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TERRA MADURA
YVY ARAGUYJE:
Fundamento da Palavra
Guarani
Graciela Chamorro
Editora UFGD
DOURADOS-MS, 2008
TERRA MADURA
YVY ARAGUYJE:
Fundamento da Palavra
Guarani
Direitos reservados à
Editora da Universidade Federal da Grande Dourados
Rua João Rosa Goes, 1761
Vila Progresso – Caixa Postal 322
CEP – 79825-070 Dourados-MS
Fone: (67) 3411-3622
www.ufgd.edu.br
Dedico este livro
aos acadêmicos e às acadêmicas
guarani e kaiová da primeira turma
do curso de Licenciatura Indígena
– Teko Arandu, da UFGD.
Suas histórias, seus desaos atuais
e seus projetos de vida nos convidam
a pensar sem fronteiras e
a repensar nossas fronteiras.
S U M Á R I O
INTRODUÇÃO.................................................................................
As perplexidades da “igreja missionária” diante do outro.........
Minha experiência com os povos indígenas..................................
Sobre a obra....................................................................................
PRIMEIRA PARTE: HISTÓRIA
1- FRAGMENTOS: TRAJETÓRIA E MODO DE SER...
1.1 - A etno-história.........................................................................
1.1.1 - Sobre “Tupi”, “Guarani” e “Tupi-Guarani”................
1.1.2 - Os povos chamados Guarani no tempo da conquista..
1.1.3 - Os povos chamados Guarani sob o impacto da
conquista européia......................................................................
1.1.4 – Livres ou fugitivos em suas próprias terras.................
1.2 – O princípio da identidade guarani.......................................
1.2.1 – Oréva e ñandéva..............................................................
1.2.2 Bagagem cultural e identidade.......................................
1.3 – Sobre “palavra” e “religião” guarani...................................
1.3.1 – A palavra e as experiências da vida ..............................
1.3.2 – A palavra-alma................................................................
1.3.3 – Palavra como paradigma ritual.....................................
1.3.4 – Palavra para ser vista e ouvida......................................
1.3.5 – A palava indígena e o cristianismo.................................
2 - PROFECIA: VOZES DE PROTESTO CONTRA A
MISSÃO ................................................................................
2.1 – A liderança guarani - karai e pa’i - entre a cruz e a
espada...............................................................................................
2.2 – De como os líderes indígenas contradisseram a pregação
cristã.................................................................................................
2.2.1 – Os primeiros enfrentamentos.........................................
2.2.2 – Durante a implantação das reduções jesuíticas...........
2.2.3 - Quando os jesuítas começaram a estabelecer-se...........
2.3 – O caráter profético da palavra guarani...............................
2.3.1 – Os profetas indígenas não estão “além do social”........
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2.3.2 - A poliginia indígena versus a monogamia cristã...........
2.3.3 - A vida livre na selva versus as reduções........................
2.3.4 - A dança ritual e outros ritos a serviço da profecia.......
2.4 - Dos pró-diálogos e suas conseqüências para a teologia
cristã.................................................................................................
2.4.1 – O questionamento da universalidade...........................
2.4.2 – Missão, subjetividade e poder........................................
2.4.3–Odesaododiálogointercultural:oexemplodePa’i
Sume.............................................................................................
SEGUNDA PARTE: TEOCOSMOLOGIA
3 – A PALAVRA ORIGINAL: REPRESENTAÇÕES........
3.1 – A história.................................................................................
3.2 – Jasuka: O Princípio do Ser e do Ser Criador......................
3.2.1 – O simbolismo da “substância-mãe”..............................
3.2.2 – O simbolismo do cesto, do bambu e de certas árvores
3.2.3–Osimbolismodouidovital...........................................
3.2.4 – O simbolismo da mulher e as virtudes de Jasuka na
história.........................................................................................
3.3–PrincipaisPersonicaçõesdoDivino....................................
3.3.1 – “Nosso Pai”, “Nossa Mãe” e a Sabedoria.....................
3.3.2 – Heróis Culturais: Tornar o mundo habitável, vencer
o jaguar.........................................................................................
3.3.3 – Pais e Mães das palavras-almas de origem divina.......
3.4 – Atributos divinos....................................................................
3.5 – As divindades guarani e o monoteísmo cristão...................
3.5.1 – A implantação do monoteísmo em Israel......................
3.5.2 – Monoteísmo e inclusividade...........................................
3.5.3 – Na busca do equilíbrio....................................................
3.5.4 – Sobre politeísmo, trindade e diálogo.............................
3.5.5 – A profusão de divindades e as “formas do dizer”........
4 – A COSMOLOGIA: A COSMIFICAÇÃO DA PALAVRA
4.1 – A terra como corpo que murmura sua palavra...................
4.1.1–Aconguraçãodouniversoguarani..............................
4.1.2 – Os enfeites do universo...................................................
4.1.3 – Os guardas do ser: as plantas e os animais...................
4.2 – O estar a caminho e a busca da “terra sem males”...........
4.2.1 – Sobre a expressão “terra sem males” e seus
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desdobramentos...........................................................................
4.2.2 – A “terra sem males” nos relatos indígenas...................
4.2.3 – O estar a caminho: símbolo de liberdade e desterro...
4.3 – O Ser Criador e sua Sabedoria Criadora............................
4.3.1 – Sobre os termos “Arakuaa” e “Mba’ekuaa”................
4.3.2 – A sabedoria na construção do mundo...........................
4.4 – A água como mãe é matéria primordial...............................
4.5–Desaosdacosmoteologiaguaraniàteologiacristã...........
4.5.1 – Carrascos e vítimas da secularização............................
4.5.2–Oecofeminismoearecosmicaçãododivino..............
5 – O SER HUMANO: BIFURCAÇÃO E REDENÇÃO DA
PALAVRA...................................................................................
5.1 – O ser humano entre a animalidade e a divindade...............
5.2 – O pecado na catequese colonial.............................................
5.3 – A bifurcação da palavra.........................................................
5.3.1 – A bifurcação da palavra como “ignorância”................
5.3.2 – A bifurcação da palavra como “ira” e “ato de
ofender”........................................................................................
5.3.3 – O adultério......................................................................
5.3.4 – O mal da terra e os malfeitores.........................................
5.4 – A conquista espiritual dos povos guarani, em guarani......
5.4.1 – “Tornar-se cristão” como humanizar-se.......................
5.4.2 – “Ser salvo” como tornar-se varão.................................
5.4.3 – “Ser salvo” como tirar do pajé seu ser de pajé............
5.5 – A redenção do dizer................................................................
5.5.1 - Erguer-se: “e”..................................................................
5.5.2 - Alcançar grandeza de coração: “py’a guasu”...............
5.5.3-Plenicar-se:“aguyje”....................................................
5.5.4–Terraepalavrasemmales:“yvyhañe’ẽmarane’ỹ”...
5.6 – A restituição da palavra e a soteriologia cristã...................
5.6.1–SemaguradeumSalvador..........................................
5.6.2 – Jesus ressuscitado e os “Nossos Irmãos”......................
TERCEIRA PARTE: PARADIGMA RITUAL
6 – CELEBRAÇÃO DA PALAVRA: SACRAMENTOS
DA VIDA.................................................................................
6.1 – A história: das maracas indígenas aos sinos da redução....
6.1.1 – A música...........................................................................
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6.1.2 – Os banquetes e as festas..................................................
6.1.3 – O tempo reduzido............................................................
6.2 – Os mil rostos da dança e do canto........................................
6.2.1 – O testemunho dos conquistadores.................................
6.2.2 – Ñembo’e – a reza.............................................................
6.2.3 – Porahéi – canção.............................................................
6.2.4–Ñe’ẽngarai,ñemoñe’ẽ–relato,discurso.......................
6.2.5 – Guahu – lamento.............................................................
6.2.6 – Xondáro – defesa.............................................................
6.2.7 – Kotyhu divertimento....................................................
6.3 – Ritualizar a palavra como imitação de um ato primordial
6.4 – A palavra-sacramento como caminhada..............................
6.5 – Palavra que conta a história do corpo do milho.................
6.6 - A palavra que provê um lugar para si..................................
6.7 – A palavra e o nome................................................................
6.7.1 – A liturgia kaiová: mitã mbo’éry....................................
6.7.2 – O ritual mbyá: nimongarai............................................
6.8 – A sacramentalidade da palava..............................................
6.8.1 – Palavra e demonização...................................................
6.8.2–Recosmicaçãodapalava..............................................
7 – A LIBERTAÇÃO DA PALAVRA: O DIÁLOGO..................
7.1 – Do ocaso ao ressurgimento indígena....................................
7.2 – Descobrindo o “outro” indígena invisibilizado...................
7.3 – Nós “outros” na perspectiva indígena..................................
7.4 – Os povos indígenas têm algo a dizer para nós.....................
7.4.1 – Quando a inclusão do “outro” entrava o diálogo........
7.4.2 – Quando a inclusão do “outro” dinamiza o diálogo......
7.4.3 – Libertando a palavra das amarras do “eu” e do
“outro”.........................................................................................
7.4.4A autocomprensão dos povos guarani no debate da
globalização..............................................................................................
FONTES CONSULTADAS ......................................................
ANEXOS ....................................................................................
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INTRODUÇÃO
Apesar de a dominação sobre as culturas indígenas na América
do Sul durar séculos, nem as missões religiosas nem os colonizadores
conseguiram suplantar as religiões das populações aborígines. Pelo
contrário, é no campo religioso que muitos desses povos se recriaram e
resistiram, primeiramente, ao projeto colonial e, mais tarde, ao de integração
nacional. Assim, conseguiram permanecer éis aos grandes valores de seu
sistema cultural, embora, para manterem ocultas suas verdadeiras crenças,
tivessem que incorporar a nova religião no campo de seu folclore e de seus
costumes. Outros indígenas, no entanto, zeram uma grandiosa síntese
entre suas religiões originárias e elementos da religião cristã, a ponto
de alguns autores falarem em um “cristianismo ameríndio”, comparável
com o cristianismo romano e ortodoxo, e em um “substrato católico” do
pensamento da população “mestiça” latino-americana.
1
Este trabalho aborda e aprofunda essas questões religiosas que
envolvem os indígenas da América do Sul, a partir de três grupos guarani
contemporâneos: os Mbyá, os Kaiová ou Paĩ-Tavyterã e os Guarani
(Ñandeva, A ou Chiripá), que não podem ser tomados como exemplo
de um “cristianismo ameríndio”, mas sim contados entre as populações
aborígines que mantêm uma relação marginal, embora cordial, com o
cristianismo. Interpreto assim o fato de eles aceitarem a presença de
missionários e missionárias, de várias igrejas cristãs dentro de suas aldeias,
de freqüentarem os serviços religiosos celebrados por esses agentes e
de, eventualmente, deixarem-se batizar pelos missionários, sem que isso
signique o abandono das práticas religiosas indígenas e de seu calendário
litúrgico tradicional. sem dúvida casos em que o longo e sistemático
contato com as igrejas deslocou a delidade de algumas famílias da sua
tradicional para a católica ou para a protestante, mas, particularmente, não
trabalhei com esses grupos.
Já os chamados “Guarani históricos” tiveram uma abertura espiritual
diante da religião que os “evangelizou”, incorporando muitas práticas
religiosas dos missionários. Isso não deve, porém, induzir a crer que nesse
período não houve conitos e enfrentamentos com trágicos episódios entre
16
os indígenas e seus conquistadores espirituais. Curiosamente, as guerras
religiosas entre indígenas e cristãos foram causadas por essa maneira de ser
dos aborígines. A “aceitação” do cristianismo de forma alguma signicava
a abdicação das suas religiões e costumes originários. Esse comportamento
foi interpretado pelos missionários ou como incapacidade que os povos
indígenas tinham para discernir o falso do verdadeiro ou como prova de
quanto eles eram vulneráveis à manipulação diabólica. Em ambos casos,
os evangelizadores consideraram que a atitude dos indígenas devia ser
extirpada.
No caso especíco dos grupos aqui estudados, graças aos estudos
antropológicos e etno-históricos, essa relativa cordialidade com o
cristianismo, ontem e hoje, pode-se explicar a partir do conceito-existência
“palavra”. Nessa categoria reside o ponto forte das criações do grupo, sua
autocompreensão, sua cosmologia e o que podemos considerar ser sua
religião. As fontes dessa palavra são a memória e a inspiração. Ela não
existiu originariamente na forma escrita, portanto não era para ser lida, mas
para ser dita, ouvida e vista. E o fato de essa sabedoria não ter sido escrita
não é uma “falta”, como pareceu aos conquistadores, mas uma característica
estrutural essencial às religiões indígenas. Não sendo escrita, sua função
não é normatizar o comportamento religioso (Viveiros de Castro, 2000, p.
18). Ela não é uma régua um cânon de “verdades” teológicas de cuja
aceitação ou rejeição dependa a integração de uma pessoa num grupo ou sua
exclusão dele. Essa palavra não tem a função de desatar disputas teológicas
nem a de desautorizar ou anatematizar outras experiências religiosas ou
reexões teológicas. Ao contrário, á palavra, como a entendem e vivem
os indígenas, é que predispõe e capacita os indígenas para o diálogo. E os
missionários mostraram repetidamente uma relativa incapacidade de entrar
em diálogo com sociedades indígenas acentuadamente místicas, como os
povos aqui estudados, o que representa, segundo Melià (1989, p. 303), um
problema teológico de certa importância, pois permite questionar o tipo de
experiência religiosa desses evangelizadores.
As perplexidades da “igreja missionária” diante do outro
Desde o surgimento das primeiras congregações cristãs, os
seguidores e as seguidoras de Jesus se depararam com duas posições a
respeito das religiões não-cristãs e da grande comissão que lhes foi dada
17
(Mt 28.19-20). Enquanto João defendia uma continuidade entre a história
geral (“pagã”) e a história especial da salvação (judaico-cristã) (Jo 1.1-8),
Paulo é apresentado em Atos dos Apóstolos como alguém que ensinava que
devia haver uma ruptura radical entre o mundo cristão e o pagão (At 14.15;
17.30). As contradições na atitude dos cristãos quanto a essa questão se
observam também em outras passagens dos Atos dos Apóstolos. Segundo
At 17.22-23, por exemplo, Paulo teria se posicionado a favor da experiência
espiritual dos “pagãos” e faz uso dela no seu trabalho missionário (Camps,
1971, p. 33s). Paulo Suess mostra como essa tensão continuou no período
patrístico e como ela perpassa a história do cristianismo.
Desde a patrística até hoje, duas doutrinas e práticas missiorias
concomitantemente sobressaem. Uma declara que as culturas pagãs se
encontram fora da hisria da salvão e nada podem acrescentar ao cristianismo
qualitativamente já feito (atitude integracionista). A plenitude quantitativa seria
então a tarefa da missão e, se preciso for, com a “espada e vara de ferro”. A
outra corrente admite encontrar nas culturas pagãs vaga-lumes da salvação ou
“lampejos da verdade” (atitude eclética) (Suess, 1986, p. 162).
Ao longo de sua história, a igreja sempre buscou nos escritos
patrísticos os fundamentos para a sua prática e para a formulação da sua
doutrina. Lamentavelmente, até o Concílio Vaticano II, ela se serviu muito
mais daqueles escritos que excluíram as culturas “pagãs” da história da
salvação. A missão da Igreja Romana e do poder ibérico entre os povos
indígenas das Américas é, nesse sentido, um dos exemplos mais claros do
que era capaz uma teologia que outorgava o poder de invadir, conquistar,
expulsar, derrotar e subjugar os inimigos da cristandade.
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Essa forma de pensar e agir acabou sepultando a oportunidade que o
cristianismo teve de estabelecer um intensivo e enriquecedor contato com as
mais diferentes religiões e culturas. Da mesma forma, esse comportamento
fez com que a Europa experimentasse a existência do “outro” como um
confronto radical: Que status correspondia aos seres das novas terras? Eram
eles humanos? Com as novas experiências vividas pelos europeus na Índia,
na China, no Japão e nas Americas já não bastava diferenciar “cristãos” de
“pagãos” e “cultura” de “barbárie” para considerar seriamente as questões
antropológicas. Mas os questionamentos e as críticas ao sistema então
vigente, assim como as alternativas que a ele foram propostas, ecoaram
num âmbito muito restrito. No mais, a teologia cristã continuou sendo
18
protetora e incentivadora de conquistas. A situação dos povos indígenas
conquistados na América Central, Insular e do Norte era conhecida na
Europa desde o século XVI através da obra de Las Casas; a situação dos
indígenas sul-americanos, através das cartas jesuíticas. Mas essas notícias
não foram consideradas nas obras dos teólogos éticos europeus. Nas igrejas
e na sociedade de um modo geral, prevaleceu a mentalidade de que os
povos contatados deviam ser destruídos ou incorporados ao domínio da
Igreja e de Sua Majestade. “Era uma vez a Europa e ...”, assim se resumia a
história dos povos conquistados, lembra Moniot (1976, p. 99). Essa mesma
convicção - na sua versão original ou transplantada para os Estados Unidos
da América do Norte - marcou as empresas missionárias protestantes do
século XIX.
Somente a partir do nal desse século é que os povos indígenas
começaram a ser vistos, não mais como “desvios” ou “resíduos” da civilização
ocidental, mas como sujeitos dotados de uma outra racionalidade, como
atores sociais capazes de contracenar com catequistas e colonizadores.
Na seqüência, a pluralidade passou a ser considerada de forma explícita
no âmbito acadêmico e eclesiástico. A emergência dessa consciência da
pluralidade trouxe de volta a questão fundamental que ocupara os ânimos
das primeiras comunidades cristãs: que posição devem tomar as igrejas
cristãs diante das outras religiões? As respostas nas igrejas variam, hoje,
entre (1) a negação radical de legitimidade a qualquer religião não-cristã -
posição de setores de orientação mais fundamentalista e tradicional -, (2) a
aceitação da existência dessas religiões e o reconhecimento de seus direitos,
mas sem interesse em relacionar-se com elas no âmbito religioso - posição
de setores mais liberais e secularizados - e (3) a abertura para conhecer
essas religiões e manter com elas um diálogo inter-religioso - posição de
setores de orientação mais culturalista e ecumênica.
A classicação clássica dos comportamentos das igrejas cristãs
e de seus teólogos e teólogas perante as outras religiões leva em conta a
preponderância de três atitudes: o exclusivismo, o inclusivismo e o pluralismo,
ancoradas respectivamente no eclesiocentrismo, no cristocentrismo e no
teocentrismo (Knitter, 1995, p. 23-35, 60-79).
A atitude exclusivista pressue um conceito de verdade que reduz a
revelação de Deus a uma única linguagem, a de sua tradição, e conna a fé a
um único sistema de conhecimento que reivindica para si a exclusividade do
acesso a Deus (Steil, 1993, p. 27). Do lado cristão, “esta atitude condiciona a
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salvação ao conhecimento de Jesus Cristo e à pertea à igreja, como requisito
incontornável” (Azevedo, 1993, p. 16). Como no henoteísmo, nessa atitude
pode-se até admitir que as outras religiões têm seu valor, mas acredita-se
que elas não têm caráter revelatório nem são soteriológicas, pois são apenas
frutos da reexão e do esforço humanos (Amaladoss, 1993, p. 90).
A atitude inclusivista “tende a reinterpretar todas as coisas dentro
de uma mesma lógica, tornando-as assimiláveis e reduzindo as diferenças
a aspectos de uma ‘única verdade’” (Steil, 1993 p. 27). Entende-se que as
virtudes soteriológicas de Jesus e a ação do Espírito Santo “permeiam todo
o bem contido e vivido em outras religiões” (Azevedo, 1993, p. 16), nas
quais também se manifestam a graça e a revelação de Deus. Essas religiões
até podem ser meio de salvação, “mas se salvam é com a salvação de Jesus
Cristo, embora seus crentes não estejam disto conscientes. Trata-se de
cristãos ‘anônimos’, pertencentes de algum modo à Igreja. Esta é a plenitude
das outras religiões, e Jesus Cristo é o centro da história da salvação”
(Amaladoss, 1993, p. 91). A atitude inclusivista tende a adotar um discurso
bastante genérico e universal, no qual as culturas, enquanto produtoras
de subjetividades, são relegadas a um plano secundário, “desaparecem na
medida em que são remetidas a uma causa primeira: ‘Deus’ ou a ‘natureza’,
desconsiderando as causas segundas, situadas no âmbito das tradições”
(Steil, 1993, p. 28). O inclusivismo pressupõe uma única cultura “de tal
forma que as diferenças encontradas são matizes de uma mesma realidade.
A busca dessa natureza humana universal, que deveria ser alcançada para
além das culturas, está na raiz da busca de uma religião ‘humana puricada’
que deveria ser encontrada para além das culturas” (Steil, 1993, p. 28).
A atitude pluralista reconhece que todas as religiões são caminhos
que conduzem a Deus, o Absoluto. Cada uma delas é dotada de plenas
condições soteriológicas, sem a necessidade de tutela cristã. “Cristo é o
caminho para os cristãos; Buda para os budistas; e Krishna ou Rama para os
hindus. Sua perspectiva é ‘teocêntrica’, e não ‘cristocêntrica’” (Amaladoss,
1993, p. 91). Essa atitude tenta demarcar claramente o limite entre as
religiões, “ao mesmo tempo que estimula a busca de um aprofundamento
constante no interior de cada tradição religiosa” (Steil, 1993, p. 29). Não só
as religiões, mas a realidade mesma é plural e, portanto, relacional. Não há
reductio ad unum, quarenta séculos de tentativas mal sucedidas no campo
intelectual o atestam. As religiões são distintas entre si; elas não falam de
uma mesma coisa e são irredutíveis no plano lógico ou racional; só podem
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ser compaginadas a partir de uma perspectiva mais cordial, mais existencial
(Panikkar, 1993, p. 23-25).
Este livro se insere entre a perspectiva pluralista e o inclusivismo.
Essas formas de aproximação das outras religiões subsidiaram meu
trabalho com as imagens presentes em seus pensamentos e com a sua
linguagem. Quanto à primeira, parto do princípio de que a religião indígena
não depende de uma conrmação que o cristianismo lhe possa conceder.
Longe de considerar o cristianismo como a unidade de medida para avaliar
teologicamente as outras tradições religiosas, entendo que Deus se revelou
de maneiras diversas aos diversos povos de diversas culturas e que não está
em seus planos nem a exclusão recíproca entre as religiões, nem a inclusão
de todas as religiões numa só, e sim a busca de uma interação aberta e de
um diálogo sincero (Dupuis, 1993, p. 82).
Reporto-me ao inclusivismo porque, apesar dos riscos em que
ele incorre, creio que é capaz de abrir algumas portas dentro do próprio
cristianismo, seja na tradição bíblica ou na tradição teológica. Essas portas
podem dar acesso a fontes de saber e de mística esquecidas no cristianismo.
Bebendo dessas fontes, as teologias cristãs poderiam se reoxigenar e se
preparar para o diálogo com as outras religiões, haja vista o diálogo inter-
religioso estar intimamente relacionado com o diálogo intra-religioso.
Minha experiência com os povos indígenas
Remonta aos anos vividos na cidade de Dourados, Mato Grosso do
Sul (1983-1989). Na ocasião, conheci os Kaiová e os Guaraní (Ñandeva)
da reserva indígena contígua a essa cidade e de outras aldeias da região,
incluindo alguns líderes religiosos paĩ-tavyterã do Paraguai. Mais tarde
(1989-1991, 1994), tomei contato com os Mbyá no Rio Grande do Sul
e, por último (1997-1999), conheci os Mbyá e os Avá-Guarani (Chiripá)
do Paraná e da Argentina. Nos últimos três anos que levo vivendo na
Alemanha, meu contato com os indígenas se restringe a visitas e trabalhos
de campo esporádicos junto aos três grupos mencionados e a assessorias
em alguns encontros organizados com professores e professoras guarani no
Rio Grande do Sul.
Num primeiro momento, ocupei-me em aprender a língua guarani
falada pelos indígenas, processo até certo ponto fácil, por ser minha língua
materna o guarani falado no Paraguai. Essa experiência confrontou-me com
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os pré-conceitos racistas assimilados durante minha infância e adolescência
no Paraguai e proporcionou-me a oportunidade de descobrir uma outra
subjetividade humana, que ao mesmo tempo não me era totalmente
estranha.
Mais tarde, passei a colaborar com a equipe do Conselho Indigenista
Missionário - CIMI Equipe de Dourados, assessorando um programa
alternativo de alfabetização na aldeia de Caarapó (Mato Grosso do Sul)
de formação de alfabetizadores e alfabetizadoras em língua guarani, na
região. Comecei nessa época a fazer as primeiras anotações de campo
e as primeiras observações em vistas a um trabalho cientíco. Nesse
contexto, recebi o apoio do Conselho de Missão entre Índios COMIN
e intensiquei o trabalho de campo. Situo a experiência dessa fase nos
critérios da “observação participante” e da “nova etnograa”, na sua fase
menos idealista e indutiva. Descrevi os fatos observados e experimentados
baseando-me em conceitos e categorias do grupo (emic), embora consciente
que, ao mesmo tempo, eu interpretava esses fatos e projetava sobre eles
minhas percepções (etic) (Kaplan, 1975, p. 272).
Da minha experiência com a espiritualidade guarani surgiram também
questões teológicas, que considerei sobretudo na minha tese de doutorado
em teologia. A mesma, Papa Tapia Rete Marãngatu, foi defendida em
1996 no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) da Escola Superior
de Teologia, em São Leopoldo RS, e publicada em 1998 sob o título A
espiritualidade guarani: uma teologia ameríndia da palavrapela editora
Sinodal e pelo IEPG. Nesse trabalho procuro reagir como teóloga cristã às
provocações oriundas da experiência indígena da palavra.
Nessa mesma linha e retomando algumas questões etnológicas,
históricas, lingüísticas e teológicas, na presente obra, reviso alguns escritos
anteriores à luz de novos trabalhos de campo e da minha pesquisa nas
fontes lingüísticas sobre grupos guarani das primeiras décadas do século
XVII. Além disso, incluo nesta obra estudos sobre diálogo intercultural
e inter-religioso, apresento aspectos da experiência histórica dos Guarani
com o cristianismo, o que podemos considerar ser sua concepção de Deus,
de mundo e de ser humano, suas utopias e o que eles teriam a dizer a nos
dizer. Ela foi publicada em 2003 em alemão pela LIT-Verlag (Münster/
Berlin/London) e em 2004 em espanhol por Editorial Abya-Yala (Quito
Equador).
22
Sobre a obra
Um dos objetivos desta obra é apresentar uma religião e um discurso
religioso não cristãos num ambiente acadêmico impregnado pela história
das igrejas cristãs. A obra pretende ser uma reexão na perspectiva indígena,
pelo menos na dos meus interlocutores e interlocutoras. É, portanto, uma
tradução, pois a autora é uma teóloga cristã não indígena, que apenas tem
uma inserção na experiência religiosa guarani e nas questões que essa
experiência lhe proporcionou, questões que de outro modo provavelmente
ela mesma não precisaria considerar. A obra reúne, portanto, as marcas e a
linguagem de dois mundos distintos, que nem sempre consegui diferenciar
ao escrever sobre minha experiência pessoal.
Um outro objetivo aqui proposto é convidar as igrejas cristãs hoje
atuantes nas áreas indígenas a fazerem um ensaio de fé, a se exercitarem no
ouvir, a trocar o ensinar pelo aprender. Elas são convidadas a se deixarem
interpelar pela voz do outro, a se abrirem a ele para conhecê-lo sem medo e
sem intenções de reduzi-lo a si mesmo, mas respeitando suas experiências
religiosas como experiências que têm uma validez irrefutável e dispondo-se
a entabular com os povos indígenas um diálogo.
Quanto às fontes utilizadas, cabe destacar que são de maior valor
para o estudo da Palavra entre os chamados Guarani históricos, o Tesoro, o
Vocabulario e o Catecismo escritos por Antonio Ruiz de Montoya (1585-
1651) numa das línguas guarani ainda vivas no início do século XVII. As
fontes clássicas para o estudo da palavra guarani as devemos a Kurt Unkel
Nimuendaju (1883-1945) e a León Cadogan (1899-1973). Segundo Melià,
esses dois autores “se deixaram possuir pelo espírito guarani, não zeram
perguntas a partir de outros sistemas losócos ou teológicos, buscando
correspondências ou diferenças, mas se zeram discípulos da palavra, num
ato de escuta, iniciado no respeito e mantido através de uma transformação
interior que os tornava outros” (Melià, 1989, p. 305). Os textos por eles
deixados, prossegue o autor, apresentam uma profundidade fascinante e
são, sem dúvida, modelos inspiradores para reetir a partir da experiência
religiosa dos povos guarani (Melià, 1989, p. 306).
Como pode ser vericado no decorrer da leitura, muitos pesquisadores
e pesquisadoras seguiram os passos de Nimuendaju e Cadogan, seja
recolhendo novo material etnográco no âmbito da poesia indígena ou
sistematizando as informações que foram sendo coletadas. No meu caso,
23
entre os interlocutores e as interlocutoras que me proporcionaram acesso
à palavra indígena, gostaria de citar: Dolícia Pedro, 85 anos;
3
Lauro
Conança, 90; Roseli Conança, 35; Arnaldo Conança, 30; Mariana
Aquino, 90; Paulito Aquino, 95; Nailton Aquino, 60 anos; João Aquino,
65; Maria Aquino, 45; Waldomiro Aquino, 40 anos; Assunção Gonçalves,
45; Lucila Villalba, 38; Hipólito Martins, 45; Mário Toriba, 40; família
Toriba; Nenito de Souza, 70; Epitácio de Souza, 45; Ricardo, 70; Santiago
Mendoza, 90; Ireno Isnardi, 90;
4
Edna de Souza, 35; Teodoro Alves, 40;
Marcolino Oliveira, 50 anos. Não somente essas pessoas, mas também suas
comunidades, que me abriram os tesouros da sua memória e inspiração, são
referências obrigatórias, não enquanto fontes que consultei, mas como
co-autores e co-autoras deste livro. Nas vozes dessas pessoas respingam
gotas da poética indígena, fonte de uma sabedoria ‘analfabeta’, por assim
dizer, e apesar disso, ou tal vez graças a isso, profundamente viva (Melià,
1997, p. 92-93). De modo que, não sendo esses indígenas autores de
compêndios teológicos, para a realização deste trabalho dependi dos seus
depoimentos e do diálogo com eles. Parte do material coletado durante o
processo de pesquisa de campo e de inserção no grupo é apresentado nas
páginas deste livro. Para a transcrição desse material, procedo da seguinte
forma: uso ch com o mesmo valor sonoro que esse dígrafo apresenta em
português, g e h
5
como em alemão. O j corresponde ao som palatal fricativo
[j], às vezes representado na etnograa kaiová por dj. Uso k para a oclusiva
surda velar, ñ como ñ em Espanhol e do mesmo modo r como na palavra
espanhola oro, s para a fricativa alveolar, com a particularidade dos Mbyá
que o pronunciam ts, e v como em português. O apóstrofe(como aparece
na palavra ka’a) representa a oclusiva surda glotal, que marca um corte
ou salto na pronúncia. Para representar as oclusivas sonoras nasalizadas,
recorro a mb, nd e ng. O Guarani tem seis vogais. As cinco primeiras soam
mais ou menos como em português, a sexta vogal é representada pelo y e é
uma vogal alta central. Como todas as vogais podem ser nasalizadas, sobe
a doze o número delas em Guarani.
Quanto aos acentos, as palavras oxítonas não são acentuadas, as
paroxítonas e as proparoxítonas, sim. Quando os lexemas aglutinam
suxos monossilábicos ou polissilábicos átonos, permanece a acentuação
original do lexema, o que é marcado gracamente. Quando o sinal de
acento ´ coincide com o sinal de nasalização ~, este acumula a função
tônica. Palavras em guarani bastante usadas no texto recebem acentos
24
conforme as regras vigentes na língua portuguesa, a m de facilitar sua
pronunciação. Transcrevo documentos antigos em guarani aproximando a
escrita antiga ao padrão da escrita do guarani atual. No entanto, quando a
citação é de um registro recente, opto por manter a transcrição usada nas
fontes consultadas.
A obra consta de três partes História, Teocosmologia e Paradigma
Ritual e sete capítulos, que são concebidos de modo a oferecer um
panorama histórico, sistemático e comparativo dos temas abordados. Levo
em conta, para isso, o contato dos povos guarani com o cristianismo e os
desaos que a vitalidade religiosa dos indígenas representa para a religião
que os catequizou.
A primeira parte consta de dois capítulos; neles apresento aspectos
gerais sobre cultura, história e identidade dos Guarani, bem como o que
signicou para eles a missão cristã nos séculos XVI e XVII. No primeiro
capítulo, situo os grupos guarani atuais entre os grupos pertencentes ao
tronco lingüístico Tupi-Guarani, frente aos chamados “guarani históricos”
e na sociedade atual. Nesta última, eles são, juntamente com outros povos
indígenas e outros atores sociais, “acionistas minoritários” dos quatro países
onde vivem. Enquanto tais, experimentam a marginalidade e o descaso
desses países que deveriam “tutelá-los”.
Ainda no capítulo primeiro, mostro que a religião parece ser o
elemento que eles escolheram da sua cultura para continuar sendo os
mesmos. Ela consiste basicamente em uma experiência místico-teológica
da palavra. Semelhante a ruah e pneuma das Escrituras Sagradas, Palavra
é para o grupo o fundamento dos seres, o próprio tecido do ser divino, a
energia básica (o murmúrio) que origina todos os seres. Aplicada aos seres
humanos, palavra é análoga aos termos hebraico e grego nephesh e psychê,
que designam o indivíduo integralmente.
No segundo capítulo relato alguns exemplos da resistência indígena
frente à missão cristã, tentando, assim, resgatar do esquecimento da
historiograa rio-platense homens, mulheres e crianças indígenas que, com
voz profética, defenderam seu povo, sua terra e o direito de nela viverem
com dignidade e a salvo da voracidade dos colonizadores e conquistadores
espirituais. Até o nal do século XVII, os indígenas se levantaram com cantos,
danças e profecias contra a missão, armando-se como sujeitos de fala e de
fé, quando perceberam que a nova religião lhes desautorizava a experiência
religiosa de seus antepassados. A partir da atitude dessas profetizas e desses
25
profetas indígenas, apresento, na seqüência, a reivindicação dos indígenas
por uma vida livre na selva, pela liberdade de organizarem suas famílias de
forma autônoma e pelo direito de manterem seus antigos rituais. Comento,
nalmente, a questão do poder na missão e a universalidade pretendida
pelos conquistadores espirituais.
A segunda parte tem três capítulos, nos quais descrevo o sistema
religioso indígena, tomando como motivo condutor a categoria “palavra”.
Assim, o terceiro capítulo mostra como os missionários, imbuídos do espírito
tridentino, não puderam reconhecer os indígenas como sujeitos de vida
religiosa, armando sobre eles que “nunca zeram sacrifício ao verdadeiro
Deus” e que estavam propensos a qualquer oferta religiosa. A etnograa
contemporânea, porém, apresenta muitos dados sobre a forma em que os
diversos grupos chamados guarani representam o ser divino. Assim, Jasuka
é o princípio dinâmico do universo, muitas vezes identicado com a mulher.
Provavelmente, é o símbolo mais arcaico herdado do período pré-neolítico e
seu vínculo com o sexo feminino sugere que em tempos pretéritos a mulher
era reverenciada como mãe e fonte de vida. Outras divindades são “Nosso
Pai”, “Nossa Mãe”, “Nosso Irmão”, “Aquele-que-sabe”, e os “Pais” e as
“Mães da Palavra-alma”. Além dessas personicações, os atributos dos seres
divinos e de uma espécie de espíritos donos das matas, dos animais e das
pessoas conferem à divindade uma dimensão algo animista. Os indígenas,
porém, integram suas divindades em um sistema que se apresenta como
uma comunidade interativa do divino, comparável à trindade cristã. Esse
sistema parece ser mais adequado para o diálogo inter-religioso do que o
monoteísmo exclusivo judaico- cristão.
No quarto capítulo apresento a cosmologia indígena. A terra kaiová
e mbyá é comparada a um corpo murmurante. O mundo vem à existência
pela palavra. Antes da criação, a palavra murmurava nas entranhas da
matéria, ela é parte do ser criador, da sua sabedoria criadora. Através da
palavra, Deus colocou seu ser criador em todas as coisas. Como na tradição
sapiencial do Primeiro Testamento, a sabedoria para os indígenas é criadora
e não concupiscência carnal que leva ao pecado. Ela é o meio através do qual
Deus se torna transparente na sua criação. Semelhante ao que Irineu, um dos
Pais da Igreja, imaginara, que o cosmo é corpo da palavra e do Espírito de
Deus, para os povos aqui estudados, ele é a corporicação sacramental do
Deus invisível. A cosmologia guarani coloca perante a teologia cristã que
urge recuperar os paradigmas cosmológicos de que se abriu mão por causa
26
da visão hierárquica que prevaleceu na igreja e na sociedade. Solapada
por questões bioéticas cruciais, a teologia cristã se encontra diante de um
grande desao: investir numa espiritualidade que valorize o corpo dos seres
humanos e o corpo terrestre. Nesse sentido, apresento o pensamento de
Rosemary Ruether sobre a imagem de Deus como fonte de vida - da qual
brotaram todos os seres e ao qual todos os seres retornarão - e dos seres
humanos como seres transitórios, os mais dependentes sobre a face da terra.
Portanto, se os humanos não redimensionam sua relação com a natureza e
seus padrões de interdependência com os seus outros congêneres, em vão
caminharão aqueles que buscam a “terra sem males”.
No quinto capítulo abordo a questão do mal e da salvação. Para os
povos kaiová, guarani (ñandeva) e mbyá, o mal entrou no mundo através
da ciência - a ignorância -, da ira e do adultério. Essas situações são
enfrentadas pelos humanos por inuência de sua alma-animal, que os afasta
da vocação original de se tornarem seres completos. A metáfora para a
experiência do mal e da imperfeição é a de uma palavra que se bifurca, que
divide o ser humano e o afasta da sua meta original. E o esforço dos indígenas
para superar essa situação se revela nas expressões: “erguer-se”, “adquirir
grandeza de coração”, “alcançar a completitude”, “falar belas palavras”
e “entrar na terra sem males”. Os “Nossos Irmãos” e a humanidade que
habitaram por primeiro a terra alcançaram a plenitude e foram divinizados.
Então, particularmente os grupos guarani (avá-guarani)se desaam
perguntando: Por que não o conseguiriam os humanos da geração presente?
Como visto, o “saber” é essencial aos seres humanos. A salvação consiste
em alcançar “corações sábios” e isso é resultado do empenho pessoal,
de “exercícios espirituais”. Não existe nos povos guarani a gura de um
redentor que tenha se sacricado para remir os pecados da humanidade;
todos os seres humanos são dotados da “virtude cristológica”, no sentido de
cada um deles ter que desenvolver-se até alcançar a plenicação pessoal, a
experiência de reciprocidade na sua aldeia e a terra sem males. O Cristo da
tradição cristã pode ser comparado com o herói cultural indígena chamado
de “Nosso Irmão”, mas não como redentor, senão como o primeiro Adão
(protótipo da humanidade), alguém que precedeu os seres humanos na
plenicação.
Na terceira parte descrevo a palavra como paradigma ritual e
sacramento para os indígenas. Ela consta de dois capítulos. No sexto
capítulo apresento as principais celebrações dos grupos estudados. Nelas
27
a palavra é cantada ou recitada no momento em que se ritualiza uma
caminhada. Caminhando horas e horas ao som da palavra, os indígenas
são transportados psiquicamente até a morada das divindades. Eles ativam
o inconsciente coletivo e misturam suas histórias com a memória recitada
em versos. A experiência indígena da palavra está profundamente enraizada
na história de ocupação e plantio de novas áreas, no rito de recepção do
nome, nos de iniciação à vida adulta, no da colheita do milho e dos frutos
maduros, etc. Como para os indígenas a salvação e a cura somente podem
ser efetivadas numa terra restaurada, as celebrações da palavra visam
a fortalecer as imagens que recriam a terra do tempo-espaço perfeito e
a “terra sem males”. Nesses lugares, eles rememoram a experiência de
abundância e reciprocidade vivida no passado e animam a esperança de
poderem voltar a viver em condições econômicas e ecológicas coerentes
com seu modo de ser. Ritualizar a palavra é para eles imitar os eventos
primordiais. Sendo os povos guarani profundamente marcados pela cultura
do milho, esse cereal simboliza a dependência que eles têm da natureza.
No milho, eles encontram a metáfora de si mesmos e das divindades, o que
se aproxima dos testemunhos da Bíblia, onde Deus aparece como alguém
que se relaciona diretamente com a natureza e que não está interessado
exclusivamente nos seres humanos. Peso semelhante tem o nome: ele é o
fundamento fora do qual ninguém pode existir. Ao serem chamados com
nomes de animais, plantas, astros, fenômenos da natureza ou divindades,
os indígenas expressam a profunda identicação, a participação mística
dos seres humanos com os outros seres da natureza. O nome é, assim, um
elemento constitutivo dos seres por ele nomeados e conrma na pessoa sua
qualidade de ser dependente.
No sétimo capítulo ressalto a urgência de um diálogo intercultural
e inter-religioso entre as igrejas cristãs e os povos indígenas. Uma visão
sacramental do mundo implica a aceitação desse mundo como lugar da
revelação. Não uma cultura nem uma religião privilegiada que seja
depositária exclusiva da revelação divina. Os primeiros onze capítulos do
Gênesis não falam de um povo eleito; falam dos povos. E para estes disse
Deus com seu arco-íris no céu, que o Divino ocupa todos os espaços, que
nele vivem, movem-se e existem todos os seres. É uma visão de mundo
como esta, que não seja hierárquica, a que pode animar o diálogo entre as
religiões e as culturas. As igrejas latino-americanas precisam passar pela
saudável experiência de reconhecer os indígenas como sujeitos “outros”,
28
em muitos casos, livres diante do cristianismo e do pensamento ocidental,
como atores sociais plenos que também têm algo a dizer a todos.
Nesta obra, não quero apresentar o modo de ser indígena como “o
modo de ser” nem apregoá-lo como o caminho que os humanos devem
trilhar. Entendo que o encontro com o “outro” pode repercutir sobre nós
mesmos e iluminar-nos a distinguir, entre os caminhos possíveis, aqueles
que levam à casa grande, og gusu, onde há lugar para todos os humanos.
A mim particularmente, esta experiência me motiva a não xar
minha atenção exclusivamente no humano, mas a incluir no seu âmbito o
cosmológico. Ela me impulsiona a reconhecer a unidade da pessoa humana
e a valorar o corpo físico pessoal e o corpo terrestre como lugares onde se
da a experiência do divino. Por outro lado ela me ajuda a ver na tradição
cristã pegadas de outras tradições religiosas, o que mostra que ao lado de
um cristianismo intolerante se desenvolveu um outro cristianismo, mais
aberto e plural. Entendo que se temos o desejo de dialogar com grupos
indígenas temos que tornar-nos aprendizes da “palavra”, intentar escutar
os grupos indígenas não por eles serem, como algumas pessoas gostariam,
supostamente melhores do que nós, mas porque eles são nossos interlocutores
e com eles queremos dialogar. E dialogar não pode ser uma tática retórica
para que um Ego que se presume “universal” e “próprio” assimile Egos
considerados “particulares”, “diferentes”, “outros”.
Nesse sentido, “ser aprendiz da palavra” implica particularmente
para o cristianismo, acostumado a ser o proponente da palavra para os
outros reexaminar a teologia que legitimou essa autocompreensão, ter
coragem para se despedir de velhos hábitos ancorados na prepotência
diante dos outros e criar disposição para auscultar a palavra de Deus. Esta,
antes de estar escrita nos livros sagrados ou formulada em algum dogma,
sussurra para nós no clamor da natureza, naquelas pessoas e grupos com
quem nos identicamos ou a quem chamamos de “outros” ou “estranhos”,
na solenidade de uma celebração ou no acontecimento mais banal do
cotidiano, na reexão acadêmica ou nas experiências que nos são menos
compreensíveis intelectualmente. De modo que se a palavra guarani, que
aqui apresento intermediada por algumas interpretações e sugestões, zer
tanger no leitor e na leitora cordas adormecidas da sua própria tradição
cultural e religiosa, esta obra terá alcançado seu objetivo. Pois o encontro
com o outro é um caminho de duas mãos e sempre nos conduz de volta a
nós mesmos. Esse encontro pode nos ajudar a descobrir o que ainda não
29
conhecemos, o que ainda nos é estranho, “as regiões desconhecidas de
nosso mapa interior” (Grünberg, 1995, p. 9).
(Notas)
1 No primeiro caso, sirva como exemplo a obra organizada por Manuel Marzal (1989); no
segundo, a de Juan Carlos Scannone (1990).
