade de implementação de políticas de ações
afirmativas e destacava a educão como chave para a ruptura do racismo
estrutural brasileiro, o MEC por meio de um contrato de empréstimo
entre o Governo Federal e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) realizou, em 2002, uma experiência-piloto sob o título Projeto
Diversidade na Universidade Acesso à Universidade de Grupos
Socialmente Desfavorecidos.
Em novembro de 2002, a Lei nª 10.558 oficializou a criação do
Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da
Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a
promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos
socialmente desfavorecidos, especialmente a população negra e indígena.
Dentro do escopo do programa, definiu-se como principal ação o apoio
financeiro às instituões que organizavam cursos preparatórios para o
vestibular, delineados como Projetos Inovadores de Curso (PICs), com
o objetivo geral de apoiar a promoção da eqüidade e da diversidade na
educação superior. No ano de sua implantão os PICs beneficiaram
aproximadamente 900 jovens.
A partir de 2003, sob orientão do governo Lula e em um novo
quadro institucional, as políticas educacionais para a diversidade étnico-
racial passaram por uma nova infleo. A Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional foi alterada, a partir da promulgão, em 9 de
janeiro de 2003, da Lei Federal nª 10.639/03, que torna obrigatório,
9 É importante destacar que no Brasil o movimento para a adoção de políticas de ações afirmativas ganhou
consistência e visibilidade após a participação na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, de 31
de
agosto a 7 de setembro de 2001. Com o advento dessa conferência, deflagrou-se um acalorado debate público
em âmbito nacional, envolvendo tanto órgãos governamentais quanto não-governamentais interessados em
radiografar e elaborar propostas de superação dos problemas oriundos do racismo e de seus derivados. O
então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu um Comitê Nacional, composto
paritariamente por representantes de órgãos do governo e da sociedade civil organizada. Entidades dos
Movimentos Negro, Indígena, de Mulheres, de Homossexuais, de Defesa da Liberdade Religiosa também
se mobilizaram intensamente nesse diálogo com o governo. Com o término da Conferência, diante da
Declaração e do Programa de Ação, a sociedade civil organizada passou a monitorar e exigir que as medidas
reparatórias fossem implementadas.
217
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
no currículo oficial da Rede de Ensino, o ensino de História e Cultura
Afro-brasileiras.
10
Com a promulgação dessa lei, o Estado brasileiro contempla diretamente
uma solicitação presente no Plano de Ação de Durban, expressamente no que
diz respeito ao caráter imperioso de os Estados promoverem a plena e exata
inclusão da história e da contribuição dos africanos e afro-descendentes no
currículo educacional.
11
Ao encontro da alteração sofrida pela LDB, o Conselho Nacional de
Educação elaborou parecer com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileiras e Africanas
12
, regulamentando, portanto, a referida alteração.
Esse documento constitui uma linha divisória na política educacional
brasileira, visto que, pela primeira vez, há o tratamento explícito da dinâmica
das relações raciais nos sistemas de ensino, bem como sobre a inserção no
currículo escolar da história e cultura afro-brasileiras e africanas. O texto do
documento salienta:
O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação,
à demanda da população afro-descendente, no sentido de políticas de
ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento
e valorização de sua história, cultura e identidade. Trata, ele, de política
10 O artigo 26-A dispõe: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-
se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1
o
O conteúdo programático a que se
refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição
do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2
o
Os conteúdos
referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar,
em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (Incluído pela Lei n
o
10.639, de 9.1.2003). Art. 79 B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional
da Consciência Negra’”. Vide também o livro Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal
no. 10.639/03. Coleção Educação Para Todos. MEC, Brasília, 2005.
11 É importante destacar a mudança estratégica definida pelo Presidente Lula na coordenação da política de
igualdade racial. Em agosto de 2003, o Presidente Lula criou a Secretaria Especial de Promoção de Políticas
para a Igualdade Racial (Seppir) uma reivindicação antiga do Movimento Negro. Para essa Secretaria com
status de Ministério, o Presidente nomeou Matilde Ribeiro, uma intelectual negra, militante e pesquisadora.
A principal tarefa da Seppir diz respeito à implementação de uma política de promoção da igualdade racial
em território nacional, a partir da articulação política entre os demais Ministérios, governos estaduais e
municipais, bem como sociedade civil em geral. As áreas que mais têm recebido atenção desta Secretaria
são trabalho, saúde, educação e comunidades remanescentes de quilombos.
12 O parecer CNE/CP 3/2004 foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação em 10 de março de 2004.
A partir dessas Diretrizes, o CNE aprovou a Resolução n
o
1, de 17 de junho de 2004, regulamentando a
temática nas diversas ações dos sistemas de ensino.
218
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas
da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que
atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe a divulgação
e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores
que eduquem cidaos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial
–descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de
asiáticos para interagirem na construção de uma nação democrática, em
que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade
valorizada (BRASIL, 2004: 10).
Em fevereiro de 2004, o Ministério da Educação sob orientação do Ministro
Tarso Genro, na perspectiva de estabelecer uma arquitetura institucional
capaz de enfrentar as múltiplas dimensões da desigualdade educacional do
país, instituiu uma nova secretaria: a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (Secad). A Secad surge com o desafio de desenvolver
e implementar políticas de inclusão educacional, considerando as especificidades
das desigualdades brasileiras e assegurando o respeito e valorização dos
múltiplos contornos de nossa diversidade étnico-racial, cultural, de gênero,
social, ambiental e regional.
13
O MEC, por intermédio da Secad, estabelece a prioridade de construir
arranjos institucionais que permitam promover a coordenão e articulão
de esfoos entre Governos Estaduais e Municipais, ONGs, movimentos
sociais e organismos internacionais, para ampliar o acesso, garantir a
permanência e contribuir para o aprimoramento de práticas e valores
democráticos nos sistemas de ensino.
No âmbito das desigualdades raciais, a Secad desenvolve ões com o
objetivo de elaborar e implementar políticas blicas educacionais em prol
do acesso e da permanência de negros e negras na educação escolar em
todos os níveis da educação infantil ao ensino superior –, considerando
ainda as modalidades de educação de jovens e adultos e a educão em
áreas remanescentes de Quilombos; e, paralelamente, de possibilitar a toda
sociedade reflexão e conhecimento consistente para que sejam constrdas
relações baseadas no respeito e na valorizão da diversidade brasileira.
A Secad procura desenvolver várias dimensões de uma política pedagógica
13 A estrutura da Secad possui quatro Departamentos: Educação de Jovens e Adultos (DEJA), Avaliação
e Informações Educacionais (DAIE), Desenvolvimento e Articulação Institucional (DDAI) e Educação
para Diversidade e Cidadania (DEDC). Este último Departamento comporta cinco Coordenações-Gerais:
Diversidade e Inclusão Educacional (CGDIE), Educação Ambiental (CGEA); Educação do Campo (CGEC);
Ações Educacionais Complementares (CGAEC) e Educação Escolar Indígena (CGEEI).
219
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
da diversidade e, em particular, tem estabelecido parcerias com os sistemas
de ensino para a implementação da Lei nª 10.639/03. No que se refere à
queso da diversidade étnico-racial, seus objetivos centrais são:
combater as desigualdades raciais e étnicas de acesso e continuidade da
escolarização no sistema educacional em todos os níveis e modalidades de
ensino;
promover ações que ampliem o acesso ao sistema educacional dos diversos
grupos étnico-raciais;
propor estratégias de implementação de políticas educacionais afirmativas
para a execão de uma educação de valorizão e respeito à diversidade
cultural e racial brasileira;
contribuir para a ampliação do acesso e da permanência no ensino
superior, especialmente de populações afro-brasileiras e indígenas;
elaborar Plano de Ação para a inseão da tetica História e Cultura
Africana e Afro-brasileira (artigo 26 da Lei no 9.394/96).
Nessa perspectiva, o MEC pretende implantar e dar continuidade a uma
série de ações afirmativas, sobretudo as que se referem ao acesso e à permanência
dos estudantes nos sistemas de ensino, em particular na educação superior; às
opções de estudo para egressos das escolas públicas; à mudança das diretrizes
curriculares, considerando a inclusão de afro-brasileiros; e à formação de
professores e gestores.
O estabelecimento desses compromissos decorre do reconhecimento de que
o racismo e seus derivados estão presentes na sociedade brasileira e se fazem
também de maneira sistemática no sistema de ensino. O MEC reconhece,
desse modo, a necessidade de apoiar técnica e financeiramente as unidades da
federação para a realização de uma educação anti-racista.
Nessa linha, sua ação visa a combater o racismo institucional, bem como o
racismo individual, por meio de uma ampla política que deva necessariamente
considerar cinco eixos estruturantes da política, a saber: formação de professores;
formação de gestores; elaboração e distribuição de material didático e
paradidático; currículo escolar e projeto político-pedagógico.
É importante destacar que o investimento no ensino básico alheio a um
amplo processo de ações afirmativas para acesso e permanência no ensino
superior não é suficiente para a reversão do quadro de desigualdades no
220
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
sistema de ensino. As políticas que visam a aumentar a qualidade na educação
básica representam uma condição imperiosa para a diminuição do fosso entre
negros e brancos no sistema de ensino. Não obstante, cabe considerar que essas
políticas demandam tempo para surtir efeito e para que seus resultados sejam
perceptíveis.
A agenda programática do Ministério da Educação procura desenvolver
um conjunto de iniciativas com o objetivo de promover a equidade de acesso
e permanência das populações afro-descendentes, indígenas e de outros grupos
tradicionalmente excluídos do direito à educação.
14
Essa agenda é estruturada a
partir de cinco eixos norteadores: Acesso e Permanência; Formação de Professores
e Gestores; Marco Regulario e Institucional; Sistemas de Informação e Pesquisa;
e Divulgação e Fortalecimento Institucional.
Acesso e PermAnênciA
Neste eixo, as ações do MEC tem buscado propiciar acesso e permanência
qualificada na Educação superior:
•Projeto de Lei 3627/0 - projeto de reserva de vagas nas IFES
Elaboração do Projeto de Lei 3.627/04, que estabelece reserva de vagas
nas Instituições Federais de Educação Superior IFES para estudantes de escolas
públicas, com cotas específicas para negros e índios.
•ProUni – Programa Universidade para Todos
Reserva de bolsas em estabelecimentos de ensino superior comunitários
e particulares para alunos oriundos de escolas públicas e bolsistas de escolas
particulares, sendo 30%, das bolsas, reservado para negros e indígenas. Em 2005,
mais de 100 mil vagas foram ocupadas por estudantes de baixa renda. Entre os
beneficiados, cerca de 30 mil são afro-descendentes.
•Projetos Inovadores de Cursos - pré-vestibulares comunitários para negros
e indígenas
14 Participam na formulação e no desenvolvimento dessas ações a Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial SEPPIR, a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres - SPM, a Secretaria Especial de
Direitos Humanos - SEDH, e os Ministérios da Cultura, Saúde, Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
Meio Ambiente, Trabalho e Emprego, Desenvolvimento Agrário, Esporte, Justiça. Também são parceiros
UNESCO, BID, PNUD, OEI, UNICEF, ANDIFES, CONSED E UNDIME, entre outras instituições.
221
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
Apoio técnico e financeiro a instituições educacionais para a realização de
cursos pré-vestibulares para negros e indígenas, com a perspectiva de ampliação
de número de participantes de negros e indígenas na educação superior. No
ano de 2004 o Programa beneficiou aproximadamente 3.400 alunos, por meio
de 27 Projetos Inovadores de Cursos, e em 2005 beneficiou 5.350 alunos em
29 Projetos.
•Programa de tutoria e fortalecimento educacional de jovens negros no
ensino médio
Apoio para o desenvolvimento de experiências voltadas para o diagnóstico
e a superação da situação de desigualdade racial e social vividas por estudantes
negros(as), garantindo-lhes uma educação de qualidade, e fomentando, portanto,
a construção de políticas públicas que visem à melhoria do Ensino Médio, a
fim de contemplar a diversidade étnico-racial;
•Programa de tutoria e fortalecimento educacional de jovens negros na
Educação Superior
Estimulo e fortalecimento de experiências que ampliem as condições de
permanência e de sucesso de estudantes afro-brasileiros(as) no ensino superior.
Visa, numa perspectiva multidisciplinar e multissetorial, à permanência
do estudante universitário afro-brasileiro em seu curso, desenvolvendo e
implementando ações afirmativas de diversidade cultural, gênero e étnico-raciais,
na perspectiva da educação de pares e da promoção do protagonismo de negros
e negras nesse processo;
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as
comunidades populares
Estimulo à articulação entre universidades e comunidades populares,
propiciando troca de saberes, experiências e demandas. O programa incorpora
novos estudantes que chegam à universidade, ao mundo acadêmico,
estimulando seu envolvimento em ações coletivas nos seus locais de origem,
possibilitando assim permanência qualificada de jovens de espaços populares
na universidade.
•Cultura Afro-brasileira: educação em áreas remanescentes de Quilombos
Apoio técnico e financeiro à estados e municípios para ações específicas de
formação de professores para áreas rurais quilombolas, a amplião e melhoria da
rede escolar e a produção e aquisição de material didático para alunos e alunas.
222
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
formAção De Professores e gestores
A ação de apoio à qualificão de profissionais da educação em educão para
diversidade abrange atividades de formação e/ou capacitação de profissionais em
educação, pertencentes aos níveis federal, estadual e municipal, tais como fóruns,
encontros, palestras, seminários ou oficinas com a participão de especialistas
de reconhecido saber sobre o tema, enfocando especialmente a diversidade
em suas múltiplas dimensões. No entendimento do MEC, é fundamental o
desenvolvimento de uma política de formação docente para o trato das questões
pertinentes ao tema das relações étnico-raciais presentes no cotidiano escolar e,
sobretudo, ao ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas, pois os
profissionais da educação que se encontram na gestão dos sistemas de ensino ou
nas salas de aula não possuem, em sua maioria, conhecimento sobre a Hisria da
África, tampouco experncia consistente em educão das relações étnico-raciais.
Tais desconhecimentos e inexperiências implicam baixa efetivação na aplicão
da Lei 10.639/2003, e, sobretudo, dificultam a realização de uma educação
anti-racista e anti-sexista. Neste eixo desenvolvemos as ações abaixo:
•Formão à Disncia curso de hisria e cultura afro-brasileira e
africana
Desenvolve formação continuada à distância de profissionais da Educação
na temática étnico-racial, em todos os níveis da educação.
•Prolind Projeto Inovador de Apoio a licenciaturas interculturais
específicas para a formação de professores indígenas
Apóia projetos de educação superior intercultural indígena, desenvolvidos
por instituições de educão superior públicas em conjunto com as comunidades
indígenas, que visem à formação superior de docentes indígenas para o Ensino
Fundamental (5ª a 8ª séries) e Ensino Médio Indígena.
•UNIAFRO - Programa de Ações Afirmativas nas Instituições Públicas de
Educação Superior
Apoio financeiro e fortalecimento institucional a Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros e grupos correlatos, que visem a articular a produção e difusão
de conhecimento sobre a temática étnico-racial e o acesso e permanência da
população afro-brasileira no ensino superior, por meio de desenvolvimento de
estudos e pesquisas, seminários e de formação de professores ao encontro da
Lei nª♠10.639/03.
223
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
mArco regulAtório e institucionAl
Este eixo do trabalho visa à sistematização e construção de diretrizes e
orientações educacionais voltadas para a promoção da diversidade, nas suas
várias dimensões étnico-racial, de gênero, geracional, de sexo, regional e
ambiental. Também se privilegia o fortalecimento do diálogo com a sociedade
civil para o controle social da política por meio de comitês técnicos, que contam
com a participação de pesquisadores e ativistas sociais.
•Revisão das Orientações Curriculares para educação infantil, fundamental
e média
•Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos diretrizes para uma
educação de eqüidade
Têm como objetivo maior fomentar metodologias em educação e sua
inserção no projeto pedagógico das unidades escolares, em todos os níveis e
escolas públicas e privadas do país
•Programa Nacional de Avaliação do Livro Didático na Educãosica
Avalia livros didáticos, buscando combater estereótipos e preconceitos bem
como valorizar e respeitar a diversidade étnico-racial e de gênero no material
didático-pedagógico.
•Comitê de Educação para a Diversidade étnico-racial
•Comitê de Educação Escolar Indígena
Diálogo com grupo consultivo para monitoramento e avaliação das políticas
blicas afirmativas no âmbito do MEC e outras políticas educacionais
desenvolvidas pelos sistemas de ensino.
sistemAs De informAção e PesquisA
Busca-se neste eixo a inclusão de critérios de identificação étnico-raciais,
para o acompanhamento da situação educacional dos grupos étnico-raciais
do país. Visa à produção de informações quantitativas e qualitativas sobre a
população escolar, corpo docente e discente, considerando o pertencimento
racial dos envolvidos. O levantamento de informações abrange toda educação
básica em seus diferentes níveis, tanto na rede pública como na privada.
224
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
Tais informações possibilitam a construção de indicadores para avaliação e
construção/ implementação de políticas públicas, informações estas utilizadas
por diversos Ministérios, entre eles, Educação, Saúde, Esportes, Trabalho e
Emprego, Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
A temática étnico-racial passa a ser incorporada às agendas específicas do
Censo Escolar (inclusão de critérios de identificação racial), do Exame Nacional
do Ensino Médio ENEM e do Sistema de Avaliação da Educação Básica -
SAEB. Os estudos e pesquisas sobre diversidade étnico-racial nos sistemas de
ensino, por sua vez, são incentivados pelo MEC, no sentido de definir uma
ação de construção e disseminação de conhecimento sobre o racismo e seus
derivados no cotidiano escolar e desenvolver novas práticas pedagógicas com
base na educação anti-racista e anti-sexista.
DivulgAção e fortAlecimento institucionAl
Neste campo de atuação, o MEC desenvolve e apóia técnica e financeiramente
a implementação de ações educativas complementares que visem ao acesso, ao
reingresso e à permanência de alunos ao sistema educacional, que enfrentem
as diferentes formas de violências na escola, bem como o fortalecimento da
participação da família na melhoria da freqüência e desempenho escolar dos
alunos. Engloba a distribuição de material didático-pedagógico sobre educação
para diversidade e cidadania e tem como finalidade apoiar a produção,
distribuição e difusão de materiais didático-pedagógicos com conteúdos e
atividades que possam ser desenvolvidas em sala de aula, auxiliar o professor no
desenvolvimento de sua prática pedagógica e/ou ampliar o acervo de publicações
da escola sobre questões referentes à valorização da diversidade étnico-racial, de
gênero, de orientação sexual e diferenças culturais, dentro e a partir da escola.
runs estaduais de educação e diversidade étnico-racial e Fóruns Permanentes
de educação e diversidade étnico-racial
Ação de articulação e apoio técnico e financeiro junto aos sistemas de ensino,
por meio das secretarias estaduais e municipais de educação (com participação
de NEABs, sindicatos patronais e movimentos sociais organizados), para
constrão de uma agenda educacional que possibilite a implementão da Lei
10.639/2003 e as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em
225
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
todos os sistemas de ensino. No período de 1 ano foram realizados 20 Fóruns
Estaduais beneficiando, aproximadamente, 8.500 profissionais da educação,
ativistas dos movimentos negros e de entidades do movimento social.
Concursos nacionais (1) de monografias, dissertações e teses e (2) de material
didático-pedagógico sobre história e cultura afro-brasileira e africana
Linha editorial com recorte na temática da diversidade. Ação de construção
de conhecimento divulgação e valorização da temática étnico-racial;
desenvolvimento e distribuição de material didático-pedagógico diferenciado,
bem como o incentivo de desenvolvimento de pesquisas sobre relações étnico-
raciais no país
conclusão
A agenda do MEC, organizada a partir dos programas e ações que compõem
os cinco eixos norteadores descritos acima, procura contribuir para a construção
nas redes estaduais e municipais de ensino de uma política educacional
que transforme os sistemas de ensino a partir da introdução de elementos
estratégicos referidos a contdos pedagógicos, institucionais e gerenciais capazes
de constituir uma educação anti-racista e estabelecer condições favoráveis para
o sucesso educacional da população negra.
O compromisso ético e político com uma educação anti-racista, no entanto,
deve considerar que o combate ao racismo nos sistemas de ensino não constitui
uma política que pretenda beneficiar apenas negros e negras; trata-se de uma
política para toda sociedade brasileira. É certo que os efeitos do racismo no
cotidiano escolar constituem um problema de grande monta para a criança
e o jovem negro, considerando que esses vivem diretamente os prejuízos
acarretados pela estrutura racista; mas a desigualdade racial e o racismo são
elementos desagregadores da sociedade como um todo, que corrompem a ética
e a moralidade de todos os indivíduos.
O compromisso com uma política afirmativa para a educação deveria,
portanto, dedicar-se, de forma prioritária, a alguns conteúdos estratégicos. Além
dos elementos da agenda programática do MEC podemos explicitar alguns,
e somente alguns, desses conteúdos, como a importância da identificação e
conhecimento do perfil da população escolar a partir da introdução do quesito
“cor” ou identificação racial nas fichas de matrícula do aluno e dos professores
226
Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação
da rede; o comprometimento com a formação continuada dos profissionais da
educação, realizando congressos, seminários e fóruns de educação para todos os
níveis, considerando as especificidades das desigualdades no sistema de ensino
e com atenção especial às relações raciais estabelecidas nas escolas; a construção
e manutenção de um acervo bibliográfico (com livros, músicas, vídeos) sobre
relações raciais na sociedade brasileira, em geral, e, em particular, no sistema
educacional; a implantação de uma brinquedoteca nas escolas, com jogos e
brinquedos que contribuam para a construção do respeito e da valorização à
diversidade étnico-racial; o estabelecimento de grupos permanentes de trabalho
voltados para coordenar as ações de combate ao racismo no ambiente escolar,
composto por profissionais com conhecimento e sensibilidade à temática étnico-
racial, comprometidos com a luta anti-racista e dotados de recursos suficientes
para o cumprimento dos objetivos.
Esses conteúdos constituem passos iniciais para a formulação de políticas
blicas voltadas para a realização de uma nova educão, calcada nos
princípios de igualdade e de direitos humanos. Há, porém, muito o que fazer.
É fundamental que se aprofundem os conhecimentos sobre as particularidades
dos sistemas de ensino, com atenção ao pertencimento racial da população.
A efetividade de políticas públicas voltadas para a educação está,
certamente, na execução das propostas, atentando-se para o fato de que são
interligadas e interdependentes. Os resultados poderão ser obtidos diante de
condições propícias para que as ações sejam realizadas em um trabalho sério
e ininterrupto.
Todo projeto de educação em que não se considere a identidade étnico-racial
e de gênero dos envolvidos não constitui um projeto de educação de qualidade.
Instituir e/ou manter qualidade na educação guarda, como condição sine qua
non, elementos sociais fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo, a
construção da cidadania e da democracia. A permanência e a disseminação do
racismo contrapõem-se a todo e qualquer projeto de qualidade na educação. A
educação de qualidade para todos passa, na realidade brasileira, pelo respeito e
valorização da diversidade étnico-racial, cultural, de gênero, de orientação sexual,
social e regional e, portanto, pela construção de instrumentos que assegurem,
nos sistemas de ensino, o direito à diferença.
227
Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro
referênciAs BiBliográficAs
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228
229
A Difusão Do iDeário Anti-rAcistA nos P-vestiBulAres
PArA negros e cArentes
Renato Emerson dos Santos
O início do culo XXI no Brasil é marcado, na cena do debate político, pela
emerncia da discussão sobre as desigualdades raciais, associada à necessidade
de implementação de políticas públicas (e iniciativas de todos os segmentos da
sociedade) voltadas para sua revero, chamadas de ões afirmativas. Tal emerncia
na verdade representa (i) a publicizão e massificão dos debates e críticas ao
“mito da democracia racial”, que até pouco tempo atrás ficavam circunscritos
aos restritos rculos dos Movimentos Negros e de uma frão absurdamente
minoritária da comunidade acadêmica diretamente ligada ao tema, e (ii) o encontro
de tais sofisticadas elaborações intelectuais com uma “conscncia racial difusados
negros brasileiros, complexo conjunto de leituras e padrões (pouco estudados) de
comportamento e reação aos conflitos raciais cotidianos de nosso tecido social.
No caldo de discuses que se instauram, chama também atenção a evincia
de que a conscientizão da sociedade em torno das injustiças históricas e da
violência cotidiana de que são alvos os afro-descendentes o racismo se fortalece
como uma questão que insta à ão. Seja esta ação empreendida pelo Estado ou
por outros segmentos da sociedade, é flagrante (e, evidentemente, positivo) que o
racismo, ao ser reconhecido agora como um problema nacional, tem seu debate
marcado pela necessidade de interveões flagrante, porque nem todo fato,
fenômeno ou processo social é percebido, apropriado e formulado enquanto
questão. Vainer e Araújo (1992: 20), discutindo a emergência da problemática das
desigualdades regionais, nos remetem a esta reflexão, ao colocar que
o que nos interessa saber é o seguinte: por que é que as formas espaciais
do desenvolvimento podem ser, e o são em determinadas circunstâncias
históricas [grifo nosso], transmutadas em uma questão e sejamos específicos,
em uma questão de Estado. Fatos sociais não necessariamente geram questões
de Estado, não necessariamente fornecem matéria para discursos, estratégias
e táticas, planos e projetos governamentais.
230
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
As condições que permitem a institucionalização das demandas históricas
dos afro-descendentes desde sempre objeto de interveão dos movimentos
negros –, ainda estão por ser melhor desvendadas.
1
Destacamos aqui que se
multiplicam as insncias e esferas de intervenção, bem como as arenas de
interlocução e disputa no empreendimento das ões concretas. Com efeito,
as chamadas ações afirmativas, amplo e complexo conjunto de iniciativas
voltadas para a promoção social das populões afro-descendentes vêm
tendo lugar no Brasil em distintos ambientes,
2
a despeito da mobilização
crescente de foas reativas junto a setores conservadores, sobretudo dos
que controlam meios formadores de opino a dia.
Tais esforços reativos à efetivão de políticas focais racializadas m
mobilizando argumentos, artifícios e instrumentos rericos tradicionais,
quase sempre apreensíveis no quadro analítico que nos oferece Hirschmann
(1992):
futilidade (o problema no Brasil o é racial, é social; de nada
adianta promover uma elite negra, o fundamental é acabar com a pobreza),
perversidade (os brancos pobres serão prejudicados) e amea (vai-se criar
um conflito racial num ps onde ele não existe; haverá queda na qualidade
do desempenho das instituões que receberão indivíduos sem a necessária
qualificão, com prejuízos para toda a sociedade). Os pilares de retóricas
reaciorias e conservadoras, em diversos contextos históricos e geográficos
desde a Revolução Francesa, são mais uma vez articulados diante da
emergência da ctica à assimetria racial na sociedade brasileira. Deparam-se,
entretanto, com uma crescente avaliação positiva por parte da populão
1 Louvamos aqui os esforços empreendidos por Heringer (2003) na identificação das iniciativas em curso
no Estado brasileiro na década de 90, bem como dos impactos da Conferência Mundial contra o Racismo
de 2001.
2 Algumas publicações recentes vêm nos permitindo contemplar tal multiplicidade. Cabe menção aqui,
para não ser exaustivo, a três trabalhos: o anteriormente aludido, de Heringer (2003), derivado da pesquisa
“Mapeamento de ações e discursos de combate às desigualdades raciais”, que identificou e sistematizou
um conjunto de 124 iniciativas de ações afirmativas nos campos da Educação, Trabalho e Geração de
Renda, Direitos Humanos e Advocacy, Saúde, Informação, Legislação, Cultura e outros; o livro “Ações
afirmativas em Educação: experiências brasileiras” (2003), organizado por Cidinha da Silva, que apresenta
e discute experiências que articulam os campos educacional e do Trabalho, desenvolvidas por ONGs do
campo do anti-racismo, em parcerias com empresas privadas, mostrando como estes setores vêm também
incorporando este debate; e a coletânea por nós organizada, “Ações afirmativas: Políticas públicas contra as
desigualdades raciais” (SANTOS; LOBATO, 2003), cuja segunda parte apresenta propostas (algumas delas
já aprovadas) de ações afirmativas nos campos legislativo, sindical e no ensino superior. Tais publicações
dão uma boa mostra de como o ativismo negro vêm implementando as ações afirmativas no setor público,
privado e legislativo.
231
Renato Emerson dos Santos
sobre a necessidade e pertinência de poticas racialistas, o que vem sendo
atestado inclusive por diversas pesquisas de opino.
3
Neste processo de difusão pela sociedade da crítica ao mito da democracia
racial, um dos principais agentes/meios são os pré-vestibulares populares de
corte racial. Difundidos pelo país ao longo dos anos 90, eles abriram portas
para uma nova dimensão de publicização das agendas do movimento negro
brasileiro. Ainda que muitas vezes ancorados em pactos ideológicos “frouxos”,
é inegável que vem sendo no fazer cotidiano desses cursos que uma quantidade
considerável de indivíduos que sempre experimentaram (mas que provavelmente
nunca empreenderam esforços reflexivos sobre) a assimetria das relações raciais,
característica deste país, são pela primeira vez conduzidos (ou constrangidos)
a discuti-la e politizá-la.
Neste sentido pretendemos, nos estreitos limites deste trabalho, discutir
como vêm sendo difundidas as idéias anti-racistas, não no âmbito da agenda
estatal ou do setor privado, mas nos cursos pré-vestibulares populares, que vêm
se construindo e espalhando por todo o Brasil nos últimos 10 anos. Nossas
reflexões tomam como ponto de partida a observação de um movimento social
de corte racialista denominado Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC),
iniciativa seminal para o processo de construção desses cursos por todo o país,
mas atentaremos também para a disseminação do ideário anti-racista nos cursos
não vinculados a ele. O PVNC é uma rede de pré-vestibulares populares surgida
na Baixada Fluminense, nos anos 90, que chegou a congregar, no final daquela
década, quase 90 núcleos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O movimento de pré-vestibulares populares, que surgiu como desdobramento
do trabalho do PVNC, atualmente comporta milhares de cursos em todo
o Brasil. Outras redes foram criadas e se nacionalizaram, como a Educafro
(Educação e Cidadania para os Afro-Descendentes e Carentes, que atua nos
estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, com mais
de 190 núcleos e quase 10.000 alunos) e o Movimento dos Sem Universidade
(MSU), que está estruturado em 10 estados – Bahia, Distrito Federal, Espírito
Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio
3 Recente pesquisa sobre o racismo, da Fundação Perseu Abramo, ao interrogar sobre os diferenciais de condições
de vida entre negros e brancos “indica que receptividade para a intervenção governamental, ou mesmo
expectativa de que ela ocorra: estimulada a idéia de que a desigualdade entre brancos e negros se deve à falta de
poticas blicas com oportunidades para os negros melhorarem de vida, 46% optam por essa alternativa (44%
dos brancos e dos pardos, 54% dos de cor preta), caindo para 32% os que responsabilizam a discriminação dos
brancos contra os negros e para 15% os que acreditam que os próprios negroso os principais responveis
por sua situação de inferioridade na escala social” (VENTURA ; BOKARI, 2004).
232
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
de Janeiro e Tocantins são citados em sua página na internet), além de milhares
de núcleos que atuam “isoladamente” por todo o país.
Estas iniciativas são, flagrantemente, desdobramentos diretos e indiretos do
trabalho e da difusão do PVNC. Marcado por uma dinâmica interna que, de
um lado, comportava intensas disputas políticas, e, dialeticamente, de outro,
tinha nelas próprias e nas vigorosas articulações políticas de seus membros os
motores de seu crescimento que significou a difusão e popularização dos
cursos pré-vestibulares populares –, o PVNC é, portanto, um agente central na
disseminação destes cursos e da discussão sobre o racismo no Brasil.
A um só tempo, os pré-vestibulares populares tensionam e questionam a elitização
da universidade brasileira, pautando sua democratizão, e o fazem vinculando-a
à queso racial como uma dimensão fundamental e indissocvel. Desta forma,
tal discussão é disseminada por este movimento (i) atras da “conscientização das
bases” em seu trabalho cotidiano e (ii) pautando-a em instâncias estatais e runs de
decisão tradicionalmente alérgicos e pouco sensíveis a ela. Torna-se mister, portanto,
compreender como são constituídas as bases deste cruzamento de agendas, que
permite o diálogo entre distintas ideologias, valores e desideratos sociais levando
ao aumento da conscncia anti-racista em nosso tecido social. Damos, portanto,
continuidade às reflexões expostas em trabalhos anteriores.
4
umA formA De Ação sociAl
A construção do movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC)
é um desdobramento de um conjunto de estratégias do Movimento Negro nas
décadas de 1970 e 1980, dentre as quais podemos destacar (i) a escolarização
dos negros como processo de construção de novas lideranças e fortalecimento
de outras lideranças,
5
e (ii) a capilarização de militantes da luta anti-racismo
4 Cf. Santos (2003a) e Santos (2003b).
5 Tal estratégia levou um segmento bastante significativo da militância do movimento negro (seus líderes,
figuras, sujeitos que construíam o movimento e suas entidades) a ingressar na academia para fazer
graduações, mestrados e doutorados, caminho marcado por uma concentração destes indivíduos nas áreas
da Educação e das Ciências Humanas. Tal concentração em grande medida influenciada pelo fato de tais
campos passarem de um modo geral, nas últimas décadas, por perdas salariais no mercado de trabalho
pode ser levantada como uma hipótese explicativa da liderança destas áreas no debate atual sobre as
ações afirmativas, o que é patente nos números apresentados por Heringer (2003), que apontam as áreas
de Educação (30,6%), Trabalho e Geração de Renda (20,2%) e Direitos Humanos e “Advocacy” (19,4%)
como de maior ocorrência destas políticas.
233
Renato Emerson dos Santos
em diferentes espaços de luta e intervenção social, que vai legar a este novo
movimento (o pré-vestibular) uma cultura de convergência e hibridação de
valores, leituras do social e formas de atuar. O PVNC nasce, portanto, como
uma estratégia diante da necessidade do aumento da escolarização da base social
dos movimentos negros, em discussões que tiveram lugar nos anos 80 sobretudo
no âmbito dos Agentes da Pastoral do Negro, onde ganhou corpo a idéia de
intervir na ponte entre o segundo e o terceiro graus, ou seja, de fortalecer a
entrada na universidade de estudantes negros.
Tais debates resultaram, no ano de 1993, na criação do primeiro núcleo do
Pré-Vestibular para Negros e carentes na Igreja Matriz em São João de Meriti,
na Baixada Fluminense. O crescimento desta iniciativa, com a aproximação de
outros militantes da luta anti-racismo não ligados ao campo religioso, instaura
embates ideológicos acerca de como seria a iniciativa, e quais estratégias seriam
mobilizadas para seu crescimento e difusão.
6
A partir destes embates, inaugura-
se não um formato de instituição mas é criada uma forma de ação social
com um grande poder de reprodutibilidade, fundando-se assim um movimento
social, o Pré-Vestibular para Negros e Carentes. O PVNC teve, em determinados
momentos (sobretudo entre os anos de 1997 e 1998), mais de 80 núcleos
espalhados por toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
7
O sucesso da experiência do PVNC deu lugar a um movimento em escala
nacional de construção de pré-vestibulares de corte popular, com o corte racial
ou sem ele, e com outros cortes possíveis. A existência de cursos pré-vestibulares
populares é um fato anterior, mas, com efeito, o PVNC instaurou novos marcos
para estas iniciativas, não apenas pela velocidade e abrangência espacial com
que se espalhou adquirindo capilaridade social não alcançada pelas iniciativas
anteriores a ele –, mas também pelo formato institucional que o caracteriza e
6 Para um relato pormenorizado do histórico do Pré-Vestibular para Negos e Carentes, cf. Santos (2003a).
7 Nos registros que coletamos no âmbito da pesquisa “Raça & Classe no curso Pré-Vestibular para Negros
e Carentes do Rio de Janeiro” identificamos 86 núcleos do PVNC desde 1993. Destes, alguns tantos
deixaram de existir. Outros tantos se desvincularam da rede. O levantamento feito pelo Conselho Geral
do PVNC, na época da referida pesquisa, baseado nas Cartas de Assentamento entregues pelos núcleos
no segundo semestre de 2001, contabilizava 27 núcleos. É sabido que outros núcleos que ainda se
consideram pertencentes à rede, alguns bastante participativos, outros pouco, mas que não entregaram
Cartas de Assentamento naquele período. O êxodo dos núcleos do PVNC se deve (i) a discordâncias das
coordenações dos núcleos com as esferas centrais de condução do movimento, e (ii) ao crescimento da
Educafro (Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes), ONG fundada em 1997 por Frei Davi,
principal liderança na criação e fortalecimento do PVNC. No início de 2001, a Educafro rompeu com o
PVNC, determinando que os núcleos que aderissem a ela não poderiam estar vinculados ao movimento,
o que provocou uma “reacomodação de forças”, com muitos núcleos se aglutinando de um lado e de
outro.
234
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
que ele difundiu, juntamente com seus princípios organizativos e ideológicos.
A “nacionalização” desta forma de ação resultou das articulações políticas de
seus sujeitos na escala nacional, que eram herança e capital decorrentes de sua
atuação anterior e paralela em movimentos anti-racismo, religiosos, partidários,
sindicais, etc., além das interfaces entre esses.
Por outro lado, o PVNC passou a se diferenciar radicalmente dos outros cursos
ao operar através de uma rede. Esta rede foi resultado, reflexo e condicionante de
um complexo conjunto de solidariedades e embates políticos que construíram as
estruturas organizativas deste movimento social. Em Santos (2003a), mostramos
a estruturação deste movimento por meio de dois planos (que se vinculavam e
atritavam): (i) o plano dos fóruns coletivos (Conselho dos Núcleos, Secretaria
Geral, Assembléias Gerais, Jornal Azânia, Equipes de Reflexão Pedagógica e
Racial, Seminários de Formação, Coordenações Regionais), esferas dominadas
hegemonicamente por um grupo restrito e seleto de sujeitos detentores de
capital (articulações, conhecimentos, heranças, backgrounds institucionais) e
interesses políticos que os punham em disputa pela hegemonia e legitimidade
na condução do movimento, para o quê mobilizavam “agendas e agências”;
(ii) o cotidiano dos núcleos, espaços de múltiplas percepções e temporalidades,
protagonizado por uma massa de indivíduos que, movidos por ideais distintos,
construíam um processo de socialização caracterizado pela ampla participação
de distintos sujeitos sociais e um cruzamento de visões de mundo e temários
de discussão muitas vezes divergentes e antagônicos.
As “estruturas institucionais” do PVNC são fruto de embates entre diferentes
visões e projetos poticos de mundo e de movimento, representando, portanto,
vitórias parciais dos diferentes campos que disputavam hegemonia em seu período
de formação. Por mais que, conforme nos alerta Giddens (1989), as intervenções
dos agentes envolvam esforços de racionalizações, motivações e monitorão
reflexiva, que o incapazes de evitar conseqüências impremeditadas ou de suprimir
os efeitos das condições não-reconhecidas da ação, é possível identificar cânones,
marcos fundamentais nas formas destas “estruturas institucionaisque remetem,
sobretudo, à influência do corte ideogico católico-franciscano, hegenico no
movimento. A forma como se estruturam os núcleos, amplamente difundida e
reproduzida por todo o país, é lapidar. Os núcleos do PVNC e a grande maioria
dos pré-vestibulares populares criados na esteira de sua experncia se constroem
com uma estrutura que parte dos seguintes preceitos basilares:
a) a “auto-gestãoboa parte dos núcleos é coordenada pelos próprios alunos,
ex-alunos e professores. Este aspecto, de um lado, confere uma autonomia
235
Renato Emerson dos Santos
decisória aos núcleos que, diante do afastamento e da tensão entre as agendas
e enfrentamentos correntes no seu cotidiano e o plano dos fóruns coletivos,
se torna um forte componente a facilitar sua ruptura com o movimento
organizado em rede. De outro lado, esta autonomia acaba por valorizar os
debates cotidianos dos núcleos enquanto instâncias decisórias, o que tem como
efeitos motivar, criar e fortalecer sujeitos através de uma cultura de participação
marcada por um padrão de democracia como relação, e não como formato
institucional. Ainda que muitos núcleos sejam marcados às vezes por gestões
despóticas afinal, toda revolução dos bichos pode ter seu porco!
8
–, um
sem número de casos de conflito e até deposição de coordenações e professores
por alunos que então assumem a condução do núcleo, fatos pouco imagináveis
nos espaços formais de escolarização. Esta vivência insta os integrantes do pré-
vestibular à participação e politização, o que significa a responsabilidade na
definição dos marcos ideológicos norteadores da iniciativa. O pré-vestibular
ganha, então, uma dimensão de formação política pela prática à qual os sujeitos
são compelidos, o que se num contexto onde, mais do que nunca, o cenário
lega heranças e influências. Uma coordenação nova a assumir um núcleo, ainda
que formada por sujeitos inexperientes em iniciativas políticas ou discordante
das bandeiras fundadoras do PVNC, não abandona (pelo menos no plano
discursivo) práticas políticas “cristalizadas” no movimento, como a disciplina
Cultura e Cidadania, que objetiva um trabalho de politização através de temas
que não necessariamente serão trabalhados nos exames vestibulares;
b) a quase inexistência de compromissos financeiros normalmente os alunos
contribuem com algo em torno de 10% do salário mínimo, verba destinada
à aquisição do material didático necessário, alimentação (nos cursos que
funcionam aos sábados e domingos durante todo o dia), custeio de passagem
para os professores e, se possível, ajuda aos alunos no pagamento das taxas
de inscrição no vestibular, quando não conseguem isenção. Este traço que
tem a marca flagrante da ala cristã de influência franciscana, hegemônica
na construção do PVNC condiciona uma alergia de grande parte dos pré-
vestibulares populares ao financiamento público ou empresarial. Esta não
aceitação de aportes externos inviabiliza parcerias e dinâmicas cooperativas de
trabalho desses cursos com o Estado e com o setor privado, criando um vazio nas
tendências atuais de execução de cursos pré-vestibulares como política pública
8 Alusão à célebre obra de George Orwell, A revolução dos bichos, crítica ao totalitarismo dos regimes
comunistas (em especial, o stalinista), em que uma revolução dos animais de uma fazenda, simbolizando
uma revolução popular, dá lugar a um regime ditatorial onde o tirano é o porco.
236
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
ou iniciativa vinculada a parcerias empresariais, que vem sendo ocupado por
ONGs, movimentos sociais e uma série de organizações e atores atuantes em
outros campos que se fortalecem e se territorializam – se inscrevem no espaço
e se inserem em contextos sociais locais mediante a criação de cursos pré-
vestibulares financiados;
c) o trabalho voluntário - dos professores e coordenadores, num contexto
marcado pela desmobilização e esvaziamento de militância de diversos
movimentos sociais no Brasil, e, paradoxalmente, pela emergência de valores
como a solidariedade e a participação, ainda que marcados por uma negação
da dimensão política de sua participação.
Este último aspecto, o trabalho voluntário, é fundamental na estruturação da
rede, na medida que o pré-requisito necessário para alguém ingressar no PVNC
é – além do domínio dos conteúdos de cada matéria, no caso dos professores
o próprio desejo de ingressar no movimento. A dificuldade na arregimentação
de professores voluntários faz com que se trabalhe com todos aqueles que se
apresentam como interessados, ou seja, na maioria dos cursos e com poucas
exceções, não há um ou um conjunto de critérios para a aglutinação de novos
militantes/colaboradores. Isto contribui para a (ao mesmo tempo em que é
possibilitado pela) agregação de indivíduos que nem sempre concordam com
ou partilham os marcos ideológicos principais do movimento, quais sejam, a
discussão racial e as injustiças no mundo da educação. Assim, o PVNC acaba
por se constituir num espaço público de socialização, um ator plural (ou,
pluri-ideológico), onde se torna possível, através do múltiplo pertencimento,
a recomposição de identidades coletivas num cotidiano onde a democracia
(essencialmente conflitiva) é radicalizada – as decisões são coletivas e os papéis
são múltiplos e fundidos, alunos podem (e muitas vezes são) coordenadores,
professores, etc.
PActos iDeológicos e A Difusão DA Discussão rAciAl
No momento em que os pré-vestibulares se transformam neste “sujeito brido
da cidadania” tomando de empréstimo a expressão de Burity (2001) –, eles
abrem um variado leque de inserção e cruzamentos entre agendas de discussão
e intervenção, o que faz com que cada núcleo tenha uma distinta relação com
237
Renato Emerson dos Santos
as questões fundadoras do movimento de criação dos pré-vestibulares.
9
Tal
situação era patente no início da construção do Pré-Vestibular para Negros e
Carentes, onde a questão racial que ganhou o status de bandeira principal foi
confrontada a outras bandeiras, como o corte popular, classista e da Baixada
Fluminense (que foram secundarizadas, mas não dispensadas). O resultado foi
a eleição do corte racial como o principal, associado às dimensões da pobreza e
das injustiças no campo da educação, arranjo que, em cada núcleo, dialoga com
outras agendas de discussão e intervenção, de acordo com a correlação de forças
ideológicas que se estabelece pelos embates cotidianos entre seus membros.
No cotidiano dos núcleos, podemos apontar que esta multiplicidade
de agendas de discuso e intervenção tem dois efeitos contraditórios e
complementares:
1) Primeiramente enquanto fruto de uma cultura política
10
cuja constituição,
marcada pela necessidade de agregação de indivíduos para o desempenho das
tarefas básicas dos cursos pré-vestibulares (o ensino que é o treinamento para
as provas do vestibular) e pelos embates em torno da hegemonia na condução
do movimento, delimita valores como a tolerância, o compartilhamento, a
valorização e o estímulo à participação de todos –, os pré-vestibulares passam
a se caracterizar também como um movimento aliceado sobre pactos
ideológicos frouxos, o que lhes coloca diante de um paradoxo: tais pactos
ideológicos, de um lado, m alto poder de reprodutibilidade daí seu poder de
difusão, mas, de outro, se mostram de cil ruptura. E tais rupturas se dão tanto
9 Diversos documentos do PVNC apontavam seu surgimento como uma tentativa de reversão de duas
distorções da sociedade: a péssima qualidade do ensino de grau na Baixada Fluminense, que praticamente
eliminava as possibilidades de acesso do estudante da região ao ensino superior; e o baixo percentual
de estudantes negros e afro-descendentes nas universidades segundo estes documentos, apenas 5% dos
universitários brasileiros eram negros, enquanto a população afro-descendente constituia 44% do total
nacional.
10 A noção de cultura política aqui empregada remete às idéias de Alvarez et. al. (2000), que nos indicam
o quanto “é significativo que os movimentos sociais que surgiram da sociedade civil na América Latina
ao longo das duas últimas décadas (...) tenham desenvolvido versões plurais de uma cultura política que
vão muito além do (re)estabelecimento da democracia formal liberal. Assim, as redefinições emergentes
de conceitos como democracia e cidadania apontam para direções que confrontam a cultura autoritária
por meio da atribuição de novo significado às noções de direitos, espaços públicos e privados, formas de
sociabilidade, ética, igualdade e diferença e assim por diante. Esses processos múltiplos de re-significação
revelam claramente definições alternativas do que conta como político. (...) Ao explorar o político nos
movimentos sociais, devemos ver a política como algo mais que um conjunto de atividades específicas
(votar, fazer campanha ou lobby) que ocorrem em espaços institucionais claramente delimitados, tais
como parlamentos e partidos; ela deve ser vista como abrangendo também lutas de poder realizadas em
uma ampla gama de espaços culturalmente definidos como privados, sociais, econômicos, culturais e
assim por diante (p. 29).
238
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
(i) no plano individual, o que se manifesta, por exemplo, na alta rotatividade
de professores em boa parte dos cleos, quanto (ii) no plano coletivo, do que
o abandono do corte racial nos nomes de cursos que se desvincularam da rede
é apenas um indicativo de um conjunto de resisncias à assuão real (e o
formal) de bandeiras ideogicas fundadoras do movimento. Essas resistências se
consubstanciam, sobretudo, na execução de um trabalho com pouco peso relativo
para a disciplina Cultura e Cidadania.
