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Organizadores:
Luiz Alberto de Campos Gouvêa
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
Matheus Gorovitz
Colaboradores:
Júlio Roberto Katinsky
Frank Svensson
Dulcinéia Schunck
Jaime Gonçalves de Almeida
Marta Adriana Bustos Romero
Contribuição
ao Ensino
de Arquitetura
e Urbanismo
Brasília
INEP
1999
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Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
Coordenador-Geral de Difusão de Informações Educacionais
Antonio Danilo Morais Barbosa
Coordenadora-Geral de Tratamento da Informação e Documentação
Érica Massimo
Coordenador de Produção Editorial
Jair Santana Moraes
Coordenador de Programação Visual
Antonio Fernandes Secchin
Revisão:
Jair Santana Moraes
José Adelmo Guimarães
Marluce Moreira Salgado
Rosa dos Anjos Oliveira
Normalização Bibliográfica:
Regina Helena Azevedo de Mello
Rosa dos Anjos Oliveira
Projeto Gráfico:
Matheus Gorovitz
Capa:
Matheus Gorovitz
Detalhe do pórtico e de capitel do Coliseu. Louis-Joseph Duc (1802-18331).
Cartão-postal. Paris, Escola Nacional Superior de Belas-Artes.
Arte-Final:
Raphael Caron Freitas
Tiragem:
500 exemplares
INEP/MEC – Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexos I e II
70047-900 – Brasília-DF
Fone: (61) 224-1573
Fax: (61) 224-4167
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo / Luiz Alberto de Campos Gouvêa, Frederico
Flósculo Pinheiro Barreto, Matheus Gorovitz (organizadores) [et al.]. – Brasília : Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1999.
144p. : il. tab.
1. Arquitetura. 2. Ensino superior. I. Gouvêa, Luiz Alberto de Campos. II. Barreto, Frederico
Flósculo Pinheiro. III. Gorovitz, Matheus. IV. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.
CDU 378:72
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Apresentação
Este livro surgiu de uma dupla necessidade: contribuir para uma reflexão sobre o ensi-
no de Arquitetura e Urbanismo, preenchendo uma lacuna bibliográfica existente no País, nessas
áreas e, ao mesmo tempo, dar oportunidade aos novos professores e candidatos a concursos para
docentes de conhecerem um pouco do trabalho de uma geração de professores que se aposenta-
va, bem como as propostas de ensino de jovens professores da Universidade de Brasília (UnB), que
buscam construir uma universidade pública participativa e de excelência.
Com esse propósito, durante aproximadamente um ano e meio, um grupo de professo-
res da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB desenvolveu trabalhos em torno de questões
relativas ao ensino e à aprendizagem dessas áreas, os quais foram debatidos em seminários coor-
denados pelo professor Luiz Alberto Gouvêa, principal articulador do grupo para a sua realização.
Os debates revelaram-se extremamente enriquecedores, ao propiciarem uma salutar
relação de troca entre os docentes, na qual os professores veteranos passaram seus conhecimen-
tos e experiências aos professores mais jovens, e estes, com suas inquietudes, arriscaram novas
possibilidades. Uma delas, a idéia de um livro no qual esses conhecimentos e experiências pudes-
sem ser compartilhados com uma comunidade mais ampla.
A idéia foi proposta ao Inep, que reconhecendo a importância do projeto, implementou
a sua realização no âmbito do Programa “Conheça a Educação”, reafirmando, desse modo, seu
compromisso com a pesquisa e a discussão dos temas educacionais nas suas diversas manifesta-
ções. O resultado é este volume, no qual as contribuições daqueles professores são ora apresenta-
das para conhecimento e discussão.
Abre o volume o texto do professor Júlio Roberto Katinsky, ex-diretor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e atual chefe do Departamento
de História dessa universidade, que por ter uma vida consagrada ao ensino foi especialmente con-
vidado para participar do projeto. Em seu texto, Katinsky promove uma reflexão sobre o ensino de
Arquitetura ao longo de sua história, para concluir que suas premissas de aproximar o aprendizado
com o desenvolvimento científico e tecnológico e a consciência histórica da cidade continuam váli-
das até nossos dias.
Em seguida, Frank Svensson, que há 35 anos se dedica ao ensino da Arquitetura tanto
no Brasil como em Angola, Argélia e Suécia, numa existência engajada e consagrada ao projeto e à
pesquisa teórica, discute a necessidade de se deslocar o núcleo do ensino de História e Teoria da
Arquitetura e Urbanismo, de uma historiografia meramente factual para uma historiografia que evi-
dencie a ação recíproca entre história da arquitetura e lógica dialética, tornando o seu ensino uma
questão de teoria do conhecimento e de economia política.
Matheus Gorovitz, respaldado em reconhecida experiência profissional e numa vida dedicada
à docência, aborda a questão do ensino da estética do projeto. Discorre sobre a importância do ensino
das artes e de sua história na formação profissional do arquiteto, de forma a educar o seu juízo de gosto
e a instrumentá-lo para identificar a beleza como expressão da totalidade e da liberdade humanas.
Apresenta, ainda, um roteiro para a leitura da obra de arte no qual essas premissas são evidenciadas.
Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
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Dulcinéia Schunk, baseada em estudos relativos à percepção humana e conceitos
semióticos, apresenta uma reflexão teórica sobre a linguagem gráfica como forma de conhecimento
do espaço arquitetônico e meio de comunicação do arquiteto. Complementa o trabalho, a exposi-
ção de um método de ensino de representação de projeto.
Frederico Flósculo Barreto polemiza e avança em suas propostas de ensino de Proje-
to, ao expor como se dá a organização dessa disciplina na FAU/UnB e discutir suas tematizações
curriculares e departamentais. Operando com o conceito de complexidade, explora a questão
dos métodos de projetação associados à complexidade funcional em Arquitetura e as caracterís-
ticas do processo didático daí decorrentes. Dentre outros pontos para reflexão, discute a necessi-
dade da crítica e de alargamento dos referenciais teóricos e práticos no ensino de Arquitetura,
enfatizando a relevância do conceito de complexidade para a reflexão sobre os problemas da
arquitetura contemporânea.
Jaime Gonçalves de Almeida analisa as relações entre a formação do arquiteto e a
universidade, elegendo como objeto de estudo a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB.
Compara as duas concepções vigentes sobre ensino de Projeto, apontando como um sério obstá-
culo ao intercâmbio acadêmico a forma como esse ensino é ministrado. Conclui em defesa de uma
inserção maior da arquitetura no contexto universitário e enfatizando a interdependência dos aspec-
tos intelectual e investigativo na formação dos alunos.
Marta Adriana Bustos Romero, a partir de pesquisas sobre a organização dos espaços
e do meio ambiente natural, desenvolve os conteúdos de uma disciplina de Arquitetura e Urbanismo
bioclimáticos, na qual são resgatados os valores das arquiteturas populares, mediante a exploração
sistemática do conceito de lugar.
Luiz Alberto Gouvêa, professor e urbanista que há mais de quinze anos pesquisa a
relação da forma urbana com o meio ambiente natural do Planalto Central, divulga e avalia uma
experiência de ensino de projeto ambiental urbano com a participação popular, em que desenvolve
alternativas para a organização de uma cidade sustentável nessa região, descrevendo os objetivos,
as etapas, os resultados e as possibilidades dessa proposta de ensino.
O Inep deseja que este volume, que vem enriquecer e diversificar a sua linha editorial,
não apenas corresponda às expectativas dos professores e alunos dos cursos de Arquitetura e Urba-
nismo, que há muito demandavam uma obra como esta, mas, sobretudo, que os textos nele apresen-
tados possam suscitar a reflexão, a discussão, a crítica e, sobretudo, o intercâmbio de idéias, consti-
tuindo-se, desse modo, uma verdadeira Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo.
Capítulo 1
Ensinar–aprender:
por uma educação criadora
Júlio Roberto Katinsky*
Resumo
O aprendizado de arquitetura sempre foi, no passado, o coroamento de um processo iniciado em
outras atividades menos “abrangentes”: escultura, cantaria, carpintaria, construção (entendida em
sentido estritamente utilitário). As “Academias” surgidas na Itália, na Renascença, e na França dos
últimos Luíses, na realidade, eram instituições com o objetivo de oferecer um conhecimento “cultu-
ral” a jovens que haviam se distinguido em atividades regulamentadas, como as acima nomeadas. O
ensino de arquitetura, entendido como disciplina sistemática, iniciou-se com os arquitetos neoclássicos,
dominados pela preocupação com a cidade contemporânea e pelo modelo racional e iluminista
ensaiado nas escolas de engenharia civil. Suas premissas permanecem válidas ainda hoje: aproxi-
mação do aprendizado com o desenvolvimento científico e tecnológico do momento e a consciência
histórica da cidade e de seus agentes. A cidade deixa de ser a “sede” de uma região e passa a ser o
local de encontro de todos os homens. A imaginação deixa de ser algo que se opõe à razão e passa
a ser a mestra e guia do processo racional.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelentes
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
CAMÕES.Os Lusíadas, Canto V,
estrofe XCVII.
O ensino de Arquitetura não completou, a bem dizer, 200 anos. Por mais paradoxal que
possa parecer, essa afirmação será mais aceitável se distinguirmos com clareza as duas palavras
acima: ensinar e aprender. Iniciemos, pois, por caracterizar a palavra “ensinar”. Há uma situação em
que qualquer pessoa que estiver lendo este texto compreenderá sem dificuldade, pois experimentou
os mesmos passos que usarei para caracterizá-la. É o que ocorre com qualquer garoto ou adulto,
quando após algumas sessões com outra pessoa, ele será capaz de ajuntar sinais, que, no Ocidente,
são muito simples (24 no sistema latino), chamados letras, formando “palavras”, que significam coi-
sas, gestos ou idéias e, juntando palavras, será capaz de aprender um significado conjunto.
“Ensinar”, portanto, tem seu paradigma perfeito no aprendizado das primeiras letras e nas
chamadas operações elementares da aritmética. Ninguém, ou poucos poderão dizer que aprenderam a
ler, a escrever ou “contar” (somar, subtrair, multiplicar e dividir), sozinhos. Nesse sentido, “ensinar” siste-
mas de comunicação enquanto tais, ou aferição de valores numéricos, não só é um ato público, como,
*Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Professor titular de História da Arquitetura,
na mesma escola, desde 1992. Autor de projetos de edifícios, como o Teatro Municipal e o Centro Cultural Patricia Galvão (Santos-SP); a casa de
comando e casa de força da UHE Xavantes (CESP); a estação rebaixadora Centro 1, na cidade de São Paulo, para a Light (hoje Eletropaulo). Autor
de projetos de objetos para uso doméstico. Publicou artigos e livros sobre História da Técnica e Arquitetura do Brasil.
8 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
com toda certeza, foi sempre um fato urbano e sempre teve uma face coercitiva; possuímos tabuinhas
sumérias nas quais essas características estão presentes. Ensinar, pois, estava voltado para atuações
urbanas: ninguém, em sã consciência, argumentaria que para pescar um peixe, colher uma fruta, ou
caçar um pássaro ou animal de pêlo, seja necessário saber ler, escrever ou contar.
Aprender” pode ser apresentado como seu exato contrário, ou seja, é um ato soberano
de vontade individual, “privado”, e tradicionalmente, na maior parte das ocorrências, doméstico. Po-
demos dizer que muitas atividades se podem aprender, mas poucas se podem ensinar. Neste caso,
só se ensina a quem já quer aprender. Assim, não há notícia de ensino público de Arquitetura antes
da segunda metade do século XVII, e mesmo assim, podemos questionar o aprendizado que ocorria
na primeira Academia de Arquitetura, fundada por Colbert, em Paris. Tudo indica que os candidatos a
uma vaga nessa instituição já tinham uma larga prática e conhecimento das várias habilidades ne-
cessárias ao exercício da edificação dos assentamentos humanos.
Cabe, então, perguntar: como se daria a transmissão dos conhecimentos necessários
ao exercício dessa atividade tão complexa e no entanto atestada por tantas obras em nossa civiliza-
ção desde o Egito e a Mesopotâmia? Assim é que, se não conhecemos senão recentemente institui-
ções voltadas para o ensino de arte e arquitetura, por outro lado, George Perrot refere-se a sucessões
familiares de arquitetos egípcios (incompletas, diga-se de passagem), cobrindo, pela minha estima-
tiva, cerca de 700 anos. Nesse sentido, nenhuma dinastia de reis egípcios conseguiu ser tão longa no
tempo.
Parece que, durante os períodos pré-urbano e escravista antigo, o aprendizado para os
ofícios mais simples se dava pela imitação dos mais jovens em relação aos parentes próximos, em
geral, pais e avós. Mas para a arquitetura, ainda que freqüentemente a “profissão” passasse de pai
para filho, o aprendizado deveria ocorrer em função de um ato individual e deliberadamente voluntá-
rio. É o que podemos deduzir do testemunho de um provável “construtor de fortalezas” (mekanikós)
e também notável matemático grego, Pappus de Alexandria, que no século III de nossa era, nos
deixou estas considerações:
A ciência da mecânica (mekanike teknon), meu caro Hermodorus, tem muitos usos importantes na vida
prática, e é tida pelos filósofos como gozando da mais alta estima, e é zelosamente estudada pelos
matemáticos, pois ela ocupa quase o primeiro lugar na condução da natureza dos elementos materiais
do Universo. Pois ela trata geralmente da estabilidade e movimento dos corpos [sobre seus centros de
gravidade] e seus empuxos [impulsos] no espaço, investigando não somente as causas daqueles que
se movem em virtude de suas próprias naturezas, mas necessariamente transferindo [outros] de seus
lugares em um movimento contrário às suas naturezas; e isso é planejado para assim obter através do
uso de teoremas adequados ao assunto. Os “mekanikos” da escola de Heron dizem que a “mekanika”
pode ser dividida em uma parte teórica e outra manual; a parte teórica é composta de geometria, aritmé-
tica, astronomia e física; a manual, em obras de metal, arquitetura, carpintaria e pintura e todas as habili-
dades inerentes às mãos. O homem que foi treinado desde sua juventude nas mencionadas ciências,
assim como for prático nas mencionadas artes e, em adição, tem uma mente versátil, seria, dizem eles,
o melhor arquiteto e inventor de dispositivos “mekânikos”. Mas como é impossível para a mesma pessoa
familiarizar-se com tantos estudos matemáticos e ao mesmo tempo aprender as artes acima menciona-
das, aconselham uma pessoa querendo dominar tarefas práticas em “mekanika” para usar os recursos
de cada um pela experiência concreta em sua específica atividade (Thomas, 1991, p. 19, trad. do autor).
Como se vê, Pappus, consciente da complexidade da atividade daquilo que hoje chamarí-
amos “engenharias”, somente se dispõe a falar em aprendizado para aqueles já interessados em apren-
der. Aliás, o que é uma constante, esses textos gregos (Heron, Pappus, Arquimedes) sempre foram
escritos para uma seleta audiência: são sempre textos dirigidos a alguém. E esse alguém, parece, nunca
era um principiante. Pappus era contemporâneo das primeiras Scholae e Collegia, os embriões das
corporações que irão dominar a organização do trabalho no período feudal e, mesmo parcialmente, no
período capitalista. O aprendizado dos “ofícios mecânicos”, se deixou de ser em grande parte familiar,
continuou, no entanto, sendo privado, privilégio exclusivo das corporações. Se nos chegaram manuais
de retórica, por exemplo, do mundo antigo, não nos chegou, que eu saiba, nenhum manual de carpinta-
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 9
Figura 1 – Gravura sobre pedra calcárea. Comprimento 7,5 cm.
Fonte: MARINGER, Johanes, BANDI, Hans Georg. El Arte Pré-Histórico. Basilea : Ediciones Holbein, 1952.
ria romano ou de fabricação de vidros, arte na qual os romanos se destacaram. E também não parece
que os arquitetos alguma vez se reuniram em corporações. E mesmo a expressão “escola” utilizada no
texto de Pappus, a meu ver, deve ser entendida como aproximação voluntária e não como instituição
pública, mais como “afinidade eletiva”. Não há dúvida de que o aprendizado tem sempre por base um
inerente componente afetivo, a ponto de dirigir os mais recônditos e constantes atos do aprendiz. Ou
como expressou um dos maiores poetas da língua, Camões, em seu célebre soneto:
Transforma-se o amador na coisa amada
Por virtude do muito imaginar.
Os autores, ao escreverem esse livro em homenagem ao pré-historiador Obermaier, chamaram
a atenção para o fato de que a placa, “maquete”, da pintura foi encontrada a centenas de quilômetros da
pintura mural. Foram encontradas dezenas dessas placas preparatórias. É sugerido, então, então, que havia
não só uma grande difusão de pintores pelo território, como uma preocupação de registro e aprendizado
muito precisos.
Figura 2 – Pintura mural. Font-de-Gaume – Dordogne. Comprimento 1,10 m.
Fonte: MARINGER, Johanes, BANDI, Hans Georg. El Arte Pré-Histórico. Basilea : Ediciones Holbein, 1952.
10 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Figura 3 – Cristo sentado.
Fonte: Carnet de Villard Honnecourt, manuscrito cerca de 1340. Paris : Stock, 1992. Edição fac-similar. Prancha 32.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 11
Versão do texto existente na prancha: “Aqui começa o método de traços de retratação, como a
arte da geometria ensina para trabalhar facilmente. Na outra folha, estão os de pedraria”. Observar que no
texto aparece a palavra “traços” e não “desenho”, palavra que surgiria na Itália muitos séculos depois.
Figura 4 – Esquemas construtivos para figuras decorativas de catedrais européias.
Fonte: Carnet de Villard Honnecourt, manuscrito cerca de 1340. Paris : Stock, 1992. Edição fac-similar. Prancha 36.
12 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Os desenhos dos artistas medievais aqui reproduzidos apresentam uma maneira de pro-
dução mais próxima das gravuras pré-históricas do que da maneira de seus quase contemporâneos
artistas renascentistas. Tanto Villard de Honnecourt como Giovannino de Grassi foram arquitetos respei-
tados no seu tempo.
Figura 5 – Desenho europeu medieval de cervo.
Fonte: GRASSI, Giovannino de. Taccuino di disegni. Bergamo : Monumenta Bergomensia, 1961.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 13
Figura 6 – Capitão Arutana Karajá fazendo a maquete de uma casa tradicional Karajá, do tipo
usado na estação das chuvas.
Foto tirada na aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, Ilha do Bananal, Goiás, em julho de 1977, por Eduardo Bacellar. Gentileza da
pesquisadora Cristina Sá.
14 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Figura 7 – Adoração dos Magos. Estudo preliminar. Louvre, Paris.
Fonte: Leonardo da Vinci. New York : Reynal & Company, 1956.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 15
Figura 8 Adoração dos Magos. Estudo de figuras e arquitetura. Primeira tentativa de ajuste da
composição (ou desígnio) à perspectiva exata. Galeria Uffizi, Florença.
Fonte: Leonardo da Vinci. New York : Reynal & Company, 1956.
16 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Figura 9 Adoração dos Magos. Pintura inacabada. “Desenho” definitivo.
Galeria Uffizi, Florença.
Fonte: Leonardo da Vinci. New York : Reynal & Company, 1956.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 17
Figura 11 Adoração dos Magos. Estudo. British Museum, Londres.
Fonte: Leonardo da Vinci. New York : Reynal & Company, 1956.
Figura 10 Adoração dos Magos. Estudo. Royal Collection, Windsor.
Fonte: Leonardo da Vinci. New York : Reynal & Company, 1956.
18 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Esse quadro não se altera, do ponto de vista do aprendizado, durante os mil anos do
período feudal. E, ainda no início do “Quatrocentos” florentino, temos um documento que descreve a
trajetória do escultor, ourives e gravador Felipe Brunelleschi, para a condição de arquiteto, aquele
que “inaugura” a arquitetura moderna. De fato, pela sua biografia, atribuída a Antonio Manetti, não há
professor de arquitetura, nesse caso. Ao contrário, sobressaem nas páginas do erudito italiano a
vontade pessoal de Brunelleschi, medindo e desenhando obras de arquitetura, inclusive escavando
suas fundações (em sua estada em Roma), para tentar surpreender o mistério de seu fascínio. Manetti
comenta ironicamente que as pessoas, vendo o extraordinário artista escavar as ruínas romanas,
cuidavam que ele estava em busca de algum tesouro oculto. E o biógrafo deixa implícito que era isso
mesmo que o arquiteto procurava, só que era um outro tipo de tesouro.
É atribuída a Brunelleschi a descoberta da perspectiva exata, a descoberta científica
mais importante, quero crer, de todo o século XV. Descoberta científica, porque, mais do que um mero
instrumento profissional, a perspectiva pode ser entendida como a consagração e o estabelecimento
preciso, indiscutível, da homogeneidade e unidade matemática do espaço visível. Ou, em outras
palavras, com a perspectiva exata, abandona-se o espaço geométrico e abstrato da ciência antiga e
em parte medieval, e se adota, com precisão matemática, o espaço empírico do quotidiano. É por
isso que eu ousei dizer que a perspectiva exata florentina nada mais era do que a última etapa do
espaço proposto por Giotto. Depois de Brunelleschi, aquilo que era uma vaga suspeita e afirmação
passará a ser uma obsessão da cultura italiana, ou seja, a unidade entre o mundo “sublunar” e o
“empíreo”, que se manifesta no radical antiaristotelismo dos séculos XV e XVI. Parece-me que o
filósofo Bernardino Telesio bem exprime essa convicção de unidade (pela redução dos elementos da
natureza a “frio” e “calor”), retomada sagazmente por Francis Bacon em seu Novum Organum. Mas
será com Galileu e seu Nuntius Sidereus, quando, inclusive com belos desenhos de sua autoria, ele
descreveu as crateras e mares da Lua, pela primeira vez vislumbrados através de sua luneta, mos-
trando inequivocamente que a superfície da Lua era tão acidentada quanto a da Terra, ou seja, que
sua composição natural deveria ser idêntica à natureza de nosso mundo sublunar. A convicção do
espaço único então se imporá, abrindo lugar para todos os desdobramentos da ciência moderna.
Com razão, pois, Galileu teria dito, segundo Giorgio Santillana, que seu “perspicilium” (luneta galileana)
apoiava-se nas mais recônditas leis da perspectiva.
Contudo, a visão tradicional, acadêmica, da perspectiva exata, como poderoso instru-
mento da “composição” artística, não deixa de ser correta. Como diz muito bem Piero della Francesca,
a perspectiva exata permite o estudo preciso da proporção. Ou em suas próprias palavras:
A pintura contém em si três partes principais, as quais dizemos ser desenho, commensuratio e
colorir. Desenho entendemos ser os perfis e contornos que na coisa se contêm. Commensuratio
dizemos ser esses perfis e contornos proporcionalmente postos em seus lugares. Colorir entende-
mos dar as cores como nas coisas se demonstram, claros e escuros segundo que as luzes as
alteram. Das três partes, entendo tratar só da comensuração, à qual chamamos perspectiva, mistu-
rando-a com alguma parte de desenho, porque sem ele não se pode demonstrar na obra essa
perspectiva (Della Francesca, 1974, trad. do autor).
Com a perspectiva exata é que se pode falar, pela primeira vez, em “composição”, pois
o artista passa a ter um instrumento de controle sobre cada trecho do campo, do espaço a ser
trabalhado, seja ele bi ou tridimensional. Assim, já no século XV, vemos os cadernos de esboços
preparatórios povoarem-se de fragmentos de pintura (ou escultura), estudados separadamente por-
que o artista sabia de antemão que, pela perspectiva, poderia unificar todas as partes, proporcional-
mente, na composição final.
Mas então como se compunha antes da perspectiva? A meu ver, pela justaposição das
figuras, blocadas, construídas em si mesmas. Essa é a percepção que temos, a estranheza que nos
causam os poucos murais da pintura antiga romana ou mesmo dos grandes murais bizantinos. Nada
melhor para ilustrar essa afirmação do que o grupo escultórico de Laocoonte, descoberto por essa
época. Laocoonte é representado com quase o dobro do tamanho de seus filhos. É verdade que,
principalmente nos vasos, uma incipiente “perspectiva” se manifesta, pela tentativa de pintar a figura
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 19
e o ambiente em que ela se insere. Mas mesmo essa perspectiva, que aparece também em murais
pompeianos, principalmente quando representa edifícios ou fragmentos de cidades, não foge à regra
de representação centrada na própria figura, sem relação direta e orgânica com as figuras que estão
ao lado. Assim, podemos dizer que com a perspectiva exata, pelo menos em pintura e escultura, as
partes, a partir da Renascença, devem estabelecer um estreito diálogo, como dizia Cézanne (citado
em aula por Flavio Motta): “eu vigio a pincelada da esquerda com a pincelada da direita”. A teoria da
composição renascentista irá desenvolver-se durante os séculos seguintes, recebendo uma podero-
sa contribuição, no século XX, da “teoria da montagem” desenvolvida pelos cineastas soviéticos, em
especial Eisenstein e Pudovkin, base ainda de aprendizado de muitos cineastas atuais.
Na arquitetura, a unificação das partes não era tão sensível, devido ao fato de que nela
coincidem dois espaços: o espaço expressivo e o espaço real, ou como dizia Alberti, a invenção da
disposição dos aposentos. Ou, como diríamos, o espaço de uso. Para acentuar essa diferença (colo-
cada já por Vitrúvio nos três elementos fundamentais da arquitetura: utilitas, firmitas, venustas), costu-
mo fazer a seguinte distinção para meus alunos: eu posso, se for surpreendido por uma súbita carga
de chuva, proteger-me com uma tela de El Greco, por exemplo. Mas esse “uso” não faz parte da
finalidade da pintura, do seu objetivo. Ao contrário, eu posso morar em uma casa de Le Corbusier ou
Frank Lloyd Wright (seguramente qualquer uma delas uma obra-de-arte para mim), mas esse fato
não servirá de consolo se eu acordar de madrugada devido a uma goteira existente bem em cima de
minha cama. Ou em outras palavras, o elemento unificador em arquitetura sempre foi o uso real da
construção e só secundariamente uma sintaxe expressiva. Esta é dependente da “engenhosidade da
disposição dos aposentos” (Alberti, 1966, livro II, cap. 1). Ou ainda, os programas sociais comanda-
ram sempre o projeto arquitetônico e, como observa Alberti autor no capítulo referenciado, conside-
rando inicialmente os problemas econômicos (bem de acordo com a cultura burguesa que se afirma-
va na Itália naquele instante), foram os telhados, as coberturas (ou os abrigos) que determinaram os
outros elementos arquitetônicos: paredes, colunas, capitéis, traves e arquitraves, aberturas e até
mesmo as partes enterradas, canos de alimentação de água ou escoamento das chuvas, ou ainda
calefação.
Assim, durante a Renascença, Maneirismo e Barroco, os programas de arquitetura se
mantiveram estáveis, e a única alteração significativa foi a progressiva incorporação, no edifício, do
espaço expressivo da cidade contemporânea. Desse modo, em que pese a grande inventividade
expressiva do barroco italiano ou alemão, enquanto absorção ótica da perspectiva, tornando o espa-
ço edificado um teatro sacralizado, e que tanto influenciaram a Europa e mesmo a América Latina, no
período colonial, a invenção do jardim francês foi a maior modificação introduzida nesse longo perío-
do. Mas sempre foi considerado um complemento, algo menor, mesmo quando realizado por um
Lenotre, em Vaux-le-Viconte ou Versailles.
Com a “revolução industrial”, entretanto, o “fator determinante” da organização
arquitetônica foi posto em xeque; não só programas inteiramente novos surgiram, como bancos,
museus, hospitais, depósitos de bens (mercados, matadouros), bibliotecas, conjuntos habitacionais
para a alta classe média, como Bath ou os Crescent, como as próprias cidades começaram a cres-
cer, principalmente no século XVIII. Lisboa, Paris, Londres passavam, nessa época, dos 300 mil habi-
tantes, alcançando, cada uma delas, pela primeira vez no Ocidente, a população da Roma dos Césares.
Essas cidades não cresceram somente pelo êxodo rural, mas também pelo crescimento vegetativo,
sobrecarregando com novos problemas as estruturas urbanas. Convém não esquecer o incêndio de
Londres em 1666 e as epidemias que devastavam as cidades despreparadas para esses novos
acontecimentos provocados pela expansão do processo capitalista de produção. Talvez isso expli-
que o grande desenvolvimento da medicina do trabalho e das práticas preventivas higiênicas, como
a vacina de Jenner.
Os arquitetos franceses do final do século XVIII, em especial Boullée e Ledoux, não só
compreenderam como foram capazes de responder criativamente aos novos desafios, projetando ou
propondo os novos e “espantosos” (aos olhos dos contemporâneos) espaços para a cidade que se
vislumbrava. Mas além disso, ou por isso mesmo, deram os passos necessários para a sistematiza-
ção da disciplina da composição da arquitetura e, em conseqüência, para se institucionalizar o ensi-
no da arquitetura, pela primeira vez na história. Essa tarefa coube ao mais próximo discípulo de
20 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Boullée, Jean Nicolas Louis Durand, professor de arquitetura, como seu mestre, na célebre École de
Ponts et Chaussées. O que poderia soar como uma ironia explica-se pelo fato, como já indiretamente
comentamos, de que todos os tratados de arquitetura, incluindo os tratados de Boullée e Ledoux,
foram escritos para usuários (por isso mesmo, quase sempre foram dedicados a reis, príncipes,
homens do poder) e para arquitetos que quisessem atender às necessidades expressivas desse
mesmo poder. Com Durand, ao contrário, seus dois livros, Précis d’Architecture e Recueil et Parallele
des Fabriques Classiques são verdadeiros manuais dirigidos a estudantes.
O Précis d’Architecture apresenta de forma sistemática, em primeiro lugar, um instru-
mento de trabalho que será incorporado definitivamente ao ensino de arquitetura até os nossos dias.
Trata-se das malhas ortogonais, no caso mais corrente, com as quais se homogeniza todas as áreas
previsíveis de um programa de necessidades, possibilitando, portanto, sua associação e harmonização.
Essa malha permite que se definam previamente figuras geométricas simples, capazes de, sob um
trabalho analítico, definir áreas precisas para cada finalidade. Em seguida, pode-se associá-las de
acordo com as outras exigências e objetivos do programa, para se chegar ao resultado final que nós
chamamos, erroneamente, de “projeto”.
Esse instrumento de projeto é tão simples e adequado ao trabalho do arquiteto (o cha-
mado papiro de Turim, com sua malha ortogonal sugere que os arquitetos egípcios já usavam um
recurso semelhante) que o próprio Durand deixou registrado, segundo um de seus biógrafos, Werner
Szambien, sua estranheza pelo fato de não ter sido proposto, em escolas, antes dele. Também o
sistema de “pavilhões” modulares articulados (e que decorre da associação de funções afins), se de
um lado é uma proposta neoclássica, encontra, entretanto, um precedente na obra do arquiteto
vicentino Andrea Palladio, por isso mesmo eleito arquiteto por excelência pelos intelectuais do século
XVIII (observe-se a esse propósito os “palladianos” ingleses), em especial, pelos dois geniais mes-
tres de Durand, Ledoux e Boullée.
É interessante notar que se o mais respeitado tratado de arquitetura do século passado,
aquele de Leonce Reynaud (1
a
ed., 1850), não expõe a “técnica” das malhas modulares, e nesse
sentido também não é um manual, mas um guia para arquitetos plenamente habilitados, por outro
lado, o arquiteto contemporâneo indiretamente proposto como paradigma é Henri Labrouste, o autor
das bibliotecas modulares de Paris, considerado um discípulo de Durand por Hitchcock. Em adita-
mento, Neil Levine associa a biblioteca de S
te
Geneviève à proposta de Boullée, bem como propõe
malhas modulares para as plantas e alçados do edifício. Giedion, por sua vez, compara Labrouste a
Brunelleschi. As malhas modulares serão retomadas por um manual do século XX, editado pela
primeira vez em 1936. Refiro-me ao livro A Arte de Projetar em Arquitetura, do alemão Ernest Neufert.
Esse livro não parece gozar de grande apreço entre os teóricos e historiadores, mas mesmo assim
suas edições em várias línguas devem estar beirando a centena, e sua reprodução, a esta altura,
deve atingir o milhão de exemplares. Ou seja, é o manual de arquitetura mais impresso no mundo.
Neufert, na realidade, foi suficientemente esperto para compilar os estudos publicados pelos arquite-
tos modernos (também chamados racionalistas), e apaixonados pela “normalização” (standard), como
se pode ver pela coleção da revista catalã Gatepac, ou nos livros de Le Corbusier, em particular, La
Ville Radieuse. Mas Neufert teve, neste século, pelo menos um precursor no livro Costruzione Razionale
della Casa, de Enrico Griffini (1930).
Ora, se examinarmos a obra e os raros escritos de mestres de arquitetura deste século,
veremos que muitos deles utilizam-se do recurso exposto modestamente pelo professor Durand. Por
exemplo, Mies van der Rohe experimentou, ao longo de sua vida profissional, várias malhas ortogonais.
Ou Frank Lloyd Wright, que não só utilizou malhas ortogonais, como também ensaiou malhas com
triângulos equiláteros (que permitem construir malhas mais complexas, hexagonais).
Le Corbusier também se serviu de malhas ordenadoras, mas introduziu algumas revi-
sões. A primeira é que o arquiteto, sempre que puder, deverá contrariar os eixos de simetria bilateral
que se impõem, mecanicamente, no método estrito do professor neoclássico. Esta crítica está regis-
trada no seu livro Vers une Architecture, ao reproduzir a descrição de Choisy para a aproximação da
Acrópole de Atenas, desde os propileus até os templos e sua disposição no cume. Mas também o
arquiteto Franz Heep nos deixou um testemunho sobre isso. Relatou ele em classe que “mestre
Corbu”, folheando uma revista de arquitetura da época (década de 30), deteve-se em um projeto de
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 21
hospital de um colega holandês, desenhado obedecendo estritamente a um eixo de simetria. Comen-
tou então, sarcasticamente, que o colega poderia ter projetado só metade do edifício e aplicado um
espelho, que teria o projeto completo. O outro depoimento foi-nos dado por Oscar Niemeyer. Em um
momento de descanso, quando a equipe paulista trabalhava no Centro Administrativo Municipal, o
arquiteto nos perguntou como em nossa geração iniciávamos o projeto na FAU. Respondemos que
tínhamos aprendido a projetar organizando “organogramas”, isto é, estabelecendo retângulos com
áreas funcionais em escala e suas conexões necessárias através de linhas de ligação. O arquiteto
então nos contou que Le Corbusier, nos projetos da Cidade Universitária (1936) e do Ministério da
Educação e Saúde, solicitou a seus jovens discípulos que organizassem “tiras” de áreas, fixando uma
medida para a largura das tiras (por exemplo, 5, 6 ou 10 metros) e referenciando as outras dimensões
das áreas previstas nos edifícios, de modo a ter visões alternativas e proporcionadas das áreas (e,
implicitamente, dos espaços) a serem manipuladas. Essas revisões de Le Corbusier caminhavam no
sentido de garantir sempre, mesmo no transcorrer de um único projeto, aquela margem de
experimentalismo que propicia a eclosão das soluções inovadoras, preocupação constante de toda a
sua atividade artística.
Figura 12 – Combinações horizontais de colunas, pilastras, muros, portas e janelas.
Fonte: DURAND, J. N. L. Précis des leçons d’architecture. Paris, 1819.
22 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Figura 13 – Escadas.
Fonte: DURAND, J. N. L. Précis des leçons d’architecture. Paris, 1819.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 23
Durand, professor da Escola Politécnica de Paris, sistematiza a lição dos arquitetos Ledoux
e Boullee, utilizando a nova “Geometria Descritiva” dos engenheiros militares franceses, o que pode ser
considerado o equivalente para a arquitetura, da extraordinária descoberta renascentista conhecida
como perspectiva exata.
Daí para frente, com maior rigor, o edifício poderá ser tratado analiticamente em cortes
horizontais, verticais ou inclinados, para controle de seus volumes. Assim, também cada função poderá
ser adaptada separadamente a cada espaço, pois, posteriormente, esses espaços poderão ser “costu-
rados” pela composição de arquitetura, em seu “desenho”(desígnio) definitivo. Os edifícios, às vezes,
terão suas “linhas de sutura” completamente apagadas ou muito atenuadas, como na Biblioteca de Ste.
Geneviève, de Labrouste. Ou elas aparecerão nitidamente, como pavilhões justapostos, em obras como
a Biblioteca Nacional, do mesmo Labrouste, ou a Ópera de Paris, de Garnier, no século XIX; ou no
século XX, no Cassino de Pampulha e no prédio do MEC, no Rio de Janeiro, de Oscar Niemeyer, ou
ainda na Assembléia de Chandigarh, de Le Corbusier.
A teoria da composição do “neoclassicismo romântico” com o seu conteúdo crítico foi
retomada pelos cineastas soviéticos dos anos 20 e 30 deste século, sob o nome de “Teoria da monta-
gem”, ainda muito apreciada pelos cineastas atuais.
Figura 14 – Combinações de coroamentos.
Fonte: DURAND, J. N. L. Précis des leçons d’architecture. Paris, 1819.
24 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
O documento, raríssimo, mostra o antigo aspecto do prédio, no momento do início das obras
de construção do segundo andar, em 1882.
A fachada da Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro, de Grandjean de Montigny, docu-
menta claramente como esse grande arquiteto do século passado soube se apropriar das lições de “compo-
sição” dos mestres Boullée e Ledoux.
Figura 15 – Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro, de Grandjean de Montigny. Fotografia de
Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 25
O arquiteto, desde seus primeiros projetos, trabalhava para a definição final dos espaços com
tramas ortogonais. A fluência dos espaços contínuos, segundo depoimento do próprio arquiteto, foi aprendi-
da da obra de Frank Lloyd Wright.
Figura 16 – Planta da casa Caine, de Mies van der Rohe.
Fonte: BLASER, Werner. Mies van der Rohe. Barcelona : Gustavo Gili, 1980 (circa).
26 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
O arquiteto Le Corbusier, ao estabelecer sua trama de pilares, elabora caprichosamente seus
espaços, não hesitando mesmo em deixar colunas livres no interior dos espaços, como se vê claramente no
exemplo 3. Essa característica (independência da estrutura e das paredes) vai ser afirmada quase como
“marca de fábrica” dos projetos nas décadas de 30 e 40 deste século.
Mas assim como a perspectiva florentina não é um simples recurso operacional, como
anota poeticamente Lionello Venturi, quando fala de Giotto, que “chiude una civiltà pittorica che si
occupa sopratutto di Dio e ne apre una nuova che si occupa sopratutto dell’uomo”, assim também a
malha modular dos arquitetos neoclássicos fecha uma ideologia da arquitetura que se ocupa alego-
ricamente da cidade moderna (até hoje, nas línguas eslavas, as grandes avenidas são chamadas
“perspectiv”) e abre uma outra na qual a cidade real e desejável deve ser proposta. Ou seja, a ideolo-
gia arquitetônica deverá ser, daí por diante, crítica em relação à cidade do passado e do presente. É,
pois, devido a essa exigência, que se instala a necessidade da modulação e da estandardização de
todos os elementos arquiteturais. Essa proposição está plenamente desenvolvida no tratado de
Reynaud, um aluno e sucessor de Durand na École Polytechnique. Antes de tudo, para fazer face às
exigências do crescimento das cidades modernas, ao aumento de sua população, à diversificação
das necessidades urbanas. Pela primeira vez, a arquitetura deverá, como seus mestres já tinham
indicado, cuidar de edifícios que nunca tinham sido cogitados; Ledoux, ainda no Antigo Regime
projetando úmidas instalações de salinas; Durand propondo edifícios para abate de rezes; Reynaud
Figura 17 – Esquemas propostos por Le Corbusier, em função das possibilidades industriais.
Fonte: BOESIGER, Willy, STORONOV, O. (Org.). Le Corbusier et Pierre Jeanneret – Oeuvre Complète 1910-1929. 5ème ed. Zurich : Les
Editions d’Architecture Erlembach, 1948.
Ensinar–aprender: por uma educação criadora 27
projetando faróis de ferro, bibliotecas, estações ferroviárias, de sorte a encaminhar, já no século XX, a
compreensão da arquitetura segundo a frase de Auguste Perret: “móvel ou imóvel, tudo que ocupa
lugar no espaço pertence ao domínio da arquitetura”.
E assim vemos no livro de Neufert o registro até mesmo do gabarito de equipamentos
de criação de granjas de galinhas. Mas a lição de Durand (e de seus mestres) não se esgota nessa
platitude atualizante.
Durand estava tão consciente em seu tempo das duas ordens, o espaço da utilização e
o espaço da representação, que iniciou seu trabalho didático justamente por sua história da arquite-
tura (da obra, a biblioteca da FAU/USP só possui uma edição italiana de 1833), que inaugura o estudo
sistemático das obras de arquitetura enquanto história.
Durand propõe, e isso é inédito, o universo das obras de arquitetura como um universo
empírico e, portanto, passível de estudo sistemático, ao reduzir todas as representações das obras a
uma mesma escala, permitindo que para esse domínio específico se possam estabelecer os mes-
mos critérios que os iluministas adotaram para arrolar e descrever todas as coisas, as artes, os ofícios
e os costumes na grande Enciclopédia. E o próprio biógrafo, Szambien, reconhece que um quarto
dos seus alunos na Politécnica e na Ponts et Chaussées dedicou-se à investigação histórica da arqui-
tetura. Esse estudo sistemático não deixa de ser uma das maiores contribuições da cultura francesa
do século passado, pois, pela primeira vez, se estabeleceu o esboço de uma comparação entre
todas as obras humanas e se estabeleceu a possibilidade de reconhecer as várias arquiteturas do
mundo com um mesmo padrão de referência; a arte e a arquitetura greco-romanas deixavam lenta-
mente de ser o paradigma absoluto a se almejar. Essa postura é tão presente que Hitchcock não
deixa de assinalar o livro Architecture Toscane, de Grandjean de Montigny, na obra do mais famoso
aluno alemão de Durand, Leo von Klenze.
Grandjean, discípulo de Fontaine, não só deu início aos cursos de Arquitetura no Brasil,
com todas as implicações urbanas que ela já comportava, como mostrou a estudiosa Drª. Giovanna
del Brenna, como também a ele, a meu ver, devem ser creditadas as diretrizes básicas da dupla
escola proposta por Joachim Le Breton. O livro de Grandjean não só foi modelo de estudo da arqui-
tetura toscana na Europa, como foi ainda, neste século, referência nas escolas norte-americanas,
conforme observação constante no livro de Kostof (1986) sobre a profissão. O século XIX termina
com a História da Arquitetura, de Auguste Choisy, na qual, as mais importantes contribuições france-
sas estão compendiadas: as obras românicas, o gótico, o colorido dos templos e estátuas gregos, o
uso do ferro e do aço nas construções do século XIX, a análise das estruturas ao longo dos séculos.
Finalmente, mas não menos importante, Durand aceita a proposta de Boullée, de reco-
nhecer a autonomia da engenharia em relação à arquitetura, mas recomenda o estudo das técnicas
construtivas do tratado de Rondelet. Que essa autonomia foi benéfica ao desenvolvimento tecnológico
podemos constatar pela rápida reprodução do modelo politécnico no mundo. Inclusive na Inglaterra,
que detinha até então a “tecnologia de ponta” da indústria mundial. As primeiras escolas de enge-
nharia e arquitetura inglesas datam da década de 40 do século passado, meio século posteriores ao
seu paradigma francês.
Mas se esse modelo de ensino era tão bom, por que fracassou tão claramente já no final
do século passado? Com efeito, qual o arquiteto das Beaux-Arts francesas que se destaca perante
Victor Horta, Henri van de Velde, Peter Behrens, Henri P. Berlage, quando todos os arquitetos repre-
sentativos dos três primeiros quartéis do século XIX ou são franceses ou são seus discípulos? A meu
ver, por um acontecimento político e social que marcou a sociedade francesa, com a derrota da
guerra franco-prussiana e sua seqüela, a comuna de Paris. Até então, o socialismo de Fourier e Saint-
Simon, que tinha livre trânsito nas escolas francesas, passou a ser, a partir de 1870, uma ameaça
apavorante ao status quo. Então, a ideologia socialista passou a ser rejeitada, e o discurso técnico (e
acadêmico) passou a adquirir uma conotação “apolítica”, quando não racista; o discurso acadêmico
oficial (ver o racismo embutido em Choisy) passou a ser o defensor da “hegemonia cultural ociden-
tal”, justificando, implicitamente, o racismo. Ora, uma ideologia que se fecha sobre si mesma é um
contra-senso em termos, com a criatividade que se alimenta de seu contrário.
De fato, se o funcionalismo da Academia pode ser rastreado desde Philibert De L’Horme,
como fez Anthony Blunt, não podemos negar que o funcionalismo (e o racionalismo) de Durand e
28 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
seus mestres foi bebido, como leite materno, nos textos dos enciclopedistas, especialmente na nova
santíssima trindade (Rousseau, Diderot e D’Alembert, nessa ordem), os filósofos da liberdade e
da igualdade. Basta ler o tratado sobre o belo de Diderot para percebermos a conexão obriga-
tória entre os arquitetos citados e os filósofos da Encyclopédie. Mas esses intelectuais estavam
bem conscientes de que a história nos legou uma sociedade que consagra a “desigualdade
entre os homens”. E qualquer sociedade futura, se tiver de ser reformulada, não poderá aceitar
essa bárbara divisão. Nesse sentido, ainda que não suficientemente reconhecido pelos seus
biógrafos recentes, Durand é também paradigmático. No elogio póstumo que Rondelet lhe de-
dicou (1835), não só chamou a atenção para sua origem humilde (fils d’un pauvre cordonnier)
como não deixou de anotar a decisão testamentária do professor, ao doar seus escritos à Esco-
la Politécnica: os rendimentos obtidos com suas publicações deveriam servir para amparar, por
meio de bolsas, alunos “peu fortunés”. Ou seja, esses técnicos só realizaram essa obra notável,
que ainda hoje nos serve de subsídio, porque estavam convencidos de antemão de que poderia
haver um destino comum construído por todos, e que, portanto, todas as experiências e experi-
mentos poderiam ser tentados.
E não deixa de ser paradoxal que os artistas de vanguarda do começo deste sécu-
lo, ao lutarem contra o apoliticismo petrificado da Academia, estavam retomando a ideologia
libertária dessa mesma Academia em seu nascimento. O próprio êxito da Bauhaus pode ser
explicado muito mais pela acuidade com que Gropius soube acolher as experiências estéticas
do momento e pela atenção aos desenvolvimentos da ciência e da tecnologia que então se
davam (pelo menos em sua vertente Moholy-Nagy, inclusive pela atenção às ciências sociais)
do que a uma “nova” didática.
Mas, tanto dos primeiros artistas dominados pela ideologia iluminista quanto dos artis-
tas de vanguarda deste começo de século, dominados em grande parte por ideologias liberais
socializantes, podemos extrair lição madura: ideologia não se ensina, se aprende. Ou em outras
palavras, a adesão ideológica que constrói inclusive a si mesma não pode ser imposta; ela é causa e
efeito de uma ação afetiva.
Assim, propomos o futuro do ensino da arquitetura e da arte: quando ensinar e apren-
der forem uma única e transparente ação; ou ainda, quando toda a experiência e ideologia se
fundirem na sala de aula: quando ensinar e aprender forem atos recíprocos, e os alunos forem
mestres de seus professores.
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Capítulo 2
Problemas atuais do ensino
e do aprendizado de Teoria
e História da Arquitetura
Frank Svensson*
Resumo
Aborda a necessidade de se deslocar o centro do ensino da História e Teoria da Arquitetura e do
Urbanismo, de uma historiografia limitada à consideração de feitos e fatos, os quais revelam,
mas não esgotam a lógica, as leis do processo de desenvolvimento. A atenção centra-se no
problema da ação recíproca entre o histórico e o lógico. É esta ação entre questões de história
da arquitetura e de lógica dialética que tornam o seu ensino também uma questão de Teoria do
Conhecimento, bem como de Economia Política. Considera-se, ainda, que o deslocamento dos
“paradigmas” do conhecimento histórico, ao assimilar um caráter ativo por meio de
problematizações, permite superar o conhecimento descritivo e analítico, para exigir práticas de
pesquisa e participação, ou seja, de “fazer história”.
Perspectiva geral
A ofensiva geral do neoliberalismo em suas pretensões de globalização avança por
todos os setores e com a educação não é diferente. É um equívoco afirmar que, para o Brasil, não
haja um projeto educacional favorável à “globalização”: um projeto elitista e excludente, voltado para
atender aos interesses do grande capital. Não há propriamente um sucateamento do ensino e sim
um ajuste ao novo modelo de produção técnico-científico do capitalismo, modelo este perfeitamente
condizente com os anseios da elite dominante.
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96) forneceu o
argumento final para a cobrança de mensalidades nas instituições públicas do ensino superior aju-
dando, assim, a abrir as portas para o ajuste de nosso sistema educacional às necessidades do
capital, quais sejam: uma maior estabilidade política gerada por níveis elevados de alienação e
aumento da qualidade e produtividade da mão-de-obra brasileira, tornando nossa vida produtiva o
mais tranqüila possível para que se processem os mecanismos da mais radical concentração de
rendas já verificada.
Nessa perspectiva de apoio preferencial à formação de arquitetos para a iniciativa pri-
vada, o relaxamento das disciplinas críticas, situadas na área de teoria e história da arquitetura, é
fundamental. As disciplinas favorecidas são as chamadas de projeto – ainda segundo o modelo da
profissão liberal – e as de tecnologia aplicada à construção de edifícios exclusivos.
Esse quadro faz parte de um maior quanto ao conhecimento histórico e filosófico. Erich
Kahler (1964) em seu livro The Meaning of History caracteriza-o da seguinte forma:
*Doutor em Filosofia, com direcionamento para História e Teoria da Arquitetura, pela Universidade de Gotemburgo. Professor titular da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB), responsável pelas disciplinas Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo
da Sociedade Industrial e Teoria do Conhecimento dos Espaços Construídos. Publicou em 1992, pela Editora da UnB, o livro Arquitetura e
Necessidade. Desde 1994 edita a publicação Arquitetura e Conhecimento e traduções para a Editora Alva, de Brasília.
32 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Pela primeira vez o mundo humano é tecnicamente uno, mas está, ao mesmo tempo, num estado
da mais completa anarquia. A civilização ocidental está a ponto de conquistar o globo e de extirpar
gradualmente os antigos hábitos, o legado cultural peculiar de outros povos, ao mesmo tempo em
que o Ocidente em seu próprio domínio, dá sinais inequívocos de degenerescência.
A tecnologia moderna produzida pela civilização ocidental tende a reduzir funcional-
mente o mundo à condição de uma só unidade. Para tanto, vale-se dos instrumentos de comunica-
ção de massa e difunde o seu ferramental tanto de preservação como de destruição da vida, de
benefícios e de atrocidades, numa tendência de propriedade comum de um mundo globalizado. Os
homens e as comunidades não caminham no mesmo ritmo das mudanças técnicas. O conflito e a
interação dessas duas tendências explicam a anarquia reinante.
Outra contradição reside no papel ambivalente da civilização ocidental. No nosso mun-
do continuam existindo povos atrasados quanto a técnicas e tecnologia, mas que quanto à preser-
vação de sua dignidade superam muito as nações ocidentais. Os povos eslavos em que pese a
atual crise econômica que lhes é imposta pelo capitalismo, e especialmente os povos sino-asiáti-
cos, hindus e africanos, parecem ter condições melhores de sucederem o Ocidente como civiliza-
ção exponencial do mundo. Não só pela magnitude de suas populações, mas principalmente gra-
ças à substância humana básica de suas culturas (Ziugánov, 1995).
A exagerada “racionalização” capitalista desenvolvida pela cultura ocidental comprime
o inconsciente das pessoas fazendo com que se instalem neuroses e desvarios de toda sorte, mani-
festando-se em atos desarticulados, carentes por completo de rumo e destino histórico. Assim sur-
gem as expressões de música pop-art, de cinema pós-moderno e de arquitetura pós-modernista
(Harvey, 1992; Schnaidt, 1997). Expressões de um capitalismo decadente.
O melhor a fazer é esclarecer a nossa identidade histórico-cultural e unir nossas forças
a esses povos do futuro, apreciando conjuntamente a existência potencial de uma nova ordem mun-
dial cultural e historicamente diversificada. Uma nova ordem na qual regiões de nítida identidade
histórico-cultural têm em comum a preservação da forma humana. Suas arquiteturas, distintas em
suas particularidades, terão em comum de ser destinadas aos homens e não ao capital. Com esse
objetivo maior estaremos “fazendo” história. Estaremos nos atualizando com o desenvolvimento de
nossa história e de nossa cultura afro-ibero-americana.
