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co n s t r u c ã o d a fi g u r a re l i g i os a
n o
ro m a n c e d e ca v a l ari a
MÁRCIA MARIA DE MEDEIROS
Editora UEMS / Editora UFGD
Dourados/MS
2009
co n s t r u c ã o d a fi g u r a re l i g i os a
n o
ro m a n c e d e ca v a l ari a
Universidade Federal da Grande Dourados
Reitor: Damião Duque de Farias
Vice-Reitor: Wedson Desidério Fernandes
COED
Coordenador Editorial da UFGD: Edvaldo Cesar Moretti
Técnico de Apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho
Conselho Editorial da UFGD
Adáuto de Oliveira Souza
Edvaldo Cesar Moretti
Lisandra Pereira Lamoso
Reinaldo dos Santos
Rita de Cássia Pacheco Limberti
Wedson Desidério Fernandes
Fábio Edir dos Santos Costa
Capa
Editora da UFGD
Criaçaão e design: Marise Massen Frainer
Ficha catalográca elaborada pela Biblioteca Central – UFGD
940.1
M488c
Medeiros, Márcia Maria de.
A construção da gura religiosa no romance de cavalaria
/ Márcia Maria de Medeiros. Dourados, MS : UFGD ; UEMS,
2009.
174p.
Bibliograa.
ISBN 978-85-61228-50-7
1. Idade Média História. 2. Literatura medieval. 3. Cavalaria
Idade Média – Romance. 4. Cavaleiros e cavalaria. I. Título.
Direitos reservados à
Editora da Universidade Federal da Grande Dourados
Rua João Rosa Goes, 1761
Vila Progresso – Caixa Postal 322
CEP – 79825-070 Dourados-MS
Fone: (67) 3411-3622
www.ufgd.edu.br
Ao Vladimir, irmão tão desejado,
companheiro de batalha, amigo de todas as horas.
S U M Á R I O
INTRODUÇÃO ..........................................................................
CAPÍTULO I
Religiosidade Medieval – A construção do arquétipo religioso ...
CAPÍTULO II
O Romance de Cavalaria na Historiografia Literária ..................
CAPÍTULO III
O Merlim A cristianização da cultura pagã através da
literatura .......................................................................................
CAPÍTULO IV
Melusina, ou das fadas medievais ................................................
CONCLUSÃO .............................................................................
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .........................................
13
21
61
93
127
161
167
13
INTRODUÇÃO
Artes correlatas, História e Literatura apenas pouco tempo se
encontraram no campo da ciência e menos tempo ainda passaram a
auxiliar uma a outra no desvendar dos mistérios que constroem a inte-
lectualidade humana. Buscando entrelaçar essas duas instâncias do
conhecimento, este trabalho se propõe a analisar a construção da figura
religiosa dentro do romance de cavalaria levando em conta o imaginário
popular relacionado aos usos e costumes do homem medieval.
Sobre o assunto Lloyd S. Kramer, no texto Literatura, Crítica e
Imaginação Histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick
Lacapra informa que:
(...) grande parte da renovação intelectual entre os historiadores modernos
resultou de sua disposição a recorrer a outras disciplinas acadêmicas em
busca de insights teóricos e metodológicos, o que levou a uma expansão e
redefinição da orientação política da historiografia tradicional. A busca de
novas formas de abordar o passado levou os historiadores à antropologia,
economia, psicologia e sociologia; no momento, essa busca os está condu-
zindo para a crítica literária. (KRAMER: 2001, 131)
1
Sabe-se que a Idade Média é um período pleno de influências relati-
vas ao processo de dominação ideológica perpetrado pela Igreja Católica.
Várias alises de cunho literário foram feitas ressaltando esse aspecto,
levando em consideração a figura do cavaleiro como herói santificado
ou senhor feudal de uma classe dominante, cujo reflexo social mostra o
substrato da Santíssima Trindade.
2
Entretanto, há que se ressaltar que ne-
nhuma sociedade vive sem a presença do religioso dentro de seus aspectos
de formação. A religiosidade é parte inerente da cultura de um povo.
Pelos textos lidos, observa-se que existe uma lacuna a ser preen-
chida: analisar a construção da figura religiosa dentro do romance de
cavalaria permitirá compreender de forma mais precisa as maneiras pelas
1 KRAMER, Lloyd S. Literatura, Crítica e Imaginação: o desao literário de Hayden White e
Dominick Lacapra. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. 2 ed, São Paulo: Martins Fontes, 2001.
2 Aqui se está fazendo uma referência ao imaginário das três ordens, que envolve a gura do oratore,
belattore¸ e laboratore e que representa apenas o reexo da Trindade Celeste na conjuntura social.
Sobre o assunto ver: DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa:
Editorial Estampa, 1992.
14
quais o homem medieval projetava as suas categorizações transcendentais
de vida e procurava prover de sentido seu universo.
Ademais percebe-se que os elementos representativos da religio-
sidade medieval (paganismo e cristianismo), os quais figuram entre as
personagens do romance de cavalaria, ainda podem ser encontrados no
imaginário do cotidiano atual e são categorias válidas de análise na me-
dida em que, ao se observar o mecanismo pelo qual os mesmos foram
constrdos, se está elucidando uma pequena parte desse imagirio tido
como contemporâneo.
O resgate do cotidiano medieval é um processo difícil de se reali-
zar. Historicamente falando, a análise das fontes que tentam realizar esta
tarefa exige esforço por parte do historiador em virtude da parcialidade
das mesmas. Georges Duby comentava o quanto era dicil tentar fazer
uma história do homem medieval, em sua obra Senhores e Camponeses:
“(...) entre os séculos XI e XV, os documentos que permitem entrever a
evolução demográfica são raros, freqüentemente pouco rigorosos, sempre
de interpretação delicada”. (DUBY: 1988,83)
Considerem-se ainda as fronteiras idiomática e geográfica, uma vez
que a maioria dos arquivos encontra-se na Europa, com seus textos escri-
tos em latim. Assim, para realizar os objetivos aqui propostos, procede-se
uma análise dos romances de cavalaria, especificamente duas obras: Mer-
lim, de autoria provável de Robert de Boron e Romance de Melusina ou
História dos Lusignan, de autoria provável de Jean D’Arras. Além disso,
várias obras no campo da teoria literária e da história medieval auxiliaram
na construção desse trabalho.
A escolha das personagens que são analisadas partiu do fato de que
elas representam de maneira perfeita o enlace da cultura pagã pela cultura
cristã e vice-versa, caracterizando aquilo que Carlo Ginzburg, na obra O
Queijo e os Vermes, intitula de circularidade cultural, ou seja, nas pala-
vras do próprio autor: “(...) entre a cultura das classes dominantes e a das
classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento
circular feito de influências recíprocas que se movia de baixo para cima,
bem como de cima para baixo (...)”. (GINZBURG: 1998, 13)
É essa circularidade, esse ir e vir de idéias, conhecimentos, tradições
e folclores que faz com que a literatura medieval seja o entrelaçamento
da cultura popular e da cultura erudita, a qual é representada pela impo-
nência magistral da igreja, que cristianizou muitos mitos pagãos a para
se poder fazer sentir representar em meio ao povo. A fada Melusina, cuja
origem remonta a mitos do folclore hindu, que atravessaas fronteiras
do oriente em direção a Europa, consolidando-se como um anjo-demônio
nas tradições célticas é exemplo desse processo.
15
Visitar as lendas e os mitos que dão origem ao imaginário do mun-
do medieval que costumavam ser passado ao pé do fogo de boca em boca,
até que foram registrados pela escrita, contribui sobremaneira para a com-
preensão da Idade Média. Através de sua análise, transparece um quadro
muito rico que espelha a realidade existencial do homem daquela época,
dos sonhos que ele tinha, de seus ideais de vida, de suas aspirações.
E ingressar nesse contexto abastado de nuances exige um estudo
árduo onde a perspectiva ecumênica do conhecimento prevaleça, uma vez
que as criações do medievo em qualquer parte do conhecimento resultam
de uma coletividade que vai muito além das fronteiras nacionais.
Desse período que durou aproximadamente mil anos, ficaram para
os homens das fases posteriores recordações confusas: era como se a
Idade Média fosse um longo período de trevas e decadência. Esse pre-
conceito se iniciou no Renascimento, seguiu pelo século XVIII adentro,
com os iluministas. No século XIX, o processo sofreu uma inversão, e o
que era desvalorizado passou a ser supervalorizado através da visão do
romantismo.
Os iluministas continuaram seguindo os preceitos de seus ante-
cessores. Aliás, o termo medium aevum
3
surgiu dentro dessa escola de
pensamento. Para eles, o sentido sico dado pelos renascentistas aos
tempos medievais continuava: a Idade dia teria sido uma interruão
do progresso humano inaugurado com a civilização greco-latina e reto-
mado com os homens do século XVI, ou seja, também nos séculos XVII
e XVIII os tempos medievais eram vistos como sinônimo de barbárie,
ignorância e superstição.
O romantismo do século XIX inverteu, contudo, o preconceito em
relação ao período medieval. A época passou a ser vista como sinônimo
de fé, autoridade e tradição, oferecendo um remédio à insegurança e aos
problemas decorrentes do cientificismo do culo XVIII. Além desses
pressupostos, os homens do culo XIX, abalados pelas conseqüências
dos inúmeros conflitos que marcavam a Europa no período, viam na Ida-
de Média uma fase na qual a humanidade havia sido grande e que servia
como fonte de inspiração para o presente.
Abundam nessa ambientação, obras de inspiração ou temáticas
medievalescas, como é o caso de Fausto, de Goethe, e O corcunda de No-
tredame, de Victor Hugo. De qualquer forma, a Idade Média continuava
incompreendida, oscilando entre o pessimismo renascentista/iluminista e
a exaltação rontica.
Foi somente no século XX que se procurou ver o período medieval
com seus próprios olhos, sem julgamentos ou preconceitos. E foi exata-
3 Tempo médio, idade média.
16
mente dentro desse contexto que a literatura medieval despontou como
grande arcabouço para os estudiosos que buscavam elucidar as suas -
vidas sobre os tempos da cavalaria. Surge assim, entremeio ao mundo
mágico que a literatura tem poder de criar o cotidiano histórico ima-
ginado em seus traços essenciais: os castelos, as ravinas, as florestas, a
colheita, a taverna, os seres humanos sejam eles cavaleiros, clérigos, mu-
lheres da nobreza ou plebéias. Todos esses elementos giram em torno das
ocupações cotidianas, mas a descoberta desse fenômeno de percepção é
recente na historiografia; não que fosse desconhecida, apenas era relega-
da a segundo plano.
4
No período que a história convencionou chamar de Baixa Ida-
de Média (XIV-XVI)
5
, a literatura pode ser dividida, segundo informa
Segismundo Spina, em três tipos fundamentais, quais sejam: literatura
empenhada, literatura semi-empenhada e literatura de ficção.
6
Do pri-
meiro tipo faz parte, sobretudo aquele tipo de literatura voltada à moral
religiosa, representada pelas hagiografias (opúsculos sobre a vida dos
santos), por poemas sacros, entre outros.
A literatura semi-empenhada é aquela representada pelos goliar-
dos, cujas produções literárias têm um cunho eminentemente satírico. Os
autores dessas prodões eram geralmente estudantes ou, então, clérigos
que andavam de cidade em cidade, cantando poemas relativos a temas
mundanos, como a fortuna, a vida, o amor e a bebida. Na literatura de
ficção, enquadra-se o objeto que movimenta o estudo desse trabalho, o
romance de cavalaria.
Nesse ambiente literário, o herói lança-se a aventuras como se es-
tivesse em seu elemento natural. Para o cavaleiro, o mundo existe apenas
de forma maravilhosa, onde o instante e o “de repente” são condições
normais para sua atuação. Esse femeno é uma representação comum
e até mesmo constante do imaginário do homem medieval. que se
ressaltar o fato de que se vive, nesse momento histórico, uma espécie de
conjugação das forças entre o real e o imaginário: a magia é um elemento
que acompanha o medievo no seu dia-a-dia.
4 A prática da análise histórica envolvendo cotidiano, imaginário e história é característica da Escola
dos Annales, movimento historiográco surgido na França. Sobre o assunto ver: BURKE, Peter. A
Escola dos Annales. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.
5 Hilário Franco Júnior, na obra Idade Média: o nascimento do Ocidente declara que a divisão
temporal da Idade Média é extremamente conturbada. A proposta deste autor, então, é dividi-la em
quatro fases distintas: a Primeira Idade Média (IV-VIII), Alta Idade Média (VIII-X), Idade Média
Central (X-XIII) e Baixa Idade Média (XIV-XVI). FRANCO Jr., Hilário. Idade Média: o nascimento
do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1992.
6 SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval: uma introdução. 2 ed., São Paulo: Atelier
Editorial, 1997.
17
Todo o seu mundo se limita a essa categoria do inesperado, do
acaso maravilhoso, onde o imprevisto deixa de ser alguma coisa fora do
comum. O acaso adquire aqui um sabor diferente, um atrativo cheio de
mistério que se personifica na imagem de seres fantásticos e sobrenatu-
rais, bons ou maus. O acaso está sempre à espreita dos personagens dos
romances seja nos bosques, em castelos encantados, etc.
Em sua obra Questões de literatura e estética, Mikhail Bakhtin diz
que o de repente”, no ambiente do romance de cavalaria como que se
torna algo absolutamente decisivo, quase normal. O mundo inteiro se tor-
na maravilhoso e o próprio maravilhoso se torna habitual, deixando assim
de ser maravilhoso. Aliás, a magia e a maravilha, elementos constantes
no imaginário medieval, refletem sua ação no próprio tempo: as horas
prolongam-se em dias e podem tornar-se meros instantes. O mundo real
pode se fundir ao mundo do sonho.
No romance de cavalaria, joga-se subjetivamente com o tempo e,
às vezes, é como se um episódio inteiro não tivesse existido, ou, então,
o que para uma personagem parecia um ano, a outras parece apenas um
dia. Não existe “antes” ou “depois”; essas categorias, introduzidas pelo
tempo, não são importantes.
No contexto relacionado ao imenso campo fluido que é a cultura
medieval surgem elementos que se destacam na literatura, por ressaltarem
o imaginário do período em questão: a religiosidade é exemplo desse pro-
cesso e, nos romances estudados ela se destaca de forma direta, quer seja
na figura dos cavaleiros, quer seja na presença clerical propriamente dita,
a qual representa no enredo das histórias um elemento de suma importân-
cia pelas lições de moral que oferece aos incautos, caso, por exemplo, da
figura dos ermitões.
Uma vez feita essa análise inicial, discorrer-se-á sobre a organiza-
ção dos capítulos desse trabalho de doutoramento.
O primeiro capítulo deste trabalho propõe-se a construção de um
quadro que ressalte o significado da religião para o homem medieval para,
posteriormente, se historiar um pouco sobre a literatura que deu origem
ao objeto de estudo dessa tese.
Destarte, é importante observar em que quadro mental esse con-
texto literário surgiu, e como a psicologia coletiva do período entendia a
idéia de religião. Aqui se pergunta, o que seria para o homem medieval a
questão que envolve a e como esse universo poderia ser transmutado
para a literatura.
Fundamental para a elaboração do capítulo um desse trabalho foi
o texto de André Vauchez, A espiritualidade na idade média ocidental:
séculos VIII a XII, onde o autor traça um rico panorama sobre o quadro re-
18
ligioso do ocidente europeu nesse momento da história. Vauchez procura
demonstrar as peculiaridades do pensamento cristão ocidental, ressaltan-
do principalmente a influência da religiosidade popular na organização da
fé oficial da igreja.
Cristianismo e Paganismo, de J. N. Hillgarth contribuiu, mormente
para a elaboração dessa parte do trabalho, elucidando questões referentes
aos primórdios da organização eclesial cristã na Europa. Em sua obra
o autor procura demonstrar que o cristianismo católico triunfa sobre
o paganismo graças ao apoio que recebeu por parte do estado romano
decadente, sem, no entanto conseguir com isso que o paganismo desapa-
recesse totalmente da mentalidade das pessoas. Na verdade, observa-se
um processo de transformação muito tênue: para se fazer receber em meio
ao povo, o cristianismo teve de buscar seus alicerces em meio às práticas
de fé pagãs.
No segundo capítulo, se discorre sobre a historiografia literária e a
constrão do romance de cavalaria dentro desse contexto. A idéia desse
capítulo é formar um quadro que demonstre como a literatura observa
o romance de cavalaria enquanto objeto de estudo partindo dos pressu-
postos formadores dos estudos de historiografia literia, como o quesito
língua, por exemplo.
Salienta-se que há também, por parte da autora, uma proposta de
constrão do quadro intelectual onde o romance de cavalaria surge, bem
como uma exposição de elementos relacionados à caracterização do estu-
do da literatura medieval.
Assim sendo, e articulando a construção do conhecimento que
envolve esse parâmetro de análise, utilizaram-se algumas obras que con-
tribuíram significativamente para a elaboração deste capítulo, a saber: de
Antonio José Saraiva, História da literatura portuguesa, obra na qual o
autor traça um apanhado da história da literatura portuguesa sendo que
constam de sua análise elementos que mostram como a crítica literária
está marcada por uma conjuntura histórica que remete a obra que está
sendo analisada.
Além de Antonio José Saraiva, foi fundamental para o desenvol-
vimento desse capítulo à obra de Teófilo Braga, História da literatura
portuguesa I – idade média, onde o autor ressalta pontos importantes para
a formão de uma história literária, sendo que um dos pontos ressaltados
por ele é exatamente o que se refere a questão da língua.
Hilário Franco Júnior, com a obra As utopias medievais, forneceu
importantes elementos referentes à questão da construção do mito e da
utopia, elementos que permeiam do começo ao fim o enredo dos roman-
ces de cavalaria. Somada à obra de Franco Júnior e corroborando com a
19
mesma na construção desses conceitos está José Roberto Mello e seu
livro O cotidiano no imaginário medieval. Estes dois medievalistas forne-
ceram preciosos dados no que tange a conceitos relativos a mitos, utopias,
imaginário e história das mentalidades.
Segismundo Spina, através da obra A cultura literária medieval
uma introdução, elucidou dúvidas que surgiram relacionadas ao processo
de articulação e da construção da literatura medieval, uma vez que o ro-
mance em prosa surge num contexto histórico muito posterior ao do início
da Idadedia.
Graças às precisas divisões que este autor faz, bem como ao seu
vasto conhecimento em relação à literatura medieval tornou-se possível
articular elementos de historiografia literária e de história da literatura
que corroboraram na construção desse momento da tese.
Jacques Le Goff, e seu texto Os Intelectuais na Idade Média, con-
tribuiu para a construção do quadro onde a intelectualidade medieval
fermentava suas idéias e produzia suas obras, sejam elas em prosa ou
verso. O texto do autor francês foi importante para organizar questões
referentes aos goliardos e a sua poesia satírica e questionadora.
Uma vez articuladas as questões relacionadas ao ambiente em que
o romance de cavalaria nasceu e a estrutura religiosa que influenciou na
construção da mentalidade religiosa cujo reflexo terá elementos embuti-
dos no romance de cavalaria, partiu-se para a elaboração da terceira parte
do trabalho, onde se analisa a figura do mago Merlim, a qual destaca-se
no imaginário literário do mundo medieval, sendo que o romance Merlim,
de autoria provável de Robert de Boron conta à estória do mago profeta,
elemento de ligação entre a cavalaria e a narrativa de cunho religioso.
Merlim é filho de um íncubo
7
, e sua mãe possui méritos diante de
Deus; assim, do pai o jovem recebe o dom do conhecimento do passado e
da mãe, o poder de prever o futuro. Somado ao texto de Robert de Boron,
no desvendar dos mistérios envolvendo a cultura celta foi de suma impor-
tância o texto de D’arbois Jubainville, Os druidas: os deuses celtas com
formas de animais. Nesse texto, o autor constrói um apanhado relatando
sobre a chegada dos romanos junto ao povo celta, demonstrando as influ-
ências culturais e o hibridismo que nasce desse intertexto.
Sirona Knight, na obra Explorando o druidismo celta, fundamentou
algumas questões referentes ao calendário celta e as festas promovidas
por esse povo que acabaram sendo cristianizadas e entrando no calendá-
rio oficial do cristianismo. Ao lado da obra de Knight, o livro de Cláudio
7 Segundo as crenças medievais, o íncubo é um demônio que toma formas masculinas para seduzir
as virgens. A variante feminina do íncubo é o súcubo, o qual deve seduzir os cavaleiros, sacerdotes, etc.
Sobre o assunto, ver LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
20
Crow Quintino, O livro de ouro da mitologia celta, foi importante para
a compreensão dos mitos que envolvem a cultura celta, entre eles o do
próprio mago Merlim.
O quarto capítulo dessa tese busca detalhar a figura lendária da Me-
lusina, que aparece na literatura medieval através de um romance escrito
por Jean D’Arras em torno de 1392, durante a Guerra dos Cem Anos.
D’Arras compôs esse romance tendo por base duas séries de fontes, as
escritas e as orais; e o ofereceu ao duque de Berri, irmão do rei Carlos
V. O universo desse folclore que Pierre Brunel na obra Dicionário de
Mitos Literários, chama de “melusiniano” pode ser resumido da seguinte
maneira: um ser sobrenatural apaixona-se por um ser humano, segue-o no
mundo dos mortais e se casa com ele, sob a condição de ser respeitada
certa interdição: com a transgressão do pacto, o ser sobrenatural retorna
ao outro mundo, deixando descendência.
Para a construção desse capítulo foram de fundamental importância
algumas obras, entre elas José Carlos Leal, com a obra A maldição da mu-
lher, na qual o autor faz um breve passeio pela história de gênero e articula
questões referentes ao imaginário construído em torno da figura feminina
pela literatura de vários períodos da história, entre eles, o medievo.
Mircea Eliade através da obra Tratado de História das Religiões,
contribuiu de forma fundamental para a construção da questão antropo-
lógica que norteia a figura da Melusina, uma vez que ela representa uma
divindade oriunda da água, tradicional em diversas mitologias, o que
corrobora com a questão apontada no capítulo pertinente ao fato de a Me-
lusina ser uma figura construída a partir de diversos universos culturais.
Bruxaria e História, as práticas mágicas no Ocidente Cristão, de au-
toria de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, auxiliou na análise referente
aos processos relativos as questões míticas em torno da magia que envolve
a figura das fadas e das bruxas medievais. A obra desconstrói o imaginário
que se formou em torno da questão da magia e da bruxaria no ocidente me-
dieval e é de fundamental importância para quem estuda o tema.
Alicerçado nessa colenea de textos e em outros mais, o presente
trabalho buscou desvendar os símbolos que envolvem a construção de ar-
quétipos religiosos nos romances de cavalaria, sendo que esses elementos
mostram a transposição dos valores transcendentais do homem medieval
para o imaginário literário. E esse imaginário mescla a cultura erudita
(cristã) com a cultura popular (pagã), daí a construção dos elementos -
bridos que facilitam a identificação daquele que as obras, pois o leitor
que a elas tem acesso é fruto dessa cultura em constante processo de hi-
bridização.
21
CAPÍTULO I
RELIGIOSIDADE MEDIEVALA CONSTRUÇÃO DO
ARQUÉTIPO RELIGIOSO
Que uma fonte, um Espírito, uma Fé tornou um.
As crianças que a Mãe Igreja concebeu em seu útero virginal
Pelo Sopro de Deus, ela dá à luz nessa corrente.
Se deseja ser livre de culpa, deve banhar-se nesse banho,
Independente de ser o pecado de Adão ou o seu próprio que o oprime.
Esta é a fonte da vida, que limpou todo o mundo,
Fluindo da fonte, a Chaga de Cristo.
Somente os renascidos aqui podem esperar pelo Reino dos Céus:
A vida abençoada não é para aqueles nascidos uma única vez.
Que ninguém tema o número ou a natureza de seus pecados:
O homem nascido nessa corrente será santo.
Papa Leão, o Grande.
A análise da história da igreja católica ficou, durante muito tempo,
identificada com a história das elites eclesiásticas. Quando se analisava a
história da igreja, a preocupação central a observar-se era com as institui-
ções clericais, com o pensamento oficial da igreja católica e de seus altos
dirigentes. A espiritualidade e a religiosidade dos fiéis, por ser vista como
grosseira e eivada de superstões, acabava ficando em segundo plano, e
mesmo, opondo-se à visão clerical.
A coexistência dessa diferença é permitida no período medieval
porque a coesão dogmática ainda não se estabelecera como um todo, e
um fosso muito profundo separava a elite letrada (eclesial) das massas in-
cultas. Nesse momento da história, havia lugar na própria ortodoxia, para
diversas maneiras de interpretar e viver a mensagem cristã, isto é, havia
lugar para diferentes espiritualidades.
Ademais, quando se fala em espiritualidade cabe uma ressalva.
É difícil falar sobre a espiritualidade do homem medieval, ou da espiri-
tualidade para o homem medieval, uma vez que tal conceito somente é
utilizado a partir do século XIX. Para alguns autores que trabalham com
o tema, espiritualidade representa a dimensão religiosa da vida interior e
22
implica uma ciência da ascese, que conduzirá pela stica à instauração
de relações pessoais com Deus.
8
Tal arquétipo não serve como definição para o espírito religioso
da Idade Média, pois o tem muita significação para pessoas anteriores
ao século XVI. Não se pode restringir a história da espiritualidade ape-
nas a um inventário e análises das obras nas quais se fixou a experiência
monástica. que se considerar que ao lado desta espiritualidade existe
uma outra, cujos vestígios são relatados por André Vauchez, na obra A
espiritualidade na idade média ocidental: séculos VIII a XIII:
(...) ao lado da espiritualidade explícita dos clérigos e religiosos, formula-
da em textos escritos, existe outra, que deixou poucos vestígios nos textos,
mas cuja realidade constatamos através de outros meios de expressão:
gestos, cantos, representações iconográficas etc. Nessa perspectiva, a es-
piritualidade não é mais considerada um sistema que codifica as regras da
vida interior, mas uma relação entre certos aspectos do mistério cristão,
particularmente valorizados em uma dada época, e práticas (ritos, preces,
devoções) privilegiadas em comparação a outras práticas possíveis no in-
terior da vida cristã (VAUCHEZ, 1995: 8).
A igreja começou a se organizar enquanto instituição, por volta do
século V da era cristã, e sua organização tinha como objetivo consolidar
a recente vitória do cristianismo sobre o paganismo
9
. Há que se levar em
consideração que, em grande parte desse processo, verifica-se uma pro-
funda ligação da igreja com o poder político, o que possibilitou a ela uma
área de atuação maior. No entanto, com o passar do tempo, o corpo ecle-
siástico separou-se quase que totalmente da sociedade laica e procurou
dirigi-la, buscando desde o final do século XI erigir uma teocracia, a qual
esteve em vias de se consolidar em meados do século XIII.
Em seus primeiros tempos de atuação a Igreja parecia estar envol-
vida em uma profunda contradição, a qual embasaria seu poder durante
o período medieval: os conflitos envolvendo os valores herdados da ci-
vilização romana e os valores rbaros. Sobre o assunto diz o historiador
Hilário Franco Júnior em sua obra Idade Média: o nascimento do Oci-
dente que:(...) ao negar diversos aspectos da civilização romana, criava
condições de aproximação com os germanos. Ao preservar vários outros
8 Sobre o assunto ver: THOMAS, Keith. Tratado de História das Religiões. Martins Fontes: São
Paulo, s/d. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Paz e Terra: São Paulo, 1995.
9 Há que se salientar que o paganismo bárbaro não sobreviveu como um corpo de doutrinas coerentes,
coisa que, aliás, ele nunca foi. Esse conjunto de crenças sobrevive como uma rede de instituições e de
práticas, das quais algumas deveriam ser muito antigas e que, na ordem do dia, constituíam-se nos os
de uma teia que se desenrolava à margem do culto cristão.
23
elementos da romanidade, consolidava seu papel no seio da massa popu-
lacional do império. Portanto, a igreja podia vir a ser o ponto de encontro
entre aqueles povos. (FRANCO JÚNIOR, 1992:108).
Da articulação que ela realizou entre a cultura romana e a bárba-
ra é que acabaria por nascer a Idade Média. Nascida dentro do Império
Romano, a Igreja acabou por preencher os espaços vazios deixados pela
queda daquela organização política e a tal ponto que em fins do século IV,
identificou-se com a figura do Estado, quando o Cristianismo foi adotado
como religião oficial no mundo romano. Destarte, a igreja passou a ser
a herdeira natural do Império Romano. J. N. Hillgarth, na obra Cristia-
nismo e paganismo 350-750: a conversão da Europa Ocidental informa
que: “O triunfo do Cristianismo católico sobre o Paganismo romano, seja
intelectual ou popular, e sobre os bárbaros pagãos ou arianos heréticos
certamente deveu-se, em grande parte, ao apoio que recebeu, primeiro,
do Estado romano decadente (...) e, mais tarde, das monarquias bárbaras”
(HILLGARTH, 2004: 17).
Partindo desse pressuposto, fica claro o fato de que a igreja foi
o grande agente de ligação entre o mundo antigo e o mundo medieval.
Graças à ação eclesiástica uma nova civilização foi forjada, tendo como
resultado final o nascimento da Europa Ocidental, fenômeno sem pre-
cedentes na história da Humanidade. Incontestavelmente, o poderio da
igreja durante a Idadedia foi imenso, pois seus membros acumularam
grande prestígio de forma que a instituição eclesial passou a controlar
diversos aspectos da vida humana.
Para que tal processo ocorresse de fato, ela precisa ter sua própria
hierarquia, a qual seria responsável por realizar e supervisionar todos os
ofícios religiosos, orientando as questões de dogma e executando obras
sociais e de combate ao paganismo. A concentração dessas atividades nas
mãos de apenas uns poucos cristãos era vista naturalmente pela comuni-
dade, que esse seleto grupo havia sido escolhido por Deus para atuar
em Seu nome. Some-se a isso o fato de que esse grupo de indivíduos
gozava da isenção de impostos e de um tribunal próprio para julgar suas
querelas. Assim sendo, e por sua própria natureza, o clero passou a se
distanciar dos demais cristãos.
Além disso, o membro do clero estava distanciado da sociedade por
uma questão que envolve muito mais que a sua condição: existe no perío-
do uma idéia que se refere á incompatibilidade entre a vida no mundo e o
estado religioso. Tal idéia começou a se impor aos cristãos do Ocidente.
O estado de vida leigo foi cada vez mais sendo depreciado em favor de
uma vida monástica. Não ser membro do clero, no mundo medieval, sig-
nificava ficar excluído do universo do sagrado e da cultura erudita.
24
A hierarquia dos estados de vida repousava, no contexto da época,
sobre o postulado de que a condição carnal é má: quanto mais afastado
está o fiel da condição carnal (expressão da sexualidade) mais perfei-
to ele seria. Nem o casamento, mesmo sendo um sacramento abençoado
pela Igreja, escapava da ótica negativa: ele era apenas um remédio para a
concupiscência e uma concessão à fraqueza humana. Na perspectiva esca-
talógica, que privilegiava a vida monástica, a continência e principalmente
a virgindade constituíam os valores fundamentais da vida religiosa.
As hagiologias
10
estão repletas de histórias falando sobre como a
virgindade era um fator importante para a ascensão do ou da fiel aos céus.
Tome-se como exemplo o texto que segue abaixo transcrito, retirado do
livro de Jacopo Varazze, Legenda Áurea¸ sobre a vida de Santo Hilário:
Como Ápia, sua filha, desejasse se casar, Hilário dissuadiu-a e fortaleceu-a
no desígnio de salvaguardar a virgindade. No momento em que a viu bem
decidida, temendo que mudasse de idéia rogou encarecidamente ao Senhor
que o lhe permitisse viver mais, e poucos dias depois ela migrava para
o Senhor. Ele a sepultou com suas próprias mãos, e ao ver isso a mãe da
beata Ápia pediu ao bispo que obtivesse para ela o que tinha obtido para
a filha. Ele assim o fez, e com suas orações enviou-a para o reino do Céu
(VARAZZE, 2003: 163).
Essa visão é compartilhada pelos fiéis também, tanto que se expan-
diu durante o período medieval o costume de solicitar um hábito religioso
por ocasião de uma doença grave. Morrer com o bito significava, aos
olhos dos homens do período, uma participação plena e integral nos sufrá-
gios, preces e méritos dos religiosos, com a única condição de renunciar
ao casamento e se despojar das honras e bens do mundo. Para um leigo o
caminho da salvação passava pela tríplice renúncia ao poder, ao sexo e ao
dinheiro, o que é a própria negação de seu estado enquanto ser humano.
A partir do século IV, determinou-se que apenas homens livres po-
deriam ingressar no clero
11
. Além disso, rias outras imposições foram
feitas, como se proibir a passagem direta do laicato ao episcopado, tornan-
10 Tipo de literatura surgida entre os séculos IV e VIII e que conta com detalhes às vidas dos santos.
No capítulo 2 desta tese dar-se-á especial atenção ao tema.
11 A sociedade medieval tem uma divisão de classe social sui generis em relação a nossa. Na
Idade Média, os grupos sociais estavam divididos em ordens: oratore, que incluía os membros do
clero, bellatore, que incluía a elite guerreira e laboratore, que incluía a classe trabalhadora. Da última
camada fazem parte os servos, com a condição de homem semi-livre, ou seja, um servo é um homem
juridicamente livre, mas na prática ele não tem permissão para deixar seu feudo. Isso quer dizer que
somente homens pertencentes à nobreza poderiam fazer parte do clero. Esse esquema tripartido deveria
favorecer justamente os membros do clero que aos olhos dos homens daquele tempo eram os que
rezavam mais e melhor. Sobre o assunto ver: DUBY, Georges. Senhores e camponeses. Teorema:
Lisboa, 1988; e DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. Martins Fontes: São Paulo, 1988.
25
do-se necessário exercer antes uma função inferior. A massa clerical era
sustentada por esmolas que advinham dos fiéis. Até o Sínodo de Elvira,
em 306 d. C., o celibato clerical não era obrigatório, apenas recomendado.
O Sínodo trouxe a primeira legislação referente ao assunto e aos poucos a
prescrição foi se impondo ao clero de toda a Europa ocidental.
Aparentemente única, a jovem hierarquia eclesiástica era abalada
vez por outra, por um fenômeno que acabará por auxiliar na organização
da hierarquia eclesiástica: as heresias, nascidas do sincretismo religio-
so que representavam uma das maiores fraquezas, mas também uma das
maiores vantagens do Cristianismo. Analisando esse processo, diz Hilário
Franco Júnior, em obra supracitada:
De fato, ao reunir e harmonizar componentes de várias crenças da época,
a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível de
diversas interpretações. Portanto, heresia é do ponto de vista da igreja, um
desvio dogmático, ou seja, uma interpretação discordante do pensamento
oficial do clero cristão, e que por isso mesmo coloca em perigo a unidade
da fé (FRANCO JÚNIOR, 1992: 109).
Até esse momento, a Igreja ainda não havia organizado um corpo
coeso de doutrina e dogma, ou seja, o conjunto de textos conhecidos por
Sagradas Escrituras ainda não tinha uma interpretação considerada ofi-
cial. Dessa forma, se multiplicavam pequenas seitas que se constituíam
em fatídica ameaça à unidade da instituição que dava seus primeiros e
vacilantes passos, pois ocasionavam o risco de divisões internas.
Atitudes em relação às heresias ou à rigorosa interpretação da
ortodoxia, variavam de época para época no seio da igreja cristã. Nos
primeiros séculos da Idade Média, as controvérsias teológicas gravitaram
em torno de questões como a natureza da Trindade, mais especificamente,
da segunda figura da Trindade Santa.
Exemplo desse pressuposto herético, sentido nos primeiros tempos
do Catolicismo, é o arianismo. Essa crença surgiu em virtude dos ensi-
namentos do sacerdote alexandrino Ário (256-336). Devido à dificuldade
teológica de combinar a divindade de Cristo com a unidade de Deus na
Trindade, Ário propôs a noção segundo a qual o Filho não era co-eterno
do Pai.
Debates foram feitos gravitando em torno da queso de saber se
Jesus Cristo era da mesma subsncia que Deus. A doutrina ariana acabou
condenada e seu criador banido da igreja. Ele morreu em vésperas de se
reconciliar com a igreja, mas seus ensinamentos acabaram influenciando
26
a vida religiosa de várias tribos bárbaras, como os ostrogodos que ocupa-
vam a Itália (VI) e os vândalos que habitavam o norte da África.
Qualquer idéia que parecesse herética era submetida à apreciação
do bispo
12
local, o qual deveria proceder em sua diocese uma investigação
anual, a qual visava excomungar os heréticos e as autoridades que não
agissem contra eles. Questões maiores, envolvendo doutrina, eram discu-
tidas nos concílios ecumênicos, que reuniam bispos de todas as regiões,
expressando dessa forma a idéia de que a Igreja era universal. Essa iia
de universalidade traz inerente a si a idéia de construir uma monarquia
eclesiástica, para que tal fenômeno se concretizasse havia a prerrogativa
religiosa (um Deus, um corpo, uma Igreja) e havia a crescente
necessidade de se manter a unidade tão duramente conquistada.
Os conflitos levantados pela questão ariana serviram para demons-
trar o quanto a autoridade moral dos sínodos estava enfraquecida e isso
mostrava que era preciso um poder acima de todos, que fosse o responsá-
vel pela articulação da Igreja. Foi em função desse contexto que o bispo
de Roma se sobrepôs aos seus pares e acabou por ter o direito de usar,
a partir do final do culo IV o título de papa. O poder dessa figura e a
construção do papado a partir de Roma é um fenômeno que se constrói ao
sabor das circunstâncias.
Roma era a cidade de maior prestígio político e cultural do Ociden-
te e isso, desde tempos imemoráveis. Parecia que a Cidade Eterna sempre
estivera lá. Some-se a isso o fato de que ela era a capital do Império
Romano no Ocidente. Então, a geografia civil se superpôs à geografia
eclesiástica e a capital política tornou-se a capital da cristandade. O bispo
de Roma também contava com o apoio do imperador desejoso de fortale-
cer e dar prestígio à sua capital.
Último fator dentro de todo esse processo, mas nem por isso menos
importante: havia a velha crença de que na cidade de Roma estava enter-
rado o corpo sagrado de Pedro, a pedra angular da igreja e seu primeiro
papa. Mas foi somente a partir de Leão I (440-461) que o bispo romano
passou a se considerar herdeiro e representante do apóstolo.
Em meados do século VIII, o papado lançou a sua última grande
cartada no que tange à questão da primazia e desta vez, uma jogada que
atingia não só a questão da supremacia do bispo romano sobre os demais,
mas também a supremacia do poder espiritual sobre o temporal.
O principal elemento desta questão envolvia um documento através
do qual o imperador romano teria transferido à igreja o poder imperial
12 Os bispos eram guras de suma importância nos primeiros tempos da cristandade ocidental, isso
porque eram vistos como herdeiros diretos da autoridade dos apóstolos. Os bispos sempre aparecem na
condição de defensores máximos da ortodoxia e como baluartes contra o avanço das heresias, ou seja,
contra qualquer pregação que fosse contrária à doutrina da igreja.
27
sobre todo o ocidente: tratava-se da Doação de Constantino, toque que
faltava para a organização final da máquina eclesiástica.
Conjuntamente a esse fenômeno, a igreja desenvolvia um projeto
de organização interna, diferenciando o clero monástico do secular. Este
segundo grupo recebia essa nomenclatura devido ao seu tipo de carisma
o qual estava mais voltado para atividades em sociedade. Suas funções
compreendiam: ministrar sacramentos, orientar espiritualmente os fiéis e
ajudar os necessitados.
O clero monástico, por sua vez, compreendia os indivíduos que
buscavam servir a Deus vivendo em completo isolamento e solidão, este
foi o caso de Santo Antão, que provavelmente viveu entre os anos de 251
e 356, no Egito e é considerado pela igreja como sendo o pai do monas-
ticismo.
Entretanto, os monges que optavam por este tipo de vida acabavam
por cometer uma série de abusos contra si próprios: o excesso de jejuns,
mortificações e outros hábitos acabaram levando outro egípcio, São Pa-
cômio, o qual morreu aproximadamente em 346, a reunir vários monges
num mesmo local, estabelecendo uma regra comum para sua conduta.
Daniel Valle Ribeiro, na obra A cristandade do Ocidente medie-
val, estabelece o processo de origem do monaquismo ou monasticismo,
dizendo:
As origens do monaquismo ordens religiosas em mosteiros devem
ser procuradas no Oriente Próximo, nos primórdios do cristianismo, onde
situavam-se as mais numerosas e atuantes comunidades da nova religião.
No Egito, na segunda metade do século III, numerosos monges viviam
cada um em sua cabana. Eram os eremitas ou anacoretas – homens que se
isolavam em lugares ermos ou no deserto, para viver em recolhimento e
fazer penitência (RIBEIRO, 1998: 20).
De fato, nos três primeiros séculos depois de Cristo, muitos crisos
seguiram ideais de vida celibatários e ascéticos, mas a separação dos pa-
drões comuns do mundo tornou-se mais dramática quando do surgimento
do monasticismo, movimento especialmente devotado ao culto aos már-
tires, tidos como primeiros heróis do cristianismo. Estes eram indivíduos
que morreram durante as perseguições que a Igreja sofreu ainda nos tem-
pos do Império Romano.
No ocidente a primeira grande experiência de um clero subme-
tido a uma regra específica de vida foi realizada por Bento de rsia
28
(480-547)
13
, fundador da ordem beneditina. A vida do monge beneditino
transcorre em função do preceito orar e trabalhar. Oração e trabalho têm
um duplo sentido, pois representam uma forma de alcançar a Deus. Para o
fundador da ordem beneditina, o monge era um penitente, entrando para
a vida religiosa para expiar seus pecados e colocar-se sob a direção espi-
ritual de um abade.
Para o beneditino a oração é uma forma de trabalho: rezando, o
monge combate às forças malignas e contribui para a salvão não apenas
de sua própria alma, mas da sociedade como um todo. O trabalho também
é uma forma de oração, pois enquanto trabalha, o monge mantém suas
mãos ocupadas e sua mente também, portanto ambas estão afastadas das
tentações mundanas. Some-se a esse preceito a tradicional trilogia mo-
nástica de castidade, pobreza e obediência que se encontrava presente de
forma concreta e equilibrada no cotidiano dos monges beneditinos.
São Bento soube evitar muito bem os exageros do ascetismo orien-
tal, cuja doutrina preconizava exercícios espirituais e de mortificação
como uma constante. Parafraseando Daniel Valle Ribeiro, em obra an-
teriormente citada, o regulamento da Ordem Beneditina constitui um
modelo de organização interna, equilíbrio, senso de medida, sabedoria
e moderação na vida comum, fundado na obediência mediante a qual se
realiza a lei de Deus e se pode imitar a Cristo.
O esplendor dos mosteiros beneditinos ocorreu entre os séculos VI
e XI. Nesse momento da hisria ocidental, os mosteiros da Ordem de
São Bento se tornaram centros de produção de cópias e de ilustração de
manuscritos, mas constituíram-se também em um modelo econômico e
um foco de vida espiritual que iluminava a noite estrelada dos séculos
medievais.
Nas palavras de Hilário Franco Júnior:
(...) a Ordem Beneditina conheceu até o século XII imenso sucesso e cum-
priu um papel de primeiríssima [grandeza]. Por exemplo, na evangelização
da zona rural. Desde o fim do século III ocorria forte expansão do cris-
tianismo nas cidades, onde a crise do Império Romano era mais sentida
e, portanto, as condições para a cristianização mais favoráveis. O cam-
po, sempre mais conservador mantinha-se preso ás suas antigas crenças
(FRANCO JÚNIOR, 1992: 112).
A decadência urbana e o êxodo rural correspondente ao fenômeno
fazem com que o Cristianismo penetre no campo. A busca de isolamento
13 Sobre a vida de Bento de Núrsia ver: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos.
São Paulo: Cia das Letras, 2003.
29
e de novas almas para converter a cristã fez com que os beneditinos
alargassem as fronteiras da cristandade ocidental.
A conversão dos “rústicos” (camponeses) se revelou uma tarefa
árdua, uma vez que o paganismo seguido pelos homens do campo não era
um inimigo imaginário. De um modo geral sua resistência era passiva,
mas eficaz. Sobre o assunto, informa J. N. Hillgarth em sua obra Cristia-
nismo e Paganismo: 350-750 a conversão da Europa Ocidental, que:
A destruição dos grandes santuários das florestas da Gália celta e sua subs-
tituição por igrejas cristãs aconteceu, freqüentemente, tarde. Cesário de
Arles, na região mais cristianizada da Gália, preocupou-se constantemente
com o Paganismo e até mesmo com templos pagãos recentemente restau-
rados. Se os mitos elaborados do Olimpo estavam esquecidos, as antigas
crenças celtas nos deuses da primavera e das florestas estavam bem vivas
na Gália de Cesário e na Galícia de Martinho de Braga (HILLGARTH,
2004:68).
A igreja da antiguidade era essencialmente urbana: a vida religiosa
concentrava-se em torno da catedral para onde a população se dirigia a
fim de assistir aos ofícios religiosos. Somente se celebrava o culto na
zona rural, quando para se dirigia o bispo ou um sacerdote por ele de-
signado.
Do século V em diante, porém, iniciou-se a instalação de igrejas
nas vilas rurais, criando-se os distritos paroquiais com uma organização
idêntica à da igreja episcopal. Esse fenômeno demonstrava que a igreja
cristã começava a ganhar corpo em meio à sociedade medieval.
Entretanto, embora a penetração da religiosidade cristã se fizesse
em meio à população rural, seja pela ação dos beneditinos, seja pela des-
truição dos ídolos pagãos; a adesão ao Cristianismo ainda era superficial,
encobrindo a permanência de hábitos pagãos. Ainda se acreditava na ação
das práticas supersticiosas: o poder dos amuletos, dos maus espíritos e
dos sortilégios. Prevalece aqui a coexistência de elementos culturais pa-
gãos antigos e cristãos, convivendo num mesmo espaço.
A continuidade de práticas pagãs podia, inclusive, ser observada
na transformação de certos sacrifícios do velho paganismo em oferendas
cristãs, como por exemplo, o hábito de camponeses espalharem hóstias
consagradas em seus campos, na esperança de aumentar a fertilidade da
terra.
14
14 Maiores informações sobre o assunto ver: RIBEIRO, Daniel Valle. A cristandade do ocidente
medieval. Atual Editora: São Paulo, 1998 e DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente. Cia
das Letras: São Paulo, 1989.
30
Dentro de seu processo de articulação, a igreja tentou inspirar e
estender aos leigos o benefício de um estilo de vida monástico e regrado,
idéia que se não era original era certamente ousada demais para a época.
A igreja pode ter conseguido que o poder político proibisse o divórcio e
o incesto, mas fracassou em seus esforços para moralizar a vida sexual da
população e não conseguiu pôr fim aos raptos e ao concubinato. Mas o
moralismo cumpriu o seu papel, na medida em que valorizou as exigên-
cias da ética cristã e a necessidade de expressá-las em atitudes.
A mesma preocupação inspirou transformações em alguns sacra-
mentos, como a penitência. Nos primeiros séculos do Cristianismo, a
penitência era blica e comunitária. O penitente apresentava-se ao seu
bispo no início da quaresma, para se reconciliar com a cristandade pelos
pecados cometidos diante de uma assembléia realizada na Quinta-Feira
Santa, ao fim de uma cerinia cheia de pompas. Há que se salientar que
esse penitente só tinha acesso ao perdão de seus pecados uma vez na vida,
por isso o pecador permanece até a sua morte sujeito a várias sanções que
o excluem da vida conjugal e social.
Alterações na disciplina eclesiástica tornaram a penitência um
sacramento reiterável quantas vezes fosse preciso, quantas vezes o fiel
achasse necessário. O pecado era perdoado depois do cumprimento de
penas infligidas pelo confessor de acordo com uma tarifa indicada em li-
vros chamados penitenciais. Essa nova fórmula obteve um sucesso quase
que imediato.
Isso se explica de forma muito cil, segundo André Vauchez, na
obra A espiritualidade na idade média ocidental:
(...) os fiéis, vivendo mal e orando pouco, eram esmagados por um sen-
timento de culpa do qual só podiam libertar-se na hora da morte. Assim,
acolhem com alegria a possibilidade de obter a absolvição a cada vez
que o desejassem, pela confiso e expiação de suas faltas (VAUCHEZ,
1995: 21).
Essa prática confessional tem um caráter muito materialista, mas a
nova disciplina acabou por elevar o nível religioso dos fiéis. Os peniten-
ciais difundiram no Ocidente uma classificação dos pecados que permitiu
que a moral religiosa se refinasse. A classificação imposta pelos peniten-
ciais considerava falta irremissível a idolatria, a fornicação e o homicídio.
Ao lado desses três pecados figuram pela primeira vez mais oito cate-
gorias: a gula, a luxúria, a cupidez, a cólera, a tristeza, o pessimismo ou
repugnância, a jactância e o orgulho.
31
Essas transformações na disciplina penitencial expressam a aspira-
ção dos fiéis de encontrarem uma via de acesso para a salvação, apesar da
desvantagem que o seu estado em relação a isso, constituía. A religiosida-
de popular é um fenômeno muito delicado na época, uma vez que a vida
religiosa da população muitas vezes transborda os limites obrigarios da
instituição eclesial cristã e até mesmo do dogma cristão.
Mesmo em regiões cristianizadas de longa data, o Cristianismo,
religião oficial, ainda era apenas um verniz que recobria elementos muito
heterogêneos, os quais os membros do clero classificavam como supersti-
ções populares. Não que o paganismo do mundo antigo ou dos gernicos
tivesse sobrevivido como um corpo de doutrinas coeso, aliás, ele nunca
chegou a sê-lo. Mas havia uma rede de práticas religiosas e de institui-
ções, as quais eram muito antigas que constituíam toda uma trama de vida
religiosa a qual continuava existindo à margem do culto cristão.