2 Em 1454, o Papa Nicolau V outorgou esse poder ao infante D. Henrique com o intento
de destruir os mouros, pagãos e inimigos do mundo cristão (Suess, 1986, p. 166-167).
3 As idades são aproximadas e para o cálculo tomei como ano de referência o ano de
2000.
4 Particularmente com Ireno Isnardi, a data de referência é 1990, quando ele dizia ter 90
anos.
5 Como em mbyá o som representado pelo h não existe, omito seu uso na transcrição de
dados fornecidos por interlocutores ou interlocutoras mbyá. Assim, aa, oo, peo, equivalem a
aha, oho, peho, nas outras línguas guarani.
30
Primeira parte:
HISTÓRIA
À história recente dos grupos Guarani se aplica o
que o pesquisador L. Miraglia escreveu em 1975,
quando o avanço da colonização sobre as matas
contíguas ao Rio Paraná parecia irreversível.
Estudando meio século a ecologia destas
regiões, posso prever que se o ambiente natural
continuar sendo modicado com o ritmo desta
última década, dentro de alguns anos (...)
as cataratas e as quedas do Paraná estarão
transformados em tranqüilos lagos e as selvas
imensas que se estendiam sobre ambos os lados do
grande rio terão sido substituídas por plantações,
entre as quais surgirão novas cidades. Então
este trabalho poderá ser útil aos etnógrafos que
caminharem pelas ruas dessas cidades, para
lhes ajudar a compreender como nestes mesmos
lugares houve selvas onde vagavam indígenas
como os Guarani (Acción, 1995, p. 19).
33
1 – FRAGMENTOS: TRAJETÓRIA E MODO DE SER
Na América do Sul, os povos chamados guarani exerceram e exercem
uma atração especial sobre os estudiosos das ciências sociais, chegando a
ser, entre os povos indígenas não andinos, um dos grupos mais estudados e
melhor conhecidos na atualidade. A imensa literatura existente sobre eles,
porém, como destaca John Manuel Monteiro (1992, p. 475), aumentou as
incertezas em torno das maneiras pelas quais “os Guarani vivenciaram,
pensaram e, por m, zeram sua história”. Isso constitui novo desao para
a pesquisa indígena, o que procuro considerar aqui, ao situar os chamados
Guarani históricos e ao tematizar a identidade dos grupos indígenas
considerados guarani, hoje, à luz da antropologia contemporânea.
1.1 - A etno-história
Os grupos guarani atuais pertencem à tradição denominada na
arqueologia de tupiguarani e ao tronco lingüístico tupi-guarani, que por sua
vez se desenvolveu pelo menos 2.500 anos do tronco tupi, cuja formação
remonta 5.000 anos. Como boa parte das informações que apresento
nesta obra derivam da própria língua indígena, apresento a seguir alguns
dados a respeito.
1.1.1 – Sobre “Tupi”, “Guarani” e “Tupi-Guarani”
Popularmente, costuma-se aplicar o termo “tupi” às línguas e aos
grupos indígenas falantes dessa língua da antiga área de colonização
portuguesa no Brasil e “guarani” às línguas e a seus respectivos falantes
indígenas da antiga área de colonização espanhola no Paraguai. A designação,
contudo, não seguiu a mesma regra, no passado, para as diversas formas do
tupi e do guarani antigo, como pode ser vericado no trabalho de Aryon
Dall’Igna Rodrigues (1964, 1984-5, 1986), no de Francisco Silva Noelli
(1993) e nos artigos de Wolf Dietrich (1977, 1995).
34
Os cronistas da conquista e da colônia denominavam os grupos
indígenas que iam contatando de acordo com a autodenominação local. À
medida que foram realizando comparações, porém, chegaram a designar os
grupos, e as línguas por eles faladas, com termos mais genéricos, de acordo
com sua preponderância numa região.
1
No caso especíco deste trabalho,
convém constatar o testemunho do jesuíta Antonio Ruiz de Montoya sobre
as línguas faladas pelos povos agrupados genericamente sob a denominação
Tupi e Guarani. Para Montoya, essas tribos falavam uma única língua:
tão universal, que dominava ambos mares, o do Sul por todo o Brasil,
e costeando todo o Peru, com os dois maiores rios que conhece a
orbe, que são o do Prata, cuja boca em Buenos Aires é de oitenta
léguas, e o grande Maranhão, a ele inferior em nada, que passa bem
perto da cidade de Cuzco, oferecendo suas águas ao Mar do Norte.
2
O termo “tupi” aplicado à fala dos indígenas aparece somente no
início da conquista, com o soldado alemão Hans Staden (1557) e o pastor
calvinista Jean de Léry (1578), que o empregaram para designar a língua
dos tupinambá” ou toupinambaults”, falada na costa do Brasil. Pela
mesma época, o termo aparece nos informes de outro soldado, o alemão
Ulrich Schmidl (1567). Ele fala dos “tupi” como gente das terras do Rei
de Portugal, que fala uma língua quase idêntica à falada pelos Cário, grupo
guarani que ocupava a região onde foi fundada Assunção. Depois disso,
parece que o termo desapareceu.
Os jesuítas que missionavam entre os indígenas da costa brasileira
desde 1549, já nos seus primeiros escritos (1575) se referem ao tupi antigo
como “língua brasílica”, “língua geral da costa do Brasil” ou “língua geral
do Brasil”, mas nunca língua tupi ou tupinambá. Embora, em meados
do século XIX, o poeta romântico Gonçalves Dias fale de nação “tupi”, o
romancista José de Alencar intitula sua novela, que é patrimônio nacional,
não “O Tupi”, mas “O Guarani” (1857). A partir de então, porém, “o
crescente nacionalismo e as controvérsias entre o Paraguai, nação de língua
guarani, e o Brasil contribuíram para que os brasileiros buscassem sua
própria origem indígena”
3
.
O termo “guarani”, ao contrário, é usado de forma continuada desde
os primeiros registros do guarani antigo. Assim, Schmidl denominou os
Cário por ele contactados e a língua por eles falada de “guarani”. Ruiz de
Montoya (1639-40) fala de “língua guarani”, nunca de “língua tupi”, nos
35
títulos de suas obras. Na sua Apologia [1651] ele menciona nações “tupi” e
“guarani”, de gente “paraguaiense”, “brasílica” e “do Maranhão” (Ruiz de
Montoya,1996, p. 93), mas chama de “guarani” inclusive as línguas faladas
no Brasil e no “Grande Maranhão” (Ruiz de Montoya, 1876c, A los Padres
religiosos).
As pesquisas de Ingrid Schwamborn (1987) sobre as origens de
“O Guarani”, de José de Alencar, mostram que foi o historiador e político
Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, de procedência
alemã, o responsável pela introdução e propagação do termo “tupi” e que
o mesmo atendeu à necessidade de contrapor-se ao “guarani” que, desde
a Guerra da Tríplice Aliança (1865-70), passou a ser considerada língua
dos inimigos, os paraguaios (Ap. Dietrich, 1995, p. 290). Isso explica por
que, ao reeditar a obra lingüística de Montoya (1876), o Visconde de Porto
Seguro acrescentou aos títulos Arte, Tesoro y Vocabulario de la lengua
guarani a expressão “o más bien tupí”. Na sua introdução, ele explica que
a língua guarani “com insignicantes alterações, era a própria língua tupi,
4
falada em todo Brasil (...); que antes tinha sido reduzida a gramática e a
vocabulários pelos missionários no Brasil, como Anchieta, Veiga, Figueira,
Araújo e outros” (Varnhagen, 1876, p. xi).
De modo que tudo parece indicar que a distinção popular entre o
“tupi, brasileiro” e o “guarani, paraguaio” é uma invenção posterior e atende
a uma conjuntura histórica especíca; na história anterior não se havia feito
essa distinção (Ap. Dietrich, 1995, p. 290). Não é fácil, portanto, responder
qual seria a relação histórica entre o “tupi” e o “guarani”. A partir dos dados
disponíveis, o mais seguro é que as línguas faladas na costa brasileira
eram muito próximas das línguas difundidas originariamente entre os rios
Paraná e Paraguai, com as quais se depararam os primeiros conquistadores
europeus na região (Dietrich, 1977, p. 246).
Foi Karl von den Steinen [1886] quem, no auge do Romantismo
brasileiro, criou o termo tupi-guarani (Von den Steinen, 1942, p. 342),
aparentemente sem justicativas lingüísticas senão para designar com ele,
quando usado como substantivo, “a grande família lingüística” e quando
empregado como adjetivo, “todos os elementos culturais comuns às
tribos da mesma família” (Edelweiss, 1947, p. 8). A criação é considerada
“infeliz” por Edelweiss, por confundir a maior parte dos que depois
empregaram o termo e que, por ignorarem todo o conjunto bibliográco
existente, chamaram indevidamente de “língua tupi-guarani” uma única
36
língua.
5
Somente a meados do século XX, depois dos estudos realizados
por Mansur Guérios,
6
Aryon Dall’Igna Rodrigues estabeleceu o primeiro
modelo lingüístico logenético da evolução histórica das línguas tupi-
guarani (Rodrigues, 1964, p. 99-104; 1958, p. 231-234).
Desses estudos, considero importante destacar que a expressão
“família tupi-guarani” é uma designação convencional que arrola 41
línguas, muitas delas mortas, procedentes de uma língua ancestral
que se convencionou denominar de proto-tupi-guarani e que seria para
as línguas indígenas classicadas de tupi-guarani o que o latim é para a
família lingüística românica. A família tupi-guarani forma, com outras seis
famílias, o “tronco lingüístico tupi”, comparável com o tronco lingüístico
indo-europeu. No nal do século XX, ela arrolava, só no Brasil, 21 línguas
vivas, aparentadas entre si, faladas por grupos tupi-guarani modernos
espalhados por 13 estados brasileiros e por vários outros países. Por
exemplo, o Mbyá é falado também no Paraguai e na Argentina, o Kaiová
ou Paĩ-Tavyterã e Guarani (Ñandeva, Chiripá), no Paraguai e o Chiriguano
na Bolívia e na Argentina. Outras línguas, além de serem faladas no Brasil,
são empregadas também no Peru, na Colômbia, na Venezuela e na Guiana
Francesa (Rodrigues, 1986, p. 41s).
Diante disso, precisa car claro, principalmente para leitores menos
habituados com a história social latino-americana, o status diferenciado
dos falantes dessas línguas e da língua guarani falada no Paraguai, na
Argentina e no Brasil por aproximadamente cinco milhões de cidadãos não
indígenas. Essa língua, de certa forma, deixou de ser “indígena” ao servir
durante séculos ao ideário europeu, ao ser “reduzida” à gramática e ao
sofrer mudanças na sua sintaxe por inuência do castelhano e do português
(Dietrich, 2001, p. 51s). Essa é a língua materna de pelo menos 87% da
população paraguaia,
7
que não pode ser confundida com os indígenas e nem
sua língua com as línguas guarani tribais.
Outro destaque diz respeito a duas línguas históricas não mais faladas
hoje: uma das línguas tupi, o “tupinambá”, e uma das línguas guarani,
registrada sem especicação dialetal, e que neste trabalho é a fonte principal
para falar do contato dos chamados Guarani históricos com o cristianismo.
Tais línguas adquiriram uma importância histórica especial no contexto da
ocupação européia, tanto pela sua tradição escrita de mais de quatrocentos
anos, como também pelo papel que desempenharam no processo histórico
do estabelecimento dos estados modernos e da formação social do
37
Paraguai, da Argentina, do Brasil, da Bolívia e do Uruguai, merecendo ser
consideradas como línguas clássicas da América do Sul, ao lado do Quêchua
da região andina (Rodrigues, 1986, p. 34). Pelas comparações de Rodrigues
(1964), sabe-se hoje que o tupinambá apresenta 80% de cognatos com o
guarani antigo, que ambas as línguas são, dentre as línguas do tronco tupi,
as que apresentam maior quantidade e melhor qualidade de dados etno-
históricos e etnográcos sobre os primeiros contatos de indígenas tupi e
guarani com os europeus
8
e que, dentre ambas, o tupinambá se destaca
pelo seu caráter mais arcaico ou conservador. Valham como exemplo as
mudanças que estavam em curso acelerado na língua guarani, constatadas
por Ruiz de Montoya, no início do século XVII: do som do s(kuarasy,
‘sol’) para o som do h(kuarahy), do som do k(ok, ‘casa’) para o do
g(og), o exagero na nasalização de algumas sílabas como a passagem
de yande, ‘nós’ para ñande, de yandu, ‘aranha’ para ñandu, a perda das
consoantes nais em muitos verbos e nomes tupi como memby.r. ‘lho/a’,
sendo ego a mãe, tu.v. ‘pai’ e a.r. ‘pegar, imitar’, que no guarani passaram
a ser mudas (memby, tu, a) na forma básica e continuaram sendo sonoras
em combinação com alguns suxos (Dietrich, 1995, p. 287-289). Embora
essas línguas tenham sido adotadas como língua geral por colonizadores e
missionários, as populações falantes praticamente foram extintas,
9
cando
para a posteridade o registro das suas línguas em gramáticas, léxicos e
catecismos escritos principalmente por jesuítas.
10
Os grupos indígenas falantes das línguas tupi-guarani compartilhavam
de um mesmo padrão cultural, caracterizando-se pela sua extraordinária
mobilidade espacial e organização tribal, assim como pelo tipo de
agricultura, aspectos que gostaria de descrever na seqüência.
1.1.2 – Os povos chamados Guarani no tempo da conquista
Entre os estudos sobre a procedência dos grupos guarani, a
Amazônia gura como provável lugar de origem. Segundo essa hipótese,
o crescimento da população tupi nesse lugar durante os dois mil primeiros
anos da sua história teria ocasionado a expansão do grupo, a diversicação
da protolíngua tupi e a modicação da cultura em geral, chegando à
incorporação da agricultura - plantação de tubérculos - e da cerâmica. Ter-se-
iam neolitizado (Schmitz, 1981, p. 187). A ocupação das matas subtropicais
situadas ao longo dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai de acordo com o
38
cálculo dos proponentes dessa hipótese – teria ocorrido, mais ou menos, há
dois mil anos, devido ao crescimento demográco nos lugares já habitados
e a uma prolongada seca que teria alterado as condições de sobrevivência do
grupo. Como o processo de diferenciação cultural continuou, duas tradições
distintas teriam se desenvolvido entre os anos 700 e 800 d.C., consolidando
a separação completa entre Tupi e Guarani. Supostamente, as populações
que se adaptaram ao clima quente do litoral atlântico e desenvolveram uma
tradição baseada na cultura da mandioca amarga seriam os Tupi (Schmitz,
1981, p. 187), enquanto que as que se adaptaram ao clima temperado das
matas subtropicais dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai e desenvolveram
uma tradição baseada na cultura do milho seriam os chamados Guarani
(Schmitz, 1985, p. 11-13).
Outras pesquisas, porém, lidam com a hipótese de que a origem dos
Guarani deve ser buscada na região onde ainda hoje se concentra a massa
mais compacta das populações de origem tupi, ou seja, no Paraguai e suas
vizinhanças.
11
Por outro lado, as evidências arqueológicas têm mostrado
que a agricultura estava bastante disseminada cerca de 5.000 A.P.,
podendo armar-se que os povos que dominavam uma tecnologia chamada
guarani e falavam uma das línguas guarani, eram agricultores na época da
sua formação. Além disso, uma drástica diferenciação cultural como aquela
proposta por Schmitz provavelmente não ocorreu, pois o clima na região
ocupada pelos povos denominados Guarani e Tupi (entenda-se Tupinambá)
era basicamente o mesmo, sendo apenas mais frio na região sulina, ocupada
pelos Guarani. Nesse sentido, a armação de que a subsistência dos Tupi
se baseava na mandioca amarga e a dos Guarani no milho deveria ser
revista, haja vista que os Tupinambá consumiam intensamente o milho em
suas bebidas e comidas, assim como os Guarani usavam a mandioca em
sua dieta. Prova disso é que, na lei de Assunção de 1545, o Governador
Domingo Martínez de Irala obrigava os colonos a cercar o local do tepiti
12
para que os porcos não bebessem o suco de ácido hidrocianídrico (Ap.
Noelli, 1993, p. 209). Por sua vez, no Tesoro e no Bocabulario de Antonio
Ruiz de Montoya constam também, de forma explícita, as diversas espécies
desse tubérculo e as formas como eram processadas e consumidas (Ruiz de
Montoya, 1876c, f. 19, 24, 110, 205) pelos indígenas, como, por exemplo,
o ato de colocar a mandioca brava na água corrente para que, sendo lavada,
perdesse certa substância.
Conforme pesquisas mais recentes, os povos considerados Guarani
39
teriam chegado ao Rio da Prata pelo menos em 1300 d. C., sendo portadores
de uma cultura extraordinariamente difundida, ainda que com interrupções,
por toda a América Meridional. Baseado fundamentalmente no que a
arqueologia conseguiu resgatar e no que os dicionários de Ruiz de Montoya
revelam sobre a cultura material desses indígenas, Noelli (1994, p. 159-
237) especica alguns artefatos relacionados com a subsistência. Destaca
a fabricação e o uso de implementos como arcos e echas, arcos de bolas,
lanças, maças, boleadeiras, diversos tipos de armadilhas e instrumentos para
caçar e pescar. O equipamento doméstico e de trabalho era feito de couro,
madeira, pedra, ossos, moluscos e, entre os que tinham contato com os
Inca, trabalho em metais. Numa estimativa despretensiosa, entre os objetos
trançados podem-se arrolar seis tipos de cestos (Ruiz de Montoya, 1876aI,
p. 233, 235, 282), seis de utensílios cerâmicos (Ruiz de Montoya, 1876aI,
p. 227, 234, 242, 264, 273, 363; 1876aII p. 55, 75, 118, 142, 156, 210, 226)
e objetos diversos fabricados de bra vegetal (Ruiz de Montoya, 1876aI,
p. 272; 1876aII, p. 209, 226), sejam os de bromeliáceas, urticáceas,
palmáceas, etc., ou os de algodão.
No conjunto de utensílios mais ligados à roça e à casa, destinados
para preparar, servir e armazenar alimentos, Noelli coloca o pau de
cavouco, estrados e armários onde se guardavam o equipamento doméstico,
o mencionado tepiti, raladores e peneiras, vasilhames diversos feitos
de madeira como pilão, colheres, espátulas e escumadeiras –, panos
de limpeza, vassoura e escova, diversos tipos de cestos entre eles os
“cargueiros”, de três lados, fundo plano e alça para cingir à testa ou carregar
nos ombros e o yruague, descartável e de fácil confecção –, cabaças, bolsas
tecidas com os de algodão e bras vegetais ou couro, facas de capim,
madeira e dentes.
Noelli explica que os povos Guarani cozinhavam e conservavam
seus alimentos empregando diferentes técnicas, como assar, ferver, tostar,
moquear. Os alimentos podiam ser assados sobre uma grelha, envoltos em
folhas, nas brasas, nas cinzas, no espeto e no forno subterrâneo. Para o
cozimento eram utilizadas as panelas de barro e para tostar os alimentos
uma cerâmica com o formato de vasilha rasa. para moquear ou secar os
alimentos defumando-os, seja para consumo imediato ou para estocagem,
era usada uma grelha quadrangular ou triangular. O fogão era o local da
aldeia para qualquer uma dessas quatro formas de cozinhar. Era também
fonte de aquecimento e iluminação. Os indígenas acreditavam que o fogo
40
era guardado dentro das madeiras, de modo que “fazer fogo” era, para eles,
“tirar fogo (da lenha)”, amondy jepe’a. Nesses grupos existiam também
silos subterrâneos, onde eram estocados pinhões.
Como referido, do que a arqueologia coletou até agora pode-se
armar que a cultura material guarani, confeccionada em matérias primas
não perecíveis, é uma cultura homonea no tempo e no espaço. Nesse
sentido, cabe dizer que pontas de echa e restos cerâmicos procedentes de
diferentes épocas e regiões são extremamente semelhantes entre si, senão
idênticos, apresentando, segundo os cálculos aceitos por Ignácio Schmitz
(1981, p. 188) as mesmas características desde o século V até o século XV.
Nesse sentido, Brochado assevera (1984) que não houve, até os primeiros
contatos com os europeus, nenhuma modicação signicativa na cerâmica e
nos implementos líticos dos grupos guarani, o que leva Noelli a armar que
houve uma reprodão da cultura material, e de tudo que a ela diz respeito, no
espo geográco ocupado pelos povos considerados Guarani na arqueologia,
por um período de mais de 3.000 anos (Noelli, 1993, p. 12).
Esse fato no mínimo sugere que esses grupos, sem chegarem a
compor uma unidade do tipo nação, dominavam uma mesma tecnologia.
Brochado (1984) e Noelli (1993) armam a unidade da cultura material,
da tecnologia e do tipo de subsistência dos grupos guarani desde pelo
menos três mil anos atrás. Isso, por sua vez, anima a idéia da existência de
mecanismos geradores de uma cultura conservadora entre os indígenas.
13
A
essas características lingüístico-culturais que se somar a semelhança na
maneira como os vários grupos ocupavam e organizavam o espaço.
Porém, a presença concomitante de outros grupos com outros
padrões culturais e lingüísticos nessa vasta região fez com que tanto a
difusão das línguas quanto a da cultura material, desde a Amazônia até o
Rio da Prata e desde a costa atlântica até os Andes, ocorressem de modo
igualmente descontínuo. Esse vasto território teria resultado das conquistas
e guaranizações que eles operaram sobre os protopovoadores das regiões
que foram ocupando. As expansões, no entanto, conheciam limites de
caráter ecológico e cultural: a terra inadequada ao cultivo e à forma de
aproveitamento do espaço que eles praticavam. Extensos campos abertos
e orestas de araucária que cobriam a região caram sob o domínio de
grupos caçadores coletores e agricultores incipientes, destacando-se os
antepassados dos Kaingang, ou Guaianas, Xokleng, Charrua e Minuano,
mais ao sul, além de populações indígenas do Chaco, ao oeste. Pode-se dizer
41
que a terra preferida pelos povos chamados Guarani, em contraste com os
ambientes que ocupavam perifericamente, caracterizava-se por ser pluviosa
(não havia estação seca), pela umidade (sem nenhum dia biologicamente
seco), pelos verões calorentos e por invernos rigorosos, com uma freqüência
média de até cinco dias de geada por ano. Eles preferiam a proximidade das
águas - até 300 m da margem de rios, de lagoas e do oceano -, altitudes não
superiores a 400 m acima do nível do mar e áreas cobertas de vegetação
com formações orestais úmidas (Brochado, 1982, p. 137).
Os povos guarani viviam, pois, na selva. Eram especialistas na
colonização da mata. É de se pensar que, face à horticultura praticada, a
selva parecesse hostil, inóspita, ameaçadora e impregnada de potências
malignas, devendo o grupo ser precavido para proteger-se desse ambiente
ameaçador e capaz de criar espaço para sua sobrevivência. Essa percepção
da selva certamente controlava sua conduta e outorgava sentido às suas
ações sobre a natureza (Godelier, 1981, p. 40-42). Melià lembra, a partir da
etnograa contemporânea e da documentação histórica (Cortesão I, 1951,
p. 166-167), que a terra humanizada dos indígenas, além da selva e da roça,
requeria um espaço habitável, uma casa, um pátio, uma aldeia,
(...) um monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca
e a coleta de mel e de frutas silvestres; umas faixas de terra especialmente
fértil para fazer as roças e os cultivos, e por m um lugar onde será erguida a
grande casa comunal, com seu grande pátio aberto, ao redor do qual crescem
alguns pés de banana, de mamona, de algodão e de urucu. São estes três
espaços: monte, roça e aldeia que servem para avaliar a boa terra guarani
(Melià, 1989, p. 337).
A selva é o espaço da caça, da pesca e da coleta; a roça, o lugar
do cultivo; a aldeia, o local das moradias, das festas e das reuniões.
Semelhante descrição pode ser observada num mapa desenhado por
Assunção Gonçalves, índio kaiová-guarani do Mato Grosso do Sul durante
um processo de alfabetização implementado pela equipe do Conselho
Indigenista Missionário – CIMI, de Dourados (Conforme Anexo III).
A análise do equipamento material e das informações etno-históricas
mostram quão falsa é a idéia de que a dieta dos povos guarani era pobre e
baseada principalmente na caça e na pesca. Ao contrário, a análise revela que
eles praticavam uma agricultura de ra de grande rendimento e que essa era
sua base alimentar, complementada com produtos obtidos na coleta de vegetais
42
e animais, na pesca e na caça de maferos, aves e répteis. Maravilhados,
Ulrico Schmidl (1537) e Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1540) registraram “a
divina abundância em comida da terra” com a qual as parcialidades guarani,
os Cario da região de Assunção/Paraguai e os Carijó de Santa Catarina/Brasil,
“pela divina graça”, sustentaram os europeus nos primeiros anos do contato
(Schmidl 1944, p. 54; Cabeza de Vaca, 1971, p. 115, 121).
No âmbito das agriculturas amazônicas, a roça guarani supera quase
todas as suas congêneres pelo número de espécies que nela são cultivadas.
Entre elas guram nos léxicos de Ruiz de Montoya em torno de oito
variedades de mandioca, seis de milho, dezoito de batata, cinco de cará,
dez de feijão, cinco de pimenta, onze de maracujá, três de moranga, sete
de goiaba e inúmeras raízes e ervas de espécie não determinada.
14
Noelli
frisa que, longe de o cardápio guarani ser baseado essencialmente no milho
e na mandioca, havia 37 distintos gêneros alimentícios oriundos da roça.
Especicamente no sítio arqueológico de Arroio do Conde, o autor constatou
a existência de 165 variedades de frutas e 72 de vegetais divididos entre
folhas, talos, rizomas, bulbos, brotos, sementes e drupas, além de fungos
comestíveis. Diante disso, o empobrecimento da dieta guarani pode ser
adjudicado à colonização. Esta não signicou perda de autonomia política
e de complexidade social, mas também perda de variedade alimentar.
A agricultura de roça, no entanto, exigia vastos territórios de
povoamento. A rotação dos cultivos impunha uma maneira de ocupar o espaço
que permitia manter um certo equilíbrio entre a população e os recursos.
Não se pode, pois, falar da terra guarani como um dado xo e imutável; ela
nasce, vive e morre com os próprios indígenas, que nela entram, a ocupam
e a trabalham. A terra origina ciclos que não são simplesmente econômicos,
mas sócio-políticos e religiosos. Ela “é um lugar sempre ameaçado pelo
desequilíbrio, entre a abundância e a carência” (Melià, 1987b, p. 2). É
provável que essa consciência de dependência da terra esteja na base das
celebrações do milho novo, dos frutos maduros e da revelação do nome.
Quando da chegada dos primeiros europeus, os povos falantes de línguas
guarani formavam conjuntos territoriais de médio porte, que os estrangeiros
denominaram impropriamente de província. Digo impropriamente porque,
embora naquela época existissem estradas comerciais e importantes
caminhos,
15
não havia entre os indígenas um elo semelhante ao sentimento
nacional nos diversos conjuntos territoriais, apesar de haver semelhança
cultural e lingüística. Desse modo, a denominação genérica “Guarani”, não
43
deve induzir os estudos sobre os diversos grupos guarani a-partir-de ou em-
direção-a um consenso generalizante que iniba as especicidades de cada
um deles. Tampouco deve conduzir ao erro de projetar sobre os grupos do
passado ou sobre os povos indígenas atuais falantes de línguas guarani como
um todo as etnograas particulares que se conhecem hoje. Um exemplo
dessa prática não-recomendável é a mbyaização - que consiste em querer
construir uma etnologia guarani a partir do que se sabe dos Mbyá-Guarani.
Isso atende, provavelmente, ao fascínio que esse grupo em particular exerce
sobre os demais grupos guarani bem como sobre não-indígenas que chegam
a tomar contato com ele.
Como outras sociedades tribais, a base da organização social nos
povos aqui estudados era a família extensa que, conforme os registros do
século XVI e XVII, era uma linhagem patrilinear ou grupo macrofamiliar
que habitava a casa comunal. “Vivem todos congregados em povoados de
100 a 200 famílias”, consta numa das crônicas jesuíticas (Cartas Anuas
1932-34, 1984, p. 110; conforme Anexo IV). Nos léxicos de Ruiz de
Montoya referem, entre outras expressões, a família: ogpeguára, te’ýi,
ñemoñãngáva, ta’y reta, anambeta e johuamõguára (Cartas Anuas 1932-
34, 1984, p. 110; conforme Anexo IV). A primeira expressão signica “os
que vivem na casa”, te’ýi “grupo, companhia, genealogia, muito” (Ruiz de
Montoya, 1876c, f. 376), enquanto que ñemoñãngáva e ta’y reta signicam
“descendência”, anambeta “muitos parentes” e johuamõguára “junta,
encontro” (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 158). A importância fundamental
do conceito família pode ser comprovada nas traduções que o jesuíta fez
de algumas categorias da sociedade não indígena, como “nação”, que
ele verteu ao guarani através das mesmas expressões usadas para família
“os descendentes de indígenas”, ava ñemoñangáva’e (Ruiz de Montoya,
1876aII, p. 105). A idéia de “parcialidade”, seja de pertença a um grupo
indígena ou a uma religião, ele traduz por “mi família”, che re’ýi, e “os que
fazem parte da minha família”, che re’ýiguára (Ruiz de Montoya, 1876c,
f. 376).
Além de família, um outro termo que integra o conjunto de etnônimos
guarani é o suxo, de controvertida interpretação, -guára, que signica
“procedente ou morador de”. Assim, os moradores da serra são yvyty riguára
(Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 192), os naturais das imediações de um
determinado rio são ko yguára (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 163), os naturais
da cabeceira de um rio são yry kuapeguára (Ruiz de Montoya, 1876c, f.
44
164), os do Paraguay ou Assunção são paraguaygua (Ruiz de Montoya,
1876c, f. 263) e quando não se sabe a procedência de uma pessoa pergunta-
se mamo yguára pende”, que signica “de onde és?”.
16
Mas as famílias
guarani mantinham entre si, e certamente com os outros atores sociais ao
longo de sua história, relações de aproximação e de distanciamento, como
poderá se ver mais adiante.
A família extensa era governada por um pai, chamado de te’ýiru, que
via de regra agia tanto como pa’i quanto como karai, ou seja, atuava tanto
no âmbito civil como no religioso, respectivamente. John Manuel Monteiro
chama a atenção para o fato de entre os Guarani, em alguns casos, atribuir-se
territórios amplos a uma única chea. Assim, as denominações de territórios
multicomunitários tendem a ser confundidas com os nomes de “caciques
principais”, como Guairá, Tayaobá e Guarambaré. Em constatações como essa
baseia-se a suspeita de que teria existido entre os Guarani um cacicado incipiente
ao tempo da conquista (Melià, 1988a, p. 18; Monteiro, 1992, p. 481).
1.1.3 - Os povos chamados Guarani sob o impacto da conquista
européia
Os primeiros contatos entre europeus e Guarani foram marcados por
três alianças: social, econômica e política. No âmbito social, o coração da
aliança foi a mestiçagem biológica. Por acharem que os forasteiros eram
“boa gente”, os indígenas, como prova de amizade, “deram-lhes suas lhas”
como esposas, a m de torná-los membros da mesma família. Desse modo,
no começo, “toda a parentela indígena servia seu cunhado honrando-o
como novo parente”.
17
Na costa de Santa Catarina, a aliança econômica foi a primeira forma
de contato ao ponto de ser um lugar de apoio das expedições espanholas.
A aliança se completava no âmbito político, consistindo na utilização que
os colonizadores zeram da cultura dos indígenas com os quais estavam
aparentados. O conhecimento topográco dos povos chamados guarani, sua
habilidade guerreira, assim como sua inimizade com outras populações,
foram usados pelos europeus para guerrear contra os nativos livres ou não
submetidos.
Em pouco tempo, porém, esses povos perceberam que a intenção
dos estrangeiros era outra e se levantaram contra seus mal-afamados
45
cunhados que haviam implantado um “governo mais despótico e tirânico
do que político e cristão” (Cortesão I, 1951, p. 163), o que desestruturou em
poucas décadas as instituições indígenas. Houve uma trágica diminuição da
população, provocada pelo trabalho escravo, massacre, uso descontrolado
de contraceptivos, aborto, infanticídio e suicídio. Particularmente para as
mulheres, ter descendência nessas condições deploráveis de vida se tornou
uma experiência tão terrível que optavam por dar m a seus descendentes
naturais: “muitos se enforcam e outros deixam-se morrer sem comer e
outros bebem ervas venenosas (...) há mães que matam seus lhos logo que
nascem para livrá-los dos trabalhos que elas e seu povo padecem” (Gandia,
1939, p. 347).
Ao gesto “amistoso” dos indígenas, os estrangeiros responderam
com abuso e opressão. Quando, mais tarde, sob o peso dessa tirania, os
indígenas não mais os queriam como cunhados, os colonizadores passaram
a recrutar à força as mulheres indígenas, não para se servirem delas como
escravas e esposas, mas também para vendê-las ou trocá-las por objetos.
Um dos primeiros líderes guarani a intuir a intenção dos
estrangeiros foi Aracare. Seu lema - como o dos que o sucederam na luta
contra os colonizadores - foi “expulsar os cristãos das terras dos Guarani”.
Os enfrentamentos entre indígenas e europeus, nos primeiros grupos
contatados, forçaram os colonizadores a fazerem contato com outros grupos
falantes de guarani. E estes, por sua vez, à medida que iam se tornando
vítimas da ganância e da ambição dos colonizadores que os submetiam
a diversas formas de escravidão, foram sendo substituídos por indígenas
recém capturados.
A partir do século XVI, nos percalços do desencontro
18
cultural, que
ia desde a mestiçagem biológica até a desintegração sócio-econômico-
religiosa, os diversos grupos guarani procedentes - é isso que signica
“-guára - das mais diversas regiões foram desestruturados pelos
espanhóis, que mesclavam os grupos, confundindo-os. Surgiram os “povos
de índios”, onde os povos indígenas falantes de guarani foram condenados
à imobilidade. Nesses reagrupamentos e, mais tarde, nas reduções
19
franciscanas e jesuíticas, o mundo guarani poderia ter sucumbido, se não
tivessem reagido os líderes indígenas, como se verá no capítulo dois.
Nesta breve introdução à história dos povos indígenas que foram
contactados nos séculos XVI e XVII não há espaço para detalhar o período
colonial. Não poderia, porém, deixar de situar o que foi a “conquista
46
espiritual”, e particularmente o que foram as reduções jesuíticas, na ampla
experiência da colonização de portugueses e espanhóis sobre os povos
tupi-guarani. Costuma-se falar da conquista espiritual dos povos chamados
genericamente guarani como resultado da obra missioneira dos jesuítas. De
fato, a experiência sistemática e duradoura dos inacianos foi decisiva na
vida dos indígenas reduzidos, mas ela não foi nem a primeira e nem a única
atividade missionária e tampouco uma ação independente da colônia, como
às vezes se quer dar a entender.
Fora a ordem dos jesuítas, e além do trabalho dos sacerdotes seculares,
presentes desde a fundação de Assunção, entre os Cários, uma outra ordem
de singular importância que atuou entre os indígenas foi a dos franciscanos.
A eles coube a implantação do modelo de missão por redução, já em 1580.
Os jesuítas, por esses anos, se encontravam nos povoados indígenas de
fala guarani na região sulina e litorânea, mas só foram ganhar visibilidade
e autonomia, segundo Monteiro, com a fundação da província eclesiástica
do Paraguai. O projeto de “reduzir” os indígenas a povoados não era, como
se deu a entender, independente do projeto político e econômico. Seu
estabelecimento fora solicitado pelas autoridades da província espanhola
para pacicar grupos arredios que resistiam ao projeto colonial e para
integrar novos grupos ao sistema. O interesse econômico era claro: uma vez
reduzidos, os indígenas poderiam ser facilmente integrados ao sistema de
trabalho colonial. Também “no Brasil, o sistema de missões apresentava-
se como solução para o dilema entre o provisionamento de braços para
a economia colonial e o ideal da liberdade dos índios” (Monteiro, 1992,
p. 487). Curiosamente, a semelhança entre a missão jesuítica paraguaia
e brasileira também se constata, embora em momentos distintos da
sua história,
20
no sentido de ambas terem quebrado o consenso entre os
colonizadores sobre o trabalho indígena. Ao defender a “liberdade” dos
indígenas contra a reivindicação do “serviço pessoal” dos nativos de parte
dos colonos, os jesuítas foram um elemento desestabilizador da colônia,
naquela época.
Apesar da militância dos jesuítas “em favor” dos indígenas, os
profetas guarani enfrentaram seus “protetores” e “civilizadores” em
verdadeiros duelos religiosos e incentivaram, entre outras medidas, a
fuga como caminho para a liberdade, como forma de continuarem sendo
os mesmos. Em vários documentos faz-se referência a indígenas que
abandonaram as reduções, voltando a se espalhar pelos montes (Cortesão
47
II, 1952, p. 55, 102, 105, 193, 204, 206, 292) e a se reencontrarem com os
que permaneceram livres nos seus esconderijos ou fugitivos em sua própria
terra (Sánchez Labrador I, 1910, p. 16). Assim, como bem lembra Regina
Maria A. F. Gadelha, nem todos os povos falantes de línguas guarani foram
reduzidos ou aldeados; “(...) muitos haviam permanecido escondidos e, por
isso mesmo, foram preservados, vivendo nas matas em vida tribal. Este
fator nem sempre é mencionado pelos estudiosos (...), mas esclarece sobre
o fato da cultura Guarani ter sido preservada até os nossos dias” (Gadelha,
1988, p. 74-75).
1.1.4 – Livres ou fugitivos em suas próprias terras
Os indígenas encontraram seus esconderijos nas matas contíguas ao
Rio Paraná e às cordilheiras do Amambai e do Maracaju. Por essa razão,
desde a segunda metade do século XVIII, são denominados Kaynguá que
signica “procedentes”, gua (forma abreviada de guára) “da mata”, ka’a,
ka’ay.
21
Com suas numerosas corruptelas fonéticas e variantes ortográcas, essa
expressão pejorativa e genérica se refere àqueles grupos que permaneceram
fora do sistema missional e colonial de povoados, desenvolvendo um
processo paralelo a esses sistemas. Esses indígenas são os ancestrais mais
próximos dos grupos guarani atuais. Assim, referindo-se aos que viviam
nas imediações da região ocupada pelos atuais Kaiová e Paĩ-Tavyterã,
os demarcadores dos limites entre as colônias espanholas e portuguesas
descrevem os Kaynguá como “monteses de idioma guarani, índios dóceis
que parecem oriundos de cristãos porque conservam a veneração à Santa
Cruz e é distintivo principal do cacique (...) a vara que leva em sua mão.
Usam um enfeite labial que, segundo tenho visto, alguns deles o fabricam
da resina cristalina e forte de árvores...” (Aguire II, 1950, p. 37, apud Melià
et al., 1987, p. 30).
Com a fundação de Conceição, no Nordeste do Paraguai, em 1773,
os Kaynguá caram expostos aos ervateiros, a outros grupos indígenas e
aos espanhóis (Susnik, l965, p. 200). Iniciou-se com isso uma mudança
decisiva na situação dos Kaynguá de então e dos Paĩ-Tavyterã e Kaiová
atuais, pois criaram-se as condições para um certo tipo de relação colonial
que perdura até hoje (Melià & Grünberg, 1976, p. 175). Do século XIX datam
interessantes informações etnográcas sobre os Kaynguá, particularmente
48
trechos do discurso de um cacique e alguns registros sobre religião, escritos
pelo viajante suíço Johann Rudolph Rengger, que atestam uma suposta
continuidade entre o modo de ser dos antigos Itatim, dos Kaynguá de
então e dos Paĩ-Tavyterã e Kaiová atuais (Melià & Grünberg, 1976, p. 177-
179). Certamente não deixa de ser sugestiva uma constante nos registros
históricos sobre esses grupos: a cruz. em 1632, os missionários jesuítas
referiam-se a eles como aqueles que aguardavam padres que trariam cruzes
em suas mãos (Cortesão II, 1952, p. 33-34). Dos Kaynguá se escreveu que
reverenciavam a santa cruz (Cortesão III, 1969, p. 284-286), sendo ela,
conforme Ibáñez, a insígnia das suas empresas (Ap. Melià & Grünberg,
1976, p. 172).
no século XIX, com a etnologia dos viajantes, e especialmente
no século XX, com a dos antropólogos, chega-se a conhecer as
autodenominações desses grupos que, por tantos anos, foram apelidados
de Kaynguá (Melià et al., 1987, índice temático). São eles: 1) os Guarani
(Avakatueté, Chiripá ou Ñandeva), em torno de 12 mil pessoas, no Paraguai
e no Brasil; 2) os Mbyá, cerca de 15 mil, no Paraguai [mais de 8.000], na
Argentina [3.640] e no Brasil [3.000]; 3) os Paĩ-Tavyterã ou Kaiová, que
chegam a 25 mil, no Paraguai e no Brasil; e 4) os Chiriguanos, que somam
mais de 70 mil, vivendo no oriente boliviano e em regiões fronteiriças entre
Paraguai e Argentina.
22
Como esses grupos superam a casa de 120 mil
pessoas no nal do século XX e ocupam parte de seu território tradicional
- ainda que em pequenas aldeias ou reservas no Brasil, onde também
um número considerável de indígenas desterrados em conseqüência do
avanço de fazendas e de cidades sobre suas aldeias -, pode-se dizer com
Melià que os chamados Guarani tribais “apresentam atualmente um índice
demográco relativamente elevado, sobretudo quando comparado com as
cifras reduzidas apresentadas por outras tribos amazônicas” (Melià, 1989, p.
298). No Brasil, os três grupos chamados genericamente Guarani compõem
o grupo indígena mais numeroso, com 35.000 integrantes, sendo seguidos
pelos Tikuna, com 32.613, e pelos Kaingang, com 25.000.
Cálculos mais recentes conrmam a alta taxa de crescimento
dos grupos indígenas falantes de línguas guarani. Estes somam ao todo
225.000 pessoas. Na Bolívia
23
a estimativa de vários grupos genericamente
donominados de Chiriguanos chega a 80.000. No Paraguai,
24
a população
dos 3 grupos maiores - paĩ-tavyterã, ava-guarani e mbyá - e dos dois grupos
menores - aché e guarani ocidentais - chega a 53.500. Na Argentina,
25
os
49
grupos mbyá e chiriguano somam 42.073 pessoas. No Brasil,
26
a população
de kaiowá, mbyá e guarani (ñandeva e chiripá) é estimada em 50.000, sendo
que 80% dela vive no Mato Grosso do Sul.
No Brasil, contudo, a maior parte dos grupos guarani atuais está
connada em pequenas reservas ou aldeias, sob a “proteção” do Estado,
dividindo a terra, não poucas vezes, com indígenas de outra etnia, como
os Kaingang, os Terena e os Xokleng. Nas últimas décadas, com a
intensicação do plantio da soja, a terra habitada pelos diversos grupos
Guarani foi supervalorizada, o que, ironicamente, motivou seu desterro.
27
Isso se deu também porque usinas hidroelétricas alagaram seus territórios ou
porque o próprio Estado fez reforma agrária em aldeias indígenas. Exemplo
disso são as ações do Presidente Getúlio Vargas, na década de 1950, no
Mato Grosso, e do Governador Leonel Brizola, na década de 1960, no Rio
Grande do Sul.
Atenção especial merece a situação dos Mbyá. Depois dos transtornos
causados pela guerra da Tríplice Aliança (1865-70), os Mbyá viveram
relativamente isolados até a primeira metade do século XX, nos imensos
latifúndios criados com o “loteamento” do Paraguai no pós-guerra. Como é
sabido, o governo fantoche de então entregou uma área de 10.000 hectares
de mata nativa ao cientista suíço Moisés S. Bertoni (1857-1929) e essa área
abarcava uma boa parte da terra ocupada pelos Mbyá (Burri, 1993, p. 28).
De modo semelhante, a empresa chamada “La Industrial Paraguaya S.A.”
recebeu uma área de 3.502.727 hectares, o que correspondia a 17% de toda
a região oriental do Paraguai (Garlet, 1997, p. 41). A empresa dedicou-se à
exploração da erva-mate.
28
Apesar do impacto causado pela ocupação das
terras, o caráter extrativista da atividade que se implantou nela acabou, de
alguma maneira, salvaguardando a integridade dos indígenas.
