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COLEÇÃO LOURENÇO FILHO 5
Manoel Bergström Lourenço Filho
Juazeiro do Padre Cícero
(Obra premiada pela Academia Brasileira de Letras em 1927)
4
a
edição aumentada
Brasília-DF
Inep/MEC
2002
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COORDENAÇÃO-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAÇÕES
Antonio Danilo Morais Barbosa
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Rosa dos Anjos Oliveira
COORDENAÇÃO DE PROGRAMAÇÃO VISUAL
F. Secchin
EDITOR
Jair Santana Moraes
REVISÃO
Antonio Bezerra Filho
NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Maria Ângela Torres Costa e Silva
PROJETO EDITORIAL
Carlos Monarcha
Ruy Lourenço Filho
PROJETO GRÁFICO E CAPA
F. Secchin
ARTE-FINAL
Raphael Caron Freitas
TIRAGEM
3.000 exemplares
EDITORIA
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PUBLICADO EM MAIO DE 2002
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Lourenço Filho, Manoel Bergström.
Juazeiro do Padre Cícero (obra premiada pela Academia Brasileira de Letras em 1927) / Manoel
Bergström Lourenço Filho – 4. ed. aum. – Brasília: MEC/Inep, 2002.
178 p. (Coleção Lourenço Filho, ISSN 1519-3225 ; 5)
1. Juazeiro do Norte (CE) – Aspectos socioculturais. 2. Batista, Cícero Romão. 3. História –
Juazeiro do Norte (CE). 4. Religião – Juazeiro do Norte (CE). 5. Revolta – Ceará. I. Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais.
CDU 316.7:813.1(Juazeiro do Norte)
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À memória de
Rodolfo Teófilo
Figura 1 – Diploma de premiação, categoria “Ensaios”, da Academia Brasileira de Letras, conferido
a Lourenço Filho pelo livro Juazeiro do Padre Cícero, em 1927.
Figura 2 – Volante de propaganda elaborado pela Companhia
Melhoramentos de S. Paulo para divulgar o lançamento do
livro Juazeiro do Padre Cícero.
Esses povos, que assim praticam o culto inconsci-
ente e sistemático da própria ilusão, estão conde-
nados a perecer. Quem os vai eliminar são esses
rijos manipuladores de fatos e realidades, esses
povos práticos e experimentalistas, cujo esplêndi-
do senso objetivo das coisas da vida os escuda con-
tra as sugestões e as insídias de um certo otimismo
que, ao invés de aceitar as verdades cruéis ou do-
lorosas para corrigi-las ou elidi-las, preferem dis-
simular, recobrindo-as do recamo florejante das
ficções amáveis...
Oliveira Viana
Figura 3 – Padre Cícero Romão Batista ladeado, à direita, por Lourenço Filho, em Juazeiro-CE, 1922
(acervo Companhia Melhoramentos de São Paulo).
Prefácio ......................................................................................................................... 11
Carlos Monarcha
Prefácio da 3
a
edição .................................................................................................... 19
Um livro atual .............................................................................................................. 21
x Capítulo 1 – Em caminho............................................................................................ 23
Mergulhando no passado – O Nordeste, seio vivo da tradição – “Era
assim no tempo do Império...” – “E era assim no tempo da Colônia...” –
De Fortaleza, cidade do tempo presente, ao Juazeiro do Cariri, arraial
de antanho
x Capítulo 2 – A Meca dos sertões ................................................................................ 31
Cenas e quadros de fanatismo – Um caminho pontilhado de cruzes
e os penitentes – “Vai vivo ou morto?...” – Inconscientes semeado-
res da morte e da loucura – Alguns traços a respeito da natureza da
região – O Cariri, um caso de insularidade em terras habitadas
x Capítulo 3 – Transpondo as trincheiras..................................................................... 37
As defesas da cidadela – Um fosso de três léguas aberto em seis dias –
No seio da Meca – As casas dos romeiros por dentro e por fora – Uma
cidade nascente – A igreja dos “milagres”
x Capítulo 4 – No reino da insânia ................................................................................ 43
Em frente à casa do “Padrinho” – Matizes de fé e credulidade – Singu-
laridades de um culto sem ritual – Oração expressiva – O “Beato da
Cruz” e a sua ladainha – Cenas de superstição
x Capítulo 5 – “Ecce Homo” ........................................................................................... 49
Um homem? Não, uma sombra – Talvez já o milagre... – Retrato físico
do “Padrinho” e esboço de sua singular personalidade – Opiniões
diversas – “Santo” ou “demônio”?... – O que diria um especialista
Sumário
8 Juazeiro do Padre Cícero
x Capítulo 6 – O “alter ego”... ........................................................................................ 61
A pena de viver demais – Um capítulo difícil de escrever-se – O
“íncubo” do padre e a história de seu domínio – Testemunho
fidedigno
x Capítulo 7 – Os milagres ............................................................................................. 67
“É o milagre que torna a autoridade patente” – A beata Maria de
Araújo e seus milagres – Transforma-se em sangue rubro e palpi-
tante a hóstia consagrada – Repercussão do fenômeno e suas in-
terpretações – A ação de D. Joaquim Vieira, bispo do Ceará – Os
milagres menores...
x Capítulo 8 – O “boi santo” .......................................................................................... 75
Um caso de totemismo ou simples tabu?... – Uma promessa curiosa
e o seu não menos curioso desenlace – A santificação do boi – Seus
milagres, grandeza e decadência
x Capítulo 9 – A sedição de 1913 – Causas .................................................................. 81
Inscrições sobrepostas de luto e de dor – Hodie mihi, cras tibi... –
Uma oligarquia banida e um governo promissor – Campanha con-
tra o banditismo e suas conseqüências – Reflexo da política de Pi-
nheiro Machado – Onde se vê que a corda arrebenta sempre do lado
mais fraco
x Capítulo 10 – A sedição - Início da luta .................................................................... 87
De uma comédia mal-ensaiada à sanguinolenta tragédia – O go-
verno extralegal do Juazeiro oficializado pelo telégrafo – Primeira
tentativa do governo legal para sufocar a sedição – O milagre das
trincheiras construídas numa só noite – Falou N. S. das Dores – A
retirada
x Capítulo 11 – A sedição – O frustrado assédio à Meca ............................................ 95
A segunda expedição – Uma caricatura da campanha de Canudos –
Plano que pecava pela sua mesma simplicidade – É mais difícil
sitiar que atacar... – O famoso canhão da luta – Inexplicável retirada
– “Maneiro pau, maneiro pau... Meu Padrim Ciço é quem ganha!...”
– O primeiro troféu da “guerra santa”
x Capítulo 12 – A sedição – A marcha sobre Fortaleza ............................................... 103
Da “guerra santa” à luta política com escala pelo “cangaço” – Saques
e depredações – Marchando pelos sertões em flor – Tentativa do go-
verno legal para deter a marcha dos sediciosos – Sacrifício inútil de
bravo militar – O cerco de Fortaleza – Estado de sítio e intervenção –
Responsabilidades do governo da República
x Capítulo 13 – A sedição – Conseqüências ................................................................. 111
Duas palavras sobre os partidos políticos do Ceará – Em que se resume
o prestígio do Patriarca do Juazeiro: votos legítimos ou rifles em mãos
adestradas? – As dolorosas conseqüências sociais da sedição – Os ter-
ríveis efeitos econômicos e de perturbação administrativa – Lampião,
expoente da situação atual do Juazeiro
9
x Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore .......................................................................... 117
A grande alma do povo, agitada e confusa – O ciclo do Messias no
folclore do Nordeste – Lendas, canções e preces do Juazeiro – Práti-
cas dos “penitentes” e “beatos” – Sátiras sob a forma de oração
x Capítulo 15 – Conclusão ............................................................................................. 139
Clamor que se levanta – Depoimentos insuspeitos – As responsabi-
lidades da Nação – O Juazeiro, índice de incultura geral – Conside-
rações talvez oportunas – Alfabeto e cultura, alfabeto e adaptação –
Até onde podem levar as considerações gerais – O problema brasi-
leiro de cultura não é apenas de alfabetização
x Notas finais ................................................................................................................... 145
1. A flora do Ceará – 2. Notícia histórica sobre as secas – 3. O Juazeiro
e o ensino público – 4. A intervenção no Ceará – 5. Padre Cícero
deputado – 6. Testamento do padre Cícero Romão Batista – 7. Tre-
cho de um discurso do deputado Floro Bartolomeu
Índice onomástico........................................................................................................ 173
Sumário
10 Juazeiro do Padre Cícero
Figura 4 – Capa da 1
a
edição de
Juazeiro do Padre Cícero (1926).
Figura 5 – Capa da 2
a
edição
(1929).
11
Prefácio
Coube a João Hipólito de Azevedo e Sá, professor e diretor da Escola Normal
Pedro II, propor a Justiniano de Serpa, presidente do Ceará, que solicitasse a Washington
Luiz a ida de um professor paulista para lecionar nas cadeiras de Psicologia e Pedagogia e
de Didática dessa escola. Comissionado pelo presidente do Estado de São Paulo, Lourenço
Filho, então com 25 anos, “paulista progressista, no molde americano”, segundo O Diário
do Ceará, ali permaneceu entre abril de 1922 e dezembro de 1923, período em que refor-
mou a instrução pública daquele estado.
Justiniano de Serpa – o “presidente da Instrução”, no dizer de Wilson Bóia – e
o vice-presidente Ildefonso Albano – autor de Jeca Tatu e Mané Xiquexique (1920) – condu-
ziram uma administração que se tornou proverbial, beneficiada pelo programa de melho-
ramentos desencadeado pelo presidente da República, Epitácio Pessoa, iniciador de obras
em áreas do sertão e litoral do Nordeste brasileiro. A essa época, o Ceará era o sétimo
estado brasileiro mais populoso, com 1.319.228 habitantes.
Lourenço Filho aportou em Fortaleza levando na bagagem de experiência tanto
a participação na reforma do ensino paulista em 1920, conduzida por Sampaio Dória, à
época do governo de Washington Luiz, quanto o exercício do magistério na Escola Normal
de Piracicaba, então na vanguarda da difusão e aplicação de métodos e processos de ensino
revistos à luz da psicologia experimental. Tempos depois, Serpa nomeou-o para o cargo de
Diretor-Geral da Instrução Pública, com a incumbência de idealizar e executar um plano
de reforma do ensino.
Coube ao cearense Newton Craveiro elaborar a interpretação matricial da Re-
forma de 1922 – mais tarde denominada Reforma Lourenço Filho – , designando-a de “re-
nascença cearense”,
1
e registrar as ações reformadoras que visavam conferir autonomia
intelectual, administrativa, legal e profissional à esfera do ensino. Entre as inúmeras ações,
Craveiro destacou a execução do cadastro escolar, a criação de hierarquia e competências
administrativas, a introdução de programas e métodos de ensino, a organização de serviços
escolares, a elaboração de regulamentos e regimentos escolares, a criação de grupos escola-
res, além de outras. Para diferentes analistas, a reforma do ensino conduzida por Lourenço
1
Craveiro, Newton. A evolução do ensino no Ceará e a reforma de 1922. Revista Nacional: Nossa Terra, Nossa Gente, Nossa
Língua, São Paulo, v. 2, n. 7, p. 420-437, jul. 1923.
Prefácio
12 Juazeiro do Padre Cícero
Filho representou um marco histórico na trajetória da educação brasileira, sendo conside-
rada uma das primeiras manifestações do movimento da Escola Nova no Brasil.
Para a execução do cadastro escolar – um dos pontos centrais do plano da
reforma – , Lourenço Filho percorreu o sertão do Ceará, deslocando-se de Fortaleza para
o Crato pela Estrada de Ferro Baturité e de automóvel. Já no alto sertão, acompanhado
por Antonio de Gavião Gonzaga – médico dirigente da Comissão do Serviço de Profilaxia
Rural do Ceará – , Alcibíades Costa, F. Podeus e Elysio Figueiredo, o professor paulista
encontrou-se com o lendário padre Cícero Romão Batista, para demovê-lo da decisão de
proibir a realização do cadastro nos domínios da cidade peregrina, que, nessa época,
possuía aproximadamente 22 mil habitantes.
Nesse mesmo momento, o alto sertão cearense foi também visitado pelo dr. Paulo
de Moraes Barros, pelo deputado Ildefonso Simões Lopes e pelo general Cândido Mariano da
Silva Rondon, todos eles membros de uma comissão a serviço da Inspetoria Federal de Obras
contra a Seca (Ifocs), que tinha por incumbência fiscalizar e avaliar os trabalhos de açudagem,
construção de ferrovias, estradas e reforma dos portos. No dizer de Moraes Barros, relator dos
trabalhos da comissão, assistia-se a uma “phase febril de melhoramentos com que é benefici-
ado o Nordeste”. Coube a esse médico, natural de Piracicaba, produzir uma das primeiras
descrições negativas de Juazeiro do Ceará, o que lhe rendeu acirrada discussão com o depu-
tado federal Floro Bartolomeu da Costa, autor de Juazeiro e o padre Cícero (1923), livro no
qual configurou uma imagem positiva e operosa da cidade peregrina e do padre taumaturgo.
O alto sertão do Ceará, a cidade de Juazeiro e o padre Cícero Romão Batista
causaram impacto na mentalidade racionalista de Lourenço Filho, que, tempos depois,
analisou a experiência na série de artigos “Juazeiro do Padre Cícero” e no livro Joaseiro do
P
e
Cícero: scenas e quadros do fanatismo no Nordeste, nos quais configurou uma imagem
ruinosa e desarrazoada tanto da cidade e do padre quanto do sertão cearense.
2
uuu
Colaborador assíduo d’O Estado de S. Paulo, Lourenço Filho publicou nesse
jornal a série “Juazeiro do Padre Cícero”, composta por dez extensos artigos, editados entre
novembro de 1925 e agosto de 1926, sobre a cidade de Juazeiro, denominada pelo autor
como “a Meca dos sertões cearenses – arraial e feira, antro e officina, centro de orações e
hospício enorme”, liderada pelo “Patriarca de Juazeiro”, padre Cícero, então com 82 anos,
secundado pelo chefe político Floro Bartolomeu, o “alter-ego”, segundo formulação do pa-
dre Manoel Macedo, autor de Juazeiro em foco (1925).
Jornal mais importante da época e tendo como diretores Júlio de Mesquita e
Júlio de Mesquita Filho e como redatores Plínio Barreto, Paulo Duarte, Léo Vaz, Amadeu
Amaral, O Estado de S. Paulo encontrava-se empenhado em desenvolver uma reflexão
moderna e científica sobre a vida política, social, literária e científica do Brasil, objetivando
criar possibilidades de reconstrução nacional. Adversa ao “bovarismo político”, no dizer
de Júlio de Mesquita Filho, a direção do jornal convocou, para a luta contra o “indiferentismo
intelectual”, pensadores importantes: Oliveira Viana, Alberto de Faria, Afrânio Peixoto,
Oscar Freire, Paulo Pestana, Vivaldo Coaracy, Fernando de Azevedo e Artur Neiva
.
São dessa época as publicações n’O Estado de S. Paulo das séries de artigos
“Impressões do Nordeste” (1923), de Paulo Moraes Barros, “Impressões de São Paulo”
(1923-1925), de Oliveira Viana, Dionísio Cerqueira e João Lima Verde, e “Juazeiro do
Padre Cícero” (1925-1926), de Lourenço Filho. Essas séries conciliavam anseios políti-
co-culturais e pesquisas sociais sobre as “coisas da nossa terra”, analisando as regiões
2
Monarcha, Carlos. O sertão do Ceará segundo Lourenço Filho. Marília, 2001. Tese (Livre-Docência) – Faculdade de Filosofia
e Ciências, Universidade Estadual Paulista.
13
brasileiras para determinar-lhes as singularidades e necessidades. Fiéis às teses
explicativas vigentes no sistema intelectual de época e imbuídos do espírito ensaísta
difundido pela Revista do Brasil, do qual o ensaio “Dois Brasis”, de Vivaldo Coaracy, é
um exemplo, os autores das séries interpretavam o quadro geral da Nação a partir de
pares conflitantes: civilização do litoral/civilização do sertão, sul europeizado/norte
mestiço, progresso/atraso, cultura/ignorância.
Tais séries de artigos permitem ao leitor, hoje, situar a centralidade da questão
nacional no plano de reconstrução do Brasil idealizado pelo “grupo do Estado”, pois capta-
vam e fixavam os elementos constituintes da heterogênea realidade nacional, concedendo
privilégio aos fatores raciais, mesológicos, psicológicos e culturais como determinantes do
atraso ou do desenvolvimento social. Mais além, tais séries estavam insertas em uma épo-
ca em que, de um lado, o conhecimento do território brasileiro ainda era precário, assim
como eram incompletas as representações cartográficas das vastidões brasileiras, e, de ou-
tro, havia a possibilidade de desmembramento do País em decorrência da fragilidade do
poder central e das ações autônomas das oligarquias regionais.
Lidas hoje, as séries “Impressões do Nordeste”, “Impressões de São Paulo” e
“Juazeiro do Padre Cícero” podem ser interpretadas como pesquisas sociais solidárias entre
si e produtoras de identidades regionais, nelas florescendo as questões relativas ao caráter
brasileiro, à psicologia do povo e à diversidade geográfica. Mas sobretudo as séries assina-
das por Moraes Barros e Lourenço Filho são contemporâneas de uma alteração regional
significativa processada na presidência de Epitácio Pessoa: da Região Norte, destacou-se a
área sujeita aos periódicos flagelos da seca, que foi colocada sob a responsabilidade da
recém-criada Ifocs, surgindo, assim, um novo recorte regional – o Nordeste brasileiro.
Notícias sobre essa região, cuja identidade era definida essencialmente a partir
de adversidades naturais e carências sociais, foram veiculadas com freqüência pelos jornais
do sul do País, por ocasião das secas de 1915 e 1919. Todavia, tratava-se, ainda, de uma região
pouco conhecida pelos brasileiros, muito embora ali tenha sido outrora o pólo dinâmico da
economia colonial e de meados do Império. Tal desconhecimento deu lugar, não raras vezes,
a relatos fabulares sobre meio, raça, cultura e política nordestina, contribuindo para fixar
uma imagem em ruínas do Nordeste brasileiro, freqüentemente associado à idéia de espaço
incivilizado e sedicioso, que excitava e fascinava a imaginação sociológica.
A série “Juazeiro do Padre Cícero”, de Lourenço Filho, é composta por dez artigos,
em que, com habilidade, o autor mistura dados resultantes de observação direta de fatos, de
leitura de livros e de depoimentos orais recolhidos entre os cearenses. O efeito de realidade
produzido coloca o leitor perante um enviado especial em missão de imprensa, incumbido de
registrar os conflitos e tensões do front interno: o sertão brasileiro. Os artigos, configurados na
forma de anotações descritivas, evocam semelhanças com os relatos dos viajantes naturalistas
que, durante os séculos anteriores, percorreram as vastidões dispersas do território, dando
lugar ao nascimento de uma etnografia sobre o Brasil.
Intitulados de modo sugestivo, os artigos são os seguintes: I – Em caminho (17 de
novembro de 1925); II – A Meca dos sertões (18 de novembro de 1925); III – Transpondo as
trincheiras... (19 de novembro de 1925); IV – No reino da insânia (25 de novembro de 1925);
V – Ecce homo! (27 de novembro de 1925); VI – Retomando o fio (21 de abril de 1926); VII –
Os milagres (23 de abril de 1926); VIII – O “boi santo” (2 de maio de 1926); IX – A sedição de
1913: causas (10 de julho de 1926); X – A sedição: início da luta (13 de agosto de 1926).
Publicados em novembro de 1925, os cinco artigos iniciais constituíram a primeira fase da
série; após interrupção de meses, os artigos restantes foram publicados entre abril e agosto de
1926, constituindo a segunda fase da série.
Na elaboração dos artigos, Lourenço Filho concretizou suas qualidades de es-
critor e sociologista, no dizer da época, e engendrou um discurso narrativo contrastante
sobre o arcaico e o moderno. Escritos de modo a possibilitar riqueza comunicativa e fruição
Prefácio
14 Juazeiro do Padre Cícero
estética, esses artigos abordaram questões excruciantes, pensadas à luz de teorias
raciológicas, mesológicas e psicológicas, tendo como referências centrais a cidade de Juazeiro
e a figura de padre Cícero.
uuu
Livro de estréia de Manoel Bergström Lourenço Filho, Joaseiro do P
e
Cícero
cujo subtítulo da primeira edição é “scenas e quadros do fanatismo no Nordeste” – foi
publicado, em 1926, pela Companhia Melhoramentos de São Paulo (Weiszflog Irmãos In-
corporada), com 301 páginas, ilustrado, e tiragem de três mil exemplares.
Providos de senso de clareza e carga dramática, os capítulos do livro são confi-
gurados na forma de narrativas conduzidas por um narrador, ora em terceira pessoa do
singular, ora em primeira pessoa do singular, ora em primeira pessoa do plural. Redigidos
em tom grave e objetivo, com predomínio da anotação descritiva e da explicação científica,
os capítulos freqüentemente cedem lugar ao ornato literário, conjugando crítica social e
apelo patriótico. Ao lado da paisagem natural, o autor constrói e traz à cena tipos sociais e
fatos históricos, os quais, na sua interpretação, permaneceram ativos no tempo histórico,
criando percalços para o progresso da vida cearense.
Fruto de uma década na qual, segundo Alberto Venâncio Filho, “o País en-
trava num grande esforço de introspecção”
3
e, segundo Tristão de Athayde, “política e
letras” caminhavam juntas, Joaseiro do P
e
Cícero foi acolhido favoravelmente pela crí-
tica da época. Resenhas literárias, comentários ou simples notas de redação veiculadas
em jornais e revistas ilustradas de São Paulo, Rio de Janeiro e, mais esparsamente, do
Ceará demonstram a maneira pela qual se deu a primeira recepção do livro. Plínio
Barreto, Galeão Coutinho, Fernando Callage, Candido Motta Filho, Alfredo Pinheiro,
Gilberto Câmara e tantos outros não pouparam louvores ao autor e livro. O curso dos
louvores foi interrompido por resenhas de críticos com posições ideológicas diferentes
entre si, como o escritor modernista Oswald de Andrade e o educador católico Mário
Pinto Serva, os quais discordavam de determinadas análises e conclusões do autor.
Mas, em geral, os críticos proclamaram as qualidades intelectuais do autor –
qualificado ora de sociólogo, ora de escritor, ora de pedagogo – e referendaram a letra do
livro, assinalaram o seu alcance científico, propriedades literárias e endereçamento patri-
ótico. Em outras palavras, os críticos relevaram a premência e atualidade do livro, sancio-
nando a maneira pela qual Lourenço Filho, um professor com formação intelectual inicial
haurida nas escolas normais paulistas na década de 1910, analisou as manifestações do
“fanatismo religioso” no sertão do Nordeste brasileiro, apreendido como um lugar desco-
nhecido, distante do poder central, habitado por aglomerações humanas errantes e de psi-
cologia sui generis.
Por certo, um conjunto de episódios abrigados na conjuntura política de mea-
dos dos anos 20 favoreceu recepção positiva do livro junto à critica especializada e ao
público leitor, assinalando-lhe o caráter de premência e atualidade: o deslocamento da
Coluna Prestes pelo território cearense; a presença de Virgulino Ferreira da Silva, o Lam-
pião, em Juazeiro, para receber a patente de capitão; a morte de Floro Bartolomeu, sepulta-
do no Distrito Federal com honras de herói nacional; a eleição de padre Cícero Romão
Baptista para o cargo de deputado federal; o término do dramático quatriênio de Arthur
Bernardes, marcado por sucessivas crises políticas e rebeliões tenentistas.
De um lado, a recepção positiva do livro também deveu-se ao fato de que a
visão cientificista do autor relativamente aos fatos sociais e culturais provinha do
3
Venâncio Filho, Alberto. Introdução. In: Cardoso, Vicente Licinio. À margem da história da República. Brasília: Ed. UnB,
1981. v. 1, p. 2.
15
cientificismo de um tipo de pensamento social dominante no sistema intelectual, isto é,
um pensamento mobilizado por teorias científicas e autoridades do fim do século 19, então
triunfantes: o positivismo de Comte, o evolucionismo sociológico de Spencer e o
evolucionismo biológico de Darwin; as psicologias sociais de Le Bon, Tarde e Sighele,
fundadas nos princípios de contágio e imitação, as quais detectavam a presença das mas-
sas irracionais na cena social; e as escolas de antropologia organizadas por Lombroso e
Lacassagne. Trivializadas no sistema intelectual, essas teorias científicas e autoridades tor-
naram-se senso comum, marcando a nascente ciência social brasileira. Em outras palavras,
as análises de Lourenço Filho sobre o fenômeno do “fanatismo religioso” têm um débito
profundo com o cientificismo da época, aceito e sancionado pelo autor do livro.
De outro lado, o livro foi identificado pela crítica como pertencendo à linhagem
dos chamados “livros reveladores do Brasil” – que, no plano científico-literário, teve seu
marco inaugural com Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, prosseguindo com A organi-
zação nacional (1914), de Alberto Torres, Urupês (1918), de Monteiro Lobato, e Populações
meridionais do Brasil (1920), de Oliveira Viana – isto é, livros que identificavam as causas
nefastas que determinaram a natureza tardia e infusa da formação da nacionalidade.
Em novembro de 1927, a Academia Brasileira de Letras concedeu o prêmio “En-
saios” a Lourenço Filho, pela autoria de Joaseiro do P
e
Cícero: scenas e quadros do fanatismo no
Nordeste, considerado pela primeira recepção como um livro de feição euclidiana, não só pelo
recurso da forma e pela estilística presentes em Os sertões, mas, também, pela mobilização de
teorias, temas e teses interpretativas constantes no “livro vingador” de Euclides da Cunha.
Décadas mais tarde, talvez reverberando a primeira recepção do livro, o crítico literário Wilson
Martins situou Joaseiro do P
e
Cícero como “eco estilístico e ideológico de Os sertões...”. Em
1929, Lourenço Filho foi indicado para a Academia Paulista de Letras, e, em julho do mesmo
ano, em sessão presidida por Amadeu Amaral, Spencer Vampré o saudou junto a outros novos
acadêmicos, que também ingressavam no círculo de homens de letras: Affonso Taunay, Alfredo
Ellis, Alfredo Pujol, Arthur Motta, Cassiano Ricardo, Cleomenes Campos, Guilherme de Almeida,
Léo Vaz, Menotti Del Picchia, Otoniel Motta, Plínio Salgado, Rubens do Amaral, Veiga Miranda
e Sud Mennucci.
4
Consagrava-se, assim, um intelectual, sobretudo um reformador do ensino,
íntimo de determinadas redações de jornais e de revistas, editora, círculos literários e políticos.
Capturada por Lourenço Filho como trunfo, essa rápida sucessão de eventos – número de
edições, prêmio de uma Academia e nomeação para outra – projeta o escritor estreante em
escala nacional, confirmado seu ingresso no círculo de homens de letras da Primeira Repúbli-
ca, que ia chegando ao fim. E, pouco tempo depois, publicaria, pela Melhoramentos, aquele
que viria a ser seu livro capital, Introducção ao estudo da Escola Nova (1930), um dos livros-
chave do movimento de idéias, então ascendente, denominado Escola Nova, com seu ideal de
educação científica e moderna.
Produto do investimento intelectual e político do autor – em uma época na
qual se alardeava a necessidade de mudança radical do homem brasileiro e de formação de
elites esclarecidas pelo conhecimento científico da realidade nacional – Joaseiro do P
e
Cícero
é, simultaneamente: a projeção, no âmbito da consciência nacional, daquilo que Lourenço
Filho nomeou como “fanatismo religioso” presente no sertão cearense; denúncia dos des-
vios da grande política, originados pelos jogos do poder; e, sobretudo, propósito de regene-
ração da República brasileira. É, portanto, um livro tributário da conjuntura intelectual
característica dos anos 20, momento histórico em que o intelectual integrado nas causas
sociais de seu tempo apresentava-se como “homem de letras” portador de uma consciência
de ruptura e empenhado nos estudos da realidade brasileira, com o objetivo de promover
mudanças políticas, sociais e culturais.
4
Lourenço Filho, Ruy. Lourenço Filho, escritor. In: Monarcha, Carlos (Org.). Centenário de Lourenço Filho: 1897-1997.
Londrina: Ed. da UEL; Marília: Unesp; Rio de Janeiro: ABE, 1997. p. 17-45.
Prefácio
16 Juazeiro do Padre Cícero
A primeira edição de Joaseiro do P
e
Cícero esgotou-se rapidamente. Em outubro
de 1929, a Companhia Melhoramentos de São Paulo reeditou o título, com tiragem expres-
siva de seis mil exemplares. Nessa edição, o subtítulo “scenas e quadros do fanatismo no
Nordeste” foi remanejado para a página de rosto, na qual consta também o qualificativo
“estudo de psychologia social”, incorporando-se, desse modo, uma apreciação constante
na primeira recepção do livro.
As tiragens de 1926 e 1929 indicam tratar-se de um livro editorialmente bem-
sucedido, quando comparado a outros títulos de êxito à época. Retrato do Brasil: ensaio
sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado, teve quatro edições entre 1928 e 1931; Popula-
ções meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, teve duas edições entre 1918 e 1922; e Urupês,
de Monteiro Lobato, várias edições sucessivas entre 1918 e 1923, com tiragem acumulada
de 30 mil exemplares, cifra considerada como ponto de saturação do mercado
5
em um a
época na qual, conforme dados censitários oficiais, 80% da população brasileira era de
analfabetos.
Esses títulos e números de edições e de tiragens são indicadores da presença de
um público de leitores já constituído e interessado nos estudos da realidade brasileira, que
naquele momento assinalavam, segundo inúmeros intérpretes da época, o “despertar da
consciência nacional” ou a “redescoberta do Brasil”, preocupações características da con-
juntura intelectual e política dos anos 20. Em outras palavras, o livro de estréia de Louren-
ço Filho está inserto em uma década tensa, em que grupos de intelectuais se tornaram mais
integrados na vida política e cultural e, ao mesmo tempo, produziam livros de acentuado
tom militante, e por vezes confiante, sobre os dilemas que lhes eram contemporâneos,
para, assim, promover idéias que se afiguravam a respeito do Brasil. Assim, pode-se inferir
que crítica ao atraso nacional e planos de modernização social constituem as questões
dominantes de um pensamento social envolvido com o trabalho de organização nacional,
amplamente tematizado pelo pensador político mais influente da época, Alberto Torres,
crítico do federalismo herdado da Constituição Republicana de 1891 e das oligarquias
estaduais e propositor de um governo central como organizador da Nação.
Três décadas depois, em 1959, a Edições Melhoramentos publicou a terceira
edição de Juàzeiro do Padre Cícero, agora com a grafia do título atualizada, e aquele que
fora o “livro primogênito” do autor retornou à cena cultural como volume I das Obras
Completas de Lourenço Filho, então um intelectual consagrado, o qual, no transcorrer de
sua trajetória profissional, contribuiu decisivamente para a organização institucional, teó-
rica e administrativa do campo educacional brasileiro, conjugando produção intelectual e
ocupação de postos importantes.
Dedicado, desde a primeira edição, à memória de um homem ímpar e exemplo
de cidadania – o naturalista, escritor e historiador das secas, o cearense Rodolfo Teófilo – ,
Juàzeiro do Padre Cícero foi reeditado em formato grande, com 217 páginas e tiragem de 5
mil exemplares. Entre os acréscimos significativos no texto da terceira edição, constam a
inclusão da nota “Um livro atual”, seguramente redigida pelo autor, porém assinada por
“Edições Melhoramentos”, e dois apêndices na seção “Notas finais”: as transcrições do
“Testamento do padre Cícero Romão Batista”, registrado em 1934 e espécie de depoimento
do padre para a posteridade, e “Trecho de um discurso do deputado Floro Bartolomeu”,
proferido na Câmara dos Deputados, em 1923, no qual contestou as análises de Moraes de
Barros sobre a cidade de Juazeiro. Desse modo, Lourenço Filho incorporava novos docu-
mentos e atualizava a discussão sobre o significado da cidade de Juazeiro e dos movimen-
tos sociais cearenses ocorridos na Primeira República.
Índice da fortuna crítica do livro, a terceira edição reproduz trechos de apreci-
ações formuladas ao longo do tempo por inúmeros intelectuais: Rocha Pombo, Pandiá
5
Hallewell, Lawrence. O livro no Brasil (sua história). São Paulo: T. A. Queiroz: Edusp, 1985. p. 241.
17
Calógeras, Max Fleiuss, Afonso Taunay, Plínio Barreto, Menotti Del Picchia, T. Lynn Smith,
Gustavo Barroso. A essa época, analisando a trajetória de Lourenço Filho na condição de
escritor e homem público, Wilson Martins asseverou: “Quanto a mim, acredito que a Intro-
dução ao estudo da Escola Nova só poderá ser compreendida em sua verdadeira natureza
quando ‘temperada’ com a leitura do Juàzeiro do Padre Cícero. É que o sr. Lourenço Filho
tomaria contacto com a escola antes de tomar contacto com a Escola Nova...”
·
À época da institucionalização das ciências sociais no Brasil, isto é, na era das
universidades, a dupla inscrição – científica e literária – de Juazeiro do Padre Cícero
esmaeceu-se, para se realçar como “ensaio de psicologia social”, tendo sido incorporado à
literatura científica, acadêmica ou não, acolhido como fonte para análises sociológicas
centradas nos temas do fanatismo religioso, messianismo, cultura rústica e cangaço e com-
parecendo na bibliografia de autores como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Rui Facó,
Octacílio Anselmo e outros.
6
E, embora não tenha sido traduzido para outro idioma, o livro
é referenciado por alguns “brasilianistas”, como, por exemplo, T. Lynn Smith, Vera Kelsey,
Donald Pierson e, mais recentemente, Ralph Della Cava.
7
Ensaio de cunho sociológico e psicológico, modo freqüente pelo qual os novos
escritores nas décadas de 1920 e 1930 (momento no qual o Brasil procurava a identidade de si
mesmo) concretizavam seu livro inaugural, Juazeiro do P
e
Cícero explicita a vontade do autor
quer de fazer ciência para poder, de fato, engendrar possibilidades de reforma do País, quer de
perscrutar o território brasileiro e a formação da nacionalidade, considerados sob o ângulo
tenso da diversidade racial, social e cultural. Mais além, esse livro de estréia é singular no
conjunto da obra de Lourenço Filho, que nele exercitou sua vocação de escritor nos moldes do
“beletrismo” oitocentista, que conjugava arte e ciência, literatura e história. Entretanto, como
observou Josué Montello, a vocação de escritor foi abandonada, ficando circunscrita ao livro de
estréia.
8
Carlos Monarcha
6
Queiroz, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Dominus: Edusp, 1965; Queiroz, Maria
Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976; Facó, Rui.
Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963; Anselmo, Octacílio. Padre Cícero: mito
e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
7
Smith, T. Lynn. People and institutions. Baton Rouge: Louisiana State University, 1946; Kelsey, Vera. Seven keys to Brazil.
New York: Funk and Wagnalls, 1940; Pierson, Donald. Survey of the literature on Brazil of sociological significance published
up to 1940. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1945; Della Cava, Ralph. Miracle at Juazeiro. New York: Columbia
University Press, 1970. Traduzido para o português por Maria Yedda Linhares e publicado pela Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, em 1976.
8
Ao comentar o livro Pedagogia de Rui Barbosa, de Lourenço Filho, revelando o estilo e a elegância do autor, Josué Montello
conclui “ter havido em Lourenço Filho, ao longo de toda uma vida consagrada à educação brasileira, uma renúncia intelec-
tual, a renúncia à obra de criação literária a que ele se poderia ter dedicado” (Montello, Josué. A nova lição de um grande
educador. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1962. cad. 1, p. 6).
Prefácio
Figura 6 – Capa da 3
a
edição de Juazeiro do Padre Cícero (1959)
19
Prefácio da 3
a
edição
O Nordeste não só apresenta estranhos aspectos da terra: faz emergir do seu
seio, candente e adusto, casos sociais dos mais imprevistos e singulares. É que não lhe tem
bastado o martírio secular das secas. Sobre o reflexo inevitável na existência humana das
condições de vida possível nessa atormentada região, há incidido, por anos continuados, o
peso fatal de erros e crimes da República. Um deles, por demais expressivo, porque não
logrará nunca dissimular as responsabilidades dos governos, o do Estado em que aflorou, e
o da União, que o permitiu e insufla, é o do Juazeiro do Padre Cícero, a Meca dos sertões
cearenses – arraial e feira, antro e oficina, centro de orações e hospício enorme... Num
rápido esboço, como o deste livro, de singelas impressões, não cabe o estudo perfeito de tal
caso social, incrível em nosso tempo. Para fazê-lo de modo completo faleceram ao Autor
certos recursos de investigação e os documentos necessários a um juízo definitivo sobre
fatos e pessoas. O Juazeiro é uma potência, fora da lei e da razão, ainda bem viva e podero-
sa, para que permita o depoimento franco dos que por aí habitam, e encontra-se bem guar-
dado, a fim de evitar a comprovação irrefutável de vícios e delitos que mal esconde. Tempo
virá em que se possam colher todos os dados necessários ao estudo de tão estranho caso,
fruto de inconsciência dos homens mais que simples produto das condições da terra... O
que o Autor deseja, sinceramente, é contribuir, como possa, para a renovação social desse
núcleo de população sertaneja que, malgrado tudo, deverá ser um dia livre, próspero e
feliz. E, ao tentar fazê-lo, não defende senão o sentimento da gente culta do Ceará, que,
pesarosa com a existência desse quisto ameaçador, já há vários anos iniciou a sua recon-
quista à civilização ambiente. Essa obra não poderá ser levada a cabo pela violência. As
medicações heróicas não se aplicam aos casos sociais. Já Euclides da Cunha, fechando com
amargura o seu livro genial sobre a campanha de Canudos, pedira um Maudsley para os
crimes e as loucuras das nacionalidades, quando se empenhem em ações iníquas como as
de combate armado à miséria e à ignorância. O patologista social, que Euclides invocava,
tivemo-lo nele próprio. E, no entanto, passados os anos, nem uma só medida têm as admi-
nistrações do País julgado necessária para a debelação de casos semelhantes, reincidentes
no organismo predisposto da Nação... As caatingas do Nordeste continuam a ser, por mui-
tos pontos, a “selva hórrida”, sem água e sem pão, sem tranqüilidade e sem justiça, sem
ensino e sem Deus, com oásis maravilhosos de riquezas e energias mal aproveitadas. Ne-
les, um povo forte cumpre em silêncio o seu fado, periodicamente abatido pelos flagelos do
Prefácio da 3
a
edição
20 Juazeiro do Padre Cícero
clima e da politicagem. Para elidir os efeitos daqueles, a única tentativa maior, a do gover-
no Epitácio, teve os ímpetos de uma convulsão, mas pequenos resultados práticos, senão
alguns contraproducentes, pelo desperdício. Acompanhamo-la de perto, sem que vísse-
mos a possibilidade de uma retificação de planos e métodos... Mais do que um patologista,
carecemos de higienistas e terapeutas sociais. O País procura políticos dignos desse nome,
capacitados e destemerosos, que, sem admitir soluções simplistas, venham a lançar linhas
seguras de coordenação nas forças dispersas do grande organismo. O Brasil não é o gigante
que dorme, dos tropos das plataformas políticas. É antes um grande corpo, que caminha às
cegas, capaz de destruir-se a si próprio. O problema brasileiro é mais que tudo, no momen-
to presente, um problema de coordenação de cultura. Assim o têm apontado pensadores,
como Alberto Tôrres, embora em sua obra tenha [este] dado especial importância à força
das leis, por si só, na crença de que uma reforma da Constituição possa tudo salvar... Mais
recentemente, um grupo de homens da geração que passa levanta a sua voz, ainda não
pressentida pelos políticos profissionais, mas já atuante nas consciências menos adorme-
cidas, em favor de mais justas e completas soluções. Dessa mentalidade nova, menos ro-
mântica ou menos desviada das realidades, Júlio de Mesquita Filho deu ainda há pouco
uma síntese admirável, num pequeno livro que deveria ser um catecismo digno de medita-
ção. À força sugestiva de algumas de suas páginas, como à palavra animadora de seu autor,
deve-se a publicação em volume destes artigos de jornal, em que se juntam impressões de
um caso social significativo, como expressão do estado atual da evolução brasileira. Elas se
destinam a auxiliar, ainda que modestamente, a preparação de uma mentalidade popular
mais afeita ao entendimento de nossos grandes problemas e das soluções necessárias. Será
preciso que todos concorramos para dar maior consciência ao que já se chamou “força da
terra” – “energia criadora sem consciência definida, força esboçada sem direção precisa,
energia inconsciente da raça em formação caótica, força emergente da própria terra em
procura da consciência sábia de seus guias mentais, de seus diretores sociais, dos obreiros
robustos da nacionalidade incipiente” – , como já o afirmou Oliveira Viana, num valioso
estudo sobre novos pontos de vista a imprimir à vida nacional... Este modesto livro, quan-
do mais não valha, exprime alguma coisa dessa nova consciência sobre os problemas do
País, dia a dia mais sensível.
[O Autor]
21
Um livro atual
Na extensa obra do professor Lourenço Filho, Juazeiro do Padre Cícero é o mar-
co inicial: data de 1926. Não obstante, é um livro pleno de atualidade.
A matéria que o compõe fora publicada, antes, no jornal O Estado de S. Paulo,
numa série de artigos que alcançara viva repercussão. Reunida em volume, de que se tira-
ram duas edições sucessivas, mais se impôs aos meios literários, culturais e políticos do
País. Antes de tudo, o livro revelava um vigoroso escritor, que ainda não havia atingido a
casa dos trinta anos. A Academia Brasileira laureou o ensaio com um de seus prêmios
anuais, e a Academia Paulista de Letras não se demorou em convocar o autor para que nela
ocupasse uma das cadeiras.
Não se apresentava o trabalho, no entanto, apenas como uma peça literaria-
mente bem composta. Numa época em que mal se ensaiavam os estudos de análise social
no País, Juazeiro do Padre Cícero surgia como importante contribuição nesse campo de
estudos, e, nessa qualidade foi, realmente, saudado por eminentes publicistas voltados ao
mais sério exame das coisas nacionais.
“É um livro”, escrevia Rocha Pombo, “que há de ficar na mesma estante em que
se acham os do Euclides e os do Gustavo Barroso”. “Obra sincera, que nunca poderá ser
desprezada no estudo integral do fenômeno social dos sertões”, ajuntava Pandiá Calógeras.
“Encerra preciosas lições que todos os brasileiros deveriam aprender”, opinava Afonso
Taunay. “É um belo e um bom livro, belo por sua técnica e bom porque chama a atenção
para o descurado problema dos sertões”, afirmava Gustavo Barroso.
Nessas como em outras apreciações críticas, salientava-se a importância social do
livro, reconhecida depois também no estrangeiro, como se pode ver de publicações de Linn
Smith, Vera Kelsey, Ray Josephs, Roger Bastide, Donald Pierson e Earl W. Thomas. É que, ao
descrever o caso de fanatismo do Juazeiro – tema central do trabalho – o Autor considerava o
ambiente geográfico, as condições econômicas e a vida cultural da região, procurando ainda
interpretá-las no contexto geral da vida do País.
Certamente que a isso fora levado pelas circunstâncias mesmas da comissão
que o chamara ao Nordeste. Professor, em 1922, numa das escolas normais de São Paulo, o
sr. Lourenço Filho havia recebido a incumbência de reorganizar o ensino público no Esta-
do do Ceará, onde devia permanecer por dois anos. No desempenho dessa tarefa, percor-
reu os sertões a fim de instalar escolas, e, buscando compreender e obviar as dificuldades
Um livro atual
22 Juazeiro do Padre Cícero
que nisso encontrava, fora conduzido ao exame das condições da vida regional, da menta-
lidade do sertanejo, seus costumes, necessidades e aspirações.
Encontrava assim motivo para que, já em livro de estréia, viesse a demarcar os
domínios em que, mais tarde, deveria expandir a sua obra: a psicologia, a educação, o
pensamento social. Por muitos aspectos, Juazeiro do Padre Cícero é um ensaio de psicolo-
gia social; ao redor dele, desenvolve-se, porém, uma tese de reforma de costumes, a da
reabilitação do Nordeste pelo esforço de preparação do homem, e não só por efeito de
obras materiais que atenuem os resultados devastadores das secas periódicas. Essa tese,
hoje geralmente admitida, não o era ao tempo. Ademais, num capítulo de conclusão, com
fundamentos no retrato que havia traçado, o Autor mostrava a necessidade urgente de
formar grupos de elite que melhor pudessem compreender os grandes problemas nacio-
nais, planejar-lhes as soluções e executá-las com espírito público. A educação deve, pensa
o Autor, ter um sentido nacional, imbuir-se de força “política”, no melhor sentido dessa
palavra. No caso particular que serve de tema ao livro, o do fanatismo de grandes grupos da
população, assinalava, enfim, com documentos, a responsabilidade dos governantes, des-
providos da preparação necessária para solver tais problemas de forma conveniente.
Sob esse último aspecto, por mais objetiva e serena, a obra se apresentava como
um libelo. Notou-o, antes que outros, em aprofundada crítica, o brilhante escritor Plínio
Barreto, quando escreveu: “A narrativa do ilustre professor toma, assim, sem que ele
calculadamente o procurasse, pelo simples encadeamento dos horrores que se desfiam,
pela energia singela da verdade, o feitio, o calor e a vibração de um formidável libelo
acusatório...” Logo se manifestaram, de igual modo, outros críticos, como também uns
poucos deputados e senadores, refletindo-se, então, o livro, em apaixonados debates nas
câmaras políticas. O País atravessava uma grave crise, e os documentos que o sr. Lourenço
Filho apresentava em seu livro suscitaram paixões, embora jamais pudessem ser
contraditados.
Não quis ele participar desses debates. Como então declarou, não lhe interessa-
vam as querelas de grupos. Seu intuito era o de expor, e, se possível, levar a refletir sobre a
situação de uma boa parcela da gente brasileira, em suas próprias palavras, “sem água e
sem pão, sem tranqüilidade e sem justiça, sem ensino e sem Deus”, e sobre a qual “periodi-
camente se abatiam os flagelos do clima e da politicagem”.
Volvidos trinta anos, largos trechos do Nordeste inteiramente se transforma-
ram. A “Meca do Cariri”, o Juazeiro, embora guarde muitas das tradições como centro de
romeiros, é hoje uma bela cidade (o maior núcleo urbano do Ceará, depois da sua Capital),
em pleno desenvolvimento comercial, industrial e cultural. Em outros trechos da região,
no entanto, a situação em pouco se alterou, havendo cultura muito rudimentar e escassa
produção. Em conseqüência, muitas das observações deste livro, bem como as medidas
que indica para melhoria econômica e social, têm ainda o amargo sabor da atualidade. Na
verdade, a idéia central que defende – a de que o problema não é ali o da simples minoração
dos efeitos das estiagens, por assistência temporária, mas o de aprofundado trabalho de
“educação de base” – continua de pé.
Sobre ser, assim, um documento histórico, que se lê com sumo interesse por
seu estilo, Juazeiro do Padre Cícero continua a soar como uma advertência e um apelo, tal
como nas edições anteriores, de que o texto se reproduz sem alterações, salvo o acréscimo
de algumas notas elucidativas e a transcrição, no final, do testamento do padre Cícero
Romão Batista.
23
Capítulo 1
Em caminho
* Publicado originalmente em Educação, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 219-234, nov./dez.
1928. Há versão mais recente no Arquivo Lourenço Filho, do Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio
Vargas (FGV): Lourenço Filho, M. B. Há uma vocação para o magistério? Educação, Rio
de Janeiro, s.d. (LFII pi 28.10:00). Cópia datilografada.
Mergulhando no passado – O Nordeste, seio vivo da tradição – “Era
assim no tempo do Império...” – “E era assim no tempo da Colônia...” –
De Fortaleza, cidade do tempo presente, ao Juazeiro do Cariri, arraial
de antanho
25
Não há necessidade de chegar ao verdadeiro recesso das terras para descobrir
no Nordeste o recôndito de velhos costumes. Se penetrar o sertão é mergulhar no passado,
pois que nos modos simples da gente provinciana, como na graça rude e primitiva da
natureza sem enfeites, transparece sempre alguma coisa do tempo que foi, naquela singu-
lar região do País, não tem o viandante que procurar a alma da tradição no seio de aldeias
menos acessíveis, ou contida a medo em pequeninos núcleos em que os costumes se hajam
cristalizado.
Todo o Nordeste é uma crônica vivente, de fácil e ininterrupta decifração, a
começar das limpas areias da costa aos desmedidos sertões do centro. Para reatar-lhe o
fio não carece o investigador das vistas severas da análise ou de esforços falíveis da
imaginação. Porque é na lembrança mesma da vida de outrora que ele vê abrirem-se os
caminhos na orla das caatingas, para que os povoados ainda próximos do litoral
entremostrem, em convidativo aceno, a calma saudável de existência repousada, ungida
da mais suave poesia... É o mesmo convite amável que o leva depois pelas serras fres-
cas e regiões de oásis, por lavouras semi-abandonadas, na melancólica apreciação de
um esplendor econômico de há muito perdido. E é a própria tradição que o empolga, a
seguir, arrastando-o com mal fingidas promessas por veredas incomparavelmente mais
ásperas, sobre o chão aquecido das “chapadas” sem fim...
Por último, não há lutar contra essa estranha força dominadora. Se dantes insi-
nuava a adaptação ao meio em cada dia de jornada, desde o modo de condução e o alimen-
to até o vestuário e a linguagem, agora, implacável senhora, junge o homem à terra, escra-
vizando-o sem piedade... Não lhe bastam as imposições da vida material, em expressões
que se diriam as de uma rude civilização de conquista; acaba por impor-lhe as menos
suspeitadas idéias; acorda-lhe no íntimo, em explosões selvagens, primitivas tendências,
quando não lhe ateia no sangue o alvoroço de confusos sentimentos. E, desse modo, ou o
viajante se adapta, pondo-se ao serviço dos valores da tradição, ou corre o risco de desapa-
recer, tragado por ela...
Ao brasileiro do Sul – habituado a cenas de renovação constante, à ebulição
fervilhante de progresso nas cidades cosmopolitas, teatro da agitação de contraditórios
interesses, em ânsias e flutuações de um porvir ainda mal definido, mas sempre tendentes
à melhoria da existência social – , a impressão primeira, quando pelo Nordeste se interne,
Capítulo 1 – Em caminho
26 Juazeiro do Padre Cícero
é a de que vai, como num sonho, recuando pelo tempo. A vida parece que desanda, que
inicia giro inverso, marcando para trás duas dezenas de anos em cada dia de viagem. Povo,
habitações, aspectos de vilas e cidades, processos de cultura da terra e meios de transporte,
modos de falar e vestir, manifestações de toda a existência social e política, de estética ou
religiosidade, tudo se lhe mostra sob espessa pátina do tempo, ou lhe soa nalma, com as
vozes indefiníveis de alongado pretérito.