Limitando-nos a uma historiografia nostálgica e conservadora, romântica e
apologética, ou atendo-nos a pesquisas históricas pontuais, só estaremos reproduzindo a soci-
edade capitalista em sua degenerescência e ocaso histórico. O fundamental é buscarmos o
significado essencial do que estamos fazendo: para onde nos leva o que estamos fazendo, e o
que se consegue com isso; buscar uma orientação para o mundo de hoje ante a encruzilhada
em que se encontra: entre a aniquilação do Ocidente e a unificação cultural e historicamente
diversificada da humanidade.
História não é historiografia
Durante muito tempo se absolutizou o princípio da “realidade histórica”, se mante-
ve como certa a possibilidade de um conhecimento ilimitado “daquilo que houve em matéria de
arquitetura”. A disciplina História da Arquitetura valia-se de métodos de coleta de dados e das
sintetizações indutivas: características de uma orientação historiográfica amplamente difundi-
da, ingênuo-realista por seus métodos factológicos (estudo de fatos e feitos veiculados por
obras de arquitetura).
A compreensão simplificada daquilo que ocorreu no passado, o menosprezo pela ne-
cessidade de conhecer as leis do desenvolvimento social e a freqüente atitude negativa para com a
evolução do corpo teórico-conceitual da História da Arquitetura, resultaram na débil posição do
realismo histórico-arquitetônico ingênuo.
O professor de História da Arquitetura, que está acostumado a trabalhar mostrando obras
sem um esquema conceitual construído e fundamentado de antemão, não está em condições de deixar
Problemas atuais do ensino e do aprendizado de Teoria e História da Arquitetura 33
claro o verdadeiro objeto de seu trabalho, quais os fatos a escolher e reunir. A base filosófico-conceitual
do empirismo historiográfico não conta com as premissas adequadas a estas exigências.
No ensino da História da Arquitetura, é importante ter em conta não só “o que houve” –
a realidade histórica em forma de obras e procedimentos significativos – como também as causas
dos mesmos, as leis do seu desenvolvimento histórico.
A realidade histórica é formada por feitos e fatos, os quais revelam, mas não esgo-
tam, a lógica, as leis do processo de desenvolvimento. Estas pressupõem e requerem uma
compreensão distinta daquela do tema propriamente arquitetônico e das finalidades das pes-
quisas necessárias para suportar o trabalho pedagógico com o mesmo. A atenção centra-se no
problema da ação recíproca entre o histórico e o lógico dentro do próprio tema necessário de
ser pesquisado para um melhor ensino e aprendizado. É esta ação recíproca entre questões de
história da arquitetura e de lógica dialética que torna o seu ensino uma questão de teoria do
conhecimento, aspecto que precisamente com este enfoque se converte no objeto principal
das investigações indispensáveis ao mesmo.
A pesquisa e a prática da arquitetura, como fatores fundamentais para um melhor
ensino de História da Arquitetura, baseiam-se em determinada concepção do desenvolvimen-
to da produção dos lugares da vida em sociedade. É com base nessa concepção que se
constroem os modelos teórico-cognitivos, cuja validade e eficiência se comprovam com o
material histórico.
Esse “deslocamento do centro”, na compreensão do objeto e dos fins da arquitetu-
ra, justifica a crescente necessidade da pesquisa como apoio ao ensino de sua história. Se não
queremos simplesmente reproduzir o conhecimento de história da arquitetura já existente, é
necessário deslocar o seu ensino do enfoque historiográfico predominante para a investigação
da história da arquitetura como tal. E isso implica o deslocamento para as teorias filosóficas do
desenvolvimento da humanidade, com base nas quais é possível perceber que as bases do
conhecimento da arquitetura, tanto como os perfis dos seus trabalhadores, são distintos em
distintas épocas e circunstâncias. Hoje, não é mais possível resumir o conceito de arquitetura a
obras exclusivas de arquitetos individuais e individualistas como na Renascença ou, até mes-
mo, ainda no período modernista (Cornell, 1996, 1997).
Mudam, também, os paradigmas do próprio conhecimento da História. Num outro arti-
go sobre o assunto, fiz ver como na sociedade industrial o paradigma do Estado nacional burguês
foi substituído pelo fator trabalho (Svensson, 1965). Como os defensores dos interesses dos despro-
vidos evoluíram da posição de usar o conhecimento histórico como elemento de consolidação do
Estado nacional burguês e sua sociedade de classes, para considerar o fator trabalho como o fulcro
dessa forma de conhecimento.
A teorização da pesquisa histórica cria as condições que evidenciam a necessida-
de de ordenar e esclarecer a própria diversidade de tipos e formas de conceituação do conhe-
cimento histórico. Como fator de consolidação do estado nacional burguês, a História da Arqui-
tetura formulou a sua teorização, baseando-se preferencialmente na estética da arquitetura e
na história dos autores de obras significativas. Com o deslocamento do fulcro do conhecimento
histórico para o fator trabalho, dá-se um deslocamento correspondente em favor do campo da
economia política e da teoria do conhecimento.
É essa teorização que traz à luz:
1) a influência da visão de mundo e a orientação socioideológica do pesquisador para
compreender o objeto e os fins de sua pesquisa histórico-arquitetônica;
2) a análise de todo o conjunto de meios e procedimentos conceituais utilizados para a
racionalização do conhecimento histórico-arquitetônico;
3) o estudo da hipótese sobre a influência que as estruturas pré-conceituais profundas
do pensamento exercem sobre a visão histórica, bem como sobre a compreensão do objeto
arquitetônico pesquisado.
É neste nível de teorização que se revela a complexidade de todo o conjunto das condi-
ções sociais e cognitivas sobre o objeto das pesquisas histórico-arquitetônicas, das condições nas quais
se forma a concepção geral a respeito do desenvolvimento do conhecimento na etapa contemporânea.
34 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Problemas das teorias da arquitetura
O aprofundamento e a ampliação das noções sobre a esfera temática têm uma grande
importância metodológica para o conhecimento histórico da arquitetura. A falta de conhecimento siste-
matizado sobre o conteúdo social da arquitetura explica, em grande parte, por que a teoria a seu respeito
durante largo tempo foi transferida para o campo do conhecimento estético. Teoria e estética da arquite-
tura eram aceitas como a mesma coisa. As preocupações com as categorias estéticas passaram a
suprir o campo da teoria da arquitetura buscando apoio na historiografia desta. A elaboração dos proble-
mas filosóficos e metodológicos especiais da pesquisa sobre a arquitetura, no entanto, ficaram em com-
passo de espera.
Uma certa ajuda pode-se encontrar na experiência adquirida pelos investigadores
em matéria de filosofia da história e teoria do conhecimento. A questão fundamental da filosofia:
a relação entre a matéria e a consciência apresenta-se no campo da estética como a questão da
relação entre a consciência estética e a realidade. Para a arquitetura, consiste em ligar questões
como as do belo e do feio, do sublime e do vil, do trágico e do alegre às de escala, de propor-
ção, de fluidez e interação espacial, de linguagem arquitetônica e aquelas do conhecimento do
desenvolvimento da realidade.
Trata-se de reconhecer ou não a anterioridade dessas categorias, na realidade, em rela-
ção ao seu reflexo na consciência do homem, aos seus sentimentos, seus ideais, suas concepções e
suas teorias sobre a arquitetura. Outra questão que se coloca é: saber se o homem é capaz, através
da sua percepção estética, de refletir tais categorias.
Defrontamos, portanto, a necessidade de abordar três campos principais:
1) o estético na própria realidade, quer dizer, as coisas que suscitam no homem uma
satisfação espiritual particular – prazer ou insatisfação, repugnância, sentido do sublime e do vil, do
trágico ou do cômico, de liberdade ou de enclausuramento, de orientabilidade ou não;
2) o reflexo destes objetos na consciência do homem, ou seja, a consciência estética;
3) a relação estética do homem com a realidade.
A investigação do estético na realidade deve ser iniciada não com a procura da beleza “em
geral”, mas sim com o conhecimento de coisas belas concretas que o homem encontra na sua prática.
Por outro lado, não deve centrar-se nas características individuais, singulares que distinguem um objeto
belo de outro, mas sim nos traços belos que caracterizam classes e grandes grupos de objetos: produ-
tos da construção ou projeção artística, o homem, a arte, a natureza, a sociedade, etc. (Svensson, 1991).
É no processo dessa generalização que a estética da arquitetura faz apelo às outras
formas de conhecimento, possibilitando o descobrimento da substância real de uma ou de outra
classe de objetos estéticos e o conhecimento dos seus aspectos, de suas características, de suas
propriedades comuns, de suas origens e de suas leis da transformação histórica, etc. Esclarece-se a
unidade entre a imagem/forma da arquitetura e a matéria natural e social que serviu para criar e que
dá existência à mesma.
A par do estético na própria realidade, na natureza e na sociedade, há de se estudar,
naturalmente, as particularidades do seu reflexo na consciência do homem, dos trabalhadores,
observadores e usuários da arquitetura. Abre-se um campo de relacionamento com áreas de
estudo como, por exemplo, da psicologia, da fisiologia, da sociologia e de outras ciências, tais
como: percepção estética, gosto, ideário, concepções e teorias, incluindo a história das doutrinas
estéticas do passado.
Somente vendo a consciência estética como uma forma particular de consciência soci-
al, é possível revelar a dependência da consciência estética em relação ao ser social e à prática
sociohistórica, o seu caráter de classe e a inter-relação com outras formas da consciência social,
nomeadamente, com a consciência política, do direito, moral e religiosa, mostrar a independência
relativa da consciência estética em relação à base econômica, a sua influência ativa sobre o ser
social e as leis do desenvolvimento histórico.
Por fim, a estética estuda a relação estética do homem com a realidade, não como um
reflexo passivo dos objetos estéticos na consciência, mas sim como uma modalidade específica da
prática sociohistórica das pessoas.
Problemas atuais do ensino e do aprendizado de Teoria e História da Arquitetura 35
A crise da concepção neopositivista da lógica e da metodologia do conhecimento, que
dominou na metodologia ocidental até o início da década de 60, manifestou-se, particularmente, em
não haver logrado criar a prometida teoria eficiente não-filosófica do conhecimento, que os
neopositivistas elaboraram sob forma de lógica do conhecimento, entendida como sintaxe e semân-
tica das linguagens, inclusive da arquitetura.
Depois do “maio vermelho” de 1968, surgiu uma série de novos teóricos da arquitetura.
Christoffer Alexander, Kelvin Lych, Phillipe Boudon, Amos Rapporport, Norberg Schultz são alguns deles.
De comum têm não levarem em conta a histórica contribuição de Marx: o materialismo dialético. Expres-
sam um período histórico da teoria da arquitetura que muito lembra o da queda do muro de Berlim.
Então, como agora, apressaram-se a declarar Marx como morto, procurando “arquiteturologicamente”
encontrar a verdade sobre o fenômeno da arquitetura sem relacioná-lo com os interesses de classe, o
que implica, na prática, a conciliação entre a verdade e o erro.
Depois do fracassado surto de metodologias do conhecimento do empirismo lógico,
veio um surto de historicismo arquitetônico dividido entre o pós-modernismo historicista e as teorias
eurocomunistas de preservação histórica de centros urbanos na Itália. Os resultados, no entanto,
foram pouco eficientes por não se relacionarem com as particularidades do “empírico” e do “teórico”,
próprias das investigações histórico-conceituais.
Uma estética que recuse a conciliação entre a verdade e o erro implica uma intransigen-
te luta ideológica contra as teorias idealistas e metafísicas na estética, e que mostre a ligação destas
teorias com os interesses das classes e dos grupos mais reacionários e conservadores e, especial-
mente, da sociedade capitalista contemporânea.
As teorias de arquitetura das classes sociais conservadoras não pregam abertamente a
negação da verdade quanto à mesma, mas disfarçam os seus verdadeiros interesses, apresentando
a arquitetura como valor absoluto supraclassista. Concebem o papel do trabalhador da arquitetura
como isolado da influência dos interesses dos grupos sociais.
Conclusão
Procuramos, neste sucinto trabalho, apontar para os dois problemas, no nosso enten-
der principais, enfrentados pelo ensino e estudo de História e Teoria da Arquitetura, nas universida-
des do nosso País: limitar o estudo de sua história a uma questão de historiografia acrítica, e de sua
teoria a uma questão da estética tradicional. Estética advinda de um “glorioso” período romântico e
apologético, ou limitada aos enfoques neopositivistas e neokantianos, dóceis aos ventos do
neoliberalismo que hoje nos açoitam.
Só ligando a nossa busca de melhor conhecimento sobre o fenômeno da arquitetura às
grandes questões centrais da busca de um mundo melhor e de uma sociedade mais justa, enfrenta-
remos os riscos de um ensino meramente reprodutor da arquitetura de um período decadente, o da
formação socioeconômica em que vivemos.
Referências bibliográficas
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Capítulo 3
Desenho e soberania:
da educação do juízo de gosto
*
Matheus Gorovitz**
Resumo
Discorre sobre a necessidade do ensino das artes e da sua história na formação profissional do
arquiteto e na educação em geral. Visa educar o juízo de gosto para, assim, instrumentar o estudante
a identificar a beleza, como expressão da totalidade humana, e o arquiteto a imprimir uma dimensão
libertária aos seus projetos. Corrobora a idéia de que a formação do cidadão, do artista e do ser
emancipado são interdependentes. Define os termos capazes de conferir disciplinaridade ao ensino
das artes, ao reconhecer na estética o campo de conhecimento que tem como objeto de estudo a
práxis humana, quando esta visa objetivar, através da obra de arte, a conjugação das dimensões
subjetiva e objetiva, individuais e sociais, ou seja, o ser na totalidade. Situa as categorias citadas:
julgamento de gosto, totalidade, belo, autonomia, estética. Sugere um roteiro de leitura da obra-de-
arte inferido das premissas conceituais.
Se se quiser gozar da arte deve-se ser artisticamente educado
KARL MARX. Manuscritos Econômico-Filosóficos
Este trabalho discorre sobre a importância do ensino das artes e da sua história. Visa
instrumentar o estudante a identificar a beleza como expressão da autonomia humana, para que
exerça, através do juízo de gosto, a condição de possibilidade de ser emancipado. Admitindo, na
senda do pensamento iluminista de Kant , a volição e a autodeterminação como prerrogativas pro-
priamente humanas, este trabalho infere, da atividade artística, um modo de reafirmar esta essên-
cia. Corrobora a noção de arte como instrumento de emancipação, contida na proposição de Artigas
(1981, p. 45) ao reconhecer que: “A arte é uma das formas concretas e necessárias da ação do
homem na criação de uma natureza propriamente humana”; natureza humana que Marx identifica
com o comportamento livre e o ser não heteronomicamente determinado.
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira.
Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios
de vida (Marx, 1986, p. 69).
Um ser só se considera autônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si, quando deve
a si mesmo seu modo de existência (Marx, 1978, p. 14).
A relação etimológica, reconhecida por Artigas (1981) entre desenho e desígnio
situa o caráter libertário do desenho (do objeto, da edificação e da cidade) além da prerrogativa
de conciliar os aspectos utilitários e estéticos – o utensílio e a obra-de-arte.
*Uma versão anterior deste artigo foi publicada na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), v. 79, n. 193, set./dez. 1998.
**Arquiteto, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e professor de História da Arte e
Estética do Departamento de Teoria e História da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB).
38 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
A atividade artística é, portanto, uma práxis, ação do sujeito que, numa relação
dialética, ao transformar a natureza, transforma a si mesmo e objetiva, neste processo dialético,
sua natureza essencialmente humana. Assim, ao produzir ou reconhecer um artefato como
obra-de-arte o indivíduo se humaniza – manifesta sua condição de autonomia – de ser emanci-
pado, livre. No dizer de Marx:
A obra-de-arte – e, do mesmo modo, qualquer outro produto – cria um público sensível à arte e
capaz de sentir prazer com a beleza. Por conseguinte, a produção não cria apenas um objeto para
o sujeito, mas também um sujeito para o objeto (Marx, 1974, p. 60).
Julgamento de gosto
Admitindo que “Só em objetos reais, sensíveis, pode [o sujeito] exteriorizar sua vida”
(Marx, 1978, p. 400), a correlação arte-liberdade é engendrada na interação sujeito-objeto, na qual o
objeto é a obra-de-arte, e é balizada pelo critério do belo em que o sujeito se manifesta qualificado
pelo julgamento de gosto.
Arbitrar o belo identificando as condições que o qualificam, propondo ou ainda
reconhecendo o belo na obra-de-arte requer, na prática didática, educar o juízo de gosto. Tal
modo de ajuizar implica assumir uma decisão na ausência de uma razão prática ou ainda de
uma razão lógica.
O juízo de gosto não tem como parâmetro de avaliação nenhum valor
preestabelecido, tem, isto sim, como referencial, o trabalho humano plasmado no acervo de
obras-de-arte. O objeto não é aferido pelo valor prático-utilitário – a capacidade de satisfazer
uma necessidade particular predeterminada; nem se alicerça em valores estabelecidos a priori,
conceituais, éticos ou os que, sedimentados pela tradição, passam a ser consensuais. Diferen-
cia-se ainda do discernimento fundamentado cognitiva ou teoricamente, quando são pré-con-
ceitos, conhecimentos adquiridos ou a argumentação lógica, que asseguram a certeza do jul-
gamento justo. É a interação das capacitações racionais, intelectivas, volitivas e sensoriais que
engendra o juízo de gosto; constitui por isto, como ação autônoma e autodeterminada, uma
práxis, no sentido que lhe atribui Marx:
Atividade livre, universal, criativa e autocriativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz), e trans-
forma (conforma) seu mundo humano e histórico e a si mesmo; atividade específica ao homem, que
o torna basicamente diferente de todos os outros seres (Bottomore, 1988, p. 292).
Ao promover a interação das dimensões subjetivas e objetivas e exercitar tais prerroga-
tivas, a obra-de-arte faculta ao indivíduo, seja no instante da concepção ou da apreciação, objetivar
a consciência da totalidade – a plenitude das capacitações individuais.
Totalidade
A totalidade subentende o conjunto de necessidades e possibilidades humanas exercidas
de modo integrado; quando o lado sensível e o lado racional da consciência não comparecem fragmen-
tados – o sujeito é autoconsciente, seja na plenitude ou na adversidade da condição existencial. O
contrário desta condição é a alienação, no sentido atribuído por Marx:
Ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se
tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua
própria atividade (e à atividade ela mesma) e/ou à natureza na qual vivem, e/ou a outros seres
humanos, e – além de, e através de – também a si mesmos (às suas possibilidades humanas
constituídas historicamente) (Bottomore, 1988, p. 5).
Desenho e soberania: da educação do juízo de gosto 39
O ser emancipado, cujo comportamento não é heteronomicamente determinado ou
predeterminado, mas sim, que determina os parâmetros de sua ação e nesta determinação se
autodetermina, implica a articulação das esferas subjetivas e objetivas – da sensibilidade e da
racionalidade, da dupla condição de indivíduo particular : motivado pela razão prática e pela subje-
tividade, e de ser genérico: motivado pela vocação social e mediado pela universalidade do pensa-
mento objetivo, lógico e cognitivo, pois, conforme postula Marx (1978, p. 12): “É somente na elabo-
ração de um mundo objetivo que o homem se afirma como ser social”.
A categoria da totalidade, desenvolvida pela filosofia clássica alemã (Kant/Hegel/Marx),
marca a evolução, na história do pensamento filosófico, da metafísica para a concepção dialética. Repre-
senta a superação da dicotomia sujeito/objeto na qual se alicerça todo o pensamento metafísico.
A totalidade subentende a indissociabilidade das esferas do subjetivo e do objetivo.
Sujeito e objeto são, na concepção dialética, antitéticos e complementares, e interagem num proces-
so do qual a obra-de-arte emerge como uma das sínteses possíveis. Síntese que ao privilegiar o
universo sensorial, o racional, o volitivo e o cognitivo denuncia o equilíbrio, tensão ou conflito dessas
capacitações do ser. Lúcio Costa e Artigas traduzem assim, cada um a seu modo, o conceito de
totalidade:
O que caracteriza a obra-de-arte é precisamente esta eterna presença, na coisa, daquela carga de
amor e de saber que, um dia, a configurou (Costa, 1980, p. 5).
A consciência humana, com seu lado sensível e com seu lado racional, não tem sido conveniente-
mente interpretada como um inteiro, mas como a soma de duas metades. Aos artistas, principal-
mente, compete conhecer esta dicotomia para ultrapassá-la (Artigas, 1981, p. 49).
Considerando-se que só em objetos reais e concretos pode o ser manifestar sua
vida (Marx), a estética fundamenta-se na homologia entre a autonomia da obra-de-arte e a auto-
nomia do ser (a coerência interna da forma e a concordância entre esta forma e o conteúdo a
ser expresso).
Belo
A mediação entre o universo subjetivo e o universo objetivo se faz pelo conceito
de belo; ao afirmar, mediante o juízo de gosto, que algo é belo, quero que meu sentimento
(particular e subjetivo) possa ser compartilhado coletivamente, por isto associo um conceito
(objetivo e universal) à singularidade subjetiva. Atribuo um valor universal a um sentimento
afetivo particular.
O juízo estético envolve uma contradição, ou antinomia, pois embora exprima uma experiência do
sujeito, da sua sensibilidade particular, pretende que a significação dessa experiência seja comuni-
cável aos outros e encontre ressonância universal. Eis porque Kant nos diz, a propósito da quantida-
de do juízo, que “belo é o que agrada universalmente sem conceito” (...) No juízo estético, portanto,
verifica-se o acordo, a harmonia, ou a síntese, entre a sensibilidade e a inteligência, o particular e o
geral (Corbisier, 1987, p. 67-68).
No conceito de belo é sublinhada a consciência do ser como ser social, pois ao
valer-se de um conceito (universal), que se manifesta como fenômeno (particular) na obra-de-
arte, pode então se comunicar. Comunicabilidade igualmente possível no plano do cotidiano, na
linguagem prosaica, quando prevalecem os valores individuais e subjetivos (“Maria é bela”), ou
ainda no discurso lógico ou ético que almeja, ao contrário, a universalidade, a expressão não
tributária de aspectos subjetivos e particulares (“É belo morrer pela pátria”). No primeiro caso, o
sujeito objetiva a consciência da sua individualidade (particular e subjetiva); no segundo, a
consciência de sociabilidade (universal e objetiva).
40 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Autonomia e cidadania
A idéia de “ser autônomo” é homóloga à de “belo” como expressão autônoma.
Na Antigüidade existia uma definição segundo a qual a beleza consistia na proporção
que uma parte mantém com outras partes e com o todo (Tatarkiewicz, 1995, p. 122).
A síntese entre conteúdo (sujeito autônomo) e forma (objeto autônomo) adjetivada como
beleza e objetivada pela obra-de-arte é uma práxis e, enquanto tal, aufere um sentido volitivo e libertário:
promove a consciência da autonomia e liberdade, entendida esta como consciência de necessida-
des e possibilidades objetivas historicamente constituídas e, como corolário, o sentido de responsa-
bilidade – móvel da cidadania.
A liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que, suscitadas
por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las (Chaui, 1994, p. 362).
Ao contrário dos processos naturais ou necessários, e das ações que resultam da coação e da
violência, as ações humanas consideradas livres são intencionais, visam a determinado fim, têm
motivo que as explica e incluem um projeto, bem como a decisão de um agente responsável . A
intencionalidade é a característica fundamental do comportamento consciente e livre. A circuns-
tância de ter feito, estar fazendo ou pretender fazer alguma coisa intencionalmente define a liberda-
de e a responsabilidade da conduta humana (...) Ao reconhecer-se responsável pelo que pratica, o
sujeito se reconhece também como agente livre ou causa de tais atos, excluindo-os, conseqüente-
mente, do domínio da natureza ou da necessidade (...) A liberdade, como observa Hegel, deixa de
ser arbitrária e adquire sentido, ou se torna racional, quando duas vontades, defrontando-se a
respeito de um litígio sobre propriedade, por exemplo, reconhecem-se mutuamente, dando ori-
gem a uma vontade comum que se traduz no acordo ou contrato, que prefigura o Estado, forma
suprema do espírito objetivo (Corbisier, 1987, p. 160).
O caráter libertário subjacente à conjugação entre a esfera do objetivo e a do sub-
jetivo contido no juízo de gosto e manifestado graças à existência objetiva da obra-de-arte, é
apontado por Rousseau: “Liberdade é obedecer a uma lei por nós mesmos imposta” (Bobbio,
1992, p. 712).
Compete ao artista, valendo-se da obra-de-arte como fator promotor da
autoconsciência e autodeterminação (consciência de si), da consciência da cidadania (consciência
dos outros), contribuir para a construção da cidade democrática.
Somente no estado social, subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e
passividade deixam de ser contrários e perdem com isso seu modo de existência como tais contrá-
rios (...) sua própria sensibilidade só através do outro existe para ele como sensibilidade humana
(Marx, 1978, p. 13-14).
Ser senhor de si – isto é – autônomo – e ser capaz de philia – isto é, de reciprocidade, de
relação intersubjetiva como coexistência e não-violência – é o núcleo da vida ética. Como
disse Epicuro, “a justiça não existe por si própria, mas encontra-se sempre nas relações recí-
procas, em qualquer tempo e lugar em que exista entre os humanos o pacto de não causar
nem sofrer danos” (Chaui, 1994, p. 367).
A polis grega fundamentada na noção de isonomia – participação igual de todos os
cidadãos no exercício do poder (Vernant, 1981, p. 56) – ilustra a noção de autonomia auferida
pela relação das partes entre si (na obra: dos componentes formais, e no ser: das dimensões
humanas).
A proporção, relação entre as partes, pressupõe o reconhecimento da relevância de
cada parte na formação do todo, da autonomia de cada unidade do sistema formal e, da mesma
forma, de cada indivíduo na sociedade.
Desenho e soberania: da educação do juízo de gosto 41
A noção essencial é, de fato, a de proporção; a cidade forma um conjunto organizado, um cosmos
harmoniosamente constituído se cada um de seus componentes situa-se em seu local e possui a
porção de poder que lhe é conferida em função de suas virtudes próprias (Vernant, 1981, p. 90).
A autonomia inerente ao julgamento de gosto, com o qual nos apropriamos da obra-de-
arte, tem um corolário: exclui toda forma de autoritarismo: “Nenhum privilégio, nenhuma autocracia
de qualquer espécie pode ser tolerada onde impera o gosto” (Schiller, 1982, p. 217).
Estética
As premissas acima suscitam a seguinte questão: podemos qualificar disciplinarmente
o ensino da arte? Tal questão se depara com um paradoxo: o conhecimento disciplinar visa ao
universal e ao necessário, não ao particular e ao contingente; é, portanto, estruturado pelo raciocínio
lógico traduzido em conceitos universais e objetivos, que não podem se alterar em presença de
juízos subjetivos. Como então qualificar disciplinarmente um objeto de estudo (a obra-de-arte) tribu-
tário de um modo de interação particular, sensível e subjetivo, com prerrogativas fundamentalmente
individuais?
Admitir a obra-de-arte como objeto de conhecimento disciplinar pressupõe, como con-
dição preliminar e necessária, sua existência objetiva, ou seja, algo passível de ser definido, algo
sobre o qual posso formular conceitos mediante os quais reconheço, em artefatos particulares, a
condição geral de ser obra-de-arte, permitindo assim, como corolário, ajuizar sobre o belo enquanto
categoria passível de definição conceitual:
Inclusão de um objeto (símbolo ou função) em uma classe, pela determinação das condições
sob as quais o objeto por definir se iguala a qualquer elemento da referida classe (cf. Dicioná-
rio Eletrônico Aurélio).
O conhecimento só é científico à medida que constitui um sistema, uma unidade ou um todo
lógico, no qual os juízos (qualquer enunciado científico é um juízo) se acham vinculados uns
aos outros pela coerência ou pela racionalidade do método. Verifica-se, assim, que a
“cientificidade” da ciência consiste não só na estrutura de seus conhecimentos, que devem
ser universais e necessários, mas também na unificação metódica desses conhecimentos em
uma totalidade coerente (Corbisier, 1987, p. 208).
A questão pode ser equacionada ao se considerar as duas principais vertentes que
se confrontam na busca de uma definição de obra-de-arte: a que se distingue por considerar os
fatores que qualificam o belo como intrínsecos, inerentes ao objeto (à obra-de-arte), ou
extrínsecos, inerente às condições de percepção do sujeito. Na primeira, os atributos do belo
serão identificados nas peculiaridades internas à obra; na segunda, o belo é tributário de fato-
res extra-artísticos, de dois modos:
Na esteira da tradição platônica, como essência ideal: um belo-em-si, independente
das obras individuais, comparecendo como termo de referência e padrão universal, noção assim
ilustrada no diálogo de Hípias Maior:
Sócrates: Então, o que é a beleza?
Hípias: Ou seja, você está me perguntando que coisa é bela?
Sócrates: Não exatamente, Hípias. Pergunto o que é o Belo.
Na tradição empirista, como tributária da experiência e da subjetividade, a expressão
“gosto não se discute” denuncia um relativismo assim fundamentado por Hume (1984, p. 318): “A
beleza não é uma qualidade em si, existe meramente na mente de quem contempla e cada mente
percebe uma beleza diferente”.
42 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
A possibilidade de conciliação dessas abordagens norteou a premissa de
estruturação didática: admitir a estética como campo disciplinar que tem como objeto de
estudo a práxis humana quando esta visa objetivar, através da obra-de-arte, a conjugação
das dimensões subjetiva e objetiva, intelectuais e sensíveis, individuais e sociais, ou seja, o
ser na totalidade.
Roteiro de leitura analítica da obra-de-arte
A premissa de que a obra-de-arte fornece (por se constituir uma entidade auto-suficien-
te – uma totalidade em si) a um observador atento, lógico, racional e sensível, os dados necessários
e suficientes para sua decodificação e o objetivo de desenvolver o juízo de gosto, com vistas à
formação do artista, nortearão o parâmetro pedagógico adotado: o estudo da arte e de sua história
não precedido de esquema conceitual fundamentado de antemão, mas sim construído no confronto
entre as capacitações sensíveis e intelectivas dos estudantes com obras-de-arte. Tal confronto,
monitorado por um roteiro de apreciação e descrição de obras-de-arte visa a engendrar uma consci-
ência ampliada:
1º) Enquanto obra em si: consciência da exterioridade da obra, cuja existência física
permite que possa ser mensurada com precisão objetiva.
2º) Enquanto imagem criada pelo sujeito: consciência de si, das faculdades e prerrogati-
vas racionais, sensíveis, volitivas e intelectivas despertadas pela obra no sujeito (incomensuráveis).
3º) Enquanto modalidade de linguagem: consciência de si como ser social, consciência
engendrada pela existência de um meio de comunicar-se.
Este roteiro pode assim ser percorrido:
Objeto-em-si
Descrever os componentes plásticos (físico-espaciais) visualizáveis e tangíveis (graças
à sua exterioridade objetiva), cada um deles separadamente e integrados num sistema.
Objeto-para-si
Descrever a imagem produzida pela obra no sujeito, considerando o fato de que os
elementos identificados e descritos na sua exterioridade objetiva motivam capacitações individuais
do sujeito – a sensibilidade, racionalidade e inteligibilidade (seja em igual medida, ou priorizando
uma ou outra dessas prerrogativas).
Objeto-em-si-e-para-si
Considerada como forma significativa, como suporte material de significados, a
obra-de-arte constitui uma modalidade de linguagem. Categoria indissociável da consciência –
uma das formas de objetivação da consciência – a linguagem artística objetiva a condição soci-
al sem desconsiderar a individualidade – é instrumento pelo qual satisfaz sua necessidade de
intercâmbio com os outros homens e, assim, reconhece-se como ser social; é o que entende-
mos da afirmação de Marx:
A linguagem é tão antiga como a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe
para os outros homens e, portanto, também para mim mesmo, e a linguagem nasce, como a cons-
ciência, da carência, da necessidade de intercâmbio entre os homens (Marx, 1977, p. 43-44).
Enquanto objeto inteligível, a obra-de-arte confere ao sujeito consciência de si (en-
quanto indivíduo) como ser social porque tem no fazer artístico um recurso – um significante –
Desenho e soberania: da educação do juízo de gosto 43
para comunicar seus significados e, portanto, comunicar-se. Como decorrência da consciência da
exterioridade do objeto (obra), apreende que o mundo real e a consciência não estão divorciados.
Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz parte da essência da
natureza. Um ser que não é, por sua vez, objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser como
objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo (Marx, 1977, p. 41).
A comunicação pode dar-se ainda através da linguagem coloquial ou prosaica, quan-
do pessoal e subjetiva; através do discurso lógico, quando a descrição, objetiva e universal visa à
transmissão de conhecimento decodificado em noções e conceitos. Referimo-nos acima à lingua-
gem artística ou poética, quando a necessidade é a de expressar o ser na sua totalidade.
O roteiro sugerido descreve as obras como expressão da totalidade e corresponde
à estrutura do real entendida como processo dialético. Cartesianamente divididos em partes,
os três momentos são, em verdade, um só, sintetizados pela obra; tal caráter analítico não
deve, sobretudo, motivar um procedimento mecânico, inibindo assim o intercâmbio espontâneo
com a obra.
Critérios e procedimentos didáticos
Pressuposta a obra como totalidade (estrutura significativa), visamos estimular a lei-
tura das obras sem nenhuma forma de mediação, e assim, ampliar a consciência das prerrogativas
da sensibilidade, inteligibilidade e racionalidade. Para isto, a leitura não deve ser precedida de infor-
mação teórica preliminar, tal interferência iria de encontro ao objetivo de fomentar a confiança do
estudante no seu julgamento de gosto – a faculdade de julgar o belo. Descartamos, como decorrên-
cia, a hipótese de o aprendizado das artes ser tributário de conhecimento teórico preliminar, como
instrumentação considerada necessária na leitura da obra-de-arte, venha ele sob forma de concei-
tos, informações culturais, históricas ou ainda metodológicas, adquiridas seja por leitura ou magisté-
rio de aulas expositivas. A conceituação deve comparecer no instante em que ela for necessária
como resultado das inquietações dos estudantes, em função das questões por eles suscitadas ou
aferindo hipóteses de interpretação aventadas. Por falta de confiança na sua faculdade de julgar, no
seu discernimento, o estudante apela espontaneamente para referências bibliográficas. Essas infor-
mações devem vir a posteriori, como forma de verificação; cabe então investigar a vida dos artistas,
as relações sociais, as condições materiais da época e as idéias dominantes.
A leitura comparativa de obras (ou projetos) evidencia as tendências plásticas
adotadas. Tal leitura deverá sempre confrontar obras, não apenas de um mesmo período, diferindo
nas intenções, mas igualmente as que antecedem ou precedem o período estudado. A comparação
de projetos de arquitetura com outras modalidades de manifestação artística é não apenas estimu-
lante, como serve para reiterar o entendimento das obras. Igualmente frutífero é situar a linguagem
poética, distinguindo-a da prosaica e da científica, ao assinalar a tendência da obra-de-arte em se
aproximar ora de uma, ora de outra modalidade de linguagem.
A experiência mostrou que, em face da insegurança em avaliar e julgar os aspectos
formais, o estudante tende a comentar os aspectos episódicos e os anedóticos (em se tratando de
arquitetura, os técnicos e funcionais). Sem reprimir esta postura, devemos mostrar que ela sempre
espelha valores pré-conceituados (identificação de elementos de um universo de vivências acumula-
das e sedimentadas pela tradição); é conveniente insistir, isto sim, em identificar a coerência, promo-
vida pela obra, entre os elementos plásticos e os narrativos – entre forma e conteúdo.
Enquanto objeto-em-si, a descrição deve considerar a obra como um conjunto de
sinais plásticos estruturados como sistema. O reconhecimento da família destes sinais e a homologia
estabelecida entre eles permitem agrupá-los em categorias (Wölfflin sugere uma taxonomia em sua
obra Princípios Fundamentais da História da Arte).
Na descrição da obra como objeto-para-si, em função das dificuldades do estudan-
te, podemos organizar metodologicamente a vivência subjetiva, introduzindo progressivamente ter-
44 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
mos com os quais ele possa expressar seus sentimentos e pensamentos; parâmetros tais como:
intelectual/sensorial/racional; pitoresco/sublime; simbólico/alegórico; ideal/contextual; intenção/tra-
dição ou categorias como clássico/romântico.
A descrição da obra como objeto-em-si-e-para-si é o momento de reconhecer os
significados gerais – culturais, históricos e coletivos – que a obra expressa e com os quais está
comprometida. O estudante será estimulado a reconhecer a postura do artista, em relação aos
valores vigentes, reiterando-os ou contestando-os; pode, então, identificar as dimensões valoriza-
das neste contexto: afetivas e intelectivas, sensíveis, racionais, volitivas, individuais e coletivas, bem
como a predominância ou o equilíbrio delas (é nesta etapa, e a posteriori, que a consulta bibliográ-
fica se faz mais significativa). Vale agora introduzir termos como liberdade/necessidade, individuali-
dade/coletividade, intenção/tradição, cultura/natureza, fenomênico/numênico, autônomo/heterônomo,
direito adquirido/direito de constituir, ideal/conjuntural. Os termos mencionados, embora dicotômicos,
não são excludentes, pois na relação de totalidade nenhuma dimensão é hegemônica; ocorrerá,
isto sim, a valorização de uma delas, que a obra-de-arte irá privilegiar.
Da noção da totalidade, enquanto síntese entre forma e conteúdo, decorre um
corolário: fornece categorias estéticas não normativas, que não privilegiam determinadas manifesta-
ções artísticas em detrimento de outras. No confronto de obras e projetos, a apreciação deverá ser
isenta de qualquer forma de julgamento maniqueísta; a análise será sempre mais rica se restringir-
se a identificar disposições plásticas diferenciadas e a coerência desses elementos formais entre si
e com os conteúdos expressos. Admitir, de antemão, a multiplicidade de expressões artísticas para
traduzir os anseios e asvisões de mundo de cada um dos artistas não impede que o estudante se
identifique mais intimamente com um deles.
Por último, e não menos importante, ao afirmar que a obra de arte admite leituras reno-
vadas, ao professor cabe redobrar sua atenção, renunciar à omnisciência e virar aprendiz, posto que
“toda relação afetiva afeta os dois termos da relação” (Katinsky, 1995) e ganha na troca, como ante-
cipa o poeta (Camões, 1966, p. 34):
Transforma-se o amador na cousa amada
Por virtude de muito imaginar.
Referências bibliográficas
ARTIGAS, V. Caminhos da Arquitetura. São Paulo : Lech, 1981. p. 39-50: O Desenho.
BOBBIO, N. Dicionário de Política. Brasília : EdUnb, 1992.
BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro : Zahar, 1988.
CAMÕES, L. V. Camões : verso e prosa. S. Paulo : Paz e Terra, 1966.
CHAUI, M. Convite à filosofia. São Paulo : Ática, 1994.
CORBISIER, R. Enciclopédia filosófica. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1987.
COSTA, Lúcio. Arquitetura. Rio de Janeiro : Bloch, 1980. (Biblioteca Educação é Cultura).
HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. In: BERKELEY, George. Tratado sobre os
princípios do conhecimento humano [...]. David Hume. Investigação [...]. São Paulo : Abril
Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).
KATINSKY, J. R. Sete proposições sobre história da Arquitetura. Revista Pos, São Paulo, p. 119-123,
1995. Número especial.
Desenho e soberania: da educação do juízo de gosto 45
MARX, Karl. German ideology. In: BOTTOMORE, Tom, MAXIMILIEN, Rubel (Ed.). Selected writings in
sociology and social philosophy. London : Penguin Books, 1986.
_____. A ideologia Alemã. São Paulo : Gigalbo, 1977.
_____. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo : Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).
_____. Sobre Literatura e Arte. Lisboa : Ed. Estampa, 1974. Edição portuguesa. p 60: Introdução à
crítica da economia política.
_____. Sobre Literatura e Arte. São Paulo : Global, 1979. Edição brasileira.
SCHILLER, F. On the aesthetic education of man. Clarendon : Oxford, 1982.
TATARKIEWICZ, W. Historia de seis idéas. Madrid : Tecnos, 1995.
VERNANT, J-P. Les origines de la pensée grecque, Paris : Presses Universitaires de France, 1981.
46 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Anexo
Plano de Curso da Disciplina História da Arte e da Arquitetura
1. Ementa
História do Urbanismo, da Arquitetura e da Arte, no contexto de seus condicionamentos
sociais, econômicos e políticos, da Antiguidade até o presente. Estética.
2. Objetivo geral
Familiarizar o estudante com o universo das artes, tendo como objetivo específico
o estudo da arte da Antigüidade aos dias atuais – de modo particular a Arquitetura, o Urbanismo
e seus vínculos com as demais artes plásticas. Os exemplos a serem considerados no decorrer
do curso servirão para facultar o reconhecimento da condição de obra-de-arte; para tanto, a
disciplina propõe-se, apoiada nos estudos de caso, a discorrer sobre categorias e conceitos
extraídos da estética e da crítica da arte que, considerados como campos disciplinares, permi-
tem identificar aquela condição.
3. Programa – Unidades de ensino
A disciplina desenvolverá conteúdos programáticos de natureza teórica, histórica e prá-
tica. Estes conteúdos estarão contidos em unidades de ensino agrupados em duas partes:
Teoria
Obras
3.1 Teoria
3.1.1 A obra-de-arte
Existência objetiva e subjetiva da obra-de-arte;
A obra-de-arte como expressão da totalidade do ser humano;
Autonomia e heteronomia da obra-de-arte;
Julgamento de gosto;
Conhecimento e reconhecimento da condição de obra-de-arte;
Permanência e evolução, necessidade e liberdade, norma e razão: dimensões
conceituais contidas na obra-de-arte.
3.1.2 Linguagem
Categorias epistemológicas: natureza, trabalho, consciência, linguagem;
Linguagem racional
coletiva (objetiva) – ética
particular (subjetiva) – prático-utilitária
Linguagem teórica
Linguagem artística
Estudo de caso
Desenho e soberania: da educação do juízo de gosto 47
3.1.3 Arte
Roteiro de leitura, análise e descrição da obra-de-arte
Objeto-em-si
Objeto-para-si
Objeto-em-si-e-para-si
Estudo de caso
3.1.4 Belo
Belo prosaico
Belo ideal
Belo na obra-de-arte
Estudo de caso
Razão histórica
Mito e história
Evolução do conceito de história
Estudo de caso
3.2 Obras
Antigüidade
Medieval
Renascimento
Maneirismo
Barroco
Arte Moderna 1 – Neoclassicismo e Romantismo
Arte Moderna 2 – Realismo
Arte Moderna 3 – Impressionismo, Pós-Impressionismo, Neo-Impressionismo
Arte Moderna 4 – Cubismo, Abstracionismo.
4. Objetivos comportamentais
Reconhecer a história como registro do processo cumulativo e evolutivo de criação de
uma natureza propriamente humana.
Reconhecer a especificidade da arte como forma de linguagem capaz de expressar
a totalidade humana – as dimensões individuais e coletivas, objetivas e subjetivas (conhecimento,
razão, sensação e emoção, norma, desejo e vontade).
Identificar, nas obras dos períodos estudados, quais dimensões foram valorizadas.
Inferir o modo como as obras-de-arte se relacionam com as conjunturas particulares,
reiterando-as ou contestando-as.
Reconhecer, num mesmo período, as inter-relações entre as modalidades de manifes-
tação das artes plásticas (arquitetura, escultura, pintura).
Exercitar a leitura e a análise de obras-de-arte – identificar os seus elementos
estruturais.
Aprender a apreciar a obra-de-arte como expressão-síntese das dimensões individuais e
coletivas, subjetivas e objetivas do ser humano.
Reconhecer a obra-de-arte como síntese entre forma e conteúdos humanos acima
mencionados.
48 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
5. Procedimentos didáticos
As seguintes atividades determinarão a dinâmica do curso:
5.1 Debates
Os debates serão motivados por questões previamente formuladas na forma de
problemas relativos aos temas pertinentes ao curso. As questões-problema serão, a princí-
pio, formuladas pela orientação docente, não se excluindo a hipótese de exame de proble-
mas emanados das inquietações intelectuais coletivas ou individuais. Em decorrência, toda
informação adquirida nas aulas expositivas e na bibliografia comparecerá, a posteriori, su-
prindo necessidades decorrentes dessas inquietações. As questões-problema deverão mo-
tivar a realização de anotações preliminares (trabalho individual), seminários (em equipe)
bem como monografias (elaboradas preferencialmente em equipe). A cada unidade de en-
sino (item 3) corresponderá um módulo composto de anotações preliminares, seminário-
síntese e análise de obra.
5.2 Anotações preliminares
Debate sobre um problema previamente formulado e sobre o qual os estudantes farão
anotações preliminares, que servirão de fundamento para os seminários-síntese.
5.3 Seminários
Elaborados por equipes de estudantes, os seminários terão como objeto os temas
referentes às unidades de ensino (ver item 3). Um texto correspondendo aos conteúdos será previ-
amente distribuído aos estudantes. Os seminários serão apresentados anteriormente ao professor,
com vistas ao seu aprimoramento.
5.4 Seminário-síntese
Elaborado pelas equipes de estudantes responsáveis por cada tema; tem como
objeto apresentar uma síntese de cada unidade, visando apresentar um quadro geral dos as-
suntos estudados.
5.5 Leitura comparativa de obra
Os temas abordados nas anotações preliminares e nos seminários serão objeto de
um trabalho escrito tendo como objetivo ilustrar os assuntos tratados, mediante a leitura com-
parativa de obras escolhidas pelos estudantes. Todos os estudantes, agrupados em equipes
de, no máximo, três componentes farão leitura comparativa de obras que serão objeto de deba-
te em aula.
5.6 Trabalho mestre
As informações e conhecimentos adquiridos desaguarão, como fecho das atividades, na
elaboração do trabalho mestre; este consiste na reconstituição, descrição, leitura e análise de um projeto
de arquitetura, paisagismo ou urbanismo de livre escolha dos estudantes (em equipe, preferencialmente
com um máximo de três participantes). A única restrição será a de que o projeto selecionado deverá
pertencer ao período histórico pertinente à disciplina.
Desenho e soberania: da educação do juízo de gosto 49
5.6.1 Roteiro para a elaboração do trabalho-mestre
Coleta de informações necessárias à reconstituição físico-espacial do projeto escolhido.
Levantamento de dados sobre o autor da obra, bem como de sua época (escritos dele
e/ou sobre ele).
Relacionamento da obra com outras modalidades de manifestação artística, bem como
com projetos similares ou expressivos de tendências opostas, e que possam favorecer o entendi-
mento das hipóteses levantadas.
Elaboração de modelo reduzido. A resolução do modelo (materiais, escala, etc.) é de
livre escolha, induzindo os estudantes ao exercício da criatividade, à medida que, ao interpretarem a
obra (recriando-a), possam enfatizar os aspectos que julgarem mais relevantes (espera-se que a
maquete constitua igualmente uma obra-de-arte).
Identificação das características físico-espaciais relevantes e dos aspectos que con-
ferem coerência interna às partes entre si, ou seja, seu aspecto sistêmico (objeto-em-si).
Identificar o modo de apropriação subjetivo promovido pelas disposições físico-espa-
ciais particulares. Equivale deduzir as dimensões humanas que são estimuladas no modo particular
de apreensão pelo sujeito (objeto-para-si).
Identificar os conteúdos culturais (universais/coletivos/históricos) coerentes com a
forma e o modo de apropriação já analisados (objeto-em-si-e-para-si).
6. Avaliação das pesquisas
A avaliação dos trabalhos (anotações preliminares, leituras de obras e trabalho-mestre)
considerará os seguintes aspectos:
6.1 Descrição da obra enquanto objeto-em-si
Identificação e descrição objetiva das particularidades plásticas das obras – a presença
física – independente da consciência ou de uma apreciação subjetiva. Estabelecer um confronto
entre obras evidenciando as diferenças.
6.2 Descrição da obra enquanto sistema
Identificar as obras enquanto sistema estruturado por sinais plásticos.
Reconhecer a família destes sinais e a homologia que entre eles se estabelece, utilizan-
do para isto, como bibliografia básica, as categorias propostas por Wölfflin em Princípios Fundamen-
tais da História da Arte:
Configuração (linear/pictórico)
Espaço (superfície/profundidade)
Composição (fechada/aberta – unidade/diversidade)
Figuração (belo pitoresco/belo sublime)
Iluminação (absoluta/relativa)
Forma (dinâmica/estática)
6.3 Descrição da obra enquanto objeto-para-si
Constatar o modo de apropriação e apreciação subjetivo – o tipo de impacto que a obra foi
capaz de produzir. Descrever a maneira como foi apreendida – sentida e/ou compreendida. Quais facul-
dades humanas foram estimuladas; a grosso modo, as de ordem prática, intelectual e/ou sensorial.
50 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
6.4 Descrição da obra enquanto objeto-em-si-e-para-si
Reconhecer os significados culturais (de natureza universal, históricos e coletivos) que
a obra expressa e com os quais está comprometida.
6.5 Pesquisa bibliográfica
Evidenciar e fundamentar, mediante pesquisa bibliográfica, as hipóteses lançadas,
que permitam situar a obra conjunturalmente; as condições históricas que favoreceram aquele
tipo de expressão – seja as da época vivenciada de modo particular pelo artista em questão ou
ainda pelas projeções da sua consciência, em função daquelas condições materiais: aspira-
ções, idéias, valores antecipatórios ou conservadores. Em resumo, situar o contexto histórico e
o ideário com os quais o artista e as obras estão sintonizados. Será exigido explicitar a fonte
bibliográfica utilizada.
6.6 Apresentação
Qualidade da apresentação gráfica e das reproduções inseridas.
6.7 Maquete
Quanto à maquete, serão considerados os seguintes aspectos:
a) Confecção de base rígida estruturada
b) Qualidade de confecção (precisão, capricho)
c) Fidelidade ao projeto
d) Criatividade
e) Harmonia e unidade
Capítulo 4
A construção gráfica do espaço
como método de ensino
de Desenho e Plástica 2
Dulcinéia Schunck*
Resumo
Apresenta algumas reflexões teóricas sobre a questão da linguagem gráfica como forma de
conhecimento do espaço arquitetônico e meio de comunicação do arquiteto. Baseadas em estu-
dos sobre a percepção humana e em conceitos semióticos, essas averiguações preliminares
servem de subsídio à segunda parte do trabalho, que enfoca a experiência didática desenvolvida
na disciplina de Desenho e Plástica 2, e onde são descritas as vivências gráfico-espaciais pro-
postas aos alunos, seus significados cognitivos e os exercícios correspondentes.
Introdução
Este artigo parte da premissa que a linguagem gráfica não é um instrumento neutro
no cotidiano do arquiteto. Constitui-se, sim, uma forma de expressão que interage no processo
projetivo com conteúdos cognitivos, comunicativos, simbólicos e culturais bem mais decisivos
que o simples registro de imagens gráficas.
Na atualidade, o avanço tecnológico que possibilita a obtenção de imagens cada vez mais
sofisticadas e eficientes não tem sido acompanhado, na maioria dos casos, de investigações que con-
duzam à compreensão da linguagem gráfica como processo de aquisição de conhecimento. No campo
de atuação do arquiteto, esta forma de linguagem é encarada como um mero instrumental de trabalho.
A bibliografia aborda o assunto tecnicamente, seja por meio de manuais práticos de desenho ou através
de livros e revistas que apresentam seleções de trabalhos gráficos bem-sucedidos. A substituição do
desenho manual pela informática redimensiona e amplia o interesse pela representação gráfica, mas
não aprofunda a reflexão sobre seu papel como meio prefigurador do projeto.
Levando em consideração estes aspectos, a disciplina Desenho e Plástica 2 tem procu-
rado abordar a linguagem gráfica sob sua real dimensão: como forma de conhecimento do espaço e
como meio essencial de comunicação do arquiteto.
Os métodos de ensino da matéria vêm se transformando e aperfeiçoando ao longo do
tempo e pretendem, fundamentalmente, capacitar o aluno quanto ao seu pensamento visual, expan-
dindo suas possibilidades de expressão e representação de projeto.
Dados Gerais da Disciplina
Disciplina: Desenho e Plástica 2 é uma disciplina obrigatória do curso de graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), ofertada no segundo semestre do curso,
com uma carga horária de quatro horas semanais.
*Artista plástica, mestre em Desenho Urbano pela Universidade de Brasília (UnB) e docente do Departamento de Projeto, Expressão e
Representação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) dessa universidade. Atualmente, desenvolve pesquisa gráfica e pictórica com
pigmentos minerais do cerrado. Possui vasta produção artística apresentada em exposições individuais e coletivas.