O exemplo da disciplina Cultura e Cidadania é bastante elucidativo para
compreender como estes pactos ideológicos, apesar de frouxos, se sustentam e
garantem um mínimo de coesão necessária à estruturação do movimento e
ainda permitem a difusão e fortalecimento da consciência anti-racista. Cultura
e Cidadania não é apenas mais uma disciplina no PVNC. Ela é um importante
signo distintivo do caráter popular, alternativo e questionador inerente aos
pré-vestibulares deste tipo. Em sua origem, estão presentes embates em torno
da construção de uma proposta pedagógica própria, intrinsecamente vinculada
ao caráter político dos cursos, idealizada como a capilarização das discussões
políticas por todos os momentos e todas as disciplinas que compõem o curso
assim o p se consubstanciaria numa iniciativa de educação popular.
11
Entretanto, o princípio da auto-gestão é traduzido também como autonomia
pedagógica, num ambiente onde, conforme aludido anteriormente, a afinidade
ideológica não era critério para agregação de professores, possibilitando-se
assim resistências (individuais) à politização das disciplinas e fazendo com que
aquela proposta não fosse alcançada em sua plenitude. Diante disso, a criação
de uma disciplina específica com este fim, ou, de um momento privilegiado
para garantir tais discussões, fez de Cultura e Cidadania o elo de convergência
entre a preparação para o vestibular, a conscientização política e a busca de
uma proposta pedagógica adequada à realidade e aos interesses dos segmentos
sociais envolvidos no PVNC.
A negação radical de Cultura e Cidadania passa a ser, portanto, encarada
como a reprodução do projeto político-pedagógico tradicional, percebido e
identificado como instrumento de exclusão. Todos os cursos pré-vestibulares
11 Considerava-se que uma educação popular, enquanto finalidade pedagógica do curso, deveria ter um caráter
político de conscientização das relações excludentes da sociedade, enfocando primordialmente as questões
no nível local, no plano do cotidiano. Nas discussões originárias, a disciplina iria se chamar “Aspectos
da Cultura Brasileira”, por acreditar-se que a cultura é um ponto fundamental no processo educacional
– cultura entendida como algo amplo, dinâmico, que envolve todas as dimensões da vida. O pré deveria,
por conseguinte, preparar o aluno não apenas para o vestibular, mas sobretudo, para uma vida de luta
política pela emancipação e promoção social das populações às quais ele pertence.
239
Renato Emerson dos Santos
populares – não somente do PVNC, mas aqueles que se inspiram nele, passam
a adotar a disciplina, ainda que muitas vezes com outro nome. No caso da
Educafro, o trabalho da disciplina é um quesito obrigatório para qualquer
núcleo que se filie à rede, o que é controlado através da realização de uma prova
chamada “Vestibular de Cidadania”, o que permite inclusive o controle dos
conteúdos ministrados, que devem atender a um temário básico indicado.
A resistência à Cultura e Cidadania – à dimensão política do pré-vestibular
popular, na verdade - começa a se dar então, necessariamente, pela instauração
de um conjunto de estratégias de “camuflagem” da disciplina, um trompe-
l’oeil (expressão francesa que significa “enganar o olho”) onde a tônica aparece
sob a forma do ser-e-não-ser. Como isto se constrói?
12
Por meio de uma falsa
assimilação das agendas de ambos os “lados”, o plano das práticas cotidianas e
o dos fóruns coletivos. Num complexo “acordo tácito”, sujeitos se legitimam
mutuamente nas suas posições, como num diálogo onde as trocas não se
correspondem. Criam-se, nas práticas cotidianas dos núcleos, estratégias de
negação do PVNC enquanto movimento, com a negação da política em seus
diversos planos. Primeiramente, negam-se as práticas declaradamente políticas
instituídas no movimento, o que começa pela própria aula de Cultura e
Cidadania, que vai, em muitos núcleos, sendo tacitamente secundarizada. Uma
matéria veiculada no Jornal Azânia,
13
em out/96, denunciava:
Vou citar alguns exemplos de atitudes pprias de quem subestima a
importância dessa matéria:
- muitos prés têm somente duas ou uma aula de Cultura e Cidadania por mês;
- essa aula é geralmente colocada em horários ingratos, tanto para palestristas
(sic) quanto para alunos. Ex: primeira aula, última aula ou depois do
almoço;
- um fechar de olhos para ausência ou presença dos alunos nessa
aula.”
A matéria atribuía esse boicote a
(...) àqueles que acham essa matéria um enche-saco, e que é melhor
estudar Matemática, Física, Química e Biologia, que na verdade serão as
matérias exigidas nas provas. (...) existem pessoas voluntárias, corajosas
e levadas por espírito filantrópico, mas que ainda não conseguiram dar
12 Tomamos aqui, de empréstimo, algumas passagens de Santos (2003a).
13 O Azânia era o informativo “oficial” do movimento PVNC, editado, com freqüência quase sempre
irregular, entre 1995 e 1999.
240
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
um passo qualitativo, no sentido de livrar-se de uma visão ingênua (?) dos
problemas sociais existentes em nosso país e assim, acabam reproduzindo
tais compreensões no interior dos núcleos. Se os alunos não conseguem
entender essas evidências, não é de se estranhar, mas os coordenadores e
professores...?
Ou seja, contrapondo-se ao discurso hegemônico, que girava em torno da
produção de consciências calcadas nas duas lutas fundantes do movimento
dimensão de politização da ação cuja máxima expressão era a força da disciplina
Cultura e Cidadania –, o plano do cotidiano destila uma infinitude de estratégias
e táticas de negação e resistência, ainda que estas não fossem enunciadas. Para
manter a unidade, a negação se transforma em negociação, viabilizada pela
ambivalência do hibridismo que estrutura os discursos (BHABHA, 1998).
Nenhum núcleo deixa de ministrar a disciplina, mas em muitos esforços
atribuídos a ela são claramente enfraquecidos. Estabelece-se um paradoxo,
marcante acima de tudo no tratamento dispensado à temática racial: de um
lado, a negação velada de indivíduos em relação à politização do trabalho e à
racialização da iniciativa; de outro, a cristalização de uma forma-função que,
necessariamente em algum momento, introduz um tensionamento que põe a
nu as dimensões política e racial ocultadas. Ou seja, mesmo onde política e
racialidade são negadas, momentos em que tais dimensões são evocadas,
e isso ocorre num ambiente onde a cultura política anteriormente aludida,
marcada por valores como a tolerância e o compartilhamento, não aciona os
mecanismos sistemáticos de repressão e silenciamento às manifestações do
anti-racismo, mecanismos fundamentais no sofisticado racismo brasileiro, que
tradicionalmente é mais rigoroso na punição de quem denuncia do que de quem
o pratica. A queso racial, quando negada pela coordenação e por integrantes do
corpo docente de um pré-vestibular popular, é contida/reprimida, no máximo,
na condição de latência, pronta para emergir com toda sua potência frente
a algum ruído. Diante do fato de que a radicalização de posições mobiliza
diferenças na forma de alteridades que inviabilizam o estar junto, esta situação
de presença/ausência da discussão sobre a questão racial é condição para o
pacto ideológico (frouxo!), mas ao mesmo tempo permite que o tema seja
mobilizado, que os indivíduos se posicionem, e sejam confrontados a leituras
que outrora ignoravam.
2) A segunda ordem de efeitos da multiplicidade de agendas de discussão e
intervenção em constante diálogo no cotidiano dos pré-vestibulares é portanto,
241
Renato Emerson dos Santos
exatamente, a capilarização social dos discursos do campo do anti-racismo. A
“consciência racial difusa”, enquanto latência no tecido social imobilizada pelos
mecanismos de silenciamento, encontra um cotidiano propício à instauração do
questionamento um cotidiano ao menos “permissivo”, quando a racialidade
não é uma bandeira de ação enunciada.
Alguns elementos constitutivos do contexto histórico dos anos 90
contribuem para a emergência da discussão racial no cotidiano dos cursos
onde a coordenação não a tem como base do trabalho. O fortalecimento da
intervenção e da visibilidade do movimento negro na segunda metade da década
de 90 (desde a marcha a Brasília quando dos 300 anos da morte de Zumbi
dos Palmares, em 1995), com a subseqüente assunção, pelo Governo Federal,
da existência do problema do racismo em nossa sociedade, e a confecção de
uma série de pesquisas e relatórios (inclusive, de órgãos oficiais) denunciando e
publicizando as desigualdades raciais, culminando na implantação de políticas
voltadas para os afro-descendentes tudo isso cria, então, um contexto onde
torna-se impossível reproduzir a construção social do pré-vestibular popular sem
um remetimento à dimensão racial. Além da disciplina Cultura e Cidadania,
que evoca temas políticos (o que, muitas vezes, é trabalhado em articulação com
as aulas de redação), há outros momentos de construção de um pré-vestibular
onde a discussão racial potencialmente emerge.
momentos De construção De um PrÉ-vestiBulAr PoPulAr e A
enunciAção DA questão rAciAl
O lugar privilegiado da discussão racial num pré-vestibular popular é a
disciplina Cultura e Cidadania. Sua eleição enquanto componente e signo
fundamental da dimensão política dos cursos, em detrimento de uma
capilarização das discussões políticas na construção de todas as disciplinas,
não exclui a politização de algumas aulas, mas isto fica muito mais à merdo
critério do professor – fazendo uso da prerrogativa da autonomia pedagógica.
Cultura e Cidadania é, portanto, o momento privilegiado de emergência da
discussão sobre a questão racial, em todos os cursos pré-vestibulares populares,
ligados ao PVNC ou não.
No caso específico do PVNC, a presença da discussão racial em Cultura
e Cidadania não foi apenas uma consubstanciação de uma das bandeiras
242
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
políticas fundadoras do movimento. Conforme aprofundamos em Santos
(2003a), ela também funcionou, durante um período de embates pela liderança
política interna ao PVNC, como um instrumento de disputa e fortalecimento
de sujeitos, que “circulavam” pelos núcleos proferindo palestras em Cultura
e Cidadania. Com efeito, a própria proposta pedagógica elaborada para a
disciplina apresentada na forma de uma “cartilha” que circulou e foi inclusive
reproduzida no Jornal Azânia propunha que ela fosse dada, preferencialmente,
através de palestras, e esta mesma proposta sugeria alguns temas para o trabalho.
Entre 1995 e 1996, circulou paralelamente uma lista de temas e pessoas para
dar palestras em Cultura e Cidadania sobre esses temas; boa parte das pessoas
listadas eram aquelas que disputavam a liderança do movimento.
Tal movimentação consolidou, assim, o hábito do convite a pessoas com
domínio sobre os temas políticos a serem discutidos na disciplina, o que acabou
se cristalizando e se constituindo num dos principais legados transmitidos pelo
PVNC aos pré-vestibulares que se multiplicaram nacionalmente na segunda
metade da década de 90. Desta forma, militantes do movimento negro têm
a oportunidade de levar o discurso anti-racista mesmo para os cursos onde
a questão racial não é uma bandeira fundadora das práticas cotidianas de
coordenadores e professores mesmo quando estes a negam, declarada ou
tacitamente. Isto colaborou em muito para a difuo do debate sobre as
assimetrias nas relações raciais brasileiras.
O contexto da virada do milênio também auxiliava nesta difusão do discurso
anti-racista nos pré-vestibulares. Com a aproximação da Conferência de Durban,
em 2001, e com a realização das conferências preparatórias estaduais e regionais,
as entidades do movimento negro fortaleceram a pressão que exerciam sobre o
Governo Federal, exigindo políticas e posicionamentos sobre as desigualdades
raciais. Os pré-vestibulares foram identificados pelo Governo como uma
iniciativa em curso e que poderia ser fortalecida pelo Estado. Tal discurso
admite e, ao mesmo tempo, reforça e tensiona as coordenações dos cursos pré-
vestibulares populares acerca da racialidade de suas iniciativas.
O reconhecimento dos pré-vestibulares populares como uma iniciativa
anti-racismo conduz à interrogação sobre a presea da racialidade em
diversos momentos da constrão do p-vestibular. Primeiramente, se a
iniciativa se presta a reduzir as assimetrias raciais, o primeiro pressuposto
é o de que os beneficiários são, preferencialmente, os afro-descendentes. O
pertencimento racial emerge, portanto, enquanto critério de seleção de alunos:
isto já era praticado, ainda que parcialmente, no âmbito do PVNC e de cursos
243
Renato Emerson dos Santos
diretamente influenciados por ele, mas agora passa a ser um ponto de inflexão
e tensionamento de todos os cursos que se denominam populares. Portanto,
onde tal critério não é praticado, as coordenações são instadas a elaborar
discursos justificando tal negação discursos, normalmente, marcados por
uma subsunção da dimensão racial das desigualdades a outras manifestações,
como a da pobreza e da renda (vista como fator de diferenciação, e não como
conseqüência de diferenciações nas trajetórias dos indivíduos e dos grupos
sociais), do pertencimento a alguma comunidade pobre, de escolas públicas, etc.
Tais manifestações, segundo estes discursos, “contemplam” a dimensão racial
o que é absolutamente questionável. De outro lado, quando recordamos que,
até bem poucos anos atrás, a maior parte destes indivíduos sequer imaginava o
estabelecimento da correlação entre o racismo e as desigualdades, ser obrigado a
construir tal retórica os coloca numa situação de questionamento que é, em si,
um flagrante avanço – sobretudo pelo caráter constante deste questionamento,
que muitas vezes acaba por fazer estes indivíduos mudarem de posicionamento,
num processo que vem tornando cada vez maiores setores da sociedade favoveis
às políticas racialistas.
A profusão de discursos alusivos a manifestações da exclusão e da
concentração da renda e da riqueza que não tomam a dimensão racial como
central são elucidativos (i) do quanto a construção de pré-vestibulares populares
se tornou uma agência de intervenção pela democratização do país e (ii) de
como tal agência dialoga, negocia, se hibridiza e difunde o debate anti-racismo.
A enunciação das bandeiras fundadoras, cuja dimensão máxima acaba por ser o
próprio nome que cada curso vai assumir, se torna então um outro momento
de construção dos pré-vestibulares, privilegiado para a discussão racial. Mesmo
após definida a bandeira fundadora, os níveis e formas de diálogo e mediação
com a dimensão racial passam a ser objeto de tensionamento recorrente no
cotidiano dos cursos.
Os desafios pedagógicos recorrentes nos cursos também abrem (ainda
que indiretamente) possibilidades de inserção da dimensão racial em outros
momentos. Questões como a evasão, a busca do fortalecimento político-cultural
e dificuldades pedagógicas em diversas disciplinas dão origem a estratégias
criativas de superação, privilegiando atividades extra-classe e dinâmicas alusivas
a temas não diretamente voltados ao vestibular. Nestes momentos, em que o
objetivo fundamental muitas vezes é a criação de laços de união e espaços de
agregação, freqüentemente temas ligados à cultura afro-brasileira emergem,
na forma de visitas a exposições, museus, dinâmicas teatrais, etc. Ainda que
244
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
esporádicos, tais momentos de emergência da discussão sobre a questão racial
podem ser a oportunidade para tensionamentos, eventos onde a mobilização
da latência acaba por difundir mensagens, e, ainda que não leve a rupturas ou
transformações nos cursos, contribuem para o fortalecimento da consciência
acerca das desigualdades raciais e da necessidade de construção de políticas
para sua reversão.
Difusão Dos cursos PoPulAres e o enfrAquecimento DA rAciAliDADe:
A Dimensão DA PolíticA De estADo e As Ações AfirmAtivAs
Nas passagens anteriores, elencamos alguns momentos da construção
cotidiana dos cursos pré-vestibulares populares onde, potencialmentee não
necessariamente –, a discussão racial emerge. Este “potencialmente” alerta não
apenas a possibilidade da construção de discursos de negação ou secundarização
da dimensão racial diante de tensionamentos e questionamentos, mas também
a (óbvia) possibilidade da própria não emersão da discussão racial em muitos
dos aludidos momentos de construção do curso. Isto porque, conforme
desenvolvemos em Santos (2003b), os pré-vestibulares inauguram uma forma
de ação social, uma nova agência de ação política que pode ser mobilizada de
acordo com valores, propósitos e projetos ideológicos distintos.
Ou seja, ato (gesto, ação empreendida) e significado a ele atribuído pelo
sujeito (compreendido aqui como a intenção, projeto) aparecem, neste caso,
dissociados e independentes entre si – atos semelhantes podem ser resultantes
de projetos, intenções, desejos e significados distintos e até antagônicos. Apesar
da herança de seu “nascedouro” junto ao movimento negro, os cursos pré-
vestibulares se multiplicam na esteira da construção dos pactos ideológicos
frouxos a que abordamos acima constituindo-se numa agência independente
do campo anti-racismo, dando margem à aglutinação e intervenção de atores
provenientes de outros campos de lutas, o que multiplica também os interesses
e formas de atuação dos/nos cursos.
A visibilidade alcançada pelo PVNC em meados dos anos 90, a alta
demanda social e a popularidade dos pré-vestibulares, o interesse de agências
de financiamento, vinculados à possibilidade de sua transformação em lugar
de prática e de formação/aglutinação de militância política, são fatores que
atraem entidades e sujeitos dos campos sindical, político-partidário, das ONGs,
245
Renato Emerson dos Santos
etc., para criação de cursos pré-vestibulares populares. Captação de recursos,
de quadros para a militância, de legitimidade e prestígio social, e inserção em
contextos sociais passam a ser interesses e motivações para a construção de
pré-vestibulares populares.
A dimeno política (concebida agora como campo de atuação e interlocução
junto aos aparelhos institucionais do Estado) dos pré-vestibulares populares,
que se tornam um importante interlocutor social, sobretudo no debate
sobre a democratização da universidade, é valorizada em diversos âmbitos:
(i) núcleos que são a principal referência de atuação política nos locais/
comunidades onde estão inseridos, discutindo/intervindo em questões
que extrapolam o vestibular, a educação e a questão racial, muitas vezes
se articulando com associões de moradores e outras, constituindo-se em
polaridades poticas alternativas a elas; (ii) outros que o referências
importantes na escala do seu município, dialogando com secretarias,
prefeituras e atores do legislativo, atraídos pela possibilidade de capilarização
social através dos pré-vestibulares; e (iii) movimentos de pré-vestibulares que
dialogam com governos estaduais e com ministérios federais principalmente
no debate sobre a reforma universitária em curso –, estendendo seu poder de
intervenção à escala nacional. Ou seja, cleos cujas agendas e agências
(instâncias, runs, articulações, jogos de poder de que participam) m
inscrição no espaço em escala local e outros em escala municipal, e a criação
de outras redes além do PVNC, como a EDUCAFRO (mais forte no Rio de
Janeiro e em São Paulo, mas com cursos em vários estados) e o Movimento
dos Sem Universidade, coloca os pré-vestibulares populares em diálogo direto
com instâncias das esferas estaduais e federal do Estado.
Multiplicam-se os diálogos, as arenas e os lugares ocupados pelos pré-
vestibulares, que adentram a cena política como importante interlocutor, mas
um ator que também se apresenta por múltiplas e, muitas vezes, antagônicas
vozes. No tocante à discussão racial, isto é particularmente importante, na
medida em que os pré-vestibulares populares vêm sendo reconhecidos como
interlocutores privilegiados pelo Estado, qualificados como iniciativas de ação
afirmativa emanadas da própria sociedade civil e, no cenário atual, têm suas
experiências também reconhecidas como modelares para a definição de políticas
públicas de promoção social dos afrodescendentes. Podemos elencar duas
ordens de impactos disso: (i) uma, referente à definição dos aspectos que vão
constituir o próprio desenho das políticas públicas, e (ii) outra, concernente à
identificação dos porta-vozes legítimos dessa discussão. Ambos condicionam
246
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
feedbacks importantes na estruturação não somente dos próprios cursos, mas
também do campo do anti-racismo no Brasil atual.
O reconhecimento pelo Estado brasileiro dos pré-vestibulares como modelo de
intervenção nas desigualdades raciais coloca os cursos como modelos para a ação
pública.
14
Isto aparece com muita clareza na principal iniciativa do Estado neste
sentido, o Programa Diversidade na Universidade, do Minisrio da Educação.
em sua terceira edição, e atuando em nove estados, beneficiando milhares de
pessoas, o programa financia cursos através de um concurso onde se exige que
as iniciativas postulantes tenham atividades de formação social e de valorizão
cultural, que, notadamente, o integram a grade de nenhum exame vestibular. Isto
é, flagrantemente, uma influência da disciplina Cultura e Cidadania. Buscando
avaar, os diferenciais de pontuação no concurso são definidos de acordo com
o grau de inserção destas atividades e contdos nas diferentes disciplinas, o que
consubstanciaria a proposta inicial do PVNC! Mais do que isso, a avaliação da
qualidade destas atividades está condicionada pela forma como elas trabalham as
questões sociais e culturais dos afro-descendentes (e/ou dos indígenas, de acordo
com público-alvo de cada curso), o que, somado à obrigatoriedade de que mais
da metade dos beneficiários (50% + 1) sejam negros (ou ingenas), aponta para
a racialização das iniciativas contempladas. Ou seja, temário e beneficiários são
desenhados como momentos de inserção da discussão racial, o que, diante da
disputa por recursos que caracteriza as iniciativas sociais atuais, acaba por levar
a discuso a lugares onde ela não existia apesar de todas as estratégias de
camuflagem, resistência e negação que porventura possam ser criadas. Contemplar
a questão racial de alguma forma –, passa a ser elemento fundamental para que
esses cursos tenham acesso aos recursos disponibilizados pelo programa, o que
se constitui num comando emanado do Estado, estendendo a racialidade a um
número maior de contextos.
Esta configuração de política pública, entretanto, aponta para outra ordem
de processos: a terceirização não somente da execução, mas da própria
14 Nota-se que isto se dá sob conturbadas discussões com os movimentos negros, que apresentam um leque
de opções de ações afirmativas onde outras medidas seriam prioritárias visando ao aumento do ingresso
de afrodescendentes em universidades. Dentro dos próprios pré-vestibulares, muitas opiniões apontam
para o fim do vestibular, e o fim do próprio pré a partir da melhoria do ensino público ou da adoção de
outros mecanismos de acesso à universidade, que não passem por competições falsamente meritocráticas
como o vestibular, que é apontado como um filtro social, e não uma forma de aferição da qualidade da
formação, capacidade ou aptidão do candidato. Muitos cursos populares, bem como muitas entidades do
movimento negro, são contrários à adoção dos pré-vestibulares como política pública, apontando que o
papel do Estado deveria ser outro.
247
Renato Emerson dos Santos
formulação, na medida que o formato definido no programa estatal é fruto
da observação da ação dos movimentos sociais aponta, na verdade, para a
constrão de um modelo de coordenação social onde o Estado partilha decisões
e ações com entidades organizadas representativas da sociedade civil. Neste bojo,
redefine-se a esfera pública decisória, com a instauração de diversas arenas de
diálogo e negociação de uma pauta que, além de dinâmica, é essencialmente
plural: movimentos e sujeitos protagonistas intervêm (e são legitimados para
isso) em diversas problemáticas, que constituem campos dialógicos. No nosso
caso, isto se configura tendo como eixo central as desigualdades raciais, e se
desdobra em intervenções em diversas áreas, mas dialogando com outros cortes
fundantes do tecido social. Questões como a reforma universitária, a política
urbana, políticas de saúde pública, dentre outras, são esfera de intervenção
dos interlocutores do campo do anti-racismo, ao serem pautadas como pontos
nodais para a reversão das desigualdades raciais. A democratização do ensino
superior, agenda central dos cursos pré-vestibulares populares, cria então um
espaço político de interlocução junto ao Estado, e imediatamente também
instaura uma disputa entre agentes pela legitimidade do exercício desta
interlocução, definição que evidentemente guardará influências das construções
ideológicas daqueles que detêm o comando dos aparelhos do Estado ora os
interlocutores privilegiados pertencem ao campo do anti-racismo (como o
PVNC e a Educafro), delineando um corte racialista para as políticas definidas,
ora os interlocutores não pertencem ao campo (como o Movimento dos Sem
Universidade), enfraquecendo a focalização nas diferenças e desigualdades
raciais. Isto também gera uma fricção na racialidade dos cursos pré-vestibulares,
que pode servir tanto para uma valorização quanto para uma secundarização
da dimensão racial na sua atuação.
PArA não concluir
Os pré-vestibulares populares são, atualmente, um canal privilegiado de
instauração da discussão racial. Enquanto espaços de agregação e recomposição
de identidades múltiplas, os prés se estruturam sobre pactos ideológicos frouxos,
que definem uma variada gama de relações com a queso racial, que aparece desde
a forma de principal bandeira fundadora até a condição de latência, pronta para
emergir nos distintos momentos de constrão cotidiana dos cursos. Ela também
é um importante elemento estruturador da interlocução destes cursos com a esfera
do Estado, canal privilegiado de coordenação social na contemporaneidade.
248
A difusão do ideário anti-racista nos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes
A fragilidade dos pactos ideológicos sobre os quais os cursos se estruturam, a
um tempo, (i) condiciona seu alto poder de reprodutibilidade, (ii) instabiliza
a instauração de uma construção político-ideológica (sobretudo em torno da
discussão racial) e (iii) transforma os cursos em potenciais instrumentos a
serviço de outros interesses (econômicos, políticos, etc.). Mas o estado de latência
que a discussão racial adquire naqueles cursos que não a assumem enquanto
bandeira fundadora, diante das heranças e do legado que se atualiza através
da mobilização dos capitais políticos dos movimentos que se enunciam como
pertencentes ao campo do anti-racismo (sobretudo o PVNC e a Educafro), faz
com que mesmo onde a corrente hegemônica seja contrária à discussão racial,
ela encontre condições de emergir e instaurar tensionamentos e questionamentos
que fazem com que os pré-vestibulares populares sejam, atualmente, um dos
principais ambientes de socialização difusores das ideologias do campo do
anti-racismo.
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249
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251
A universiDADe PúBlicA como Direito Dos(As) Jovens
negros(As): A exPeriênciA Do ProgrAmA Ações
AfirmAtivAs nA ufmg
Nilma Lino Gomes
1
As políticas de ações afirmativas são uma realidade na educação brasileira.
Por isso, não cabe mais à sociedade discutir quem é contra ou a favor da
implementação de políticas de correção das desigualdades raciais na educação
superior. As ações afirmativas se tornaram um fato! Existem, no ano de 2005,
quatorze universidades públicas que já implementaram cotas para negros nos
seus vestibulares como uma política de acesso à educação superior voltada para
a inserção de jovens negros, que foram e ainda são discriminados racialmente.
Entre essas quatorze universidades, seis são federais e oito são estaduais
2
. Vale
ressaltar que esse processo é resultado de uma luta histórica árdua e constante
do movimento negro, da comunidade negra em geral e de outros profissionais
e intelectuais anti-racistas que se posicionam publicamente e politicamente
contra o racismo e as desigualdades raciais.
Vários programas, leis e projetos do atual governo federal já incorporaram
a especificidade étnico-racial nas suas propostas, enquanto outros têm sido
direcionados especificamente para jovens negros no ensino superior. Podemos
citar, como exemplo, o Programa Afroatitude (Programa Integrado de Ações
Afirmativas para Negros), instituído em 2004. Pelo programa, estão sendo
concedidas 500 bolsas a estudantes cotistas de graduação de universidades
1 Agradeço ao sociólogo Sales Augusto dos Santos as sugestões e observações pertinentes que enriqueceram
o presente texto.
2 As Instituições Federais de Ensino Superior são: UnB, UFPR, UFSP, UFJF, UFAL e UFBA. As estaduais
são: UERJ, UENF, UNEB, UEMS, UEAM, UEL, UEMG e UNIMONTES. Todas essas universidades já
implementaram as cotas raciais como medida de democratização do acesso, de acordo com a realidade de
cada região. Várias já desenvolvem projetos de permanência para os alunos cotistas.
252
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
públicas, para o desenvolvimento de pesquisas relacionando a Aids e a situação
social, econômica e cultural dos afrodescendentes. O Programa é resultado
da parceria entre a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), o Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde,
a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) e a Secretaria de Ensino
Superior (SESU/MEC).
O próximo passo é a implementão de cotas raciais em todas as universidades
públicas do país. Esperamos que os(as) reitores(as), os conselhos universitários
e a comunidade acadêmica, assim como o Congresso Nacional, coloquem-se
favoráveis a essa urgente e justa iniciativa e assumam o seu papel na luta contra
a desigualdade racial no ensino superior.
É nesse mesmo contexto que, no interior de algumas universidades públicas
brasileiras, cuja comunidade acadêmica, reitoria e conselho universitário ainda
insistem em se posicionar contra as políticas de ações afirmativas (sobretudo, na
modalidade de cotas), encontram-se focos de resistência formados por intelectuais
negros e brancos que lutam pela construção da igualdade racial na educação
superior. Alguns desses grupos existem anos, e têm realizado pesquisas,
projetos de extensão, cursos de formação continuada para professores(as) da
educação básica, entre outros. São os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros
(NEABs) e os programas de ensino, pesquisa e extensão voltados para a temática
racial. Esses núcleos e grupos têm sido muito importantes na luta em favor
das ações afirmativas no ensino superior, discutindo, apresentando propostas
e implementando medidas de acesso e permanência para jovens negros na
universidade. É a ação política e acadêmica desses grupos que tem inspirado o
MEC na construção de propostas de ações afirmativas para a educação básica
e superior atualmente em curso.
O presente artigo apresentará o relato da experiência de um desses grupos
no interior de uma universidade pública federal brasileira. Trata-se do Programa
Ações Afirmativas na UFMG
3
que, desde 2002, tem implementado um trabalho
que busca garantir a permancia bem sucedida de jovens negros(as) na
graduação e o seu acesso à pós-graduação, embora essa universidade ainda se
coloque como uma das mais resistentes à adoção das cotas raciais.
3 UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais.
253
Nilma Lino Gomes
JuventuDe, DiversiDADe e Ação AfirmAtivA: umA PAusA PArA
reflexão
4
O Programa Ações Afirmativas na UFMG destina-se a um público que tem
como característica principal a vivência de um determinado tempo/ciclo da
vida: a juventude. Nesse sentido, as suas ações e propostas estão articuladas com
as expectativas, desejos, sonhos e desafios presentes nesse importante momento
da temporalidade humana. Para tal, é preciso ter clara a concepção de juventude
com a qual trabalhamos.
A juventude, como nos diz Juarez Dayrell (2001:26), não se reduz a um
momento de transição, a um tempo de prazer e de expressão de comportamentos
exóticos, tampouco se restringe a uma fase de crise dominada por conflitos
ligados à auto-estima e/ou à personalidade. O autor nos diz que, embora não
seja fácil construir uma definição da juventude enquanto categoria, uma vez
que os critérios que a constituem são históricos e culturais, podemos entendê-la,
ao mesmo tempo, como uma condição social e um tipo de representação. Essa
compreensão poderá alargar a nossa visão sobre esse importante tempo/ciclo da
vida no que ele apresenta de universal do ponto de vista do desenvolvimento
físico e das mudanças psicológicas e também de particular nas suas variações
e diversidade de condição social, sexual, de gênero, de raça, de valores, de
localização geográfica, entre outros fatores.
Ao tentarmos compreender a juventude para além dos modelos pré-
determinados e das imagens estereotipadas, deparamo com vários desafios:
como compreender a diversidade de modos de ser jovem? Como entender as
diferentes maneiras através das quais os jovens constroem suas identidades de
gênero e de raça? Como nos aproximar do mundo juvenil e de suas diferentes
expressões culturais? Como incluir essas particularidades na elaboração e
implementação do currículo escolar? Como tornar a universidade um espaço
de conhecimento e de socialização que se aproxime cada vez mais do universo
juvenil? Como explorar as potencialidades dos jovens, entendendo-os como
sujeitos socioculturais?
Esses desafios e questionamentos nos mostram que os(as) professores(as)
universitários(as) precisam incorporar mais uma competência à sua formação
e à sua prática: a sensibilidade para com os sujeitos nos seus diferentes
4 Essa parte do artigo reapresenta algumas idéias trabalhadas em outro texto de minha autoria, o qual
se encontra citado nas referências bibliográficas, porém, com várias modificações e atualizações.
254
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
tempos/ciclos da vida. Essa nova competência poderá orientar a construção
de estratégias pedagógicas e acadêmicas que contemplem, simultaneamente, os
aspectos comuns e as particularidades das vivências dos sujeitos que participam
da vida acadêmica.
Contudo, os projetos e programas voltados para a juventude atualmente
em curso na sociedade brasileira revelam que, para que essas iniciativas sejam
bem sucedidas, não basta apenas incorporar a discussão conceitual sobre essa
categoria de idade. Faz-se necessário compreendê-la na sua articulação com o
universo cultural, as condições socioeconômicas, o mercado de trabalho e a
diversidade étnico-racial.
Ao considerarmos a trama complexa entre juventude, diversidade étnico-
racial e ações afirmativas, percebemos que existem diferentes modos de “ser
jovem” e diversas interpretações sobre a juventude, seus dilemas e desafios. Estes
se articulam com a construção da identidade étnico-racial e com as diferentes
visões e experiências vividas pelos jovens negros e brancos no Brasil. Veremos,
então, que o pertencimento étnico-racial opera como um elemento diferenciador
na construção da identidade juvenil e nas oportunidades sociais com as quais
os jovens se deparam na vida.
Se entendemos a juventude como um tempo/ciclo que possui um sentido
em si mesmo, não podemos considerar os jovens universitários como um
bloco homogêneo. Eles diferem em condição socioeconômica, idade, gênero,
raça/etnia, expectativas, desejos e nível de inserção e participação social. Será
que, nesse contexto tão diverso, estamos atentos às demandas colocadas pela
juventude negra? Será que percebemos que os jovens negros e pobres enfrentam
outro tipo de desafio social, muito diferente daquele colocado para os seus
parceiros brancos? Não se trata de “medir” quem “sofre” mais com as injustiças
e as desigualdades sociais e raciais, mas entender a especificidade do recorte
étnico-racial na trajetória, nas oportunidades sociais, na condição de vida
juvenil de negros e brancos brasileiros. Essa compreensão poderá nos ajudar a
implementar estratégias e políticas públicas que considerem, ao mesmo tempo,
a diversidade cultural presente na realidade juvenil e os efeitos da desigualdade
racial nas trajetórias de vida e escolar da juventude brasileira. Um desses efeitos
é o pouco acesso dos(as) jovens negros(as) à educação superior.
Nesse sentido, podemos dizer que estamos diante de juventudes, no plural,
e não de uma única forma de viver e de ser jovem. Será que a universidade está
atenta para isso? Será que, ao entrar para o ensino superior, o jovem passa a ser
visto somente como “universitário”, como se tal nomeação pudesse englobar
255
Nilma Lino Gomes
tudo o que diz respeito à sua vida? E as suas experiências? Os seus valores? As
suas potencialidades? Será que o vestibular e a nota classificatória dizem tudo
sobre esse(a) jovem? Afinal, a universidade sabe qual é o perfil dos jovens com
o quais trabalha? Conhece o perfil étnico-racial do seu alunado? Como o saber
crítico da universidade lida com os saberes dos jovens de classe média e os de
origem popular? Como o saber universitário lida com as trajetórias sociais e
escolares de jovens negros(as) e brancos(as)? São algumas questões que deveriam
ser colocadas pela universidade pública ao refletir sobre a democratização do
acesso e da permanência no ensino superior.
As DesiguAlDADes rAciAis nA eDucAção suPerior e o ProgrAmA
Ações AfirmAtivAs nA ufmg
Ações Afirmativas na UFMG é um programa de pesquisa, ensino e
extensão, sediado na Faculdade de Educação da UFMG, voltado para um
grupo étnico/racial e social específico: alunos(as) negros(as), sobretudo os de
baixa renda, regularmente matriculados em qualquer curso de graduação dessa
universidade.
5
Esse programa conta com a participação de onze professores(as) das seguintes
faculdades: Faculdade Educação (FaE), Escola da Ciência da Informação (ECI) e
Escola de Ensino Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG (CP/UFMG).
6
Os parceiros dessa experiência são: a Pró-reitoria de Extensão, a Fundação
Universiria Mendes Pimentel (FUMP), o Centro Cultural da UFMG, a
Secretaria Municipal de Educação e a Fundação Centro de Referência da Cultura
Negra (uma organização do movimento negro de Belo Horizonte).
5 O programa Ações Afirmativas na UFMG é um dos 27 aprovados do Concurso Cor no Ensino Superior,
lançado em setembro de 2001, pelo Programa Políticas da Cor, do Laboratório de Políticas Públicas da
UERJ, numa parceria com a Fundação Ford. O Programa Ações Afirmativas realizou as atividades durante
os anos de 2003 e 2004 com um recurso recebido do PPCOR.
6 Professores integrantes do projeto: Nilma Lino Gomes (coordenadora – FaE/UFMG), Ana Maria Rabelo
Gomes (FaE/UFMG), Antônia Vitória Soares Aranha (FaE/UFMG), Aracy Alves Martins (FaE/UFMG),
Elânia de Oliveira (Centro Pedagógico/UFMG), Inês Assunção de Castro Teixeira (FaE/UFMG), Juarez
Tarcísio Dayrell (FaE/UFMG), Luiz Alberto Oliveira Gonçalves (FaE/UFMG), Maria Aparecida Moura
(ECI/UFMG), Maria Cristina Soares de Gouvêa (FaE/UFMG), Rildo Cosson (Câmara dos Deputados
CEFOR).
256
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
O Programa Ações Afirmativas na UFMG contou até o início de 2005
com 11 bolsistas de tempo integral, sendo nove mulheres e dois homens, da
Faculdade de Educação, da Escola de Ciência de Informação da UFMG, da
Escola de Belas Artes e do Instituto de Geociências. Estes se distribuem em
diferentes projetos: pesquisa, ensino, extensão e bolsas socioeducacionais. Após
esse período, integraram-se ao Programa mais 25 jovens do Projeto Conexões
de Saberes da UFMG (uma iniciativa da Secretaria de Educação Continuada
Alfabetização e Diversidade). No ano de 2005, o Programa passou a contar ainda
com a participação de quatro alunos da pós-graduação em educação da FAE/
UFMG, sendo dois do doutorado e dois do mestrado, e um aluno do mestrado
em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH).
De um modo geral, todos os alunos de graduação vinculados ao Programa
são negros (autodeclarados pretos e pardos), de baixa renda e os primeiros,
dentro de uma história familiar marcada pela pobreza, que conseguiram chegar
à universidade pública. Além destes, nos cursos de aperfeiçoamento acadêmico
promovidos pelo Programa nos anos de 2003 e 2004, circularam em torno
de 100 jovens negros e alguns brancos de diferentes cursos da graduação:
pedagogia, letras, medicina, engenharia, biblioteconomia, geografia, história,
belas artes, artes cênicas, ciências sociais, farmácia, ciências biológicas,
educação física, direito, entre outros. Nem todos esses jovens negros foram
incorporados como bolsistas do Programa, porém, eles o considerados pela
equipe de alunos(as) e professores(as) como “jovens do Ações”, pois além de
terem participado de atividades do mesmo, ajudam a divulgar o trabalho
dentro e fora da UFMG.
O foco principal do Programa Ações Afirmativas na UFMG é o investimento
no potencial dos jovens atendidos, com vistas a possibilitar-lhes uma formação
de qualidade e um espaço acadêmico democrático para que possam desenvolver
suas potencialidades e competir em igualdade de condições nos setores da vida
social em que desejam atuar.
Para tal, o Programa estrutura-se em duas linhas de ação. A primeira envolve
atividades para apoiar os(as) estudantes beneficiários(as) do projeto do ponto de
vista acadêmico. Pretende-se apoiá-los no seu curso de graduação e prepará-los
para a futura entrada na pós-graduação. A segunda volta-se para a pesquisa e
o conhecimento acerca da questão racial na sociedade brasileira. Para tal, são
realizados debates, palestras, conferências, seminários e apresentação de pesquisas
sobre a diversidade étnico-racial. Tais atividades, abertas ao público em geral,
são obrigatórias para os(as) bolsistas do Programa.
257
Nilma Lino Gomes
A seleção dos alunos e alunas beneficiários é feita pela coordenação do
Programa Ações Afirmativas na UFMG, junto com outros professores(as) da
equipe. Os alunos inscrevem-se para os cursos e oficinas e são submetidos a uma
entrevista, durante a qual preenchem um relatório socioeconômico, recebem
informações e busca-se verificar se o seu perfil encaixa-se no projeto. Alguns
requisitos são considerados prioritários na seleção dos alunos e das alunas:
•ser negro(a) e identificar-se como tal, mediante ficha de inscrição e
entrevista;
•estar regularmente matriculado na Universidade, seja em curso diurno
ou noturno;
•apresentar condições para envolver-se nas ações previstas pelo projeto.
A luta histórica do Movimento Negro em prol da educação e da igualdade
racial, e as pesquisas oficiais que comprovam a existência de uma alarmante
desigualdade entre negros e brancos no Brasil, são os eixos que orientaram a
escolha dos critérios de seleção acima citados.
Ao analisar o quadro de desigualdade racial no país, é importante retomarmos
a pesquisa do IPEA “Desigualdade racial no Brasil; evolução das condições de
vida na década de 90”, de autoria de Ricardo Henriques (2001). Esta tem sido,
nos últimos anos, uma referência recorrente nos estudos sobre desigualdade
racial, pois traz, com clareza de dados e análises, uma situação já denunciada
historicamente pelo Movimento Negro, mas que nem sempre recebeu a devida
atenção por parte dos governos, órgãos oficiais e da maior parte dos acadêmicos
brasileiros.
A pesquisa revela, no que diz respeito ao projeto de sociedade que o país está
construindo, que o mais inquietante é a evolução hisrica e a tenncia de longo
prazo da discriminão racial. Segundo o IPEA, apesar de a escolaridade dia
do segmento negro e branco da populão ter crescido ao longo do século XX, o
padrão de discriminão racial expresso pelo diferencial de anos de escolaridade entre
brancos e negros mantém-se absolutamente estável entre as gerações. O padrão de
discriminação racial observado em nossa sociedade padece de uma inércia histórica.
Se queremos construir uma sociedade democrática e justa, de direito e de fato, não
como negar a urncia de uma mudaa nesse quadro!
As maiores diferenças absolutas em favor dos brancos encontram-se nos
segmentos mais avançados do ensino formal. A pesquisa ainda aponta que a
realidade do ensino superior, apesar da pequena diferença absoluta entre as raças,
é desoladora. Em 1999, 89% dos jovens brancos entre 18 e 25 anoso haviam
ingressado na universidade. Os jovens negros nessa mesma faixa de idade, por
258
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
sua vez, praticamente não disem do direito de acesso ao ensino superior, na
medida em que 98% deles não ingressaram na universidade.
A constatação de que uma parcela de 2% dos negros chegam aos cursos
superiores tem apontado para a necessidade de ações diretamente voltadas para
esse nível de ensino, no sentido de reverter, de maneira positiva, não a situação
de entrada do(a) jovem negro(a), mas, tamm, de viabilizar a sua permanência
na universidade.
Esse é o contexto no qual se insere o Programa Ações Afirmativas na UFMG
e é esse quadro de desigualdade racial na educação superior que as ações por ele
desenvolvidas no interior da UFMG pretendem ajudar a superar.
A PermAnênciA De Alunos(As) negros(As) nA ufmg: Alguns
resultADos Do ProgrAmA
A permanência bem sucedida de alunos(as) negros(as), sobretudo os de
baixa-renda, na universidade é uma situação preocupante, não para as
instituições que já implementaram as cotas raciais, mas, também, para aquelas
que desenvolvem outras iniciativas de ações afirmativas no seu interior e que
ainda não conseguiram implementar a política de cotas.
É preciso constituir um corpo teórico de pesquisas que investiguem como
tem sido a permanência da juventude negra na educação superior, tanto nas
universidades que implementaram cotas como naquelas que ainda não o fizeram.
No entanto, os programas e projetos de ações afirmativas existentes apontam
para o fato de que a trajetória acadêmica desses jovens na universidade, sem uma
adequada política de permanência, não tem sido uma tarefa fácil. Isso reforça
ainda mais a demanda pela implementação das cotas raciais em conjunto com
ações, projetos e programas de permanência. Não basta apenas abrir as portas
dos cursos superiores para a juventude negra. É preciso também garantir, para
os(as) nossos(as) jovens, condições adequadas de continuidade dos estudos, de
formação acadêmica e científica.
É no contexto das ações voltadas para a permanência dos(as) jovens negros(as)
que estudam na universidade que o Programa Ações Afirmativas na UFMG vem
realizando o seu trabalho. Entendemos que a nossa proposta de ações afirmativas,
bem como outras desenvolvidas na sociedade e na universidade brasileira,
poderão contribuir no desenvolvimento de uma nova postura da universidade
pública diante da desigualdade racial infligida aos alunos e alunas negras. Essa
259
Nilma Lino Gomes
postura questiona a posição de neutralidade e de mera espectadora adotada
pela universidade diante dos conflitos e das desigualdades raciais presentes na
sociedade brasileira. Por meio dessa postura, cobra-se também da instituição
universitária uma atuação eficaz na concretização da igualdade de condições e
de oportunidades para os negros e negras na educação superior.
As atividades do Programa Ações Afirmativas na UFMG começaram em
agosto de 2002, com o I Seminário Nacional “Ações Afirmativas na UFMG:
acesso e permanência da população negra no ensino superior”, realizado
na FaE/UFMG. Logo após, iniciamos as turmas dos cursos gratuitos de
aprofundamento acadêmico, a saber: três turmas do curso de leitura e produção
de textos acadêmicos, duas de informática e duas de elaboração de projetos de
pesquisa.
Nesse artigo, relataremos as principais ações desenvolvidas no ano de 2004,
a fim de compartilhar com os leitores e as leitoras um pouco da experiência
de permanência bem-sucedida para jovens negros(as) desenvolvida pelo
Programa, no interior da UFMG, mesmo com todas as resistências “veladas” que
enfrentamos. O relato dessas ações poderá, quem sabe, inspirar outros grupos,
núcleos e projetos, assim como socializar o trabalho realizado e as dificuldades
encontradas pela equipe na realização desse trabalho.
Sendo assim, no ano de 2004, realizamos os seguintes cursos: 1) “Relações
raciais na sociedade brasileira” (60 horas), com o prof. dr. Luiz Alberto Oliveira
Gonçalves – FaE/UFMG; 2) “Competência informacional(60 horas), com a
professora dra. Maria Aparecida Moura – ECI/UFMG e com Rosilene Neves,
bibliotecária da FaE/UFMG; 3) “História, educação e cultura afro-brasileira”
(0 horas), com o prof. dr. José de Sousa Miguel Lopes UNIVALE; ) sobre
Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre (30 horas cada), com o prof.
Dalmir Francisco – FAFICH; 5) sobre Arthur Ramos (30 horas), com a profa.
Maria José Campos (doutoranda em antropologia FFCH/USP).
Os cursos são freqüentados por alunos(as) de diferentes unidades e áreas do
conhecimento, o que garante a diversidade acadêmica e a riqueza da proposta
e a torna ainda mais desafiadora. Todos os cursos são gratuitos e cada um deles
contou com uma média de 25 alunos(as). Ao final, os alunos e as alunas recebem
um certificado de participação emitido pelo Centro de Extensão (CENEX) da
FAE/UFMG, o qual além de ser incorporado no currículo pode ser validado (de
acordo com as normas do colegiado de curso) como atividade extra-curricular ou
como disciplina optativa. Os vários momentos desse processo são fotografados
e filmados. Pretende-se, dentro do projeto de produção documental do Ações
260
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
Afirmativas na UFMG, editar as fitas e disponibilizá-las na biblioteca da FaE,
bem como para os(as) professores(as) da rede pública de ensino.
Com o apoio do Programa de Apoio Integrado a Eventos (PAIE), da
UFMG, realizamos, também, três debates, abertos ao blico em geral,
durante o ano de 2004: 1) “3ª Ciclo de Debates”, com o professor, advogado
e presidente da Comissão dos Direitos Humanos da OAB-SP, dr. Hédio
Silva Júnior, com o tema: Direito à educão e ações afirmativas, no mês
de abril; 2) aula inaugural do Programa de Aprimoramento Discente (PAD),
com a palestra “Teorias raciais como teorias das diferenças”, proferida pela
professora e antropóloga da USP, Lilia K. Moritz Schwarcz, em maio; e
3) palestra Desigualdades raciais e políticas blicas, ministrada pela
socióloga e professora da Universidade Católica da Bahia, professora Luiza
Bairros, no dia 24 de junho.
Além disso, realizamos, no dia 09 de novembro de 2004, o II Seminário
Nacional Ações Afirmativas na UFMG: acesso e permanência da população
negra na educação superior, reunindo um público de 500 pessoas no
audirio da Faculdade de Educação da UFMG, nos peodos da manhã,
tarde e noite.