Ao avistar um adro de igreja, em freguesia pouco arredada da costa, em dia
santo, à hora da missa, na vinheta evocativa de um renque de coqueiros esguios, ou de
mongubeiras frondosas, debaixo de cujas folhas largas e poeirentas, muito raro, um auto
põe uma única e escandalosa nota da vida presente, há de dizer, por força: “Era assim, no
tempo do Império...” Ao verificar, pouco além, as condições da vida rural de muitos pontos
do sertão, onde o fator humano é de tal desvalia que chega a ser empregado, normalmente,
no transporte de cargas e se oferece como força motriz às engenhocas de cana e bolandeiras
de mandioca, há de pensar consigo mesmo, irresistivelmente: “Devia ter sido assim, no
tempo da escravidão...” E, ao internar-se, depois, pelas vastidões semi-áridas, onde em
cada um dos mal assinalados arraiais, uma dezena de homens se entrega à precária criação
de gado bovino ou caprino, onde a alimentação que lhe ofertam é, as mais das vezes, um
prato de farinha seca ou uma mancheia de frutos silvestres, onde tristes casebres seme-
lham ocas, e os utensílios mais elementares reproduzem os dos tapuias primitivos e com as
mesmas denominações originais, há de exclamar, convicto: “Havia de ter sido assim, na
época da Independência...”
Naturais, essas exclamações. Noutros pontos do Brasil será necessário pene-
trar mil quilômetros talvez, fugir léguas e léguas à dominação das zonas de influência
das estradas de ferro, para presenciar idênticos estados de vida primitiva, ou para ouvir
as mesmas vozes de antanho. Em parte alguma, contudo, terão elas igual poder impressivo,
a nota comovedora, a expressão de luta angustiosa contra o meio, que aí encerram. Após
a primeira impressão de espanto e de condenação do homem, evocam um sentimento
não de piedade, mas de respeito, profundo e justificado. É que refletem desesperos de
um drama sempre renovado, que é mais que o da violência da adaptação da vida humana
ao ambiente físico, o da dificuldade que a essa adaptação têm acarretado as incertezas do
meio cósmico, mutável em suas expressões, sem ritmo conhecido. Farto e doce, hoje,
como uma seara, referto de tentadoras promessas amanhã, para logo se transmudar em
solidões estéreis, impondo um regresso na sua conquista, com acabrunhante exigência
da repetição de invariáveis processos de luta...
Não são apenas as longas estiagens periódicas, grandes secas, ou “repiquetes”,
que marcam esse limite ao progresso. Em cada ano, na chamada estação do verão, ou da
seca, o aspecto geral da natureza acentua a impressão de mergulho numa vida já vivida e
gasta. As cores do novo e do presente, que são as do vestuário natural da vegetação, cedem
lugar ao descolorido das folhas mortas e dos galhos despidos, bracejantes em súplica para
os céus sem clemência...
Só ao viajar o sertão, nesses dias de fogo, é que o filho de outras terras chega
a compreender a resistência heróica do brasileiro do Nordeste. Fora do litoral e das
serras, o ar exsicado fustiga a pele como uma lixa; não há sombras repousantes, nem
riachos frescos, nem moitas floridas; a água torna-se rara e má; a alimentação é escassa,
sempre pobre. A paisagem, desnuda e monótona, não se anima com o vibrar de asas,
nem se adoça em cambiantes de crepúsculo...
Às primeiras caminhadas, sobrevem, rápida, a fadiga. Assalta depois o viandante
estranho à terra certa ansiedade, quando não extrema excitabilidade geral e impressionante
atividade da imaginação. E não é raro que se lhe apresentem miragens. No extremo dos
tabuleiros escaldantes, ou sobre o emaranhado das caatingas ressequidas, compõe a ilusão os
mais tentadores oásis, recortes de serras nunca existentes, jardins e pomares... A explicação
27
do primeiro fato talvez esteja nas longas horas de sol, sempre ardente e cáustico, na mesmice
do ambiente, cujas ondulações se copiam desconsoladoramente, e na secura do ar, intolerá-
vel a princípio a quem não esteja aclimado. O segundo, no contraste maravilhoso das noites,
sobrevindas quase de chofre, sem ocaso duradouro, com céus incalculavelmente diáfanos e
profundos, buliçosos de vida de astros incontáveis, sobre cuja luz hesitante meteoritos lan-
çam riscos fantásticos, quando um luar embriagador não se derrame, como bálsamo sobre as
coisas da terra, transfeitas em quadros de magia e sedução...
Avisado dessas alternativas de angústia e consolo, o estranho se anima a trans-
por os sertões, no seio dos quais irá notar que a civilização daquelas paragens é um prodí-
gio de tenacidade, teia de Penélope entretecida de sacrifícios e renúncias sem nome,
mantidas gerações afora, não se sabe bem por que razões profundas.
E compreenderá, num átimo, por que a vida ali estacionou em aparente bocejo
de cansaço ou desânimo, e logo perceberá que a primeira impressão contra o filho da terra
é descabida e injusta.
uuu
Façamos tal viagem no Ceará, o coração do Nordeste.
Antes de nos embarcarmos num trem da via férrea Baturité, em Fortaleza, veri-
fiquemos como realmente estamos em plena época do presente.
A capital cearense é hoje uma cidade moderna, comparável por muitos aspectos
a qualquer das melhores do País, desde o excelente traçado das ruas e bulevares
1
até a viação
urbana, as casas de educação e assistência, os templos, os teatros, os jornais, os jardins, a
vida social e política. Se nalguma coisa Fortaleza não acompanhava, ainda há dois anos atrás,
o estonteante modernismo das nossas populações do litoral, era no recato geral de seus cos-
tumes, na pacatez e moralidade de sua gente. A vida noturna dos grandes centros, com seus
antros de vício às escâncaras, as tavernas que se não fecham, os conflitos e algazarras de cada
instante, ainda lá não era conhecida. O que não vem a significar que o fortalezense seja um
casmurro ou um vencido. Ao contrário, não há povo mais comunicativo e alegre, mais pronto
às expansões naturais de aplauso e zombaria. A expressão consagrada “Ceará-moleque”, com
que muitas vezes os jornalistas da terra têm profligado excessos de familiaridade dos garotos
e estudantes, aplica-se de modo particular aos da formosa cidade que é a capital.
Esse espírito de afabilidade comunicativa – geral, aliás, nas cidades do Norte –
facilita a verificação em que nos empenhamos. Penetremos, por um instante, nos círculos
sociais mundanos, ou de classe; visitemos as autoridades, sempre democraticamente acolhe-
doras; passemos pelas redações dos jornais, cujo serviço informativo nos põe em contato
direto com a capital do País e o estrangeiro; verifiquemos como funciona o comércio, como se
desenvolve a indústria, como o sistema bancário, dispondo de fortes estabelecimentos lo-
cais, os enlaça na sua trama de interesses; examinemos as escolas superiores, os colégios
particulares e os estabelecimentos públicos de ensino primário; vejamos o que são os institu-
tos de assistência social, o foro e a justiça... Estamos, realmente, em nosso tempo.
2
Mas, desde que o comboio se desloca e começa a arrastar-nos para o centro; desde
que se somem, atrás dos renques de cajueiros enormes e dos coqueirais hirsutos, os vultos
amigos das dunas que, em toda a região, aí assinalam a costa; desde que, enfim, se percam no
1
Denominação oficial, hoje perfeitamente popularizada. “Avenida”, que traduziria a palavra francesa, correspondente lá,
por curiosa transladação de sentido, à idéia de jardim público. Aliás, o Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portu-
guesa, de 1943, registra o termo “bulevar”.
2
O A. refere-se à capital cearense, em 1922, então cidade de pouco mais de cem mil habitantes. No recenseamento de 1950,
Fortaleza apresentou 270 mil habitantes, e esse quantitativo é hoje maior. Novos bairros se expandiram, novas indústrias se
criaram, novos centros de cultura e ensino se instalaram. Pelo censo referido, Fortaleza figurava como a sétima cidade do
País, pela população.
Capítulo 1 – Em caminho
28 Juazeiro do Padre Cícero
confuso do arvoredo e do casario à distância os recortes singulares das rodas girantes dos
moinhos de vento, eretos em um sem-número de quintais para a elevação da água, volta-se a
primeira página das épocas de antanho, depois outra, e outra, cada qual mais rápida...
Deixamos, assim, construções higiênicas e elegantes, e vamos topando, desde
as primeiras paradas, mal entramos na caatinga, com habitações que denunciam atraso de
engenharia, de vinte, trinta, quarenta, cem anos... Os modos de expressão do povo, o vestuá-
rio mais comum, os processos da lavoura e da indústria, as idéias político-sociais, vão
condizendo com o mesmo recuo no tempo...
E, assim, em tudo o mais.
A luz elétrica torna-se gás acetileno; depois, lampião belga; em seguida, candeei-
ro; mais tarde, candeia de óleo de mamona... Os muros se tornam sucessivamente cercas de
arame, divisões de varas pacientemente trançadas, valados singelos, desaparecendo por fim,
de todo, para deixar em comum valados e serras. É o “mundo velho sem tranqueira”... Aí, o
sistema tributário chega ao imposto do dízimo in natura; a medicina, ao “chá de pinto”; a
linguagem sustenta formas quinhentistas e denominações tapuias das raças primitivas. Raro
nessas alturas, o estrangeiro é chamado ainda, colonialmente, de “marinheiro”; a capital
assinala com o nome de origem, o “Forte”. O diabo é o “cão” ou o “capiroto”; a forma comum
do pedido de socorro evoca o “aqui-del-Rei”; a moeda, por muitos pontos, apelida-se o “dobrão”;
“ir queixar-se aos da Bahia” é também uma forma que se ouve para significar reclamação às
autoridades; os “reisados de bichos” e o “bumba-meu-boi” são o melhor divertimento popu-
lar... Mil reminiscências, que marcam, pela constância, como que estranha parada no tempo.
A própria evolução etnográfica brasileira quase pode ser estudada numa via-
gem de penetração. Na costa, predomina o branco, fato que demonstra a preponderância
ariana da nossa gente de hoje; a breve trecho, surgem, porém, expressões do mais violento
caldeamento das três raças primitivas, com a presença muito rara do preto puro; depois,
mais extenso e generalizado, o caboclo, tanto quanto indígena, tanto quanto ariano; nou-
tros pontos, tapuias extremes, índios puros, com a só diferença, junto aos seus primitivos,
em não usarem tangas, terem idéias cristãs e vestirem calças de azulão...
De raro em raro, aspectos da vida de algumas cidades organizadas, que as há, são
como breves sinalefas nessa mostra contínua de retrogradação. Apresentam-se para confir-
mar a regra, como índice de maior garantia à estabilidade das condições de vida. Crescem ao
sopé das serras frescas, como Maranguape, Pacatuba e Baturité; marcam, no curso dos rios,
pontos de várzeas ferazes, como o Icó, Quixeramobim e Lavras; ou denunciam a existência
de grande lagoa ou açude, como no Iguatu e Quixadá. Embora procurem reagir contra as
condições envolventes, esses núcleos urbanos sofrem-lhe a inevitável influência.
Nelas se afirma, malgrado tudo, o valor do sertanejo. Para maior comprovação,
depois de vários dias de viagem, insulados nos vales da Serra Araripe, vamos encontrar, a
seiscentos quilômetros da costa, grandes núcleos de população muito densa, em muito
maior contato com as manifestações de vida do presente, de que seria de supor. No Crato,
por exemplo, que representa a capital da região chamada do Cariri, depara-se uma cidade
que é tentativa vitoriosa para integrar o sertão na vida de hoje. Volta-se a ver a iluminação
elétrica, a imprensa, bom hotel, cinema, geral preocupação de higiene e conforto. É im-
pressionante, mas explica-se. A possibilidade de organização econômica, mais ou menos
estável da região, permitiu o acúmulo e emprego de maiores capitais e seu conseqüente e
contínuo aproveitamento, capaz de sustentar o progresso.
3
3
O A. trata, neste livro, da situação que observou em 1922, quando percorreu a região, não à cidade hoje denominada
Juazeiro do Norte, cujo progresso material e social, desde então, tem sido acentuado. Pelo recenseamento de 1950, o
município de Juazeiro do Norte contava 56 mil habitantes, e a cidade, 42 mil, sendo, assim, o segundo núcleo urbano do
Estado do Ceará. O progresso comercial, industrial e cultural da cidade tem acompanhado esse ritmo de crescimento. Para
ela ainda acorrem milhares de crentes, em visita ao túmulo do padre Cícero, mas as suas manifestações religiosas não
apresentam o mesmo tipo das que se descrevem neste livro.
29
O que é impressionante e, à primeira vista, não se explica é a existência, a três
léguas dessa cidade, de um estranho aglomerado humano: o Juazeiro, do padre Cícero.
Como que todo o atraso dos sertões aí se condensou, para condicionar maior retrocesso e
estabelecer condições propícias de desajustamentos, em que repontam mentalidades atra-
sadas por séculos.
Havemos de fixar algumas das impressões dessa famosa Meca sertaneja – arraial
e feira, antro e oficina, centro de orações e hospício enorme...
Capítulo 1 – Em caminho
31
Capítulo 2
A Meca dos sertões
Cenas e quadros de fanatismo – Um caminho pontilhado de cruzes e os
penitentes – “Vai vivo ou morto?...” – Inconscientes semeadores da morte
e da loucura – Alguns traços a respeito da natureza da região – O Cariri,
um caso de insularidade em terras habitadas
33
– E estas cruzes, tão repetidas?
– Não se assuste. É a indicação do caminho. Vamos segui-las, e não há por
onde errar...
Numa zona de muitas léguas em torno do Juazeiro do Padre Cícero, os “romei-
ros” têm marcado assim, de fato, as árvores, os troncos de raras porteiras, as casas da beira
da estrada, as próprias lajes que aqui e ali afloram da areia como lápides descomunais, as
palmatórias dos cactus sempre verdes, os paus mais fortes das cercas trançadas... Há cru-
zes de todos os feitios, de todos os tamanhos, nas mais diversas posições. Algumas, na
casca tenra da cajazeira, rapidamente marcadas por quem passou, apressado, em demanda
da suspirada Meca dos sertões, sob o peso do crime ou na esperança de um ex-voto que o
redima; outras, golpeadas a facão, fundas e duradouras, no tronco arroxeado da imburana,
ou mal impressas no dorso revolto da oiticica copada. Quase sempre, coincidem estas com
os pousos dos romeiros, deixando ver, acima delas, os restos da corda de tucum, ou a
trança de cipó, que ali sustiveram as redes de descanso, em longa caminhada dos “afilha-
dos” sem conta do milagroso “Padrinho”... Trabalhadas com filigranas pacientes, algumas,
de longe a longe, atestam a estética primitiva de algum rude artista desconhecido. Outras,
e mais raras ainda, porque o analfabetismo dos romeiros é a regra, superpõem ou enlaçam
duas iniciais que valem como sinal sagrado por estas brenhas: P. C.
A variedade da simbolização mal resume os graus da estreita mentalidade dos
seus autores, submetida à mesma superstição grosseira, ao mesmo fanatismo cego e doentio,
que aí ressurge numa dolorosa expressão de atraso. O signo piedoso nem sempre representa
um marco de fé: é já, por vezes, o atestado de sacrifício sangrento. E quando o exicio se deu
em condições propícias, dois paus toscos, embrechados, reforçam o simbolismo... Junto a
estas, vão cair depois, uma a uma, as pedras da simpatia, os seixos piedosos da oração, que,
por costume religioso, cada qual deve lançar quando passa... Não são raros, à margem dos
caminhos, esses montículos de seixos e cascalhos, evocadores de mortes trágicas. E a sua
repetição, em certos trechos, acaba por impressionar.
Comove também, fundamente, em tal cenário tocado de superstição, o encontro
com os romeiros, indo e vindo. Famílias inteiras, às vezes. O chefe, à frente, monta triste e
sonolento cavalo, com uma criança ao colo ou à garupa; a mulher, ao encalço, com um petiz
escarranchado na ilharga; velhos caminhando penosamente, aferrados a um bordão; adoles-
centes de olhar vazio e cansado, conduzindo crianças pequeninas ou sobraçando “picuás”...
Capítulo 2 – A Meca dos sertões
34 Juazeiro do Padre Cícero
Os que vão doentes se transportam em rede, suspensa por um varapau. E como essa condu-
ção é própria, em todo o Nordeste, também aos defuntos, costuma-se perguntar à passagem:
“Vai vivo ou morto?”... Não raro uma cabeça macerada emerge de dentro, ou um braço nu
acena em categórica negativa...
Mas a zona não é propícia a expansões dos caminhantes.
A saudação ou cumprimento amical, clássico entre os que viajam pelo interior
do País, aí se substitui por um olhar desconfiado ou indiferente. É que se começa a entrar
numa zona fora da lei e da razão...
Topam-se, por vezes, bandos armados até os dentes; ranchos de fiéis seguindo um
“beato”, que arvora a cruz enfeitada, ou tem amarrado ao cano do rifle um simples lenço verme-
lho, a que se juntaram rosários e bentinhos. Da sombra do arvoredo, chega-nos, de espaço, um
marulhar de vozes indistintas, ou plangência de um canto lúgubre. É um grupo de “romeiros”
em oração. Outras vezes, essas manifestações de culto errante se abafam em estampidos, que
os ecos repetem ao longe, ou no berreiro de um endemoninhado insubmisso, revoltado contra
os que o levam à bênção do “Padrinho”... Por isso, para estas caminhadas, em tal forçada com-
panhia, mais depressa toma o sertanejo a arma de fogo, como indispensável, que o próprio saco
de farinha, o molho de rapadura e a purunga d’água, em que transporta os ingredientes da
alimentação habitual em viagem.
Tropas de burros, que demandam o ponto terminal da estrada de ferro, passam
quase sempre guardadas. Ao encontro delas, todos estacam para ceder caminho. É um
momento propício para observar melhor os peregrinos, antes que a onda de pó sufocante
nos envolva. A maioria arfa de cansaço e privações. Ainda assim vão confiantes, domina-
dos pela idéia da bênção do “Padrinho”, representativa de meio ingresso no céu... Romei-
ros abastados, ou menos ignorantes, contam-se nos dedos; e, quando aparecem, são mani-
festamente doentes do espírito, ou criminosos em demanda de homizio seguro.
Os penitentes provêm de quase todos os estados do Brasil. Uma família encon-
tramos, próximo a Barbalha, a três léguas da “cidade santa”, que viera do Rio Grande do
Sul. Aí ficara, depois de cumprir o voto, sem recursos para tornar aos seus “pagos”... Mas,
dos sertões limítrofes, sobretudo de um círculo de cinqüenta ou sessenta léguas, é que eles
acodem, e vão e vêm, sem cessar.
É curioso notar que os cearenses são em menor número, confirmando assim
que “santo de casa não faz milagre”. Deve-se isso a mais direto conhecimento do padre e de
sua história, à campanha da imprensa e dos sacerdotes católicos esclarecidos. O grande
santo dos cearenses é São Francisco do Canindé, em cuja igreja se realizam imponentes
festas a 4 de outubro.
4
4
“Quem, da capital, Fortaleza, pelo caminho mais cômodo, quer visitar Canindé, hoje poderá seguir em automóvel, ou segue
a estrada de ferro até Itaúna (6 horas de trem), donde poderá viajar, em automóvel (3 horas e 30 minutos), até Canindé.
Água corrente, de riacho ou poço, não encontrará nem em Fortaleza nem na viagem. Tem que contentar-se com água de
cisternas (cacimbas). Terá que atravessar rios secos, isto é, leitos de rio que, cheios de pesadas massas de areia, não contêm
mais uma só gota que seja, enchendo-se tão-somente no inverno, isto é, na.estação chuvosa, que começa, geralmente, no
quente mês de janeiro. O próprio Rio Canindé, em cujas margens antigamente habitavam os índios canindés, e que inunda
tudo, na maior parte do ano, está completamente seco, sem uma poça d’água. Quase toda a natureza parece morta. A maior
parte das árvores estão sem uma só folha verde. Tudo está queimado pelo sol, que, como o inverno na Europa, inata a vida.
Através dessa natureza sem recursos, anualmente passam oitenta mil pessoas à procura de São Francisco das Chagas,
podendo só os abastados servir-se de automóveis ou cavalos. Uma moça aí segue, pé ante pé, léguas e léguas, levando como
oferta a São Francisco, um papagaio. Ingenuidade? Oh, não! Ela tinha feito promessa de dar a São Francisco o objeto de
maior estimação. Era o papagaio... Outra moça vem caminhando, dias, semanas, meses, pois tem que vencer duzentas
léguas até chegar a Canindé. Puxa atrás de si o seu cavalo ensilhado, na tentação contínua para montar, descansando os pés
sangrentos. Mas, não. Continua a pé, e só se servirá do cavalo para a volta. Um homem decentemente vestido, na viagem a
Canindé, bate todos os dias à porta de algum rancho, pedindo algo para comer. É abastado, rico mesmo, mas fez a promessa
de viajar sem dinheiro, vivendo de esmolas. Outro fez o contrário. Segue de automóvel a Canindé, onde esvazia os bolsos,
deixando todo o seu dinheiro no cofre do santo, e vive, na volta até a sua casa distante, de esmolas” (Frei Pedro Sinzig, O.
F. M., em artigo publicado em O Nordeste, de Fortaleza, em 1923).
35
A dar crédito às informações, notadamente freqüentam o Juazeiro sertanejos
alagoanos, filhos da Paraíba e de Pernambuco; são muitos, também, os dos sertões baianos,
os do Piauí, Goiás e Mato Grosso e, menos freqüentes, os rio-grandenses do Norte e minei-
ros da zona norte desse estado central. Quase todos, viajando a pé, acabam por apresentar
idêntico aspecto de fadiga e miséria. Muitos vão doentes, atacados de vários males, ou se
contaminam em viagem. Vimo-los em promiscuidade com leprosos e boubáticos. E esse
vaivém contínuo, pelo interior dos sertões, explica por que certos pontos do sul do territó-
rio cearense apresentam uma verdadeira síntese da nosologia de todo o País.
O tracoma, por exemplo, encontrou no Juazeiro e arredores condições para um
grande foco. A inspeção médico-escolar a que se procedeu nas escolas do Cariri, em 1923,
assinalou a espantosa cifra de oitenta e quatro por cento de crianças contaminadas. Escolas
houve em que a inspeção encontrou afetadas todas as crianças e mais o professor. A bouba
e as moléstias venéreas são outro flagelo de grandes proporções.
5
São, assim, os pobres romeiros, em nome de Deus, inconscientes semeadores
da dor e da morte...
uuu
E, no entanto, a região é o verdadeiro oásis do Nordeste, com fontes perenes,
vegetação farta e sempre verde, culturas rendosas e abundante variedade de frutos.
Quem do sertão caminhe para a Chapada do Araripe vê a caatinga ir-se
transmudando em cerrados de melhor aspecto; no último trecho da viagem, notadamente
de Lavras em diante, e, transpostos os poucos elevados contrafortes da Serra de São Pedro,
há de notar que a flora como se adensa e avulta, em mais rápido alento. Para as bandas de
leste, ocupando larga porção dos municípios de Aurora e Milagres, à direita da ravina
coletora das águas, que os mapas indicam com o nome pomposo de Rio Salgado, há ainda
a caatinga, rala e enfermiça, com trechos quase desertos.
Ali as juremas se apresentam sempre tristes, as imburanas, quase desfolhadas, a
oiticica, e o próprio juazeiro, sem a copa altiva, com que noutros pontos domina e alegra toda
a paisagem, esbatida num tom acinzentado de ocre sujo... E, de espaços, se sobrelevam,
amiudados, os desolados cômoros de pedra e areia, em que só logram medrar o “xiquexique”,
de braços múltiplos e fervilhantes de espinhos, os “cardeiros” rastejantes, o “facheiro” alteroso
e solene, ou a “macambira” de lanças aguçadas...
Ficaram longe, contudo, aqueles impressionantes cenários de mais profunda
desolação, por entre os quais se viaja dias inteiros, sem ouvir um vibrar de asas, e em que
o ar muito límpido, de uma transparência enervante, permite contar, um a um, os espinhos
de cada cacto e as riscas de cada pedra. As mesmas cactáceas surgem aqui em grupos
maiores, quebrando a monotonia ambiente, com as suas flores mais numerosas, sangrentas
como chagas vivas, abertas no próprio penhasco em que se abrigam, ou esplendentes de
viço, no milagre de uma alvura imaculada. E as bromeliáceas, de vário porte, porfiando
entre si, no arrojar para o alto os pendões festivos de suas florescências de ouro, lembram,
por vezes, ao olhar cansado, um canto de jardim, que mãos cuidadosas tenham tratado,
ainda de véspera...
A fauna começa a representar-se também, de modo visível. Sem falar das
“avoantes”, pombas selvagens que em dadas épocas do ano enchem estes sertões, vêem-se
agora bandos de miúdas borboletas, construções de térmites cada vez mais numerosas,
pássaros que riscam os ares, mesmo nas horas mais quentes, e, à tarde, grupos de morcegos
5
Os algarismos [números] citados são de publicações oficiais. Constam do “Relatório da Diretoria da Instrução Pública”, em
1923, quando se instalou a inspeção médico-escolar, e do interessante livro Nosologia do Ceará, do dr. A. Gavião Gonzaga,
que por muito tempo chefiou, no Estado, a Comissão de Profilaxia Rural.
Capítulo 2 – A Meca dos sertões
36 Juazeiro do Padre Cícero
deixando o abrigo. Surpreendem-se mocós ligeiros e calangos espertos, e, quando se viaja
à noite, colhe-se quase sempre o susto dos olhos fosforeantes de raposas em caça...
Vai-se assim acentuando a vida, logo que se tomam as veredas do Cariri Novo.
À sua entrada, desaparece ou se esconde a vegetação xerófila dos sertões. Sur-
gem, animando a paisagem, as copas rotundas, de um verde intenso, dos juazeiros
estranhamente viçosos; a oiticica, de boa sombra, mede forças e elegância com a canafistula,
de flexuosa silhueta; os umarizeiros se esgalham e afogam em verdura os mofumbos e
marmeleiros; majestosa, a maçaranduba se eleva, sombreando por vezes o jucá, o pau-
branco e a braúna; enquanto, todo vestido de flores, de um roxo suavíssimo, o pau-d’arco
se ostenta nos pontos mais elevados.
Breve, a flora toma perfeito caráter tropical: é a região das “dríades”, de Martius.
6
Acompanhando-a, nos lugares mais úmidos, vicejam bosques de buritis, sempre sussur-
rantes, e o babaçu utilíssimo, que abre as palmas de metros. Entre ondulações do terreno,
manchas de cultura sempre aproveitadas. E, no Vale do Batateira, em que entramos agora,
os canaviais deslumbram, como mal sonhada maravilha...
A região não sofre os rigores da seca. As estiagens prolongadas influem, ao
contrário, beneficamente, no seu desenvolvimento econômico. Acossadas por elas, as po-
pulações circunvizinhas, num raio de muitas léguas, pagam por alto preço os cereais e o
açúcar. E oferecem-lhe, ademais, milhares de braços pelo preço da subsistência diária...
Para dar uma idéia de como seus habitantes julgam o periódico flagelo, registremos aqui a
ilustrativa resposta com que, a uma pergunta nossa, retrucou o prefeito municipal de Mis-
são Velha, bom homem, necessariamente agricultor e comerciante: “Qual, vamos mal...
Pois imagine que já não há uma seca grande há uns bons quatro anos!...”
7
A observação que depois ouvimos também, mais ou menos disfarçada, da boca
de pessoas de maior cultura, tem uma eloqüência decisiva: “O Cariri, região fertilíssima,
entre sertões inóspitos de cinco estados, cumpre a sua função biológica de insularidade,
que Wallace tão bem definiu na obra que se tornou clássica, Island life”.
8
Insulanos omnes
infidos habere... Toda a história das ilhas e dos oásis é tecida não só de conflitos políticos e
econômicos, como de impiedade.
E o Cariri não se tem podido furtar às manifestações daquele gênero. Já por duas
vezes, em 1834 e 1846, agitou-se a questão da separação do Cariri em província independente,
com território que se tirasse em parte do Ceará e em parte de Pernambuco. A capital seria a
cidade do Crato. Como havemos de ver num dos capítulos seguintes, a sedição do Juazeiro, em
1913, tomou vulto também por se apresentar a alguns políticos da região como possibilidade
dessa reivindicação política.
Pois é à entrada de uma zona assim, magnífica de vitalidade, num desvão da
Serra do Catolé, que surgiu e tem medrado, parasitariamente, o mais singular povoado do
Brasil: o Juazeiro do Padre Cícero.
Iremos, agora, penetrar nele.
6
Sobre a flora do Ceará, vide nota no fim do volume.
7
Sobre a história das secas, vide nota no fim do volume.
8
A noção de insularidade biológica não cabe só às ilhas do mar, mas às “ilhas do deserto” – os oásis, e às “ilhas das regiões
habitadas”: os vales férteis. Cf. Brunhes, Jean. La géographie humaine. 2
ème
ed. Paris: F. Alcan, 1912.
37
Capítulo 3
Transpondo as trincheiras...
As defesas da cidadela – Um fosso de três léguas aberto em seis dias –
No seio da Meca– As casas dos romeiros por dentro e por fora – Uma
cidade nascente– A igreja dos “milagres”
39
Para quem vai de Ingazeira, via Missão Velha, o Juazeiro não se descortina a
distância. Também não aparece, de súbito, apontando de um capão de mato ou de uma
dobra da serra. O caminho se desenvolve, nas imediações, cortando apenas um capoeirão
que veste terreno de quase imperceptível aclive. E como se vêm observando, de espaço a
espaço, desde muitos quilômetros, miseráveis casebres ou mal-assentados tugúrios, os que
se notam agora, amiudadamente, não impressionam como coisa nova, de merecer especial
atenção.
Em certo ponto, no entanto, a vista dá com uma obra inesperada: largo fosso se
estende, transversalmente ao caminho, e parece não ter fim, para um e outro lado, insinu-
ando-se por entre árvores esgalhadas e toscas habitações, como uma fita vermelho-sujo
recalcada na paisagem.
O viandante há de parar curioso:
– Que é isto?
– É o Juazeiro.
9
– Como, o Juazeiro?!...
– Estas são as trincheiras, pois não está vendo?...
E o guia solícito ajuntará outras informações preciosas:
– Estas valas rodeiam todo o povoado. Têm mais de quatro léguas de compri-
mento. Foram abertas numa semana, por ocasião da guerra do Rabelo...,
10
e nunca mais se
fecharam...
Se alongarmos a vista de novo pelo fosso aberto, depois de um cálculo ligeiro
sobre a cubagem da terra cavada e revolvida, duvidaremos de parte da informação. Sem se
conhecer o Juazeiro e a sua vida, não se pode acreditar, de fato, que tão volumoso trabalho
se tenha realizado em seis dias. Não se trata de um valado singelo, mas de verdadeira
escavação de guerra, com cerca de dois metros de altura nalguns pontos, por outro tanto de
largo. Embora volvidos quase dez anos depois da construção, podia notar-se ainda que a
9
A denominação “Juazeiro” provém não do “juá do campo”, conhecido no sul, mas de uma árvore de grande porte – Zizyphus
joazeiro, Mart. – , cujas folhas resistem mesmo às grandes secas. O juazeiro e a carnaúba poderiam ser tomados como as
duas plantas sagradas do Nordeste, tais os seus préstimos e resistência.
10
O cel. Marcos Franco Rabelo, presidente do Ceará, deposto em 1914 pelos fanáticos do padre Cícero.
Capítulo 3 – Transpondo as trincheiras...
40 Juazeiro do Padre Cícero
terra extraída fora cuidadosamente atirada para o lado do arraial, de modo a formar, em
talude, um anteparo aos defensores. Obra de defesa aperfeiçoada, de tipo clássico, tendo-
se em vista a natureza do terreno e a possibilidade das armas dos combatentes.
Sob tal impressão, vamos seguindo. Atravessamos o largo fosso sobre que a
estrada descai, e penetramos por entre casebres de pau-a-pique, mais adensados agora, de
miserável aspecto. São em tudo semelhantes aos mais pobres que vínhamos observando
em caminho. Não se acredite, porém, que sejam do tipo característico das habitações rurais
do Nordeste, com pilares ou esteios rodeando toda a construção ou sombreando-lhe a fren-
te, nos quais os armadores de rede esperam, sempre abertos e acolhedores, o leito transpor-
tável e balouçante de qualquer caminheiro, para o suster, sem nenhuma retribuição ou
agradecimento ao dono da casa. Ao invés, muitas casuchas daquelas mostram, sobre a
única porta da frente, dois buracos que servem de seteiras.
Alguns minutos mais, e estamos no seio da Meca sertaneja. Arruados dos mes-
mos pardieiros, estendidos por três ou quatro mil metros, cruzam-se em vários sentidos. As
habitações quase todas se copiam por fora, em muros mal-acabados, despidos, ordinaria-
mente, de qualquer intenção estética, como se parecem no interior, pobríssimo e imundo.
Por fora, quase que só as distingue a numeração: um cartapácio com grosseiros
algarismos, no geral seguidos das iniciais “P. C.” e de cruzes, signos-de-salomão ou de
outros símbolos de uma cabalística rudimentar. Não raro um “Viva o meu Padim Ciço”
esparrama-se a carvão pela parede malcaiada, com muito fervor e nenhuma ortografia.
Por dentro, uma sala, em toda a largura da habitação. Duas alcovas, as
camarinhas, e a cozinha, tudo sem outro piso senão a terra batida, sem forro nem pintura.
A cozinha é de todos os cômodos o mais interessante. Nela se vê, num canto, o “poiá”, com
a sua cratera sempre fumegante; no ângulo oposto, o “caritó”, espécie de prateleira tosca de
três ou quatro varas, metidas pelas extremidades no adobe das paredes. Duas panelas de
barro, uma gamela, algumas cuias, eis toda a bateria. Uma trama fechada de teias de ara-
nha, com pingentes balouçantes de picumã, se distende por cima de tudo. Ninguém lhes
toca: as aranhas dão sorte e anunciam as chuvas, e as teias servem para pensar feridas...
Num ponto sombrio e protegido, descansa a “jarra” da água de beber. É um
grande pote, às vezes de mais de um metro de altura, em que se traduz a última expressão
da cerâmica sertaneja, tão aperfeiçoada que não pôde ainda passar da forma singela do
vaso etrusco, que o índio já reproduzia.
Mas a jarra representa, na existência do Nordeste, alguma coisa de sagrado:
a água, a vida algumas vezes. Para os fanáticos, apresenta-se, além disso, como uma
fonte de crendices. O lodo, que se lhe ajunta por fora das paredes, é mezinha infalível
para a cura da “sapiranga”,
11
senão do próprio tracoma; as incrustações provenientes
da má qualidade da água, e que se possam formar no fundo, recebem outras aplicações
terapêuticas diversas; e três carvõezinhos, encontradiços um palmo abaixo da terra, no
mesmo lugar, são talismãs preciosos para a cura de todas as mazelas, “fechamento do
corpo” e espantalho infalível do “Cão” – o demônio...
Pendurado à boca da jarra, ou metido pelo cabo num buraco da parede, o “caneco
de tirar água” se destaca pelo polido de folha nova. Ninguém pode beber por ele. Recortado
em pontas, na boca, por toda a volta, num rendilhado paciente, sangraria os lábios dos que
o tentassem, aliás inutilmente, porque o líquido escorreria pelas aberturas intermediárias e
por um pontilhado de furinhos renteando-lhe os bordos. Ainda nos mais miseráveis case-
bres, esse utensílio não falta, sendo às vezes o único apetrecho doméstico em que transparece
a existência da idade dos metais... Esse fato demonstra que à experiência do caboclo não
tem passado despercebida a idéia da transmissão de muitas moléstias pela água contami-
nada. Muitos não se servem da água sem ser “dormida”, e pretendem esterilizá-la com a
11
Inflamação benigna das pálpebras.
41
introdução, no seio do líquido, de um pedaço de ferro em brasa. Chamam a isto “ferrar a
água”, prática que é usada mesmo por gente presumidamente culta, nas cidades e até nas
capitais nordestinas...
Nada mais, aí, de curioso. Na sala da frente e nas camarinhas, armadores em
cada canto, ou pedaços de corda que os substituem; presa a um deles, a rede, sobre si
mesma enrolada, suspensa por um dos “punhos”. Esse leito primitivo é a última palavra
em economia de espaço; numa saleta de poucos metros quadrados, podem se armar meia
dúzia deles, uns sobre os outros, em andares. Quando viaja, o sertanejo o conduz por toda
parte, e, onde quer que precise de repouso, em alpendrada estranha ou no seio da caatinga,
acha sempre dois arrimos prontos a sustê-lo.
Nalguns casebres, uma caixa de madeira e uma esteira de palha de carnaúba:
luxos que mal se imaginam... Apetrechos de trabalho, também raríssimos, e, no geral, mais
constantes os de lavor feminino. A almofada de fazer renda, com os seus centenares de bilros
pendentes, ou um bastidor muito tosco, onde, sobre o xadrez de “puçá”, já se entrevê uma
dessas maravilhosas filigranas, de “labirinto”; ou cuias, com sementes de mulungu ou de
outras árvores, para a feitura de rosários, terços, e colares ou outros enfeites primitivos...
Ordinariamente, não há, nas pobres habitações, nem cadeiras, nem mesas, nem
camas. Em nenhuma delas falta, porém, pendurada à parede da sala, a efígie do Padrinho, em
reprodução tipográfica, ou numa oleografia em que ele aparece miraculosamente rodeado de
anjinhos, que tangem harpas celestiais, entre nuvens de incenso. Junto à gravura, na maioria
das casas, ostenta-se um rifle.
uuu
À medida que se caminha para o centro, as construções melhoram na aparência.
Há, em certos pontos, trechos de boas casas. Não é difícil notar, no entanto, que
mesmo na maioria destas tudo continua a ter um ar de acampamento, em que os aspectos
de improvisação e de ruína se misturam. Parece que tudo é provisório, levantado às pres-
sas, sem grande esforço e sem esperança de longa permanência no lugar. Aqui e ali, nos
intermináveis arruados, quase sempre à porta de uma “bodega”, braceja suas palmas um
coqueiro enfermiço ou um tamarindeiro se esforça por formar copa, deplumado no alto,
onde os galhos seminus agitam ao vento os frutos ressequidos. Assim isoladas e poeiren-
tas, parecem contaminadas da miséria ambiente...
E, sob o sol das onze horas, a desolação das extensas ruas, de alinhamento
indeciso, logo que se foge ao centro, parece mais dolorosa e acabrunhadora. Crianças nuas
passam correndo, sem gritos nem risos; romeiros acocoram-se à parca sombra da orla das
casas, mastigando a sua matalotagem de farinha d’água e nacos de carne de bode, ou
“maginando”, com o olhar, fixo num ponto, aparvalhado; porcos fossam montões de lixo,
com filosófica paciência; cabritos ensaiam as suas defesas em simulacros de luta, ou
retouçam, com berros fanhosos, sob o olhar indiferente das cabras, que ruminam sonolen-
tas; mulheres, sentadas às portas, em saia e camisa, despenteadas, quase todas com a misé-
ria impressa nas faces, dão-se à tarefa de catar insetos à cabeça dos filhos. Numa esquina,
um grupo mais animado rodela o “Beato” de prestígio que celebra, ou um “penitente” que
profliga os costumes...
Aí está o Juazeiro arraial. Vinte mil almas, a que se agrega e de que se despede, cada
dia, uma multidão de romeiros.
12
É esse o Juazeiro temível, o Juazeiro tradicional, a Meca do
fanatismo sertanejo que primeiro depara o viajante, se ele não avisou em tempo o padre Cícero
e os de seu grupo, ciosos em ocultá-lo, mas solícitos em mantê-lo.
12
Da época a que esta descrição se reporta aos dias de hoje, a cidade, propriamente dita, alargou-se e modernizou-se. Mas as
habitações de “romeiros”, circundantes, ainda guardam muito do primitivo aspecto.
Capítulo 3 – Transpondo as trincheiras...
42 Juazeiro do Padre Cícero
Porque há um outro pequeno Juazeiro abrolhando no seio desse arraial sórdido
e miserável, sem higiene e sem trabalho, abrigo de peregrinos e de cangaceiros da pior
espécie, de doentes e malucos. É um verdadeiro milagre em tal moldura, mas existe. Duas
ou três ruas – a “do Padre Cícero”, a “de São Pedro” e a “Rua Nova” – são calçadas a pedra
bruta e dão-se ao luxo de ter alguma coisa parecida com passeios laterais, três ou quatro
construções de sobrado, casas com platibandas, “jacarés” salientes
13
e numeração mais
discreta. Habitações há de relativo conforto e casas comerciais de boa aparência.
14
É nessa parte que habitam propriamente os cearenses do Juazeiro, a população
estável, entregue ao comércio e a pequenas e rudimentares indústrias. Aí fica também a
casa do padre, baixa e modesta, sempre fechada, tendo ao lado um sobrado tosco, por ele
construído, para mais comodamente oferecer a “bênção” diária aos peregrinos.
Numa larga praça, em ligeira rampa, assenta-se sobre um degrau a Igreja de
Nossa Senhora das Dores, cuja construção muito simples possui, no entanto, certa
imponência de linhas. Não se pode dizer que obedeça rigorosamente a nenhum estilo, mas
as torres, bem lançadas, harmonizam com o amplo casarão que figura de nave e quebram a
monotonia das casas de derredor, acaçapadas e inexpressivas.
Não pudemos visitar a igreja, porque se achava fechada e interdita. Foi no mes-
mo local, onde primitivamente se erguia apenas uma simples e pobre capela, que se de-
ram, em junho de 1890, os primeiros “milagres”, que haviam de conferir a maior das famas
ao padre Cícero.
Havemos de descrevê-los.
13
Gárgulas.
14
Com a aproximação da estrada de ferro, e a campanha da imprensa contra o desbarato das rendas municipais, fizeram-se
nos três últimos anos alguns melhoramentos materiais no Juazeiro, segundo se lê no Ceará Ilustrado. Tais melhoramentos
não existiam quando visitei a “Meca do sertão”; escrevendo, porém, sem nenhum pressuposto de combate aos homens
realmente interessados pelo seu progresso, mas apenas para dar a público um testemunho dos males sociais que tem
permitido e fomentado a política geral do País, é com prazer que registramos o fato. (Nota da 2
a
edição).
43
Capítulo 4
No reino da insânia
Em frente à casa do “Padrinho” – Matizes de fé e credulidade – Singu-
laridades de um culto sem ritual – Oração expressiva – O “Beato da
Cruz” e a sua ladainha – Cenas de superstição
45
... Ci troviamo proprio faccia a faccia col nudo que-
sito dela pura pazzia.
Eugênio Tanzi
Chegamos ao centro do Juazeiro às onze horas da manhã, e já não foi sem
dificuldade que o carro, em que viajávamos, pôde encostar junto à casa do padre Cícero
Romão Batista.
Todo o espaço da rua, naquele quarteirão, estava tomado de gente que se api-
nhava procurando lugar diante da porta do Padrinho, ou da janela gradeada, por onde ele
costuma lançar a bênção. Porta e janela, porém, permaneciam fechadas.
Pusemo-nos de pé sobre o carro, para melhor observar aquela multidão agitada.
Não logramos perceber, no primeiro instante, senão a malta daqueles mesmos romeiros da
estrada, sujos e abatidos, com os seus “cassacos”, os seus largos chapéus de couro ou de
palha de carnaúba, os seus bordões e os seus bentinhos, o rifle inseparável e as “pracatas”
amarradas à cintura ou pendentes do cano da arma. À primeira vista, aquela massa apre-
sentava unidade; expressões dos mais díspares caldeamentos de raça ali se confundiam,
no entanto, e apenas um ou outro semblante mais puro ressaltava.
Tal impressão não subsistia, porém, depois de mais demorado exame. Podia
notar-se que aquele ajuntamento ululante se deixava dividir em várias castas, mais ou
menos distintas, segundo as condições de vida, raça e proveniência de cada um e, de modo
especialíssimo, quanto ao estado de espírito do momento.
Na mesma agitada atmosfera, havia matizes de credulidade, assim como per-
ceptíveis graus de fanatismo. Enquanto alguns se arrojavam ao solo, na prática das menos
concebíveis mesuras, em penitência ou oração, outros, numa imperturbabilidade de está-
tuas, não desfitavam os olhos da janela gradeada, à espera da face veneranda do Padrinho,
que ali se não mostrava já havia quinze dias. Sabia-se que estivera doente, mas que naque-
le dia devia aparecer e abençoar seu rebanho, tão numeroso. Estavam alguns, por isso, com
as mãos postas e tinham nas faces uma expressão de suprema beatitude... Entre estes, uma
adolescente, cujo perfil quase puro e tez menos tisnada destacavam-na, como uma flor de
estufa em campo agreste. Lívida e impassível, lembrava uma imagem de Madona.
Sem atenção ao lugar, quase sagrado, e aos companheiros contritos, havia
também quem conversasse em voz alta, sobre a colheita do algodão e o caso de uma rês
Capítulo 4 – No reino da insânia
46 Juazeiro do Padre Cícero
perdida. Mas eram poucos, e despertavam olhares de indignação aos circunstantes. Um
pequeno grupo, só de mulheres, descansava de cócoras.
Os homens em descanso não tomavam essa atitude: encostados à parede, dei-
xavam cair o peso do corpo sobre uma das pernas, e levavam o pé da outra, também ao
muro, em flexão que realmente repousa. Esse hábito é tão comum ao sertanejo do Nordeste
que são poucas as paredes de esquina, de mercados, corredores, e até de igrejas, que não
mostrem, à altura de meio metro, as marcas de lama dos pés descalços, e os arranhões do
couro grosso das alpercatas...
Naquele ajuntamento, havia crianças também. Na maioria, inteiramente despi-
das, pequeninas, ou se apegavam às saias das mães, medrosas do que viam, ou
circunvagavam o olhar por tudo, num deslumbramento. Fustigadas pelo calor, ou talvez
pela fome, que algumas iludiam roendo duras sementes de catolé, agitavam-se nervosa-
mente, chorando de espaço a espaço. E esse choro, atormentado e dorido, sensivelmente
crescia quando mais fortes se ouviam os estampidos de bombas e foguetes, que não cessa-
vam de estourar, em lugar próximo.
Tal bombardeio – soubemo-lo depois – representa uma das singularidades do
estranho e impreciso culto dos romeiros, em que, sob o arremedo das cerimônias do rito
católico, afloram as mais grosseiras práticas de superstição. Apenas chegados à Meca, por
que tanto suspiram, os peregrinos se dirigem à frente da igreja, e ai, seja dia ou noite, e com
qualquer tempo, fazem queimar os rojões que podem, em louvor ao Padrinho e pela alegria
de chegar. Os mais pobres atiram meia dúzia de bombas; os mais abastados, duas, três,
cinco, dez dúzias de foguetões.
E, como são muitos, pois entram e saem, diariamente, cerca de trezentos romei-
ros, há um espocar quase descontinuado e, por vezes, um cerrado metralhar de batalha...
Por essa razão, o comércio dos produtos pirotécnicos é ativo, e pode ser comparado ao de
medalhas, santos e orações. Destes últimos objetos de devoção, chega a haver vendedores
ambulantes, discretos e inteligentes.
Apenas chegados, fomos abordados por um deles:
– Vigie, moço, vossoria amode que vem de longe, fique cum esta oraçãozinha
de lembrança do nosso santo Juazeiro... É só dois’tões...
15
Era um pedaço de papel ordinário, tendo, de um lado, o retrato impresso do
padre Cícero e, de outro, esta prece:
P. † C.
Santa Mãe de Deus e Mãe nossa, Mãe das Dores, pelo amor do nosso Padrinho Cícero,
nos livre e nos defenda de tudo quanto for perigo e miséria; dai-me paciência para
sofrer tudo pelo vosso amor e do meu Padrinho, ainda que nos custe mesmo a morte.
Minha Mãe, trazei-me o vosso retrato e o do meu Padrinho no Vosso altar retratado,
dentro do meu coração, daqui para sempre; reconheço que vim aqui por vós e meu
Padrinho; dai-me a sentença de romeiro da Mãe de Deus, dai-me o vosso amor e a dor
dos meus pecados para nunca cair no pecado mortal; dai-me a vossa graça que precisa-
mos para amar com perfeição nesta vida e gozar na outra por toda a eternidade. Amém.
Viva o meu Padrinho Cícero.
16
De longe, isso pode parecer muito grotesco. Não o chega a ser, porém, naquele
ambiente de insânia, porque é mais do que isso: é horrível. Sob a vibração do estrondo das
bombas e foguetes, numa temperatura de forno, sentindo o fartum daquela pobre gente,
15
O sertanejo diz “um tostão”; porém, dois’tões, três’tões, e assim por diante.
16
No capítulo sobre expressões do folclore, apresentam-se várias outras orações, nalgumas das quais transparecem mais
puras as idéias e a linguagem do sertanejo.
47
ouvindo imprecações e pedidos de misericórdia, soluçar de preces e choro de crianças,
não vendo ao redor senão rostos de iluminados ou de penitentes, faces maceradas,
fisionomias que movem a mais profunda piedade, o sentimento que se apodera do obser-
vador não o permitirá rir ou deles zombar... O que se tem é um veemente apelo da razão,
que o levaria a protestar, a gritar, a chamar à realidade aquele estúpido rebotalho humano,
ensandecido e explorado – se a mesma razão não lhe mostrasse o perigo a que se havia de
expor, se ali ousasse esboçar um gesto, que fosse, de crítica, ou um dito apenas de condena-
ção... Diante de uma tal mostra de rebaixamento humano, e da incapacidade em contê-lo
de pronto, não se pode deixar de sentir o maior acabrunhamento.
Não obstante, ele deve durar pouco. Transforma-se, às vezes, em pasmo maior
e revolta. Pelo menos, conosco assim foi.
Subitamente, um alvoroço estranho sacudiu toda aquela multidão. Houve um
sussurro rápido, seguido de impressionante silêncio, a que cederam mesmo as preces dos
devotos. Imaginamos logo que o padre tivesse aparecido. Voltamo-nos para a janela grade-
ada das bênçãos. Mas não era ele. Tratava-se de coisa diversa.
De uma esquina próxima, surgira esquisita personagem de barba nazarena,
sob comprida opa preta, enfeitada de cadarços, rendas e galões de defunto. Trazia às
costas pesada cruz de madeira, quase escondida na parte superior por gravuras de san-
tos, bentinhos, rosários, conchas, imagens, escapulários, fitas, flores de papel, medalhas
e outras bugigangas. Cobria-lhe a cabeça um solidéu também preto, com uma espantosa
cruz, desenhada a galão rebrilhante, o que lhe aumentava estranhamente a estatura e lhe
imprimia ao todo um ar hierático... Caminhava inteiriçado, com aspecto de sonâmbulo.
A cor terrosa da tez e o vazio do olhar davam-lhe um quê de sobrenatural...
A multidão se comprimiu, deixando espaço ao centro, por onde ele velo en-
trando, a tudo alheado. Chegado à porta da casa do Padrinho, que continuava fechada,
descarregou a cruz, e, apoiado nela, ajoelhou-se, com os mesmos gestos duros e maquinais.
