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O R G A N I Z A D O R A S
ELLEN F. WOORT M A N N
B E ATR I Z H E R E D I A
R E N ATA M E N A S H E
E L LE N F. WO O RT M A N N B E AT R I Z H E R E D I A R E N ATA M E N A S H E ( O R G s )
Margarida
Alves
Coletânea
sobre estudos
rurais e gênero
Margarida Alves Coletânea sobre estudos rurais e gênero
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B-DF,
O R G A N I Z A D O R A S
ELLEN FENSTERSEIFER WOORTMANN
BEATRIZ HEREDIA
RENATA MENASHE
Margarida
Alves
Coletânea
sobre estudos
rurais e gênero
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Márcio Duarte –  Design Gráco
R
Ana Maria Costa
Ministério do Desenvolvimento Agrário ()
www.mda.gov.br
Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural ()
, Quadra , Bloco C, Ed. Trade Center,
o
andar, sala   - Brasília/DF
Telefone: ()  
www.nead.org.br
 / – Apoio às Políticas e à Participação
Social no Desenvolvimento Rural Sustentável
Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA)
Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural (NEAD)
Programa de Promoção da
Iualdade de Gênero, Raça e Etnia
Secretaria Eecial de
Políticas para a Muher
Bp Brasil. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
NEAD Eecial / Elen F. Woortmann. Renata
Menache. Beatriz Heredia (organizadoras). – Brasília :
MDA, IICA, .
 p. ;  x  cm. (NEAD Eecial).
Vários autores
PCT/MDA/IICA Apoio às Políticas e à Participação Social no
Desenvolvimento Rural Sustentável.
I. Título. II.Woortmann, Elen F. III. Menache, Renata IV Heredia, Beatriz .
Políticas Púlicas. . Gênero. . Trabahadora rural. .Juventude rural.
CDD305.4
Sumário
Autoria
Prefácio 
Apresentação: “Da luta eu não fujo” 
M H
Menção honrosa 
M A R I A M A R G A R E T H C O S TA C U N H A
Apresentação 
Agradecimento
Muheres trabahadoras rurais e de comunidades
tradicionais, ontem e hoje 
a) Na agicultura failia 
b) Comunidaes traicionais hoje
c) Na refora agráia
d) Na reulaização fundiáia
e) Nas políticas púlicas 
f) Nos movimentos sociais 
g) Os saberes traicionais 
h) Na sexualidae 
i) Na iolência 
Referências 
C E I
A caminho dos babaçuais: gênero e imaginário no
cotidiano de trabalhadores rurais no Maranhão 
V I V I A N E D E O L I V E I R A B A R B O S A
Considerações iniciais 
MIQCB: muheres em movimento
Trajetória política do MIQCB e suas conquistas 
nero e identidade conformando cotidianidades 
Monte Alegre: entre conitos e proximidades com o MIQCB
No povoado de Monte Alegre: o masculino e o
feminino entre discursos e práticas 
N E A D E S P E C I A L
Do material ao simbólico: a relação com os babaçuais 
A esfera material da experiência: os babaçuais
como recurso à sobrevivência 
Das representações das palmeiras às relações de gênero 
Considerações nais
Referências 
O tiro da bruxa: o olhar mágico das pomeranas
sobre seu cotidiano camponês 
J O A N A D ’ A R C D O VA L L E B A H I A
Introdução 
O cotidiano e a participação das muheres no trabaho familiar 
Superstições, saberes mágicos e liminaridade
Doces poderes: a disputa pela autoridade na land  
O tiro da bruxa. A bruxaria como ordem moral
As imagens do bem limitado: a morte de um é a herança do outro
Referências
Entre elas: afetividade versus complementaridade 
P A U L O R O G E R S D A S I LVA F E R R E I R A
Os modelos economicistas europeus: O ranço chayanoviano
na constituição da sexualidade camponesa 
Campesinato e sexualidade estrutural: Wolf e Mendras 
A propósito dos planos ociais e ociosos: Piere Bourdieu 
O campesinato brasileiro: a economia da intimidade 
A sexualidade da muher camponesa como instrumental teórico:
Submissão dos sentimentos pelo modelo estrutural 
Da complementaridade à dependência: os Woortmanns 
A ética dos afetos mal-ditos: dilemas, denições e perectivas
Entre elas: afetividade versus complementaridade 
Referências 
C A P M
As guardiãs da floresta do babaçu e o tortuoso
caminho do empoderamento 
M A R TA A N T U N E S
Introdução 
Do coco livre ao coco preso: mudanças nas estratégias de produção e
reprodução das quebradeiras de coco babaçu e de suas famílias 
A aposta na reforma agrária como meio de garantir o acesso
e proteção do coco babaçu: redenindo estratégias 
Ocupando espaços no mercado: valorizando o papel da
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
muher e do babaçu na economia familiar e local 
As quebradeiras de coco e a luta pelo direito de livre
acesso e proteção do babaçu: Lei Babaçu Livre 
Mudanças na esfera privada: esposas, separadas, viúvas, mães 
O jogo do empoderamento: um processo contínuo de
desequibrio e reequilíbrio de relações de poder 
Referências 
Identidades em trajetória: gênero e processos
emancipatórios na reforma agrária 
S A R A D E O L I N D A C A R D O S O P I M E N TA
Resumo 
Introdução 
O assentamento: sociabilidades, identidades
coletivas e novas cidadanias 
Mudanças na vida de homens e muheres:
novas relações de gênero? 
Emancipação ou processos emancipatórios? 
Referências
A construção de sentidos à integralidade da saúde
a partir da práxis de mulheres trabalhadoras
rurais com enfoque popular e de gênero 
V A N D E R L É I A L A O D E T E P U L G A D A R O N
Resumo
Introdução 
O jeito feminino de fazer saúde 
Referências 
Tem jovem no campo! Tem jovem
homem tem jovem mulher 
R O S Â N G E L A S T E F F E N V I E I R A
Identicando a semente 
O tereno e a fertilidade do solo 
Jovens em Movimento 
Sexualidade e saúde sexual e reprodutiva 
Iniciação afetio-sexual 
Faília e rede de sociabilidae na construção da sexualidae 
Saúde sexual e reroutia 
A coheita – considerações nais 
Referências 
N E A D E S P E C I A L
C A P D
Além das secas e das chuvas: os usos da nomeação mulher
trabalhadora rural no Sertão de Pernambuco 
R O S I N E I D E D E L O U R D E S M E I R A C O R D E I R O
Introdução 
O lugar e os caminhos da pesquisa 
Somos muheres trabahadoras rurais: a criação de
espaços, de vínculos e de atuação política 
Sou agricultora: o registro da prossão nos documentos
civis e prossionais das muheres 
Os ganhos, os aprendizados e as diculdades dos usos da
nomeação muher trabahadora rural no cotidiano 
Ter voz: formular, expressar idéias e opiniões 
Ir além da casa 
Lutar por direitos 
Acesso a políticas e recursos 
Conclusão 
Referências 
As jovens rurais e a reprodução social das hierarquias 
E L I S A G U A R A N Á D E C A S T R O
Apresentação 
A experiência etnográca e a construção do prolema 
Os processos de reprodução das hierarquias e exclusão das “jovens rurais 
Procesos de socialização: se home, se mulhe 
Jovens: rupturas e continuidaes 
Os lhos dos meeiros 
Os lhos dos acapaos 
Construções da identidae rural: se da roça, gao, mora
be e mora mal, e outras identicações 
Herança, sucesão – a exclusão das mulheres 
Prearando o hedeiro: a sucesão como construção masculina 
O paradoxo car ou sair: os limites e escolhas nos processos
de reprodução social da produção familiar 
Escola, trabalho externo e o futuro: desejos e a realidae 
Autoidae paterna: controle e conito 
Os espaços coletios de organização: “ninué ouve os jovens 
Conclusão 
Referências 
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
Mulher igual natureza? As políticas de desenvolvimento
sustentável de uma perspectiva de gênero 
A N A L O U I S E D E C A R V A L H O F I Ú Z A
Uma breve história do desenvolvimento 
A ideologia buruesa da civilidade e a revolução proteante da consciência:
parteira do indivíduo, da competição e do desenvolvimento 
A matriz teórica brasileira que aponta para os entraves
ideológicos ao desenvolvimento entre nós 
Do capitalismo buruês ao desenvolvimento fordista 
A mudança política na perectiva de desenvolvimento:
crescimento versus sustentabilidade 
A mudança paradigmática no desenvolvimento: a perectiva
do desenvolvimento endógeno 
nero e desenvolvimento: a crítica feminista e ambiental ao
modelo hegemônico de desenvolvimento 
Considerações nais: o modelo de desenvolvimento rural sustentável
representa uma mudança nas relações de gênero? 
Referências 
De corpos, desejos, feitiços e amores: a sexualidade
entre jovens de origem rural 
V A N D A A PA R E C I D A D A S I LV A
Os jovens, de onde eles vêm? 
ue rural é esse? 
Reciprocidade e sentimentos 
Antigamente não era assim… 
Corpos para serem vistos desejados e amados 
Experiências corporais: os ditos e os não ditos 
Sentimento e crença ambivalente 
Referências 
Margaridas nas ruas: as mulheres trabalhadoras
rurais como categoria política 
M A R I A D O L O R E S D E B R I T O M O TA
Resumo 
Abstract 
Buscando a construção e encontrando a experiência das muheres trabahadoras rurais 
Uma via dupla de criação – relações entre muheres rurais, academia, igreja,
movimento sindical e organizações não governamentais 
Em cena: construindo a existência púlica 
A experiência no contexto da construção 
Artes de apresentar e representar 
Marcas de muheres no sindicalismo rural 
Referências 
Autoria
M M C C
Presidente do Coletivo de Muheres do Estado do Maranhão e integrante do Movi-
mento da Muher Trabahadora Rural do Nordee (MMTR-NE), trabaha como
produtora de mesocarpo do Babaçu. Atua em movimentos sociais desde .
V O B
Licenciada em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mestran-
da do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista da CAPES/UFBA.
J D V B
Professora adjunta do departamento de Ciências Humanas Faculdade de Formação
de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), doutora em Antro-
pologia Social pelo Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (Niem).
P R F
Antropólogo, mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília. É sócio-fun-
dador do Laboratório de Estudos e Pesquisas da Subjetividade da Universidade
Federal do Ceará (UFC).
M A
Formada em Economia pela Universidade Técnica de Lisboa e mestre em De-
senvolvimento, Agricultura e Sociedade, área de concentração de Estudos Inter-
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
nacionais, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).
Trabaha desde  como consultora e pesquisadora de organizações da socie-
dade civil. Atualmente é coordenadora de projetos do Programa de Seurança
Alimentar da ActionAid no Brasil.
S D C P
Graduada em Psicologia e eecialista em Educão pela Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG). Eecializou-se também em Projetos Sociais,
pela Ponticia Universidade Católica/MG, e em Geão de Assentamentos e
Reforma Agrária, pela Universidade Federal de Lavras (Ua). Mestre em Psi-
cologia Social pela UFMG e integrante no Núcleo de Pesquisas em Psicologia
Política da mesma instituição. Atualmente é assessora da Comissão Nacional
de Muheres Trabahadoras Rurais da Confederação Nacional Trabahadores
na Agricultura (Contag).
V L P D
Educadora Popular, lósofa e mestre em Educação pela Universidade de Passo
Fundo (UFP) . Foi Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do
Rio Grande do Sul, participante do Fórum Intersecretarias de Gênero, e coorde-
nadora da Assessoria de Movimentos Populares da Secretaria de Saúde do estado.
Atualmente atua como consultora técnica do Ministério da Saúde.
R S V
Pedagoga, mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Pesquisadora do Núcleo “MOVER Educação Intercultural e Movi-
mentos Sociais, da UFSC.
R L M C
Doutora em Psicologia Social pela Ponticia Universidade Católica /SP, professo-
ra do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e dos Programas de Pós-Graduação em Serviço Social e em Psicologia.
Também é integrante do Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade da UFPE e do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos
da PUC/SP.
E G
Graduada em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutora em Antropologia
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é profes-
sora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Tem expe-
riência na área de Sociologia e Antropologia, com ênfase em Antropologia Rural.
N E A D E S P E C I A L
A L C F
Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
eecializou-se em Ciência da Religião pela mesma instituição. Mestre em Ex-
tensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutora em Desen-
volvimento, Agricultura e Sociedade, pelo CPDA/UFRRJ. Professora do Depar-
tamento de Economia Rural da UFV.
V A S
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
pesquisadora do Centro de Estudos Rurais da mesma universidade. Atualmente é
bolsista de pós-doutoramento junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa, Portugal/ Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior de Portugal.
M D B M
Socióloga, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), profes-
sora adjunta na mesma universidade. É pesquisadora do CNPq e coordena o Núcleo
de Estudos e Pesquisas sobre Gênero Idade e Família.
Prefácio
A D R I A N A LO P E S
e A N D R E A B U T TO
O destacada na história das ciên-
cias sociais brasileiras e várias pesquisas deram ênfase às relações de desigualdade
que marcam a vida das mulheres dessa população.
Apesar de ter ocorido na última década uma perda de espaço dea produ-
ção em núcleos de pesquisa, encontros e reunes eecializadas, mais recente-
mente houve uma retomada de iniciativas que buscam fortalecer as pesquisas
sobre o campesinato e suas transformações recentes. Nee ambiente podemos
observar um crescimento de pesquisas com foco nas desiualdades entre homens
e muheres rurais.
A organização de dossiê eecíco no volume de número  da Revista de Estu-
dos Feinistas , a promoção Seminário Internacional Mulheres Rurais Expeiências e
Perectias pelo Núcleo de Estudos de Gênero Pau, de mesas redondas e grupos
de trabaho em encontros nacionais e regionais de pesquisadoras feministas e da
comunidade cientíca das ciências sociais, além da criação de linhas de pesquisa
eecícas nos cursos de pós-graduação revelam esse novo ambiente.
O Prêio Margaida Alves de Estudos Rurais e Gênero promovido pelo Ministério
do Desenvolvimento Agrário, por meio do Programa de Promoção da Iualdade
de Gênero, Raça e Etnia e do Núcleo de Estudos Agrário e Desenvolvimento Rural
Socióloga, coordenadora-executiva do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural
do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Antropóloga, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE e coor-
denadora do Programa de Promoção da Igualdade de gênero, Raça e Etnia do Ministério do
Desenvolvimento Agrário.
N E A D E S P E C I A L
e seus/as parceiros/as integra essa estratégia de fortalecimento dea produção,
pelo estímulo à realização de pesquisas e estudos acadêmicos no campo das ci-
ências humanas e agrárias.
Embora tenha nascido como uma iniciativa governamental busca envolver
as distintas associações, condição para contribuir com a ampliação dos estudos
feministas na agenda acadêmica. A participação na comissão julgadora, a consti-
tuição de GTs eecícos e realização de mesas redondas em reuniões nacionais
de maior deaque na área expressam também o impacto dee Prêmio.
Apesar disso há muito trabaho pela frente para que se amplie a reexão crí-
tica sobre as teorias e categorias que são aplicadas na análise da participação das
muheres na produção, na sua participação nas políticas e no próprio desenvol-
vimento do meio rural.
Os trabahos que foram premiados e que ora vêm a púlico constituem uma
importante feramenta de reexão para os geores e georas púlicas. Esta ini-
ciativa somada a várias outras pesquisas realizadas por iniciativa do Ministério
do Desenvolvimento Agrário que abordam a presença das muheres na refor-
ma agrária e na agricultura familiar contribuem para a promoção da autonomia
econômica das muheres através da ampliação e qualicação da presença das
muheres nas políticas púlicas de desenvolvimento rural.
o muitas as possibilidade de apropriação dees trabahos, inclusive por
parte dos movimentos sociais de muheres rurais. Vários dos trabahos pre-
miados abordam as lutas das muheres rurais pela tera e o acesso aos demais
recursos naturais e produtivos, e experiências ricas de protagonismo e exercício
da cidadania. Revelam, também, a diversidade que marca a vida das muhe-
res, eecialmente a das jovens, para além das reexões sobre a dimensão da
sexualidade.
Esta pulicação traz elementos para uma reexão sobre a dinâmica recente
das lutas sociais das muheres rurais, em eecial das suas formas de organização
e a constituição das agendas políticas. Lutas e experiências que armam a identi-
dade de Quebraeiras de coco de babaçu, de Margaidas e Caponesas dentre tantas
outras que emergem do resgate das histórias contadas e analisadas.
O livro relata práticas de educação popular em saúde que resultam das ações
dos movimentos sociais de muheres e que revelam suas percepções sobre a vida,
a natureza, os cuidados com a saúde e sua relação com os direitos básicos, como
parte de uma nova concepção de desenvolvimento rural.
A análise da homossexualidade e da homofobia e a prolematização das pri-
meiras vivências sexuais entre as muheres jovens rurais constroem para descor-
tinar preconceitos e discriminações que ainda tohem a possibilidade de exercício
pleno dos direitos sexuais no meio rural e que impaam negativamente na cons-
trução da autonomia sobre o corpo e a vida das muheres.
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
A reexão aqui apresentada sobre a juventude rural, para além da temática
da migração, coloca em pauta a autoridade paterna e da representação masculi-
nizada do se jove.
A cidadania é abordada a partir do processo de constituição de identidades
coletivas de assentadas da reforma agrária e da luta pelo direito a ter direitos: o
acesso à documentação civil e trabahista.
Um deaque da pulicação é a participação de uma trabahadora rural. A
partir da sua experiência discoreu sobre todos os temas propostos. Seu interesse
foi responsável pela criação de uma nova categoria – Experiência e Memória, na
edição de  do Prêmio. Esta nova edição contará ainda com a participação de
entidades nos movimentos sociais de muheres na sua coordenação.
Trabahos de pesquisadoras de distintas regiões, abordando realidades tam-
m diversas regionalmente convidam a leitora e o leitor a compartiharem com
uma reexão contemporânea e que deverá ganhar centralidade nos esforços co-
letivos de repensarmos o país.
No dia doze de agosto
do ano oitenta e três
Parece que a natureza
Se descuidou-se ou não sei
Fazendo com que M
víssemos pela última vez
M porque tinha
Trabaho na consciência
Saiu deixando um trabaho
Por outro de mais urgência
Sem saber que os patrões
Usavam da violência
Estando na sua casa
conversando com o marido
foi visto por um vizinho
quando chegou um bandido
chegando deixar seu corpo
sem vida no chão caído
O Rio Grande do Norte
E Pernambuco também
O povo da Paraíba
de Itambé e Belém
Sentiram ee drama triste
por tanto he querer bem
Chora toda a Paraíba
que conhecia a muher
por ser muito combativa
e mantinha a classe em pé
A morte de M
pra o povo é taça de fé
Com ela são trinta e dois
já vítimas de violência
ueremos que a Justiça
Use de mais consciência
tomando de imediato
as devidas providências
Margarida
Extraído de poesia da autoria de Raimundo Francisco de Lima, presidente
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro – Rio Grande do Norte.
Apresentação
“Da luta eu não fujo
“Da luta eu não fujo. Foi esta a frase que Margarida Maria Alves disse
poucos dias antes de tombar, brutalmente assassinada… em sua residên-
cia no munipio de Alagoa Grande, no Estado da Paraíba, ao receber
o aviso de que sua vida estaria ameada.(Boletim Informativo do
Centro de Educação do Trabalhador Rural, agosto de ).
E  feliz iniciativa do Ministério do De-
senvolvimento Agrário (MDA), por meio do Programa de Promão da Igualda-
de de Gênero, Raça e Etnia e do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento
Rural (NEAD), em parceria com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA),
com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com a Organiza-
ção Internacional do Trabalho (OIT), assim como com a Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), com a Sociedade
Brasileira de Sociologia (SBS) e com a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC).
A Coletânea reúne os trabahos premiados referentes ao Edital / do
Prêmio Margarida Alves de Estudos Rurais e de Gênero, divulgados por ocasião da

a
Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, realizada em junho de ,
em Goiânia. Os trabahos foram avaliados por três comissões coordenadas pelas
professoras, doutoras Beatriz Heredia, Elen F. Woortmann e Renata Menasche.
O Prêmio tem como objetivo estimular a produção de pesquisas no âmbito
das Ciências Humanas e Agrárias, descortinando novas e maiores dimensões
N E A D E S P E C I A L
da condão social da muher rural no Brasil; em outros termos, estimular a
produção de estudos pela via dos quais ela possa ser visibilizada e valorizada
em sua diversidade e eecicidade. O nome do Prêmio constitui homenagem
a Margarida Alves (–) em reconhecimento à sua luta em defesa dos
camponeses.
Margarida foi esposa e mãe. Margarida Alves foi também trabahadora rural
e líder sindical, notabilizando-se na luta por direitos que eavam sendo retira-
dos e pela conquista de novos direitos, aluns deles já obtidos por trabahadores
urbanos, tais como o pagamento do 
o
salário, férias anuais, destinação de duas
horas para a produção de alimentos e jornada de trabaho de oito horas diárias.
Foi desempenhando esse papel que ela, após ter sido tesoureira, foi eleita para o
cargo de presidente do Sindicato dos Trabahadores Rurais de Alagoa Grande
(PB). Se sua eleição foi algo idito no Nordee da época, mais inédito ainda foi
o fato de ter permanecido no cargo por  anos, apesar das constantes ameaças
contra sua vida, num período ainda marcado pela memória das Ligas Campo-
nesas e de sua repressão.
“Em seus anos de luta, nunca se registrou na Justiça uma só perda de queões traba-
histas… Fruto de sua liderança, foram aproximadamente  reclamações trabahistas
contra engenhos e contra a Usina Tanques (Movimento de Muheres Camponesas,
 de agosto de ).
Margarida Maria Alves inovou: num contexto marcado pelo analfabetismo
e pela subordinação dos camponeses aos grandes proprietários ela foi uma das
fundadoras do Centro de Educação e Cultura do Trabahador Rural, do qual
foi diretora, de  a . Essa iniciativa marca seu esforço em promover a
consciência cidadã, o acesso a conhecimentos e direitos e o fortalecimento da
agricultura familiar, além da contribuição para o empoderamento feminino na
luta por mehores condições de vida no campo. Contudo, no dia  de agosto (ou
, seundo alumas fontes) as ameaças se concretizaram, e ela foi assassinada.
Signicativamente, seus assassinos foram absolvidos.
“Margarida foi fulminada à porta de sua casa, que dá diretamente para a calçada, enquanto
contemplava seu ho que brincava na rua. O assassino aproximou-se paralelamente à
parede da casa e ao chegar em frente à porta disparou uma espingarda ‘’, caregada com
pregos enferujados e chumbo grosso, contra a cabeça de Margarida.
“Devido à violência do impacto, o umbral da porta e as paredes da casa caram
salpicados de reos de cérebro, sanue e pele… O assassino retirou-se calmamente de
encontro a dois outros que o auardavam, demonstrando muita seurança na impuni-
dade garantida pelos poderosos mandantes” (Centru, s/d).
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
Não foi o único ato de violência na região. Antes, seundo o Centro de Edu-
cação e Cultura do Trabahador Rural (Centru), havia sido assassinado Pedro
Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sapé.
Seundo a imprensa da época, o pistoleiro que assassinou Pedro Teixeira incriminou em
julgamento a Auinaldo Veloso Borges, dono da Usina Tanques. Auinaldo que era sexto
i suplente de deputadoao m de poucas horas passou de sexto suplente para efetivo,
adquirindo imunidade parlamentar, sendo o processo suenso.
… o ho de um Senhor de Engenho espancou uma moradora de suas teras, sendo
ea veha e aleijada. Tomando conhecimento do fato, o Sindicato de Alagoa Grande, na
pessoa de Margarida Maria Alves, moveu um processo no valor de mihões e trezentos
mil cruzeiros. João Carlos de Melo, pai do agressor e proprietário do Engenho Genipapo
teria ameaçado Margarida e a moradora dizendo que ‘ela podia receber o dinheiro mas
não ia gastar’ (Centru, s/d).
A morte de Margarida Alves, contudo, não foi em vão. Ela se tornou inspiração
para que muitas outras muheres, Elisabetes, Marias, Franciscas, desaassem suas
antigas situações de gênero e se tornassem líderes rurais. Assim, homenageando
Margarida, homenageia-se nea coletânea todo esse contingente feminino que,
com freqüência, permanece em posições subalternas na luta sindical, no trabaho
cotidiano e na ótica das autoridades e mesmo no discurso acadêmico. É o caso
das muheres serinueiras, cuja participação nos chamados empatestem sido
fundamental (Cf. W, ) ou cuja atividade agrícola tem sido tão
importante quanto a pesca (masculina) em comunidades denidas apenas como
pesqueiras) (W,).
Além de homenagear a trabahadora rural, ea Coletânea possui um objetivo
a dio e longo prazo, como subsídio para a formulação e otimização de políticas
púlicas e para a atuação de instituições e entidades, púlicas ou privadas, volta-
das para o atendimento das demandas das muheres rurais e das comunidades tra-
dicionais. Ela pretende ser também, assim como o próprio Prêmio que ela expressa,
um estímulo a trabahos acadêmicos voltados para a queão da cidadania.
Os trabahos apresentados permitem identicar alumas queões signi-
cativas. Em primeiro lugar, deaca-se a pequena participação masculina entre
os candidatos ao Prêmio. De um total de  trabahos inscritos e homologados,
somente três foram apresentados por homens. Dentre os  selecionados, apenas
um homem teve seu trabaho premiado.
Quanto aos temas escohidos, identicam-se três conjuntos, que se sobrepõem
e interpenetram – temas tradicionais, temas atuais e temas emergentes. Dentre
os primeiros, temos aqueles que lidam, desde uma ótica de inspiração marxista,
com a relação entre processo de trabaho e capitalismo, identidade e migração, por
N E A D E S P E C I A L
exemplo, e que corespondem a  do total. Os temas atuais – considerando-se
como tais aqueles recorentes na virada do século XX para o XXI – centram-se
em análises de nero com ênfase no empoderamento de grupos de muheres,
memória, ideário de comunidades tradicionais e relações de poder. O conjunto,
possivelmente inspirado pela própria homenagem a Margarida Alves, e com o
intuito de valorizar outras muheres que se deacaram na luta política, há vários
trabahos sobre líderes sindicais femininas antigas ou mais recentes, conhecidas
tão-somente em seus contextos locais ou regionais. Esse conjunto participou com
quase  do total de trabahos avaliados. Dentre os emergentes, caraerísticos
do novo milênio e que iluminam novas dimensões das comunidades e das mu-
heres rurais, despontam queões como sexualidade/homossexualidade, infância
e vehice. Esses temas e seus sujeitos, subssumidos em análises anteriores como
queões secundárias e até mesmo limitados a notas de rodapé, agora conquistam
lugar de deaque, tornando-se temas/sujeitos principais. Esse conjunto cores-
ponde a aproximadamente  do total avaliado.
Considerando a rede de divulgação do Prêmio, a biliograa utilizada, o con-
teúdo e a linha metodológica empregada, verica-se que a área de conhecimen-
to mais representativa foi a sociológica, presente em  trabahos apresentados,
seuida pela antropológica, num total de . Além desses, contam-se trabahos
bastante originais relativos às áreas de Serviço Social, Psicologia, História e Eco-
logia/Meio Ambiente. Dentre os últimos o meio ambiente é concebido tanto
como um palco no qual os grupos sociais desempenham seus papéis quanto parte
construtiva e constitutiva dos mesmos.
Nea coletânea prevalecem as análises de cunho feminino e feminista e as
de nero. Na base dessas análises encontram-se os movimentos de muheres.
O movimento feminino reunia muheres em torno de causas lantrópicas e ao
pertencimento à classe dia e elites urbanas, fortemente vinculadas a grupos
religiosos. Por outro lado, o movimento feminista emerge associado à abertura
política, lutando por mudanças que incluíam o reconhecimento da eecici-
dade e identidade femininas e, num plano mais amplo, por transformações nas
relações sociais.
Nos anos , mesmo no âmbito acadêmico, os movimentos femininos e fe-
ministas incorporam uma nova perectiva pautada pela noção de gênero. Dessa
perectiva, derivada dos gende studies do Primeiro Mundo, resultou um grande
número de cursos promovidos em universidades assim como em sindicatos e
ONGs. Esses cursos, inicialmente voltados para grupos urbanos, foram gradati-
vamente eendidos para o mundo rural, dirigidos a extensionistas e cnicos em
fomento, sindicatos e movimentos sociais do campo. Para tanto, muito contribu-
íram instituições de fomento e de pesquisas, como o Fundo de Desenvolvimento
das Nações Unidas para a Muher (Unifem) a Fundação Ford, o Conseho Nacio-
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nal de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico (CNPq) e a Empresa Brasileira
de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater).
Esses movimentos sociais foram responsáveis pela realização de trabahos que
revelaram novas dimensões do universo feminino, trabahos esses que reetem os
objetivos e diferenciações dos referidos movimentos sociais, seja na seleção dos
temas enfocados como nas abordagens utilizadas.
As análises femininas, em geral bastante detahadas, se reportam a assun-
tos relativos aos domínios tradicionais da muher, como saúde familiar, ritos de
passagem, vida religiosa e outros ligados a aectos simbólicos. Essa perectiva
é bastante antiga nos estudos sobre o mundo rural, mas ela ganha impulso na
cada de , com a entrada denitiva de acadêmicas nas pesquisas sobre o
campesinato. No conjunto de trabahos inscritos e homologados que concoreram
ao Prêmio, pouco deles ainda podem ser incluídos nessa perectiva.
O ingresso de pesquisadoras no âmbito dos estudos rurais, em particular do
campesinato, nem sempre conduziu a estudos centrados na muher. Entre pes-
quisadores de grupos indígenas pesquisas realizadas por muheres que, para-
doxalmente, adotaram elementos da ótica masculina, permanecendo as muheres
invisibilizadas, como que “englobadas pelos seus pais ou maridos. A hierarquia
tradicional da família foi reproduzida nos textos acadêmicos.
As análises femininas não se confundem com as análises feministas. Estas
últimas partem de um plano teórico-político mais recentemente expresso pelo
neologismo do “empoderamento, iniciado na década de  em toda a Améri-
ca Latina. Tal perectiva, após resultar em excelentes trabahos sobre camadas
dias e populares urbanas, – mas raramente, por pesquisadores homens- pos-
teriormente foi eendida ao mundo rural, em eecial enfocando dimensões
ligadas a direitos das muheres.
Discussões como o reconhecimento de domínios produtivos, revisão de direi-
tos consuetudinários, equiparação de direitos legais das produtoras rurais sobre
a tera, acesso a crédito, etc. ao mesmo tempo que abriram novas perectivas
para pesquisas sobre grupos camponeses, contribuíram também para uma maior
consciência das próprias muheres rurais concernente à cidadania. Com a in-
corporação da perectiva de gênero, acrescentam-se a essa linha de estudos as
queões relativas ao direito sobre o corpo e à sexualidade, por exemplo. Parale-
lamente, vários direitos foram conquistados pelas muheres rurais, muitos deles,
implementados por políticas púlicas comprometidas com a causa feminista e
de gênero. O conjunto de trabahos apresentados incluiu estudos que seuiram
essa perectiva.
Levando-se em conta os objetivos do Prêmio – subsidiar políticas púlicas
e a qualidade dos trabahos premiados nas duas categorias apoio à pesquisa e
ensaio inédito, optou-se por dispor os artigos conforme a ordem alfabética dos
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nomes dos seus autores. Todos os artigos provenientes de dissertações, teses e
outras pesquisas, foram disponibilizados de forma eqüitativa, incluindo a menção
honrosa. É uma forma de homenagear todas as participações, sem distinção de
nenhuma eécie.
O artigo de Ana Louise de Carvaho Fiúza,da Universidade Federal de Viçosa
(UFV), Mulhe iual a natureza, discute desde uma sosticada e inovadora análise
crítica da teoria cio-antropológica, à clássica relação homem, muher e natureza,
na ótica das políticas de desenvolvimento sustentável.
Elisa Guaraná de Castro apresenta seu artigo As jovens rurais e a reroução
social das hierarquias, referente à sua tese defendida na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), no qual discute, a partir de uma biliograa bem
montada e multinüe, as relões de nero entre jovens rurais em assenta-
mentos, como as opções de car ou sair deles o construídas, levando-se em
conta variados fatores.
O excelente trabaho de Joana D’Arc do Vale Bahia, O tiro de bruxa: o olha
mágico das pomeranas, foi baseado em sua tese defendida no Museu Nacional.
Nele a autora centra sua análise no universo rural feminino de descendentes
de imigrantes, e em eecial nos atos mágicos que acompanham suas atividades
produtivas e reprodutivas.
Maria Dolores de Brito Mota, da Universidade Federal do Ceará (UFCE)
analisa em seu estimulante trabaho, Se medo de se mulhe, a construção e expe-
iência das mulheres trabalhaoras rurais como categoia política, centra sua reexão
sobre a conuração de grupos de muheres trabahadoras rurais que passam a
se identicar como grupo com práticas sociais e políticas próprias e imprimem
eecicidades no movimento sindical rural.
O impaante trabaho de Maria Margareth Costa Cunha, do Movimento de
Muheres Trabahadoras Rurais do Nordee (MMTR-NE), em denúncia com
base em sua memória e na de outras muheres rurais com as quais compartiha
sua luta apresenta As macas da impunidae eão e noso corpo, e nosa ida e e
nosa alma. Um documento-denúncia que relaciona a dimensão pessoal e social dos
abusos sofridos por muheres trabahadoras, abusos que permanecem impunes.
No excelente, As uadiãs da orea do babaçu e o tortuoso cainho do epoe-
raento, Marta de Oliveira Antunes, da UFRJ, discute a luta das quebradeiras de
coco pela preservação de suas áreas de produção e a dinâmica das suas estratégias
para a implantação da reforma agrária e seu empoderamento, face aos poderes
locais eabelecidos, seus vizinhos, maridos e hos.
Paulo Rogers da Silva Fereira, da Universidade de Brasília (UnB), em seu
inovador artigo Entre elas: afetiidae ersus compleentaidae, trata de um tema
pouco usual nos estudos de campesinato, que é o das concepções de corpo, se-
xualidade e homossexualidade. Combina os dados etnográcos coletados em
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uma comunidade do sertão do Cariri com uma análise crítica dos estudos de
campesinato, mostrando como essa dimensão é pouco visível, seja nos clássicos
ou nas pesquisas atuais.
Rosângela Steen Vieira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
em seu artigo Te jove no capo: te jove home, te jove mulhe, tal como
Eliane, também se insere entre os trabahos que apresentam temáticas recentes.
Centrando seu trabaho nos jovens rurais, ela discute com perspicácia e sensibi-
lidade, o modo como jovens-homens e muheres- vivem sua condição em assen-
tamentos do Movimento dos Trabahadores sem Tera (MST),aectos de sua
sexualidade e Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) num contexto de
militância no Movimento.
O excelente trabaho, Alé das secas e cuvas: os usos da nomeação mulhe tra-
balhaora no sertão de Pernabuco, de Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro, da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), discute com base em dados cole-
tados no sertão central de Pernambuco e junto ao MMTR do Sertão Central as
implicações, a lógica e a simbólica de classicações acerca da condição feminina
rural, dentre as quais se deaca a de muher trabahadora rural, como meio de atin-
gir direitos e empoderamento, no interior da família, dos movimentos sociais, etc.
Sara Deolinda Cardoso Pimenta, da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), apresenta em seu excelente trabaho Identidaes e trajetóia: gênero
e procesos eancipatóios na refora agráia, uma reexão estimulante sobre a
trajetória de luta de um grupo de posseiros que conseuiu o acesso a tera em
assentamento no Vale do Jequitinhonha. Ela mostra como o processo de organi-
zação, de conuração de novas identidades coletivas e de gênero no interior do
grupo foi um dos principais responsáveis pelo êxito da luta empreendida.
Numa linha de análise próxima à de Paulo Rogers e Rosângela Steen, Vanda
Aparecida da Silva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), elabora
seu artigo De corpos, desejos, feitiços e aores: a sexualidae entre jovens de oige
rural. A autora, com sólida e bem embasada biliograa, relaciona sexualidade
a outros tipos de experiências dessa faixa etária, tais como com outras gerações,
religião, perectivas prossionais, etc.
O artigo de Vanderléia Laodete Pulga Daron, da Universidade de Passo Fundo
(UPF) A construção de sentidos a parti da praxis de mulheres trabalhaoras rurais
com enfoque popula e de gênero,resulta de pesquisas importantes realizadas no li-
toral do Rio Grande do Sul para o Movimento de Muheres Camponesas (MMC-
RS). O tema centra-se sobre a dinâmica, as práticas e concepções sobre saúde,
como parte dos direitos a serem conquistados pelas muheres camponesas.
Numa perectiva próxima à de Marta Antunes, Viviane de Oliveira Barbosa,
da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), A cainho dos babaçuais: gênero
e imagináio no cotidiano de trabalhaores rurais do Maranhão, analisa de forma
N E A D E S P E C I A L
detahada e coerente, a relação nem sempre harmônica, entre homens e muheres
das comunidades, visto que concebem o babaçual com óticas distintas. Discute
de forma detahada, alumas diferenças marcantes de gênero entre discursos e
práticas, bem como etnoconcepções de tempo e espaço.
Pode-se observar que a diversidade de temas, linhas teóricas, áreas de conheci-
mento, situações analisadas assim como de universidades participantes, mostram
de um lado, a importância dada ao assunto muher trabahadora rural em todo
Brasil, e do outro, a visibilidade que o próprio Prêmio proporcionou, apresen-
tando alumas das diferentes situações por elas vividas.Tomando como ícone de
referência a Margarida esposa e mãe, desde outra perectiva à Margarida Alves
corajosa trabahadora, lutadora política pelos direitos dos camponeses e de outra
ainda, à Margarida Maria Alves, precursora e lutadora pelo empoderamento
das muheres rurais, o Prêmio homenageia todas as muheres trabahadoras.
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Menção Honrosa
P      M         A   
M A R I A M A RG A R E T H C O S TA C U N H A
As marcas da impunidade
estão em nosso corpo, em nossa
vida e em nossa alma.
-
A
É apresento este trabalho, junto com meu esforço
e incentivos que recebi das companheiras de trabalho e do próprio Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA). Nós, mulheres trabalhadoras rurais, estamos
nos fortalecendo mutuamente. Somamos esforços na produção agrícola e nos
conhecimentos e saberes do ponto de vista da organização e do cotidiano do
mundo das mulheres.
Eero que ee artigo possa ser útil a outras muheres, organizações e enti-
dades ligadas ao campo.
Eero também, concorer ao Prêmio Margarida Alves, e que o resultado sirva
de incentivo a outras muheres trabahadoras rurais, para que comecem a colocar
no papel seus conhecimentos, sonhos e desejos.
“Eu sou muher seu doutor o quê que há.
Eu sou muher do Maranhão, eu sou muher.
Doraci Zebina, MA
 Trabalhadora Rural MA, diretora do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do
Nordeste (MMTR-NE)
Menção honrosa
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
A
Agradeço as muheres que me incentivaram a iniciar ee trabaho, aquelas que
acreditaram em minha capacidade de produção e conhecimento; a todas as pes-
soas que lerem ea pesquisa feita por trabahadora rural, de famílias de pequenos
produtores, sobre comunidades tradicionais, antes e hoje, reforma agrária, agri-
cultura familiar. Foi um grande desao fazer ee trabaho com minha leitura, mas
a solidariedade, honestidade do trabaho com as trabahadoras rurais reforçam a
vontade de acertar, fazer a nossa realidade aparecer para todas e todos, e, verem
que o trabaho das muheres teve muito sofrimento, mas também, conquistas
interessantes que fortalecem a cada uma de nós. Agradeço a Deus por tudo, e
principalmente, pela luz e discernimento.
M
,
) N
As muheres nas comunidades faziam de tudo. Elas começavam o dia buscando
áua da cacimba; em casa, tinham que fazer café e cuscuz para o companheiro
levar para a roça, socar o aroz para o almoço e o jantar, serem enfermeiras quan-
do o ho cava doente, ajudar as vizinhas quando ganhavam neném, ensinar os
hos a rezar, ir para os terços e novenas. Ainda, tinham que levar a comida para
a roça e car lá quebrando coco babaçu para ajudar nas deesas da casa.
Com tudo isso, quando chegava uma pessoa fazendo pesquisa, a muher dizia
que não fazia nada. E assim foi cando mais dicil o reconhecimento da prossão.
No cartório eles nem peruntavam qual a prossão, e assim todas as muheres
eram consideradas do lar ou domésticas. Quando perceberam que além de gerar
a vida, também tinham grande responsabilidade para com os hos e a comuni-
dade, aí começaram a lutar por seus direitos, primeiro o voto e depois lutar para
se associarem ao Sindicato dos Trabahadores e Trabahadoras Rurais (SR)
local e para serem vistas como independentes do marido.
Ainda, cuidavam dos animais como, galinha, porco e outros que precisam para
ir buscar o babaçu; lavar pratos e depois de todos trabahos a muher ainda dizia
que quem eava cansado era seu companheiro, que tinha chegado da roça.Ele
encontrava áua para tomar banho, sabão, toaha e roupas limpas. Em seuida
saía para jogar baraho ou dizer umas prosas.
A muher o reconhecia que seu trabaho tinha valor, não ganhava dinheiro
nos afazeres domésticos, mas mesmo assim, quando ela quebrava até  quilos
de babaçu por semana não sabia nem quanto tinha em dinheiro, porque além de
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fazer tudo isto, achava que não podia ir ao comércio vender sua própria produção
e fazer compras de suas necessidades.
Aos poucos, as muheres foram percebendo que seu trabaho era importante
na luta pela tera e que eavam à frente, devendo participar do espaço púlico,
não do privado. Foi quando começaram a abrir os ohos e encarar a luta de
reivindicações, até nos espaços onde os maridos faziam parte, por exemplo, na
associação de trabahadores rurais nos assentamentos. E nós começamos a dis-
cutir a nossa identidade.
Falas de outras mulheres
Rosane Ribeiro C. dos Santos – Assentamento Meu Rancho, Pureza-RN:
Ver a agricultura familiar como uma grande mudança e conquista e que eamos dis-
cutindo em família sobre os seuintes temas: Mehorar a renda da nossa família e tra-
bahar uma perectiva de iualdade de nero, a auto-estima das muheres, discutir a
responsabilidade de cada pessoa da família, dividir a renda entre os membros da família
É a nossa luta que eamos enfrentando, mas precisa de ter mais discussão, porque em
alumas comunidades as muheres não vêem como luta delas; às vezes, nós que lutamos
não eamos preocupadas em registrar nossa própria história.
Nazaré Flo – Assentamento Maceió, Itapipoca-CE:
A agricultura familiar, eu vejo como base alimentar e econômica, da maior parte das
famílias da zona rural. É ainda responsável pela maioria da produção agrícola do Brasil.
Embora, diante de todas as vantagens que percebo, vejo também que agricultura
familiar é desvalorizada e até mesmo desconhecida pela sociedade, principalmente pelos
grandes grupos capitalistas que só visam o lucro, a concentração das teras e as riquezas
do nosso Brasil.
O feminismo nada signicava para nós e não sabíamos nem o que era -
nero. Achávamos que era gênero alimentício: aroz, feio e então começamos
a nos educar.
Quando percebemos que isso não eava certo, tivemos que lutar muito
para acabar com a cultura dos homens, pois eles podiam vender e comprar
a produção.
Somos os homens da casa e por isso temos que ser os responsáveis. Onde
cavam as muheres? Às vezes não tinha nem com quem conversar sobre sua
situação. Era tudo natural. As muheres eram as coitadinhas que não sabiam de
nada, tinham de car em casa e dar conta de comida para as crianças e ainda
cuidar da casa, da educação dos hos, da roça.
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O marido tinha se escondido para não morer com o tiro do pistoleiro, pois
o proprietário, que se dizia dono das teras, mandava matar. Às vezes ameaçava
as muheres, que nem podiam dormir com medo. Esta situação, de muheres -
cando sem marido e só com a responsabilidade de cuidar dos hos, deu origem
a discussões. Começaram a discutir na cacimba, no caminho da roça e zeram
o movimento de viúvas, as que os maridos foram assassinados nos conitos de
tera. Com a ajuda de outras entidades e de outros movimentos elas começaram
a lutar por seus direitos. Muheres com coragem de enfrentar os assassinos de
seus maridos e se defenderem e assim, o movimento se organizou em lutas pela
libertação e conseuiu que não fossem absolvidos.
) C
Hoje as muheres eão em vários movimentos (mistos ou eecícos de muhe-
res). Vemos que, como movimento das muheres trabahadoras rurais autônomas
nós conseuimos conquistar mais vitórias, por exemplo: nós é quem fazemos nos-
sa pauta de reivindicação, eamos nas mobilizações, não temos mais aquele medo
de falar erado, já conseuimos ter mais oruho de ser trabahadoras rurais.
Tudo isso traz para s a auto-estima. Acreditamos que, ser protagonistas
dea história, de ser reconhecidas como trabahadoras rurais, quebradeiras de
coco babaçu e sabendo que foi uma grande conquista, enfrentaremos todas as
diculdades que encontrarmos nos espaços de participação política do Coletivo
da Muher Trabahadora Rural (CMTR-MA). Claro que não posso dizer que
não foi dicil, mas hoje temos total seurança do que queremos e onde queremos
chegar. como diz Carlos Haras, “Não há vento favorável se você não sabe onde
quer chegar.
O movimento contribuiu com outros movimentos para discutir a situação
da muher no meio rural e sua identidade.
Na época s lutamos pelo reconhecimento da prossão, discutindo quem
somos, de onde viemos, e o que queremos.
Nós, como muheres trabahadoras rurais, não sabíamos ainda, que éramos
responsáveis pelo bem-ear de nossos hos e de nossa comunidade e por isso
começamos a discutir sobre nossa participação e nossa força.
Nas associações, nos SRs, nas comunidades, nos espaços de participação
e com eas discussões, nós muheres começamos a discutir nossos direitos e de-
veres. Com muito entusiasmo participamos das manifeações nas ruas, zemos
abaixo-assinados, lutamos juntas em todos os movimentos sociais, até reivindicar
a Constituição brasileira de . Com nossa participação conseuimos aluns
direitos e tentar que as muheres entendessem que eão fazendo parte da triste
história, que foram os conitos de tera. Com as lutas fomos nos organizando e
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reivindicando até em nível nacional, conquistando o salário-maternidade, pela
grande participação das muheres em todos os eados.
) N
A concentração da posse da tera no Brasil tem suas origens na época do desco-
brimento. As intervenções do governo, frutos da execução de diversas políticas
fundiárias e agrárias, não têm sido sucientes para agilizar a posse da tera.
A reforma agrária é um termo utilizado para descrever distintos processos que
procuram dar acesso à posse da tera e aos meios da produção para os trabaha-
dores e trabahadoras rurais que não a possuem ou possuem apenas em pequenas
quantidades. Apesar de a reforma agrária ser um programa executado no campo,
seu impacto na sociedade e na política econômica extrapola essas fronteiras atin-
gindo a nação como um todo.
Os programas de reforma agrária são abrangentes ao redor do mundo; o ba-
lanço nal é a queão agrária e uma maneira de falar sobre o que representa o
prolema da posse e o uso da tera como se organiza a produção de alimentos no
meio rural de uma sociedade. Para muitos, não existe prolema da tera, para outros,
o prolema é muito sério, isso quer dizer que a situação no meio rural tem dois lados.
As classes sociais se enfrentam constantemente no campo. De um lado, a
buruesia, que procura concentrar a tera ao máximo. Do outro lado, os traba-
hadores (as), que enfrentam a todo o momento prolemas de todos os tipos, para
se manterem e trabahar na tera.
Durante muitos anos e até hoje, tem gente falando que existe prolema agrário
também para a buruesia. As formas como eá organizada a produção e como
é ocupada a tera, permitem que os latifundiários aumentem a produção a cada
ano. Eles seuram a tera como meio de ganhar mais dinheiro explorando os
bóias-frias, assalariados, etc.
Nas áreas de fronteira com outros países defendem isso, não porque eão
com vontade de entregar a tera para as trabahadoras e trabahadores e sim por
earem mais preocupados em asseurar o teritório nacional da invasão de ou-
tros países e também para acalmar os conitos sociais existentes no meio rural.
Usando as trabahadoras e trabahadores como desbravadoras(es), facilitam sua
entrada mais tarde em teritório nacional.
) N
Conseuir um pedaço de tera sempre foi dicil, como explica o capítulo anterior.
Para conseuir a reularização é outra grande bataha. casos de lutas por posse
de tera que duram mais de trinta anos e ainda não se tem o título dela. Vários
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fatores contribuem para essa realidade. De um lado eão os patrões e grandes
latifundiários e do outro eão os que produzem na tera e precisam dela.
Assim, os conitos no mundo rural são reais. A história do uso das teras, as
condições em que as (os) trabahadoras (es) rurais sempre se mantiveram são razões
sucientes para conitos. Desde participo de movimentos sociais, começando
pela Comunidade Eclesial de Base (CEB) e naquela época começam os conitos
de tera no Maranhão. Igrejas ajudaram muitos trabahadores e trabahadoras,
que faziam as reuniões escondido, planejando estratégias para sair dessa situação.
uem mais sofria com a situação eram as muheres e as crianças. Na luta pela
tera ou em qualquer outra, sempre estivemos presentes. Sempre lutamos. Temos
nossas artimanhas, saberes, nossos desejos de justiça. Sempre fomos delegadas à
invisibilidade, a ser mãe e esposa. O quadro muda e os conitos hoje m nova
cara. As políticas também mudaram. O mundo mudou, mas a luta pela tera
continua e os acordos também. Atualmente temos avançado, mas é preciso muito
mais. É um grande trabaho para ser feito. Cidade e campo precisam se juntar.
) N
Maia Seveina Silva Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs),
Cajazeira-PI:
O Brasil é um dos países da América Latina que mais tem políticas púlicas, que mais
tem organizações sociais. Mas é aqui onde há mais desiualdade e desreeito às políticas.
Tudo é muito dicil, principalmente para as muheres rurais. Temos lutado muito no
sentido de mostrar as lacunas e encontrar soluções. Cobrar das autoridades responveis
o cumprimento do seu papel para que as ações de inclusão social sejam realmente realiza-
das. O quadro ainda é complicado e cheio de vitórias e derotas como mostramos a seuir.
A reforma agrária não mudou muito. Conseuimos alumas coisas, como, linhas de
crédito para os agricultores familiares, que é uma reivindicação dos movimentos sociais
desde . Mas como os governos anteriores nunca se preocuparam com os trabahado-
res e só agora no governo Lula que tivemos direitos, principalmente o eecíco para as
muheres – que aumenta nossa auto-estima – e direito à educação para jovens e adultos.
Tivemos oportunidade de ter até uma secretaria eecial de políticas púlicas para as
muheres. Antes, até os governantes viam as muheres como se elas o pudessem sair de
casa, fazer manifeação e lutar por seus direitos. Muher era para ser obediente, submissa,
contente com sua vida cotidiana achando que seu lugar era só na cozinha.
Tal realidade mudou bastante, mas a vida das muheres trabahadoras rurais ainda
é muito sofrida, principalmente para auto-sustentar, se valorizar e participar da vida
política. Além de reivindicar nossos espaços social, econômico, político e cultural, temos
outros motivos para continuar lutando.
N E A D E S P E C I A L
) N
Margareth Costa Cunha – Eerantinópolis-MA:
Eu entrei na luta em  participando de movimentos sociais. Antes, fazia parte das
áreas de conitos de tera no Maranhão; morava em uma comunidade chamada Flores-
ta, município de Coroatá. Os moradores daquela comunidade tinham que vender toda
sua produção para o dono das teras, mais barato do que se vendesse na cidade, e ainda
tinham que pagar três alqueires por linha, com a mesma produção. Aquilo tudo me
revoltava. Ficou na minha cabeça a revolta contra os poderosos que só queriam enganar
os pobres, escravizando aquele povo que tanto trabahava para ter o que comer, mesmo
assim, nos conitos sempre o patrão era quem ganhava.
O povo tinha de sair, porque naquela época não havia nem uma lei da tera. Minha
mãe teve que car trabahando por um bom tempo sozinha na roça e eu cava anustiada
com tudo aquilo,não conseuia me situar nem sair para estudar.
Todos os meus irmãos estudavam e não lidavam com traumas daquele sofrimento
dos meus pais, não podiam ajudar. Eu só descobri um curso de formação de educadoras,
em uma linha da vida, que foi uma perunta: -Como foi a minha infância? Eu quase
não conseuia falar, só chorando por tantas coisas que sofremos na infância, até meus
depoimentos foram muito tristes.
Não quero que meus hos tenham a mesma infância que eu. O que eu puder farei
por eles, para que não tenham tanto sofrimento.
É bom, mas naquela análise é que descobri porque eou na luta hoje. Os sofrimentos
das muheres fazem com que tenhamos força para lutar, mudar; quando falamos das
raízes, quando nos peruntam de onde viemos, quem somos. Claro que nós lutamos
por grandes objetivos: Capacitar-nos para poder capacitar outras muheres, deertar
as muheres para que se descubram cidadãs; organizar as muheres para que lutem por
seus direitos;capacitar as muheres no mundo.
O curso de formação de educadora, para trabahadoras rurais, no início foi muito
complicado. Imagine seis trabahadoras rurais e muitas assessoras com mestrado ou curso
universitário. Quando começamos a ver as palavras pedagógicas, metodológicas, tivemos
que acompanhar e quando vimos o contexto social em que vivemos, nós trabahadoras
rurais, camos revoltadas. Não com o curso, mas com as desiualdades sociais que dava
para perceber dentro do próprio curso.
Nós fazíamos um trabaho com as muheres, claro, do nosso jeito, com nossa simplicida-
de. Nunca vamos ser uma assessora, porém ao voltarmos para nossas comunidades realiza-
mos duas ocinas com temas que trabahamos, com as dinâmicas e técnicas que aprendemos.
Aperfeiçoamos nosso trabaho, com isso nos sentimos mais seuras, mesmo quando
eamos nos municípios, repassando nossos conhecimentos eaduais, nacionais e até
internacionais.
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No Seminário Latino-americano de Muheres Trabahadoras Rurais e Caribe, evento
que aconteceu no México de  de setembro a º de outubro de , tivemos oportuni-
dade de conhecer companheiras de outros países. Na ocasião, levantamos propostas de
políticas socioeconômicas e ambientais. A luta não é fácil, mas tem que acontecer. As
muheres organizadas têm que chegar ao poder.
) O
Nas comunidades, nossos pais e avós acreditavam muito nas rezadeiras, nos pais-
de-santo, nas parteiras leigas que além chegarem até as casas e pegarem o nenê,
ensinam o uso das raízes naturais que servem como remédios e ainda rezam para
o parto ser ligeiro. No passado era dicil as muheres morerem de parto, pois além
de usarem meios naturais, não havia muitos produtos industrializados. Quando
uma muher tinha complicações no parto logo a parteira mandava para o hospi-
tal. Os remédios de garafadas que acreditamos tanto curavam todas as doenças.
Naquela época não existiam doenças como a Aids e o câncer. Acreditávamos
muito em meios alternativos, como argila, plantas e tantos outros que aprende-
mos com nossos avós, como também, produzir receitas naturais. Estes valores
foram passados de família para família e hoje eão sendo recuperados.
Os valores éticos em cada família eram repassados para os mais novos. Os
pais-de-santo, que faziam as pessoas carem boas, com as rezas, para as famílias
eram tudo. A fé era tanta que curava e com isso os hos começavam a acreditar
e a reconhecer os saberes, as tradições.
Não queremos esquecer nossas raízes e mesmo que não acreditemos, sempre
algo estranho para lembrar, que tenha acontecido em nossa família ou com a gente
mesmo. “A única coisa que não more é nossa fé, e “a gente não se educa sozinho.
Se cada pessoa, cada família, cada comunidade buscasse conhecer tais experi-
ências de vida e de grande valor, com certeza construiríamos novos valores, para
que as pessoas pudessem realmente, ser gente de verdade.
) N
Este assunto era muito desconhecido para as muheres. Elas nem queriam co-
nhecer seu próprio corpo. Este era um dos prolemas, um preconceito entre as
muheres, achar que é pecado enorme falar sobre sexo, não discutir nem com as
vizinhas e principalmente com as (os) has (os). Nós víamos como pecado fazer
sexo, que era para muheres casadas; as que não tinham marido não podiam
ter relações sexuais porque eram consideradas prostitutas; era também proibido
falar sobre o assunto com crianças e jovens.
N E A D E S P E C I A L
As muheres não se sentiam estimuladas em conhecer seu corpo e por isso
não tinham nem como se cuidar, principalmente evitar Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs). Os maridos exigiam que elas cassem caladas, não contar
que foram contaminadas por eles.
O preconceito começa muitas vezes dentro da própria muher, que acha isto
natural. Nós muheres temos ainda que car caladas para não prejudicar nossos
maridos e a sociedade não saber que eamos doentes. Escondemos até do dico,
para não fazer exames, com medo de mostrar nosso corpo.
O medo do pecado e da igreja conservadora tem atrapahado muito as dis-
cuses. A sexualidade até hoje é ainda tema dicil de ser trabahado a partir da
família, comunidade e escola. Hoje, se houvesse mais conscientização por meio de
palestras, sobre DSTs, não haveria tanta gente contaminada pelo vírus HIV, da Aids.
Podemos evitar e ajudar a combater a Aids e outras doenças, conversando com
nossos hos e indicando para eles o uso de preservativos, porque tanto homens
jovens como muheres jovens corem riscos de doenças. Não sabemos se eamos
contaminadas. A doença pode aear em nossa casa. Precisamos nos prevenir e
conscientizar nossos jovens, para que transem com responsabilidade e usem cami-
sinha, tanto masculina como feminina. Esta é nossa tarefa de muher e de mãe.
Concluindo, gostaria de armar que a sexualidade, apesar de ser uma necessi-
dade ornica, que faz bem ao corpo e à alma, continua assustando as muheres e
conseqüentemente, desestimulando-as a uma vivência harmoniosa da sexualidade.
) N
Nós muheres fomos violentadas desde crianças, quando nos negaram o direito
de brincarmos de carinho. Negaram-nos o direito de estudar, de ser uma muher,
de participar da vida social. Éramos vistas como objeto; violaram nossas idéias,
até de ver que tudo isto era natural, que ser muher era ser dominada pelos pais,
pelos irmãos e depois pelo marido.
E nós não sabíamos que a maior violência é ter nossos direitos negados, que nos
sentíamos gente. Achávamos que tudo aquilo tinha de ser daquele jeito mesmo. Por
nós descobrimos que tudo era violência. Tivemos que fazer um curso, só conosco,
trabahadoras rurais. Veja como foi nossa realidade, com muheres trabahado-
ras rurais. E assim percebemos que existem muitos tipos de violência como:
Sobre os direitos humanos.
Violência sica- a agressão dentro de casa se entende aquela que é perpetrada no
corpo da muher por socos, beliscões, mordidas, chutes, queimaduras, etc.
Violência sexual – a muher é obrigada por força ou ameaça, a ter relação sexual,
que o agressor, o próprio marido ou companheiro deseja muitas vezes, por se
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sentir no direito de ser o dono e satisfazer seu desejo sexual, independente da
vontade da muher.
Violência psicológica a muher tem sua auto-estima atingida por agressões
verbais constantes: ameaças, insultos, comparações...
Violência moral pode ser entendida como uma das manifeações da violência
psicológica.
Violência patrimonial – conura-se por ações ou omissões que impliquem em
dano, perda, subtração, destruição, retenção de objetos, instrumentos de trabaho,
documentos pessoais. Às vezes é utilizada como forma de limitação da liberdade
da muher, inclusive de ir e vir.
Violência no trabaho – o agressor é o patrão ou chefe que usa de sua relação de
poder hierárquico para obrigar a funcionária manter com ele relações, indepen-
dente de seu desejo.
Assédio sexual da muher nos espaços do trabaho.
Violência institucional – é praticada nas instituições preadoras de serviços -
licos como hospital, delegacia, posto de saúde, escola.
A violência é hoje para as muheres trabahadoras rurais, uma grande preo-
cupação e uma prioridade de luta no combate a todo tipo de agressão. No meio
rural a violência doméstica cresce muito, principalmente em Pernambuco e no
Ceará. Estamos em ação. V .
R
Desenvolvimento Agrário e Agrícola Instituto Interamericano de Cooperação
para a Agricultura (IICA).
Teras de Quilombos – MST.
Nosso trabaho tem valor.
Muher e Agricultura familiar – SOS e MMTR-NE.
Entrevistas de trabahadoras rurais do Nordee.
Categoria
Ensaio Inédito
P      M         A   
A caminho dos babuais
: Gênero e imaginário no
cotidiano de trabalhadores
rurais no Marano
V I V I A N E D E O L I V E I R A B A R B O S A
C
O de sujeitos sociais m constituído um im-
portante caminho de abordagem para estudiosos de várias áreas do saber. Nesse
sentido, entendemos que o estudo de sentimentos e vivências de trabalhadores
rurais no Maranhão pode contribuir consideravelmente para a compreensão de
relações de gênero e de significados que se estabelecem em seu meio social.
Em meio a esses trabahadores deacamos a atuação de muheres quebradei-
ras de coco babaçu, trabahadoras rurais e agroextrativistas, que aliam a quebra do
coco ao trabaho na roça, práticas eas que se inserem nos símbolos cotidianos de
sua existência. Enfocamos, de um lado, trabahadoras que enfrentaram conitos
pela preservação de babaçuais e pelo acesso a tera e que assumiram a identidade
de quebradeiras de coco, organizando-se no Movimento Intereadual das ue-
bradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), e, de outro, quebradeiras que não se inte-
graram nesse movimento (embora muitas também tenham enfrentado conitos),
mas que, em suas comunidades, trocam experiências com as primeiras.
Ensaio baseado em monografia apresentada em julho de ao curso de História da Universida-
de Federal do Marano (UFMA) e em relatórios de pesquisa apresentados, em janeiro e agosto
de, à Pró-Reitoria de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, Pibic/CNPq/UFMA.
 Licenciada em História pela UFMA, mestranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Gra-
duação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista
Capes/UFBA.
N E A D E S P E C I A L
Examinamos discursos e práticas de lideranças do Movimento no Maranhão
e de trabahadores rurais (homens e muheres) do povoado de Monte Alegre,
município de São Luís Gonzaga (MA), no intuito de apreender ohares em torno
do masculino e do feminino, a partir de memórias, representações e vivências
cotidianas daqueles sujeitos.
A nosso ver, são relevantes, trabahos que discutam aectos não presos eeci-
camente à esfera política e/ou econômica na qual, as quebradeiras eão inseridas.
Não se trata, obviamente, de desconsiderar a produção existente que enfatiza a
mobilização e identicação, a relação com o mundo do comércio, a constituição
de cooperativas e o apoio de organismos e instituições aos trabahadores rurais.
Este é um enfoque que não pode ser deixado de lado. Entretanto, na realização
dee trabaho entende-se que o sentido do babaçu na vida de trabahadores rurais
e agroextrativistas, eecialmente das quebradeiras, embora se reporte às esferas
econômica e política, ultrapassa-as e se relaciona a um leque considerável de pos-
sibilidades de vivências, como as relações e dinâmicas sociais tecidas em torno do
gênero, bem como de construções imaginárias que permeiam a vida coletiva.
M I Q C B :
Muheres trabahadoras rurais e agroextrativistas se mobilizaram em ns da déca-
da de  e início dos anos , identicando-se coletivamente como quebradei-
ras de coco e criando um movimento. Se considerarmos a perectiva de Hobsbawm
(), ee é um dos “novos movimentos sociais,cujas caraerísticas são a defesa
ambiental e ecológica, discussões sobre identidade étnica e queões de nero.
A primeira tentativa de organização dessas muheres foi em , porém, o re-
conhecimento efetivo foi em , com a Articulação das Muheres uebradeiras
de Coco Babaçu (AMQCB). Seundo Maria Chagas (B; C et. al.,
), coordenadora-geral do Movimento no Maranhão, somente depois de 
é que a articulação passou a chamar-se MIQCB. Esse movimento se concentra
em quatro eados da Federação, eendendo-se “[…] por centenas de povoados
distribuídos desde o Vale do Parnaíba, no Estado do Piauí, até o Vale do Tocantins,
nos Estados do Pará e do Tocantins, atravessando diagonalmente o Estado do Ma-
ranhão” (A; , p. ). Toda essa extensão teritorial eá dividida em
seis regionais: do Mearim, de Imperatriz e da Baixada (as três no Maranhão), do
Pará, do Piauí e do Tocantins. Cada uma delas possui uma coordenação executiva
e assessoria técnica, apoiada por projetos com a União Européia, Ministério do
Meio Ambiente, ONG Pão para o Mundo, entre outros.
 Dentre os trabalhos que efetuam um enfoque a partir dessas questões, destacamos: Almeida
(, ), Martins () e Shiraishi Neto ().
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
No Maranhão, eecialmente, na região do Médio Mearim, os conitos em
defesa dos babaçuais impulsionaram a mobilização de muheres e homens tra-
bahadores rurais pelo direito à sobrevivência, o que logo se eendeu à reivin-
dicação pela tera. Os conitos de tera eram recorentes no Maranhão e se
aciraram no momento em que o acesso aos babaçuais tornou-se restrito quando
da implantação da chamada “Lei Sarney de Teras (N
o
./ --), que
respaldava a privatização das teras púlicas do eado e incentivava a implanta-
ção de projetos agropecuários, que excluíam as famílias rurais do acesso à tera
e ao extrativismo.
A microregião do Médio Mearim foi marcada, entre as décadas de  e
, por intensos conitos entre trabahadores rurais e fazendeiros e/ou grileiros,
quando ees passaram a proibir a extração do coco babaçu, arogando-se o direi-
to de propriedade, o que desencadeou uma forte resistência por parte daqueles
trabahadores. Antes da restrição aos babaçuais, o direito a tera havia sido
cerceado, limitando o espaço de plantio dos trabahadores. Entretanto, seundo
lideranças do MIQCB, os homens só entraram na luta, motivados pelas reivin-
dicações das muheres pelo extrativismo.
A reivindicação era pelo acesso e pela não devastação dos babaçuais, uma vez
que o corte das palmeiras, com o objetivo de coibir o trabaho extrativo e mesmo
eliminá-lo, passou a ser recorente. Para as famílias rurais, essa luta era queão
de sobrevivência e também signicava resistir à violência imposta às suas formas
culturais e cotidianas de vida. Sendo assim, a violência sofrida por esses traba-
hadores se inscreveu em sua memória e cotidianidade tanto em nível material
quanto simbólico.
As quebradeiras realizam o extrativismo do babaçu por meio de um sistema de
uso comunal desse recurso, conforme suas necessidades e capacidades produtivas.
Nesse sentido, a restrição da atividade extrativa signicou, de imediato, a perda
de sua autonomia no campo do trabaho. Daí o período dos cercamentos ter sido
caraerizado por elas e seus familiares como tempo do coco preso” (eecial-
mente anos e ). Sobre os cercamentos, a devastação dos babaçuais e a
reivindicação da continuidade do trabaho extrativo, os versos da música “Maria,
hos de Maria não poderiam ser mais expressivos:
 Também chamada “Lei de Terras do Sarney. (Gonçalves, ). O “Grupo Sarney, que tam-
bém é denominado por historiadores e outros pesquisadores de “oligarquia Sarney” (Costa,
, ) ou dinastia Sarney” (Gonçalves, ), chega ao poder político do Estado em
, ano em que José Sarney é eleito governador do Maranhão. Desde então, seus familiares
e aliados têm ocupado os principais cargos políticos do Estado.
 Período em que fazendeiros/grileiros (muitos de outros estados da Federação) se apropriaram
de terras cercando-as em grandes áreas (fazendas) sobretudo para a realização de projetos
agropecuários.
N E A D E S P E C I A L
Não devae o palmeiral / Deixe o coco dá raiz,
Eu io quebrando o coco / Do coco eu sou feliz.
Se ocê é fazendeiro / Ou um grande industial,
Seure sua cabroeira
[
]
/ Eu não sou o seu ial,
Mas deixe nosas palmeiras / Bota coco e seu quintal.
Eu não sei toa esa históia / Ne quando terá m,
Eu só quero quebra coco / Eu não quero o seu capim,
Já não baa o mal da seca / Ve a ceca contra mim.
Você é dono do pao / Do açude ou do cual,
Mas não é dono do coco / Ne tabé do coqueiral,
Você corta boi de corte / Mas não corte o palmeiral. (SantoS, )
Os trabahadores falam de tempo do coco liberto e tempo do coco preso
para caraerizar, reectivamente, o período anterior aos cercamentos e o mo-
mento de ocupações de teras por fazendeiros/grileiros, quando se iniciaram os
conitos. As famílias rurais caram sujeitas a manipulações econômico-comer-
ciais, já que foram implantados vários mecanismos visando subjugá-las. Ficaram
submissas aos donos de “baracões, sendo obrigadas a vender o coco aos fazen-
deiros ou trocá-lo por gêneros alimentícios de primeiras necessidades.
Os contratos extrativos mais conhecidos são o de “meia,” o de foro” e o de ar-
rendamento.” Contudo, independentemente do tipo de contrato, trabahadores
faziam mutirões, dos quais homens e muheres participavam, visando quebrar a
maior quantidade possível de coco, para obter um maior rendimento ao nal do
trabaho. Ocoria que os fazendeiros/grileiros, além de pagarem um valor ínmo
pelo quilo do coco, adulteravam o peso do produto em seu favor. Os mecanismos
de dominação da produção postos em ação pelos proprietários, eram, portanto,
uma prática de superexploração da força de trabaho dos extrativistas. Ainda há
casos, em que a amêndoa do coco é vendida a atravessadores, que compram-na
por valor ínmo e lucram em cima da produção desses trabahadores.
Além da exploração de seu trabaho, aquelas famílias também sofreram fre-
qüentes ameaças, sendo aluns homens vitimados em meio a esses conitos,
apesar de aluns relatos apontarem que as muheres é que negociavam com os
 Bando de capangas, jagunços e/ou peões que trabalham para proprietários de terras.
 Galpões localizados nas fazendas onde mulheres, homens e crianças quebravam coco para
proprietários de terras, muitas vezes esperando receber o dinheiro da venda do produto
somente ao final da semana.
 Em todos os casos, tratava-se de uma parte da produção das quebradeiras que era entregue
aos proprietários. Para maior detalhamento desses contratos (S N, ).
 Em alguns casos, quebradeiras e até mesmo seus companheiros foram levados a julgamento
(A, ).
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
fazendeiros para evitar derubada de palmeiras e que os homens cavam afasta-
dos, a m de que o houvesse nenhum tipo de confronto direto (A;
F, ). Alumas quebradeiras foram agredidas quando, como
forma de resistência, entravam nas propriedades e eram encontradas dentro das
soltas” coletando o coco. Essa realidade não é distante, posto que
há ainda casos de violência sica contra as quebradeiras no qual gerentes da fazenda, va-
queiros ou encaregados submetem as muheres a suras e violência sexual. ainda casos
em que a muher precisa roçar a quinta, ou seja, limpar a área do pasto, para ter acesso à
área de quebra e coleta do coco. (A; C; M, , p. )
Comumente os sujeitos sociais se valem de estratégias para vencer bareiras
que hes são impostas, e não foi diferente com as quebradeiras. O desejo coletivo
dessas muheres em enfrentar restrições de fazendeiros/grileiros e as suas inicia-
tivas para empatar” a derubada de palmeiras, buscando dialogar com proprie-
tários, tomando a frente nas negociações, incentivou a emergência expressiva de
um movimento organizado. Isso fez com que elas fossem aos poucos adquirindo
representatividade.
Seundo Almeida (), a idéia que se tinha quando da explosão de ocu-
pações de teras e da reorientação do mercado econômico neoliberal era a de
que os trabahadores agroextrativistas se enfraqueceriam politicamente, cando
marginalizados do mercado. No entanto, quebradeiras de coco,
atras de um processo de intensas mobilizações e conitos, romperam com
essa representação pictórica e usual e com a moldura do exotismo da orea, que
tradicionalmente as envolviam. Descongelaram ea imagem folclórica, quebra-
ram a imobilidade iconográca de décadas e se deramaram organizadamente nas
estruturas do campo do poder e nos circuitos de mercado, desnaturalizando-se e
armando sua nova condição. (A, , p. )
T M I Q C B
Tendo vivenciado lutas e mobilizações no curso de sua trajetória, as quebradeiras
de coco tiveram alumas conquistas que fortaleceram o Movimento. Dentre ou-
tros aectos, essa organização denota um momento signicativo, o da passagem
 Áreas de pastagens também conhecidas como quintas.
 Termo que mais aparece nos testemunhos dos trabalhadores que vivenciaram conflitos e que
se refere ao impedimento da derrubada de palmeiras de babaçu.
 Obviamente, o podemos desconsiderar a influência da igreja católica, através de padres e
missionários, e de intelectuais atuando direta ou indiretamente no processo de mobilização
dessas mulheres.
N E A D E S P E C I A L
dessas trabahadoras do espaço privado para o púlico e o seu reconhecimento
como sujeitos políticos. O MIQCB rompe as fronteiras do espaço vivencial dessas
muheres, repercutindo internacionalmente. Na medida em que a organização foi
crescendo política e economicamente, alumas dessas quebradeiras passaram a
coordenar cooperativas e associações políticas e várias de suas lideranças assumi-
ram a direção de sindicatos ou passaram a exercer cargos político-institucionais,
como o de vereadoras. Luta, persistência e conquistas o temas sempre reani-
mados nos encontros do Movimento:
Prazer enorme a gente ter tanta companheira aqui […] A gente tem uma luta muito ár-
dua, mas é muito interessante pra nós […] Só aüenta ser coordenadora e ser quebradeira
é muher forte, é muher de bra […] nós nascemos em , em  nós tivemos o seundo
[Encontro] que foi no Piauí e o terceiro foi aqui, mas a maioria das quebradeiras lembra
que a governadora era muher
[