52 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Ementa: Aprofundamento e direcionamento de conceitos, técnicas e materiais de ex-
pressão gráfica para a representação artística dos projetos de arquitetura.
Abordagem temática: Tendo em vista o conjunto de disciplinas que compõem o currí-
culo de graduação da FAU/UnB e, especificamente, a seqüência de matérias que tratam do dese-
nho, expressão e representação, focaliza-se a atenção na linguagem gráfica como forma de conhe-
cimento e comunicação do espaço arquitetônico, fornecendo aos alunos instrumentos
representacionais que os habilitem a expressar suas vivências espaciais de forma artística e criativa.
Este trabalho compõe-se de duas partes: a primeira trata dos fundamentos teóricos que
foram levados em consideração para a concepção da disciplina, e a segunda parte descreve a expe-
riência prática que vem ocorrendo em Desenho e Plástica 2.
Fundamentos teóricos para a concepção de Desenho e Plástica 2
A Linguagem Gráfica como Forma de Conhecimento do Espaço
Parte-se do princípio de que a linguagem gráfica é uma forma essencial de co-
nhecimento e de comunicação do espaço arquitetônico. Como forma de conhecimento, a
linguagem gráfica registra não só a apreensão do espaço observado, mas acompanha todo
o processo de construção mental da forma espacial, partindo de noções gerais e chegando
a um espaço definido e preciso, conduzindo-nos à gênese cognitiva do projeto. Como este
se expressa basicamente por meio da linguagem gráfica, as representações gráficas equi-
valem, simbolicamente, às operações cognitivas de apreensão e de concepção espacial
(Boudon, Pousin, 1988). Tais operações ocorrem, basicamente, por meio de dois modos de
representação:
– o modo de representação perspectivo, que reproduz o espaço tridimensional captado
pelo aparelho ótico;
– o modo de representação ortogonal (euclidiano), resultante da operacionalização
geométrica.
A grande variedade de informações e de níveis de precisão gráfica oferecida pela com-
binação desses modos de representação, ao longo da atividade projetiva, é responsável pela diversi-
dade de funções cognitivas e comunicativas às quais a linguagem gráfica espacial responde como
instrumento de representação simbólica (Massironi, 1982). Sendo os desenhos de natureza múltipla,
pode-se classificá-los em quatro grupos: desenho de observação, desenho de memória, desenho de
imaginação e desenho geométrico.
O desenho de observação como registro da experiência perceptiva
O desenho de observação baseia-se essencialmente nas informações fornecidas
pelo aparelho visual; expressa noções gerais das formas apreendidas por meio de grandezas e
de relações geométricas aproximadas; vincula-se a campos visuais determinados pela posição
do observador; apresenta os indicativos de profundidade próprios ao espaço perspectivo e
resulta da interpretação particular que o indivíduo dá ao desenho por meio de sua capacidade
de expressão, cópia, síntese, etc.
Ao simular a experiência perceptiva, esses desenhos desempenham diferentes fun-
ções cognitivas, tais como: fortalecer o senso de observação e apreensão da realidade; conjugar as
informações prévias de que o sujeito dispõe com uma verificação das coisas observadas e expandir
o repertório de imagens mentais a serem evocadas pela memória (Timm, 1986).
A modalidade gráfica contígua à observação é a perspectiva, que reproduz, com rela-
tiva aproximação, a realidade captada pela percepção visual. Aplicado à representação do espaço
arquitetônico, esse tipo de desenho não deve alterar a aparência das formas, mas expressá-las com
o maior grau possível de identidade sígnica. Isso é necessário porque o desenho torna-se uma
A construção gráfica do espaço como método de ensino de Desenho e Plástica 2 53
realidade visual para o leitor da imagem. Logo, se falsificarmos uma forma, estaremos produzindo
outra forma, enfim, outra coisa (Massironi, 1982).
O desenho de memória e o desenho de imaginação como instrumentos
de investigação das imagens mentais
O desenho de memória e o de imaginação baseiam-se na versatilidade que a forma é
capaz de assumir no mundo da imaginação visual, quando o sujeito prescinde da presença física do
objeto. Logo, dependem das atividades cognitivas de memorização e de reflexão que, em termos
do espaço arquitetônico, são definidas pela capacidade de reter, interpretar, relacionar, desenvolver
e criar formas captadas pelo sistema visual. Devido ao seu caráter informal e especulativo, apresen-
tam noções gerais, recebem forte influência da interpretação do desenhista e abrangem representa-
ções perspectivas e euclidianas.
O desenho de memória representa a evocação de uma realidade percebida anterior-
mente e depende tanto da complexidade da cena evocada, quanto da capacidade de retenção
imagética do sujeito que evoca. Além disso, esses desenhos apresentam-se como interpretações
simplificadas e esquemáticas, são gerais e pouco detalhados, registram os aspectos mais marcantes,
regulares, simétricos ou contrastantes da realidade evocada e dependem da verossimilhança de
suas imagens. Cognitivamente, esse tipo de desenho reaviva imagens muito distanciadas na me-
mória, reforça a distinção entre aspectos essenciais e acessórios das cenas percebidas e amplia o
poder de síntese dos indivíduos.
O desenho de imaginação representa graficamente a especulação e a invenção da forma
na tela mental, sendo fortemente influenciado pelas informações contidas no repertório imagético dos
indivíduos. Ao contrário do desenho de memória, que procura reproduzir realidades pretéritas, sai em
busca de novas realidades visuais, sejam elas realistas ou fantasiosas. No que tange ao projeto
arquitetônico, o desenho de imaginação atende a um objetivo bem definido: representar formas mental-
mente concebidas, capazes de atender a necessidades plásticas e programáticas. Suas funções cognitivas
na fase de elaboração do projeto são: auxiliar a plasmação e ordenação de idéias que aparecem difusas
na tela mental; fortalecer o raciocínio espacial e geométrico; ampliar o repertório mental figurativo e
desenvolver a capacidade de criação dos indivíduos, por meio dos modos de representação perspectivo
e ortogonal (euclidiano).
O desenho ortogonal como produto das operações lógico-matemáticas
Ao longo do processo projetivo, o papel da crescente participação das operações lógi-
co-matemáticas na construção da geometria espacial é transformar representações vagas em ou-
tras, progressivamente mais definidas, capazes de expressar todos os referenciais de escala, di-
mensões e convenções normatizadas para a representação arquitetônica.
Os desenhos geométricos caracterizam-se por expressar a precisão geométrica da forma;
servir de base definitiva, não só ao projeto, mas também à execução da obra em si; basear-se em códi-
gos fechados de leitura que exigem conhecimento especializado e ter um caráter bastante impessoal.
Instrumentos de trabalho, semelhança plástica e semelhança geométrica
das representações espaciais
Na linguagem gráfica arquitetônica, a escolha dos instrumentos de trabalho ocorre
em função do grau de precisão informativa de cada desenho. Os esboços de observação, de
memória e de imaginação, por exemplo, expressam a liberdade gráfica característica das fases
preliminares de projeto. Todavia, nada impede que tais esboços sejam reelaborados com instrumentos
de precisão. Já os desenhos ortogonais e técnicos, de alta definição geométrica, costumam ser execu-
54 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
tados com o uso de instrumentos especiais ou de computação gráfica. Mas a precisão pode depender
apenas de cotas em desenhos feitos a mão. Isso ocorre porque a contigüidade simbólica da linguagem
gráfica fundamenta-se em dois aspectos de semelhança sígnica:
1º) Semelhança plástica, quando estabelece relações de identificação com a forma do
objeto, mas não indica suas relações geométricas e escala;
2º) Semelhança geométrica, quando a informação métrica é mais importante que a
identificação da forma. Um desenho pode conter ambas, apenas uma ou nenhuma semelhança
com o objeto representado (Boudon, Pousin, 1988).
O jogo das semelhanças depende do modo de representação, do tipo gráfico,
da função cognitiva e comunicativa do desenho, da etapa do projeto em andamento e dos
meios gráficos disponíveis ao desenhista. O emprego correto das semelhanças plásticas e
geométricas e seus respectivos instrumentos são fundamentais na representação
arquitetônica, para que se evitem: definições geométricas prematuras em desenhos prelimi-
nares que reduziriam o exercício da imaginação e da criação; congelamento de idéias embri-
onárias e inadequação de esboços manuais que, mesmo contendo todos os indicativos mé-
tricos, permitiriam a execução dos objetos, mas prejudicariam o estudo das proporções e a
própria solução plástica.
A criatividade como atributo imagético
Toda a atividade gráfica recebe profunda influência da capacidade criativa. A
criatividade não depende apenas do estágio cognitivo dos indivíduos mas também de outras
determinações, tais como:
– inspiração, espontaneidade, coragem, ímpeto, segurança, autoconfiança;
– a força das analogias que, baseada em informações tais como a observação, memó-
ria e imaginação, é capaz de relacionar formas a conteúdos simbólicos;
– a capacidade de incorporar aspectos culturais, circunstanciais ou contextuais ao
processo criativo;
– a visão de mundo pessoal ou coletiva, etc.
Em arquitetura, estas determinações geram escolhas de ordem conceitual, estética e
outras, em meio às quais a criatividade é um componente voltado à expressão e resolução dos
problemas físico-espaciais. Através do potencial criativo, o arquiteto sai em busca de soluções
originais, capazes de responder inventivamente a necessidades de projeto.
A questão da linguagem pessoal
Associada à criatividade, entra em cena a questão da linguagem pessoal, que
corresponde às peculiaridades com que um indivíduo traça, cria, colore e expressa as ima-
gens que compõem seu campo visual ou que povoam o universo de sua imaginação. Um
desenho mais sensível, rebuscado, repleto de pequenos detalhes, ou um desenho gerado
por uma linha única e definitiva no papel podem expressar mundos internos ou estados psí-
quicos diferenciados. A compreensão e a aceitação destas peculiaridades auxiliam o encon-
tro de expressões plásticas pessoais autênticas e criativas, que poderão gradualmente mani-
festar-se em trabalhos de maior complexidade gráfica, chegando à concepção do projeto
como um todo.
A linguagem gráfica como meio de comunicação do arquiteto
Ao simbolizar figurativamente os processos mentais desenvolvidos pelos arquitetos
ao longo da concepção do projeto, a linguagem gráfica desempenha uma função eminentemente
A construção gráfica do espaço como método de ensino de Desenho e Plástica 2 55
comunicativa. Sua atuação não ocorre de maneira isolada, mas em combinação com outras
formas de expressão, a exemplo da linguagem falada e da escrita na transmissão do conheci-
mento conceitual, e da linguagem das maquetes na apresentação de modelos reduzidos.
A adequação do tipo de linguagem ao conteúdo da informação a ser comunicado é
um requisito primordial do arquiteto. Imaginemos quantas palavras seriam necessárias para
descrever o curso de um rio ou um traçado urbano; certamente, extensas descrições verbais
não seriam tão esclarecedoras quanto o mais simples grafismo. Baseada na forma e no pensa-
mento visual, a linguagem gráfica é a representação mais próxima à apreensão do espaço
como realidade física e morfológica.
A capacidade comunicativa da linguagem gráfica no trabalho projetivo depende de
alguns aspectos básicos, tais como: as condições dos sujeitos que emitem e recebem as mensa-
gens gráficas, os códigos de leitura e os tipos de informação espacial que estão sendo comunica-
dos no desenho.
Em relação aos sujeitos da ação, define-se como emissores das mensagens gráficas
os arquitetos ou os desenhistas que produzem essas imagens, e os receptores, como os demais
atores envolvidos no projeto, sejam clientes, seja comunidade, etc. É importante lembrar que o
sujeito que produz as representações gráficas espaciais não objetiva apenas a comunicação das
mesmas para seus respectivos agentes receptores, mas utiliza-as como forma de diálogo consigo
mesmo ao longo de todo o processo de criação do projeto.
Como os protagonistas envolvidos em um projeto arquitetônico manifestam dife-
rentes graus de leitura da linguagem gráfica, faz-se necessária a abordagem da questão do
código. Segundo Guiraud (1983), o código é um sistema de convenções explícitas que permite
aproximações dos conteúdos da realidade, por meio de sinais reunidos por um indivíduo ou
grupo social. Quanto mais aberto é o código, menor é a necessidade de uma aprendizagem
sistemática e mais acessível é a sua leitura. Quanto mais fechado é o código, mais especializa-
da e técnica é a linguagem. Sua leitura exige um conhecimento das chaves de decodificação e
abrange grupos sociais específicos.
A aplicação de códigos abertos ou fechados está relacionada às diferentes funções
cognitivas expressas pelas representações gráficas. O desenho de observação, por exemplo, ex-
pressa uma vivência sintética, visual e realista do objeto observado, já que se estrutura a partir de
códigos abertos. Exemplo disso são as perspectivas e outras formas decodificadas que simulam
percepções aproximadas às que o observador teria se estivesse no espaço real correspondente. No
desenho euclidiano ou ortogonal, a leitura gráfica subentende o conhecimento de códigos fecha-
dos. Nesse caso, a sugestão espacial é substituída pela compreensão de partes que se inter-relaci-
onam, sem uma hierarquia rígida de escalas.
A representação gráfica arquitetônica é regida por uma multiplicidade de sistemas al-
ternados de códigos, de semelhanças e de regras de arranjos figurativos. Isso equivale a dizer que
não há uma sintaxe única na atividade projetiva, mas uma multiplicidade de sintaxes, por entre as
quais o arquiteto se movimenta em direção às definições físico-espaciais do projeto.
Os elementos graficamente representáveis do espaço arquitetônico incluem os mais
diferentes aspectos da forma, captados na realidade e no mundo visual da imaginação que,
basicamente, são: condições da paisagem ou sítio físico, espaços externos e internos das
edificações, todas as possibilidades de cortes horizontais e verticais, aspectos funcionais,
especificações técnicas, materiais, dimensões, cores, texturas, volumetrias, planos, espaços
cheios e vazios, mobiliário, presença humana, fluxos, usos, sistemas estruturais e outros.
Concluindo essas premissas gerais, afirma-se que a linguagem gráfica
arquitetônica acompanha e representa simbolicamente todo o processo projetivo, desde a
descrição dos espaços reais, passando pelo desenvolvimento de soluções possíveis para
cada projeto e chegando, por fim, ao mais alto grau de definição geométrica e espacial. Ao
longo desse processo, a representação gráfica desempenha múltiplas funções cognitivas.
Em todas essas fases, ocorrem todos os tipos de desenhos e códigos, mas em cada uma
delas, o desempenho comunicativo dos diferentes modos de representação e tipos gráficos
têm características próprias.
56 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Desenho e Plástica 2 – uma experiência prática
Em essência, a disciplina Desenho e Plástica 2 trabalha múltiplos campos cognitivos
associados que fornecem ao aluno uma vivência espacial ampliada. Em termos práticos, tais cam-
pos correspondem a modos de representação espacial diversos que, somados, permitem aos alu-
nos transitar visualmente por realidades ortogonais, tridimensionais, vagas ou precisas, imaginárias
ou reais, construindo ou desconstruindo espaços gráficos.
A ativação destes campos dá-se por meio de vivências específicas, tais como:
desbloqueio de padrões inadequados, exercitação e aprofundamento da capacidade de observar e
de representar o campo visual externo; montagem de espaços tridimensionais baseados na percep-
ção e também no raciocínio geométrico, com auxílio de quadrículas espaciais; fortalecimento do
senso de memória e de imaginação no manuseio da forma espacial; sensibilização das cores; expe-
rimentação de outras dimensões sensíveis do espaço como o tato, a audição, o movimento, etc.
Essas informações fornecem aos alunos um amplo repertório de parâmetros que vão sendo incorpo-
rados na proposição de espaços criativos.
Ao longo do processo de “construção gráfica” do espaço, outras qualidades vão-se
cristalizando na formação dos alunos: fortalecimento do contato com o processo criativo; encontro
de uma linguagem pessoal; estímulo da intuição, autoconfiança e maior liberdade na criação plástica
de espaços bidimensionais e tridimensionais. Essas qualidades serão incorporadas na experiência
dos estudantes à medida que os mesmos estejam abertos e dispostos a participarem das vivências,
de maneira natural e espontânea. A criação de um ambiente psíquico relaxado e positivo é funda-
mental nesse tipo de disciplina.
A experiência de Desenho e Plástica 2 é fruto de um processo de trabalho construído no
tempo, ao longo do qual inúmeras mudanças têm ocorrido, não apenas na condução do curso em si,
mas na própria essência dos exercícios aplicados. O método utilizado hoje resulta dos sucessos e
insucessos ocorridos nos semestres anteriores e consiste, naturalmente, na melhor seleção possível
de exercícios. Estes atendem não só à ementa da disciplina, mas ao andamento do curso como um
todo. São ainda levadas em consideração as mudanças de encaminhamento de outras disciplinas
do mesmo semestre; as experiências bem ou mal-sucedidas que os alunos tiveram no semestre
anterior e as diferenças comportamentais das turmas. Detectar o nível de desempenho médio/máxi-
mo dos alunos que vêm cursando a disciplina é importante para que os exercícios aplicados sejam
corretamente dimensionados quanto ao seu grau de dificuldade ou de facilidade de resolução.
O ensino de Desenho e Plástica 2 diferencia-se substancialmente do ensino de projeto
em vários aspectos. Estas diferenças devem ser reconhecidas e otimizadas para que os alunos
possam enriquecer-se com a variedade de caminhos didáticos oferecidos. Em algumas disciplinas
de expressão e representação de projeto, o estudante tem a oportunidade de estabelecer um con-
tato mais íntimo com as questões plásticas e artísticas que compõem o projeto arquitetônico. No
contexto mais complexo do ensino de projeto, muitas vezes essas questões ficam diluídas em meio
a preocupações de ordem funcional, estrutural, técnica, etc. Para os estudantes que ingressam em
um curso de Arquitetura, tal complexidade é um imenso desafio que ocorre em múltiplos níveis de
sua cognição. Nesse universo de decisões a tomar, é comum que os aspectos plásticos do projeto
fiquem bastante prejudicados. O aluno tende, na maioria dos casos, a desenvolver seu projeto mais
no nível ortogonal do que no nível de uma compreensão tridimensional da forma, que se vai plas-
mando à mercê de decisões de outras ordens, sem uma consciente visualização do que as
ortogonalidades propostas possam significar em termos de volumetrias e espaços reais. O domínio
da forma é ainda incipiente. A capacidade de ousar esbarra em limitações de desenho, geradas
pela falta de treino e pela insegurança.
Tendo em vista esses fatores, adota-se um caminho que redimensiona a questão plás-
tica na criação de espaços arquitetônicos. Com o objetivo de aprofundar os estudos formais por meio
da representação gráfica, os outros aspectos que entram em cena na proposição do espaço
arquitetônico são colocados em um plano secundário, dando ao aluno uma oportunidade de manu-
sear mais diretamente o espaço como realidade plástica. Dessa maneira, além de montar desenhos
e arte-finalizá-los, os alunos testam larguras, profundidades, pés-direitos, proporções, volumetrias
A construção gráfica do espaço como método de ensino de Desenho e Plástica 2 57
regulares e irregulares, efeitos espaciais, efeitos cromáticos, contextualização em ambientes pré-
determinados e também criações espaciais baseadas em sua imaginação e fantasia, totalmente
livres da lei da gravidade ou de padrões construtivos.
A Participação do Aluno no Processo de Trabalho
No decorrer do semestre, o estudante torna-se o ponto central de sua experiência: ob-
serva seu desenvolvimento plástico/gráfico, conscientiza-se dos aspectos que devem ser reforçados
em seu desenho e compara cada novo trabalho às produções anteriores. As apreciações coletivas
ocorrem apenas nos seminários apresentados em grupo. A ênfase na trajetória individual é dada com
o objetivo de dissolver valorizações exageradas a alunos especialmente dotados artisticamente, con-
centrando a atenção de cada um em seu próprio desempenho.
Neste ponto, vale a pena colocar em evidência alguns pontos de ordem mais sutil,
mas de profunda relevância na condução de cursos de Desenho e Plástica para estudantes de
Arquitetura. Paralelamente ao ensino de técnicas gráficas e artísticas, o professor deve estar
aberto e sensível às questões psicoemocionais que permeiam o trabalho junto aos alunos. Sem
generalizações, é possível afirmar que as dificuldades apresentadas no aprendizado dessas
matérias ocorre não por deficiências motoras, visuais ou intelectuais, mas por insegurança,
medo, receio da não-aceitação e até mesmo desinteresse. Enquanto para alguns alunos, a aula
de Desenho no curso de Arquitetura corresponde ao momento em que eles podem expressar
mais livremente seu artista interior, para outros, a expressão gráfica carece de significado, pois
trabalha com um lado mais intuitivo e sensível do ser.
Com o intuito de qualificar o desempenho dos alunos, importa considerar dois aspec-
tos: o professor deve auxiliar o aluno a sentir-se emocional e intelectualmente seguro para estar apto
a liberar seu potencial criativo e acreditar que suas idéias possam ser verdadeiramente aceitas por
ele mesmo e pelos outros; o professor deve, também, ter habilidade ao emitir sua opinião ou crítica a
respeito dos trabalhos produzidos pelos alunos, oferecendo a eles um grau de flexibilidade no que se
refere à liberdade de expressão. Cuidados devem ser exigidos, no que diz respeito à qualidade e à
boa apresentação do trabalho, lembrando que sua intensidade simbólico-expressiva tem forte carga
de subjetividade. Nesse nível de abordagem, são extremamente ricas e eficientes as técnicas de
descontração, concentração, relaxamento, desbloqueio e auto-segurança que vêm sendo desenvol-
vidas pela psicologia comportamental das quais professores podem lançar mão, em sintonia com
suas afinidades. A ambientação da sala de aula com música suave tem sempre trazido bons resulta-
dos para o grupo.
Como se sabe, o ensino contemporâneo enfatiza o conhecimento lógico-formal que
desenvolve as estruturas mais operatórias da inteligência. A crescente redução do ensino de Dese-
nho e Arte nas escolas de primeiro e segundo graus só vem fortalecer a concepção de que a lingua-
gem gráfica e artística é secundária e pode ser desenvolvida nos horários vagos, nos recreios, ou em
contextos em que o aluno não tem responsabilidade ou avaliação crítica do que está produzindo.
Deixa-se a criatividade sempre ao encargo de alguns “talentosos”, corajosos, ousados ou até mes-
mo enigmáticos aventureiros que se lançam sem resistências nesse campo. Boa parte dos alunos
que opta pelo curso de Arquitetura e nele ingressa possui uma aptidão natural para o desenho.
Conduzir essa aptidão para obter resultados frutíferos é uma segunda etapa, em que professores e
métodos de ensino têm papel fundamental.
O conceito que marginaliza o desenho como atividade-recreação deve ser retrabalhado,
pois, dentro do curso de Arquitetura, a expressão e a representação gráfica passam a ser a lingua-
gem básica e cotidiana de que o aluno dispõe para estabelecer o diálogo consigo mesmo e com o
mundo à sua volta, no que diz respeito às suas concepções espaciais. Afinal, o desenho-desígnio,
manual ou informatizado, é o ponto de partida, é a realidade pré-materializada da obra. É a ilusão
gráfica de uma realidade concreta, onde as pessoas irão circular, trabalhar e viver. Um desenho de
arquitetura não requer apenas perfeição técnica ou normativa. A soltura, a liberdade, a originalidade
e o ímpeto criativo impressos no desenho interferem profundamente na qualidade plástica do projeto.
58 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
O Encadeamento das Vivências Gráfico-Espaciais, seus Significados Cognitivos e
Exercícios Correspondentes
Para concluir este artigo, apresenta-se, a seguir, a seqüência de temas trabalhados ao
longo do semestre, seus conteúdos cognitivos e exercícios correspondentes. Os primeiros itens (a
até e) baseiam-se essencialmente no método conhecido como “desenho com o lado direito do cére-
bro” (Edwards, 1984), que tem na observação da realidade sua fonte de informação. Gradativamente,
vão sendo incorporados ao conhecimento do aluno: a compreensão geométrica do espaço, a luz e a
sombra, as cores e seus efeitos psicológicos, a simbologia das formas, outras dimensões sensoriais
e, por fim, a síntese de todas essas referências psico-representacionais.
Te ma s
Conteúdos cognitivos
trabalhados
Exercícios aplicados
a)o desbloqueio dos
clichês
desprogramação de vícios
gráficos preexistentes;
reflexão sobre clichês gráficos
adquiridos involuntariamente;
reaprendizado da maneira
de ver.
desenhos invertidos;
assinaturas invertidas.
contato com a pura visão das
formas;
desenvolvimento da intuição
e da autoconfiança;
fortalecimento da relação
mão–olho;
manifestação do traço
expressivo isento da
autocrítica.
desenhos cegos da mão;
desenhos cegos
de objetos;
desenhos cegos de rostos;
desenhos de memória com
os olhos fechados.
b)a descoberta do traço
pessoal e a permissão
de um conceito não-
acadêmico do desenho
c)o aprofundamento da
observação e sua
representação
aprofundamento da
capacidade de observar
e de representar a realidade
que o olho vê;
fortalecimento da memória
visual;
aprimoramento do desenho
de observação e da represen-
tação tridimensional.
desenhos de observação
de contornos de objetos
naturais e geométricos;
desenhos de observação
de contornos de modelos
vivos;
linhas puras, contínuas,
sem aplicação de sombras.
d)a visualização do espaço
vazio
a percepção do fundo das
figuras como elemento
espacial;
a entrada em cena da
“composição”;
a desreferencialização do
objeto isolado.
recortes diretos no papel, a
partir da observação
de objetos;
desenhos de observação
do fundo das figuras;
composições de recortes
fundo-figura, visando ao
equilíbrio cromático
e compositivo
e)a apreensão das formas
tridimensionais
desenvolvimento da
observação e do raciocínio
tridimensional;
percepção do espaço físico
natural e construído;
aprendizado da medição visual
de ângulos, proporções,
relações geométricas, etc.
desenhos de observação
baseados em medições
com lápis, pés e mãos;
desenhos de cantos
geométricos;
desenhos de móveis.
Continua...
A construção gráfica do espaço como método de ensino de Desenho e Plástica 2 59
Continua...
Te ma s
Conteúdos cognitivos
trabalhados
Exercícios aplicados
...Continuação
f) a representação
perspectiva do espaço
euclidiano
organização do raciocínio
geométrico;
passagem da representação
bidimensional para
a tridimensional;
compreensão de quadrícula/
planta-baixa/perspectiva/
escala.
construção de pequenas
perspectivas preliminares
de um ponto de fuga,
baseadas em quadrículas
desenhadas a partir de
planta-baixa e método
geométrico.
g)a concepção espacial
por meio da visão
perspectiva
expansão da imaginação e da
memória visual aplicadas à
criação de espaço físico em
planta-baixa e visão
perspectiva.
criação e representação
perspectiva de espaço
baseadas em tema dado.
i) a experiência volitiva
das cores
percepção da cor como
elemento de ressonância
psicológica/intuitiva;
influência da cor na concepção
de ambientes;
as combinações de cores
aleatórias.
vivências de pintura “zen”;
cores derramadas, chuvas
coloridas, pontilhismo,
grafismos soltos, texturas.
j) a visão acurada
das cores
observação acurada das
sutilezas cromáticas;
passagem de cores a tons
graduais;
percepção da temperatura, do
movimento e da vibração
das cores.
desenhos de observação,
utilizando cor como
definidor volumétrico.
k) a síntese cognitivo-
espacial
reunião de vários referenciais
sensitivos, geométricos e
plásticos na concepção de um
espaço tridimensional.
criação de um espaço em
planta-baixa quadriculada e
em perspectiva baseada em
tema dado.
l) a crescente
incorporação de
complexidades plásticas
aprofundamento do estágio
anterior com maior número de
referências programáticas.
idem ao anterior, com maior
complexidade plástico-
espacial.
m)o efeito psicológico das
cores no espaço
verificação do estudo das
cores em um espaço gráfico
determinado pelo aluno.
apresentação de
alternativas de cor aplicadas
ao exercício anterior.
h)a percepção da luz
e da sombra
incorporação da visão da luz e
da sombra reais dos objetos;
valorização das volumetrias
espaciais por meio
das sombras.
desenhos de observação
de objetos à luz de vela;
lançamento de sombras
geométricas em quadrículas
e em perspectiva.
60 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
A Avaliação
A avaliação dos trabalhos baseia-se na criatividade, na novidade e na qualidade plásti-
ca dos produtos apresentados. A maior parte dos trabalhos são individuais, avaliados caso a caso ou
em seminários coletivos, nos quais todos os alunos têm a oportunidade de visualizar o conjunto de
trabalhos produzidos e de opinar sobre eles. Ao final do semestre, cada estudante reapresenta seu
portfólio da disciplina, que ainda passará por uma verificação de conjunto. Nesse ponto, é relevante
observar a evolução gráfica demonstrada pelo aluno e verificar a eficácia da seqüência de exercícios
aplicados.
Referências bibliográficas
ARNHEIM, Rudolf. El pensamiento visual. Buenos Aires : Universitária, 1971.
BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação : conflitos/acertos. São Paulo : Max Limonad, 1985.
BOUDON, Philippe, POUSIN, Frédéric. Figures de la conception architecturale. Paris : Dunod, 1988.
EDWARDS, Betty. Desenhando com o lado direito do cérebro. Rio de Janeiro : Ediouro, 1984.
GUIRAUD, Pierre. A Semiologia. Lisboa : Presença, 1983.
MASSIRONI, Manfredo. Ver pelo desenho. São Paulo : Martins Fontes, 1982.
SCHUNCK, Dulcinéia. A construção gráfica do espaço urbano : aspectos cognitivos, comunicativos,
históricos e aplicativos da linguagem gráfica urbanística. Dissertação (Mestrado) – Universida-
de de Brasília, 1992.
TIMM, Edgar e Liana. A construção do conhecimento através do desenho. In: ENCONTRO NACIO-
NAL SOBRE ENSINO DO PROJETO ARQUITETÔNICO, II. Anais... Porto Alegre : UFRGS, 1986.
Te ma s
Conteúdos cognitivos
trabalhados
Exercícios aplicados
...Conclusão
n)outras dimensões
sensoriais do espaço
percepção de outras dimen-
sões do espaço construído,
tais como seu universo tátil,
cinestésico, sonoro,
comportamental, etc.
workshops com trabalhos
de corpo, relacionados ao
espaço físico.
o)a criação de espaços
simbólicos/
tridimensionais
incorporação de conteúdos
simbólicos à concepção
espacial.
workshops com criação de
espaços-relâmpago, cons-
truídos com materiais leves
(panos, linhas, etc.) aten-
dendo à temática dada;
criação de espaços ceno-
gráficos, construídos com
materiais variados (pape-
lão, lona, plástico, materiais
naturais, sucata, etc.)
expressando conteúdos
simbólicos estudados pela
equipe de trabalho.
Capítulo 5
Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto*
Resumo
Expõe a organização da disciplina e as idéias e experiências do professor acerca de seu encami-
nhamento. Inicia-se com a análise do currículo vigente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de Brasília (FAU/UnB), para o curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo.
Relaciona as tematizações departamentais e as curriculares. Mostra a fundamentação teórica do
conceito de complexidade na arquitetura e em outras áreas de conhecimento. Explora a questão
de métodos de projetação associados à complexidade funcional em arquitetura, bem como as
características do processo didático que adota. Apresenta pontos para a reflexão, que podem
ser tomados como as conclusões do trabalho, como: a necessidade de se ampliar as referências
teóricas e práticas no ensino de arquitetura; a necessidade do exercício da crítica sobre os
modelos de ensino; a importância do conceito de complexidade como tema para a reflexão
sobre problemas específicos da arquitetura contemporânea.
Introdução
O ensino de Projeto Arquitetônico tem absorvido muitos profissionais, que eventualmen-
te a essa atividade se dedicaram, como professores colaboradores ou substitutos, nas disciplinas
curriculares dos nossos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo ou como professores com
dedicação continuada, definindo sua vida profissional majoritariamente no ensino. O crescimento do
número de escolas de arquitetura tem ampliado o número de profissionais que têm vivido a experiên-
cia de ensino, e parece cada vez mais importante que essas experiências possam ser divulgadas,
tanto como troca entre os que têm a perspectiva e o desejo de ampliar sua capacitação como profes-
sores de arquitetura, quanto como contribuição àqueles que desejam revisitar o ateliê de ensino, ago-
ra como professores, mas sem o tempo e a experiência necessários para trazer às disciplinas sob sua
responsabilidade referências críticas sobre o ensino, que verão como necessárias (seja como
reafirmações ou reavaliações do que acreditam, seja como análises que estão a buscar caminhos
originais para essa prática).
Este trabalho foi produzido com essa intenção de comunicação e troca, possuindo uma
costura de idéias que mais reflete as inquietações de um professor sobre seu mundo de trabalho que um
apanhado amplo sobre as perspectivas do ensino de projeto “tematizado”, como tem sido a experiência
recente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB).
A disciplina em foco chama-se Projeto Arquitetônico de Funções Complexas, e para
situá-la no currículo, pareceu importante discutir preliminarmente a estrutura de currículo em que
surge – discussão mais crítica que descritiva, espera-se.
*Mestre em Planejamento Urbano pela Universidade de Brasília (UnB), na qual é professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação
da Faculdade de Arquitetura. Colaborou nos livros Programação Arquitetônica de Biotérios (MEC, 1986), Planejamento Físico de Bibliotecas
Universitárias (MEC/CNPq, 1993) e Normas para Projetos Físicos de Estabelecimentos Assistenciais de Saúde (MS, 1994).
62 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
As referências teóricas que fundamentam a disciplina são também expostas, em-
bora as várias direções de sua pesquisa e incidência sobre a prática tenham sido sumarizadas
de um modo algo “literário”: tem-se buscado informação tanto na leitura e interpretação de
textos de arquitetos e críticos de arquitetura que estimulam a presente reflexão, quanto na pro-
dução arquitetônica considerada relevante para a sua temática (não se expondo reflexão sobre
os exemplos de arquitetura que se constituam como objetos de estudo em ateliê de “funções
complexas”, ou mesmo sobre os trabalhos dos estudantes, resultado, afinal, da atividade de
ensino). As ilustrações do artigo foram retiradas das notas de aula da disciplina e não têm
relação direta com o texto.
A organização do ensino de Projeto na FAU/UnB
Cabe, inicialmente, considerar as características gerais do currículo vigente, es-
pecialmente sua proposta para o ensino de projeto: a) temos nove disciplinas obrigatórias de
projeto – ou seja: arquitetônico (seis), de urbanismo (duas) e de paisagismo (uma), afora
disciplinas de “problemas especiais” de arquitetura e urbanismo e duas disciplinas dedicadas
ao projeto final de diplomação em arquitetura e urbanismo – , com uma carga horária de
apenas oito horas semanais; b) a cadeia de disciplinas de projeto arquitetônico é proposta
segundo um roteiro de “temas” – no qual são problematizados aspectos curricularmente elei-
tos para o ensino – , onde há duas disciplinas iniciais “indiferenciadas” e quatro disciplinas
que se comprometem com os temas da Linguagem e Expressão, Edificações em Altura, Gran-
des Vãos e Funções Complexas; c) o ensino de projeto se inicia no primeiro semestre curricular,
sem pré-requisitos, mas de forma associada a co-requisitos em Desenho Arquitetônico, Intro-
dução à Arquitetura e ao Urbanismo, Desenho e Plástica, e Sistemas Construtivos, além da
disciplina Matemática 1, incluída como disciplina obrigatória na estrutura do curso de gradu-
ação, e de criticável formato para os objetivos do curso de graduação. A ementa
1
desta disci-
plina coincide, majoritariamente, com os conteúdos ordinários dos cursos de Matemática do
2° grau; discute-se a escolha dos tópicos, que em parte satisfazem às necessidades dos
cursos de Cálculo Estrutural, mas que não se constituem introdução às matemáticas que têm
sido demandadas por determinadas linhas de pesquisa em arquitetura e que ocorrem em
isolamento das necessidades de disciplinas do curso de graduação em Arquitetura e Urba-
nismo (como Geometria Construtiva, que poderia ser beneficiada com tópicos em Geometria
Tridimensional).
Além desses grupos de disciplinas, há aquele das “obrigatórias seletivas/optativas”,
que inclui desde os temas especializados do projeto de edificações pré-fabricadas até o projeto
arquitetônico assistido por computador. No conjunto, o curso de graduação é feito em 4.140
horas (ou 276 créditos).
Essa organização curricular foi elaborada sob uma organização departamental anteri-
or, formada por duas áreas (departamentais/universitárias) de aplicação: a própria arquitetura e o
próprio urbanismo (ou seja, em departamentos universitários com essas abrangências). Essa defini-
ção de “arquitetura” e de “urbanismo” como “áreas de aplicação” tem um viés pragmático, no
sentido de amplamente relacionar-se com a sua prática profissional, com os problemas colocados
pela atuação do arquiteto como profissional. Isso é aqui colocado como o ponto de partida tanto
para a discussão disciplinar da arquitetura (no sentido que aqui valorizamos, de sua delimitação e
conteúdo como campo do conhecimento universitário) quanto para a discussão curricular (da forma
como o campo do conhecimento é reorganizado para o processo de aprendizado). Por quê? Porque
o ensino de Projeto é formalmente determinado por essas referências, por suas diferentes visões
1
Ementa: “Função: funções elementares e suas aplicações; limites de funções; taxa de variação; derivada e técnica de derivação; função
composta e regra de cadeia; aplicações da derivada; primitivas e técnicas de integração; integral definida e aplicações. Matrizes: operações
com matrizes; determinante; Teorema de Laplace; sistemas de equações lineares; Regra de Cramer; escalonamento de um sistema; matriz
inversa; aplicações de matrizes”.
62
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 63
sobre o que é proposta disciplinar e o que é proposta curricular, operando diretamente sobre as
situações desejadas de ensino, em cada disciplina.
Essa consideração não é tão anterior/remota quanto pode parecer: está muito próxima
do cotidiano de ensino: cada professor tanto é ajustado para cumprir o projeto de ensino quanto
elabora a sua “solução” para esse projeto. Ajuste formal e solução informal têm conseqüências dura-
douras na produção da escola, seja na formação do profissional da arquitetura, seja para a extensão
e pesquisa. A organização do ensino de Projeto é central nessa análise, devendo-se considerar,
quanto a seu estabelecimento disciplinar, que
não entendemos a disciplina arquitetônica como um campo separado da metodologia ou das técni-
cas operativas, mas como o conjunto de conhecimentos expressados por uma determinada estrutu-
ra político-social; neste sentido, o estudo de seus conteúdos não pode prescindir da análise das
instituições que os sustentam, dos âmbitos técnico-produtivos em que são utilizados e operam,
nem dos pressupostos téoricos a que fazem referência (Battisti, 1980, p. 15).
Ou seja: a arquitetura, como área universitária, como ramo do saber universitário, é em
si um plexo de relações, em que os conhecimentos utilizados e produzidos se remetem a seu contex-
to de aplicação – e vice-versa – como condição para ser área distinta, com identidade. Isso leva a que
se negue, inicialmente, a existência de um “saber arquitetônico puro”, ou que fundamente a existên-
cia de uma aplicação-em-si do saber arquitetônico, com uma outra natureza que não a de seu con-
texto de aplicação, seu nexo histórico e físico. Essa primeira afirmativa é necessária para que se
discuta o “imbróglio” curricular que se apresenta.
A partir de 1996, foi definida a organização departamental que extinguiu os departa-
mentos de Arquitetura e de Urbanismo, criando os novos departamentos de a) Projeto, Expressão e
Representação da Arquitetura e do Urbanismo; b) Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo; e
c) Tecnologia da Arquitetura e do Urbanismo.
O exame da reorganização departamental da FAU/UnB
A referida reorganização departamental se deu a partir da mesma “matriz” de pensa-
mento tematizador – organizadora do currículo vigente – , onde se insere a disciplina Projeto
Arquitetônico de Funções Complexas. Uma disciplina dessa natureza somente seria concebível den-
tro de uma estrutura tematizada. De uma forma merecedora de análise, tematizou-se a própria orga-
nização departamental, e ainda se tematizaram tanto as seqüências disciplinares de projeto quanto
as do projeto de estruturas e de história. Isso depois de se operar uma primordial tematização: a
separação das áreas das artes e da arquitetura, no final dos anos 80, existente desde a criação da
UnB, com a criação da FAU/UnB e do Instituto de Artes (IdA). Hoje, pode-se discernir esse pensa-
mento tematizador (o tema como “assunto, parte, aspecto”) dividiu e desarticulou mais que organi-
zou e articulou a nossa área de ensino, pesquisa e extensão.
A reflexão sobre o modelo de reorganização e as conseqüências dessa experiência, até
o momento, devem servir de ponto de partida para a reflexão sobre cada uma das práticas de ensino
que se vem buscando viabilizar na FAU/UnB.
Essa reorganização departamental instaurou diferenciações que se julga, em parte,
prejudiciais para a integração disciplinar que caracteriza o ensino de Arquitetura e Urbanismo (como
área do conhecimento universitário aplicado e de síntese das logias, das artes e das técnicas) e, em
parte, pretensamente propiciadora de determinados aprofundamentos disciplinares – crê-se, pela
delimitação e especialização das áreas de ensino, pesquisa e extensão, em Teoria e História,
Tecnologia e Projeto.
Essa reorganização departamental, ressalve-se, parece ser especialmente aplicá-
vel ao ensino de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, no qual a expansão de áreas de
problemática tematização a problematização deve ser coordenada por algum “corte” (inter versus
multi) disciplinar específico (ou dirigido a distintas áreas de concentração/condensação das
63
64 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
linhas de pesquisa ativas) – e é justamente o que acontece na FAU/UnB, sendo essas “áreas
departamentais” coincidentes com as áreas de concentração do atual programa de pós-gradu-
ação em Arquitetura e Urbanismo.
Também parece ser adequada para a instalação de abordagens cientificistas e/ou
tecnologizantes, como áreas acadêmicas plug-in (aparatos teóricos totalmente importados, com
hardware e software pré-fabricados, e na medida do interesse de grupos específicos de professores
e não dos objetivos da formação profissional), que pretendem portar disciplinaridade própria, exclu-
siva, como é o caso do formato apresentado pela área de concentração em Desenho Urbano. A
reorganização departamental realizada parece ser especialmente inadequada ao ensino de gradua-
ção em Arquitetura e Urbanismo. Por quê?
Arquitetura: disciplina aplicativa?
Uma questão preliminar que se deve colocar quanto ao estatuto universitário das áreas
disciplinares da Arquitetura (e do Urbanismo, se insistirmos na distinção), compreendendo a organi-
zação departamental como a organização das áreas de conhecimento universitário, é a de que a
disciplina da Arquitetura é aplicativa. Queiramos ou não, Arquitetura é disciplina de aplicação: é área
de conhecimento universitário, mas não é conhecimento sobre algo (não é legitimamente uma logia,
e o arquiteto não é um cientista), mas conhecimento aplicado a algo, com vistas a gerar algo; essa
sua natureza aplicada deve ser diferenciada de uma tecno-logia (não é puramente uma techné, e o
arquiteto não é um tecnólogo), pois a arquitetura também requer para si o estatuto de aplicação que
critica (do grego
κριτικοσ
, o que discerne, o que faz do arquiteto um humanista – no sentido dado por
Evaldo Coutinho, quando enquadra sua análise do espaço arquitetônico como uma filosofia da arte)
(1977, p. 9-11). Também sua natureza aplicada deve ser diferenciada daquela área que intitulamos
“ciências sociais aplicadas”, pois a arquitetura também requer para si o estatuto da aplicação poética
(do grego
ποιετεσ
, o que cria, o processo criador, o que faz do arquiteto um artista). Resulta disso, em
especial, que a arquitetura é uma das áreas universitárias de maior potencial articulador da
multidisciplinaridade, que pode requerer para si o estatuto simultâneo de um modo de pensar e de
um modo de fazer a universidade – como instituição de convergência das áreas de conhecimento.
O lugar universitário da arquitetura tem variado desde as áreas tecnológicas até às hu-
manidades e às artes, chegando, como é o caso da FAU/UnB (e do grupo das “FAUs”), a ser “facul-
dade”, como organização específica dentro da instituição universitária, que tem a prerrogativa do
ensino autônomo de uma área profissional, de ofícios determinados.
A divisão departamental, realizada entre nós, não se deu, de forma alguma, de um
modo adequado à arquitetura como disciplina de aplicação, mas realizou “tematização”, particulari-
zou (do grego
τηεµα
, “tema”, proposição, parte, etc.) aspectos de um todo que somente encontra
sentido quando é realizado integralmente, nas formas de sua aplicação. Sem nos deter na grande
confusão instalada nas universidades em torno do conceito de “departamentos” universitários (ora
definidos pelos critérios mais chapadamente administrativos, em que se busca conciliar os interes-
ses de um grupo específico de professores diante das estruturas curriculares ou mesmo das estru-
turas de seus laboratórios e pesquisas particulares, ora definidos por critérios de organização de
áreas mais ou menos inteligíveis de conhecimentos, ora definidos em termos dos próprios cursos
profissionalizantes, ditos de nível superior, entre outros), a divisão temática praticada na FAU/UnB é
reveladora de um modelo de desmonte disciplinar: onde se via as áreas aplicativas da arquitetura e
do urbanismo passou-se a ver, por exemplo, a tecnologia da arquitetura e do urbanismo, ou a histó-
ria da arquitetura e do urbanismo.
Desmonte por desmonte, a escolha das áreas temáticas da tecnologia e da história da
arquitetura e do urbanismo é parcial, portanto, por que negar (ou não deliberadamente articular) as
igualmente relevantes áreas temáticas da filosofia, da crítica de arte, da matemática, da sociologia,
da antropologia, das ciências políticas, da física, da psicologia, etc., em arquitetura e urbanismo? Ou:
qual a especificidade disciplinar do tema “teoria e história da arquitetura” – e o que a diferenciaria da
área disciplinar (universitária) reconhecida em torno do estudo da História? Que tipo de “alternativa”
64
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 65
parece ser indicada entre o que seja teoria e o que seja história, no caso de arquitetura e do
urbanismo? Qual a especificidade disciplinar do tema “tecnologia da arquitetura” – e o que a
diferenciaria do intrincado composto disciplinar das tecnologias, etc.? É razoável afirmar, ainda
que indiretamente, que as tecnologias não apresentam áreas teóricas inteiras, fundamentais
para seu estabelecimento disciplinar? É razoável subentender que a tecnologia se apresente
como área disciplinar distinta, como uma logia, uma ciência, se os procedimentos a que se
atribui o estatuto da técnica estão presentes em todas as demais áreas universitárias? O que
significaria, em termos de seus objetos de estudos e da efetiva discriminação de seus métodos,
uma área disciplinar de “tecnologia da arquitetura e do urbanismo”? É uma engenharia-afim
(pois, nos centros universitários brasileiros, tecnologia = engenharia, um formalismo da área
acadêmica que deixa entrever e transmite uma certa confusão sobre o que é, efetivamente,
tecnologia para a universidade)? E ainda: como se pensa que se pode dar sentido ao projeto de
arquitetura (como área de ensino) desde áreas disciplinares que são inerentes ao próprio proje-
to, falsamente distintas deste?
Essas definições das áreas disciplinares devem ocorrer orientadas por objetivos de
ensino, pesquisa e extensão universitária coerentes e consistentes entre si – o que gera uma
outra ordem de problematização, pois os estatutos universitários, em geral, afirmam a
indissociabilidade entre esses objetivos universitários, o que raramente acontece. Ensino, pes-
quisa e extensão, na prática atual, apresentam antagonismos e desequilíbrios em suas priorida-
des e ênfases – e por quê? Porque não há, por um lado, valorização de sua integração, meios
para que ocorra, e resultados significativos para que sua associação se realize. Na prática de
várias áreas universitárias, a indissociabilidade entre extensão, pesquisa e ensino ainda é um
ideal. No caso da arquitetura e do urbanismo não é diferente, apesar das experiências existen-
tes na própria UnB e em outras universidades públicas, sobretudo. Desde a matriz estatuinte da
universidade pode ser constatada essa importante inconsistência, e é previsível que se alas-
trem problemas quanto às articulações que se deveriam dar entre as áreas do conhecimento,
em seu conjunto e em cada grupo de departamentos universitários que se constitua como uni-
dade acadêmica.
O isolamento acadêmico da Arquitetura
No caso da arquitetura, a desarticulação entre os campos-fonte dos conhecimentos
que utilizamos é agravada por uma espécie de isolamento acadêmico, que tem várias origens (des-
de o chauvinismo de uma determinada identidade profissional, que idealiza olimpicamente o arqui-
teto, até pretensões disciplinares únicas, que desejam um conhecimento da arquitetura puro, uma
quintessência das artes, das ciências, das tecnologias): ao mesmo tempo em que ainda são raras
as experiências de ensino de arquitetura, efetivamente, quebrarem as barreiras das disciplinaridades
universitárias (experiências como as de Carlos Nelson, na Universidade Federal Fluminense ou o
Grupo Habitat, da FAU/PUCCAMP, por exemplo, são exceções que justificam a regra), somos tenta-
dos a instaurar a nossa disciplinaridade única, a crermos no campo de conhecimento de uma ciên-
cia da arquitetura, como reação oposta e que deve ser compreendida nesse contexto de tensões
disciplinares universitárias.
A UnB posicionou-se nesse sentido, no Seminário Nacional de Pós-Graduação em Ar-
quitetura e Urbanismo, promovido pela Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura (Abea), reali-
zado em Florianópolis, em maio de 1993, quando nosso representante falou do vínculo entre ensino
de graduação, pós-graduação e pesquisa:
O principal dilema é a contradição entre uma prática milenar (de construir espaços arquitetônicos e
de projetá-los) e uma tradição de pesquisa quase inexistente, responsável pela ausência de pressu-
postos efetivamente teóricos para a arquitetura. Esta contradição nos faz hoje lutar pelo estabeleci-
mento como área de conhecimento científico, condição para que os cursos de Arquitetura e Urba-
nismo permaneçam nas universidades (Relatório, [1994], p. 58; grifo nosso).
65
66 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Para a prática profissional, aquilo que parece dramático academicamente é, ao final,
irrelevante: uma ciência da arquitetura ou a arquitetura como arte e/ou técnica, não são realmente
distinções que permaneçam como direções únicas para a formação do arquiteto – que devam ser
tomadas de forma antagônica e exclusiva em sua relação. Parece, contudo, interessar à discussão
dessa relação entre a estrutura disciplinar no contexto universitário e o projeto de formação do arqui-
teto, que deve haver solução apta a associar, incluir, articular o maior número de aspectos possíveis
para o fato e o fazer da arquitetura.
E haveria alternativa para a estruturação ou divisão do campo disciplinar da arquitetura
e do urbanismo – ou, por outra, para o esclarecimento e não a negação da efetiva complexidade
inerente à arquitetura? Claro, através do conceito-chave de áreas de aplicação representadas pelo
projeto arquitetônico, de urbanismo, de paisagismo, etc., por exemplo. Mediante linhas de trabalho
acadêmico e de formação universitária que liguem conhecimento e prática profissionais. Deve-se
aproximar a organização acadêmica dos fatos da vida real do arquiteto, das necessidades reais da
profissão. Nesse conceito-chave não domina, no entanto, o que se pode denominar abordagens
pragmáticas do ensino – ou o pragmatismo com outras indesejáveis conseqüências, como a simplifi-
cação do projeto de ensino para ajustá-lo tão estritamente quanto possível às necessidades imedia-
tas de uma determinada prática profissional, implicando valores antagônicos a tudo o que não for
imediatamente aplicável, chegando à intolerância ao que se apresente como teórico.
Essas observações são uma espécie de “vestíbulo” para a difícil discussão de propos-
tas curriculares e de formação do arquiteto.
O professor Mário Júlio Teixeira Krüger, que lecionou na FAU/UnB na década de 80,
formulou proposta que deve merecer atenção por sua organização de dois grandes grupos de teori-
as (que denominou com relação a critérios de desempenho e competência) que ordenam objetos de
estudo fundamentais a uma teoria mais geral da arquitetura, como: a) os métodos de projeto; b) os
protocolos de concepção; c) os modelos analógicos em arquitetura, e; d) as formas construídas.
Esse ordenamento implica crítica ao próprio argumento que é apresentado no parágrafo, pois não
deixa de haver ainda imprecisão e uma certa parcialidade na defesa do conceito de “áreas de aplica-
ção”, que fazemos.