A existência desses elementos religiosos atípicos do Cristianismo
construiu a idéia da onipotência e da onipresença de Deus. Explica-se:
o fiel o deveria cometer nenhum ato contra o dogma eclesial e muito
menos executar suas orações em locais não apropriados para isso, porque
Deus tudo e Está em todos os lugares, portanto Sabe de tudo e poderia
muito bem, punir um fiel que não seguisse com coerência o dogma que os
sacerdotes tentam ensinar.
Deus passa a ser percebido como uma força misteriosa, a qual pode
manifestar-se a qualquer instante e em qualquer lugar. Entretanto, o me-
lhor lugar para que essa manifestação aconteça são os locais sagrados. Na
mentalidade popular, o poder divino se identifica confusamente com o
bem e a justiça, exigindo juramento e punindo os perjuros.
Em certas circunstâncias, ele não podia deixar de intervir em favor
dos inocentes e apontar os culpados. Essa prática religiosa fundamenta os
ordálios, dos quais os principais eram as provas do fogo, da água e o due-
lo judiciário. De origem pagã, as cerimônias de ordálio foram cercadas,
desde o início do século IX, de formas litúrgicas. Em geral eram precedi-
das de missa, depois da qual se benziam os objetos que seriam utilizados
para o julgamento de Deus.
Em relação ao ordálio, diz Hilário Franco Júnior, na obra Idade
média: o nascimento do ocidente que:
Na mesma linha de indiferenciação entre magia divina (milagre) e ma-
gia diabólica (feitiçaria), nhamos a questão do ordálio. Este baseava-se
na idéia de que Deus se manifestaria quando lhe fosse pedido um julga-
mento. As autoridades deixavam então o veredicto a Deus: o réu deveria,
por exemplo, segurar um ferro em brasa, que o feriria em caso de cul-
32
pabilidade, pois Deus não permitiria que um inocente sofresse. Contudo,
sempre se temia que o acusado recorresse à outra magia que não a divina,
para escapar à condenação. Sendo difícil saber a origem daquela hierofa-
nia (um homem segurar um ferro em brasa sem se queimar), a igreja em
1215 aboliu a prática do ordálio como prova jurídica (FRANCO JÚNIOR,
1992: 155).
Mesmo que a igreja tenha abolido o ordálio em 1215, reminiscên-
cias sobre o tema passaram à literatura. Na obra Tristão e Isolda, que
remonta ao século XII, uma passagem onde a prova do ordálio é pro-
posta à rainha Isolda, acusada de adulrio. Os três nobres traidores e
delatores do romance de Isolda com Tristão, Denoalen, Andret e Gon-
doine propõem ao rei Marc que a rainha seja submetida ao ordálio: se ela
nunca o traiu o tem o que temer.
Marc fica furioso com a proposta de seus nobres, mas acaba con-
cordando com a idéia. Assim, o julgamento da rainha é marcado e entre
os convidados para assistir à cerimônia estão Arthur e alguns cavaleiros
do séquito da Távola Redonda. Isolda avisa a Tristão do que está para lhe
ocorrer e ele, disfarçado de peregrino, no exato momento em que a rainha
está para deixar a balsa que a levou até o local do julgamento a carrega
em seus braços.
Ao se aproximar do local onde a brasa torna o ferro vermelho,
Isolda afirma sua inocência e diz que esteve em sua vida nos braços
de dois homens: Marc e o peregrino que lhe havia amparado. Ao pronun-
ciar estas palavras, mergulha seus braços brancos nas brasas quentes até
a altura dos ombros e quando os retira dali, constata-se que os mesmos
continuam sãos e sem nenhum ferimento. A inocência da rainha estava
comprovada e Deus foi louvado por esse milagre.
A espiritualidade do clero e dos fiéis não constituía na Idade Média,
dois mundos sem comunicação: Deus era um juiz implacável, longínquo e
onipresente, diante de Quem os fiéis se sentem desamparados. Assim eles
tiveram que recorrer a intermediários para confabularem com Essa figura
celestial tão poderosa. Inicialmente esse papel foi representado pelos an-
jos e, a posteriori, pela Mãe de Jesus Cristo, a Virgem Maria, que ganhou
o papel de mediadora divinal entre Deus e os homens. Sobre o assunto,
informa J. N. Hillgarth, em obra supracitada que:
Inevitavelmente, tornaram-se necessários mediadores entre o cada vez
mais aterrorizante e remoto Cristo, como Juiz e Rei, e a miserável hu-
manidade. Esses mediadores existiam na forma dos rtires e santos,
cujos altares espalhavam-se por todo o Ocidente, e nos ascetas vivos e
33
bispos santificados, que castigavam e governavam seus rebanhos como
representantes aceitos na terra do Supremo Juiz no Paraíso (HILLGAR-
TH, 2004: 103).
O culto aos santos cresce na Idade Média, devido à mediação que
eles fazem junto a Deus: os santos também interessam aos fiéis pelas relí-
quias que deixaram, pois se aproximar de uma delas significava entrar em
contato com o outro mundo e principalmente captar para proveito próprio
algum benefício divino que delas emanasse.
Devido a sua experiência e a sua estrutura administrativa, além de
seu prestígio moral e de sua capacidade de penetração e atuação em todo
o ocidente cristão, a igreja se constituiu em uma grande organização po-
lítica, administrativa, social e cultural da Idade Média, com pretensões
imperialistas e unitárias. A idéia de um grande império nunca deixou
de existir no imaginário político do mundo ocidental, e a igreja romana
acreditou que poderia ser a arquiteta desse império cristão, cujo papel
unificador deveria cumprir a função antes exercida pelo império romano.
Essa idéia que confunde igreja e Estado identificava-se com o pensamen-
to político então em voga, e que sustentava ser o império o único poder
capaz de promover a escolha dos melhores e de com isso garantir a justiça
e a paz.
Em meio a essa organização crescente e por volta do século VIII,
a igreja viu-se diante de um fenômeno político que poderia tornar-se um
concorrente seu: a formação do império carolíngio. Os francos, tribo que
deu origem ao império, foram os primeiros bárbaros a se converterem ao
cristianismo, isso por volta do século V.
Some-se a isso, o fato de que, no século VIII, quando a igreja esta-
va enfrentando problemas com os lombardos, povo bárbaro que habitava
o centro da Itália, foi ao chefe dos francos; Pepino, o Breve, que o papa
recorreu para resolver a querela. Além disso, o pai de Pepino, Carlos Mar-
tel, havia derrotado os muçulmanos em seu avanço sobre a Europa, no
ano de 732, numa batalha que ficou conhecida como Batalha de Poitiers.
Pepino, o Breve conseguiu conquistar as terras da Itália que esta-
vam em mãos dos lombardos e as entregou para a igreja. Estava criado
o Estado Pontifício, e o papa feito chefe de Estado. Além disso, Pepino
tornou em lei o antigo costume cristão do pagamento do zimo além de
promover diversas reformas eclesiásticas através das quais o episcopado
ficou vinculado ao poder real.
15
15 Não como esquecer da Doação de Constantino dentro desse processo. Por esse documento (o
qual foi comprovadamente falsicado) Pepino, o Breve, não havia feito mais nada do que uma obrigação
de vassalo, ou seja, entregue à igreja terras que lhe pertenciam, uma vez que ela era a senhora do
ocidente, herdeira do imperador romano.
34
Ungido pelos óleos de um sucessor de Pedro, Pepino tornou-se o
grande protetor da Igreja. Entretanto, ao revestir de toda uma pompa ecle-
sial a sagração do rei, a igreja tinha como propósito demonstrar a sua
superioridade e a absoluta identificação (submissão) do monarca com a
moral por ela preconizada. Nas palavras de Daniel Valle Ribeiro, “a sa-
gração constituía, a um tempo, fator de fortalecimento e de limitação
do poder real” (RIBEIRO, 1998: 35).
Roma atribuiu à dinastia Carolíngia uma grande importância. Pepi-
no foi visto e celebrado como um novo Moisés e comparado aos antigos
reis da monarquia judaica. Ele foi sagrado como o escolhido para guiar o
povo eleito em um caminho de salvação e glória, governando sob o pre-
ceito iluminado do rei cristão. Seu filho, Carlos Magno, prosseguiu a obra
e confirmou a concessão à igreja dos territórios que haviam sido tomados
aos lombardos e acabou sendo coroado imperador pela igreja na noite de
Natal do ano de 800.
No governo de Carlos Magno, neto de Carlos Martel, os clérigos
passaram a participar do conselho real, tendo inclusive poderes civis. A
partir daí, as prerrogativas canônicas ganhavam força de lei. Entretanto,
era o monarca quem presidia os sínodos, punia bispos e regulamentava a
disciplina eclesiástica e a liturgia. Carlos Magno intervinha mesmo em
questões de dogma e durante seu governo, os bispos eram nomeados por
ele.
A atuação o presente do monarca acabou por esvaziar o poder
concentrado da igreja. Isso porque os monarcas carolíngios eram investi-
dos de uma espécie de poder sobrenatural, concedido a eles no momento
de sua sagração. A partir daí, passavam a se considerar e eram considera-
dos responsáveis pela salvação do seu povo e pretenderam reger a Igreja
assim como regiam a sociedade profana.
Magno se considerava defensor da igreja, acreditando que lhe ca-
bia, por esta razão, poder em matéria disciplinar e doutrinária. Ainda que
convencido da primazia do papa, os atos do imperador demonstram que
ele tinha consciência de que governava o rebanho dos cristãos. Portanto,
o papa, ao criar um imperador, não criou um delegado, mas um rival e
quiçá, um senhor. A despeito da realidade política que se traduzia pela
reconstituição do império sob a tutela da igreja e pelo Estado colocado a
serviço do cristianismo, a preponderância do soberano era evidente: ele
defendia a igreja e propagava a fé, enquanto o papa orava para que as
armas cristãs tivessem sucesso.
Nas palavras de André Vauchez, na obra A espiritualidade na Ida-
de Média ocidental, “a igreja dos tempos carolíngios era uma igreja antes
de tudo secular, dirigida pelo soberano e pelos bispos, que tinham auto-
35
ridade sobre os monges no interior de suas dioceses” (VAUCHEZ, 1995:
31). Esse processo de secularização, iniciado por volta do século IX, se
acelerou com a ascensão do feudalismo. Os patrimônios eclesiásticos aca-
baram por ser dilapidados por clérigos corruptos ou roubados por leigos
invejosos e o estilo de vida dos clérigos se aproximou cada vez mais do
levado pelos leigos.
Cabe aqui uma pergunta: por que Magno era tão respeitado pelo
organismo eclesiástico? A resposta é simples: suas conquistas territoriais
abriram caminho para a cristianização do ocidente. Magno instituiu muitas
paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses e por tudo isso, pode-se
dizer que o imperador sentia-se investido de um verdadeiro sacerdócio.
Essa alegoria pode ser sentida na obra literária. No poema La Chan-
son de Roland, onde se narra a batalha dos francos contra os muçulmanos
em Roncesvales, e onde morre o sobrinho do imperador, Rolando em seu
momento de morte diz:
Quand Dieu du ciel lui envoya son ange lui demander
De te Donner à um Comte valeureux:
Donc ce noble roi, ce grand roi, me l’a mise au cote.
Avec elle je lui ai conquis l’Anjou et la Bretagne,
Je lui ai conquis le Poitou et le Maine,
Avec lui je lui ai conquis la libre Normandie,
Je lui ai conquis la Provence et l’Aquitanie,
Et la Lombardie et toute la Romagne;
Avec elle je lui ai conquis la Bavière et toutes les Flandres,
Et la Bulgarie et toute la Pologne,
Constantinople, dont il a reçu le respect,
Et la Saxe, où il fait selon sa volonté.
Avec elle, je lui ai conquis l’Écosse et l’Irlande,
Et l’Angleterre, où il avait son domaine (ANONIMO, 1979: 111)
16
.
No trecho acima, Rolando fala sobre a quantidade imensa de terras
que Durandal, sua espada abençoada e ele haviam conquistado para o im-
perador Carlos Magno. Durante todo o seu governo, Magno mostrou-se
preocupado com o monasticismo. Como os bispos exerciam papel de fun-
16 Quando Deus do céu lhe envia seu anjo para lhe pedir/Que te dê um conde valoroso/Então aquele
nobre rei, aquele grande rei, me colocou a seu lado. /Com ela, eu conquistei Anjou e Bretanha/Eu
conquistei Poitou e Maine/Com ela eu conquistei a livre Normandia/Eu conquistei a Provença e a
Aquitânia/E a Lombardia e toda a Romanha/Com ela eu conquistei a Baviera e toda a Flandres/E a
Bulgária e toda a Polônia/Constantinopla, onde recebi o respeito/ A Saxônia, onde ele fez segundo sua
vontade./Com ela eu conquistei a Escócia e a Irlanda/ E Inglaterra, onde tinha seu domínio.(tradução
da autora).
36
cionários imperiais, poucos podiam se dedicar à evangelização e à ação
espiritual do dia-a-dia, o que ampliava as funções monásticas.
Assim, Carlos Magno apoiou constantemente a atuação dos mon-
ges beneditinos. Na opinião de Bihlmeyer e Tuechle, na obra História da
Igreja. Idade Média, o governo de Carlos Magno possuía “uma linha te-
ocrática da qual não esausente a concepção mágica que do poder régio
possuíam os velhos povos germânicos” (BIHLMEYER,1964: 61).
Investidos de um poder sobrenatural pela virtude da sagração, os
soberanos carolíngios se consideraram como responsáveis pela salvação
de seu povo. De todos eles, Carlos Magno foi quem levou esses princípios
às últimas conseqüências.
Sob o governo de Luis, o Pio, filho de Magno, iniciou-se a terceira
fase das relações entre o império carolíngio e a Igreja. Nesse período a
reforma mostica acabou por se tornar completa. A regra beneditina foi
uniformizada no que tange a sua aplicação. A partir de então, preconiza-
va-se a união com Deus pela oração e contemplação.
A partir do governo de Luis, a influência do episcopado na vida
do império seria uma crescente, e a balança do poder começaria a pender
para o lado da igreja. A fraqueza do novo imperador propiciaria o for-
talecimento do alto clero, formado por aqueles que ocupavam o topo da
hierarquia eclesiástica. O que os bispos buscavam era a organização da
sociedade terrena segundo os preceitos do mundo divino.
A alta Idade Média, período no qual o império carolíngio está com-
preendido foi atraída, particularmente, pelo Antigo Testamento, mais de
acordo com o estado da sociedade e das mentalidades do tempo do que
o Novo. Em um Ocidente apenas superficialmente cristianizado, que um
poder centralizador tentava unificar com o apoio do clero, a Jerusalém
dos reis e dos grandes sacerdotes não podia deixar de exercer sobre os es-
píritos um poder muito especial. Essa fascinação marcou profundamente
a mentalidade religiosa do período, bem como a vida espiritual. Na época
carolíngia o cristianismo se tornou uma questão de práticas exteriores e
obediência a preceitos.
Esse processo iniciou-se pelo menos 200 anos antes, nas cristanda-
des célticas, onde a Igreja preconizou uma imitação literal das instituições
e das disposições do Antigo Testamento, impondo aos fiéis uma respei-
tosa submissão ao clero e a este a obediência inquestionável aos seus
superiores hierárquicos. Sobre o assunto, informa And Vauchez, na
obra A espiritualidade na Idade Média ocidental, que o impacto de todo
esse processo foi particularmente mais sentido em aspectos pessoais da
vida dos homens do período:
37
O impacto da antiga Lei foi particularmente importante no campo da moral
sexual, na qual muitos preceitos do Levítico voltaram a vigorar: impureza
da mulher depois do parto, que ficava excluída da igreja até a cerimônia
da convalescença, abstenção de relações conjugais certos períodos do ano
litúrgico, severas penitências infligidas às poluções noturnas etc. A maio-
ria dessas interdições e sanções permaneceriam em vigor até o século XIII.
Isso mostra até que ponto elas marcaram a consciência moral dos homens
da idade média (VAUCHEZ, 1995: 14).
Nesse contexto, todos os súditos do imperador cristão, com exce-
ção do grupo judeu, deviam adorar o mesmo Deus que ele, pelo singelo
fato de estarem sujeitos à autoridade desse imperador. Tal concepção ad-
ministrativa da religião não justificava apenas as conversões forçadas ao
cristianismo, ele legitimava o uso do constrangimento físico pelo poder
leigo para reprimir cismas e heresias. A era um depósito que o soberano
tinha o dever de preservar e transmitir de forma integral.
O padre carolíngio era um homem de prece e sacrifício, muito mais
que de pregação ou testemunho, estando próximo do levita do Antigo
Testamento. Aos olhos dos fiéis ele aparecia como um especialista do
sagrado, que se distinguia deles pelo conhecimento que tinha dos ritos
e das fórmulas eficazes para esconjurar demônios ou invocar a proteção
divina.
A alta Idade Média também é o período onde a liturgia do Cris-
tianismo se definiu: a religião se identifica então com o culto prestado
a Deus pelos padres, Seus representantes na terra. Os fiéis têm a obriga-
ção moral e legal de assistir ao culto. Fora dos mosteiros, essa liturgia
tornou-se para o povo, uma colão de rituais dos quais se esperava tirar
proveito. De fato, o ritualismo é um momento marcante da vida religiosa
dessa época.
Ao lado do ritualismo, outro fenômeno que chama a atenção é o
individualismo, componente fundamental do clima religioso do período:
os leigos não têm um papel mais ativo no culto, pois este havia se tornado
um apanágio de especialistas. Isso pode ser percebido pela importância
que o canto lirgico assumiu nas cerimônias.
A disposição interna das igrejas contribuía para a passividade dos
fiéis que ficavam de na nave, separados do santuário por uma espécie
de cancela, enquanto que do alto do altar um coro de clérigos entoava
os cantos sacros. O celebrante voltava-se de costas para a população e
dirigia-se a Deus em nome dela. Essa evolução ritualística teria conse-
qüências para a vida profana, pois faria com que se perdesse de vista o
referencial que existia entre o sacramento e a vida cotidiana.
38
O fato de o latim ter permanecido a língua oficial de culto também
contribuiu para manter o cerimonial religioso estranho à população. A
escolha do latim nesse processo tem uma justificativa: ele era o único
idioma escrito no período e, portanto, o único capaz de ser utilizado na
liturgia. Porém, o conhecimento da língua cerimonial tornou-se privilé-
gio exclusivo dos clérigos. Cria-se aí a primeira brecha importante que
diferenciaria, a posteriori, a cultura erudita da cultura popular, durante o
período medieval.
No entanto, não se pode reduzir ao mero ritualismo a religiosidade
da época carolíngia. A fé, nesse momento, pouco interiorizada pela po-
pulação se expressa em outros registros e quer realizar-se, principalmente
nas obras. O maior exemplo desse árduo trabalho está na moral atribuída
pela igreja ao príncipe, através de um conjunto de obras, os specula prin-
cipis
17
, ou espelhos do príncipe.
O teor desses textos ficava evidente: o príncipe era julgado primei-
ramente por sua conduta, a qual deveria constituir-se num modelo para
seus súditos. Se o príncipe não se dignificasse a ter uma conduta coerente
com a sua posição, a igreja poderia retirar o apoio que prestava a ele, que
passaria a ser considerado indigno. O que vale para o príncipe vale para os
nobres que vivem na corte. Os specula principis o grande importância
às exigências morais, no entanto, tem um alto teor de conteúdo político: os
poderosos são convidados a pôr seu poderio econômico e militar a serviço
do ideal da fé cristã e utilizá-lo a serviço da Igreja e dos mais fracos.
Durante o governo de Luis, o Pio, o clero secular retoma a direção
do movimento de cristianização e o episcopado volta a aumentar o seu
poder político. A partir do século IX, tendo como fonte de inspiração o
Direito Canônico e Santo Agostinho, ganhou terreno cada vez mais amplo
a teoria do agostinianismo político, a qual afirmava que o poder espiritu-
al era superior ao poder temporal, ou seja, os bispos tinham supremacia
sobre os reis.
Segundo essa teoria, o rei recebe o seu poder de Deus e sua obriga-
ção é salvar o seu povo. Caso ele não cumprisse essa prerrogativa, deveria
ser considerado um tirano. Ora, o papel dos bispos nesse contexto seria
justamente o de zelar para que o rei não arrastasse o seu povo para o mal.
O rei somente pode agir em conformidade com a vontade de Cristo, o qual
representa o rei dos reis, e quem conhece e, portanto, pode e deve orientar
o monarca são os bispos, representantes de Deus e de Seu Filho na terra.
Não que fosse sua pretensão diminuir a competência do Estado,
nem enfraquecer a autoridade do imperador, até porque eram favoráveis à
idéia de um império revestido de preceitos cristãos. O que os altos digni-
17 Espelhos dos príncipes.
39
tários da igreja pretendiam, na verdade, era um lugar de relevo dentro da
vida estatal. Desejavam um governo de forte inflncia religiosa em que
o poder fosse exercido de forma direta ou indireta pelos sacerdotes.
Os bispos atribuíram ao clero o papel de juiz da sociedade, pois era
o corpo clerical o único intérprete das Sagradas Escrituras. Até o início do
século XI, o alto clero vai ampliar cada vez mais a sua autoridade e des-
frutar de uma independência cada vez maior diante do Estado. Ao longo
desse percurso, o sistema episcopal sempre enfatizou a superioridade do
poder espiritual e a igreja detinha em suas mãos um poder mais perfeito
que os outros.
A teoria do agostinianismo político contribuiu para enfraquecer o
poder real e fortalecer outros organismos de poder, como a nobreza laica
e a nobreza eclesstica. A partir daí, a igreja traçará aquele que será o seu
maior objetivo entre os séculos X a XIII: buscar a sua completa autono-
mia do poder temporal e tomar a direção da sociedade.
A primeira medida que se toma em direção a essa dupla meta foi em
princípio do século X, a fundação do mosteiro de Cluny. Adotando a re-
gra beneditina, mas interpretando-a de forma própria, Cluny preconiza a
valorização dos trabalhos litúrgicos os quais acabam por absorver a quase
totalidade do tempo dos monges cluniacenses.
O trabalho manual, o qual caracteriza o carisma beneditino, foi
abandonado aos camponeses de seus senhorios, o trabalho intelectual foi
relegado a um plano inferior. Os monges cluniacenses viviam sob uma
disciplina rígida, em constante ascetismo, silêncio e isolamento. Com essa
ação, trouxeram uma marca de grande prestígio para a vida religiosa.
Pode-se dizer que Cluny constituiu de fins do século X ao início
do culo XII, a congregação religiosa mais importante da cristandade
e devido a uma série de atuações de abades notáveis, sua repercussão
foi considerável em todos os meios da sociedade. Indubitavelmente, o
monaquismo feudal está longe de se reduzir a Cluny, outras tradições es-
pirituais continuaram bem vivas, principalmente na Alemanha e na Itália.
Mas não é exagero ver nos cluniacenses a expressão mais auntica das
aspirações da sociedade feudal.
As regras de vida no mosteiro de Cluny eram rígidas: os monges
dividiam seu dia em quatro horas para a leitura dos textos sacros e de
autores eclesiásticos, três horas e meia para a liturgia e seis horas para o
trabalho. No entanto, esta última atividade passou a ser reduzida na or-
dem cluniaciense, acabando por se tornar uma atividade simbólica, sendo
o essencial do tempo consagrado à prece litúrgica e à leitura meditada da
escritura. Uma parte dos salmos os monges costumavam recitar prostra-
40
dos no chão e, duas vezes ao dia, conduziam procissão solene da basílica
até a igreja de Santa Maria onde cantavam as Vésperas.
Em Cluny havia duas missas conventuais todos os dias e a elas se
somavam as missas próprias, rezadas pelos padres. Todas as cerimônias
eram acompanhadas de incenso e aspersão de água benta, o que contri-
buía para criar um ambiente sagrado que, pelo fausto das celebrações,
deveria permitir a alma ter acesso direto ao sobrenatural.
Na opinião de André Vauchez em A espiritualidade na Idade -
dia ocidental:
(...) o significado dessa liturgia ao mesmo tempo solene e exuberante
só pode ser compreendido caso se considere a prece monástica como
uma arma. O monge se servia dela primeiramente contra si mesmo,
para combater as tentações e, sobretudo, a acedia, lassidão espiritual
que ameaça precipuamente aqueles que aspiram à perfeição. Seguindo
com virilidade o caminho estreito da observância regular, ele podia,
entretanto, evitar as armadilhas do ‘inimigo antigo, isto é, o Demônio”
(VAUCHEZ, 1995: 39).
Ao apresentar a vida religiosa como um combate constante ao “ini-
migo antigo”, a espiritualidade monástica encontrou um grande eco no
seio de uma sociedade guerreira, cuja ética profana valorizava o ideal do
combate. No contexto da espiritualidade monástica dos séculos X e XI, o
mosteiro ocupava um lugar especial uma vez que ele era um espaço para
lutar contra as foas do mal, representando ainda uma antecipão do
Paraíso, verdadeiro pedaço do céu sobre a terra.
Esse momento da história, marcado pela violência e pela inseguran-
ça, levou os homens à transposição de seus bitos e de suas preocupações
cotidianas para o campo religioso. A própria estrutura do ofício monás-
tico respondia a um desígnio de luta contra o mal, na qual os monges
buscavam com todas as suas forças e de todas as maneiras, arrancar das
mãos dos demônios as almas dos fiéis defuntos, através de muitas preces,
constantes e intensas.
A liturgia monástica representa a sublimação da compulsão agres-
siva da aristocracia leiga e guerreira, que renuncia à violência física
para lutar em outro campo de batalha: no do combate religioso. O cava-
leiro que entra no mosteiro abandona o seu cavalo e sua espada, baixa seu
escudo e não mais faz uso de seu mangual, mas passa a empunhar armas
espirituais mais eficazes que as do mundo profano.
Em grande parte, a espiritualidade do mundo feudal estava situada
sob o signo do esforço doloroso e da luta constante. O ideal da vida cristã
41
na época feudal é um estilo de vida heróico caracterizado por uma rie
de esforços prodigiosos e uma procura do recorde, como o cavaleiro que
devia buscar a superação incessante, executando novas proezas, sempre
mais perigosas que as anteriores.
Assim, dentro dos muros sagrados dos monastérios se configurava
a espera escatológica
18
fremente na mentalidade do período e se traduz
uma vontade de purificão pessoal e coletiva, pois os monges que ali
viviam oravam para salvar a sua alma e a alma de todos os outros fiéis que
porrios motivos alio podiam viver.
A entrada no mosteiro era vista como um acontecimento tão ou
mais importante que o próprio sacramento do batismo. Fazer-se monge
era deixar de lado a essência do mundo, era refutá-la em nome de algo
muito maior: o contato quase que direto com Deus.
O monge edificava-se em um novo homem, chamado a tomar o seu
lugar na Corte Celeste e ele conseguiria o estado de graça necessário
para tal processo na paz e na disciplina regular de um mosteiro. Somente
ali, isolado em meio aos muros é que o indivíduo encontrava a tranqüi-
lidade que tornava posvel a vida interior. Aos olhos desse homem, a
forma mais eficaz de transformação do mundo era sair dele: por isso era
mais fácil encontrá-lo fugindo da multidão do que se misturando a ela.
Essa vida angélica representa uma tendência natural do pensa-
mento da época: desprezar o mundo. Mas que razão tinham os homens
medievais para seguir tal tendência? Por que motivo eles abriam mão da
condição humana (porque de certa forma a regra rígida de vida dos mos-
teiros obrigava a isso) para viver as agruras da solitária vida monástica?
André Vauchez, em obra supracitada, diz o seguinte sobre o assunto:
(...) a espiritualidade monástica do século XI de certa forma projetou o
mal para fora do homem, para situá-lo nas coisas, conferindo-lhe assim
uma realidade objetiva e premente. Longe de anular o inimigo, ela apenas
reforçou o seu domínio sobre os espíritos. (...) o que podia representar o
mundo para o homem da primeira idade feudal, independentemente de toda
a influência ideológica transmitida pela cultura. Para qualquer lado que ele
se voltasse, só via ao seu redor violência e injustiça; era-lhe bem difícil
perceber valores positivos no seio da sociedade profana: poucos casamen-
tos fundados no amor, inexistência de uma cultura leiga digna desse nome,
nada de progresso técnico ou cientifico. O próprio Estado constituía menos
a forma política da cidade temporal do que uma ordem sacra, culminando
na pessoa do imperador ou do rei, ungido do Senhor e seu representante
18 A escatologia diz respeito ao processo de percepção das questões referentes à salvação do
indivíduo.
42
na terra. (...). Em um mundo cuja ordem estava fixada pela Providência e
a organização política e social era regida por modelos transcendentes, a
própria noção de temporal não tinha sentido (VAUCHEZ, 1995: 43/44).
Pela sua forma de atuação, Cluny alavancou o prestígio papal, além
de participar de forma direta na elaboração de um conceito que preconi-
zava a pacificação do ocidente, a Trégua de Deus, e de sua decorrência,
a Guerra Santa. Esses fenômenos originam-se no contexto resultante da
fragmentação do império carolíngio, isto é, o poder central está enfraque-
cido e permite abusos que são cometidos pelos cavaleiros. Contra esse
tipo de coisa, em fins do século X surge o movimento da Paz de Deus.
Os guerreiros foram pressionados a jurar sobre relíquias sagradas
que passariam a respeitar as igrejas, os membros do clero e os bens dos
humildes. Pode parecer ridículo que um simples juramento feito sobre um
monte de ossos velhos ou um pedaço de tecido esfarrapado fosse impedir
um cavaleiro treinado nas artes das armas de fazer o que ele quisesse ou
bem entendesse. Sobre o assunto informa André Vauchez, em obra supra-
citada que:
(...) a paz de Deus, (...) não evitava as guerras privadas e condenava sim-
plesmente a violência contra as pessoas desarmadas e os lugares sagrados,
(...) a paz, à qual os clérigos quiseram dar um caráter inviolável e sagrado,
por meio de juramentos sobre as relíquias, mostrou-se muitas vezes como
a expressão da violência legalizada, já que o seu estabelecimento e a sua
defesa cabiam aos únicos que teriam realmente o poder de opor-se a ela
(VAUCHEZ, 1995: 60).
Entretanto, que se salientar que a mentalidade do homem medie-
val difere de tudo o que se viu: trair um juramento feito sobre relíquias
santas significava incorrer no pecado da felonia. Segundo o imaginário
da época, quem primeiro havia cometido esse ato de traição havia sido
Lúcifer, o anjo mais belo do Senhor que um dia ousou usurpar o Seu lugar
no Parso.
A punição desse anjo: ser lançado às profundezas da terra, perder
toda a sua beleza e criar o arquétipo do mal e da imperfeição que acom-
panham a mentalidade humana até a contemporaneidade. Assim, aquele
que traísse um juramento sagrado estava automaticamente condenado ao
inferno. Que os abusos continuaram sendo cometidos, é impossível negar,
mas que havia todo um aparato ideológico e psicológico para impedir que
eles fossem cometidos, também é impossível negar.
43
Vale salientar que esse fenômeno representa a disputa entre clé-
rigos e laicos pela posse das riquezas produzidas pelos camponeses. A
igreja, no contexto da época, era um senhor feudal como qualquer outro
e se via ameaçada pela audácia e violência dos cavaleiros. Saliente-se o
fato de que ela não era contra a expropriação, mas contra a violência da
expropriação feita pelos senhores laicos. A camada clerical não era contra
a exploração do trabalho camponês, mas contra a forma como essa explo-
ração se dava.
Em princípios do século XI, institui-se a Trégua de Deus, movi-
mento que proibia o uso de armas alguns dias por semana, e em certos
momentos do calenrio litúrgico como o Advento, Quaresma, scoa
e Pentecoste. Esse movimento introduz no contexto histórico do período
dois elementos básicos: por um lado, o impor a abstinência de guerra
durante um tempo sagrado infligiu aos cavaleiros uma prova destinada
a consolidar a sua fé. Por outro lado, introduziu instrumentos destinados
a combater os violadores da Trégua de Deus: sanções eclesiásticas e a
formação de milícias de paz – declararam guerra a guerra, guerra a guerra
ruins.
Sobre esse assunto André Vauchez, na obra A espiritualidade na
Idade Média ocidental séculos VIII a XIII¸ comenta que:
(...) a trégua de Deus parece marcar uma guinada na atitude da Igreja
diante da guerra. Limitando os combates no tempo, não desacreditava o
próprio ato guerreiro, apresentado como um pecado, assim como a paixão
pelo lucro ou a luxúria? Mas a atitude dos clérigos diante da violência
continuou ambígua. Inicialmente, não hesitaram em fazer, eles próprios,
uso das armas, em certas regiões, para reprimir as violações do direito (...)
(VAUCHEZ, 1995: 61).
Esse contexto pode ser explicado dentro da ótica do cristianis-
mo guerreiro, tradicional do período medieval: a guerra é pré-condição
da paz, não existe uma sem a outra. A idéia sica da Paz e da Trégua
de Deus era a preservação da ordem religiosa, social e política desejada
pelo Senhor: é dentro desse processo que se deve entender a sua ligação
com o conceito de Guerra Santa, o qual procurava impor dentro e fora da
cristandade àquela ordem.
Integrado ao contexto mental da época, o clero sinceramente via
nos inimigos da cristandade manifestações do mal a serem aniquiladas.
Na opinião de Hilário Franco Júnior, no livro Idade Média: o nascimento
do Ocidente:
44
(...) o cristianismo guerreiro da Idade Média só pode ser considerado
contraditório por uma análise anacrônica. Se Cristo pregara o pacifismo
e a não-violência, estes apenas poderiam se tornar vitoriosos com a im-
plantação da unidade cristã. Logo, se alguém está contra ela, estambém
contra a harmonia universal, justificando-se assim o emprego da força para
sua eliminação. A guerra é precondição para a paz (FRANCO JÚNIOR,
1992:160).
A camada eclesiástica agia assim, em duplo sentido: reprimia
(Paz e Trégua de Deus) ou exportava (Cruzada) a atividade guerreira
dos laicos. Dessa maneira, ficava garantida a ordem terrena, cujo ideal
é refletir o melhor possível a ordem celeste. O clero estaria assim cum-
prindo a sua função de aproximar os dois mundos, podendo por isso
exercer domínio sobre o mundo terrestre, enquanto aguardava a chegada
do mundo celeste.
Aliás, os três ideais podem ser compreendidos quando vistos
em conjunto: a Paz de Deus chamava aos seus deveres aqueles que se
comportavam mal, os cavaleiros que se desviavam de seus caminhos. A
Trégua de Deus canalizava e limitava a violência desses mesmos cava-
leiros, impondo a eles uma prova. A Cruzada consuma a evolução do
processo oferecendo ao cavaleiro um caminho próprio rumo à salvação
que ele podia percorrer sem abandonar a sua condição de cavaleiro e,
portanto, de guerreiro.
As Cruzadas têm um papel primordial nesse contexto
19
. Elas
constavam de expedições militares empreendidas contra os inimigos da
cristandade e por isso mesmo, legitimadas pela Igreja, que concedia aos
indivíduos que participavam do processo privilégios materiais e espiri-
tuais. Entre os primeiros estavam: a suspensão do pagamento de juros e
de moratórias que autorizavam o indivíduo a pagar suas vidas após seu
retorno da frente de combate.
O movimento das Cruzadas também pode ser definido como uma
peregrinação armada rumo a Jerusalém, cujo objetivo não era apenas orar
e meditar no Santo Sepulcro, mas libertá-lo e a todos os lugares santos da
Palestina com ele, da dominação muçulmana, ou, nas palavras do perío-
do, da mancha” dos infis. Esse tipo de combate não era pecaminoso,
19 Não serão aprofundadas as informações referentes ao movimento cruzadístico porque esta não é
a intenção deste trabalho. O primeiro capítulo serve como uma ponta de lança para argumentar sobre
o contexto da religiosidade dentro da literatura medieval, especicamente o romance de cavalaria.
Maiores informações sobre o tema das Cruzadas podem ser encontradas em: FRANCO Júnior, Hilário.
As cruzadas: guerra santa entre oriente e ocidente. São Paulo: Moderna, 1999. READ, Piers Paul.
Os templários. Rio de Janeiro: Imago, 2001. DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. REZENDE Filho, Cyro. Guerra e Guerreiros na Idade Média. São
Paulo: Contexto, 1996.
45
pois o sangue derramado seria o dos infiéis. Participar de uma guerra útil
para a Igreja constitui uma satisfação penitencial, colocada em patamar de
igualdade com a esmola e a peregrinação.
Entre os motivos espirituais das cruzadas estava a principal mo-
tivação: a indulgência, que concedia perdão dos pecados, perspectiva
atraente em uma sociedade de forte religiosidade, muito mais clerical do
que civil e onde pecado e crime eram sinônimos que atormentavam os
fiéis. Some-se a isso o fato de que a morte em uma Guerra Santa salvaria
automaticamente muitas almas.
que se levar em consideração também o processo no qual se
insere a formação do pensamento em relação à Cruzada no ocidente eu-
ropeu do século X ao XIII. Nessa fase, a Europa passou por uma série
de transformações: desde o crescimento populacional até à retomada de
importância da cidade em relação ao campo, umarie de fenômenos fez
com que se criasse no Ocidente uma camada de marginalizados que não
encontrava espaço no novo tempo
20
, afinal nem todos os homens que dei-
xavam o campo conseguiram se tornar comerciantes. Dentre esta camada,
dois grupos interessam à análise: a heresia e a pobreza. O primeiro por-
que será combatido pela Cruzada, o segundo, porque fornecerá elementos
para a luta.
Em uma sociedade religiosa como a sociedade feudal, pensar dife-
rente da Igreja era cometer um pecado e um crime, o que significava se
expor a punições espirituais e corporais. Os hereges estavam dentro desse
quadro, pois negavam valores religiosos socialmente aceitos, criticando,
através da sua ação, toda a organização social construída pela Igreja além
de toda a sociedade. Sobre o assunto informa Hilário Franco Júnior, na
obra As cruzadas: guerra santa entre oriente e ocidente: “combater as
heresias era combater um elemento desagregador da sociedade feudal, era
preservá-la e, portanto, se preservar” (FRANCO JÚNIOR, 1999:17).
Um dos elementos sociais que teve participação ativa nas Cruzadas
foram os secundogênitos das famílias nobres, o que é um fenômeno com-
preensível, visto que nos costumes sucessórios do direito feudal havia a
norma da primogenitura, segundo a qual com a morte do detentor da terra,
esta passaria indivisa ao filho mais velho, para não se alterar a relação
contratual senhor-vassalo.
Aos demais filhos cabiam somente duas alternativas: ou entrar
para o serviço do primogênito ou se tornar clérigo, recebendo, portanto,
terras da Igreja. Com o surto demográfico, no entanto, tais soluções se
revelaram limitadas. O primogênito herdeiro não tinha terras suficientes
20 Sobre o assunto ver: DUBY, Georges. Senhores e camponeses. Lisboa: Teorema, 1988 e DUBY,
Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
46
para tantos irmãos... A igreja, apesar de detentora de grandes quantidades
de terra no Ocidente europeu, também não possuía as áreas necessárias
para acomodar todos aqueles nobres sem senhorio. Diante desse quadro,
a Cruzada se revelou uma ótima estratégia.
No processo que envolve a Guerra Santa existe ainda um último
elemento que merece um vislumbre maior: as motivações psicológicas
que levaram ao episódio que a História conheceu como Cruzadas. Na
mentalidade da época existem três ícones imbricados de tal forma que
acabam por formar o imaginário do período: a religiosidade, o belicismo
e o contratualismo. A importância desses elementos pode ser pressentida
na citação que segue abaixo, retirada do texto A cristandade do ocidente
medieval, de autoria de Daniel Valle Ribeiro:
(...) é preciso ter em mente, no despertar das Cruzadas, a atmosfera mental
e emocional da cristandade. A perspectiva de final dos tempos na passa-
gem do ano mil desempenhava considerável papel no impulso religioso,
mesmo após quase um século transformou cristãos em soldados. Participar
da Cruzada pareceu aos cavaleiros um ato de penitência, porque o fato
de ser uma peregrinação representava oportunidade de purgação de seus
pecados (RIBEIRO, 1998: 61).
A religiosidade representa o grande traço mental da época das Cru-
zadas, formado a partir do contato com o mundo real. O homem da época
feudal vive muito próximo e dependente da natureza, a qual se apresenta
aos seus olhos de forma desordenada e rude, sendo que ele não possui o
instrumental técnico necessário para controlá-la.
Esse fato gerou uma religiosidade concreta e palpável: o contato do
homem medieval com o meio natural que cercava apresentava-lhe uma
série de mistérios que somente poderiam ser explicados pela presença de
forças sobrenaturais as quais se tentava controlar através de rituais apro-
priados. Existiam dois tipos de forças: as do bem, as quais se procurava
agradar, visando ampliar o controle humano sobre a natureza; e as do
mal, que deveriam ser subjugadas, impedindo sua manifestação de forma
violenta (catástrofes naturais etc.).
Essa visão de mundo aplicava-se também às relações sociais entre
os indivíduos. A sociedade feudal tinha um ideal de vida onde o heróico
era valorizado. Mas ser herói nessa sociedade significava executar uma
série de proezas ascéticas, as quais aproximavam o homem de Deus. A
santidade era um processo alcançável pelo esforço. Na visão dos homens
do tempo, nos mosteiros ela era facilmente atingida. O mosteiro funciona-
va assim, como uma verdadeira fortaleza da prece, o lugar por excelência
47
onde Deus era adorado e o local onde se adquiriam pela força da oração
graças sobrenaturais que jorravam sobre toda a sociedade.
Mas também estavam disponíveis para os leigos de origem humilde
que não podiam se tornar monges outras soluções. Bastava que estes op-
tassem por uma vida de privações e necessidades, extremamente severa, o
que era um tro significativo da espiritualidade popular da Idade Média:
quanto mais violência contra o corpo, melhor. Isso compensava as defici-
ências de conhecimento e de reflexão religiosa e purificava a alma.
Incapazes de ter acesso à abstração, os leigos tenderam a transpor
para um registro emotivo os mistérios mais fundamentais da sua fé. A
partir dessas práticas, esse conjunto de pessoas analfabetas na sua quase
totalidade e que constituíam a maioria dos fiéis nesse momento histórico
teve uma concepção de Deus e criou uma relação com o divino que mere-
ce bem o nome de espiritualidade.
A espiritualidade do homem medievo resulta de um conjunto de
obrigações que ele possui para com o seu Senhor Deus: preces, esmolas,
jejuns, penitências e, sobretudo peregrinações, as longas viagens a locais
santos onde se veneravam relíquias sagradas. Esses movimentos ocupam
um duplo papel: além de serem uma forma de penitência, eram uma forma
de se ter contato com as tão desejadas relíquias.
O peregrino que se aproximasse de uma relíquia podia considerar-
se um grande felizardo e um escolhido de Deus, pois se atribuíam a elas
inúmeros poderes como, por exemplo, a cura e a proteção de seu portador.
Mesmo aqueles que não podiam possuir uma relíquia, beneficiavam-se
com o simples fato de aproximar-se do objeto sacro. Esse processo dava
ao peregrino a esperança de ser, pelo menos, tocado pela sacralidade do
objeto.
Aquele que partia em Cruzada se via exatamente na condição de
peregrino. E se ele estivesse partindo para algo mais, como lutar contra o
infiel, tornava-se um verdadeiro soldado de Cristo, partindo para libertar
o patrimônio do Senhor e a afronta por Ele sofrida. A cavalaria estava
sacralizada e a salvação do cavaleiro passava pela sua conversão, pela
sua renúncia à secularidade. Para isso ele não precisava se retirar do mun-
do: bastava se retirar da “cavalaria do século” e juntar-se à “cavalaria de
Cristo”.
Na condição de penitência que se salientar que o indivíduo pere-
grino é sempre um estrangeiro em terra estranha, um homem que procura
a espiritualidade, separando-se do mundo que ele conhece, enfrentando
devido a sua opção uma rie de dificuldades e perigos, pois caminhar
várias centenas de quilômetros até Jerusalém, nas condições da época, era
48
realmente uma verdadeira aventura. E quanto mais dificuldades a peregri-
nação impusesse, melhor, mais santa e mais purificadora ela se tornava.
que se salientar todo o conjunto de dificuldades que um pere-
grino enfrentava numa época em que as viagens eram empreendimentos
perigosos. Por isso, entende-se que esses longos deslocamentos tenham
sido considerados pelos fiéis e pelos membros do clero como um exercí-
cio ascético de grande monta e uma nobilíssima forma de penitência
21
.
Independente da prática, a idéia embutida nela tem sempre o mesmo
objetivo: a aquisição de méritos pela privação e pelo sofrimento. O ho-
mem medieval estava profundamente convencido de que só uma dolorosa
expiação podia obter a remissão dos seus pecados. O grande processo do
esforço ascético é sempre dirigido contra a carne e, em particular contra
o corpo, terreno predileto das manifestações maléficas. Por isso, o corpo
deve ser mortificado.
Além do demônio, dos infiéis, dos hereges e de quaisquer outros
inimigos da que pudessem aparecer, o medievo combate também a
si próprio, ao seu corpo, foco de tentações e ao seu espírito que deve
ser sempre fortalecido na fé. Isso resulta em uma religiosidade marcada
pelas obras, onde o crente espera deter a cólera divina, multiplicando as
práticas de devoção e de caridade. Nesse momento, os homens estão con-
vencidos de que Deus intervinha de modo direto nos destinos individuais
e coletivos. Destarte, Ele está imbuído de uma justiça imanente que retri-
bui a cada fiel segundo as suas obras.
Sobre o belicismo, é correto afirmar que ele é uma decorrência da
religiosidade do homem medieval, da interpretação de que o mundo é um
imenso campo de batalha onde estão em constante choque, as forças do
bem contra as forças do mal. Criou-se um ícone emocional, identificando
o Diabo como um vassalo de Deus caído em felonia e para que os homens
fossem vassalos fiéis do Senhor, eles deveriam estar em constante com-
bate contra o Demônio e suas legiões.
As próprias igrejas do período constituem-se em uma espécie de
fortaleza do Senhor: assim como os castelos senhoriais tinham funções
defensivas contra inimigos humanos, as igrejas tinham funções defensi-
vas contra as forças demoníacas. Nessa sociedade, clérigos e guerreiros
formam uma elite bem treinada, mas ambas com o mesmo papel: proteto-
res da sociedade feudal.
Cada um desses grupos é especialista em um tipo de combate: os
guerreiros com suas armaduras e seus cavalos, suas lanças e espadas, en-
21 Não podem ser aqui esquecidas outras práticas meritórias que faziam com que o el ganhasse
status aos olhos da Igreja do Senhor, como é o caso do jejum, prescrito pela igreja em certas épocas do
ano litúrgico e em certos dias da semana, mas que podia ser praticado com mais freqüência dependendo
da devoção do el. A esmola também era vista como um ato extremamente compensatório e meritório.
49
frentavam os invasores de suas terras; os clérigos, com suas armaduras
simbólicas e suas armas espirituais enfrentavam os inimigos da e as
forças do mal. Qualquer inimigo da cristandade era visto como parte dos
exércitos demoníacos e combatê-los era ao mesmo tempo uma obra polí-
tica e religiosa na qual todo o cristão consciente deveria se engajar.
As Cruzadas são concebidas como um exercício que faz o cristão
fiel em nome de seu Senhor logo elas conferem à ação guerreira um pa-
pel ativo na vida da Igreja, oferecendo à cavalaria um meio de participar
diretamente das graças da salvação, sem ter de renunciar ao seu estado e
aos seus valores próprios, ou seja, à sua vocação militar.
O homem medieval vive no seu dia-a-dia esse arquétipo lico:
ele está colocado no centro da luta entre o Bem e o Mal, tendo sua alma
disputada por anjos e demônios. No entanto, ele pode contar com vários
elementos de apoio para auxiliá-lo na sua luta pela salvação. Em primeiro
lugar, indispensáveis para a graça de atingir o Paraíso estão os sacramen-
tos ministrados pela igreja: a comunhão era vista como um contato mais
mágico que espiritual com Deus, os santos e as relíquias também forta-
leciam o homem, dando-lhe melhores condições para enfrentar as forças
demoníacas.
O contratualismo é um arquétipo que se origina na idéia do contrato
da reciprocidade de direitos e obrigações que nascem entre os indivídu-
os. Toda a sociedade feudal se vê dentro de uma ótica contratualista. A
desigualdade e a exploração são mascaradas por uma ideologia que tem
como pano de fundo a fé. Dentro desse contexto, os homens vivem sob
uma égide justa onde cada indivíduo ocupa um lugar e onde uma troca
equilibrada de servos: uns rezam pelo bem de todos, outros protegem o
conjunto da sociedade e outros trabalham para sustentar os que rezam e
os que protegem a sociedade.
O contratualismo medieval é um dado que ultrapassa a esfera do
social. Ele é um elemento jurídico e ideológico, central dentro da menta-
lidade feudal. E ainda vai mais longe: ele ultrapassa o nível das relações
humanas para atingir as relações com Deus. Havia um quê de barganha,
de negócio com o sobrenatural: rezar poderia atrair riquezas, peregrinar
até um santuário curaria o indivíduo de uma determinada enfermidade e
assim por diante. Esse fenômeno é um traço que marca a psicologia cole-
tiva do homem medieval, independente de sua categoria social ou de seu
grau de cultura.
As relações entre homem-Deus nesse mundo passaram a ser conce-
bidas no mesmo patamar que as relações entre um vassalo e seu senhor.
O homem recebeu de Deus a terra como feudo e em troca precisava como
50
qualquer vassalo, ser fiel ao seu Senhor e prestar a Ele serviço militar, na
luta contra os inimigos da que ameaçavam a sociedade cristã.
Da união da religiosidade, do belicismo e do contratualismo é que
surgiu o espírito da Cruzada: Deus é visto como o Senhor do mundo e dos
homens, os quais, na condição de vassalo devem Servi-lo e recuperar para
Ele as regiões que foram roubadas de Seu poder pelos infiéis, pagãos e
hereges. Além disso, a Cruzada é uma peregrinação armada, um exército
de penitentes pecadores, buscando a indulgência.