O Programa ainda mantém uma parceria com a Fundação Universitária
Mendes Pimentel (FUMP), por meio da concessão de três bolsas socioeducacionais
para os alunos negros de baixa renda já em atendimento pelo mesmo.
O Programa também produziu um vídeo institucional, dentro do projeto
“Ciclos de Debates e Produção Documental”, de 40 min., intitulado “Ações
Afirmativas: entre o projeto e o gesto”, coordenado pela professora Maria
Aparecida Moura e por três bolsistas de extensão.
Recebemos, em 2004, duas premiações: 1) no Congresso Nacional de
Extensão: Projeto Identidades e Corporeidades Negras – Oficinas Culturais; e
2) na Semana de Iniciação Científica da UFMG, na qual a pesquisa “Formando
Professores(as) da Educação Básica para a Diversidademereceu menção honrosa
como uma das melhores na área de Ciências Humanas.
Além disso, cinco alunos foram aprovados na pós-graduação, em nível de
mestrado, em diferentes cursos, como História da Educação USP, Sociologia
FAFICH/UFMG, Política Educacional USP, Letras UFMG, e uma aluna foi
aprovada na seleção do Programa Internacional de Bolsas para a Pós-Graduação
da Fundação Ford – 200/2005.
261
Nilma Lino Gomes
Além dessas atividades, o Programa Ações Afirmativas na UFMG desenvolve
um projeto de extensão voltado para a formação continuada de professores(as)
da educação básica, na perspectiva da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o
ensino sobre História da África e da Cultura Afro-Brasileira, nas escolas públicas
e particulares da Educação Básica. Trata-se do projeto de extensão Identidades
e Corporeidades Negras – Oficinas Culturais.
Este projeto, aprovado pela Pró-reitoria de extensão da UFMG, teve o seu
início em 2003 e continua até o presente momento, atuando com professores
e professoras das redes estadual e municipal de ensino e docentes do segundo
ciclo da Escola de Ensino Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG. O seu
objetivo principal é estimular e subsidiar os educadores e as educadoras para que
desenvolvam um trabalho mais elaborado com a diversidade étnico-racial em sala
de aula e possam aprofundar seus conhecimentos teóricos. A proposta conta com
a participação de integrantes do Movimento Negro e pesquisadores(as) sobre a
questão racial, os quais atuam diretamente com os docentes. A metodologia do
curso se dá por meio de oficinas culturais, que têm como objetivo a produção
de algum material didático ou de reflexão individual e coletiva. Este material
tem sido coletado, analisado e futuramente será publicado. Para a realização do
trabalho contamos com três bolsistas de extensão e a assessoria da Fundação
Centro de Referência da Cultura Negra de Belo Horizonte.
O segundo projeto desenvolvido a partir do ano de 2004 e que teve sua
continuidade aprovada em 2005 intitula-se “O contato com a alteridade: as
teorias raciais na sociedade brasileira”. Essa proposta faz parte de um programa
de estudos da UFMG, o Programa de Aprimoramento Discente PAD, aprovado
pela Pró-reitoria de Graduação e conta com a participação de quatro bolsistas
e dois voluntários. Nesse projeto, os alunos e as alunas negros de diferentes
cursos de graduação refletem, a partir do estudo de alguns teóricos, acerca das
particularidades da produção teórica brasileira sobre relações raciais marcada
por eixos historiográficos, antropológicos e sociológicos.
Parte-se do pressuposto de que não como analisar a discussão sobre a
questão racial no Brasil sem perguntar pelo lugar assumido por essa temática
na academia brasileira, principalmente, na configuração das ciências sociais
em nosso país. Nesse sentido, os alunos e as alunas, durante todo o ano letivo,
participam de um projeto de estudos e leituras mediante um cronograma de
trabalho, leituras, seminários e debates sob a coordenação de uma professora
da equipe do Ações Afirmativas na UFMG.
262
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
O trabalho realizado pelo Programa ainda possibilitou a elaboração de
uma proposta de pesquisa intitulada Formando Professores(as) da Educação
Básica para a Diversidade. Privilegiou-se como eixo dessa pesquisa a busca
de informações qualitativas sobre os percursos biográficos e políticos
trilhados pelos(as) docentes que integram o projeto de extensão Identidades e
Corporeidades Negra – Oficinas Culturais, através da observação participante
e do estudo das histórias de vida. É também intenção da pesquisa conhecer,
acompanhar e analisar as estratégias pedagógicas voltadas para o trato da questão
racial implementadas por estes/as profissionais no cotidiano da sala de aula.
Para realização desse trabalho, obtivemos a concessão de 01 bolsa de iniciação
científica do CNPQ a partir de agosto de 2004.
A experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG tem sido registrada
em artigos, livros, congressos e seminários nacionais e internacionais, através
do trabalho realizado pela equipe de professores(as) e pelos(as) bolsistas de
extensão, ensino e pesquisa. Durante o II Seminário Nacional, em 2004, foi
lançado o livro Afirmando Direitos: acesso e permanência de jovens negros na
universidade, narrando o trabalho de dois anos do Programa
7
.
A inclusão de bolsistas negros mediante a realizão de projetos de pesquisa,
ensino e exteno faz parte de um dos princípios do Ações Afirmativas na UFMG:
não limitar a sua ação de formação acamica dos(as) alunos(as) ao recurso
recebido pela Fundação Ford. Entendemos que esse recurso deve ser usado pelo
Programa na construção de uma infra-estrutura mínima para os alunos e alunas
tais como: compra de computadores, impressora, material de consumo, xerox, ajuda
financeira aos(às) alunos(as) para participação em eventos cienficos, compra de
livros, realização dos cursos, debates, semirios, entre outros. O projeto é sediado
na Faculdade de Educão da UFMG e conta com uma infra-estrutura nima:
dois computadores, uma impressora, uma mesa e algumas cadeiras. Nota-se, aqui,
uma grande contradão entre o trabalho que vem sendo realizado e as condões
físicas e de infra-estrutura para o funcionamento do Programa. Além dessas precárias
condões, contamos com a ajuda de todos os professores e professoras da equipe,
ao cederem, sempre que necesrio, gabinetes e equipamentos para a realizão
das atividades. Além disso, a infra-estrutura da Faculdade de Educação (como
laborarios de infortica, acesso à internet, uso de filmadora e máquina fotogfica
digital) e da Escola de Ciência da Informação (que cedeu uma sala, computadores e
uma pequena estrutura de móveis para o funcionamento do PAD) é utilizada pelos
7 Organizado pelas professoras Nilma Lino Gomes e Aracy Alves Martins (2004).
263
Nilma Lino Gomes
alunos e alunas no desenvolvimento das atividades acadêmicas. A equipe tem como
prinpio que o Programa tem que ser incorporado pela universidade, dentro da
estrutura desta e não como um universo à parte. Isso tem nos desafiado a usar e
apropriar do espo blico da UFMG, sem contudo deixar de demandar um local
espefico para a realização das atividades cotidianas, de organização e de rotina
do Programa. Faz-se necessário para professores(as) e alunos(as) a existência de um
espaço físico que possa ser visto e utilizado como sede do Ações Afirmativas. Esta
é tamm uma forma de construção de uma identidade acadêmica do Programa
no interior da universidade.
8
A equipe do Programa acredita que a conceso de bolsas acamicas, de
pesquisa e de extensão deve ser uma tarefa da universidade pública. Como ainda
o existe no interior do Ministério da Educação um programa nacional de ações
afirmativas voltado para o ensino superior, o Programa ões Afirmativas na
UFMG segue, a cada ano, concorrendo aos editais públicos da própria UFMG e
dos órgãos de financiamento e apoio à pesquisa científica tais como o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), a Fundão
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e outros. Até o
momento, temos sido bem sucedidos nessa empreitada, o que o diminui a nossa
expectativa e insegurança, pois a cada ano aumenta mais o número de projetos
e professores inscritos nos editais de pesquisa e extensão da universidade. Nesse
contexto, as aprovações conseguidas durante esses dois anos de existência não
podem ser interpretadas como garantia da continuidade das bolsas.
A obtenção das bolsas de extensão, ensino e de pesquisa tem sido uma
oportunidade ímpar de fortalecimento acadêmico, político e social dos(as)
alunos(as) negros(as) atendidos(as), possibilitando-lhes uma maior participação
na vida acadêmica, o contato com a faculdade em horários diferentes do seu
turno de aula, a convivência com alunos(as) de diferentes cursos e áreas do
conhecimento; enfim, garantindo-lhes o direito de se integrar de maneira mais
completa à vida da universidade.
A vida acadêmica é muito mais do que a sala de aula, currículos, disciplinas, e
provas. A universidade, sobretudo a pública, é um espaço rico de oportunidades,
debates, pesquisas, discussões, atividades culturais e, conseqüentemente, de
8 No ano de 2005, o Programa Ações Afirmativas conseguiu um espaço físico na Faculdade de Educação
da UFMG, o qual é dividido com o Programa Observatório da Juventude da UFMG. Ainda não estamos
na situação desejada, mas sabemos que a localização física dentro de uma faculdade faz parte de um
processo de institucionalização do mesmo. Até então, o Programa funcionava dentro do gabinete da
professora/coordenadora.
264
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
produção de conhecimento científico, entre outros, que, teoricamente, estão à
disposição de todo e qualquer aluno(a). No entanto, no cotidiano acadêmico,
as origens socioeconômicas e raciais, o capital cultural, as oportunidades
sociais e a desigualdade racial interpõem trajetórias diferenciadas para os(as)
alunos(as) negros(as) e brancos(as). Por isso, faz-se necessário a construção de
ações afirmativas de permanência para os(as) jovens negros(as) no interior das
universidades. Potencial e a capacidade para aprofundamento nos estudos, bem
como para continuar seguindo em frente, todos esses alunos e alunas têm. Falta-
lhes a oportunidade e as condições adequadas para exercerem o direito de uma
trajetória universitária digna que ultrapasse a assistência estudantil.
Apesar de o Programa Ações Afirmativas na UFMG ser uma proposta que
está em andamento, os dois anos de existência do mesmo já nos possibilitam
algumas avaliações e reflexões sobre a sua trajetória . A avaliação da equipe de
professores(as) e de alunos(as) é de que, apesar das dificuldades e da resistência
de muitos setores no interior da UFMG à política de ações afirmativas como
uma medida de democratização do acesso e da permanência de jovens negros
na universidade, o Programa Ações Afirmativas na UFMG tem possibilitado
mudanças no interior desta universidade e na vida dos jovens integrantes. No
caso da UFMG, podemos afirmar que, pela primeira vez, esta universidade
iniciou o debate sobre ações afirmativas e cotas para a população negra. Mesmo
com muitas resistências e discordâncias, a comunidade universitária começou
a discutir esse tema que hoje está presente na mídia e no cenário político
nacional.
Em relação aos jovens integrantes do projeto, é visível o impacto positivo
que a participação no Ações Afirmativas na UFMG trouxe para os mesmos.
Observamos, entre esses jovens, a (re)construção da própria identidade negra,
transformando-a de maneira positiva. Em conseqüência, houve também uma
maior confiança nas suas potencialidades; maior interesse pelos estudos; melhor
desempenho nos seus cursos de origem; domínio de instrumentais acadêmicos
necesrios para uma formação universitária de qualidade; construção de laços de
amizade e solidariedade; maior conhecimento sobre a realidade do jovem negro
que estuda na UFMG; e compreensão da inserção na pós-graduação como um
direito e como uma perspectiva acadêmica dentro da sua trajetória escolar.
Desde o surgimento do Programa, é possível notar, no interior da Faculdade
de Educação, local onde o projeto está sediado, uma maior presença e circulação
de alunas e alunos negros, como bolsistas de iniciação científica do CNPq e
FAPEMIG e como monitores. Alguns fazem parte do Ações Afirmativas e
265
Nilma Lino Gomes
outros passaram a ser selecionados por professores(as) da instituição que não
fazem parte do programa. Segundo refletimos, então, o Ações Afirmativas
vem conseguindo sensibilizar um outro grupo de professores(as) em relação à
situação dos alunos e alunas negros na universidade. Ao tomarem consciência
da existência das desigualdades raciais e de como estas afetam a vida e a
trajetória dos(as) alunos(as) negros(as), alguns docentes começam, mesmo que
timidamente, a incluir a ação afirmativa como um dos critérios para a seleção de
alunos da graduação como bolsistas e monitores(as). Ainda notamos mudanças
na vida de alguns professores e professoras integrantes da equipe
9
, que passaram
a compreender mais a seriedade das desigualdades raciais na educação superior
brasileira e incluíram a questão racial nas suas temáticas de pesquisa. É uma
mudança lenta, mas consistente e muito importante.
No início do ano de 2005, o Programa Ações Afirmativas na UFMG,
juntamente com o Programa Observatório da Juventude da UFMG, passou
a integrar o projeto Conexões de saberes: diálogos entre a universidade e as
comunidades populares, implementado pela Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade SECAD/MEC, que oferece a jovens universitários
de baixa renda um trabalho de pesquisa e intervenção junto a outros jovens
dos setores populares que ainda não entraram no ensino superior. O objetivo
é potencializar ações coletivas, culturais e políticas que estes desenvolvem
na sua comunidade e fora dela. Trata-se de um projeto de permanência bem
sucedida, articulado com a valorização de experiências juvenis populares que
precisam ser reconhecidas e incorporadas ao saber crítico que a Universidade
promove. Além disso, espera-se que esses jovens de baixa renda que ainda
não ingressaram na universidade, ao entrarem em contato com os seus pares,
que já venceram a barreira do vestibular e hoje são universitários, possam ser
despertados para o fato de que a universidade pública é um direito de todos,
sobretudo, das populações de baixa renda. A novidade que o Ações Afirmativas
implementou na realização do Conexões de Saberes é o recorte étnico/racial na
escolha dos candidatos, articulado com o nível socioeconômico. Sendo assim,
na UFMG, o Conexões de Saberes selecionou 25 jovens negros(as) e de baixa
renda, que receberão, durante dois anos, uma bolsa de permanência, no valor
de uma bolsa PIBIC/CNPQ, para realizarem os trabalhos propostos. Como
este é um trabalho novo, ainda estamos na fase inicial de construção do perfil
9 Vale a pena ler os relatos da equipe de professores(as) negros(as) e brancos(as) registrados no livro Afirmando
Direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade (citado na bibliografia), que narra com
detalhes os dois anos de existência do Programa.
266
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
acadêmico e de vida dos jovens selecionados para, em um momento posterior,
iniciar o trabalho de pesquisa e extensão nas comunidades populares a serem
escolhidas.
Ainda no ano de 2005, o Ações Afirmativas concorreu ao Programa
UNIAFRO (edital nª 1, de 26 abril de 2005 MEC/SESU/SECAD) e teve sua
proposta aprovada.
10
Essa é uma vitória de toda a equipe e, principalmente,
dos(as) jovens graduandos(as) e pós-graduandos(as) negros(as) que,
corajosamente, aceitaram o desafio de participar de uma proposta de ão
afirmativa no interior da UFMG. Essa aprovação ajudará a consolidar
ainda mais o trabalho de fortalecimento acadêmico dos(as) alunos(as)
negros(as) da UFMG, concedendo um mero maior de bolsas acadêmicas;
realizando cursos de aperfeiçoamento para professores da rede blica de
Belo Horizonte, na perspectiva da lei 10.639/03; desenvolvendo novas
pesquisas; produzindo material ditico; e realizando mais publicações.
Em todos essas ações os(as) bolsistas negros(as) atuarão ao lado equipe de
professores(as) do Programa.
concluinDo...
Uma coisa é certa: há muito que fazer para a implementação de uma
política de democratização e de inclusão social no ensino superior brasileiro.
Voltamos a insistir que é preciso entender que democratizar o acesso significa
também garantir a permanência bem sucedida. Ampliar o acesso por meio das
cotas não é, portanto, apenas colocar negros e pobres dentro da universidade.
É preciso dar-lhes condições para nela permanecerem e concluírem seus cursos
com sucesso!
A experncia do Programa Ações Afirmativas na UFMG é somente
uma dentre as várias iniciativas desenvolvidas pelos cleos de Estudos
Afro-brasileiros e programas de ações afirmativas existentes no interior das
universidades públicas brasileiras. Cada uma, com sua especificidade e raio de
atuação, vem desenvolvendo trabalhos sérios, consistentes e éticos no interior
da academia.
10 Título da proposta aprovada: “Percursos e horizontes de formação: ações afirmativas para universitários
negros na UFMG: uma proposta do Programa Ações Afirmativas na UFMG”.
267
Nilma Lino Gomes
No entanto, isso não basta! A nossa expectativa é de que o Governo Federal
e, principalmente, o Ministério da Educação, incorporem a ação afirmativa
como uma política de Estado. Para tal, não basta apenas inseri-la na reforma
do ensino superior. Reconhecemos que se tal inserção acontecesse, poderíamos
considerá-la um avanço e uma conquista, mas é preciso muito mais! É necessário
que tal política seja acompanhada de recursos públicos, destinados para tal,
dentro do orçamento da União.
11
referênciAs BiBliográficAs
DAYRELL, Juarez. Juventude, grupos de estilo e identidade. Educação em Revista.
n. 30. Belo Horizonte, dez., 1999. p. 25-39.
. A sica entra em cena: o funk e o rap na socialização da juventude em
Belo Horizonte. Tese de doutorado. o Paulo: Faculdade de Educação, 2001.
GOMES, Joaquim B. Barbosa.
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igualdade. Rio de Janeiro; o Paulo: Renovar, 2001.
GOMES, Nilma Lino. Diversidade cultural e juventude. In: ANDRADE, Márcia
Selpa de. DIAS, Julice; ANDRADE, nia Regina de (Org.).
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. Ações afirmativas: dois projetos voltados para a juventude negra. In:
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). Educação
e ações afirmativas: entre a injusta simbólica e a injustiça econômica. Brasília:
INEP, 2003.
11As ações afirmativas foram transformadas, no texto do segundo Anteprojeto, em meras “políticas de
acesso” e de “assistência estudantil”. Embora reconheçamos a necessidade de uma política de assistência
estudantil – que não seja restrita, porém, ao simples assistencialismo –, esclarecemos que a permanência
dos alunos pobres e negros na universidade pública, por meio das ações afirmativas, não é uma questão de
“assistência estudantil”, mas de direito. Nesse sentido, as ações afirmativas devem ser colocadas no campo
das políticas públicas de Estado. Isso precisa ficar explícito no texto da Reforma, ocupando uma seção
própria, assim como estava configurado no primeiro Anteprojeto, que foi lamentavelmente modificado
em sua substância. O segundo Anteprojeto apresentado pelo MEC desloca as ações afirmativas do lugar
de políticas de Estado para decisões das instituições de educação superior. A implementação de cotas
raciais e para alunos de escolas públicas é transferida para as disposições transitórias e reduzida a alguns
artigos do Plano Nacional da Educação. O seu caráter de direito imediato é enfraquecido e as cotas são
submetidas a um processo lento e gradual a ser implantado em dez longos anos, segundo o critério das
universidades.(Trecho da carta aberta ao Ministro Tarso Genro, assinada pela Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN) e vários Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs).
268
A universidade pública como direito dos(as) jovens negros(as):
a experiência do Programa Ações Afirmativas na UFMG
. Levantamento bibliográfico sobre relações raciais e educação: uma
contribuição aos pesquisadores e pesquisadoras da área. In: MIRANDA, Claudia
et al (Org.). Bibliografia básica sobre relações raciais e educação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2004.
HENRIQUES, Ricardo.
Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições
de vida na década de 90. Rio de Janeiro: IPEA, 2001.
PROJETO
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(mimeogr.).
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Horizonte: UFMG, 2002. (mimeogr.).
SANTOS, Sales Augusto dos. Relatório de Visitas Técnicas: Projeto Passagem
do Meio, Projeto Políticas da Cor na Universidade de Mato Grosso, Projeto
Políticas da Cor na Universidade de Tocantins e Projeto Negraeva. Brasília:
UnB/Departamento de Sociologia; Rio de Janeiro:UERJ/ Laboratório de
Políticas Públicas LPP/ Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira,
Setembro de 2003.
SILRIO, Valter Roberto. Ação afirmativa e o combate do racismo institucional
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Cadernos de Pesquisa, n.117. nov., 2002. p. 219-246.
. Sons negros com ruídos brancos. In: Racismo no Brasil. São Paulo,
Peirópolis: ABONG, 2002. p.89-103.
269
ProJeto PAssAgem Do meio: umA PolíticA De ão
AfirmAtivA nA universiDADe feDerAl De goiás (ufg)
1
Sales Augusto dos Santos
“Eu acho que os [alunos negros] que entraram [no projeto Passagem do Meio]
tiveram um ato de coragem de entrar” (Depoimento de professor).
introDução
O presente artigo tem como objetivo descrever o impacto resultante no
desempenho acadêmico e na visão de mundo dos discentes bolsistas de um
projeto de ação afirmativa, em sua primeira fase (junho de 2002 a junho de
2003), chamado Passagem do Meio, que está sendo executado na Universidade
Federal de Goiás (UFG).
2
Formalmente, a primeira turma de bolsistas foi
selecionada entre 1ª e 5 de julho de 2002 e o projeto teve início em agosto de
2002. Em menor grau, o artigo descreve também o impacto desse projeto no
meio acadêmico dessa universidade, em especial, entre os docentes coordenadores
e tutores do projeto.
O projeto Passagem do Meio visa a estimular a permanência de alunos de
graduão negros na Universidade Federal de Goiás (UFG), durante sua trajeria
universitária, evitando a evasão, bem como objetiva a inserção desses alunos em
atividades de pesquisa. Além disso, o projeto também almeja preparar os alunos
1 Este artigo é apresentado como resultado de minha participação como consultor do Programa Políticas
da Cor na Educação Brasileira (PPCOR), do Laboratório de Políticas Públicas (LPP), da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), financiado pela Fundação Ford. Somos gratos, pela colaboração, aos(às)
professores(as) coordenadores(as) e tutores(as) do projeto Passagem do Meio, bem como aos(às) alunos(as)
bolsistas, ao nos concederem as entrevistas que possibilitaram a elaboração deste artigo. Também somos
gratos a Renato Emerson dos Santos, professor da UERJ e um dos coordenadores do PPCOR, por nos
convidar para participar da avaliação de alguns projetos de ação afirmativa financiados pelo PPCOR, cuja
realização possibilitou a elaboração deste artigo.
2 Sobre a segunda fase do projeto, vide Costa (2004).
270
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
em conclusão de graduação para se inserirem em programas de pós-graduação
3
de universidades renomadas.
Na época em que visitamos o projeto Passagem do Meio, no dia 2 de agosto
de 2003, ele beneficiava, por meio de concessão de bolsas de estudo, quinze
alunos negros de baixa renda de cursos da área de humanidades, recém aprovados
no concurso vestibular da UFG, bem como dois alunos que estavam em fase de
concluo da graduão. “A idéia central do projeto”, segundo seus proponentes, “é
oferecer bolsas de estudo para alguns destes alunos e prepará-los para concorrerem
em condições de igualdade pelas bolsas oferecidas na própria universidade: Iniciação
Cienfica, PET (Programa Especial de Treinamento) e monitoria”. O Passagem do
Meio, portanto, é um projeto de ampliação das oportunidades de permanência de
universirios negros de baixa renda em uma instituição de ensino superior blica,
mas é também, potencialmente, um caminho de acesso à pós-graduão.
O surgimento do projeto Passagem do Meio deu-se por iniciativa de três alunos
negros da UFG (um rapaz e duas mas) que viram cartazes divulgando o concurso
do Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira (PPCOR), do Laboratório
de Políticasblicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Motivados, os alunos procuraram dois professores
4
da UFG que haviam produzido
trabalhos na área de relações raciais e eram senveis ao tema, demandando-lhes
aceitar o desafio de propor e implementar uma potica de ão afirmativa para
universirios negros nessa universidade, por meio do PPCOR.
Ressalte-se que os alunos o demandaram a elaborão desse projeto como
também envolveram-se na construção do mesmo, tendo tido, inclusive, a iniciativa
de convocar os professores para uma primeira reunião, cujo objetivo era de dar
início à elaboração do projeto. Como veremos mais adiante, a maneira como surgiu
o projeto proporcionou a integração de professores negros e brancos, bem como de
alunos negros que viviam no campus universitário sem nenhuma ligação acadêmica
no que toca à pesquisa e/ou ao ensino/estudo das relações raciais brasileiras e
menos ainda no que tange a relações interpessoais ou de amizade.
Assim sendo, no presente artigo buscaremos fazer dois tipos de análise. À
primeira, que será mais sintética, nós denominaremos de análise quantitativa.
Com ela, verificaremos se as metas propostas pelo projeto foram atingidas em
3 Ante esse fato, também entendemos que esse projeto também é de acesso, no caso, à pós-graduação.
4 Os professores foram: Joaze Bernardino Costa e Alecsandro Ratts, que são os coordenadores do projeto
Passagem do Meio. Posteriormente, a professora Adriane Damascena tornou-se coordenadora pedagógica
do projeto.
271
Sales Augusto dos Santos
sua primeira fase. A segunda análise, que denominaremos de análise qualitativa,
busca verificar se o projeto proporcionou outros benefícios, que não estavam
previstos em seus objetivos explícitos, tais como, por exemplo, a elevação da
auto-estima dos bolsistas; e a desconstrução, reconstrução ou mesmo construção
de uma nova identidade racial dos bolsistas. Em realidade, o presente artigo
terá um caráter mais descritivo que analítico.
DAs Análises quAntitAtivA e quAlitAtivA
Ao realizarmos a visita técnica ao projeto, em agosto de 2003, verificamos que o
Passagem do Meio gozava de uma infra-estrutura razvel. Ele estava fisicamente
localizado numa sala do Museu Antropológico da UFG, onde havia um computador
com uma impressora e um scanner, com os quais professores e alunos podiam
realizar trabalhos e acessar a internet. Nesse espaço físico eram realizadas reuniões
entre professores e alunos, para orientação, entre outras atividades. Mas o espaço
sico do projetoo se limitava a esta sala. Alunos e professores tamm tinham
acesso a uma ampla sala, onde eram ministrados mini-cursos, seminários e palestras,
entre outras atividades acadêmicas. Nessa sala ampla, entrevistamos dez alunos, sete
mulheres e três homens
5
. Cinco destes alunos autoclassificaram-se como pardos e
cinco como pretos, conforme os questionários que responderam. A maioria absoluta
dos pais destes alunos possuía a o primeiro grau completo; apenas duas es
possam o terceiro grau completo. Nove dos alunos entrevistados conclram o
ensino dio em escolas públicas e apenas uma concluiu-o em escola privada,
embora tendo feito o primeiro e o segundo ano do ensino dio em escola blica.
Portanto, conforme tudo indica, os coordenadores do projeto Passagem do Meio
selecionaram bolsistas afro-brasileiros de baixa renda, de acordo com a orientão
e proposta do projeto.
Considerando apenas os seus objetivos manifestos pode-se afirmar
tranqüilamente que o projeto tem obtido sucesso, dado que em sua primeira
fase, ou em seu primeiro ano, atingiu plenamente, ou de maneira significativa,
as metas propostas. Nove dos dezessete
6
alunos bolsistas do primeiro ano do
5 A coordenação do PPCOR nos sugeriu que entrevistássemos no mínimo dez alunos, cinco de cada sexo.
Mas no dia e horário da entrevista apenas três homens puderam comparecer. Em função disso, o número
de mulheres foi bem maior que o de homens no momento da entrevista.
6 Na realidade quinze bolsistas eram alunos que estavam no início do curso de graduação e dois estavam
em fase de conclusão.
272
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
projeto conseguiram, no ano seguinte, obter bolsas universitárias oferecidas
pela própria UFG, como PIBIC, PET, entre outras. Dos dois alunos bolsistas
que estavam cursando o último ano do seu curso universitário e que estavam
sendo preparados para ingressarem no mestrado, uma foi aprovada em um
curso de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e o outro, apesar de não
ter sido aprovado no mestrado, estava matriculado como aluno especial em um
curso de pós-graduação strictu sensu na UFG. Portanto, em termos do que foi
proposto como meta e do que foi alcançado objetivamente, podemos afirmar
que este projeto é um sucesso acadêmico.
Mas o projeto Passagem do Meio extrapola os seus objetivos manifestos ou,
se se quiser, aqueles que podem ser quantificados, como se verá a seguir
7
.
Embora não salientado anteriormente, o projeto também tem por objetivo
discutir academicamente a questão racial brasileira com os bolsistas. Este,
ao que parece, é um objetivo acamico e potico, simultaneamente, haja
vista o que afirmaram os seus coordenadores:pretendemos desencadear o
debate a respeito de ação afirmativa para a populão negra”. Pensamos que
neste item o Passagem do Meio tamm tem conseguido sucesso acadêmico
e potico, uma vez que tem proporcionado a inserção qualificada do debate
supracitado o entre os participantes do projeto (bolsistas e tutores)
mas também entre os demais docentes e discentes da universidade. Além
disso, o projeto tem proporcionado a introdução da discussão acadêmica da
queso racial numa parte significativa da sociedade goianiense organizada.
Não só os coordenadores do projeto Passagem do Meio, mas também
alguns bolsistas do projeto passaram a ser convidados pela dia, bem
como por alguns órgãos do estado goiano, entre outras instituições, para
discutirem a questão racial publicamente. Ou seja, o projeto tem logrado
legitimidade e visibilidade não só na academia, mas tamm na sociedade
goiana. Conforme os próprios professores afirmam,
O projeto se tornou uma referência dentro da universidade e também dentro
da cidade, em Goiânia (Professor X).
8
7 Aqui iniciamos a o que denominamos de análise qualitativa.
8 Entrevistamos cinco professores (três coordenadores e dois tutores), no dia 02/08/2003. A entrevista foi
coletiva, como um grupo focal. Fazíamos as perguntas e pedíamos para qualquer professor(a) respondê-
las. Caso a resposta fosse consensual passávamos para outras questões. Caso houvesse divergências ou
outras considerações por parte dos professores(as), qualquer um(a) poderia manifestá-las. As opiniões,
pensamentos, reflexões ou argumentos expressos pelos professores que aparecem nas citações acima são
aquelas consensuais. Geralmente essas opiniões/argumentos aparecerão na primeira pessoa, mas conforme
a explicação acima, expressam o que o grupo consensualmente pensa.
273
Sales Augusto dos Santos
[O projeto proporcionou uma] abertura de oportunidade, (...) Todo um
processo de estímulo, de melhoria da qualidade da vida acadêmica de
nossos alunos e nossa também, dos professores. Com relação ao impacto
na comunidade, a gente está tendo demanda da rede pública de ensino. A
Secretaria Municipal de Educação tem perguntado sobre possibilidades de
assessoria, (...) isso por conta da visibilidade do projeto. Também no meu
caso, particularmente, me perguntaram sobre a possibilidade de participação
numa abertura de discuso na Câmara Legislativa. São campos, são demandas
que estão aparecendo, da comunidade da cidade de Goiânia, principalmente
(Professora A).
O impacto do projeto na imprensa, o projeto foi assunto na imprensa,
tanto na escrita quanto na falada algumas vezes, durante esse primeiro ano
(Professor X).
Internamente, ou melhor, no âmbito acadêmico estrito, esta discussão
qualificada da queso racial brasileira entre os participantes do projeto Passagem
do Meio se deu, e/ou ainda se dá, sob a forma de grupo de estudos, mini-
cursos, seminários, palestras e debates, que são coordenados pelos docentes que
participam do projeto (três coordenadores e onze professores tutores). Houve
também a participação de acadêmicos renomados, nos eventos organizados
pelo Passagem do Meio. Entre eles podemos citar, entre outros, os professores
doutores José Jorge de Carvalho (UnB), Kabengele Munanga (USP) e Pablo
Gentilli (UERJ), que realizaram palestras relativas à educação brasileira e/ou à
questão racial no Brasil. Estas palestras foram abertas à comunidade acadêmica
da UFG, tendo sido amplamente divulgadas no campus universitário.
Percebe-se facilmente que a proposta pedagica deste projeto tem qualificado
academicamente os alunos negros de baixa renda. Esses não passaram a
conhecer, compreender e analisar cientificamente a questão racial brasileira. O
projeto também os qualificou intelectualmente para os seus próprios cursos de
origem, tornando-os alunos-referência e/ou modelos em seus departamentos.
Os bolsistas do Passagem do Meio desenvolveram e/ou estão desenvolvendo
uma aguçada capacidade crítica, em sentido amplo, uma vez que essa crítica não
se restringe somente à análise das relações raciais brasileiras, mas diz respeito
também às várias formas de opressão existentes na sociedade brasileira.
Assim, ao discutir as relações raciais brasileiras, ou termos como
discriminação racial, racismo, desigualdade racial e ações afirmativas, o projeto
Passagem do Meio proporcionou mudanças profundas na vida acadêmica e
pessoal dos seus bolsistas. Estas vão desde a reflexão sobre a própria identidade
racial até a desconstrução do mito de uma sociedade brasileira racialmente
democrática; e do individualismo intelectual até a construção de uma rede de
274
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
interdependência acadêmica entre os alunos bolsistas. O projeto Passagem do
Meio proporcionou e tem proporcionado aos seus bolsistas, de um lado, o
fim do isolamento acadêmico-racial, e de outro, a construção de um vínculo
de amizade para além desse projeto e da própria academia. De acordo com
os bolsistas
9
entrevistados, após a participação no Passagem do Meio, eles
construíram um vínculo de amizade que extrapola o projeto e as discussões
formais e/ou acadêmicas sobre racialização:
Muitas vezes [a discussão era] sobre racialização, mas em um outro contexto,
mais descontraída, na casa de alguém ou num boteco. (...). Acho que depois do
projeto, sem dúvida, houve uma aproximação. O pessoal começou a estudar
mais juntos, andar mais juntos. Tanto é que a gente ficava vendo (há um local
mais alto [no campus] e muitas vezes eu fiquei lá em cima olhando) alguns
alunos do Passagem do Meio passando, sempre juntos. Eles começaram a
se aproximar e eu também comecei a me aproximar mais deles, buscando
andar juntos, almoçar juntos, estudar juntos (Universitária A).
Na realidade os bolsistas do Passagem do Meio estabeleceram um vínculo
de amizade e de solidariedade racial que nunca tinham experenciado em sua
vivência acadêmica. Somente três bolsistas se conheciam antes de ingressarem
no projeto
10
. Uma destes estudantes foi militante de movimentos sociais
negros. Mas a experiência de militância negra não foi vivenciada pelos outros
bolsistas do Passagem do Meio. Aliás, todos eles iniciaram a discuso acamico-
científica da questão racial brasileira nesse projeto
11
:
Bem, o projeto foi o primeiro contato que eu tive com esses temas. Anterior a
isso, mesmo quando se começou a falar na televisão sobre cotas nas escolas
públicas, algumas coisas assim, o que começou a chamar minha atenção para
as pessoas militantes e o movimento [negro] (Universitária B).
Eu não tinha contato nenhum. A gente sempre algumas reportagens, olha
algumas coisas, mas contato mesmo, de estar olhando e até mesmo buscando
algumas coisas cientificamente, eu nunca tinha tido. Foi o primeiro, e foi
9 Conforme afirmamos antes, entrevistamos dez bolsistas. Como ocorreu com os professores, a entrevista
foi coletiva. Fazíamos as perguntas e pedíamos para qualquer bolsista respondê-las. Caso a resposta fosse
consenso, passávamos para outras questões. Caso houvesse divergências ou outras considerações por
parte dos outros bolsistas, qualquer um poderia manifestá-las. As opiniões, pensamentos, reflexões ou
argumentos expressos nas citações acima foram consensuais ou tiveram concordância da maioria absoluta
dos entrevistados. Geralmente essas opiniões e argumentos aparecerão na primeira pessoa do singular, mas
conforme a explicação acima, expressam o que o grupo consensualmente pensa.
10 Os mesmos que procuraram os professores para sugerirem a elaboração do projeto Passagem do Meio.
11 Pensamos que a partir daqui vale a pena começar a dar voz aos universitários negros para falarem das
mudanças em suas vidas após a inserção neste projeto. Ou seja, citaremos mais as falas dos bolsistas
entrevistados do que as analisaremos, visto que, ao que parece, elas não precisam de análises ante a clareza
ou contundência do que revelam.
275
Sales Augusto dos Santos
bem produtivo, porque aconteceu nos primeiros meses em que eu estava na
faculdade, então já deu uma abertura bem legal (Universitária C).
Eu também nunca tinha parado para pensar nesse tipo de questão. E até
ignorava; ignorava o preconceito, ignorava o racismo. Levava mesmo ao pé
da letra a questão da democracia racial, que até hoje muita gente acredita que
existe. Depois do projeto, não; comecei a perceber mais. Comecei, ao invés de
ignorar, a tentar discutir e perceber que não adianta fechar os olhos porque
está lá, existe preconceito, existe racismo. Claro que não para sair brigando
com todo mundo, mas dá para parar e pensar e tentar discutir. Acho que a
gente não pode deixar morrer a discussão (Universitária D).
Eu conhecia um pouco da questão. Minha mãe não tinha dinheiro para
pagar cursinho para mim. Eu não estava trabalhando; cursinho é caro.
eu fiz cursinho na pastoral da juventude e entrei em contato com pessoas
que militavam no rola Negra e a questão [racial] foi crescendo. (...)
Com o ingresso no projeto, eu fui lendo os artigos das pessoas. Entrei em
contado com o[professor] Kabenguele Munanga [da USP]. O [professor]
Alex Ratts trouxe [introduziu a leitura dos textos da historiadora] Beatriz
do Nascimento. Estou até fazendo um trabalho sobre a Beatriz do
Nascimento, que vou apresentar para os meus colegas [do curso de história].
Essa historiadora negra é fantástica. A gente teve que escolher grandes
historiadores; e eu escolhi a Beatriz do Nascimento, que meu professor [do
curso de história] não conhecia, mas ele deu todo o apoio, por conhecer
o [professor] Joaze Bernardino e o projeto [Passagem do Meio]. Ele foi se
interessando por isso. O projeto fez uma coisa na UFG que eu achei fantástica.
Como a [Universitária A] falou, ele “abriu”. Nós lemos um texto do Apiah,
um [intelectual] africano, toda a graduação vai ler, o mestrado também lê.
(...). O Passagem do Meio abriu para muita coisas e foi aí que eu entrei em
contato com esses grandes caras que eu nunca tinha nem ouvido falar em
toda a minha vida (Universitária E).
Na avaliação dos bolsistas, a proposta pedagógica deste projeto, com mini-
cursos, seminários, palestras e debates, entre outros métodos ou técnicas de
ensino-aprendizagem, assim como o conteúdo destes,
Foi importantíssimo na constrão dessa consciência racial. Esse projeto
em si foi um processo de intensas desconstruções e também de construção
dessa consciência. A relação dos projetos eu acho que foi muito bom,
no jeito que foi passado. Tem alguns temas que eu esperava mais, que
abrangesse mais temas. Mas o que foi apresentado foi bom e acho que por
ser a primeira [fase do projeto] foi satisfaria e espero que na segunda
[fase] abra esse leque. E esse material foi muito importante por essa
diversidade que ela apontou, de abranger rios aspectos e rias vies
sobre essas coisas. A mesmo a gente descobriu várias coisas. Eu conheci
campos de pesquisa que eu jamais fazia iia, nem tinham passado pela
minha caba. Eno, essas discussões abriram um leque de possibilidade
276
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
de pesquisa. É muito importante e muito bom. Com relão aos eventos,
os eventos que inicialmente pretendiam contemplar os bolsistas do projeto
(...), acabaram sendo abertos e a universidade ganhou muito com isso. A
gente teve pessoas de renome nacional aqui na universidade, promovendo
discussões muito ampliadas, com auditórios lotados, e isso foi muito
legal tamm, porque você contemplou a universidade como um todo.
A discuso sobre racializão foi feita o só entre os participantes
do Passagem do Meio, foi aberta. E esse é um ponto que tem que ser
mantido; é um dos pontos extremamente positivos dos eventos que foram
realizados (Universirio K).
Foi bom, porque teve uma diversidade de professores. Cada um falava de
uma maneira diferente, de assuntos diferentes. Por exemplo, o de temática de
sexualidade e homossexualidade foi totalmente [aberto], a gente imaginou que
fosse ser uma coisa mais fechada, mas foi super-aberta (Universitária A).
Embora metade dos bolsistas entrevistados tenha se auto-classificada nos
questionários como parda e outra metade como preta, a discussão da questão
racial pelos participantes do Passagem do Meio proporcionou mudanças na
identidade racial de muitos dos integrantes deste projeto. Alguns redefiniram
a sua identidade racial enquanto outros passaram a valorizar positivamente o
fato de serem negros
12
, elevando a auto-estima de forma inexorável:
Sempre me vi como negro, mas o discutia muito. Aquela pessoa no
“banho-maria”. Para onde o vento bater estava bom. Eu era mais ou menos
assim. Hoje não; hoje tenho uma posição mais crítica em relação à minha
raça e minha etnia (Universitário L).
Bem, sabe quando você fica na dúvida. Você se olha no espelho e se
negra, mas aí chega a minha mãe e fala: não minha filha, você não é negra!
Vo é moreninha. Eu sei porque minha família, geralmente, é mais clara
que eu. Eno, estava numa roda e ficava: gente, eu sou diferente. Minha
e [dizia]: o, porque você é mais escurinha, mas vo o é negra,
vo é escurinha. Então tem essa distinção; eu ficava nessavida, se eu
era, se eu não era, por que não era? Então, o projeto me ajudou a ver que
12 Vale ressaltar que alguns bolsistas tiveram dúvida em se candidatar a uma bolsa do projeto ante a sua
auto-classificação racial. “a única dúvida que eu tive foi em relação a minha identidade racial. Porque eu
estava começando, fazia mais ou menos um ano que eu vinha pensando em como eu me via, negra, branca.
Então, assim a única dúvida que eu tive foi nesse sentido. Mas aí com uma palestra do [professor] Joaze
Bernardino que eu tinha ouvido antes do início do projeto, na véspera, em que ele falava da formação da
população negra no Brasil, do contexto histórico e o conceito dos cientistas sociais, de negros como sendo
pretos e pardos, aí eu me vi dentro daquele contexto histórico, minha família e tudo mais” (Estudante).
Pode-se supor também, ante esta afirmação, que alguns estudantes que se auto-classificaram como pardos
no questionário provavelmente se definem também como negros, visto que os bolsistas do projeto também
aprenderam que a categoria negro é resultado da junção de duas outras, pretos e pardos, conforme afirmou
a estudante acima.
277
Sales Augusto dos Santos
eu era, independente de se eu sou mais clarinha ou moreninha do que
outra pessoa. Eu sou negra devido à minha identidade, devido aos meus
antepassados, devido a meu pai, meu avô. Eno, eu me afirmei mesmo,
eu sou negra. Minha tia, até hoje, fala: não, mas você não é negra (...)
tenho que começar: não tia eu sou e tenho que começar a explicar
a história para ela. Eu acho que afirmei minha identidade depois do
projeto (Universitária C).
Eu também, isso aconteceu comigo. Comecei a me ver negra depois
do projeto, quando eu entrei na universidade. Não foi nem uma
reconstrução de identidade. Foi uma construção de identidade
completa. E o projeto foi uma das coisas, junto com outras, que
possibilitou minha visão de ser negra, porque a impressão que hoje eu
tenho é que antes do projeto e antes de entrar na universidade eu era
bem destoada. Não me identificava com nada e tive muitos problemas
com isso. E depois do projeto que eu tive essa vontade de ser negra
e junto com ela também vieram outras, a entrada na faculdade e tal.
Mas foi um marco muito grande, foi realmente uma construção de
identidade (Universitária B).
Passei, lógico, pela questão das meninas. Só que tinha uma questão:
eu sempre estava em busca daquele processo de embranquecimento.
Apesar de saber que sou negra, mas, não aceitar aquilo ali. Então
naquele momento, quando as pessoas falavam assim: olha como se trata
o negro; nossa, o negro, o preto. Você se sentia altamente ofendido.
Mas quando uma pessoa falava assim: não, é morena! Aí eu gostava,
mesmo olhando e sabendo [que eu não era]. Então o importante do
projeto é que, a partir do contato e da experiência que eu tive, se a
pessoa vier falar para mim: negra, preta. Bom, é isso mesmo que eu
sou e tenho orgulho disso. Eu estou lutando agora por um espaço,
mas é um espaço onde eu vou me inserir sendo negra. Não estou
buscando nenhum meio de embranquecimento. Por exemplo, notas
altas, primeiros lugares para ser aceita, nada disso. Acho que antes a
postura era parcial, agora é total (Universitária F).
Essas mudanças não ocorreram somente de uma perspectiva individual
de redefinição da identidade racial, de elevação da auto-estima. O projeto
Passagem do Meio tamm proporcionou a mudança do ponto de vista dos
bolsistas quanto às relações raciais na sociedade brasileira. Analisando a própria
trajetória de vida individual, muitos bolsistas perceberam e compreenderam
uma histórica discriminação que não era individualizada, mas contra o grupo
racial negro ao qual pertencem. A inserção nesse projeto indicou para os seus
participantes que a discriminação pode e deve ser combatida não só a partir
de comportamentos individuais, mas principalmente coletivamente, por meio
de políticas públicas:
278
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
Concordo com [o universitário L], [o Passagem do Meio] foi importante
para eu ter consciência como mulher negra e principalmente ter orgulho.
E também foi importante porque contribuiu para eu olhar para minha
trajetória de vida, como empregada doméstica, como uma pessoa que
trabalhava na roça, e ver a minha entrada e minha estadia na universidade.
Claro que também para ter uma perspectiva melhor, em se tratando de área
profissional, de trabalho, mas também de ver quantas coisas eu vivi nessa
trajetória, que presenciava a discriminação e o preconceito, mas de que eu
não tomava conta. Eu achava que aquilo ali era normal, era assim mesmo.
Não conseguia fazer um nexo, não conseguia me posicionar com aquilo.
Então, agora, eu olho para atrás e vejo e tenho uma visão, e me posiciono
criticamente, por isso. E olho para frente também e tenho uma outra visão
(Universitário F).
Eu acho que uma das mudanças que ocorreram na visão é justamente na
direção do que a [Universitária A] está falando. Antes de participar do projeto,
a gente tem noção do racismo, mas acredita que o racismo tem uma dimensão
muito individual. Ou seja, o racista é o seu vizinho que conta piada de preto.
Com o ingresso no Passagem do Meio, a gente passa a ter a dimensão mais
institucional desse racismo. Ou seja, existe uma desigualdade que é histórica,
que tem por base critérios raciais e que, se não se tomar medidas práticas,
medidas em nível de políticas públicas para reverter esse quadro, nós nunca
vamos conseguir reverter, porque às vezes a gente fica numa discussão muito
rasteira. Ou seja, você briga com seu vizinho, você briga com seu colega de
escola, mas não briga com a própria estrutura da sociedade, que acha normal
ver uma novela onde todas as empregadas domésticas são negras. Acho que o
Passagem do meio possibilitou dar esse salto de qualidade na própria visão
da gente (Universitário M).
Antes de participarem do projeto Passagem do Meio, muitos bolsistas do
projeto acreditavam que a sociedade brasileira era racialmente democrática.
Esse projeto proporcionou-lhes uma mudança radical quanto a essa histórica
constrão sócio-racial. Hoje, após a participação neste projeto de ão
afirmativa, todos os bolsistas do Passagem do Meio entrevistados têm a opinião
de que a sociedade brasileira é sem dúvida nenhuma racista, dado que discrimina
os negros das mais diversas formas:
Antes do projeto eu acreditava, veementemente, na democracia racial
(Universitária B).
A gente sempre tem aquela visão: Nossa, racismo, o! Eu não sou
racista, e tal. E tem todo esse negócio mais. Depois do projeto, a gente
vê assim pequenas coisas, que demonstram, sim, que tem um racismo
muito forte. Antes a gente nem pensava nesse tipo de assunto, mas,
agora, qualquer coisinha que você vê, um tipo de fala, uma coisa
279
Sales Augusto dos Santos
assim, já mostra a potencialidade do racismo no Brasil que é imensa
(Universitária C).
Fui perceber que o racismo tem a ver com todo o processo histórico do
Brasil, com toda a estrutura política, populacional, e várias outras áreas.
Antes eu pensava em racismo nas relações pessoais, nas pequenas coisas.
Bom, isso não é pequena coisa, mas não imaginava que ele tivesse a ver com
uma estrutura tão grande, tão estratificada e tão rígida, forte e difícil de se
romper (Universitária G).