]
e a gente não foi recebida, teve em  o quarto em
Imperatriz […], mas eu já disse […] somos de bra e não é mentira.
Uma das conquistas das quebradeiras foi a implantação em aluns municípios,
da Lei Babaçu Livre, que determina o uso comunal dos babaçuais, podendo ser
um recurso explorado pelas extrativistas ainda que eeja em propriedades pri-
vadas. No Maranhão, são beneciados pela Lei os municípios de Lago do Junco,
Lago dos Rodriues, Eerantinópolis, São Luís Gonzaga do Maranhão, Capinzal
do Norte e Imperatriz (A; C; M, ). Mais
recentemente, o município de Peritoró também foi contemplado.
A educação formal também tem se apresentado um instrumento importante,
também no que tange a iualdade de nero, pois tem sido uma alternativa educar
suas crianças questionando discursos e práticas de dominação masculina, uma
educação que enfatiza as diferenças entre homens e muheres, mas busca não
perpetuar desiualdades. As quebradeiras de coco vêm desenvolvendo cursos de
formação e capacitação de suas lideranças, o que contribui também para discus-
sões sobre os prolemas relativos à mobilização e economia do babaçu.
Outro benecio para famílias agroextrativistas no Maranhão foi a criação do
Programa de Educação e Alfabetização para Jovens e Adultos em Áreas de Refor-
ma Agrária (Pronera), fomentado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário
(MDA), com apoio do Governo Federal, MST, UFMA, e Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra). Outros órgãos que mantêm constante
contato com o Movimento são a Associação em Áreas de Assentamento do Es-
 Roseana Sarney, filha de José Sarney, então governadora do Maranhão.
 Maria Adelina Chagas (Barros; Chagas et al., ), em pronunciamento de abertura no V
Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (VEIQCB).
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tado do Maranhão (Assema), o Centro de Educação e Cultura do Trabahador
Rural (Centru) e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).
Um projeto desenvolvido junto a esses trabahadores é a produção de roças
orgânicas que objetiva, dentre outras coisas, evitar o desgaste do solo. tam-
m um estudo com plantas aromáticas e medicinais que visa criar essências
de eécies nativas para a produção de óleo do babaçu a ser comercializado no
próprio Estado. E ainda, o projeto da Escola Família Agrícola, que oferece for-
mação até a oitava série do ensino básico, desenvolvendo o conteúdo teórico da
escola formal e ensinando a crianças e adolescentes a história e o modo de vida
de suas mães e de seus pais.
No Mearim maranhense quatro cooperativas que criaram uma linha
de produção e comercialização de seus produtos, o que contribui para que as
quebradeiras vendam as amêndoas do babaçu por um preço mais justo: as Co-
operativas dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco, de Es-
perantinópolis, de São Luís Gonzaga e de Lima Campos. A primeira exporta o
óleo de babaçu, principalmente para os Estados Unidos e Inglatera, e a última
utiliza o mesocarpo para a produção da farinha do babaçu (eécie de multimis-
tura que serve para alimentar crianças e para ns medicinais). A Associação de
Muheres Trabahadoras Rurais (AMTR), que possui aliança com o MIQCB,
fabrica e comercializa sabonetes com o óleo comprado da cooperativa. Outros
produtos com a bandeira “Babaçu Livre” eão sendo comercializados, como o
caro cocal e a torta de babaçu.
As quebradeiras de coco ganharam visibilidade na esfera da produção e co-
mercializão pelo seu trabaho extrativo, pois antes, somente homens envolviam-
se no processo de comercialização do babaçu (M, ). Os prolemas
ainda persistem, como mostra Almeida (), um desconhecimento total da
economia do babaçu, fazendo das quebradeiras alvo de planejamentos externos
que visam apenas lucros próprios. Nas mais recentes reivindicações do MIQCB
junto aos órgãos governamentais eão o desenvolvimento de tecnologias apro-
priadas para a completa utilização do babaçu e para a conversão das amêndoas
em biodiesel; o acesso do Movimento aos programas governamentais voltados
para a saúde da muher; a punição de pessoas que cometem crimes ambientais,
devastando principalmente babaçuais, castanheiras e seringais; a desaproprião
imediata de áreas de conitos que envolvem quebradeiras; a implantação de
reservas extrativistas e, ainda, a garantia de livre acesso às áreas de babaçuais.
uebradeiras ligadas ao MIQCB se autodenem como corajosas, enérgicas,
trabahadoras empenhadas em alcançar seus objetivos, auto-atribuição que pode-
 políticas do Governo Federal que incentivam a conversão de sementes de oleaginosas
(mamona, girassol, soja) em biodiesel. Essas políticas ainda não se voltaram para o babaçu, o
que tem causado descontentamento por parte das quebradeiras.
N E A D E S P E C I A L
mos notar, por exemplo, nas palavras de Eunice Costa, da regional de Imperatriz,
referindo-se às suas companheiras de ocio e luta: “Nós somos corajosas. Botamos
muita no nosso trabaho e outra coisa é a energia que nós temos. Cada vez o
Movimento tá se eendendo mais.
G
nero e identidade no universo de quebradeiras de coco babaçu no Maranhão
se inter-relacionam. Temos entendido identidade a partir da relação entre a cons-
trução da imagem de si, sendo, portanto, a representação do “euque se pretende
assimilada pelos outros, e a imagem que ees “outros” fazem daquele “eu” que se
autodene, como gênero constitui-se como uma categoria relacional, evidenciada
em discursos e práticas, na qual dialogam construções sociohistóricas e culturais
acerca do masculino e do feminino.
As relações de gênero vivenciadas no cotidiano, em diferentes espaços e tem-
pos, apontam, em geral, para complexidades e ambiüidades. A realidade das
quebradeiras de coco babaçu aqui enfocadas, não escapa a essa assertiva. Tais
relações assumem uma amplitude de queões e construções sociais a reeito do
ser homem e do “ser muher” e são perpassadas por relações de poder, compreen-
didas na perectiva de Foucault (), como algo que se processa no cotidiano
das sociedades e se dá por meio de (re)negociações.
A armação da identidade coletiva de quebradeiras de coco vem acompa-
nhando o MIQCB desde suas primeiras articulações, chegando, por intermédio
de intercâmbios de experiências, a muheres que não se vincularam a essa orga-
nização. As que participam do Movimento lutam para serem denidas também
como trabahadoras rurais, uma vez que, tradicionalmente, conurou-se uma
imagem do trabaho rural como masculino. Analisando a constituição dos mo-
vimentos sociais rurais no Brasil, observamos que
a propriedade da tera, de caráter concentrador, é um dos marcos históricos mais rmes
de exclusão e de impedimento à mudanças e, portanto, à própria democratização do país.
Os movimentos sociais rurais têm uma história recente, cerca de  anos, de luta por
direitos básicos de cidadãos com direito à tera e ao trabaho. As muheres trabahadoras
rurais experimentam essa exclusão somada à discriminação de nero e lutam, ainda
[…] hoje, pelo direito ao reconhecimento da própria categoria de “trabahadoras rurais
(F, , p. ).
Debates no Movimento enfatizam queões sobre a identicação dessas mu-
heres como quebradeiras de coco, quanto às estratégias desenvolvidas por elas
em defesa do meio ambiente e também a reeito de suas experiências em uma
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sociedade dividida em neros, na qual, em grande proporção, as muheres foram
e são silenciadas e esquecidas.
Muitas produções musicais e artísticas que, embora geralmente tenham au-
torias individuais, são (re)apropriadas recebendo signicado coletivo impresso
na historicidade e cotidianidade dessas muheres. A “Música do Movimento,
por exemplo, é um de tantos cantos que enfatiza a armação da identidade de
quebradeiras de coco, bem como a sua integração coletiva nos quatro Estados em
que atua o Movimento:
Eu sou quebraeira, eu sou quebraeira e im para luta
Pelos meus direitos, pelos meus direitos im reiindica
Mais educação e saúde pra toa nação.
Eu sou quebraeira, sou mulhe ueeira e enho do sertão.
No Tocantins te quebraeira, no Piauí te quebraeira, lá no Pará te
quebraeira, no Maranhão eão as quebraeiras. (VEIQCB, )
A identicação com o trabaho por parte dessas extrativistas é fundamental
para manter viva e intensa a sua mobilização, reforçando a luta para obter políti-
cas púlicas em prol dos trabahadores rurais. Desse ponto de vista, a valorização
de uma identidade grupal foi fundamental para que essas muheres buscassem ca-
minhos para atingir seus objetivos. Elas almejam ainda, alcançar representativida-
de dentro de uma sociedade onde as condições étnico-racial e de gênero apontam
para a exclusão de muitos e inclusão de poucos, como é nítido no que diz Maria
Chagas (B; C et. al., ) a reeito de si e de suas companheiras
de luta: “Até hoje a gente é discriminada […] se a gente é pobre, quebradeira de
coco e negra a gente é discriminada.” O fato é que muitas quebradeiras de coco
sofrem uma tripla exclusão: étnico-racial, de gênero e de classe.
Ora, como sabemos,
Muitas vezes o discurso sobre a iualdade universal dos seres humanos ocultou a desiual-
dade histórica e cultural na experiência vivida. E ee “ocultoou ee “velado” certamente
atingiu muito mais as muheres do que os homens, muito mais os negros do que os brancos,
muito mais os pobres do que os ricos (G, , p. ).
 De fato, “raça”/etnia, gênero e classe constituem categorias que, de modo inter-relacionado,
inscrevem muitas experiências vividas. Gilroy (), partindo da idéia de Hall () de que
a raça é a modalidade na qual a classe é vivida, sugere que o gênero é a modalidade na qual
a raça é vivida. A nosso ver, cabe usar o termo “raça” referindo-se a algo a ser descrito, mas
não como uma categoria analítica.
N E A D E S P E C I A L
No tocante a muheres que são do Movimento, percebemos não só a existência
de uma identicação diferenciada de ser quebradeira, como uma disposição em
prosseuir na articulação. Uma das explicações para que antes se envergonhassem
de seu trabaho reside no fato de ser a atividade extrativa desvalorizada e ear
diretamente relacionada à pobreza. “De primeiro,arma Francisca de Aquino,
moradora de Monte Alegre, que “era muito dicil dá esse tipo de valor as pessoa
que quebra coco.A mobilização vem mudando tal realidade e reforçando um re-
conhecimento tanto dentro quanto fora do Movimento: “Eu acho,” arma Maria
Bringelo, que é assim, cada categoria tem uma identicação […] uma identidade
de quebradeira mostra que nós somos prossionais […] do dia-a-dia.”
A identicação assumida pelas quebradeiras do Movimento evidencia uma
percepção da quebra do coco como prossão merecedora de reconhecimento social.
uma identicação com esse discurso na fala de muheres que não se associaram,
mas que compartiham experiências com quebradeiras articuladas, como é o caso de
Teresa Pereira, moradora de Monte Alegre: “Eu acho um trabaho muito honeo,
a gente se esforça e faz por prazer […] eu prero quebrar coco do que ir pra roça.
A visibilidade das quebradeiras e o reforço de sua identidade se vericam de tal
modo que encontramos homens que quebram coco e mantêm contato com o Mo-
vimento manifeando interesse em serem reconhecidos como quebradores de coco.
Tal discurso armativo da identidade eá associado a queões de nero.
As quebradeiras têm se mobilizado na tentativa de desconstruir imagens que con-
uram uma assimetria entre homens e muheres. Em geral, o entendimento e
o sentimento de que tal realidade precisa ser mudada. Em discussões no MIQCB,
essas muheres têm buscado apreender o sentido do gênero e suas complexidades,
entrando em contato com um debate, por muitas, nunca anteriormente feito de
modo direto. Outra preocupação tem sido a de inserir os homens na participação
desses diálogos. De todo modo, é evidente que:
A abordagem recente do nero eá iualmente associada à procura e à conformação
de identidades, vistas hoje como identidades plurais. Ao se pôr em queão o masculino
e o feminino e ao corelacioná-los às condições de classe, etnia, opções sexuais e outras
associações, aoram potencialidades e diferenças que realçam com nitidez identidades e
oposições, portanto a complexidade inerente ao campo. (Q, , p. )
Um dos elementos que perpassa todo o processo de armação das quebradei-
ras reside na busca de autonomia nas relações com seus maridos/companheiros e
na iualdade de espaços, a partir da qual elas possam mais efetivamente participar
das tomadas de decisão no âmbito familiar. Alumas dessas trabahadoras enten-
dem que uns poucos homens desenvolveram uma percepção das desiualdades
alicerçadas em nome das diferenças de nero, o que se verica, por exemplo, no
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fato de entenderem ou mesmo incentivarem (ainda que muitas vezes timidamen-
te) suas companheiras a se engajarem no Movimento. Sobre esse aecto, falando
de sua própria experiência, Maria Chagas () arma que
A gente identica o avanço na queão de gênero […] Hoje eu eou no Movimento, eu
vou pra São Luís passar tantos dias e meu marido não me impede de eu ir, então ele
tem uma certa compreensão de nero […] ele termina assumindo o trabaho que é meu,
ele não vai pra cozinha lavar o prato […] mas o negócio da administração [da casa] na
hora que eu tô fora o marido toma o encaminhamento.
No início da mobilização, a maioria das quebradeiras o tinha o apoio de seus
maridos/companheiros, alumas até chegaram a se separar para continuarem no
Movimento. Não raro surgiam tensões entre elas e seus companheiros quando
começavam a manifear indícios de autonomia, como freqüentar reuniões. De
fato, a mobilização contribuiu para que essas muheres conteassem (em aluns
casos, com veemência) relações de dominação masculina.
O MIQCB vem discutindo prolemáticas bem atuais a reeito das queões
de gênero, como percebemos no discurso de Maria Bringelo: “Eu acho que gêne-
ro em qualquer lugar que for discutido […] tem que ser discutido num sentido
transversal, onde tiver homens e muheres […] porque muita gente não sabe nem
o que signica nero.Essa articulação tem reivindicado iualdade das muheres
perante os homens, buscando, no entanto, não considerar apenas o feminino
em detrimento do masculino. Dentro desse mesmo viés, Maria Chagas () é
enfática ao armar que:
nero […] é uma queão de espaços de eqüidade. Tem as quebradeiras de coco, não
temos sindicato próprio, fazemos parte dos Sindicatos dos Trabahadores Rurais […] Isso
dá de compreender que gênero não é só ser homem e ser muher, não tem essa coisa […]
de ser só homem e ser muher. Eu penso gênero uma discussão em conjunto, homens e
muheres onde esses direitos sejam reeitado […] muita gente chama nero uma divisão
do trabaho, mas não é pra mim só isso.
Essas discussões de gênero que circulam no Movimento foram, em parte,
suscitadas por instituições de amparo aos trabahadores rurais, como a igreja
católica e a Assema, e por pesquisadores de diversos campos de estudo. A pró-
pria iia de gênero e os termos usados para tratar dela o sintomáticos dessas
inuências externas. Evidentemente, trata-se de processos em que tais idéias
externas são apropriadas a partir de interesses e perectivas das quebradeiras,
apropriação entendida à óptica de Chartier (), referindo-se às diversas
práticas que se apropriam de forma variada dos materiais que circulam numa
N E A D E S P E C I A L
dada sociedade, dando lugar a usos diferenciados e até opostos dos mesmos
bens, textos e iias.
Em se tratando de identicação, observamos que existe um elo entre as iden-
tidades grupal e feminina que são construídas, relacionando o trabaho realizado
pelas extrativistas à condição de gênero. Entretanto, enquanto no espaço familiar
a identidade de nero é a mais evidenciada, no Movimento, as identidades co-
letiva e étnico-racial são bem mais acentuadas.
Entendemos que a identidade “[…] pode ser revelada quando eamos com
os outros, e nos apresentamos ao mundo” (F, , p. ) e eá sempre
em processo de (re)estruturação, pois
[…] sejam elas sexuais, de gênero, geração, raça, religo, etnia […] não são um pro-
duto acabado, senão um processo contínuo que nunca se completa, subjetivando-se
em seu espaço e tempo. Os sujeitos o, portanto, uidos e se inventam no transcur-
so de complexas histórias, fundadas num sentimento de pertença que torna possí-
vel o funcionamento da vida, embora eejam sempre sujeitos a mudaas e revisões.
(D, , p. )
Como vimos, quebradeiras interagem no MIQCB e alumas delas tentam
levar discussões ali feitas ao campo familiar. Zulmira Mendonça, coordenadora
da articulação na região da Baixada Maranhense, arma que atua nesse sentido,
uma vez que tenta demonstrar aos seus hos que não tem vergonha de ser muher
e nem de ser quebradeira de coco. O canto Sem medo de ser muher” sintetiza a
sua perectiva e a do Movimento:
Pra muda a sociedae do jeito que a gente que,
Participando se medo de se mulhe.
Porque a luta não é só dos companheiros,
Participando se medo de se mulhe.
Pisando re se medi nenhum segredo,
Participando se medo de se mulhe.
Pois se a mulhe a luta ai pela metae,
Participando se medo de se mulhe.
Fortalecendo os movimentos populares,
Participando se medo de se mulhe.
Na aliança operáia caponesa,
Participando se medo de se mulhe.
Pois a itóia ai se nosa com certeza,
Participando se medo de se mulhe. (VEIQCB, )
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A visão do MIQCB expressa em muitos dos seus cantos, é clara ao enfatizar
que para reivindicarem iualdade entre os gêneros, as quebradeiras precisam
primeiramente se oruhar de sua condição de muher.
E
Esa luta não é fácil / Mas ai te que acontece,
As mulheres organizaas / Tê que cega ao poe.
Vaos juntas companheiras / Vaos bota pra ale
Vaos quebra as coentes / Do macismo e do poe.
Se mulhe nee mundo / Seia tiste deais
Não nascia gente nova / O mundo não tinha paz.
A mulhe nasceu pra se / Pelo home be aaa
Se aiga e companheira / Pra não se disciminaa. (VEIQCB, )
A quebradeira Cândida Baros, da região da Baixada Maranhense, se reportou
à época em que as muheres não se consideravam totalmente do Movimento
e compartihando de uma mesma identidade: Quando a gente começou esse
encontro nós sabemos que foi por uma dia de  pessoas […] as pessoas se
envergonhavam de dizer que era quebradeiras de coco.De todo modo, a iden-
ticação e armação do trabaho extrativo, que acompanha os debates concer-
nentes às relações de nero, vão alcançando muheres que o se vincularam ao
MIQCB, mas que eabelecem contato com as que o integram.
M A :
M I Q C B
Articuladas ou não no MIQCB, casadas, vivendo relações eáveis ou fortuitas,
ou sendo muheres sós com seus hos, existe um dado que iuala essas diversas
existências: a realização do trabaho de quebra do coco babaçu para o sustento de
suas famílias. O povoado de Monte Alegre (onde não mais de cinco muheres são
associadas), pertencente ao município de São Luís Gonzaga do Maranhão, que
compõe a região central do Vale do Mearim, é identicado pelos seus moradores
como área de remanescentes de quilombolas, herança de pessoas na condição
de ex-escravas vindas de África, que lá começaram a viver desde o período da
implantação de grandes engenhos açucareiros.
De acordo com a memória que circula entre os moradores, em , o coronel
Lisboa Fereira vendera parte das teras do povoado e doara o reante a negros
que trabahavam para ele. A constituição inicial do povoado teria se dado em
, seundo o relato de Maria Bringelo, coordenadora do MIQCB na região do
Médio Mearim e moradora de Monte Alegre:
N E A D E S P E C I A L
nas areias tinha um porto que as coisas daqui eram todas transportadas a vapor e tinha
dois irmãos que moravam em Montevidéu [povoado vizinho a Monte Alegre]. Um deles
veio pra e fez um sítio, a igreja sempre foi naquele lugarzinho ali […] Ele tava iniciando
a fazenda. Aqui tinha sítio, tinha engenho. A minha bisavó, Sizina Parga foi escrava aqui
nesse dito lugar […] Ela já veio car livre aqui.
Em Monte Alegre, a descendência africana e o auto-reconhecimento como
negros fazem parte dos discursos dos moradores. São Benedito, como deacam os
moradores, é o padroeiro da localidade. Floriano Silva, um morador do povoado,
arma: “Eu nasci em  […] meu povo mais véio era escravo, meu pai nasceu
no dia que gritou a liberdade, mamãe num sei não […] a tera era dos o dos es-
cravo.Esse reconhecimento é claramente enunciado e talvez tenha sido decisivo
no período dos conitos, posto que reforçava os laços entre o grupo, bem como
fortalecia sua reivindicação de permanecerem nas teras cuja memória armava
serem suas. Como reforça Maria Bringelo, eles “[…] queriam mostrar pro governo
e pro Incra que essa área não deveria ser desapropriada, que o governo tinha que
passar essa tera como tera de remanescentes.
Considerando que os grupos não são fechados, interagindo com sujeitos indi-
viduais e coletivos na dinâmica social, é evidente que pessoas que não comparti-
havam da origem comum dos habitantes de Monte Alegre (a maioria das quais
oriundas de outros eados do Nordee) passaram a viver nessa localidade. Assim,
pessoas foram incorporadas ao grupo constituído pelos moradores do povoado,
passando a fazer parte de estruturas cotidianas presentes nesse espaço, inclusive
a praticar o extrativismo.
A identidade étnico-racial tem sido também um elemento que perpassa
o MIQCB, embora sejam múltiplas as identidades (de caráter étnico ou não)
assumidas pelas quebradeiras, uma vez que esse movimento agrega trabaha-
doras de diversas partes. Para Barth (), a identidade étnica é percebida na
interação de um “Nós,integrantes de um grupo étnico, em relação aos Ou-
tros,integrantes de um outro grupo. Nessa perectiva, um integrante é
considerado membro de um grupo quando se reconhece e é reconhecido como
pertencente ao mesmo. Efetivamente, o que tem sido conrmado por essas
muheres são os ditos traços africanos e indígenas como componentes básicos
de sua formação. No que diz reeito à sua descenncia africana, é claro o seu
posicionamento político quanto ao direito de o negro ser reeitado e reconhe-
cido pela sociedade.
Observamos que o conito vivenciado pelos moradores de Monte Alegre, em
, deu-se em concomitância com disputas em outras localidades do Maranhão,
sendo mais um, embora com suas particularidades, dentre os conitos envolvendo
quebradeiras no Estado. Nessa ocasião, várias casas foram queimadas, deixando
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
sem abrigo as famílias que habitavam. Esse episódio, marcado pela violência,
cou registrado na memória dos trabahadores como o “tempo do fogo.
Com o apoio do governo e da Justiça, fazendeiros queriam a desapropria-
ção das teras de Monte Alegre por seus antigos ocupantes – os trabahadores
rurais , e contavam com o auxílio do Incra. Seundo os moradores, aqueles
fazendeiros apresentavam documentos falsicados que conrmavam a posse
da tera em seu favor. Nesse quadro de tensões, os homens do povoado se es-
condiam no mato, planejando a resistência e as muheres se articulavam para a
luta. As reuniões no tempo do fogo” visavam criar estratégias que garantissem a
permanência dos moradores na localidade. As muheres reuniam-se e, seundo
Maria Bringelo, a luta para garantir a posse da tera foi diretamente iniciada
por três delas.
Os moradores do povoado rememoram o acontecimento dizendo que as casas
foram queimadas no dia  de novembro de , porque uma juíza de São Luís
Gonzaga concedeu uma liminar que autorizava a desocupação das teras. Maria
R. dos Santos, uma das moradoras, nara o ocorido: A gente foi jogado, cou
na chuva […] Eles chegaram, queimaram, a gente via gente apanhando […] Era
uma vida muito sofrida, os pais da gente ariscado perder a vida com uma arma,
coriam […] e se escondia.Floriano Silva lembra que “[…] já tinha saído daqui
[…] mas quando foi queimado eu ainda tinha casa […] era três casa, uma do forno,
uma da moradia e uma do meu o.
A memória coletiva e individual, seundo Polak (), precisa ser conside-
rada a partir dos aectos que a constituem: os acontecimentos vividos pessoal-
mente e os vividos por tabela. O último tipo se refere a episódios que uma pessoa
pode o ter vivenciado, mas que por serem tão relevantes dentro do imaginário
de seu grupo social, considera ter participado deles. Podemos falar, então, numa
memória quase que herdada, possibilitada por socialização política ou histórica,
resultante de uma projeção ou identicação com o ocorido.
Lutando pela posse das teras os moradores também acreditavam manter
recursos básicos de sobrevivência, além de garantir a continuidade de suas prá-
ticas, reforçadas por um laço de pertencimento (geográco e simbólico) àquela
localidade. Os moradores de Monte Alegre asseuraram a posse de suas teras e
já possuem uma certidão coletiva, recebida da Fundação Cultural Palmares, que
reconhece a tera como de remanescentes de quilombolas.
Cabe pontuar que o fato de muheres associadas e não associadas viverem nos
mesmos povoados (no caso em eecíco, Monte Alegre) e, na maioria das vezes,
compartiharem de uma mesma memória coletiva, em geral relacionada à luta
pelo direito de usufruir dos babaçuais, acaba aproximando as histórias individuais
de cada uma na história coletiva do grupo, estreitando ainda mais, possíveis laços
de identicação entre elas.
N E A D E S P E C I A L
Uma das diferenças fundamentais entre as muheres do Movimento e as que
(ainda) o se articularam é que aquelas não só se identicam e são identicadas
como quebradeiras de coco, mas armam ea condição oruhando-se de sua
atividade, enquanto eas apesar de se reconhecerem e serem reconhecidas da
mesma forma, não necessariamente consideram tal reconhecimento como algo
positivo. Evidentemente que as conquistas obtidas pelo MIQCB têm contribu-
ído para que as demais quebradeiras se oruhem cada vez mais de seu trabaho,
assumindo, assim, o valor da atividade extrativa a partir de um outro ânulo.
N M A :
Em Monte Alegre, pelo menos três discursos em torno da importância do
trabaho agrícola (roça) e do trabaho extrativista (quebra do coco), relacionados
reectivamente a atividades masculinas e femininas. De acordo com o primeiro,
em conformidade com o imaginário que envolve relações de gênero vivenciadas
no povoado, o os homens que asseuram o sustento de suas famílias, diante
do que a renda das muheres é vista como complementar a dos maridos/com-
panheiros. Um seundo discurso arma que longe de serem sustentadas, são as
quebradeiras que asseuram o sustento de suas unidades domésticas. E, um ter-
ceiro, aponta que ambas as rendas, mutuamente complementares, garantem o
sustento das famílias.
O primeiro é o discurso mais forte e propagado, os dois últimos são menos per-
cebidos. Eerar que quaisquer dessas lógicas sejam aplicadas sem contradições e
ambiüidades é esquecer que quase nunca as práticas coincidem com os discursos.
O mehor caminho parece ser entender como esses discursos são construídos e
como se (des)articulam, mostrando suas ambiüidades e contradições.
Como se verica na sociedade mais ampla, também no espaço sociohistórico
das quebradeiras de coco existe uma divisão de trabaho que dene tanto o lu-
gar feminino quanto o masculino. A maioria das pessoas envolvidas na quebra
do coco babaçu é do gênero feminino, sendo comum os homens coletarem e as
muheres quebrarem o coco. Entretanto, há homens que quebram coco, mesmo
tendo tradicionalmente como atividade, a agricultura.
A idealização do homem como chefe da família e, portanto, provedor, con-
tribui para que a renda feminina do extrativismo seja vista apenas como uma
mera ajuda na manutenção familiar. Contudo, alumas muheres, contrariamente,
armam ser a sua renda que garante o sustento. Dalvanir de Jesus, participante
do MIQCB e moradora de Monte Alegre, armava que, quando ia quebrar coco,
a opinião de seu marido, Era de que eu fosse, por causa que ele ia trabahar da
roça e eu pro mato quebrar coco […] uem dava o mantimento, as coisa era eu,
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ele ia era cuidar da roça.” Observemos que ea quebradeira refere-se à renda do
coco como essencial para a manutenção de sua família, assim como Maria R. dos
Santos que arma: “Tenho quatro hos, eu sustento meus hos, sempre sustentei
assim no coco, quebrando.
Como deaca Sarti (), quando estuda a condição moral do homem e sua
relação com o trabaho, a categoria “pai de família complementa a auto-imagem
masculina e legitima a autoridade do homem no âmbito familiar, na medida em
que eabelece sua moral como provedor. Tal visão é presente no povoado, pois
embora haja uma tentativa de valorizar o trabaho feminino, homens e muheres
reproduzem a idéia de que os primeiros devem ser os mantenedores da família,
o que se expressa em diversos discursos sobre as funções ditas masculinas, como
no depoimento de Rosa de Lima: “Se ele […] pega uma a […] o dever dele se ele
pega uma moça ou mesmo uma muié, de manhã ele deve ir trabaiá, comprar as
coisa […] Ele bota dentro de casa aí a muié vai arumar.
Encontramos também, em depoimentos de aluns homens, como no de Luís
Cruz, a importância das duas atividades para o sustento da família, pois quem
conseue sustentar a casa são Os dois, um faz de um lado, outro faz de outro.
Conrmando a importância do trabaho extrativo, José de Freitas, arma que
nem sempre os produtos de uma coheita são sucientes para eerar uma outra
safra, sobretudo por causa de pragas. Assim, principalmente no período da en-
tressafra, o extrativismo é primordial para a sobrevivência não sendo o trabaho
masculino (agrícola) o principal para a subsistência das famílias.
Convém lembrar que casos em que maridos/companheiros vendem a pro-
dução do trabaho feminino e se apropriam da renda advinda da comercialização
do coco, usando-a em benecio próprio, como mostra Rosa de Lima em sua pró-
pria experiência: “Eu nem me lucrava desses coco que eu quebrava […] eu ia que-
brar coco, ele ia vender pra ir beber.” Há também aqueles que cam insatisfeitos
porque suas muheres realizam o trabaho extrativo, como demonstra Rosinere
de Lima dizendo que o companheiro “[…] num acha muito bom não, mas eu
quebro coco mais na roça junto dele.” Maria dos Santos é um outro exemplo que
diz que uebrava em casa as vez, mas o era muito,mesmo sendo o marido
contra a sua atividade em qualquer que fosse o espaço, que ele “[…] até num
gostava muito, mas eu quebrava.
De modo geral, as muheres de Monte Alegre assumem uma tripla jornada
de trabaho. Além das atividades domésticas, elas quebram coco e trabaham na
roça. De fato, a inserção feminina no espaço de trabaho considerado fundamen-
talmente masculino, a roça, não é incomum. Maria Araújo, que ali reside, descre-
ve as suas outras tarefas: “Trabaho de roça, faço caieira, tiro carvão, faço tudo.
Outras muheres realizam as mesmas atividades ou tarefas parecidas: “As vez eu
vou pra roça, mas eu prero quebrar o coco do que ir pra roça,diz Teresa Pereira;
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“[…] também as vez eu vou pra roça, as vez eu capino,acrescentou Rosinere de
Lima;[…] eu tenho [cultivo] aroz, feijão, eu capino, arma Francidalva de Jesus.
A idéia de que os homens quebram o coco quando são crianças é recorente
na literatura sobre o tema. Entretanto, o caso de José de Freitas,  anos, pai de seis
hos, relativiza essa assertiva. Ele quebra coco desde os  anos, quando chegou em
Monte Alegre embora, paralelamente à quebra do coco, também pratique a agri-
cultura: Hoje, vou pro mato […] pago pra botar e eu quebro em casa. Hoje quebro
mesmo de atentado, sou aposentado, pra não parado.Um outro morador do
povoado, Luís Cruz também arma que “[…] caboco roça, capina, broca. Da roça
ao coco, agora eu não quebro coco, mas junto pra muher quebrar em casa.
O fato é que embora nas práticas sociais de Monte Alegre homens e muhe-
res desenvolvam as mesmas atividades em graus de intensidade e momentos
diferentes, nas representações dos moradores, não raro os papéis masculino
e feminino se mostram eabelecidos: A função do homem,diz Dalvanir de
Jesus, é trabahar de roça porque não tem outra função, é ser lavrador mesmo
[…] Ser muher é […] uma senhora dona de casa […] A função da muher aqui
na comunidade é quebrar coco […] não tem outra […] Eu acho que é trabahar
mesmo na família, é.
No pensamento dos sujeitos em queão, de fato, há aectos que relacionam
as atividades femininas a tarefas “mais fáceis,que exigiriam menor força sica:
“Todos dois serviço são pesado, o da muher é mais maneiro um pouco, quer di-
zer o da muher é mais maneiro,arma Luís Cruz. Essa visão sugere uma certa
fragilidade da muher, reforçando a imagem de que a quebra do coco é a tarefa
feminina por excelência e conrmando uma idéia de força masculina que vincula
o homem aos trabahos ditos pesados.
Essa percepção dos papéis sociais rearma que as tarefas domésticas são
inerentemente femininas, como Francidalva de Jesus nos deixa perceber: As-
sim, a muher sempre é mais fraca, ela ajuda, mas sabe que é mais pouco que o
homem. Ela é tudo, porque lava uma roupa, vare uma casa, o homem não faz
isso.Rosinere de Lima, por sua vez, se reporta às tarefas do marido, deixando
clara sua percepção sobre o trabaho que ele realiza, dizendo que “É bom porque
ele trabáia numa roça, faz um serviço […] Ele faz muito serviço que muié num
faz, aí por essa parte é bom.
Assim como é comum se associar o trabaho da roça não a qualquer trabaho
agrícola, mas a uma atividade do ser homem, a atividade doméstica não tem
sido considerada apenas uma tarefa, mas um componente do ser muher, o que
podemos notar nas palavras de Luís Cruz: “A muher também ajuda de tudo […]
o que a muher fazendo […] que certo, cuida de tudo, da casa, faz outras
coisas também, porque se não, não dava […] porque tem a muher aqui, mas ela
me ajuda de tudo […] eu acho que assim tá bom.
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Em geral, essas muheres não dividem afazeres domésticos com seus mari-
dos/companheiros, ou porque não reivindicam isso, ou ainda porque ees não
se sentem confortáveis em negociar uma divisão de tarefas no âmbito familiar.
Maria R. dos Santos diz, que em Monte Alegre, “[…] os homem são muito ma-
chista, eles querem a muher mesmo só pra cozinha, cuidar dos ho, na hora da
sociedade eles pulam fora.Sendo assim, o machismo earia contribuindo na não
divisão do cuidado dos hos, cando essa tarefa quase exclusivamente a cargo
da muher. No caso em que as muheres não realizam nenhum tipo de trabaho
extracasa (em geral, porque tem hos pequenos), o comportamento dos homens
é como Francidalva de Jesus descreve: “Ele sempre dá uma de durão, tem homem
que bota tudo dentro de casa.
Vericamos que tanto muheres vinculadas ao MIQCB quanto aquelas que
compartiham experiências com as primeiras, gostariam de vivenciar relações
mais iualitárias no que diz reeito a esse aecto, como Maria Bringelo, que
concorda “[…] que o homem ajuda, mas isso não é em toda casa. Depois que o
homem vai pra roça ele acha que não deve fazer muita coisa, a responsabilidade é
da muher.Cleonice de Andrade também expressa que os homens Sempre aqui,
acolá, eles ajuda, mas não ajuda não, eles sempre vão é pra roça. Mas tem deles
que quebra, tem muitos que quebra. É, outro junta pras muher quebrar em casa,
porque o pessoal tá quebrando mais em casa.
Fato é que poucos homens auxiliam suas companheiras cando com seus -
hos em casa ou mesmo os levando para a roça. Antes, quando as muheres saíam
para quebrar coco, geralmente, era o irmão mais veho que cuidava do menor e,
seundo Maria Araújo, quando isso não era possível, “levava pro mato e a redinha
dentro do cofo e a latinha de leite, levava pro mato, fazia um fouinho e fazia o
cumê dele.A experiência de Josefa Silva é bem parecida, pois “[…] assim mesmo
eu levava, levava massa […] açúcar […], mas não cava com ninuém […] do
jeito que eu padecia, ela também, nos mato.
Considerando essa análise sobre o cuidado dos hos e da casa, entendemos
que, em grande medida, a visão do trabaho de quebra do coco como uma exten-
são do trabaho doméstico perpassa o cotidiano desses trabahadores rurais. Tal
visão pode conrmar, inclusive, o motivo de os homens admitirem a quebra do
coco como uma função essencialmente feminina e preferirem que esse trabaho
seja realizado em casa. Embora reconheçam a importância do trabaho femini-
no para a sobrevivência, já que, como aponta Francisca de Aquino, “É dicil um
homem sustentar a muher sem ela trabahar […]. Inda mais quem tem muito
ho […] porque eles não têm ganho […] eles trabaha é na roça,os homens quase
sempre vêem a referida atividade como uma mera ajuda familiar.
Muito embora alumas dessas muheres tentem desconstruir essa imagem,
a assimetria de nero contribui para que a maioria delas acabe assimilando
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a iia de que o seu trabaho extrativo é subsidiário ao trabaho do marido/
companheiro. Isso se expressa freqüentemente por um conjunto de termos
que caraeriza a atividade de quebra do coco, entre os quais, o constante uso
do verbo “ajudar.
Por parte dos homens, são perceptíveis a valorização da atividade agrícola e a
legitimação da divisão social dos papéis, conrmando uma idéia de que o mascu-
lino viria em primeira instância na participação da esfera púlica e no sustento
da casa. Aluns deles, que quebram ou quebraram coco, ao peruntarmos qual
atividade preferem realizar, responderam ser o trabaho na roça. Uma das razões
seria, seundo Paulo de Miranda:
Porque assim o ganho do coco é pouco, se eu for me dedicar ao coco não dá. Aí eu traba-
ho mesmo de roça, fazendo serviço pra um e pra outro […]. Eu preferia mesmo ir pra
roça, porque sempre na roça a gente tem mais vantagem […] Da roça a gente tira aroz,
feijão, miho, melancia.
José de Freitas também diz que prefere a roça, “[…] porque […] é mehor
mesmo de qualquer maneira, porque quando a gente cultiva ela, ela dá mais […]
que se o der o aroz, a macaxeira […] Eu prero a roça, porque a roça é uma
mãe.É também reforçado por Luís de Miranda o motivo da não associação da
quebra do coco como ocio masculino: “É que a gente não tem outra [atividade]
mesmo, é ser lavrador […] Pro homem não dá pra se dedicar em quebra de coco,
porque o coco não tem todo tempo, dá pra ele se dedicar à lavoura.
Atualmente, em Monte Alegre, poucos homens quebram coco, o que antes,
por motivos diversos, não raro ocoria. Jo Borges dizia: “Foi todo dia quebrando
coco. Eu quebrei foi muitas vez, porque tinha precisão, necessidade. O coco era
quebrado quando tava devagar, serviço mais pouco.Floriano da Silva também
arma que quebrava coco “[…] porque tinha necessidade grande, os ano que ti-
nha leume bem, outros ano num tinha, e nesse tempo não tinha quem vendesse
aroz pra gente como tem hoje.
Assim, conforme Maria Bringelo, “Os jovens é que mais tem essa história de
dizer que não quebram coco, mas os homens quebravam, e muito, o pessoal mais
veho […] Aqui os homens quebram coco, os que não quebram hoje, quebraram
muito.Há deles que quebravam e quebram o coco por interesses outros, como
Luís Cruz, que, seundo Maria Cruz (sua esposa), dizia que quebrava quando ele
era solteiro ainda dentro de casa, que ele ia pro mato com os amigo pra comprar
roupa pra ir pra fea.
Quando jovens, era comum, e ainda o é, as muheres usarem a renda do coco
para comprar pertences de uso pessoal. Maria Cruz arma que “Quando era no
inverno a gente quebrava coco pra comprar aroz, mas quando era no verão
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que já tinha um arozinho, a gente quebrava coco só pra nós, pra comprar roupa,
esmalte, coisa de cabelo.
O fato é que não existem espaços sociais xamente delimitados em Monte
Alegre. Há uma separação que serve de referência para identicar ser muher” e
ser homem nesse campo vivencial, porém as relações que lá se eabelecem são
tão exíveis quanto complexas.
D :
As experiências dos trabahadores rurais de Monte Alegre reetem a importân-
cia da extração do coco babaçu na vida de muitas famílias. Essa importância se
encontra diretamente ligada ao valor que o extrativismo adquire na subsistência
diária, entretanto, o sentido do babaçu na vida dessas pessoas toma dimensões
não somente econômicas, mas também socioculturais, não somente materiais,
mas também simbólicas.
A :
A atividade extrativista tem sido condição principal para a sobrevivência daqueles
trabahadores rurais, pois, como relata Cleonice de Andrade, “[…] muita gente
vive do babaçu, quebrar, vender.Lindalva Cruz também pontua: A gente quebra
esse coco é porque a gente é pobre e a gente precisa ter as coisa […] tirando do
coco é a roça.E ainda, Maria R. dos Santos, diz que o babaçu “[…] é tudo porque
sem ele a gente não é nada […] pro sustento, comprar o açúcar, o café, porque
assim, a gente não tem nenhum emprego aí quebra o gaho da gente.
As muheres retratam as diculdades de extração do coco e, mesmo sendo
uma tarefa árdua e sofrida, alumas cultivam um certo prazer em realizá-la, posto
que, seundo Josefa de Miranda, a atividade “É […] muito útil, porque eu sempre
falo que a gente tem que amar aquele trabaho que foi servido pra gente. Muito
cansativo, mas muito útil.
Antigamente, era mais comum muheres quebrarem o coco umas junto das
outras em áreas de babaçuais. Quando crianças (meninos e meninas), aprendiam
aquela tarefa, sobretudo com suas mães e avós, como Rosa de Lima: Comecei
quebrar coco bem novinha, logo minha mãe não tinha, meu pai também num
tinha [recursos nanceiros] […] nós rodamos [Rosa e sua mãe] dentro do mato,
ela me ensinava quebrar coco.
Alumas delas, em menor número, o foram diretamente ensinadas a quebrar
o coco, mas na rede de sociabilidade com as demais muheres foram aprendendo
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a praticar essa atividade. Atualmente, muitas têm quebrado em casa e recebem
ajuda de seus maridos/companheiros na tarefa de coleta do coco babaçu. Maria
das N. dos Santos comenta sobre essa prática dizendo que “As vez eu quebro no
mato, mas eu quebro mais em casa que no mato. O que a gente usa é um jacá pra
pegar o coco no mato, tem vez que é na cabeça mesmo.Às vezes, o cansaço é
recompensado quando o quilo do coco eá acima da média, mas é sempre dicil
care-lo para a realização da quebra em casa.
Alumas muheres chegam mesmo a o se identicar com a atividade fa-
zendo-a apenas por necessidade, sem que haja um prazer ou satisfação, como
Luciana Freitas: “Não é bom não, mas a gente não tem outro ganho, o ganho que
a gente tem é esse, a gente tem que quebrar […] porque eu quebro assim
mesmo, mas não que eu gosto.Josefa Silva também compartiha dessa mesma
visão: “Meu Deus a gente quando não tem do que viver, a gente arisca a vida até
morer […] se eu achasse outro meio eu não queria mais quebrar coco, pra mim
é muito sofrido.
Além das diculdades citadas acima, o desânimo na realização do trabaho ex-
trativo e a posvel vergonha em praticá-lo eão relacionados com sua freqüente
desvalorização. De todo modo, a renda familiar ca abalada quando as muheres
deixam de quebrar coco por motivos diversos, sendo os mais comuns relacionados a
prolemas de saúde, pois como o trabaho exige um esforço repetitivo, as quebradei-
ras geralmente sofrem de dores na coluna, por causa da posição em que se colocam
para a quebra. Tratando disso, Maria Carneiro diz que quebrar coco “Não é muito
bom não, porque a gente passa ali o dia sentado direto, quando não a gente passa o
dia todinho andando, mas a gente passa mais o dia sentado, dá uma dor nas costa.
De certa forma, a prática de quebra do coco é tomada como costumeira por
esses trabahadores rurais, como mostra Dalvanir de Jesus: “Eu não quebro mais,
interou ano que eu laruei de quebrar coco por prolema de saúde, mas quando
eu quebrava todo dia eu ia pro mato, que eu o mais quebrando, mas a
vontade é louca, quando a gente tem aquele costume.
D
Analisando o universo de representações em torno dos babaçuais, identicamos
que há no imaginário dos moradores de Monte Alegre a percepção da palmeira
de babaçu como uma “mãe,que sustento às pessoas que vivem da extração
do coco. Para Josefa Silva, “[…] ela serve duma mãe porque eu chego debaixo de
uma palmeira ela tá cheia de coco, eu pego esse coco, eu quebro esse coco, eu tiro
o azeite, eu tiro as paha pra cobrir as casa, pra fazer o cofo pra juntar coco. Pra
mim é mesmo que ser uma mãe.
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Também os homens consideram a palmeira uma mãe pela sua importância
material para a sobrevivência de suas famílias. Ela assume signicado similar ao
que é atribuído à roça, como deixa entrever Domingos Lima:
A palmeira de babaçu é a obra da natureza que serve pra gente […] a gente faz o carvão.
A palmeira é uma mãe […] na parte inté da alimentação […] Eu pego minha machada,
quebro quatro quilo de coco e vou comprar dois quilo de aroz […] Eu faço cofo, faço
eeira, faço ninho de galinha. Pra mim eu considero ela como uma rocinha, é mesmo
como a roça, que é minha mãe.
Como podemos perceber, a palmeira é um recurso natural totalmente apro-
veitável, em relação à qual se constroem sentimentalidades. Essa armação é evi-
dente nos depoimentos analisados e se acentua em um dos cantos do MIQCB:
Ei! não deuba ea palmeira / Ei! não devora os palmeirais.
Tu já sabes que não poe deuba / Precisaos preserva as iquezas naturais.
O coco é para nós grande iqueza / É obra da natureza / Ninué ai dize que não.
Porque da palha só se faz casa pra mora / Já é meio de ajuda a maio população.
Se faz óleo pra tepera comida / É um dos meios de ida pros fracos de condição.
Reconheceos o alo que o coco te / A casca serve tabé pra faze o carvão.
Com o óleo de coco as mulheres capicosas / Faze comidas gostosas de uma boa estimação.
Merece tanto seu alo clasicao / Que com o óleo apurao se faz melho sabão.
Palha de coco serve pra faze capéu / Da maeira faz papel / Ainda auba noso cão.
Talo de coco tabé aproveitao / Faz quibano e cecao para poe planta feijão.
A masa serve para engoda os pocos / Tá pouco o alo do coco / Precisa da atenção.
Pra os pobres ee coco é meio de ida / Pisa o coco Margaida e bota o leite no capão. (VEIQCB,)
Nos rituais de socialização de costumes, de histórias (re)signicadas de pais
para hos, transmitidas oralmente de uma geração à outra, observamos elemen-
tos do imaginário daqueles trabahadores que revelam “[…] mecanismos sociais
de propagação e reelaboração da memória […] capaz de relacionar recordações
não experimentadas diretamente pela pessoa ou grupo; esse conjunto de recor-
dações (memória herdada) é transmitido por vários meios, como a tradição oral
e escrita e os rituais.” (A, , p. )
Em Monte Alegre, conforme Rosinere de Lima, “[…] tem um dizer que
quem tá matando uma palmeira é mesmo que matando uma mãe de famía.
Tal associação, seundo aquela moradora, é “O povo mais véio é que conta […]
que uma palmeira caregada de cacho parece uma e caregada de menino.
A representação da palmeira como mãe é uma realidade em outros lugares onde
o extrativismo é realizado. Para Maria Chagas(), essa mesma identicação,
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revela, sobretudo, aectos ligados à sobrevivência, porque “[…] as pessoa de
baixa renda quase todos o ho de leite da palmeira […] a gente não bebe
leite do coco quando é be, mas da palmeira, do fruto dela, a gente alimenta
os ho […] Eu sou ha da palmeira porque ela que deu condão de minha
e me criar.
Como aponta Baczko (), toda sociedade desenvolve, ao longo de sua
história, seu próprio sistema de signicados corespondente a um circuito de
idéias-imagem que exprime uma visão representativa da coletividade e se expres-
sa em uma identidade e no eabelecimento de práticas e de regras dos membros
envolvidos. Em Monte Alegre, observamos que as articulações simbólicas são
construídas nas relações em grupo. Os sujeitos eão relacionados geográca e
imaginariamente.
Em estudo sobre a “Tera de índios,” município de Viana, no Maranhão, An-
drade () descreve a atividade de extração do babaçu, deacando que existem
no imaginário desse grupo representações da palmeira como “virgem” ou “viúva
e que aluns moradores vêem o corte do cacho de coco como o deoramento de
uma virgem ou o molear de uma viúva. De acordo com sua análise, “[…] o que
eá em jogo por trás dessas representações sobre os cortes dos cachos de coco é
a preocupação em permitir que ee recurso eeja disponível a todas as unidades
domésticas.” (A, , p. )
Consideramos que o sentido dado aos babaçuais varia de acordo com o con-
texto sociocultural de cada grupo, podendo ser diversas as representações. Em se
tratando de Monte Alegre, encontramos apenas a identicação da palmeira como
“mãee entendemos que ea associação eá para além do objetivo de garantir que
ee recurso eeja disponível.
Assim sendo, ee é, ao mesmo tempo, um campo permeado de representações
e tensões. A relação das quebradeiras de coco com os babaçuais apresenta um
sentido muito intenso no campo da subsistência, nos conitos vivenciados e nos
costumes cotidianos. Seus discursos (cantos, poesias, etc). e práticas são revelado-
res de seu universo simbólico de interação com a natureza e da construção de sua
militância política, o que se evidencia fortemente em discursos sobre a devastação
dos babaçuais, como na oração “Ave-Maria das uebradeiras”:
A palmeira caindo e caeira / A cainho da morte, mudando sua sorte
Suspiro deaeiro, geido profundo / Tree a tea e o mundo
Sufocando o coração das quebraeiras / Ave palmeira que sofre desgraça
Malditos deuba, queima, devaa / Bendito é teu fruto que serve de alimento
E no leito da tea ainda dá sustento. / Santa mãe brasileira, mãe de leite edaeiro
Em sua hora deaeira, rogai po Toas nós quebraeiras. / Amé. (Lima, )
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Em Monte Alegre, palmeiras foram cortadas por homens do povoado, que
alegavam falta de espaço para o plantio, gerando tensões entre eles e quebradeiras
de coco da localidade, como armou Raimunda Sousa:
Aqui tem muito deles [homens do povoado] que deruba na época da roça […] sabe o
que é isso é porque a pessoa num pensa porque o coco dá muita produção […] se a gente
entendesse […] não devorava […] Agora eles deruba e a gente vai lá, mas ela no
chão e a gente num pode botar em cima de novo […] mas a gente grita que falta se
desmantelar. Num é muito, mas deruba sempre […] a palmeira é a vida do cristão, se
jogar ela no chão não tem mais produção, nem tem mais vida.
Em alumas regiões, o corte de palmeirais por companheiros de quebradeiras
era uma prática presente em meio aos conitos com fazendeiros/grileiros da-
quele referido período de resistências. Em Lago do Junco, enquanto as muheres
impediam que contratados das fazendas cortassem as palmeiras de babaçu, os
próprios homens dos povoados derubavam-nas. Para impedir essas práticas as
quebradeiras tentavam mostrar aos seus maridos/companheiros que o que eles
ganhavam com o corte era inferior à renda obtida pela muher na quebra do coco.
(Assema em Revista, )
A derubada dos babaçuais signica, para as muheres, além da perda mate-
rial, uma perda simbólica, já que a palmeira, de acordo com o povoado, assume
um lugar personicado (“mãe,” “virgem,viúva”). Fiueiredo () deaca que,
em aluns casos, quando quebradeiras tentam empatar o corte de palmeirais
e o obtêm êxito, o realizadas místicas que simbolizam as derubadas de
palmeiras como sendo a morte de mães e são feitas orações para seu entero.
Em Monte Alegre, derubadas de palmeiras por homens da localidade podem
signicar uma desvalorização do trabaho feminino, posto em seundo lugar,
portanto, subsidiário ao trabaho masculino. Muitos homens não admitem que-
brar o coco e aqueles que quebram, na maioria das vezes, o fazem como uma
atividade secundária.
Muito embora a implantação de roças seja uma prática antiga nessa localidade,
sendo ainda usadas técnicas tradicionais de cultivo, como o corte das árvores e
arbustos e a queima das áreas de plantação, consideramos que com as novas dis-
cussões levadas pelo MIQCB e sobretudo pela Assema sobre a modicação de
recursos no trabaho agrícola, visando conter a derubada de palmeiras e manter
a fertilidade do solo, os homens possuem conhecimento da necessidade de
praticar a agricultura sem devastar os babaçuais. Nessa perectiva, sugerimos
que quando homens cortam palmeiras pode existir uma relação próxima entre
devastação dos babaçuais e auto-armação masculina, uma hipótese que incenti-
va uma posterior discussão acerca das relações de gênero tecidas nesse povoado.
N E A D E S P E C I A L
O fato é que nas relações dos trabahadores rurais de Monte Alegre com os ba-
baçuais, ambos os gêneros reconhecem a importância do trabaho extrativo para
a manutenção familiar. Mais que os homens, é visível que as muheres mantêm
relações mais íntimas e subjetivas com os palmeirais. O extrativismo é uma prática
realizada sobretudo por elas, sendo associada ao feminino, o que não implica que
os homens mantenham tão-somente relações materiais com as palmeiras.
C
Relações de gênero e processos de construções identitárias marcam o universo de
quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. Notamos que muheres integradas ou
não no MIQCB, embora tenham experiências diversas, se encontram existencial,
histórica, social, econômica e culturalmente relacionadas como muheres que
quebram coco babaçu. Os trabahadores rurais aqui enfocados se autodenem e
vêm sendo denidos como remanescentes de quilombolas, tendo sua história e
cultura relacionadas a uma dada herança que remonta a africanos e, em menor
grau, a grupos indígenas. A descendência africana e o auto-reconhecimento como
negros e/ou pretos é elemento constantemente reatualizado nos seus discursos,
sejam eles de Monte Alegre ou de outros povoados. Um reconhecimento que
certamente eá relacionado ao período mais intenso de conitos com fazendei-
ros/grileiros, no contexto da passagem do tempo do coco preso” ao tempo do
coco liberto,passagem ainda em disputa, o que reforça os laços entre o grupo,
fornecendo-hes um passado comum. As identidades assumidas por esses grupos
são diversas, deacando-se as identidades étnico-racial e de gênero. Para as mu-
heres, em particular, some-se a essas identidades, o fato de serem quebradeiras
de coco babaçu e de buscarem pensar-se a partir desse lugar.
O MIQCB, em grande medida, consiste na armação de muheres coletiva-
mente integradas e articuladas como quebradeiras de coco. Muheres não asso-
ciadas ao MIQCB têm mantido constante diálogo com as associadas, trocando
experiências e conhecimentos com as mesmas. A identidade grupal daquelas
muheres (quebradeiras de coco) articula-se à sua identidade feminina e elas
têm buscado alcançar representatividade em uma sociedade que historicamente
as discrimina sob um tripé: de cor/“raça”/etnia, de sexo/gênero e de classe. Em
decorência disso, eá havendo uma releitura das percepções sobre os afazeres
que circundam uma “quebradeira de coco babaçu.” Essas trabahadoras têm bus-
cado desconstruir discursos e práticas que solidicam uma diferença geradora
de desiualdades de tratamento entre homens e muheres, atuando diretamente
no seio familiar, convidando a participação masculina ao debate.
Nesse contexto, também notamos que discursos e práticas em torno do fe-
minino e do masculino quase sempre não se encontram. Não uma divisão
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
atávica e xa do trabaho entre homens e muheres nas realidades estudadas, mas
ela constantemente é enunciada. Na prática, muheres fazem trabahos que no
discurso são prioritarariamente de homens, como trabahar na roça, e também
casos de homens que quebram coco, trabaho que nos discursos, é estritamente
feminino. Muheres que lutam e reivindicam relações menos desiuais entre os
gêneros, reproduzem discursos que legitimam a idéia de que os comportamentos
e práticas individuais eão associados a uma condição de sexo/gênero.
Apesar de, em muitos casos, serem as muheres que, em sua tripla jornada
(eecialmente em casa e na quebra do coco, mas também na roça) garantem
o sustento da família, tal responsabilidade é facultada tão-somente ao homem,
mesmo quando o trabaho dee na roça o é suciente para aquele sustento.
Homens se apropriam (material e simbolicamente) do trabaho de suas esposas/
companheiras. O trabaho na roça é lido como mais dicil e a quebra do coco
como mais fácil e leve sugerindo uma relação antitética entre homens (força) e
muheres (fragilidade). Apesar de terem muitas vezes conquistado um espaço
púlico, o espaço dos afazeres do lar/casa continuam sendo vistos como essen-
cialmente de sua responsabilidade e inscritos em seu ser (muher). A ambiüidade
é, em grande medida, a tônica das relações.
Se, de um lado, experiências dos trabahadores de Monte Alegre reetem a
importância do extrativismo do babaçu na vida de muitas famílias, apontando
para uma dimensão econômica e material – de subsistência, de outro, temos que
considerar dimensões simbólicas, construções imaginárias que permeiam essas
realidades, entendendo, como nos lembra Baczko (), que as produções ima-
ginárias podem reger a vida coletiva.
R
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O tiro da bruxa
: O olhar mágico das
pomeranas sobre seu
cotidiano camponês
J OA N A D A RC D O VA L L E B A H I A
I
E  das expressões da cultura campo-
nesa na elaboração de sua identidade social e étnica e de que modo a apropriação
das mulheres -descendentes de imigrantes de origem pomerana- das práticas
mágicas, superstições nos ritos de passagem e das acusações de bruxaria refletem
interpretações dos problemas do cotidiano no mundo camponês. Estas são habi-
tantes do município de Santa Maria de Jetibá, região centro-serrana do Espírito
Santo. O município escolhido possui . habitantes, dos quais  descendem
de pomeranos, que chegaram em , anteriormente ao processo de unificação
da Alemanha.
Embora o Espírito Santo não receba mais alemães desde a década de , as
comunidades de pomeranos mantiveram o uso de seu dialeto, suas feas comu-
nais, seus costumes culturais e maritais, os atos mágicos que acompanham os ritos
uma expressão da narrativa mágica do folclore alemão equivalente a esta que é a seguinte:
Das ist die Hexenschuß!. A expressão significa que algo não muito bom aconteceu e a pessoa
fala: Ah, isto foi o tiro da bruxa !.O termo também designa dor na coluna, na região da
lombar, como se esta fosse causada pelo tiro da bruxa. Tanto uma significação quanto a outra
exprimem a idéia de que um mal foi ocasionado a partir de uma seqüência de fatos negativos
repetidos por um determinado período de tempo ou que são fatos que devem ser praticados
para que as coisas dêem certo. A expressão, em pomerano, com significado equivalente à
anterior, seria a seguinte: Dat ist ouwagloba!, que significa: “Ah, isto é superstição!.
N E A D E S P E C I A L
de passagem, a continuidade da narativa fantástica da tradição oral camponesa,
enm, o modo de vida camponês. No contexto da imigração no Brasil, nenhuma
outra etnia se concentrou tanto em áreas homogêneas e compaas, concorendo
para modicar a estrutura fundiária e a vida rural dos lugares onde se eabeleceu,
como é o caso dos pomeranos no Espírito Santo.
O
Os pomeranos são hortifrutigranjeiros, sendo Santa Maria de Jetio maior pro-
dutor e abastecedor dessa categoria no Estado do Espírito Santo. A cafeicultura
(café arábica), a olericultura, o cultivo de aho e a avicultura são as principais
atividades desenvolvidas no local. Encontra-se em menor escala a suinocultura
e a pecuária leiteira.
Entre os pomeranos de Santa Maria de Jetibá, o trabaho, o comércio e o
cotidiano são os temas preferidos dos homens. Crianças e religião, por sua vez,
são considerados assuntos de muher. As exceções aparecem na medida em que
alumas muheres da comunidade ganham deaque quando assumem a liderança
econômica da casa ou participam mais ativamente das decisões realizadas no âm-
bito da igreja, da escola ou do sindicato. Poderia armar que majoritariamente os
temas trabaho/mercado e religião/casa ainda se circunscrevem reectivamente
aos homens e às muheres.
As muheres cuidam dos serviços da casa, tais como: preparar o café da
manpara a falia, fazer o almoço, o lanche e o jantar (sobras do almoço),
tomar conta das crianças e cuidar dos animais, eecialmente tomar conta das
galinhas. A avicultura em pequena escala é uma atividade essencialmente femi-
nina, sendo uma das atividades mais comercializáveis da rego. Na descrão
do casamento pomerano, temos a associão simbólica existente entre certos
animais, o papel desempenhado pelas muheres e sua ocupação no interior da
casa camponesa.
A muher ainda é responsável pelo preparo de doces, geléias, bolos, pães de mi-
ho (brot) e/ou cará e/ou inhame, manteiga, coahada, de acordo com as receitas
 A associação das mulheres com as galinhas, como mostra Segalen (, p. ), quando se
refere aos camponeses franceses, reaparece entre os pomeranos. Ambas possuem as mes-
mas qualidades e defeitos. A associação entre pessoas de diferentes sexos, objetos e animais
próximos à casa mostra que a qualidade da produção é determinada em parte pela reputação
da família. Como diz o provérbio francês: “Pelo jardim e pela casa, conhecemos a mulher.
Entre os pomeranos a relação entre o fato de um homem ter uma casa organizada, uma boa
colheita e filhos bem cuidados está associada ao bom cumprimento do papel social que cabe
à mulher para a manutenção da ordem na casa e na propriedade.
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herdadas da mãe, para serem vendidos na ocasião das feiras locais. Elas também
bordam e costuram para fora, vendendo nas lojinhas de artesanato da região, nas
feiras locais e nas festividades comunais, tais como fea do colono, fea pomera-
na, feas da coheita, feas paroquiais e fea do brot. O pão é considerado uma
tarefa essencialmente feminina. Esse trabaho produz a renda complementar que
ajuda nas deesas dicas, de vestimenta e nas urgências que podem ocorer
com alum membro da família. A venda dees produtos é realizada na feira local
na cidade de Itarana e em Santa Maria, de quinta-feira a sábado.
Além da venda de produtos caseiros, as muheres trabaham nos casamentos
da região confeccionando a decoração da igreja, cozinhando e arumando o es-
paço destinado à cozinha. A equipe da cozinha normalmente é composta pelas
mehores cozinheiras da região, em geral aquelas que possuem o status de serem
casadas e com hos. Solteiras não são chamadas para eas atividades.
O trabaho na fea de casamento pode render mais um dinheiro comple-
mentar e aumentar o prestígio como cozinheira junto à comunidade. Não apenas
a complementação da renda familiar, mas também o status que he é conferido
ao participar do rito de passagem que simboliza paradoxalmente o cerne da
identidade étnica e social, pois trata-se da reprodução social dos camponeses
de origem pomerana.
A socialização das muheres nas atividades domésticas possibilita o desenvol-
vimento do seu trabaho fora da esfera familiar. Em épocas de crise na produção,
muitas muheres solteiras vão trabahar como empregadas domésticas na sede do
Município. O domínio reservado às muheres não se inscreve unicamente sob
o teto da casa. As muheres também trabaham na lavoura, fazem praticamente
tudo o que os homens fazem. Semeiam, capinam, cohem. A aplicação de agro-
xico na plantação, a secagem do café para a venda e a arumação dos produtos
no caminhão são tarefas masculinas.
Nas épocas de crise na lavoura, nas vendas no mercado ou quando há prole-
ma de doença de aluma pessoa da família ou ainda a saída de alum ho para a
 O termo colônia é usado para designar a área rural em oposição à cidade. Este termo também
designa as terras, benfeitorias, residência, animais domésticos, plantações, etc. que juntamente
com o grupo doméstico constituem uma unidade básica de produção e consumo. Neste
sentido, a concepção de família camponesa esestreitamente vinculada à idéia de colônia.
A colônia é tanto a terra, quanto o produto do trabalho e do esforço familiar. Deste modo,
a palavra traduz a idéia de manutenção de um tipo de exploração tradicional camponesa, na
qual o trabalho é realizado pelos membros da família.
 A possibilidade de ajuda com a renda complementar no sustento da família, da continuação de
sua formação escolar na escola da sede ou de acumulação de alguma economia para o dote de
casamento fazem com que muitas mulheres vejam o trabalho na cidade como uma alternativa.
N E A D E S P E C I A L
cidade, é a renda complementar produzida pelas muheres que sustenta a família
e dá autonomia a elas, muitas vezes desaando a autoridade paterna.
A ausência de um único controle da contabilidade da casa acentua a divi-
são entre as deesas consagradas à exploração da tera, uma possível crise na
interdependência entre marido e muher na vida cotidiana, gerando uma crise
na família camponesa. Mesmo possuindo mais independência na hora de obter
recursos e mehor distribuição entre as necessidades dos membros da família, as
muheres justicam muitas vezes os excessos de seus maridos, eecialmente no
espaço circunscrito aos homens: o mercado.
O trabaho da lavoura e sua comercialização nas Centrais de Abastecimento
(Ceasa) são responsabilidades dos homens, enquanto as muheres participam das
festividades e das feiras locais. A venda de produtos na Ceasa e em regiões fora do
Estado é uma tarefa masculina. A comercialização na Ceasa é feita todos os dias.
O transporte e o dinheiro advindos da venda dos produtos pertence ao homem,
que o utiliza para as compras para a casa (de produtos não fabricados pela própria
família) e para a lavoura (adubos, implementos agrícolas, feramentas, etc)..
A organização familiar das tarefas e dos papéis e o grau de segregação sexual
dos espaços devem ser postos em relação às formas de sociabilidade aldeã. Na
esfera comunitária, a muher assume a mediação entre a igreja e a família. Ela se
encarega, na família, da educação religiosa da criança, e é assídua aos cultos e às
obrigações religiosas impostas pela igreja.
Vimos que a sociabilidade feminina eá ligada ao trabaho, ao lar, à feira lo-
cal e ao espaço sagrado: a igreja. A feira propicia uma abertura para um mundo
além do universo comunitário, mas o desenvolvimento de suas atividades eco-
nômicas ligadas às heranças familiares faz dela a depositária social da tradição
camponesa e pomerana.
Nee sentido, pensando a oposição entre os dois tipos de sociabilidade que
constituem parte do mundo camponês explicitada por Segalen (, p. ),
temos o homem circulando nos limites entre dois mundos.
Mesmo as diferenciações entre homens e muheres no contato entre os univer-
sos da grande e da pequena tradição, mudanças e ambiüidades nees espaços.
 Os filhos que arrumam emprego ou estudo na cidade por intermédio de algum parente ou
que seguem o pastorado. Em ambos os casos, estes precisam acumular algum capital para
as despesas iniciais. A figura materna ajuda os filhos no período de transição com o dinheiro
obtido nas atividades complementares à renda da lavoura. A atitude das mulheres diante de
uma independência econômica o leva a casos de separação dos casais, mas uma série de
conflitos internos na esfera familiar. Os comentários na cidade e nas ocasiões festivas acerca
da independência de mulheres da comunidade que assumem maior importância econômica
em casa e que paulatinamente vêm ocupando cargos na liderança da igreja demonstram
pequenas mudanças ocorrendo nesse âmbito.
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Vimos que, mesmo os homens sendo responsáveis pelo domínio do mercado,
uma lógica econômica marcada por valores como honra, relações de paren-
tesco e vários níveis de reciprocidade que ganham lugar na esfera dos negócios.
Percebemos também a gica das trocas, que operam com mais ecácia no que
se refere à reordenação dos laços de parentesco das praças de feiras, se sobrepor
ao espaço da Ceasa. A resolução de conitos familiares se articula com os valores
da sociabilidade camponesa no interior do próprio mercado.
O mercado como lugar masculino, ao mesmo tempo que explicita a divisão
social do trabaho no interior da casa camponesa, o papel da autoridade masculina,
também mostra o teor de conito e os excessos na ordem familiar. Nee sentido,
o mercado eeha o conito e as ambiüidades existentes no mundo camponês
e as possibilidades de transformação.
De acordo com Segalen (idem, p. ),
a cultura camponesa reconhece que a reputação da casa recai sobre o homem e a muher,
cujas tarefas e os papéis são complementares, solidários e estreitamente imbricados. Isto
eá longe da imagem de uma muher dependente e inferiorizada. Entretanto, todo o
discurso é apresentado sob a autoridade masculina e a subordinação feminina. Canções,
provérbios e ditados criam uma imagem distante da prática dos comportamentos.
Mesmo que canções e provérbios mostrem uma imagem distanciada da com-
plexidade das relações sociais, esses elementos não deixam de revelar o controle
social sobre as regras fundamentais na manutenção da casa camponesa.
S ,
Seundo Klaas Woortmann (, p. ),
a comida é uma categoria nucleante e hábitos alimentares são textos. Quando se classi-
cam alimentos, classicam-se pessoas, notadamente os gêneros homem e muher, pois,
se o alimento é percebido em sua relação com o corpo individual, ee é uma metáfora
do corpo social.
Parafraseando o autor, conhecendo os hábitos e a culinária pomeranos, co-
nhecemos também “identidades e etnocentrismos.Deacamos a importância de
dois alimentos e sua preparação para pensarmos a relação entre o gênero femini-
no e a construção do ethos camponês: o preparo do pão e o plantio do aipim.
Fazer pão e plantar aipim são tarefas femininas. A associação entre o pão e
a ura feminina carega um signicado étnico e social. O pão é considerado
o alimento que mehor representa, na memória dos descendentes imigrantes
N E A D E S P E C I A L
pomeranos, a possibilidade da construção de uma identidade étnica no Brasil,
principalmente devido ao plantio e à coheita das primeiras plantações de miho
descritos pelos ancestrais da família. A feitura do pão (brot /pão de miho), resgata
um saber feminino da culinária camponesa que é passado de geração em geração.
Este item é valorizado, nos ditos populares, como um elemento que pesa na esco-
ha da companheira para o futuro casamento, pois conhecer bem os afazeres da
casa coresponde a saber fazer um excelente brot.
A imagem do pão associada à ura feminina remete ao papel que a muher
tem na educação dos hos. É a muher que ensina a línua materna aos hos
(muersprace), no caso o pomerano, mas também é ela que ensina a educação
religiosa às crianças, ou seja perpetua a nua aleque advém do ensino reli-
gioso na igreja Luterana. A ida aos cultose as atividades organizadas comunita-
riamente pela igreja têm sempre a presença das muheres nas tarefas domésticas
somada ao domínio do saber sagrado fazem com que as muheres sejam asso-
ciadas à imagem do alimento pão.
O plantio do aipim, a fabricação de farinha, de polviho e de vários tipos de
comida (bolos, pães e sopas) e de alimento para os animais (porcos e galinhas)
são tarefas femininas. O aipim é plantado no início das chuvas e três dias após a
lua cheia, para que a raiz cresça, e não somente a fohagem. Todo alimento que
cresce no interior da tera precisa ser plantado na lua crescente e o aipim eá
intimamente relacionado à fecundidade da tera e de toda a colônia (land). Nes-
te sentido, é importante que seja a muher que garanta a fecundidade de toda a
unidade de produção.
Os atos mágicos que acompanham o plantio, coheita e transformação em
alimento por aquela que é considerada a nutriz da sociedade exprimem a preo-
cupação com a fecundidade coletiva. A magia é fundamental para reunir os ele-
mentos que asseuram as três formas de fecundidade essenciais para a reprodução
da land: humana, animal e vegetal.
Lembramos da mudança que as muheres operam ao transformar os alimentos
que são produtos da natureza/roçado/mantimento/sala (cru), domínio masculi-
no, em produtos da cultura/casa/comida/cozinha (cozido), em comida, domínio
feminino. As homologias propostas por Klaas Woortmann (, p. ) explici-
tam a mediação entre o cru e o cozido como sendo um tarefa das muheres.
A comida resultante do roçado, seundo o autor (, p. ),
 O fato de a língua alemã ser criada por Martinho Lutero num contexto político-religioso, torna
a língua alemã uma língua essencialmente religiosa. Lembramos a oração do Pai Nosso, que
melhor evoca a relação entre o papel feminino na ordem camponesa e na vida religiosa: Gib
uns heute unser taglich brot (O pão nosso de cada dia nos dai hoje).
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simboliza uma moralidade camponesa (honra do pai), e a lavoura, na tera de trabaho,
representa a interação adequada com a natureza que pelo trabaho do pai se torna a
morada da vida.O autor mostra nas oposições os vários níveis de troca equilibrada entre
os homens – o parentesco e a reciprocidade. Isto é, o mantimento resulta de e circula por
circuitos de reciprocidade, nea medida, é o resultado de uma ética camponesa.
Nea medida, conhecer a culinária pomerana é conhecer os valores primor-
diais da construção de sua identidade étnica – a circulação da germanidade nas
tarefas de educação culinária e dos valores religiosos executados pela ura femi-
nina – e de seu do modo de vida camponês – a transformação dos mantimentos
em alimentos e a reprodução da lógica da reciprocidade.
Estes valores constituem parte da formação daqueles que mehor conhecem
a tradição e que possuem os cargos mais importantes no rito de casamento: as
cozinheiras, as rezadeiras (que falam a Oração do uebra-louças), o organizador
da alimentação e os músicos (no caso os tocadores de concertina).
Nee sentido, eas funções são elementos de armação da identidade étnica e
social, isto é, pomerana e camponesa, e somente são preenchidas por aqueles eleitos
no interior da comunidade como os naradores da tradição por excelência.
D : l a n d
Antes da existência das estradas na região conta uma informante – no dia do
casamento, os noivos costumavam ir montados nos seus cavalos para a igreja.
Nea hora, a noiva poderia ir à frente do noivo, mas após a cerimônia, no retorno
para a fea, o marido deveria ir à frente de sua esposa, pois isso demonstrava que
era ele quem mandaria em casa.
O bule e o cachimbo, em vários ritos de uebra-louças, presenteados aos
noivos, simbolizam no casamento a obediência da esposa à chea do marido,
porque é assim que se forma uma família.A fumaça eá relacionada a autori-
dade do homem, que tem de ser maior que a da muher, por isso a “idéia de que a
fumaça te que subi. Conforme Rodriues (), no momento do casamento é
rearmada a autoridade do homem no comando da casa.
 Conforme o trecho de uma das orações proferidas em pomerano: “Você tem que fumar, a
fumaça tem que levantar até o teto e rodar; você tem que esquentar esse café direitinho
para ele, muitas vezes e sem reclamar! Você tem que costurar as meias dele.
N E A D E S P E C I A L
A ordem de conitos que emerge entre homens e muheres na dicil manuten-
ção da autoridade sobre a land e a interdependência de funções pode ser percebida
na tradição oral, eecialmente nas canções pomeranas que falam do casamento.
Como vimos não apenas a autoridade do homem é discutida no rito do
casamento, as signicações do ritual são mais ambíuas e complexas e não se
restringem apenas a identicar quem é o novo dono da tera. Na celebração do
casamento, em diversos momentos do ritual, a própria ordem das coisas no mun
-
do camponês é posta em causa. O ritual do casamento expõe a cada nova land
que se forma as queões essenciais para a sua manuteão: O marido será capaz
de gerir sua land? A muher corespondeàs tarefas que he serão atribuídas?
A complementariedade de cada um no trabaho fará com que a land proere?
O casamento, para os pomeranos, é um momento dramático, clímax da exis-
tência, que evidencia de forma ambíua a importância dos jogos na relação entre
o marido, a muher e a land. Mesmo evidenciando, em vários momentos, a autori-
dade do homem no comando da casa, o ritual de casamento mostra também que
as relações no interior da land não pertencem ao domínio exclusivo do homem,
mas que ees domínios são socializados e controlados pela comunidade.
As superstições e as queões que expõem sobre as dúvidas e ambiüidades do
modo de vida dos pomeranos organizam detahadamente os atos dos participan-
tes da fea. As cores usadas, a disposição dos objetos, pessoas e coisas compõem
toda a lógica do grupo sobre o ritual que mais hes afeta a vida social.
O que é mais interessante no rito do casamento são as pequenas superstições
(ouwaglouba\Aberglauben) que evocam a disputa entre o homem e a muher pela
autoridade da casa e as mudanças que afetam sua manutenção, tais como o adul-
tério e a morte. De acordo com Roeke (, p. -),
na entrada da igreja observava-se quem primeiro pisava no interior do templo. Este, ou
ea, mandaria e teria sempre a última palavra em casa. As noivas costumavam esconder
sementes de endro ou cominho no fundo do sapato, para dizerem em voz baixa, durante
 Klaina keirl (canção)Klaina keirl seet im botarfat, hejuchhe!Krüpst duu ruutar, den giwt dat wat!
Groud fruuch wu tam dansan gooan, hejuchhe!Klaina keirl schu tuus blijwa!
Homem pequeno, está sentado na batedeira de manteiga, hurra! Se você sair daí, você vai
ver (isso vai dar em algo)! Mulher grande queria ir ao baile, hurra! O homem pequeno teve
que ficar em casa!
Mijna keirl (canção) Mijna keirl het mij sou slooa.Ain groud loch im kop. Doorweechan dau ik em
farkloocha;Hai mökt mit mij dat ta grow. Meu marido espancou-me. Até abrir uma grande
brecha na cabeça.Devido a isso irei denunciá-lo;Ele é muito grosseiro comigo.
 Muitas dessas superstições se referem à condição de reprodução do modo de vida camponês
através do nascimento dos filhos. Neste caso, a imagem da esterilidade feminina sobrevém
como condição ameaçadora à reprodução do ethos camponês e da própria identidade.
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a troca das alianças: Ic peed up Krützköhm un up Di enn ic rede scwigst du sti (Eu
piso em cominho e endro, quando eu falo, você cala).
Nota-se que os versos expressam o desejo da muher de ter voz e vez no casamen-
to. A disputa pela autoridade é um elemento presente na cerinia de casamento.
Na descrição de Segalen (, p. ), observamos de que forma as metáforas
são vitais para a compreensão da importância da discussão sobre autoridade
masculina na cerimônia de casamento. A partir de sua análise, percebemos que
o poder sexual põe em risco a ordem social. O modelo exige que a muher seja
dominada, pois o homem se ameaçado diante da sexualidade e dos apetites
sexuais pelos quais ele core o risco de ser reduzido ao controle de sua muher.
Não apenas a sexualidade feminina ameaça o homem, mas também o fato de a
pomerana ser a uardiã do saber mágico da comunidade.
Lembramos que a transmissão das línuas sagradas (o alemão e o pomerano),
do saber das orações e das práticas mágicas (benzeções), enm, de ser considerada
a naradora das histórias pomeranas, torna a ura feminina um elemento de
extrema importância para a reprodução da identidade social e étnica.
Segalen () e Favret-Saada () mostram em seus trabahos que a presen-
ça da muher protege e asseura toda a extensão da unidade doméstica e nela eá
incluído o próprio homem. Entretanto, seu poder maléco pode ser exercido contra
toda a extensão da land, ou seja, casa, marido, hos, tera, alimentos e instrumentos
de trabaho. De protetora e defensora da land, a muher pode se tornar, através do
bom conhecimento das palavrasmágicas da tradição, uma verdadeira ameaça.
Turner (, p. -) aponta para o papel, exercido pelo sacerdote entre
os Nuer, de possuidor dos atributos da comunitas, como sendo recorente em
várias sociedades. Além do conhecimento detahado da tradição e dos poderes
mágicos que hes são conferidos, o autor deaca os seuintes atributos: ele é um
mediador, age em favor da comunidade inteira, tem uma relação mística com a
totalidade da tera em que habita, representa a paz contra a discórdia e não eá
vinculado em nenhum segmento político.
Nee sentido, a função de perpetuadoras do gaist/Geist (o espírito do grupo)
corelaciona-se com os tipos descritos por Turner, pois as pomeranas se situam
nos interstícios da estrutura social, próximos a communitas, e possuem a força
transgressora das normas sociais. De acordo com o autor, o papel do representante
da communitas seria proporcionar uma reclassicação periódica da realidade e
do relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura. No caso
das pomeranas, tomando-as como expressão da communitas, são mais do que
classicações que produzem, visto que incitam a sociedade à ação, à disputa, tanto
quanto ao pensamento mágico.
N E A D E S P E C I A L
Não apenas a disputa pela autoridade da casa eá presente nos cuidados mágicos,
mas também as mudanças que podem afetar a totalidade do grupo doméstico.
Cabe ressaltar que na aliança matrimonial eá em jogo uma luta, um ritual,
no qual os cônjuges são sueitos, e que no desenrolar dos ritos de presságio temos
o princípio da autoridade ligado à vida e à morte da land. Mas os ritos mágicos
não acabam na cerimônia da igreja. No nal do casamento, ao sair é observado
quem é o primeiro a pisar o pátio da igreja, pois será aquele que controlará a casa.
Vemos, então, que a disputa pela autoridade apenas começou.
O . A
Apesar de ee assunto ser considerado tabu entre os pomeranos e não ser facil-
mente verbalizado no decorer do trabaho de campo, as categorias relativas à
magia e sua importância na vida social existem na línua pomerana.
Além da importância da palavra superstição (aberglauben/ouwaglouba = o
que eá acima da fé), como vimos anteriormente, há termos que designam o ato
de benzer (Bispreeka), a benzedeira (bispreeka), benzedura (bispreekaic), as
variedades de doenças (espinhela caída = orbrooka, mau-ohado = slectoucan),
bruxa (botarhejs = borboleta noturna ou bruxa e hex = bruxa), bruxaria (hexaic)
e o verbo embruxar, enfeitiçar (farhexa).
A existência de tais termos na referida línua mostra a importância que a
magia, eecialmente a bruxaria, possui nos principais ritos de passagem do gru-
po. Seu signicado dos termos também evidencia de que forma os pomeranos
aqui estudados lidam com seus infortúnios e por que ees são relacionados à
bruxaria. O infortúnio sempre remete a um conjunto de fatos que se repetem
num rculo vicioso. A coheita faha, um parente adoece, o mercado de ver-
dura eá ruim,são exemplos de uma rie de idéias negativas repetidas numa
sucessão de fatos.
À semehança da análise de Pritchard () sobre a bruxaria entre os Azan-
de, a sucessão de infortúnios é tamm interpretada pelos pomeranos como
bruxaria. Conforme a comparação realizada pelo autor entre os signicados
de bruxaria para os Azande e de azar para a sociedade ocidental, com reexos
nas atitudes de ambos.
Além da recorência do signicado nos vários termos da línua deve ser tam-
m considerada a forma como os pomeranos abordam o assunto com o uso
distinto do tempo verbal. Vericamos o uso do tempo verbal no pretérito im-
perfeito. Este uso não se refere apenas à estratégia de desvincular a importância
atribuída pelo grupo ao tema no tempo presente. A narativa mágica no tempo
passado confere ao grupo uma marca identitária ao produzir uma história mítica,
atemporal, que reaviva sua forma de ler e se identicar no mundo social.
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O verbo utilizado no tempo imperfeito é uma expressão das diculdades
apresentadas no decorer do trabaho de campo, as quais foram paulatinamente
superadas à medida que cou claro que o meu trabaho não eava vinculado
à igreja. Minha compreensão de que o uso do imperfeito era uma estratégia de
discurso, em parte resultante dos conitos com os pastores, provocou a mudança
de minha abordagem: passei a fazer as peruntas utilizando o verbo no presente,
muitas vezes, por meio de intérpretes, na línua pomerana, a m de deixar clara
a idéia de que meu entendimento era da continuidade da ação mágica até os
dias atuais.
As peruntas que fazia aos entrevistados, seuidas dos exemplos dos ritos de
passagem, eram as seuintes: o que signica ouwaglouba, quando eles executam
tais práticas, entendidas no sentido dado por eles a palavra superstição, e como
executam tais práticas.
No momento em que peruntava detahadamente sobre palavras, geos rea-
lizados no decorer de aluns ritos de passagem, geralmente meus entrevistados
descreviam “secamente as etapas necessárias. Quando acrescentava geos e pala-
vras mágicas às suas descrições, a reação inicial era sorir e armar que “não faziam
mais ou sequer mencionavam tais palavras. Atribuíam eas práticas aos antigos,
seus parentes falecidos ou aos vizinhos. E simplesmente soriam, armando em
pomerano: Dat ist ouwagloba! (Ah, isto é superstição!). Ou então armavam: “Eu não
sou bruxo, mas o vizinho é…!,” “O vizinho acredita nessas coisas, eu não…!.
Sempre que solicitava a descrição dos ritos de passagem, além do soriso
inicial, várias reações ocoriam durante a entrevista. A primeira reação era per-
untarem como é que eu sabia da existência da expressão e das suas práticas. Eu
armava que havia tomado conhecimento através de um pomerano que acredi-
tava em ouwaglouba e não gostava da atitude repressora dos pastores mais antigos
na história da comunidade.
Desconados, logo peruntavam se não foi o pastor atual que reclamou de
aluém de sua família que acreditasse em aluma superstição.Depois pediam
para não contar nada ao pastor, para que o fossem chamados a atenção durante
o culto. No nal da entrevista concluíam que não faziam mais tais práticas, mas
somente seus vizinhos.Pedia, então, para que falassem dos vizinhos. Novamente
riam e acabavam por conrmar uma ou outra fórmula mágica realizada durante
um batizado de um sobrinho ou qualquer outro rito.
Superstições e benzedeiras o temas evitados em seus comentários até o mo-
mento em que é vencido o temor de que o pastor venha saber das suas idéias. Estes
temas são alvos de reclamações dos pastores da região. A diculdade de lidar com
eas práticas e com a crença nas benzedeiras era constantemente externada nos
momentos em que eu falava da pesquisa. A idéia de estudar a cultura pomerana
era para vários pastores uma tentativa de que eu pudesse um dia hes explicar “o
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porquê daquelas superstições todas.” Outra reação freqüente de aluns pastores
conhecidos era imediatamente citar Lutero.
Conforme relato, o medo do pastor somado a outros sentimentos amuos
em relação a ee, em rios momentos, foram aluns dos obsculos vividos du-
rante a realização da pesquisa de campo. A repreensão do pastor a eas práti-
cas evoca a oposição existente entre o catolicismo popular e o catolicismo ocial.
As superstições e pticas mágicas dos pomeranos sãotransformadas em feitiçaria
aos ohos dos pastores luteranos e nas referências que fazem às palavras de Lutero.
Douglas (, p. e ) ao estudar as acusações de feitiçaria entre os Lele,
mostra os equívocos dos missionários católicos ao acusarem a religião tradicional
de feitiçariae não resgatarem nada de suas crenças, acreditando assim que eas
seriam abolidas por meio da pregação. Seundo a autora (ibid., p.-), a teologia
ocidental, ao condenar a feitiçaria, não tem como responder as queões mais
importantes para o cotidiano dos Leles, tais como: a razão da existência do mal
no mundo, a causa das doenças e da morte. Estas queões permanecem sem res-
postas e, diante da reação antifeitiçaria dos católicos, os Leles perdem a referência
mágica da antiga religião na reinterpretação dos conitos na ordem moral.
A ecácia simbólica do feiticeiro consistia na expressão verbal dos conitos
atras de uma linuagem mágica que os interpretava e os reorganizava numa
gica (D, , p.). Isto se dava, principalmente, na condução do
rito do ordálio que resolvia os prolemas da comunidade Lele, que reabelecia
o circuito de trocas e impedia os atos de bruxaria.
À semehança dos Leles, os pomeranos atribuem à magia e à bruxaria uma
ecácia simbólica, pois eas ordenam e dão sentido aos conitos de valores exis-
tentes no seu universo diário.
O caráter racional, anti-ritualístico e controlado da comunicação da igreja
católica no caso citado por Douglas se aproxima do modo como os pastores da
Luterana tratam da queão das práticas mágicas entre os pomeranos.
nos depoimentos dos pastores uma preocupação com os prolemas sociais
que constituem parte do cotidiano dos pomeranos. Como exemplo, os pastores
armam que os homens pomeranos são machistas, se preocupam com os pro-
 De acordo com o relato de Bernae Lorint (, p.) sobre a relação entre o clero e o
campesinato romeno estudado pelos autores, temos exemplos das representações dos cam-
poneses acerca da figura eclesiástica que se aproxima das situações vividas entre os pomera-
nos: Se as autoridades eclesiásticas aconselham as medidas contrárias aos costumes populares
considerados pagãos, as conseências não vão muito longe. Na aldeia nenhuma pessoa toma
os conselhos e advertências do padre [no caso aqui estudado, o pastor] a sério. A tendência
contrária é a mais manifesta. O padre [o pastor] e a igreja possuem uma atitude geral e uma
visão particular de mundo e vida. Aos olhos dos camponeses, o padre [o pastor] é freqüen-
temente um homem “que sabe…, isto é, que possui uma das mais profundas dimensões do
saber dos ancestrais e da sua mensagem mística. Na vida cotidiana, ele se parece com os outros.
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lemas do alcoolismo, com os conitos familiares, geracionais e outros e com os
excessos da violência doméstica. Como vimos, são chamados com freqüência
para mediarem conitos de diferentes ordens e atuarem nos momentos de maior
tensão na comunidade. Mas dissociam os aectos mágicos e simbólicos dos ele-
mentos fundamentais do cotidiano e da história do grupo. O mágico é entendido
como mera superstição, válvula de escape, iracionalidade, coisa dos antigos,não
fazendo parte do dia-a-dia dos conitos do grupo.
Os pastores não percebem como os mbolos explicitam valores em crise, em
questionamento. Para eles, a magia presente nos ritos de passagem é um simbólico
esvaziado de sentido, recortado do reante da vida social.
Para os pomeranos, a land é percebida como um conjunto de valores que
exprime patrimônio, herança, valor-família, autoridade paterna e uma rie de
valorações éticas. Estes valores são expressos nas práticas mágicas presentes nos
ritos de passagem e nas acusações de bruxaria.
O conito entre os membros do grupo e a igreja ocore justamente na interpreta-
ção da ecácia simbólica dos aectos mágicos para a compreensão de queões da
vida cotidiana dee campesinato. A reelaboração dos símbolos religiosos pelos pome-
ranos o se ajusta às interpretações excessivamente racionais dos pastores, que ten-
dem a desarticular a lógica ordenada da economia camponesa de sua lógica simbólica.
Não apenas o histórico de conitos entre eas duas posições na região, mas
também, a lembrança viva da reação dos pastores dicultaram as entrevistas e
a abordagem do tema da magia entre os pomeranos. As diculdades em lidar
com o tema magia se tornaram maiores, eecialmente quando as peruntas se
dirigiam para a queão da bruxaria. Isto ocoreu por uma série de motivos inter-
relacionados, já relatados no decorer dee trabaho.
A percepção sobre a importância do tema se deve à análise dos provérbios
coletados, ditados e frases presentes nos ritos de passagem, eecialmente na
corelação entre os seuintes ditos polissêmicos:
A morte de um é a herança do outro.
Aos primeiros, a morte. Aos seundos, a miséria e aos terceiros, o pão.
Assim são as coisas no mundo: Um tem a sacola, e o outro, o dinheiro. A qual dos dois
[lados] você pertence?
– Ele ganhou tudo o que tinha direito (land un sand/tera e areia), casa e tereiro, e
torou tudo.
 Ver nota número .
 O uso deste provérbio foi tratado no capítulo referente à organização social, na discussão
sobre os conflitos familiares por ocasião da divisão da herança. land equivale à unidade de
produção e consumo (casa/terra), no sentido de possuir a autoridade na manutenção da
unidade doméstica. sand significa areia (terra no sentido físico).
N E A D E S P E C I A L
As falas citadas acima, somadas à jocosidade e ambiüidade que marcam os
discursos pela disputa da autoridade entre homens e muheres nos ritos de casa-
mento e morte, enunciam o grau dos conitos existentes no interior da land. As
disputas não apenas se referem à queão do gênero, mas também dizem reeito
à disputa entre herdeiros e o-herdeiros e entre aqueles que acumularam ou não
maiores recursos no interior da land. A inter-relação entre os provérbios aponta
para a recorência da narativa mágica da bruxaria como forma de expressão do
conito (T, ).
Nee sentido, o discurso das acusações de bruxaria evidencia o grau de con-
itos causados pelas suas diferenças internas e sua importância na complexa
elaboração da condição pomerana.
Além dos ditos populares, cabe ressaltar a importância, das muheres como
detentoras do saber mágico, como naradoras da memória do grupo e principal
alvo de acusações de bruxaria na comunidade.
A comparação do discurso da bruxaria com a lógica da uera (F-
S,) evidencia um gênero do discurso que mehor expressa as ambiüi-
dades e prolemas cotidianos na construção do ethos camponês. As metáforas da
narativa da magia são interpretações do mundo social camponês (D,).
O narador tem o poder de transmitir e partihar as palavras com a sociedade que he
confere autoridade diante da consciência da existência da morte (B, ).
uma relação estreita entre bruxaria e benzedura, pois ea última é o ocio
da benzedeira que procura desfazer o mal causado por aquele que fez bruxaria.
O estudo das palavras usadas nas fórmulas mágicas para a cura das doen-
ças e eerilidade de animais, plantas e homens expressando infortúnios e a sua
repetição mostra que as palavras fazem a uera signicando atos de poder
(F-S, idem, p.).
Apesar de ambas serem linuagens que lidam com os infortúnios, temos na
literatura sobre bruxaria a distinção entre atos de feitiçaria e de bruxaria (E
P, ; M,  ; F-S, ibid).
Para Evans Pritchard (), a feitiçaria seria uma magia instrumental e a
bruxaria, uma magia operacional sem ajuda de nenhum material. O autor mostra
que os Azande acreditam que alumas pessoas são bruxas e podem prejudicá-los
em virtude de uma qualidade herdada. Uma bruxa atua sem ritos, não pronun-
cia fórmulas mágicas e não usa medicamentos. Um ato de bruxaria é um ato
psíquico.expressões em pomerano que se referem ao ato de bruxaria, isto é,
ao desejo de causar o mal através do ohar, associando-a ao mau-ohado. O mau-
ohado também constitui parte do universo da bruxaria, pois, além das palavras,
o uso do ohar denuncia a atuação da “bruxa.
 Eis algumas: anheksa (fazer bruxaria), andaua (enfeitiçar com o olhar) e oiwarkijka (ver com
mau-olhado).
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Outro exemplo de oho mau observa-se quando ee pega a criação.”
O caso relatado é o seuinte: “Uma vez a sua família tinha uma junta de boi
para arar o solo. Um vizinho pediu para he venderem um boi, logo depois o boi
moreu.A informante ensinou que não se deve negar algo, nee caso, que não
se vai vender o boi. Ao contrário, deve-se armar que vai vender, porém na hora
de negociar pede-se um preço mais alto do que a média do mercado. Então, a
pessoa desiste de efetuar a compra e o boi não more.
A informante mostrou que lidar com a lógica da bruxaria é também atu-
ar numa complexa gica de trocas com aqueles que nos são os mais próximos,
pois é deles que emerge o bruxo.” Como ressaltam os camponeses estudados por
Favret-Saada (, p.), é sempre uma pessoa muito próxima a nós, não é gente
de longe. Ninuém pode ser enfeitiçado sem tocar o corpo ou um objeto perten-
cente à vítima [com palavras, geos e ohares].
Conforme anteriormente apontado, além das crianças e demais membros do
grupo doméstico, o mau-ohado pode afetar animais e plantas – principalmente
a lavoura – que podem car doentes e morer.
As acusações de bruxaria podem ser expressas da seuinte forma: hai het e
at anhest/andaua/oiwarkeeka que signica: Ele enfeitiçou/ohou com mau-oha-
do, ou ainda, hai het e dat wünsct, doorweec is kai kranz, ele he desejou isso
(doença, desgraça), por isso ele eá doente.
Os pastores condenam essas práticas, classicando-as como superstições.
Muitos reprimem as atitudes dos pomeranos com sutileza, mostrando a preocu-
pação de que os membros da comunidade “não queiram ir ao médico e somente
à benzedeira,outros explicitam sua repreensão no ato da prédica durante o culto
diante de toda a comunidade, muitas vezes gerando situações vexatórias.Diante
dessa reação por parte de muitos pastores, os pomeranos temem sua represália
frente aos éis que freqüentam os cultos. Muitas benzedeiras escondem o seu
ocio dos parentes que tenham formação teológica.
A entrevista feita com uma pomerana do município de Laranja da Tera mos-
tra a reação do pastor local ao saber que ela e sua mãe eavam levando o irmão
a uma benzedeira.
Durante um culto, no momento da prédica, sua mãe foi repreendida pelo pas-
tor e apontada como uma das pessoas que só acreditam em benzedeira.Logo após
o m da cerimônia, as senhoras a perseuiram na rua, peruntando se a carapuça
não havia he servido.Ela precisou mudar o seu caminho para casa. A maioria das
que falaramhaviam freqüentado benzedeiras e muitas sabiam benzer.
 Lembramos que o termo usado pelos camponeses franceses estudados por Jeanna Favret-
Saada (), a palavra caught, equivale àqueles usados pelos pomeranos quando afirmam
que o mau-olhado “pega nas pessoas, coisas e animais.
N E A D E S P E C I A L
Após ee episódio sua mãe foi conversar em particular com o pastor e lem-
brou que se Jesus e seus discípulos curavam porque então um homem comum
não poderia também curar. Se não santos na igreja Luterana, por que um
homem comum como os próprios discípulos, não poderia também cura?” Ela
ainda ressaltou que havia ido à benzedeira porque depois de ir a vários médicos,
ela via na prática da cura a salvação de seu ho, pois a cura era dotada da palavra
de Deus.” O pastor he pediu desculpas e nunca mais fez comentários dirigidos a
ee caso durante a prédica. O motivo de sua ida à benzedeira fora da cidade era
um caso de bruxaria. Faremos um breve relato do caso.
Uma das informantes comentou que sua avó e sua tia eram benzedeiras.
A seunda havia aprendido a benzer com o ensinamento de sua avó. Mesmo
sendo membro da família, ela não sabia quais eram as palavras usadas para ben-
zer, só compreendia a referência à Trindade na nua alee o sinal da cruz
no nal do rito.
Todos na Vila freqüentam a benzedeira, mas não admitem por causa do te-
mor ao pastor. Há uns anos atrás seu irmão mais novo ( anos mais novo) teve
um prolema de saúde muito grave e vivia indo a diferentes médicos, mas nada
adiantava,pois a doença progredia.
A sucessão de infortúnios, como perda da coheita, saúde ruim dos membros
da família, ruptura de relações com vizinhos, constituiu um signo de embruxa-
mento, caso em que a pessoa ca gravemente doente logo após a série de fatos
negativos, percorendo vários médicos e muitas vezes morendo rapidamente.
Sua mãe foi no Dia das es em uma fea e encontrou uma vizinha que he
peruntou sobre o eado de saúde de seu ho. Diante da resposta, a referida
vizinha atuou como a anunciadora da existência do bruxo, papel recorente nos
casos de bruxaria (F-S, ), reconstituindo e interpretando os
infortúnios numa ordem signicativa de eventos e admitindo pulicamente
que aluém desejava que o rapaz moresse. Como ee havia piorado, a vizinha
sugeriu que sua mãe o levasse a uma sad, no caso brasileira, que vivia na cidade
mais próxima. A preferência pelo benzedor de fora da comunidade e estrangeiro”
será tratada mais adiante.
Antes de o bruxo aparecer, a acusação é formulada pelo vizinho ou parente
que torna evidente a necessidade de se levar o “embruxado à benzedeira.
A benzedeira receitou chá, remédio e benzeção, tratamento que durou um
ano. Seu irmão tomou chá e banhos de ervas para “limpar o sanue.Quando o
pastor descobriu o caso ameaçou tirar a família da igreja.
Na época, a benzedeira armou que “tinha gente da própria família que dese-
java o mal para seu irmão. Este “pegou o mal” por ser o mais frágil e ter pouca fé.
A benzedeira armou que sua irmã dicilmente “pegaria porque ela tem “tanta
fé e reza tanto” que é “mais forte.
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A benzedeira não falou quem era a pessoa da família que causou todo o mal, mas
armou que ea comia na própria mesa da casa onde moravam. O nome da bruxa
não poderia ser dito, pois senão resultaria em morte (F-S, ).
Todos sabiam que se tratava do mau-ohado de sua tia, por causa de sua parte
na divisão da tera de seu avô paterno. Seu pai e seu tio paterno são gêmeos e
primogênitos, portanto os herdeiros da casa e do tereno dos pais. Suas tias não
ganharam nada. Uma deas queria parte do tereno, mas acabou não ganhando
nada da família. Como ela armou: O oho grande (oho mau) de uma pessoa
costuma matar tudo o que he agrada.
Ela conta que a benzedeira fazia as rezas com um gaho de aruda e cruzava
ee na pessoa e repetia várias palavras, pedindo a um santo protetor o nome
de Nossa Senhora a cura da pessoa doente. Ela impunha as os na cabeça e
esfregava o braço até as mãos. Nee momento, as palavras ditas não puderam
ser compreendidas, pois a benzedeira falava bem baixo, de modo que eas eram
secretas para os ouvintes.
A idéia de que a cada um o seu segredo” e o ter domínio único de uma lin-
uagem constituem os elementos que dão mais poder ao desenfeitiçador, no caso
a benzedeira (T,). Seundo Favret-Saada (, p.), “o poder do
mágico, referido ao conjunto de mbolos, o coloca na posição de vingador re-
conhecido, mas na condição de que ee declara abertamente sua preeza em
assumir ea postura.
O silêncio, o segredo e não falar o nome de quem provocou o mal são condi-
ções fundamentais para a benzedeira se tornar mais forte diante da bruxa. Quan-
to menos se fala, menos se é pego” ea expressão sintetiza a idéia de acúmulo de
poder na uera entre palavras.
O ritual e a fórmula constituem segredo transmitido através dos canais tra-
dicionais (parentes) ou por um estrangeiro,” e seu efeito mágico supõe a natureza
hermética da sua transmissão (M, ; F-S , p. ; L-
S,, p.).
Falar sobre o mal ou fazer o mal signica retirar a força necessária para a
benzedeira enfrentá-lo. Se zer o mal uma única vez, ea perde seu poder. Con-
forme relata Douglas sobre o papel do feiticeiro entre os Leles (, p.), quanto
mais profundo for o treinamento de um feiticeiro nas cnicas religiosas que
garantem a fecundidade, curam os males e a improdutividade, tanto mais ele
terá nas mãos o conhecimento necessário para causar a morte e inigir eeri-
lidade. O conhecimento é o mesmo: a diferença é moral, e o resultado depende
das circunstâncias.
Caso haja prolemas que afetem a ordem moral da família da benzedeira, es-
tes podem levar ao seu enfraquecimento ou perda do seu poder de cura (como nos
casos de alcoolismo, uniões consideradas incestuosas e crimes entre parentes).
N E A D E S P E C I A L
Uma benzedeira, para lidar com bruxaria, tem que ter muita força e saber
uma rie de prescrições para receitar aos seus clientes, pois muitas vezes, por
longo período, além de palavras serão necessários banhos e outros ritos.
O repertório das práticas de caráter medicinal é transmitido pelas muheres
por várias gerações. Em cada família se produzem práticas medicinais simples,
baseadas numa farmacopéia popular, sendo complexicadas na medida em que
os encantamentos e fórmulas mágicas faladas em pomerano e alemão constituam
lugar importante neas práticas quando aplicadas nos casos de doenças comuns
e acusações de bruxaria.
Vemos que o segredo das técnicas, a queão moral, o não-pagamento em
dinheiro, a explicação da doença para o doente através de uma linuagem mítica,
são elementos que constituem o caráter denidor de uma benzedeira. Os mes-
mos aectos são ressaltados por Lévi-Strauss (, p.-) ao descrever a
experiência do feiticeiro uesalid e os elementos construídos pela crença coletiva
denidores da ecácia simbólica de um mágico.
Temos outra narativa de bruxaria contada pela mesma informante: Uma
muher conhecida trabahava como empregada doméstica na casa de uma pome-
rana. Um dia passou uma senhora e pediu à dona da casa um pouco de manteiga.
Esta he negou o pedido, armando não possuir manteiga, pois não tinha como
obtê-la. A partir dee dia, as vacas da dona da casa secaram e não deram mais
leite. A senhora que havia pedido manteiga passou a vender manteiga sem nunca
ter tido vacas em seu tereno. A vizinhança descobriu que atrás da porta havia
um pano de prato (enxugador de vasihas) que dele vertia leite.
Era assim, que as vacas de uma senhora beneciavam a outra, que nunca
tivera recursos.
Nee caso, temos novamente acionada a imagem do dito popular, ressaltando
na construção das identidades étnica e social o grau de conitos entre os pome-
ranos e dees com os brasileiros: “A morte de um é a herança do outro!.
 Segundo vários informantes, as benzedeiras mais antigas possuíam o Sieben Moises. Durante o
trabalho de campo o pude averiguar a existência deste livro. Sieben Moises significa o sétimo
livro de Moisés. Este é composto por fórmulas de benzeção escritas em alemão. Suas fórmulas
funcionam tanto para causar o bem quanto para o mal. Somente as benzedeiras possuíam tal
livro. Neste livro, a benzedeira poderia encontrar fórmulas para causar tanto uma coisa boa
quanto ruim. Caso pratique o mal, nunca mais esta poderá fazer o bem, pois perderá toda a
sua força. Seu conhecimento lhe confere poder para o bem. Outro instrumento mágico é
o himmelsbrief (a carta celeste). Caso a carta celeste fosse posta no bolso do paletó, nenhum
tiro ou atitude negativa atingiria seu dono.
 A seqüência dos fatos, o retorno da bruxa, a confirmação do seu nome e sua denúncia são
as fases que constituem o discurso da bruxaria.
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A :
Redeld (; -) dene o campesinato como um estilo de vida entre a
ordem moral e a ordem cnica. Seundo ele, o camponês é membro de uma
sociedade parcial dotada de uma cultura parcial, ou seja, oscilando entre dois
tipos de organizações sociais: a pequena tradição (da aldeia local) e a grande
tradição (modo de vida citadino). Para Redeld, a interdependência entre ambas
constituiria numa relação necessária para manutenção do ethos camponês.
O autor descreve o campesinato como um tipo de humanidade e apresenta três
caraerísticas que comporiam seu modo de vida (R, p.-):
uma atitude de reverência à tera;
o trabaho agrícola é bom, mas o comércio não é tão bom;
a ênfase na produção como virtude primeira.
Ortiz () mostra que as várias denições genéricas de campesinato in-
coreram no ero de tomar o universo de representações como base para dotar o
camponês de uma identidade essencial, única, distanciada da complexa rede de
relações sociais na qual eá inserido. Nee sentido, o autor toma como objeto de
crítica as generalizações feitas acerca da organização social e da cultura campesina.
Para Ortiz (ibid, p.),
em primeiro lugar, a maioria dos autores incluem apenas aluns setores da população. Em
seundo lugar, ao menos que se empreuem critérios culturais para denir quem é e quem
não é camponês, poderia agrupar unidades sociais com “visões de mundo” díspares. Em
terceiro lugar, os fatores que moldam o comportamento e as ideologias são tão numero-
sos que não podemos imaginar que indivíduos sejam reunidos porque compartiham de
certas regras econômicas e que se opõem a uma classe particular de dominação política e
tenham os mesmos valores culturais, sistemas cognitivos e organização social semehante.
A partir das queões levantadas na obra de Redeld () e Foster (),
percebemos de que modo as limitações dos recursos econômicos existentes na
ordem camponesa são importantes na produção de suas imagens identitárias.
Para Foster, a comunidade camponesa obteria maiores recursos se entrasse no
sistema de reciprocidade negativa, isto é, se um de seus membros obtivesse maior
ganho econômico em função da privação de outro.
O benecio de um campônio earia na razão direta do prejuízo de outro,
constituindo parte das relações de troca existentes no universo pomerano. A de-
siualdade das trocas se reete na complexidade simbólica dos seus provérbios e
nos vários discursos acusatórios em torno do patrimônio e da herança familiar.
N E A D E S P E C I A L
Sahlins (, p. -) mostra que a interligação entre os aectos econô-
micos, sociais e morais determinam a estrutura da reciprocidade, criando uma
hierarquia de níveis de integração que compreende a reciprocidade balanceada
até a reciprocidade negativa.
Esta forma de reciprocidade visa somente à obtenção de vantagens através
da permuta, do roubo, do jogo, tratando-se de um tipo de troca individualizado
que não atenderia aos interesses comunitários. As várias distinções sociais tais
como status, riqueza, necessidade e tipos de bens trocados, somadas às distâncias
sociais nas relações de parentesco determinariam reectivamente a verticalidade
e a horizontalidade das trocas.
As reciprocidades generalizadas e positivas o parte das alianças de nasci-
mento, matrimônio e morte e das relações de troca simbólica e econômica cons-
titutivas do dia-a-dia da comunidade pomerana. Como as trocas são feitas por
homens e muheres?
Os homens pomeranos operam com a lógica da reciprocidade negativa pre-
sente na esfera de mercado, as quais ultrapassam a lógica da pequena tradão
e eariam marcadas pelas atitudes individualizadas da economia capitalista
(roubo, assassinatos, obtenção de vantagens). No caso das trocas realizadas pe-
las muheres nas praças de mercado, são positivas, na medida em que mantêm
uma ordem de laços simbólicos e econômicos que garantem a manutenção da
land. Suas atitudes marcariam uma mediação entre as esferas da pequena e da
grande tradição.
Conforme vimos, na esfera do sagrado, as muheres tanto transitam entre reci-
procidades negativas quanto entre positivas, na medida em que detêm o controle
do sagrado e podem usá-lo de forma positiva, quando atuam como benzedeiras,
ou de forma negativa, quando atuam como bruxas.
Os momentos de tensão ocorem em dois níveis:
o conito entre os membros que herdam diferentes parcelas da herança e do
patrimônio, tornando a reciprocidade negativa. Aqueles excluídos da herança da
tera se utilizariam de estratégias individualizadas, situadas fora dos parâmetros
morais ideais, para obtenção dos recursos que hes foram negados. Alumas das
estratégias seriam os casos de roubo em família (assinatura de documentos, venda
de bens sem repasse do dinheiro), brigas com uso de violência sica e simbólica
e processos jurídicos;
competição entre muheres e homens quanto à lógica das trocas operadas na
disputa pela autoridade da land. As muheres se valeriam das atitudes individu-
alizadas representadas pela bruxaria, expressando uma reciprocidade negativa,
a m de garantir o patrimônio que he foi negado. Os homens se valeria do
discurso da tradição centrado na autoridade do pai para usufruírem do benecio
de serem herdeiros da land.
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De que forma, então, o conito na esfera dos valores eá reetido nas formas
de reciprocidade e nos símbolos que marcam o universo de trabaho, os ritos de
passagem e as acusações de bruxaria?
No cotidiano dos pomeranos, temos a existência de uma rie de represen-
tações e símbolos que retratam seus valores, suas formas de ohar o mundo e se
auto denirem como pomeranos e camponeses. Um desses símbolos é o quadro
dos “dois caminhos.
Nas paredes das casas pomeranas é bastante comum a presença dee quadro,
no qual temos a representação dos, então, chamados “dois caminhos (ver anexos):
o paraíso (salvação) e o inferno (perdição). Quando peruntados sobre o seu
signicado, muitos respondem: “São os caminhos que podemos seuir na vida.
Os caminhos do bem e os caminhos do mal.” Observando de perto o quadro, te-
mos vários casais que têm à sua frente duas estradas e uma placa indicando quais
são as possibilidades a seuir:
Caminho mais largo, o chamado caminho da perdição, no qual temos as várias
tentações do mundo, tais como: o jogo, a bebida, a prostituição (o baile, então,
chamado o Mundo da carne), o teatro, o cassino a vida nos bares, todos os pecados
capitais (assassinato, adultério, desreeito a animais e pessoas), enm, a estrada
que leva à morte e à condenação.
Caminho mais estreito, o chamado caminho da salvação, no qual temos o cum-
primento dos deveres morais para se atingirem os céus. Nee caminho, temos
a mãe junto a seu ho, passando por labirintos e ajudando os pobres que eão
no decorer da estrada. Temos a imagem do Cristo crucicado, a igreja, a escola
dominical. Em resumo, imagens de pobreza e de sacricio.
Antes da placa indicativa dos dois caminhos, temos a tábua escrita por Moisés
com os dez mandamentos (A lei). A cada situação há uma citação bílica.
A idéia de lei é fundamental, como vimos, no ensino conrmatório, sendo
tema central do quadro dos “dois caminhos.” Ela nos permite compreender uma
das representações, ou mehor, a mais importante para o grupo reetir a sua
construção identitária. A crença na palavra bílica é vital para se denirem como
luteranos, pois são membros da igreja da palavra, e como camponeses, na medida
em que a palavra é um compromisso com seus valores morais e com o agir no
mundo, o agir pelo ethos do trabaho.
O quadro e a imagem da lei são elementos visuais que representam a relação
de importância que assume a palavra, e principalmente a palavra bílica como
um compromisso. A palavra é lei e a lei eá representada nos dez mandamentos
bílicos ensinados no rito de conrmação, que, ao contrário do ensino escolar, é
considerado um ensino “para toda a vida.
N E A D E S P E C I A L
Temos a forma de apreensão das escrituras sagradas nas imagens que infor-
mam uma concepção identitária pautada na idéia de comunidade. A comunidade
representada nas imagens do quadro é a comunidade aldeã. Nee sentido, o qua-
dro é a representação do microcosmo da aldeia camponesa. O universo da troca
e da circularidade eá referido em reciprocidades positivas e negativas. Trocas
no paraíso e no inferno fazem parte do seu cotidiano.
Os vários níveis de troca e de reciprocidades expostos no quadro são também
referidos no universo dos provérbios e das acusações de bruxaria, pois enunciam
a complexa rede de relações do universo camponês construído à imagem e seme-
hança de seus criadores: os pomeranos.
Trataremos, inicialmente, das corelações entre os provérbios e as acusações
de bruxaria.
Uma das corelações entre o provérbio “A morte de um é a herança do outro
e a acusação de bruxaria é de que nos ritos necessários para a reprodução da con-
dição camponesa, todos são afetados pelos novos rearanjos. Não apenas os paren-
tes, mas por extensão os vizinhos, homens e muheres, enm, todos aqueles com
quem são possíveis as trocas tanto no seu sentido econômico quanto no simbólico.
É no momento da redistribuição da herança e dos recursos da land que ocor-
rem os conitos internos à nova ordem, eecialmente entre os pares concor-
rentes, mas não iualitários: herdeiros (homem primogênito) e o-herdeiros
(os homens não-primogênitos e as muheres). É no interior da própria land e da
família que temos os bruxos, pois a iualdade é uma crença em que cada um dos
competidores luta para ser mais do que iual (B, ).
Bailey ( e ) mostra nos estudos de comunidade que as trocas realiza-
das ora são cooperativas, ora competitivas, pois possuem traços contraditórios que
denem aectos individuais e coletivos no seu interior. O autor (, p.) ar-
ma que “todo dom requer um contra-dom, e um retorno inapropriado constitui
um desao. Gi, como apontou Mauss, é a palavra alepara veneno. Ninuém
pode duvidar disso, pois ee é um traço da vida de qualquer um.
No caso de bruxaria estudado pelo autor (), a comunidade camponesa de
Bisipara, localizada no eado de Orissa, região lee da Índia, vive os dilemas da
chamada “Pax Brianica,” isto é, o período de mudança social em que se opõem
ideais comunitários como castas, autoridade e grupos étnicos e os interesses in-
dividuais representados pela burocracia moderna.
À semehança do caso acima citado, os valores morais pertencem à esfera
comunitária da aldeia pomerana, ao mundo das categorias coletivas (land/ter-
ra). Quando as coisas eão mal na comunidade, quando fahas na coheita,
as chuvas não vêm e as pessoas morem antes do seu tempo, a rao é que a
ordem moral foi violada pelos interesses individuais. Quando as muheres re-
corem na justiça comum para obterem ganhos de tera, signica uma ruptura
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com a ordem moral, com o valor autoridade do pai, base de toda a land. Seu
ato ilustra o acesso às esferas situadas fora do universo aldeão, ultrapassando o
limite dos mediadores locais.
Nee sentido, a idéia de caça à bruxa é a crea da comunidade pomerana numa
identidade que gira em torno de uma ordem moral ideal. A bruxaria seria um jul-
gamento ético que representa um modelo que lida com o que deveria acontecer na
ordem social e os caminhos que as pessoas, realmente, escoheram: paraíso ou inferno?
Bailey (e ) retoma a noção de comunidade, enfatizando que a bruxaria
é parte da contradição entre dois modelos, ou seja, duas interpretações acerca do
mundo: o modelo cientíco (modelo médico) e o modelo da possessão (cura). O pri-
meiro arma o discurso da ciência e o seundo, o discurso da moralidade. A violência
da bruxaria emergiria nos momentos de conito aberto entre eas duas ordens.
As fronteiras entre a autonomia individual e o domínio coletivo como objeto de
conteação atualiza as oposições entre a Pequena e a Grande Tradição, denições-
chaves na concepção de ethos camponesa de Robert Redeld ( e ).
As ambiüidades e conitos da ordem social são aectos retomados por
Douglas () ao abordar o impacto da obra de Evans Pritchard () sobre o
futuro dos estudos de bruxaria.
O estudo de Pritchard teria como principal objetivo mostrar como um siste-
ma metasico podia impor uma crença mediante procedimentos diferentes de
auto-avaliação. A crença dos Azande na bruxaria mantinha seus valores morais
e suas instituições.
Seundo Douglas (, p. ), três princípios da análise de Pritchard foram
aplicados nas posteriores investigações sobre bruxaria:
maior tolerância quanto ao tema. A percepção de que a bruxaria é um princípio
de causalidade que se refere não aos seres espirituais misteriosos, mas aos poderes
misteriosos dos seres humanos”;
as acusações se agrupavam nas zonas das relações sociais ambíuas;
as crenças em bruxaria teriam um efeito normativo sobre o comportamento,
reforçando um sistema moral e seus códigos sociais.
A autora deaca, no entanto, o fato de que o impacto da obra de Evans
Pritchard foi responsável por rever a relação entre as disciplinas história e an-
tropologia. A partir de seu estudo, temos duas idéias-chave na crítica do autor
à ciência histórica. A primeira se refere à impossibilidade de se tratar a bruxa-
ria numa escala temporal, conforme se apresenta nos trabahos historiográcos.
A seunda proposição aborda a interpretação da bruxaria a partir do chamado
modelo homeostático.
Este modelo, desenvolvido a partir da obra de Pritchard (), teria duas
linhas de interpretação. Uma delas se refere à idéia de que a bruxaria contribui
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para a manutenção da ordem no sistema social. A seunda mostra que a bruxaria
seria um sintoma de desordem, de decomposição da pequena tradição diante do
modo de vida urbano.
Douglas (, p. ) chama a atenção para as teorias antropológicas produ-
zidas na década de  (M; T; M) que tenderam
a levar ambas as interpretações numa percepção evolucionista da bruxaria, isto
é, a acreditar que ea oscilaria entre um instrumento evolutivo de saúde ou de
enfermidade social.
A autora (op. cit., p. -) critica a rigidez do referido modelo, mas reconhece
que ee proporciona a compreensão da bruxaria como um sistema de comuni-
cação. As oposições dentro/fora, puro/impuro constitutivas do simbolismo da
bruxaria permitem a ampliação das experiências subjetivas numa escala univer-
sal ao tomá-las como um modelo interpretativo. Douglas ressalta a importância
dee simbolismo, da relão da crença com a estrutura social dominante e o fato
de que na maioria dos trabahos sobre o tema evidencia-se que, as acusações de
bruxaria orescem nas zonas em que as relações sociais são ambíuas.
Douglas (op.cit, p. -) deaca dois tipos recorentes de bruxaria: o bruxo
como pessoa exterior ou como inimigo interno ao grupo.
No primeiro caso a autora enfatiza a função de rearmação das fronteiras do
grupo. No seundo caso, há várias interpretações, temos a intenção de denir os
limites das diferenças internas entre distintas facções, a ura do bruxo como
um desviante ou como inimigo com contatos com o exterior.
Temos em comum nees casos, a redenição de fronteiras internas e externas
à comunidade, sendo o bruxo uma eécie de mediador da complexa relação entre
a pequena e a grande tradição. Seu papel não coresponderia a uma função evo-
lutiva, mas seria mediar vários níveis de reciprocidade entre ambas as esferas.
Nee sentido, o bruxo recordaria a cada homem, os perigos que existem no
interior da própria coletividade. Seundo Douglas (op.cit, p. ), o bruxo é um
prescrito pela lei, por que encarna os apetites e paixões que existem nos homens
e, se o controlados, destruiriam qualquer código moral. Podemos considerar
que o bruxo noturno coresponde à intenção oculta, à moralidade e portanto, à
oposição aos valores morais compartihados na comunidade.
Parafraseando Leenhardt (, p. ), ao tratar da bruxaria entre os Dinka,
poderíamos armar que, para os pomeranos, o inferno o é apenas o outro,
mas ee pode ear dentro de nós mesmos. Tanto os bruxos “de dentro quanto
os de fora permitem redenir as fronteiras identitárias do grupo no seu sentido
étnico e social.
Os brasileiros que moram fora da comunidade de origem dos possíveis em-
bruxados são sempre os benzedores preferidos pelos pomeranos e vice-versa.
Esta imagem do poder mágico do estrangeiro, do ser liminar,é recorente na
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literatura sobre bruxaria (S, ; F-S, ; L G,
; G, ; M, ; H & M, ; T,
; D, ).
Maluf (, p. ) ressalta a condição de exterioridade e a diferença em
relação à comunidade, manifeas no fato de ea morar em outro lugar, ou por
ser representante de uma outra cultura. O fato de ear situada à margem, nos
limites da cultura, he garante maior legitimidade e acúmulo de poder para lidar
com um caso mais “forte” de bruxaria.
Mauss () mostra que a condição eecial de estrangeiro representa em
várias sociedades aquele que se predispõe a ter poderes diferentes, eeciais e
portanto, mágicos. O fato de a benzedeira não pertencer à mesma comunidade
também se constitui numa estratégia de não se envolver diretamente nos conitos
entre seus próprios parentes e vizinhos (M, ).
uma identicação entre o benzedor e seu cliente no que se refere ao gê-
nero da narativa: a idéia de que “não se fala sobre bruxaria para qualquer um
(F-S,  ; M, ).
Se a bruxaria é um sistema de comunicação (D, ) que explicita,
numa uera de mbolos, as diferenças e conitos internos e externos a uma
comunidade (F-S;), tanto a benzedeira quanto o paciente e o
próprio bruxo dominam o mesmo campo semântico.
Nem sempre falando a mesma línua, pomeranos e brasileiros usam do mes-
mo campo de comunicação para se auto-identicarem como camponeses, mas
de origens e histórias distintas, marcando, portanto, suas diferenças étnicas uns
diante dos outros. “Somos camponeses, porém não somos iuais” ea identica-
ção se constrói com base na oposição: brasileiros x pomeranos.
As palavras de um mesmo gênero discursivo tanto possibilitam a identicação
de ambos com a realidade de serem camponeses, quanto são usadas para delimi-
tar as diferenças internas ao próprio campesinato. Somos camponeses, porém
acumulamos recursos de forma diferenciada.Ou seja, caso um pomerano tenha
sido embruxado, terá de buscar um benzedor de fora,tanto no sentido étnico
quanto “ear fora das redes de parentesco e vizinhança da mesma comunidade.
Além da necessidade de buscar a diferença étnica para neutralizar a rede de
relações entre parentes e vizinhos existentes numa comunidade, é preciso que o
benzedor more em outra comunidade e disponha de outro ciclo de reciprocidades.
Numa das entrevistas feitas em Laranja da Tera, ao ser apresentada a informante,
ea logo armou: “Para falar a línua, voprecisa car mais clarinha, senão a
nua o pega!.” Para uma primeira impressão, num depoimento que viria a ser
sobre bruxaria, o uso do adjetivo “clara e do verbo “pegar” somados ao que viria
mais adiante se tornaram meu alvo de curiosidade sobre a relação entre magia e
elaboração da identidade étnica e social.
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Numa das reuniões da igreja, presenciada pela informante, na qual se repre-
endia a prática das benzeduras, vários casos de práticas mágicas foram contados.
Um deles é o seuinte: Um brasileiro, preocupado com seu ho que eava doente,
comentou o fato com um pomerano. Este peruntou se o brasileiro acreditava em
benzeção. Ele disse prontamente que sim. Então, o pomerano benzeu o garoto,
com as seuintes palavras: Duu Swad dünwa sca ma faeka dat duu bist lous
ta aca, que signicam: Você diabo preto [brasileiro] deve morer, por que
nos traz preocupações [nos faz sentir raiva].
A palavra swad dünwa (diabo preto) tanto pode signicar mau espírito que
trouxe doença, quanto a designação para brasileiro. Faeka signica morer no
sentido simbólico, ou seja, não compreende a idéia de morte sica, mas desapa-
recimento da causa do conito. A palavra aca signica sentir raiva de algo que
se eende por um período, causando uma série de infortúnios.
Nee sentido, a composição do enunciado mostra a possibilidade de acusa-
ção de bruxaria, pois explicita uma idéia de seqüência de fatos negativos que se
prolongam no tempo cotidiano da aldeia e implicam na identicação do opositor,
daquele que é diferente de nós, e da necessidade de neutralizar o mal.
Para resolver o mal que aige o embruxado é necessário buscar forças má-
gicas naquilo que é eecial, localizado na liminaridade das relações sociais, e
que mehor interpreta a diferença. O estrangeiro, por o ear situado nea
comunidade étnica, evita atingir as relações de trocas simbólicas mais próximas
da land, ou seja, aquelas realizadas entre parentes e vizinhos.
A forma imperativa do enunciado dá margem a dois signicados: um sentido
étnico que marca a distinção pomeranos x brasileiros, e outro que evidencia o
aecto mágico na oposição entre sagrado x profano.
Esta última oposição é também pautada nas diferenças internas dos pomera-
nos. Assim, basta o benzedor ser brasileiro, ear situado fora da comunidade do
embruxado e dominar ea percepção do conito interno à ordem camponesa
para operar com eas oposições. Mesmo que o benzedor seja aluém de fora da
comunidade, ee constitui parte do universo camponês, se o inferno [a diferença]
pode ear em nós mesmos,” então, “só um diabo pode curar outro.
De certo modo, ambos os sentidos conuram a oposição sagrado x profano,
forma classicatória que constitui parte da composição da própria ordem na
sociedade (Durkheim) sendo, portanto, construída de forma relacional à noção
de desordem, secular e diferente.
Vemos que o narador fala em nome do sagrado, mas de forma complementar
evoca o profano, o mal e o diferente, representados na idéia conjunta de estran-
geiro, brasileiro e diabo, necessária para a construção da própria identidade
étnica e social.
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Além das palavras mágicas que classicam o outro e marcam o universo das
diferenças sociais, temos também a importância dos objetos como proteção
contra o mal.
Objetos e imagens são elementos mágicos que uram na narativa do coti-
diano camponês e nos conitos de valores constitutivos das acusações de bruxaria.
Cartas (Himmelsbrief ; Schutzbrief), fotograas, livros de orações, a bília e os
hinários, além de serem objetos mágicos que protegem a unidade doméstica de
todo o mal, são parte de um dos espaços mais importantes na representação
identitária dos pomeranos: a casa.
As muheres ocupam um lugar importante na lavoura juntamente com o ho-
mem, mas também possuem um lugar eecíco no interior da casa camponesa.
A divisão do trabaho cona à muher o encargo da maior parte dos objetos da casa,
dos alimentos, do transporte da áua, dos cuidados com a manutenção do fogo
(lenha), cuidados com as crianças e eecialmente os cuidados com o sagrado.
Todos os objetos da casa são associados em forma de provérbios pome-
ranos que os relacionam às fuões pertinentes à muher no interior da casa.
Muheres são associadas às panelas, ao fogo, à áua, às galinhas, à panicação
e conseentemente ao miho. A boa aparência da casa, da propriedade e a
educão dos hos é o reexo de que a muher reproduz os bons valores da
vida camponesa.
Além disso, a muher pomerana é a responsável pela reprodução da germa-
nidade, da identidade étnica. A nua materna (a línua pomerana) é aprendida
com a mãe através da educação e da religiosidade. A línua alemã é apreendida
atras da socialização religiosa. Este fator é determinante nas escohas matri-
moniais, como vimos no ritual de casamento.
As muheres é que realizam a maior parte dos ritos que asseuram a fartura e
a proeridade da casa. Se é por ela que a fecundidade chega, a muher torna-se,
então, a responsável pela fecundidade no mundo agrário. Mesmo voltada para o
mundo de dentro da casa, ela age no mundo exterior, asseurando, através de um
saber mágico, a plenitude da relação indissociável entre (tera) colônia e família.
As doenças que aigem a família são tratadas a partir do conhecimento das
ervas e do uso medicinal herdado pelas muheres e transmitido pelas gerações.
São elas que cuidam das crianças e que as levam às benzedeiras, em sua maioria,
muheres. O reabelecimento dos animais da casa também é alvo de preocu-
pação das muheres. Muitas doenças são curadas a partir de várias práticas que
relacionam pessoas e animais.
Muitos procedimentos mágicos eram feitos pelas parteiras da região para que
tudo coresse bem no nascimento da criança. Além dea lembrança, tratada na
descrição dos ritos de passagens, muitas aberglauben (superstições) são ensinadas
e transmitidas pelas muheres na línua pomerana para seus hos. Muitas se
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referem às doenças comuns no cotidiano dos pomeranos, tais como erisipela,
sapinho, unheira, dor no gado e outras.
As passagens de ano, os ciclos agrícolas e mudanças no ciclo do desenvolvimen-
to familiar (nascimento, casamentos e mortes) são marcadas pelas suas orações,
muitas oriundas das referências à bília e principalmente ao livro de Starck.
Além dos livros e objetos mágicos que marcam os ritos de passagem, temos a
importância da fotograa para compreensão das imagens nos espaços internos
da casa como representação da identidade étnica e social do grupo.
As muheres o apenas ocupam o espaço sagrado da casa, mas também com-
em a casa com objetos mágicos que visam a proteger a land de qualquer mal,
eecialmente a bruxaria. Além da bília, do material do ensino conrmatório e
do livro de Starck, temos as cartas sagradas: Himmelsbrief e Schutzbrief.
As cartas são encontradas junto às fotograas de família nas salas de muitas
das casas visitadas. Este conjunto de elementos mostra o universo sagrado que
marca as atitudes e os valores do cotidiano da vida camponesa.
O valor das fotos de família,dos ancestrais mortos somado às cartas reforçam
os princípios da vida e da morte como partes do desenvolvimento do ciclo vital
para a reprodução social camponesa. As lembranças dos ritos de passagem são
reavivadas pelas fotos dos mortos e pela força do sentido das palavras das cartas.
A vida diária da família, do trabaho com determinação e dos valores como re-
produção camponesa surgem das memórias dos pomeranos quando peruntados
sobre os signicados que ees objetos possuem.
Ambas as cartas o escritas na nua alemã no alfabeto tico em forma
de versos poéticos. Seu conteúdo é constituído por diálogo entre um camponês
e Deus, sendo escrito na base de rimas fáceis de serem gravadas mesmo pelos
pomeranos que não tenham uma boa apreensão da línua alemã.
 Livro em alemão que contém orações para todas as situações da vida e do cotidiano familiar.
Possui orações para mulheres grávidas, para parentes que viajam, para a colheita, enfim, para
os vários momentos de transição importantes na vida dos pomeranos. Esse livro foi muito
usado pela parteira da região nas ocasiões em que ia fazer os partos.
 o foi possível precisar a data histórica das cartas. Através de entrevistas pude averiguar que
estas têm origem na Alemanha e foram trazidas pelos imigrantes. Os relatos dos pomeranos
evocam os objetos que vieram da Alemanha, além da roupa do corpo, a bíblia e livros de
orações, muitos trouxeram as cartas sagradas. Só pude apurar que havia uma gráfica situada
no Rio de Janeiro que fazia as reproduções que circulam no Estado do Espírito Santo. A data
() que aparece na carta não pôde até o presente ser confirmada por documentação.
O que torna importante é a presença das cartas no interior da casa como objeto de ma-
nutenção da unidade land (terra/família) e o fato de se constituir num marco na história da
imigração para o Brasil na memória dos pomeranos. A expressão carta de proteção” é uma
metáfora e significa “contra os tiros da bruxa, ou seja contra tudo de mal que possa ocorrer
contra ou que ameace a manutenção da land.
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A sonoridade e o ritmo dos versos podem ser falados como se fossem cantos.
A tradução das cartas retira a sonoridade e a aparência de canção que possuem
quando são oralmente transmitidas pelos pomeranos.
As cartas são usadas nas salas dos pomeranos como uma proteção da sua casa
contra todo o mal que possa haver no mundo. Muitas vezes os pomeranos levam
as cartas junto à roupa bem próximo ao corpo como se representasse um escudo”
em momentos de conito ou de desordem (como em caso de um conito familiar
ou de briga com os vizinhos). Os pomeranos, quando peruntados sobre o signi-
cado das cartas, armam: “Dat is scutz in t´ hus (é uma proteção para a casa).
A análise das cartas nos permite perceber as estruturas de longa duração
que constituem parte do ethos camponês. A casa como extensão do modo
de ser camponês deve ser protegida, como nos mostram os textos das cartas.
Nee sentido, o camponês é uma imagem identitária recriada pelos pomera-
nos através do uso das cartas como símbolo da transmissão de valores sociais.
A muher e o cuidado que ea tem com os objetos e a espacialidade da casa perma-
necem como elemento principal no ato de transmissão, e é somente sob sua pre-
sença que ea se faz. As criações culturais são como que prolongamentos vitais do
pomerano, é neas que residem a caraerística “mágica do universo camponês.
Mesmo não possuindo o domínio na leitura da escrita das cartas, os pome-
ranos as tomam com o valor de um ícone. Uma vez recitada por aquele que
domina as letras e transmitida aos que não lêem, não importa para ees saber o
conteúdo literal das cartas. As cartas possuem um valor simbólico e legitimador
da identidade numa sociedade em que a oralidade tem expressão maior.
Nee sentido, a transmissão oral geracional, em línua alemã, do conteúdo
das cartas, pela facilidade das rimas que as compõem, e a própria manutenção
delas como objetos sagrados no lar camponês fazem dos pomeranos criadores
da sua existência no mundo, imprimindo uma identidade camponesa e étnica
na sociedade brasileira.
A oralidade expressa numa línua implica, sobretudo, em uma cultura eecí-
ca e um modo de vida e de ser. A oralidade signica a existência de uma cultura
não-escrita que redimensiona suas cartas sagradas e as transmite ao longo das
gerações nas formas mais criativas.
As palavras sagradas das cartas trazem a função essencial de exprimir os limi-
tes abstratos de uma situação social, de torná-las acesveis ao homem e de fazer
dee a matriz de toda circunstância. O elemento mágico traduz em metáforas e
em síntese a experiência de vida no campo. Para o camponês, o fantástico é real
sem ser, conferindo a ee último o sentido da dimensão mais losóca. Há nos
trechos da carta de proteção, então chamado “Uma bela oração cristã para ser
dita todos os dias e a toda hora,expressões emotivas do cotidiano dos pomeranos
diante das diculdades de reprodução da sua condição camponesa: “Na infelici-
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dade mostra a coragem do leão, cona em Deus, tudo eará bem, sim, mehor do
que se pode eerar. Por Ti, Senhor Jesus, ho de Deus, o a alegria e a glória de
meu coração! Minha glória, meu consolo, meu bem supremo é para mim, Senhor
Cristo, teu sanue precioso. Cuida (preocupa-te), e o cuida demasiado, pois
tudo ocore conforme a vontade de Deus.
Embora a linuagem das cartas expressem valores universais, a sua circulação
se restringe à população camponesa de origem pomerana, não sendo reconhe-
cidas como credos da tradição da Igreja Luterana. Luteranos de outras origens
desconhecem a existência das cartas.
Para os pomeranos, as cartas mostram um diálogo afetuoso entre um homem
do campo e a imagem do Deus eterno. Todos os temas eão enraizados no
mundo real e expressam queões tais como: proteção e preservação da unidade
casa/família para afastá-la do mal, do demônio e da morte; para o cobiçar
riquezas, não ferir o outro com a nua; partihar os frutos do trabaho com
pobres e vizinhos; as mães devem ter hos sadios e alegres; honrar pai e mãe
(autoridade paterna) e, principalmente, não trabahar aos domingos e nem até
tarde no bado. Além desses itens temos o uso de termos que expressam m-
bolos diacríticos sagrados na cultura alemã tais como sanue, espírito, palavra
e ethos do trabaho, que enfatizam a imagem do imigrante empreendedor e de
origem camponesa.
Cabe lembrar que a nua alemã é usada juntamente com o pomerano, res-
pectivamente, na transmissão escrita e oral dessas cartas e das práticas de benze-
ção realizadas pelas muheres na esfera familiar. As palavras alemãs, no entanto,
ganham outros signicados, distintos daqueles transmitidos pela igreja. Para os
pomeranos, não há dicotomias entre a palavra de Deus ensinada pela prédica do
pastor no púlpito e as palavras pagãs da sua tradição oral. Ambas falam da vida
e da morte, enm, das estratégias de reprodução social do mundo camponês.
No texto da Carta do céu, temos as seuintes queões:
a condição da manutenção do modo de vida camponês diante das diculdades
do mundo e das suas tentações (fome, diculdades na família e com os vizinhos,
saída do campo, pobreza e o universo das diferenças no acesso aos recursos);
conduta de previdência e cautela diante da ameaça do o-cumprimento dos
itens expostos na carta pelos anjos e pelo Senhor. Deus concede, mas também
pune e retira seus dons àqueles que não cumprem com a palavra.
Os prolemas que afetam os membros da família e seu relacionamento base-
ado no mutirão e na cooperação mútua com os vizinhos conseqüentemente afe-
tam as relações de produção na esfera do trabaho. As possibilidades de reprodu-
ção econômica eão diretamente relacionadas às condições de reprodução dos
ciclos vitais, expressos pelos ritos de passagem, nascimento, casamento e morte.
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O trabaho penoso baseado na força sica e na qualidade exigida a todos da
família e o cenário dual da vida camponesa eão presentes na linuagem reli-
giosa, usada em várias passagens da Carta do céu. Estes elementos reconstroem
o universo da aldeia camponesa, seus prolemas cotidianos e sua diferenciação
interna na luta por mehores recursos.
Apesar da relevância do signicado das cartas no cotidiano dos pomeranos, os
pastores das igrejas Luterana e Missouri não atribuem a mesma importância e
existência deas no interior das casas pomeranas. As cartas são alvos de crítica dos
pastores da região. São consideradas superstições no sentido negativo do termo.
Muitos pastores atribuem a origem da carta ao fato de elas serem a expressão do pie-
tismo na Alemanha na passagem do século XVII para o XVIII, após o longo perí-
odo de ueras religiosas, quando havia um apego popular às práticas supersticiosas.
As práticas descritas constituem um tipo de conhecimento de domínio pú-
lico. Todo e qualquer pomerano conhece eas práticas. Mas quem as executa
coretamente e possui total domínio são as benzedeiras. Vale lembrar que as
fórmulas mágicas às quais o pastor se refere são aquelas que tratam da cura da
erisipela, doença bastante comum na região.
Sobre o fato de falar abertamente sobre o tema, não diminui ou sequer afeta
a ecácia da magia para a comunidade. Conforme diz Lévi-Strauss (), a e-
cácia da magia eá no fato de ser uma crença coletiva. Esta não se circunscreve à
benzedeira, mas é um bem cultural. Mesmo que uma vez ou outra o ato de benzer
não cure a doença, isto não afeta a crença no seu poder mágico.
Na descrição do pastor, temos claramente a oposição entre a palavra escrita da
religião luterana e a narativa oral fantástica dos pomeranos. A ênfase na escrita
como fundamentação das verdades da religião luterana é acionada no discurso
dos pastores em contraposição aos elementos fantásticos presentes nos relatos
orais dos pomeranos.
Não dicotomias dea ordem para os pomeranos, que circulam entre os
dogmas mais renados, repensando-os de acordo com seu cotidiano e utilizando-
os como elementos de importância nas representações de sua identidade.
Goody (, p. ) mostra que nas igrejas letradas todo processo de mudan-
ça toma a forma de cisão, pois a rigidez de seus dogmas e da repetição ritual das
 Segundo Pike (, p. ), o pietismo é o nome atribuído “a um grupo de luteranos alemães
que seguiram a predicação de Philipp Jakob Spener. Este movimento foi uma reação contra os
representantes da ortodoxia luterana, que concedia um papel maior ao sentimento religioso,
à popularização do tema da Paixão de Cristo, à valorização da oração, dos versículos bíblicos,
do estudo da blia e à piedade pessoal. Em sua última etapa o pietismo veio a identificar-se
com a mera devoção. O pietismo teve forte influência em Württemberg, na Pomerânia, e
no vale do Wupper, bem como em alguns lugares da Polônia, Dinamarca e Suécia (S,
, p. ). Ver Jean Delumeau ().
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palavras não desenvolve o mesmo processo de incorporação e revitalização que
ocore na situação oral. Nee sentido, a oralidade refaz as fronteiras xas da
escrita, atribuindo aos símbolos religiosos novos signicados.
Todorov () mostra que a narativa oral fantástica se situa no limite entre
dois gêneros: o maravihoso e o estranho (das Unheimlice). O medo, a hesitação
e a reação provocados pelo sentimento de estranheza como elementos que pro-
duzem efeitos no narador/ouvinte o vitais na denição dos limites imprecisos
do relato fantástico.
A natureza inquietante do fantástico é assim descrita por Cailois, apud
Todorov (, p. ): “É necessário ao fantástico aluma coisa de involuntário, de
sofrido, uma interogação inquieta não menos que inquietante, surgida improvi-
sadamente de não se sabe que trevas, que seu autor viu-se obrigado a tomar.
Goody (, p. ) relativiza as possíveis diferenças entre a inquietude do
relato oral e a rigidez das escrituras religiosas, quando arma que “embora a reli-
gião letrada reivindique a predominância, tente com freqüência excluir os cultos
locais de ria consideração teológica ou intelectual e os dena como mágicos,
folclóricos, desvios do caminho coreto,no cotidiano os dois conjuntos de crenças
e práticas se complementam.
Além da uidez e criatividade na elaboração da narativa oral fantástica, cabe
lembrarmos da função de bicoleu do pensamento mágico. Como arma Lévi-
Strauss (ibid)., o bicoleu opera por signos, diz-se-ia que universos mitológicos es-
tão destinados a ser desmantelados assim que formados para que novos universos
possam nascer de seus fragmentos. O sentido mágico é constantemente recriado
na dinâmica das relações sociais, não se encontra, portanto, restrito aos objetos.
Outro aecto a ser ressaltado na magia, é que ea é ao mesmo tempo signo
e conito. O ato mágico não é constituído apenas por palavras, mas também por
geos, personagens, naradores que são protagonistas e as circunstâncias que
envolvem sua produção. Ao mesmo tempo em que age sobre a pessoa, ea age
sobre o objeto de seu discurso. Seundo Todorov (, p. ), a magia o é
meramente descritiva ou analítica, mas performativa e transformadora.
Nee sentido, tanto as acusações de bruxaria quanto os símbolos que compõem
seu cenário as fórmulas de benzeção, geos, ohares, cartas de proteção são
parte de um mesmo campo semântico presente nas situações cotidianas diante dos
conitos internos e externos à comunidade. O bruxo, a benzedeira e o embruxa-
do – pomeranos e/ou brasileiros –, participantes dee campo semântico, os trans-
formam diante do grau de conito, mediando as várias reciprocidades em jogo.
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W, Klaas. A comida, a faília e a construção do nero humano. Dados.
Rio de Janeiro:. v. , n. , p. -.
Entre elas
: Afetividade versus
complementaridade
PAU LO RO G E R S DA S I LVA F E R R E I R A
…essas coisas nunca suspeitadas
nos limites da nossa casa…
R N, .
E  corroborar uma crítica às teorias
do campesinato no que concerne a construção estrutural da sexualidade femi-
nina, compreendida como complementar e/ou dependente à manutenção das
relações parentais, vicinais, contratuais. Partindo de uma etnografia numa ambi-
ência camponesa, no sertão nordestino, a intenção é trazer à baila como se cons-
truiu um discurso enquadrado, e encoberto, sobre o corpo da mulher camponesa.
Para tanto, e como recorte metodológico, recobramos o impasse das sexua-
lidades retratadas como excessivas, inutilitáias, em termos bataiianos, para os
moldes que compõem uma gramática púlica, pautadas nos discursos de fachada
(G, ), prescritas e proscritas pelas teorias vigentes até então.
Trata-se das parcerias homoafetivas entre muheres, comuns no vilarejo em
queão e quiçá além dele, porém compreendidas de forma ambíua, por inter-
dio da dinâmica dos rumores sociais, locais, e esquecidas pelas teorias sobre
sociedades camponesas. A intenção, portanto, é tornar perceptível a ética dos
afetos mal-ditos como detentora da mudança na faina da história, como mante-
nedora de abergar valores que são, muitas vezes, encobertos e/ou ltrados pelos
discursos acadêmicos.
Recuperando os planos ociais e ociosos (B,) que se imbri-
cam na realidade coletiva, partiremos da construção do discurso coletivo/mas-
culino que encobre signicados-outros aquém e além dos universos cotidianos e
 Trata-se de uma categoria analítica e não etnográfica.
N E A D E S P E C I A L
sexualizados das muheres campesinas. Nee sentido, trago à tona um material
coletado de  a  com alumas muheres (casadas e solteiras) que mantêm
parcerias ambíuas na comunidade investigada.
Dearte, a comunidade de Goiabeiras (nome ctício adotado para o lugar
da pesquisa de campo) eá imersa no campesinato nordestino, eecicamente
no sero cearense, na região do Cariri, onde a categoria sítio é pensada como
uma polity, de certa forma corporativa, em que predomina uma aparente en-
dogamia de lugar, alicerçada pelo pátrio poder e pela constituição do ideário
da família extensa.
Feito o apanágio inicial, chegamos a alumas indagações basilares: Como foi a
então retratado o corpo da muher camponesa? Como foi denida discursivamente
sua sexualidade? Como coexiste uma reprodução social ocial imbricada em uma
ética dos afetos ociosa? Como pensar a homoafetividade feminina no campo?
Outrossim, inicio partindo de um viés economista dos pioneiros sobre uma
teoria das sociedades camponesas. Enfoco a categoria analítica faília como pre-
cursora para o -reducionismo da construção do corpo da muher camponesa e a
categoria espaço-experiencial casa como ambiência sócio-afetiva à dinâmica dos
encontros. Categorias eas que ainda hoje inuenciam monograas no âmbito
sociológico, antropológico e econômico.
Portanto, o presente artigo sedivido em dois momentos, a saber: o primeiro
de cunho teórico, recobrando os principais autores que selecionaram, enquadra-
ram, determinados valores, no que tange ao corpo da muher camponesa, como
centrais às formulações das teorias sobre o agrário. Por m, um seundo momento,
de cunho etnográco, abro para uma relação dialógica com as muheres campo-
nesas goiabeirenses, recobrando falas, afetos e vivências.
O :
O
Alexander V. Chayanov ( e ) parte de um princípio metodológico que
representou, em seu tempo, uma inovação: traçar uma teoria dos sistemas eco-
nômicos não capitalistas, focalizando as sociedades camponesas, partindo de
uma forma, até então, inteiramente diferente, isto é, da unidae econômica fai-
lia não asalaiaa.
Para o autor, a intensicação na unidade de trabaho familiar pode ocorer
mesmo sem ea alteração na situação de mercado, simplesmente pela pressão
das forças internas dessa unidade, quase sempre devido ao tamanho da família
ser desfavoravelmente proporcional à extensão de tera cultivada.
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
Baseado em levantamentos eatísticos na Rússia, desde , Chayanov for-
mulou sua teoria sobre o campesinato partindo da distinção entre um moo de
proução doméstico em contrapartida às sociedades escravistas, feudais e capita-
listas. Assim, o modelo chayanoviano centrava-se no grupo doméstico individual,
cujo objetivo seria garantir a satisfação de determinadas necessidades compreen-
didas como básicas, e o para a obtenção de lucro, razão pela qual o campesinato
não deveria ser considerado como uma forma de capitalismo incipiente. Nees
termos, a unidade camponesa, compreendida por ele, seria concomitantemente
unidade de produção e unidade de consumo.
O grupo doméstico era tomado como um too e a categoria trabaho era res-
signicada como indivisível e o fragmentada em salários. Nees termos, foi
criada uma teoia da economia failia, alicerçada no suposto equilíbrio entre
consumidores/produtores, entre a satisfação das necessidades familiares e a pe-
nosidade do trabaho.
Chayanov acompanha a “história natural da família desde o casamento, ao
longo da chegada dos hos à idade produtiva, até o casamento da seunda gera-
ção. E é nee ínterim que ele elabora o conceito de diferenciação demográca
que não se confunde com diferença de classes, mas que traz uma nova perectiva
para o estudo da dita economia familiar para a época.
Outrossim, a unidade de trabaho familiar só consideraria vantajoso o inves-
timento de capital caso ee possibilitasse um nível de bem-ear mais elevado; de
outro modo, reabeleceria o equilíbrio entre penosidade do trabaho e satisfação
da demanda.
Desse modo, a lógica da atividade econômica camponesa é distinta e mesmo
oposta àquela da economia capitalista. Porém, uma outra premissa, e que consi-
dero basilar para a compreensão do discurso sobre o corpo da muher camponesa,
se estrutura em sua teoria, a “natureza biológica” da família.
É a suposta “natureza biológica da família que determina as leis de sua compo-
sição, e conseqüentemente as leis da economia camponesa como um todo. Portanto,
pela “lei de Chayanov” (W, ) a família incluiria unidade de con-
sumo e unidade de produção em que o grupo doméstico se caraerizaria pelo-
mero de consumidores com o de produtores, assim como o tamanho da família.
E é esse ranço teórico que se replica na construção da ordem do discurso sobre
a sexualidade camponesa até os dias atuais como veremos à frente.
Por sua vez, inuenciado pelo modelo (ranço) chayanoviano, Jerzy Tepicht
(), ao analisar o campesinato polonês, percebe o caráter familiar da economia
camponesa como uma éité preière da qual decoreria a relação com os fatores
de produção e com o mercado, e a relação entre o trabaho e sua remuneração.
Enquanto Chayanov privilegiou a dicotomia consumidores/produtores, Tepicht,
por sua vez, relativiza-a.
N E A D E S P E C I A L
Para Tepicht, o grupo doméstico não conteria apenas unidade de consumo
e unidade de produção, mas foças plenas (homens em idade produtiva) e foças
marginais (muheres, idosos e crianças). Diferentemente de Chayanov que pen-
saria eas últimas como membros do grupo doméstico que consomem mais do
que produzem, Tepicht percebe que são nelas que repousaria a eecicidade
camponesa.
Dans la plupart des feres paysannes d’Europe, l’esentiel des traaux des caps est asuré
pa le cef de faie et pa les mebres de la faie en pleine foce. Pa contre, le service des
étales, des poceies et de la base-cou est asuré surtout pa le traail à mi-teps des fees,
enfants, ieiads, plus les marges de teps disponiles du cef de faie, en some, pa les
“foces marginales” de la fere. On puait les apele ausi non transférales puisque la mêeOn puait les apele ausi non transférales puisque la mêe
faie, dès quee quie son exploitation agicole, na plus recours à ces foces pou asure sa
subsistance. ((T, , p. ).
Portanto, no limite, as foces marginales permaneceriam operativas no inte-
rior da propriedade. Os supostos consumidores podem ear colaborando para
reduzir a penosidade do trabaho, ao invés de aumentá-la. Em contrapartida
ao esquema chayanoviano, para Tepicht, os marginales passam a ser centrais à
reprodução camponesa.
Essa distinção entre forças plenas e forças marginais explicaria a viabilidade
econômica de certas atividades desenvolvidas no interior do empreendimento
camponês por carem a cargo das tais forças marginais e, portanto, a um custo
de oportunidade muito baixo. Para Woortmann () ea oposição entre ambas
as ‘forças de trabaho, que negaria a indivisibilidade do trabaho, coresponderia
à composição do grupo doméstico por sexo e idade. Para a antropóloga, em sua
interpretação sobre a teoria tepichtiana, as forças plenas são representadas pelos
homens adultos em ‘idade produtiva, com possibilidade alternativas no mercado
de trabaho e empregadas nas atividades principais do empreendimento. Assim,
as forças marginais são representadas pelo trabaho a meio tempo de crianças, de
idosos e de muheres, isto é, aquelas que podem ser consideradas ‘não transferíveis’,
e que geram uma renda marginal.
Portanto, Tepicht propõe que a família se encontre no seio da economia cam-
ponesa. Uma simbiose entre o empreendimento agrícola e a economia doméstica,
expressa no coletivismo rigoroso da família. No que tange ao papel da muher
camponesa, o trabaho seria por tempo parcial, de comum acordo com a divisão
sexual do trabaho, em que competem a elas as tarefas domésticas.
É como se, e parafraseando Woortmann, houvesse um trabaho parcial “pro-
dutivo” (desde o ponto de vista economista) e outro “não-produtivo(as atividades
realizadas em casa), que ao meu ver corobora a uma visão utilitaista sobre o
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corpo da muher camponesa. Portanto, se eas são produtivas são seuramente
reprodutivas, isto é, centrais para a reprodução do grupo doméstico e do próprio
trabaho, no viés tepichtiano.
Na eeira com Woortmann, no trato da concepção de muher camponesa,
via assertiva tepichtiana, os valores camponeses têm na sua construção ideológica
a realidade do subjetivo, pois seria dessa divisão sexual do trabaho entre forças
plenas e forças marginais, no que se refere à muher, derivado do suposto senti-
mento subjetivo presumido do camponês,que se abergaria um valor contratual,
transposto nas trocas matrimoniais.
Em suma, Chayanov e Tepicht focalizam a composição interna do grupo do-
méstico, central para o entendimento de um discurso sobre a sexualidade cam-
ponesa púlica, mas adotando perectivas bastante distintas.
É com Bouslaw Galeski () que as teorias sobre o campesinato ganham
um novo fôlego, porém pautado em vehos ranços ideológicos. Contaminado
ainda pelo economicismo chayanoviano, Galeski elabora seu conceito-chave
sobre a família. Ela, para ele, seria um worktea,isto é, um grupo diferenciado
internamente no trabaho e hierarquizado, onde o indivíduo eá enraizado na
família e a ela subordinado.
Para o autor, as relações externas da família ganham relevo, e ele enfatiza
uma dimensão fundamental: a subordinação do indivíduo ao todo representado
pela família, (ou seja, o Eu subordinado ao Nós). Aponta ainda sobre a nese e
funcionamento da faily far em que a escoha da esposa deve asseurar que o
novo casal tenha as bases necessárias para garantir sua existência, o que envolveria
tera e padrões de herança.
Por sua vez, os rem-casados são fundamentais para Galeski porque pro-
m a continuidade da identicão da família com a tera, provendo tamm
oshos, compreendidos concomitantemente como força de trabaho e como
herdeiros.
O destino dos hos earia associado a far como à família, seja herdando
a ocupação ao agricultor, seja renunciando o casamento romântico. As bases
da comunidade eariam na identicação entre o empreendimento familiar e a
família, pois o que valeria seria a estrutura e não os sentimentos.
Portanto a faily faré vista como uma continuidade entre gerações, e ee
é um ponto importante para o entendimento das relações contratuais e para o
constructo da categoria muher camponesa.
Desse modo, e na eeira com Woortmann (), os três autores comentados
compreendem a família como central para a compreensão do campesinato. Mas, o
que se enfatiza, aponta a antropóloga, é fundamentalmente a proução econômica
pela faília, mais do que a proução social da faília, como instituição e como valor,
ou ainda as relações entre famílias.
N E A D E S P E C I A L
C
: W M
Eric Wolf (), ao tratar do fundo matimonial em sociedades camponesas,
arma que o casamento possibilita a satisfação sexual dos camponeses, e as
relações dentro dessa unidade geram afeões que ligam todos os membros
entre si.
Em sua tentativa de se distanciar de uma ordem econômica para o campesi-
nato, mas embebido também pelo ranço chayanoviano, Wolf apregoa e avança
ao constatar que o camponês não realizaria um empreendimento no sentido
econômico, mas ele sustentaria uma família e não uma empresa.
Assim, o camponês procuraria organizar seu cotidiano por meio de gastos,
que para o autor seriam necessários para a reauração de sua subsistência,
como para a prodão e para o consumo, eis o que ele conceitua como fundo
de manutenção.
Por sua vez, ao pensar nos tais “excedentes sociais,” Wolf discore sobre o fun-
do ceimonial. Assim, se o camponês tem pretensões em participar das relações
sociais, e aqui acresço relações no âmbito ocial, devetrabahar para a criação
de um fundo visando às deesas por tais atividades.
O camponês seria concomitantemente um agente econômico e o cabeça de
uma família. Sua propriedade tanto seria uma unidade econômica como um lar.
Ao tratar da dinâmica da categoria família o autor ainda infere que ela seria a
mais restrita e íntima unidade que vive o camponês.” (W, , p. ).
Ao analisar o papel sexual da muher camponesa, Wolf arumenta que ele
earia subordinado a um sistema de autoridade centralizado no macho, como
prevalece, seundo o sociólogo, entre a maioria dos camponeses, pois como ele
categoricamente arma: as muheres devem aprender a ajustar seus desejos
aos desejos prioritários de seus maridos (id., p. )
Na esfera cerimonial, Wolf arma que sua dinâmica seria responsável pelas
recompensas para as condutas apropriadas quanto pelas sanções e penas para as
ireularidades.
Portanto, em sociedades camponesas, o cerimonial giraria em torno da uni-
dade doméstica, manipulando o pretenso controle das tensões que surgem no
decorer das ações. Ele existiria, seundo Wolf, para sustentar e unir conjuntos
de atores que, sem isso, poderiam decair e buscar identidades sociais separadas.
Em tais sociedades, os indivíduos agiriam dependentes mutuamente, o que hes
daria um senso de continuidade que torna a vida praticável e signicativa.
A título de exemplicação, ao pensar nas tradições religiosas no campo, imer-
sas nas ações cerimoniais, Wolf acentua a ecácia simbólica das sanções sobrena-
turais para as condutas desviantes.Nee sentido, ele demonstra a ênfase deas
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sanções de conduta na esfera das comunidades camponesas nas quais as tensões
estruturais entre grupos domésticos são comumente violentas, ainda que sejam
silenciadas em nome do interesse da união e da coexistência vicinal.
A religião camponesa para Wolf, não se explicaria unicamente em seus pró-
prios termos. Ela funcionaria para sustentar” e equilibrar” o ecossistema cam-
ponês e a organização social, como também constituiria um componente da or-
dem ideológica mais ampla. Portanto, ela forjaria mais um elo do que ligaria o
campesinato àquela ordem.
Henri Mendras (), por sua vez, fundamentado no campesinato francês,
introduz seu pensamento a partir de uma assertiva bastante instigante em que
todos os teóricos do campesinato, seundo ele, eariam de acordo em atribuir
uma importância capital à família, no estudo das sociedades camponesas.
Tratando o campesinato como algo rotineiro, e inuenciado ainda pelo ranço
chayanoviano, Mendras prosseue sua análise sobre sociedades camponesas redu-
zindo a família à noção de grupo doméstico, ou seja, aqueles que vivem do mesmo
pote e do mesmo fogo, do mesmo pão e do mesmo vinho, negando, portanto, a
relevância do parentesco para os estudos sobre o campo.
Para Mendras, a divisão sexual do trabaho earia no interior do grupo do-
méstico. Nas sociedades camponesas as classes de idade e de sexo isolam-se na
transmissão de uma parte da cultura e na dinâmica do vivido, do coletivo, parti-
cularmente na organização das feas.
Outrossim, para o autor, as únicas diferenciações de papéis que a sociedade
camponesa conhece são as devidas ao sexo, idade e posição dentro da parentela
ou do grupo doméstico, ou, nalmente, as devidas ao exercício de um ocio ou
de uma função particular.
Eis a ordenação social proposta por Mendras: papéis denidos e eanques,
coercitivamente exercidos via controle social e engendrados pela rotina. As re-
lações sociais seriam, para ele, codicadas em um número restrito de situações
e de intercâmbios, que por sua vez, seriam claramente denidos e conhecidos,
onde cada camponês cumpriria seu papel respondendo precisamente às ex-
pectativas do próximo.
Nesse apanágio analítico, o julgamento moral supõe uma moral válida e aceita
por todos, de forma que as divergências não apareçam senão em nuanças e prá-
ticas que dão lugar ao confronto de opiniões diversas.
Assim, as sociedades camponesas parecem cimentar seu sistema social em
um aranjo” entre homogeneidade cultural e diversidade social. Para Mendras, a
economia camponesa funcionaria essencialmente para responder às necessidades
da família e, de forma mais abrangente, as da coletividade local.
Para o camponês, é necessário entender a família camponesa, como uma uni-
dade indissociável que conta ao mesmo tempo os braços que trabaham e as bo-
N E A D E S P E C I A L
cas que têm de ser alimentadas, unidade que pode ser tratada do ponto de vista
econômico, seundo Mendras, como um agente.
Mas ao tratar da conduta desviante, criada pelas mudanças globais, Mendras ar-
ma que …o camponês não tem razões para pôr em queão sua rotina nem tentar
uma transformação de suas pticas (M, , p. ). Pois tal qual os
notáeis, aqueles sujeitos migrantes que ao retornarem para a aldeia trazem consigo
as “novidades de fora,ee camponês desviante que passaria a atuar não mais como
os outros, inuenciado por tais mudanças globais, seria, para o sociólogo, um objeto
de escândalo em uma sociedade de interconhecimento. Tais novidades tendem a
ser domesticadas, selecionadas, ou descartadas, em prol de um s.
Portanto, o campesinato em Mendras é eanque, calcado na rotina que, por
sua vez, determinaria as sociedades tradicionais rurais, com seus papéis estrutu-
rais sexuais previamente denidos via biopoder do discurso (F, ),
sendo as mudanças uma mera adaptação domesticada.
A
: P B
É com Piere Bourdieu () que encontraremos subsídios para pensar as imbri-
cações entre púlico e privado, entre o ocial e o ocioso em universos agrários.
Nee sentido, as estratégias matrimoniais entre camponeses e camponesas seriam
uma eécie de jogo à manutenção da reprodução social ocial. Porém, o modo
prático por e para os usos ociais e ociosos que subjazem os agentes e as redes
de sociabilidades afetivas tenderiam a manter um eado de funcionamento em
detrimento, discursivamente, de interesses (materiais e simbólicos) compreen-
didos como vitais para os universos rurais.
A ocialização seria o processo pelo qual o grupo (ou os que aparentemente
dominam) aprende a mascarar sua própria verdade seuindo como estratégias a
aliança com posições estruturais (sejam prossionais, sejam hierarquizadas pelos
códigos de virilidades), constituindo assim a ordem social, em que abergaria o
pátrio-bio-poder dos discursos de fachadas. Eis as estratégias de ocialização que
visam produzir as práticas nas regras, tendo como objetivo transmitir interesses
privados e particulares em interesses ditos desinteressados, legítimos, na consti-
tuição de uma coletividade ideal camponesa.
La concuence pou le pouvoiociel est ciconscite aux homes, les fees ne pouvant entre
en concuence que pou un pouvoi oué à ree ocieux. Les homes ont pou eux lodreLes homes ont pou eux l’odre
social tout entie et toute l’institution ociee, à comencepa les structures mythico-ituees
et généalogiques qui, en réduisant l’oposition entre l’ociel et pié à loposition entre le dehors
et le dedans, donc entre le masculin et le feinin, étalisent une hiéraciesation systéatique
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ouant les interventions féinines à une existence honteuse, clandestine ou, au mieux, ocieuse
(B, , p. -).
O sentido prático (le sens pratique) em Bourdieu é bom para pensar como se
arquitetam discursos de fachadas sobre uma moralidade pretensamente harmô-
nica do homem do campo. Como os discursos, aparentemente desinteressados, se
arquitetam em um jogo social em prol dos arquétipos estruturais dominantes de
muheres e homens. Eis o eqvoco da maioria dos teóricos sobre o campesinato,
engessamento dos discursos ociais e caricaturalização da sexualidade camponesa
no formato sinular, desprezando o diverso (as sexualidades camponesas) que
subjaz a ética dos afetos no plano ocioso.
Em tese, os planos ociais e ociosos nos o pistas sobre a movimentação
do centro nos contextos agrários, nos mostram a dinâmica das estratégias dos
rumores na elaboração da ambiüidade de personagens sociais, sexualizados, dos
afetos clandestinos e dos afetos mal-ditos. Em uma coexistência entre planos, o
ideário campônio abre-se para o ambíuo, para a multiplicidade de linhas de fuga
(D, ) em que o corpo é pura experimentação e acontecimento. Trata-
se agora de averiuar ee outro universo concomitante (ocioso) que também
coabita com o centro, pois ele também o é. Portanto, os planos ociosos, estrutu-
rados e estruturantes formulam uma interatividade dialógica que reinscreve no
corpo da muher camponesa, o volátil do experiencial.
O :
A teoria sobre o campesinato brasileiro ainda eá alicerçada nesse ranço chayano-
viano. De viés economista e utilitarista, as teorias sobre o agrário, que aqui se estru-
turam, permanecem pautadas em um discurso ocial sobre o campo, compreenden-
do a sexualidade como estrutural e central à reprodução sociobiológica de um grupo,
em prol da manutenção das relações contratuais [parentais e vicinais] centrípetas.
Nesse sentido, aluns autores se deacam na introdução dos estudos rurais
brasileiros: Antônio Cândido (), Octavio Veho (), Pereira de ueiroz
(), Moura (), Tavares dos Santos (), Heredia (), Garcia Jr. (),
Klaas Woortmann () e Elen Woortmann () entre outros.
Deacaremos apenas aluns autores, que diretamente ou indiretamente se
centram ou discoreram sobre a sexualidade camponesa, como exemplicação
de um discurso utilitarista, em termos batailianos, sobre a elaboração de uma
economia da intimidade que, em suas análises de valores ltrados, encobriram,
de forma prescritiva e proscritiva, a ética dos afetos.
O camponês, na maioria dos trabahos citados, e com raríssimas exceções, é
pensado como um Eu subordinado a um Nós. Um ente que caregaria, via destino,
N E A D E S P E C I A L
sua posição sexualizada estrutural, previamente eabelecida, em que burlá-la ou
rompê-la desembocaria na “expulsão estrutural” do métie campônio.
Trata-se de uma idealização que corobora para engessar, xar e valorar as
sociedades camponesas e suas sexualidades de acordo com o pretenso modelo
ideal de parentela e de sexualidade ociais. Assim, os laços e jogos entre famílias
parecem ser centrais a tais estudos, em que os sentimentos são ditados, muitas
vezes, pelas estruturas.
Assim, sigo por um caminho contrário. Partindo do impasse da diversidade na
sexualidade camponesa, ou seja, das sexualidades camponesas, recobro as relações
homoafetivas entre muheres, em uma contraposição ao modelo de complemen-
taridade ou dependência que endossa o jogo teatral discursivo (G, )
das faílias de be sobre o corpo da muher campesina. Diferentemente da maio-
ria dos trabahos desenvolvidos no Brasil sobre o rural, em que a sexualidade da
muher é pensada como estrutural, recobro o indizíel (L, ) na ética dos
afetos. Sexualidades nômades, fomentadas pela lei do desejo, que desmantelam
a harmonia estrutural caricaturalmente construída pelos discursos acadêmicos
sobre o agrário.
Porém, recobrando e criticando analiticamente essa economia da intimidade
estrutural, chegamos a alumas queões: Como se pensa a muher camponesa
no Brasil? Como se construiu a história da sexualidade camponesa via discursos
acadêmicos? Há espaço, nas teorias sobre o campesinato brasileiro, para as rela-
ções homoafetivas femininas? ue pode o corpo da muher campesina? O que
seria essa ética dos afetos mal-ditos?
A
: S
Em O capesinato brasileiro, Maria Isaura Pereira de ueiroz () inicia sua
arumentação diferenciando sociedades camponesas de campesinato. Para ela,
ee último seria um conjunto de camponeses ocupando na sociedade global uma
posição de inferioridade socioeconômica e política, apesar de constituir a massa
majoritária da população. Do mesmo modo, ao denir as relações contratuais,
em eecial, o casamento, infere que elas são criadoras de alianças que possuem
idêntico valor, o que acaretaria também obrigações recíprocas.
Ao tratar dos intercasamentos entre proprietários e não-proprietários, a autora
arma que devido às posições recíprocas a proximidade é pautada pelo compadrio.
Portanto, o bairo rural seria um grupo social de tendência iualitária. Em sua de-
nição da categoria comunidae, Pereira de ueiroz se refere a grupos de volume
variável, mas sempre medíocres, constituindo quase sempre unidade pertencente
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a um conjunto mais vasto, cujos membros participam da mesma civilização, mas
em cujo interior não seriam encontradas grandes variedades de subgrupos, que
neles a divisão de tarefas não é tão extensa. Portanto, para ela, no interior dessa
unidade social, as relações dominantes entre os membros se caraerizariam como
pessoais, diretas, afetivas, contrapondo ee tipo de conuração social a um outro,
a “sociedade” (impessoal, indiferente, contratual, urbano-centrada).
Recuperando a dança do Bumba-meu-boi como manifeação do teatro popu-
lar no Brasil, infere que essa dança folclórica defende valores tradicionais do grupo,
uma eécie de pedagogia para inculcar determinados hábitos selecionados. O con-
trole social que se exerce no momento do feejo, visa, portanto, reforçar e revigorar
comportamentos que são conformes à moral tradicional. Nesse contexto, os papéis
femininos são representados por homens, reminiscências do tempo antigo em que
era considerado “indecente que a muher representasse nas comédias.
Ao discorer sobre a divisão do trabaho sexual, a conduta sexualizada das
camponesas e dos camponeses no Brasil, em investigação in locus, a autora apregoa
que concernente ao padrão autoritário da decisão do homem, as mães educam os
hos desde pequenos, mas hes inculcam os padrões de comportamento ditados
pelo pátrio poder. Em caso de desobediência grave, fazem queixa ao pai de famí-
lia, que toma as providências necessárias. A autoridade familiar, para Pereira de
ueiroz, é então claramente exercida pelo pai. Assim, embora não exista mais o
padrão do pai escoher marido para as has, o consentimento dele continuaria
importante para que o enlace se realize ou não.
Abrindo um parêntese, recobrando a personagem da muher “mandonacomo
exceção do suposto modelo ideal moldado pelo pátrio poder, ou seja, aquela mu-
her camponesa que não manifearia submissão com relação ao que o marido
quer ou pede, mas impõe sua vontade, para Pereira de ueiroz, tudo isto pode
ocorer somente no caso de um marido que “pula a cerca,isto é, que se entrega
a aventuras amorosas, poderia a muher falar mais forte; o marido, então, não
teria autoridade e baixa a cabeça. Trata-se de uma eécie de compensação” da
muher e de punição do marido, uma vez que ee, de certo modo, perde sua
posição de proeminência.
A muher camponesa, para a autora, tem status de subordinação ao homem,
principalmente ao pai, e em seuida ao cônjuge. Na sociedade camponesa, embora
havendo divisão de tarefas seundo os sexos, a muher acompanha o marido ao
campo; não haveria separação entre um universo masculino e outro feminino de
trabaho, mas apenas um universo em que as tarefas masculinas e femininas são
ora coincidentes, ora complementares.
Eis a complementaridade da muher camponesa. Uma mão-de-obra útil para
o roçado, uma sexualidade para a reprodução em prol da perpetuação da eécie.
Burlar com tal ideologia seria para o discurso púlico dos camponeses, e também
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para a maioria dos discursos acadêmicos sobre o agrário, motivo para a “expulsão
estrutural” do grupo social.
Em Os hedeiros da tea, Margarida Maria Moura (), ao analisar a rele-
vância da herança no campesinato mineiro, percebe que o patrimônio teritorial
seria mais do que colocá-lo em mãos dos descendentes diretos de um indivíduo,
mas como asseurador da reprodução da área como camponesa, em que a herança
enfeixaria um papel estratégico nee sentido.
Falar de trabaho em o João da Cristina, vilarejo investigado por ela, é falar
da distribuição das tarefas por sexo e idade entre parentes que habitam um mes-
mo sítio. Para a autora, a família compõe um grupo indissociável, no seu conjunto,
da condição de trabahadores econômicos.
Assim, a economia de cada sítio eá calcada na oposição complementar uni-
dae de proução e unidae de consumo “perfeitamente interligada na economia
camponesa, fornecendo, por ea mesma razão, o seu traço distintivo fundamen-
tal(M, , p. ). Podemos perceber aqui a força incontee do ranço
chayanoviano nea assertiva.
Ao pensar o trabaho feminino e masculino naquele povoado, a autora de-
monstra que se trata de uma separação radical, isto é, ambos são denominados
trabahos, mas há um “trabaho de casae um “trabaho da roça.As lides domés-
ticas são sempre …trabaho,podendo ser eecicadas como uma ajuda em
relação ao trabaho na roça…”(M, , p. ).
Se o “trabaho da casa é menos “pesado” para os sitiantes em que há, seundo
Moura, uma preocupação em iualar as duas formas [complementares] de trabaho,
ou seja, o trabaho de casa poderá vir a ser eecicado como ajuda,apontando-
se nesses casos para o caráter complementar, dominado, que ee possui em relação
ao “trabaho na roça,” o inverso, como endossa a autora, não seria possível.
Portanto, o trabaho da casa caberia à muher, mãe e has, a partir da faixa
de idade de sete a nove anos. Este “trabaho no lar” é também para o lar, ou seja,
aquelas tarefas que visam asseurar bens alimentícios, objetos ou serviços que
servem para a sobrevivência dos membros da casa.
Assim, a muher camponesa atuaria na casa (unidade de consumo) onde
desempenharia um papel complementar ao homem, que atuaria no âmbito da
unidade de produção. Nesse contexto, tudo o que se ligaria à preparação para o
consumo do que a tera produziu é atribuição da muher.
No caso da distinção sexual da autonomia ou emancipação social de rapazes
e moças na dinâmica do sítio eá estruturalmente dividida no acesso a tera (no
caso dos rapazes) e na autonomia de decisão que, na condição de dona de uma
casa de morada [seu lar] passa a ter (no caso das moças).
Alicerçado em uma endogamia de lugar, o povoado de o João percebe a
unidade familiar pautada na família nuclear com sua prole. Ao tratar da eman-