Some-se a esse fenômeno o fato de que a honra cavaleiresca al-
cançada em uma Cruzada não pode ser obtida de outra forma nem ao
longo de toda uma vida. Os indivíduos que lutam na Cruzada o fazem
em campos sagrados eivado pelo sangue de mártires da aos quais eles
querem se igualar. Lutar nesse campo reforça a obrigação do homem para
com o Senhor Deus e torna-os soldados de um general importantíssimo:
o próprio Cristo.
Ainda existe nesse contexto a lógica da libertação: a caridade fra-
terna do cristianismo é praticada na medida em que se ajudam os cristãos
oprimidos a libertarem-se dos pagãos, hereges e infiéis seja na Terra Santa,
seja na Península Ibérica, seja no sul da França ou na Europa Oriental
22
.
A lógica guerreira do Cristianismo do período previa que as lutas
em nome de Deus eram aprovadas por Ele e a partir daí desenvolvem-se
conceitos como o de Guerra Santa. Para os cristãos tratava-se de uma
guerra defensiva ou de libertação dos cristãos oprimidos; para os muçul-
manos este conceito tinha um sentido diferente: ele era uma guerra para a
expansão do Islamismo e da palavra de Alá
23
. A partir do final do século
XI, entretanto, essa lógica ficou invertida, com os cristãos atacando e os
muçulmanos se defendendo.
Grandes pensadores e filósofos da Igreja no período medieval
justificavam essa forma de pensar. O próprio Santo Agostinho havia re-
conhecido que existem certas guerras que são feitas por ordem de Deus. O
papa Gregório Magno, por sua vez, admitia como sendo justa a repressão
aos pagãos e aos hereges. A lista de nomes que defendiam essa ideologia
é longa e inclui figuras como Leão IV, João VIII e o grande Gregório
VII. Na visão do período, utilizar a cavalaria contra o “príncipe mau”,
perseguidor das igrejas, não era outra coisa senão a expressão de uma
22 As Cruzadas desenvolveram-se, geogracamente falando, nesses quatro locais: a Guerra de
Reconquista expulsou os muçulmanos da Península Ibérica; a Drang Nach Osten (Marcha para o Leste)
conquistou territórios na Europa Oriental que pertenciam aos pagãos eslavos; no sul da França ocorreu
a Cruzada Albigense, contra os heréticos catáros e em Jerusalém e arredores o grande cenário das oito
cruzadas sem nome, da Cruzada das Crianças e da Cruzada Popular. Maiores informações sobre o
assunto ver: ROPS, Daniel. A igreja nos tempos bárbaros. Porto: Livraria Tavares Martins, 1960.
23 Sobre o assunto ver: ARBEX Júnior, José. Islã: um enigma de nossa época. São Paulo:
Moderna, 1996.
51
guerra justa. A idéia básica do processo é usar das armas em benefício da
sociedade cristã e tendo como dirigente do processo a Igreja.
A idéia que perpassa todo o contexto é a de que a luta contra o ini-
migo da é uma escie de liturgia, uma atividade purificadora e por isso
mesmo, santa. Lutar pela igreja o significava ir ao combate imbuído
apenas da espada. Significava ir vestido com a armadura da fé, daí o com-
bate terminar ou com a vitória militar ou com a glória do martírio. Alain
Demurger, em seu livro Os cavaleiros de Cristo, diz que: “a guerra santa
era a guerra justa por excelência: uma obra meritória, uma obra pia, pois
se aplicava contra os inimigos da fé e da igreja cristã, valendo a palma do
martírio para aquele que nela morria (DEMURGER: 2002, 22).
Quem lutava pela era considerado um monge guerreiro, ideal
que a Igreja concretizou com as Ordens Religiosas Militares: ordens mo-
násticas que além de suas tarefas espirituais normais dedicavam-se à luta
armada. No Oriente Médio foi o caso, sobretudo dos Hospitalários e dos
Templários, cujo papel foi fundamental na manutenção de várias praças-
fortes conquistadas ou construídas pelos cruzados.
As ordens religiosas militares não são ordens de cavalaria: o Tem-
plo, o Hospital e os teutônicos, seguidos pelas ordens da Pensula Ibérica,
são ordens religiosas como Cluny e Cister, mas ordens religiosas especiais
que se dirigem primeiro à cavalaria e que respondiam às suas exigências
religiosas. Pode-se dizer que eles eram religiosos de tipo militar e que não
tem vida original senão no contexto da Idade Média ocidental, onde têm
suas raízes.
Na opinião de Daniel Valle Ribeiro, em obra supracitada, as ordens
religioso-militares constituem-se no perfeito encontro da cavalaria como
monaquismo e na conciliação a partir desse fenômeno, das armas com a
disciplina do claustro. Ainda segundo o mesmo autor, esses exércitos de
cavaleiros que viviam segundo os ideais monásticos eram os responsáveis
pela proteção dos territórios conquistados junto aos infiéis e pela protão
dos peregrinos.
Na Europa eslava destacaram-se os Cavaleiros Teutônicos, que de-
sempenharam importante papel na submissão e conversão dos prussianos
e dos letônios ao Cristianismo. Na Península Ibérica deixaram sua marca
vários grupos: as Ordens de Santiago, Calatrava, Avis e Alcântara que,
além de participar na Guerra de Reconquista colaboraram com as ativida-
des colonizadoras das áreas antes ocupadas pelos muçulmanos, permitindo
que elas fossem definitivamente reintegradas ao mundo cristão.
No contexto que se seguiu às Cruzadas, a Igreja também obteve
alguns sucessos, por exemplo, a igreja do mosteiro de Cluny foi constru-
ída graças aos recursos obtidos na Guerra Santa contra os muçulmanos
52
ibéricos e que foram doados aos monges pelos reis castelhanos. Indepen-
dente do sucesso financeiro e até mesmo maior do que ele vale ressaltar
o principal acerto ideológico do movimento cruzadístico: a idéia de lutar
pela libertação de Jerusalém e dos lugares santos conferiu à ação guerrei-
ra um papel ativo na vida da igreja, oferecendo à cavalaria um meio de
participar diretamente das graças da salvação, sem ter que renunciar ao
seu estado e aos seus valores próprios.
Fortalecido pelo sucesso de Cluny e pelos resultados da Paz e da
Trégua de Deus, o papa Nicolau II começou uma reforma que marca-
ria época na história da igreja católica ocidental. Seu primeiro passo foi
regulamentar, em 1059, a eleição do pontífice. Ficou estabelecido por
sua deliberação que esse processo seria direito reservado aos cardeais.
Eliminaram-se assim, as constantes intervenções da nobreza da cidade de
Roma e especialmente do imperador.
A reforma eclesiástica promovida por Nicolau II também se pre-
ocupou em interferir no nicolaísmo, isto é, na vida conjugal dos padres.
Padres que se encontravam vivendo com mulheres foram proibidos de re-
zar a missa, ficando excomungados do seio da igreja e exonerados de suas
funções. Além disso, se proibiu que clérigos recebessem, sob qualquer
condição, igrejas do poderio laico. Ainda segundo a reforma dirigida por
Nicolau II, era obrigatório o pagamento do dízimo sendo que este deveria
ficar à disposição dos bispos.
A política de moralização e independência do poder espiritual em
relação ao temporal continuou com Gregório VII, o qual foi papa entre os
anos de 1073 a 1085. Gregório manteve levantadas as armas que lutavam
contra o nicolaísmo, além de empunhar outras que seriam dirigidas àque-
les que praticavam a simonia, ou a venda de bens e funções eclesiásticas
e espirituais. Sobre o assunto, informa Daniel Valle Ribeiro, na obra A
Cristandade do Ocidente Medieval que:
Duas causas têm sido comumente apontadas para explicar a reforma gre-
goriana: a simonia (venda de cargos eclesiásticos e de sacramentos) e o
nicolaísmo (desrespeito às regras do celibato). (...) entre os membros do
baixo clero padres de hierarquia inferior, quase sempre recrutados no
meio rural, normalmente incultos e despreparados para o exercício do
sacerdócio -, o casamento e o concubinato estavam amplamente difundi-
dos, em flagrante desrespeito à castidade que lhes era imposta (RIBEIRO,
1998: 56).
Foi Gregório VII quem proibiu a outorga de ofícios eclesiásticos
por laicos, coisa que era comum, devido a uma herança histórica que
53
tinha raízes no Império Carolíngio, quebrando assim uma antiga tradição
do Ocidente o que prejudicava o poder temporal e desencadeou a ques-
tão das investiduras. As disputas entre poder eclesiástico e poder laico
mantiveram-se em aberto por um largo período de tempo.
Questão importante dentro da Reforma Gregoriana foi à concepção
das Cruzadas. Na visão do papa, elas deveriam funcionar não só como um
elemento de pacificação interna da Europa calica, mas especialmente
como um fenômeno aglutinador da cristandade sob o comando da igreja.
Daí acenar-se aos seus participantes com as vantagens da remissão dos
pecados e da suspensão das dívidas, além da proteção eclesiástica sobre
suas famílias e bens.
Nas palavras de Alain Demurger, em sua obra Os cavaleiros de
Cristo, “os gregorianos queriam reformar o conjunto da sociedade a fim
de que todos, qualquer que fosse seu estado, clérigo ou leigo, agissem e
se comportassem em conformidade com os princípios da igreja, intérprete
da vontade divina” (DEMURGER, 2002: 19)
A idéia contida por detrás desse aspecto era simples: colocar a cris-
tandade sob o controle da sociedade clerical e alargar a área de atuação
eclesiástica pela submissão dos infiéis (cruzadas no Oriente Médio e Pe-
nínsula Ibérica), dos cismáticos (cruzada contra Bizâncio) e dos hereges.
Em relação aos clérigos, coube ao papa Gregório VII atuar no sen-
tido de verdadeira sentinela dos mesmos. Sobre o assunto, nos informa
Hilário Franco Júnior, em sua obra Idade Média: o Nascimento do Oci-
dente: “(...) em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria
ou fiscaliza universidades, canoniza os santos, institui dioceses, nomeia
para todas as funções, reconhece novas ordens religiosas (FRANCO -
NIOR, 1992: 119).
A situação em relação aos laicos não era diferente. Nas palavras do
mesmo autor:
Em relação aos laicos, julga em vários assuntos, cobra o dízimo, deter-
mina a vida sexual (casamento, abstinências), regulamenta a atividade
profissional (trabalhos lícitos e ilícitos), estabelece o comportamento so-
cial (roupas, palavras e atitudes), estipula os valores culturais (FRANCO
JÙNIOR, 1992: 120).
Cada vez mais se percebe a tendência da igreja em se afirmar, do
século XIII em diante como uma instituição cada vez mais sacerdotal e
monárquica. Entretanto, não seria nem com Nicolau II, nem com Gregó-
rio VII que a igreja atingiria seu poderio máximo de força e prestígio. O
momento áureo da igreja no mundo ocidental, durante a Idade Média, se
54
deu com Inocêncio III
24
, papa entre os anos de 1198 a 1216: com ele a
igreja atingiu sua completa autonomia, se bem que talvez um pouco tarde
demais, permitindo que ocorressem inúmeras críticas ao envolvimento
eclesiástico com interesses políticos e materiais.
Essas críticas assumiam forma religiosa, coerente com a psicologia
coletiva da época, centrada na espiritualidade. Tais problemas refletiam
também, as transformações sócio-econômicas da Idade Média Central.
Por esses motivos, as críticas à igreja assumiam um caráter popular, tanto
as que ficaram na ortodoxia, ou seja, não se voltaram contra a igreja (cis-
tercienses, franciscanos, dominicanos) quanto as que caíram na heresia
(cátaros, valdenses e fraticelli
25
).
Os cistercienses eram um grupo de monges que procurava levar
uma vida simples, suas igrejas eram despojadas de luxo e eles eram res-
ponsáveis pelo cultivo direto de suas terras. Para realizarem este trabalho,
procuravam locais isolados e agrestes, tornando-os produtivos. Perten-
ciam a este grupo, normalmente, pessoas de origem nobre, mas seu estilo
de vida ganhava conotação popular ao abandonar a ociosidade, caracte-
rística da nobreza, e adotar um estilo de vida frugal. Cister ganhou fama
e fez sucesso exatamente por isso.
Esse sucesso foi à perdição da ordem: na medida em que ela ia
crescendo e ganhando adeptos, abandonava seus princípios de pobreza
e penitência. Estes últimos foram recuperados e levados adiante por um
burguês da cidade de Assis, interior da Itália, cujo nome era Francisco.
Oriundo de uma família rica e nascido em 1181, ele decidiu aban-
donar a vida confortável para conduzir a igreja à primitiva pureza. Sua
ação consistia em imitar o modo de viver dos tempos apostólicos, que
agora funcionavam como fonte de inspiração para os novos ideais da cris-
tandade: pobreza, vida errante e pregação. Nesse ponto, a nova ordem
que despontava encontrou-se em uma encruzilhada: defendia o ideal de
pobreza apostólica, contrário ao que praticava a alta hierarquia eclesi-
ástica e, ao mesmo tempo mantinha-se fiel à ortodoxia. Várias vezes os
franciscanos estiveram perto da heresia, devido a sua postura e às críticas
que faziam à Igreja.
Francisco de Assis não procurava negar as riquezas de forma geral,
mas procurava criar mecanismos para que uma classe enriquecida aplacas-
se a sua consciência através de esmolas. Por esse motivo, os beneficiários
do processo não podiam ser monges, mas laicos que tendo abraçado a
24 O programa deste pontíce compreendia basicamente dois pontos, quais sejam: promover uma
cruzada para libertar Jerusalém que se encontrava nas mãos dos muçulmanos, e lutar contra a heresia
que se tornava um grande problema no sul da França, os cátaros.
25 Palavra italiana que signica irmãozinho.
55
pobreza continuavam a viver nas cidades e a pregar o Evangelho. Daí a
grande importância e o sucesso dos franciscanos.
São Domingos nasceu como outra ordem mendicante, desejo-
sa de pregar a verdade da e combater a heresia. Os dominicanos se
caracterizaram por uma prática de estudo sistemática, que levou ao seu
desenvolvimento intelectual. Dedicados ao estudo da filosofia, da teolo-
gia e das questões de dogma, instalaram cursos dessas áreas em cidades
universitárias como Paris e Bolonha. No entanto, os dominicanos não
adotaram uma pobreza tão rigorosa e se envolveram numa luta mais direta
contra as heresias, tanto que em 1231 o papa Gregório IX lhes entregava
a direção da Inquisição.
Embora fossem encontrados também no meio rural (área de pre-
dominância dos beneditinos) os mendicantes foram os grandes apóstolos
das cidades e tiveram destacado papel no mundo urbano dos séculos XIII-
XVI, o qual estava em plena expansão. Esses monges também possuíam
um caráter missionário, que leva asginas da hisria a encontrá-los em
diversas regiões dominadas pelo islamismo, ou em outros locais distantes
do eixo geograficamente dominado por Roma. Nas ordens mendicantes
e, principalmente nos dominicanos, a Igreja encontraria exímios aliados
para combater as heresias e para angariar adeptos.
As novas preocupões espirituais também tiveram interpretações
heréticas. Entre os séculos XII e XIII, pelo menos dois movimentos he-
réticos tiveram especial relevo: os valdenses e os cátaros. Os primeiros
tiraram seu nome de Pedro Valdo, um comerciante de Lyon, cidade fran-
cesa. Os segundos também eram conhecidos por albigenses, devido a sua
origem, a cidade de Albi, no sul da França.
A seita valdense, ou dos pobres de Lyon, teve origem quando Pedro
Valdo (ou Valdes) mandou traduzir para o vernáculo, as Sagradas Escri-
turas, a fim de melhor compreender o texto bíblico. Disposto a seguir os
conselhos dados pelo Rei dos Reis, Valdo deixou sua esposa e distribuiu
seus bens aos pobres. Essa atitude lhe garantiu alguns seguidores, os quais
passaram a pregar a pobreza apostólica e a penitência.
Os valdenses eram ortodoxos, mas acabaram caindo na heresia ao
considerarem a blia como a única fonte de autoridade, negando assim
a supremacia papal. Como não tivessem permissão para executar prega-
ções, foram expulsos da cidade de Lyon pelo arcebispo local. Diante de
sua insistência em acreditar na Bíblia como a fonte suprema da autoridade
religiosa, acabaram sendo excomungados pela igreja, fato que ocorreu em
1184, no Concílio de Verona. Segundo Daniel Valle Ribeiro, na obra A
cristandade do ocidente medieval, após esse fato os valdenses:
56
Permaneceram na clandestinidade, dedicaram-se à pregação ambulante e
seguiram cumprindo seu voto de pobreza, castidade e obediência aos supe-
riores. Cada vez mais afastados da igreja, admitiam apenas os sacramentos
do batismo, da eucaristia e da penitência. Dividiram-se em dois grupos: o
francês, circunscrito ao Languedoc; e o grupo italiano (os humildes), que
recusou a validade dos sacramentos ministrados por sacerdotes católicos e
criou culto próprio (RIBEIRO, 1998: 77).
A heresia dos albigenses, os taros, foi de maior profundidade e
extensão. A partir do século XI, o sul da França (Languedoc), a Alemanha
ocidental e o norte da Itália assistiram ao crescimento de grupos anti-
clericais. A raiz desse processo deve ser buscada nas crenças orientais,
principalmente no maniqueísmo. No ocidente, tais grupos encontraram
a contrapartida para seus questionamentos dentro da própria igreja, uma
vez que os membros da cúpula eclesiástica viviam uma vida de opulência
e fartura.
Estavam dadas as condições para que surgisse um forte sentimento
de oposição à igreja hierárquica e sacramental e para que o desejo dos
leigos de participar mais efetivamente da vida eclesial se manifestasse de
forma mais veemente. O apelo à pobreza traduzia uma reação anticlerical
e anti-sacramental, uma espécie de condenação aos abusos e desmandos
cometidos pelo alto clero. Os cátaros conquistaram muitos adeptos devido
a essa postura, principalmente entre cavaleiros, comerciantes e artesãos.
A base da doutrina dos albigenses pautava-se na existência de um
duplo princípio eterno, o Bem e o Mal, forças que estão em constante in-
tercurso de luta e que têm o mundo por palco dessa disputa de poder. Tais
princípios são igualmente poderosos sendo que o primeiro corresponde ao
espírito e o segundo, à matéria.
O principio do Bem é criador do mundo espiritual; o principio do
Mal criador do mundo material, por isso ele representa o anjo caído, o
filho rebelde do Pai Celestial. Partindo desse pressuposto, eles identifi-
cavam todas as manifestações materiais, inclusive a igreja católica, com
criações satânicas. Opunham-se dessa maneira tanto à sociedade feudo-
clerical quanto à sociedade burguesa em formação.
O ideal de vida cátaro buscava a restauração de um mundo que
deveria estar em contato direto com o Criador, além de preconizar que
Cristo era um anjo que salvou a humanidade pelos seus ensinamentos,
não pela sua Paixão. Destarte, o catarismo nega a Redenção sustentada
pela igreja. Além disso, constituem base da doutrina tara: a renúncia
aos bens do mundo, o jejum e a abstinência de certos alimentos.
57
Os fiéis compreendiam a existência de dois grupos: os “perfeitos”,
ou “puros” e os “crentes” ou “adeptos”. Os “puros” constituíam-se de
uma minoria ordenada em cerimônia de iniciação, ou batismo especial.
Sua regra de exigia deles uma vida de moral ilibada e rigorosa. A
castidade era absoluta, e alimentar-se de carnes era ato proibido. os
“adeptos” gozavam de uma liberdade de vida maior, podendo usufruir os
bens mundanos.
A heresia cátara conquistou o sul da França, tendo Toulouse como
centro de comando. Em 1215, o Concílio de Latrão condenou os albi-
genses à condição de hereges, reafirmando a doutrina dos sacramentos,
a exclusividade dos sacerdotes em ministrá-los e confirmando a validade
do casamento. Na tentativa de erradicar a heresia, o Concílio encarregou-
se de organizar a repressão contra os cátaros.
Para debelar de vez com a heresia, o papa Inocêncio III organizou
uma cruzada contra os albigenses, a qual recebeu o nome de Cruzada
Albigense. Coube a Inocêncio III encontrar a solução final para o impas-
se, o que fez favorecendo o reingresso nos braços da igreja aos hereges
dispostos a capitular de suas crenças. Em outros termos, a igreja abria
as portas à religiosidade popular, desde que ela se mantivesse em estrito
respeito à ortodoxia.
Várias causas podem ser apontadas como explicação dessas mani-
festações heréticas. O despreparo e a atuação negligente do clero geravam
uma crescente reação contra o sistema eclesiástico, fazendo o clero cair
em descrédito, bem como a própria igreja. O clero paroquial tinha uma
vida de costumes dissolutos e era condenado por isso, além de ser recri-
minado pelo atendimento negligente que dava aos fiéis. O episcopado,
por sua vez, estava pouco atento às necessidades espirituais do povo.
Os sacerdotes, ignorantes e despreparados, garantiam a sua subsis-
tência exercendo atividades extras, sendo que a ausência de seminários que
preparassem corretamente os jovens que abraçavam a carreira eclesiástica
fazia com que o clero se equiparasse aos seus paroquianos. Decorrente
desse processo nascia às carências espirituais e a inconsistência teológica
dos sacerdotes, o que dava margem para o surgimento das heresias.
De qualquer forma, o pretendido controle eclesiástico sobre o
conjunto da sociedade sofria críticas crescentemente violentas, tornan-
do problemática a condução dos negócios do clero e gerando divisões
internas dentro da igreja, o que pode ser exemplificado pelo choque en-
volvendo mendicantes e monges seculares.
Os mendicantes criticavam os costumes mundanos dos monges se-
culares, os quais, por sua vez, acusavam os mendicantes de incitarem
os fiéis contra a igreja. O ponto de partida dessa controvérsia estava na
58
bula papal de 1281, que concedia aos mendicantes o direito de pregar
e confessar em toda parte, diminuindo conseqüentemente o prestígio, a
clientela e os rendimentos dos seculares. Até entre dominicanos e francis-
canos ocorreram alguns conflitos, uma vez que ambos dividiam a mesma
clientela urbana.
No final da Idade Média, a igreja se viu mais uma vez envolvida
em um conflito antigo, referente à disputa entre poder espiritual e poder
temporal. No despertar doculo XIV, o papado, cujo pontífice na época
era Bonifácio VIII, encontrou um grande adversário na figura do rei da
França, Filipe, o Belo.
Bonifácio VIII era conhecido por seu grande conhecimento na área
de Direito Canônico e sua concepção acerca do poder papal explica as di-
ficuldades que teve em se relacionar com a esfera do poder civil. Quando
da sua eleição para o cargo de Sumo Pontífice, seguiu as prerrogativas de
Gregório VII e Inocêncio III. Parafraseando Daniel Valle Ribeiro, o cará-
ter do papa era enérgico e autoritário, sempre defendendo com uma certa
intransigência os ideais de supremacia do poder religioso, aplicando com
o rigor de um jurista as regras da teocracia pontifícia.
Segundo a tese defendida por ele, o papa, enquanto vigário de Cris-
to, detém a espada espiritual e a espada temporal. Essa tese, entretanto,
não servia mais ao esrito do tempo em que Bonifácio sentava-se no
trono pontifício. Aliás, o papa não percebeu as mudanças que estavam
ocorrendo no período e não soube avaliar bem o seu adversário, Filipe,
o Belo. Ambas as figuras envolvidas na querela eram de temperamento
forte e dominador, o que impedia o entendimento entre os dois. Ambos
se colocavam na posição de guardiões e defensores de sua autoridade
e tinham a noção de que o seu poder era absoluto em relação ao de seu
rival.
O momento histórico em que a disputa entre o Sumo Pontífice e
o Rei da Fraa se desenrolava favorecia a realeza. O desenvolvimento
intelectual de então privilegiava a esfera do Direito Romano, favovel
aos assuntos de Estado. Era o tempo do surgimento dos Estados Nacio-
nais Modernos, oriundos da desintegração do feudalismo e que contavam
com o apoio da burguesia emergente. E nesse contexto, a França aparecia
como o mais organizado de todos os Estados do período.
Bonifácio VIII proibiu que eclesiásticos pagassem taxas sobre os
bens da igreja sem autorização da Santa e a represália de Filipe, o
Belo, por sua vez, foi contundente: o rei impediu a saída de ouro e prata
da França para a Romana, além de determinar a prisão de um bispo,
que ficou sob a custódia do arcebispo de Narbonne. Bonifácio reagiu pu-
blicando uma bula pela qual ficavam expressos os direitos absolutos do
59
papado. A bula ressaltava a unidade da Igreja, fora da qual não existe
salvação, e sustentava que todos os cristãos estão sujeitos ao virio de
Cristo, sucessor de Pedro, ou o papa.
Seguindo a mesma linha de pensamento, Bonifácio VIII lançou
outra bula, expressão máxima da teocracia pontifícia e que proclamava
o papado a única fonte da autoridade conferida por Deus. O papa teria
assim em suas mãos, um duplo poder: o espiritual e o temporal, sendo que
o primeiro é manejado pela igreja e o segundo pelos monarcas em bene-
fício da igreja e da comunidade cristã, de acordo com a concessão papal.
Essa linha de pensamento percebe o poder do rei como um mero poder de
execução diante da autoridade do papa.
A resposta de Filipe, o Belo, a essa linha de pensamento de Boni-
fácio VIII foi extremamente violenta. O rei francês acusou o pontífice
romano de ter sido eleito papa de forma ilegítima. A disputa terminou
com a prisão do papa, que estava visitando sua terra natal, Agnani (Itália)
e o início do que a história conheceu como cativeiro de Avignon, quando
da existência de dois papas no ocidente, um na França e outro em Roma.
Segundo Daniel Valle Ribeiro, na obra A cristandade do ocidente
medieval:
A derrota de Bonifácio VIII marcou o início do enfraquecimento do poder
da igreja, prevalecendo, a partir daí, o particularismo local sobre o espí-
rito de solidariedade a Roma, mesmo entre os clérigos. A Sé Apostólica
transferiu-se para o sul da França: é o papado de Avignon (1309-1377).
Numerosas causas explicam a saída da sede papal da Itália, entre as quais
estão as constantes perturbações políticas na Península Itálica, as insurrei-
ções contra o papa e a busca de segurança. O estabelecimento de pontífices
em Avignon deixou o papado livre das pressões da nobreza romana e das
flutuações da política italiana, mas escapou à influência do soberano fran-
cês. A escolha do local revela lucidez e habilidade política, já que Avignon
se situava no cruzamento das rotas terrestres e fluviais do norte da Europa
e da bacia do Mediterrâneo, oferecendo, assim, ponto central à cristandade
do Ocidente (RIBEIRO, 1998: 84).
Há que se salientar que ao lado da França e da Inglaterra, o papado
era uma das monarquias centralizadas na Idade Média. Mas esse processo
não era resultado do poder temporal do papa e sim da autoridade que ele
exercia sobre os bispos e principalmente pelo fato de o papado ter absor-
vido os recursos financeiros da igreja. A saída da corte papal de Roma
e seu “exílio” em Avignon foi prejudicial à Igreja, porque a cristandade
perdeu seu centro espiritual.
60
O Cisma do Ocidente, com a presença de dois papas, um em Roma
e outro em Avignon demonstra essa fraqueza e é um marco no processo
de declínio da igreja medieval. Até o seu advento, o corpo administrativo
da Cúria romana recebia subsídios de praticamente toda a Europa, além
de supervisionar as nomeações para grandes benefícios eclesiásticos, bis-
pados e abadias. Essa situação alterou-se com a dificuldade que a igreja
passou a ter em cobrar seus tributos, uma vez que a existência de dois
papas enfraquecia a posição de ambos. Mesmo restaurada a unidade, o
Cativeiro de Avignon deixou uma marca indelével no corpo da cristan-
dade ocidental. Acima de tudo, o Cisma do Ocidente seria a fonte de
inspiração para novas cisões no corpo eclesiástico.
A crise do papado e a emergência do nacionalismo foram elementos
que enfraqueceram de forma única o poder teocrático de caráter universal
representado pelo papa. Os monarcas souberam muito bem como valer-se
da crise religiosa para limitar a possibilidade de atuação do poder espi-
ritual nos negócios públicos e estabelecer o poder dos reis na gerência
dos negócios de Estado. Finalizando o processo, a laicização da cultura
inaugurou uma nova idéia de cristandade em que o poder temporal e o re-
ligioso ficavam separados, porém esse assunto será debatido no capítulo
que segue.
61
CAPÍTULO II
O ROMANCE DE CAVALARIA NA HISTORIOGRAFIA
LITERÁRIA
26
Por simplista que pareça, o estilo é a expressão.
É a marca pessoal de um artista, de um movimento literário,
de uma época ou de uma classe. Exprimir é transpor, por meio da palavra,
da cor, da massa, do som, a realidade sentida, pensada, imaginada.
Segismundo Spina
Algumas reflexões preliminares são necessárias ao estudioso que
busca fazer a análise historiográfica de qualquer fenômeno literário. É ne-
cessário que ele estabeleça os pontos de vista que tornam claro o conjunto
de valores que expressam da melhor forma possível àquilo que passará
para o cânone literário e que acaba sendo considerado literatura.
Alguns estudiosos põem em dúvida a própria validade de uma his-
tória da literatura ou, o que significa praticamente o mesmo, reduzem-na
apenas a um amontoado cronológico de estilos, autores e obras, a uma
organização de fatores necessários ao entendimento das obras, mas que
nada teriam relacionado ao valor intrínseco das mesmas. Dentro dessa
perspectiva, os valores estéticos questionam a história.
Não se trata aqui de negar a permanência de valores literários, os
quais chegam a desafiar as infidelidades que a tradução e a interpretação
de algumas obras sofrem, devido ao fato de terem sido originalmente pro-
duzidas em línguas e/ou instituições já mortas há muito tempo. Livros que
sobrevivem ao tempo e ao espaço têm uma história muito complicada,
que conclama aqueles que se debruçam sobre eles a acompanhar a sua
gestação, a sua redação e o momento em que o público toma contato com
eles.
Além disso, que se analisarem as apreciações que se foram im-
pondo através dos tempos a estas obras mais antigas, e, muitas vezes,
estas apreciações dão a impressão de serem desprovidas de essência ou
26 Esse capítulo foi publicado originalmente no livro Experiências e Ensaios no Ensino de História:
Histotiograa, Cultura e Gênero, publicado pela Universidade de Passo Fundo em 2006 e organizado
pelo professor Astor Antonio Diehl. MEDEIROS, Márcia Maria de. O romance de cavalaria na
historiograa literária. In: DIEHL, Astor Antonio. Experiências e Ensaios no Ensino de História:
Histotiograa, Cultura e Gênero. Passo Fundo: EDIUPF, 2006, p 145-165.
62
são realizadas sem uma adequação coerente. Seguir essa tendência marca
claramente o grande papel da crítica, qual seja, a desconstrução sem uma
metodologia fixa e amarrada (a cada objeto um olhar), mas que permita
observar o não-dito oculto em cada texto literário.
Na opinião de Antonio José Saraiva, na obra História da literatura
portuguesa:
(...) esta crítica já é histórica(...) entra já em linha de conta com uma conje-
tural histórica do livro, desde as suas fontes e elaboração até a apreciação
predominante entre os próprios contemporâneos do crítico. (...) a crítica de
um livro antigo não pode atingir a sua estrutura formal sem compreender
a pluralidade histórica a partir da qual ele foi elaborado e que já não deve
considerar inteiramente informe, ou neutra (...) (SARAIVA, s/d: 9).
Desse fenômeno não como escapar: a literatura seja como fic-
ção, seja como estilo, esboça-se no texto das mais elementares relações
humanas; as mais simples e constantes transformações das coisas e dos
valores sociais estimulam a transformação dos significados e, a partir des-
se prisma, até anedotas passam a conter juízos perfeitos. Toda a ficção
literária se origina dessa translação nos significados das palavras que se
referem ao humano, às necessidades dos homens e dos movimentos so-
ciais, ao espaço em que a sociedade se organiza, às relações sociais que se
estabelecem entre os pequenos e os grandes grupos humanos.
Levando-se em conta esse processo, percebe-se que a descoberta
desse aspecto cotidiano dentro da literatura e (pode-se ir mais longe) den-
tro da historiografia literária é uma descoberta recente. Mostrar como o
cotidiano vivido é representado na imaginação dos homens de uma época
faz com que esse tipo de análise se inscreva no campo do imaginário e da
mentalidade coletiva.
Saber como um grupo humano vivia é um fenômeno importante...
essa é a função da história. Mas tão, ou mais importante que isso, é sa-
ber como eles pensavam, que conjunto de valores preservavam, como
representavam a realidade existencial. Nesse quadro estão inscritos os
seus sonhos, os seus ideais de vida, as suas ideologias, tudo aquilo que a
realidade estéril impede de ter existência.
Sobre o assunto diz José Roberto Mello, na obra O cotidiano no
imaginário medieval que:
(...) nós vivemos em função das aspirações, das motivações e ideais que
propomos, de nosso modo de ver a vida e o mundo.
63
De toda a documentação ao alcance do historiador, um dos melhores
segmentos para a alise de tais fenômenos é o da literatura (MELLO,
1992: 8).
Cada sociedade humana é da mesma forma que suas realidades
econômicas, políticas e sociais, um produto de suas angústias, de suas
fantasias e de seus sonhos, projetados nas utopias que ela elabora e que
encontram vida e forma nas linhas que seus escritores garatujam. Essas
utopias podem servir a vários senhores desde sonhos de liberdade até ide-
ais totalirios sem, porém, identificarem-se com qualquer senhor, pois
elas representam o maior exercício possível de liberdade humana.
A utopia é a negação de um presente medíocre e sufocante, é o
espaço de um futuro sem limites e sem fronteiras, sustentado unicamente
pelo desejo. A utopia representa um sonho que apazigua as consciências
mais rebeldes, regressando à perfeição das origens, marcando o reencontro
do homem consigo mesmo. Toda a utopia é marcadamente globalizan-
te, abarcando todos os aspectos do sentir, do agir e do pensar humanos.
Especificamente no caso das utopias medievais, existe uma diferença la-
tente, qual seja ela, a presença acentuada de componentes míticos.
Sobre o mito, informa Hilário Franco Júnior em sua obra As utopias
medievais, que:
O mito [é] um relato cujos componentes essenciais estão na esfera do sa-
grado e cujos objetivos o as origens e/ou características de fenômenos
naturais e sociais importantes para uma dada sociedade, levada por isso a
especular sobre eles. (...) forma de conhecimento que equaciona as gran-
des questões espirituais e materiais da sociedade (FRANCO JÚNIOR,
1992:11).
Esse fenômeno é uma manifestação do imaginário que está his-
toricamente presente em todas as sociedades em todas as épocas, mas
é manifestamente mais explícita e clara muito mais sentida e vivida
nas sociedades arcaicas, nas quais a razão (outra maneira de conhe-
cimento e de relação com cosmo e o social), ocupa um espaço muito
mais restrito, ainda que presente dentro do próprio mito, pois a sua
forma não deixa de demonstrar um sentido racional para aquela reali-
dade onde ela se constitui.
Seguindo esse pressuposto percebe-se que ao lado dessa projão
mítica, outros conjuntos de valores vão se formando. A esse conjunto soe
chamar-se ideologia, a qual é uma organização consciente e elaborada,
segmentada socialmente e que expressa certas necessidades e expecta-
64
tivas dos indivíduos que a criam, adotam e propagam. A ideologia não
passa de um sistema de representação que constrói uma imagem da socie-
dade carregada de fortes cores.
Essa imagem cria o arquétipo que uma sociedade terá em deter-
minada época sobre bem e mal, justiça e injustiça, amor e ódio, razão e
irracionalidade; enfim todos os elementos que marcam a conduta huma-
na em certos períodos e sobre certos aspectos. Cada ideologia se impõe
na medida em que reprime as demais, sendo esse fenômeno uma pré-
condição para a mudança dentro do curso da história que ela considera
necessária e em condições de realizar.
A Távola Redonda tem na sua criação e elaboração várias pince-
ladas de tradições míticas diferenciadas, como a céltica, por exemplo.
Sobre o assunto diz Jean Pierre Foucher na obra Romances da Távola
Redonda:
A mais geral é a da Mesa dos Festins’. Em determinadas regiões e em
determinadas ocasiões, essa mesa podia justamente ter forma redonda, a
acreditar-se no testemunho de um viajante grego, Posidonios, que por vol-
ta de 50 a. C., visitou a Gália (mas não a Bretanha insular) (FOUCHER,
1998: 16).
Relacionar com tradições míticas a invenção da Távola Redonda
não significa ceder a especulações desnorteadas. O papel dos símbolos
míticos dentro da literatura que dá origem à matéria de Bretanha é extre-
mamente importante. A arte decorativa irlandesa é prenhe de símbolos
solares, como por exemplo, a cruz céltica (uma cruz imposta sobre um
círculo). Destarte, Artur poderia muito bem ser um mítico herói solar,
inventor davola Redonda, outrombolo solar, por sua vez.
Daí os cavaleiros da Távola serem como raios de sol que iluminam
o mundo e dispersam as trevas, constituindo-se em ideais heróicos que
abonam e beneficiam a cavalaria. A Távola significaria o mundo redondo
e a circunstância dos elementos do firmamento. Essa interpretação, de
cunho platônico não causa surpresa, pois Platão havia afirmado que o
mundo é esférico e circular.
Na opinião dessa corrente platonista, a esfera é a forma mais perfei-
ta, pois todas as distâncias desde o centro até suas extremidades são iguais.
Da mesma forma a alma, colocada enquanto centro do corpo estende-se
por todas as direções dele de forma perfeita e acaba envolvendo-o for-
mando assim, junto com o universo, um céu circular, único.
Unindo a ordenação mítica e a ordenação ideológica, tem-se um
sentimento utópico que marcará a expressão dos desejos coletivos de
65
perfeição de uma sociedade, quase sempre retornando a uma situação
primordial da humanidade. Essa imaginação utópica é um elemento
produzido pela história, mas que a nega ao mesmo tempo. Desempenha,
assim, o papel de uma derradeira ideologia histórica, porém nega ser uma
ideologia. A utopia nascida desse contexto é nostálgica, busca a harmonia
edênica do Paraíso, sendo, portanto um mito projetado no futuro, com os
olhos voltados ao passado.
O mito trata de fatos acontecidos em um tempo anterior, a ideologia
de fatos que ocorrem no presente e que devem ser modificados, a utopia
trata do tempo por vir, do futuro. Outros traços ainda marcam a utopia
e a ideologia: uma é sempre coletiva; a outra, segmentada, a primeira é
freqüentemente fruto do inconsciente, a segunda é sempre consciente. A
utopia nasce do sentimento e da esperança; a ideologia do pensamento e
da ação, uma é harmônica em suas várias expressões, a outra apresenta
oposição marcada entre suas manifestações. O sucesso de uma e de outra,
entretanto, depende do mesmo fator: a quantidade e enraizamento do ma-
terial mítico nelas contido.
A tradição épica da literatura medieval carrega em si muito dessa
proporção mítica, simultaneamente histórica e lendária. Os heis dessa
tradição tornam-se fabulosos, descendendo de um pai que não o é menos.
O rei Artur exemplifica esse processo: filho de Uterpendragon (Uter-ca-
beça-de-dragão) é um personagem mitológico que se designa como o rei
dos mistérios revelados, grande senhor da guerra de façanhas inenarrá-
veis, dizimador de exércitos e castelos.
A representação desse Artur mitológico é enaltecida pela forma
sempre presente do Artur histórico, provavelmente um caudilho que au-
xiliou nas batalhas contra os romanos nos idos anos dos séculos V ou VI e
que serviu como fonte de inspiração para os romances que falavam sobre
sua heróica figura.
Perceba-se o conjunto de valores expresso nos romances de ca-
valaria: a lealdade, a coragem, a castidade... São valores retomados na
atualidade por nossa sociedade, em pleno século XXI! Observa-se o
despertar de práticas que nem por um momento foram obliteradas do
imaginário social, apenas passaram para outra categoria, ou seja, o in-
consciente coletivo, categoria de análise que faz parte do arquétipo da
história das mentalidades.
Segundo o código de ética do feudalismo, a quebra da homenagem
e do juramento de fidelidade constituía num pecado mortal que condenava
seu praticante às penas árduas do inferno. Traidor era o pior designativo
que uma pessoa podia receber. Quanto à covardia, constituía no oposto
puro e simples da bravura e da coragem.
66
Na Idade Média, tais vocábulos tinham um sentido mais lato,
podendo definir a virtude do homem que se metia em qualquer tipo de
aventura sem atentar para os ditames da cautela. Qualquer cavaleiro que
recusasse uma empreitada assumia a pecha de covarde. Aliás, covarde e
traidor acabavam sendo condições associadas.
Sobre a questão das mentalidades, informa Hilário Franco Júnior
na obra Idade Média: o nascimento do ocidente: “a História das Menta-
lidades situa-se no ponto de junção do individual e do coletivo, do longo
tempo e do quotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do
conjuntural, do marginal e do geral” (FRANCO JÚNIOR, 1992: 149).
Esta forma de análise e este processo estão ligados aos meios so-
ciais e às técnicas que cada grupo usa para se comunicar: um poema épico
supõe um grupo de ouvintes, assim como as habilidades de um trovador.
O romance sugere um grupo de pessoas alfabetizadas... Não se canta mais
a história, passa-se agora a contar a história. Hoje, o cinema está perme-
ando o teatro e os gêneros de narração.
A crítica e a história literária não se podem fazer uma sem a outra.
Há que se historiar para compreender e, portanto, ter a capacidade de fa-
zer crítica, mas o objetivo da história da literatura tem de ser selecionado.
Assim, ele abrange uma nima parcela de tudo o que se considera
literário e tal seleção é feita pela crítica valorativa, assumindo os riscos
de erros ou de omissões importantes.
Toda a historiografia literária levanta problemas muito seus, expri-
me valores cuja permanência é muito mais reconhecida que de normas
técnicas ou de instituições. Este fenômeno de análise é elaborado atras
de uma matéria muito especial; a linguagem, a qual é inerente aos atos
sociais correntes; articulada com ideologias historicamente determinadas,
bem como com as transformações técnicas, as tensões e expectativas so-
ciais.
Entretanto, não se pode confundir a história da linguagem com a
de tais ideologias, transformações e divisões, pois, se isso fosse feito, o
estudioso teria de negar também a possibilidade de qualquer comunicação
entre classes sociais diferenciadas e conseqüentemente, negar também os
aspectos de continuidade que persistem através de uma mudança social
mais profunda. Assim, a história da literatura abrange um campo muito
específico de problemas, embora não deixe de estar relacionada com a
história social e de forma mais direta ainda, com a história cultural.
Exatamente por conta dessa correlação com a história social e com
a história cultural, não se podem negar certas características universais ou
de longa duração na história da literatura, bastando para isso lembrar da
generalidade de certos mitos, motivos folclóricos e mesmo valores.
67
Tome-se como exemplo o romance de cavalaria: ele assimila
aportes mitológicos milenares (celtas, por exemplo). Confirmando esse
arquétipo, Charles Squire, na obra Mitos e Lendas Celtas, diz que: “uma
mitologia deve ser sempre mais velha do que os mais antigos versos e
histórias que a celebram. Poemas e sagas elaborados, o o feitos num
dia ou num ano. (...). Podemos, portanto, arriscar a descrevê-las não como
do século XII ou XVII, mas como de uma antiguidade pré-histórica e ime-
morial” (SQUIRE, 2003: 24).
Ainda insistindo nesse ponto, pode-se mesmo dizer que a literatura
medieval no aspecto que tange ao mitológico chega a ser privilegiada,
uma vez que busca a sua temática em lendas e mitos de eras remotas,
os quais são transmitidos oralmente de gerão em geração, indo muito
mais além do terreno da criação individual para atingir de forma muito
mais profunda o povo, pois ele é o elemento que conserva seus ideais e os
transmite pelos séculos.
O que deve ser ressaltado é o fato de que esses temas, essas per-
sonagens lendárias ficaram cristalizados no folclore e nas lendas, e esse
fenômeno de cristalização é muito antigo. Esses elementos podem inclu-
sive, não estarem juntos desde as suas origens. Podem mesmo pertencer
a fundos míticos e folclóricos os mais diversos, nascidos em lugares dis-
tantes. Entretanto, assim como o ser humano migra, com ele migram suas
histórias e, finalmente, ocorrem às junções que promovem a unificação
desse imaginário fragmentado.
Outro fenômeno deve ser também salientado: a cronologia do
desenvolvimento literário não coincide com a da do desenvolvimento his-
tórico geral: as escolas literárias pressupõem contornos mais ou menos
definidos de uma formação social, embora surjam dentro do movimento
literário criações precursoras e até preparatórias de uma dada evolução.
A Divina Comédia de Dante Alighieri serve como exemplo para ilustrar
esse processo
27
.
Durante a Idade Média pode-se perceber uma rica variante de ca-
tegorias literárias, uma imensa flexibilidade e miscigenação de gêneros
literários, sendo que o mote em comum deste grupo heterogêneo de textos
está na predominância dos valores espirituais que norteiam sua construção,
mas que não servem para categorizá-los dentro de uma mesma linha.
A razão de ser da história da literatura deriva de um critério próprio
de seleção: o do valor ainda permanente das obras literárias. Uma geração
27 Sobre a obra de Dante Alighieri e sua importância para a construção de um novo estilo poético,
precursor da Renascença, ver: CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina.
São Paulo, HUCITEC, 1996. Há que se salientar que a demanda da perfeição, uma atitude esporádica,
porém, incipiente durante o período medieval, esboça já uma antecipação da estética que constituirá a
arte renascentista.
68
literária distingue-se e caracteriza-se das demais, não só pelo conjunto de
categorias expressivas que lhe garante a forma, mas também pela atitude
especial que ela tem perante a vida e o mundo que lhe substanciam. Na
opinião de Saraiva, em obra já supracitada:
Os pontos cimeiros da história literária são as escolas, os autores e, so-
bretudo as obras cuja estrutura, evidentemente condicionada por fatores
externos mais ou menos analisáveis, sentimos avultar nas suas relações
intertextuais. (...) as obras ou autores de valor menor, embora apreciável,
não podem, até certo ponto, deixar de ser vistos como precursores, ou en-
tão epígonos, dos melhores, pois não existem outros modelos ou padrões
de valorização estética senão os que aparecem historicamente realizados
em obras-primas (SARAIVA, s/d: 13).
Em termos de uma literatura organizada com tendências estéticas
e ideais bem definidos, a Idade Média conheceu um único movimento,
qual seja ele, o trovadorismo. O conjunto de caracteres que dão fisiono-
mia estilística a uma geração literária não vai estar presente no período
medieval, nem mesmo entre os poetas do trecento italiano
28
.A alegoria,
fenômeno característico da literatura medieval e tão ao gosto dos literatos
do tempo, é muito mais um processo artístico, um recurso de expressão
que um elemento denotador de estilo.
Afora o trovadorismo, suscetível de ser definido em termos estilís-
ticos, pela sua forma e pelo seu conteúdo, a produção literária do medievo
poderia ser analisada partindo de uma perspectiva sociológico-estilística
29
,
em que o critério de classificação seria o tipo de homem que foi idealiza-
do em cada tempo. Perceber-se-ia, ao passar os olhos pela torrente dos
séculos que vão do século XI ao XV, que duas instituições foram funda-
mentais nesse período: o castelo e o mosteiro. O primeiro representando
a nobreza, o segundo a classe monástica.
A nobreza, representada por uma aristocracia guerreira e inculta
(ao norte da Europa), ou mais refinada e galante (na região sul do con-
tinente europeu), criou por seu tempo, ideais diversos: o do herói e o do
amante. O primeiro representado pelas canções de gesta, o segundo pela
lírica provençal. Entremeio a esses estereótipos e expressando uma con-
cepção católica da existência, a literatura religiosa procurou impor o seu
tipo ideal: o santo.
28 Dante, Petrarca e Boccaccio, poetas cujas obras foram escritas nos anos de 1300, daí o termo
trecento.
29 Esse tipo de conceituação é utilizada pelo professor Segismundo Spina, para abalizar a literatura
pertencente ao período da Baixa Idade Média, a saber, séculos XI ao XV. SPINA, Segismundo. A
cultura literária medieval. 2 ed., São Paulo: Atelier Editorial, 1997.
69
Há de se salientar que a oposição que se tornou freqüente em alguns
manuais de literatura, qual seja ela, o estudo diacrônico (histórico) e o
estudo sincrônico (estrutural) das obras literárias é, na verdade, interde-
pendente. Há um tempo específico de transformação dos gostos e estilos,
embora esse tempo não seja de todo separável do tempo específico das
transformações sociais; mas se pode balizar esse tempo específico con-
trastando as macro e as microestruturas detectáveis em obras que servem
como paradigma ao estudo da literatura.
Teófilo Braga, em sua obra História da literatura portuguesa I
Idade Média, ressalta que:
Para que uma literatura se forme é necessário que uma raça fixe os seus
caracteres antropológicos pela prolongada hereditariedade, que funde a
agregação ou consenso moral de Nacionalidade, tendo o estímulo de re-
sistência na sua Tradição e na unidade da Língua disciplinada pela escrita,
universalizando a relação psicológica das emoções populares com as ma-
nifestações concebidas pelos gênios artísticos. (BRAGA, s/d:11)
30
Compreendida assim, a literatura se mostra uma síntese completa,
o quadro do estado moral de uma nacionalidade representando, portanto,
diversos aspectos de sua evolução secular e histórica. A literatura refle-
te dessa forma as sucessivas modificações do meio social, achando-se,
como todos os outros fenômenos que partem da criação humana, sujeita a
perspectivas de valores que se conservam e se perpetuam dentro da men-
talidade humana; bem como a valores que se transformam dentro desse
mesmo quadro.