Como se vê, o projeto Passagem do Meio não só tem qualificado
intelectualmente os seus bolsistas, em sentido amplo, capacitando-os
para disputarem outros tipos de bolsas universitárias, como também tem
proporcionado mudanças profundas na visão de mundo de seus bolsistas,
tornando-os críticos quanto à visão idílica ou de harmonia das relações raciais
brasileiras. Portanto, a proposta pedagógica deste projeto, que objetiva discutir
academicamente a questão racial brasileira, tem uma função latente de produzir
agentes sociais engajados politicamente na luta anti-racismo no Brasil. Mais
uma vez podemos afirmar, sem tergiversar, que neste item o Passagem do Meio
também tem logrado sucesso.
Porém, este sucesso do projeto Passagem do Meio não foi construído e/ou
obtido sem fortes reações contrárias por parte de discentes e docentes da UFG.
No primeiro momento da implementação desse projeto de ação afirmativa
na universidade, houve a predominância de fortes reações negativas contra o
mesmo. O projeto despertou resistências agressivas, principalmente por parte
de “estudantes brancos não carentes” ou que pertenciam às classes média e alta
desse grupo racial de pertença. Segundo os bolsistas do Passagem do Meio, as
discussões em sala de aula (nos cursos de origem dos bolsistas) sobre o projeto
eram duríssimas: “as piadas, isso aconteceu na minha sala de história. Se deixasse
saía até cadeirada na minha sala de aula por conta disso [do projeto Passagem
do Meio]” (Universitária E). Os cartazes do projeto eram pichados no campus
universitário, com frases que acusavam os participantes do Passagem do Meio
de racistas. Era uma verdadeira “tática de guerrilha”, segundo os bolsistas. Mas
num segundo momento, após ampla estratégia para convencer os oponentes e
conquistar aliados, os alunos e os professores envolvidos legitimaram o projeto
não por meio de debates públicos sobre as relações raciais brasileiras, mas
pela competência acadêmica demonstrada em seu desempenho acadêmico nos
cursos de origem:
Houve dois tipos de reação. Houve pessoas que não pensavam na questão e
passaram a pensar e viram o projeto como algo legítimo, algo que tem que ser
280
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
implementado para reverter o quadro vergonhoso da universidade brasileira.
Mas também tem aquele outro tipo de reação, que a gente costuma dizer
que é o bicho que sai da toca. As pessoas que foram para cima, tentando
quebrar a legitimidade do projeto, acusando a gente de racista ao inverso; de
a gente estar promovendo a discriminação; inventando uma discussão que
não cabe para realidade brasileira; e diversos absurdos, de levar piadinha,
de fazer pichação nos cartazes que a gente espalhava sobre os eventos. Mas
uma das questões que foi bastante interessante foi a de abrir esse debate, ou
seja, as pessoas que eram favoráveis ou que passaram a acreditar que essa
questão era justa, começaram a se manifestar. Algumas pessoas foram a cabo,
com interesse de quebrar nossa própria legitimidade, fazendo todo tipo de
discussão suja, tentando dar rasteira, baixar o nível da discussão. Acho que
teve os dois tipos de reação (Universitário M).
Eu acho interessante, a [universitária E] tocou num ponto que acho que vale
a pena explorar um pouco mais, que é a própria questão da tática de atacar o
projeto. As pessoas, muitas vezes, e na História foi onde isso ficou bem claro,
se uniam em grupo e atacavam pessoas específicas. No nosso caso, no meu
caso e da [estudante y] nas Ciências Sociais, as pessoas não nos atacaram,
porque durante todo o curso, como não éramos as pessoas que encampavam
essa discussão, acho que ficaram com medo, sabendo que o vaso era ruim e
não ia quebrar tão facilmente. Muitas vezes as pessoa optaram por dar a volta
e fazer a discussão rasteira e não vir bater de frente. Como aconteceu com os
meninos da História. De uma forma geral, no primeiro momento a reação
com relação ao projeto, foi bastante negativa. As pessoas até se assustaram
com a proposta, de ver alguma coisa que antes era uma “loucurade um certo
professor da UnB e começaram a ver essa coisa acontecer aqui na frente delas.
Então, num primeiro momento, as pessoas se assustaram com isso. Mas, num
segundo momento, pelo nível da discussão que os integrantes do projeto, tanto
professores como alunos, tentaram manter, tanto dentro de sala de aula quanto
nas conversas de corredor. A gente teve que aprender a combater nessa tática de
guerrilha mesmo, porque os caras sempre queriam atacar a gente pelas costas,
pular no pesco da gente quando a gente não estava olhando. Porque, na hora
que a gente estava preparado para discussão, por exemplo, num debate, até na
ocaso que o [professor] Kabenguele Munanga [da USP] esteve na faculdade, as
pessoas que atacavam a gente no início, não participavam do debate. A questão
delas era atacar em outro nível. No primeiro momento, foi bastante negativo,
mas depois a gente começou a conquistar a legitimidade do projeto. Inclusive
para essa segunda seleção não teve os problemas que teve na época da primeira
seleção dos bolsistas. Foi mais tranqüilo (Universitário M).
Entre os docentes da UFG, a resistência ao projeto Passagem do Meio, ao
que parece, não foi tão agressiva como entre os universitários brancos não
carentes dessa universidade, embora um professor da UFG tenha dito
13
, para
13 Isto foi dito em tom de brincadeira, segundo o nosso entrevistado.
281
Sales Augusto dos Santos
um dos coordenadores desse projeto, poucos anos antes da implementação
deste, que estudar/pesquisar a questão racial é coisa para negro, que não era
temática digna de investimento teórico ou digna da ciência. Conforme relatou
um dos nossos entrevistados,
Logo quando eu cheguei aqui na universidade, isso aí antes do projeto, dois
anos antes, tinha um professor bem brincalhão, mas esses brincalhões têm a
qualidade de expressar de maneira irônica o que as demais pessoas gostariam
de expressar, mas dado a seriedade elas não expressam. Então, o professor,
que eu tenho alguma relação com ele, falou: “olha, eu vou lá estudar negro,
mulheres e homossexual!?!?! Isso é coisa para negro, bicha e mulheres; isso
não é temática digna de investimento teórico, digno da ciência ou coisa do
tipo”. Então, quer dizer, acho que tem muito essa desqualificação dessas
temáticas. Embora nosso projeto seja de relações raciais, uma forte
entrada em gênero, conseguimos dialogar com um grupo da universidade
que trata de questões homossexuais. É visto um pouco como uma temática
de gueto... (Professor X).
Ao serem perguntados sobre as reações na UFG contra o projeto Passagem do
Meio, os coordenadores(as) deste e os(as) professores tutores(as) que participaram
da entrevista afirmaram que,
Quando estavam em pauta os ganhos monerios para a universidade,
as reações foram de aprovão. Agora quando estava em pauta uma
discussão de políticas públicas particularistas, enfim, temos aqueles que
compreendem muito bem isso e nos dão apoio. E, é claro, aconteceram
piadas, brincadeiras de cunho racista mesmo, pejorativo, a respeito
do projeto (Professor X).
Houve comentários explícitos contrários a qualquer tentativa de
discussão racial, de abordagem racial com relação a vagas, a projetos,
enfim, atividades acadêmicas assim, clássicas, pesquisa, extensão
(Professora A).
Reações institucionais abertas, manifestadas claramente, por parte da
direção da UFG ou de qualquer outra unidade acadêmica dessa universidade
contra o Passagem do Meio não houve, embora o projeto tenha levado
aproximadamente oito meses para conseguir uma sala própria. Apoio
decisivo ao projeto também o houve, na época de sua implementação,
por parte da direção da UFG, embora essa saiba da existência desse projeto
de ação afirmativa na universidade. Como afirmou um dos professores
entrevistados: ela sabe, mas o sabe [da existência do Passagem do Meio na
UFG]”. Contudo, segundo os professores entrevistados, uma das faculdades
da UFG, a Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia (FCHF), apoiou
282
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
de forma decisiva o Passagem do Meio, no início de sua implementação.
Todavia, os(as) coordenadores(as) desse projeto, bem como os professores(as)
tutores(as) que participaram da nossa entrevista, pensam que o se pode
afirmar tranilamente que esse apoio se manterá incondicional num futuro
próximo, ante a discussão sobre a implementação de ações afirmativas na
UFG
14
, especialmente sobre cotas no vestibular para negros:
Eu acho que precisa dizer, para ficar bem claro isso que o [professor Y] falou
do apoio [da FCHF] ao projeto, que não temos convicção e não podemos
dizer que um apoio a ações afirmativas. É um apoio a uma verba alta
que entrou na universidade. Para você ter idéia do funcionamento da
universidade, por exemplo, a FCHF funciona com verba anual de 40 mil
reais para promoção de eventos, atividades. Então, nosso projeto tem que
diluir 84 mil em dois anos, que é o tempo previsto do projeto. Então o
projeto tem o mesmo tanto de recursos que uma unidade que congrega por
volta de 50 professores. Pode ser um apoio a ações afirmativas, mas talvez
seja um apoio a ações afirmativas dessa maneira, uma ação afirmativa que
não tenha como conseqüência a repartição dos bens escassos da universidade.
Ou seja, você chegou com nova grana na universidade, você não está tirando
do orçamento existente um a quantia “x” do dinheiro e não está tirando a
vaga de ninguém também com um projeto como esse. Eu não sei qual seria
a nova configuração política da universidade, especialmente no FCHF, no
momento em que colocarmos na pauta das discussões ações afirmativas, seja
na sua forma de cotas ou seja no sistema de preferências (Professor X).
Eu quero fazer um comentário tamm ... porque no questiorio eu gostei duma
questão sobre dificuldade enfrentadas na coordenão do projeto, na viabilizão
do projeto. Eu penso que dificuldades relativas à construção de espaço
potico acamico da ppria perspectiva racial, nas relações universitárias.
Na minha unidade, que é a Faculdade de Educação, o meu envolvimento
com o projeto e com a possibilidade de produção, de conseguir participação
de alunos em eventos apresentando trabalhos, de estar orientando projetos
específicos voltados para esse tema, e até de estar com espaço de discussão
para pesquisa que eu desenvolvo, sobre educação para a igualdade, chamou
a atenção dos dirigentes. Eu fui chamada pela coordenadora de pesquisa
para ela dizer para mim: “mas você está atuando fora da sua unidade, esse
projeto tem que vir para sua unidade”. Porque ele [o projeto Passagem do
Meio] gera relatórios de produção da própria unidade, é capital acadêmico,
produção de conhecimento. É reivindicada a paternidade, digamos assim,
pela própria instituição, pela própria unidade institucional. Eu penso que
dificuldades para a institucionalização de um projeto político de formação
com abordagem racial. A impressão que eu tenho é que a gente vai enfrentar
14 Faz-se necessário lembrar aqui que os participantes do projeto Passagem do Meio estão discutindo
e propondo outros tipos de ações afirmativas para negros na UFG. Entre elas, a cota para negros no
vestibular.
283
Sales Augusto dos Santos
ainda muitos debates com essa questão. Quando se percorreram as salas de
aula, divulgando o edital de seleção, eu não senti os professores que estavam
presentes em sala de aula com um certo medo do que eu iria falar lá, que
era: olha, o edital para alunos negros, para concorrência de alunos negros.
E vários alunos perguntavam: só negro, professora? E o próprio professor
da sala ficava em dúvida. Então essa questão para mim é política, ela vai
trazer necessidade de enfrentamentos, porque a gente está consolidando um
espaço de abordagem racial (Professora A).
Apesar da indiferença da direção da universidade
15
, ou se se quiser, da
sua resistência silenciosa com relação ao projeto , pode-se
afirmar que após a implementação do projeto houve várias mudanças no que
diz respeito ao estudo das relações raciais na UFG. Entre as quais, o fato de
que os docentes dessa universidade estão mais abertos para discutir alguns
temas naquela área de estudo. Se, antes, o estudo desse tema era assunto sem
importância científica ou era coisa de negro, uma temática que não era digna
de investimento teórico ou digna da ciência, conforme afirmou um dos seus
docentes, atualmente, ao que parece, o projeto Passagem do Meio, bem como o
“cenário político” nacional, forçaram os professores a se posicionarem de forma
mais qualificada quanto à discussão da implementação de ações afirmativas
para negros em universidades públicas:
O projeto forçou as pessoas a se posicionarem a respeito das ações afirmativas.
Então aqueles que têm a coragem de se posicionar publicamente, se
posicionam de uma maneira mais qualificada do que o faziam um ou dois
anos atrás, quando o projeto não existia. Mesmo sendo um posicionamento
positivo ou negativo, as pessoas têm melhores argumentos porque começaram
a refletir a respeito disso. Então, o argumento de que ação afirmativa é
um racismo invertido é uma argumentação ainda presente, mas ela a cada
dia se torna mais rara, porque a gente tem procurado demonstrar para as
pessoas a racionalidade, os argumentos que estão por trás das políticas de
ação afirmativa, que não se trata de uma prática racista, e assim por diante.
Então, é isso, há uma qualificação do debate (Professor Z).
uma abertura para o debate e isso não só por mérito do projeto,
mas por conseqüência do novo cenário político que se instaura. Mas as
pessoas ainda nãom posições ... Enfim, elas se abriram para o debate,
se qualificaram, mas ainda [são] muito flutuantes. Então, as pessoas
flutuam de acordo com as boas argumentões que surgem. Por exemplo,
quando o [professor] José de Souza Martins [da USP] publicou um artigo
na Folha de São Paulo, no dia seguinte algumas pessoas vieram comentar
comigo, achando brilhante a argumentação dele. Eno, eu tinha que
15 Conforme a afirmação “ela sabe, mas não sabe [da existência do Passagem do Meio na UFG]”, dos
coordenadores/professores do referido projeto.
284
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
fazer o trabalho de falar: há falha ali e ali, nessa argumentão do Jo
de Souza Martins. Essas mesmas pessoas, que deram apoio naquele
momento à argumentação do José de Souza Martins, foram pessoas que
talvez deram apoio à argumentação [em favor de cotas para negros nas
universidades públicas] do [professor] José Jorge de Carvalho [da UnB]
quando ele esteve aqui. Eno, as pessoas eso qualificadas, eso abertas
ao debate, mas o posicionamento ainda é flutuante (Professor X).
Também é visível, como aconteceu com os bolsistas, a construção de uma
solidariedade acadêmico-racial entre os professores, ou melhor, a criação de
vínculos entre os professores que transcendem o espaço acadêmico, local onde
foi gestado o projeto. Conforme os professores que participam do Passagem
do Meio, o projeto possibilitou a integração de pessoas de diferentes unidades
acadêmicas, que tinham interesses comuns com a questão racial, mas que não se
conheciam proximamente. Alguns desses professores, com bastante experiência
acadêmica na área de relações raciais, e até mesmo com antigas trajetórias de
militância em movimentos sociais negros. Assim, o projeto possibilitou a
formação de um grupo engajado de professores:
Eu costumo dizer que o projeto Passagem do Meio não trouxe
benefícios do ponto de vista de inserção na comunidade acadêmica
só para os alunos; (...) ele trouxe-os para os professores também. E
eu me coloco assim, porque eu me sentia muito sozinha nesse tema,
na Faculdade de Educação. Não tinha companheiros de discussão,
de pesquisa. Além disso, sem dúvida, a aproximação num interesse
político como esse, aproxima as pessoas, é claro. Eu ganhei uma amiga
nova, que é a [professora k], que eu nem [sabia que mora] no prédio
ao lado da minha casa. Então, além disso, a gente se aproximou muito
mais. Eu pessoalmente, me aproximei muito mais da [professora k],
do [professor y], do [professor x]. E há uma parte dos professores
com que eu ainda pessoalmente não tive muita convivência, que são
alguns que tiveram participações mais episódicas, relacionadas a
atividades estritamente do grupo de estudos, e não têm participado
com freqüência em outras atividades. Mas há o espaço para lutar, para
fortalecer esses laços (Professora A).
Percebe-se assim que após o projeto Passagem do Meio os professores
entrevistados demonstraram que sentem a necessidade de estarem mais próximos
uns dos outros, embora o contato mais freqüente entre eles não aconteça,
devido à escassez de tempo em face da enorme quantidade de trabalho que
os docentes têm na academia. Todavia, alguns professores passaram a publicar
trabalhos, elaborar projetos, participar de congressos, entre outras atividades,
conjuntamente.
285
Sales Augusto dos Santos
conclusão
O projeto Passagem do Meio proporcionou um impacto acadêmico na
UFG nunca antes visto, no que tange às relações raciais. Não resta dúvida
de que este impacto foi positivo em sentido amplo. Mas não somente
na Universidade Federal de Goiás, ou na esfera acadêmica, o projeto
proporcionou e ainda esproporcionando impactos positivos. Na sociedade
goianiense organizada, ou na esfera política, também se percebe a influência
positiva desse projeto, ante a demanda por parte de órgãos dos governos
estaduais e municipais aos coordenadores do projeto, para assessorá-los
na discussão da queso racial. Dessa forma, e considerando tudo que foi
descrito antes, pensamos que este é um projeto de sucesso, contrariando
expectativas negativas da maioria dos docentes e discentes da UFG quanto
ao mesmo. Esse projeto o só tem conseguido superar ou, se se quiser,
driblar as barreiras existentes no campo acadêmico, como tem obtido êxito
político ao proporcionar uma discussão qualificada da questão racial em
Goiânia, bem como por formar agentes sociais anti-racistas, de que tem
sido exemplo os próprios bolsistas.
Estes bolsistas não passaram a dominar conceitos básicos da área de estudo
das relações raciais brasileiras, como elevaram a auto-estima mais facilmente.
Além disso, passaram a ter uma visão bem mais crítica da questão racial no
Brasil. Antes da participação nesse projeto a maioria dos bolsistas acreditava
que o Brasil era um país racialmente democrático. Após a participação no
Passagem do Meio, passaram a perceber que os negros são discriminados
racialmente neste país. Esses bolsistas também construíram vínculos de amizade
e solidariedade racial, não experenciados antes por eles. Isto possibilitou o fim
do isolamento acadêmico-racial a que os universitários negros geralmente estão
submetidos na maioria das instituições de ensino público superior. Por outro
lado, os universitários negros bolsistas do projeto Passagem do Meio estão
mais qualificados e/ou preparados e mais seguros academicamente, não só do
ponto de vista da discussão da questão racial, mas também de forma ampla,
dado que o seu desempenho acadêmico também melhorou sensivelmente após a
participação nesse projeto de ação afirmativa, tornando-se referência ou modelo
em seus cursos de origem.
286
Projeto Passagem do Meio: uma política deão afirmativa na Universidade Federal de Goiás(UFG)
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289
AvAliAção DA PolíticA De Ação AfirmAtivA PArA
PermAnênciA De Alunos negros nA uff
Iolanda de Oliveira / André Augusto Brandão
introDução
Este trabalho se refere à pesquisa que realizamos em 2004, acerca dos
impactos verificados com a execução de uma iniciativa de ação afirmativa para
permanência de universitários negros e de baixa renda na Universidade Federal
Fluminense (UFF). O projeto foi financiado pela Fundação Ford e gerido pelo
Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB), da UFF.
Seus objetivos eram: a) evitar a evasão de alunos negros de baixa renda da UFF;
b) garantir a estes alunos uma formação de qualidade frente às desvantagens
sócio-educacionais que traziam para a universidade e; c) proporcionar a formação
política dos mesmos na direção da luta anti-racista no Brasil.
O projeto teve inicio em 2002, e oferecia bolsas de estudo no valor de R$
250,00 (duzentos em cinqüenta reais). Oitenta e quatro universitários da UFF
se candidataram as bolsas do projeto do PENESB. Todos os candidatos eram
significativamente de baixa renda. Assim, procuramos, como critério de seleção, dar
significativa importância ao fetipo dos candidatos, aos seus interesses acadêmicos
e às suas possibilidades de desenvolvimento intelectual com o apoio do projeto.
O montante financeiro financiado por aquela fundação possibilitou que
trabalhássemos somente com 20 alunos. Esta limitação acabou transformando
este projeto em uma atividade experimental. Vale ressaltar que embora os
recursos iniciais para a manutenção do projeto tenham terminado em abril de
2003, o PENESB-UFF continuou a execução do mesmo até que todos os 20
universitários negros concluíssem suas respectivas graduações.
Pretendemos aqui discutir: a) os efeitos do projeto sobre os universitários
bolsistas do projeto do PENESB e; b) os efeitos do projeto sobre a própria
Universidade Federal Fluminense, que pela primeira vez na sua história teve
290
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
que se relacionar, do ponto de vista institucional, com a questão da ão
afirmativa para a população negra. Esta discussão aponta, em última instância,
para a avaliação do significado da implantação de uma política específica para
a manutenção da população negra no ensino superior.
2 Perfil socioeconômico Dos BolsistAs coBertos Pelo ProJeto
Do PenesB
Vejamos o perfil dos alunos em algumas variáveis selecionadas.
Tabela 1- Número de alunos por curso
Curso dos bolsistas do PENESB Freq. Absoluta
Administração 1
Ciências Sociais 1
Direito 1
Enfermagem 3
Engenharia 1
História
1
Pedagogia 6
Serviço Social 6
Total 20
Tabela 2 - Número de alunos por sexo
Sexo Freq. Absoluta Freq. relativa (%)
Feminino 16 80
Masculino
4 20
Total 20 100
291
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
Tabela 3 - Número de alunos por faixa etária
Idade Freq. Absoluta Freq. relativa (%)
17 – 20 3 15
21 – 25 11 55
26 – 30 6 30
TOTAL 20 100
Como podemos perceber na tabela 2, 80% dos alunos eram do sexo feminino,
devido ao próprio perfil dos cursos de Serviço Social, Pedagogia e Enfermagem,
que forneceram a maioria dos beneficiários. Com relação à faixa etária,
percebemos na tabela 3 que 55% dos alunos bolsistas do PENESB tinham entre
21 e 25 anos, 30% tinham entre 26 e 30 anos e 15% entre 17 e 20 anos.
Tabela 4- Número de alunos por local de nascimento
Local Freq. Absoluta Freq. relativa (%)
Região Metropolitana do Rio de Janeiro-RJ 14
70
Noroeste Fluminense-RJ
2 10
Imperatriz-MA
1 5
Salvador- BA 1 5
Campina Verde-MG
1 5
Guiné Bissau 1 5
Total 20 100
Na tabela 4 podemos observar que 70% dos alunos selecionados para
participarem do nosso programa como bolsistas eram oriundos da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, 10% eram oriundos do Noroeste Fluminense
e os outros igualmente distribuídos pelos Estados do Maranhão, Bahia e Minas
Gerais. Além disso, um aluno era oriundo da Guiné Bissau, país localizado
no continente africano.
292
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
Tabela 5 - Número de alunos por renda familiar.
Renda familiar
Salários mínimo Freq. Absoluta Freq. relativa (%)
Menos de 2s
2 10
2 e 3 1 5
3 e 4s 14 70
4 e 5s 1 5
5 e 10s
1 5
mais de 10s
1 5
Total 20 100
Na tabela 5 vemos que 70% dos alunos bolsistas do PENESB eram
originários de famílias com renda familiar entre 3 e 4 salários mínimos. Na
faixa relativa a menos de 2 salários mínimos encontramos 10% dos alunos.
5% dos alunos bolsistas do PENESB pertenciam a famílias situadas na faixa
de renda entre 2 e 3 salários. Na faixa de renda familiar de 4 a 5 salários
encontramos 5% dos alunos, o mesmo percentual para a faixa acima de 10
salários mínimos de renda familiar (vale ressaltar que nesta família com renda
superior a 10 salários mínimos havia 14 moradores). No geral, portanto, a
renda familiar destes alunos era significativamente baixa.
Tabela 6 - Número de alunos por cor ou raça, segundo classificão do IBGE
Auto-classificação
Freq.
absoluta
Freq.
relativa
Freq.
absoluta
Freq.
relativa
Freq.
absoluta
Freq.
relativa
Preto % Pardo % Total %
Negro 11 69 5 31 16 80
Não declarou 0 0 1 100 1 5
Negro ou afro descendente 1 100 0 0 1 5
Afro-brasileira 1 100 0 0 1 5
Preta 1 100 0 0 1 5
Total 14 70 6 30 20 100
293
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
Na questão da auto-identificão de cor ou ra, fizemos aos alunos duas
perguntas, a primeira aberta e a segunda fechada nas variáveis utilizadas
pelos IBGE (preto, branco, pardo, amarelo e indigena). Como podemos
ver, 80% dos alunos se auto-classificaram como negros. Destes, 69% se
auto-identificaram através da classificão do IBGE como pretos e 31%
como pardos.
Os 20% de alunos que não se classificaram como negros na pergunta
aberta, se identificaram na classificação do IBGE como pretos, com exceção
de somente um aluno que se classificou como pardo. Vale ressaltar, estes
20% utilizaram as seguintes auto-classificações abertas: negro ou afro
descendente”, “afro-brasileira e um o quis se identificar em nenhuma
das categorias.
Tabela 7 - Número de alunos por turno e tipo de escola em
que estudou o ensino médio
Turno
Tipo
Diurno
Freq.
ab-
soluta
%
Freq.
rela-
tiva
No-
turno
Freq.
ab-
soluta
%
Freq.
rela-
tiva
D e N
Freq.
ab-
soluta
%
Freq.
rela-
tiva
Integral
Freq.
ab-
soluta
%
Freq.
rela-
tiva
Total
Freq.
ab-
soluta
%
Freq.
rela-
tiva
Pública
regular
8 53,3 5 33,3 1 6,8 1 6,8 15 75
Privado
regular
2 67 0 0 1 33 0 0 3 15
Supletivo
privado
0 0 0 0 1 100 0 0 1 5
Outro 1 100 0 0 0 0 0 0 1 5
Total 11 55 5 25 3 15 1 5 20 100
Com relação ao tipo de escola freqüentada no Ensino Médio, verificamos
que 75% dos alunos (15 bolsistas) estudaram em escola blica regular (tabela
7). Destes, 53.3% estudaram no período diurno, 33,3% estudaram no peodo
nortuno, 6,8% estudaram em peodo integral, e 6,8% estudaram uma parte no
294
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
período diurno e outra parte no noturno. No entanto, quando observamos a origem
escolar dos universirios da UFF, verificamos que somente 31,0% dos alunos dessa
universidade estudaram em escolas públicas no ensino médio. Assim, pode-se
perceber facilmente que a porcentagem de bolsistas do projeto de permancia do
PENESB que estudaram em escolas públicas de ensino médio é mais que o dobro
da porcentagem de alunos da UFF que tiveram a mesma trajeria escolar. Quando
comparada somente com a porcentagem de universirios pretos” da UFF que
é de 53,53%, conforme Brandão e Teixeira (2003), percebe-se novamente que a
porcentagem de bolsistas do PENESB ainda é bem superior (75%).
Tabela 8 - Número de alunos por escolaridade do pai
Escolaridade Freq. Absoluta Freq. relativa (%)
Não Identificado
1 5
Analfabeta 0 0
1ª segmento do Ens. Fund Incompleto
5 25
1ª segmento do Ens. Fund Completo
2 10
2ª segmento do Ens. Fund Incompleto
3 15
2ª segmento do Ens. Fund Completo 5 25
Ensino Médio Incompleto
1 5
Ensino Médio Completo
3 15
Superior Incompleto
0 0
Superior Completo 0 0
Total 20 100
Quando analisamos o percentual de escolaridade dos pais dos bolsistas
do PENESB percebemos que havia uma maior concentração daqueles no
segmento
1
do Ensino Fundamental Completo (com 25%), na escolaridade do
pai. Vemos, portanto, que em geral os pais dos alunos do projeto apresentavam
uma baixa escolarização, o que indicava que estes alunos muito provavelmente
carregavam uma pequena quantidade de capital cultural incorporado
2
.
1 Trata-se das antigas 5º a 8º séries do primeiro grau.
2 Segundo Bourdieu (1999), o capital cultural incorporado é aquele herdado familiarmente.
295
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
Análise DAs entrevistAs reAlizADAs com os Alunos envolviDos
no ProJeto
Nesta parte de nosso escrito discutimos algumas entrevistas realizadas com
alunos que estiveram cobertos pelo projeto de ação afirmativa para permanência
na UFF, gerido pelo PENESB.
AlunAs e Alunos entrevistADos Pelos Autores
AlunA 1 - Curso de serviço soCiAl
Esta aluna inicia a entrevista apontando o auxílio material que recebeu e
que a ajudou a se manter na UFF, seja no que tange a passagens rodoviárias,
a cópias de artigos/textos e/ou material bibliográfico ou mesmo à compra de
livros. Mas afirma também que a importância deste auxílio em sua vida material
a levou a assumir um compromisso não somente com o PENESB, mas também
consigo mesma, no sentido de se esforçar muito mais do que antes para ser
uma “boa aluna”.
Ela ressalta ainda a importância de ter tomado contato com o que chama
de “discussão do negro”, que até então não fazia parte de suas preocupações. A
aluna havia estudado em um núcleo de Pré-Vestibular para Negros e Carentes
(PVNC), que tinha, entre outras, a disciplina “Cultura e Cidadania”. Assim,
essa bolsista do PENESB havia sido apresentada à questão racial brasileira,
mas, conforme afirmou, não se aprofundou e nem mesmo deu importância
à mesma.
Conforme essa bolsistas, foi a sua participação no projeto do PENESB que
possibilitou o desenvolvimento de sua “identidade”. Como afirma:
... agora no ensino superior é que eu comecei a me aliar ao PENESB, que
até então eu era negra, tá bom e aí o que é que tem? Sou negra; mas agora
sim que eu assumi uma identidade, entendeu, realmente de negra, porque
antigamente tanto fazia, responder um questionário ou o, nunca me
importei, entendeu, é isso.
Antes disso, ela acreditava que todos eram de fato iguais perante a lei e que,
portanto, o movimento negro não tinha sentido. Mas agora sua perspectiva
é diferente:
296
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
... porque eu nunca parei para reparar as questões negras de fato, só
passei a observar isso agora. Então agora sim eu começo a compreender
a iia, mas por causa das políticas de ação afirmativa. até então eu não
sabia para que serviam, entendeu, eu achava que todo mundo tinha que
ser encarado igual, mas s nunca fomos enxergados como iguais, então
isso é que me chamou atenção. Apesar de ser negra, eno eu achava
que era todo mundo igual e que não precisava, agora sim que, lendo, é
que eu começo a perceber a diferença de tratamento que antes eu não
parava para observar.
A aluna se mostrava favorável à política de cotas para ingresso dos negros no
ensino superior público, mas acredita que a implantação desta política deve ser
feita com cuidado. Isto porque os negros que acessam a universidade precisam
de apoio para permanecer lá e também porque é necessário garantir que estes
alunos não serão ‘rechaçados” pelos demais.
A última recomendação da aluna provavelmente se relaciona com sua própria
experiência. Afirmou que suas colegas de turma eram muito críticas em relação
ao projeto em que se encontrava inserida na época:
Eles acharam excludente. – ‘Ah! Por que só para negros, tem que fazer para
todo mundo, isso é uma bobeira tinha que todo mundo participar, ser igual
para todos’. Eu falei ‘bem se vocês querem participar de fato, sem ser por
causa da bolsa podem ir lá, vai entrar em uma pesquisa, vai procurar
algum tema de estudo’. Isso ninguém se prontificou, mas quando fala em
dar bolsa sim, todos querem participar, acham injusto ser só para negros,
mas ninguém quer estudar a questão negra....
AlunA 2 - Curso de enfermAgem
A aluna iniciou sua entrevista relatando que até o início do projeto não havia
comprado nenhum dos livros necessários à sua formação acadêmica. Somente
começou a comprá-los quando passou a receber sua bolsa.
No momento da entrevista essa aluna não demonstrou um comprometimento
maior com a questão racial. Relata que o projeto a fez “...refletir mais sobre
o negro e a representatividade dele na sociedade.” No entanto, sua fala não
apontou para o estabelecimento de uma relação identitária com a negritude.
Acreditava que a política de cotas constituia uma tentativa para alterar a
situação atual, na qual os brancos são mais “ricos” do que os negros. Neste
sentido é favorável á política de cotas, mas ressalvou que esta deve ser “uma
medida emergencial”, pois:
297
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
Você tem que melhorar a escola pública de ensino fundamental e médio
para ... eu acho que a maioria da população que estuda em escola pública
é de origem negra. Se você melhorar a escola, a ponto de competir com as
escolas particulares, com certeza você vai ter mais negros nas universidades
sem precisar das cotas, mas enquanto isso não acontecer... eu acho uma
situação emergencial.
No que tange a forma como seus colegas da UFF avaliavam a ação afirmativa,
a aluna disse que somente discutia a questão com os universitários que lhe
eram mais próximos. Mesmo entre estes, existem aqueles que “têm até uma
visão estranha achando que é um absurdo dar cotas para negros. E os brancos
pobres?”
Essa bolsista informou que o costumava responder a estes questionamentos,
mas ficava pensando: “... reflito sobre toda a trajetória do negro excluído até
hoje”.
A
luno 3 – Curso de PedAgogiA
O aluno de pedagogia afirmou que se não estivesse participando do projeto
do PENESB talvez ainda conseguisse se manter na universidade, mas a sua
formação sofreria muito, ou melhor, ficaria comprometida academicamente,
pois lhe faltaria dinheiro para cópias textos e/ou material bibliografico, livros,
entre outros. Além disso, afirmou que não poderia ter participado de nenhum
congresso e/ou seminário acadêmico a que teve acesso por meio direito e
indireto do projeto do PENESB. Ressaltou ainda que a orientação que recebeu
foi o “amparo” para que não ele ficasse na graduação somente de forma
figurativa. Assim, acentua a importância do auxílio financeiro ao lado do
auxílio intelectual. Fez neste ponto uma reflexão bastante interessante:
... eno as pessoas que iam fazer a entrevista elas iam lá pro PENESB, e elas
ficavam esperando, aguardando. Eno elas batiam um papo com a gente e
falavam, então eu fiquei assim, mal quando eu vi que R$ 250,00 reais era o que
ia dizer se uma pessoa ia terminar ou não a faculdade, você coloca o que são
R$ 250,00, uma mixaria, você vai num mercado e o consegue fazer uma compra
de mês com R$ 250,00. Mas é o que diz se uma pessoa vai estar no próximo
período na faculdade ou não, e eu vi isso, você via isso, então eu fiquei muito
mal, você coma a ouvir os casos, a ouvir as hisrias de cada um, aí vo vai
ver o quanto que esse tipo de ação social ela é importante na vida da pessoa e
você vê também que essa ão social ela não está sendo dada de graça como a
maioria das pessoas pensa, ela esta sendo aplicada porque ao longo da vida, você
teve uma série de ações sociais que foram ausentes, que não estiveram ali.
298
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
Este aluno também fez uma reflexão sobre a distribuição racial, por curso,
na UFF, para concluir sobre a necessidade da política de cotas para ingresso
na universidade:
... uma pessoa quando vai entrar na faculdade muita das vezes ela não entra
para o que quer fazer, ela entra para o que é mais fácil pro que ela pode
fazer, por exemplo, no curso de pedagogia e serviço social, arquivologia, são
os cursos que têm o maior número de negros na UFF. Medicina, quase não
tem, odontologia, é raríssimo, biologia são poucos, os cursos das áreas de
exatas, é um número bem menor. Eu fui fiscal do vestibular [de 2003], então
no prédio que eu fiquei só iam fazer prova as pessoas de odontologia... uma
coisa que me chamou atenção é que todas as salas, num prédio do tamanho
desse estavam com uma media de uns 20 a 30 alunos fazendo prova e não
tinha um negro, aí eu fiquei me perguntando, não é possível, será que não
tem ninguém? Não é possível, será que todo negro quer fazer serviço social
quer fazer pedagogia, quer fazer letras, ninguém quer ser dentista, nem
fazer medicina?
Este aluno, que nasceu e cresceu em Angra do Reis-RJ, participou desde os
treze anos de idade de um grupo de teatro ligado a movimentos sociais locais.
Por isso teve de alguma forma contato com a questão racial no Brasil, pois
este tema era um dos trabalhados pelo grupo. Assim, já havia discutido a ação
afirmativa, não somente para negros mas também para índios. Ao participar
do projeto, porém, ganhou os elementos teóricos necessários para aprofundar
seus conhecimentos nesta área:
... então a minha visão eu digo que mudou; ela ficou mais acadêmica, eu
posso dizer assim, você tem o senso comum e tem a linguagem acadêmica,
então eu passei do senso comum para a linguagem da academia, aquela
linguagem formal que você conhece nos estudos, você tem acesso a livros
que tratam do assunto.
Antes do projeto, ele teve que trancar a faculdade por duas vezes, devido a
necessidade de trabalhar:
... você tem aquela pressão, você pensa que não, mas quando você fala que
está estudando, as pessoas sempre cobram, mas você não trabalha? Mas
mesmo você não tendo aquela pressão direta você se sente mal, poxa estou
dando o maior prejuízo para o pessoal da família e tal, só estou gastando,
gastando, então eu parei a faculdade por causa disso, se eu tivesse acesso a
esse tipo de política [ação afirmativa para permanência] eu teria terminado
a faculdade, não sei estaria até num mestrado, talvez, então eu vejo que
realmente dá uma ajuda, uma ajuda grande.
No que tange à relação com a turma, o aluno afirmou que desde o início de
sua graduação sofreu preconceito racial e também preconceito de gênero por
299
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
ser um homem cursando pedagogia. Com relação ao projeto, afirmou que o
mesmo gerou muitas polêmicas entre os alunos e também entre os professores.
Acredita que muita desinformação na UFF e que mesmo muitos professores
desconhecem o projeto e ele é sempre instado a falar sobre o mesmo. Segundo
esse ex-bolsista, em várias disciplinas que cursou os professores diziam não
entender o projeto ou o criticavam:
... isso já aconteceu comigo numa aula de Antropologia, que as
pessoas questionaram, você ganha R$ 250,00 de bolsa só pra estudar?
Você o faz mais nada, você não trabalha, é pra estudar? Ah!
Eu quero entrar numa bocada dessa também, sabe aquele tipo meio
irônico. Tipo assim, você esta ali, mas esta ganhando meio no mole!
... você percebe a visão de professores que não concordam com isso
aqui. Nessa faculdade eu já ouvi muitos professores que acham que
é besteira que acham que todo mundo é igual, que todo mundo tem
o mesmo direito, ai você cai no senso comum dos direitos iguais na
constituição...
O aluno informou que nem sempre rebatia as criticas. Segundo ele, houve
pessoas com quem foi possível conversar, mas com outras não é possível dado ao
elevado grau de intransigência. Com estas, ele afirmou que a discussão acabava
em problemas e ele tendia a ficar “chateado”.
Este mesmo aluno se mostrou preparado para as discussões acerca da ação
afirmativa e estabeleceu uma rigorosa crítica a ideologia do mérito e suas
derivações. Sabe que esta ideologia aponta que a culpa pelo não sucesso de um
indivíduo negro é do próprio individuo e não o produto de uma história de
discriminações raciais e desvantagens sócio-econômicas.
Esse ex-bolsista declarou ser, na época, professor de um pré-vestibular
comunirio, conhecido como PVNC, voltado para pessoas negras e carentes,
oriundas do ensino público e que não podiam pagar um p-vestibular
privado. Acreditava que os alunos dos PVNCs “já m com a auto-estima
completamente baixa”. Mas tentava dar a estes alunos estímulos para que
chegassem a universidade como ele próprio havia chegado. Ele era favorável
a política de cotas para ingresso de negros na universidade pública, mas
insistiu e/ou repetiu o mesmo argumento de outros bolsistas do PENESB
que foram entrevistados por nós: o problema da permanência.
Eu te pergunto: e o vínculo e a permanência do aluno, como que ele se
mantém dentro? Porque o entrar na faculdade, por incrível que pareça, não
é o mais difícil, mais difícil é você ficar, você tem todos os gastos, você tem
gastos com passagem, com alimentação, compra de livro, tudo aquilo que
lhe é cobrado, então se você põem a pessoa ali sem dar nenhuma estrutura
300
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
para ela estar estudando, ter acesso a material, poder comprar livro, participar
dos congressos, seminários, você só resolve um dado estatístico.
AlunA 4– Curso de CiênCiAs soCiAis
Esta aluna afirmou que somente se manteve na UFF com a bolsa de
monitoria que obteve no seu segundo semestre e, ao fim desta, com a bolsa
que conseguiu no PENESB. Ela quase desistiu da graduação e, segundo disse,
somente não chegou a este ponto por conta do projeto de ação afirmativa do
PENESB. Mais do que isso, conforme essa aluna, o projeto possibilitou-lhe
conhecer “pessoas que tem a vida parecida com a sua e que têm as mesmas
necessidades”. Ela também afirmou ter passado por momentos muito difíceis
na sua graduação e concluiu que se não fosse a bolsa: “eu não teria como vir
para UFF, não teria como tirar xerox, não estaria fazendo curso de inglês,
não teria a mínima possibilidade de estar fazendo isso”, ou seja, estudando
normalmente, com as condições mínimas necessárias para o bom desempenho
acadêmico.
Ela também afirmou que a relação com os outros bolsistas é importante
como espo/momento fundamental para “refletir com outras pessoas a
questão da discriminação racial, da inserção do negro na sociedade, várias
coisas que estão dentro desse cotidiano nosso”. Segundo a aluna, essas novas
relações a “animaram”. No entanto, estava, naquela época, em uma nova
fase, pois cursava o último período de sua graduação e o sabia o que iria
fazer após a formatura.
No que tange à questão da política de cotas e da política de ação afirmativa,
ela tinha alguma não do assunto porque havia estudado em um pré-
vestibular para negros e carentes. Contudo, aprofundou e compreendeu mais
significativamente seus conhecimentos sobre as relações raciais brasileiras no
projeto do PENESB. Segundo essa nossa ex-bolsista, ela rebatia com firmeza
muitos dos argumentos mais comuns que eram, e ainda são, levantados pelo
senso comum, e mesmo pela mídia, contra a política de cotas para os negros
terem acesso ao ensino público superior brasileiro.
Ela reconhecia que também é necessário melhorar a qualidade do ensino
fundamental e médio, mas em função da participação do projeto do PENESB,
entre outros estudos e pesquisas acadêmicas, refletiu e concluiu que isso não
ocorrerá “de um ano pro outro” e que os negros “não podem esperar mais
tempo”.
301
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
Com relação à sua turma, a aluna afirmou que nenhum aluno se manifestou
“explicitamente de forma que desvalorizasse o projeto do PENESB ou a
sua participação neste. No entanto acreditava que provavelmente existiam
muitos universitários da UFF contrários a esse projeto de ação afirmativa de
permanência para negros nessa universidade.
A
luno 5- Curso de direito
O aluno iniciou a entrevista apontando a importância material do
projeto para sua manutenção no curso. Sua família residia no Estado
da Bahia e, como seus pais o pobres, não podiam contribuir com sua
manutenção em Niterói. Assim, a bolsa de estudo que recebia do projeto
de permanência do PENESB foi fundamental para a sua permanência no
estado do Rio de Janeiro e, conseqüentemente, na UFF. Além de oferecer
condições materiais de existência para esse ex-bolsista, o projeto foi
fundamental para a sua formão acadêmica, visto que, segundo o próprio
aluno, teve a possibilidade de se atualizar”, ou seja, de ir a congressos e
semirios, bem como comprar livros do curso de direito, que geralmente
o cassimos. O aluno lembrou ainda o curso de redão oferecido pelo
projeto de permanência, como outro instrumento fundamental para que ele
pudesse escrever seus projetos e textos, ou seja, melhorasse a sua formação
acadêmica. Não bastasse isso, o projeto lhe possibilitou procurar aprender
sobre o tema das relações raciais no Brasil e sobre as políticas públicas de
ão afirmativa, o somente nas reuniões promovidas pelo projeto, mas
também conversando com os professores conhecedores do assunto e/ou
com os quais ele tinha uma certa proximidade.
Segundo esse ex-bolsista, o “suporte” dado pelo projeto do PENESB tem
mais sentido de ação afirmativa que uma política de cotas isolada como a
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Para ele, “se você tem
uma política de cota, você tem que ter por trás dela uma ação afirmativa para
permanência.”
Sem esta ação afirmativa de permanência,
... as pessoas entram na faculdade e não têm condições de estudar, não
têm condições de comprar um livro, não têm condições de ler um livro,
um texto em inglês, então, essa ação não tem função. Então, entendo que
a ação afirmativa é uma questão genérica, ou seja, muito mais macro do
302
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
que a política de cotas. E a política de cota é válida se e somente se estiver
atrelada a essa ação afirmativa [de permanência].
No que tange à sua turma, afirmou que estava todo o tempo levando-a a
pensar sobre as políticas públicas de ação afirmativa, discutindo a questão com
os seus pares universitários do curso de origem, do ponto de vista dos princípios
do Direito e buscando convencer o maior número possível de alunos acerca
da importância da ação afirmativa para a superação das desigualdades raciais,
de gênero, entre outras.
Esse ex-bolsista nos informou ainda que não tinha maiores informações
sobre o conceito e a importância de políticas de ação afirmativa antes de
ingressar no projeto. Tudo o que sabia se restringia ao que ouvira na televisão
acerca do caso das cotas na UERJ. Afirmou que sempre foi a favor das cotas
para os negros no ensino público superior brasileiro, mas que após a entrada
no projeto do PENESB de aprofundar seus conhecimentos. Afirmou
ainda que, como advogado, poderá defender a ação afirmativa em juízo e por
isso precisava pesquisar e estudar muito para ter argumentos consistentes e
fundamentados legalmente para defender juridicamente as políticas de ação
afirmativa no Brasil.
A
lunA 6- Curso de HistóriA
Em sua entrevista essa aluna apontou ganhos materiais e subjetivos relativos
à sua entrada no projeto. Segundo ela, o apoio financeiro foi fundamental para
sua permanência na UFF sem necessitar trabalhar e, portanto, tendo “mais
disponibilidade tempo de estudo pelo menos pra competir com outro que
tenha a situação econômica melhor.”
Conforme essa ex-bolsista, nas discussões realizadas internamente no projeto,
acerca das relações raciais no Brasil, ela aprendeu a se conhecer e a pensar na
sua identidade racial:
... sabe, espera aí, o que está acontecendo, para quê isso? E você começa a
perguntar quem você é, como é que as coisas acontecem, eu acho que essa
questão da consciência de me relacionar com a questão racial mudou muito,
e isso tem feito eu ler mais e até me voltar pra isso.
Neste sentido, afirmou que depois da entrada no projeto não era “a
mesma pessoa”. Se sentia, após a participação no projeto de PENESB, “vestindo
303
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
a camisa” da negritude e se vendo responsável pela luta com a qual agora se
identifica. Contudo, lembrou que a questão da identidade étnica no Brasil
também é complexa:
... a queso da identidade no Brasil é muito complicada sem falar a identidade
do Brasil, a questão da raça, como é que você vai definir raça por cor? Esse é
mulato, esse é moreno, e quem pode dizer só porque tem a pele clara pode
dizer: eu sou branco, não sou descendente de africano, eu sou branco. Isto
é complicado no Brasil...
Frente a isto afirmou que a identidade é entre nós uma queso de
“consciência”. Sabia, por exemplo, que existem padrões de beleza impostos
pela sociedade e que estes padrões o são os da negritude. Segundo ela,
somente com nossa consciência podemos nos livrar desta imposão e de
outras mais.
Como ex-aluna de um pré-vestibular comunitário (PVNC), iniciou aí os
seus primeiros contatos com discuses acerca das ões afirmativas e da
queso racial no Brasil. Sua opinião era totalmente favovel à política de
cotas e, segunda a própria aluna, defendia sempre seu ponto de vista junto
à comunidade acadêmica da UFF. Acreditava que não podemos omitir
a questão do preconceito e do racismo existente na sociedade brasileira.
Assim, para ela, a implementação de uma politica afirmativa de cotas, além
de tudo, tem a vantagem de suscitar o debate no Brasil acerca das suas
relações raciais.
Mas para essa aluna, paralelamente à política de cotas deve haver uma
reforma geral “de longo prazo”, na e da educação básica brasileira, no sentido
de diminuir o abismo entre o ensino privado e o ensino público. Ela acreditava
que, enquanto esta reforma não ocorrer, não podemos “ficar de braços cruzados”,
e, portanto, a política de cotas é válida.