Iniciou, em seguida, comprida ladainha, quase incompreensível, mas a que todos os devo-
tos iam respondendo, ungidos do maior respeito. E, dentro em pouco, todas as vozes se
elevavam num só e lamentoso sussurrar, que crescia depois, em melopéia plangente...
O sol do meio-dia dardejava a pino, arrancando chispas das medalhas e
contas que pendiam da cruz do beato. De repente, eis que ele se levanta de um salto,
agita o pesado madeiro, cujos enfeites tilintam e chocalham, e se abate depois, ao chão,
com estrépito, abandonando o complicado instrumento de devoção, agitando os braços
e pernas, rolando e espumando, sob o terror reverente dos circunstantes... E ainda não
era tudo. A agitação de endemoninhado iria terminar em choro convulso, nasalado e
sacudido... E a multidão, a esse tempo, redobra a contrição, bate no peito, desfia os
rosários, desata as lágrimas, afervora as preces...
A fisionomia dos iniciados mete medo, então. E, como a qualquer será pruden-
te simular o maior acatamento a tais desproporções, acaba-se tendo a impressão de que se
penetrou demais naquele domínio de insânia, no pesado e avassalador ambiente da de-
mência, no império do abracadabra, em que as idéias normais das coisas e dos valores se
ensombram, não mais se aplicando com lógica, para se baralharem e se confundirem...
Contudo, não era sonho. Nós o vimos. Era uma realidade incontrastável, à luz do dia, em
plena via pública. Cenas de outros tempos, num ambiente de demência...
Sob o domínio dessa emoção, recebíamos um recado do padre. É que já fôra-
mos percebidos pelo “argus” da terra, e já tínhamos observado demais, por certo... Éramos
convidados a entrar na casa do padre apenas se entreabrisse a porta, que logo voltaria a
fechar-se, para evitar a invasão dos devotos. E foi, de fato, em meio de socos e empurrões,
empuxões e blasfêmias, que conseguimos transpor o limiar.
Dois minutos depois, amável e sorridente, recebia-nos o Padrinho. Tinha ao
lado o seu médico de momento, e a beata “Mocinha”, cuidadosa governante e pupila.
Capítulo 4 – No reino da insânia
48 Juazeiro do Padre Cícero
Não os comovia, em absoluto, o tumultuar da populaça, que se manifestava, lá
fora, por furiosas pancadas na porta, em gritos nervosos e insistentes chamados. Quem
viesse do meio daquela multidão em fúria seria estranhamente impressionado pela sereni-
dade do interior da casa, como se, de um pátio de manicômio em revolta, entrasse num
templo discretamente iluminado e silencioso, onde tudo fosse harmonia e pureza. A sim-
plicidade dos móveis e ornamentos acentuava essa impressão.
Depois de dois dedos de prosa, sobre as maçadas da viagem e a moléstia de que
o padre convalescia, a conversação devia interromper-se. Chegara o barbeiro, e o padre
pedia licença para fazer raspar os queixos, como qualquer mortal...
Convidam-nos a ver, por instantes, algumas curiosidades da casa, entre as quais
uma rica coleção de aves, onde não eram poucos os espécimes da ornitologia amazônica.
Deixamo-nos levar para um alpendre interior, muito ensombrado, com crótons vicejando
em latas, e um sem-número de viveiros e gaiolas, arrumados em linha, pelas paredes.
O calor era intenso. No bochorno da hora, os pássaros não cantavam e as aves
maiores, entorpecidas pela calmaria, eriçavam as plumas variegadas, sustentando-se num
pé só.
Chegavam até ali, em gritos distantes, os reclamos dos peregrinos. E sobre eles,
uma voz se elevava de dentro da casa ou do vizinho, entoando, em tom esganiçado, ingê-
nuas redondilhas.
Percebia-se, entre elas, este refrão expressivo, que nos evocava, em obsessão
irritante, as cenas de que há pouco havíamos sido testemunhas:
Não tenho capacidade
Mas sei que não digo à toa
Padre Ciço é uma pessoa
Da Santíssima Trindade!...
49
Capítulo 5
“Ecce Homo!”
Um homem? Não, uma sombra – Talvez já o milagre... – Retrato físico
do “Padrinho” e esboço de sua singular personalidade – Opiniões diver-
sas – “Santo” ou “demônio”?... – O que diria um especialista
51
Les mystiques n’ont eu d’amour parfait ni pour Dieu,
ni pour l’humanité, Dieu? lls l’ont aimé comme le
dispensateur des récompenses célestes. L’humanité?
Placés sur un autre plan, ils nont jamais été eu
communication avec elle.
Pierre de Coulevain
Não havia muitos dias ainda, padre Cícero Romão Batista abandonara o leito,
depois de grave enfermidade, não podendo essa circunstância deixar de influir, poderosa-
mente, na impressão que nos devia dar, nos primeiros instantes de palestra.
Estava com a barba crescida, o que lhe adoçava as feições, prolongando o rosto,
ligeiramente, e disfarçando a saliência dos malares. O abatimento que lhe trouxera a molés-
tia havia-o curvado mais que de costume, escondendo naquela debilidade enfermiça – que
acentuava a que os anos já de muito lhe deviam ter comunicado – a gibosidade natural que o
deforma. A voz, sempre branda e harmoniosa, mais se enfraquecera, até tomar a doçura e os
acentos de uma fala de criança. E a sua mesma alacridade, tão conhecida e exaltada, como
dádiva dos céus, enevoava-se com as sombras de um sofrimento não de todo mitigado.
Escorrida pelo corpo, a sotaina negra e larga aumentava-lhe a brancura dos cabelos
muito crescidos, e parecia reduzir-lhe ainda mais o porte, abaixo de mediano. Para levantar-se,
apoiava-se com ambas as mãos a uma tosca bengala; e era lento e arrastado o caminhar...
Acreditamos ser vítima de um engano, ou já, do milagre.
Que era, com efeito, do homem que tangia as turbas, manejando um varapau
famoso, com o qual abria caminho a rijas bordoadas, sofregamente disputadas, aliás, pelos
devotos?... Que era do caminheiro que jornadeava dez léguas, sem descanso nem refeição,
e que, estando em toda parte, a toda hora, não abandonava, contudo, o seu povoado?... Que
era do exorcista sem-par, a que nem mesmo o pior dos demônios resistia?... Que era do
dominador de loucos e, enfim, do revolucionário destemeroso, que tanto afrontava às auto-
ridades da Igreja quanto os senhores do Estado?...
Tudo quanto dele seria legítimo imaginar-se opunha-se flagrantemente ao que
ora tínhamos em presença. Não era aquela, por certo, a figura esperada, o dominador de
um ambiente de delírio, como o do Juazeiro. Seria lógico haver suposto uma personagem
diabólica, em figura impressionante; e estávamos, sem embargo, face a face com um
Capítulo 5 – “Ecce Homo!”
52 Juazeiro do Padre Cícero
octogenário amável, quase tímido, de uma simplicidade rústica, que se acentuava no as-
pecto débil e na linguagem por vezes imprecisa... Nada podia denunciar uma personalida-
de estranha, senão os olhos pequeninos e movediços, de expressão enigmática, como se
fossem de louça, olhos de cor indecisa, entre o pardo e o verde sujo.
Esperávamos uma figura dominadora, e, naqueles primeiros instantes, não con-
seguíramos entrever senão uma sombra.
uuu
Não obstante, aquela sombra iria fixar os contornos e revelar-se, meia hora
mais tarde.
Depois de haver passado pelas mãos do barbeiro, refeito também da surpresa da
visita, de que não tivera aviso, o padre mostrava outra feição e ademanes, capazes de alterar de
muito a impressão anterior. Escanhoado, não podia esconder agora certos traços angulosos, os
vincos da face pergaminhada, o ligeiro prognatismo que lhe imprime expressão dúbia ao sorri-
so... No falar, os lábios descaem numa das comissuras. O cabelo, aparado agora, e levantado em
poupa, descobre as orelhas largas, que lhe emprestam certo ar petulante. A cabeça chata, sobre
o pescoço curto e cheio, descamba para a direita. O nariz quase recurvo, entre os olhinhos
irrequietos, completa a singular fisionomia que, uma vez percebida, dificilmente se esquece...
A batina que vestiu, de menor uso, revela um tronco malconformado, não permitindo, como a
outra, o disfarce de gestos sacudidos. Quando fala, a face se anima; quando ouve, a máscara é
de uma rigidez de granito. Se não foram os olhos movediços e rebrilhantes, dir-se-ia uma
dessas figuras enigmáticas em jazigos antigos...
Esses traços reforçam a significação à medida que o padre alonga a conversa.
De nada valeriam eles sem a confirmação num retrato psíquico que nos pudesse dar, e de
que vamos tentar ligeiro esboço.
uuu
Confessemos, desde logo, que não é fácil a tarefa.
Uma personalidade não é uma coisa que se pinte com linhas fixas, entidade que se
possa definir por qualidades sensíveis ou, rigidamente, medir por unidades determinadas. Ela
se atribui ao indivíduo como função de sua própria existência, e só se compreende perfeita-
mente quando examinada desde a sua gênese; por outro lado, para sua avaliação, necessita
sempre de ser encarada em relação ao meio. Nada exprime sem a sua localização no ambiente
que a produziu, que a conserva ou altera a cada dia.
Tais dificuldades de análise, inerentes ao problema de cada personalidade, so-
bem de ponto em se tratando de indivíduos em que um processo mórbido se tenha lenta-
mente desenvolvido.
Isso explica a diversidade de opiniões sobre a estranha figura do chefe do Juazeiro.
Não nos referimos evidentemente aos apologistas que o têm cantado, em prosa e verso, sob
preço variável, nem aos políticos, que o têm explorado, nem aos detratores cegos de paixão...
Uns e outros, partindo de um pressuposto que não podem negar, têm chegado à
conclusão de que o homem é um santo, ou um demônio; justo e sábio varão, ou paranóico;
demente comum ou iluminado verdadeiro...
17
17
O padre Alencar Peixoto, ex-vigário do Juazeiro, num livro publicado em 1913, atribui não poucos crimes ao padre Cícero,
retratando-o sistematicamente movido pelos piores sentimentos. Ao contrário, o falecido deputado Floro Bartolomeu, que
aliás deveu a sua cadeira na Câmara Federal ao prestígio do padre, em diversos discursos naquela casa de Congresso, pinta-
o como o santo dos santos, não tendo tido nenhum constrangimento em atribuir-lhe atos beneméritos que o testemunho
geral e as próprias publicações oficiais do Ceará desmentem. Entre essas duas opiniões extremadas, outras correm mundo,
nem sempre sinceras e justas.
53
uuu
Os diferentes períodos da vida do padre Cícero Romão parecem demonstrar
o desenvolvimento de uma psicose, revelada desde a adolescência. É assim que, quan-
do aluno do Seminário, em Fortaleza, já demonstrava sinais tão evidentes de mitomania,
que o reitor do estabelecimento, padre Pedro Chevalier, opôs dúvidas à sua ordenação.
Mas o bispo D. Luís dos Santos não achou que o exagerado misticismo do “formigão”
apresentasse perigo à ação do futuro missionário. Achou que devia ser ordenado, e
assim se fez.
O padre Cícero recebeu ordens em 1870, e foi residir no Crato, sua terra
natal. Convidado para celebrar na capela da fazenda do Juazeiro, a três léguas daquela
cidade, em breve para aí transferia a residência e iniciava heróico trabalho de
evangelização, que, desde logo, lhe atraia as simpatias dos habitantes de toda a redon-
deza. Estava então em plena fase mística e, segundo o testemunho geral, não há negar
que, por essa época, a ação que desenvolveu tenha sido a mais benéfica possível. É
preciso conhecer o atraso do povo e a rudeza do meio, para compreender o alcance
inestimável de semelhante tarefa. Em certos pontos do Nordeste, há ainda verdadeira
necessidade de evangelização cristã.
A atividade do padre, pelos anos calamitosos da grande seca de 1877-1879,
a crer-se no depoimento desinteressado de alguns contemporâneos, foi de notável be-
nemerência. Atribui-se-lhe a iniciativa do plantio da mandioca e da maniçoba na Serra
do Araripe, nessa época aí desenvolvida, além da construção de poços e pequenos
açudes. É de crer-se que assim fosse e que o próprio reconhecimento dos sertanejos
tivesse facilitado o ambiente para o trabalho do fanático em que ele depois se revelaria.
Porque do misticismo ao fanatismo não vai senão um passo.
O espírito místico tem sede do incompreensível, do misterioso. Sente-se mal
no domínio da realidade. Conforme o tempo e o meio, a variedade da educação e as suges-
tões do ambiente, lançar-se-á ele por completo na religião, na magia, nas ciências ocultas,
na doutrinação política. Certas idéias delirantes são o eixo de toda a sua dinâmica mental.
No fanático, muitas vezes, há de reconhecer-se o místico em ação. Não lhe bastará a relação
com os numes inspiradores. É preciso comunicar suas idéias, fazer valer as suas concep-
ções originais sobre uma certa classe de fenômenos ou mesmo sobre toda a vida universal;
e, não lhe bastando a propaganda, anseia por levantar os homens à sua palavra, para o que
funda seitas, estabelece escolas políticas, descobre mistérios, julgando-se sempre encarre-
gado de missão sobrenatural, ou divina... E, para o êxito da empresa, em que vê a explica-
ção de sua própria vida, não recua diante de conseqüência alguma.
Favorecido pelo meio, modificado talvez, a principio, pelos próprios homens a
quem se dirigia, o misticismo do padre Cícero tinha que transformar-se em ação fanática.
Os milagres operados na pessoa da beata Maria de Araújo, no ano de 1890, marcam o início
dessa nova fase de sua existência. Data daí, também, a aglomeração dos romeiros e, dentro
de pouco, de gente de toda a espécie, que demandava ansiosa a nova Jerusalém, “onde
Cristo, para salvação dos homens, de novo derramava o seu sangue precioso...”.
18
O fanático pode tornar-se com facilidade um revolucionário, não só porque a
vitória de suas idéias muitas vezes depende de reforma social, como porque ele se distin-
gue dos mais por uma interpretação moral especialíssima. Não há, para ele, perfeita sepa-
ração entre o justo e o injusto, o lícito e o ilícito. Ou, melhor, a lei moral é o seu arbítrio, a
sua resolução de momento, porquanto se julga um inspirado, investido, como pensa, do
monopólio do bem. Daí, sendo sincero, o não recuar nunca diante de atos, embora odiosos,
para cumprir o que considera o “seu dever”. Encontra-se nos fanáticos essa inferioridade
18
Palavras do padre Cícero.
Capítulo 5 – “Ecce Homo!”
54 Juazeiro do Padre Cícero
de consciência, característica. São semi-autômatos. Seguem cegamente, sem se apercebe-
rem do seu estado, os ditames de uma tendência mórbida.
19
Um especialista talvez pudesse dizer que os atos do padre Cícero, posteriores
aos milagres de Maria de Araújo, demonstram esse estado de espírito. Talvez visse outros
sintomas, não menos expressivos, no aleatório de sua resignação diante das ordens das
autoridades eclesiásticas, na sua proscrição temporária do Juazeiro e na viagem a Roma,
para recorrer da excomunhão que sobre ele incidira.
Combatido pelos superiores da igreja, suspenso de ordens, padre Cícero lança-
se enfim à política militante. Bem acolhido, começa por exigir a criação do município do
Juazeiro, onde toma o lugar de prefeito; e, em breve, animado por alguns sequazes, que se
aproveitam das condições favoráveis da política geral do País, pretende o domínio de todo
o Ceará, com a sedição de 1913.
Um especialista talvez pudesse dizer ainda mais, verificando nele uma fase
final de megalomania. De fato, sua maior preocupação, quando o vimos, era referir-se às
relações que mantinha com os poderosos de todo o mundo, que o prezam como a igual, e à
constante e proveitosa interferência sua nos grandes acontecimentos mundiais e nacio-
nais... Nas suas palestras, freqüentemente emprega frases como estas, nem sempre vindas
a propósito:
– “Como sabe, eu me carteio com o Epitácio... Ainda ontem recebi telegra-
ma dele...”
– “O Bernardes me distingue muito. Também é preciso não esquecer que eu fui
o árbitro de sua candidatura...”
– “Os estrangeiros me compreendem melhor. Aí está um telegrama do Rei
da Bélgica...”
– “Naturalmente o senhor ouviu falar do meu telegrama sobre a terminação da
guerra européia. Essa glória ninguém me tira. Era um dever meu concorrer para a termina-
ção da conflagração...”
E, assim, sobre outros assuntos.
Nunca faz, porém, referência alguma a pessoa de renome pelo saber, talento
artístico ou cultura científica. Só o fascina o mando, o domínio das gentes... Ainda agora,
isso ficou provado na imposição, que fez, de sua candidatura à Câmara Federal.
Nesse estado de decadência física e mental,
20
claro está que o padre Cícero não
nos podia dar a impressão daquele homem de “grande cultura”, de que tanto têm falado
alguns de seus apologistas.
21
Se o chefe do Juazeiro tivesse podido acumular e manter,
naquele meio, um sólido e brilhante cultivo do espírito, esse, sim, seria o seu maior e mais
legítimo milagre. Vivendo, há mais de meio século, em contato apenas com o sertanejo
bruto e, ademais, num ambiente de delírio; não dispondo de tempo sequer para ler e medi-
tar, pois que suas horas não bastam para atender a peregrinos e beatos; sem recurso de
renovação de idéias, por livros e jornais, que até sua casa só muito raramente chegam; sem
necessidade alguma que o leve a exercitar o espírito, para sadio objetivo cultural – é óbvio
que só se possa encontrar nele, ao termo de oitenta anos de vida, uma inteligência medío-
cre e fatigada, adstrita aos mesmos abusões, preconceitos e desvios mentais do sertanejo...
À vista de tudo isso, já seria inadmissível uma elevada cultura em qualquer indi-
víduo sujeito à sua vida especialíssima. E os fatos o comprovam, com toda a crueza. Em toda
sua longa carreira sacerdotal e política, jamais pronunciou um discurso memorável, uma
19
Culerre, A. Les frontières de la folie. p. 191 e 196.
20
“É preciso não esquecer que o velho padre, doente, com setenta e seis anos de idade, teve de galgar com a maior dificuldade
a tal tribuna, no meio da praça...” (Bartolomeu, Floro. Juazeiro e o padre Cícero. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923.
p. 69).
21
Não há muito, a Gazeta de Notícia, do Rio de Janeiro, declarava, em editorial, que o padre Cícero escrevia melhor o
português que a maioria dos membros da Academia de Letras.
55
conferência ou série de pregações que tivesse produzido eco; jamais escreveu um artigo de
propaganda ou defesa, uma obra, modesta que fosse, de doutrina ou combate.
Por que, por exemplo, não explicou, num livro, que seria fácil compor, se tives-
se cultura, a sombria questão religiosa em que se envolveu?... Por que não consagrou sua
vida à propaganda dos meios científicos de combate à seca, não fez o estudo da história ou
das necessidades atuais da região?... Por que não impulsionou, por meios eficazes, a evolu-
ção social do burgo que sempre dominou?... Por que não tem permitido que se desenvolva
a instrução pública no Juazeiro?...
22
Por que se deixou dominar, de modo absoluto, sem um
reclamo ou desabafo, por meia dúzia de indivíduos que o têm manejado, e que o manejam,
no próprio proveito deles?...
Necessariamente, porque, sobre a hipótese de uma psicose que o desadapta a
elevada função social, falece-lhe, por inteiro, a cultura do espírito.
23
A maneira pela qual o padre Cícero se dirige aos romeiros, ouve lamentações e
queixas, recebe dinheiro e outras dádivas, aconselha e receita não é só a de pessoa que
tivesse escapado à normalidade: é a de um homem manifestamente inculto.
Vimo-lo nessa curiosa tarefa.
Tivemo-lo ao pé, e estávamos por detrás da mesma janela gradeada, junto aos
batentes da qual se comprimiam, da outra banda, dezenas de alucinados, devotos e peniten-
tes, peregrinos que suaram até o sangue para atingir a suspirada Meca do Cariri, malucos que
lhe levavam os últimos tostões, mães aflitas que rogavam a bênção aos filhos moribundos, e
com os quais afrontavam, num desespero de leoas feridas, naquele ajuntamento dantesco,
que as repelia e maltratava.
O padre mal distingue, naquele tumultuar, o que todos se esforçam por dizer-
lhe, e contenta-se em receber as espórtulas, os mimos singelos ou valiosos, os rosários,
medalhas e bentinhos... Aos mais próximos, que lhe renteiam as faces, exibindo por vezes
chagas sangrentas, ou os lábios comidos pela bouba, ou as faces maceradas pelo jejum, os
olhos desfigurados pelo tracoma, ele receita...
Receita o quê?... Nem ele sabe! Habitualmente, aconselha remédios caseiros,
de fácil aplicação – uma cuia de água quente em jejum, purga de jalapa, chá de raiz de
angélica, infusão de “papaconha”.
24
Para clientes mais importantes, realiza sessões parti-
culares de sugestão e passes...
25
Algumas vezes, distribui esmolas. Contudo, mais recebe
que dá. E... quando se sente fatigado, quando as mãos em súplica já avançam pelas fres-
tas da janela, e o atingem na sotaina, nos braços ou no peito, e já o empurram e já o
empuxam, violentas e ameaçadoras, ele, por sua vez, levanta a destra, como sinal de
silêncio, sustenta-a no ar, por um instante, os olhos postos no céu, reverentemente, e
desce, enfim, sobre aquela miséria e degradação, a bênção que a todos, indistintamente,
consola e aplaca...
Depois do que, aferrolhada por prudência a janela, lava as mãos, tranqüilo e
satisfeito, e vai merendar.
26
uuu
É o padre Cícero um paranóico?...
Não ousamos afirmá-lo.
22
A propósito, vide nota no fim do volume.
23
Veremos adiante que nem todas as doenças mentais desadaptam o homem a elevadas funções sociais.
24
Ipecacuanha.
25
Sobre a medicina do padre, ver o testemunho insuspeito de Floro Bartolomeu em Juazeiro e o padre Cícero (Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1923).
26
Uma das singularidades do padre é o seu regime alimentar. Há muitos anos, segundo nos informou, só se alimenta de leite,
coalhada e arroz. Toma pouco café, não fuma, dorme muito pouco.
Capítulo 5 – “Ecce Homo!”
56 Juazeiro do Padre Cícero
A paranóia é uma anomalia constitucional, que permanece latente na juventu-
de, e que só com perpassar dos anos, sob influências favoráveis, se manifesta sob a forma
de um delírio de lenta evolução, coerente e fanático. Por vezes, o diagnóstico é difícil e
enganoso. Porque as manifestações que lhe são próprias oscilam, quase sempre, entre os
limites de um equilíbrio normal das idéias e sentimentos, sem ultrapassá-los, de modo
perceptível. Haurindo forças de cada circunstância da vida, apóia-se, geralmente, no farto
subsídio de uma memória sempre pronta, de um poder de critica unilateral, mas bastante
aguçado, de uma obstinação fechada às mais claras evidências. O delírio possui, assim,
inteiramente, o paranóico e torna-se a norma inspiradora de sua conduta.
27
Ao lado da
constância dessas convicções de natureza mórbida, oferecem perturbador contraste, senão
um grande poder de raciocínio, ao menos a firmeza de ação e, muitas vezes, uma estóica
dignidade de vida.
28
De modo que aprofunda suas raízes, mais que num defeito da inteligência,
numa singularidade de reações pessoais, de que são elementos o entranhado egoísmo, um
conceito sempre exagerado do seu próprio valor, uma desconfiança permanente nos que o
rodeiam, a inclinação ao misticismo expansivo e militante, o espírito cavalheiresco de
proteção ativa ou a devoção passiva a um ideal religioso, com intolerância sofística contra
injustiças verdadeiras ou imaginárias... sobre esse terreno, expande-se uma trama de pre-
conceitos passionais, que favorece as interpretações mais egocêntricas e estranhas dos fa-
tos, ampliando um núcleo de associações errôneas e fantásticas, em delírio sistematizado.
Os paranóicos são sempre lúcidos. Não apresentam essas tormentas da vida
psíquica que ofuscam a consciência, e desarvoram o automatismo, sobre que as inter-
pretações da consciência repousam. Não são confusos, e só muito raramente, alucinados.
O delírio, que se movimenta dentro de um tema restrito, não altera o juízo normal
sobre certas questões gerais, nem sobre a maioria dos fatos da vida cotidiana.
À medida que envelhece, o paranóico nada perde de sua lucidez habitual; pelo
contrário, impelido pela singularidade de sua posição, em meio aos incrédulos e
contraditores, as mais das vezes é levado a melhorar as armas de sua dialética, superando
os medíocres de espírito normal. Suas paixões, suas emoções, mesmo quando explodem
em paroxismos de violência, não diferem muito das reações emocionais mais vivas nos
indivíduos sãos, exceto, está claro, por sua causa, que é, na maioria das vezes, parcial ou
totalmente imaginária.
Na maior parte, os paranóicos não povoam o manicômio. Mesmo quando se-
guem uma linha de conduta singular, ferozmente egoística ou anti-social e ridícula, os para-
nóicos, na sua lucidez, sabem impor-se um freio e evitar as ações que os poderiam
incompatibilizar de todo com a vida social. Só em fases avançadas da moléstia, e espicaçados
pela força incoercível de suas paixões anormais, envolvem-se em ações comprometedoras.
Existe mesmo uma categoria de paranóicos, que Lombroso encaixava entre os seus “matóides”,
cujo delírio é inócuo, se não para si mesmo, ao menos para os outros, visto como só desenvol-
vem argumentos impessoais: pesquisas pseudocientíficas, invenções quiméricas, sistemas
de filosofia, de mecânica, de teogonia, utopias sociais, apostolados especialíssimos – tudo
debaixo da inspiração de uma fé solitária, sem sombra de finalidade prática...
29
Os especialistas acordam em que os temas da paranóia são em número limita-
do. Acordam também em que todos dizem respeito aos caracteres gerais das paixões e
instintos humanos. E as suas repetições flagrantes, sempre as mesmas, ainda que entre
indivíduos sem nenhum contato histórico ou geográfico, permite pensar que o paranóico
apresenta um tipo de mentalidade primitiva.
27
Ver, em apêndice, o testamento do padre.
28
Cf. Tanzi, Eugênio; Lugaro, Ernesto. Trattato delle malattie mentali. 3. ed. Milano: Società Ed., [19--). v. 2, p. 756.
29
Idem, ibidem; Matos, Júlio de. A paranóia. cap. 7.
57
É realmente impressionante a identidade entre os elementos do delírio paranóico e
os das aberrações individuais e coletivas, de que está pontilhado o caminho da histó-
ria e que, ainda hoje, se repetem entre os selvagens e os civilizados. Posto que tais
aberrações sejam o fruto de uma sugestão extensa e contínua, que tradicionalmente
se perpetue, são iniludíveis e inevitáveis. Os paranóicos são formalmente os místicos
do vulgo e dos selvagens; na realidade são, porém, mais místicos do que aqueles que
o cercam, porque muitas vezes o seu misticismo nasce, desenvolve-se e persiste, a
despeito da oposição ambiente... sobre o que parece não haver dúvida é em serem as
manifestações do misticismo paranóico inteiramente semelhantes à da tendência
mística do homem primitivo: a única diferença é a modalidade do meio histórico em
que surge. Os primitivos são filhos de seu tempo; os paranóicos são anacronismos
viventes. Contudo, o sentimento místico exagerado do primitivo transparece em
manifestações modestas, tranqüilas e coletivas de um pensamento imperfeito, que
ainda se ensaia. O ardor fanático do paranóico é uma explosão audaz, violenta, indi-
vidual, duma mentalidade retrógrada e anti-social. O atavismo se revela muito mais
claramente na paranóia que noutras anomalias constitucionais, especialmente por-
que as idéias se transformam de modo mais preciso e visível do que a camada subter-
rânea e misteriosa dos sentimentos. Quem ousaria afirmar que os homens de hoje
são moralmente melhores do que os antigos? Mas, quem poderá negar que sejam
mais inteligentes ou pelo menos mais ricos no saber?
30
uuu
Não será difícil, um dia, traçar-se mais rigoroso perfil psicológico do padre
Cícero Romão, na verificação clínica de seu caso especialíssimo.
Não nos abalançamos a fazê-lo. Em si mesmo, seu caso pessoal nos é, de todo
em todo, indiferente; e, em qualquer hipótese, a sua pessoa, como indivíduo humano ape-
nas, é digna do maior acatamento, anormalíssima que seja, ou não. O que nos importa é a
situação social que criou no Juazeiro, com extensão facilmente verificável por todos os
sertões do Nordeste, senão por quase todo o interior do norte do País. O que nos importa é
o fenômeno social que ali se mantém, para demonstração iniludível do desacerto com que
têm agido a respeito os nossos homens de governo... É isso que pode interessar ao País e ao
futuro. É disso que tentamos tratar.
Ademais, em qualquer momento histórico considerado, o homem é um nada,
uma palha que o vento agita e conduz, eleva ou faz desaparecer no vórtice dos aconteci-
mentos. Na sua corrente fatal, ele é elemento apenas apreciável. Nada pode e nada quer, se
as circunstâncias favoráveis do meio não o revelam ou não o façam avultar. Colocado, pois,
num meio diferente ou, tendo surgido, em época totalmente diversa, o padre Cícero teria
tido, talvez, uma ação sempre igual de convencido e sincero apóstolo, e seu nome seria
citado como um exemplo digno de imitar-se; não teria certamente descuidado tanto de seu
espírito, nem haveria fugido da Igreja.
Colocado, no entanto, naquele ambiente de ignorância geral, de superstição rude
e grosseira, onde a condição da quase totalidade do povo é a de manifesto primitivismo, sem
forças em si, e sem auxílio em derredor, haveria de despenhar-se por onde inelutavelmente o
levaram as energias cegas da sociedade que, por meio século, agitou, mas, propriamente, não
conduziu...
Não o culpemos, pois, em demasia.
Não lhe reprochemos, mesmo, o desenvolvimento de uma psicose de que não
pode ser verdadeiramente culpado. Sobre injusto e cruel, seria iníquo.
Do ponto de vista social, ainda que averiguado qualquer maior desvio de
sua mentalidade, fazê-lo seria absurdo. Seria desconhecer-se, primeiramente, a noção
30
Matos, op. cit., p. 760.
Capítulo 5 – “Ecce Homo!”
58 Juazeiro do Padre Cícero
de normalidade psíquica. Seria negar-se, por outro lado, em determinados ambientes,
o papel dos desajustamentos que aí se dão.
Não é o caso de discutir-se aqui a tese tão debatida da paridade do gênio e da
loucura. É uma tese extrema, que não nos pode atrair. Mas a verdade é que, no constante
esforço para um aumento rápido de inteligência, na idade industrial que atravessamos,
têm sido mais freqüentes que nunca os casos de degeneração mental, demência e suicídio.
E o caso é que as sociedades também fabricam, por assim dizer, intencional-
mente, os degenerados de que sentem necessidade em certos e determinados momentos de
sua evolução.
Essa precisão é tão fortemente sentida, que alguns povos bárbaros, entre os quais a
degeneração é escassa, acham-se na obrigação de criá-la artificialmente, com intoxica-
ções especiais, regime de alimentação e proibições. Os sacerdotes, os profetas, as
pitonisas, as vestais, a quem os povos antigos davam tanta importância como conse-
lheiros políticos, eram freqüentemente mantidos numa situação de exaltação pela ação
do fogo, perfumes, incensos, etc., que lhes alteravam as funções nervosas.
31
Os habitantes das Ilhas Aleútas ainda hoje provocam diretamente certas ano-
malias nos indivíduos a quem desejam entregar os seus destinos políticos.
Os predestinados, homens ou mulheres, não importa, devem possuir caracteres dife-
rentes dos demais. Apenas nascida, a criança é posta sob estranhas regras de vida, a
abluções mais ou menos freqüentes, a jejuns e vigílias. Deve ser taciturna e solitária;
desviada do convívio dos mais, raramente pode participar da caça e da pesca; passa
depois por uma série de iniciações que a devem pôr em comunicação com os espíri-
tos... Criado em tal regime, o adolescente torna-se como maluco, tem simpatias e
antipatias demenciais, estados de lucidez e hiperestesia estranhas, acreditando estar
sempre cercado de demônios ou de espíritos que lhe impõem ordens e insinuam
conselhos. Torna-se, assim, um mago Hangacook, que acumula muitas vezes as fun-
ções de juiz, padre, árbitro nas questões públicas e privadas, poeta e médico, cômico
e ministro...
32
Nos povos antigos, o demente era quase sempre considerado como um gênio,
cercado de admiração ou adorado. Conforme cita Lombroso no seu L’uomo di genio, Platão
considerava o delírio como uma dádiva divina. Horácio dizia que nullus poeta sine mixtura
dementiae, e Aristóteles proclamava que, sob a ação da hemicrania, ou do delírio, qual-
quer indivíduo podia tornar-se adivinho, profeta ou artista.
Essa verificação histórica do papel de personalidades anômalas na vida social
torna aceitável a explicação de Deniker:
A média intelectual e moral dos selvagens em geral não é nada inferior à dos homens
civilizados: não sei se possa desejar maior prova de habilidade de que a de produzir
fogo com dois pedaços de pau, ou de tecer a mão uma dessas telas maravilhosas de
finura e graça. O que os diferencia é única e exclusivamente a capacidade de aproveitar
e selecionar as novas idéias...
E, comentando-a, conclui Gina Lombroso:
Quando um cidadão europeu ou americano descobre uma nova verdade, ou um novo
engenho, encontra imediatamente centenares de colaboradores, de continuadores, de
detratores ou de entusiastas que se encarregam de verificar a nova idéia, depurá-la,
31
Lombroso, Gina. I vantaggi della degenerazione. Torino, 1923. p. 178.
32
Reclus, E. Les primitifs. p. 83 e seq., cf. Lombroso, op. cit.
59
engrandecê-la, aplicá-la, de propagá-la com o próprio nome ou com outro, mas sempre
de modo a difundi-Ia, a torná-la patrimônio comum de multidões de seres, que dela
possam aproveitar os benefícios. A essa magnífica cooperação é que devemos o pro-
gresso. Ora, a este propósito de difusão de idéias e de colaboração ao trabalho, bem
pequena parte cabe à aurea mediocritas, absorvida sempre no gozar e manter unica-
mente os frutos do passado...
É possível, assim, afirmar que os medíocres dificultam o progresso. São os
desajustados, fanáticos, lunáticos, santos ou gênios que, desprezando a impopularidade
ou perseguição, difundem e propagam os novos produtos industriais, comerciais, as obras
artísticas, as concepções de estética, as experimentações ousadas, as sínteses e as aplica-
ções que depois passamos a considerar como geniais.
São os anômalos que alimentam a fé sagrada do progresso, a eles cabendo a
função de apressar a civilização. Como as bactérias da fermentação, assumem muitas ve-
zes um duplo papel de analistas e reconstrutores: eles decompõem e reorganizam as insti-
tuições, ativam o intercâmbio de idéias, e a transformação incessante do assaz complexo
organismo que é a sociedade humana.
33
uuu
A verificação de uma anomalia constitucional, mesmo grave, não rebaixaria,
portanto, qualquer papel social relevante que, em qualquer época, pudesse ter desempe-
nhado o padre Cícero Romão Batista. Essa condição até lhe poderia ter facilitado a ação,
fornecendo-lhe energias necessárias a uma tarefa construtiva, em meio ao sertão bruto,
quase sem lei, sobre a massa plástica do caboclo rude e primitivo.
Esse não seria o seu crime. E, se o houvesse, não caberia queixas à natureza. Se
queixas lhe cabem, é à graça de sua longevidade e à facilidade com que a fortuna lhe
permitiu acumular fartos cabedais...
34
O patriarca do Juazeiro paga, hoje, com um estado de lamentável decadência, e
na diminuição flagrante de seu prestígio sobre o meio em que sempre viveu, o crime de ter
existido demais.
35
Desaparecido pouco depois do milagre de Maria de Araújo, seu nome encheria
aqueles rincões, como o de um santo verdadeiro, cuja evocação elevaria a alma oprimida
do sertanejo, em épocas de calamidade. Vivo, embora, mas pobre, seria ainda o apóstolo
sem-par, cuja palavra em relação às coisas do céu havia de merecer acatamento.
Mas, encanecido e cheio de riquezas, atrai sobre si mesmo não pequena dose
de ridículo e o peso de maldições.
33
Deniker. The races of man, apud Lombroso, Cesare. L’uomo di genio: in rapporto alla psichiatria, alla storia ed all’estetica.
Torino: Bocca, 1888.
34
Ver apêndice em que é transcrito, nesta edição, o testamento do padre Cícero.
35
Em dezembro de 1938, ou passados mais de dez anos sobre a primeira edição deste livro, e a que faz referência, o eminente
político e médico cearense, dr. Fernandes Távora, estampou um substancioso artigo na Revista do Instituto do Ceará, no
qual figura este trecho: “Aí temos, pois, todos os dados para resolver o problema psíquico em apreço: terreno mental
mioprágico, traduzido num conjunto de estados psicopáticos constitucionais degenerativos; transformação profunda da
personalidade sem notáveis perturbações da vontade e da emotividade; delírio de perseguição, algo velado, e de grandeza,
evidentíssimo; organização de um sistema interpretativo, não alucinatório, com prevalência de uma idéia fixa, que lhe
empolgou o espírito e orientou toda a sua atividade religiosa e social; marcha lenta e crônica; incurabilidade. Ante
sintomatologia tão completa, não sei como possa alguém cogitar de outro diagnóstico que não o de paranóia”. Repr. em
separata, pela Ed. Fortaleza, 1944.
Capítulo 5 – “Ecce Homo!”
61
Capítulo 6
O “alter ego”
A pena de viver demais – Um capítulo difícil de escrever-se – O “íncubo”
do padre e a história de seu domínio – Testemunho fidedigno
63
É tanto que os romeirinhos ingênuos, vendo com
maravilha e com mágoa tudo isto, dizem: “Aquele
home (muitos não dizem o nome) já butô foi
maguinetismo em Padrim Cirço”.
Pe. Manuel Macedo
(Juazeiro em foco)
Afirmamos que padre Cícero Romão Batista devia queixar-se aos céus por sua
longevidade. Ela tem permitido, de fato, que boa dose de ridículo lhe haja marcado a figura.
Simples confronto das fases sucessivas de sua longa existência reduz o apóstolo inicial a uma
grotesca caricatura. Por outro lado, a gerência de seus negócios de milionário, cuja origem não
discutimos, atraiu-lhe farta soma de maldições, como seria inevitável, e demonstrou de modo
cabal que o seu reino não seria o reino dos céus.
Mas a pena de viver demais havia de acentuar-se depois que o valetudinário se
deixou empolgar por um peregrino, que, de afilhado e protegido, em breve havia de passar
a seu “alter ego” e, enfim, senhor absoluto.
Esse peregrino se chamou dr. Floro Bartolomeu da Costa. Era um médico baiano,
que surgira por volta de 1908, no Juazeiro, e que foi exercendo ação de domínio sempre
crescente, até que veio morrer, há poucos meses, no Rio de Janeiro.
Esta última circunstância assinala, claramente, as dificuldades que nos assal-
tam ao escrever o presente capítulo.
Talvez seja ainda muito cedo para evocar a figura do curioso expoente da política
do Nordeste. E, além disso, havia ele partido, pouco antes da sua morte, com uma missão
especialíssima do governo federal, para defesa da legalidade nos sertões do Nordeste... Sabía-
mos que seguia já enfermo. Sua morte, lastimável por muitos motivos, deu-se pouco depois
de retornado ao Rio, em apressada viagem. Ainda soam nos ares os ecos das homenagens de
general honorário do Exército, com que o governo houve por bem consagrar-lhe a memória,
para que se possa pretender exumá-lo. Floro Bartolomeu descansa em paz, tendo sobre o
esquife, passada em escudo, a bandeira da República. Seria preciso lanceá-la, a fundo, para
tocar, agora, o vulto do morto... Mais razoável e humano será esperar. Escrever-se-á, a seu
tempo, a existência trepidante do caudilho.
Capítulo 6 – O “alter ego”
64 Juazeiro do Padre Cícero
Nem por Isso, porém, havemos de deixar de nomeá-lo, quando necessário à com-
preensão dos fatos, porque, de certa época em diante, a história do Juazeiro é a das próprias e
desmedidas ambições do médico baiano, cuja figura dominadora envolve e apouca a do pró-
prio padre Cícero. Em certos pontos, não será também sem uma aura de simpatia que havemos
de mostrá-lo, como quando reprimia certos exageros de fanatismo, embora com violências
excessivas. Tal se deu, por exemplo, no caso do “boi santo”, episódio que é seguro índice do
estado mental e moral dos “romeiros”, como relataremos num dos capítulos a seguir.
O que não será possível, nem nos parece oportuno neste momento, é firmar
juízo definitivo sobre a ação de domínio que exerceu, nem tentar o balanço completo de
suas responsabilidades, em episódios muito graves da história do Ceará.
uuu
O dr. Floro Bartolomeu da Costa apareceu no Juazeiro em 1908. Vinha da Bahia,
pelo interior dos sertões, e, ao que se dizia, acossado por inimigos. Acolhido em casa do padre,
de que se fez médico particular, em breve recebia dele as maiores provas de amizade e confian-
ça. Sem grande cultivo, mas inteligente e audaz, compreendeu logo a situação e o partido que
dela podia tirar. Assim, tudo fez para que a povoação fosse elevada a sede de município, o que
conseguiu em 1911. Modificada a política estadual do Ceará, com a deposição do velho gover-
nador Accioly, em 1912, e sentindo que a nova administração lhe frustrava os planos hábeis,
preparou o famoso golpe que foi a sedição de dezembro do ano seguinte, em resultado da qual
se sagrou, em definitivo, chefe político de todo o sul do Estado.
É evidente que o conseguiu servindo-se do nome do padre e fazendo-o instru-
mento dócil a todas as maquinações.
A história desse domínio sobre o padre Cícero está bem delineada numa inte-
ressante obra do pe. dr. Manuel Macedo, ex-vigário do Juazeiro, respeitável figura do clero
cearense.
Tomemos-lhe as próprias palavras, plenas de autoridade:
Vindo das bandas do sul, dos sertões da Bahia, depara-se no Juazeiro – refúgio do
Nordeste – a entidade desconhecida e nula do Doutor Floro Bartolomeu. Pobre aventu-
reiro (e não romeiro, como ele se deu algures), vinha o baiano atrás da sombra da
sotaina mais antiga do Cariri, a única que o podia furtar aos raios de uma justiça ultra-
jada lá em baixo. Não era este refúgio um caso novo no Juazeiro. E lá estava o doutor, de
chinelos de trança e de pijama, habitando um quartinho minúsculo, uma cela, no quin-
tal do padre Cícero. Uma cela! Tanto bastava a quem não era coisa alguma. Mas o padre
Cícero era tudo, como sempre foi, como sempre se gloriou de ser, na terra que fizera,
não tolerando nisto a menor competição. E porque, experiente, viu no ádvena instru-
mento apto para novas ousadas empresas, começou a dar-lhe prestígio, a emprestar-lhe
poder, até fazê-lo um “alter ego”, sem contudo abrir mão da supremacia. Foi deste
prolongamento do próprio “eu” que o padre Cícero engendrou este fenômeno político,
único no Brasil, e no mundo, de um só poder municipal em duas pessoas distintas,
vindo a ser o padre o prefeito, mas exercendo a prefeitura o doutor...
O doutor, uma vez no sólio, esquecia-se de imitar o prefeito no disfarce da embriaguez
do poder. O povo, vencido pela adoração do padre, jazia inconsciente aos pés do dou-
tor. E assim foi sempre. Se o padre queria uma coisa que lhe não ficava bem, com a
execução passava a imputabilidade ao doutor, menos escrupuloso, e o povo, sem saber
mais distinguir um do outro, obedecia a este como se fora àquele. Tal se deu na revolu-
ção de 1914. Que ninguém ouse dizer que a batina decapitou o Estado, pois verá cho-
ver a desmentida, do alto da tribuna da Câmara: “não a batina, mas a beca...” Ingênuos
pais da Pátria e os filhos da Pátria, que não reconhecem a identificação de ambas.
65
Triunfou a sedição. Nova embriaguez de poder e nova sede também. Ao doutor já não
bastava uma cadeira na Câmara Municipal do Juazeiro, não o contentava mais o co-
mando de seus cangaceiros sacrificados: sonhou com o parlamento estadual, com suas
rendas, e lá se foi sentar numa cadeira do Congresso do Estado, por obra e graça do
padre Cícero, que, descarregando nela sua gaveta de títulos eleitorais, tinha em vista
ganhar, junto ao governo, aquela posição de valia, na pessoa de seu lugar-tenente. Mas
o poder é como cachaça: quanto mais se bebe, mais se quer beber. Por isso, eis agora o
doutor com os olhos no Congresso da Nação. Difícil?... E há dificuldade para o Juazeiro,
quando o padre Cícero quer? Se houvesse dois candidatos os títulos ainda sobravam.
Doutor Floro, deputado federal! Enquanto a sede da cachaça não o mover para diante,
aí está, já em segundo mandato.
36
Com perfeito conhecimento de causa, o padre Macedo informa que, em paga
de tantos benefícios, Floro Bartolomeu não correspondia senão com o apertar as malhas de
seu domínio ao redor da liberdade do amigo e protetor. Chegou até a impedir que o velho
sacerdote readquirisse ordens de celebrar, quando esteve no Ceará o visitador apostólico,
D. Bento López.
Por fim, o padre se queixava, abertamente, da tirania do doutor. Dantes, ele era
tudo. Agora um espectro, tangido pelas mãos de Floro... Dantes podia dizer, como disse a
um hóspede interessado em questões do foro: “Meu amigo: aqui, o prefeito, a Câmara, o
juiz, o delegado, o comandante, a policia, o carcereiro, sou eu!”. Agora era forçado a con-
fessar: “Menino, sobre governo do município, eu nada sei; quem faz tudo é o doutor...”
Aquela sua tirania foi tão absoluta, tão completa, que o padre acabou por não
ter mais vontade, nem pensamento, nem ação.
37
Pagou assim, duramente, a pena de viver demais.
36
Macedo, Pe. Manuel. Juazeiro em foco. Fortaleza, 1925. p. 9 e seq.
37
“O doutor, a pretexto de que a casa do padre era anti-higiênica, foi buscá-lo para a sua. Nós sabemos que a verdadeira razão
era outra. Ali ficou o pobre ancião em um cárcere até, por coincidência, parede e meia com a cadeia. ‘Que cativeiro!’ –
ainda chegou a dizer baixinho. Quis visitar sua casa na Serra do Horto, passar lá umas horas, mudar de ar, pôr-se à fresca,
descansar. Depressa o farmacêutico José Geraldo, verdadeiro amigo de seu padrinho de batismo, reúne o povo, e vencendo
o que nunca ninguém imaginou, conduziu o automóvel ao Horto, por uma estrada modelo. Sentiu-se feliz o padre, mas
quando quis subir, Floro o deteve: ‘não vai!’... E não foi. De outra feita, quis dar um passeio em casa de pessoa amiga, fora
da rua, e, quando já estava com o pé no estribo do automóvel: ‘Volte, padre; não vai, não!’ Era o Floro que, pelo braço, o
puxava para dentro de sua casa” (idem, ibidem, p. 32).
Capítulo 6 – O “alter ego”
67
Capítulo 7
Os milagres
“É o milagre que torna a autoridade patente” – A beata Maria de Araújo
e seus milagres – Transforma-se em sangue rubro e palpitante a hóstia
consagrada – Repercussão do fenômeno e suas interpretações – A ação
de D. Joaquim Vieira, bispo do Ceará – Os milagres menores...
69
Que sinal nos apresentas para assim proceder?
Joan, v. 36
A autoridade é que impõe a fé, mas o que torna a autoridade patente – diz Santo
Agostinho – é o milagre. O prestígio do padre Cícero Romão tinha que provir, pois, do
milagre; e o milagre se fez.
Foram fatos, à primeira vista inexplicáveis, operados na pessoa da beata Maria
de Araújo, em junho de 1890, e repetidos depois, algumas vezes, que complicaram o caso
primitivo de simples misticismo do Juazeiro. Eles dariam origem a acontecimentos que
iriam transmudar o humilde arraial na famosa Meca dos sertões, ampliando a figura piedo-
sa do obscuro presbítero de então na sombra monstruosa do “Padrinho” de hoje...
O meio era o mais propício, certamente, e o herói, um predestinado. Mas falta-
va o prodígio que o revelasse e circunstâncias que o impusessem, a todos, crédulos e incré-
dulos. Depois disso, fácil seria tornar-se o sumo sacerdote e o desejado tirano, concentran-
do, nesse caráter bifronte, de taumaturgo e chefe civil, a autoridade sem contraste dos
sertões do Nordeste. Vendo-o, assim, consagrado tanto pelos poderes do céu como pela
vontade dos homens, seria natural que o habitante do sertão, sem cultura, sem amparo da
justiça, muitas vezes sem pão, sem trabalho e sem guia, enxergasse nele o redentor, o con-
selheiro e o mestre.
O apóstolo, tão-somente, pode pouco, e acaba freqüentemente vencido. O polí-
tico, apenas político, tem contra si todos os de sua casta. Por muitas vezes, tem o sertanejo
visto apóstolos confundidos e políticos desautorados. Um só homem, porém, que lograsse
nas mesmas mãos as forças sobrenaturais e os empenhos dos poderosos, esse – sim! – seria
“o profeta que há de vir”...
A consagração terrena foi dada ao padre pela aliança política, argamassada com
o sangue da sedição de 1913. O sinal dos céus foi manifesto nos pretensos milagres de
Maria de Araújo, que acabaram produzindo a fanatização de toda uma vasta região, como
transformaram também, talvez de modo inesperado para ele próprio, o caráter então singe-
lo e a vida beatífica do herói.
Sacerdote católico ao tempo de tais casos miraculosos, e sujeito, assim, à disci-
plina do clero secular, por esses casos se achou envolvido numa séria questão religiosa.
Capítulo 7 – Os milagres
70 Juazeiro do Padre Cícero
Sem forças espirituais para uma reação dentro dos quadros da Igreja, e sem querer perder
a influência natural que decorria de sua condição de sacerdote, procurou defender-se como
lhe fosse possível... Mas, afinal, seria arrastado, pelo ambiente que tocara em forças mal
previstas, para a charlatanice e o caudilhismo, em que depois se abismou e em que o seu
“alter ego” havia de assumir papel relevante.
Em resumo, a grave questão social de hoje se prende diretamente a uma delica-
da questão religiosa, com origem no milagre.
Vejamos que milagre foi esse.
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Na manhã do dia 11 de junho de 1890, numa humilde capelinha de Nossa
Senhora das Dores, padroeira do lugar, depois de receber das mãos do padre Cícero Romão
Batista a hóstia consagrada, a beata Maria de Araújo caía por terra em violenta crise nervo-
sa. Os fiéis presentes, que a socorreram, notaram que um fiozinho de sangue lhe escorria
da boca entreaberta; a mais detido exame verificaram, depois, que as mesmas espécies
eucarísticas se haviam transformado em sangue rubro e palpitante.