Com o avanço da colonização sobre as matas contíguas ao Rio Paraná,
os Mbyá reagiram intensicando suas migrações. Do Paraguai, passavam
para a Argentina e de lá, na busca da costa atlântica, para o Brasil, onde hoje
se encontram, em pequenas comunidades, desde o Rio Grande do Sul até o
Pará. O que os impulsiona a caminhar é a necessidade de encontrarem um
lugar onde lhes seja possível viver em segurança seu modo de ser. Somar
simplesmente esses Mbyá aos outros grupos de indígenas desterrados seria
desconsiderar a especicidade da sua reação frente ao cerco que lhes fez o
“desenvolvimento” orientado pelo capitalismo, nas últimas décadas. Eles
reagem não somente com um discurso religioso centrado na busca da “terra
50
sem males” mas também colocando-se literalmente “a caminho”, na busca
desse lugar.
29
Os outros grupos guarani, expostos há mais tempo a esse modelo de
“desenvolvimento” que lhes é extra-sistêmico, além das marcas deixadas
pelo antiindigenismo que desde muito cedo se desenvolveu no Paraguai,
na Argentina, na Bolívia e no Brasil, hoje, com o avanço da cidade sobre
o campo, encontram-se ainda mais expostos à inuência dos resíduos da
cultura ocidental. Entre os principais agentes dessa nova forma de contato
estão as escolas e as igrejas. Aquelas, via de regra, com um programa não
diferenciado de ensino, e na maior parte das vezes usando como idioma a
língua portuguesa; estas, disputando entre si de forma ostensiva a adesão
dos indígenas. Ambas, a seu modo, entendendo-se como portadoras de
civilização e cristã, não passam de “escolas de superstição”, para usar uma
expressão de Melià (1997), exatamente por não reconhecerem as qualidades
diferenciais dos indígenas no âmbito do saber e do crer. Às conseqüências
pouco otimistas dessas formas de contato soma-se a inoperância do poder
público na política de demarcação das terras indígenas.
1.2 – O princípio da identidade guarani
As línguas tupi-guarani possuem três formas para o pronome da
primeira pessoa do plural: oréva (“nós” que exclui o outro, a pessoa com
quem se fala), ñandéva e cha ou chande, que caiu em desuso (“nós“ que
inclui o outro, o interlocutor). Esses pronomes podem nos ajudar a imaginar
a dinâmica social que se dava entre o ñande inclusivo (Ruiz de Montoya,
1876c, f. 241, 1876aII, p. 111) e o ore exclusivo (Ruiz de Montoya, 1876c,
f. 258, 1876aII, p. 111). Ao dizer ñande aipóva’e, o falante do guarani
arma: “esse é dos nossos, é nosso parente” (Ruiz de Montoya, 1876c, f.
242), não seu, mas também do seu interlocutor. Por outro lado, quando
ele diz oreñö mba’e, ele arma que tais coisas são comuns a ele e aos seus,
mas não ao seu interlocutor. O mesmo vale para ore ha’e, que signica ele
é dos nossos (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 258), não dos teus ou dos vossos,
e para oro re’ýi a’e oroiko querendo dizer com isso “todos os de nossa
parcialidade estamos juntos” (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 376), e você não
faz parte desse grupo. É possível que nessa forma de diferenciação e de
identicação residam alguns dados sobre a construção da pessoa e do seu
51
relacionamento com os outros.
30
1.2.1 - Oréva e ñandéva
Como foi visto, os grupos chamados guarani têm na base da sua
organização social a família extensa, liderada por um “pai de família” que,
via de regra, reúne funções civis e religiosas e mantém sua posição na base
da generosidade, da arte de falar e de ser uma espécie de “consciência
crítica” do grupo. A união de várias famílias extensas, vivendo num mesmo
lugar, forma a consciência de identidade oréva (“nós” exclusivo, sem “o
outro” exterior). Esse âmbito de organização foi, no tempo dos primeiros
contatos, o mais forte e efetivo e o é ainda hoje, em regiões menos afetadas
pela colonização.
31
Do oréva eram excluídos os que não eram parentes, os
que não residiam no mesmo local e os estrangeiros.
Nesse âmbito mais restrito do “nós”, a armação mediante a
identicação pode ser entendida conforme a propôs Florestan Fernandes.
O autor faz notar que, em sociedades como as tupi-guarani, o foco da
educação deriva das tendências de perpetuação da ordem social estabelecida.
A educação não visa a preparar o ser humano para a “experiência nova”,
mas para “conformar-se aos outros” (internos), sem perder a capacidade
de realizar-se como pessoa e de ser útil à coletividade como um todo. O
“eu” cresce com “os demais” (internos) e isso pressupõe que o indivíduo
seja adestrado tanto para “fazer” certas coisas, quanto para “ser” pessoa
segundo certos ideais (Fernandes, 1975, p. 38).
Se procurarmos circunscrever, hoje, o oréva entre nos grupos
indígenas, nos depararemos com uma exclusão “retórica” desse âmbito. Os
afetados seriam os que não passaram pelas iniciações tradicionais do grupo
e os que “não seguem a tradição”.
A união de vários oréva faz surgir a consciência do ñandéva (“nós”
inclusivo, com “o outro” exterior). No passado, a inclusão se efetivava em
ocasiões onde interessava promover a solidariedade entre as comunidades
diante de um problema comum, que podia ser a procura de uma nova terra
para o cultivo, por ocasião do ataque “de” ou “a” inimigos e durante as festas
do grupo. Pessoas de outra procedência étnica, excluídos do oréva, podiam
integrar o ñandéva. Tal foi o caso de alguns conquistadores europeus,
aceitos como cunhados pelos indígenas. A mesma consideração mereciam
52
os que não eram parentes, os indígenas da mesma etnia que viviam em
regiões vizinhas, membros de tribos guaranizadas e, especialmente em
tempos de crise, missionários europeus. Hoje, a inclusão pode estender-
se aos funcionários públicos que atuam entre os indígenas como os da
Funai, da Secretaria da Saúde e da Educação –, aos missionários de todas
as procedências teológicas, à população “não indígena” da sociedade
envolvente, às pesquisadoras e aos pesquisadores, aos agentes de
desenvolvimento, etc.
Um exemplo particular da tolerância que tal modo de pensar
possibilita é a relativa aceitação que muitos missionários franciscanos e
jesuítas gozaram entre os indígenas, como verdadeiros pajés, karai, do
grupo. Atualmente a consciência do ñandéva no nível étnico é muito mais
ritual e retórica. Espalhados em pequenas comunidades (muitas delas em
plena mobilidade geográca), numa vasta região, ca cada vez mais difícil
a experiência político-social dessa forma de identicação.
Com as expressões oréva e ñandéva estamos diante de dois tipos de
consciência de si orientados pelo princípio da identidade, uma mais fechada
e exclusiva; outra mais aberta e inclusiva. Desde o tempo da colonização, os
indígenas vêm se revezando entre o oréva (quando não aceitam, combatem,
resistem ao novo) e o ñandéva(quando se deixam batizar, aceitam escolas
e hospitais do “branco”, questionam as inovações mas também as toleram
e até as assimilam). Em ambas as atitudes, os indígenas reconhecem a
existência de uma outra sociedade “na” ou “à margem da” qual eles vivem,
e diante da qual eles precisam se armar e se distinguir. Dentre os três
grupos guarani aqui estudados, os Mbyá são os que mais tendem a se rmar
pelo critério do oréva, enquanto que os Ñandéva ou Chiripá se destacam
como os mais concessivos diante do outro, cabendo aos Kaiová a posição
intermediária. Em todos esses grupos, porém, há famílias e líderes das mais
diversas tendências. O interessante é conferir que os Mbyá exercem um
certo fascínio sobre os líderes dos outros grupos guarani insatisfeitos com o
“liberalismo” dos membros de seu grupo diante da sociedade envolvente.
Alternando atitudes que variam entre a rigidez do oréva e a
exibilidade do ñandéva, os povos chamados Guarani não re-elaboram as
experiências de risco e de derrotas que tiveram, mas também a consciência
de possuir um bem que se perpetua dia após dia (Melià, 1997, p. 36) e que
os arma como grupos “diferentes” e “distintos”, numa sociedade cada vez
mais homogênea.
53
Nesse sentido, cabe lembrar que nada é mais temido pelos indígenas
do que a ameaça de eles não mais poderem se distinguir dos demais. Deixar
de ser indígena seria para eles tornarem-se cidadãos comuns, tavyguáry
“morador”, gua.r., da cidade, táva, ou “alguém que ignora sua origem”,
conforme outra “etimologia”.
É essa a dinâmica que manteve os povos chamados Guarani vivos
como grupo social diferenciado diante do avanço progressivo das frentes
de colonização e de missão, que os foi tirando de seus últimos esconderijos,
especialmente durante a segunda metade do século vinte.
1.2.2 – Bagagem cultural e identidade
Durante a longa discussão sobre o tema na antropologia social, ao
mesmo tempo em que a categoria “cultura” foi perdendo o signicado
ontológico e o peso determinante que já teve (Carneiro da Cunha, 1987, p.
107), a identidade foi sendo descoberta como algo que objetivamente não
existia, que ninguém possuía uma essência antecedente a tudo. Conforme
Carlos Rodrigues Brandão, “ela não existe sob a forma de um repertório
dado, estável e facilmente reconhecível, de sentimentos e idéias, regras e
ornamentos do corpo. Mas, onde quer que situações concretas o exijam,
ela, a identidade étnica, é construída” (Brandão, 1986, p. 155). Em outras
palavras, baseando-se a identidade de um lado no “mesmo” e não existindo
essa “mesmice” como atributo objetivo, é necessário buscar as condições e
o contexto em que esse atributo é evocado e a maneira como essa identidade
é construída (Novaes, 1993, p. 24, 25).
Contrariamente a essa compreensão de cultura e identidade, nos
estudos dos antropólogos que se ocuparam com a mudança e o contato
intercultural no Brasil, ca implícita a concepção de cultura como produto
acabado, como “um estoque de traços culturais que, à semelhança do
estoque genético, é passado como herança social às gerações mais novas”
(Novaes, 1993, p. 41). Entretanto, a mudança social não é um processo
mecânico de substituição de elementos da cultura original por outros da
cultura dominante, tendendo a primeira à descaracterização e à extinção
(Novaes, 1993, p. 40). Assim, as previsões catastrócas e pessimistas sobre
os diversos grupos guarani, como as realizadas por Schaden (1974, 1965),
não chegaram a se cumprir. Ele e seus seguidores pressupunham que os
54
indígenas se encontravam em estado de penúria cultural, pessimistas, e que
seu modo de ser tradicional estava condenado à morte. Outros antropólogos
- como os Clastres - escreveram que esses povos estavam condenados a
curto prazo e que então, nos anos sessenta, subsistiam apenas ruínas deles.
As sociedades indígenas, no entanto, vêm mostrando que sua resistência
não está centrada na possibilidade de elas absorverem ou não elementos
da cultura dominante, mas sim na forma como esses elementos podem ser
rearticulados positivamente por elas.
John Monteiro ressalta que os indígenas foram considerados nas obras
historiográcas como pobres “remanescentes, sobreviventes, resquícios
que continuam agarrados ao pouco que lhes resta após cinco séculos de
depredação e espoliação”. Essa perspectiva, prossegue o autor, “oculta os
múltiplos processos históricos de questionamento, negação e reelaboração
de identidades indígenas que informavam e direcionavam as maneiras pelas
quais diferentes segmentos sociais nativos se posicionavam diante da nova
ordem que começou a se instaurar com a chegada dos primeiros navegantes
portugueses, quinhentos anos” (Novaes, 1999, p. 238). Atendo-se à
situação dos povos focalizados nesta obra, o autor acima destaca que
“longe de serem inermes vítimas que povoam habitualmente os livros de
história, os Guarani desenvolveram estratégias próprias que visavam não
apenas a mera sobrevivência mas, também, a permanente recriação de sua
identidade e de seu ‘modo de ser’, frente a condições progressivamente
adversas” (Monteiro, 1992, p. 475).
Isso acontece porque, na diáspora ou no intenso contato, como
demonstrou Manuela Carneiro da Cunha, a cultura não se perde; ela adquire
uma nova função essencial que se acresce a outras, enquanto se torna cultura
de contraste, que determina vários processos; “(...) a cultura tende ao mesmo
tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplicar e enrijecer,
reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos”
(Carneiro da Cunha, 1987, p. 99). Como na diáspora a bagagem cultural
deve ser sucinta, seleciona-se da cultura o que é operativo, o que serve para
preservar a identidade do grupo, para resistir à interferência (Carneiro da
Cunha, 1987, p. 101, 116).
Nesse sentido, levando em conta a importância singular que os
grupos guarani atuais conferem à vida religiosa, pode-se armar que eles
escolheram a religião
32
como armação diante da civilização ocidental,
como forma de continuar sendo os mesmos. nos primeiros anos de
55
contato com o cristianismo, muitos xamãs selecionavam elementos da sua
religião e os convertiam em símbolos de sua identidade étnica e cultural
(Susnik, 1983, p. 131) e selecionavam inclusive elementos da religião cristã
que passavam a incorporar em seu “modo de ser”, como se os mesmos lhes
fossem originários.
Não poderia encerrar esta parte do trabalho sem retomar a questão
da “mestiçagem biológica” dos chamados Guarani históricos. É conhecida
a união de índias guarani e conquistadores espanhóis, desde os primeiros
contatos do século XVI, da qual resultou a população paraguaia mais antiga.
33
Uma outra forma de mestiçagem deu-se no Brasil, precisamente em São
Paulo, entre indígenas guarani – tomados às missões ou capturados na mata
e negociados como escravos e mulheres e homens de outra procedência
étnica. Os descendentes dessas pessoas, mesmo tendo recuperado a
liberdade, não recuperaram sua identidade indígena. Eles “passaram a
engrossar as legiões de brancos e mestiços pobres que constituíam a maioria
da população rural” (Monteiro, 1992, p. 496).
Um terceiro momento da “mestiçagem biológica” dos povos indígenas
falantes do guarani se deu após a expulsão dos jesuítas, em 1767. Com a
secularização das reduções e a paulatina dissolução da sociedade guarani
oriunda dos 30 povos até então governados por jesuítas, um considerável
contingente da população guarani sem miscigenação biológica com os
europeus somou-se à população colonial mestiça do Paraguai e da região
chamada missioneira no Brasil e na Argentina, onde acabaram se misturando
com a população local e, com o tempo, deixaram de se identicar como
indígenas. No Paraguai eles somaram-se à população procedente de uma
mestiçagem anterior e diluíram-se no gentilício “paraguaio” que, por sua
vez, foi quase exterminado na guerra da Tríplice Aliança de Brasil, Argentina
e Uruguai contra o Paraguai.
34
No Brasil e na Argentina eles originaram a
população chamada “gaúcha” (Ribeiro, 1998, p. 414) que passou a integrar
a população nacional, sem nenhuma diferenciação étnica. Conrma-se
assim o que Eni Orlandi escrevera sobre os indígenas em geral, que na
constituição mestiça da nacionalidade, eles não se misturaram; sumiram
(Orlandi, 1990, p. 58).
Retornando aos grupos indígenas chamados Guarani que não
passaram por tais processos de transguração biológica e psico-cultural,
apresento a seguir alguns elementos que evocam para esses indígenas
sua lealdade étnica e sua distinção da população nacional: os elementos
56
relacionados ao seu sistema de crenças.
1.3 - Sobre “palavra” e “religião” guarani
O que podemos chamar de “religião” nos povos aqui estudados
está fundamentado na palavra. Os termos ñe’ẽ, ayvu e ã - traduzidos
geralmente por “palavra” – signicam também “voz, fala, linguagem,
idioma, alma, nome, vida, personalidade”, origem e possuem, sobretudo,
uma essência espiritual. A palavra é a unidade mais densa que explica como
se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o
transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus
é palavra. Dentre todas as faculdades humanas, são as diversas formas do
“dizer” as vias, por excelência, de comunicação com as divindades, pois
estas são essencialmente seres da fala. A seguir, passo a considerar alguns
aspectos desse pensamento.
1.3.1 – A palavra e as experiências da vida
A gravidez é entendida como resultado de um sonho; o nascimento,
o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo
da criança, oñemboapyka. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é
justamente a que o mantém em pé, que o humaniza.
A ligação entre palavra, ser animado e verticalidade também pode
notar-se em várias expressões em que o radical e”, “dizer” em língua mbyá,
desempenha um papel decisivo. Assim, os que restauram a palavra, eepya,
são invocados para salvar um moribundo da morte; para a nomeação
de uma criança são invocados os ery mo’a’ã, aqueles que mantêm ereto o
uxo do dizer (Cadogan, 1950b, p. 235). A chegada à “terra sem males” sem
passar pela prova da morte é expressada em língua mbyá por oñemokandire,
que signica literalmente “fazer com que os ossos permaneçam frescos”,
sem perder sua natureza, sua forma humana, ereta, sua postura vertical
(Cadogan, 1962, p. 59). É a verticalidade assegurada pela palavra que
diferencia o ser humano vivo dos outros seres e dos seres humanos mortos,
doentes ou sem nome divinizador.
Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança
57
marcando com isso a recepção ocial da nova palavra na comunidade e
tentará exorcizar o primeiro sentimento mau que acomete o ser humano:
a cólera. Os grupos kaiová e os mbyá acreditam que, à semelhança do
herói mítico, “Nosso Irmão Maior”, Ñanderyke’y, a criança no período de
lactância irrita-se facilmente contra o seio de sua mãe e que esse gesto
inaugura a primeira forma de saber que é má. Por isso, desde tenra idade as
crianças são orientadas a vencer esse sentimento, escutando sua verdadeira
palavra (seu nome divinizador) e ouvindo os conselhos que pessoas
experimentadas na palavra divina lhes derem (Cadogan, 1959, p. 19). Os
meninos terão ainda a oportunidade de rmar essa palavra divina no rito de
introdução do enfeite labial.
As crises da vida doenças, tristezas, inimizades, etc., são
explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora.
Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para “trazer de volta”,
“voltar a sentar” a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde. Ao insucesso
da terapia, assim como à apatia de alguns frente às crises, referem-se com
o termo ñemyrõ, que quer dizer “enfezar-se”, “car triste”, “só”. Assim
cam, por exemplo, as crianças que não passaram pelo ritual de iniciação na
onomástica tradicional do grupo. Carecendo de um dos enfeites essenciais
para viver, elas crescem sem escutar a ninguém e acabam, facilmente,
cometendo suicídio.
Finalmente, quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa
morre e torna-se um devir (-kue, -ngue), um não-ser, uma palavra-que-não-é-
mais (ñe’ẽngue, ãngue), um ex-lugar, que muitas vezes prefere-se esquecer,
fazendo de conta que ele nunca existiu. Evita-se falar na pessoa falecida,
seus pertences são exterminados, a casa onde morou abandonada, seu nome
esquecido. É como se evocar sua ausência fosse um gesto perigoso para os
vivos.
1.3.2 – A palavra-alma
Uma das associações mais freqüentes com a qual se costuma traduzir
os lexemas básicos (ñe’ẽ e ayvu) é palavra-alma, que é a palavra divina
e divinizadora. Na teologia cristã, “alma” é algo diferente de “corpo”; é
parte constitutiva do ser humano, mas não corpórea, dizendo-se que ela
se separa do corpo por ocasião da morte. Esse dualismo é devedor mais
58
ao pensamento helênico do que ao hebraico. Os termos guarani traduzidos
por “alma” se assemelham ao termo hebraico nephesh, que designa o
indivíduo integralmente. Alma é, nesse caso, o próprio “eu”. A palavra ã e
ãnga são os termos do guarani clássico com os quais se traduziu o conceito
incorpóreo “alma”, trazido pelos missionários. Mas os termos em questão
na associação palavra-alma são ñe’ẽ e ayvu, que podem ser traduzidos tanto
como “palavra” como por “alma”, com o mesmo signicado de “minha
palavra sou eu” ou “minha alma sou eu”.
Esse signicado também se encontra em nephesh de Jz 16.16b:
“apoderou-se da alma dele (dele mesmo) uma impaciência de matar” ou de
Ez 4.14b: “Senhor Deus! Eis que a minha alma (eu) não foi contaminada”.
A semelhança persiste se levarmos em conta que pneuma e ruah (vento,
espírito) algumas vezes denotam o princípio da vida conforme o comentário
de W. J. Cameron (Douglas I, 1979, p. 63). Assim, alma e palavra podem
adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-
palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como todo.
A criação da palavra original e dos que seriam pais e mães da
humanidade antecedeu à criação da primeira terra. No mito dos Mbyá, “criou
nosso Pai o fundamento da linguagem humana e a tornou parte de sua própria
divindade, antes de existir a terra (...) tendo reetido, profundamente, da
sabedoria contida na sua própria divindade, e, em virtude da sua sabedoria
criadora, criou aqueles que seriam companheiros e companheiras de sua
divindade” (Cadogan, 1959, p. 19, 21). Desse modo, a humanidade que
habitava a primeira terra é constituída “por” e “na” palavra, “por” e “na”
substância divina. Esse estatuto ontológico implicava a obrigação essencial
de permanecer conforme as normas enunciadas pelos deuses, isto é, existir
de acordo com sua própria natureza de humanos-divinos.
Hoje, distante dessa terra e dessa humanidade que se consubstanciava
com a divindade, a reminiscência da estada entre os divinos pode conferir à
palavra o poder de instaurar uma comunicação privilegiada e, aos humanos,
a coragem para pedir a restituição da sua verdadeira natureza de seres
destinados à totalidade acabada do bem viver, no coração eterno da morada
divina. A atitude dos indígenas, nesse sentido, é oposta à dos personagens na
saga bíblica das origens. Estes sentem a culpa por terem aspirado a ciência
de Deus; os indígenas, não; eles exigem que os Deuses lhes restituam o
saber (Cadogan, 1959, p. 19, 21). No pensamento guarani, a diferença
entre mortais e imortais não é incomensurável; a palavra é precisamente
59
sua medida comum, é a que leva os primeiros a desejarem a imortalidade
(Clastres, H., 1978, p. 88-89).
1.3.3 – Palavra como paradigma ritual
Aqui valeria considerar o que Pierre Clastres escreveu sobre a
linguagem, a propósito dos cantos ache-guajaki. Para o etnólogo francês,
existe “uma natureza dupla e essencial da linguagem que se manifesta
ora em sua função aberta de comunicação, ora em sua função fechada
de constituição de um Ego: essa capacidade da linguagem de exercer
funções inversas repousa sobre a possibilidade de seu desdobramento em
signo e valor” (Clastres, P., 1978, p. 87). Quando signo, ela se destina à
comunicação; quando valor, é um m em si mesma. Palavra primeira, mais
do que representação, ela não é morada e sinal, mas também é fonte e
sustentáculo do próprio ser das coisas; é linguagem original, força fundante
do próprio ser das coisas porque nela se originam todos os sinais. Palavra-
verbo, mais do que substantivo, ela não é o ser, nem o cria, porém o diz. Eis a
natureza autêntica da linguagem. Na apreciação de Viveiros de Castro, disso
são capazes os povos Guarani, de gerar um discurso ontológico poderoso
em direção a uma poesia e metafísica universais (Viveiros de Castro, 1987,
p. xxxi). Do mesmo modo, pode- se armar com Melià (1989, p. 309) que
esses povos, em todas as suas instâncias críticas, denem-se a si mesmo
“em função de uma palavra única e singular que faz o que diz, que, de
certa forma, consubstancia a pessoa”. Palavra-dança, mais do que dicção, é
movimento, paradigma ritual. Nas palavras de P. Clastres, é em si mesma
uma aliança com o sagrado, uma celebração .
No Antigo Oriente, “palavra” era usada menos como mediadora
do conteúdo signicante e mais no seu aspecto dinâmico, como poder e
potência criadores. Assim, no Primeiro Testamento, dãbãr (palavra) e
dibber (falar) se resumem no signicado de “palavra” e “coisa”, conforme
esclarece Gerleman ao estudar uma das duas raízes que compõem o termo
hebraico dbr (Jenni & Westermann I, 1978, col. 614). O substantivo dãbãr,
além de ser um conceito lingüístico portador de signicado, é também o
conteúdo mesmo, “palavra-coisa”, “o falado”, “a palavra”. Por outro lado,
nela também permanece sempre algo próprio da atividade do verbo: “(...)
designa sempre algo que pode dar ou ser ocasião de alguma ação, ou seja,
60
é ocasião, sucesso, acontecimento” (Jenni & Westermann I, 1978, col. 620-
621). Enquanto “palavra-coisa”, ela pode chegar a radicalizar a metáfora
até convertê-la numa hipóstase das virtudes e dos atributos divinos,
uma aparição histórico-religiosa, uma experiência de mitologização, de
objetivação e de dotação de vida a conceitos abstratos (Jenni & Westermann
I, 1978, col. 626).
Nesse sentido, para os profetas bíblicos, a palavra de Deus era uma
realidade tão material que eles a devoravam, observavam-na caindo como
se fosse um meteoro, como uma chuva ou como a neve sobre a terra: “O
Senhor enviou uma palavra contra Jacó e ela caiu em Israel” (Is 9.8);
“Assim como descem a chuva e a neve dos céus e para não tornam,
sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, (...) assim será a palavra
que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me
apraz” (Is 55.10-11). O que pode parecer uma duplicidade semântica, no
entanto, se dissolve se lembramos que, tanto no caso do guarani como no
do hebraico, a função ontológica e a função comunicativa da linguagem
devem ser compreendidas numa visão de mundo que não opõe o material
ao espiritual, o concreto ao abstrato ( Eliade, 1972; Sahlins, 1970, p. 28).
Como a ciência da religião vem mostrando, as experiências transcendentes
também emergem da realidade e integram o natural ao sobrenatural, a
verdade ao signicado, o temporal ao eterno.
1.3.4 – Palavra para ser vista e ouvida
Essa palavra exemplar se manifesta no mito, considerado a experiência
mais direta, autêntica, imediata e originária da realidade (Eliade, 1972;
Heidegger, 1997, Ricoeur, 1975, 1978). Nos povos chamados Guarani, o
mito aparece em rezas, hinos e relatos aprendidos de líderes religiosos que,
no passado, podem ter participado mística e excepcionalmente da palavra,
de um ato de contemplação. De modo que o “dizer” como elo entre o divino
e o humano não exclui faculdades como o “ver” e o “sonhar” do âmbito
das experiências espirituais.
35
Ouvir, hendu, e ver, hecha, originam, para
os indígenas, duas formas qualitativamente distintas de perceber a palavra.
Ohendúva são aquelas pessoas que escutaram a palavra da boca de outras
pessoas que elas reconhecem ser suas mestras. Ohecháva são aquelas
que viram a palavra, que não a aprenderam de alguém mas a receberam
por inspiração, às vezes em sonhos. A primeira experiência de palavra é
61
mediada, condicionada; a segunda é direta, incondicionada. Essas formas
de apreensão fundam dois tipos de experiências e de lideranças espirituais.
Para os indígenas, na verdade, todas as pessoas são portadoras em maior ou
menor grau das qualidades necessárias para se tornarem líderes espirituais.
A grande maioria as desenvolve no âmbito do ouvir; eles são os ohendúva.
Outros poucos se submetem a exercícios espirituais que lhes proporcionam
a oportunidade de desenvolver-se na palavra a ponto de poder contemplá-
la; são os ohecháva (Chamorro, 1995, p. 57s).
A experiência humana de poder ouvir e ver a palavra divina é possível
pelo fato de o fundamento da linguagem humana ser a própria substância da
divindade, porção da sabedoria criadora (Cadogan, 1959, p. 19). A palavra
é a justa medida para os mortais e os imortais (Clastres, H., 1978, p. 88-
89). Ayvu é substância simultânea do divino e do humano. E por poderem
apenas viver conforme sua própria substância, os seres humanos não têm
outra alternativa senão a de conformarem-se incessantemente à relação
original que os sujeita à divindade (Clastres, P., 1990, p. 27), numa sujeição
hipostática semelhante à que Paulo anuncia em 1Co 15.28, “(...) então o
próprio Filho se sujeitará àquele que todas as cousas lhe sujeitou, para que
Deus seja tudo em todos”.
Na avaliação de Pierre Clastres, o íntimo parentesco entre o ser humano
e sua linguagem parece subsistir, apenas, na humanidade primitiva. Para o
autor, isso quer dizer que “o discurso ingênuo dos selvagens” nos obriga
a considerar o que somente poetas e pensadores ainda não esqueceram,
que a linguagem não é um simples instrumento, que os humanos podem
caminhar com ela, e que “o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor
pelo excesso de uso a que a submete”. Entre os civilizados a linguagem
se tornou exterior; mas as culturas primitivas, “mais preocupadas em
celebrar a linguagem do que em servir-se dela, souberam manter com ela
essa relação interior que é, em si mesma, um poema natural em que
repousa o valor das palavras”. Não é uma agressão à linguagem; é, antes,
o abrigo que a protege (Clastres, P., 1978, p. 88). Nesse sentido, o canto de
alguns “selvagens”, precisa o autor, é na verdade um canto geral, “nele é
despertado o sonho universal de não mais sermos o que somos”. Por esse
sonho ser realizável apenas no espaço da linguagem, é o triunfo da palavra.
“Só ela pode realizar a dupla missão de reunir as pessoas e de quebrar os
laços que as unem”; ela se torna o mais-além, palavras ditas pelo que valem,
a terra natal dos deuses (Clastres, P., 1978, p. 88).
62
1.3.5 – A palavra indígena e o cristianismo
Não faltou quem testemunhasse pouca ou nenhuma originalidade na
palavra indígena. Branislava Susnik (1981, p. 146, 149; 1984-85, p. 83), por
exemplo, reconhece na “palavra dicção reza” dos povos chamados Guarani
um potencial desabafo psico-emocional, mas a considera um elemento
tardio na religião do grupo. Introduzida com a religião cristã, a palavra
teria conseguido se sobrepor ao sentir tradicional da dança, até convertê-la
em canto religioso. A respeito disso, embora eu não considere que seja de
fundamental importância saber a origem da arte da palavra entre os Guarani,
pretendo anotar algumas idéias a favor da origem ameríndia dessa arte.
No espírito pós-tridentino, que marcou a catequese seiscentista e a
missão nas Américas, é óbvio que os missionários não foram incentivadores
da palavra entre os índios. A linguagem cristã em guarani se limitou a
traduzir, para o idioma indígena, as formulações clássicas da doutrina e
piedade cristãs. Conceitos como Deus, Trindade e encarnação foram
vertidos para a língua guarani ignorando o que a palavra em si constituía
para o grupo. Por outro lado, que se levar em conta que, no começo
da implantação missionária (Ruiz de Montoya, 1892, p. 234, 271), muitos
líderes indígenas parodiavam a mensagem cristã (Lozano III, 1873. p. 212)
e que a eloqüência era uma das condições para exercer a liderança entre os
povos chamados Guarani e Tupi.
De forma especial, que se considerar que o jesuíta Antonio Ruiz de
Montoya, ao escrever sobre “palavra”, nos seus léxicos, somente ao tratar de
ñemoñe’ẽ e ñe’ẽ marãngatu apresentou exemplos de teor religioso-cristão.
Nos demais exemplos registrados pelo autor, confere-se uma capacidade
expressiva singular ao termo “palavra”, entre os indígenas reduzidos.
Vejamos alguns exemplos: “buscar a palavra” os Guarani o expressam
dizendo “jogar a palavra para frente”; “reetir antes de falar” é para eles
“jogar a palavra diante de si”; “falar com ternura” ou “pôr querer no que se
diz” é “vestir as palavras”; “ser mudo” ou “silenciar” é “comer as palavras”;
“palavra dura” é “a palavra que se trava na garganta”; “aturdir com palavras”
é “deixar o outro perdido”; “mentira” é “palavra gorda”; “resposta” é “a
palavra que encara”; “o sermão” é “tornar-se palavra”; “rogar” é traduzido
pela expressão alquímica ñe’ẽ marãngatu, “palavras capazes de transformar
63
o mal (marã) em algo bom (katu)” (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 246-249).
no período de estabelecimento das reduções, na obra do Pe. Nicolas
Restivo predominam sentenças religiosas do âmbito cristão para ilustrar o
uso do termo “palavra” em guarani. Semelhantemente, o sermonário do
índio Nicolás Yapuguay (1953) corrobora a idéia de que as reduções foram
lugares onde a palavra cristã encobriu a palavra indígena (Ruiz de Montoya,
1876c, f. 246-249) e não nascedouros da arte da palavra entre os indígenas,
pelo menos como a conhecemos hoje.
A poesia guarani atual mostra a capacidade polissêmica do termo
“palavra” para os indígenas. Nos cantos kaiová “a palavra tem cama”, “torna-
se uma or”, “é nova, primordial e recíproca”; “ela se senta nas pessoas”.
Quando enfurecida ou esquentada, “ela destrói”; quando esfriada, “traz
calma e paz”; quando ela se apaga, “a pessoa morre”. Semelhantemente,
para nomear certos objetos, os indígenas fazem uso de metáforas. Assim, a
fumaça do tabaco é “bruma mortal”, o cachimbo é “o esqueleto da bruma”,
a echa é “orzinha do arco” e a plantação é comparada a dedos que aoram
(emergem à superfície da terra). “Aqui a metáfora não é uma maneira de
dizer que mascare o sentido das coisas; ela é a única maneira de dizer o que,
em verdade, são as coisas” (Clastres, H., 1978, p. 87).
Como se verá melhor no capítulo quarto, nas religiões dos grupos
tupi-guarani, a palavra é geradora. A esposa de Karusakaive, herói mítico
munduruku, concebe seu lho sem relações sexuais, apenas por intermédio
da palavra (Zerries, 1964, p. 42). Entre os Uitoto, Moma se origina sem pai
nem mãe, foi criado por fórmulas mágico-religiosas. Seu nome é Nainuema,
objeto aparente, imagem da realidade. Todo o criado deriva-se dessa
“substância” imaginária, Naino (Zerries, 1964, p. 45-46). Semelhantemente,
para os Mbyá e para os Kaiová, nos seres humanos e em todo o universo
pulsa a palavra divina, que é fundamento de todo dizer e toda forma de
ser, ayvu rapyta. A partir disso, Cadogan chega à teoria da encarnação e da
concepção (pyrõ ñe’eng) da morte e da ressurreição (kangũe kue ambo-e-te-
ry jevy) do grupo (Cadogan, 1950b, p. 237, 243; 1959, p. 23-25). Segundo
o mesmo autor, tanto para os Aché como para os povos chamados Guarani
os termos “corpo” (tete, ete) e “nome” (téra, téry) – e portanto “palavra” –
têm a mesma procedência etimológica (Cadogan, 1965, p. 6), o que se opõe
radicalmente à associação que o “corpo” recebeu com “pecado”, segundo
registrado nos textos de doutrina (Restivo, 1892, p. 74).
Para encerrar este capítulo, e retomando os conceitos de identidade e
64
cultura referidos anteriormente, cabe reiterar que, ao armar que os povos
chamados Guarani tramam no âmbito da sua religião as experiências mais
signicativas que os ajudam a reorganizar e re-signicar os demais itens
da sua bagagem cultural não se tem em mente um panorama histórico-
antropológico “original” no qual eles teriam preservado, até hoje, um estoque
cultural herdado de seus antepassados. Invadidos pelo cristianismo e pela
civilização européia, eles assimilaram elementos culturais novos, recriaram
seu próprio modo de ser, que naturalmente também era possibilidade de ser.
Mas, ao contrário do que muitas vezes se quer dar a entender, esse processo
não foi tranqüilo nem livre de conitos. Com os principais momentos dos
levantes proféticos nessa etapa da história indígena ocupo-me no próximo
capítulo.
(Notas)
1 No âmbito de colonização espanhola, as línguas gerais foram objeto de decisão conciliar.
Assim, o Terceiro Concílio de Lima (1582-1583) ordena que aos indígenas sejam ensinados
as orações e o catecismo em sua própria língua: o náhuatl no México; o quéchua no Peru; o
guarani no Brasil e no Paraguai, até Santa Cruz da Serra (Tovar & Larrucea de Tovar, 1984,
p. 191).
2 Ruiz de Montoya, 1876c, A los padres religiosos. Em outras páginas, porém, Montoya
recomenda a seus companheiros que quem atentos para as diferenças dialetais entre os
Guarani reduzidos.
3 Dietrich, 1995, p. 290. Os brasileiros, porém, buscaram o lado indígena da sua origem
precisamente nos grupos tupi já exterminados ou prestes a serem exterminados. Exemplos
dessa mentalidade são o quadro “Moema”, de Victor Meirelles (1862), e a tela “O último
Tamoio”, de Rodolfo Amoedo (1883). Enquanto os índios vivos das outras regiões, por
essa época, continuavam sendo capturados e vendidos como escravos ou removidos de seus
territórios e concentrados em aldeamentos, esses quadros apresentam um mito de origem do
Brasil independente (Carneiro da Cunha, 1992, p. 135-140).
4 Segundo Melià (1993, p. 47), a proposição é infundada tanto histórica como
lingüisticamente.
5 Conferir a síntese de Noelli, 1993, p. 23s.
6 Para esse autor, o critério principal no estudo das línguas tupi e guarani não era a
65
classicação geográca mas a incorporação da análise lingüística (Guérios, 1935, p. 3;
Noelli, 1993, p. 26-27).
7 Segundo os cálculos aceitos por Wolf Dietrich, a porcentagem sobe a mais de 90%.
8 Grande parte dos estudos sobre esses grupos, porém, não tem aproveitado as fontes
lingüísticas disponíveis sobre eles. Prescinde-se dessa forma do que Aryon Rodrigues
considera ser a única fonte que reete a visão de mundo desenvolvida por um povo na sua
fala, a única porta de acesso ao conhecimento dessa visão de mundo que na língua se
expressa (Rodrigues, 1986, p. 27). Destacando a importância dos léxicos sobre o guarani
antigo, Bartomeu Melià considera que neles está implícita “a melhor etnograa guarani,
como ‘viviam-se’ eles mesmos na sua língua, lugar privilegiado em que se expressa a cultura
de um povo” (Melià, 1988a, p. 95).
9 No Brasil, sobrevive uma variação dessa língua com o nome de ñe’ẽngatu, no Amazonas,
mas sem a importância que lhe coube no passado. No Paraguai, desde o século XVII
desenvolveu-se uma variação do guarani antigo, que se caracteriza “por um forte substrato
latino-hispânico devido ao trabalho de reforma que os jesuítas realizaram sobre a língua e
ao uso que hoje se faz dela para expressar conceitos totalmente alheios à cultura indígena”
(Dietrich, 1977, p. 247).
10 Conferir a respeito os dados apresentados na introdução desta obra.
11 Agradeço a Francisco Noelli e a Jorge Eremites pelos comentários sobre esta parte da
obra.
12 Instrumento de folhas de palmeira. Cesto tubular extensível que servia para prensar a
polpa da mandioca (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 382).
13 Cabe observar que à aparente homogeneidade cultural no tempo e no espaço registrada
pela arqueologia e à suposta unidade lingüística contrapõe-se uma intensa fragmentação
político-territorial dos Guarani históricos, conforme as crônicas dos conquistadores. A
pergunta é se estaria se desenvolvendo, na época dos primeiros contatos com os europeus,
transformações políticas e sociais com o aparecimento de novos chefes, cujo prestígio teria
colidido com o dos antigos líderes, como sugerem Hélène Clastres (1978, p. 45-60) e Pierre
Clastres (1981, p. 102).
14 Embora as quantidades indicadas pelo autor para as variedades existentes de cada cultivar
precisem ser vericadas, a parte da sua dissertação que trata do manejo agro-orestal, da
coleta de plantas alimentícias e da obtenção de alimentos de origem animal é uma valiosa
contribuição para a etno-história guarani (Noelli, 1993, p. 263-373; 1994, p. 17-20).
15 Esses foram aproveitados, por exemplo, por Cabeça de Vaca, que desembarcou na costa
66
catarinense e, seguindo a trilha guarani, chegou por terra a Assunção.
16 Ruiz de Montoya, 1876c, f. 205. Entre os -guára ou lugares de procedência mencionados
no tempo da conquista constam nomes de rios ou de caciques: Cario, Carijó, Tobatim,
Guarambaré, Itatim, Paranayguá, Uruguayguá, Tape, Guayrá, Arechané, Caaró, Taruma,
Chiriguano e Chadul ou Guarani das ilhas (Melià et al., 1987, índice temático, e Susnik,
1982, p. 32-55 com variações). Sobre os controvertidos usos do termo, consultar o trabalho
de Maria Cristina dos Santos (Gadelha, 1999, p. 210s).
17 Cortesão I, 1951, p. 163. É provável, porém, que relatos como esses se restrinjam aos
Cario. Em outros grupos guarani parece ter sido a guerra a primeira forma de contato
com os conquistadores. Nesses casos, os europeus teriam tomado mulheres indígenas não
como símbolo de amizade com os indígenas, mas como sinal de submissão dos nativos aos
conquistadores.
18 Entre esses desencontros gura o mal entendido das alianças. Enquanto os indígenas
contavam com os espanhóis como aliados no combate a inimigos tradicionais, ou como
novos heróis-civilizadores que iriam zelar pela sua parentela, os europeus criaram instituições
que “visavam maximizar a exploração da mão-de-obra nativa” colocando sob ameaça a
liberdade e a identidade dos Guarani (Monteiro, 1992, p. 483).
19 Assim foram denominados os lugares onde os indígenas foram agrupados sob a liderança
de missionários cristãos que diziam ser seus evangelizadores, protetores e civilizadores. Cf.
Nota sobre a questão, no capítulo II.
20 Enquanto os jesuítas do Paraguai desde o início de sua missão se posicionaram, em base
às leis existentes, em favor dos indígenas e, portanto contra a prática dos colonizadores, os
inacianos do Brasil necessitaram um século para arrepender-se de seu papel de “aliciadores
de índios para os colonos”. Por seu papel de diplomáticos pacicadores dos indígenas
nessa primeira fase da sua missão, não se pode deixar de registrar que os jesuítas no Brasil
foram um dos principais fatores de extermínio indígena. Somente quando toda a costa
estava despovoada, eles passaram a intentar uma reconstrução da vida social dos indígenas
(Ribeiro, 1998, p. 55-56).
21 Consultando a entrada “montaraz” poderá vericar-se a expressão em sua forma não
abreviada: ka’ayguára, ka’apeguára (Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 99).
22 Os dados se baseiam, para o caso dos Guarani (Ñandeva, Chiripá) e dos Chiriguano,
numa projeção sobre a estimativa publicada em Aconteceu, 1984, p. 198-300; para os
Kaiová, em Povos Indígenas no Brasil, 2000, p. 11 e, para os Mbyá, em Povos Indígenas no
Brasil, 2000, p. 11 e em Fogel, 1998, p. 135. A localização desses grupos pode ser conferida
no Anexo V.
67
23 Estimativa da Asemblea del Pueblo Guarani, que representa as mais de 300 comunidades
guarani na Bolívia.
24 Censo Nacional Población y Vivienda del Paraguay (Dados coletados em 2002).
25 Instituto Nacional de Estadística y Censos en Argentina.
26 Estimativa do Conselho Indigenista Missionário baseado em dados da Funasa.
27 Consultar a respeito da situação no Mato Grosso do Sul a dissertação de Antonio Brand
(1993).
28 A mesma sorte coube aos Kaiová do Mato Grosso do Sul. O Decreto N°. 8799 de 9 de
dezembro de 1882 concedeu a Thomas Laranjeiras e à “Companhia Erva-Mate Laranjeiras”
licença para explorar os ervais, afetando boa parte das aldeias kaiová daquela região (Silva,
1982, p. 16s; Chamorro, 1995, p. 41s).
29 Consultar a respeito Garlet, 1997.
30 Relacionamento com os outros de um modo geral (Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 72),
com seus vizinhos e com os forasteiros (Ruiz de Montoya, 1876aI, p. 136, II, p. 133), com os
inimigos (1876aI, p. 133, 134; 1876aII, p. 263) e com os indígenas considerados selvagens
(Ruiz de Montoya, 1876c, f. 338, Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 185).
31 Nos lugares onde os Guarani vivem em pequenas reservas cercadas por cidades ou até
mesmo como “desaldeados“ das cidades, a consciência do oréva tende a restringir-se ao
âmbito de uma família extensa, que muitas vezes não reside no mesmo local.
32 E não deve ser difícil compreender por que não escolheram a guerra. Nesse sentido,
quanto às ênfases distintas nos estudos sobre os Tupi da costa e os Guarani, Monteiro aponta
dois motivos principais: a abordagem dos autores que identicam “guerra” com os Tupi
e “religião” com os Guarani – e a projeção etnográca. Segundo ele, como a guerra deixou
de existir há muito tempo entre os Guarani, projeta-se sobre os grupos do passado com eles
aparentados o modo de ser religiosos dos Guarani modernos. No caso dos Tupinambá, como
eles desapareceram com a guerra ainda nos séculos XVI e XVII, não há o que se projetar do
âmbito etnográco para o passado (Monteiro, 1992, p. 481).