No que tange à relação com sua turma, afirmou que os colegas o
criticavam sua participação em um projeto de ação afirmativa, mas muitos
deles não concordavam com políticas de cotas ou de ação afirmativa. De fato
a aluna acreditava que seus colegas de curso apesar de aparentemente serem
abertos para discutir questões importantes para o destino social de milhões de
brasileiros, ainda eram bastante preconceituosos no que tange as suas relações
com os negros:
... porque na minha sala tem duas ou três pessoas negras... sem carro acho
que eu e um amigo meu. São pessoas extremamente preconceituosas,
elas dizem não ter discriminação, mas tem pessoas ali que não namorariam
304
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
comigo, entendeu: ‘– eu não sou racista, mas não namoro com negro’. Eles
têm uma visão complicada, apesar de terem uma cabeça aberta, mas eles têm
preconceitos, não só racial, mas outros também.
A aluna também apontou que por sua origem pobre e mesmo pelo fato
de ter passado toda a sua vida na Baixada Fluminense, recebeu um “choque
cultural”, ao iniciar a graduação em História. Mas superou tudo isto com
auxílio do projeto de ação afirmativa do PENESB e, também, com sua própria
vontade de aprender e se qualificar profissionalmente.
AlunA 7- Curso de engenHAriA AgríColA
A aluna inciou a entrevista relatando que antes de ser bolsista do PENESB
nunca tinha acompanhado as “visitas técnicas” que são tão freqüentes em
seu curso de graduação, pois estas demandavam recursos financeiros que não
possuía. Após a entrada no projeto, pôde fazê-lo, ante o recebimento da bolsa
de estudo do projeto. Isto seria, segundo ela, somente um exemplo de como
ela “melhorou como aluna”. Além disso, afirmou que, com a participação no
projeto do PENESB, ela teve mais estímulo para estudar, pois sabia que havia
um grupo que acreditou nela e que lhe cobrava resultados, mas também lhe
auxiliava quando ela necessitava de alguma ajuda. Segundo ela, “acho que assim
na minha vida o projeto de permanência só veio acrescentar”. De fato a aluna
relatou uma situação de crescimento de sua auto-estima e de sua motivação:
O projeto de permanência tem uma importância muito grande na minha vida,
me dá força mesmo para pensar, ‘você é capaz, você corre atrás, e correndo
atrás você chega lá’, e me faz pensar hoje em dia em ser uma boa profissional,
uma boa engenheira, oferecer boas coisas mesmo para a sociedade. Mas hoje
em dia eu penso até maior. Quem sabe, vou ser uma ministra da agricultura,
coisas maiores mesmo que eu penso.
Por outro lado, e ao contrário da maioria dos outros bolsistas, essa aluna
afirmou ser “muito leve” com relação à questão do racismo. Ela achava que
seus colegas de projeto “se sentem diminuídos” por causa do racismo. Ela sabia
que existe racismo e preconceito contra negros no Brasil, mas acreditava que o
racismo não era tão forte como seus pares no projeto do PENESB afirmavam
ser.
Antes da entrada no projeto do PENESB, nem a questão racial brasileira
nem a problemática que cerca a negritude eram discutidas por essa aluna. Ela
305
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
achava importante poder agora exercitar este debate no âmbito do projeto, mas
paradoxalmente não aprovava a existência da política de cotas
3
:
Eu acho errado. Eu acho que o negro não tem que ter uma facilidade pra
entrar na faculdade. Mesmo porque em termos de capacidade, ele não é
melhor ou pior do que ninguém. Eu entrei na faculdade pelo meu mérito, eu
agradeço muito por eu ter entrado sem cotas. Eu acho que essas pessoas que
entram dentro dessas cotas vão sofrer muito racismo dentro da universidade.
Vão escutar muito “você está aqui porque você é negro.
...eu acho que eu não preciso ficar discutindo com ninguém e falar que eu
tenho direito de estar aqui porque eu sou negra. Não é porque sou negra que
tenho direito de estar aqui. Tenho o direito de estar aqui porque eu tenho a
capacidade de estar aqui e acabou, como qualquer outra pessoa.
Assim, ela discordava de politicas de ação afirmativa para os negros terem
acesso ao ensino público superior, embora ela tenha afirmado que deveria haver
ações afirmativas nos ensinos fundamental e médio, para preparar os alunos
negros para a concorrência na hora do vestibular.
No que tange aos seus colegas do curso de origem, engenharia agrícola,
a aluna afirmou que havia uma forte resistência desses ao projeto. Segundo
ela, todos os seus pares universitários do curso de engenharia agrícola eram
contrários ao projeto do PENESB. Alguns desses universitários eram até bem
contundentes nas críticas ao projeto, chegando até a acusar o projeto de ação
afirmativa do PENESB de racista, visto que era direcionado para negros de
baixa renda:
algumas pessoas falaram que o projeto em si é um ato de racismo, tipo assim,
você está separando um determinado grupo da universidade e incentivando
esse grupo, incentivando financeiramente, incentivando mesmo dando apoio
emocional para o que você é capaz, eles acharam errado, que não deveria
ser assim, que não deveria ser com negros, mas se tem essa necessidade, a
gente tem essa necessidade dessa ajuda não é porque a gente é negro, é porque
a gente assim, é pobre e não tem condições de certas coisas, tipo assim, ter
curso de inglês para a gente participar, não porque a gente seja negro, mas
porque a gente não teve como pagar esse curso....
Essa ex-bolsista afirmou que não discutia com os colegas do seu curso de
origem sobre essas questões. Em parte porque concordava com críticas dos seus
pares universitarios, e em parte porque não achava que tais discussões poderiam
ter algum fim concreto.
3 Para uma discussão sobre as representações sobre cotas, mérito e democracia racial entre jovens negros
pobres, ver o artigo de Brandão (2004).
306
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
Aluno 8 – Curso de AdministrAção
O aluno de administração nasceu na Guiné-Bissau e veio para o Brasil
cursar a sua graduação. Foi selecionado para estudar na UFF através de um
concurso feito em seu país, organizado pela embaixada brasileira. Filho de
trabalhadores pobres, tomou a decisão de estudar no Brasil mesmo sem o
apoio financeiro dos seus pais. Inicialmente ele foi auxiliado materialmente
por um tio. Este comprou sua passagem aérea de ida para o Brasil, mas antes
do final do primeiro período em que estava estudando na UFF, esse tio teve
problemas econômico-financeiros e lhe avisou que não poderia mais ajudá-
lo. Neste momento conseguiu entrar para o projeto de ação afirmativa do
PENESB. Foi com a bolsa que recebeu desse projeto que conseguiu se manter
estudando na UFF.
O aluno nunca havia ouvido falar de cotas ou ação afirmativa antes
de participar do projeto do PENESB. Após a sua participação nesse projeto de
ação afirmativa passou a denfeder esse tipo de política pública, entre outras.
Consequentemente avaliou de forma positiva o projeto de permanência do
PENESB para universitários negros de baixa renda:
Eu estou achando que o trabalho dele [do projeto] é um trabalho
muito bom, e estou vendo e achando que é um trabalho muito
importante, porque existe o fato não aqui no Brasil, mas em
qualquer parte do mundo que é essa situação racial, e essa luta eu
acho que um dia terá um resultado.
Esse bolsistas afirmou ainda que em seu país natal não existem problemas
relacionados ao racismo contra negros, pois cerca de 95% da população é
negra. Existem lá óbvias diferenças entre ricos e pobres, mas não entre brancos
e pobres. Segundo ele, somente a “elite” consegue acesso mais fácil ao ensino
superior em Portugal, sempre com bolsas.
O aluno apesar de viver pouco tempo no Brasil, conseguia perceber
que os negros são marginalizados neste aqui. Ele afirmou que tem dificuldades
de relacionamento por ser estrangeiro, mas também ouviu de seus colegas
manifestações explícitas de racismo. Exatamente por isso afirmou que somente
possuía apenas dois amigos em seu curso de origem. Um destes é africano, como
ele, e a outra é brasileira e se preocupa muito com sua situação. Somente com
estes dois pares acadêmicos esse ex-bolsista comentava acerca de seu engajamento
no projeto de permanência.
307
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
Ao concluir a entrevista, o aluno ressaltou os benefícios que obteve ao
participar como bolsista do projeto do PENESB. Segundo ele, a bolsa que recebia
era gasta com transporte, alimentação e acesso a vários livros que não poderia
adquirir antes da participação neste projeto. Ou seja, sem essa bolsa de estudo
dificilmente esse aluno permaneceria no seu curso de graduação.
As rePercussões DA imPlAntAção Do ProJeto nA uff
A primeira repercussão diz respeito à capilarização da discussão sobre as
ações afirmativas na UFF. Na verdade, pelo menos nos cursos onde estudam
e/ou estudaram os universitários negros que estavam formalmente vinculados ao
projeto do PENESB, a questão foi discutida com maior ou menor intensidade,
quando do início das atividades do projeto.
O projeto foi implantado inicialmente com apoio somente parcial da
Reitoria da UFF, devido ao fato de que o Reitor dessa universidade, na
época da implementação do projeto do PENESB, se declarava contra a idéia
de ão afirmativa. Neste sentido, a primeira “batalha” enfrentada esteve
relacionada com a questão da acumulação de bolsas. Pretendíamos trabalhar
com alunos negros previamente classificados e selecionados como pobres”
pelos próprios Assistentes Sociais da UFF, e que, em alguns casos, já recebiam
uma bolsa institucional de R$ 180,00. Queríamos encontrar e selecionar
os mais “pobres” dentre estes. Assim, nossa idéia inicial era complementar
esta bolsa para que a mesma chegasse a R$ 250,00, o que nos possibilitaria
uma economia necessária para investimentos nas necessidades acamicas
dos alunos.
No entanto, tanto o Departamento de Assuntos Comunitários (DAC -
órgão responsável pelas bolsas para alunos pobres), quanto o próprio Reitor
se opuseram a tal possibilidade alegando que a acumulação de bolsas não era
permitida na UFF.
Nossos argumentos a esta negativa se dirigiam para três direções: a) era
necessário observar a especificidade racial e de extrema pobreza dos alunos que
receberiam a bolsa do projeto de ação afirmativa; b) a própria noção de ação
afirmativa pressupõe o tratamento diferencial de grupos ou indivíduos com
o objetivo de levá-los a uma melhor situação posterior na concorrência com
os grupos historicamente privilegiados e c) os recursos que seriam utilizados
308
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
para a “bolsa complementar” não eram oriundos da UFF, mas sim captados
em uma instituição estrangeira.
Nossos interlocutores no DAC não conheciam a perspectiva da “ação
afirmativa”. Assim, realizamos três discussões, nas quais explicamos a eles o
que é uma politica de ação afirmativa, bem como buscamos fazer com que os
Assistentes Sociais da UFF compreendessem a lógica e a necessidade da mesma.
No entanto o DAC não abriu mão de exigir o cumprimento do Regimento
Interno da UFF no que tange a bolsas. O Reitor por sua vez não fez qualquer
intervenção favorável ao projeto.
Antes de nos dirigirmos ao Conselho Universitário para solicitar uma
exceção no Regimento Interno, resolvemos recorrer à Assessoria Jurídica
(ASJUR) da UFF. Foi nesta instância que ganhamos apoio para o projeto. A
ASJUR autorizou o pagamento da bolsa complementar e assim foi possível
iniciar o projeto. Consideramos este episódio como um ganho institucional,
na medida em que conseguimos que a ASJUR se debruçasse sobre a questão
da ação afirmativa e, mais do que isto, encontrasse os argumentos jurídicos
necessários para sua justificação frente ao Regimento Interno da UFF.
Outro ganho institucional significativo se construiu na relação entre o
PENESB-UFF e a Pró-Reitoria de Assuntos Acadêmicos (PROAC). Este órgão,
desde o início do projeto deu apoio a nossas iniciativas e se dispôs a negociar
conosco.
Desta parceria obtivemos um resultados fundamental que diz respeito
à inclusão do quesito cor no questionário socioeconômico, que todos os
vestibulandos preenchem ao fazer sua inscrição para o concurso vestibular. Este
dado é absolutamente fundamental pois podemos agora mapear a demanda
para cada curso, por raça, e, além disto, verificar as performances de aprovação
via-a-vis a demanda. Embora o PENESB-UFF tenha realizado em 2003 o Censo
Étnico-Racial da UFF, que localizou o percentual de alunos negros por curso
na UFF, não tínhamos qualquer idéia acerca da relação entre a demanda e a
aprovação destes alunos.
A PROAC passou então a ser uma parceira do PENESB para a realização
de pesquisas importantes para a compreensão dos mecanismos que presidem
a entrada dos alunos negros na UFF. Para além disto, no atual momento, o
PENESB-UFF está discutindo com este órgão uma política de ação afirmativa
para o ingresso de alunos negros na UFF.
309
André Augusto Brandão / Iolanda de Oliveira
conclusão
Avaliando o conjunto das entrevistas aqui discutidas, podemos chegar a
algumas conclusões mesmo que preliminares. De início parece que para todos
os alunos-bolsistas o projeto trouxe ganhos materiais, diretamente relacionados
com a permancia destes na universidade. Todos também se referem a
ganhos na própria qualidade enquanto alunos, devido ao acesso que passaram
a ter a livros, a cópias de material bibliográfico, participação em congressos
e seminários, viagens, curso de redação, curso de inglês, entre outros. Assim,
ao que tudo indica, os alunos afirmaram que não somente lhes foi possível
continuar com o curso de graduação, mas que, além disto, puderam ter um
maior desenvolvimento acadêmico-intelectual neste.
Um outro tipo de ganho, porém, não foi apontado por todos os alunos.
Trata-se de uma aquisição mais subjetiva, voltada para a própria formação
identitária de cada um com a sua condição de negro em uma sociedade racista
como a brasileira.
Este “ganho subjetivo” apareceu nas entrevistas realizadas com alunos dos
cursos de Serviço Social, de Pedagogia, de Direito e de História. Os alunos dos
cursos de Enfermagem, de Ciências Sociais e de Engenharia não sinalizaram de
forma muito visível e definida para a questão da formação de uma identidade
negra ou da preparação para atuar contra o racismo, o que constituía um dos
objetivos propostos pelo projeto do PENESB.
Além disto, nem todos os alunos apontam para o conjunto de discussões
coordenadas pela equipe do projeto e voltadas para a questão racial no Brasil.
Não parece ser por acaso que, são exatamente os alunos de Enfermagem e de
Engenharia que nem mesmo se referem em suas entrevistas as estes momentos
de discussão e formação extra-acadêmica (enquanto que os outros alunos não
somente se referem a estas discussões como ainda apontam sua importância e
positividade). Podemos levantar a hipótese de que as discussões que realizamos,
apesar de seu caráter introdutório, envolviam temáticas muito distantes das
que estes alunos desenvolvem em seu cotidiano de graduação. Se tal hipótese
está correta, deveríamos então ter atuado de forma mais precisa e especializada
com os alunos vinculados ao projeto que não se articulam em torno de cursos
das áreas humanas, sociais e sociais aplicadas.
Por outro lado, pensamos que não foi por acaso que o único aluno, entre
todos os bolsitas do projeto do PENESB, que se posicionou contra a política de
310
Avaliação da Política de Ação Afirmativa para permanência de alunos na UFF
cotas seja da Engenharia. Em realidade é uma aluna. A leitura de sua entrevista nos
leva a perceber que ela pouco compreendeu e/ou aprendeu sobre a queso racial
brasileira nas várias discuses que realizamos. Seus argumentos contra a potica
de cotas, que visa à incluo dos negros no ensino blico superior brasileiro
rnem toda a “desinformação” que a mídia e o senso comum utilizam quando
buscam estabelecer críticas a este tipo de política de ação afirmativa. Esta mesma
aluna, apesar de ser radicalmente contra a potica de cotas, foi favovel às ações
afirmativas do tipo permancia, mas acreditava que mesmo estao deveria ser
realizada no ensino superior, mas sim no ensino fundamental e dio.
Este momento de avaliação é fundamental para que possamos ajustar nossas
estratégias para ões futuras. Certamente o fato do projeto ter sido redigido,
executado e coordenado por docentes exclusivamente ligados a cursos da área social
e social aplicada, levou a uma situação na qual não consegamos perceber que a
gica discursiva com a qual operávamos não era passível de fácil apreensão pelos
alunos que estavam imersos em outra realidade acadêmica.
Por outro lado, como verificamos, os ganhos institucionais foram significativos,
não somente porque disseminamos a discussão acerca da ão afirmativa no interior
da UFF, mas também porque conseguimos aliados internos fundamentais para a
aprovação de uma política de reserva de vagas no vestibular dessa universidade.
referênciAs BiBliográficAs
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1999.
BRANDÃO, André; TEIXEIRA, Moema De Poli (orgs).
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UFF e da UFMT. Niterói, EDUFF, 2003.
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TEIXEIRA, Moema De Poli.
Negros na universidade. Rio de Janeiro, Pallas:
2003.
311
AÇÕES AFIRMATIVAS E
COMBATE AO RACISMO
NA AMÉRICA LATINA
Parte 4
313
Do mArco Hisrico DAs PolíticAs PúBlicAs
De Ação AfirmAtivA
Carlos Moore Wedderburn
gênese DAs PolíticAs De Ações AfirmAtivAs e
questões Afins
i
ntroDução
As polêmicas sobre as políticas públicas de ação afirmativa na América
Latina remetem-se apenas ao fato dessas terem sido articuladas e implementadas,
de maneira coerente e global nos EUA nos anos 60, como conseqüência da
longa luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. O debate, portanto,
desconsidera os parâmetros históricos fundantes da adoção dessas políticas,
assim encobrindo o fato de que esse tipo de política corretiva surgiu das
dinâmicas do processo que conduziu à independência dos países da África, da
Ásia, do Caribe e do Pacífico Sul, antes colonizados pela Europa, popularizando-
se após a Segunda Guerra Mundial.
Praticamente todos os pses do Terceiro Mundo com exceção dos da América
Latina – em um dado momento, aplicaram políticas públicas de ação afirmativa
para resolver graves problemas internos decorrentes da marginalização seletiva do
segmento dominado e de privigios herdados do passado colonial ou milenar.
Ultimamente, a África do Sul, instituiu a Employment Equity Act (1998), com o
intuito de resolver a exclusão da população de pele negra resultante do sistema do
apartheid. Em 1999, a Nova Zelândia introduziu um sistema de ações afirmativas
em favor do povo auctone Maori e na Austrália se discutem atualmente medidas
análogas em favor da população aborígine. Esse tipo de política está em plena
expansão no mundo inteiro, abarcando gênero, etnia, raça, sexualidade e outras
dimensões que provocam disparidades e discriminações na sociedade.
314
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
B.r. AmBeDkAr e o nAscimento DA estrAtÉgiA De Ações
AfirmAtivAs
O conceito de ação afirmativa originou-se na Índia imediatamente após a
Primeira Guerra Mundial, ou seja, bem antes da própria independência deste
país. Em 1919, Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-1956), jurista, economista e
historiador, membro da casta “intocável” Mahar propôs, pela primeira vez na
história, e em pleno período colonial britânico, a “representação diferenciada”
dos segmentos populacionais designados e considerados como inferiores.
A vida política e a obra teórica de B.R. Ambedkar sempre estiveram voltadas
para a luta pelo fim do regime de castas (OMVEDT, 1974; RODRIGUES,
2002; AGARWAL, 1991; MOWLI, 1990; CHAVAN, 2001). Para ele, quebrar
os privilégios historicamente acumulados pelas “castas superiores”, significava
instituir políticas públicas diferenciadas e constitucionalmente protegidas
em favor da igualdade para todos os segmentos sociais.
1
Cabe aqui uma
contextualização histórica.
O sistema de castas indiano é uma milenar estrutura de opressão, embutida
nos conceitos religiosos do hinduísmo. Esse sistema se articula em torno de
conceitos de “superioridade” e “inferioridade”, de “pureza” e de “impureza”,
que envolvem não somente critérios religiosos, mas também sócio-raciais, tanto
que, até hoje, as castas “superiores” (savarnas) se definem em relação a uma
origem ariana.
Historicamente, o sistema de castas que impera na Índia se articula em
torno de quatro castas formais, das quais as três primeiras brahmim, katriya
e vishiya são consideradas superiores” e a quarta shudra inferior,
pois, segundo o hinduísmo, foi criada por Deus para servir às três castas
superiores. Pom, ao longo do tempo esse sistema se tornou mais complexo
cerca de 000 castas - com a crião de múltiplas castas subalternas fora
do sistema formal, designadas “intocáveis(dalits e advasis). Essas, conforme
a religião hindu, por serem “poluídas devem obediência e sujeição a todas
as demais castas, inclusive a casta inferior, shudra. Por fim, há ainda as
populações tribais, conhecidas como “tribos estigmatizadas”, que vivem
fora do sistema de castas, relegadas ao último esgio de inferioridade. É
importante ressaltar que as populações classificadas como inferiores,
1 Ver documentos de Ambedkar, em Rodrigues (2002).
315
Carlos Moore Wedderburn
“intocáveis ou estigmatizadas pertencem o povo dradio, população
autóctone de pele preta.
O termo casta, o que dá nome a todo o sistema, diz-se varna em sânscrito,
dialeto ariano, e se traduz literalmente por “cor da pele”. Assim, nos defrontamos
com um sistema de opressão sócio-racial-religioso de natureza pigmentocrática,
baseado em uma extraordiria atomização da sociedade em segmentos
hierárquicos hermeticamente fechados e desiguais. Este complexo sistema é
protegido por um vasto arcabouço teórico-religioso e sócio-racial, articulado a
partir da religião hinduísta.
Visando a romper esse sistema milenar, B.R. Ambedkar apresentou ao
Southborough Committee on Franchise, órgão colonial britânico, a “Demanda
pela representão eleitoral diferenciada em favor das classes oprimidas” (Plea for
separate electorate for the depressed classes), documento fundador das políticas
públicas de ação afirmativa (RODRIGUES, 2002).
2
Este ato, inclusive, torna-se
um dos principais motivos dos profundos embates ideológicos que eclodiram
entre os nacionalistas indianos (CHAVAN, 2001, cap. IX; RODRIGUES, 2002,
cap. XXI; AGARWAL, 1991) gerando uma exacerbada polêmica na Índia que
permanece até hoje.
Os protagonistas emblemáticos do primeiro conflito histórico em torno das
ações afirmativas foram Mahatma Mohandas Ghandi (1869-1948), promotor da
luta antibritânica, pela indepenncia e pertencente à “casta superior” brahmin
–, e o pensador e militante nacionalista dravídio, B. R. Ambedkar, dirigente
dos dalits e adivasis, e verdadeiro genitor histórico do conceito e prática das
ações afirmativas (MOWLI, 1990).
Ghandi se opôs de maneira contumaz à noção de ação afirmativa (naquele
momento denominada de “reservas”) e insistiu que qualquer tentativa de mudar
o status quo entre as castas mediante mecanismos de ação voluntaristas dividiria
o país, levaria à guerra civil entre as castas superiores e as inferiores e causaria
o massacre destas últimas. Sustentou que uma “mudança no coração” das
castas superiores, e o amor ao próximo fundado no Hinduismo, transformariam
gradativamente o sistema de castas. Conseqüentemente, ele subordinava a
libertação das “castas inferiores” à própria independência da Índia e ameaçou
suicidar-se em público caso a Grã-Bretanha adotasse o mecanismo de ações
afirmativas em favor dos “intocáveis”.
2 Especialmente capítulo XXXIII e página 545.
316
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
Ambedkar argumentou que seria impossível desmantelar o sistema de castas
pigmentocrático sem a adoção de medidas específicas que favorecessem a
ascensão e mobilidade social dos três segmentos sociais oprimidos, constituídos
por dravídios (OMVEDT, 1974; RODRIGUES, 2002: capítulos VI, XX, XXI, XXV
e XXVI).
Representando cerca de 60% da população, estes estavam concentrados
nas castas “inferior” e dos “intocáveis” e nas chamadas “tribos estigmatizadas”
(scheduled tribes).
Os dirigentes nacionalistas, reunidos no Partido do Congresso, precisavam
do apoio da totalidade dos indianos para alcançar a independência da nação, o
que viria a ocorrer em 1947. Assim, viram-se obrigados a ceder a várias exigências
de Ambedkar, que reivindicava a inclusão de instrumentos de ação afirmativa
na constituição da Índia independente.
Os nacionalistas foram então compelidos a delegar ao próprio dirigente dalit
a tarefa de redigir a parte da constituição (1950) referente a estas questões. Os
artigos 16 e 17 da nova Carta indiana proibiam a discriminação com base na
“raça, casta e descendência”; aboliam a “intocabilidade”; e instituíam um sistema
de ações afirmativas, chamado de “Reservas” ou “Representação Seletiva”, nas
assembléias legislativas, na administração pública e na rede de ensino. Tais
políticas, fortemente combatidas pelas “castas superiores”, apesar de modestas,
foram capazes de afetar cerca de 60% da população da Índia, congregados em
um total de 3.743 castas.
Não obstante as resistências, o Estado federal tentou reforçar a política de
“Reservas” em 1980 e, dez anos mais tarde, um novo acréscimo elevou para
27,5% as cotas de participação (Comissão Mandal). As medidas provocaram
protestos fanáticos e uma onda de auto-imolações nas castas superiores”,
lideradas pelo partido de ultra-direita -Bharatiya Janata Party (BJP) –, a mais
extremista e racista das formações políticas indianas. Após décadas de ofensivas
destinadas a derrubar as políticas de Ação Afirmativa e retirá-las da constituição,
em 2003, já no poder, o BJP reclamou a implantação de cotas em favor... das
“castas superiores”.
Mais de cinenta anos após a independência da Índia, e apesar das
disposições constitucionais, a obstrução ativa das castas superiores
continua a frear os avanços dos segmentos oprimidos. Essa contra-reação
faz com que os 650 milhões de dravídios continuem vegetando numa
marginalização milenar e sistêmica. O drama dos shudras, dalits, adivasis e
das tribos estigmatizadas é uma das mais afrontosas situações de opreso
cio-racial no mundo inteiro, por serem considerados praticamente como
317
Carlos Moore Wedderburn
seres sub-humanos, com o aval da religião Hinduísta, e submetidos às mais
hediondas práticas de discriminação racista. Conseqüentemente, as lutas
da casta inferior, das castas intocáveis” e das “tribos estigmatizadas”
têm se acirrado nos últimos anos, constituindo-se atualmente em um
verdadeiro movimento nacional de libertão popular. Hoje, é impossível
conceber a emancipação dos dravídios na Índia sem a reforma, ampliação
e aprofundamento das políticas de ação afirmativa.
As PolíticAs De Ação AfirmAtivA ÉtnicAs e De “inDigenizAção
As políticas de ação afirmativa se integraram à consciência mundial a
partir das lutas pela descolonização, após a Segunda Grande Guerra, quando
foram aplicadas sob o rótulo de “indigenização” ou “nativização”. Com efeito,
a partir da independência da Índia e do Paquistão (1947), e da Indonésia
(1949), os outros países africanos e asiáticos tiveram que se defrontar com o
urgente problema de substituir, em tempo relativamente curto, os europeus
que, sob o regime colonial, monopolizavam todos os postos de comando da
sociedade, inclusive na rede de ensino.
A partir da independência de Gana (1957) e da Gui(1958), primeiros
países africanos a proclamarem a sua soberania, disseminou-se no continente
uma estratégia de poticas blicas de ão Afirmativa voltadas para a
formação acelerada de quadros autóctones. Para isto, foi necessário pôr em
prática um mecanismo oficial denominado na época de “indigenizão
ou “nativização”. Este consistia na imposição, mediante decreto, de cotas e
outras medidas específicas destinadas a garantir opido acesso dos nativos
às funções até então monopolizadas pelos europeus.
A democratização da sociedade, atras da eliminação dos privigios
criados e mantidos pelo regime colonial, foi eficaz na criação rápida de
quadros nativos capazes de governar essas sociedades, a ponto de fazer com
que praticamente todos os países africanos e asiáticos adotassem medidas
similares. Mais tarde, os países do Caribe e do Pacífico Sul, que se tornaram
independentes nas décadas de 60 e 70, também se valeram dessa estratégia
de empoderamento.
Na fase após a independência, as políticas de ação afirmativa igualmente
serviram para resolver problemas de desigualdades internas, historicamente
318
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
herdadas, pelos países recém independentes. A Masia constitui um caso espefico
nesse sentido, por se tratar de uma experncia de ação afirmativa desenvolvida
no marco geral da descolonização, mas focada nas históricas desigualdades
interétnicas do país. Embora se trate de um caso emblemático a ser observado,
guarda similaridades com o contexto latino-americano, onde os privilégios e
desigualdades históricas giram em torno do pertencimento étnico ou racial.
A
s PolíticAs ÉtnicAs De Ação AfirmAtivA nA mAlásiA (BumiPutrA)
Independente em 1957, a Malásia aplicou uma rigorosa potica de Ações
Afirmativas, a partir de 1971, destinada a reverter a dominação exercida no país
pela minoria chinesa (25%), em detrimento da majoritária etnia malaia (65%).
Desse modo, o governo malaio pôs em prática um complexo sistema de cotas
denominado Leis de Bumiputra no contexto da Nova Potica Econômica (NEP),
(BIN MOHAMAD, 1970).
A enriquecida minoria chinesa, outrora favorecida pela colonização
britânica, no momento da independência, controlava 70% das riquezas do país,
dominava a administração pública e a rede de ensino nacional. Como resultado
da intervenção do Estado, este segmento perdeu seus privilégios num espaço
de três décadas, êxito que motivou o governo a, em 2003, pôr fim às cotas do
Bumiputra em favor da etnia malaia.
A
s PolíticAs PúBlicAs De Ação AfirmAtivA nos estADos uniDos
Os Estados Unidos se converteram no primeiro país do “Primeiro Mundo”
a incorporar à sua legislação e prática social mecanismos surgidos do contexto
geral de descolonização do mundo afro-asiático, no intuito de emancipar
um segmento subalternizado. Em conseqüência da luta pelos direitos civis,
desencadeada nos anos 50, pela comunidade afro-norte-americana, o Estado
Federal incorporou o conceito de políticas públicas de Ações Afirmativas nos
anos 60.
A luta dos negros norte-americanos pelos Direitos Civis teve como pano
de fundo a Guerra Fria entre os dois blocos ideológicos mundiais – a então
União Sovtica e os Estados Unidos e revelou ao mundo as terríveis
desigualdades e o racismo que corroíam a democracia. Essa complexa
interação, entre o contexto internacional e a luta orgânica desencadeada pelos
afro-norte-americanos, fez com que o Estado se mostrasse menos omisso
em relão à mais flagrante das contradições que afligiam e fragilizavam o
sistema democtico estadunidense a queso racial. A oficialização das
políticas de ão afirmativa aprofundou a democracia norte-americana, que
319
Carlos Moore Wedderburn
desde a Segunda Guerra Mundial se erigira em modelo universal. Por outro
lado, representou a retomada da tradição do estado de bem-estar social,
implantado sob a administração de Theodore Roosevelt, nos anos 30 e 40,
com as políticas do New Deal.
As políticas blicas de ação afirmativa agregaram à sociedade norte-
americana benefícios sociais e políticos das mais diversas ordens. Entretanto,
menos conhecido é o fato de que graças a elas se abriram espaços inéditos para
a obtenção de direitos, constitucionalmente protegidos, em favor de todos
os outros setores que se encontravam alijados de uma participação efetiva no
processo democrático naquela nação.
Da luta acirrada, iniciada pelos afro-norte-americanos, pela efetivação
dos direitos civis surgiram novas idéias e propostas que permitiram o auge
das reivindicações de todos os segmentos discriminados dentro do país: os
nativos norte-americanos (chamados de índios); as mulheres; os idosos; os
deficientes físicos; os homossexuais e transexuais; os imigrantes do “Terceiro
Mundo” (principalmente latino-americanos e asiáticos).
A experncia afro-norte-americana reforçou, tanto nos Estados Unidos como
no resto do “Primeiro Mundo”, a luta das mulheres pela igualdade em todas as
esferas da vida pública e privada. Por sua vez, a luta específica das mulheres contra
as desigualdades e a opressão de gênero teve como conseqüência a mundialização
do conceito das políticas públicas de ação afirmativa e, particularmente, do
mecanismo de cotas como um dos seus principais instrumentos. Assim, a partir
dos anos 70, o conceito de “cotas corretivas” incorporou-se ao arsenal de luta
feminista na Europa, com implicações para o resto do mundo.
A
s PolítiCAs de Ação AfirmAtivA de gênero, ou PolítiCA de
PAridAde
A Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), auspiciada
pelas Nações Unidas, propugnou pela primeira vez a adoção de cotas para
mulheres em escala mundial para todos os cargos eletivos e funções na sociedade.
Esse fórum internacional determinou que os países reservassem para as mulheres
um mínimo de 30% dos cargos do governo, com prazo de cumprimento até
2003, a fim de atingir a paridade entre homens e mulheres até 2005.
320
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
Como conseqüência dos compromissos assumidos em Beijing, os governos
do mundo iniciaram políticas de cotas em favor das mulheres tanto nos partidos
como no parlamento: Índia (20-30%); Namíbia (30%); Coréia do Norte (20%);
Bangladesh (10%); Uganda (14%); Tanzânia (13%); Taiwan (10%); Burkina Fasso
(6%); Nepal (5%) etc.
Nos anos 90, a Comunidade Européia incorporou o conceito de “paridade
representativa” das mulheres nos postos de comando da sociedade através do
mecanismo das cotas. Em junho de 2000, a França converteu-se no primeiro
país europeu a promulgar uma lei pela qual se estabelece a obrigatoriedade para
os partidos políticos de respeitar uma cota de 50% nas candidaturas femininas
em todos os pleitos eleitorais.
Na França, a Lei da Paridade representou uma mudança profunda do país,
pioneiro das estruturas republicanas de caráter universalista (LEI 99-596,
LAVAU, 2004; OBSERVATORIO, 2004). Considerando tal lógica universalista,
surgida ainda na Revolução Francesa, esse país poderia ter sido o último a ceder
a um conceito novo, que consiste em proporcionar tratamento diferencial aos
que historicamente foram tratados de maneira desigual.
A lei francesa da paridade foi o produto de uma longa e ferrenha luta das
organizações feministas, em um país onde as mulheres somente conquistaram o
direito ao voto após a Segunda Guerra Mundial e cujo parlamento, até o início
dos anos 90, era composto por 90% de deputados e senadores do sexo masculino
(LAVAU, 2004). Ultimamente, o Parlamento francês constituiu oficialmente um
“Observatório da Paridade”, órgão composto de personalidades representativas
da sociedade civil, incumbido de fazer cumprir a lei e formular recomendações
às instâncias executivas do Estado.
A Itália representa um caso
sui generis. Uma lei de paridade entre homens e
mulheres foi adotada em 1993 e, dois anos depois, derrubada sob a influência
de uma forte mobilização parlamentar ultraconservadora. O argumento
contrário à lei afirmava a inconstitucionalidade das cotas de gênero, por ferir os
princípios republicanos universalistas e neutros, consagrados na Constituição.
Ironicamente, a vitória dessa contra-ofensiva ultraconservadora foi possibilitada
pela escassa representação feminina no parlamento italiano da época.
Respeitadas as devidas proporções e especificidades, é significativo que os
argumentos utilizados na Itália para derrubar a paridade de gênero viriam a
ser utilizado em outras partes do mundo em circunstanciais análogas. São eles:
uma suposta “agressão” e “discriminação” contra os homens; um pretenso
321
Carlos Moore Wedderburn
“sexismo às avessas”; o desrespeito ao “caráter neutro e universalista” da ordem
constitucional; o atentado ao “mérito” e à “competência”; e, por fim, a suposta
ruptura da “coexistência harmônica” que se supunha existir entre homens e
mulheres, com a conseqüente ameaça à “coesão nacional”.
A experiência italiana ilustra pelo menos dois aspectos essenciais da questão:
a) uma conquista contra um sistema de iniqüidade historicamente fundado
nunca poderá ter um caráter irreversível; e b) quando se tenta mudar o status
quo das desigualdades sociais, étnico-raciais, culturais ou de gênero, a resistência
ultraconservadora e os argumentos de contraposição buscarão legitimar-se com
base em arcabouço teórico-ideológico preexistente.
De maneira geral, o instrumento das cotas em favor das mulheres, visando
a garantir sua participação nos partidos, parlamentos e governos, tem tido uma
crescente e ampla aceitação no mundo inteiro (MEIER, 2004). É interessante
ressaltar que, segundo dados da União Inter-Parlamentar Mundial, os países da
Europa ocidental que ostentam a maior proporção de mulheres no parlamento
são precisamente aqueles onde os partidos políticos adotaram o sistema de
cotas em favor da mulher: Suécia, 42,7%; Dinamarca, 37,4%; e Noruega, 36,4%
(VIENNOT, 2004; PARLAMENTO Europeo, 2001).
Atualmente, todos os partidos filiados à Internacional Socialista
(INTERNACIONAL Socialista de Mulheres, 2004) aplicam o sistema de
cotas de gênero, variando segundo os partidos de um mínimo de 20% (Chile,
Grécia, Hungria, Israel, Marrocos, Malta) a um máximo de 30-50% (Alemanha,
Brasil, Argentina, Áustria, Botswana, Canadá, Costa do Marfim, Costa Rica,
Dinamarca, Equador, El Salvador, Espanha, Estados Unidos, e França) .
A
s CotAs de gênero nA AmériCA lAtinA
Como conseqüência de longos anos de luta das organizações feministas da
região, também na América Latina se registram avanços no que diz respeito às
ações afirmativas de gênero, na forma de cotas em favor da participação das
mulheres na vida política nacional. De acordo com análises recentes,
a aceitação que hoje existe na América Latina, no que diz respeito às cotas de
gênero é evidenciada pelas pesquisas de opinião que demonstram que 2/3 da
população considera que as cotas são, em geral, benéficas para o continente.
Da mesma forma, ficou demonstrado que a maioria da população nesta
região (57%) apóia a idéia de aumentar o número de mulheres em cargos
322
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
públicos, entendendo que isto conduziria à formação de melhores governos
(PESCHARD, 2002).
A Argentina, primeiro país latino-americano a quebrar o tabu das cotas,
aprovou a Lei de Cupos, em 1991, que previa uma cota mínima obrigatória de 30%
para as candidaturas femininas em todos os partidos políticos. Leis semelhantes
foram mais tarde adotadas em outros países com percentuais de 20% (Paraguai);
25% (Peru e Reblica Dominicana); 30% (Brasil, Bolívia, Combia, Equador,
Panamá, Venezuela e xico); e 40% (Costa Rica). Pesquisas sobre os efeitos
destes mecanismos em favor das mulheres latino-americanas apontam resultados
promissores na redução da assimetria de nero na América Latina (Idem).
A adoção de políticas de ão afirmativa de gênero tem se ampliado para outras
regiões tamm marcadas por estruturas sexistas. Este é o caso das sociedades do
mundo semítico, árabe e indiano (Afeganistão, Índia, Irã, Paquistão, Turquia, os
países árabes do norte da África e do Oriente Médio), que historicamente sempre
se mostraram refratárias à não de igualdade entre homens e mulheres. Nesses
países, as religiões predominantes, o hinduísmo e o Islã, oferecem sólidas bases
de legitimão histórica da dominação masculina (MEIER, 2004).
PolíticAs De Ação AfirmAtivA no terreno sócio-rAciAl lAtino-
AmericAno
o Contexto PolítiCo gerAl
Na América Latina, as décadas de 60 e 70 foram marcadas pela imposição
brutal de regimes militares de recorte fascista e da reabilitão da velha tradição
totalitária e antidemocrática incubada no longo período da escravidão, fantasma
que nenhum país latino-americano chegou a exorcizar. O desmantelamento
do Estado de direito pelos regimes militares, a imposão de leis de excão e a
universalizão, em pleno século XX, de algumas das práticas comuns no período
escravista (execões surias, torturas, desaparecimentos, repressão generalizada,
abafamento e censura dos meios de informação etc.) deram origem a uma luta
multiforme que, pela primeira vez desde as guerras pela independência, suscitou
um amplo movimento p-democracia em todos os setores da sociedade.
323
Carlos Moore Wedderburn
No contexto geral aludido, deu-se o auge das lutas de segmentos
historicamente oprimidos e discriminados (mulheres, indígenas,
afrodescendentes, homossexuais, entre outros.). Essas lutas se desenvolveram
em paralelo, mas o interconectadas, como parte do processo geral pela
democratização das sociedades latino-americanas e a reconquista dos direitos
confiscados pelas ditaduras militares, sustentadas pelas classes sociais mais
retrógradas.
O fato de estas últimas serem moralmente desacreditadas no seu esforço
de re-barbarizar a sociedade inteira levou à perda da sua legitimação e ao seu
desgaste. Conseqüentemente, as elites ultraconsevadoras perderam o papel de
referência moral e cultural que tinham ostentado até então para fazer valer a
sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade.
A ocorrência, no mesmo momento histórico, das lutas contra as ditaduras
militares na América Latina, das lutas dos afro-norte-americanos pelos
Direitos Civis, as lutas pela libertação nacional no continente africano,
particularmente na África do Sul e nas colônias portuguesas e, também,
pela descolonização dos países do Caribe e do Pacífico Sul, propiciou, pela
primeira vez, um clima geral favovel para um exame especificamente
cio-racial da realidade latino-americana. Através dessa brecha histórica é
que se organizaram as lutas concretas de afrodescendentes e de indígenas
na Arica Latina.
Deste contexto surgiram, tanto do lado indígena como do lado
afrodescendente, as propostas em prol da aplicação de políticas públicas de
ações afirmativas na América Latina como estratégia capaz de reverter o quadro
sócio-racial de marginalização e discriminações seculares exercidas contra esses
dois segmentos populacionais.
r
esPostAs às Ações AfirmAtivAs nA AmériCA lAtinA
Como visto antes, existe no continente uma opinião pública favorável
ao mecanismo das cotas baseadas no gênero. Contudo, encontramos uma
resistência orgânica às políticas de mesma natureza em favor dos 150 milhões
de afrodescendentes, e não menos de 130 milhões de indígenas, na América
Latina. A mera menção de cotas em favor desses dois grupos provoca uma
verdadeira cruzada contrária, vinda dos mais diversos setores da sociedade.
324
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
Cabe perguntar o porquê da diferença na aceitação de cotas para as mulheres
e cotas para afrodescendentes e indígenas. Trata-se de uma oposição às cotas
em si? Quais poderiam ser os determinantes da maior ou menor tolerância a
depender do grupo social em questão?
Embora se continue negando, a América Latina, como um todo, es imersa
em uma realidade sócio-cultural historicamente racializada, e mesmo passados
cerca de cento e oitenta anos dos processos de indepenncia, o continente o
consegue se desprender dos tenculos engendrados no ventre da escravização racial
dos povos de origem africana (SANTOS, 2001).
3
Arrasados na sua própria terra,
trazidos pela foa militar a este continente, e submetidos durante quase quatro
culos aos campos de concentração da escravatura, atualmente os afrodescendentes
na América Latina apresentam os piores índices de desenvolvimento humano do
planeta. Apesar desse quadro desolador erguem-se vozes com crescente sonoridade,
para denunciar quaisquer tímidas medidas repararias sugeridas.
Os defensores do status quo racial latino-americano concentram sua
argumentação na premissa de que a implementação de medidas étnico-raciais
seletivas resulta em rachaduras no edifício da coexistência inter-racial
harmônica, a qual supõem prevalecer na América Latina em contraposição
ao resto do mundo. Segundo estes, existiria um excepcionalismo baseado na
miscigenação que caracterizaria a realidade latino-americana. Dessa perspectiva,
a composição multicromática das populações do continente proibiria qualquer
tratamento diferenciado do fenômeno da pobreza e da marginalização.
Os adversários das ações afirmativas na rego também esgrimem o
nacionalismo para sustentar suas posições, argüindo que estes mecanismos
são uma pura “importação” da América do Norte. Na realidade, “importação”
norte-americana são os argumentos crescentemente utilizados na América Latina,
a fim de combater as políticas de Ação Afirmativa: o mérito, a preservação da
excelência acadêmica e o racismo às avessas surgiram historicamente nos Estados
Unidos, no período denominado de Revolução Reaganiana (1981-1989).
Sob a administração de Ronald Reagan se constituiu uma ampla coalizão
de interesses hegemônicos ultraconservadores, empenhada em derrubar as ações
afirmativas, conquistadas nos anos 60, assim como qualquer outra iniciativa
social de natureza democrática em favor dos segmentos sociais desfavorecidos.
A chamada Revolução Reaganiana foi o início de um grande projeto transversal,
multi-setorial, de caráter neo-imperial e hegemônico, visando a transformar a
3 Especialmente os capítulos 4 a 6.
325
Carlos Moore Wedderburn
nação americana em uma superpotência bélica planetária capaz de monopolizar
os recursos do globo sem a necessidade de temer uma oposição. Nesse contexto,
iniciado com a chegada da elite republicana ao poder, é que foram estruturadas
e lançadas, com apoio do Estado, as ofensivas em grande escala contra as
políticas de ação afirmativa. Estas, enquanto mecanismos democratizantes,
eram vistas como um obstáculo ao projeto de expansão sustentado pelo Partido
Republicano. Tais propostas conservadoras tomaram de assalto amplos setores
da sociedade, incluindo o Partido Democrata rival.
As ações afirmativas são uma barreira eficaz à progressão do racismo e das
desigualdades sociais nele alicerçadas. Por isso, derrubá-las é uma necessidade de
todo projeto conservador de sustentação de um status quo sócio-racial baseado
na dominação hegemônica de uma raça sobre outra, e da supremacia social
de uma classe sobre todas as outras. Nesse sentido, a Revolução Reaganiana se
insere na linha histórica das propostas que, no século XIX, foram defendidas
pela oligarquia escravocrata sulista. Portanto, não se trata de uma revolução,
mas de uma contra-revolução que atinge o tecido democrático norte-americano
no que ele possuía de melhor.
É essa perspectiva reaganiana que está sendo incorporada à ofensiva contra
as políticas públicas destinadas a desmantelar o racismo na América Latina.
Ou seja, sob o pretexto pseudonacionalista de combater a suposta “imposição”
de um maneirismo do grande irmão do norte”, diversos setores lançam
mão dos mais retrógrados argumentos, com o objetivo de manter intacto o
status quo sócio-racial. Mas, cabe perguntar, de que status quo sócio-racial se
trata? Qual é, na sua materialidade cotidiana, o sistema racial que impera na
América Latina? As respostas a essas questões exigem que se examine, ainda que
brevemente, a complexa problemática do sistema sócio-racial especificamente
latino-americano.
o m
odelo de relAções rACiAis lAtino-AmeriCAno e As Ações
AfirmAtivAs
A falta de um mínimo de perspectiva histórica sobre o tipo de estruturas
sócio-raciais prevalentes na América Latina tem tornado toda a discussão sobre
as ações afirmativas em mero sofisma. Até por isso, por detrás de polêmicas
recentes ocultam-se tenazes preconceitos, temores e até ódios seculares,
326
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
engendrados nas experiências recentes ou remotas da escravização racial e da
inferiorização dos povos coletivamente rotulados de negros (DAVIS, 1988;
LEWIS
, 1971; M’BOKOLO, 1995, caps. III e IV; POPOVIC, 1976).
O modelo predominante de relações raciais na América Latina é
fundamentalmente pigmentocrático e clientelista, baseado na atomização
permanente dos segmentos raciais subalternizados. Sabe-se que as estruturas
pigmentocráticas (como no Afeganistão, Índia, Irã, Oriente Médio, Paquistão e
Turquia) têm sua gênese num mundo pré-industrial, dominado pelo clientelismo
e pela hierarquização determinada pela linhagem e o conceito de nobreza. Trata-
se, portanto, de um modelo intrinsecamente refratário a qualquer demanda
étnico-racial coletiva, uma vez que estruturas sócio-raciais desse tipo carecem
de mecanismos para lidar com as demandas sociais surgidas na modernidade.
O modelo racial latino-americano satisfaz interesses individuais de
integração e de ascensão social, desde que estes não coloquem em perigo o
conjunto do sistema. A integrão e asceno se o mediante um complexo
sistema de cooptação baseado na mestiçagem biológica, vertical e unilateral
do segmento racial subalternizado. Essa mestiçagem historicamente
institucionalizada cria uma populão afastada de sua identidade original.
É no interior deste contingente populacional multicrotico, carente de
uma identidade própria, que o sistema pigmentoctico retroalimenta a sua
base de dominação.