Na liturgia católica, nenhum momento é mais solene e grandioso que o da
eucaristia: o pão e o vinho, como é do rito, simbolizam nesse sacramento o verdadeiro
corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, sacrificado para a redenção do gênero
humano. O transfazerem-se, portanto, em sangue autêntico, quando comungava uma das
mulheres de maior constância na devoção e penitência, seria manifesto sinal do amparo
de Deus, que assim se revelava num efeito prodigioso.
Seria o milagre autêntico.
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Fácil é imaginar a importância de tal sucesso, naquele meio predisposto a in-
terpretações miraculosas, máxime, ao tempo em que se deu. Basta considerar que sobre a
ignorância e o fundo supersticioso do caboclo vivem em seu espírito tradições de
messianismo e sebastianismo.
38
Seria natural, portanto, que populações inteiras acorressem das vizinhanças. Se
os crentes já se regozijavam, em caminho, e seguiam cantando hosanas, levando apertado ao
peito um ex-voto, com a alma resplendente ao clarão divino que sentiam, os mesmos incré-
dulos se abalavam, tangidos também por uma desconhecida força, que os levava à imperiosa
necessidade de acercar-se do prodígio e, se possível, de vê-lo com os próprios olhos...
E, como o milagre se repetia em outras comunhões da beata, mais e mais era
propalada a notícia, e mais engrandecida de boca em boca... Por fim, cessou. A esse tempo,
porém, milhares de devotos já se haviam estabelecido nas redondezas, certos de que era
aquela a Canaã prometida. Ademais, fácil era o culto, e a liberdade de costumes, atraente.
A idéia de se construir um grande templo, como agradecimento àquela graça inefável,
impunha-se a todos. Como conseqüência, dentro em pouco, outro culto se corporizava, na
adoração em pessoa do novo Messias.
Para o homem rude, pouco afeito a raciocinar sobre os fatos da natureza, nada
mais claro e aceitável que o maravilhoso. Ele ocupa mesmo, na sua mentalidade restrita, a
maior zona de uma obscura explicação dos fenômenos. E a divindade não lhe aparece
38
“De meados para fins de 1819, instalou-se na Serra do Rodeador, no Bonito, um fanático e explorador de nome Silvestre José
dos Santos. Reuniu logo um grande séqüito e pregou ao seu povo a ressurreição de El-Rei D. Sebastião, prometendo-lhes a
partilha dos seus grandes tesouros; e, para ainda mais impor-se à gente que o acompanhava, explorou o espírito religioso,
celebrando solenidades com cerimonial particular” (Pereira da Costa. Folclore pernambucano. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 70, parte 2, p. 33, 1909).
71
como a requintada essência do justo e do perfeito, mas, acima de tudo, como o poder de
mudar a face das coisas, ao seu arbítrio, só modificável pela maior ou menor vassalagem
que se lhe preste.
No Nordeste, então, em que dias de calamidade marcam com angústias
indescritíveis a vida da maioria de seus filhos, e em que o desconhecimento do próprio
ritmo de certos fenômenos naturais impõe a idéia de que o universo não está sujeito a
condições que se possam conhecer, essa mentalidade chega a dominar espíritos dos mais
esclarecidos, que afervoram suas crenças, mais no temor que no respeito, numa súplica
mais do que no culto... A divindade passa a ser mais temida que amada. E como nas meno-
res coisas se procura a expressão de seus desígnios, de que modo não se havia de avantajar
aos olhos do povo um sacerdote que acabava de ter nas mãos a prova indubitável de mise-
ricordiosa preferência?...
Envolvido, dessa forma, nas auras inefáveis duma adoração sem limites, padre
Cícero Romão começou por guardar a severa discrição dos eleitos, a serenidade e simplici-
dade das grandes forças, que a si mesmas se conhecem. Durante certo tempo, nenhuma
referência direta fez ele ao milagre, nas suas práticas habituais. Foi um outro sacerdote,
muito de sua intimidade, aliás, mons. Francisco Monteiro, quem em várias igrejas havia de
proclamar o fato como revelação divina, chamando do alto do púlpito a atenção das auto-
ridades eclesiásticas para o caso maravilhoso.
As autoridades agiram incontinenti.
Era bispo do Ceará, à época
39
D. Joaquim Vieira (o padre Vieirinha) da cidade
de Campinas, Estado de São Paulo, que cometeu a uma comissão de sacerdotes e médicos
a delicada incumbência de verificar o extraordinário fenômeno.
Depois de várias pesquisas e, segundo cremos, da observação repetida do pró-
prio fato, tal comissão declarou, num primeiro memorável documento, que o caso não
podia ter explicação natural e devia ser tomado como expressão “realmente miraculosa”.
Um dos médicos chegou mesmo, em arroubo inicial, de iluminado, a declarar à fé de seu
grau, em atestado escrito, “que o sangue em que a hóstia se transformava não podia deixar
de ser senão o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo...”
Todavia, D. Joaquim Vieira, cujo espírito culto e verdadeira fé deixaram no
clero brasileiro imperecível lembrança, não podia aceitar as primeiras conclusões da co-
missão que nomeara. Elas provavam demais. Nem sequer se referiam às três condições que
Santo Tomás, com alta sabedoria, estabeleceu para a verificação do milagre: “o estudo da
pessoa que opera, o intento com que ela opera e a maneira por que o opera”.
Maria de Araújo era uma cacodemoníaca, cujas tendências se revelavam na
conduta sui generis de toda sua vida, ou no fanatismo militante em que sempre viveu.
40
Por que Deus havia de revelar-se naquela mulher e por aquela forma?...
Parece que a comissão voltou a falar, e desta vez, para uma retratação pura e
simples. Surgiram hipóteses naturalíssimas para explicação do fenômeno, prevalecendo,
no entanto, a de que o sangue proviesse das gengivas maltratadas da beata, da língua ou de
uma ferida na garganta, que sangrasse sob a intensa comoção do ato.
41
39
Já na ocasião da publicação deste livro, o Ceará compreendia um arcebispado, com sede em Fortaleza, e dois bispados, com
sede, respectivamente, nas cidades do Crato e de Sobral.
40
Eis como Maria de Araújo é descrita pelo pe. Alencar Peixoto, que foi, por muito tempo, vigário do Juazeiro: “Maria de
Araújo é de estatura regular; triste, vagarosa, entanguida, essencialmente caquética, porque tem ela uma série de ascen-
dentes caquéticos ou tuberculosos. A cabeça, que, para casa como por toda parte, traz sempre descoberta, tem a configura-
ção de um ‘corredor’ de boi, escarnado. O cabelo é cortado à escovinha. Os olhos pequenos, e sem um raio sequer de
expressão que lhe ilumine o semblante, mexem-se histericamente nas faldas de uma testa estreita e protuberante. O nariz
irrompe dentre os olhos, sem base, e levantando-se pouco a pouco, alarga-se de asas chatas, até os ossos malares” (Alencar
Peixoto, Padre. Juazeiro do Cariri. Tip. Moderna, 1913. p. 42).
41
Hemossialorréia, segundo o dr. Fernandes Távora; sangue sugado das gengivas fungosas, segundo o dr. Castro Medeiros,
que depois se ocuparam do assunto.
Capítulo 7 – Os milagres
72 Juazeiro do Padre Cícero
Mas a essas incertezas apegou-se o povo para conclusão favorável ao milagre,
prodígio que os olhos de todos viam, claramente visto, e que a alma de todos sentia, sem
vacilações. Aos crentes bastava-lhes a existência do fato: ab esse ad posso valet illatio...
E alguns fatos, que ocorreram ao redor do milagre ou em conseqüência dele,
não podiam deixar de impressionar vivamente a multidão.
Mons. Monteiro, que foi quem primeiro denunciou o milagre e que depois o
renegou, do mesmo púlpito, cegara de momento para outro, inexplicavelmente... Era o pri-
meiro castigo! A seguir, outras maldições cairiam do céu, sem poupar o médico que atestara
a existência do sangue de Cristo. Ainda vivem alguns dos signatários do laudo condenatório
do milagre, sob o peso de atroz infortúnio. Outros se extinguiram na miséria, apontados
como réprobos...
42
O principal responsável pelo desmascaramento do embuste nada sofreu, porém.
Prosseguiu em sua vida de fé verdadeira e benemerência. Vimo-lo finar-se, em Campinas,
velhinho, entre as crianças e os doentes dos asilos que criou, abençoado por todos.
Esse, sim, estava e está com Deus.
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O que custa é o primeiro fato que se tome por miraculoso. Os mais decorrem
dele, naturalmente, com a simplicidade de ação e a força incoercível de uma pedra que se
desaprume e role no abismo.
Contam-se, assim, muitos outros pequenos prodígios, alguns dos quais, diga-se
a verdade, serão mesmo desconhecidos da parte do padre Cícero. Mas o padre sempre
permitiu a idéia de que é capaz de realizar milagres.
Casos simples, de um objeto que se perdeu, de uma rês sumida, de uma cultura
de algodão ameaçada de praga, de uma parede de açude que ameaça romper-se... Episódios
mais complicados, como o do mudo que falou para morrer, a cura de paralíticos, de maníacos
e enfeitiçados... Mais amplos ainda, e denunciadores de um poder mais profundo, como o
apressar da chuva que tarda, ou a repressão do inverno, demasiadamente copioso...
43
Houve época em que as maravilhas se multiplicaram espantosamente. Foi du-
rante as lutas da revolução de fins de 1913. A crença geral era a de que quem morresse pelo
Padrinho, onde quer que fosse, ressuscitaria, perfeito e são, no seio da Meca... E contam-se
casos para sua comprovação, e casos de que por lá ninguém duvida...
Para certa classe de crentes, nada por fim se passa de útil ou bom sem que nisso
se veja a influência do Padrinho; nada de mau sem que descubra o castigo inexorável por
uma culpa gravíssima, como a de não se haver rezado uma oração de modo perfeito, um
voto que se não cumpriu, a esmola negada a um romeiro em trânsito...
42
“José Marrocos morreu envenenado; mons. Monteiro cegou e acabou os seus últimos dias na maior indigência; padre João
Carlos já teria morrido à fome se lhe não valessem suas bondosas parentas; padre Vicente de Alencar não teve mais aléu;
padre Clicério arrasta-se paupérrimo; pe. dr. Francisco Ferreira Antero, de três em três anos renova os sete passos de sua
paixão; dr. Marcos Rodrigues Madeira, abandonou a família e foi para o Amazonas, onde faleceu pouco depois; dr. Ildefonso
Lima foi desapeado da alta posição que ocupava; cel. Joaquim Secundo Chaves morreu de repente; ten.-cel. José Joaquim
de Maria Lôbo acha-se quase cego e com a telhice de ser um sábio como Rui Barbosa; major João Cipriano está reduzido a
simples vendilhão de feira, etc.” (Alencar Peixoto, Padre. Juazeiro do Cariri. Tip. Moderna, 1913. p. 42).
“A cegueira do saudoso mons. Francisco Monteiro foi tida como um castigo. Conta-se a respeito que esse sacerdote, certo
dia, perante muita gente, incluindo-se alguns dos seus colegas, exagerando-se em conceitos para justificar a sua convicção
sobre as referidas manifestações miraculosas, dissera: ‘Se eu negar o que vi, ceguem meus olhos!’” (Bartolomeu, Floro.
Juazeiro e o padre Cícero. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923).
43
O dr. Floro Bartolomeu, defendendo o padre Cícero, em discurso na Câmara Federal, publicado depois em volume, cita
vários casos em que ele próprio se confessou como comparsa de pretensos milagres do padre. Tal o caso do homem “que
não sentia a metade do corpo”, um morador de Missão Velha. Alude também ao milagre das chuvas de 1889, quando se
esperava uma grande seca (idem, ibidem, p. 147).
73
Morta Maria de Araújo, a taumaturgia tomou novos aspectos. Ela própria pas-
sou a atender aos pedidos de beatos e penitentes, estabelecendo uma concorrência muito
sugestiva aos fiéis. Seu culto generalizou-se. Os fluidos inefáveis de novas consolações
desceram dela a muitas almas ingênuas. Sob a ameaça de outras tantas penas, afervoraram,
então, essas preces e multiplicaram as penitências...
Capítulo 7 – Os milagres
75
Capítulo 8
O “boi santo”
Um caso de totemismo ou simples tabu?... – Uma promessa curiosa e o
seu não menos curioso desenlace – A santificação do boi – Seus mila-
gres, grandeza e decadência
77
Porque na lei de Moisés está escrito: ao boi que
trilha não ligarás a boca. Porventura tem Deus cui-
dado dos bois?
S. Paulo aos Coríntios, IX, 9
Um boi adorado e temido... Eis aí um caso que poderia parecer, a princípio,
manifestação curiosa de “totemismo”.
Era o “totem”, entre os povos primitivos e, ainda hoje, entre certos povos australia-
nos – uma espécie animal, na generalidade dos casos, ou uma variedade de plantas, noutros, a
que se atribuíam influências muito particulares na vida de certo grupo de pessoas. Tido como
um antepassado, o “totem” representava, para os componentes do clã, o papel de guia e espírito
protetor. Por sua vez, essas pessoas se colocavam na sagrada obrigação de respeitar-lhe a vida,
abster-se de comê-lo ou aproveitá-lo sob qualquer outra forma. O totemismo passa por ser a
mais primitiva forma de religião e o mais antigo dos códigos não escritos.
44
Mas o boi do Juazeiro era um só, e não demonstrava preferências por pessoas.
Operava milagres à solicitação de todos os romeiros, indistintamente...
Visto, assim, mais de perto, podia semelhar uma estranha encarnação de divin-
dade, espécie de Ápis, que figurasse para o caboclo o que foi o célebre nume de antigos
egípcios. Aos olhos do povo inculto, o boi Ápis procedia diretamente de Ftás e Osíris, e sua
identidade devia patentear-se por sinais do pêlo, no dorso e na cabeça.
Mas o “boi santo” do padre Cícero não tinha notável ascendência, nem dos
demais bois se distinguia por estigmas apreciáveis. Revelara-se já adulto, inesperadamen-
te, por milagre acabado e perfeito, depois de ter cumprido, por muito tempo, com modéstia
e paciência, as funções comuns aos bovinos.
Ficou “santo” por ser uma rês de propriedade do Padrinho, e nada mais...
Nem “totem”, portanto, nem encarnação da divindade. Simples “tabu” transi-
tório, transmitido pela “mana” do padre, para demonstrar aos povos até onde poderiam
chegar suas forças misteriosas, e confirmar, por uma imagem pitoresca, o ponto de satura-
ção do fanatismo ambiente. O tabu supõe apenas a emanação de força mágica, inerente a
44
Freud, S. Obras completas; trad. espanhola da Biblioteca Nueva, 1923. v. 8.
Capítulo 8 – O “boi santo”
78 Juazeiro do Padre Cícero
certas pessoas, e pode ser exercida não só contra seres vivos, mas até contra coisas. O princi-
pal tabu do Juazeiro é, hoje, a estátua do Padrinho, erguida numa praça pública, como o foi,
noutros tempos, a sepultura de Maria de Araújo, a heroína dos primeiros milagres.
O “boi santo” sobreexcedeu, porém, a todos, na grosseria do Culto que fomen-
tou e nos esplêndidos milagres que liberou àquela pobre gente.
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Tem sido o boi, através dos tempos, animal em que se tem corporificado poten-
tes deidades.
Os touros alados dos assírios não só montavam guarda aos templos, mas tam-
bém recebiam adoração. O bezerro de ouro, de que fala a Bíblia, resumia o culto de uma
velha reminiscência totêmica dos hebreus. Maior que todos, o boi Ápis, dos antigos egípci-
os, representava a mais completa expressão da divindade sob a forma de animal vivo.
Há, ainda hoje, na China, um rito assaz curioso, o do “boi da primavera”, que é
mencionado no Li-ki, entre os que se celebram ao fim do inverno, para afastar as emana-
ções pestilentas e as moléstias graves.
Na tradição cristã, o boi está presente ao nascimento de Cristo, e é dela, possi-
velmente, que tirou corpo o folguedo “bumba-meu-boi”, comum em todo o Nordeste,
relembrado a cada Natal, com toadas ingênuas, danças e descantes.
Naquelas ásperas terras, onde a criação de gado é riqueza, a psicologia do cabo-
clo não poderia escapar às suas influências. Nas suas idéias, na linguagem, na estética
primitiva, nas superstições senão no seu próprio culto religioso, o animal amigo e pacien-
te, o companheiro de alegrias pelo “inverno” e amarguras na seca, devia acabar ocupando
lugar proeminente.
De algum modo, a vida dos sertões concorria para a aceitação do “boi santo” do
Juazeiro.
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Deram ao padre Cícero, certa vez, um garrote mestiçado de zebu. Era o paga-
mento, como tantos que diariamente recebe, de um milagre ou receita. Não desejando, em
vista da diversidade de raça, juntá-lo ao gado de sua fazenda, entregou-o a um de seus
homens de confiança a fim de que o criasse.
Nada de especial, até aí.
Mas esse indivíduo, um preto de nome José Lourenço, beato conhecido e pres-
tigioso na “ribeira”, pertencente, ademais, à irmandade dos “penitentes”, devia em breve
santificar o boi.
As funções dessa “irmandade”, existente, aliás, nalguns outros lugares do inte-
rior do Nordeste, denuncia com maior clareza o estado mental dos homens que a com-
põem. Cabe-lhes a obrigação de rezar pelos defuntos, nas noites de sexta-feira, junto aos
cemitérios e às cruzes das estradas, em trajes de farricoco. De quando em quando, realizam
também estranhas cerimônias de culto, em que ao simulacro da liturgia católica muitas
vezes se misturam passagens de magia negra.
Aconteceu, certo dia, que um dos amigos e companheiros de Zé Lourenço
fez promessa de oferecer ao boi do Padrinho um tenro feixe de capim, e da melhor
qualidade, caso fosse atendido em certo pedido em que uma intercessão miraculosa se
julgava necessária.
Alcançada a graça, tinha de cumprir-se a promessa. Corria a estação seca, no
entanto, e por ali, ao alcance da mão, nada mais se oferecia do que gravatás ressequidos,
mandacarus espinhentos ou a rama já amarelecida das juremas em agonia...
79
A promessa fora de um feixe de bom capim, tenro e fresco. Negá-la, ou tentar
iludi-la, seria o castigo certo com que, na interpretação grosseira dos crentes, tantas vezes
já tem fulminado outros réprobos o Padrinho onipotente...
Nessas circunstâncias, o caboclo resolveu caminhar alguns quilômetros e ir fur-
tar a forragem de que carecia, em pastagem fechada, numa várzea sempre fresca e umbrosa.
Foi, cauteloso, pela madrugada, sem que ninguém o pudesse ver...
Mas, trazida a oferenda, rejeitou-a o boi.
Quando o caboclo, ajoelhado, engrolando uma das orações apropriadas ao ato,
lha depôs diante, o boi ergueu para ele uns tristes olhos repreensivos, e mugiu depois, de
modo insólito e doloroso...
O devoto não teve senão que atirar-se-lhe aos pés, em súplica ardente:
– Misericórdia, meu Padrim! Misericórdia! Eu furtei, mas não furto mais!
Misericórdia!...
E como fulminado, ali jazeu algum tempo, sem poder articular mais palavra.
O guarda do boi, que já havia notado no animal umas tantas singularidades, e
que se maravilhava especialmente com a giba que dera de apresentar nos últimos tempos,
somou os fatos e deles tirou a conclusão de que o caso seria milagre. Isso exigia preliminar-
mente um desagravo ao Padrinho, rezando-se-lhe uma novena em face do bicho.
Assim se fez, e o boi se tornou santo.
E daí por diante, até o sacrifício impiedoso, que lhe deram, foram sem conta os
milagres que produziu...
uuu
Com a exploração natural que comportava, por parte do preto fanático, o caso
teve, imediatamente, ampla repercussão.
Poucos dias eram passados, já o boi ruminava diante de manjedoura florida,
rosários de tucum pendentes ao pescoço, e bentinhos e laçarotes nas aspas... Muitos
romeiros, apenas saudavam o Padrinho, ou lhe beijavam, comovidos, o portal da casa,
reencetavam caminho para o lugarejo onde estava o animal, na ânsia de o ver e, muitas
vezes, de cumprir uma promessa. Todos se prosternavam em adoração, porfiando em lhe
cambiar o alimento, que variava das mais frescas ervas aos mingaus, papas e bolos. O boi
ruminava, e agradecia com milagres...
Os mesmos seus produtos naturais operavam maravilhas terapêuticas. A urina,
por exemplo, curava de modo infalível a sapiranga e o tracoma. Um fragmento dos chifres,
ou dos cascos, só conseguido por alto preço, punha fora de perigo a qualquer pessoa que,
atacada de quebranto, “espinhela caída” ou “bouba da legítima”, o trouxesse ao pescoço,
num saquinho...
Tal incremento tomou, enfim, o fetichismo do boi, que o próprio padre Cícero
acabou impressionado com o que dele se dizia. E Floro Bartolomeu, mais atilado e positi-
vamente muito menos afeito a tolerar certos excessos de fanatismo dos romeiros, no regres-
so de uma das viagens ao Rio, ordenou que se desse fim ao indecoroso culto do ruminante.
O caso já não podia ser resolvido, porém, com uma simples ordem, partisse
embora do chefe do Juazeiro.
Zé Lourenço revoltou-se, e, com ele, sua família e a casta dos penitentes. Hou-
ve conflito sério e necessidade de prisão do homem. Recolhido o guarda do boi ao cárcere,
com alguns de seus comparsas, mandou o dr. Floro que, ali mesmo, em frente à cadeia, se
imolasse o pobre cornípede.
O sacrifício se deu, entre lamentações e lágrimas copiosas dos romeiros
inconsoláveis, havendo quem afirmasse, depois, que um dos penitentes endoidecera ante
a cena sangrenta...
Capítulo 8 – O “boi santo”
80 Juazeiro do Padre Cícero
Poucos meses após, estivemos no Juazeiro e no Crato, e aí ouvimos testemu-
nhas oculares do caso. A Gazeta do Cariri a ele se referiu, largamente, em seu número de
26 de janeiro de 1922. Do mesmo caso tratou, em memorável discurso na Assembléia
Legislativa do Ceará, o deputado dr. José Martins Rodrigues, conhecido advogado e jorna-
lista. E o próprio dr. Floro Bartolomeu da Costa, tentando responder a ligeiros reparos que
o dr. Paulo de Morais Barros fizera ao Juazeiro, nas suas conferências de impressões sobre
o Nordeste, não pôde deixar de confirmar, na Câmara Federal, que fora obrigado a mandar
matar o “boi santo”, exatamente nas condições que aqui ficam descritas.
45
45
Bartolomeu, Floro. Juazeiro e o padre Cícero. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923. p. 97.
81
Capítulo 9
A sedição de 1913 – Causas
Inscrições sobrepostas de luto e de dor – Hodie mihi, cras tibi... – Uma
oligarquia banida e um governo promissor – Campanha contra o banditismo
e suas conseqüências – Reflexo da política de Pinheiro Machado – Onde
se vê que a corda arrebenta sempre do lado mais fraco
83
Não sei qual foi mais terrível: se a seca de 1877 se
a sedição do Juazeiro.
Rodolfo Teófilo
(A sedição do Juazeiro)
No aspecto geral da maioria das vilas e cidades do Ceará, como em certos pontos
do seu próprio sertão bravio, vêem-se, ainda hoje, nas ruínas de casas e solares, no abandono
de estradas, engenhos e culturas, os efeitos do drama lancinante que foi a seca de 1877.
Mesmo a capital, derramada numa praia risonha, fora da zona propriamente calamitosa, mas
devendo sentir, como um grande coração, os estos da vida da província, mal pôde ainda
mascarar-lhe de todo as conseqüências. São grandes muros, rotos e pendentes; casarões se-
culares, que não acompanharam a evolução das residências modernas de em torno; arcos de
pontes monumentais; ruas, construídas por aquele tempo, com edificações de valor, que
desfecham, de repente, na orla das areias circundantes, em arraiais de palha e pau-a-pique...
Em muitos núcleos urbanos do interior, o desequilíbrio de vida foi maior, e os
sinais se acentuam a cada dia que passa. Parece que ali reinou o abandono por todo o
meio século volvido depois, e que a população, retransportada apenas de véspera, mal
teve tempo de compor os telhados e disfarçar os desvãos das paredes... Aracati, Aquirás,
Baturité, Pacatuba, Icó, Maranguape – como falam melancolicamente de um esplendor
antigo, nunca mais reconquistado!
46
Em muitos desses pontos, porém, não só se recordam os efeitos da grande cala-
midade. Várias cidades e vilas, como muitas propriedades rurais de importância, revelam,
como um palimpsesto, duas inscrições sobrepostas, de luto e de dor. Nas reconstruções
interrompidas, nos traços de um repetido abandono das coisas e na improvisação visível
de novas tentativas de trabalho transparece, inapagável, um segundo angustioso hiato, o
que lhes imprimiu o drama da sedição de 1913.
É certo que os efeitos materiais das duas desgraças não podiam ter tido a
mesma extensão. A seca de 1877 foi terrível. Não só desorganizou o trabalho, como
atingiu de modo profundo as fontes de produção, aniquilando, mais que a lavoura, a
46
Para se ter idéia do progresso do Ceará antes de 1877, basta confrontar as rendas desse estado com as de São Paulo, no
decênio anterior.
Capítulo 9 – A sedição de 1913 – Causas
84 Juazeiro do Padre Cícero
indústria pecuária, que contava rebanho superior a um milhão de cabeças. Mas, nos
efeitos sociais, sobretudo no moral das camadas cultas, a sedição sobreexcedeu a do
flagelo periódico.
Como todas as catástrofes gerais, contra que não é possível lutar de modo direto,
a seca une os homens. Aquela mesma hospitalidade habitual do caboclo tem as suas íntimas
raízes numa noção modelada pelos vaivens da sorte, talvez subconsciente, mas inegável, do
valor transitório da propriedade e da vida. Hodie mihi, cras tibi... Nos aspectos permanentes
da vida rural, nos singelos costumes primitivos, quase bíblicos, que a vida pastoril aí tomou,
não pode deixar de transparecer também, de modo claro, o poder de solidariedade gerada
pela desgraça comum.
47
Está claro que essa união só existe de homem a homem sertanejo, de comuni-
dade a comunidade do mesmo meio sofredor. Três quintas partes do território cearense aí
se incluem, mas as duas restantes prosperam fora dela. O Cariri, boa parte do litoral e a
Serra de Ibiapaba são outro ambiente físico e social. O ubérrimo vale caririense, ao fundo
do sertão, onde o Juazeiro se estabeleceu, representa, tipicamente, um caso de insularidade
das terras habitadas. Oásis tem, como todos os oásis, uma função biológica, que se exprime
numa história de lutas políticas e econômicas contra as zonas envolventes... Ao tempo das
grandes secas, essa animosidade se dilui nos sentimentos cristãos ou se atenua de muito.
Mas não se extingue.
Ora, o que a sedição de 1913 logrou, atingindo o estado em circunstâncias
especialíssimas, foi não só atirar uma zona contra a outra, num choque de velhos e
arraigados preconceitos, mas anarquizar, por muitos anos, o espírito de harmonia soci-
al do Ceará, fazendo lavrar no espírito dos homens de escol o mais acabado ceticismo
pelo regime. Ela se tornou possível porque foi a exploração dos sentimentos duma
multidão inconsciente, encarnados numa figura de lenda como o padre Cícero Romão.
E atingiu conseqüências morais talvez não previstas por seus responsáveis, porquanto
se deu depois de um pronunciamento de liberalismo que havia extinto uma oligarquia
ali dominante.
Compreende-se assim, claramente agora, a afirmação que se podia tomar por
apaixonada ou hiperbólica de Rodolfo Teófilo, nas primeiras páginas do seu livro sobre o
movimento armado que surgiu do Juazeiro.
O conflito ateado por políticos filhos de outros estados e sustentado pelo gover-
no federal de então representa, na história do Ceará, um episódio de conseqüências morais
das mais graves.
uuu
Rememoremos os fatos que a precederam, rapidamente, embora.
O Ceará teve durante vinte anos o governo de uma oligarquia, o da família
Accioly.
Não é aqui o lugar para juízo de seu merecimento. Demos como provado
mesmo que suas culpas não tivessem sido tão grandes como os clamores que contra ela
se levantaram. O fato é que, pouco e pouco, veio a criar-se em todo o estado uma situ-
ação de revolta insopitável que diariamente ganhava terreno e forças e que culminou
na deposição do venerando governador como conseqüência de um movimento popu-
lar. Deposto o velho chefe, entrava o Ceará numa nova fase de vida política, agitada, a
principio, pelos desmandos naturais das circunstâncias, mas, sob muitos aspectos,
auspiciosa.
47
No seu admirável livro que é Terra de sol, Gustavo Barroso documenta, com muitos fatos comuns da vida pastoril cearense,
esse sentimento de fraternidade e honradez.
85
A eleição do governador Marcos Franco Rabelo, feita a seguir, foi expressão
cívica ou demonstração da vontade popular, entrevista como a aurora de uma redenção.
Mas, ou porque Franco Rabelo não fosse hábil político, ou porque estivesse de há muito
fora de sua terra, em breve devia despertar contra si elementos ciosos de domínio.
Transcrevamos, de Rodolfo Teófilo, uma página em que se retrata a situação:
Os Acciolys haviam regressado e alegavam que, pelo pacto feito com Franco Rabelo, na
ocasião do reconhecimento deste, tinham direito à metade dos lugares de eleição e
nomeação, e nessa esperança tinham vindo e estavam.
Desiludidos de se apossarem das posições perdidas, obstinados e audazes, uniram-se
aos “marretas”.
João Brígido, que havia sido o maior fator moral da queda dos Acciolys, que pela imprensa,
no seu jornal Unitário, havia denunciado todos os peculatos do governo Accioly, que havia
atassalhado a vida privada do comendador Antônio Pinto Nogueira Accioly, cobrindo-o de
todos os baldões, abraçou o seu antigo correligionário e compadre; perdoaram-se mútuas
injúrias e voltaram os velhos politiqueiros à antiga camaradagem.
A Assembléia do Estado, que havia reconhecido presidente o coronel Marcos Franco
Rabelo, a mesma Assembléia, convocou-se para lhe cassar o reconhecimento, meses
depois de Franco Rabelo governar...
O partido rabelista, que era quase a totalidade da população da capital, compreenden-
do o perigo que corria o eleito do povo e também a liberdade, a vida dos que o haviam
eleito, decidiu impedir pelas armas a reunião da Assembléia.
48
Contudo, renovada a Assembléia e normalizada a pouco e pouco a situação na
capital, Franco Rabelo começou a governar com mais calma.
49
Teve de tocar, então, num mal social agudo àquele tempo e que não podia es-
quecer: o banditismo do sul do estado, que havia montado quartel-general no Juazeiro.
Certos chefetes do interior, cujo prestígio estava única e exclusivamente no
grupo de capangas que mantinham às suas ordens, aliaram-se aos políticos descontentes
da Capital, numa oposição agora muito significativa. O governo a teria combatido, com
vantagem, se um fato da política nacional não viesse colocá-lo em situação de todo inespe-
rada. Tal foi o da sucessão presidencial à República.
Era de praxe que o candidato à presidência fosse indicado pelo grupo que do-
minava a política nacional, sob a chefia de Pinheiro Machado.
Antes da reunião do PRC para indicação do sucessor ao presidente Hermes da
Fonseca, o governador, de então, em Pernambuco, general Dantas Barreto, protestou contra
aquela praxe que aberrava de todos os preceitos democráticos, lembrando que a indicação
se fizesse por uma convenção nacional.
Ainda está na idéia de todos o que foi a agitada política nacional daqueles dias
sombrios. São Paulo, Minas, Rio, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Ceará coligaram-se para
resistir ao arbítrio de Pinheiro Machado. Lançada, porém, a candidatura Venceslau Brás,
os dois primeiros grandes estados se aquietaram, deixando que as pequenas unidades pa-
gassem a culpa de sua fraqueza...
48
Teófilo, Rodolfo. A sedição do Juazeiro. São Paulo, 1922. p. 13.
49
Eram seus secretários o dr. José Getúlio de Frota Pessoa e Joaquim Costa Sousa. O dr. Frota Pessoa, como secretário do
interior, muito fez pelo ensino público e higiene. Na prefeitura da capital, achava-se o sr. Ildefonso Albano, a quem se deve
a sua remodelação administrativa.
Capítulo 9 – A sedição de 1913 – Causas
86 Juazeiro do Padre Cícero
É fácil imaginar as conseqüências quanto à política cearense daquele tempo.
Ela é assim resumida pelo historiador de que nos socorremos:
Chegando ao Rio, os emissários conferenciaram com o chefe do PRC, ficando assenta-
da a deposição do cel. Franco Rabelo, que, caso não pudesse ser feita pelos marretas de
Fortaleza, começaria por um movimento sedicioso em Juazeiro, promovido pelo pe.
Cícero Romão Batista, e viria sobre a capital do estado. Fizeram parte desse conluio os
senadores e os deputados cearenses em oposição ao governo do estado, os três emissá-
rios e mais o dr. Gustavo Barroso, sendo que este foi o único que se opôs à conflagração
do Ceará, porque amava mais a sua terra do que os proventos que pudesse tirar da
sedição do Juazeiro. Era preciso ser de todo empedernido pela prática de atos maus
para provar o vandalismo dos romeiros do padre Cícero, que desceriam do sertão até a
capital do estado, matando, roubando, incendiando, protegidos pelo presidente da
República, ou, antes, por Pinheiro Machado.
50
Veremos no capítulo seguinte as principais fases da luta que se desencadeou.
50
Teófilo, op. cit., p. 13 e 36.
87
Capítulo 10
A sedição – Início da luta
De uma comédia mal-ensaiada à sanguinolenta tragédia – O governo
extralegal do Juazeiro oficializado pelo telégrafo – Primeira tentativa
do governo legal para sufocar a sedição – O milagre das trincheiras
construídas numa só noite – Falou N. S. das Dores – A retirada
89
Vendo passar o padre, com o pesado bordão com
que costumava andar, seguido de um bando de
fanáticos, disse: “Ali vai um missionário; amanhã
um grande usurário; depois um perigoso revoluci-
onário.” E a profecia do sertanejo, feita quando o
padre Cícero era um santo, realizou-se.
Dadas as circunstâncias a que nos referimos, a luta contra o governo legal do
Ceará necessitava mascarar-se, por algum tempo, para justificar-se depois, de qualquer
forma. O movimento era mais político que militar; pretendia ser, mais do que um golpe
pelas armas, uma farsa bem ensaiada. Assim a imaginaram, pelo menos, os seus
organizadores. Mas o caso tomou situações imprevistas. Não se podia contar, a príncipio,
com a pertinaz resistência que à sedição opôs o governo Franco Rabelo, como não se previu
que a intervenção federal pudesse ser retardada.
Por outro lado, não se calcularam perfeitamente as conseqüências que adviriam
do fato de se excitar a horda dos fanáticos do Juazeiro.
A sedição devia apresentar, pois, feições inesperadas. Do simples caso policial, de
início, havia de degenerar em luta civil e em “guerra santa”... Na descrição que esboçamos, é
esse aspecto que especialmente interessa, ainda como índice da diátese social do Juazeiro.
Ela não se entenderia, porém, sem o quadro geral do movimento, que temos de
assinalar em seus pontos essenciais.
A “guerra santa” era o que menos interessava aos “chefes”. Todavia, alcançado o
objetivo inicial da deposição do governador Franco Rabelo, foi esse o aspecto da luta que avul-
tou. Os vencedores foram, de fato, os fanáticos do padre Cícero. Eles acabaram por incomodar
o próprio interventor federal, e os mesmos exploradores do movimento, firmando, de uma vez
para sempre, o predomínio absurdo do patriarca do Juazeiro sobre toda a política cearense...
51
Desde então, esse arraial se tornou um estado no estado, sem outra lei senão a
do arbítrio de seus chefes, com forças armadas próprias, justiça própria, moral e religião
especialíssimas.
51
Servimo-nos, para a descrição geral dos acontecimentos, além da obra de Rodolfo Teófilo, sobre a sedição, das notas esparsas
de alguns outros livros e jornais, que vão citados, e dos depoimentos pessoais que pudemos colher in loco e em Fortaleza.
Capítulo 10 – A sedição – Início da luta
90 Juazeiro do Padre Cícero
Nessa situação fantástica, ainda o pudemos ver, e é nessa forma que o tenta-
mos descrever.
uuu
As últimas combinações haviam demonstrado a conveniência de só fazer
explodir o movimento sedicioso em data posterior à do encerramento do Congresso
Nacional. Ao caudilhismo, que empolgava os destinos da República, ainda fazia mossa
a ação parlamentar de Rui, Irineu, Pedro Moacir e Maurício de Lacerda, cujas vozes
vibravam veementes sobre a consciência adormecida da quase unanimidade dos repre-
sentantes da Nação.
52
Não obstante, as condições internas da política cearense precipitaram os
acontecimentos.
Tendo fracassado um movimento preparatório de opinião, em Fortaleza, e
havendo sido apreendidos alguns documentos preciosos a respeito dele, o padre Cícero
Romão deu início às hostilidades no dia 9 de dezembro de 1913, depondo as autorida-
des constituídas de sua povoação e desarmando o pequeno contingente da força públi-
ca aí destacado.
Ato contínuo, “deu posse” a novo governador do estado, na curiosa figura do
romeiro Floro Bartolomeu da Costa, de sua inteira confiança e seu futuro “alter ego”. Com-
penetrado das elevadas funções que lhe competiam, o “governador” chamou secretários,
transferiu, por um simples decreto, a sede do governo, de Fortaleza para a povoação de
onde irrompia o movimento, dissolveu o Batalhão de Polícia e a Guarda Cívica do Estado e
adiou o pagamento de impostos para época oportuna...
Simples e prático. Os atos do novo governo nem sequer se publicavam num
jornal: telegrafavam-se... De tudo dava ele conta, por miúdo, às duas casas do Congresso e
ao presidente da República, que agradeciam as mensagens recebidas. Ao presidente da
República telegrafou ainda pedindo que recolhesse o armamento do Batalhão Policial, com
sede na “antiga” capital, e que fizesse policiar Fortaleza por tropas do Exército...
Compreender-se-á como foi fácil organizar telegraficamente o novo governo: a
estação do Telégrafo Nacional tinha ordem de franquia, para todas as estações do Brasil,
aos despachos assinados pelo caudilho que assim surgia...
A pressa em tomar armas, naquele recanto de sertão, sem que outras medidas
complementares já pudessem ter sido ajustadas, tirou à luta, no entanto, o caráter fulmi-
nante que dela esperavam os seus planejadores. Como se o pano de cena tivesse subido
com precipitação, a comparsaria mal teve tempo de tomar os lugares; alguns fugiram de
cena ou se meteram, receosos, atrás dos bastidores. Pinheiro Machado, no conforto do
Morro da Graça, mal conteve um gesto irritado, pelo açodamento com que se iniciara, em
público, aquela peça, sem ensaio geral...
O prólogo de acabrunhante comédia, sem igual, talvez, nas crônicas da Repú-
blica, tinha que se ajustar, com o sacrifício de muitas vidas, a uma tragédia improvisada.
uuu
Assim foi, de fato.
Quarenta e oito horas depois de conhecidas as notícias pelo governo legal do
estado, embarcava, em trem especial, para Iguatu, que era, nesse tempo, o ponto terminal
da via férrea Baturité, a 400 quilômetros da capital e a 180 do Juazeiro, o Batalhão Militar
do Estado. Levava todo o seu efetivo, de quinhentas praças, e seguia sob o comando do
52
Anais do Congresso Nacional referentes a 1913.
91
coronel Alípio de Lima Barros. Não ficava em Fortaleza um só de seus soldados, o que tanto
basta para demonstrar a confiança que o governo mantinha no povo.
53
De Iguatu, rumou o batalhão para a cidade do Crato, a 15 quilômetros de Juazeiro,
na qual entrou às dez horas da manhã do dia 18. No dia 20, ao amanhecer, sem maior
descanso, seguia para a povoação sublevada. Iam, oficiais e praças, convencidos de que o
núcleo de fanáticos se renderia aos primeiros tiros...
Mas, já em caminho, os “jagunços” perturbaram a marcha, com tiroteios dispersos,
em vários pontos. Numa escala bem menor, por certo, repetiam-se os fatos das primeiras
tentativas contra Canudos. Em grupos esparsos, confundidos nas moitas, dissimulados nas
tocaias, os fanáticos atiravam, seguros, sem ser vistos nem poder ser atingidos. A tropa, afeita
ao meio, dissimulava-se também, respondia àquelas provocações, quase sem conseqüências.
Zombando dos tiros frouxos dos rifles e “pica-paus”, avançava sempre... Animava-a a idéia
de almoçar na praça da matriz do Juazeiro...
Ao enfrentar as primeiras habitações do lugarejo, uma decepção lhe atalhou o
passo, no entanto.
A Meca se achava fortificada! Em toda face de possível ataque, os caminhos
haviam sido interceptados por valados profundos e trincheiras bem guarnecidas, que lhe
opunham defesa inexpugnável...
54
Essa obra de fortificação havia sido construída numa só noite, e devia, na se-
mana seguinte, circunscrever todo o povoado num círculo impenetrável.
Só quem tenha visto o Juazeiro em dias de exaltação fanática poderá compre-
ender como em prazo tão curto, sem aparelhamento especial, se pudesse ter realizado tal
maravilha.
Seriam homens, mulheres, velhos e moços, crianças ainda, todos animados de
uma só idéia, galvanizados todos numa só sugestão de defesa do Padrinho, que se lança-
vam desesperados, como um só braço, ao exaustivo trabalho... Planejara-o, rápido, um
chefe. Dirigiam-no, depois, três ou quatro beatos de maior prestígio. Os alviões se embebe-
ram na terra solta, fácil a princípio, ao mesmo passo em que as foices rebrilhantes desbas-
tavam, em ritmo apressado, o matagal de derredor, abrindo aceiro suficiente à compreen-
são da empreitada... Logo chegavam as enxadas, vibrando em cadência, sob músculos de
aço. E logo pás, e logo alavancas, e logo facões, varapaus, utensílios domésticos, machados,
latas, baldes, panelas, tábuas soltas... E aqueles sapadores improvisados se estenderam por
muitos quilômetros...
Prevenidos de que o contingente do governo não era pequeno, redobram o ar-
dor do trabalho. Nado o sol, já as primeiras braças do valado afundam, em vários pontos, os
destemerosos caboclos, metidos na terra cavada e fofa, até a cintura, sujos de poeira por
todo o corpo, semelhando estranhos animais que, por encanto, aflorassem do solo, à voz
53
“No dia em que seguiu o Batalhão Militar, a sociedade ‘Deus e Mar’, composta de pescadores e trabalhadores da praia,
mandou ao palácio do governo o seu presidente dizer a Franco Rabelo o modo de sentir da classe. Chegando o enviado à
presença do presidente do Estado, ajoelhou-se, tomou-lhe a mão beijando-a e disse: ‘Duzentos homens do mar, meus
companheiros, estão ao lado de V. Ex
a
na defesa de quem juram morrer.’ Este juramento, todo espontâneo e solene, foi
cumprido com uma lealdade de assombrar. O governo, desse dia em diante, estava mais bem guardado pelo povo do que
por sua milícia. O Tiro 38, sob a presidência do farmacêutico João da Rocha Moreira, um dos chefes do movimento de 24
de janeiro, foi um dos grandes fatores da guarda do palácio. Os operários da Estrada de Ferro Baturité, tendo à frente o sr.
João Gomes, iam à noite, por turmas, guardar o seu querido presidente, como o chamavam. Os artistas, os carroceiros, os
trabalhadores da rua davam também contingentes para aquela guarda nobre. Moços das melhores famílias, empregados do
comércio, negociantes, à noite, lá iam, de carabina ao ombro, fazer sentinela nas cercanias da casa do governo. Era edificante
o civismo daquela gente. Patrulhas volantes, de populares, rondavam depois de dez horas da noite a cidade e os seus
subúrbios. Nunca uma capital foi tão bem policiada” (Teófilo, Rodolfo. A sedição do Juazeiro. São Paulo, 1922. p. 52).
54
“O valado, a trincheira inexpugnável do Juazeiro, tinha de altura dez e de largura doze palmos. Toda a terra foi carregada
para a parte de dentro, a alguns metros de distância, formando uma barreira de seis palmos de altura, bombeada a espaços
regulares, pronta para receber o ataque. São três léguas de valado. E cinqüenta mil pessoas, homens, mulheres e meninos,
o fizeram em seis dias...” (Oliveira, Xavier de. Beatos e cangaceiros. Rio de Janeiro, 1920. p. 56).
Capítulo 10 – A sedição – Início da luta
92 Juazeiro do Padre Cícero
mágica do Padrinho... E os primeiros gritos de entusiasmo se levantam, então, e ressoam
em vivas, repetidos em cada peito...
O trabalho avança. Aos que escasseia uma enxada, um ferro em ponta, um vara-
pau, um facão, as próprias unhas os auxiliam naquele labor delirante. Passa-se a manhã, e
ninguém o abandona. O sol se eleva e diminui as sombras, e ninguém deixa o seu posto.
Vergasta a pino, com chicotadas de fogo, aquela multidão alucinada, e ninguém esmorece...
E o trabalho avança. Horas depois, o dia se apaga, sem mais crepúsculo que uma vermelhi-
dão que tinge de púrpura a Igreja do Horto, com os seus panos de muros rotos e nus, lá ao
cimo da serra, que defende o arraial da outra banda. E ninguém desfalece ainda...
Uma mancheia de farinha, mastigada às pressas, e um gole d’água, sorvida
num átimo, reconfortam àqueles titãs. E o trabalho avança. Com as sombras da tarde, redo-
bra de vigor. As mulheres e as crianças, entoando o cântico “no céu, no céu, com Minha
Mãe estarei”, carregam a terra em latas, baldes, panelas e sacos, e modelam, alhures, sob as
mãos magras, barbacãs formidáveis... Sobre elas, já os “beatos” passeiam, brandindo o
rifle, pronto para a descarga aos esperados assaltantes, ou agitando, em bênçãos repetidas,
a grande cruz de madeira que os distingue sempre, na luta como nos dias de serenidade...
E o trabalho avança. Aqui, é uma camada de argila, mole e pegajenta, que difi-
culta agora o corte previsto; ali, um bloco de granito que desafeiçoa os alviões, fazendo-os
retinir... Mas ninguém desanima. A noite desce e os vai encontrar naquela mesma ativida-
de febril. Prossegue a empreitada formidável ao brilho das estrelas, prolongando-se horas a
fio, sem descanso, até a madrugada...
De modo que, às primeiras horas do dia seguinte, quando os assaltantes come-
çavam a varrer as cercanias com os tiros secos de mauser, podiam responder-lhes os faná-
ticos com as suas armas primitivas, numa superioridade de quem se defende de dentro da
própria casa. Aquela cinta impenetrável tornava impossível o assalto fulminante.
E o primeiro embate armado, por mais impetuoso que fosse, teria que lhe vir
morrer aos pés, como uma vaga de espuma, aplacada e desfeita...
uuu
Confirma-o o movimento das tropas legais.
Depois de quase esgotadas as munições, sem proveito algum, às cinco horas da
tarde do dia 20, o comandante Alípio reunia o seu estado-maior e discutia as medidas a
serem tomadas.
Decidiu-se pela retirada imediata, para o Crato, de onde poderiam pedir novos
recursos. E a marcha teve de fazer-se, cautelosa, por pelotões, apenas as trevas da noite a
tornassem menos perigosa...
Podia dizer-se, desde esse momento, que estava vitoriosa a “guerra santa”.
Tinha-se movido para a sua causa uma dessas forças imponderáveis que, em
todas as lutas sociais, armadas ou não, decidem da sorte dos combatentes. Dera-se-lhe,
com a imprevidência no preparo do ataque, o maior dos contingentes: uma idéia, uma
força invencível. Era certo que Deus estava com o Padrinho, Nossa Senhora das Dores
velava por seu povo... E a circunstância, sobre todas sugestiva, de que as mesmas balas dos
soldados do “Cão” nunca lograriam ferir ao povo eleito, tornada verossímil pela insignifi-
cância dos ferimentos de que foram vítimas os fanáticos nesse primeiro ataque, elevava
aqueles espíritos rudes à possibilidade do maior heroísmo, das angústias mais cruas, como
aos menos previsíveis excessos na fúria do combate.
A mole despenhara-se. Ninguém mais lograria contê-la...
Floro Bartolomeu, dos principais chefes intelectuais do movimento, compre-
endeu-o rapidamente. Se, nas primeiras horas do assalto, apesar de sua nunca desmentida
coragem, já se apressava em preparar um animal para a fuga, que parecia inevitável, agora,
93
compenetrado da vitória fácil àquela gente, irmanava-se com ela, bebia e rezava com os
fanáticos, sob as mesmas vestes rústicas, o seu chapéu de couro quebrado na testa, o mes-
mo rifle enfeitado de fitas a tiracolo...
uuu
Não é difícil imaginar-se também o que do outro lado se seguia.
Na milícia estadual, composta quase só de sertanejos ignorantes, incapazes de
repelir as influências da superstição ambiente, contando mesmo muitos indivíduos fanáti-
cos pelo padre, seus “afilhados”, os ânimos se haviam abatido. Favoreciam o desânimo as
notícias, dia a dia mais impressionantes, de novas remessas chegadas ao Juazeiro, em ho-
mens, armas, munições e dinheiro. Para ali acorriam, de fato, de todos os sertões limítrofes,
grupos armados e cangaceiros. Comboios intermináveis de rifles e máuseres, chegavam
cada noite, via Paraíba, ou pelo Recife... Lá estavam homens que haviam guerreado em
Canudos, na defesa de Antônio Conselheiro,
55
e, assim, duplamente consagrados; lá estari-
am, ao que se dizia, oficiais valorosos do próprio Exército Nacional, senhores da arte da
guerra... Sob a direção destes últimos, as trincheiras haviam sido melhoradas, os fossos
aprofundados, eriçados de pontas de madeira, agudas como punhais...
E, sobre todas as novas, feria especialmente o espírito do sertanejo o boato de
que N. Sra. das Dores se havia declarado em pessoa ao padre Cícero, confirmando a pro-
messa de que as balas dos soldados do governo, mesmo que penetrassem no corpo de seus
homens, mal algum lhes poderiam fazer. Os próprios mortos ressuscitariam, depois de três
dias, mais fortes do que nunca, junto ao Padrinho, na sua casa do Juazeiro, ou ao centro da
misteriosa Igreja do Horto...
Esse estado de ânimo, agravado dia a dia, embaraçava quaisquer providências
do governo, para um novo e profícuo ataque. Mas não era só. Faltavam munições às forças
do Crato, e a estação chuvosa, agora intensa, dificultava a movimentação de tropas ou
quaisquer operações que se tentassem.