Uma área de aplicação, como a de projeto arquitetônico, alinha simultaneamente
métodos/protocolos/modelos/formas, que especificaria de acordo com critérios ainda arbitrári-
os, e baseados em convenções de “sua aplicação” – ou da prática profissional, e trabalharia
com uma margem de consenso que nunca foi larga, além de gerar polêmicas como a que ocor-
reu na geração atual do currículo da FAU/UnB. A proposta de Mário Júlio tem maior rigor analí-
tico e, como quadro geral, impõe clareza às relações entre objetos que devem adquirir
especificidade na disciplina da Arquitetura. Sua proposta parece visar exatamente a isso, e
ainda é objeto de quase nenhuma apreciação por professores que se interessem por
metodologias do projeto arquitetônico. Contudo, no nível curricular, essa organização por gran-
des grupos de Teorias da Competência e do Desempenho apresentaria sérios problemas (cau-
sados por sua inegável abstração e esquematismo), prestando-se melhor à etapa (em um tão
debatido estabelecimento disciplinar da arquitetura) em que a pesquisa sobre métodos de
projetação se tornasse prioridade em nível de pós-graduação em Arquitetura. Essa proposta é
desenvolvida por Krüger no livro Teorias e Analogias em Arquitetura, publicado em 1986.
A área de aplicação como conceito estruturador
Mas o conceito de área de aplicação é um poderoso estruturador do projeto de ensino
do arquiteto e do urbanista e, em debate com outros conceitos que promovem, bem ou mal, a
estruturação do projeto de ensino, como o da tematização/decomposição da disciplina da Arquitetu-
ra, vai mostrar-nos que esse projeto é necessariamente complexo – no sentido de dever portar várias
acepções e direções simultâneas, exibindo tensões que levam, em cada prática curricular, a equilíbri-
os que dependem da capacidade de troca, de trabalho comum dos professores e estudantes, para
que atinjam níveis elevados de formação.
66
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 67
Afirma-se que a organização acadêmica mais apropriada da “disciplina da Arquitetura” é
aquela que mais se aproxima de suas áreas de aplicação, seja isso entendido como a arquitetura do
edifício, do conjunto urbano, do urbanismo da rede de cidades, ou por outro critério que faça sentido para
a prática profissional (fonte de referência para o que é “real” em arquitetura). Fora dessa perspectiva, o que
nos resta é algo como uma cansativa metafísica acerca da disciplinaridade arquitetônica, sem solução
possível fora da prática profissional. São debates que, irresolvidos, pretendem forçar delimitações e/ou
hierarquias de linhas de ensino e pesquisa – como citaremos adiante – sobre se a arquitetura e o urbanismo
são áreas “científicas”, ou se devem ser cientificamente definidas por conveniência de determinadas linhas
de pesquisa, em competição pelos recursos destinados à pesquisa universitária; ou ainda o desgastante
debate entre Desenho Urbano e Planejamento Urbano, em torno da propriedade/adequação respectiva,
distinguindo-se sua habilitação conceitual e científica para o ensino de urbanismo.
Isso não é reducionismo gratuito, mas uma maneira nada inovadora de reapresentar
uma fórmula antiga, que permite a realização de transação interdisciplinar aceitável, inteligível, desde
a área da arquitetura, como profissão distinta e como realização distinta, até as demais áreas profis-
sionais e/ou universitárias.
Em uma direção que buscou reafirmar a importância da prática profissional (que vemos
como formadora dos parâmetros de ensino, e relativa a todo o campo de legal e histórica, efetiva e
prospectiva atuação do arquiteto), o XIII Encontro Nacional sobre o Ensino de Arquitetura (realizado
em Brasília, em outubro de 1995) definiu como “Pressupostos Pedagógicos”, entre outros, que:
a) o ensino de Arquitetura e Urbanismo deve privilegiar a formação profissional, voltando-se para o
crescimento da autonomia dos alunos na solução dos problemas colocados, recusando a repetição
e a reprodução de verdades dogmáticas e desenvolvendo suas habilidades cognitivas, propiciando
assim um desempenho profissional comprometido com a construção de uma sociedade mais justa;
b) a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão deve constituir-se um esforço comum,
no sentido coletivo, de compromisso com a melhoria das condições de vida da população (Contri-
buições, 1995, p. 60).
Bem como, no item 3, “Ensino”:
3.1.7 Graduação e Pós-Graduação
(...)
b) a graduação tem a função de preparar profissionais para o campo de atuação do arquiteto e
urbanista; a pós-graduação tem os objetivos de aprimorar a formação profissional, formar pesquisa-
dores, capacitar docentes e, assim, qualificar o ensino e a pesquisa no âmbito da graduação (Con-
tribuições, 1995, p. 68).
A identidade disciplinar da Arquitetura
Sem essa cláusula de identidade torna-se difícil discernir do que, afinal, falamos, quan-
do falamos sobre (e em nome da) arquitetura. Ao se definir a arquitetura como área aplicada de
conhecimentos, o real, a coisa da arquitetura como coisa da realidade, torna-se a fonte de referência
para a problematização de cada conhecimento que é convocado para a sua realização – e para a
formação do arquiteto. Ser área de aplicação é inseparável de ser área essencialmente
problematizadora do que é aplicado; ser área mediata é manter constante tensão com o que é
mediatizado, transformado, realizado.
A divisão departamental da disciplina da Arquitetura, em termos de sua “Teoria e Histó-
ria”, de sua “Tecnologia” e ainda do “Projeto”, é criticável, pois somente revela uma parte da encruzi-
lhada de campos de conhecimentos que a arquitetura, ao final, é, dentro de uma dada divisão de
áreas disciplinares, englobada por uma universidade. Esse tipo de divisão departamental não tem
sentido aplicativo, desarticulando-se, em especial como proposta profissionalizante – para o que a
organização da “faculdade” em uma universidade aponta. Como exemplo disso, é notável como a
67
68 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
“nova área” da Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo é dissociada do ensino de Projeto e de Histó-
ria; o mesmo pode ser dito da “Teoria e História” da Arquitetura e do Urbanismo, com relação ao
ensino de Projeto e de Tecnologia. Os lapsos que ocorrem não são apenas e meramente administra-
tivos (afinal, sabemos o que significa a ciosa soberania de departamentos independentes dentro de
nossa organização universitária, seja qual for a sua origem), mas essencialmente acadêmicos.
O debate instaurado pelo currículo da FAU/UnB diz respeito à questão da “disciplinaridade
da arquitetura”, e a saída encontrada até aqui se faz pelo questionamento da “tradicional” acepção
da arquitetura como área de aplicação, usuária de conhecimentos alheios, vulnerável ao assédio de
outras áreas igualmente aplicativas (como a chamada engenharia de transportes, ou a engenharia
de sistemas, ou ainda, do inextrincável plexo teórico e prático do planejamento, como área aplicativa
com múltiplos propósitos).
Os departamentos “tematizados” criam identidade
ou rompem o isolamento acadêmico?
Na prática, os novos departamentos de Projeto, Tecnologia e História não diferem dos
demais departamentos universitários em termos de sua recíproca desarticulação; sequer claramen-
te se configura a esperada redundância de suas abordagens em torno do estudo dos espaços da
edificação, da cidade, da região. Esse tipo de repartição das áreas não tem se revelado vantajoso
como estratégia promotora de multidisciplinaridade: os departamentos tendem a se isolar em seus
novos interesses comuns, reforçando ainda mais a tendência da área acadêmica da arquitetura de
gravitar em torno de seu próprio centro. Preocupa-nos que um Departamento de Tecnologia da
Arquitetura e do Urbanismo possa se comportar como uma inespecífica subárea tecnológica,
indefinindo-se numa confusa soma de “tecnologias” relacionadas principalmente à construção civil
e ao conforto ambiental, em separado e separando sempre as coisas. Também é igualmente
preocupante que um Departamento de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo, por outro
lado, tenha dificuldades de elaborar as necessárias pontes explicadoras/estimuladoras das rela-
ções de colaboração interáreas que se desejou ressaltar com a reorganização curricular e
departamental. Há uma teoria ou uma história da arquitetura desconectada do projeto, com sentido
fora do nexo da prática profissional? Por um terceiro lado, o ensino do projeto, isolado, tende a se
fechar no cubículo da concepção pura, do gesto criador, sem se realizar como processo radical-
mente articulador de conhecimentos. São desequilíbrios esperados, e certamente é prudente que a
tríade projeto/tecnologia/teoria e história tenha tempo para reconhecer a natureza de suas
especificidades, desenvolver seus discursos autônomos, até o ponto em que o corpo acadêmico
amadureça (ou amargue) o deslocamento realizado no projeto de formação. Nesse sentido, a aná-
lise que fazemos não é otimista.
Dessa forma, declara-se haver importantes desarticulações num nível fundamental
do ensino de arquitetura desde a atual organização curricular, que, ao tematizar as seqüências
disciplinares de história da arquitetura (assim como as de tecnologia e de projeto), gerou uma
curiosa “solução” para as (necessariamente) imprecisas relações entre projeto, tecnologia e
história da arquitetura e urbanismo, dando-lhes uma espécie de precisão e autonomia que eli-
minou (ou escamoteou) a dúvida disciplinar ocorrida na arquitetura e urbanismo como campos
de aplicação de conhecimentos. No ambiente universitário, implicou a supressão do debate
necessário e qualificador de cada problema que caracteriza a disciplina da Arquitetura e do
Urbanismo. Especialmente a área da Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo, ao não se
inserir no processo de projetação, tende a perder o sentido que deve ter na formação do arqui-
teto – a não ser que queiramos, na faculdade, formar bacharéis nessa área definida pelo depar-
tamento universitário referido: teóricos e historiadores da arquitetura e do urbanismo, como
subproduto desejado da formação em nível de graduação.
No espaço da pós-graduação, a tematização das áreas de concentração é desejável,
e ocorre na FAU/UnB a tematização em Desenho Urbano, Planejamento Urbano, Tecnologia, Teoria
e História e, ainda, em potencial, em Projeto do Edifício. No Seminário Nacional de Pós-Graduação
68
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 69
em Arquitetura e Urbanismo (1993), referido anteriormente, a posição da UnB, com relação à neces-
sidade ou não de áreas de concentração, foi de que
não há a dicotomia entre planejamento e projeto. Os problemas de área de concentração e linhas
de pesquisa podem ser resolvidos pela extensão física (projeto de arquitetura, projeto de urbanismo,
etc.), pela questão analítica (conforto ambiental, aspectos de percepção do espaço, etc.) ou pela
questão do recorte histórico (estética da arquitetura, etc.) (Relatório, [1994], p. 49).
Nos anos seguintes, a orientação foi diversa, pois foi adotado outro critério de definição
das áreas de concentração na pós-graduação, a partir de 1995.
Para o ensino de projeto, é necessário examinar a organização proposta para o ateliê
temático de projeto de arquitetura da FAU/UnB, com o objetivo de determinar que conseqüências
essa nova precisão acarreta.
O ateliê temático
Por ateliê temático, identifica-se essa estrutura curricular de ensino de projeto
que determina o compromisso de abordagem de cada “ateliê de projeto”, como disciplina
do curso de graduação, com um determinado tema ou problematização. Mas que “te-
mas”/problemas?
Os quatro temas (Projeto Arquitetônico de Linguagem e Expressão, Projeto
Arquitetônico de Edifícios em Altura, Projeto Arquitetônico de Grandes Vãos, Projeto Arquitetônico
de Edificações em Altura, Projeto Arquitetônico de Funções Complexas) pertinentes às quatro
últimas disciplinas da seqüência básica de ensino de Projeto Arquitetônico, na UnB, são, de
certo ponto de vista, três – uma espécie de tríade vitruviana em que o primeiro ateliê de projeto
temático (Linguagem e Expressão) enfatiza a abordagem da concepção e do significado do
espaço projetado, da plasticidade e sua síntese estética e simbólica, trazendo ao estudante o
problema da monumentalidade.
Venustas. Sua ementa é: “Projeto de edificações de pequeno porte com forte con-
teúdo simbólico de caráter coletivo. Ênfase no exercício de simbolização e expressão estética,
além da resolução dos aspectos funcionais, ambientais e construtivos. Detalhamento relevante
para o partido arquitetônico”.
A antepenúltima e a penúltima disciplinas (Projeto de Arquitetura de Grandes Vãos
e Projeto Arquitetônico de Edificações em Altura) enfatizam a abordagem de problemas cons-
trutivos colocados pelo “vão” e pela “altura”, como variáveis do projeto – embora suas ementas
coloquem as questões simultâneas das condições de uso e conforto geradas pela proposição
de tipologias arquitetônicas associadas a grandes populações usuárias e significativamente
impactantes no ambiente urbano.
Firmitas. Não há dúvida sobre o viés marcadamente tecnológico implicado, bem como
das possibilidades (e necessidades, nessa altura do curso) de trabalho intensivo no conhecimento
dos sistemas construtivos associados. Suas ementas são, respectivamente, “projeto de edificações
cujo programa exija grandes vãos, com problemas específicos de segurança (relacionados à pre-
sença de grande número de pessoas) e de controle ambiental (iluminação, acústica, visibilidade,
etc.). Detalhes de elementos construtivos e de circulação vertical. Aplicação de metodologias rela-
tivas à análise de sítio. Tema de forte compromisso com a escala urbana, com ênfase na presença
da edificação no seu entorno” e “conjunto urbano envolvendo edificações em altura, com progra-
ma pré-fixado. Problemas específicos de circulação vertical, solução de estruturas em altura e
controle ambiental em áreas da alta densidade. Detalhes de vedação e cobertura. Tratamento em
nível preliminar dos espaços de uso coletivo. Estudos de espacialização através de maquete e de
perspectivas”. Finalmente, a última disciplina dessa seqüência básica (Projeto de Arquitetura de
Funções Complexas) enfatiza a abordagem do problema do planejamento dos espaços
arquitetônicos de um ponto de vista explicitadamente funcionalista.
69
70 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Utilitas. Sua ementa é “projeto de edificação com grande número de espaços específi-
cos para funções interagentes. Programação, dimensionamento relativo entre as funções, descrição
das atividades, caracterizações dos espaços, equipamentos e instalações. Desenvolvimento em ní-
vel de anteprojeto”.
Uma primeira observação a ser feita deve se referir ao modelo de organização da seqüên-
cia de disciplinas de projeto imediatamente anterior ao atual: havia uma seqüência de disciplinas de
Projeto da Edificação e de Urbanismo, não associadas a tematizações específicas, mas com uma gradação
em torno da escala e da complexidade dos objetos de estudo em ateliê. As ementas, mais abertas,
permitiam grande liberdade de interpretação dos objetivos da disciplina, que permitiam ênfases simultâ-
neas em objetos de estudos mais ou menos relacionados a edificações individuais e a frações urbanas
– ou mesmo a cidades inteiras. Ocorria de essa possibilidade de interpretação ser tão ampla – e descon-
certada, à medida que a seqüência de ateliês era coordenada de modo mais ou menos articulado – que
se criou a curiosa situação de um estudante de arquitetura pouco estudar e projetar no nível do edifício
individual, e estudar e projetar sobretudo no nível da fração urbana e da escala de toda uma cidade. Esse
tipo de descompasso foi evitado por currículos implantados ao longo da década de 70, em que algumas
disciplinas obrigatórias de cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo se definiam em torno de
seqüências específicas de Planejamento Urbano e Regional e similares.
Ou seja: para o caso do ensino de Projeto, a tematização tem como objetivo estabele-
cer abordagens com maior precisão, ainda que se refiram a amplos campos de problematização.
Mas a que se referem esses temas escolhidos?
Seqüências temáticas
Qualquer seqüência temática é preliminarmente criticável, porque explicita variá-
veis que devem ser enfatizadas, não havendo a possibilidade de estabelecer absoluto consen-
so sobre que hierarquia – e sua prioridade relativa – deva ser considerada, entre as variáveis de
projeto a serem discriminadas. Entre as posições críticas das tematizações contidas nas emen-
tas, deve-se incluir desde a visão de que não é cabível o termo “variável” nesse contexto, –
como se o projeto pudesse ser reduzido a uma equação – , até à visão de que há efetivamente
um ordenamento, um sistema teórico efetivamente coordenado por variáveis, que deve ser dou-
trinariamente ensinado, e que corresponde a um perfil de formação arbitralmente definido (e
com toda a pompa e a circunstância das justificativas disciplinares/epistemológicas, eventual-
mente incidentes sobre o ensino de projeto arquitetônico). Bem, mas as disciplinas curriculares
são definidas assim, e é necessário encontrar um mínimo de consenso sobre o que devem
ministrar como conteúdo de ensino: devemos definir o projeto didático do ensino de graduação
com um mínimo de exatidão, pelo menos, formal.
A seqüência de temáticas escolhidas para o currículo vigente na FAU/UnB (Lingua-
gem e Expressão, Grandes Vãos, Edifícios em Altura, Edifícios de Funções Complexas) diz res-
peito a edifícios de utilização coletiva, tornando improvável o estudo das importantes escalas
do espaço individual, do grupo familiar, de determinados grupos de trabalho e convivência infor-
mais ou não-institucionalizados ou apenas dos “pequenos problemas em pequenas escalas”.
Na verdade, são todos temas que se referem a objetos de estudos caracterizados por significa-
tiva complexidade funcional, sem que se tenha exaurido outras acepções de complexidade.
Assim, a seqüência proposta é redundante: não há como negar a complexidade funcional ine-
rente a um grande número de edifícios que apresentam algo como “grandes vãos” e/ou se
desenvolvem “em altura” e/ou representem problemas relevantes como os de “linguagens
arquitetônicas” coletivistas/corporativas/societárias/monumentais. Edifícios que reúnam isola-
da ou cumulativamante essas características temáticas são, para dizer o mínimo, edifícios ex-
cepcionais. Como, então, se justifica a omissão de outras modalidades de problemas, com
outras acepções de complexidade?
Outras tematizações, como as do projeto orientado por condicionantes ambientais, ou
o projeto dirigido à restauração (ou à celebrada revitalização de espaços preexistentes, entre outras
70
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 71
possibilidades), também são tematizações válidas – como também o são as “episódicas”
tematizações dos problemas da habitação, da saúde, da educação, dos serviços públicos, dos
equipamentos comunitários, dos espaços do trabalho e do lazer, etc. Mas deve haver tematização
prévia na seqüência dos ateliês de ensino de Projeto Arquitetônico? Ou, de outro modo: de que
forma os professores de projeto resolvem as questões colocadas pelos distintos temas e dão unida-
de à seqüência de ensino?
Os perfis do professor de Projeto
A seqüência excessivamente direcionada de temas de ensino de Projeto não elimina o
“problema” da interpretação dos objetivos de cada disciplina curricular, por cada professor – que
pode arruinar a intenção do currículo atual, que pretendeu eliminar as heterogêneas performances
que ocorriam na organização curricular anterior. Ao tematizar, de um modo amplo, as questões da
Linguagem, da Tecnologia das Construções e da Complexidade Funcional, o currículo vigente na
FAU/UnB gerou uma problematização do ensino de projeto que pode ser considerada inegavelmente
mais avançada que a ocorrente na estrutura curricular anterior. Fica difícil “improvisar”, como aconte-
ce em disciplinas de projeto de ementa genérica, impondo-se um perfil de professor especialista na
disciplina – ou quase isso. A imprecisão metodológica, a fragilidade dos conhecimentos teóricos, a
falta de domínio de cada “campo de variáveis” problematizado pela disciplina de Projeto tematizada,
entre outras causas, podem tornar-se evidentes e revelar-se desastrosas nas diversas situações de
ensino que acabam por ser geradas.
O tradicional perfil do professor de Projeto como um “especialista em generalida-
des”, sobretudo aquele professor-arquiteto que divide a atuação no magistério com a adminis-
tração de seu escritório particular (ou seja, sem tempo para a pesquisa, para o aperfeiçoamento
como profissional do ensino, para a extensão universitária, para a orientação dos estudantes,
etc.), pode-se tornar insustentável, caso se deseje atingir níveis aceitáveis de qualidade de
ensino nessas disciplinas, com a especificidade descrita no currículo vigente na FAU/UnB. Ou
simplesmente sustentável, caso não haja uma solução exigente e contínua de “controle de qua-
lidade” (necessária a qualquer atividade), adequada a essa organização curricular. São
especificidades que geram especificidades e exigências que acarretam exigências, como o custo
de uma organização curricular mais avançada, ainda que num sentido estrito, como se deseja
demonstrar. A exigência de qualificação do professor em um patamar-acima-do-generalista não
é despropositada, sobretudo se a administração do currículo é acompanhada pelo aperfeiçoa-
mento docente, e se a dedicação exclusiva não é excludente da prática profissional (na forma
de extensão universitária).
As disciplinas de Projeto: tronco e membros
A tematização das questões da Linguagem, da Tecnologia das Construções e da Com-
plexidade Funcional gera ainda uma outra série de problemas, tal o seu impacto na concepção geral
do curso de graduação: essa seqüência implica uma densa coordenação e aplicação de informa-
ções “oriundas de/sediadas em” outras disciplinas curriculares, que, em alguns casos, são seus
requisitos necessários. Aí se acha a principal contradição entre a estrutura departamental e a estrutu-
ra curricular existentes neste momento, na FAU/UnB: os departamentos tendem claramente à
estanquidade e ao drift disciplinar (como continentes que se distanciam, alheados), descoordenados
e sem o estabelecimento de co-participações nas disciplinas de Projeto. Essas duas estruturas foram
implantadas com a destruição de um princípio básico da organização de cursos de graduação em
Arquitetura e Urbanismo: as disciplinas curriculares de Projeto devem constituir o “tronco” desses
cursos, dão sentido ao conjunto das demais disciplinas – que, por sua vez, organizam-se internamen-
te para a compreensão crítica, interdisciplinar e fundamentada nessas outras áreas disciplinares da
história, das tecnologias, das ciências sociais, etc., no ensino e aprendizado de projeto. Para que
71
72 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
essas duas estruturas tenham um mínimo de consistência na operação do curso, é necessário um
esforço de colaboração sem precedentes – se consideramos a organização departamental anterior,
centrada nas áreas de aplicação da arquitetura e do urbanismo. Nesse sentido, é previsível que o
“difícil” currículo atual mude, adaptando-se aos interesses existentes no alheamento departamental
em andamento – a não ser que os evidentes problemas de gestão dessa contradição se mante-
nham despercebidos ou tacitamente tolerados.
A tematização das questões da Linguagem, da Tecnologia das Construções e a Com-
plexidade Funcional, no currículo vigente, paradoxalmente embotaram a discussão conceitual
do problemas de ensino, da profissão e da própria disciplina da Arquitetura, pretensamente
resolvidos pelo elevado grau de especificação das disciplinas curriculares. A tematização ele-
vou o nível do problema de ensino acima da capacidade demonstrada pela própria escola de
discutí-lo. Criou uma sensação de saciedade e estupefação, em que a problematização tradici-
onal (especialmente aquela endereçada ao “perfil do arquiteto que formamos” ou aquela da
“postura do arquiteto perante a sociedade”) foi tragada pelas exigências dessa nova didática.
Ficou fora de lugar essa problematização ordinária e retórica, e é com grande esforço que se
inicia a reflexão sobre os novos problemas colocados. Contudo, a discussão conceitual neces-
sária – exigida pelas informações/transformações com as quais a realidade externa bombardeia
seguidamente a academia – não está, de forma alguma, “resolvida” ou encaminhada por essa
estrutura curricular. A abordagem temática acaba se realizando como um seriado de aborda-
gens orientadas por problemas específicos e alheados entre si.
Um novo paradoxo se mostra: a abordagem temática, ao abrir alguns problemas específi-
cos em sua especificidade, torna-os quase intransponíveis e não apresenta a possibilidade de resolver
os problemas que ela própria cria. Uma abordagem orientada por problemas (uma outra apresentação
do que significa “tematizar”) parte de uma visão congenitamente adaptativa, radicalmente dialética, ca-
paz de mover-se com agilidade em meio ao real, à coisa da arquitetura e do urbanismo. A intrigante
paralisia da discussão conceitual afeta tanto as relações entre o tronco de Projeto com as demais disci-
plinas quanto oblitera a continuidade do trabalho didático entre as próprias disciplinas desse tronco.
Como exemplo, é notável o total desaparecimento da discussão acerca da abordagem de temas co-
muns ao conjunto de disciplinas de Projeto – num encaminhamento que parecia ser mais facilitado
quando as disciplinas de Projeto se ofereciam num formato mais flexível. A abordagem orientada por
problemas apresenta o risco (o que já ocorre) de atomizar, dividir, setorizar e tornar pouco flexível tanto o
conjunto de disciplinas do tronco de Projeto quanto cada uma dessas disciplinas.
A própria seqüência dos temas não deve ser esquecida: algo como uma “hipótese didáti-
ca” presente no currículo vigente parece consistir na crença de que a capacitação para o desenvolvi-
mento de anteprojetos de edifícios complexos compreende automaticamente a capacitação para o de-
senvolvimento de pequenas tipologias. Nem isso é verdadeiro, como há ainda outros requisitos para o
aprendizado de projeto, na integração dos conhecimentos necessários (tecnológicos, digamos, e teóri-
cos) ao desenvolvimento pleno de projetos de arquitetura. A seqüência dos temas é uma possível inter-
pretação do grau de dificuldade das abordagens de projeto – o que é contestável. Não há dúvidas do
grau de dificuldade colocado pela proposta de uma disciplina como o “Projeto Arquitetônico de Lingua-
gem e Expressão”, ao estudante de arquitetura. Particularmente, a questão da linguagem em arquitetura
implica acepção de complexidade mais sofisticada que a acepção da “complexidade funcional”. No
entanto, a disciplina encarregada da discussão da “complexidade funcional” coroa a seqüência de pro-
jeto arquitetônico – sendo a única que apresenta manifestamente essa pretensão à “complexidade”.
Pela maturidade necessária ao seu pleno aproveitamento, Linguagem e Expressão poderia ser perfeita-
mente o “coroamento” da seqüência básica de ateliês de ensino. Mas esse novo seqüenciamento tam-
bém pode ser criticado, etc. Todo esse seqüenciamento é ambíguo, e seus núcleos temáticos podem ser
qualificados em um número enorme de modos.
A questão é: qualquer que seja a estrutura tematizada, tematizar especificadamente
torna a aplicação do currículo de graduação um trabalho de gerenciamento cuidadoso, envol-
vendo e redirecionando as abordagens das disciplinas das áreas marcadamente teóricas e
tecnológicas, atingindo todas as áreas departamentais. Esse gerenciamento é viável? Em que
medida depende da existência de docentes especialmente capacitados? Em que medida de-
72
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 73
pende da manutenção de um notável padrão de atividades da instituição de ensino, que envol-
va o continuado resgate da unidade disciplinar e de formação profissional? A tematização
especificada exige, em sua aplicação, um trabalho de auditoria do currículo, tal como é aplica-
do, diante de alguns objetivos mínimos desenhados para a formação do arquiteto, pois os ris-
cos de inadequada aplicação e perda de qualidade são maiores que os existentes naqueles
currículos menos específicos.
Tematização específica x tematização genérica
Finalmente, em favor da tematização do ensino de Projeto na graduação, deve ser colo-
cado, pelo menos, um argumento: ao definir uma seqüência de temas para as disciplinas, esse tipo
de currículo assegura um mínimo de constância nos conteúdos da formação. O modelo de ensino de
Projeto em que as disciplinas se articulam pela “complexidade funcional crescente” (nos projetos
iniciais, objetos de programas simplificados; nos projetos finais, edifícios de mais complexidade e
introdução ao urbanismo), e por outros crescendos de complexidade (relacionados ao experimento
da linguagem, ao uso de tecnologias), mas que não geram referências temáticas precisas, é ainda
menos criador de tensões que possam ser usadas a favor da problematização da formação do arqui-
teto. Os currículos tematizadores geram semi-especializações dentro de um curso de formação ge-
nérica, e necessitam de professores em vias de especializar-se ou plenamente especializados em
determinadas disciplinas. Os currículos genéricos, dirigidos por algum sentido de complexidade cres-
cente, têm o maior risco da imprecisão, e de não forçar o conjunto de professores de projeto a definir-
se como equipe que deve forjar um projeto de ensino claro – com respeito às relações entre as
disciplinas e às formas de complementação que os recortes de abordagem das disciplinas temáticas
exigem. De qualquer modo, é evidente que um mesmo currículo pode ser interpretado de diferentes
maneiras, e que a prática curricular, a execução do currículo, acaba por se revelar ainda mais diversa
do que as formulações que possam ser exercitadas. Há um desafio na coordenação dessa execu-
ção, em promover, em quaisquer dessas estruturas curriculares, a formação da equipe de ensino de
Projeto (que tem o sentido mínimo da partilha de objetivos acadêmicos coordenados entre os ateliês
de ensino), com os objetivos de continuadamente atualizar-se e promover a avaliação crítica de seus
trabalhos e dos resultados atingidos pela escola.
O trabalho dos professores Ari Vicente Fernandes e José Roberto Merlin, da PUCCAMP,
apresenta uma interessante crítica à estrutura curricular da graduação em Arquitetura e Urbanismo,
no que diz respeito ao papel central da (e ao modo como é compreendida a) disciplina de Projeto:
Todo o debate sobre os currículos e as práticas pedagógicas dos cursos de arquitetura e urbanismo
circula ao redor do projeto. No entanto é difícil definir projeto em arquitetura e distinguir entre suas
práticas correntes na profissão e no ensino. Essa é uma das questões não resolvidas desde o início do
movimento moderno e do surgimento das primeiras escolas a ele relacionadas. Um breve histórico dos
“modelos” adotados no Brasil e de suas principais vertentes neste século revela o papel central repre-
sentado pelo projeto e, ao mesmo tempo, um certo desconhecimento de suas características didáticas.
Examinam-se alguns desses “modelos” que adotaram o “ateliê de projeto” como locus do processo
educacional e seus resultados concretos. A atual conjuntura é caracterizada por uma crise no ensino/
aprendizado do projeto, cujos contornos procura-se identificar. O projeto, na sua concepção modernis-
ta, não chegou aos currículos das FAUs tão rapidamente quanto a sua prática generalizou-se desde os
anos 30. Essa defasagem explica, em parte, a instabilidade, os “altos e baixos” que o projeto – enquanto
prática pedagógica – tem sofrido nas últimas décadas (Fernandes, Merlin, 1995, p. 29).
O tema da complexidade
O que é complexo tornou-se objeto de impressionante especulação neste final de sécu-
lo. Para muitos de nós, arquitetos, ainda não tem despertado interesse o surgimento do que se tem
73
74 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
chamado “a ciência da complexidade”, um imenso agregado de conhecimentos firmado desde áre-
as tão diversas quanto a Psicologia e a Matemática quanto a Informática e as Ciências Políticas. No
centro desse processo de formação de uma ciência de esquisita multidisciplinaridade, está o compu-
tador, como meio para a realização de descobertas somente possíveis quando se associam massas
descomunais de informação. De um modo simplista, a ciência da complexidade estuda o surgimento
da ordem onde menos se espera que apareça, onde logicamente deveria haver a mais completa
desordem e degeneração dos ordenamentos mais estáveis e (aparentemente) completos. Como a
vida, um dos temas da complexidade, que “emerge e evolui” desde improváveis elementos materiais,
e passa a gerar uma extraordinária cadeia de acontecimentos ainda mais improváveis, desde o pon-
to em que parece surgir. O caos é o conceito central dessa nova ciência, e por “caos” entenda-se
uma forma de ordem, presente em fenômenos tão aleatórios quanto os ciclos de carestia ou os
processos de urbanização. Sua geometria é dita fractal, uma “linguagem para falar de nuvens”, como
a definiu Benoît Mandelbrot, seu criador.
O arquiteto tem significativa intuição (que é intencionalmente treinada ou é esperada) acer-
ca de algumas ordens de complexidade, e sentir-se-ia à vontade numa discussão acerca da recém-
criada ciência da complexidade: as propriedades “emergentes” que ocorrem na organização do espaço
habitado, desde a escala pessoal à escala regional, são estudadas profissionalmente há pelo menos um
século, e na formação de todos os arquitetos, há pelo menos cinqüenta anos.
Peter Coveney e Roger Highfield, no livro Frontiers of Complexity: the Search of Order
in a Chaotic World (1995), em que oferecem um abrangente painel dos estudos correntes sobre
o assunto da complexidade (e em que o computador é personagem central, como máquina que
permitiria ao seu operador uma outra forma de inteligir, pela contagem das coisas, pelo
processamento de dados em larga escala e grande velocidade), dão uma definição preliminar
do que seja a complexidade-ciência, em que se pode incluir, é evidente, a escala do homem e
do ambiente criado pelo homem: “complexidade é o estudo do comportamento de coleções
macroscópicas de unidades tais que são capazes de evolver no tempo” (p. 7). Nessa definição
deve chamar mais a nossa atenção a particularidade dessa capacidade de evolver no tempo
que o comportamento das macrocoleções de coisas: a capacidade de evolver no tempo é con-
dição para que haja comportamento, e isso não implica, a princípio, a formação de coleções ou
o que o valha. Se para Conveney e Highfield é importante esclarecer que a complexidade so-
mente é possível em “coleções que possam ser observadas a olho nu”, extensas em tempo e
dimensões macro, de outro ponto de vista, para os que estudam transformações no tempo –
num tempo histórico, de outra natureza – , a definição apropriada é invertida: as coisas, ao
evolver no tempo, criam complexidade, e isso é condição para que sejam estudadas [historica-
mente]. Isso faz pensar que a arquitetura não é uma metáfora ou imagem “congelada” do que
seja complexidade, como “estudo” ou como “grau de relação entre coisas distintas”, mas é
modo de gerar complexidade e pode ser associada a esse estudo como um dos campos de
relações (entre as coleções “macro”) que atuam estritamente no tempo histórico. Não havendo,
para a arquitetura, um tempo que possa ser universalizado, mas gerando complexidade que
somente tem sentido num determinado tempo histórico, torna-se difícil de sustentar qualquer
caráter “científico” que se queira atribuir ao conhecimento da arquitetura (pois descumpre um
dos requisitos para o conhecimento científico, a sua universalidade). As ordens de complexida-
de que são acessíveis ao arquiteto podem ser creditadas como ainda mais específicas: são
experimentadas pessoalmente mediante o projeto, o que faz desse personagem um ponto úni-
co de transição entre os vários “tempos” (das coisas, da sua história, e do modo como pensa,
as representa, as reelabora, etc.). Se colocarmos o conhecimento da arquitetura entre os dois
pólos da sua “objetividade” e da sua “subjetividade”, vemos que, ao contrário de se excluírem,
transitam, revezam-se, complementam-se, filtram-se através de duplos como o projeto e a obra,
a concepção e a execução, etc. Os cientistas da arquitetura, propositadamente ou não, confun-
dem o conhecimento da arquitetura (ou aquilo que se conhece enquanto se realiza, privilégio do
sujeito) com o conhecimento sobre a arquitetura (ou aquilo que se conhece realizado, privilégio
do objeto). Mesmo para as metodologias “não-científicas” da projetação arquitetônica, a exclu-
são de quais quer dos pólos não é aceitável.
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 75
Os conceitos de urbanização, de formação do lugar, ou mesmo de hierarquização
de sistemas, de proxemia, ekística, sintaxe e topocepção (entre outras extensões mais ou me-
nos bem-sucedidas, seletivamente absorvidas, pois parece haver iniciativas téoricas consisten-
tes, mas que não “colam” no ensino de arquitetura, são simplesmente ignoradas e pouco
freqüentemente entendidas) têm se incorporado aos estudos de formação do arquiteto, numa
forçosa tendência de elaboração/absorção de conhecimentos que amplifiquem sua capacida-
de de projetar espaços para as pessoas e, querendo ou não, com responsabilidades sobre
suas qualidades em muitos sentidos sem precedentes.
O uso indevido de analogias tem desempenhado, em teoria da arquitetura, o papel que deveria ser
atribuição desta, provocando uma generalizada confusão não só metodológica como disciplinar.
Isso não surpreende, tendo em vista que a arquitetura como área disciplinar é pré-paradigmática,
isto é, o resultado da evolução histórica do conjunto de conhecimentos pertinentes a ela não é
universalmente aceito por todos os membros da respectiva comunidade profissional nem transmiti-
do de forma, predominantemente, explícita (Krüger, 1986, p. 14).
Um sentido básico da complexidade é o de que as coisas se interligam, o mundo é
plexo, sejamos ou não leitores, autores ou não do que o mundo significa. Os cientistas do caos
afirmam, numa anedota para meteorologistas, que a interligação entre tudo é tal que “o bater das
asas de uma borboleta em Pequim pode ocasionar um tufão em Nova Iorque” (Gleick, 1989, p. 8).
O problema da complexidade não é, desse ponto de vista, apenas a identificação
do grau de elaboração das relações que podem ocorrer entre um punhado de aspectos da
realidade e nossos conceitos, mas o da descoberta dos caminhos que o mundo de relações
pode tomar – sobretudo quando nós tomamos alguma decisão e elaboramos complexidades.
Nessa perspectiva, simples não é o oposto de complexo, mas desconexo seria, alienado seria,
e ainda, se existisse algo assim na realidade, o definitivamente isolado. Há pelo menos uma
(bem sabida, pouco praticada) conseqüência ética a considerar: o que fazemos, o que decidi-
mos, não o fazemos ou decidimos em isolamento; à medida que aumenta a nossa capacidade
de alterar as relações preexistentes (na vida urbana, no mundo da sociedade humana, no clima,
no ambiente natural, etc.) aumenta a nossa responsabilidade sobre o que é alterado e o impac-
to sobre nós mesmos.
Complexidade e contradição
No início da década de 60, o arquiteto americano Robert Venturi publicou o livro Contradi-
ção e Complexidade em Arquitetura, em que defende o resgate de um sentido de complexidade ligado a
tradições que foram relegadas pelo movimento modernista, afirmando que a pluralidade de visões, a
disparidade das versões acerca do que a arquitetura representa foi eliminada em nome de um programa
simplista de atuação do arquiteto. As idéias de Venturi representam um momento em que se apresenta-
vam todas as fissuras disciplinares e ideológicas de uma situação-limite atingida pelo movimento moder-
no em arquitetura: nos últimos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), realizados
em Dubrovnik (1956) e Otterlo (1959), tornou-se patente que não era mais possível prosseguir com um
movimento renovador em arquitetura e urbanismo apenas com edifícios-slogans e princípios genéricos,
panfletários, e que geravam uma arquitetura autocentrada, purista e desconcertada das necessidades
das pessoas e dos problemas urbanos reais. Venturi é um dos raros arquitetos a levantar a discussão da
complexidade como qualidade da arquitetura, em sentidos que abrangiam largamente a discussão de
sua produção por arquitetos, mas que não excluíam as questões técnicas e práticas da complexidade
funcional. Para Montaner, Venturi indicou a
via híbrida, contraditória, complexa e ambígua, transgredindo alguns dos princípios sobre os quais
se fundou o racionalismo do movimento moderno, em especial, o princípio de coerência (Montaner,
1993, p. 153),
76 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
e cujas teses contemplavam:
a capacidade de os espaços e elementos portarem duplas, triplas funções, o estabelecimento de
uma ordem compositiva e a sua transgressão, o uso de convenções de um modo não convencional,
as suaves contradições adaptadas e as impactantes contradições justapostas por superposição,
inflexões e interpretações, uma relação não linear entre o exterior e o interior mediante uma comple-
xidade contida, os lugares intermediários (Montaner, 1993, p. 153).
Esse sentido de complexidade não se colocava tão palpável e apto à pronta absorção
quanto os princípios claramente prescritos por Le Corbusier ou Mies van der Rohe. Otília Arantes
(1993), ao se referir à Carta de Atenas, faz a seguinte crítica:
Seus princípios básicos para uma “cidade funcional” levavam em conta quatro funções básicas do homem:
morar, trabalhar, recrear-se e locomover-se. Hoje salta aos olhos a enormidade do programa, a abstração
que o comprometia pela raiz. Uma ordem construída idealmente, nivelando diferenças e condições históri-
cas das mais variadas, subordinada ao princípio do modelo único e com validade internacional (indepen-
dente do fuso horário ou geográfico do planeta), forçosamente substituía o homem concreto e as relações
reais na sociedade por uma organização espacial maximamente eficiente do ponto de vista do sistema
econômico geral. Ou seja, a funcionalidade arquitetônica que se tinha em vista dava forma ao mesmo
processo de abstração que se realizava através das relações sociais de produção no sistema capitalista. O
mecanismo totalizador encarnado pela cidade era o palco dessa abstração (Arantes, 1993, p. 55).
E adiante:
Torno a repetir que uma condenação global da modernidade arquitetônica não faz sentido, como
também não buscar ingenuamente circunstâncias atenuantes (ideais traídos, degradação ideológi-
ca, recuperação pelo “sistema”, erro categorial quanto à idéia de “função”, etc.). Ao contrário, o que
importa é discernir, na evolução de conjunto da arquitetura moderna, os elementos de um processo
que acabou por ultrapassá-lo – de um sistema de ilusões e compromissos, que são a marca de
nascença da ideologia (Arantes, 1993, p. 56).
Defender a ambigüidade é fatal quando se deseja definição, recortes indubitáveis, limites e
trincheiras de combate nos fronts das vanguardas artísticas, como ocorreu ao longo da década de 60. O
“programa de Venturi” dificilmente se traduziria em uma frente de obras e de reconstrução, mas tratava-
se (como até hoje se trata) de tempos velozes, em que a construção de sentidos para a arquitetura partia
de um grande conjunto de insatisfações e premências. Suas posições são vistas como ponto de partida
de desdobramentos que configurarão toda uma intrincada geração de “arquitetura pós-moderna”, que
se expande em direções diversas, desde as literalmente ecléticas e historicistas até conceitualismos que
caminham pari passu com o novo estruturalismo filosófico na década de 80.
Venturi, contudo, é extremamente genérico quanto a problemas concretos da prática pro-
fissional, como o que é colocado pela dimensão da complexidade funcional; a complexidade funcional
(ou “extensa”) também é ambígua, e pode se desdobrar a partir de qualquer objeto que consideremos,
como expandida desde sua finalidade e seu significado – o que é fazer muito pouco pela potencial
eclosão de sentidos que é gerada pelos novos programas usuários de tecnologias emergentes:
Em primeiro lugar, os meios de expressão da arquitetura devem ser reexaminados, se quisermos que se
expressem as perspectivas ampliadas de nossa arquitetura, assim como a complexidade de suas me-
tas. As formas simplificadas ou superficialmente complexas não funcionarão. Em vez disso, a variedade
inerente à ambigüidade da percepção visual deve ser, uma vez mais, reconhecida e explorada. Em
segundo lugar, as crescentes complexidades de nossos problemas funcionais também devem ser
reconhecidas. Refiro-me, é claro, àqueles programas, únicos em nosso tempo, que são complexos por
causa da sua extensão, como laboratórios de pesquisa, hospitais e, em especial, os enormes projetos
na escala do planejamento urbano e regional. Mas até a casa, simples em suas proporções, é comple-
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 77
xa na finalidade, se as ambigüidades da experiência contemporânea forem expressas. Esse contraste entre
os meios e os fins de um programa é significativo. Embora os meios envolvidos no programa de lançamento
de um foguete para a Lua, por exemplo, sejam quase infinitamente complexos, o objetivo é simples e
contém poucas contradições; embora os meios envolvidos no programa e na estrutura de edifícios sejam
muitíssimo mais simples e tecnologicamente menos sofisticados do que quase qualquer outro projeto de
engenharia, a finalidade é mais complexa e, com freqüência, inerentemente ambígua (Venturi, 1966, p. 8).
O sentido de ambigüidade em Venturi tem o sentido de riqueza de significado e tensão,
colocado com relação à experiência arquitetônica. Venturi critica a acepção de “certeza, clareza e
simplicidade”, que é declarada por arquitetos epígonos do movimento moderno – como Mies van der
Rohe ou Le Corbusier, que diz admirar (e de quem diz menosprezar o que escrevera). Complexidade
e Contradição em Arquitetura
2
é considerado, juntamente com Por uma Arquitetura, de Le Corbusier,
3
livro que representa uma mudança de paradigma acerca dos valores que presidem o projeto de
arquitetura e a valoração do que é arquitetura na perspectiva da produção contemporânea.
Contudo, ambos não esclarecem um ponto crucial: como, a partir de um, outro, qual-
quer quadro de valores (que enfatizem o direcionamento e/ou a abertura da leitura do objeto
arquitetônico, que enfatizem a invenção e/ou a tradição, etc.), se pode transformar determinados
valores estéticos em obra concreta… Qual é a conduta desses arquitetos pensadores quanto ao seu
processo de projetação, que poderia ser repalmilhado por qualquer outro arquiteto, pensador ou
não? Essa é a ambição essencial colocada à questão do método no projeto arquitetônico, fundamen-
tal para que a complexidade da arquitetura seja operada sem sua mistificação.
Venturi se torna referência para o sentido que a complexidade em arquitetura tem como
qualidade do fato arquitetônico; a partir desse ponto, é necessário fazer menção a linhas de trabalho
(que situamos a partir da década de 60, embora haja importantes desenvolvimentos anteriores no
âmbito dos CIAMs, etc.) em que a questão do método no projeto arquitetônico foi explorada em
direções que definiram boa parte dos conhecimentos empregados no campo do estudo das funções
complexas em arquitetura – ou que, pelo menos, essa linha de trabalho deve considerar.
Complexidade e metodologias de projeto
Ao longo da década de 60, um outro arquiteto investigador, Christopher Alexander (nas-
cido na Áustria, educado na Inglaterra, ex-professor em Berkeley), cria importantes referências para o
tema da complexidade – que não “objetualiza”, mas expõe através de métodos e categorias de
projetação obtidos pela aplicação dos conhecimentos oriundos de diversas áreas das ciências hu-
manas. Em especial, ressalta-se a sua discussão do jogo de contradições subjacente ao mais básico
quadro de requisitos qualificadores de um objeto arquitetônico (mantida no Ensaio sobre a Síntese da
Forma, de 1969), que importaria em possibilidades projetuais enormemente complexas, tanto pelas
formas particulares em que o equilíbrio desses eixos de valores, dessas axiologias, pode ser reco-
nhecido, quanto nos campos de possibilidades que se podem abrir a partir dessas realizações.
Em Alexander, a complexidade é tanto algo que se reconhece quanto algo que se ela-
bora, que pode ser racionalizada dentro de limites perfeitamente inteligíveis tanto para o arquiteto
quanto para o “usuário da arquitetura”, mas que implica a compreensão de realidades mais amplas
que as usualmente adotadas nos protocolos profissionais ordinários dos arquitetos. De acordo com
Alexander (no Ensaio sobre a Síntese da Forma),
em cada problema de projeto a tarefa do projetista é ajustar a forma às exigências do contexto, de tal
maneira que as tendências presentes nas relações espaço-comportamento não entrem em conflito
(Alexander, 1969, apud Krüger, 1986, p. 18).
2
Título original: Complexity and Contradiction in Architecture, publicado em 1966, pelo Museum of Modern Art, de Nova Iorque.
3
Título original: Vers une Architecture, publicado em 1923, e que consistia numa coletânea de artigos de Le Corbusier, por sua vez publicados na
revista que fundara em 1920, com Amédée Ozenfant, Le Sprit Nouveau.
78 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Mais que qualquer método específico que tenha proposto, importa, a nosso ver, na
contribuição de Alexander, a sua iniciativa de carrear para a explicação dos conceitos presentes na
projetação arquitetônica os conhecimentos concorrentes que as ciências humanas (em especial, as
ciências da automação) disponibilizam. Essa tendência é notável na Inglaterra, na década de 60,
onde se realizaram as históricas conferências sobre métodos de projeto, em Londres (1962),
Birmingham (1965) e Porstmouth (1967). Nesse contexto de intenso debate, de esforçada busca,
Cristopher Alexander destaca-se como fundador de abordagens que influenciarão os desenvolvi-
mentos de metodologias projetuais do edifício e do espaço urbano que hoje são o “estado da arte”
nos centros universitários de destaque. Deve-se considerar que muitas leituras são possíveis de sua
obra – uma advertência contra as leituras impacientes. Numa dessas leituras, interessará a utilização
de métodos matemáticos e computacionais para descrever padrões de comportamento e relações
espaciais. Por outro aspecto, os seus padrões de linguagem
4
não foram tão importantes quanto os
metapadrões visualizados, por exemplo, nos diagramas explicativos em malha (a cidade não é uma
árvore), nas matrizes de inter-relações (Chernayeff, Alexander, 1966) e grafos que estimularam vários
caminhos para pesquisas posteriores – ao sugerir diversas “camadas analíticas” que firmam declara-
ções sobre aspectos do projeto cujos elementos possuem aceitável/demonstrável vinculação.
De Alexander temos uma importante referência para a colocação do “problema do pro-
jeto”, pela análise e síntese de aspectos parciais e do todo (a construção, as condições de uso, as
linguagens de padrões). Desse ponto de vista, há elementos de seu trabalho que devem ser conside-
rados como pontos de partida para o desenvolvimento de instrumental didático para o ensino do
projeto arquitetônico de funções complexas.
As teses de Alexander influenciaram o importante centro de pesquisas Land Use and
Built Form Studies (atualmente Martin Centre, em homenagem a um de seus componentes, Sir
Leslie Martin), na Universidade de Cambridge, que desenvolveu estudos sistemáticos sobre a forma
construída, como o trabalho de Lionel March e Trace, The Land Use Performance of Selected Arrays
of Built Forms (1968).
Segundo Broadbent, os autores desse trabalho “partiram das premissas básicas de Le
Corbusier: os edifícios devem ser planejados de modo que, mesmo no pior dia do ano, no solstício de
inverno [crucial na faixa de latitude da Inglaterra], a luz do sol – na hipótese da ausência de luz
[improvável naquela data] – deveria penetrar por um mínimo de duas horas em cada sala de estar”.
Broadbent considera esse trabalho “o mais significativo trabalho de pesquisa já realizado sobre a
forma construída”, tendo-se estudado enorme volume de configurações e combinações em volume,
tendo-se sempre em vista o critério da penetração solar. Entretanto, como coloca Broadbent retros-
pectivamente, “até recentemente [1990] muito poucos arquitetos lançaram mão das oportunidades
oferecidas por esse estudo”.
Um outro extraordinário trabalho originado neste mesmo centro de estudos de Cambridge,
realizado por Nicholas Bullock, Peter Dickens e Philip Steadman, A Theoretical Basis for University
Planning, também de 1968, trabalhará com estatísticas da freqüência e tipo de utilização de espaços
para o planejamento de campi universitários. Sir Leslie Martin, em seu prefácio à obra, diz que:
a intenção final é mostrar, em relação às universidades, que todas as questões de população, de
área construída necessária, de seu uso efetivo através de cronogramas, dos diferentes padrões de
forma construída, das comunicações internas e entre tais unidades, bem como o efetivo uso de
terreno por elas, são questões relacionadas. O ponto de vista que embasa o trabalho é o de que
decisão alguma em qualquer desses fatores pode ser tomada isoladamente. Deve ser considerada
em relação a seu efeito no todo (Bullock, Dickens, Steadman, 1968, p. 1).
E ainda um outro notável subproduto do grupo vai consistir no “clássico” The Geometry
of Environment (1971), de Lionel March e Philip Steadman, obra em que o uso da matemática (em
4
No livro A Pattern Language : Towns,. Buildings, Construction, de 1977, que, segundo os autores, integra uma tríade com O Modo Intemporal de
Construir (1979) e Urbanismo e Participação: o Caso da Universidade de Oregon (1975).
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 79
ramos como a teoria “axiomática” dos conjuntos, heurística aplicada à probabilidade, elementos de
geometria combinatória, elementos de topologia e elementos de lógica – mas também as matrizes e
técnicas da pesquisa operacional) é feito com relação direta ao seus conceitos de “função espacial”
e de forma construída. Com o uso articulado da matemática, o projeto do espaço arquitetônico pare-
ce entrever sua entrada no reino das ciências – mas March e Steadman têm clareza quanto a seus
objetivos: buscam ampliar recursos, gerar subsídios para problemas determinados, recorrentes na
projetação arquitetônica. Chama-se a atenção para o modo cuidadoso com que apresentam suas
idéias sobre a aplicação de métodos matemáticos na arquitetura:
Nosso objetivo é duplo: um, auxiliar na eliminação do vazio entre as novas matemáticas e a velha
geração [de arquitetos] e, dois, sugerir ao jovem leitor (que talvez porte educação básica em ciênci-
as e matemática) que a arquitetura é excitante assunto – não se tratando totalmente de contemplar
velhas igrejas, ou de laboriosamente calcular as tensões em vigas ou as cargas em colunas. Espe-
ramos que este livro seja de algum valor, de várias maneiras, como introdução às modernas idéias
de forma arquitetônica e de organização espacial: nas escolas de arquitetura, planejamento e estu-
dos ambientais, subsidiando cursos que apliquem as novas metodologias matemáticas no projeto;
e na prática profissional, como estímulo para a reflexão e a pesquisa. Esperamos que a introdução
assim feita possa sugerir modos pelos quais a geometria moderna contribua para o progresso do
projeto arquitetônico, especialmente num momento em que o instrumental de projeto assistido por
computadores desenvolve-se tão rapidamente (March, Steadman, 1971, p. 7).