Dentro dessa perspectiva de expressão de valores, de observação
dos ideais de uma época é que se tenta, no presente trabalho, surpreender
o conjunto de iias que orientou o homem num determinado transe de
sua história, a saber, a Idade Média. Entretanto, cabe salientar que o in-
gresso na cultura medieval não se faz sem pagar um pesado tributo, pois a
compreensão dos valores dessa época exige ao estudioso uma perspectiva
ecumênica, uma vez que as grandes criações do medievo sejam elas na
arte, na literatura ou na filosofia, o frutos de uma coletividade que vai
muito mais longe que a fronteira da nação.
As grandes criações do homem medieval atendem muito de perto
as suas progressivas conquistas: seus progressos técnicos, a vida comer-
cial, o desenvolvimento urbano e o prestígio cada vez mais crescente da
burguesia, a presença da igreja, são fatores que determinam as criações
literárias medievais bem como a evolução dessas formas literárias.
30 Os grifos acompanham o texto original.
70
Num primeiro momento da Idade Média, logo após a queda do im-
pério romano e início do processo histórico de formação de um grupo
social que constituiria o mundo europeu ocidental, é praticamente im-
possível organizar as formas literárias que sucederam o baixo império
romano e anteciparam o renascimento.
Na opinião de Segismundo Spina, na obra A cultura literária me-
dieval uma introdução: “(...) fatores históricos, genéticos, sociológicos,
políticos, econômicos interferem de tal forma na atividade literária me-
dieval, que se torna inviável uma visão sumária e nítida da formação, da
elaboração, da diversidade e da difusão literária, nesse longo e agitado
lapso de dez séculos” (SPINA, 1997: 15).
De fato, esse é um momento conturbado na história do ocidente
europeu: a estrutura social está em formação e marcada pela influência
permanente da igreja, a Europa é assolada constantemente por fluxos mi-
gratórios e invasores de altas e complexas conseqüências para a cultura
ocidental.
Some-se a isso o acontecimento das Cruzadas e a conseqüente cola-
boração das formas culturais do Oriente, além das heterodoxias religiosas
representadas pelas heresias. Agindo ainda como substrato de todos esses
elementos, a permanência de resíduos culturais da Antiguidade Clássica
atenuada e descaracterizada pela igreja.
Todos esses elementos constituem o pano de fundo de um longo
período em que os povos tentam se organizar enquanto nações, uma vez
que a idéia de unidade nunca morreu totalmente, e em que os dialetos
românicos tentam superar o latim como instrumento de comunicação oral
e escrita.
Entretanto, no que tange à literatura desse período conturbado, po-
dem-se traçar algumas considerações, já que ela é diferente da prodão
literária do período posterior. A literatura que decorre do fim da Antigui-
dade Clássica até meados do século XI difere em forma e organização da
literatura realizada entre os séculos XII e XV. Num primeiro momento,
a literatura medieval é marcada pela presença do monasticismo, que a
reduz às chamadas hagiografias
31
e aos poemas litúrgicos. Um dos me-
lhores exemplos desse tipo de obra consta do livro de Jacopo de Varazze,
Legenda Áurea, recentemente traduzido pelo historiador Hilário Franco
Junior.
A produção escrita era um privilégio dos mosteiros e compreendia
forma de expressão que foram substituídas ou superadas após o século
31 Segundo Hilário Franco Júnior, na obra Idade Média: o nascimento do ocidente, a hagiograa
seria a narrativa da vida de um santo. Ainda na opinião do mesmo autor, esse tipo de literatura é uma
das principais fontes para se conhecer a mentalidade da época.
71
XI. Segismundo Spina, na obra A cultura literária medieval, salienta que
a produção literária do período envolvia:
(...) uma literatura especulativa, historiográfica (biografias e anais), ha-
giográfica e predicatória formava o conjunto dos gêneros históricos pelo
seu caráter objetivo; as formas subjetivas estavam representadas por uma
literatura de semificção, que conseguiu chegar ao século XVI: as tragediae
[tragédias], as comediae [comédias] (sem o significado dramático-teatral,
pois designavam obras narrativas (SPINA, 1997: 16)
32
.
Em geral a Igreja condenava a produção oral, pela reminiscência
de valores folclóricos e, portanto, de cunho pao que ela mesclava a sua
produção final, mas essa forma literia subsistiu na forma de contos (as
fábulas), caões amorosas, contos blasfematórios, entre outros. Outros
elementos literários que merecem atenção especial do estudioso que volta
sua atenção à literatura desse período são os textos de origem nórdica
como, por exemplo, as sagas. Dentre uma das mais conhecidas ressalta-se
O Roubo do Gado de Cooley, de origem irlandesa.
A saga pertence a um grupo de lendas que apresentam em seu cer-
ne um roubo de bois, vacas ou novilhos divinos, pertencendo a um ciclo
literário conhecido como Ciclo Ultoniano
33
. Genericamente falando,
a história narra a disputa entre o ercito da rainha Maeve, senhora de
um reino conhecido como Connacht, e as forças do Ulster, pela posse de
Donn Cuailgne, um poderoso touro marrom.
Entretanto, em meio a uma literatura marginal de cunho popular,
o grande fenômeno cultural (até porque registrado de forma escrita) sem
dúvida era a literatura latina de cunho monacal, com intenções claramente
didáticas e apologéticas, obra dos abnegados monges copistas. O montan-
te da produção oral ainda não permite que se fale em literatura laica
34
.
Segundo Teófilo Braga, na obra História da literatura portuguesa
I Idade Média, a construção dessa ideologia religiosa que se confunde
com literatura, não é um processo difícil. Nas palavras do autor:
32 Os grifos acompanham o texto original.
33 A nomenclatura do ciclo está relacionada ao seu lugar de origem, a província de Ulster, no norte
da Irlanda.
34 Hilário Franco Júnior, na obra A Idade Média: nascimento do Ocidente, em capítulo especialmente
dedicado ao estudo da estrutura cultural medieval, salienta a divisão perpetrada pela Igreja no que
tange a separação da cultura laica (de cunho pagão e folclórico) da cultura clerical (de cunho cristão
e erudito). Esse assunto também é objeto de estudo de Jacques Le Goff, em obra entitulada Para um
novo conceito de Idade Média. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de idade média. Lisboa:
Editorial Estampa, 1993.
72
A tendência para a personificação faz com que muitas palavras qualitativas
se convertam em entidades; é uma das bases da lendogamia.(...) Foi assim
que Amatos, um qualquer designativo foi personificado por S. Jerônimo
como um discípulo do eremita Antão. Daqui a criar a legenda áurea de um
Santo é evolução espontânea em uma época de credulidade e de fecunda
santificação popular (BRAGA, s/d: 183)
35
.
A produção literária do período é dificultada por problemas mate-
riais (técnicas de escrita muito complicadas, a raridade do papel), fazendo
com que a oralidade fosse a forma mais comum de transmissão da arte
literária nesse momento histórico.
Mesmo enfrentando as dificuldades acima referidas, mil anos de
Idade Média produziram uma literatura variada no que tange aos aspectos
dos gêneros literários. O latim era então a língua universal, litúrgica e eru-
dita, através da qual eram veiculados desde tratados religiosos, filosóficos
e políticos, até obras de caráter historiográfico e outras tantas considera-
das sérias. Assim, José Roberto Mello, em obra supracitada informa que:
(...) poesia épica (canções de gesta), poesia trovadoresca, poesia satírica,
romances em verso e prosa, hagiografias, contos, peças teatrais, bestiários,
etc., tudo isso fornecia a umblico variado, indo da burguesia urbana às
cortes palacianas, diversão e alimento para a imaginação, numa época que
desconhecia o rádio, o cinema e a televisão (MELLO, 1992: 9).
Ao lado dessa produção, destacam-se os goliardos, cujos poemas
continham uma forte dose de anticlericalidade, bem como um espírito
popular. A poesia desse grupo de estudantes e clérigos andantes pode ser
considerada satírica e até mesmo obscena. Sobre o assunto informa Hilário
Franco Júnior em sua obra Idade Média: o nascimento do ocidente, que:
(...) tratava-se de uma poesia erudita na língua (latim), mas popular na
versificação (rítmica e rimada), na temática (amor, vinho, jogo) e nas
fontes (mitologia, folclore). Suas ironias sutis contra a igreja levaram o
Concílio de Salzburgo em fins do século XIII a considerá-los ‘blasfemos
que se proclamam clérigos para o escárnio do clero’ (FRANCO JÚNIOR,
1992:137).
35 Seguindo a linha de pensamento desenvolvida pelo autor, observa-se que, como as grandes
epopéias derivam de suas legendas heróicas as quais têm uma origem mítica, também algumas canções
de gesta da Idade Média foram à transformação de lendas hagiológicas. Por exemplo, no caso do Amadis
de Gaula, encontra-se o o tradicional que liga o cavaleiro el a sua amada ao protótipo de um Santo.
73
Para Jacques Le Goff, na obra Os Intelectuais na Idade Média, os
goliardos constituíam-se de um grupo de intelectuais estranhos, que via
em Paris um paraíso na terra, um grande bálsamo no terreno árido do
universo (LE GOFF, 2003: 47). Esse grupo é recoberto de mistério e uma
grande parte dele vive no anonimato da história da literatura.
Sobre as origens do movimento, Segismundo Spina, na obra A Lí-
rica Trovadoresca, informa que:
A partir do século XI, principalmente nesses dois países [França e Alema-
nha], a superpopulação da classe clerical, a crise das prebendas e o rigor
da ordem monástica criaram uma legião de frades sem emprego, fugitivos,
que vieram, em êxodo, para o ambiente secular das ruas e das praças, viver
uma vida cil de boêmia tabernária e romântica. Dentre eles figuravam
também os padres confessores que privavam da vida cortesã e aventura-
vam amores clandestinos (SPINA, 1996: 27)
O nascimento das universidades medievais incrementou ainda mais
essa situação, criando, por sua vez, os escolares itinerantes. Ambulantes,
esse grupo constitui um verdadeiro proletariado intelectual em meio aos
estudantes e aos clérigos que procuravam os cursos de teologia, gratica
e estudos clássicos.
O fato é que os goliardos nascem da mobilidade social, caracte-
rística da transição socioeconômica da Europa do século XII. Figuras
excluídas das estruturas estabelecidas representam um escândalo para os
espíritos tradicionais, em um contexto onde o ideal era que cada elemen-
to ocupasse um lugar, fizesse parte de uma ordem, de acordo com a sua
condição.
Os goliardos são fugitivos, marginais que vivem fora do contex-
to que se constituem em estudantes pobres, que se tornam criados de
indivíduos aos quais a mão da fortuna privilegiou ou que optam pela men-
dicância pura e simples.
Alguns deles, para sobreviver, tornar-se-ão jograis ou bufões. E
mesmo nessa escolha estava a marca do rebelde que deseja separar-se da
sociedade, pois, joculator, ou jogral, é uma palavra que designa, no perí-
odo, todas as pessoas perigosas que se quer separadas da sociedade. Esse
grupo não tem domicílio fixo, o dispõe de renda o tem nenhum tipo
de benefício. Por isso parte para a maior de todas as aventuras humanas: a
intelectual. E com essa artimanha conseguem rejuvenescer e manter vivos
os caracteres da poesia popular, além de transferi-los, junto com os hábi-
tos estilísticos dos hinos litúrgicos, para a esfera de uma poesia culta.
74
Os goliardos seguiam o mestre que mais lhes agradava, aqueles
que estavam mais em voga no momento, recolhendo de cidade em cida-
de migalhas do saber que ele repassava. Entretanto, esse grupo errante
não pode ser considerado uma classe, pois apresenta origens diversas e
ambições mais diversas ainda. Segundo Jacques Le Goff, em obra supra-
citada, o único sonho que têm em comum é de “um mecenas generoso,
uma gorda prebenda, vida folgada e feliz. Querem antes, parece, tornar-se
novos beneficiários de uma ordem social do que mudá-la.” (LE GOFF,
2003: 50)
Os temas de sua poesia criticam de forma dura à sociedade medieval,
tornando difícil recusar a ela uma marca um tanto quanto revolucionária.
Na opinião de Segismundo Spina, na obra A cultura literária medieval,
seus poemas contribuem de forma única para a formação da lírica occitâ-
nica
36
do século XII (SPINA, 1997:19), embora não se possa afirmar que
tenha sido sua fonte, mesmo que seus temas, motivos e recursos imagéti-
cos constituam uma boa parte da estruturação da poética trovadoresca.
Ademais, os poetas errantes constituem um marco para a crítica
de todos os representantes da ordem social da Alta Idade Média, desde o
eclesiástico até o camponês, e isso muito antes que o processo de crítica
se tornasse lugar comum na literatura. Os alvos preferidos da poesia go-
liarda são os que social política e ideologicamente estão mais ligados às
estruturas da sociedade, a saber, o papa, o bispo, o monge. Seu objetivo
é atacar os fiadores de uma ordem hierarquizada, até porque seus escritos
têm uma marca anárquica. Seu bestiário satírico transforma eclesiásticos
em animais e faz nascer no frontão da sociedade medieval um mundo de
figuras clericais caricatas. Sobre o assunto informa Segismundo Spina,
em sua obra A cultura literária medieval:
A sátira na Idade Média foi demasiado violenta. Fora das formas bur-
guesas, a sátira serviu, ora como instrumento de ataque ao clero, à Cúria
romana, ao Papa (...) ora de ataques políticos, (...) ora de expressão dos
sentimentos mais brutais do homem (...). Na poesia dos goliardos, que está
um pouco fora do nosso campo porque expressa em latim, o temário pode
reduzir-se a trindade vinho, mulher e jogo; a alegria de viver prepondera
sobre os temas ligados ao sentimento de caducidade da beleza e dos praze-
res terrenos também vigentes na poesia desses clérigos boêmios (SPINA,
1997: 54)
37
.
36 Poesia desenvolvida no sul da França.
37 Os grifos acompanham o original.
75
Seu ataque nevrálgico tem muito mais do que uma denúncia sobre
os maus costumes tradicionais (gula, preguiça, devassidão). Por trás de
suas satíricas palavras existe um espírito secular que renuncia toda uma
parte do Cristianismo, que se quer separar do século, que recusa a aceitar
a vida terrena. À parte do Cristianismo que abraça a solidão, a pobreza,
a vida ascética, a ignorância que será considerada pelo poeta goliardo
como uma grave renúncia aos bens do espírito. No fundo de sua poesia, os
errantes intelectuais denunciavam o antagonismo que norteava a mentali-
dade do período que vai desde o século IV ao XI: o confronto levado ao
extremo entre a vida ativa e a contemplativa, o paraíso que se preparava
na terra diante da salvação que só seria encontrada fora do mundo.
Além do clero, os goliardos atacavam ainda o camponês, encarna-
ção grosseira do mundo rural que eles abominavam, pois eram homens da
cidade; e o nobre, ao qual a poesia goliarda negava o privilégio do nasci-
mento, salientando que nobre de fato era somente aquele a quem a virtude
enobreceu. Na figura da nobreza, o ataque poético se dirige também aos
militares, uma vez que para este intelectual urbano as batalhas do espírito,
as justas que a dialética trava são muito mais nobres e dignas do que as
façanhas militares.
Apesar de sua grande contribuição para a cultura e para a literatura
da Europa Ocidental, Jacques Le Goff, na obra As intelectuais na Idade
Média revela que:
(...) os goliardos foram empurrados para as margens do movimento inte-
lectual. Sem dúvida lançaram temas para o futuro, que se abrandaram no
curso de seu longo destino; representaram da maneira mais viva um meio
ávido de se libertar; legaram ao século seguinte um punhado de idéias
de moral natural, de libertinagem dos costumes ou do espírito, de crítica
da sociedade religiosa que serão retomadas pelos universitários (...). Mas
desapareceram com o culo XIII. As perseguições e as condenações os
atingiram, suas próprias tendências a uma crítica puramente destrutiva não
lhes permitiram achar seu lugar no canteiro universitário, do qual deser-
tavam às vezes para aproveitar ocasiões de vida fácil ou abandonar-se à
vagabundagem LE GOFF, 2003: 58).
Sem dúvida, num primeiro momento da Idade Média e talvez
ainda por influência da herança da cultura greco-latina, a literatura se
concentrou na poesia. Maiores transformações serão sentidas no período
posterior que corresponde aos séculos XI ao XV. Nesse momento, a li-
teratura medieval apresenta caracteres mais precisos e destarte, torna-se
mais suscevel de uma visão de conjunto e de classificação dentro de
76
quadros estisticos. Parafraseando o professor Segismundo Spina, seria
possível categorizar a produção literária medieval dentro de um esquema
que apresenta três tipos fundamentais:
a) literatura empenhada: predominantemente religiosa, com inten-
ção didático-pedagógica, de moral cristã;
b) literatura semi-empenhada: apresenta feições intermediárias, di-
rigida por intenções satíricas como a poesia goliardesca;
c) literatura de ficção: esta produção não apresenta compromis-
sos maiores além da diversão, estando representada pelas poesia
épica (canções de gesta), pela lírica trovadoresca, pelas baladas
e pela narrativa novelesca, cujo melhor exemplo é o romance de
cavalaria.
A narrativa ficcional na Idade Média surgiu da síntese entre a tra-
dição literária latina que a igreja pôde manter e a tradição oral jogralesca.
As histórias que passaram a ser escritas foram, durante muitos anos con-
tadas talvez ao pé do fogo e passando de geração em geração. A rie de
poemas narrativos produzidos pelo clero num primeiro momento e de
cunho profundamente apologético ou hagiográfico foi sucedida por um
conjunto de obras que ressaltava a aliança entre a aristocracia militar feu-
dal e a aristocracia letrada eclesiástica.
Dentro desse contexto, o progresso no surgimento dos idiomas na-
cionais correspondeu ao surto de narrativas em língua vulgar, ainda sob
influência maior ou menor do latim, mas cujos temas eram nacionais.
Esse fenômeno de glorificação da nacionalidade se verificou primeiro nos
povos onde o Latim não dominou o falar céltico ou germânico. Exemplo
desse processo pode ser transcrito através do Romance de Melusina ou
a História dos Lusignan¸ supostamente escrita por Jean d’Arras. Diz o
narrador à guisa de introdução que:
Eis porque, ao ter início esta narrativa, ainda que consciente do fato de
não ser digno de a Ele dirigir-me, suplico à Sua Sublime Majestade que
me permita levar a bom termo esta empresa, para Sua glória e Seu louvor,
como também para o comprazimento de meu altíssimo, digníssimo e temí-
vel senhor, João, filho do rei de França (...) (D´ARRAS, 1999: 1)
38
.
38 Detalhe que vale a pena ressaltar e que justica ainda mais essa idéia de nacionalidade, diz respeito
ao fato de que a Melusina originariamente é uma mulher-demônio, meio humana, meio serpente. Essa
gura foi apropriada do imaginário celta por Ricardo Coração de Leão, descendente de Guilherme, o
Conquistador, normando que ocupou as ilhas britânicas, para justicar a sua ancestralidade e seu direito
sobre o lugar. Ele evocou uma antiga lenda, a qual estava arraigada ao conjunto de mitos do povo
britânico para criar um elemento que representasse a idéia de identidade dele, conquistador, para com
o povo conquistado.
77
Sabe-se que o universo cultural da Idade Média é revestido por
um fascínio extremo, sendo o universo medievo um mundo culturalmente
produtivo que possibilitou a continuidade da latinidade, não apenas em
espírito, mas linguisticamente falando, já que o latim era o idioma que
dominava as atividades do homem. Foi a Idade Média que tornou pos-
sível a gestação e o nascimento das nguas modernas ocidentais, am
de permitir a sobrevivência de estruturas administrativas básicas para os
Estados europeus.
A partir do século XI, a Europa ocidental viu emergirem do anoni-
mato pela escrita, as canções de gesta, cujo enredo está centrado na figura
de heróis ou de rebeldes mais ou menos lendários e cujas histórias foram
projetadas durante o período do Império Carongio (século IX).
Ao lado das gestas, fazem a sua aparição no mesmo período, o
drama litúrgico, a lírica trovadoresca e o renascimento da Escolástica
39
.
Por todos esses processos é cabível chamar o século XI de século das
gêneses. Aparece nesse contexto La chanson de Roland, além de desen-
volverem-se os grandes ciclos épicos de cunho nacional: Os Niebelungos
(germânico), El Cid (espanhol), e os Lais bretões, uma série de contos
curtos em versos.
Tendo como tema o rei ou os senhores feudais, a gesta francesa pode
ser dividida em três grandes ciclos: carolíngio, Guillaume de Orange e o
de Doon de Mayence. A fragmentação das gestas levou ao nascimento do
romanceiro, cuja vitalidade foi expressão até o momento do Romantismo.
A canção de gesta se caracteriza pela sua coloração predominantemente
heróica, de cunho feudal e guerreiro, derivando daí para o romance cortês,
atingida que foi pela influência da literatura bretã e pela cortesia darica
provençal.
O centro verdadeiro de elaboração desta poesia lírica na Idade -
dia foi o sul da França
40
, rego conhecida como Languedoc, comumente
chamada de Provença (daí o termo provençal). O seu aparecimento coin-
cide com o nascimento das canções de gesta ao norte do país. Aliás, a
39 Esse método de estudo desenvolvido no período medieval sob a hégide de São Tomás de Aquino,
preconizava encontrar um conjunto de leis sobre como se pensar um determinado assunto. Tudo
tinha início com as leis da linguagem, através da qual se buscava denir o sentido exato da palavra.
Depois, seguia-se a lei da demonstração com base na dialética, a posteriori, a lei da autoridade, que
buscava embasar o conhecimento adquirido previamente através do recurso às fontes como a Bíblia e o
pensamento dos doutos da igreja. A seguir, utilizava-se da lei da razão, que servia para a compreensão
mais profunda de tudo mesmo em assuntos de fé. O método completava-se com a sua aplicação em dois
momentos básicos, a leitura (lectio) e o debate sobre a leitura (disputatio).
40 Segundo Segismundo Spina, a importância da França no que tange ao aspecto da criação literária é
suprema. Na opinião do autor, na obra A cultura Literária Medieval: “do ponto de vista criador, à França
devemos a quase totalidade das formas poéticas e prosísticas medievais: a épica, a dramática, a lírica, o
romance e a própria história de intenções estéticas” (SPINA, 1997: 36).
78
organização sócio-cultural de cada região permitiu esse processo de for-
mação: a vida feudal no norte da França originou os cantares de gesta.
O estilo de vida do sul, mais brando e menos coeso, marcado pelo
fenômeno da individualização e descaracterizado politicamente pelas in-
fluências do direito romano, possibilitou a vida palaciana e com ela o
desenvolvimento da cortesia e o culto a mulher casada, fatores responsá-
veis pelo desenvolvimento da lírica trovadoresca.
Esses fenômenos acentuaram de forma progressiva o caráter laico
da literatura profana e propiciaram o surgimento de uma classe burguesa
de letrados, cuja atuação marcará de forma indelével a literatura dos -
culos XIV e XV. Não fosse o espírito guerreiro da sociedade setentrional
da França, temperado pela influência amorosa da Provença, pela erótica
de Ovídio e pelas letras inspiradas da matéria cavaleiresca da Bretanha, e
o romance cortês do século XIII, bem como as novelas de cavalaria não
teriam nascido.
Os dois acontecimentos mais importantes do momento em que a
França detém o primado da literatura ocidental são a poesia lírica dos
trovadores do sul e o romance cortês dos escritores do norte: aquela de-
veu seu fundamento à maior de todas as criações literárias da sociedade
meridional, a saber, o Amor. A conjugação desse amor na condição de
elemento lírico, aliado à glória pessoal na condição de elemento heróico
resultou na novela cortesã.
O romance cortês do culo XII nasce do enlace entre o amor e a
glória pessoal na forma poética, deriva posteriormente, para o romance de
aventura e para a novela de cavalaria; sendo que no século XIV o nero
fará uma nova digressão rumo à novela sentimental e ao conto. Entretan-
to, observa-se que em todo esse construir literio que vai dos séculos
XI ao XIV, a constante é a mesma: o Amor, podendo ser o amor profano
(inspiração da produção lírica e da novela palaciana); ou o amor sagrado
(fomento das representações litúrgicas que pululam por todo o período).
A rica trovadoresca é uma literatura baseada em uma concepção
inteiramente nova do amor, constituindo junto com o romance cortês, um
grande acontecimento literário do século XII. Segundo Segismundo Spi-
na em obra supracitada:
Irmã gêmea da novela cortesã pela importância, foi também pela capacida-
de de aclimatação e difusão nas literaturas de quase toda a Europa. O valor
desta poesia o residia mais no texto do que na sua expressão musical
(SPINA, 1997: 38).
79
À glória pessoal que marca os traços da canção de gesta associam-
se o amor e o gosto pelo maravilhoso, ao heroísmo rude e guerreiro da
épica que então florescia somam-se às aventuras fantásticas e a galantaria
amorosa, resultando na novela cortesã, gênero literário de vasta difusão
na literatura européia.
A novela cortesã pode ser dividida, por sua vez, em três grandes
grupos: o clássico, de influência marcadamente antiga; o bizantino, cuja
procedência e fonte de inspiração se deve ao movimento das Cruzadas;
e o terceiro grupo com fortes tonalidades bretãs, o qual, por sua vez, se
subdivide em três grandes ciclos.
Na opinião do professor Segismundo Spina, na obra A cultura li-
terária medieval, é possível classificarem-se esses três ciclos da seguinte
maneira:
(...) o arturiano, cujo mais alto representante é Chrétien de Troyes, que
começa a escrever em 1160: Erec, Cligès, Le Chevalier à la Charrette; o
ciclo de Tristão e o ciclo do Graal, este último com contaminações reli-
giosas e de larga difusão pela Europa, a partir do século XIII: Perceval, de
Boron e, em prosa, Estoire de Saint Graal, Estoire de Merlin e Mort de Roi
Artu [sic] (SPINA, 1997: 24)
41
.
A literatura espanhola na conjuntura dos anos do século XI é mar-
cada por uma forma de cantar da qual restou um poema em sua quase
integridade, Cantar de Mio Cid, de autoria anônima e composto prova-
velmente em 1140. Portugal também produz a sua trama com obras como
a Demanda do Santo Graal, e, mais tarde, o ciclos dos Amadizes e dos
Palmeirins.
O herói da canção de gesta se mescla à figura do amante, originan-
do a novela cortês; o herói em conluio com o santo fa com que surja
o ciclo novelesco do Graal. que se salientar que nesse contexto (sé-
culo XIII), as duas classes dominantes, ou seja, nobreza e clero iniciam
seus primeiros processos de modificação. O clero levanta o gigantesco
e portentoso edifício da escolástica e o mosteiro, detentor tradicional da
cultura, cede lugar ao mundo fervilhante da universidade.
A vida floresce nos centros urbanos; e a nobreza que se refina e
concentra sua existência na vida cavaleiresca apresenta os primeiros sin-
tomas de declínio; nova classe desenha sua aparição na ordem social: a
burguesia. No despontar dos séculos XIV e XV, o rei buscará aproximar-
se dessa nova força social e, lentamente, a nobreza coma a evanescer,
tornando-se um satélite real.
41 Os grifos acompanham o original.
80
A universidade tornou-se um centro de ilustração para a burguesia
nascente, e aos poucos um outro ideal se afirma, ao invés do cavaleiro,
ou do clérigo: o homem prático começa a ocupar o seu lugar. Apologias
a essa figura constituirão o fundamento da literatura burguesa na época
e sátiras aos ideais cavaleirescos e ascéticos ocuparam o lugar das letras
que ornavam de ouro a figura do santo e do herói. Segismundo Spina, em
obra supracitada faz saber sobre esse fenômeno que:
A nobreza exercia-se sobretudo na lírica profana e na poesia de aventuras;
o clero reservava-se particularmente o domínio da narrativa edificante e
da lenda piedosa. As duas classes não tiveram rivais até meados do século
XIII: daté o culo XIV as transformações sociais profundas, operadas
pela aparição da roture, criaram uma concepção realista da existência, e a
nova classe inicia a sua intervenção nas letras pelos poemas morais, pela
intenção didática, pela sátira mordaz contra as classes privilegiadas, pela
paródia e pela ironia (SPINA, 1997: 47).
Destarte, o temário da literatura que se firmou pelos seus objetivos
didáticos e ascéticos, inaugura a entrada de novos valores, onde a sáti-
ra faz uma estréia mordaz. Esses novos valores são bem diferentes dos
ideais cavaleirescos e espirituais dominantes até o início do século XIV.
Pode-se buscar a raiz desse processo na cultura popular, num extrato bem
mais antigo que a literatura aristocrática. O heroísmo da gesta aparece
substituído pela astúcia, satirizando com freqüência o nobre, o clero e o
vilão mais grosseiro. Os fabliaux
42
estão dentro do mesmo espírito: seus
argumentos são os mais variados e grosseiros incidentes da vida conjugal
e social, sempre à base do ludíbrio e da velhacaria. Tome-se como exem-
plo do processo a citação que segue:
Quem quer mulher surpreender
Eu lhe farei compreender
Que é mais fácil vencer o Demo,
O Diabo, em combate supremo.
Quem mulher pretende domar
Todo dia pode quebrar;
No dia seguinte a vê pronta
Para enfrentar mais uma afronta.
Mas quando ela tem louco amor,
42 Segundo informação obtida junto à obra de Hilário Franco Júnior, Idade Média: nascimento do
Ocidente os fabliaux são os correspondentes dos goliardos, em língua vulgar. Conjunto de pequenos
contos em versos simples e grosseiros tem cunho marcadamente obsceno e expressam uma forte crítica
social, além de serem expressão de um grande antifeminismo.
81
Que seu pensar gira ao redor,
Ela inventa tanta lorota
Diz tanta mentira e chacota,
Que à força o faz acreditar
Que amanhã o sol não vai brilhar.
È assim que ela ganha a querela (Anônimo, 69: 1995)
43
.
Embora a massa literária deste segundo peodo da Idade Média
(X-XIII) apresente aos olhos de quem a estuda uma série de contornos
mais coerentes, muitas dificuldades para aquele que pretende ordenar esse
conjunto de textos dentro de critérios mais precisos surgem. As formas
expressivas dessa época, aliadas ao caráter internacional, coletivo e ins-
titucional da literatura então, são responsáveis pelo anonimato de grande
parte do que se produziu no tempo. Assim, tratar a obra de acordo com os
autores é um fenômeno praticamente impossível.
Resta ao estudioso seguir outros critérios como, por exemplo, situar
os gêneros em primeiro plano, evoluindo com eles desde seu aparecimen-
to até seu declínio, como se fossem seres vivos. Esse modus operandi
teria validade se não se tratasse dos conceitos de nascimento e decadên-
cia, dupla inaceivel quando o assunto é história da literatura ou história
das línguas. Ambas (literatura e língua) não nascem, crescem e morrem:
elas simplesmente evoluem.
De acordo com as modificações do gosto, dos ideais de vida, as
formas literárias transformam-se se diluindo e dando corpo a outras mo-
dalidades de expressão. Assim, quem procura focalizar a sucessão dos
séculos dentro de uma literatura nacional, com suas características ma-
teriais e espirituais, bem como os respectivos gêneros literários, corre o
risco de incidir na história da cultura literária, bitolando a dimica das
próprias formas de expressão.
Por outro lado, considerar as formas de expressão em fuão dos
ideais da sociedade e das forças de modificação da orgânica social, seria
fazer da literatura uma expressão da sociedade. No que tange à literatura
medieval, o modo de ser e o ritmo das formas literárias dependem de uma
multiplicidade de fatores, muito bem elencados pelo professor Segismun-
do Spina, na obra A cultura literária medieval:
(...) étnicos por exemplo, o fundo céltico da matéria cavaleiresca e a
respectiva predileção pelas coisas infinitas, visível no tom messiânico
43 O presente poema foi retirado da obra Pequenas Fábulas Medievais: Fabliaux dos séculos XIII e
XIV. ANONIMO. Pequenas fábulas medievais: fabliaux dos séculos XIII e XIV. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
82
das novelas de cavalaria; filosóficos o binômio alternante aristotelis-
mo-platonismo, síntese-análise, razão-fé; sociológicos, que ocasionam
frequentemente subversão radical de valores: o aparecimento do dinheiro,
por exemplo, no século XIV, a contrastar com o ascetismo e o espírito
cavaleiresco da época (...) a própria valorização do trabalho, a estabele-
cer uma antítese flagrante com o esforço heróico desinteressado; fatores
religiosos como a influência do culto de Maria sobre a poesia lírica dos
trovadores provençais que deriva da adoração da Donna para o lirismo
contemplativo da Virgem; ou a própria influência da Igreja, sobre a insti-
tuição cavaleiresca (...) (SPINA, 1997: 32)
44
.
A estrutura social é, em grande parte, força responsável pelas gran-
des divisões da produção literária medieval. Algumas denominações das
formas literárias medievais não escondem a sua procencia social, como
por exemplo: romance cortês, novela cavaleiresca, conto burguês. As
próprias denominações trovador e jogral correspondem a formas literá-
rias de execução palaciana, popular e burguesa, bem entendido aqui o
vocábulo burguês como representativo da cultura da cidade.
45
Aliás, há que se considerar que o fortalecimento da burguesia e seu
desenvolvimento paulatino nos séculos XIV e XV incrementaram tam-
bém um novo tipo de literatura, a qual representava os ideais inteiramente
novos dessa categoria que começava a se firmar enquanto classe social.
Esse novo estilo estava longe do espírito heróico da matéria da canção de
gesta e dos romances de cavalaria, distante do refinamento aristocrático
da lírica palaciana religiosa, parecendo separar o binômio cavaleiro-clé-
rigo, tão característico dos séculos XII e XIII, do fenômeno literário dos
séculos XIV e XV.
que se considerar que, nesse momento, as lutas dos grandes vas-
salos converteram-se em guerras privadas e esse fenômeno fez com que
se destacassem na tradição popular e poética os tipos nacionais, uma vez
que os mesmos serviam aos interesses da coletividade. Foi este hersmo
socializado que motivou a mais pura e completa idealização de elementos
históricos, como Carlos Magno, o qual se torna centro de uma boa parte
das gestas medievais, pela sua ação unificadora em termos de política e
pela capacidade que teve de defender o ocidente, militarmente falando,
das invasões que o assolavam.
44 Os grifos acompanham o texto original.
45 que se salientar que quando estes textos foram escritos essa nomenclatura não lhes era
auferida. Esse procedimento passou a ser organizado pelos estudiosos da literatura depois do fenômeno
observado.
83
Essas obras literárias são fruto de uma civilização que nesse mo-
mento histórico esem processo de desenvolvimento e, partindo desse
contexto, descobre muitas coisas, por exemplo, o encanto feminino e o
amor. Assim seu enredo mescla a rudeza dos combates e oscila entre a
aventura e o idílio, entre as aristocráticas cortes e o mundo selvagem e
misterioso das florestas cheias de perigos e seres encantados e encanta-
dores.
Aliás, a natureza tem um papel primordial na literatura do peodo.
Na Idade Média os campos, as charnecas, as matas predominavam em
relação às cidades, aos aglomerados urbanos em uma escala infinitamente
maior que a atual. As cidades existiam numa quantidade muito menor e
com contingentes populacionais muito mais modestos.
As cidades nada mais eram do que pequenas ilhas em meio às vas-
tas e luxuriantes pradarias e florestas. O fim dessas ínfimas zonas urbanas
era muitas vezes súbito, ficando demarcada de maneira clara a cisão entre
a área urbana e a rural. Não existe aquela mudança paulatina que se ob-
serva em torno das cidades hoje em dia. Do portão da cidade murada para
fora da sua segurança, existia apenas a vastidão do mundo que podia ser
de uma opressão sem igual, basta para isso lembrar o efeito que causou
em Guinevere cruzar os campos da Inglaterra quando saiu do castelo de
seu pai para se casar com Arthur.
Mesmo dentro das fortalezas, das cidadelas, das cidades fortifica-
das, a natureza se fazia presente uma vez que ela podia ser avistada de
qualquer ponto de suas muralhas. Os perigos do agreste atingiam a cidade
com uma freqüência sem par, na figura de animais selvagens representa-
da, por exemplo, por alcatéias de lobos famintos que durante o inverno
ameaçavam as ruas vazias de gente.
Os grandes senhores feudais entrincheirados em seus castelos ti-
nham como principais elementos de diversão à caça e a guerra. Seu
instrumento de locomoção e combate era o cavalo, sendo ele, portanto,
muito mais representativo da natureza propriamente dita do que da cida-
de. Aliás, durante muito tempo, esses grandes senhores travaram batalhas
contras as urbes que ameaçavam seu poder na medida em que se organi-
zavam.
Mesmo as grandes abadias e os eremirios, quando surgem no
pano de fundo das histórias e das lendas, estão perdidos em meio às soli-
dões verdes das planícies, sendo que os monges eram responsáveis pelo
cultivo direto das terras que os sustentavam ou faziam aqueles que viviam
ao redor de seus mosteiros cultivá-las para eles, entregando-se no interior
dos muros sagrados à meditação e à oração.
84
José Roberto Mello, em obra supracitada se refere à presença da
natureza na literatura medieval da seguinte forma:
A presença do ambiente selvagem nos romances poderia, portanto, ser
considerada até certo ponto como a reminiscência nostálgica de um tempo
em que ele predominava de forma quase absoluta, e os bravos rebentos da
nobreza aguerrida circulavam-lhe pelas sendas em busca de aventuras. Em
suma, a Europa do ano 1000 (MELLO, 1992: 29).
O que pode ser percebido na literatura cavaleiresca é o fato de que
a natureza é um elemento triunfante. Sem perder de vista o elemento hu-
mano no contexto, a paisagem atua junto a esse elemento, não como mero
pano de fundo, mas como um ingrediente ativo e participante.
No que tange ao fenômeno de exaltação de vários valores (nacio-
nalidade, coragem, amor, lealdade, honra...) desenvolveu-se a matéria de
Bretanha, que originariamente exprimia na figura lendária de Arthur, a rea-
ção nacional do povo celta durante a invasão dos senhores anglo-saxões.
A influência desse conjunto de história é tão profunda que ele se
inseriu na historiografia da Inglaterra, a ponto de acreditar-se na possi-
bilidade de que Arthur teria sido um chefe militar que teria vivido na
Grã-Bretanha ocidental em algum momento entre o final do culo V e
início do VI.
Esse indivíduo (se é que de fato realmente existiu) não foi um rei
dos bretões, talvez apenas um capitão, um chefe militar, ou mesmo um
caudilho ou mercenário, que teria obtido algum sucesso nas lutas para
conter o avanço dos saxões. No entanto, esse fenômeno de divinização
acontece também com outras personagens do mundo arturiano. Algumas
delas são legendárias, humanizações de velhos deuses e/ou seres sobre-
naturais celtas, enquanto outras se beneficiam da sombra da dúvida. É o
caso de Merlim ou Taliesin, o popular mago que ajudou Arthur a instalar-
se no trono de Logres, e que muitas vezes, com sua figura sábia, chega a
lançar sombras sobre a figura poderosa do rei.
Indubitavelmente, José Roberto Mello tem razão ao perceber “o
mundo céltico insular como o principal fornecedor do material e das li-
nhas mestras dos romances arturianos” (MELLO, 1992: 18).
O imaginário arturiano chegou a outras regiões da Europa, como a
França, onde foi introduzido graças a Maria da França, irmã do rei João e
a Chrétien de Troyes, escritor do período. Quando a matéria da Bretanha
chega à França, na opinião de Antonio José Saraiva, na obra História da
literatura portuguesa, ela passa por um processo de deformação, pois:
85
Então o simbolismo religioso e nacional das origens célticas é deformado
pelo desenvolvimento de dois temas cuja incompatibilidade só mais tarde
será sentida: o culto de Amor, fatal e independente, senão adversário, do
sacramento matrimonial cristão, tema de fonte evidentemente occtânica
e clássica; e o idealismo cavaleiresco de cruzada, exaltador da fidelidade
feudal e da graça divina (SARAIVA, s/d: 93).
A difusão da matéria arturiana no continente através de contadores
profissionais é até plausível, pois que se considerar que a Bretanha,
península que fica a noroeste da França participa da mesma civilização
céltica insular, uma vez que ela foi colonizada pelos imigrantes bretões
que deixaram a Grã-Bretanha fugindo dos anglo-saxões por volta dos sé-
culos V e VI. Esse grupo permaneceu aí, isolado por vários séculos e sua
língua, o bretão, de raiz céltica como as outras línguas insulares, desen-
volveu características muito específicas em razão do isolamento.
Dentro desse grupo fechado, as lendas que contavam a história do
Rei Arthur se difundiram e agradaram tanto aos habitantes do lugar, que
eles tomaram a figura do rei guerreiro como a de um der messnico,
passando a crer que ele retornaria num futuro distante para libertá-los do
domínio dos condes D’Anjou
46
.
As pessoas que contavam essas histórias eram contratadas para
servir como entretenimento para os nobres e viajavam em seu séquito,
difundindo assim a matéria da Bretanha por toda a Europa ocidental. Esse
fenômeno explica o surgimento de tradições literárias independentes nas
versões dos romances, surgidas nas diversas partes do continente e que
representam o conjunto de valores do povo que as criou. Também que
se considerar que a civilização européia estava em processo de evolução.
O uso da escrita se ampliava e muitos nobres sabiam ler, ou tinham quem
o fizesse junto de si.
A partir dessa influência, percebe-se nessa fase da matéria da Bre-
tanha que avultam as histórias do amor forte e inquebrantável de Flores e
Brancaflor, do amor fatal e pecaminoso de Lancelot e Guinevere, de Tris-
tão e Isolda. A posteriori, segue-se uma outra fase, já plena de influências
monásticas e com fortes reflexos do movimento cruzadístico, ou quiçá,
46 Caberia aqui um aporte analisando as questões referentes ao mito do retorno que envolve guras
como o Rei Arthur e Dom Sebastião. Entretanto, para discutir essas questões se faria necessário buscar
a raiz dos mitos relativos aos deuses solares, o qual é analisado por Mircea Eliade na obra Tratado de
História das Religiões. Some-se a isso o fato de que tal discussão levaria em conta a ilação destas guras
com a gura de Jesus Cristo que também pode ser considerado um deus solar, partindo assim para o
processo de análise de um mito cuja conjuntura apresenta ares de universalidade. Não se fará tal análise
porque se entende que ela foge da alçada deste trabalho, uma vez que teria um cunho antropológico
que não é o objetivo deste capítulo e nem do trabalho como um todo. ELIADE, Mircea. Tratado de
História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes: 2002.
86
marcada por uma nova onda de espiritualidade e fé, atribuída aos francis-
canos e espirituais. Nessa fase, o amor passa a ter um caráter negativo.
A partir daí, valoriza-se a figura do cavaleiro valente e casto e os
donzéis, entre eles Galaaz logram antegozar na terra a bem-aventurança
do céu, depois de imensas e extremas penas e provações. Essa fase an-
tecipa à Divina Comédia de Alighieri, no que tange ao aspecto da eterna
perdição infernal àqueles que cometem amores adulterinos. Exemplo
desse contexto está posto no romance A morte do rei Arthur, de autoria
anônima.
Escrito no começo do século XIII, esse romance marca o crepús-
culo da cultura cavaleiresca e do mundo feudal, que originou tal conjunto
de valores. Nem mesmo o disfarce da cavalaria celeste, proposto por uma
leitura religiosa e mística da missão da cavalaria, pode salvá-la da sua ru-
ína iminente e da ascensão de um novo conjunto de valores, representados
pela burguesia. A mão do Destino pesa inefável sobre o rei Arthur e toda
a sua corte.
O motivo desse caos está no fato de que o código de comporta-
mento da cavalaria foi rompido por dentro, uma vez que o amor adúltero
de Lancelot e Guinevere acabará por desencadear a grande guerra final,
a qual envolverá a linhagem de Arthur e a linhagem de Bam, causando a
destruição da Távola Redonda.
Não é de se estranhar que a matéria da Bretanha tenha encontrado
eco nas principais cortes européias da Idade dia. No meio palaciano
não podia faltar o interesse pelos relatos fantásticos de aventuras prodi-
giosas, de amores ocultos e de feitiçarias monstruosas. Essas histórias,
inicialmente difundidas por poemas jogralescos acabaram por ser fixadas
em prosa. Dessa forma, por exemplo, na corte portuguesa de Afonso III
se realizavam em fins do século XIII traduções dos romances franceses
que contavam as façanhas da busca do Graal.
As histórias seguem a tendência do ciclo bretão: contam da prove-
niência do Graal, ou o vaso que continha o sangue de Cristo, recolhido por
José de Arimatéia e por ele transportado desde Jerusalém até a Inglaterra,
onde foi guardado pelo Rei Pescador, personagem cheia de mistérios e
doente.
Assim, e coadunando-se com a moral portuguesa, os feitos de cava-
laria e os enredos de amor foram adaptados a uma intenção religiosa. Sobre
o assunto, Tfilo Braga, em obra supracitada, informa que, “pode-se
inferir, segundo o grande número de traços abafados no conjunto, que a
Cavalaria do Santo Graal representava uma idéia puramente religiosa; ela
queria mostrar-nos o ideal do guerreiro cristão na luta contra as paixões e
contra o inimigo exterior da Igreja de Deus”. (BRAGA, s/d: 258)
87
Depois se tem a figura profética de Merlim (de certa forma seme-
lhante ao sapateiro de Trancoso e suas trovas) anunciando novos tempos
que seriam inaugurados pela chegada de um predestinado (assim como D.
Sebasto) que seria capaz de romper o encantamento do Graal.
Após este estardalhaço, seguem-se as aventuras que põem à prova
a virtude dos companheiros de Arthur, os cavaleiros da vola Redonda
que se lançam na desventurada busca do Graal. A essa prova somente
resistem Percival, Boors e Galaaz, que recebem como prêmio a graça de
uma vida espiritual mesmo antes de se despojarem da carcaça terrena.
Encerrando o contexto seguem o colapso do reino de Logres e a morte de
Arthur, em meio ao sangue, dor, traições e lágrimas.
Na tradução lusitana dos romances de cavalaria, percebe-se que
a narrativa portuguesa aparece mais amadurecida e aparentemente apta
para compor suas próprias obras. Segundo a opinião de Antonio Saraiva,
na obra História da literatura portuguesa:
Convém notar que se trata de uma prosa destinada a ser ouvida e não lida
individualmente, em estilo falado, com freqüentes interpelações ao ouvin-
te, que fazem sentir constantemente a presença do enunciador, com largo
recurso ao diálogo notavelmente fluente e abundante em interjeições
exclamativas. (...) À data que se conclui esta tradução estava sem dúvida
criado o instrumento lingüístico adequado à narrativa, não apenas ficcio-
nista, mas também histórica (SARAIVA, s/d: 95).
Além do que a tradução portuguesa da matéria da Bretanha apre-
senta um outro aspecto significativo. A obra tem uma intenção religiosa
e representa, no que tange ao processo relativo à moral cortês que inspira
os cantares de amor, uma inversão completa de valores. Anteriormente,
na lírica cortês, se exalta o amor como caminho para a felicidade e para
a perfeição moral. Destarte, todo o amor é considerado pecaminoso e a
virgindade tida como o estado mais perfeito para quem almeja o paraíso.
Esse conjunto de valores tem um arcabouço simbólico que se con-
catena de forma perfeita e exprime de maneira alegórica uma doutrina
moral e religiosa, relacionada, quiçá, com a heresia dos espirituais, os
quais anunciavam o advento de uma nova igreja, do Espírito Santo. Não
se pode negar também, que o cunho moral através do qual se organizou
a matéria da Bretanha em Portugal representasse o extravasamento para
os meios laicos dos problemas morais e religiosos que durante o período
que compreende os séculos IV ao X ficaram sob a alçada única da espe-
culação eclesiástica.
88
As influências do maravilhoso arturiano em Portugal estão retrata-
das em Amadis de Gaula, romance de cavalaria que apresenta de início
uma questão controversa, qual seja, a de sua autoria, reivindicada tan-
to pelos portugueses quanto pelos espanis. O fato é que essa obra é
contemporânea da primeira fase da poesia de corte medieval e mais repre-
sentativa do que a Demanda do Santo Graal da galanteria peninsular que
foi idealizada nas cantigas de amor.
Amadis reflete o oposto da Demanda no que tange ao conjunto de
valores que envolvem o romance e suas personagens. O tema da sensuali-
dade que percorre suas linhas traduz uma concepção de vida diferente da
elaborada pelos cavaleiros da Demanda do Santo Graal.
O ideal de cavaleiro mostra o indivíduo capaz de realizar as mais
incríveis façanhas, um homem generoso, grande combatente, mas ao mes-
mo tempo um cavaleiro terno e que suspira de amores, um homem cheio
de desejos tipicamente mundanos. Esse cavaleiro é casto e fiel para com
sua dama, mas se entrega aos prazeres carnais quando em companhia
dela.
Dentro do romance percebe-se a clara mescla do maravilhoso re-
presentativo dos romances bretões e da gesta francesa, correspondendo
ao comedimento de uma aristocracia cada vez mais palaciana e menos
belicosa. No Amadis não se encontram pitadas de um amor adulterino e
trágico como o de Lancelot e Guinevere, ou de Tristão e Isolda, mas tam-
bém o está presente o ascetismo que marca toda a trajetória de Galaaz
na Demanda do Santo Graal.
O romance está integrado ao sistema social do qual faz parte e
que um lugar ao amor na ordem estabelecida, que fixa regras para
sua existência, conciliando-o com o casamento, mesmo que este ocorra
posteriormente à união carnal dos amantes (traço de fidelidade ao ideal
amoroso representado pela matéria da Bretanha). A virtude é premiada
com o final feliz com o qual a obra se encerra. Assim sendo, o Amadis de
Gaula constituiria um manual romanceado das virtudes do bom cortesão
contemporâneo do romance.