Apesar de tudo, o governo de Franco Rabelo agia, pedindo munições ao general
Torres Homem, da Inspetoria Militar do Recife, e tentando outras providências de organi-
zação, para maior investida contra o reduto dos fanáticos.
Respondendo ao pedido que lhe fora feito, o general Torres Homem mandou
que se entregassem ao governo cearense cem mil cartuchos máuser, e manifestou o desejo
da vitória das armas legais. Esse oficial não quis acreditar a princípio que o governo federal
estivesse favorecendo, francamente, a sedição. Impressionado, porém, por alguns atos do
ministro da Guerra, mandou um seu emissário entender-se com o padre Cícero, a fim de
que dele colhesse, em primeira mão, informações precisas e satisfatórias.
Incumbido dessa delicada tarefa, o tenente José Armando de Oliveira conse-
guiu penetrar no Juazeiro, depois de uma licença especial, e aí foi recebido e informado da
real situação. O padre afirmou que agia por ordem do governo federal, e que bastaria um
gesto de reprovação das autoridades da República para que depusesse as armas,
incontinenti.
56
Antes disso, lutaria até o fim, certo de que havia de vencer com as suas
próprias forças, ou com as forças do Exército...
Nisso se escoavam os últimos dias do ano.
Já não seria para 1913 o segundo ataque aos sediciosos.
55
Entre esses, cita-se o destemido Pedro dos Anjos, vulgo “Pedro Pilé”, que esteve em Canudos até as vésperas do último
reduto do “Conselheiro”. Seria esse temível facínora descendente de João Pilé, o fanático “Sebastianista” de Pedra Bonita,
em Pernambuco? Não o pudemos apurar.
56
“O padre disse que agia por ordem do governo federal, que bastava um gesto de reprovação deste para que depusesse as
armas, e que esta declaração faria até por escrito, caso quisesse o enviado do general Torres Homem” (Teófilo, Rodolfo.
A sedição do Juazeiro. São Paulo, 1922. p. 64).
Capítulo 10 – A sedição – Início da luta
95
Capítulo 11
A sedição – O frustrado
assédio à Meca
A segunda expedição – Uma caricatura da campanha de Canudos – Plano
que pecava pela sua mesma simplicidade – É mais difícil sitiar que ata-
car... – O famoso canhão da luta – Inexplicável retirada – “Maneiro pau,
maneiro pau... Meu Padrim Ciço é quem ganha!...” – O primeiro troféu da
“guerra santa”
97
A primeira investida contra o Juazeiro foi um
desastre; a segunda, uma miséria.
Rodolfo Teófilo
Novas providências, pelo governo do Estado, abriram à luta a segunda fase,
nitidamente marcada.
O comandante das tropas que descansavam no Crato, já havia um mês, solicita-
ra do governo, além de novos recursos, a regularidade de fornecimento de dinheiro, pois
que os comerciantes da cidade se negavam a quaisquer fornecimentos a crédito, certos da
vitória dos sediciosos e de conseqüentes prejuízos.
O governador enviara, para agir in loco, uma pessoa de sua inteira confiança, o
seu próprio secretário da Justiça, dr. Martins de Freitas. Acompanhavam-no, além de ou-
tras pessoas, algumas das figuras de maior relevo na campanha contra a situação anterior,
e, por isso mesmo, dos mais dedicados apologistas da situação.
Tivera-se a idéia de mandar fundir, em Fortaleza, um pequeno canhão, que
agora se levava para atirar bombas de dinamite ao acampamento inimigo. Os contratempos
determinados pela condução dessa peça primitiva, do ponto terminal da estrada de ferro à
zona da luta, lembram, por vezes, o do transporte do canhão de costa que se juntou à
expedição de Artur Oscar, na campanha de Canudos...
57
E não só nesse como noutros aspectos, a luta do Juazeiro semelha, no preparo
militar da expedição, uma caricatura grotesca da luta do arraial do “Conselheiro”.
Chegada ao Crato a missão organizadora da nova fase da campanha, suspeita-
ram seus membros de que o cel. Alípio de Lima Barros, comandante das forças estaduais,
contemporizava qualquer movimento para favorecer aos sediciosos. Urgia, pois, removê-
lo. E foi o que se fez. Chamado à capital, substituiu-o no comando o capitão Ladislau
Lourenço de Sousa, promovido a major no mesmo ato do governo.
Com isso, talvez tenha piorado a situação. Fácil será verificar quão desacertada
foi a nova designação de comando.
57
Cunha, Euclides da. Os sertões. 4. ed. corr. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1911. p. 377.
“O transporte da peça de Iguatu ao Crato, por ínvios caminhos, no rigor de copioso inverno, foi um ato heróico... E que
caminhos! Trechos de estrada havia intransitáveis, alagados, um tremedal em que o veículo que transportava a peça se
atolava até o eixo”... (Teófilo, Rodolfo. A sedição do Juazeiro. São Paulo, 1922. p. 65).
Capítulo 11 – A sedição – O frustrado assédio à Meca
98 Juazeiro do Padre Cícero
uuu
Cumprindo ordens, o comandante Ladislau levantou acampamento do Crato,
a 15 de janeiro de 1914, para um segundo ataque ao arraial dos fanáticos.
Levava um contingente de 600 homens, entre soldados da polícia, da guarda
civil e populares. Desde a saída, apresentava a tropa mau aspecto: sem unidade de ins-
trução, sem vestes e armamento uniformes, não tinha a feição de força militar organiza-
da. E as condições de disciplina não eram também das melhores. Para demonstrá-lo,
basta assinalar que, no comboio de víveres, no coice da expedição, avultavam as cargas
de aguardente...
Como preliminar a um futuro plano de ataque, imaginava-se fechar as estradas
do povoado. Já se sabia que um assédio completo exigiria forças muito mais numerosas,
alguns mil homens, pelo menos. Mas seria possível dividir-se o contingente em vários
grupos, para fechar com eles as saídas. Piquetes se destacaram, respectivamente, para as
estradas de Malvas e Buriti. O grosso das tropas, em que figurava o famoso canhão, mar-
chou para Santa Rosa, a fim de ocupar vários atalhos, entre S. José e o caminho de Malvas.
A ocupação desses pontos foi feita sem grande resistência. Houve de parte das
forças legais uma baixa, apenas. E ficavam assim interceptadas as comunicações do peri-
goso reduto, especialmente as que levavam às estradas da Paraíba, por onde o arraial se
vinha abastecendo de víveres e armamento.
Nada mais havia a esperar, mantido o cerco, senão a rendição dos fanáticos,
pela fome.
uuu
O plano pecava, porém, pela simplicidade.
A tática de movimento, em guerrilhas, surpresas e triunfos inesperados, cabe
melhor às tropas do gênero daquelas que ali se empregavam, do que um inteligente projeto
de resistência. O que ainda as poderia impelir à luta, e mantê-las coesas, seria justamente
a sanha do combate, em que se agitassem livremente as tendências selvagens, o impulso de
trucidar e saquear, sem peias... Não nos iludamos, neste particular, extremando demais a
psicologia dos dois campos de combatentes. O governo legal não contava com tropas mili-
tares dignas desse nome.
Cansado de esperar qualquer reação por parte dos fanáticos, colhidos em seu
antro, não compreendendo o alcance das medidas que lhe haviam sido determinadas, ou
tendo já um plano preconcebido de defecção, o major Ladislau, depois de nove dias de
espera, resolveu dar um ataque às fortificações dos jagunços. Não lhe valeram as objeções
dos oficiais que tinha sob suas ordens. O comandante a nada quis aceder e dispôs as tropas
para o assalto.
A tentativa se fez a 23.
O plano era o de concentrar as forças no lugar denominado Macacos, na Estra-
da da Barbalha, e daí avançar, por essa estrada, até onde fosse possível. Nenhuma combi-
nação de movimentos, nenhuma outra investida simulada, nenhuma preocupação quanto
ao consumo dos cartuchos e de homens. Era a aventura!...
Às três horas da tarde, a primeira parte havia sido rigorosamente cumprida,
sem nenhum obstáculo. Uma coluna legalista avançou, então, resolutamente, estacionan-
do a quinhentos metros das primeiras casas. Os jagunços permaneciam mudos, nos seus
fortins. De fora, não se percebia qualquer ruído ou movimento. Dir-se-ia mesmo que a
povoação fora abandonada...
Novos contingentes vieram juntar-se aos primeiros, num total de cem ho-
mens. Animados, iniciaram esses pelotões de vanguarda cerrada fuzilaria, a esmo, sobre
99
o casario próximo e trincheiras visíveis. Eram cinco horas da tarde, e os jagunços conti-
nuavam mudos. Ordenou o comandante que o tiroteio redobrasse de intensidade e que
se ensaiasse o canhão.
Era enorme a curiosidade por observar o funcionamento daquele engenho de
guerra, e a ingenuidade dos atacantes ia a ponto de imaginar que alguns dos seus tiraços
pudessem pôr abaixo as torres da matriz do arraial...
Atulhado de pólvora e munido de um estopim suficiente, o pesado obus estou-
rou. Até ai, só conheciam os combatentes os tiros secos das máuseres, o estralejar das
winchesters e o ronco comum das armas primitivas dos jagunços. De sorte que aquele
estampido formidável, prolongado em ecos pelas devesas de derredor, misterioso e profun-
do, devia apavorar antes pela novidade que pelo trabalho de destruição que pudesse acar-
retar... O bocazio se repetiu, algumas vezes, medonho como o trovão, mas inócuo, por
entre o alarido festivo dos soldados que rodeavam a peça.
Ainda assim os jagunços não responderam. No arraial, tudo era silêncio e calma.
Nenhum ruído, nenhum movimento...
Já o sol se escondia, quando os últimos tiros dos assaltantes se fizeram ouvir.
Logo cessaram também. E a noite transcorreu em inteira calma, na Meca sertaneja, como
nos acampamentos que a sitiavam.
Na manhã seguinte, porém, eram os assaltantes que despertavam, sobressalta-
dos, debaixo de terrível fuzilaria. Durante a noite, os fanáticos haviam cavado uma trin-
cheira mais próxima, e atacavam de flanco a posição do obus. O comandante se via forçado
a fazer avançar toda uma companhia para resguardar a peça, o que perturbava seu primeiro
plano, concebido para outras condições de luta.
Deviam começar a sentir, daí por diante, a força do engenho, a astúcia e a cora-
gem dos fanáticos. Ora era um grupo que se aproximava, fardado em cáqui, dando vivas a
Franco Rabelo, até guardar posição em que pudesse fazer funcionar, com vantagem, suas
armas de pequeno alcance; ora oito ou dez alucinados transpunham as trincheiras e vi-
nham atirar, quase à queima-roupa, fugindo depois, como espectros, sumindo-se em locas,
no chão, ou ocultando-se, como fantasmas, no bamburral inextricável; ora era um morteiro
que soava próximo, não se sabia de onde, e que arremedava o canhão legalista, pelo estam-
pido, depois de que choviam sobre o acampamento próximo mancheias de pregos, seixos,
pedações de chifres, contas de rosários, lascas de cera benta, atirados à mão, como sortilé-
gios infalíveis para afastar aquelas tropas do “Cão”...
58
Impressionados, os soldados respondiam a esmo, sem resultado algum, disper-
sando a munição escassa. Nalguns pontos, as moitas eram cortadas a bala, rente ao solo.
Tudo, porém, sem maior resultado...
À tarde, apesar do pequeno número de baixas e sem que a totalidade dos seus
homens tivesse entrado em ação, o comandante Ladislau ordenou a retirada para o lugarejo
Macacos. Acampadas as tropas, nesse ponto, declarou então que estava resolvido a retirar-
se para a cidade próxima de Barbalha. Em vão, objetaram os seus oficiais que o seu dever
era o de prosseguir o cerco; e, no caso de retirada, que o ponto de concentração devia ser a
cidade do Crato, de comunicações mais fáceis com a capital. Nunca a de Barbalha.
Mas o comandante não os atendeu, e ordenou a marcha para esta última cidade.
59
Antes disso, pôs em liberdade todos os jagunços que aprisionara, conservando unicamente
detido o cel. Antônio Pinto de Sá Barreto, que fazia parte do governo extralegal do dr. Floro
Bartolomeu. Seria o seu refém.
58
“Soldados do Cão”, “gente do Anticristo”, “Macacos do Rabelo” – tais eram os nomes que os fanáticos davam às tropas do
governo.
59
“O comandante alcoolizado não os atendeu e seguiu para Barbalha, ponto este escolhido de preferência ao Crato, onde
estiveram aquartelados e de onde viera. Por que essa preferência, até hoje não foi possível descobrir” (Teófilo, Rodolfo.
A sedição do Juazeiro. São Paulo, 1922. p. 84).
Capítulo 11 – A sedição – O frustrado assédio à Meca
100 Juazeiro do Padre Cícero
Na cidade de Barbalha, o major Ladislau não atendeu a ponderação alguma dos
homens de responsabilidade do lugar. Debalde lhe mostraram que ali devia reorganizar as
forças, para o que podia contar com mil populares dispostos a todos os sacrifícios; que a
cidade era inexpugnável, pela sua topografia, e que, entrincheirada, só podia ser tomada
por artilharia; que tinha víveres para mais de um ano de cerco e que as comunicações
diretas com o Recife seriam facilmente mantidas. Nada o demoveu da intenção de dissol-
ver as tropas e de fugir à luta...
O autor do curioso livro Beatos e cangaceiros incidentemente descreve algu-
mas das cenas aí verificadas pela desorganização das tropas legais. Talvez as tintas estejam
um pouco carregadas, mas, no conjunto, a narração ressuma verdade.
Chegado em Barbalha, com o seu refém, mandou tocar a reunir, e dos mil homens que
comandava ainda conseguiu, durante alguns instantes, apenas, por os olhos em cerca
de quinhentos.
Desses escolheu trinta dos de sua confiança, e, com eles, constituiu o seu estado-
maior.
A seguir, trepado numa calçada, tendo ao seu lado o deputado Pinto, falou à tropa nos
seguintes termos:
Camaradas, é triste confessar, mas o padre Cícero é quem ganha.
Os soldados mais espertos, mais sabidos, foram logo dando costas a ele, e vendo o
lugar por onde deviam correr. O comandante, solene, imperturbável, continuou:
É o caso de dizer: Deus é grande, o padre Cícero é maior, mas o mato ainda é maior
que os dois reunidos...
Nesse momento já eram pelo chão não menos de trezentos fardamentos completos dos
soldados fugitivos...O comandante insistiu calmo:
Vocês já não têm mais comandante, pois que agora eu só comando aqui ao meu
amigo Antônio Pinto – disse, batendo, amável, no ombro do deputado.
E prosseguiu:
Cada um cuide de si e ganhe a capoeira. Mas vejam como correm na macambira:
pisar bem no olho da bicha, senão ficam com as pernas lanhadas pelos espinhos, e,
sem poderem correr, os romeiros os pegam e os levam para o Juazeiro...
Afora o seu estado-maior e o deputado Antônio Pinto, nem mais um soldado ouviu as
últimas palavras da arenga do impagável comandante. Todos haviam já ganhado a ca-
poeira...
Este, porém, tendo como refém o vice-presidente da Assembléia do Juazeiro, sen-
tiu-se garantido, e, com o seu estado-maior, deixou-se ficar na cidade, ainda algum
tempo, bebendo cachaça nas bodegas, até chegar a ponto de, na sua retirada estra-
tégica, à frente dos seus trinta soldados de confiança, e com o deputado à sua fren-
te, cantar em voz alta, pelas ruas de Barbalha, a toada que ali ficou cognominada
“da derrota”:
Maneiro pau, maneiro pau,
Meu padrim Cirço é quem ganha...
E os trinta soldados do seu estado-maior, como ele, todos embriagados, respondiam em
coro, dançando à “baiana”, e num som brejeiro, e grave, e prolongado:
Meu Padrim Cirço é quem ganha...”
E o comandante insistia:
Maneiro pau, maneiro pau...
E virando o rosto em sentido a Fortaleza, batia com o bordo da mão esquerda na curva
do braço direito, e concluía:
Bananas pro Rabelo!
E os soldados, também virados para Fortaleza, e fazendo o mesmo gesto, arrematavam,
numa suspensão grave:
Bananas pro Rabe...lo!
101
A cada intervalo da cantiga guerreira, o comandante dizia ao seu refém:
Antônio Pinto, tu és a nossa salvação e, ao mesmo tempo, o nosso único Cristo. Ao
primeiro tiro dos romeiros, és um homem morto. Eu mesmo me encarrego de te
sangrar na goela.
E lá se ia o cortejo:
Maneiro pau, maneiro pau,
Meu padrim Cirço é quem ganha...
O major Ladislau e algumas dezenas de seus soldados subiram a Serra do
Araripe, de onde desceram demandando Santana do Cariri. Dai, tomaram o rumo de Iguatu.
De toda a custosa expedição, ficava na zona da luta apenas o famoso canhão.
Deixaram-no abandonado, em frente à cadeia de Barbalha, onde o iriam bus-
car, dois dias mais tarde, os fanáticos do padre Cícero.
Aquela peça, sobre que repousaram tantas esperanças, seria o primeiro troféu
da “guerra santa”...
Capítulo 11 – A sedição – O frustrado assédio à Meca
103
Capítulo 12
A sedição – A marcha
sobre Fortaleza
Da “guerra santa” à luta política com escala pelo “cangaço” – Saques e
depredações – Marchando pelos sertões em flor – Tentativa do governo
legal para deter a marcha dos sediciosos – Sacrifício inútil de bravo
militar – O cerco de Fortaleza – Estado de sítio e intervenção – Respon-
sabilidades do governo da República
105
A malta de criminosos não trazia bagagem, nem trem
de espécie alguma. Dormia no chão, ao relento, e se
alimentava do que ia roubando pelas estradas. Em
caminho, praticava toda a sorte de depredações,
abrindo cadeias e soltando criminosos, que a seu
bando se incorporavam para, juntos, “pacificarem o
Ceará”... Era a este bando de ladrões, de malfeitores,
quase na sua totalidade de outros estados, especial-
mente da Paraíba, que o governo chamava “revolucio-
nários” e à sedição – movimento político.
Rodolfo Teófilo
Com a estranha retirada do comandante Ladislau, e conseqüente desorganiza-
ção das forças legais, ficava todo o sertão do Ceará à discrição dos sediciosos. A luta devia,
então, apresentar novos aspectos. Os ódios daninhos e ambições furiosas, até ali circuns-
critos à Meca sertaneja, deviam romper os diques frouxos, a fim de alastrar-se, sem remé-
dio, por todo o estado.
Vimos, páginas atrás, como se constituíam as forças do Juazeiro. Não possuíam
a animá-las nenhum objetivo consciente, nenhuma idéia de liberdade, nenhuma aspiração
política. Eram, sim, “essa reserva enorme de instintos agressivos, que se oculta, minaz, no
fundo dos carrascais calcinados e bravios”, mas não se levantavam “como ameaça de opo-
sição a uma oligarquia dominante”.
60
O governo legal era exatamente o sucessor de uma oligarquia.
Antes do caudilho, mal conhecido ainda, galvanizava aquela horda truculenta
um taumaturgo. Lutava-se, antes de tudo, para defender o “Padrinho”. Era natural que se
lutasse, depois, para vingá-lo. Mas, ainda e sempre, o “Padrinho”, mais profeta que Messias,
mais sacerdote que capitão. Os sediciosos não desfraldavam uma bandeira; seguiam uma
“verônica”. Não se agrupavam ao redor de uma espada; protegiam uma sotaina; e, com fazê-
lo, procuravam, antes de tudo, a salvação da própria alma.
O núcleo original de combatentes constituía-se de fanáticos. Rodeavam-nos, mais
intrépidos e ousados, os cangaceiros dos vastos sertões limítrofes. Uma pequena parcela,
60
Oliveira Viana, Francisco José. Populações meridionais do Brasil. São Paulo, 1920. p. 335.
Capítulo 12 – A sedição – A marcha sobre Fortaleza
106 Juazeiro do Padre Cícero
despertada e atraída depois, figurava a reivindicação política. E os chefes dessa pretensa
reivindicação nada mais faziam que explorar aquele fundo movediço e perigoso de supers-
tição que empolgara o espírito de combatividade do caboclo...
uuu
Fosse como fosse, na guerra como na guerra.
Os sediciosos tinham que demandar Fortaleza, uns para a vindita, outros para o
saque e a pilhagem. Os ataques ao Crato e a Barbalha demonstraram-no claramente. Essas
cidades nem sequer estavam na rota a ser trilhada: ficavam aquém do Juazeiro. Mas eram
presas fáceis e magníficas.
O Crato vinha sendo a capital econômica do Cariri, e o seu comércio, muito
desenvolvido, mantinha armazéns consideráveis.
61
O ataque a essa cidade deu-se a 24 de janeiro de 1914, havendo da parte de
sessenta praças de polícia, ali estacionados, e de um grupo de populares heróica resistên-
cia. Mas, depois de vinte horas de fogo, a cidade rendeu-se por falta de munição.
E o saque começou. Não se contentavam em atacar, quebrar, depredar, carregar.
Incendiavam. Mesmo os móveis, ainda os utensílios domésticos eram inutilizados, numa
fúria que palavras não descrevem. De tudo quanto pudessem encontrar nas residências
dos adversários, só uma coisa escapava: as imagens dos santos e os quadros de parede. Não
podendo distinguir ao certo, entre gravuras de santos e oleografias vulgares, ajoelhavam-se
também diante destas, e rezavam contritos... Retratos grandes e oleografias de santos eram
enfeitados com flores e fitas. Deixavam assim os fanáticos um traço expressivo da mentali-
dade que os dominava.
Foi completo também o saque a Barbalha, dois dias depois. À notícia das depreda-
ções do Crato, a população abandonou a cidade. Os bandoleiros entraram pelas ruas desertas,
sob o comando do cangaceiro Canuto Reis, logo começando o arrombamento das casas para o
saque. Quando o trabalho se iniciava, em meio de feroz entusiasmo, um único homem, fraco e
desarmado, dirige-se àquela multidão alucinada e a afronta, impávido. Era o vigário da locali-
dade, que vinha rogar, por Deus, que não roubassem aquilo de que não necessitassem para a
continuação da luta... Apesar da sanha de que se achavam possuídos, a atitude inesperada do
humilde sacerdote comovera à maioria. O saque foi suspenso. Mas suspenso apenas por algu-
mas horas. Continuaria depois sob as ordens diretas de Floro Bartolomeu...
62
A notícia dessas pilhagens francas atraiu todos os salteadores dos sertões.
Seria natural.
E assim, engrossadas as fileiras, começou a horda sinistra a mover-se em dire-
ção a Fortaleza...
uuu
A estação era propícia a uma expedição desse gênero.
Tinha entrado o mês de fevereiro, e o tempo corria magnífico. Depois de chu-
vas copiosas, nas serras como nos sertões, a natureza resplandecia em festa.
61
“O comércio do Crato era, depois do de Fortaleza, o mais forte do estado. A casa do sr. coronel José F. Alves Teixeira, por
exemplo, negociava com centenas de contos de réis. Os jagunços não se limitaram ao roubo: destruíram os móveis que
encontraram. O saque da casa comercial de Teixeira e a destruição dos móveis de sua residência foram presenciados,
afirmaram-me, por seu parente e inimigo político, coronel Antônio Luís Alves Pequeno. Além da casa Teixeira, havia
muitos outros depósitos de mercadorias. A praça do Crato abastecia-se no Recife. As transações comerciais em Fortaleza
eram poucas. Os comerciantes mais importantes eram rabelistas; o saque devia ser de preferência em suas casas. Não se
avalia o que praticou a borda de vândalos faminta, por seus maus instintos, sem freio às suas paixões, entregues às suas
loucuras, sem comando, em uma cidade rica, porém abandonada. A depredação foi completa. Saquearam os haveres
daquela gente laboriosa e honesta e destruíram o que não podiam conduzir! Os comboios das mercadorias roubadas
seguiam para o Juazeiro, quartel-general do banditismo” (Teófilo, Rodolfo. A sedição do Juazeiro. São Paulo, 1922. p. 90).
62
Oliveira Viana, Francisco José. Populações meridionais do Brasil. São Paulo, 1920. p. 93.
107
Os habitantes das terras do sul não podem imaginar perfeitamente o que seja essa
transmutação miraculosa da seca para o “inverno”. Depois de oito dias de chuva, já os galhos
tristes e ressequidos começam a enfeitar-se de folhinhas delicadas, tenras e seivosas, pequeninas
e brilhantes, de um verde-claro e diáfano, sobre que a vista passeia com delícia. Enfartam-se
depois todos os gomos de cada planta; intumescem, rebrilham à luz, como se quisessem arre-
bentar; e desatam, enfim, em brotos viridentes, em ramos já enfeitados de minúsculos botões,
nas curvas gráceis dos topes das moitas e nos braços amorosos das trepadeiras...
Dentro de pouco, é tudo verde. Verde, no chão úmido ainda, que se recobre de
alfombra tenuíssima; no seio das moitas buliçosas, na caatinga que dissimula os gravetos e
espinhos; nos vales que esplendem em quadros que se diriam fantásticos de vida, à luz
maravilhosa de um sol quente e bom... Apenas as folhas tomem mais cor, dando relevo ao
cenário, desatam-se as flores em catadupa, em chuva de pequeninas pétalas, feita em ca-
chos, corimbos e guirlandas... O pau-branco se enfeita como uma noiva; os bamburrais
apressam-se em mostrar os seus toques de ouro, vivos e luminosos como raios de sol; as
trepadeiras anônimas se estrelam todas de florinhas miúdas, simples e modestas, ao lado
dos cálices elegantemente desenhados das ipoméias selvagens e das campânulas melancó-
licas da jitirana, que se veste de um roxo suavíssimo...
Cansadas de aguardar a água reconfortadora, ou previdentes no lançar as semen-
tes que lhes deram perpetuar a espécie, as plantas todas se apressam em florir. Por isso, há
em todo o sertão, em especial nas várzeas baixas e às margens das lagoas e açudes, um forte
olor selvagem, que convida a respirar forte, numa volúpia sadia de vida nova... Só nos tabu-
leiros arenosos de certos pontos, a flora não muda. O xiquexique, o mandacaru e o cardeiro
apenas mais se enfartam de água, não diferençando muito, porém, o aspecto rígido...
Pois, sobre o sertão, assim ameno e doce, ia despenhar-se a horda dos fanáticos,
para talar, ferir e matar.
O alimento era encontrado em cada “ribeira”. Com o correr dos dias, o gado farto e
nédio fornecia-lhes repasto por toda parte. A ninguém se pedia ou se requisitava. Os novilhos
e vitelas eram abatidos a tiros, repetidos e certeiros. Sacrificava-se em pura perda os animais ao
alcance, porque havia uma ebriedade, nunca satisfeita, de destruir e fazer sangue...
De aventura em aventura, de depredação em depredação, chegaram os fanáticos
ao fim da primeira quinzena de fevereiro a Iguatu, então, ponto terminal da estrada de ferro.
Aí tiveram de estacionar por algum tempo.
É que, apesar de todos os embaraços criados pelo governo federal aos poderes
legais do Ceará,
63
conseguira o governador Franco Rabelo organizar uma nova expedição
destinada a enfrentar os amotinados.
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Realmente, não fora difícil recompor o Batalhão Militar, tão malsucedido das
primeiras vezes; foi aumentado o efetivo, renovado o armamento e revigorada a precária
disciplina.
Faltava, contudo, um chefe. Seria preciso um homem de ação, enérgico e reso-
luto, que inspirasse confiança ao governo e aos subordinados. Carecia-se de uma cabeça
inteligente, afeita a lutas daquela natureza, e de um coração disposto a todos os sacrifícios.
Encontrou-o o Ceará, na figura varonil de José da Penha Alves de Sousa, capi-
tão do Exército e, por esse tempo, deputado à Assembléia Legislativa do Estado.
Depois de providências preliminares, ele encaminhou-se com a sua gente para
obstar a passagem dos sediciosos. Abriu trincheiras junto à estação de Miguel Calmon, e aí
63
“Se algumas armas e munições o governo do Ceará conseguia ocultamente receber, era por via Mossoró e daí para o Aracati
até Fortaleza. Enquanto o governo da União proibia que o governo legal se defendesse, deixava o porto da Paraíba aberto à
passagem de recursos bélicos para os sediciosos” (Oliveira Viana, op. cit., p. 98).
Capítulo 12 – A sedição – A marcha sobre Fortaleza
108 Juazeiro do Padre Cícero
esperou o ataque, que não poderia tardar. De fato, a 22 de fevereiro, a primeira coluna de
fanáticos chocava-se de encontro àquelas posições. Embora em elevado número, foram os
assaltantes rechaçados com vantagem.
Era domingo de carnaval. E as notícias transmitidas para Fortaleza, alegraram o
povo, que se movimentou nas ruas e praças, dando largas a natural entusiasmo... Confiava-
se no ânimo novo das tropas. Acreditava-se que o comando, agora entregue a um oficial
experimentado, causasse impressão aos homens do padre Cícero...
O entusiasmo devia durar, porém, algumas horas.
Na manhã seguinte, recebia o governo, firmado pelos oficiais imediatos, o
seguinte lacônico despacho: “Hoje pela manhã foi encontrado o cadáver José da Penha.
Forças legais continuam a ocupar posições.”
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A marcha sobre Fortaleza não pôde mais ser detida.
Aquela morte, até hoje não perfeitamente explicada, animara os fanáticos, que
em todas as coincidências felizes da luta viam a força prodigiosa do “Padrinho”, guardado,
entre trincheiras, no seu refúgio longínquo...
Quixeramobim, Quixadá, Baturité e Redenção deveriam sofrer sucessivamente
a depredação e o saque. Dispunham agora os sediciosos de estrada de ferro, e fácil lhes
seria, caso fosse necessário, acumular às portas de Fortaleza alguns milhares de homens.
E em grupos dispersos, ou em trens, prosseguiam na marcha.
Por onde passavam, nem mais respeitavam agora o sinal da “bandeira encarna-
da”, um pano vermelho, ou um trapo de bacta... Era o que o povo, aflito, pendurava às
portas das casas de residência, no empenho de evitar o saque. Da longa série cometida,
alguns crimes vêm descritos, com grande vigor e coragem, no livro de Rodolfo Teófilo, que
temos citado. Nem será preciso escolher. Abramos uma página ao acaso:
José de Borba chegou a Quixadá em trem da Baturité, com o seu bando. Sinistras e
grotescas eram as figuras dos bandidos.
Na maioria eram mais antipáticas, mais repelentes, mais sujas do que as recém-fotogra-
fadas em Maranguape. Vestidos de mil maneiras, com chapéus de couro enfeitados de
laços encarnados, uma medalha do Padrim Cícero ao peito, ou no chapéu, armados de
rifles e de compridos punhais, invadiram a cidade que estava deserta de seus mais
abastados moradores, mas com as casas enfeitadas de bandeiras vermelhas. Os poucos
homens que ficaram para os receber, e com eles se banquetear, dispensaram-lhes cari-
nhos e atenções, indicando as casas dos adversários políticos a saquear.
A onda de malvados espalhou-se pela cidade e começou a pilhagem. As casas dos rabelistas
eram arrombadas e saqueadas; furtavam o que podiam conduzir e destruíam o que não
podiam levar. Assim aconteceu a todas, especialmente a do sr. Costa Lima, que além de
rabelista era intendente municipal. Este cavalheiro pagou mais caro. Depois de saqueada
a sua casa comercial, foram a sua residência e quebraram todos os móveis, inclusive o
piano, que foi destruído a machado!...
uuu
Aos últimos dias de fevereiro, os sediciosos ameaçavam Fortaleza.
Tendo estabelecido o seu quartel-general em Maranguape, cidade próxima,
apoderaram-se preliminarmente das vilas de Soure e Mecejana, com o que fechavam as
comunicações da capital com o interior do Estado.
109
De nada valeram os instantes pedidos do governo de Rabelo, associações de
classe, famílias e cavalheiros de maior representação, dirigidos ao poder federal e ao inspe-
tor Militar da região, presente em Fortaleza, com mil e quinhentas praças do exército a suas
ordens e dois navios de guerra surtos no porto... O que o sindicato político detentor dos
destinos da República exigia era a renúncia do governador. Pois não tivera ele o topete de
contrapor-se a Pinheiro Machado?... Por isso, nada poderia fazer a União, que não fosse no
sentido de esmagar Franco Rabelo.
64
Foi assim decretado o estado de sítio, para todo o Ceará, a 4 de março. E a 14 do
mesmo mês, eram publicadas instruções para a intervenção federal, que se confiara ao
coronel Fernando Setembrino de Carvalho, hoje general e ministro da Guerra. Esse docu-
mento vai publicado, em nota, no fim do volume.
A crônica dos dias sombrios por que o Ceará passou, a esse tempo, está magis-
tralmente feita. Resta-nos apenas demonstrar como realmente o movimento fora artificial-
mente insuflado com fim político, e que a horda de fanáticos, ameaçando sempre a Capital,
não obedecia senão ao padre Cícero Romão Batista.
Basta, para isso, transcrever os seguintes telegramas trocados entre o padre do
Juazeiro e o interventor federal.
65
Juazeiro, 16 de março de 1914. Exm
o
sr. Cel. Setembrino de Carvalho. Congratulações
com V. Ex
a
governo Marechal Hermes, patriotas pela libertação do Ceará e pelo
restabelecimento da ordem constitucional do Estado. Sinto profundamente no mo-
mento atual não poder atender o pedido de V. Ex
a
de chegar a Fortaleza, pois motivos
de ordem superior assim me obrigam, mas desde que o motivo principal seja tratar
retirada nossas forças daí, serão retiradas imediatamente se V. Ex
a
assim achar conve-
niente. Assim pois, peço a fineza de dizer-me quando quer que as faça voltar para eu
ordenar neste sentido. Se, porém, além deste motivo, V. Ex
a
precisar de minha presen-
ça, eu não podendo ir, o nosso amigo dr. Floro por mim irá entender-se com V. Ex
a
e o
que ele assentar será o mesmo como se comigo fosse. Queira aceitar minhas felicita-
ções de amigo e admirador de V. Ex
a
Cordiais saudações. Padre Cícero Romão Batista.
Exm
o
Padre Cícero Romão Batista, Juazeiro – Urgente. Muito agradeço as congratula-
ções que enviou ao patriótico governo federal representado na minha pessoa e tam-
bém me congratulo com V. Ex
a
um dos maiores obreiros da restauração da ordem no
Ceará. Urge a retirada e desarmamento de tropas de Juazeiro, sendo de absoluta ne-
cessidade o concurso de V. Ex
a
para esse desiderato. Uma vez que o governo federal
chamou a si a tarefa da pacificação deste Estado, não se torna mais necessário o
concurso de tropas irregulares que devem ser desarmadas e dispersas, recolhendo-se
todos a seus lares. Conto com o alto prestigio de V. Ex
a
para levar a cabo essa obra
sem grandes dificuldades e por isso espero as urgentes e necessárias providências de
V. Ex
a
nesse sentido, que auxiliarei facilitando o transporte pela estrada de ferro, pois
qualquer demora nesse mister poderá trazer grandes dificuldades à ação do governo
federal para a pacificação do Ceará.
Falam por si, dolorosamente, tais documentos...
64
No fim do volume, transcrevemos alguns documentos oficiais, sem comentário, a propósito da conduta do governo federal
nessa emergência.
65
“O cel. Setembrino estava convencido de que os jagunços não eram políticos, nem beligerantes, nem revolucionários, eram
simplesmente bandidos. Havia cessado o movimento revolucionário, estávamos em estado de sítio e, no entanto, nas
cercanias da cidade, continuavam eles, em armas, a roubar!” (Oliveira Viana, Francisco José. Populações meridionais do
Brasil. São Paulo, 1920. p. 168).
Capítulo 12 – A sedição – A marcha sobre Fortaleza
111
Capítulo 13
A sedição – Conseqüências
Duas palavras sobre os partidos políticos do Ceará – Em que se resume
o prestígio do Patriarca do Juazeiro: votos legítimos ou rifles em mãos
adestradas? – As dolorosas conseqüências sociais da sedição – Os terrí-
veis efeitos econômicos e de perturbação administrativa – Lampião,
expoente da situação atual do Juazeiro
113
As sociedades possuem os criminosos que mere-
cem. O meio social é o caldo de cultura da
criminalidade; o micróbio é o delinqüente, elemen-
to que não tem importância senão quando encon-
tra o ambiente favorável à sua cultura.
Lacassagne
No arrolar os fatos do movimento sedicioso que surgiu no Juazeiro, tivemos
sempre o maior cuidado no evitar interpretações favoráveis a quaisquer das facções em
que se dividiam, na época, os políticos do Ceará, e que ainda hoje os extremam em campos
opostos. É possível que uma e outra tenham tido grandes e insanáveis culpas no caso. Não
as julgamos, não as podemos julgar aqui, em definitivo.
É que os chamados partidos políticos desse estado, como de outros, não o
são de fato. Mero agrupamento de cabos eleitorais, mais ou menos prestigiosos no ser-
tão, ou de válidos junto às situações do estado ou da República, não os anima um
programa, uma só idéia de renovação social ou de melhoria política. Lutam ambos,
eternamente, pelo “penacho”, e quando de posse dele, contentam-se em partilhar com
os amigos as vantagens que as posições oficiais possam oferecer-lhes. E isso é tanto
mais lamentável quando, numa e noutra facção, há elementos de incontestável valor,
pela inteligência, pelo desejo de fazer prosperar ao Ceará, pela honradez nos negócios
pessoais.
No caso da sedição, foi o chamado “Partido Marreta” quem se aproveitou
da situação, quem insuflou o movimento, quem ajustou o golpe final, a que não era
estranho, como vimos, Pinheiro Machado e seu grupo todo poderoso. Se acaso, po-
rém, esse partido estivesse de cima, seria o outro que havia de aproveitar-se da agita-
ção dos fanáticos, numa direção equivalente, talvez. Não tenhamos maiores ilusões,
neste particular...
A maneira pela qual se tem conduzido ambos os grupos, demonstra-o de so-
bejo. Ambos têm cortejado, mais ou menos abertamente, as graças do temível Patriarca
do Juazeiro. Ambos se têm submetido a ele, incondicionalmente. Ambos o têm reconhe-
cido como soberano absoluto de uma vasta região do estado, talvez a mais rica de todo o
Capítulo 13 – A sedição – Conseqüências
114 Juazeiro do Padre Cícero
Nordeste; ambos o têm sagrado como chefe de um “colégio eleitoral”, enorme, que é a
mais afrontosa burla do sistema eleitoral dos nossos tempos...
66
uuu
A mais evidente conseqüência da sedição aí está, claríssima. Erigiu-se no pa-
dre Cícero, diretamente, ou no grupo de seus apaniguados, a maior força eleitoral do Ceará,
à revelia do qual nada se poderá fazer, decidir ou construir na política interna do estado.
Dela é principal responsável, porém, o governo da União, que lhe tem reconhecido a força
selvagem, senão que a tem acrescido...
Sendo esse o mais evidente efeito, não foi o pior, no entanto. O pior, e já o
assinalamos, foi a depressão moral que o fato devia levar a todos os cearenses de boa
vontade, empenhados na melhoria da administração de sua terra, nas garantias políticas e
sociais. Tendo-se banido do estado uma situação que aí perdurava havia vinte anos, era
natural que os novos elementos chamados à direção das coisas públicas se esforçassem em
corresponder à confiança do povo; era natural também que o sentimento cívico se fortale-
cesse, que novas doutrinas avançassem, que os costumes políticos tendessem a melhorar.
O contragolpe da sedição, desferido com tamanha brutalidade, deveria desanimar sem
remédio aos mais bem- intencionados, às mais desinteressadas energias, aos mais idealis-
tas. Desanimá-los, ou contaminá-los à força, do mal que se pretendeu corrigir um dia, ali
mesmo, embora ao peso de violências inauditas...
Num ambiente preparado a todas as rebeldias, onde apenas se ensaiava,
com indecisões, um regime da liberdade que pudesse coexistir com o da ordem legal, a
União abate de vez o “poder moral da idéia de estado”. Num meio onde a justiça só
muito lentamente vai evolvendo dos instintos egoísticos à compreensão dos limites de
ação da vida em comunidade, a União sagra os que perturbam essa marcha e põem-nos,
estranhamente, à frente dos destinos da província... Num ambiente em que a supersti-
ção e o nomadismo de grande parte da população são males sociais dos mais graves, a
República legitima o taumaturgo, apoiando a manutenção indesejável de um centro de
romarias fanáticas... Num meio, enfim, em que certas condições levam ao banditismo,
os mais altos poderes da Nação apóiam e dão o prêmio ao bacamarte...
uuu
Outros efeitos igualmente tristes teve a sedição do Juazeiro. Da perturbação
geral da vida econômica do estado, ainda hoje se ouvem ecos justificados.
67
Da desorgani-
zação administrativa, basta citar a perda de arquivos e documentos, alguns de valor histó-
rico notável, e a ereção do Juazeiro como estado, dentro do estado. Do desequilíbrio moral,
a perpetuação da sua questão religiosa. Das perturbações jurídicas, sobre as conseqüências
66
“Que é o Juazeiro como governo? Um pequeno império absoluto dentro de uma das unidades da Federação brasileira. É um
território pequenino, que medirá quinze quilômetros na sua maior dimensão, com uma população que ultrapassa as fron-
teiras e vive profusamente disseminada por meia dúzia de estados nordestinos. Observa-se claramente esta geografia
política sui generis nas eleições. Corre a notícia pelo telégrafo sem fio do sertão que o dia dos votos no Juazeiro é como a
páscoa dos eleitores vindos desde os extremos de Piauí com o Maranhão até os confins de Alagoas com Sergipe. É a
população do Juazeiro que não cabe no território, ou, como me disse um dos profetas dos de por aqui, ‘é o Juazeiro que já
abrange tudo isso!’ Este organismo já é fenomenal” (Macedo, Pe. Manuel. Juazeiro em foco. Fortaleza, 1925. p. 22).
67
Além do célebre projeto de lei estadual mandando distribuir quatrocentos contos de réis aos fornecedores de alimentos
aos fanáticos do padre Cícero durante a rebelião, várias ações foram tentadas contra o estado, pelos prejuízos dela decor-
rentes. Uma dessas ações, proposta por Antônio Ferreira Figueiredo, acha-se no Supremo Tribunal Federal, à espera de
solução. O exercício de 1912 havia deixado um saldo orçamentário de 1.241:576$846. Em 1914, a receita arrecadada pelo
estado foi apenas de quatro quintos da receita orçada, tendo sido absorvido todo o saldo e havendo um déficit de 704:732$468
(Anuário Estatístico do Ceará, 1922).
115
68
“Os bandoleiros chegaram via Barbalha, acoitando-se nas imediações da fazenda do deputado Floro Bartolomeu, até às dez
horas da noite, quando se transportaram ao centro da cidade, hospedando-se em casa de um dos tipos sui-generis do
Juazeiro, o poeta popular João Mendes de Oliveira, que se intitula jocosamente ‘historiador brasileiro e negociante’. Aí
fomos encontrar o bando sinistro que se compõe de quarenta e nove homens e o famoso facínora, perfazendo um total de
cinqüenta homens. Estão muito bem armados e municiados; vestem, na maioria, brim cáqui; trazem chapéus de couro
quebrado na testa e lenços de diversas cores, predominando o verde e o encarnado, amarrados ao pescoço. O armamento
de cada um é rifle ou fuzil máuser, revólver e punhal; à cintura trazem três ou quatro cartucheiras, acondicionando nelas,
cada homem, um total de quatrocentas balas!
“As autoridades policiais do Juazeiro quiseram agir à altura das circunstâncias. Tiveram, porém, de recuar dos seus inten-
tos, cedendo à pressão dos ‘segredos da natura...’.
“Não há no vernáculo um adjetivo bastante forte que caustique a abjeção desse fato. A realidade é que Lampião, homem
fora da lei, perseguido pelas polícias dos estados do Nordeste, em nome da honra, da família e do sossego público, da
propriedade privada e do direito de vida, enfim, dos princípios mais rudimentares da moral coletiva, estava no Juazeiro
com a confiança de um cidadão que nada deve à justiça e quase com honra de triunfador” (O Ceará, jornal diário de
Fortaleza).
O mesmo jornal mandou perguntar ao padre Cícero Romão Batista por que não mandava repelir ou prender Lampião, pois
que tinha a seu dispor oitocentos homens, armados e municiados, do batalhão patriótico. E ele respondeu textualmente:
“Não, meu amiguinho! Lampião procurou o Juazeiro com intuitos patrióticos (sic!); ele pretende se alistar nas forças legais
para dar combate aos revoltosos. Uma vez vitorioso, espera que o governo lhe perdoe os crimes. Este homem que veio ao
Juazeiro, confiar em minha proteção, pretende se regenerar. Se não for possível alistá-lo nas forças legais, eu o encaminha-
rei para Goiás, onde levará vida honesta, como já fiz com Sinhô Pereira e Luís Padre. Está mais ou menos demonstrado que
os governos de Pernambuco e Paraíba não conseguirão prender Lampião, entregando seu bando à justiça. O povo é sempre
prejudicado nestas coisas: é vítima de Lampião e muitas vezes da polícia também... Esse estado de coisas pode ser modifi-
cado facilmente: eu consigo que Lampião se vá embora para muito longe, e, assim, ficaremos livres deles.
“Porém, mandar prendê-lo aqui em Juazeiro, nestas circunstâncias?! era um ato de revoltante traição, indigno de qualquer
homem, quanto mais de um sacerdote católico.
“Eu prevejo que muita gente agora e principalmente meus desafetos vão dizer que eu estou mancomunado com Lampião;
mas, não é tal. Aqui no Juazeiro, eu recebo todas as pessoas que me procuram e fico satisfeito em prestar assistência a um
transviado da sociedade procurando guiá-lo no bom caminho.
– Mas padre Cícero, o governo pode anistiar ou perdoar criminosos comuns?
– Pode, meu amiguinho, pode...” (ibidem).
incalculáveis da apologia do crime, o fato de a Meca do Cariri tornar-se a um tempo o
quartel dos cangaceiros de todos os sertões do Nordeste.
A este propósito, foram perfeitamente expressivas as declarações de seu chefe,
quando, afrontando o próprio Batalhão Patriótico de Floro Bartolomeu, entrou no Juazeiro,
ostensivamente, com toda sua gente, o temível bandoleiro Virgulino Ferreira da Silva, o
celebérrimo Lampião,
68
estripador de crianças e incendiário “rei do sertão”, que ainda há
pouco “declarou guerra oficialmente” aos governos da Paraíba e Pernambuco...
Lampião é um expoente, apenas, da malta de celerados que tem feito do Juazeiro
o seu quartel-general, como tem sido abundantemente provado.
Capítulo 13 – A sedição – Conseqüências
117
Capítulo 14
O Juazeiro no folclore
A grande alma do povo, agitada e confusa – O ciclo do Messias no
folclore do Nordeste – Lendas, canções e preces do Juazeiro – Práticas
dos “penitentes” e “beatos” – Sátiras sob a forma de oração
119
Todo o folclore sertanejo mostra a formação per-
feita das almas que habitam aqueles países de
sol ardente.
Gustavo Barroso
No folclore, defrontamos a grande alma do povo, agitada e confusa. Por ele, ve-
mos como surgem lendas, como o pensamento comum se alarga e se interpenetra, como se
sublima em símbolos de rara beleza, ou se abastarda, envilecendo sem remédio. Na cantiga
popular, podemos surpreender, sob a trama de epopéias ingênuas, mas, às vezes, de uma
eloqüência admirável, os acontecimentos estranhos que deram origem a mitos e crendices.
E, nela, sentimos como a inteligência média de cada grupo interpreta os fatos históricos,
critica-os, exalta-os ou os deprime, segundo a orientação dominante das tendências de uma
dada época. Sentimos, enfim, como o enciclopedismo ingênito de todos os povos começa a
organizar elementares doutrinas de um direito, de uma ciência, de uma religião.
A um tempo, o folclore é a alma coletiva, o seu próprio ambiente e história.
Entre os povos iletrados, em que a literatura escrita, os livros e os jornais não perturbam
ainda a cristalização das lendas, nem alcançaram qualquer maior coordenação de idéias e
sentimentos, há de ser sempre pelo folclore que havemos de auscultar o ritmo profundo da
existência moral de cada coletividade. Suas verdadeiras manifestações aparecem repassa-
das ao clarão de inúmeras inteligências ou obscurecidas ao contato de uma multidão de
rudes mentalidades; mas, num ou noutro caso, mostram-se sustentadas pelo carinho ou
pela revolta de infinitos corações... Merecem estudo e respeito.
Algumas notas sobre o Juazeiro no folclore impõem-se, aqui, necessariamente.
uuu
Para traçá-las, não são grandes as dificuldades.
A demologia dos sertões do Nordeste é, talvez, a mais estudada de todo o
País. Pesquisadores pacientes, como Leonardo Mota e Pereira Costa, e sistematizadores
de rara acuidade e gosto, como Gustavo Barroso, têm acumulado a respeito um material
precioso, onde não será difícil colher a documentação de muitos flagrantes da alma pri-
mitiva do sertanejo.
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
120 Juazeiro do Padre Cícero
No interessante livro Ao som da viola, o último dos autores que citamos diz que
parece haver no sertão, bem determinados, seis ciclos de lendas e tradições:
O ciclo dos Bandeirantes, reunindo as lendas de penetração; o do Natal, agrupando todas
as comemorações dessa data religiosa e já tradicional, antes de ser religiosa; o dos Va-
queiros, guardando os poemas derivados da vida pastoril, como as vaquejadas, a luta
contra o gado “amontado”, ou contra as feras que devoram as reses; o dos Cangaceiros,
ciclo heróico, feixe de todas as admiráveis canções de “gesta”, em nada inferiores às
“gestas” medievais da Europa; “o dos Caboclos”, resumindo as opiniões a respeito dos
descendentes do índio fugido e incapaz de ser escravizado; enfim, um “Romance da
Raposa”, quase tão vasto como o europeu, tendo idêntico fundo satírico e referindo-se
aos animais do meio, como o outro, nele personificando tipos morais da humanidade.
Mas um “ciclo do Messias”, com as lendas, canções e profecias, parece ir-se
constituindo, também, ao lado dos demais, tão expressivo e característico quanto esses
outros. Nele se enquadram as lendas dos antigos jesuítas, as lembranças de Canudos e,
mais vivas, porque mais próximas, as narrações de milagres, louvores e preces ao Padrinho
do Juazeiro.
Destas, ainda em estado bruto, algumas vão sendo transmitidas em sua grossei-
ra forma de origem. Outras, mais raras, já se enfeitam de ornatos poéticos, demonstrando a
riqueza de imaginação do caboclo ou a colaboração evidente de espíritos cultivados. Os
especialistas acordam em que as lendas recebem sempre essa colaboração necessária. Não
seria mesmo possível explicar muitas dessas criações, no estado em que hoje se apresen-
tam, sem fazer intervir um escol social, de sacerdotes, poetas, sábios, filósofos, que, por
simples inclinação do espírito ou pela natureza de suas ocupações, sublimam as crenças
populares, erigem a superstição em idéia metafísica, dando mais coerência à narrativa ou
revestindo-a de forma aprimorada.