Yona Friedman, arquiteto naturalizado francês (nascido na Rússia) publicou no mesmo
ano de 1971 o livro Pour l’Architecture Scientifique, claramente influenciado pelas teses de Alexander
e pelo debate instaurado a partir do final dos anos 50, em torno dos muitos sentidos da crise da
modernidade arquitetônica – embora tenha conseguido escrever o livro inteiro sem citar uma só
precedência a seu pensamento. (Quase se crê que nada de interessante existira antes do arquiteto
Yona Friedman, e que ele cartesianamente “tira de si”, de seu poderoso intelecto, o argumento que
desenvolve para a prática de uma “arquitetura científica” – muito embora seja único, insólito, o tipo de
conversão que pretende fazer (aparentemente sozinho) em toda a disciplina da arquitetura. Há, con-
tudo, uma preocupação sua com o ensino de arquitetura e urbanismo que, a princípio, deve levar a
uma leitura mais paciente de seu cientificismo, e a incluí-lo numa comunidade de pensamento bem
mais ampla, que compartilha a crítica à ausência de método (no sentido didático) no ensino:
Examinemos a arquitetura dentro de sua nova significação: a construção de um repertório completo
de todas as soluções possíveis de um problema, com o auxílio de uma notação específica (seu
mapeamento), e a elaboração de um método que permita associar uma exigência a qualquer ele-
mento desse repertório. Isso dito, sucintamente, inverte completamente a velha imagem da profis-
são de arquiteto ou de urbanista, tal como é exercida até hoje. Para que se veja que mudanças se
pode ensaiar dentro da profissão, devemos examinar que bagagem é passada aos que a exercerão.
Nem na arquitetura nem no urbanismo existem hoje regras rigorosas que permitam uma predição
segura no que concerne a uma decisão qualquer. Dessa forma os dois profissionais [o arquiteto e o
urbanista] lançam mão de “truques” (como receitas). Essas receitas não são válidas para todos os
casos, e é muito difícil fazer distinção entre os casos em que a receita é válida e aqueles em que
não é. Essa observação implica que tais receitas não podem ser ensinadas sem embaraçosas
dificuldades (dado que não se fazem com regras facilmente generalizáveis), e não existe modo
algum de controle objetivo sobre como podem ser contextualizadas. Uma receita é, antes de tudo,
uma regra eminentemente “intuitiva”. Como poderiam as escolas [de arquitetura e urbanismo] fun-
cionar sobre o ensino de sistemas “eminentemente intuitivos”? O ensino é ministrado por mestres,
que possuem suas receitas pessoais, geralmente incomunicáveis. Resulta que não as podem ver-
dadeiramente ensinar, ainda que as possam (como seja) utilizar. Os mestres são cercados de apren-
dizes, que acham seus meios de imitar o modo de operar de seus mestres, esperando assim adqui-
rir, de um modo ou de outro, sua maneira (tour de main). Chamo aprendizáveis a tais disciplinas.
80 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Dentro das disciplinas aprendizáveis, a qualidade do estudante depende essencialmente da quali-
dade ou da personalidade do mestre.
Mas existem outras disciplinas, em sua maior parte chamadas ciências, nas quais (pelo menos em
seus aspectos de maior importância) regras rigorosas são estabelecidas, válidas para conjuntos de
situações bem definidas. Todo o sistema de regras dessas disciplinas é tão generalizável quanto
possível. As escolas a que pertencem tais disciplinas procedem à vulgarização dessas regras, con-
vertidas em material para a divulgação pública (sob a forma de livros ou de filmes, por exemplo).
Toda pessoa que compreenda tais regras pode aplicá-las ela mesma, sem a necessidade de imitar
os mestres e, uma vez compreendidas, pode comunicá-las a qualquer outra pessoa. Tais regras são
enunciadas de um modo tal que, não importando a situação, pode-se ter certeza se são aplicáveis
ou não. Chamo ensináveis a tais disciplinas. Dentro das disciplinas ensináveis, a personalidade do
que ensina não tem a menor influência. Assim colocado, as atividades do arquiteto e do urbanista
podem transformar-se desde o seu estado de disciplina aprendizável até seu novo estado de uma
ciência ensinável, como exporemos a seguir (Friedman, 1971, p. 24-26).
Essas declarações afirmativas da necessidade de uma ciência positiva da arquitetura e
do urbanismo surgem, em boa parte, como um denso desdobramento da influência estruturalista
sobre as ciências humanas. Otília Arantes comenta o curso coordenado por Samoná em Veneza, em
1966, do qual participaram Aldo Rossi, Gregotti, Tafuri, Canela, Aymonino, Semerani e Purini, intitulado
“Teoria do Projetar Arquitetônico” – posteriormente publicado como Teoria de la Proyectación
Arquitectónica, pela Gilli, também em 1971, de modo a expor o que se passava naquele período entre
os jovens arquitetos do continente europeu:
A terminologia do curso traz a marca da época. A começar pela ambição de cientificidade que
dominava as ciências humanas então promovidas pela voga estruturalista. É preciso em conse-
qüência rever os termos daquele debate sobre a atividade projetual dando o devido desconto do
preço pago às idéias dominantes na inteligência do tempo. Assim transcrita, a cidade passava a
ser vista como uma rede de relações diacrônicas e sincrônicas, onde o lugar aparece neste corte
estrutural de tempo e espaço, condensação simultânea de vários tempos e valores históricos.
Daí a discussão passava inevitavelmente à questão tipológica, ou seja, às invariantes arquitetônicas
ao longo da história e suas relações com a morfologia urbana, numa palavra, com a configuração
do lugar, o qual, embora represente um corte horizontal no processo de transformação da cida-
de, como se fosse um eixo sintagmático a articular a sintaxe dos objetos em questão, também é
paradigmático: organiza estas relações dando-lhes sentido (Arantes, 1993, p. 127).
Metodologias no planejamento: as críticas necessárias às referências
que devem – e às que não devem – ser lembradas
A seqüência dos estudos que se inicia nos anos 60 vão, contudo, desenvolver ampla
base para o projeto arquitetônico e urbano das décadas subseqüentes – sobretudo quando se ampli-
am as exigências sobre o desempenho do espaço construído (em termos de sua adequação ambiental,
sua segurança e controle) e dos custos da construção. É sobretudo o conjunto de premências das
políticas públicas de gestão e planejamento das cidades que demanda metodologias que articulam
técnicas precisas que possam orientar os programas de construção/renovação/manutenção dos
espaços construídos. Parte das metodologias desenvolvidas ao longo de, aproximadamente, dois
séculos de planejamento urbano nas sociedades industrializadas (e arquitetônico, sobretudo no caso
dos edifícios de uso coletivo e das habitações populares) equacionam elementos quantificáveis da
construção, como a relação entre a forma construída e os custos a ela associados (custo energético,
custo das instalações prediais, custo de construção e manutenção, etc.), elementos quantificáveis de
uso (no zoneamento), sendo demandados e utilizados por setores governamentais (e pelos constru-
tores e industrialistas da construção civil). Sua aplicação na racionalização de programas construti-
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 81
vos extensos, como no caso das políticas habitacionais de vários países – em que incidiram, em
diversos episódios, exigências de estudos quantitativos, feitas por agências de fomento internacional,
geraram trabalhos que não podem ser omitidos em nossos cursos de projeto de urbanismo e de
arquitetura – e tampouco serem ensinados de forma acrítica.
Imensa quantidade de aportes derivados de trabalhos como os do Land Use and Built
Form Studies rechearam os desvãos do planejamento urbano e de programas de construção gover-
namentais ao longo das décadas de 70 e 80, numa tendência que também foi expressiva no Brasil
“do milagre econômico” (e do Banco Nacional da Habitação, dos planos diretores de cidades e dos
campi no estilo MEC-Usaid, etc.), multiplicando-se os escritórios de consultoria – e lobbies – de
variado coturno no período da ditadura militar. Brasília, assim como outros grandes centros urbanos,
foi palco dessa pletora de metodólogos-tecnocratas e de planos fermentados em gabinetes fecha-
dos – situações de caricatura, mas que ainda são repetidas, neste momento; nos “anos de chum-
bo”, no isolamento da Capital Federal, respirava-se a centralização planificadora, tecnicista, como
em tempo algum, neste país. É inegável que os governos desse período da história brasileira se
valeram da capacidade técnica dos profissionais do planejamento em muitas áreas de governo, e
há trabalhos notáveis que devem ser estudados. Uma ditadura não perdura 21 anos sem colabora-
ção técnica, mas é lamentável que se haja associado a necessidade (e a exeqüibilidade) da prática
de várias alternativas de planejamento com a ocorrência de “regimes fortes”, ditatoriais, e com
perda de liberdade política.
A ampla área do planejamento governamental usa e necessita de metodologias para a
construção de instrumentos de ação e controle do conjunto de setores do governo, e seu próprio.
Planejamento e execução de ações governamentais bem definidas são fundamentais para a demo-
cracia – de onde se conclui, sucintamente, a ambigüidade instrumental do planejamento, ou,
opostamente, de que os objetivos políticos são sua natureza (inclusive a nova e liberal postura de não
planejar). Deve-se registrar que, com a exceção das áreas de pós-graduação em planejamento urba-
no, economia e administração, entre outras relacionadas, e ainda dos setores de intelligentsia da
área do planejamento governamental, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o
Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, pouca crítica tem
sido acumulada e articulada sobre as metodologias de planejamento governamental – e de modo
que impacte o ensino de graduação. O ensino de arquitetura (e de urbanismo, num vazio mais grave)
pouco tem se beneficiado da necessária crítica a essa expertise, crítica fundamental para a democra-
tização da prática profissional em setores governamentais de (potencialmente) grande importância
para a mudança social. Palavras da época.
A pretensão de elaboração de métodos totais, que apreendessem todo o processo de
projetação (não apenas explicá-lo, o que já é tarefa tortuosa, mas parametrizá-lo rigorosamente),
subjaz, por exemplo, no volume Metodologias – Encuesta sobre la Metodologia del Proyecto de
Arquitectura. Análisis, Interpretación y Conclusiones de la Encuesta (1975), produto do XII Congresso
Mundial da União Internacional dos Arquitetos (UIA). É notável a necessidade, à época, de obter-se
um mínimo de padronização dentre as visões e experimentos relacionados aos sistemas de trabalho
de arquitetos e planejadores – sobretudo aqueles sistemas formalmente endossados por governos.
Há algo de uma verdadeira “Babel do Método” nesse documento da UIA, fazendo concluir sobre a
real dificuldade de se estabelecer protocolos profissionais que atinjam todo o potencial de atuação
do arquiteto e do urbanista, apesar do redundante consenso sobre a organização “essencial” do
trabalho do arquiteto. No caso brasileiro, a “babel” exemplifica-se por documentos como o Roteiro
para o Desenvolvimento do Projeto de Arquitetura da Edificação, aprovado na 77ª Reunião do Conse-
lho Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), realizado em Salvador. Sua publicação foi feita
sob o patrocínio do Instituto, durante a gestão 1992-1993.
Essa ampla corrente de instrumentação/processualização da arquitetura (ou do plane-
jamento físico, de forma mais ampla), sobretudo na área pública (escritórios de arquitetura e consultoria
têm desenvolvido abordagens que, em muitos casos, “alimentam” o setor público, sobretudo nos
campos competitivos dos grandes projetos de aeroportos e de equipamentos públicos de porte,
assim como nos concursos públicos de arquitetura realizados em todo o mundo, no período, mas
que dificilmente consistiram na preocupação com metodologias de trabalho que impactassem a
82 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
prática profissional – ponto prioritário da pauta privada dos escritórios) tem como pressuposto a
possibilidade de efetivamente tudo se poder prever e planejar.
A principal frente crítica a essa atitude é, em grande parte, atribuída ao trabalho de Jane
Jacobs, que é referência para o que se articula como uma ampla frente crítica ao planejamento
urbano modernista, especialmente no momento em que o ordenamento urbano realizado nas cida-
des americanas mostra seu impacto sobre a qualidade de vida nas cidades. O estudo de Jacobs
(1961), The Death and Life of Great American Cities: the Failure of Urban Planning, é anterior ao
Complexity and Contradiction in Architecture, de Venturi (1966) e irradia referências para trabalhos
como God’s Own Junkyard: the Planned Deterioration of America’s Landscape, de Peter Blake (1964);
o de Christopher Alexander (como reconhece no ensaio A City is not a Tree, de 1965); o de Nicholas
Taylor (The Village in the City, de 1973); o de Oscar Newmann (Defensible Space: People and Design
in the Violent City, de 1972); o de Alice Coleman (Utopia on Trial, de 1985), e pode ter suas próprias
referências traçadas a partir de Patrick Geddes (City Development, de 1904, e Cities in Evolution, de
1915), bem como de Lewis Mumford (The Culture of the Cities, de 1938; The Condition of Man, de
1935; The Conduct of Life, de 1951; The Transformations of Man, de 1956; e The City in History, de
1961, entre outras obras, onde se sente o fio condutor para Jacobs) e Kevin Lynch (The Image of the
City, de 1960), entre outros.
Importantes vertentes críticas, com grande variedade de objetivos, e mais ou menos
instrumentadas, desenvolvem, a partir da década de 60, estudos sobre aspectos sociológicos, geo-
gráficos, antropológicos, políticos, econômicos, entre outros, do processo de urbanização, da vida
nas cidades, do impacto dos programas de desenvolvimento e projeto urbano.
Um novo sentido de complexidade na arquitetura emerge a partir da necessidade
de convergência de vários campos disciplinares para que se compreenda o processo, o impac-
to e as conseqüências da urbanização nas suas várias escalas. As metodologias “puras” da
projetação, restritas aos aspectos da conceptualização de objetos isolados, mostram-se clara-
mente insuficientes/alienadas, se não forem articuladas ao completo ciclo da produção (e do
“consumo”) do espaço urbano.
Deve-se examinar com cuidado cada realização, pois por “metodologia” de projeto tem-
se identificado muitas coisas diferentes, especialmente quanto a seus objetivos e contextos de apli-
cação. Para o campo do planejamento urbano, a questão do método é aspecto “disciplinar” estabe-
lecido – ou seja, não há estranhamento quanto ao fato de se coordenar enormes massas de informa-
ções de diversas naturezas e segundo teorias estabelecidas, desde a Geografia, a Sociologia, a
Ecologia, a Ciência Política, etc. Pode-se discordar de muitas das abordagens, mas é impossível (ou
inaceitável) realmente superá-las sem conhecê-las e realizar sua crítica diante de seus resultados (e
perdoem-me os venerandos gregos, bem como os modernos fundamentalistas das diversas seitas
universitárias, mas o ostracismo sempre será uma forma bárbara e autoritária de resolver divergênci-
as sobre as questões do conhecimento).
Ainda há muito a fazer com respeito à “arqueologia” dessas idéias, abordadas de forma
superficial em nossos manuais de história da arquitetura e urbanismo. Mesmo as “histórias críticas”
recentes ainda insistem em discursos sobre a arquitetura como o fez Pevsner, buscando seus heróis
e articulações imaginosas entre realizações particulares. Esse tipo de discurso histórico heróico e
mitificador, no momento em que nos encontramos, “às portas do século XXI”, como se vai dizendo, é
de crescente irrealismo diante da prática profissional real. Acerca do caráter mitificador do arquiteto,
de determinada historiografia de nossa profissão, recomendamos a leitura do artigo da professora
Sylvia Ficher (1995).
A frustração que é alimentada por essa visão mítica do arquiteto (reinventada por uma
leitura do modernismo que é tão explicativa e atraente quanto a de Vasari sobre o Renascimento, na
obra Le Vite de’ più Eccelenti Architetti, Pittori et Scultori Italiani, de 1550) também tende a alimentar
um complexo de emoções que é ingênuo quanto a diversas outras frentes críticas movidas pelos
arquitetos, sobretudo a partir do estágio final dos CIAMs, após a Segunda Guerra Mundial. Arquitetos
definidamente alinhados com as esquerdas partidária e intelectual promoveram episódios de revisão
do papel da profissão, que dificilmente podem ser associados à tradição das beaux-arts (ou que
delas partam, como Artigas, Ferro, Bicca e, em outras experiências, Svensson e Graeff, entre outros,
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 83
no Brasil), em discursos categoricamente marxistas. A crítica pelo viés das beaux-arts é ainda impor-
tante, dada a continuidade da postura carismática, aristocrática, alheia aos fatos da construção e aos
fatos da vida real existentes nos modelos de ensino de nossas escolas de arquitetura. Contudo, de
modo algum é inesperado que os jovens arquitetos – de todas as idades – busquem, como buscam,
em teorias críticas de outras áreas de conhecimento (inclusive nos ramos das ciências), as suas
referências para compreender e enunciar os problemas a serem solucionados pela prática da profis-
são – e os problemas existentes na profissão. É ainda significativa a necessidade de incorporarmos
as discussões que as abordagens ambientalistas, contraculturais, holísticas, etc., trazem como alter-
nativas para a formação (ou pelo menos para a in-formação) do arquiteto. Nossos preconceitos e
modelos ainda estão tão arraigados, que a mera introdução de uma disciplina como Arquitetura de
Interiores (que é palavra-chave nas atribuições profissionais do arquiteto, na legislação brasileira),
apesar de sua candura e necessidade – pois é campo ativo e praticado por muitos arquitetos – , sofre
resistência e não é ministrada direta e explicitadamente na maioria de nossas escolas.
Os arquitetos modernos e pós-modernos têm em comum o gosto por saber quem são
seus heróis, mas, se isso foi realmente importante no passado recente, afirmamos que é cada vez
menos esclarecedor do amplo painel da contribuição – ou do alheamento – da arquitetura às véspe-
ras do novo milênio
Provocação: os nossos historiadores deveriam recomeçar suas reflexões criativamente,
como a partir de inusitado dado: nunca houve tantos arquitetos no mundo, que está a produzir mais,
cada vez mais arquitetos: que mundo estão produzindo?
Metodologias que partam do (e levem ao) conhecimento
Métodos totalizantes na projetação geraram imensa frustração acerca da geração e
aplicação de métodos projetuais, de modo geral. Há, sem dúvida, carga pejorativa na pretensão de
trabalhar metodologias, sobretudo se estas se aproximam demasiadamente da área sagrada da con-
cepção, da definição do partido arquitetônico. Tolera-se o desenvolvimento e a aplicação de
metodologias em áreas auxiliares ao projeto, que gerem informações úteis como insumo para a
caixa-preta da concepção arquitetônica. Esse é o caso de importante área de pesquisa e aplicação
da Avaliação de Pós-Ocupação (APO), que representa enfoque fundamental para o ensino e a práti-
ca profissionais, podendo assumir amplo caráter multidisciplinar. Em procedimentos mais simplifica-
dos, pode-se traduzir a APO em estudos de caso sobre situações espacialmente configuradas ou,
mais definidamente, edifícios e conjuntos arquitetônicos existentes e, seletivamente, aplicar suas
técnicas de levantamento e processamento de informações (o que não exclui o tratamento estatístico
elementar da massa de dados), bem como de algumas classes de conclusões que o estudo de caso
efetivamente produz.
Os estudos de caso são um recurso fundamental para o ensino de projeto arquitetônico.
Em tese, pode-se “estudar casos” (determinados edifícios, determinadas frações urbanas, determi-
nados espaços construídos, etc.) sem a intenção de sua aplicação imediata no processo de projetação.
O caso relaciona-se diretamente a diversos aspectos do problema histórico, técnico, de linguagem,
de uso, de conforto ambiental, etc., do espaço construído, e os métodos que desenvolvemos para
estudar casos ainda são dominantemente descritivos e analíticos. Como descrição e análise, os
estudos de caso são geradores das referências empíricas melhor habilitadas à geração de parâmetros
físico-funcionais (a serem aplicados na programação arquitetônica, no dimensionamento de espaços
e elementos da construção, etc.).
Essa questão específica de método representa uma das mais importantes articulações
para as teorias da projetação, pois a interpretação da proposta de projeto nessa realidade imediata –
e não apenas o seu estudo quantitativo, a descrição exaustiva do espaço contruído em termos funci-
onais e/ou como um objeto físico “passivo” – é exercício equivalente ao que ocorre no processo de
concepção da própria proposta (!). É descabido pensar que o intérprete (ou, de outro modo, o crítico)
projete ao interpretar, ou que reconstrua a mente do projetista, no momento em que concebeu a
solução: o caminho do estudo de caso é o inverso do da projetação, mas ambos os processos têm
84 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
em comum tanto a análise quanto a síntese compreensiva do espaço construído. O estudo de caso
como exercício de interpretação teria como seu objetivo encontrar, “a meio caminho”, o que se pode
chamar a caixa-preta conceitual do projeto. Ou, em outras palavras, investigar o conjunto de princípi-
os de arquitetura que foram empregados na concepção de uma obra existente.
Metodólogos tendem a se referir pejorativamente à caixa-preta conceitual. É a instância
subjetiva da concepção, todo o interlúdio mental que gera as decisões definidoras do projeto. Ela
existe porque há soluções arquitetônicas inexplicáveis (ou ainda inexplicáveis) pelo uso de metodologias
formais e explicitadoras de algum “algoritmo mental” que as gere, tal a qualidade-como-arquitetura
atribuída a determinadas soluções. Tanto o processo conceitual é misterioso, se oculta numa “caixa-
preta”, quanto também é misterioso o processo crítico, de avaliação e julgamento de obras existen-
tes, e oculto num outro tipo de caixa-preta.
Uma importante minoria de teóricos do projeto, principalmente Osborn (1963), Gordon (1961), Matchett
(1968) e Broadbent (1966) sugere que a parte mais valiosa do processo de projeto ocorra na mente
do projetista e, parcialmente, fora de seu controle consciente. Apesar de sua proposta “irracional”, o
ponto de vista da caixa-preta pode ser expresso com clareza em termos psicológicos ou cibernéticos:
podemos dizer que o projetista humano, tal qual outros animais, é capaz de dar respostas ou outputs
em que tem confiança, e que freqüentemente têm êxito, sem que se possa explicar como foram
obtidos. Quando os mistérios da criatividade são expressos dessa maneira, podemos intuir que
somente são casos especiais de nossa igualmente misteriosa natureza, que produz muitos outputs
ou ações sem uma possível explicação (…) a visão criativa, o projetista como um mago, é uma
descrição poética de qualquer dimensão subjacente às ações humanas ou de outros animais que
possuam um sistema nervoso (…) assim, se torna racional crer que as ações hábeis são inconsci-
entemente controladas, e é irracional crer que o projeto possa ter uma explicação completamente
racional (Jones, 1976, p. 40).
Parece um pecado original de determinadas abordagens metodológicas o seu
cartesianismo – no sentido de que Descartes enunciou um projeto epistemológico que parte das
meditações de um solitário pensador, que atinge racionalmente uma visão de direto e privilegiado
acesso ao conteúdo de sua mente, e de reconhecimento de princípios essenciais de sua existência
racional, de onde pode derivar todo o conhecimento possível do mundo. Outro aspecto do abjurado
cartesianismo é o de que todos os fenômenos físicos podem e devem ser explicados fisicamente,
conforme se lê nos Princípios de Filosofia, de 1644:
Em primeiro lugar, considerei os Princípios mais distintos e claros que podem haver em nosso en-
tendimento tocantes às coisas materiais, e nada além delas, não havendo encontrado outros a não
ser o que temos das formas, das dimensões e dos movimentos, e das regras segundo as quais
estas três coisas diversificam-se umas nas outras, regras que são os princípios da Geometria e da
Mecânica, pelo que julguei ser necessariamente exigido que todo o conhecimento que os homens
possam possuir da Natureza se obtivesse dela mesma, dado que todas as demais noções que
temos das coisas sensíveis, sendo confusas e obscuras, não servem para dar conhecimento de
coisa alguma exterior a nós, mas antes impedem esse conhecimento (Descartes, 1978, p. 321).
Esse aspecto do abjurado cartesianismo interessa a uma arqueologia dos modelos
metodológicos, e é pretensão reconhecida na idealização, como seu desdobramento, de métodos
totais – idealização que parte da condenação de toda e qualquer caixa-preta no processo de projetação.
Esse projeto tem-se mostrado frustrante e tem implicado, por outro lado, a referência pejorativa à
preocupação com a questão do método no projeto arquitetônico.
O que se revela é a necessidade de se tomar o “dispositivo” criativo como parte essen-
cial de metodologias que apóiem a projetação e que estruturem as situações de ensino no ateliê
acadêmico. Ir até o limite do que pode ser explicitado e ponderado como processo criativo orientado/
estimulado/condicionado em termos permite ao estudante a exploração do experimento de projeto,
estimulando o desenvolvimento de atitude crítica com relação ao que lhe é informado, que possa
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 85
capacitá-lo a desenvolver visões alternativas de uma mesma abordagem e estar aberto a revoluções
de abordagem que opere com um mínimo de domínio sobre sua atitude inovadora. É um princípio
paradoxal dessa forma de abordar a questão do método, de que não há vantagem objetiva em elimi-
nar a subjetividade na concepção arquitetônica. Ao contrário, a subjetividade deve ser debatida, esti-
mulada, expressa, conhecida, familiarizada – o que não coincide com sua “objetivação”.
Na experiência de ensino a que nos referimos, a metodologia de projetação é pensada
como instrumental que estimule a ocorrência de conceptualizações tão criativas quanto explicitáveis,
que facultem a construção de argumentos sobre o projeto que possam ser (esses sim) objetivados
e de argumentos de projeto que trabalhem essa ambigüidade presente no fato de que cada decisão
projetual potencialmente abre possibilidades, novas indefinições. (Por outro lado, parece importante
observar que metodologia não é projeto, no sentido de que metodologias de projetação são meios
para se atingir uma bem determinada finalidade: o controle do processo de resolução do problema
de projeto. E por esse controle não significa – como pode ser entendido ordinariamente – a conten-
ção da criatividade, mas sua instrumentalização).
É impossível ignorar o dado individual numa proposta metodológica para o ensino de
projeto: queremos ensinar pessoas a projetar, e será como pessoas e dirigidas a outras pessoas que
irão utilizar essa habilidade aprendida. Nesse sentido, metodologia não é receita ou referência abstra-
ta, é instrumento que somente tem instrumentalidade se coincidir com as necessidades e a capaci-
dade do instrumentista. As metodologias de ensino e da prática profissional apresentam distinções
fundamentais em sua instrumentalidade. “Análise e síntese” projetual no processo de ensino estão
associadas a importantes descobertas que ocorrem inicialmente no nível individual, que podem ser
definidas didaticamente, como objetivos de aprendizado.
A didática do ensino de Projeto deve também partir do dado individual, construindo, a
partir da experiência do estudante, a ponte para o reconhecimento das outras experiências, e do
espaço-que-há-no-mundo, que possibilita ao estudante lançar-se, projetar-se. Há a necessidade desse
momento em que ocorre o reconhecimento de si, como pessoa-que-se-projeta, tanto quanto projeta
coisas, da parte do estudante – é um “dado de humanidade”, de forma alguma privilégio do arquiteto:
toda pessoa é pessoa que se projeta, mas para uma proposta didática, e esse é o princípio que
fundamenta a comunicação que ocorre pelo projeto.
A criação arquitetônica possível de ser ensinada é totalmente mediatizada pelo modo de
comunicação: é um princípio raso o de que o estudante aprende a “pensar arquitetura” nos termos em
que aprende a “comunicar arquitetura” (o que elabora como imagem para uma arquitetura). Essa é outra
razão para que as metodologias construídas para o ensino de projeto não se definam como instrumen-
tos de “geração de conhecimento”, nem cabe a elas instituir uma subdisciplinaridade “científica”. Isso
não deve ocorrer por algum tipo de repúdio da ciência, por um anticientificismo, ou porque as nossas
metodologias são subcientíficas. Isso ocorre porque as metodologias que interessam ao ensino de pro-
jeto têm objetivos radicalmente poéticos, são dirigidas ao processo criativo, assistem ao processo criati-
vo. São instrumentos realizadores de instrução, de montagem, de processamento, de explicitação de
conhecimentos aplicados. É vantajoso utilizá-los. Mas, atenção: metodologias da projetação arquitetônica
nada criam, nem conhecimento nem poesia, mas somente podem auxiliar a transformar, recombinar,
relacionar conhecimentos existentes. São de outra natureza as metodologias e as disciplinas que geram
o conhecimento que o arquiteto aplica – inclusive o seu conhecimento sobre arquitetura (como o conhe-
cimento histórico, antropológico, político, econômico, etc., e isto se sabe!).
O conceito de arquitetura como área de aplicação – na acepção estreitamente “curricular”
referida no início deste texto – dá sentido a uma outra observação acerca da elaboração de métodos
de ensino e de projetação no ateliê de ensino de projeto: aplicação implica problematização. Aplica-
ção de conhecimentos implica problematização dos conhecimentos que são detidos pelo aplicador.
Uma determinada aplicação (uma obra realizada, em especial) adquire especificidade como informa-
ção – há um fato novo no mundo, e bem concreto – e haverá chances de essas novas informações
gerarem conhecimento novo. À medida que o projeto de formação do arquiteto (que envolve no
mínimo diretrizes e atividades estuturadas de ensino, pesquisa e extensão) se orientar por problemas
e situações em que há a necessidade (e a possibilidade) de intervir para modificá-las, todo o corpo
de conhecimentos até então detido pelo estudante e por seus professores, considerado hábil para ser
86 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
utilizado em sua solução, estará à prova inclusive o conhecimento que permite o re-conhecimento
e a caracterização do que seja a situação-problema. Esse é canal para que se tenha a área de
aplicação gerando conhecimentos, e o primeiro deles, e o mais revelador, diz respeito à propriedade
com que este grupo aplica os conhecimentos que detém. Daí que, para a área de aplicação, a
criação de referências críticas acerca do que seja seu corpo de conhecimentos deveria ocorrer
concomitantemente à inclusão de qualquer informação ao acervo/repertório já detido. Isso acontece
em ateliês de ensino de graduação ou em grupos de pesquisa em nossas pós-graduações? Sim ou
não? Esse tipo de julgamento somente é possível se houver, como foi colocado anteriormente, algu-
ma forma de controle do processo de resolução do problema (de projeto, como nos interessa).
Aceito esse argumento, admitimos uma essencial comunidade de objetivos partilhados com as áre-
as disciplinares científicas, maior que seríamos capazes de aceitar, caso ordem alguma de método
fosse aplicável ao processo de projetação.
5
Os objetivos da disciplina de graduação: habilidades/habilitação
A disciplina de Projeto, como disciplina de aplicação, tem como objetivo, primariamen-
te, o desenvolvimento de determinadas habilidades – sobretudo, no sentido de que pressupõe o seu
ensino, a habilitação do estudante para a prática de projeto, e segundo um determinado perfil pressu-
posto pela estrutura curricular anteriormente descrita.
O plano da disciplina deve tornar claros os objetivos da habilitação, além de ser apre-
sentado como um “contrato” de trabalho e de ordenamento dos trabalhos, associando os objetivos
didáticos específicos aos objetivos de formação mais geral. Alguns dos elementos gerais do plano
da disciplina ministrada são (observa-se que vimos a sua ementa anteriormente):
Objetivo geral: capacitar o aluno a gerar anteprojeto arquitetônico de edifício de fun-
ções extensas, complexas e interdependentes, fundamentado em pesquisa ativa do objeto de estudo
através da explicitação de metodologia de projetação (com ênfase na definição de princípios
arquitetônicos e na geração de alternativas de constituições arquitetônicas).
Objetivos específicos: capacitar e explorar a capacidade de:
a) planejar e organizar o processo de desenvolvimento do projeto arquitetônico em eta-
pas que possibilitem a coordenação do trabalho em equipes multiprofissionais e o controle de quali-
dade dos produtos por técnicos, gestores e usuários;
b) identificar variáveis e condicionantes do projeto como elementos definidores da reso-
lução de problemas arquitetônicos e como informação a ser qualificada em termos físicos, técnicos,
funcionais e de linguagem arquitetônica;
c) gerar alternativas de constituições arquitetônicas a partir da manipulação de informa-
ção selecionada, acumulada e organizada sobre o sistema de atividades e objetivos relacionados ao
uso do edifício, ao papel de seus agentes e usuários, sistemas tecnológicos de instalações, equipa-
mentos e procedimentos, sistema construtivo, requisitos de condicionamento ambiental,
condicionantes do sítio físico e de implantação, entre outros, com ênfase na combinação intencional
e passível de avaliação entre os diversos princípios arquitetônicos adotados;
d) gerar critérios e processos decisórios explicitados, relativos ao estabelecimento e
desenvolvimento de alternativa arquitetônica eleita, de modo a permitir a participação organizada
dos diversos envolvidos no empreendimento (em especial, técnicos, gestores e usuários) e a
compatibilização de seus interesses.
Vê-se que as colocações dos objetivos enfatizam o processo projetual como processo
de solução de problemas, em que variáveis e parâmetros condicionantes vão orientar o projetista
dentro de limites reconhecidos ou auto-impostos para a geração de alternativas com vistas à solu-
ção final do projeto. Esse procedimento se pretende essencialmente racional e capaz de permitir a
5
É forçoso reconhecer que esse argumento muito deve – mais no mérito que na forma em que é apresentado – ao problematizador-por-
excelência que é o professor e arquiteto Frank Eugen Algot Svensson, da FAU/UnB.
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 87
explicitação e a explicação de qualquer encaminhamento, nessa conduta de projetação, a qualquer
participante das decisões ou interessado.
A prática dos ateliês de ensino ocorre nos casos em que o professor de projeto defina
métodos de trabalho comprometidos com a explicitação das decisões de projeto, com “modelos
híbridos”, que reúnem as ênfases na racionalidade de determinadas metodologias orientadas para a
solução do problema de projeto (com base mais ou menos quantitativa e tomando de empréstimo
métodos e técnicas claramente originados de outras áreas do conhecimento científico) e da imagina-
ção plástica, especialmente da hermenêutica dos fenômenos de linguagem arquitetônica (mais ou
menos abstrata, apelando para conceitos claramente originados na crítica de arte).
Um interessante problema do ensino de projeto arquitetônico reside na heterogeneidade
desses “híbridos”, na diversidade de fundamentações que existem entre os modelos centrados em
metodologias racionalizadoras do processo de projeto e nos procedimentos hermenêuticos, expres-
sivos e interpretativos. Expor um pouco da “vida mental” do professor de projeto, seus preconceitos
e soluções didáticas que operam com esse (falso) dilema parece ser de grande importância para que
haja uma troca inteligível e honesta entre os participantes do processo de ensino e formação. Esse é
um propósito parcialmente contemplado no presente trabalho.
Ateliê híbrido: racionalidade e interpretação
Inicialmente, busca-se racionalidade para o estabelecimento da situação de aprendiza-
do: é condição para o ensino de projeto que objetivos e objeto de estudo estejam claramente coloca-
dos desde o início. Surge aí um primeiro problema que contradiz essa condição: objetivos e objeto
não se transformam ao longo do processo projetação? Sim, dentro de um campo de escolhas limita-
do (e seremos forçados a limitar esse campo, queiramos ou não), objeto e objetivos são redefinidos,
mas não é aceitável que ocorra “transformação” que torne o estabelecimento inicial irreconhecível.
A seguir, busca-se racionalidade no modo como a situação de ensino é desenvolvida, as-
segurando algum tipo de controle sobre o processo de projetação, que ocorre ser tão semelhante quan-
to possível aos episódios vividos por arquitetos, quando projetam. Semelhante, mas não idêntico: a
situação de ensino implica a análise do que os arquitetos efetivamente “fazem” quando projetam, como
se organizam e encaminham seus trabalhos, como julgam e avaliam o que produzem, quais as suas
referências para esse julgamento. Isso não é possível com um único professor arquiteto, e parece tornar
necessário o convite a outros arquitetos para que participem do ateliê de ensino, se o objetivo é conse-
guir analisar criticamente o procedimento profissional – qualquer que seja a sua versão.
Essa preocupação se desdobra no sentido de desenvolver a capacidade de comunicar
as decisões de projeto de modo a assegurar o controle por outros participantes (mais ou menos
envolvidos) no processo de projetação. Desde já se pressupõe que a complexidade do projeto, em
termos funcionais, exija a coordenação de participantes – e em diversas instâncias técnicas, financei-
ras, empresariais, comunitárias, etc. – que devem efetivamente compreender o encaminhamento
dado à conduta de projetação, bem como qualquer “declaração” do projetista.
Essa coordenação pode até se submeter a um “filtro ideológico” e declarar que a coor-
denação participativa é um dado da democratização do projeto – e mesmo que é condição para que
surja um produto de projeto cuja qualidade somente pode ser alcançada através de mecanismos
participativos. Essa postura não é inconsistente com os modelos de ensino, mas deve ser considera-
da como postura ou filtro ideológico, valorativo e orientador de determinadas decisões: outros “fil-
tros” podem ser aplicados (como o de que a “otimização do empreendimento” é a ênfase, ou de que
o “resgate dos valores culturais” é a ênfase), e trabalharemos dentro do mesmo quadro de variáveis
que temos convocado para o debate do projeto. A idéia, como professores, é trabalhar, se possível,
sem a exclusão dos filtros valorativos, mas utilizando-os de forma clara, explicitando-os, fazendo com
que operem a favor do processo de formação do aluno de arquitetura.
Também se pressupõe que se trata de um objeto tal que possa ser praticamente
“equacionado”, organizado em termos de variáveis e parâmetros, passíveis de combinações/experi-
mentos compositivos. Isso deve envolver, como procuraremos mostrar, aspectos tão quantitativos
88 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
quanto simultaneamente qualitativos – nesse último sentido, aqueles aspectos que se propõem a
estabelecer a linguagem a ser identificada no objeto projetado.
Não se tem dúvida do incômodo que esse tipo de ponto de partida e esse programa de
condução da disciplina podem representar para o ideário de ensino de projeto que nega a possibi-
lidade de equacionamento do problema de projeto, de assumir, de início, o tratamento racional e
sistematizado de tantas variáveis quantas se desejar ou se dever (ou conseguir) relacionar. Mas o
que significaria exatamente “equacionar” o problema de projeto? E há sentido em se falar do projeto
arquitetônico como um “problema”?
Numa primeira aproximação, equacionar o problema de projeto significa reduzi-lo a alguns
“termos” básicos ou a conjuntos de variáveis com os quais se pode trabalhar separadamente, formando
pedaços de soluções – que serão coordenadas, por sua vez, por conjuntos que devem conter agrupa-
mentos de soluções, e assim por diante – e segundo algumas “funções” que buscam otimizar ou simples-
mente monitorar as relações entre cada variável, à medida que o experimento de projeto provoca essas
variações, à medida que o projetista introduz variações em sua solução (ou a modifica completamente).
A necessidade de desinventar uma certa identidade histórica do arquiteto
A busca de objetividade na solução de problemas de projeto não deve ser subestimada ou
desconsiderada. Uma lição que pode ser depreendida das histórias da arquitetura desde a Revolução
Industrial é a de não temos exercitado uma visão crítica das transformações ocorridas nas tecnologias,
nas ciências e nas artes, mas uma versão que fantasia tanto o papel de vanguarda do arquiteto quanto
as relações que os demais campos disciplinares têm com a arquitetura. A história da arquitetura e do
urbanismo dos dois últimos séculos é extraordinariamente tendenciosa, e tem forçado a crença num
determinado conceito de vanguarda que acaba se revelando um enorme problema para a superação de
importantes limitações da prática profissional. Pode-se dizer que esse conceito tem aprisionado a iden-
tidade do arquiteto numa redoma – e é um importante índice dessa espécie de sofisticada alienação o
fato de sermos um caso único de profissão, mesmo entre as artes plásticas, em que o vanguardismo,
como movimento paradoxalmente continuado e episódico, forjador de tradições e revolucionador pela
superação e confirmação do passado, tem sido usado como critério de construção da identidade profisional
do arquiteto. Eduardo Subirats, que acredita em vanguardas, diz que:
A história da arte e da arquitetura do século XX é a história da lenta mas tenaz dissipação dos elementos
ideais, utópicos e transcendentes que, a partir do impressionismo, introduziram na cultura moderna um
impulso renovador e restabeleceram a crença nos valores seculares do progresso. Mas o esvaecimento
dos valores intrínsecos da nova forma foi provocado basicamente pela própria dinâmica do princípio
racional que a constituía. Certamente o aparecimento dos totalitarismos na Europa e sua culminação na
guerra constituíram uma barreira histórica absoluta para o desenvolvimento do pensamento das van-
guardas artísticas, e puseram abruptamente fim às esperanças que carregavam. Mas só as razões
inerentes à própria constituição formal interessam à crítica que tem em mira precisamente a reatualização
de seus elementos renovadores e críticos” (Subirats, 1984, p. 75, grifos nossos).
É a cobra mordendo o rabo. Subirats ilustra bem a circularidade do argumento que
coloca o conceito de vanguarda como central à explicação da arquitetura, que por sua vez adquire
sentido histórico quando retoma “a frente de si mesma” e deve ser julgada pela forma com que essa
projeção é fiel: a) ao projeto original da vanguarda primeira, modernista ou; b) a si mesma, desde
que porte dimensão transcendente, “seja crítica, seja utópica”. Como nem uma coisa nem outra
ocorrem, o signo da arquitetura atual é negativo, mas ainda é signo de vanguarda, pois “a explosão
do novo vanguardismo ritual e epígono possui, mais uma vez, o indiscutível valor de um revulsivo, de
um choque cultural” (Subirats, 1984, p. 107).
Afirma-se que a transformação de nossos conceitos de arquitetura e a ampliação de
nossa habilidade para projetar de modo complexo, integrado a outras áreas disciplinares, passa
pela reflexão histórica e exige a crítica da crítica em arquitetura, a geração de alternativas à identida-
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 89
de profissional criada pelo modo como contamos a sua “História”. São fundamentais a crítica desse
unidimensionalismo da própria crítica, a discussão da arquitetura contra o pano de fundo de outras
histórias – da transformação ambiental, tecnológica, social, etc. – e o enriquecimento do debate
sobre as possibilidades abertas à prática da arquitetura, de pontos de vista que considerem ques-
tões colocadas, em especial, pelo conhecimento desenvolvido em outras disciplinas.
Metodologia científica e metodologia de projetação:
especificidades de sua associação
Há, confessadamente, algo de comum entre o que se denomina metodologia científica e o
que queremos como processo projetual, no sentido preciso de que colocar o processo de projetação
como um processo de “solução de problemas” permite diversos aportes metodológicos com preceden-
tes (melhor, que foram criados) em algumas áreas do conhecimento científico – e que tratam, ou não,
dos mesmos “objetos” que a arquitetura: o conhecimento científico aplicado à arquitetura é diferente de
arquitetura-como-conhecimento científico. Há diferenças importantes que devem ser questionadas des-
de o início: o problema de projeto é formulado como um processo aberto e, se tiver algum grau de
determinação, este é dado pelos princípios que vier a adotar em seu desenvolvimento.
Em outras palavras: o projeto é um sistema coerente de declarações arquitetônicas.
Quer-se ensinar a reconhecer essas declarações (num processo tanto de análise quanto de síntese
da forma) e como elas podem se articular (idem).
O método científico nos interessa à medida que insiste na objetividade com que se
deve definir um problema de estudo, o instrumental de sua análise, o processo decisório do que se
faz solução ou síntese projetual e do que é, significativamente, alternativa entre desenvolvimentos
possíveis de um mesmo conjunto de princípios ou partidos. Evidentemente, critérios estritos de
objetividade (sobretudo se houver qualquer restrição a critérios não-mensuráveis) podem interferir
pesadamente em determinados processos criativos, e serem insuportáveis como rigor imposto à
criação. Ob-jeto e pro-jeto importam uma oposição e uma tensão fundamentais: o objeto é tanto
aquilo que resiste ao lançamento quanto aquilo que o fundamenta. Projeto, o lançamento, não é
apenas “a favor” (ou “pró” alguma coisa, ocupando o vazio adiante), como se o mundo não resistis-
se; o projeto incide sobre/transforma/antagoniza/requalifica o objeto, seja este o lugar em que se
construa ou as intenções do construtor. Dessa forma, objetividade deve significar a nomeação, o
reconhecimento formal de todas as tensões envolvidas, desde as evidências do sítio físico preexistente
até as propriedades do modelo de organização física e funcional do edifício.
O arquiteto constrói o espaço de possibilidades do partido, seja a partir de seus con-
ceitos próprios e prévios (ou pré-conceitos, pois o são), seja a partir de modelos que adota mais ou
menos conscientemente, ou de forma mais ou menos compulsória (e aí se pode incluir o que se
chama do modelo normativo, definido em normas e padrões construtivos).
A coerência dos princípios projetuais nos faz reconhecer universos de tipos
arquitetônicos ou, de outra forma, arqué-tipos, à medida que se reconheça a universalidade atribu-
ída a determinados conceitos; ou proto-tipos, à medida que se pretenda experimentar, rompendo ou
transformando princípios de projeto; ou mesmo estereo-tipos, à medida que a tipificação seja rigo-
rosa em excesso, invariável, “sólida” (do grego
στερεοσ
, stereos, “sólido”, “duro”, e, por uma outra
extensão, “tridimensional”, “volumétrico”).
É o uso de tipos que permite à arquitetura, de épocas e ideologias diferentes, formar uma aparência
coerente quando justapostas, assim como possibilita a continuidade física e cultural do meio urbano.
Apesar de certos tipos aparecerem, dentro de uma cultura, ligados a determinados programas, não
existe uma correspondência absoluta entre um problema arquitetônico e uma solução formal específi-
ca. Tampouco a força de um tipo é derivada de uma função específica, residindo em um significado que
lhe é atribuído arbitrariamente. Essa possibilidade de desvincular o tipo de suas funções confere à
maioria dos princípios formais e compositivos a condição de arquétipos, pois fazem parte da consciên-
cia coletiva dos arquitetos e das sociedades por eles servidas (Mahfuz, 1985, p. 53, grifo do autor).
90 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
A formação desse repertório de tipos tem familiaridade com o conceito do “Timeless
Way of Building”, de Alexander, sendo que o professor Edson da Cunha Mahfuz aprofunda a discus-
são do problema de ensino e de prática associado a repertórios que, no ateliê de ensino, se ampliam
numa original concepção da composição arquitetônica.
O que seja “princípio” arquitetônico é objeto de definição, na disciplina, ao longo dos
estudos preliminares, e assumimos três “ordens de princípios”: a) os que são gerados a partir da
análise do sítio físico; b) os que são causados pela análise do programa arquitetônico como índice de
modulações construtivas; e c) os que são criados por padrões arquitetônicos, como elementos de
linguagem e constituição do lugar em concepção.
Se aceitarmos provisoriamente essas ordens, veremos que nenhum princípio pertence
legitimamente a alguma delas, mas que esse ordenamento – apenas didático – permite ao aluno o
exercício do reconhecimento do que expressa precipuamente, de modo “natural”, ao projetar. Reco-
nhecer a coleção de declarações que todo arquiteto ordinariamente faz em qualquer projeto é reco-
nhecer um determinado sentido de complexidade da própria projetação arquitetônica. O estudante
deve ser capaz de elaborar e de externar suas declarações, de desvendar a complexidade inerente
ao processo de projetação.
Essa não é senão uma outra maneira de descrever o que seja partido em arquitetu-
ra. A diferença essencial reside na sistematização das declarações, que podem ser desenvolvi-
das a partir de um elenco dado de variáveis necessárias (que denominamos “evidências”, “con-
figurações” ou “padrões”, como veremos adiante), e em fases de diálogo entre as soluções de
projeto e esse corpo de declarações (que pode também ser compreendido como as intenções
de projeto, em outra linguagem). As “fases de diálogo” podem coincidir – ou não – com as
etapas ordinárias de desenvolvimento do projeto arquitetônico (estudos preliminares, antepro-
jeto, projeto executivo, etc.).
Para o professor, a didática associada a essa habilidade é, de certo modo, “construtivista”,
pois o estudante elabora/constrói a complexidade de sua proposta e de sua conduta até os limites do
que pode efetivamente controlar – e o professor se torna um facilitador desse processo de elaboração da
complexidade. No caso do aluno que “declara e aplica declarações arquitetônicas”, com clareza, com
consistência, o professor é um espectador privilegiado, que insiste em testar a coerência dessas decla-
rações e da forma pela qual o estudante as articula em sua proposta.
O que se quer com um “sistema de declarações arquitetônicas”
Reconhecer que a arquitetura é elaborada a partir de princípios projetuais, que há um
“sistema” de declarações arquitetônicas que se relacionam de formas extremamente variadas – e
não necessariamente lógicas, num sentido de causação determinista – permite o desenvolvimento
de uma didática do projeto arquitetônico especialmente apta a:
estimular o reconhecimento de pontos de partida e formas de condução dos princípi-
os adotados no partido arquitetônico;
estimular a exposição e o debate acerca do que pensam os projetistas e seus clien-
tes, usuários, críticos e colaboradores, pois também estes possuem, e têm todo o direito de possuir
e é impossível desconsiderá-los, seus conceitos prévios e seus modelos de decisão;
estimular o estabelecimento de processo decisório que efetivamente contenha alternati-
vas de diversidade significativa, alternativas desenvolvidas não apenas por exclusão de princípios (do
tipo “decidi NÃO fazer isso... mas por isso... mas, ao contrário... fazer aquilo outro...”), mas também por
associação de princípios, que são articulados na forma do projeto, e cuja consistência deve ser posta à
análise (declarando que “proponho isso E aquilo... de forma a pretender obter esta e ainda aquela solu-
ção...”); alternativas que apresentem interpretações diferentes de um mesmo conjunto de declarações
arquitetônicas, ou, ainda, que partam de conjuntos de declarações efetivamente diferentes;
estimular a crítica (ou seja, o julgamento), de qualquer proposta formalizada,
explicitando-se parâmetros e buscando-se comparar objetivos, valores e interesses entre as partes
envolvidas no processo de projetação.
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 91
Em resumo: a complexidade funcional, como tema que problematiza didaticamente o
ensino de projeto, não implica complicação técnica do objeto da projetação, mas a capacidade de
explicitar os percursos de exploração do problema do projeto, permitindo que a complexidade seja
“resolvida”, em cada caso, de um modo compreensível a todos os envolvidos.
Por isso, recorrer às referências do instrumental básico da metodologia científica pode
nos auxiliar, professores de projeto arquitetônico, a organizar a conduta (ou o método) de orientação
em ateliê de ensino – em especial diante desse tipo de tema, o da complexidade funcional.
Mas que métodos podem ser sugeridos para o ensino em ateliê? A seguir, fazemos sumá-
ria descrição do modo como a disciplina é encaminhada, advertindo para o fato de que ocorrem dramá-
ticas variações em torno dos mesmos métodos e técnicas, a depender do tempo disponível, do objeto
de estudo e, sobretudo, dos campos de interesse dos grupos de estudo, numa mesma turma.
A organização da disciplina em unidades de ensino
No caso concreto da disciplina Projeto Arquitetônico de Funções Complexas, foi esta orga-
nizada em três unidades de ensino, seguindo etapas que obedecem ao clássico ordenamento dos estu-
dos preliminares ao projeto (no caso desta disciplina, ao anteprojeto de arquitetura):
1) estudo de caso – gerador do referencial empírico a partir do qual se consolida o
programa arquitetônico do objeto a ser estudado durante o semestre, bem como o que pode ser
chamado de um “primeiro acervo-repertório” de soluções arquitetônicas existentes, que é avaliado
pela observação do seu estado de uso, etc.;
2) estudos preliminares de arquitetura – em que se utilizam três métodos projetuais com-
plementares entre si, para a exploração, definição e comunicação de soluções (método das evidên-
cias gráficas, método da geração de configurações e método da geração de padrões arquitetônicos);
em si, cada um desses métodos não apresenta novidade e, como já se registrou, são valorizados por
permitir a organização do problema, da abordagem ao objeto e o controle do processo de projetação,
dentro do referencial didático assumido;
3) anteprojeto de arquitetura – seu desenvolvimento implica a continuada utilização da
metodologia empregada para se chegar ao estudo preliminar de arquitetura, conduzido segundo
uma pauta de objetivos mais específica – descartando-se, em particular, o uso intensivo das normas
de edificação – do Distrito Federal, no caso.