33 O fato acontecia em grande escala a ponto de um ocial do Santo Ofício referir-se ao
Paraguai como o “Paraíso de Maomé”. Em 1550, treze anos depois da fundação de Assunção,
já havia 3.000 crianças mestiças na cidade.
34 Segundo os cálculos aceitos por Silvia M. Schmuziger Carvalho, nessa guerra, dois terços
da população paraguaia foi exterminada. Morreram 606 mil pessoas de um total de 800 mil
habitantes. Dos 194 mil sobreviventes, 180 mil eram mulheres. Dos 14.000 sobreviventes
68
masculinos, 9.800 tinham menos de dez anos, 2.100 menos de vinte e 2.100 mais de vinte
(Carvalho, 1992, p. 470).
35 Entre os Mbyá se constata uma ênfase no “ver” e na inspiração onírica da palavra;
entre os Kaiová e os Guarani (Ñandeva, Chiripá), a experiência da palavra é mais no âmbito
do “ouvir”.
69
2 – PROFECIA:
VOZES DE PROTESTO CONTRA A MISSÃO
Contra o monólogo da pregação cristã, que pressupunha não haver
sujeitos do outro lado da cruz, os indígenas se levantaram com seus cantos,
suas profecias e suas críticas à missão, armando-se como sujeitos de vida
religiosa. Mesmo registrados pelo conquistador, tais discursos revelam o
outro silenciado pela prepotência de uma religião e de uma cultura que
se autocompreendiam universais. É com esses registros que trabalho neste
capítulo, onde quero, em primeiro lugar, mostrar a maneira como líderes
guarani, nos séculos XVI e XVII, contradisseram os missionários cristãos
e, em segundo lugar, considerar a pergunta que os pró-diálogos, contidos
no discurso indígena, fazem ao cristianismo, que hoje enfrenta a urgente
necessidade de reavaliar suas denições e práticas teológicas.
2.1 – A liderança guarani - karai e pa’i - entre a cruz e a espada
Ao contrário do que geralmente se apresenta na historiograa do Rio
da Prata, o período colonial está cheio de descontentamentos e movimentos
de resistência, especialmente depois da instituição das encomiendas,
1
em
1556. De todos os lados surgiram homens, mulheres e até crianças que
desestabilizaram a colônia falando “em nome de Deus”, o que, de acordo
com a carta do clérigo Martín González, teria ocorrido porque os indígenas
viram não haver m para seus trabalhos (Cartas de Indias, 1877, p. 626).
Hernando Arias de Saavedra, então governador do Paraguai,
compreendeu, nessa situação que, se a espada estava fracassando, a cruz
poderia salvar a colônia e, renunciando aos meios militares, propôs o envio
de missionários que reduzissem os selvagens pela pregação religiosa (Garay,
1942, p. 55-56). Para atingirem seus objetivos, uma das intervenções dos
franciscanos, a partir de 1580, deu-se no sentido de substituir os cantos
que, segundo pensavam os padres, caracterizavam a religião dos Guarani
(Molina, 1954, p. 521). Menos de trinta anos depois, os jesuítas também
entenderam ser essa sua missão. Não se pode esquecer, contudo, que a missão
70
foi realizada primeiramente de forma itinerante
2
e depois por redução.
3
Os conitos irrompidos durante o processo de conquista espiritual realizado
por redução pelos jesuítas intensicaram o forte discurso reivindicatório
do lado indígena. Nesses discursos caram registrados o que podemos
chamar de pró-diálogos ou intenções de um diálogo que até hoje ainda não
aconteceu.
São muitos os documentos nos quais os padres registraram que os
indígenas eram de “boa disposição para o evangelho”. Porém, em vista
às intenções deste trabalho, ocupar-me-ei com os movimentos de caráter
religioso através dos quais alguns indígenas, que tinham uma “má vontade
4
para com o Evangelho” e que eram considerados “inimigos capitais dos
ministros evangélicos”, conforme consta nas cartas do Pe. Cardiel (Furlong,
1953, p. 130), zeram frente à missão cristã.
5
Antes de passar a relatar esses
movimentos, gostaria de precisar alguns aspectos da liderança guarani.
Cronistas da conquista, como o Pe. Lozano, atestam que os Guarani
eram governados por caciques e feiticeiros ou magos (Furlong, 1953, p.
130). Etnólogos atuais também são relativamente unânimes quanto à
existência de dois tipos ou conceitos de liderança, uma civil e outra religiosa,
na organização social dos Guarani.
duas noções de chea em luta virtual: a religiosa, de fundo essencialmente
carismático, (...) e a civil, nas mãos do capitão, chefete mais ou menos
despótico de toda a aldeia (Schaden, 1974, p. 98).
Os Chiriguanos organizam sua aldeia ao redor de um chefe, capitão ou
mburuvixa, eleito entre os melhores homens da aldeia (...). O mburuvicha
de cada rancho é o coordenador das ações nesse domínio, ele acalma o
ambiente, nivela a palavra. Além desta autoridade a comunidade conta com
outra igualmente importante, a do xamã ou ipaje (Riester, 1986, p. 265).
Havia dois tipos de chefes entre os Guarani. Um deles exercia seu poder
principalmente em virtude das relações de parentesco (...) (como) pai de
linhagem. Por outra parte, havia ‘chefes-xamãs’ que (...) suplantaram com
freqüência os chefes hereditários mediante a demonstração de poderes
mágicos excepcionais (Necker, 1990, p. 30).
O líder civil (pa’i) era pai de linhagem ou da família extensa e
passou para a história sendo designado pelo termo arawak “cacique”. Por
sua vez, o líder religioso (karai) referido nas crônicas como feiticeiro,
mago e chupador,
6
entre outros nomes, foi denominado pelos etnólogos
de xamã.
7
71
Via de regra os missionários, particularmente os jesuítas, deram-se
muito bem com os pa’i e muito mal com os karai. Os pa’i forneciam gente
e mão-de-obra para as reduções e colocavam à disposição dos padres seus
conhecimentos topográcos e sua condição de pai de parentela. Sem sua
colaboração as reduções teriam se tornado inviáveis, como bem notou Ítala
Becker.
Eram cada vez milhares de pessoas, movendo-se centenas de quilômetros,
em fuga precipitada, com famílias e bens para se instalar numa terra virgem
desconhecida. O que teria sido dessas populações sem os seus caciques!
Os missionários sozinhos mais dicilmente venceriam esta tarefa (Becker,
1992, p. 13).
No terreno espiritual, porém, os missionários tentavam banir qualquer
vestígio de poder indígena.
8
Os karai eram líderes carismáticos, muitas
vezes itinerantes, que atuavam sobretudo em períodos de crise. Eram eles,
como consciência crítica do grupo, que percebiam o mal na terra e lutavam
contra ele. Eles resistiam aos desaos insolúveis da vida, como certamente
lhes pareceu ser a primeira fase da missão cristã. os pa’i representavam
uma liderança que se destacava nas questões civis e militares. Sabendo atuar
com diplomacia, eles se deixaram reduzir com suas famílias, quando, entre
os ataques de bandeirantes e encomenderos, vericaram que as reduções
eram o lugar menos ruim que lhes restava.
Conforme a conjuntura, no entanto, reconhecia-se o poder de um
cacique sobre o de outros. Esse cacique principal cava incumbido de
promover a solidariedade entre as várias famílias e de expandir a consciência
exclusiva, (oréva, “nós” que exclui a segunda pessoa) para a inclusiva
(ñandéva, “nós” que inclui a segunda pessoa), de modo que toda uma
unidade sócio-regional pudesse enfrentar unida determinados problemas
que afetavam a vida das comunidades. Como no âmbito de competência
civil, em tempos de crise reconhecia-se também a autoridade de um karai
extraordinário que, pelo seu carisma, tornava-se um karai dos karai. Ele
tinha trânsito livre nos povoados e sua benevolência era pleiteada pelos
pa’i de toda a região. De um modo privilegiado, esse karai era o dono da
palavra, e isso o amparava a armar-se na região como um enviado para
falar. Com o poder de seus discursos, conseguia a adesão de várias famílias
extensas às suas convocações festivo-cerimoniais. Essas famílias eram
animadas a abandonar a terra cansada e a procurar uma terra boa, virgem.
72
Nesse sentido, o karai também transformava a consciência do grupo do
exclusivo oréva para o inclusivo ñandéva.
Convém ter em mente, porém, que, às vezes, uma única pessoa
podia acumular as virtudes de pa’i e de karai
9
e que, via de regra, um pa’i
precisava de um mínimo de virtude xamânica para ser respeitado, acudir
terapeuticamente a grande família e mantê-la coesa. Em outras palavras,
não lhe bastava ter força convocatória sem força invocatória, o que de
certa forma confere com as sínteses etnológicas sobre as sociedades tribais
no sentido de, nelas, a economia, a política e a religiosidade não estarem
organizadas separadamente (Sahlins, 1970, p. 27-28).
Voltando ao papel desestabilizador que teve o discurso religioso
indígena, convém salientar que muitos karai tiveram um notável poder
de mobilização contra a colônia e a missão, tanto no âmbito das unidades
familiares como no das unidades sócio-regionais. Seus discursos incitavam
à resistência e, com seu poder, chegaram a desestabilizar a colônia e
conseguiram dicultar a vida dos missionários. Os karai profetizaram
contra a colônia, pela ameaça que suas instituições representavam ao etos
indígena. Foi o caso dos Itatim, dos Paraná e dos Guarambaré, que se
libertaram dos espanhóis, e dos Cário, que abandonaram Assunção e fugiram
para as matas distantes. Na ocasião, os espanhóis, sediados em Assunção,
perderam o controle de uma boa parte do Paraguai e, com isso, a esperança
de enriquecer (Necker, 1990, p. 36). A resistência guarani se intensicou
à medida que os europeus aumentaram a exploração e corromperam as
instituições do yanaconato
10
e da encomienda. Pode-se dizer que, se
não fosse a intervenção religiosa dos franciscanos, primeiramente, e dos
jesuítas, mais tarde, o colonialismo no Rio da Prata teria tomado outros
rumos, se não sucumbido. Foi a cruz dos padres, com as armas dos colonos
na retaguarda, que chegou para apaziguar os ânimos dos índios.
A reação dos Guarani diante dos seus “redutores” parece paradoxal.
Com os franciscanos, que foram incumbidos de desbaratar a resistência
indígena frente às encomiendas, deu-se uma adesão pelo carisma, ou seja,
uma identicação direta dos missionários com os xamãs indígenas (Necker,
1990, p. 50-54). o acercamento entre os jesuítas e os grupos guarani
esteve minado de conitos, apesar de os lhos de Loyola terem militado
contra as encomiendas, contra os encomenderos, contra os bandeirantes
11
e
contra toda forma de escravização dos indígenas.
Este trabalho pretende mostrar que todos os movimentos de libertação
73
posteriores às reduções tiveram como núcleo gerador uma profecia indígena
contra o missionário “redutor” de indígenas, pois ele personicava a ameaça
concreta que pesava sobre os grupos guarani, nos lugares em que a colônia
e o colonizador “secular” tinham pouca inuência. Ou seja, os profetas
interpretaram o perigo de seu tempo e reagiram contra ele.
2.2 - De como os líderes indígenas contradisseram a pregação cristã
A “contradição” é um elemento comum nos levantes indígenas
comentados neste capítulo. Chamo assim o ato de falar ou de agir através
do qual os líderes indígenas armavam o contrário do que lhes era ensinado
pelos cristãos, ou seja, é o ato pelo qual os líderes negavam o que os
missionários armavam ser verdade indiscutível. Contradizer é dizer o
contrário, é opor-se a outro através da palavra, é tentar - através dessa
palavra que opõe - destruir o outro sujeito no campo da linguagem, disputar
ou desfrutar com ele a função de ser sujeito. Ao arrolar esses levantes,
tento oferecer uma visão de conjunto desse gênero de resistência entre os
Guarani.
2.2.1 - Os primeiros enfrentamentos
Os enfrentamentos dessa fase ocorrem no âmbito da colonização
liderada por autoridades “seculares”, onde os religiosos tinham uma
presença menos autônoma e/ou mais esporádica, em oposição à colonização
liderada exclusivamente por religiosos, como foi o caso dos jesuítas, em
cujas reduções os indígenas tiveram uma convivência longa e sistemática
com a religião cristã e com seus representantes.
Entigura e o contrabatismo
Em 1545, longe de Assunção, o xamã Entigura, procedente da costa
brasileira, com um grupo de indígenas, cantava e dizia que “fazia cristãos”
pela prática do contrabatismo (Documentos Históricos ... II, 1941, p. 416).
Esse rito, bastante difundido, consistia no rebatismo com o intuito de
contraverter os efeitos e atributos do batismo cristão. Como os Guarani
praticavam – provavelmente antes de serem missionados um rito
74
semelhante, o de nominação de crianças, não é estranho que tenham cado
particularmente sensíveis ao batismo cristão.
A pregação de um menino
Na carta de 5 de julho de 1556, o clérigo Martín Gonzáles relatou
um movimento ocorrido, provavelmente, na região de Assunção, no qual
levantou-se um menino, que anunciava o contrabatismo e se dizia Deus ou
lho de Deus. O clérigo sugeriu que o levante era resultado da servidão
a que eram submetidos os índios encomendados e mostrou-se apreensivo
com a possibilidade de movimentos como aquele se multiplicarem.
Temos notícia de que entre os índios levantou-se um deles com um menino,
armando ser Deus ou lho de Deus e que com essa invenção eles retornam
a seus cantos passados, aos quais são inclinados por natureza e por causa dos
quais, como é sabido, em tempos passados, muitas vezes eles se perdiam,
porque enquanto duram esses cantos, eles não semeiam nem param em suas
casas, mas como loucos, de noite e de dia, outra coisa não fazem senão cantar
e dançar, até que morrem de cansaço (Cartas de Indias, 1877, p. 632).
O movimento terminou com o castigo de alguns “culpados”.
Obera, Guyraro e Guyraca e o retorno aos ritos tradicionais
Em 1577, iniciou-se uma série de rebeliões. Os Tobatim, nucleados em
Yeruquisaba e Tanimbu, sublevaram-se contra a autoridade de Luis Osorio
Quiñones, que temporariamente substituía o governador Juan de Garay.
Os Guarani do Rio Jejui, encomendados aos moradores das imediações de
Assunção, por sua vez, voltaram aos seus “costumes idólatras profanando
o santo batismo”. Osório Quiñones enviou uma tropa para enfrentar os
rebeldes.
Dando continuidade à contestação generalizada daquela década, em
torno de 1579, na região de Guarambaré, ao norte de Assunção, Obera,
cacique batizado cristão, liderou uma série de rebeliões contra a exploração
colonial e a favor da reanimação dos ritos tradicionais. Sua história é
conhecida basicamente através dos hendecassílabos de Martín Barco de
Centenera (1602), poeta e sacerdote chegado a Assunção na expedição de
Juan Ortiz de Zárate, em 1575, e testemunha ocular do caso. Obera dizia
ser lho verdadeiro de Deus, nascido de uma virgem.
75
Obera, como digo, se chamava,
que soa resplendor em castelhano:
no Paraná grande este habitava,
o batismo tinha de cristão:
mas a fé prometida não guardava,
que com bestial desígnio a Deus, tirano,
seu lho disse ser, e concebido
de virgem, e que virgem o há parido (Angelis III, 1969, p. 297).
Nestes versos, Obera aparece como pregador da liberdade:
Deixando pois sua terra e próprio assento,
ele veio nestes pagos propagando,
e já não restam índios nenhum lado
que não sigam sua voz e seu comando.
Com sua pregação e seu conselho
a terra se vai toda levantando,
não acudindo já ao serviço que soia,
pois liberdade ele a todos prometia.
Mandou-lhes que cantassem e dançassem,
de sorte que outra coisa não faziam,
(...) (Angelis III, 1969, p. 297).
Esse líder indígena era rodeado de muitas concubinas e secundado
por seus lhos. Um deles, Guyraro, era seu “papa” ou “sumo pontíce”,
a quem cabia apagar os nomes que a toda sua nação tinham imposto os
cristãos e colocar, com novo batismo (rebatismo), novos nomes, segundo
seus antigos ritos (Lozano III, 1873-75, p. 212). O nome, como se verá
melhor em outro capítulo, é, para os Guarani, uma espécie de uido vital
capaz de inuenciar de fora para dentro a pessoa. Ao remover os nomes
cristãos, Obera e seus assistentes esperavam estar devolvendo aos indígenas
sua natureza original. O outro lho, Guyraca, era seu “imperador e rei” e
devia castigar os delitos.
Obera e seus paisanos cantavam e dançavam dia após dia. Mas não
faziam apenas isso: chegaram a construir um forte, zeram uma grande
convocação e sacricaram uma novilha, cujas cinzas lançaram ao vento.
Com essa “supersticiosa cerimônia”, queriam signicar que, como a cinza
se dissipava pelos ares, assim tinham eles de dar m a todos os cristãos e
triunfar sobre os espanhóis (Lozano III, 1873-75, p. 223; Angelis III, 1969,
p. 310-311). Em sua propaganda anticolonial, Obera não arrebanhou
76
indígenas da sua região como também quatro mestiços, um deles lho de
português, que o seguiram e aderiram às suas reivindicações proféticas
(Ángelis III, 1969, p. 315).
Obera e seus seguidores foram perseguidos e o movimento terminou
com a morte do “rei e imperador” Guyraca, enquanto o líder do movimento
e seu “sumo pontíce”, Guyraro, fugiram sem deixar rastro. Aos seus
seguidores não restou outra alternativa a não ser voltar a servir aos seus
encomenderos (Lozano III, 1873-75, p. 229).
Em 1589, nos povoados de Acay, Tebicuary e Ybyturuzu, “certos
cantores”, com seus cantos e ritos, afastavam os cristãos do serviço divino.
Quem registrou esses acontecimentos foi Alonso de Vera y Aragón, então
Tenente Governador de Corrientes. Ele escreveu que os indígenas, “por
causa de certos cantores, que com seus cantos os levavam a celebrar algumas
cerimônias e ritos, afastavam-se do serviço de Deus e não vinham a servir
a seus encomenderos” (Aguirre, 1947, p. 173).
2.2.2 - Durante a implantação das reduções jesuíticas
12
A experiência reducional de Juli, no Peru, levou os missionários
jesuítas a colocarem as seguintes condições para a fundação das reduções
entre os Guarani: (1) estudar cuidadosamente as línguas indígenas; (2) não
fundar reduções perto dos povoados dos espanhóis, nem dentro deles; (3)
não aceitar nas reduções indígenas que anteriormente tenham estado sob o
cuidado catequético dos encomenderos
13
; (4) pregar o Evangelho a índios
que não estavam sujeitos a ninguém e (5) aproximar-se deles sem soldados,
como haviam entrado no Japão (Ap. Carbonell de Masy, 1992, p. 36s).
Nas primeiras décadas desse processo, que durou um século e meio,
os levantes indígenas contra a missão se tornaram rotineiros. Já no período
de fundação das reduções e no tempo não menos crítico dos primeiros
anos de drásticas mudanças na forma de vida indígena, os missionários
enfrentaram várias manifestações xamânicas contra a pregação cristã.
Um grande pregador de mentiras
Em torno de 1613, perto da redução de Loreto, na Frente Missionária
do Guairá,
14
um “ministro do demônio”, “grande pregador de mentiras”,
desmentia os ensinamentos dos sacerdotes cristãos.
77
Andava em miso de povoado em povoado, enganando aquela pobre gente e
dizendo de si mesmo que era Deus, o Criador do céu, da terra e dos homens.
Armava que ele dava as chuvas e as tirava, fazia que os anos fossem rteis,
mas (...) sob a condição de não o aborrecerem (Ruiz de Montoya, 1985, p. 50).
Por ordem do cacique Maracanã, amarraram-no a uma pedra e o
jogaram no rio (Del Techo II, 1897, p. 222).
Miguel de Atiguaje: vinho de milho e torta de mandioca na
eucaristia
Atuava na mesma frente, incluindo a redução de Santo Ignacio de
Ipaumbucú, à margem esquerda do Rio Paranapanema, o cacique e xamã
Miguel de Atiguaje que, pretendendo ser sacerdote,
vestia-se de talar e larga capa coberta de vistosas plumas, andava
acompanhado de um coro de magos, e celebrava seu nefasto culto diante da
plebe, cujo afeto ele conquistava; por outro lado incitava o ódio contra os
missionários (Del Techo II, 1897, p. 224).
Montoya o considerava um “verdadeiro ministro do demônio”, mas
não lhe desmerecia a eloqüência, fato que o tornara “senhor daquela gente”;
para ter maior crédito ainda entre os seus, Atiguaje se ngia sacerdote.
Vestia-se ele, em seu retiro, duma alba e, adornando-se com uma capinha de
plumas vistosas e de outros enfeites, simulava estar celebrando missa. Punha
sobre uma mesa algumas toalhas e em cima delas uma torta de mandioca e
um vaso, mais que pintado, com vinho de milho, e, falando entre os dentes,
fazia muitas cerimônias, mostrava a torta e o vinho ao modo dos sacerdotes
e, por m, comia e bebia tudo. Veneravam-no com isso seus vassalos como
se fosse sacerdote (Ruiz de Montoya, 1985, p. 57).
Miguel de Atiguaje era pai de uma vasta parentela e gozava de muito
prestígio entre sua gente. Diego de Torres, na carta ânua de 1613, referiu-se
ao eloqüente indígena dizendo que “desacatou muito os missionários e sua
doutrina, burlando-a e exaltando os costumes dos antigos” (Cartas Anuas
I, 1927-29, p. 327). Com suas prédicas ele chegou a perturbar e rebelar os
ânimos de seus vassalos contra os missionários.
“Foram os demônios que nos trouxeram estes homens, pois querem, com
novas doutrinas, privar-nos do que é antigo e do bom modo de viver de nossos
78
antepassados. Tiveram estes muitas mulheres, muitas criadas e liberdade de
escolhê-las a seu bel-prazer, sendo que agora pretendem que nos liguemos
a uma só mulher. Não é justo que isso continue assim, mas impõe-se que os
desterremos de nossas terras ou que lhes tiremos as vidas”. Ao se dirigir aos
padres, depois de pouquíssimas palavras de saudação, transformou-se ele
em besta feroz e prorrompeu em gritos: “Vós não sois sacerdotes enviados
de Deus para nosso remédio (e bem)! Sois, pelo contrário, demônios do
inferno, mandados de seu príncipe para a nossa perdição! Que espécie de
doutrina é esta que nos trouxestes? Nossos maiores viveram com liberdade,
tendo para seu bem as mulheres que queriam, sem que ninguém nisso os
estorvasse, com as quais viveram e passaram os seus dias com alegria. Vós,
no entanto, quereis destruir as suas tradições e impor-nos uma carga tão
pesada, como é a de atar-nos com uma mulher (...). Já não se pode agüentar
a liberdade dos que, em nossas próprias terras, querem levar-nos a viver
segundo sua ruim maneira de vida!” (Ruiz de Montoya, 1985, p. 58)
Mais tarde, depois de ter prometido decapitar os missionários,
Miguel de Atiguaje se ajoelhou na frente deles e, de mãos postas, implorou-
lhes o perdão de Deus. Mas os jesuítas descobriram seu ngimento. Ele
nunca despediu realmente sua manceba, como dissera; (...) “sempre viveu
mal, sendo que assim morreu”(Ruiz de Montoya, 1985, p. 61); na selva;
“condenando-se a um desterro voluntário e à perda de sua autoridade, morreu
abandonado nos bosques, acompanhado apenas de uma mulher desprezível,
exemplo eloqüente do prejudicial que é sempre a sensualidade” (Del Techo
II, 1897, p. 226).
Taubici burla o padre e suas admoestações
Ainda por volta de 1613, inicialmente na Frente Missionária do
Guairá e depois na Frente Missionária do Uruguai, o índio Taubici,
originário de um povoado distante 20 léguas da Redução de Santo Ignacio,
dedicou-se a confundir neótos na religião cristã. Tendo-se mostrado amigo
dos missionários, deve ter usufruído de boa fama nas reduções. No dia de
Corpus Christi, porém, contra a vontade do padre, ele se pôs a caminho,
rumo a sua aldeia de origem, acompanhado de muita gente, “fazendo burla
e chacota do padre e de suas admoestações e ameaças” (Ruiz de Montoya,
1985, p. 50). No entanto, como o sacerdote havia alertado os inimigos de
Taubici sobre sua missão de fuga, Taubici foi morto por eles, perto de seu
povoado.
79
Paytara dizia ser “Deus ressuscitado”
Em 1616, nos povoados de Pitún, Ypané e Guarambaré, o Santillo
15
Paytara, batizado Diego Pazai, revelou-se como “Deus ressuscitado”,
invocando, para ganhar credibilidade, o falecido cacique Tanimbuguasu,
com quem supostamente conversava na selva, pelo ventre de uma índia
grávida, que seria a mãe do cacique reencarnado. Os discursos de Paytara
sublevaram as três aldeias mencionadas. O visitador capitão Pedro Hurtado
de la Puente registrou as declarações dos caciques Pedro Guarambare e
Pedro Tamba sobre o ocorrido. Segundo eles, o Santilloconclamou os
demais índios a irem às matas matando vacas, cachorros, porcos e todo tipo
de animais introduzidos pelos espanhóis. Na mata eles testemunhariam sua
façanha diante de Tanimbuguasu, que havia ressuscitado (Aguirre, 1949-
51, p. 343).
Entre cantos e danças, Paytara apregoava a seus seguidores que a lei
cristã não era a verdadeira e lembrava-lhes os bons tempos, quando todos
viviam conforme seus costumes antigos. Além do mencionado, Paytara
ordenou a perfuração do lábio e a troca de nomes e de mulheres (Aguirre,
1949-51, p. 343; Azara, 1904, p. 14, 17-18). Do m que levaram, sabe-se
apenas que fugiram para as matas.
Um mago, sua mulher e um escravo como “Deus em três pessoas”
Dois anos mais tarde, aproximadamente, apareceu na Frente
Missionária do Guairá um “mago”, acompanhado de uma mulher e de um
escravo. Vinha do Brasil. Vestia uma capa de plumas e dizia ser Deus em
três pessoas, pois através do seu hálito tinha dado o ser ao seu escravo e,
com ele, criado a moça que os acompanhava, com a qual tanto o mago
quanto seu escravo se uniam carnalmente. O mago dizia ser todo-poderoso
podendo, com seu hálito, “aniquilar o mundo e voltar a criá-lo” e, como
o verdadeiro senhor da morte, das mulheres e das colheitas, ameaçava
asxiar com sua respiração os neótos e missionários. Foi seguido pelas
pessoas mais simples, conforme os registros, mas logo foi preso e açoitado
durante três dias. Depois disso, desmentiu sua prédica (Del Techo III, 1897,
p. 16-18).
A peste e a fome pelas quais passavam os neótos estimulou esses
“subversivos” vindos do Brasil e outros profetas a convencerem os índios
de que a razão de tantas mortes era o batismo cristão. Em conseqüência,
as pessoas começaram a se afastar dos padres, a impedir que seus lhos
80
fossem batizados, a tentar apagar o batismo e a se refugiar nos montes.
Juan Cuara e o medo diante do batismo cristão
Em torno de 1625, o índio Juan Cuara, batizado no Guairá, refugiou-se
na redução franciscana do Itati, na região do Paraná, depois de ter conseguido
escapar da forca a que fora condenado em Assunção. Sua atuação se deu
nas Frentes Missionárias do Guairá, do Paraguai e do Uruguai, sempre em
defesa da tradição guarani, com um discurso anticolonial e antimissionário.
Andava com sete concubinas e exortava sua gente dizendo:
(...) vivei (...) segundo os antigos costumes, (...), celebrando a memória
dos antepassados, não adoreis as imagens dos santos; tomai-me por vossa
divindade; se não zerdes isto, farei que vos convirtais em sapos e rãs (Del
Techo III, 1897, p. 178).
Juan Cuara avaliou muitas das novidades culturais às quais os
Guarani estavam expostos na missão. Na sua opinião, os missionários eram
inimigos jurados dos índios, o sal do batismo era um veneno e o óleo do
crisma uma mancha. A conssão não passava de uma maneira de saber da
vida alheia, adorar imagens de santos não era uma boa prática e a monogamia
era uma forma de evitar que os índios se propagassem - tornando-os mais
vulneráveis à dominação. Juan Cuara instava os índios da redução, que
se dirigiam todas as noites a seu esconderijo para escutá-lo, a deixarem de
freqüentar os sacramentos, a tratarem os missionários com insolência e a
voltarem a viver conforme seus antigos costumes, tendo cada um quantas
mulheres pudesse alimentar. A ameaça constrangedora com que angariava
a obediência de seus seguidores era que, se não o obedecessem, seriam
convertidos em sapos e rãs.
Juan Cuara foi um opositor ostensivo da evangelização cristã.
Foragido por muito tempo, nalmente foi preso e conduzido a Assunção,
onde foi condenado à forca (Del Techo III, 1897, p. 177-178).
Sacerdotes e sacerdotisas como oráculo da Santíssima Trindade
Perto da redução de Encarnación, na Frente Missionária do Guairá,
nos anos 1625-6, os jesuítas enfrentaram um movimento encabeçado por
“sacerdotes e sacerdotisas” que se consideravam custódios e oráculos
dos ossos de três “magos” ressuscitados que, na ocasião, supostamente
“viviam em carne, do mesmo modo que em vida antes de morrerem (Ruiz
81
de Montoya, 1985, p. 104). No comentário de Nicolás Del Techo (IV, 1897,
p. 75), o fato foi registrado como adoração de cadáveres de três magos “em
lugar da Santíssima Trindade”.
Através de seus oráculos, os três magos pregavam que os missionários,
embora ministros de Deus, deviam se sujeitar aos sacerdotes indígenas;
diziam também que dar ouvidos aos ensinamentos dos padres ocasionava
pestes e que o sal exorcizado era veneno. Portanto, os índios deviam fugir
das igrejas cristãs, destruir as cruzes e freqüentar os templos indígenas nos
montes.
O demônio, valendo-se dos feiticeiros, fez com que os índios cristãos
se negassem a entrar na Igreja e a escutar a palavra divina; os gentios, a
receber o Batismo e a admitir que seus lhos fossem batizados. Os indígenas
derrubaram as cruzes e fugiram dos missionários, a quem antes amavam
(Del Techo IV, 1897, p. 71-72).
Por temer a represália dos padres ou por saber de suas maquinações,
uma das ossadas ameaçava através do oráculo:
levai-me daqui, (...) porque aqueles homens maus vêm buscar-me e colher-
me, sendo com a intenção de queimar-me! Tirai-me pois depressa daqui, e
eu, se eles me maltratarem, farei cair fogo do céu, para consumi-los! Farei,
outrossim, que cresçam as águas e inundem a terra. E convocarei ainda a
meus amigos, os de São Paulo, para que vinguem a injúria que me zeram
(Ruiz de Montoya, 1985, p. 106).
Ruiz de Montoya escreveu que, por causa dessa situação na redução,
os missionários enfrentaram grandes diculdades pois, “estando a semana
inteira o povoado fervendo de gente, somente aos domingos quando com
a voz de muitos toques de sinos queríamos juntar o povo para o sermão da
missa, desaparecia todo o mundo” (Ruiz de Montoya, 1985, p. 104). De
fato, homens e mulheres, inclusive os encarregados da catequese, aderiram
ao movimento (Del Techo IV, 1897, p. 71-76). O culto celebrado nas capelas
construídas no cume dos montes para os ossos destes xamãs consistia em
um agitamento “epiléptico” dos homens, que também discursavam, e na
reverente custódia do fogo pelas mulheres (Del Techo IV, 1897, p. 73).
Quando os padres descobriram os ossos, queimaram-nos na praça da
redução, não sem antes admoestar severamente os índios e oportunizar-lhes
o arrependimento. Os líderes do movimento fugiram.
82
Zaguacari e sua rara eloqüência
Entre 1625 e 1631, na serra de Ñuatingui, na mesma redução onde
havia ocorrido o episódio “dos ossos”, Zaguacari se fez respeitar como
xamã e o povo chegou mesmo a tê-lo por Deus. Conforme Montoya, era ele
de corpo monstruoso mas de boa cabeça e rara eloqüência, capaz de seduzir
através de sua natural retórica a todos quantos o ouvissem. Indígenas da sua
região e os de lugares distantes muitas léguas dali, inclusive os que serviam
aos espanhóis e eram considerados “cristãos antigos”, “todos vinham ter
com ele quase que em romaria”. Zaguacari dizia ser doador das chuvas,
dos bons tempos e das colheitas. Os índios chegavam a dizer aos padres
que Zaguacari era sinônimo de sustento. Os missionários, com muita tática,
atraíram-no para a cristã e deszeram o respeito com que o povo lhe
brindara expondo ao ridículo seu corpo disforme. Depois o batizaram com
o nome de João (Ruiz de Montoya, 1985, p. 146-148).
Um cacique grande feiticeiro e o desejo de sujeitar os padres
Na redução de Encarnación, na Frente Missionária do Paraná, entre
1626-7, foram registrados pelo Pe. Nicolás Mastrillo Durán os feitos de
um “cacique grande feiticeiro” que profetizava a iminente sujeição da terra
com seus habitantes ao domínio indígena. Segundo sua profecia, os padres
serviriam aos índios com a mesma prestatividade com que estes serviam
àqueles.
Não faltou entre eles um cacique grande feiticeiro que usou de artimanhas
para rebelar os índios contra os padres. (...) Ele profetizava que logo
viria o tempo em que os indígenas se apoderariam de toda aquela terra e
sujeitariam a seu poder todos seus moradores, inclusive os mesmos Padres,
que passariam a servir aos índios (...), como estes agora serviam aos Padres
(Cartas Anuas II, 1927-29, p. 270).
Ao ser descoberto pelos padres, o dito cacique foi castigado duramente
e se arrependeu.
Na mesma carta, o Pe. Durán dá a entender que muito mais indígenas
do que se pode hoje saber “guerrearam”, através do poder de sua palavra,
contra a missão por redução.
Houve mil diculdades para reduzir os índios daquele lugar (...), quem
mais se opôs ao nosso trabalho foi o famoso feiticeiro (Yvyraro
16
) temido
(...) em toda a região do Rio Paraná e do Uruguai (...). rendido este (por
83
meio de outro índio dos mais valentes que tenho conhecido), veio a mim (o
demônio) com outros tão rebeldes como ele. Para angariar sua simpatia, lhes
z algumas dádivas, mas eles as desprezaram. Um índio me falou com tanta
arrogância e liberdade, que me vi forçado (...) a fazer-lhe frente e mostrar-
me severamente indignado (Tradução aproximada do original nas Cartas
Anuas II, 1927-29, p. 280-281).
Outra Índia como Santa Maria e um feiticeiro
Nos mesmos anos e na mesma Frente, “outra Índia do Paraná”, da
redução de Santa Maria do Iguaçu, apresentou-se aos padres dizendo que
ela era “a mãe de Deus” e, portanto, a padroeira da redução do Iguaçu. Os
índios, por temê-la, resistiram à idéia de entrar para a redução. Eis como se
refere a ela o missionário:
Não contento com isso, levantou o demônio outra Índia do Paraná, que se
opôs a nós. Ela entrou onde nós estávamos dizendo que era a mãe de Deus a
cujo amparo tínhamos colocado a redução desde o princípio (Cartas Anuas
II, 1927-29, p. 281).
na Frente Missionária do Uruguai, em 1627, o padre Nicolás Durán
anota que um “feiticeiro”, secundado por outros companheiros, começou
a pregar que os padres eram inimigos mortais dos índios e que queriam
destruir a terra. Mais resignado que seus colegas, ele não foi tão rigoroso
com os indígenas, admitindo que eles participassem da missa, da doutrina,
das rezas e das orações. Foi, porém, intransigente contra a conssão, pois
acreditava que dessa prática se aproveitavam os padres para conhecer as
intenções alheias.
Satanás para enganar esta gente (...) levanta alguns destes feiticeiros mais
afamados para serem adorados como se fossem Deus. (...) tido como por sumo
sacerdote ou papa (...), (o feiticeiro do Uruguai) lhes recomenda freqüentar
a doutrina e rezar as orações que lhes ensinam os padres, porém que (em)
nenhuma outra coisa lhes obedeçam (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 364).
Guyravera e Checavi: grandes inimigos da missão cristã
Voltando ao Guairá, por aquela mesma época, encontramos na região
de Tayaobá “uma bela porção de feiticeiros” (Ruiz de Montoya, 1985, p.
110). Um deles, Guyravera, reconhecido como “grande” pelos próprios
jesuítas, era de ânimo arrogante, considerava-se senhor daquela região, e
todos os que navegavam o rio do lugar tinham que pagar-lhe tributo (Cartas
84
Anuas II, 1927-29, p. 370). Com seus seguidores, ele foi, sem dúvida, um
grande opositor à missão cristã. Dele também foi dito ser o mais nocivo
dos magos, amigo do diabo e aborrecedor de Deus (Cortesão I, 1951, p.
290). Guyravera se considerava “deus e grande sacerdote”, “criador do
céu e da terra”. Diante dele os jesuítas eram apenas “padres pequenos”. O
grande mago “sem parar deitava bênçãos a modo episcopal”, inspirado pelo
demônio, comenta o autor da Conquista Espiritual (Ruiz de Montoya, 1985,
p. 123). Quando o cacique Aperondi se converteu, Guyravera o procurou
tentando persuadi-lo a não se manter nessa decisão e a juntos procurarem
extirpar o mal que aigia seu povo. Advertia-o “que se eles deixassem
crescer a autoridade de um sacerdote estrangeiro, rapidamente os caciques
seriam escarnecidos por seus vassalos, enquanto que, se tirassem a vida do
Pe. Mazeta, os indígenas cariam livres dos males que eram iminentes”
(Del Techo IV, 1897, p. 35).
A insatisfação no Tayaobá se propagou aderindo-se a ela muitos
outros feiticeiros, dos quais Checavi foi dos mais valentes e “zeloso amigo
do serviço de seu deus Guyravera (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 350).
Sobre Guyravera ainda se dizia que matava os índios que o visitavam
para enviá-los como embaixadores ao céu. O fato é que ele ameaçou de
morte o próprio Pe. Montoya, mas fracassou. Acabou se convertendo,
conforme consta numa carta de 1630 (Cortesão I, 1951, p. 344-345), e se
desconvertendo a seguir. Fugiu e foi assassinado por ladrões (Del Techo IV,
1897, p. 72).
Ñesu e Potirava, o assassinato do Pe. Roque González
Nas reduções de Todos os Santos do Caaró e Assunção do Ijui, na
Frente Missionária do Uruguai, no ano 1628, Ñesu, instigado pelo cacique
Potirava, frustrou a causa missionária a que se dedicara a ponto de merecer
o título de Chefe da Província do Paraguai (Del Techo III, 1897, p. 221-
223) e acabou encabeçando um dos mais trágicos confrontos da religião
indígena com a religião cristã: a chacina do Pe. Roque González e de
seus companheiros. No registro do Pe. Montoya, Potirava aparece como
“um índio mau”, “apóstata da fé”, que conquistou a vontade do cacique
cristianizado Ñesu, com o seguinte arrazoado:
Vejo que se vai perdendo a liberdade antiga de se andar por vales e selvas! É
porque estes sacerdotes estrangeiros nos amontoam em povoados. Isto não
se faz em nosso bem, mas para que ouçamos uma doutrina tão oposta aos
85
ritos e costumes de nossos antepassados. E tu, Ñesu, se abres os olhos hás
de notar que começas já a perder a reverência devida a teu nome! Porque, se
os tigres e as feras desses bosques te estão sujeitos, fazendo coisas incríveis
em tua defesa, amanhã te verás sujeito - como o vês em outros - à voz
daqueles homens adventícios. As mulheres de que gozas à nossa usança e
que te amam, amanhã verás que elas te aborrecem, sendo feitas mulheres de
teus próprios escravos. Diante disso, que ânimo poderá haver tão forte, que
sofra tal afronta?
Volve os olhos por todos esses povos, em que o pouco juízo de seus moradores
fez ncarem o esses pobres homens, e verás diminuído seu poder!
deixaram de ser homens e agora são mulheres sujeitas à vontade estrangeira.
Se este mal não se atalha aqui e tu te rendes, então verás toda essa gente que
mora neste lugar até o oceano, a despeito teu e por tua desonra, sujeita a eles.
E tu, que és o verdadeiro deus dos ventos, te verás miserável e abatido. Tem
tudo isso um remédio fácil, se aplicares teu poder em tirar a vida a esses
pobretões (Ruiz de Montoya, 1985, p. 197-198).
A conversão não impediu que Ñesu continuasse exercendo suas
virtudes xamânicas, pois sua reação não se fez esperar. Com seu manto de
plumas e sua coroa de xamã, disse para seus companheiros:
É justo que eu esteja às ordens de um miserável adventício? Perderei o direito
de gozar de belas mulheres? Não, enquanto me ajude com a macaná;
17
em
mim está o poder para remediar os males que me ameaçam antes que se torne
impossível afastá-los; há que se cortar a cabeça do mal para que todo ele seja
extinto. que se tirar (em primeiro lugar) a vida ao Pe. Roque González,
que com sua eloqüência faz o que quer com os índios, e (depois) aos outros
jesuítas. Tal é minha decisão irrevogável: se não me ajudais, me porei a voar,
e subindo ao céu mesclarei os elementos, lhes enviarei pestes, destruirei as
sementeiras, e incitarei as feras para que os despedacem; em uma palavra,
enviarei toda sorte de calamidades (Del Techo III, 1897, p. 222-225).
Muitos líderes aderiram à sua convocação. Depois de matarem os
padres Roque González e Alonso Rodrigues, no Caaró, seus companheiros
foram a Ijui para matar o Pe. Juan del Castillo. A morte dos padres foi
seguida por destruição de templos, altares, breviários, cálices e outros
paramentos rituais. Ñesu, para mostrar-se sacerdote,
revestiu-se dos paramentos litúrgicos do padre e com eles se apresentou ao
povo. E fez trazer em sua presença as crianças, nas quais tratou de apagar
com cerimônias bárbaras o caráter indelével, que elas pelo batismo tinham
impresso em suas almas. Raspou-lhes as pequenas línguas, com que haviam
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saboreado o sal do espírito sapiencial. O mesmo fez-lhes no peito e nas
costas, para borrar os santos óleos, que as tinham prevenido para a luta
espiritual (Ruiz de Montoya, 1985, p. 201-202).
Em suas prédicas, Ñesu deixava claro que o Deus dos missionários
era só Deus dos espanhóis e contrário ao Deus dos antepassados indígenas.
Por isso deveria ser destruído, junto com os padres, as igrejas, as cruzes e as
imagens. As virtudes xamânicas de Ñesu eram conhecidas em toda a região
do Caaró. Esse líder foi grande defensor da poliginia e do antigo modo de
ser, do tempo em que somente se ouviam o som da maraca dos homens e
do bastão de ritmo das mulheres. Com suas ameaças angariou a veneração
de homens e mulheres que o seguiram. Mas seu projeto de extermínio não
prosperou e Ñesu acabou fugindo para os bosques.
Convém lembrar que, entre 1628 e 1631, a região do Guairá passou
por constantes e devastadores ataques dos bandeirantes paulistas e que,
durante esses anos, os informes dos missionários deram mais ênfase a esses
fatos do que à resistência indígena à redução.
Ybapiri e o anúncio da derrota dos jesuítas
Na redução dos Apóstolos, na Frente Missionária do Uruguai, em
1632, o xamã Ybapiri se autoproclamou “verdadeiro deus”. Dele cou
registrado nos documentos:
Vestiu as roupas sagradas que usava o Pe. Roque González quando celebrava
missa e levando um pedaço de cálice (no pescoço) (...) ngia ser a divindade
(Del Techo IV, 1897, p. 96).
Ybapiri vestia paramentos rituais como se fosse celebrar uma missa e
era secundado por um discípulo que seguia articiosamente os padres. Em
suas prédicas, o profeta anunciava a morte de todos os cúmplices dos jesuítas
por lhe negarem a divindade pretendida. Expressava seu descrédito pelo
batismo cristão e seu discípulo ameaçava de morte os atingidos pela epidemia
de varíola. Proibia-lhes que comungassem. Os neótos se encheram de pavor.
Ybapiri foi seguido por familiares, aos quais ele armou para a luta. Foi vencido
duas vezes pelos índios favoráveis aos padres e acabou se convertendo, mas
não permaneceu na fé cristã (Del Techo IV, 1897, p. 95-98).