69
A lenda do Juazeiro que mais tem sofrido essa transformação é a vida de Maria
Araújo e de seus milagres. Facilitam os acréscimos poéticos, os anos já volvidos sobre tais
acontecimentos e a morte da heroína.
Legenda central, ela explica a santidade do Padrinho, justificando a sua graça e
poder. Por isso mesmo, assume o valor de “tabu”. Não se referem a ela diretamente, em
termos claros, os cantadores sertanejos. Quando muito, uma alusão velada:
Quem for para o Juazeiro
Vá com dor no coração
Visitar Nossa Senhora
E o Padre Cirço Romão,
Aquelas toalhas bentas
Que de sangue vivem cheias!
Valei-nos, Padrinho Cirço
E a Mãe de Deus das Candeias!
Outros milagres, no entanto, são cantados em termos claros:
Em setembro deste ano,
Num domingo, dia três,
Perante muitos romeiros
Meu padrinho então fez
Falar um menino que
Tinha nascido há um mês!
69
Van Gennep. Origine et formation des légendes.
121
Falou o menino, então,
Numa linguagem tão bela
Que a todos admirou
Por nunca terem ouvido ela
E só mesmo meu padrinho
Sabia e falava nela...
Mais famosos, outros versos referem-se a curas extraordinárias:
Um romeiro, o velho Cunha,
Veio de Várzea do Ovo,
Do Rio Grande do Norte,
Fez abismar todo o povo
Ele ser cego há trinta anos
E cobrar a vista de novo!
Veio de Campina Grande,
Da Paraíba do Norte
Aqui para o Juazeiro,
Sem guia nem passaporte,
A irmã de Chica Caçamba,
Lili Mimosa sem sorte.
Fazia mais de três anos
Que essa moça não dormia,
Que essa moça não rezava,
Que essa moça não sorria,
Que essa moça não chamava
Por Deus, nem Santa Maria!
Logo que ela chegou
E teve os santos tremores,
Pôs-se logo a rezar,
De alegria jogava flores
E de alegria exclamava
Nossa Senhora das Dores!
Eu bem podia contar
Com toda exatidão
Os milagres que tem feito
O Padre Cícero Romão
Na matriz do Juazeiro
Para nossa salvação!...
Mais fácil que a descrição dos milagres é a “louvação” do Padrinho. Concebida
sempre com as maiores hipérboles, assume as mais variadas formas. Delas, escolhemos a
do poeta sertanejo João Mendes de Oliveira, que tivemos ocasião de conhecer, no Juazeiro.
Senhor de algumas letras, mas adaptado por inteiro à incultura ambiente, ele reflete, como
ninguém, o sentimento popular dos sertões a respeito do padre:
É um pastô delicado,
É a nossa proteção,
É a salvação das alma
O padre Cisso Romão,
É a justiça divina
Da santa religião.
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
122 Juazeiro do Padre Cícero
É dono do Horto santo,
É dono da Santa Sé,
É uma das três pessoa,
É um filho de São José,
Manda mais que o Wenceslau,
Manda mais que o João Thomé.
Vem carta até lá de Roma,
Vem carta do Ceará,
Vem carta de Pernambuco,
Vem carta do Paraná,
Vem carta de Cajazeira,
Vem carta do Quipapá.
Vem carta do Maranhão,
Vem carta do Aracati,
Vem carta do Cabrobó,
Vem carta do Piôí
Vem carta do Batrité,
E vem carta do Apodi.
Quem não presta atenção
Ao que meu padrinho diz
Também não crê na Matriz
Da Virgem da Conceição
Nem no profeta S. João,
Nem poderá ser feliz.
Um chega e diz: – Meu padrim,
Eu não sei mais o que faça!
Quero a vossa proteção
Com sua divina graça!
Com relação a virtude,
Só aqui é onde se acha!
Outro diz: – Eu aqui estou,
Quero que me ditrimine,
Quando eu errá me castigue!
Quando eu não subé, me ensine
É na vida e é na morte
Quero que vós me domine!
O padre Cisso, então, diz
Com sua voz diferente:
– Não queiram sê assassino,
Não bebam mais aguardente,
Não queiram sê desordêro
Que Jesus não sai da frente!
Meu padrinho é quem possui
Talento, força e podê
Dado pela Providença!
Quem duvidá – venha vê!
Ele é quem dá a direção
Do que se tem de fazê...
123
Com relação à ciença,
Ele é quem tem toda ela!
Tudo ele faz diferente,
Até o benzê da vela,
Sítio, fazenda de gado,
Matriz, sobrado e capela.
Viva Deus primeiramente,
Viva S. Pedro chavêro,
Viva os seus santos ministro,
Viva o Divino Cordêro,
Viva a Santíssima Virge,
Viva o Santo Juazêro!
Viva a Sagrada Famia,
No céu a Divina Luz,
Viva o sinhô S. José,
Viva o mistério da Cruz,
Viva o padrim padre Cisso
Para sempre, amém, Jesus!
Viva o Bom Jesus dos Passo,
Viva Santo Antônio também,
Viva o santo Juazêro
Que é nosso Jerusalém,
Viva o padrim padre Cisso,
Para todo sempre, Amém!
Não menos interessante é a cantiga “Proteção da Mãe de Deus”, com hábeis
variações sobre o mesmo tema versado na produção anteriormente transcrita:
Logo no primeiro dia
Que eu cheguei no Juazêro,
Pegou a chegar romêro
Pra ovi a voz do Messia,
Este pade é o nosso guia,
É a nossa satisfação,
Consola todo cristão,
Ensinando o bom camim,
Trabalhando aqui sozim,
Garantindo a salvação.
Cumo defensora e guia,
Com um manto de ouro fino,
Rogou a Jesus Menino
A Santa Virge Maria,
Mãe do rico e sem valia:
– Jesus Cristo venha cá,
Não prometi pra faltá!
Quando estive em Juazêro,
Salvei a todo romêro
Que veio me visitá.
– Eu sou a Virge das Dore,
Cisso é o dono do sacrário;
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
124 Juazeiro do Padre Cícero
A ele dou meu rosário,
Conheçam bem, pecadôre:
Quem a Cisso respeitá
Ficará com Deus Eterno,
Não consinto i pro inferno
Quem ouvi Cisso falá!
O meu padrim padre Cisso
Protege a qualqué pessoa,
Vem gente até de Alagôa,
De mais longe de mais perto.
Tudo que ele diz é certo,
Não tem quem prove o contráro!
Bispo, pade e missionáro
Vão de encontro a meu padrim:
Ele, porém, tá sozim
Na devoção do rosáro!
Viva o auto da natureza,
Viva S. Miguel Arcanjo,
E viva a côrte dos anjo,
Viva toda a realeza,
Viva a santa luz acesa
Viva esta boa semente,
Viva Deus Onipotente,
Viva a cruz da redenção,
E o padre Cisso Romão
Viva! Viva eternamente!
Nada mais tenho a dizê.
Sou João Mendes de Olivêra,
Nesta língua brasilêra
Eu nada pude aprendê,
Porém posso conhecê
De tudo quanto é verdade!
Não tenho capacidade,
Mas sei que não digo à tôa:
– Pade Cisso é uma pessoa
Da Santíssima Trindade!...
uuu
Capítulo dos mais extensos do folclore sertanejo é o da descrição da “guerra
santa”, de 1913.
Nas coleções de Leonardo Mota, vamos encontrar, por exemplo, este depoi-
mento expressivo de um fanático sedicioso:
Lembra-se como e por que começou a guerra?
Meu Deus! Isto não começou isturdia? Cumo é que eu não é de me alembrá? Vamincê
não sabe que o Rebello inticava com meu Padrim Pade Cisso e só vivia de puxá arenga
com nós no Juazeiro, querendo prendê, fazê e acontecê? Nós é que fumo agredido no
princípo. Isso dagora é carrêra que eles tão dando. Apanharo no Crato, na Mutuca, no
S. Bento (Miguel Calmon) e tem que apanhá no Ceará. Lá, sim, que o salsêro vai sê
grosso. Mas eu só tou é inha havê nesta pruvinça quem inore que o Rebello é que é o
causo de quanta desgraça hai no mundo, de tudo que é descontramentelo.
125
O sr. é mesmo de Juazeiro?
Sou e não sou, sendo... Moro lá, há muntos ano. Natural eu sou doutro lugá, mas
percurei a proteção de meu Padrim mode uma “vadiação” que eu fiz...
Quantos homens estão em armas?
E eu sei?! É gente cumo quizé! Ninguém conta não. Anda tudo de magote... Já vi dizê
que mais seu curunéo e seu doutô (Pedro Silvino e José de Borba) tamos aqui mais
de dois mil. Mas bastava a metade. Munta gente tá aqui só pru via de robações. Aqui
hai “romeiro” e hai “rombeiro”. Por certa gente eu não meto a mão no fogo... Eu,
quando me alembro do que meu Padrim recomendou e vejo certos despreposto, só
me reina na natureza é me largá pro Juazeiro.
Então o padre Cícero lhes deu conselhos e pediu que não saqueassem?
E antão?! Deu, nhô sim. Boni-t-o-tó macacheira mocotó! Cancei de vê ele dizê que
quem bebe cachaça é raposa doida, que se respeitasse famia e não se bulisse no
aleio. Mas aqui tem gente que só qué desgraçá os pissuído dos rabelista. Tou amarelo
de vê se dizê: “Rabelista resistiu, matou! Esmoreceu, perdoou mas estragou!” Tem
deles que diz que no Ceará é que é! Não vê que lá tem um tal de Frota Gentil que é
rabelista e tem gazimira pra mandá pro diabo?!
Mas o dr. Borba e o cel. Silvino não podem conter esses que assim procedem, desa-
tendendo às recomendações do padre Cícero?
Lá o que! Pra essa gente só mermo seu dr. Fulóro que é home de pouco conseio.
Cabra pro lado dele ou procede ou leva o diabo. Pra sugigá um, pra pegá um pela
amarra do chocáio, foi quem Deus deixou! Aquilo, sim, é que é sê home resolvido!
O sr. lutou em Miguel Calmon?
Adonde? No São Bento? Loitei, nhô sim. O negoço lá foi brabo. Foi um istrupisso. Os
cabra da trinchera de seu Zequinha Contenda, do Maitá, nos baixaro a ripa debaixo
duns pé de jurema e tanta bala nos jogaro que parecia que tavam sessando bagaço de
foia em riba da gente...
Os srs. são todos do Cariri?
Nhôr não. Aqui tem gente de toda parage. Da Paraíba tem, da pruvinça de Alagoa e
tem o cabrual do Riacho do Navio, de Pernambuco, que é danisco. Gente que só usa
toma trinchera a punhau, gente ispromentada...
E como foi que o padre Cícero juntou tanta gente?
E foi lá ele que ajuntou o que! Tudo isso foi se ofrecê, dizendo que queria dá c’o
Rebêlo dentro dágua do má... Êh, seu moço, meu Padrim, pra defendê ele, tem gente
que só pomba de bando! Ele disse que quando nós acabasse de impô o Rebello,
quando nós acabasse de quebrá a castanha do bicho, nós só tinha seis mez de
descanço. Adispois, eu acho que seu Pinheiro Machado qué que nós vá fazê um
serviço c’o Danta Barreto no Pernambuco, e eu acho que aí nós grita a Monarquia!
Vamincê nunca viu falá nas profecia do Frei Vidal? Apois os veio daquele tempo diz
que ele diz que nestas era dagora haverá de havê uma pendença, que prinspiava no
sertão e ia acabá na pancada do má.
Quais são os mais valentes, entre os srs.? Não há alguns mais valentes do que os
outros?
Seu moço, isso de disposição pra brigá a ocasião é quem dá. Não hai home mais
home do que outro, não!... Mas aqui tem munto cabra ditriminado: tem o Zé Terto, o
Tempestade, o Baliza, o Mané Domingo, o Zé Pinheiro, o Boca de Sangue, o Moita
Braba, o Calixto, tem uma pução deles.
E as tropas do cel. Franco Rabello mostraram bravura?
Qual! Foi coisa que eu nunca vi neles foi vantage. Nós vimo vê home no S. Bento...
No Juazeiro ninguém podia nem atirá neles: chegavo, davo um tiro na gente e corria
tudo pra traz. Parecia brincadêra de menino. Foi mode isso que nós apelidemo eles
de macaco, porque só faziam corrê. Ninguém podia nem botá um cercalorenço ne-
les. Agora, a gente de seu Zequinha Contenda e de seu Joca da Penha, não! No S.
Bento, sim, nós topemo serviço...
E o canhão do cel. Emílio Sá?
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
126 Juazeiro do Padre Cícero
Ah! bom, basta! Aquilo não valia um girmum cheio dágua. Tão bom era que eles
interraro. E pra que era que nós haverá de querê aquela disgraça? Só si fosse pra
vadiá de joão-galamarte em riba do cano. Aquilo lá era terém! Eu queria munto mais
antes uma lazarina, dessas de se passarinhá...
70
Mas a sedição dos fanáticos é comentada com mais graça e, por vezes, com
ironia, por menestréis do sertão.
É do cantador cego Aderaldo Ferreira de Araújo a descrição mais completa que
conhecemos dessa luta, na poesia popular:
Deportou-se o Accioly
Mas ninguém foi mais feliz!
Bonito, bobos, bem feito!
(Assim todo mundo diz)
Quando a gente tora um pau,
Rejeta logo a raiz...
Deixaro o velho Accioly
Rio com muito dinhêro
Com pouco ele entrou, de novo,
Que nem fogo no balsêro,
E ainda mais um doutô Floro,
Esse lá no Juazêro.
Esse Floro baiano
Com o padre se aliou
E um sinhô Pedro Silvino,
Home muito brigadô,
Silvino, José de Borba
E um tal de doutor Lavô.
Então, o Franco Rabello,
Vendo a coisa ficá ruim,
Preparou um batalhão,
Disse ao comandante assim:
– Vocês vão ao Juazêro
Desgraça do padre o nim!
*
Segue o Alípio de Barro
Ditriminado a brigá,
Ele mais o Ladislau,
Mas, quando chegaro lá,
Dero quatro tiro à toa,
Somente para constá.
Nisso espalhou-se a notiça
Logo por todo logá...
Depressa, ela se espalhou
Por todo este Ceará!
Aí, seguiu pro sertão
Nosso grande Emílio Sá.
70
Mota, Leonardo. Cantadores. p. 337 e seq.
*
“Nim”, ninho, como “Padrim”, Padrinho.
127
Pegando uma peça véia,
Mandou para a fundição,
Mandou que raspassem toda
Tirassem todo o cascão,
Passassem graxa na bicha
E areasse bem os latão.
Ao chegá no Quixadá,
Muitas mocinhas formosa
Foro vê Emílio Sá
E iam todas mimosa,
Em cima de Emílio Sá
Jogaro cravos e rosa.
A gente lá do Iguatu
Ficou de queixo na mão...
Um dizia: – O que é aquilo?
Outro dizia: – Sei não!
E outro: – Só si é máquina
De escaroçá algodão...
Outro disse: – Não, não é
Que eu já estive em Maranhão,
Quando cheguei lá no porto
Vi aquela arrumação...
Eu desconfio que é aquilo
Que os rico chamam canhão...
No Crato diz o Emílio:
– Eu não vim tomá conseio!
Mandou colocá a peça
Em cima do Alto Vermeio
Para, quando detona,
Cortá Juazeíro ao meio.
Aí, o grande artileiro
Fez uma detonação,
A peça se arrebentou
E envergou todo latão,
Matou uma pobre veia
Que andava vendendo pão...
Nesta hora, o padre Cisso
Fazia lá o seu sermão
E disse ao seu pessoal:
– Corram logo, meus irmãos,
Me peguem aquela peça,
Me traga à força de mão!
Correro trezentos home
Numa carreira danada,
Que quando o artileiro viu
Aquela gente espritada,
Empurrou a peça veia
Deixou rolá na quebrada.
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
128 Juazeiro do Padre Cícero
Nosso grande Emílio Sá
Vendo a bataia perdida,
Correu para o artileiro,
Mas, vendo a peça rompida
Avisou que o povo todo
Cuidasse em salvá a vida!
Vinha um menino com ele,
De quatorze ano de idade,
Era chamado Domingo,
Filho daquela cidade,
Disse: – Coronel, não corra
Que jagunço é bestidade!
O menino ainda disse:
– Eu não temo esses patife!
Seu Emílio Sá bem sabe
Que eu, enquanto tivé rife,
De coração de jagunço
Faço urubu comê bife!
Segue o grande Emílio Sá...
E o menino o que é que fez?
Prantô o joêio em terra
E atirou por sua vez,
No meio da jagunçada
Inda matou trinta e três!
Mas Emílio Sá se foi
Chatinho como um tatu...
Mais tarde o menino o alcança
Já rasgado e quase nu...
Quando ninguém esperava,
Chegaro no Iguatu.
No Iguatu, Emílio disse:
– Acabou-se a pabulage,
Não quero mais sê valente,
De que serviu a viage?
Parto para Fortaleza,
Vou num carro de bagage.
Nesse tempo, em Fortaleza
Havia um rio-grandense
Que uma vez disse: – Eu me atrevo
A comandá cearense!
Si eu comandá a poliça
A jagunçada não vence!
O Doutô Paula Rodrigue
Disse: – Amigo, se detenha!
E correu, disse a Rabello:
– Temos um que desempenha,
Home de muita corage,
É o nobre Jota da Penha!
129
Para o segundo combate
O pessoal se animou
Veio gente de toda parte,
A esperança renovou,
E o grande Jota da Penha
Pediu um trem e marchou.
Chegando em Miguel Calmon,
Na estação não quis ficá,
Seguiu com seu pessoal
Procurando outro logá
Que prestasse pra trinchêra,
Servisse pra se brigá.
Goesinho tirou do povo
Cinqüenta cabra dos seu
E disse a Jota da Penha:
– Capitão, eu sou judeu!
Dê licença, eu vou adiante,
Eu vou tomá São Mateu!
Goesinho seguiu à toa
Pois não conhecia a terra...
[..........................................]
*
Conheceu o que era guerra:
Foi bala, não foi brinquedo
Dentro do saco da serra!
Goesinho rolou no chão,
Temendo as bala ferina,
E quando ele conheceu
Que ali havia ruína,
Correu com medo dos cabra
Da Dona Federalina.
Aí morreu o menino
De quatorze ano de idade,
Morreu a pobre criança,
Uma onça na verdade,
Esse que tinha botado
Trinta e três pra eternidade!
Fugiu Goesinho ligeiro
Em procura do Iguatu
Lhe disse Jota da Penha:
Goesinho, que viste tu?
Correste danadamente,
Chegaste aqui quase nu...
Então o Penha pensou:
– Não tem um que seja bom...
Já sei que vocês não brigam,
Não possuem o meu dom!
*
Possivelmente houve supressão do verso que completaria a sextilha. (N. do E.)
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
130 Juazeiro do Padre Cícero
Vamo que eu vou colocá
Vocês no Miguel Calmon.
O Penha, em Miguel Calmon,
Falou alto e sem segredo:
– O que não tivé corage,
Quem de bala tivé medo,
Quem não pudé brigá,
Por favô levante o dedo!
Quando disse essas palavra,
Causou admiração,
Fazia nojo e fez pena:
Uma grande multidão,
Trezentos e oitenta e dois
Alevantaram a mão.
Então, o Jota da Penha,
Vendo aquilo, o que é que fez?
Mandou que fossem à fava
Todos ele de uma vez...
E para a luta ficaro
Só uns duzentos e três.
Desses duzentos e três
Teve inda gente que “abriu”...
Certo que, chegando a noite,
Um bocado conseguiu
Fazê a sua fugida:
Fôro vinte os que fugiu!
Ficou cento e oitenta e três,
Mas homes ditriminado,
Dizendo: – Nós sai daqui
Só depois de estraçaiado!
Corrê daqui ninguém corre!
O baruio tá formado...
Cordeiro, do Batrité,
Por sê um lutadô forte
Se colocou mais Goesinho
Todos dois dentro de um corte!
O pessoal deles dois
Nunca fez causo da morte...
O bravo tenente Arthu,
Esse ficou colocado
No centro de um trinchêra,
Muito bem entrincherado,
Para não ficá sozinho
Ficou ele e dez soldado.
O grande Nozim Contenda
Tomou conta da vanguarda,
E também Sínhô Zequinha,
131
Mandava um retaguarda;
O nobre Jota da Penha
Chefiava toda a guarda.
Jota da Penha pegou
Uma noite rigorosa;
Como a noite foi assim
A manhã foi invernosa,
Quando o dia foi rompendo
Ó que manhã tenebrosa!
Ele acordou muito triste,
Consigo deu um suspiro,
Perguntou à soldadesca:
– Vocês me digam si ouviro
Na mata, ao lado direito,
O disparo de algum tiro!
Eles dissero: – Não vimo!
Mas seguiro na carrera,
Perto de Jota da Penha,
Abraçando as cartuchera...
Ele disse: – Meus amigo,
Entrem pra suas trinchêra!
Depois disse: – Meus amigo,
Vamo brigá, tenham fé,
Vô explicá a vocês
O combate como é:
Eu vou na frente a cavalo
Com quarenta home a pé.
Sua roupa era amarela,
As bota da mesma cô,
O chapéu – de aba deitada,
Da forma de Imperadô;
Pulando no seu cavalo,
De um só pulo montou.
Depois, o Jota da Penha
Ficou muito admirado
De vê vi tanto jagunço...
O sertão tava encarnado!
71
Tinha muitos no caminho!
E outros, pelos paus, trepado.
Gritou o Jota da Penha:
– Fogo, fogo, bataião!
Atirem nesses jagunço,
Não quero vê compaixão,
Acabemo esta canalha,
Esta corja de ladrão!
71
Por motivo das coberturas escarlates, dos chapéus e dos grandes lenços encarnados que guarneciam o pescoço e peito dos
romeiros.
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
132 Juazeiro do Padre Cícero
Então, as quarenta praça
Quarenta tiro mandaro:
Depois, sem perda de tempo,
Outros quarenta enviaro,
Ao depois, com mais quarenta,
Os cento e vinte interaro.
Aí, o povo do padre
Três mil tiro lhe mandou
Mandando mais três mil tiro
Viu-se logo o grande horrô
Enviando outros três mil,
Os nove mil completou.
Dizia o Jota da Penha:
– Hoje aqui ninguém se coça!
Anima, briga, negrada,
A jagunçada é uma joça...
Fogo naquela canaia
Vamo que a vitória é nossa!
Tinha um jagunço trepado
(Esse atirava de ponto)
Tava trepado num pau,
Dizendo: – O Penha eu afronto!
Cada tiro, dava um grito:
– Matei um! lá deixei pronto!
Tinha um tal Raul Bezerra
Estirado num buraco,
Este então se preparou
Tirou a bala do saco
Fez pontaria e gritou:
- Botei-te abaixo, macaco!
O bravo tenente Arthu,
No mei de tanto alvoroço,
Deitou-se e saiu rolando
Pois o baruio era grosso,
Rolou de uma ribanceira
E caiu dentro de um poço.
Com a carabina moiada
Mostrou a perseverança,
Agachou-se dentro da água,
(Parecia uma criança)
Por cima da ribanceira
Inda fez grande matança.
Jota da Penha a cavalo,
Pros jagunços conhecê-lo,
Era um roldão destemido...
No meio de tanto atropelo,
Dava viva ao Ceará
E a Marco Franco Rabello!
133
Também o povo do padre,
Fazendo grandes horrore,
Brigava gritando sempre
Entre medonhos clamore:
– Viva o santo padre Cisso,
Nossa Senhora das Dore!
O pobre frei Marcelino
Implorava à multidão,
Com uma image divina
De Deus Nossenhor na mão,
Para os jagunço atirá
Mas não sangrá os cristão.
Um jagunço viu o Penha
E gritou: – Que grande festa!
Aquele é o Jota da Penha,
Agora o combate presta!
Zé Pinheiro lhe fez fogo
A bala pegou na testa.
O nobre Jota da Penha
Rolando caiu no chão,
Ficou rolando na terra
Com o seu revolve na mão,
Mas, coitado! o home morto
Não pôde fazê ação!!!...
O cavalo desde logo
Com a queda se assustou,
Deu uma grande carreira,
Foi longe, porém voltou,
Perto de Jota da Penha,
Baixou a venta e cheirou.
Zé Pinheiro lhe atirou
Porém não acertou não,
E o cavalo esparrou
Que ficou rente no chão
Pinheiro sai da trinchera
E mata o cavalo a mão.
Foi, disse a Pedro Silvino
O que tinha sucedido,
Contou que Jota da Penha
Na luta tinha morrido;
Pedro Silvino então disse:
– Antes tivesse-o prendido!
João Gome achou o cadave
De Penha e se descobriu:
– Deus te dê a salvação,
Boca que nunca mentiu,
Braço de herói destemido,
Mão forte que resistiu!
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
134 Juazeiro do Padre Cícero
Estava perdida a guerra,
Ó que horrorosa certeza!
A soldadesca chorava...
Todos então com tristeza,
Botaro Penha no expresso
Mandaro pra Fortaleza.
Eu tava na Capital
Naquela noite aflitiva,
Na hora que foi chegando
Aquela locomotiva
Trazendo Jota da Penha,
Corpo morto e alma viva!
Jagunço aí tomou conta...
Anarquizaro o Maytá,
Depois Quixeramobim,
Dero cerco no Juá,
Logo nesse mesmo dia
Desgraçaro o Quixadá.
Com toda facilidade
Entraro no Batrité
E correro toda serra,
Escangalharo o Coité.
Fizero cantá Bendito
Ao povo de Canindé...
Aderaldo foi empregado da ferrovia Baturité, antes do desastre que lhe tirou a
vista. Nas viagens contínuas que fez, apanhou alguma coisa do sentimento popular contrá-
rio ao Juazeiro. É evidente no modo pelo qual apresenta os acontecimentos e os comenta,
com feliz ironia, quase sempre.
uuu
Outra parte muito rica da demologia sertaneja é o capítulo das orações.
Algumas simples, como esta, para curar fraturas ou luxações:
Carne trilhada,
Nervo torcido,
Ossos e veias
E cordoveias
Tudo isso eu coso
Com o louvor
De São Frutuoso!
Outras, complicadas já com exorcismos e benzimentos, como as que transcre-
vemos aqui:
ORAÇÃO CONTRA O USAGRE
(Benzendo a parte do corpo atacada pela moléstia com um galho de arruda
molhada em água benta)
Eu te benzo com a cruz, com a luz
E com o sangue de Jesus!
135
Usagre, fogo selvagem, foge daqui,
Que estou com nojo de ti!
ORAÇÃO “FORTE” CONTRA OS ESPÍRITOS E ABANTESMAS
Jesus vai comigo
E eu vou com Jesus!
Jesus vai comigo
No meu coração
E há de livrar-me
De toda aflição!
De toda aflição,
De toda agonia,
Livrai-me Jesus,
José e Maria!
José e Maria!
E Sant’Anna também,
E São Joaquim,
Para sempre, amém.
ORAÇÃO PARA CURAR BICHEIRAS DOS ANIMAIS
Mal que comeis
A Deus não louvais!
E nesta bicheira
Não comerás mais!
Hás de ir caindo:
De dez em dez;
De nove em nove
De oito em oito,
De sete em sete,
De seis em seis,
De cinco em cinco,
De quatro em quatro,
De três em três,
De dois em dois,
De um em um!
E nessa bicheira
Não ficará nenhum!
Há de ficar limpa e sã
Como limpas e sãs ficaram
As cinco chagas
De Nosso Senhor!
(Risca-se no ar uma cruz, e os bichos caem)
72
Estas orações não nasceram no Juazeiro, mas ali se praticam unidas a outras,
com êxito especial. Há, porém, preces peculiares aos romeiros, ou adaptadas de modo a
referir-se diretamente ao Padrinho.
Aqui está, por exemplo, a oração do “Justo Juiz”, para “fechamento do corpo”,
com evidente adaptação:
72
A propósito de orações sertanejas, ver o livro Ao som da viola, de Gustavo Barroso, e a curiosa obra de Aderson Ferro,
O dedo de Deus.
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
136 Juazeiro do Padre Cícero
Justo Juiz de Nazareth, filho da Virgem Maria, que em Belém fostes nascidos entre as
idolatrias, eu vos peço, Senhor, pelo vosso sexto dia, e pelo amor de meu padrinho
Cícero, que meu corpo não seja preso, nem ferido, nem morto, nem nas mãos da justiça
envolto. Pax tecum, pax tecum, pax tecum. Cristo assim se disse aos seus discípulos: Se
os meus inimigos vierem para me prender, terão olhos, não verão; terão ouvidos, mas
não ouvirão; terão boca, não me falarão; com as armas de S. Jorge, serei armado; com a
espada de Abraão, serei coberto; com o leite da Virgem Maria, serei borrifado; na arca
de Noé, serei arrecadado; com as chaves de S. Pedro, serei fechado aonde não me
possam ver nem ferir, nem matar, nem sangue do meu corpo tirar. Também vos peço,
Senhor, por aqueles três cálices bentos, por aqueles três padres revestidos, por aquelas
três Hóstias consagradas, que consagrastes ao terceiro dia desde as portas de Belém até
Jerusalém, e pelo meu Santo Juazeiro que com prazer e alegria eu seja também guarda-
do de noite, como de dia, assim como andou Jesus no ventre da Virgem Maria, Deus
adiante, paz na guia, Deus me dê a companhia que deu a sempre Virgem Maria, desde
a casa santa de Belém até Jerusalém. Deus é meu Pai, N. Mãe das Dores minha Mãe,
com as armas de S. Jorge serei armado, com a espada de S. Tiago serei guardado para
sempre. Amém.
A prática do “fechamento do corpo” contra armas de fogo, de qualquer nature-
za, e perseguição por parte da polícia, torna-se perfeita quando, além da oração acima,
cosida num bentinho, consegue o cangaceiro uma hóstia consagrada, furtada por ele do
altar-mor de uma igreja.
É sabido que Joaquim Pinto Moreira, o célebre guerrilheiro imperialista de 1832,
trazia sempre consigo relíquia semelhante. Segundo a tradição, que o povo do Cariri conserva,
não lhe foi possível dar a morte, por mais que o trucidassem no patíbulo que especialmente
para ele levantaram no Crato, sem que antes tivessem arrancado do corpo maltratado a hóstia
consagrada.
73
uuu
Há, no Juazeiro do Padre Cícero, duas corporações organizadas de fanáticos,
com regalias e funções especiais: a dos “beatos” e a dos “penitentes”.
O “beato”, sempre celibatário, “faz voto de castidade, real ou aparente, não
tem profissão, porque deixou de trabalhar, e vive da caridade dos bons e da exploração
aos crentes. Veste à maneira de frade: uma batina de algodão tinta de preto, uma cruz às
costas, um cordão de São Francisco amarrado à cintura, uma dezena de rosários, uma
centena de bentinhos, uns saquinhos com ‘breves’ religiosos e orações poderosas, tudo
pendurado ao pescoço... São geralmente indivíduos vagabundos, hipócritas, delirantes
religiosos ou bandidos”.
74
Os “penitentes” representam expressão mais acentuada de psicose. Deixam cres-
cer a barba, vestem uma longa túnica e procuram viver longe dos povoados. Os do Juazeiro
habitam na Serra do Horto, sob a chefia do prestigioso penitente Elias. Sua função é a de
reunirem-se à alta hora da noite, em trajes de amortalhados, junto aos cemitérios e cruzes
de estrada, para rezarem pela alma dos defuntos. As orações são intercaladas com atos de
“disciplina”, isto é, de castigos físicos produzidos por chicote e cilício.
75
73
Oliveira, Xavier de. Beatos e cangaceiros. Rio de Janeiro, 1920. p. 207.
74
Idem, ibidem, p. 39. No seu já citado discurso de defesa ao padre Cícero, na Câmara Federal, o dr. Floro Bartolomeu
confessou a existência dessas ordens de fanáticos, dando o nome dos seus principais chefes.
75
“O chicote com que se ferem ainda hoje os penitentes é uma tira de couro de quatro palmos de comprimento, tendo presas a uma
das extremidades quatro a 15 pontas de faca de mesa ou de cabo de colheres de latão, afiados de ambos os lados, medindo seis
centímetros mais ou menos de comprimento. O cilício é uma faixa de sola, de três dedos de largura, traspassada de tachas de
sapateiro, que se aperta à cintura por baixo da camisa, e cujas pontas se internam pelas carnes, ocasionando dores horríveis ao
menor movimento do corpo! Mesmo assim, usam-no por muitos dias” (Ferro, Aderson. O dedo de Deus. p. 336).
137
Função comum a beatos e penitentes é a de “ajudar a morrer” aos agonizantes.
Pode-se calcular facilmente o seu trabalho, nesse particular, quando se consi-
dera que a mortalidade no Juazeiro atinge a cifras inauditas. No Rio de Janeiro, com um
milhão de habitantes, morrem, em média, sessenta pessoas por dia; no Juazeiro, diz o dr.
Xavier de Oliveira – médico, filho da região e perfeito conhecedor da grande Meca sertane-
ja – , com quarenta mil habitantes apenas, morrem diariamente trinta pessoas!
Para “ajudar a morrer”, juntam-se alguns romeiros, que seguem o beato até a
casa do moribundo. Ali chegados, acende-se uma vela benta, e o beato inicia a ladainha,
repetindo sempre:
Jesus vai contigo, e Nossa Mãe das Dores é tua guia até a porta de São Pedro!... E o
Arcanjo Gabriel, com a sua espada na mão, te defenderá contra os ataques do “cão”!...
Depois da morte, iniciam-se os “cantos da sentinela”. Vai um romeiro ou
romeira “tirando adiante”, e os outros respondendo em coro, numa voz lamentosa e
profunda:
Nossa Mãe Nossa Senhora,
Virgem Santa e Mãe das Dores,
É a guarda de nós todos,
De nós todos pecadores.
Oh! Mãe gloriosa,
Oh! Mãe do Juazeiro,
Oh! Mãe virtuosa,
Oh! Mãe dos romeiros...
Tem duas beatas santas,
Na matriz do Juazeiro,
Meu padrim Cirço Romão
É o rei do mundo inteiro!...
E o coro repete, elevando a voz:
Meu padrim Cirço Romão
É o rei do mundo inteiro!...
uuu
Muitas vezes, aparecem no sertão, sob a forma de preces, sátiras cruéis contra
instituições e pessoas.
Não são sempre, evidentemente, criação do sertanejo. Há, nelas, a calculada
intervenção de que nos fala Van Geenep, por parte de um escol social. Mas, desde que a
oração-sátira corresponda a um sentimento popular, corre mundo, sempre fiel à sua forma,
porque o arranjo da oração facilita a retentiva.
Do tipo dessas orações, foi-nos fornecida por um conhecido jornalista
cearense a cópia da que vai abaixo transcrita, obtida por ele de um alfaiate, nas
Cajazeiras, Paraíba:
CREDO
Creio no Floro, todo-poderoso, deus do cangaço, e em José Inácio, seu primogênito
filho, o qual foi feito chefe político por obra e graça da falta de vergonha dos governos
do Ceará; nasceu da perversidade; padeceu sob o poder de Justiniano de Serpa, foi
Capítulo 14 – O Juazeiro no folclore
138 Juazeiro do Padre Cícero
perseguido, preso e interrogado, desceu ao “Barro” onde, logo na primeira noite, res-
surgiu do medo, fugindo para o Juazeiro, onde está assentado à mão direita do padre
Cícero e de onde ainda há de sair para roubar vivos e mortos; creio no rifle 44, na
proteção aos criminosos, na comunicação dos bandidos, na ressurreição dos “baru-
lhos” e na vida aperriada do sertanejo. Amém.
José Inácio, a que o “credo” se refere, foi chefe político do município de
Milagres. Imputam-se-lhe muitos assassínios, roubos, assaltos e outros crimes. Foi ele
o incendiador da vila Aurora. Perseguido pela policia, durante o governo de Justiniano
de Serpa, apesar de protegidíssimo pelo deputado Floro Bartolomeu, que chegou a dis-
cursar na Câmara Federal em defesa do “major” José Inácio, atravessou os sertões do
Nordeste e conseguiu internar-se em Goiás. Aí, segundo consta, foi morto num recontro
com bandoleiros de um caudilho goiano.
“Barro” era o nome da famosa fazenda de José Inácio, por muito tempo
valhacouto de bandoleiros da pior espécie.
139
Capítulo 15
Conclusão
Clamor que se levanta – Depoimentos insuspeitos – As responsabilidades
da Nação – O Juazeiro, índice de incultura geral – Considerações talvez
oportunas – Alfabeto e cultura, alfabeto e adaptação – Até onde podem
levar as considerações gerais – O problema brasileiro de cultura não é
apenas de alfabetização
141
Desse destino, de sua fatalidade, só escaparemos
por um caminho: o tomarmos, a sério, a resolução
corajosa de mudar de métodos – métodos de edu-
cação, métodos de política, métodos de legislação,
métodos de governo.
Oliveira Viana
A educação pública é a medicina radical. Ela dará
ao povo a possibilidade de curar-se por suas pró-
prias mãos, a despeito dos seus usurpadores.
Sampaio Dória
A simples enumeração dos fatos lembrados neste livro confrange a alma de
todo brasileiro culto.
Àqueles que nunca deixaram a estreita orla de civilização litorânea, de emprés-
timo, há de parecer que exageramos. E foi por isso que, deliberadamente, tolhemos o passo
a muitos comentários que estiveram no bico da pena; e foi por isso que substituímos sem-
pre, onde possível, o depoimento pessoal pelas declarações insuspeitas dos filhos da terra,
de bons cearenses que se têm revoltado contra o estado de coisas dos seus sertões, e clama-
do, em vão, por um remédio salutar...
Tendo reunido todo o material para estes escritos há mais de um ano, não os
publicamos também senão agora, por um sentimento natural de respeito aos homens de
melhor cultura do Ceará, de quem havia de esperar-se, mais dia, menos dia, uma reação
contra o fanatismo do Juazeiro. Essa tarefa, que exigirá ainda múltiplos e constantes esforços,
iniciada desde muito por esse varão de Plutarco, que é Rodolfo Teófilo, logrou recentemente
a adesão do padre Manuel Macedo, o qual, em panfleto que ressoa por todo o Norte, como
grito de revolta, disseca a vida da administração interna da Meca do Cariri, denunciando
abusos e crimes, com inaudita coragem... Nesta hora, outras vozes eloqüentes e destemerosas
se fazem ouvir. Em Fortaleza, os três jornais independentes – O Nordeste, O Ceará e o Correio
do Ceará – têm profligado os erros administrativos e as torpes explorações políticas sobre o
estranho fenômeno social do Cariri, cada dia mais ameaçador e potente.
Poder-se-ia ainda suspeitar desses depoimentos?...
Capítulo 15 – Conclusão
142 Juazeiro do Padre Cícero
Talvez, se fossem vozes isoladas. Eles concordam, porém, na sua essência, com
os que têm partido de pessoas sem ligação alguma com a vida política cearense, entre as
quais se evidenciam mons. Tabosa Braga, dr. Philipp von Luetzelburg, naturalista da Uni-
versidade de Munique, dr. Paulo de Morais Barros e, ainda há poucos dias, a do dr. Zenon
Fleury Monteiro, que, num ensaio econômico-social sobre o Nordeste brasileiro, entre al-
gumas opiniões talvez um pouco exageradas a respeito do sertanejo, estampou notas muito
precisas sobre o Juazeiro do Cariri.
76
uuu
Mas não é só ao grande estado do Nordeste que o caso interessa. Interessa a
todo o Brasil, a toda a Nação. Porque o Juazeiro é um índice do absoluto empirismo com
que têm agido governantes em face dos maiores problemas sociais do País. Incapazes de
prevenir os males naturais a que aquelas terras estão sujeitas, não só têm errado, muitas
vezes, mas tripudiado sobre a ignorância e a miséria, procurando colher, sobre caso tão
clamoroso, proventos pessoais.
É uma verdade dolorosa, mas inegável. Como dissimulá-la?...
Este livro não tem, contudo, a pretensão de ser um requisitório contra os possí-
veis exploradores de tal situação. O requisitório está, de há muito, magistralmente feito,
sem ter logrado levantar uma só palavra de contradita séria e desinteressada.
O que se deseja, com a publicação deste volume, é contribuir, modestamente
embora, para o diagnóstico dos males apontados, na intenção de que um dia se descubra o
terapeuta social necessário.
Estão, no entanto, aos olhos de todos, os remédios.
Eles se resumem, numa palavra, em maior liberdade política aos escravizados
estados do Norte e, em distribuição de justiça e educação, ao povo dos sertões.
uuu
A palavra “educação” aqui não significa apenas o ensino primário, tal como o
possuímos, ou trabalho alfabetizante.
O problema educacional brasileiro é muito mais complexo do que a simples
alfabetização, que só poderá ser proposta, como solução empírica, pelos que desconheçam
o meio e suas necessidades ou os resultados sociais do simples aprendizado da leitura e
escrita.
O problema não pode ter uma solução simplista como essa. A leitura pode ser
uma necessidade pública de organização e de progresso, um dos elementos de elevação do
indivíduo, ninguém o nega, mas não é elemento essencial das bases da cultura. É simples
instrumento.
Essas afirmações podem causar espécie. Também elas nos feriram desagrada-
velmente, antes de conhecer, por experiência própria, as condições de vida do interior do
País. Contudo, devem ser discutidas. A questão da quantidade e da qualidade de ensino,
num país de população rarefeita, como o nosso, é muito mais séria do que à primeira vista
possa parecer.
A essa população disseminada em pequenos focos dispersos, sem relação dire-
ta com o progresso do litoral, ao sertanejo atual, enfim, de pouco valerá saber ler, apenas.
Mais valerá, para cada mil cabeças, cem cabeças bem formadas, adaptadas às necessidades
e ao desenvolvimento da região, apetrechadas para lutar, vencer e impor-se aos demais,
76
Barros, Paulo de Morais. Impressões do Nordeste. São Paulo, 1923; Monteiro, Zenon Fleury. À margem dos Cariris. São
Paulo, 1926.
143
como exemplo e guia. Que valerá saber ler sem hábitos de observação e trabalho, sem
energias para pronta reação de adaptação ao meio?...
A ilusão da necessidade e urgência de alfabetização está na falsa analogia entre
o grande organismo do País, tomado como unidade, e o indivíduo. Assim como o indivíduo
necessita, para aparelhamento indispensável de cultura, em nossos dias, de saber ler e
escrever, supõe-se que a cultura nacional terá que começar pela imposição, a todos os
brasileiros, desse instrumento. O equívoco é manifesto. A unidade-Nação não é uma sim-
ples soma aritmética das unidades-indivíduo.
Se a vida mental do País fosse outra que não é; se as nossas tradições de cultura
ou de pseudocultura fossem mais naturais, dirigidas ao estudo e aproveitamento do que
somos e do que podemos; se a sua assimilação fosse tomada pelo próprio povo como uma
necessidade viva, imprescindível na luta pela existência, a panacéia do alfabeto teria outro
valor – mas não seria tudo, ainda. A verdade, porém, é que esse ambiente de idéias-força
nos falece, quase por completo. Nossa pretensa cultura, isto é, nosso caricato ensino se-
cundário e superior (aliás “profissional superior”, pois não temos nenhum instituto de
cultura superior desinteressada), ao invés de adaptar-nos à terra, de no-la decifrar, desadapta-
nos e dela nos procura isolar.
Tivemos disso uma demonstração impressionante, durante todo o tempo que
observamos o Nordeste, nas cidades e povoados.
No Ceará, como em todos os demais estados da região, a situação mental da
população pode ser assim resumida: vinte por cento sabe ler; o resto não sabe. Mas é o
povo ignorante que lavra a terra, planta, colhe, cuida do gado, extrai as riquezas naturais
e as faz transportar para os centros consumidores. A população letrada faz estéril buro-
cracia, quando não criminosa politicagem. E, quando o flagelo da seca ameaça a vida por
todos os sertões, é ainda o analfabeto que luta, que empiricamente descobre os meios de
defesa, cavando cacimbas, colhendo as pontas das árvores que sirvam de forragem, tan-
gendo o gado para as serras e os campos frescos do Piauí... A esse tempo, ao invés da
mesma atitude ativa ou de luta, o letrado permanece à espera... Não o faz por mal; fá-lo,
por desadaptação mental aos verdadeiros problemas de sua terra, por incapacidade de
ação eficaz.
O sertanejo, embora analfabeto, é um ser empiricamente adaptado ao meio.
Tão adaptado que só a maiores dificuldades emigra, e, quando o faz, procura voltar ao
torrão natal. O letrado, ao contrário, é um ser desadaptado em sua terra, pela qual é incapaz
de praticar o mínimo ato de melhoria. As exceções, como a desse político sui generis que é
o sr. Ildefonso Albano, para citar um exemplo, confirmam a regra: não são produtos da
educação brasileira.
77
O homem do sertão, o “Mané Xique-Xique”, o rude e ignorante, é o homem de
luta e valor. Malgrado a sífilis, a bouba, as verminoses e o tracoma, é ainda a vida e o
verdadeiro progresso, embora lento como o seu carro de bois. É a única força econômica
daquelas regiões. O letrado, do tipo atual, é, como regra, o parasita. E estando em suas
mãos o governo, a situação tende a perpetuar-se.
Longe estamos da intenção de fazer o elogio da ignorância. Justamente por isso
é que aqui abordamos o assunto. O que é fato é que a ignorância, sobredourada com a
cultura formal, desadapta e extirpa, muitas vezes, as melhores qualidades morais.
Precisamos já, urgentemente, imediatamente – enquanto é tempo! – , de apare-
lhos de verdadeira cultura, chamem-se institutos técnicos ou universidades, em que se pre-
parem homens que analisem os nossos verdadeiros problemas e os encaminhem a melhor
solução. Lampejos dessa verdadeira cultura, no sentido normal da palavra, têm produzido,
77
O sr. Ildefonso Albano educou-se na Áustria. Sua atividade de boa propaganda pelos verdadeiros problemas do Nordeste
tornou-o conhecido em todo o País.
Capítulo 15 – Conclusão
144 Juazeiro do Padre Cícero
com o mesmo homem rude dos sertões, com o mesmo mestiço que os pseudoletrados
desabonam, maravilhas de vida e progresso, como essas surpreendentes cidades modernas
que Frederico Lundgren e Delmiro de Gouveia fizeram surgir, uma junto às matas frescas do
litoral nordestino, e outra entre carrascais e penedos das margens do São Francisco...
O problema cultural brasileiro exige nesse momento, mais que tudo, uma for-
mação de elites, na ordem intelectual e na ordem moral. Isso não significa o abandono da
rede de escolas primárias, é evidente. Será preciso fazê-la crescer sempre. Na realidade,
porém, tal como elas operam e ainda por muito tempo poderão operar, de pouco poderão
significar para a coordenação mental do povo, sem a existência de guias, administradores,
verdadeiros políticos, capazes de compreender as necessidades e possibilidades do País.
Será preciso estabelecer, pois, um sistema de cultura técnica e superior que
forneça esses homens aparelhados à solução de prementes problemas, e que haverão de
reagir no sentido mesmo da educação popular nos rumos e no ritmo a desejar-se.
Os resultados não tardariam a aparecer, como Júlio de Mesquita Filho o
demonstrou em recente estudo:
Como se verificou em todo o mundo, deveremos começar por formular o problema
brasileiro – tarefa a que só os espíritos superiormente dotados e cultivados se poderão
abalançar – , para, depois, procurarmos a sua solução, pelo esforço conjugado e
metodizado de toda a Nação. Se nos resolvêssemos, de um instante para outro, a criar,
com o concurso de personalidades selecionadas entre os elementos tão abundantes
nos velhos centros da Europa, três universidades, no Centro, no Sul e no Norte do País,
atendendo às diferenças do meio brasileiro, em pouco tempo, em dez ou quinze anos,
não mais, veríamos operar-se, estamos certos, milagrosa transformação na mentalida-
de brasileira. Refundida a nossa cultura e restabelecida a disciplina na mentalidade do
povo, sob a ação purificadora daqueles núcleos de meditação e estudos, não tardaria
que a Nação se aquietasse e que desaparecessem os vícios inumeráveis do nosso apare-
lhamento político-administrativo, oriundos, na sua quase totalidade, da assustadora
insuficiência cultural dos nossos homens públicos. Filtrada através dos vários estratos
que constituem normalmente uma sociedade organizada e perfeitamente articulada, a
ação das elites formadas no cadinho dos centros superiores de cultura refletir-se-ia na
consciência popular. Esta não deixaria de reagir benéfica e eficientemente ante as ten-
tativas periódicas e cada vez mais ousadas dos detentores do poder, hostis às liberda-
des individuais.
78
Sem se descuidar do ensino primário e do ensino profissional, cuja extensão
iria tendo marcha normal, esses aparelhos de verdadeira cultura acabariam por produzir
não só a mais benéfica coordenação mental, como criariam o ambiente propício a um tra-
balho de educação popular extensa, pela escola, pela igreja, pelo livro, pelo cinema, pelo
rádio...
uuu
Nessa época, mal soarão, como evocações de um passado ominoso, as lembran-
ças dos males sociais que não podem ser agora escondidas, como esse, quase incrível, do
Juazeiro do Padre Cícero...
78
Mesquita Filho, Júlio de. A crise nacional. São Paulo, 1926. p. 90.
Notas finais
1. A flora do Ceará – 2. Notícia histórica sobre as secas – 3. O Juazeiro
e o ensino público – 4. A intervenção no Ceará – 5. Padre Cícero depu-
tado – 6. Testamento do padre Cícero Romão Batista – 7. Trecho de um
discurso do deputado Floro Bartolomeu
147
x 1. A flora do Ceará
A distribuição dos vegetais espontâneos sobre um território é o reflexo fiel das
condições físicas que nele predominam, porque as plantas são diretamente dependentes
da qualidade e da quantidade de nutrição no solo, de combinação com a temperatura e o
grau higrométrico do ambiente e suas precipitações. Possuem, é verdade, uma certa latitu-
de de adaptação, e, às vezes, os extremos biológicos podem ter certa amplitude, mas sem-
pre dentro de limites fixos. Cada vez, porém, que alguma mudança radical se opera em
qualquer dos fatores, influi isso no sentido de especializar a flor naquele lugar, ainda que
os outros fatores permaneçam os mesmos. São essas também as razões por que na flora
cearense se distinguem três principais agrupamentos florísticos: o do litoral, o das serras e
o das planícies, ou do sertão, correspondentes a três zonas climáticas em que se divide o
estado. Mas, como dentro de cada uma destas zonas climáticas os outros fatores físicos
nem sempre se conservam inalterados, as suas influências sobre a vegetação se exercem de
modos diversos, e os agrupamentos florísticos sofrem modificações que se manifestam por
diferenças correspondentes às diversidades daqueles fatores físicos.