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cipação dos mancebos, a autora discore que ela é conquistada pela concessão de
um lote de tera que já necessita manter um provento próprio em função da nova
etapa etária que os neo-adultos conseuiram.
Assim, a emancipação não seria um marco xo que, transposto, passaria o
indivíduo para um novo quadro de direitos e deveres sociais. A licença, por parte
do pai, para a construção de uma casa de morada geralmente próxima ao tereno
que ee indivíduo já cultivava, é fato sempre ligado, para Moura, ao casamento.
Portanto, o novo casal tornaria possível reproduzir naquela área o binômio
unidade de produção e unidade de consumo que caraeriza a propriedade cam-
ponesa independente: no caso, o homem produz na “roça visando manter a casa
de morada onde trabaha a muher, discore Moura.
Por m, em sua teoria das sociedades camponesas, os papéis sexuais deman-
dariam uma economia da intimidade em que os excessos, as luxúrias, não são
bem vistos, ou dito de outra forma, o mal-ditos, pois a complementaridade
entre os sexos tende a denir e estipular os lócus estruturais dos sujeitos-atores
encobrindo, no discurso púlico, a ética dos afetos.
D
: W
Em O trabalho da tea, Klaas Woortmann e Elen F. Woortmann () funda-
mentados no campesinato sergipano, inferem que o trabaho produz o gênero. Ao
falar sobre ele, os sitiantes, e mais notadamente suas muheres, também o asso-
ciam à sexualidade, sempre em tom jocoso; ao fazê-lo, seundo os antropólogos,
novamente falam de gênero.
A sexualidade camponesa tende a fazer analogias com a natureza, ee domí-
nio imbricado com a realidade coletiva. A título de exemplicação no trato do
corpo da muher campesina, ao tratar dos pêlos pubianos femininos, os campo-
neses falam de forma análoga ao que eles denominam como “mato,” seundo os
autores. Enquanto solteiras, o domadas,” as muheres mantêm esses pêlos. De
acordo com os antropólogos, pouco antes da cerimônia do casamento, porém, a
noiva é submetida à retirada desse “mato,como relatam os camponeses, para
que o marido possa nela plantar na noite de núpcias. Dizem as muheres, que
não precisam brocar o mato” porque brocam o mato delas,governando” seu
próprio corpo. Assim como apregoariam os homens com relação à roça, conjetu-
ram as muheres: “limpinha é uma lindeza.
Outrossim, a muher camponesa deve, seundo Woortmann & Woortmann,
se manter “limpa” para o reo da vida conjugal numa clara alusão às limpas pe-
riódicas da roça. Análoga à mahada, a muher é vista como “passiva e nenhuma
delas “produz” sem a iniciativa do homem.
N E A D E S P E C I A L

O lugar da sexualidade, naquele contexto camponês, não seria no quarto da
casa, ou não exclusivamente ele, mas a roça – para a surpresa dos investigadores.
Nees termos, o processo de trabaho não apenas evoca a sexualidade, com seus
ritos de passagem, mas a ele se associa estreitamente.
É após a iniciação sexual em que o ho passaria a ajudar o pai na deruba e
na queimada, isto é, no enfrentamento com a “natureza perigosa,com o mato.
Nee sentido, uma relação simbólica no discurso dos camponeses, pautado
em uma identidade coletiva/masculina, entre muher e mato.
Assim, o processo de trabaho inicia também a simbolização do espaço, ou a
culturalização” da natureza. Seundo os autores, as muheres camponesas, por
exemplo, teriam acesso ao mato depois que ee foi aansao, isto é, depois
que a natureza foi domesticada, pois …essa domesticação é feita pelo trabaho,
o operador” da passagem da natureza para a cultura, que também domestica
outra dimensão natural, transformando sexo em gênero(W ;
W, , p. ).
Para Woortmann; Woortmann são concepções classicatórias que demar-
cariam espaços de gênero, cujas fronteiras não deveriam ser transgredidas, para
que sejam mantidas as fronteiras sociais. Portanto, a construção dos espaços de
gênero faz-se ainda pelo uso simbólico dos instrumentos de trabaho.
Em Da compleentaidae à deendência, Elen Woortmann () aponta
para a ordem do discurso púlico do grupo estudado, no caso dos universos cam-
poneses pautados em sua maioria no pátrio poder que conura um dos pontos da
campesinidade e que se replica no discurso do pesquisador, tais discursos coro-
borariam para uma política de nero, freqüentemente legitimada pelos discursos
acadêmicos. Para Woortmann, “a classicação do espaço depende do contexto
em que se produz o discurso… (W, , p. ).
Ao abordar a complementaridade entre os gêneros na constituição da dieta
familiar entre comunidades pesqueiras no Rio Grande do Norte, Woortmann
ressalta que havia entre os gêneros uma complementaridade qualitativa na cons-
tituição dea dieta. A produção feminina se caraerizaria ainda pela constância
e pela reposição previsível. Por outro lado, era o trabaho feminino de salga e
secagem do pescado, por ocasião da safra, que garantia seu consumo por período
relativamente longo, bem como sua comercialização.
Dessa maneira, as relões internas à falia e à comunidade nesses povoa-
dos se caraerizavam pela complementaridade entre os neros, embora tanto
a família quanto a comunidade, fossem organizões hierárquicas, no plano
ideológico, as transformações ecológico-sociais que atingem a tera afetam dire-
tamente as muheres. Seundo Elen Woortmann, outras transformações, rela-
tivas ao mar, atingem os homens, e seus efeitos se projetam sobre as muheres.

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Com a instabilidade da pesca, pois haveria dias em que se pescaria mais, ou-
tros menos, e também levando em consideração sua sazonalidade, caberia ao
homem, a partir dos relatos apanhados por Woortmann, conseuir o pescado ou
o dinheiro para suprir as necessidades da família, como seu chefe. Por sua vez, a
muher, parceira do marido, tornar-se-ia cada vez mais sua dependente.
Assim, para Elen Woortmann a condição feminina se (re)construiria no
tempo e pelo espaço, em diferentes momentos do tempo e em diferentes con-
urações do espaço, pois a construção de tempo é também construção de gênero,
em espaços que he são também eecícos. “As muheres percebem o tempo da
maneira como o fazem agora porque eão colocadas num momento posto pela
história…” (W, , p. )
Em tese, para Elen Woortmann, as muheres se vêem face aos homens num
processo que transita da complementaridade para a dependência, à medida que
no tempo se substraem espaços. “Nessa perectiva, os marcos temporais o
marcos da transformação do gênero, que existe face a outro gênero. O outro
contrastivo construído pelo tempo/espaço não é um outro grupo, mas um outro
gênero do mesmo grupo… (W, , p. ).
Assim, a muher foi “incluídano homem, como seu braço.A muher sempre
foi “incluída,na medida em que o homem “é” a totalidade. Aquilo que engloba
é mais importante que o englobado, assim como o todo é mais importante que a
parte em sociedades tradicionais…”(W, ,p. ). Portanto, a com-
plementaridade se dá entre englobante (dominante) e englobado (dominado).
A - : ,
Em A parte maldita, Georges Bataile () ao elaborar sua crítica à economia geral,
centra sua análise comparativa nos sistemas de trocas entre várias sociedades. Ao
tratar da deesa nas sociedades capitalistas arma que a atividade sexual desviada
da nalidade genital seria uma manifeação de deesa improutia, portanto, no
seio da economia envolvente, seria o excedente. Para ele, é o uso feito do excedente que
é a causa da mudança na estrutura, ou seja, o que o autor denomina como la part
maudite. Assim, esse mundo íntimo se oporia ao real, como a desmedida da medida.
Nesse sentido, se a dita lógica de uma economia geral (capitalista) tende a
transformar em deesa improutia a ética dos afetos, pois, trata-se de um excedente
retirado da massa de riqueza útil, ou seja, de uma sexualidade que tem como m,
reprodução para a perpetuação, ea pode ser retirada para ser consumida sem
a idealização de uma ideologia capitalista aparente, pois parece ser a partir desse
excedente que também são traçadas, dirigidas, mudanças substanciais na estrutura
seletiva, interpretada como dominante.
N E A D E S P E C I A L

Portanto, para o autor, o excedente, como agência ativa, tem na religião, nos
jogos eróticos, nos eetáculos que daí deriva, nos luxos pessoais, uma base subs-
tancial no dinamismo das estruturas. Todavia, é na construção teórica do con-
sumo, e da sexualidade reprodutiva, com seus ideários economicistas europeus,
que tal inuência persiste em muitos trabahos acadêmicos brasileiros e ahures,
permanecendo utilitaristas em suas bases, isto é, “adequando os excessos.
No contexto analítico, os gastos excessivos apresentam um caráter secundário
da produção e da aquisição em relação à deesa, em todas as esferas, ou seja, cal-
cado em uma economia generalizada, pacíca, harmônica ao seu modo de ver, que
se ordenaria pela necessidade primordial de adquirir, de produzir e de conservar,
sem se atentar à perda e à própria sobrevivência das sociedades como também
possíveis ao preço de deesas improutias com seus luxos deediçaos.
Porém, se a compreensão parcial da experiência determina uma compreensão
parcial do que é categorizado como real, a análise que aqui se desenvolve, partindo
não mais de uma economia de centros seletivos, mas restituindo suas deesas, seus
luxos, pretende demonstrar não a possibilidade de encontrar um conceito abran-
gente de todas as facetas do que parece ser o real, mas tornar possível que o sentido
global do experiencial só possa resultar de uma multiplicidade de perectivas.
Assim, tudo leva a intuir que a ética dos afetos parte de um sentido de profunda
liberdade, cuja essência é consumir se lucro, o que podia permanecer no encade-
amento das obras úteis na ideologia capitalista ocidental. Esse mundo íntimo tende
a ser à noite, à moita, o encontro fortuito, o jogo erótico. Ele engendra paixões que
levam os universos dos sujeitos a fazer uso improdutivo de uma parte importante
dos recursos de que dispunham, pois, trata-se de uma forma complementar, de
uma instituição, cujo sentido é retira do consumo proutio.
O sujeito abandonaria seu próprio domínio e se subordinaria aos objetos da
ordem real, visto eá cioso do tempo futuro. Bataile parte do pressuposto que o
sujeito é consumo na medida em que não eá restringido ao trabaho.
Portanto, a ética dos afetos parece levar a crer que é equivocada qualquer
compreensão setorizada de uma economia geral, sobretudo quando se pretende
excluir do domínio de uma ideologia capitalista, a pretexto de carência de obje-
tividade, as formas de vivências improdutivas que o homem em sua intimidade
também realiza.
As investidas de muitos teóricos a campo m transformado os discursos
púlicos em discursos intencionais, encobertos e seletivos, manipulados pelos
valores compreendidos como dominantes.
Partindo da premissa, e na eeira com Miuel Reale (), de que os instru-
mentos de conquista do real não existem a pioi, mas são constituídos e moldados
à luz das particularidades mesmas do setor que os sujeitos circunscrevem ou deli-
mitam, visando a atingir, ainda que em caráter provisório, assertivas objetivamente
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vericadas ou vericáveis, a lei de economia geral ainda trabaha com implicações
recíprocas das formações originárias de sentido e das sedimentações de sentido,
pois tal intencionalidade situada co-implica o mundo das objetividades.
Para Reale, não haveria alo, se o houvesse no ser humano possibilidade
de escoha livre entre as alternativas imanentes à proletica axiológica, nem
se poderia falar em libedae, se o houvesse possibilidade de opção e partici-
pação real dos valores e das valorações, e, mais ainda, se a liberdade tivesse de se
atualizar gratuita ou vaziamente, sem um conteúdo teleológico capaz de conferir
legitimidade à ação.
Nesses termos, a meu ver, a ética dos afetos não pode ser isolada de elementos
exteriores, sem os quais ela o poderia ser signicaa, pois só a percebemos num
sistema se compreendermos suas oscilações, se descobrimos, depois de experi-
mentada, uma interação substancial dos elementos que a compõem.
Eis uma luxúia oposta à cruel iolência do consumo na elaboração de uma
economia das emoções ociais que se opõe à ética dos afetos ociosa. Seuindo ee
caminho, a intenção aqui proposta é fazer percebível uma tendência de declínio
nas curvas demográcas das teorias sobre o campo, em que tal queda talvez seja
o primeiro índice da mudança de sinal ocorida. Doravante o que importa não é
mais, de forma reducionista, desenvolver as forças produtivas da realidade coletiva
que constitui a ideologia camponesa, mas deende luxuosaente seus proutos.
Tais proutos só podem ser concebidos como uma linuage cienticista (posi-
tivista) que metaforicamente podemos compará-la como uma densa bruma, que
oculta ao mesmo tempo que revela os modelos, pois, e parafraseando novamente
Reale, a palavra faz corpo com tais modelos, e os modelos são denominados obe-
decendo a impulsos instintivos de memorizar e conservar o pecebido, tornando-o
possuído e comunicável.
Tal linuagem enviesada é, assim, o solo comum das formas culturais, não po-
dendo haver uma linuage eleita, convertida em moelo para as demais linuagens,
devendo sempre haver uma homologia entre as estruturas verbais e as estruturas
do real que se investiga, acentua Reale. Não experiência de valores na qual não
operariam fatores operacionais de escoha e de seletividade. Uma coletividade ou
um indivíduo atua na construção de valores históricos e culturais, o que implica
uma opção por ee ou aquele outro valor ou gama de valores no concreto, ou
seja, por dada valoração. Mas, por sua vez, a opção, como um ato plural, seundo
o autor, não é suciente para que se tenham modelos abrangentes e totalitários,
pois ees só passam a existir quando ocore a seletividade das opções.
Essa seletiidae optatia, em termos realianos, não se permanece ou se ajusta
a todas as opções feitas, pois nem tudo que acontece eá envolto em tais sele-
tividades arbitrárias, porque por motivos múltiplos e muitas vezes fortuitos ou
insondáveis, também possuem relevância de signicação.
N E A D E S P E C I A L
A ética dos afetos, núcleo dee artigo, tende a construir sua afetividade im-
produtiva concomitante aos valores tradicionais por meio de uma ambiüidade
proveniente dos rumores, das intensidades e paixões. Seus luxos, suas deesas,
são alicerçados por uma inutilidae no que concerne aos valores economicistas
dominantes que compõem uma realidade coletiva ltrada. Ao pensá-los percebe-
mos a exclusão e o silêncio de uma tradição teórica que prescrevera e proscrevera
o universo signicativo da intimidade.
Portanto, conceituo de uma ética dos afetos mal-ditos todas aquelas relões
sexualizadas que não têm como destino a reprodão utilitária em moldes cam-
pesinos ideais. Relões íntimas, inúteis, para uma demanda que foi pensada
com a nalidade de perpetuação de valores selecionados, situados, em prol
da conservação da eécie e das relações parentais e vicinais. Uma parte mal-
dita que se reconstrói em meio ao deediço de uma binaridade reprodutiva e
idealizada de muheres e homens. Afetos excessivos que acentuam o impasse
das sexualidades na constituão de uma ideologia camponesa púlica por in-
termédio dos rumores que acentuam suas ambiüidades na dimica do jogo
social [teatral].
A ética dos afetos, parcela do real, tende construir seus laços de sociabilidade
não negando um discurso calcado na realidade coletiva, mas concomitantemente
intecomunicando suas idéias improdutivas, minando o ideário de produção a todo
custo que personica uma economia afetiva e utilitarista de homens e de muhe-
res, endossada pelos teóricos que pensam certos valores, uias de uma ideologia
camponesa, como centrais.
Este artigo tem como intenção basilar reparar aluns eqvocos construídos
durante décadas por teóricos do rural sobre as sexualidades no campo que, em
muitas de suas análises situacionais, seletivas e utilitaristas tendem a tratar a se-
xualidade do camponês e da camponesa como algo moralmente construído pela
reprodução púlica do grupo, pautada em um ordenamento arbitrário. A aru-
mentação que desenvolvo é, portanto, uma prolematização do reducionismo
deas teorias sobre as anidades do corpo de muheres e homens, ou seja, abro
o impasse das sexualidades, pois parto da premissa de que o centro nos uniersos
caponeses eá e toa parte.
E :
Em , com o início das pesquisas de campo no vilarejo rural de Goiabeiras,
sertão cearense, a intenção era abrir para uma interatividade dialógica no que
tange à dimensão das sexualidades com os camponeses. Enfocando o universo
masculino, a investigação demandou três anos. Em meio às intercomunicações
com eles, e em gradativos momentos com elas, aos poucos o universo feminino ho-
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
moafetivo vinha à baila. Nee sentido, pude também saber um pouco mais sobre
os encontros que, para um pesquisador desatento, poderiam parecer inexpressivos.
No ano citado, se arquitetavam em Goiabeiras rumores sobre os afetos mal-
ditos. Duas moças de famílias tradicionais eram apontadas como “sapatões” pelas
sansões advindas dos mexericos vexatórios. Ao earem sempre juntas na praci-
nha (espaço púlico [teatral] por excelência) e sem namorados aparentes, muitos
do lugar inferiam sobre ee “amor proibido” e/ou sobre ea “falta de decoro.
Com a coação do povoado a relação entre ambas durou aluns anos, sendo
aparentemente rompida, em que uma outra muher, casada, entra em cena, ini-
ciando um novo relacionamento com uma delas. Mais uma vez os rumores en-
gendravam o interdito. Agora com um fator agravante, uma muher casada, mãe
de família, que se separa do seu cônjuge e abre-se para afetos inúteis e excesios em
termos batailianos, porém pulicamente negados. Tal luxúria logo ultrapassa as
fronteiras do povoado, ligações interurbanas para Fortaleza, Juazeiro do Norte,
Crato e São Paulo ampliavam o vexame.
Nesse ínterim, chegamos a nos questionar: Como as camponesas criavam os
espaços experienciais homoafetivos em meio a uma moralidade ideal? Podería-
mos inferir que um afrouxamento dos afetos mal-ditos? Por que as teorias sobre
o campesinato as tornaram prescritas e proscritas?
Diferentemente dos camponeses e suas relações homoafetivas que tendem à
moita, entre elas o espaço da casa parece ser, na maioria dos relatos apanhados,
o mais apropriado. Reajustando a ideologia camponesa, em que a casa é pensada
como o espaço da muher, pois ela é muitas vezes dona-de-casa, a permissividade
dos encontros para prosear tende a ser aceita, em que um aproveitamento para
viver/experimentar o mesmo. …quando a gente vai car,s escohemos a casa.
ninuém sueita e geralmente tem que ser à tarde, depois da lavagem das
louças. Não somos como os homens daqui, que fazem coisas nas moitas, onde
a muher que lá for é mal vista…” (Maria,  anos, casada).
Em uma sociedade pautada no discurso coletivo/masculino, as relações se-
xuais entre muheres são permitidas, pelo menos quando os camponeses eão
conversando entre eles nos rituais discursivos de virilidade, sem a presença delas.
Se não há penetração, o phaus, a homoafetividade feminina tende a ser aparen-
temente amenizada. Porém, quando essa moral ultrapassa o mundo discursivo
e viril dos camponeses, abrindo-se para a sociedade em geral, tais afetos tendem
a se tornar mal-ditos.
 Pude constatar tal assertiva me comunicando no período da pesquisa via telefônica com
goiabeirenses migrantes em São Paulo, Fortaleza e Juazeiro do Norte.
 Todos os nomes são fictícios.
 Exemplo análogo sobre a ordem do discurso viril masculino e o medo do feminino, podemos
encontrar na dinâmica da sociedade cabila, analisada por Bourdieu ().
N E A D E S P E C I A L

Com a intensicação das relações dialógicas para com elas, outros laços afeti-
vos me iam surgindo. Comecei a acompanhar mais quatro muheres que manti-
nham relações homoafetivas. O domínio da casa persiste na maioria dos relatos.
É, pois, nea ambiência que elas encontram um espaço-experencial à construção
dos afetos, ditados por sua ética. …para não levantar sueitas, nós preferimos
dentro de casa, quando todo mundo resolve dar uma saída. […] Eu me relaciono
com Joana já faz aluns anos, o povo fala, mas não ligamos não. “Ficamos escon-
didas, se aluém peruntar, aí negamos!… (Marta,  anos, solteira).
Diferentemente dos camponeses de Juchitán, sul do xico, analisados por
Amaranta Gómez (), em que o travestismo é institucionalmente aceito e
incentivado entre os muxhe, homens com identidade genérica feminina ou vice-
versa, os nuiu muheres como identidade genérica masculina, principalmente
entre os hos e has mais novos, em Goiabeiras, portar-se com trejeitos acentu-
ados ou travestir-se continua a ser motivo de chacota. Assim, muitas muheres e
homens encontram estratégias, linhas de fuga, da ordem do desejo, para vivenciar
afetos que contradizem o modelo ideal de sexualidade camponesa no sinular,
multiplicando-a a n dimensões.
Nesse sentido, a ética dos afetos não se pauta na complementaridade ou de-
pendência, mas no inutilmente excesio a essa ideologia. A sexualidade da muher
camponesa que dela subjaz não eá associada (ou se quiserem condenada’) à
natureza, à reprodução biológica, à estrutura social do parentesco. Ressalto aqui
que o desprezo a imbricação entre cultural e biológico em níveis interpretativo
e associativo, mas, no âmbito da afetividade, do desejo, acreo o que atravessa a
fronteira idealizada: as linhas de fuga calcadas nas multiplicidades nômades.
Se os teóricos do campesinato contabilizam o desejo, a emoção, a ética dos
afetos é criação, experimentação, iida se lucro, pedendo-se. As muheres cam-
ponesas que transvalorizam o biopoder discursivo da ideologia camponesa, e
também dos discursos acadêmicos, são da ordem do devir deleuziano, criam para
si um corpo se órgãos, ou seja, abrem-se para núpcias entre dois reinos, preferem
o meio em detrimento dos pólos complementares. Não há exclusivamente uma
muher idealizada, subalterna aos desmandos do chefe de família, mas uma mul-
tidão identitária, deeritorializada em um corpo que interage com o mesmo, o
artigo indenido é, nee sentido, o condutor do desejo.
Nesse sentido, para Dumoulié () em uma perectiva antropológica,
onde as leis da organização têm prioridade sobre qualquer expressão individual
ou afetiva, o desejo é um efeito da lei. Até seu caráter transgressivo eá sob o
comando da lei, em sentido contrário da antropologia e das ciências humanas
no geral; a losoa, seundo ele, se questionaria sobre o valor e sobre o sentido
dos discursos que essencializam ea união íntima entre lei e desejo. Portanto,
as grandes losoas do desejo foram, e são, um convite a se fugir para o deserto.

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
O desejo cria o deserto em cada um, no mais coriqueiro dia-a-dia, seundo as
ocasiões mais banais da vida […] Trata-se agora de inventar outros caminhos,
outras palavras, outras alegrias, outros desastres… (D, , p. ).
Não temos mais a unidade de medida, mas somente multiplicidades ou va-
riedades de medidas. Os corpos-máquinas-de-uera imbricados e fugidios nos
corpos-estrutura-campesinato. Multiplicidades a n dimensões a-signicantes e
a-subjetivas. Se elas são rompidas, quebradas em um lugar qualquer, rapidamente
retomam seundo uma ou outra de suas linhas e seundo outras linhas.
Outrossim, pensar o corpo da muher camponesa como complementar é al-
bergar apenas uma glosa faceta do valorar. Fechá-la ou deni-la, nees termos,
é ltrar determinados signicados (signos) do corpo, limitando-o e castrando-o,
desprezando o valor gao.
ue pode o corpo da muher camponesa? De quais afetos e excessos ele é
capaz? As relações de parentesco, vicinais, herança e compadrio mostram apenas
uma das faces do constructo muher, mas prescrever e proscrever ea outra parte
[la part maudite] das insígnias corporais é selecionar uma ordem do discurso
(acadêmico) de cunho conservador.
Partindo da premissa de que o centro nos universos camponeses eá por
toda parte, por que o corpo da muher camponesa tende a ser, via discursos
acadêmicos, um negócio vantajoso à manutenção da economia da intimidade
[utilitarista] no campo?
Vejamos o que nos relata Socoro: “…o povo daqui fala, mais nós damos um
jeito. Casamos, temos ho, mas aí continua se envolvendo com muher, porque
gostamos também… (Socoro,  anos, casada).
Se os amores sácos eão longe de contradizer a forma tradicional de divisão
dos sexos, são em sua maioria, como apregoa Beauvoir (), uma assumpção da
feminilidade, não sua recusa. Eis o que se apresenta em Goiabeiras: …toda vez que
uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compen-
sado por uma redução das leis de combinação… (D, , p. ).
Na ética dos afetos não existem pontos ou posições, mas linhas de fuga. Estas
linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode contar
com um dualismo ou uma dicotomia. “Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha
de fuga, mas core-se sempre o risco de reencontrar nela, organizações que rees-
traticam o conjunto, formações que o novamente o poder a um signicante,
atribuições que reconstituem o sujeito” (id., p. ).
Eis uma economia à medida do unierso em que a experiência do desejo é seu ex-
cesso. Para Bataile o desejo goza com seu consumo, mas quer para si mesmo a maior
perda, única maneira de fazer a experiência de seu poder e de sua innita profuo.
Em vez de ser uma bareira, uma experiência depressiva e/ou uma expulsão
estrutural, como sutilmente apregoam os teóricos do campesinato no trato dos
N E A D E S P E C I A L

afetos mal-ditos, ea última é como o último ponto de tensão, o último limite que
a potência deseja para se exceder.
Para Dumoulié, tal dinâmica dos excessos, própria do desejo, levanta o grande
prolema da transgressão, que leva de volta às relações entre o desejo e a lei. Assim,
seundo Dumoulié, revisitando dialogicamente o pensamento de Bataile, se o de-
sejo se apóia sobre a transgressão, se goza com o interdito e com o saber-se pecado,
o sentimento de profanação se acha intimamente ligado à experiência do desejo.
Se a transgressão implica o limite, é também por motivos econômicos. Para
Bataile o interdito preserva o domínio do trabaho, da produção e do consumo.
Assim, descarta e constitui a part maudite. A transgressão efetuaria o gasto dea
última, mas sempre de maneira limitada em vista dos limites próprios da reserva
de produção. Portanto, numerosas práticas individuais e sociais respondem a
essa ontae de gaa.
Dearte, afetividade ersus complementaridade. Discursos interessados sobre
as artimanhas dos excessos. Se as teorias sobre o campesinato tentaram prescre-
ver e proscrever a ética dos afetos, ee artigo faz emergir, no sentido de valorar e
movimentar o centro, o deediço transbordado pelo gao advindo dos prazeres
da carne. A ontae potente de gaa torna-se engrenagem a movimentação dos
corpos, das identidades nômades, das linhas de fuga, das possibilidades de ser/
tornar-se muher camponesa.
O centro não é mais vertical, mas intensamente horizontal, difuso, múltiplo,
deeritorializado. Uma bicolage com a complementaridade e a dependência,
com o biológico e o cultural, com o reprodutivo e o improdutivo, tendo como
movimento centrípeto e centrífugo a intensidade e a paixão. A ética dos afetos mal-
ditos que aqui trago à tona apresenta sua força e multiplicidade, sua inquietante
ontae de excede.
R
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Categoria
Apoio à Pesquisa
Mestrado
P      M         A   
As guardiãs da floresta do
babu e o tortuoso caminho
do empoderamento
M A RTA A N T U N E S
I
A pelo direito de livre acesso e proteção
do recurso natural palmeira de coco babaçu (Orbinaya phalerata Martins), que
tem como protagonistas principais as quebradeiras de coco e trabalhadoras(es)
rurais da área de atuação da Associação em Áreas de Assentamento no Estado do
Maranhão (Assema), algumas questões relativas ao conceito e abordagem de em-
poderamento na luta por direitos das mulheres e suas famílias serão levantadas.
As memórias de vida de alumas lideranças femininas serão o o condutor
da história das uardiãs da orea e do tortuoso caminho de empoderamento
que eas seuiram. Alumas deas histórias fazem-nos recuar ao nal do século
XIX, altura da abolição da escravatura e formação de comunidades quilombolas
no Maranhão, ou ao início do culo XX, com a chegada ao eado do Maranhão
dos migrantes nordestinos “retirantes da seca.Contudo, o enfoque seno
período de redemocratização do Brasil, com início em nais da década de .
Ao longo do artigo poder-se-á observar como eas muheres foram transfor-
mando suas vidas na luta pela reforma agrária, na atividade de agroextrativista,
 A palmeira costuma ter até  metros de altura e é capaz de produzir mais de  frutos (o
coco de babaçu) a cada florada. Além do Brasil, a palmeira é encontrada em outras partes
da América Latina, como Bolívia, Colômbia e México. Essa floresta secundária recobre no
Brasil , milhões de hectares (cada hectare corresponde a  metros quadrados), ,%
dos mesmos encontram-se no Estado do Maranhão.
N E A D E S P E C I A L

no acesso ao mercado, na luta pelo eabelecimento da Lei Babaçu Livre e pela
sua implementação, e como essas transformações mudaram ou não suas vidas na
esfera privada, como esposas, separadas, viúvas, mães, mas acima de tudo como
muheres sujeitos de direitos.
D :
Em nais do culo XIX, a abolição da escravatura, com a conseqüente liberta-
ção dos escravos, contribuiu para a formação e ampliação de alumas comuni-
dades quilombolas no Maranhão. É nesse período que tem início e se consolida
a pequena produção familiar realizada por ex-escravos, pelos chamados caboclos,
moradores de latifúndios e, sobretudo, por ocupantes de novas áreas, provenien-
tes do Nordee.
O Maranhão é visto no início do século XX como o “novo El Dorado. A re-
gião do Mearim começa a receber seus ocupantes nas três primeiras cadas desse
culo, quando o uxo de imigração é ainda pequeno e tem como destino os vales
dos grandes rios (Parnaíba, Itapecuru, Mearim e Pindaré). O processo migratório
tem seu pico entre as décadas de  e , se expandindo até .
Substituindo a monocultura exportadora do algodão que entra em decadên-
cia no nal do século XIX, a produção de aroz, feijão, mandioca e miho, entre
outros produtos alimentares, realizada pelos ex-escravos e migrantes nordestinos
constitui-se no principal sustentáculo” da economia maranhense no início do
culo XX. Em , a atividade de comercialização do aroz toma força, o Luís
transforma-se num pólo de distribuição de aroz para os centros urbanos nordes-
tinos e do sudee. Os intermediários e usineiros do aroz iniciam nesse período
um processo de investimento em tera e gado como forma de reserva de valor.
Por seu lado, o coco babaçu começa a ser utilizado para ns industriais a par-
tir da I Guera Mundial, atingindo um momento de expansão de sua utilização
no período do seundo s-uera, com a instalação da indústria de benecia-
mento no Maranhão e em áreas próximas, como Piauí e Ceará. Expansão que se
intensica até aos anos , garantindo a demanda por coco de babaçu, assim
como a sua valorização econômica. A valorização da atividade, por sua vez, atrai
 Mesquita, B. A. A crise da economia do babaçu no Maranhão. Revista Políticas Públicas, v. ,
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M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
outros atores, além das famílias agroextrativistas, de uma forma não sustentável
e privatizada.
Desde o início de formação dos quilombos e da colonização, que as famílias
utilizam a tera e sua cobertura vegetal, em particular o coco babaçu, de forma
coletiva. É o período do chamado “coco livre.
As atividades agrícola e extrativa do babaçu são, desde esse período, a base
das estratégias de produção e reprodução” das quebradeiras de coco babaçu e
de suas famílias. Existe uma complementaridade entre as atividades: a safra do
babaçu ocore no período de entressafra da atividade agrícola, permitindo, assim,
às famílias concentrarem esforços e o-de-obra de forma equilibrada. A maioria
da mão-de-obra utilizada na coleta e quebra do coco babaçu é constituída por
muheres e crianças, enquanto a atividade agrícola é desempenhada na maioria
por homens adultos e jovens, contando com a ajuda das muheres adultas e jovens
em atividades que demandam menos esforço sico e ligadas ao papel reprodutivo,
como preparar e levar almoço na roça.
A complementaridade das duas atividades não ocore apenas na dimensão de
mão-de-obra necessária, ela tem uma dimensão de complementaridade de renda
também. Quando os alimentos produzidos pela família e eocados começam a
escassear, a atividade do extrativismo do babaçu assume um papel importante.
É mediante essa atividade que a família gera renda na entressafra, garantindo
a possibilidade de comprar alimentos e produtos básicos durante esse período.
É o período em que a muher se torna a principal provedora da casa, embora isso
nem sempre seja reconhecido e valorizado por seus maridos.
O processo de colonização do Estado do Maranhão começa a apresentar sinais
de saturação na década de , num período ainda de expansão da demanda do
coco e do aumento do valor do mesmo. Nessa altura a concentração e escassez de
teras começam a coexistir com um aumento exponencial de ocupantes (casos
em que a exploração se processa em teras púlicas ou de terceiros, com ou sem
consentimento do proprietário, nada pagando o produtor pelo seu uso) de .
em  para . em , assim como dos arendatários que passam de .
em  para . em .
Aentão não tinha cercas, nunca ninuém viu uma cerca antes. (…) Desde quando a gente
chegou, em , aqui era uma área onde ninuém conhecia dono, não existia dono. (…)
 Bebbington, A. Capitals and capabilities. A framework for analysing peasant viability, rural live-
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N E A D E S P E C I A L

A gente colocava roça onde queria, ia lá e escohia o mato, quebrava coco onde queria, era
de todo o mundo. A gente considerava que aquela tera era nossa. (T, )
O processo de construção de cercas tem início nos anos , juntamen-
te com os incentivos do governo eadual do Maranhão para “modernizar a
agricultura.O objetivo era promover a conversão da produção de alimentos
e babaçu em gado e monoculturas exportadoras, em particular a soja. Foram
assim disponibilizados incentivos e crédito que atraíram para a região grupos
capitalistas, assim como pequenos e médios fazendeiros do sul e centro-oee do
Brasil.É o “movimento de fechamento (…) da fronteira agrícola do Maranhão
e (…) o esgotamento do modelo de exploração e ocupação de teras nos moldes
da frente de expansão camponesa(P et al, : ), que era constituída
por migrantes nordestinos escapando das secas severas, desde o início do culo
XX, que viam na ocupação da fronteira agrícola maranhense uma forma de
mehoria de vida.
As cercas marcam ainda o início de um novo modelo agrícola que assenta
em três caraerísticas básicas. A formação de grandes propriedades por meio
da distribuição pelo Estado de grandes extensões de teras devolutas, com a con-
seqüente expulsão e/ou desapropriação dos seus ocupantes (posseiros e comu-
nidades tradicionais). A seunda caraerística é a forte presença do Estado na
concessão de incentivos scais e creditícios para a instalação de fazendas, o que
contrasta com o total abandono do setor extrativista do babaçu pelas políticas
eatais. A última caraerística em que assenta o novo modelo é a exploração
da tera voltada para a agricultura de exportação e para a pecuária. O eado
passa assim de um modelo baseado no agroextrativismo e produção diversica-
da de produtos alimentares em teras coletivas pelos ocupantes, arendatários,
moradores e comunidades tradicionais, com predominância do aroz, para um
modelo baseado na pecuária e comoities de exportação, com o predomínio da
grande propriedade privada e conseqüente expulsão de ocupantes, arendatários,
moradores e comunidades tradicionais e a concentração de teras.
O fechamento da fronteira e o novo modelo agrícola levam a uma alteração na
vida das famílias agroextrativistas, em particular das quebradeiras de coco babaçu.
O coco deixa de ser livre e passa a ser preso, enclausurado dentro das cercas e o
acesso a ele, base das estratégias produtivas das famílias agroextrativistas, passa
a ser negado e a ser alvo de uma troca em termos desfavoráveis para as muheres
 Toinha (Antônia Gomes de Sousa), tem  anos, é liderança política da Assema e pertence à
diretoria política da organização.
 P, E. D.; Martins, M. A. Dinâmica ecomica e condições de vida da população maranhen-
se no período -. Revista Políticas blicas, v. , n. , julho a dezembro de , pp. -.

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desempoderadasna relação com os novos donos da tera, que já foi sua tera, ou
mehor tera de todas(os).
Nees quarenta anos [ a ] o acesso aos babaçuais foi sendo mais e mais limitado,
quando não eles próprios foram sendo devastados e substituídos por pastagens arti-
ciais. Na memória camponesa o coco era liberto e nee quadro em que hes é cerceado o
direito de coleta, não hes permitindo livre acesso às teras púlicas e privadas onde
incidência de babaçuais, as quebradeiras o representam atras da imagem do coco preso.
(A, : )
Com a clausura do coco dentro das cercas, as muheres entram numa nova
relação de dependência e subordinação e, juntamente com suas famílias, num
processo de empobrecimento. Para acessar as palmeiras, dentro das cercas, as
muheres tinham de se sujeitar a relações comerciais injustas com o fazendeiro:
metade de toda a produção de amêndoas cava para o fazendeiro em troca do
acesso a sua tera, a outra metade tinha de ser vendida na loja da fazenda a preços
injustos e em troca de produtos e não de dinheiro.
Ainda nos anos , iniciam-se no Maranhão as atividades extrativas e de
beneciamento da madeira, o que favorece o desmatamento das oreas na-
turais e secundárias do eado, juntamente com a atividade agropecuária e as
monoculturas que demandam grandes porções de tera desmatada. A construção
das ferovias Carajás e Norte- Sul, as queimadas e a fabricação de carvão vegetal
para as usinas de uza, são outras atividades que contribuem para o forte desma-
tamento ocorido no eado. Entre  e  o censo agropecuário registra uma
diminuição de  mil hectares de matas e oreas naturais.
O desmatamento das fazendas para abrir espaço para o gado soma-se à ex-
ploração realizada pelo fazendeiro, do trabaho das muheres, em troca do acesso
ao recurso natural babaçu, através da bareira cerca. As muheres são ainda, em
aluns casos, obrigadas a plantar foragem (além de deixarem metade da sua
produção) em troca do acesso às palmeiras e, por vezes, devido à falta de opor-
tunidades econômicas” na região, seus maridos e vizinhos vêem-se obrigados a
trabahar nas atividades de desmatamento das palmeiras nas teras do fazendeiro,
em troca de espaço para “colocar sua roça.
A agonia provocada pelo som das palmeiras degoladas atingindo o chão levou
a uma reação por parte das muheres que iniciaram um processo de resistência
 F () op cit.
 Lemos, J. J. S. Radiografia ambiental, social e econômica do Maranhão: instrumento para construir
uma agenda que promova o desenvolvimento sustentável para o estado no próximo milênio.Uma
contribuição para o Fórum Social Brasil XXI. (Texto preliminar para discussão). Julho de .
 Sen, A. K. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, .
N E A D E S P E C I A L
que começou tímido estratégias tradicionais de resistência mas que evoluiu
para uma luta pelo direito de livre acesso e proteção do recurso natural coco ba-
baçu – desde o conito com os senhores do poder rural até à Lei Babaçu Livre.
A
:
“Pahhh… Pahhh… Pahhh… Pahhh… Foi ee o som que Nazira escutou certa
manhã. Era em , o seundo ano seuido em que ela e seus companheiros e
companheiras escutavam ee som na comunidade de Ludovico, município do
Lago do Junco, no Maranhão, e sabiam exatamente seu signicado. Os jaunços
dos fazendeiros tinham recomeçado o trabaho interompido no ano anterior
limpando as teras das palmeiras de coco babaçu. Contudo, naquele ano as mu-
heres haviam se organizado e contavam com o apoio de maridos e vizinhos.
O som da derubada das palmeiras foi o sinal para que  muheres da co-
munidade de Ludovico se juntassem e fossem para a solta, para enfrentar o
fazendeiro e seus jaunços. Ao chegarem lá, o fazendeiro e três homens armados
pararam do outro lado da cerca para falar com as quebradeiras.
A gente começou a alegar que eles não podiam fazer isso, que as palmeiras eram a vida
da gente. (…) ue a gente não tinha mais tera para trabahar e que todo o sustento da
gente eava sendo do babaçu. E se eles zessem isso era meio que eles tavam matando
todo o mundo. (…) Oha cada palmeira dessas que vocês derubam é uma mãe de família
que vocês matam. Porque é dessas palmeiras que as mães de família sustenta seus ho.
(N, )
Esta estratégia de negocião faz parte das denominadas estratégias tradi-
cionais de resistência das quebradeiras de coco à situação de opressão a que
eavam sujeitas.
Nós conversamos, conversamos, conversamos, muher chorou, muher implorou, a gente
fez tudo o que podia. E eles todo o tempo dizendo que não paravam. Oha no m a gente
advirti: ‘oha nós veio aqui pedir, porque nós quer evitar um prolema mais grave. (…) Se
eles parasse pronto, o que nós queria era o babaçu e eava acabada a queão. Agora se
 Nazira tem  anos e é liderança política da comunidade de Ludovico, município do Lago do
Junco, e uma das fundadoras da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR).
 Solta é o nome que as quebradeiras de coco dão às terras onde coletam e quebram o coco
babaçu.
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eles não parasse os homens ia enfrentar, ia lutar e depois não ia ser só pelo babaçu. Ia
ser também pela tera. (N, )
Quando as estratégias tradicionais quebrar coco em grupo e escondidas,
rouba coco, parar as derubadas por meio de negociação, epates e rituais – co-
meçaram a fahar e as ameaças às quebradeiras e seus companheiros começaram
a se traduzir cada vez mais em violência sica e prisão, houve uma mudança na
estratégia de luta pelo direito de acesso e proteção da palmeira de coco babaçu.
Nesse período a gente eava lutando para libertar as palmeiras. (…) A gente imaginou
que libertando o babaçu earia resolvido a queão. Mas (…) depois foi perceber que
não (…) adiantava livrar os babaçuais nas propriedades das pessoas dos fazendeiros,
porque ele só cava o babaçu livre. Mas a gente ia botar roça onde? Como que a gente ia
sobreviver? Criar a família da gente? (Vital, ).
Com a restrição cada vez maior de acesso ao recurso natural babaçu por parte
das muheres e ao recurso natural tera por parte dos homens, a estratégia passa
a ser a da luta pela tera. Conquistando a tera as famílias conquistariam assim
os dois recursos naturais que são a base das estratégias de produção e reprodução
das famílias desde sua chegada ao Maranhão.
O conito,que teve início em torno de  nas comunidades da área de
atuação da Assema, foi um período de fortalecimento e organização das muheres.
Os homens passavam a maior parte do tempo escondidos no “mato,” se protegen-
do da violência inigida pelos jaunços dos fazendeiros. Deixaram, assim, espaço
livre para que as muheres assumissem papéis importantes nas comunidades: elas
negociavam com os policiais e com os fazendeiros, protegiam seus maridos e com-
panheiros, asseuravam comida, cozinhavam, levavam comida aos homens, cuida-
vam das crianças, impediam a derubada das palmeiras por meio de pressão sica e
negociação (os denominados epates), mas, acima de tudo, participavam de todas
as tomadas de decisões e planejamento de ações relacionadas com o conito.
É um momento de mudança radical nas relações de gênero. Por necessidade
coletiva, as muheres o empuradas para fora de suas casas e de seus espaços de
circulação restritos em direção à luta, assumindo papéis de liderança nas toma-
das de decisões relativas à vida comunitária e às negociações com os fazendeiros;
tornando-se assim visíveis na esfera púlica.
Com o conito a gente conseuiu deertar para um monte de coisa que até então era
como se a gente vivesse dormindo (…) pra gente eava tudo bem, pra gente ter a tera
Raimundo Vital, nascido em , é liderança política da comunidade de São Manoel, município
do Lago do Junco, e já ocupou quatro mandatos na diretoria da Assema.
N E A D E S P E C I A L
para plantar, ter o coco para quebrar, aquela vidinha pronto, a gente achava que era
aquilo. Quando vem o conito que a gente percebe que tem um monte de gente vivendo
a mesma situação da gente e que a gente começa a perceber que a gente não eá sozinho
no mundo vivendo aquelas conseqüências, vivendo aquelas agressões. É quando a gente
começa assim a se juntar com outras pessoas. E aí a gente começa a abrir a mente, tendo
noção que a gente precisa se organizar pra poder tar vencendo. (Toinha, )
A luta pela tera na comunidade do Ludovico não foi um incidente isolado e
particular na região e no Brasil. Durante o processo de redemocratização brasi-
leiro iniciado em nais dos anos e início de , o Brasil assistiu à reorga-
nização de movimentos sociais e de organizações que, na zona rural defendiam
a reforma agrária.
O epicentro do movimento de luta pela tera no Maranhão, na seunda me-
tade dos anos , localizava-se nas reges do Médio Mearim, Alto Mearim
e do Grajaú. Neas regiões a reforma agrária ocoreu no “rastiho da pólvora”,
ou seja, o existia uma potica governamental para a realizão da reforma
agrária. Foi pela pressão dos movimentos sociais que os grandes latifúndios
foram desapropriados. A gente não mora em áreas de reforma agrária, a gente
mora em áreas de resistência, porque reforma agrária tinha que ser ampla, sem
mortes, sem violência, sem tanta tortura, tanto massacre, tanto sofrimento.
(Toinha, )
Essa “miséria da reforma” afetou as quebradeiras e suas famílias de pelo
menos duas formas. Por um lado, a falta de planejamento levou à distribuição de
uma quantidade de teras inferior à procura, uma vez que nem todas as áreas de
resistência se tornaram assentamentos de reforma agrária. Além disso, as áreas
de resistência o eram contíuas, o que signica que hoje temos ilhas de assenta-
mentos em meio a um ma de latifúndio. Por outro lado, as áreas não consideram
as gerações futuras, o que acaba por transformar os hos e as has das famílias
agroextrativistas em sem-tera quando casam ou deixam a casa dos pais.
Durante o processo de luta pela tera organizações da sociedade civil, tais
como a Animação Comunitária de Educação em Saúde e Agricultura (Acesa),(Acesa),
 Região onde se localiza a área de atuação da Assema.
 Carneiro, M. S.; Andrade, M. P.; M, B. A. A reforma da miséria e a miséria da refor-
ma: notas sobre assentamentos e ações chamadas de reforma agrária no Maranhão. Revista
Políticas Públicas, v. , n. , julho a dezembro de , pp. -.
 Idem.
 Acesa, iniciativa eclesiástica de capacitação e apoio às comunidades rurais. Localizada em
Bacabal, Maranhão, foi criada em  para dar continuidade ao trabalho iniciado durante os
conflitos pela posse da terra no Mearim.

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a Cáritas, a Comissão Pastoral da Tera (CPT) e a Sociedade Maranhense de
Defesa dos Direitos Humanos (SMDDH), tiveram um papel fundamental na
organização e como assessores e representantes das comunidades da região do
Médio Mearim. Com o enceramento do período de conito, os(as) técnicos(as)Com o enceramento do período de conito, os(as) técnicos(as)
foram para outras áreas de resistência e luta. As famílias começam assim a sentir
necessidade de ter representantes e facilitadores, bem como uma entidade que
representasse legalmente seus interesses na esfera púlica.
A Assema é criada em , após um ano de visitas feitas por representantes
de quatro sindicatos da região do Médio Mearim, fruto dessa demanda das fa-
mílias e com o objetivo de asseurar a permanência das famílias agroextrativistas
nas teras reconquistadas.
No início os homens assumiram a liderança dessa organização mista, como
recorda Toinha quando fala da reviravolta na participação das muheres após a
resolução do conito na sua comunidade São José dos Mouras, município de
Lima Campos.
Passado o conito, depois de a gente ter essa luta toda, essa briga toda, essa coragem toda
de ear ali, tinha reuniões que eles diziam assim hoje é pros homens. (…) E aí num
determinado dia (…) chega eu e a Dada, minha irmã, parece que a comadre Mariana e
uma outra muher e eles disseram agora a gente quer continuar a conversa sozinho.
Os homens. E nós saímos. Tu acredita?! Chegou lá no tereiro, lá na estrada, que s
saímos da Igreja e eu virei assim e eu disse ‘Dada, mas me diz mesmo o que é que eão
discutindo?’ ela diz ‘Eu não sei minha irmã, o que será?’ A comadre Mariana disse ‘Ai
eu acho que eu sei’. fez assim aluns comentários do que seria. (…) a Dada virou pra
mim e disse ‘E nós não pode car participando dessa discussão? Se você já eá sabendo
disso. Pois nós vai voltar pra lá é agora!’ E nós voltamo pra lá e botamos eles nos eixos, no
lugarzinho deles. E peruntamos para eles naquele dia: ‘Porque que agora tinha segredos?
Se desde o início do conito que era coisa pior a gente eava junto, a gente eava plane-
jando, era viagens era tudo a gente eava junto. (…) ‘Por que é que agora eles eavam
com segredos com a gente? ue falta de conança com a gente. demos um chega para
lá, largaram. Porque senão tinha pegado essa moda de homem car discutindo sem
a participação da gente. Aí foi quando a gente veio pra Assema. (…) Depois eu e Dada
começamos a participar da Assema. (…) havia muheres de outras comunidades, mas
muito poucos. (Toinha, )
 A Cáritas, criada em , é a filial brasileira da Cáritas Internacional.
 A CPT, fundada em  e parte da Igreja Católica, iniciou seu trabalho dando assistência aos
camponeses durante o regime militar.
 Os sindicatos de trabalhadores rurais de Lago do Junco, São Luiz Gonzaga, Lima Campos e
Esperantinópolis.
N E A D E S P E C I A L

Verica-se uma tentativa, por parte de alumas lideranças masculinas de re-
legar as muheres novamente para a esfera privada da casa e para os tradicionais
papéis reprodutivos, afastando-as da tomada de decisão em relação aos próximos
passos tanto na esfera da sociedade civil quanto da política.
As muheres não faziam parte da assemléia fundadora e a primeira direção
da organização era composta apenas por homens. Apenas dois anos depois uma
muher foi eleita para a direção, mas para um lugar sem poder. Esta realidade foi
mudando ao longo do tempo e as muheres começaram a ocupar um número
cada vez maior de cargos com poder na direção. Apesar disso, apenas uma vez
uma muher alcançou o cargo mais alto da direção, em , e essa muher foi
Dada. Não obstante, hoje se mantém um bom equilíbrio de nero na direção
da organização.
Depois de todas as diculdades encaradas pelas muheres e suas famílias para
conquistar as teras que já tinham sido suas, elas ainda têm de lidar com vários
desaos, sendo o maior o de subsistir da tera. A tera encontra-se em péssimas
condições para a agricultura – antigas pastagens – e muitas palmeiras de babaçu
foram derubadas. Para as muheres, isto signica que, para coletar e quebrar
o coco, elas ainda têm de entrar nas cercas, porque a reforma agrária libertou
pouquíssimas palmeiras de pé. Além disso, a região ainda eá sendo limpa das
palmeiras pelos latifundiários que caram, para plantar foragem e criar gado, e,
por vezes, pelos próprios maridos e vizinhos das muheres para limpar seus lotes
para a agricultura.
Assim, conseuir a tera não signicou conseuir livre acesso e proteção para
as palmeiras de babaçu. A tera é de seus maridos e o eles que decidem que
coheita tem direito a ocupar a tera e, no fundo, qual o trabaho que vale mais,
o que signica que, na disputa entre as palmeiras e a agricultura, as palmeiras
perdem mais uma vez.
Isso mostra a desvalorização do trabaho das muheres por parte de aluns
maridos e vizinhos, assim como a invisibilidade da renda gerada pela economia
do babaçu. Considerando as complementaridades entre as exigências do traba-
ho agrícola e do babaçu, assim como a renda gerada por período de tempo, não
se conseue compreender porque os homens tomaram a opção de derubar as
palmeiras em suas teras. A queão é que realmente as muheres sempre podem
ir mais longe para coletar e quebrar o coco, apesar do esforço e do risco que isso
 A Direção da Assema é composta por três representantes de cada um dos quatro municípios
da sua área de trabalho. Eles são eleitos pelos conselhos locais da Assema. Apenas as lideranças
eleitas fazem parte da Direção, onde as decisões estratégicas são tomadas. A equipe técnica
da Assema é responsável pelo aconselhamento a este órgão diretor, assim como a todas as
organizações de base partem da Assema.

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acareta; assim, para os homens, limpar os lotes das palmeiras parece a decisão
mais acertada.
Uma nova luta eava então em ação, após a recente conquista da tera, que
não se traduziu na conquista de liberdade para as palmeiras e, concomitante-
mente, para as muheres. As muheres que haviam tomado parte do processo
de decisão pretendiam continuar denindo sua participação, assim como de-
monstrar para seus maridos, vizinhos, fazendeiros, poder púlico e sociedade em
geral a importância de proteger as palmeiras, além do ponto de vista ambiental,
pensando em termos sociais e econômicos também. Para conseuir essa façanha,
apostaram no desenvolvimento de atividades geradoras de renda, facilitadas pela
Assema inicialmente e, posteriormente, pelo Movimento Intereadual das ue-
bradeiras de Coco Babaçu (MIQCB).
O :
Naqueles tempos, a gente ia comprar um quilo de aroz e eram  quilos de coco para
comprar um de aroz, ainda era humihado. (…) Hoje dois quilos dá para comprar um
de aroz. Era demais para comprar um quilo de aroz. Uma família grande que é dois, três
hos, que nem era a minha, era dois quilo de aroz todo o dia. (Euzébia, )
Considerando que uma boa quebradeira conseue quebrar, no máximo, entre
sete e  quilos e que metade do coco quebrado tinha de ser entreue ao fazen-
deiro em troca do acesso à palmeira, no nal de um dia de trabaho as muheres
tinham meio quilo de aroz pago e outra metade empenhada no posto de co-
mércio do fazendeiro. Essa relação de comércio injusta leva a uma dependência
das muheres em relação ao fazendeiro, assim como à necessidade diária de sair
para quebrar coco, independente de ter sol ou chuva. Além disso, para garantir
a alimentação da família, que tem como base o aroz, era necessário que mais de
uma quebradeira se dedicasse a essa atividade, principalmente na época de en-
tressafra da agricultura, necessitando então, que has e hos das quebradeiras
ajudassem na tarefa desde cedo.
Mesmo com a “miséria da reforma agrária que ocoreu na região, as famí-
lias continuavam numa relação desfavorável com o mercado. Aquelas que não
Euzébia, que passou dos  anos, é quebradeira de coco e mora na comunidade de Ludovico,
município do Lago do Junco.
 S N, J. A reconceituação do extrativismo na Amazônia: Práticas de uso comum dos
recursos naturais e normas de direito construídas pelas quebradeiras de coco. Dissertação de
mestrado. Belém: Universidade Federal do Pará/Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/Curso
Internacional de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento, .
N E A D E S P E C I A L

precisavam continuar entrando nas áreas de fazendeiros para coletar e quebrar
o coco e, conseqüentemente, entregar metade da sua produção além de vender
a outra metade na fazenda, enfrentavam outras diculdades na relação com os
intermediários ou atravessadores.
A disncia da sede do município a que se situam a maioria das comunidades e as
péssimas condições de acesso viário (estradas de tera) facilitaram o desenvolvimen-
to da atividade de atravessador das amêndoas do babaçu. Aluns atravessadores
encontravam-se localizados nas comunidades e praticavam preços de compra das
amêndoas baixos e preços de venda de produtos básicos altos, comparando com
os preços praticados na sede do município. Outros passavam nas comunidades
onde não existiam postos de compra, com caminhão, recohendo as amêndoas e
vendendo produtos sicos. Nee último caso o caminhão demorava alum tempo
entre as “visitas às comunidades o que deixava as quebradeiras com vários quilos
de amêndoas quebradas e com falta de produtos básicos, como café, açúcar, entre
outros, e o atravessador numa posição bem favorável de negociação de preço.
O que originou essa mudança de preço do babaçu para que hoje seja necessário
entre um e dois quilos de babaçu –e não  – para comprar um quilo de aroz?
Antes de se fundar a Assema, juntamente com a cooperativa, a gente precisava de 
quilos de amêndoa para comprar um quilo de aroz! (…) de  até aqui nós nunca
precisamos mais do que dois quilos de amêndoa. Quando a gente começa a avaliar e a
acompanhar vê que os trabahadores nesse momento começou a sobrar comida na mesa,
porque cada vez que a gente vende dez quilos de amêndoa, tem oito, nove quilos, que
sobra para outras necessidades econômicas para a sobrevivência. (Ildo, )
A queão da geração de renda baseada nas atividades agroextrativistas foi
uma das preocupações mais fortes dos associados e das associadas da Assema,
desde sua criação. Para responder a essa demanda à medida que os projetos de
cooperação internacional foram aparecendo, em torno de , a Assema foi cana-
lizando-os para a criação de quatro cooperativas, uma em cada município, sendo
que apenas duas se encontram em funcionamento – a Cooperativa de Pequenos
Produtores Agroextrativistas do Lago do Junco (Copalj) e a Cooperativa de
Produtores Agroextrativistas de Eerantinópolis (Coopaesp).
Além das cooperativas, desde sua criação em , as AMTRs de Lago do
Junco e de Lago dos Rodriues m apostado na comercialização de sabonete
com base no óleo de babaçu, inicialmente, e de papel reciclado incorporando
bras de babaçu.
 Ildo Lopes de Sousa é liderança política da comunidade de Ludovico, Lago do Junco. Exerceu três
mandatos na diretoria da Assema, sendo nos dois últimos (a ), coordenador-geral.

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A Coopaesp, criada em , iniciou sua atividade com base no jaborandi,
passou para o aroz e depois para o babaçu in natura. Contudo, desde meados de
/ a aposta tem sido no processamento do mesocarpo para fazer farinha
de babaçu, utilizada em bolos, mingaus e vitaminas. Este produto encontrou no
mercado institucional um importante comprador, quer através da venda direta
para a merenda escolar, quer mais recentemente pelo Programa de Aquisição de
Alimentos do governo Federal.
A Copalj criada em  iniciou sua atividade comercializando babaçu in
natura, carvão vegetal e farinha de mandioca. Em , fruto das experiências
das muheres da AMTR com a prensa de óleo para a produção do sabonete, a
cooperativa passou a apostar majoritariamente no óleo de babaçu, alcançando em
 contratos com o mercado internacional solidário, que até hoje é o mercado
principal do óleo da cooperativa.
A estrutura da cooperativa montada no município do Lago do Junco foi fun-
damental para inuenciar o preço do babaçu pago para as quebradeiras regio-
nalmente. Em cada comunidade foi colocado um posto de compra de amêndoa
e venda de produtos básicos, que eram comprados na cidade em mercados de
varejo e vendidos a preços de custo nees postos denominados de cantinas. Estes
postos compram não o babaçu dos(as) associados(as), mas também dos(as)
não-sócios(as), pagando o mesmo preço pelo quilo das amêndoas. No caso dos(as)
sócios(as), os postos compram ainda todo o excedente agrícola produzido e ven-
dem os produtos básicos a um preço ligeiramente mais baixo que o preço pago
pelos(as) não-cios(as). Além disso, a partir do momento que a cooperativa gera
sobras essas passam a ser distribuídas às famílias no nal do ano, contribuindo
assim para a mehoria de sua renda.
Quando a gente criou a cooperativa o coco eava a R , o quilo e nós pagamos ime-
diato R ,para a quebradeira. E nos últimos três anos (…) , e , nós
conseuimos sobras com a produção da quebradeira (…) e repassamos direto em eécie
[dinheiro] para cada quebradeira. (…) E zemos a dia também do que nós tinha pago
imediato pela amêndoa no momento da compra do babaçu para a quebradeira, com o
que nós (…) passávamos para ela no nal do ano. Nee último ano chegou em torno de
quase R , o quilo de amêndoa. (…) Com as sobras. Ou seja, nós temos uma média de
R , que nós pagamos para a quebradeira imediato (…) e passamos no nal do ano em
torno de mais R ,, R ,, em eécie, que foi o lucro que nós conseuimos com a co-
mercialização do produto da quebradeira que seria o óleo. (Raimundo Ermínio, )
 Raimundo Ermínio Neto é liderança política da Assema e ocupou vários cargos na diretoria
da Associação e da Coppalj. Mora em assentamento vizinho do Lago do Junco.
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
Embora com uma pequena diferença, os atravessadores foram obrigados a
elevar seus preços na região, devido aos preços pagos pelas cantinas da Copalj,
o que transforma as quebradeiras de coco de “tomadoras de preços em “formu-
ladoras de preços.
Na região do Mearim, nos municípios do Lago do Junco, São Luiz Gonzaga e Lima
Campos (…) foi possível perceber uma diferença entre os valores pagos pelos chamados
atravessadores e aquele eabelecido pela Copalj, variando entre R, e R ,.
(Almeida, : )
Esse aumento de preço da amêndoa do babaçu trouxe uma mehoria muito
signicativa às condições de vida das muheres quebradeiras de coco da região.
Além de aumentar a contribuição trazida pelo trabaho feminino na renda fami-
liar, aumentando o poder de compra da família, trouxe mais liberdade às mesmas;
agora não precisam mais sair todos os dias, quer faça chuva ou sol, para a quebra
do coco a m de garantir a comida do dia-a-dia. Também eliminou a relação de
dependência com o atravessador, podendo agora vender as amêndoas na comuni-
dade, sem ter de eerar a vinda do caminhão ou ter de pagar passagem no caro
de linha, nas comunidades em que os mesmos existem, para ir até à cidade vender
amêndoas e comprar os produtos necessários. Essa mudança signica ainda uma
liberdade de decisão sobre o consumo da família e uma maior possibilidade de
planejamento do mesmo.
A valorização da renda produzida pelo coco, via atividades de comercialização
assessoradas pela Assema, tem sido uma estratégia importante de valorização da
contribuição da muher e de seu papel nas estratégias de produção e reprodução
familiares. É por meio dessa valorização que as muheres conseuem aumentar
seu poder de negociação com seus maridos e companheiros sobre a necessidade
de preservar o babaçu e aumentar seu poder dentro da família em termos de
tomada de decisão e autonomia.
Demonstradas as potencialidades da economia do babaçu ca ainda mais
clara para as famílias a necessidade de proteger esse recurso natural precioso.Se,
por um lado, a estratégia de valorização da contribuição da muher e do babaçu
na economia familiar é o caminho utilizado pelas quebradeiras de coco para con-
vencerem seus maridos e vizinhos. Por outro lado, para convencer os fazendeiros,
o Estado e a sociedade, a estratégia utilizada seuiu um outro caminho. Após a
percepção de que o acesso ao recurso natural, tera, não se transformou no acesso
 A, Marta. O caminho do empoderamento na superação da pobreza: o caso das que-
bradeiras de coco e trabalhadores(as) rurais da área de atuação da Assema. Rio de Janeiro:
UFRRJ, .  p. (Dissertação, mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade;
área de concentração: Estudos Internacionais Comparados).