Apycabyja e um cacique do Itatim, “que os missionários abandonem
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a terra”
Nas cartas ânuas de 1632-34 sobre a redução de São Carlos, da
Frente Missionária do Uruguai, Apycabyja foi retratado como índio de
natureza altiva, orgulhosa e insolente que, com “a eloqüência de sua língua,
a severidade do seu semblante e a gravidade do seu trato se fazia temer e
reverenciar pelos outros” (Cartas Anuas 1632-34, 1984, p. 168). Embora ele
tivesse convidado padres para entrarem em sua terra, não vivia conforme a
doutrina cristã. Sua resistência foi descrita como hábitos de um animal não
domesticado: “não deixava domar sua dura cerviz e a cada passo sacudia
o jugo dando budos de sanha contra quem queria amansar-lhe” (Cartas
Anuas 1632-34, 1984, p. 168).
Na mesma carta se faz menção a um dos principais caciques do Itatim,
que reagira às admoestações do padre dizendo-lhe com muita determinação
e dureza que voltasse para sua terra de origem porque os índios não iriam
admitir outro modo de ser que não fosse o de seus avós. “Disse-lhe que ele
também era sacerdote e que saberia propor a palavra de Deus aos índios e
que portanto desocupassem a terra” (Cartas Anuas 1632-34, 1984, p. 94).
Jeguacaporu e Tajuvái e os planos de eliminar todos os sacerdotes
Na mesma Frente Missionária, na redução de Jesus Maria, os padres
registraram que muito trabalho lhes causou um célebre feiticeiro chamado
Jeguacaporu. Desejosos de conquistá-lo, os missionários lhe enviaram
alguém que poderia dissuadi-lo em favor da missão (Cartas Anuas II,
1927-29, p. 556). Jeguacaporu percebeu a intenção dos estrangeiros e
contestou:
Entretanto, como queres tu que eu, que sou deus e senhor de todo o criado,
formador dos raios e causador da vida e da morte, me sujeite a ir visitar uns
estrangeiros pobretões, os quais, a meu despeito e meu descrédito, apregoam
a esta gente bárbara que existe um Deus, achando-se este no céu?! Sou
eu esse (deus), que eles, com ignorância pregam em meu desfavor. Por
isso tomarei vingança e porei um remédio a esses males, matando a todos
estes sacerdotes, para que terminem os embustes, com que levam em seu
seguimento os ignorantes! E tu, por que tão cegamente te deixaste enganar?!
(Ruiz de Montoya, 1985, p. 230).
Jeguacaporu conseguiu reunir vários outros xamãs e caciques na sua
empreitada de eliminar os sacerdotes. Entre os que aderiram se encontrava
Tajuvái, que tinha fugido da reclusão a que lhe destinara o Pe. Cristóbal.
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Refugiado na mata, Tajuvái começou a falar mal dos padres dizendo que
eles “tinham vindo para perturbar a paz, dividindo os mesmos índios
em bandos, reprovando os costumes voluptuosos de seus antepassados e
tirando-lhes tudo” (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 561). Segundo Montoya,
Tajuvái fez aos seus “um longo arrazoado, cuja matéria vinha a ser a de
ele abonar-se a si mesmo e sua doutrina própria, bem como desmentir a
do padre e desautorizar o modo de viver dos cristãos, que se rebaixavam
em deixar suas mulheres, sujeitando-se a um ensino estrangeiro”. Mais
precisamente, o índio foragido teria dito: “Vede o exemplo que eu mesmo
vos dou! Vede como ando desterrado através daquele sacerdote, e como
se acha desacreditada a usança antiga de nossos antepassados!” (Ruiz de
Montoya, 1985, p. 231)
Fiéis a Jeguacaporu, Tajuvái e seus companheiros enfrentaram seus
adversários e começaram matando o Pe. Cristóbal. Os índios favoráveis ao
missionário reagiram e decidiram vingar a morte do sacerdote, matando
seu assassino principal, Tajuvái. Jeguacaporu “cou com gosto na boca”,
pois “lhe atalhou os passos a sua morte desditosa”, diz Montoya, referindo-
se aos planos do xamã de eliminar todos os sacerdotes (Ruiz de Montoya,
1985, p. 237). Jeguacaporu morreu, mas “seus companheiros” cuidaram de
esconder o fato e prosseguir seus planos.
Chemboete, Vaipiri e a corporação de xamãs
Uma verdadeira corporação de xamãs, formada por doze magos, o
substituiu. Esses seguidores construíram templos, nos quais reuniam as
pessoas para fazer-lhes pregações, e imitaram os ritos sagrados dos cristãos,
como a simulação do batismo e a imposição de nomes.
Não lhe faltaram herdeiros em seus embustes e magias. Construíram eles
igrejas, nelas colocaram púlpitos, faziam as suas práticas e chegavam
a batizar. Era esta a fórmula de seu batismo: eu te desbatizo! E com isso
lavavam todo o corpo dos batizandos (Ruiz de Montoya, 1985, p. 237).
Em outros registros, na ocasião do batismo, o ociante dizia: “Lavo-
te para retirar de ti o batismo que te deram”. Em suas prédicas os xamãs
incluíam ameaças apocalípticas aos que recebessem a religião cristã e aos
que, tendo-a recebido, não a detestassem. Era iminente a ruína dos cristãos:
seriam devorados por tigres e por outras feras, que chegariam em bandos para
fazer estragos nas reduções, começando pelos vaqueiros, pelos remadores
18
89
e pelos carpinteiros. É uma alusão a atividades que signicaram um modo
de ser estranho para os Guarani.
Os xamãs diziam também terem visto monstros que viviam nas
entranhas da terra, de colossal tamanho e terrível aspecto (Cartas Anuas
II, 1927-29, p. 573-588). Anunciavam também uma invasão de ratos, o
que de fato aconteceu, chegando um tropel deles “arruinando tudo o que
tinham plantado para o sustento” (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 287). Nessa
ocasião, os habitantes da redução abandonaram o povoado e “foram em
busca de comida nas roças de suas terras antigas, onde a praga não havia
chegado, custando muito trabalho aos padres fazê-los retornar à redução”.
Motivo: “os feiticeiros perverteram os indígenas com seus embustes para
que de forma alguma voltassem à redução”. Os padres tentaram reconquistar
os índios oferecendo-lhes “facas, anzóis e outras coisinhas”. Os que não
retornaram atraídos por esses presentes o zeram sob a ameaça “que lhes
zeram alguns dos mais valentes que acompanhavam o padre, de queimar-
lhes as casas senão se reduzissem” (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 288).
A revolta cresceu e, além dos doze magos, juntou-se ao grupo um
séquito de 700 guerreiros e cantores-dançadores. Contavam com os xamãs
Chemboete e Vapiri, entre outros. À congregação de xamãs juntou-se
depois uma mulher, que é descrita por Montoya como alguém de “estatura
extraordinária de gigante”, fato que “lhe conferiu o atrevimento de fazer-se
deusa do sol,
19
da lua e dos demais planetas, cuja luz estava sob seu domínio.
Instava a que se destruíssem os pueblos
20
de cristãos, prometendo ela
tirar-lhes a luz durante o conito, mas deixando aos seus luz clara” (Ruiz
de Montoya, 1985, p. 237).
Os profetas indígenas pregavam com cantos e danças o m da
religião dos padres. A ameaça dessas prédicas provocou um alvoroço quase
incontrolável nas reduções, pois ela afetava tanto os convertidos - com o
anúncio do inferno cristão - como os que estavam em processo de conversão
- com o anúncio dos fantasmas das cavernas e a derrubada de colunas.
Homens, mulheres e crianças abandonavam as reduções para seguir os
líderes indígenas. Os jesuítas não podiam mais car indiferentes diante da
sistemática diminuição de índios cristãos nos povoados. Por ordem do Pe.
Diaz Taño, organizou-se uma tropa para acabar com a revolta dos seguidores
de Jeguacaporu, antes que a mesma acabasse com a obra missionária. Da
redução de Santa Maria vieram 110 índios; de São Cristóvão, 96; de São
Joaquim, 50 e mais alguns recém-convertidos, totalizando o “exército da
90
fé” em torno de 500 homens. Por deliberação de Montoya, os padres não
participaram da tropa. Na batalha que se seguiu, os feiticeiros mais notáveis
foram mortos e os outros tomados como prisioneiros. A pedido de alguns
caciques, mais tarde esses prisioneiros foram enviados para reduções mais
antigas, pois apresentavam perigo aos neótos das reduções do Uruguai e
do Tapes (Del Techo IV, 1897, p. 369-373; Dos Santos, 1988, p. 149).
Um feiticeiro, Chemombe e Ñamandu e a valorização do antigo
No ano de 1635, ainda na redução de Jesus Maria, um feiticeiro escondido
na mata dizia ser senhor das enfermidades e das pestes. Como a “peste de
câmaras” causava a morte de muita gente, os indígenas temiam e adoravam
o feiticeiro. Mas este tamm acabou se enfermando e morrendo do mal de
câmaras”, após ter sido socorrido e batizado pelos padres da Companhia
(Cortesão III, 1969, p. 280; Cartas Anuas II, 1927-29, p. 590-591).
Na redução de San Francisco Javier del Tobatin, na Frente Missionária
do Uruguai, no ano de 1635, o “ministro do diabo” Chemombe desceu do
norte, “onde estão os viveiros dessa gente pestilencial”. Camuou a sua
vinda dizendo que era para ouvir a palavra de Deus, mas logo “reuniu em
torno de si a gentalha” do povoado que, “para tratarem as suas coisas com
segurança”,
21
ergueram-lhe uma casa um tanto afastada (Ruiz de Montoya,
1985, p. 190). Em suas prédicas, Chemombe instava seu povo a valorizar
seu antigo modo de ser.
Vivamos ao modo dos antepassados! Que razão têm os padres em acharem
mal o termos mulheres em abundância?! É decerto loucura que, deixados
os costumes e o bom modo de vida de nossos maiores, nos sujeitamos
às novidades que estes padres querem introduzir! O melhor remédio que
descubro para esse mal é tirarmos a vida a este padre (Ruiz de Montoya,
1985, p. 190).
Muita gente reduzida aderiu à pregação de Chemombe, mas o plano
do “profeta” fracassou. Descobertos pelos índios dos padres, muitos de seus
seguidores ngiam não ter qualquer envolvimento com a revolta, enquanto
os responsáveis se escondiam na mata, “levando consigo a escória humana
daquele ‘povo’, acompanhada de grande multidão de crianças, que iam com
as suas mães” (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 707-708; Ruiz de Montoya,
1985, p. 190-191).
Na mesma época, 1935-6, um outro xamã procedente do Brasil,
91
Ñamandu, chegou à redução de São Carlos, na Frente Missionária do
Uruguai. Sua prédica consistia em cantos e danças e julgava que, por esses
meios, converteria os padres e reduziria os índios a bestas. Conforme a carta
ânua do Pe. Romero, escrita em 3 de abril de 1636, Ñamandu era lho de
um xamã considerado um grandíssimo velhaco e embusteiro. Juntamente
com seu pai, ele causou graves inconvenientes para a redução, como a fuga
de indígenas reduzidos, que passaram a fortalecer as las da oposição. Os
padres tentaram de várias formas pôr m a “aquela ladroagem” perniciosa,
mas “de modo algum puderam reduzir àquele velho mau (Ñamandu) e aos
que o seguiam” (Cortesão IV, 1970, p. 298).
2.2.3 - Quando os jesuítas começaram a estabelecer-se
À medida que as reduções adquiriam estabilidade, os levantes indígenas
foram cando cada vez mais esporádicos, chegando a desaparecer no século
XVIII. Somente na frente do Itatim eles continuaram dicultando a pregação
cristã. Vejamos os poucos que foram registrados entre 1640 e 1735.
Ñanduavusu e um escândalo no templo
Na redução de Santa Fé, da Frente Missionária do Itatim, houve ainda
graves perturbações entre 1644 e 1645. O líder indígena Ñanduavusu atiçou
o ânimo da populão contra o governo da Companhia. Os jestas foram
insultados com palavras e houve quem chegasse a ser agredido sicamente
pelos índios. Ñanduavusu reagiu a uma repreensão do padre dizendo-lhe
que “desejava transmitir às gerações vindouras os costumes das gerações
passadas”, enquanto seu sobrinho armava um escândalo no templo ao propor
ao povo que se sublevasse e que abandonasse a doutrina dos padres por ser
contrária à tradição. Os ouvintes aderiram e se retiraram do templo, cando,
com isso, extremamente desgastada a autoridade dos padres, a ponto de o
povo não fazer mais caso algum deles. Foi então que os jesuítas decidiram
seqüestrar o cabeça da revolta, juntamente com sua família. “Clandestinamente
apoderaram-se de Ñanduavusu, de um lho e de dois sobrinhos seus, e os
levaram a Yapeyu, última redução do Uruguai, distante 200 léguas, exilando-
os ali para que o fugissem facilmente”. Em conseência, a igreja voltou a
ser freqüentada e os índios substituíram suas “danças e amores desonestos”
por “bons costumes” (Del Techo V, 1897, p. 270).
92
Forasteiro de “remotos países”, Guyrakeray, Mboroseni e Tucambi
Nessas imediações, um outro caso foi compilado por Nicolás del
Techo para sua Historia de la Provincia del Paraguay de la Compañía de
Jesús. Um “certo índio”, chegado de “remotos países”, em abril ou maio de
1645, com suposto “objetivo de comerciar”, é apontado como o detonador
de mais uma rebelião contra os padres da Companhia. A missão do Itatim,
numa das tentativas de alcançar indígenas que moravam à margem direita
do Rio Paraguai, enviou o experiente Pe. Romero para fazer o primeiro
contato com os chefes da população. Era sabido que a tarefa seria difícil,
dada “a multidão de adivinhos e prófugos das reduções que moravam
naquela comarca” e a chegada do missionário acabou coincidindo com a de
uma dessas temidas pessoas, Guyrakeray (Del Techo V, 1897, p. 273).
Casualmente, naquele ano, chegou procedente de remotos países, com
objetivo de fazer comércio, certo índio com um sobrinho seu. O Pe. Romero
o instruiu nos mistérios da cristã, lhe ofereceu presentes e lhe rogou
vivamente que procurasse a conversão dos seus paisanos, pelo que seria
recompensado (...). Guyrakeray concordou aparentemente com o plano,
mas na realidade fez o contrário. Aconselhou seus compatriotas a declarar
guerra ao novo povoado e, conseqüentemente, à religião cristã (...). Quando
retornou à sua terra atiçou o ânimo dos indígenas contra o padre Romero
(Del Techo V, 1897, p. 277).
Em conseqüência, muitos indígenas começaram a se opor à fundação
de povoados cristãos.
Um dos opositores foi Mboroseni, que fora preso em outros tempos
pelos bandeirantes, dos quais conseguiu escapar, e que passou a viver com
várias concubinas perto da redução de Santa Maria de Fé. Ele dizia ser
uma divindade, repartia cruzes de ministros de igreja e varas de alcaide
aos índios. Em suas prédicas, confrontava os índios com o modo de ser
tradicional e com a vida reduzida, ameaçando com sua cólera os que se
deixassem reduzir e pregando a liberdade indígena de permanecer, entre
outras coisas, na poligamia, nas bebedeiras e nas guerras.
Companheiros, estamos na beira do abismo e ao lado da felicidade. O
primeiro, se adotamos a religião estrangeira; o segundo, se a rejeitamos.
Fácil é saber o que nos convém. (...) O intento dos sacerdotes estrangeiros é
93
reunir os índios que andam errantes, imbuir-lhes mil superstições e xá-los
em reduções. Impõem leis severas aos conversos, lhes proíbem a pluralidade
de mulheres e até os principais precisam se contentar com uma velha. Vedam
em absoluto a embriaguez, o homicídio, o andar solto e os prazeres sexuais.
22
Não acrediteis que se trata apenas de palavras. Olhai Ñanduavusu, cacique
do Itatim, condenado com sua gente a perpétuo desterro. Comparai tal
miséria com a liberdade que gozamos nós e com a que desfrutaram nossos
antepassados (...). Sede fortes agora no começo, não seja que com o tempo e
a indústria dos inimigos o mal careça de remédio. Sirvam de exemplo tantos
neótos (...) que, ainda que quisessem, não podem se livrar do jugo. Onde
quer que a nova religião aprisiona as almas, cam os corpos sujeitos a dura
escravidão (Del Techo V, 1897, p. 278-279).
Referindo-se ao triste m que coube a Ñanduavusu, Mboroseni
criticava a piedade enérgica que os jesuítas adotaram com os Itatim, com o
intuito de conseguir pelo impacto de um seqüestro coletivo o que não lhes
foi possível alcançar com palavras de amizade e com ameaças, como
tivemos oportunidade de vericar.
Para cortar o mal pela raiz, Guyrakeray continuou derramando bílis
e veneno contra a Companhia (...) e não parou até que deixou preparada a
conjuração” (Del Techo V, 1897, p. 279). Tramada a conspiração, o chefe
escolhido, Tucambi, armou quarenta guerreiros e com eles partiu à procura
do Pe. Romero, “ngindo que seu objetivo era receber o batismo”. Após
a tragédia, os conjurados repartiram entre si os ornamentos sagrados do
sacerdote. O número de seguidores de Guyrakeray chegou a dezenas, mas
pouco tempo depois acabaram se dispersando (Del Techo V, 1897, p. 283-
286).
Rodrigo Yaguariguay, sua mulher e sua lha, uma imitação da
Trindade
Entre 1660 e 1661, no povoado de Arecayá, junto ao Rio Jejui,
Rodrigo Yaguariguay, índio batizado, tornou-se corregedor
23
do povo
e, acompanhado de sua mulher e lha, proclamou-se “deus pai” e às
mulheres que o acompanham “Santa Maria” e “Santa Maria la Chica”,
respectivamente. Em suas prédicas abominava a prática da conssão e
incentivava a subversão dos indígenas reunidos em povoados. Muitos índios
cristianizados de Arecayá e de Tobati e muitos “monteses”
24
o seguiram.
Juntos atacaram e sitiaram a casa do governador, tiraram a vida de quantos
espanhóis puderam e forçaram os demais à fuga. “Com certa fórmula, casava
94
os índios a seu bel prazer”, implantou uma espécie de teste que consistia
em usar “lavatórios de cascas e folhas de árvores” para certicar-se a que
nível de deterioração chegaram seus costumes (Lozano III, 1873-75, p.
333-360). O castigo dos cabeças da revolta em Arecayá foi o enforcamento
dos caciques e do próprio “corregedor” indígena do povoado, bem como a
redução dos membros das cento e setenta famílias restantes em Arecayá ao
estado de “yanaconato”.
Convém lembrar que essa revolta foi a última resistência coletiva dos
Guarani, no nal do século XVII (Gadelha, 1988, p. 74). Nela transparece
a complexidade da reação indígena. Os revoltosos emprestaram do
cristianismo alguns símbolos para validar sua luta, mas o levante em si
não combatia somente o cristianismo e as reduções, pois se dirigia também
contra o sistema colonial e seus modos de produção.
Com relativa certeza, pode-se dizer que nem todos os movimentos de
resistência guarani foram registrados e que, no auge dos levantes, nem tudo
pôde ser especicado. O Pe. Diego de Boroa, por exemplo, na carta ânua de
Nicolás Mastrillo Durán, em 1628, escreveu:
Por causa da persuasão dos feiticeiros (feita) com tanta determinação,
os índios deixaram suas casas e plantios para fugir e distanciar-se de nós
(Cartas Anuas II, 1927-29, p. 286).
o Pe. Claudio Royer, em 1628, fala em mais de 40 feiticeiros,
“instrumentos do diabo”, e de índios que abandonaram as reduções
voltando às suas antigas sementeiras por instigação desses feiticeiros que
os pervertiam com suas mentiras (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 287-288).
Também Diego de Boroa registra, entre as pragas padecidas na redução de
San Carlos del Caapi, “os embustes dos feiticeiros mais perniciosos (...) por
haver nela maior canalha destes infames ministros” (Cartas Anuas 1632-
34, 1984, p. 226). Desse modo, os episódios aqui descritos são apenas uma
amostra da voz profética dos indígenas diante da missão cristã, o que passo
a comentar.
2.3 – O caráter profético da palavra guarani
Os líderes dos levantes religiosos indígenas e de seus movimentos
costumam ser chamados de messias à frente de movimentos de libertação
95
mística (Alfred Métraux, 1967, p. 23) e de profetas à frente de cultos
proféticos de libertação (Pereira de Queiroz, 1960, p. 73). Essa última forma
é a adotada neste trabalho, pelas razões que passo a especicar.
25
2.3.1 – Os profetas indígenas não estão “além do social”
Segundo Gerald T. Sheppard e Willian E. Herbrechtmeier, nas
sociedades tribais mais antigas acreditava-se que as divindades controlavam
os eventos no mundo e comunicavam suas intenções aos seres humanos
através do líder do clã ou de outro indivíduo, o profeta. Este usava práticas
divinatórias e técnicas visionárias para ter acesso a um conhecimento
especial sobre as intenções divinas (Eliade XII, 1987, p. 8). O profeta era
uma pessoa dotada de uma consciência crítica peculiar que o habilitava a
intuir as vicissitudes de seu tempo, a anunciar as palavras e a executar as
ações que lhe foram inspiradas “sob a forma de revelações divinas durante
um estado psicológico de inspiração, possivelmente acompanhado de
êxtase” (Ap. Sellin-Fohrer II, 1977, p. 51).
Se aplicarmos à profecia guarani a classicação que esse fenômeno
religioso recebeu nas ciências bíblicas, temos que dizer que os profetas
guarani exerceram, sobretudo, um profetismo de salvação do mundo e da
sociedade indígena. excepcionalmente eles foram profetas de juízo ou
desgraça. O profeta que anuncia a desgraça tem a missão de comunicar
ao povo que seu m histórico, por decisão de Javé, está perto. As visões
fundadoras da profecia de Amós, por exemplo, culminam com a ruína
iminente de Israel (Am 8.1; 9.1-4). Os poucos profetas guarani que se
enquadram nesse tipo de profetismo eram os grandes incentivadores da
migração e da mudança. Eles anunciavam o mal a partir da posição marginal
que ocupavam na sociedade. “Sua presença era tão temida como respeitada,
como se houvesse neles um excesso, inclusive de religião (...), faziam da
crise sua prossão e da anarquia sua profecia” (Melià, 1991, p. 71).
H. Clastres (1978) P. Clastres (1981) tentaram construir, a partir dos
relatos da atuação desses karai, especialmente daqueles da costa brasileira,
um paradigma para o profetismo guarani. Esse paradigma, no entanto, não
pode ser aplicado à maior parte do fenômeno, seja no que tange aos Guarani
históricos, seja no que diz respeito aos contemporâneos.
Os registros desse fenômeno mostram que os profetas indígenas que
96
enfrentaram os males trazidos pelos conquistadores e missionários não
eram simplesmente anunciadores do mal e muito menos interpretavam esse
mal como decisão divina. Para eles, a desgraça era causada pelos que “se
deixavam amansar” pelo batismo cristão, pelo espaço reduzido, pela nova
religião, pelo novo tempo, pela nova cultura. Os profetas denunciavam
a desgraça e anunciavam o m dos seus contemporâneos, “se” eles
(especialmente os dirigentes) não renunciassem ao novo modo de ser e não
retornassem à antiga maneira de viver. Freqüentemente, nesse contexto
de conitos, aceitar o novo modo de ser, o tornar-se cristão, equivalia
ao pecado de indelidade, do qual os profetas bíblicos acusavam o povo
israelita e seus líderes (Is 7; Jr 11; Ez 16). Os profetas indígenas perceberam
o momento de desestruturação da cultura e combateram os responsáveis por
isso. Eles anunciaram o juízo sobre os que permanecessem em seu caminho
mau e a salvação para os que o renegassem.
A concepção do profeta como alguém dotado de uma consciência
crítica singular, que o torna particularmente sensível aos problemas do
seu tempo, a devemos às pesquisas realizadas no âmbito do profetismo
bíblico, em sua maioria. Até então, como escreve Robert R. Wilson, houve
uma tendência a retratar esses profetas como indivíduos isolados que
apareciam subitamente dentro de um grupo particular e que, tendo entregue
a mensagem divina, desapareciam tão sorrateiramente como chegavam.
Supostamente, isso se dava, em parte, pelo conito que havia entre eles
e os prossionais religiosos rivais, particularmente os sacerdotes (Eliade
XII, 1987, p. 18). Por muito tempo se considerou a “religião profética”
como pólo espiritual oposto à “religião cultual sacerdotal” e os profetas
como personagens tão originais, tão individualistas e tão excepcionais que
dependiam imediatamente de Deus. Da mensagem profética se pensava que
teria sido um elemento inteiramente novo e radicalmente oposto a tudo que
lhe era anterior, ocasionando uma cisão ou ruptura com a ordem tradicional
(Von Rad II, 1974, p. 7-8). O curioso é que os Clastres tenham estudado
o profetismo tupi-guarani por um crivo de interpretação idêntico a este
último.
Eles pressupunham que, à raiz do aparecimento de profetas na
sociedade guarani, jazia uma contradição entre o político e o religioso.
Ao surgimento de grandes chefes que tentavam fazer convergir sobre si o
poder político, eles contrapõem o surgimento de profetas que negavam o
social, por serem exteriores às alianças políticas e ao sistema de parentesco
97
(Clastres, H. 1978, p. 45, Clastres, P., 1981, p. 102). Por estarem os profetas
“além do social”, “o que articulavam era um discurso de ruptura com o
discurso tradicional, um discurso que se desenvolvia fora do sistema de
normas, regras e valores antigos legados e impostos pelos deuses e ancestrais
míticos.” Numa sociedade primitiva que tendia a perseverar em seu ser
mantendo e conservando suas normas, “surgem enigmáticos homens que
proclamavam o m das normas e o m do mundo que dependia dessas
normas” (Clastres, P., 1981, p. 101). Essa ênfase na experiência religiosa
imediata e na independência espiritual e social do profeta como a própria
essência do profetismo, o que Von Rad chama de “posição clássica a respeito
dos profetas” (Von Rad II, 1974, p. 8), é algo que nos relatos proféticos aqui
resumidos não se deixa vericar.
Os dados históricos apresentados neste trabalho depõem em favor
de uma outra avaliação. Tanto os discursos como as atitudes registradas
mostram que os profetas estavam profundamente enraizados nas tradições
de seu povo e que eram extremamente sensíveis aos acontecimentos de
seu tempo, à luz dos quais interpretavam e defendiam seu antigo modo
de ser. Os profetas eram integralmente relacionados com as sociedades
em que viviam. Eles não se reduziam às suas atividades proféticas, pois
participavam plenamente de outras atividades da vida comum. Nesse mesmo
sentido, vale para os indígenas o que Von Rad arma sobre o profetismo
bíblico: que se a vida religiosa de Israel não foi aniquilada pela erupção
religiosa da profecia e se os profetas foram compreendidos, é porque todo
o fenômeno estava condicionado pelas experiências que o povo havia tido
antes dos profetas.
Assim, segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, os cultos proféticos
de libertação não constituem mero combate aos brancos nem simples
tentativa de se libertar de sua hegemonia; seu caráter mais profundo está
na tentativa de reorganizar o mundo nativo (Pereira de Queiroz, 1960, p.
73). Desse modo, pode-se dizer que, nas rebeliões guarani, a religião não
foi simplesmente instrumentalizada em benefício da libertação; ela foi a
forma que podia dar sentido à manifestação dos Guarani, foi armação da
sua identidade e do seu modo de ser tradicional, especicamente religioso
(Melià, 1988a, p. 37).
Gostaria ainda de destacar a diferença quanto à forma e à
fundamentação do discurso entre a profecia indígena e a bíblica. Como
é sabido, no profetismo do Primeiro Testamento - assim como no
98
mesopotâmico, por exemplo o de Mari (1800 a.C.) - a fórmula que introduz
o discurso profético era “assim diz o Senhor”. O profeta ou a profetisa
falavam em nome de Deus, eram a “boca” de Deus. Deus era o sujeito do
seu discurso. Na profecia indígena, porém, não poucas vezes, os profetas
se autoproclamavam seres divinos. O mesmo se deu com relação aos
missionários que os índios divinizavam, considerando-os “lugar-tenente“
do Deus que eles pregavam (Haubert, 1968, p. 181-182).
Como o ha sugerido Bartomeu Melià (1988), os profetas indígenas,
engajados nas premências de seu tempo, foram veementes na defesa de
algumas práticas que fundamentavam seu modo de ser: a poliginia, a vida
livre na selva e a dança ritual.
2.3.2 - A poliginia indígena versus a monogamia cristã
Miguel de Atiguaje, ao criticar a nova ordem familiar imposta pelos
missionários antecipou, para seus contemporâneos, as implicações sociais
e psicológicas da monogamia compulsiva para os Guarani.
Na sociedade guarani a mulher detinha uma importância econômica
e social considerável. Conforme consta na carta do Presbítero Francisco
de Andrada ao Conselho Real, em de março de 1545, além do serviço
doméstico - cozinhar, lavar e tecer - para escândalo e benefício dos espanhóis,
elas tinham o “maldito costume” de “semear e colher o alimento”, de
modo que os cristãos tomaram para si índias que lhes dessem de comer
(Documentos Históricos ... II, 1941, p. 417).
A importância da poliginia na organização social guarani se deduz
também do fato de as mulheres serem as efetivadoras da cunhadagem,
instituição através da qual os irmãos da esposa passavam a fazer parte da
família extensa do marido, como parentes e produtores. Provavelmente
era do conhecimento de Atiguaje a violência que foi necessária para que o
“casamento” das índias com espanhóis pudesse continuar sendo praticado.
Conforme um testemunho da época, quando “os amigos do governador
Domingo Martínez de Irala zeram tantos agravos aos naturais da terra”, a
reação indígena não se fez esperar. “Determinaram matar alguns cristãos e
assim o zeram” (Cartas de Indias, 1877, p. 587). Desde então, os soldados
obtiveram à força as mulheres de que tanto precisavam. Juan Muñoz de
Cavajal escreveu a respeito ao Imperador D. Carlos, em 15 de junho de
99
1556, dizendo que, no dia em que os espanhóis partiam dos povoados onde
tinham estado, “havia tanto pranto, dos maridos por suas mulheres, e das
mulheres por seus maridos e pelas crianças que tinham que abandonar que
parecia romper-se o céu”. Os soldados voltavam trazendo “rebanho dessas
mulheres para seus serviços, como quem vai a uma feira e traz um rebanho
de ovelhas” (Cartas de Indias, 1877, p. 597-598). Não sem razão, Atiguaje
pressentiu a proximidade de um caos social.
Quanto às conseqüências psicológicas da monogamia, o melhor
exemplo nos é dado por Potirava ao repreender seu colega Ñesu, então
professo da religião cristã. Potirava tentava convencer seu interlocutor
dizendo-lhe que as mulheres que hoje o amavam iriam aborrecê-lo, que elas
poderiam se tornar esposas de outros, que ele perderia seu prestígio e que um
desânimo poderia tomar conta dele até sucumbir sob o poder das afrontas.
A documentação histórica é farta ao registrar a família como lugar onde se
travou uma batalha entre o antigo e o novo. De um lado, a conversão cristã
foi encarada pelos jesuítas primordialmente como aceitação do matrimônio
monogâmico; de outro lado, a resistência indígena, não poucas vezes,
levantou a bandeira da poliginia para chamar à “desconversão” os que
tinham sido cristianizados ou submetidos à vida reducional. Os missionários
viam a forma de vida dos indígenas como problema de ordem moral que
consistia, concretamente, numa suposta luxúria inerente à poligamia (Melià,
1988a, p. 112 nota, 114). Os indígenas, por seu lado, pressentiam no modelo
monogâmico um estratagema que poderia debilitá-los porque ameaçava a
base da sua organização social. E eles não estavam enganados.
Como observa Fernando Mires, a base da reestruturação da sociedade
indígena nas reduções foi a imposição da família monogâmica patriarcal.
Com ela os jesuítas colonizaram não só a “alma” dos indígenas, mas
também sua percepção, seus corpos e sua sexualidade. O desejo sexual
foi demonizado e toda lascívia castigada. O comportamento sexual como
um todo era controlado pelo medo. Mas com a atomização da sociedade
aborígine em pequenas famílias, os missionários conseguiram sobretudo o
esfacelamento da família extensa e dos distintos grupos guarani. A função
dos cabeças das novas famílias passou a ser “representar a autoridade dos
jesuítas perante a sua parentela”. Ao desestruturar a família tradicional dos
indígenas, segundo Mires, os jesuítas asseguraram noventa por cento da sua
missão. O resto veio com o tempo (Mires, 1991, p. 215).
100
2.3.3 - A vida livre na selva versus as reduções
A vida livre na selva, contra a reunião em povoados, era a reivindicação
de Potirava. Para ele, as reduções eram uma estratégia a serviço de uma
doutrina estranha à vida dos antepassados. Com isto, Potirava tematizava o
grave problema de espaço que os Guarani no século XVII experimentavam.
Seu discurso era dirigido a Ñesu, um cacique reduzido. Como em muitos
outros casos, suas palavras recriminavam os líderes que se deixavam reduzir,
responsabilizando-os pelo êxito dos missionários. Potirava chegou a dizer
a Ñesu: “se (...) tu te rendes, então verás toda essa gente que mora neste
lugar até o oceano, a despeito teu e por tua desonra, sujeita a eles” (Ruiz
de Montoya, 1985, p. 198). Em tom de ameaça, mencionou que “outros” -
seguindo o mau exemplo de Ñesu - tinham se rendido à voz dos “homens
adventícios” (referindo-se aos da Companhia de Jesus).
Muitos caciques e alguns xamãs, pressionados pelos ataques dos
encomenderos e dos bandeirantes, acabaram se abrigando nas reduções,
por serem aqueles os únicos espaços menos ruins que lhes restavam
para sobreviver. Ñesu certamente foi um deles e, como muitos de seus
companheiros, foi protagonista de uma complicada relação com os jesuítas.
Potirava representava um outro segmento da sociedade, o dos karai mais
apegados à tradição. Ele pressentiu bem a armadilha: “quem entra na
redução ca reduzido” (Melià, 1988a, p. 183). Ñesu foi responsabilizado
duplamente em sua opção pela redução, primeiro, por ter-se rendido e,
segundo, porque sua atitude era um mau exemplo para “toda essa gente”
que via nele um líder.
A defesa da vida livre na selva parece derivar do que Branislava
Susnik considera um trilogismo psicomental, ritmo-som-voz, que, para a
autora, compõe o etos guarani (Susnik, 1984-85, p. 135). Nessa perspectiva,
a notável extensão do território ocupado pelos Guarani e a ampla difusão
de sua língua teriam resultado, como já foi dito, de, pelo menos, dois mil e
quinhentos anos de sucessivas expansões (Cf. Métraux, 1927; Nimuendaju,
1987; Susnik, 1975, 1979-80; Melià, 1987a; Noelli, 1999b), dinamizadas
em parte pela palavra de um karai. Esse líder espiritual intuía os males
que ameaçavam a vida num determinado lugar e, usando sua capacidade
convocatória, mobilizava as unidades familiares ou as sócio-regionais para
deixarem a terra cansada (yvy marã) para o cultivo em direção a uma
101
terra nova e fértil (yvy porã) (Susnik, 1981, p. 146).
Ao começar os primeiros contatos com os europeus, a população
guarani se aproximava de dois milhões de habitantes (Marzal, 1989, p. 295),
o que segundo Schmitz trazia diculdades para novas expansões (Schmitz,
1981, p. 195). A essa diculdade, se é que houve, deve somar-se a ação
depredadora dos conquistadores europeus. Como foi visto, diante dessa
situação, muitos indígenas fugiam ou lideravam movimentos de resistência
e libertação. Ameaçado de perder para os indígenas, o então governador
do Paraguai apelou aos conquistadores espirituais. Assim, para beneciar
os interesses dos colonizadores, os franciscanos reduziram os índios em
pequenas cidades, nas cercanias de Assunção. Quase três décadas depois, os
jesuítas também aderiram à política de reduzir os indígenas em povoados.
Esses povoados, porém, diferenciavam-se das reduções franciscanas no
sentido de não se organizarem para favorecer a colônia, e sim, para defender
os indígenas dos colonizadores.
Mas mesmo assim, para os profetas indígenas, não havia nada
comparável à vida livre na selva nesses povoados de refúgio que as
reduções jesuíticas pretendiam ser. Para Potirava, a redução era contrária
à natureza indígena de andar por vales e selvas e, à semelhança de outros
karai das regiões até então pouco atingidas pelas instituições coloniais, ele
organizou uma verdadeira conjura para destruir os cabeças das reduções.
Os líderes indígenas contrários à vida na redução chegaram a intuir que
nesses espaços acabariam amansados e desacostumados de sua ecologia
nativa, que a redução lhes fecharia os caminhos para a terra renovada e para
a liberdade.
2.3.4 - A dança ritual e outros ritos a serviço da profecia
A dança ritual foi a própria forma em que as rebeliões indígenas se
consolidaram. Junto com o canto ela é, até os dias de hoje, o modo privilegiado
pelo qual os Guarani expressam sua religião. Desde os primeiros registros,
é através do canto-dança que os indígenas aparecem convocando para a
resistência. Desse modo, a dança ritual tradicional constitui-se em si mesma
“uma armação agressiva de identidade frente aos invasores” e “sustenta
a rebelião dando-lhe um eciente leito simbólico e emocional, na linha da
mais autêntica tradição” (Melià, 1988a, p. 115, 118).
102
Os líderes religiosos eram os senhores das danças religiosas que, por
sua vez, eram o lugar e a ocasião onde e quando tomavam corpo as mais
importantes funções xamânicas: a reza, enquanto dizer e fazer-se divino;
o canto das palavras inspiradas; as convocações migratórias e as profecias
cataclísmicas contra os que ameaçavam seu modo de ser tradicional (Melià,
1988, p. 119).
A volta aos “cantares passados” era também uma revolta contra a
novidade cristã e veio acompanhada de uma série de eventos provocados
pela profecia indígena. Suas evidências estão na cerimônia de substituição
de nomes cristãos por nomes indígenas, no contrabatismo; na matança
de animais de origem colonial, ato mágico-simbólico para contraverter o
inimigo; na fuga para os montes; no rito de perfuração do lábio e no retorno
a um conjunto de práticas que correspondiam ao sistema indígena, ainda
que esse retorno fosse, às vezes, exacerbado e descaracterizado, como o foi
a antropofagia.
26
Até hoje, em muitos grupos guarani, a dança ritual está profundamente
ligada ao canto e à profecia, como se verá em outro capítulo. Na profecia
indígena foram usadas outras formas de comunicação além da palavra. Essas
linguagens não-verbais eram uma combinação de simbolismo e magia,
comuns a muitos grupos, inclusive aos profetas bíblicos (Fohrer, 1982, p.
117). Sua prática se enraíza num forte desejo de ver o cumprimento daquilo
que é simbolizado (Fohrer, 1982, p. 118)
e também no fato de se considerar
que o ato simbólico inuencia ou apressa o cumprimento do desejo.
Assim, ao queimar uma novilha (Angelis III, 1969, p. 310-311)
esperava-se ver o m de todos os animais de origem européia e dos
estrangeiros que os introduziram na terra indígena. O ato é uma libertação
simbólica do espaço indígena de tudo aquilo que não lhe pertencia. Ao vestir
as vestes litúrgicas dos padres assassinados e ao pendurar no seu pescoço
os pedaços de um cálice cristão (Ruiz de Montoya, 1985, p. 201-202; Del
Techo V, 1897, p. 96), Ybapiri manifestava seu desejo de atrair sobre si as
virtudes xamânicas dos missionários mortos e, assim, recuperar o prestígio
que ele sentia ameaçado por causa dos jesuítas.
Outro recurso utilizado pelos profetas para contradizer a mensagem
cristã foi a paródia. Através dela, líderes indígenas manipulavam o modo
de ser cristão e ngiam-se sacerdotes, consagravam eucaristia e ociavam
muitas outras cerimônias. Eles não ironizavam a pregação cristã, mas
também tiravam vantagem dos novos símbolos.
103
Nesse sentido, é elucidativa a carta ânua de 1632. Nela cou registrado
que, na redução de São Tomé, um famoso xamã fora o primeiro a aprender
o “Pai Nosso”. Achando-se em vantagem sobre os demais, o xamã espalhou
entre o povo que era homem divino, que subia e descia dos céus, conforme
sua vontade (Carta Anua 1632-34, 1984, p. 278), o que certamente era uma
paródia do “seja feita a tua vontade assim na terra como nos céus”. Na
carta ânua de 1628, Ruiz de Montoya relatou como um feiticeiro guarani
previu o futuro dos Tupi: “Colocou uma cruz que consigo trazia em meio
de três arcos e ao redor da cruz umas candelinhas; levantando os olhos ao
céu falava em voz alta e estendendo os braços fazia como se abarcasse
com eles algo” (Cortesão I, 1951, p. 277). A descrição lembra um sacerdote
celebrando a eucaristia ou em atitude de oração.
Não só os padres, mas também a hierarquia eclesiástica é parodiada
entre os Guarani do Paraná. “Feiticeiros” se autoproclamam Deus, sumo
sacerdotes ou papas e nomeiam outros feiticeiros como bispos seus que, na
seqüência, elegem seus vigários (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 364-365).
Embora a etnograa atual mostre que os Guarani acreditam poderem
se transmutar em uma divindade através da dança, nos tempos coloniais
essa autocompreensão apareceu revestida em retalhos de doutrina cristã.
Assim, uma criança dizia “ser Deus ou lho verdadeiro de Deus”, Obera
se considerava “lho verdadeiro de Deus e nascido de uma virgem”, um
mago dizia que era “Deus criador do céu, da terra e dos homens”, Paytara
se revelava como “deus ressuscitado”, outro mago dizia ser “deus em três
pessoas”, uma índia se chamava “mãe de Deus”, Rodrigo Jaguariguay se
proclamava “Deus Pai”, à sua esposa considerava “Santa María la Mayor
e à sua lha “Santa María la Chica” - uma criativa paródia da Trindade
cristã.
A profecia foi preferencialmente dirigida contra os indígenas reduzidos
e contra os missionários. Anunciou-se que os jesuítas logo iriam perecer e
aqueles que comungavam com a cristã foram ameaçados de morte. Os
profetas prometeram destruir as sementeiras dos índios batizados e invocar
contra eles as feras. Nas ameaças também apareciam com toda plasticidade
profecias escatológicas, algumas beirando à imaginação apocalíptica:
“farei cair fogo do céu”, “farei que cresçam as águas e inundem a terra”.
Apelando a uma suposta cumplicidade com os bandeirantes, um profeta
ameaçou vingar com as armas dos “amigos de São Paulo”
27
a injúria que lhe
zeram. Um cacique chegou a profetizar a iminente sujeição dos jesuítas ao
104
seu poder, enquanto que vários xamãs anunciaram a ruína dos cristãos - que
seriam devorados por tigres e por bandos de outras feras - e amedrontaram
a população com supostos monstros de terrível aspecto.
2.4 - Dos pró-diálogos e suas conseqüências para a teologia cristã
Gostaria de destacar a seguir alguns questionamentos que o profetismo
guarani dos séculos XVI e XVII formularam para o cristianismo e que têm
relevância na atualidade.
2.4.1 O questionamento da universalidade
A ideologia fundante dos acontecimentos relatados neste capítulo foi a
da universitas Christiana, através da qual o cristianismo se autocompreendia
como detentor de uma qualidade ad intra que devia ser propagada até que
todos os povos fossem incorporados à “Igreja-Sociedade-Perfeita”, que não
é a cidade que está no céu, mas a cidade segundo o céu (Dupuy, 1989, p.
72), a Orbis Christiana,
28
para os espanhóis.
Os indígenas reagiram contra essa pretensão e compreensão de
universalidade. O pa’i e karai Aperera resume, com muita eloqüência, a
reivindicação dos seus companheiros: “Se Deus, como dizes, está presente
em todas partes, pode continuar dispensando-nos seus benefícios neste
lugar” (Ap. Dos Santos, 1988). Nos discursos indígenas apareceram pessoas
e comunidades perturbadas em conseqüência de um cristianismo que se
apresentava como uma religião cuja aceitação implicava um completo
deslocamento e desestruturação cúltica e simbólica. nos primeiros anos
da missão, os indígenas intuíram que o novo modo de ser correspondia a uma
religião que lhes desautorizava a experiência religiosa dos antepassados. As
novas referências religiosas que lhes eram impostas não tinham vínculo
algum com seus esquemas autóctones. A nova religião advogava para si
mesma o poder exclusivo de distinguir a falsa e a verdadeira manifestação
do sagrado.
Ainda hoje prepondera no cristianismo uma compreensão extensiva e
quantitativa de universalidade. Porém, se partimos do princípio que nenhuma
cultura pode elevar-se à categoria de tradição humana, a “universalidade”
pode ser uma categoria inclusiva e dinâmica. Universalidade não
105
pode consistir, nesse sentido, na expansão ou multiplicação de um único
modelo, senão na trama composta pelas diversas peculiaridades culturais.