Segundo Antonio José Saraiva, o romance deixaria marcas indelé-
veis nas literaturas portuguesa e européia, uma vez que:
No século XVI, a obra dará origem a todo um ciclo, constituído por nada
menos de doze novelas de cavalaria (o ciclo dos Amadises), em competi-
ção com o ciclo mais recente, e nele inspirado, dos Palmeirins. Graças a
estes dois ciclos, graças às suas traduções e adaptações, a Península con-
verter-se-á no último foco irradiador de imaginação cavaleiresca para toda
89
a Europa Ocidental, o que então corresponde a certo seu arcaísmo relativo
de estrutura social e respectiva ideologia (SARAIVA, s/d: 99).
Os temas literários são elementos fundamentais naquilo que a li-
teratura chamará de estilo. Eles estão ligados à concepção que da vida e
do mundo tiveram as diferentes classes dominantes. Há que se considerar
que não raras vezes, e esse é o caso da literatura medieval no que tange ao
romance de cavalaria, a classe dominante busca os elementos que forma-
rão o substrato literário junto da cultura popular. Nesse caso, percebe-se
claramente o trânsito da circularidade cultural, preconizado na obra de
Carlo Ginzburg
47
.
No caso do período medieval, dois temas são caros e foram os res-
ponsáveis pela formação de grande parte da literatura de cunho ficcional
do período que vai dos séculos XI ao XV. São eles: amor e luta. O primei-
ro mote inspirador da poesia lírica, o segundo fonte primária da matéria
épica.
Na rica trovadoresca, o amor apresenta-se como a tentativa de
união entre o homem que solicita e a mulher que nega, constituindo a
poesia cortês, dessa forma, em síntese que exalta o amor infeliz. A esse
tema de tristes contornos se juntam outros mais, que a vida sentimental
acarreta aos amantes: a separação saudosa, o regresso, o encontro, o ir-se
juntamente com o despontar da aurora, entre outros.
A propulsora da ação épica é a luta. Nas epopéias nórdicas, mar-
cadas pelas sagas, a trama se desenrola tendo por pano de fundo os feitos
realizados pelos deuses do paganismo germânico: Odin e sua lança Gug-
nir, Thor e seu machado Mjolnir, as Valrias em sua louca cavalgada em
busca dos guerreiros caídos nos campos de batalha. Nas canções de gesta,
a defesa da fé torna-se o fulcro das proezas de Carlos Magno.
Nesse contexto, a mulher desempenha um papel secunrio e
a natureza ainda não se impõe como ingrediente literário. A crueza
da épica será temperada com a assimilação dos elementos clássicos
da erótica provençal e ovidiana, do maravilhoso pagão e da influên-
cia religiosa. Misturando nesse cadinho o romance cortês, ver-se-á a
suavização dos primitivos cantares de gesta: onde antes o fio da espa-
da retinia sobre os inimigos, sentir-se-ão novos elementos como, por
exemplo, a floresta encantada povoada de animais fantásticos, além
da presença das fadas e de forças secretas que conduzem o homem em
direção a caminhos tortuosos.
47 Sobre o assunto ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia das Letras,
1998.
90
O mundo sobrenatural bretão, com seus filtros mágicos que recen-
dem ao doce veneno das senhoras da magia que solicitam o amor dos
cavaleiros, transforma a epopéia cristã. Nasce uma nova modalidade
literária, o romance de aventura, que desponta em fins do século XII,
para florescer exuberantemente no século XIII.
Outros temas em voga na literatura medieval marcando, sobretudo,
a esfera do lirismo, foram a Virgem Santíssima, a Morte e a Fortuna. O
primeiro é visível por toda a Idade Média, constituindo em pólo oposto do
segundo. A figura da medianeira divinal encarna o princípio contrário à
Morte. Maria representa o Bem, a fonte da vida, da esperaa, da piedade.
A Morte constituiu a esfera do Mal, o reino do Nada, da negação e de tudo
o que é inexorável.
O tema da Virgem acompanha principalmente a esfera da literatura
litúrgica, cujo culto data de finais do século IV, mas como tema literário
a figura de Maria aparece em vários poemas líricos latinos do culo V.
Na literatura profana seu ingresso se tardio: far-se-á sentir a partir do
século XII, com as canções de gesta. A França foi o habitat natural desse
fenômeno.
O tema da Morte nasceu literariamente no final doculo XII, mas
adquiriu um caráter verdadeiramente epidêmico no século XV. Nesse mo-
mento a Morte ocupa obsessivamente a consciência dos homens, uma
clara decorrência da Peste Negra que assolava a Europa no período. In-
vadidos pelo desespero e pelo ceticismo de uma época devorada pela boca
pestilenta da doença, pela miséria, pela dor e pela fome, os literatos tor-
naram a Morte uma expressão e uma imagem dessa conjuntura pungente
e dolorosa.
A esse tema outros temas se ligarão: o cadáver, a caveira, o esque-
leto, o corpo em estado de putrefação. Os ataúdes exumados, as vozes
angustiantes dos moribundos, a visão da fraqueza humana perante o ine-
vitável, a imparcialidade da Morte, o sentimento do quanto à vida é fugaz,
o menosprezo do mundo; somente para citar alguns. O tema da Morte foi
além da expressão da dor, ele tornou-se uma personagem séria e terrível,
responsável por moralizar uma população devassa; por suscitar o terror
mesmo entre os mais valorosos, por suscitar devoção entre os ímpios.
Ela assumiu uma feição grotesca e satírica nas danças macabras,
procissões de cunho profano onde pessoas fantasiadas dançavam ao som
de uma orquestra de músicos disfarçados de cadáveres, e onde a Morte
(mais uma figura fantasiada) bailava em meio ao povo, convidando os
incautos a sentirem a força de seu abraço.
O tema da Fortuna teve também uma voga de razoável importância
durante a Idade Média. Deusa pagã é a Fortuna quem governa o mundo de
91
forma tirana e caprichosa. Os homens não podem confiar em suas ações
e seus postulados, pois o humor da deusa é tremendamente instável. A
Fortuna representa a fatalidade do mundo, a explicação de mistérios inex-
trincáveis, à lei de uma justiça imanente. Esse tema exorbitou a literatura
medieval e penetrou com força a lírica do Renascimento: sua importância
será cabal na poesia amorosa e na própria épica camoniana.
Percebe-se, assim, que a cultura literária do mundo medieval tem
em si marcada uma profunda relação entre a cultura tida como erudita
(cristã, clerical) e a cultura popular (laica, folclórica). Há que se salientar
que a cultura popular representa, nesse contexto, o sentimento de todos
os indivíduos e nesse sentido ela não corresponde à hierarquia social. A
elite, ou pelo menos uma parte dela, participava da tradição cultural das
camadas menos privilegiadas, mas estas não participavam da cultura tida
por erudita.
Tal assimetria devia-se às diferentes formas de transmissão cul-
tural, uma se dando informalmente nos locais de trabalho e de diversão,
no campo, nas tavernas, nos moinhos, nas praças...Havia uma maioria da
população com acesso a um tipo de cultura e a um idioma, e uma
minoria bilíngüe (latim e um dialeto local) e bicultural. Mas isso não im-
pede o trânsito entre um estrato e outro.
Isso porque, para se colocar em meio ao povo, a cultura eclesiástica
necessariamente foi obrigada a acolher elementos de origem folclórica
para garantir estruturas mentais que fossem comuns a ela e à população.
O clero precisava ter a sua tarefa evangelizadora facilitada, daí sobrepor
sobre a cultura popular elementos de origem cristã, daí o fato de algumas
figuras terem seu arquétipo cristianizado em meio ao povo. É o caso do
Merlin e da Melusina, figuras que serão analisadas em capítulos posterio-
res desse trabalho e que denotam essa conotação cristianizada.
93
CAPÍTULO III
O MERLIM – A CRISTIANIZAÇÃO DA CULTURA PAGÃ
ATRAVÉS DA LITERATURA
Merlim é, na verdade único e múltiplo: é mago, certamente,
Mas também profeta. E, o que é menos sabido, é também o Louco do Bosque,
O Homem Selvagem,
O Senhor dos Animais,
O Sábio por excelência.
Jean Markale
Dentre as várias tradições culturais que contribuíram para a forma-
ção da figura literária de Merlim, o fabuloso conselheiro do rei Artur, uma
traz enorme preponderância e uma riqueza única para análise, sendo que é
importante avaliar esse rescaldo cultural de organização peculiar.
Uma das rias vertentes que alimenta o mito do mago vem da
tradição cultural do povo celta que em suas lendas chama Merlim de
Taliesin
48
. A herança da literatura celta sobrevive na Irlanda e no País de
Gales desde tempos imemoriais, sendo uma das heranças literárias mais
velhas da Europa ocidental, logo atrás da grega e da latina. T. G. E. Po-
well, em sua obra Os Celtas, afirma que:
A continuidade da tradição literária celta conservou-se por muitos séculos
em Gales, pelo menos todo o tempo em que houve uma nobreza galesa
para a evocar e manter, e até o fechar do século XVIII se manteve nos
espíritos a recordação da poesia palaciana a tal ponto que os poetas da
província celebravam o seu morgado local e patrono à maneira dos seus
antecessores de há doze séculos atrás (POWELL, 1974: 188)
Muitos invasores de vários grupos étnicos vasculharam a Europa
entre os séculos IV e VIII
49
, sendo assim, o mundo celta foi conquistado e
48 Sobre a questão da história celta ver: JUBAINVILLE H. D´arbois. Os Druidas: os deuses celtas
com formas de animais. Editora Madras: São Paulo, 2003. KNIGHT, Sirona. Explorando o druidismo
celta. São Paulo: Madras, 2003, QUINTINO, Cláudio Crow. O livro da mitologia celta. São Paulo:
Hi-Brasil Editora, 2002.
49 Sobre o assunto ver: ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. Brasiliense:
São Paulo, 1994.
94
influenciado por consecutivas ondas de culturas indo-européias. Culturais
e lingüisticamente falando, os celtas eram mais ligados às tradições nórdi-
cas e germânicas do que às culturas do mundo mediterrâneo e ocidental.
O que se sabe é que cada onda de invasores trouxe consigo suas próprias
idéias, as quais foram mescladas com o ideário dos povos que viviam
nas regiões invadidas.
Essa troca de idéias produziu uma síntese que continuou a cada
onda de invasão. Isso faz com que a cultura européia ocidental seja a col-
cha de retalhos que é. O advento de influências novas e exóticas, vindas
na pegada das missões cristãs, causou uma reação tanto na literatura celta
quantos nas demais, pom deu lugar a um surto arstico diferenciado
que colocou a cultura literária irlandesa em uma posição ímpar dentro da
história da civilização européia ocidental.
Alguns autores, como é o caso de Cláudio Crow Quintino, chegam
a afirmar que os valores éticos e morais da filosofia celta constituíram
através do tempo, as bases para o que o mundo conhece hoje como Cris-
tianismo. Segundo esse autor, conceitos tidos equivocadamente como
cristãos casos da Trindade e da prática da confissão, tiveram sua origem
em tradições celtas pré-cristãs (QUINTINO, 2002: 10).
Para que se tenha uma idéia do significado desse processo o uni-
verso dos celtas é tripartido, sendo formado pela conjunção do Mundo
Inferior, Mundo Superior e Este Mundo. Alguns deuses celtas apresen-
tam a característica da tríade, como é o caso de Dagda, Oghma e Lugh
50
.
Ademais, as tríades compõem a vida humana, sendo de fácil percepção:
o tempo é tríplice sendo formado por ontem, hoje e amanhã, ou passado,
presente e futuro. A tríade ainda encerra a perfeição do início, meio e fim.
Sobre o assunto informa Quintino, em obra supracitada que:
Se os celtas não nos oferecem uma cosmogênese, eles certamente possuem
uma cosmologia, segundo a qual o universo é tríplice. Isto está perfei-
tamente de acordo com o elevado conceito atribuído ao numero três, e
este parece ser um componente herdado das tradições indo-européias, pois
muitas outras culturas, como a nórdica e a hindu, também possuem um
universo tripartido (QUINTINO, 2002: 193).
Há que se salientar que em terras celtas, principalmente da Irlanda,
o Cristianismo tomou um caminho diferente do Cristianismo pregado e
praticado no resto da Europa. No mundo celta, essa prática religiosa teve
50 A união desses três deuses promoveu a vitória dos Tuatha Danann na Segunda Batalha de
Moytura. Sobre o assunto ver: QUINTINO, Cláudio Crow. O livro da mitologia celta. São Paulo: Hi-
Brasil Editora, 2002.
95
um cunho muito mais espiritual e muito menos político do que o Cristia-
nismo do continente, promovendo a salvação de uma série de conceitos e
valores que a Europa continental obliterou durante a Idade Média.
Através da literatura de origem celta, costumes da arcaica vida ru-
ral da Europa podem ser entrevistos e vislumbrados, bem como padrões
culturais, religiosos, entre outros, que deixaram marca indelével nas ra-
ízes do mundo ocidental. A cultura celta é fator de enorme relevância
na apreciação das origens européias e merece maior ateão do que tem
recebido até então, pois através dessa literatura de forte cunho mitogico
é possível traçar linhas que se estendem de um cristianizado Arthur até as
divindades pagãs que lhe deram origem. Sobre o assunto, Cláudio Crow
Quintino, em sua obra, O livro da mitologia celta, afirma que:
Ainda que desconhecidos pelo grande blico, os mitos e as lendas dos
celtas se revestem de incontestável importância na formação do pensa-
mento ocidental pré-cristão e medieval. É bem de ver que essa influência
sobrevive, ainda que em menor escala, aos dias de hoje. Basta ressaltar
que um dos mais importantes mitos ocidentais o do rei Artur [sic] e de
sua busca pelo Cálice Sagrado – é, em toda a sua essência, uma típica len-
da celta (QUINTINO, 2002: 8).
de se salientar a dificuldade de se trabalhar com a construção
desse arquétipo: inúmeros fatores contribuíram para o desaparecimento
da cultura celta, a começar pela expansão romana. À medida que as legi-
ões romanas avassalavam as terras habitadas pelos celtas, a cultura destes
ia sofrendo danos irreparáveis. Primeiro, a imposição do latim como lín-
gua oficial, o que fez com que elementos lingüísticos e culturais celtas
fossem absorvidos ou perdidos completamente em favor dos elementos
trazidos pelos colonizadores.
Some-se a isso outros elementos dignos de menção, como por
exemplo, a profunda mudança na espiritualidade celta. Os deuses e deusas
deixaram de ser cultuados nos bosques sagrados e para o serem em templos.
Mais importante que isso, porém, foi o fato de a cultura e a história celta
serem absorvidas pelos romanos, deixando de ser transmitidas oralmente
para passar a ser registradas pelos cartógrafos e historiadores de César.
Ademais o cristianismo de Roma acabou exercendo também a sua
influência sobre as diversas culturas européias, absorvendo alguns ele-
mentos locais, suprimindo outros, moldando a sociedade conforme a sua
idéia de espiritualização. Os celtas não ficaram de fora desse processo.
Segundo Cláudio Crow Quintino, na obra O livro da mitologia celta:
96
Se antes as crenças e tradições dos celtas haviam se mesclado à religião
romana, perdendo assim muito de sua identidade, agora, nesta segunda
leva, elas são perseguidas pela Nova Religião, descaracterizando ainda
mais seus traços originais. Desta vez, nem na Irlanda a cultura celta esta
a salvo (QUINTINO, 2002: 40).
A data oficial do ingresso do Cristianismo na Irlanda é o século V,
com São Patrício
51
, mas não encontrou no país uma aceitação rápida por
parte da população. Muitos resistiam em abandonar suas crenças pagãs
em favor da religião cristã, especialmente os druidas. Ademais, por estar
longe do controle da Sé Romana, o cristianismo irlandês possuía uma
fortíssima carga de paganismo: mulheres ordenadas episcopisas, padres
casados, uma tonsura idêntica a dos druidas, entre outros elementos.
Na Irlanda sobreviveu uma língua e uma literatura que brotam dire-
tamente dos mananciais celtas, sem grande influência da cultura romana.
A tradição irlandesa foi conservada primeira de forma oral, passando
depois a ser escrita, mas revela uma continuidade desde tempos pré-his-
tóricos até a Idade Média. Essa é uma questão que merece ser mais bem
avaliada devido às circunstâncias de como essa cultura sobreviveu. Sobre
o assunto informa T. G. E. Powell, na obra Os Celtas, que:
Enquanto, nos primeiros reinos teutônicos da Europa pós-romana a Igreja
nada mais encontrou do que o mais elementar dos maquinismos execu-
tivo e legislativo, na Irlanda depararam os missionários com um corpo
altamente organizado de homens instruídos, dotado de especialistas tanto
no direito consuetudinário como nas artes teológicas, literatura heróica e
genealogia. o paganismo se viu suplantado, mas as escolas orais tra-
dicionais continuaram florescentes, somente agora lado a lado com os
mosteiros (POWELL, 1974: 61).
Os sacerdotes pertenciam a uma classe antiga e respeitada dentro
da cultura celta. Os druidas, como eram chamados, eram os responsá-
veis pela manutenção e transmissão da cultura, dos conteúdos dos textos
51 A gura de Patrício é cheia de controvérsias e vários relatos comprovam o elemento do
binômio pagão/cristão que envolve o padroeiro da Irlanda. Uma das lendas conta que para fugir de
seus perseguidores, ele transformou-se em um gamo. Sabe-se que essa prática mimética era uma das
características que se acreditavam, os druidas fossem capazes de realizar, e não se esperava que um
padre cristão se utilizasse desse tipo de magia. Segundo Cláudio Crow Quintino, na obra O livro da
mitologia celta, essa técnica, conhecida como féth ada, fez com que Patrício transformasse a si e ao seu
companheiro em gamos, evitando assim uma emboscada dos pagãos. Dois pontos merecem abordagem
em relação a essa questão: ou o padroeiro da Irlanda não era tão visceralmente contra os costumes
pagãos e até acreditava neles, ou então esses mesmos costumes eram tão fortes que nem mesmo a
chegada do Cristianismo conseguia apagá-los. Maiores informações sobre o assunto ver: QUINTINO,
Cláudio Crow. O livro da mitologia celta. São Paulo: Hi-Brasil Editora, 2002.
97
legais e das formas narrativas épicas e mitológicas, sendo que graças a
esse aporte é que se tem conhecimento sobre a vida irlandesa tal como
a mesma decorria quando a Irlanda abandonou a pré-história. Durante
toda a Idade Média, essa herança literária foi berço que gerou suporte e
inspiração para os romances de cavalaria, que foram buscar na tradição
mitológica dos celtas vários de seus personagens e um toque de sobrena-
turalidade que contempla o maravilhoso dentro dos romances.
que se salientar ainda que a hisria dos celtas e dos druidas
está ligada de forma inerente à memória que esse povo construiu de seus
mitos. As raízes desse manancial são tão profundas que em várias regiões
os mitos que as criaram ainda são uma constante e as antigas tradições
são cultuadas de forma direta ou indireta. Sobre o assunto H. D´Arbois de
Jubainville, na obra Os druidas: os deuses celtas com formas de animais,
diz que:
Essas raízes são mais profundas nos já citados extremo Norte da Escócia e
da Irlanda, onde os mitos e as lendas bardas ainda correm de boca em boca
e a alma céltica é revivida a cada festa tradicional da região, com seus can-
tos, suas músicas, danças e seus costumes. E esses mitos o importantes
na medida que levantam os véus das crenças célticas e lembram a atmosfe-
ra do ‘sobrenatural’ em que viviam, com o misterioso entrosamento entre
os vivos e os mortos, tendo por cenário a abóbada das árvores e o escrínio
celeste (JUBAINVILLE, 2003: 10).
Aliás, os feitos maravilhosos realizados por Arthur e seu qüito
de cavaleiros também podem ter raiz na literatura oral dos celtas, a qual
se ocupava dos feitos marciais e bravos de seus espadachins, os quais
poderiam ser filhos ou eles mesmos deuses dotados de força e habilidades
incomensuráveis para o combate.
A épica criada por essa literatura de tradição oral revela todas as
características do combate com carros, do desafio dos campeões, da esgri-
ma a pé, dos compridos escudos decorados entre outras tradições. Sobre o
assunto observe-se a seguinte citação, retirada do livro de Charles Squire,
Mitos e lendas celtas:
Cuchulainn bebeu, banhou-se e saiu da água. Mas descobriu que não podia
caminhar; então gritou para que seus inimigos viessem buscá-lo. Havia um
pilar de pedra ali perto; prendeu-se a ele com seu cinto de modo a morrer
de pé. Seu cavalo agonizante, o Cinzento de Macha, voltou para combater
com ele e matou cinqüenta homens com os dentes e trinta com cada um de
seus cascos. Mas a luz do herói tinha desaparecido do rosto de Cuchulainn,
98
deixando-o pálido como a neve de uma noite, e um corvo apareceu e
empoleirou-se no seu ombro (SQUIRE, 2003: 151)
52
.
A marca do corvo que aparece para prenunciar a morte do herói
remete a uma outra faceta da cultura celta: o sobrenatural e a ligação
que este povo tem com a magia e a religião. Outro aspecto importante
está relacionado à noção que os celtas possuem sobre o tempo: ele é um
elemento abstrato para eles, e se esvai por meio de ciclos que tornam a se
repetir. Diariamente o sol nasce e morre, anualmente à primavera sucede
o inverno. Esses fenômenos são envolvidos na mágica que exala da natu-
reza. Há que se salientar, porém, que os celtas não estão mais obcecados
pela magia do que qualquer povo do Velho Mundo.
O tempo celta é organizado num calendário religioso que divide o
ano em 4 grandes festas, sendo que a primeira e maior delas é o samain, a
festa que celebra o inverno, ou a estação em que a vida se retrai, marcando
um momento em que o mundo dos vivos e dos mortos se toca. A cultura
celta não teme seus mortos, pelo contrário, os homenageia e cultiva uma
grande afeição por eles, a ponto de deixar um espaço vago à mesa nas
noites do samain para que os ancestrais possam sentar junto aos vivos.
Essa festa acontecia em meados de novembro e marcava o fim de
um ano e o começo do ano seguinte. Os mitos que estão relacionados ao
samain ligam-se às tradições de renovação da fecundidade da terra e dos
seus habitantes, dizendo respeito à união do deus tribal com a deusa da
natureza que alimentava o território da tribo e que era personificada num
rio ou noutro tipo de acidente natural
53
.
Eram, pois a estas potências sobrenaturais a quem se devia supli-
car no samain, mas a grande ocasião do ano era a noite que antecedia o
ritual, pois se pensava que o mundo temporal estava dominado por forças
mágicas. Hordas de seres fantásticos sam das grutas e morros e certas
pessoas podiam mesmo ser recebidas nesses reinos misteriosos enquanto
monstros terríveis tentavam assaltar as fortalezas do tempo comum.
A segunda festa em importância da Irlanda era o beltine ou
cétshamain, que marcava o início da estação quente. Beltine também se
caracterizava por ser uma festa predominantemente pastoril, caracteri-
zando o momento em que o gado voltava a pastar nos campos. Um dos
costumes básicos dessa celebração, acender fogueiras nos campos conti-
52 A forma de corvo é utilizada por Morrigham, deusa celta da guerra antes das batalhas. Normalmente
é sob a forma de um corvo que ela se oferece aos olhos dos guerreiros.
53 que se salientar outro fato: as deusas célticas apresentam sempre dupla faceta, podendo ser
caracterizadas tanto pela fertilidade quanto pela capacidade de destruição. Esse arquétipo também
acompanha a gura da feiticeira Morgana.
99
nuou mesmo depois da cristianização da Irlanda
54
. A festa que marca o
início do verão está ligada ao deus celta Belenus, senhor do fogo.
O verão traz ao mundo natural a pujança da vida. É o momento
em que todas as criaturas estão ativas sob o calor do sol que fertiliza as
sementes e faz com que os grãos amadureçam e as plantas vinguem. É
também o momento da procriação, período de extrema fertilidade onde o
sol reina absoluto. O filho de Morgana e de Artur foi gerado num festival
de Beltaine, em plena festa de beltine.
Além dessas duas festas de marcada importância no calendário cel-
ta, outras duas festividades devem ser ressaltadas: imbolc e lugnasad. A
primeira marca o período em que as ovelhas começam a lactar corres-
pondendo, no calenrio criso, ás celebrações que comemoram Santa
Brígida
55
.
O lugnasad era comemorado nos princípios de agosto. Essa festa
acontecia para garantir o amadurecimento da colheita, e mais uma vez se
percebe o intercâmbio da cultura celta com o sobrenatural, pois o cerimo-
nial é cumprido para se garantir a colheita e não para dar graças por ela.
Na opinião de T. G. E. Powell, em obra supracitada, isso acontece porque
“o conceito de gratidão não entrava no esquema da magia, pois a humani-
dade seguia o ritual que, se executado devidamente, por força culminaria
no resultado pretendido” (POWELL, 1974: 123).
As narrativas literárias destas festividades são marcadas por vários
elementos que remetem à religiosidade do povo celta. Por exemplo, nas
narrativas envolvendo o samain Dagda, alcunhado de o bom deus, sempre
aparece representado como uma figura grotesca, de apetite e poder des-
medidos, coberto com as vestes curtas de um servo e tendo por arma uma
enorme clava, arrastada sobre rodas, tamanho é seu peso. Além disso, o
deus possui um caldeirão mágico, dotado de propriedades de inesgotabi-
lidade, rejuvenescimento e inspiração
56
. Esse caldeirão mágico é símbolo
de abundância na tradição irlandesa, e dele, ninguém se retirava insatis-
feito.
54 Era costume nessa celebração fazer o gado passar por entre duas fogueiras acesas para assim car
protegido das doenças. Esse rito era supervisionado pelos sacerdotes druidas. Na festa de São João,
existem vários costumes semelhantes a essa bênção, sendo que o mais conhecido deles é o ato de passar
a fogueira.
55 Brígida é uma santa da Igreja Católica. Ela corresponde á deusa celta Brigid, senhora da lareira e
do fogo da casa, a qual se apresenta sempre sob a forma de uma trindade. Segundo as tradições celtas,
Brigid era uma feiticeira lha do deus Dagda, sendo senhora da fertilidade e das artes de ensinar e curar,
daí sua face tripartite.
56 Cabe aqui uma analogia com o Graal. Esse cálice mágico tem origem controversa sendo para uns o
cálice em que Cristo teria bebido com seus discípulos na Última Ceia; para outros o cálice em que José
de Arimatéia teria recolhido o sangue do Salvador no momento em que ele foi atingido pela lança do
soldado romano. Para outros ainda, esse cálice seria na verdade uma cornucópia, a qual proveria com
fartura o seu possuidor. Em todas as versões, porém, paira a mesma mensagem, qual seja, a idéia da
eternidade, da salvação e da fartura.
100
O sagrado tem uma importância capital na cultura celta, daí a im-
portância que os sacerdotes (druidas) possuem nas suas narrativas tanto
como personagens quanto como narradores. A palavra druida foi latiniza-
da por Cícero como druidae e acredita-se que a tradução mais correta para
a palavra tenha analogia à sabedoria, ou sabedoria profunda.
Druida pode tamm significar sabedoria do carvalho, árvore que
na cultura celta representa a divindade, sendo, portanto apropriada para
homens que eram os intermediários entre o homem e o meio sobrenatu-
ral
57
. A esncia do conhecimento druídico do sobrenatural apresenta uma
graduação na escala dos saberes que pode ser assim interpretada: vates,
os profetas ou poetas inspirados. Este vocábulo passou a designar, no
tempo cristão, o vidente. Além dessa categoria, considerada a mais baixa,
havia ainda os bardos (músicos) e os druidas propriamente ditos. Sobre o
assunto diz H. D´Arbois Jubainville, em obra supracitada que:
Os gauleses tiveram duas categorias principais de sacerdotes: os druidas,
druidas = dru-uides, ‘muitobios’, dos quais todo mundo ouviu falar,
e os Gutuatri, que são bem menos conhecidos. Não diremos nada ainda
sobre os Uatis, ou seja, os adivinhos profissionais que, na Irlanda, São
Patrício não considerou sacerdotes e que subsistiram oficialmente nessa
ilha durante a Idade Média, em meio à população cristianizada, diante de e
com a proteção do clericato cristão (JUBAINVILLE, 2003:19).
Segundo Cláudio Crow Quintino, em obra supracitada, na socie-
dade celta, os bardos eram os grandes responsáveis pela poesia e pela
transmissão e preservação da cultura. Os Vates seriam mais importantes
que os bardos por uma razão básica: eles eram os responsáveis pela in-
terpretação dos oráculos que continham os desígnios dos deuses, aliás,
e segundo o mesmo autor, a palavra “vaticínio”, ou previsão do futuro,
estaria relacionada a esta categoria de poetas, a qual só perdia em impor-
tância para os druidas (QUINTINO: 2002, 76)
58
.
Os druidas são figuras proeminentes na sociedade celta atuando
como árbitros e mágicos e o respeito por eles era tão vasto que nem mes-
57 Segundo as informações que se referem aos sacerdotes druidas e seus hábitos, os nemeton (bosques
sagrados) são os lugares por excelência onde eles realizavam seus ritos e sacrifícios. Cabe ressaltar
ainda que os celtas não possuíam templos, preferindo cultuar seus deuses nesses bosques sagrados.
Segundo informação de Cláudio Crow Quintino, na obra O livro da mitologia celta, um dos nemeton
mais importantes para a realização das assembléias druidícas era o de Carnutes, no coração da Gália.
Ainda segundo o mesmo autor, Carnutes foi dessacralizado primeiro pelos romanos e depois pelos
cristãos, mas não deixou de ser um importante local de culto, uma vez que ali hoje se levanta a catedral
de Chartres. (QUINTINO, 2002: 182).
58 A poesia possui para os celtas um signicado muito especial. Suas leis, cultura, religião, sua
história, enm todos os elementos que representavam sua sociedade, eram retratados através de poemas,
que eram passados através da tradição oral de geração para geração.
101
mo o rei podia se pronunciar antes que o sacerdote o fizesse. Além do que,
essas figuras misteriosas se tornaram os transmissores da cultura oral na
Irlanda graças as suas cnicas de ensino. Entre as suas fuões estavam:
o culto aos deuses, o estudo e o ensino da mitologia e de todas as ciências.
Dominando esse vasto campo do saber, pretendiam usar seu conhecimen-
to do passado para predizer o futuro
59
. Sobre o assunto informa T. G. E.
Powell, na obra Os celtas, que:
O mecanismo de ensino oral resume-se, em larga medida, na recitação
repetida de simples versos rítmicos ou formas de prosa aliterante. O fato
é que o ritmo pode induzir um estado semiextático e, com anos e anos
de repetição, pode absorver-se um enorme volume de textos. Pode acres-
centar-se a isto a natureza sagrada de todo o ensino no mundo antigo, o
conceito fortemente espalhado do mérito da recitação muito exata e os
castigos mágicos que não faltariam aos que se afastassem da verdadeira
tradição (POWELL, 1974: 162).
Depois da literatura sagrada, dos mitos, encantamentos e encantos
em geral, que teriam constituído o acompanhamento falado da prática
druídica, o conhecimento mais cuidadosamente preservado pelos sacer-
dotes era o do direito consuetudinário, daí os sacerdotes serem chamados
a arbitrar sobre as mais diversas questões.
A importância desses sacerdotes era tão cabal como sói perceber
nas palavras de Charles Squire, em sua obra Mitos e Lendas Celtas:
Eles eram ao mesmo tempo sacerdotes, médicos, mágicos, adivinhos,
teólogos e historiadores de suas tribos. Todo poder espiritual e todo conhe-
cimento humano estavam investidos neles, que na hierarquia ficavam
abaixo do rei e dos chefes. Eles estavam liberados de toda e qualquer con-
tribuição para o Estado, quer por tributo quer por serviço na guerra, de
modo a poderem dedicar-se mais a seus ofícios divinos. Suas decisões
eram absolutamente definitivas, e aqueles que a eles desobedeciam se ex-
punham a uma terrível excomunhão ou ‘boicote’ (SQUIRE, 2003: 39).
Sabe-se que o druidismo é uma das organizações religiosas mais
antigas da Bretanha. Não se sabe ao certo onde os druidas tiveram sua
origem, entretanto, acredita-se que essas figuras tenham se originado das
tribos mais antigas da Europa. Esses sacerdotes encaravam a si mesmos
59 Essa característica de conhecer o passado e de adivinhar o futuro é uma das marcas exponenciais
do grande conselheiro de Artur, Merlim. Entretanto, ao contrário do sacerdote druida, o mago recebeu
esse poder de Deus, que condoído com a situação de sua mãe, uma boa e religiosa jovem que sucumbiu
às tentações do demônio, deu a Merlim, o poder de previsão dos fatos futuros.
102
como mestres de todas as artes e de todos os ofícios, o que explica o
motivo pelo qual seus ensinamentos demoravam tantos anos para serem
aprendidos.
Como entender as forças com as quais esses fantásticos magos li-
dam? Elas não são muito diferentes das forças míticas que fundamentam
qualquer religião, seja ela pagã ou não pagã: de um lado estão alinhados
os deuses do bem, da luz, do dia, da vida, da fertilidade, da sabedoria; do
outro os demônios da noite, da escuridão, senhores da morte, da aridez, do
caos, do mal. Os primeiros eram os grandes espíritos que simbolizavam
os aspectos benéficos da natureza, as artes e a intelincia do homem; os
segundos representam os poderes hostis que se acredita eso por trás, de
manifestações perniciosas como a doença, a neblina, a peste, a seca.
Sobre o assunto informa Cláudio Crow Quintino em obra supraci-
tada que:
Os celtas, através de sua mitologia, fazem-nos ver claramente que todos
nós abrigamos em nosso interior, em nossa essência, um pouco de luz e um
pouco de sombra. (...) Os deuses celtas, reafirmamos, não se restringem a
se manifestar com uma faceta única, ou, melhor esclarecendo, como ape-
nas ‘o deus da comunicaçãoou apenas ‘a deusa da morte’ (QUINTINO,
2002: 9).
Pode-se dizer que o druidismo está relacionado ao universo que
movimenta as sociedades oriundas da caça e da coleta. Daí a ligão que
ele apresenta com a terra, incluindo a compreensão de seus ciclos. Dessa
forma, os druidas desenvolveram uma filosofia entremeada de elementos
da natureza, que celebrava os ciclos da terra, do sol e da lua, e que pode
ser refletida no calendário de festas organizado pelo povo celta. Dentro
desse contexto, se pode dizer que a religiosidade celta é dotada de um
profundo animismo, pois tudo na natureza aparece aos olhos dos druidas
como algo vivo e como tal deve ser respeitado. Destarte, o divino está
representado por toda parte.
Essa ligação transcendente com a natureza e o universo mostra um
povo que se via como parte do conjunto natural, e que considerava esse
conjunto como uma coisa sagrada a ser respeitada porque era divina. Esse
fenômeno é uma decorrência natural da espiritualidade dos celtas e aca-
bava por impor as regras de comportamento que a coletividade deveria
seguir por conta desse arquétipo. O respeito e a devoção à natureza per-
passam as páginas dos romances de cavalaria. Em inúmeros momentos
em que se encontrava fora das intrigas da corte, Merlim estava assim,
retirado em contato com a natureza.
103
O poder do verdadeiro mago dentro da cultura celta estava na capa-
cidade de ver o invisível que controla essas forças em constante combate,
daí a capacidade que esses senhores da magia possuíam de entrar em
transes, arrebatar-se para outras dimensões ou de metamorfosear-se em
animais fantásticos. Ademais, um dos princípios sicos da magia es
em fazer com que o outro seja capaz de imaginar, de criar imagens a partir
de um elemento proposto. Como Merlim faz quando se lê as páginas que
contam a história do fabuloso mago conselheiro de Artur.
Segundo Charles Squire, em obra supracitada, Merlim teria tanta
importância no ciclo arturiano quanto Zeus no Olimpo. Todos os mitos
a seu respeito permitem testemunhar sua elevada posição. Talvez ele te-
nha sido um deus especialmente venerado em Stonehenge, representando
assim o deus supremo da luz e do céu. Aliás, segundo a lenda ele mesmo
erigiu o monumento:
Então, Merlim fez virem as pedras da Irlanda, por mágica, para o cemi-
tério de Salaber e, quando chegaram, Uterpendragão foi vê-las e levou
muita gente para ver a maravilha das pedras e todos declararam que nunca
haviam visto pedras o gigantescas e se perguntavam quem no mundo
poderia mover uma só delas e como teria sido possível trazê-las. E Merlim
disse aos homens que as pusessem em , porque ficariam mais bonitas
do que deitadas.
- Ninguém, senão Deus ou vós apenas, poderia fazer isso. (...)
Foi assim que Merlim levantou as pedras que ainda estão no cemitério de
Salaber e lá estarão, enquanto a cristandade durar, de tal modo dura aquela
obra (BORON, 2003: 120/121).
60
na opinião de Pierre Brunel, na obra Dicionário de Mitos Literá-
rios, a carreira literária da personagem foi por muito tempo dependente da
literatura arturiana. Mas pelas ressonâncias que desperta, Merlim exerceu
uma atração e adquiriu popularidade o que lhe permitiu ganhar vida fora
do quadro medieval e atingir a condição de um mito literário dotado de
autonomia e relevo a ponto de tornar-se uma figura que encarna mitos da
modernidade como o enigma do que realmente significa a História e o
devir. (BRUNEL, 2000)
60 Assim a literatura resolveu o mistério de Stonehenge. As pedras seriam um monumento erigido
por Merlim para homenagear Pendragão, morto na batalha de Salaber, a qual se falará adiante nesse
mesmo capítulo, entretanto cabe salientar que historicamente falando, esse círculo de pedras que está
intimamente relacionado aos druidas e onde, possivelmente eles realizavam seus rituais de vésperas de
verão, ainda tem sua origem envolta em mistério. Maiores informações sobre o assunto ver: Knight,
Sirona. Explorando o druidismo celta. São Paulo: Madras, 2003.
104
Merlim pode ser considerado um profeta que anunciou a revanche
dos bretões contra seus invasores anglos, ou o criador da Távola Redonda,
ou ainda o inspirador da cavalaria andante. Ademais ele representa um
elo de ligação entre bem e mal (fruto da ligação de um demônio com uma
virgem) e entre a vida e a morte (em nenhuma das lendas que envolvem
a figura ocorre a sua morte). Senhor das metamorfoses, a ambigüidade de
sua imagem literária permeia mesmo aí o critério da duplicidade. Segun-
do Brunel, em obra supracitada:
O personagem, do qual desejara Robert de Boron fazer o profeta da cava-
laria cristã, não é, portanto, isento de uma ambivalência em razão talvez de
suas origens compósitas, e está conforme ao mito de sua concepção meio
diabólica, meio virginal. Pode-se também ver no seu dom de metamorfose-
ar-se, quando e como queira, um reflexo do caráter instável e contraditório
dos traços que o compõem (BRUNEL, 2000: 638).
A arte mimética que marca as ações do mago reflete como um
espelho a lembrança de poderes concedidos nos tempos de outrora aos
druidas, e é esse poder que permite ao feiticeiro das lendas arturianas
aparecer como um jovem ou como um velho, em geral como a figura de
um homem dos bosques, ou até mesmo na condição de um animal.
Quem é o Merlim? Segundo o romance, supostamente pertencente
a Robert de Boron, Merlim seria o filho de uma donzela e de um íncubo
61
.
Deus, na sua magnanimidade e vendo que o arrependimento da jovem
seduzida era sincero, teria dado ao bea graça de conhecer em parte o
futuro. No transcorrer das páginas algumas questões despontam de uma
narrativa cheia de nuances, a saber: o riso maroto de Merlin permeia todo
o texto, prenunciando sempre o controle do uso da magia pela persona-
gem.
Ademais, o mago controla o próprio romance, pois é ele quem
a Bs, confessor de sua mãe, a missão de colocar por escrito a matéria
que lhe passar e profetiza que nunca uma hisria será ouvida com tanto
agrado como a que ele narra, qual seja, a de Artur e dos homens de seu
tempo. Por isso pode-se dizer que quem comanda o circo das aventuras
arturianas é justamente o mago que lhe serve de conselheiro.
Essa etica personagem, de origem misteriosa principiada num
concílio de demônios, tem seu palco de atuação na Inglaterra, em um
tempo em que o Cristianismo apenas dava seus primeiros passos e a
61 Teoricamente o íncubo é um demônio que habita entre a lua e a terra, tendo dupla natureza,
angélica e humana. Quando lhe agrada eles tomam a gura humana com a intenção de seduzir mulheres.
No caso da mãe de Merlim, Deus permitiu que esse demônio se aproximasse. Uma mistura do sagrado
com o profano, uma vez que aí se congura a virgem seduzida pelo demônio.
105
ilha ainda não havia tido nenhum rei cristão. Segundo Heitor Megale,
informações sobre o mago nem sempre são coincidentes: existem poemas
galeses que falam sobre Mirdim, sua forma literária de folclore mais anti-
ga. Ela apresenta a figura do mago como um herói, um chefe guerreiro ou
um bardo, cujo nome era Mirdim (MEGALE, 2003: 10). Esse ser obscuro
acabou tocado pela loucura ao cabo de uma batalha e refugiou-se nas
florestas da Caledônia, onde passou a viver como um selvagem, profeti-
zando sobre a vida política de seu povo.
Outra vertente pautada em versos da antiga literatura galesa traz o
mago embarcando numa nave de cristal com seus nove bardos, sendo que
depois desse embarque nunca mais se soube de seu paradeiro. Algumas
lendas dizem que Merlim estaria num palácio de cristal, perdido em algu-
ma ilha da Inglaterra, cercado pelos treze tesouros da Bretanha.
O conselheiro de Artur estaria fadado a permanecer, como em
um sonho encantado até o dia em que Artur voltasse de Avalon, lugar par
onde ele teria se retirado com Morgana depois da sua última batalha con-
tra seu filho incestuoso, Mordred. Mas a história mais repetida é aquela
que conta de que o mago está sob o poder e os encantamentos de Vi-
viane, em um palácio encantado na floresta de Broceliande.
Para muitos, o mago é uma personagem de contos de fada, encar-
nando a figura arquetípica do feiticeiro com suas vestes e longas barbas,
usando um cajado mágico. Para outros, Merlim representa muito mais,
com seus dons proféticos e sua capacidade de metamorfose. O fato é que
essa figura literária merece ser explorada e conhecida de forma mais pro-
funda, pois existe um rico simbolismo por trás de seus dons, bem como
uma associação com o Homem Selvagem, senhor dos animais.
As lendas envolvendo a origem do mito de Merlim se perdem nas
brumas do tempo e aparentemente sua figura nada mais é do que a fusão
de várias personagens diferentes, sendo que Taliesin, conforme citado
nas páginas iniciais desse capítulo é uma delas. Segundo essa vertente, o
mago teria nascido da deusa Cerridwen, por força da magia. Gerado assim
e tendo recebido sabedoria e dons diretamente do caldeirão mágico da
deusa, ele se encaixa perfeitamente no simbolismo da criança milagrosa
que nasceu sem pai.
Comum entre todas a lendas, independente de vertente ou do final,
é o fato de que o mago Merlim é um ser dotado de poderes sobrenatu-
rais e que exerce a função de protetor e profeta em meio aos brees.
A personagem em questão possui ainda um outro quesito, muito mais
importante, e sobre o assunto informa Heitor Megale, na apresentação
da obra Merlim que:
106
(...) o estatuto e a função da personagem passa por uma grande transforma-
ção, na medida em que o autor a situa dentro da história da humanidade,
num momento crucial posterior à redenção. Percebendo o grande risco
de uma perda total, os demônios resolvem, em concílio, dar sua réplica
decidindo criar o avesso de Cristo por meios que violam as leis naturais da
criação: o diabo fecunda o corpo feminino, assim como o Espírito Santo
fizera com a Virgem. O esperado fruto diabólico teria a missão de desviar
o povo de Deus do caminho traçado por Cristo e conquistá-lo para os do-
mínios infernais (MEGALE, 2003: 14).
A ira dos demônios pode ser pressentida nas palavras que iniciam
o romance. Injuriados, eles se perguntam quem é o homem que faz o bem
pelo mundo afora, sem que a força maligna que os acompanha seja capaz
de impedir sua ação. Malgrada a ira, os demônios não entendem como
um homem nascido de uma mulher pode escapar de suas garras e ainda
os destruir. Como homem nasceu sem ter parte nos pecados do mundo,
diferente de todos os outros homens. O fato é que o início da história
conta da vitória do Cristianismo sobre o Paganismo. É a água purificadora
do batismo destruindo as crendices pagãs. Ou pelo menos, obliterando-as
e fazendo que com elas se vistam de novas roupagens.
Daí vem à idéia que o mundo infernal crie um homem feito à ima-
gem e semelhança do Cristo. Mas o demônio não tem noção da onisciência
e da sapiência de Deus, por isso, lê-se nas páginas do Merlim, que:
Assim disseram e decidiram que gerariam um homem que enganaria os
outros. São loucos demais, porque imaginaram que Nosso Senhor, que
tudo sabe, ignore suas obras. O diabo então decidiu fazer um homem que
tivesse a sua memória e a sua inteligência para enganar Jesus Cristo. Deste
modo podeis saber o quanto é louco o diabo, e muito devemos temer, por-
que pouca tão louca cousa [sic] nos engana (BORON, 2003: 23/24).
Entretanto, como era de se esperar, os demônios fracassam, pois
engravidaram um vaso puro, ilibado, virtuoso: sua mãe. Nesse contexto se
percebem nas entrelinhas dois elementos: o maniqueísmo da luta eterna
entre bem e mal. Os demônios não poderiam criar o Anticristo, uma força
que seria igualável à do Cordeiro de Deus, e que só pode advir do próprio
Deus. Em segundo lugar, toda a maternidade é sagrada, mesmo essa em
que o pai é um filho do inferno. A figura da mãe corrobora com a figura
da Virgem Maria, mãe maior, medianeira divinal que intercede pela hu-
manidade junto a seu Filho.
107
Apologias à figura de Eva também aparecem no romance, pois o
demônio só pode exercer seu destrutivo controle sobre a família de Mer-
lim devido à avó do mago, dada as artes da necromancia. Graças ao poder
maléfico que exercia sobre ela, matou o seu filho e fez com que ela se
matasse, ao mesmo tempo em que, por conta de tantas tradias, o avô de
Merlim renegou a fé cristã. Assim, o maligno ser dos infernos tinha seu
caminho livre para seguir rumo ao seu alvo: as jovens filhas do casal, da
qual ele induziu duas a cometerem atos pecaminosos e seduziu a terceira,
que deu a luz ao conselheiro do rei Artur.
Nem mesmo o conselho do bom ermitão Brás, confessor da moça
e escriba de Merlim, serviu para afastá-la do demônio. Segundo Brás, a
jovem só conseguiria se salvar das garras do diabo se fosse pacata, uma
pessoa passiva que se confessasse freqüentemente e que sempre estivesse
em contato com a luz, pois afinal é ela quem espanta as trevas e com elas
tudo o que delas advém
62
. Mas a jovem acaba caindo sob o domínio do
Maligno e em grande aflição parte mais uma vez em busca de Brás, seu
confessor. Nas palavras da jovem ficam expressas todas as dádivas de
bem-venturança que a religião cristã traz inerente às suas ações:
Devo estar mesmo muito aflita, porque o que me aconteceu ontem nunca
aconteceu com ninguém, a não ser comigo. Venho pois aconselhar-me con-
vosco, porque me disseste que todo o pecador, seja qual for a enormidade
de seu pecado, será perdoado se confessar e arrepender-se sinceramente e
fizer o que seu confessor ordenar. Ora, senhor, eu pequei, confesso, e fui
seduzida pelo diabo (BORON, 2003: 34).
Num momento de raiva, ela esqueceu-se de persignar-se bem como
de realizar todas as outras ações que o confessor aconselhara (dormir com
as velas acesas para espantar as trevas, por exemplo). Assim, ao acordar,
estava deflorada e ao perceber que a porta de seu quarto mantinha-se
fechada como deixara, encontrou para o seu mistério uma resposta: o
demônio em pessoa a seduziu e em seu corpo gerou um filho.
Num primeiro momento, Brás nega-se a acreditar que tal fato tenha
se dado e acusa a moça de leviandade, mais uma óbvia relação com a
figura da Virgem Maria. Quem em consciência poderia acreditar que
uma moça pura que não havia conhecido um homem pudesse conceber?
Assim, ele acusa a jovem de estar ainda possuída pelo demônio, mas a
insistência dela em aceitar o castigo dos homens desde que pudesse salvar
sua alma faz com que Brás se apiede dela.
62 Sobre a questão do imaginário medieval e a questão da luz ver FRANCO JR, Hilário. A idade
média nascimento do ocidente, 4 ed, São Paulo, Brasiliense: 2001.
108
Destarte, ele a condena à seguinte penitência: toda sexta-feira (dia
da paixão do Senhor e que na Idade Média, sempre era santo, indepen-
dente da semana ser santa ou não) ela deveria alimentar-se somente uma
vez. Ademais, o confessor a obriga a renunciar a todo e qualquer tipo de
tentação, envolvendo os pecados da carne, exceto em sonhos, porque
o homem nada pode contra os sonhos” (BORON, 2003: 36). Percebe-se
aqui o valor dado pelos homens medievais ao processo da virgindade e à
tentativa de se alcançar as graças divinas mantendo uma castidade que,
acreditava-se, era a marca mais pungente dos seguidores do Nazareno
63
.
A moça aceita todas as condições impostas pelo confessor e ele
avaliza sua boa vontade dando-lhe a certeza de que se seu intercessor
junto a Deus que o colocou na terra na condição de seu ministro. Passa-
do um tempo, a gravidez da jovem tornou-se alvo de comentários e não
houve mais como escondê-la. Assim ela acabou sendo condenada a com-
parecer a justiça dos homens para dar uma resposta perante os olhos da
sociedade sobre quem era o pai de seu filho. Mas não sem antes ouvir as
doces e confortantes palavras de seu confessor, que nunca deixou de estar
ao seu lado em todo esse processo, como um braço de Deus amparando
um filho dileto:
Fica tranqüila! Quando esta criança que carregas nascer, saberei de fato
se me mentiste. E confio em Deus que, se o que contaste é verdade, ele te
salvará da morte. Certamente passarás muito [sic] maus momentos, por-
que os juizes, quando o souberem, mandarão tomar teus bens e tua terra
e falarão em executar-te. Quando te mandarem prender, faze-me saber e,
se puder, irei em teu socorro. E, se és tal como dizes Deus não te recusa
ajuda. Volta então em paz para tua casa, confia em Deus e fica segura de
que vida boa ajuda muito a ter bom fim (BORON, 2003: 38).