Figura 1 – Ilustração das notas de aula da disciplina Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas.
Fonte: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
92 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Cada unidade de ensino tem sido objeto de extenso “apostilamento”, em que o profes-
sor responsável tem exposto detalhes sobre o desenvolvimento de cada “produto” solicitado em
cada fase dos trabalhos. Semestre a semestre, esse trabalho vem sendo reeditado e reelaborado,
como contribuição para a disciplina. Em especial, à medida que se torna clara a deficiência na
orientação em um determinado ponto do curso, o professor se vê obrigado a aprofundar o estudo
dos conteúdos e de sua “estratégia didática”, reelaborando as notas de aula e efetuando mudanças
na sua abordagem. Os estudantes de Arquitetura têm suas melhores contribuições incorporadas
(citando-se fielmente os desenhos e as idéias com que contribuíram): as notas de aula passam a
contar, de certo modo, a “história” da disciplina. Algumas ilustrações utilizadas são expostas nas
páginas seguintes.
6
No estudo de caso, equipes de cinco a oito alunos levantam informações sobre a
organização física e funcional de um edifício ou conjunto arquitetônico assemelhado ao obje-
to de estudos. Os estudantes recebem um roteiro para o levantamento de informações, que
inclui entrevistas com “agentes e usuários” que desenvolvem as atividades abrigadas pelo
edifício, bem como a graficação de aspectos de seu funcionamento e implantação. Aplicam-
se técnicas específicas de entrevistas, de “mapeamento crítico” do edifício-caso, de criação
de sucinto banco de dados acerca de seu uso, funcionamento, implantação, solução constru-
tiva, através de fichamentos específicos, etc.; as equipes são estimuladas a intervir no roteiro
de estudos, a reelaborar os itens solicitados para as entrevistas, a promover tantas adapta-
ções quantas forem julgadas necessárias para que sua compreensão do edifício se complete,
no período dado para a pesquisa (cerca de três semanas). O material levantado pelas equi-
pes (três a quatro, em geral) transforma-se numa das principais fontes de referência para a
realização dos estudos preliminares e dos anteprojetos de arquitetura. Alguns desses traba-
lhos têm sido apropriados por órgãos públicos já estudados (como foi o caso dos hospitais
públicos do Distrito Federal), por eventualmente se constituírem estudos bem organizados
sobre sua arquitetura.
Os estudos preliminares são definidos como amplas explorações do problema de proje-
to. Enfatiza-se a “busca”, mais que o simples “achado” de uma ou outra solução conveniente, julgada
promissora desde o início, como diretriz para a solução de projeto. Os alunos são estimulados a não
se acomodar, a multiplicar seus pontos de vista sobre os aspectos que levarão às suas “declarações
de projeto”. Exercita-se a dúvida e a crítica sobre todo e qualquer princípio ou forma surgida ao longo
do processo de discussão, todo ele com base em croquis que tematizam os diversos aspectos (tam-
bém referidos como “variáveis”) do projeto.
Os métodos de exploração anteriormente referidos podem ser sumariados no seguinte:
Método das evidências gráficas. Essa denominação, bem como algumas idéias sobre
a estrutura do seu desenvolvimento e as formas de sua aplicação foram retirados do texto de Tim
McGinty (1984, p. 160-194); para o autor, “os desenhos e as notas nascidos num estúdio de projetos
compreendem o mais direto testemunho do processo de projeto”. Na nossa particular interpretação
da coleção de apontamentos básicos, procedimento profissional adotado pela maioria dos arquite-
tos, orientamos os estudantes a discutir graficamente – a princípio de forma isolada, passando pro-
gressivamente à sua revisão e incorporação como determinações do partido arquitetônico – aspec-
tos relacionados às normas urbanísticas; à malha viária circunjacente; à topografia; aos aspectos
visuais (internas e externas) a considerar (e reestruturar); aos percursos através do sítio de interven-
ção (desde pontos em seu interior, pois são tratadas glebas de dimensões variáveis entre dois a mais
hectares, chegando-se a uma ou duas dezenas de hectares em alguns estudos já realizados) e até
ao sítio de intervenção (desde pontos no interior da malha urbana, praças e pontos de ônibus); à
insolação; à ventilação; às fontes de ruído, etc.
O “zoneamento” da área de estudos é considerado ora como uma evidência, ora como
uma configuração, ora como um padrão arquitetônico, dado que as categorias de “zona” aplicadas
são abrangentes (sendo, em muitos casos, mais apropriado falar da “lugar-ização” da área de estu-
6
Professores interessados podem obter cópias desse material (cerca de 600 páginas)– tão atualizado quanto possível – , solicitando-
as pelo e-mail praticom@guarany.unb.br. Os textos em arquivo eletrônico ainda não estão disponibilizados.
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 93
dos, a assinalação abrangente de opções de uso ou de caracterização com outras finalidades,
como o desenvolvimento paisagístico).
Esses estudos são revistos à medida que os estudantes simultanemente estudam as
aplicações dos outros métodos (ou, fielmente ao que significa a palavra método, “encaminhamen-
tos”). O aspecto mais rico desse tipo de levantamento “temático” das variáveis de implantação é o
cruzamento que se faz das diversas direções que as declarações preliminares vão tomando: é co-
mum que declarações que enfatizam o conforto sonoro sejam contraditadas por declarações que
enfatizam os aspectos visuais (algo como o enquadramento da paisagem em torno do edifício,
criando aberturas através das quais entrará, possivelmente, a poluição sonora); é esperado que a
análise da topografia e das transformações que, preliminarmente, o terreno pode sofrer, com cus-
tos variados e visando à acomodação dos espaços previstos no programa, interfira consistente-
mente na análise de – e geração de declarações pertinentes a – percursos internos e de acessos,
entre outras, etc.; essas contradições devem ser valorizadas, pois existem como as tensões mais
importantes para a concepção, e tomar partido significará, num sentido particular, “solucionar” as
contradições entre as declarações que uma equipe projetista considere válidas. Isso não significa
necessária ou compulsoriamente eliminar as contradições, mas compreender que, mantidas ou
não, as declarações contraditórias podem permitir ambigüidades expressivas e a quebra do
determinismo que pode ser assumido por um determinado “sistema de declarações”.
Figura 2 – Ilustração das notas de aula da disciplina Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas.
Fonte: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
Fundindo
“peças”
em novas
“peças”
Manipulando
“peças”
isoladas
Retirando
“peças”
módulos
de um
“TODO”
94 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
• Método da geração de configurações. Por configuração temos definido a
geometrização dos espaços listados no programa arquitetônico (fornecido e, em parte,
embasado no conhecimento adquirido nos estudos de casos) pelo desenvolvimento de técni-
cas específicas com o uso de grafos (estudos topológicos de posições relativas), de técnicas
específicas de coordenação modular e de técnicas específicas de modelação volumétrica. Essa
definição de “configuração” é, sem dúvida, restrita e limitada, mas pretende enfatizar o contro-
le tão exato quanto possível sobre as áreas de construção e suas relações espaciais, num
sentido decididamente quantitativo. O estudante é estimulado a desenvolver a capacidade de
coordenar as diferentes escalas físico-funcionais do projeto, no nível da fração urbana onde
está situada a área de intervenção, o lote; no nível do lote ou área definida para a implantação;
no nível do conjunto arquitetônico ou do edifício. O uso de malhas orientadoras (como planos
geradores, diagramas de modulações) e de recursos que permitam a modelação do volume
dos objetos do projeto – como as maquetes volumétricas e os crescentemente imprescindíveis
programas CAD – estrutura a compreensão que o aluno deve ter acerca das possibilidades de
desenvolvimento do seu partido, mais do que gera, consistentemente, uma solução que consi-
derará aceitável. A geometrização é associada a custos, ao controle do programa arquitetônico,
à otimização da ocupação do lote/área de estudo, à análise dos princípios das normas de
arquitetura e urbanismo e a tantos aspectos necessários ao projeto que possam ser medidos,
quantificados, rigorosamente limitados. O aspecto mais rico desse exercício de configurações
geométricas é a descoberta de “regras de composição” de volumetrias orientadas por declara-
ções arquitetônicas elaboradas pelo direcionamento de evidências do sítio físico. O aluno deve
compreender que é possível mobilizar de modo controlado e rápido o significativo contingente
de áreas físicas (em programas arquitetônicos que totalizam várias dezenas de milhares de
metros quadrados), mantendo vários graus de coerência entre suas relações espaciais e
sofisticando a sua abordagem até o ponto em que “padrão, evidência e configuração” sejam
declarados conjuntamente.
Figura 3 – Ilustração das notas de aula da disciplina Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas.
Fonte: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 95
• Método da geração de padrões arquitetônicos. O importante problema da linguagem
arquitetônica não é enfatizado pela disciplina, decisão tomada a partir do tipo de tematização curricular
existente em nosso curso. Mas é impossível tomar o problema da linguagem como independente do
que se queira como abordagem “funcionalista” de ensino de projeto. A função em arquitetura implica
padrão de linguagem: não se revela como tendo sentido para as pessoas se não é realizada em um
lugar real, equipado, ocupado. Na metodologia de ensino de projeto até aqui exposta, entende-se a
geração de padrões arquitetônicos como operação que tanto se apresenta como “síntese” (da forma
que expressará/viabilizará/coincidirá com a função, ou, por outra, da forma que se refere à função,
mas se relaciona com suas necessidades estritas de modo propositadamente ambíguo), quanto
como “análise” (por estimular-se o debate entre declarações plásticas e declarações no âmbito da
racionalidade funcional).
Esses métodos, em si, nada apresentam de novidade, a não ser o pequenino aspecto
da forma de sua condução, dirigida a promover um processo de projetação “aberto”, apto a receber
participantes e contribuições de toda ordem – o que certamente é ainda menos novidade, como
vemos na experiência de ensino de projeto de urbanismo do professor Luis Alberto de Campos Gouvêa,
relatada neste livro. Naturalmente esse é um desejo que não se realiza em ateliê: nossa simulação
acadêmica não apresenta participantes ou tensões reais – com a exceção dos circunstanciados
episódios em que temos determinadas “comunidades-clientes” convidadas a opinar sobre os proje-
tos, como explicaremos adiante.
A articulação entre as unidades de ensino
O objetivo didático, nos estudos preliminares, é o de estimular o desenvolvimento de um
certo comportamento durante o processo de projetação, caracterizado pela capacidade de trabalhar
explicitando as variáveis de projeto, as decisões tomadas e suas inter-relações, as alternativas, e tornan-
do flexível e indefinidamente adaptável qualquer definição de projeto. Esse comportamento é tido como
apropriado para o arquiteto que coordene equipes multiprofissionais, que deva expor os objetivos e
limites do processo e dos produtos da projetação a uma assembléia de participantes com interesses
contraditórios (ou razoavelmente complementares), considerando-se que iniciam sua participação por-
tando expectativas e informações diferentes, heterogeneamente arranjadas. Mas apenas uma parte de
toda uma conduta de coordenador e autor de projetos em equipe é considerada bem descrita e conduzida,
a que diz respeito ao desenvolvimento do produto, ao projeto em si.
Figura 4 – Ilustração das notas de aula da disciplina Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas.
Fonte: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
96 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
A condução desse ateliê tem consistido na continuada provocação à exploração de
cada afirmação graficada: sua regra de ouro é que tudo o que pode ser “dito” no processo de projetação
deve ser desenhado (o que não implica somente aceitar desenhos que tenham direta analogia física
com algum componente do conjunto arquitetônico, aceitando-se diagramas abstratos inicialmente
fixados como referência para a exploração de formas físicas que de algum modo a eles correspondam).
As equipes (menores que as da fase de estudo de caso) são estimuladas a realizar a
mais ampla assembléia de idéias e propósitos que lhes seja possível arranjar, dentro do tempo dado
(cerca de cinco semanas). A analogia da assembléia pretende que cada princípio e imagem tenha
voz e voto, discurse e contradiga as demais, sem reprimi-las. Respeita-se o sagrado momento em
que reine a algaravia e a indicação de várias, inúmeras, direções a seguir. A tomada de decisões é
feita por procedimento adotado em cada equipe, orientada pela necessidade de definir uma hierar-
quia de princípios de projeto, abrangendo tanto as categorias de variáveis (dispostas a partir de
cada um dos encaminhamentos oferecidos) quanto os nexos que se foram construindo ao longo da
assembléia de idéias. Não há a definição do início do processo de tomada de decisões: as equipes
tanto são provocadas no sentido de se saberem organizadoras de assembléias realmente ricas,
democraticamente contraditórias, efetivamente capazes de compreender o “comportamento” e as
conseqüências implicadas nos pontos de vista e argumentos das “idéias debatedoras”, quanto são
estimuladas a exercitar o julgamento das contribuições que se fizerem.
Figura 5 – Ilustração das notas de aula da disciplina Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas.
Fonte: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
Figura 6 – Ilustração das notas de aula da disciplina Projeto Arquitetônico
de Funções Complexas.
Fonte: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 97
As equipes devem ter consciência de que, afinal, tomaram partido – tanto num sentido
afirmativo ou sintético, de que a solução de projeto foi efetivamente lançada, quanto num sentido
negativo ou analítico, de que houve escolhas e eliminações, com o sacrifício de campos inteiros de
soluções antevistas.
Exige-se a apresentação de, pelo menos, duas propostas (a representação pode ser
feita através de desenho técnico das projeções e seções ortogonais da proposta ou de perspectivas
isométricas), ambas de viabilidade pouco discrepante, ambiguamente válidas, mas envolvendo com-
posições de princípios que afirmem tendências que efetivamente dividiram a assembléia de idéias.
Essas tendências se expressam por diferentes organizações físico-espaciais que obedecem a um
mesmo “grafo de posições relativas”, por exemplo, ou a soluções que pretendem assumir valores de
linguagem arquitetônica distintos, mas assemelhadas em sua configuração física e implantação. Não
há um método para sistematizar essas diferenças, diante de todas as possibilidades, mas os estu-
dantes devem sistematizar sua comparação perante seu próprio protocolo de decisões, fundamen-
tando sua escolha.
Cada equipe é autorizada a propor alterações no programa arquitetônico proposto, so-
bretudo no sentido de corrigir dimensionamentos e a definição de determinados espaços que mere-
çam redefinição – fundamentada no conhecimento obtido com os estudos de casos. Alguns temas
abordados na disciplina possuem maior flexibilidade para alterações ainda mais amplas no progra-
ma arquitetônico (como se tem admitido no estudo de universidades, complexos administrativos,
centros de compras, etc.).
Com a etapa de estudos preliminares encerra-se essa oportunidade de alterar o progra-
ma arquitetônico inicialmente proposto (ou o trabalho de desenvolvimento do anteprojeto se fará
infernal). O desenvolvimento do anteprojeto é orientado por duas referências:
1) uma lista de checagem de aspectos (exatamente os mesmos usados na avalia-
ção dos anteprojetos) que qualificam o produto final da disciplina, envolvendo aspectos que
vão da organização físico-funcional do conjunto arquitetônico aos sistemas construtivos, con-
forto ambiental, linguagem arquitetônica, etc., incluindo a memória explicativa e a maquete
volumétrica;
2) o corpo de normas técnicas para o projeto e edificação no Distrito Federal, bem como
normas técnicas específicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e outras normas
selecionadas – como é o caso do dimensionamento das circulações verticais e horizontais em edifí-
cios, baseado no cálculo de sua lotação, seguindo o Código de Edificações da Cidade de São Paulo,
que apresenta método não adotado no Distrito Federal, mas com resultados de interesse para o
estudo e a comparação.
Interessa dizer que a avaliação pondera diferentemente cada uma dessas etapas, atri-
buindo peso 1 às duas primeiras (estudos de casos e estudos preliminares) e peso 3 à última (ante-
projeto). Cada etapa é avaliada segundo a planilha que sistematiza previamente todos os aspectos
considerados relevantes aos seus produtos e procedimentos, gerando notas numéricas, que são, ao
final, transpostas para o sistema de menções adotado na UnB.
Observa-se que o anteprojeto é objeto de avaliação em duas etapas: uma pri-
meira, ao final das cinco primeiras semanas dessa última etapa (divulgando-se as decisões
próprias ao desenvolvimento em escala maior, buscando-se correções de todo o trabalho de
orientação, com a participação de arquitetos convidados), e a última, ao final da etapa. Nes-
ta última avaliação, ocorre apresentarmos os projetos a uma comunidade-cliente, que os
aprecia e critica.
Esse tipo de apresentação se fez com algum sucesso nas abordagens do tema “hospi-
tal público de especialidades” (tema desenvolvido ao longo de oito semestres, de 1993 a 1996), com
a participação das equipes de saúde e de associações de usuários da Fundação Hospitalar do
Distrito Federal (FHDF). Sair do “ateliê-laboratório” implica criar uma tensão necessária, entre o domí-
nio do ateliê e o domínio do “real”, do caso concreto, das contradições do usuário concreto, revelan-
do pelo menos uma parte dessa acepção de complexidade na arquitetura, representada pela
multiplicidade de aspectos a considerar conjuntamente, e que são “resolvidos” – de algum modo –
em qualquer projeto.
98 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Recortes/direções/possibilidades da problematização
Essa organização da disciplina Projeto Arquitetônico de Funções Complexas faz
frente ao objetivo de habilitar o estudante de Arquitetura ao projeto de edifícios e conjuntos de
edifícios com programas de necessidades enormes, com centenas de espaços e várias deze-
nas de milhares de área de construção. Somente as grandes “instituições” podem apresentar-
se com tais necessidades. Não deixa de ser interessante que a habitação não seja associada a
um problema arquitetônico “complexo”.
Na disciplina de graduação deve ficar claro o “surgimento” de tais edifícios/urbanos,
como fruto de necessidades que somente uma poderosa e intrincada divisão técnica e social do
trabalho poderiam gerar, bem como a sua utilização, dado que desenvolvem atividades e prestam
serviços em escala regional, em muitos dos casos: um hospital especializado em câncer ou em
doenças do aparelho locomotor será certamente demandado por populações situadas em uma área
cujo raio pode atingir centenas ou ultrapassar o milhar de quilômetros (sendo a nossa referência o
Planalto Central do Brasil).
Nesse sentido, o estudo da complexidade dos objetos arquitetônicos deve apontar para
algumas direções e apresentar alguns recortes necessários, como:
a) a direção do “urbano”, estruturando a análise da comunidade de variáveis entre edi-
fícios que impactam fortemente a organização dos espaços urbanos (a princípio, em qualquer “dese-
nho de cidade”, mas, evidentemente, com real dependência da forma como o espaço urbano é
produzido e projetado, gerido e transformado) e esses espaços, que indicam a ambigüidade essen-
cial entre edifícios “impactantes” (como as rodoviárias, os hospitais, os centros de compras, os cen-
tros administrativos, etc.) e a cidade em torno;
b) a direção do edifício, como organização físico-funcional singular, continente de espa-
ços e inter-relações de atividades que, embora totalmente vinculadas a necessidades que se colo-
cam a partir de um programa “urbano”, podem ser analisadas em termos de sua lógica “interna”,
sobretudo para o encaminhamento didático do aprendizado das possibilidades de sua organização;
c) a polarização entre o “urbano” e o edifício, como estruturas conectadas, comportan-
do escalas de análise, de composição de variáveis, de necessidades que transitam entre si; torna-
se claro para o estudante que efetivamente há diferenças essenciais entre esses dois pólos, que
não são a mesma coisa, mas que é possível estabelecer a análise entre os inextricáveis vínculos
existentes em sua relação ambígua (nos sentidos de o urbano ser domínio dos edifícios e de um
grande conjunto de elementos físicos que sustentam a vida urbana física; de que nos edifícios “com-
plexos” há uma forma de replicação da organização que ocorre na cidade, sua circulação, distin-
ções de ocupação, troca e contato, produção e consumo, etc.; ou mesmo no sentido de que o que
é público e o que é privado muda de sinal a cada aproximação ou distanciamento de um e outro
domínio, relativamente).
Assim colocado, também não há novidade nos recortes eminentemente “objetuais” e,
em alguns dos passos, indisfarçavelmente “funcionalistas” ou de estrita instrumentalidade. O proble-
ma de projeto representado por um edifício “impactante” torna-se rapidamente complexo, e é urgen-
te a solução didática para que não se torne imensamente complicado. Complexidade, como tema
para a reflexão didática, implica, finalmente, seletividade e inteligência de escolha, cujo exercício
orienta a construção da metodologia de ensino esboçada:
Nunca será possível resolver todos os problemas. (...) Na verdade, é uma característica do século XX
que os arquitetos sejam altamente seletivos na determinação de quais problemas querem resolver.
Mies, por exemplo, realiza edifícios maravilhosos simplesmente porque ignora muitos aspectos de
um edifício. Se ele resolvesse mais problemas, seus edifícios seriam muitíssimo menos potentes
(Rudolph, 1961, apud Venturi, 1978, p. 28).
Cabe questionar se nossos pré-conceitos, se nossos pré-paradigmas de ensino e de
arquitetura não têm limitado injustificadamente as escolhas que devemos fazer, que estão abertas
para a nossa formação e atuação profissionais. A questão da complexidade em arquitetura nos obri-
Projeto Arquitetônico de Funções Complexas 99
ga, assim, a envolver o estudante numa apreciação ampla de tantas variáveis quantas sejam aplicá-
veis às condições dadas de ensino de projeto, e desafia o professor a abrir possibilidades de sínte-
ses que não excluam contradições a seus próprios e prévios conceitos. A complexidade é, inerente-
mente, integradora e aberta, e o viés de discussão iniciado por Venturi em meados da década de 60
deve ser explorado conceitualmente em nosso próprio tempo, em nossa disciplina da Arquitetura e
(de um modo inesperado para o referencial venturiano) diante de outras área disciplinares.
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*Publicado originalmente na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), Brasília, v. 78, n. 188/189/190, p. 22-56, jan./dez. 1997.
**Arquiteto, doutor em Arquitetura pela Architectural Association School of Architecture (AA) de Londres. Professor adjunto do Departamen-
to de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB), onde ministra disciplinas nos cursos de
graduação e de pós-graduação sobre o ambiente construído das organizações complexas. O principal objeto de estudo dessas disciplinas
são os centros universitários, comerciais, hospitalares e habitacionais. Atualmente, desenvolve atividades de projeto arquitetônico e traba-
lhos de extensão universitária e de pesquisa. É fundador e coordenador de um grupo de trabalho de arquitetura, composto por graduandos
da FAU, técnico de nível médio e arquiteto. O grupo desenvolve pesquisas interdisciplinares, bem como técnicas para a produção de
espaço arquitetônico com fibras naturais ou vegetais.
1
Por formação profissional do arquiteto, entende-se aquela onde a unidade de ensino da arquitetura (departamento, escola ou faculda-
de) supre as suas próprias necessidades de disciplinas que compõem o currículo do curso. Sua ênfase é no preparo e treinamento
profissional do estudante. Visa ao exercício profissional, isto é, ao desenvolvimento da capacidade do estudante em resolver proble-
mas utilizando-se de conhecimento específico (instrumental técnico) restrito à área disciplinar. Por formação universitária do estudante
de arquitetura, entende-se seu treinamento intelectual e sua inserção na cultura organizacional ou universitária. Essa inserção do
estudante de arquitetura na universidade implica três tipos de formação. O primeiro compreende a capacidade de falar diversas
linguagens existentes na universidade. Esta é uma das condições da interdependência acadêmica. O segundo, o preparo intelectual
e em pesquisa dos estudantes de arquitetura. O terceiro, a cultural.
2
O termo “escola”, particularmente “escola de arquitetura”, é usado genericamente, podendo significar faculdade, instituto ou departamento.
Capítulo 6
A formação do arquiteto
e a universidade
*
Jaime Gonçalves de Almeida**
Resumo
Analisa as relações entre a formação do arquiteto e a universidade sob o ponto de vista do ensino de
arquitetura. Argumenta em favor da inserção desse ensino no contexto universitário (disciplinas
universitárias afins). A Escola ou Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília
(FAU/UnB) é o principal objeto de análise. Aponta, como um sério obstáculo ao intercâmbio acadêmico,
a forma como o ensino de projeto é ministrado. Compara duas concepções existentes sobre esse
ensino, uma denominada disciplinar e outra universitária. O método de ensino de projeto
correspondente à concepção disciplinar é denominado de programa-projeto ou análise-síntese, e o
segundo, de projeto conceitual. Para o primeiro, a universidade é um ambiente neutro; para o segundo,
uma necessidade. Conclui defendendo a inserção da arquitetura na universidade e enfatizando dois
aspectos interdependentes: a formação intelectual e a formação investigativa (pesquisa) dos
graduandos do curso de Arquitetura da UnB.
Não pretendia concorrer e, na verdade, não concorro; apenas me desvencilho de uma solução
possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta.
LÚCIO COSTA. Relatório do Plano Piloto de Brasília.
Introdução
Um dos importantes aspectos do ensino da arquitetura é o relacionamento entre a forma-
ção profissional e a formação universitária do estudante.
1
Entretanto, as escolas de arquitetura,
2
inseridas
na universidade, tendem a concentrar seus esforços na preparação profissional dos seus estudantes em
detrimento da sua formação universitária. Os laços entre o ensino de arquitetura e o contexto universitá-
102 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
3
José Arthur Gianotti tem razão quando defende a palavra “interdependência” em lugar de “integração”. A primeira traduz melhor o
ambiente universitário onde há conflitos entre as diversas unidades acadêmicas (ver “O pensamento científico integrado”. Opinião,
9/7/1976).
rio, desde a reforma universitária dos anos 60, com a criação da escola de arquitetura da Universidade
de Brasília (UnB), têm sido enfraquecidos. O argumento corrente defende o alinhamento do currículo do
curso de Arquitetura à suposta demanda do mercado profissional por arquiteto com maior qualificação
técnica (arquiteto projetista). É desejável uma formação equilibrada do arquiteto, ao invés da sua con-
centração unicamente nas disciplinas específicas da área. Entre elas, o ensino de projeto arquitetônico é
uma das atividades essenciais à inserção do ensino de arquitetura na organização universitária. Afora a
sua especificidade, por exemplo, a representação por meio de desenhos, a elaboração de projeto em
arquitetura contém procedimentos comuns a outras áreas acadêmicas. Entre elas, encontram-se as
engenharias, a administração e a economia.
O projeto no ensino da arquitetura é uma etapa de síntese. Ele atua pedagogicamente no
desenvolvimento dessa capacidade de síntese na formação do estudante. O ensino de projeto é
usualmente dividido em duas principais etapas, a análise de informações e a espacialização. Esta
última se subdivide em estudo preliminar, anteprojeto e projeto executivo.
A etapa analítica do projeto é importante por ser um dos pontos de partida para a elabora-
ção daquele. Ela envolve o exame de aspectos comportamentais e, também, de solicitações de ordem
física das pessoas e das instituições a que o projeto se destina. Tais informações, na sua totalidade, são
geradas em outros ramos do ensino universitário não vinculados ao ensino de arquitetura. A análise
dessas informações para elaborar o projeto requer do estudante de arquitetura duas ações. Uma é a
obtenção ou seleção da informação e, a outra, a interpretação. Em ambas, a interdependência acadêmi-
ca é inevitável.
3
Os tipos mais comuns de obtenção de informações, envolvendo áreas de ensino univer-
sitário, são o contato direto (entre as pessoas) e o indireto (por exemplo, a consulta bibliográfica). Na
atual estrutura organizacional da universidade, o contato direto entre as áreas acadêmicas ou entre as
pessoas pertencentes a elas pode ocorrer por meio das atividades formais. Um exemplo é a disciplina
Ergonomia, pertencente ao Departamento de Psicologia, que poderá ser cursada pelos estudantes de
arquitetura como uma disciplina optativa. Do ponto de vista do contato indireto, o relacionamento poderá
ocorrer através dos equipamentos universitários, como a biblioteca central.
O relacionamento existente do curso de Arquitetura com as demais unidades universitá-
rias ocorre, mediante a oferta de algumas disciplinas, por imposição curricular (por exemplo, Mate-
mática e Estatística). Quanto ao relacionamento indireto, este acontece, por exemplo, na elaboração
do projeto arquitetônico (disciplinas de ateliê). Na montagem do programa de necessidades, os estu-
dantes buscam informações de diversas naturezas (sociais, técnicas, etc.). Consultam professores
de outras áreas e material bibliográfico (textos universitários, livros, etc.). Outras informações para o
projeto, tais como as relativas ao repertório tipológico (modelos de edificações e soluções construti-
vas entre outras), provêm na sua maioria do mercado profissional da produção da arquitetura. São
elas veiculadas nas revistas, exposições, palestras e noutros eventos de arquitetura.
A universidade, entretanto, é pouco ou quase nada explorada. Algumas dificuldades, em
relação ao aproveitamento das informações acadêmicas (fruto de pesquisas, estudos, seminários e
outras atividades) pelo estudante de arquitetura, são evidentes. Não é fácil a interpretação de informa-
ções acadêmicas quanto à forma de aproveitamento destas na organização do programa e na elabora-
ção do projeto. Soma-se a esse quadro o nível de complexidade e especificidade, em termos de proces-
so de trabalho e enfoque, das áreas acadêmicas e, em particular, das afins do ensino da arquitetura.
Essas áreas têm oferecido disciplinas nunca dantes cogitadas, tanto no ensino universitário quanto no
currículo acadêmico do arquiteto. Por isso, o estudante de arquitetura defronta-se com disciplinas tais
como: a Antropologia da Arte, a Percepção, a Morfologia Geométrica, a Ciência do Desenho dos Obje-
tos, entre outras. A principal característica desse processo é a variedade de enfoque (oferta de discipli-
nas por diferentes áreas de ensino) de assuntos de interesse do estudante de arquitetura. A limitação do
acesso desse estudante a tal oferta é uma das questões que afetam negativamente o ensino de arquite-
tura. O aproveitamento de informações geradas numa área acadêmica para outra (nesse caso, pelos
estudantes de arquitetura) não é um processo imediato. Em primeiro lugar, sua utilização em projeto
A formação do arquiteto e a universidade 103
demanda certo manuseio, seleção (como e onde usar) e, principalmente, interpretação (saber da
importância). Em segundo, compatibilidade de processo de trabalho entre ambas as áreas envolvi-
das no relacionamento acadêmico. Nesse sentido, é importante considerar a pedagogia do ensino
de arquitetura.
Este trabalho, com base no ensino de projeto, analisa a inserção do ensino de arquitetura
no contexto universitário (áreas acadêmicas afins). A análise compara dois pontos de vista sobre a for-
mação do arquiteto. O primeiro é denominado de disciplinar e o segundo, de universitário ou da forma-
ção do arquiteto. Cada um deles interpreta, a seu modo, o papel da universidade no curso de Arquitetura.
O primeiro modelo de ensino concentra-se nos aspectos pragmáticos da formação do
arquiteto (instrumentação técnica, por exemplo). Sua principal característica é a ênfase na prepara-
ção profissional.
O segundo modelo insiste no envolvimento interdisciplinar do ensino de arquitetura com
o ensino universitário. Ele evidencia a formação universitária do estudante de arquitetura.
Este trabalho está organizado em três partes. A primeira contém a discussão de dois
pontos de vista sobre o ensino da arquitetura. Ela se subdivide em duas seções: a) a formação
disciplinar do arquiteto e b) a formação universitária do arquiteto. A segunda parte discute os obstá-
culos existentes à inserção acadêmica do ensino de arquitetura na universidade. A terceira parte
contém a conclusão, apresenta um quadro sumário dos problemas que afetam o ensino de arquite-
tura e sugere medidas para fortalecer o relacionamento desse ensino com a universidade.
Análise da formação profissional e universitária do arquiteto
A formação disciplinar do arquiteto
Um ensino de arquitetura com pretensão disciplinar é um ensino pragmático. Preocupa-se
essencialmente com a transmissão de informações, regras de composição do projeto, relativas às suas
tipologias específicas e às matérias de apoio técnico. A orientação principal dessa visão de ensino é o
exercício profissional. Sua fonte de inspiração são os modelos organizacionais, ou os padrões de projeto,
provenientes da prática profissional da arquitetura. Tudo indica que as disciplinas universitárias afins da
arquitetura, como Artes ou as Ciências Sociais, desempenham um papel secundário nesse tipo de ensi-
no. Elas são consideradas, respectivamente, meio de treinamento da capacidade de desenho e fonte de
informação para a elaboração de programas.
Vitruvius (1960) é, talvez, o primeiro a enfatizar esse ponto de vista. Ele assinala que “o
arquiteto deveria ser instrumentado com conhecimento de vários ramos de estudo e tipos de aprendiza-
gem”. As principais disciplinas integrantes da elaboração da arquitetura, segundo ele, são: Desenho,
História, Filosofia, Música ou Matemática, Medicina, Direito e Astronomia. Ele afirma que o nível de conhe-
cimento dessas disciplinas para o arquiteto não deveria ser nem profundo (conhecimento extensivo) nem
superficial. O objetivo de tais disciplinas é tornar o arquiteto ciente dos conhecimentos primários de
projeto. Isso pode ser traduzido como informações para o projeto (programa de necessidades) e regras
específicas (procedimentos normativos) para a elaboração do mesmo. A Música constitui a fonte inspiradora
do sistema de proporcionalidade geométrica, sendo a arquitetura clássica grega o seu modelo real.
Vitruvius destaca três critérios (construção, utilidade e beleza) para a elaboração do projeto
arquitetônico. Entre eles, a composição formal do desenho, a aparência visual ou beleza é uma das mais
importantes atividades do arquiteto. Isso é justificado por ele por intermédio da teoria das proporções
matemáticas. Adicionalmente, certas propriedades, como, tamanho, tensão e tonalidade das cordas
dos instrumentos musicais foram arroladas como demonstração prática daquelas regras.
Vitruvius advoga critérios de projeto tais como: o ordenamento e a simetria; a organiza-
ção dos planos e fachadas; a harmonia (relação entre a altura do edifício e a sua profundidade); a
adequação de estilo e dos materiais empregados e a sua implantação no terreno ou sítio. Em Vitruvius,
o ideal da beleza formal pode ser traduzido em ordenamento ou ordem, de proporção ou relação, e
abstração ou razão. Em outras palavras, beleza significa composição derivada de regras racionais
de desenho. A forma é o principal veículo de expressão visual da beleza.
104 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Figura 1 – Modelo de um projeto de Andrea Palladio.
Fonte: PALLADIO, Andrea. The four books of architecture. New York : Dover Publications, 1965. p. xiii.
Ruskin (1956, p. 126-127) observa que tanto a proporção quanto a abstração “são as
duas especiais distinções do desenho arquitetural de todos os outros desenhos”. Para ele, “a compo-
sição é [um ato de] organizar coisas desiguais, e a primeira coisa a ser feita ao iniciar uma
composição é determinar qual é a principal coisa”. A regra essencial da composição é de no
mínimo três elementos, segundo o autor, e compreende o relacionamento entre a simetria,
A formação do arquiteto e a universidade 105
empregada no plano horizontal, e a proporção, no vertical. Ruskin justifica o emprego dessas
regras, por meio de uma analogia com a organização da natureza,
4
e afirma que a beleza
formal nasce a partir de um processo de reprodução (arte) e de abstração (analogia) das
formas orgânicas naturais.
A vinculação do ensino de arquitetura à faculdade de belas-artes parece ter contri-
buído para uma diferente função da arte nesse ensino. As artes plásticas (por exemplo, a pintu-
ra e a escultura) deixaram de ser uma área de ensino complementar para se tornar central na
formação do arquiteto. No Rio de Janeiro, na década de 30, durante a reforma do ensino de
Arquitetura, Lúcio Costa (1962) assinalava que a arquitetura é “fundamentalmente, artes plásti-
cas”. A intenção plástica desempenha na elaboração do projeto um papel central. Não menos
importantes para Lúcio Costa são as disciplinas tecnológicas como, na área da Engenharia
Civil, a disciplina de Construção. Lúcio Costa defendia um currículo para o ensino de arquitetura
com disciplinas de formação plástica e técnico-científica. Para ele, as artes ocupavam um lugar
central entre as disciplinas da formação do arquiteto. Nesse sentido, ele advogava a convivên-
cia do estudante de arquitetura com pintores e escultores.
A opinião corrente, entre os arquitetos, é que há diferenças substanciais entre o
ensino de arquitetura vinculado à faculdade de belas-artes e à politécnica (engenharia civil).
Fundamentado nessa premissa, fala-se da suposta oposição entre o conhecimento artístico
(ênfase na chamada sensibilidade) do primeiro e o científico (ênfase na chamada racionalidade)
do segundo. Ora, tal divisão é insustentável de um ponto de vista menos restrito. Para Schiller
(1985, p. 123) a função da beleza não é limitada a uma específica potencialidade humana, seja
ela a sensitiva ou a racional. A beleza unifica as “duas opostas situações, o sentimento e o
pensamento; embora entre elas não haja absolutamente meio termo”. A questão levantada por
Lúcio Costa (relacionamento entre a dimensão plástica, técnica e científica do ensino de arqui-
tetura) adquire outra dimensão quando considerada a instituição universidade.
5
Nessa institui-
ção, a antiga dicotomia (entre o ensino de arquitetura na faculdade de belas artes e na politéc-
nica) perde sentido. A diversidade de ramos de ensino da instituição amplia o horizonte do
estudante de arquitetura. Assim, esse curso tem maiores possibilidades de estabelecer novas
parcerias, e o ensino de projeto adquire novas dimensões. Quanto à parte analítica, pode ser
enriquecida, pois ao invés de preparar a síntese ela pode funcionar como elemento verificador
da hipótese lançada (projeto). Nesse sentido, a análise testa o projeto sob o ponto de vista dos
requisitos funcionais e ambientais, entre outros. Outra implicação compreende a mudança do
significado de projeto.
Enquanto conceito, amparado por uma teoria, o projeto é uma suposição ou resposta
a um determinado contexto (econômico, ambiental ou cultural), a um tema (ou mote) e a dadas
condições técnicas. Um dos requerimentos para a conceituação é o preparo intelectual. Essa pre-
paração teórica do arquiteto pode ser viabilizada na universidade, uma vez que nela há uma
multiplicidade de disciplinas acadêmicas de formação geral e de interesses específicos. O campus
universitário favorece o acesso físico a tais facilidades, pois as distâncias são minimizadas devido à
concentração dos edifícios num único território. O custo financeiro de utilização desses recursos
pelo ensino de arquitetura é mínimo.
Entre as características de um currículo voltado para o ensino essencialmente disciplinar
estão a especialização (concentração de créditos ou disciplinas na própria área) e a sobrecarga curricular
(número exagerado de créditos). O argumento é este: quanto mais atividades e disciplinas próprias
melhor será a preparação do profissional. Um exemplo disso é a disciplina sobre o conforto das edificações
(Conforto Ambiental, matéria anteriormente estudada na disciplina de Higiene das Construções). Atual-
mente, ela está desmembrada em pelo menos três disciplinas específicas: Conforto Térmico, Acústico e
4
Natureza significa a exterioridade em oposição à interioridade, isto é, à consciência.
5
A universidade é considerada uma organização social formada por várias áreas interdependentes do conhecimento. Seu principal
propósito é o ensino, a pesquisa e a extensão; possui estrutura física (território e edificações) e organizacional, regida por normas
como, por exemplo, estatutos e regimentos.
106 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Luminoso. Tal desmembramento produz, em regra geral, a ampliação dos créditos do curso. O custo
disso é, por um lado, a supressão de créditos externos (disciplinas não administradas pelo próprio cur-
so). Por outro lado, o aumento da carga horária dos estudantes na sua área de estudos pode dificultar a
sua integração com os demais estudantes universitários (estudantes pertencentes a outros cursos uni-
versitários). Adicionalmente, a falta de tempo pode limitar a participação dos estudantes em eventos
culturais fora do âmbito da escola e da universidade.
O argumento em prol da exclusividade do ensino de arquitetura na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UnB fundamenta-se em dois aspectos acadêmicos. Um deles
diz respeito à definição ou afirmação da arquitetura como área específica dentro da universidade
e o outro, ao limitado conteúdo e tipo de disciplina oferecida pela universidade à arquitetura.
Segundo esse argumento, o estudante estará melhor qualificado para exercer suas atribuições
profissionais se for preparado principalmente por arquitetos. Em primeiro lugar, a participação de
outros profissionais (artistas, acadêmicos, etc.) na formação do arquiteto não exclui necessaria-
mente os profissionais de arquitetura. Em segundo lugar, a afirmação de uma área de estudos
dentro da universidade não é feita no isolamento. Neste aspecto, o intercâmbio de experiência e
atividades com os setores afins e, principalmente, com os de maior tradição de vida acadêmica, é
uma necessidade.
O argumento prossegue afirmando que as disciplinas introdutórias oferecidas por
outras unidades de ensino à arquitetura despertam pouco interesse dos estudantes. Esse pa-
rece ser o caso das disciplinas oferecidas, por exemplo, pelos Departamentos de Física e de
Matemática. Esses departamentos oferecem aos estudantes do básico em geral, inclusive es-
tudantes de ciências humanas e de arquitetura, disciplinas tais como Introdução à Física e
Cálculo 1. Neste tipo de oferta há problemas. Essas disciplinas são um encargo a mais para
esses departamentos. Os professores responsáveis por elas são obrigados, por uma contin-
gência institucional, a ministrar disciplinas para estudantes fora de sua área. O desempenho
dos estudantes, em geral, não agradava a esses departamentos. Isso repercute negativamen-
te para o relacionamento acadêmico entre os cursos universitários. Um agravante disso é a
falta de mecanismos de administração de problemas dessa natureza no nível das áreas envol-
vidas. Não há, também, investimento de esforços a fim de tornar essas ofertas de disciplinas
mais úteis e atrativas à clientela. É obvio que disciplinas dessa ordem têm uma função pragmá-
tica. Elas cumprem exigência curricular e nada além, pois visam sobretudo transmitir, na forma
mais elementar possível, os conteúdos necessários para que os estudantes possam cumprir
seus programas de curso. Essas disciplinas na sua totalidade são pré-requisitos de outras
disciplinas obrigatórias.
Os departamentos que as oferecem não se sentem estimulados na transmissão
do que há de mais novo na sua área. As noções essenciais de teoria da área são abreviadas.
Por exemplo, os estudantes de Arquitetura vão ao Departamento de Matemática não para
resolver um determinado problema espacial de um dado programa ou projeto. Eles buscam
obter créditos necessários para cursar outras disciplinas de sua área como: Estruturas
Arquitetônicas e Conforto Ambiental, que têm como pré-requisito Cálculo e Introdução à Físi-
ca, respectivamente. Existe, então, uma vinculação curricular e pragmática entre disciplinas e
não entre áreas do conhecimento.
A formação universitária do arquiteto
O segundo ponto de vista do ensino de arquitetura difere do primeiro em um aspec-
to principal: a inclusão de disciplinas acadêmicas integrantes de outras áreas de ensino univer-
sitário na formação do estudante de arquitetura. Trata-se da inserção do estudante na cultura
universitária. Do ponto de vista profissional, as disciplinas universitárias, em menor número do
que no segundo, desempenham duas funções principais. Elas são a fonte de informação para a
elaboração dos programas de necessidades físicas e o complemento (aspectos técnicos) do
ensino de arquitetura. Nesse caso, são apenas pré-requisitos obrigatórios do curso de Arquitetura.
A formação do arquiteto e a universidade 107
O Ateliê ou Composição, nomes comuns dados à disciplina de Projeto Arquitetônico,
é o divisor de águas entre esses dois pontos de vista. A elaboração de projeto no ensino de
arquitetura pressupõe, entre outros aspectos, o desenvolvimento da capacidade mental e ima-
ginativa do estudante.
Alberti (1986, p. 1-2) afirma que arquiteto “é quem, por certa maravilhosa arte e método,
é capaz, com pensamento e invenção, de projetar e elaborar, com beleza (projetos de edificações),
(...) para usos diversos da humanidade”. Assim, o projeto é “um firme e gracioso pré-ordenamento de
linhas e ângulos, concebido na mente, e imaginado por um artista engenhoso”. De outro ângulo,
Ruskin (1956, p. 7) define arquitetura como “uma arte relacionada com edifícios e sua ornamentação,
os quais são construídos pelo homem, para qualquer uso, cuja presença pode contribuir para a
saúde, o poder e o prazer mental do homem.”
Em ambas as considerações de Alberti e Ruskin, sobre o projeto e a arquitetura, há em
comun dois aspectos inter-relacionados. O primeiro refere-se às disciplinas vinculadas à organização
formal da edificação. O segundo, ao trabalho intelectual investido nela. Este último, segundo tais
autores, confere ao projeto uma função civilizatória e cultural.
O cumprimento dessa função, no ensino de arquitetura, fora delegado às disciplinas
integrantes do currículo do curso. Por exemplo, nas antigas faculdades (ligadas às belas-artes e à
politécnica), a disciplina de História e Teoria visavam à formação intelectual dos estudantes; as de
Artes, à sua sensibilidade (Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura, 1977); a de projeto, à
capacidade criadora e de síntese. Porém, num contexto universitário, existe uma grande variedade
de disciplinas que podem desempenhar semelhantes funções. São elas disciplinas acadêmicas, não
vinculadas à arquitetura.
Por uma contingência conjuntural (a implantação de novas universidades federais nas ca-
pitais estaduais e a reforma do ensino superior brasileiro, durante as décadas de 1960 e 1970, particular-
mente o estabelecimento do campus universitário), os cursos de Arquitetura, na sua grande maioria,
estabeleceram-se na universidade. Igualmente, as escolas mais antigas de Arquitetura migraram para o
campus. O curso de Arquitetura desde então passou a ser considerado uma das áreas de ensino univer-
sitário. Assim, as disciplinas integrantes desse curso passaram a ter uma dimensão acadêmica, não
somente profissional. A institucionalização do docente arquiteto, em tempo integral, com qualificação
acadêmica, reforçou tal quadro.
O tipo mais elementar de colaboração acadêmica entre áreas do ensino universi-
tário é a troca de informações. A mais usual forma de relacionamento entre áreas acadêmi-
cas, envolvendo estudantes, é a oferta de disciplinas. O mais significativo é a aplicação e o
desenvolvimento de teorias e métodos acadêmicos de trabalho criados numa área por outras,
como a Física e a Estatística, que se beneficiavam da Matemática. Do mesmo modo as duas
primeiras influenciam outras unidades universitárias. Esse é um ambiente de mútua interação
ou interdependência acadêmica. Os estudos de arquitetura não só podem se beneficiar des-
se ambiente, na aplicação e no desenvolvimento de conhecimento, como, também, contribuir
para ele. Nesse sentido, a identificação dos elementos usados no intercâmbio acadêmico é o
passo necessário ao entendimento do significado da dimensão universitária para a formação
do arquiteto.
Em primeiro lugar, para Newman (1947, p. 36), a principal função do ensino universitário
“é imprimir na mente do jovem a idéia de ciência, método, ordem, princípio e sistema; de regra e
exceção, de riqueza e harmonia”.
Em segundo lugar, os mecanismos (instâncias de ensino, organização e gestação aca-
dêmica) da viabilização dessa função foram, segundo Rashdall (1942), definidos pelas universida-
des medievais européias do século XII. Nessas universidades, a “faculdade de artes” era a instância
acadêmica responsável pela formação do bacharel e não do profissional especializado. Na “facul-
dade de artes”, as disciplinas responsáveis pela formação universitária do estudante compunham
dois ciclos de estudo. O primeiro, chamado de trivium, com duração de três anos, compreendia as
disciplinas de Gramática, Retórica (letras clássicas) e Lógica (substituída mais tarde pela Dialética).
O segundo, o quadrivium, abrangendo quatro anos de estudo, era formado pelas disciplinas de
Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. O significado da palavra arte, para tal faculdade, pare-
108 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
ce ser o mesmo de ciência, na concepção de universidade feita por Newman. Em ambas as situa-
ções, o emprego da palavra arte significa preparação mental do estudante. Entretanto, na atualida-
de, a dimensão estética da arte no ensino está relacionada com categorias da sensibilidade, como
a sensação e a contemplação.
Quanto às artes, o ensino de arquitetura tem se valido da pintura e da escultura como
meios pedagógicos para a educação estética do arquiteto. A palavra arte é, por vezes, colocada em
oposição à palavra ciência. Entretanto, na educação do arquiteto ambas são relevantes. Nesse
ensino há princípios de composição arquitetônica envolvendo o que se denomina arte e ciência.
Assim, os princípios de ordem, harmonia e proporção em Vitruvius, e a noção do todo, em termos
formais e estruturais em Alberti, são, ao mesmo tempo, objetos da educação estética e lógica ou
científica do arquiteto.
Schiller (1985) identifica três estágios do processo reflexivo: a sensação, o intelec-
to e a razão. Segundo Schiller, a estética
6
relaciona-se com esses três estágios, embora não se
limite a nenhum deles. Cada um desempenha funções específicas no processo reflexivo. A sen-
sação e a razão são processos globalizadores do conhecimento, enquanto o intelecto, ao con-
trário dos dois anteriores, é um processo que decompõe ou separa o conhecimento. Para Schiller,
a forma (entendida como ordenamento e proporção) no processo de conhecimento unifica o
sentimento ao pensamento (função do intelecto).
No ensino da arquitetura, a forma relaciona-se com o pensamento por meio de
duas atividades: a especulação e a imaginação. A contribuição da universidade (estudos uni-
versitários) na preparação do estudante para lidar com a forma tem se dado de três maneiras.
Em primeiro lugar, a arte desenvolve no arquiteto a visão de conjunto; em segundo, a extensão
universitária desenvolve a percepção do real; em terceiro, a ciência, o aprimoramento do pro-
cesso intelectual. Entre as atividades acadêmicas, as de pesquisa desempenham um papel
especial na formação universitária do estudante de arquitetura. Por exemplo, ela desenvolve a
capacidade teórica do estudante relacionada com a descrição e a proposição de formas de
desenvolvimento (sistemas, leis e princípios). Adicionalmente, ela prepara o estudante para a
descrição e a interpretação sistemática de fatos observados nos ambientes construídos. A ativi-
dade de pesquisa no âmbito do ensino da arquitetura não é feita no isolamento. O estabeleci-
mento de relações com outras áreas acadêmicas é imprescindível. Entretanto, a inserção da
formação do arquiteto na cultura universitária é dificultada por três principais obstáculos: a falta
de uma política universitária para o relacionamento acadêmico das áreas de ensino e pesquisa,
a formação exclusivista do arquiteto e a organização do ensino de arquitetura.
Análise dos obstáculos à inserção do ensino de arquitetura na universidade
O primeiro obstáculo é a ausência de políticas universitárias que estimulem a colabora-
ção das áreas acadêmicas entre si, visando à formação dos estudantes universitários.
É um fato dominante na universidade de hoje a concentração de esforços das diversas
áreas acadêmicas na formação específica dos seus estudantes. Parece que as possíveis atividades
mútuas, propósitos comuns do ponto de vista institucional, ficam no segundo plano. Por exemplo,
na UnB os núcleos multidisciplinares de ensino, criados em meados da década de 80, em substitui-
ção ao básico comum, não tiveram o êxito esperado.
A ausência de um projeto universitário certamente concorreu para esse estado de coi-
sas. Não há compromisso claro do ensino universitário e, também, da própria instituição de participar
na resolução dos problemas nacionais. Na década de 60 havia diretrizes institucionais. No início da
6
Schiller (1985, p. 139) observa que “o nosso psíquico passa da sensação para o pensamento por meio de uma condição intermediária na qual
a sensação e a razão estão ao mesmo tempo ativas. Precisamente por esta razão, no entanto, elas se cancelam mutuamente como forças
determinantes e estabelecem a negação por meio da oposição. Essa condição intermediária, na qual o psíquico não está sujeito às condições
físicas nem morais, estando mesmo assim ativo nessas duas formas, claramente merece ser chamada de disposição livre; e se nós chamamos
a condição de racional determinação da lógica, ou moral, então devemos chamar de real e ativa a propriedade da estética”.
A formação do arquiteto e a universidade 109
década de 70 havia interesse, entre estudantes e professores, de comprometimento do ensino com
problemas reais do País.
As restrições das aplicações financeiras no ensino público universitário devem ter
agravado a situação.
Do ponto de vista curricular a diminuição da oferta mútua de disciplinas é outra séria
limitação das relações interdepartamentais. Não menos importante é o problema apontado por
Almeida (1988). Trata-se da substituição da formação humanística do estudante pela profissional. O
básico geral, que deveria ter sido substituído por um instrumento mais eficaz, foi simplesmente
eliminado. A administração universitária deixou em aberto a livre escolha de disciplinas complemen-
tares. Assim, o estudante de Arquitetura, por exemplo, pode escolher disciplinas de outra áreas
dentro de um número muito reduzido de créditos.