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ao recurso natural, babaçu, as quebradeiras de coco apostaram na via institucional
e construíram coletivamente uma lei denominada Babaçu Livre que garante o
livre acesso e proteção das palmeiras de coco babaçu em qualquer área púlica
ou privada para as famílias agroextrativistas.
A
: L B L
“Não eamos discutindo sobre as suas teras, eamos discutindo sobre os recursos
que eão em cima delas. A vida da gente depende do fruto dessas palmeiras, por
isso sim, podemos entrar!” (Dada, ). O arumento de Dada para exigir o
direito de livre acesso e proteção do babaçu é o mesmo desde a época dos epates.
Independente de, em alumas das regiões onde o MIQCB atua, alumas que-
bradeiras serem sem-tera, a luta do movimento é focada na cobertura vegetal.
Anal as muheres sabem que o acesso à tera não equivale ao acesso e proteção
do babaçual. Apesar disso, em localidades eecicas as quebradeiras lutam pela
criação de reservas extrativistas e implementação efetiva das já existentes.
Joaquim Shiraishi, advogado e amigo das organizações de quebradeiras de coco,
teve um papel importante na criação e aprovação da Lei Babaçu Livre. Durante
os últimos anos ele prea assessoria ao movimento relacionada com aectos
legais da criação, aprovação e implementação da lei. Em seu trabaho, Shiraishi
(, ) denomina a Lei Babaçu Livre como uma nova concepção de direito”
que privilegia a cobertura vegetal em detrimento da própria propriedade e se
baseia na tradição de acesso e uso coletivo dos babaçuais pelas quebradeiras de
coco e suas famílias. Opõe-se, assim, ao Direito Civil, que privilegia a propriedade
privada, e ao Direito Agrário, que deu para a tera o caráter social, esquecendo
as palmeiras, e ainda ao Direito Ambiental, que se resume ao ideal de conserva-
ção/preservação, pois privilegia a cobertura vegetal em detrimento do uso dos
recursos naturais por famílias agroextrativistas.
A iniciativa de propor uma lei municipal partiu do município de Lago do Junco.
As muheres organizadas na AMTR, com a assessoria da Assema e de Joaquim
Shiraishi, tentaram colocar no papel um direito que já tentavam implementar na
prática através das estratégias tradicionais. O direito de livre acesso e proteção
dos babaçuais é por elas denominado de Babaçu Livre, um rótulo que elas usam
em sua luta e em seus produtos.
 Dada, (Maria Adelina de Sousa Chagas), nascida em , é coordenadora-geral do MIQCB e
foi a primeira e única mulher a assumir este cargo também na Diretoria Executiva da Assema,
por três mandatos consecutivos. Dada é liderança política da comunidade de São José dos
Mouras, município de Lima Campos.
N E A D E S P E C I A L

A primeira tentativa de aprovar uma lei municipal que garantisse o acesso
às palmeiras foi feita em . As quebradeiras pediram a uma vereadora que
apresentasse a proposta de lei na Câmara Municipal. Essa lei, de apenas um
artigo, dizia que as quebradeiras tinham direito de acesso às palmeiras, inde-
pendentemente de sua localização. Para pressionar os outros vereadores as
quebradeiras ocuparam a Câmara no dia da votação e conseuiram que a lei
fosse aprovada.
A simplicidade da lei, que garantiu sua aprovação sem grande conito, dei-
xava vaga, de que forma se daria sua implementação. Além disso, os fazendeiros
rapidamente contornaram a lei: A lei diz que é de livre acesso, tudo bem, a gen-
te não proíbe ninuém de pegar. E aumentam as derubadas. Aí, eu não vou
proibir que ninuém entre, mas quando entrar, também o tem mais babaçu
lá.” (Luciene, ).
Cinco anos se passaram até o movimento conseuir aprovar a primeira lei
municipal “mehorada” e agora denominada de Lei Babaçu Livre, no município
de Lago do Junco. Para alcançar essa vitória política o movimento contou com a
vereadora municipal Maria Alaídes, quebradeira de coco do município de Lago do
Junco que foi eleita em  com o apoio da Assema, através de sua estratégia de
expansão de capacidades” de lideranças para a ocupação de cargos políticos.
Em , quando a lei foi aprovada, era apenas um artigo. Na altura pensei que se alum
dia tivéssemos a sorte de ter uma quebradeira que pudesse alterar a lei, todas nós ajuda-
amos a adicionar novos artigos. Quando fui eleita discutimos com a Assema e com a
Luane [advogada que dá assessoria às quebradeiras] para saber o que era necessário para
alterar a lei. (Maria Alaídes, ).
Para mudar a Lei / era necessário asseurar que quaisquer alterações
atendessem aos desejos e reivindicões de todas as famílias agroextrativistas
das comunidades de Lago do Junco. Para esclarecer os novos artigos da lei,
construídos pelas sócias da AMTR, Maria Aldes, uma das autoras da lei,
Luane Lemos e a cnica do Programa de Organizão das Muheres da Assema,
Ana Carolina, zeram uma série de visitas às comunidades com o objetivo de
apresentar e discutir a lei.
Nas discussões as muheres tiveram de negociar com os homens um artigo
eecíco que tratava sobre as regras para o raleamento (corte controlado) das
 Luciene foi técnica da Assema a partir de outubro de , tendo ocupado os cargos de co-
ordenadora financeira e técnica do programa Organização de Mulheres e de coordenadora
administrativa da Assema até .
 SEN, A. K. Pobreza e Fomes: um ensaio sobre direitos e privações. Lisboa: Terramar, . id. O
desenvolvimento como expansão de capacidades. Revista de Cultura e Política, no/, .

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palmeiras. Na nova versão, o espaço máximo permitido entre as palmeiras era de
oito metros. Os trabahadores rurais alegaram que precisavam de um mínimo de
 metros entre as palmeiras para fazer o consórcio com a agricultura.
Esse era (e ainda é) um ponto de tensão interna para as famílias agroextrativistas.
Trabaho da muher versus o trabaho do homem: Qual vale mais? Qual contri-
bui mais para a economia familiar? Qual será privilegiado na ocupação da tera?
Por causa da lei a discussão foi trazida para a esfera púlica, contribuindo
assim no processo de empoderamento das muheres quebradeiras de coco – um
prolema individual transformou-se num prolema coletivo.
A discussão chegou a um consenso com a proposta do texto de deixar pelo
menos  palmeiras adultas e palmeiras jovens por hectare, distribuídas de
forma a evitar a concentração de árvores numa só área. Proposta que é também
benéca para as palmeiras e para as quebradeiras, uma vez que sem a preservação
das árvores jovens a sustentabilidade da atividade extrativa do babaçu earia
ameaçada: à medida que as palmeiras adultas envehecessem e moressem, caso
não houvesse palmeiras novas para substituí-las, a eécie entraria em extinção.
Esse consenso pode ser visto como o culminar de todo um trabaho realiza-
do pela Assema desde , do qual se deacam cinco pilares: a) educação dos
agricultores(as) para a o utilização de estratégias tradicionais de corte e fogo,
atras de experiências demonstrativas de transição para o modelo de produção
agroecológica que não utiliza agrotóxicos nem fogo, aproveitando ao máximo as
condições naturais do ecossistema; b) demonstrar a viabilidade do consórcio de
palmeiras de babaçu com a produção agrícola, com aumento da produtividade; c)
desenvolver atividades geradoras de renda baseadas no aproveitamento integral
do coco babaçu (óleo, sabão, mesocarpo, carvão vegetal e papel reciclado com
bra de babaçu); d) dar visibilidade às atividades econômicas das muheres e à
sua contribuição para a economia familiar; e) mobilizar e organizar as muheres
na luta pelo livre acesso e proteção das palmeiras de babaçu.
Após o consenso a luta dirigiu-se ao espaço institucional da Câmara dos Ve-
readores. No dia  de maio de , o projeto da nova lei deu entrada na agenda
da Câmara Municipal, onde cou tramitando até junho. Nesse período a lei foi
discutida e justicada na Comissão de Justicação e Justiça.
Defendemos a nossa lei perante tendências que não pensam em sistemas coletivos, mas
em sistemas individuais de lucro. Os próprios colegas vereadores eavam pensando que
eava tendo outro objetivo. Estávamos em Pedreiras ohando o estudo e vimos isso. Fo-
mos na mesma noite para o Lago do Junco. (Maria Alaídes, )
A comissão que analisava a lei, composta por aluns latifundiários da região,
queria alterar parte dos artigos apresentados pelas quebradeiras, tornando a lei
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
prejudicial para as muheres. Utilizando o rótulo Babaçu Livre, sem o conteúdo
libertador da lei – cooptando o discurso e mantendo o status quo.
No dia da votação, Maria Alaídes defendeu a proposta das quebradeiras de
coco. As muheres utilizaram uma vez mais a sua presença na Câmara Munici-
pal para pressionar os vereadores a votar pela aprovação da lei. Uma estratégia
utilizada posteriormente em outros municípios como forma de expressar com os
olhos o que as muheres não tinham direito de expressar com a oz.
Desde , a Lei Babaçu Livre foi aprovada em  municípios da área de
atuão do MIQCB: seis do Maranhão, dois do Pará, dois de Tocantins e um
do Piauí, numa estratégia de replicabilidade da vitória conseuida no Lago
do Junco.
Contudo, eá cada vez mais claro para as quebradeiras de coco que a con-
quista da lei por si só não se traduz na conquista do direito de livre acesso e
proteção das palmeiras de babaçu. uer nos lotes dos agricultores familiares,
quer nas fazendas, as derubadas continuam acontecendo e a lei raramente é
reeitada.
No caso dos agricultores familiares a estratégia é de demonstração do valor
do babaçu e da possibilidade de utilização de técnicas alternativas que permitem
o consórcio entre palmeira e agricultura. Estratégia que conquistou vários agri-
cultores familiares e que tem contribuído para uma diminuição do desmatamento
e queimada nos lotes de reforma agrária.
No caso dos fazendeiros a estratégia utilizada pelas quebradeiras é a de reali-
zação de denúncias aos órgãos governamentais responsáveis pela implementação
da Lei Babaçu Livre, ao mesmo tempo em que retomam as estratégias tradicionais
de epate das derubadas.
Contudo as denúncias pouco impacto tiveram: “Daqui a pouco, a gente vai ter
ótimas leis, um monte de denúncias na Promotoria e nenhuma palmeira.” (Ana
Carolina, )
A resposta dos fazendeiros à aprovação da lei foi rápida. Quando a sua impu-
nidade, garantida pelo poder que detêm na região, começou a ser ameaçada por
promotores púlicos que resolviam defender a Lei Babaçu Livre, a rotatividade
dos promotores aumentou. Isso, por sua vez, levou a um trabaho constante de
pressão por parte das quebradeiras e à busca de órgãos alternativos e de nível
federal para asseurar o cumprimento da lei ao nível local.
As estratégias utilizadas pelos fazendeiros para contornar a Lei Babaçu Livre
foram além do o cumprimento e da rotatividade de promotores. No município
de Imperatriz, Maranhão, um vereador apresentou um requerimento contra a
lei, alegando a sua inconstitucionalidade por ir contra o princípio da propriedade
privada, asseurada no direito constitucional. No município de São Domingos
do Arauaia, sudee do Pará, a lei foi aprovada com o rótulo de Lei Babaçu Livre,

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mas seu conteúdo é prejudicial às quebradeiras. No primeiro artigo diz o seuinte:
As palmeiras de babaçu são de livre acesso se as quebradeiras negociarem com
os fazendeiros antes de entrarem na propriedade e tiverem a sua permissão para
entrar.” (Dada, ).
No caso do município de Lima Campos, foi necessária uma mobilização
das lideranças municipais e dos cnicos da Assema para evitar a aprovação
de uma Lei com o rótulo de Lei Babu Livre sem o contdo denido cole-
tivamente pelas quebradeiras e agricultores(as) familiares. Foi preciso fazer
um requerimento à Câmara Municipal pedindo permissão para a fala de uma
liderança e detahando o discurso da mesma. Após o requerimento, o prefeito
retirou a lei da Câmara e até hoje o foi possível aprovar a Lei Babu Livre
naquele município.
Como resposta a essas tentativas de enfraquecimento da lei e negação do
direito às quebradeiras de coco, o MIQCB tem intensicado sua estratégia de
discussão da lei em vários municípios onde atua, assim como o trabaho constante
de mobilização, conscientização e organização das quebradeiras de sua base de
atuação. Além disso, o MIQCB tem lutado pela aprovação da Lei Babaçu Livre
em nível federal, que tramita no Congresso Nacional.
Para justicar a exigência da lei federal, o Movimento tem apostado na apro-
vação do maior número de leis municipais. Além disso, o Movimento eá rea-
lizando um mapeamento em quatro eados onde atua, tentando localizar onde
a lei foi aprovada e não é cumprida, assim como vários abusos que são feitos por
fazendeiros às quebradeiras de coco babaçu, como parte da Campanha pelo Ba-
baçu Livre do MIQCB.
O processo de luta pelo direito de livre acesso e proteção do coco babaçu que
teve início nas cadas de / e que evolui para a luta pela reforma agrá-
ria, para a luta por acesso ao mercado em condições mais justas, pela luta pela
Lei Babaçu Livre e sua implementação, teve como protagonistas principais as
muheres quebradeiras de coco babaçu. As diferentes vitórias nesse processo de
empoderamento levaram a diferentes respostas por parte de seus opressores, na
maioria das vezes, os fazendeiros locais, em um permanente jogo de equilíbrio e
desequibrio da balança das relações de poder, ora pendendo mais para o lado
das quebradeiras, ora para o lado dos fazendeiros.
O tortuoso caminho de empoderamento trihado pelas quebradeiras de coco
nas esferas sociais, políticas e econômicas produziu conquistas importantes que
mehoraram a vida dessas muheres. Surge então uma queão: como essas con-
quistas se traduziram em mudanças efetivas na esfera privada? Como tem sido
trihado esse tortuoso caminho do empoderamento individual da esposa, da mãe,
da separada, da viúva?
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
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Dió, liderança política feminina da comunidade do Ludovico, município de Lago
do Junco, sócia da AMTR, integrante do núcleo de fabricação de sabonetes e repre-
sentante da organização no Conseho de Saúde teve que travar uma luta dentro de
sua casa para que sua escoha de participar do movimento pudesse ser efetivada.
A luta começa dentro de casa, com homens falou Dió enquanto preparava o
lanche. Continuou contando espontaneamente sua trajetória de luta com o marido,
na esfera familiar. Quando eu decidi começar a ir nas reuniões, começou a briga
com o meu marido. Ele falava que não tinha quem tomasse conta das crianças.Ao
que ela respondia “Você pode cuidar delas, a nossa ha pode ajudar.Furioso, sem
arumentos, ele ameaçava: “Eu vou para o garimpo!.” Mas Dió eava decidida, ela
queria ir às reuniões e não iria desistir. Cada vez que Dió enfrentava seu marido,
ee se vingava e abandonava a casa em direção do garimpo. Foi três vezes e de cada
vez que ia voltava mais doente.Dió começou um trabaho de convencimento do
marido, comparando os resultados econômicos das opções dele ir para o garimpo
com as dela militar no movimento. Ela dizia-he O garimpo não em nada, tu
traz doença de lá. Os meus planos eão indo bem, minha luta eá dando fruto.
Mas preciso de você do meu lado, pois com três hos e um doente não dá.Depois
de muito esforço, Dió conseuiu convencer seu marido e ee começou a mudar sua
atitude em relação à autonomia dela. Ela aconta sorindo que às vezes teava
ele: “Estou cansada de deixar os hos, o vou para a reunião!” E que ele respondia:
“Muher, você não pode, tomou o compromisso, agora tem de ir. Infelizmente,
as doenças que trouxe com ele do garimpo acabaram por derubá-lo.Depois que
passei tanto tempo para mudar ele, agora que ele eava tão bom
Toinha acrescentou no nal da conversa:
Essa é a história de muitas muheres dessas comunidades, brigando para mudar os ma-
ridos e por vezes perdendo-osEu vivi muito tempo em casa com o meu marido, ele
eava sempre à frente e eu era brigando, eu queria participar, mas com ho com tudo,
eu nunca tinha assim muita liberdade. Agora eu tenho mais liberdade depois de nossa
separação (…) agora eu me sinto mais livre, eu faço o que eu quero, o que eu tenho von-
tade. E a coisa que eu tinha vontade era de ear no movimento, de participar das coisas,
de aprender, de não ter quem me bare, ou que que me criticando, ou que que brigando
quando eu chego em casa. Então para mim um dos maiores oruhos para mim hoje é ser
diretora da Assema. (Toinha, )
Dada recorda como foi dicil não só educar seu marido, mas principalmente
seus vizinhos, para que reeitassem os seus direitos.

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Na verdade essa coisa de sair de casa é um prolema. (…) Eu ter que deixar de quebrar
coco, de deixar o almoço na roça, de lavar roupa pra ir participar da reunião, o
do meu marido, mas da sociedade que tava ali em volta. (…)s discutia (…) chega-
mo até a ter divergências bem forte. (…) Foi muito dicil eu ingressar nessa, denir
minha participão, mas foi bom, eu acho que são etapas da vida da gente que eu acho
que essa etapa eu venci. (…) Esses empecihos que tudo o que zeram pra atrapahar
a minha participação o conseuiram, eu venci todas. (…) E hoje eu tenho minha
autonomia. Se eu disser ao meu marido hoje vou para Pedreiras, ele só diz quando
voltas?’. (Dada, )
As diculdades enfrentadas por Dió, Toinha e Dada para poderem exercer
seu direito de participação nas organizações da sociedade civil, são ainda hoje
enfrentadas por muitas muheres quebradeiras de coco babaçu. Nem sempre o
resultado desse conito dentro da família tem sido a separação, várias muheres
continuam casadas e participando, mas muitas vezes a submissão das muheres
à vontade de seus maridos acaba sendo a saída.
O que levou essas muheres a enfrentar seus maridos e lutar pela sua par-
ticipão?
O período de conito na luta pela tera empurou as muheres para a esfera
púlica, mostrando-hes suas habilidades e capacidades, aumentando sua auto-
estima e estimulando a sua organização – inicialmente nos clubes de mães e nos
grupos de quebra de coco coletiva, em seuida na AMTR, no caso do Lago do
Junco, e posteriormente na Assema e MIQCB. Contudo, após os conitos as
muheres que começaram a participar nas decisões da comunidade e assumiram
papéis importantes durante a luta pela tera eavam novamente sendo empur-
radas para dentro das casas, impossibilitadas de proteger as palmeiras, mesmo
dentro das próprias casas.
O fortalecimento adquirido durante os conitos pela tera, possibilitou que
alumas muheres não se resignassem a ser arastadas novamente para a esfera
privada, impotentes, e fez com que começassem a lutar pelo seu direito de parti-
cipar em organizações de muheres e mistas. Outras, apesar do empoderamento
coletivo de antes, eavam agora novamente impotentes dentro das suas casas e
tinham os seus direitos de participação e de escoha parcialmente ou totalmente
negados. O que nos mostra como o processo de empoderamento é progressivo e
cheio de altos e baixos.
A Assema assumiu como parte de seus objetivos a valorização do trabaho da
muher quebradeira de coco e trabahadora rural, como um meio para mehorar
as relações de poder dentro da família, da comunidade e das organizações base da
Assema, assim como da própria Assema. Uma das estratégias utilizadas tem sido a
da rotação do local de realização das Assemléias semestrais das organizações que
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
compõem a Assema, como forma de estimular a participação de pessoas ainda
não envolvidas no movimento. Outra estratégia tem sido a de fazer momentos de
reexão e de formação nas Assemléias sobre direitos das muheres, em particular
na Assemléia da AMTR.
Na XXVII Assemléia da AMTR as muheres apresentaram uma pequena
peça de teatro mostrando a importância do estímulo externo para o deertar da
muher para a participação e as diculdades enfrentadas pelas muheres quando
decidem participar das organizações da sociedade civil.
O pequeno quadro mostrava as muheres indo na casa de uma outra e convi-
dando-a para a Assemléia. Ela cava muito animada com o convite e peruntou
a seu marido se ele a deixava ir. Ele cava muito zangado e respondia que nem
pensar, que sua esposa tinha tarefas para fazer em casa e que não era que nem
aquelas muheres que participavam das reuniões, ela era uma muher séria! Ape-
sar da insistência de sua esposa e de sua vontade de participar da Assemléia, ela
acabou cando em casa, se submetendo à vontade de seu marido e muito triste.
Durante todo esse ano, ela lamentava não ter ido contra a vontade de seu marido
nesse dia. Assim, no ano seuinte, quando as muheres passaram novamente con-
vidando-a para o encontro, ela não pediu permissão ao seu marido e, apesar das
ameaças que ele fez enquanto ela saia pela porta da casa, ela foi para a Assemléia,
sorindo, feliz por ter sido capaz de fazer sua escoha.
Infelizmente, nem todos os casos de conito na família por alteração das
relações de poder que penalizam as muheres têm nal feliz. Em aluns casos, as
restrições à liberdade de escoha das muheres vão além da violência psicológica e
resultam em violência sica. Embora possamos imaginar que esse é um prolema
restrito às muheres que não eão mobilizadas e não participam das organizações
da sociedade civil, essa não é a realidade.
Lideranças empoderadas e esposas desempoderadas, essa é a estranha história
de alumas quebradeiras de coco babaçu. Parece que essas muheres mudam de
papéis ao entrarem em suas casas, deixando todo o poder alcançado na esfera
coletiva do lado de fora.
Durante entrevista, a ha de uma lideraa contou os anos de violência
dostica a que ela e sua mãe foram sujeitas em casa; como foi dicil para ela
crescer num ambiente em que a violência se reproduzia de pai para e e de
e para os hos. Salientou, tamm, como foi importante que sua mãe parti-
cipasse da Assema, como essa participação a ajudou a mudar o relacionamento
entre mãe e hos. Contudo, hoje ainda é muito dicil mudar a forma como
seu pai reage à participão de sua mãe nas reuniões, viagens e eventos. Assim,
cada vez que ea lideraa se prepara para sair de casa ela pode ter de lidar
com violência psicológica e sica, o que por vezes a impossibilita de participar
de alumas reunes.
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Os momentos de reexão e formação promovidos pela AMTR e pela Assema
podem ser espaços dolorosos para as lideranças alvo de violência doméstica e eas
normalmente tentam evitar essa discussão.
A gente percebe que em aluns espaços o prolema maior é quando vai discutir, quando
entra para a família. (…) Tem muheres, por exemplo, é muito forte politicamente, são re-
almente lideranças e que quando a gente eá, por exemplo, numa ocina e vai ter uma
abordagem de saúde reprodutiva, violência doméstica ou Lei Babaçu Livre. Elas optam
pela Lei Babaçu Livre. Embora elas sejam expert no assunto. São pessoas que poderiam
fazer essa opção, o medo de trabahar alumas coisas, mexer por dentro da gente. Então
às vezes elas não conseuem car na reunião. Elas cam saindo para ir fumar, ir tomar
café. (…) Porque um pouco de medo de se deparar com ela mesma. Porque tem a coisa
de ear com seus colegas, embora ela não eeja falando, mas as colegas sabem, porque
moram na mesma comunidade. (…) Sim, existem ótimas lideranças que apanham do
marido, que não podem vir hoje na reunião porque o marido não deixou sair de casa.
(Ana Carolina, )
Alumas lideranças femininas do movimento – que enfrentaram os jaunços,
os fazendeiros, os policiais, os políticos são esposas frágeis dentro das quatro
paredes de suas casas. São ameaçadas em sua sexualidade, em sua integridade
sica e psicológica, não têm voz nas decisões familiares e ainda têm de lutar pelo
seu direito de ir e vir, de participar dos encontros, reuniões, viajar
Embora essa não seja a situação da maioria das lideranças femininas, e isso é
importante frisar, é ainda a história de demasiadas quebradeiras de coco babaçu,
fechadas em suas casas, com seu espaço de circulação restrito e com seus direitos
negados. O que nos deixa a queão: Como transferir o empoderamento coletivo
construído durante esse caminho de luta pelo acesso e proteção dos babaçuais
para o empoderamento individual na esfera familiar?
Nea história foram identicadas três linhas principais de luta por direitos
das muheres na esfera privada: proteção das palmeiras de babaçu nos lotes fa-
miliares, participação na vida política e social e ear livre da violência. A Assema
e o MIQCB têm priorizado as primeiras duas linhas de luta pelos direitos das
muheres apresentadas.
A luta pelo direito de acesso e proteção das palmeiras de babaçu é o objetivo
principal do MIQCB e encontra-se no centro da estratégia da Assema. Pelo fato
dos fazendeiros serem os que cometem os maiores abusos, eles têm sido os alvos
principais dea luta. Contudo, ambas as organizações m fazendo um forte
trabaho educacional com as famílias agroextrativistas sobre as potencialidades
de consorciar as palmeiras de babaçu e a produção agrícola, seuindo um modelo
agroecológico de produção. Esse trabaho tem mostrado aos maridos as potencia-
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
lidades de exploração de forma sustentável das duas atividades, potencializando
as suas complementaridades. Através dea estratégia, a Assema e o MIQCB
contribuem para a proteção das palmeiras nos lotes familiares.
Em relação à participação das muheres no movimento, várias m sido as
estratégias utilizadas. Nelas se incluem: a) trocar a localização das Assemléias
realizadas pelas organizações de base, no caso da Assema, no intuito de estimu-
lar a participação das muheres e de dar visibilidade às discussões realizadas;
b) aumentar a visibilidade da contribuição dada pelo trabaho da muher à renda
familiar, mostrando simultaneamente a importância do babaçu na economia fa-
miliar; c) criação e estímulo aos grupos de muheres, e à participação das muheres
em todas as atividades realizadas – políticas e econômicas.
No que diz reeito à queão da violência doméstica, as respostas têm sido
mais isoladas. No caso da Assema, o Programa de Organização e Mobilização
das Muheres tem apostado na educação das gerações atuais e futuras de maridos
em espaços coletivos de discussão, ao mesmo tempo em que trabaha a cons-
cientização da muher em relação a seus direitos eabelecidos. O objetivo dos
momentos de reexão e de formação de homens e muheres sobre os direitos das
muheres tem sido o de trazer prolemas privados de muher para a esfera púlica
onde homens e muheres os discutem. Embora esses momentos sejam essenciais,
eles apenas atingem os homens envolvidos nas atividades e organizações de
base da Assema, e onde o assunto ganha espaço, que é principalmente no âmbito
da AMTR. Sendo uma organização mista são várias as potencialidades que se
apresentam para a Assema realizar um trabaho profundo com os homens sobre
direitos das muheres e em particular sobre a queão da violência doméstica.
Por seu lado, o MIQCB vem apostando na discussão sobre a importância da
luta das quebradeiras de coco pelo direito de livre acesso e proteção das palmei-
ras de babaçu, como forma de sensibilizá-las e mobili-las para a reversão da
situação de opressão em que se encontram.
A Dada que eu fui há  anos atrás existe muito, nas nossas comunidades, muitas, muitas,
muitas, então há uma necessidade de fazer um trabaho muito grande pra capacitar, pra
trazer, pra levar essa auto-estima mesmo pras pessoas se sentirem gente, pras pessoas se
verem como muheres que têm direito e que a gente tem de ear reivindicando, tem de
ear denunciando. (Dada, )
Contudo, apesar das reexões internas e esforços nee sentido, tanto o
MIQCB como a Assema, ainda não conseuiram transformar em uma única
agenda a luta pelo desenvolvimento rural sustentável e a luta pelos direitos das
muheres. Apesar de ser fundamental, não é suciente dar visibilidade à contri-
buição do trabaho feminino na renda familiar e integrar as muheres nas organi-

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zações e lutas travadas. É crucial que o movimento tenha uma estratégia proativa
para lidar com a negação dos direitos das muheres em suas casas.
O :
A história das quebradeiras de coco, na luta pelo direito de livre acesso e proteção
do recurso natural palmeira de coco babaçu, evoluiu ao longo de um processo
constante de desequilíbrio das relações de poder eabelecidas com seus maridos,
seus vizinhos e com os fazendeiros. É como se ohássemos para uma balança que
mede a desiualdade de poder entre seus dois pratos. Num dos pratos temos as
quebradeiras de coco, nem sempre sozinhas, uma vez com as organizações que
as representam, outras com seus maridos e companheiros de luta e outras com
pessoas da esfera eatal ou do mercado. No outro prato alternam-se seus ma-
ridos, seus vizinhos e os fazendeiros. Os trabahadores rurais das comunidades
aparecem, assim, nea história de mudança tanto como aliados e opressores,
dependendo da luta e da arena em que ea eá sendo travada.
No início dea história a balança pendia em favor dos fazendeiros, vizinhos e
maridos das quebradeiras de coco babaçu. Vimos como os pratos da balança fo-
ram se invertendo ao longo da trajetória de luta em favor das muheres. Contudo,
o longo processo de desequilíbrio e alteração das relações de poder em seu favor,
quase sempre foi instável e não sustentado. O que não signica que voltamos ao
ponto de partida – a diferença entre os dois pratos tem vindo a se reduzir gradu-
almente, atras das conquistas que foram alcançadas nesse tortuoso caminho
de empoderamento das quebradeiras de coco.
Alumas muheres conseuiram se aproximar mais do equilíbrio de sua ba-
lança nas relações privadas, outras apenas alcançaram um quase equibrio nas
relações eabelecidas na esfera da sociedade civil e do mercado, outras eão
lutando para que os pratos da balança pendam mais em sua direção na esfera do
Estado. O que deixa a mesma muher em posições diferentes conforme a luta e
arena em que a mesma eá sendo travada.
A história de desequilíbrio e reequilíbrio constante das relações de poder dei-
xa uma queão: como transferir empoderamento coletivo, alcançado na esfera
púlica na luta pelo direito ao livre acesso e proteção do recurso natural babaçu,
para o empoderamento individual da muher na esfera privada?
Ohando as diferentes trajetórias de vidas relatadas, a idéia que ca é que
cada muher se apropriou e utilizou de forma diferenciada o poder alcançado na
esfera púlica, para lidar com e transformar os desequibrios de poder dentro
de suas casas. Dependeu assim, da criatividade e iniciativa de cada uma, a forma
como lidaram com o medo e vulnerabilidade a que eão sujeitas em suas casas.
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
Em aluns casos essa transferência ocoreu quase automaticamente, contudo
em outros casos essa transferência não ocoreu ou gerou outros conitos com
os quais as muheres ainda não conseuiram lidar, por exemplo, as situações de
violência doméstica.
Por vezes, o que aparentemente é um ponto de chegada no processo de empo-
deramento das quebradeiras de coco babaçu reforma agrária, Lei Babaçu Livre,
lideranças femininas atuantes em várias esferas rapidamente se transforma em
mais um ponto de partida no processo contínuo de luta por direitos. Contudo, um
novo ponto de partida mais rme, mais seuro e com mais acúmulo.
A história das uardiãs da orea do babaçu e de seu tortuoso caminho de
empoderamento leva à reexão sobre a necessidade de complexicar a análise do
empoderamento feminino, ohar as relações de poder que perpetuam e reprodu-
zem a situação de dependência e de opressão feminina nas diferentes arenas de
luta de forma extremamente dinâmica e de complexicar o ohar sobre a muher
que não é apenas vítima, mas que ocupa vários papéis, em aluns numa situação
de maior vulnerabilidade e em outros numa situação de maior privilégio.
R
A, A. W. B. Preços e posibilidaes: a organização das quebradeiras de coco
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Identidades em trajetória:
Gênero e processos
emancipatórios
na reforma agrária
S A R A D E O L I N DA C A R D O S O P I M E N TA
R
O artigo trata de estudo de caso realizado em assentamento de re-
forma agrária do Vale Jequitinhonha, Minas Gerais, resultante da luta
organizada de posseiros. A trajetória de luta e trabalho construída
coletivamente e a criação do projeto de assentamento possibilitaram
mudanças expressivas nas relações sociais e familiares, com a amplia-
ção do campo de sociabilidades, construção de novas identidades e
significativas mudanças nas relações de gênero. O processo psicossocial
de construção de identidades coletivas é investido de potencial eman-
cipatório, o que favorece a transformação do quadro de discriminação
e desigualdade, com possibilidades reais de crescimento e autonomia
das mulheres assentadas.
Palavras-chave: reforma agrária, assentamento, identidade coletiva, gênero.
I
O têm comprovada imporncia
para a democratização do acesso a terra, permanência e vida digna no campo de
diversos segmentos de trabalhadores, para o desenvolvimento econômico e social
e, em especial, por constituírem um território privilegiado para a construção de
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
novas identidades e relações sociais (R; A, ; M;
L, ). Considerar os assentamentos um território significa reconhecer a
multiplicidade de aspectos que se constroem no espaço e tempo e compõem uma re-
alidade particular, fonte de identidade pessoal e grupal. O território se constitui por
laços informais e modalidades não mercantis de interação e integram sentimentos de
pertença, raiz e trajetórias comuns, memória coletiva, valores e crenças partilha-
dos, e um universo simbólico que lhes é próprio (A; F, :).
A criação dos assentamentos, sobretudo se resultante de um processo de orga-
nização e luta pela tera, favorece mudanças signicativas na vida dos assentados
e no contexto em que se inserem. Implica em mudanças expressivas na dinâmica
relacional dentro e fora dos assentamentos, no rearanjo espacial das famílias, em
novas formas organizativas, de solidariedade, na formação de grupos diferen-
ciados e conitos internos. Novas sociabilidades são construídas, inclusive em
assentamentos nos quais as famílias assentadas viviam na área, antes mesmo
do processo de desapropriação (L et al., :). Não por outro motivo,
os assentamentos de reforma agrária estimulam novos estudos e pesquisas, como
no campo da psicologia social, fazendo dialogar diferentes aectos da vida social
e dimensões da subjetividade. Dessa perectiva, as formas que adquirem o com-
portamento social expressam as condições concretas de existência em espaços e
tempos determinados e a interação permanente e dinâmica das dimensões es-
truturais e subjetivas. Os modos de sentir, pensar e agir dos sujeitos, atores sociais,
não somente resultam do contexto sócio-econômico, político e cultural em que
se inserem, como o transforma, num movimento de reciprocidade (L, ;
C; G, ). Os fenômenos sociais, situados e datados, são
protagonizados por sujeitos que agem, interagem, protagonizam mudanças, cons-
troem identidades, e se fazem reconhecer enquanto atores sociais em um campo
permeado por tensões e conitos, a indicar o processo contínuo de mudanças
sociais (J; M, ).
O projeto de assentamento em foco resulta de um conito pela posse da tera
em área ocupada por sucessivas gerações de agregados/posseiros. Essa situação
fez supor relações sociais consolidadas em redes de sociabilidades construídas
atras dos anos. Trata-se de trajetórias de resistência na tera, de luta organizada
de posseiros, reconhecida em documentos ociais, e presente, porque compar-
tihada, revivida e re-signicada pelos assentados e assentadas. Localizado nos
municípios de Pedra Azul e Cachoeira do Pajeú, Vale do Jequitinhonha, região
 O termo agregados refere-se aos trabalhadores/camponeses que residiam nas fazendas sob o
consentimento do fazendeiro, sem necessariamente estarem subordinados a relações de tra-
balho ou emprego. O uso da terra era compartilhado com o fazendeiro, porém os agregados
o possuíam o donio da terra. Posseiros refere-se aos trabalhadores, antigos moradores de
fazendas, que no uso da terra construíram ras e benfeitorias, adquirindo direitos sobre a terra.
N E A D E S P E C I A L
nordee de Minas Gerais, o Projeto de Reforma Agrária Aliança – PA, foi cria-
do em  e, por meio da Resolução n
o
.  de  de junho de , declarado
consolidado e emancipadopelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra). Atualmente conta com famílias em lotes, local de moradia
e trabaho dos assentados e assentadas.
Com essas caraerísticas a situação apresentou-se propícia ao estudo das
trajetórias construídas na luta pela tera e na constituição do assentamento
com foco no processo de construção de identidades coletivas. Esse processo foi
considerado em seus aectos psicossociais relacionados, sobretudo, às possí-
veis mudanças na dinâmica das relações de gênero no âmbito da unidade de
produção familiar e no cotidiano do assentamento. Em outras palavras, buscou-
se compreender os signicados das ões coletivas, sociabilidades e mudanças
operadas por homens e muheres, assentados do PA Aliança, em seu potencial
emancipatório e integrantes de uma dinâmica identitária a partir de um con-
junto de queões assim sintetizadas:
ue mediações sociais, históricas, culturais e políticas se fazem presentes na tra-
jetória de luta pela tera e constituição do assentamento?
ue mudanças são identicadas no campo de sociabilidades dos assentados e
assentadas e em que medida favorecem a construção de novas identidades?
ue signicados essas mudanças adquirem na interação social, eecialmente
em sua dimensão de gênero?
ue potenciais e limites são identicados no processo de construção de identi-
dades coletivas na perectiva de um processo emancipatório?
Assim, sociabilidades, gênero e identidades coletivas se apresentaram como
categorias principais, articuladoras de outras que emergiram no tratamento ana-
lítico dos dados construídos no curso da pesquisa. Um processo construído com
a participação ativa dos assentados e assentadas no qual foram adotados proce-
dimentos da pesquisa qualitativa, mais propriamente a observação participante,
com registros etnográcos no caderno de campo e entrevistas abertas, semi-estru-
turadas. Todos os investimentos se voltaram para estimular e possibilitar a livre
expressão dos assentados e assentadas,… para cia as condições de aparecimento
de um discurso extraodináio. Que poeia nunca te tido e que, toaia, já eaa lá,
eerando suas condições de atualização (B, :).
O trabaho de memória individual e coletiva por meio do qual se alternam
lembranças, esquecimentos e silêncios, possibilitou o resgate dessa trajetória em
que agregados se zeram posseiros, que por sua vez se zeram assentados da
reforma agrária. Na interação entre escuta e narativa foram evocados e rearma-
dos os sentimentos e vínculos de pertencimento, a coesão e as fronteiras sociais.
O trabaho de memória se concretiza na narativa, que o consiste em transmitir
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o acontecimento em si,mas o acontecido transformado através de uma evocação
reexiva e localizada, passando por uma inteligência do presente (B, ).
A origem, o contexto e processo de criação do projeto de assentamento foram
signicados nas narativas dos assentados e assentadas de modo a reproduzir
os fatos sociais, preservando-os no tempo e dotando-os de eabilidade. Nesse
sentido, a memória constitui-se num trabaho de construção e reconstrução, em
campo e objeto de luta, integrando redes sociais e cognitivas pela qual é possível
acessar osentido de certos acontecimentos, uma edae intersubjetia e não refe-
rencial. (M, :).
Falar de trajetórias implica em um movimento de reciprocidade a unir pas-
sado e presente, mas, sobretudo, no tratamento das práticas sociais por meio
dos signicados construídos sobre essas práticas, o que remete a um campo de
contradições e ambiüidades e ao reconhecimento dos limites e incompletude
das interpretações.
A inserção em campo e a metodologia de pesquisa adotada possibilitaram o
acesso e registro de uma variedade de situações, fazendo interagir o trabaho de
memória e narativa com as práticas construídas no cotidiano do assentamento.
O recorte realizado nee artigo objetiva colocar em evidência a dimensão de gênero
nas mudanças operadas por homens e muheres, assentados e assentadas, mudanças
que compõem a construção de identidades coletivas e processos emancipatórios.
Identidades em trajetória é, portanto, um modo de se referir ao campo dinâ-
mico de interação social em que mobilização de recursos, demarcação de posi-
ções, ações coletivas, e projetos de futuro conuram o movimento que homens
e muheres, assentados e assentadas recriam e constroem em busca de serem na
tera e com a tera.
O : ,
Assentamento é uma categoria bastante abrangente, como se pode vericar nas
denições ociais, a indicar diferenciados processos de constituição, contextos
de criação e a participação de atores e mediadores diversos.
Em geral os projetos de assentamento de reforma agrária têm origem numa
situação de conito e se estruturam sob a geão e orientação do Estado. o
criados em teras desapropriadas, para ns de reforma agrária, como resultado
de ações coletivas, constituindo-se de acordo com Leite et al. (:).
em ponto de cegaa de um processo de (…) transforação de um aplo seto de “excluídos
e sujeitos políticos, novos atores e cena, com a participação e apoio de movimentos sociais.
Por outro lado, são também ponto de partida para (…) impleenta projetos técnico-prou-
N E A D E S P E C I A L
tios, pratica uma nova sociabilidae interna (…) e insei-se num jogo de disputas políticas
isando sua reroução. (L et al., : -).
A criação dos assentamentos engendra trajetórias individuais e coletivas
onde convivem tradição e renovação, fonte de sociabilidades e identidades. Nes-
se processo são produzidos e organizados os signicados da dimensão coletiva e
social que se alimenta da cultura e da história compartihada.(C, ;
P, ). São criados e recriados os vínculos grupais e sociais dando lugar a
novas redes de sociabilidades onde se fazem reconhecer como assentados e assen-
tadas da reforma agrária. Trata-se de um processo de construção de identidades
coletivas em que instabilidades e conitos, situados na origem do assentamento,
o lugar a outras relações de poder e, portanto, a novas formas de conitos so-
ciais com a presença de outros atores em cena.
A identidade coletiva constitui, portanto, em fonte de signicados que emer-
gem na interação e na ação coletiva permeados por sentimentos e pticas sociais
desenvolvidas por um grupo, num contexto eecíco, e que denem a pertença
dos sujeitos a esse grupo. Demarca posições identitárias dos sujeitos por meio de
formas diferenciadas, dentre elas: a compreensão construída acerca da trajetória
do grupo; as estratégias para mobilizar recursos e denir projetos de futuro; o com-
partihamento de valores e crenças que compõem a cultura e opera na mediação
entre grupos diferenciados e como forma de pertença social (P, : ).
Para Santos (), a noção de identidades coletivas eá associada…
às diferentes foras de resistência, de mobilização, de subjetiidae… geradas por práticas
diversas de opressão ou de dominação, implicando em noções diferenciadas de justiça.
Essas diferentes formas de resistência, mobilização e subjetiidae são tratadas enquanto
lutas eancipatóias, que engendram a ampliação de cículos de reciprocidae num campo
de tensões entre iualdae e diferença, entre a exigência de reconhecimento e o imperatio da
redistibuição (S:).
A subjetividade e intersubjetividade, os sentimentos e interesses em jogo nas
relações e práticas sociais consistem em aectos psicossociais, que conuram
dimensões da alteridade na dinâmica identitária. Há, portanto, uma indissolúvel
relação entre identidade e subjetividade, entre subjetividade e diferença, na qual
a diferenciação se constitui em atividade fundamental à assunção identitária.
O sentimento de pertença social enseja a signicação da relação com o outro
e tem seu lugar numa rede intersubjetiva, que compõe a estrutura das relações
sociais num determinado tempo e lugar histórico.
Assim, a identidade é uma categoria de análise que integra ambiüidades e
dissociações, e não se confunde com papéis sociais. Os papéis sociais podem fa-
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zer parte da identidade, a depender de como o sujeito os assume e os integra em
suas práticas cotidianas, na percepção de si e dos grupos aos quais se vincula
(C, ; P, ).
No assentamento pesquisado, a trajetória coletiva permanece, mesmo com
o passar dos anos, como principal referência para a identicação e apresentação
dos assentados e assentadas. A identidade coletiva de assentados e assentadas
do PA Aliança tem como fonte principal a trajetória de lutas construída, inter-
pretada e compartihada coletivamente. A luta das famílias de posseiros pela
permanência, trabaho e direito à propriedade da tera compõe as trajetórias
individuais e coletivas que tem sua sustentação na intensa relação com a tera, no
sentimento de enraizamento, nas ações coletivas, no compartihamento da expe-
riência vivida e no fortalecimento dos vínculos do grupo. Constitui-se, portanto,
em fonte permanente de signicados que compõe a dinâmica identitária. Nesse
processo são compartihadas crenças, valores, interesses e eeranças que forta-
lecem nculos e se materializam em projetos e ações coletivas ao longo de sua
trajetória como agregados, posseiros, assentados, trabahadores e trabahadoras
rurais (C, ; M, ; P, ).
A história da violência do latifúndio e do conito pela propriedade da tera
é também a história de resistência e fortalecimento da identidade de posseiros.
Estes, com sua organização e ação coletiva, desenvolveram a capacidade de fazer
pressão em defesa do projeto coletivo, e obterem o reconhecimento dos direitos
de posse da tera. Nesse fazer, construíram articulações, novas relações e redes
de sociabilidade trazendo outros atores à cena, na qualidade de mediadores do
conito, como é o caso da Igreja e do Sindicato dos Trabahadores Rurais.
A grande novidade que será o motor de todas as mudanças na vida dos pos-
seiros é sua organização e participação social. Os nculos construídos a partir
da história de uma raiz comum são fortalecidos e re-signicados pela expansão
e constituição de novas famílias, mas, sobretudo, pela ampliação das formas de
sociabilidade.
O tema principal associado à trajetória de lutas é a mudança. As mudanças
operadas por homens e muheres, abundantes em signicados, foram tratadas
espontaneamente pelos assentados e assentadas como forma de se apresentarem
ou falarem de suas vidas. De modo entusiasta, ressaltaram como principais mu-
danças a condição de liberdade para trabaharem na própria tera; o acesso a bens
e serviços; novos costumes, formas de se apresentarem e se relacionarem interna e
externamente ao assentamento; a organização e participação em atividades cole-
tivas no assentamento, na associação e no sindicato; o acesso aos direitos sociais e
cidadania. Para os assentados e assentadas do PA Aliança, a importância primeira
do assentamento reside na tera em suas próprias mãos, condição essencial para
a sua liberdade de trabahar e viver. Os tempos do trabaho agregado, mesmo
N E A D E S P E C I A L
quando o fazendeiro permitia o uso da tera sem importunar os moradores, eram
tempos de permanente dependência e inseurança.
A: Quieta moça! Não pode nem comparar os momento, nós sofria demais
mesmo. (…) a gente tinha a tera livre, só que eu não sei lá, parece que a gente era
mais pobre. A gente fazia as roça, mas parece que não tinha a capacidade de sair e fazer
as roça iual agora. Eu não sei se é porque a gente também não tinha a experiência de
fazer mais coisas, iual a mandioca. A mandioca nós fazia só mesmo a farinha, não fazia
outra coisa. Hoje nós, nós da mandioca nós faz o beiju iual você tá vendo aí, faz a puba,
faz a goma seca pra fazer o biscoito, faz a farinha, tudo enns faz. E antigamente ninuém
descobria essas forma de crescer mais.
No processo de conquista e apropriação da tera o sentimento de liberdade
impulsiona a geração de novas capacidades e experiências, que articuladamente,
resultam na possibilidade de criar e recriar as condições para produzir, trabahar
e viver com dignidade. Para uma assentada que chegou com a família após a cria-
ção do assentamento, mesmo com a falta de áua e a moradia de pau-a-pique, a
vida no assentamento nem se compara aos duros tempos de sujeição do trabaho
na carvoeira. Trabaho forçado, sacricando crianças e adultos, para garantir o
mínimo da sobrevivência restrita à comida de cada dia.
A: Só pra comer. Não dava pra outra coisa, só pra comer. (…) Hoje que nós
tem um pouquinho mais de recurso. Pelo menos tá morando no que é da gente. Tem o
gadinho da gente, tem o lugarzinho da gente sossegado.
O período anterior à criação do assentamento é lembrado como um tempo
em que homens e muheres tinham sua vida social restrita à comunidade, onde
viviam isolados, sem comunicação com o mundo externo. Essa situação de isola-
mento era quebrada somente pela necessidade de provimento, através da com-
pra, venda, ou mesmo troca de produtos essenciais à sua sobrevivência. Nessas
circunstancias a feira consistia praticamente no único lugar freqüentado na sede
do município, e ainda assim com maior freqüência pelos homens.
As narativas nos remetem a um tempo em que os antigos moradores, agrega-
dos, desfrutavam de uma sociabilidade eável e pouco dinâmica, em um campo
bem delimitado, próprio a comunidades e economias fechadas, como as descritas
por Cândido (). Os hábitos, costumes e formas de interação, relembrados
pelos assentados e assentadas deixam entrever semehanças com comunidades
primitivas, origens e heranças indígenas tornadas patrimônio cultural dos agre-
gados daquelas fazendas. Na trajetória coletiva não somente fortalecem os vín-
culos na comunidade, como constroem vínculo social. A interação com o mundo
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externo no processo de resistência, luta e organização, gera novas possibilidades
de mobilidade, comunicação e expressão, que se traduzem em evolução e desen-
volvimento sócio cultural do grupo (C, ; P, ).
A memória de um tempo signicado como de isolamento e falta de liberda-
de revela a visão de uma sociedade que, se de um lado hes apresentava como
estranha e ofensiva, de outro, parecia reetir o próprio medo que sentiam da
convivência social. A falta de comunicação com a sociedade local resultava em
identicações simbólicas povoadas por emoções que aprofundavam a situação
de isolamento social. A luta e conquista do assentamento mobilizaram outras
emoções, que fortaleceram os vínculos do grupo, favorecendo o reconhecimento
da trajetória construída coletivamente, do projeto comum, daquilo que os uniu,
que os faz semehantes e que os diferencia do seu entorno.
A: Na parte também que eu te falei o que era, daquela parte sobre o pessoal,
parece que até tinha medo da gente. Porque não tinha aquele conhecimento do pessoal.
Porque isso aqui era um centro encostado aí deles. Não tinha trânsito de ninuém, não
tinha estrada, não tinha nada. (…) uer dizer, tudo isso foi organização. (…) nem a
gente tinha muito conhecimento com o pessoal da cidade, nem o pessoal da cidade tinha
conhecimento com nós aqui. Hoje nós já tem um conhecimento imenso com a maioria
do pessoal da cidade (…) E a gente tem aquela liberdade dentro da cidade.
A trajetória coletiva e o novo contexto de vida no assentamento são marcados
por emoções que conformam uma ordem moral, que se manifeam pessoal e
coletivamente não comoalgo que invae ou domina os indiíduos, mas… impõe-se
aos dispositios sociais e culturais existentes. Enquanto tal, as emoções articulam…
posíeis descobertas peranentes de posibilidaes de se e de faze. Nesse processo
os assentados e assentadas compõem um conjunto de relações diferenciadas no
âmbito da família, do trabaho, da comunidade, nas atividades associativas, polí-
ticas e culturais. Essa teia de relações conforma uma dinâmica identitária na qual
ocupam posições provisórias e negociadas, seundo uma determinada hierarquia
de credibilidade (M, :).
A participação e organização são temas recorentes nas conversas, seja qual for
o assunto em pauta. A conquista do assentamento é atribuída à força da partici-
pação e da organização e relacionada às mudanças ocoridas na vida de homens,
muheres, jovens e crianças, e à dinâmica interna da comunidade.
A: “Hoje eu agradeço o que? Primeiro eu agradeço nós mesmo, que foi a
nossa organização nossa. ue nós organizou. (…) Mais primeiro de tudo a organização
nossa foi que levou o mais reconhecimento, foi a nossa organização.”Se por um lado a
participação e organização é fonte de união, de solidicação de vínculos, de sentimento
N E A D E S P E C I A L
de pertença grupal, por outro é também fonte de conitos, de disputa de poder e de
interesses diferenciados. Entretanto, ao se falar de mudanças, de evolução no modo de
vida, a participação e a organização dos assentados e assentadas aparece com toda a sua
positividade, gerando novos aprendizados e, sobretudo, reconhecimento e valorização,
tanto no plano pessoal como social.
As muheres trouxeram o tema da mudança de modo mais enfático ao se
referirem a diversos aectos de suas vidas, transformadas com a criação do as-
sentamento, mas, sobretudo, pela descoberta e entendimento da sua condição de
muher trabahadora rural.
Com o assentamento tem lugar um novo ciclo em que participação e orga-
nização se difundem e diversicam em grupos, projetos diferenciados e espaços
institucionalizados com normas eecícas. Ao tempo em que a presença dessas
organizações resulta de mudanças que têm origem primeira na resistência e luta
pela tera, consiste em novas fontes de mudanças.
Homens e muheres passaram a participar de várias atividades e mobilizações
de interesse dos trabahadores e trabahadoras e assentados da reforma agrária,
promovidas pelo movimento sindical, principalmente ligadas às reivindicações
dos direitos sociais, de políticas para a agricultura familiar e de reconhecimento
das muheres trabahadoras rurais. A participação em reuniões e atividades no
município, e ainda, no âmbito regional, eadual, e mesmo nacional, se constituiu
em forte referência para as mudanças operadas, tanto no nível pessoal, como nas
relações interpessoais, familiares e coletivas. É o caso da participação de varias
assentadas na Marcha das Margaridas, em  e , promovida pela Confe-
deração Nacional dos Trabahadores na Agricultura (Contag), em parceria com
outros movimentos e organizações sociais.
É preciso deacar que a trajetória de luta e organização dos assentados do PA
Aliança contou com o envolvimento de homens e muheres de modo diferenciado.
As iniciativas junto ao Sindicato dos Trabahadores Rurais e outros mediadores,
bem como as reuniões na comunidade e a participação em reuniões externas
foram protagonizadas pelos homens.
Durante o período do conito pela posse da tera, as muheres tiveram uma
participação condicionada, a princípio, ao que era comumente entendido e aceito
como próprio às muheres. Participavam das rezas e missas e, de maneira silen-
ciosa, das reuniões que ocoriam na comunidade. Entretanto, em seu silêncio
souberam resistir e oferecer sustentação para a permanência das famílias na tera
durante todo o tempo de ameaças e violências.
As narativas em torno da participação no processo de resistência e luta pela
tera evidenciam a naturalização da divisão sexual dos papéis sociais. E em que
pesem essas diferenciações, a trajetória de resistência, luta e conquista da tera
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proporcionou mudanças nas relações e práticas sociais de homens e muheres. Mu-
danças signicativas foram operadas nas relações familiares e redes de vizinhança,
nas formas de interação e participação social, com alterações na dimica das re-
lações sociais de nero. A participação das muheres em reuniões e atividades do
Sindicato dos Trabahadores Rurais, o auto-reconhecimento como trabahadora
rural e o acesso aos direitos sociais ocoreram progressiva e simultaneamente, in-
uenciados não somente pelo contexto local, mas pelo contexto social de inserção
e visibilidade das muheres trabahadoras rurais nas lutas sociais.
Por meio da participação em atividades da Associação e do Sindicato, lugares
de construção de vínculos a partir de identicações e interesses comuns, assenta-
dos e assentadas ativam a condição de trabahadores e trabahadoras rurais, por-
tadores de direitos sociais. Esse agir em coletividade gera sentimentos de pertença
grupal, onde se produz o signicado de ser aluém, aluém com uma identidade
construída no processo de participação – a identidade de assentados, de trabaha-
dor e de trabahadora rural. As mudanças que operam nesse processo eendem-se
às relações interpessoais com fortes expressões sobre as relações de gênero.
A: ‘Uai, ele se mudou por isso (…) Na época, ele… ele não era nada, ele…ele
não era da associação, ele…ele não era do sindicato, ele não era… depois que ele passou
a trabahar na associação, depois que ele passou a ser trabahador rural, depois que ele
conheceu o sindicato que ele pegou freqüentar essas reunião, agora depois que ele tava na
associação, eu acho que ele mudou por isso. ue depois que ele foi pras reunião ele sabia
tudo o que tava acontecendo. Ele escoria tudo, tiquim por tiquim (…) ue aquilo ele foi,
ele foi pensando. Foi pensando que moda era que a trabahadeira rural não podia car
presa também, que ela tinha que ter tonice pra poder trabahar, que a gente tinha que ter
tonice pra poder sair pra alumas reunião. Aí ele foi pegando isso tudo e ele foi deixando.
Eu sei que ele largou esses calundu dele foi depois dessas reunião, que ele tava trabahando
na associação, ele ia… que ele caminhava pra reunião, ele cava semanas fora. Aí ele ia
compreendendo. ue as reunião que ia passando pra ele, ele ia compreendendo.
A trajetória de conquista do assentamento, a organização dos assentados e
sua participação em reuniões, mobilizações e atividades da Associação e do Sin-
dicato dos Trabahadores Rurais, o somente hes possibilitou nova inserção
social, como abriu novos horizontes no campo dos direitos sociais e da cidadania.
Ao pesquisarem o impacto dos assentamentos no espaço econômico, social e
político em que se inserem Medeiros e Leite () trabaham o signicado de
asenta, que não se limita ao reconhecimento de uma situação de conito. As-
sentar signica, para além do reconhecimento legal de um conjunto de demandas,
a experiência de segmentos historicamente marginalizados e excluídos com o
mundo dos direitos (M; L, :).
N E A D E S P E C I A L
A experiência com o mundo dos direitos em sua dimensão material e subje-
tiva é protagonizada na trajetória de luta pela tera, quando a situação original
de marginalização e exclusão é transformada em novas condições de vida, e di-
ferentes modos de sentir, pensar e agir. Assim têm lugar modos de existência e
práticas sociais em que se deacam os sentimentos de cuidado com a qualidade
da existência individual e coletiva, a solidariedade, os sentimentos de pertença,
a construção de vínculos e a responsabilidade com o coletivo.
O que se apresenta não é uma nova ordem ou eabilidade, mas uma dinâ-
mica de reciprocidades com novas aberturas para a alteridade. Trata-se de um
campo identitário, também fonte de sentimentos de justiça e iualdade, de uma
nova cultura política, ou ainda, de novas cidaanias. Ao contrário de uma essên-
cia universal, esse signicado de cidadania nos remete a um contexto eecíco
que integra interesses e práticas concretas, construído na eeira dos conitos,
interesses e lutas políticas (D, :). Dessa perectiva, cidadania
é construção, situada e datada, que articula aectos psicossociais, engendra sub-
jetividades e processos emancipatórios protagonizados por atores sociais, num
campo de interesses e conitos plurais.
Cidaania é o mais posíel. A força dessa expressão proferida por um assen-
tado sugere a transcendência de limites e todo um processo de aprendizados e
construções realizadas na ação coletiva onde emergem e dialogam subjetividades
que se traduzem em novos repertórios de signicados. Para além de uma relação
vertical com o Estado circunscrita a direitos e deveres, trata-se de relações de
horizontalidade, entre assentados e assentadas, cidadãos e cidadãs, onde se realiza
o pincípio da comunidae e os sentidos de iualdae se mesmidae, autonomia e
solidariedade. Com isso não se nega a importância das conquistas da cidadania
civil, política e social, mas antes, se reconhece que não sendo eas ireversíveis,
e tampouco plenamente realizadas, conduzem a novas lutas e novas formas de
cidadania (S, : ).
As mudanças na vida de homens e muheres assentadas são atribuídas ao
processo de lutas e organização, mas também às leis que proclamam a liberdade
e iualdade para todos.
A: Pois é, mas a gente muda é por vincia devido à organização das leis
mesmo, da luta. Mudança de vida, da organização da lei, e organização das lutas. Porque
lutando é que a pessoa vai entendendo qual é o motivo das leis, qual é a moral das leis. é
lutando. É por isso que a pessoa tem que mudar. O homem de qualquer maneira pode
se mudar, eu não vou dizer nós, mas tem muito homem hoje no Brasil que é machão,
mas é machão mesmo (…) Como hoje s no caso, (?) o homem hoje não pode ser
machão em nada. Nada, em nada ele o pode ser machão. Um pouco a história dos
antigos fala, não tem pau que não topa machado e não tem machado que não topa pau.
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Por que? Por causa disso. Porque às vezes tem um homem que é durão, mas vem outro
que é mais duro que ele. Então, por causa disso, que o direito hoje que, às vezes, porque
o direito da cidadania hoje são iual. Na parte de nós lutar, por exemplo, às vezes um
luta mais que o outro, é claro. Sempre tem gente que tem um dom mais forte, outros
m um dom mais fraco. Mas que o diálogo do homem com o homem é a mesma
coisa, considerado a mesma coisa, é a mesma coisa da muher. A muher também, eu
acho que o diálogo da muher, ela seja considerado a mesma coisa da outra. Ela pode
ser casada, ela pode ser solteira que de qualquer maneira, ela, tá escrito nos documento,
na liberdade dela, ela é muher.
Assim, falar em cidadania implica em combinar equivalência e diferença.
Isso signica, de um lado, articular um campo de equivalências que se traduz
numa forma de identidade política fundamentada nos princípios de liberdade
e iualdade para todos. De outro, em acoher a expressão das diferenças como
um princípio articulador de diferentes posições de sujeito, como é o caso das
muheres trabahadoras rurais que integram um universo bastante diversicado
econômica e culturalmente.
Portanto, cidadania não é algo dado, eático, mas um campo de tensões e
negociações, no qual se fazem presentes conitos e antagonismos e no qual é
possível articular diferentes lutas contra a opressão, incluindo aquelas vinculadas
ao gênero (S, ; ).
As muheres camponesas e trabahadoras rurais na luta pelo reconhecimen-
to enquanto trabahadora rural e pelo acesso aos direitos sociais adquiriram
aluma visibilidade e expressão social a partir de meados da década de . De
fato, até então, não somente a presença das muheres eeve invisibilizada, como
também estiveram excluídas dos benecios sociais. No espaço das lutas políticas
e sindicais, predominantemente masculino, ainda que se zessem presentes, as
muheres não eram reconhecidas, assim como na agricultura em que seu trabaho
sempre foi considerado um fato provisório e complementar.
A participação das muheres do PA Aliança em atividades promovidas pelo
Sindicato dos Trabahadores Rurais se situa no contexto de criação do Assenta-
mento, mas, sobretudo, é estimulada pelo contexto social das lutas das muheres
trabahadoras rurais, impulsionando sua inserção no mundo dos direitos. Nesse
contexto a obtenção da documentação civil e trabahista, não apenas é uma rei-
vindicação, como um motivo de mobilização e trabaho de conscientização das
muheres assentadas.
A: Meus documentos, eu… tinha uma metade, que desde os dezoito anos
que eu voto. Tinha o título, o registro, que eu tenho uma cópia do casamento, que eu sou
casada no padre e no civil. Tinha só esses dois. Depois que eu vim compreendendo como
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é que a gente deve, fui tirando a identidade, fui tirando o CPF, fui tirando a carteira de
trabaho. Já hoje eu tô com os meus documentos tudo na mão.
A: (…) É o que a gente vai aprendendo, que a gente vai nas reunião e aquelas
que não vai, então a gente chega e vai passando pra aquelas que não vai, pra ver que elas
entende mais e siga também o mesmo caminho da gente.
M :
?
A: (…) que depois do assentamento mudou, parece que mudou cinqüenta por
cento de antes do que era. Em tudo enns, na organização do pessoal, na luta do pessoal,
na luta também das muheres, no direito das muher também, na liberdade das muher,
que as muher tem a liberdade delas reeitada também. (…) Não, porque antes, tudo
quem resolvia era só os homens. As muher não tinha direito de resolvê nada. Homem
que ia pra feira vender, homem que ia na feira, a muher só cava em casa.
A: (…) Do jeito que s andava aqui, moça! Mudou cento por cento mesmo.
Sobre o trabaho, sobre assim a libertação assim com o povo, ninuém tinha, é… sobre
labuta assim pra feira, a gente desenrolou tanto! Reunião, eu gosto tanto de participar de
reunião! (…) ue ele o deixava eu ir na feira, ele que ia. Eu não tinha muita libertação
de ir pra feira, não. Mas agora. (…) Oha procê vê, agora tem reunião fora, eu vou, ele
não importa. Se por acaso tiver reunião eu não ir, ele fala que claro que eu tenho de ir.
É. Ele fala é assim.
A vida das muheres, antes do assentamento, era restrita aos afazeres da casa
e da roça, e o trabaho na roça não tinha reconhecimento e tampouco a muher
se reconhecia como trabahadora rural. A vida social se restringia à participa-
ção em rezas na comunidade, em alum evento familiar e, em aluns casos, as
muheres freqüentavam a feira na sede do município, mas se muita libertação
para negocia.
O processo de criação do assentamento inauurou um novo tempo na vida de
homens e muheres para o qual concoreram as dinâmicas locais de participação
e o contexto social de luta das muheres trabahadoras rurais. A nova socialização
dos homens por meio da participação em reuniões, do seu acesso à informação
também favoreceu a participação das muheres em atividades do Sindicato dos
Trabahadores Rurais e a ampliação do seu espaço social, introduzindo alterações
nos valores, comportamentos e papéis desempenhados na unidade familiar, no
assentamento e na sociedade local.
Várias muheres não passaram a freqüentar a feira, mas construíram ini-
ciativas de produção e comercialização, ganhando e gerindo seu próprio dinhei-
ro. O trânsito das muheres no espaço púlico, antes reservado aos homens, foi
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acompanhado por mudanças no modo de se apresentarem, incluindo o modo de
se vestir e se cuidar.
A: Hoje não, nós se for possível nós resolve uma coisa no banco, no sindicato,
é numa loja. (…) E mesmo também (…) o jeito da gente viver assim sobre o vestir. A
gente era dicil (…) A gente não vestia mais assim, uma roupa que usava no modelo,
era assim esquisito. Hoje Graças a Deus todo mundo anda na… com umas roupinha
de modelo. (risos) Tá uma maraviha. A gente acha. (…) Então a gente trabaha. Mas
a bem verdade, na hora que a gente vai sair a gente tem mais cuidado com o corpo da
gente… (risos).
Entre tantas mudanças, a principal novidade deacada pelas muheres é o
fato de descobire que são trabahadoras rurais. Nas entrevistas, as assentadas
se referem a um novo tempo em que descobira, pasaraa entende, pasara
a se trabalhaeira rural.
Essa novidade não se limita à informação e conhecimento sobre os direitos das
muheres trabahadoras rurais como aposentadoria e salário maternidade. Trata-
se de um amplo processo pessoal e coletivo com forte expressão intersubjetiva
que tem na sua base a experiência de participação e no qual é possível identicar
dois movimentos que se articulam reciprocamente. O primeiro mobiliza emoções,
sentimentos e novas subjetividades, alcançando e transformando os modos de
sentir, pensar e agir, individual e coletivamente. O outro enseja a construção e
compartihamento de novos signicados sobre o trabaho da muher, sobre suas
capacidades, favorecendo a mobilização de recursos para iniciativas coletivas e
alterações na dinâmica das relações de gênero.
A: Nós fazia tudo quanto há, porque desde o princípio nós fazia esse serviço
tudo. Nós mexia com roça, s plantava mandioca, nós fazia beiju, fazia farinha, toda
vida. Mas nós também não entendia que nós era trabahadeira rural. (risada)
A: Oh moça, a gente era boba. ue a gente cava na roça, não sabia o que
era trabahadora, moria de trabahar e não sabia, não mexia com sindicato, não sabia o
que era a pessoa trabahar. Não sabia não. Pra mim trabahava e por lá mesmo acabava,
não tinha valor nunca. Não tinha valor nunca. (…) Eu não sabia o que eu era não. Não
sabia não. (…) Era diferente, cento por cento diferente, não saía pra feira, não saía pro
comércio, não comprava nada, não vendia… era só dentro de casa com a harada. Todo
ano um ho, todo ano um ho e era desse jeito tendo que car ali com a harada.
Nas palavras das assentadas o trabaho em si não alterou, mas sim o entendi-
mento sobre a sua condição de trabahadora rural, sua autovalorização e a con-
quista do que, em várias ocasiões, elas se referiram como libertação: liberdade para
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a ação, para se expressarem, para serem trabahadoras rurais, para freqüentarem
e negociarem na feira os produtos do seu trabaho.
A: ue ele não deixava eu ir na feira, ele que ia. Eu não tinha muita libertação
de ir pra feira não, mas agora.
Para as muheres a liberdade se traduz, ainda, por sentirem-se valorizadas, na
capacidade de se expressarem, conversarem, manifearem o que sentem, vencen-
do a vergonha de si mesmas. A participação na feira vendendo o que produzem e
comprando o que é de precisão, é sempre deacada como realização de liberdade
e reconhecimento, uma das principais mudanças em suas vidas.
A: Mais liberdade, adquiri mais liberdade. Hoje sinto mais valorizada hoje,
mais do que de primeiro. De primeiro, nós não tinha valor não (…) Nós cava
, sei lá como é que é, nem conversar nós não sabia. Oh! eu não sabia não moça!
Eu mesmo, eu mesmo não sabia conversar não. Chegasse uma pessoa eu cava
assim murcha, me dava assim, uma frieza no rosto de vergonha de eu conversar
com aquela pessoa, eu não sabia como é que eu falava, como é que eu conversava
não. Era… desse jeito. (…) Conversava nada, quando chegava uma pessoa eu tu
pra dentro. (…) Escondia com vergonha de eu falar. Com vergonha de conversar
com o pessoal. Agora, dou minha opinião. A gente vai na frente, a gente vende, a
gente compra. E de primeiro não, eerava que o marido colocava as coisas dentro
de casa pra gente. A gente cava aí parecendo uma boraeira. Era assim minha
ha. Eu mesma senti por mim mesmo.
O que teria impulsionado a participação e maior autonomia das muheres na
feira e uma aparente retração dos homens? Um primeiro indicativo se relaciona
às mudanças operadas na produção do assentamento. Seundo os assentados, a
produção decaiu muito nos últimos anos, em grande parte pela escassez de áua,
aliada ao cansaço das teras. A produção de farinha e beiju coordenada e gerida
pelas muheres passou a ser a base de sustentação de grande parte das famílias
do assentamento.
Em outros tempos essa atividade era também realizada por alumas muheres,
mas por outro lado, não assumia a importância econômica atual. Transformações
ocoridas no contexto socioeconômico resultam em rearanjos espaciais e nos
lugares ocupados por homens e muheres na dinâmica da produção e das relações
de gênero (W, ; M, ).
De fato, alumas muheres m levado o beiju para a feira vários anos.
Umas há mais tempo, outras há menos tempo. Entretanto, o que se revela como
uma novidade da maior importância não é o tempo em si, mas o modo como o
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fazem de uns tempos para cá, como se apresentam na feira e como apresentam o
produto para que tenha maior aceitação e garanta a renda familiar.
No processo de inserção social e econômica das assentadas é preciso deacar
aluns elementos que concorem para a emergência de uma nova identidade:
as mulheres do beiju. O primeiro diz reeito à iniciativa de produzirem, princi-
palmente o beiju, para comercializarem na feira. Soma-se a ee, a capacidade
e criatividade demonstrada para produzirem e comercializarem, cuidando da
apresentação e qualidade do produto. Além desses, e certamente de fundamental
importância para hes asseurar o lugar e reconhecimento que desfrutam na feira
como as mulheres do beiju é a sensibilidade e capacidade de tearem e atenderem
o gosto da freuesia.
Nesse contexto de mudanças econômicas, sociais e culturais é preciso indagar
se efetivamente as relações se tornam menos discriminatórias e mais iualitárias
da perectiva de gênero. No cotidiano das assentadas indicativos de uma
sobrecarga de trabaho e responsabilidades, sem a devida corespondência em
termos de participação nas políticas de apoio à produção.
Para compreender esse contexto torna-se imperativo colocar em foco a unida-
de familiar constitutiva da dinâmica relacional do assentamento, tradicionalmen-
te entendida como unidade de produção e consumo, composta por pessoas ligadas
por laços de parentesco, podendo coincidir ou não com o local de residência de
seus integrantes (H, ).
A unidade familiar conura um espaço regido pela divisão sexual do trabaho
que tem sido naturalizada, impondo e reproduzindo-se, de modo a encobrir os
elementos que he são constitutivos. Tradicionalmente tem sido atribuído à muher
o papel reprodutivo cujas atividades não são consideradas trabaho gerando a des-
valorização das atividades reprodutivas, e a invisibilidade do trabaho produtivo.
Essa situação que conforma as relações na agricultura familiar integra uma
gica que tem raízes na racionalidade instrumental da sociedade moderna as-
sente, entre outros, nos binômios: natureza/cultura; privado/púlico; reprodu-
ção/consumo versus produção/mercado. Estes possuem caráter sexista, pois a
cada um dos los coresponde de modo valorativo e hierárquico, o feminino
ou o masculino, com a predominância do pólo associado ao masculino. A dis-
criminação e a opressão de gênero, geradas por essa lógica têm sido renovadas e
modernizadas ao longo da história.
No cotidiano do assentamento tais polaridades e outras semehantes se fa-
zem presentes na dinâmica da unidade familiar de produção onde homens e
muheres reproduzem a divisão sexual do trabaho fundada nas diferenciações
de nero. Essa dinâmica tem comprovado que o feminino não somente é des-
valorizado, como também ocupa lugar de subordinação na hierarquia de poder.
Assim, torna-se compreensível quando Sco (: ) se refere ao nero como
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implicao na conceção e na construção do própio poe…, pois os papéis atribuídos
socialmente a homens e muheres integram uma hierarquia que irá denir não
somente o controle, mas o acesso diferenciado de homens e muheres a recursos
materiais e simbólicos.
As desiualdades fundadas no nero têm impedido ao longo dos tempos o
somente o reconhecimento social da muher trabahadora rural e o seu acesso aos
direitos sociais, como também a sua exclusão das políticas púlicas, dos progra-
mas de desenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar. Todavia essa
realidade, longe de apresentar diferenciações cristalizadas, revela-se alterada pela
trajetória de luta e condições concretas de existência dos assentados e assentadas.
Articula-se a esses fatores os processos sociais de luta pelo reconhecimento das
muheres trabahadoras rurais e seu acesso aos direitos de cidadania.
Em geral a queão produtiva e a sustentabilidade do assentamento são consi-
derados assuntos de natureza masculina, dominados pelos homens, tanto no nível
local como nas instâncias de administração e governo. A muher trabahadora
rural comumente identicada com a esfera doméstica… dispõe de pouco poe de
decisão, e o seu aceso às transações comeciais e bancáias, à asistência técnica e à
tecnologia peranece muito restito (R; A, :). Entretanto,
as referidas autoras reconhecem que aluma mudança em curso: É posíel
mesmo levantaa hipótese de que nos asentaentos eeja sendo geao o ebião de
um novo papel feinino rural. (idem:).
De fato, apesar de toda discriminação imposta às muheres trabahadoras
rurais e reproduzida nas relações sociais, é possível identicar no exercício de
novas sociabilidades a mobilização por interesses comuns, práticas solidárias e
iniciativas próprias de organizações como essenciais ao desenvolvimento da uni-
dade produtiva familiar e do assentamento. Parece emergir um sentimento entre
as muheres de que é necessário construir e cultivar vínculos na comunidade, se
fazer reconhecer, propor, negociar, dialogar, e se organizar com autonomia.
A geão da unidade produtiva e do assentamento – tradicionalmente conce-
bida como um papel masculino passa a ser reclamada também como local para
o exercício da cidadania e de práticas democráticas, com a inclusão dos demais
membros da família, jovens e muheres, sobre os quais pesam as discriminações
de gênero e de geração.
A divisão iualitária do trabaho é enfatizada pela maioria das famílias do
assentamento e quase sempre associada às mudanças que vêm acontecendo, prin-
cipalmente na vida das muheres. Entretanto, pode se observar a persistência
de diferenciações de gênero nos diversos espaços que compõem o cotidiano do
assentamento, prontamente justicadas pelos costumes e tradição.
As muheres, ao falarem do trabaho que realizam, primeiramente ressaltam
as tarefas da roça, armando a atividade de trabahadora rural como a principal.
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Sempre o fazem demonstrando sentimentos de satisfação e oruho, ainda que o
trabaho na roça e na farinheira seja cansativo. Por vezes revelam-se desgastadas
sicamente pelo acúmulo de trabaho no dia-a-dia, situação agravada pelo corpo
já maltratado por uma trajetória muito penosa.
Os laços de parentesco, as relações de compadrio e a rede de vizinhança com-
em uma estrutura de solidariedade e cooperação que se materializa em alter-
nativas para otimizar os recursos de que dispõem as famílias em seus reectivos
lotes. É o caso de pastagens ou roças cultivadas em comum entre unidades fa-
miliares ou sob acordos prévios, semehantes a um sistema de parceria. Os casos
de maior necessidade, como doenças na família, que comprometem o trabaho,
obtêm pronta solidariedade e socoro imediato demonstrando força maior que
as dissensões e conitos.
A unidade familiar de produção que coresponde a um lote, em geral é habi-
tada também pela família de aluns hos e has casados que constroem ali a sua
casa e trabaham em parte do lote, em comum acordo com o pai, e assentimento
da mãe. O limite do tamanho dos lotes, associado às diculdades para produzir
e comercializar compromete o trabaho e sobrevivência das novas famílias e, em
vista disso, é comum os hos e has, solteiros ou recém-casados, saírem em busca
de alternativas de vida e trabaho.
As roças, em geral, são trabahadas em comum entre os membros de um mes-
mo núcleo familiar, envolvendo os hos e has. Entretanto, os hos homens têm
mais incentivo para trabahar sua roça própria, enquanto as has permanecem
com a participação na roça do pai, que é também trabahada pela e. Quan-
do precisam fazer um dinheiinho para comprar, principalmente, objetos de uso
pessoal, as has pedem para arancar uma parte da roça de mandioca e fazerem
farinha e beiju. Nesse trabaho para o seu ganho pessoal contam, também, com
a cooperação dos familiares.
O trabaho doméstico é sempre identicado como enfadonho e cansativo, com
tarefas intermiveis que ocupam muito tempo. Por serem naturalizadas como
próprias do sexo feminino, as tarefas domésticas são de responsabilidade primeira
das muheres, o que contribui para denir uma situação de desiualdade e sobre-
carga de trabaho para as elas.Assentada: Não mexe não, não mexe não. Então por
isso que eu falo que pra muher é mais… porque o homem quando ele não ta pra
roça, ou tá no mato fazendo uma cerca ou qualquer coisa é aquele servicinho só.
Se for roçar manga é só roçar manga, se for fazer cerca é só fazer cerca. E a muher
é mais de mil serviço dentro de casa. Quando ela ta cuidando do serviço aqui, já
tem outro passando de fazer ali. Core e vai fazer. (…) É desse jeito. Muher é
mais sofrida dentro de casa do que o homem, e na roça também.
Em várias situações no cotidiano do assentamento é possível identicar as
estruturas corpoicaas a que se refere Bourdieu () e que denem tempos
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e espaços próprios a cada sexo. Essas estruturas são reproduzidas com tal auto-
matismo, que não se dão a perceber, comumente diluídas em um discurso de
iualdade entre os sexos, contradito em outros momentos. Em alumas famílias
a assimetria entre os casais, bastante evidenciada, assume feições variadas. Ora
se revela na timidez demonstrada pela muher com a presença do marido, ora
é claramente declarada com descontração pelo casal, demonstrando senão uma
acomodação, uma situação negociada. Se por um lado são as muheres que res-
saltam de modo mais entusiasta as mudanças em suas vidas, por outro são as
primeiras a reconhecerem a persistência de aluns padrões de comportamento.
Em outras situações aluns homens, prontamente conrmados pelas muhe-
res, relataram que participam dos trabahos domésticos. Entretanto, só o fazem
quando as muheres eão ausentes da casa, e geralmente, quando isso acontece re-
cebem todo o reconhecimento, pelo que parece uma façanha de grande mérito.
A: (risada) Não, quando eu tô em casa não, é quando às vezes eu não , tô
fora, noutro serviço é que ele faz. (…) Quando eu em casa não divide o. (…) Oh!
Eu chego a achar a casa bem limpinha que ele faz tudo. Ele faz comida, ele faz o café, ele
vare o tereiro, ele faz tudo. Ele não faz na hora que tá me achando, mas dá na hora que
eu não tô ele faz tudo. Ele faz moça!
São comuns as variações de comportamento entre famílias de acordo com a
sua composição, se predomina hos homens ou muheres. Em entrevistas com
casais jovens, conrmadas em conversas e observações, foi possível constatar a
diferença geracional, além da sexual, na convivência e trabaho no espaço domés-
tico. Os rapazes falaram de modo descontraído sobre as relações com suas compa-
nheiras, deacando o diálogo e as tarefas combinadas. Entretanto, ao objetivarem
seu relato, justicavam as diferenças de comportamento entre rapazes e moças
a partir da educação recebida, e da persistência de costumes. Como as tarefas
domésticas acabam por consumir o tempo necessário para os outros trabahos
da muher, o companheiro costuma se esforçar para repartir com ela as tarefas.
Desse modo contribui para que a muher se libere mais depressa para dar conta
das tarefas que garantem o sustento da família.
Em que pese a persistência de diferenciações entre os sexos, é possível iden-
ticar uma dinâmica permanente de rearanjos e exibilidade na realização
das tarefas pelos membros da família de modo a possibilitar o atendimento às
necessidades do conjunto da unidade familiar. A participação cooperada de to-
dos os membros da família é sempre enfatizada como necessária e fundamental,
pois seria impossível apenas com o trabaho de aluns conseuirem produzir e
sobreviver. De fato foi possível observar a participação de homens e jovens na
produção que as muheres levam para a feira. Entretanto sobre as muheres, re-
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conhecidamente, pesam as maiores responsabilidades e o acúmulo de trabaho
que realizam nos diversos espaços.
A: E o trabaho é muito também. Ai nós… e a luta na minha casa, você
que… que o centro da casa pode dizer que é eu. Eu que tomo conta de um tudo. Ele ajuda
na verdade, mas quem toma a frente do serviço é eu. É eu que tomo a frente do serviço
tudo, é a farinha, é o beiju, faço tudo, levo pra feira, chega vendo, apuro um dinheirinho
para fazer a compra.
Portanto, trata-se de uma dinâmica complexa, com a interconexão dos diver-
sos espaços da vida dos assentados e assentadas, deixando transparecer contradi-
ções, hierarquias e a convivência negociada ou em conito com as transformações
socioculturais em curso. Nesse contexto convivem valores e práticas tradicionais
com o movimento permanente de criar e recriar novas formas de sociabilidade e
estratégias para uma vida mehor.
A análise dos dados permite constatar a existência de fatores de persistência
e de transformação (C, ), que em sua coexistência revelam uma
situação de modicações estruturais com a emergência de novas identidades e
papéis sociais. Os primeiros referem-se à continuidade dos modos tradicionais
de vida, e os fatores de transformação representam o desenvolvimento de novos
padrões de comportamento. A convivência de ambos emprea certo equilíbrio
às relações, ao tempo em que permite certa mobilidade das pessoas (id.: ).
Nesse movimento são operadas mudanças nas relações de nero e criadas as
condições favoráveis para a manutenção e reprodução dos nculos grupais, para
a ação coletiva e construção de novas identidades.
E ?
A emancipação não pode ser tratada como algo concedido, resultante de resolu-
ções, como uma posição que se alcança através de aluma convenção. A eman-
cipação emerge e se desenvolve em meio às relações de poder, vinculando-se a
contradições diversas, em um processo que não insurge de um centro único, senão
de práticas e relações em permanente construção.
Não é objetivo dee trabaho debater a relação entre Estado e assentados,
mas pode-se armar que trata-se de uma relação desiual, reulada por trocas
desiuais, e enquanto tal, uma relação de poder. Entretanto, essa o é a única
forma de exercício de poder no universo dos assentados e assentadas. O poder se
faz presente nos diversos espaços que estruturam a vida dos assentados e assen-
tadas, como numa constelação de diferentes formas de expressar e reproduzir a
desiualdade, combinadas de maneiras eecícas (S, ).
N E A D E S P E C I A L
Trata-se na verdade de um jogo complexo de relações que assume feições
variadas em movimentos de iualdade/desiualdade concorendo para isso ele-
mentos diferenciados e autônomos, mas que se associam numa ampla conste-
lação. Compõe esse jogo de poderes a desiualdade de gênero em sua expressão
não material, que se apresenta profundamente imbricada com a desiualdade
material com fortes expressões no campo das oportunidades, das capacidades
organizativas, de participação, geão e de autonomia nos processos de tomada
de decisões (id.: ).
Nessa perectiva pode se compreender bem as proposições de Sco ao tratar
o gênero em sua dimensão relacional, como… uma fora pimáia de da signica-
do às relações de poe, e que integra os símbolos culturalmente disponíeis, conceitos
noratios, a organização social e política e a identidae subjetia (S, :-
). Em diferentes situações o nero apresenta-se associado à raça e etnia, à
geração, à classe social, a todos juntos, ou a cada um deles, que por sua vez podem
gerar outras combinações.
A multiplicidade de relações de poder compõe um processo ancorado por
dualismos nos quais um dos pólos apresenta um caráter restritivo e reulador,
enquanto o outro apresenta o potencial para a abertura de novos cainhos, num
movimento transgressor do poder. Assim, dualismos como incluído/excluído,
permitido/proibido, possível/impossível, e tantos outros, são reulados por cons-
telações de poder, que em seu caráter distributivo, de um lado xam fronteiras,
de outro, o permissores, de modo a possibilitar a abertura para novos caminhos.
Não se trata de uma simultaneidade espontânea, nem tampouco de um duplo
movimento com a mesma intensidade relativa, mas resultante de um movimento
contraditório que oscila entre a retração e a expansão, entre a xação e o rom-
pimento de fronteiras. Reside nesse movimento a possibilidade da emergência
e efetivação de relações emancipatórias (S, :). A iniciativa das
muheres assentadas para mobilizarem recursos materiais e simbólicos, realiza-
rem ações coletivas praticando a partiha e solidariedade, hes confere um novo
lugar, tanto na família, como na comunidade e no município. As mulheres do
beiju, identidade que construíram com sua iniciativa e presença permanente aos
sábados na feira do município encera um conjunto de signicados que partiham
com sua gara, capacidade e criatividade. Todavia, apesar do espaço, reeito e
reconhecimento que conquistaram não hesitam em armar: disciminaas, num
ponto asim, continua sendo disciminaa não é?
Por paradoxal que possa parecer esse processo relacional que tem sua dimen-
são subjetiva investida por emoções e sentimentos contraditórios, como aqueles
de libertação e discriminação, contém um potencial emancipatório.
Quando o assunto é produção, assistência técnica, acesso a linhas de crédito,
entra em cena o mundo masculino, o comportamento e a posição das instituições.
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Ainda que mudanças e reorientações tenham sido introduzidas nos últimos anos
nas políticas para a agricultura familiar as muheres encontram muitas diculda-
des e obstáculos para terem suas atividades produtivas reconhecidas e apoiadas.
Nas palavras de alumas assentadas percebem-se sentimentos de inseurança,
exclusão e auto-exclusão principalmente quando armam que o entendem
bem desse assunto. Como de fato, esse assunto nunca foi considerado um assun-
to de/ou para muheres. Ao longo dos anos a produção foi assunto dos homens,
tratada com os homens da sala para o tereiro da frente, enquanto o espaço re-
conhecido como feminino era da cozinha para o tereiro dos fundos.
A persistência de fortes tendências no sentido de circunscreverem o interior
da agricultura familiar como espaço por excelência das desiualdades de gêne-
ro, do conito e negociação tende a encobrir a força das instituições nessa área.
Contudo é possível identicar a participação das organizações sociais e políticas
na reprodução das formas de discriminação e opressão de gênero, concorendo
para que o gênero seja estruturante das relações sociais. Essa constatação aponta
para o cuidado de não se restringir a análise das relações de gênero ao sistema
de parentesco. Ainda que o recorte seja, em determinado momento, a unidade
familiar trata-se de tomar em consideração a economia, o mercado de trabaho,
e a organização política que atuam sobre a conuração das relações de gênero,
para além do parentesco. (S, :).
Para Buarque (:) o gênero na condição de elemento estruturante da
sociedade e estruturado pela vida em sociedade, depende para se transformar,
das modicações processadas nas organizações, nas instituições e em suas nor-
matizações. Com isso a sociabilidade dos indivíduos e seus papéis nas relações
sociais podem sofrer alterações.
Nos relatos das muheres o agrantes as diculdades de diálogo com a
assistência técnica que sabe identicar deciências no modo de produzir e nas
condições de produção desenvolvidas pelas muheres. Essa diculdade se repete
em outras situações quando se trata de projetos das muheres e alternativas para
o seu apoio e nanciamento.
A: (…) Nunca que eles quer fazer uma proposta iual a gente quer. ue a
gente que somos trabahadora rural, a gente entende o que que a gente vê que mais
pra gente. Só que quando eles chega que sai alum projeto eles quer fazer o que eles quer.
Eles não aceita que a gente discute pra acontecer fazer o que a gente vê que dá pra gente.
Aí atrapaha tudo.
A compreensão por parte das mulheres do beiju sobre a natureza e posição
desse alte é fundamental para o posicionamento e negociação do seu projeto de
produção e para a ativação do modo abertura-de-novos-cainhos de que nos fala
N E A D E S P E C I A L
Santos (). Dessa forma pode se realizar o processo identitário como lutas
emancipatórias. Portanto é preciso que as muheres assentadas avancem organi-
zadamente sobre as desiualdades não materiais, como a educação, a capacitação,
e as condições para a negociação e tomada de decisões relacionadas ao seu projeto
coletivo. A princípio pode parecer algo inacessível, longe da realidade das mu-
heres assentadas, mas as condições que são sementes a germinar, não somente
existem, como podem ser comprovadas pela iniciativa e capacidade demonstrada
pelas muheres ao organizarem e gerirem sua produção, até então sem qualquer
tipo de assessoria técnica.
As assentadas revelam que não somente pensam em alternativas para incre-
mentarem o processo de produção, em novas formas de geração de renda, como
planejam formas de gerir os recursos para pagar o crédito. Com isso demonstram
capacidades adquiridas com sua experncia, ao produzirem com a família, ao
comercializarem o que produzem, sabendo gerir o dinheiro que apuram na co-
mercialização.
A: (…) É para aumentar a roça de mandioca ou às vezes também a gente fazer,
assim, um chiqueiro mehor com cimento, criar uns porquinho também, que renda.
É, a gente só não podia criar iual a gente cria aqui nos chiqueirinho simples. com o
mesmo dinheiro a gente tirava um pouco, comprava o cimento fazia um cerco assim maior,
comprava a ração e criava e, enquanto tivesse gordinho vendia, era o mesmo dinheiro, a
gente sabia que dava aquele lucro e no m do ano dava pra gente pagar o que precisasse.
Entretanto, quando se fala no crédito como forma de apoio à prodão, a
demonstração é de descrea em algo que eá muito distante do mundo das
muheres. Essa perceão é reforçada por aluns familiares homens ao arma-
rem, que sendo o assunto do mundo da prodão, as muheres cam sempre
para trás à eera da iniciativa dos maridos. Trata-se de uma perceão que
se contrapõe à realidade cotidiana, que em outras ocasiões é contradita por
eles próprios, ao reconhecerem a importância do trabaho das muheres para
a sobrevivência das famílias.
Essa situação expressa a persistência de um universo simbólico fundado nas
representações de gênero, que naturaliza as diferenciações entre masculino e fe-
minino, que associa o mundo da produção ao masculino, e que as muheres vêm
alterando lenta, mas progressivamente com suas iniciativas. Situação semehante
ocore quando o assunto é a propriedade da tera. um estranhamento perante
a queão da propriedade da tera em nome da muher, indicando que essa ques-
tão nunca eeve em pauta entre os assentados e assentadas do PA Aliança. De
fato esse é um tema de tratamento recente, tanto pelos movimentos sociais, como
pelo Estado, que pode ser deacado no II Plano Nacional de Reforma Agrária.
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Quando indagadas quanto às possíveis razões de não haver programas ou
políticas de apoio à produção das muheres assentadas, em geral, demonstram
que não conseuem entender bem o porquê, uma vez que passaram a ser traba-
hadoras rurais. Chegam mesmo a deixar claro um certo desânimo e descrença
com os resultados de um possível investimento nesse sentido.
A: Sei lá moça! Eu não sei não. É claro que tinha… como eu tava falando,
quando nós passamo a ser trabahadora rural claro que tinha alum projeto, devia ter
alum projeto pra gente também. E nunca falaram num projeto pras muher. Ce vê que
a gente tem essa vida direto.
A: (…) A gente ca pensando reunir, ir, depois chega lá não… eles não liberar
nada, não querer reagir nada pra gente. Aí ca aí, todo mundo aí calmo… (risos)
A essas palavras outras poderiam ser acrescentadas, relatos do excesso de
trabaho e responsabilidades a pesar sobre muheres, da vontade de se capacita-
rem para aprimorarem seu pequeno empreendimento, ou mesmo vislumbrarem
outras fontes de renda.
As muheres trabahadoras rurais, assentadas da reforma agrária, vêm trans-
formando a sua participação e se fazendo presentes em diversos espaços do-
méstico, da proução, da comunidae, cidaania (S, ) em dinâmica
interação, nos quais residem as formas de dominação, as dissensões e conitos,
mas as possibilidades, os germens da mudança e da transformação. Enm, a possi-
bilidade da emancipação, que não pode resultar de uma resolução, nem tampouco
se apresentar como um ponto xo a alcançar, mas como um processo ruidoso,
instável, de confrontos e negociações, e por isso mesmo, pleno de possibilidades
e alternativas para o seu crescimento com autonomia (id., ).
Os exemplos eão por toda parte a nos oferecer comprovação do que Santos
() chama realismo utópico que preside as iniciativas dos grupos oprimidos
que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa vão construindo, um
pouco por toda a parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e
decente.” (S, :).
Eecialmente no caso das muheres trabahadoras rurais, assentadas da refor-
ma agrária, é preciso que sua experiência conquiste visibilidade social presentean-
do a todos com bravura, coragem e a ousadia de inventa faze, como as muheres do
PA Aliança. Mas, sobretudo, para que tenham o devido reconhecimento e apoio.
As trajetórias na tera de homens e muheres do PA Aliança nos o conta de
um amplo campo de interações sociais que hes possibilitaram novas sociabilida-
des, mudanças nas relações de gênero e a construção de identidades coletivas.
Asentaos, pequenos proutores, agicultores failiares, mulhe trabalhaora ru-
ral, mulheres do beiju o identidades construídas de acordo com as posições que
N E A D E S P E C I A L
os sujeitos assumem em um determinado tempo e espaço concretos. Em todas as
condições identitárias, que envolvem relações de poder, o potencial emancipató-
rio eá presente, a depender de um contrapoder que os assentados e assentados
possam desenvolver no sentido da abertura de novos cainhos e de sua emanci-
pação. Essas condições dependem, por sua vez, dos projetos de vida na tera que
possam traçar e defender coletivamente e de sua capacidade articulatória para
fortalecerem as possibilidades de sua realização. Trata-se de um movimento que
indica a inserção num contexto maior de luta dos assentados e assentadas da
reforma agrária pelo desenvolvimento sustentável dos assentamentos e exercício
pleno de sua cidadania.
São trajetórias que põem em queão as relações que eabelecem na unidade
familiar, na comunidade, com mediadores e com o Estado. São lutas emanci-
patórias, por vezes fragilizadas pelo distanciamento dos seus objetivos, por sua
precária capacidade articulatória, pela persistência de desiualdades de gênero,
materiais e o materiais, relacionadas com informação, capacitação e condições
para negociarem e gerirem projetos familiares e coletivos. São trajetórias perme-
adas por constelações de poderes que em à prova as condições de homens e
muheres para avançarem na realização de mudanças rumo a novos caminhos e
à sua real emancipação.
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A construção de sentidos
à integralidade da saúde a
partir da práxis de mulheres
trabalhadoras rurais com
enfoque popular e de gênero
VA N D E R L É I A L AO D E T E P U LG A DA RO N
R
O artigo relata e analisa os sentidos da integralidade da saúde que emer-
gem da práxis de mulheres trabalhadoras rurais com o enfoque popular
e de gênero. Tem como referência central a pesquisa desenvolvida com
mulheres camponesas no Rio Grande do Sul em  e . A constru-
ção da integralidade da saúde está intrinsecamente articulada com o ser
humano integral em processo de construção. Aprofunda o jeito feminino
de fazer e de cuidar da saúde e mostra que os territórios da vida o mais
amplos do que os serviços de saúde e, por isso, apontam a necessidade de
pensar a saúde a partir da dimica complexa da vida, poiso pticas
centradas na vida, na sua defesa, preservão, promoção e recuperação.
Palavras-chave: mulheres trabalhadoras rurais,
políticas públicas de saúde, integralidade
da saúde, ser integral, práticas populares de saúde, participação popular, gênero.
O presente artigo é uma reflexão embasada numa pesquisa desenvolvida junto ao Movimento
de Mulheres Trabalhadoras Rurais, atualmente MMC Movimento de Mulheres Camponesas
do Rio Grande do Sul, durante o período de -, especialmente na região Litorânea,
centro da investigação da dissertação de mestrado em Educação cujo tema foi “Educação,
cultura popular e saúde: experiências de mulheres trabalhadoras rurais”.
 Mulheres trabalhadoras rurais e mulheres camponesas são utilizadas como sinônimos nesta
reflexão.
N E A D E S P E C I A L
I
E pesquisa e análise das bases, ob-
jetivos, formas, tensionamentos e resultados da luta por saúde no Movimento
de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul, atualmente deno-
minado de Movimento de Mulheres Camponesas. Teve como objeto a práxis
deste movimento, especialmente na região Litorânea, através da análise de
observações, registros, documentos, histórias de vida e entrevistas feitas com
mulheres que participam da organizão. A pesquisa buscou compreender as
bases e motivações que dão sustentação à luta por saúde no movimento, bem
como os significados, representações, sentidos e tensionamentos existentes no
próprio movimento, articuladas ao contexto da reforma sanitária no Brasil e
da dimensão denero e classe.
Pelo caminho percorido foi-nos possível perceber que as políticas púlicas de
saúde no Brasil vêm sendo demarcadas pelo confronto entre as necessidades do
povo e os interesses do capital com as duras conseqüências para as classes popu-
lares, dentre elas, as doenças oriundas da sobrecarga de trabaho, a desvalorização,
discriminação, opressão, exploração e violência.
O Movimento de Muheres Camponesas surgiu como espaço de luta e va-
lorização das muheres camponesas na conquista de direitos, e a saúde emerge
como uma das lutas centrais do movimento. Nele as muheres ressignicam a
vida e fazem experiências de libertação enquanto sentido profundo de sua práxis
portadora de uma dinâmica educativa e uma mística libertadora. Dessa forma,
constroem novos signicados à integralidade da saúde, fortalecem o sentimento
de pertença das muheres para com o movimento, ao mesmo tempo em que
fazem o enfrentamento ao projeto neoliberal e à cultura machista e patriarcal.
As experiências de organização e luta do movimento ajudam a repensar o modo
de cuidar a vida e a saúde, bem como as políticas púlicas de educação da saúde,
tanto para o meio acadêmico quanto para o campo popular.
Nessa perectiva é que as muheres camponesas vêm construindo sentidos
à integralidade da atenção à saúde, elemento e princípio determinante para o
fortalecimento de um modo humanizado, integral e universal de cuidar da saú-
de da população. Assim, as reexões em torno da integralidade da saúde cada
vez ganham mais força por ser um dos princípios preconizados na Constituição
Federal de  e, ao mesmo tempo, pelas diculdades de sua visualização nas
práticas de atenção à saúde.
Na atuação junto aos movimentos sociais populares percebemos que esses
sujeitos sociais atuam na área da saúde de diversas formas, deacando-se os que
priorizam a participação nos espaços institucionalizados de controle social, como
Consehos de Saúde e Conferências; outros priorizam as lutas de enfrentamento
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ao poder púlico exigindo atendimento à saúde, implantação do SUS; outros,
ainda, desenvolvem práticas de atenção à saúde junto a populações de risco e com
diculdades de acesso. organizações que priorizam uma forma de atuação em
relação à outra, entretanto, há outras que procuram uma ação articulada entre
essas várias formas de agir em saúde.
Como referência concreta dea reexão é a práxis desenvolvida pelas muhe-
res trabahadoras rurais organizadas no Movimento de Muheres Camponesas,
por ser uma organização de identidade camponesa e feminista e ter como uma
das lutas centrais a da saúde, que é desenvolvida em dois eixos: o eixo da luta
pelo acesso à saúde através da defesa e implantação do SUS com controle social
e participação popular e o eixo da promoção da saúde da muher e da família
camponesa. A articulação entre esses dois eixos no cotidiano possibilita a iden-
ticação das potencialidades e dos limites da própria luta popular em saúde, ao
mesmo tempo em que revela elementos que constituem concepções e práticas de
atenção e cuidados em saúde na perectiva da integralidade.
Por isso, ao analisar essas práticas de saúde percebemos um conjunto de ele-
mentos reveladores de uma nova forma de fazer e pensar a saúde, extraídos das
práticas populares de saúde, eecialmente das desenvolvidas pelas muheres
camponesas organizadas num movimento social popular. Os traços e as carac-
terísticas que emergem dessa práxis trazem os determinantes da realidade que as
camponesas vivenciam, inseridas num determinado contexto histórico e que se
desenvolve dentro da cultura e dos traços caraerísticos das muheres trabaha-
doras rurais. Nesse sentido, podemos identicar a construção de uma concepção
de saúde muito sinular, ao mesmo tempo em que tem incorporado os aectos
da visão de saúde formulada na ª Conferência Nacional de Saúde e preconizada
na Constituição Federal em .
É uma concepção de saúde como direito de todos e com eqüidade aos mais
pobres, populações vulneveis e portadores de direitos eeciais. Permeada pelo
eixo da defesa da vida, a saúde integral expressa-se no ser integral e no ser muher,
como arma uma das entrevistadas:
Nós sempre trabahamos a saúde como um direito e, principalmente, para os mais po-
bres que não conseuem nada. A gente acompanha e atende com o que a gente conhece
e sabe, mas a gente sempre luta pelo SUS, porque nós precisamos ver isso funcionando.
(Entrevista com H.L.B.,).
As muheres armam a saúde como direito de todos que se expressa no grito:
Saúde não é negócio, é um direito nosso!”. Entendem esse direito como fundamen-
tal de todo ser humano e que, como tal, não pode ser visto na lógica mercantil de
compra e venda. Uma das entrevistadas arma:
N E A D E S P E C I A L

Saúde o é negócio, é um direito nosso!” Saúde não é mercadoria de compra e venda.
Saúde é sim, resultado de relações conosco mesmo, com os outros, com o meio (natureza).
Saúde é conquista do ser mutável (transformador). Desde o mundo uterino a pessoa é por
excelência um ser que transforma – para mehor ou pior, um ser que tem necessidades e
aspirações (sonhos), e, quando ees são atendidos, a saúde é plena. Saúde é sinônimo de
felicidade, vida plena, necessidades e aspirações atendidas, sonho de um mundo humano
e justo acontecendo para todos (as), a paz sendo uma constante na vida da sociedade.
Saúde é construção contínua do bem comum. (Entrevista com H. A.A., ).
As muheres camponesas armam que não é possível ter saúde sem a garantia
de direitos fundamentais aos seres humanos, como a áua, a tera, o trabaho, a
educação, a política agrícola, o lazer sadio, entre outros. Enfatizam que é ne-
cessário reorganizar o modo de produção e as relações no campo sem o uso de
agrotóxicos e transgênicos, construindo um novo modelo agrícola e uma nova
visão de desenvolvimento da sociedade para se ter saúde.
Para as muheres camponesas, a saúde é uma dimensão central em suas vi-
das. Como arma uma das entrevistadas, não dá para pensar a vida sem saúde”.
Expressam sua íntima relação com o processo do nascer, viver e a passagem da
morte, tanto pela sua experiência de maternidade quanto pela sua vivência junto à
natureza e com os animais, onde o processo da vida eá presente o tempo todo.
Aliada a essa idéia coloca-se a saúde como bem de relevância púlica, portan-
to, submetida ao controle social. As muheres aprofundam essa visão mostrando
a necessidade de radicalizar a participação popular na formulação, decisão, con-
trole e scalização das políticas púlicas de saúde. Reconhecem a importância dos
vários espaços de participação e controle social, mas questionam o aparehamento
político e cooptação de lideranças por parte do poder púlico existente em vários
locais, o que impede o exercício efetivo do controle social.
O avanço na formulação de uma concepção mais alargada de saúde foi se
dando na própria trajetória de desenvolvimento da luta por saúde realizada pelo
MMC/RS, como arma uma das entrevistadas:
O movimento sempre trabahou a luta da saúde por trabahar com as muheres e com
prolemas das muheres. O movimento foi surgindo como espaço para a muher falar,
conversar prolemas e um deles é a saúde da muher. Percebeu-se que, com estudo,
formação e trabaho não davam conta dos prolemas da saúde. Daí a luta pelos direitos
como a da aposentadoria e da saúde. Após, viu-se que não chegava trabahar só a saúde
da muher, mas a da família. Surgiu a atuação da luta no SUS e o trabaho do movimento
por saúde foi aprofundando a nossa concepção de saúde no meio rural, casa, ecologia,
produção. Dentro dee processo se percebeu que não se pode trabahar o direito e
cura das doenças era preciso mexer nas causas, mexer na forma de produzir, na relação