No singular dormita o universal, mas nenhum grupo humano pode arrogar-
se o direito de transformar o caráter universal das suas experiências na
universalidade mesma. Esta vai sendo alcançada através do diálogo entre
as diversas subjetividades. E se nessa dialética de subjetividades os diversos
atores do processo singularizam o universal e universalizam o singular,
nenhum ser humano, nenhum sistema, nenhuma cultura pode “instalar-se
na universalidade” (Fornet-Betancourt, 2000, p. 39).
Em outras palavras, “ninguém pode falar do absoluto [Deus] no sentido
absoluto” (Fornet-Betancourt, 1993, p. 3). Deus é muito mais do que uma
experiência cultural e um sistema religioso são capazes de apreender. As
falas que apresentam Deus como ser universal, no sentido de “exclusivo” e
“unívoco”, partem de experiências culturais e teológicas regionais, que pela
força assumiram uma conotação universal. Nesse sentido, o cristianismo
cometeu um “fatal mal entendido”, ao ter assimilado a tendência da cultura
ocidental de autoperceber-se como cultura da humanidade. Esse fato precisa
ser revertido assumindo-se abertamente a pluralidade.
O cristianismo, ao considerar denitiva a encarnação e a inculturação
do mundo semita no mundo greco-romano, acabou xando apenas um dos
cristianismos possíveis e apenas uma das máscaras de Deus. Todas as outras
fusões e imagens possíveis caram descartadas. Ele não levou em conta
sua experiência fundacional, a de ter sido “hóspede” da religião judaica,
e que esta, por sua vez, acolheu experiências teológico-culturais de outros
povos.
29
Conforme Hb 1.1-3, Jesus Cristo é a máxima autocomunicação ou
palavra de Deus. Nele, Deus recapitulou todas suas falas e através dele não
falou mas apareceu nas condições da existência humana, realizando de
modo radical todas as possibilidades do Ser latentes na criatura. “A Palavra
de Deus se fez carne e habitou entre nós” (João 1.14), não por preferir a
cultura judaica nem por querer que ela dominasse sobre os outros povos
e as outras religiões. O Verbo divino não veio ao mundo para excluir as
palavras anteriores, nem suas contemporâneas, nem as que viriam depois
dele; ao contrário, ele procede do mundo e sustenta todas as coisas pela
sua poderosa palavra, segundo Hebreus 1.3. A teologia cristã, na medida
em que se baseia na tensão entre o absolutamente concreto e universal -
Jesus Cristo - precisa dar conta dessa tensão no seu contato com as outras
106
religiões. Em Jesus, nada seria mais estranho do que a atitude colonialista,
destacava Boff ao interpretar Mc 9. 38-40.
A grande dinâmica do amor de Jesus é a ausência de qualquer atitude
colonialista do tipo “todos têm que entrar no meu modelo”, como os
próprios discípulos propuseram quando voltavam da missão: “Encontramos
gente batizando e curando em Teu nome. Vamos reprimi-los... ou o que
fazemos? Porque não são dos nossos”. Jesus manda respeitar, como quem
diz: “Eles somam com a gente, não importa que não sejam do nosso grupo”.
Jesus percebe a universalidade de sua proposta, que é captada por outros que
estão fora da visão e da lógica judaica (Boff, 1994, p. 33).
Longe dessa forma de relacionar-se com o outro, o cristianismo
confundiu universalidade com expansão e imposição de uma organização
eclesiástica. Os profetas indígenas intuíram que o cristianismo carregava
consigo, potencialmente, a opressão de outras formas de vida e de religião.
Que sua missão se caracterizava pelo totalitarismo, pela negação da
pluralidade e da diferença. E a essa compreensão deturpada de universalidade
cristã, os profetas indígenas reagiram veementemente, mostrando a
desgraça que a nova religião era para eles. Reações como essa podem ser
saudadas como “protesto contra o modelo civilizatório que se empenha em
uniformizar o planeta” (Fornet-Betancourt, 2000, p. 23). Elas reivindicam
que o cristianismo se reconheça como um discurso parcial sobre Deus.
2.4.2 – Missão, subjetividade e poder
O cristianismo olhou o mundo indígena como algo inferior que deveria
ser conquistado e destruído ou conquistado e transformado. As réplicas
indígenas, porém, mostram que, do outro lado da cruz, havia sujeitos com
uma outra percepção religiosa e não “animais ainda não domesticados”,
que precisavam ser desnudados de sua ferocidade desumana.
30
Converter-
se pressupunha “civilidade”, era uma iniciação que habilitava a fazer parte
de uma nova ordem “política e humana”; a população indígena como tal
não interessava, era excluída, omitida.
Nesse contexto, profetas indígenas denunciaram com veemência
o abandono do modo tradicional de viver. Nos seus discursos, o tempo é
quebrado; o antigo é o bom e a nova doutrina é a privação dessa qualidade.
O novo tempo é um tempo estranho, no qual a subjetividade indígena é
107
ameaçada de morte por uma outra subjetividade. Uma verdadeira guerra
travou-se entre essas subjetividades, vencendo a que fez prevalecer sua
virtude.
Os padres da Companhia se imporiam pouco a pouco, ajudando os Guarani
a reagirem contra encomenderos e bandeirantes mas, também, conquistando
liderança espiritual e material entre os índios, introduzindo nas reduções
medicina, animais, plantas, instrumentos e utensílios metálicos (Gadelha,
1988, p. 75).
A chea tradicional reservada aos karai e aos pa’i indígenas,
entretanto, foi substituída pelos padres após a destruição das reduções
do Guairá, Paraná e Itatim pelos paulistas. Só então os jesuítas se tornaram
os novos guias guarani (Gadelha, 1988, p. 76). Entretanto, quando o karai
Jeguacaporu prometeu vingança e ameaçou de morte os sacerdotes, “para
que terminem os embustes, com que levam em seu seguimento os ignorantes”,
ele reagia contra essa outra subjetividade que introduziu um tempo estranho
entre os Guarani e relegou seus guias espirituais à marginalidade. A ameaça
era a forma de expressar a esperança no restabelecimento da ordem pré-
colonial, no retorno das divindades originárias, na rearmação do prestígio
dos karai, na erradicação do caráter radicalmente mau do “novo”. Nesse
sentido, a palavra profética guarani é ao mesmo tempo el à tradição e
aberta à inovação. Parafraseando Bartomeu Melià, ao falar dos Guarani
como “memórias do futuro”, os profetas indígenas e seus discursos seriam,
então, uma enorme ajuda para entender a utopia bíblica, porque eles armam
a memória histórica da vida tribal (Martínez, 1987, p. 48).
Os profetas guarani rejeitaram o cristianismo não por ser uma
religião estrangeira, mas por ser portadora de um novo modo de ser, que
signicava para os indígenas dominação, desintegração social e morte. A
crítica era endereçada aos incentivadores do novo modo de ser e a quantos
suplantaram sua boa vida livre pela nova forma de viver.
O protesto dos xamãs contra os missionários é testemunho da
experiência religiosa dos aborígines. Ao se autoproclamarem “deus
criador do céu e da terra”, os indígenas radicalizaram a armação de sua
xamanidade diante dos novos xamãs, os missionários. Quando os indígenas
se dirigiram aos missionários dizendo serem também eles “sacerdotes que
sabem ministrar a palavra para sua gente”, estavam armando que eles
também tinham sua , seus guias espirituais, seus doadores da chuva e
108
do bom tempo, bem como dos raios e da colheita. Ao se justicarem, os
indígenas estavam insistindo para serem reconhecidos como sujeitos de
fala e de cultura. Em todas essas expressões parece ter havido o intento de
frear a agressão cristã. Mesmo quando parodiavam a prédica dos padres,
reinterpretando a encarnação, a trindade e diversos ritos cristãos, os
Guarani estavam tentando depor a atitude de “conquistador de almas” dos
missionários e tentando libertá-los da mania agressiva e opressiva de querer
sempre converter o outro.
Os jesuítas sabiam que as práticas xamânicas se endereçavam ao
descrédito da fé e da religião cristã e não tiveram dúvidas em se comportar
como feiticeiros mais poderosos que seus inimigos. Ao falar da terapia
usada pelos karai, Montoya chegou a escrever que, depois de repreender
os índios publicamente, estes “entenderam tão bem a lição, que deixando
totalmente dos falsos feiticeiros seguiram o verdadeiro” (Cortesão I, 1951,
p. 266). Noutra ocasião, Montoya demonstra não ter tido dúvida em afastar o
demônio com a manipulação de símbolos mágicos: “Pus num copo fechado
um pedaço da sotaina de Santo Inácio, e nunca mais voltou o demônio”
(Ruiz de Montoya, 1985, p. 102-103). O Pe. Diego de Boroa relata outro
caso semelhante nos momentos mais difíceis de um parto: “tomou uma
imagem de papel (de Santo Ignácio) colocou-a sobre a aigida mulher que
pariu sem perigo, cando boa e sã” (Cartas Anuas 1632-34, 1984, p. 94).
Não raro, porém, a reação contra os karai foi o enfrentamento físico.
(...) mostraram os neótos sua rmeza de caráter ao depreciar as artimanhas dos
feiticeiros aos quais perseguiram com toda energia, fazendo uma verdadeira
caça deles, procurando-os como se procuram feras, nos montes mais afastados
e inacessíveis, dando-lhes uma boa surra, antes de entregá-los aos Padres. (...)
Os que não quiseram abandonar as superstições dos feiticeiros, pereceram de
morte repentina (Cartas Anuas II, 1927-29, p. 607).
A partir de 1636, quando as reduções entraram na fase de estabilidade,
os profetas começaram a ser cada vez mais escassos, desaparecendo quase
que por completo anos mais tarde. Inutilmente os xamãs tentaram lutar contra
a forte mágica dos jesuítas, contra sua eloqüência e sua generosidade. Ao
ensinarem a fazer enormes plantações utilizando o arado; ao introduzirem
o gado; ao iniciarem os índios em novas formas de artesanato, os jesuítas
capitalizaram, denitivamente, entre os Guarani reduzidos, os méritos de um
herói civilizador (Gadelha, 1988, p. 69). Os jesuítas venceram os messias
109
indígenas porque provaram que seus poderes sobrenaturais eram superiores.
Eles conseguiram levar os xamãs vernáculos ao descrédito, queimando seus
ídolos e expondo-os à chacota geral, ao mesmo tempo em que revelaram ser
mais capazes que os indígenas no proporcionar benefícios materiais, tanto
no âmbito da subsistência quanto no da defesa da colonização espanhola
(Haubert, 1969, p. 125s).
2.4.3–Odesaododiálogointercultural:oexemplodePa’i Sume
As atitudes dos profetas e das profetisas guarani, como as dos povos
israelitas do passado e dos discípulos anônimos de Jesus, levantam questões
pertinentes à concomitância das culturas e ao diálogo intercultural.
Apesar de ter havido duras críticas e desenlaces fatais em alguns
conitos entre os missionários e os indígenas, e apesar da ênfase a que
me propus neste capítulo, gostaria de ressaltar que os grupos indígenas
receberam aos cristãos com uma certa cordialidade. Dos vários exemplos
que poderiam ilustrar essa atitude, destaco a integração da cruz e o mito de
Pa’i Sume
31
no imaginário indígena.
Por toda parte, conforme os sacerdotes, os grupos indígenas davam
boas-vindas a missionários no século XVII referindo-se a um Santo
Apóstolo que outrora passara por suas terras prometendo que, no futuro,
viriam “padres sacerdotes” para ensinar-lhes a palavra de Deus, juntá-los em
povoados grandes e fazê-los viver com ordem e polícia cristã, ensinando-
lhes a se amarem uns aos outros e a não terem mais de uma mulher. Nesse
novo tempo os “Tupi” e os “Guarani” e todo gênero de gente iriam se amar
sem distinção de nações.
O notável é que esses “padres sacerdotes” prometidos pelo Santo
Apóstolo seriam reconhecidos por serem castos, por pregarem com
austeridade e carregarem a cruz em suas mãos.
32
Os jesuítas foram facilmente
identicados como os mensageiros prometidos. “Sem dúvida são estes os
Padres prometidos aos nossos avós pelo Santo Sumé” (Cartas Anuas II,
1927-29, p. 326-327), diziam os indígenas referindo-se aos ignacianos, que
carregavam ostensivamente a cruz como símbolo do poder de suas prédicas
(Ruiz de Montoya, 1892, p. 95). Sem entrar no mérito da crítica das fontes
que relatam essa difundidíssima lenda,
33
ousaria dizer que os elementos
híbridos do mito apontam para a necessidade e a possibilidade do diálogo
entre as culturas, já entre os protagonistas desse período da história.
110
Pa’i Sume (São Tomás) reúne não características que o fazem
epônimo da missão cristã nas Américas, mas também que o tornam um herói
cultural nativo. No Brasil ele inicia os Tupi no cultivo da mandioca, pão
principal do grupo, enquanto que no México ele era escultor como Topiltzin
(Quetzalcóalt) (Ap. Todorov, 1983, p. 205). Certamente existiu uma matriz
indígena dessa personagem, que os missionários não duvidaram em adotar
para justicar sua missão com a gura de um santo apóstolo. Se levarmos
a sério o testemunho dos jesuítas sobre essa personagem, cabe notar com a
mesma seriedade que os indígenas perturbaram-se profundamente quando
sua atitude de espera, de abertura para o outro, não foi bem interpretada,
redundando em sua dominação e em seu desterro.
A adoção da cruz pelos indígenas concedeu ao símbolo cristão o
mesmo status da maraca aborígine. Antes da conquista, as terapias e as
manifestações de poder entre os indígenas eram basicamente resultado
da interferência dos poderes que emanavam desse instrumento. Desde o
século XVI, tal poder se confrontou com o poder mágico da cruz na mão
dos missionários, que eram os novos senhores da vida e da morte. Sob
o impacto dos conitos gerados por essa novidade, os grupos chamados
guarani não hesitaram em estender os poderes mágicos da maraca à insígnia
cristã. Assim como o som da maraca atualizava para os indígenas a primeira
palavra e o ritmo original que está presente em todos os seres da natureza,
a cruz é assimilada, no plano criacional, como estrutura da vida, como
detentora de boas palavras (kurusu ñe’ẽngatu). Desfrutando dos poderes
terapêuticos da maraca, a cruz (kurusu) passou a ser usada nos rituais de
cura e, com o tempo, acabou designando um dos sucessores dos xamãs, o
enfermeiro (kurusuja, “dono da cruz”) (Restivo, 1892, p. 81; Hernández
II, 1913, p. 563), encarregado de cuidar dos doentes e de ministrar-lhes a
extrema unção.
Exemplos como esses apontam para a necessidade da comunicação
entre dois atores concomitantes na mesma sociedade. A propósito do nosso
tema, podemos dizer que um imperativo de intercambiar as experiências
religiosas e as tradições teogicas para, desse modo, conseguir uma maior e
melhor aproximação do mistério de Deus (Fornet-Betancourt, 1994, p. 81).
Conforme expus ao longo deste capítulo, a profecia indígena
combateu a pretensão cristã de universalidade entendida como expansão
de um sistema religioso. Ela repreendeu violentamente essa compreensão
deturpada e lançou desaos que, até hoje, ainda não se tornaram realidade.
111
Uma forma de ser conseqüente a esses desaos seria aproximar-se das
espiritualidades indígenas, não como quem coleciona exotismos, mas
como caminhantes que, a exemplo de Jesus, pedem água para beber “a uma
samaritana”. Esses reservatórios de sabedoria que caram à margem do
desenvolvimento moderno certamente têm algo a dizer à nossa chamada
civilização que, como observa Melià, está “marcada pelo paradoxo de ter
produzido exatamente o contrário do que pretendia” (Melià, 1997, p. 48).
Eles podem lançar novas luzes sobre ensaios mais inclusivos no âmbito da
fé, como o “diálogo inter-religioso”, a “convivência” e o “ecumenismo”.
Como vimos no primeiro capítulo, a experiência religiosa guarani nos
coloca diante de uma experiência ativa da Palavra, muitas vezes esquecida
pelas teologias cristãs. A passagem de Mc 9.38-40 mostra que, em Jesus, a
universalidade é medida pela capacidade de convivência na diferença, de
preservação da pluralidade. O cristianismo precisa aceitar ativamente os
outros sujeitos de fé e de palavra. Não lhe basta dizer que os indígenas são
seus parceiros de diálogo; ele precisa questionar seus próprios processos de
constituição cultural e teológica, nascer de novo a partir das experiências
profundas de outras culturas e tradições, sem intolerâncias nem complexos
de superioridade.
Por m, é importante aclarar que uma teologia aberta ao outro parte
do reconhecimento real de cada cultura, com suas formas de experiência
religiosa, “como visão de mundo que tem algo a dizer a todos”. Esse
reconhecimento e respeito às culturas têm por objetivo “fundar realmente
as condições práticas para que os sujeitos de qualquer universo cultural
possam apropriar-se, sem conseqüências discriminatórias, das ‘reservas’ da
sua tradição de origem como ponto de apoio (histórico-antropológico, mas
não ontológico) para sua própria identidade pessoal” (Fornet-Betancourt,
2000, p. 23-25).
O universo é o lugar onde se faz essa experiência. Ele, por ser uma
referência teológica anterior às formas de organização religiosa, às igrejas
cristãs e ao próprio Cristo, é um convite à caminhada ecumênica. Nela,
adverte Panikkar (1971, p. 222): “Não nada mais perigoso para um
cristão do que o comportamento paternalista e a falsa segurança daqueles
que se crêem na posse plena da verdade”. O verdadeiro cristão nada
possui, nem mesmo a verdade; como observou Tomás de Aquino; ele
é quem é possuído pela verdade. Para ser el a essa verdade, conforme
Panikkar, o diálogo ecumênico pressupõe conhecimento recíproco como
112
requisito para exercitar a tolerância que é, em si mesma, um gênero de
conversão (Panikkar, 1971, p. 226; 1993, p. 29). Como um ensaio dessa
forma de conhecimento, apresento, a seguir, a maneira como líderes kaiová,
guarani (ñandeva, chiripá) articulam teologicamente sua experiência e seu
pensamento religiosos.
(Notas)
1 A encomienda consistiu na concessão temporária de um certo número de indígenas aos
cuidados de um senhor, o encomendero, que devia catequizar e proteger os indígenas a ele
encomendados em troca dos serviços prestados como tributo. Apesar de concebido como
um dispositivo legal para apaziguar a escravidão, a instituição acabou servindo de cobertura
para novas expedições armadas, a m de capturar novos indígenas, pois os já incorporados
à colônia tinham se acabado ou já não atendiam à demanda.
2 A missão itinerante era uma espécie de peregrinação apostólica de sacerdotes que, a partir
dos povoados de espanhóis, deslocavam-se ocasionalmente até os povos de índios que
serviam aos espanhóis para ministrar-lhes os sacramentos. Nessa forma de evangelização
era obviamente mínima a inuência que a nova religião podia exercer sobre os indígenas.
3 Chamavam-se “reduções” aos povos de índios que, “graças à diligência dos padres”,
abandonaram sua antiga usança – de viver em selvas, serras e vales, junto a arroios
“escondidos” em casas que distavam léguas umas das outras e passaram a viver juntos
em povoados, de acordo com a “vida política (civilizada) e humana, beneciando algodão
com que se vistam” (Ruiz de Montoya, 1985, p. 34). As reduções foram concebidas como
laboratórios onde se processava a conversão massiva e efetiva dos indígenas e onde se
possibilitava a incorporação desses indígenas a uma sociedade sedentária e urbana. Como as
reduções também foram, de certa forma, um lugar onde os indígenas tentaram se defender
do ataque de encomenderos e bandeirantes, podem ser consideradas “cidades” ou “locais”
de refúgio.
4 Obviamente, essa opção não tenciona incitar inimizades entre os povos, mas sim reconhecer
a importância terapêutica de recordar esses episódios da história e resgatar do esquecimento
ou do menosprezo a capacidade indígena de se sobrepor à opressão política e religiosa.
5 Entre 1545 e 1660, de acordo com a estimativa de Dayse Rípodas Ardanaz, esses indígenas
foram protagonistas de pelo menos 24 movimentos de contestação de caráter religioso,
a maioria dos quais dirigiram-se contra os missionários e contra o cristianismo. A cifra é
113
signicativa se levarmos em conta que ela representa quase a metade das 50 manifestações
registradas contra o domínio espanhol, entre 1537 e 1735, na Província do Paraguai.
6 Por dominar a técnica da cura por sucção.
7 Termo oriundo do tunguz, saman, que chegou a nós através da Rússia e que, em stricto sensu,
só se refere a um fenômeno religioso da Sibéria e Ásia Central (Eliade XIII, 1987, p. 202).
8 É interessante observar que com o termo karai Luis Bolaños traduziu pelos anos 80 do
século XVI ao guarani as palavras “cristiano” e “bautizado”. Mas os índios que se batizavam
não ingressavam na sociedade dos novos karai, dos conquistadores. Estes já tinham retido
para si o signicado exclusivo de “senhor” que tem poder para exigir respeito e submissão.
Ruiz de Montoya, algumas décadas depois, porém, critica esse uso e arma que com esse
vocábulo os indígenas honraram, no passado, seus “feiticeiros”. Mas a usança anterior a
Montoya prevaleceu até os dias de hoje. Ironia da história: o termo que no passado signicava
o ideal de pessoa para os indígenas passou a indicar exatamente o contrário: o esvaziamento
do ser indígena, sua cristianização. De modo que um não-karai (não-cristão) é um ser sub-
humano (Melià, 1998a, p. 28-29; Ruiz de Montoya, 1876c, f. 90).
9 Convém lembrar que o uso destes termos pelas comunidades indígenas atuais não preservou
o signicado histórico. No Brasil, Pa’i foi equiparado a “cacique” e passou a designar o líder
religioso, enquanto que o líder nas questões temporais passou a ser designado pelo termo
estrangeiro “capitã”.
10 Yanaconato: era uma modalidade das encomiendas baseada no princípio de relação amo-
servo; tinha caráter vitalício e nele se enquadravam os indígenas mais hostis, que eram
considerados socialmente inaptos e economicamente dependentes de seu senhor.
11 Bandeirantes ou mamelucos eram bandos de brasilíndios (homens gerados por pais brancos,
a maioria de origem lusitana, e por mulheres indígenas) que se encarregaram da expansão do
domínio português terra adentro. Sua estratégia foi denominada de maloca por jesuítas que
atuaram na área de colonização espanhola e de bandeira ou entrada, no âmbito da colonização
portuguesa. O termo é empregado para designar uma expedição armada cujo objetivo era
capturar indígenas livres ou reduzidos, a m de vendê-los como escravos emo Paulo e Rio
de Janeiro ou de inseri-los à força no sistema de encomiendas (Cortesão I, p. 492). Por terem
sido os portugueses de São Paulo os principais geradores de brasilíndios, nos documentos
históricos muitas vezes esses atores sociais são denominados também de paulistas.
12 Em 1608 eram sete os jesuítas que se encontravam em Assunção, estudando a língua
guarani. Entre 1609 e 1640 foram fundadas e expandidas entre os grupos falantes do guarani
cinco frentes missionárias: a do Guairá, Paraguai, Itatim, Uruguai e Tape.
114
13 Isto é, povos de índios recém-convertidos, sob a tutela e orientação catequética de
encomenderos.
14 Para localizar essa e as outras Frentes de atuação dos jesuítas, cf. Anexo VI.
15 Diminutivo e pejorativo de “Santo”.
16 No original: “Íxguiraro”.
17 Espécie de maça ou clava de origem indígena feita de madeira dura e pesada.
18 O termo remadores provavelmente se referia aos indígenas do Chaco, os Pajaguá, que
dominavam o curso das águas. Eles costumavam prender Guarani e mestiços para trocá-los
com os “criollos” (lhos de espanhóis nascidos na colônia) por alguns objetos (Susnik,
1993, p. 119).
19 Semelhante descrição sugere que essa mulher seja uma personicação das metáforas com
que os missionários costumavam exaltar as virtudes da mulher idealizada em Maria. Ruiz
de Montoya se referia à Virgem Maria como “lua resplandescente dona do amanhecer” e
como “estrela d´alva” (Catecismo, p. 312), enquanto que o Pe. Simão Bandini a comparava
freqüentemente com o sol em suas prédicas: “a mãe de Deus sobrepuja em formosura o sol”
(Restivo, 1892, p. 219), “a mãe de Deus cujo vestido é o sol” (Restivo, 1892, p. 235).
20 Os povoados, as cidades.
21 Isto é, para tratarem de sua estratégia de ação contra as reduções longe do policiamento
dos missionários, sem o risco de serem descobertos.
22 “Venéreos” no original espanhol.
23 Título e função judicial, introduzida pelos colonizadores espanhóis.
24 Monteses eram denominados os índios que viviam na mata e não tinham sido integrados
nem ao sistema das encomiendas (cf. nota 1) nem às reduções.
25 Os nomes que lhes são aplicados muitas vezes são equivalentes. Assim, o messias dos
estudos de Maria Isaura parece corresponder ao que Pierre Clastres considera profeta:
homem enigmático que proclamava o m do mundo e das normas vigentes (1980, p. 101),
cujos discursos identicavam o mundo como lugar do mal e espaço de uma infelicidade
resultante de circunstâncias históricas particulares da sociedade (Clastres, 1981, p. 102-
103). O autor interpreta os movimentos liderados por esses profetas como uma subversão
contra o perigo de morte que ameaçava a sociedade e uma convocação para fugir em direção
à terra-sem-mal (Clastres, 1981, p. 103-104).
26 Entendo por isso que uma prática sacricial e simbólica degenerou-se, segundo os relatos,
115
para a criminalidade (Cortesão I, 1951, p. 263-264, 288-289).
27 “Os amigos de São Paulo” é uma referência aos bandeirantes, São Paulo era sua região
de procedência ou seu centro de expansão (Cf. nota 23).
28 Tal a missão da igreja: difundir o poder de Deus e da Sua Majestade. Cruz e espada se
uniram para estender ilimitadamente o domínio do rei e do papa, “até que em seus domínios
(supostamente do Cristo vitorioso, que era representado no rei espanhol) não anoiteça
jamais” (Campanella). Essa associação foi tão perversa que não se pode falar dela como
algo que “dicultou” a pregação do evangelho, mas como o próprio ocultamento e negação
do evangelho (Westhelle, 1991, p. 183).
29 Na teologia israelita, por exemplo, não existia uma linguagem para falar de Deus-mãe;
por isso ela empresta da cultura vizinha cananéia a gura feminina Ashera, considerada em
alguns grupos esposa de Javé (Gerstenberger, 1988, p. 48). A teologia javista, centrada em
experiências masculinas como a “guerra”, era insuciente para falar de “coisas pequenas“,
como o parto. Diante disso os israelitas buscaram no termo Êl – nome comum de Deus em
todo mundo semítico – imagens para familiarizar Javé (Schwantes, 1996, p. 3).
30 Assim escreve-se sobre o cacique Apycabyja: “não se deixava domar ... e a cada
passo sacudia o jugo dando gritos de sanha contra quem queria amansá-lo ... com a larga
experiência ... e bondade dos padres foi pouco a pouco se desnudando de sua inumana
ferocidade e dando livre entrada ao penetrante raio da luz divina”. (Cartas Anuas, 1932-34,
1984, f. 228-229).
31 A expressão se refere ao discípulo da dúvida, Tomás, que aparece também como Sumé,
Tomé e Tumé.
32 O curioso é que os anunciados padres-sacerdotes ensinariam aos aborígines exatamente
o que os profetas e as profetizas indígenas rejeitavam.
33 Dela há notícia desde o México até a Argentina e desde o Peru até a costa do Brasil, no
continente americano.
116
Segunda parte:
TEOCOSMOLOGIA
Da espuma primordial de Jasuká descobriu-
se “Nosso Pai Último-Primeiro”. Ele cresceu
mamando no seio de Jasuká.
(Hino paĩ-tavyterã)
119
3 – A PALAVRA ORIGINAL:
O DIVINO E SUAS REPRESENTAÇÕES
No passado, os conquistadores armaram sobre os Guarani: que eles
“nunca zeram sacrifícios ao verdadeiro Deus”, que eram “mui inclinados
a religião, verdadeira ou falsa”, que “eram nos ateístas”, “quase cristãos”.
No presente, o fato de eles entenderem que a diferença entre a humanidade
e a divindade é para ser superada induziu alguns etnólogos a armarem
que sua religião é a-teológica (Viveiros de Castro, 1986, p. 53; Clastres H,
1978, p. 32).
Frente a isso, gostaria de apresentar aqui as formas como os Guarani
atuais personicam a palavra e organizam o que podemos chamar de
experiências transcendentes. Tomo por fonte a vasta etnograa religiosa
de diversos grupos: seus relatos, os versos dos seus cantos, a encenação
ritual, seus desenhos, suas interpretações e propostas de analogia com a
representação do divino na religião cristã. Parto do princípio de que aquilo
que é capaz de nos preocupar de forma última pode ser Deus (Tillich,
1984, p. 180) e que algo é teológico (Robinson, 1963, p. 48) não porque
se rera a um ser particular chamado Deus, mas porque coloca a pergunta
denitiva sobre o signicado da existência; ou seja, no nível do sagrado,
Deus, e no nível do seu mais profundo mistério, a realidade e a signicação
da nossa vida.
3.1 – A história
Os europeus classicaram os aborígines das Américas como cristãos,
judeus e gentios, conforme a chave de diferenciação vigente na época. Nas
primeiras décadas da conquista preponderou a opinião de que os indígenas
ou eram descendentes das tribos perdidas de Israel ou estavam aparentados
com os povos mouriscos. Essa interpretação, obviamente, redundou na
demonização de suas línguas e de suas expressões religiosas por serem,
supostamente, veículos de superstição e idolatria. Depois do III Concílio
de Lima (1582-1583), porém, passou a ganhar mais adeptos a ideologia de
120
que os indígenas tinham procedência cristã. Isso, porém, não melhorou a
atitude frente a eles. Tidos por “cristãos”, continuaram sendo tão ignorados
quanto rejeitados. No caso dos Guarani, não sendo pesquisado seu modo de
ser religioso, seu verdadeiro ser e sua verdadeira essência permaneceram
desconhecidos.
Entre os que armavam que os indígenas careciam de toda forma de
vida religiosa, tornou-se célebre a atitude dos conquistadores que atuaram
entre os grupos tupi-guarani da costa brasileira, no século XVI. Da aparente
ausência de duas instituições da sociedade européia, a lei e o rei, nesses
grupos, os missionários derivaram que eles, os aborígines, eram incapazes
de ter fé.
1
Para esses religiosos, sem uma “estrutura política hierarquizada”
não poderia haver “obediência” e, conseqüentemente, não se poderia “crer”
em nada, pois naquela época, a essência da crença era a obediência.
Por outro lado estão os que consideravam os indígenas “eminentemente
religiosos”, “quase” cristãos. O autor da primeira síntese da religião
guarani, Alonso de Barzana, em 1594, considera que já naquelas primeiras
décadas de contato os missionários eram “unânimes no reconhecimento
do espírito eminentemente religioso dos Guarani pois era crença comum
entre eles a existência de um ser supremo, a quem denominavam Tupã, e
porque acreditavam na imortalidade das almas” (Furlong, 1968, p. 78). Para
o mesmo autor, a inclinação natural desses indígenas para qualquer religião
teria levado alguns a se ngirem de lhos de Deus e de Jesus Cristo, mas
nada mais diz sobre os seres sobrenaturais pré-hispânicos.
É toda esta nação mui inclinada a religião, verdadeira ou falsa, e se os
cristãos lhes tivessem dado bom exemplo e diversos feiticeiros não lhes
tivessem enganado, não só seriam cristãos, senão devotos. Conhecem toda a
imortalidade da alma e temem muito as anguéra, que são as almas saídas dos
corpos, e dizem que andam espantando e fazendo mal (Monumenta Peruana
V, 1970, p. 589-590).
Os jesuítas que atuaram entre os Guarani representam o pensamento
pós-conciliar e, não raro, preferiram considerar os indígenas como “ateístas”
certamente por eles carecerem de esculturas religiosas ao invés de
identicá-los com religiões não cristãs.
Assim, Ruiz de Montoya, durante as polêmicas que lhe tocou enfrentar
na sua velhice, escreveu uma Apologia ([1651], 1996) na qual armou
categoricamente que “toda aquela gente... não teve jamais ídolos, adoração
121
nem idolatria de que falsamente se os calunia... Antes é acertadíssimo
que essas duas nações Guarani e Tupi em certa maneira foram ateístas”
(Ruiz de Montoya, 1996, p. 33-34, 93). Ele acresce que a qualidade dos
indígenas e da língua por eles falada deriva da pregação de São Tomé
2
que
antecedera os jesuítas nas Índias Ocidentais. Entrementes, “órfãos de mestre
e guia”, os indígenas “abriram os olhos ao visível presente, fechando os do
entendimento ao invisível futuro” ( Ruiz de Montoya, 1996, p. 94).
Mas em uma obra anterior, A Conquista Espiritual ([1639], 1985),
Ruiz de Montoya, embora tivesse armado que os Guarani nunca zeram
sacrifícios ao verdadeiro Deus, reconhece que, desse Deus, os índios
possuíam um conhecimento muito simples, herdado do citado apóstolo
São Tomé. O jesuíta registra as supostas palavras que o Santo teria dito aos
nativos:
A doutrina que eu agora vos prego perdê-la-eis com o tempo. Mas, quando,
depois de muitos tempos, vierem uns sacerdotes sucessores meus, que
trouxerem cruzes como eu trago, ouvirão os vossos descendentes esta
(mesma) doutrina (Ruiz de Montoya, 1985, p. 85-87).
O fato é que, na preocupação de achar entre os indígenas indícios da
existência do verdadeiro Deus, os missionários e demais conquistadores
acabaram encobrindo a experiência indígena do sagrado, permanecendo
desapercebidas aos missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII suas
formas de representação do divino. Não nenhum registro signicativo
das mesmas nem nos léxicos escritos pelos missionários na língua indígena,
nem nas crônicas da época colonial.
Uma das referências, ainda que indiretas, à “idolatria” dos indígenas
pode ser deduzida de um trecho do Catecismo de Lima
3
, onde parece
subjazer a idéia de que os indígenas divinizavam as forças da natureza e
os astros.
Pergunta – E o Sol, a lua, as Estrelas, a Estrela d’alva, o raio, não são Deus?
Resposta – Nada disso é Deus, senão feitura de Deus, que fez o céu e a terra
e tudo o que há para o bem do homem (Bolaños, 1931, p. 61).
O esforço dos missionários centrava-se em mostrar o caráter
civilizável dos indígenas e das suas línguas. Esse objetivo, porém, não
poucas vezes lhes fez passar por alto o que não podia ser convertido ou o
122
que eles julgavam que não podia ser convertido (Dietrich, 1997, p. 33-34).
O processo foi via de regra inverso ao que se faria, hoje, na Antropologia
ou na Ciência da Religião. Partia-se do que se “queria” ou se “devia” dizer
e buscava-se na língua indígena o termo que se considerava idêntico ou
análogo. O cristianismo, e não a religião indígena, era a matriz. Assim, Ruiz
de Montoya, no intuito de traduzir a doutrina do Deus cristão para o guarani,
tomou uma palavra do idioma aborígine, Tupã (Ruiz de Montoya, 1876aI,
p. 323), como equivalente do termo Deus. Na sua análise etimológica
desse termo, Montoya fez o que Melià considera o início de uma aventura
semântica (Melià, 1969, p. 151-159; 1989, p. 327. Cf. ainda Münzel, 1982,
p. 101-109) pois, a partir desse único ensaio, ele, ainda que se contradizendo,
presumiu provar que os Guarani “alcançaram” o conhecimento da existência
de Deus e perceberam sua unidade.
Chegaram os Guarani ao conhecimento de que havia Deus e ainda, em
certo modo, de nele haver unidade, ou que era um só Deus. Colige-se tal do
nome que lhe deram, que é ‘tupán’, do qual a primeira sílaba ‘tu’ expressa
admiração; a segunda, ‘pan?’, importa em interrogação e assim corresponde
ao vocábulo hebraico ‘manhun’, ‘quid est hoc’ (o que é isso), no singular
(Ruiz de Montoya, 1985, p. 52).
Com esse único termo, Ruiz de Montoya formulou na língua indígena
os dogmas fundantes da teologia e da piedade da época: Deus se fez homem,
não deixando seu ser de Deus; o Pai, o Filho e o Espírito Santo, mesmo
sendo três pessoas, não são mais que um só Deus; a Mãe de Deus não teve
mancha de pecado; etc (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 404).
Se considerarmos que os catecismos escritos em língua guarani se
inspiraram no Catecismo traduzido por Bolaños e que esse, por sua vez, foi
composto dentro das perspectivas do Concílio de Trento - que consolidou
a concepção de religião como um conjunto de verdades que deviam ser
aceitas sem contestação, virtudes que deviam ser praticadas e sacramentos
que deviam ser recebidos (Azzi, 1988, p. 99), temos que concluir que os
missionários denitivamente estavam impedidos de perceber manifestações
divinas concretas entre os indígenas. Eles estavam incumbidos de instruir,
de anunciar “a verdade”. Nesse contexto, vale observar o que Ruiz de
Montoya escreveu em suas crônicas: “Eu lhes dei a entender que havia um
Criador” (Ruiz de Montoya,1985, p. 141). A verdade dos indígenas cou
desapercebida até o início do século XX.
123
Feita essa primeira observação, apresento a seguir minha percepção
do panteão guarani contemporâneo.
3.2 – Jasuka: O Princípio do Ser e do Ser Criador
Os grupos guarani mbyá e kaiová ou paĩ-tavyterã possuem relatos
míticos que, direta ou indiretamente, se referem a Jasuka, uma espécie de
“princípio ativo do universo”, motor da teologia entre os Guarani.
3.2.1 – O simbolismo da “substância-mãe”
Os diversos nomes que o Ser Criador recebe entre os Guarani
deixam-se resumir nas seguintes expressões: “Nosso (ñande) Verdadeiro
(ete) Antigo (ymã) Falante (papa, hyapúva) Pai (ru) Grande (guasu) Último
(ypy) e Primeiro (tenonde)” (Cadogan, 1992, p. 28s) nos relatos mbyá, e
“Nosso (ñane, ñande) Antepassado, A(ramõi) Pai (ru) Resplandecente
(ju) Grande (su) e Falante (papa)” (Melià & Grünberg, 1976, p. 228) nos
relatos paĩ-tavyterã. A partir dessas especicações, pode-se armar que o
Ser Criador é uma gura masculina, identicada diretamente com os pais e
os avôs da sociedade guarani. O que é importante frisar aqui, porém, é que
esse ser não é innito pois tem um começo e depende de algo anterior a ele:
da substância criadora e mantenedora da vida, Jasuka.
Jasuka foi registrada pela primeira vez por Marcial Samaniego, em
1944, com o signicado de “origem de tudo, até mesmo dos deuses; que
enche e inclui o Universo, pai de tudo e de todos” (Cadogan, 1962, p. 47).
No longo canto recolhido por Samaniego (1968, p. 379s), no Amambái,
Nordeste do Paraguai, o guia espiritual dos indígenas cita o testemunho do
Ser Criador: “Foi por intermédio de Jasuka que levantei esta terra, diz meu
AGrande Originário, na antigüidade”. Nesse verso, Jasuka é destacada,
não como origem de tudo, mas como um objeto ou atributo, mediante o
qual o Criador fez a terra.
Os trabalhos de Schaden apresentaram Jasuka como princípio de
emanação, sem personalidade humana ou divina. Ela é a origem de todas
as coisas, inclusive do Ser Criador e das demais divindadedessas (Schaden,
1974, p. 110). O Ser Criador surge, nasce, descobre-se
4
a partir Substância
124
Mãe e cresce mamando na or, no seio, de Jasuka.
5
Essa idéia aparece
repetidamente nos cantos e relatos cosmogônicos.
6
Cadogan vai mais longe
e chega a pensar, a partir do paralelismo entre “or” e “seio” na linguagem
sagrada dos Mbyá, que Jasuka é a “mãe universal” dos Guarani (Cadogan,
1962, p. 47).
Nesse sentido, apoiado em informações mais antigas oriundas dos
Mbyá e quase esquecidas nos demais grupos, Cadogan entende que Jasuka
não se refere só ao feminino, mas também à mulher, e aponta nessa direção
uma série de sinonímias: (1) A equivalência entre Jasukáva e akãoja poty,
ores que adornam a coifa ou touca ritual da mulher, provável símbolo
(Cadogan, 1962, p. 48) da feminilidade (Cadogan 1962, p. 49) ou da
humanidade feminina, assim como Jeguaka é símbolo da masculinidade.
(2) Jasukáva é o nome sagrado da mulher em mbyá-guarani, assim como
Jeguaka é a humanidade masculina. (3) Jasuka Sy Ete seria a verdadeira
mãe Jasuka, a deusa do Sol e mãe universal. (4) Jasuka vyapu é o trovejar de
Jasuka, o canto sagrado ou ritual da mulher, do mesmo modo que Jeguaka
vyapu é o canto sagrado dos homens.
3.2.2 – O simbolismo do cesto, do bambu e de certas árvores
Jasuka é também o nome religioso do cesto, implemento guarani
tipicamente usado pelas mulheres. A importância simbólica desse utensílio
deixa conrmar-se no fato de três grupos guarani poderem ser identicados
pela sua cestaria
7
e no fato de esse implemento ter um papel essencial nos
mitos sobre a origem dos seres humanos. O Ser Criador bateu com seu
arco no cesto
8
e dessa ação originou-se o homem, que é um corpo (rete)
em forma de arco (guyrapa). Ele bateu no cesto pela segunda vez, dessa
vez com uma taquara, e dessa ação surgiu a mulher, que é corpo (rete) em
forma de cesto (ajaka) (Garlet, 1995, p. 3). Aparentemente há uma relação
entre o fato de o Ser Criador criar a mulher dessa forma e a tradição de ser
o homem guarani o fabricante do cesto, instrumento de uso exclusivo das
mulheres.
A importância do cesto-Jasuka se evidencia também no fato de as
plantas do porongo e do bambu, de cujas lascas se fabrica o cesto, surgirem
do orvalho, que é por sua vez símbolo de Jasuka. Dessas duas plantas surgiu
a humanidade, homem e mulher, respectivamente. A primeira planta é o
125
porongo. Dela se fabrica a maraca dos homens. Da mesma fonte nasce o
bambu, do qual se fabrica o bastão de ritmo das mulheres. A mulher, que
“é” ou procede de bambu, é o meio pelo qual se expressa a palavra-alma. A
sinonímia dos hinos paĩ-tavyterã destaca a importância da mulher nos rituais.
Assim, a expressão ñe’ẽ rerokamañytĩ quer dizer duplamente: “a palavra-
alma é provida de bambu” e “a presença da palavra-alma se faz possível por
intermédio da mulher(Cadogan & Melià, 1971, p. 120). Cadogan entende
que, sendo kamañytĩ o nome sagrado do bambu, símbolo da mulher, o ritual
no qual é entoado o hino cosmogônico dos Paĩ-Tavyterã pode ser interpretado
como ato de providenciar às divindades condição para a palavra. Jasuka
lhes concede kamañytĩ” signicaria, então, Jasuka lhes provê bastões de
ritmo, “paramenta-os”, ou, ainda, Jasuka os provê de mulheres, de esposas,
de palavras (Cadogan, 1971, p. 35). Nesse sentido cabe lembrar que Kurt
Unkel Nimuendaju registrou, no início do século (1914), entre os Apapokuva,
Jasukacomo nome de um bastão de taquara enfeitado que a mulher levava
em uma de suas mãos enquanto servia a bebida tradicional do grupo (kaguĩ)
durante a dança ritual (Cadogan, 1962, p. 49).
A simbologia vegetal para Jasuka estende-se a outras espécies. Entre
as árvores sagradas, os Mbyá reverenciam o cedro (ygáry) que, por destilar
uma seiva, no início da primavera, recebe o nome de Jasuka Venda (lugar de
Jasuka) (Cadogan, 1971, p. 25). Nessas seivas inspirou-se o autor ou a autora
da metáfora “uido das árvores da palavra-alma”,
9
registrada por Cadogan
(1971, p. 26). O cedro, como é sabido, é considerado uma espécie geradora
das demais árvores, uma árvore-mãe. Conta-se que, depois do dilúvio, suas
sementes deram origem a toda a diversidade de vegetais hoje conhecida
(Cadogan, 1971, p. 25). A palmeira pindó (yva’y) é outro exemplo similar.
O Ser Criador teria criado o mundo sobre cinco palmeiras eternas, sendo
que uma delas estava ncada na fonte de Jasuka, Nossa Verdadeira Mãe.
Essa palmeira teria sido a primeira árvore a ressurgir depois do dilúvio.