Assim, com a extrema atomização promovida por esse tipo de formação
sócio-racial desaparecem os mecanismos internos de negociação coletiva entre
segmentos sociais dominados e dominadores. Os conflitos concretos desse tipo
de sociedade se resolvem na esfera das relações interpessoais e, preferencialmente,
na esfera sexual; ou seja, no universo puramente simbólico-emocional. Fora
desse espaço interpessoal, regido pela estrita observância de um código implícito
de subalternidade e superioridade, o modelo rapidamente atinge seus limites
e exibe sua face repressiva.
Essa complexa situação, que implica uma imbricação permanente entre os setores
dominantes e dominados, recebeu a eufestica denominação de democracia racial”.
Ou seja, uma ordem pigmentocrática, responsável pela prodão de preconceitos e
desigualdades, que tem tudo de racial e nada de democtico.
A extraordiria transversalidade e plasticidade das sociedades pigmentocráticas
são fontes de uma enorme capacidade de resistência às mudanças orgânicas. A
durabilidade e a estabilidade dessas sociedades, obtidas através de relações
clientelistas de dependência e de um paternalismo pico das sociedades patriarcais
327
Carlos Moore Wedderburn
pré-industriais, são mantidas a um altíssimo preço: o imobilismo social; o
obscurantismo cultural; o conservadorismo; e o desmoronamento ético e moral.
No limite, tais condões garantem um estado crônico de subdesenvolvimento
social baseado na ignoncia generalizada entre as próprias elites e na criação
permanente de massas humanas que vegetam na mais abissal miséria. É com
essa situação que as estratégias de combate às desigualdades, entre elas as ações
afirmativas, estão destinadas a se defrontar em toda a América Latina.
A
s lições do AboliCionismo do séCulo xix
Em termos históricos, a iniqüidade sócio-racial latino-americana resulta da
escravidão racial dos povos africanos e, conseqüentemente, das condições gerais
que presidiram a abolição desse sistema singular no hemisfério (SANTOS, 2001:
especialmente caps. 3 e 4).
A transição da escravidão agro-comercial para o modo de produção capitalista
industrial foi, talvez, a única experiência traumática comum às elites dirigentes
de todos os países do hemisfério no século XIX. Ela foi um processo de vida
ou morte para jovens nações independentes, começando com a revolução e
independência do Haiti, em 1804, passando pelas guerras independentistas
latino-americanas, a partir de 1820, a Guerra Civil norte-americana, de 1861 a
1865, e encerrando com o processo abolicionista brasileiro de 1888.
A destruão da escravatura no Haiti pelos próprios escravos negros
representa um modelo sui generis de abolição revolucionária que levou a
população de origem africana ao poder. Porém, no hemisfério, a transição para
o trabalho assalariado se deu segundo três processos diferentes dos quais um
correspondeu aos anseios das populações afro-americanas. A comparação entre
os processos de abolição norte-americano e latino-americano, com a sua variante
brasileira, mostrará até que ponto eles deram os mesmos resultados em relação
às populações negras, apesar das peculiaridades que os demarcaram.
o c
Aso norte-AmericAno
A passagem do escravismo para um sistema baseado no trabalho assalariado e
industrial foi um divisor de águas que, no caso dos Estados Unidos, desembocou
em uma cruenta guerra civil (1861-1865), entre os estados confederados
escravocratas do sul e os abolicionistas do norte do país. Historicamente, estes
últimos já tinham optado pelo modo de produção capitalista e se consolidado
328
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
sobre essas bases, mas a intransigência sulista, manifestada na proclamação da
secessão, não deixou outra opção ao governo central senão a guerra para manter
a unidade do Estado nascido da Revolução Americana.
Os Estados Unidos da América, que emergiram no final do século XIX,
para dominar progressivamente a ordem mundial no século XX, foram o
resultado concreto da vitória do Governo Federal sobre a retrógrada oligarquia
escravocrata sulista. Isso equivaleu à vitória de um projeto de liberalismo político
e econômico baseado no trabalho assalariado e centrado no desenvolvimento
da grande indústria.
o cabe nos limites deste texto detalhar os acontecimentos que determinaram
o sucesso das forças progressistas, representadas pelo Partido Republicano da
época. Entretanto, convém examinar, no momento que antecede a guerra, os
argumentos dos abolicionistas contra os dos escravocratas sulistas, defensores do
status quo sócio-político-ecomico-racial. Tais argumentos, de grande relevância
histórica, foram forjados nos famosos embates eleitorais protagonizados pelo
senador do Partido Democrata, Stephen Douglas, e o aspirante a senador pelo
Partido Republicano, Abraham Lincoln, abolicionista e futuro presidente.
Douglas, porta-voz dos interesses ultraconservadores do sul, temia que o fim
da escravidão levasse inexoravelmente ao “enegrecimento” dos Estados Unidos
e à tomada do poder pelo segmento escravizado.
Por outro lado, Lincoln defendia incansavelmente três posições: i) a
permanência ou extensão da escravidão nos estados do sul ameaçava o caráter
unitário da Federação Americana; ii) o escravismo inviabilizava o projeto nacional
de desenvolvimento industrial, ao mesmo tempo em que aprisionava as forças
criativas da nação no obscurantismo moral e nas idéias surgidas da escravidão; e
iii) a proliferação da escravidão, com seus usos e modos ultrapassados, impediria
os Estados Unidos de atingir o status de grande potência democrática em escala
mundial. Nesse contexto, a defesa do abolicionismo traduzia exclusivamente a
proteção de interesses estratégicos dos Estados Unidos.
Lincoln não era de maneira alguma a favor da igualdade entre brancos e negros,
como afirmou no primeiro debate, em Ottawa, no dia 21 de agosto de 1858:
o é meu propósito introduzir a igualdade política e social entre as raças negra
e branca. Existe uma diferença física entre ambas que, na minha opinião, as
impedirá, talvez para sempre, de coexistir em de plena igualdade, e, na medida
que seja necessária uma diferença entre ambas, eu, tanto como o Juiz Douglas,
me declaro em favor de que a raça à qual perteo tenha a posão superior.
Nunca disse nada ao contrário... Concordo que ele [o negro] não é o meu igual
em muitos aspectos certamente o quanto à cor, e possivelmente também não
329
Carlos Moore Wedderburn
o seja na capacidade moral e intelectual (LINCOLN et alii, 2001).
Disse também Lincoln, no quarto debate com Stephen Douglas, realizado
em Charleston, no dia 18 de setembro:
... não sou, nem nunca fui a favor de transformar os negros em eleitores
nem juízes, nem de dar-lhes a possibilidade de se eleger a cargos de
governo, nem de se casar com a gente branca. E declaro, também, que...
na medida em que tenhamos que coexistir deverá haver a posão de
superior e de inferior, e eu, como qualquer outro ser humano sou a
favor de usufruir a posão superior que corresponde à raça branca...
Eu o compreendo o argumento de que pelo fato de não querer ter
uma negra como escrava, eu deveria querer -la necessariamente como
esposa... Nunca tive uma mulher negra nem como escrava nem como
esposa. Logo, me parece perfeitamente possível a coexisncia sem fazer
dos negros nem escravos, nem esposas (Idem).
Em uma frase que ficou famosa, e cujas implicações históricas nos atingem
hoje, o já presidente Abraham Lincoln disse:
Meu objetivo principal é salvar a União; não é o de salvar ou destruir a
escravidão. Se eu pudesse salvar a União sem libertar um só escravo o faria,
e se eu pudesse fazê-lo libertando todos os escravos, o faria também...
As conseqüências devastadoras da guerra civil nos Estados Unidos e os
revezes sofridos diante dos exércitos sulistas obrigaram o governo federal
a proclamar a abolição da escravatura e a incorporar os negros ao exército
nortista. Como resultado desta dinâmica e das próprias reivindicações dos
libertos, o governo também se viu compelido a introduzir na Constituição do
país as emendas 14, 15 e 16 que, além de garantir direitos aos antigos escravos,
previam mecanismos para sua de indenização através da doação de terras e de
instrumentos de trabalho.
Contudo, durante o período conhecido como “Reconstrução”, as medidas de
reparação foram brutalmente freadas pela contra-revolução sulista que desatou
o terrorismo organizado contra os negros emancipados. Assim, nasceram os
grupos de extermínio, como o Ku Klux Klan e o Conselho de Cidadãos Brancos,
que protagonizaram milhares de linchamentos. Por sua vez, as elites nortistas,
aprisionadas pelo racismo, viam-se impedidas de propor uma mudança total da
sociedade, pela incorporação efetiva do segmento negro da população. Assim,
perdeu-se nos Estados Unidos a oportunidade de demolir o edifício estrutural
surgido da escravidão racial.
330
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
o cAso lAtino-AmericAno
A América Latina tamm deixou passar a oportunidade hisrica de destruir a
estrutura surgida da escravidão racial e consubstanciada por um modelo de relões
raciais propriamente latino-americano, cujos hábitos, usos, valores e idéias surgiram do
ventre do racismo. Diferentemente dos Estados Unidos, na América Latina, o processo
de abolição da escravatura não levou em considerão propostas indenizatórias e
repararias. Em todo o continente, a abolão foi apresentada como uma dádiva,
produto da generosidade da elite branca escravocrata, pela qual os negros deveriam
sentir-se gratos. A “emancipão-dádiva” proclamada pela princesa Isabel, no Brasil,
foi emblemática nesse sentido, tanto por ser o último país do hemisfério a abolir a
escravatura, quanto pelos argumentos paternalistas que coroaram o processo.
O caso de Cuba, protagonizado pelo senhor de engenho e de escravos,
Carlos Manuel de Céspedes, repetiu-se pela América Latina onde os caudilhos
independentistas subordinaram a emancipação dos escravos à integração destes
aos exércitos de libertação contra a Coroa Espanhola, onde se converteram
em verdadeiras “buchas de canhão”. O fato de na maioria dos países latino-
americanos a abolição ter coincidido com as lutas de independência nacional
fez com que o negro escravizado tivesse que pagar com a vida o preço da sua
liberdade – escravidão ou morte.
Logo que se constitram, as novas nações independentes da América Latina
se empenharam em uma potica de repressão e genodio contra os ex-escravos e
de branqueamento da população mediante a imigração européia (ROUT, 1976;
SOUSA, 1996; GRAHAM, 1990; HELG, 1990: 37-69; SARMIENTO, 1991)
. Cuba
constituiu um exemplo típico desta feroz represo racial que, em 1912, desembocou
na tentativa de externio da população negra, ptica repetida com êxito quase que
total na Argentina, Chile, e El Salvador (HELG, 1995; PICOTTI, 1998; MELLAFE,
1974; MELLAFE, 1984; ANDREWS, 1980; MORESCHI, 1999)
.
Na América Latina as elites republicanas não tinham como projeto emancipar
a população de origem africana. Com efeito, em vez de elaborar estratégias
democráticas capazes de reverter a ordem racializada surgida da escravidão,
as elites projetaram no Estado toda a superestrutura desenvolvida no período
colonial e escravocrata. Ou seja, os novos dirigentes latino-americanos, que
alcançaram o poder mediante um processo supostamente revoluciorio,
levaram para o interior do Estado a visão e as práticas da escravidão, assim
reproduzindo uma ordem pigmentocrática e altamente repressiva. Esse novo
cenário teve como sustentáculo um projeto eugenista de branqueamento,
331
Carlos Moore Wedderburn
apoiado na massiva imigração de populações oriundas da Europa. Tais fatos
agiram em detrimento das aspirações dos afrodescendentes, contribuindo para
impedir sua inserção na nova estrutura econômica capitalista.
Por que É Preciso DesmAntelAr o rAcismo estruturAl lAtino-
AmericAno?
rACismo e Corrosão soCiAl e morAl dA soCiedAde
O ser humano procura a felicidade com base no respeito e na aceitação de
si pelos outros. Os indivíduos estruturam a sua existência permanentemente
estimulados pelo desejo de serem respeitados. Enfim, os seres humanos
necessitam, profundamente, saberem-se respeitados e aceitos por seus congêneres.
Partindo dessas constatações, e colocando-as como o pivô da essência humana,
do que nos faz ser o que somos como humanos, chegaremos à conclusão de que
ser desrespeitado, ser rejeitado, de maneira sistemática e permanente, representa
uma ferida e uma dor ontológica profunda e inaceitável.
O amor próprio, a auto-estima, o respeito de si, ou seja, a dignidade
humana, corresponde ao que o ser humano tem de mais essencial e singular.
É, precisamente, essa parte mais profunda do ser humano o pivô de sua
existência – que o racismo atinge, fere e destrói.
O racismo é, deste ponto de vista, um crime contra a humanidade. Um crime
contra a espécie humana, cometido de forma permanente e volunria, contra
todos os integrantes de uma determinada populão-alvo. O racismo é um fator
desestruturante na sociedade, pois gera patologias, das quais ninguém escapa, tanto
no segmento dominado quanto no segmento dominador. Na população-alvo, ele
destrói a auto-estima e conduz a uma desconexão psicológica com a sociedade como
um todo, propiciando o surgimento de indiduos cuja identidade destruída os
laa num terreno baldio onde podem frutificar atitudes anti-sociais.
No segmento subalternizado, a aniquilação da auto-estima individual e
coletiva, assim como a sujeição permanente aos preconceitos e discriminações
raciais, também contribui para a diluição da consciência moral. Assim, o ser
agredido, marginalizado de fato, é levado a responder agressivamente à sociedade
que o rejeita. A marginalização gera a marginalidade e a marginalidade gera as
332
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
condutas profundamente anti-sociais. Em última instância, é o racismo quem
gera a criminalidade, e não o inverso. Ou seja, ele cria potencialidade para a
criminalidade dentro da população-alvo, permanentemente acuada.
No interior do segmento dominador, o racismo cria uma complexa rede de
atitudes de cumplicidade amoral, e de insensibilidade humana, que por sua vez
propiciam um alto grau de permissividade diante de condutas patologicamente
anti-sociais. Em todo o continente americano, onde se implantou a escravidão
racial, o racismo legou uma cultura política amoral e criminosa que permeia
toda a vida social. No caso específico da América Latina, não se pode desvincular
a amoralidade própria do racismo da propensão das elites dirigentes à
mal-versação dos bens públicos; da permanente tentação de militarizar a vida
civil; das condutas criminosas das instituições encarregadas de codificar e aplicar
a lei; tudo isso faz parte do complexo nó produzido pelas estruturas racistas.
O racismo cria inter-relões desestruturantes e desequilibrantes, que
conduzem, inexoravelmente, à implosão de todo o conjunto da sociedade.
4
A
democracia no seu sentido mais geral, seja articulada no gênero, na classe social,
na orientação sexual, no pertencimento cultural ou, simplesmente, no banal
jogo sucessório dos partidos políticos, não terá uma ancoragem duradoura na
América Latina, região de tendências autoritárias, sem o desmantelamento do
seu modelo de relações raciais.
rAzões sóCio-eConômiCAs
O ato de amputar a contribuição de um segmento da sociedade da criação
social coletiva, por meio de discriminações e preconceitos étnico-raciais, é um
dos principais fatores da decadência e da inoperância de um conjunto social.
Nas condições de alta competitividade que marcarão cada vez mais o século
XXI, amputações desse tipo condenarão a sociedade que as permitam e as
reproduzam no seu cotidiano. É por isso que o mito da democracia racial tem
4 O exemplo recente da poderosa União Sovtica é emblemático. Um estado multi-étnico e multirracial, que se
desintegrou com incrível facilidade apesar do enorme poderio econômico e militar, após somente sete décadas de
existência. Dominada exclusivamente por eslavos, os chamados “russos brancos”, a União Sovtica foi minada,
desde a sua fundação em 1917, por tenes étnico-centrífugas. Portanto, o fracasso da experncia soviética, que
o foi tão somente o do comunismo como ideologia, deveria servir de alerta. A não resolução permanente
de conflitos baseados na raça, na etnia, na casta e na classe social, constitui uma ameaça letal para qualquer
Estado multirracial. Desde o predomínio imperial greco-romano a nossos dias, essa premissa se confirmou,
repetidamente, ao longo da história das sociedades. Seja qual for o poderio político, econômico, tecnogico ou
militar de um Estado, este não poderá desafiar indefinida e impunemente as “leis da gravidade” das dimicas
cio-raciais e étnico-culturais.
333
Carlos Moore Wedderburn
sido, para todos os países da América Latina, uma variável preponderante no
subdesenvolvimento social, cultural, político e estrutural.
O caráter regenerador da diversidade e da pluralidade cultural e étnico-racial
nas sociedades do culo XXI é uma descoberta recente oriunda do crescente
transnacionalismo do sistema capitalista mundial e do concomitante femeno de
globalizão. Como tem sido demonstrado, no mercado de trabalho, a diversidade
é um fator de alta produtividade e versatilidade, pois multiplica as possibilidades de
solão dos problemas, tomando como aporte resolutivo a experiência/acúmulo que
cada segmento representado pode trazer. Um ambiente composto por pessoas com
experiências históricas diferenciadas, acostumadas a lidar com a complexidade das
diferenças, tem maior capacidade de responder às mais variadas tarefas e demandas
com flexibilidade. Em termos puramente econômicos e financeiros, a incorporação
ativa dos segmentos marginalizados à economia representa um bem absoluto,
mesmo na perspectiva, do lucro, que é, em definitivo, o mecanismo propulsor
da dinâmica capitalista. É por isso que a globalizão capitalista implica tamm
uma certa adaptação dos mecanismos ecomicos mundiais à diversidade cultural,
étnica, religiosa e racial do planeta.
Ora, na Arica Latina costuma-se discutir a pobreza e as desigualdades
sociais sem aludir à estrutura racial das sociedades. É impressionante
constatar a invisibilidade do racismo aos olhos de economistas, sociólogos,
antropólogos, etnólogos, cientistas políticos, filósofos, psicólogos e
demógrafos. O mundo acadêmico latino-americano é a incubadora de
idéias que racionalizam e manm em vigência o modelo de relões raciais
ibero-árabes ((MOORE, 1995; 1988, Capítulo 5). Afinal, na academia
foram elaboradas no culo XIX, em toda América Latina, teses e propostas
eugenistas que logo depois se converteram nas mito-ideologias sucessoras
da democracia miscigenada, como raça cósmica (México), sociedade café-
com-leite (Venezuela) e democracia racial (Brasil).
A análise histórica da pobreza e das desigualdades, fenômenos que em
muitos casos correspondem à maioria da população nacional, torna-se
totalmente opaca sem uma referência sistemática ao modelo de relações
raciais que impera na região. Incorporar a dimensão racial à análise da
sociedade em seu conjunto é condição para que se logre uma leitura social,
cultural ou política capaz de revelar as realidades factuais das sociedades
latino-americanas. Nelas, a pobreza e as desigualdades nascem de um
sistema de dominação política e de hegemonia social, historicamente
baseado no esmagamento e na marginalização das sociedades indígenas,
334
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
por um lado, e por outro, na imposição da escravidão racial às
populações africanas e na sua subseqüente marginalização no período
pós-abolição.
Desse ponto de vista, o subdesenvolvimento socioeconômico, as desigualdades,
a pobreza endêmica, a ignorância, o desemprego, a criminalidade, as mazelas
irredutíveis de pobreza crônica (favelas, ranchos, morros etc.) são produtos de
um processo secular, linear e concatenado: o genocídio e a escravização racial
que marcou o período colonial e o feroz racismo institucional erigido durante
todo o período pós-colonial. Esse impacto histórico cumulativo da opressão é
que explica, em grande parte, o quadro desolador do conjunto das sociedades
latino-americanas atualmente.
Em muitos casos, os danos sociais aumentam exponencialmente e se massificam
quando o segmento marginalizado corresponde à metade ou mais da população.
Considerando que esse quadro não cessa de piorar, é lógico chega à conclusão de
que somente atras de ações deliberadas, promovidas e sustentadas pelo Estado,
será posvel conter a progressiva desintegração do tecido social e a ocorrência
de rupturas orgânicas irreversíveis. O modelo de hegemonia e de exploração
articulado atras de uma visão raciológica precisa ser desmantelado.
PArA umA verDADeirA emAnciPAção sócio-rAciAl nA AmÉricA
lAtinA
umA novA oPortunidAde PArA reverter o status quo sóCio-rACiAl
A idéia de que o racismo não pode ser vencido é tão infundada quanto a de
que ele cederá facilmente aos apelos à razão. Convém ressaltar que o combate
atual pela implementação das ações afirmativas na América Latina se inscreve
num contexto histórico preciso: a marginalização sócio-econômica e política
imposta às populações de origem africana em toda a América Latina no período
pós-abolição (SANTOS, 2001). Nesse período, foi abortada a oportunidade
histórica de desmantelar o racismo dada a estreita visão de curto prazo das elites
que, dominadas pela ambição de lucro, frearam as possibilidades de avanço
moral e democrático das sociedades latino-americanas.
O racismo levou as elites da América Latina a adotar políticas eugenistas,
de recorte nazista, para promover o branqueamento das populações ou, pura e
335
Carlos Moore Wedderburn
simplesmente, a eliminação física das populações negra e indígena. Esses fatos
conduziram à formação de sociedades fortemente racializadas, antidemocráticas,
autoritárias e politicamente submissas ao domínio imperial exterior, tanto
nos planos econômico e político, como no cultural. Os modos e usos vindos
da velha Europa colonial e da pujante América do Norte neo-imperial se
converteram, e se mantêm até hoje, no semblante mimético distintivo mais
aparente da América Latina.
Como mudar essa realidade, em nome não somente da ética e da moral,
mas também em prol da consecução de novas alternativas de vida? Como
estruturar uma ordem social eqüitativa, uma democracia social de fato, que
poderia ser a base de sociedades capazes de prosperar nas condições específicas
do século XXI?
Essas questões estão por trás das demandas por políticas públicas de ação
afirmativa, capazes de conter as forças centrífugas geradas pelas desigualdades
sociais e raciais e de impedir a imploo da sociedade. Atras desses mecanismos
seria possível reverter as condições de marginalização das populações-alvo do
racismo e estancar a ação dos fatores que conduzem as nações latino-americanas
a um beco sem saída. Trata-se, portanto, de reatualizar e readequar o processo
abolicionista às exigências que se inscrevem neste século.
Na América Latina, a campanha anti-racista deveria ser orientada para os
seguintes resultados: a) a contenção imediata da expansão do fenômeno racista
e do acúmulo das desigualdades de todo tipo que ele gera; b) a consolidação das
posições anti-racistas através de uma mobilização que atinja todos os setores
e espaços institucionais da nação; e c) o desmantelamento de cada um dos
mecanismos constitutivos do modelo latino-americano de relações raciais.
o P
APel do estAdo nA lutA ContrA o rACismo
O desmantelamento do modelo de relações raciais da América Latina,
assim como a queda da ordem patriarcal-masculina, não poderá ser conseguido
facilmente, pois essa luta de longa duração implica a mobilização de todas
as forças criativas da sociedade. Além disso, há que considerar que as formas
de dominação a serem eliminadas e as formas de emancipação a serem
atingidas não se sustentam na esfera da constrão ideológica, mas na esfera
problemática da consciência historicamente constrda. Portanto, faz-se
336
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
indispensável reforçar a capacidade de intervenção do Estado, símbolo das
aspirações permanentes da nação, na formulação de uma estratégia global e
articulada, em nível nacional, para a mudança definitiva da situão étnico-
racial.
No mundo inteiro, a implementação de poticas de ação afirmativa tem
se revelado eficaz na luta pela redução significativa, em tempo relativamente
curto, das iniqüidades sociais e raciais. O protagonismo do Estado nesse
esforço deverá ser objeto de crescentes demandas por parte da população-alvo
do racismo, assim como por parte da comunidade internacional.
Mudanças duráveis nas sociedades latino-americanas, que conduzam à
igualdade social e à eidade étnico-racial e de nero, só serão possíveis com
uma mobilização em escala nacional em favor da destruição das estruturas
étnico-raciais dominantes, isto é, do modelo de relões raciais e sociais
latino-americano. Na realidade, a polêmica reação suscitada pela idéia de
adoção de políticas públicas de ação afirmativa, em favor de afrodescendentes
e indígenas, representa uma importante brecha histórica a ser aproveitada no
sentido de uma pedagogia de desmistificação anti-racista.
O primeiro passo nessa direção, é reconhecer a natureza hisrica do
fenômeno racista em si, enraizado em práticas milenares e no imaginário
coletivo. O segundo passo, é compreender que o modelo de racismo vigente
na América Latina corresponde a um tipo singular de relações raciais de uma
ingente compactação histórica e transversalidade setorial. Ignorar sua intrínseca
mutabilidade e plasticidade ou minimizar seu caráter adaptativo corresponderia
a arar no mar, ainda que com as melhores intenções.
O desmantelamento do racismo na sociedade requer uma verdadeira
cruzada ético-moral e político-social, endereçada a todos os setores e recantos
da sociedade, principalmente às fontes concentradoras, bastiões e vetores desse
fenômeno multiforme e onipresente no corpo social: a mídia, o mundo do
ensino (fundamental, médio e superior), as instituições religiosas, os partidos
políticos, as organizações sociais, a administração pública, o setor de produção
de bens e de serviços, e as instituições de comando da sociedade (executivo,
legislativo, judiciário). Com efeito, a eficácia das ações contra o racismo depende
de múltiplos e variados fatores de peso desigual.
A condenação moral do racismo é, sim, uma necessidade. Ela se apóia na
ética e na filosofia de vida, sendo, portanto imprescindível na responsabilização
individual e coletiva dos cidadãos pela reprodução do racismo. Contudo, em si
337
Carlos Moore Wedderburn
mesma, a condenação moral não é a resposta definitiva do problema, pois se não
for sustentada por estratégias multifacetadas e onidirecionais de contraposição,
não poderá alcançar a meta almejada.
Pode-se concluir, com um alto grau de certeza, que o combate ao racismo,
particularmente o seu modelo latino-americano, precisará de estragias
multiformes adaptadas ao caráter imanente e permanente desse fenômeno
atemporal na sua generalidade. Essas estratégias deverão, sobretudo, levar em
conta as particularidades intrínsecas ao modelo de relações raciais que impera
nesta região.
conclusão
O racismo é um fator permanente, imanente e mutante na sociedade;
ele tem uma vida ppria, uma história própria que, aliás, se perde no
fundo da história das sociedades humanas. Como femeno historicamente
determinado, profundamente enraizado no mundo fantasmático e
simbológico (e o somente simbólico), o racismo foge ao controle do
raciocínio puramente intelectual; é no universo imaginário onde se forjam
tais representações. Portanto, é o racismo que cria as ideologias raciogicas,
e não o inverso.
A Segunda Guerra Mundial demonstrou de maneira inequívoca que o
racismo é uma das maiores ameaças para o futuro da humanidade. As dinâmicas
próprias a esse fenômeno não são estáticas; seja qual for a sociedade, elas
evoluem constantemente. Em qualquer sociedade, em determinados momentos
de tensão social, o racismo pode evoluir para estruturas atualmente conhecidas
como nazismo e fascismo.
O período de re-barbarização oligárquico-militarista, ocorrido na América
Latina nas cadas 60 e 70, precisa ser re-avaliado nesse contexto, pois a
militarização e o totalitarismo desse período não podem explicar-se unicamente
em relação a fatores políticos e econômicos excluindo-se o marco sócio-racial do
continente. O racismo favorece, alimenta e encoraja o totalitarismo político, o
despotismo cultural e as desigualdades sócio-econômicas em geral (CARRÈRE
D’ENCAUSSE, 1978; 2000; 1990; 1996; 1963).
O ressurgimento de propostas abertamente racistas e a nova popularidade
dos movimentos e partidos ultradireitistas na evoluída Europa, onde se
observa, paralelamente, uma alta rejeição aos imigrantes de países do Terceiro
338
do marco histórico das políticas públicas de ação afirmativa
Mundo, são indícios alarmantes que devem ser colocados em perspectiva
hisrica. Com efeito, não se trata de epifemenos isolados, ou passageiros
– nos Estados Unidos e na Austrália, por exemplo, observam-se as mesmas
tendências.
A sobrevivência coletiva no século XXI requer um ambiente de crescente
coexistência harmônica entre culturas, civilizações, gêneros e segmentos étnicos
ou raciais com base na eqüidade. Nesse contexto geral, as políticas públicas
de ão afirmativa são uma das inúmeras ações que requerem uma ampla
estratégia, especificamente voltada para o combate ao racismo na sua expressão
tipicamente latino-americana.
Sendo assim, a enganadora mitologia da democracia racial deve
ser sucedida por novas práticas, idéias e mecanismos que sustentem
concretamente as aspirações nacionais em prol de uma democracia paritária.
Uma democracia que garanta possibilidades, condições e resultados iguais
para todos os segmentos constitutivos das nações latino-americanas.
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Ações AfirmAtivAs e AfroDescenDentes nA AmÉricA
lAtinA: AnAlise De Discursos, contrA-Discursos e
estrAtÉgiAs
Mónica Carrillo Zegarra
mArco gerAl soBre Ações AfirmAtivAs
introdução
O objetivo destas anotações
1
é dar um panorama geral dos discursos e
contra-discursos em relação às “ações afirmativas” (AAs), levando em conta a
particularidade da América Latina com relação a outras regiões, e as posições
que tratam de deslegitimar ou reduzir a potencialidade deste tipo de políticas.
Ademais, analisar-se-ão as tensões existentes com os movimentos que têm em
sua agenda a luta contra a discriminação.
d
efinições e questionAmentos
As ações afirmativas como proposta política dos movimentos para
conseguirem mudanças estruturais ante as desigualdades, concretizam-se
desde começos do século XX, em processos revolucionários desenvolvidos
principalmente em países asiáticos, africanos e centro-americanos. Na América
do Sul, as propostas políticas que se enquadram dentro dessa categoria são
concretizadas por movimentos sociais de luta contra a discriminação, com
uma importante influência do movimento afro-estadunidense de defesa dos
direitos civis e políticos.
1 Traduzido do espanhol por Beatriz Cannabrava.
344
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
rACismo Positivo ou disCriminAção PositivA
Definões como “racismo positivo” ou “discriminação positiva são
utilizadas como sinônimo de ação afirmativa. Às vezes, são interpretadas como
sinônimo estrito de “cotas” ou “reparações”, sem diferenciar que as cotas são
políticas que implementam uma ação afirmativa e as reparações constituem o
marco conceitual, filosófico e político do qual a ação deriva.
Estes termos (racismo positivo e outros) estão sendo cada vez menos utilizados
pelos movimentos sociais, sob o argumento de que permite interpretações amguas,
e porque as correntes opositoras e conservadoras qualificam essas definões como
revanchistas. O termo discriminação positiva levanta um obstáculo, sob o ponto de
vista constitucional, já que nas cartas magnas proíbe-se a discriminação de qualquer
índole. Coloca-se então a possibilidade de reformas constitucionais que permitam
aceitar a discriminão positiva para promover o exercício dos direitos dos (as)
cidaos s). o obstante, esta posão é bastante questionada pelos movimentos
de afrodescendentes, porque implica alimentar os opositores, que argumentam que
as ações afirmativas promovem um “racismo inverso”.
Existem diversas definições sobre as características deste tipo de ão,
assinala-se por exemplo, que ela
Responde a uma necessidade; é temporária, obrigatória e legal; não é um fim em
si mesma nem deve prejudicar a terceiros; é um mecanismo para neutralizar os
desequilíbrios derivados da etnia, donero ou da condiçãocio-econômica,
entre outras causas de discriminação, de modo que, diante de uma oportunidade
(...) em uma situação de paridade, seja escolhida uma pessoa pertencente a uma
população discriminada (MOLINA; RODGUEZ, 2002: 212-213).
No projeto de Declaração e Plano de Ação elaborado na Conferência
Regional das Américas (dezembro de 2000) no marco da III Conferência
Mundial contra o racismo, assinala-se que o desenho e implementação das AAs
implica a elaboração de estratégias, programas, políticas e propicia sua aplicação
a favor dos direitos civis e políticos das vítimas do racismo, sobretudo no que
se refere ao acesso efetivo às funções públicas, judiciais e administrativas e à
administração da justiça sem discriminação (parágrafo 16). Incorpora também a
ação afirmativa no campo dos DESC (Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)
das populações afetadas (parágrafo 17) (idem).
Existem algumas considerações em relação à diferença entre ações afirmativas
e medidas positivas. Essas últimas são medidas pontuais de diferenciação para
345
Mónica Carrillo Zegarra
produzir um efeito de igualdade, aplicáveis em determinadas circunstâncias
nas quais se impede o acesso e que, inclusive, podem prestar-se a conveniências
políticas. Diferentemente, as primeiras têm um sentido mais amplo e efeitos
duradouros sobre o funcionamento das instituições sociais, impondo medidas
de ordem jurídica (HERREÑO HERNÁNDEZ, 2003).
contexto sociAl e Político em que se Desenvolvem As ProPostAs
De Ações AfirmAtivAs nA AmÉricA
A diáspora africana nas Américas e os diversos contextos que os
afrodescendentes tiveram para recriar e desenvolver formas ornicas de resisncia
são um tema amplamente abordado por diversos estudos, especialmente na
Colômbia, no Equador e no Brasil. No entanto, nos demais países da região
Andina e do Mercosul ainda se identifica uma tendência a pesquisas historicistas
da escravidão colonial, descuidando a análise antropológica dos processos
políticos, sociais e culturais contemporâneos.
Uma definição interessante, que define a diáspora africana, é dada pela
socióloga afro-norte-americana Ruth Simms. Segundo ela, a diáspora
representa um tipo de agrupação social caracterizada por uma história comum
de experiências e relações pessoais (...) que ainda exibe uma base comum de
fatores históricos condicionada pelo sistema de ordem mundial. As principais
características que distinguem esta diáspora, como uma formação global,
de outros grupos socialmente diferenciados, são as seguintes experiências
históricas: migração e deslocamento geo-social: a circulação da população;
opressão social: relações de dominação e subordinação; resistência e luta ação
política e cultural (1990:18).
A migração e o deslocamento geo-social de maneira forçada como
conseqüência do tráfico de escravos, originou uma dispersão geográfica por toda
a América, que manteve como base comum, além das manifestações culturais, a
opressão e a resistência. Esta explicação resume o porquê de as AAs constituírem
um direito inquestionável dos afrodescendentes da diáspora: aquela migração
forçada originou um contexto social de opressão e relações de subordinação,
contra o qual continuam lutando e desenvolvendo estratégias de resistência, a
partir de uma base filosófica que expõe a responsabilidade ética que a sociedade
tem de reparar os danos ocasionados.
346
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
rePArAções Como bAse filosófiCA
As políticas de ação afirmativa podem ser concebidas como a materialização
das reparões que se propõem do ponto de vista ético como uma responsabilidade
moral compensatória pelos danos ocasionados pela escravidão. Não propõem a
utopia de “zerar o passado e começar de novo”, tampouco desconhecer que as
conseqüências desse processo são irremediáveis. Esta posição identifica que as
políticas em favor dos (as) afrodescendentes quase sempre serão insuficientes
para se chegar a uma mudança estrutural. Mas sustenta que os setores que se
beneficiaram e acumularam riquezas às custas da escravidão têm a obrigação
ética e moral de assumir a responsabilidade histórica que essas pessoas e suas
gerações anteriores tiveram ao colocar os e as afrodescendentes na extrema
pobreza e exclusão.
Nas palavras de Herreño Hernández,
As reparões expressam apenas uma exigência de justiça e o um desejo de vingaa.
Falar de reparões é (...) reconhecer que foi cometido um crime, uma injusta e uma
violação massiva dos direitos humanos e da dignidade humana, refletida no rapto
de milhares de africanos, sua deportação e escravidão (2003).
As posições contra as reparações não estão baseadas em discursos
éticos nem na impossibilidade material de assumi-la. Os setores de
poder utilizam recursos jurídicos para desconhecer e eximir-se de
responsabilidade, argumentando que está proscrita a responsabilidade
objetiva, recurso que aplicado aos e às afrodescendentes implica a
impossibilidade de demandar aos e às descendentes de escravocratas
os atos cometidos por seus antepassados, porque a responsabilidade
desapareceu com a morte dos criminosos.
b
reCHAs entre A AmériCA lAtinA e A AmériCA do norte
inDiviDuAliDADe versus coletiviDADe
Nos Estados Unidos, promove-se a identificação de seus cidadãos (ãs) como
“americanos (as)” ou habitantes da “nação americana”. Ou seja, “americano (a)”
é sinônimo de cidadão (ã) estadunidense e implica atribuir-se a representação
do continente americano perante as outras regiões.
347
Mónica Carrillo Zegarra
Apesar de importantes esforços de algumas organizões afro-estadunidenses,
ainda o existem laços concretos com os (as) afrodescendentes da América Latina
que emigraram para os Estados Unidos. Estes (as) são invisibilizados (as) e colocados
(as) geralmente sob a categoria de latinos ou centro-americanos, sem reconhecer-se
sua ascenncia étnica e racial. o se trata de um desconhecimento do (da)
migrante latino (a); tampouco interesse em conhece-los (as).
A pensadora afro-estadunidense Bell Hooks destaca que
para as mulheres negras também é mais fácil muitas vezes falar sobre gênero
e ignorar a classe, porque muitas de nós não nos liberamos do nosso apoio
ao capitalismo e de nosso anseio de luxos. Creio que uma coisa é desfrutar da
boa vida, da beleza e das coisas, e outra muito diferente é apoiar o assassinato
de outras pessoas para poder ter um belo carro e outros caprichos (1995).
O nacionalismo dos afro-estadunidenses implica a sua afirmação como
parte de uma nação, mas com a afirmação da diferença, como estratégia de
visibilização e de mobilidade social, sendo as políticas públicas coadjuvantes
transcendentais em suas possibilidades de desenvolvimento. A necessidade de
inclusão não está colocada através da mestiçagem, mas sim da interação que os
afro-estadunidenses devem ter com as outras nações que conformam a populão
estadunidense. Isto não significa que nesse país se reconheça a existência da
diversidade imigrante, já que se exalta a diversidade dos povos de ascendência
européia que o conformaram congenitamente.
Segundo Bell Hooks,
Como estratégia de sobrevivência, o nacionalismo negro aflora à superfície
com mais força quando a expropriação cultural branca da cultura negra
ameaça descontextualizá-la, e, com isso, apagar o conhecimento do contexto
histórico e social específico da experiência dos negros, a partir da qual surgem
os produtos culturais e estilos distintivos dos negros. No entanto, a maioria
dos intelectuais brancos que escrevem críticas relativas à cultura negra não
as dimensões construtivas do nacionalismo negro e até tendem a vê-lo como
um essencialismo ingênuo, arraigado em noções de pureza étnica semelhantes
às suposições racistas dos brancos. O nacionalismo negro é mais um gesto de
impotência que um sinal de resistência crítica (HOOKS, 1990:27-31).
O debate propõe diversas posições dentro do movimento e está demarcado
por realidades e processos históricos distintos, onde os (as) afrodescendentes
podem ser parte dos sistemas econômicos e políticos através da mobilidade e
inclusão racial em um contexto de mestiçagem; ou da afirmação como nação
baseada em uma identidade afrodescendente, que por sua vez coloca um alto
nível de autodeterminação política, econômica e cultural.
348
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
Esta segunda vio é qualificada geralmente pelos (as) racistas como uma proposta
sectária e que promove a formação de guetos. Aqui é importante observar de outra
dimensão o significado do termo “gueto”, que o precisa ser apenas um espaço
de separão geográfica e social. Tamm encerra uma cosmovisão diferente, onde
existem maneiras específicas de socialização que permitem que a comunidade ou
povo excluído desenvolvam mecanismos de contenção e resistência.
Nas zonas urbanas existe uma interpenetração das relações de subordinação
e resistência com relação à necessidade de inclusão social como mecanismo
para exercer poder dentro dos espaços políticos e econômicos. Nesse contexto,
a autodeterminação é colocada de maneira tímida, apenas através do respeito
à expressão das manifestações artísticas e religiosas.
Por outro lado, nos povoados rurais (principalmente remanescentes de
quilombos ou palenques), a resisncia implica a conexão com o território, porque
isso garante a permanência de elementos culturais e identitários.
Em pses da América do Sul onde existe maior mestiçagem e presença ingena,
as agendas dos movimentos são beis e estão referidas ainda à consecão de direitos
fundamentais e reconhecimentos legislativos, evidenciando-se grandes distâncias em
relação aos Estados Unidos. Nessa rego, os movimentos estão exigindo políticas
blicas e direitos que eso consagrados na América do Norte, o que origem
a problemas na concertão de agendas e é visto por uma grande parte dos (as)
ativistas afro-estadunidenses como um retrocesso.
A
fro-norte-AmericAno - AfroDescenDente
Como foi dito anteriormente, a definição de “afro-americano (a)” tem sido
utilizada como sinônimo de “afro-estadunidense”. Os (as) afrodescendentes
da América Latina não se identificam com essa palavra, que é vista como
“importada”, porque a sociedade em geral incluindo os (as) afro-estadunidenses
a tem utilizado sem que isso tenha implicado a inclusão dos (das)
afrodescendentes de outras regiões.
O investigador panamenho Humberto Brown, diretor da organização de
afrodescendentes GALCI, com sede nos Estados Unidos, destaca que não existe
a mesma base social e política que promoveu as ações afirmativas e que
uma estruturação de classes, onde os afrodescendentes de melhores condições
econômicas não estabelecem laços de solidariedade com os de menos recursos.
349
Mónica Carrillo Zegarra
Destaca que, “os filhos (as) dos beneficiários das ações afirmativas dos anos
60, hoje em dia, desconhecem que o acesso a determinado nível de educação,
emprego, foi produto da luta dos movimentos negros. Isto pelas campanhas dos
partidos de direita, que dizem que isso foi um privilégio que não necessariamente
mereciam aqueles que se beneficiaram”.
2
Consideramos que atualmente na América do Sul, principalmente em países
como Brasil, Equador e Colômbia, pelo processo histórico particular destas nações,
existe uma poderosa base social e política que está promovendo a exisncia de
políticas blicas que resultem em mudanças estruturais da sociedade.
Nesse contexto, a utilização do termo afrodescendente em vez de afroamericano
encontra maior apoio e espo na população latino-americana. A utilização desta
definição foi assumida pelos movimentos no processo da III Conferência Mundial contra
o Racismo. Este termo aponta claramente que a ascenncia africana nas Aricas foi
conseqüência direta da diáspora ocasionada pelo crime da escravidão e sua utilização
permite o desenvolvimento de estratégias mais efetivas no âmbito do direito internacional
e a implementação de ações afirmativas.
3
movimento AfroDescenDente, movimento inDígenA e De
mulHeres
movimentos de mulheres e AfrodesCendentes
As principais diferenças dos movimentos de mulheres com os de reivindicações
étnicas estão relacionadas à universalidade do gênero e à suposta particularidade
da raça/etnia, ou seja, à transcendência de um enfoque sobre o outro.
A investigadora peruana Rocío Silva Santiesteban refere que uma ação afirmativa
“não deveria ser entendida como uma exceção às normas por ser mulher, mas sim
como uma construção normativa baseada na mulher como centro da legislação. Em
outras palavras, é necesrio precisar nos discursos culturais, jurídicos e institucionais
que a mulher é o paradigma epistemológico” (2003).
2 Entrevista concedida para fins deste trabalho, em julho de 2005.
3 Informe do Seminario regional sobre os afrodescendentes nas Américas (La Ceiba, Honduras, 21 a 24 de
março de 2002) http://www.unhchr.ch/huridocda/huridocda.nsf
350
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
A pesquisadora critica o feminismo que “volta a pensar no tema a partir das
concepções mais tradicionais do mesmo, ou de uma perspectiva antropológica
que iguala as mulheres aos grupos minoritários que pretendem uma política
da diferença dentro do multiculturalismo” (Idem).
Ela assinala que embora essas ações expressem avanços no reconhecimento
de direitos, quando são implementadas em países como os Estados Unidos,
com uma cultura central muito poderosa,
estão organizadas como exceções às regras que são, finalmente, as do homem
branco (ou do stupid white man como o denominou o documentarista
estadunidense Michael Moore). As exceções são aplicáveis à população
afro-americana, aos homens e mulheres de “cor”, isto é, latinos, chicanos,
chineses, vietnamitas, etc, e a todas aquelas pessoas que não correspondem
ao “sujeito autônomo da modernidade” (Idem).
Esta análise enfatiza que as mulheres não são um grupo minoritário nem
singular e, além disso, mostra que as políticas multiculturais estão em função
das diferenças essencializadas e não em processos de transformação cultural.
Existem posições discordantes entre os movimentos de mulheres e feministas
em relação à pertinência das cotas para afrodescendentes na educação ou na
participação política, porque percebem que esta proposta coloca a diferenciação
étnica no mesmo plano que a de gênero. O problema é que os movimentos
de mulheres e feministas ainda não integraram a perspectiva étnica em suas
plataformas e lideranças, o que se evidencia quando , por exemplo, ao exercerem
o direito a cotas em espaços legislativos, não colocam em suas listas mulheres
afrodescendentes.
m
ovimento AfrodesCendente e movimento indígenA
Existem conflitos que radicam na definição dos (das) indígenas como povos
originários, o que implicaria um maior direito à reivindicação de assuntos
como a autodeterminação e territorialidade. Precisamente essa ‘originalidade’
tem sido um dos principais argumentos utilizados pelo movimento indígena
para obter políticas públicas e avanços no âmbito do direito internacional
dos direitos humanos. O fato de que os povos indígenas tenham referentes
históricos próximos e conexão com sua matriz cultural tem permitido também
o desenvolvimento de uma importante mobilização de base (DECLARACIÓN,
2003).
351
Mónica Carrillo Zegarra
Existem importantes ações afirmativas em favor dos indígenas no sistema
das Nações Unidas e em programas nas agências multilaterais e bilaterais.
Foram implementadas na região políticas para recuperar línguas tradicionais,
além de atenção à saúde a partir de uma perspectiva tradicional e programas
de educação intercultural, entre outros avanços.
Por outro lado, faz pouco tempo que a agenda internacional e programas
nacionais de desenvolvimento consideram os (as) afrodescendentes. A III
Conferência Mundial contra o Racismo foi um marco nesse processo, e
permitiu reavaliar e redirecionar os avanços existentes. A brecha entre as
políticas públicas destinadas aos povos indígenas e aos (ás) afrodescendentes é
enorme, todavia essa situação não deve ser abordada como uma desvantagem
ou competão, mas sim do ponto de vista da necessidade de equiparar
e reparar com a mesma atenção povos que passaram por um processo
histórico similar. No caso dos afrodescendentes há matizes muito cris,
como por exemplo, a sua animalizão”; sustentada pelos colonizadores
e pela Igreja, para justificar o crime da escravidão, essa categoria não se
outorgou à população indígena.
m
ovimento AfrodesCendente e mestiçAgem
A suposta democracia racial promovida pelos países latino-americanos baseia-
se na mestiçagem como a integração de todas as raças, o que constituiria a base
necessária para promover uma sociedade multicultural e sem discriminação.
O conceito de democracia racial diz que, ao existir uma integração entre as
raças não se pode saber quem é negro ou não em um país. Por exemplo: “todos
seriam afro-brasileiros e se daria dando uma grande margem para a fraude no
vestibular (LENZ; COELHO, s/d).
A suposta democracia racial e a identidade mestiça latino-americana
constituem estratégias dos grupos dominantes para não permitir a ocupação
de espaços de poder pelos setores historicamente discriminados. Nesses
contextos questiona-se o desenvolvimento de políticas que beneficiem os (as)
afrodescendentes, porque supostamente promovem a divisão da nação em blocos
étnicos, conflitos raciais e inclusive separatistas.
A identidade mesta serve para argumentar que as políticas públicas
devem beneficiar toda a população porque todos e todas – indígenas, brancos,
352
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
afrodescendentes são mestiços pelo processo de colonização. Essa visão
desconhece que uma pessoa sempre é mestiça “de”, e desconhece o papel que
cada etnia tem para o processo de conformação do ser mestiço.
A frágil e precária identidade do mestiço teve sua origem nessa situação
absurda e infamante que, além do mais, reforçou a sensação ambígua de
pertencer a dois mundos contrapostos que se desprezavam mutuamente. Esta
situação, ademais, contribuiu para um duplo desprezo do mestiço pelas mulheres
indígenas. As relações patriarcais adquiriram esse aspecto que desembocou no
machismo (SILVA SANTIESTEBAN, 2003).