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em casa. Foi aí que zemos a relação da saúde com a convivência e com a promoção. Daí
zemos o processo formativo e as lutas pelos direitos aposentadoria, salário-maternidade
e crédito para ter mehor condição de vida, o que signicaria ter saúde. A partir de então
percebeu que, além de ter condições vida, de produzir, é preciso eabelecer nova relação
com os seres vivos, porque nascemos, vivemos e somos relação o tempo todo. Conhe-
cemos mehor nossa história e percebemos que as muheres lidam com a defesa da vida,
mexemos com a biodiversidade – ser humano, animais. Fomos entendendo que a nossa
luta é por mudança social das relações mexemos a queão da sobrevivência, produção,
ocupar espaços (ninuém nos oferece, precisa ir conquistando), enfrentar os conitos,
mudança de cultura, educação de hos para ter mais saúde. Fomos percebendo que a
luta por saúde é uma mudança cultural, ou seja, uma mudança de conhecimento, de vida,
de saber e de relações, uma nova proposta. Precisamos fazer a nossa mudança própria,
mexendo com a vida e a história, protegendo a vida. A saúde tem relação com o todo.
Para ter saúde precisa mexer com o jeito que se vive, se produz, se alimenta e se acredita.
O jeito é o trabaho de cultivar, reeitando os passos de cada uma, enfrentando o dia-
a-dia. Às vezes é dicil porque a muher tem a carga de deixar tudo pronto para sair de
casa. É um processo onde as muheres são sujeitas
, onde muheres com anos de idade
armam que começaram a viver. O trabaho pode não dar resultado mais evidente, mas
mexe no íntimo das pessoas que é dicil de medir. É dicil de medir isso, mas no diálogo
direto com as muheres, família, se percebe mudança das muheres. Isto é o ponto do
MMC – aí é o movimento – vê que a muher se sente muher. Onde se conseue chegar
nas famílias conseuem perceber e dizer: deixei de remédio químico, deixei de plantar
com veneno. (Entrevista com S.G., .).
Observamos como eá implícita uma concepção de saúde na forma de fazer
e de ver a saúde como um novo modo de vida na roça e, ao mesmo tempo, como
essa concepção foi se construindo e dando um sentido de totalidade à idéia de
saúde ao longo da trajetória do movimento: do pensar o corpo e a sexualidade
da muher, passando para a idéia de saúde da muher para a saúde púlica como
direito, até a armação de um novo modo de viver e se relacionar consigo mes-
ma, com os outros, com outras formas de vida, com a natureza, com o planeta, o
cosmos e com a transcendência.
Documentos do próprio movimento que sistematizam essa compreensão
apontam nessa direção, como podemos observar:
Na compreensão acerca da promoção da saúde no movimento, três elementos são básicos:
O primeiro eabelece uma relação entre o conceito de promoção à saúde com o Projeto
 A palavra “sujeitas” é um termo que as mulheres do movimento adotam com o sinônimo de
protagonista ou de sujeito, agente ativo, não no sentido de subordinação.
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
de Sociedade que se quer construir. A promoção à saúde eá vinculada diretamente
ao modo como vivemos, aos princípios que defendemos, ao alimento que comemos, ao
ar que respiramos, as amizades e relações interpessoais e sociais que cultivamos, ao que
pensamos, enm, ao projeto de vida e de sociedade.O seundo, mostra que não podemos
separar o trabaho de promoção à saúde da conscientização, da instituição de direitos
como a moradia, tera, saneamento básico, educação e do engajamento nas lutas gerais
por mudanças estruturais do sistema capitalista neoliberal. O terceiro tem a ver com o
conceito de saúde integral, ou seja, a concepção de integralidade da atenção à saúde que
tem como pressupostos: a) uma visão de ser humano integral, como sujeito social e por-
tador de direitos de vida, dignidade e cidadania; b) o compromisso ético com a vida sua
defesa, preservação e qualicação em todas as suas dimensões (humana, da natureza, da
biodiversidade); c) um projeto de desenvolvimento da sociedade entendido como processo
de construção de vida digna a todas as pessoas, que integra as várias dimensões e princípios
da vida e da saúde e não da lógica do capital; d) a saúde como direito de todos e dever do
Estado, através da efetiva implantação do SUS, com o caráter de relevância púlica da saú-
de, e, portanto, colocada sob o controle social e a participação popular, conforme a Cons-
tituição Federal e suas leis complementares; e) a incorporação da concepção de Educação
Popular nas práticas junto com as muheres e famílias, compreendendo que o processo e
as relações construídas no campo da saúde também são educativos; f) o entendimento
de que Saúde é um aecto integral da vida diária, não se limitando apenas em car bem
depois de uma doença. A saúde é vista num contexto mais amplo, signica bem ear/es-
tar bem que compreende a harmonia de nosso se dentro e na relação com os outros. Já
a doença é o reexo (da desarmonia desse bem ear), a falta de saúde é a desarmonia do
nosso se integral, pois saúde eá diretamente ligada à maneira com que vivemos. Assim,
a promoção à saúde implica na compreensão integral da vida e do ser humano, articulado
ao Projeto de Sociedade que se busca construir. (MMTR/RS, .).
Outro documento também apresenta essa abordagem ao armar:
Para o Movimento de Muheres Trabahadoras Rurais promover a saúde tem a ver com o
compromisso cotidiano de construir um novo modo de vida na roça. Ou seja, a saúde é ele-
mento inteiramente ligado ao princípio da vida. Cuidar da saúde signica defender, preser-
var e proteger a vida. Por isso, promover a saúde tem a ver com a forma como se organiza o
processo produtivo no campo, a queão da Reforma Agria, do Seuro e Crédito Agrícola,
da Agricultura Ecológica, das relações e papéis atribuídos para os homens e para as muhe-
res no espaço doméstico da família e no trabaho na roça. teremos uma vida saudável na
medida em que o conjunto das relações sociais for se transformando. (MMTR/RS, ).
Essa concepção alargada de saúde que o Movimento de Muheres Campo-
nesas vem construindo incorpora os elementos advindos da luta pela Reforma

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Sanitária no Brasil, que se expressaram fortemente na ª Conferência Nacional de
Saúde e na Constituição Federal de , e também o acúmulo da luta feminista
no campo da saúde da muher e dos direitos reprodutivos e os aectos que a
luta e a práxis do próprio movimento vieram fomentando e construindo em sua
trajetória de luta e resistência popular embebida pela cultura tradicional/popular
do cuidado em saúde expresso na vida das muheres da roça.
No movimento, eu acho que é busca de mais vida em plenitude, mudança de estilo de
vida, mudança de vida, transformação em todos os sentidos, porque a saúde é uma coisa
muito ampla, é sinônimo de vida, não car doente, saber como fazer para car bem, cui-
dar do ser integral. Eu sempre digo que o corpo é a grande vítima porque ele só recebe
as conseqüências do nosso estilo de vida, os preconceitos, o fanatismo, as discriminações,
a nossa mente deixa a gente doente, nossos sentimentos, nossas emoções. Quando a
gente eá bem, nosso espírito também. Precisamos construir uma nova relação entre
as pessoas, com a natureza, transformar o capitalismo, essa coisa idolatrada. (Entrevista
com L.M.P.D., ).
A visão mais ampliada de saúde foi sendo construída no movimento ao longo
de sua trajetória, como arma uma das entrevistadas:
Ter saúde é ter acesso condões de tera, crédito, casa, condições de vida. No início
era forte a luta pela aposentadoria e a participação em outros espaços. Depois fomos
amadurecendo e trazendo na conceão de saúde as reivindicações das famílias rurais
e aí a necessidade de crédito para os grupos de muheres produzir alimentos de forma
ecológica, a documentação como forma de valorizão, reconhecimento e reeito às
muheres da roça. A muher se preocupa com os outros e com a ida. Quando percebe
que a vida dos outros eá sendo ameada, a muher reage. Por isso, a promoção à
saúde representa a promão da vida, em sua plenitude. Assim, envolve um conjunto
de queões, como o enfrentamento da discriminão da muher rumo a sua liberta-
ção. Da importância do trabaho sobre o corpo e a sexualidade, realizado no grupo
de muheres, a necessidade de ter políticas púlicas para muheres pelo SUS, pensados a
partir da saúde da muher como um todo, que atenda a muher no todo e” não só útero
e mama. (Entrevista com L. R., ).
Outra entrevistada fala sobre a saúde mostrando que a saúde tem relação
com o todo. Na concepção de saúde das muheres do MMC um deaque
fundamental ao ser humano, dito como ser integral”, ou seja, uma relação
determinante com a concepção antropológica do sujeito da saúde que são todas
as pessoas. Nessa compreensão não é possível pensar a saúde descolada da com-
preensão de ser humano. Uma entrevistada aborda a queão do ser integral, que
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
é um dos conceitos fundamentais para as muheres e o movimento dentro dessa
dimensão da vida e da saúde:
A gente trabaha o ser integral, o ser muher como um todo. O ser integral é o ser mental,
ser emocional, ser espiritual, ser ambiente, a gente coloca todas as dimensões do ser e
como cada parte pode ear gerando mais saúde do corpo. Colocando-se tudo na edu-
cação porque tudo isso exige uma mudança de vida. A gente exagera, chegando a dizer
que o remédio, mesmo se for de erva, elixir, a gente falava que resolvia ; agora a gente
diz que resolve , o reante depende da forma como se trata o ser integral. (Entrevista
com L. M. P. D., ).
Outra entrevistada relaciona o ser integral com o ser muher e sua libertação,
evidenciando uma visão alargada de ser humano e da vida no planeta.
Ser integral, onde a que a muher não pode ter saúde se vive discriminada e doente.
Por isso, a saúde é a luta por libertação e com consciência ecológica. A saúde mais forte
tem relação com o todo. Para ter saúde, precisa mexer com o jeito que se vive, se produz,
se alimenta e se acredita. (Entrevista com E. P. S., .).
Leonardo Bo aprofunda a importância do cuidado com a vida como categoria
central de construção de um novo paradigma civilizatório, como podemos ver:
Quando amamos, cuidamos e quando cuidamos amamos. Por isso o ethos que ama se
completa com o ethos que cuida. O cuidado” constitui a categoria central do novo pa-
radigma de civilização que forceja por emergir em todas as partes do mundo. A falta
de cuidado no trato da natureza e dos recursos escassos, a ausência de cuidado com
referência ao poder da tecnociência que construiu armas de destruição em massa e de
devastação da biosfera e da própria sobrevivência da eécie humana, nos eá levando
a um impasse sem precedentes. Ou cuidamos ou pereceremos. O cuidado assume uma
dupla função: de prevenção a danos futuros e de regeneração de dados passados. O cui-
dado possui esse condão: reforçar a vida, zelar pelas condições sico-químicas, ecológi-
cas, sociais e espirituais que permitem a reprodução da vida e de sua ulterior evolução.
O corespondente ao cuidado em termos políticos é a “sustentabilidade” que visa encon-
trar o justo equilíbrio entre o benecio racional das virtualidades da Tera e sua preser-
vação para nós e as gerações futuras. (B, ).
O Movimento de Muheres Camponesas vem atuando ressignicando o cui-
dado e o amor, que culturalmente vêm sendo delegados à muher como forma
de submissão, dando-he um sentido e um caráter de transformação, libertação
e emancipação tanto das muheres como das classes populares. As muheres de-
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senvolvem esse trabaho com muita dedicação e com a convicção de que eão
contribuindo para a construção de um novo mundo, com novas relações entre
os humanos e com as diversas formas de vida.
O
A investigação buscou a identicação do jeito e das formas de construção da luta
por saúde no MMC/RS. O importante, nesse aecto, é perceber como as mu-
heres camponesas vêm construindo, na luta por saúde, um novo modo de viver
e de se relacionar, que se expressa no modo como elas desenvolvem o trabaho ou
na forma como essa experiência é desenvolvida. Assim, as muheres camponesas
vêm construindo a luta por saúde permeada pelo eixo em defesa da vida e com o
lema “Saúde não é negócio, é um direito nosso!”
Muheres camponesas com o corpo marcado pela sobrecarga de trabaho e pe-
las duras marcas da opressão, discriminação e exploração, organizadas no MMC,
vêm desenvolvendo maneiras criativas e de resistência popular para solucionar
os prolemas cotidianos que enfrentam diariamente.
O trabaho desenvolvido na área da saúde parte da análise de que a popu-
lação rural, eecialmente as muheres, o tem acesso a políticas articuladas
e permanentes de promoção, proteção e recuperação à saúde. No que se refere
eecialmente ao atendimento à saúde, ainda prevalece a falta de acesso ou de
garantia dos encaminhamentos clínicos quando existem prolemas maiores. Na
maioria das vezes, o atendimento tem sido insuciente e as muheres continuam
morendo por doenças que poderiam ser prevenidas.
Pelo que identicamos eecialmente na região onde a pesquisa teve seu foco,
as muheres do meio rural participantes do movimento vêm desenvolvendo essas
práticas populares de saúde como uma forma de resistência e de cuidado à saú-
de individual, familiar e comunitária; também, como exercício da participação
popular no controle social das políticas de saúde, já que são sabedoras do dever e
da responsabilidade do Estado com a saúde (promoção, proteção e recuperação),
com o controle social e com a socialização de informações dos direitos e instru-
mentos para efetivar o controle social, sem excluir a responsabilidade que cada
cidadão e grupo social têm com a saúde.
Deacamos que, eecialmente na região Litorânea, as práticas de atenção à
saúde do MMC constituem-se numa opção por um novo modo de vida no campo
e na cidade. Essa é opção do movimento em nível eadual, no entanto o eágio
de implantação é diferenciado em cada região no Rio Grande do sul e no país.
A luta por saúde púlica e pela saúde da muher tem importância e signicado
fundamental que a torna estratégica por várias razões. A primeira delas é que a
saúde faz parte do cotidiano da vida das pessoas. Nesse sentido, as muheres são
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
as grandes promotoras de vida e saúde: elas geram a vida; geralmente, seu coti-
diano eá marcado por tudo aquilo que se relaciona com saúde (fazer comida,
cuidado com a limpeza e higiene da casa, dos alimentos e das roupas); o cuidado
e manejo com os animais, o plantio e cuidado com os produtos de subsistência,
quando atuam no meio rural; a educação, cuidado e proteção das crianças, dos
doentes, dos idosos. Portanto, o cotidiano da trabahadora rural é marcado por
um conjunto de práticas que eão intimamente ligadas à saúde.
Por outro lado, a saúde eá ligada a um conjunto de necessidades não aten-
didas para a maioria das muheres e do povo em geral: alimentação, higiene, edu-
cação, habitação, trabaho, preços, salário digno, trabaho etc. Vivemos numa
sociedade de doentes e produtora de doenças pela lógica neoliberal com que veio
sendo implantado o desenvolvimento, baseado apenas no crescimento econômico
de aluns em detrimento da miséria “de mihões” de brasileiros. Sabemos que as
políticas e instituições de saúde desempenharam um papel histórico e inegável
para a constituição e eabilização da ordem socioeconômica brasileira; ajudaram
a modelar certos traços estruturais dessa ordem, entre os quais a tendência de
concentração de poder e a exclusão das classes populares dos circuitos de decisões
econômicas, políticas e culturais do país.
O cotidiano de vida das muheres camponesas e famílias que vivem no campo
no Brasil é revelador do quanto a saúde e a necessidade de lutar pela garantia da
efetiva implementação do SUS são fundamentais para as muheres. Analisando
a opção que o movimento fez pela luta por saúde púlica e pela saúde da muher,
como a luta principal, possibilita-se a denição de um conjunto de estratégias
para a construção dessa luta, articulada com a organização, a formação, a mobi-
lização e construção de experiências comunitárias de promoção da saúde, como
vericamos em seus documentos e resoluções
.
A saúde, como geralmente é encarada (um prolema do indivíduo ou da fa-
mília e não como do conjunto da população), acaba sendo colocada nas tarefas
das muheres. Por isso, observamos que a ação do movimento tem sido de de-
monstrar o quanto a saúde é um bem coletivo e não tão-somente de cada um.
Concomitantemente a isso, como o movimento vem apostando na saúde como
um elemento estruturante e como prática de resistência popular feminina rea-
lizada por muheres camponesas junto à população com a qual se relacionam,
esse trabaho, pautado na concepção de educação popular em saúde, bem como
na promoção da saúde da muher e da família, eá aliado ao fortalecimento do
controle social do SUS com participação popular.
As resoluções de assembléias e os relatórios de planejamento e das atividades do movimento
expressam esses aspectos.

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Essas ações que as muheres m desenvolvendo em suas lutas pela garan-
tia do acesso à saúde lica, combinadas com o fortalecimento do controle
social, m trazendo um conjunto de elementos reveladores de um novo jeito
de cuidar da saúde, pensado a partir do paradigma da saúde e o da doea,
que tem como elemento central o cuidado” enquanto essência do humano
(B, ). As muheres trazem o cuidao como prinpio norteador da
vida e das relações. Cuidar signica valorizar, reeitar, ouvir, zelar pelo outro
enquanto pessoa que se faz revelar e que na relão humana se dignica. A
esse propósito, saúde é acoher e amar a vida assim como se apresenta, alegre
e trabahosa, saudável e doentia, limitada e aberta ao ilimitado que virá além
da morte” (B, ).
O jeito feminino e feminista de tratar a saúde implica cuidar da vida, cuidar
do conjunto das relações com a realidade circundante, relações essas que passam
pela higiene, pela alimentação, pelo ar que se respira, pela tera onde se planta e se
vive, pela maneira como organiza a casa, a vida e os espaços coletivos, bem como
pela forma como cada um se situa dentro de um determinado espaço ecológico.
Esse cuidado reforça a identidade como ser de relações, buscando um equilíbrio
e visando à integralidade e à totalidade do ser humano.
A integralidade e o cuidado articulam-se na dimensão da liberdade e da res-
ponsabilidade dos seres humanos em sua luta permanente para ser mais”, não
para ter mais. Assim, a integralidade da saúde tem uma interface determinante
com a dimensão histórica do ser humano enquanto sujeito individual e coletivo
da construção social, cultural, econômica e política da sociedade. Aliado a isso, o
MMC adotou como princípio o resgate da sabedoria popular e da fertilidade da
tera e da vida como um todo. Esse trabaho vem no sentido de enfrentar um dos
prolemas centrais do mundo atual, onde tudo virou mercadoria, até mesmo o
essencial, como a própria vida humana.
Diante disso, as muheres camponesas sentem-se construtoras de um novo
modo de agir e de pensar o planeta e todas as formas de vida, resgatando a auto-
estima de cada uma (partindo da premissa de que não se pode dar aquilo que não
se tem), reetindo sobre o tipo de saúde que querem eabelecer nas famílias e
nas comunidades. Esse trabaho busca uma articulação entre a saúde e a mudança
nas relações de gênero, o reeito à natureza, o modo de produzir, a relação com
a tera, a áua, os vegetais, os animais e todas as formas de vida.
Nessa perectiva, o MMC/RS tem como eixo central a defesa da vida, a
justiça social e a iualdade de direitos, os quais o princípios centrais da luta.
A promoção da saúde eá vinculada diretamente ao modo de vida das pessoas,
aos princípios que têm e defendem, ao tipo de alimentação, ao ar que respiram,
às amizades que cada ser cultiva, enm, ao projeto de vida e de sociedade.
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
Assim, a promoção da saúde, seundo o MMC, implica o desenvolvimento de
ações que promovam a vida e, conseqüentemente, a saúde, tais como educação,
trabaho, política agrícola, agroecologia, alimentação coreta e saudável, lazer
sadio, higiene, moradia, vivência de valores solidários e humanizadores, utopia
e eerança, vida comunitária, participação e relações sadias entre as pessoas e,
dessas, com a natureza.
Para que tudo isso realmente aconteça na prática, o movimento realiza as
ações educativas na área da promoção à saúde da muher e da família rural, arti-
culando a construção do ser humano integral; a agroecologia, as plantas e ervas
medicinais; a alimentação suplementar; o uso de terapias complementares na
atenção à saúde e a luta para a garantia de acesso do povo ao direito de ter atenção
integral à saúde púlica, através do SUS.
A promoção da saúde da muher e da família rural vem se constituindo como
uma das estratégias centrais dea organização. Com base nas experiências que
vêm sendo realizadas pelas muheres, as quais receberam o nome de “multipli-
cadoras de sabedoria, de vida, de saúde, de eerança, o movimento vai dando
continuidade ao processo formativo, organizativo, de luta e ao trabaho de edu-
cação e promoção à saúde da muher e da família rural a cada ano, redenindo
os processos e o tipo de ações, conforme a avaliação do trabaho realizado e as
exigências que a conjuntura apresenta.
Esse tipo de trabaho também vem trazendo elementos acerca da integralida-
de da atenção à saúde, do acohimento das pessoas, do vínculo que as muheres
têm com as famílias, com o modo de tratar a saúde, que merecem uma análise
mais aprofundada e evidenciam o quanto o cuidado à saúde requer que se com-
preenda a complexidade da teia da vida. Essa experiência tem como o condu-
tor as relações de gênero, classe e projeto popular, que constituem a identidade
do próprio movimento, ou seja, a libertação das muheres, a transformação da
sociedade e a construção de uma nova sociedade e de novas relações sociais de
gênero, de raça e ecológicas.
Assim, a luta por saúde tem como eixos norteadores que se articulam entre si
o direito à saúde púlica, atuando na área das políticas púlicas gerais e da saúde
articulado ao eixo da promoção da saúde da muher e da família rural tendo a
saúde como um novo modo de vida.
Dessa forma, as muheres camponesas desenvolvem esse trabaho intervindo
no cotidiano de suas vidas na propriedade, no espaço da produção (produzindo
sem agrotóxicos e transgênicos, optando pela agroecologia), nas relações familia-
res (dividindo as tarefas domésticas, construindo um jeito coletivo de cuidar-se
no núcleo familiar dialogando, entendendo, cuidando, curando, protegendo,
eabelecendo limites e responsabilidades individuais e coletivas), com o grupo
de muheres (dialogando, trocando saberes e práticas, fazendo os remédios juntas,

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reetindo, organizando e se formando) e com as comunidades (acompanhando as
pessoas que precisam de apoio e atendimento, com a farmacinha
,
conversando,
escutando, participando da vida comunitária,...).
Além disso, desenvolvem todo um processo de formação, organização e cons-
cientização das muheres e realizam uma série de ações, lutas e mobilizações de
enfrentamento das queões eecícas que dizem reeito à saúde da muher
e da família rural, assim como, junto com outras organizações nas demais lutas
por mehores condições de vida e saúde, enfrentam o próprio sistema capitalista.
Nesse processo de organização, formação, luta e desenvolvimento de experiências
de promoção à saúde da muher e família rural, as muheres camponesas vincu-
ladas ao MMC eabelecem uma relação entre a saúde e a previdência, como diz
uma das entrevistadas:
O tripé da Seuridade Social, a saúde, a previdência e a assistência social, nos mostram a
grande relação que deve existir para que as pessoas possam viver com seurança e felizes.
Por isso, devem ser púlicas, de caráter universal e de qualidade garantidas mediante um
conjunto de outras políticas. (Entrevista com H. A. A., ).
Esse trabaho tem uma relação muito forte com o cotidiano de vida das
muheres e famílias camponesas, como foi abordado, e com a dimensão da
e da espiritualidade, que é muito forte na cultura das famílias camponesas.
Os mbolos e os rituais religiosos ligados à vida e à saúde são ressignicados a
partir da mística libertadora, ganhando um sentido mais profundo e encarnado
no cotidiano das muheres.
Nesse processo, as muheres enfrentam muitas diculdades no desenvolvi-
mento do seu trabaho; mostram as diculdades que às vezes enfrentam em so-
cializar o que aprendem, as distâncias para poderem participar, a condição de
empobrecimento e de o púlico no meio rural ser praticamente constituído de
idosos. As muheres têm clareza de que o maior empeciho para se organizar são
as armadihas que o sistema impõe, impedindo que os pobres e as muheres se
organizem e cuidem de si e de sua saúde.
Por outro lado, essa práxis vem produzindo um conjunto de resultados no co-
tidiano de vida das muheres que denota sinais vagarosos, mas rmes, de mudança.
Dentre os vários aectos apresentados pelas muheres, podemos deacar:
a conquista de direitos, como o reconhecimento da prossão, a aposentadoria,
o salário-maternidade, saúde, alfabetização e documentação para as muheres,
entre outros que foram abordados anteriormente nas conquistas. O que chama
a atenção é que todas as muheres entendem o movimento como instrumento de
luta que garantiu, por meio de mobilizações, esses resultados, os quais incidiram
positivamente sobre suas vidas;
N E A D E S P E C I A L

o início de mudança na produção, que as muheres armam ter mudado muito: a
gente planta na lavoura de tudo, planta verduras, mandioca, feijão, aroz, banana.
Nós aqui começamos a mudar com o trabaho da agroecologia”;
o icio de mudanças no ambiente, nas relações familiares e no papel das mu-
heres, como podemos ver nas falas: a gente foi dividindo as tarefas em casa,
sobrando mais tempo para todos participarem das lutas também. Uma vez a
muher era em casa. Hoje a gente é da casa, da família, da comunidade e da
luta”; tem muheres com mais participação, organização, mais saúde, solidarie-
dade e entreajuda e as muheres eão aprendendo a cuidar de si e da saúde da
falia; ”as pessoaso eão mais precisando tomar antidepressivos, porque
eão bem;
o fortalecimento da organização é outro aecto bastante salientado pelas muhe-
res, como resultado de todo o trabaho que vem sendo desenvolvido e do reeito
que as muheres m conquistando e as muheres exercendo a cidadania, se
organizando e exigindo seus direitos, cobrando dos responsáveis, a consciência
que temos para o enfrentamento a tudo o que vem destruindo a vida e a saúde;
as muheres mais livres para falar e participar”;
uma entrevistada mostra o processo e os resultados que vêm ocorendo com a
condição enquanto muher:
Mas quando a muher toma consciência da condição, não conseue conviver com a con-
tradição/opressão e precisa dar passo para enfrentar e se libertar. É uma constante,
todas nós passamos por ee processo. É um processo, se avaliando, porque não se num
passe de mágica, tem a ver contigo, com a sociedade e com as pessoas que te rodeiam.
Aí ninuém mais seura, vão para a luta. Quando acredita em aluma coisa e tem claro
onde quer chegar ninuém seura. O movimento tem sido espaço para as muheres par-
ticiparem e terem a dimensão mais ampla do Brasil e do mundo.
O processo de mudança que cada muher vai construindo à medida que participa
do movimento desvela o fetiche de sua condição feminina imposta histórico-cultural-
mente, enfrenta os conitos e contradições, vai fazendo emergir o seu ser mais como
ser humano e como muher. Esse resultado não se mede e muitas vezes não se visualiza
num passe de mágica, mas precisa ser observado como processo de luta por valorização,
participação, cidadania, libertação e emancipação, como armam as muheres do movi-
mento. São resultados quase invisíveis, mas que o o sentido estratégico da importância
do próprio MMC;
As pessoas passaram a viver de forma mais saudável e as que procuram as farma-
cinhas acabam curando suas doenças; muitas nem mais precisam ir ao médico.
As pessoas descobriram, começando pelas muheres, que depois que pararam
simplesmente de tomar remédios, de corer para os hospitais, mas se deram conta

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e foram mudando o jeito de viver, muitos salvaram-se, eão bem e pararam de
gastar dinheiro e passaram a ter mais saúde.”(O.A.G., ).
A práxis desenvolvida pelas muheres camponesas identica-se com um con-
junto de práticas populares em saúde emergentes na resistência, cultura e luta
popular no Brasil no que poderíamos chamar de “redes de cuidados populares
em saúde”. O grande desao reexivo e político é como se articulam essas práticas
ao sistema púlico de atenção à saúde?
Entretanto, é bom lembrar que esse tipo de trabaho só pode ser realizado se
for em grupo, com organização, trabaho coletivo e comunitário, e o fazer com o
que se tem, se sabe e se pode, sem depender de outros. É um processo que pode-
mos caraerizar como educativo-terapêutico, pois é centrado no acohimento,
na escuta e reeito para com cada ser humano que se apresenta; o diálogo como
base da relação, no qual tanto quem cuida como quem é cuidado são encarados
como sujeitos; o processo da saúde como busca de equilíbrio e energia e de cons-
trução de um modo de vida saudável perpassa o conjunto das ações desenvolvidas
pelo movimento.
Percebemos que as muheres m e, ao mesmo tempo, buscam permanente-
mente compreender a dinâmica da vida em sua teia de complexidades e relações.
Ao mesmo tempo, no cuidar cada pessoa como ser único uma relação de amor
e afeto muito forte e a conjugação de várias ações, orientações de conduta, postura
e mudança de comportamento e estilos de vida, com terapias complementares.
Assim, o trabaho que realizam vai desde a reorientação alimentar, a energização,
os chás, o uso de plantas medicinais e remédios feitos deas para curar determi-
nadas doenças, a mudança de postura nas relações familiares e cotidianas, até a
conexão com o universo e a dimensão da e da transcendência. Aliado a isso
se constroem redes de apoio solidário às pessoas que mais precisam, vínculo ou
conexão entre o grupo de muheres, a comunidade e as pessoas que precisam de
atenção. Esse é um aecto forte que gera conança e responsabilidade para com
o outro, o qual, em sua alteridade revela-se como um ser humano capaz e nito.
Além disso, o processo de acompanhamento, não com o registro que é feito
numa cha de cada pessoa, mas o engajamento que é possibilitado no grupo do
MMC, vai gerando um processo de auto-estima, de construção da libertação e
cidadania das muheres, que deixam de car presas às doenças e à condição de
vítimas e vão dando um novo sentido às suas vidas.
Essa dinâmica tem dado certo porque o tipo de queixa mais comum nas pesso-
as que procuram a atenção nas farmacinhas são doenças mentais, como deresão,
nervos, gente que toma reédios de faixa preta; prolemas ligados à muher, como
menopausa, proleas da mulhe, tose, presão alta, diabete e coleerol. Parte das do-
enças eá ligada à dinâmica de vida e trabaho que as muheres e os camponeses
N E A D E S P E C I A L

enfrentam em seu cotidiano, de modo que, se não se trabahar para a mudança
dessa realidade, os remédios, por si só, nada vão resolver.
Enm, essas práticas mostram que os teritórios da vida o mais amplos
do que os serviços de saúde e, por isso, apontam a necessidade de se pensar a
saúde considerando a dinâmica complexa da vida, pois são práticas centradas
na vida, na sua defesa, preservação, promoção e recuperação. Por serem práticas
centradas na vida e no cuidado com o ser existencial e sujeito que se apresenta,
privilegiam o acohimento, as relações de afeto, o reeito às diferenças, de res-
ponsabilidade e pertencimento, construtoras de um novo jeito de fazer saúde,
de cuidar da vida e do ambiente.
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Entrevistas com muheres camponesas
Tem jovem no campo!
Tem jovem homem
tem jovem mulher
RO S Â N G E L A S T E F F E N V I E I R A
Somos sempre, e em qualquer idade,
o resultado das múltiplas relações que
estabelecemos com os outros no mundo concreto.
(C M. C)
O  centro das atenções em diversos estudos,
das galeras funk ao hip hop, da participação política às estratégias de ingresso no
mundo do trabalho, da drogadição à questão penal. O que sabemos já não torna
possível sequer falar em juventude, no singular, mas sim em juventudes. Todavia,
mesmo neste espaço plural, os jovens do campo permanecem quase despercebidos
e só recentemente começam a ganhar status em dissertações e teses acadêmicas.
Com a supervalorização do urbano e o suposto desmantelamento do rural, o
esperado, ou o que se torna vivel, é a migração dos jovens para as cidades. Nosso
estudo foi dirigido aos jovens que estão no campo e, mais do que isso, os que se
espera que permaneçam.
Cabe ressaltar ainda que, ao falarmos em jovens do campo, falamos também
em um modo de pensar e agir que orienta uma parcela dos sujeitos que vivem no
 Avaliamos diversas possibilidades para incorporar um tratamento de gênero na redação do
texto, sem torná-lo uma leitura cansativa, com inúmeros parênteses e os repetidosos/as, e
optamos por manter a redação no masculino, garantindo a precisão gramatical do texto. Porém,
utilizaremos o feminino no diálogo com quem está lendo o artigo, pressupondo tratar-se de
uma “pessoa termo que em português é feminino. Cabe ressaltar que é apenas uma estratégia
de redação e que não estamos incorporando a discussão teórica em torno da noção de pessoa.
Tampouco solucionamos a questão da redação, mas esperamos contribuir para problematizá-la.
 A relação entre urbano e rural é abordada em diversos estudos e em diferentes perspectivas,
que variam desde a percepção como dicotomiaà percepção de continuum. Sobre este
debate, sugerimos a leitura de S () e W ().
N E A D E S P E C I A L

meio urbano. Se é possível formular que o meio rural e urbano encontram-se imbri-
cados, é preciso atentar para o fato dessa imbricação não ser uma via de mão única.
Tendo denido o jovem do campo como objeto de estudo, nos dedicamos a
compreender a condição juvenil em assentamentos do Movimento dos Trabaha-
dores Rurais sem Tera (MST), atentando para o modo como jovens muheres
e jovens homens vivenciam sua juventude e sua sexualidade no contexto rural,
com a eecicidade da militância no Movimento.
I
Este artigo incide sobre o tema Juventude e sexualidade no Movimento dos Tra-
bahadores Rurais sem Tera e o universo empírico refere-se a jovens residentes
em cinco assentamentos do MST, localizados em uma mesma cidade do Sul do
país, efetivados entre  e , abrangendo cerca de  famílias.
A opção por atuar junto ao MST advém da militância no Movimento, iniciada
em , e das inquietações decorentes do convívio com jovens assentados. Ain-
da que constantemente exaltado o potencial do MST como contexto e processo
educativo e, dentro disso, a juventude sendo citada como “militância em processo
de formação,” outras dimensões da condição juvenil pareciam invisibilizadas. In-
quietava entender quais os signicados de ser jovem naquele contexto, para além
da militância. Nee sentido, buscamos identicar o que caraeriza o coletivo
juvenil a partir de temas como cotidiano, família, rede de sociabilidade, iniciação
afetivo-sexual e saúde sexual e reprodutiva, observando as possíveis interfaces
entre juventude, gênero e a sexualidade.
 Utilizamos esta grafia no decorrer do texto, tendo presente a perspectiva apontada por
C, ao enfatizar que toda vez que usar neste trabalho a palavra Movimento (com
maiúscula), estarei referindo ao MST, mas também buscando chamar a atenção para a idéia
mesma de movimento que está em sua identidade” (: ).
 Estudo realizado no âmbito do Mestrado em Educação (PPGE/CED/UFSC), sob orientação
do professor, doutor Reinaldo Matias Fleuri. Vinculado à investigação efetuada junto ao Pro-
grama de Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Sexual e Reprodutiva,
desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da População (Nepo/Unicamp), em parceria com
o Instituto de Saúde (CIP/SES-SP), Instituto de Medicina Social (UERJ), Instituto de Saúde
Coletiva (UFBA), Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz) e apoio Fundação Ford, sob
orientação das professoras, doutoras Estela Aquino e Fabíola Rohden.
 Dado que sempre tomamos partido de acordo com nossos compromissos pessoais e políticos,
B alerta que: “nosso problema é ter certeza que, qualquer que seja o ponto de vista que
adotarmos, nossa pesquisa irá satisfazer aos padrões do bom trabalho científico, que nossas
inevitáveis simpatias o tornarão nossos resultados sem validade(: ). Expressar a
condição de militante indica de onde falamos e o cuidado constante que tivemos em atentar
para suas implicações.

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Atuamos junto a jovens assentados que participam do processo de escolariza-
ção, privilegiando como lócus de investigação uma das escolas situadas na região,
por entender tratar-se de um importante espaço de socialização juvenil. Enfati-
zamos o papel dea escola na vida cotidiana dos jovens, pois nela permanecem em
dia  horas semanais e, como vericaremos no decorer do texto, conura-se
como um dos mais importantes contextos de interação cotidianos.
Considerando o prolema norteador da pesquisa (ou suleao, numa pers-
pectiva freireana) e a relação já eabelecida entre pesquisador/pesquisados, uti-
lizamos como principal estratégia metodológica a observação participante e a
realização de entrevistas individuais semi-estruturadas, sendo selecionados para
entrevista oito jovens, com idades entre  e  anos quatro homens e quatro
muheres. No âmbito da observação participante desenvolvemos também uma
ocina e uma experiência didática contemplando todos os estudantes (mu-
heres e  homens, com idades entre  e  anos).
A pesquisa trata de jovens assentados que não vivem mais na condição de
não ter tera – ea cerca já foi desconstruída. São jovens que participam, desde
a infância, do processo de luta pela tera e muitos nasceram na condição de
acampados ou assentados; por isso, e tomando como marco da história do MST
o ano do primeiro encontro, , eamos considerando-os a primeira geração
a se formar no interior do Movimento.
O
Juventude, rural, gênero e sexualidade: na imbricação desses os tecemos nosso
estudo. No entanto, trata-se de conceitos que não são unívocos e que se apresen-
taram desaadores na condução da pesquisa, fazendo com que nosso objeto de
estudo fosse se transformando e adquirindo diferentes signicados e, conseqüen-
temente, diferentes interpretações ao longo do percurso.
Uma das primeiras queões a nos instigar foi: o que é juventude e como
conceituá-la no meio rural? Porém, peruntar “o que é” pressupõe que haja uma
identidade xa, rígida e homogênea, e uma perunta desse tipo possibilita ape-
 Cerca de % dos jovens dos cinco assentamentos participam do processo de escolarização
e estudam nesta escola que atende as séries finais do ensino fundamental e ensino médio.
 Na oficina foram desenvolvidas atividades que visavam à construção de símbolos individuais
e coletivos que representassem juventude por meio de diferentes linguagens, com a partici-
pação de todos os estudantes. A experiência didática consistiu em duas aulas sobre o tema
sexualidade com estudantes de
a
e
a
séries, por solicitação da escola, que se tornaram im-
portantes fontes de dados, especialmente a dinâmica da “Caixa de dúvidas” onde estudantes
depositavam questões sobre sexualidade, posteriormente discutidas pelo grupo. Resultados
desta dinâmica são apresentados na dissertação e em artigos específicos.
N E A D E S P E C I A L

nas uma resposta (é isso), como se tudo o que somos fosse plenamente divel e
imediatamente identicável. A identidade, no entanto, compreende um processo
dinâmico de identicação, que acohe contradições e diversas tramas de relações
a partir das quais nos constituímos ea mesma relação se apresenta nos grupos
sociais. Não há, portanto, um conceito único e consensual. Enfoques distintos
constroem formas diversas para compreender juventude.
Bourdieu alerta que, a idade é um dado biológico socialmente manipulado
e manipulável; e que o fato de falar dos jovens como se fossem uma unidade
social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar esses
interesses a uma idade denida biologicamente constitui uma manipulação
evidente.” (:). Assim, optamos por não eleger um critério etário para de-
nir juventude, ainda que reconheçamos ser válido para ns de operacionalização
de políticas púlicas. Dados os propósitos (e limites) da investigação no âmbito
do mestrado, focamos nosso ohar sobre os estudantes, pois, além da distinção
institucional, observamos que os assentados se referem a esses alunos como a
juventude do Movimento.
Junto a esse grupo buscamos identicar o que caraeriza o coletivo juvenil
nos assentamentos pesquisados, elaborando a compreensão sobre os jovens com
base na percepção da juventude como construção social e na importância dos
contextos de interação cotidianos, dos agentes de socialização e das distinções de
gênero na constituição dos sujeitos. Também denimos como foco de investigação
a vivência da sexualidade, como uma dimensão importante da vida dos sujeitos
e que parecia seuir um curso de invisibilidade.
Dirigimos nosso ohar para o cotidiano juvenil com a intenção de identicar
a articulação entre os contextos de interação e as formas de vivenciar a juventude,
bem como, as formas de pensar e agir referentes à sexualidade, tendo presente a
perectiva de P, seundo a qual torna-se necessário que os jovens sejam estu-
dados a partir de seus contextos vivenciais, cotidianos porque é cotidianamente,
isto é, no curso das suas interações, que os jovens constroem formas eecícas
de consciência, de pensamento, de percepção e ação” (: ).
A perectiva de gênero que orientou a análise tem por referência a aborda-
gem de Sco, para a qual “() o gênero é um elemento constitutivo de relações
sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e () o gênero é uma
forma primária de dar signicado às relações de poder” (:). A articulação
A organização escolar sugere uma delimitação entre uma fase de vida e outra, entre a infância
e a adolescência/juventude. Esta associação entre institucionalização e cronologização do curso
da vida é indicada na leitura de Groppo (), sobre as instituições modernas.
 Apesar da ênfase no cotidiano, não se trata de um estudo etnográfico, que demandaria outras
opções teórico-metodológicas.
 Tradução nossa.

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entre gênero e sexualidade é armada por diversos autores: Vance () indica
que seriam sistemas distintos entrelaçados em muitos pontos; para Heiborn e
Sorj () são dimensões autônomas que apresentam pontos de interconexão.
Weeks () indica, além de gênero, também classe e raça formando três eixos
interdependentes particularmente importantes para compreender as estruturas
de dominação e subordinação no mundo da sexualidade. Seuimos esse autor
quando arma que “nossas denições, convenções, crenças, identidades e compor-
tamentos sexuais não o o resultado de uma simples evolução, como se tivessem
sido causados por alum fenômeno natural: eles m sido modelados no interior
de relações denidas de poder (:), entre as quais deacamos as dimensões
de gênero, etária, classe e raça/etnia.
O enfoque sobre o cotidiano juvenil, gênero e sexualidade possibilitou dimen-
sionar queões pouco exploradas sobre relações sociais, eecicamente no MST,
e acreditamos que os resultados dee estudo possam oferecer elementos signi-
cativos para se analisar representações de gênero e sexualidade que conuram
os signicados de situações comuns vivenciadas cotidianamente pelos jovens sem
tera assentados no Sul do Brasil.
J M
A identicação de “jovem é um processo histórico-socialmente situado e, ao mes-
mo tempo, se constrói por autodenição. Para os jovens pesquisados, sua condição
juvenil é denida principalmente pelas atitudes e formas de pensar “mais séias,
sendo o critério etário uma referência complementar. A noção de mais séioeá
em comparação com a de infância e, quando relacionado aos adultos, o jovem
se situaria numa condição intermediária, caraerizada pela aprendizagem, até
adquirir “mais iência” e “mais responsabilidae.
Uma das caraerísticas dea fase da vida juventude diz reeito ao in-
gresso no universo das relações amorosas ou afetivo-sexuais, vericado nos depoi-
mentos juvenis e também na literatura (H et al, ). As fronteiras
entre as fases de vida, no entanto, são pouco precisas. Em relação à fase adulta, se
tomarmos como indicadores os comumente usados na literatura, como a careira
escolar-prossional-familiar, precisamos considerar aluns fatores. Quanto ao
processo de escolarização, seu prolongamento ou não, no contexto rural, earia
mais relacionado às possibilidades de acesso e permanência na escola. Concorem,
nee sentido, o imenso decit da oferta de educação formal no meio rural brasi-
leiro, a inexistência de uma política educacional ecaz e adequada para o campo,
 Utilizamos redação entre aspas e em itálico para identificar os depoimentos juvenis.
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
além das condições de acesso à escola e da necessidade de os jovens participarem
da subsistência da família – o que diculta sua permanência na escola.
Nos assentamentos pesquisados, por exemplo, somente em  a escola con-
quistou a possibilidade de oferecer o ensino dio. Antes disso, era possível
cursar o ensino dio no centro do município onde os assentamentos eão si-
tuados ou em outras cidades. Dea forma, a maioria dos jovens encerava seu
processo de escolarização ao término do ensino fundamental. Mesmo no ensino
fundamental, as diculdades nanceiras e a participação dos jovens na economia
familiar comprometem a escolarização ao menos da forma com que (não) é
planejada para o meio rural. Observamos que muitos jovens, em períodos concen-
trados de maior atividade agrícola (plantio e coheita), permanecem trabahando
na lavoura e não assistem às aulas, dicultando seu rendimento escolar. Para as
jovens muheres, e somente para elas, um fator que compromete a assiduidade
às aulas é o exercício de funções do la, como cuidar dos irmãos e da casa em pe-
ríodos em que a mãe eeja impossibilitada (ou por motivo de saúde, ou por ear
participando mais ativamente das atividades agrícolas).
Porém, numa análise intergeracional, os jovens do meio rural m atualmente
maiores possibilidades de participar de um processo de escolarização mais alon-
gado do que as gerações anteriores. Desse modo, é possível considerar um pro-
longaento da juventude (G, ) por um alongamento do processo de
escolarização – e um conseqüente prolongamento da dependência e coabitação
com a família de origem.
Quanto ao trabaho, uma participação efetiva do jovem na economia fami-
liar. Desde a infância contribuem na produção da subsistência da família, sendo
muito dicil precisar diferenças entre o trabaho atribuído à criança, ao jovem
e ao adulto, a não ser quanto à sua intensidade e autonomia, que tendem a au-
mentar progressivamente. O ingresso na careira prossional seria também um
elemento de dicil vericação, pois muitas das atividades desenvolvidas não são
reconhecidas como prossões e permanecem à margem do mercado de trabaho
formal, dicultando a utilização do critério do “ingresso no mercado de trabaho/
careira prossional” como marco de passagem à vida adulta. É possível formular
que a progressiva autonomia na tomada de decisões relativas ao trabaho (e aos
seus rendimentos) seja um dos indicadores de passagem da condição juvenil à
vida adulta no contexto rural.
Outro indicador na passagem à vida adulta indicado na literatura enfoca
a relação familiar a separação da família de origem e a constituição de nova
família. O prolongaento da juventude coresponderia a um prolongamento da
dependência em relação à família de origem (material, domiciliar, ou ambas) e
a uma não linearidade nee processo de independização em relação aos pais,

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havendo a possibilidade de dependência parcial, de autonomia parcial e de cons-
tantes idas e vindas nesse percurso.
O adiamento do casamento – ou constituição de nova família – seria outra
caraerística do prolongaento da juventude. Constituir nova família, no contexto
estudado, não implica necessariamente separação da família de origem, sendo
mais comum o domicílio patrilocal. A independência domiciliar, portanto, não
seria um critério adequado para ee contexto, assim como a independência ma-
terial, pois a reciprocidade é caraerística do grupo. No entanto, é possível sugerir
que o casamento e o nascimento do primeiro ho, se articulados com outros
fatores, podem constituir-se num marco de transição à adultícia.
Observamos que, para diferenciar jovens de adultos, não basta o casamento
ou a parentalidade, mas dependerá da relação eabelecida com esses fatos. Por
exemplo, uma jovem mãe, cuja passagem pelo casamento foi rápida, logo culmi-
nando em separação, que reside com família de origem e cuja “maternidade” é
compartihada com ea família, pode não ser reconhecida como adulta ou como
assumindo papéis adultos. Outra jovem, casada, grávida, em domicílio patrilocal,
mesmo que permaneça o caráter de dependência material-domiciliar em relação
à família de origem, pode ser vista pelo grupo como “mais adulta.Nessa denição
concorem ainda fatores como a seriedade” dos parceiros, principalmente do
homem que compõe a parceria. Essa seriedade dos parceiros pode ser traduzida
por “responsabilidade demonstrada ao grupo,” principalmente no trabaho e/ou
na participação política.
Relembramos à leitora que eamos tratando de pequenos proprietários, a
partir de um recorte eecíco de classe. Nesse recorte, parece não fazer muito
sentido a saída do domicílio da família de origem, a menos que seja para constituir
nova família ou para ir à cidade. E, como falamos anteriormente, pode-se consti-
tuir nova família sem o rompimento domiciliar e ir para a cidade não necessaria-
mente signica independência, pois pode ear relacionado ao prolongamento dos
estudos, como é o caso de aluns jovens dos assentamentos pesquisados, que saem
para realizar seus estudos principalmente em instituições que têm parceria com
o MST – e depois retornam para os assentamentos de origem.
A importância estrutural dos grupos domésticos é um dos traços que carac-
terizam as sociedades camponesas (Cf. M, , apud S,
). Nee sentido, uma outra queão nos parece signicativa para explicitar
as inquietações quanto ao critério de separação domiciliar em relação à família
de origem para denir a passagem à vida adulta: a economia camponesa é de
 “Casamento” está sendo empregado para designar as uniões conjugais, formalizadas ou não.
 “O termo parentalidade engloba a idéia de maternidade e paternidade. O neologismo visa
suprir a falta de uma palavra em português, correspondente a parenthood na língua inglesa
(H, : , apud H et al, ).
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
caráter familiar, a própria condição de produção da existência no campo induz
a pensarmos em propriedade familiar e não individual.
Ainda em relação à família, podemos incluir a temática do conito intergera-
cional, também articulada à denição da juventude. Na comparação com Parsons,
que caraeriza a cultura jovem em oposição à cultura adulta, Galand ()
sugere que hoje predomina um modelo de transição negociada, com poucas rup-
turas de valores intergeracionais. Brandão (et al, :), assinala que um
aecto fundamental da dinâmica familiar que pode ser captado nas entrevistas
é o fato de não haver um conito geracional signicativo entre pais e hos.
Ao não haver conito, os jovens m um motivo a menos para saírem de casa.
A autora nee artigo eá se referindo à classe dia, mas observamos relação
semehante entre os jovens assentados. Ou mehor, percebemos que o fato de
partiharem um mesmo projeto coletivo sem tera parece minimizar conitos.
um projeto comum, que não anula individualidades, mas que promove maior
coesão do grupo.
Também é deacada na perectiva da eecicidade dos jovens no contexto
do MST, a participação em um projeto político e a experiência advinda desse en-
gajamento. As formas de organização do Movimento, ainda que de certa forma
hierárquicas, imprimem uma dinâmica de reexão constante sobre as práticas.
A todo o tempo são questionados os signicados das práticas individuais ou do
grupo uma postura autoritária, ou uma atitude preconceituosa, uma prática
excludente, uma palavra ou comentário desreeitoso, enm, tudo é posto em
xeque. Isto faz com que os sujeitos, jovens ou adultos, qualiquem seus discursos
e busquem revisar suas práticas. Acreditamos que essa seja uma das virtudes
do MST, um dos fatores que provoca o próprio movimento no interior do Mo-
vimento. Nessas discussões se tramam as dimensões macro e microssocial é
quando os rumos eerados para a sociedade se tramam com o cotidiano, é nesse
espaço que o projeto coletivo se cruza com as práticas individuais. Ainda que a
participação nas instâncias do Movimento seja marcada por distinções geracio-
nais e assimetrias de gênero, consideramos que a forma de organização dos sem
Tera promove a formação constante e o empoderamento dos seus integrantes
entendido não apenas como criação ou ampliação de “habilidades,” mas como
atribuição de novos sentidos e valores aos sujeitos.
Sobre a assimetria de gênero, ainda que predomine a equação internalidae
feinina/externalidae masculina em relação à casa (H et al, ), ob-
 O autor toma como referência para essa discussão o artigo: Parsons T. Age and sex in the social
structure of the United States, American sociological review, , , pp. -, .
 Refere-se às entrevistas da pesquisa Gravidez adolescente: Estudo multicêntrico sobre jovens,
sexualidade e reprodução no Brasil (Gravad), desenvolvida em três capitais brasileiras: Rio de
Janeiro, Salvador e Porto Alegre.

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servada em diferentes âmbitos, os papéis de gênero são questionados em diversos
momentos, o que indica avanço rumo à relações iualitárias. Aqui cabe retomar
a armação anterior, de que o Movimento admite um constante processo de
questionamentos, que pode ser exemplicado por dados coletados em campo:
uma tarde, assistindo a um jogo de futebol misto, um homem adulto, liderança
do MST, comentou sobre um passe de uma jogadora “o sabe joga, olta para a
cozinha,” ao que sua esposa respondeu, apoiada por diversas outras falas Annio,
lebra que nós somos marxistas e não macistas.
Observamos que, por um lado, os depoimentos demonstram que os jovens
homens têm mais acesso a atividades de lazer, maior autonomia para saírem sem
os pais e maiores possibilidades de participação política; que uma diferen-
ciação de gênero na distribuição e valorização do trabaho (o que pode indicar
complementaridade ou assimetria), e distinção também em relação à sexualidade.
Por outro, os depoimentos e as observações de campo demonstraram que esses
mesmos papéis são questionados, em certa medida, tanto por jovens muheres,
quanto por jovens homens. “O fato de emergir a consciência de que os modelos
de nero nos quais os homens aparecem como naturalmente superiores às
muheres – devem ser rompidos, sugere a possibilidade de mudanças no futuro”
(R; A, : ).
O cotidiano juvenil é marcado principalmente pela família, trabaho e escola,
contextos onde também se realizam as atividades de militância política. A família,
além de importante marcador da origem da participação no Movimento, eende-
se às relações vicinais, porém as moradias reúnem, em geral, apenas pais e irmãos
biológicos. Rua e Abramovay () também vericaram reduzido número de
famílias extensas nos assentamentos que pesquisaram, predominando famílias
nucleares e não numerosas.
As redes familiar e vicinal conuram-se como importantes contextos de
lazer, ao que se inclui o contexto da escola. São citados como lazer os jogos, bailes
e passeios, sendo possível observar que aos jovens homens são oferecidas possibi-
lidades em maior quantidade e em espaços mais amplos, ou seja, deslocando-se
mais facilmente para espaços extracomunitários.
O trabaho tem uma dimensão importante para a organização da vida dos
assentados e é realizado, habitualmente, no lote, pelos membros da família, con-
 Exemplo dessa relação entre lazer e autonomia são os bailes realizados nos próprios assen-
tamentos e em clubes de outras regiões da cidade. Às jovens mulheres é permitida a par-
ticipação nos bailes dos assentamentos, freqüentados por toda a comunidade, mas quando
ocorrem em outros locais são impostas várias restrições, o que não encontra equivalência
quando se trata dos jovens homens. Também em torneios de futebol realizados fora da co-
munidade é comum jovens homens irem sozinhos, mas nunca jovens mulheres – como disse
um depoente, “elas sempre têm que ter com quem ir.
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
tando com apoio vicinal. As jovens muheres situam seu trabaho no espaço da
casa e na roça citados nea ordem e indicando a atividade na casa como função
da muher e, na roça, como ajuda. Os jovens homens invertem essa relação, sendo
ajuda, as atividades que desenvolvem no interior da casa e entorno. Ainda que
possa ser compreendido pela noção de complementaridade, a visibilidade ou a
importância atribuída às atividades desempenhadas por homens e muheres faz
sobressair um caráter mais assimétrico das relações de gênero. De maneira geral,
observamos que a distribuição de tarefas na unidade doméstica, além dos atributos
de gênero, eá relacionada à conuração de cada unidade familiar e depende do
número de integrantes que cada família dispõe para a produção de sua subsistência.
A escola se constitui como um dos principais contextos de interação cotidia-
nos, ao qual se integram família e comunidade. Na escola os jovens permanecem
cerca de  horas semanais, desenvolvem atividades de lazer e compõem sua rede
de sociabilidade. Há que se considerar que as redes de sociabilidade, construídas
nos contextos de interação cotidianos (comunidade-família-escola), num uni-
verso que compreende em torno de  famílias assentadas e alumas poucas de
pequenos agricultores da região, costumam compor-se pelas mesmas pessoas.
Para auxiliar a compreensão da noção de juventude utilizamos as categorias
dependência e proteção, presentes também no debate sobre a infância. Estar ou
não na escola, trabahar ou o, constituir nova família ou o, parece-nos que
indicam passagem à vida adulta se transformarem a posição do sujeito na equação
deendência-proteção.que se considerar ainda que não se trata de limites xos
ou lineares entre uma fase de vida e outra, mas limiares que aproximam e/ou
distanciam o jovem da infância e da vida adulta. Identicamos um movimento
constante no processo de constituição da juventude, na imbricação dos fatores
que a determinam, bem como são dinâmicas as percepções juvenis acerca das
representações de gênero.
S
Como dissemos anteriormente, um marco da trajetória juvenil é o ingresso no
universo das relações amorosas ou afetivo/sexuais. Heiborn (et al, : ) ar-
ma que “uma das principais transições operadas na adolescência é a passagem ao
exercício da sexualidade com parceiro, que se desenrola paralelamente a uma soli-
dicação de práticas e signicados associados à contracepção e à reprodução.Mas
anal, do que eamos falando quando nos referimos ao universo das relações
amorosas ou afetivo/sexuais”? Mais do que isso, do que os jovens eão falando
quando se referem a ca, namorar ou transar? Quais os signicados de normas
e práticas referentes à sexualidade para os jovens dos assentamentos do MST?
Quais as informações que dispõem e acionam para viver sua sexualidade?
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I -
Entre as modalidades de relacionamento afetivo-sexuais, onde se inscrevem as
trajetórias de iniciação afetivo-sexual, deaca-se na literatura o ca. “Em con-
traste com o padrão mais eável, previsível e seqüencial do namoro, o ca, além
de não envolver compromiso entre os parceiros, funda-se na imprevisibilidade:
ele pode resumir-se a um encontro (com ou sem ato sexual) ou desembocar em
um namoro(H et al, : ). Também entre os jovens assentados o
ca se eabelece como um marco dos relacionamentos juvenis, corespondendo
a diferentes práticas, não tendo um único signicado.
Fica, em aluns depoimentos, aparece associado ao primeiro beijo, onde o
primeiro beijo é o próprio ca ou inauura um período de ca. Em outros, o pri-
meiro beijo é anterior ao primeiro ca, que coresponderia a um relacionamento
mais próximo do namoro. Ele pode, portanto, abranger tanto um relacionamento
mais duradouro quanto um momentâneo. Há também o namoro de bincaeira,
alumas vezes situado como uma modalidade de relacionamento intermediária
entre o ca e o namoro sério, outras vezes sendo sinônimo de ca. Percebemos
que para aluns informantes o namoro séio implica compromisso maior e, nor-
malmente, pressupõe uma relação que abrange a família.
Nos relatos referentes ao namoro ou ao ca, a queão da (in)delidade apare-
ce com intensidades diferentes. Em conversas informais e nos depoimentos, vários
jovens homens e jovens muheres comentaram ter, em alum momento, cao
com mais de uma pessoa, sem maiores repreensões, mas quando não é naoro
séio.Nesse sentido, o ca conura-se como uma modalidade de relaciona-
mento que minimiza obrigações próprias do namoro, como é o caso da delidade
(A et al, ). Outra distinção entre o namoro e o ca eá relacio-
nada a incluir ou não relações sexuais. Um dos depoimentos indica que o fato de
manter relações sexuais com o mesmo parceiro pode conurar uma relação de na-
moro, mesmo sem o conhecimento da família. Entretanto, para os outros entrevis-
tados, a relação sexual eá inserida no ca e não implica compromisso ou namoro.
Mas se o ca eá relacionado a certa exibilidade moral, que permite uma
diversidade de experiências para ambos os sexos, que tanto jovens homens
quanto jovens muheres ca, revela que persistem distinções de nero. Se ao
homem a freqüência e a rotatividade de parceiras é um fator positivo para sua
imagem, às muheres essa freqüência e rotatividade tendem a torná-las mal-fa-
laas uma preocupação também vericada no estudo de Rua e Abramovay
(), que abrangeu assentamentos de seis eados brasileiros.
Ao peruntar sobre a primeira experiência sexual, as respostas remetiam ime-
diatamente à primeira relação sexual, entendida como a primeira relação com
penetração, entre um homem e uma muher. A idade da primeira relação sexual
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
dos entrevistados difere entre homens e muheres. Entre os jovens homens não-
virgens, a idade da primeira relação varia entre  e  anos, a das jovens muheres
entre  e  anos. Em outro aecto os depoimentos de homens e muheres se
assemeham, pois ambos relatam como parceria de sua primeira relação sexual
moradores da localidade ou circunvizinhança.
Os depoimentos evidenciam que as trajetórias de iniciação afetivo-sexuais
seuem gicas distintas seundo gênero. Entre os homens, a primeira relação
parece conurar-se como um marco de armação da sua masculinidade. As
narativas masculinas foram mais pontuais do que as femininas, isto é, os jovens
homens contavam rapidamente os fatos e não abordavam detahes que contex-
tualizassem a relação; ao contrário, as narativas femininas indicavam mais deta-
hadamente a circunstância e os sentimentos envolvidos nas relações, sugerindo
que o fato era convenientemente narado ao ser acompanhado de sentimentos
afetivos para além da prática sexual.
Nos relatos masculinos, vericou-se também uma associação da sexualidade
com o desempenho diante dos colegas. Alves (), em seu estudo, ressalta a
importância dos pares na construção da masculinidade. A situação descrita como
daí ele cou com uma e eu com a outra” foi uma constante nos relatos dos jovens
homens. Nos relatos femininos, as interferências aparecem mais como estímulos
e como comunhão de valores e práticas que identicam as jovens muheres com
seu grupo de pares.
Entre os jovens assentados, tanto homens quanto muheres, percebemos uma
vinculação com a noção de aprendizagem, porém com ênfases distintas: se para
a muher é o sentimento de medo que marca o início dessa trajetória, para os ho-
mens é a idéia de fea. No estudo de Monteiro (), dor e medo foram manifes-
tados por grande parte das entrevistadas com relação à primeira relação sexual, o
que se repetiu em nossas entrevistas. As informantes armaram que, nas relações
seuintes, sentiram-se mais tranqüilas, indicando o caráter da experiência sexual
como uma aprendizagem na trajetória de iniciação sexual.
A forma como os jovens assentados se manifeam sobre o tema da virgindade
é outro item fundamental para compreendermos sua iniciação sexual. Conforme
Abramovay (et al, :), a virgindade ainda é um marco na diferenciação dos
gêneros na cultura brasileira. Ela vem sendo re-signicada frente a novos discursos,
mas permanece uma referência que norteia comportamentos e delimita atitudes.
Jovens entrevistados, homens e muheres, declaram que a virgindade é importante
somente para o universo adulto, mas não para eles. No entanto, a pesquisa demons-
trou que se trata de normas que os jovens, em certa medida, interiorizam.
Entre os informantes entrevistados, os que se declararam virgens não explici-
taram intenção de manterem-se até o casamento, dizem apenas auardar a hora e
o parceiro certos. Esta gica de eerar pelo momento certo também foi consta-

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
tada em depoimentos da pesquisa de Abramovay (et al, ). Ariha e Calazans
() indicam que, conforme o estudo de Afonso, as moças alegam mais razões
de ordem afetiva e emocional ao justicar o adiamento do início das relações sexu-
ais, enquanto os rapazes alegam razões de ordem social e a falta de oportunidades
(p. ), o que também pudemos constatar em nossas entrevistas.
Como assinala a literatura, a iniciação sexual, a forma de perceber sentidos
diferenciados por gênero na virgindade, é condicionada pela construção da mas-
culinidade, o que se ampara por rituais de socialização, como a pressão exercida
pelos pares (A et al, :). Entre as muheres o grupo de pares
atua de outra forma, já que compartihar e discutir as mesmas experiências seria
um fator de identicação com/no grupo da pares. Mas, conforme Heiborn (et al,
: ), “as adolescentes encontram-se submetidas a pressões contraditórias no
que concerne ao exercício da sexualidade: enquanto a família tenta contê-lo, o
grupo de pares (e os parceiros) o estimula.Talvez em decorência dessas pressões
contraditórias é que os depoimentos femininos apontaram para uma ambiüida-
de: ao mesmo tempo em que os jovens armam nas entrevistas que não atribuem
maior valor às virgens em comparação com não-virgens, e que as virgens não
indicam a intenção de manterem-se assim até o casamento, as jovens que já tran-
saram demonstraram arependimento por não terem preservado sua virgindade.
Nee sentido, Abramovay (et al, : ) deaca que na “iniciação sexual
das moças, as interpretações se dão por lógica diferenciada àquela atribuída aos
jovens homens. A ausência de experiência sexual é vista como uma estratégia de
seleção para relacionamentos que eabelecem o sexual com o afetivo, em um pla-
no de relação eável, do tipo matrimonial.Também nos assentamentos as jovens
muheres relatam essa preocupação com a seleção e uma forma de a muher se
valorizar parece ear associada à sua resistência. De forma geral, as informantes
declaram que as carícias o circunscritas a beijos, abraços e as mãos, como disse
uma delas, ia até as costas, no máximo, porque e outros lugares eu não deixaa.
A fronteira entre o permitido e o não permitido parece ser a cintura, daí para
baixo “jaais. Já os homens seriam caraerizados pelo oposto: pela insistência.
As muheres seriam reeitadas conforme seu comportamento: “Aquela mu-
lhe que é séia, que não o braço a toce, eles reeita mais. tê outras as-
sim que são mais soltas (…) já não são muito reeitaas,” (jovem muher,  anos).
O reeito seria então uma responsabilidade da muher, o que aparece em outros
trechos dessa entrevista, por exemplo, quando diz que a mulhe te que se cuida.
Uma armação que encontra eco nos depoimentos masculinos.
O trabaho de Ariha e Calazans () indica que as variações nas práticas
sexuais acontecem sobretudo entre as muheres, no sentido de uma maior exi-
bilização e tolerância, porque os rapazes sempre dispuseram de um conjunto de
práticas sexuais que foram associadas à liberdade e que ainda se mantém com
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
poucas mudanças (p.). As autoras constatam que “maior exibilidade
diante da virgindade e da possibilidade de car’, indicando percursos de uma
sociedade mais permeável à aceitação de práticas sexuais mais inovadoras, que só
puderam nascer em um contexto de transformação dos valores da sociedade em
relação à sexualidade” (: ). Nos assentamentos, também vericamos que o
contexto juvenil apresenta ea caraerística de exibilidae, ainda que persistam
assimetrias de nero onde se tramam valores novos e vehos, conservadores
e transformadores.
F
Conforme Heiborn, as representações, valores e comportamentos que modelam
a construção de gênero vão se consolidando no decorer da adolescência. Duas
agências são centrais na transmissão desses valores: a família e o grupo de pares
(et al, : ). As relações que se eabelecem na família e no grupo de pares se
entrelaçam na construção da sexualidade juvenil.
Nos assentamentos pesquisados é perceptível a inuência das famílias como
agentes de socialização para a sexualidade, principalmente no que tange ao con-
trole sobre a sexualidade feminina. No entanto, ao contrário do que foi vericado
no Gravad, pesquisa nacional com jovens de centros urbanos, que “o controle
social provém, sobretudo, dos homens: pais e irmãos mais vehos” (H
et al, : ), em nossa pesquisa esse controle parece ser uma atribuição das
muheres mais vehas. Nas famílias, ainda que os pais sejam citados como os
responsáveis por permitir ou não que suas has saiam sem a companhia da fa-
mília, parece caber à mãe o cuidado com a vida sexual das has. Na comunidade,
também são as muheres mais vehas que as jovens mencionam ao relatarem o
controle sobre seu comportamento.
Mas se a família aparece como agente de controle e vigilância (e muitas jo-
vens reclamam por isso), também surge nos depoimentos como agente de proteção,
principalmente associado à má-faa. Alumas informantes contaram com certo
oruho que só saem acompanhadas dos pais ou irmãos, o que as diferiria das mal-
falaas, denidas por uma informante como, meninas que os pais não, como é que eu
poso dize, não incentia para o be, que eles deixa saia hora que que, ai onde que.
A importância do grupo de pares e família é ressaltada pela literatura
(A et al, ; L, ; dentre outros). A queão das
mal-falaas revela o quanto eão imbricadas a família e a rede de sociabilida-
 Pesquisa “Gravidez na adolescência: estudo multicêntrico sobre jovens, sexualidade e repro-
dução no Brasil.

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de na vida sexual e nas conceões acerca de nero e sexualidade dos jovens
pesquisados.
Também é no grupo de pares, e nos xingamentos entre eles, que se revelam
concepções acerca de gênero e sexualidade. Os xingamentos mencionados pelos
informantes foram: agabunda, galinha, puta e gostosa, para ofender as muheres,
e bica, eao e pau-mole, para ofender os homens. A homossexualidade é a base
de construção das ofensas masculinas, apesar de, nas entrevistas, jovens homens
e muheres assumirem um discurso contrário à discriminação, ressaltando que
caa um faz o que que.” Apenas uma informante explicita rejeição ao homoero-
tismo e todos armaram que não homossexualidade nos assentamentos isto
seria “coisa da cidae.
Enquanto locais de socialização para a sexualidade, nos relatos coletados entre
jovens que participam do processo de escolarização, o principal espaço para a
iniciação afetivo-sexual é a escola e a rede de vizinhança. Tanto o primeiro beijo
quanto o primeiro namoro acontecem na escola e com colegas. A escola é citada
pelos informantes como o espaço de ca, particularmente nos intervalos e nas
aulas práticas. De modo geral, conforme aumenta a idade, ee espaço se desloca
para feas e bailes. Cabe lembrar que os jovens, em geral, não associam relação
sexual com namoro, portanto o espaço de ca também é o espaço de sociabili-
dade para transar, principalmente os bailes.
Seundo Monteiro, é possível sugerir que o baile, como espaço de convi-
ncia e sociabilidade caraerizado pela ausência da vigilância familiar e da
comunidade, pela exposição de coreograas e eéticas corporais e pela grande
concentração de jovens – favorece o relacionamento entre os pares e a iniciação
sexual” (: ). Uma distinção importante se eabelece entre bailes da cidae
e bailes do asentaento e refere-se exatamente à vigilância da família e comu-
nidade. Considerando que a vigilância é maior sobre as jovens muheres, é no
comportamento delas que se evidencia mais fortemente ea distinção: seundo
um informante, quando acompanhadas dos pais, elas se comportam maise, se
os pais não eão, cam mais à vontade. Sem dúvida, a vigilância é maior nos
bailes dos assentamentos onde participa toda a comunidade e provavelmente
por isso é que as jovens muheres tenham maior possibilidade de freqüentá-los.
Os jovens relatam, ainda, uma rotatividade entre as parcerias da mesma rede
de sociabilidade. Normalmente, a gente vai fazendo um repasse né. Dca com
uma hoje, outra amanhã. É dicil car com a mesma pessoa.” Outro informante
diz que é comum tanto uis quanto uias care com uma pessoa que outros
amigos já tenham cao e que é dicil da biga. Isso pode ser explicado porque,
conforme dissemos anteriormente, as redes de sociabilidade costumam compor-
se de um mesmo grupo de jovens, mesmo em contextos diferentes (escola, família
e comunidade).
N E A D E S P E C I A L
S
No desenvolvimento dea investigação abordamos a saúde sexual e reprodutiva
tendo presente a denição apresentada no relatório da Conferência Internacional
sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada em , no Cairo:
(…) um eado de completo bem-ear sico, mental e social em todas as matérias con-
cernentes ao sistema reprodutivo, suas funções e processos, e não a simples ausência de
doença ou enfermidade. A saúde reprodutiva implica, por conseuinte, que a pessoa possa
ter uma vida sexual seura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade
de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo. (…) Isso inclui iualmente a saúde
sexual, cuja nalidade é a mehoria da qualidade de vida e das relações pessoais, e não
o mero aconsehamento e assistência relativos à reprodução e às doenças sexualmente
transmissíveis. (CIPD, : , apud B; R, ).
Enfocamos na pesquisa os temas: menstruação, atendimento dico, anti-
concepção, gravidez, aborto e DST’s/AIDS. Contudo, ainda que sejam itens que
articulam sexualidade e saúde sexual e reprodutiva, faz-se necessário o cuidado
em indicar que o dimensões distintas e, principalmente, que a sexualidade não
pode ser reduzida a uma dimensão da vida reprodutiva.
Os dados da pesquisa indicam que a menstruação é parte do universo fe-
minino, privado e, em geral, tema de conversas restritas às muheres do núcleo
familiar. o atendimento dico aparece vinculado à condição de incapacidade
para o trabaho e o relacionado à saúde sexual e reprodutiva. Lechat ()
sugere que o corpo, como instrumento de produção para os camponeses, assim
como para outros trabahadores braçais, torna a queão da saúde central para
eas populações, mas evidencia uma associação entre saúde e capacidade para o
trabaho. No entanto, chamou-nos a atenção as várias referências dos assentados
aos prolemas de bexiga,sempre se referindo à saúde de muheres, que poderiam
ear associados a uma ‘maneira autorizada’ de falar em queões ginecológicas.
No âmbito da prevenção, a camisinha foi citada por todos os informantes e,
apesar de mencionarem a justicativa da doença, o fator mais enfatizado para
sua utilização foi o medo de uma gravidez indesejada. Quanto às DST’s, foram
citadas pelos jovens somente HIV/AIDS, ora como sinônimos, ora como doenças
distintas, e sempre como uma coisa da cidade.Esse tema revelou-se um dos mais
diceis nas entrevistas, com respostas mais monossilábicas e maior constrangi-
mento dos informantes.
O medo da gravidez indesejada foi uma constante nos depoimentos, mas
pareceu-nos ear mais associado ao medo de uma gravidez fora do contexto do
casamento do que pela condição etária/juvenil. Seundo Col (), no setor

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
rural latino-americano, a gravidez acontece com freqüência antes dos  anos,
sendo um evento considerado “normal” e não prolematizado. Numa perectiva
de futuro, todos os entrevistados declaram a pretensão de ter hos, porém mais
como conseqüência ‘natural’ do matrimônio do que como desejo.
Apesar do medo da gravidez, o uso de contraceptivos não é constante. Dos mé-
todos contraceptivos, a camisinha masculina foi a mais citada, sendo pela maioria
o único método conhecido. Geralmente são os homens que adquirem camisinhas
em farmácias ou no posto de saúde, formando-se entre eles uma eécie de rede
de distribuição. Porém, sua utilização o é reular: Quando tem a gente usa,
quando não tem não usa.” Lembramos à leitora que a maioria dos locais citados
onde aconteceriam as relações sexuais sugere imprevisibilidade e provavelmente
inui na (não)utilização do preservativo.
Os dados coletados no estudo revelaram (des)informações que podem com-
prometer o exercício de uma vida sexual seura e satisfatória. Mas, assim como o
acesso à saúde sexual e reprodutiva não se esgota na disponibilização de informa-
ções, a sexualidade tem contornos que não se esgotam nos dados que apresenta-
mos – ea pesquisa inauura nossa trajetória de investigação sobre a temática.
A
Concluída a pesquisa, cabe partihar os frutos da safra – coheita farta e repleta
de sementes que convidam a novas etapas de plantio. Dos frutos,elegemos dois
para deacar neas considerações nais, que sintetizam os resultados da inves-
tigação e se traduzem no título do artigo: Te jove no capo! Tejove home,
te jove mulhe.
Primeiramente, dizer que são jovens implica valorizar o lugar social da ju-
ventude do campo, com suas eecicidades. Contrariamente à idéia de que só
ream no campo os mais vehos, encontramos na região dos assentamentos
estudados uma parcela signicativa de jovens. São jovens muheres e homens,
que constroem distintas trajetórias e formas de pensar e vivenciar sua condão
juvenil e sua sexualidade.
Ser jovem, no contexto estudado, refere-se a modos de pensar e agir que situ-
am os sujeitos numa fase da vida em que não se denem mais como crianças nem
como adultos, concorendo nea denição fatores como o ingresso no universo
das relações afetivo-sexuais e a posição que eabelecem na equação dependência-
proteção.Nela os jovens poderiam ser denidos pela condição de parcialidade:
proteção parcial e dependência parcial, e ainda pela uidez e não linearidade
nees processos de independência.
Vericamos que o contexto rural atribui eecicidades, como a relação com
o trabaho, iniciado na infância, e com a família, em função da própria forma
N E A D E S P E C I A L

de organização campesina. O cotidiano juvenil é marcado pela escola, família e
trabaho, sendo identicados como principais contextos de interação cotidiana
a escola, a família e a comunidade. Importa salientar o quão imbricados são es-
tes contextos os colegas da escola também são irmãos, amigos, namorados e
vizinhos; o trabaho, desenvolvido com apoio vicinal, implica no mais das vezes
um mesmo grupo que no dia seuinte irá para a escola e no outro para o jogo de
futebol; os pais participam com os jovens em atividades na lavoura, depois na
escola, depois no baile; a própria escola é um espaço privilegiado de lazer, mas
também de trabaho, pois é uma escola agrícola. E, nalmente, todos esses espaços
são também de socialização para a vida afetivo-sexual.
Ao distinuirmos jovens homens e jovens muheres, eamos enfocando a
dimensão de gênero, que se traduz em diferenças, mas também em desiualda-
des. Como vimos, jovens homens m mais acesso a atividades de lazer e maior
autonomia; diferenciações na distribuição e valorização do trabaho, o com-
portamento sexual das muheres é alvo de uma maior controle e as trajetórias de
iniciação sexual se dão por lógicas distintas conforme o gênero.
Observamos que, na vivência de outros aectos do cotidiano, a sexualidade
pode ser caraerizada pela heterogeneidade e coexistência de valores contradi-
tórios, havendo uma tensão entre o novo e o veho, o moderno e o tradicional, o
conservador e o transformador. Os dados indicam ainda a falta de acesso à infor-
mação e aos contraceptivos que trazem implicações na escoha e no planejamento
de sua vida sexual e reprodutiva. Entendendo a saúde sexual e reprodutiva como
um direito, e a noção de direito vinculada à possibilidade e poder de escoha dos
indivíduos, consideramos que as assimetrias de nero e a carência de políticas
púlicas adequadas para atender aos jovens do campo inviabilizam a condição
de direito à saúde sexual e reprodutiva.
A escola, por ser um importante espaço de sociabilidade e socialização juvenil
e um dos principais contextos de interação cotidiana, conura-se um espaço
estratégico para estimular discussões sobre sexualidade, DST/AIDS, assim como
sobre eqüidade de gênero. Da mesma forma, acreditamos na possibilidade do
Movimento, ao ampliar o valor dessas temáticas em suas discussões, potencializar
transformações rumo a relações de gênero iualitárias, contribuindo inclusive na
elaboração e difusão de políticas púlicas para o campo.
Das “sementes,” muitas foram as queões que emergiram nea pesquisa e as
inquietações fazem sobressair a necessidade de ampliarmos os estudos sobre o
campesinato, a condição juvenil e a sexualidade dos jovens do campo; e de produ-
zirmos dados que nos permitam expandir a análise sobre ees temas atentando
que Juventude e Sexualidade são construções sociais que podem ser analisadas
se associadas ao contexto no qual se inserem os sujeitos, bem como às suas per-
cepções de gênero.

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Categoria
Apoio à Pesquisa
Doutorado
P      M         A   
Além das secas e das chuvas:
Os usos da nomeação
mulher trabalhadora rural
no Sertão de Pernambuco
RO S I N E I D E D E LO U R D E S M E I R A C O R D E I RO
I
C     segmentos muito pobres da população, as mu-
lheres na área rural desenvolvem atividades voltadas para o sustento próprio ou
da família. Entretanto, o uso da nomeação mulher trabalhadora rural é bastante
recente e, no Brasil, está diretamente ligado à ão política das mulheres que
vivem e/ou trabalham na área rural. A partir de , nos sítios e vilas do Sertão
Central de Pernambuco, as mulheres iniciaram um lento e laborioso processo de
reflexão sobre as suas vidas e o trabalho em casa e no roçado. Elas foram conju-
gando os interesses, afinando os discursos e criando conexões, trocas e nculos
entre elas próprias e com outros atores sociais.
No Movimento de Muheres Trabahadoras Rurais do Sertão Central
(MMTR) participam agricultoras, artesãs, parteiras, professoras, agentes de
saúde e funcionárias de sindicato, entretanto, elas se autodenem como mulheres
trabalhaoras rurais, independentemente da atividade ocupacional, da relação de
propriedade com a tera e das queões de etnia/raça e idade.
Elas aprenderam a recusar classicações que as identicam como ‘doméstica
ou do lar’, lutam para ter acesso aos direitos previdenciários e registram na do-
cumentação, que são trabahadoras rurais. Além disso, transgridem os espaços que
 Que tratarei como MMTR – Sertão Central, MMTR ou Movimento.
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hes são socialmente delimitados e assumem novas posturas e interesses diante das
suas vidas e do mundo a sua volta.
Ao assumir novos posicionamentos as muheres lançam mão de estratégias,
dentre as quais se deacam os diferentes usos da nomeação mulhe trabalhaora
rural como meio de obter direitos e empoderamento.
O arumento que norteia ee estudo é o de que ser mulhe trabalhao-
ra rural não é uma essência gida e imutável ou tampouco algo intrínseco às
muheres que vivem e trabaham na área rural. Ser mulhe trabalhaora rural
é uma posão assumida a partir do lugar no qual a pessoa se situa. Contudo,
tanto a posição quanto o lugar são produtos sociais. A ênfase recai nos con-
textos interacionais e discursivos nos quais as muheres se posicionam como
trabahadoras rurais.
De forma ampla, os usos da nomeação mulhe trabalhaora rural parecem ear
calcados, sobretudo, em um novo ideário, cujo ponto de partida é o direito a
ter direitos, que vai além do acesso formal a direitos sociais, políticos e civis e
inclui aectos como a auto-estima, os aprendizados pessoais e políticos, a capa-
cidade de realização e a aposta na ação coletiva como estratégia de reinvenção da
vida e das relações sociais. Isso envolve a construção de uma nova forma de socia-
bilidade e de convivência e um desenho mais iualitário das relações sociais.
Uma das queões sobre as quais as feministas m se debruçado diz reeito à
suposição de uma identidade comum universal, entre as muheres, que atravessa
diferentes culturas. No campo teórico e político, ao prolematizar a categoria mu-
her (ou muheres), as feministas m enfrentado o debate contemporâneo sobre
identidade (e sujeito) de diferentes maneiras, e variadas também são as posições
teóricas e políticas. Alumas localizam que esse debate se tornou mais visível e
nebuloso a partir das inspirações pós-estruturalistas ou pós-modernas.
Dentre as autoras que têm contribuído para essa discussão deaco os traba-
hos de Donna Haraway (, ), Judith Butler (, ), Liz Bondi ()
e, no Brasil, Cláudia Costa (). Estas feministas apresentam, de diferentes
formas, críticas contundentes ao uso da categoria identidade (ou muheres) para
uma ação política.
No Brasil, ressalto a contribuição de Cláudia Costa, que informada pelo
debate contemporâneo vem produzindo reexões sobre sujeito, feminismo e
identidade. Dentre os textos da autora me apoiarei aqui no artigo O sujeito no
feinismo: revisitando os debates (), no qual ela resgata reexões feitas em
estudos anteriores.
Costa toma como inspiração para as suas reexões o que ela chama de uma
literatura feminista produzida por sujeitos situados nas várias margens das nar-
 Cf. Evelina Dagnino, .
N E A D E S P E C I A L

rativas ocidentais dominantes. Baseada nessa literatura, a autora oferece um
panorama do debate atual sobre identidade e sujeito e as implicações dessas re-
exões no feminismo.
A autora advoga o uso da noção muher, como categoria heterogênea cons-
truída historicamente por diferentes discursos e práticas e que, dependendo do
contexto, é usada para articular politicamente as muheres. Entretanto, reconhece
que a referida categoria é atravessada por diferentes temporalidades e densidades
e que o seu signicado tem que ser entendido à luz de outras interseções como
classe, raça, etnia, sexualidade e nacionalidade.
Baseando-se em Alco, Costa sugere que um dos caminhos para o feminismo
seria denir “muher como posicionalidade. Para ela,
posição se refere a uma identidade politicamente assumida, que eá invariavelmente
ligada à localização da pessoa do sujeito (seja ela social, cultural, geográca, econômica,
sexual e assim por diante) e a partir da qual interpretamos o mundo e na qual nos fun-
damentamos. (C, , p. ).
Ainda referindo-se a Alco, Costa reconhece que o conceito de muher como
posicionalidade é um termo relacional e possibilita que as diferentes posições ocu-
padas pelas muheres possam ser usadas como um lugar onde eas se engajam com
a construção e não com a descoberta de signicados. O lugar é visto como categoria
política e analítica, marcado por tensões, conitos e diferenças; assim, os posiciona-
mentos são múltiplos e em aluns casos contraditórios. Para Costa, o lugar passa a
ser efeito das inter-relações entre o local e os outros locais que vão além dele (,
p. ). Quando discute o lugar da enunciação a autora eá considerando tanto as
dimensões geopolíticas quanto as semióticas, as somáticas e as psíquicas.
Na minha compreensão, a discussão sobre as categorias identitárias provoca e
areja o feminismo. A própria categoria mulhe torna-se, no interior do movimen-
to feminista, alvo de reexão teórica e de disputa política. Isso implica também
em superar o debate sobre essencialismo ersus antiessencialismo e atentar para
diferentes posições de pessoas que eão disponíveis nos discursos, como também
para aquelas posições que são invocadas, negociadas, rejeitadas ou recriadas.
Se o referencial feminista me permitiu chegar até aqui, reconheço que as
autoras pouco abordam os processos discursivos e interacionais nos quais essas
 A autora cita como exemplo os relatos de vida, os depoimentos e autobiografias de diferen-
tes mulheres que o conta dos múltiplos e contraditórios posicionamentos nas estruturas
de opressão. Costa destaca como o discurso da fronteira tem sido positiva e criativamente
utilizado por feministas latinas que vivem nos Estados Unidos.
 A, Linda. Cultural feminism versus poststructuralismo: the identiity crisis in feminist
theory. Signs, v. , n. , , p. .

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posições emergem ou têm visibilidade. A seuir apontarei como essas discussões
são enfocadas na psicologia social discursiva, e para isto vou utilizar as reexões
de Rom Haré e seus colaboradores ().
Se Haraway aponta que ‘ser’ é contingente e emlemático e que não eamos
imediatamente presentes para nós mesmos, Haré e Davies () abordam a
instabilidade do ser’ no âmbito das práticas discursivas. Para eles, quem somos
é sempre uma perunta aberta, com uma resposta instável que depende das posi-
ções disponíveis nas práticas discursivas nossas e dos outros, bem como, no âmbito
dessas práticas, do sentido que damos às nossas histórias e às dos outros.
O posicionamento é entendido como um fenômeno da ordem da conversa-
ção; somos posicionados e nos posicionamos no uxo das práticas discursivas.
É um processo dinâmico e interativo. Nas palavras de Haré e Davies (, p. ),
o posicionamento é um processo discursivo, por meio do qual os selves são situa-
dos nas conversações como participantes observeis e subjetivamente coerentes
em linhas de história conjuntamente produzidas.O posicionamento pode ser
interativo: o que uma pessoa diz posiciona a outra, e pode haver posicionamento
reexivo, no qual as pessoas se (auto)posicionam.
Além dos elementos descritos acima, Haré e Davies situam histórica e cul-
turalmente a pessoa em uma conversação. Parece que não há espaço, na visão dos
autores, para uma compreensão da pessoa numa conversação destitda das suas
tramas históricas e culturais. O (a) participante se localiza em uma conversão de
acordo com as narativas com as quais já se envolveu e traz para ea as suas histó-
rias e os aprendizados de aluém que eeve em múltiplas posições e engajou-se
em diferentes formas de discursos. Portanto, numa mesma conversação pode-
mos assumir várias posições. Dada a diversidade de narativas com as quais nos
envolvemos no curso das nossas trajetórias pessoais e das interações cotidianas,
podemos assumir posições múltiplas e contraditórias, negociar uma nova posição
ou rejeitar aluma (ou várias).
Para concluir, gostaria de enfatizar três aectos. Primeiro, a nomeação mulhe
trabalhaora rural se insere numa densa trama ou, no dizer de Ian Hacking (),
numa matriz que é constituída por pessoas, objetos, instituições, nomeações e
práticas sociais.
Ian Hacking lembra que as idéias não existem no vácuo, nem tampouco são
frutos de processos mentais. Elas fazem parte de processos sociais complexos, a
que ele se refere como matriz. É preciso que exista um conjunto de elementos
e práticas sociais para que as idéias possam existir. Ao tomar como exemplo as
muheres refugiadas no Canadá, Hacking se refere à matriz como sendo
[…] un complejo de instituciones, defensores, artículos de peióico, juistas, decisiones judiaciales,
aas de inigración. Po no mencionala infraestructura mateial, baeras fronteizas, pasaportes,
N E A D E S P E C I A L

unifores, mostraores de aeropuertos, centros de detención, juzgaos, capos de acaciones para
niños refugiaos. ((H, , p. ).
O autor deaca que o que é construído em primeira instância não é a pessoa
individual, mas a classicação como um tipo de pessoa eecíca. A matriz pode
afetar a muher individualmente. Sua existência é moldada pela construção da
matriz e ela é construída socialmente como certa eécie de pessoa.
As instituições, os lugares, os prossionais, os procedimentos burocráticos,
os documentos e até o vestuário, ou seja, toda uma materialidade que é produ-
zida e ao mesmo tempo produz a mulhe como trabalhaora rural. O processo de
constituição da matriz é fruto de negociações complexas e as fronteiras são muveis,
móveis e contingentes. No caso das trabahadoras rurais, elas são participantes
ativas da construção da matriz junto com outras forças sociais. Não de um
lado as muheres que se posicionam como trabahadoras rurais e de outro a matriz,
mas sim complexas redes que envolvem objetos, artefatos, pessoas, nomeações em
processos de co-produção.
Dea maneira, ainda que de forma breve, é possível identicar na formação
da matriz mulhe trabalhaora rural, nos moldes de Hacking:
osurgimento de reees sobre o trabalho feinino na agicultura failia aliado às lutas
femininas contra a desiualdae de gênero e pela ampliação dos direitos sociais para
as muheres. No Brasil eas lutas alcançaram maior visibilidade a partir do nal
dos anos  e se constituem, no dizer de Elizabete Lobo (, p. ), a partir
de três corentes: as práticas das muheres nos movimentos, os discursos sobre
dignidade elaborados nos movimentos populares e os discursos feministas;
a ciação de espaços, de ínculos e de articulações sociais que permitiram a circulação
de conversas, reexões e ações sobre a vida das muheres que vivem e trabaham
na área rural. Aluns espaços e vínculos foram recriados e alimentados a partir de
instituições já existentes, como o movimento sindical rural, as agências de coope-
ração internacional e as ONGs feministas;
a constituição das muheres como mulhetrabalhaora rural como um certo tipo de
pesoa que trabaha na agricultura, reside na área rural e vive em condições de vida
muito precárias. Por ser assim situada deve congregar um conjunto de atributos,
habilidades, inscrições corporais e documentos que expressem para os (as) outros(as)
quem ela é;
a proução de textos, imagens, poesias,sicas e corespondência que permitiram a
propagação em diferentes lugares e espaços sociais da nomeação mulhe traba-
lhaora rural para além das fronteiras locais e regionais.
O seundo aecto que é importante enfatizar diz reeito às práticas discur-
sivas como prática social e como linuagem em ação. O meu interesse é direcio-

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nado para o uso da nomeação mulhe trabalhaora rural e contextos discursivos
eecícos. Considero, no dizer de Bakhtin (), que a referida nomeação se
insere numa determinada linuagem social, no caso, uma linuagem de direitos
e cidadania que é calcada pelas lutas dos movimentos sociais. Entretanto, há que
levar em conta as situações eecícas de comunicação, ou seja, contextos típicos
de fala para quem o enunciado é endereçado.
Finalmente, ao considerar o uso da nomeação mulhe trabalhaora rural a
minha atenção será para as posições de pessoas que são invocadas no curso das
interações discursivas. Dessa forma, longe de enfocar a ‘identidade da muher
trabahadora rural o que importa aqui é compreender os posicionamentos das
muheres como mulhe trabalhaora rural.
O
Na atualidade, o Sertão se refere a uma vasta região geográca no Nordee, com
um certo clima (o semi-árido), uma vegetação (a caatinga) e ocorência freqüente
de um fenômeno ambiental (as secas). Comumente o termo é também utilizado
para falar de um lugar marcado pelo atraso, pelo conservadorismo e pelo subdesenvol-
vimento. Dessa rego se conhece sobretudo os baixos indicadores sociais (fome, analfa-
betismo, mortalidade infantil, doenças endêmicas e baixa expectativa de vida).
Em Pernambuco, o Sertão coresponde a , do teritório eadual, divi-
dido em duas mesoregiões: São Francisco Pernambucano, com  municípios e
Sertão Pernambucano, com municípios. Em  a população da região era
de .. habitantes, dos quais , viviam na zona rural.
Vale salientar que o Sertão é uma região com caraerísticas heterogêneas e
profundas desiualdades sociais. Além disso, a ausência de uma política de de-
senvolvimento sustentável para o semi-árido, que tenha como eixo a luta contra a
exclusão aliada à criação de alternativas econômicas locais, condena a população
pobre que vive da agricultura de subsistência a precárias condições de vida, que
se audizam nos períodos de seca.
Porém, há um Sertão em Pernambuco que se tornou conhecido como espaço
de lutas e organização das muheres rurais. Falo do Sertão Central. Bem mais do
que ao recorte espacial e às caraerísticas sociodemográcas, rero-me a essa
região como um lugar (ou tera da gente’) construído pelas muheres a partir das
necessidades sentidas e do desejo de mudar a vida. Para isso, tomo como inspi-
ração as reexões de Peter Spink (, p. ), para quem o lugar é tomado como
uma noção de coletividade possível, num espaço e tempo enraizado sicamente
enquanto lugar onde se concretizam as lutas a partir do mundo vivido.Dessa
forma, o Sertão Central é discursivamente construído como lugar a partir da ação
das muheres e das redes de relações tecidas.
N E A D E S P E C I A L

O Sertão Central abrange sítios, comunidades e cidades pertencentes aos
municípios de Flores, Santa Cruz da Baixa Verde, Sera Tahada, Triunfo, Cedro,
Serita, Mirandiba, São José do Belmonte e Salueiro.
A população dessa área é de . habitantes, sendo .na zona ur-
bana e . na zona rural. Sera Tahada e Salueiro concentram maior número
de pessoas (. e ., reectivamente). É nesses municípios que a maioria da
população reside na área urbana. Nos demais, com exceção de Cedro, a maior
parte da população reside na área rural. Cedro e Santa Cruz da Baixa Verde regis-
tram menor número de habitantes (. e .). Entretanto, esses municípios
e Triunfo apresentam a maior densidade ocupacional (,; , e , hab./km
,
reectivamente). Por conta disso, em Triunfo e Santa Cruz da Baixa Verde há o
predomínio de minifúndios; quem possui  hectares de tera é considerado um
grande proprietário. Vale considerar que esses municípios se diferenciam dos de-
mais em termos ambientais por se situarem em um brejo de altitude, o que propicia
clima e solo diferenciados.
O estudo foi desenvolvido de  a  como parte da pesquisa de tese de
doutorado. Além das observações etnográcas, foram realizadas  entrevistas
com agricultoras dos municípios de Triunfo e Santa Cruz da Baixa Verde e aná-
lise de documentos do Movimento de Muheres Trabahadoras Rurais do Sertão
Central de Pernambuco (MMTR).
As entrevistadas se situam na faixa etária entre  e  anos e na sua maioria
são afro- descendentes. Quanto ao eado civil, cinco solteiras, duas separadas
e sete casadas. No que se refere ao número de hos(as), a maioria tem de um
a três, entretanto, encontrei uma muher com e outra com  hos(as). Elas
trabaham na agricultura em regime de produção familiar. Plantam principalmente
feijão, miho e mandioca. É uma agricultura voltada para o consumo familiar,
com pouquíssimo acesso a ganho monetário e excessiva carga de trabaho em
condições precárias. Elas relatam que começaram a trabahar, não diferentemente
dos homens, ainda crianças. Muitas trabaham todos os dias da semana, sendo
extensa a carga horária fora e dentro de casa. A falta de políticas e serviços sociais
 Não poderia deixar de mencionar que a Federação dos Trabalhadores da Agricultura de
Pernambuco (Fetape) trabalha com uma divisão territorial com base na articulação político-
sindical. Pernambuco foi dividido em dez pólos sindicais, dos quais cinco ficam no Sertão:
Pólo do Araripe, Pólo do São Francisco, Pólo Médio-São Francisco, Pólo do Vale do Pajeú e
Pólo Sertão Central. Este último abrange  municípios: Flores, Santa Cruz da Baixa Verde,
Serra Talhada, Triunfo, Cedro, Serrita, Mirandiba, São José do Belmonte, Calumbi, Terra Nova,
Betânia, Verdejante e Salgueiro. As mulheres partiram dessa territorialização político-sindical
para circunscrever o Sertão Central.
 Segundo a divisão territorial proposta pelo IBGE esses municípios pertencem à mesorregião
Sertão de Pernambuco e ficam localizados nas microrregiões de Salgueiro e Pajeú.
 Dados do IBGE – Censo .

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no campo (energia elétrica, saneamento, saúde) afeta o grupo familiar como um
todo; porém, em face da desiualdade de gênero, acareta para as muheres uma
vida mais extenuante e penosa.
Na análise dos documentos priorizei dois aectos: as discussões das muheres
sobre a criação de espaços e redes de relações para além do Sertão e as tensões, os
ganhos e as diculdades do uso da nomeação no cotidiano das muheres. Dentre
os documentos analisados deaco os relatórios das reuniões de coordenação e o
relatório do XI Encontro de Trabahadoras Rurais, realizado em novembro de
, comemorativo aos  anos do Movimento. Nas entrevistas foco mais dire-
tamente o esforço das muheres na aquisição de documentos civis e prossionais e
na inclusão da prossão de trabahadora rural nesses documentos. Ter documentos
em que conste a prossão de trabahadora rural é um dos requisitos legais para
ter acesso a direitos, eecialmente à Previdência Social.
S :
,
Ao focar os usos da nomeação mulhe trabalhaora rural considero que as pessoas
não repetem ou reproduzem simplesmente os termos, as noções e as categorias.
No curso das interações sociais, elas ressignicam, fazem novas combinações, e re-
alizam boas misturas.Dea forma, é necessário considerar os momentos ativos
da linuagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade. É necessário
earmos atentos(as) para as rupturas, a variabilidade e a polissemia.
Ao se posicionarem como mulheres trabalhaoras rurais, as muheres criaram
espaços de conversa, troca e foram conjugando interesses, anando os discursos
e tecendo relações entre elas próprias e com outros atores sociais. Essas relações
ocorem em diferentes níveis e envolvem, como deacam Sônia Alvarez et al.
(), vínculos interpessoais, interorganizacionais e político-culturais. São ema-
ranhados de nculos que se propagam entre pessoas e organizações, desenham
novos lugares e alimentam simultaneamente ações locais e globais.
Todavia, o que evidencio são práticas sociais complexas, múltiplas, heterogê-
neas, em alumas ocasiões conitivas, e que envolvem diferentes atores sociais
em alianças contingentes e provisórias. São posicionamentos e vozes cotidianos
presentes em contextos sociais linüisticamente pautados. Estas são histórias de
pessoas em precárias condições de vida, juntam-se, forjam anidades políticas e
lutam para ter acesso a direitos.
Para compreender a constituição e a trajetória do Movimento analisei
relatórios das reuniões de coordenação no período de  a . Os assuntos,
conversas e discussões foram agrupados em seis grandes temas:
N E A D E S P E C I A L

A constituição do Movimento como ato social, que considera as discussões sobre estru-
tura organizativa, sustentação nanceira, metodologia, planejamento e avaliação das
ações, representação política, assessoria e relação com outras organizações;
eu, mulhe trabalhaora rural, que inclui as conversas e reexões que tratam dire-
tamente das queões identitárias;
ciando e fortalecendo ínculos, alianças e conexões entre as mulheres, onde eão pre-
sentes as discussões sobre a organização das trabahadoras rurais em diferentes
níveis, ou seja, do Sertão Central ao contexto internacional, eecialmente América
Latina e Caribe;
geando alternatias para melhora a ida no luga, do qual fazem parte as conversas
sobre as iniciativas das muheres para mehorar as condições de vida nos sítios e
comunidades: ações nas áreas de saúde, seurança alimentar, agricultura familiar
e, mais recentemente, o Projeto de conviência com o Sei-áido;
as queões conjunturais e as poticas púlicas, onde foram agrupadas as discussões
sobre conjuntura e as lutas por direitos sociais e por políticas púlicas. Em parceria
com outros atores sociais as trabahadoras rurais se empenham em lutas pelo for-
talecimento da agricultura familiar, pelo acesso à Previdência Social e por uma po-
lítica de desenvolvimento para o Semi-árido. Também aparecem as reivindicações
e mobilizações por sde, educação e contra a violência que afeta as muheres;
as disputas e arenas políticas, que diz reeito à participação das muheres em
diferentes espaços políticos, notadamente o movimento sindical e o movimento
de muheres. Incluí nesse tema os fóruns, as comissões e os eventos nos quais as
muheres participam representando o Movimento.
Ao analisar os temas, os eventos e as teias de relações, pontuei na história do
Movimento quatro períodos.
I – Você que é mulhe e que trabalha na roça (-)
As primeiras reuniões ocoreram nas casas das pessoas, na igreja católica, na dele-
gacia sindical e nos sindicatos. É possível identicar quatro temas que ocuparam
as preocupações e conversas naqueles tempos: a luta pela inclusão das muheres
nos programas de emergência desenvolvidos em peodos de seca; o trabaho das
muheres na agricultura familiar; a participação das muheres no movimento
sindical rural; e a criação de espaços e vínculos eecícos de muheres.
Naquele momento o Nordee passava por longo período de secas (-).
Com o m de mitigar os efeitos da seca o governo Federal desenvolvia programas
emergenciais nos quais as pessoas recebiam uma remunerão para executar deter-
minados trabahos. Os programas caram conhecidos como Frentes de Emergência.
eram incluídos nas frentes homens maiores de  anos e cada família podia
cadastrar apenas um homem.
a.
b.
c.
d.
e.
f.
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Em  o movimento sindical rural começou a pressionar para que as muheres
tivessem o direito de se cadastrar nas frentes. Com as reuniões de muheres cresceu,
no Sertão Central de Pernambuco, a mobilização para a inclusão feminina. Em
, os sindicatos de trabahadores rurais da região elaboraram o documento
Mulhe excluída do prograa de eergência, que foi encaminhado para o governo do
Estado, Superintenncia do Desenvolvimento do Nordee (Sudene), Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e imprensa.
O documento provocou grande repercussão política e propiciou uma mudan-
ça nos critérios do programa. Entretanto, essa inclusão ocoreu paulatinamente;
em cada lugar lutas eecícas foram travadas. Nos registros das reuniões ocor-
ridas nessa fase observa-se que em todas elas o tema da inclusão das muheres
eava presente. Em uma delas  muheres saíram da reunião e foram para o
Batahão de Engenharia do Exército exigir seu cadastramento.
Seundo Almeida (), quando começaram a inscrever as muheres a pro-
posta era que caberiam a elas a preparação e o cuidado com a alimentação dos
alistados(as). Ou seja, as muheres seriam contratadas para o serviço doméstico,
enquanto os homens se dedicariam à execução das obras. Elas não aceitaram e
novas negociações foram feitas. Elas passaram a executar as obras em frentes de
trabaho compostas e coordenadas por muheres. Para Almeida () isso
facilitou a articulação das muheres e a organização do Movimento; as reuniões
passaram a ser realizadas nas frentes, que agregavam  a  muheres.
Fora a luta pela inclusão das muheres nos programas de emergência, a
discussão sobre o trabaho feminino ocupou uma boa parte das primeiras dis-
cussões do Movimento. Datam desse peodo dois documentos que falam sobre
o tema: o relatório do primeiro encontro de trabahadoras rurais do Sertão
Central () e uma carta para o governador do Estado, na qual as muheres
se posicionam como muher e trabahadora e reivindicam o direito a tera e a
benecios sociais.
No Sertão Central o movimento sindical se transformou no principal espaço
de disputa política e de atuação das muheres. Como as lutas pela inclusão nos
programas de emergência eram mediadas pelos sindicatos, ees foram canali-
zando as demandas das muheres.
Naquele contexto esses eram os únicos espaços de representação política
dos(as) agricultores(as). Terminaram por se transformar em porta de entrada
para as reivindicações das muheres. Por último, não posso deixar de mencionar,
mais uma vez, que como as assessoras já tinham uma atuação com os sindicatos
foi mais fácil estreitar os laços entre as muheres e o movimento sindical.
Em , por ocasião do 
o
Congresso Nacional da Contag, as trabahadoras
rurais do Sertão decidiram apresentar uma tese no congresso sobre a participação
das muheres no movimento sindical rural.
N E A D E S P E C I A L

Como escreve Almeida (), a proposta foi aprovada e serviu de instru-
mento para as muheres se associarem aos sindicatos. Como hierarquicamente
a Contag eá no topo da estrutura sindical, as muheres se sentiram legitimadas
para pressionar os sindicatos e a própria Federação. Em alumas localidades as
muheres desenvolveram atividades econômicas para viabilizar a campanha de
sindicalização. Os convites e encontros passaram a ser feitos em nome dos sindi-
catos e do Movimento. As assemléias dos sindicatos e as reuniões da diretoria
transformaram-se também em espaços de divulgação das idéias do Movimento.
Entretanto, Almeida lembra que para isso foi feito todo um trabalho de foriuinha,
enfrentando tensões e discordâncias nas várias instâncias do movimento sindical.
Esta relação com o movimento sindical vai dando uma conformação bastante
ambíua ao Movimento, com alumas peculiaridades que o diferenciam dos de-
mais movimentos de muheres rurais no país: não é fruto da ação progressista da
Igreja Católica, a exemplo do Movimento de Muheres do Brejo Paraibano ou do Mo-
vimento de Muheres Agricultoras do Oee de Santa Catarina; inseriu-se dentro do
movimento sindical rural, mas não é subordinado a nenhuma instância do mesmo;
adotou o nome do pólo sindical (Sertão Central) e traz nas capas das pulicações
tanto o nome da Fetape, quanto dos sindicatos, entretanto, planeja e avalia suas
atividades de forma autônoma e conta, inclusive, com nanciamentos próprios.
Ora posiciona-se mais próximo ao movimento sindical, ora mais distante.
Para nalizar a abordagem dessa fase, gostaria de deacar que em  as
muheres realizaram o primeiro encontro regional (maio) e o primeiro encontro
eadual (dezembro), com a participação de  trabahadoras representando
as microregiões do Estado. Também estiveram presentes muheres da Paraíba,
do Ceará e da Bahia. Naquela ocasião foi criada uma comissão de trabahadoras
rurais para coordenar as atividades das muheres em Pernambuco.
II – Fortalecendo os os e apliando a oz (-)
Esta fase é de intensa atividade política, na qual o Movimento se rma como ator
social na cena local e na articulação das muheres para além do Sertão Central.
Nesse período, em nível nacional, as muheres conquistam o direito à Previdência
Social, cuja reulamentação é efetivada em .
Se no período anterior as muheres conjugaram interesses na organização dos
primeiros eventos, nee o investimento é na institucionalização do Movimento
como um ator social, com atuação na cena política local e na articulação das
muheres em nível eadual e regional.
É nesse período (-) que as trabahadoras rurais expressam puli-
camente as divergências e os conitos com os homens no movimento sindical.
 Como o Movimento age de forma autônoma, gera algumas vezes, conflitos com as direções
dos sindicatos, com a Fetape. Algumas cartas expressam essas tensões e conflitos.