O segundo obstáculo é a formação exclusiva ou profissional do arquiteto. A exclu-
sividade é justificada pelo seguinte. O treinamento do estudante, em profundidade, no campo
específico, é uma das garantias da boa atuação do futuro profissional. Para viabilizar tal intento,
as escolas de arquitetura buscaram modelos organizacionais exclusivos (por exemplo, o de
faculdade), com autonomia na oferta, criação de disciplinas e contratação de docentes. Nesse
aspecto, tais escolas suprem, por elas mesmas, as disciplinas ou conteúdos que poderiam ser
oferecidos com maior eficácia por outras áreas de ensino. Artifícios administrativos são adotados
para contornar o problema da dependência de disciplinas. Por um lado, quando não é possível
transmitir um determinado conteúdo pela própria unidade acadêmica, esse é excluído do currí-
culo. Por outro lado, ampliam-se ou adaptam-se disciplinas existentes a fim de incorporar novos
conteúdos. Um exemplo é a disciplina sobre a forma na arquitetura, que tem se prestado ao
estudo da relação entre os ocupantes e a ocupação das edificações. Entretanto, assuntos de
interesse do arquiteto, como o comportamento humano no uso dos ambientes construídos (pre-
ferências, percepção, etc.) e a teoria urbana são hoje tópicos desenvolvidos, respectivamente,
pela psicologia ambiental e pela geografia urbana. A colaboração mútua dessas áreas com a
arquitetura seria altamente desejável.
Adicionalmente, o aperfeiçoamento acadêmico dos professores de Arquitetura, ou seja,
a qualificação docente por meio de cursos tem sido um meio para superar tais problemas. Entretan-
to, desenvolver recursos humanos para cobrir todos os campos de estudo, como os relacionados
com o meio ambiente construído, é inviável do ponto de vista prático e financeiro. Certamente, o
caminho menos oneroso para resolver tais problemas é o do intercâmbio acadêmico no âmbito da
própria universidade.
O terceiro obstáculo está relacionado com a forma de organização institucional do ensi-
no da Arquitetura. A forma como esse ensino se organiza acadêmica e administrativamente é uma
importante variável à análise de sua inserção na instituição universitária. A FAU/UnB é tomada como
exemplo. O principal motivo dessa escolha é o fato de essa escola ter passado, num curto espaço de
tempo, aproximadamente três décadas, por uma série de experiências organizacionais. O principal
mérito dessas tentativas foi a busca de um modelo organizacional que fortalecesse a formação uni-
versitária dos seus estudantes.
A FAU/UnB foi criada em 1962 juntamente com a implantação da universidade. Ambas
as instituições participaram da renovação do ensino universitário brasileiro da década de 60. A UnB
instituiu uma nova forma de organização acadêmica das áreas de ensino, coordenada por Darcy
Ribeiro e Heron de Alencar.
A estrutura organizacional da universidade, segundo Ribeiro (1978), era composta de
dois níveis de ensino superior, um universitário e outro profissional. Na UnB, tais níveis de ensino
eram, respectivamente, de responsabilidade dos institutos, organizados por área de ensino, e das
faculdades, por área profissional. Talvez um dos aspectos mais relevantes fosse a institucionalização
do departamento, por área de ensino ou atividade.
Quanto à formação do arquiteto, essa ocorria em dois momentos. O primeiro compre-
endia o Instituto Central de Artes (ICA) e o segundo, a FAU. A criação do ICA, sob a coordenação do
arquiteto Alcides da Rocha Miranda, é do ano de 1962. A necessidade de vinculação da FAU com o
ICA deve-se à manutenção do ensino da arquitetura baseado nas Artes. Por outro lado, o ICA era a
110 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
7
A múltipla vinculação do currículo do arquiteto com diferentes disciplinas universitárias é sugerida por Reis (1978). Para ele, essas discipli-
nas podem ser agrupadas em três áreas de ensino. Uma é “a formação técnica”, composta pelas disciplinas de Engenharia, por exemplo,
Estrutura, Construção, Instalações (hidrossanitárias, elétricas) e outras. A segunda é a “formação artística”. Esta contém as disciplinas
tradicionais de artes plásticas como, por exemplo, a Pintura e a Escultura. A terceira é a “formação sociológica”, composta pelas disciplinas
das ciências humanas, por exemplo, Antropologia, Sociologia e Psicologia. A reforma do ensino de arquitetura ocorrida durante as décadas
de 60 e 70, dentro dela a reforma do currículo da FAU/UnB, abriu outras possibilidades de vinculações deste ensino com o contexto
universitário. Entre essas disciplinas, estão aquelas voltadas ao entendimento da linguagem, quanto aos seus aspectos visuais (por exem-
plo, a Composição e a Impressão Gráfica, a Fotografia e o Cinema) e teóricos (por exemplo, Teoria Lingüística e Literária). De outras áreas
o ensino de arquitetura tem se valido de conhecimentos específicos. A qualificação do corpo docente da arquitetura (cursos de pós-
graduação) tem contribuído positivamente para ampliar o intercâmbio da FAU com as outras áreas do ensino universitário, em termos de
pesquisa. Entretanto, o risco da especialização do corpo docente pode, eventualmente, limitar o inter-relacionamento citado. Miguel Pereira
(1978) argumenta que a prática profissional do arquiteto exige uma formação mais globalizante além daquela estritamente disciplinar. Para
ele, as condições sociais, como as do Brasil contemporâneo, demandam uma nova postura profissional para fazer frente às necessidades
sociais (especialmente a demanda por espaço, pelas camadas mais pobres da população). Miguel Pereira advoga uma nova escola, tendo
a pesquisa como método no ensino da arquitetura (1978, p. 115). Miguel Pereira insiste na idéia de um curso de Arquitetura com opções
profissionais para atender ao que ele chama de pressão da dinâmica socioeconômica. Ele sugere uma estrutura de ensino composta de três
níveis: os departamentos, os laboratórios e o centro de documentação. Para ele, o ciclo básico universitário (ou simplesmente básico) é
uma peça essencial para a formação do arquiteto.
8
A relação entre o currículo pleno (adotado pela escola de Arquitetura) e o currículo mínimo (determinado pelo Ministério da Educação e do
Desporto) não é considerada, pois foge ao objetivo deste trabalho.
ponte pela qual o ensino de arquitetura se relacionava com a universidade. As principais unidades
de ensino do ICA eram as de Desenho, Cinema, Fotografia, Gráfica, Maquete, Teatro, Música, entre
outras. Além das disciplinas integrantes do ICA, o ensino de arquitetura contava com algumas disci-
plinas das ciências exatas e da tecnologia. É o caso de Cálculo, do Departamento de Matemática,
das Estruturas Prediais e Materiais de Construção do Departamento de Engenharia Civil. A substitui-
ção do ensino ICA-FAU e FAU-Tecnologia ocorreu com a inserção do curso de Arquitetura na área
das Ciências Humanas.
7
A nova organização do ensino de arquitetura é da década de 70. Sua implantação foi
devido ao desgaste da estrutura de ensino anterior e, principalmente, às contingências diversas,
entre elas as políticas e as administrativas, vividas pela UnB, em especial, e pelas universidades
federais como um todo.
Quanto à UnB, o modelo de ensino anterior, denominado de ICA-FAU, foi substituído
pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IA). O ensino das artes (ex-ICA) acabou sendo confinado
num departamento, o Departamento de Desenho, vinculado ao IA. Mais tarde, tal departamento foi
elevado à categoria de instituto, o Instituto de Artes (IdA). Atualmente, o IDA não possui vinculações
diretas (acadêmicas) com o ensino da FAU.
No IA, durante a década de 70, o ensino de arquitetura desenvolveu os aspectos socio-
lógicos da formação do arquiteto. No entanto, os entraves burocráticos e o descompromisso de
colaboração acadêmica, entre os diferentes departamentos universitários, concorreram para o enfra-
quecimento desse modelo de ensino.
A mais recente reforma do currículo e da estrutura organizacional do ensino de arquite-
tura da UnB privilegiou a autonomia do curso em detrimento da relação acadêmica com a universi-
dade. O IA cedeu lugar à FAU. Esta faculdade supre o ensino de arquitetura com a totalidade das
disciplinas, tendo para tanto autonomia acadêmica e administrativa.
O quarto obstáculo relaciona-se com o ensino de arquitetura nos aspectos pedagógico
e organizacional. Essas variáveis dizem respeito ao processo de ensino de arquitetura e seu relacio-
namento com o ensino universitário. Essas são, entre as variáveis já analisadas, as mais importantes
a serem consideradas. O ensino, isto é, os currículos e as experiências pedagógicas da FAU/UnB são
os principais exemplos dessa análise. Das formas organizacionais e curriculares que essa escola tem
experimentado, três delas correspondem a momentos representativos do ensino de arquitetura no
País. O principal aspecto discutido é o da relação entre o ensino (aspectos curriculares e
organizacionais) da FAU e o ensino universitário.
8
Essas três principais etapas do ensino de arquitetura da FAU/UnB são as seguin-
tes: o ensino original, quando da criação da escola em 1962; o intermediário, resultante da
reestruturação de 1969, chamado de projeto cultural; e o atual ensino correspondente à refor-
ma, ou fórum, de 1989.
A formação do arquiteto e a universidade 111
O ensino inicial de arquitetura na UnB coincide com a criação do seu curso, em 1962, e
com a implantação dessa universidade. Esse currículo produziu uma experiência de ensino que foi
bastante significativa. Ela renovou o ensino de arquitetura no Brasil nos aspectos organizacionais. O
ciclo de estudos de arquitetura era composto de duas instâncias pedagógicas. A primeira era a do
ICA e a segunda, a da FAU. Esse modelo é chamado de ICA-FAU. Nele o estudante, antes de ingres-
sar no curso profissionalizante de arquitetura, ministrado pela FAU, cursava as disciplinas de forma-
ção artística e cultural do ICA.
Figura 2 – Diagrama representando as instâncias do ensino da Bauhaus.
Fonte: Bauhaus. Stuttgard : Instituto Cultural de Relações Exteriores, 1974. p. 28.
No ICA, o ensino organizava-se por meio de oficinas. É o caso da oficina de maquete
(modelo reduzido) e da oficina básica de música. O ensino das artes, principal meio pedagógico,
visava ao desenvolvimento da criatividade e da capacidade motora dos estudantes. O leque de ativi-
dades artísticas do ICA abrangia, como foi citado anteriormente, do desenho ao cinema.
Algumas das atividades de ensino do Instituto tinham um objetivo claro, o desenvolvi-
mento de uma linguagem industrial. Por exemplo, o desenho de móveis, sob a responsabilidade do
arquiteto Élvin Dubugras, e a pré-fabricação de edíficios, sob a coordenação do arquiteto João
Filgueiras Lima (Lelé), vinculada à FAU/Ceplan (Centro de Planejamento de Arquitetura e Urbanismo).
112 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Idênticos princípios orientavam o ensino das artes. Esse é o caso do desenho de objetos modula-
dos, sob a direção do professor Avatar Morais. Nesses aspectos, o ensino do ICA-FAU se asseme-
lhava ao ensino da Bauhaus.
9
O ICA teve alguns impactos positivos no ensino de arquitetura da UnB. Por exemplo, um
deles foi o desenvolvimento da habilitação manual (execução) e o outro, da representação de objetos
(elaboração de croquis). Esse está inserido no campo do entendimento das linguagens e dos siste-
mas. Sem dúvida, o mais importante foi o incentivo à capacidade inventiva do estudante quanto aos
aspectos plásticos da forma.
9
A Bauhaus foi uma escola de arquitetura criada em Weimar, na Alemanha, sob a coordenação do arquiteto Walter Gropius, em princípios de
1913. Um dos interesses do ensino da Bauhaus era o de incorporar o trabalho artístico à produção industrial. O plano de ensino dessa escola
explorava a dimensão formal e técnica do projeto dos objetos de uso diário e das edificações. O estudo da linguagem visual ou representação
do projeto formava com o ensino da técnica o núcleo das disciplinas básicas da Bauhaus. A teoria visual provinha do estudo da ótica (física) e
da forma. O ensino da gramática visual envolvia o estudo das leis da natureza. Havia nele uma preocupação com o ensino das proporções,
ilusões óticas e cores. A Bauhaus abrigava artesãos, artistas (por exemplo, escultores e pintores), engenheiros e arquitetos. A formação do
estudante consistia no treinamento em equipe, por meio do trabalho experimental e manual. A primeira unidade do curso (formação básica)
compreendia o estudo formal (as proporções, o ritmo, as cores, o contraste, etc.) e visava ao desenvolvimento da capacidade motora e
imaginativa do estudante. As etapas subseqüentes do ensino da Bauhaus aprofundavam e expandiam tais aspectos. A oficina, após a etapa
preliminar do curso, era a espinha dorsal deste. Ela unia o ensino da estética ao ensino prático (técnico). O produto final dessa unidade de
ensino era a produção de protótipos para a indústria. Na construção de protótipos, os estudantes empregavam trabalho artesanal, princípios
industriais (por exemplo, a padronização) e comerciais (por exemplo, custos de venda). Dois mestres, um de estética e outro de técnica
(trabalho manual), conduziam o ensino na oficina. Após três anos de curso na oficina, o estudante tinha duas opções profissionais. Uma delas
consistia no ingresso no mercado de trabalho como artesão. A outra opção consistia na obtenção do grau de mestre. Essa fase implicava o
prosseguimento e o aprofundamento dos estudos. Por intermédio desses estudos, os estudantes obtinham o grau de mestre em construção
(cursos de design industrial e de Engenharia) e em arquitetura (curso de Arquitetura).
Figura 3 – Desenhos de Oskar Shelemer, professor da Bauhaus.
Fonte: Bauhaus. Stuttgard : Instituto Cultural de Relações Exteriores, 1974. p. 100.
A formação do arquiteto e a universidade 113
Um fato político que concorreu para abreviar a vida do modelo de ensino ICA-FAU foi o
pedido de demissão da grande maioria dos professores universitários. Entre eles estava a quase
totalidade dos mestres do ICA-FAU. A crise ocorreu em 1965 durante o governo militar.
Não menos importante foi o contraste entre o ensino exploratório do ICA e o
profissionalizante da FAU. Por um lado, esse fato contribuiu para o desgaste desse modelo de
ensino. Por outro lado, o desgaste do ensino ICA-FAU pode ser atribuído à circunscrição do
ensino de arquitetura no âmbito dessas duas instituições. Em conseqüência disto, a formação
do arquiteto privava-se do acesso aos estudos do indivíduo e da sociedade desenvolvidos por
outras áreas acadêmicas (a Antropologia, a Economia, a Sociologia, a Psicologia, a Administra-
ção, entre outras). A partir dos anos 60, os cursos pertencentes aos estudos sociais assumiram
uma posição significativa na elaboração de pesquisas na universidade. A pressão desse con-
texto possivelmente concorreu para o desgaste do modelo ICA-FAU.
De acordo com Simon (1969), havia em curso uma transformação dos currículos das
escolas de treinamento profissionais ou vocacionais (por exemplo, de Medicina, de Direito, de
Educacão, de Administração e de Engenharia, principalmente a de Agronomia). Essas escolas se
aproximavam, em termos de conteúdo, das chamadas ciências fundamentais (matemática, por exem-
plo) e das humanas. Incorporavam ao currículo dessas escolas uma nova dimensão (ou ciência)
essencialmente universitária. Simon a denomina de science of design
10
ou ciência do artificial, em
10
De acordo com Simon, a ciência do projeto é um corpo de conhecimentos (analítico, sistematizado e empírico) passível de ser ensinado.
Figura 4 – Desenho do professor Avatar Morais, quando integrante do ICA/FAU.
Fonte: Revista de Artes e Arquitetura. Brasília : Instituto de Artes e Arquitetura da Universidade de Brasília, n. 1, dez. 1971.
114 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
oposição aos objetos e processos das ciências naturais (botânica e biologia, por exemplo). Um dos
tópicos de estudo dessa ciência é a teoria dos sistemas não determinísticos (veja Del Nero, 1994).
Por exemplo, alguns dos seus aspectos relevantes são a descrição da lógica organizacional,
11
das
propriedades, das leis e invariâncias (uso, significado, etc.), dos artefatos artificiais assim como o
projeto dos mesmos.
O modelo intermediário,
12
iniciado na década de 70, substitui o modelo ICA-FAU pelo
Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Artes (IA).
Nessa ocasião a designação FAU, ou faculdade, desapareceu. A oferta de disciplinas de
Artes para os arquitetos foi substancialmente reduzida enquanto as disciplinas sociais foi ampliada.
O instituto configurou-se como tal, à medida que o ensino de artes na universidade
adquiriu status próprio, e o da tecnologia (escola de engenharia) desobrigou-se de ofertar todas as
disciplinas de natureza tecnológica ao curso de Arquitetura. Em decorrência disso, o conteúdo das
principais disciplinas, que eram oferecidas por outras áreas universitárias para a formação do arqui-
teto, passou a ser gerenciado (e ministrado) pela própria arquitetura.
Esse modelo de ensino (modelo situado entre o inicial e o atual) foi uma tentativa de
integração do ensino de arquitetura na universidade. Em termos de currículo, foi ampliada a oferta de
disciplinas das ciências sociais ao curso de Arquitetura. A finalidade pedagógica dessa experiência
visava ao desenvolvimento da consciência social, isto é, da função social do arquiteto.
O IA apoiava-se em quatro atividades pedagógicas. De acordo com Miguel Pereira
(1978), a primeira era a pesquisa; a segunda, o trabalho interdisciplinar; a terceira, as áreas
temáticas; e a quarta, o básico geral, que formava a consciência humanística do estudantado,
enquanto as demais atividades tratavam da sua inserção na realidade social do País. Sendo a
extensão universitária o meio pelo qual o estudante entrava em contato com os problemas reais
e, ao mesmo tempo, com o trabalho interdisciplinar. Por exemplo, a escola de Arquitetura esti-
mulava, por meio de apoio material e financeiro, os seus estudantes a constituírem equipe de
estudo com estudantes de outros departamentos. Algumas equipes de trabalho foram forma-
das com estudantes de Arquitetura, de Sociologia, Medicina e Economia. Estas equipes tinham
como tema de estudo problemas locais e regionais, em geral, relacionados com as camadas
mais pobres da população. Um dos trabalhos representativos dessa fase foi o ateliê de projeto
do IA/UnB sobre os pólos regionais urbanos, coordenado pelo professor Frank Svensson (pri-
meiros anos da década de 70).
Não houve, em contrapartida, o desenvolvimento de uma estrutura organizacional de
pesquisa. O Centro de Planejamento de Arquitetura e Urbanismo (Ceplan), que passou a ser chama-
do de Laboratório Experimental de Arquitetura e Urbanismo (Leau), não cobriu tal lacuna. Persistia
nele a prática de escritório liberal de Arquitetura.
Entre as causas que provocaram o desgaste do modelo de ensino do IA (sob o ponto de
vista das relações entre o ensino de arquitetura e o universitário) estão, por exemplo, o distanciamento
da universidade da realidade social e um conjunto de medidas organizacionais adotadas pela univer-
sidade. São elas:
a) eliminação de instâncias organizacionais que possibilitavam o relacionamento das
atividades de ensino em nível global, por exemplo, as congregações de carreira e da coordenação do
básico geral;
b) ênfase excessiva no ensino disciplinar em detrimento da colaboração mútua entre as
áreas de ensino;
c) especialização do corpo docente em disciplinas;
d) a não implementação de pesquisas no ensino de arquitetura.
11
Mahfuz (1986) chama a atenção para categorias tais como: polifuncionalidade do projeto (sistema capaz de absorver mudanças de programa
ao longo do tempo), autonomia, padronização (tipos) e contextualidade (adaptação do projeto ao meio cultural e ambiental).
12
Um fato significativo que precedeu a passagem daquele para este modelo foi o fechamento da FAU/UnB pelos estudantes em 1968. Os
seminários para a organização do projeto cultural da escola, ocorridos após tal evento, apontavam para uma mudança de orientação no ensino.
Advogava-se por uma arte participante do seu tempo e transformadora da realidade sociocultural (veja o Relatório de Revisão e Consolidação
dos Planos de Ensino do Projeto Cultural do ICA-FAU, UnB, 1968).
A formação do arquiteto e a universidade 115
O atual modelo de ensino (currículo) da FAU/UnB opõe-se aos dois anteriores quanto à
sua inserção na universidade. A principal característica desse modelo é a exclusividade da formação
do arquiteto no âmbito da faculdade. Esse modelo se caracteriza pela composição de um currículo
de ensino de arquitetura com disciplinas ministradas e administradas exclusivamente pela faculda-
de. As dependências de créditos do curso de Arquitetura, em relação aos departamentos afins, são
reduzidas ao máximo. O ensino concentra-se nas disciplinas específicas da prática profissional (Pro-
jeto, Estruturas, Conforto Ambiental, entre outras).
Com a desvinculação do ensino de arquitetura da universidade, em termos da depen-
dência de créditos acadêmicos, as disciplinas de Estrutura Predial, antes oferecidas pela Faculdade
de Tecnologia, passaram a ser ministrados pela FAU. Isso fez com que a eficiência do ensino de
estrutura para os arquitetos aumentasse. Em contrapartida, o vínculo com as engenharias cessou a
partir de então.
No atual currículo, os demais créditos (relativos às disciplinas tais como as de
Artes e de Ciências Sociais) foram reduzidos em quantidade, tipo e importância (transforma-
das de créditos obrigatórios em optativos). O tradicional ensino das Artes encontra-se embu-
tido nas disciplinas de representação do espaço arquitetônico. Além disso, permanece nesse
modelo de ensino de arquitetura, por meio do projeto, o processo indutivo. Neste, a elabora-
ção do projeto é composta de duas etapas principais: programa de necessidades (listagem
dos requerimentos e condicionantes funcionais e físicos) e o projeto arquitetônico (peças
gráficas e maquete). Esse é o resultado de um tour de force – briga com o traço – do arquiteto
com a geometria, o programa e o conhecimento técnico dado. Os critérios de escolha da
melhor opção de projeto, quanto aos aspectos de layout do edifício, fachadas e volumetria
são atribuídos, entre outros fatores, à intuição e à capacidade do estudante de manipular o
repertório de arquitetura existente.
Outras conseqüências agravadas por esse modelo organizacional de ensino são a es-
pecialização de professores por disciplinas ou departamentos e a mudança de categoria do docente
com o declínio da dedicação exclusiva.
Conclusão
Em resumo, há dois tipos de problemas no ensino de arquitetura quando este é desen-
volvido numa faculdade organizada em moldes tradicionais.
O primeiro problema é o isolamento do ensino de arquitetura do contexto universi-
tário. Esse modelo é exemplificado pela FAU/UnB. O ensino dessa faculdade pretende ser um
ensino profissionalizante no sentido restrito da palavra – treinamento técnico. Em termos
curriculares, a formação do arquiteto por intermédio desse modelo exclui a possibilidade de
contar com a cooperação de outros departamentos, faculdades e institutos (por exemplo, os de
artes e tecnologia). Por outro lado, o processo de ensino numa faculdade desse tipo, sem
vinculação acadêmica com a universidade, é atualmente uma limitação séria à formação “mais
arejada”, ou universitária, do estudante.
O segundo problema desse modelo está relacionado com o primeiro. É a ausência de
atividade de pesquisa na formação do arquiteto. Esse é um dos entraves da atualização do ensino de
arquitetura. As atividades de pesquisa, ao lado da extensão, são as mais típicas atividades da univer-
sidade. Elas atingem áreas de ensino que, há pouco tempo, não estavam incluídas no rol daquelas
que tradicionalmente faziam pesquisa. É o caso da área de Artes.
Na UnB, por exemplo, o IdA oferece cursos de pós-graduação onde pesquisas são
desenvolvidas. Tais atividades podem desempenhar no ensino de arquitetura dois papéis prin-
cipais. Para a docência, elas são meio de atualização e aperfeiçoamento além de produtora de
conhecimento. Para os estudantes, são formação complementar. Ao mesmo tempo, elas são
um importante meio para o fortalecimento dos laços entre esse ensino e a universidade. Dessa
forma, um ensino de arquitetura confinado a uma só faculdade priva o estudante do acesso à
cultura universitária.
116 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Quanto aos obstáculos que dificultam o relacionamento da FAU com o ensino
univeristário, foram analisados os seguintes:
O primeiro deles é o mais simples, entre os problemas que afetam o relacionamento do
ensino de arquitetura com a universidade. Trata-se do aproveitamento dos processos e produtos
(informações, principalmente) provenientes das pesquisas universitárias. No ensino de graduação
em arquitetura, há pouco aproveitamento dessa produção acadêmica. O inverso deve ser verdadei-
ro. O problema não é só de integração social, mas sobretudo acadêmica, onde a comunicação
(linguagem) assume um papel fundamental.
O outro é o limitado acesso dos estudantes à preparação intelectual que a universidade
oferece. Algumas disciplinas obrigatórias com esse objetivo, ofertadas por outros departamentos,
foram retiradas do currículo do curso de Arquitetura. Por exemplo, a disciplina sobre a organização
do trabalho intelectual não mais existe no atual currículo de Arquitetura.
Ambos os obstáculos citados refletem duas ordens de problemas. Um é o baixo
grau de cooperação mútua, entre as atividades do ensino de arquitetura com suas áreas afins
da universidade. O outro, a falta de compromisso das disciplinas quanto à capacitação intelec-
tual dos estudantes.
Ruskin (1956, p. 151) assinala que a arquitetura é “uma vívida expressão da vida inte-
lectual”. Por vida intelectual o autor se refere ao cultivo da mente do homem. Esta é para Ruskin
importantíssima ao arquiteto, pois as coisas “tornam-se nobre ou ignóbil na medida da proporção
da quantidade de energia que a mente emprega nelas”. Assim, o treinamento intelectual do arquite-
to e, conseqüentemente, do estudante de arquitetura, não está dissociado do seu desenvolvimento
sensitivo. Felizmente, as disciplinas de Artes (IdA) e as de Educação Intelectual – Instituto de Ciên-
cias Humanas (IH), ainda fazem parte da mesma organização, a universidade, e habitam o mesmo
território, o campus, sendo possível encaminhar o equacionamento da inserção do ensino de arqui-
tetura na universidade.
Nessa direção, algumas medidas são sugeridas a seguir.
Quanto à estrutura organizacional do ensino de arquitetura, é possível torná-la menos
fechada. Daí, a necessidade de aumentar o grau de permeabilidade dessa estrutura, em rela-
ção ao contexto universitário. A forma tradicional utilizada até hoje para estimular tal
permeabilidade é o intercâmbio ou oferta de disciplinas. Entretanto, a faculdade pode explorar
outras formas de intercâmbio acadêmico, por exemplo, a realização de atividades (seminários,
encontros, palestras, projetos de pesquisa interdisciplinares, etc.) que envolvam outras áreas
acadêmicas. Outra forma é a contar no quadro docente da FAU com professores não arquite-
tos. Por outro lado, a diversificação profissional (áreas de concentração profissional) do quadro
docente da FAU deve ser, também, considerada.
Quanto ao ensino de arquitetura, levando em conta o desenvolvimento da sua dimen-
são universitária, há dois aspectos a serem considerados.
Um aspecto é a presença da atividade de pesquisa como atividade complementar
no ensino de arquitetura. Essa atividade, seja no âmbito do ensino de graduação, de especiali-
zação ou de pós-graduação em arquitetura, produz informações e ajuda a qualificar o docente
e o discente. Entre as informações factuais, são imprescindíveis a montagem dos programas de
necessidades e a elaboração do projeto arquitetônico. Por outro lado, a pesquisa é uma ativida-
de estimuladora de relacionamento, nesse caso, entre esse ensino e os demais na universida-
de. Nesse contexto, o relacionamento de unidades de ensino requer uma condição de se falar a
mesma linguagem. Na universidade, há diversas línguas. Praticamente, cada ramo de ensino
tem uma, exclusiva. Entretanto, para que haja colaboração entre si é necessário o diálogo. E o
diálogo entre cada ramo de ensino, segundo Oakshott (1989), só é possível por meio do domí-
nio e da manipulação de suas linguagens. O autor insiste no argumento de que a formação
universitária do estudante não se limita ao treinamento profissional. Essa formação, porém, está
relacionada com o desenvolvimento da capacidade de comunicação do estudante e, conse-
qüentemente, com a sua inserção dentro de uma cultura comum. Nos estabelecimentos escola-
res, Bernstein (1971) identifica dois tipos principais de linguagem. Uma delas é a linguagem
formal e a outra, a informal ou pública. A primeira, segundo o autor, é inerente à organização
A formação do arquiteto e a universidade 117
(universidade). Nela, a mais falada é a linguagem formal, o meio principal de comunicação
entre docentes e discentes.
13
Outro aspecto a ser considerado é o do intercâmbio de informação e compatibilidade
de processo da arquitetura com os demais cursos afins (Sociologia, Antropologia, Psicologia, Filoso-
fia, Geografia, Engenharia Civil, entre outros). Esse intercâmbio não se encerra na simples troca de
informações. O que está em jogo é a possibilidade de interação de experiência e conhecimento.
Dobbs (1992) enfatiza a importância da especulação (ou conjectura) na elaboração do projeto
arquitetônico e, por dedução, na formação do arquiteto. No ensino de projeto há uma etapa de traba-
lho onde o projeto se configura. O risco (hipótese) é lançado nessa fase. Sua origem pode ser analógica,
segundo Kruger (1989); em padrões, segundo Alexander (1978) e Krier (1985) ou, ainda, em tipos,
segundo Mahfuz (1986).
O projeto arquitetônico tem sido o mais importante meio pedagógico do ensino de
arquitetura. Normalmente, o ateliê de projeto ocupa a principal carga horária do curso como um
todo. Entretanto, o seu papel no fortalecimento do intercâmbio entre o ensino de arquitetura e o
estudante universitário é pouco desenvolvido. O projeto no ensino é considerado, ao mesmo tempo,
uma opção de treinamento profissional e uma opção pedagógica de formação do estudante, parti-
cularmente do seu intelecto.
Na primeira opção, prioriza-se a preparação profissional, torna-se uma disciplina pragmá-
tica. É síntese de um processo analítico. Assim, o programa de necessidades constitui a análise e o
projeto, a resposta (ou síntese). Desse modo, é requerida do estudante a aplicação de conhecimentos
adquiridos por meio das disciplinas cursadas (Estrututra, Conforto Ambiental, Teoria e História, entre
outras). Esse processo de ensino de arquitetura é denominado por Ledewitz (1985) de análise-síntese.
Na etapa analítica (elaboração de programa) desse método de ensino, o estudante
examina a temática e realiza trabalho de campo, por exemplo, levantamentos físicos e funcionais
(salas, equipamentos e atividades). Faz contatos com profissionais (arquitetos, engenheiros e técni-
cos, principalmente). Assiste a palestras e demonstrações.
O processo de análise-síntese, no ensino da arquitetura, tende a ser auto-suficiente em
relação à universidade e aproxima-se do mercado profissional.
Na segunda opção, a ênfase é dada à função educativa do projeto arquitetônico no
ensino de arquitetura. Ela atua no aprimoramento da capacidade sensitiva e intelectual do estudante.
O projeto é considerado conceito. Esse processo de ensino depende da existência da universidade,
pois um projeto conceitual implica um método de ensino não seqüencial e, sobretudo, base teórica.
No modelo análise-síntese, o ordenamento dessas etapas é linear. Considera-se que a síntese segue
a análise, em outras palavras, a primeira atividade (síntese) como resultado da segunda (análise).
Em contrapartida, a interpretação (ou conceituação) espacial de determinada temática,
na segunda opção, equivale à noção de conjectura em ciência. Nela, o que importa é a noção do
todo, ou a determinação do sistema de relações formais (podendo ser ambientes ou salas, elemen-
tos construtivos, etc.). Não se confunde com o projeto arquitetônico, pois este é essencialmente
composição, como uma obra de arte é composta. Projeto conceitual é mais idéia (esboço) de projeto
do que projeto no sentido convencional do termo. Ele é uma síntese (design). Sua elaboração requer
preparo intelectual do estudante. Sobretudo, alguma fundamentação, ou preparação científica, como
defende Artigas (1981).
Por outro lado, o projeto conceitual, enquanto conjectura, deve ser transformado em
projeto real (etapa subseqüente de detalhamento).
Tem sido proposta por vários autores, entre eles Ledewitz (1985), a inversão do processo
convencional de projeto, da análise-síntese para a síntese-análise. O ensino deste começaria, então,
13
O código da linguagem formal possibilita ao usuário ampla margem de liberdade de uso. Ele facilita, portanto, a expressão individual ou
particularizada, embora seja universal quanto à sua mensagem. Outra característica desse código é o uso de símbolos. Sua aprendizagem
requer um processo sistemático. Bernstein opõe a linguagem formal à pública. Esta é aprendida informalmente e instantaneamente e possui,
segundo o autor, um código restrito. Sua expressão é universal, embora com mensagem (significado) particular. Bernstein associa tais lingua-
gens a realidades sociais opostas. Por exemplo, a escola trabalha essencialmente com a linguagem formal, ao passo que as instituições
sociais, como a família e as turmas de rua e do trabalho, entre outras, falam a linguagem pública.
118 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
com uma proposta inicial de um sistema de relações físicas (conceito espacial). O aumento da quantida-
de de informações e as análises constantes modificariam ou não tal sistema. Ambas (informações e
análises) atuariam na condição de modeladores do conceito (espacialização). Então, o conceito global
representado pelo desenho sofreria modificações de modo a atender às demandas funcionais e contextuais
(climáticas e culturais, por exemplo). As análises específicas são denominadas de testes.
Os testes do projeto conceitual são essenciais à sua transformação. No ensino, essas
avaliações são, também, uma maneira de decompor o processo de projeto a partir de um todo já estabe-
lecido. Entre os elementos dessa avaliação, encontram-se o programa de necessidades – incluindo,
entre outros itens, os condicionantes ambientais, funcionais e de equipamentos – , o custo financeiro de
construção, o impacto ambiental, o problema energético e a linguagem de arquitetura utilizada.
Quanto mais rigoroso for o teste, melhor. Ele pode reafirmar ou negar o projeto conceitual.
Os testes, no ensino da arquitetura, permitem o estudo particularizado de cada uma das variáveis
analíticas do ensino do projeto. A espacialização, definida por meio do projeto conceitual, assegura o
estudo de cada uma delas sem a perda de vista do todo. Uma das vantagens desse método de
ensino de arquitetura é o acompanhamento do trabalho do estudante pelo orientador e a auto-avali-
ação do projeto pelo estudante.
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Capítulo 7
As modalidades de construção
tecnologicamente significativas
Marta Adriana Bustos Romero*
Resumo
Num processo projetual interativo, no qual os múltiplos valores estruturadores do ambiente se
fazem presentes e as técnicas de construção embasam as opções projetuais em vez de serem
apenas suporte das formas arquitetônicas, propomos o resgate da beleza, da capacidade de
integração, do senso comum, enfim, dos rasgos característicos das arquiteturas populares/
vernáculas, através da exploração e análise sistemática do conceito de lugar. Esse conceito nos
permite observar as permanências como elementos configuradores de cada lugar, aparecendo,
assim, a noção de tradição como a união entre história e identidade do lugar. Dada a dificuldade
de definir normas gerais para o projeto ante um panorama de máxima diversidade e dispersão, o
conceito de lugar permite definir normas específicas de sustentabilidade que possuam maiores
capacidades ecológicas e incorporem os materiais menos contaminantes formados por compo-
nentes reciclados ou facilmente recicláveis.
O desenvolvimento tecnológico geralmente apresenta uma estreita relação com o siste-
ma econômico vigente, pois, em geral, o poder de uma nação depende do nível tecnológico atingido.
Até o século XIX, a tecnologia dos materiais permitia sua elaboração perto da obra ou dentro dela, ou
seja, tanto a transformação do material quanto o seu emprego realizavam-se quase totalmente sob o
controle do arquiteto. Hoje, entretanto, os processos tecnológicos escapam do controle do arquiteto;
pelo contrário, eles tendem a organizar seu trabalho. Critérios como beleza, utilidade e solidez
1
não
são mais suficientes; a esses têm-se agregado critérios contemporâneos como a disciplina da cultu-
ra urbanística, a espacialidade ou a procura do mínimo irredutível. Assim, os condicionantes ambientais
constituem-se solicitações básicas que a arquitetura deve integrar e resolver. O edifício isolado do
contexto urbano e do ambiente é conseqüência de uma formação do arquiteto,
2
em que tecnologia,
história e teoria não foram devidamente integrados.
Katinsky (1989) mostra as dificuldades para a compreensão da “técnica” como fe-
nômeno geral, pois, “diferente da tecnologia, cujo caráter fundamental é a sua transformação
permanente, a técnica tende sempre para a estabilidade dos procedimentos, pois a técnica é
*Arquiteta; doutora em Arquitetura pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona (ETSAB), da Universidad Politécnica de Catalunha
(UPC); professora adjunta e chefe do Departamento de Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/
UnB), da qual é também pesquisadora do Programa de Pós-Graduação. Desenvolve pesquisas sobre bioclimatismo (com diversos trabalhos
publicados sobre o tema) e a viabilidade ambiental do processo de urbanização do Distrito Federal, como subsídio ao desenho urbano (Projeto
Integrado de Pesquisa FAU/UnB/CNPq).
1
Lembrando os princípios de Vitrúvio. A partir das primeiras definições (que já possuem dois mil anos) de Vitrúvio, autor romano do primeiro
tratado de arquitetura conhecido, a arquitetura é algo intimamente ligado ao fato de “construir”. Construir/edificar provém do latim aedificare.
Aedes é a deusa do fogo, e o fogo, ou dito de outra forma, o lar, é o coração do edifício. Para Vitrúvio, a arquitetura possui três dimensões
essenciais: Firmitas, que quer dizer a estabilidade da construção; Utilitas, a exata distribuição do uso do edifício pela sociedade; e Vetustas, a
beleza e a proporção de todas suas partes.
2
Vide a este respeito as considerações atualíssimas de Miguel Pereira em Arquitetura e os caminhos de sua explicação, publicado em 1984 pela
Projeto, São Paulo.
122 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
geralmente definida como conjunto de procedimentos para produzir bens, alterando a ‘nature-
za’”. Nela, podem ser distinguidos estágios evolutivos que seguem regularidades que lhes são
específicas. Então, diz o autor, por seu caráter cumulativo, não se altera subitamente por efeito
de uma inovação tecnológica. Podem coexistir, na técnica, procedimentos multimilenares e pro-
cedimentos resultantes de “tecnologia de ponta”.
Rodrigues (1997) analisa diversos autores da teoria do trabalho, da técnica e da tecnologia
na arquitetura. Utilizamos algumas de suas análises neste trabalho, a fim de chegar a uma compreensão
do termo. Levantaremos aqui brevemente alguns pontos importantes em relação a essa questão.
Viana (1989) ressalta que qualquer discussão relativa à tecnologia na arquitetura está dire-
tamente relacionada aos recursos energéticos existentes: “o problema do ambiente vem aqui estabele-
cer as bases de um correto projeto de arquitetura, baseado no respeito de ambos os fatores e analisan-
do não só do ponto de vista do consumo de energia, mas também da tecnologia empregada e da
linguagem que essa arquitetura assume”. Este autor lembra ainda que, em muitas escolas de arquitetu-
ra, a tecnologia é vista somente como aquele saber fazer, quer dizer, a tecnologia é confundida com
técnica de construção, simples superposição instrumental a um momento de concepção do espaço.
Segundo Gregotti (1993), das atividades estreitamente vinculadas ao uso das técnicas,
a construção é uma das mais lentas e menos sensíveis, especialmente na assimilação das evoluções
técnicas e na transferência para o campo específico da edificação de experiências, de materiais e de
tecnologias obtidos em outros campos da construção de objetos. Para este autor, na construção do
objeto arquitetônico, as técnicas se apresentam em três modalidades: como estrutura, como modos
de alimentação e fluxos e como exercício de detalhe. As duas primeiras estão cada vez mais afasta-
das da instância de projeto, muitas vezes porque escaparam da competência específica da discipli-
na, mas também porque seu progresso permitiu pensar de forma independente toda sua tipologia de
utilização, reduzindo, desta forma, a influência do arquiteto na definição do que seria a especificidade
do arquitetônico. Por outro lado, a estratégia do detalhe é um dos elementos mais inerentes à nossa
disciplina, ao mesmo tempo que reveladora da transformação da linguagem arquitetônica.
Por sua vez, Graeff (1995) enfoca a tecnologia a partir do prisma das técnicas dos ma-
teriais de construção e do trabalho na construção, inserindo-a no contexto do materialismo histórico,
pois é esta abordagem que lhe permite distinguir as peculiaridades sociais promovedoras de mudan-
ças e avanços tecnológicos no processo de desenvolvimento arquitetônico. Identifica, por meio dis-
so, os requisitos sempre presentes na implantação de uma “nova tecnologia” na arquitetura: os
fundamentos programáticos, os materiais e as técnicas, o suporte teórico e a opinião pública.
Norberg-Schulz (1980, apud Romero, 1993) diz que a palavra techne, em grego, signifi-
ca também, uma “revelação criativa’’, dominada pela poiesis, que por sua vez quer dizer “feito”,
“realizado”. Gombrich (1995), também citado por Rodrigues (1997), limita a atuação da técnica e da
tecnologia à historia da arte: a “visão tecnológica” tem privilegiado a destreza, a habilidade manual
dos feitos, e a “visão materialista” demonstra um fascínio pela técnicas do fazer, como tecer ou traçar.
Gregotti (1975) levanta questões semelhantes àquelas apontadas por Norberg-
Schulz, lembrando que, para os gregos, a técnica era a capacidade de empregar determina-
dos meios para um determinado fim, além do talento manual e da compreensão do objetivo,
habilidade peculiar do artesão, do artista, mas também do político e do médico. A ars latina
também possuía esse sentido. O vocábulo techne designava, além da técnica no sentido
contemporâneo, a manifestação que produz a verdade quando aparece, a produção do ver-
dadeiro no belo. Para o autor, essa unidade se rompe quando se consolida uma tecnologia
separada da expressão e da invenção.
A relação com a natureza
As atuais manifestações do construído tendem a tratar o entorno – especialmente a
paisagem – como um território alheio, geralmente povoado por árvores e tipos de vegetação que não
se integram com o evento arquitetônico ao qual pertencem. Mesmo quando nas raízes do movimento
moderno estava a idéia de cidade jardim, a paisagem, nas propostas de Le Corbusier, Ludwig
As modalidades de construção tecnologicamente significativas 123
Hilberseimer ou Moisej Ginzburg, é um verde sem atributos, sem identidade, sem traçado, contrarian-
do, assim, a tendência da arquitetura, ao longo da história, de integrar-se na natureza.
Contrariamente às formas de construção tradicionais em madeira, tijolo, pedra, que
utilizavam o material disponível e eram sensíveis aos fenômenos climáticos de cada região concreta,
as formas de construção modernas têm produzido formas de vida internacionais, escassamente
sensíveis às características de cada lugar. Ao mesmo tempo, as cidades repetem, em grande escala,
os mesmos erros do edifício em relação ao meio ambiente.
Os trabalhos dos ecologistas constituem um aviso de que a transformação da natureza por
parte do homem, e sua tendência de impor critérios dos centros culturais para a periferia têm limites. Eles
assinalam a necessidade de uma nova modernidade, na qual se transformem os paradigmas ou, dito de
outra forma, uma modernidade superada, na qual a arquitetura e o urbanismo possuam maiores respon-
sabilidades, a fim de eliminar os elementos mais destruidores do racionalismo e da própria modernidade.
O paulatino aumento da qualidade ambiental das cidades deve ir acompanhado do aumento e melhoria
das zonas comunitárias; com a reivindicação ecológica reaparece a relevância da função social e da
funcionalidade na arquitetura, ao invés de um funcionalismo desenvolvimentista e depredador.
A agressividade com o entorno aumentou a partir da Revolução Industrial, quando a bur-
guesia tentou tirar o máximo proveito da transformação do entorno; tais ações ficavam longe de um
possível equilíbrio entre arquitetura e natureza, uma vez que a vitória consistia na neutralização do entorno.
Encontramos as raízes do novo paradigma que valoriza as diferenças nas cidades da
Idade Média e nas cidades antigas da Ásia, África, onde o abrigo, em harmonia com a terra, manteve sua
beleza e sua presença simbólica através dos séculos e transformou, ao mesmo tempo, a sustentabilidade
em arte. O compromisso era a partir de escolhas altamente estéticas. As melhores arquiteturas nasce-
ram sob o signo das contradições. A organicidade técnica com que se construía uma catedral gótica era
incomparavelmente maior, mais refinada, mais coerente e tecnologicamente mais significativa que as
modalidades de construção de hoje. Os arquitetos do gótico transformavam materiais em atos
arquitetônicos, enquanto hoje em dia estamos limitados a montar produtos.
Dado que o projetar não consiste mais em dar forma aos materiais e sim em coordenar a
montagem de produtos que seguem regras de produção e atuam por refinamentos sucessivos, a cons-
trução é o resultado de uma pequena parte de experiência geral e de uma grande parte de um unicum,
que expressa o conjunto específico criado para um fim, numa localização determinada, e cuja combina-
ção dificilmente é transferível. Tanto se constrói a linguagem como uma técnica específica da obra.
A tendência geral nas culturas chamadas civilizadas é a de diminuir a importância do
tato, do olfato e do sentido “cinestésico”, ou seja, dos sentidos, do movimento e do equilíbrio. O
entorno, nas nossas culturas atuais, tende a se especializar perigosamente somente na visão, des-
perdiçando muita riqueza sensível. Quotidianamente, a vista se isola do ouvido, do tato e dos de-
mais sentidos. Ver o que não se pode nem tocar nem sentir, serve para incrementar a sensação de
que o interior é inacessível. Assim, a observação “a vista de pájaro” passa a ser a medida (Plan
Voisin, de Le Corbusier, para Paris), impedindo que se observem os detalhes concretos, retirando as
relações históricas do lugar, ao destruir as diferenças acumuladas ao longo do tempo, eliminando a
sensualidade que poderia proporcionar a idéia dos materiais, das texturas e das superfícies com
suas infinitas reflexões. Assim, também, as praças deixam de ser o centro, o ponto de referência,
passando a ser manchas esparzidas ao acaso entre as edificações. Adota-se, segundo Sennett
(1991), a neutralização compulsiva do entorno, que estaria parcialmente enraizada numa antiga
infelicidade: no medo ao prazer, naqueles mesmos sentimentos que teriam levado os seres huma-
nos a tratar o entorno de forma tão neutralizadora como possível, como algo carente de valor. Ao
mesmo tempo, essa neutralidade pode organizar o poder de forma muito mais sistemática, uma vez
que o faz despojando o lugar de suas características.
Ainda segundo Sennett, as lâminas de cristal são o material de construção perfeito para
uma cidade neutra. A quadrícula,
3
o espaço da competitividade econômica, era o espaço da neutra-
lidade alcançada mediante a negação de todo valor próprio do entorno; tratava-se do espaço de uma
3
A quadrícula tende a ser ilimitada, a se expandir infinitamente, ficando neutralizado o valor de qualquer espaço determinado. A quadrícula,
assim empregada, destitui o significado ao espaço.
124 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
divisão geométrica interminável e isenta. O oposto da quadrícula, na sociedade americana descrita
pelo autor, seria um desenho bucólico, como um parque com abundantes árvores e passeios, em vez
de uma rua, praça ou centro mais estimulante no qual fosse possível experimentar a complexidade
da vida na cidade.
A noção de permanência
O interesse pelo conceito de lugar está na base da construção de um saber prático que
recomponha a disciplina urbano-arquitetônica. O conceito do genius loci surge do conceito de lugar
como elemento central; não um lugar em abstrato, mas sim cada lugar com sua própria identidade.
Fazer arquitetura significa visualizar o genius loci, e a tarefa do arquiteto é criar lugares com sentido.
A noção de permanência é fundamental na hora de valorar a importância da história na
forma urbana. No que permanece, revela-se a presença do passado, entendendo-se aí a presença
real dos fatos urbanos, nos quais se cristaliza o conteúdo do transmitido. As permanências podem
ser consideradas como testemunho, no sentido analítico, como vestígios e marcas, pois nelas po-
dem ser descobertas as mudanças havidas. Também nelas podem ser revelados os elementos
constitutivos ou configuradores do lugar. O que permanece não é fruto do azar. O locus põe em relevo
as qualidades, as condições que são necessárias para a compreensão de um fato urbano singular e
que dão continuidade ao que a tradição de cada lugar tem configurado como a essência do mesmo.
Em geral, podemos dizer que os significados reunidos por um lugar constituem seu genius loci. A
noção de tradição aparece como a união entre a história e a identidade do lugar. A tradição é o
transmitido, enquanto o locus representa essa permanência do lugar e seus elementos ao longo da
história, permanência que se articula com a mobilidade que o tempo introduz em diversas situações.
Na arquitetura do movimento moderno, todo objeto arquitetônico surge com uma
indiscutível autonomia. Mesmo num projeto teoricamente organicista como Ronchamp, lembra
Montaner (1997), onde a obra sugere a idéia de um projeto que pode ancorar-se sem nenhuma
relação com o entorno.
A cultura do organicismo, desenvolvida por Frank Lloyd Wright e os arquitetos nórdicos,
tais como Alvar Aalto, que perseguem um espaço moderno que não seja indiferente ao lugar, introduz
definitivamente a relação da arquitetura com o lugar.
Espaço leve e fluido
A tecnologia moderna não é antagônica à natureza; pelo contrário, poderíamos dizer
que ela está criando uma nova natureza: se a que conhecemos denominamos real, a outra seria
virtual. Considerando que a “natureza” sempre significa o princípio fundamental do cosmos, se traba-
lhamos com a definição de que a arquitetura e o espaço urbano não são independentes da natureza
e sim suas prolongações, fundindo-se com ela, então os limites entre o interior e o exterior são inde-
finidos; estabelece-se, assim, uma relação idealmente confortável entre o homem e a natureza, uma
vez que não existem fronteiras entre interior e exterior.
Fica, portanto, ultrapassada a definição de que a arquitetura começa onde a paisagem
termina. As paredes, em vez de serem essencialmente barreiras, enclausurando os elementos
compositivos, podem servir como filtros de informação, ou pontos de passagem, que fundem e dis-
solvem o tradicional interior/exterior. A interpretação de passagens é infinitamente variável e não obe-
dece a nenhuma fórmula. Esta nova perspectiva basicamente propõe que as paredes e os pisos dos
edifícios sejam como fluidos, e que respondam como membranas. Entendidos como mutáveis, orgâ-
nicos e informais, os conjuntos de conexões entre os edifícios e a paisagem criam uma grande flexi-
bilidade para a orientação dos abrigos para serviços.
O antecedente dessa perspectiva pode ser encontrado na concepção do espaço basi-
camente composto num plano horizontal livre, com fachada transparente, onde o vazio flutua ao
redor dos elementos pontuais e verticais dos pilares de concreto e aço. Nas palavras de Montaner
As modalidades de construção tecnologicamente significativas 125
(1997), todo o espaço moderno gira em torno de um protagonista estrutural e formal: o pilar; seja este
o de seção quadrada de Le Corbusier, os circulares de Lúcio Costa e de Niemeyer, no Ministério de
Educação do Rio de Janeiro, ou os de aço de Mies van der Rohe, cuja forma em cruz garante a
simetria e obtém a máxima leveza e desmaterialização. Nesses exemplos, a fluidez não pode ser
atribuída somente ao método compositivo do espaço, mas também, em grande medida, ao brilho
dos materiais utilizados: o cristal, a pedra e o aço, que parecem flutuar no espaço, relacionam-se
entre si e, ao refletir-se, criam um espaço cheio de erotismo (em estado de fusão com o entorno). O
espaço de Mies não oferece a sensação de espaço leve e fluido; cria a impressão de um espaço
denso, como se estivéssemos dentro de um espaço líquido e translúcido.
Arquitetura adequada ao lugar e às necessidades do homem:
a arquitetura bioclimática
A cultura e o clima de um lugar têm sido, através de todas as épocas, constantes gera-
doras de idéias originais, de vitalidade e de preservação dos mais profundos valores humanos. Para
Cook (1991, apud Romero, 1993), a arquitetura baseada no desenho solar e as respostas bioclimáticas
outorgam os elementos necessários para que se desenvolvam as expressões artísticas de um novo
regionalismo. A região pode ser definida pelo clima, pela geologia, pelo étnico, pelas suas leis ou por
qualquer outro símbolo da cultura.