A mestiçagem como a ideologia da intermediação racial é um explícito
símbolo nos países latino-americanos. Tem como componentes o
indigenismo como um conceito dual que busca uma criativa dimensão
do nacionalismo, por meio do simbolismo de um passado indígena e, por
outro lado, uma corrente social, política e literária. Outro componente da
mestiçagem é o branqueamento. E a parte final do espectro é a negritude,
um conceito que denota a auto-identificação com um olhar positivo
(NORMAN; TORRES, 1998).
Em países como o Peru e a Bolívia, a afro-indianidade origina uma nova
construção cultural, é importante evidenciar a existência de uma mescla de duas
culturas ou uma mestiçagem das mesmas, mas visibilizando que é uma nova
construção aportada pela cultura afro e pela cultura indígena, colocando as
contribuições de cada um em sua exata dimensão. O transcendental não é a ação
de mestiçar-se, mas sim o resultado do processo, e as culturas continuam tendo
em si mesmas características próprias que se inter-relacionam para construir
uma nova cosmovisão.
O problema dessa afro-indianidade reside em que, geralmente, as raízes
africanas são invisibilizadas pela necessidade de branqueamento. Aqui a cultura
da pigmentocracia desempenha um papel transcendental, pois a cor da pele mais
clara dos indígenas é utilizada pelo sistema como uma aproximação ao branco.
Então, quando se dão as relações interculturais, o africano, isto é o “negro”, fica
invisibilizado pelo sistema e se promove que os (as) afrodescendentes submerjam
no indígena para branquear-se e, além disso, integrar-se de maneira melhor à
sociedade, uma vez que a populaçao indígena é maioria numérica em vários
países da região.
Mas essa mestiçagem tampouco é aceita pelo sistema nem pelos setores
dominantes. O objetivo político é desestruturar as bases culturais e as
353
Mónica Carrillo Zegarra
possibilidades que têm os afrodescendentes de organizar-se a partir da
revalorização de sua etnicidade.
Discursos e contrA-Discursos Dos movimentos, Do estADo e DAs
correntes conservADorAs
As tensões entre os discursos e contra-discursos sobre as AAs m acontecido
em todos os contextos e regiões onde foi desenvolvida uma potica a esse respeito.
Na América Latina, os (as) afrodescendentes encontram problemas similares aos
que enfrentaram os afro-norte-americanos, com a caractestica particular de que
a mestiçagem e a predominância da população indígena em alguns países gerou
um maiormero de frentes contra as quais há que desenvolver uma estratégia
de acordo ou de confrontação para obter avanços.
A suposta “democracia racial” latino-americana está baseada na ideologia da
mestiçagem como brido ideal que demonstra a inter-relão entre todas as “ras”.
Segundo McConahay, os racistas modernos dizem que “os negros eso lutando
muito forte, muito pido e chegando a espaços que eles mesmos o desejame,
além disso, “que suas táticas e demandas o injustas”, e que graças às AAs estão
tendo acesso a instituições de prestígio, beneficiando-se do prestígio das mesmas,
mas a longo prazo prejudicando as organizações porque esse presgio se reduz, uma
vez que baixa a qualidade acamica ou de profissionalizão da instituição (apud
HAYES et. alii., 2001). Psicólogos sociais qualificam esta nova forma de preconceito
com uma variedade de definões: “racismo simlico”, “racismo ambivalente”,
“neo-racismo”, “racismo adversoe “racismo moderno” (Idem).
Os racistas modernos desenvolvem uma série de explicações racionais
para justificar suas atitudes, mas não se definem como racistas. Entre os sutis
argumentos apresentados, encontra-se a crítica à luta contra o racismo, pois
segundo os últimos estudos científicos a raça humana é uma e a variação
genética existente entre humanos que se consideram de diferentes raças é
mínima, e por isso não se pode falar de uma diferenciação genética racial. O
transcendental dessa descoberta científica é que desmorona qualquer última
fortaleza que os racistas científicos poderiam ter para justificar geneticamente
a superioridade dos brancos sobre outros grupos.
No entanto, os racistas modernos encontram nessa descoberta o principal
argumento para criticar a luta contra o racismo. Dizem que é contraditório
354
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
que os (as) afrodescendentes se baseiem na questão “racial”, pois isso implica
que reforcem a existência da categoria “raça”.
A verdade é que a raça é uma construção cultural e simbólica que encontra
na socialização e no imaginário coletivo o espaço para sua reprodução e que
necessita tornar-se visível para ser desconstruída.
As estruturas de dominação têm várias dimensões. Segundo o sociólogo
Max Weber, existem três. A primeira, que ele denomina de “objetiva”, consiste
nas relações de classe que se estabelecem entre as pessoas que, convivendo em
um mesmo contexto, têm poder aquisitivo para pagar uma melhor educação
e alimentação que outras. Nesta situação aparece a definição de “classe alta” e
“classe baixa”, e a primeira estabelece uma comparação sobre a outra, com base
em critérios concretos e mensuráveis.
A outra dimeno é a subjetiva”, que se refere ao “statusdiferenciado da
“classe” mencionada anteriormente. O status é o estilo de vida determinado pela
honra social que está em uma ordem subjetiva; implica “categorizar pessoas que
cada um conhece, de que ouviu falar (...) a etnicidade e as ‘relações raciais’ se alojam
nesta dimeno subjetiva, categorizada e estereotipada de relações raciais”. Outra
importante dimensão é a que ele denomina de “match” que é a habilidade dos
grupos dominantes de foar os dominados a aceitarem os mbolos da dominação.
Isso constitui a essência do hegemonismo (NORMAN; TORRES, 1998).
Em quase todas as sociedades encontramos uma estrutura piramidal
atravessada pelo fator racial, mas com uma elite local, regional ou nacional
caracterizada como branca. E existem regras “brancas” sobre a cor entre as
pessoas da mesma classe, determinando um acesso diferenciado ao mercado.
Quando uma maioria que é negra constitui a população urbana ou rural de
uma região, aparecem diversas combinações de estruturas de dominação que têm
como resultado a perpetuação do branqueamento como superior à negritude.
A seguir repassaremos alguns dos principais argumentos contra as ações afirmativas
ou políticas blicas espeficas para afrodescendentes na Arica Latina.
Argumento 1: Se deficiências nas políticas blicas e, por esse motivo,
os(as) afrodescendentes o conseguem ter acesso às mesmas, então devemos
promover que essas políticas sejam efetivas, aumentando o orçamento e
desenvolvendo campanhas para que cheguem a todos os cidaos (ãs).
Na América Latina, especialmente em países onde a população indígena ou
mestiça de indígena é avassaladora, os (as) afrodescendentes ainda estão passando
355
Mónica Carrillo Zegarra
por um processo de reconhecimento como povos ou comunidades no nível
legislativo. Apesar de existirem instâncias estatais e comissões orientadas a
desenvolver ações afirmativas, estas não constituem uma prioridade na agenda.
Isso faz com que esses povos não estejam situados nos mapas de pobreza e que
não sejam desenvolvidos programas como os de educação intercultural, atenção
à saúde, levando em conta suas tradições culturais.
O Estado tende cada vez mais a deixar de se responsabilizar por garantir que
a população tenha acesso à educação gratuita, serviços de saúde de qualidade,
proteção aos direitos dos trabalhadores. As empresas e as leis de mercado são
as que regem agora esses aspectos tão transcendentais e os cidadãos/ãs devem
tomar em suas mãos a responsabilidade de exigir que o Estado cumpra seu papel
de regulador e provedor ou, caso contrário, promover alternativas organizativas
que possam suprir esse papel.
É interessante recordar as posições tomadas no âmbito da III Conferência
Mundial contra o Racismo, quando os afrodescendentes da América e os
africanos discutiam uma agenda comum no que se refere às reparações. Os
movimentos dos países africanos exigiam que as reparações fossem assumidas
pelos países que enriqueceram com a escravidão e que beneficiassem diretamente
os estados que foram afetados, perdoando dívidas, efetuando empréstimos e
adotando políticas de desenvolvimento para toda a população. Pelo contrário,
os (as) afrodescendentes da América, especialmente de países onde são minoria
numérica, defendiam a posição de que as reparações devem estar focalizadas
nos territórios onde se localizam as comunidades afro, porque do contrário
as poticas blicas que fossem geradas não seriam dirigidas para essas
comunidades, que costumam ser invisíveis para os Estados.
Países como a Bolívia, o Peru, o Uruguai, o Paraguai, a Argentina e o Chile
têm uma situação diferenciada em relação ao Brasil, à Colômbia e ao Equador.
Os (as) africanos (as) que chegaram a países como o Peru provinham de centros
de reprodução de escravos (as), o que originou dispersão cultural e minimizou
as possibilidades de encontrar laços comuns que lhes permitissem organizar-se.
Além disso, a costa desértica e os Andes não permitiram o sucesso na formação
de quilombos.
Por outro lado, em países como o Brasil, o Equador e a Colômbia, a luta
dos movimentos tem como agenda comum a luta contra o racismo, mas com
a particularidade de que existem laços ancestrais com o território; e centraliza
boa parte de suas reivindicações na territorialidade.
356
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
Ambas as frentes abordam temas de suma importância para a população.
Em ambos casos pela inclusão ou pela autodeterminação identificam-se
brechas com relação à população pertencente a outras etnias. No relatório
do BID sobre desenvolvimento dos povos indígenas e negros do Equador, são
apontados os problemas que afetam o acesso a serviços sociais:
À luz de uma nova ordem econômica e da globalização e modernização
da economia, todo projeto de dotação de serviços deve ser autofinanciável
(eliminar subsídios) com o que as aspirações da população da área rural
e fundamentalmente das áreas dispersas serão postergadas (ENCALADA;
GARCÍA; IVARSDOTTER, 1999).
O contra-argumento é que as brechas existentes entre pobres e ricos
aumentam cada vez mais. Os (as) afrodescendentes encontram-se nos índices
mais baixos de pobreza, como conseqüência do processo escravocrata e das
escassas possibilidades de mobilidade social agravadas pelo racismo. São os
(as) mais pobres do grupo de pobres e necessitam equilibrar as distâncias para
contar com as mesmas armas que o resto da população tem para sair da pobreza
e alcançar melhor qualidade de vida.
Argumento 2: As AAs podem promover o oportunismo de pessoas que não
correspondem aos povos ou grupos discriminados, pois há aqueles que nunca
se identificaram como afrodescendentes e assumem essa identidade étnica para
serem beneficiados.
Este outro argumento está relacionado com a seleção de beneficiários.
Esta situação pode produzir-se em casos extremos ou particulares, mas não
em escala tal que se possa deixar de considerar os benefícios de uma AA, pois
a sua aplicação está geralmente focalizada nos grupos populacionais que a
necessitam:
Os beneficiários podem ser identificados como um conjunto de pessoas
adstritas a um território ou pertencentes a uma comunidade, prática muito
pertinente para povos indígenas, marrons e quilombos. Também podem ser
fixados critérios para a identificação de indivíduos, mas tendo o cuidado de
tomar o pertencimento como um ato voluntário de tipo cultural e não como
um ato obrigatório derivado do fenótipo (TORES PARODI, 2003).
Os estudiosos ou técnicos encarregados de elaborar ou implementar essas
ações geralmente assinalam que pode haver uma manipulação política dos (das)
líderes que convencem um coletivo a denominar-se como afro, ou assim os
denominam, sem que necessariamente essa identificação tenha sido aceita pela
comunidade ou coletivo. Isso implicaria que existem beneficiários que não vão
357
Mónica Carrillo Zegarra
entender a perspectiva das políticas, o que inclusive poderia levar ao fracasso
das mesmas, porque elas reforçam uma identidade que eles recusam.
Os movimentos reconhecem que o tema da identidade é complexo, pois
nós, seres humanos, temos múltiplas identidades; e a escolha de uma o
implica a negação de outra. Ou seja, podemos levantar a luta do movimento
afro e ao mesmo tempo feminista ou homossexual e isso não deve significar
contraposições nem conflitos. Embora no caso de afrodescendente como
identidade é preciso apontar um aspecto afirmativo, mas outro reativo, pois a
definição como afrodescendente está em função da reação contra o racismo e
da forma como a pessoa é qualificada ou estigmatizada.
Um grupo de afrodescendentes que luta por sua territorialidade como
camponeses e não necessariamente levanta como ponto central de seu enfoque
sua ascendência étnica, também deve ser sujeito de AAs. Embora se espere que
todo movimento que tenha população afrodescendente nutra sua agenda com
sua perspectiva étnica, muitas vezes ela fica invisibilizada dentro de uma agenda
programática concertada com outras organizações.
O racismo endógeno leva a que a população afro não se reconheça como
tal, porque isso significaria situar-se em seu entorno social a partir de uma
posição que pode ser qualificada como inferior. Isso acontece, por exemplo,
nas populações afro-peruanas onde foi realizada uma pesquisa de identificação
de lares afro-peruanos baseada no mapa geo-étnico; os níveis de identificação
como afrodescendentes era mínimos em alguns lugares, embora o fenótipo dos
entrevistados fosse evidentemente afro.
Para finalizar essa contra-argumentão, deve-se dizer que o racismo
estrutural se evidencia de maneira objetiva nas brechas de desigualdade
que o recopiladas nos censos e estudos demogficos sobre a localizão
da populão afro na sociedade. As denúncias ou refencias sobre fraudes
nas políticas de acesso cotas não são significativas a ponto de afirmar
que o sistema está mal encaminhado. Se o racismo conseguiu que muitos
afrodescendentes neguem sua ascenncia, porque é sinimo de exclusão e
de poucas possibilidades de mobilidade social, os Estados devem encontrar
mecanismos para que as AAs sejam implementadas nessas populões. Caso
contrio as AAs refoariam as brechas existentes, não só da população afro
com relação a outras etnias, mas entre os membros da mesma população,
gerando uma elite de intelectuais e classe média afrodescendente desligada
da realidade do resto da populão.
358
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
Argumento 3: O problema da exclusão dos afrodescendentes é de classe,
mas não de raça. Se for promovido o maior poder aquisitivo, melhores postos
de trabalho, o racismo acaba.
A premissa desta afirmação corresponde a uma elaboração socialista do
problema, mas a solução proposta corresponde a uma visão capitalista, que
aborda o tema do racismo como um problema econômico. A afro-norte-
americana Bell Hooks cita o rapper Ice T quando este, em seu livro de memórias,
afirma que “as pessoas não vivem no gueto porque são negras, mas porque são
pobres”. Essa afirmação, que a autora qualifica como certeira, tem para o
cantor – uma solução: o capitalismo.
Isto significa que um total vazio em seu entendimento se acredita que
ficar rico nesta sociedade é de algum modo uma forma de redimir a vida
dos negros. A única esperança que existe para transformar a vida material
das pessoas negras, é reclamar a redistribuição da riqueza e dos recursos o
que não é apenas uma crítica ao capitalismo, mas um completo desafio ao
capitalismo (HOOKS, 1995).
Embora a autora reconheça que o pensamento marxista foi crucial na
educação da consciência política, isso não significa que se deve passar por alto
o racismo e o sexismo desses pensadores, mas sim extrair os recursos de seus
pensamentos que possam ser úteis na luta.
A verdade é que diante da crise dos sistemas capitalistas e socialistas, pode-se
apontar para a busca de novas interpretações encaminhadas a encontrar vias
para eliminar as brechas sociais e econômicas, sem que isso signifique deixar
de ter capacidade crítica. Reiterando a afirmação de Hooks, uma coisa é
desfrutar da boa vida, da beleza e das coisas, e outra muito diferente sentir que
aceitamos apoiar o assassinato de outras pessoas em outros países para poder
ter um lindo carro e outros caprichos”.
Como elemento final de contra-argumentação, podemos dizer que não
uma condição natural que faça com que as pessoas afros tenham que viver
em guetos. As pessoas afrodescendentes vivem em guetos porque essa foi a
localização social em que o sistema as colocou depois da escravidão, sem que
elas tivessem a possibilidade de situar-se em outro estrato. “As pessoas não vivem
no gueto porque são negras, mas porque são pobres”, diz a frase. Mas são pobres
porque essas foram as condições que tiveram depois da escravidão.
Argumento 4: Os (as) afrodescendentes não podem exigir a autodeterminão
territorial, política ou cultural porque não são povos originários da América
e, portanto, sua plataforma deve estar dirigida à inclusão social, mas não à
359
Mónica Carrillo Zegarra
autodeterminação, porque isso, além do mais, promove a secessão e vai contra
a identidade nacional.
Este ponto é bem amplo, pois nos leva a uma discussão sobre direito das
“minorias” versus direito dos povos indígenas, e as tensões existentes entre ambas
as etnias (indígenas e afrodescendentes).
Entre diversas definições, destacamos a do estudo Indigenous Peoples: Living
and Working Conditions of Aboriginal Populations in Independent Countries,
que assinala:
as pessoas indígenas são descendentes dos povos abogines que viviam em um
território antes da ocupação ou da conquista (...) em geral, esses descendentes
tendem a viver de acordo com a institucionalidade social, econômica e cultural
que havia antes da colonização ou conquista (WHO IS, s/d:33).
No que se refere às minorias, uma definição apresentada pelo senhor Capotorti,
Relator Especial da ONU é:
Minorias podem ser definidas como um grupo numericamente inferior ao resto
da populão de um Estado, em uma posição não dominante, cujos membros
sendo nacionais de um estado possuem características étnicas, religiosas ou
linísticas que diferem do resto da população e demonstram (...) um sentido
de solidariedade dirigida a preservar sua cultura, tradição, religião e linguagem
(idem: 52).
No marco destas definições os argumentos contra a autodeterminação dos
afrodescendentes se baseiam em que o o parte de uma populão origiria das
Américas, e que têm conexões culturais menos profundas que a população ingena.
Este argumento pode ser rebatido com as últimas pesquisas sobre a presença africana
na Arica, anterior às culturas pré-colombianas e com a descoberta científica de
que foi na África que se originou a raça humana.
Como elemento final desta contra-argumentação, que recordar que os
africanos e africanas chegaram a estas terras não porque quiseram, mas foados, e
que ao longo de 400 anos recriaram novas formas de organização e cultura baseadas
em sua ancestralidade africana, mas com características diferentes, o que os torna
parte de uma cultura afrodescendente e não africana. Não apenas nos quilombos,
mas tamm nas zonas onde há maior concentração indígena, branca ou mestiça, o
recriadas formas de sobrevivência e resistência cultural. A possibilidade de repatriação
ou de volta à África em termossicos é imposvel, e por isso o reconhecimento
como povos com os mesmos direitos que os originários é imprescinvel. A idéia de
territórios “ancestralmente ocupados” responde a esta necessidade de encaixar essa
queso no marco normativo. Além do mais, devem ser exploradas as pesquisas que
360
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
permitam uma aproximação à imporncia das civilizações na nese das culturas
americanas e da África como berço da humanidade.
Argumento 5: A condição de gênero é universal e a de afrodescendente é
uma particularidade. Os movimentos pela reivindicação dos povos indígenas
e afrodescendentes pretendem que essa particularidade seja priorizada,
desconhecendo que em todas as culturas existe sexismo.
O racismo e o sexismo são discriminações que têm determinado a vida dos
afrodescendentes desde a colonização e o processo escravista. A utilização sexual
do corpo da mulher africana e do homem africano permitiu a sustentabilidade
econômica do sistema, pois as mulheres eram ventres reprodutores de escravos,
além de servas sexuais dos escravocratas. Os homens mais fortes eram “seminais”,
isto é, encarregados de ter relações sexuais com as escravas para garantir uma
descendência de características físicas ideais.
Se analisamos as relões sociais e tratamos de identificar as causas da exclusão
social, potica e ecomica dos povos oprimidos, vemos que as ideologias racistas
e sexistas foram pontos de partida para justificar a colonizão e a escravio.
A condição de gênero não está no mesmo nível ou categoria de análise que
a étnica. Ambas condições são consubstanciais aos seres humanos, embora
a de nero tenha características universais que não podem ser analisadas
comparativamente à étnica. Na América Latina os movimentos estão apontando
para a construção de novos paradigmas que vejam o continente africano como
referente, sem idealizações e levando em conta os sistemas de discriminação
contra a mulher evidenciados na mutilação genital feminina e outras práticas
tradicionais e nos conflitos étnicos existentes (muitos deles como conseqüência
da escravidão).
As condições de gênero e étnica o universais de todos os povos e
culturas. A questão étnico-racial coloca características diferenciadas e relações
de subordinação que se perpetuam em função da sustentabilidade do sistema
econômico, social e de classe. A condição de gênero apesar de também abarcar
múltiplas identidades sexuais que transcendem o masculino ou feminino é
utilizada para perpetuar os sistemas de poder e subordinação em um plano
mais subjetivo.
Para finalizar esta contra-argumentação, o sexismo na agenda do
movimento afrodescendente ficou muito tempo oculto pela magnitude
que o racismo e suas conseqüências tão nefastas atingiu nessa populão.
Mas, por sua vez, o movimento feminista deve reconhecer a ausência de
361
Mónica Carrillo Zegarra
perspectiva étnica no discurso e na prática que muitas vezes reproduz os
sistemas de discriminação racial dominantes na sociedade. É importante
que os discursos sobre autonomia do corpo, direito a decidir, violência
sexual, revisem profundamente a determinação que o racismo tem nas vidas
das mulheres afrodescendentes para desenvolver estratégias adequadas que
abordem os veis subjetivos e as conseqüências psicossociais que originaram
esta violação sistetica.
Argumento 6: Não se pode por em risco a qualidade e a eficncia
das empresas ou instituições para dar oportunidades aos afros, que pela
exclusão que sofrem não têm possibilidade de se capacitar e chegar ao nível
de profissionalização para se desempenhar com a mesma eficiência que outros
trabalhadores. Isso não quer dizer que não vamos contratá-los, mas devem ser
avaliados sob mesmas condições que os demais. Somos contra o racismo, por
isso queremos que todos tenham as mesmas oportunidades.
Na América do Sul, as AAs no setor trabalhista ainda são propostas pouco
elaboradas. Identifica-se uma racionalização do preconceito em instituições
trabalhistas, isto é, os e as racistas encontram explicação racional para seu
inconformismo em relação às AA.
Segundo um estudo realizado nos Estados Unidos sobre as atitudes dos
trabalhadores brancos com relação às AAs em favor dos afros, as organizações
onde existem AAs em favor dos negros são vistas pelos brancos como empregos
potencialmente menos atraentes, porque não têm uma perspectiva satisfatória
para a promoção no trabalho.
Como contra-argumentação, devemos lembrar que as AAs são propostas
para um determinado tempo, o suficiente para equilibrar as brechas, à espera
de que a sociedade elimine os critérios racistas para a seleção dos trabalhadores,
e com a expectativa de que a população afrodescendente possa atingir um nível
de profissionalização que permita a existência de um número eqüitativo de
afros que compitam em igualdade de condições para um determinado posto de
trabalho. As AAs impulsionam os processos de democratização das instituições
e promovem relações interculturais que apontam para a democracia racial tão
desejada pela sociedade latino-americana.
Argumento 7: A qualidade da educação superior pode ser colocada em risco,
pois poderemos ver-nos obrigados a diminuir nossa qualidade acadêmica para que
os estudantes afros possam ser incluídos, uma vez que por causa da excluo social
e econômica eles têm um baixo vel acadêmico com relação a outros setores.
362
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
Além do mencionado em parágrafos anteriores, com relação aos debates em
torno dos critérios de seleção em espaços educativos, é pertinente assinalar que
a diversidade étnico-racial deve estar acompanhada pela inclusão de estudos
de cátedra africana e afroamericana que permitam fortalecer o conhecimento
dos estudantes afrodescendentes e que aos (às) estudantes pertencentes a outros
grupos étnico-raciais conhecem os processos históricos dessa população.
Existem situações de conflitos raciais e de subestimação que os estudantes
beneficiários sofrem. São importantes iniciativas como o Manual do Estudante
Cotista, concebido pelo Coletivo Negro do DF e Entorno EnegreSer. Este
documento conta com informação sobre o processo histórico desenvolvido pelo
movimento negro e com dados sobre a estrutura da universidade e as políticas
de ação afirmativa. O estudante de Geografia da UnB, e ativista do EnegreSer,
, sublinha: “a UnB pode começar a trilhar um caminho de anti-racismo e fazer
do compromisso firmado com a população negra uma realidade, o que figura
como uma esperança, dado o elevado número de pessoas brancas homologadas
pelo sistema, como é denunciado pelos cotistas negros” (PINTO, 2005:17).
Para finalizar o contra-argumento, devemos lembrar que as cotas educativas
o propugnam uma dicotomia entre a escolha de perpetuar um elitismo ou
abrir as portas para os excluídos a partir de uma visão populista e indiferenciada.
A educão proporciona um conhecimento que constitui uma das poucas armas
que os (as) afrodescendentes m para obter uma formação que posteriormente lhes
permita incluir-se em espaços de decio e poder político que, por sua vez, levem
ao desenvolvimento estrutural dos povos. A presença em espaços educativos, tanto
como professores ou como estudantes, permite a construção de uma sociedade mais
democrática e plural, por causa das relações interculturais e o desenvolvimento de
enfoques que io permeando outros grupos étnico-raciais.
A moDo De conclusão
As ações afirmativas para afrodescendentes na América Latina devem ser
entendidas, elaboradas e analisadas dentro da perspectiva filosófica e política do
conceito de reparação. Essas ações devem ser expressadas não apenas em políticas
públicas estatais, mas também em políticas desenvolvidas por instituições ou
grupos privados.
As estratégias não podem estar centralizadas no Estado como o único ente
que elabore e implemente ações afirmativas, mas sim que cumpra sua função
363
Mónica Carrillo Zegarra
reguladora, elaborando políticas gerais que devam ser aplicadas em instâncias
estatais e privadas. Isso implica um debate sobre sobre as estruturas de poder e
a maneira pela qual os Estados-Nação se estruturaram e enriqueceram, tendo
como base a escravidão e a exploração dos povos afrodescendentes. Também
implica colocar uma alternativa contra a globalização neoliberal e o capitalismo
selvagem, porque estes sistemas não conseguiram diminuir as brechas estruturais
de exclusão social, marginalidade e pobreza dos povos afrodescendentes.
Essa perspectiva implica também que os sistemas judiciais não estejam a
servo do mercado, e não encaminhem os processos judiciais de denúncia
contra a discriminação no acesso a lugares públicos como tema a ser
tratado no terreno administrativo, sob o argumento de que são fatos que
afetam o direito dos (das) consumidores (as) e o uma violação de direitos
humanos.
Alguns países da rego andina e do Mercosul enfrentam problemas graves no
que diz respeito à invisibilização, mas também à mestiçagem, o que ocasiona um
enfraquecimento cada vez mais agressivo das bases culturais unificadoras dos e
das afrodescendentes. Cabe precisar que não se coloca uma posição essencialista
nem uma crítica à mestiçagem per se mas sim à sua utilização para promover
o branqueamento e, portanto, uma suposta mobilidade social.
Não se deve cair em conceitos essencialistas de pureza e preservação racial. Os
processos de mestiçagem devem ser analisados como uma estratégia sistemática
das elites dominantes, que cumprem um programa estratégico que é dissimulado
por discursos como o da democracia racial, com o único objetivo de seguir
com o processo de branqueamento iniciado desde o início das repúblicas
latino-americanas.
Si eliminarmos a palavra racismo da plataforma política, as pessoas racistas
tornarão invisível o problema e seguirão existindo, com a diferença de que não
serão mais chamadas com esse nome. Quando a desconstrução do racismo tiver
acontecido em todos os terrenos, então serão mais visíveis a parte propositiva
e afirmativa das agendas do movimento afrodescendente.
É importante recordar que as ações afirmativas geralmente são elaboradas e
executadas dentro dos próprios sistemas racistas. É responsabilidade política dos
movimentos afrodescendentes analisar se se conseguirão mudanças importantes
da situação dos povos afros com a inclusão nas estruturas políticas e econômicas
existentes. Ou se existe uma proposta de reestruturação e reordenamento da
sociedade onde estejamos realmente incluídos.
364
Ações Afirmativas e afrodescendentes na América Latina: análise de discursos,
contra-discursos e estratégias
Torna-se imprescindível uma reparação moral, territorial e espiritual. As
ações afirmativas cnstituem uma primeira etapa para ir eliminando a exclusão,
postergação e discriminação a que têm sido submetidos nossos povos. Devem
responder a processos políticos e organizativos dos povos afrodescendentes e
não a fórmulas instauradas dentro do sistema racista de opressão.
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367
A lutA contrA A DiscriminAção rAciAl em
cuBA e As Ações AfirmAtivAs: convite À
reflexão e Ao DeBAte
1
Tomás Fernández Robaina
introDução
Até pouco tempo atrás se negava a presença do preconceito e da discriminão
racial, como uma conseqüência do racismo que sobrevive em nossa sociedade,
consciente em alguns cidadãos e inconsciente em outros. O reconhecimento
objetivo de tais manifestações se torna difícil, porque os preconceitos racistas
foram interiorizados e dissimulados de tal maneira que passam despercebidos
por seus próprios portadores, como mostras das tradições cotidianas impostas
desde o período da escravidão, reproduzidas e enriquecidas durante o século XX,
em seus dois momentos fundamentais, o republicano e o revolucionário.
Transferiu-se mecanicamente, sem uma análise contextual o critério martiano
2
de que o cubano era mais que branco, mais que negro, mais que mulato,
expressado em um momento em que era muito necessária a união das forças
nacionais para obter a unidade e a independência da Espanha. A República
foi o espaço em que não poucos pensaram que todos os problemas sociais,
e particularmente o da questão racial, seriam resolvidos de maneira simples.
Mas no caso da discriminação contra o negro e a cultura de seus ancestrais,
subestimou-se a complexidade de tal problemática. O pensamento martiano
que estimulava a luta pela igualdade de direitos para os negros, ao dizer que
se por expressar que o negro em nada era inferior ao branco se lhe acusava de
racista, bem-vindo fosse esse qualificativo, porque era um racismo do bem, não
ganhou a popularidade e a difusão necessárias.
1 Traduzido do espanhol por Beatriz Cannabrava, este texto formava parte de um ensaio maior no qual
eram relacionadas algumas das ações empreendidas desde 1959 para lutar contra a discriminação racial.
2 N. da T: Refere-se a José Martí, prócer da independência cubana.
368
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
Antes de 1959, os direitos constitucionais que condenavam a discriminação
racial eram na sua maioria letra morta. Depois do triunfo da revolução acreditou-
se que com apenas o apelo à consciência, e com o acesso objetivo a novos
postos de trabalho e aos diferentes níveis de instrução, ficavam eliminados o
racismo e seus elementos reprodutores: o preconceito e a discriminação racial.
Essa crença trouxe como conseqüência a falta de uma atenção mais cuidadosa
para evitar o aparecimento dos preconceitos que havia contra os negros e suas
manifestações culturais tangíveis e não tangíveis, herdadas dos africanos e das
primeiras gerações de negros nascidos em Cuba.
Esse descuido contribuiu para que fossem mantidas práticas discriminatórias
e preconceitos levantados pelas classes e setores que impunham seus cânones
marginalizadores como uma forma de não compartilhar seus espaços sociais,
econômicos, políticos e culturais, ante o temor de perder seus privilégios
classistas.
Ações AfirmAtivAs
Nem todos os cubanos que participaram da luta contra a discriminação,
desde os tempos mais remotos até o presente, acolheram bem o conceito de
ação afirmativa. O referido conceito não era muito conhecido em Cuba, antes
de 1959, depois dessa data, seu emprego em outras latitudes tem sido muito
valorizado, mas não sua aplicação entre nós, como uma das alternativas para
buscar a solução do problema racial e cultural do negro cubano. Mas, o que é
em realidade uma ação afirmativa?
A história que nos chega da Índia nos ensina que as ações afirmativas
surgiram nesse país quando Bimrao Ramji Ambedkar (1891-1956), que pertencia
à casta dos intocáveis propôs ao colonialismo britânico a representatividade da
população considerada inferior (KUBER, 1978; THE NEW NEW EENCYCLOPEDIA; 277).
Ele acreditava que esse regime discriminador poderia ser eliminado caso seus
membros acedessem gradualmente a espaços até então proibidos para eles.
Portanto, ações afirmativas são aquelas medidas aplicadas quando se tem um
respaldo legal que autoriza e permite o gozo de direitos sociais, políticos, etc., aos
membros de uma minoria, de maneira proporcional, para facilitar o seu acesso
a determinados espaços dos quais haviam sido historicamente marginalizados,
e conseguir, ao longo do tempo, o desaparecimento dessa desigualdade. Por
exemplo, a incorporão, nos Estados Unidos, dos negros aos postos de trabalho,
369
Tomás Fernández Robaina
aos centros de ensino, aos quais eles não tinham tido oportunidade de acesso.
Esse fenômeno materializou-se naquele país como conseência da longa luta dos
direitos civis. Essa batalha teve como saldo positivo o fato de que, desde então,
pelo menos legalmente, a discriminão está condenada e garante a incorporação
proporcional ao ensino e ao trabalho das minorias étnicas que povoam aquele país.
Essa é, objetivamente, uma opção viável para tratar de eliminar as diferenças cio-
ecomicas, culturais. Portanto, as ações afirmativas podem ser explicadas como
aquelas que privilegiam cidaos discriminados nas sociedades contemporâneas
por sua origem classista ou de casta, raça, sexo, cultura ou orientação sexual, com
o objetivo de minimizar até eliminar as diferenças e obter o respeito ao direito de
suas diferenças e sua aceitação democtica dentro de cada comunidade.
Aqueles que expressaram a conveniência de pôr em prática ações afirmativas
tiveram que enfrentar duras réplicas, sendo recriminados pelo desejo de trasladar
de forma mecânica a experiência estadunidense à realidade cubana, quando a
nossa realidade nada tem a ver com aquela.
Mas, está certo esse julgamento? Em nossa luta contra a discriminação
racial do negro não houve tentativas de ações afirmativas? Se entendemos
o conceito como toda medida que tem respaldo legal para conseguir um
equilíbrio da justiça social para aqueles que, histórica e majoritariamente, têm
estado impedidos de exercer muitos dos seus direitos direitos, poderiam ser
consideradas como ação afirmativa as medidas legais que permitiam que os
escravos comprassem sua própria liberdade (ORTIZ, 1986). Mas essa legislação
não foi feita para beneficiar o escravo em primeira instância, mas sim para
não prejudicar economicamente o escravocrata. Mas é verdade que aqueles que
puderam alforriar-se o fizeram, como bem menciona a historiadora Rebeca
Scott, em seu importante livro La emancipación de los esclavos en Cuba: La
transición al trabajo libre 1860 – 1899.
Devemos ter bem claro que a função fundamental da ão afirmativa
reside em sua execução como uma medida transiria para elevar o nível
educativo, social e econômico daqueles que sempre foram afastados dessas
possibilidades. Portanto, toda ação afirmativa é algo provirio, um processo
dialético. Uma vez conseguido o nivelamento, o balanço adequado, deixa
de ter seu sentido e se converte no oposto do que realmente a originou,
caso se insista em sua execução e permanência indefinida. Mas chegar a
esse estado é o resultado de um longo processo que ainda não foi atingido
por nenhuma sociedade.
370
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
O Partido Independente de Cor(PIC)
3
pode muito bem ser visto, nessa
perspectiva explicada, como a ação afirmativa mais relevante assumida pelo
movimento negro de Cuba em toda a sua história, em uma etapa em que o
conceito de ação afirmativa estava ainda muito longe de surgir. O PIC foi uma
organização nascida dentro da legalidade constitucional daquela época: final
da segunda intervenção estadunidense. Seu fundador, Evaristo Estenoz, tinha
a firme convicção de que se todos os negros militassem em um partido seria
possível lutar pelos direitos do negro de modo mais objetivo. Além disso, o
programa (ROBAINA, 1994:1925) do Partido contemplava todos os aspectos
necessários para garantir o exercício e o acesso a todos os direitos constitucionais
que não haviam estado ao alcance da população negra cubana. Não dúvida de
que o PIC poderia ter sido uma solução viável, mas o medo ao negro
4
, surgido
como conseqüência do triunfo da revolução haitiana, foi um temor latente
durante todo o Século XIX. Esse medo foi herdado no século XX, convertido
em um racismo, dissimulado ou não, cujos preconceitos discriminavam os
negros e suas manifestações culturais e religiosas.
O projeto do PIC fracassou em virtude da aprovação da Emenda Morúa
5
,
apresentada ao Congresso por Martín Morúa Delgado (1856-1910). Essa
Emenda colocou na ilegalidade a mencionada organização potica, por um
consenso que considerava prejudicial ao país a formação de um partido cujos
membros pertencessem a uma só raça. Esse veto também se materializou
porque os partidos tradicionais daquela época temiam não poder seguir
manipulando o voto dos eleitores negros. Os fatos mencionados podem
explicar em parte o genocídio cometido, em 1912, contra os independentes
3 O primeiro a realizar um estudo amplo sobre o PICH, foi Serafín Portuondo Linares com Los Independientes
de Color, primeira edição de 1950 e a mais recente de 2002. Aline Helg escreveu o estudo mais importante
sobre o PIC, título em português de seu Our Rightful Share. The Afro-Cuban Struggle for Equality, 1886
– 1912 (1995). Também em edição em inglês A Nation for all = Una Nación para todos, Alejandro de la
Fuente, nas edições de seu livro em inglês e espanhol, analisa o PIC e todo o processo da luta contra a
discriminação do negro em Cuba. Para quem deseje ampliar ver a Bibliografía de temas afrocubanos(1986)
e seu suplemento(2001) e La Bibliografía y los estudios afrocubanos na revista TEMAS, oct.-dic.1996.
4 Medo ao negro: ficou patente o temor dos escravocratas e comerciantes espanhóis e nacionais de que
houvesse uma insurreição similar à haitiana. Os ideólogos do sistema escravista, fundadores da nacionalidade
branca cubana, formularam toda uma teoria e metodologia racistas para a eliminação física do negro e o
branqueamento gradual da população cubana, mediante a união sexual com essa finalidade das mulheres
negras com brancos imigrantes europeus. Ver a análise sobre José Antonio Saco, Francisco Arango y Parreño
e Domingo del Monte, entre outros, em Cepero Bonilla, Raúl (1960).
5 Emenda Morúa. Apresentada ao Congresso por seu autor para impedir as atividades legais do Partido
Independente de Cor. Martín Morúa Delgado (1856-1910) foi uma figura controversa politicamente; foi
o eterno rival de Juan Gualberto Gómez(1854-1933). Cultivou o jornalismo e o romance.
371
Tomás Fernández Robaina
de cor, ocasião em que morreram mais de dois mil militantes, determinando
seu desaparecimento definitivo.
Posteriormente, a maior parte das ões do negro em prol de seus direitos
voltou-se para o esforço individual promovido por Juan Gualberto mez
(1854-1933)
6
, uma vez que as tentativas diferentes, coletivas, sem chegar a
uma organizão potica, não tiveram êxito.
Com a fundão do Partido Comunista de Cuba, em 1925, o femeno
racial começa a ser enfocado como uma conseência da sociedade dividida
em classes sociais antagônicas. Postulava-se que com o desaparecimento
da sociedade capitalista e o início da sociedade socialista a problemática
racial deixaria de existir. Isso fica evidente quando se recordam as palavras
de Nicolás Guillén (MOREJÓN, 1974),
expressadas nesse sentido. Ele
que estimava que apenas com a abolão da sociedade dividida em classes
antagônicas a discriminação racial desapareceria por si só, porque era
conseqüência da referida sociedade. Mas eno, como ele mesmo asseverou,
isso era visto como algo muito distante. No entanto, a experiência cubana
evidencia que a luta contra o racismo é muito mais complexa e dicil que
a luta de classes.
Na cada de trinta, depois da queda do ditador Gerardo Machado (1871-1939)
7
,
o partido comunista levantou uma palavra de ordem que postulava a criação da
faixa negra oriental. Propunha-se claramente que naqueles municípios da porção
sul da província de Oriente, onde a maioria da população era negra, os negros é
que deveriam candidatar-se aos cargos municipais e exercer o poder potico nessas
áreas. Essa proposta o contou com muito apoio popular, e muitas cadas depois
foi analisado o erro de tal postulado do seguinte modo:
Se na chamada Faixa Negra de Oriente ... os negros e mulatos constituíam
... 58.3% de sua população, eles constituíam, no entanto, não mais de 22.4%
6 Juan Gualberto Gómez (1854-1933) O intelectual afro-cubano mais importante do século XIX e das três
primeiras décadas do XX. Foi um decidido lutador da convivência e confraternização de brancos e negros
como uma forma de se conseguir o desenvolvimento harmônico e social da Ilha. Opôs-se no século XIX e
no XX à existência de organizações integradas por negros. Com essa finalidade desenvolveu sua filosofia
da fraternidade, que expôs primeiro através do periódico La Fraternidad e em seu projeto da Sociedade
Fraternal Cubana, que nunca se materializou.
7 Machado governou o país de modo ditatorial. Foi qualificado pelo dirigente estudantil Julio Antonio
Mella como asno com garras. Em seu governo inicia-se o movimento social e cultural mais significativo
dos afro-cubanos em toda nossa história, promovido por Gustavo E. Urrutia (1881-1958), a partir de sua
coluna e página dominical Ideales: Una raza (1928-1931)
372
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
da população negra de todo o país... Estes números indicam por sique,
mesmo no caso da palavra de ordem do direito à autodeterminação ter sido
justa, esse direito não podia ser exercido por 77.6% da população negra que
vivia fora da faixa negra de Oriente
(PREGUNTAS, 1976).
Independentemente do objetivo de tal conclusão, do ângulo em que é feita,
teria sido interessante ter contado com essa experiência, mas se vê pelo estudo
daquele período que o contexto não era favorável para tal gestão.
Gustavo E. Urrutia (1881-1958)
8
conclamava os negros a fazer ato de
presença na economia; asseverava que essa era uma das formas em que o
negro devia fazer-se sentir e respeitar. Reclamava essa ação a partir de posições
muito modestas, como sair vendendo frutas com uma cesta ou um carrinho
de mão, para que a partir desse início e desse esforço, o negro pudesse ir se
desenvolvendo economicamente. Obviamente essa exortação, embora fosse uma
nobre contribuição, não era fácil de ser cumprida.
As leis contra a desigualdade racial propostas na Constituição de 1940
(ROBAINA, s/d) foram letra morta, pois as leis complementares que deveriam
ter sido promulgadas jamais foram redigidas, apesar da longa demanda dos
setores progressistas de então, basicamente os membros do Partido Socialista
Popular
9
. Se tivessem sido promulgadas essas leis complementares, ter-se-ia à mão
um instrumento legal que penalizava os atos discriminatórios que aconteciam
diariamente na sociedade, e isso teria sido um apoio legal muito eficaz para a
realização de ações que buscavam combater a discriminação.
Walterio Carbonell (1921), autor de
Crítica: Como surgió la cultura
nacional, um dos livros mais reveladores para quem se interessa pelo estudo da
identidade nacional em Cuba, foi protagonista de um fato que levou à realização
espontânea e violenta de uma ação contra a discriminação (DESORDON,
1949; ROBAINA, 1998:84. Ao tentar entrar com uns amigos em um cabaré,
foi proibida a entrada de um deles por ser negro, mas não a dos brancos;
por isso negros, brancos e mulatos integrantes do grupo decidiram entrar à
força. É claro que tudo terminou na delegacia e o processo foi considerado
simplesmente como um escândalo em via pública; a conotação racial não
apareceu em lugar algum, mesmo que a imprensa tenha mencionado o fato
8 “...cremos que a raça negra deve , de agora em diante, dedicar o melhor de sua atividade a organizar-se
economicamente, sem lirismo nem delírios de grandeza” (Urrutia, 1929: 45). Caso se deseja ampliar o
conhecimento sobre este pensador, ver APROXIMACIÓN (1986).
9 Partido Socialista Popular é o nome que se adota para o partido que surgiu como resultado da fusão
dos Partidos União Radical e Comunista de Cuba.
373
Tomás Fernández Robaina
como tal. Provavelmente ocorreram muitos atos como este, mas nem sempre
chegaram a ser notícia de jornal.
Juan Re Betancourt
foi o propulsor de todo um movimento que pode
ser considerado precursor de uma política de ações afirmativas, pelo menos
parcialmente, segundo o critério de cada um. Ele elaborou um conjunto de medidas
que, evidentemente, nunca contaram com o apoio oficial e nem sempre foram
compreendidas cabalmente por todos os que desejavam lutar contra a discriminação
racial. Betancourt foi autor de dois importantes livros: Doctrina Negra (1955) e El
negro, ciudadano del futuro (1959). Fundou a Organizão Nacional de Recuperão
Econômica (ONRE) que tinha como objetivo principal a crião de uma empresa
que construísse prédios de apartamentos confortáveis para os negros, com um
aluguel acesvel ao bolso dos profissionais negros, bem como lojas e espaços de lazer.
Essas ões respondiam à dificuldade que algumas famílias negras enfrentavam na
hora de mudar para um edicio em uma zona onde a população negra não fosse
relevante. Também se perseguia a idéia de que os consumidores negros comprassem
em uma cadeia de lojas que se projetava abrir, para desse modo contribuir para
o desenvolvimento da ONRE. É claro que Betancourt sabia que a minoria negra,
com seus recursos econômicos, não podia por si bancar todo o projeto, e por
isso buscou a ajuda dos comerciantes e investidores de todas as raças. Mas o projeto
de Betancourt o floresceu muito.
A questão rAciAl De 1959 A 1984
A década de cinqüenta foi muito agitada, mesmo antes da quartelada de
10 de março de 1952. Esse golpe de Estado, dirigido pelo general Fulgencio
Batista
10
gerou una oposição cada vez maior, o que provocou ações bélicas
de suma importância como os assaltos aos quartéis Goicuría, Guillermón
Moncada, (Santiago de Cuba, 1953) Carlos Manuel de Céspedes (Bayamo, 1953);
o levantamento de Cienfuegos; e o desembarque dos expedicionários do iate
Granma (2 de dezembro de 1956) que iniciou a guerra de libertação presidida
por Fidel Castro. Todos estes acontecimentos prenderam em grande parte a
atenção e o interesse da cidadania.
10 Fulgencio Batista y Zaldivar (1901 – 1973) o golpe de estado de 4 de setembro e de simples sargento
chega a general. Dominou a política do país posterior ao machadato. Eleito presidente de 1940 a 1944,
voltou ao poder mediante seu segundo golpe de estad, em 10 de março de 1952. Reprimiu sanguinariamente
a oposição. Fugiu do país após a queda da cidade de Santa Clara em poder do exército rebelde.
374
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
A probletica do negro e de sua discriminação pareceu esfumar-se,
aparentemente tornou-se invisível, sobretudo nas primeiras semanas após a
ascensão do poder revolucionário. Mas em 15 de fevereiro de 1959, Juan René
Betancourt
11
publicou um artigo (1958) no qual expressava sua satisfação pela
queda de Batista e pelas esperançosas promessas da Revolução de iniciar o
desenvolvimento econômico, social educacional e cultural do país. Manifestou
que achava conveniente que o Governo Revolucionário se pronunciasse e desse a
conhecer qual ia ser sua política no que se referia à luta contra a discriminação
racial. Agregou que era evidente que se viam muitos negros formando parte do
exército rebelde, com patente de oficial, como o comandante Juan Almeida,
mas que no Conselho de Ministros não havia nenhum descendente de africano.
Foi realmente uma observação muito honesta e revolucionária.
P
rimeiro APelo de fidel CAstro (1959)
Não está confirmado que o apelo de Fidel Castro em seu primeiro discurso
de 22 de março, publicado no dia 23 no diário Revolución tenha sido motivado
pelo artigo de Juan René Betancourt, mas o certo é que nesse muito inteligente
discurso, o dr. Castro demonstrou estar bem informado sobre a problemática
racial cubana. Por isso demandou de forma veemente a todos os intelectuais,
historiadores, criadores, que contribuíssem para a erradicação do preconceito,
do racismo e da discriminação racial.
As respostas
12
ao apelo do Comandante em Chefe foram muito diversas e
não poucas propuseram a realização de ações afirmativas muito concretas. No
entanto, chama a atenção que tais ações estivessem dirigidas mais ao trabalho e
à educação que ao setor cultural, que, em realidade, o mais urgente era criar
possibilidades eqüitativas e justas na hora de aspirar a um posto de trabalho.
Por essa razão expôs-se a conveniência de uma proporcionalidade de negros
em cada centro industrial e comercial, levando em conta a porcentagem total
dos trabalhadores.