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As muheres denunciam a exclusão de uma participante do movimento de uma
chapa sindical e posicionam-se contra os encaminhamentos do Fórum da Seca.
É uma fase de intensa atividade e de ampliação do raio de ação. Elas participam
de seminários nacionais promovidos pela Contag, das lutas pelo acesso à Previ-
dência Social e tecem os os da articulação das muheres na América Latina e no
Caribe.
Um dos temas mais recorentes nas reuniões da coordenação nee período
diz reeito ao próprio movimento. Trabahadoras rurais, assessoras e colabo-
radoras se debruçam em torno desse tema, que é tratado sob diferentes formas.
Procedimentos, planos e estratégias são traçados e avaliados incessantemente.
Em todas as reuniões as muheres fazem um levantamento das atividades re-
alizadas nos sítios e comunidades, nos municípios e no Sertão Central. Também
identicam os eventos dos quais elas tenham participado. Após esse levantamento,
é feita uma avaliação abordando as diculdades, os pontos relevantes e os moti-
vos da não realização de alumas atividades. Em seuida, traçam o planejamento
trimestral das ações.
Aos poucos é montada uma estrutura organizacional que inclui grupos de
muheres (sítios e comunidades), coordenação municipal e a coordenação do
Sertão Central. Em consonância com essa forma de organização, são geados
os espaços de reexão e encaminhamento das ações: as reuniões (dos grupos, da
coordenação municipal e do Movimento), os encontros municipais (uma vez por
ano) e do Sertão Central.
Nas reuniões de coordenação do Movimento, além do planejamento e avalia-
ção, são realizados pequenos treinamentos para o uso de ábuns e cartihas. Tam-
m são feitas reexões, em formato de ocinas, sobre temas que dizem reeito às
vidas das muheres. Além desses espaços voltados para o próprio Movimento, as
muheres instituem uma esfera mais ampla de manifeação e expressão na cena
local: as comemorações alusivas ao Dia Internacional da Muher ( de março).
Como adverte Aberto Melucci (), a constituição de um movimento
como ator social é resultado de intercâmbio, de negociações, de decisões e de
conitos nos quais os atores participam. São microprocessos sociais que ocorem
em diferentes níveis e formas no interior do próprio movimento e nas relações
eabelecidas com outros movimentos.
A criação e o fortalecimento de vínculos e relações ocupam um lugar de des-
taque na atuação das muheres do Sertão Central. São eabelecidas diferentes
articulações e trocas entre as muheres e entre distintos atores sociais, que redundam
em multiplicidade de práticas e ações. Alumas articulações são efêmeras, outras
mais contínuas, e há aquelas que são retomadas de tempos em tempos.
 Articulação regional de organizações da sociedade civil.
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Foge aos meus objetivos no momento, exami-las todas; entretanto, quero
pontuar como as participantes do Movimento vão eabelecendo essas relações.
Uma das caraerísticas é que as muheres simultaneamente constroem diferentes
vínculos, cavame mapeiam novos espaços e lugares. Entretanto, isso não ocore
de forma linear, nem tampouco há o cumprimento de etapas predeterminadas.
Em nível eadual e nacional, por exemplo, a articulação é construída no in-
terior do movimento sindical, na criação de secretarias e coordenações nos sin-
dicatos, nas federações e na Confederação. Data dessa fase a realização de três
seminários nacionais de muheres trabahadoras rurais, organizados pela Contag.
No primeiro () é elaborado um documento enviado aos constituintes, reivin-
dicando a inclusão de direitos para as trabahadoras rurais.
Já no âmbito regional, o investimento é na criação de um movimento autô-
nomo de muheres trabahadoras rurais, com atividades, mobilizações, projetos e
nanciamentos próprios. O Movimento de Muheres Trabahadoras Rurais do
Nordee (MMTR-NE) se constitui como uma articulação de muheres partici-
pantes de grupos e movimentos vinculados a ONGs, pastorais da Igreja Católica
e movimento sindical. Esse esforço de construção de uma articulação tão hete-
rogênea aparece nas corespondências sob diversas versões.
Uma outra caraerística é que as muheres aproveitam a participação em
eventos para criar e propagar os nculos entre as trabahadoras rurais. Posso citar
como exemplo o III e o V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe.
Durante a preparação do V Encontro (, em São Bernardo, Argentina), uma
participante do Movimento propõe para a comissão organizadora uma ocina
para trabahadoras rurais intitulada Nuestras idas e nuestras organizaciones. Par-
ticipam da ocina, trabahadoras rurais (oito) e assessoras do Brasil, Argentina,
México, Uruuai, Nicaráua, Honduras, Peru, Bolívia e Chile. Dessa ocina sai a
proposta de realização do
o
Encontro de Trabahadoras Rurais da América La-
tina e do Caribe e a criação de uma rede de intercâmbio entre os países. O Sertão
Central é escohido para fazer a articulação.
Fora os encontros e ações conjuntas, as muheres apostam nos intercâmbios
entre os grupos e os movimentos para fortalecer as relações entre elas. Denomi-
nadas de troca de experiência, essas atividades duram aluns dias e são realizadas
entre os municípios do Sertão Central e/ou fora dele (Acre, São Paulo, Bahia,
Sergipe e Paraíba). Também o Movimento recebe pequenos grupos de muheres
para conhecer ‘mais de perto os trabahos’. As visitantes cam hoedadas nas
casas das trabahadoras rurais, convivem com a população local e participam de
eventos previamente preparados para esse m.
Além disso, as muheres nutrem as relações com a troca de relatórios, fotogra-
as, cartazes e cartihas. O material produzido circula entre os diversos grupos e
serve de referência para novos contatos e articulações.
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III – Buscando novos teas e conexões (-)
Quase não existem registros de reuniões da coordenação nee período. Porém,
ao analisar mais detidamente, é possível elaborar duas suposições: a) uma crise
em nível local, um esvaziamento de ações e um reuxo do Movimento; b) uma
mudança de estratégia, as lideranças e assessorias envidam esforços para fortale-
cer os vínculos regionais e com a América Latina e o Caribe. Uma alternativa é
trabahar com as duas suposições.
Após seis anos de trabaho (), as muheres realizam o
o
Encontro Latino-Ameri-
cano e do Caribe da Muher Trabahadora Rural, em Fortaleza, Ceará, que envolve 
muheres –trabahadoras rurais, assessoras e convidadas —, representantes de várias
organizações e movimentos de  países. Entre outros temas, é discutida a proposta de
criação da Rede Latino-americana e do Caribe das Muheres Trabahadoras Rurais.
Data também desse período a participação de uma assessora do MMTR no
Conseho Nacional de Direitos da Muher. Pela primeira vez, uma integrante
do Movimento é designada para representar as muheres numa instância do
governo Federal.
em nível regional, o Movimento de Muheres Trabahadoras Rurais lança
a campanha Nenhuma trabalhaora rural se documentos. Não ter documentos
deixa de ser um prolema individual e torna-se a porta de entrada para a dis-
cussão sobre o reconhecimento da prossão de trabahadora rural e o acesso a
direitos e à cidadania.
Ao cruzar as informações de relatórios de encontros realizados no período per-
cebo que no Sertão Central as muheres tentam efetivar a participação de outros
segmentos sociais no Movimento: as crianças e os homens. Também introduzem
uma nova ótica no tema da agricultura familiar: a relação com o meio ambiente.
Entretanto, o fato dramático que possivelmente marcou a história do MMTR
nesse período foi o assassinato de Expedita Maria Lima, uma liderança da coorde-
nação do Movimento. Após a morte dela, alumas muheres contaram que Expedita
vinha sendo assediada pelo sogro do seu ho há alum tempo, porém, só con-
denciara isso a alumas muheres e mesmo assim pedira ‘segredo. Por não aceitar
as investidas sexuais ela foi assassinada. O desfecho desse caso seue o mesmo
itinerário das mortes violentas no Sertão. No mesmo dia a pessoa que cometeu o
crime apareceu morta. Depois de um tempo, os dois viúvos casaram-se entre si.
Uma participante, ao falar da morte de Expedita, descreve que todas ca-
ram muito abaladas. Durante mais de seis meses elas não conseuiram se reunir.
 Pairam dúvidas se foi suicídio ou homicídio.
N E A D E S P E C I A L
Quando o zeram, realizaram um pequeno ritual’ e combinaram que esse tipo
de segredo não seria mais uardado.
Participei de uma ocina sobre o tema violência contra a muher quando estive
no Sertão. Era o seundo ano consecutivo que as muheres escohiam esse assunto
para reetir, com o apoio de uma ONG feminista que trabaha nessa área. Pude
perceber que além da conformação das assimetrias de gênero e dos padrões de
masculinidade vigentes no Sertão, calcados na valentia e brabeza dos homens, as
muheres enfrentam muitas diculdades quando se deparam com a violência. De
um lado, há as próprias caraerísticas da área rural: as casas e os sítios são muito
isolados e as distâncias são grandes; de outro, a total ausência de serviços e progra-
mas eecializados. Em todo o Sertão de Pernambuco existe uma delegacia ee-
cializada. Quando sofrem violência, as muheres não têm onde ou como apelar.
IV – Alinhaando os acontecimentos e re-contando as históias (-)
Abrange uma retomada de ações do Movimento em nível local e iniciativas que
levam em conta a preservação e o manejo de recursos hídricos. Nessa fase ga-
nha deaque, em , a preparação e a comemoração dos  anos do MMTR
e a participação de integrantes em eventos de grande importância nacional e
internacional.
Uma das minhas suposições é que no período anterior as muheres investiram
no fortalecimento de laços além do Sertão. No período agora abordado, o foco é o
Sertão Central, porém, uma forte participação das muheres em ações coletivas
promovidas pelo movimento sindical e pelo movimento feminista.
Os relatórios manifeam preocupação com a retomada das ões locais do
Movimento. Em  as muheres elaboram uma agenda de trabaho com visitas
em todo o Sertão Central. Buscam o apoio dos sindicatos e de lideranças nos
municípios para rearticular os grupos de muheres nos sítios e comunidades.
Ao comparar esse período com os anteriores, entretanto, tornam-se visíveis
alumas mudanças na forma de estruturação do Movimento. O planejamento e
avaliação das ações passam a ser realizados uma vez por ano, geralmente nos pri-
meiros meses. Nas demais reuniões as muheres dedicam um dia para a reexão
de um tema e o reante é destinado às queões do Movimento (informes e enca-
minhamentos diversos). Geralmente, os temas das reuniões são desenvolvidos por
meio de ocinas, com a participação de uma convidada de fora do Movimento.
Nas reuniões da coordenação parece que a participação se torna mais exível.
Existe um grupo de referência que eá presente em todas as reuniões, entre-
tanto, sempre muheres que eão participando das reuniões pela primeira
vez. A dinâmica de organização dos grupos também parece ser mais variada. Em
aluns municípios, como Santa Cruz da Baixa Verde, as muheres se reúnem a
cada dois meses na sede local. Em outros, como Sera Tahada e Salueiro, elas

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se encontram nos sítios –são os chamados grupos de base —, e uma vez por ano
há um encontro municipal. Em aluns municípios, como Flores e Sera Tahada,
uma coordenação municipal que se reúne a cada dois meses. Existem ainda
municípios em que um pequeno grupo composto por muheres de vários sítios,
que se reúne reularmente. No grupo de muheres de Conceição das Crioulas,
no município de Salueiro, existe uma peculiaridade: as muheres se posicionam
como muheres negras trabahadoras rurais. Em cada município uma pequena
equipe de muheres (duas a quatro participantes) que tem a responsabilidade de
articular as demais e encaminhar as decisões do Movimento.
Além da organização das muheres no Sertão Central, três outros temas
fazem parte das preocupações das muheres nesse período e aparecem de dife-
rentes formas: a Previdência, a documentação das muheres, o Semi-árido e o
fenômeno da seca.
Se as discussões sobre o Semi-árido e o fenômeno da seca mobilizaram as
primeiras lutas e reivindicações do Movimento, elas são agora reatualizadas.
Além das ões coletivas por políticas púlicas, as muheres têm desenvolvido
iniciativas que levam em conta a preservação e o manejo dos recursos dricos.
Pelo seundo ano consecutivo eão desenvolvendo o Projeto de conviência com
o Sei-Áido, que prevê a aquisição de utensílios para armazenar a áua, como
também a revitalização de riachos e cacimbas. Tentam incorporar novas ações e
reexões que dêem conta das relações intrincadas entre gênero, pobreza, desen-
volvimento e meio ambiente.
Em nível nacional, as muheres eão presentes na Marcha das Margaridas
(agosto de ), que congregou  mil trabahadoras rurais em Brasília, reivindi-
cando empenho do governo Federal no processo de reforma agrária e crédito agrícola
para as trabahadoras rurais. As muheres marcham contra a fome, a pobreza e a
violência sexista.
Também participam, em , das conferências eadual e nacional que redundam
na elaboração da Plataforma Política Feminista. Um outro deaque que muito ale-
gra a todas elas nesse ano é a concessão do Prêmio Cláudia a uma integrante do
Movimento: Vanete Almeida.
Ao longo da análise da trajetória do Movimento ca evidenciado que a no-
meação mulhe trabalhaora rural é imbricada com a ação coletiva das muheres
e com a história do MMTR. Também importa ressaltar que, mesmo desenvol-
vendo outras atividades, quando as muheres se referem ao trabaho feminino na
área rural elas priorizam as discussões sobre o trabaho na agricultura familiar,
mesmo quando ee não é a sua atividade principal.
 Foi realizada em agosto de  uma nova Marcha das Margaridas.
N E A D E S P E C I A L

Vale lembrar que, se nas décadas de  e , o Movimento teve um papel
importante na criação de espaços de articulação, em vel eadual, regional e latino-
americano, com a institucionalização dees atores novas relações foram eabeleci-
das. Atualmente, suas lideranças e assessorias são sujeitos ativos nas relações de par-
ceria e apoio mútuo com as instituições que ajudaram a criar, porém, o Movimento
mantém uma relação de autonomia e independência política e organizacional.
S :
Nas minhas visitas ao Sindicato de Trabahadores Rurais de Santa Cruz da Baixa
Verde encontrava um entra-e-sai’ de muheres e um certo burburinho no ar: eram
muheres encaminhando a documentação para solicitar benecios à Previdência So-
cial, eecialmente salário-maternidade e aposentadoria. Ao escutar as conversas
e as histórias que relatavam, me dei conta dos obstáculos que elas enfrentavam
para ter acesso aos direitos previdenciários. Dentre esses, deaca-se a ausência de
documentos sobre o trabaho na agricultura familiar.
As diculdades para a comprovação da atividade prossional foram a porta de
entrada para que eu pudesse compreender a conuração das relações de nero
no Sertão. Comecei a focar a história de vida das muheres a partir do acesso aos
documentos civis e de propriedade da tera. As muheres se posicionam como
trabahadoras rurais, porém se deparam com a ausência de documentos civis e
de propriedade da tera que as identiquem como tais.
Quando alué lhe perunta, declare sua prosão: trabalhaora rural, laraora ou
agicultura. Este foi um dos lemas de uma campanha nacional realizada pelas tra-
bahadoras rurais em , por ocasião dos censos demográco e agropecuário.
Como referi anteriormente, as lutas das muheres pelo reconhecimento da
proso de trabahadora rural é recente. Apesar de desenvolverem atividades es-
senciais à manutenção da agricultura familiar, quando elas eram categorizadas
prossionalmente eram denidas como dostica ou do la. Os afazeres domésticos,
os cuidados com a família e com a residência eram sobrepostos às suas outras
atividades produtivas. O trabaho na agricultura era visto como um trabaho
de homens. Se fôssemos analisar, como mostra Clara, a certidão de casamento
dos homens e muheres moradores(as) da área rural, chegaríamos à conclusão
de que na agricultura familiar só havia um sexo e era masculino: o homem era
considerado agricultor, a muher, doméstica.
R: Homens e muheres têm a mesma diculdade de comprovar a prossão?
C: Não, o homem tem mais facilidade porque, principalmente o homem casado,
quando ele foi se casar na certidão de casamento colocavam logo agricultor. A muher

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não, principalmente um tempo atrás, colocavam sem peruntar à muher, prossão do-
méstica ou do lar.
R: Por que no seu documento eá a prossão de doméstica?
I: A mulé trabahava na roça iual ao home, mas todas quando ia tirar o docu-
mento, assim, dizia doméstica.
Flora, ao organizar a documentação para encaminhar o processo da aposen-
tadoria, percoreu várias instituições em busca de um documento no qual a sua
prossão constasse como agricultora. Quando elas se referem estritamente à
ocupação prossional é muito mais freqüente o uso do termo agricultora do que
trabahadora rural.
R: A senhora quando foi se aposentar já tinha todos os documentos?
F: Eu sabia, nenhuma trabahadora rural sem documento, né? Aí eu me preveni
com meus documentos. Quando eu fui, eu fui premero no hospital, aí a moça disse que
num dava não, num tinha como, porque tava que eu era doméstica. eu fui numa
maternidade, aí disseram também que num tinha porque eu tava doméstica. Anos atrás
a gente tirava documento, as muhé da roça num dizia que era agricultora não, né? Era
serviço de muhé, ninuém enxergava que muhé trabahava, só dizia que era doméstica
porque a mufazia cumida, ? Trabaha na roça, lava roupa, que home num sabe nem
sequer lavar uma cueca, nem uma meia, e as muhé pra lavá as meia dos home, pra lavá
as cueca, pra laas calça, pra lavá as camisa, pra latudo quanto é roupa de menino,
pra ajeitar menino pra ir pra escola, pra amarar a cabra, pra dá áua as cabra, pra butar
áua em casa, pra trabahar de tudo quanto é serviço de roça e ainda num enxerga que
uma muhé é trabahadora da roça, por mais que ela faça. Doméstica, como é que uma
muhé é doméstica se ela faz tudo quanto é serviço?! O home como só trabaha na roça,
num tem nada a vê com o serviço de casa, acha que ele é o tal, mas a muhé sofre muito
mais, sente mais dor, a força é mais pouca e trabaha muito mais.
Ao enumerar as atividades que desenvolve, Flora mostra como no regime
de agricultura familiar eão imbricadas as diferentes atividades desempenha-
das pelas muheres. Elas se desdobram entre o trabaho realizado dentro de casa
cuidado com as crianças, preparo de alimentos, cuidado e higiene com a casa e
com o vestuário —, na roça e com os animais. De um modo geral, quando falam
do trabaho, de uma forma ou de outra elas chegam à mesma conclusão de Flora:
trabaham muito e mais do que os homens, entretanto, por muitos anos pelo que
elas faziam, não havia o eatuto de trabaho.
Diante da necessidade de ter documentos em que conste a prossão de agricul-
tora, as muheres passam a desenvolver uma série de estratégias. Uma delas é tirar
novos documentos com a prossão de agricultora. Uma outra se refere ao preen-
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
chimento de chas e cadastros em escolas, postos de saúde e hospitais. Elas passam
a exercer uma maior vigilância e controle sobre as chas, cadastros e formulários.
[…] mas eu tinha sempre alumas cha, né. Nas escolas, quando eu ia butar um ho
na escola peruntavam: que prossão é a da senhora? Digo: da roça, sou agricultora.
E cadê seus documentos? Meus documentos num vale nada, o que vale é minha prossão.
Aí sempre butava agricultora. Quando eu ia me receitar que peruntava eu dizia. Trazia
aquele papel de receita e também o papel de quando eu fui pra emergênça. (Flora).
Numa conversa com a agente de saúde de Jatiúcaperunto para ela o que
as muheres falam quando as funcionárias do Posto peruntam sua prossão. Ela
responde: Quando perunto a ocupação, todo mundo fala agora agricultora.
As muheres falam que é para botar agricultora, que como doméstica não aposenta.
Ninuém mais quer botar dostica ou do lar.” (Caderno de Campo, jun. ).
Perunto se as muheres pream atenção quando ela preenche as chas. Ela diz
que sim e que às vezes as muheres conrmam: “Muher, você botou mesmo a pro-
so como agricultora?” Ela conta ainda que diante de tanta solicitação a secretária
de Saúde decidiu: uem não tem renda xa, prossão, é agricultor. uem mora
em Jatiúca que não tem um emprego como telefonista, professora, é tudo agricul-
tor. Elas moram aqui, mas trabaham na roça.(Caderno de Campo, jun. ).
Uma outra estratégia diz reeito à ão dos sindicatos de trabahadores rurais
com os cartórios para uma mudança na identicação prossional das muheres:
Um dia eu vi a menina do cartório, chamarem ela no sindicato reclamando a elas. Ouvi
muitas reclamações do sindicato por causa disso aí. Porque quando uma criança é regis-
trada, no caso se ela for do sítio, tem de ser agricultora, né? Num pode ser, como é que diz,
não pode ser doméstica, né? Aí elas não colocavam, não procuravam a prossão, botava
dostica. Quando a criança crescia, no caso d’eu mesmo, quando crescia que precisava
fazer um auxílio-maternidade, cava: voé doméstica, num pode ter direito.Agora
Arlinda tá exigindo do cartório (Geni).
De forma geral, parece que tem sido mais fácil para as muheres utilizarem os
espaços que socialmente são designados como femininos (escola, postos de saúde
e hospitais) para adquirir documentos que incluam a prossão de trabahadora
rural, do que desencadear mudanças sobre o uso ou a propriedade da tera na
família e na comunidade.
Ao analisar a pesquisa que o MMTR-NE realizou sobre a situação documen-
tal das muheres trabahadoras rurais é possível perceber que poucas possuem
 Jatiúca é um distrito do município de Santa Cruz da Baixa Verde. Residi em Jatiúca por seis
meses para a realização da pesquisa.

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os documentos sobre o uso e a propriedade da tera. Foram pesquisadas .
muheres em  municípios de oito eados do Nordee. Apenas  possuem
contrato de arendamento; , título da tera;  recibo do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra); , loco de produtora.
Parece que a discussão sobre a aquisição de tera por parte das muheres (seja
por meio de herança ou de compra) ainda é um tema a ser enfrentado. Desde a
cada de  as muheres lutam para que o título de propriedade da tera seja
concedido em nome do casal. Com a Constituição de  as muheres conquista-
ram o direito ao título da tera independentemente do eado civil. Entretanto,
até bem pouco tempo, por exemplo, no cadastro do Incra havia espaço para
incluir o nome do homem como proprietário da tera. Só em outubro de , o
governo Federal assinou uma portaria que asseura a obrigatoriedade de titulação
conjunta de teras a assentados(as) da reforma agrária.
Na pesquisa que realizaram sobre os assentamentos de reforma agrária em
âmbito nacional, Maria das Graças Rua e Miriam Abramovay () assinalam
que apesar de não existirem impedimentos legais para as muheres serem reco-
nhecidas formalmente como portadoras do direito ao cadastramento, posse ou
propriedade de parcelas de tera, a maioria dos cadastros, contratos ou posse é
feita em nome dos homens.
Já no que se refere à herança de tera por parte das muheres, no sul do Brasil,
Maria Ignêz Paulilo () arma que apesar das variações e exceções uma
tendência maior dos hos homens herdarem a tera. Se for preciso excluir al-
uém, as muheres são as primeiras a ser escohidas. Além disso, quando a tera
pertence à muher por herança, o marido é considerado responsável. O acesso das
muheres a tera ocore também quando elas casam com homens que possuem
tera. A autora chama a atenção, entretanto, que nas conversas com as muheres
quase sempre isto não é citado.
Deere e León () arumentam que, apesar dos avanços legais, as muheres
na América Latina têm menos probabilidade de ter sua própria tera do que os
homens, e quando têm, suas propriedades são menores. As autoras enfatizam
que mesmo quando a posse é coletiva (no caso das comunidades camponesas e
indígenas) os costumes e as práticas tradicionais discriminam as muheres, de
forma que à maioria delas são negados os direitos efetivos a tera. No entender
 Deere e León () assinalam que o Brasil (ao lado da Colômbia em ) se tornou o pri-
meiro país na América Latina a prever a possibilidade de título da terra em nome do homem
e da mulher (titulação conjunta) nos processos de reforma agrária. Entretanto, como não era
obrigatória, a aplicação ficava a critério dos funcionários do Incra.
 Há poucos trabalhos sobre gênero e transmissão de patrimônio no Brasil. No que se refere
à área rural, Deere e León () acentuam que grande parte dos trabalhos foi realizada no
sul do Brasil.
N E A D E S P E C I A L

das autoras, a posse da tera e de bens em geral por parte da muher mehora o seu
poder de barganha não apenas dentro da família, mas também, potencialmente,
dentro da comunidade e da sociedade mais ampla.
O ,
Nas conversas e reuniões as muheres costumam relatar as mudanças provoca-
das nas suas vidas a partir da participação no Movimento. Elas tomam como
refencia uma noção pouco delimitada de direitos iuais para se referirem a con-
quistas como falar, sair de casa, ser valorizada e reeitada, dividir os cuidados
dos(as) hos(as) e da casa com o companheiro, tomar iniciativa, participar de
encontros, entre outras coisas
Priorizo nea sessão quatro aectos presentes nas falas das muheres: te oz,
ou seja, capacidade para expressar as próprias idéias; te libedae de i e i além
da casa e dos sítios; a luta por direitos; e o acesso a programas e recursos.
T : ,
As muheres assinalam que anteriormente não era possível dar opinião nem em
casa; elas aprenderam a falar e a não ter vergonha de manifear as suas idéias e
opiniões em vários espaços. Isto envolve reconhecer que no espaço púlico um
jeito de falar, que ee jeito se aprende e que apesar disso as pessoas se expressam
de diferentes formas. Implica também em adquirir novos repertórios linüísticos
e superar o medo de fala eao:
[…] eu aprendi que cada pessoa fala do jeito que quer e do jeito que sabe, né? Eu pensava
assim: mas eu não sei falar as minhas palavras, eu não tenho palavras. Era a minha maior
preocupação, era eu não ter palavras bonitas. Eu via aquelas pessoas com aquelas pala-
vras bonitas e eu o tinha aquelas palavras bonitas pra pronunciar; Hoje eu nem ligo
mais […] já sei falar e que sempre soube. Aí as palavras bonitas sai na boca de qualquer
um e todo mundo entende, né? porque quem não entende o nosso portuuês, né? então
eu aprendi isso: sou brasileira, tenho o meu portuuês, é um pouquinho dicil mas as
pessoas sabem o que eu tô falando, então vou tirar isso de mim, e tirei mesmo, hoje falo
na hora que eu tenho oportunidade de falar, eu falo, falo, falo, falo e o quero nem saber.
(Mariana, entrevista, ).
No depoimento de Mariana é possível deacar dois aectos. O primeiro diz
reeito ao pequeno acesso das muheres às esferas púlicas, nas quais se exige

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competência para formular, arumentar, intervir, discordar, negociar e apresentar
propostas. O seundo aecto é que nessas esferas uma valorização do domínio
formal da línua em detrimento do jeito de falar no dia-a-dia das pessoas, que
tem acentos diferenciados por classe, região, gênero, escolaridade, acesso a bens
culturais, etc. Além disso, como a área rural e o sertão mais eecicamente
–ainda é tida como sinônimo de atraso e subdesenvolvimento, isso se eende
também para as competências do uso da línua.
É possível perceber a instauração de novos discursos sobre as muheres cal-
cados, sobretudo, na positividade dos atributos ditos femininos’, na armação
dos direitos das muheres e na crítica aos valores e normas que desvalorizam e
inferiorizam as muheres. Estes aprendizados e conquistas também repercutem
na família, na relação com o companheiro/marido e com os (as) hos(as). Estas
repercussões não são tranqüilas; conitos, tensões e, quando possível, novos
pactos de convivência são eabelecidos
I
As pesquisas sobre a agricultura familiar tendem a assinalar o padrão rígido e as-
simétrico das relações de nero. Os (as) pesquisadores(as) ressaltam que as
muheres o connadas ao espaço da casa, do roçado e da comunidade onde mo-
ram. As muheres se defrontam com ordens morais de gênero que impõem duras
restrições ao ir e vir.
Se o espaço socialmente atribdo às muheres na área rural eá circuns-
crito à casa, ao grupo familiar e à comunidade a que pertence, cabe aos homens
lidar com outros espaços sociais. Isso signica usufruir a liberdade de ir e vir
e poder circular em outros lugares, comunidades vizinhas e cidades. Como
compete aos homens a geão da unidade familiar, a aquisão de equipamentos
para o trabaho, a comercialização dos produtos e o comércio de teras, eles
desfrutam de espaços e de relações inerentes a eas atividades –o corcio, a
feira, as exposições, os bancos, am de órgãos púlicos e programas governa-
mentais. Am disso, homens jovens e adultos m mais liberdade do que as
muheres para sair, beber com os amigos, ir a feas e jogos, o necessariamente
acompanhados da família.
No meu entender, a análise feita anteriormente se transformou quase num
modelo ideal para pensar as relações de gênero na área rural e particularmente
na agricultura familiar. Entretanto, ela o aprofunda as tensões, as ssuras,
e como homens e muheres negociam e barganham novas posições e lugares.
Também não aborda a variedade de modos de organização familiar na área ru-
ral –que não coresponde ao modelo de pai, mãe, hos e has –e as diferentes
formas de organização da produção familiar. muheres morando com os (as)
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
hos(as), muheres solteiras morando sozinhas, muheres solteiras morando
com os irmãos, muheres morando com os pais e hos(as); e pais morando
sozinhos, cujos(as) hos(as) residem na mesma propriedade ou em outro mu-
nicípio, dentro ou fora do eado.
Sair de casa para as muheres aparece como um aprendizado e uma conquis-
ta. Quando elas falam que aprenderam a sair de casa, geralmente ressaltam ts
aectos. O primeiro é o desvencihamento das responsabilidades dosticas.
O seundo aecto se refere aos nculos interpessoais fora da família e da
comunidade; além de conhecer pessoas novas elas o reconhecidas e valori-
zadas fora do espaço da casa. O terceiro aecto diz reeito à liberdade de
forma mais ampla, que inclui anda sozinha e selire para sonha, anda, fala,
pensa e iaja.
Entretanto, mesmo que as muheres reconheçam que aprenderam a sair de
casa e transitar em outros espaços, elas ainda enfrentam muitas diculdades.
Poderíamos dizer que ainda não é uma conquista eabelecida para todas as mu-
heres. Nos depoimentos é possível identicar três tipos de obstáculos: distância
e acesso a transporte; falta de apoio da família; críticas da comunidade.
Para transitar além dos sítios as muheres lidam com as distâncias e a dicul-
dade de acesso a transporte, além dos gastos nanceiros com as viagens. Como
não existe na área rural reularidade do sistema de transporte, as pessoas depen-
dem dos proprietários de caros particulares para se locomover. Há escassez de
transporte, intermitência na oferta de horário ou dias, veículos que não oferecem
seurança aos (às) passageiros(as).
As muheres enfrentam uma verdadeira maratona para participar de eventos
fora da comunidade onde moram. Às vezes andam longas distâncias a pé para
poder pegar uma ou mais condução. locais que dispõem de transportes uma
ou duas vezes por semana e por conta disso alumas muheres chegam um ou dois
dias antes do evento; e nem sempre há oferta de transporte quando a atividade
encera-se; muitas só retornam um ou dois dias depois. Isto implica car ausente
de casa por quatro ou cinco dias, mesmo que uma reunião dure dois ou três
dias, o que repercute nas relações com os (as) hos(as) e com o companheiro,
afetando também o seu trabaho na agricultura.
Já na família muitas se deparam com a franca oposição ou com a falta de apoio
do companheiro/marido e/ou dos(as) hos(as). Elas se queixam que não m
com quem deixar os (as) hos(as), que há pouca ou nenhuma divisão dos servi-
ços domésticos e das atividades que desenvolvem. Há sobrecarga de trabahos e
é dicil conciliar sua atividade em casa e no roçado com o ativismo político.
Um outro tipo de obstáculo eá relacionado com as ordens morais de
gênero. Não só a família, mas também os (as) vizinhos(as) e a comunidade
delimitam e restringem o ir e vir na área rural:

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Nas comunidades tem “crítica quando a gente vai sair, dizem: ‘oxem menina, pra onde
tu vai? ue tanta viagem é essa? Chama de vadia, desocupada, perdeu o amor dos hos,
do marido, de tudo, não é mais aquela muher responsável que era antes. E as compa-
nheiras, alumas dizem: ah! aquela não reeita mais o marido não nessas alturas. Mas
a gente explica a elas o que a gente faz nesse movimento, de qualquer maneira não é o
que aluém pensa, e sempre tem as críticas, mas o movimento não deixa de crescer por
causa disso. (MMTR, , p. ).
É curioso observar que as participantes armam que as próprias ‘muheres da
comunidade’ o as que tecem críticas e cuidam para que os limites à mobilidade
das muheres se mantenham. Percebi, todavia, que as muheres não enfrentam
obstáculos quando saem de casa para resolver prolemas relacionados com saúde,
educação, trabaho ou qualquer outra queão familiar. Joana, por exemplo, diz
que o marido não a deixa dormir fora de casa para participar de reuniões e encon-
tros, mas não se importa quando ela viaja para ‘pagar promessa’ ou acompanhar
aluém que eá doente.
As diculdades se instalam quando as muheres transgridem os espaços deli-
mitados socialmente para elas e assumem novas posições: não eão totalmente
absorvidas com as suas atribuições como mãe e esposa; eabelecem novos víncu-
los interpessoais fora da família e da comunidade; desenvolvem novos interesses
e posturas diante das suas vidas e do entorno.
Além disso, parece que na restrição ao ir e vir das muheres também se con-
substancia no controle da sexualidade feminina. Se há mudanças demográcas acer-
ca do número de hos das famílias na área rural e um discurso favorável ao uso
de contraceptivos, no que se refere ao exercício da sexualidade feminina ee ainda é
mantido dentro dos marcos da união conjugal. E a comunidade exerce vigilância
para que assim continue, utilizando entre outros instrumentos a fofoca. Ficar falada,
ser alvo de comenrios dos(as) vizinhos(as) e conhecidos(as), ‘não ser considerada
uma muher direita são alumas das artimanhas que homens e muheres utilizam
para impor limites ao ir e vir das muheres.
L
Quando as muheres dizem que aprenderam a lutar por direitos, isto abrange a
luta por iualdade de nero e o acesso a uma gama diversa de direitos. O que eá
presente em uma ou outra acepção é que cabe às muheres exigir e lutar por seus
direitos. É a ee ideário que as muheres recorem para redenir as relações na
família e na comunidade, como também para formular reivindicações no âmbito
da eqüidade de gênero:
N E A D E S P E C I A L

nós temos muito por que lutar, e porque nós temos muito o que fazer e por que lutar
é que nós eamos na praça […]. E a principal luta é na família e na comunidade para
transformar. É a luta que nós chamamos a luta por direitos iuais. O direito dos homens
e os direitos das muheres. E se nós não começarmos a fazer isso na nossa casa, juntos,
homens e muheres, nunca vamos mudar. (Discurso de uma participante nas comemo-
rações do Dia Internacional da Muher).
Reconheço que uma gama de direitos aos quais as muheres fazem alusão
pode ser analisada pelo prisma da cidadania e do exercício de direitos civis,
políticos e sociais —, como também das discussões sobre os direitos humanos.
Todavia, o que eu gostaria de ressaltar é que a idéia de direitos da muher fundida
à prática política e ao desejo de mudar a vida eá vinculada a uma concepção
pouco precisa, porém extremamente importante: num contexto onde o aten-
dimento das necessidade básicas dos setores mais pobres é por vezes interme-
diado por relações de clientelismo, de tutela e de favor, as muheres armam-se
como portadoras de direitos. Por isso, elas podem reivindicar, dependendo do
contexto, tanto o acesso a direitos legais como o direito a viajar ou a aspirar uma
vida mehor.
Na minha compreensão, as muheres recorem à linuagem de direitos com
uma função prática, como diz Bobio (, p. ), ao “[…] emprear uma força
particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os
outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais.
Evelina Dagnino (), quando discute a emergência de uma nova cidadania
intrinsecamente ligada à experiência concreta dos movimentos sociais, à construção
democrática e ao nexo constitutivo entre cultura e política, aponta que um dos
elementos presentes é a própria redenição da noção de direitos, cujo ponto de
partida é o direito a te direitos. Para a autora ea noção de direitos
[…] o se limita portanto a conquistas legais ou ao acesso a direitos previamente de-
nidos, ou à implementação efetiva de direitos abstratos e formais, e inclui fortemente
a invenção/criação de novos direitos que emergem de lutas eecícas e da sua prática
concreta. A disputa histórica é aqui também pela xação do signicado de direito e pela
armação de algo enquanto um direito. (D, , p. ).
A
Quando as muheres identicam as conquistas nessa área, elas abarcam tanto
aquelas que são fruto das lutas das muheres como outras que o têm uma
relação direta com a ão do Movimento, mas representam uma mehoria na
condição de vida dessas pessoas.

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Alumas conquistas, como no caso da Previdência Rural, da inclusão nos pro-
gramas de emergência e do título da tera em nome das muheres, foram frutos de
pressão e mobilização política das trabahadoras rurais em vel local e/ou nacional.
aquelas voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar, que são deman-
das dos movimentos sociais rurais de forma mais ampla. Elas também se referem
aos programas de complementação de renda desenvolvidos pelo governo Federal.
Quando elas citam as diculdades de acesso a recursos e políticas, eas eão
em sua maioria, relacionadas à agricultura e ao semi-árido: seca, falta de áua,
de equipamentos para armazenar áua nos peodos de chuva e alimentos na
época da coheita, inexistência de política de comercialização dos produtos. Há
uma preocupação com a carência de políticas de emprego e de geração de renda
na área rural.
Nos últimos anos pesquisadores(as) e ativistas de ONGs e movimentos vêm cha-
mando a atenção que o prolema do Semi-árido não é a seca, mas a ausência de
políticas de desenvolvimento. Além disso, o combate à fome e à miséria na região
deve incluir a promoção de atividades produtivas adequadas ao Semi-árido. No
que se refere particularmente à agricultura familiar, além de políticas de apoio, são
necessárias mudanças culturais e sociais mais amplas em relação à propriedade
da tera, ao uso e à forma de produção. As famílias praticam uma agricultura de
subsistência em condições muito precárias, com pouca sustentabilidade do ponto
de vista social, econômico e ambiental. Além da falta de recursos, não assistên-
cia técnica, capacitação e nem a disseminação de tecnologias apropriadas.
No que diz reeito às muheres, a situação ainda é mais grave. Elas têm acesso
à Previdência e a programas de transferência de renda, entretanto, não há nem
programas governamentais nem ações não-governamentais voltadas para o de-
senvolvimento do seu potencial produtivo.
C
A nomeação mulhe trabalhaora rural no Sertão de Pernambuco é imbricada
com a ão coletiva das muheres em nível local e com a construção de redes
que congregam muheres trabahadoras rurais, assessoras, prossionais de ONGs,
sindicalistas, e alimentam-se de vínculos interpessoais, comunitários e políticos.
Num jogo habilidoso, ora elas se posicionam como muheres, ora como trabaha-
doras, ora como moradoras da área rural. Nas suas reivindicações, dependendo do
contexto, elas se posicionam como mães, sertanejas, sofredoras, trabahadoras da
roça, muheres, moradoras do Sertão, trabahadoras, muheres do campo, ativistas
e também como trabahadoras rurais.
Em aluns momentos as muheres utilizam a nomeação para reivindicar di-
reitos previdenciários ou outros direitos sociais. Em outros, a nomeação é usada
N E A D E S P E C I A L

para exigir do Estado políticas que permitam acesso a créditos, tera, tecnologia
e assistência técnica.
As muheres também fazem uso da nomeação para buscar novos pactos e
negociações no espaço privado, eecialmente no que concerne às atividades do-
mésticas, ao cuidado com os (as) hos(as), à relação afetiva com o companhei-
ro/marido e à construção de ritmos e tempos no âmbito familiar e comunitário.
Em outros espos e contextos, a nomeão serve para as muheres falarem
de si, para outras muheres e para os homens, a reeito da conquista da auto-
estima, dos aprendizados, da capacidade de realizão e da coragem face às
diculdades cotidianas.
As muheres elaboram várias estratégias que permitem a circulação, em dife-
rentes espaços e processos sociais, de uma idéia uida e pouco demarcada sobre o
trabaho feminino na área rural e, particularmente, sobre o trabaho das muheres
na agricultura familiar. Isso hes permitiu construir complexas teias e redes de mo-
vimentos que incluem, além das pessoas do lugar, feministas, militantes sindicais,
participantes de ONGs, estudiosas e as trabahadoras rurais nos planos regional,
nacional e internacional.
Apesar das conquistas, as muheres enfrentam conitos, tensões e diculdades
na família e na comunidade para poder decidir sobre aectos importantes das
suas vidas como o tempo, a liberdade de ir e vir, a sexualidade, entre outros. Além
disso, muitas muheres não dispõem de documentos sobre o uso e a propriedade
da tera, o que possivelmente indica pouco acesso e controle restrito das muheres
sobre os recursos materiais.
R
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As jovens rurais
e a reprodução social
das hierarquias
E L I S A G U A R A N Á D E C A S T RO
J ” de uma posição hierárquica de submis-
são. Mas, ser “jovem rural” e mulher representa uma situação de “inferioridade”
na hierarquia social, ainda maior. As “jovens” vivenciam intenso controle social,
dentro e fora da família; exclusão dos processos de produção agropecuária, de
sucessão e herança, e ainda, dos espaços de decisão. A “resposta ao controle e
à exclusão tem sido a saída da maioria das “jovens” da área rural estudada. Este
artigo apresenta a análise da categoria juventude rural a partir de uma abordagem
de gênero, desenvolvimento na tese “Entre ficar e sair: uma etnografia da constru-
ção social da categoria jovem rural.” O artigo propõe abordar como o recorte de
gênero permite observar as relações de hierarquia no meio rural. Mas principal-
mente como essas relações de hierarquia são construídas ao longo de processos de
reordenação fundiária, que no entanto, tendem a reproduzir continuidades nas
relações de submissão e diferenciação entre a socialização de homens e mulheres
na família e no trabalho na pequena produção familiar.
A
Juventude rural é fortemente associada ao prolema da migração dos jovens do
campo para a cidade.No caso eecíco das jovens aponta-se para processos de
masculinização dos campos (A,). No entanto, como vamos tratar
nesse trabaho, car” ou “sair” do meio rural envolve múltiplas queões, que, por
sua vez, geram diversos aranjos desse “jovens com a tera da família. Nee contex-
N E A D E S P E C I A L

to, a própria categoria joveé construída e seus signicados disputados. Este artigo
pretende apresentar, em linhas gerais, o desenvolvimento desse debate na Tese “En-
tre Ficae Sai: uma etnograa da construção social da categoia joverural(C,
), e mais eecicamente as queões que tangem as relações de gênero.
A tese demonstrou que ser “jovem rural” carega o peso de uma posição hie-
rárquica de submissão. Mas, ser “jovem rural” e muher representa uma situação
de “inferioridade na hierarquia social, ainda maior. As “jovens vivenciam intenso
controle social, dentro e fora da família; exclusão dos processos de produção
agropecuária, de sucessão e herança, e ainda, dos espaços de decisão. A “resposta
ao controle e à exclusão tem sido a saída da maioria das “jovens da área rural es-
tudada. Mas esse processo vem se desenhando de forma perversa, pois essa saída
é precedida, em um número considevel de casos, pela gravidez na condição de
solteira, podendo ou não ser seuido de casamento, e nalmente a saída.
Nee trabaho se focalizará o ator social, a “jovem rural,no contexto da
construção da categoria jovem no meio rural analisado. Em um primeiro mo-
mento será apresentada a construção do prolema central abordado na tese. Em
seuida, o caso eecíco de gênero será desenvolvido a partir de quatro enfoques:
os processos de socialização no meio rural; a exclusão do processo produtivo agro-
pecuário, e, conseqüentemente da condição de sucessora; as diceis condições de
permanência do “jovem rural” no campo; e, por m, os conitos que envolvem a
autoridade paterna/adulta.
A
A chegada pela primeira vez ao assentamento Mutirão Eldorao (Seropédica), em
, foi marcante. Ao chegar à sede da Associação dos Pequenos Produtores do
Mutirão Eldorado (APPME) fui recebida por Tadeu, presidente da Associação.
Nea primeira conversa eu quis saber sobre as maiores diculdades que o assen-
tamento enfrentava. E sua resposta foi: “Nosso assentamento é veho. Os jovens
não querem car no assentamento e nem querem trabahar a tera.
Estranhei a colocação de Tadeu, pois em outras pesquisas em assentamentos
sempre ouvi como resposta a esse tipo de indagação, queões ligadas a prolemas
infra-estruturais, de produção, de comercialização ou ainda o descaso do poder
Os nomes dos informantes são fictícios, ou seja, de todos os assentados, mediadores e demais
entrevistados. Já os demais nomes citados e localidades são originais.
O propósito da visita era o levantamento para o Projeto de Pesquisa “Observatório Regional:
os impactos socioeconômicos e culturais do Porto de Sepetiba, coordenado por Gian Mario
Giulliani e Elina G. da Fonte Pessanha (IFCS/UFRJ), .
As palavras ou frases em itálico o reproduções de falas e termos usados pelos informantes.

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púlico. Com sua resposta os jovens apareciam ocupando um papel central nos
prolemas que podiam ear enfrentando na produção, e, ainda, como “pivôs de
uma possível descontinuidade do projeto coletivo que o assentamento represen-
ta. Uma de suas preocupações, e de outros informantes, era o ingresso de aluns
jovens no Exército e conseqüente saída do Eldorado. O suposto desinteresse dos
jovens pela tera compreendendo a dimensão do trabaho familiar no lote e o
próprio assentamento como acesso da família à tera foi apresentado como um
prolema crucial, e, portanto, mais valorizado que outros, dos quais só tomaria
conhecimento ao longo do trabaho de campo.
Ao retornar a Eldorado, dois anos após a primeira experiência, o cenário havia
mudado. A associação tinha um novo presidente, que, para minha surpresa, e de
acordo com minha percepção, tratava-se de uma “jovem.Dália, solteira,  anos
morava com os pais. À época da realização da primeira conversa com Tadeu,
Dália ocupava o cargo de secretária na diretoria da APPME. Ela havia sido eleita
para a presidência da associação em um mandato tapão, para substituir Tadeu,
que havia sofrido um atentado e saído do assentamento. Mas, ao contrário da
conversa com Tadeu e outros informantes, Dália o tocou no assunto jove
antes que eu colocasse a queão. Como o assunto não surgia peruntei se havia
muitos “jovens no assentamento e se era comum se alistarem no exército. Ela
me respondeu que havia poucos e que dos que se alistaram apenas um tinha sido
chamado para servir. O alistamento militar seria coriqueiro, em função da idade
dos “jovens, não fosse pela ênfase negativa dada por Dália ao fato de muitos não
conseuirem servir. A “queixa indicava que ingressar nas Forças Armadas pode-
ria ser o real desejo dos que se alistavam e não mera formalidade. Esse seundo
momento trouxe elementos novos para a construção da queão a ser investigada.
Anal, se os jovens não participavam e eavam indo embora, o que explicava a
presença de Dália na presidência da Associação? Assim, por um lado tínhamos a
presença de uma “jovem em um papel prestigiado no assentamento e, por outro,
persistia a imagem de que os jovens, no caso rapazes de  anos, tinham outros
interesses que não o assentamento e o lote.
 Dália é filha de uma das famílias mais numerosas do assentamento. Além de seus pais, uma
de suas irmãs também é assentada, em outro lote. E outra irmã com sua família nuclear havia
sido assentada e saído de Eldorado. Ela e um dos seus irmãos participaram do acampamento
que originou o Projeto de Assentamento Casas Altas.
N E A D E S P E C I A L

Quando nalmente pude regressar, cinco meses depois, para “meruhar” no
trabaho de campo encontrei um terceiro cenário. A presidência da associação
havia mudado novamente. Eder nos recebeu com muita expectativa quanto
à realização do levantamento socioeconômico, ressaltando a possibilidade de
mostrar os prolemas que eavam vivendo. Mas quando peruntei sobre a Dália
comentou: Agora o presidente prouz. Com essa colocação Eder apontava como
principal preocupação os prolemas que podem ser classicados como de produ-
ção e de infra-estrutura do assentamento. Nesse contexto, o prolema os jovens
eão indo ebora sequer foi mencionado. Mas, ao se referir à Dália, Eder trouxe
novos elementos para a queão. Dália foi caraerizada como aluém que não
atuava na produção.
Procurei Dália, que eava morando com Esteves em seu lote. Ao encontrá-la
em sua nova casa parecia triste e logo tomou a iniciativa de falar sobre sua saída
da diretoria da Associação. Ela armou que o fato de ser muher pesou para que
as pessoas não conassem no seu trabaho e deixassem de comparecer às reuni-
ões. Em seuida armou ear em outro momento. Dei muito trabalho pra minha
mãe quando eu era jove, agora to conhecendo o outro lao. Dália eava grávida e
armou que iria se afastar da Associação por ear cansada e querer cuidar da sua
vida. Dália, que em nosso primeiro encontro não havia se identicado como jove
ou aulta, agoracasada e grávida, fazia queão de se diferenciar da condição de
jove. a forma como havia sido questionada como presidente da Associação,
Ao longo de  e parte de  foi realizada a aplicação de um questionário que visava
levantar informações sobre as condições sócio-econômicas das  famílias. O socioeconômico
demandado pela diretoria quando presidida por Dália permitiu observar as famílias, as
redes familiares e uniformizar informações sociológicas centrais para a construção de uma
análise sobre essa realidade. O trabalho de campo para a tese se estendeu de -, e
acompanhou as redes sociais no assentamento e as que se estendiam para outras áreas rurais
e urbanas na região. principalmente Morro das Pedrinhas, área rural de produção familiar
contígua ao assentamento; Chaperó, loteamento urbano próximo, e o centro de Seropédica.
Nestas localidades algumas famílias mantêm suas casas originais, ampliando a unidade domés-
tica que passa a compreender, também, o lote.
Eder participou juntamente com sua segunda esposa do acampamento na Fazenda Casas Altas.
Eder e outros assentados informaram que o assentamento estava atravessando uma grave
crise na produção e que estavam sofrendo muito com a falta de água. O assentamento não
tem água encanada, na época não tinha poços artesianos e a maioria, se não todas as nas-
centes da área haviam secado. Havia um projeto em andamento há mais de dez anos para a
construção de dois poços artesianos no local. Uma série de entraves burocráticos atrasou o
início das obras. Os poços foram construídos em .
 Esteves participou do período do acampamento e em mais de uma diretoria da Associação.
Tinha sido assentado com sua família. Posteriormente se separou e sua esposa e filhas sairam
do assentamento.

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earia, seundo seu depoimento, relacionada a sua condição de muher, quehe
colocava em uma posição de inferioridade e de pouca conança para o papel que
veio ocupar. Nesse caso, teria sido uma precipitação da pesquisadora tê-la identi-
cado como uma “jovem presidente de associação? Mas então, o que caraerizava
se jove em Eldorado?
O prolema ou a queão central da investigação foi resultado desse mer-
uho em Eldorado, assim como em outros cenários, e no diálogo com o campo
acadêmico, onde a produção sobre o tema jovem/juventude cresce exponencial-
mente. Esse processo surpreendeu a própria pesquisadora fazendo emergir um
objeto” extremamente instigante. O esforço empreendido ao longo da tese foi o
de analisar a categoria “jovem rural” no sentido da sua construção como categoria
de pensamento e social, a partir de uma leitura de disputa de percepções sobre
as relações pais/hos e jovens/adultos. Essa construção implica visões sobre o
mundo rural e urbano em que esses “jovens e adultos eão imersos, assim como,
nos processos de reprodução social da produção familiar. Pode-se armar, que as
percepções sobre a categoria jovem eão inscritos nos limites do próprio “modelo
de assentamento rural desenvolvido no país.
O
O assentamento Mutirão Eldorao eá localizado na antiga Fazenda Casas Altas,
no município de Seropédica, na Baixada Fluminense/RJ, próxima ao limite com
o município de Itauaí. O assentamento tem como marco de surgimento 
– período em que foi formado um acampamento na área – e , “ato de criação
do PA Casas Altaspelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Um evento privilegiado de observação para pensar o tema foi o I Congresso Nacional da
Juventude Rural, que ocorreu em julho de  em Brasília. Organizado pela Pastoral da Ju-
ventude Rural (PJR), contou com o apoio de entidades, partidos e movimentos. As entrevistas
foram realizadas com participantes oriundos de assentamentos e acampamentos de SP, MS,
TO, RS, DF, PR, que, em sua maioria eram filhos de acampados e assentados.
 Ver Amit-Talai (); Abramo (); Novaes (,), entre outros. o será possível,
nos marcos desse trabalho, resgatarmos o debate teórico sobre juventude. Esse esforço foi
realizado na tese supra-citada.
 A Fazenda Casas Altas foi ocupada por grileiros e era alvo de uma disputa judicial entre estes
e a família que detinha o seu domínio útil, quando foi destinada à reforma agrária pelo Incra
(Decreto presidencial de março de ).
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(Incra). Duas redes sociais principais formaram o assentamento a rede dos
meeiros e a rede dos acampados. Os meeiros trabahavam em regime de meação na
Fazenda Casas Altas até o período da formação do acampamento (). Aluns
são hos de famílias assentadas em uma área adjacente denominada Moro das
Pedrinhas parte do Núcleo Colonial Santa Cruz, outras moravam em Chape,
um loteamento urbano próximo. Já os acampados se organizaram como grupo
em duas experiências anteriores de acampamento que culminaram na ocupação
da Fazenda e formação do acampamento em . A maioria tem uma trajetó-
ria rural-urbano, e o acampamento/assentamento representa o retorno para o
campo. Nesse caso os hos/“jovens” têm origem urbana.
Assim, o acampamento foi a experiência que legitimou um grupo de assen-
tados e de seus jovens.A saída dos jovens refere-se, muitas vezes, a esses jovens.
E, de fato, muitos, hoje, moram fora do assentamento, mas outros ainda vivem
em Eldorado. Novas famílias e seus “jovens foram compondo o desenho atual do
assentamento. Assim, aos poucos, fui sendo surpreendida pela presença de um
número grande de “jovens” em Eldorado (moram no assentamento, represen-
tando  da população entre - anos).
Em Eldorado car ou “sair apresenta-se como paradoxo. Os mesmos adul-
tos/pais que tratam como prolema a saída dos jovens” do campo por meio de
expressões como Os jovens eão indo ebora! apontam a justeza de buscarem um
futuro mehor. Este discurso também é traduzido em estratégias familiares de
manutenção do lote, que envolvem formas de sair” ou de associar trabaho no
lote e atividades externas. De um lado, os pais/adultos tecem críticas à falta de
 A idéia de redes sociais foi um norteador para o olhar da pesquisadora. Os múltiplos usos
do conceito de redes sociais na antropologia já foi muito explorado e aponta a busca de um
olhar processual. Um aporte que balizou o trabalho na tese foi o de Gluckman, que aponta
a importância da percepção das relações dos indivíduos nas suas redes familiares e na “socie-
dade em geral(apud Bott, ::), “O ponto-chave bem pode ser o que as redes fazem
em termos da sociedade em geral e em termos do indivíduo. A família produz filhos e filhas,
que são recrutados em vários grupos, em várias relações e categorias na sociedade em geral,
incluindo outras famílias. […]. (op.cit.:  e ). Para um resgate mais detalhado do debate
ver a Introdução de Bela Feldman-Bianco (), e na mesma obra, Mayer, Barnes e Velsen.
Mais recentemente Ana Enne também realiza uma releitura desse conceito ().
 O Núcleo Colonial Santa Cruz foi parte do Projeto de Coloniazação das décadas de  e
 do governo Getúlio Vargas. Esse foi o primeiro de sete núcleos formados no Estado do
Rio de Janeiro.
 Optei por analisar todos os identificados como jovens e incluí aqueles que tinham um perfil
semelhante, assim como as redes nas quais estavam inseridos, buscando compreender até
onde essas redes sociais construíam e/ou reforçavam a categoria jovem. Com esse recorte
cheguei a uma listagem de  jovens, com idades entre  e  anos. O corte etário foi
construído a partir da classificação/autoclassificação e da composição das redes.
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responsabilidade do jove com o trabaho na roça e com a tera da família, e, de
outro, sonham com um futuro melho para seus lhos. Nee sentido, o que passou
a ser tratado analiticamente como o paradoxo “sair e car” foi abordado a partir
de recortes como a socialização dos jovens e a reprodução social da produção
familiar, como será apresentado a seuir.
P : ,
Se há uma tensão importante entre “car e sair” do assentamento, há diferenças
quando observamos a queão a partir do corte de gênero. Os adultos que se
queixam da saída dos jovens, se referem, mais eecicamente, aos hos homens
solteiros. Somente os “jovensrapazes se queixam,mais explicitamente, da saída
das jovens e a diculdade, quase impossibilidade, hoje, de namorar e casar com
aluém do assentamento.
Mas ao resgatar os processos de socialização que geraram o que pode ser de-
nominado de “laços com a tera se observa que essa saída, mais freqüente entre
as “jovens,” pode ser lida como parte da reprodução social da produção familiar.
Recuperando o caso dos hos da rede dos meeiros e comparando aos acampa-
dos isso é mais evidente. Observou-se uma saída mais intensa entre os “jovens,
principalmente as “jovens,do primeiro grupo, isso é, os/as que nasceram e/ou
foram criadas na área rural da região antes da formação do assentamento. Nee
caso, boa parte dos/das “jovens o mora mais na área e as “jovens mostram
eecial desinteresse pela reprodução tanto da tera da família do Moro das Pe-
drinhas (área adjacente ao assentamento e parte do Núcleo Colonial Santa Cruz
(NCSC), quanto pelos lotes dos pais no assentamento. No entanto, das famílias
que permaneceram na área, tanto no Moro das Pedrinhas, quanto no próprio
assentamento é evidente o comprometimento de ao menos um ho homem, que
mesmo quando trabaha fora atua ajudando os pais. O que chama a atenção nesse
caso é a ruptura entre as gerações, as muheres das gerações anteriores atuavam/
atuam intensamente na produção, ao passo que as “jovens (terceira geração da
região) não demonstram qualquer interesse.
Já entre os acampados encontramos uma situação com traços similares, mas
com diferenças importantes. Se hoje a maioria das “jovens o quer mais per-
manecer no lote, não rejeitam a identidade rural – como entre as “jovens has
dos ex-meeiros e alumas, valorizam o período do acampamento e início do
assentamento por terem podido participar, naquela época, da produção. Mas
armam que existia diferença na divisão das tarefas entre os hos homens
e muheres, e na utilização da tera das famílias. Os hos homens eram mais
solicitados e nos primeiros anos tinham a possibilidade de cultivar um pedaço”
de tera no lote dos pais, cujo retorno nanceiro era dos próprios hos. As has
N E A D E S P E C I A L
que participaram intensamente do período do acampamento em diversas tarefas,
inclusive de produção agrícola aos poucos foram sendo incumbidas somente
das tarefas domésticas. Assim, a divisão do trabaho hoje pode ser descrita da
seuinte maneira: a aração e preparação da tera o feitas por homens, (que
classicaremos como chefes de família) e hos mais vehos, e quando possível,
contratam horas de trator para aração. A semeação, capina e coheita podem
ser realizadas por todos da família. O trabaho doméstico é tarefa da esposa com
o auxílio das has (em aluns casos encontramos hos mais novos que também
ajudam suas mães). A responsabilidade de compra para o abastecimento da casa
e/ou comercialização da produção, é do homem (chefe de família), mas pode
ser transferida para um dos hos mais vehos, eecialmente quando ee tem
autonomia – quando sabe dirigir e tem acesso a um veículo próprio, empreado
ou alugado – para levar a mercadoria até a cidade.
A divisão de tarefas é expressão da socialização nesse meio rural, tanto na
rede dos meeiros, quanto na dos acampados. Em comum o fato das has serem
incumbidas das tarefas domésticas, trabaho desvalorizado. Mas uma diferença é
importante. Aqueles que foram criados na região vivem uma realidade desvalo-
rizada socialmente, face à cidade, no que concerne ao acesso a serviços púlicos e
privados. Uma realidade que não muda.” Um universo estigmatizado na cidade.
Já para os hos dos acampados a experiência é inversa, não só predomina o senti-
mento de um lugar com menos violência urbana, onde eles têm mais libedae para
circularem, ainda que essa libedae seja mais restrita ao assentamento, e ainda ex-
perimentaram um processo de socialização, o acampamento, que recordam como
um período em que participaram intensamente da construção de algo novo.
Mas essa socialização é conurada por relações de hierarquia na família, e
que se eendem aos espaços organizativos do assentamento, e é central para
compreendermos as diferentes percepções sobre os jovens. A hierarquia interna
à família na organização do lote, do trabaho e da produção é uma caraerística
comum nos relatos dos entrevistados das áreas analisadas. Quando peruntados
sobre como são decididas as queões relativas ao lote, a resposta na maioria das
vezes foi a gente conversa. Mas em caso de discordância, as esposas e os hos
armaram ser dele a palavra nal. No caso, ele são homens que podemos carac-
terizar como chefes de família (o existem casos de muheres sem maridos).
Mas, em aluns casos (principalmente quando a experiência com a lavoura, no
passado, é das muheres), as esposas participam da organização do lote. Isso pode
ser percebido nas diferenças, tanto na ordenação espacial no lote– localização
 Alguns filhos aprenderam a utilizar o trator e se tornaram tratoristas. Essa é uma ocupação
valorizada nas falas dos rapazes.
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da produção, do espaço doméstico, do espaço da criação de pequenos e grandes
animais – quanto na própria decisão sobre o que produzir.
Alumas situações relatadas ilustram a relação de hierarquia na família, como
o caso contado por Diana. Seu marido Jaques é muito atuante na APPME e faz
parte do único grupo coletio do assentamento. Jaques cedeu, por alum tempo,
o lote para o grupo coletio. Diana não gostou, mas só relatou o ocorido quando
eávamos sozinhas (conversando no quintal) e armou que não interferiu na
decisão do marido. Recentemente o casal voltou a plantar sozinho. Ela frisou
que sempre trabalhou,e que quando foram para o assentamento o Jaques chegou
a oferecer para ela car no Km  (centro do município de Seropédica, onde
moravam) e ele ir pra casa nos nais de semana, mas ela não aceitou. O caso de-
monstra a prática de Jaques dispor do lote sem consultar a família, nem mesmo
sua muher que sempre participou intensamente da produção.
Outro exemplo é a contratação de crédito do Programa Eecial de Crédito
para Reforma Agrária (Procera) e Programa Nacional de Fortalecimento da Agri-
cultura Familiar
(Pronaf) pelas famílias. Mesmo sem acordo com suas esposas,
muitas vezes os maridos decidem sozinhos os projetos a ser apresentados para a
solicitação de crédito e que todos que trabaham no lote vão ter que empreender.
Entretanto, quando as muheres são as únicas titulares, a sua decisão parece ter
 Quando maior participação da mulher no lote percebe-se uma valorização de árvores
frutíferas, de plantas ornamentais, de ervas medicinais e da horta, mas integrado com as
demais culturas e criações.
 Trata-se da prática do cultivo orgânico, sem agrotóxico, ensinado para alguns jovens de El-
dorado, pelo Projeto de Horta Orgânica (UF Rural RJ), e que depois passou a ser utilizado
por outros assentados. A técnica foi adotada por três assentados (Jaques, Esteves, Eder) e
pelos “jovens” Diego e Vicente, organizados no Grupo Coletivo. Não poderei aprofundar no
trabalho de análise da experiência, que foi tratada em detalhes na tese como um caso-chave
para a compreensão das relações de autoridade.
N E A D E S P E C I A L
mais peso. Essa hierarquia nas decisões internas é ainda mais marcante na re-
lação entre pais/avós/tios, de um lado, e hos/netos/sobrinhos, de outro, como
evidenciado no relato de Jaqueline que ao falar sobre o início no assentamento
(quando sua família ainda morava com seu avô) ressaltou a “obrigação” de traba-
har na lavoura. Em passagens como meu pai botaa pra gente ajuda, nesse caso,
ela e sua mãe.
A hierarquia interna à família aponta um papel determinante do homem chefe
de família e, embora, as muheres trabahem intensamente na produção, elas têm,
com raras exceções, uma atitude de submissão. Como observado em outros contex-
tos (C,P; C, E. ), fazer,pensar” e decidir” são esferas que se
tornam fragmentadas pela autoridade atribuída a essa ura masculina. A relação
de autoridade do homem se eende aos hos. Esses processos de hierarquização
dos espaços de atuação e decisão na família podem explicar, em parte, as diferentes
atitudes dos hos homens e muheres com o lote, como veremos a seuir.
J :
Para se avançar na compreensão da dualidade apresentada no discurso dos aul-
tos sobre a categoria jove, assim, como a própria percepção dos jovens sobre a
tendência à saída do assentamento, cabe analisar as atitudes dos hos em relação
ao trabaho no lote/sítio. Pode-se observar a formação diferenciada para o tra-
baho familiar, com uma divisão que prepara os hos para a produção e as has
Em  participei da pesquisa Agricultura familiar nos assentamentos rurais : as relações entre
as mulheres e os homens – O caso do Pontal de Paranapanema coordenado pela professo-
ra Hildete Esteves de Melo (UFF) em maio . Em um artigo sobre o relatório final em
co-autoria com Paola Cappellin (), desenvolvemos a análise de diferentes “momentos”
nas relações entre homens e mulheres, onde percebemos como “expressões do fazer. […]
a distribuição das atividades produtivas agricultura, gado, horta, pequena criação das
demais fontes de renda internas ou externas ao lote e dos afazeres domésticos. Contribuir
diretamente na elaboração do projeto produtivo e do futuro do lote e da unidade doméstica,
são expressões do pensar. Para tal, é importante perceber a reflexão das mulheres sobre a
vocação econômica do seu lote, levando em consideração como a mulheres se percebem,
como avaliam a situação atual do lote, os balanços e as perspectivas. A partir desse conjunto
pode-se assim aprofundar como as mulheres/trabalhadoras se integram na prática de planejar
e elaborar estratégias de desenvolvimento da agricultura familiar. E finalmente participar das
tomadas de decisão no que diz respeito à administração e no planejamento econômico dos
lotes, assim como nos projetos familiares, são expressões do decidir. Para poder ter uma
maior clareza dos elementos que constituem a divisão sexual do trabalho e a partir de quais
mecanismos essa divisão se perpetua devemos resgatar no tecido das relações familiares quais
são as atribuições dos homens e os limites atribuídos às mulheres num contexto importante:
as tomadas de decisão. (:-)
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para o trabaho doméstico. Se os casais atuam intensamente na produção com a
presença, quase sempre, de pelo menos um ho homem, o que chama a atenção
é a ausência das has no cotidiano desse trabaho. A participação delas ocore
em momentos eecícos, como a coheita, e mesmo assim, nem todas. No caso
dos bicos, ajuda na criação de pequenos animais, o gado bovino e os cavalos
são responsabilidade dos homens.
O
No Moro das Pedrinhas os meeiros (que trabaharam como tal na Fazenda Casas
Altas) mantêm uma forte relação com a tera e com o trabaho na roça, mesmo
quando há mão-de-obra contratada em seu lote. Já seus hos, a terceira geração,
os “jovens de hoje, apresentam outra atitude. De acordo com os entrevistados,
todos, ou a maioria dos hos, trabaharam com os pais na lavoura, principalmen-
te nas teras ocupadas em regime de meação, quando crianças. Mas conforme
iam se tornando “mais vehos foi ocorendo uma ruptura e todas as has e boa
parte dos hos deixaram de trabahar na lavoura com os pais.
Essa mudança apareceu nas narativas como tendo ocorido a partir de quan-
do deixaram de ser cianças. Isto pode ser observado nas falas em que peruntados
se gostam de trabahar na lavoura e se continuam ajudando os pais, a maioria,
principalmente muheres, armou que não. Quando indagados se trabahavam
antes, os mesmos armaram que sim, quando eram cianças. Juliana ( anos)
– ha de ex-meeiros, assentados em Eldorado, sua avó ainda vive no lote em que
foi assentada no Moro das Pedrinhas (NCSC) – descreveu quais eram as suas
atividades no passado e no presente. Percebe-se em seu relato uma intensa parti-
cipação no trabaho familiar, mas quando deixou de se ciança parou de trabahar
com a família. Quando peruntei se gostava do trabaho, Juliana frisou, naquela
éoca eu gostaa, e associou não trabahar mais na roça, a buscar uma ida melho.
O lote dos pais em Eldorado é percebido como um futuro espaço de lazer. Juliana,
como outros hos e has que não moram mais na área, mantém a freqüência à
casa dos pais, mas associando o tio no Moro das Pedrinhas e o lote em Eldorado
ao universo da família, e não como meio de vida.
Já aluns dos hos homens continuam ajudando os pais. Essa atuação foi
descrita como mais pontual que cotidiana, embora em muitos casos pelo menos
um ho homem trabahe com os pais, tanto no Moro das Pedrinhas quanto em
Eldorado. Mas a relação menos constante com a roça contrasta com as narativas
sobre o futuro da tera dos pais. Mesmo hos e has que já saíram da área, são
contrários à venda da tera. Se os “jovens (terceira geração) principalmente as
 O sítio no Morro das Pedrinhas já foi quitado há algumas décadas e pode ser vendido.
N E A D E S P E C I A L
jovens apontaram para a tendência à ruptura com o meio e o modo de vida dos
pais, isso o representa o desejo de se desfazerem do patrimônio da família. Com
raras exceções, os relatos reforçaram os processos de ruptura vieram entrecorta-
das por falas que enfatizam não quere endeo sítio no Moro das Pedrinhas ou o
lote em Eldorado. Ou seja, a tera carega um valor simbólico, seja da “conquista,
seja como um espaço de integração da família.
O
Em Eldorado a grande novidade é a atuação de hos, sobrinhos, netos, oriundos
de áreas urbanas, na produção. Sem terem qualquer experiência com o trabaho
na lavoura, armam que houve forte interesse em aprende e trabahar na tea,
assim como valorizam em suas narativas a ida no capo, associada à libedae,
a puro, natureza, calma. O ápice desse processo foi o projeto da Horta orgânica
para jovens, que contou com a participação de jovens (homens e muheres) e os
instruiu em uma técnica, que nem seus pais dominavam.
Apesar da ênfase no trabaho na roça, ainda assim, foram descritas diferenças
entre a participação de hos e has. Seundo os relatos, no início do assen-
tamento os hos homens foram mais solicitados que as has muheres para
trabaharem na produção. Retomando a organização interna ao lote, o fato de
os hos homens poderem ter um pedacinho de tea foi explicado por Jaqueline
e outros jovens, como decorência do fato de as meninas freqüentarem mais a
escola. Mas pode-se ler como o inverso, as meninas freqüentariam mais a escola,
por earem menos envolvidas com a prodão e mais com os afazeres domés-
ticos e criação de pequenos animais, muitas vezes substituindo a e.Esse
discurso seria formulado a partir da internalizão das probabilidades objetivas
(B, ), ou seja, o discurso das próprias “jovens,” que armamo
participar mais da produção no lote, porque estudam ou porque o gostam,
pode ser fruto da reprodução da divisão sexual do trabaho familiar na área.
Os casos da família de Jaques e Diana e de Tadeu e Suely contribram para a
análise dessa queão. Essas duas famílias o as únicas – da rede dos acampados
e que foram assentadasonde só há has. Nos dois casos as has mais vehas
atuavam intensamente no lote nos primeiros anos do assentamento. A ha
de Tadeu foi apontada, por mais de um informante como um dos jovens mais
atuantes, ao lado de “jovens homens. A inexistência de hos homens nessas
falias pode ter gerado a necessidade de acionar o trabaho das has. Em
falias em que existem hos homens e muheres à excão dos primeiros
 Essa percepção de que as mulheres freqüentam mais a escola não esde acordo com os
dados coletados no levantamento socioeconômico.
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
anos no assentamento, lembrado como de intenso trabaho para todos aos
poucos as has se afastaram do trabaho cotidiano do lote na produção agro-
pecuária. Aliado a essa distinção na demanda do trabaho de hos homens e
muheres, o direito ou incentivo de hos homens terem um pedaço seu, pode
ser lido como parte do processo de formação para o trabalho na roça, e, como
veremos, da preparação de futuros sucessores. Essa criação” diferenciada pode
ser uma das razões de hoje só se encontrar hos homens trabahando com
reularidade nos lotes.
Apesar, do que podeamos classicar como um maior envolvimento desses
“jovens,mais uma vez percebeu-se um momento de ruptura, que apareceu nos
discursos dos mesmos, associado ao processo de autonomia de escohas atribu-
ído a partir do processo de se deixar de ser ciança. Isto é, aqueles que armam
o gostar do trabaho na lavoura (principalmente muheres) disseram que
aos poucos, conforme foram cando mais vehos pararam de trabahar. Esse
momento é muito associado à mudança de escola a partir do gisio (ª série
do ensino fundamental), quando passam a estudar mais longe do assentamento.
Os próprios pais consideram que o esforço de ir e voltar da escola é muito can-
sativo e por isso não cobram que trabahem de forma mais contínua nos lotes.
Mesmo assim, muitos hos homens mantêm a rotina do trabaho diário, ao
passo que as has aos poucos param completamente. Mas essa relão entre
criação” e interesse pelo lote também o é linear, assim temos exceções que
contribuem para percebermos as diferentes nuances das atitudes com o lote.
Esse é o caso do Antônio,  anos; apesar da intensa participão no lote com
os pais e de trabahar com a mãe na comercializão dos produtos de porta em
porta, ele armou detea a roça, mas gosta de cuidar da casa e ajuda a mãe
com os afazeres domésticos.
Se a relação com o trabaho no lote eá marcada por esses processos de con-
tinuidades e rupturas, outros elos que alinhavam a relação dos “jovens com os
lotes/tios, e contribuem para a construção de identidades rurais ou identidades
que aproximam referências urbanas e rurais.
C : , ,
,
O principal produto da região é o aipim, mas em muitos casos, além da diver-
sicação de produtos agrícolas, existe a criação de pequenos animais (galinhas
e porcos) e a criação de gado. O gado aparece como uma atividade masculina,
N E A D E S P E C I A L
tanto os maridos, quanto os hos atuam diretamente na criação. O fascínio
pela criação de gado é evidente entre os “jovens” (as “jovens” não demonstraram
qualquer interesse). Em quase todos os lotes com criação de gado e presença de
hos homens, ees demonstram ter interesse em continuar atuando no lote,
conjugando com outras formas de renda. Mesmo quando a relação com o lote
não é de moradia, os hos manifearam esse desejo. Ítalo ( anos) é aprendiz
de padeiro e hoje mora no Km , mesmo assim visita e ajuda os pais semanal-
mente em seus dias de folga. Apesar de não ear no cotidiano do lote, continua
responsável pela criação do gado. O gado é percebido pelos “jovens” como uma
possibilidade real de nculo dos hos com o lote. Mas, a relação com o gado
contribui, principalmente, para consolidar um vínculo entre os hos homens e
o lote, em uma perectiva de produção.
O cavalo é outro animal muito valorizado no assentamento, principalmen-
te entre os “jovense as crianças (homens e muheres). Apesar da rejeição de
alumas has pelo universo rural, a maioria armou saber e gostar de montar
a cavalo. Mesmo has que não moram no assentamento, como Karina, anos,
que vive em Chaperó (um pequeno núcleo urbano próximo, localizado no mu-
nicípio de Itauaí) e que durante o período da pesquisa comou a trabahar
como modelo, armou que gostava de ir à casa do pai para visitar a família e
andar a cavalo. Como no caso do gado, também os cavalos costumam ter dono e
aluns “jovens compram seu próprio cavalo. Para os hos homens, além de um
lazer no assentamento, o cavalo também representa acesso a um outro universo,
ee exclusivamente masculino enquanto prática de lazer: os rodeios,enduros”
(cavalgadas por trihas ou passar por obstáculos) que acontecem em Seropédica,
Itauaí e outros municípios da região. Há ainda cursos para quem quiser apren-
der a montar. Mesmo para hos que trabaham em tempo integral na cidade,
o cavalo exerce grande fascínio e o universo dos rodeios aparece como um de-
 Um fato interessante é que cada animal tem seu dono, e apesar de só os homens cuidarem
do gado, em mais de um lote alguns membros da família têm animais. De um modo geral, o
gado dos filhos é tratado como um tipo de poupança, por ser uma renda mais certa e uma
garantia para o futuro. Os animais comprados para os filhos o são vendidos, que não em
uma situação definida como de necessidade. Nesses casos é prevista a compra futura de
outro animal. Mas, se o trabalho e os próprios animais podem ser distribuídos na família, o
gerenciamento é do homem, na compra e venda.
 Valorizado no sentido de despertar muito interesse. Uma pesquisa sobre a produção leiteira
realizada em parceria com Departamento de Medicina e Cirurgia Veterinária, coordenado por
mim e pela professora Rita Botteon, mostrou que os cavalos apresentam problemas nutricio-
nais e de cuidados (manejo) graves. Já o rebanho bovino do assentamento está em condições
nutricionais e sanitárias boas. Apesar de o cavalo ter um papel de força de trabalho e lazer,
o recebe o mesmo investimento do gado, que tem um papel econômico mais claro.
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marcador na construção de uma identidade onde o universo “rural” é refencia
até na forma de se vestir.
A relação com o gado e eecialmente com o cavalo descortinou diferentes
maneiras dos chamados “jovens se relacionarem com o assentamento, repre-
sentando para aluns, principalmente hos homens, um vínculo marcado pela
produção e a construção de projeções para uma futura sucessão. Mas mesmo para
os que não se percebem dessa forma, representa vínculos de lazer e sociabilidade
que tem como marca a identicação com esse universo rural, contribuindo para
se perceber nuances nas formas de sair” e car” em Eldorado. Os “jovens carac-
terizam essa nova realidade através dos elementos associados à tranqüilidae da
vida no campo, mas também, dão forte ênfase à agricultura e à criação de animais,
que aparecem como denidores desse mundo rural. A identicação com esse
mundo rural articula elementos como a luta pela tea, a nova rede de amizades,
o trabaho na roça e os prazeresdesse novo mundo como anda a caalo. Através
dessas inserções pode-se explicar a caraerização positiva que descreve essas
áreas rurais (Eldorado, Moro das Pedrinhas e mesmo Chape) com adjetivos
tais como bonito, tranqüilo, calmo e substantivos como natureza e paz. Essa carac-
terização, muitas vezes, é construída em oposição a um universo urbano dos mu-
nicípios da Baixada Fluminense, familiar a esses “jovens” e fortemente associado à
iolência, confusão, peigo, luga feio. No entanto, em contraposição a esses laços e a
essas identicações aparecem discursos, principalmente das “jovens,que rompem
com essas construções e geram os processos de saída.A autoridade paterna e
o controle social de um lado, e a criação que distinue hos e has são fatores
que podem explicar essas diferentes atitudes de “jovens que compartiham ex-
periências de vida, em relação a uma mesma localidade. A divisão do trabaho se
reete na sucessão e na relação com o lote/tera, que também eão atravessadas
pelo paradoxo “car e sair,” que será discutido a seuir.
H,
O debate sobre a queão da sucessão no meio rural é amplo (B, ;
C, ; C, ; A, ; A e
K,  M, ; W ), em comum o fato de o
processo de sucessão/herança, via de regra, excluir as muheres. Seundo Bour-
dieu () a herança possui uma função social denida, qual seja, dar continui-
dade à exploração da propriedade familiar. Bourdieu ressalta a importância do
direito à propriedade, onde a possibilidade de “agir como proprietário” ou como
futuro proprietário é valorizado socialmente. Esse status, no entanto, varia de
acordo com as inuências externas e as novas perectivas para os hos na sua
relação com os núcleos urbanos.
N E A D E S P E C I A L

Se o debate sobre herança e transmissão patrimonial do campesinato é amplo,
ainda não foi plenamente eendido aos estudos sobre assentamentos rurais (do
Plano Nacional de Reforma Agrária) no Brasil. Nos assentamentos a queão
da herança assume caraerísticas peculiares devido a uma série de fatores. Em
primeiro lugar a relação com a propriedade, ainda em processo de transição,
torna o lote uma concessão e não uma propriedade de fato. Esta concessão, en-
quanto não for avaliado que o assentamento pode tornar-se autônomo, deve
seuir regras pré-denidas pelos órgãos governamentais responveis (Incra,
Fundação Instituto de Teras do Estado de São Paulo (Itesp), etc)., que proíbem
a divisão ou venda.
Não é possível traçar um padrão de herança no assentamento pesquisado,
até mesmo por uma queão temporal, na medida em que a primeira geração
ainda eá ativa. Com isso foi possível trabahar com o discurso sobre as rela-
ções de herança em Eldorado. Coletamos diferentes aranjos familiares no que
diz reeito ao lote como herança. Durante a pesquisa iniciou-se o processo de
titulação, o que não reetiu em qualquer mudança de discurso. Entre as has,
embora alumas armem gostar do lote, apenas uma se apresentou como possível
sucessora, ao passo que a maioria dos hos homens respondeu que assumiria o
lote. Mesmo no caso exceção” de uma ha que é mais atuante no lote dos pais,
que os irmãos homens, ela não foi apontada como sucessora pelos seus pais.
entre os hos homens, pelo menos um por família é apontado como provável su-
cessor. Nesse caso, o ho indicado é o que teria maior interesse no lote, podendo
ser inclusive um ho que não mora com os pais, mas que freqüenta o lote com
certa reularidade. Isto ocoreu, mesmo em casos de hos adotivos e agregados.
A tendência é deni-los como herdeiros juntamente com os hos legítimos que
moram, ou moraram, desde que freqüentem o lote. Se apenas um ho mantém
relação com o lote pode ser tratado como único herdeiro. Pode-se mesmo des-
tinar o lote apenas aos adotivos e agregados, quando os hos legítimos não têm
qualquer relação com o lote, mas sempre hos homens.
As condições econômicas, e o maior ou menor grau de pauperização,inci-
dem sobre o signicado e a cobrança quanto à participação no lote e a sucessão.
Quando os hos podem trabahar fora, temos as tensões que envolvem decidir
trabahar fora ou no lotecorelatas do sair ou car,ou encontrar estratégias
trabahar na cidade e no lote. Os diferentes aranjos entre trabaho, moradia e
lazer geram uma constelação de formas de relação com o lote. Essas implicam
em extremos que vão do intenso compromisso com o lote ao total afastamento e
desinteresse, mas também em afastamentos temporárias, prevendo um possível
retorno futuro em função da sucessão. E, mesmo o contrário, hos que trabaham
no lote e não pretendem a sucessão, como muitas has, mas também aluns hos.
A análise das diferenças entre as duas redes revela uma maior atuação e interesse

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pela sucessão entre os “jovens” da rede dos acampados do que dos meeiros. Mas,
encontramos, um maior interesse pela sucessão e participação no lote entre os
hos homens dos meeiros ou dos acampados, e mesmo dos que não fazem parte
delas, do que entre has muheres. Mas, pode-se observar discursos recorentes
entre “jovens,” homens ou muheres, como a defesa da “indivisibilidade da tera,
e de não se quererem que os pais vendam o lote.
Pode-se buscar explicações para essa diversidade de comportamento a partir
de aluns fatores. uma relação clara entre a participação na rede dos acam-
pados e uma maior interação com o lote, e ainda, a manifeação de se pretender
ser sucessor. A socialização no movimento de ocupação da rede dos acampados
e a partir das ocupações do lote construiu um signicado onde a tera assumiu
um valor” simbólico associado a sua conquista, que parece ter mais peso que o
seu valor” produtivo ou imobiliário. Ou seja, apesar das queixas” dos aultos e
dos jovens sobre a diculdade de se produzir no assentamento, aluns “jovens
armaram com veemência que o querem que o lote seja vendido e que o
assumi-lo no futuro, quando solicitados pelos pais ou quando da morte deles.
O paradoxo entre o discurso da diculdade de se produzir e não querer se desfa-
zeda tera é mais presente na fala dos “jovens” do que dos adultos. No discurso
desses “jovens” predomina o uso de termos como união, a luta, too mundo junto,
e a referência a imagens do acampamento e dos primeiros anos do assentamento
associadas à paz, tranqüilidae, alegia.
Seuindo asqueixas” dos aultos sobre o desinteresse dos jovens poderia se
imaginar tratar-se de uma transformação sofrida em modelos de sucessão re-
produzidos pelas famílias e da capacidade das famílias de se reproduzirem so-
cialmente (B,; W,). Entretanto, confrontando
com os múltiplos aranjos na relação dos “jovens” com o lote e com o patrimônio
familiar; e ainda com a organização do trabaho familiar, pode-se buscar outras
explicações. Assim, para se compreender porque “jovens” que participaram dos
mesmos processos coletivos de socialização, como o acampamento na Fazenda
Casas Altas, que m recordões similares sobre essa vivência, desenvolvem
relões distintas com o assentamento e com o lote da família temos que con-
siderar outros fatores.
P :
Um recorte analítico possível para se trabahar as diferenças entre os hos ho-
mens e muheres, e ainda a tendência a se apontar um ho homem como provável
sucessor, é o processo de formação, criação,dos hos na família. Corobora
esse viés de análise o fato de, apesar de não haver uma denição explicitada nos
N E A D E S P E C I A L
discursos sobre a herança e a sucessão no lote, o que podemos denominar
de “preparação do sucessor e/ou herdeiro no sentido do processo analisado por
Bourdieu ().
Como vimos, há diferenças de “criaçãoentre os “jovenshomens e muheres
que o evidenciadas na divisão sexual do trabaho no lote. A prática de que
hos homens tenham acesso a um pedacinho de tea, seria outro elemento di-
ferenciador do tratamento entre hos e has. Esses processos de socialização
podem explicar a leitura que Simone (anos), ha deTadeu (ex-presidente da
APPME), faz sobre a participação diferenciada dos meninos e das meninas, em
reuniões da APPME, na época em que ela morava no assentamento. Seundo
Simone, os hos, homens ou muheres não participavam muito das reuniões, mas
os que iam, na maioria homens, eram os que os pais apontavam como futuros
sucessores. “[…] Eles [os lhos] num ia, num gostava muito não porque tinha uns
que os pais botava pra car lá e falava –‘ Você que vai ser dono disso. Isso vai ser
seu. Aí eles cavam, a maioria dos meninos, mas as meninas num ligavam tanto.
Eu ia.” (E-Simone: -)
Observa-se uma diferença na relação com o lote como provável herdeiro. Em
Eldorado o provável futuro herdeiro diferencia-se dos demais hos, tanto em
termos de prestígio na família, quanto em relação às cobranças e expectativas dos
pais, o que pode ser aproximado à análise de Bourdieu () sobre a formação do
herdeiro. O principal elemento ressaltado pelos “jovens é a autonomia alcança-
da quando o ho/sobrinho assume o gerenciamento do lote. Isso foi percebido,
tanto na postura do futuro sucessor frente ao lote, quanto na fala de outros “jo-
vens que valorizam esse tipo de atuação. Mas, a passagem do gerenciamento da
produção ou do próprio lote, e mesmo o gerenciamento compartihado, ocore
onde a autoridade paterna, sobre essas esferas, não eá presente. Ou seja, quando
o pai não se interessa ou quando abandonou o lote, em função de outro trabaho.
Pode-se armar existir uma grande variação de desejos, interesses e relação com
o lote por parte dos “jovens,” que vai desde uma ruptura já no presente (mesmo
morando) ou como perectiva futura, até a preparação do herdeiro. Mesmo não
sendo explícito, a preparação do sucessor e/ou herdeiro é orientada para hos
homens, e quase sempre, para um único ho, ainda que os outros não se sintam
obrigatoriamente excluídos.
Woortman (), Arensberg (), e Moura (), analisando as formas de
reprodução social do campesinato demonstram a exclusão, maior ou menor, das
has do processo de sucessão, que só se tornam herdeiras da tera excepcional-
Bourdieu () analisa o processo de preparação do futuro herdeiro, geralmente primogênito,
no caso por ele analisado, e como este se destaca como o filho de maior prestígio, o que
nem sempre lhe garante o casamento.

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mente. A própria separação dos jovens de sexo oposto na convivência cotidiana
é outro fator comum tratado pelos autores, o que reforça a divisão sexual do
trabaho e diferenças quanto à herança como no “direito costumeiro trabahado
por Moura (). Os autores demonstram como esses processos tendem a ser
reforçados pelas transformações sofridas ao longo do tempo no meio rural, mas
com uma mudança importante, as has passam a se auto-excluir, casando com
jovens da cidade, buscando empregos fora da comunidade. O casamento com
um camponês passa a ser desvalorizado, como tratado por Bourdieu (), o
que contribui para a tendência ao celibato do futuro herdeiro que reproduz os
valores camponeses.
Em Eldorado, a denição de mercado matrimonial ainda eá em processo,
haja vista a variação de casamentos encontrados, casais formados no assenta-
mento entre as redes dos acampados e dos meeiros, casais aceitos e o aceitos.
Mas a queixarecorente dos rapazes quanto à falta de mas no assentamento,
no presente, em comparação com o passado; e a diminuição de casamentos e
relões a dois entre jovens assentados, podem sinalizar uma tendência. A dife-
rença entre os mecanismos de socialização da família para rapazes e moças con-
tribui para essa mobilidade demográca. Os processos de socialização dos hos
que diferencia homens de muheres, principalmente observada no assentamento,
contribui para a consolidação de novos mercados matrimoniais. Outro elemento
de exclusão é percebido pelas narativas das “jovens.Observa-se uma ruptura
de expectativas no discurso de alumas has, entre o peodo descrito como a
luta pela tea (acampamento), e o espaço que passaram a ocupar no contexto
do assentamento formado. Diferente da situação anterior que relatam como
um período de intensa participação, no presente são responsáveis apenas pelos
afazeres domésticos, com pouca, ou nenhuma relação com os novos desaos que
a conquista da tea trouxe para as suas vidas.
Mas deve-se observar como o processo de exclusão ou permanência dos/das
“jovens no campo, não é apenas um processo de reprodução cultural das famílias
camponesas. O caso analisado demonstra que a reprodução social da produção fa-
miliar eá imersa na realidade da exclusão social do “jovem oriundo de famílias de
baixa renda, e ainda, da reprodução das hierarquias sociais entre campo e cidade.
 Moura analisa o chamado direito costumeiro, mecanismo que cria estratégias de compra e
venda entre filhos, das suas parcelas da terra herdada, de maneira evitar a divisão da terra.
Contudo, esse mecanismo tem como característica a reconcentração da terra nas mãos dos
filhos homens, ainda que, legalmente, as mulheres recebam suas heranças.
N E A D E S P E C I A L
O f i c a r s a i r : l i m i t e s
e s c o l h a s
O paradoxo car e sair” é marcado não pela cobrança da atuação no lote e
pela continuidade do trabaho familiar, como também pela forte valorização da
formação escolar e mesmo do trabaho remunerado fora do lote, principalmente
com salário xo, o que, via de regra implica uma ocupação urbana. Mas, há uma
grande diferença entre a realidade concreta enfrentada por esses “jovens” e os seus
sonhos e expectativas a partir do estudo formal, quanto ao futuro prossional.
E, :
Apesar das diculdades de acesso, a freqüência à escola é prioridade para as fa-
mílias assentadas e nas demais áreas pesquisadas. Nos discursos dos aultos, o
estudo é associado a percepções que representam mobilidade social, onde a sua
própria condição de trabahador do meio rural aparece em posição de inferiori-
dade. Isto é, aciona-se imagens e construções do “homem do campo” associado
a atraso,falta de opção, falta de escoha, opção para quem não é inteligente.
A partir da denição de classe object em Bourdieu (), pode-se armar que essa
seria a reprodução de uma construção dominante no universo urbano.
O trabaho externo também é muito valorizado pelas famílias. No caso do
assentamento os hos homens que atuam nos lotes trabaham fora, reularmente
ou de forma eventual “biscate,diária,dentro do assentamento ou em trabahos
urbanos. Freqüentar a escola não representa, necessariamente, um impedimento
para a participação no trabaho familiar, o trabaho externo, muitas vezes, marca
uma ruptura temporária ou denitiva. A principal ocupação desses “jovens”/ho-
mens é trabahar na construção civil, seja em pequenas obras, informalmente, ou
para rmas com carteira assinada. As has seuem outra dinâmica, buscam em-
prego, principalmente no comércio e em aluns casos, como doméstica/babá, mas
têm mais diculdade de se colocar no mercado. Esse fator se associa a um maior
controle da família sobre as muheres, principalmente “jovens,que são proibidas
 Na localidade existem escolas de
a
a
a
série do ensino fundamental, a partir da
a
série do
ensino fundamental os filhos de assentados precisam se deslocar seis quilômetros em média,
para núcleos urbanos próximos. Esse trajeto é realizado a ou de bicicleta que não existe
transporte público que atenda o assentamento. As famílias lançam mão de diversas estratégias
para garantir a continuidade do estudo dos filhos, tais como: levar e buscar os filhos mais
novos; garantir que andem em grupo; etc. A falta de transporte praticamente inviabiliza a
freqüência à escola no horário noturno.
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ou sofrem muitas restrições quanto à circulação dentro e fora do assentamento.
A renda do trabaho aparece nos relatos como central para a autonomia do “jovem
frente à família, e principalmente à autoridade paterna. Ainda assim, diferenças.
Para aluns desses “jovens,” esse trabaho tem como principal objetivo a manuten-
ção do lote, para outros o trabaho é o começo do processo de saída” do assenta-
mento. Para outros, ainda, uma combinação de interesses pessoais e da família,
isto é, a necessidade de atender seu consumo individual e de ajuda a família. As
Forças Armadas se conrmaram como uma careira almejada principalmente por
“jovens homens. Para os homens o alistamento militar obrigatório representa um
processo de conquista de libedae, mesmo sem sair da casa dos pais, que apareceu
em expressões como asumi minha ida e não era mais mandao.
Apesar de a maioria dos hos que trabaha fora do lote ear inserida no setor
de serviços, ee não é o sonho e nem o que os mantêm ou os impulsiona para a
escola. Para muitos o desejo é por careiras tradicionais.” Observando alumas
das manifeações de possíveis careiras, encontramos muita insistência em pro-
ssões das chamadas ciências agrárias. Em aluns casos, o desejo por ees cursos
vão ao encontro da sua relação com o lote ou mesmo do desejo de manterem
aluma relação direta com o trabaho na tera em Eldorado. Mesmo entre aqueles
que não m interesse no trabaho na roça e/ou em permanecer no lote, os cursos
de ciências agrárias são muito desejados.
Mas a realidade é bem distante dos sonhos, e a tendência para esses “jovens
é uma inserção em condições precárias no mundo do trabaho, tanto parahos
de assentados, ex-assentados, morando ou não no assentamento, e mesmo “jovens
urbanos da região, sejam homens ou muheres. A descrição dos sonhos dos hos
dos assentados, em aluns casos, parece apontar para um desejo de ruptura, no
futuro, com o lote e com o assentamento. Já o seu trabaho externo pode promover
uma ruptura de fato. Ainda assim aluns “jovens, principalmente rapazes aproxi-
mam o sonhode fora com o desejo de permanecer no lote. No caso, esse tipo de
formulação foi mais encontrada entre os que moram em Eldorado, que são prová-
veis sucessores, isto é, “jovens”/homens que atuam e/ou gerenciam o lote ou que
pretendem assumi-lo no futuro. entre os que moram fora do lote, em sua maioria
hos de meeiros, principalmente muheres, o desejo é sair denitivamente da área.
Mas, para além das limitações impostas pelo contexto econômico e social
em que vivem, esses muitos sonhos descortinam a complexidade do perl” dos
“jovens.A multiplicidade de interesses o caminha em uma única direção, ao
contrário, ora se aproximam, ora se distanciam do “mundo rural,” apresentando
diferentes formas de rupturas e continuidades. Trazem, mais no discurso do que
na prática, construções diferentes sobre a relação entre mundo urbano e rural,
ou mais precisamente, careiras consideradas urbanas e os valores, frutos da so-
cialização no meio rural. Não se observa a ênfase no tensionamento “car e sair.
N E A D E S P E C I A L

A vivência marcada pela circulação e socialização em espaços considerados urba-
nos e rurais aparecem como o somatório de possibilidades e sonhos” no campo
do desejo, ainda que a realidade possa construir outros caminhos. Observou-se
a relação do “jovem com a “tera,” onde “car” ou “sair,” é mais complexo do que
muitas vezes apontada em pesquisas sobre juventude rural (DESER: et al),
isto é, como uma simples atração pelo mundo urbano e desinteresse pelo trabaho
rural. Contudo, os interesses, inserções e atitudes em relação ao lote conrmam
tendências percebidas em outros estudos sobre as formas de socialização que
diferenciam “jovens” homens e muheres no campo.
A :
A tese apontou que os processos de reprodução social eão permeados pelo
paradoxo car e sair,mas principalmente pelo peso” da autoridade paterna.
As percepções sobre o “jovem eão marcadas pela construção de que esse “jovem”
deve ser vigiado e controlado. O peso da autoridade paterna no espaço doméstico
é reproduzido nas relações de trabaho familiar e na organização do lote e eá
presente nas famílias. Essa autoridade cria mecanismos de vigilância e controle
sobre os “jovens,principalmente muheres que se eendem para o assentamento
e para os espaços que freqüentam.
Sair de casa pode signicar uma ruptura com a posição de dependência eco-
nômica e subordinação à família. Esse processo tende a ocorer em etapas.Um
primeiro momento é freqüentar a escola, que gera uma circulação “permitida,” o
contato com novas redes de sociabilidade e amplia o debate sobre o futuro.Mas
essa saída não altera construções familiares quanto à necessidade de controle
desse “jovem,ao contrário, ir à escola traz novas preocupações para os pais em
relação aos hos que passam a car fora do alcance dos seus ohos e das redes
familiares que permitem a vigilância continuada.
Um caso emlemático é o da Jaqueline (anos). Fiha de Jaques, atualmente
casada e moradora em bairo urbano de Seropédica, contou, com muita tristeza
as diculdades que passou, por seu pai não conar em suas atitudes, que cul-
minou com sua saída da escola, sintetizada na expressão: desanimei. O intenso
controle do pai é motivo de sentimentos de ergonha e indignação. O mecanismo
de controle mais marcante e explícito foi o caerninho. Criado pelo pai após uma
suensão da escola, Jaqueline acatou o mecanismo, mas se sentiu injustiçada.
A própria suensão, para Jaqueline, foi fruto da incompreensão da escola sobre
suas eecicidades, como morar longe e ir a pé à escola e as diculdades decor-
rentes dessa realidade, chegar no horário e manter o uniforme limpo. Da mesma
forma o pai não conava nela e também não compreendia as diculdades impli-
cadas na distância da escola. Como descrito no relato abaixo,

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
Uma vez eu fuiestudar sem a lusa de escola, tava suja e a diretora não deixou eu entrar.
que pra mim não ir embora sozinha, que eu tinha medo […] Fiquei do lado de fora
[…] conversando com o pessoal que também tinha sido barado. , nisso, a diretora viu
a gente […] e deu suensão. […] e falou que a gente só ia entra de novo com o pai. E eu
com medo de contar aquilo pro meu pai que ele não ia entender de jeito nenhum. […]
Quando meu pai foi na escola, eles colocaram um mês de falta pra mim. […] ue o
era verdade. ue as vezes, na sala o professor fazia chamada, […] nem sempre a gente
ouvia. […] as vezes nem fazia chamada.[…] Aí meu pai começou a dizer que eu ia pra
escola e não estudava. Aí ele fez um caderninho. Eu tinha que chegar na escola, assinava a
hora que eu entrava e a hora que eu saía. […] E eu moria de vergonha.[…] eu chegava na
escola […] ia na secretaria, dava o caderninho, a diretora assinava, cava o caderninho lá.
Depois eu saía, ia lá pegava o caderno e ia embora. Então era o seuinte: se eu saísse seis
horas, ele queria que sete horas eu estivesse em casa. Nunca dava tempo. […] eu ia a pé
com medo de passar da hora. […] De vez em quando ele ohava, não era sempre ali, não.
Mais no começo que ele ohava. Aí quando foi no ano de  [quando mudou de escola],
eu falei assim: Não quero saber dessa porcaria mais não! Eu num vou fazer isso mais não!
No dia que ele peruntar eu num quero nem saber! Aí eu num levei mais caderno. […].
O episódio mostra como a autoridade paterna pode ser exercida atras de
mecanismos de controle direcionados principalmente para as “jovens e contar
com a conivência da instituição escolar. Esse controle tem como motivador, ou
justicador, a falta de conança naqueles que são identicados como jovens, seja
pelos pais, seja pela própria escola.
A ocupação externa remunerada, apesar de ter caraerísticas similares da ida
à escola quanto ao deslocamento, pode transformar parcialmente as relações in-
ternas na família e a percepção sobre esse “jovem.A diminuição da dependência
econômica da família, e sua contribuição para a composição da renda doméstica
podem ser razões dessa percepção diferenciada, que, em aluns casos, resulta em
maior autonomia de circulação para hos, mesmo muheres, isto é, de forma
menos controlada. Mas esses dois processos não representam necessariamente a
saída de casa, que pode vir a ocorer de forma denitiva em função do casamento
e do serviço militar.
Mas, uma das principais motivações do uso de mecanismos de controle dos
pais é a reulação da relação entre rapazes e moças, que acionam desde a vigi-
lância direta de familiares, até a total interdição. Os mecanismos de reulação
são mais utilizados com as has. Os pais evitam que as has freqüentem espa-
ços onde não possam exercer controle ou onde não existam redes de vigilância.
O mecanismo dos “jovens,principalmente das “jovens,usados para contornar
o que consideram um excesso de controle é o naoro escondido. Esse mecanismo
é comum entre casais formados por jovens muheres do assentamento e seus na-
N E A D E S P E C I A L

morados, sejam eles de dentro ou de fora. Embora não tenha presenciado nenhum
caso de casamento forçado, aluns pretendentes das “jovens quando o namoro
eá em processo de ocialização, isto é de aceitação pelo pai o rejeitados.
É menos comum namoradas que são de fora do assentamento sofrerem “interdi-
ção.O namoro aparece como proibido nos relatos dos “jovens” sobre a época do
acampamento e início do assentamento, o que não impediu a prática constante da
paquera e do namoro entre eles. Sempre escondido, o namoro só se torna púlico
quando ca séio.
Em mais de uma ocasião a presença ou intromissão dos pais nas entrevistas
reforçou a percepção sobre os mecanismos de controle. Como na entrevista da
Raquel ( anos) que só falou sobre namoro nos poucos momentos em que a mãe
e o pai não eavam presentes. Na ocasião, o pai eava deitado em seu quarto
e a mãe acompanhava a entrevista que fora marcada com as suas has. Só nos
momentos em que foi preparar café ou foi buscar um copo d’áua para a pesquisa-
dora, foi possível conversar mais reservadamente, quando a ha mais veha usava
um tom de voz quase de sussuro. A presença da mãe não ocoreu na entrevista
com o ho Roberto ( anos), que foi feita no quintal da casa, sem a presença de
ninuém e com o consentimento dos pais.
A severidade de aluns pais/avôs que não aceitam qualquer negociação quanto
ao controle sobre as has/netas as exclui de atividades externas, mesmo orga-
nizadas pelas igrejas. Mas não uma explicação clara por parte dos pais e nem
dos “jovens sobre a razão da proibição do namoro. A principal queão associada
ao namoro é a preocupação com a gravidez das has. Apesar de todo o controle,
mesmo nas famílias consideradas mais rígidas, ocoreram casos de gravidez du-
rante o namoro ou mesmo sem um namorado ocial. Esse foi o caso Deise (
anos), ha de Daniel e Dolores; Jaqueline (anos), neta de Daniel e ha de Ja-
ques; Claudinha (anos), ha de Celso e Carmosina, da rede dos acampados;
Karina ( anos), ha de Joaquim, da rede dos meeiros; e Rosali ( anos), ha de
Romana, que não é de nenhuma das duas redes. Após a revelação do fato, as has
foram acohidas por seus pais e receberam apoio. Esse foi o caso de Jaqueline que
engravidou durante o namoro que escondia do pai. Sua narativa recupera a rela-
ção dicil com o pai, e o processo de negociação para ocializar o naoro escondido,
J – Foi escondido. […] até que minha mãe falou pra mim. […] Ó, se vonão
terminar com ele vou contar pro teu pai.eu peuei e falei com ele [namorado] que não
dava certo. […] Por causa do meu pai. Porque todo mundo dizia, meu pai tinha fama de
bravo. Meu pai ali dentro era terível. Então ninuém podia chegar perto.[…] Eu, ali com
os meninos, a gente brincava, mas eu tinha que tá sempre afastada, não podia ter aquela
amizade, que ele sempre pegava no meu pé. […] aí ele foi lá e pediu meu pai pra namorar
em casa.[…] Meu pai conversou com a minha mãe e depois deixou, resolveu deixar.