Existe uma dificuldade real para captar o permanente, o característico de cada lugar,
quando o modelo de cultura dominante propõe uma contínua transformação e uma contínua troca de
imagens. Um regionalismo crítico parece ser a única possibilidade de resistir a essa tendência
depredadora, e seu mais alto preceito cultural é a criação do lugar. O significado do lugar está deter-
minado pelo sistema de relações estabelecidas pelos objetos que pertencem a esse lugar, pelo sig-
nificado que reúnem. A reunião urbana pode ser entendida como uma interpretação do gênio local,
de acordo com os valores e as necessidades da sociedade atual.
O lugar incorpora um conteúdo poético, define-se pelas qualidades dos elementos, pe-
los valores simbólicos e históricos, é ambiental e está relacionado com o corpo humano. A importân-
cia do contexto se revitaliza pelo desenvolvimento da idéia de lugar, ou seja, quando é introduzido um
conteúdo conceitual maior do que a simples localização espacial, incorporando as formas de ser
desse e nesse lugar.
A arquitetura ecológica é aquela que aceita, com todas suas conseqüências, a imensa
diversidade do planeta. Existem diversas denominações para tratar da arquitetura adequada ao lu-
gar; uma delas é de arquitetura bioclimática, uma área ainda relativamente nova e pouco desenvolvi-
da, mas que tem, na arquitetura vernácula, os antecedentes que servem como exemplos de respos-
tas adequadas do homem às exigências do meio ambiente.
Para Cook (1991, apud Romero, 1993), o desenho bioclimático foi redescoberto e deno-
minado “solar passivo”, com a crise do petróleo em 1973. Segundo o autor, as realizações da arqui-
tetura solar passiva juntaram-se a uma tipologia de regionalismo, do sudoeste dos EUA, inspirada no
movimento solar passivo, que combinava algumas tradições construtivas locais com um estilo de
vida auto-suficiente. De fato, essa tendência resultou atraente num primeiro momento de desenvolvi-
mento dos estudos bioclimáticos, na década de 70. Posteriormente, outros projetistas e pesquisado-
res começaram a tratar o espaço construído de forma integral, com particular sensibilidade e conhe-
cimento do meio, como por exemplo Zanine Caldas e Severiano Porto, no Brasil. Serra (1989, apud
Romero, 1993) nos diz que gostaria que, no futuro, não se falasse de “arquitetura bioclimática” para
referir-se a esta arquitetura correta, que faz esforços para reconciliar as necessidades humanas de
abrigo com os elementos do clima.
Para López de Asiain (1989, apud Romero, 1993), as primeiras reflexões teóricas feitas a
partir de uma perspectiva genuinamente bioclimática mostram que, após a aparente novidade de
considerar detidamente um lugar, o microclima, a insolação, etc, há uma preocupação constante em
recuperar uma verdade permanente da arquitetura, um dos seus elementos constituintes e
caracterizadores, qual seja, a influência do lugar na arquitetura. Daí, a importância de se conhecer os
126 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
sucessos bioclimáticos da arquitetura do passado, abrindo assim a possibilidade de incorporação
desses conhecimentos a nossos repertórios projetuais. A exemplaridade das arquiteturas do passa-
do está evidente na sua quase perfeita adaptação ao meio ambiente, com recursos materiais e técni-
cas construtivas considerados condicionantes, e não-determinantes, da forma arquitetônica.
Em nossa visão, a arquitetura bioclimática – uma etapa atual do movimento climático-
energético – é uma forma de desenho lógico que reconhece a persistência do existente, é cultural-
mente adequada ao lugar e aos materiais locais, e utiliza a própria concepção arquitetônica como
mediadora entre o homem e o meio.
Há consenso sobre a atribuição de um papel central na arquitetura ao lugar, sítio, re-
gião. Será este que determinará a propriedade e a adequação de uma resposta arquitetônica às
necessidades do homem. Neste sentido, tanto “o edifício único para todas as nações e climas” de Le
Corbusier quanto a casa solar como solução única para todos os problemas energéticos das nações
desenvolvidas mostram-se insuficientes e inferiores à arquitetura vernácula.
A urbanização excessiva significa, muitas vezes, colocar em segundo plano as caracte-
rísticas do local, incluindo-se, no mesmo descaso, o relevo e outras características morfológicas do
sítio. O impacto negativo, ao qual a população é submetida quando o construído transforma-se em
indutor de alterações climáticas, pode ser evitado com um desenho adequado.
A novas relações entre tecnologia e arquitetura
O ensino que incorpore a pesquisa como condição essencial e como método de ensino
da arquitetura pode superar os métodos arcaicos de transmissão de conhecimentos e o
descompromisso atual da arquitetura com a sociedade. A produção de conhecimentos pode vir a ser
a contrapartida da transmissão de conhecimentos, comum na escola: em geral trata-se da transmis-
são do saber autodidata do arquiteto, de base empírica, em função de sua obra e da sua experiência
de escritório. A reflexão, a sistematização e a transformação metodológica necessárias para a produ-
ção de conhecimentos na formação do arquiteto são deixadas de lado. As obras de arquitetos consa-
grados não são questionadas nem analisadas; simplesmente ensina-se a admirá-las, enquanto au-
mentam os problemas sem solução do habitat, e o profissional que se forma não corresponde às
exigências do mundo contemporâneo.
Num processo projetual interativo, no qual a ampla gama de valores estruturadores
do ambiente se faz presente, e as técnica de construção embasam as opções projetuais, em
vez de serem apenas suporte das formas arquitetônicas, faz-se necessário o resgate da beleza,
da capacidade de integração, do senso comum, enfim, dos rasgos característicos das arquite-
turas populares/vernáculas. Desafortunadamente, a maioria das obras premiadas e admiradas
utilizaram materiais cuja produção possui um alto custo energético e cujo funcionamento malgasta
energia. Os espaços urbanos poderiam incorporar a ambigüidade e a possibilidade de surpre-
sa; neste sentido, os limites constituem a questão fundamental no desenho dos espaços aber-
tos. A fim de permitir que o espaço se ressignifique através do tempo, esses limites devem ser
frágeis, transponíveis, fluidos, permeáveis.
Um espaço fluido, com essas características, disponibiliza os elementos de modo a
integrar-se ao meio, como praças cobertas, pátios, estufas, formas escalonadas, galerias, fachadas
como membranas, muros de inércia térmica. Desde o projeto, deve prever-se uma construção por
elementos que permitam, quando necessário, a desconstrução do edifício ou a substituição de algu-
mas de suas partes, integrando-se num processo global de reciclagem.
Dada a dificuldade de definir normas gerais num panorama de máxima diversidade e
dispersão, podem ser definidos alguns padrões, partes constituintes ou fragmentos tipológicos que
possuam maiores capacidades ecológicas, desde os materiais menos contaminantes, formados
por componentes reciclados ou facilmente recicláveis, até as formas escalonadas e as intervenções
na escala da paisagem, passando pelos pátios e as galerias. Ezio Manzini constatou no seu livro La
Materia de la Invención (1986) que as mais altas tecnologias já permitem, mesmo quando pareça
paradoxal, as formas orgânicas e arborescentes da natureza.
As modalidades de construção tecnologicamente significativas 127
Se a essas observações juntarmos a concepção de que o espaço se forma basicamen-
te mediante o conjunto de relações que vinculam um objeto ao ser humano que o percebe, produz-
se, então, uma correspondência entre os sentidos e o espaço, que se estabelece através dos senti-
dos, prioritariamente através da visão, e pela excitação dos sistemas receptores dos estímulos físi-
cos. Daí, a necessidade de voltar nossa atenção a uma adequada combinação desses estímulos.
A resposta do espaço será mais adequada à medida que os materiais da superfície
envolvente – a pele – não fiquem ocultos e possam responder segundo o solicitado. Neste ponto, a
forma da envoltura dos edifícios que rodeiam o espaço público também é fundamental, uma vez que
as reverberações, a absorção e a reflexão dependerão, em grande medida, dela. Devemos lembrar
que as impressões que produzem reações psicológicas e físicas tais como dureza, maciez, densida-
de e leveza estão intimamente relacionadas com o caráter da superfície dos materiais.
Uma das partes mais importantes da adaptação do edifício ao lugar, ao entorno,
está nas características da pele. Quanto mais seja um filtro transpirável, móvel, praticável,
modificável e transparente, melhor. Os climas caracterizados por forte diferenciação entre o
verão e o inverno exigem soluções de fachada mais complexas e menos unívocas. Devem pre-
valecer a luz natural, as vistas, a ventilação natural, evitando-se o tratamento dos edifícios altos
como se fossem subterrâneos, com climatização e iluminação artificiais. A alta e média
tecnologias permitem uma grande variedade de tipos de membranas que podem ser sobrepos-
tas. As fachadas e divisões internas devem ser pensadas como peles de características variá-
veis, feitas com elementos como gelosias, brise-soleil, persianas, lâminas. Os materiais escolhi-
dos devem ter qualidades filtrantes para deixar passar a luz, mas não ver; para ver, mas não
ouvir; para ouvir e participar, mas não ser visto; para deixar passar o ar, mas não a luz, etc. As
formas devem ser escalonadas, a fim de aproveitar as vantagens de insolação, ventilação e
volume, integrando-se com o entorno.
Encontramos inovações tecnológicas principalmente em relação aos materiais transpa-
rentes, não tanto pela natureza físico-química, mas pela configuração geométrica. Existem atualmen-
te, no comércio, placas transparentes em resinas acrílicas, com uma face plana e outra dentada, com
ângulos de diferentes valores. O uso destes, juntos ou individualmente, fixos ou girando em torno de
um eixo horizontal, colocados em superfícies inclinadas ou horizontais, oferece numerosas combina-
ções, verdadeiros sistemas de “janelas inteligentes”.
Outro setor com inovações interessantes no campo dos materiais transparentes é o
dos painéis compostos, constituídos de duas placas de vidro, entre as quais são colocados materi-
ais para melhorar as prestações térmicas e luminosas. Como exemplo destes painéis, podemos
citar o Okasolar, com lamelas refletoras entre os vidros, que regulam o fator solar e a transmissão
luminosa, e melhoram o isolamento térmico, conservando as características de ganho solar para as
aberturas onde isso é desejado.
Os Transparent Insulation Materials (TIM) são uma nova classe de materiais compostos,
que associam uma boa transmissão da luz a um bom isolamento térmico. Esses materiais têm múlti-
plos empregos e prestam-se a diversas exigências. Podem ser utilizados sobretudo no lugar dos
isolantes térmicos normais opacos nas paredes dos edifícios expostas ao sol e também nos locais
onde é necessária a entrada de luz, mas não a visão para o exterior. Podem ser aplicados com
eficiência no muro Trombe, melhorando sensivelmente seu rendimento.
Uma forte característica dos edifícios bioclimáticos são as chamadas coberturas do
tipo membrana, que são estruturas tensionadas de funcionamento contínuo. Estas são realizadas
com tecido de base resistente às solicitações (geralmente PVC), ao qual são adicionadas outras
camadas que melhoram o desempenho com relação aos agentes atmosféricos, às radiações
ultravioletas, às deformações elásticas, etc. A membrana reflete, absorve e transmite ao interior do
ambiente a radiação solar, como um outro material qualquer, de acordo com sua espessura, cor,
granulatura superficial, etc., e, sendo um material semitransparente à luz, a iluminação natural do
ambiente geralmente é adequada.
Uma outra tendência atual, no campo da arquitetura bioclimática, é a automação dos
sistemas de regulagem do conforto ambiental; tratam-se de painéis brise-soleil fixos ou móveis, por
meio de motores. Também é possível a regulagem da posição das aletas dos brise-soleil por meio de
128 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
sistemas computadorizados, comandados por sensores que registram as condições climáticas e de
luminosidade dos ambientes (por exemplo, a fachada do Instituto do Mundo Árabe, em Paris, do
arquiteto J. Nouvel). Esses sistemas caracterizam os chamados “edifícios inteligentes”, capazes de
auto-regular o próprio comportamento em relação às condições externas, para garantir ao usuário o
máximo conforto sem exigir sua intervenção.
Na “primeira geração” da arquitetura bioclimática, houve uma atenção especial aos
sistemas de refrescamento natural dos edifícios nos países quentes; típico dessa atenção foi o inte-
resse pelas “torres de vento” iranianas, da arquitetura vernácula. Recentemente, através do uso de
elementos tecnologicamente avançados, foram adotadas algumas inovações para o refrescamento
de ambientes fechados e semi-abertos ou completamente abertos. Os vários sistemas geralmente
usam ventiladores para a circulação forçada do ar e para a extração de ar quente, bem como
nebulizadores ou cascatas de água, a qual, ao se evaporar, absorve energia térmica e umedece o ar
ao mesmo tempo.
Uma das estratégias tradicionais da arquitetura bioclimática são as formas semi-enter-
radas que aproveitam a inércia térmica do terreno e dos muros. Outra das estratégias arquitetônicas
para se situar numa paisagem privilegiada é a dispersão das massas. Isto corresponde a uma postu-
ra de respeito com o entorno, panteísta, que chega à fragmentação do programa funcional (a exem-
plo das “zones”, de Steve Baer).
Levando em consideração tanto as inovações tecnológicas quanto a exemplaridade
das estratégias vernáculas tradicionais, podemos afirmar que o futuro está na arquitetura leve e in-
dustrial, na qual é muito mais fácil construir por camadas não aderidas, substituir elementos e criar o
mínimo de resíduos possíveis, tanto na construção como na demolição e na reciclagem. Neste sen-
tido, torna-se fundamental que o ensino da arquitetura corresponda às exigências atuais e se anteci-
pe às futuras com uma profunda procura de soluções inovadoras e ecologicamente responsáveis.
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Capítulo 8
Projetando com a população:
uma experiência de ensino
de projeto ambiental urbano
Luiz Alberto de Campos Gouvêa*
Resumo
Divulga e avalia uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano com participação popu-
lar, que o autor vem desenvolvendo nos últimos dez anos, em três universidades brasileiras: a
Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), a Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e a
Universidade de Brasília (UnB). Busca também evidenciar as diferenças no ensino de projeto
urbano entre as faculdades públicas e privadas. Procura, ainda, descrever os objetivos, as etapas
de trabalho e as dificuldades, assim como os resultados e as possibilidades de um método de
ensino de projeto ambiental urbano, com participação popular.
O ensino de projeto nas Escolas de Arquitetura e Urbanismo
Em geral, as Faculdades de Arquitetura e Urbanismo, sejam públicas ou privadas, têm
seus cursos quase que diretamente voltados para o atendimento a 3% da população, as elites.
Apesar dos discursos de formatura e aulas inaugurais sobre a preocupação com a
habitação popular, com a fome ou com os “sem-terra” e “sem-teto”, os projetos realmente valo-
rizados são aqueles dos luxuosos shopping centers, os condomínios fechados ou a revitalização
de área urbana cuja apropriação popular está atrapalhando o uso comercial pelas classes de
maior poder aquisitivo.
Claro que, numa sociedade de 160 milhões de pessoas, é importante incentivar todos
os tipos de organização de espaços, para servir a toda a sociedade. Assim, reconhece-se como
aceitável que uma universidade particular dê ênfase ao ensino de questões relativas a sua
mantenedora, seja ela uma indústria ou uma entidade religiosa, mesmo estando num país de muitas
carências sociais. Mas é igualmente importante não esquecer que a universidade pública deveria ter
seu compromisso fundamental com a maioria da população. Desta forma, as necessidades popula-
res têm de ser o objeto principal das pesquisas e proposições da universidade, em particular, e das
faculdades de Arquitetura e Urbanismo públicas.
A rigor, a pluralidade de opiniões e a diversidade ideológica são a maior riqueza da
universidade, devendo incentivar-se a abertura de espaços reais de trabalho para as mais variadas
posturas e correntes de pensamento. Desta forma, não é possível a discriminação, como hoje ocor-
re em muitas universidades e faculdades de Arquitetura, em relação às posições ligadas aos pro-
cessos participativos de planejamento e proposição de espaços.
*Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP); arquiteto especializado em planejamento habitacional. Participou,
no período de 1980-1999, da elaboração de vários projetos e trabalhos de planejamento urbano do governo do Distrito Federal. Lecionou na
Universidade Católica de Goiás (UCG) e na Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru). Atualmente, é professor da Universidade de Brasília
(UnB). Publicou o livro Brasília: Capital da Segregação e do Controle Social (Ed. Annablume). No momento, desenvolve pesquisa de pós-
doutorado junto à Universidade Politécnica da Catalunha (UPC), sobre a forma urbana e o meio ambiente.
132 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Com efeito, é comum ainda se ouvir, nas escolas de Arquitetura e Urbanismo, frases do
tipo: “para fazer habitação popular não é necessário arquiteto” ou, ainda, “esse negócio de consultar
a população é coisa de arquiteto, assistente social”.
Com tais afirmações, observa-se que a universidade, como um todo, tem se afas-
tado das necessidades da maioria da população, e as faculdades de Arquitetura em geral assu-
mem uma postura ainda mais distante e elitista. Este fato, apesar dos esforços de poucos, tem
custado caro até mesmo aos bolsos dos próprios professores e funcionários, pois a população,
de modo geral, não identifica a produção universitária com as suas necessidades. Assim, não
apóia os movimentos por melhores salários e condições de trabalho nas universidades públicas
e ainda cai no engodo de que a privatização é a única saída, esquecendo-se, como fez no
passado, quando do desmonte e da privatização do ensino de 1º e 2º graus, de que o ensino
público e gratuito estava entre os melhores do País. Desta forma perversa, hoje a história se
repete, tendo como foco o ensino superior.
A realidade é que, para os agentes da globalização, não interessa uma universidade no
“Terceiro Mundo”, seja ela privada e muito menos pública, pensante (desenvolvendo pesquisas e
trabalhos de extensão). O plano já traçado pelos países do “Primeiro Mundo” é transformar a univer-
sidade brasileira em escolões de 3º grau, onde transmitir-se-ia o conhecimento conveniente às
multinacionais, seus negócios e lucros.
No campo da Arquitetura e Urbanismo, já se vê o reflexo destas idéias nos vidros ne-
gros dos edifícios implantados nas quentes cidades tropicais e nos exorbitantes gastos de energia
para mantê-los temperados, como em Nova Iorque, ou nas telhas de fibrocimento que cobrem as
casas populares e que há muito já foram banidas do repertório arquitetônico dos países que a
inventaram, pois apresentam fortes indícios de provocar câncer em seus usuários. Da mesma for-
ma, no urbano, observa-se o incentivo à análise e projeto urbano, utilizando conceitos e critérios
mais apropriados para países de clima frio ou temperado, onde são concebidos, que aqui se trans-
formam em estruturas urbanas e construções de grandes edifícios residenciais ou comerciais que,
ignorando o entorno público, se voltam para o privado, destruindo a possibilidade de a cidade à sua
volta funcionar como local de encontro, procurando privatizar os espaços e condicioná-los ao poder
de compra de uma minoria.
Método de trabalho
Da mesma forma que no passado, o mundo foi diversas vezes dividido, segundo os
interesses das maiores potências bélicas, religiosas e/ou econômicas. Hoje, o mundo vive a era
da globalização, nome pós-moderno do imperialismo norte-americano. Nada de novo, tanto
que me faz lembrar a época em que Portugal e Espanha, com as bênçãos da Igreja, dividiram o
mundo a ser descoberto em duas partes, confirmadas no Tratado de Tordesilhas. Naquele, o
Brasil ia de Belém à Laguna e se as Entradas e Bandeiras nada tivessem feito, ele teria hoje uma
área três vezes menor. Torna-se óbvio, portanto, a necessidade de se trabalhar pela globalização
que nos interessa.
Não se trata de um convite para quebrar as máquinas ou os computadores, como no
início da industrialização, mas pelo contrário, de se encontrar o caminho para que a inevitável e
desejável internacionalização surja como uma possibilidade de solidariedade entre os povos e impli-
que a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Trazendo esta discussão para o campo de atuação do arquiteto, é importante que se
trabalhe no sentido de uma Arquitetura e Urbanismo que, ao mesmo tempo que propiciem o pleno
desenvolvimento das atividades contemporâneas, guardem as características culturais que os distin-
gam e estejam em pleno equilíbrio ecológico.
A universidade brasileira e, em particular, as escolas de Arquitetura e Urbanismo, têm
tido dificuldade para desenvolver uma metodologia de trabalho com base na participação popular e
na análise meticulosa do sítio e do clima local, procurando, como ocorre nos países do primeiro
mundo, definir os padrões básicos dentro de sua cultura.
Projetando com a população: uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano 133
Com efeito, nos países do primeiro mundo, tão copiados pelos brasileiros nos modis-
mos e de onde se importa tecnologia obsoleta e poluente, essas práticas de participação popular,
com ênfase nas questões ecológicas na organização de projetos urbanos, são corriqueiras, mas
pouco exportadas. Talvez, por serem realmente eficientes e por firmarem, em sua prática, os traços
culturais de um povo.
Na década de 60, o arquiteto norte-americano Kelvin Lynch já trabalhava com os
“mapas cognitivos”. Lançava as bases para uma consulta à população, na produção do dese-
nho urbano. As pessoas “marcavam” num mapa os pontos que elas julgavam mais importantes
numa cidade. São igualmente “antigas” as técnicas de trabalho em escolas, nas quais, por
meio de desenho, as crianças expressam os lugares de que mais gostam ou os que, a seu ver,
apresentam problemas. O método de organização de perspectivas, para que a população com-
plete com desenhos os espaços de acordo com o seu desejo, é também um instrumento rotinei-
ro na Europa.
Um outro método utiliza maquetes com elementos móveis ou maquetes eletrônicas re-
presentando espaços urbanos. Tal recurso viabiliza o entendimento e permite os ajustes naturais dos
espaços com a efetiva participação da população.
Algumas dessas técnicas têm tido aplicações bem-sucedidas no Brasil, com resulta-
dos surpreendentes; além de melhorar sensivelmente a qualidade dos projetos e espaços públicos.
A população tem, em relação aos lugares por ela sugeridos, um certo compromisso, na medida em
que são fruto de uma luta e se adequam com justeza às suas necessidades.
Observa-se, na definição das técnicas e na estruturação deste método de traba-
lho, uma preocupação em captar as necessidades culturais da população, sem descartar a
possibilidade de avançar, principalmente no que se refere ao relacionamento do brasileiro
com a natureza.
Desta forma, procura-se desenvolver um método em que se sobreponha um
mapeamento dos espaços socioculturais importantes para a comunidade e os espaços ecolo-
Figura 1 – Maquete da proposta urbana (desenho a bico-de-pena).
Fonte: Luiz Alberto de Campos Gouvêa, abr. 1997.
134 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
gicamente mais sensíveis, onde todos os aspectos relativos ao sítio e ao clima sejam considera-
dos, visando à organização de um espaço urbano que gere baixo impacto ambiental e baixo
gasto de energia, buscando-se, sobretudo, definir uma estrutura urbana a partir de dados locais/
regionais, marcando os espaços com os traços culturais da população que vai habitá-lo e dese-
nhando-o com a natureza local. Enfim, criando uma estrutura urbana que possibilite uma maior
qualidade de vida e uma organização que, ao mesmo tempo que atenda às demandas locais,
permita uma inserção peculiar no processo contemporâneo de internacionalização.
A extensão como a consciência social da universidade
No início da década de 80, um grupo de arquitetos de Brasília, que trabalhava nos
programas de urbanização de favelas do Governo do Distrito Federal (GDF), sentiu a necessi-
dade de criar um fórum não-governamental para apoiar a política e tecnicamente, as lutas do
movimento popular na cidade. Assim, desenvolveram no Sindicato dos Arquitetos do Distrito
Federal a “Comissão Cidade”, que trabalhava no sentido de assessorar as associações de
moradores, visando à urbanização de favelas e à melhoria do espaço habitado. Este movimento
teve repercussão nacional, sendo encampado pela Federação Nacional dos Arquitetos no mo-
vimento “Grito da Cidade”. No período, várias universidades brasileiras começaram ou recome-
çaram, depois da longa desarticulação deste setor pela ditadura militar, a desenvolver a forma-
ção do arquiteto, utilizando o trabalho de pesquisa e de extensão junto ao movimento popular,
enfocando a questão da habitação e do desenho urbano. Entre as universidades que assim
procederam, estavam as Católicas de Goiânia (GO) e Campinas(SP).
Neste momento, em função do trabalho em Brasília, tive a oportunidade de ser convida-
do a integrar a equipe de professores da Universidade Católica de Goiânia.
Observei que a Faculdade de Arquitetura da UnB já havia uma estrutura montada para
o trabalho com o movimento popular, estabelecendo uma diferença clara em relação à grande mai-
oria das faculdades privadas e mesmo públicas do País.
Um dos fatos que distinguem basicamente as Católicas, em particular a de Goiânia,
das demais é a relação do corpo docente com a universidade e principalmente a figura do padre
como facilitador dos trabalhos sociais. A Pontifícia Universidade Católica de Goiânia (PUC-GO) es-
tava sob a direção local de um bispo progressista e com isto a universidade se tornava mais próxima
do povo. Observei, no entanto, um fato curioso que não tinha diretamente relação com a orientação
política da reitoria, mais sim com a própria estrutura organizacional da universidade, ou seja, uma
fundação sem fins lucrativos, onde os professores se sentiam como donos ou co-participantes da
universidade, um sentimento que não notei nas universidades privadas e mesmo nas públicas, ape-
sar de os professores, nesta última, terem estabilidade e de fato passarem mais de 30 anos de sua
vida na instituição. Enfim, este fato fazia, ao que parece, aos que assim pensavam, trabalhar com
mais dedicação e liberdade.
Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi o trabalho do padre junto ao mo-
vimento popular. Com efeito, o trabalho de extensão da PUC acima de tudo era catalisado pelo
padre que, tendo a confiança das comunidades carentes, facilitava e levava a escola para den-
tro da favela, queimando uma etapa importante em termos de projeto de urbanização. Este fator
adiantava o trabalho, pois possibilitava uma cooperação dos moradores em tempos muito me-
nores. Torna-se importante destacar que em Goiânia, além da ajuda do padre, existia uma es-
trutura organizada para apoiar a ação junto à população. Os alunos dispunham de bolsas e a
disciplina de projeto urbano que eu ministrava junto a outros dois professores, com larga expe-
riência profissional e acadêmica, era apoiada por professores de áreas conexas, ou seja, um
engenheiro sanitarista e uma socióloga urbana.
Entre os métodos de trabalho adotados, gostaria de destacar o desenvolvido nas pe-
quenas cidades do interior de Goiás, visando desenvolver planos diretores locais e intervenções de
desenho urbano nas cidades. Trabalhava-se em parceria com as prefeituras e com elas conseguia-
se bolsas de extensão para os estudantes que desenvolviam propostas. Para este trabalho adotou-
Projetando com a população: uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano 135
se um método de estudo baseado nas propostas do padre Lebret (humanista que nos meados deste
século desenvolveu o plano diretor de São Paulo).
Assim, organizou-se uma lista de problemas comuns às pequenas cidades do inte-
rior goiano, e elegeu-se, como interlocutores para levantar ou checar a real importância de cada
problema, a comunidade local, o padre, os líderes comunitários, a prefeitura e as oposições.
Todos nos revelavam diferentes ângulos, que foram extremamente importantes no levantamento
de dados e para definição das propostas. O método de levantamento de dados continha tam-
bém itens específicos de observações de campo de fatores ecológicos como, por exemplo,
observações de erosões, para avaliar problemas de solo e análise da vegetação, para avaliar
preliminarmente as condições do subsolo. Além destes problemas anotavam-se em campo,
entre outros, fatos ligados ao cotidiano dos moradores, tais como: esgoto correndo na rua,
pessoas levando latas d’água, lixo na rua, enfim, uma série de indicadores que permitiam uma
avaliação preliminar rápida dos problemas, para posterior checagem dos dados bibliográficos/
cartográficos com os interlocutores escolhidos.
A partir desta metodologia de levantamento, o diagnóstico e as propostas de inter-
venção atingiam, com a velocidade que o trabalho exigia, os principais problemas locais e sua
solução incorporava os fatos positivos observados pela equipe na cidade e mesmo soluções
parcialmente formuladas pelos interlocutores. Com isto, soluções como previsão de área para
setores de indústria, observando questões de solo/subsolo e ventos dominantes, além das ques-
tões de acesso normalmente observadas, possibilitavam melhorias significativas na qualidade
de vida das pessoas. Soluções para o lixo, como aterros sanitários ecologicamente localizados,
e sugestões para a coleta seletiva, além de proposições de projeto de desenho urbano para
minimizar problemas de erosões nas ruas, faziam as comunidades e o prefeito “vibrarem”, prin-
cipalmente quando percebiam que as soluções dadas eram viáveis economicamente e repre-
sentavam, na maioria das vezes, reinterpretações contemporâneas e criativas das antigas prá-
ticas usadas pelos moradores.
Por outro lado, notei que uma parte dos alunos eram filhos de comerciantes e fazendei-
ros de certas posses e não viam com interesse este trabalho social da universidade. Não consegui-
am, fundamentalmente, enxergar como aplicariam este conhecimento na futura gestão dos negócios
da família, assim não precisavam e não se interessavam nem pelas bolsas de estudo dadas pela
universidade ou negociadas com as prefeituras.
Em suma, a PUC-GO levava “a sério”, em todas as instâncias administrativas, o traba-
lho com a população. Fornecia bolsas de estudo, emprestava o seu nome para parceria com as
prefeituras e tinha no padre um forte instrumento para apoiar as ações locais, ou seja, como eles
mesmo diziam, “fazemos da Extensão a inteligência social da universidade”.
As disciplinas integradas no interior paulista
Na Unesp/Bauru, tive uma surpresa, pois achava que as universidades públicas esti-
vessem mais próximas dos trabalhos com a população.
Ledo engano. A Faculdade de Arquitetura, que era particular, acabava de ser
encampada pela Universidade Estadual Paulista. Assim, encontrei uma escola em transforma-
ção, com muitos professores oriundos da antiga faculdade particular da cidade, onde a pesqui-
sa e o trabalho de extensão universitária não tinham a relevância que se considerava necessá-
ria. Observei que alguns professores tentavam, inclusive, suavizar os problemas sociais (migra-
ção, favelas) da cidade.
Em Bauru, era prática corriqueira reprimir, de forma ostensiva, a migração, e a popula-
ção, em geral, tratava mal o migrante, especialmente os nordestinos. Era inclusive comum encontrar
pichações nas paredes e muros com dizeres “fora nordestinos” e coisas do tipo, sendo que a escola
refletia no seu quadro docente este clima de intolerância.
Por outro lado, o método de trabalho acadêmico, adotado pela faculdade, permitia a intro-
dução das questões sociais e a dinamização das atividades do ateliê, ou seja, cada professor tinha um
136 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
número de aulas dos conteúdos específicos de sua disciplina e uma vez por semana havia um
dia de ateliê comum das matérias conexas. Por exemplo: as disciplinas de Paisagismo 2, Arqui-
tetura 4 e Urbanismo 2 tinham o mesmo objeto de intervenção e uma vez por semana os três
professores atendiam aos alunos no mesmo ateliê. Foi uma experiência muito produtiva, em
primeiro lugar pelo fato de permitir que os alunos vissem como, num trabalho de projeto, se dá
a relação das várias disciplinas, os limites de cada uma, os pontos de convergência e a propo-
sição conjunta. Possibilitava também a introdução de várias visões da realidade, o que permitia
aos alunos optarem por práticas mais sociais ligadas à cultura local, de menor impacto ambiental
e menor gasto de energia, em contraposição àquelas posturas mais ligadas à apropriação dos
espaços dentro de uma visão de reprodução da lógica globalizante, onde aspectos estéticos/
funcionais de reprodução de tecnologia e formas importadas preponderavam. Enfim, permitia-
se ao aluno vislumbrar as implicações de suas posturas ideológicas, nas decisões de projeto.
Esse método de trabalho acadêmico também colocava em evidência as diferenças
entre uma faculdade particular, onde o trabalho de pesquisa acadêmica não é incentivado, onde o
professor basicamente vai à universidade somente para ministrar aulas, e estas são preparadas nos
intervalos de suas atividades profissionais, onde praticamente inexiste o trabalho de extensão uni-
versitária, como forma de alimentar a produção acadêmica e profissional. Esta era a face mais
evidente da escola que acabava de ser encampada, representada pelos antigos professores, em
contraposição aos que ingressavam por concurso público, já dentro dos parâmetros de seleção das
universidades estaduais paulistas, onde a pesquisa formal acadêmica, a experiência profissional e
acadêmica eram pontos fundamentais.
Os alunos da Unesp/Bauru vinham basicamente das cidades do interior paulista
e passavam no vestibular mais concorrido do Estado de São Paulo, na área de Arquitetura e
Urbanismo. Eram, em sua maioria, oriundos de famílias de classe média e por isto tinham a
possibilidade de se dedicar em tempo integral à universidade. Estes fatos garantiam ótimos
níveis de aproveitamento e interesse pelo curso e também um nível, hoje raro, de interesse do
corpo discente pelas questões acadêmicas de sua formação e, naturalmente, pela organiza-
ção da faculdade.
Por coincidência, justamente no período de discussão entre alunos/professores e o
amadurecimento dessas questões, passei no concurso para professor da UnB e vim para Brasília.
Este fato foi o estopim de uma greve de alunos, que interpretaram minha saída como o fim de uma
possibilidade que não estava tendo o devido espaço para se manifestar. Assim, permaneceram em
greve durante meses, e ao final houve uma reestruturação na faculdade. Não tive, posteriormente,
oportunidade de avaliar as mudanças, mas creio que novos horizontes se abriram no interior paulista.
A primeira experiência na UnB
Brasília sempre foi alvo de muitos estudos, basicamente em função de representar o
mais completo conjunto urbano moderno do mundo. Em razão disto, foi inclusive tombada como
patrimônio da humanidade.
Por outro lado, Brasília foi tombada com pouco mais de 30 anos de existência,
cristalizando espaços urbanos não aprovados pelo uso, diferentemente da grande maioria das
cidades antigas, medievais ou barrocas tombadas, assim correndo o risco de se preservar além
dos fatos urbanos positivos, também aqueles negativos, a exemplo dos eixos/auto-estradas
que cortam as áreas residenciais da cidade, fazendo diariamente vítimas da velocidade do trân-
sito e principalmente, cristalizando uma estrutura urbana que induz à segregação social, pela
discrepância de qualificação e distância dos espaços habitados pelas classes alta/média e os
setores populares.
Por outro lado, Brasília apresenta, de forma geral, espaços generosos, cuja convenien-
te apropriação por seus habitantes tornaria mais econômica a manutenção dessas áreas, assim
como poderia se resgatar os espaços próximos ao Plano Piloto, para o encontro da população, sem
exclusão dos setores populares.
Projetando com a população: uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano 137
É importante esclarecer que não se pretendeu, no trabalho com os alunos, utilizar
as novas propostas para conflitar o tombamento da cidade. Pelo contrário, entendeu-se que a melhor
forma de se preservar Brasília como patrimônio da humanidade era dando aos moradores da
cidade a oportunidade de ocupar os espaços de forma mais democrática, consultando o usuá-
rio e revitalizando áreas, dentro de critérios objetivos, priorizando a qualidade de vida do mora-
dor da cidade, em oposição às possíveis idéias do autor do projeto que, no dia-a-dia, não res-
ponderam bem às necessidades do usuário. A rigor, entende-se que a melhor forma de preser-
var Brasília é dar o uso social a seus espaços.
Com base nesses fatos, construiu-se, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
UnB, a idéia de estudar a revitalização dos espaços da cidade, com a participação de seus usuári-
os. Dentro dessa perspectiva, introduziu-se, no 1º semestre de 1993, o curso “Projetando com a
População”. Estabeleceu-se para discussão e como objetos para estudos/projetos, numa primeira
experiência, três temas: o Acampamento da Telebrasília, antigo acampamento de obras da constru-
ção de Brasília; a revitalização de duas das primeiras superquadras do Plano Piloto (SQN 405 e SQN
406) e o projeto de uma nova superquadra, a SQN 413-414, este último contrapondo-se a uma
proposta de parque, definida pela Câmara Legislativa. Todos os três temas eram objeto de freqüen-
tes debates e interesse dos moradores da cidade.
As áreas tinham em comum a proximidade da UnB, o que facilitou o acesso dos alunos
e da população ao desenvolvimento dos trabalhos. Observe-se, ainda, que todas as áreas exigiam
uma atenção especial para a questão ecológica. Como ponto divergente, havia a diferença entre a
renda dos moradores das superquadras e os do acampamento da Telebrasília. Esse fato permitiu
aos alunos comparar as estratégias de organização do espaço, em estruturas urbanas com níveis
de renda diferentes.
No processo de discussão, a turma aprovou as propostas com pequenas altera-
ções no cronograma e solicitou que, nas aulas de Teoria Projetual, que acompanhavam as ativi-
dades de orientação em ateliê, fossem enfatizadas as questões relativas à prática profissional
na execução de projetos urbanos. Tal ajuste ao plano inicial acabou enriquecendo sensivelmen-
te o curso. Contou-se, ainda, com a ajuda de uma aluna que, na época, fazia o projeto de
diplomação e desenvolvia, como tema, um projeto de urbanização do Acampamento da
Telebrasília. A aluna se dispôs a monitorar a turma, fornecendo os dados ecológicos e culturais
por ela levantados.
Observou-se, tanto nas atividades de levantamento quanto de análise de dados e de
projeto, uma certa dificuldade de os alunos trabalharem juntos com a população. Tal dificuldade tinha
implicações diferentes nas superquadras e no Acampamento, em função de os alunos serem, em
sua maioria, oriundos de classe média e alta, moradores ou conhecedores dos espaços das
superquadras de Brasília, e desta forma, tendo dificuldade de entender as reais necessidades dos
setores populares, em termos de espaço.
Assim sendo, incentivou-se encontros com os moradores e usuários dos espaços a
serem projetados, que foram convidados, em vários momentos, a auxiliar no fornecimento dos da-
dos socioculturais. Buscou-se, principalmente no caso do Acampamento da Telebrasília, a contribui-
ção daqueles que “liam planta”, para avaliar, preliminarmente, as propostas de espaços em proces-
so de projetação.
A experiência foi extremamente positiva. A Associação de Moradores da Telebrasília apre-
sentou uma proposta feita por um desenhista local, que serviu de base para as primeiras discussões.
No final do curso, foi marcada uma apresentação das propostas de organização dos espa-
ços urbanos do Acampamento da Telebrasília para todos os seus moradores. A exposição teve como
objetivo também reforçar a luta da população pela fixação na área. Apesar de somente uma aluna ter
comparecido à apresentação, a mostra foi, do ponto de vista do reforço da luta política, um grande
sucesso. Além disso, a apresentação foi feita utilizando-se uma maquete da área, fato que permitiu uma
total compreensão dos espaços propostos, por parte dos moradores.
É importante ressaltar, entretanto, certa apatia e descompromisso observados junto à
maioria dos alunos, com relação à realidade e ao trato com a população. Tais fatos, obrigaram a se
repensar a forma de abordar o problema, para motivar os estudantes dos semestres seguintes.
138 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
A solidariedade impulsionando o trabalho de projeto
A partir do segundo semestre de 1993, com novas turmas, procurou-se reformular
o curso, vinculando-o ao programa de Extensão da universidade, numa tentativa de estimular
os alunos de forma mais objetiva.
Isso possibilitou a concessão de bolsas de trabalho, que permitiram maior qualidade
na apresentação dos projetos e, em particular das maquetes, o que facilitou a compreensão da
população dos espaço propostos. Incorporou-se também ao curso, por sugestão dos alunos, um
bloco inicial sobre a história das cidades, enfocando diretamente a questão da relação da história e
o exercício de projeto das cidades contemporâneas.
Adotou-se a solidariedade como o conceito base para nortear as atividades do curso,
tanto na troca de informações entre os alunos, como no trato com as populações envolvidas. Isso
deu novo vigor aos trabalhos.
Como objeto de trabalho, alternaram-se temas de interesse da cidade: a urbanização
do Acampamento da Telebrasília, a proposta da organização de uma quadra-parque na SQN 413-
414 e a revitalização de duas das primeiras superquadras construídas em Brasília. Incluiu-se ainda,
como opção de trabalho, a urbanização da vila do Varjão e a expansão da cidade do Paranoá,
antigos acampamentos de obras já assentados, próximos ao Plano Piloto.
Os alunos receberam bem os temas, nos vários semestres que se sucederam e
optavam pelo que mais lhes interessava. Procurava-se, entretanto, estabelecer que pelo me-
nos um grupo desenvolvesse temas relativos às áreas de alta renda ou dos setores populares,
para que durante as discussões os assuntos referentes às diferenças de espaços para esses
setores da população viessem à tona. Permitia-se, ainda, que fizessem propostas de outras
Figura 2 – Trabalho coletivo.
Fonte: Fernando Caçador, abr. 1997.
Projetando com a população: uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano 139
áreas para trabalho, que eram avaliadas e, se possível sua execução, dentro do espírito do
curso, aprovadas.
Enfim, buscou-se sempre entusiasmar o aluno, procurando-se maneiras para que ele,
de fato, se interessasse pelo que estava fazendo.
A primeira etapa desses trabalhos consistiu num detalhado levantamento dos dados cultu-
rais e ecológicos do local e entorno escolhidos. Buscou-se, diferentemente de um levantamento de
dados feitos por um sociólogo ou geógrafo, determinar a relação espacial de cada elemento levantado,
restringindo-se, inclusive, em função da importância no projeto, o universo de informações coletadas. As
principais informações passaram a compor um mapa- síntese, que definiu os elementos a serem preser-
vados ou revitalizados e as áreas objeto de novas ocupações.
A partir deste levantamento, desenvolveu-se um processo de análise dirigido por duas
palavras-chave: problemas e vantagens, relacionadas com os fatos identificados na área. Feita a
análise, passou-se à formulação das diretrizes e critérios de projeto. Neste item, solicitou-se que os
alunos registrassem graficamente suas idéias ao máximo, de forma a já encontrarem elementos de
síntese, que induzissem ao projeto.
Observou-se, desde a primeira etapa, que as bolsas de trabalho funcionaram de forma
positiva no estímulo ao desenvolvimento das atividades do curso. Notou-se, ainda, que a metodologia de
contatar a população para a percepção de suas necessidades espaciais funcionou como estímulo extra,
possibilitando, em muitos casos, um total envolvimento com os moradores nas suas lutas pela fixação
dos assentamentos e pela melhoria da qualidade do espaço urbano de forma geral.
A etapa referente ao risco preliminar dos projetos transcorreu com a apresentação dos
trabalhos, que foram objetos de uma análise crítica do professor, dos próprios alunos e de moradores
convidados para o evento. As críticas, tanto do professor como dos alunos, foram feitas por escrito,
visando a não influenciar os moradores nas suas avaliações.
No final da avaliação dos trabalhos, observava-se quase sempre um certo distanciamento
entre algumas propostas e as necessidades dos moradores.
Figura 3 – Mapa-Síntese (desenho a bico-de-pena).
Fonte: Luiz Alberto Campos Gouvêa, abr. 1997.
140 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Tais observações passaram a ser objeto de análise dos grupos, que as ponderaram,
juntamente com as questões técnicas/ecológicas, com vistas a possíveis reformulações e aperfeiço-
amento das idéias propostas.
Após essas avaliações, deu-se início às 3ª e 4ª etapas do curso, que se constituíram a
revisão do risco preliminar, efetuada em grupo e no detalhamento individual de parte da proposta urba-
nística geral. Para esse trabalho, alguns alunos escolheram ruas locais; outros, os pilotis dos blocos da
quadra ou uma praça e passaram a intensificar as visitas aos locais em estudo, com o objetivo de
perceber melhor as necessidades espaciais dos moradores, procurando transformar os espaços de uso
cotidiano em lugares organizados, para melhor desenvolvimento dessas necessidades.
Figura 4 – Discussão com a população sobre os riscos preliminares e o anteprojeto.
Fonte: Luiz Alberto de Campos Gouvêa, mar. 1997.
Figura 5 – Revisão, em sala de aula, das propostas debatidas com a população.
Fonte: Fernando Caçador, abr. 1997.
Projetando com a população: uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano 141
No decorrer dos trabalhos, sentiu-se a necessidade de documentar as atividades diári-
as do curso e sistematizar essas informações, não somente para se ter um registro, que permitisse
uma avaliação mais segura do curso, como também relatar a experiência para a faculdade, para a
universidade e para a cidade. Dessa forma, trabalhou-se em parceria com alunos das Faculdades de
Comunicação e de Arquitetura, que cursavam a disciplina Fotografia.
Fundamentalmente, a mensagem que se pretendia transmitir à população era a da impor-
tância do papel técnico e social da universidade e, em particular, da Faculdade de Arquitetura e Urbanis-
mo. Buscou-se, ainda, mostrar que o profissional arquiteto-urbanista cria não somente obras excepcio-
nais, palácios e monumentos (como Oscar Niemeyer, em Brasília), mas também entende das questões
do cotidiano, como projetar uma rua para as necessidades de seus moradores, fazer projetos de casas
e fossas sépticas ou mesmo revitalizar espaços da quadra para os usos do dia-a-dia.
Na última parte do curso, desenvolveu-se o detalhamento da fração urbana escolhida
pelo aluno. Nesta etapa chegou-se às últimas conseqüências no detalhamento dos equipamentos e
elementos urbanos.
Em suma, buscou-se, no curso, que o aluno passasse por todas as fases do projeto
urbano, trabalhando desde o levantamento de dados até o detalhamento, passando pelas propostas
de risco preliminar e anteprojeto, todas sendo precedidas por análises e avaliações com todos os
participantes do processo: alunos, professores e possíveis usuários.
Figura 6 – Explicação dos detalhes urbanos aos moradores.
Fonte: Luiz Alberto de Campos Gouvêa, jun. 1997.
142 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Resultados dos trabalhos
Após cinco anos de atuação do programa “Projetando com a População”, faz-se uma
avaliação dos resultados e verifica-se que no trabalho de revitalização das quadras, assim como na
proposição de novas quadras para Brasília, houve um exercício no qual os alunos buscaram funda-
mentalmente melhorar espaços muito conhecidos por eles.
No projeto das novas quadras SQN 413-414, em função do sítio acidentado, os alunos
tiveram como desafio levar a tecnologia de conforto ambiental urbano e propor uma quadra-parque,
semelhante ao projeto que inspirou o arquiteto Lúcio Costa no projeto das quadras de Brasília, ou
seja, o projeto do Parque Guinle, no Rio de Janeiro. Observa-se que, recentemente, a área objeto de
estudo foi transformada em parque e continua praticamente abandonada devido aos custos de
implantação e manutenção de parques.
Do ponto de vista pedagógico, esta área ofereceu uma oportunidade ímpar, não somen-
te para checar os métodos de levantamento de dados, principalmente os ecológicos, mas para dis-
cutir os conceitos de preservação do patrimônio natural e construído de Brasília.
Observou-se que a Secretaria do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia (Sematec) local
trabalhava numa postura de preservação ecológica, ao defender que o local não deveria ter constru-
ções, não porque estas estivessem na zona de domínio de uma nascente ou um córrego ou porque se
cortaria alguma árvore, pois, nas propostas dos alunos, tomaram-se as precauções necessárias para
preservar todas as árvores e respeitar os limites estabelecidos pela legislação ambiental, mas entre os
questionamentos da Sematec estava a permanência da fauna, mais precisamente de um gambá, que
habitava em uma das árvores da área, cuja remoção, alegavam os técnicos, seria extremamente danosa.
Esta discussão foi de grande ajuda para se trabalhar pedagogicamente com uma das
questões mais sérias dos espaços urbanos do DF, ou seja, o processo de segregação socioespacial.
Figura 7 – Anteprojeto da Quadra-Parque SQN 413-414, Plano Piloto de Brasília.
Turma: Projeto de Urbanismo 1, primeiro semestre de 1997.
Fonte: Luiz Alberto de Campos Gouvêa, jun. 1997.
Projetando com a população: uma experiência de ensino de projeto ambiental urbano 143
Assim, buscou-se contrapor a discrepância entre a decisão de um gambá morar em
duas quadras do Plano Piloto (22 blocos de apartamentos) e o fato de as cidades-satélites permane-
cerem áridas, com pouca ou nenhuma vegetação, chamando a atenção para o verdadeiro apartheid
social e ecológico existente no DF, evidenciando a segregação espacial, discutindo até que ponto
esta tem contribuído para que as pessoas não aceitem as suas diferenças e não reconheçam suas
semelhanças e se posicionem, como ocorreu no episódio, no qual jovens de classe média, morado-
res do Plano Piloto, atearam fogo em um índio e justificaram o ato, dizendo que assim procederam
porque acharam que era um mendigo.
Enfim, contrapôs-se a estas idéias e espaços que induzem à segregação o conceito de
criar espaços que levem ao encontro das pessoas, utilizando a vegetação, principalmente a árvore,
não para criar gambá em área urbana, mas para estimular o encontro das pessoas, se possível, nas
24 horas do dia.
Do ponto de vista dos instrumentos de aprendizagem e projeto, as maquetes mostra-
ram-se extremamente eficientes, não somente para facilitar a concepção das propostas no que diz
respeito ao tratamento do relevo, mas também facilitar, nas etapas intermediárias, a compreensão
dos espaços pelos futuros usuários, permitindo-lhes tecer comentários e sugerir alterações.
Observou-se também, nos projetos de urbanização do Acampamento da Telebrasília e
de Expansão da cidade do Paranoá, que, de forma geral, as comunidades se surpreenderam com a
qualidade dos projetos. Os espaços concebidos, ao mesmo tempo em que atendiam às necessida-
des exigidas, superaram a própria imaginação dos moradores, em termos de forma e qualidade. As
pessoas se entusiasmaram com aquelas alternativas que significariam uma melhoria, em todos os
níveis, do seu espaço habitado. Mostrou-se aos habitantes uma face da universidade desconhecida
por eles. Exatamente aquela que oferece uma produção útil, que responde às suas necessidades
imediatas e, ao mesmo tempo, aos seus sonhos de uma vida melhor.
No caso da Expansão da cidade do Paranoá, a comunidade, reconhecendo a importân-
cia do trabalho, solicitou ao governo do DF que desenvolvesse um trabalho conjunto com a UnB,
Figura 8 – Apresentação final dos trabalhos à população.
Fonte: Luiz Alberto de Campos Gouvêa, jun. 1997.
144 Contribuição ao Ensino de Arquitetura e Urbanismo
para a execução do plano de ocupação, que serviria de base para orientar o desenvolvimento do
Relatório de Impacto Ambiental (Rima) e, posteriormente, o projeto urbano.
No Acampamento da Telebrasília, o trabalho foi tão bem recebido pela comunidade e
pelo governo, que foi feito um convênio com a universidade, no sentido de se desenvolver o projeto
urbanístico executivo e se constituiu uma equipe formada por ex-alunos que trabalhavam no governo
e arquitetos do GDF.
No decorrer dos trabalhos, ficou claro para os ex-alunos integrantes da equipe a impor-
tância do método de ensino e dos conteúdos aprendidos no curso. Para a população, o projeto
representou o coroar de anos de discussões de alternativas e de lutas para a urbanização do local e
também a clara visão da utilidade e do papel social da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e da
universidade pública.
Conclusão
A realidade hoje em dia vem exigindo um ensino de Arquitetura e Urbanismo e particu-
larmente um ensino de Projeto que, ao mesmo tempo que permite que o aluno domine um elenco de
informações técnicas em nível global, possibilita que ele tenha condições, por meio do domínio de
um método de pesquisa, de avançar na aplicação de seus conhecimentos de cunho cultural (social
e ecológico), no projeto que esteja desenvolvendo, marcando-o de maneira genuína com estes
conhecimentos, evitando a massificação de soluções impostas pela globalização, criadas em ou-
tros países, as quais, quando aplicadas às regiões de situações ecológicas e sociais diversas, mes-
mo com as chamadas adaptações, não passam de alegorias e manifestações claras de dominação
econômica e cultural.
Assim, o investimento em métodos de ensino que possibilitem um maior conhecimento
do clima, do sítio regional, da cultura social local e da organização do espaço, levando em conta este
contexto, possibilitará também a construção de uma arquitetura e de um urbanismo original, repre-
sentativo daquele local, e permitirá uma inserção no global da forma que nos interessa.
Referências bibliográficas
COMAS, E. (Org.). Projeto arquitetônico, disciplinas em crise, em renovação. São Paulo : Projeto/
CNPq, 1986.
GOUVÊA, L. A. de C. Projetando com a População. Participação, Brasília, abr. 1997.
LEBRET, L. J. Manual de encuesta social. Madrid : Ed. Rialp, S., 1962.
LYNCH, K. De qué tiempo es este lugar? Barcelona : Ed. Gustavo Gilli, 1975.
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