As palavras do confessor encerram algumas das verdades que soem
marcar o cotidiano do homem medieval: passar maus momentos nessa
terra é uma marca que todos os que carregaram a palma do martírio pos-
suem. o existe uma hagiografia que contemple a vida de um santo que
não tenha passado por alguma espécie de provação. Ser um sofredor, car-
regar uma perspectiva de agruras aproxima o fiel da imagem de Cristo, o
cordeiro de Deus que através de seu sangue lavou os pecados do mundo.
Aquele que sofre nesse mundo, se aproxima da figura redentora no outro
mundo.
A expropriação dos bens materiais também faz parte desse proces-
so de redenção. A pobreza é a marca maior dos seguidores do Nazareno,
63 Maiores informações sobre o assunto consultar o capítulo 1 deste trabalho.
109
e significa o desapego dos bens mundanos e a busca sempre frenética dos
bens maiores que são sempre os espirituais
64
.
Por fim, sofrimento nessa vida terrena significa a ascensão na vida
celeste, ou seja, aqui se tem uma perspectiva escatalógica marcada por
um milenarismo que assinala que o melhor está sempre na idéia do devir.
E o devir tem um destino certo: o céu ao lado dos escolhidos para sentar-
se junto ao Pai na grande ceia que está sendo preparada. Viver esta vida
com os olhos voltados para a Vida Eterna: esse é o segredo para suportar
as agruras cotidianas de quem tem uma expectativa de vida de 35 anos
de idade.
Realmente, Bs cumpre a sua palavra. Ao saber da prisão de sua
protegida o ermitão vai aos juízes e diz que a melhor coisa que eles
podem fazer é guardar a jovem até o dia do parto e até o momento em que
a criança seja capaz de pedir o que for necessário a sua sobrevivência.
Agindo dessa maneira, os juízes estariam evitando incorrer em um crime,
pois condenar a jovem grávida à fogueira, seria o mesmo que matar um
culpado e um inocente ao mesmo tempo, pois o feto nada teria em relação
aos pecados cometidos pela mãe. E para a jovem, ainda mais um conse-
lho: que batizasse a criança tão logo ela nascesse e não esquecesse de
chamar por Brás quando fosse levada para a fogueira.
E assim passaram-se os dias até o nascimento de Merlim. E mais
uma vez Deus mostrou seu poder e a sua onipotência e onisciência pe-
rante o demônio, o qual mesmo com toda a sua força, não passa de uma
criação do próprio Deus:
E porque Deus não quis que o diabo perdesse o conhecimento do que devia
acontecer e quis que ele tivesse o que desejava, por isso o criou. Ele o criou
para que tivesse a arte de saber as coisas que existiam, as coisas ditas e
feitas e acontecidas, e tudo isso ele soube. E Nosso Senhor que tudo sabe e
conhece, pelo arrependimento da mãe, pela confissão e pelo bom propósito
que tinha em seu coração, pela boa vontade que a conduzira ao ponto em
que estava e pela força do batismo, pelo qual o filho havia sido levado até a
fonte batismal, quis Nosso Senhor que o pecado de sua mãe não o pudesse
prejudicar (BORON, 2003: 40/41).
Assim, Merlim foi coroado com o poder e a inteligência de saber
das coisas que deviam acontecer. De seu pai, o demônio, a criança herdou
64 Não se discute aqui a questão de que nessa época a igreja era possuidora de 1/3 das terras
cultiváveis da Europa ocidental. O que está sendo ressaltado é a formação de um modus operandi
ideológico que marcou a identidade cultural do homem ocidental e que tem raízes tanto cristãs quanto
pagãs. E de certa forma essa marca acompanha as estruturas mentais que formam o pensamento
ocidental até os dias de hoje.
110
o poder de saber do que havia sido feito. Destarte, a personagem do
mago representa o meio, o duplo, o ambíguo, o que olha para o passado
com os olhos voltados para o futuro.
Merlim é o fiel da balança, o fruto mais poderoso da árvore da vida
e de uma certa forma, a representação da sabedoria contida no fruto proi-
bido do Paraíso. Quem é filho de um demônio e é abençoado por Deus,
representa as duas faces de uma mesma moeda, mas ao invés de estarem
uma de costas para a outra, na figura do conselheiro de Artur elas estão
sobrepostas.
A primeira profecia do mago foi feita para sua mãe. Aos 18 meses,
Merlim comunica a sua progenitora que ela não será morta por causa
de seu nascimento. Quando os juízes souberam dessa maravilha, tiveram
todas as razões para supor que o melhor seria executar a mãe, cujo prazo
para execução ficou marcado para 40 dias. Mais uma vez Brás reaparece
no romance e acalma a jovem no que tange ao que está para acontecer.
No auge do julgamento, quando todos já parecem dispostos a con-
denar a e de Merlim, eis que um dos juizes o conclama a falar, pois
ficou sabendo que a criaa dizia que sua e não receberia a morte por
ele. São palavras do magistrado, “ouvi dizer que este menino fala e que
ele diz que sua mãe não receberá morte por ele. Se deseja vir em seu so-
corro, o que está esperando para falar?” (BORON, 2003: 46).
Diante desse convite, Merlim não se faz de rogado e entra em cena
dizendo que não será daquela vez que sua progenitora será levada à morte.
O menino afirma que se tal ato fosse cometido mais da metade da assem-
bléia que ali se encontrava assistindo ao espetáculo público da condenação
de sua mãe deveria ser morta também e da mesma forma que ela.
A argúcia e a facia do menino acabam por irritar o juiz supremo
o qual o chama a contento, dizendo que não escapatória para sua mãe.
Merlim retruca dizendo que ele ao menos sabe quem é seu pai, mas que o
juiz não pode dizer o mesmo. Ofendido em sua honra pela argumentação
da criança, o juiz chama suae a qual acaba por confessar que, de fato,
ele não era filho de quem supunha ser, mas sim, filho do confessor dela.
Depois de tudo isso, Merlim assume ser filho de um demônio e o faz de
forma tão ndida quanto uma criança poderia fazer, mas sem deixar de
lado o ar principesco que acompanha as ações de sua figura:
Vou dizer, mais por amizade do que pelo medo do vosso poder. Quero que
saibais e acrediteis que sou filho de um demônio que seduziu minha mãe.
Sabei também que demônios desta espécie chamam-se íncubos e vivem no
ar. E Deus permitiu que esse demônio me desse o conhecimento das coisas
feitas e ditas e acontecidas. Por isso é que sei a vida que vossa mãe levou.
111
E Nosso Senhor, para recompensar a virtude de minha mãe, seu sincero ar-
rependimento, pela penitência que lhe impôs o ermitão, e pela obediência
aos mandamentos da nossa santa Igreja, deu-me a graça de conhecer, em
parte o futuro (BORON, 2003: 52).
Com essas palavras o mago prenuncia a sua primeira profecia, que
culmina com a morte do pai do juiz que tentava condenar suae, a qual
acabou sendo inocentada. Após essa passagem, Merlim faz um pedido a
Brás e de certa forma se coloca numa posão de alta hierarquia junto a
Deus, o que não chega a ser um sacrilégio em virtude de sua dupla natu-
reza:
Mas agora acredite que vou ensinar-lhe a respeito da fé e da crença em Je-
sus Cristo, e direi coisas que ninguém saberia dizer-lhe, a não ser o próprio
Deus. Faça disso um livro e assim muitas serão as pessoas que se tornarão
melhores e se afastarão do pecado, ouvindo sua leitura, então terá feito
uma esmola e uma boa ação (BORON, 2003: 55).
Brás não nega o pedido, mas sabendo que o mago é filho do Pai da
mentira, solicita a ele queo seja enganado em nenhuma das coisas que
por Merlim forem relatadas. Ao que aquele que se tornará o conselheiro
de Artur responde que se fizer alguma coisa que seja contraria a vonta-
de de Jesus Cristo, então que ele seja prejudicado junto a Deus. Assim,
Merlim inicia sua história e começa a contar sobre várias coisas entre elas
o Santo Graal, que dará mote para outras aventuras de cavalaria como o
romance intitulado A Demanda do Santo Graal. Mas mais importante que
tudo, Merlim relata sobre a reunião dos demônios e sobre a percepção
destes últimos de que a partir do nascimento de Cristo tinham perdido o
seu antigo poder sobre os homens.
Essa figura literária serve para exemplificar a disputa entre Paganis-
mo e Cristianismo. Os demônios, que na ordem do processo representam
a cultura pagã, folclórica, dão-se conta da perda que têm com o nascimen-
to de Jesus Cristo (no contexto, Sua figura representa a Igreja em toda a
sua organização e portanto, a cultura clerical e erudita).
Os demônios não têm mais meios para influenciar os homens (as-
sim com o paganismo), mas encontram meios para se colocar em meio
ao povo, através da geração de um filho que apresenta a característica do
duplo. Da mesma forma que a cultura pagã mantém-se em meio ao povo
através de um processo de dubiedade, como no caso da deusa celta Brigit,
que se torna Santa Brígida, ou de antigos locais de adoração que acabam
cristianizados. O fato é que o que antes era uma forma direta de controle/
112
contato, agora passa a ser vista nas entrelinhas, mas não deixa de existir.
Apenas adquire uma outra roupagem.
Se até a passagem em que Merlim diz a Brás sobre a necessidade
de escrever um livro que relate sua história o romance tem um narrador
impessoal, com algumas referências ao próprio mago que conta suas peri-
pécias e que dita o rumo da trama, percebe-se uma guinada de 180 graus
na estrutura da narração. É um dos poucos momentos em que a presença
de Boron se faz sentir no corpo da obra. E é um dos poucos momentos em
que ele auto-intitula o texto como uma obra de ficção:
No tempo de que vos falei e ainda vos estou falando, a Inglaterra apenas
havia recebido o cristianismo, e o tinha ainda nenhum rei cristão. Dos
reis anteriores nada vos falarei, a o ser o que tiver relação com o meu
conto (BORON, 2003: 57).
O rei de quem Boron fala é Constâncio, o qual teve três filhos,
Moines, Pendragão e Uter e o período em questão retrata as lutas entre
saxões (pagãos) e normandos (cristãos) pela posse da Inglaterra, sendo
que coube aos últimos a posse da Ilha.
65
O fato é que Vortigerne, um
chefe saxão traidor, açulou os nobres a matarem o legítimo herdeiro do
trono, Moines, e assumiu seu lugar. Assim, os dois iros menores (Uter
e Pendragão) foram levados para o oriente (supõe-se que seja para a Euro-
pa continental) e ficaram lá, protegidos da fúria do usurpador. Mais uma
vez Boron faz questão de ressaltar que tornará a falar deles quando o
conto julgar necessário. Mas deixa também uma lição de moral: mas já
pode provar este conto que ninguém perde aquilo que fez para pessoas
honestas”(BORON, 2003: 60).
Com o passar do tempo, Vortigerne mostrou-se um tirano e suas
ações (como se casar com uma mulher não cristã, por exemplo) mostra-
ram a ele que seu povo não o tinha mais como um herói. Ao saber que
Uter e Pendragão estavam vivos e retornariam para tomar o que era seu
de direito, Vortigerne decidiu construir uma torre inexpugnável, mas ela
não se sustinha em pé.
Intrigado, Vortigerne quis saber porque tal fato acontecia e chamou
clérigos para lhe darem uma explicação sobre o fenômeno. A figura do
clérigo representa todo o saber da época medieval, e se alguém podia dar
65 A história britânica é muito confusa no que se refere a esse processo. Sabe-se que o normando,
Guilherme, o Conquistador, ocupou a Inglaterra em 1066 e que até Ricardo Coração de Leão (século
XII) as ligações entre ingleses e franceses foram sempre muito fortes, sendo que os primeiros sentiam-
se invadidos (de fato o foram) pelos segundos. No entanto, a política de casamentos da época, que via na
aliança entre famílias uma ação diplomática de suma importância para as ações bélicas, diculta saber
quem era quem e quem defendia o quê na ordem do dia.
113
ao rei angustiado uma explicação esse alguém eram os homens da Igreja,
detentores da sabedoria e donos de bons conselhos:
Senhor, apenas os clérigos poderiam descobrir o que se passa aqui; quanto
a nós, não vemos nada que possa explicar. Os clérigos conhecem mais
a fundo os homens e sabem astrologia; apenas eles poderiam esclarecer.
Podemos, de boa vontade, falar com eles e pedir que vos aconselhem. Falai
com eles, rei, de modo que vos atendam (BORON, 2003: 63).
Vortigerne seguiu o conselho dos sábios homens que o rodeavam
e depois de nove dias de deliberação os clérigos chegaram a uma conclu-
são: sobre a torre nada sabiam, mas viam claramente a imagem de uma
criança de 7 anos, que não tinha por pai um ser humano. Cabe aqui salien-
tar duas nuances importantes antes de detalhar a conclusão dos clérigos: a
primeira delas envolve o número 9, a segunda o número 7.
Na Idade Média os números não têm um significado matemático. A
quantificação pouco ou nada tem a dizer ao homem medieval e seu uni-
verso cheio de símbolos. Daí o processo de que por trás de cada número
existe um caráter mágico que deve ser explorado: o número 9 representa
o máximo da perfeição por ser 3 vezes a representação da Santíssima
Trindade. Não surpreende assim que os clérigos ficassem reunidos por 9
dias... Eles precisavam chegar a uma solução perfeita.
Quanto ao número 7, ele segue a mesma tendência à perfeição, pois
Deus fez sua Obra (o mundo) em 6 dias e no 7 ele descansou. Dessa
forma a criança de 7 anos representa um elemento importante na mística
que deveria manter a torre de pé. O que os clérigos o acertaram foi à
resposta a dar para o rei. Todos concordaram em dizer a mesma coisa, a
qual representava a morte da criança, que não era ninguém mais ninguém
menos que Merlim:
Eis o que faremos: um acordo de dizermos todos a mesma coisa. Que a
torre não pode manter-se de e não se sustentará nunca, se não se mis-
turar na massa das fundações o sangue desse menino nascido sem pai. Se
se conseguir e se ele for misturado na massa, a torre se sustentae ficara
para sempre intacta. Que cada um diga a mesma coisa ao rei, sem que
ele perceba que combinamos. Desse modo, poderemos escapar da morte
e nos livrar desse menino que, como vimos, deverá causar a nossa perda.
Teremos que impedir também que o rei veja o menino. Será preciso que
aqueles que forem procurá-lo o matem, assim que o encontrarem, e tragam
seu sangue ao rei (BORON, 2003: 66).
114
A fala do clérigo que capitaneia a reunião dos padres demonstra
duas coisas. Em primeiro lugar o medo pela dupla natureza de Merlim,
que é um sinal claro de sua força, por encerrar de forma intrínseca o duplo
princípio eterno do bem e do mal, do pagão e do cristão. Aliás, dupla é
a natureza humana. De certa forma as palavras do sacerdote refletem o
medo que o homem sente de sua própria dubiedade. Em segundo lugar, a
imagem da busca pelo menino e do desejo de sua morte parodia a caçada
preconizada por Herodes ao menino Jesus.
A caçada à criança tem início e o rei escolheu mensageiros que fo-
ram enviados a todas as partes do reino com uma única função: encontrar
a criança e matá-la, para que com seu sangue nas fundações, a torre se
mantivesse de pé. Os mensageiros encontraram o menino, o qual conse-
guiu convencê-los de que eles deveriam acompanhá-lo aà presença de
Vortigerne, sem causar-lhe mal, sendo que junto ao rei ele diria o motivo
real pelo qual a torre o se sustinha. Os homens juraram não fazer mal
ao menino e Merlim acompanhou os mensageiros de Vortigerne, não sem
antes profetizar mais algumas sábias palavras ditas a Brás, entre elas o
nascimento de Artur:
E enquanto o mundo durar, sua obra será conhecida e ouvida com agra-
do. E sabe de onde lhe advital graça? Virá da mesma graça que Nosso
Senhor deu a José, aquele José a quem ele foi entregue ainda na cruz. E
depois que tiver trabalhado bem por ele, por seus antepassados e por seus
sucessores, e tiver feito tantas boas obras que mereça tornar-se seu com-
panheiro, eu lhe ensinarei onde estão eles, e verá o glorioso pagamento
que José recebeu pelo corpo de Jesus Cristo que lhe foi dado. Quero enfim
que saiba, com mais segurança ainda, que Deus me deu conhecimento e
memória tais que farei, em todo o reino para onde vou, com que os homens
bons e as boas mulheres trabalhem para a vinda daquele que deve nascer
desta linhagem que Deus tanto ama. Mas quero que saiba ainda que esse
trabalho não acontecerá senão no tempo do quarto rei, o rei desses tempos
de grandes sofrimentos e que se chamará Artur (BORON, 2003: 71).
Os mensageiros levam o menino à presença de Vortigerne e Merlim
afirma ser capaz de manter a torre de com sua “ciência”, entretan-
to solicita ao rei que faça aos clérigos aquilo que eles pretendiam fazer
com ele. Vortigerne aceita sem pensar duas vezes. As palavras do menino
mago mostram mais uma vez a sua sapiência, pois ele não tem pejo em di-
zer ao rei a verdade, ou seja, que os sacerdoteso queriam matá-lo para
deixar a torre em pé, mas porque viram que ele seria a causa de muitos
males para eles, inclusive sua morte.
115
A causa da queda constante da torre era a presença de um lençol de
água e sob o mesmo a existência de dois dragões cegos, um ruivo e outro
branco em constante movimentação. Assim, a torre desabava por conta
desse fenômeno. Depois de toda a explicação sobre a queda da torre, Mer-
lim, mais uma vez, faz uso da sua sapiência ao dizer aos clérigos que:
(...) cometestes grande loucura imaginando que poderíeis trabalhar com
astrologia, não sendo virtuosos e justo como deveríeis. Exatamente por-
que sois cheios de cios, fracassastes em vosso empreendimento. Vossa
ciência não vos permitiu ler nos astros o que Vortigerne vos pedia, porque
não éreis dignos. Mas foi mais fácil ler que eu havia nascido. Aquele que
vos revelou a minha existência e pretendeu que devíeis morrer por minha
causa, o fez pela raiva de me haver perdido (BORON, 2003: 83).
O demônio pretendeu usar os clérigos como instrumento para matar
Merlim, entretanto, Deus que é infinitamente mais poderoso impediu que
esse ato nefasto acontecesse. O mago segue profetizando e diz ao rei que
os dois dragões representam de um lado ele (o dragão ruivo, que será der-
rotado pelo branco) e do outro os filhos de Uter e Pendragão que voltarão
para assumir o lugar que lhes é de direito.
Nem a torre inexpugnável que pretendia construir, impediria que
Vortigerne sofresse as agruras do destino, em seu caso, a morte. As
tais profecias, o mago desaparece rumo a Nortumberlândia para encontrar
Brás e contar-lhe das suas peripécias. Detalhe fantástico, ele ainda é um
menino de 7 anos. Aliás, nos romances de cavalaria, tempo e disncia
são apenas detalhes no enredo, não existe a preocupação com a verossi-
milhança de qualquer um desses fatores.
66
As profecias do mago se realizaram e Vortigerne foi derrotado, os
irmãos retomaram seu lugar e Pendragão começou seu reinado, o qual não
poderia iniciar sem que a presença de Merlim fosse exigida. Pendragão
lhe mandou chamar para que lhe desse aconselhamento. Merlim veio ao
encontro dos mensageiros do rei disfarçado como segue na citação abaixo
transcrita:
Veio sob a aparência de um lenhador, com um machado ao ombro, as
pernas enfiadas em grandes botas de couro, vestido de uma túnica rasgada,
66 Esse fenômeno pode ser explicado pelo fato de que a sociedade medieval faz parte de uma
temporalidade diferente do mundo contemporâneo. O homem medieval marca o tempo segundo o sabor
das estações. Como ele não faz parte de um mundo escravizado pelo relógio, onde tempo é dinheiro
contado, controla as suas ações pela natureza. Daí o fato de nos romances de cavalaria um ano parecer
um dia. Some-se a isso o fato de que o elemento mágico exige a abstração da realidade por parte de
quem lê: no mundo da magia o tempo nunca exerce uma inuência normal.
116
cabelos desgrenhados e uma barba hirsuta, mais parecendo um selvagem
(BORON, 2003: 88).
Essa imagem remete ao fato anteriormente comentado de que o
Merlim não tem idade nem forma. Ele é absoluto e não representa a vida
humana em fases, mas todas as fases da vida humana em um único mo-
mento. Mimetismo essa é a palavra chave que envolve a figura dessa
personagem.
Posto como estava, no traje de um lenhador, Merlim insiste em
falar com o próprio rei. Dito isto, esfumaça-se no ar, fazendo crer àqueles
que vinham lhe falar em nome de Pendragão que haviam visto o próprio
diabo e eles decidem retornar ao mestre que lhes enviou naquela missão
e dar-lhe conta das maravilhas que haviam visto. Pendragão acaba por
confiar o trono ao seu irmão Uter para ele mesmo ir à procura do mago. E
é na forma de um pastor que o mago mostra-se aos emissários que acom-
panhavam o rei em sua busca pelo feiticeiro. E mais uma vez ele deixa
claro que só falará ao próprio Pendragão:
- Tens alguma notícia de Merlim?
- o, mas vi ontem um homem que me disse que o rei viria procurá-lo
hoje nesta floresta. Ele veio? Sabes algo a respeito?
- É verdade que o rei o procura. Saberias ensinar como encontrá-lo?
- Isto direi apenas ao rei; a ti nada mais direi.
- Posso levá-lo ao rei.
- Meus animais ficariam mal guardados, e eu não preciso dele. Que ele
venha a mim, então direi como encontrar aquele que ele procura (BORON,
2003: 91).
Nos dois primeiros momentos de seu contato indireto com Pen-
dragão, Merlim não usa de seus poderes como senhor do bem e do mal,
herdeiro da tradição dupla da árvore da sabedoria. Ele se coloca na condi-
ção de pessoas humildes, um lenhador e um pastor. Essa figura expressa
a questão da essência humana. Nem sempre se percebe que a esncia do
saber não está onde estão o poder e a riqueza, mas sim nas lições oriundas
das figuras mais humildes. Merlim acabou por se tornar um conselheiro
na corte de Pendragão, a pedido do próprio rei, o qual não nega que ne-
cessita sobremaneira dos conselhos e da ajuda do mago.
O astuto feiticeiro ainda avisa ao rei que quanto mais ele confiar
em suas palavras e seguir seus conselhos, mais os homens terão ciúmes
da confiança que crescerá entre eles. Mas se mesmo assim Pendragão qui-
ser correr o risco e aceitar a presença do mago, muitos obstáculos serão
117
vencidos pelo rei. A mensagem do mago ainda contém uma intimidação
clara ao rei:
Sabereis facilmente, mas tomai cuidado, se tendes apego à vida, de o não
dizer a ninguém, porque se vos pegar traindo esse segredo, nunca mais terei
confiança em vós e vós perderíeis mais do que eu (BORON, 2003: 96).
Dessa forma, Merlim se aproximou de Pendragão e tornou-se seu
conselheiro. Após esse processo, partiu mais uma vez em direção às mis-
teriosas terras do norte e foi contar a Brás tudo que havia se passado com
ele para que o ermitão registrasse. Algum tempo depois, o mago retornou
à corte de Pendragão e reuniu-se aos dois irmãos. E mais uma vez se utili-
za seu poder de metamorfose, a ponto de confundir Uter, que considerou
as transformações do mago como maravilhas únicas no mundo.
Nesse encontro, Pendragão faz saber a Uter que Merlim tem um
grande poder: ele é capaz de conhecer as coisas que foram ditas e que
aconteceram, bem como as que acontecerão. Sendo assim, seria adequado
que os irmãos contassem com o mago como conselheiro em todos os ne-
gócios, mas como amigo em primeiro lugar.
O desejo de Pendragão revela o que existe de mais antigo na con-
duta do ser humano: à vontade de buscar o devir, o medo do futuro, uma
espécie de milenarismo que acompanha o homem desde tempos imemo-
riais e que marca de forma indelével a estrutura do pensamento humano.
Merlim o se nega a ficar como conselheiro dos irmãos, mas
confia-lhes em segredo que de tempos em tempos tem de se afastar dos
homens, por força da natureza. Essa imagem do mago que se afasta do
convívio com os homens remete ao processo de que a busca do conheci-
mento é sempre individual e pessoal, além de demonstrar a necessidade
de romper com as convenções sociais que regram a vida em sociedade.
Para aprender, Merlim deveria se isolar.
Somente assim ele conseguiria acessar níveis mais profundos de co-
nhecimento, geralmente associados ao mundo dos mortos e dos espíritos.
No Outro Mundo é que fluem as correntes mágicas que tornam o mago
mais poderoso, as cadeias que lhe trazem o conhecimento, a sabedoria e
a inspiração. Aqui, mais uma associação pode ser feita, ligando Merlim à
figura do xamã, que significa, segundo Cláudio Crow Quintino, “media-
dor entre nosso mundo e o Outro Mundo” (QUINTINO, 2002: 172).
Quando está isolado, Merlim está realizando uma prática xamânica,
ou seja, está entrando em contato com os ancestrais, buscando no Outro
Mundo a sabedoria para gerenciar as coisas desse mundo. O xamanismo é
uma prática que está associada às religiões ancestrais de diversos povos.
118
Quanto mais “primitiva” e “elementar” for uma religião, mais presen-
te nela estão os elementos xamânicos: assim, a natureza é vista por ela
como algo vivo e dinâmico dotado de uma forma de ação única e alguns
indivíduos nesse contexto o capazes de interagir com os esritos das
criaturas e de ver o mundo como ele realmente é. Essas figuras são os
xamãs, como Merlim.
Mas ele afirma que mesmo longe de Uter e Pendragão, ambos seria
sua primeira preocupação e que, sabendo ele de qualquer dificuldade que
por ventura estivessem passando os dois irmãos, viria em seu socorro sem
tardar. Além disso, aconselha:
(...) Peço-vos, pois que minha companhia desejais, que o desanimeis
em minha ausência e que externeis em público, cada vez que eu volte a
vos ver, grande alegria. Os homens bons apreciarão muito isto, e os maus,
aqueles que o vos amam, me odiarão, mas não ousarão demonstrar, se
agirdes dessa maneira. Sabei, por fim, que, exceto para vós e privadamen-
te, não modificarei mais minha aparência (BORON, 2003: 103/104).
O primeiro conselho que o mago oferece ao seu senhor é de que não
aceite tributos dos saxões que estão na fortaleza de seu inimigo Anguis,
o qual havia sido morto por Uter. Segundo Merlim, aceitar os tributos
dos saxões significaria atrair grandes males sobre a terra, no que o mago
mostra sua inigualável sabedoria.
O feiticeiro aconselha Pendragão a ordenar que os saes deixem a
fortaleza e o país, sendo assegurada para eles à partida incólume do solo
inglês. De certa forma, com essa atitude os inimigos do trono viam sua
ação desarticulada, pois ficavam sem forças para resistir a Pendragão.
Por essa ação maquiavélica, Merlim conseguiu que os saxões fos-
sem expulsos da Inglaterra sem derramar uma só gota de sangue. Assim,
ele se tornou senhor do conselho de Pendragão e por conta disso, muitos
senhores da terra ficaram desgostosos. que se considerar que mesmo
sendo um mago poderoso, Merlim tem uma origem obscura: ele não tem
linhagem nem sangue nobre e aceitar o conselho e a ordem de um ho-
mem que se metamorfoseia em pastor é, no mínimo, ultrajante para vários
membros do conselho.
A amizade que Merlim tem com Pendragão desperta ira. Ele es
muito próximo ao rei que de certa forma, não age sem que o mago lhe dê
seu consentimento. É nesse sentido que se pode dizer que a personagem
do mago alinhava e tece toda a trama do romance de Robert de Boron.
Posto à prova por um conselheiro invejoso, que proclama aos 4
ventos ser a ciência do mago de origem diabólica, o feiticeiro é submetido
119
a uma prova em que lhe é ordenado que diga aos 25 membros do conse-
lho como será a morte do conselheiro. Mais uma vez, se percebe nesse
cenário o misticismo dos números: 25 conselheiros formam pela cabala
medieval um conjunto perfeito, pois a soma perfaz um total de 7, o que
está diretamente relacionado ao processo de criação do mundo, pois Deus
o criou em 6 dias e no sétimo, descansou.
Some-se a isso a nuance de tentar saber do futuro, o prisma do de-
vir que sempre envolve a figura do mago: o desejo de saber como será a
morte, desejo esse que o ser humano traz também incólume dentro de si,
à busca pelo eterno e pelo sentido da vida, uma vez que a morte de certa
forma representa o coroamento de um processo. No caso específico do
homem medieval, a sua certeza estava em acreditar que o mundo post
mortem seria melhor do que o mundo terreno. As agruras de sua vida co-
tidiana o obrigavam a ter uma esperança no que estava por vir. Esperança
esta que, de certa forma, marca as pegadas da Humanidade até hoje.
Sem temer castigo, a resposta do mago é direta: “Senhor, pedistes
que vos dissesse de vossa morte. Pois bem, eu vos direi: sabei que no dia
que morrerdes, caireis de um cavalo e quebrareis o pescoço. Deste modo
terminareis vossos dias” (BORON, 2003: 107). Ao mesmo conselheiro,
agora disfarçado, o feiticeiro faz um progstico diferente: ele haveria de
morrer pendurado. Era o que bastava para que o conselheiro o tomasse
por um grande charlatão:
Senhor, vedes claramente que esse homem é um louco mentiroso, porque
profetizou para mim duas mortes incompatíveis, mas ainda o submeterei
a uma terceira prova diante de s. Irei amanhã a uma abadia, fingirei de
doente e vos mandarei chamar pelo abade que vos dirá que eu sou um de
seus monges. Ele vos dirá que está muito angustiado com medo de que eu
morra, então vos pedirá, por Deus, que leveis lá vosso mago. Confesso-vos
que não o experimentarei senão mais uma vez (BORON, 2003: 108/109).
E assim procederam. Após a missa, o abade solicitou ao rei que
levasse seu mago ao mosteiro, para que ele visse um de seus monges que
estava gravemente enfermo, e que não passava do conselheiro disfarçado.
Essa figura do romance demonstra claramente a conjunção do sagrado
com o profano, do pagão com o cristão: um mago, filho do denio,
entrando numa abadia para curar um monge doente. Mesmo que tudo não
passe de uma falácia, a figura representa claramente a heterogeneidade de
culturas e pensamentos que envolvem a literatura medieval.
Merlim não se nega a ir. Mas pede a Pendragão que Uter se faça
presente, pois tem uma coisa a dizer e quer fa-lo na frente do irmão do
120
rei. Chamando-os à parte, faz saber que o conselheiro que o põe à pro-
va não passa de um louco e que, de fato, terá as mortes que ele previu:
quebrará o pescoço e, como se isso não bastasse, acabará pendurado. Pen-
dragão deixa uma dúvida pairando no ar: como é possível que o homem
tenha duas mortes tão diferentes?
E o mago é seco ao dar a sua resposta, onde profetiza a morte
do rei:
Senhor, se ele não morrer como eu predisse, não acrediteis em mais nada
do que vos digo, porque sei muito bem a morte dele e a vossa, e sei tam-
bém que, depois que virdes cumprir-se a dele, me perguntareis pela vossa.
Seja como for, digo a Uter que o verei rei, antes que me separe de sua
companhia (BORON, 2003: 109).
Indo até o local onde o falso monge estava, Merlim manda que ele
se levante, pois sabe que tudo não passa de um engodo. Ademais, diz que
além de quebrar o pescoço, ficar pendurado, o conselheiro acabará afo-
gando-se. Mesmo vendo a estapafúrdia previsão de seu conselheiro, o rei
preferiu manter sua confiança no mago, até saber que tipo de morte havia
sofrido o conselheiro. E de fato, a previsão do mago concretizou-se:
Um dia, muito tempo depois, esse homem cavalgava com numerosa es-
colta, e chegou a um rio. Sobre esse rio havia uma ponte de madeira e,
do outro lado dessa ponte, uma bela cidade. Ele estava no meio da ponte,
quando seu cavalo tropeçou e caiu sobre os joelhos. O homem foi lança-
do ao chão e, na queda, quebrou o pescoço. Tombou na água, mas uma
das estacas da ponte, que estava em mau estado, prendeu suas roupas e o
corpo ficou pendendo, as partes inferiores no alto e a cabeça e os ombros
inteiramente na água. As pessoas da escolta saíram imediatamente pedindo
socorro (BORON, 2003: 110/111).
O sucesso da previsão do mago em relação ao conselheiro fez com
que todos os homens do reino o considerassem bio e metessem por
escrito qualquer coisa que ele profetizasse. Assim iniciou o livro das pro-
fecias de Merlim. Segundo a lenda, neste livro é possível ler todas as
profecias que o feiticeiro fez sobre os reis da Inglaterra e sobre todas as
coisas que ele falou depois disso. Mas esse livro não fala quem é o mago
nem de onde ele vem, pois ali são registradas somente as coisas que ele
falava.
Nesta altura do romance se percebe o quando a personagem de
Merlim comanda a trama da história. Boron não tem pejo nenhum em
121
dizer que: “O tempo passou. E Merlim era, de fato, senhor de Pendragão
e Uter” (BORON, 2003: 112). Tal é a importância do status do mago na
corte de Pendrao. Após fazerem o que o feiticeiro havia ordenado, ele
previu fenômenos importantes para os dois irmãos.
Primeiro ele pede a Uter e Pendragão que não perguntem mais sobre
suas mortes, de certa forma é como se o mago não quisesse mais noticiar
nem profetizar desgraças. Ele fez os dois irmãos prometerem que seriam
sábios e leais consigo mesmo e para com Deus, pois segundo a preleção
de Merlim não como ser justo consigo mesmo se não se é fiel a Deus. E
o responsável por ensinar sabedoria e lealdade aos irmãos seria ninguém
mais que o pprio mago. Uma analogia a uma figura considerada a mais
sábia entre todas no mundo cristão, o rei Salomão.
E o mago segue com seus conselhos:
(...). Confessai nesta ocasião, mais do que em qualquer outra, pois sabeis
que vós deveis afrontar com inimigos. E se estais com a disposição de que
vos falo, estai seguros de vencer, porque vossos adversárioso crêem na
Trindade, nem na paixão de Cristo. E vós defendeis vossa herança pela lei
e pela religião. Ora, aquele que morrer defendendo esses direitos, segundo
a virtude de Jesus Cristo e os mandamentos de nossa santa Igreja, não deve
temer a morte. Quero que saibais que, desde que a cristandade chegou a
esta terra, o houve nenhuma batalha, nem haverá tão importante como
essa. E cada um de vós jurou ao outro que tudo fará em seu benefício e pela
sua honra. Enfim, quero que saibais que, sem precisar muito mais, que um
de vós há de morrer nessa batalha. E no próprio lugar do combate, o sobre-
vivente fará construir, sob meu conselho, a mais bela e a maior sepultura.
(BORON, 2003: 115/116)
67
A fala do Merlim é um reflexo claro da mentalidade da época em
que o romance foi escrito. Boron trabalhou nessa obra entre os séculos XI
e XII, período em que a Europa Ocidental estava imbuída do espírito das
Cruzadas, conforme relatado no capítulo I deste trabalho.
Dessa forma, e demonstrando mais uma vez a miscelânea que en-
volve a mentalidade do homem medieval, um bruxo, filho do demônio
conclama dois príncipes cristãos a lutarem em nome de Deus. Mais uma
vez a articulação entre o clerical e o leigo, entre o sagrado e o profano se
faz tênue, praticamente como se não existisse.
Como costuma acontecer no ambiente do romance de cavalaria, o
maravilhoso perpassa a narrativa e faz a sua aparição na cena da batalha.
67 A batalha a que o mago faz referência envolve a luta entre cristãos (de origem normanda) e saxões
pelo domínio da Inglaterra.
122
Merlim comunica aos irmãos que eles devem esperar o terceiro dia da
batalha. Nele encontraria a insígnia que os levaria à vitória, na forma de
um dragão vermelho que iria correr no ar entre o céu e a terra
68
. Na bata-
lha, conforme a previsão do mago, Pendragão morreu. E Boron aparece
novamente como narrador:
Não me cabe dizer quem fez bem, quem fez mal, mas posso vos dizer
que Pendragão morreu e muitos outros barões morreram. O livro conta
que Uter venceu a batalha, mas houve muitas mortes entre os seus, tanto
de ricos, como de pobres. Dos saxões, ninguém escapou, ou morreram
combatendo, ou foram afogados. Assim terminou a batalha de Salaber
(BORON, 2003: 118).
Da mesma forma como foi conselheiro de Pendragão, Merlim tor-
nou-se conselheiro de Uter e em seu primeiro conselho ao novo rei disse
que ele deveria trabalhar segundo as designações de Jesus Cristo, que era
Quem garantia ao mago o poder de prever o futuro. Merlim narra ao novo
rei o episódio da Santa Ceia, onde Cristo declara que um de seus apósto-
los irá traí-lo. A idéia que envolve essa figura é a constituição da vola
Redonda, onde um lugar estaria sempre vago, esperando pelo melhor ca-
valeiro do mundo. Essa figura representa o lugar vazio que Judas deixou
na mesa do Senhor com a sua traição.
Nesse contexto, Merlim narra a Uter a necessidade de reconstituir
essa Távola, e assim o rei o faz. Convocadas as cortes, cavaleiros da mais
alta linhagem faziam companhia ao rei e sentavam-se na fabulosa mesa,
sendo que nela um lugar sempre permanecia vago até aparecer um nobre
de grande estirpe que se propôs a sentar no lugar vago. Os cavaleiros que
estavam sentados à mesa com Uter nada disseram, nem o próprio rei,
então eis que ocorre o fato, conforme a citação que segue:
O cavaleiro avançou, olhou para o assento vazio, passou entre os dois ca-
valeiros e sentou-se. Assim que s as coxas sobre o assento, afundou-se
como faz uma massa de chumbo jogada dentro d’água. Assim afundou-se
à vista de todos e ninguém soube o que aconteceu com ele. Quando o rei e
todos os que lá estavam viram, ficaram muito espantados e ninguém sabia
o que dizer (BORON, 2003: 11).
68 que se considerar que todo o ambiente do Merlim, de Robert de Boron, é feito e marcado sobre
a questão do maravilhoso e da fantasia, desde o nascimento do mago, passando por suas peripécias.
Merlim nunca está onde se pensa que ele poderia estar, e quando faz as suas aparições o faz sempre
envolto em um contexto único.
123
Merlim compareceu ao lugar do encontro da corte (Carduel), 15
dias depois de ocorrido esse femeno e solicitou ao rei que anunciasse
que sentariam com ele junto a Távola os cavaleiros mais honrados de
todos e ele, Uter, deveria lograr amar e respeitar a todos esses cavaleiros.
Depois disso o mago partiu para um lugar ignorado e o rei fez saber a
todos que se encontrariam em Carduel quatro vezes ao ano, nas comemo-
rações do Natal,scoa, Pentecostes e Todos os Santos.
Mais uma vez Robert de Boron torna-se o narrador direto do ro-
mance para falar da duquesa de Tintagel, Igerne. Ela era esposa de um
dos mais honrados senhores de Uter e por ela o rei se apaixonou. Igerne
renegou o amor de Uter, pois, segundo o próprio romance comenta, era
uma mulher de muita honra e muito leal a seu senhor. No entanto o desejo
do rei era muito maior do que a dama poderia imaginar.
O desatino do rei chegou a tal ponto que a fidalga se viu obrigada a
contar ao marido sobre o que ocorria. Chorando e lamentando-se profun-
damente, essas foram as palavras da senhora a seu esposo:
Não vos esconderei nada, porque não nada que tanto ame comos. O
rei disse que me ama e que todas essas cortes que faz, a que convoca todas
as damas, ele as faz e manda virem as damas só por mim e para vos dar a
oportunidade de me trazeres junto. Desde a festa anterior, eu sei, evitei-o e
recusei todos os seus presentes. Nunca nada recebi e hoje vós me fizestes
receber a taça e a enviastes por Bretel, para que eu bebesse por amor dele.
Por isso queria estar morta, porque não consigo impedir Urfino, seu con-
selheiro, de me falar. Assim quero que saibais, pois que vos digo isto, que
tal situação não pode durar sem trazer grande desgraça e peço-vos, como
meu senhor, que me leveis a Tintagel, porque não quero mais ficar nesta
cidade (BORON, 2003: 137).
Diante de tamanha desonra e sentindo-se profundamente traído
pelo seu rei, o duque de Tintagel, sua esposa e seus cavaleiros partem de
Carduel às escondidas. Nesse contexto, o rei sente-se traído pelo duque
que partiu de forma tão sigilosa e os nobres que não sabem do motivo real
da fuga do duque, dizem ao rei que ele deve reparar essa afronta como
melhor lhe aprouver. Está armado o cenário para uma guerra civil, que
culminará com a morte do duque de Tintagel e com a geração de uma
criança por artes de magia, o pequeno Artur.
Uter está tão absorto em seu amor por Igerne que não se conta
do que fala e nem de suas ações. Tanto é assim que não se nega a dar a
Merlim qualquer coisa, em troca de uma noite de amor com a duquesa.
Como sempre o pedido do mago é envolto em mistérios e Merlim solicita
124
ao rei que ele jure “sobre as santas relíquias e mandai Urfino jurar que o
que vos pedir, no dia seguinte ao que vos tiver feito dormir com ela e ter
tido com ela todo vosso prazer, vós me dareis, sem nada subtrair” (BO-
RON, 2003: 147).
Assim, e pelas artes mágicas do mago que não só se metamorfose-
ava, mas era capaz de fazer com que outras pessoas assumissem outras
formas, Uter teve sua noite de amor com Igerne e nessa noite foi gerado
Artur
69
. E foi o fruto dessa noite de amor que o mago solicitou de seu rei e
como ele havia jurado sobre as relíquias que não negaria ao mago nenhum
pedido seu, não se negou a conceder seu filho a Merlim, que ainda foi
mais adiante e aconselhou a Uter:
Senhor, casarei com Igerne; cuidai que ela nunca saiba que dormistes
com ela e a engravidastes. Ela será mais presa à vossa vontade, se lhe per-
guntardes da gravidez e de quem ficou grávida, ela não vos saberá dizer
quem é o pai e por isso se envergonhará muito diante de vós. Assim me
ajudareis a obter o menino mais facilmente (BORON, 2003: 154)
70
.
Uter desposou Igerne e, quando do nascimento do menino ela en-
tregou o bebê ao rei, que, por sua vez, entregou-o a Merlim, conforme
havia prometido. O mago, por sua vez, entregou-o a Antor, um nobre da
corte de Uter, que batizou o menino, conforme as predões do feiticeiro.
Passado esse episódio, Merlim partiu rumo ao desconhecido e retornou
passado muito tempo, quando Uter já estava velho e doente e seu reino
corria risco de derrotas eminentes.
Mais uma vez aconselhando seu senhor, Merlim dá ao rei uma últi-
ma lição de moral, aconselhando-o a:
E vós que estais perto de vosso fim, que acabar vos convém, sabei que
deveis deixar tudo e distribuir de tal maneira que não percais a alegria do
outro mundo, porque a deste não vale nada e vos direi por que numa
palavra: neste mundo terreno não há alegria que dure e a que se compra no
outro mundo não pode falhar, nem envelhecer, nem deteriorar e qualquer
69 Em linhas gerais, se pode dizer que Artur é um rei arquetípico, um soberano nobre que conduz
o destino de seu povo com sabedoria e generosidade, trazendo à Inglaterra um período de paz e
prosperidade, uma idade de ouro que acaba devido a traição de Guinevere e Lancelot, que culmina
com a morte do rei pelas mãos de seu lho Mordred. Mais uma vez a história britânica não difere o
mito da realidade, pois de fato sabe-se que um Artur histórico realmente existiu, mas não na condição
de grande rei e sim de comandante militar. Sobre o assunto ver: QUINTINO, Cláudio Crow. O livro da
mitologia celta. São Paulo: Hi-Brasil Editora, 2002.
70 De certa maneira, e por conta desse processo, Artur recria mais uma vez o simbolismo da criança
que foi gerada sem pai, como o próprio Merlim e como Jesus Cristo.
125
coisa que se tenha nesta vida mortal deve-se entregar a Nosso Senhor para
se ter como provar da outra (BORON, 2003: 169).
Essa é uma leitura cristianizada do mago e de suas origens, primeira
grande renovação que Robert de Boron fez no seu Merlim: em conseqüên-
cia da virtude da mãe, eis que o filho do incubo confirma as esperanças de
salvação para toda a humanidade. Em vez de um Anticristo, o nascimento
do mago é quase que como a segunda vinda do Filho do Homem.
Outra mudança que merece atenção diz respeito ao fato de que Mer-
lim é o autor da história, pois ele narra ao seu fiel escriba Brás, o que deve
ser registrado. Cumpre a ele a função de preparar os reis e o povo inglês
para a vinda do cavaleiro que de encimar o reino de Logres e ocupar
o lugar vazio à mesa do Graal
71
. E esse cavaleiro é ninguém mais nem
ninguém menos que o filho de Uter e Igerne, Artur, o qual foi sagrado rei,
mas que sequer teria nascido não fosse a ação de Merlim.
71 Conforme já citado anteriormente, pode-se interpretar esse lugar vazio à mesa como sendo o lugar
que Judas deixou vago por ocasião de sua traição.
127
CAPÍTULO IV
MELUSINA, OU DAS FADAS MEDIEVAIS
72
Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos
E mergulhada na penitência, afim de confessar a culpa
De ter trazido a perdição ao gênero humano (...). Mulher,
Tu és a porta do diabo. Foste tu que tocastes
A árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violastes a lei divina.
Tertuliano
No espaço do maravilhoso, as mulheres também ocupam um espaço
importante. São elas que, disfarçadas como donzelas misteriosas possibi-
litam as edificantes aventuras dos cavaleiros. Se Morgana não enredasse
Artur nos fios da sua magia, ele construiria outro tipo de relação com
Guinevere, a qual se não fosse apaixonada por Lancelot, que foi educado
pela Senhora do Lago, poderia ter vivido com o senhor da Távola Redon-
da uma outra história.
A espada mágica de Artur, Excalibur, também é uma representação
dos mistérios do feminino
73
e da força que esse mistério possui e de que
nem o próprio Merlim escapou, uma vez que em uma das lendas que narra
seu final ele foi vencido por uma mulher, como visto no capítulo anterior
deste trabalho. No cortejo do Graal, a mulher é a portadora do recipiente
mágico. Seja como senhora do castelo, seja como demônio feminino, a
mulher aparece com destaque no imaginário bretão como a dizer, através
de símbolos, que o tempo do rei Artur reflete o tempo das fadas de Ava-
lon, onde a mulher, com seus mistérios e sua magia comandava o circo
da natureza.
72 Esse capítulo foi publicado originalmente no livro Ensaios sobre o feminino, lançado pela Editora
da UPF em 2008 e organizado pela professora Márcia Maria de Medeiros. Para a edição deste livro
ele foi revisto e ampliado. MEDEIROS, Márcia Maria de. Ensaios sobre o feminino. Passo Fundo:
EDIUPF, 2008, p. 123-169.
73 A referência que se faz aqui diz respeito à lenda segundo a qual a espada mágica de Artur teria sido
trazida ao mundo pelas mãos de uma mulher misteriosa que sai das profundezas de um lago. Da mesma
forma, quando está em seu momento derradeiro, após a batalha na qual Artur mata Mordred seu lho,
mas é ferido de morte por ele, o rei pede a um cavaleiro que devolva a espada ao lago e as mesmas
mãos femininas emergem das profundezas para levar a sagrada Excalibur para algum lugar no qual ela
esperaria o retorno de Artur.
128
A origem desse imaginário pode estar na figura das druidesas, as
quais, segundo José Carlos Leal, na obra A maldição da mulher, eram
“mulheres peritas em magia, viviam entre os antigos gauleses, forman-
do uma corporação paralela à dos druidas (sacerdotes celtas). Eram tidas
como mulheres capazes de manipular as forças da natureza com tanta
habilidade quanto os magos” (LEAL, 2004: 36).
Buscar a origem dessas feiticeiras significa remontar à antiguidade
clássica, com as figuras fortes e voluntariosas de Medeia, Circe, cate,
mulheres que, à sua maneira, encantavam e seduziam através de seus fei-
tiços e pela sua ação faziam o que queriam dos homens.
74
Essas figuras
representam um fundo de tragédia, uma grande carga de erotismo que, de
certa forma, marca também a figura da Melusina.
O fato é que, misto de feiticeira, fada e demônio, o espectro dessas
mulheres de rondar a imaginação de todos os povos. Essas mulheres
tomam a condição de fantasmas e são cercadas por uma série de lendas
e superstições, as quais se manifestam desde a antiguidade até ao mundo
medieval, onde a mulher encarna o arquétipo da periculosidade, sendo
relacionada ao pecado e ao satânico
75
.
Nesse intrincado mundo da magia, a feiticeira carrega uma marca
essencial: através de sua ação ela modifica substâncias e a própria reali-
dade para preparar venenos e perfumes, atingindo assim um fim desejado.
Nesse universo de manipulação, nasce um mundo de desejo, um desejo,
sobretudo passional que a tudo se sobrepõe para conseguir uma resposta a
paixões não resolvidas, não correspondidas ou proibidas.
Nesse caldo de imagens que mistura mulheres e caldeirões, ervas e
ungüentos, Jean D’Arras foi buscar inspiração a qual aliou às lendas do
folclore celta para compor na última década do século XIV, um livro que
escreveu para o duque de Barry, João, e para sua irmã Maria, duquesa de
Bar um romance inusitado intitulado La noble Histoire de Lusignan
76
, ou
Mellusine
77
. Pela primeira vez na literatura européia, aparecia a Melusina,
a qual corresponde a uma transfiguração das antigas lendas de tradição
indo-européia e céltica.