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E – E sua mãe, nessas horas?
J Minha e, ela falava: “Poxa! ue hos de seus amigos, mais novos que
ela, já tão namorando. ue proibir é pior” Então, minha mãe deu mais força.
Apesar da proibição inicial e de fortes mecanismos para evitar que cassem
sozinhos, durante o período do namoro Jaqueline engravidou, o que trouxe mo-
mentos de forte tensão, tanto para Jaqueline quanto para sua mãe, acerca de qual
seria a reação do pai,
[…] Então, meu pai como tinha […] aquela fama dele de ser brabo […] Ele falou, que se
acontecesse [gravidez] ele botava eu e ela [mãe] pra fora de casa. Então aquilo foi medo.
Tanto meu como dela. E ela começou a sueitar porque eu sempre vinha junto com o
dela. Aquela coisa ali era controlado, meu e dela junto. […].
Mas o pai reagiu muito diferente do que as ameaças que sempre fazia,
fui no dico z um exame. ela [mãe] chegou pro meu pai conversou. […] Quando
foi de noite ele viu o exame, minha mãe mostrou. Num falou nada, viu que deu positivo.
[…] no outro dia, chamou a gente conversou. Oh, a única coisa que eu quero, teu jeito
e aruma uma casa pra vocês. Cês vão casar e arumar uma casa pra vocês morar.” Aí ele
mesmo coreu atrás, arumou dinheiro pra poder pagar cartório. A gente casou. […] fez
fea, ele tinha pegado um dinheiro, deu pra gente […] foi ele que foi meu padrinho, do
casamento. Então foi totalmente diferente do que a gente pensava. […] Eu até lembro
uma vez […] quando ele trouxe um monte de roupinha de neném, trouxe mosquiteiro…
[…] Então, aquilo, poxa! Foi totalmente diferente do que…
Apesar do controle, a gravidez antes do casamento é comum na área, o que
pode signicar que a gravidez precoce, ou da “jovem solteira e o casamento po-
dem ser formas limites de se libertar da autoridade paterna. O caso de Jaqueline
é emlemático, principalmente por não ser um caso isolado, mas por representar,
de forma extrema, as relações de controle.
Essa imagem do jovem precisando de controle e constante vigilância, re-
corente em todas as áreas/contextos estudados, aproxima as percepções sobre
os que o identicados como jovens. As relões familiares e demais redes
sociais permitem um maior controle, eecicamente nos espaços internos
ao assentamento e nas outras áreas analisadas. Embora os hos sejam citados
 Mais de uma entrevistada citou a compra do absorvente íntimo pela mãe, como forma de
controle do período menstrual das filhas. A o utilização do absorvente, segundo Jaqueline
foi o que denunciou sua gravidez.
N E A D E S P E C I A L

como muito responsáveis, principalmente quando o tema é trabaho e estudo,
existem inúmeros mecanismos de controle e forte associação dos que são perce-
bidos como jovens no assentamento com a imagem de pouco conáveis.” Dessa
maneira, reforça-se a imagem de jovem trabahador e estudioso no discurso,
mas, na prática, não há conança para que ele possa circular autonomamente,
ou lire. Embora a violência na região seja um elemento concreto e reconhecido
por todos, o controle dos pais vai muito além da preocupão com a exposão
à vioncia urbana. Isto não é apenas caraestica de um período, uma idade
eecíca. O controle é exercido enquanto o “jovemestiver vivendo com os
pais, principalmente no caso das has, o que reforça a saídade casa e do as-
sentamento como forma de alcançar autonomia. Mas, para além do controle
sobre a circulação dos hos, a autoridade paterna é sentida pelos “jovensna
descrição recorente da falta de participão nas decisões sobre a produção
familiar no lote e mesmo nos espaços de organizão do assentamento, através
de falas como “Ele [pai] o ouve ninué. “O jovenão te ez, como será
tratado a seuir.
O :
Ao longo do processo de luta, ou nos primeiros diceis meses do assentamento, os
“jovens experimentaram um processo de construção de identidade que valorizava
a conquista da tera. Isso foi relatado com oruho ao falarem sobre a participa-
ção na luta e nas mobilizações. O fato dos pais desejarem conquistar a tera teria
fortalecido esse vínculo, e que teria sido um incentio para lutare juntos com os
pais e aprenderem o trabaho na lavoura. Ao lembrarem da época citam a intensa
atuação dos jovens e das cianças. No entanto, após muitas conversas e entrevistas
gravadas os “jovens começaram a se manifear sobre os prolemas enfrentados
por causa da autoridade paterna. A principal “queixa é a falta de espaço para se
expressarem e o fato de não serem ouvidos. Isso é localizado por eles já na época
do acampamento, mas teria se intensicado após a formação do assentamento.
Seundo armaram, não são ouvidos nem em casa quanto à produção, e nem na
Associação. As assemléias ordinárias da APPME são descritas como espaços
pouco favoráveis para a sua participação e por isso freqüentam pouco Não aianta.
Ninué ouve o jove., como podemos perceber no diálogo entre Emanuel e seu
sobrinho Francisco ( anos),
E – Nas reuniões normais da Associação os jovens podiam falar?
S. E – Também.
E – E falavam?

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
S. E Não porque nas reuniões normais era mais pros adultos né, sempre
que os jovens falassem não ia ser muito aproveitado.[…]
F (fala baixinho) – Ninuém escutava.
Ou na fala do Bruno, ho de Bartolomeu,
B – Assim de vez em quando eu ia [nas reuniões da APPME] com meu pai.
E – O que você lembra dessa época? Os hos participavam das discussões?
B – Não.
E – Você acha que não participavam por quê?
B – Não tinha muito espaço porque… cava mais os pais ali conversando. O grau
de inuência dos hos, a escolaridade, uma série de coisas e o pessoal aqui já tinha… os
hos basicamente não participavam.
E – Sempre foi assim Bruno? Ou teve alum momento que os hos participavam mais?
B ue eu me recordo foi sempre assim. De vez em quando tinha uma partici-
pação, mas era muito fraca em relação aos próprios pais.
E – E aí quem participava, os hos mais vehos?
B Era digamos os hos que tinham mais escolaridade que tinham mais
(silêncio)
E – uem que você se lembra assim que chegava a participar na hora da discussão?
B – Assim eu não me recordo. (EBruno:)
A principal reclamação é o fato de o serem ouvidos e de serem tratados
como cianças, isto é, não terem suas opiniões valorizadas. Diego ( anos), um
dos poucos “jovens que participam das reuniões, relatou um tipo de episódio que
teria se repetido várias vezes e contribuído para a situação de desinteresse dos
jovens pelas reuniões, e que pode ser lido como a desqualicação da participação
daqueles identicados como jovens.
E – Eu só vejo, na verdade, vocês e os hos da dona Carmosina participando de reunião
da Associação. Foi sempre assim?
D – Não, antes não tinha nem jovens que participava de reunião. Porque uma vez
o Horácio [anos, solteiro, à época da reunião], ho do seu Haroldo, queria dar uma
palavra, e ele não era totalmente jovem, criança, era assim o mais novo na reunião, mas
não era criança […]. Então o seu Tadeu [então presidente da APPME] falou que criança
não podia opinar. Então cou assim muito marcante, a pessoa querer dar a opinião e não
ser escutada, e afastou bastante os jovens da reunião.
E – Nessa época os jovens participavam mais?
D – Participavam mais. Afastou bastante os jovens porque […] não tinha espaço,
era uma coisa assim meio critica, até hoje… […].
N E A D E S P E C I A L

Essa fala introduz a participação na Associação como um espaço hierarquiza-
do. Diego, e depois outros “jovens,” apontaram que não há interesse na participa-
ção cotidiana dos jovens. Outro relato, o de Jaqueline, reforça a percepção dessas
relações de hierarquia. Ela lembrou de um episódio onde diante de uma perunta
que fez sobre dívida de crédito do Programa Eecial de Crédito para a Reforma
Agrária (Procera), os aultos riram.
E – Mas antes, quando você era do Mutirão, se você desse um palpite, as pessoas ouviam?
J – Eles não dão muita trela pros jovens não sabe. A gente não tinha muita
voz ativa não. Era assim, eles queria a gente pra votar, mas pra falar aluma coisa não.
E – Eles reclamam que vocês não participavam.
J– E quando a gente participava eles não deixavam fazer nada. […] Eu lem-
bro que uma vez, […] eu tinha casado, teve uma reunião pra falar sobre negócio de
pagamento do Procera […]. Então escutando ali a conversa eu falei assim, peruntei se eu
podia falar. “Vem cá uma pessoa quando more, a dívida more ou a família tem que…?”
[…] Uma perunta que eu acho que interessava a todo o mundo. […] Aí riram de mim,
riram de mim. […] O pessoal que eava na reunião, riram de mim. […] Então quer dizer
muitas das vezes era isso que acontecia, a gente falava aluma coisa…
Nesse mesmo relato Jaqueline classicou como jove, Dália a ex-presidente
da APPME com que tínhamos travado contato no início do trabaho de cam-
po. Apesar da resistência à participação dos “jovens,uma “jovem Claudinha
( anos) integrou como secretária, a chapa da direção, cujo presidente foi o Eder.
Sua participação foi negociada com seu pai. A proposta de integrar a chapa, se-
undo relatos de sua mãe e dela própria, deveu-se a sua intensa participação nas
atiidaes dos jovens (encontros e projetos). Mesmo assim, seu pai que atuou
junto com a esposa nas mobilizações após a formação do assentamento resistiu
à sua participação. Claudinha debitou essa resistência ao fato de ser lha mulhe
e avaliou que se fosse um dos irmãos não haveria prolema. Apesar da sua par-
ticipação, nem ela e nem os demais “jovens perceberam um maior espaço na
diretoria ou na Associação. A posição que ocupou na diretoria, secretária, foi a
mesma que outras muheres ocuparam, como Dália na última geão de Tadeu
e Emiliana na própria diretoria em que Dália foi presidente. Esse fato pode con-
tribuir para se entender o episódio tratado na introdução desse trabaho, qual
seja, a resistência dos associados à única vez que uma muher ocupou o cargo de
presidente da APPME. Retomando os encontros com Dália e as impressões que
ouvimos sobre sua geão, pode-se armar que embora a própria Dália o tenha
se identicado como jove, ela era percebida assim à época em que ocupou o cargo
e, como tal, tratada a partir de referências de pouca conabilidade que os jovens,
e mais ainda as jovens, armaram experimentar como tratamento recebido pelos

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aultos. Assim os que são percebidos como jovens e principalmente, jovens muheres,
tendem a ocupar uma posição inferior nas relações de hierarquia social. Relações,
eas, reproduzidas cotidianamente na família e nos demais espaços de sociabilidade
controlados pelas redes sociais que se formaram a partir da área rural estudada.
C
“Ficar” ou sair,tratado analiticamente como paradoxo e não mera escoha, per-
mitiu aprofundar o prolema sociológico proposto: a saída dos “jovens do meio
rural; e a própria categoria “jovem rural” como uma construção social marcada
por processos de hierarquia. Nesse sentido, sair” ou car” deve ser observado
para além dos interesses pessoais, ainda que sem negligenciá-los, como parte dos
processos de reprodução social do campesinato. Nesse sentido, como processos
que incluem, excluem e hierarquizam indivíduos, principalmente no que tange
a “jovens” homens e muheres.
Mas outro viés observado é central para o debate do prolema posto em
queão: as limitações enfrentadas para a reprodução da família nos marcos da
política de assentamentos rurais. Considerando as eecicidades dos assenta-
mentos rurais, assim como da produção familiar, há preocupações dos pais, dos
mediadores, e mesmo do poder lico, quanto à reprodução das relões de
produção familiar como o processo de saída dos hos de casa. Contudo, o pro-
lema costuma considerar pouco as diculdades ou quase impossibilidade dos
“jovens solteiros, e mesmo casados, se eabelecerem no mesmo assentamento
ou em outro próximo, na medida em que não há mecanismos de expansão do
núcleo familiar. Para se permanecer no mesmo assentamento seria necessário
pagar as benfeitorias para alum assentado que quisesse repassar o lote, capital
que nenhum dos entrevistados mostrou ter disponível. Ainda assim, essa “solu-
ção dependeria de razões adversas, na maioria das vezes, não desejadas pelos
próprios assentados a saída de uma família do assentamento. É importante
frisar que nenhum “jovem apresentou em seu discurso, a intenção de se ea-
belecer no assentamento em que vivia através desse mecanismo. Assim, car” e
sair” do assentamento eão nos marcos da própria Política Nacional de Reforma
Agrária. Assim o(a) “jovem solteiro, ou casado, que queira permanecer na tera
terá que buscar alternativas.
A investigação expôs as limitações e impedimentos da realidade enfrentada
no campo pelas famílias e mesmo na cidade, pelos “jovens,tanto para dar con-
tinuidade ao sonho da tea, quanto para buscar concretizar outros desejos, e
ainda para possíveis conciliações dessas esferas. Os conitos entre os sonhos e a
realidade vividos por esses “jovens e o paradoxo car e sair do discurso dos pais
são expressões de processos de mudanças que operam tanto no sentido amplo
N E A D E S P E C I A L
nas relações econômicas e sociais que envolvem o mundo agrário brasileiro, e
naquela região eecíca quanto em uma maior atuação do indivíduo, princi-
palmente dos chamados “jovens,” nas relações em família, na comunidade e nos
universos rurais e urbanos.
Nee sentido, a própria categoria “jovem é construída e acionada, nessa e
a partir dessa realidade, que muda constantemente, mas que mantém laços de
continuidade, expressas, por exemplo, nas formas de reprodução social da divisão
sexual do trabaho. Como primeiro corte, vimos que esses processos de reprodu-
ção social demarcam diferenças entre homens e muheres nas relações familiares
que gera a exclusãodas “jovens do processo de sucessão. Essa exclusão não é
evidente. A idéia da sucessão, com base no interesse e na aptidão, que paira sobre
aluns rapazes, presente no discurso de rapazes, moças, pais, etc, conrma a exclu-
são. No caso das moças pode ser expressão da internalização das probabilidades
objetivas (B,). A ruptura das muheres da última geração, no que
concerne ao interesse pela tera pode expressar uma “respostaà desvaloriza-
ção do trabaho das muheres no lote, e da perectiva de não vir a ser herdeira,
mas parece ear também relacionada à autonomia frente à autoridade paterna.
O forte controle dos pais, irmãos e outros membros masculinos da família pode
ser uma das principais razões da “saída de casa.
A análise dos diferentes contextos etnográficos mostrou que ser jovem
em acampamentos e assentamentos rurais es marcado por tensões entre
o “sonho” e a luta pela terra e, ainda, nos conflitos decorrentes da autoridade
paterna. Pensar a inseão desse e dessa “jovem” no meio rural hoje, implica
enfrentar o esforço de analisar as construções nativas da categoria e suas
disputas, e as pprias relações hierárquicas reproduzidas nessas realidades,
onde jovem ocupa um papel privilegiado nos discursos mas não nas pticas.
Nesse contexto, a jovemsofre esses processos de hierarquizão de forma
ainda mais intensa. “Jovemé uma categoria que permite percebermos pro-
cessos que refoam relações sociais marcadas pela hierarquia e autoridade,
que envolvem a posição de pai/adulto/chefe de família e “responsável” pela
terra em oposição a filho/jovem/solteiro. Neste contexto, jovem é percebido
em muitos discursos como os “jovens homens.As mulheres sofrem, dessa
forma, o processo de exclusão na reprodão social do campesinato, marcada
pela divio sexual do trabalho e formão de futuros sucessores/herdeiros,
e mesmo, nasqueixas” quanto aos jovens que eso indo embora. Olhar para
a chamada juventude ruralimplica observar essa realidade multifacetada
marcada por hierarquias, autoridade, disputa de classificações. Mas, acima de
tudo, olhar para os que vivem a experiência cotidiana como “jovens” homens
e mulheres em um meio rural com suas constantes mudanças e suas muitas
continuidades.
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Mulher igual natureza?
As políticas de desenvolvimento
sustentável de uma
perspectiva de gênero
A N A LO U I S E D E C A RVA L H O F I Ú Z A
U
E uma naturalidade e
legitimidade que fazem parecer que ele é constitutivo da história da humanidade,
ou pelo menos da história do mundo ocidental, a sua trajetória é relativamente
curta. É no culo XVIII, quando o trabalho” deixa de ser visto prioritariamente
como castigo, penosidade, algo ligado ao destino dos “menos capazes,” e se trans-
formando em vocação,em convicção de uma obrigação,em condição de me-
recimento do paraíso, em fator legitimador das posses que o indivíduo conquista,
que torna-se perceptível a mentalidade pró-desenvolvimentista.
ompson (), em Costumes em comum nos ajuda a compreender a
constituição das condições materiais que favoreceram a propagação da ideologia
do progresso e do desenvolvimento, primeiramente na Inglatera e de para o
reo do mundo, ao mostrar que o cercamento das teras livres, de caráter co-
letivo, que até o culo XVII, eram propriedade comum dos habitantes de uma
localidade, foi ao longo do século XVIII, após violentas contendas e conitos
populares, protagonizados por aqueles que se rebelavam contra a apropriação
privada das antigas teras comunais, se “naturalizando,gradativamente, com
base na justicativa da razoabilidade da apropriação privada individual da tera,
como decorência do trabaho daquele que era capaz de transformá-la e explorá-
la para o sustento da sua família e para a geração de riqueza.

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ompson demonstra existir na Inglatera oitocentista uma conuração
social em torno de um campo de forças em torno do cercamento das antigas
teras comunais.Embora existe, araigada na cultura inglesa, no Direito Comum,
a noção consensual de que a propriedade não provinha de Deus, mas, sim de uma
herança doada por antigos povos, o que facilitava a aceitação da idéia de proprie-
dade, a privatização individualizada da tera, constituía-se em uma quebra de um
direito costumeiro, da dura resistência que a transformação do mesmo sofreu.
No Direito Comum inglês, a propriedade coletiva das teras, não eava ligada
a uma decorência natural, por se acreditar que era da vontade de Deus, mas
antes a um fato histórico, visto se acreditar ser derivada de uma conquista por
parte dos ancestrais de teras que foram, então, deixadas para seus descendentes.
O Direito Comum inglês pretextava que, em alum momento muito tempo,
as teras comunais foram doadas por bondosos proprietários de tera saxões ou
normandos, dee modo a idéia de propriedade, ainda que coletiva, existia nos
costumes dos ingleses.
Locke tomou, então, como paradigma para legitimar a propriedade privada, o
trabaho, encarado como a única propriedade original, eabelecida com base no
domínio do homem sobre si mesmo e de suas os sobre o que era comum. Pelo
trabaho ele anexou ao que era comum algo que excluía o direito comum dos ou-
tros homens. A economia política ajudou e favoreceu a propriedade privada. Para
Adam Smith, a propriedade era perfeita e absoluta ou não tinha valor. Seundo
ele, apenas sobre a proteção do magistrado civil é que o dono dessa propriedade
valiosa, adquirida com o trabaho de muitos anos, ou talvez de muitas gerações
sucessivas, pode dormir ao menos uma noite em seurança.
Foi uma proeza de Adam Smith trocar os termos da análise de uma linuagem
de direito para uma linuagem de mercado. No nal do século XVII prevale-
cia a noção cada vez mais absoluta de propriedade. Para os proprietários de
tera, a propriedade fundiária eava se tornando cada vez mais subordinada
ao contrato, assumindo as qualidades e funções de capital. Os opositores do
cercamento passam a ser retratados como querendo viver sem trabahar. São
vistos como bucaneiros, que atacam, inveem, afogam ou roubam conforme he
apraz. Assim, os arumentos da propriedade e do desenvolvimento ligavam-se
aos arumentos da disciplina de classe. Vencidas as bareiras pró-propriedade
privada na Inglatera, a mentalidade inglesa se impõe sobre a mentalidade dos
colonizados, provocando uma inversão do que aconteceu na Inglatera, com a
lei capitalista se sobrepondo aos costumes.
Se, no caso da Inglatera as normas capitalistas do direito de propriedade
surgiram dos longos processos materiais de mudança agrária, quando o uso da
tera se desprendeu dos imperativos de subsistência e a tera tornou-se acessível
ao mercado, agora os ingleses impunham ea mesma lei ao reo do mundo, tra-
N E A D E S P E C I A L
zendo atrelada a ela a categoria trabaho,como constitutiva dos povos desenvol-
vidos em contrapartida aos atrasados. Trabaho e desenvolvimento justicavam o
direito à propriedade. A caça, a pesca, e até mesmo a plantação de miho e abóbora
em pedaços de tera não cercados, eavam certamente muito longe de sujeitar
a tera, portanto se caraerizavam por práticas próprias de povos atrasados.
A
:
,
O mundo que se erue, no Ocidente, a partir da Revolução Francesa, com a ascen-
são política da buruesia, é a expressão, seundo Elias (), de um longo processo
de desenvolvimento do controle dos afetos e dos sentimentos humanos mais pri-
mários. Uma importante etapa do processo civilizatório se apresenta quando, por
força crescente da divisão social do trabaho e do aciramento da competição entre
classes (buruesia e nobreza), o controle externo oriundo das tradições e normas
hierarquizantes é substituído pelo controle interno dos instintos. Para Elias, o
processo civilizatório não signica o desabrochar de mudanças racionais visando o
mehoramento da vida social, como para Weber, mas, antes disto, é visto como uma
necessidade, por parte da nova elite dominante, de se distinuir dos menos favo-
recidos de modo a se perceber legitimados na sua superioridade. A necessidade de
distinção social não é racional” ou seja, baseada em aluma eécie de necessidade
social fundamental. Ao contrário, ela é fundamentalmente arbitrária, estigmati-
zando comportamentos e favorecendo outros de acordo com as necessidades de
legitimação dos estratos sociais superiores. A justicação desses comportamentos
como mais saudáveis ou higiênicos é posterior a sua estigmatização. O interesse de
Elias é marcadamente desmisticador. A ele interessa apontar o caráter arbitrário
e derivado de justicações aparentemente neutras com reeito a valor.
A tese de Weber é a de que o proteantismo ascético foi o parteiro o inten-
cional desse mundo secularizado, precisamente, ao deslocar o prêmio religioso
para a repressão dos elementos afetivo e sentimental da personalidade em nome
do sucesso da empresa mundana. Ao invés da ênfase na fraternidade cristã típica
do catolicismo, temos a ênfase na competição de todos entre si, sendo o indiví-
duo, o fundamento moral último e o mais a coletividade. Os outros se trans-
formam de irmãos em competidores. Weber denominou o tipo de racionalismo
daí resultante de racionalismo da dominação do mundo, pela sua caraerística
de competitividade entre os indivíduos, o que leva à busca de controle tanto dos
instintos naturais humanos, quanto da natureza exterior.
Toda a ênfase legitimadora passa a ser conferida às noções de responsabilidade
e iniciativa individual. Weber evidencia a inuência determinante do protean-
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tismo calvinista para o desenvolvimento de uma racionalidade individualista e
dominadora, sobre a racionalidade grupal, emotiva, do proteantismo luterano.
Para Weber, a Revolução Francesa não se compara a uma verdadeira revolução
da consciência como a do proteantismo ascético. Instituições não se derubam
pela violência ou pelo sanue da vingança e do ressentimento. Uma real mudan-
ça institucional advém da conversão dos corações e mentes das pessoas. Weber
tratava o puritanismo como antecessor do liberalismo e individualismo moderno
e percebia o conteúdo político das lutas religiosas pela liberdade. Para Weber o
fundamento do individualismo moderno é que Deus deve ser mais obedecido
que os homens. Impressionava a ele a conexão entre puritanismo, democracia,
capitalismo competitivo e poderio mundial.
A
No Brasil, pensadores expressivos como Sérgio Buarque de Holanda, seuem ee
modelo weberiano, para descrever o homem cordial brasileiro como a antítese
do homem puritano, ou seja, a antítese do capitalista buruês, empreendedor e
desenvolvimentista. Enquanto o proteante ascético conduz sua vida a partir de
dentro, ou seja, por um ato de vontade que controla a emotividade em nome de
uma ação conseqüente no mundo externo, o homem cordial tem seu comporta-
mento determinado externamente, pela tradição, que leva a pessoa a acomodação
ao mundo. Caligaris () faz uma leitura mais atualizada da cordialidade do
brasileiro, seuindo a mesma linha de análise de Holanda, ao situar o homem
cordial brasileiro na modernidade vulgarizadora dos indivíduos. Caligaris carac-
teriza como vulgarização na modernidade, um fenômeno que se diferencia do
sentido de vulgar no século XVII, quando vulgar era apenas sinônimo de comum,
banal, próprio à massa do povo. Seundo nosso autor, após o culo XVIII, ser
vulgar passa a não ser sinônimo exclusivamente de pertencer ao povo, passando
a signicar, também, ser grosso e inferior.
Esta mudança, seundo Caligaris, se instaura pelo fato de a modernidade
decretar que somos todos iuais em princípio e em direito. Diante disto torna-se
útil frear e humihar as pretensões da barata. A vulgaridade é uma experiência
conservadora, uma resistência à mobilidade social moderna. Com o avanço do
capitalismo, os miseráveis, os pobres e os proletários passam a ser vulgares, por-
tanto, no que diz reeito ao seu estilo, que agora é necessário mais que a lei
para diferenciá-los dos indivíduos pertencentes a elite. O juízo de vulgaridade se
manifea como recurso da nostalgia aristocrática.
No Brasil a riqueza sem elegância é menos praticável ou encontra menos suces-
so que nos Estados Unidos. As relações sociais americanas são abstratas, jurídicas e
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mediadas pelo dinheiro como equivalente geral. A elite brasileira também é osten-
tatória, mas em um mundo que não é moderno, em que os direitos abstratos não
são garantidos e no qual a mobilidade social não é a regra. Vivemos no universo da
cordialidade. Cordial aqui não signica gentil, bem-humorado ou polido. Signica
uma maneira de se relacionar que se opõe às relações abstratas próprias ao mundo
moderno. No Brasil somos cordiais, lemos e praticamos os vínculos jurídicos como
laços afetivos. Seuimos confundindo subordinação com submissão. Somos contra
qualquer sistema abstrato de trocas e obrigações, preferimos a concretude comple-
xa dos favores. A cordialidade é o pano de fundo do universo social do favor, em
que dependências, exclusões e inclusões são vividas ao ritmo do coração.
Para Sérgio Buarque de Holanda, a predominância do tipo cordial” de homem
no Brasil explica porque não teríamos, até então, aqui, nem mercado capitalista
moderno nem democracia digna dee nome. A herança ibérica passa a ser inter-
pretada como sinônimo de atraso e anacronismo. Assim, presenciamos, no Brasil,
a substituição do paradigma racial pelo cultural, na explicação dos fatores capazes
de gerar a civilidade nees trópicos. O homem cordial de Sérgio Buarque tem as
mesmas qualidades desprezíveis do negro de Gobineau, caraerizada pela crença
no predomínio do reino do afeto e da emoção, por oposição às funções superiores
intelectuais e morais, apanágio do branco e do proteante ascético.
Jessé de Souza () vai chamar a atenção para o fato de que a visão do ho-
mem cordial brasileiro por parte de Sérgio Buarque, não comete nenhum eqvo-
co quando aponta a existência de permanências na formação societária brasileira
tradicional que implicam opressão, miséria e atraso econômico-social. Contudo,
ele acredita que a ausência de crítica ao projeto cultural do proteantismo ascé-
tico fragiliza potencialmente as alternativas de desenvolvimento para os nossos
prolemas. Não como se pensar que um racionalismo particular, no caso, o do
proteantismo ascético, seja erigido em exemplo absoluto para todos os outros.
O imperialismo a que nos sujeitamos tem a ver com o fato de se retirar a
autoridade moral do derotado de falar a partir de um ponto de vista particular.
O interesse de investigação de Weber não é o desenvolvimento das várias for-
mas de capitalismo, mas, antes, o desenvolvimento do capitalismo de empresa
buruesa, com sua organização racional do trabaho. É notório, que a forma pro-
priamente moderna do capitalismo ocidental foi determinada, em grande medida,
pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas, derivadas da ciência. Todavia,
a utilização da técnica e da ciência relaciona-se à forma como vão se legitiman-
do socialmente a busca pelas vantagens econômicas, que se traduz na estrutura
racional do direito e da administração, que por sua vez eão eruidos sob a base
da racionalidade do proteantismo ascético.
Assim, percebemos que apenas os interesses econômicos não podem explicar
na sociedade ocidental a criação do Direito Moderno. É preciso considerar que a
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intricada relação entre o desenvolvimento técnico e o direito racional, que marcam
a racionalidade ocidental, depende, também, da disposição que tem o homem de
adotar ees tipos de condutas racionais, presentes no direito e no desenvolvimento
técnico-cientíco. Quando eas racionalidades práticas se apoiaram contra obs-
táculos espirituais, o desenvolvimento do comportamento econômico racional se
chocou com graves resistências interiores. É importante ear atento para a forma
como alumas crenças religiosas determinaram o aparecimento de uma mentali-
dade econômica, o ethos de uma forma de economia: o capitalismo buruês.
D
Seundo Weber () o ascetismo na Idade Média associa-se com o sentido de
renúncia e morticação, signicando morticação da carne e purgação dos vín-
culos com o corpo. A revolta contra o ideal ascético iniciou-se no Renascimento,
com a revalorização dos aectos corpóreos e sensíveis do homem. Kant considera
a moral ascética como “exercício rme, corajoso e deemido da virtude e a con-
trapõe à ascese monástica, “que por temor supersticioso ou por horor hipócrita a
si mesma, costuma morticar e desprezar o próprio corpo,” castigando-se, em vez
de arepender-se moralmente, isto é, de tomar a resolução de corigir-se. Weber
chama a atenção para o suposto conito entre o aheamento do mundo, o ascetis-
mo e a participação na vida industrial do capitalismo: não uma relação contrária
entre ees dois aectos, mas uma íntima relação de anidade, combina-se uma
intensa religiosidade com um iualmente desenvolvido espírito mercantil.
Weber arma que a expressão espírito do capitalismo eá associada a um
complexo de elementos associados a uma individualidade histórica. Deaca as
frases de Benjamin Franklin como parte dee ethos particular, marcado pelo
utilitarismo. O reconhecimento da utilidade da virtude eá associado a uma
revelação divina. A aquisição econômica não mais eá subordinada ao homem
como meio de satisfazer suas necessidades materiais. Ganhar dinheiro dentro
da ordem econômica moderna é, enquanto for feito legalmente, o resultado e a
expressão de virtude e de eciência em uma vocação, é um dever prossional.
A idéia de dever prossional tão comum hoje era totalmente estranha nos
culos XVI e XVII. No passado as regras do capitalismo que hoje se impõem,
como algo sem escoha, foram, na verdade, selecionadas como um modo de vida
entre outros. Para que ee modo de vida típico do capitalismo pudesse ter sido
selecionado e dominasse os outros, ele teve que conquistar grupos inteiros de
homens. Para Weber, ao se analisar onde o modo de vida tipicamente capitalista
apareceu, percebe-se como o materialismo histórico de Marx faha ao apontar
as idéias como um reexo” ou como superestruturas de situações econômicas.
Seundo ele, o espírito do capitalismo aparece antes do capitalismo moderno.
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Seundo o autor, é preciso entender que o espírito do capitalismo traz como
inovação o fato de não poder admitir homens de negócio inescrupulosos, me-
nos ainda, pode fazer uso do trabaho daqueles que praticam o livre arbítrio. O
oponente mais importante contra o qual o espírito do capitalismo, no sentido
de um estilo de vida normativo, baseado e revestido de uma ética, teve de lutar,
foi esse tipo de atitude e reação às novas situações, que podemos designar como
tradicionalista. Dentro dos parâmetros normativos do modo de vida tradicional,
a oportunidade de ganhar mais era menos atrativa do que a de trabahar menos.
Já no novo ethos capitalista, o trabaho deve, ao contrário, ser executado como
um m absoluto por si mesmo, como vocação.
O importante a se deacar, no que diz reeito à construção de um imagi-
rio pró-desenvolvimento, é que o mesmo se constrói a partir do ethos capitalista,
que tem no trabaho uma vocação e um instrumento de domínio e exploração da
natureza. Essa etapa da história da humanidade passa a ser encarada como a fase
adulta do homem, quando ee atinge sua maturidade emocional e intelectual.
Dentro do raciocínio evolutivo e rma-se a noção linear de progresso: aqueles
que eão inseridos dentro do modelo de sociedade buruesa, cientíca e indus-
trializada, eão na ponta da linha de chegada, e aqueles que se encontram dis-
tantes do uso dea racionalidade cientíco-industrial encontram-se na infância
da humanidade. É interessante observarmos que até mesmo o marxismo revolu-
cionário, antiburuês, eava imbuído dessa mentalidade evolutiva, defendendo
como uma necessidade iredutível a passagem daqueles que se encontravam fora
do modelo societal buruês, que por ele passassem, para que pudessem atingir
após a superação desse modo de produção, o comunismo. Assim, se eabelece
no mundo ocidental uma perectiva linear e hierarquizante, que negava a di-
versidade de modos de vida e de racionalidade, defendendo a uniformidade do
ethos capitalista buruês.
Esta uniformidade linear que se instaura como meta de desenvolvimento
das nações democráticasocidentais, ganha ênfase com o modelo fordista de
desenvolvimento. O fordismo se caraeriza pelo binômio industrialização-pro-
dutivismo. A meta era moderniza/industializa as cidaes; e fornece alimentos
baratos para os trabalhaores urbanos, combatendo a fome e aeaça de revoluções
comunistas. A Guera Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos se torna
uma ameaça para os países democráticos,que respondem à mesma com um
modelo de eado assistencialista: o elfare-state (eado do bem-ear social).
O período do fordismo do eado do bem-ear social passa para a história como
o período do pleno emprego, em decorência da expansão da industrialização e
do mercado consumidor de bens de massa; do fortalecimento dos direitos sociais
e trabahistas, defendidos pelos sindicatos de classe. Nesse período a agricultura
cumpre um papel preponderante, por ear estritamente atrelada à moderniza-
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ção/industrialização, haja vista a necessidade de produzir alimentos em massa
para um exército de trabahadores urbanos, assim, a agricultura passa a ser inten-
samente reulada pelo Estado em nível nacional, oferecendo ee, subsídios aos
agricultores, preços controlados, crédito, assistência cnica difusionista e todo o
pacote tecnológico da revolução verde (fertilizantes, herbicidas, mehoramento
de sementes etc.). Tal incentivo à agricultura trouxe como conseqüência o exce-
dente da produção.
Todo o apogeu do poder dos eados-nações com seu intervencionismo e pro-
tecionismo da balança comercial, começa a ruir com a queda do muro de Berlim,
símbolo da derocada do mundo soviético e da ameaça que ele trazia. Com o
comunismo desestruturado e enfraquecido, o eado do bem-ear social, já não
precisa ser tão intervencionista e protecionista, ainda mais que com o capital
nanceiro reestruturado do golpe que sofreu na cada de , a busca de meho-
res investimentos agora se faz de forma uida, deslocando-se o capital para onde
ele fornece mehor retorno. Os anos  são então marcados pelo neoliberalismo
de Margareth Tatcher e Ronald Reagan, e o desmonte do eado do bem-ear
social. Direitos trabahistas, pleno emprego, subsídios agrícolas, agora são parte
do passado. Na agricultura os neoliberais passam a defender a concentração das
funções produtivas entre os maiores agricultores, cando aos demais reservado
o cuidado com a preservação do espaço rural.
É nee contexto seundo Abramovay (), que emerge a preocupação com
os prolemas ambientais e a defesa de um desenvolvimento sustentável. Seundo
ee autor, a queão da sustentabilidade como novo paradigma de desenvolvi-
mento só emerge na União Européia (UE) a partir dos meados dos anos ,
quando se tornou praticamente impossível a geão do crescimento dos exceden-
tes agrícolas e dos gastos com sua sustentação. Só, então, os prolemas ambientais
passaram a ser levados em conta pela política agrícola. Nee sentido, seundo
Abramovay, as diferenças entre as várias concepções a reeito de sustentabilida-
de na agricultura earão muito mais na maneira como, em cada caso, se concebe o
controle da oferta do que nos aectos propriamente agronômicos de cada uma.
Paralelamente à explosão das safras e dos gastos com a sua sustentação, o lugar
dos agricultores no espaço rural sofre alterações radicais: minoria da população
muito tempo, hoje é minoria no próprio campo. Além disto, a estrutura social
encontra-se altamente polarizada entre um grupo relativamente restrito, que
responde pelo essencial da oferta e a grande massa com expressão econômica
pouco signicativa. A proposta liberal é a de elevar a dualização. As funções
produtivas devem ser concentradas entre os maiores produtores, aqueles capazes
de promover uma alocação racional dos recursos existentes e, por , produzir
custos menores e danos ambientais consideravelmente reduzidos. Quanto aos
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outros, eles seriam objeto de políticas de desenvolvimento rural onde a produção
de serviços de natureza ambiental teria um papel decisivo.
Abramovay considera que o maior prolema dessa visão não é propriamen-
te ambiental: é bastante provável que a pesquisa agronômica consiga resolver a
maior parte dos prolemas ambientais hoje provocados pelas unidades produti-
vas altamente eecializadas. O prolema, para ele, é social, econômico e político.
Nada indica que, mesmo concentrada entre os maiores produtores, a produção
agrícola poderá diensar apoio eatal na sustentação da renda. Torna-se assim,
em grande parte, uma obra de cção, a idéia de que a dualização social é uma
premissa para o predomínio da pura lógica econômica e da decisão espontânea do
mercado em torno da alocação de fatores. A crise atual vem fundamentalmente
do conito entre o valor cada vez menor que, para a sociedade, tem a produção
agrícola em confronto com os custos que a sustentação dea produção pouco
valorizada implica. A fragilidade da posição liberal eá em que ela supõe gastos -
licos voltados exatamente para o setor que ela pretende libertar da esfera eatal.
A
:
Com o contexto econômico e político favorecendo estratégias não produtivistas
e massicadas, voltadas para a eecicidade e diversidade dos consumidores, a
produção volta-se para o mercado de clientela, o discurso pró-desenvolvimento
sustentado se legitima, opondo-se ao modelo produtivista de desenvolvimento.
Podemos observar duas grandes tendências na discussão do desenvolvimento sus-
tentável. A primeira conformada por uma perectiva que encara a sustentabili-
dade como exeqüível e compatível com o capitalismo. Já a seunda, concebe como
incompatível a associação entre sustentabilidade e capitalismo, pressupondo que
a sustentabilidade eá inserida em uma gica de natureza qualitativa, enquanto
o capitalismo se enquadra dentro de uma lógica quantitativa. A sustentabilidade,
dentro dea perectiva, seria possível dentro de um outro modelo de socieda-
de. Expressam tal opinião autores como Castoriades, Boaventura de Souza Santos,
Guatari, Alain Lipetz, dentre outros.
A primeira tendência, tornada atualmente hegemônica, concebe sustentabi-
lidade e capitalismo como compatíveis: o consumo pós-fordiano se diversica e
deixa de ser um fator de homogeneização social; o universalismo cede cada dia
um pouco mais diante de um relativismo cultural; a sinularidade passa a ser o
valor mais garantido que existe; enm, as ideologias comunitárias e “identitárias
favoráveis à descentralização administrativa, que possibilita menores custos ao
Estado se impõem. Embora haja nuances entre os posicionamentos dos autores
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que nela se enquadram, a perectiva de desenvolvimento sustentável dees au-
tores conforma-se majoritariamente pela crença no poder da tecnologia, tida
tanto como regeneradora dos desgastes ambientais, como potencializadora da
produtividade, tomada, em última instância, como pré-requisito para a susten-
tabilidade. Comungam com ea perectiva instituições como a Organização
das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e o Banco Mundial,
além de autores como MacNeil, Winsemius, Yakushiji (); José Eli da Veiga,
Ricardo Abramoway (); entre outros. Dentro da corente hoje hegemônica
na denição de diretrizes para o desenvolvimento sustentável paira uma enorme
incerteza quanto as medidas que devem ser adotadas para compatibilizar capita-
lismo e sustentabilidade. Um exemplo dea diculdade aparece nas propostas de
impostos ecológicos, com o objetivo de coibir práticas nocivas ao meio ambiente.
Por exemplo, como mensurar as externalidades e também eabelecer um limite
de exploração da natureza que seja sustentável?
Uma das perectivas mais representativa da concepção de desenvolvimento
sustentável compatível com o crescimento econômico e a dinâmica capitalista
pode ser encontrada em “Para Além da interdependência,” de MacNeil, Winse-
mius e Yakushiji, (); que procuram fundamentar com dados cientícos a ín-
tima ligação entre a economia do mundo e a ecologia da Tera. Diferentemente da
perectiva daqueles que se enquadram na seunda corente, a que não vê como
possível a compatibilidade entre sustentabilidade e crescimento, os autores pro-
curam inverter a percepção de que é o desenvolvimento em si que gera impactos
adversos sobre o meio ambiente. Seundo eles, os impactos de um meio ambiente
degradado sobre as perectivas de desenvolvimento foram largamente ignorados,
em virtude de, no pós-uera, o meio ambiente ter sido predominantemente visto
como um acessório do desenvolvimento e raras vezes como seu componente “in-
trínseco” e integral. Defendem os autores, que meio ambiente e desenvolvimento
não são ireconciliáveis. Depois do relatório do Clube de Roma, Os Limites para
 Macneill, J.; Winsemius, P.; Yakushiji, T. Para além da interdependência. A relação entre eco-
nomia mundial e a ecologia da terra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, .
Jim MacNeill é secretário-geral da Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvol-
vimento (Comissão Brundtland) e o principal arquiteto e autor do seu aplaudido relatório
“Nosso Futuro Comum. É de nacionalidade canadense e sua formação acadêmica é na área
de Matemática e Física (), Economia e Ciência Política pela Universidade de Estocolmo
() e Engenharia Mecânica ().
• Peter Winsemius foi ministro da Habitação, Planejamento Físico e Meio Ambiente do governo
holandês de  a . É diplomado em Física pela Universidade de Leiden na Holanda.
• Taizo Yakushiji é professor de tecnologia e relações internacionais na Escola de Graduação em
Ciência Administrativa da Universidade de Saitama (Japão).
N E A D E S P E C I A L
o Crescimento, de , uma parte importante das discussões radicou-se sobre o
pressuposto de que meio ambiente e desenvolvimento são ireconciliáveis.
A tese de MacNeil, Winsemius, e Yakushiji é a de que é imprescindível manter
o crescimento econômico. É provável que a população do mundo duplique ao
longo do próximo meio século. A população mundial aumenta em  mihões a
cada ano. Para faze frente a ee crescimento populacional é necesáio mante as taxas
de crescimento anual e torno de ,% a ,%. Contudo, não se pode esquecer que
para sanar as necessidades dessa população é necessário se pensar na sustentação
dos recursos naturais. A cada ano perde-se de solo arável o corespondente aos
campos de trigo da Austrália. Também o consumo de áua duplicou duas vezes
nee século e poderá duplicar de novo nas duas próximas décadas.
Seundo ees autores, a transformação para uma economia mais eciente é o
resultado de uma complexa combinação de fatores, tais como: novas tecnologias
e mudanças nas relações históricas entre capital, trabaho e recursos naturais.
Assim, defendem os autores que a máxima do desenvolvimento sustentável não
deve ser estipula limites ao crescimento, mas sim, o crescimento dos limites. Deve-se
aprender a reconhecer e viver dentro dos limites de impacto social para além dos
quais, a degradação dos ecossistemas, dos recursos e, por conseuinte, do bem-
ear humano são inevitáveis e progressivos.
Os autores utilizam-se de um contraste entre a escala das necessidades de
desenvolvimento do mundo e a evidência dos limites da Tera. As conquistas em
bem-ear humano foram, seundo eles, acompanhadas de enorme recrudesci-
mento na escala de impacto humano sobre a Tera. Chamam a atenção para o fato
de que, ao longo da história, a escala em que as pessoas transformaram energia
e materiais, tem sido minúscula em comparação com a natureza. Recentemente,
porém isso mudou e o relacionamento entre a sociedade humana e o planeta
sofreu uma profunda transformação, visto que, com os processos humanos e na-
turais se avizinhando de grandezas semehantes, o feedbac do sistema ecológico
terestre para o sistema econômico do mundo aparece na forma de: aquecimento
global; buraco no ozônio; chuva ácida; degradação do solo; desmatamento.
A partir desses dados cientícos preocupantes, no que diz reeito a preser-
vação dos recursos naturais – essenciais ao crescimento econômico – os autores
propõem o comprometimento das nações desenvolvidas e e desenvolvimento em
torno de medidas a serem cumpridas para se alcançar um desenvolvimento sus-
tentável. Propõe como metas da agenda do desenvolvimento sustentáel: ) Controla
o crescimento da população. Desde  a população mundial mais do que triplicou.
Quatro quintos desse crescimento deu-se a partir da seunda metade do século.
Seundo os autores, a elevada proporção desse crescimento é insustentável; )
mehorar a eciência no uso de energia e substituir a utilização de combustíveis
fósseis por alternativas de energia que preservem o meio ambiente em termos
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da poluição atmosférica e mudança climática. O registro da história climática da
Tera mostra uma corelação entre a concentração de CO e a temperatura. Além
do CO outros gases eão consumindo a camada protetora de ozônio provocan-
do o efeito estufa e, conseqüentemente o aquecimento da Tera. Este aquecimento
pode gerar a elevação do nível dos mares e trazer sérias conseqüências para muitas
pequenas nações insulares, países como a Holanda, Bangladesh, Tailândia, etc.
Os gases de estufa provêm, sobretudo, de fontes naturais, mas também de fontes
criadas pelo homem, tais como: os clorouorcarbonos (CFCs) usados em espu-
mas, aerossóis, refrigerantes e solventes, o dióxido de carbono (CO) que resulta
da queima de combustíveis sseis (carvão, petróleo, gás natural) e desmatamento,
o óxido nitroso (NO) proveniente de fertilizantes, etc; ) rever a política de
subsídios, abatimento de impostos, incentivos scais, preços subsidiados, tarifas
e quotas que podem distorcer os preços e padrões de comércio de uma forma
que é economicamente perversa e encoraja as modalidades insustentáveis de
desenvolvimento. Por exemplo, na agricultura em termos de subsídios que fa-
voreçam pacotes tecnológicos que provocam a erosão do solo, a deserticação,
a perda de teras de lavoura. Na silvicultura, por meio de créditos subsidiados,
que favorecem práticas de destruição de oreas tropicais e diversidade bio-
gica; ) Criar impostos e mercados ambientais. Muitas matérias-primas e
muitos bens criticamente importantes são transacionados por preços que o
reetem seus efeitos sobre externalidades (o ar, a áua e o solo). Os governos
devem examinar a viabilidade de uma transferência gradual da carga tributária,
reduzindo os impostos sobre renda, poupança e investimentos, e aumentando-os
sobre o uso de energia e recursos, sobre emissão de poluentes para o ar, a tera
e a áua, e sobre os produtos com elevado impacto ambiental. Os impostos
poderiam ter impacto ambientalmente positivo sobre os padrões de consumo
e sobre a estrutura de custos da indústria sem agravar a carga tributária global.
Foi dentro dea perectiva que surgiu o princípio de quem polui paga.Este
princípio pressupõe que a qualidade ambiental é um bem de consumo, algo que
podemos optar por ter mais ou menos do mesmo modo, e pelas mesmas razões
que escoheríamos ter mais ou menos rias, automóveis ou picolés. Tornar as
instituições econômicas ambientalmente responsáveis e sujeitas à preação de
contas. Esta seria uma tentativa de romper com ações ex post fato, elaborando
uma agenda que direcione as ões, e não apenas as corija. Uma indicão clara
de que se um governo alterou seu programa de ação a m de tratar seriamente
do desenvolvimento sustentável será o seu orçamento.
Os pontos prolemáticos referentes ao posicionamento dos autores, diz res-
peito ao fato que, ao mesmo tempo quando armam que a queão demográca
é um prolema para a sustentabilidade,tanto para os países ricos como para os
pobres, armam também que a queão não se reduz simplesmente ao número
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de pessoas, pois uma criança nascida em um país rico, industrializado, é muito
mais onerosa para o planeta do que a nascida em um país pobre. Outro ponto
prolemático relaciona-se ao fato de que mesmo reconhecendo que durante os
últimos  anos, o crescimento econômico se concentrou no Norte, onde  da
população mundial, os países industrializados, consomem cerca de  dos bens
mundiais, releva a necessidade de conter o consumo nees países, sem considerar
que esses níveis de consumo tornam insustentável a possibilidade de eqüidade das
nações do Terceiro Mundo. Assim, colocam em de iualdade as sobrecargas
aos sistemas ambientais da Tera dos países desenvolvidos e em desenvolvimento,
não revelando que a sustentabilidade envolve práticas e políticas diferentes para
ambos. Os “imperativos estratégicos para o desenvolvimento sustentável” envol-
vem, para uns, crescimento suciente para satisfazer das necesidaes e, para outros,
das aspirões humanas. Com tal raciocínio, não se questiona os padrões de vida
das populações dos países de Primeiro Mundo.
A :
Se a mentalidade desenvolvimentista eava marcada pela linearidade homo-
geneizante, que hierarquizava as culturas, classicando-as em eágios evolu-
tivos, ganha ênfase a partir dos anos , o discurso pró-multiculturalismo.
O desenvolvimento se adjetiva, ganhando novas denominações: desenvolvimento
sustentado, desenvolvimento alternativo, desenvolvimento local, etc Mas haveria
sentido, de fato, em pensarmos um desenvolvimento local, visto que o termo “lo-
cal” aponta para as eecicidades culturais e a multiplicidades de racionalidades?
Para Boaventura de Sousa Santos (), é condição indiensável a qualquer
pretensão de se alcançar o desenvolvimento de um lugar e das pessoas que nele
vivem, se buscar estimular as vozes daqueles que foram silenciados, se abrir para
outras formas de conhecimento e de expressão da racionalidade cultural que não
apenas a buruesa. Para Boaventura, a solidariedade é forma de conhecimento
que não se impõe ao outro. Para ele, a solidariedade é uma fora de conhecimento
que se obtém por via do reconhecimento do outro, o qual só pode ser conhecido
como outro se for também considerado produtor de conhecimento. Daí que todo
conhecimento para se eancipatóio tem que ter uma vocação multicultural.
Mas duas grandes diculdades para se constituir um conhecimento-ean-
cipação, seundo Boaventura: o silêncio e a diferença. O domínio global da ciên-
cia moderna como conhecimento-reulação, como conhecimento uniformizador
das múltiplas formas de racionalidade, acaretou consigo a destruição de muitas
formas de saber, sobretudo, daquelas próprias dos povos não-ocidentais ou das
minorias sociais ocidentais, tornando impronunciáveis as suas necessidades e
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aspirações. Por exemplo, a marginalização e a erosão dos conhecimentos dos
agricultores familiares, eecialmente dos países menos desenvolvidos, têm sido
identicadas entre as várias conseqüências negativas ocasionadas pela difusão in-
ternacional no período de pós-uera, das práticas e técnicas agrícolas modernas.
Assim, para Boaventura é necessário se perceber que,
sob a capa de valores universais autorizados pela razão foi de fato imposta a razão de uma
“raça,de um sexo e de uma classe social. A queão seria então, como realizar um diálogo
multicultural quando alumas culturas foram reduzidas ao silêncio e suas formas de ver
e conhecer o mundo se tornaram impronunciáveis? Por outras palavras, como fazer falar
o silêncio sem que ele fale necessariamente a linuagem hegemônica que o pretende fazer
falar? Estas peruntas constituem um grande desao ao diálogo multicultural. Os silêncios,
as necessidades e as aspirações impronunciáveis só são captáveis por uma perectiva de
apreensão das ausências que proceda pela comparação entre os discursos disponíveis, he-
gemônicos e contra-hegemônicos, e pela análise das hierarquias entre eles e dos vazios que
tais hierarquias produzem. O silêncio é, pois, uma construção que se arma como sintoma
de um loqueio, de uma potencialidade que não pode ser desenvolvida. A seunda di-
culdade do conhecimento multicultural é a diferença. existe conhecimento e, portanto,
solidariedade nas diferenças e a diferença sem inteligibilidade conduz a incomensurabi-
lidade e, em última instância, à indiferença. Daí a necessidade da teoria da tradução. É
por via da tradução que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura
pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura. O conhecimento-eman-
cipação não aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva de
suporte epistemológico às práticas emancipatórias, todas elas nitas e incompletas e, por
isto, apenas sustentáveis quando ligadas em rede. (B, :-).
O que Boaventura defende é uma transição paradigmática da ciência, que na
sua fase positivista rompeu com as formas de conhecimento do senso comum.
O que o autor propõe é um novo senso comum, alimentado pela ciência, dentro
de uma relação dialógica. Esta nova forma de conhecimento seria inovadora face
à postura assumida pela ciência tradicional, ao colocar-se em intensa participação
com as necessidades sociais e econômicas vividas pelas pessoas, mas, principal-
mente, pela forma como elas próprias compreendem seus prolemas e eabele-
cem as suas prioridades.
Ao analisarmos a tradicional relação da ciência com a sociedade percebemos,
nitidamente, as marcas da superioridade envergada pela inteligência acadêmica
 Incomensurável pode ser entendido como aquilo que não tem medida comum com outra
grandeza. No contexto acima, pode ser interpretado como uma cultura que se fecha em si
mesma, tomando seus valores como únicos, certos e verdadeiros.
N E A D E S P E C I A L
frente às explicações e práticas produzidas no âmbito do senso comum. Este
processo de construção social da hierarquia do conhecimento cientíco face ao
saber fazer” presente no mundo da vida levou a um afastamento dos pesquisa-
dores da vida comum, experienciada pelos indivíduos. Embora, o conhecimento
cienticamente produzido tenha se estruturado direcionado para a solução de
prolemas do cotidiano, como ele se construiu em comunidades de eecialistas,
hermeticamente fechadas, mantendo-os enclausurados em seu próprio universo
de percepção, fato agravado pelo uso de uma linuagem exotérica, ou seja, rup-
tiva com o vocabulário popular, ele, o conhecimento cientíco, não eabeleceu
uma relação dialógica com o mundo da vida. Assim, apenas quando os impactos
sociais gerados por bombas atômicas, pelas chuvas ácidas, pela devastação am-
biental, pelos medicamentos degeneradores das formas humanas, e outros tantos
desastres que puseram em queão os benecios gerados pelos deuses-cientistas,
a academia começou a rever sua relação com a sociedade.
Contribuiu para ee processo de transformação da ciência não apenas o equi-
brio na balança entre os benecios e malecios produzidos pela ciência, mas a
própria frustração provocada pelas expectativas de mehoria da qualidade de vida
por ela gerada e não cumpridas. Menos poderosa e mais humilde, a ciência come-
ça a rever suas próprias bases de produção do conhecimento, percebendo a neces-
sidade de somar perectivas disciplinares distintas para gerar uma compreensão
mais conável acerca de um objeto de estudo. O passo seuinte nessa caminhada
rumo a reinterpretação da objetividade cientíca, não mais entendida como de-
nitiva em termos das suas explicações, nem neutra nos seus posicionamentos,
foi o reconhecimento quanto a possibilidade de outras formas de produção do
conhecimento além da cientíca, ocidental e masculina, bem como a tentativa
de interlocução com esses outros saberes socialmente produzidos.
Um estudo que ilustra bem a arogância do conhecimento ocidental em ser
parâmetro para as demais formas de racionalidade não-buruesas, é “A e vaca
de Salins. O que o autor pretende, primeiramente, com ee texto, é mostrar
como a tentativa de universalizar modelos de comportamento e estilos de vida,
faz com que o sejamos capazes de compreender as razões práticas que subjazem
o modo de vida e as crenças de outros povos. Salins parte da armação de que
os ocidentais julgam a idéia de que possa haver aluma explicação prática para o
amor indiano às vacas muito mais perturbadora do que os próprios indianos.
Tal crença no caráter extraordinariamente sagrado da vaca se fundamenta em
uma crença de que o modelo ocidental de “desenvolvimento” é o mais racional e
ecaz, não se justicando, por exemplo, que os indianos mantenham uma grande
quantidade de vacas supéruas, inúteis e antieconômicas, em função de doutri-
nas religiosas iracionais. É visto como um exotismo puramente iracional pelos
ocidentais, o fato de o amor à vaca levar o governo a manter asilos para vacas;
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os agricultores a considerarem as vacas membros da família, enfeitando-as com
grinaldas e ores, como também, rezarem por elas quando adoecem e celebrarem
com sacerdote e amigos o nascimento de uma nova cria; os homens a eamparem
calendários com belas jovens, com o corpo de grandes vacas brancas; hindus e
mulçumanos a conitos constantes, em virtude dos últimos serem considerados
matadores de vacas. Todos esses costumes dos indianos levam os ocidentais a
considerarem que o haveria uma justicatia prática para as vacas sagradas.
Contudo, após expor a impressão dos ocidentais face aos costumes dos orientais,
no caso, dos indianos, Marshal Salins passa a analisar as suas condições materiais
de existência, tais como, os aectos socioeconômicos, geográcos e climáticos.
Após mostrar o julgamento que os ocidentais fazem do amor que os india-
nos dizem ter às vacas, Salins, coma a analisar as razões práticas para ea
sacralidade. Primeiramente o autor observa que a escassez de animais de tiro
na Índia (animais para puxar o arado) é uma terível ameaça que pende sobre
a maioria das famílias campesinas. O camponês indiano que não for capaz de
substituir o seu gado doente ou morto encontra-se na mesma situação do agri-
cultor norte-americano que não pode substituir ou reparar o trator quebrado.
Mas uma grande diferea, os tratores são feitos nas fábricas, enquanto os
bois o produzidos por vacas. Portanto, o agricultor que possui uma vaca possui
uma fábrica de produzir bois.
A troca de animais e estrumes por tratores e petroquímicos exigiria o inves-
timento de um volume imenso de capital. Ademais, a conseqüência inevitável
de substituir animais baratos por diendiosas máquinas seria reduzir o número
de pessoas que podem ganhar a vida com atividades agrícolas e forçar a ida de 
mihões de pessoas para a cidade. Além de vacas e bois fornecerem substitutos de
baixa energia para tratores e fábricas de tratores, eles deveriam também ter a seu
crédito o desempenho das funções de uma indústria petroquímica. O rebanho
indiano produz, anualmente,  mihões de toneladas de eerco, cerca da me-
tade é empregada como fertilizante, enquanto o reante é queimado na cozinha,
equivalendo a  mihões de toneladas de querosene ou,  mihões de toneladas
de carvão ou,  mihões de toneladas de lenha.
É interessante, também, observar que na sociedade indiana, os bois zebus
trabaham enquanto neles houver um sopro de vida, mesmo quando apresentam
lesões internas gravíssimas. Durante as secas e fomes, os agricultores sentem-se
tentados a matar ou vender o gado. Os que sucumbem à tentação asseuram a
própria desgraça, mesmo que sobrevivam à seca, porque earão impossibilitados
de arar a tera quando as chuvas chegarem. Esses tabus podem ser produtos da
seleção natural, do mesmo modo que o pequeno porte e a fantástica capacidade
de recuperação das raças zebus. Certamente o indiano preferiria matar sua vaca
a morer de fome, mas ele sabe que, de fato, moreria de fome se a comesse.
N E A D E S P E C I A L
A sobrevivência até a idade avançada de certo número de animais absolu-
tamente iteis, em época de bonança, é parte do preço a pagar para proteger
animais contra o abate, em épocas diceis. Em qualquer cadeia de alimentos, a
interposição de elos animais adicionais resulta numa queda brusca na eciência
da produção alimentar. O valor calórico daquilo que um animal come interfere
diretamente na disponibilidade per capita de alimentos vegetais para o homem.
Como o consumo diário na Índia já se situa abaixo do mínimo diário requerido,
passar as teras à produção de carne só poderia resultar em alta de preços de ali-
mentos, deteriorando ainda mais o padrão de vida das famílias pobres. Na Índia,
o gado existente não compete com os homens por alimento e espaço, eles vivem
soltos e comem o que o homem não pode comer. A competição que se eabelece
é entre os homens e não entre os animais e ele. O tabu da vaca coloca em oposição,
ricos e pobres, países desenvolvidos x subdesenvolvidos.
Salins chama a ateão, também, para observarmos que até mesmo o fato
de os indianos o vender os animais vehos e decrépitos aos matadores, não
signica que esses o tenham uma utilidade, como o exige a racionalidade
ocidental. Na verdade, ees animais decrépitos acabam sendo vendidos sigilo-
samente e aproveitados pelas castas inferiores dos intocáveis. O autor chama a
ateão ainda para o fato de que até na morte animais aparentemente inúteis
continuam a ser explorados para atender os interesses humanos. Assim, de
forma irônica e crítica, o autor usa da própria lente ocidental, da sua visão
utilitária, para mostrar que uma série de razões práticas, portanto, para
os indianos o matarem as vacas. Agora, se voquiser ver uma verdadeira
vaca sagrada, e ohe o caro de família, que leva inúmeros indivíduos a se
endividarem por status social.
Esta análise do modelo de racionalidade indiana se encaixa dentro de um
outro paradigma de desenvolvimento, portanto, o endógeno, que defende um
conhecimento emancipão capaz de dialogar com o outro,” isto é o que marca
o pensamento antropogico, que se encontra na matriz de pensamento daque-
les que defendem o desenvolvimento engeno. JoCarlos Rodriues ()
é expressão clara dee paradigma cultural, ao armar que cada ser percebe o
mundo com as lentes que he são próprias, ou seja, lentes culturais, que subme-
tem o grupo aos limites e à acuidade delas. A cultura constitui a lente eeca
por meio da qual o homem enxerga o mundo. Através da cultura os sentidos
humanos adquirem uma coloração eecial e uma sionomia humana. Pela
cultura o mundo passa a depender em larga medida das convenções sociais.
Cada sociedade tem uma forma eeca de valorizar os sentidos. É dentro
dea mesma perectiva paradigmática que Ignacy Sachs () faz uma con-
tundente defesa do desenvolvimento como necessariamente endógeno, ou seja,
partindo da cultura local:
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o potencial de desenvolvimento de um país depende em primeira instância da sua capa-
cidade de se pensar, em seunda da sua habilidade a por em obra o projeto e só em última
instância, do grau de desenvolvimento do seu apareho produtivo. Mia Couto tem razão
ao dizer que o maior empobrecimento provém da falta de idéias, da erosão da criatividade,
e da ausência interna do debate. Mais do que pobres, tornamo-nos inférteis. É necessário
earmos atentos para o que chama a atenção A.D. Traoré para domesticar o desenvol-
vimento, ou seja, parar de fazer com que seja um instrumento de transformação social,
econômica e política, em nosso prejuízo, torna-se essencial de pensá-lo e de praticá-lo
em função do que sabemos fazer com os recursos que eão à nossa disposição, numa
perectiva que nos é própria ou pelo menos na qual nos reconhecemos. Cada aecto de
nossa existência se prea a ee trabaho de redenição e de reorientação: a educação, a
saúde, a alimentação, a moradia, o vestuário, o Estado, a governança, a descentralização,
a democracia e, sem dúvida, a luta contra a pobreza. (S, ).
Sachs defende dentro da perectiva do desenvolvimento endógeno o res-
peito à variedade das respostas dadas aos desaos da vida quotidiana por dife-
rentes culturas vivendo em ecossistemas similares, e a partir dessas experiências
diferentes, eabelecer-se um intercâmbio cultural. Sachs defende, ainda, uma
visão do desenvolvimento livre dos preconceitos, redutores do economicismo e
da preocupação exclusiva com o consumismo, as formas de arte e entretenimento
conviviais merecem uma alta prioridade no projeto nacional. “Ela não é uma or
na lapela, um luxo de gente rica e sim uma necessidade fundamental e uma fonte
de alegria, vivenciada como tal em todas as sociedades humanas, inclusive as que
eão submetidas às privações materiais mais extremas (id.: ).
Em sintonia com a perectiva endógena de desenvolvimento, é que Sen
() também contrapõe o desenvolvimento sociocultural de um povo a visões
mais restritas de desenvolvimento, que o equalizam a crescimento do Produto
Interno Bruto (PIB), aumento da renda per capita, industrialização, avanço tec-
nológico ou modernização social. Mas, se Boaventura e Sachs chamam a atenção
para o aecto cultural do desenvolvimento, Sen vai enfatizar a necessidade da
liberdade para atingi-lo. Para ee autor, a liberdade deve ser pensada de forma
substantiva e, o apenas, formal, como dentro da ideologia liberal-buruesa.
Assim, liberdade implicaria em participação política ou oportunidade de receber
educação básica ou assistência dica, sendo ees componentes constitutivos
do desenvolvimento.
 Traoré, A. D. (), L’éteau l’Afrique dans un monde sans frontières, Actes Sud, p. . Ver
também o livro do historiador africano Joseph Ki-Zerbo (), A quand l’Afrique? – Entretien
avec René Holenstein, Editions de l’Aube, La Tour d’Aigues.
N E A D E S P E C I A L
Pensar a liberdade como fundamento do desenvolvimento e pensá-la de
forma substantiva e não apenas como garantia formal constitucional, signi-
ca, por exemplo, asseurar o direito a uma vida longa às pessoas. Sen chama
a atenção para o fato de que os indicadores econômicos de um país podem
obscurecer ee direito a longevidade. Evidencia tal fato, armando que os ci-
dadãos do Gabão, na África Central, os da África do Sul, os da Namíbia, na
África, e os do Brasil podem ser muito mais ricos em termos de PIB do que os
do Sri Lanka, da China ou do Estado do Kerala, na Índia, mas nees últimos
as pessoas m expectativas de vida mais elevadas que no primeiro. Também
nos Estados Unidos, é importante reconhecer que os afro-americanos têm uma
chance absolutamente menor de chegar à idade madura do que as pessoas que
vivem em muitas sociedades do Terceiro Mundo, como a China, Sri Lanka ou
partes da Índia. Além de deacar a longevidade como uma liberdade substantiva
e condição que deve ser levada em conta nas análises de desenvolvimento social,
Sen, deaca, tamm, a democracia, a imprensa livre, o acesso à educão, a
iualdade de nero no acesso aos bens sociais, como condições fundamentais
para se pensar o desenvolvimento. Dentro dea perectiva, de desenvolvimento
como liberdade, de Amartya Sen, ca claro o quanto o paradigma teórico em
torno do desenvolvimento, se afastou do modelo de variáveis econômicas, como
PIB, renda per capita, industrializão e modernizão. No próximo tópico
veremos como ea mudança paradigmática se efetivou nos discursos políticos
pró-desenvolvimento sustentável.
G :
A ênfase desde o nal do século passado na necessidade de um desenvolvimen-
to sustentao eá claramente relacionada à preocupação com o meio ambiente.
Contudo, não apenas os limites ambientais eão em queão, mas também um
novo paradigma para o desenvolvimento que leve em conta a necessidade de
emprego e renda e que proporcione bem-ear às populações. Para se atingir tal
meta, seria necessário, se levar em consideração que a perectiva de desenvol-
vimento sustentável implica, sobretudo, seundo Wikinson (), conceitos
alternativos de tempo e espaço cuja internalização tem como custo implicações
radicais para a organização das atividades produtivas. Isto aponta para uma opção
política de desenvolvimento. Para Wikinson, o mercado, a estrutura de preços,
a reversibilidade ou ireversibilidade tecnológica é conseqüência e não a origem
dos aranjos institucionais. uer dizer, é a atividade econômica que se integra
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aos processos sociais. E é dentro dea perectiva sociopolítica que devemos
procurar construir a percepção dos fenômenos, que vivemos.
Por exemplo, é preciso ear atento para perceber que a pressão política e
econômica que se faz em torno do desenvolvimento sustentado, se constrói com
um peso desiual para países do Primeiro e do Terceiro Mundo. Seundo Cor-
ral () a preservação do meio ambiente apresenta níveis diferenciados de
exigência para países pobres e ricos, demonstrando, assim, se constituir em um
mecanismo para contrabalançar os efeitos negativos da manutenção do paradigma
de desenvolvimento econômico permanente dos países desenvolvidos. Maria Mies,
citada por Coral (), faz uma análise interessante do modelo de desenvolvi-
mento vigente. Seundo ela, a indústria automobilística e a população que con-
some os automóveis têm que crescer, mas para fazer frente aos danos ambientais
causados por esse crescimento, a população dos países do Terceiro Mundo, ou
seja, daqueles que não podem consumir os caros, deve diminuir. Percebe-se por
ee exemplo relacionado à desiualdade no padrão de consumo entre Norte e Sul,
como os países do Terceiro Mundo caregam sobre os ombros a responsabilidade
de equilibrar o desgaste ambiental, com todos os entraves que isto possa represen-
tar para o seu próprio crescimento, conforto, e bem-ear de sua população.
Ao longo das décadas de a , a trajetória das políticas de desenvol-
vimento rural foi inuenciada por uma crescente preocupação ambiental, que
passou, então, a interesse internacional. Ganhou ênfase, nesse cenário globaliza-
do, a defesa de um desenvolvimento sustentável, que valorizasse estilos de vida
e práticas produtivas alternativas,que viabilizem a conservação de recursos
naturais para a sobrevivência das gerações futuras. Frente a essas demandas, os
pequenos agricultores familiares e, mais eecicamente, a muher rural do Ter-
ceiro Mundo, que, nos anos , torna-se categoria expressiva no campo, devido
à migração dos homens para os grandes centros urbanos em busca de emprego,
 Também para Belshaw (), a compreensão das relações econômicas deve ser buscada fora
do mercado, nas obrigações e deveres dos membros do grupo entre si, e na interação das
fronteiras dos grupos. O intercâmbio como uma forma básica de interação pode definir a
composição dos membros do grupo, as relações entre eles, e a interação através da fronteira.
Em relação ao mercado, o autor destaca alguns aspectos interessantes. Segundo Belshaw, o
mercado não surge para permitir que as pessoas empreguem seus excedentes. Ele surge
como uma função da divisão de trabalho, de modo que os que se concentram num tipo de
produção possam obter os produtos dos outros. A divisão do trabalho tem conseqüências
de intercâmbio econômico, mas‚ de fato um fenômeno social. Segundo ele, também a di-
ferenciação de classe não é apenas uma questão de riqueza ou de ponto de vista cultural,
mas implica também uma especialização do trabalho, com o camponês podendo assumir o
papel de pequeno proprietário rural, produtor, vendedor, comerciante, comerciante mais
especializado, etc.
N E A D E S P E C I A L
passa a ser valorizada por suas práticas tradicionais, que transformam muito
mais lentamente o meio ambiente do que as tecnologias e práticas modernas.
É dentro do contexto de construção de uma “mentalidade ecológica que vi-
mos como é necessário construir uma perectiva ecocrítica, desnaturalizante
da atual divisão internacional do trabaho, que, nas entrelinhas da preocupa-
ção com a preservação do meio ambiente, escamoteia uma forma desiual de
atribuição de responsabilidades entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Embora sejam os padrões de consumo dos países industrializados os principais
causadores dos prolemas ambientais, os mecanismos para contrabalançar os
efeitos negativos da manutenção do paradigma de desenvolvimento econômico
permanente dos países desenvolvidos são pensados para os países do Terceiro
Mundo. Exemplica ea situação, o crescimento em importância, nos fóruns
deliberativos internacionais, das políticas de controle da natalidade destinadas,
prioritariamente, à muher pobre do Sul. A pobreza e o crescimento populacional
nos países do hemisfério Sul passam a tomar, assim, o lugar dos padrões de consu-
mo dos países do hemisfério Norte no rol de ameaças a um desenvolvimento, que,
a partir de ns da década de , passa a se propor como sustentável, visando
garantir às gerações futuras os recursos naturais hoje existentes.
É também importante desfetichizar a forma como a muher é percebida e
representada nas políticas de desenvolvimento rural propostas para o Terceiro
Mundo. Toma-se como verdade inconteável, nesses fóruns deliberativos de
políticas de desenvolvimento rural para os países do Sul, não apenas a maior
proximidade da muher face à natureza como, também, que a descaraeriza-
ção do meio ambiente representará, invariavelmente, a perda generalizada das
suas condições produtivas. Um estudo realizado por Elen Woortmann (),
nos seringais do Acre, permite contrapor essa pressuposição relativa à repre-
sentação da eecial ligação da muher face à natureza com a forma como se
constroem as relações sociais de fato. Essa autora apresenta uma situação, em
 Utilizo o termo tradicionais” para aquelas práticas que vinculam a mulher ao âmbito domésti-
co, executando atividades constitutivas de seu papel de mãe, esposa e filha, tais como: fornecer
lenha, água, preparar os alimentos, cuidar da criação, recolher e dar um fim ao lixo.
 Philippe Pomier Layrargues, Do ecodesenvolvimento ao desenvolvimento sustentável: evolu-
ção de um conceito? Ler Proposta, n. , , pp. -.
 Thaís Corral. Women’s views for a new world order. Ecodecision, .
 O conceito de desfetichização está sendo utilizado aqui no sentido de afirmar a não universa-
lidade entre a proximidade da mulher face à natureza. Este conceito tem a intenção de tornar
mais visível o fato de que, por trás da fachada que associa mulher e natureza, esconde-se a
construção de relações sociais de gênero, que estabelecem um status diferenciado e desigual
à mulher, delegando-lhe uma posição hierarquizada no âmbito da divisão social do trabalho
na família e na sociedade.
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que à medida que cresce o desmatamento da orea, amplia-se o espaço pro-
dutivo das muheres. Não que isso venha a representar aumento de seu status e
poder, mas tal constatação, que também não deve ser vista como uma apologia
feminista ao desmatamento visto que as relações de gênero não podem ser
percebidas descoladas das condições sociais de vida das populações locais, e um
desenvolvimento” predatório inviabilizaria, até mesmo, los de complemen-
taridade entre homens e muheres complexica, no entanto, a concepção de
que a descaraerização do espaço “natural” represente, sempre, perda de espaço
produtivo para a muher.
No mesmo estudo, Woortman () mostra que, ao contrário do que aparece
nas representações contidas nas políticas de sustentabilidade, é o homem quem
eá mais próximo do que se concebe como natureza, por realizar atividades
vinculadas à orea, enquanto a muher se dedica à agricultura, domesticando
eécies vegetais e animais. Assim é o homem que perde seu espaço produtivo na
medida em que a orea vai sendo desmatada. Esse estudo é interessante porque
permite desmisticar duas queões implícitas nas políticas de desenvolvimento
sustentável. Primeiro, acerca das práticas que são tidas como eecícas das mu-
heres. A forma como a muher rural é valorizada a partir da crítica ao modelo
de desenvolvimento produtivista e da tecnologia moderna, mesmo quando se
percebe que ela nem sempre se encontra mais próxima daquilo que se concebe
como “natureza do que o homem, torna possível reetir sobre as práticas sociais
de linuagem e outras formas de representação que vêem a muher dentro de uma
perectiva de imanência. Esta situação foi enfatizada por Linn (), que assi-
nalou os aectos culturais relacionados ao uso do termo tecnologia.Seundo ela,
o termo tecnologia eá envolto em certo glaou, sendo interessante perceber em
que contexto ele status. Para essa autora, o trabaho do homem é freqüentemen-
te denido como técnico, e trabaho técnico é visto como trabaho de homem. o
trabaho da muher é freqüentemente denido como não-técnico, e trabaho não-
técnico é visto como trabaho de muher. Esse aecto implícito da tecnologia, o de
não ser imune aos valores sociais, é que permite perceber que ela pode ser veículo
para a diferenciação entre determinados grupos sociais. Assim é que, aquilo que é
considerado tecnológico atribui “status a um segmento em detrimento de outro.
O homem é aquele que executa as tarefas consideradas como trabaho técnico, já
a muher permanece realizando atividades artesanais ou manuais.
 Estamos aqui entendendo por “perspectiva de imanênciaas concepções abstratas e genera-
listas da mulher que acreditam que ela traz em si, prontos, na sua constituição como mulher,
os atributos que a aproximam mais da natureza do que o homem.
N E A D E S P E C I A L
Essa concepção pode ser também observada na Agenda , Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de , que apresen-
ta as concepções sobre as relações técnicas e simbólicas, associando muher e meio
ambiente. É interessante observar, nesse documento, os lugares onde a muher
aparece e também a que tipo de sustentabilidade ela é associada. Não é no capítulo
, sobre manejo ecologicamente saudável das substâncias químicas tóxicas, que
apresenta uma clara preocupação produtivista, que a muher aparece, mas, sim,
no capítulo , sobre combate à pobreza, e no , sobre ação mundial pela muher,
com vistas a um desenvolvimento sustentável eqüitativo, que ela se faz presente.
Isto revela uma visão da muher como um ser recebedor e não ativo na sociedade,
ressaltando-se o seu papel de mãe, tido como constitutivo de sua natureza. Não é
a partir de uma identidade prossional adquirida, como agricultora ou produtora
rural, que ela é percebida, mas a partir de algo que ela traz como destino de sua
natureza biológica, ser mãe e cuidar de seus hos e de sua casa.
A seunda queão que precisa ser desmisticada nas políticas de desenvolvi-
mento sustentável, propostas para os países do Sul, diz reeito à própria concepção
eabelecida entre as pessoas e a natureza. É importante, dentro da mentalidade da
auto-sustentabilidade, a reexão acerca do mito da natureza intocável, perceben-
do-se que todo processo produtivo, é um processo de apropriação da “natureza.
Seundo F. Brüseke (), a transformação da natureza pelo homem, por meio
do desenvolvimento, desde os tempos mais remotos da história do homem, eeve
ligada à luta contra os membros da própria eécie. Apoiando-se em estudos como
os de Gehlen () e Sombart (), defende Brüseke (ibid). a perectiva de
que a técnica faria parte da essência do homem, porque seria por meio dela que
ele se libertaria da necessidade de adaptação orgânica, válida para os animais, e
capacitar-se-ia para a transformação das circunstâncias às suas necessidades.
A técnica seria, para o homem, natureza articial e essencial. A caraerização
da técnica como natureza articial e essencial do homem eá em consonância com
a percepção que Marx tem da relação que o homem eabelece com a natureza
por meio do trabaho. O processo de trabaho que o homem impõe à natureza,
 Unced (United Nations Conference on Environment and Development). Agenda . An easy
reference to the specific recommendations on women. . capítulo , item ., letra g.
 M. Godelier, L’idéel et le matériel. Pensée, économies, sociétés. Paris: Fayard. . Neste livro, o
autor analisa como e até que ponto as realidades materiais, aquelas da natureza exterior ao
homem e aquelas que ele mesmo criou e transformou, agem sobre a organização da sua vida
social e, mais profundamente, sobre o processo de produção de novas formas de sociedade.
Mas o que importa aqui notar é que a natureza, segundo o que ele destaca, é composta de
vários tipos de materialidade, considerando como parte desta, a ação do homem.
 G. Lukács. Lavoro. In: Per uma ontologia del’essere sociale. (Texto mimeo). Tradução de Ivo
Tonet, Universidade Federal de Alagoas.
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
seundo Marx, constitui-se numa progressiva humanização da mesma. Não existe,
portanto, dentro dessa perectiva, uma natureza em si. Conforme lembra Lenole
(), “na natureza, os primitivos procuravam compreender a vontade dos deuses
do mar, dos vulcões e dos rios; Aristóteles, uma hierarquia de formas organizadas;
Descartes e os modernos, as alavancas de uma máquina em que tudo se passa por
número e movimento (L, : ). Seundo deaca Brüseke (), a
técnica moderna expressaria a mesma tentativa de eabilizar o ritmo do mun-
do, pelo domínio das ireularidades e exceções, presentes nas práticas mágicas
em todos os tempos e culturas humanas, que utilizaram a magia para garantir
a repetição homogênea de certos fenômenos naturais, como a chuva, a chegada
da eação certa para plantio e coheita, a proteção contra secas e enchentes, etc.
Mas, se o exposto acima mostra a existência de um ponto em comum contido
na técnica de antes e depois da revolução cientíca dos séculos XVII e XVIII,
também que se ressaltar que a forma como a ciência impregna a técnica a
partir da modernidade, tornando-se o meio de produção por excelência dentro
da dinâmica capitalista, cria uma distância enorme entre a técnica cientíca e a
técnica antropocêntrica anterior. Na cauda desse progresso,a cnica moderna
traz em seu bojo, como marco diferencial, a consciência, por parte do homem,
da nitude dos recursos naturais e o desencantamento com as potencialidades
da Razão iluminista, o que se manifea, hoje, no processo constitutivo de uma
mentalidade ecológica, que procura pensar um nculo mais duradouro entre
natureza e sociedade. Contudo, que se ear atento, frente a ee cenário, de
predomínio da razão instrumental, potencializadora das desiualdades sociais,
para o fato de que a caraerização da técnica e da razão como um reducionismo
antropocêntrico incorpora uma visão fatalista da técnica, abortando a possibili-
dade de alternativas ou adaptações da mesma às exigências críticas.
A perunta que Brüseke () lança então é a seuinte: Será que entre os
defensores do progresso e os profetizadores da destruição iminente o se poderia
abrir um campo de reexão e comunicação social com a chance de conformar um
agir diferente? A resposta para tal indagação parece promissora, pois, seundo
 H. Marcuse, Razão e revolução. Rio de Janeiro: Saga, . Mesmo assinalando a politização
da técnica e a inclusão da dominação na sua estrutura, Marcuse aponta para um certo es-
sencialismoda técnica. Segundo ele, o a priori tecnológico é um a priori político, na medida
em que as criações derivadas do homem brotam de uma totalidade social e a elas retornam.
Entretanto, pode-se insistir que a maquinaria do universo tecnológico é indiferente perante
os fins políticos – pode servir de acelerador ou de freio a uma sociedade. Uma calculadora
pode servir tanto a um regime capitalista como socialista.
 T. Adorno e M. Horkheimer. Dialectica del Iluminismo. Buenos Aires: SUR, . Os frank-
furtianos Horkheim e Adorno evidenciam tal fato com sua “teoria crítica,que denuncia as
mazelas da indústria e da técnica moderna.
N E A D E S P E C I A L
ele, um dado novo no contexto atual. Para ee autor, o funcionamento da
técnica foi tratado, durante muito tempo, quase como um a pioi. São recentes
as preocupações com as possibilidades do não-funcionamento da técnica e seus
acidentes prováveis. A observação da técnica moderna sob o ânulo de seu pos-
sível ou fatual não-funcionamento possui um alto valor heurístico: transforma a
possibilidade da exceção em regra, do provisório em eabilidade, do imprevisto
no mais eerado e do funcionamento da técnica em surpresa. Eis o campo real
onde pensar a técnica, pois ainda é possível tentar entender e transformar uma
realidade coercitivamente desiual.
C :
?
A reexão que se seue procura, justamente, fugir das armadihas de uma visão
reducionista, que polariza a condição da muher rural como se, dentro de um
modelo de desenvolvimento produtivista, ela estivesse iremediavelmente domi-
nada, enquanto dentro de um modelo alternativo de desenvolvimento ela tivesse
a possibilidade de emancipação completa frente às suas fontes de opressão. Bour-
dieu (), reforça essa perectiva ao armar que uma mudança tecnológica
pode até alterar a divisão sexual do trabaho e, mesmo assim, continuar a reprodu-
zir a estrutura de dominação simbólica masculina. Isso se justica porque existe
uma autonomia relativa da ordem simbólica em relação à ordem tecnológica.
Essa autonomia relativa da ordem simbólica se traduz, seundo Bourdieu, nas
disposições adquiridas, ou seja, se traduz em hábitos e comportamentos tradicio-
nalmente aceitos, que são resistentes às transformações da vida material.
Nesse sentido é que se procura levar em consideração, no desenvolvimento
dea pesquisa, um questionamento postulado por D’Ávila (): modelos de
desenvolvimento sejam de cunho endógeno, local, defendendo o reeito às di-
ferentes culturas, à adaptação de tecnologias novas à sabedoria tradicional das
comunidades, ou seja, de cunho autocrático, impostos sem a participação da co-
 Franz Brüseke, op. cit, nota . A propósito desta questão, ver também M ; D.
Richard Rorty: a ética pragmática do neoconservadorismo. In: Ética. Rio de Janeiro: Espaço
Cultural Barra (U) e Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (Seaf). . Nesta
obra, eles observam que a ênfase na natureza fragmentária do mundo e do conhecimento
humano que conformam a modernidade ocidental tem como conseqüência mais dramática
impossibilitar qualquer política emancipatória em uma perspectiva totalizante.
 Anne Ferguson. Gendered science: a critique of agricultural development. American Anthro-
pologist, v. , n. , pp. -, .
 La domination masculine. Paris: Seuil, .
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munidade, sem levar em conta tradições e valores culturais, são capazes de inter-
ferir na vida da muher rural, na sua carga de trabaho, na sua oportunidade de
inserção social, na sua autonomia econômica e realização pessoal? De que forma
as próprias muheres interpretam suas vivências com práticas auto-sustentáveis
e denem sua identidade no confronto entre práticas e formas de vida diferentes,
como são os modelos de desenvolvimento produtivista e o alternativo?
Ao arumento de que a defesa de um desenvolvimento alternativo, baseado
em uma agricultura diversicada e auto-sustentável, constituir-se-ia numa res-
posta à crise do modelo de desenvolvimento ocidental, tido como destrutivo e
masculino, promotor da “mercadorização” da muher, bem como da natureza e
do trabaho das pessoas que vivem nos países do Terceiro Mundo, Bina Agarwal
(), em análise da experiência indiana com a crise ambiental, suas causas,
efeitos e respostas – faz uma pertinente discussão. Arma ela, que as muheres
são tanto vítimas da crise ambiental, no modo eecíco do gênero, quanto um
importante ator na sua recuperação. Mas, concluiu sua análise, com uma chama-
da para a defesa feminista mais do que para uma posição ambientalista-feminista
natural. Agarwal acredita ser necessário se pressionar para uma transformação,
quanto aos termos do gênero, mais do que para um modelo de desenvolvimento
econômico. Defende, também, a necessidade de contextualizar o fato de a muher
rural ter emergido como principal ator dos movimentos ambientais, em países
do Sul, como por exemplo, na Índia, em que a pobreza e marginalidade social
da muher fazem parte de um cenário onde ela se encontra em estreita ligação
com a natureza. A autora ressalta a importância dessa contextualização histórica,
por considerar, que a ligação da muher com a natureza é social e culturalmente
construída, e não determinada biologicamente.
Torna-se, portanto, fundamental, nesse momento de enaltecimento da ima-
gem da muher como, preservadora ambiental e importante agente de proteção
a eécies raras, considerar esse arumento de Agarwal (), que chamou a
atenção para o perigo na propagação da idéia da muher como conhecedora e
manejadora privilegiada do meio ambiente, o que, generalizadamente, poderia
levar à manutenção de uma ideologia de gênero contraprodutiva. Seundo a au-
tora, colocar a recuperação do meio ambiente a cargo da muher não resolve o
prolema ambiental, porque as razões para a crise são múltiplas e pode acabar por
manter inalterada a condição de submissão da muher. Agarwal percebe como
prolemático endossar, na sociedade rural tradicional, a noção de muher como
“naturalmente” destinada a cuidar das coisas da casa, do quintal, das variedades
nativas, pois isso poderia signica viver sob uma fatigante sobrecarga de trabaho,
que inclui deveres no âmbito da casa e da roça. Campilo (), também ressalta
essa preocupação, quando arma que frente à queão ambiental, não se podem
perder de vista as desiualdades sociais. Para essa autora, não se pode camuar a
N E A D E S P E C I A L
desiualdade vivenciada pelas muheres no acesso a serviços e bens sociais: o anal-
fabetismo é maior entre as muheres, a discriminação na possibilidade de participar
como sócias ativas nas cooperativas, as diferenças na ingea nutricional, a exclusão
das muheres da capacitação técnica, etc. Insiste Campilo (: ), na dimensão
econômica para enfocar uma realidade como a da agricultura centro-americana,
que não obedece somente a reivindicações de iualdade no plano das relações
entre os gêneros, mas também na necessidade de superar restrições à eciência
interna das pequenas unidades de produção, limitações quanto ao crescimento e
modernização da agricultura e ao manejo mais adequado dos recursos naturais.
Já a interpretação que prevalece em movimentos ambientalistas, de cunho
ecofeminista, que valorizam o papel da muher junto à natureza, é a de que o
prolema de o status da muher ser inferior ao do homem em nossa sociedade
eá relacionado ao modelo de dominação patriarcal, que impera no capitalismo, o
qual o valoriza como deveriaas tarefas produtivas e “reprodutivas próprias da
muher. Tal perectiva se apresenta com clareza na arumentação de Cordeiro
(), que defende que a promoção e valorização do setor de produção de au-
toconsumo na pequena produção familiar – locus de trabaho da muher – é um
passo fundamental no combate à fome no campo, na conservação dos recursos
genéticos e no reconhecimento da muher agricultora como agente produtivo.
(CORRAL, : ) Chama a autora a atenção para a necessidade de se valorizar
o alto envolvimento da muher na produção de autoconsumo familiar – cultivo
e processamento de alimentos, criação de animais, costura, artesanato, haja vista
que ele não é concebido como atividade produtiva, porque o gera, ou gera pouco
dinheiro, sendo, portanto, bastante desvalorizado.
Cordeiro (: ), propõe, então, que se deve demonstrar que esse trabaho
próprio da muher” tem alto valor econômico para a subsistência da família, com-
parando, para isso, o que é produzido pela muher para consumo familiar com o
preço da cea básica. Seundo ela, muitas iniciativas que visam valorizar o traba-
ho da muher, fazendo um grande esforço para a sua participação nas atividades
de mercado, geralmente controladas pelo homem, acabam reforçando a visão de
que o setor de produção de subsistência é perfumaria,além de implicarem um au-
mento substantivo da sobrecarga de trabaho da muher. Portanto, para ela, o que
parece necessário é a valorização social do trabaho da muher dentro do setor de
produção de autoconsumo, valorizando uma função que “é própria da muher.
 Andrea Nye. Teoria feminista e as filosofias do homem. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, .
A autora, ao analisar as representações da feminilidade e da masculinidade, defende que, seja
na mente das pessoas, seja na cultura popular, seja na ciência ou na filosofia, as representações
sexistas devem ser examinadas independentemente de serem burguesas ou proletárias.
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O mesmo tipo de arumentação proposta por Cordeiro (: ) aparece
nas idéias de Vandana Shiva (), sica e lósofa indiana. Ela é uma das princi-
pais fomentadoras e idealizadoras de um modelo de desenvolvimento alternativo
para o Terceiro Mundo. Suas idéias encontram-se largamente disseminadas em
projetos de tecnologias alternativas. Ela toma a condição feminina, quer dizer, o
modo de vida da muher, como modelo para um desenvolvimento sustentável,
baseado na agricultura tradicional de subsistência, diversicada e auto-susten-
tável, em resposta à crise do modelo de desenvolvimento ocidental, destrutivo e
masculino, que tem levado a mercadorização da muher, bem como da natureza e
do trabaho das pessoas que vivem nos países do Terceiro Mundo. Seundo Shiva
(), o papel desempenhado pela muher tanto no cuidado com as crianças,
quanto no atendimento das necessidades básicas de sobrevivência da família,
serve de modelo para um outro tipo de desenvolvimento mais humano e digno,
isso porque a muher compreende mehor a natureza do que o homem e entende
mehor quanto a eécie humana depende dela. Ela defende o ponto de vista de
que a muher tem ligação mais intrínseca com a natureza do que o homem, não
somente por realizar o seu trabaho estreitamente ligado à natureza, mas também
porque a muher gera vida e alimenta seus hos. Para essa autora indiana, então,
o princípio feminino se expressaria numa agricultura de reeito às condições
ecológicas, e não por modelos interessados no lucro, na busca de produtos mais
rentáveis, que agridem a natureza.
Shiva (), concebe o modo de desenvolvimento dominante como ocidental,
patriarcal e baseado num modelo reducionista de ciência e um tipo particular de
tecnologia que serve ao mercado global. Tal modelo é, seundo ela, destrutivo
tanto para a muher como para a natureza e para as pessoas que não vivem nos
países do Norte. Na sua perectiva, muheres e pessoas pobres do Sul são os ou-
trospara o ego patriarcal ocidental. Ela eabelece uma oposição entre o modelo
de desenvolvimento agrícola ocidental e o indiano. O primeiro é descrito como
destrutivo e masculino, sem comunicação com a natureza, visto que se funda-
menta em técnicas de plantação de monocultura e em uma agricultura a serviço
do mercado e da acumulação de capital, e o seundo é tido como propiciador de
uma relação harmoniosa com a natureza, por se basear no cultivo de plantações
múltiplas e produção de subsistência, usando somente o que a natureza produz
dentro do sistema agrícola tradicional.
Ao contrário da compreensão da Organização das Nações Unidas (ONU),
(), principal fomentadora das políticas de desenvolvimento rural para o Ter-
ceiro Mundo, de que era necessário inserir a muher na corente do desenvolvi-
mento para minorar o fenômeno mundialmente conhecido como “feminização
da pobreza,” Shiva () e o movimento ecofeminista são críticos ao modelo de
desenvolvimento vigente, tido como ambientalmente destrutivo e socialmente
N E A D E S P E C I A L
excludente. Criticam, conseqüentemente, também a ciência, por seu papel como
principal sustentáculo e propulsora das forças produtivas modernas, destrui-
doras do meio ambiente e a serviço de um poder dominante identicado como
branco, europeu e masculino. O ecofeminismo de Vandana Shiva, seundo Anne
Feruson (), se fundamenta na concepção de que uma conexão entre a
opressão da muher e a dominação da natureza. Nee sentido, as estratégias de
desenvolvimento agrícola, orientadas para o crescimento, são percebidas como
uma forma de genocídio. Defende-se, em contrapartida, a aproximação da muher
da agricultura e do manejo dos recursos naturais como sendo fundamental para
os direitos humanos e ecológicos hoje.
Não é nosso objetivo aqui elencar uma rie de justicativas cabíveis para
discordar da relação que aparece na literatura e em movimentos de cunho eco-
feminista, bem como nas políticas de desenvolvimento sustentável, vinculando
a muher à natureza e o homem à cultura. Contudo, é importante deacarmos,
como chama a atenção Maurice Godelier (: ), que o homem tem uma his-
tória porque ele transforma a natureza e com ela interage. Portanto, a natureza
é um elemento constitutivo de sua essência humana. Assim, a natureza é tudo,
tanto as realidades materiais exteriores ao homem, como aquelas que ele mesmo
criou e transformou. Ambos agem sobre a organização da sua vida social e, mais
profundamente, sobre o processo de produção de novas formas de sociedade.
Portanto, homem e muher eão em constante ligação com a natureza, e mesmo
que consideremos que esse nculo possa ser diferenciado, nem mesmo tais es-
pecicidades podem ser caraerizadas como universais. Daí, não ser possível se
pensar a relação homem/muher com a natureza em termos de oposição.
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De corpos, desejos,
feitiços e amores
: A sexualidade entre
jovens de origem rural
VA N DA A PA R E C I DA DA S I LVA
E  pesquisa que trata os jovens do meio rural
como central na investigação e cuja preocupação mais ampla se relaciona com a
construção das identidades dos jovens de origem rural no município de Rosário
das Almas, do Vale do Jequitinhonha MG. Os jovens privilegiados são aqueles
com trajetórias de vida entre o rural e o urbano.
A sexualidade pensada como o campo de descobertas do corpo e que eá
marcada ou demarcada pelo contexto cultural, apontou para a necessidade de
se analisar o processo de aprendizagem sociocultural ao qual eão sujeitos ees
jovens do meio rural e quais as marcas do gênero que modelam as trajetórias de
moças e rapazes no campo das representações e práticas sexuais; bem como as
transformações junto às famílias rurais impulsionadas por mudanças culturais
que se processam por meio dos jovens. A gravidez precoce (desejada ou não) entre
 Este artigo contempla parte de alguns capítulos da tese intitulada, Menina carregando menino…
Sexualidade e família entre jovens de origem rural num município do Vale do Jequitinhonha M.G.,
defendida em fevereiro de . Este trabalho teve o financiamento da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
 Trata-se de um nome fictício.
 Por isso, no próprio subtítulo indico os sujeitos sociais como sendo de origem rural,pri-
meiramente por estar me referindo ao município, a localidade de origem; e, também porque
quero chamar atenção para o fluxo migratório, a dinâmica de ir e vir pelos espaços.
As entrevistas foram concentradas entre jovens na faixa etária dos - anos, mas outros na
faixa etária subseqüente também foram entrevistados.
N E A D E S P E C I A L
os jovens desse município impôs-se como um dos temas da pesquisa, posto que
diretamente diz sobre a vida amorosa e a sexualidade dos rapazes e moças.
A partir de aluns dados da pesquisa apresentarei como os jovens de ori-
gem rural, em trânsito entre campos e cidades, vivem a experncia da sexu-
alidade cruzando-as com outras experiências, sobretudo da geração dos pais
para demonstrar que nees domínios da sexualidade, do corpo e da vida desses
moradores, o universo da religiosidade transversalmente também se apresenta.
Os adultos foram privilegiados pela relação que os jovens têm com eles e vice-
versa, no bojo do processo de socialização e interação social. Assim, se os adultos
de Rosário das Almas têm diculdades em comunicar determinados conteúdos,
principalmente os que dizem reeito à experiência da sexualidade devido ao
tabu sobre o sexo, marcado por valores morais religiosos presentes nos grupos
familiares, também ee é um forte fator que diculta aos jovens verbalizarem
sobre sua intimidade. As narativas dos jovens sobre sexo, desejos e descobertas
do corpo inscrevem-se cotidianamente por meio de outros sinais, mbolos e
comportamentos. Captá-las foi o desao que me propus e que procuro deslindar
aluns dos seus conteúdos nee artigo.
O , ?
Na divisão geográca, o município de Rosário das Almas pertence ao Alto Jequi-
tinhonha Minas Gerais. Originou-se da migração de ex-escravos e aventureiros
à captura do ouro anunciado nas áuas do rio Capiai, nos idos de . Atual-
mente conta com . habitantes.
No topo da hierarquia social do município encontram-se: A) No rural: os
proprietários de grandes extensões de teras, os fazendeiros (aluns falidos); os
gatos” (agenciadores de mão-de-obra para outras regiões, também chamados de
encaregados de turma). Estes homens, chefes de família(s), exercem domínio no
rural, no entanto, são pessoas que possuem moradia e trânsito de inuências nas
sedes (seja do município, seja nos distritos). Também é possível avançar e dizer
que, muitos dees, eão diretamente dentro das redes de relações político-admi-
nistrativas e, por isso, são fortes uardiões do cural eleitoral que elegem e mantêm
 Porém, percebi que seria necessário e importante, antes, descobrir os significados que a
gravidez precoce tem para moças e rapazes no processo de passagem da juventude à vida
adulta; se isto interfere no arranjo da família rural e, sobretudo, se essa gravidez é percebida
como um problema.
 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo demográfico .
Os moradores das comunidades rurais vivem da agricultura de aprovisionamento e das mi-
grações para outras regiões, enquanto driblam os longos períodos da seca nesse ambiente
de chapada: terras planas e elevadas com limitadas nascentes d’água (Galizoni, ).