O litoral – Assim é que, na extensa zona do litoral, cujo clima é bem definido e
constante, até uma distância mais ou menos considerável terra adentro, a topografia e a
constituição do solo determinam todavia três variações na flora que obrigam a uma divisão
em sociedades florísticas, conforme a maior ou menor resistência das espécies às emana-
ções salinas marítimas ou capacidade para adaptarem-se às condições que resultam da
predominância da areia ou da argila. Influi aí também a elevação, criando outras condições
nas montanhas que se prolongam para dentro dessa zona. Há, pois, a distinguir, no agrupa-
mento do litoral, a sociedade florística das plantas das areias, ou psamófilas; a sociedade
das que habitam os terrenos baixos, úmidos e argilosos, ou hidrófilas; e a das que povoam
as montanhas costeiras, ou plantas higrófilas, que, por isso mesmo, pertencem ao agrupa-
mento das serras, ou driático.
Sociedade hidrófila – Por detrás das dunas, onde as montanhas não irrompem,
estende-se uma larga faixa de terrenos, ora levemente ondulados, ora inteiramente planos
e úmidos, até muitas vezes alagadiços, de dez a trinta quilômetros de largura, com uma
flora peculiar curiosa, caracterizada pelo seu porte, mais arbustivo do que arborescente, e
Notas finais
148 Juazeiro do Padre Cícero
sua fisionomia de pseudoxerófila. São vegetais admiravelmente aparelhados para enfren-
tar as freqüentes alternações da seca e de umidade, quer atmosféricas, quer do solo.
79
As serras Flora das montanhas. Nas serras do Ceará, cujas altitudes variam de
600 a 1.100 metros, a mata se ostenta com os caracteres hidrófilos e driáticos; a associação
arbórea é mais desenvolvida e rica em variedade, enquanto que a associação herbácea é
menos interessante.
Flora dos altos píncaros e assentadas – Consta ela principalmente de arbustos,
na sua maioria rasteiros, e de ervas.
O sertão – É o sertão o mais interessante sítio florístico do território cearense,
quer pela sua extensão e pelo contraste frisante da vegetação, quer pela sua influência em
quase todos os ramos da atividade industrial daquela vasta zona. No sertão distinguem-se:
A caatinga – A feição topográfica do interior do Ceará, limitada pelas cordilhei-
ras laterais, é, como vimos, a de uma grande planície, suavemente inclinada do sul para o
norte por degraus ou tabuleiros, sobre os quais as elevações todas emergem como outras
tantas ilhas. Resulta desta disposição a grande uniformidade que se nota na sua flora,
porque contribui, essencialmente, para insular sobre a área total as feições climatológicas
em cada uma das estações do ano e tornar quase que idênticas às condições físicas de um
extremo a outro da planície.
80
A caatinga, que cobre três quintas partes do território cearense e quase com-
pletamente o sertão, assinala-se pela escassa aparência da associação arbórea, embora
persistente; como que esmaecida, se reduz no porte e na variedade pela rudeza do clima
e impropriedade do solo, rijo e adelgaçado. A associação herbácea, variada e rica, quase
toda periódica, mistura-se àquela. No inverno, misturam-se árvores e arbustos, entrela-
çando-se numa confusão ubérrima de viço e força, formando uma única associação mista
e hidrófila; no estio, se bem que permaneça uma e única, a associação florística torna-se
xerófila e reduzida a espécies arbóreas ou arbustivas resistentes e às poucas ervas rudes
e coriáceas que conseguem vencer o quase sempre longo tempo seco.
A vegetação das coroas – Nas coroas frescas de solo profundo e humífero dos
rios e riachos vegetam, com mais vigor, todas as espécies arborescentes, arbustivas ou
herbáceas das caatingas.
A flora dos pés de serras e serrotes do sertão, cuja vegetação, embora mais densa
do que na caatinga, é mais baixa e a erva menos variada e pouco desenvolvida. Às vezes, as
árvores apresentam notável crescimento.
A flora das várzeas baixas e lagoas possui uma vegetação herbácea rica em
espécies cujas flores são de agradável odor e belas.
A flora dos tabuleiros arenosos ou pedregosos do interior é pouca e enfezada;
neste sítio florístico, o que caracteriza o seu aspecto são as cactáceas e bromeliáceas, desta-
cando-se o xiquexique, o cardeiro, o mandacaru, o cabeça-de-frade, a macambira, etc.
A flora do leito arenoso dos rios, com abundantes moitas de resistente
jaramataia.
81
x 2. Notícia histórica sobre as secas
No Ceará, como em todo o Nordeste, não há senão duas estações no ano: o
inverno (estação das águas) e o verão (estação da seca). A primeira vai de fevereiro a junho,
nos anos normais, principiando com o solstício de março. O sertanejo aguarda ansioso o
79
Loefgren, Alberto. Notas botânicas do Ceará.
80
Idem, ibidem.
81
Pompeu Sobrinho, Tomás. Esboço fisiográfico do Ceará. Anuário Estatístico do Ceará. Dirigido pelo dr. G. de Sousa Pinto.
1922.
149
dia de S. José (19 de março), mormente se nada anunciou às suas esperanças o dia de Santa
Luzia (13 de dezembro). Em setembro, mês de fortes ventanias, caem neblinas ou peque-
nas chuvas; são as chuvas que o povo chama “de caju”, por prepararem a floração dos
cajueiros. Em dezembro, nos anos normais, caem pequenas chuvas ou, se o inverno é forte,
grandes aguaceiros. O fenômeno da seca tem flagelado periodicamente o Ceará, aparecen-
do, sempre, com intervalos muito irregulares; sua duração também tem variado de um a
quatro anos seguidos. O Barão de Studart, na sua Geografia do Ceará (Tip. Minerva, Forta-
leza, 1924), dá o seguinte quadro das secas havidas desde 1605.
Do quadro exposto, vê-se que a seca acompanha o Ceará desde o início de sua
vida histórica. Experimentou-lhe os terríveis rigores Pero Coelho de Sousa, o chefe da
primeira bandeira vinda ao seu descobrimento.
Notas finais
150 Juazeiro do Padre Cícero
A de 1721-1725 estendeu-se ao Piauí e sertões de Pernambuco e Bahia.
À de 1745 referem-se as atas de vereações da Câmara de Fortaleza e os escritos
do jesuíta João Brewer.
Foi tremenda a de 1790 a 1793, conhecida na tradição popular por seca grande.
Nunca vista, disse dela Feo Torres; inaudita, chamou-lhe Bernardo Manuel de Vasconce-
los; a que deixou mais tradições tristes, disse Pompeu; a mais extensa e fatal, afirmou
Araripe; a maior das secas, escreveu Abreu e Lima. A esta sobrepujou, todavia, a todos os
respeitos, a catástrofe de 1877-1879.
Extensa, profundamente devastadora, foi, com efeito, a seca de 1790 a 1793,
que Aires de Casal, na sua Corografia, coloca nos anos de 1792 a 1796; entretanto, como
acontecera na de 1777, que foi precedida de copiosos invernos de 1775 a 1776, chovera
regularmente em 1789, e até o Jaguaribe dera cheia.
Tristes recordações deixaram igualmente as secas de 1824-1825 e de 1845, a
primeira delas vinda em época de tremenda crise política e guerra civil e acompanhada de
epidemias, mormente a da varíola; ambas, porém, dão uma mui pálida idéia dos horrores
da que se lhes seguiu, a crismada pelo povo de seca dos três oito.
Os anos 1877-1878-1879 representam o acume da desolação e dos sofrimentos
da população cearense, o reinado da varíola sob todas as formas e com intensidade nunca
vista em país algum do globo, havendo o obituário de Fortaleza, em 1878, se elevado a
57.780 mortes, 24.989 à conta da varíola. Custou ao Ceará a seca de 1877-1879 a ruína de
toda a fortuna particular, o desaparecimento total da indústria criadora, 180 mil mortos e
125 mil expatriados.
O inventário da seca de 1915, em que a caridade do arcebispo D. Manuel Gomes
tanto sobressaiu, deu as tristes notas seguintes: 30 mil cearenses mortos, 42 mil emigrados,
importação de cereais no valor de 14.443 contos de réis, perda de 680 mil bovinos, 2 milhões
e 441 mil caprinos e ovinos, 211 mil cavalares, 112 mil asininos e muares e 243 mil suínos,
tudo no valor de 95 mil contos. Sabido, como é, que o Ceará tem as suas riquezas na agricul-
tura e na indústria pastoril, fácil é avaliar em que condições ficou após o flagelo desse ano.
O ano de 1919 registra a última crise climática com que a natureza inclemente
tem infelicitado o Ceará. Seus efeitos cruéis estão bem presentes à memória de todos.
82
A crônica pormenorizada das secas, desde a de 1877, tem sido feita pelo escri-
tor cearense Rodolfo Teófilo, também apreciado romancista e naturalista.
x 3. O Juazeiro e o ensino público
Que o padre Cícero Romão Batista nunca se interessou pela instrução – e mais,
que a tem embaraçado algumas vezes – , pode o autor deste modesto livro afirmá-lo com o
seu testemunho pessoal. Em 1922, sob a presidência do saudoso dr. Justiniano Serpa, ini-
ciou o governo do Ceará um sério movimento em prol do ensino primário. Como medida
preliminar, levantou a Diretoria de Instrução Pública, com o auxílio das municipalidades,
o cadastro escolar, serviço que reunia os dados de recenseamento das crianças de 6 a 12
anos, sua localização, oferecimentos de casas para escolas, pensão a professores, indicação
de pais dos alunos sobre programas, horários e férias, etc. Todas as municipalidades parti-
ciparam do movimento com notável entusiasmo. Em todos os municípios se fez o serviço
do cadastro, e, num grande número deles, esse serviço foi quase perfeito.
No Juazeiro, porém, foi impossível levá-lo a cabo. O padre Cícero Romão, como
prefeito municipal, não só se desinteressou da questão: proibiu que ali se efetuassem as
indagações necessárias!
82
Studart, Barão de. Geografia do Ceará. Fortaleza: Tip. Minerva, 1924.
151
Considerando as informações de seus auxiliares como exageradas ou tendencio-
sas, o autor deste livro, que ocupava em comissão o cargo de diretor do ensino, foi enten-
der-se pessoalmente com o prefeito do Juazeiro. Nada pôde conseguir. Não conseguiu,
também, como era de seu desejo, estabelecer nessa localidade um grupo escolar e, futura-
mente, um aprendizado profissional. Às repetidas objeções do diretor do ensino, o padre
respondia sempre que as duas escolas existentes não tinham sua matrícula completa, e,
portanto, seria inútil criar mais escolas... Entretanto, lugares menores, mais afastados de
estradas de ferro, possuem, desde 1923, grupos escolares e escolas reunidas, com funcio-
namento regular.
A propósito, convém insistir aqui sobre um engano de informação contido nas
interessantes conferências do dr. Paulo de Morais Barros, sobre o Nordeste “Impressões do
Nordeste brasileiro”, engano esse que o eminente patrício desfez quando estampou em
volume o seu notável trabalho. O dr. Paulo de Morais fora informado de que, no Juazeiro,
havia 82 escolas particulares, e, sincero como sempre, referiu-se a elas, com entusiasmo,
quando deu a público as suas impressões sobre a Meca do Cariri. Essa falsa informação
serviu como o maior argumento aos defensores do padre Cícero, na ocasião em que tentou
responder às conferências do dr. Morais Barros, na Câmara Federal, o deputado Floro
Bartolomeu. O engano era evidente. Em 1922, quando o dr. Morais Barros passou pelo
Ceará, havia, em todo o estado, apenas 205 escolas particulares. Em Fortaleza, cidade de
quase cem mil habitantes, era de 28 o seu número. Como seria possível apresentar o Juazeiro
82? Aliás, no seu discurso de defesa, o dr. Floro habilmente fugiu sempre a qualquer afir-
mação peremptória a respeito. Na estatística publicada em 1922, pela Diretoria de Instru-
ção do Ceará, há as seguintes notas sobre o Juazeiro:
População total do município, 22.077; população escolar (calculada, porque o prefeito
municipal obstou o recenseamento), 2.758; escolas estaduais, 3; matrícula, 178;
freqüência, 114; escolas municipais, 0; escolas particulares, 0; matrícula geral, 177;
freqüência geral, 114. Crianças em idade escolar freqüentando escolas, 6%; crianças
sem escolas, 94%.
Pela mesma estatística, se vê que os municípios com menor percentagem de
crianças em escolas eram os de Ipueiras (5%) e Juazeiro (6%). Essa é que é a verdade sobre
as escolas da Meca do Cariri. De 1922 a 1924, o governo do Ceará estabeleceu 16 grupos
escolares no interior do estado. No Juazeiro, porém, nada foi possível fazer até agora.
x 4. A intervenção federal no Ceará
Quando os fanáticos do padre Cícero cercavam a capital cearense, a Associação
Comercial de Fortaleza se dirigiu ao cel. Setembrino de Carvalho – inspetor da Região Mili-
tar, que aí se encontrava, tendo à sua disposição 1.500 homens do Exército – para pedir que
interviesse, de qualquer modo, para evitar a invasão da cidade. Sua resposta foi a seguinte:
IV REGIÃO DA INSPEÇÃO PERMANENTE
Quartel-General de Fortaleza, 27 de fevereiro de 1914, n
o
91
Ilm
o
Sr. José Gentil A. de Carvalho,
D. Presidente da Associação Comercial do Ceará
Em meu poder o ofício n
o
17 de ontem datado que me dirigiu a Associação Comercial,
que V. Ex
a
preside e no qual me consulta se o comércio, na conjetura de uma invasão
desta capital pelas forças oposicionistas ao governo do Exm
o
sr. cel. Marcos Franco
Notas finais
152 Juazeiro do Padre Cícero
Rabelo, pode contar com garantias e seguranças por parte da força federal aqui estaci-
onada. Em resposta confirmo o que disse na conferência a que se refere V. Ex
a
, isto é,
que a força federal garantirá o direito de vida e de propriedade sempre que for ameaçada
e quando a autoridade estadual for impotente para assegurá-lo. Bem certo é, porém,
que, se vier a travar-se alguma ação nas ruas desta capital entre as forças beligerantes,
muito difícil será, se não quase impossível, tornar efetivas aquelas garantias, pois a
intervenção da força federal neste momento crítico fá-la-ia assumir o papel de um
terceiro combatente, envolvendo-se em uma luta à qual deve ser estranha. Assim sen-
do, mandam a prudência, o patriotismo e o sentimento de humanidade, que os elemen-
tos conservadores desta capital façam convergir os seus melhores esforços no sentido
de evitarem que esta cidade venha a ser teatro de uma cruenta luta fratricida de lamen-
táveis conseqüências.
Devem todos honesta e dignamente buscar uma fórmula que neste momento se impõe,
capaz de resolver eficazmente a contenda política que empolga este Estado e que tanto
tem perturbado a vida política, econômica e social.
A propósito, posso afirmar a V. Ex
a
que a representação cearense no Congresso Federal
propôs ao Exm
o
Sr. cel. Marcos Franco Rabelo um alvitre capaz de solucionar a crise.
Aquela representação propôs a renúncia dos cargos de presidente e vice-presidente,
membros da Assembléia Legislativa do Estado, de ambos os partidos, e entrega do
poder ao governo federal, que resolverá a situação atual como melhor aconselharem o
seu patriotismo e grandes interesses do Estado, ficando assentado que o futuro presi-
dente será um político estranho à atual contenda, e que as eleições serão feitas com
toda a liberdade perante mesas organizadas pelas municipalidades eleitas em maio de
1912.
Aproveito a oportunidade para apresentar a V. Ex
a
os protestos de alta estima e consi-
deração.
Saúde e Fraternidade.
(a) Cel. Fernando Setembrino de Carvalho: dou fé. Fortaleza, 4 de março de 1914.
Pergentino Augusto Maia.
INSTRUÇÕES EXPEDIDAS PELO SR. MINISTRO DO INTERIOR E JUSTIÇA.
Ao Exm
o
Sr. Cel. Fernando Setembrino de Carvalho.
Sr. Coronel,
De acordo com o Decreto de 15 do corrente, que determina a intervenção do governo
federal no Estado do Ceará, nos termos do n
o
9 do art. 6
o
da Constituição da República,
e vos investiu da qualidade de representante do mesmo nesse ato de exercício da auto-
ridade nacional, para o fim de restabelecer ali a normalidade do governo republicano,
a eficácia das leis e a segurança das garantias de todos os direitos, tenho a satisfação de
comunicar-vos as instruções que devem servir de norma ao vosso procedimento no
desempenho da missão confiada à vossa competência, patriotismo, integridade e zelo
republicano.
O fim da Intervenção, que é restabelecer o governo republicano, radicalmente deturpa-
do em sua aplicação no Ceará, e o império das leis, adormecido na sua ação garantido-
ra, está expressamente determinado no decreto que a declarou. Para praticamente torná-
la efetiva, executareis o seguinte: 1) Assumireis o exercício do poder executivo do
Estado publicando um decreto declarando a vossa investidura nele por força da Inter-
venção decretada a 14 do mês corrente e conseqüente escolha da vossa pessoa para
efetivá-la em nome do governo federal; 2) No exercício do poder executivo vos limitareis
153
aos atos de administração indispensáveis para evitar a solução de continuidade na vida
do Estado, tudo de acordo com a Constituição e leis nele em vigor; 3) As nomeações para
os lugares vagos ou que forem vagando em virtude de exonerações que julgardes neces-
sárias para o bom desempenho de vossa missão, deveis fazer considerando os nomeados
em comissão; 4) Mandareis logo proceder ao balanço no Tesouro do Estado, encerrando
a escrita dos livros do mesmo e abrindo-se nova e especial durante o período da Interven-
ção; 5) Providenciareis para a manutenção da ordem de acordo com as leis e com a
autoridade com que vos achais investido como inspetor da Região Militar, em virtude do
ato do governo federal, que declarou o estado de sítio para esse Estado, empregando para
isso, além da força estadual, a força federal sob vosso comando, bem como requisitando
o auxílio de forças de mar, aí destacadas, para isto instruídas pelo ministro da Marinha;
6) A ação do governo federal nesse Estado não podendo coexistir com a situação revolu-
cionária em que o mesmo se acha fareis dissolver e desarmar quaisquer grupos irregula-
res que existam ou se apresentem sob qualquer nome, ou em qualquer localidade, o
mesmo fazendo se julgardes conveniente com as forças da polícia local, que podereis
reorganizar; 7) Na vossa qualidade de representante do governo federal no ato da Inter-
venção nesse Estado, gozareis de livre franquia para vossa correspondência pelo Correio
e Telégrafo Nacional; 8) Assegurada a ordem e garantidos os direitos aí feridos pela anômala
situação em que se encontra esse Estado, providenciareis acerca da reorganização dos
seus poderes legislativo e executivo, marcando, de acordo com a Constituição e leis do
Ceará, eleições para dentro do mais breve prazo possível, expedindo instruções e prati-
cando todos os atos indispensáveis para que as mesmas se realizem, assegurando com-
pleta liberdade de voto e regular e honesta apuração dos sufrágios; 9) Quando terminada
a vossa missão de representante do governo federal no ato da Intervenção no Ceará,
apresentareis ao mesmo, por intermédio deste Ministério, a que ficais subordinado, na
qualidade de delegado do governo federal na Intervenção, circunstanciado relatório dos
atos praticados durante a mesma.
(a) Herculano de Freitas, Ministro da Justiça e Negócios do Interior.”
x 5. Padre Cícero deputado
Sob o título “Crueldade e ridículo que deviam ser evitados”, publicou o diário
O Ceará, de Fortaleza, em seu número de 9 de abril de 1926, o seguinte artigo editorial:
O Ceará em peso ficou certo ontem de que o padre Cícero aceitou a sua candidatura
para representante do Estado.
O seu telegrama ao deputado José Accioly, por nós divulgado, afastou a esperança de
que o conhecido sacerdote, em um assomo de bom-senso, recusasse um mandato a que
não pode, por motivos diversos, dar cabal desempenho.
S. S
a
não só aceitou o honroso posto, mas também aproveitou a oportunidade para
manifestar o seu ressentimento contra os que se insurgiram contra essa idéia.
Estando nós entre os que pensam dever ser a representação de um Estado confiada a
sua elite intelectual e aos seus valores sociais, enfileiramo-nos por isso na legião con-
trária à indicação do nome do chefe político do Juazeiro.
Conosco está, nesse caso, a quase unanimidade da população cearense, o que não im-
pede a vitória da insignificante minoria do outro lado. Sempre fomos, e continuaremos
a sê-lo por muito tempo, governados por essa parcela diminuta do povo, constituída
pelos políticos profissionais.
A falta de organização das classes, a ignorância das massas, a ausência de imprensa
independente, todos esses fatores permitirão que os detentores das posições de mando
continuem imperturbáveis a dirigir a coisa pública sem consultar o sentir popular.
Notas finais
154 Juazeiro do Padre Cícero
Pouco lhes importam as simpatias ou a execração da coletividade; o que lhes interessa
é o monopólio dos cargos de onde possam eternizar o seu prestígio.
De nossa parte, estamos certos de que os cearenses não nos farão a injúria de supor que
os motivos determinantes de nossa atitude sejam ditados por interesses partidários ou
por afeições ou inimizades pessoais.
É-nos indiferente que o padre Cícero pertença à facção a ou b, e da sua pessoa jamais
recebemos senão provas de atenção cavalheiresca.
Distinguimos, porém, o homem público do particular. Devido a essa estranha confusão
é que cada agremiação política que atinge o poder divide entre os seus parentes e
amigos do peito os cargos por sua natureza destinados aos mais capazes, aos mais
dignos.
Examinemos a candidatura do padre Cícero à luz desse critério, e a conclusão que se
impõe aos seus maiores admiradores é que, mais uma vez, fomos malsucedidos na
escolha dos nossos representantes.
Possui o candidato conservador energia física e capacidade intelectual para desempe-
nhar com eficiência o mandato que se lhe vai confiar em nome do povo?
Evidentemente, não.
Octogenário, de saúde profundamente combalida, faltar-lhe-á talvez a força para
empreender uma viagem ao Rio, onde tem de exercer as suas funções de nosso
mandatário.
Sob o ponto de vista cultural, por mais baixo que esteja o nível da Câmara, S. S
a
não
está em condições de representar a intelectualidade cearense. De inteligência não aci-
ma do comum, tendo a ilustração teológica dos seus pares, o pastor do Juazeiro, por ter
confinado toda a sua vida na estreiteza do meio sertanejo, é hoje um cérebro anquilosado,
povoado de imagens do fanatismo e do cangaceirismo.
Se, à semelhança do general Potiguara, o novo deputado pretende ficar-se por aqui,
sem tomar parte nos trabalhos legislativos, nós temos o direito de protestar contra essa
transformação da bancada cearense em asilo de inválidos.
Se, ao contrário, concentrando as suas últimas energias, S. S
a
for ao Rio, assiste-nos
também a razão de salientar o ridículo que recairá sobre todos nós com a recepção do
povo carioca ao legendário chefe de fanáticos.
Imaginemos, por instante, a cena grotesca que será o desembarque, na capital do País,
do novo emissário do povo cearense.
Anunciada por todos os jornais a sua vinda, a população acorrerá ao cais para ver a
preciosidade que lhe envia o Ceará.
A figura do padre, com o seu longo bastão de pastor de cinema, ao lado da beata “Mo-
cinha”, de quem jamais se separa, constituirá “um número”, servirá de pasto aos jor-
nais e revistas cariocas, durante uma semana.
E quando, sempre de bastão, sempre acompanhado da beata, for ao Catete retribuir os
cumprimentos do chefe da Nação a que naturalmente chamará “meu camaradinha”,
então a cena será de um pitoresco irresistível.
Tudo isso só não prevêem os políticos do estado porque a esses é indiferente o conceito
em que possamos ser tidos.
Se mais zelosos pelo nome do Ceará e mais amigos do padre Cícero, os chefes dos
nossos partidos convenceriam ao velho sacerdote, para cuja vaidade agora apelaram,
que se retraísse na sua modéstia juazeirense e terminasse pacificamente os seus dias,
entre os fanáticos, seus filhos prediletos, e os bandoleiros, nutridos da sua tolerância.
x 6. Testamento do padre Cícero Romão Batista
Em nome de Deus, amém.
Eu, padre Cícero Romão Batista, achando-me adoentado, mas sem gravidade, e em
155
meu perfeito juízo, e na incerteza do dia da minha morte, tornei a resolução de fazer o
meu testamento e as minhas últimas disposições, para o fim de dispor dos meus bens,
segundo me permitem as leis do meu País. E como, devido ao meu atual incômodo, não
posso levar muito tempo apurado em escrever este longo documento, nem quero fazer
um testamento público, mas sim um testamento cerrado, de acordo com o artigo n
o
1.638 e seus parágrafos do Código Civil Brasileiro, pedi ao meu amigo Luís Teófilo
Machado, segundo tabelião de notas desta comarca, que por mim escrevesse este meu
testamento, em minha presença, e por mim ditado, reservando-me para assiná-lo com
o meu próprio punho.
Declaro que sou filho legítimo dos falecidos Joaquim Romão Batista e dona Joaquina
Vicência Romana e nasci na cidade do Crato, neste Estado do Ceará, no dia 24 de março
de 1844. Como profissão adotei o Ministério Sacerdotal, de acordo com as ordens que
me foram conferidas pelo então bispo do Ceará, D. Luís Antônio dos Santos, de saudo-
sa memória, exercendo-o, conforme a minha vocação, com amor, dedicação e boa von-
tade, e desejando assim continuar enquanto o bom Deus, pela sua divina misericórdia,
me conceder forças e consciência dos meus atos.
Declaro que desde a minha ordenação, mesmo durante o pouco tempo que fui vigário
da Paróquia de São Pedro do Crato, nunca percebi um real sequer pelos atos religiosos
que tenho praticado como sacerdote católico. Declaro ainda que todos os dinheiros
que me foram e continuam a ser dados, como ofertas a mim unicamente, os tenho
distribuído em atos de caridade, que estão no conhecimento de todos, bem como em
grandes e vantajosas obras de agricultura, cujo resultado tenho aplicado em bens, que
ora deixo, na mor parte, para a benemérita e santa congregação dos Salesianos, a fim de
que ela funde aqui, no Juazeiro, os seus colégios de educação para crianças de ambos
os sexos. Desde muito cedo, quando comecei a ser auxiliado com esmolas, pelos romei-
ros de Nossa Senhora das Dores, que aqui chegavam, a par do auxílio eficaz por mim
feito para o desenvolvimento desta terra, resolvi aplicar parte das mesmas esmolas
recebidas em propriedades, visando assim fazer um patrimônio para ajudar uma insti-
tuição pia e de caridade que pudesse aqui continuar a sua obra benfazeja. E porque,
dentre todas as existentes, nenhuma se me afigurava mais benemérita de ação mais
eficaz e de caridade mais acentuada do que as dos bons e santos discípulos de Dom
Bosco, os beneméritos salesianos, a eles deixarei quase tudo que possuo, conforme
adiante declaro. E rogo a esses bons e verdadeiros servos de Deus, os padres salesianos,
que me façam esta grande caridade, instituindo nesta terra uma obra completa. Estou
certo, não só porque conheço a índole deste povo aqui domiciliado, assim como das
populações sertanejas que aqui freqüentam e que por meio dos bons conselhos tenho
educado na prática do bem e do amor a Deus, e mais ainda, porque o pedido que faço,
estou certo, repito, que todos os romeiros aqui domiciliados ou de pontos distantes,
como prova de estima e amizade a mim e em louvor e honra à Virgem Mãe de Deus,
continuarão a freqüentar este meu amado Juazeiro com a mesma assiduidade, e auxili-
arão aos beneméritos padres salesianos, como se fossem a mim próprio, para manuten-
ção aqui da sua obra de caridade cristã, isto é, dos seus colégios nesta terra para todo o
sempre, será a maior tranqüilidade para minha alma na outra vida,
Declaro, outrossim, que os dinheiros que tenho recebido para celebrar missas, confor-
me a intenção das pessoas que mo têm dado, os tenho distribuído com o maior critério,
por intermédio dos padres e vigários desta e de outras dioceses e de algumas institui-
ções religiosas do País e do estrangeiro.
Devo acrescentar que os dinheiros que me têm sido entregues para eu aplicar como
entendesse e quisesse, na intenção, louvor e honra de Nossa Senhora das Dores, sem
nenhuma outra contradição, do mesmo modo os tenho aplicado com muita consciência
em atos de caridade, em auxílios a obras e instituições pias e em bens que ora deixo,
conforme vai adiante declarado, para Nossa Senhora das Dores, padroeira desta matriz, e
para a Santa Congregação dos Salesianos. Particularizo, desta maneira, a aplicação à
minha vontade, das importâncias em dinheiro, recebidas para distribuir na intenção de
Notas finais
156 Juazeiro do Padre Cícero
N. Sra. das Dores. Nunca me apoderei delas, ao contrário, ordenei sempre que fossem
recolhidas aos respectivos cofres da igreja matriz, os quais estiveram sempre sob a
guarda dos vigários da paróquia. Devo ainda declarar, por ser para mim uma grande
honra e um dos muitos efeitos da Graça Divina sobre mim, que, em virtude de um voto
por mim feito, aos doze anos de idade, pela leitura nesse tempo que eu fiz na vida
imaculada de São Francisco de Sales, conservei a minha virgindade e a minha castida-
de até hoje. Afirmo que nunca fiz mal a ninguém, nem a ninguém votei ódio nem
rancor e que sempre perdoei, por amor de Deus e da Santíssima Virgem, a todos que
me fizeram mal consciente e inconscientemente.
Preciso ainda elucidar um assunto ao qual meu nome por circunstâncias especiais se
acha ligado, porém no qual minha ação, aliás pacífica, conciliadora e sempre ao lado
do bem, tem sido injustamente deturpada pelos que se deixaram dominar pelas pai-
xões do momento ou não souberam interpretá-la. Nunca desejei ser político; mas em
1911, quando elevado o Juazeiro, então povoado, à categoria de Vila, para atender aos
insistentes pedidos do então presidente do Estado, o meu saudoso amigo Comendador
Antônio Pinto Nogueira Accioly, e ao mesmo tempo evitar que outro cidadão, por não
saber ou não poder manter o equilíbrio de ordem até esse tempo por mim mantido,
comprometer-se a boa marcha dessa terra, vi-me forçado a colaborar na política. Ape-
sar das bruscas mutações da política cearense, sempre procurei conservar-me em atitu-
de discreta, sem apaixonamentos, evitando sempre as incompatibilidades que pudes-
sem determinar choques de efeitos desastrosos. Para isso conseguir, muitas vezes tive
de me expor ao conceito de homens sem idéias bem definidas. Após a queda do gover-
no Accioly, por motivo de ordem moral, retraí-me da política, mantendo, entretanto,
relações de cordialidade com o governo Franco Rebêlo, sendo até eleito 3
o
vice-presi-
dente do Estado. E o meu amor à ordem foi tão manifesto que, a despeito da má vonta-
de do partido dominante para comigo, não hesitei em atender o pedido da população
desta terra e autorizar que o meu nome fosse apresentado para voltar ao cargo de pre-
feito do município, naquele mesmo governo que me era sobremaneira hostil. Quando
em novembro de 1913, o meu amigo dr. Floro Bartolomeu da Costa, atual deputado
federal por este Estado, o diretor político desta terra, de volta do Rio de Janeiro, me
informou que os chefes do partido decaído haviam resolvido reunir a Assembléia Esta-
dual aqui, por ser impossível a reunião em Fortaleza, em virtude da pressão exercida
pelo partido governante, e dar-lhe a direção do movimento reacionário, com a maior
lealdade ponderei em carta reservada ao coronel Franco Rebêlo sobre a vantagem de
sua renúncia, E assim procedi, porque, sem de nada mais grave propriamente saber (a
não ser da reunião da Assembléia), percebi, pelos precedentes da violência do gover-
no, a possibilidade de uma luta. Não sendo, porém, atendido pelo então presidente
coronel Franco Rebêlo, e não podendo este evitar que à sombra do seu nome fossem
cometidos atos de desatino, entre os quais bárbaros assassinatos e espancamentos,
considerei finda a minha árdua tarefa, afastando-me do campo de ação política, dei-
xando ao mesmo tempo que o dr. Floro agisse segundo as ordens recebidas, já que não
me era possível poupar esta população laboriosa da triste condição de vítima indefesa.
E no período mais agudo da luta, cujo curso de gravidade foi para mim uma surpresa,
podem garantir os que a testemunharam aqui, que a minha atitude era lastimar as
desastrosas conseqüências dos erros políticos.
Jamais deixei de ser no sentido de evitar violências. De maneira que posso afirmar, sem
nenhum peso de consciência, que não fiz revolução, nela não tomei parte, nem para ela
concorri, nem tive nem tenho a menor parcela de responsabilidade direta ou
indiretamente nos fatos ocorridos. Eleito no biênio do governo Benjamim Barroso, pri-
meiro vice-presidente do Estado, apesar deste rompido politicamente com o dr. Floro
Bartolomeu, sempre com ele mantive a maior cordialidade. Não tenho culpa é que, por
um despeito malentendido e de ordem política, houvesse e ainda exista quem me quei-
ra tornar por ela responsável. Estou certo de que quando se fizer, sem paixão, a verda-
deira luz, sobre estes fatos, meu nome realçará limpo como sempre foi. Faço estas
declarações neste momento, para que os que me sobreviverem fiquem cientes (porque
157
perante Deus tenho a minha consciência tranqüila) que neste mundo, durante toda
minha vida, quer como homem, quer como sacerdote, nunca, graças a Deus, cometi um
ato de desonestidade seja sobre que ponto de vista se possa ou queira encarar, nem
nunca cometi, nem alimentei embuste de espécie alguma. Aproveito o ensejo para
pedir a todos os moradores desta terra, o Juazeiro, muito especialmente aos romeiros,
que depois da minha morte não se retirem daqui nem o abandonem, que continuem
domiciliados aqui, no Juazeiro, venerando e amando sempre a Santíssima Virgem Mãe
de Deus, único remédio de todas as nossas aflições, auxiliando a manutenção do seu
culto e de todas as instituições religiosas que aqui se fundem, e com especial menção a
dos beneméritos padres salesianos que serão os meus continuadores nas obras de cari-
dade que aqui iniciei. Insistindo, peço, como sempre aconselhei, que sejam bons e
honestos, trabalhadores e crentes, amigos uns dos outros, obedientes e respeitadores
às leis e às autoridades civis e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, no seio da
qual tão-somente poderá haver felicidade e salvação. Torno extensivo este meu pedido
também a todos os meus amigos, pessoas de outros estados e dioceses, romeiros tam-
bém da Santíssima Virgem Mãe de Deus, isto é, que continuem a visitar o Juazeiro, em
romaria à Santíssima Virgem, como sempre o fizeram, auxiliando a manutenção do seu
culto e das instituições religiosas que aqui forem criadas, e com especial menção, repi-
to, a dos beneméritos padres salesianos, que serão aqui no Juazeiro os meus
continuadores na obra de caridade que empreendi; e que sempre sejam bons e hones-
tos, trabalhadores e crentes, amigos uns dos outros e obedientes e respeitadores às leis
e às autoridades civis e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, no seio da qual
tão-somente poderemos encontrar felicidade e salvação. Estes conselhos, que sempre
dei em minha vida, não me canso de repeti-los aqui, para que, depois de minha morte,
bem gravados fiquem na lembrança deste povo, cuja felicidade e salvação sempre fo-
ram objetos da minha maior preocupação.
Não tenho ascendentes vivos nem tampouco descendentes, e assim julgo poder dispor
de meus bens, que livres e desembaraçados se acham, de acordo com as leis do meu
País e do modo por que desejo e como se segue e o faço na plenitude de minhas facul-
dades e da mais livre e espontânea vontade:
– Primeira – Deixo para a Ordem dos Padres Salesianos todas as terras que possuo nos
sítios Logradouro, Salgadinho, Moxila, Carás, Pão Seco, que pertenceu ao velho Antô-
nio Félix, neste município; o sítio Conceição, na Serra do Araripe, município do Crato,
onde reside o empregado Casimiro; os terrenos que possuo na Serra do Araripe e mais
o sítio Brejinho, ao sopé da mesma Serra do Araripe, no município do mesmo nome; os
prédios e a capela em construção na Serra do Horto, e todas as suas benfeitorias; o
prédio onde funciona o Açougue Público, desta cidade, sito à Avenida dr. Floro, antiga
Rua Nova; os prédios contíguos à residência da religiosa Joana Tertulina de Jesus, co-
nhecida por Beata Mocinha, onde também resido atualmente, sitos à Rua São José; o
sítio Faustino, sito no município de Crato; o sítio Paul, também no município do Crato,
porém depois do falecimento da antiga proprietária, D. Hermelinda Correia de Macedo,
que ainda nele reside, salvo se antes de sua morte, de acordo com os padres salesianos,
ficar morando em outro lugar; o sítio Baixa Danta, no município do Crato; as fazendas
Letras, Caldeirão e Monte Alto, no município de Cabrobó, no Estado de Pernambuco,
com todas as benfeitorias e gados nela existentes; o quarteirão de prédios sito à Rua S.
Pedro, os quais comprei ao dr. Floro Bartolomeu da Costa, nesta cidade, inclusive o
prédio em construção na mesma rua, contíguo à casa de morada e de negócio do meu
amigo Damião Pereira da Silva; a Fazenda Juiz, sita no município de Aurora, que com-
prei aos frades do Convento de S. Bento, de Quixadá; o prédio onde funciona o Orfana-
to Jesus, Maria e José; o terreno contíguo a este mesmo prédio; o prédio em construção,
junto à casa da Beata Mocinha, onde resido, à mesma Rua S. José; o sítio Fernandes, no
município do Crato; o sítio Periperi, no sopé da Serra de São Pedro do município do
mesmo nome, porém depois da morte de sua então proprietária, D. Maria Souto, salvo
se esta, de acordo com os padres salesianos, quiser morar em outro lugar; os sítios
Santa Rosa e Taboca no município do Crato; o sítio Rangel, sito no município de Santana,
Notas finais
158 Juazeiro do Padre Cícero
que comprei a D. Joana de Araújo, e todas as propriedades com todas as suas benfeitorias
igualmente a estas por mim citadas que possuo ou venha a possuir e que não constam
deste testamento, bem como todos os gados que possuo por toda a parte que não per-
tençam a outras pessoas ou herdeiros estabelecidos nas cláusulas deste testamento
que ora faço, repito, deixo para os beneméritos padres salesianos. Suplico aos mesmos
padres que terminem a construção da capela do Horto. Devo dizer, para evitar concei-
tos inverídicos e suspeitos, em torno do meu nome, que comecei a construí-Ia para
cumprir um voto que eu e os meus falecidos colegas e amigos, os padres Manuel Félix
de Moura, Francisco Rodrigues Monteiro e Antônio Fernandes Távora, então vigário do
Crato, fizemos. Esse voto fizemos quando, apavorados com os resultados da seca de
1889, receamos, aliás com razão justificada, que o ano de 1890 fosse também seco –
com o povo desta terra, ao Santíssimo Coração de Jesus. E como essa obra não pude
terminar, muito a contragosto, é verdade, tão-somente para não desobedecer às ordens
proibitórias do meu diocesano, o então bispo do Ceará, D. Joaquim José Vieira, peço
aos beneméritos padres salesianos que concluam esse templo de acordo com a planta
que trouxe de Roma e a miniatura em folha-de-flandres que deixo em lugar bem segu-
ro. Deixo mais para os padres salesianos a imagem em vulto grande do Senhor Morto,
que me veio de Lisboa.
– Segunda – Deixo para a Santíssima Virgem Mãe das Dores desta Matriz de Juazeiro os
seguintes bens: o sítio Porteiras, onde mora o meu encarregado José Inácio Cordeiro; o
sobrado onde Manuel Sabino tem a loja de santos, à Rua Padre Cícero; o prédio onde
funciona a Cadeia Pública desta cidade, sita à Avenida dr. Floro, bem como os demais
que se seguem contiguamente à mesma rua e na Rua Padre Cícero; o prédio onde mora
Dona Rosa Esmeraldo, bem como os prédios contíguos, que foi o oratório do Senhor
Morto, e o que reside a beata Soledade e mais ainda o terreno murado a este contíguo;
o prédio onde morou a beata Isabel da Luz; o prédio onde funcionaram as redações d’O
Rebate e da Gazeta do Juazeiro, todos à Rua Padre Cícero, e os cômodos situados no
consistório da matriz, onde funciona o colégio do dr. Diniz, e mais ainda o sítio Palmei-
ra, no município de Ceará-Mirim, Estado do Rio Grande do Norte, com vinte braças de
largura, sem plantio mas com água permanente, cujo meu encarregado é Pedro Vascon-
celos; o sítio Petitinga, do município de Touros do Rio Grande do Norte, com vinte
braças de largura, com água permanente e cerca de 230 coqueiros; o sítio Saco, do
mesmo município de Touros, com cento e vinte braças de largura, água permanente, e
com cerca de dois mil pés de coco, entre velhos e novos, também no Rio Grande do
Norte, e dos quais é meu encarregado Alexandre Maurício de Macedo. Declaro mais
que esses bens que deixo para Nossa Senhora das Dores, padroeira desta matriz, não
poderão ser vendidos ou alienados sob que pretexto for. E, no caso de quem quer que
seja encarregado da direção do patrimônio de Nossa Senhora das Dores entender de
vendê-los ou aliená-los, passarão todos esses bens a pertencer à Congregação dos
Salesianos.
– Terceira – Deixo para Maria de Jesus (vulgo Babá), para Teresa Maria de Jesus (vulgo
Teresinha do Padre), para a beata Jerônima Bezerra (vulgo Geluca) e para Maria Eudóxia
da Assunção, o prédio onde residiu e faleceu minha saudosa irmã Angélica Vicência
Romana, sito à Rua Padre Cícero, para nele residirem, sendo que, por morte da última
sobrevivente, passará o dito prédio a pertencer à Congregação dos Salesianos. Entre-
tanto poderão estas minhas herdeiras durante a vida passar o referido prédio aos pa-
dres salesianos, caso entendam e queiram ou entrem em acordo em trocar com os
mesmos padres, este mesmo prédio por outro onde possam morar, contanto que, por
morte da última sobrevivente, fique o mesmo prédio trocado para os padres salesianos.
– Quarta – Deixo para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro daqui do Juazeiro, cuja
capela está construída no cemitério desta cidade, os seguintes bens: o sítio Porteiras,
que pertenceu ao velho Raimundo Pinto, sito neste município, à estrada do Crato, e
uma importância em dinheiro conforme vai declarado mais adiante. Devo declarar que
esta capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que por proibição do meu superior
159
ainda não foi benta para ser entregue ao culto dos fiéis, fiz construir no cemitério
público desta cidade, para cumprir um voto feito pela virtuosa e falecida Hermínia
Marques de Gouveia, quando eu estive à morte de uma moléstia muito grave. Nessa
capela fiz sepultar o seu corpo, como última recompensa do seu grande esforço, e bem
assim os corpos das boas servas de Deus, Maria Joaquina, Maria de Araújo, minha boa
mãe Joaquina Vicência Romana e minha querida irmã Angélica Vicência Romana. E
desejo e peço que não sejam dali retirados os seus restos mortais e suplico mais que
nesta mesma capela seja sepultado para sempre o meu corpo.
– Quinta – Deixo para o meu amigo e compadre Conde Adolfo Van Den Brule, e seus
legítimos herdeiros, o sítio Veados, deste Município.
– Sétima – Deixo de botar a Sexta declaração porque quem a copiou do original esque-
ceu-se de transcrever esta cláusula (Jeová). Deixo para a capelinha de Nossa Senhora
do Rosário, no antigo cemitério desta cidade, sita à Avenida dr. Floro, antiga Rua Nova,
o sítio S. José, que pertenceu a Gonçalo e sua mulher D. Ana Rodrigues.
– Oitava – Deixo para as duas filhas do meu primo Francisco Belmiro Maia, a casa onde
residem nesta cidade, à Rua Padre Cícero, e o sítio Carité, neste município, os quais
bens, por morte da última, passarão a pertencer à Congregação dos Salesianos.
– Nona – Deixo para o meu amigo José Inácio Cordeiro, pelos bons serviços que me tem
prestado, o sítio Arraial do município de Missão Velha.
– Décima – Deixo para a Casa de Caridade do Crato o sobrado onde residiu José Joaquim
Teles de Marrocos, sito à Rua Grande, da cidade do Crato, e a pequena casa encravada
nos fundos do mesmo sobrado, à Rua da Laranjeira, na mesma cidade.
– Décima primeira – Deixo a minha propriedade Fazenda Coxá, encravada nos municí-
pios de Aurora e Milagres, e compreendidos na mesma área os sítios Coxá, propria-
mente dito, Contendas, Escondido, Taveira e Bandeira, com todas as benfeitorias e com
todos os meus direitos nas minas de cobre que ditas terras possam conter, bem como o
sítio Lameiro, no município de Missão Velha, para que sejam vendidos e, com a impor-
tância adquirida pela venda dessas mesmas propriedades, sejam pagas as dívidas que
eu possa deixar quando morrer, as despesas do meu enterramento e os sufrágios de
minha alma. E o que sobrar dessa mesma importância seja entregue a Maria das Malvas,
a Maria de Jesus (vulgo Babá), a Teresa Maria de Jesus (vulgo Teresinha do Padre), a
beata Jerônima (vulgo Geluca), Maria Eudóxia da Assunção e a cada uma das filhas do
meu primo Francisco Belmiro Maia, quinhentos mil réis para cada uma, e o que sobrar
seja entregue à Congregação Salesiana que aqui se fundar, para os seus respectivos
padres celebrarem missas por minha alma e na intenção de Nossa Senhora das Dores e
das almas do Purgatório.
Décima segunda – Deixo ainda para Maria das Malvas, Maria de Jesus (vulgo Babá),
Teresinha do Padre, beata Geluca e Maria Eudóxia da Assunção o sítio Barro Branco, neste
município, para desfrutarem enquanto viverem, o qual, por morte da última sobrevivente,
passará a pertencer aos Salesianos.
Décima terceira – Desejo ser sepultado, conforme já disse no começo deste testamento,
na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no cemitério desta cidade, e que os
meus funerais sejam feitos com simplicidade, bem como que sejam rezadas pelo eterno
repouso de minha alma doze missas em cada ano, durante cinco anos, igualmente o
mesmo número de missas, durante o mesmo tempo, para as almas do Purgatório.
– Décima quarta – Deixo mais todos os bens que deixaram de ser citados neste testa-
mento e os que possa adquirir depois desta ocasião, até o meu falecimento, repito, bens
móveis, imóveis e semoventes, à Congregação dos Padres Salesianos.
– Décima Quinta – Nomeio meus testamenteiros os meus amigos dr. Floro Bartolomeu
da Costa, atualmente deputado federal por este Estado, o conde Adolfo Van Den Brule
e o coronel Antônio Luís Alves Pequeno, servindo um no impedimento do outro na
ordem em que se acham colocados. Os meus referidos testamenteiros terão a posse e
administração da herança na ordem em que se sucederem e, bem assim, perceberão,
Notas finais
160 Juazeiro do Padre Cícero
respeitada a mesma ordem, dez por cento (10%) em dinheiro sobre toda a herança,
líquida compensação dos trabalhos testamentários. E por tal modo e forma concluo
este meu testamento que em meu perfeito juízo e de minha livre e espontânea vontade,
sem constrangimento nem tampouco induzido por quem quer que fosse, ditei ao meu
amigo Luís Teófilo Machado, segundo tabelião desta comarca, e assino com o meu
próprio punho, de acordo com o Código Civil Brasileiro em vigor, e peço à justiça de
meu País que o cumpra e mande cumpri-lo tão inteira e fielmente como nele se contém,
declarando mais ficar por este testamento revogado outro qualquer testamento que
porventura existir. E por modo tal concluo e termino este meu testamento. Declaro em
tempo que, por uma resolução por mim tomada neste momento antes de assinar este
testamento, ficam sem vigor os legados que faço dos sítios Veados e Santo Antônio,
deste município, cuja doação a quem desejo fazer as realizarei por escritura pública,
bem como não ficarei inibido de vender os bens que deixo reservados na cláusula
décima primeira, antes de morrer, para satisfação de quaisquer compromissos. Juazeiro,
4 de outubro de 1923. (4/10/23, repetidos mais quatro vezes sobre uma estampilha
federal de 20$000 e quatro outras estaduais no valor de 3$300). – Padre Cícero Romão
Batista.
uuu
Saibam quantos este instrumento de auto de aprovação de testamento virem, que no
ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil novecentos e vinte e três
(1923), aos quatro dias do mês de outubro, nesta cidade do Juazeiro, Estado do Ceará,
em casa de residência do reverendíssimo padre Cícero Romão Batista, onde eu, tabe-
lião vim, e sendo ele ali presente que reconheço pelo próprio, que se acha de pé, em
seu perfeito juízo e entendimento, segundo o meu parecer e das testemunhas que
presentes estavam e positivamente foram convocadas perante as quais por ele testa-
dor das suas mãos às minhas foi dado este papel fechado e cosido, dizendo-me que
era seu testamento, que eu mesmo a seu rogo e ditado por ele lho fizera, que queria
que lhe aprovasse; o qual papel eu aceitei e achei com efeito ser o testamento do
súdito reverendíssimo padre Cícero Romão Batista, escrito em vinte e uma laudas de
onze folhas de papel e não achado em todo, borrão, risco ou entrelinha, nem coisa
que dúvida faça, lhe perguntei se aquele efetivamente era o seu testamento e queria
que eu o aprovasse, na presença das testemunhas abaixo assinadas, a que respondeu
que este era o seu testamento e última vontade; que tinha por bom, firme e valioso;
que por ele revogava outro qualquer; que rogava à justiça da República lhe desse
cumprimento de justiça; que era seu desejo ficasse fechado, cosido e lacrado e que
não fosse aberto senão depois do seu falecimento; e por não ter coisa que dúvida
fizesse, rubriquei as vinte e uma laudas de papel em que se acha escrito o testamento
com o meu apelido de L. Machado e lhe aprovei e houve por aprovado na forma da
lei, com todas as solenidades de direito, e ficará fechado, cosido e lacrado com sete
pingos de lacre, sendo quatro por fora e três no centro. E para constar fiz este auto de
aprovação que assina ele testador, do que dou fé, sendo testemunhas presentes João
Leodegário da Silva, natural do Estado de Pernambuco, negociante; Irineu Olímpio
de Oliveira, natural da Bahia, agrimensor; Abílio Gomes de Sá, natural do Estado de
Pernambuco, negociante; e José Furtado Landim, natural deste Estado, escrivão da
Coletoria Estadual neste município e comarca. Todos residentes nesta cidade, que
reconhecem ser dito testador o próprio, de que dou fé, e assinarão depois de lhes ser
lido por mim tabelião, este auto de aprovação. E eu Luís Teófilo Machado, segundo
tabelião o escrevi e assino em público e raso. Em testemunho (o sinal) da Verdade. O
2
o
tabelião Luís Teófilo Machado. – Padre Cícero Romão Batista, João Leodegário de
Sá, Irineu Olímpio de Oliveira, Abílio de Sá, Francisco José de Andrade, José Furtado
Landim. (Estava colocada e legalmente inutilizada uma estampilha estadual de tre-
zentos réis). Juazeiro, 28 de julho de 1934. Está conforme ao original, donde foi copi-
ado fielmente. Ressalvo os borrões. Dou fé. – Antônio Machado, 2
o
tabelião público
interino.