Entretanto, há que se salientar que as fadas começaram a encontrar
seu espaço no mundo literário medieval em período anterior à narração
74 Sobre esse processo, basta comentar a ação de Circe na Odisséia, onde através de seus encantos
transformou os amigos de Ulisses em porcos. Ver: SICUTERI, Roberto. Lilith: a lua negra. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
75 que se salientar que dentro do pensamento judaico-cristão ocidental a mulher encarna uma
gura que tenta o homem de todas as formas. Não se pode esquecer que o mito de Adão e Eva reforça
esse arquétipo, pois foi devido a Eva que Adão comeu do fruto proibido. Foi ela quem teve a fraqueza
de se deixar levar pela serpente e com isso arrastou o seu companheiro para o pecado.
76 A nobre história de Lusignan.
77 Melusina.
129
criada por D’Arras. Desde o século XII, segundo Antônio Moras em arti-
go publicado na Revista Brasileira de História, essas entidades feéricas e
o conjunto fantástico que as acompanha, envolvendo animais maravilho-
sos que conduzem os cavaleiros por caminhos mágicos cheios de rivais ou
inimigos; já são tidas pela literatura de entretenimento como personagens
de seu palco
78
.
Aliás, o nome Melusina não tem uma origem definida, podendo
ter se originado de um antigo culto à deusa Lucina, referente a adoração
de alguma mater luciniana que teria dado seu nome à fada, ou , o que é
mais provável, foi um nome fabricado no século XIV, oriundo do próprio
castelo que, segundo a lenda ela mesma construiu. Assim Melusina, seria
uma escie de anagrama da palavra Lusignan.
Mircea Eliade na obra Tratado de História das Religiões aponta
para uma das tradições culturais que pode ter originado a fabulosa histó-
ria de Melusina. Ele remete a uma lenda do sul da Índia, que acredita que
existia na região uma princesa chamada Nâgi, a qual possuía cheiro de
peixe. Ainda na opinião do autor:
Os gênios-serpentes não residem sempre nos oceanos e nos mares, mas
também nos lagos, nos poços, nas nascentes. Os cultos das serpentes e
dosnios das serpentes, na Índia e em outras regiões, mantêm, em todos
os conjuntos em que se encontram, esta ligação gico-religiosa com as
águas. Uma serpente ou um gênio-serpente encontra-se sempre nas ime-
diações das águas ou estas são reguladas por eles; o gênios protetores
das fontes de vida, da imortalidade, da santidade, assim como de todos os
símbolos que se acham em ligação com a vida, com a fecundidade, com o
heroísmo, com a imortalidade e com os ‘tesouros’ (ELIADE, 1993: 171).
Pierre Brunel, na obra Dicionário de Mitos Literários, afirma que
a representação mais antiga desse esquema aparece nos textos védicos,
principalmente aqueles que narram a história do herói Pururas e da ninfa
Urvasi, a qual se casou com o herói com a condição de que ela nunca o
visse desnudo. Mas os nios masculinos que queriam levar a fada para
outro mundo fizeram com que ela transgredisse a interdição, provocando
com isso o seu desaparecimento. Na mitologia greco-latina, a fábula de
Eros e Psique tem por base o mesmo esquema de narrão (BRUNEL:
2000).
Segundo a opinião de Jacques Le Goff, no prefácio da obra Roman-
ce de Melusina ou a História dos Lusignan, essa personagem representa
78 MORÁS, Antônio. Das Representações Míticas à Cultura Clerical: as Fadas da Literatura
Medieval. In: Revista Brasileira de História, nº 38, vol 19, ANPUH: 1999, p. 229-252.
130
“uma mulher com longo passado que, por volta de 1200, ganhou nova
forma” (D’ARRAS, 1999: VII).
Entretanto, quando a questão é afirmar em que matéria surge às
concepções e os modelos relativos a essas mulheres dotadas de pode-
res sobrenaturais, todos os autores têm a mesma opinião: o substrato que
originou esse material é oriundo dos mitos e das lendas de origem celta
conservados nas tradições folclóricas de países do norte da Europa, como
por exemplo, a Irlanda e o País de Gales.
Em relação às dificuldades de cunho epistemológico que surgem
diante do estudioso dedicado a estudar essas figuras literárias tão cheias
de ricas nuances, diz Antônio Moras, no artigo Das Representações Míti-
cas à Cultura Clerical: as Fadas da Literatura Medieval que:
(...) a melhor solução parece ser a análise dos complexos míticos rela-
tivos às fadas presentes na literatura medieval em termos de padrões de
significados estruturados que revertem ao mundo céltico e, uma vez de-
codificadas as linhas gerais destes padrões de significados, o exame das
transformações verificadas nestes substratos míticos no contato com a cul-
tura clerical do culo XII. Deste modo, evita-se uma atribuição errônea
de significados às estruturas míticas inseridas nas formas literárias do pe-
ríodo, ao mesmo tempo em que se possibilita a avaliação clara da inflexão
dada a estas estruturas míticas pela cultura clerical (MORÁS, 1999: 231).
Essa personagem tem uma correspondência imediata no mundo da
representação mental à feiticeira medieval. Dentro desse contexto, a fei-
tiçaria é oriunda de antigos sistemas agrícolas com tendência matriarcal,
onde a mulher além de cultivar a terra era também sacerdotisa de cultos
lunares. Essa mulher aparece sempre envolta em mistérios e numa nuvem
etérea de beleza, como se infere da citação abaixo, retirada do texto Bru-
xaria e História, as práticas mágicas no Ocidente Cristão, de autoria de
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira:
Assim, a ão da mulher aparece em termos carregados de um conteúdo
mágico e misterioso, demonstrado nas palavras fascínio, encantadora, se-
dutora, freqüentemente utilizadas para representar e exprimir a ação da
personagem feminina sobre o sexo oposto (NOGUEIRA, 2004: 48).
A personagem representada pela Melusina é exatamente isso: uma
mulher misteriosa e bela. E essa mulher estonteante essempre pxima
131
de uma fonte, junto a uma nascente em meio a uma densa floresta
79
, onde
é encontrada por um cavaleiro de nobre linhagem que é convencido pelos
dotes da encantadora moça, a desposá-la. Entretanto, entre as condições
para que a fada despose o mortal está em o marido não tentar vê-la um dia
por semana, geralmente, aos sábados.
Invariavelmente o casal prospera, fartura nas terras cultivadas, cas-
telos grandiosos que se levantam do nada e do dia para a noite, torres que
se edificam em meio ao deserto da planície, cidades que surgem num
piscar de olhos. A esposa edificadora que a fada se torna, fecunda a terra
e o próprio corpo, pois filhos nascem dessa união praticamente sem parar.
Mas, como em todo conto de fadas, um dia o inevitável tem de acontecer
e o marido curioso descumpre a promessa e infringe a proibição de o
ver a sua mulher.
Ao espiar a esposa no dia fatal, descobre que se casou com uma
mulher serpente, ou então, com uma sereia ou mesmo um dragão, pois
são essas as formas reais da fada, meio anjo meio demônio. Nesse fatídi-
co dia em que deve se ausentar dos olhos do marido, a Melusina retoma
sua forma original e retorna ao seu ambiente natural, a água. Mas a fada
se sabe traída e desaparece deixando a casa, o esposo e os filhos, para
retornar nas noites frias de inverno, assombrando os recintos que um dia
chamou de lar, e avisando aos que ali ainda vivem quando a morte deverá
pairar sobre suas cabeças
80
.
Essa leitura demonstra com exatidão as funções aparentemente con-
traditórias que envolvem o fenômeno da bruxaria e que se complementam
dentro do imaginário coletivo: a função compensatória que influi decisi-
vamente no meio social, pois a bruxa atua no sentido de institucionalizar
reações e medos coletivos e de outro lado, a transposição da barreira do
imaginário que aqueles que se acreditam capazes de realizar estes atos
teoricamente executam.
A figura da Melusina transpõe a barreira do mundo mágico e toca o
mundo real, pois ela se torna senhora da magia que se casa com um mortal
concedendo-lhe imeras benesses, mas não se pode esquecer que ela traz
79 O local onde a Melusina costuma ser encontrada pelo seu cavaleiro corrobora com a história social
que na bruxaria e na gura da bruxa elementos que acompanham a questão do campo e do mundo
rural. E esse elemento se liga automaticamente ao imaginário que essas guras como projeção das
antigas sociedades agrárias. Ademais, fator diretamente correlacionado a origem céltica da personagem,
há que se salientar que nos mitos e sagas célticos elevações do solo conhecidas como outeiros e o fundo
das águas são locais de acesso ao outro mundo, ao mundo mágico ou ao mundo dos mortos, de onde a
fada poderia ser originária.
80 Observe-se a estrutura tripartida da narrativa que apresenta claramente três tópicos principais,
sendo eles: o encontro do mortal com a fada; o pacto que os dois realizam; e a violação do pacto que
invariavelmente é provocada por um invejoso da felicidade que impera sobre o casal.
132
consigo uma maldição. E dentro desse processo o bem que ela oferece
tem muito de maligno. Assim como sua figura, intrinsecamente dupla.
Todo esse enredo revela o que a figura da fada representa no imagi-
nário medieval: a encarnação de um sonho de amor entre um mortal e uma
mulher sobrenatural, espécie de deusa-mãe, divindade que representa a
fecundidade. A importância da representação da Melusina como um ser
dotado de grandes poderes, fez com que Ricardo Coração de Leão reivin-
dicasse para sua dinastia o direito de pertencer aos descendentes dessa
mulher fantástica. Sobre esse assunto Michele Brossard-Dandré e Gisele
Besson, na obra Ricardo Coração de Leão História e Lenda, dizem o
seguinte:
Finalmente, uma condessa de Anjou, de magnífica beleza, mas de ori-
gem desconhecida, fora desposada por um conde apenas pela graça de seu
corpo. Raramente ela ia à igreja e, quando estava lá, manifestava pouca
devoção, até mesmo nenhuma. Nunca esperava pela consagração, sempre
saía apressada depois do evangelho. Seu comportamento acabou por atrair
as suspeitas do conde e de outros barões. Certo dia em que fora à igreja
e estava prestes a sair no momento costumeiro, viu-se detida por quatro
cavaleiros por ordem do conde. Desvencilhou-se do manto pelo qual a
seguravam, abandonou os dois filhos menores que protegia sob o pano
direito do manto e, pegando os outros dois – que estavam a sua esquerda
debaixo do braço, saltou a janela da igreja, diante dos olhos de todos.
Assim aquela mulher, cujo rosto era mais belo do que a fé, desapareceu
levando dois de seus filhos, e nunca mais foi vista. O rei Ricardo conta-
va essa história com freqüência, dizendo que não era de surpreender que,
procedendo de uma tal origem, os filhos não parassem de combater os pais
e de brigar entre si; de fato, todos provinham do diabo e retornariam ao
diabo (BROSSARD-DANDRÉ, 1993: 17-18)
81
.
Na opinião de Jacques Le Goff, prefaciando a obra anteriormente
citada, a Melusina pode ser encontrada “na confluência do folclore com a
literatura culta, numa história em que as fadas não eram apenas conquis-
tas de cavaleiros andantes, mas também reféns de políticas linhagistas e
dinásticas”. (D’ARRAS, 1999: X). Ou dito de outra forma: a narrativa
que fala das aventuras e desventuras de Melusina e sua linhagem foi intro-
81 Chama a atenção do leitor o fato de que a mulher deixou os lhos que carregava do lado direito
para levar consigo aos que levava do lado esquerdo. No imaginário medieval a esquerda era considerada
a sinistra, a mão do demônio até porque todos sabiam que Jesus Cristo estava sentado à direita de Deus
Pai. Logo a decisão da mulher de abandonar os lhos do lado direito e carregar consigo os do lado
esquerdo era uma clara indicação de que ela era dada ao senhor dos infernos.
133
duzida nos meios cultos por uma invasão do folclore na chamada cultura
erudita.
Ao iniciar a leitura do texto que contará a história da fantástica fada,
o leitor depara-se com um chamado que o autor faz sobre o quão impor-
tante é, ao iniciar uma obra, invocar o Criador da maior obra de todas; o
Universo. Na opinião de um narrador que não se identifica, mas que pode
ser qualquer um, Deus é o mestre maior de todas as coisas feitas ou por
fazer e nesse sentido, independente da narrativa que se está construindo
ser ou não perfeita, é ao Mestre Criador maior que ele deve invocar.
Mesmo tendo consciência de sua pequenez e do quanto sua obra é
pequena frente a obra máxima que o Criador construiu, a saber, o Uni-
verso, o narrador suplica a Deus que lhe permita levar a bom termo a sua
empreitada, para a glória do Seu santo nome e para o Seu louvor, junta-
mente para o “comprazimento de meu altíssimo, digníssimo e temível
senhor, João, filho do rei da França”(D’ARRAS, 1999: 1).
Assim sendo, e dando início a sua prédica, o narrador filosofa sobre
o sentido dos juízos e dos castigos de Deus, sendo que lhe parece insano
que qualquer pessoa tente entendê-los através da pueril inteligência hu-
mana.
82
No entanto, na mentalidade do homem medieval havia um espaço
reservado para outros elementos mágicos cuja origem não havia como
explicar. O universo era cheio de prodígios e as fadas eram um desses
prodígios que mesmo parecendo obra de sonhos, eram mais do que reais.
Dessa forma, e exatamente pela existência de seres maravilhosos
como elas, as criaturas não deveriam em sua presunção, compreender
com a inteligência humana os juízos e as ações divinas, porque mesmo
sendo seres de origem maravilhosa, e quiçá investidos pelo Demônio para
tentar aos homens, as fadas também faziam parte da Obra maravilhosa de
Deus, isto porque, tudo o que se move sobre a face da terra, inclusive o
próprio Demônio e todo o seu séqüito constituem-se em obra divina e só
se movimenta porque Deus assim o permite
83
.
Na opino de D’Arras, existem coisas invisíveis que permeiam
os caminhos do homem no mundo e estas criaturas fabulosas são mais
uma comprovação da existência de Deus, pois dão testemunho de Sua
82 Essa prática de aceitação está perfeitamente coadunada com a mentalidade religiosa do período
que via na vontade de Deus e em Seus misteriosos desígnios apenas um fato a ser obedecido sem
questionamento, uma vez que o mesmo poderia causar ainda mais problemas aos homens. Cabe salientar
que se vive nessa época sob a constante ameaça das forças demoníacas, e sob a presença mais constante
ainda da sombra divina que muito se assemelha ao Deus do Velho Testamento, que exige sacrifícios e
sangue. Outrossim, sabe-se que nessa época a perspectiva do homem o projetava sempre para uma vida
futura em meio a Jerusalém celeste, sendo que a sua caminhada aqui é que pautaria sua presença ou não
na Casa Celestial. Maiores informações sobre o assunto ver capítulo 1 deste trabalho.
83 Sobre o assunto ver: KRAMER, Heinrich & SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. Editora
Rosa dos Ventos: São Paulo, 2004.
134
presença. Assim, aquele homem que tem e que se afunda no abismo
do conhecimento, aquele que escuta os antigos e visita lugares distantes
encontra coisas extraordinárias que surpreendem o espírito humano. E
esse homem é obrigado, a partir daí, a admitir o quanto o juízo de Deus
constituem-se em abismos insondáveis (D’ARRAS, 1999: 3).
Destarte, várias pessoas em vários lugares já viram essas criaturas
noturnas que alguns bios chamam de duendes, outros de seres feéricos,
e outros ainda de boas fadas. Mas soe perguntar por que Deus pune essas
criaturas fantásticas com o castigo de transformar-se em serpentes, e por-
que permite que elas continuem tentando os homens. O próprio D’Arras
tem a resposta, pautando-se para tanto na sabedoria de Gervásio:
Gervásio diz acreditar que é por causa de pecados secretos, que o mundo
ignora e que desagradam a Deus: por isso é que os pune tão secretamente
que ninguém mais tem conhecimento. Por isso ele compara os juízos de
Deus a um abismo insondável, mesmo quando essas coisas são sabidas,
não por uma única pessoa, mas por inúmeras (D’ARRAS, 1999: 4).
Neste ponto, e depois da discussão teológica que marca o início do
romance, o autor inicia a história de Melusina, a fantástica fada que assim
como o mago Merlim era capaz de conhecer o passado e prever o futuro,
povoou o imagirio medieval e a caba de pelo menos um rei.
Melusina nasceu do amor entre o rei Elinas e sua esposa, Pre-
sina, sendo que esta última apresenta, a característica latente da fada,
como se pode perceber pela citação que segue: “(...) se quereis tomar-
me por esposa e se me jurardes que, se tivermos filhos, não tentareis
ver-me no sobreparto e nada fareis com esse intuito, estou pronta a
vos obedecer como toda a esposa leal deve obedecer a seu marido
(D’ARRAS, 1999: 9)
84
.
A jovem rainha de fato engravidou e teve três filhas gêmeas, Me-
lusina, Melior e Palestina, crianças de inigualável beleza. Mas o filho
mais velho do rei, Mataquás, vendo as irmãs e não contendo a sua alegria,
chamou seu pai para junto da esposa e das três princesinhas. Ao ver seu
marido próximo das crianças e compreendendo que ele quebrara com sua
promessa, Presina se retira com seus rebentos para a ilha de Avalon
85
.
84 Cabe salientar que a fada poderia fazer esse tipo de exigência ao seu esposo, conforme demonstrado
nas páginas iniciais desse capítulo.
85 Percebe-se aqui que D’Arras foi nitidamente inuenciado na construção de seu texto, pelo
imaginário de origem celta. Presina se apresenta ao marido quando descoberta, como irmã da senhora
da Ilha Perdida, ou seja, Avalon. Em mais uma demonstração da inuência celta em seu texto, D’Arras
faz com que Melusina convença as irmãs a prender a pai no interior de uma montanha chamada
Brumborenlion, que ca em Nortumberlândia. A terra para onde o Merlim se retira em algumas vezes
que sai de cena no romance analisado no capítulo 3 deste trabalho.
135
As meninas crescem e não podem negar suas raízes. Elas são fadas,
têm em suas veias o mesmo sangue gico que banha a linhagem de
Avalon e ao se tornarem adultas tramam uma espécie de vingança contra
o pai, que atrai sobre elas a fúria de sua e. Cada uma delas recebeu de
Presina uma maldição especial.
Palestina foi condenada pela mãe a ficar encerrada em uma monta-
nha, com o tesouro do pai até o dia em que ali fosse ter cavaleiro de alta
linhagem que a libertasse e usasse do tesouro para conquistar a Terra Pro-
metida
86
. Melior ficou aprisionada em um castelo na Armênia, guardada
por um gavião majestoso. Todos os cavaleiros que quisessem ali vigiar a
antevéspera e a véspera do dia 25 de junho
87
, sem adormecer, receberiam
da fada uma dádiva, que não poderia ser nem seu corpo, nem o amor, nem
o matrimônio nem qualquer outra espécie de união, pois do contrário se-
riam malditos até a nona geração e perderiam as chances de prosperar.
A Melusina, filha que tramou a prisão do pai, coube o seguinte
destino:
(...) todos os sábados serás serpente do umbigo para baixo. Mas se encon-
trares um homem que queira tomar-te por esposa e que prometa nunca te
ver aos sábados, se nunca te descobrir ou não disser a ninguém, seguirás o
curso normal da vida, como mulher normal, e morrerás normalmente. De
qualquer modo, de ti nascerá nobre e importante linhagem que realizará
grandes proezas. E se vossa união for rompida, fica sabendo que voltarás
ao tormento em que te encontravas antes, para todo o sempre, até o dia em
que o Soberano Juiz tomar assento (D’ARRAS, 1999: 13).
Aqui o autor muda o rumo da trama para enfocar uma outra per-
sonagem quase o importante para o enredo de sua história quanto a
Melusina. D’Arras começa a contar a história de Raimundo, cavaleiro de
origem nobre, que em meio a uma caçada viu seu tio, um rico conde, mor-
rer nas presas de um javali. Ao ver seu amado senhor morto, Raimundo
desesperou-se se sentindo um traidor e desejando que a terra o engolisse
colocando-o ao lado de Lúcifer
88
.
Em meio ao desespero que lhe corroia o coração, Raimundo deixou
seu cavalo à rédea solta e o instinto do animal o levou para o interior da
floresta. Lá, o jovem encontrou uma moça de magnífica beleza que lhe
censurou por eleo haver prestado atenção a ela.
86 Uma clara referência ao processo das Cruzadas.
87 A véspera de 25 de junho corresponde no calendário cristão à comemoração do dia de São João.
88 A traição era um pecado mortal na Idade Média, digno de ser punido com o calor das profundezas
infernais.
136
Absorto que estava em seus pensamentos, o cavaleiro escusou-se
pela sua desatenção e falta de cortesia, dizendo que estava tão profunda-
mente prosternado que não fazia outra coisa senão chorar e pedir ajuda a
Deus. Ao que a moça respondeu que ele fazia bem, que ninguém melhor
que Deus para vir em socorro das almas aflitas.
A jovem disse que sabia qual o motivo de seu pesar: a caçada infru-
tífera que tirara a vida de seu senhor. Ao ver o espanto do cavaleiro, ela
respondeu com a seguinte assertiva:
Raimundo (...) não te espantes por eu saber perfeitamente de tudo. Sei
bem que imaginas que minha pessoa e minhas palavras o são mais que
ilusão e obra do diabo; mas garanto-te que participo do mundo de Deus, e
que creio em tudo aquilo em que uma boa católica deve crer (D’ARRAS,
1999: 25-26)
89
.
Ademais, a moça, que não era ninguém menos que a filha mais
velha de Presina prometeu a Raimundo torná-lo o senhor mais poderoso
do mundo, bem como a sua linhagem. Raimundo agradeceu à jovem e
colocou-se a seu serviço. E ela pediu que ele prometesse que iria desposá-
la, sem nada temer, pois todos os atos por ela realizados o seriam em
nome de Deus. E, antes de partir, solicita ao amigo que ele peça ao filho
de seu senhor uma dádiva muito simples: a quantidade de terra que ele,
Raimundo, pudesse abarcar numa pele de cervo, e que essa se lhe fosse
cedida com total benesse a ele.
A narrativa abandona neste ponto a encantadora fada da floresta
para levar Raimundo de volta aos seus pares. Feliz com o retorno de tão
fiel vassalo, o jovem herdeiro do barão morto em caçada não pensa duas
vezes em conceder ao jovem o que ele lhe pedira: a quantidade de terra
que ele pudesse abarcar numa pele de cervo. No dia seguinte ao pedido,
todos foram ao mosteiro ouvir a missa da manhã, e Raimundo pediu em
89 É no mínimo interessante que alguém que tenha quebrado o juramento de honrar pai e mãe diga
que é boa católica e que participa das obras de Deus, pode-se perceber nessa fala uma grande tentativa
no que se refere a acomodação de um substrato folclórico de origem pagã dentro das concepções e
doutrinas do cristianismo.
137
oração que Deus lhe levasse a empresa a bom termo, “para a salvação de
sua alma, proveito e honra aqui na terra” (D’ARRAS, 1999: 35)
90
.
Qual não foi a surpresa do senhor quando viu o tanto de terras que
a pele do cervo abraçou! A extensão total correspondia a mais de 2 -
guas de circunferência e em meio a essa terra um riacho brotou do nada.
que se salientar que essa figura literária da água que brota tem dois
significados importantes: em primeiro lugar, numa sociedade como a me-
dieval, que vive da agricultura uma terra sem uma fonte de água não tem
significação nenhuma, correndo o sério risco de se tornar improdutiva.
Em segundo lugar, existe aqui uma imagem oculta que representa a
purificação. A água sempre foi uma figura do imaginário que representa
a purificação da humanidade. No dilúvio, Deus purificou os pecados do
mundo através da água. Na Idade Média, os indivíduos recebiam o batis-
mo por imersão, ou seja, eram purificados dos seus pecados no Espírito
Santo, banhando-se em águas sagradas
91
.
Mesmo agindo de forma benigna em relação ao seu protegido, Me-
lusina era amaldiçoada por Deus. Ao prender seu pai na montanha, ela
negou o mandamento que reza que o filho deve honrar pai e mãe. Por esse
ato, acabou amaldiçoada pela sua progenitora. Destarte, tudo o que ela
tocasse e todos que dela se aproximassem estariam amaldoados.
Mas Raimundo é um bom cristão, sua conduta em todo o romance
demonstra isso: o arrependimento e a tristeza que culminam no desespero
que o levam a encontrar a fada quando da morte de seu senhor o qual
prezava como um pai são os primeiros elementos que comprovam essa
conduta. Assim, a água que brota de sua terra, da terra que ele recebeu
por artes de magia, serve tamm como elemento para purificar o que foi
maculado pela forma como foi concedido. O que não quer dizer que tais
fenômenos não aturdissem a todos, como se depreende da fala do barão,
que segue abaixo transcrita:
90 Note-se que, no caso especíco desse senhor da nobreza, as atitudes em relação a vida futura tem
um viés e uma visão diferentes das do homem do povo. Em geral, os campônios medievais viviam as
suas vidas numa expectativa muito escatalógica, ou seja, temendo o dia do Juízo e esperando que nesse
dia suas almas fossem alçadas ao céu onde viveriam em paz junto ao Senhor, num mundo de fartura.
Isso é inclusive retratado na iconograa do período. Agora, a passagem acima referida demonstra que
a nobreza deseja uma vida de proveito e honra a qual se inicia neste mundo. De certa forma, esse
fenômeno também está relacionado ao processo do imaginário das três ordens. Sobre esse assunto ver
DUBY, Georges. A sociedade Cavaleiresca. Martins Fontes, São Paulo: 1989. MEDEIROS, Márcia
Maria de. Dos clamores das espadas: guerra e guerreiros na Idade Média. In: DIEHL, Astor Antonio
(org.) Fascínios da História II. Passo Fundo: EDIUPF, 2004.
91 Várias outras culturas seguem o mesmo processo e têm o mesmo arquétipo de ver na água uma
fonte de puricação. Sobre o assunto ver ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
138
(...) Na verdade, Raimundo, forçoso é que vos tenha ocorrido algo ma-
ravilhoso! E vos peço que nos conteis o sucedido para dissipar nossas
preocupações.
-Senhor respondeu Raimundo -, o que ali encontrei me pareceu bom e
respeitável. Simplesmente tenho mais prazer em freqüentar aquele local
do que outros, devido à sua reputação de ser propício a aventuras. E espero
que Deus me possibilite uma que me ofereça bens e honrarias. Não me per-
gunteis mais, pois não saberia dizer-vos mais (D’ARRAS, 1999: 38)
92
.
Raimundo desposou a jovem que encontrara na floresta junto a uma
nascente, para grande espanto de seus, que o deixavam de pensar que
ela era uma aparição. O que não impediu que a nobreza fosse ao casa-
mento dos dois, e se admirasse das ostentações de nobreza que a boda
demonstrava. A doçura e educação da moça eram qualidades que encan-
tavam a todos e eles tiveram a honra de serem casados por um bispo.
O casamento de Raimundo e Melusina deu frutos logo de início.
Ela deu à luz a um menino, forte e bonito salvo por uma exceção, a crian-
ça tinha o rosto curto e muito largo, tendo um olho vermelho e outro
verde-azulado, além de orelhas imensas. O menino recebeu o nome de
Uriã. Essas marcas distintivas que ele possuía representam um sinal da
maldição de sua mãe.
Mesmo seguindo os trâmites da e da religião, não se pode es-
quecer que Melusina havia sido amaldiçoada por sua progenitora. Ela era
uma banida, uma párea, uma mulher-demônio que sempre carregaria con-
sigo a marca da desonra que havia infligido a seu pai, e essa marca estava
sendo transmitida a seu filho, expressa nas deformidades do principezi-
nho recém-nascido.
A vida continuava sem que nada de diferente fosse notado entre
os familiares e amigos de Raimundo, aparentemente o desaparecimento
semanal da jovem senhora do castelo era visto como normal e em meio às
lutas da vida cotidiana, Raimundo acusou um nobre da rego de traição,
pecado mortal dentro do imaginário medieval. Assim sendo, e seguindo o
costume do período, o jovem esposo de Melusina desafiou seu rival para
uma luta, não sem antes se preparar dignamente para o embate, conforme
a citação que segue abaixo transcrita:
Então os adversários se foram, e Raimundo partiu para seu campo com
seus homens, seu tio e seus primos. À noite, foi fazer vigília na igreja
92 Mais uma vez se percebe aqui o processo anteriormente mencionado. Raimundo espera que Deus
lhe conceda bens e honrarias, o que comprova o desejo do nobre de uma vida que começaria benéca e
enriquecida já nesta terra, corroborando com a bênção divina que o fazia membro da nobreza.
139
principal da cidade, e ali ficou muito tempo a rezar. Oliveiro foi para casa
com muita gente de sua linhagem, e mandou preparar equipamento e ca-
valo. No dia seguinte bem cedo, assistiram à missa, depois foram armar-se
(D’Arras, 1999: 71).
A presença da forte religiosidade continua inspirando toda a trama
que envolve a luta entre Raimundo e seu rival, Oliveiro. Relíquias são
trazidas para que se jure sobre elas e se diga de que lado está à verdade,
através da presença sagrada desses objetos. Raimundo jura sem pestane-
jar que seus inimigos estão mentindo e são traidores, a seguir seus rivais
tentam fazer o mesmo, mas visivelmente se sentem mal ao jurar em falso
sobre os sagrados objetos que estiveram em presença de corpos santifi-
cados. Assim, fica clara diante de toda assembléia a palavra de quem era
verdadeira, e de certa forma isso foi demonstrado por Deus na medida em
que sua presença foi solicitada no julgamento através das relíquias
93
.
Nesse momento do romance, D’Arras se coloca em frente da nar-
rativa, para dizer que a crônica conta que quando o arauto terminou a
proclamação do duelo que se seguiria entre Raimundo e seu rival, o pri-
meiro colocou a ponta de sua lança no chão e fez o sinal da cruz por três
vezes. Oliveiro aproveitou-se desse momento para atacar o inimigo, po-
rém sua lança espatifou-se e ele não conseguiu o seu intento.
Essa passagem da narrativa destaca dois pontos: primeiro a questão
que envolve o gesto de Raimundo. Ele fez o sinal da cruz (chamando a
proteção da Santíssima Trindade sobre si) por três vezes. Três vezes o -
mero três, representando o ximo da espiritualidade que alguém poderia
atingir, ou seja, o número mais perfeito de todos, nove.
Somado a isso, mesmo estando desarmando e mesmo sem esbo-
çar defesa, Oliveiro não conseguiu seu intento, pois atuou covardemente
e, dentro do imaginário do período, os covardes devem ser derrotados
sem perdão, como fica claro pela citação que segue retirada do texto de
D’Arras: “se Deus não quisesse que fôsseis punido neste mundo, não vos
teria deixado viver tanto tempo. E não será por mim que será evitada a
vossa punição.”( D’ARRAS, 1999: 75)
Em meio às aventuras do esposo, Melusina teve mais dois filhos,
Eudes e Guido. Mais dois meninos praticamente perfeitos, fortes e belos,
exceto por pequenos defeitos como os do seu irmão mais velho Uriã. Eu-
des tinha uma orelha muito maior que a outra e Guido um olho mais alto
que outro. A prole dos dois continuou crescendo. Uriã, Eudes e Guido
93 Sobre relíquias sagradas e sua importância no imaginário medieval ver capítulo 1 desta tese de
doutorado.
140
tiveram mais cinco irmãos, cada um com sua marca distintiva, queso já
discutida em páginas anteriores
94
.
Segundo a crônica, a amizade entre Uriã e seu irmão Guido descon-
certava toda a gente. Jamais se via um sem o outro. E os dois irmãos, ao
saberem que a ilha de Chipre estava sob o domínio dos infiéis, resolveram
partir para libertar o lugar do jugo dos muçulmanos. Para tanto, pediram
a sua e a permissão para a empreitada. Salienta-se aqui a importância
dessa figura feminina: Uriã e Guido não pedem a Raimundo a permissão
para partir. Eles dirigem-se a sua mãe. A dama provê os filhos do neces-
sário para a expedição não sem derramar muitas lágrimas por causa da
partida deles e sem dar como presente um amuletogico para cada um,
indício da magia propiciatória da qual ela era senhora e profunda conhe-
cedora:
Meus filhos, ouvi bem minhas recomendações. Meus filhos, dou-vos estes
dois anéis, cujas pedras têm o mesmo poder: sabei que usando-os, enquan-
to fordes leais, sem pensamentos ou ações desonestas, sem vilania, não
sereis vencidos em nenhum combate, desde que vossa causa seja justa. E
nenhum sortilégio, nenhum encantamento de origem gica ou devido a
poção, vos atingirá: quando fixardes o olhar em vosso anel, qualquer ma-
gia perderá todo o poder (D’ARRAS, 1999: 88).
Impressiona o fato de que uma mulher demônio como ela, condena-
da pela própriae se disponha e executar um ato como esse. Brindar os
filhos com um amuleto de tal poder quando eles se lançam a uma aventura
contra os infiéis. Inferem-se daí alguns fenômenos que merecem consi-
deração: que salientar que a ação da fada é meritória. Melusina é boa
e pratica bons atos. Porém, pelo fato de ser amaldiçoada pelo seu próprio
sangue ela está condenada. E de certa forma, a tristeza que permeia a
personagem durante todo o corpo do romance demonstra isso.
Outro processo que merece atenção: o poder dos anéis obriga os
jovens senhores a seguirem o código da cavalaria: lealdade, honestidade,
justiça. Era o que se esperava de um cavaleiro cristão que partia em cru-
zada. E é uma mulher demonologizada, uma figura meio serpente meio
gente, nascida do imaginário pagão, quem concede esse amuleto. Daí a
94 Depois de Guido nasceu Antônio o qual, assim como seus irmãos era belo, mas possuía no rosto
um sinal particular: uma pata de leão, a qual quando ele atingiu a idade de 8 anos criou pelos e garras.
Depois nasceu Renaud, munido de um olho, mas que podia ver tão bem e tão longe que enxergava
três vezes melhor que os outros. O sexto lho de Melusina e Raimundo foi Godofredo, alcunhado de O
dentuço, isso porque nasceu com um dente que lhe saia da boca cerca de uma polegada. O sétimo lho
recebeu o nome de Fromont, e apesar de belíssimo tinha no nariz uma marca distintiva, peluda, como se
fosse a pele de uma fuinha. O oitavo lho do casal, chamado de Horrível era tão perverso que aos quatro
anos já matara duas de suas aias. Esse rebento nasceu com três olhos e com um tamanho descomunal.
141
Melusina representar um enlace da cultura pagã com a cultura cristã. A
fada celta usa de seus artifícios mágicos (teoricamente concedidos a ela
por forças malignas) para espalhar a mensagem do código de ética da
cavalaria cristã.
E o discurso da personagem vai ainda mais longe, corroborando
com o pensamento exposto nas linhas acima:
Meus Filhos, recomendo-vos: onde quer que estiverdes, começai o dia as-
sistindo ao serviço divino, antes de qualquer coisa. Implorai a ajuda de
vosso criador em todas as vossas empresas: servi diligentemente, amai
e temei o vosso Deus e vosso criador. Defendei nossa santa mãe Igre-
ja, e sede seus verdadeiros paladinos contra todos os seus inimigos. (...)
(D’ARRAS, 1999: 89).
Assim sendo, abençoados pela mãe, os jovens cavaleiros partem
para Chipre, o sem antes solicitarem que Deus lhes permitisse fazer
uma boa viagem. Ure Guido se fazem ao largo, o vento enfuna-lhes
as velas e eles se afastam rapidamente pelo horizonte azul do oceano.
Mais uma vez percebe-se nesse ponto do romance uma clara ilação entre
a mentalidade medieval e o mundo do imaginário.
O mar trouxe muitos males ao homem medieval (peste negra,
guerras...) e não é à toa que antes de seus filhos deixarem-na, Melusina
concede a eles um amuleto mágico, assim como não é à toa que antes de
partirem pela aventura dos caminhos fluídos, os marinheiros fam a sua
oração. Aqui a história abandona momentaneamente a personagem título
do romance, para contar sobre os feitos de seus filhos mais velhos.
Não demorou muito para que os irmãos encontrassem um mostei-
ro à beira-mar, que como não podia deixar de ser, num universo onde
a religiosidade comanda a mentalidade dos homens, tinha guardado em
seu interior uma preciosa relíquia: a forca onde morreu o bom ladrão que
acompanhou Cristo no seu calvário
95
. Depois os jovens aventureiros par-
tem rumo ao seu destino, ao combate contra os sarracenos, pois era de sua
intenção atacar o sultão e acabar com os exércitos muçulmanos. A citação
abaixo demonstra o empenho da cavalaria crisdirigida pelos filhos de
Melusina contra os islamitas:
Não vos preocupeis com isso – retorquiu Uriã pois a justiça está do nosso
lado: eles vieram nos atacar sem razão. E mesmo que s tivéssemos ido
atacá-los na terra deles, ainda assim estaríamos em nosso direito, pois se
95 Sobre a questão das relíquias ver capítulo 1 deste trabalho.
142
eles são os inimigos de Deus. Portanto, não temais, pois Deus nos ajudará.
(...) (D’ARRAS, 1999: 106).
Destaca-se na fala de Uriã, um pensamento que era corrente na
mentalidade do período. Todo o homem que parte em cruzada seja no
oriente, seja no ocidente
96
, tem praticamente a certeza da vitória, pois
está lutando ao lado do exército do verdadeiro senhor do maior feudo de
todos: a própria terra.
Deus havia feito a terra em seis dias, descansado no sétimo e conce-
dido ao homem os privilégios daquilo que Ele fizera. Quem não O seguia
estava automaticamente colocado do lado de fora do feudo que o Senhor
constrra e, pior que isso, estava ao lado do exército de Seu inimigo, o
demônio. Destarte, cabia à cavalaria cristã lutar para expulsar do feudo
do maior de todos os Senhores os seus principais inimigos (judeus, mu-
çulmanos e hereges).
Como era de se esperar, o exército liderado por Uriã e Guido venceu
de roldão aos muçulmanos, chamados no texto de pagãos. Estes fugiram
a toda brida e os que por ventura eram apanhados, acabavam sendo ou
aprisionados ou mortos. Uriã tornou-se um herói frente aos olhos do rei
de Chipre, uma espécie de enviado de Deus para sustentar e defender o
seu reinado, e a própria cristã. Aliás, esse é o desejo que se percebe da
fala do próprio príncipe:
Que todos quantos tenham o ardente desejo de vingar a morte de Nosso
Senhor, de defender sua religião e ajudar o rei de Chipre se alinhem sob
minha bandeira; e que todos os que não tiverem esse desejo passem para o
outro lado da ponte (D´ARRAS, 1999: 118).
Graças à coragem dos irmãos, fica claro que a salvação do reino de
Chipre dos muçulmanos se devia a duas razões: primeiramente a Deus,
que em sua benevolência havia colocado no caminho dos infiéis os dois
irmãos, verdadeiros anjos guerreiros das hostes celestiais. Não fosse pela
ação deles, a ilha teria caído sob o domínio dos sarracenos e aos cipriotas
só restariam dois caminhos: a morte pelo fio da espada, ou a conversão e
com isso a danação eterna.
que se salientar que mais uma vez nesse momento do texto
percebe-se uma clara interface entre a cultura clerical e a cultura pagã,
tão ao gosto da mentalidade medieval: os anjos vingadores que Deus en-
96 O lado ocidental apresentou pelo menos, três movimentos com ares de cruzada os quais, por serem
localizados dentro da própria Europa não tiveram o mesmo ar que as cruzadas no oriente apresentaram.
Foram esses movimentos a Reconquista Ibérica, a Cruzada Albigense e a Marcha para o Leste.
143
viou para salvar Chipre nada mais eram do que os filhos de uma mulher
amaldiçoada por haver desonrado seu pai, por havê-lo prendido através
de artes mágicas, e por artes mágicas haverem concedido ao seu marido a
fortuna e os bens que pertenciam à família.
Assim sendo, os iros que haviam aportado em Chipre em busca
de glórias e da destruição dos inimigos de Deus, defendendo a fé calica
eram, na verdade, filhos de uma mulher maldita aos olhos do Senhor.
Depois da narrativa falar sobre o casamento dos filhos de Melusina com
princesas da região de Chipre, a história volta mais uma vez seu foco
para a senhora de Lusignan, fortaleza que a encantadora mulher que pa-
rece não envelhecer construiu juntamente com várias abadias na região
de Poitiers
97
.
Ademais, a crônica dá notícia de dois de seus filhos: Fromont que
se tornaria monge em Maillezais; e Godofredo, cavaleiro intrépido que,
segundo a lenda, lutou com um cavaleiro encantado que poderia ser o
próprio diabo. A valentia desse cavaleiro era comparável ao seu tem-
peramento colérico e sangüíneo. Sua intrepidez acabou por levá-lo ao
oriente, onde Uriã e Guido já estavam enfrentando os muçulmanos.
Mais uma vez a narrativa se volta para as peripécias que os filhos
de Melusina faziam no oriente, como se ao defender a cristã eles pudes-
sem lavar a mácula da mãe. Godofredo era tão feroz em batalha que sua
fama logo estava deixando os muçulmanos mais comedidos na batalha,
como se percebe pela citação abaixo:
Senhor sultão, se tivésseis visto os reis Uriã e Guido, seu porte arrogante,
a aparência de seus homens e a horrível, amedrontadora e infinita bruta-
lidade do dentuço, irmão deles, teríeis bem menos vontade de os atacar.
E, antes que sejam fixadas as responsabilidades de cada um no combate,
sabei que não alcançareis sucesso com a facilidade que imaginais. ouvi
dizer várias vezes que quem muito ameaça muito teme, e acaba vencido
(D’ARRAS, 1999: 179).
Ao ouvir essas palavras, o senhor dos muçulmanos achou infinita
graça, o que não se repetiu quando, no campo de batalha enfrentou os
cristãos os quais pareciam demônios quando adentraram no acampamen-
to sarraceno, derrubando e pondo por terra tudo o que encontravam pela
frente, bradando como loucos “Lusignan!”. E entre todos os guerreiros, o
mais assustador era sem dúvida Godofredo que, segundo as palavras do
97 A título de curiosidade, chama a atenção que Melusina, um ser meio mulher meio demônio viva
justamente no lugar em que Carlos Martel, avô do imperador Carlos Magno, derrotou os muçulmanos
em 724.
144
sultão de Damasco: “Por Maomé disse o sultão -, isso o é homem, é
um diabo, ou então o Deus dos cristãos, descido dos céus para acabar com
a nossa religião” (D’ARRAS, 1999: 187)
98
.
A bravura de Godofredo e sua ferocidade em campo só eram com-
patíveis com a sua fé. Tanto que ele acabou por fazer o sultão de Damasco
que antes era seu inimigo, tornar-se seu amigo e companheiro de viagem.
Juntos eles foram a Jerusalém, visitaram as muralhas da cidade que, se-
gundo a narrativa ainda não haviam sido reconstruídas depois de terem
sido destruídas por Vespasiano e Tito, quando de sua passagem após a
crucificação de Jesus Cristo. Na Terra Santa, Godofredo passou três dias
em devoção diante do Santo Sepulcro.
Nesta altura do romance, um novo corte na narrativa leva o leitor de
volta à Europa, para junto de Melusina e Raimundo, casal que até então
vivia feliz em Poitiers, sem que o senhor sequer desconfiasse da dupla
natureza de sua esposa. Isso até seu irmão, o conde de Forez, visitar ao
casal em um sábado, justamente o dia em que Raimundo não pode ver
Melusina, pois conforme acordo estabelecido entre os dois, nesse dia ela
some das vistas do marido e reassume sua forma original, meio serpente
meio mulher.
O conde de Forez se aproveita da ocasião para relatar ao irmão o
quanto a reputação deste estava manchada pelos constantes desapareci-
mentos de sua esposa, conforme se aufere da citação abaixo:
Visto que sois meu irmão, não devo ocultar-lhe vossa desonra. Meu irmão,
corre o boato, entre toda a população, de que vossa mulher vos mancha a
reputação dando-se todas as sextas-feiras a orgias. E sois tão cego em tudo
que lhe diz respeito que nem sequer buscais saber aonde ela vai. Outros
afirmam que vossa mulher é um espírito encantado, que faz penitências
aos sábados. Não sei em que acreditar, mas, como sois meu irmão, o
devo ocultar vossa desonra nem tolerar rumores. Foi para falar convosco
que aqui vim (D’ARRAS, 1999: 196).
É difícil dizer que motivos teriam levado o conde de Forez a come-
ter tal ato. Talvez fosse realmente à vontade de que seu irmão descobrisse
a verdade e de que as histórias que se contavam sobre a sua cunhada não
passavam de galhofas e mentiras. Talvez tenha sido pura e simplesmente
a inveja de ver seu irmão casado com uma bela mulher que nunca perdia o
viço da juventude, dono de uma fortuna que só fazia crescer e pai de uma
98 De certa forma o sultão tem razão. Por ser lho de uma fada, Godofredo é envolto de uma aura
mágica, e mais uma vez a fala do muçulmano articula o sagrado e o profano, pois primeiro ele diz que
o príncipe é um demônio, depois o próprio Deus.
145
prole que, embora marcada por diversos sinais, era predominantemente
masculina, sempre vencedora de suas demandas.
A fala do conde de Forez remete a dois pontos que merecem a
análise de um leitor mais atento. Em primeiro lugar a própria figura do
conde é análoga a da serpente traidora que no Paraíso tentou Eva e lhe fez
comer do fruto proibido. Até esse fenômeno, Adão e Eva viviam felizes
no Paraíso, assim como Melusina e Raimundo viviam felizes em Poitires
gozando dos prazeres que seu pequeno universo lhes granjeava.
Entretanto, após a fala do irmão, Raimundo se sente tentado a buscar
uma resposta para os desaparecimentos semanais da esposa e, a partir daí, seu
mundo, que fora tão habilmente construído por Melusina, desde o primeiro
encontro dos dois, é destrdo e a desgraça começa a rondar os habitantes de
seu castelo, da mesma forma como aconteceu com Adão e Eva.
Raimundo tem um pacto com Melusina: esse pacto preconiza que
ele não pode vê-la no sábado. Adão e Eva tinham um pacto com Deus:
não podiam comer do Fruto Proibido. Ao romper o pacto que havia feito
com sua esposa, Raimundo não só trai sua palavra de cavaleiro como traz
a maldição da sua esposa para todos os membros de sua família. Análogo
ao que acontece com Adão e Eva ao comerem do fruto proibido, pois a
alegria que sentiam em viver nos Jardins das Delícias lhes foi tomada.
Raimundo também vivia em um pequeno Éden junto de sua esposa
e essa alegria lhe foi roubada quando seu irmão plantou em seu coração
a semente da dúvida. Sôfrego por tentar comprovar a inocência de sua
esposa, Raimundo foi espiar o que fazia Melusina e eis que a viu da se-
guinte forma:
E viu Melusina no tanque. Até o umbigo, sua aparência era de mulher, e
ela se penteava; a partir do umbigo, ela tinha um enorme rabo de serpente,
da grossura de um tonel de arenques, terrivelmente longo, com que batia
na água, que ia respingar na abóbada da sala (D’ARRAS, 1999: 197).
Vendo aquilo, Raimundo percebeu o quanto de mal havia feito a
sua própria ilusão. O segredo de sua esposa deveria ficar guardado com
ela, ele não deveria ter entrado nos mistérios do oculto mundo feminino,
pois isso lhe roubou a alegria que sentia de viver no pequeno paraíso que a
fada com quem era casado havia criado: um mundo de riquezas, onde sua
linhagem mesmo sendo marcada era vitoriosa, onde ele tinha uma bela
esposa que não envelhecia. A raiva do senhor de Poitiers por ver tudo isto
se perder em virtude de sua traição foi tanta que ele expulsou seu irmão
de sua casa:
146
Fora daqui, traidor ignóbil! Por vossas palavras infames e vossas mentiras,
fui levado a cometer um perjúrio para com a melhor mulher do mundo,
a mais fiel depois daquela que concebeu nosso criador. Sois a causa de
minha imensa tristeza, por vós perdi toda a minha alegria. Meu Deus, se
eu ouvisse meu coração, vos daria morte vil, mas sou impedido pela lei
da natureza, por serdes meu irmão. Ide, não vos quero ver mais diante de
mim. Que todos os servos do inferno vos acompanhem e vos torturem com
os sete tormentos infernais (D’ARRAS, 1999: 197).
O segundo ponto que merece análise na fala do irmão de Raimun-
do, diz respeito ao fato de que é o primeiro momento em todo o romance
em que a hipótese de Melusina ser uma bruxa, ou um espírito encantado
aparece às claras e de forma direta na boca de uma personagem.
O mundo medieval via na sexta-feira um dia gico, pois remetia
ao dia em que Jesus Cristo havia sido morto. Destarte, por ser o dia em
que o Filho do Homem havia sido banido da face da terra, era um dia em
que as forças do mal vagavam livres pela superfície do mundo, sendo o
dia favorito para a realização dos famosos sabás das bruxas. Roberto Si-
cuteri, na obra Lilith: a lua negra expressa a seguinte opinião sobre esse
fenômeno:
Nunca antes, como após o ano Mil, o homem lutou contra os componentes
erótico-sexuais que quer reprimir confinando-os ao sadas manifestações
satânicas. Nunca, como nesta época, a mulher teve que pagar um preço tão
trágico pelo ódio masculino à força instintiva (SICUTERI, 1985: 111).
Melusina se enquadra nessa questão. Raimundo não era uma figura
tão nobre antes de conhecê-la e sua fortuna foi amealhada pelos dotes
mágicos de uma mulher que lhe deu não mais nem menos que oito filhos.
E quando o sol baixava na sexta-feira essa mulher magnífica desaparece.