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os políticos locais, eaduais e federais: herdeiros e mantenedores das relações do
coronelismo (N L, ). B) No urbano (sede): os comerciantes; os que
ocupam cargos de conança na prefeitura local ou nas extensões distritais; os que
se constituem na inteigentsia local, professores, padre, pastores, artistas, dicos,
dentistas () e enfermeiros (com exceção do padre e pastores, aluns também são
membros da irmandade religiosa de Nossa Senhora do Rosário).
Na base da pirâmide encontram-se: A) os pequenos lavradores que conse-
uem plantar e coher alum produto agrícola para abastecimento doméstico e co-
mercializar o que sobra do gasto.B) os pequenos lavradores que mal conseuem
plantar e têm que viver das migrações sazonais em teras produtivas ou trabahos
assalariados nas cidades. Cabe observar que as diculdades com o plantio e cohei-
ta, muitas vezes, também eão relacionadas a queões do solo, principalmente
devido a proximidade ou não de lençóis de áua; e que ees pequenos agricultores
podem, também, ser moradores na sede do município ou dos distritos e continuar
migrando para os trabahos nas usinas de cana-de-açúcar ou fazendas de café.
Enquanto eão morando nas comunidades rurais, também há casos de famílias
cujos hos, crianças e jovens, são beneciários de um programa mantido por
uma entidade lantrópica cristã que atua por meio de uma associação local de
assistência ao trabahador rural e à criança. Dessa categorização social resulta
a diversidade dos principais sujeitos da pesquisa devido às diferentes categorias
socioeconômicas das quais descendem.
Q ?
Para dizer do próprio espaço que foi investigado, considero criticamente nessa
abordagem o pensamento imperativo de delimitação do urbano e do rural no
Brasil derivado da legislação e das nossas instituições político-administrativas
(V, : p.), pois ee parece ser um bom ponto de partida. Assim, a idéia
que se impõe, primeiramente, quando se recore às observações empíricas, ao
ear lá,é sob a inspiração de uma situação observada no plano espacial, pois, do
total de . habitantes, a maior concentração populacional eá na área rural:
. habitantes eão nas comunidades rurais do município (aproximadamente
 Sobre essa associação ver o trabalho da dissertação de mestrado, Sertão de jovens: antropo-
logia e educação, editado pela Cortez Editora, Coleção Questões da Nossa Época, .
 Adota-se esta denominação porque é este o termo que os moradores que estão na sede
– membros da igreja, da prefeitura local, centro médico, associação – utilizam para indicar as
áreas rurais. Mas observa-se que os moradores destas áreas, normalmente não se reférem
aos seus lugares de morada pela nominação inicial comunidade” de tal. Dizem: “sou de….
Muitas vezes, este nome está ligado a córregos, fazendas, uma atividade que naquele local
era predominante, como o garimpo, por exemplo.
N E A D E S P E C I A L

) e . eão nas sedes (considerando sedesa do próprio município e dos
quatro distritos), a área urbana.
Parto da assertiva de José Eli da Veiga (Cidades Imaginárias, ) que diz
que o “Brasil é menos urbano do que se calculapara reetir sobre a dimensão
espacial desse município e de como eão distribuídos seus moradores, para depois
incorporar a dimensão das representações.
Então, nessa aproximação analítica que busca analisar os recortes institucio-
nais que forçam a urbanização de municípios, e que para José Eli da Veiga ()
são rurais, para o caso estudado, ea me dá o suporte para reetir sobre os dados
internos ao vericar a classicação operacional que os sujeitos fazem para o rural
e o urbano. Enquanto os dados externos colocam em perectiva a relação dos
moradores do município com as cidades para onde migram. Pois, no caso das
cidades-destino dos migrantes, eas expressam um desenvolvimento socioeco-
nômico e um processo de urbanização mais acentuado, com muito mais ofertas
de serviços eecializados, além de criar mais expectativas para as oportunidades
no mercado de trabaho.
Rosário das Almas apresenta-se em transformação, cujas conseqüências mais
visíveis podem ser resultantes da crescente inuência da televisão, do rádio, da
estrada, e das migrações. Isso leva seus moradores a descobrirem as possibilidades
de se apropriarem de valores e bens de consumo romperem com as “limitações”
geográcas (rural-urbano) e construírem moradias também nas sedes (seja do
município ou dos distritos), enquanto eão, cotidianamente em constante ir e
vir. Os moradores (os atores sociais) eão elaborando, reelaborando o trânsito
cada vez mais fácil dos bens de consumo, do modo de vida dos universos rural e
urbano, principalmente no que diz reeito às experiências e representações da
sexualidade e os saberes locais. O que se percebe é que, talvez, as sutilezas nas
diferenciações entre os membros de famílias que são pertencentes às comunida-
des rurais e membros de famílias que pertencem ao urbano, são mais regidas por
queões que eão ligadas a oportunidades e escohas dos membros familiares do
que, propriamente, devido ao pertencimento a um ou outro universo.
Dea maneira, observando os moradores de Rosário das Almas, -se que
aqueles que já eram moradores do núcleo urbano, embora trabahando na tera
(de herança ou de aquisição posterior), são reconhecidos como sendo da cida-
de.Já aqueles que nasceram, cresceram, constituíram família em comunidades
 IBGE, Censo .
 Ressaltando que não se trata de, numa perspectiva de comparação, considerar a sede de
Rosário das Almas igualmente “urbana,” como as cidades para onde alguns migram, a saber:
São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Campinas (SP), Teófilo Otoni (MG).
 Até porque é na sede que podem ter acesso mais fácil à água, eletricidade, correios, escola,
saúde (C, ; V, ).

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rurais são identicados como sendo da roça. No entanto, existe a mobilidade
dos moradores e ees transitam por um universo e outro sem constrangimentos
visíveis. No âmbito de uma análise circunscrita, pode-se dizer que os moradores
de Rosário das Almas constroem representações sociais que operam as distinções
entre os que são da sede e os que são das comunidades; porém, tal classicação
não é imobilizadora, não os aprisiona em suas moradas, assim como não en-
traves para as trocas simbólicas e dos valores. Se nas sedes eão mais presentes
os produtos industrializados, os jovens e demais moradores identicados com os
comportamentos citadinos, ees também auardam e consomem os produtos
agrícolas, eeram pela circulação e a solidariedade dos moradores que têm
moradia nas comunidades rurais.
Se partir para uma análise de âmbito regional ou mesmo global, talvez seja
possível, dizer que o município de Rosário das Almas pode ser compreendido
como rural ou de pequeno porte e caraesticas rurais” (V, , p. ),
pois se considerar que o vocábulo que se refere à sede é entendido por cidade,
ee é apenas sinônimo de uma unidade político-administrativaconsiderada
urbana(id., p. ). No âmbito das relões sociais, a idéia de “reurbanização”
para se pensar o município e o contexto do qual fazem parte os sujeitos sociais, tal
como empregou Maria José Carneiro (), é apropriada, pois sugere a assertiva
que esse município passa por um “processo de reestruturação dos elementos da
cultura local” (p. ); da reelaboração do tradicional, pela coexistência e troca
de valores dos universos rural e urbano, cujo palco mais privilegiado desse pro-
cesso seria a sede (tanto do município quanto dos distritos), sobretudo quando
se pensa nos jovens.
Não obstante, de um lado, se há tal articulação, por outro no convívio entre
os próprios jovens, observa-se que há os que buscam diferenciar-se ou demarcar
tereno atribuindo caraerísticas classicatórias àquele ou àquela como sendo
do rural (das comunidades rurais ou roça) e os que são da cidade (da sede do
município ou dos distritos). Tais classicações partem de comentários que con-
tribuem ou somam a construção de estigmas sociais. De aluns depoimentos de
jovens moradores da sede sobre os jovens que são das comunidades rurais, ouvi
o seuinte: o “ignorantes,fechados ou desconados”; enquanto os jovens
 As sedes ficam mais movimentadas e menos desertas com a circulação dos moradores das
comunidades rurais que, além da presença física, também consomem e dão lucro ao pequeno
comércio local.
 Pois, o estes que mais enfaticamente investem em articular comportamentos tidos por
tradicionais e modernos, quando freqüentam as danceterias instaladas nas sedes – em algu-
mas circunstâncias por moradores vindos de fora” ou jovens que estavam morando fora e
retornaram – e participam dos festejos e cortejos religiosos de Nossa Senhora do Rosário
ou outros momentos e práticas de religiosidade, por exemplo.
N E A D E S P E C I A L

das comunidades rurais, principalmente, os que o freqüentam as sedes com
assiduidade dizem que “não se pode conar em gente de cidade, não.
Daí -se que os hos dos lavradores e camponeses com pouco convívio junto
aos jovens que vivem nas sedes tendem a se mostrar mais reservados ou “descon-
adosquanto às amizades, por exemplo. Do outro lado, os jovens que querem
ser vistos como modernos atribuem estigmas aos que não aderem a comporta-
mentos e práticas de ousadia ou espontaneidade nas relações afetivo-amorosas
ou mesmo de eética, como o uso de adereços e indumentárias que compõem a
vestimenta que julgam ear na moda. Porém, tão logo os hos de camponeses
ousem e invistam em incorporar hábitos e técnicas corporais, tal como as vistas
nos comportamentos dos jovens da sede, abafam o estigma, atenuam os conitos
e a distinção de pertencimento a uma dada localidade chegando a confundir o
observador; mais ainda, a diminuir as possibilidades de uma análise com base no
espaço geográco dicotomizado “rural” e “urbano,sobretudo quando se deita o
ohar para as queões da sexualidade, valores e saberes.
Se nas relações interpessoais revelam os seus conitos, é pouco provável que
o espaço geográco seja o que delimita a cultura ou o grupo social, enquanto a
força da mobilidade dos moradores desse município faz surgir cotidianamente o
redescobrimento da corporeidade. Tratar a corporeidade é colocar em evidência
o corpo como matéria humana que se mostra como uma certeza sensível e visível.
Nee sentido, se faz imprescindível à compreensão de uma dada situação con-
siderar as relações intersubjetias que, seundo E.Bakhtin (, , p.  apud
Santos, M., , p. -) é “a arquitetura concreta do mundo atual dos atos
realizados tem três momentos básicos: o Eu-para-mim mesmo; o outro-para-
mim; o Eu-para-o outro (basic moments: I-fo-myself, the othe-fo-me, and I-fo-
the-othe). É desse modo que se constroem e refazem os valores, atras de um
processo incessante de interação.
Chego ao que de fato é o núcleo dessa reexão: compreender a experiência
dos jovens e, portanto, as identidades que ela forja, atras de uma perectiva
caleidoscópica, para traduzir o sistema de reprodução social no qual eão inseri-
dos esses jovens. Pensar a experiência dessa maneira, então, é um modo de vê-la
como um processo. Tal compreensão deverá ter como pressuposto, portanto, a
heterogeneidade dos jovens da qual a categoria juventude como categoria totali-
zadora não dá conta, pois ees reetem, em diferentes contextos socioculturais,
a diversidade de sua experiência e mobilidade, tais como:
os jovens que eão na sede do município ou dos distritos de Rosário das Almas,
diferenciam-se entre os que nasceram e foram criados dos que vieram das comu-
nidades rurais e eão vivendo com suas famílias na sede;
os jovens que m das comunidades rurais e eão vivendo temporariamente nas sedes;
os jovens que são das sedes e migram para outros centros urbanos e retornam;
a.
b.
c.
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os jovens que migraram para cursar faculdade e retornam e se empregam;
os jovens que migraram para cursar faculdade e retornam, mas não conseuem
se empregar;
os jovens das comunidades rurais que migram para outros campos (os da agroin-
dústria) ou centros urbanos e retornam.
Portanto, na contextualização da origem espacial dos sujeitos sociais, o rural”
diz reeito às comunidades rurais identicadas ao universo camponês, o urbano
às sedes do município e distritos, ressaltando que elas o utilizadas pelos pró-
prios moradores como “categoria operacional” para dizerem do mundo que eá
à sua volta. Dea maneira, em suas trajetórias de vida, os jovens do município
de Rosário das Almas podem ser agrupados em grupos e subgrupos, distintos da
seuinte forma conforme sua vinculação ou desvinculação escolar (S, :
p.) e experiência com a maternidade e a paternidade:
a. Estudantes;
a. estudantes (sustentados pela família ou fazendo parte do programa de apa-
drinhamento ligado à Associação de Assistência ao Trabahador Rural e à
Infância) com ou se experiência da maternidade e paternidade.
b. Não estudantes;
b. não-estudantes-trabahadores (migrantes sazonais ou o) com ou se expe-
riência da maternidade e paternidade, casados ou não.
c. Estudantes temporários (ou sazonais);
c. estudantes-temporários-migrantes (para os cortes da cana-de-açúcar ou
coheita do café) com ou seexperiência da maternidade e paternidade, ca-
sados ou não.
d. Estudantes formados;
d. formados empregados, com ou se experiência da maternidade e paternidade;
d. formados e desempregados, com ou se experiência da maternidade e pater-
nidade.
Por isso, nos termos da diversidade é que trato os jovens de Rosário das Almas,
jovens de origem rural ou “jovens rurais,ancorada no reconhecimento individual
desses sujeitos de que são ou não jovens. Pois, quando se reconhecem como jo-
vens e se iniciam na experiência da sexualidade, caminham para a transição para
a vida adulta ou se precipitam na vida adulta, pela maternidade/paternidade/
conjugalidade, assumindo responsabilidades. Não obstante, a gravidez, precoce
ou não (e fora de uma união), também sugere o questionamento da valorização
da virgindade por parte dos jovens, uma vez que, ea não representará uma
 Cf. Silva, V., .
d.
e.
f.
N E A D E S P E C I A L
impossibilidade da moça vir a realizar um casamento. Enquanto na dimensão
do Censo demográco, aluns dados de fecundidade demonstram os seuintes
números em Rosário das Almas:
Em contraste, pesquisando documentos (formulário Datasus), foi possível
obter aluns números sobre a geação entre moças menores de  anos que se
apresentavam para exames de pré-natal. Porém, saliento que apesar dees se
mostrarem ascendentes, deve ser levado em consideração que tais informações
não eão completas; o tive acesso à informação se a gravidez foi levada adiante;
informação sobre os registros de abortos provocados, enquanto somente os abor-
tos espontâneos tiveram registro nos documentos das agentes de saúde, assim
comonão foi possível saber se as geantes eram solteiras, casadas ou aasiaas.
Os números de geantes menores de anos registrados no período de  a
 Em Rosário das Almas, no caso de ocorrer uma gravidez em idade precoce, isto o quer
dizer que a moça esteja sem um companheiro ou fora de uma união conjugal.
 IBGE – Censo demográfico,  (Sistema IBGE de Recuperação Automática Sidra). Tabela
 Filhos de mulheres de  anos ou mais de idade por situação do domicílio, tipo de
nascimento e grupos de idade das mulheres.
 Da Secretaria de Saúde de Rosário das Almas.
Sublinho que tal sistematização feita pela prefeitura local data dos dois últimos meses do ano
de  quando começam a implantar o PSF (Programa de Saúde Familiar) do Ministério da
Saúde, Governo Federal, no município.
 Importante salientar que tais anotações eram feitas a lápis, no canto da folha das anotações,
como se tal informação devesse ficar apenas para a observação da agente de saúde, pois no
documento oficial tais dados não constavam.
 Em Rosário das Almas, para os casais que vivem maritalmente a expressão amigar é a mais
utilizada, mas, às vezes, também se diz amasiar, correspondendo, portanto, ao estar casado.
Quando perguntei a alguns dos casais “vivendo amigados,por que não legalizaram o casamen-
to? Estes, logo me diziam do desejo de virem a unir-se oficialmente no civil e/ou no religioso.
Em estudos sobre aspectos da família no Recife, René Ribeiro (p.) ao analisar sobre o “ama-
ziamentodiz que: “(…) neste tipo de relação, tanto quanto foi possível observar, a mulher
deve ser fiel ao companheiro (amásio) e deve se encarregar das tarefas domésticas; o homem
obriga-se a manter e dirigir a família, cuidando da mulher e dos filhos. “O amasiamento e
outros aspectos da família no Recife.Antropologia da religião e outros estudos. Recife: Editora
Massangana – Fundação Joaquim Nabuco, , pp. -.
Q 1 – F       
Filhos de mulheres de 10 anos
ou mais de idade (Ano 2000)
Situação de
domicílio/ rural
Situação de
domicílio/urbana
Grupos de idade = 10 a 14 anos 0 6
Grupos de idade = 15 a 17 anos 17 17
Grupos de idade = 15 a 19 anos 69 37
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fevereiro de , foram: em  = ;  =  e fevereiro/ = . No gráco,
observar-se-á que mesmo o obtendo informações referentes aos meses rean-
tes de , na comparação dos dados de  com os de apenas os dois meses
iniciais de , ee último quase se iuala, em proporção, ao total de geantes
menores de  anos em .
Q 2
0
2
4
6
8
10
12
14
16
Gestantes menores de 19 anos
2002
2003
fev.04
Entretanto, a ambiüidade entre o dito e o vivido, o “ideal” e o “acontecido é
recorente no cotidiano dos moradores de Rosário, eecialmente quando indaga-
se acerca dos relacionamentos. Ou seja, existe a expectativa de uma conduta ideal”
e um comportamento real exível coexistindo, sem que isto isente seus moradores
do conito e das tensões, ao contrário (G, ). Decorente disso tal-
vez a queão da gravidez em idade precoce seja apontada como um prolema
por não coresponder a um padrão ideal à instituição escolar, a igreja ou mesmo
àqueles que as representem.
No sentido de inchamento familiar, casos de jovens, rapazes e moças
que engravidam antes do casamento, por exemplo, implicando que os pais da
moça ou do rapaz acabarão por incorporar a criança à família (isto no caso de não
irem morar juntos); pois, a coabitação (ou aigaento) é uma forma predominan-
te de união, principalmente nas comunidades rurais, com perectivas de virem a
se legalizar. Fatores como pouca idade, o desemprego ou mesmo a desqualicação
prossional fazem com que os jovens de origem rural, quando m hos fora do
casamento aumentem a família de origem, dando-he outro formato. os casos
em que a moça deixa o ho sob os cuidados dos pais (avós) e vai procurar trabaho,
muitas vezes, subempregos nas cidades de dio-grande porte para ajudar “em
casa.Mas, todas, essas hipóteses não anulam o fato de que, para muitos jovens, so-
 Uma vez que fevereiro () foi a minha última visita ao campo de pesquisa.
N E A D E S P E C I A L

bretudo, para as moças, uma gravidez represente uma estratégia pré-matrimonial
ou de aliança(P,; L, ); mas, eecialmente, seja a realização
do desejo da maternidade e de outra forma de inserção social.
R
Observa-se a predominância espacial da população em área rural, bem como de
valores atribuídos e associados a ee universo que o mantidos e realimentados
pela família, tais como, a reciprocidade e a expressão religiosa marcada pelo “ca-
tolicismo popular”aquele que mescla a tradição da igreja católica com outros
cultos. Todavia, tal como nas palavras de Maria José Carneiro: “(…) dessa relação
ambíua com os dois mundos resultaria a elaboração de um novo sistema cultural
e de novas identidades sociais (, p. ). Assim, a família em Rosário das Al-
mas participa dessarelação ambíua com os dois mundos,” ao mesmo tempo em
que possui um duplo signicado,pois pode se apresentar como conjugal do ponto
de vista econômico,porém se dene como a parentela se vista pela perectiva das
relações sociais(Q, M.I.P. de apud a Galizoni, F., , p. -).
No que diz reeito à composição da família conjugal daquele município, ea
tem se mostrado com caraerísticas que vão variando no tempo; no geral, de
quatro hos por casal. a predominância das muheres cheando” os lares,
sobretudo porque os maridos são obrigados a se ausentarem por longos perío-
dos, nos trabahos da migração sazonal ou mesmo nos casos de abandono das
muheres e dos hos, conrmando assim a predominância feminina. Mas, é
importante sulinhar que mesmo que a família conjugal em Rosário das Almas
tenha um perl dinâmico e o-linear, devido aos casos de abandono, separação,
viuvez, disso resulta o fortalecimento do papel da e como aglutinadora da
família. Vê-se que em muitos casos de viuvez ou mesmo de abandono, a muher
não se casa novamente, a ea costumam denominar de “viúva de marido vivo.
Viúvas por causa de morte, abandono ou por longo período distante do marido,
eas muheres, na maioria dos casos, criam toda a prole e permanecem em suas
casas sem recorer à casa de parentes.
Não o poucos os jovens de Rosário que deixam suas casas para trabahar
em outras teras. Na maioria das vezes os hos são os primeiros a iniciarem-se
 Deste modo, de uma boa parte dos jovens entrevistados, os relatos acerca da figura paterna
foram transmitidos pelos próprios filhos ou pelas esposas.
 Sublinho que tal denominação não é bem aceita, tanto por parte dos homens casados que
estão temporariamente fora quanto pelas mulheres que são assim chamadas, embora elas
reconheçam em si tal condição (temporária ou não).
Agradeço ao colega José Carlos Pereira (pesquisador do Ceres), também um conhecedor da
região do Vale do Jequitinhonha, por ter me chamado atenção para tal sutileza.

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no processo de migração, seja para ganhar a própria vida seja para ajudar no
sustento da família de origem. Há, porém, outras duas causas que podem ser so-
madas à essa demanda: a primeira é o pouco interesse para com os estudos (em
aluns casos não se deve interpretar como pouca capacidade ou aptidão para a
aprendizagem formal, ao contrário); a seunda, eá diretamente co-relacionada
com a primeira, pois diz reeito a pouca cobrança ou exigência que se faz aos
rapazes com relação aos estudos, seja socialmente seja pela família (S, ).
O abandono ou a não conclusão dos estudos (muito antes que as moças) acaba
por ser visto como um dos traços de masculinidade.
Simultaneamente, talvez, seja possível armar que para muitos jovens desse
município, antes (ou ao lado) da necessidade de ganhar dinheiro para colaborar
com a família, migrar pode representar também o início de um outro processo:
ganhar autonomia dentro do grupo familiar e fora dele, perante os pares, pois,
uma vez na migração sazonal, o se estranha se com uma certa idade (por volta
dos - anos em diante) o rapaz eeja pretendendo aigae como no adágio
popular “quem casa quer casa…,também empreenda esforços na construção de
seu novo lar, ou queira juntar dinheiro para adquirir bens de consumo, tais como,
motocicleta, apareho de som, tênis, calça jeans de marca. Portanto, vê-se que o
trânsito dos jovens além de resultar numa estratégia de sobrevivência, amplia a
capacidade de consumo e intensica o processo de indiviaduação no interior da
família (C, ).
Nee sentido, sob os valores ditos tradicionais momentos em que os jo-
vens buscam se armar como um corpo constituído.Ou seja, descartando ou
acrescentando elementos que irão compor uma maneira individual de ser, ver
e sentir. Como isto entra em “negociaçãocom os valores eabelecidos no seu
universo de origem, é outro ponto importante. Na vida coletiva, um bom espaço
de observação são os momentos de fea, principalmente o da Fea de Nossa
Senhora do Rosário, ou os bailes (em danceterias no núcleo urbano).
Nos contextos das feas outros enredos são encaminhados. Enredos que di-
zem reeito às relações afetivo-amorosas. Assim, aluns jovens e adultos m
mais expectativas do que outros para a chegada das feas, pois eeram encontrar
o par, eeram car” com aluém. Por isso, após aluma fea sempre se encon-
 Condição de quem passa a viver como marido e mulher sem oficializar a relação no civil ou
religioso. Eventualmente empregam o termo “amasiar” como sinônimo desta condição.
 Trata-se de uma festa tradicional, perpetuada há mais de  anos pela Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário.
 Denominação usada, principalmente entre os jovens para expressar um relacionamento amo-
roso de curta duração, podendo ter relação sexual ou não; relacionamento sem compromisso
em que duas pessoas se tocam, trocam beijos e carícias (Silva, ).
N E A D E S P E C I A L

tra um conteúdo fecundo de histórias amorosas, ilusões, desilusões, traições, mas
sempre algo para se contar.
Com efeito, as feas mobilizam os jovens, os adultos, mas principalmente
aqueles que desejam encontrar futuros maridos e esposas ou, pelo menos, um
namoro para compromisso. Estes são sonhos, mas enquanto eles não acontecem
ou na busca de que eles aconteçam, os jovens querem circular e conhecer quantos
puderem, principalmente se forem de fora, de outros distritos ou comunidades.
Uma vez que namorar ou casar-se com aluém de fora pode ser motivo de pres-
tígio, principalmente se acaretar ascensão social e representar modernidade
(M; P, ) Os jovens entrevistados de comunidades rurais não
mencionaram sobre a exigência de se casar com moça da própria comunidade,
mas sim com aluém de quem se goste, pois preferem “ouvir o coração.
A
Para as moças, sobretudo as que vivem ou vêm das comunidades rurais, quando
um namoro eá se tornando púlico, é sinal de que há intenção de união e, por
isso, muitas vezes, manter relações sexuais antes do casamento pode ser permitido
ou tolerado. Entre essas moças é mais freqüente se enamorarem de um rapaz mais
veho (em média a diferença é de quatro anos para mais) e em seuida assumirem
uma união, aiga. Como no depoimento de uma jovem [ anos, grávida,
o
ciclo
do ensino fundamental incompleto]: Aí, eu namorei com um cara e ele queria
amigar. Nós amigou. Ele falou com a mãe. (…) Aí, quando ele chegou, eu já quis
ele. (…) Ah, ele morava aqui perto mesmo, né. Aí, ele ia lá em casa e a gente con-
versava. Aí…Aí, ele passou a gostar de mim e eu dele. Aí nós amigou.
moças cuja trajetória é de mobilização que visa realizar o projeto do ca-
samento, como no depoimento da jovem [ anos] que ao completar  anos
começou a trabahar nas roças de outros moradores da comunidade, realizando
serviços de capina. O dinheiro que ea moça ganhava, comprava vasihas para
o seu enxoval. Ao he peruntar sobre seus estudos, contou-me que desistiu dos
estudos, assim que concluiu o
o
ciclo do ensino fundamental e que tal abandono
 Pois, se há um namoro com alguém que se foi e retornou, sabe-se da família da qual este ou
esta descende e nisso um pré-julgamento do jovem. Aos olhos dos pais, este pré-julga-
mento é o mais desejável, principalmente se forem das comunidades rurais, mas é o que tem
menor importância para os jovens que estão nos núcleos urbanos da sede ou dos distritos.
 Trabalho de limpar o terreno.
 Procurei saber o motivo e ela alegou que a distância de sua casa até o local onde passa o
ônibus escolar é longa, caminha-se em torno de uma hora e meia, mais ou menos.

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foi antes de aiga. Insisti em saber se teria alum outro projeto, um sonho com
aluma prossão e a resposta foi única, seu sonho era o casamento. Seque para
as moças das comunidades rurais o casamento é uma prossão, um trabaho?
Talvez essa idéia eeja contida na resposta da depoente e encontre conexão
com o processo de socialização para o casamento. Pois, não será raro ouvir, entre
as muheres e mães das comunidades rurais de Rosário das Almas, aluma ex-
pressão de satisfação devido ao fato de a ha “ear empregada.” No contexto, a
informação indica o fato de a moça ear casada. Assim, tal expressão ou outras
que resultem nee sentido, são indicativos de que, para uma parte signicativa
da geração das muheres e mães, um padrão de casamento – seja no civil e ou
religioso ou pelo aigaentoque eá corelacionado com a idéia de trabaho;
bem como, a relação sexual ser para ns de procriação. Ou seja, o casamento é uma
ocupação na vida da muher, como cuidar da casa, do marido, dos hos e da roça.
Todavia, há, ainda, uma queão de fundo que novamente remete para o tema
da herança da tera e do trabaho, e que coloca o casamento como um eixo arti-
culador da vida de quem é lavrador, seja no Alto Jequitinhonha seja em Rosário
das Almas, uma vez que ele juntamente com o trabaho e uso da tera constrói e
concretiza a herança (G, : p.). Então, o casamento, para quem é
das comunidades rurais é um trabaho, uma vez que quem não tem teras pode
vir a tê-la pelas núpcias ou, ainda, quem já possui aluma gleba vir a aumentá-la
(id). É mais freqüente que as moças ao se casar passem a viver na gleba do marido;
porém, há casos em que o rapaz não tem tera. Se a noiva tem, o futuro marido
deverá construir na tera da mesma e ir viver com ela.
De toda forma, em Rosário das Almas a trajetória amorosa dos jovens, rumo
à conjugalidade ou entrada na vida adulta exige alumas distinções, posto que na
vida do rapaz para que ele seja reconhecido como adulto ou adquira tal status se
necessário realizar a seuinte combinação: buscar a autonomia nanceira, uma
vez que ea é também a conrmação social de que o rapaz é responsável e capaz
de produzir sustento a uma casa, o que o torna um bom partido para assumir
um casamento; assumir um lar conjugando trabaho, casamento e paternidade.
Essa tríade também se como passagem para a vida adulta das moças, porém,
ser mãe já é o equivalente de adultez mesmo sem o casamento ou conjugalidade.
Peruntei à moça [ anos] se ela se achava uma adulta, e ela não teve dúvidas:
“Hum, hum (riso) Por que a gente vai ser mãe, né. Aí, já é adulto.
O que, por outro lado, é pouco associado, vivido ou cobrado dos rapazes, prin-
cipalmente quando permanecem solteiros, mas tiveram a experiência de serem
pais, tanto no rural como no urbano. Junto às moças que o do núcleo urbano, a
 Importante sublinhar que este é um caso de união consensual sem pressão por causa de uma
gravidez, ao contrário, esta veio depois de terem amigado.
N E A D E S P E C I A L

experiência de ser mãe solteira também hes confere o status de adulta; porém, o
modo como elas vivem tal experiência difere das moças das comunidades rurais.
Uma vez que entre as moças das comunidades observa-se certo decoro e recato,
principalmente, se não m marido; junto às moças do núcleo urbano, a gravidez
fora do casamento não as retira da vida de sociabilidades, tal como os demais jo-
vens solteiros, assim como das paqueras,do car.Este comportamento, porém
não é isento dos comentários e das tensões.
Identica-se também que, para as moças que são das comunidades rurais e
vêm morar (temporária ou permanente) no núcleo urbano, os sentimentos de
ansiedade para a iniciação sexual (e perda da virgindade) são vividas sob maiores
pressões, sobretudo quando eas moças passam a ter amizades inuentes com as
moças que são do núcleo urbano; bem como, quando se relacionam com os rapa-
zes dee mesmo núcleo. Os depoimentos de alumas moças nascidas e criadas em
comunidades rurais demonstram que elas procuram ter seurança e conança no
rapaz com o qual irão ter sua iniciação sexual, ainda mais porque há, quase sempre,
certa desconança das moças dessas comunidades com relação aos rapazes que
eão na sede. Julgam que eles só querem se aproveitar das moças e não querem
compromissos. Enquanto que em relação às moças das sedes o comportamento é
mais ofensivo junto aos rapazes. O que não signica que elas deixaram de querer
compromisso sério, uma vez que sonham em encontrar seu par; porém, enquanto
isso não acontece, as moças também querem car,paquerar sem serem discri-
minadas. É quando começam as tensões.
Junto às moças que são do núcleo urbano (nascidas e criadas) percebe-se que
a “vigilância moral” é vivida com uma relativa dose de transgressão, pois, uma
vez incorporados os valores atribuídos ao universo citadino, veiculado pelos
meios de comunicação (principalmente através da televisão), eas vivem mais
livremente as experiências de sexualidade. Por outro lado, elas sofrem muito
mais os efeitos das fofocas entre os moradores, a rede de parentela, sobretudo
quando são mais ousadas e transgridem as representações do “bom” comporta-
mento feminino, sendo o recato a principal delas. Nesse confronto, nos relatos
das experiências de alumas depoentes vericou-se o choque com os valores
citadinos e as representações de casamento presentes no município, implicando
demarcação temporal dos jovens quanto ao tempo para casarem-se. Mas qual
a idade “ideal” para o casamento? Seundo uma depoente [ anos, viúva] de
uma das comunidades rurais, a idade “boa para casar é: “(…) Dezessete, , né.
Porque hoje em dia, não é todo rapaz que quer casar com moça véia, não é, não?
Vinte ano tão falando que é véia, né. (…) (risadas).Será que antigamente as
moças se casavam mais vehas?
Peruntei à depoente [ anos] se antigamente era assim: “Não, antigamen-
te, não. Antigamente, antigamente, não, é…as moça casava, casava com vinte

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e dois ano, dezenove ano, vinte, vinte e um ano, né. Os rapaz não achava ia,
mas hoje num quer, né?(…) Esses rapazinho daqui, eles caça moça, só caça
moça nova.” O que os depoimentos revelam é que quando os moradores, os pais,
são chamados a opinar ou aconsehar sobre o assunto fazem tomando por base
sua própria trajetória aa conjugalidade para dizerem a idade “ideal” para o/a
jovem entrar na vida conjugal, e quando o depoente é a muher, a opinião seue
a escoha masculina. Ou seja, não há um consenso, mas, é possível perceber que,
conforme as condições socioeconômicas das famílias, se lavradores e moradores
das comunidades rurais, a idade para uma união é bem menor para a moça (antes
dos  anos) em relação ao rapaz que entra na conjugalidade um pouco mais veho
(a partir dos  ou  anos).
Mas, hoje, não são todas as moças de Rosário das Almas que buscam ter
novas expectativas de vida por meio do casamento, mesmo que tenham que ir
ao sentido contrário do que é mais constante ou linear nas trajetórias femininas.
A experiência de uma depoente [ anos, solteira, professora com formação uni-
versitária, moradora nascida no núcleo urbano] é um exemplo importante, por-
que diz dos casos que coroboram a diversidade juvenil de Rosário das Almas e
de aluém que se reconhece como jovem. Enquanto para os demais moradores,
incluindo outros jovens, a moça já earia passando da idade do casamento e da
maternidade. Esta trajetória individual soma-se à de outros jovens que saíram
do município, temporariamente, para fazer faculdade. Se, para aluns sair para
 Assim como o consenso em torno de algumas outras práticas para se chegar ao casa-
mento. Como exemplo: em uma família encontrei em duas gerações, a da mãe e da filha, um
histórico de trajetória amorosa em que a fuga fora a prática para o desfecho matrimonial.
Pode ser que este fragmento de um caso de fuga seja um dos últimos indícios de um padrão
característico em algumas regiões do Brasil, como o Nordeste e nas sociedades mediterrâneas,
como a portuguesa (W; W: ), por exemplo. Nos dias atuais, porém,
a fuga o se usa mais nos meios rurais portugueses. Porém, quando estive realizando estágios
de intercâmbio como pesquisadora-visitante, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa (em  e ), numa oportunidade acompanhei o pesquisador, doutor José
Machado Pais em uma visita a um grupo de jovens ciganas. Foi nessa visita que soubemos do
caso de fuga de uma das moças. Portanto, hoje em dia, fuga, em Portugal, somente entre os
ciganos. Estes vivem em acampamentos ou em bairros sociais eos que estão vivendo fora
das periferias.
 Na sua opinião isso está ancorado no fato de que ela se julga uma pessoa com pensamentos
mais “avançados” em contraste com a mentalidade das pessoas do lugar que é, no seu dizer,
“antiquada.
 Quando saem para cursar o ensino superior, as cidades escolhidas, quase sempre, o: Teófilo
Otoni, Diamantina, Belo Horizonte e Minas Novas. Todas dentro do estado mineiro.
N E A D E S P E C I A L

viver em outros centros o é o fácil, retornar também não. As moças que
não são mães em idade considerada padrão do lugar, ou seja, entre os  e (no
máximo)  anos ou não m um marido, são vistas como dependente” moral da
família e, portanto, não assumiram o status de muher e adulta, são ainda jovens
imaturas (H, ).
Por outro lado, as moças que saem e retornam ao município, dependendo do
seu comportamento e das circunstâncias de vida da família seja na sede ou nas
comunidades, poderão sofrer aluns estranhamentos ou até mesmo estigmas; o
contexto da migração, da sua trajetória da saída dará os elementos (aos que cam)
para que a moça ou rapaz seja visto como aluém que voltou “mudado.Enfati-
zo que isto também poderá acontecer com relação às moças das comunidades
rurais que vão morar (temporariamente) na sede do próprio município; mas, o
peso das comparações é menor, principalmente quando ear na sede é apenas
uma contingência e a intenção da moça ou do rapaz é de retornar à casa da roça.
Também encontrei moças (de comunidade rural) que migraram, mas mantiveram
a intenção de se casar com aluém do município e retornaram. Para os moradores,
eas não abandonaram o “jeito do lugar,pois, observa-se no conjunto das ava-
liações que preservou a aptidão para o trabaho. Sendo assim, se é sobre o corpo
que recai o peso das explorações sociais, principalmente no corpo de homens e
muheres trabahadores, também a inquietação sobre quais as representações
e os usos que os jovens desse município fazem de seus corpos quando não o
vistos apenas como”força de trabaho.
C
Mas o que se entende por corpo? O corpo de que, inicialmente, se fala, tal como
nas palavras de Zumthor
é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação
com o mundo. Dotado de uma signicação incomparável, ele existe à imagem de meu ser:
é ele que eu vivo, possuo e sou, para o mehor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos,
suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurí-
dico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro…(…) (, p.).
 No depoimento da professora formada [ anos], queixa-se das pressões que sofre por parte
da família, da rede de amizades e até de seus próprios alunos, devido ao fato de “ainda” não
ter se casado e tampouco arrumado um bebê. Ela, por sua vez, diz que sua visão de mundo
se alargou e está muito complicada a volta à casa dos pais.
Este pode ser um dos fatores, principalmente para moças que ainda não se casaram ou tiveram
filhos, mas para outros jovens que saíram, ao retornar ao município tambéma dificuldade de
readaptação aliada à falta de oportunidade para empregar-se e exercer a habilitação profissional.
M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
Nee sentido, a noção de perforance aparece como uma das bases de análise,
uma vez que, de modo mais recorente, ea compreende um acontecimento oral
e gestual” obedecendo a regras que, simultaneamente, eão sendo demarcadas
pelo tempo, o lugar, a nalidade da transmissão, a ação do locutor e resposta dos
envolvidos ou do púlico (Z, ). Sobretudo, porque se eá con-
siderando a importância da oralidade para os moradores de Rosário das Almas.
Oralidade ea, fortemente inuenciada e marcada de sentidos.
O corpo transcende a rotina de corpo visto apenas como apareho de trabaho,
ou veículo que ultrapassa as fronteiras na procura de trabaho, mas, o corpo de que
se fala também é corpo de fea, instrumento de prazer, de afetos e desejos. Porém,
um hiato que repousa numa relação ambíua que eas pessoas eabelecem
com o prazer, principalmente se considerar a forma incompleta da expressão oral
dos depoentes, a julgar pelos depoimentos fragmentados que se pode observar.
Então, essa oralidade sugere, antes uma atitude (corporal) inseura com a ex-
pressão de prazer. Daí, que, talvez, a linuagem escrita apareça como uma forma
de falar de um corpo que se imagina, sonha, sulima ou que reclama para si, o
prazer. A corporeidade e os afetos vividos e sentidos pelo corpo e a partir dee,
colocam em queão a palavra, os geos e também, a linuagem escrita como
expressão movida por sentimentos de amor-paixão e de inseurança. Por isso, o
corpo pressupõe uma narativa que comunica experiências vividas que, por sua
vez, é “a coordenação da alma, do ohar e da mão” (B, :).
Então, na rota da comunicação dos corpos, a rádio comunitária de Rosário
das Almas é um bom veículo para os moradores animarem a sociabilidade e
expressarem direta ou indiretamente seus sentimentos, uma vez que a arte da
sedução também pode ear no ar, ao mesmo tempo em que ser ouvinte de uma
rádio do lugar constrói uma atmosfera de distração, diversão e um modo de pas-
sar o tempo.” As cartas (sem assinaturas) são deixadas no portão dos fundos da
casa onde funciona a rádio pirata (na sede), e cuja transmissão atinge todas as
 Consegui cópias de seis cartas com um dos locutores da rádio, mas apresentarei um número
menor e pequenos trechos das mesmas. Na época com o locutor que tinha mais audiência
e para quem elas foram destinadas para serem lidas em seu programa. Como são anônimas
não foi possível identificar, com precisão, se se tratavam de autores ou autoras, se seriam
todas de uma mesma pessoa. Mas, possivelmente e pela caligrafia, trata-se de no mínimo dois
autores (as). Também a idade dos mesmos fica obscura.
Importante ressaltar que ter conseguido tais cópias das cartas foi um caso de exceção, por
alguns motivos: primeiro porque não é comum ou recorrente mandarem cartas anônimas à
Rádio Comunitária, principalmente devido aos usos restritos da escrita; segundo que estava
num local privilegiado, pois a Rádio funcionava, inicialmente, na casa em que estava hospedada;
terceiro que havia se estabelecido uma relação de confiança entre o locutor (e também meu
hospedeiro) e a pesquisadora.
N E A D E S P E C I A L

comunidades rurais. Os trechos de alumas cartas anônimas podem demonstrar
que em Rosário das Almas, o modelo de amor romântico (extraconjugal ou não
consumado) pode ser vivido. A ênfase dada a eas cartas não é pelas cartas em
si, mas pelos elementos que elas trazem que sulinham os aectos do namoro,
das paixões escondidas, das relações extraconjugais das pessoas; enquanto contri-
buem para ee inventariado dos aectos que eão ligados ao corpo e signicados
ligados ao afeto e a expressão dos afetos. A pessoa anônima, ao comunicar seu
sentimento, marca aquele ou aquela a quem se destina tal sentimento. Noutro
uxo torna-se um forte elemento que será comunicado pelos demais moradores
e ouvintes do programa de rádio que ouviram tais declarações, por meio da fofoca.
Mas ao sugerir a comunicação de seu desejo é a escrita que toma corpo – ausente/
presente – de aluém apaixonado. Tal como observa Zumthor (id., p. ) “o que
na performance oral pura é realidade provada, é, na leitura, da ordem do desejo.
Como nos trechos das cartas, a seuir:
Declarações de amor
C A
Certo dia alué pasou po mim e me dise:
 Te muita gente que te aa, eu quei com aquelas palaras na cabeça (…)
 Que será que me aa? e certo alué me respondeu:
Você é tão bobinha, será que esa minha bobice não é posua causa, me z de boba porque
queia ouvi da boca de um certo alué que era ele que me aa, eu já ouvi eas palaras mas
indiretaente, eu queia não, eu quero ouvi mas diretaente, cara a cara, eu necesito ouvi
eas palaras, para que eu me sinta feliz, eu necesito se feliz, quero se feliz mas ao seu lao.
(…) Ofereço para certo alué a música de Roberto Carlos (ao se limite).
C B
Sou uma pesoa que oa e ai e e e oa sepre e olta da mesma pesoa – ocê.
Escute não quero se apenas mais uma na sua ida, quero ocê só para mim, muitas ezes na hora
do sono pedi o rumo das noites e quei pensando e ocê, quantas ezes aoreci, pensando
e ocê, quantas ezes aoreci, pensando como seia bom dori e acoda e teus braços,
quanto te desejo nesas noites (…)
Porém, o desejo desfeito ou o corespondido também pode ser lido através
de uma escrita agressiva que expressa sentimentos de rejeição e anústia frente
aos mesmos sentimentos que se desejaria que não fossem reais.
Declaração de amor e ódio
C C
Amigo e inimigo

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(escreve o nome do locutor), com toda raiva e sentimento eu digo que você lembra
de (cita nomes de moradoras e moradores) e mais e mais aluém como eles, ricos, Vo
manda música e muita alegria, mas como eu sou pobre e feia, você nem lembra de mim,
(…) (escreve o nome do locutor) feiozo e ruim, você não prea, (…) quando eu mudei
para morar ai na sua rua, apareceu aluém que me falou que voiria brigar comigo
porque você não gosta de gente pobre, e graças a Deus morei ai um ano e oito meses, e
sai daí chorando e rezando por você.(…) No mais é só termino por aqui pedindo a Deus
que permaneça no seu coração na sua casa e na sua vida e que te dê muita paz saúde e
muita alegria e ilumina a sua família(…).
Portanto, tais expressões de afeto, amor-paixão, ódio, ressentimentos não se
enceram por terem sido expostos durante a programação do locutor; mas, prova-
velmente, foi um momento privilegiado em que o sentimento que eava uardado
foi exposto, assim como, tantos outros que se encontram armazenados, segreda-
dos na expectativa de darem aluma vazão. Em Rosário das Almas, a verbalização
fácil do amor, dos sentimentos, apesar das fofocas, dos boatos, dos comentários
sobre as pessoas, sobre namoros, casos extraconjugais, tudo isso se de modo in-
direto e paulatinamente, num tempo indeterminado à revelação. Porém, mesmo
quando não verbalizam explicitamente sobre seus sentimentos, outros aectos
subjetivos da sedução vão ganhando forma e os corpos vão desempenhando o
idioma que traduz a eecicidade cultural para que haja a aproximação entre
rapazes e moças, drilando os ohares vigilantes.
Na noite continua a vigília, entretanto, parece que é possível drilar os pais,
os adultos que eão mais interessados em que os jovens permaneçam dentro de
suas casas. Porém, os jovens saem. Como no depoimento de uma moça [ anos,
de uma comunidade rural morando no núcleo urbano, 
o
ano do ensino médio]
sobre uma experiência de intimidade que teve com um rapaz: “Foi mais ou menos
numa casa assim, uma assim… Não tinha ninuém na casa, assim. Foi num lugar
assim de um nada, assim.Como se realizar o desejo fosse realizar um sonho; uma
transgressão sonhada.
Portanto a consciência de si surge como experiência e pode, também, ser a de
um corpo constrangido, realçando um aecto predominante da vida dos jovens
que diz do tereno de demarcação da entrada na sexualidade, posto que ea “se
faz atras do ohar e do controle dos parentes e dos mais vehos (…)” (B,
:), mas, também dos pares, sejam masculinos ou femininos.
(…) Sabe o que ele foi e falou pra ela que ‘eu não eava com nada, não; que eu co uar-
dando essas coisas, esse negócio de virgindade, essas coisas pra tera comerpra semente…
(…) ue ele me achava… Esquisita… Por causa de que eu não quis transar com ele. que
N E A D E S P E C I A L
no dia que ela falou pra mim isso, ele saiu do meu coração assim, ó, de uma vez por todas!
[ anos, de comunidade rural morando no núcleo urbano, ° ano do ensino médio].
Assim, nos relatos de experiências e trajetórias amorosas-sexuais vividas pelos
jovens por meio do car e tomando o caso explorado pode-se vericar que, em-
bora entre as moças que eão nas áreas urbanas se observe uma relativa iualdade
em comparação com os rapazes tanto no trânsito pelos espaços – da casa para
rua, da rua para casa e outros espaços entre comunidades rurais e distritos –,
bem como no engajamento às conquistas amorosas, percebe-se que as moças vi-
vem com maior ênfase sentimentos como a ansiedade frente às novas demandas.
Posto que, para muitas, eá presente o discurso de o mais aceitar a dominação
sexual masculina, principalmente quando elas me dizem que se negam a transar”
com o rapaz quando não se sentem preparadas; que querem ter sua experiência
sexual sem o risco de uma gravidez. Entretanto, quando tentam colo-las em
prática, são confrontadas com valores e práticas vigentes que corespondem ao
padrão duplo de moralidade e, novamente, repõe-se a distinção da moça virtuosa:
decente e a moça sem virtude: vadia. Logo, a que eá para o casamento e a que
eá para a diversão.
E :
Alumas moças têm experncias que dizem de quando o prazer é vivido sob
o medo, quando a excitação provoca embaraço e também pode deertar no
outro – nee caso, no rapaz –, o sentimento de rejeição de seu corpo, principal-
mente de seu nis. Muitas vezes, as iniciações sexuais de rapazes e moças podem
ser marcadas por surpresas e risos… Nervosos. Como nas palavras seuintes:
Ele começa a pegar na gente assim, naquelas partes… Começa a pegar nas pernas da gen-
te. Se um homem pegar aqui nas minhas pernas e ir subindo, assim (risos) eu sou boba!
Ô, Vanda, eu sou boba, porque eu acho que eu sou boba demais nessas coisas! Já começo
 Cf. Nicola Abbagnano, “(…) a mais famosa definição do Prazer foi a de Aristóteles, que, aliás,
utilizava os conceitos de Platão: ‘Prazer é o ato de um hábito conforme à natureza’ (…). Ho-
bbes voltava à definição biológica, vendo no Prazer o sinal de um movimento proveitoso ao
corpo, transmitido pelos órgãos sensoriais ao coração. Nietzsche afirmava: o Prazer: sensação
de maior potência. (…)
A psicologia moderna manteve as características tradicionais atribuídas ao Prazer: reiterou
sua função biológica, mas ao mesmo tempo, com base na observação, também confirmou
o caráter ativo que Aristóteles reconhecia no Prazer. Dicionário de Filosofia. 
a
Edição. São
Paulo: Martins Fontes, , pp. -.
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a tremer, aí já começo a car assim… Ixi! Não sei, eu não eou acostumada! [ anos, 
o
ano do ensino médio, de comunidade rural, morando no núcleo urbano].
Nee sentido, o que os depoimentos e observações de campo apontam é que
os rituais de iniciação das experiências sexuais são muito mais marcados por
medos, principalmente os da gravidez. Sentimentos de medo e culpa por ear
escondendo dos pais a perda da virgindade, portanto, de ear fazendo algo que
é considerado “erado.Ressalto que a queão do uso do preservativo masculino
(a camisinha) ainda é uma matéria que o eá sucientemente incorporada
ao universo dos costumes dos jovens, tampouco dos demais moradores adultos,
muito menos a combinação do uso do preservativo e da pílula anticoncepcional,
à prevenção da gravidez indesejada e das doenças sexualmente transmissíveis.
Dea maneira, no corpo masculino, o pênis exerce um papel fundamental
que é o de representar o prazer compreendido como potência, logo, virilidade,
na contrapartida, da inferioridade anatômica feminina. Dee modo, vê-se que
as representações individuais dos rapazes encontram corespondência no plano
coletivo do pensamento do grupo social, uma vez que eas também reetem o
que hes é transmitido através do processo de socialização. A analogia de que o
men nee caso aparece associado à semente que fecunda a tera, no caso, o
ventre de outras muheres. A idéia é de reprodução, do homem como reprodutor.
Mas, sobretudo, a representação daquele que dá a vida a aluém, num laço
morfológico entre o nis (masculino) e o seio (feminino), símbolos ligados à
fecundidade, explicados atras do leite materno e do eerma que se assemeha
ao leite (B, ).
Entre as moças a idéia da reprodução vem com a primeira menstruação. Per-
manece o tabu em torno do sanue menstrual, principalmente entre as moças das
comunidades rurais que têm pouca experiência de convívio na sede ou avançou
nos estudos. Assim como para a geração da mãe. É o caso da moradora [ anos,
viúva de marido vivo,” 
o
ciclo do ensino fundamental incompleto, comunidade
rural] que demonstrou muito decoro para me dizer das orientações que deu à
ha antes da noite de núpcias, por exemplo; e, quando falou foi bem baixinho re-
 No Centro de Saúde do município soube que a confirmação de casos de HIV/AIDS
entre os moradores.
 Numa de minhas visitas a uma comunidade rural, conheci uma jovem [ anos, amigada,
grávida,
o
ciclo do ensino fundamental incompleto, moradora em comunidade rural] que
me recebeu em sua casa e aceitou gravar uma entrevista; porém, conversar sobre a sua ex-
periência em torno do primeiro sangramento, não foi uma tarefa muito fácil. Aliás, a tradução
em resposta à minha indagação foi através dos olhos baixos e as curtas e poucas palavras.
Conforme se poderá perceber em alguns dos trechos, a seguir: Com quantos anos você
ficou moça? – Eu fiquei quatro anos; – Há quatro anos atrás?; – É.; – Então,  anos?; – É.
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petindo minha perunta, assim: Assim… Quando a muherEla não tem todo
mês… Ela não tem aquele negócio que vem…? (…) Quando tiver a ‘monstruação
não pode usar. (…) É isso mesmo não pode usar. Por que com menstruação não
pode, né… Porque eá com o corpo aberto.
Para alumas muheres casadas, a relação sexual entre o casal deve obedecer
a uma certa parcimônia, principalmente para se uardar” nos ciclos do corpo
feminino, o da menstruação e o do pós-parto. Mas, para a depoente [ anos], as
relações sexuais não devem ser todos os dias, têm que ser um dia sim outro não
porque, seundo ela: tem eles aí que diz que faz mal, (…) porque senão pode dar
inamação,sobretudo nos dias de menstruação, quando a muher eá com o
corpo aberto. Ela contou-me que a mãe dela passou tal ensinamento e é o que ela
também passou para as has. Porém, na narativa dessas muheres e lembranças
das histórias de vida de suas as ou mesmo das próprias mães não é incomum
ouvir casos de violência por parte do marido, durante os períodos de “resgardo
após um parto, devido a uma recusa feminina em manter relações sexuais.
Nas palavras da muher [ anos] também se vislumbra alumas informações
que são da ordem dica quando ela diz que o casal o pode ter relações
sexuais todos os dias porque senão a muher tem inamação. Disto, muito pro-
vavelmente se tem uma aproximação ou uma mistura do saber popular com
inuência da moral cristã atras do controle do sexo e inibição do prazer com
a medicina. Ao que tudo indica, o corpo e não menos o corpo feminino não dei-
xou de ser objeto de curiosidade, tampouco deixou de ser alvo das intenções de
submetê-lo a alum tipo de normatização (B, ) e de violência.
Não obstante, sulinho que a queão do comportamento machista, nee
município, contribui para aumentar as eatísticas de prolemas que acabam por
ser diretamente relacionado com a sexualidade, mas tratados e prolematizados
pelo viés biológico, logo, queão da saúde púlica, sobretudo pelo que diz reeito
 Talvez porque estivesse com vergonha de que a filha, a depoente [ anos, grávida], ouvisse
que a mãe estava falando sobre tal assunto. Insistiu para a que a filha saísse da sala para ir ver
a netinha que brincava fora da casa.
 Outros relatos me trouxeram a dimensão das agressões que muitas mulheres das comunida-
des rurais de Rosário das Almas são vítimas, mas que não se tornam casos de acompanhamen-
to ou mesmo de denúncia. Como a agressão sofrida por uma mulher grávida, entre cinco-seis
meses de gestação, por não estar carregando no ventre o bebê do sexo que o marido queria,
ou seja, ele queria uma menina e ela estava grávida de um menino. Outro caso foi o de duas
mulheres, mãe e filha, terem sido estupradas por um homem da comunidade rural em que
viviam; tempos depois, tal violação torna-se pública devido à gravidez de ambas. Após terem
as respectivas crianças, é que passam a ser atendidas por uma assistente social, mas mesmo
assim as mães forçam a morte dos bebês, não lhes dando comida. Soube-se que tal fato foi
tratado com “descaso” pelos demais moradores da comunidade.

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à prevenção ou tratamento das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e
Aids. Deve ser considerado também que, dentre tudo que eá relacionado ao
corpo feminino que foi marcado por violação, em contraste, o corpo masculino
não deixa de ser alvo de marcas, mas diferentemente das muheres, quando reve-
ladas e comunicadas elas dizem do trabaho braçal na tera, das mãos calejadas
pelos cabos de enxadas, cicatrizes de ferimentos em situação de trabaho. Chama
atenção a marca que aleija, resultado dos trabahos nas máquinas nos canaviais
de outras regiões brasileiras. As mãos calejadas das muheres em trabahos com
enxada, vassoura e outras lidas, pouca atenção se vê. Como se fosse comum e
inerente à vida da muher o trabaho doméstico, até quando ele sai da casa e
eende-se até canaviais e lavouras de café.
Todavia, o corpo é passivo dos reparos, tal como no dizer de uma moradora de
uma comunidade rural, “se você quer me conhecer você tem que reparar, senão
como é que você vai me conhecer.Portanto, numa forma de controle social sobre o
corpo e sobre a sexualidade não menos sobre a sexualidade dos jovens, uma vez que
é através do ohar e do controle dea rede de parentela que os jovens entram no
universo da sexualidade. Nee sentido, no município moradores que “reparam
no,” “reparam o e “aparam o corpo dos jovens e dos demais moradores de outras
maneiras. Ao focalizar a sexualidade pelo prisma do universo mágico religioso
presente na vida deas pessoas, não menos na vida dos jovens, percebi outros
desdobramentos e dimensões de como o corpo em Rosário das Almas é vivido e
sentido. Mas como é que os jovens são incorporados nessas práticas rituais?
No cotidiano dos moradores de Rosário das Almas quando iniciava uma
conversa acerca de feitiços ou mesmo quando indagava sobre aluma moça que
 Numa divulgação recente sobre dados de uma pesquisa realizada pela ONG Promundo
(Brasília) sobre o machismo entre os jovens brasileiros, a pesquisa indicou que a violência não
pode ou deve ser vista como um comportamento exclusivo ou diretamente associado às
regiões pobres do Brasil. Conforme dados, “ por cento dos homens entrevistados relataram
ter utilizado da violência física contra mulheres em relacionamentos recentes. Fonte: Yahoo!
NotíciasManchetes (Seg,  Abr, ) – “Machismo prejudica a saúde dos jovens, indica
pesquisa.
 Cf. O Minidicionário da língua portuguesa-Aurélio (Século XXI). Reparar: “consertar, restaurar;
corrigir; eliminar ou remediar as conseqüências de (erro, ou mal cometido); dirigir ou fixar a
vista, a atenção em; notar, perceber. Reparar. Dar importância; ligar, , p. .
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
havia praticado um aborto, o tom que imprimiam à voz era quase de sussuro.
Mesmo assim, os moradores me deram informações sobre práticas de magias,
eecialmente aluns agentes espirituais, como o raizeiro e as parteiras que, em
sua maioria, são católicos. Estes, por sua vez, desempenham um papel em que
a visão “negativa da magia ca num seundo plano, pois na sua coordenação
dos geos rituais o que sobressai é sua cnica que é ao mesmo tempo mágica
(M, : ), mas que visa a cura e proteção.
S
Tais muheres e aluns homens são aceitos e, muitas vezes, muito queridos pelos
moradores locais, pois representam o virtuoso, cujos serviços são tidos como atos
de generosidade, pois eles têm o dom. É para as benzedeiras, raizeiro e pai e mãe-de-
santo que muitas mães levam seus hos para serem protegidos, por orações, de
todo e qualquer mal, ou ainda, do aprisionamento por “espíritos ruins ou maus-
ohados. Dee modo, pode-se considerar que os jovens de origem rural, desde
a mais tenra idade, são introduzidos ao universo mágico pelas mãos de um dos
pais (a mãe, na maior parte das vezes), ou uma tia, uma avó. Quando não têm, na
própria família, uma dessas uras femininas que desempenham ee papel de
harmonizadora social, de agente de cura e de religamento com o que o pode ser
visto, apenas recebido, uma graça, pela palavra que acalma, conforta, tranqüiliza
ou até conrma a dúvida.
A recorência de sueitas de práticas de pequenos feitiços é comum. Tanto que
há moradores que desconam de presentes, sejam eles alimentos, roupas, perfu-
mes entre outros, dependendo de quem os ofertou, pois julgam que possam ear
enfeitiçados.Nee caso, para fazer-hes mal. Soube, porém, de casos de simpatias
que são feitas utilizando-se peça de roupa da pessoa desejada. São feitiços para
enfeitiçar a pessoa amada. A roupa ou qualquer objeto de uso pessoal pode ser
 Encontrei relatos sobre alguns chás que as mulheres tomam para tirar a criança, e que tomam
também após o parto para limpar o organismo, tais como: a queimadinha feita de artemijo,
enxota e raiz de salsa ou babosa. Para abortar: chá de buchinha (capinzim que na beira do rio);
chá de coité (esse se tomar demais pode matar) e a queimada que é à base de enxota, artemijo,
musgo e cachaça (esta queimada tira criança até o 
o
mês de gravidez).
Também fazem uso do medicamento Cytotec ou misoprostol. Trata-se de um medicamento
utilizado no tratamento da úlcera péptica. Se ingerido durante os primeiros três meses de
gravidez pode provocar aborto. Caso contrário, prejudicará o feto. O acesso a tal tipo de
medicamento indica um poder aquisitivo maior, bem como, grau de instrução formal.
 Conheci e entrevistei um pai e uma mãe-de-santo que me falaram de suas práticas e atuação
junto à comunidade. A mãe-de-santo reside na sede. O pai-de-santo reside e atende em um
centro numa das comunidades rurais.

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usado para tais práticas. Assim também, em Rosário das Almas circulam seus
moradores na procura das raízes e ervas nas curas e outras anústias, como nas
palavras do raizeiro: “Uai, tem delas que eá suensa. (…) Suensa é negócio
do sanue. (…) Suensa porque parou, né.” De outro lado, há aquelas que pro-
curam a parteira para “pegar menino.
Outra ura feminina que concentra nas mãos as práticas de trazer à vida e
também o dom de curar é a parteira. Estas muheres que, na expressão de uma
parteira de um dos distritos de Rosário das Almas, faz “pegar menino, se ocupa-
ram da cultura do corpopor muitos séculos (B, ). Muitas crianças
vieram ao mundo pelas mãos dessas muheres. Alumas não praticam mais,
não fazem partos caseiros, mas eão ainda lá. Muitas bem vehinhas, outras,
mais novas, porém, todas acompanhando a mudança atras dos anos. Hoje,
dicos, enfermeiros e enfermeiras, há o centro de saúde.
Mas bem pouco tempo, porém, quando os dicos não tinham chegado ao
município, os partos cavam sob a uarda das parteiras. Ao que tudo indica, as
muheres das roças tinham a seurança de que não eariam sozinhas, a qualquer
hora do dia ou da noite, pois uma outra muher (com quem se eabelecia uma
relação íntima, amistosa e de aconsehamentos) hes asseurava de sua presença.
Pois, quase sempre, a parteira era aluém que residia na mesma comunidade
rural ou em outra próxima. Atualmente, pode ser uma vizinha, uma colega ou
comadre. Uma relação de conança que era construída e revelada, cada vez que
a parteira realizava um parto com sucesso ou que conseuia resolver determina-
das complicações no mesmo. Para partos complicados logo diziam que a criança
foi salva graças à “boa mão” da parteira. Dizer que se tinha uma “boa mão” era o
mesmo que conferir reconhecimento.
 João de Pina Cabral, em uma aldeia no Alto Minho, observou que as bruxas também exigem
quase sempre uma peça de roupa da pessoa sobre quem se pretende informações, op.cit.,
, p..
 Note-se que tal palavra não fora repetida por este raizeiro, pois empregá-la não traduz aquilo
que ele entende ou conhece, esta palavra é uma não-palavra (GEERTZ, : ) para ele;
bem como, nos lábios de mulheres mais velhas das comunidades rurais ou entre as parteiras.
Na tentativa de repetir a pesquisadora a palavra menstruação se transformava em “mons-
truação.
 Chamou-me atenção o fato de algumas das parteiras que entrevistei empregarem a nomi-
nação no masculino (tal expressão pode indicar o parto de um menino mesmo ou de uma
menina). Mas elas também costumam nomear o recém-nascido do sexo feminino, menina-
moça e do masculino, menino-homem.
A historiadora Maria Renilda N. Barreto observa que a expressão “aparar meninos ou meninas”
era empregada por parteiras que viveram e exerceram seu ofício ou sua arte na Salvador do
Século XIX (, p. ).
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
Cheuei a ouvir que alumas parteiras perderam a mão,não realizam mais
partos caseiros. Um dos motivos apontados pelos moradores é que agora,
os postos de saúde; os hospitais.As muheres grávidas vão aos médicos, não
precisam das parteiras. Os comentários reticentes indicam uma velada con-
corência que ainda persiste entre o saber médico e o saber das parteiras (as que
eão ativas), como neas palavras: “(…)Quando eu cheuei lá, fui chegando e o
menino nasceu. Eu cuidei, quando o médico chegou, o menino eava enrolado,
a mãe tava agasahadinha, ajeitadinha. Agora foi assim, ele falou assim:
“Epa, tomou minha prossão!” Eu falei assim: “Tomei não, eu cedi pro senhor.
ue ela já foi cedida, porque eu não eou aüentando mais. Minha coluna não
eá aüentando mais, agora eu cedi pro senhor” (…) Antes dele chegar eu já
eava aqui, eu já mexia [ anos, parteira, moradora em um distrito de Rosário
das Almas, veio de uma comunidade rural e mantém sua roça].
Contudo, a convivência com eas pessoas, direta ou indiretamente, imprime
na vida dos jovens conteúdos de afetividade e práticas que os orientam ou os
confortam nas queões que eão ligadas ao corpo, ao sexo, às paixões ou mes-
mo ao mundo dos espíritos; mas, também, podem repor ou aumentar dramas
ou conitos sociais e, portanto, levá-los a outras experiências com a sexualidade,
com a intimidade posto que também eão convivendo com as transformações
da sociedade tida como moderna, traduzidas para os jovens em maior liberdade
nas experiências sexuais antes do casamento ou mesmo, no caso dos casais, pelas
aventuras extraconjugais, seuindo em oposição aos valores sexuais subjacentes.
Seundo Gidens, para as pessoas que vivem nees contextos, sobretudo para
as muheres, as transformações que eão atualmente ocorendo são dramáticas
e perturbadoras(, p.). Não obstante, mbolos do passado que dão sentido
à construção das masculinidades e feminilidades, no presente, em Rosário das
Almas, acabam por dicultar a legitimação dos novos modelos, bem como a con-
 No documento organizado pela Secretaria Municipal de Saúde, ao analisar os números de
crianças nascidas através do acompanhamento do Programa de Saúde Familiar, pode-se perce-
ber que um número expressivo de partos feitos em casa. Do total de  crianças nascidas
em , setenta crianças nasceram em casa, algumas com o auxílio de parteiras.
 Em Rosário das Almas houve a retomada da importância dos serviços destas parteiras à
comunidade. Talvez esteja condicionado ao fato do município não possuir infra-estrutura
médico-hospitalar para atender as muitas comunidades rurais. Mas, em outras circunstâncias
perguntar sobre as parteiras era um exercício quase de garimpo para trazer à tona informa-
ções, ou mesmo quando falava com aquelas que já tinham feito ou ajudado em algum parto,
dizer-se parteira ou ajudante eram falas que vinham reticentes, pois me diziam: “ah, isso foi
antigamente, hoje, já não usa mais disso, não.
A parteira, no município, uma vez feito o parto e cortado o cordão umbilical da criança passa a
ser reconhecida como “ae no caso da parteira estar amamentando e passar a amamentar
a criança de outra mãe, é reconhecida como “mãe-de-leite.

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cretização dos direitos dos jovens, de muheres e homens trabahadores rurais, de
mehores condições de vida e de reprodução; de direito à diversão, lazer e prazer.
Sendo assim, é preciso que a sexualidade e a iniciação sexual sejam tratadas como
queões sociais, mais do que moral e política; não sendo pensada apenas como
uma proletica da saúde púlica sob o ânulo das orientações preventivas
de base siológica. Deve-se articular a cultura e identidade com corpo e saúde.
Sobretudo, em casos como de Rosário das Almas, quando nea articulação
queões que dizem de um contexto de precariedade e vulnerabilidade material
e emocional, e de relações assimétricas de gênero.
R
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Yahoo! Notícias – Mancetes (Seg,  Abr, ) – Machismo prejudica a saúde
dos jovens, indica pesquisa.
Margaridas nas ruas
: As mulheres trabalhadoras
rurais como categoria política
M A R I A D O LO R E S D E B R I TO M OTA
“…nem nome s tinha, nem reconhecimento,
nós era só mulher com obrigações…
L C, F/SC.
R
Estudo sobre a emergência das mulheres trabalhadoras rurais no mundo
público, abordada pelo aspecto de sua construção como categoria polí-
tica em luta por reconhecimento e direitos. Essa construção remete-se
a uma produção coletiva, que articula a atuação de diferentes agentes
sociais com as mulheres rurais, demandando práticas e saberes que
possibilitam a formatão de uma experiência singular, pessoal e social,
pela qual essas mulheres se identificam como mulheres trabalhado-
ras rurais, tornando-se em condições de aparecer e falar publicamente.
A existência das mulheres trabalhadoras rurais não decorre automati-
camente de suas situões de vida, nem de uma tomada de consciência
esponnea, e a sua construção revela-se como resultado de atuações e
autorias, combinando diferentes elementos como articulação, conflitos,
símbolos, estratégias, práticas, exprimindo-se em diversas dimensões.
Uma dimeno institucional pela qual se formalizam suas organizações
espeficas, e formulam-se discursos institucionais sobre elas e para elas.
Uma dimeno experiencial em que ativam mecanismos de apareci-
mento e de fala pública, envolvendo a criação de um lugar feminino, de
formas de representão/apresentação, e a construção de uma narrativa
 Programa Jogo Aberto, //-TV Bandeirantes.
N E A D E S P E C I A L

própria. As mulheres trabalhadoras rurais, através de sua experiência
política, imprimem marcas diferenciadas no movimento sindical dos
trabalhadores rurais introduzindo dimenes femininas de vivências e
simbolismos que, além de instituírem a sua entrada na potica sindical,
lhes permite refazerem-se sem medo de ser mulher.
A
is study is about the out coming of rural working women in the pulic world aproa-
ced by the aect of its construction as a political category ghting fo recognition and
ights. is construction concerns to a coectie prouction that articulates the aing
of dierent social agents with the rural women. is construction deands praice
and knowledge that turns posile the foration of an unique, personal and social ex-
peience, through hic these women can identify theselves as rural working women
becoming then, ale to show and eak pulic. e existence of rural working women
do not hapen automaticay neithe because of situations on thei lies, no because a
spontaneous conscience taken, and its construction is revealed as a result of aing and
strategy, and praices expresing in several dimensions. One institutional dimension
through hic thei ecic organizations become foral and institutional eeces,
about and fo then, are forulated. One expeimental dimension here they aiate
mecanisms of showing and pulic talking implicating the creation of a place fo wo-
men ays of reresenting/presenting, and the construction of a self naatie. e rural
working women, through thei political expeience, inspire dierentiating marks in rural
labo union moveents introucing feale dimensions of liing and symbolisms that,
besides instituting theientrance in union politics, aow the to reconstruct theselves
without being afraid of being a woman.
B
A rurais no espaço pú-
blico, como categoria específica, com identidade, discurso e imagem espefica,
é aqui abordada na perspectiva da constrão de sua emergência como grupo,
coletivo personalizado, em luta por reconhecimento e direitos. Construção essa
resultante de um trabalho coletivo de agentes ltiplos cujas práticas proje-
tam e revertem figurações sociais, num fazer e fazer-se. Esses acontecimentos
reúnem práticas, ou modalidades de práticas políticas, envolvendo as mulhe-
res trabalhadoras rurais e outros agentes sociais, e postulam encontros com
os /as personagens e contextos situados no terreno social em que surgem as

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organizações específicas de mulheres trabalhadoras rurais, consubstanciando
um movimento social de mulheres trabalhadoras rurais, como uma prodão
coletiva. Assim, fui em busca do trabalho social” de construção do objeto
preconstrdo,” nas palavras de Bourdieu (), e deparei-me com a queso
de uma categoria social fabricada coletivamente, numa produção de vários
agentes sociais e práticas políticas intercaladas por experiências femininas de
mulheres do campo.
Categoria aqui é entendida no sentido referido por Bourdieu (,p.) para
quem “a palavra ‘categoria impõe-se por vezes porque tem o mérito de designar
ao mesmo tempo uma unidade social a categoria dos agricultores e uma
estrutura cognitiva, e de tornar manifeo o elo que as une.” É uma forma de ser
e de conhecer (esse ser), numa unidade que sinaliza a concordância entre as
estruturas objetivas e as estruturas cognitivas, entre a conformação do ser e as
formas de conhecer” (idem,p.).
Mas, essa concordância que permite o conhecer de uma categoria social im-
plica também um processo de reconhecimento pelo qual ganha visibilidade e
legitimidade, expressando-se por imagens, práticas, falas e espaços de modo a
conquistar uma outra vida, a ita aia, no sentido que é atribuído por Arendt
() signicando a vida humana empenhada em fazer algo, em agir. E o agir
pressupõe aliança entre pessoas, organização, presença de outros, vida púlica
onde é possível constituir-se em ser conscientemente existente(idem, ,p.).
Esse tornar-se um Eu, diferente de outros, nos leva ao encontro da prolemática
da identidade desse grupo de muheres, e reivindicou meu ohar sobre esse con-
trovertido conceito nas ciências sociais, e que eá sendo colocada nee contexto
como identidae construída coletiva e politicamente, como apresentação e estraté-
gias de um grupo social, as muheres trabahadoras rurais.
Os processos que permitem o eabelecimento das muheres rurais como
categoria eecíca, manifeam-se como uma proução coletia. Produção que
pode ser aduzida como uma poética, no sentido original dessa palavra, de ser
uma criação. A ea produção atribuí a idéia de “construção no sentido de que a
categoria das muheres trabahadores rurais o se exprime apenas por processos
estruturais, normalmente atribuídos como determinantes de situações conse-
qüentes; e nem se mostra como reexo imediato de uma tomada consciência
política espontânea.
Essa construção se distancia das idéias de determinação e de espontaneísmo,
vincula-se a mecanismos conectados com a expeiência das próprias muheres
rurais junto a outros grupos sociais que são articuladores políticos, e o próprio
momento conjuntural em geral e em particular o das muheres da zona rural.
Esse propósito me levou a aproximar-me e a aproximar aluns autores que com-
preendem a realidade social como realidade construída. Castoriadis, para quem
N E A D E S P E C I A L

a instituição da sociedade que é cada vez instituição do mundo, como mundo
dea sociedade e para ea sociedade, e como organização-articulação da própria
sociedade” (,p.). Bourdieu que entende o mundo social como uma “reali-
dade que é o lugar de uma luta permanente para deni a realidade (,p.),
no interior da qual situa-se a idéia de que a emergência de um grupo em luta
se faz eecialmente por meio de atos de reconhecimento (p.). Arendt que
entende a existência social assentada no ser visto e ouvido pulicamente, sendo
que “na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente
suas identidades pessoais e sinulares, e assim apresentam-se ao mundo humano
(,p.). Deaco Certeau () com a sua busca das tessituras do real den-
tro do cotidiano, em montagem de uma “ciência do ordinário.” E outros autores
que transitam por entre essas idéias de um real não apriorístico e resultado de
ações projetadas ou não dos sujeitos sociais. O que me colocou diante da queão
de identicar as evidências do processo construtor das muheres trabahadoras
rurais como categoria política.
De uma maneira esquemática, esbocei o cenário que tornou possível o apa-
recimento das “muheres trabahadoras rurais” como sujeito de discursos e su-
jeito nos (outros) discursos, com conurações diferenciadas em grupos/facções
que disputam entre si a legitimidade, dentro e fora do próprio movimento de
muheres trabahadoras rurais. Discursar é ear em posição de exercer uma
fala de direito e ear presente no discurso de outros, como no acadêmico e no
de formações políticas (ONGs, sindicatos, políticos), signica ear sendo vis-
ta, portanto em relações de re-conhecimento, e em condições de comunicação.
Nee caso, indica relacionamentos entre diversos agentes sociais e as muheres
trabahadoras rurais. O discurso acamico tem uma presença intensa na emer-
ncia social das muheres trabahadoras rurais coroborando com a instituição
de uma identidade desse grupo.
Seundo Sco (), a “identidade eá amarada a noções de experiência,
pois não é algo que sempre eeve lá, à eera de ser representada. Tomar as mu-
heres trabahadoras rurais como categoria construída é um esforço que me levou
a encontrar a expeiência histoicizaa pela qual puderam emergir como categoria
política. Deparei-me com essa experiência nas condições em que se designam e se
exercem como tal – na existência cotidiana de suas organizações eecícas.
Os primeiros grupos de muheres rurais que conheci, no início dos anos 
na Bahia, eram conhecidas e autodenominadas como asalaiaas do cacau, ca-
taoras de café, bóias-fias, poseiras, laraoras, caponesas. Em  deparei-me
com muheres de todo o continente latino-americano e do Caribe, delegadas
do Primeiro Encontro Continental de Muheres Trabahadoras Rurais. Eram
muheres de realidades e caraerísticas diferentes, mas juntas reivindicavam
uma única identidade, a de mulheres trabalhaoras rurais. Esta condição que se

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apresentava como dada, de fato expressava a conformação de um processo em
curso, na medida em que um dos temas tratados no encontro foi o que era ser e
se sentir uma muher trabahadora rural.Do Brasil eavam diversas represen-
tações de organizações de muheres trabahadoras rurais que se auto-referiam
como participantes do Movimento de Muheres Trabahadoras Rurais.
Fui em busca de entender o que possibilitou àquelas muheres trabahadoras
rurais se denirem, reconhecerem e serem reconhecidas como tal. Essa busca
seuiu dois caminhos:
a história do surgimento das organizações de muheres trabahadoras rurais;
o acompanhamento de alumas atividades políticas realizadas pelo Coletivo Es-
tadual de Muheres da Fetraece, e do Movimento de Muheres Trabahadoras
Rurais/CE (MMTR-CE); a organização da Campanha Nenhuma trabahadora
rural sem documentos, as eleições do Coletivo Estadual, o III Congresso Estadual
da Fetraece, o  de Março e a Marcha das Margaridas .
Na busca das origens das organizações de muheres trabahadoras rurais,
que é recente, as primeiras surgiram em  no sertão pernambucano e no
interior do sul do país, e no acompanhamento socioetnográco do cotidiano da
militância do Coletivo Estadual de Muheres da Federação dos Trabahadores e
Trabahadoras Rurais do Ceará Fetraece, e do Movimento de Muheres Tra-
bahadoras Rurais (MMTR), foram se manifeando elementos como discursos,
práticas, imagens, narativas, identidade, todos circunstanciados por tensões,
conitos, articulões, estratégias, emões, rituais que realçavam um processo
de fabricação, de produção coletiva, que ao longo da investigação foi tomando a
forma de uma construção – a construção sociológica das muheres trabahadoras
rurais como categoria política.
U
, , ,
Na história do surgimento das organizações estudadas, o Coletivo da Fetraece
e o MMTR-CE, deacaram-se a presença de vários agentes sociais, como inte-
lectuais e as assessorias. Os estudos acadêmicos são falas legitimadas que atuam
no propósito de dar visibilidade à presença das muheres tanto nas atividades da
produção agrícola quanto nas instâncias e manifeações políticas do movimento
sindical dos trabahadores rurais.
Esses estudos formulam queões que se situam no campo de uma teoria so-
cial crítica e mostram o caráter político da invisibilidade das muheres rurais nas
eatísticas e na vida social, analisando:
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
a subestimação do trabaho feminino pelos indicadores utilizados nas pesquisas
censitárias (muher de produtor, MNRF, a o inclusão da produção de fundo de
quintal – criação de pequenos animais, hortas, pomar, plantas medicinais);
o caráter de ajuda ou complemento ao trabaho masculino, atribuído ao trabaho
feminino, presente não somente na zona rural mas em toda a sociedade;
a não inclusão das atividades femininas das políticas de incentivo à produção rural,
crédito, subsídio e mesmo dos programas de reforma agrária;
evidenciam o aumento do trabaho feminino no campo e as novas posições que
ee assume a partir das mudanças introduzidas pela expansão das relações ca-
pitalistas no campo que individualizaram a força de trabaho das muheres in-
tensicando a sua exploração.
Os estudos acadêmicos eão também presentes no cotidiano dos movimen-
tos das muheres trabahadoras rurais, como textos que subsidiam as discussões
sobre suas condições de vida e de trabaho. Am disso, existe a participação
direta, sica, das pesquisadoras na condição de colaboradoras e assessoras nos
eventos que ees movimentos realizam. Assim, o discurso acadêmico sobre as
muheres trabahadoras rurais tem sido uma de suas condões de produção,
uma maneira de fazer a sua existência. Essa capacidade do dizer é vista por
Certeau () como um saber – dizer,” cuja narativação das práticas é uma
maneira textual de fazer. A prodão acadêmica sobre as muheres rurais de
um lado re-escreve e re-inscreve essas muheres no mundo social, porque como
discurso competente, fala autorizada, he é permitido apresentar uma outra
visão do real.
No âmbito das asesoias, o encontro com a realidade das muheres é mais
direto. Seja em nível nacional ou eadual, a história do surgimento das organiza-
ções de muheres trabahadoras rurais eá ligada a atuação de ONGs e pastorais.
No Ceará essa matriz articulista eá nos interstícios do movimento sindical, da
igreja católica e da atuação do Centro de Estudos do Trabaho e Assessoria ao
Trabahador (Cetra) e do Centro de Pesquisa e Assessoria (Esplar),junto aos lo-
cais onde surgiram os primeiros grupos organizados de muheres trabahadoras
rurais, nos anos .
O primeiro grupo do MMTR-CE se formou na região de Itapipoca. Nessa
área a igreja tinha um trabaho de organização dos agricultores em torno da luta
pela tera e da celebração do Dia do Senhor, do qual só participavam homens.
O Cetra também eava presente nessa região com uma atuação voltada para a
renovação do sindicalismo e a luta pela tera. Diante de uma pequena presença
das muheres nas reuniões sindicais e da existência de prolemas entre os casais
pelas ausências dos homens em decorência de sua participação no movimento,
o Cetra e a igreja, ouvindo as queixas de homens e muheres iniciaram, em ,

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a organização dos Encontros de Esposas. Em torno desse trabalho com as mulheres
aproximaram-se várias integrantes dessa instituição e aluns prossionais liberais
residentes na região. Discutia-se nesses encontros, saúde da muher, planejamento
familiar e pobreza. Esses encontros se entenderam para Sobral e foram sendo
ampliados para muheres solteiras.
As assessoras do Cetra foram buscar referências de trabahos com muheres
rurais e encontrou contatos na Paraíba e em Pernambuco, aos quais se articulou,
inicialmente para trocar experiências e ampliar sua capacidade para esse trabaho
político organizativo com muheres rurais. Em  foi criado no Ceará o Movi-
mento de Muheres Trabahadoras Rurais do Ceará, na mesma perectiva dos
que eavam sendo construídos na Paraíba, Pernambuco, Piauí, Bahia e outros
Estados nordestinos.
Paralelamente a esse processo, outro foi acontecendo, cujo resultado vai ser
a criação do Coletivo Estadual de Muheres da Federação dos Trabahadores
na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece). O Coletivo teve como teritório
privilegiado as instâncias formais do movimento sindical rural, como efeito da
organização das muheres e dos trabahadores rurais no interior da Central Única
dos Trabahadores (CUT), e na área de atuação do Esplar. Dentro da CUT existia
o Departamento Estadual de Trabahadores Rurais, formado por sindicalistas
de esquerda que faziam oposição à diretoria pelega da Fetraece, cuja visão de
democracia envolvia a inclusão das muheres e sua iualdade de direitos. Em
 esse departamento realiza o I Encontro Estadual de Muheres Trabalhaoras
Rurais quando foi criada a Comissão de Muheres do DETR-Ce. Esse processo
se remete a uma organização de muheres nos sindicatos de trabahadores rurais
dos municípios de Madalena e Canindé, que em haviam formado uma
Comissão de Muheres.
Em  o grupo de sindicalistas do DETR-CE, ganha as eleições da Fetraece,
e em fevereiro de  a Comissão de Muheres é transformada no Coletivo Es-
tadual de Muheres da Fetraece.
A presença das ONGs nessa história indica a formatação de um outro discurso
e práticas articuladas com as trabahadoras rurais demandando a sua inclusão no
espaço social e político. A atuação das ONGs na formação das organizações de
muheres trabahadoras rurais se dá num contexto mais amplo, de relações inter-
nacionais de cooperação entre muheres. No Brasil, relacionava-se ao crescimento
do feminismo e de uma consciência sobre as condições de desiualdade social,
política e econômica das muheres brasileiras. As assessoras foram se formando
como assessoras de um trabaho eecíco com muheres na medida em que os
próprios movimentos de muheres iam se constituindo. Uma assessora confessou
que aprendeu sobre a queão da muher com o trabaho que realizava junto às
trabahadoras rurais.
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
O discurso e a prática das ONGs integra-se com o discurso e a prática aca-
mica no sentido de compor um grupo produtor de um discurso institucional
sobre as trabahadoras rurais demandando a sua inclusão no espaço púlico. São
vozes competentes que instauram condições para a legitimação e reconhecimento
púlico das muheres e que vão também se eabelecendo para criarem um saber
e uma prática junto a esse grupo, numa constituição simultânea. É no encontro
entre si que se produzem, se constroem.
Esse aecto institucional da construção das muheres trabahadoras rurais
compreende também a formalização das suas próprias organizações eecícas
e de seu reconhecimento legal como trabahadoras rurais.
O Coletivo e o MMTR vinculam-se a organizações em nível nacional, como a
Comissão de Muheres Trabahadoras Rurais da Contag e a Articulação Nacional
de Muheres Trabahadoras Rurais, reectivamente.
Essa institucionalidade também envolve toda a luta das próprias trabaha-
doras rurais que conuradas como categoria eecíca atuam em busca do seu
reconhecimento prossional, que se exprime, sobretudo, por meio da campanha
pela documentação Nenhuma trabahadora rural sem documentos implemen-
tada em . É preciso que o Estado legitime a sua condição inscrevendo-as
como trabahadoras rurais nas suas instancias burocráticas. Ter essa inscrição e
aposentar-se como tal é uma grande conquista para as muheres trabahadoras
rurais. Essa campanha continua em curso, sendo uma estratégia importante de
mobilização e conscientização interna e externa a esse grupo.
E :
Um movimento social não acontece apenas pela existência orgânica de um gru-
po, mas também por sua capacidade de poder ser visto e ouvido por todos, de
aparecer pulicamente.
Aparecer é ear presente no mundo e inscrever a sua diferença diante de
outros. E assim encontramos a expeiência sinular das muheres trabahadoras
rurais pela qual se fazem e se apresentam como tais.
Essa experiência o se explica apenas pela posição estrutural de um grupo
como algo que sempre eeve para ser descrita mas uma experiência historiciza-
da e nee caso também produzida e exercida coletivamente, vivida, interpretada
e narada, feita na medida em que faz as suas próprias agentes.
Na medida em que participam de um movimento e realizam suas manifes-
tações púlicas, vivem experiências pessoais e coletivas que são base para sua
identidade, criando formas de representação e apresentação, instituindo um lugar
feminino no teritório do movimento sindical rural. Dessa maneira emergem no
campo político e social brasileiro como um grupo organizado, lutando por direitos

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
e em busca de reconhecimento – fazem-se sujeito político, rompendo com uma
situação de subordinação e com a xidez de uma condição antes tida como des-
tino. Por meio dessa ruptura podem ter uma existência própria, como entende
Ávila () referenciando-se em Arendt (), signicando que anunciam seu
projeto, têm ão na esfera política e tornam-se interlocutoras como parte de
conitos, armando seu direito a ter direitos.
A identidade de muher trabahadora rural é uma autonomeação a partir de
recursos que hes permitem que se vejam naquilo que sabem de si. Envolve sen-
timentos de pertença e diferenciação, pautados em relações sociais nas quais se
inserem. Seundo depoimentos de alumas entrevistas, a primeira descoberta
que fazem no movimento é de se gente e ser trabalhaora (pobre), mas com va-
lor, a seunda é de se mulhe também com valor. Ser muher trabahadora rural
signica sentir-se como tal.
Nessa identidade de muher trabahadora rural se articula classe, gênero e lugar,
formando uma sobreposição de representações apoiadas em conjuntos diferencia-
dos de relações sociais, e cuja composição já supõe um conito interno. Assim, a
unidade é sempre um elemento que eá sendo reaurado, ora em nome do sexo,
ora em nome da classe. Como essa reauração não elimina, mas apenas legitima
e oculta os conitos, as disputas, inclusive pela hegemonia não se desfazem.
Enquanto um momento marcante da construção da identidade a campanha
Nenhuma trabahadora rural sem documentos mostrou uma disputa permanen-
te pela hegemonia entre o Coletivo e o MMTR-CE e também entre as diversas
entidades parceiras que integram a sua coordenação eadual (sindicais, ONGs,
religiosas, acadêmicas). As diversidades e os conitos são sempre recompostos em
nome da unidade do movimento e dos interesses das muheres trabahadoras rurais.
A
Construir-se como muher trabahadora rural envolve vivenciar uma experiência
traspassada por mecanismos que promovem objetivações e subjetivações que
formata e institui sentimentos, atitudes e mbolos próprios. Para se dizer sou
uma muher trabahadora rural,” é preciso sentir-se e mostrar-se como tal. E en-
contramos no cotidiano dos movimentos de muheres uma pedagogia que hes
permite uma nova sociabilidade e um novo sentimento de si. A formação de uma
consciência de si torna–se processo integrante da construção da identidade social
e pessoal. Do que é possível perceber nos comportamentos das trabahadoras
rurais, uma dimensão individual da construção identitária, em que cada uma
vê a si e sente-se como uma muher trabahadora rural. Ao assim se dizerem, ou
nomearem-se, é fundamental que se sintam como tal. Sempre houve muheres
trabahando e vivendo no campo, lavradoras, camponesas, muheres de produ-
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
tores que não se diziam –e muitas não se dizem ainda, muheres trabahadoras
rurais, não se reconhecem assim. Para tanto é preciso apreender-se como tal. Essa
apreensão requer condições sociohistóricas capazes de promover sentimentos e
verdades, certezas sobre si.
A construção da identidade desvela-se entre as trabahadoras rurais como um
processo que envolve ou articula uma experiência que é subjetivada, internalizada
e sentida de modo individuado –ou individualizante –e uma outra experiência
que é objetivada, projetada nas condições sociais, históricas, políticas do grupo.
Embora seja uma produção coletiva, a identidade tem um aecto de subjetivação
e de objetivação que articula conitos e heterogeneidades ao tempo em que funda
uma integração e similaridades.
Os modos de fazer essa identidade se assentam numa pedagogia sinular que
prepara os cenários para uma sociabilidade, compondo lugares importantes para
a construção de identicações, quer em reuniões, encontros, seminários, cursos de
formação, eventos ou manifeações púlicas para as e das trabahadoras rurais.
Uma queão é se essa pedagogia faz uma política para as muheres ou mu-
heres para a política. As caraerísticas dessa pedagogia se exprimem numa me-
todologia identicada desde a escoha das assessoras para realizarem o trabalho
com mulheres, que em geral são muheres que devem saber ouvir, ser simples, ter
experiência em trabaho popular e uma visão política; não podem ser donas da
verdade nem autoritárias. Não existe um trabaho com homens, mas sim um
trabaho com muheres, e é por ee que se redenem e se reposicionam as muhe-
res nas relações sociais como trabahadoras e muheres que têm valor – revêem
a si e ao que fazem atribuindo signicado e valor. Também nessa metodologia
aprendem a se comunicar, a viver para si, a repassar o vivido e aprendido para
outras companheiras, e se fazem capazes de autonomia escohendo, decidindo e
participando.
As vivências no movimento social permitem refazer a perceão e a posição
das muheres no mundo que as cerca e dentro delas mesmas –e vão permitir a
reinterpretação de conceitos. O que existia antes (do movimento) era o cativei-
ro e a opressão. Poder falar e sair, ir a outros lugares, representa uma ruptura
dessa situação.
Há um entrelaçamento de vivências entre as assessoras e as muheres rurais,
a partir das quais cada uma eabelece suas práticas e suas posições, construin-
do uma experiência particular –apropriando-se cada qual dos segredos de suas
razões, embora coabitando aluns espaços sociais comuns. Esse trabaho com
muheres é um ativador da identidade de muher trabahadora rural ao eabe-
lecer possibilidades de formação de uma consciência de si como sujeito capaz de
autonomia. Por meio dessa metodologia reconstroem-se permanentemente em
processos de reconhecimento dos quais participam vários grupos sociais –e nos

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quais se articulam a dimensão pessoal e social. Nesse circuito incessante, tanto as
muheres rurais como as assessoras se inscrevem num coletivo, em suas identida-
des reectivas. Os dois grupos vão se constituindo simultaneamente.
A
Todo esse substrato comum, não desfaz as disputas internas pela hegemonia da
categoria. As manifeações realizadas pelas muheres trabahadoras rurais eão
zoneadas por divergências políticas, eecialmente as que demarcam as atuações
da Articulação Nacional das Muheres Trabahadoras Rurais ANMTR e a
Comissão de Muheres da Contag – reproduzidas em vel eadual entre o Co-
letivo da Fetraece e o MMTR-CE, e outras que existem entre facções internas
ao próprio Coletivo. A ANMTR reivindica para si o compromisso com a inse-
parabilidade da luta de gênero e de classe, e a Comissão de Muheres enfrenta a
discriminação dentro de uma organização mista para estimular a iualdade de
oportunidades em seu interior. Há uma alternância de hegemonia nas manifes-
tações que essas organizações realizam, mas se apresentam com homogeneidade
e unidade. A unidade da categoria é mais uma estratégia política sofridamente
construída e desejada, do que uma caraerística ou condição interna.
Muitas vezes aparece na fala das muheres a expressão ocupar espaços na
estrutura sindical” referindo-se à inserção da presença feminina nas instâncias
ociais de representação política. Esse processo se apóia em organizações de base,
que são expressões concretas de uma inscrição institucional das muheres se es-
tendendo para as instâncias mais gerais, as direções, para retornar ampliando-se
nas bases. A política de cotas que vem sendo adotada no movimento sindical
de trabahadores rurais é um indicativo da estruturação de uma nova ordem de
denição das posições de homens e muheres na estrutura sindical, dando conta
da instituição de um lugar feminino. As organizações eecícas das muheres na
estrutura sindical e a sua presença sica o conta da ocupação de espaço enten-
dido como lugares exercidos. Isso pôde ser observado na Fetraece pelo processo
de eatutização do Coletivo no III Congresso Estadual de – quando de um
órgão atrelado à Secretaria de Formação foi transformado em cargo da diretoria
executiva, inclusive com orçamento próprio.
Mas a presença das muheres não se dá apenas sicamente, mas simbolica-
mente, e o MSTR vem se designando ocialmente desde , como movimento
sindical dos trabalhaores e trabalhaoras rurais.
O movimento de muheres trabahadores rurais ao fazer-se representante de
uma categoria também realiza um trabaho de apresentação de modo a coincidir
com as representadas. Nas manifeações púlicas que realizam, onde partici-
pam também outros agentes articuladores, como o de Março e a Marcha das
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
Margaridas as muheres cuidam de sua própria aparência como: arumação e
embelezamento da aparência pessoal; uso de símbolos e adereços de muheres e de
trabahadoras rurais como ores e foices; além de mobilizarem a imprensa e apre-
sentarem-se unicadas, como um loco: “Nós, muheres trabahadoras rurais.
Por essas formas de apresentação constroem uma sensibilidade púlica utili-
zando estrategicamente aluns papéis e atributos tradicionais das muheres fra-
gilidade, hos, sensibilidade. Margarida é o seu símbolo uma muher forte, que
deu a vida pela luta, e uma or bonita e terna. Um outro aecto dessa sensibili-
dade púlica pode ser encontrada em muitas histórias de luta pela tera, quando
durante momentos de forte tensão as muheres com suas crianças tomaram a
frente de confrontos para impedir violências e agressões maiores. Transformam
o desqualicado e frágil feminino em força e ecácia política, na luta e nas ruas.
As muheres trabahadoras rurais a partir dessas vivências vão construindo
uma narativa própria e temporal em que se referem a um antes do movimento,
quando não falavam, eram escravizadas, sem valor, não sabiam de nada, tinham
medo e não podiam, e um deois, em que se experimentam como gente, trabaha-
dora e muher de valor que pode falar, sair de casa, reivindicar e se experimentam
sem medo de ser muher. Nessa narativa sobre a história delas no movimento, a
conquista da fala é o demarcador de um novo tempo e uma possibilidade concreta
pela qual podem conta a própia históia. E nesse contar se reposicionam no mundo.
No tempo que era antes não tinham voz, não eram escutadas, não tinham som,
falavam por elas, tinham medo de falar, tinham vergonha de falar, deois do mo-
vimento, clamaram seus direitos, ouviram o próprio som, ganharam fôlego, falam
mesmo sem earem certas, não cam caladas quando não aceitam qualquer coisa,
fazem poesias e músicas. Os modos de falar dessas muheres se manifeam por ex-
pressões que são denidas como moos picos das trabalhaoras rurais fazerepolíti-
ca. São modos que articulam ritos, conitos e comunicação. Elegi as poesias, sicas
e fotos, cada qual como falas apropriadas, cada qual com uma atribuição eecíca:
As poesias fazem relatos, registrando as histórias. Criam e apresentam poesias
para fazer abertura de eventos, saudações, relatórios, avaliações. Nas poesias tam-
m se referem ao dia-a-dia de trabaho na roça, em casa, no movimento, falam
do sonho da libertação, exprimindo a utopia da união, da conquista de direitos
e da felicidade.
As músicas eão presentes em todos os eventos, e animam o início, o meio
e o enceramento sempre dinamizando, aglutinando e movimentando o grupo.
Com a música as muheres se juntam, levantam das cadeiras, batem palmas, ges-
ticulam, riem… Quando as discussões se tornam longas e cansativas ou tensas
canta-se para quebrar o ritmo pesado e reaurar a ateão. A música anima,
celebra e incute valores e eerança. As músicas em geral o de autoria das
próprias muheres, mas também de compositores e assessores. A música in-

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troduz o dico e por meio dela exercitam um saber dizer. Para Nazaré Flor,
compositora e integrante do MMTR-CE, na música ela encontra a alegria e a
simpatia do púlico e pode expressar qualquer sentimento de uma maneira que
o cara não tem como dizer não.
As fotograas são recorentes e também se revelaram como uma fala. Estão
presentes na bagagem das muheres, nos relatórios, folders, nos ambientes dos
eventos, dentro de um contexto de utilização freqüente de mensagens visuais.
A análise de um conjunto de fotos de documentos produzidos pelos movimen-
tos de muheres trabahadoras rurais mostrou a representação da vida delas, o
trabaho no campo onde eão sempre caregando coisas pedra, lata de áua,
hos, trouxa de roupa; no Movimento eão em movimento, relaxadas, brin-
cando, viajando, conversando, falando. No Movimento elas se movimentam e
se fazem presentes no mundo.
Se toda fala é sempre de uma falta é isso o que elas mais querem, seus desejos.
E essas falas são emlemas do movimento de muheres trabahadoras rurais, ex-
pressando o confronto entre uma forma de vida e um tempo que se encontram
em situação de transformação.
M
Os movimentos de muheres trabahadoras rurais se situam no teritório do sin-
dicalismo rural, no qual eampam sua presença de diferentes maneiras, pelas
quais pode se acessar os pontos de inclusão das muheres nesse espaço social. Em
que pese o fato de que as lutas das muheres ainda o vistas como sendo coisas de
muher e não do conjunto do movimento sindical, aos poucos aparecem situações
em que o movimento como um todo as assume como ocoreu com a Marcha das
Margaridas e a Mobilização Nacional ocorida em  de março.
Os nexos entre as muheres e o movimento sindical dos trabahadores ru-
rais construídos por tantos geos, passos, artes e falas se esbam nos seuintes
aectos:
A legitimidade do movimento sindical eá apoiada na inclusão das muheres seja
para mostrar a capacidade e o compromisso das direções políticas de responder
às queões das muheres, seja nomeando-se como seu representante, o que tem
feito a inclusão do termo trabahadoras nas manifeações e na própria designação
como movimento de trabahadores e trabahadoras rurais. A participação das
muheres então pode ser presencial e simbólica.
A ampliação da prática de uma mística política, baseada em valores éticos de jus-
tiça/diálogo/ternura, na inclusão de todos, numa visão integrada da pessoa, e na
solidariedade. É um momento de todos e o motor do entusiasmo que alimenta o
compromisso por símbolos e participação. As muheres não diensam a mística
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
em seu cotidiano político e a consolidam como prática no campo sindical, mais
que o fazem os homens.
A política de cotas adotada legalmente pelo sindicalismo tem se mostrado um
mecanismo eciente como estratégia de ão positiva para colocar as muheres
e suas condições de discriminação na pauta sindical, dando condições para a vi-
sibilidade e a participação feminina. As cotas são efetivamente assumidas pelos
setores mais politizados do sindicalismo, as lideranças, em uma perectiva de
fortalecer o conjunto do movimento; nas bases, ao nível dos sindicatos municipais
podem não ser levadas em conta.
Por m as dinâmicas de cantar, movimentar o corpo, enfeitar o ambiente, motivar,
animar, alegrar, brincar, rir, dançar, descontrair, ter momentos de confraterniza-
ção e fea, exposição e venda de produtos artesanais exprimem um conjunto de
caraerísticas mais identicadas com a subjetividade, e muitas vezes com forte
emocionalidade. No I Encontro de Muheres Dirigentes do Sindicalismo Rural-
CE, o enceramento foi com muitos abraços e choros entre assessoras, lideran-
ças e participantes, que diziam: Conseuimos! As muheres cearenses eão
marchando.Nunca, em  anos de aproximação com o sindicalismo, vi homem
chorar por realizar um encontro ou reunião política. aqui uma vinculação
entre subjetividade e cidadania em que a política aparece como lugar de uma nova
sociabilidade e de uma outra experiência subjetiva.
Assim as muheres trabahadoras rurais emergem como categoria sujeito polí-
tico construído, e não apenas como efeito de mudanças estruturais ou conseqüên-
cia natural de uma tomada de consciência.
Por isso talvez cantem tanto:
Pra muda a sociedae do jeito que a gente que
Participando se medo de se mulhe
Essa mudança enuncia um sujeito capaz de desejos e de sonhos.
Porque a luta não é só dos companheiros
Participando se medo de se mulhe
Ter um desejo próprio é eabelecer processos de diferenciação e elaborar
uma identidade própria.
Pisando re se pedi nenhum segredo
Participando se medo de se mulhe
Conquistar a existência social permite revelar-se, mostrar-se, apresentando-
se e falando em púlico sem medo de ser muher trabahadora rural.

M A R G A R I D A A L V E S : C O L E T Â N E A S O B R E E S T U D O S R U R A I S E G Ê N E R O
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U   
transformação do meio rural em um espaço com qualidade de vida, acesso a di-
reitos, sustentabilidade social e ambiental.
Ampliar e qualicar as ões de reforma agrária, as políticas de fortalecimento
da agricultura familiar, de promoção da iualdade e do etno-desenvolvimento das
comunidades rurais tradicionais. Esses são os desaos que orientam as ações do
Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD), órgão do Minis-
tério do Desenvolvimento Agrário (MDA) voltado para a produção e a difusão
de conhecimento que subsidia as políticas de desenvolvimento rural.
Trata-se de um espaço de reexão, divulgação e articulação institucional com
diferentes centros de produção de conhecimento sobre o meio rural, nacionais e
internacionais, como núcleos universitários, instituições de pesquisa, organizações
não-governamentais, centros de movimentos sociais, agências de cooperação.
Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura
(IICA), o NEAD desenvolve um projeto de cooperação técnica intitulado Apoio
às Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável,que
abrange um conjunto diversicado de ações de pesquisa, intercâmbio e difusão.
E 
Construção de uma rede rural de cooperação técnica e cienca para o desenvolvimento
• Democratização ao acesso às informações e ampliação do reconhecimento social da
reforma agrária e da agricultura familiar
O NEAD busca também
Estimular o processo de autonomia social
Debater a promoção da iualdade
Analisar os impactos dos acordos comerciais
Difundir a diversidade cultural dos diversos segmentos rurais
P
O projeto editorial do NEAD abrange pulicações das séries Estudos NEAD, NEAD
Debate, NEAD Eecial e NEAD Experiências, o Portal NEAD e o boletim NEAD
Notícias Agrárias.

P
Reúne estudos elaborados pelo NEAD, por outros órgãos do MDA
e por organizações parceiras sobre variados aectos relacionados
ao desenvolvimento rural.
Inclui coletâneas, traduções, reimpressões, textos clássicos, com-
ndios, anais de congressos e seminários.
Apresenta temas atuais relacionados ao desenvolvimento rural que
eão na agenda dos diferentes atores sociais ou que eão ainda
pouco divulgados.
Difunde experiências e iniciativas de desenvolvimento rural a par-
tir de textos dos próprios protagonistas.
P
Um grande volume de dados é atualizado diariamente na página eletrônica www.
nead.org.br, eabelecendo, assim, um canal de comunicação entre os vários setores
interessados na temática rural. Todas as informações coletadas convergem para o
Portal NEAD e são difundidas por meio de diferentes serviços.
A difusão de informações sobre o meio rural conta com uma bilioteca virtual te-
tica integrada ao acervo de diversas instituições parceiras. Um catálogo on line tam-
bém eá disponível no Portal para consulta de textos, estudos, pesquisas, artigos e outros
documentos relevantes no debate nacional e internacional.
B
Para fortalecer o uxo de informações entre os diversos setores que atuam no meio rural,
o NEAD pulica semanalmente o boletim NEAD Notícias Agrárias. O informativo é
distribuído para mais de dez mil usuários, entre pesquisadores, professores, estudantes,
universidades, centros de pesquisa, organizações governamentais e o-governamen-
tais, movimentos sociais e sindicais, organismos internacionais e órgãos de imprensa.
Enviado todas as sextas-feiras, o boletim traz notícias atualizadas sobre estudos e
pesquisas, políticas de desenvolvimento rural, entrevistas, experiências, acompanha-
mento do trabaho legislativo, cobertura de eventos, além de dicas e sugeões de tex-
tos para fomentar o debate sobre o mundo rural.
Visite o Portal www.nead.org.br
Telefone: ()  
E-mail: nead@nead.gov.br
Endereço: SCN, Quadra , Bloco C, Ed. Brasília Trade Center, 
o
andar, Sala 
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