161
x 7. Trecho de um discurso do deputado Floro Bartolomeu
*
O sr. Floro Bartolomeu – Sr. presidente, venho à tribuna para responder ao dr. Paulo
Morais e Barros, que, juntamente com o General Rondon e o nosso digno colega sr.
Simões Lopes, foi, em comissão do Governo, inspecionar as obras do Nordeste.
Esse cavalheiro, não satisfeito com o que já havia dito no relatório da Comissão, procu-
rando ofuscar o mérito de seus companheiros (assim me parece) e destacar-se a ponto
de tornar-se alvo da admiração do público, entendeu de fazer literatura; e, a título de
“Impressões sobre o Nordeste”, fez, aqui, nesta capital, na Associação dos Empregados
do Comércio, três conferências; e, não contente ainda, querendo ampliar o campo de
sua ação literária, pressuroso foi repeti-las na capital de S. Paulo.
No relatar o que viu de passagem no seu automóvel, e mal ouviu dizer naquelas paragens
sertanejas, arvorando-se em psicólogo e observador consumado, “meteu os pés pelas mãos”,
e, confundindo “alhos com bugalhos”, ficou de tal modo atrapalhado que, por fim, “vomi-
tou cobras e lagartos” sobre o povo de Juazeiro, pelo qual foi tão carinhosamente recebido.
Por falta de elementos ou de capacidade de observação, para melhor fazer a sua “fita”
(permita-me V. Ex
a
, sr. presidente, que assim o diga), aproveitou os falsos boatos que
porventura possam por ali circular, e, à guisa de observação pessoal, escolheu a cidade de
Juazeiro, o padre Cícero e um ilustre francês, engenheiro de minas, ali residente, e sobre
estes e aquela localidade fez as referências mais grosseiras e mais injuriosas.
Imagine V. Ex
a
, sr. presidente, que à localidade chamou de “acampamento de casebres
e mocambos em promiscuidade sórdida”; ao povo, de “massa de gente soez”; ao padre
Cícero, de “chefe complacente de cangaceiros”, e ao conde Adolfo Van den Brule, de
“refinado canalha”!
Ora, sr. presidente, sendo aquela cidade o local da minha residência, o meu amigo
padre Cícero político em evidência, o conde Adolfo meu íntimo amigo, e aquele povo o
maior elemento eleitoral que possuo, não me seria lícito, com o meu silêncio, deixar
prevalecer um conceito tão deprimente.
Além disso, sendo eu um deputado, e o maior número de eleitores que sufragaram o
meu nome nas urnas pertencente àquela localidade, eu não teria a satisfação de ser tido
nesta Casa como representante de fanáticos e bandidos.
Eis por que o assunto sobre o qual vou fazer algumas considerações deixa de ser regio-
nal para tornar-se nacional.
Acredito que esse conferencista não supôs encontrar um tropeço na sua incipiente
carreira literária; mas é mesmo assim: Deus quando quer castigar os mortais tira-lhes a
visão das coisas. Foi realmente o que aconteceu e é o que acontecerá sempre a todo
aquele que se “meter em camisas de onze varas”.
Deixo a análise da literatura do dr. Morais e Barros para os nossos colegas Augusto de
Lima, Domingos Barbosa, Costa Rego e tantos outros...
O sr. Augusto de Lima – Está em muito boas mãos.
O sr. Floro Bartolomeu – ... porque isso não é para quem quer, mas para quem pode.
O sr. Augusto de Lima – V. Ex
a
fala com muito boas letras.
O sr. Floro Bartolomeu – Refiro-me ao dr. Morais e Barros, que, apesar de ter idade
maior do que a do Cristo, ainda não compreendeu que não dá para literato...
Sabem todos que o padre Cícero tem sido mal julgado através de alguns jornais e pelos
comentários de alguns despeitados e dos inconscientes que, no juízo a respeito dos
homens e das coisas, “pegam a garça no ar” e, irresponsavelmente, proclamam o que
ouvem e o que nunca ouviram dizer.
O sr. Augusto de Lima – Se a lenda do padre Cícero é como a lenda que emprestava a V.
Ex
a
o caráter de cangaceiro, que vitoriosamente acaba de desmanchar na convivência
parlamentar, mostrando ser um espírito culto, dedicado e um bom parlamentar...
*
Discurso proferido na Câmara dos Deputados, em 23 de setembro de 1923.
Notas finais
162 Juazeiro do Padre Cícero
O sr. Domingos Barbosa – Conquistando em cada um de nós um amigo e admirador.
O sr. Augusto de Lima – ... se a lenda tem a mesma procedência, então o padre Cícero é
um santo homem.
O sr. Floro Bartolomeu – Chegarei a isso provar.
Se o que esses irresponsáveis dizem produz certo efeito, quanto mais o que afirmou o
dr. Paulo de Morais e Barros, homem tido em elevado conceito e que foi em comissão
do governo, no desempenho de uma missão importantíssima!
Por isso resolvi analisar, aqui, todos os atos da vida do padre Cícero, quer como sacer-
dote, quer como homem público.
O sr. Augusto de Lima – Mas o dr. Morais e Barros chegou a estar com o padre Cícero?
O sr. Floro Bartolomeu – Chegarei lá.
V. Ex
a
irá ter uma surpresa extraordinária, quando eu ler o telegrama daquele sacerdo-
te. E farei a análise com a maior honestidade, sem omissões capciosas, com o intuito de
restabelecer a verdade dos fatos, em um valioso depoimento para a história.
O dr. Morais e Barros, depois de nefelibaticamente se referir “à chuvinha dos cajus, à
floração dos cajueiros, ao ribeirão dos porcos, à garganta divisória” e ao modo por que
foi “borrado pelo chuvisqueiro”, começou assim:
“Juazeiro do Ceará. – Em população, é Juazeiro a segunda cidade do Ceará, contando
cerca de 30.000 habitantes. Sua periferia, só de casebres e mocambos de meia-água, é de
ingrata aparência, mais semelhando colossal e disforme acampamento de festa de Santa
Cruz, em sulino arraial, com as roletas a menos, e a imundície a mais. Sobre o chão
arenoso e um tanto inclinado, distribuem-se, por um grande largo e cerca de 30 ruas
malcuidadas, em xadrez irregular, 5.000 prédios de todos os jeitos e feitios, de tijolos, de
taipa, de barrotes, de madeira, alinhando-se por centenas os que têm como paredes e
coberturas latas velhas e simples folhas de palmeiras. No centro, vizinho da igreja, está o
tabernáculo do Padrinho, circundado de habitações de melhor aspecto, como sói aconte-
cer nos povoados sertanejos. Ao que nos afirmaram, mais de 2.000 casas, numeradas a
algarismos garrafais, pertencem ao reverendo.
Se por fora o conjunto não atrai, adivinha-se o que seja ele por dentro, pela massa de
gente soez que se apinha à porta das choupanas, superlotadas na maior promiscuidade.
E dizem que essa gente, com as 20.000 cabeças a mais que vivem extramuros, são
mantidas à socapa do cangaço.
Do lado oposto, um caminho bordado de choupanas desenvolve-se morro acima até o
Horto, onde se sobrepõe o esqueleto de uma igreja.
No município funcionam três escolas públicas e 82 particulares.
Além da população fixa, é calculada em 500 a adventícia, de romeiros, que se cambia
cada 48 horas. Esta faz cauda do interior do tabernáculo até o meio do largo, durante
largas horas, à espera do momento em que possa beijar os pés do santo e entregar-lhe as
oferendas votivas, entre as quais avultam os mil réis causadores da sua suspensão de
ordens. Da gente e do lugar é medíocre a impressão.”
O sr. Aristides Rocha – De fato, não há agressão mais completa.
O sr. Floro Bartolomeu – Convencido de que a Comissão não se havia demorado em
Juazeiro, não obstante isso, dirigi telegrama ao padre Cícero, no qual, comunicando
as “amabilidades” dispensáveis do dr. Morais e Barros, pedia algumas informações a
respeito.
Eis a resposta do padre Cícero:
“Comissão Rondon demorou nesta cidade apenas cerca de quatro a cinco horas, tempo
em grande parte tomado pela recepção carinhosa que lhe fizemos e pelo consumido pelo
163
almoço, tiragem de fotografias e prolongada palestra sobre vários assuntos. De maneira
que não lhe foi possível conhecer a cidade e os costumes de seu povo. Penso mesmo que
não percorreu sequer as principais ruas. Convém notar que dr. Morais Barros disse a
diversas pessoas estar muito bem impressionado com o Juazeiro, e pediu fotografias para
mostrar à sua esposa e às suas filhas, fazendo até questão de que a dedicatória fosse do
meu punho. Diante de tantos protestos de simpatia e admiração, não sei a que atribuir a
nova atitude desse ilustre cavalheiro. Enfim, como não é ele o primeiro que assim proce-
de nem será o último a do mesmo modo proceder, não tenho jeito a dar.”
Por esse despacho telegráfico, pelo menos, posso assegurar que o trabalho do conferen-
cista não é o resultado da observação, mas, simplesmente, um documento sem igual,
da sua encoberta perfídia.
O sr. Aristides Rocha – É de admirar que brasileiros assim procedam, quando isso é
hábito comum aos estrangeiros que, cercados aqui de gentilezas, lá fora vão depor
contra o Brasil.
O sr. Viana do Castelo – Todas essas declarações depreciativas do Juazeiro caem diante
da simples afirmação, que não pode ser suspeita partindo dele, de que no município
existem três escolas públicas contra oitenta e duas particulares. É um índice irrecusável.
O sr. Floro Bartolomeu – Explicarei, no correr do meu discurso, como essas escolas
foram criadas e são mantidas.
Convencido como estou da falta de verdade em quase todas as referências e do exagero
de algumas asserções, dar-me-ei ao trabalho de esclarecer ponto por ponto todos os
trechos da improdutiva conferência.
Não me é agradável, vêem bem todos os meus colegas, aborrecê-los... (Não apoiados).
O sr. Augusto de Lima – V. Ex
a
é sempre ouvido com muita atenção.
O sr. Floro Bartolomeu – ... com fatos que realmente não podem interessá-los.
O sr. Augusto de Lima – Não podem deixar de interessar, tratando-se de uma parte tão
importante do território nacional.
O sr. Gonçalves Maia – Não é isso; à mentira se deve antepor a verdade.
O sr. Viana do Castelo – O padre Cícero é um elemento de ordem naquele sertão.
O sr. Floro Bartolomeu – Perfeitamente.
O sr. Viana do Castelo – Tem autoridade moral imensa entre os sertanejos. Sem ele, o
governo não poderia manter a ordem ali; esta é a verdade. Isso é o que se deve dizer.
O sr. Floro Bartolomeu – A cidade de Juazeiro, na realidade, em população, é a segunda
do Ceará, pois conta cerca de trinta mil almas só na zona urbana; e em comércio,
indústria e lavoura, depois do Crato, é a primeira.
Sua edificação, na parte central, é de prédios regulares, alguns sobrados, dos quais um,
há bem pouco tempo, foi vendido por vinte contos, e, na periferia, de casas na maioria
de taipa, mas todas cobertas de telhas.
O sr. Aristides Rocha – Como quase todas do interior.
O sr. Bueno Brandão – Inclusive a capital da República.
O sr. Viana do Castelo – O próprio Morro de Santo Antônio estava cheio de casebres
cobertos de latas; foi preciso haver um incêndio para que eles desaparecessem.
O sr. Gonçalves Maia – Aqui mesmo, por trás da casa onde trabalhamos.
O sr. Floro Bartolomeu – Felizmente, são inúmeras as manifestações de apoio ao que
estou afirmando.
O sr. Aristides Rocha – Porque é verdade.
O sr. Floro Bartolomeu – O que há de mais singular é que só em Juazeiro as casas não
são de palha nem de palha cobertas; todas são de tijolo ou de taipa e cobertas de telhas.
Notas finais
164 Juazeiro do Padre Cícero
Por isso mesmo destoa, por completo, das demais localidades, até da de Crato, que é a
mais importante da zona, que tem uma rua chamada “Rua da Palha”, porque as habita-
ções têm a cobertura de folhas de palmeiras. E o motivo é porque, nessas cidades, há
palmeiras com suficiência, e no Juazeiro, não.
As suas ruas são em número crescido, mais ou menos alinhadas, algumas de extensão
digna de nota.
Há ruas de um quilômetro.
As principais, em cerca de sete mil metros quadrados, possuem bom calçamento de
pedras, muito melhor do que o de algumas desta capital, que são calçadas com parale-
lepípedos e sobre os quais o automóvel não passa sem grande incômodo para o passa-
geiro, devido à forte trepidação.
Ainda mais: são ladeadas por calçadas ou passeios ladrilhados com bom tijolo, com
três e quatro metros de largura cada uma.
O sr. Aristides Rocha – Cidade sertaneja.
O sr. Floro Bartolomeu – Lá nos confins do estado, na fronteira do Ceará, cem léguas
distante de Fortaleza, com o calçamento melhor do que o de muitas capitais.
O sr. Aristides Rocha – Calçamento feito pelo município?
O sr. Floro Bartolomeu – Por mim e pelo padre Cícero e com o auxílio de quinze contos
dados pelo governo federal, a pedido do ex-presidente do estado, dr. João Tomé, no ano
de 1919, para os flagelados da seca. Gastamos na obra quarenta e cinco contos de réis.
Se tivéssemos recebido mais os quinze contos que o dr. Arrojado Lisboa nos informou
ter o governo ordenado, teríamos aumentado a área do calçamento, mas, infelizmente,
em nosso auxílio ficou, somente, o telegrama de aviso.
Foi esse o meio, entre outros, que nós aproveitamos para socorro aos flagelados do
lugar, principalmente às mulheres, que, em grande número, foram incumbidas do trans-
porte das pedras, para o mesmo serviço.
O sr. Domingos Barbosa – Não podia ser melhor a forma de auxílio.
O sr. Floro Bartolomeu – Sim, porque suponho ser o melhor alvitre, nessas fases críti-
cas, auxiliar-se o povo, porém, obrigando-o a um trabalho útil à localidade.
Os governos, nesses períodos de crises climatéricas, em vez de facilitar criminosamen-
te a deslocação dos flagelados nordestinos para o sul do País, onde as condições de
vida não permitem a solução do caso, – seria muito mais patriótico evitar a retirada e
socorrê-los sem demora, imediatamente, nos pontos onde são localizados, mediante
serviços de utilidade para o governo federal, para o estado e, especialmente, para o
município.
O sr. Augusto de Lima – Muito bem.
O sr. Floro Bartolomeu – Entretanto, sr. presidente, isso, de ordinário, não se faz.
O que vemos é, nessas ocasiões, quando o povo não tem o que comer e procura aflito
entregar-se a todo e qualquer serviço, quando todos os gêneros estão elevados de preço,
diminuir-se a importância do jornal à proporção que aumenta o número de trabalhadores.
Ora, esse modo de socorro não dá resultado positivo, visto como o trabalho produzido
não é compensador.
Além disto, os que governam, esquecidos de que para os grandes e graves males se
tornam precisos remédios imediatos e eficazes, perdem tempo enorme na discussão e
abertura dos créditos, no registro dos mesmos pelo competente Tribunal de Contas e,
mais ainda, no fornecimento do numerário, que, para ser obtido das delegacias dos
estados, passa por um processo complicadíssimo e demorado.
É de tal modo a complicação observada que, quando chega o socorro, já é nos fins da
seca, justamente quando ele pouco aproveita.
Um sr. Deputado – Infelizmente, isso é uma verdade.
165
O sr. Floro Bartolomeu – Ora, já houve até quem opinasse, como medida redentora,
pelo despovoamento do Ceará, transportando-se a sua população para o sul do País!
(Risos).
A disposição das ruas de Juazeiro não difere da observada nas demais localidades
sertanejas, mesmo das capitais dos estados ainda não reformadas.
Conforme a edificação de começo, são bem ou mal alinhadas.
Quem não conheceu Recife, Bahia, Belém e tantas outras cidades antes da reforma?
Ainda mesmo agora, nelas não são encontradas ruas desalinhadas?
O sr. Elói Chaves – Aqui, no Rio, a Rua de S. Jorge.
O sr. Gonçalves Maia – Rua da Misericórdia.
O sr. Floro Bartolomeu – Só Fortaleza, de há muito, conserva uma disposição regular,
que faz com que ela seja por todos considerada a “Pérola do Norte”.
Porventura, o sr. Morais e Barros desejaria encontrar em Juazeiro...
O sr. Aristides Rocha – Um cassino, igual ao de Copacabana?
O sr. Floro Bartolomeu – ... terra formada de há pouco tempo e por indivíduos pobres,
que ali foram ganhar a vida pelo trabalho do campo, vítimas do flagelo de repetidas
secas, prédios de arquitetura moderna, ruas calçadas com paralelepípedos e alinhadas
conforme as regras de engenharia, à semelhança da nossa Avenida Rio Branco?
Poderia dizer que só os chamados “poetas de água doce”, os tais que, na choramingada
diluição dos seus afetos, comparam à moleza das lesmas a docilidade das suas namora-
das, poderiam ter tão extravagante concepção. (Risos).
Enfim, desde que o sr. Morais e Barros pratica literatura, é natural a imitação do estilo.
Também não é verdade a existência, ali, de centenas de casas alinhadas, com paredes e
telhados de latas velhas, ou, mesmo, de novas, visto como, repito, todas elas são, quer as
de taipa quer as de tijolo, cobertas de telhas. E não podia ser senão assim, porque ao
sertanejo é muito mais fácil cavar a terra, no fundo do quintal, para retirar o barro, amassá-
lo e fazer as paredes das casas, do que comprar latas a 1$, 1$500 ou mais cada uma.
O sr. Elói Chaves – Aliás, no Rio de Janeiro, no morro perto da Estação da Central do
Brasil, existem casas feitas de latas velhas.
O sr. Floro Bartolomeu – Ali na Estação Central do Brasil, no bairro elegante de
Copacabana, em todos os morros do Distrito Federal, encontramos dessas habitações.
O sr. Vicente Piragibe – Por que V. Exas. só tomam, como objeto de comparação, o Distrito
Federal? São Paulo e outras unidades da Federação também têm dessas habitações
deselegantes.
O sr. Floro Bartolomeu – Faz-se sempre a comparação com o Distrito Federal porque é a
cidade mais importante do País. E o que digo se justifica, porque nesta capital é muito
mais fácil ao desprotegido da sorte conseguir latas do que barro para construir sua
habitação. Tudo tem sua razão de ser... É o motivo por que se faz a comparação. Se na
capital do País presenciamos tudo isto, quanto mais no sertão do Ceará, de Pernambuco,
do Maranhão, etc.
Admitindo-se que a sua afirmação não merecesse contestada, que fosse verdade tudo
quanto S. Ex
a
afirmou, eu desejaria que fosse mais sincero, que confessasse tudo isso
existir, mas em menor escala que nos lugares mais adiantados.
Quero ser consciencioso; não é meu intuito negar a verdade.
Não conheço o arraial sulino de Santa Cruz, reduto eleitoral do nosso ilustre colega sr.
Honório Pimentel, para poder fazer a comparação entre as suas roletas de jogo e a sua
imundície com as de Juazeiro.
Garanto, sr. presidente, que lá não há roletas.
O que o sr. Morais e Barros podia ter visto é um aparelho semelhante, com que certo
indivíduo, de quando em vez, percorre as localidades da região, expondo-o nas feiras,
Notas finais
166 Juazeiro do Padre Cícero
– o que, aliás, é muito natural, porque, quando foi da Exposição há pouco encerrada,
encontramos 30, 40 ou 50 roletas.
O sr. Elói Chaves – Será só na Exposição?
O sr. Vicente Piragibe – A Exposição foi internacional, e não só do Distrito.
O sr. Nélson de Sena – Não há feira, não há romaria no interior do País onde não se
encontre a jogatina sob todas as formas.
O sr. Floro Bartolomeu – Quem conhece o sertão sabe que os sertanejos, nos dias festi-
vos, especialmente nos meses de dezembro e janeiro, nas tradicionais festas de Natal,
de Ano-Bom e de Reis, não dispensam os jogos de roletas, caipiras, jaburus, e tantos
outros que podem ser feitos nas praças públicas, como distração popular. Só os de
carta não são permitidos pelas autoridades, nem por eles também são desejados.
E essa praxe, por ser secular, é mantida não só no interior, mas também nas capitais e
arredores, pois ainda hoje me lembro de que na capital da Bahia e nos seus arrabaldes
não havia festa sem esses jogos.
Posso até citar um caso digno de atenção.
No Ceará, em 1918, no governo do sr. José Tomé, segundo o novo regulamento policial,
o então chefe de polícia deu ordens terminantes às autoridades para não consentirem,
nas noites de festa, nenhuma espécie de jogo.
As populações de Crato, Barbalha, Missão Velha e outras revoltaram-se, inclusive os
respectivos chefes políticos, de maneira que os delegados não puderam agir.
Eu, porém, como era deputado e tinha aprovado o regulamento, não quis acompanhar
os demais amigos na justa reação e, a contragosto, proibi a jogatina.
O desgosto, escusado é dizer, foi geral; e o resultado foi não haver festa, porque todo o
povo se dirigiu para os lugares onde havia jogo, ficando a cidade erma, em completo
contraste com os anos anteriores.
Esses jogos, portanto, sr. presidente, constituem nesses dias um divertimento indis-
pensável ao sertanejo, que durante o ano não se diverte. Não jogam por vício, mas tão-
somente para se distraírem.
Devo dizer, entretanto, que o sr. Morais e Barros não viu roletas de jogo.
Mesmo que as tivesse visto, não se deveria espantar. (Risos).
Se em Juazeiro houvesse casas de jogos proibidos, não seriam em maior número das
encontradas nas capitais do País e com especial menção aqui, no Distrito Federal, onde,
a cada passo e a cada instante, encontramos clubes e espeluncas, respectivamente
centros de diversão e perdição dos homens da alta-roda e de escaramuças dos vaga-
bundos, dos desordeiros e dos criminosos.
O sr. Moreira da Rocha – Aliás, nas cidades do interior não há jogo permanente.
O sr. Vicente Piragibe – O orador podia citar também Caxambu, Lambari, Poços de
Caldas, etc.
O sr. Floro Bartolomeu – Perfeitamente. Eu poderia citar até casas de homens notáveis,
onde o jogo a dinheiro é o melhor “passatempo”.
O meu ilustre colega não tem razão de incomodar-se por eu acentuar ser o Distrito
Federal o local onde mais se joga; porque, como sabe S. Exa., quanto maior é a nau,
maior é o prejuízo da tormenta.
Os habitantes daqui, cariocas ou não, igualmente o das capitais mais adiantadas do sul
do País, imitando os macacos, que não olham para a grande cauda que possuem, timbram
em afirmar que unicamente nas regiões do Norte os vícios são cultivados.
Para isso é que o pequeno, quando acusado, para defender-se, se volta para o grande,
apontando-lhe os defeitos.
O sr. Vicente Piragibe – Que aqui se joga muito, é coisa sabida.
O sr. Floro Bartolomeu – Como acontece em muitas outras cidades. Conheci um governa-
dor de estado que, não podendo freqüentar casas de jogo, jogava no seu próprio palácio.
167
E porque sei que nos centros mais adiantados o jogo é a distração preferida é que
estranho a maneira do sr. Morais e Barros, afirmando, sem ter visto, haver roletas em
Juazeiro.
Eu já me daria por muito satisfeito, sr. presidente, se o conferencista, mostrando tudo
isso, dissesse que em Juazeiro este vício é praticado em menores proporções.
E sou, sr. presidente, dos que pensam que o jogo devia até ser regulamentado...
O sr. Vicente Piragibe – Aqui, o jogo está regulamentado.
O sr. Floro Bartolomeu – ... se bem que nunca joguei em dias de minha vida, por natural
aversão; pois não sei jogar nem bilhar, nem tenho prazer em assistir a quem joga.
Quanto à imundície que o sr. Morais e Barros disse ter visto naquela terra, em condi-
ções mais acentuadas do que em Santa Cruz, o arraial onde reside o nosso digno colega
deputado Honório Pimentel, só me resta protestar energicamente contra essa afirma-
ção, porquanto, pelo menos na rua onde moro, na casa onde resido, e onde S. S
a
se
hospedou, não há imundície de espécie alguma. (Risos).
O sr. Aristides Rocha – A agressão foi insólita, não há dúvida.
O sr. Floro Bartolomeu – Por demais insólita, conforme sensatamente afirma o meu
ilustre colega pelo Amazonas, visto como, e segundo o telegrama do padre Cícero, o dr.
Morais e Barros se demorou ali cerca de quatro horas e não percorreu as ruas da cidade.
Ora, se S. Ex
a
levou quase todo o tempo de sua estadia ali hospedado em minha casa, e
afirmou haver imundície, cumpre-me o dever de restabelecer a verdade.
O sr. Plínio Marques – V. Ex
a
está cumprindo o seu dever.
O sr. Augusto de Lima – Dessa comissão fez parte o sr. Simões Lopes, que, infelizmente,
não está aqui, agora.
O sr. Floro Bartolomeu – É o que sinto, porque ninguém melhor poderia desmentir o sr.
Morais e Barros.
O sr. Gentil Tavares – V. Ex
a
está dizendo a verdade, pois não é possível que uma cidade
com 7.000 metros de calçamento seja imunda.
O sr. Floro Bartolomeu – Os homens sensatos pensam como V. Ex
a
O sr. Aristides Rocha – A imundície de lá não pode deixar de ser a mesma de todas as
cidades.
O sr. Floro Bartolomeu – Se as principais ruas daquela cidade são bem calçadas, se o
lixo não é depositado na via pública, e o município, de três em três dias, procede à
limpeza delas, e existem posturas que obrigam os infratores à multa, como ser verda-
deira semelhante afirmação?
O sr. Gilberto Amado – É claro.
O sr. Floro Bartolomeu – A imundície a que se referiu o sr. Morais e Barros, talvez por
ouvir dizer, é impossível de ser extinta: é a mesma existente em todas as partes, em
todas as principais localidades do litoral e até mesmo a que se encontra aqui, permita-
me que de novo o diga ao meu ilustre colega sr. Vicente Piragibe, pois nesta bela capital
há ruas onde a sujeira, o mau cheiro e o mato são percebidos.
O sr. Augusto de Lima – Principalmente na praia de Botafogo.
O sr. Aristides Rocha – E na Glória, onde existe uma estação da City.
O sr. Floro Bartolomeu – Se na praia de Botafogo, bairro dos ricos, e na Glória, um dos
pontais mais centrais, garantem os meus colegas que há sujeira e mau cheiro, quanto
mais nas ruas de S. Jorge, Lavradio, Misericórdia e tantas outras!... E há de se dizer por
isso que a capital federal é uma cidade imunda?
É mais uma invenção do sr. Morais e Barros para fazer escândalo, na suposição de que
todos têm o mesmo grau de sua ingenuidade.
Acaso, S. S
a
queria encontrar em Juazeiro rede de esgoto, encanamento d’água, luz
elétrica, gás de iluminação e tantos outros melhoramentos?
Notas finais
168 Juazeiro do Padre Cícero
O sr. Aristides Rocha – Quem sabe?
O sr. Floro Bartolomeu – Não sei por que S. S
a
entendeu denominar a casa do padre
Cícero “tabernáculo do padrinho”.
S. S
a
não sabe que a casa desse sacerdote não é tabernáculo? Com certeza, com a sua
literatura de “meia-tigela”, quis provocar a hilaridade dos circunstantes, esquecido
talvez de que já passou da idade dos devaneios literários, e de que, de ordinário, o
ridículo se reflete sobre quem o promove.
Em todas as citações, quando não reproduz a mentira que ouviu, se revela exagerado,
assim como quem “vê dois e pensa que são três”.
O padre Cícero não é dono de 2.000 casas em Juazeiro; possui algumas no centro da
cidade e outras tantas na periferia, que às vezes compra para acomodar questões e que
lhe são entregues pelos moradores quando se ausentam, e servem para a habitação
gratuita das pessoas que ali vão residir.
Bem sei que essa afirmação de S. S
a
em nada ofenderia o padre Cícero; mas por não ser
verdadeira é que venho contestá-la, pondo “os pontos nos ii”.
É com muito prazer que declaro, sr. presidente, estar disposto a, desfazendo essas e
outras mentiras, fazer o dr. Morais e Barros “amargar o pão que o diabo amassou”. (Risos).
Um sr. Deputado – E amarga mesmo. (Risos).
O sr. Gentil Tavares – Faz muito bem.
O sr. Plínio Marques – A causa que V. Ex
a
defende é muito simpática.
O sr. Aristides Rocha – É um hábito esquisito esse de se retribuir gentilezas de um povo
com ofensas.
O sr. Floro Bartolomeu – E nós constantemente somos vítimas desses mal-agradecidos.
O sr. Augusto de Lima – Por isso, disse o padre Cícero, no telegrama que dirigiu a V. Ex
a
,
não ser o dr. Morais e Barros o primeiro nem o último. (Risos).
O sr. Floro Bartolomeu – Se não fosse encerrar tanta ofensa, que nos importaria, a nós
de Juazeiro, que por fora o conjunto das casas não o atraísse?
Mas como S. S
a
, por não se ter agradado do “conjunto por fora, adivinhou o que será
por dentro, pela massa de gente soez que se apinha à porta das choupanas, superlotadas
na maior promiscuidade”, vejo-me forçado a responder-lhe.
Eu não seria capaz de duvidar que S. S
a
seja um bom adivinho; e, se não fosse favore-
cido da fortuna, conseguisse ganhar a vida por esse meio. Mas posso também assegurar
que, apesar de toda a sua pretendida habilidade, não faria competição a madame Zizina
e ao barão Ergonte.
Eu poderia, a propósito, reproduzir as palavras de um velho corcunda que havia na
Bahia, lá na Ladeira de S. Francisco, quando cismava com um sujeito pernóstico. Dizia
ele: “Seu dr., este é dos tais de encomenda”. E eu repito: o dr. Morais e Barros é dos tais
de encomenda. (Risos).
Sim, porque chamar uma população laboriosa, honesta, de “massa de gente soez” é
considerá-la ordinária, baixa e vil.
O sr. Aristides Rocha – População, entretanto, que freqüenta 82 escolas, como ele pró-
prio confessa.
O sr. Floro Bartolomeu – Perfeitamente.
Só se S. S
a
nunca passou os olhos por um dicionário. Se S. S
a
nunca viu esse povo, nem
mesmo citou um só fato comprobativo de sua baixeza, de sua vilania, de sua ruindade,
eu acredito que, assim procedendo, se colocou em plano muito mais ordinário, muito
mais baixo, muito mais vil do que aquele mesmo povo, que é, sobretudo, genuinamente
brasileiro. (Apoiados).
E, sr. presidente, por muito menos, ou por ofensa quase igual, o autor de La garçonne
foi repudiado em França.
169
O sr. Aristides Rocha – Só porque disse algumas verdades.
O sr. Floro Bartolomeu – E o dr. Morais e Barros não disse verdades.
Então, pelo fato de algumas pessoas, em trajes mais modestos, levadas por curiosidade, em
ruas mais afastadas, se aglomerarem à porta das suas choupanas à passagem do automóvel
conduzindo a Comissão de que S. S
a
fazia parte, autorizava S. S
a
a considerá-la “massa de
gente soez?”
Ainda hoje, no interior, a passagem de qualquer automóvel, conduzindo homens ilus-
tres e estranhos ao meio, provoca a curiosidade do povo.
Posso até, como ilustração do meu discurso, citar um fato muito interessante.
O primeiro automóvel que foi ao Cariri, entre a Estrada da Aurora e Missão Velha, por
um desarranjo qualquer, teve de parar em meio do caminho, alta noite. Ora, nós sabe-
mos que os padres, nos seus sermões e prédicas, exigem que todo o cristão renda culto
ao Coração de Jesus, nas suas casas, para evitar que os lares sejam invadidos pela
“besta-fera”, que é o símbolo do demônio ou de seus malditos emissários. Todos os
padres pregam isso. De modo que o povo daquelas bandas ainda espera a vinda da
“besta-fera”.
O ruído do motor, o som da buzina, o falatório do chofer e dos passageiros, àquela alta
hora da noite, despertaram os moradores, e eles vieram ao terreiro das casas; e, divi-
sando ao longe, do mesmo ponto em que vinham aqueles sons, nunca ouvidos por eles,
dois enormes clarões dos holofotes, não tiveram dúvida: entraram pelo mato adentro,
abandonando nas redes as crianças e os doentes.
Morreu até uma senhora muito minha conhecida, repentinamente, que havia dado à
luz no dia anterior.
Ora, hoje ninguém tem mais o automóvel como “besta-fera”, mas, ainda assim, desper-
ta a curiosidade pública. E não admira, porque nós, civilizados, deixamos uma palestra
interessante, abandonamos a mesa no momento das refeições e vamos à janela para ver
passar o Batalhão Naval, um palhaço, ou moleques esfarrapados em uma carroça, anun-
ciando a revista Tatu Subiu no Pau. (Risos).
Continuando na mesma toada, garante o sr. Morais e Barros que a população juazeirense,
com “as vinte mil cabeças a mais que vivem extramuros”, é mantida à socapa do cangaço.
Veja bem V. Ex
a
, sr. presidente: o dr. Morais e Barros afirmou que a população daquela
terra era de cerca de 30.000 almas, e, depois, descobriu mais de vinte mil “cabeças”
fora dos muros, de cartucheira à cinta, alpercatas de rabicho aos pés e rifle às mãos, no
clássico traje dos cangaceiros de Pajeú, de Pernambuco.
Porventura, ele teria lido um artigo de João Brígido, em 1912?
Relatarei o caso.
João Brígido dos Santos, o grande jornalista do Norte, que agitou o Ceará durante cinqüenta
anos pela imprensa, foi muito amigo do padre Cícero, pois, morrendo o pai deste, em
Crato, ele se tornou o diretor moral da família; quando chamado pelo senador Pompeu para
Fortaleza, conduziu o então estudante Cícero, que recolheu ao seminário daquela cidade, e
acompanhou-lhe a educação. Quando, já no fim dos seus estudos, o padre desejou completá-
los em Roma, João Brígido, com a autoridade que exercia sobre ele, fê-lo voltar para o Crato,
a fim de cuidar de sua família.
Mas João Brígido – como muito bem o sabe o meu ilustre colega de bancada, sr. Moreira
da Rocha – era um homem cujas mutações de espírito eram muito rápidas. Com a
mesma facilidade com que elogiava, passava as maiores descomposturas, e, logo após,
retratava-se, fazendo os melhores elogios.
De modo que, com a queda do comendador Accioly, e sendo ele um dos responsáveis
por essa deposição, combatendo durante 20 anos, e não querendo o padre Cícero
acompanhá-lo nessa situação, ele escreveu um artigo sob o título “Cicerópolis”, no
qual dizia mais ou menos o seguinte:
Notas finais
170 Juazeiro do Padre Cícero
“Para serem pegados os criminosos do Juazeiro, basta cercá-lo de uma forte muralha,
porque todos que dentro ficarem serão dignos de cadeia, visto como o que não for
ladrão é assassino, inclusive o padre Cícero, que não mais podendo agir eficientemen-
te, mandou vir da Bahia um negro charlatão (isso era comigo) para fazer de Urbino de
Freitas no Cariri.”
Como era natural, os amigos se irritaram e os adversários aplaudiram. João Brígido,
porém, que só assim procedia pelo despeito político do momento, depois, quando rom-
peu com a situação por ele criada, voltou a proclamar as benemerências do padre Cícero,
classificando-o de santo, bem como dando-me virtudes, chamando-me “Varão a Plutarco,
nosso Macabeu”, e tantos outros epítetos por ele considerados honrosos.
Talvez o dr. Morais e Barros tivesse lido esse artigo e se convencesse de que o Juazeiro
era realmente cercado de muros...
O sr. Domingos Barbosa – Foi pena que não tivesse lido também o outro.
O sr. Floro Bartolomeu – Raciocinemos: desde que a população de Juazeiro é de pouco
mais de trinta mil almas, e desde que se excluam desse número os velhos, as mulheres,
as crianças, os inutilizados, não restará senão cerca de um terço; isso já não contando os
dois mil e tantos que vivem pela Serra Araripe, no cultivo da mandioca e da maniçoba, e
tantos outros que andam pelos estados vizinhos, empregados nas obras do Nordeste...
Um sr. Deputado – E os que vão até o Amazonas?
O sr. Floro Bartolomeu – E os que vão até o Amazonas, e os que trabalham em sítios
próximos, e os comerciantes, os artistas, os industriais.
Que porção de indivíduos, feitas estas deduções, restaria para viver à custa do cangaço?
Havia de restar, necessariamente, o que há, e vem a ser um pequeno número de “cabras”
desordeiros, que, de vez em quando, caem vítimas de um tiro ou são apanhados pela
polícia.
É absurdo, portanto, dizer que, em uma população de trinta mil almas, vinte mil indi-
víduos vivem à custa do cangaço.
Ora, sr. presidente, poder-se-á levar a sério esse conferencista, que não se pejou de
proclamar inverdades de tal ordem, perante um auditório constituído de homens
respeitáveis que ali foram para ouvir coisas úteis e necessárias, mas, principalmente,
verdadeiras?
O sr. Simões Lopes – O nobre colega me dá licença para um aparte?
O sr. Floro Bartolomeu – Pois não!
O sr. Simões Lopes – Solicitaria ao ilustre deputado que não fizesse tamanha injustiça
à inteligência e ao espírito tão bem intencionado do sr. dr. Morais e Barros. De fato, as
suas conferências se prestam a várias interpretações, devido à terminologia por ele
empregada, que pode não ser a mais conveniente ou a mais precisa. Devo, entretanto,
assinalar, de novo, que as intenções desse digno brasileiro foram as melhores, e que, ao
fazer essa análise, ele procurou inspirar-se apenas nas suas observações. Terei ocasião,
mesmo, se me for possível falar, de explicar, de caracterizar melhor, de demonstrar que
o intuito do sr. dr. Morais e Barros não foi o de deprimir o nobre povo sertanejo, mas o
de apontar deficiências e falhas que lá existem, muitas das quais todos nós conhece-
mos e devemos corrigir.
O sr. Floro Bartolomeu – Acato muito meu ilustre colega e recebo com o maior prazer o
aparte com que me honrou; mas peço permissão para não responder logo, porque dese-
jo que S. Exa., não tendo ouvido reproduzir aqui o que disse o sr. Morais e Barros nas
suas conferências, vá ouvindo o que ele continuou a dizer. (Risos).
Quero, em todo caso, antecipar ao distinto representante do Rio Grande do Sul, que, se
realmente o sr. Morais e Barros teve boas intenções, desses bem intencionados é que
está o inferno cheio. (Hilaridade).
171
O sr. Simões Lopes – Aliás, o sr. Morais e Barros não disse que falhas e defeitos deixem
de existir em outras populações no interior de nosso País.
O sr. Floro Bartolomeu – Ao contrário: deu até como existente o que lá não existe, como
estou provando (risos), com raciocínio muito seguro, no qual creio que os colegas não
divisam qualquer capciosidade ou subterfúgio. (Apoiados; muito bem).
O sr. Simões Lopes – V. Ex
a
vai contestar tudo que ele disse?
O sr. Floro Bartolomeu – Tudo! Para isso tenho aqui os elementos.
O sr. Simões Lopes – Desse modo V. Ex
a
incidirá na mesma falta que atribui ao sr.
Morais e Barros.
O sr. Floro Bartolomeu – Não posso incidir, porque estou refutando, com a verdade, a
inverdade, e foi o que ele não fez: limitou-se a deturpar fatos, e essa deturpação encerra
grande ofensa, funda injúria, como estou demonstrando, com a reprodução das palavras
que ele proferiu.
E o nobre deputado permita: S. Ex
a
é que bem poderá concordar comigo, quanto às
incoerências do sr. Morais e Barros, visto que, ontem mesmo, quando teve ocasião de
falar, deu a conhecer a todos nós que ele, no relatório da comissão, afirma determinada
coisa, e, nas conferências, outra muito diferente... (Risos).
Notas finais
173
Índice onomástico
Abreu e Lima, José Inácio Ribeiro de, 150
Accioly, Antônio Pinto Nogueira, 64, 84-85, 156, 169
Accioly, José, 153
Agostinho (Santo), 69
Albano, Ildefonso, 85, 143
Alencar, Vicente de (Padre), 72
Alípio (coronel), 90, 92, 97
Alencar Peixoto (Padre), 52, 71
Amado, Gilberto, 167
Andrade, Francisco José de, 160
Anjos, Pedro, 93
Antero, Francisco Ferreira (padre), 72
Araripe Júnior, Tristão de Alencar, 150
Araújo, Aderaldo Ferreira de, 126
Araújo, Joana de, 158
Araújo, Maria de, 47, 53-54, 69-71, 78, 120, 159
Artur Oscar, 97
Assunção, Maria Eudóxia da, 158-159
Arthur (tenente), 132
Babá (beata), 158-159
Barbosa, Domingos, 161-162, 164,170
Barbosa, Rui, 72, 90
Barreto, Antônio Pinto de Sá, 99-100
Barreto, Emídio Dantas ver Dantas Barreto, Emídio
Barros, Alípio de Lima ver Alípio (coronel)
Barros, Paulo de Morais e, 80, 142, 151, 161-162, 165-170, 171
Barroso, Benjamim, 156
Barroso, Gustavo, 86, 119
Batista, Cícero Romão (padre) ver Cícero (padre)
Batista, Joaquim Romão, 155
Índice onomástico
174 Juazeiro do Padre Cícero
Beata Babá ver Babá (beata)
Beata Geluca ver Geluca (beata)
Beata Isabel da Luz ver Isabel da Luz (beata)
Beata Jerônima Bezerra ver Geluca (beata)
Beata Mocinha ver Mocinha (beata)
Beata Teresinha do Padre ver Teresinha do Padre (beata)
Bernardes, Raul, 54
Bezerra, Jerônima ver Geluca (beata)
Bezerra, Raul, 132
Borba, José de, 108, 125
Brandão, Júlio Bueno ver Bueno Brandão, Júlio
Brás, Venceslau, 85, 122
Brasil Sobrinho, Tomás Pompeu de Sousa ver Pompeu Sobrinho
Brewer, João, 150
Brule, Adolfo van den ver Van Den Brule, Adolfo (conde)
Bueno Brandão, Júlio,163
Carvalho, Fernando Setembrino de ver Setembrino de Carvalho, Fernando (coronel)
Carvalho, José Gentil A. de, 151
Casal, Aires de, 150
Castelo, Viana do ver Viana do Castelo
Castro Medeiros (doutor), 71
Chaves, Elói, 165-166
Chaves, Joaquim Secundo (coronel), 72
Chevalier, Pedro (padre), 53
Cícero (padre), 45-46, 51-55, 59, 63-65, 69-70, 72, 77-79, 86, 89-90, 93, 100-101, 108-109,
114, 120, 122-125, 127, 133, 136, 150-151,153-154, 160-163, 167-170
Clicério (padre), 72
Conselheiro, Antônio, 93
Cordeiro, José Inácio, 158-159
Coronel Alípio ver Alípio (coronel), 90, 92, 97
Coronel Rabelo ver Rabelo, Marcos Franco
Coronel Franco Rabelo ver Rabelo, Marcos Franco
Coronel Franco Rebêlo ver Rabelo, Marcos Franco
Costa Lima, 108
Costa Rego, Pedro da, 161
Costa, Floro Bartolomeu da, 52, 63-65, 72, 79-80, 90, 92, 99, 106, 109, 115, 136, 138, 151,
156-157, 159, 161-171
Costa, Francisco Augusto Pereira da ver Pereira da Costa, Francisco Augusto
Dantas Barreto, Emídio, 85, 125
Deniker, Joseph, 58
Diniz (doutor), 158
Dom Bento López ver López, Bento (dom)
Dom Joaquim ver Vieira, Joaquim José (dom)
Dom Manuel Gomes ver Gomes, Manuel (dom)
Dom Vieira ver Vieira, Joaquim José (dom)
Ergonte (barão), 168
Esmeraldo, Rosa, 158
175
Félix, Antônio, 157
Fernandes Távora, Manuel do Nascimento, 59, 71
Figueiredo, Antônio Ferreira, 114
Fonseca, Hermes Rodrigues da, 85, 109
Franco Rabelo, Marcos, 39, 85-86, 89, 93, 99-100, 107, 109, 124-125, 132, 151-152, 156
Frei Marcelino ver Marcelino (frei)
Frei Vidal ver Vidal (frei)
Freitas, Herculano de, 153
Frota Gentil, 123
Geluca (beata), 158-159
Geenep, Arnold van ver Van Geenep, Arnold
Gentil, Antônio da Frota ver Frota Gentil
Gomes, Manuel (dom), 150
Gomes, João, 91, 133
Gomes, Venceslau Brás Pereira ver Brás, Venceslau
Gonçalo, 159
Gonçalves Maia, José, 163, 165
Gouveia, Delmiro de, 144
Gouveia, Hermínia Marques de, 159
Horácio, 58
Inácio, José, 138
Irineu, 90
Isabel da Luz (beata), 158
Jerônima (beata) ver Geluca (beata)
Jesus, Joana Tertulina de ver Mocinha (beata)
Jesus, Maria de ver Babá (beata)
Jesus, Teresa Maria de (beata) ver Teresinha do Padre
Joana (beata) ver Mocinha (beata)
João Carlos (padre), 72
João Cipriano (major), 72
Lacerda, Maurício Paiva de, 90
Lampião, 115
Landim, José Furtado, 160
Lima, Antônio Augusto de, 161-164, 167-168
Lima, Ildefonso, 72
Lôbo, José Joaquim de Maria, 72
Lombroso, Cesare, 58
Lombroso, Gina, 58
Lopes, Ildefonso Simões, 161, 170-171
López, Bento (dom), 65
Lourenço, José, 78
Lundgren, Frederico, 144
Luz, Isabel da ver Isabel da Luz (beata)
Macedo, Alexandre Maurício de, 158
Macedo, Hermelinda Correia de, 157
Índice onomástico
176 Juazeiro do Padre Cícero
Macedo, Manuel (padre), 64, 141
Macedo (padre) ver Macedo, Manuel (padre)
Machado, Antônio, 160
Machado, Luís Teófilo, 155, 160
Maciel, Antônio Vicente Mendes ver Conselheiro, Antônio
Madeira, Marcos Rodrigues, 72
Maia, Francisco Belmiro, 159
Maia, Pergentino Augusto, 152
Malvas, Maria das, 159
Marcelino (frei), 133
Maria de Jesus (beata) ver Babá (beata)
Maria Joaquina, 159
Marques, Plínio, 167-168
Marrocos, José Joaquim Teles de, 72, 159
Martins de Freitas, 97
Mauá (visconde de) ver Irineu
Medeiros, Castro ver Castro Medeiros (doutor), 71
Mesquita Filho, Júlio de, 144
Moacir, Pedro, 90
Mocinha (beata), 157
Monsenhor Tabosa Braga ver Tabosa Braga (monsenhor)
Monteiro, Francisco Rodrigues (padre), 72, 158
Monteiro, Zenon Fleury, 142
Moreira da Rocha, Crisanto, 166, 169
Moreira, João da Rocha, 91
Moreira, Joaquim Pinto, 136
Mota, Leonardo, 119, 124
Moura, Manuel Félix de, 158
Oliveira, Irineu Olímpio de, 160
Oliveira, João Mendes de, 115, 121, 124
Oliveira, José Armando de, 93
Padre Cícero ver Cícero (padre)
Padre Antônio Fernandes Távora ver Távora, Antônio Fernandes (padre)
Padre João Carlos ver João Carlos (padre)
Padre Macedo ver Macedo, Manuel (padre)
Padre Pedro Chevalier ver Chevalier, Pedro (padre)
Padre Vieirinha ver Vieira, Joaquim José (dom)
Padre, Teresinha do ver Teresinha do Padre
Paula Rodrigues (doutor), 128-131
Peixoto, Alencar ver Alencar Peixoto (padre)
Penha, J. da, 129-134
Pequeno, Antônio Luís Alves, 106, 159
Pereira da Costa, Francisco Augusto, 119
Pessoa, Epitácio da Silva, 54
Pessoa, José Getúlio de Frota, 85
Pimentel, Honório, 165, 167
Pinheiro, José, 133
Pinheiro Machado, 85-86, 90, 109, 125
Pinto, Raimundo, 158
177
Piragibe, Vicente, 165-167
Platão, 58
Pompeu Sobrinho, 150, 169
Pompeu (senador) ver Pompeu Sobrinho
Potiguara, Tertuliano de Albuquerque, 154
Rabelo, Marcos Franco ver Franco Rabelo, Marcos
Rebêlo, Marcos Franco ver Franco Rabelo, Marcos
Reis, Canuto, 106
Rocha, Aristides, 162-165, 167-169
Rodrigues, Ana, 159
Rodrigues, José Martins, 80
Rodrigues, Paula ver Paula Rodrigues (doutor)
Romana, Angélica Vicência, 158-159
Romana, Joaquina Vicência, 155, 159
Rondon, Cândido Mariano da Silva (general), 161
Sá, Abílio Gomes de, 160
Sá, Emílio, 125, 127-128
Sabino, Manuel, 158
Santos, João Brígido dos, 85, 169-170
Santos, Luís Antônio dos, 155
Santos, Sivestre José dos, 70
Sena, Nélson de, 166
Serpa, Justiniano de, 138, 150
Setembrino de Carvalho, Fernando (coronel), 109, 151-152
Silva, Damião Pereira da, 157
Silva, João Leodegário da, 160
Silva, Virgulino Ferreira da ver Lampião
Silvino, Pedro, 125, 133
Soledade, 158
Sousa, Irineu Evangelista de (visconde de Mauá) ver Irineu
Sousa, Joaquim Costa, 85
Sousa, José da Penha Alves de, 107-108
Sousa, Ladislau Lourenço de, 97, 99-100
Sousa, Pero Coelho de, 149
Souto, Maria, 157
Studart, Guilherme (barão de), 149
Tabosa Braga (monsenhor), 142
Tavares, Gentil, 167-168
Távora, Antônio Fernandes (padre), 158
Távora, Manuel do Nascimento Fernandes, ver Fernandes Távora, Manuel do Nascimento,
59, 71
Teixeira, José F. Alves, 106
Tenente Arthur ver Arthur (tenente)
Teófilo, Rodolfo, 84-85, 89, 108, 141, 150,
Teresa Maria de Jesus (beata) ver Teresinha do Padre
Teresinha do Padre, 158-159
Thomé, João, 122
Tomé, José, 166
Índice onomástico
178 Juazeiro do Padre Cícero
Torres, Feo, 150
Torres Homem (general), 93
Van Den Brule, Adolfo (conde), 159, 161
Van Geenep, Arnold, 137
Vasconcelos, Bernardo Manuel de, 150
Vasconcelos, Pedro, 158
Viana do Castelo, 163
Vidal (frei), 125
Vieira, Joaquim José (dom), 71, 158
Vieirinha (padre) ver Vieira, Joaquim José (dom)
Von Luetzelburg, Philipp, 142
Xavier de Oliveira, 137
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