3.2.3–Osimbolismodouidovital
Em muitos mitos, o “princípio ativo do universo” aparece em forma
de água eterna, de uido vital, de fonte que gera, regenera e rejuvenesce
constantemente a existência.
A Verdadeira Mãe
10
viveu, originalmente, numa fonte de água
126
que era o verdadeiro centro da terra e nascedouro dos povos guarani. Os
Aché-Guajaki contam que, para sair das entranhas escuras da terra, seus
antepassados seguiram um curso de água muito belo (Cadogan, 1971, p.
27). Os Paĩ-Tavyterã do Paraguai e os Kaiová do Brasil armam que Jasuka
é uma chuva mansa, perpétua e clara, em permanente movimento, criadora
e aperfeiçoadora dos seres e das coisas. O Ser Criador, as divindades e os
xamãs precisam banhar-se nessa água original
11
para se renovarem. Nesse
sentido, é interessante notar que há um registro análogo entre os Tembé do
Amazonas. Conforme Nimuendaju, esse grupo pretendia chegar a um lugar
de bem-aventuranças, onde os velhos não caminham para a morte, mas para
o rejuvenescimento (Nimuendaju, 1915, p. 288). Cabe ainda mencionar que
os grupos kaiová e paĩ-tavyterã derivam do termo água a expressão “fazer
chover”, com a qual referem o ato de nominação das crianças e de iniciação
dos meninos. Para esses grupos, o signicado de fazer chover é enfeitar,
preservar, integrar.
Nos relatos mbyá, Jasuka é um uido vital e é representado pela
fumaça e pela neblina, considerados fonte da vida, das plantas, dos favos
de mel, dos animais, das pessoas e dos seres divinos.
No esforço de se fazerem compreendidos pelos não-índios, os
Kaiová-Guarani do Mato Grosso do Sul costumam dizer que Jasuka é um
motor. Motor movido com o kaguĩ, bebida tradicional feita de milho.
O kaguĩ é o primeiro sumo de Jasuka. Jasuka é para nós o que o motor é para
os brancos; com a diferença que Jasuka é natural, não é feito. Ele serve para
nos dar vida e nos recompor. Algumas pessoas são refeitas a tal ponto por
Jasuka que não morrem, cam novas outra vez, como uma criança de lábio
recém-perfurado. O kaguĩ, que é a expressão de Jasuka, é o nosso princípio,
é ele que nos renova a todos (Chamorro, 1995, p. 99).
3.2.4 – O simbolismo da mulher e as virtudes de Jasuka na história
Do que foi apresentado até aqui, não cabe dúvida que é com a
mulher que estão associadas de modo mais incisivo as “virtudes” de
Jasuka. Embora não se possa precisar a existência de uma mãe universal
no imaginário guarani em tempos pretéritos, gostaria de apresentar algumas
considerações a esse respeito. Inicio com um trecho do prólogo de Marta
Vanaya aos Mitos y Leyendas Guaraníes.
127
O vínculo do sexo feminino com o “elemento primigênio” sagrado põe em
descoberto a vigência, em tempos pretéritos, de um culto da mulher em sua
condição de mãe e criadora, “fonte de vida”, fundamentada na experiência
quotidiana da comunidade, na qual ela, a mulher, garantia a existência,
a continuidade e a evolução, através da procriação, da providência de
alimentação e da concepção e elaboração da maior parte do equipamento
material (Vanaya, 1986, p. 12).
Vanaya parte da crença mbyá que situa a taquara no centro da terra
de Nossa Verdadeira Mãe e do fato de ser exclusivo das mulheres o uso
do bastão de ritmo
12
feito desse vegetal. Para ela, o bastão de ritmo das
mulheres esteve originariamente vinculado à semeadeira ou pau cavador,
instrumento usado pelas mulheres tanto no tempo em que os Guarani eram
coletores como quando se tornaram agricultores.
Segundo Vanaya, era natural que, na época da transição para
a agricultura, o instrumento técnico que favoreceu a mudança fosse
reverenciado e ritualizado de diversas maneiras, que ele representava a
enorme importância que a nova atividade econômica tivera para o grupo
no passado. Tenha-se em vista que nem o machado de pedra nem seu
prestigioso substituto, o de metal, que transformaram radicalmente a vida
dos indígenas, mereceram a consideração que coube ao instrumento usado
pelas mulheres (Vanaya, 1986, p. 16).
Hoje, o fato de o instrumento portado pelos homens
13
ser o emblema
de poder mais destacado entre os Guarani, e não o das mulheres, faz supor
que houve, na história do grupo, um momento de passagem de uma religião
centrada na gura feminina para outra, centrada na gura masculina.
Para Vanaya, essa passagem é marcada pelo mito dos gêmeos (Vanaya,
1986, p. 19s). O processo colonial e missioneiro certamente intensicou
essa mudança, colocando numa das mãos dos homens o bastão de alcaide
(Lozano I, 1873, p. 384), símbolo de poder no âmbito temporal, e, noutra, a
cruz, símbolo de poder no âmbito religioso.
Nesse contexto, levando em conta que na religião cristã a gura da
“Maria, Mãe de Deus” era dominante, é interessante indagar qual o impacto
provocado pelo cristianismo sobre os Guarani. Como foi dito, os Guarani
se organizavam em famílias e em grupos de famílias regidas por uma
autoridade masculina.
128
Mostravam algo de racionais na forma de seu governo pois ainda que divididos
em muitas parcialidades, respeitava cada um por cabeça a seu cacique, que
em seu idioma denominavam tuvichá (Lozano I, 1873, p. 384).
A autoridade à qual os Guarani estiveram submetidos durante a
colônia, obviamente, era masculina. Por outro lado, na retórica missionária,
Maria era a autoridade por excelência, a tuvichavete ( Ruiz de Montoya,
1876aI, p. 312) que, ao lado da cruz, era um símbolo essencial na missão,
seja no âmbito da palavra ou da expressão plástica.
Ali levantaram o estandarte da cruz,zeram uma pequena palhoça para igreja
que intitularam de Nossa Senhora de Loreto (Ruiz de Montoya, 1892, p. 32).
Minha casa foi a sombra de uma árvore, onde tinha uma imagem da
Conceição de Nossa Senhora, de meia vara; minhas armas, uma cruz que
continuamente trazia em minhas mãos (Ruiz de Montoya, 1892, p. 130).
em todos os povos duas Congregações: uma de Nossa Senhora e outra de
São Miguel (Hernández II, 1913, p. 562).
Mas se essa prática, por um lado, foi suciente para deixar no
Paraguai uma profunda mariânica, por outro, seus sinais na mitologia
guarani, hoje, quase não se percebem. Entre os Apapokuva ela era chamada
de “Nossa Mãe”,
14
e não de Mãe de Deus,
15
como Maria era conhecida
nas reduções (Nimuendaju, 1987, p. 128). Entre os Kaiová, chamam-na
Tupã Sy Ka’akupe, Mãe de Deus de Caacupé, identicando-a com isso à
Virgem Maria venerada em todo o Paraguai e cujo santuário se encontra
na cidade de Caacupé. Nos relatos kaiová, ela supostamente se casou com
um eminente cacique, de quem teve um lho, o marechal Francisco Solano
López.
16
Como se pode ver, a Jasuka da etnograa dos Guarani modernos não
apresenta similitudes com a “Nossa Mãe” dos mitos Guarani correspondentes
ao ciclo dos Gêmeos nem com a Mãe de Deus do cristianismo colonial. A
mulher sobre a qual recai de modo incisivo as “virtudes” de Jasuka é uma
personagem anterior ao ciclo de relatos onde o “Nosso Irmão” é protagonista.
“Nosso Irmão” suplantou no âmbito da espiritualidade indígena a imagem da
mulher como “princípio ativo do universo”. Connou-a a uma peregrinação
de trágico desenlace e a uma aparição eventual junto a seus lhos vitoriosos,
no nal do relato mítico sobre a humanização do mundo. Durante a história
129
colonial, sem dúvida os poderes e o resplendor da cruz contribuíram para o
ocultamento dessa imagem da mulher.
Mas os indígenas aspiram reencontrar-se com a Jasuka Sy Ete, com a
avó ou mãe originária, que mora nas profundezas do escuro, do outro lado
do mar, na “terra sem males”.
3.3–PrincipaisPersonicaçõesdoDivino
O que se pode considerar uma divindade dentro de uma cultura
tribal? Marshall Sahlins escreve que a primitividade desse tipo de cultura
repousa na sua estrutura generalizada, no fato de o discurso ser um relato
geral do esquema social tribal. Na tribo, a produção (tecnologia), a política
(organização social) e a religiosidade (ideologia) não estão organizadas
separadamente (Sahlins, 1970, p. 27-28). As divindades, portanto, podem
não manter uma total alteridade do ser humano ou aparecer com uma
identidade que não seja inteiramente outra à do ser humano. Desse modo,
a consistência do sistema que essas divindades compõem não deve ser
buscada num plano estritamente religioso, mas na sua relação com a ordem
social (Sahlins, 1970, p. 33). Por exemplo, como a força de uma tribo está
no grupo doméstico, é a família - com os conitos que a caraterizam - que
modela a concepção de divindades originárias.
Semelhantemente, não só na história de Israel, mas também na
de outras religiões tribais, essas divindades são chamadas de “Deus dos
pais”. A divindade que se revelara a Abraão, a Isaque e a Jacó recebeu
seu nome desses três patriarcas, que se tornaram receptores da revelação e
fundadores do culto daquela divindade, que a seguir passou a ser adorada
como “Deus dos pais”. Assim, Moisés devia apresentar-se ao povo dizendo:
“O Deus de vossos pais me enviou até vós” ( Ex 3.13 (Jenni & Westermann
I, 1978, col. 47). No caso guarani, essas divindades tribais são “Nosso Pai”
ou Nosso Avô, “Nossa Mãe” ou Nossa Ae uma terceira personagem, A
Coisa que Sabe, A Sabedoria ou Aquele-que-sabe.
17
Essas, dentre as muitas
personagens que habitam o mundo sobrenatural guarani, merecem destaque
pela ação decisiva que lhes cabe nos relatos míticos e pela analogia que
existe entre elas e a organização social indígena.
130
3.3.1 – “Nosso Pai”, “Nossa Mãe” e a Sabedoria
Nosso Avô, Nosso Grande Pai, “Nosso Pai” Último-Primeiro, “Nosso
Pai” “o Sol”, Eloqüente Dono da Palavra
18
são nomes que designam, em
vários grupos guarani, o criador do mundo e o protopai do grupo.
19
Como foi visto, o ato ou processo pelo qual ele toma forma, a partir
do uido vital “Jasuka”, é descrito como “o desabrochar de uma or” e sua
ação criadora de certa forma continuidade a essa metáfora: ele “cria no
curso de sua própria evolução” (Cadogan, 1992, p. 27), desdobra-se, abre-
se em or, descobre-se à medida que cria (Melià & Grünberg, 1976, p. 228).
Ele cria e sustenta a terra com a extremidade da vara insigne
20
que leva em
suas mãos. Esse eminente Ser criador do panteão guarani é representado
pelo “papagaio da boa palavra” (Cadogan, 1992, 48-49).
“Nosso Pai” dene a economia de subsistência entre os Guarani,
pois ele é o primeiro personagem da história do grupo que realiza a proto-
roça e cultiva o milho. Os Apapokuva contam que “à medida que ‘Nosso
Pai’ avançava, derrubando a mata, a roça atrás dele plantava-se sozinha.
As sementes brotavam e, quando ele retornou para casa, as espigas
começavam a madurar” (Nimuendaju, 1987, p. 48).
Mas “Nosso Pai” não está só, acompanha-o “Nossa Mãe”,
21
com
quem funda a protofamília humana. Esse casal originário desdobra-se em
outros casais, como um prenúncio da dualidade que desde cedo compõe
a cosmovisão guarani. Duplicam-se as personagens para enfatizar muitas
vezes as características de uma mesma entidade.
“Nossa Mãe”
22
é a protomulher e a protomãe de um novo ciclo
narrativo, produzida sob a inuência do Mito dos Gêmeos. Apesar de um
de seus nomes sagrados ser Jasukávy
23
e apesar de Jasuka ser a origem
de todas as coisas, “Nossa Mãe” aparece nesse novo ciclo narrativo como
resultado da ação de “Nosso Pai”. Ela foi encontrada no interior de uma
panela tradicional nos mitos chiripá, apapokuva
24
e kaiová; enquanto que nos
relatos paĩ-tavyterã, “Nosso Pai” a criou a partir do centro da sua diadema
ou jeguaka, símbolo da humanidade masculina (Melià & Grünberg, 1976,
p. 228). Segundo os informantes de Cadogan, foi necessário criar a mulher
do centro desse enfeite ritual masculino para que os indígenas pudessem
procriar.
É interessante observar os verbos usados pelos indígenas para
marcar o início da existência da mulher. Quando ela é descoberta debaixo
131
da panela, o verbo é jejou, que signica “encontrar-se, achar-se”. Mas,
quando seu “nascimento” deriva-se do enfeite ritual masculino, o verbo é
ñemopu’ã que, traduzido por “levantar”, faz referência à ação de dotar de
verticalidade, tornar humano. Em ambos os casos, porém, há a idéia de que
a mulher já existia antes da sua “criação”.
O conito entre “Nosso Pai” e “Nossa Mãe” é detonado por
Mba’ekuaa, Aquele-que-sabe.
25
Os relatos desse desentendimento assumem
as mais diversas formas. Os Kaiová fazem os seguintes destaques.
Quando “Nosso Pai” e “Nossa Mãe” estavam para se multiplicarem,
26
Papa Réi chegou à casa deles e encontrou a “Nossa Mãe”, pois “Nosso
Pai” estava na roça. Este cou desconado quando soube da visita, cou
irado porque achou que Papa Réi
27
teria fornicado com “Nossa Mãe”.
Decidiu abandonar a terra e subir à sua morada celestial. Despediu-se da
sua esposa com estas palavras: “Se fores verdadeiramente meu adorno
(minha esposa), saberás chegar à minha morada”. E ele subiu relampeando,
iluminando para si o caminho que devia andar (Cadogan, 1962, p. 53). Ele
ainda mediu forças com “Nossa Mãe”. Tentou provocar-lhe enviando-lhe
um vento muito forte, mas ela não se irou; ao contrário, pegou o bastão de
ritmo das mulheres e, pela primeira vez, entoou um canto. Nele, enumerou
as divindades, a terra e as criaturas que não existiriam se não fosse o poder
criador de Nosso Pai (Cadogan, 1962, p. 54-55). Em outras narrativas,
“Nossa Mãe” é deorada por essa terceira personagem, nesse caso chamada
de Aquele-que-sabe, logo depois de ter sido “encontrada” por “Nosso
Pai”.
28
A versão dos Apapokuva, que conhecemos graças a Nimuendaju,
diz o seguinte: chegando à casa, “Nosso Pai” teria pedido a sua mulher
que fosse colher milho da roça. A mulher, irritada com a solicitação do
marido, não o levou muito a sério, pois ele acabara de fazer a sementeira.
Ofendido com a atitude da protomulher, “Nosso Pai” decidiu deixar a terra.
Sua esposa teria agravado seu desacato
29
acrescentando maldosamente:
“Não estou grávida de ti, mas de Mba’ekuaa (d’Aquele-que-sabe)!”
(Nimuendaju, 1987, p. 135). A reação de “Nosso Pai” é tranqüila, e revela
a atitude de um verdadeiro Guarani: “Não responde, e muito menos castiga
diretamente a desobediência” (Nimuendaju, 1987, p. 49). Ele abandona o
lugar, ocasionando com sua partida um processo migracional.
A primeira a migrar sobre a face da terra é “Nossa Mãe”. Nisso ela se
diferencia das demais personagens femininas dos ciclos míticos americanos,
132
porque não desaparece e continua no cenário histórico narrativo.
30
Entre
os Guarani, ela funda as características atuais da agricultura, a mobilidade
geográca do grupo e, aparentemente, o mal na terra pois, em última
instância, provocou a desconança e a ira de seu marido.
31
Ela também
aguarda, na “terra sem males”, por aqueles que estão a caminho (Bartolomé
1991, p. 74).
“Nosso Pai” abandonou a terra, de cujo destino ele não participa mais,
antes de torná-la habitável para os humanos. “Aquele-que-sabe” também
se retira, permanecendo em cena somente “Nossa Mãe”, que está grávida.
Assim termina esse ciclo.
32
O mundo se tornará habitável graças aos heróis
culturais, que inauguram o ciclo dos irmãos.
3.3.2 – Heróis Culturais: Tornar o mundo habitável, vencer o jaguar
Em quase todos os relatos o “Irmão Maior”
33
e o “Irmão Menor”,
34
representados pelo Sol e pela Lua
35
, respectivamente, são referidos como
gêmeos
36
e como dupla. Eles dão continuidade à dualidade inaugurada no
ciclo anterior. Os principais momentos do mito mostram que a dualidade
se manifesta através de características que se correlacionam seguindo o
esquema ativo-passivo.
“Nossa Mãe” cara grávida dos gêmeos quando “Nosso Pai” a
abandonou. Disposta a reencontrar seu marido, ela se paramentou e saiu
à sua procura, guiada pelos lhos, que ainda não tinham nascido. No
caminho, a mãe briga com um deles - o “Irmão Maior” -, ao ser picada
por um inseto quando tentava arrancar-lhe uma or. Aparentemente, ele
não se ofendeu com a atitude da mãe. Nisso repete a atitude tipicamente
guarani, inaugurada pelo seu pai: Não discute mas não esquece a ofensa.
Mais tarde, ao chegarem a uma encruzilhada, o lho decidiu se vingar. Viu
sua mãe pegar o trecho que conduzia à casa dos jaguares demoníacos e não
a advertiu. Os jaguares devoraram a “Nossa Mãe” e os gêmeos nasceram
órfãos.
Os irmãos viveram na casa dos jaguares até que o papagaio lhes
disse que eles moravam com os assassinos de “Nossa Mãe”. Depois dessa
revelação, eles saíram à procura dos restos da sua nada mãe. Após tê-los
encontrado, a primeira grande tarefa de Kuarahy foi tentar ressuscitar sua
progenitora, modelando sobre seus ossos um novo corpo feito de terra. Ele
133
não conseguiu levar a obra a termo por uma imprudência de seu irmão
menor. Ocorre a segunda morte de “Nossa Mãe”
37
e com isso os irmãos
cam, denitivamente, órfãos. Então decidiram se vingar dos jaguares e se
puseram a caminho para tal.
Caminhando, eles humanizaram o mundo, deixando-o habitável,
pronto para ser morada do ser humano. Deram nome às frutas silvestres
e a alguns animais; zeram armadilhas; roubaram o fogo dos urubus;
descobriram outros seres humanos, alguns inimigos e seus futuros cunhados.
Para humanizar o mundo, porém, tiveram que derrotar o principal inimigo
do ser humano, o jaguar. Esse é o único animal que pode comer o ser humano
e rivalizar com ele. Sua representação é o Aña, uma espécie de demônio.
Em uma de suas travessuras, o “Irmão Menor” causou um problema
com Aña, que o matou. O “Irmão Maior” intercedeu, pedindo a Aña que
lhe entregasse os ossos de seu irmão, com os quais ele o ressuscitou.
cansado das trapalhadas do seu irmão, o “Irmão Maior” decidiu separar-se
dele, aparecendo, hoje, somente quando seu irmão se esconde. Assim se
originaram a noite (ciclo lunar) e o dia (ciclo solar). Ciccarone lembra, a
propósito desses episódios, como é necessária e ao mesmo tempo difícil a
colaboração entre os membros da mesma geração. Apesar dessa tensão, a
relação entre Nossos Irmãos propõe o modelo da solidariedade para a vida
coletiva (Ciccarone, 1999, p. 54).
Mas os dois irmãos voltaram a se encontrar e a se ocupar com o
motivo que desencadeou a migração guarani: reencontrar-se com “Nosso
Pai”. Dispostos a enfrentar todas as diculdades para alcançar o objetivo
original, os irmãos são desaados pelo seu pai a construir o caminho que
os levasse até ele. O “Irmão Maior” inventou muitas echas e as disparou
no rmamento para preparar o sendeiro que os levasse até “Nosso Pai”. O
resultado foi uma verdadeira “coluna de echas”, pela qual os dois irmãos
ascenderam, para ocupar cada um seu respectivo lugar no rmamento.
Finalmente se encontraram com o pai. O “Irmão Maior” lhe fez muitas
perguntas e lhe pediu sua indumentária e seus atributos xamânicos. Nosso
Pai, atendendo ao seu pedido, o instituiu grande xamã. Depois disso, o
protopai abandonou novamente a cena. Enquanto isso, o “Irmão Menor”
tinha reencontrado sua mãe e mamado nos seus seios.
Quando os dois irmãos nalmente chegaram à casa de “Nossa Mãe”,
foram recebidos pela arara, que lhes ofereceu frutas, pão, mel silvestre e
bebida feita de milho. “Nossa Mãe” os cumprimentou com a saudação
134
lacrimosa típica dos Tupi-Guarani e lhes disse: “Na terra, a morte é o m de
vocês. Não voltem para lá, quem agora aqui!” E iniciou-se a festa! (Melià
& Grünberg, 1976, p. 230-232; Perasso, 1986, p. 42-45; Nimuendaju, 1987,
p. 135-141; Bartolomé, 1991, p. 43-59). Até aqui, vimos o mito fundador
do ciclo dos gêmeos.
Mesmo que o mito dos gêmeos seja conhecido apenas
fragmentariamente em alguns grupos, nele se inspira boa parte da religião
dos Guarani. Para Bartolomeu Melià, apesar de algumas expressões
provavelmente registrarem preocupações mais modernas, a estrutura e o
idioma simbólico do mito são muito arcaicos e certamente pré-históricos.
A consonância e analogia desse mito com outros mitos de tribos falantes de
línguas do tronco tupi faz a matriz mítica remontar a dois ou mais milênios,
quando o tronco não apresentava as ramicações tribais que se deram no
decorrer dos séculos (Melià, 1989, p. 326).
O desenlace da história narrada acima deixa claro que há uma
identicação direta entre o “Irmão Maior” e “Nosso Pai” e o “Irmão Menor”
e “Nossa Mãe” e que a dualidade do ciclo anterior persiste nas andanças
dos irmãos. O menor regula os cultivos e o maior a caça, conforme alguns
relatos; eventualmente, faz-se referência a duas personagens de inspiração
lunar, sendo uma masculina e outra feminina (Perasso, 1986, p. 39).
Jensen e Bartolomé as interpretam como uma representação da morte e da
ressurreição, no mundo vegetal (Bartolomé, 1991, p. 76).
Conforme Celeste Ciccarone (1999, p. 55), o estreito vínculo de
“Nosso Irmão Menor” - associado com a lua, Jasy, e representado por ela -
com a “Nossa Mãe” “leva consigo para a morada do pai todas as mulheres,
pela associação do ciclo lunar com os tempos biológicos e produtivos
femininos”. Para o informante da autora citada, o “Irmão Maior” pede ao
“Irmão Menor” que o acompanhe à morada do “Nosso Pai”. Jasy responde:
“só se forem junto todas as mulheres” (Ciccarone, 1999, p. 53).
Quanto à cosmicação do universo operada pelos irmãos, gostaria
de destacar a luta com o jaguar. Não existiu inicialmente uma diferença
estrita entre ser humano e jaguar, que os irmãos viveram na casa dos
jaguares e lá foram criados como irmãos dos felinos, num tempo mítico de
pré-diferenciação. Vencendo o jaguar, o ser humano, na gura dos irmãos,
inaugura a ordem no mundo. Nesse sentido, “a atitude religiosa do indivíduo
consiste fundamentalmente em conservar a consciência da origem divina de
tal ordem” (Bartolomé, 1991, p. 76). Nos “gêmeos” coexistem o que foi e o
135
que é, que suas aventuras ocorrem num tempo meta-histórico, a partir do
qual seu presente seria inexistente sem seu passado como herói (Bartolomé,
1991, p. 74-75). O “Irmão Maior” é o cosmicador e o transformador da
natureza. É ele quem nome às coisas. É ele quem humaniza o mundo
e, como Jensen dissera, à falta de um Deus ativo, é o herói cultural que é
divinizado (Bartolomé, 1991, p. 76).
3.3.3 - Pais e Mães das palavras-almas de origem divina
Entre as divindades principais dos Guarani se encontram também as
Mães e os Pais das palavras-alma de origem divina. As informações mais
detalhadas sobre essas divindades as devemos aos Mbyá, sendo a fonte
básica para conhecer esse assunto os capítulos dois e três do Ayvu Rapyta,
que passo a apresentar.
Continuando sua criação, mediante a sabedoria contida na sua própria
divindade, e em virtude de sua sabedoria criadora, “Nosso Pai” concedeu
consciência de divindade ao verdadeiro Pai dos futuros Karai, ao verdadeiro
Pai dos futuros Jakaira e ao verdadeiro Pai dos futuros Tupã. Para serem
verdadeiros pais de seus futuros numerosos lhos, para serem verdadeiros
pais das palavras-almas de seus futuros numerosos lhos, concedeu-lhes
consciência da divindade. Esses Pais são chamados: “excelsos verdadeiros
pais das palavras-almas”, Ñe’ẽ Ru Ete pavẽngatu.
“Nosso Pai” também concedeu consciência da divindade à futura
verdadeira Mãe dos Ñamandu.
38
Karai Ru Ete fez com que a futura
verdadeira Mãe dos Karai participasse da divindade. Por sua vez, Jakaira
39
Ru Eté fez partícipe da divindade à verdadeira Mãe dos Jakaira. Da
mesma maneira, Tupã Ru Ete infundiu divindade à futura mãe dos Tupã,
que se situaria frente a seu coração. Essas Mães são chamadas “excelsas
verdadeiras mães das palavras-almas”, Ñe’ẽ Sy Ete pavẽngatu (Cadogan,
1992, p. 37-39). Seguidamente, quando “Nosso Pai” já estava por internar-
se nas profundezas do paraíso, ele instituiu a Karai Ru Ete como Deus do
fogo, a Jakaira Ru Ete como Deus da primavera e a Tupã Ru Ete como Deus
das águas. Assim falou “Nosso Pai” Último-Primeiro, antes de internar-se
no paraíso, antes de colocar na terra a boa ciência (Schaden, 1974, p. 108):
136
Jakaira Ru Ete, “farás sentar, acharás lugar na mente, no interior de nossos
lhos e de nossas lhas, a neblina. Cada vez que retorna a primavera
colocarás a neblina como morada terrena, para teus lhos, os Jakaira de
coração grande. Somente assim, nossos lhos e nossas lhas prosperarão”.
Karai Ru Ete, “tu também farás com que as chamas sagradas tenham lugar
em nossos lhos e em nossas lhas”. Tupã Ru Ete, “faça com que aquilo
que eu concebi para a moderação tome lugar no coração de nossos lhos.
Somente assim, viverão em harmonia os numerosos seres que se erguerão
na morada terrena, ainda que queiram desviar-se do verdadeiro amor”
(Cadogan, 1992, p. 56-57).
É interessante notar a força simbólica da neblina, da água e do fogo
vinculada às divindades. Num canto kaiová entoado na ocasião de pôr fogo
à roça invoca-se um líder indígena, Pa’i Tambeju, dizendo:
Faz olhar em direção a mim teu modo de ser. Faz olhar em direção a mim o
fogo criado para alegrar as pessoas. Faz olhar em direção a mim o verdadeiro
fogo que se criou para alegrar as pessoas, com ele dirige-te em direção a mim,
em virtude destas palavras. Faz olhar em direção a mim a tocha destinada
a alegrar as pessoas, em virtude destas palavras. Meu irmão maior, Pa’i
Tambeju Grande, faz olhar em direção a mim sua tocha originária, incline-se
para mim sua tocha originária (Cadogan, 1962, p. 54).
Embora com peso diferente nos vários grupos, essa concepção de
divindade mostra o enraizamento dos Guarani numa antiga psicologia
centrada no conceito palavra-alma, que constitui, como foi referido,
a chave sem a qual é impossível compreender o seu sistema religioso
(Schaden, 1974, p. 108).
James Hillman, em seu livro Suicide and the Soul, mostrou que, para
os povos chamados primitivos, a alma era uma idéia altamente diferenciada
referente a uma realidade de grande impacto. A alma tem sido explicada
como o ser interior, a irmã ou a esposa interior, como o lugar ou a voz de
Deus dentro das pessoas. Alma é uma força cósmica da qual participam
todos os seres humanos e as coisas vivas. Palavra-alma não é alguma coisa
que possa ser denida, não é realmente um conceito, mas um símbolo
(Hillman, 1973, p. 46). Na cosmologia guarani, como se sabe, ayvu ou ñe’ẽ
é essa alma de origem divina e, como tal, está destinada a desenvolver-
se até alcançar sua plenitude. É como se as pessoas pudessem existir
segundo sua própria substância, procurando incessantemente restaurar
sua relação original com as divindades. E o mais importante de toda essa
137
psicologia teológica é, como diz Melià, a “convicção de que a alma não é
dada completamente feita, mas se faz com a vida do homem [da pessoa] e
o modo como se faz é seu dizer-se; a história da alma guarani é a história
de sua palavra, a série de palavras que formam o hino de sua vida” (Melià,
1989, p. 311).
Os Paĩ-Tavyterã e os Kaiová não fazem referência explícita aos Pais
e às Mães das palavras-almas. Eles se referem a essas entidades pospondo
o termo “dono” ao substantivo “modo de ser”, do que resulta: Tekojára.
40
Variações dessa expressão são Mba’ejaryrusu, grande dono das coisas, e
Yvypojáry, dono dos seres humanos (Melià & Grünberg, 1976, p. 228). Outro
termo usado nesses grupos para designar as Mães e os Pais das palavras-
alma é Tupãnguéra,
41
o que sugere a existência de uma sinonímia entre a
divindade urânica, Tupã, e as palavras-alma de origem divina. Tenha-se em
vista, nesse sentido, que a manifestação mais portentosa de Tupã é o trovão,
cuja representação ritual é a maraca. O som produzido por esse instrumento
é considerado voz das divindades, palavra divina. O xamã ausculta no som
desse instrumento a mensagem das divindades. É provável que a enorme
difusão e a gama de signicados que o termo Tupã adquiriu entre os grupos
guarani se deva ao fato de, com esse termo, ter sido traduzido para dentro
do cristianismo o conceito cristão de Deus único e supremo. Nesse sentido,
não é estranho que o termo muitas vezes seja usado hoje como um nome
comum, signicando, aproximadamente, “divindades”.
Algo da sua natureza como Pai das palavras-almas, porém, pode
ter sido preservada no fato de, juntamente com Karai, Tupã ser um termo
básico para formar os nomes sagrados masculinos entre os Guarani. Nesse
mesmo sentido, cabe lembrar que Tupã é a palavra através da qual os
Kaiová e os Paĩ-Tavyterã formulam a expressão tupãréry, ‘nome sagrado’
ou ‘verdadeiro nome’. Esse nome é a concretização audível da palavra-
alma de uma pessoa e é esse nome que a mantém ereta, viva.
Outras personagens do “panteão” guarani serão oportunamente
apresentadas. Muitas delas podem ser uma duplicação das citadas ou
a divinização de antepassados notáveis. No capítulo sobre cosmologia,
ocupar-me-ei especicamente com os Donos do Ser ou Tekojára, que
conferem um caráter animista à religião guarani e pontuam um axioma da
sua teologia: a imanência do divino na criação.
138
3.4 - Atributos divinos
Três virtudes básicas enfeitam as divindades guarani: vera, ou a luz
dos relâmpagos, rendy, ou a luz das chamas, e ryapu, ou o som dos trovões
(Cadogan, 1967-68, p. 134; Melià & Grünberg, 1976, p. 228; Chamorro,
1995, p. 187-191). Essa trilogia tyapu-vera-rendy aparece com muita
freqüência nos cantos e relatos dos indígenas. Neles, muitas divindades
são aclamadas pela sua boa chama, Rendy katu, pelo seu bom brilho, Vera
katu, e pelo seu bom falar, Ryapu katu ou ñe’ẽngatu, características que
compõem o bom modo de ser, Teko katu, desses seres. As expressões,
evidentemente, são inspiradas em fenômenos da natureza e, via de regra,
são qualicativos atribuídos a entidades sobrenaturais. Não raro, porém,
esses atributos são referidos de forma independente, como se eles mesmos
fossem as divindades. Ao que parece, essa é uma característica das religiões
dos grupos tupi-guarani, que tendem a personicar suas experiências
transcendentes, os atributos e as manifestações de suas divindades e a
estabelecer com elas relações de parentesco (Schaden, 1965, p. 106-108;
Métraux, 1979, p. 1-20).
Nos documentos coloniais, os termos “som, brilho, chama” guram
apenas com a signicação de trovão, relâmpago, ruído, brilho, ruído da
chuva e do vento, reluzir, brilho do sol e da lua. As metáforas construídas
com esses termos são do âmbito religioso cristão. Com o termo vera, Ruiz
de Montoya traduz a transguração de Cristo (Ruiz de Montoya, 1876c, f.
78) e com tata, fogo, um sinônimo de rendy, refere-se à Virgem Maria como
“lua resplandecente dona do amanhecer” ou como “estrela d’alva” (Ruiz
de Montoya, 1876b, p. 312). Semelhantemente, o autor das Cantigas na
lingoa descreve, a partir desse mesmo termo,
42
o esplendor da Mãe de
Jesus: “amanheces brilhando como o fogo da lua, alegrando todo o dia”
(Araujo, 1952, p. 4s). Mas com relação às divindades indígenas não
nenhuma referência mais explícita que a que consta no catecismo traduzido
por Bolaños.
43
É curioso notar que Ruiz de Montoya usa as mesmas expressões,
44
condenadas por Bolaños por serem idólatras, para falar de Cristo e de
Maria. Nos sermões do Jesuíta Simão Bandini, Maria, em particular,
é freqüentemente comparada com o Sol: “a mãe de Deus sobrepuja em
formosura o Sol” (Restivo, 1892, p. 219), “a mãe de Deus cujo vestido
é o sol” (Restivo, 1892, p. 235), “certamente eclipsar-se-ia com os
139
resplendores da alma da menina Maria Santíssima se estivesse diante de
ti esta menina” (Restivo, 1892, p. 240). Para os Guarani, como foi visto,
os seres resplandecentes são ícones dos heróis culturais; o Sol, do “Irmão
Maior”; a Lua, do “Irmão Menor”.
Semelhantemente, ama vera e ama tiri, são duas expressões que
não signicam mais que “chuva-brilho” e “chuva-relâmpago” nas crônicas
coloniais. Em todo caso, elas se referem à luz, ao fogo e à água, elementos
de importância incalculável para grupos basicamente agrícolas como os
Guarani. Através dessas expressões, os indígenas evocam em seus cantos o
poder vivicador da chuva e do Sol, em cujo domínio a comunidade almeja
ser constantemente reintegrada (Susnik, 1979-80, p. 171-172; 1984-85,
p. 73). Acompanhando os estudos de Métraux (1973, 1979) com relação
aos Tupi e os de Susnik com relação aos Guarani (1982), a tematização
insistente da luz e do brilho nos cantos kaiová atuais pode ser relacionada
com o interesse pré-hispânico que os ancestrais desse grupo acalentaram: o
de chegar ao Candire, ao império inca, onde achariam vasilhas e adornos de
metal e inclusive outra espécie de milho (Susnik, 1982, p. 42).
Em outro âmbito, a luz e o fogo são metáforas com as quais se fala
do estado de perfeição desejado pelos Guarani. Durante meu trabalho de
campo entre os Kaiová, pude constatar o intenso uso dessas expressões
pelo grupo. Aguyje rendy é o resplendor do bem, é o estado que se quer
alcançar. Tape rendy é o caminho resplandecente que conduz à plenitude.
Os relâmpagos são, nesse contexto, muitas vezes, considerados “caminhos
de luz”. Guyra rovaju é um pássaro
45
de rosto resplandecente, um guia das
pessoas que estão no caminho da luz.
Em seus nomes sagrados, os indígenas usam o termo “fogo” como
um recurso lingüístico para expressar o caráter divinizador do nome e o
desejo, daquele que o tem, de tornar-se resplandecente. Dito de outro modo,
usam-no como uma forma de se identicarem com as divindades. Valham
como exemplo: Kuñã apyka veraju, ‘Mulher de cadeira resplandecente’ e
Ava apyka rendy, ‘Homem de cadeira em chamas’. E o nome sagrado da
avó primigênia dos Paĩ-Tavyterã não foge a essa lógica. Ela é chamada de
Takua Rendyju Guasu, ‘Mulher de chamas divinas fulgurantes’.
Como foi visto no ponto anterior, o termo tyapu, ‘trovão’, está
vinculado com Tupã. Além disso, porém, ele é uma representação da
divindade principal, se assim se quer chamar ao avô ou pai criador dos
Guarani. Um dos nomes de “Nosso Pai” é Hyapúva ‘Aquele que troveja
140
ou fala’. No contexto da maraca indígena tyapu signica fala, “palavra
ou mensagem”, podendo dizer-se “essa maraca fala” ou “a palavra dessa
maraca”, ao invés de dizer “a maraca soa” ou “o som da maraca”.
No canto cosmogônico dos Paĩ-Tavyterã, conta-se que o Ser Criador
estava rodeado do trovão e da luz durante a criação do mundo (Samaniego,
1968, p. 380) enquanto que, nos relatos dos Apapokuva, “Nosso Pai” levanta
o mundo com seu peito resplandecente de sol (Nimuendaju, 1987, p. 135).
Nos textos míticos dos Mbyá, por sua vez, o Criador gera a chama de uma
porção de seu próprio ser ( Cadogan, 1959, p. 19).
3.5 - As divindades guarani e o monoteísmo cristão
Quem quiser, no âmbito cristão, acolher dialogicamente a experiência
religiosa dos Guarani e suas formas de representar Deus, precisa estar
disposto ou disposta a considerar os questionamentos que suas múltiplas
manifestações divinas colocam para a doutrina do Deus único. Gostaria
de considerar essa questão repensando o monoteísmo através do termo
“inclusividade” e o politeísmo através do “diálogo”. Como antes de mais
nada a experiência religiosa dos Guarani colocou-me a pergunta sobre o
monoteísmo da minha própria tradição, apresento, na seqüência, alguns
aspectos do processo que culminou no monoteísmo bíblico.
3.5.1 – A implantação do monoteísmo em Israel
Costuma-se armar que, ao longo de sua história, Israel se diferenciou
da religião semítica ocidental pela exclusividade da sua adoração a Javé.
Omitiu-se, assim, que coexistiu com o javismo outras divindades e práticas
cúlticas nas tribos israelitas e que o monoteísmo foi uma experiência
religiosa que se concretizou somente no judaísmo tardio.
46
Isso signica
que o cristianismo também tem, na história da religião que o hospedou,
uma referência plural de divindades.
Através do estudo dos nomes dados a Deus, pode-se mostrar que
a experiência religiosa israelita esteve marcada pela pluralidade. Como é
sabido, na compreensão dos povos no Antigo Oriente, o nome, shêm, é
fundamental para a auto-revelação divina (Jenni & Westermann II, col., 973).
141
Nesse sentido, A. S. Van der Woude aponta que, sendo o nome de Deus de
per si desconhecido aos seres humanos, o próprio Deus desconhecido teve
que sair de seu desconhecimento para revelar seu nome, em uma teofania,
por meio de sua automanifestação. assim, depois de providenciar um
nome para si, essa divindade pôde ser invocada (Jenni & Westermann II,
1978, col. 1189-1190). Em outras palavras, o Deus cujo nome é conhecido é
um Deus que pode ser citado, pois o conhecimento do seu nome o capacita
para a comunicação (Jenni & Westermann II, 1978, col. 1177).
Albrecht Alt se permite especular que, num estágio anterior, os três
patriarcas e os seus deuses teriam sido independentes um do outro (Alt, 1981,
p. 47). A experiência que o povo israelita teve com o “Deus de Abraão, Deus
de Isaque e Deus de Jacó” faz referência a várias subjetividades divinas. Na
expressão “o Poderoso de Jacó”, por exemplo, o nome “Jacó” “apenas é um
atributo visando a assegurar a identidade do numem, mediante a indicação
de uma pessoa especialmente aliada a ele” (Alt, 1981, p. 45). na
expressão “Temor de Isaque”, “temor” é “a indicação arcaica da divindade,
cujo aparecimento atemorizou a Isaque e, justamente nisso, o aliou a si
mesmo permanentemente” (Alt, 1981, p. 46). Gênesis 31.43-54 serve de
reforço para a tese de Alt. O texto gira em torno de uma disputa. No nal,
aguarda-se o juízo de dois deuses: “Que o Deus de Abraão e o Deus de
Naor julguem entre vós“ (Gn 31.53). Segundo Gerstenberger, a censura e
o zelo levou um redator posterior a tentar apagar os resquícios politeístas
modicando o texto para: “O Deus de seus pais”.
47
Ao chegarem à terra cultivada e ao se sedentarizarem, os israelitas
perceberam, no contato com as populações locais, a insuciência dos
“Deuses de nossos Pais”. De modo que começaram a baalizar suas
divindades, dotando-as de virtudes e poderes próprios da agricultura, como
a capacidade para inuenciar a fertilidade da terra. Surgiram imagens
do divino que estavam muito mais perto do quotidiano das pessoas. A
experiência indígena com o cristianismo, nesse sentido, aproxima-se
daquela vivenciada pelos hebreus com os povos cananeus, por também
acolher elementos da nova religião na sua vida de fé anterior ao contato.
Não é fácil saber se as tribos israelitas conheceram, antes da sua
sedentarização, a religião do Deus ‘êl.
48
Segundo Werner H. Schmidt, no
Antigo Testamento, ‘êl aparece em forma de divindades que surgiram em
contextos e lugares especícos (Jenni & Westermann I, 1978, col. 229),
sendo perenizadas numa série de epítetos divinos como ‘êl ‘ôlâm, ‘êl
142
‘elyôn, ‘êl shadday, ‘êl ‘elôhe. No caso especíco de ‘êl ‘elyôn, conforme
os estudos de Rolf Rendtorff, muitas vezes ‘elyôn não se trata apenas de
um epíteto de ‘êl, mas de uma referência a duas divindades autônomas:
“Dito daquele que ouve as palavras de ‘êl, e recebe o conhecimento de
‘elyôn(Nn 24.16). “Como sabe ‘êl? Acaso há conhecimento em ‘elyôn?”
(Sl 73.11. Cf. outras passagens em Gerstenberger, 1981, p. 160-161).
A importância que esse termo gerador de nomes para divindade
tem no estudo da teologia do Primeiro Testamento deriva do fato de seu
cognato ‘Êlohim, ‘divindades ou deuses’, ser usado muitas vezes com mais
destaque do que seu homônimo Javé, do fato de ser em si mesmo um
termo plural e do fato de ser inclusivo. O javismo era insuciente para
expressar as coisas pequenas. Desse modo, os israelitas buscaram no ‘Êl
imagens para familiarizar Javé. muito mais tarde, no javismo combativo
dos profetas, o ‘Êl deixaria de ser o nome comum e inclusivo de Deus para
referir-se a uma divindade mais exclusiva e excludente, ao ser caracterizado
com aposições como “estranho” e “outro” ( Ex 34.14; Sl 44.21; 81.10; Dt
32.12). Na análise de Werner H. Schmidt (Jenni & Westermann I, 1978, col.
234), essa delimitação pode chegar a ser uma negação da outra divindade,
caso se rera a alguém que tenha desertado do javismo e aderido a um outro
deus que, designado como lô-‘êl, torna-se um não-deus. Conra Dt. 32.21:
“Provocaram meu ciúme com um ‘deus falso’, e me irritaram com seus
‘ídolos vazios’”.
A propósito do verso citado, J. B. Agus destaca precisamente que
o caráter “zeloso” foi o atributo divino decisivo para a concretização
do monoteísmo na história de Israel e que “a intolerância apaixonada
dos israelitas parecia aos antigos pagãos uma falta de hospitalidade e de
amizade” (Agus, 1961, p. 35). Por outro lado, como foi destacado por
Niebuhr, a radical não foi um fenômeno generalizado em Israel. “A
história desse povo é cheia de relatos sobre a luta entre a radical e a
social” (Niebuhr, 1965, p. 38). Havia muitos movimentos em contrário
49
,
a ponto de se poder dizer que muitos nunca nem sequer ansiaram pela
radical em um só Deus.