Por que não presumir que ela esteja participando, junto com outros seres
monstruosos, da festa do sabá?
Uma mulher com as características de Melusina, se não era um fla-
gelo para seu marido, era um flagelo para a sociedade medieval. Ela não
é o modelo de mulher instituído pelos padrões dessa sociedade patriarcal
para o que se espera da mulher, tanto que ela sobrepuja a figura do marido
no romance.
Some-se a isso o fato de que, embora senhora do castelo e muito
benfazeja senhora de todo um reino onde construiu abadias e fortalezas,
Melusina tem um lado oculto que mostra a essência do mistério feminino,
assim como as bruxas dos séculos XIII e XIV também têm. Ninguém as
147
conhece, ninguém as vê, mas todos estão prontos a jurar que sabem de
seus trabalhos e estão prontos a reconhecer sua funesta presença. Somente
com a Inquisição a bruxa se tornará um elemento palpável: uma criatura
do sexo feminina, pertencente às classes humildes da população e con-
sagrada ao diabo. Por isso que não se percebe em falas diretas por todo
o romance (a não ser quando o conde de Forez diz o que pensa sobre a
cunhada), que Melusina pode ser uma bruxa.
E isso não é de espantar, pois segundo o imaginário da época, as
bruxas podiam se mimetizar e andar em meio aos homens como criatu-
ras perfeitamente normais, que não indicavam a sua condição maligna.
E isso, com a permissão do próprio Deus, que na sua condição de onipo-
tência e onipresença, via tudo o que se passava e usava dessas mulheres
vendidas ao demônio para purificar as almas dos fiéis que eram capazes
de resistir à tentação das maravilhas que elas podiam oferecer através de
seus feitiços e filtros mágicos.
Outro aspecto que merece análise dentro do contexto do romance é
o cenário onde Melusina foi encontrada pelo seu marido, mergulhada na
água, transformada em um ser meio mulher meio serpente. Segundo Mir-
cea Eliade na obra Tratado de História das Religiões, desde a pré-história
se fazem ligações que identificam o conjunto Água-Lua-Mulher, como
o tríduo que representa a fecundidade (ELIADE: 1993). Assim, desde
tempos imemoriais ao advento do Cristianismo, a água aliada à figura
feminina representa essencialmente uma figura de vida e de fartura.
Entretanto, no que se refere a Melusina o elemento água assume
uma outra conjunção
99
. Aqui a água é expressão de purificação, pois nela
tudo se dissolve, toda a forma se desintegra, toda a história é abolida, e
nada do que existiu anteriormente subsiste depois da imersão. Quando
reassume a sua forma, a fada esdissolvendo de maneira paulatina seus
pecados, ela está limpando sua natureza demoníaca para que nenhum si-
nal, nenhuma marca, nenhum acontecimento nefasto continue presente. A
sua imersão significa uma espécie de batismo.
Segundo Eliade, em obra supracitada:
Este simbolismo imemorial e ecumênico da imersão na água como ins-
trumento de purificação e de regeneração foi aceito pelo cristianismo e
enriquecido por novos valores religiosos. O batismo de São João procu-
rava, não a cura das enfermidades corpóreas, mas a redenção das alma, o
99 Independente do conjunto religioso do qual faça parte, a função da água é sempre a mesma:
desintegrar, extinguir as formas, lavar os pecados, puricar e regenerar. E tudo isso deve acontecer ao
mesmo tempo. Seu destino é preceder a criação e reabsorvê-la, não podendo nunca superar a sua própria
modalidade, não podendo nunca manifestar-se em formas, pois tudo o que toma uma forma se manifesta
acima das águas.
148
perdão dos pecados (...). No cristianismo, o batismo tornou-se o princi-
pal instrumento de regeneração espiritual. (...) Simbolicamente, o homem
morre através da imersão e renasce, purificado, renovado, exatamente
como Cristo ressuscitou do seu túmulo (ELIADE, 1993: 160).
Na obra O sagrado e o profano, Mircea Eliade diz que as águas
simbolizam a fonte de origem o reservatório de todas as possibilidades
de existência, precedendo com isso toda a forma e sustentando toda a
criação. Mas, segundo o mesmo autor, a imersão na água simboliza a
regressão ao pré-formal, a reintegração, ou dito de outra forma, o renasci-
mento. No caso de Melusina, se pode dizer, junto com Eliade que:
Em qualquer conjunto religioso em que as encontremos, as águas conser-
vam invariavelmente sua função: desintegram, abolem as formas, “lavam
os pecados”, purificam e, ao mesmo tempo, regeneram. Seu destino é
preceder a Criação e reabsorvê-la, incapazes que são de ultrapassar seu
próprio modo de ser, ou seja, de se manifestarem em formas (ELIADE,
1992: 109).
Ademais, o próprio mimetismo da fada tem sentido duplo e relação
direta com o meio aquático: primeiro, o fato de ela tornar-se meio ser-
pente faz alusão ao pecado original e a tentação que a serpente fez a Eva.
Em segundo lugar, serpentes o mbolos da água, assim como dragões,
conchas, delfins entre outros seres. Assim como os dragões, as serpentes
simbolizam a vida rítmica, pois rítmico é o movimento sinuoso de seu
corpo que pode ser associado às ondas do mar ou às correntezas de um
rio.
Fillipo Lourenço Olivieri, em artigo publicado na Revista Brathair,
alega que todos os povos indo-europeus tiveram cultos religiosos relacio-
nados à água. Entre esses povos, as questões religiosas relativas à água
tiveram especial reverência entre os celtas
100
. Segundo o mesmo autor, é
possível que a associação da água com a queso iniciática nessa cultura,
faça referência a presença de uma mulher, a qual aparece de um meio
aquático, como um lago. Esse é o caso de Melusina.
Raimundo não deixava de se lamentar pela sua traição e por -
rias vezes dilacerou seu rosto e golpeou-se no peito, lamentando-se pela
quebra do juramento que fizera à esposa quando de seu contrato de ca-
samento. A dor que o cavaleiro sentia era o excruciante que o raras
100 OLIVIERI, Fillipo Lourenço. Os Celtas e os Cultos das Águas: Crenças e Rituais. Brathair 6 (2),
2006: 79-88. (http://www.brathair.com) acesso em 23/01/2009, 14:45.
149
vezes ele se comparou a serpente, elemento simbólico da traição dentro
do imaginário cristão:
Ai de mim, doce amiga, sou a áspide ignóbil e cruel; vós, a preciosa li-
corne. E eu vos traí, com minha peçonha imunda. Ai de mim! A vós, que
me purgastes de meu primeiro e terrível veneno, é com tal crueldade que
retribuo, traio, falto aos meus compromissos! Em nome de Deus, se vos
perder por isso, sairei em exílio para algum lugar, e nunca mais ouvirão
falar de mim. (D’ARRAS, 1999: 198/199)
Dessa forma se lamentava o cavaleiro e sua mulher, a que nada pas-
sava despercebido sentiu o mal-estar que envolvia o seu senhor. Nenhum
dos dois tocou no assunto, como se ao não falar sobre a traição e sobre
a revelão do segredo acompanhado da maldição que lhe era inerente
o casal ficasse livre desse problema e pudesse continuar a viver em seu
pequeno paraíso terrestre. E a maldição se fez presente na vida de ambos
de forma violenta, causando um acesso de loucura em Godofredo, o tão
valente filho do casal.
Ao saber que seu irmão Fromont havia se tornando religioso na
fictícia abadia de Maillezais, Godofredo foi tomado de uma fúria insana
e constante. Não lhe agradou a idéia de ter um irmão monge e ele jogou
a culpa desse fato em seus pais. Ademais, o jovem cavaleiro via na vida
monástica em exemplo de devassidão que não devia ser seguido, e nos
monges, um grupo de feiticeiros que havia enfeitiçado seu irmão:
Como! Meu pai e minha mãe não tinham bens suficientes para prover meu
irmão Fromont, dar-lhe terras e boas fortalezas, casá-lo ricamente, em vez
de torná-lo monge! Pelos dentes de Deus, aqueles monges devassos de
Maillezais o enfeitiçaram e o atraíram para ganharem prestígio. Ele pas-
sava dias e noites com eles. Realmente, nunca gostei daquilo! Mas, pela
fidelidade que devo a Nosso Senhor Jesus Cristo e a todos quantos devo
ser fiel, eu os recompensarei de tal modo que nunca terão vontade de tor-
nar monge nenhum dos meus irmãos! (D’ARRAS, 1999: 208)
Godofredo incendiou a abadia onde estava seu irmão, e todos os
monges foram queimados, inclusive Fromont e metade da abadia junto
com eles, antes que o cavaleiro deixasse o lugar.
A fúria de Godofredo tem um amplo significado no contexto do
romance. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o personagem não quer
ser criticado por ter um irmão monge. Isso faz parte de uma de suas falas
150
na narrativa
101
. Isso reflete um imaginário de final da Idade Média que
criticava com veemência a vida faustosa e cheia de luxos nas quais alguns
membros do clero viviam
102
. Ademais, se pode identificar na fúria da per-
sonagem contra a atitude do irmão, um grito da cultura popular, de origem
laica e pagã, contra a institucionalização imposta pela cultura clerical.
O cavaleiro incendiário também tem inerente a sua atitude o princí-
pio da dubiedade que marca o ser humano. Ele lutou ao lado dos cristãos
contra os muçulmanos, e com tal fúria que praticamente sozinho causava
terror aos exércitos sarracenos. Mas, sendo filho de quem era e carregan-
do consigo a maldição de sua mãe, estava suscetível de sofrer a carga
dessa mesma maldição, não esquecendo de que o causador desse processo
foi ninguém menos que seu próprio pai.
Aliás, Raimundo, ao saber da insanidade que o filho cometera,
buscou imediatamente um bode expiatório para o problema. E não havia
outro melhor que sua esposa:
Ah, Godofredo! Havias começado tão bem como cavaleiro denodado que
poderias ter atingido os mais altos píncaros da glória que um filho de
príncipe possa desejar. Mas eis-te completamente arruinado pela cruel-
dade! Pela fé que devo a meu Deus, acho que essa mulher não passa de
um espírito malfazejo, não acho que o fruto de suas entranhas possa ser
perfeitamente bom; ela pôs no mundo filhos marcados por estigmas.
Porventura não temos Horrível, que ainda o completou sete anos e já
matou dois escudeiros meus? E que antes de fazer três anos havia pro-
vocado a morte de duas aias suas, de tanto lhes morder os seios? E no
sábado em que meu irmão, conde de Forez, me informou dos boatos que
corriam, porventura não vi a mãe deles com forma de serpente do umbigo
para baixo? É algum espírito maligno, ou uma aparição, uma ilusão que
me enganou; a primeira vez em que a vi, porventura não soube ela me dizer
tudo o que me sucedera? (D’ARRAS, 1999: 212).
Ao ver o desespero que acometia o seu senhor, os cavaleiros que
acompanhavam Raimundo decidiram avisar Melusina sobre o tormento
101 “Com mil raios! Vós pagareis com os outros! Ninguém poderá me criticar por ter um monge
como irmão!” (D’ARRAS, 1999: 209).
102 Maiores informações ver capítulo I deste trabalho.
151
que assolava o seu esposo
103
. Mal podiam saber os senhores que esse seu
ato culminaria em grande sofrimento e na separação do casal.
Assim que chegou a Lusignam, fortaleza onde seu marido se en-
contrava prostrado devido ao ato cometido por Godofredo, Melusina foi
ao encontro de seu esposo. Saudou-o, mas não recebeu resposta, então
pediu que se marido deixasse de lado a aflição, de acordo com a citação
que segue, a qual mesmo sendo longa, esclarece um elemento importante
que demonstra com clareza a dupla construção dessa personagem:
Senhor, que loucura a vossa! Vós, que sois considerado o príncipe mais
sábio destes tempos, manifestais tal desespero por algo que não pode mais
ser mudado nem remediado. Quereis então condenar a vontade do Criador,
que tudo fez e desfará quando quiser, quando Lhe aprouver? Sabei que não
pecador, por maior que seja, por quem Deus não demonstre ainda mais
misericórdia, em sua bondade, se ele se arrepender e pedir perdão com
boa vontade, com coração sincero. Se vosso filho Godofredo cometeu essa
ofensa, arrebatado pela extraordinária violência de seus sentimentos, sabei
que foi devido aos pecados dos monges, que levavam a vida na devassidão
e no desregramento. Nosso Senhor quis puni-los, e esse tipo de coisa não
pode ser conhecido pela criatura humana, pois os juízos de Deus são tão
misteriosos que ninguém neste mundo os pode compreender com seu en-
tendimento limitado. Por outro lado, senhor, somos suficientemente ricos,
graças a Deus, para reconstruir a abadia, deixando-a mais bela do que
jamais foi, dotando-a com boa renda, nela colocando mais monges do que
nunca houve. E Godofredo se emendará, se Deus e a natureza permitirem.
Por todas essas razões, peço-vos, meu querido esposo, que vos deixeis de
tanta aflição (D’ARRAS, 1999: 214).
Nessa fala Melusina demonstra a dubiedade de sua natureza, ou
seja, ela demonstra a perspectiva que é inerente à própria maneira de pen-
sar do homem medieval, a saber, a interação entre o sagrado e o profano.
Sim, Godofredo havia cometido um pecado, mas se ele voltasse seu co-
ração arrependido em direção ao Altíssimo, Ele, em Sua infinita glória
receberia de volta em seu seio o filho pródigo. Mas dependeria da vontade
de Deus e da Natureza que Godofredo se emendasse.
103 Mais uma prova da independência da fada em relação ao seu esposo. Melusina não se encontrava
junto de seu esposo no mesmo castelo. Estava em outro lugar (Niort) construindo torres gêmeas. Assim,
os cavaleiros que acompanhavam o desespero de Raimundo enviaram mensageiro para comunicar a
senhora do sofrimento de seu esposo. Se for considerado o padrão de comportamento exigido pela
sociedade para a mulher, Melusina não estava cumprindo com a sua função de esposa, pois não estava
consolando seu marido num momento de tristeza e com isso descumpria o compromisso do casamento
(na alegria e na tristeza), quebrando, destarte, um juramento sagrado.
152
Aqui existe uma reminiscência das tradições celtas as quais con-
tribuíram para a construção dessa figura literária. A ação do divino não
acontece somente no âmbito masculino, mas necessita do âmbito femi-
nino para se integralizar. A união da dupla face do sagrado, o masculino
e o feminino é que realizam as ações, que promovem as transformações.
Somente da boca de uma personagem que manifesta a dubiedade de sua
construção por todo o romance é que essa frase poderia nascer.
Mesmo sabendo em seu coração que as palavras de sua mulher são
sábias, senão verdadeiras, Raimundo agiu de forma violenta, dominado
que estava pela fúria provocada pela ação do filho. Em sua ação não se vê
nem sombra de sensatez muito menos da ponderação que cumula a fala
de sua esposa. A própria fala raivosa de Raimundo deixa entrever que o
pecado da Ira pode levar um homem a perder tudo o que mais ama em sua
vida, inclusive uma família que até então fora perfeita, não fosse a dúvida
plantada em seu pensamento pelo seu próprio irmão, não fosse a ão
tresloucada de seu filho:
Ah! Serpente infame, em nome de Deus, tu e teus atos o sois mais que
ilusão, e nunca nenhum dos filhos que gerastes acabará bem! Como res-
suscitar aqueles que foram queimados em meio a atrozes suplícios e teu
próprio filho, que se tornara religioso? A única coisa boa que nascera de ti
era Fromont, mas ele foi aniquilado por uma ação demoníaca: todos aque-
les que ficam ensandecidos pela cólera estão sob o domínio dos príncipes
do inferno; foi por isso que Godofredo cometeu esse grande, horrível, he-
diondo delito de queimar o próprio irmão e os monges, que não mereciam
a morte! (D’ ARRAS, 1999: 215).
Essa fala de Raimundo encerra mais uma das verdades fundamentais
da mentalidade do universo masculino em relação ao universo feminino.
Historicamente a mulher personifica um mal poderoso, um prazer sinis-
tro, venenoso e enganador, que introduziu na terra o pecado e, junto com
ele, a desgraça e a morte. Independente do mito seja Pandora ou Eva, foi
ela quem cometeu a falta original ao abrir a caixa que encerrava em seu
interior todos os males da humanidade ou ao comer do fruto proibido.
Desse modo, ao procurar um responsável para o seu sofrimento, para o
malogro que o cercava, para o desaparecimento do paraíso terrestre, o
homem encontrou apenas uma figura de mulher.
Raimundo parece haver esquecido de seus filhos Uriã e Eudes, ca-
valeiros cruzados que, em nome de Deus, libertaram regiões dominadas
pelos muçulmanos. Raimundo também parece haver esquecido tudo o que
sua esposa lhe havia concedido. Ou a fúria do ataque da personagem so-
153
bre a fada pode remeter justamente ao pensamento contrário: Raimundo
poderia muito bem estar sentindo que toda a sua vida, toda a sua glória,
sua sapiência eram assim justamente por causa da ação da esposa e,
nesse contexto, seu orgulho masculino ferido atacava a fada de forma
direta.
Neste caso, a ilusão não era ela, mas sim ele. E ao ver no espelho
de sua alma que sem a ação mágica de sua esposa ele nada seria, atacou-a,
por perceber que ele e toda a sua honra não passavam do fruto da força
de sua mulher. Se a última palavra fosse a dela, mais uma vez ele se veria
submisso ao universo feminino.
O comportamento da personagem vai ao encontro de toda uma ati-
tude masculina em relação ao sexo feminino, atitude essa que oscila da
atração à repulsão, da admiração à hostilidade. Desde sempre a veneração
do homem em relação a mulher foi contrabalançada pelo medo que ele
sentiu em relação à figura feminina, particularmente nas sociedades pa-
triarcais. Medo esse, que na opinião de Jean Delumeau, na obra História
do medo no ocidente, “se negligenciou estudar e que a própria psicanálise
subestimou até uma época recente” (DELUMEAU, 2001: 311).
Ao se ver alvo da fúria insana do esposo, Melusina caiu desmaiada.
Ao voltar a si, teve a certeza de que a união dos dois havia acabado, como
se percebe através de sua fala dotada de tristeza:
Ah! Raimundo, o dia em que te vi pela primeira vez foi um dia de desgra-
ça! Ai de mim! Para meu infortúnio desejei tua graça, teu porte, teu belo
rosto; para meu infortúnio desejei tua beleza, pois tu me traíste de maneira
ignóbil! Mesmo quando faltaste à tua promessa, eu te perdoei, do fundo
do meu coração, por teres procurado ver-me sem sequer falarmos sobre o
assunto, porque não revelaste nada a ninguém; e Deus te perdoaria, porque
expiarias essa falta neste mundo. Mas ai, meu amigo. Agora nosso amor se
transformou em ódio, nossa ternura em crueldade; nossos prazeres e nos-
sas alegrias, em lágrimas e prantos; nossa felicidade, em grande desdita e
dura calamidade. Ai, meu amigo, se não me tivesses traído, eu me salvaria
de minhas penas e de meus tormentos, viveria vida natural, como mulher
normal, morreria normalmente, com todos os sacramentos da Igreja, seria
enterrada na igreja de Nossa Senhora de Lusignan, e seriam celebradas as
devidas missas em minha memória. Mas agora me devolveste à sombria
penitência que por muito tempo conheci, por causa de um erro meu. E
essa penitência agora eu terei de suportar até o dia do Juízo, porque tu me
traíste. Peço a Deus que te perdoe (D’ARRAS, 1999: 215/216).
154
A personagem, no trecho acima referido, lamenta em primeiro lu-
gar a traição de seu marido e o quanto essa traição lhe custou. Há que se
salientar o sentido que o ato de traição tem na mentalidade do homem
medieval
104
. E, pelo fato do marido havê-la traído ela teria de pagar.
E mais, pelo ato de traição cometido por ele, Deus não permitiria mais
que o pequeno parso construído por eles continuasse existindo. Aqui
se percebe o quanto o arquétipo da traição é uma sombra que assusta a
mentalidade do homem medieval, ainda mais quando essa traição quebra
um juramento sagrado, como o realizado entre o marido e a mulher no ato
do casamento.
Ademais, Melusina começou a profetizar o futuro de sua linhagem,
uma vez que sua partida era eminente, pois assim estava escrito devido
à maldição que ela carregava consigo. Em desespero, Raimundo pediu
à esposa que não o abandonasse. Porém seu pedido não foi atendido e
Melusina se lançou por uma janela o sem antes pedir ao marido que
recomendasse sua alma ao Senhor Deus, e declarar quem era na verdade:
Recomendai-me a Deus. Rogai a Nosso Senhor que alivie minha penitên-
cia. E quero dizer-vos quem sou e quem foi meu pai, para que ninguém
diga que meus filhos tiverame perversa, fada ou serpente: sou filha do
rei Elinas de Escócia e da rainha Presina, sua mulher. Somos três irmãs,
as três com destino cruel, com uma terrível penitência. E mais não posso –
nem quero – dizer (D’ARRAS, 1999: 220).
Ao se lançar pelos ares, a fada transformou-se numa enorme ser-
pente, deu três voltas ao redor da fortaleza, metamorfoseada no animal
e soltou um grito pungente que aos presentes comoveu e, voando, se
chocou contra a torre da fortaleza de Lusignan, que pareceu desabar num
abismo, levando consigo o corpo da serpente que um dia fora uma bela
mulher. Note-se aqui mais um paralelo com a figura da mulher, figura de-
monologizada na literatura, e a necessidade de que essa figura expie seus
pecados de forma dolorosa e desapareça carregando-os consigo.
Aliás, a personagem de Melusina encerra em si uma ambigüidade
fundamental que acompanha o feminino. Ao iniciar o romance, ela é fi-
gura que constrói fortalezas, que auxilia o esposo, que gera filhos homens
seguidores de uma linhagem que se torna poderosa por conta de sua ação.
Ao terminar o romance, a mesma figura benfazeja passa a anunciar a
morte, a desgraça e a destruição. Nas palavras de Jean Delumeau, na obra
História do medo no ocidente:
104 Sobre o assunto ver capítulo 1 deste trabalho.
155
Essa ambigüidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte
foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa pelo culto das
deusas-mãe. A terra mãe é o ventre nutridor, mas também o reino dos
mortos sob o solo ou água profunda. É o cálice de vida e de morte. É como
essas urnas cretenses que continham a água, o vinho e o cereal e também
as cinzas dos defuntos. (...)
Não é por acaso que em muitas civilizações os cuidados dos mortos e os
rituais funerários cabem às mulheres. Elas eram consideradas muito mais
ligadas do que os homens ao ciclo – o eterno retorno – que arrasta todos os
seres da vida para a morte e da morte para a vida. Elas criam, mas também
destroem. Daí os nomes incontáveis das deusas da morte” (DELUMEAU,
2001: 312).
Entremeio a todas as desgraças que rodeavam sua família, Godo-
fredo fica sabendo do que ocorrera a sua mãe e seu pai e passa a culpar
o tio por tudo o que acontecera aos senhores de Lusignan, prometendo
fazê-lo pagar por isso. A ira do jovem é tanta que ele acaba cometendo
mais um assassinato em família, desta vez, vitimando o irmão de seu pai.
Mas nada alivia o coração castigado de Raimundo que diz ao filho que
resolvera sair em peregrinação até se purificar o suficiente para entrar
posteriormente em uma ermida
105
.
Enquanto a mente atormentada de Raimundo buscava seu consolo
na peregrinação e no isolamento do mundo, Godofredo tinha a sua cons-
ciência solapada dia a dia devido às mortes de seu irmão e de seu tio.
Depois de muito se culpar por estes dois acontecimentos, ele chegou à
concluo de que se Deus não se apiedasse dele, sua alma estaria correndo
grande perigo, acabando por perder-se nas mãos do demônio.
Assim, recolheu-se a um aposento isolado de todos onde se lamen-
tou dos pecados que cometera e tomou a decisão de ir a Roma confessar-se
com o Papa. Foi ali, em meio à cidade eterna, que Godofredo decidiu ten-
tar persuadir seu pai a retornar para suas terras e retomar sua posição no
mundo profano. Entretanto, o cavaleiro decidiu por ficar na ermida, isola-
do de todos, conforme demonstra a sua fala: “Meu filho – disse Raimundo
-, não posso fazer isso, quero passar minha vida aqui, orando a Deus por
tua mãe e por mim, e também por ti, para que Ele te ajude a tornar-te
bom” (D’ARRAS, 1999: 240).
Nesta altura, o romance diz que enquanto Raimundo viveu, seus
filhos Godofredo e Teodorico iam visitá-lo uma vez ao ano. E tudo trans-
105 Sobre o assunto da puricação através da peregrinação e o que isso representa na mentalidade
medieval ver capítulo 1 deste trabalho.
156
corria dessa forma aque estando próximos à data da visita ao pai, os
irmãos assistiram ao seguinte fenômeno:
Ora, certa feita, aproximando-se o momento de partir para a visita, tendo
Teodorico chegado a Lusignan e estando os dois irmãos para viajar daí a
dois dias, aconteceu algo que os deixou muito admirados: a serpente se
mostrou por sobre os muros e todos puderam vê-la. (...)
(...) Melusina, com a aparência de serpente, ficou por muito tempo sobre
a torre Poitevine, e, ao ver seus filhos chorar, sentiu grande tristeza e emi-
tiu um grito tão prodigioso que a todos pareceu que a fortaleza desabava
(D’ARRAS, 1999: 241/242).
Melusina pairava novamente sobre Lusignan, para avisar que seu
marido estava morrendo. Seus filhos retornaram da visita ao progenitor
com seu corão conservado como se fora uma relíquia. Onde quer que
chegassem para descansar mandavam fazer uma câmara ardente em torno
do órgão, e, sempre que encontravam religiosos dispostos, pagavam a eles
para que entoassem salmos e ofícios noturnos em honra a memória de
Raimundo, durante toda a noite.
Godofredo ficou em Lusignan e de não mais saiu. Mandou re-
construir a abadia que ele havia queimado e que ficou mais forte e mais
poderosa do que era antes. Ali ele colocou mais de cem monges dotados
de boa renda financeira e ficou decidido que eles deveriam rezar sempre
pela alma de Raimundo, Melusina e de todos os seus herdeiros e descen-
dentes dos mesmos.
Mas os atos maravilhosos envolvendo os descendentes de Melusina
não pararam com essa aparição da fada em sua forma reptiliana, como se
percebe através da citação que segue:
Senhor, cinco ou seis anos depois que vossa mãe se separou do senhor
vosso pai, todos os anos, no último dia de agosto, aparecia uma manzorra
que agarrava a bola que enfeita o topo da torre Poitevine e a arrancava,
derrubando desse modo uma parte do teto; assim, todos os anos era preciso
gastar vinte ou trinta libras para os reparos. Então chegou um homem que
vosso pai disse nunca ter visto antes e aconselhou-o a pôr, todo último
dia de agosto, trinta moedas de prata de quatro deniers numa bolsa que
seria levada no fim da tarde ao último andar da torre. Esses dez soldos, na
bolsa de couro de cervo, deveriam ser colocados sobre a peça de madeira
que sustenta a haste sobre a qual está fixada essa bola ornamental, e to-
dos os anos seria preciso fazer a mesma coisa; desse modo a bola ficaria
intacta. Fizemos isso todos os anos a partir de então, e a bola nunca mais
157
saiu do lugar nem foi avariada; no dia seguinteo se encontra mais nada
(D’ARRAS, 1999: 248/249).
A passagem acima transcrita apresenta um tópico que merece a
atenção mais significativa por parte do leitor. Trinta moedas de prata pos-
tas todo o último dia de agosto no último andar da torre. Trinta moedas de
prata, que correspondem aos 30 dinheiros pelos quais Judas vendeu Jesus
Cristo aos romanos. Aqui se infere uma alusão a essa passagem bíblica
que culminou na crucificação do Nazareno e no suicídio de seu apóstolo.
E para executar a árdua tarefa de colocar as moedas na torre, não
havia outro melhor que Godofredo. que, assim como Judas, ele também
tem a marca do traidor, isso porque se aquele vendeu o Filho de Deus,
este último matou seu pprio irmão em um mosteiro num momento de
fúria. Assim sendo, no último dia de agosto, depois de assistir à missa,
comungar e confessar-se, Godofredo partiu em direção a torre com seus
irmãos e os barões do lugar.
chegando, sentou-se com eles para comer e, após a refeição,
armou-se completamente como se fora a uma batalha. Somada a sua ar-
madura empunhou ainda outras armas mágicas: do capelão que rezara a
missa pediu a estola que colocou em torno do pescoço e cruzou sobre o
peito, depois disso cingiu a espada, suspendeu seu escudo ao pescoço e
pediu ao capelão que o ungisse com água benta. Tomou da bolsa com as
moedas e foi enfrentar a estranha aventura.
Ao chegar ao local, deparou-se com um cavaleiro armado o qual
adiantou-se e disse ser uma criatura de Deus, a qual Godofredo não de-
veria temer, e que quando a hora devida chegasse ele se pronunciaria e
diria ao senhor de Lusignan qual era seu nome. Godofredo não se satisfez
com essa resposta e os dois cavaleiros se bateram num duelo sangrento,
no qual, segundo a crônica, nem cota de malha nem escudo resistiram e
ficaram rotos em vários lugares diferentes, sem que se pudesse dizer qual
dos dois saíra vencedor.
Então, ao ver que Godofredo não desistiria do combate, o cavaleiro
misterioso assim se pronunciou:
Godofredo escuta. Já te provei o suficiente. Quanto aos teus dez soldos,
desobrigo-te. Deves saber que o que fiz foi pelo bem de teu pai e de
sua alma; o papa lhe impôs uma penitência pelo perjúrio que ele cometeu
contra tua mãe, e ele não a havia cumprido. Agora, pensa bem: se quiseres
mandar construir uma casa de misericórdia e conceder uma capelania, pela
salvação da alma de teu pai, tua torre ficará em paz; mas continuará sen-
158
do o lugar onde ocorrerão mais prodígios que em todo o resto do castelo
(D’ARRAS, 1999: 251).
E assim fez Godofredo. Mandou construir a casa de misericórdia
de Lusignan e a capelania, atribuindo a ambas boas rendas. Mas, mais um
feito fanstico aconteceria ainda aos descendentes de Melusina antes que
sua história se encerrasse. Dos filhos da fada que lutaram no oriente, Uriã
e Guido, o segundo tornou-se rei da Armênia.
Narra a crônica que depois da morte de Guido subiu ao trono da
Armênia um jovem rei que era bastante enérgico e extremamente auda-
cioso. Esse rei ficou sabendo que nos limites de sua posseso havia um
castelo onde morava a mais bela mulher do mundo. Essa dama possuía
um gavião, e se algum cavaleiro de nobre origem conseguisse vigiá-lo
durante três dias e três noites, ela lhe apareceria e satisfaria um desejo
seu qualquer coisa que ele pedisse referente a um bem do mundo mortal,
salvo o corpo dela, salvo o pecado da carne.
O jovem príncipe foi até o castelo e submeteu-se à prova, mas pe-
diu á jovem aquilo que ela não poderia conceder e dela só receberam
uma maldição e uma revelação, conforme se depreende da citação abaixo
transcrita:
Pobre e insensato rei faltaste-me com o respeito, perdeste o direito à satis-
fação de um desejo e corres o risco de ficar aqui para sempre. Insensato.
Por acaso não descendes do rei Guido, que era filho da minha irmã Melu-
sina? Sou tua tia, e estás tão próximo de minha família que, supondo que
eu aceitasse teu pedido, a Igreja não permitiria o casamento.
(...)
Pobre rei insensato, tua sandice será a causa da tua desgraça. Terras, feu-
dos, bens e patrimônio, tudo o que tiveres idiminuindo para ti e para
os teus até a nona geração, e, por causa do teu comportamento insensato,
teu nono descendente, que teo nome de um animal selvagem, perderá
o reino que governas. Vai-te agora, pois não podes ficar aqui mais tempo
(D’ARRAS, 1999: 260).
Ao terminar essas palavras a dama, que não era ninguém mais que
Melior, uma das irmãs de Melusina
106
, desvaneceu-se no ar e por todos os
lados, o rei impetuoso começou a ser atacado por golpes que o encheram
de contusões, depois do que ele foi puxado para fora do castelo sem saber
sequer contra quem ou o quê lutava. E assim se encerra a desditosa aven-
tura de Melusina e seus descendentes, condenados a viverem uma vida
106 A outra irmã era Palestina.
159
eterna de maldições por culpa do pecado da mãe, que desonrou seu pai.
Condenados também pelo pecado de Raimundo, que cometeu o perjúrio
contra a esposa.
Sobre o assunto diz Pierre Brunel, na obra Dicionário de Mitos
Literários, que:
Melusina, embora uma boa cristã, apresenta traços bastante perturbadores:
a própria natureza de sua metamorfose liga-a ao simbolismo ambivalente
da serpente. Além do mais, os filhos participam da natureza semi-animal
da mãe e todos apresentam um traço monstruoso. Enfim, pela culpa do ma-
rido, Melusina volta a sofrer o castigo imposto por sua mãe, a fada Presina
(BRUNEL, 2000: 630).
Se Raimundo houvesse respeitado o pacto que havia feito com sua
esposa no momento em que a conhecera, a fada teria vivido e morrido
como uma mulher comum. O fracasso do herói a transformou em ser-
pente, forma na qual permanecerá até o dia do Juízo Final. Uma forma
espectral, condenada pela eternidade.
Melusina o é apenas o fruto da imaginação de um literato como
Jean d’Arras. Sua história reproduz um esquema folclórico universal e
diacrônico que podem ser colocados de um lado e outro de um eixo in-
tegração/exclusão, o qual deixa o reflexo do conto na imaginação das
pessoas: o contato com o fabuloso separa de forma indelével o herói mor-
tal de sua família. A tentativa de integrar uma mulher fantástica ao mundo
dos humanos se traduz pela exclusão do herói que morre ou desaparece
num outro mundo e que deve pagar com sua vida pela sua descendência
semidivina. Este é o preço da glória de sua linhagem.
O fundamento mítico dessa história tem um forte cunho psicológi-
co, pois a fada garante ao ser humano uma compensação em relação às
adversidades que o mortal sofre durante sua vida e também em relação ao
medo da morte. A presença desse ser mágico convivendo com um homem
comum significa a perspectiva da imortalidade sendo oferecida como uma
dádiva, da qual o mortal poderá se aproveitar se souber como fazer.
Entretanto, essas mulheres feéricas, mesmo que cumulando os
mortais com benesses do outro mundo são sempre vistas com certa des-
confiança, a qual se explica pelo fato de tais mulheres não se enquadrarem
satisfatoriamente nos padrões de relações determinados pela sociedade.
Sua natureza sempre será ambígua. Quando se casam com um mortal elas
passam a pertencer ao mundo mortal, mas continuam como parte inte-
grante de uma realidade que transcende àquela que as abrigou.
160
E aos mortais que elas abençoaram com riqueza e prole infinita
também se apresenta uma dupla condição: enquanto casados com seres
que de fato lhe são infinitamente superiores por pertencerem ao mundo do
sobrenatural, usufruem bens e de poderes que ultrapassam as convenções
do mundo social, mas que de fato não lhe pertencem. Quando não conse-
guem manter ao seu lado a mulher do mundo gico, perdem as dádivas
que delas receberam.
161
CONCLUSÃO
A construção desse trabalho de pesquisa mostrou o quanto é impor-
tante ao pesquisador contemporâneo que se debruça sobre os alfarrábios
da literatura medieval uma perspectiva de conhecimento voltada para o
ecumenismo uma vez que as criações do medievo sejam elas na área de
arte, filosofia ou literatura resultam de uma coletividade que vai muito
além das fronteiras nacionais. E essa coletividade é expressa no tríduo
uma só fé (cristianismo), uma só igreja (romana) e um só Deus.
que se salientar que, durante os mil anos da Idade Média, a
maioria das pessoas antes de se sentir membro de um Estado-nação ou
de construir uma identidade voltada para as fronteiras de sua região,
construía sua analogia partindo do pressuposto da fé. E essa fé cristã de-
fenestrou, em alguns casos, os velhos deuses pagãos. Mas eles deixaram
as suas marcas em muitos locais. No imaginário, nas lendas e por conse-
qüência na literatura.
Entrar no mundo da literatura medieval significa ter clareza de que
se vai fazer uma excursão por um imaginário multifacetado onde a cultura
popular, dita pae a cultura erudita, dita cristã, olham constantemente
uma para a outra. O reflexo maior desse olhar que é o olhar do próprio
homem sobre si mesmo e sobre seus medos, pode ser sentido de forma
mais premente na literatura como um todo e nos romances de cavalaria,
objeto de estudo desse trabalho.
Através da leitura e da análise dos romances de cavalaria alguns
tópicos podem ser claramente destacados, a saber, o fundo étnico contido
no processo de construção dos romances. Merlim é um resquício das tra-
dições lticas, revividas nas aventuras do mago que nada mais é do que
uma reminiscência da cultura pagã sendo cristianizada e sobrevivendo
dentro de um novo substrato cultural imbuído de novos valores e de novas
perspectivas de imaginário transcendental.
Que dizer então da Melusina? Sabe-se que ela é uma personagem
cuja origem remonta ao período da antiguidade e do imaginário das tradi-
ções orientais. Entretanto, essa personagem se cristalizou no imaginário
ocidental como a fada-demônio que concedia favores aos homens.
Em segundo lugar, soe dizer que, nos romances de cavalaria uma
tônica de messianismo acompanha toda a construção do romance, o
desenrolar da trama invariavelmente é marcado pelo milagre, pelo mara-
162
vilhoso ou pela feitiçaria. Aliás, as fronteiras entre estes ts conceitos,
assim como a fronteira entre a pagã e a cristã é muito nue para o
homem medieval. Não se sabe ao certo onde os anjos deixam de agir para
dar lugar às ações demoníacas, lembrando sempre que esses últimos so-
mente agem porque Deus todo poderoso permite que isso aconteça. Esse
é o imaginário corrente no período. Eno como não deixar de perceber a
tônica desse sentimento messiânico que envolve todo o texto?
Em terceiro lugar, cabe salientar que a construção da figura reli-
giosa representa de um lado entes legendários, humanizões de velhos
deuses e entidades sobrenaturais que eram cultuadas e homenageadas
pelo paganismo. Por outro lado, essa mesma construção pode representar
os seres sobrenaturais da sociedade ocidental: anjos, santos ou a própria
personificação de Cristo.
Não raras vezes, a construção da figura religiosa dentro do romance
de cavalaria engloba os dois elementos, o pagão (representativo da cultura
popular) e o criso (representativo da cultura erudita), fenômeno esse
nem um pouco incomum na mentalidade medieval, onde o cristianismo
foi implantado à custa de muitas distorções sensíveis no que tange ao
aspecto cultural da questão.
Parafraseando Jacques Le Goff na obra Para um novo conceito
de Idade Média, se pode afirmar que no contexto da construção cultural
do ocidente medieval dois fenômenos essências se complementaram: a
emergência da massa camponesa como grupo de pressão cultural o que
obrigou a cultura que se urbanizava a aceitar um padrão de cultura dife-
renciado do criado pelo Império Romano.
De outro lado o clero que monopolizava as formas de cultura mais
evoluídas e nomeadamente a cultura escrita foi obrigado a promover no
seu legado a inserção dessa tradição. O peso da massa camponesa e o
monopólio do clero sobre a cultura erudita são as duas formas essenciais
que agem sobre as relações entre os meios culturais e os níveis de cultura
na Idade Média
107
.
A ligação desses fenômenos culturais representa a conjunção de
uma sociedade onde paganismo e cristianismo está claramente imbricado,
culminando num tipo de religiosidade popular cujo reflexo é demonstrado
pela cultura medieval. Mostrar como essas figuras foram construídas den-
tro do imaginário e dentro do cotidiano e como elas eram representadas
dentro do pensamento medieval e da mentalidade coletiva é uma tarefa
importante na análise de uma literatura que sempre valorizou a cavalaria
e a aventura.
107 Maiores informações sobre o assunto ver: LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade
Média. Editorial Estampa: Lisboa, 1993.
163
No romance de cavalaria o mundo se movimenta em torno de um
herói que se lança em aventuras como se essas aventuras fizessem parte
de seu cotidiano. Para o cavaleiro, o mundo existe apenas de forma mara-
vilhosa, onde o instante e o “de repente” são condições normais para sua
atuação. Tal fenômeno é uma representação comum e até mesmo constan-
te no imaginário do homem medieval.
que se ressaltar o fato de que nesse momento histórico, o homem
vive uma espécie de conjugação de forças entre o real e o imagirio:
dentro desse processo, a magia é um elemento que acompanha o medievo
diariamente. Destarte, é por esse elemento mágico que o cavaleiro se mo-
vimenta e é em função dele que a religiosidade que também é uma forma
de magia constrói teias e personagens que envolvem o leitor.
Todo o mundo da literatura medieval se limita a essa categoria do
inesperado, do acaso maravilhoso, onde o imprevisto deixa de ser alguma
coisa fora do comum. O acaso adquire aqui um sabor diferenciado, um
atrativo cheio de mistério que se personifica na imagem de seres fantásti-
cos e sobrenaturais, bons ou maus. Ele espreita o cavaleiro nos bosques,
nos castelos encantados, nas ravinas cheia de magia. Esse elemento refle-
te o desejo de mudança de uma sociedade que conhece apenas a realidade
mais próxima do seu feudo e onde a transformação do cotidiano ficava
por conta das estações do ano.
Aliás, o tempo dentro do romance de cavalaria reflete mais uma
conjunção da magia e da maravilha, pois pela ação das mesmas, as ho-
ras podem prolongar-se infinitamente ou, eno, os dias podem se tornar
meros instantes. O mundo real pode se fundir ao mundo dos sonhos. No
romance de cavalaria joga-se subjetivamente com o tempo. Devido a isso,
muitas vezes soe parecer que um episódio inteiroo existiu ou, então, o
que para uma personagem parecia ocorrer num período de um ano, para
outras parece ocorrer em um dia.
Não existe no texto literário da Idade Média o “antes” e o “depois”:
essas categorias introduzidas pelo tempo não são importantes. Elas po-
dem ser suprimidas para que se compreenda melhor o mundo, ou dito de
outra forma, é preciso justapor tudo ao mesmo instante, passando a ver o
mundo de uma forma simultânea. A literatura permite que o tempo seja
mesmo, estraçalhado.
Dessa forma, o maravilhoso dentro do romance de cavalaria enfati-
za um processo de transgressão do tônus do tempo que o homem medieval
é obrigado a cumprir, pois ele sabe que em seu mundo real sempre haverá
um tempo para plantar e outro para colher; e que a sua vida é organizada
ao sabor do ritmo das estações, pode-se mesmo dizer, ele sabe que sua
vida é ditada pelo tempo.
164
No contexto que é representado pela literatura medieval, a religião
demonstra ser um aspecto universalizante do processo cultural e que des-
perta o interesse no estudioso que busca compreender um pouco mais
sobre o intrincado processo que resultou nessa sociedade, a qual relega
marcas indeléveis à sociedade contemporânea.
Por isso a importância de analisar a constrão da figura religiosa
dentro do romance de cavalaria. Em um universo mental em que a reli-
giosidade fazia parte do modo de viver do homem, a literatura demonstra
a construção desse imaginário que acompanha par e passo a religiosidade
pagã e a cristã.
Observar o estudo da religiosidade medieval através da literatura
significa abordar o mundo das idéias do qual fazia parte o imaginário
do homem medieval. Esse estudo faz menção direta à construção do co-
nhecimento histórico em qualquer sociedade e representa uma tentativa
de considerar a cultura de um grupo social como um todo, observando a
forma como o homem medieval respondeu às suas necessidades transcen-
dentais.
Daí observar que tipo de idéias religiosas o homem medieval pos-
suía e como elas transparecem no contexto literário, ou seja, de que forma
o imaginário do cotidiano religioso perpassa a literatura, mostrando as-
sim, como esse homem que acreditava ter sua alma disputada a cada passo
por Deus e pelo Diabo, projetava as categorizações que fazia no texto
literário.
Esses questionamentos foram analisados levando-se em conta as
realizões das personagens escolhidas para análise dentro dos romances
de cavalaria, pois eles representam mentalmente a realidade existencial,
uma vez que, no quadro do imaginário do qual fazem parte, estão inscritos
os sonhos, os ideais de vida, as ideologias e todos os outros aspectos que
a realidade impedia de ter uma existência plena.
O imaginário é importante dentro desse estudo, porque controla o
subconsciente, ou seja, vive-se em função das aspirações, das motivações
e ideais os quais o indivíduo se propõe, do modo de agir e confrontar o
mundo. A literatura é um dos campos por excelência, no qual esse imagi-
nário se projeta.
Qualquer civilização possui um conjunto de crenças em poderes
sobrenaturais de algum tipo. Com isso, os homens procuram se prevenir
contra alguma coisa inesperada, estabelecendo assim um controle relati-
vo sobre as suas relações com o mundo que o cerca. No caso específico
da literatura medieval, esse processo é sentido com mais ênfase, por ser
representado pelos elementos que pululam entre as narrativas e as perso-
nagens.
165
A representação da magia realizada nos romances de cavalaria de-
monstra o quanto à sociedade medieval valorizava e ao mesmo tempo
temia aqueles ou aquelas que supostamente podiam entrar em contato
com o mundo sobrenatural. Esse processo reflete a confluência de uma
mentalidade na qual o pagão e o cristão conviviam, em que a cultura
erudita (cristã) sobrepujou em alguns aspectos a cultura popular (pagã) o
que não quer dizer que a segunda tenha deixado de existir, embora tenha
passado por um processo de fusão e transformação devido às invasões
bárbaras.
A cultura erudita e a cultura folclórica, entendendo esse termo aqui
como cultura popular, nunca deixaram de interagir nos mil anos que mar-
caram a Idade dia. E nesse movimento de interação percebe-se, por
parte da cultura erudita, um certo acolhimento dessa cultura popular.
Esse acolhimento é favorecido por certas estruturas mentais que
são comuns às duas culturas, especialmente a confusão entre o mundo
terrestre e o mundo sobrenatural, ou entre o material e o espiritual. Para
que o clero pudesse executar a sua prática evangelizadora, houve a neces-
sidade de um esforço de adaptação cultural por parte dele: língua para que
os camponeses entendessem a palavra do Senhor; utilização de recursos
orais e certos tipos de cerimônias mais voltadas à realidade das festas
pagãs (procissões, por exemplo).
Destarte, a cultura eclesiástica deve, muitas vezes, inserir-se nos
quadros da cultura folclórica: a localização das igrejas e dos oratórios,
funções pagãs transmitidas aos santos e outros elementos afins. Porém
essa iniciativa significa a recusa da cultura folclórica por parte da cultura
erudita. Assim, as destruições de templos e ídolos tiveram por simetria na
literatura, a proscrição dos temas tidos como folclóricos cujo acolhimento
dentro dessa mesma literatura medieval é fraca.
Ademais a sobreposição dos temas, das práticas, dos monumentos
e das personagens cristãs a antecessores pagãos não é uma sucessão, mas
sim uma abolição. Percebe-se nesse movimento que a cultura clerical en-
cobre a cultura pagã, ao mesmo tempo em que assimila padrões advindos
dela.
O fosso cultural reside aqui, sobretudo, na oposição entre o caráter
fundamentalmente ambíguo, equívoco da cultura folclórica e o pretenso
racionalismo da cultura eclesiástica, herdeira das tradições aristocráticas
da cultura greco-romana. Esse quadro representa a separação entre bem e
mal, verdadeiro e falso, magia negra e magia branca, sendo o maniqueís-
mo propriamente dito evitado pela presença onipotente de Deus.
A barreira que a cultura clerical impõe à cultura pagã provém não
apenas de uma hostilidade consciente e deliberadamente construída, mas
166
também de um processo de incompreensão. O espaço que separa a eli-
te eclesiástica, cuja formação intelectual, origem social e implantação
geográfica a tornam permeável à cultura folclórica, da massa rural, é,
sobretudo, um fosso de ignorância.
Percebe-se nesse movimento que a cultura popular tida como
inferior, foi bloqueada pela cultura erudita, tida como superior. Esse blo-
queamento não necessariamente quer dizer uma hierarquização dos níveis
de cultura, dotada de formas de transmissão, as quais garantam influências
unilaterais ou bilaterais entre um nível e outro. Porém, esta estratificação
cultural, se por um lado culmina na formação de uma cultura aristocrática
e clerical, por outro não significa necessariamente estratificação social.
Esse contexto representa a luta da cultura popular frente à cultu-
ra erudita, e vice-versa. O que fica de todo esse processo diz respeito
ao fato de que tanto uma como a outra acabaram deixando marcas que
constrram o cotidiano e o imaginário representados pela literatura, num
fenômeno que Carlo Ginzburg no livro O queijo e os vermes, chamou de
“circularidade cultural”: (...) entre a cultura das classes dominantes e a
das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relaciona-
mento circular feito de influências recíprocas que se movia de baixo para
cima, bem como de cima para baixo (...)” (GINZBURG: 1998,13).
Aliás, definir que no romance de cavalaria exista um reflexo desse
estrato de cultura popular é algo complexo, pois se sabe que esse estrato
cultural se transmitia pelas noites medievais de boca em boca. Daí o fato
de haver um certo preconceito em definir esse movimento de circulari-
dade cultural tão bem descrito por Ginzburg, pois quando se consegue
chegar até esses elementos que são demonstrativos da cultura popular
percebe-se que eles são filtrados pela cultura dominante. Afinal se essa
cultura oral passou para a história escrita foi porque alguém que sabia es-
crever o fez. E na Idade Média saber escrever era sinônimo de fazer parte
da cultura erudita.
Durante a construção deste trabalho ficou evidente a dicotomia cul-
tural expressa no romance de cavalaria, herdeiro das tradições da cultura
erudita e ao mesmo tempo fruto das projões da cultura popular. Por isso
mesmo, elemento pleno de dicotomia, mas também de influxo recíproco
entre as suas duas fontes construtoras.
167
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