Algumas propostas (GONZÁLEZ MARTIN, 1959) assinalavam a necessidade
de mudar o sistema de ensino para combater as seqüelas dos reflexos
11 Anteriormente já havia publicado La cuestión racial (1959a).
12 Entre alguns deles devem ser mencionados: Peña (1959); Rodríguez (1959); Martínez Collado (1959).
375
Tomás Fernández Robaina
condicionados através de séculos, pois o negro era visto ainda como um ser
inferior por parte de alguns setores de nossa sociedade.
Am disso, em muitos espaços foram oferecidos seminários, palestras e debateu-
se bastante a problemática na imprensa (ENTRALGO, 19959; HENRIQUETA,
1959). nesse momento se levavam muito em conta as palavras da interveão do
próprio comandante em chefe (CASTRO RUZ, 1959b)
na televisão cubana, onde
ele enfatizou o fato de que a contra-revolão interna e a ameaça sempre presente
de Washington de materializar a “potica da fruta madura”, tornava necessária a
unidade de todo o povo revolucionário e o rechaço a tudo quanto pusesse em perigo
essa coesão, pelo qual considerou ajuizado deixar de falar do problema racial, que
em virtude da Revolão as ões discriminatórias tradicionais haviam sido abolidas
objetivamente: os negros podiam caminhar por todas as áreas dos parques blicos,
entrar em todos os restaurantes E outros locais de lazer onde historicamente não
era usual a presea de negros.
O chamado à luta sintetizou-se em evitar as ações discriminatórias; elas
foram condenadas pela Revolução desde esse momento; por isso, começou a
surgir a ilusão de que a discriminação havia sido abolida na nossa sociedade;
muitos negros começaram a trabalhar nos bancos e a desempenhar funções
anteriormente vetadas para eles; além disso, não houve um hotel, associação
recreativa ou qualquer classe de estabelecimento público onde lhes fosse negada
a entrada por causa da cor da pele.
A proposta de Juan René Betancourt, de utilizar a Federação Cubana de
Sociedades de Cor
13
como um meio para apoiar a Revolução e estimular e
sistematizar a luta contra o racismo de um modo organizado, não se adequava à
visão da probletica racial que o poder revolucionário tinha naquele momento.
Ocorreu algo paradoxal: enquanto a maioria das organizações sociais e operárias
se reorganizava, para adequar-se ao processo revolucionário, e surgiam outras,
como a Federação de Mulheres
14
, os Comitês de Defesa da Revolução
15
, a União
dos Pioneiros
16
, entre outras mais, a principal associação dos negros, pela qual
historicamente tinham lutado, a Federação de Sociedades de Cor, desapareceu,
13 A Federação de Sociedades de Cor agrupava todas essas sociedades. Foi uma das conquistas do movimento
negro cubano.
14 A Federação de Mulheres Cubanas Aglutina as mulheres do país para defender seus direitos e apoiar a
Revolução Cubana.
15 Os Comitês de Defesa da Revolução surgiram por iniciativa de Fidel Castro para vigiar e evitar as atividades
contra-revolucionárias.
16 União de Pioneiros de Cuba: reuniu os estudantes do ensino primário como um modo de educa-los
ideologicamente dentro das novas concepções revolucionárias e martianas.
376
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
ao não ser permitida a existência de sociedades integradas unicamente por
negros e/ou mulatos, pois graças à Revolução todas as sociedades de recreação
e/ou de ensino do país se abriam para todos os cidadãos sem distinção de raça
ou procedência social.
Por outro lado, a imprensa cubana (ROA, 1959; CARRASCO, 1967) e o
povo em geral seguiram muito de perto o desenvolvimento dos direitos civis
nos Estados Unidos. Fomos solidários com seus reclamos cívicos, políticos e
culturais; também apoiamos incondicionalmente a luta contra o apartheid do
povo negro da República da África do Sul. Acreditou-se muito romanticamente
que por termos nos declarado socialistas, os preconceitos sexistas, religiosos,
racistas, machistas e homofóbicos iam perder seus poderes discriminadores.
Mas uma visão profunda do que acontecia em Cuba nas duas primeiras décadas
do triunfo revolucionário deixa ver claramente que alguns desses preconceitos
eram até reforçados.
As Unidades Militares de Ajuda à Produção(UMAP)
17
, às quais foram
enviados homossexuais e religiosos, particularmente Testemunhas de Jeová,
foram ações felizmente superadas e que não devem ser esquecidas, para
evitar-se cair em erros similares, não apenas em nosso país, mas em outros onde
estejam sendo levadas a cabo transformações sociais radicais.
Embora se procurasse erradicar das pessoas os preconceitos racistas, por
outro lado se estimava que, em virtude da educação e da instrução de negros e
brancos, os jovens religiosos vinculados com as crenças de origem africana se
afastariam espontaneamente de tais manifestações, na medida em que fossem
atingindo níveis superiores de instrução e cultura; com o passar do tempo essa
herança cultural e religiosa desapareceria. Por esse motivo, da mesma forma que
nos tempos de Fernando Ortiz (1881-1969)
18
, Rómulo Lachatañeré
19
e Lydia
17 A UMAP foi criada como um meio de reeducação social e moral, mediante o trabalho. Foi um lamentável
erro que deixou uma triste marca em milhares de pessoas.
18 Fernando, Ortiz Fernández (1881-1969) é chamado de terceiro descobridor de Cuba, porque foi o primeiro
a assinalar a importância da cultura africana cultivada pelos escravos e seus descendentes e sua contribuição
à cultura e identidade nacional.
19 Rómulo, Lachatañeré ( 1959m) desenvolveu um relevante trabalho no estudo de nossas raízes africanas.
Todo o seu esforço aparece publicado em: El sistema religioso de los afrocubanos (2001, 414 p. Este
texto inclui seus livros); !Oh mío Yemayá; Manual de Santería, El sistema religioso de los lucumi y otras
influencias africanas en Cuba, e seus artigos aparecidos em diversas fontes.
377
Tomás Fernández Robaina
Cabrera (1902-2001)
20
, enfatizou-se a urgência de resgatar o acervo legado pelas
culturas africanas ainda existentes em Cuba, pois o perigo de que se perdessem
era mais certo que naqueles tempos.
No entanto, houve uma enorme contradição: por um lado se pretendia o
êxito de tal política, enquanto que, por outro, as histórias dos orixás, as danças
de origem ioruba, arara, congo, carabal; eram ensinadas em todo o território
da ilha pelas centenas de instrutores de dança. Inconscientemente ou não se
realizava uma ação afirmativa de índole cultural, ou pelo menos se pode avaliar
essa questão desse ângulo, porque para os crentes dessas religiões, o fato de que
esse fenômeno ocorresse era uma manifestação do poder dos próprios orixás,
de suas diferentes deidades, apesar de que o que se pretendia oficialmente era
apenas mostrar o fato artístico
21
.
P
rimeiro movimento dA negritude
Tampouco se pode passar por alto o movimento da negritude que brotou
em fins dos anos sessenta e início dos setenta e que, em certa medida, pode
irmanar-se com o surgimento da literatura negra ou afro-cubana dos anos trinta.
Um elemento que não tinha sido visualizado no movimento negro de toda a
República surgia, aparentemente motivado ou como conseqüência das leituras
dos textos de Aime Cesaire
22
, Leopold Senghor (1961), Frantz Fanon
23
.
O movimento social do negro em Cuba tinha estado integrado por
intelectuais, escritores, médicos, advogados, jornalistas, que respondiam aos
cânones impostos pela cultura eurocêntrica na qual todos haviam sido educados.
20 Lydia, Cabrera (1902 - 1991) escreveu alguns dos livros mais importantes sobre a religiosidade de origem
africana em Cuba, que publicou na Ilha antes de 1959. Posteriormente à sua saída do país, reeditou e
publicou novas contribuições: El Monte, La Sociedad Secreta Abakúa, Yemayá y Ochun, são algumas
delas.
2 1 Em entrevistas realizadas sobre a valorização dessas crenças no início da Revolução, a maior parte dos
entrevistados expressou que era algo bem claro para eles do ponto de vista religioso, que ver as deidades
de origem africana, seus cantos e danças apresentados como espetáculos artísticos era a demonstração de
seus poderes que, depois de tantos séculos de ocultação, eram dados a conhecer mais amplamente desse
modo.
22 Deste autor eram bem conhecidos pelos jovens interessados na cultura os seguintes títulos: Cahiers d´un
retour au pays natal, que tinha uma tradução de Lydia Cabrera publicada antes de 1959, e Discours sur
le colonialisme.
23 Les damnés de la terre (1961); Paux noire masques blancs (1952); Pour la Revolution africainne, écrits
politiques (1964) foram alguns dos livros conhecidos posteriormente ao serem traduzidos ao espanhol,
ampliando os leitores.
378
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
Portanto, as demandas se centravam na luta pela igualdade de oportunidades,
contra a discriminação racial no trabalho, na educação, nos espaços públicos,
pelos direitos políticos, esportivos e sociais em geral. Poucos falaram de forma
encomiástica e respeitosa sobre a cultura de seus ancestrais, e nem sempre com
a justa valorização, como o fez Gustavo E. Urrutia, que expressou em certa
ocasião:
Aproximaram-se de mim mais de um amigo e de uma amiga, inteligentes e
bons desses que não padecem do complexo de inferioridade –, perguntando-
me se com esses programas de rádio em que soam tambores e cantos africanos
o que proponho é estimular, ou manter, ou extirpar o “ñañiguismo”
24
e a
bruxaria.
A pergunta, em essência e com toda a sua importância, é assim: Devemos
estimular a tradição africana ou devemos extirpá-la? (URRUTIA, 1935:2).
Obviamente, a resposta asseverava que a única coisa que se devia fazer era
explicá-la, fazer com que fosse conhecida. Por isso, algumas linhas depois
assegurava que:
Posto que é ao ramo negro do povo de Cuba que se costuma imputar uma
ancestralidade selvagem e bárbara; e como é ao afro-cubano que se pretende
envergonhar, coagir com supostas heranças de inferioridade, com taras raciais
denegridoras; por isso mesmo é o afro-cubano que peremptoriamente tem a
incumbência de conhecer profundamente, dar a conhecer e explicar os valores
religiosos, morais e artísticos de seus avós negros, que nada têm a invejar em
moralidade nem em refinamento espiritual aos de seus avós brancos, e que,
pelo contrário, vêm nutrindo muito generosamente a cultura branca sem
que o branco tenha se dignado a inteirar-se, reconhecê-lo e agradecer, até
pouco tempo e nos países mais avançados do mundo (Ibidem).
Não era muito comum nessa época que os intelectuais negros cubanos
emitissem publicamente tais critérios. Mas, apesar da nobre intenção de Urrutia,
uma boa parte da população continuou surda às suas palavras como às do
próprio Fernando Ortiz, no início do século XX.
Este primeiro movimento da negritude fixou mais a atenção sobre a
espiritualidade, a auto-estima da mulher negra e do homem negro e suas qualidades
estéticas. Refletiu também uma profunda preocupação social e política sobre os
problemas de seus irmãos nos Estados Unidos e na República da África do Sul.
No entanto, seus cultivadores não tiveram muito espaço para expor amplamente
suas idéias. O contexto de então não foi favorável a esse debate. Considerou-se que
24 N. da T.: irmandade negra masculina surgida como reação à opressão dos senhores de escravos.
379
Tomás Fernández Robaina
falar da problemática racial, tanto de seus aspectos sociológicos como ideológicos,
podia debilitar a unidade tão necessária de todo o povo para enfrentar a ameaça
dos que se opunham à Revolução Cubana com o apoio aberto de Washington.
Isso explica em grande parte a reação cubana diante da questão de Carlos Moore
(1964): “Os negros têm seu lugar na revolução cubana?”
Esta interrogante não era nova no movimento social do negro cubano.
O Partido Independente de Cor tinha sido uma forma de ganhar esse lugar,
ao terem falhado as soluções anteriores de integração do negro aos códigos
eurocêntricos impostos pelos colonialistas e herdados na república. com
a revolução é que a esperança voltou, a certeza de que, pelo menos algo podia
ser conseguido. Mas não passou muito tempo para que, por muitas e diversas
razões, ao mesmo tempo em que se materializavam muitas idéias propostas
pelos independentes, como o ensino obrigatório e gratuito, percebia-se uma
ausência, uma falta de representatividade da mulher, da juventude e da etnicidade
geral do povo nas esferas administrativas, entre outras. Esses fatos refletiam a
complexidade do processo social revolucionário, e determinaram o que bem
pode ser considerado o primeiro esboço de uma política oficial de “ações
afirmativas”.
s
egundo APelo de fidel CAstro
No encerramento do Terceiro Congresso do Partido Comunista de Cuba,
seu Primeiro Secretário (CASTRO RUIZ, 1986:2)
expôs a necessidade de que as
mulheres, os jovens e os negros estivessem representados nos diferentes níveis do
poder revolucionário: o Estado, o Governo, o Partido, a administração pública
em general. Essa proposta foi muito bem recebida pelos que haviam estado
sugerindo tal ação. De novo a figura de Walterio Carbonell veio à lembrança
dos que sabiam que, em mais de uma oportunidade, ele havia enviado cartas ao
nível máximo do Partido expondo a necessidade da representatividade negra.
Sem dúvida operou-se então uma notável mudança, mas não se pode afirmar
que o balanço final foi totalmente positivo.
A orientação não dizia que apenas por ser negro alguém devia ser promovido,
mas essa possibilidade foi sugerida fundamentalmente para a promoção de
negros e negras que, por seu profissionalismo e experiência de trabalho em suas
respectivas esferas, tivessem contribuído para uma imagem que pudesse influir
também em outros, para ser tomados como paradigma e promover o interesse
pelo estudo e a superação entre os negros. De maneira geral, a orientação não
380
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
foi interpretada corretamente. Provavelmente foi bem aplicada em muitos
casos, mas o que observamos das pesquisas e entrevistas efetuadas, é que nem
sempre foram selecionados os mais capazes. Quando foi preciso afastar os que
não haviam cumprido as expectativas, o comentário foi uma amostra a mais
da existência dos preconceitos racistas, pois não se atribuía a demissão à falta
de experiência ou de conhecimento, mas à condição racial. Chama a atenção o
fato de que nos casos contrários, o fato de ser negro ou negra não se destacava
como exemplo. Mas não podemos ignorar critérios ainda prevalecentes que
retratam de corpo inteiro os que o emitem quando se encontram diante de um
negro altamente qualificado, educado: é um branco em tudo, menos na pele.
o foram detectadas refencias na imprensa
25
em datas próximas e
posteriores ao quarto congresso do Partido Comunista, sobre os resultados
da representatividade racial. Obviamente, o fato desse assunto não ter
chegado aos meios de comunicação de massa não significa que não tenha
sido debatido internamente. Pelo menos hipoteticamente existe essa
probabilidade.
Na década de setenta coma a se abrir um espo para a problemática
racial, cultural y religiosa de origem afro-cubana. Jesús Guanche lançou
seu Procesos Etnoculturales de Cuba (1977), obra que independentemente
das limitações que apresenta ao julgar as culturas de origem africana, foi
uma contribuição novel porque provocou a reflexão sobre os argumentos
que manejou, principalmente sobre a santería
26.
, e em geral sobre as creas
afro-cubanas. Am disso, é uma mostra da maneira de pensar que havia no
mundo científico cubano dessa época sobre as referidas manifestões. Seu
texto funcionou como um motor, como um acicate para pesquisar mais
profundamente o contexto religioso e cultural do momento.
Pedro Serviat lança El Problema Negro en Cuba y su solución definitiva
(1986), título que brinda importante informação que mostra e ressalta tudo
o que a Revolução havia feito até esse momento em prol da igualdade racial,
mas ao mesmo tempo reflete uma deficiência conceitual profunda, ao dar
como resolvida essa temática, justamente em um momento em que no aspecto
individual os preconceitos se reproduziam e se demandavam medidas para
combatê-los.
25 Realmente a busca foi infrutífera, mas é impossível que um discurso ouvido por milhares, e que tivesse
aplicadas suas recomendações, não merecesse pelo menos um breve parágrafo.
26 N. da T.: religião de origem africana praticada pelas populações negras cubanas.
381
Tomás Fernández Robaina
A Biblioteca Nacional José Martí editou em 1986 a Bibliografía de Temas
Afrocubanos (FERNÁNDEZ ROBAINA, 1986)
27
que colocou à disposição dos
pesquisadores um instrumento de consulta e referência que tem sido altamente
valorizado pelos especialistas. Também em 1984, havia circulado em forma de
folheto o texto Los Santeros (idem, 1983), que foi publicado posteriormente
em 1985, na antologia Talleres Literarios 1984 com o nome de Orisha no baja,
e que em 1994 circula em sua primeira edição com o título de Hablen paleros y
santeros. Gabino La Rosa lançou em 1988 sua importante obra Los Cimarrones,
tema que ainda não tinha sido abordado com uma visão tão abrangente e
detalhada como nesse texto.
Carlos Moore escreveu
Castro, los Negros y África (1988), duramente
criticado por cubanos e estrangeiros. Foi um livro que fez com que muitos,
motivados pela leitura de suas análises, repensassem a situação real do negro
em Cuba, em oposição às formulações e enfoques do autor, para buscar a
possibilidade de um equilíbrio, e não ver o tema de modo pessimista.
Essas obras, entre outras, contribuíram também para a abertura do espaço
para o debate da problemática racial e da religiosidade de origem africana o
que, em boa medida, também contribuiu para uma maior conscientização
das mulheres e homens negros. Não foi por acaso que justamente em 1990 a
década se inicie com a publicação de Los Orishas, de Natalia Bolívar
28
, livro
de suma importância porque abriu de forma ampla o espaço à literatura
afro-cubana. Foi seguido por vários tulos da própria autora e de outros.
Nesse mesmo ano circula El Negro en Cuba: Apuntes para la historia de la
discriminación en Cuba (1902-1958), de T.F. Robaina, cujo mérito principal
reside em oferecer um panorama dessa luta durante a República com uma
visão objetiva de tais fatos.
d
o Período esPeCiAl Até A AtuAlidAde
O início do período especial, em 1990, devido ao desaparecimento do campo
socialista e conseqüentemente à perda de todo o apoio que Cuba recebia desse
bloco político e econômico, fez ressurgir desigualdades sociais e financeiras,
27 Em 1968 publicara-se a Bibliografia de estudos afro-americanos, e em 1971 o Índice das revistas folclóricas
cubanas.
28 Este título foi reeditado posteriormente e a ele se somam Opolopo Owo (1995), Mitos y leyendas de la
comida afrocubana (1993), entre alguns mais.
382
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
anunciadas pelo próprio governo revolucionário, diante da inevitável crise
social, econômica e política na qual adentrávamos.
Obviamente, não passou muito tempo para que surgisse a preocupação e
interesse em saber que setores da sociedade seriam os mais atingidos. Toda a
suspeita recaiu sobre a população negra; as grandes oportunidades de acesso
aos estudos médios e superiores que a Revolução dava aos cidadãos de todo o
país foram amplamente aproveitadas por todos e, em grande medida, também
pelos negros, nos primeiros tempos do processo revolucionário. Mas depois
das três primeiras décadas observou-se que em algumas áreas profissionais e de
estudos universitários a presença negra era muito precária e isso se explicava
como conseqüência da falta de hábito de uma tradição de estudos, de superação,
entre a maioria desse setor social de nossa população.
Nesse sentido nunca havia sido desenvolvido um programa para o avanço
educacional e social da população negra do ponto de vista individual e coletivo,
pois não se tinha presente que os descendentes de africanos estavam realmente
em desvantagem no acesso aos estudos superiores e técnicos, porque em sua
maioria eram analfabetos; e os que tinham podido ultrapassar essas barreiras
nem sempre tinham as mesmas possibilidades que seus irmãos brancos no
acesso a postos de trabalho significativos.
Pouco tempo depois do início do período especial a problemática racial
começou a se manifestar em várias conferências e eventos em que se abordavam
temas vinculados com a contribuição histórica, social e cultural do negro
para a nossa formação e identidade como nação. Esse interesse deu origem ao
surgimento de outros espaços nos quais foram debatidos amplamente esses
tópicos.
O notável autor e cantor Gerardo Alfonso,
29
criou uma singular peña
ou tertúlia, auspiciada pela Associacn Hermanos Saíz, em sua sede La
Madriguera, na Quinta de los Molinos onde se reuniam todas as semanas
representantes de diferentes gerações. Falava-se de música cubana, do hip hop,
mas principalmente eram comentadas as experiências negativas de vários
dos participantes que eram provas irrefutáveis da vigência dos preconceitos
raciais em determinados sectores de nossa sociedade. O que se pretendia era
chamar a ateão oficial para o que estava ocorrendo, e por esse motivo
foi dada a orientação de enviar cartas aos diferentes níveis do Partido e
29 Importante cantor, autor e trovador. Autor da popular melodia que se converteu em algo como uma
canção símbolo de Havana: Sábanas blancas en los balcones.
383
Tomás Fernández Robaina
do Estado para dar a conhecer esses acontecimentos. o importava que
fossem simplesmente fatos isolados, como muitos alegaram, argumentando
que a Revolução era radicalmente contra essas manifestações. Asseverão
que todos compartilhávamos. O objetivo do grupo era, além disso, buscar
que tais fatos fossem conhecidos, que fossem tomadas medidas efetivas
com o ânimo de evitar a expansão de tal probletica. Embora por muitas
diversas razões pessoais o grupo tenha deixado de se reunir, a batalha contra
os preconceitos raciais continuou em todos os eventos ligados às cncias
sociais e às humanidades.
Houve eventos muito particulares em que se analisaram a ausência da
mulher e do homem negro nos meios de comunicação de massa audiovisuais,
alguns auspiciados pelo pprio Instituto Cubano de Rádio
30
e Televisão,
onde sobressaiu a figura já lendária da atriz Elvira Cervera, pioneira dessa
representatividade nos espaços teatrais, radionicos e televisivos muito
antes de 1959, e que acaba de plasmar o testemunho de sua luta em
El arte
para mi fue un reto
31
.
Em 1995, a Fundação Fernando Ortiz
32
, dirigida pelo escritor Miguel
Barnet, convocou um importante debate no qual intervieram professores
universirios, escritores, antropólogos, etnólogos, sociólogos politólogos,
psicólogos, expondo preocupações e fatos que evidenciavam de modo
irrefutável a existência da discriminação racial, como conseqüência dos
preconceitos e do racismo, dissimulado ou aberto, de algumas pessoas.
A relão de fatos narrados criticamente pelos participantes demonstrou
que deviam ser tomadas medidas, uma vez que o desejo e a interesse da
Revolução residia em evitar e erradicar tais males sociais. O que se via era,
objetivamente, que não havia um programa, uma campanha sistematizada
encarregada de combater o racismo.
30 Neste sentido são vários os encontros celebrados nos próprios prédios do ICRT. Os debates foram muito
objetivos e participativos, mas não se visualiza ainda o verdadeiro salto desejado da representatividade
do negro em sua imagem, onde não apareça sempre nos papéis historicamente destinados a ele.
31 Obra testemunhal em que relata sua vida como atriz, mas também sua luta contra a discriminação no
rádio e na televisão. Seu livro constitui uma importantíssima contribuição reflexiva, e documento que
não pode deixar de ser consultado pelos estudiosos da história do negro em nosso país.
32 Fundação Fernando Ortiz tem realizado um trabalho notável, convocando a oficinas e cursos, bem como
dando a conhecer trabalhos em sua revista Catauro, ou publicando livros do próprio Ortiz ou de outros
que continuam as linhas temáticas abordadas pelo mesmo. Em uma das oficinas realizadas evidenciaram-se
objetivamente as seqüelas do preconceito racial a partir da entrada ao país das empresas estrangeiras,
que havia uma evidente preferência pelos especialistas brancos sobre os negros.
384
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
Portanto, o reconhecimento no vel oficial es dado não apenas pela
opino de suas máximas figuras, mas também pela realizão das oficinas
de racialidade para conhecer cririos sobre a referida problemática
33
, e
a exisncia de não poucos empenhos, como os mencionados e outros
que conheceremos mais adiante.
A jornalista Gisela Arandia, vinculada com os espaços radionicos
e televisivos promoveu o debate sobre a questão racial nesses meios. Ela
ampliou a mencionada linha de trabalho a partir do projeto Cor Cubana
34
,
patrocinado pela Uno de Escritores e Artistas de Cuba e que trabalhou
diretamente com a comunidade formada pelos moradores do cortiço La
California. Não há vida de que ali se conseguiu um importante avanço
social, pois na atualidade o que resta do cortiço é o espírito, a forma de
ser e agir das pessoas que durante longos anos viveram em tais edicios,
ou seja, a cultura intanvel. Os antigos quartos onde viviam amontoados
os membros de uma falia se converteram em apartamentos conforveis,
de dois ou mais quartos, com sala de visita e jantar, ou seja o habitat, a
cultura tangível. Essa transformação sica foi mais cil e pida do que
a da cultura intangível enraizada nas mentes de seus moradores, devido
aos seus longos anos de convivência e pertencimento a um setor social
historicamente marginalizado. Neste último aspecto, ainda há muito por
fazer, e o desejo de que Cor Cubana continue ampliando seu raio de ão
a lugares similares. O mencionado projeto realizou, além disso, semirios,
debates sobre livros e comemorações, como o realizado sobre o Partido
Independente de Cor, em junho de 2002.
A pesquisadora Leyda Oquendo vem realizando mensalmente a Aula-oficina José
Luciano Franco,
35
a partir da Casa da África de Havana Velha, um espaço onde se
33 Em reuniões da União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba, e em outras, surgiu em mais de uma
ocasião o problema racial. Em uma delas o próprio comandante em chefe reconheceu a sua existência e
que justamente a formação dos trabalhadores tinham a função de estudar e pesquisar essa realidade para
encontrar soluções objetivas.
34 Cor Cubana é um projeto muito interessante que se desenvolve na capital e também tem contribuído
para que exista um estado de debate através das reuniões que convoca para lançar um livro, homenagear
uma personalidade ou debater um tema histórico.
35A Aula-oficina José Luciano Franco surgiu quando deixaram de acontecer as reuniões auspiciadas por
Gerardo Alfonso. Manteve-se ativa durante os últimos anos. Funciona na Casa de África, em Havana Velha,
instituição que também realiza atividades similares, sobretudo seu encontro bienal Entre Cubanos, que
tem como objetivo debater as problemáticas históricas e contemporâneas da identidade, da racialidade de
Cuba e de outros países. Alberto Grandos tem sido um eficiente promotor de atividades reivindicadoras
e difusoras da história da África e dos africanos e de seus descendentes em Cuba.
385
Tomás Fernández Robaina
fala da racialidade, da mestagem, da identidade cultural cubana. Dessas atividades
participam como conferencistas aqueles que anos se ocupam de tais assuntos e
os que se incorporaram a essas reflexões mais recentemente.
A Biblioteca Nacional José Mar
36
tem ministrado de modo também
organizado seus cursos sobre a história, vida social e cultural dos africanos e seus
descendentes desde 1994. Nessa instituição foram celebrados em 1998 dois coquios
favoravelmente avaliados por especialistas cubanos e estrangeiros. Um deles sobre o
90ª aniversário do Partido Independente de Cor, com o qual se iniciava uma rie
de atividades encaminhadas a preparar os pximos centerios: o desse Partido
e o da mal chamada “guerrinhade 1912, ambos a celebrar-se em 2008 e 2012
respectivamente.
Foi tamm celebrado na Biblioteca o colóquio sobre a vida e obra de Gustavo
E. Urrutia, lembrando o quadragésimo aniverrio de sua morte. Urrutia é um dos
pensadores negros mais importantes, e o apenas de Cuba. Um dos conferencistas
desse evento, o Doutor em Ciências Hisricas Jorge Ibarra demonstrou de modo
detalhado a intelincia, sagacidade e cultura de Urrutia, ao analisar a pomica
que ele travou sobre a questão racial cubana com o Dr. Jorge Mach, cujo saldo
foi positivamente a favor das idéias expostas por Urrutia. Outros participantes
abordaram a importância da coluna e gina dominical Ideales de una raza (1928-
1931), que orientou e animou o primeiro grande movimento social e cultural do
negro em Cuba.
Tamm houve uma homenagem a Pedro Deschamps Chapeaux, historiador
de quem o devedores todos os que se ocupam da história do negro no culo
XIX.o se pode passar por alto a comemorão, em 1999, dos sessenta anos de
publicão do livro de Alberto Arredondo El negro en Cuba, ensayo, que contou,
como nas anteriores atividades, com uma significativa assisncia e rico debate sobre
as alises efetuadas por seu autor.
A professorazara Mendez
37
da Faculdade de Artes e Letras realizou
um destacado trabalho a partir de sua Cadeira de Estudos Afro-cubanos,
promovendo a alise e compreensão dos valores estéticos das manifestações
36 A Biblioteca Nacional José Marti vem mantendo um espaço notável com o curso Negro na Bibliografia
Cubana ou Introdução aos estudos da história e da cultura do negro em Cuba, que vem sendo dado na
instituição e fora dela desde 1994. É de se notar que em outros espaços temáticos da própria biblioteca
sempre se debate a problemática cultural e histórica da valorização da contribuição dos africanos e de seus
descendentes para nossa história e nossa cultura.
37 Posteriormente foi publicado um quinto tomo, que inclui trabalhos de conclusão de curso defendidos
na faculdade. Sua última contribuição investigativa e reflexiva é: Rodar el coco: proceso de cambio en la
santería (2002).
386
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
artesanais presentes nos colares, entalhes, daas, assim como sua influência
e presença na obra dos artistas plásticos. Atualmente esse espo de estudo
foi ampliado com a denominação de Estudos Afro-caribenhos. Graças
à sua gestão foram publicados os quatro primeiros tomos dos Estudos
afro-cubanos (1990) que incluem, nos dois primeiros, textos avaliativos e
reflexivos, nos outros dois, manuais e cadernos de pais-de-santo. um
quinto tomo que dá a conhecer os trabalhos de concluo de curso mais
relevantes defendidos nessa faculdade.
A revista Temas
38
também tem proporcionado um espaço muito positivo
para o debate de diversos assuntos, como o racial, abordado mais de uma
vez em suas páginas, por exemplo, no mero 28, de 2002. o tamm
relevantes as discussões realizadas nas últimas quintas-feiras de cada mês. A
mesa redonda sobre o Partido Independente de Cor, celebrada em fevereiro
desse mesmo ano, expressou o interesse que existe em setores de nossa
população pelo estudo dessa organização política.
Nesse ano, o curso oferecido pela Biblioteca Nacional Jo Mar foi
assistido por jovens rappers, rastafaris e estudantes ainda não formados de
nossa universidade, além dos já graduados e muitos estrangeiros; todos eles
animaram de forma muito positiva o apenas as aulas, como os diversos
debates sobre a questão racial que tiveram lugar, entre eles, o mencionado
semirio ou colóquio sobre o PIC, auspiciado por Cor Cubana (6 e 7
de junho) e a reunião organizada no Museu de Belas Artes pela revista
Contracorrientes (9 de julho) sobre a probletica racial e a arte, a propósito
de una mostra do talentoso artista Díago
39
.
Também o oitavo Festival do Hip Hop Cubano
40
foi um marco adequado,
como os anteriores, para chamar a atenção crítica sobre alguns dos problemas
38 A revista Temas, dirigida por Rafael Hernández, é sem dúvida o órgão mais relevante que de forma
permanente tem tornado possível um debate mais amplo, participativo e diverso sobre os aspectos mais
urgentes confrontados em nossos meios intelectuais.
39 Roberto Diago, um dos jovens artistas plásticos mais importantes do momento, com obras de alta cotação
no mercado internacional, foi aluno do curso de verão sobre o negro na bibliografia cubana em 2002.
Sua exposição deu lugar a um encontro reflexivo no Museu Nacional de Belas Artes. Despertou atenção
o desenfado, a honestidade e o nível de participação dos participantes desse debate.
40 Na oitava edição desse evento, a oficina teórica que sempre é organizada contou com a participação
de María Teresa Linares, musicóloga, de Helio Orovio, uma das figuras de maior conhecimento sobre
a música popular cubana, juntamente com Leonardo Acosta, entre outros. Eles integraram painéis ou
ditaram conferências que enriqueceram o debate. A existência do movimento hip hop e seus festivais têm
contribuído para uma maior conscientização da problemática cultural e racial do negro.
387
Tomás Fernández Robaina
sociais mais atuais de uma boa parte dos jovens negros. Ai foram analisadas
as letras das canções dos rappers, ricas em críticas construtivas, reflexivas,
violentas ou agressivas, de acordo com o estilo que cada intérprete adota para
formular e apresentar a denúncia social; no colóquio efetuado salientou-
se a importância do movimento hip hop, e particularmente dos rappers, por
assumirem a defesa do direito à diferença, por contribuirem de maneira relevante
à elevação da auto-estima de muitas mulheres e muitos homens negros, por
serem portadores de uma cultura, de uma estética que, por não corresponder
aos códigos eurocêntricos, tem sido considerada exótica, danosa à concepção que
se tem do que deve ser a cultura dominante e representativa do que é cubano.
Apesar das críticas, empecilhos e contratempos em seu caminho, o
movimento hip hop continua forte em sus postulados originais de crítica social;
apesar do mercadejo interno e externo, sempre haverá rappers que saberão de
modo inteligente manter-se fiéis às suas essências básicas, embora por razões
econômicas cultivem um rap puramente trivial, erótico, sensual, dançante,
sem elementos reflexivos. Mas o rap anunciador, detector e acusador das
desigualdades sociais que na atualidade sofrem as juventudes negras e brancas
marginalizadas nas sociedades dos países do primeiro mundo, tanto como nos
países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, seguirá vivo enquanto
nas sociedades nas quais é cultivado não aconteçam transformações sociais,
econômicas e humanísticas profundas, despojadas dos códigos negativos do
racismo, do preconceito e da discriminação, não apenas racial.
Em 2003, o Centro de Altos Estudos da Universidade de Havana
41
e a
Fundação Fernando Ortiz, organizaram um amplo e profundo seminário sobre a
marginalidade, que foi dirigido pelos doutores Carmen Barcia e Eduardo Torres
Cuevas. Nele as figuras mais destacadas das ciências sociais e das humanidades,
jovens e não tão jovens, participaram de painéis que a cada semana abordaram
a marginalidade do ponto de vista de todos os campos do conhecimento e da
vida social. A problemática racial mereceu duas sessões, mas também esteve
presente em várias das diversas temáticas abordadas: a marginalidade no cinema,
na literatura, na lingüística, nos gêneros, na orientação sexual, na religiosidade
afro-cubana, nas classes sociais, na educação.
41 O seminário teve uma inesperada repercussão entre os jovens, estudantes, professores e pesquisadores.
Cada sessão contou em geral com mais de cem participantes ativos, que interagiam com os expositores,
provocando um debate sumamente dinâmico e construtivo. Em algumas ocasiões foi preciso suspender
a oficina. As sessões costumavam ir das 9 às 12 da manhã, mas muitas vezes o debate estendeu-se até as
duas da tarde. Espera-se que os textos dos palestrantes sejam publicados em forma de livro.
388
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
Em 2004 a Sociedade da Cultura Yoruba
42
em Cuba abriu as portas ao
debate de sua religiosidade. O que se viu, pelas mesas redondas e conferências
organizadas sobre aspectos particulares e gerais da santería e de outras crenças
populares, é que as problemáticas racial e de gênero estão muito vinculadas com
as sociais, as culturais e as religiosas que se manifestam em toda a sociedade,
e em particular no seio das culturas afro-cubanas. Não dúvida de que a
referida Sociedade está destinada a desempenhar um papel mais dinâmico e
influenciador no setor social com o qual trabalha.
conclusões
O saldo final de todos esses espaços e de suas atividades tem sido altamente
positivo; há quinze anos era impensável a discussão aberta, pública, sobre tais
assuntos, e tampouco a existência dos locais mencionados nos quais foi possível
realizar ações reflexivas sobre o problema racial e difundir uma parte da história
de Cuba que não era muito conhecida.
É claro que tudo o que mencionamos anteriormente contribuiu em boa parte
para um maior conhecimento e conscientização de tais problemas em muitas
pessoas afastadas da academia e seus processos docentes. É necessário que o
pensamento martiano, que invoca a não deixar de dizer que em nada o negro é
inferior ao branco, seja mais divulgado e conhecido, sobretudo por aqueles que
pensam que não falar do problema racial, mas deixar tudo para a educação e o
tempo, é a melhor maneira de combatê-lo. Oficialmente deve-se fazer tudo o
que for possível para que o pensamento de Maceo, de nada pedir como negro,
tudo como cubano, ganhe e tenha cada vez mais vigência. E isso pode ser
obtido com uma estrita política de igualdade racial. Não se pode passar por
alto a importância dos rappers neste ponto, ao expandir a crítica social a setores
não muito conhecedores de certos aspectos da realidade cubana.
Já existe um consenso quanto à urncia de buscar solões concretas como um
modo de intensificar a luta contra os elementos reprodutores dos preconceitos e
do racismo no âmbito social e individual, que conduzem involuntariamente, ou
não, na maior parte das vezes, à realização de atos discriminatórios. É claro que a
convenncia das ações afirmativas como um meio para essa luta vem sendo mais de
uma vez mencionada entre nós há muito tempo. Mas essa oão o tem contado
42 Depois de uma boa espera, parece que esta sociedade continuará com os ciclos de palestras e ampliará
a referida programação com cursos livres sobre os diferentes aspectos da cultura ioruba em particular e
outros temas vinculados com a tradição e a religiosidade popular afro-cubana.
389
Tomás Fernández Robaina
com a simpatia dos que podem decidir seu emprego, e traçar uma potica concreta
para lutar contra o racismo, os preconceitos e a discriminão racial.
Considera-se que tais ações seriam mais prejudiciais do que benéficas, levando
em conta que em Cuba oficialmente não se estimula a existência do racismo; que
todos os centros de ensino e de trabalho estão abertos para todos os cidaos do
país; e que o que se requer é a qualificação profissional e técnica requisitada.
Pelo contrário, a prática reflete que, apesar dessa vontade, há um problema
objetivo para que seja conseguida uma representatividade racial de acordo com
a porcentagem total da populão negra. Portanto, é urgente trabalhar mais na
comunidade, a partir do bairro, da província, até alcançar todo o país.
Os planos de formação dos trabalhadores sociais, dos instrutores de arte, entre
outros, são passos muito positivos para começar a detectar ainda mais e enfrentar os
problemas sociais que afligem nossa sociedade, entre os quais, o preconceito racial e
suas seqüelas – os mais necesrios e importantes para serem atacados, mas difíceis
de serem combatidos, por estarem o racismo e o preconceito tão profundamente
enraizados, disfarçados de tradição, de costumes, o que o permite ver a origem racista
de muitas dessas manifestações. É preciso ter presente a conveniência de adequar e
mudar os planos de estudo com os quais são formados os cidadãos, desde o ensino
primário até o superior, como um modo objetivo de dar a conhecer as culturas e
histórias dos povos que contribuíram para nossa formação e identidade nacional em
igualdade de condões, mas prestando especial atenção às que foram marginalizadas
ou superficialmente mostradas como conseqüência da visão eurocêntrica da cultura
e da educação na qual fomos formados.
A história e a experiência da luta do negro em Cuba torna patente que
embora tenha sido muito saudável a existência de um debate, de uma análise do
problema racial, a discussão por si só não resolve o problema. É preciso adotar
medidas objetivas, a curto e longo prazo, porque as mudanças ideológicas, as
idéias e critérios não são fáceis de transformar, requerem tempo. As tradições e
preconceitos deculos não podem ser abolidos por decreto.
A educação é um bom meio para essa luta; pelo menos assim tem sido
considerado por todos os que viram nela uma forma sólida e eficaz de combater
o racismo. Mas para que seja efetiva, a educação necessita de um contexto, que
retroalimente e estimule a luta contra os preconceitos raciais. Nesse contexto
têm que estar trabalhando ativamente o Estado, o Governo, as organizações
sociais (femininas, juvenis, de trabalhadores, profissionais, recreativas), políticas,
os meios de comunicação de massa e todas as instituições culturais.
390
A luta contra a discriminação racial em Cuba e as ações afirmativas:
convite à reflexão e ao debate
As lutas ou movimentos existentes em prol dos direitos dos negros ou de
outros grupos historicamente marginalizados devem levar em conta o contexto
específico particular de cada um para obter plenamente os resultados desejados.
E estes serão atingíveis depois do necessário longo processo que se deve
atravessar, o qual tomará mais ou menos tempo, na medida em que na luta
contra o racismo se consiga esse contexto positivo. É possível que em alguns
países esse processo tenha sido iniciado. Trabalhemos, pois, para que em todos
os lugares onde haja problemas raciais, a luta se consolide e avance para evitar
a imposição de uma cultura e de uma economia hegemônica globalizadora,
alheias aos interesses particulares de nossos povos.
A presença, ainda hoje, das manifestações racistas no âmbito individual e
social entre nós, em Cuba, não é o resultado de uma política encaminhada a
estimular tais males, mas da ausência de medidas que deveriam ter sido tomadas
para evitar a reprodução e expansão desses fenômenos. Essa conquista só será
possível mediante um desenvolvimento sócio-econômico sustentado que facilite
o acesso a uma qualidade de vida superior para a maioria dos que até o presente
têm estado à margem dessas possibilidades. Parte desse desenvolvimento pode
estar garantido se forem aplicadas as medidas que buscam romper as barreiras
preconceituosas e discriminatórias que nem sempre são reconhecidas como tal,
ao serem vistas como fatos e ações tradicionais.
As ações afirmativas podem ajudar e beneficiar objetivamente essa retro-
alimentação tão necessária para o avanço do objetivo de melhorar a situação
social, individual e coletiva, dos setores historicamente marginalizados em nossa
sociedade. Não no continente latino-americano um país que tenha como
Cuba as condições mais objetivas para dar o salto qualitativo que necessitamos,
para materializar o objetivo anterior, e que ao mesmo tempo seja um exemplo
a ser seguido em outras latitudes.
o se pode passar por alto que a luta contra o racismo e suas seqüelas o
pode ser levada a cabo com êxito em um tempo breve, mas sim que é algo que
leva mais anos do que os que nós podemos viver, mas sempre menos do que
durou. Por isso, há que exigir que os organismos internacionais que têm que ver
diretamente com esta luta devam estimular ainda mais a crião de uma infra-
estrutura realmente executiva em cada país, para ajudar de maneira mais objetiva e
eficiente essa luta. Deve-se aprender das deficncias, dos erros cometidos, imposveis
de serem evitados no início de todo processo social complexo e revolucionário como
foi o experimentado em Cuba. Só assim poderemos alcançar o êxito em todos os
lugares onde for travada a luta contra o racismo.
391
Tomás Fernández Robaina
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soBre os Autores
André Augusto Brandão: Graduado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em sociologia pela UFRJ, doutor
em ciências sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
É professor do Departamento de Serviço Social da UFF e autor de Miséria
da Periferia: desigualdades raciais e pobreza na metrópole do Rio de Janeiro
(Editora Pallas, 2003).
André Ricardo Nunes Martins: Jornalista, professor, mestre em Comunicão
e doutor em Lingüística, pela Universidade de Brasília (UnB).
Carlos Alberto Medeiros: Bacharel em Comunicação e Editoração, Escola de
Comunicação da UFRJ, Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (dissertação: Legislação e Relações Raciais, Brasil Estados
Unidos, 1950-2003)
Carlos Moore Wedderburn: Etnólogo e Historiador. Doutor em Etnologia
e doutor em Ciências Humanas pela Universidade de PARIS-VII (França).
Especialista em Relações Raciais (África, América Latina, Caribe, Pacífico).
Ex-Consultor Pessoal do Secretário Geral da União Africana (UA), Dr. Edem
Kodjo (1982-1983). Chefe de Pesquisas na Escola para Estudos de Pós-Graduação
e Pesquisa da Universidade do Caribe (UWI), Kingston, Jamaica.
Eliane Cavalleiro: Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo USP. É Coordenadora-Geral de Diversidade e
Inclusão Educacional da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD/MEC.
Flavia Piovesan: Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos
da PUC/SP, rofessora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da
PUC/SP, da PUC/PR e da Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow
do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), procuradora do
396
Estado de o Paulo, membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana e membro da SUR Human Rights University Network.
Iolanda de Oliveira: Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), mestre em Educação pela UFF, doutora em psicologia pela
Universidade São Paulo (USP). É professora da Faculdade de Educação da
UFF, Coordenadora do Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade
Brasileira (PENESB), e autora do livro Desigualdades raciais na escola (editora
Contexto, 2000).
Joaquim B. Barbosa Gomes: Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),
doutor em direito público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas),
França, e professor licenciado da Faculdade de Direito da UERJ.
Luciana Jaccoud: Socióloga e cientista política, formada pela UnB, com
Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (CMS -
PIMES) e Doutorado em Sociologia pela École des Hautes Études em Sciences
Sociales (EHESS - Paris). É pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada - IPEA.
Maria Aparecida S. Bento: Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São
Paulo (USP) e Coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades (CEERT)
Mário Theodoro: Economista, formado pela UnB, com mestrado em Ciências
Econômicas pela Universidade Federal de Pernambuco (CME-PIMES) e
doutorado em Ciências Econômicas pela Universidade Paris I - Sorbonne. É
consultor legislativo do Senado Federal, professor da Universidade Católica de
Brasília e pesquisador associado do Mestrado em Política Social - UnB.
nica Gisella Carrillo Zegarra: Comunicadora Social, Faculdade de Letras
e Ciências Humanas da Universidade Nacional Mayor de San Marcos (Peru).
Especialização em Direito Internacional dos Direitos Humanos com menção
em Direito das Minorias e Povos Ingenas. Universidade de Oxford e George
Washington. Diretora do LUNDU, Centro de Estudos e Promoção Afro-
peruano.
Nilma Lino Gomes: Doutora em Antropologia Social pela Universidade de
São Paulo USP. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Coordenadora do Programa de Ações Afirmativas da
UFMG. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN.
Renato Emerson dos Santos: Professor de Geografia da UERJ
(Faculdade de Formação de Professores, Campus São Gonçalo), é
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formado em Geografia pela UFRJ, onde fez mestrado em Planejamento
Urbano. Atualmente, está concluindo o doutorado em Geografia, e coordena, junto
ao Laborario de Políticas blicas (LPP/UERJ), o Programa Poticas da Cor na
Educação Brasileira (PPCOR). Foi, entre 1996 e 2002, professor de Geografia, membro
da coordenão e coordenador da disciplina Cultura e Cidadania do Pré-Vestibular
Comunitário da Rocinha, e, em 1998 e 2000, professor de Geografia do Pré-Vestibular para
Negros e Carentes da Tijuca. Continua militando pelo Pré-Vestibular para Negros
e Carentes.
Ricardo Henriques: Secretário de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (Secad) do Ministério da Educão (MEC), é doutorando
em Economia pela Université Paris X - Nanterre e professor licenciado da
Universidade Federal Fluminense. Entre seus diversos trabalhos publicados na
área de economia social, destaca-se o livro Raça e Gênero no Sistema de Ensino,
publicado pela UNESCO em 2002.
Ronaldo Jorge A. Vieira nior: Graduado em direito pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília
(UnB). Consultor Legislativo do Senado Federal na área do Direito Constitucional.
Integra o Grupo de estudos e pesquisas “O Direito e as Ações Afirmativas: direitos
humanos na diversidadevinculado à Faculdade de Direito da UnB.
Sales Augusto dos Santos: Soclogo. Doutorando em Sociologia pela
Universidade de Brasília - UnB. Membro do Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros da UnB. É co-autor de A Cor do Medo. Homicídio e relações
raciais no Brasil (1998).
Tomás Fernández Robaina: Pesquisador e Professor Titular da Biblioteca
Nacional José Martí, Havana, Cuba
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Valter Roberto Silrio: Sociólogo, doutor em sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), professor Adjunto do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integrante da
coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFSCar. Tem se dedicado
ao estudo das relações étnico-raciais, em especial, entre negros e brancos no
Brasil e na diáspora africana no Novo Mundo. Além de vários artigos em livros
e periódicos, organizou “De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre
relações étnico-raciais no Brasil”, publicado pela EDUFScar, Educação e Ações
Afirmativas: entre a injustiça simlica e a injustiça ecomica, publicado pelo
INEP/MEC e o Dossiê Relões Raciais da Revista Teoria e Pesquisa 42 e 43 do
Programa de Pós-Graduação e Departamento de Ciências Sociais da UFSCar.