Não hermeneutas cristãos mas também judeus se empenham em
reinterpretar e corrigir a tese do monoteísmo exclusivo. Um deles, Abraham
Heschel, separou, claramente, a história israelita de Deus do monoteísmo
metafísico e político. Moltmann faz referência a ele em seu artigo nos
seguintes termos:
143
Em seu pathos criador e pronto a sofrer, Deus sai de si e entra em sua
criação. Ele se torna companheiro de infortúnio de seu povo. Mora no céu
mas também com os pobres e injustiçados (...) Em seu pathos nascem as
diferenciações internas de Deus que, como criador, permanece transcendente
ao mundo, mas, por seu Espírito, entra em sua criação e ‘está em todas as
coisas’ (Moltmann, 1985, p. 57).
Semelhantemente, Franz Rosenzweig reinterpreta o Xemá Israel
como uma separação que acontece no próprio Deus, sendo que, nesse
processo de diferenciação,
sua unidade não é exclusiva, mas inclusiva, isto é, uma unidade que
integra Israel a si. Por isso, a oração e conssão do único senhor devem
ser entendidas e praticadas como fatores ativos dessa unidade de Deus que
integra a Deus (Moltmann, 1985, p. 57).
3.5.2 – Monoteísmo e inclusividade
A aproximação amistosa da espiritualidade indígena nos coloca
diante do desao de reetir a unidade de Deus de forma inclusiva.
Precisamos diferenciar Deus das imagens de Deus que nós construímos,
das formas em que xamos nossa experiência com Deus e nossa percepção
de Deus. Partindo-se do princípio que a transcendência absoluta de Deus
é inconfessável e que ninguém pode falar dela de forma absoluta, entendo
a teologia como um foro democrático, onde as diversas testemunhas do
“estar-aí-divinos” têm direitos iguais à palavra. Deixo-me inspirar em Ex
3.14. Moisés, angustiado, quer saber o nome de Deus e Deus lhe responde:
“Eu estou aí com Israel”.
50
Em outras palavras, “Deus não é, mas acontece”. Ou melhor, nossa
percepção dele não se dá no âmbito do seu “ser” mas do seu “agir”, do seu
“estar” e “acontecer”. Ele acontece no concreto, no aqui e no agora de cada
grupo ou indivíduo. E porque o encontro com o sagrado se sempre a
partir de uma preocupação concreta, é inevitável que Deus seja conhecido
de forma plural. Então, essa experiência do sagrado é comum a todas as
religiões. Sua dinâmica, segundo Tillich, consiste em que
144
a preocupação concreta impele a imaginação religiosa a personicar os
poderes divinos, pois o ser humano
51
está radicalmente interessado por
aquilo que o encontra em termos iguais. Portanto, a relação pessoa-a-pessoa
entre Deus e o ser humano é constitutiva para a experiência religiosa. O ser
humano não pode estar interessado de forma última por algo que seja menos
do que ele é, algo impessoal (Tillich, 1984, p. 189).
Se aceitarmos que não se pode falar sobre Deus a não ser a partir da
sua manifestação, do seu “estar-aí-conosco”, e que os seres humanos fazem
experiências distintas no tempo e no espaço, as manifestações divinas e
os seus respectivos testemunhos serão sempre multíplices e especialmente
problemáticos para o monoteísmo exclusivo quando os testemunhos sobre
seu “estar-aí” forem personicados. Nesse sentido, visto do âmbito da
experiência religiosa, inclusive das religiões que se dizem monoteístas,
o monoteísmo exclusivo é a absolutização ingênua de uma perspectiva
religiosa.
Como alguns estudos sobre a questão mostraram, o monoteísmo
exclusivo não expõe ao descrédito as representações divinas de outras
religiões, mas sacrica a diversidade dentro da mesma tradição. No
cristianismo, isso signicou a proliferação da imagem de um Deus masculino,
branco e poderoso e implicou o ocultamento da mulher, dos indígenas e
dos pobres, entre outros, não como atores sociais mas também como
sujeitos de fé e de palavra. Por isso, o monoteísmo exclusivo é reconhecido
universalmente como a religião do patriarcado. Ao domínio do pai do céu
corresponde o domínio do pater familias na terra e a submissão da mulher.
Como bem o expressa Moltmann (1985, p. 55), “o ‘monoteísmo’ é apenas o
cume religioso de uma ordem universal de dominação, que subjuga povos
estrangeiros, mulheres e a natureza, e força sua dependência”.
Desse modo, a compreensão monoteísta de Deus, longe de ser algo
que diz respeito exclusivamente ao fenômeno religioso, está intimamente
relacionada com outros âmbitos da experiência cultural
52
e histórica dos
povos.
Assim, com a expulsão dos árabes e dos judeus da Península Ibérica
e com a unicação da Espanha, o Deus cristão passou a ser visto como
Todo-Poderoso pelos cristãos da península. O soberano terreno emprestara-
lhe pronunciados traços viris e senhoriais em troca de autoridade divina.
Esse caráter universal, na seqüência, marcou a conquista das Américas. Só
havia um Deus e um único Soberano. O conquistador devia difundir o poder
145
desse Deus e dessa Majestade a todo o mundo, até que em seus domínios
(sc. do Cristo vitorioso e do rei espanhol) não anoiteça jamais”, como disse
Campanella. O monoteísmo exclusivo, em suas múltiplas formas, mostrou-
se incapaz de reetir a experiência religiosa de seus interlocutores, de seus
“outros” internos e externos. E a história das missões religiosas junto aos
povos indígenas atesta que “a intransigência (do Deus único) venceu a
tolerância” (Todorov, 1983, p. 103).
O Deus cristão não deixava espaço para outros deuses e era exclusivo
e intolerante. Como dizia o dominicano Diego Durán, no México do século
XVI, “nossa católica é única e nela se funda uma única igreja, que tem
por objetivo um Deus verdadeiro, e não admite a seu lado nenhuma
adoração ou fé em outros deuses” (Todorov, 1983, p. 103).
Diante de histórias como essa, se a cristã em Deus não quiser
perecer na miséria do seu monoteísmo, então, “não podemos continuar
simplesmente classicando como ‘monoteísta’ a unidade do Deus uno e
trino, mas devemos explicitar o seu caráter inclusivo em vista da liberdade
dos seres humanos, da paz dos povos e da presença do Espírito em todas as
coisas” (Moltmann, 1985, p. 55-56).
3.5.3 – Na busca do equilíbrio
O diálogo inter-religioso com os povos indígenas, ao qual hoje muitas
igrejas cristãs se dispõem, pressupõe o reconhecimento aberto da alteridade
cultural e religiosa desses povos. Dito de outro modo, ele requer que nós
outros, herdeiros e herdeiras da ideologia colonial da “única cultura”,
da “única religião” e da “única língua”, nos libertemos desses traumas e
aprendamos “a escutar e a ouvir os sons de um discurso oral ainda não
formulado, mas presente nos harmônicos da memória”, como o dissera
certa vez Augusto Roa Bastos (Ap. Melià, 1997, p. 98). Em nosso caso, isso
signica que as formas em que os indígenas organizam suas experiências
religiosas e sinalizam os “estar-aí” divinos não podem ser desqualicadas
pelo monoteísmo. No diálogo, os indígenas precisam ter a garantia de
que compartem com seus interlocutores ou suas interlocutoras o status de
parceiros e parceiras que têm algo a aprender e algo a ensinar, pois cada um
e cada uma conhece Deus apenas em parte.
O Ser Divino em si mesmo não se deixa objetivar na sua totalidade
146
nem esgotar na sua aparição. Ele é mais do que todos os nomes que lhe
possamos dar e mais do que todas as imagens e personicações que a
nossa capacidade de representação religiosa possa fazer sobre Ele. Os seres
humanos não podem abarcá-lo, seus sentidos e sua razão intelectual
podem apreender aspectos do seu Ser, só podem dar nome aos seus “estar-
aí-conosco”.
Mas os seres humanos também anseiam o innito e o incomensurável.
Precisam fazer referência a algo que ultrapassa todos os “estar-aí-divinos”,
que é anterior e posterior a todos eles, que sustenta a vida e motiva a busca
do que é signicativo e recriador. Nenhum nome pode expressar essa
qualidade do Ser Divino
53
. Dele podemos falar através de metáforas abertas
e inclusivas que o consideram Ser em Si, Base do Ser, Deus-além-de-quem-
não-há-Deus, Transcendente, Fonte de Vida, Mistério, etc. Não que Deus
tenha vontade para revelar o seu nome, lembra Hans-Walter Wolff
comentando Ex. 3.14; é que a transcendência divina pode ser comparada
consigo mesma (Wolft, 1978, p. 19-20).
A divindade transcendente é mais profunda, superior e acolhedora
que a imagem mais inclusiva e o nome mais belo com os quais a queiramos
representar. Pretender possuí-la num monoteísmo exclusivo
54
é idolatria
e demonização. Nessa pretensão, perdeu-se a transcendência de Deus no
patriarcado, arma Dorothee Sölle (Sölle, 1994, p. 311). Para a autora, a
transcendência não deve ser entendida como “independente de” nem como
“domínio sobre”. Essa é a falsa transcendência hierárquica. A verdadeira
transcendência não está longe de nós, ela está incluída no tecido da vida.
“Deus não é menos voluntariamente dependente do que cada uma e cada um
de nós pode sê-lo no amor. Isso signica que chegamos do Deus-sobre-nós
ao Deus-em-nós e superamos a falsa transcendência hierárquica” (Sölle,
1994, p. 319-320).
Cabe à teologia tentar manter o equilíbrio entre a pluralidade das
manifestações e personicações divinas e a universalidade da divindade
anônima que sustenta essa pluralidade. Manter o equilíbrio,
55
porém, não
é uma tarefa para fora, no diálogo com as outras religiões. Também
dentro das igrejas cristãs precisamos reconhecer a nossa constituição plural,
exercitar a tolerância e estar prontos a nos deixar interpelar por fontes
de espiritualidade que, via de regra, a teologia acadêmica não costuma
considerar.
147
3.5.4 – Sobre politeísmo, trindade e diálogo
Sob os ataques do monoteísmo exclusivo e da ilustração secularizada,
o politeísmo acabou se estabelecendo no senso comum das sociedades
ocidentais ou ocidentalizadas como sinônimo de atraso, ignorância e
selvageria. Uma imagem clássica com a qual se o estuda é a guerra. As
divindades lutam entre si, multiplicam-se, são vencidas por aquela que
for mais forte e desaparecem. Meu esforço aqui é valorar positivamente o
termo e chamar a atenção para a sua pertinência se pretendemos um diálogo
inter-religioso com as crenças indígenas, uma relação mais saudável com os
vários cristianismos e com a natureza.
Sob essa ótica, considero, portanto, que politeísmo não é negação de
Deus, mas uma das formas em que os seres humanos podem percebê-lo e
uma das formas em que os seres humanos percebem a terra que os sustenta.
Valorar o politeísmo não pretende escandalizar ou ofender os cristãos e as
cristãs, mas quer convidar essas pessoas a reetir sobre outras experiências
religiosas e considerar as possibilidades que elas trazem para o diálogo.
Se insisto em apresentar o politeísmo junto com o monoteísmo é porque
acredito que ambos nos ajudam a considerar as experiências religiosas
numa tensão criativa, a partir da qual nosso pensar e experimentar Deus de
forma intercultural e ecológica é possível.
Na América Latina, o monoteísmo serviu de justicação para destruir
sistematicamente as religiões tradicionais, “politeístas”, dos indígenas.
Conforme estudos sobre politeísmo e teologia arquetípica o cristianismo
fechou, com atitudes como essa, muitas janelas da alma e lacrou muitas fontes
de sentido das profundezas do espírito, sabidamente policêntricas.
56
Mas as
poderosas energias cósmicas, naturais e humanas são forças indomáveis e
manifestam-se assim que o ser humano se liberta da sua concentração em
si mesmo, começa a experimentar o mundo como algo vivo e percebe que
sua vida está ligada a um centro dinâmico (Hillmann, 1985, p. 62ss). Nesse
sentido, ninguém pode refutar a riqueza psicológica e espiritual que essa
experiência traz consigo, pois é dessa forma que o ser humano adota uma
postura sagrada e não precisa ver denhar sua existência em imanência,
nem perder-se na solidão e no desespero (Boff, 1995, p. 323).
Nos primórdios da igreja cristã, os problemas surgidos em torno
da divindade de Jesus face ao monoteísmo exclusivo da religião judaica
ilustram como a tensão entre o absoluto e o concreto aparecem dentro do
148
cristianismo. Essa tensão foi mantida em equilíbrio com a doutrina da
Trindade, que originariamente queria expressar através do símbolo do Pai,
do Filho e do Espírito Santo a automanifestação de Deus ao ser humano
(Tillich, 1984, p. 607) e o desejo humano de estar em harmonia e comunhão
com tudo que vive (Gebara, 1998, p. 127).
Na conssão trinitária, podemos armar, parafraseando Hans-Martin
Barth, que o Deus “extra nos” acontece “in nobis” e abre uma possibilidade
para aprofundar e ao mesmo tempo transcender as alternativas radicais e
excludentes do monoteísmo e do politeísmo. Na trindade, a transcendência
divina se expõe à confrontação e aparece dotada de interioridade (Barth,
2001, p. 332).
Mas a fé cristã, que no começo se abriu para compreender a unidade
de Deus de forma inclusiva e dinâmica, acabou transformando a Trindade
em símbolo de uma compreensão exclusivista de Deus (Barth, 2001, p.
334), em um “mistério” impenetrável, colocado sobre o altar para ser
adorado. Deixou de ser mistério no sentido de mysterion, de mauein, a
dimensão de profundidade que se inscreve em cada ser e que tem a ver
com a experiência religiosa e, portanto, com o conhecimento do sagrado.
Nesse sentido, mysterion garante que o “objeto” do saber religioso continue
mistério também no conhecimento (Boff, 1994b , p. 14-15). Ao tornar-se
“enigma de um problema teológico não decifrado” e, em alguns casos,
“a gloricação de um absurdo em números” (Tillich, 1984, p. 607), cou
descaracterizado o simbolismo trinitário na igreja primitiva.
No Ocidente, acentuou-se a unidade de Deus e, na polêmica contra o
politeísmo de diversas nações, o cristianismo se apresentou como religião
universal, revelada, absoluta do único Deus. A doutrina da Trindade, no
entanto, é essencial para o pensar e o viver dialógico. Nesse sentido, Leonardo
Boff nos lembra que Deus-Trindade não foi resultado da especulação dos
primeiros pensadores cristãos. Ao contrário, surgiu da forma quase ingênua
e pré-reexa com que os discípulos de Cristo traduziram sua experiência
com a gura histórica de Jesus.
Ele se entendia simplesmente como lho. Relacionava-se com Deus como
o seu Pai. E dele irradiava tanto carisma e força de atração e convencimento
que diziam: ele é habitado pelo Espírito. Portanto, em Jesus descobrimos
o mistério como Pai/Mãe, como Filho/Filha e como Espírito. [A expressão
“Trindade” veio mais tarde para exprimir essa experiência totalizante.] Por
detrás de tudo, de cada ser, dentro de cada vida e na dinâmica de cada paixão
149
estão um amor e três amantes, uma comunhão e três sujeitos em relação. Não
se multiplica Deus, apenas se descobre a natureza comunional e relacional
do mistério divino (Boff, 1994b, p. 23).
Esta foi a função original da doutrina da Trindade: expressar
em símbolos abrangentes a automanifestação da Vida Divina aos seres
humanos e como tal não está encerrada (Tillich, 1984, p. 610). Seguindo o
raciocínio de Ivone Gebara, que tenta decodicar a unidade de Pai-Filho-
Espírito Santo como símbolos que emergiram das experiências de vida dos
humanos, podemos dizer que
Trindade é a língua através da qual tentamos expressar nossa consciência de
sermos ao mesmo tempo diversidade e unidade. Trindade é a palavra que
indica nossa origem comum, nossa substância comum, nosso hálito universal
em meio da diversidade, onde cada um e cada uma de nós vive como criação
única e primordial, um atalho na larga estrada da vida. Trindade é uma palavra
que fala a respeito de nós, do que sabemos e do que experimentamos em nosso
próprio corpo e em nossa experiência de vida (Gebara, 1998, p. 128).
Essas duas perspectivas da Trindade mostram o divino e o humano
como seres abertos. Três não faz referência a três personicações. O
algarismo não quer quanticar, mas qualicar os “estar-aí” divinos e as
experiências humanas.
Vimos que, no âmbito da experiência humana, é real a pluralidade,
não sendo possível, portanto, abarcar no monoteísmo exclusivo as inúmeras
aparições e representações divinas. Povos como os Guarani aceitam sem
diculdades essa realidade. As teologias cristãs, ao contrário, herdeiras
de um sistema de pensamento que, no seu fascínio pelo “Um”, sobrepôs
a abstração ao fenômeno, esmeram-se em negar essa pluralidade. Assim,
se quisermos acolher as duas percepções ou apreensões da realidade aqui
comentadas as experiências concretas do divino e a sede do innito
precisamos de um monoteísmo inclusivo, onde nos seja possível pressupor
uma Divindade anônima que atrai para si todas as divindades personicadas
e nominadas da experiência humana.
Nessa perspectiva, o falar da unidade de Deus teria que adquirir
um caráter qualitativamente diverso daquele que impulsionou as guerras
religiosas e os movimentos missionários modernos. A conssão da unidade
de Deus deve nos levar a reconhecer a transitoriedade e a singeleza das
nossas representações religiosas, a despertar em nós a capacidade de nos
150
surpreendermos sempre de novo, a resistir à tentação de domesticar o Ser
Criador e a ter disposição para o diálogo.
No âmbito das experiências consideradas neste trabalho, entendo
que a responsabilidade para o diálogo é maior para as igrejas cristãs. Em
primeiro lugar, por terem elas uma dívida histórica com os povos indígenas,
por terem elas levado ao descrédito as formas autóctones de representação
do divino. Em segundo, por serem elas entenda-se, algumas igrejas cristãs
as atuais proponentes de uma nova forma de aproximação da realidade
indígena, que seja sinal de um novo tempo e de uma nova consciência de
ser humano e de ser cristão.
Parafraseando Mircea Eliade, podemos dizer que se o ser supremo de
transcendência absoluta serviu de escusa para a indiferença e a agressividade
diante das outras formas de vida religiosa, seu desaparecimento não deve
redundar em um empobrecimento da vida religiosa mas em sua revitalização.
Para o autor, as verdadeiras religiões surgem depois do desaparecimento
dessa forma de representação de Deus (ser supremo de transcendência
absoluta) (Eliade, 1953, p. 56).
Nesse sentido, conscientes de que o ateísmo foi uma das conseqüências
lógicas e naturais do monoteísmo exclusivo, em décadas passadas Lovsky
apontava,
uma concepção social de Deus, um pluralismo, uma democracia divina
pode reanimar os esquemas secularizados da política humana e dar-lhes
aquele carimbo sagrado e aquele valor eterno que constituem a melhor
proteção do ser humano; uma mística verdadeira pode solucionar os
problemas do nosso tempo (...). Hitler dizia sobre os judeus “não pode haver
dois povos escolhidos. Nós somos o povo de Deus”. Essas palavras decidem
tudo (Lovsky, 1955, p. 365).
No âmbito da nossa convivência com os outros seres humanos de
outras procedências culturais e religiosas, isso signica reconhecer que
somos hóspedes de uma mesma casa, a terra, e que nossa existência é
possível mediante a comunhão e a interdependência (Gebara, 1998, p. 132).
Podemos dizer que, cansados de negar um dos atributos mais importantes
da divindade, sua sociabilidade, cristãos e cristãs procuram abandonar o
esquema do monoteísmo exclusivo - que se impôs nas igrejas e estabeleceu
nelas e na sociedade o poder hierárquico até a tirania - e tentam ser éis
à concepção social e trinitária da divindade. A pluralidade evocada na
Trindade pode ter conseqüência direta sobre a qualidade da relação entre os
151
povos e as culturas. Uma Divindade que atesta em si mesma a pluralidade
pode motivar uma convivência respeitosa e acolhedora entre os humanos,
também no âmbito religioso.
3.5.5 – A profusão de divindades e as “formas do dizer”
57
Um fato curioso que se observa entre os Guarani é a maneira como eles
vêm tentando reelaborar seu discurso em meio ao contato quase compulsivo
que mantêm com a sociedade envolvente. Gostaria de compartilhar uma
experiência, na qual uma família kaiová-guarani apresentou uma versão
contemporânea de sua teologia, que poderia se chamar de monoteísmo
inclusivo ou de politeísmo dialógico.
Em julho de 1995, a família Toriba, na condição de desterrada,
ocupava um terreno público, no município de Rio Brilhante - MS, perto da
estrada que liga o Mato Grosso do Sul a São Paulo. Como outros indígenas
da região, os Toriba foram catequizados por missionários presbiterianos
da Missão Caiuás. Tomaram, pois, contato com a Bíblia, as doutrinas
protestantes e a linguagem cristã, as quais eles, de forma bastante autônoma,
incorporaram a seu imaginário religioso tradicional. O contexto em que
recolhi estes dados foi aparentemente secular: organizar-se para impedir
que o Decreto 22, assinado em 1992 pelo então presidente Fernando Collor,
fosse revogado. Segundo os Toriba, esse decreto viera para o bem dos
indígenas, para devolver-lhes sua terra e seus direitos. Sendo derrubado,
todas essas chances desapareceriam. A discussão da questão, porém,
centrou-se no seguinte.
Mário, o mais velho dos Toriba, desenhou no quadro três
circunferências concêntricas (Cf. Anexo VII) e, sobre elas, duas linhas
perpendiculares em cujos extremos situou os quatro pontos cardeais. No
leste, localizou Pa’i Kuara, o Sol, e no oeste, Kurusu Ñe’ẽngatu, a Cruz
da Boa Palavra. No espaço entre as duas circunferências externas, ele
desenhou pequenas circunferências, às quais foi dando nome
58
e função.
Eram as divindades. A esse espaço ele chamou “céu”. A área contida entre
a segunda circunferência e a terceira denominou “mar”. Nesse espaço,
pequenos círculos encostados à terceira circunferência representavam os
líderes religiosos, que podem manter relação direta com os habitantes da
dimensão anterior. Quatro cruzes eqüidistantes cercavam a circunferência
152
que delimita o espaço central chamado “terra”, que é a superfície onde nós
moramos.
Kurusu Ñe’ẽngatu, a Cruz da Boa Palavra, ocupa, como pode ser
observado no gráco, o lugar mais destacado. Ele é o ser principal no
sistema, mas um principal que experimenta mais uma “dependência de” do
que um “domínio sobre” os demais seres que compõem o conjunto. “Seria
mais ou menos como o presidente da república e o parlamento”, explicou
Mário. A dependência entre as divindades e a Cruz da Boa Palavra foi
destacada por ele através de várias linhas que ligavam as demais divindades
à Cruz, denida como uma espécie de “central telefônica”, que “serve
para comunicação”. Cada uma das divindades tem áreas especícas de
atuação tanto no âmbito celeste como na terra. Os indígenas se manifestam
dizendo que seria impossível que uma única personagem realizasse todos
os contatos, todas as visitas e os cuidados da sua competência. Por isso
várias divindades. E para evitar que elas se confundam, existe um
sistema de comunicação, semelhante à “central telefônica”, cujo terminal
é a Cruz da Boa Palavra. Além disso, as linhas desse sistema mostram a
interdependência entre os seres sobrenaturais e a natureza. No sistema
desenhado por Mário, as divindades fazem parte do mundo, impregnando a
natureza de sobrenatureza.
A eminência da Cruz da Boa Palavra é destacada com o desenho
da Cruz e é marcada pelo Sol, considerado o próprio fulgor da Cruz da
Boa Palavra. Nessa combinação de luz, calor e palavra, reencontramos a
virtude criadora presente na teocosmogonia guarani descrita no início deste
capítulo. A cruz e a palavra estão impregnadas das virtudes vivicantes do
Sol.
Os Toriba continuaram explicando seu sistema.
Entre as divindades e os humanos, a comunicação é intermediada
pelos líderes religiosos que, por assim dizer, percebem de uma forma
especial as necessidades ao seu redor, considerando-as, posteriormente,
em suas conversas com as divindades. Numa postura de tolerância e
abertura religiosa, Mário esclarece que tanto os pastores evangélicos
como os sacerdotes católicos e os rezadores indígenas compartem o status
de líderes religiosos no sistema guarani. O velho Toriba se inclui entre
esses líderes e conta que tem conversado sobre a revogação do Decreto
22 com as divindades. Elas teriam chegado a um acordo sobre a situação,
comunicando-lhe uma mensagem que o deixara bastante angustiado. A
153
mensagem advertia a família Toriba do seguinte:
A terra está muito triste, já não exulta de alegria quando nasce uma criança.
Ela está cansada dos defensivos agrícolas, dos adubos, dos venenos. Por
causa disso as crianças não têm mais alegria e acontecem os suicídios... O
m deste mundo já está perto. Os Kaiová têm duas alternativas: ou acabam
na mão dos brancos ou abandonam a terra, indo morar no além-mar.
Os Toriba estavam dispostos a abandonar a terra, mas temiam que
essa fosse uma decisão precipitada. A gura dos líderes espirituais, karai, é
fortalecida quando o velho Toriba destaca que eles devem buscar o consenso
no seu grupo e decidir em sintonia com as divindades. Mário asseverou a
fala de seu pai dizendo:
O branco acha que é Deus quem manda a chuva, o sol, o verão, quem segura
a terra e quem libera o fruto. Para o branco tudo é Deus, Deus, Deus! Mas
... negativo! Ele está enganado! A maior parte das coisas quem faz são os
líderes, as pessoas. Por isso, o importante é que, assim como as divindades
estão unidas e se entendem, a comunidade também se ponha de acordo ...
Muitas coisas, tanto boas como más, acontecem sob a responsabilidade das
pessoas, sobretudo dos líderes.
Os Toriba pouco se ocuparam da revogação do Decreto 22, mas a
ilustração que zeram foi muito sugestiva no sentido de explicar sua forma
de pensar e de organizar as epifanias divinas no seu sistema religioso. Esse
sistema reúne diversas manifestações e personicações divinas conhecidas
pelo grupo. Os indígenas procuram compreender essas diversas epifanias
como expressões da Palavra. A aparente confusão que pode sugerir a
profusão de nomes no relato converge, no gráco dos Toriba, na experiência
religiosa fundamental da espiritualidade guarani: a palavra cantada ou
rezada. Rezar é tornar-se palavra (ñembo’e). E não é mais do que palavra,
diálogo, o ponto de convergência das manifestações divinas. A “Cruz da
Boa Palavra” é, assim, a expressão com a qual os indígenas expressaram a
qualidade inclusiva do ser divino. Ela é a metáfora maior do imaginário do
grupo, o ponto de reunião de suas experiências religiosas e das epifanias do
divino. Ela inclui “uma profusão de representações de deuses e espíritos”,
que Melià justamente considera “um recurso da cosmogonia metafórica
que ordena simbolicamente as formas do dizer” (Melià, 1989, p. 330).
A exposição dos indígenas parece corroborar que o politeísmo não
154
nega de maneira alguma a unidade da natureza divina, nem a unidade da
natureza humana. Ao contrário, a exposição as arma, mas não através de
uma lógica estático-ontológica senão mediante uma lógica processual e
dinâmica. A meu ver se poderia aplicar a isso o que Moltmann e outros
teólogos chamam de comunidade pericorética,
59
comunidade que existe
interativamente, porque uma estrutura dialógica impulsiona as pessoas a se
abrirem de forma plena umas às outras. Nem o monoteísmo exclusivo, nem
o politeísmo enquanto luta de deuses, nem a trindade entendida como um
indecifrável enigma em números são modelos teológicos adequados para
um diálogo entre povos com experiências culturais e religiosas distintas.
Entendo, por outro lado, que o monoteísmo inclusivo e o politeísmo
dialógico podem ajudar a realizar e a desenvolver a sabedoria inscrita na
imagem do divino como uma comunidade interativa, que comunica que
Deus é comunhão e não solidão, que ele vem ao nosso encontro como
relação e comunhão, e essa sabedoria nos desaa a ter a mesma atitude
com os outros seres humanos, com nós mesmos e com a natureza.
60
Alguns
aspectos do que signica essa proposta no diálogo com os povos indígenas
retomo no próximo capítulo.
(Notas)
1 A ausência do som dessas letras nas línguas tupi-guarani induziu nos conquistadores essa
idéia.
2 Conra a respeito dessa matéria, no capítulo dois deste livro, “O desao do diálogo
intercultural”. Cabe lembrar o caráter híbrido desse personagem. Como epônimo da ação
missionária no Brasil, no Paraguai, no Peru e no México, ele parece proceder do imaginário
cristão. Por outro lado, por ter ele iniciado os indígenas na cultura da mandioca, um dos
alimentos básicos da dieta do grupo, parece tratar-se de uma criação aborígine.
3 Esse Catecismo era instrumento ocial para a catequese dos aborígines do Vice-Reino do
Peru. Não se trata, portanto, se a suspeita for verdadeira, de um confronto exclusivo entre o
imaginário guarani e a ortodoxia cristã, mas desta com os indígenas então já contatados.
4 A palavra traduzida por nascer, surgir ou descobrir-se é jeasojavo em língua kaiová-
guarani, sendo mbojera seu homônimo em língua mbyá-guarani. Em ambos os casos as
expressões signicam “chegar a ser” e trazem subentendida a idéia de descobrir-se, de
revelar-se. Na análise de Cadogan, o radical ra” do verbo mbyá é portador do conceito de
155
abrir, desamarrar, desenvolver. Isso, por sua vez, indica quão estranho é para o pensamento
guarani o conceito creatio ex nihilo. Na língua indígena, criar é alcançar a maturidade para
existir. Cadogan traduz jeasojavo e mbojera por “fazer que se desenvolva, que se abra, que
surja” (1992, p. 29-30).
5 No original: Jasukavýgui Ñane Ramõi Jusu Papa ojeasojavo, Okambu Ñane Ramõi Jasuka
potýrehe (Melià & Grünberg, 1976, p. 228).
6 No original: Jasukávygui Ñane Ramõi Jusu Papa ojasojavo (Cadogan, 1962, p. 52).
7 Assim, os Mbyá pelo seu cesto-ajaka, os Chiripá pelo seu cesto-ajo e os Paĩ-Tavyterã e
Kaiová pelo seu cesto-pynakũ (Cadogan, 1971, p. 117).
8 A associação do cesto com a mulher continua no ciclo narrativo subseqüente. No âmbito do
trabalho e da subsistência, a mulher é quem carrega o cesto. No âmbito lúdico, ela reage ao
desapontamento de “Nosso Pai” diante da irreligiosidade da humanidade entretendo-o com
as boas lembranças provenientes das mulheres. Segundo o material coletado por Cadogan,
ela teria dito: “nos arredores da minha morada juntei cestinhas milagrosas, para que com
elas possam brincar as descendentes das gerações de minhas lhas” (Cadogan & Melià,
1971, p. 118).
9 Yvyra ñe’ẽry: o sumo da palavra da árvore.
10 Jasuka Sy Ete: a verdadeira mãe Jasuka.
11 Y reko katu: água de bom modo de ser, água boa.
12 O nome sagrado da avó primigênia dos Paĩ-Tavyterã, congênere de Nossa Verdadeira
Mãe, é Takua Rendyju Guasu (Bastão de Ritmo de Grande Resplendor) (Cadogan, 1968,
p. 425).
13 A “vara insigne”, yvyra’i.
14 Ñande Sy é a mãe dos “Nossos Irmãos”; não é nome próprio na onomástica católica.
15 Tupã Sy é a mãe de Tupã; é nome próprio, equivale a Santa Maria ou Nossa Senhora.
16 Francisco Solano López aparece nos relatos indígenas como uma personagem de
origem híbrida causadora de desastres ecológicos, bestialismos, acidentes geográcos e
envolvida na confusa questão limítrofe entre Paraguai e Brasil, que afetou diretamente a
história paĩ-tayterã e kaiová.
17 Mba’ekuaa. A personagem reaparece no capítulo quarto desta obra, lugar onde se destaca
sua virtude criadora e seu ser divino.
18 Ñane Ramõi, Ñande Ru Vusu, Ñande Ru Papa Tenonde, Ñande Ru Ñamandu,
156
Hy’apuguasúva (Cadogan, 1992, 48-49).
19 Xamãs e antepassados masculinos que gozaram de prestígio podem ser identicados por
esses mesmos epítetos.
20 Esse instrumento é muitas vezes interpretado como a cruz originária entre os Apapokuva,
os Kaiová e os Chiripá, o que de fato procede se levarmos em conta a expressão Kurusu
rekoypyrecolhida por Nimuendaju (1987, p. 135). Na mesma, o termo ypyse refere à
antiga ou originária forma de ser (reko) da cruz (kurusu) e não à sua “eternidade”, como o
traduziu Nimuendaju.
21 O protopai e a protomãe constam como Nosso A(Ñane Ramõi) e Nossa A(Ñande
Jári), nos relatos.
22 Aparece com nome de Ñande Sy, Ñande Xy, Ñande Jári.
23 No original: Ejapyteró nde jeguaka, emopu’ã kuña jeguakávy rã (Cadogan, 1962, p. 53).
24 No original: Ñaẽýpe (Nimuendaju, 1987, p. 135).
25 Mba’ekuaa ou Papa Réi. A importância dessa personagem seria insignicante, se nos
ativéssemos ao reduzido papel que desempenha na história. Miguel Alberto Bartolomé
(1991, p. 74), porém, é da opinião que ela seria a conrmação mítica de uma noção dualista
de indivíduo entre os Guarani. Ela seria, então, o duplo de “Nosso Pai” e a crise travada
entre eles não passaria de um conito do protopai com suas próprias energias interiores, que
tentam dividi-lo. Essa noção dualista faz referência ao dualismo maniqueísta, mas como um
processo de desdobramento sucessivo que organiza e dá sentido ao mundo.
26 No original: Ojepypira haguã ma.
27 A expressão aparentemente faz referência ao Sumo Pontíce da Igreja Católica, o papa,
e ao Rei espanhol.
28 Uma variação desse relato arma que “Nossa Mãe” é deorada por Aquele-que-sabe, por
ordem de “Nosso Pai”. Por isso ela cou grávida de gêmeos, porque tanto Mba’ekuaa como
Ñande Ru queriam ter um lho.
29 Esse “desacato da protomulher”, porém, em muitos relatos aparece apenas como um
pretexto, pois “Nosso Pai” já estaria cansado e predisposto a abandonar a terra.
30 Os acontecimentos principais da vida das protomulheres dos mitos americanos dicilmente
extrapolam o da fecundação inusitada e seu assassinato cruel, segundo Heinz Kühne.
31 Cf. a respeito o comentário sobre a ira de “Nossa Mãe” no Capítulo V.
32 É notável que aqui, como no ciclo de relatos bíblicos dos “Deuses dos pais”, as divindades
157
não estavam ligadas a um lugar, sino a um grupo em plena mobilidade. Isso fez com que
elas migrassem para o além, que se transcendentalizassem, ou se tornassem seres históricos
e sociais (Jenni & Westermann I, 1978, col. 47).
33 Essa personagem aparece também com nome de Kuahary, Pa’i Kuara, Tyke’ýra, Ke’y.
34 Jasy e Tyvýry são os outros nomes dados ao “Irmão Menor”.
35 Nimuendaju arma categoricamente a ausência do Sol e da Lua na mitologia guarani
(1987, p. 64). Via de regra, porém, os indígenas armam a identidade lunar do “Irmão
Menor” e a identidade solar do “Irmão Maior”.
36 Mokõivae. Alguns Chiripá consideram esses heróis culturais como irmãos, mas não
uterinos, chegando a armar que o maior é criador do menor (Bartolomé, 1991, p. 76).
37 Enquanto o “Irmão Maior” tratava de reanimar o corpo sem vida de sua mãe, o “Irmão
Menor”, muito ansioso, não conteve seu desejo de mamar nos seus seios, tirando-lhe para
sempre toda a energia.
38 Com isso se faz referência à descendência de Ñamandu. Ñamandu não é um nome próprio
para “Nosso Pai”. É uma designação coletiva (Namenstamm em alemão), como também
o são Karai, Jakaira, Tupã e suas companheiras. Em geral esses nomes indígenas não
podem traduzidos por “nomes próprios” diretamente. Para imaginar-nos aproximadamente
seus signicados temos que, no caso destes nomes principais, relacionar Karai com fogo,
Jakaira, com a primavera, Tupã, com as águas, e Ñamandu com criador da terra.
39 Jakaira é uma divindade de relevância signicativa na mitologia dos Paĩ-Tavyterã e dos
Kaiová mas não no âmbito da onomástica, como entre os Mbyá.
40 Além desse signicado, a expressão Tekojára é usada para se referir à “alma” da natureza,
conforme será visto no Capítulo IV.
41 Tupãnguéra é o plural de Tupã. Essa personagem aparece no nal do relato protagonizado
pelos gêmeos. Conta-se que “Nosso Pai” não o levantou (amopu’ã) nem o encontrou (ajuhu);
fê-lo (ajapo). Fê-lo para ser dono do vento do oeste e das tempestades. Seu enfeite labial de
resina simboliza o raio e continua sendo “carteira de identidade” para vários grupos guarani
(Bartolomé, 1991, p. 79). Na versão dos Chiripá, Tupã é engendrado por Aquele-que-fala,
pela palavra divina, que reaparece em cena para reviver a “Nossa Mãe”. Tupã encontra-se no
rmamento com os irmãos Maior e Menor, o Sol e Lua (Perasso, 1986, p. 40).
42 No original: Yaci tatá cuépé ê, Ynhe mimi nde coema ara rori pabéte.
43 Fiel ao espírito de Trento e provavelmente inspirado nas bulas papais do nal do século
XV, o Catecismo traduzido por Bolaños zelava pela extirpação da idolatria. Nesse seu
158
Catecismo ele pergunta se por acaso seriam deuses, entre outros, os seres que brilham, o
sol, a lua, o fogo da lua ou estrela d‘alva, as plêiades, o relâmpago, a tempestade, o raio, os
feitiços e os feiticeiros.
44 Jasytata, estrela d’alva, para falar de Maria, e vera, para falar de Cristo.
45 Cadogan arma que os Guarani representam por um pássaro o conjunto som-brilho-fogo
(tyapu-vera-rendy), mais precisamente pelo chirino ou colibri, que é um mensageiro dos
xamãs paĩ-tavyterã (Cadogan, 1967-68, p. 134) e pelo kimino, o pássaro do trovão e do raio
dos Aché-Guajaki (Cadogan, 1967-68, p. 136).
46 Como transcreve H. H. Rowley, citando A. Lods, “Israel não chegou ao monoteísmo
senão no século VIII. E de uma maneira clara e consciente somente o alcançou no século
VI, através de um processo interior bem lento, do qual ainda podemos marcar as etapas”
(Gerstenberger, 1981, p. 121). Depois desse processo, o único Deus de Israel foi colocado
como fronteira diante dos deuses de outros povos, como sinal de separação. A Tora e o
Templo são símbolos concretos desse monoteísmo (Gerstenberger, 1988, p. 100).
47 Conforme gura na tradução de Almeida, em português (Gerstenberger, 1988, p. 91).
48 ‘Êl pode ser entendido como termo genérico usado em todo o mundo semítico para deus
ou divindade.
49 O sincretismo politeísta não se manifestou somente em práticas ocultas, pois chegou a
receber direito de cidadania, estabelecendo-se nos santuários mais famosos (II Re 23).
50 Levando em conta que o verbo hayâ, omitido na frase por ser predicado nominal, não
signica “ser”, mas “estar aí”, “acontecer”.
51 O termo “homem” da tradução em português o substitui por “ser humano”.
52 No mais, a “redução” que se opera no esquema religioso monoteísta não é apanágio
da teologia. É um processo que se simultaneamente nas elites pensantes hierárquicas.
Na losoa, caracteriza-se pela busca de um elemento primordial, de uma causa última,
qualitativamente superior aos demais elementos; na ciência, pela progressiva secularização
do mundo, pelo desprezo da matéria e pela sujeição da coisa extensa à coisa pensante; na
teologia, pela dessacralização das divindades com exceção de uma. quem diga que
ao monoteísmo absoluto não se chegou senão na losoa e que o monoteísmo teológico
pressupõe o politeísmo, pois suas formulações e seu estabelecimento têm como pano de
fundo imaginário uma luta de deuses.
53 Na tradição islâmica fala-se dos mais belos nomes de Deus. Noventa e nove deles são
conhecidos pelos humanos, mas o centésimo, que lhe revelaria o Ser, permanece mistério.
159
54 O monoteísmo exclusivo no Ocidente, como é sabido, é resultado da conversão dos
povos ao cristianismo e da dessacralização de suas divindades originárias ou da sua sujeição
à divindade cristã. Sobre o caráter demoníaco desse monoteísmo, o lósofo Alain de
Benoist observa que “a partir do momento em que há um único Deus, também uma única
verdade e tudo o que não seja essa verdade única está no erro”. Segundo ele, “essa classe
de monoteísmo redutor da diversidade foi a origem das formas modernas de autoritarismo e
racismo, porque implica uma escala única de valores apesar de vivermos num mundo plural,
polimórco” (Cambio 16, Madri, 17 de fevereiro de 1987).
55 Tillich formula esse desao para o protestantismo dizendo que a ênfase no Cristo não
devia depotenciar o mistério do fundamento divino e da sua criatividade. Cristo convertido
em Deus do monoteísmo exclusivo é uma negação de Deus como ser-em-si, pois quando as
manifestações concretas do Deus inconfessável reivindicam para si ultimaticidade na situação
concreta em que aparecem, emerge o elemento demoníaco que tenta impor as manifestações
concretas; como essas totalidades se excluem mutuamente, geram os fundamentalismos e as
guerras religiosas (Tillich, 1984, p. 189).
56 Boff, 1995, p. 321. O teólogo sistemático Hans-Martin Barth fala do politeísmo a partir
do hinduísmo e do budismo como um processo que tende ao monoteísmo, que carrega em
si o germe do indivisível absoluto e pode chegar a transcender a distinção entre “Um” e
o “muito”. Por outro lado, ele arma que tendências politeístas tanto no monoteísmo
judaico quanto no islâmico (Barth, 2001, p. 333-334).
57 Agradeço à família Toriba a gentileza e a espontaneidade com que, de forma plástica, nos
apresentou seu sistema religioso.
58 Os nomes foram: Chiru Ára Noe, Tupambi, Kerero, Karai Papa, Kurusúva Jeguakarei,
Kurusúva Jeroky, Kurusúva Jeguaju, Eichu, Pa’i Kuara, Hyapuguasúva, Kurupíra Rembypy,
Yryvera, Jakaira Guasu, Guyra Pepotĩ, Yryvera, Marãny, Tata Vera.
59 Moltmann,1985, p. 39s.; Boff, 1995, p. 246ss. Aplicado à Trindade o termo pericorese é
entendido como comunhão e perfeita relação das pessoas
60 Consultar a respeito o belo artigo de Ivone Gebara (1998) Eine neue Sinnentschlüsselung,
die Trinität und die menschliche Erfahrung.
160
161
4 – A COSMOLOGIA: COSMIFICAÇÃO DA PALAVRA
Nas páginas anteriores pode se ver que o monoteísmo exclusivo não
pode sustentar as demandas do diálogo com as religiões indígenas. Estas,
com sua tendência a personicar as imagens que fazem a partir do “estar-
aí” divinos, precisam, para serem acolhidas teologicamente no âmbito
cristão, de um paradigma de recepção que integre o sobrenatural ao natural,
o criador à criatura, o eterno ao temporal, o céu à terra. A palavra divina
e criadora toma forma no mundo, ganha uma dimensão cosmológica. De
modo que a continuação apresento a forma em que grupos considerados
guarani explicam o ato religioso que origina, fundamenta e sustenta o
universo; sua concepção de terra e sua relação com ela, além de apontar
algumas convergências entre essa concepção indígena e uma das teologias
cristãs que inclui a preocupação ecológica em sua agenda.
4.1 – A terra como corpo que murmura sua palavra
É na forma de conceber o mundo que se enraíza uma das grandes
diferenças entre os indígenas e as culturas chamadas ocidentais. Nestas,
a tendência é relacionar-se com a natureza seguindo as pautas das leis da
física. Os seres humanos são, nestas culturas, uma força da natureza mas
exterior a ela, portanto com capacidade para agir sobre ela como quiser.
As sociedades indígenas, ao contrário, concedem à natureza características
humanas e incluem-na num sistema social único. Assim, para os grupos
indígenas aqui estudados, a terra tem as faculdades dos humanos. É como
um corpo murmurante, que se alarga e se estende. Ela vê, ouve, fala, sente
e é enfeitada. É viva!
4.1.1–Aconguraçãodouniverso
O universo, para os grupos denominados guarani, se compõe de
três espaços bem diferenciados: a terra (yvy) o paraíso (yva, yvága, yvy
162
araguyje, yva rypy, yvy marãne’ỹ), muitas vezes chamado de céu, e uma
região intermediária (ára popy) que, para alguns grupos, é o mar (para).
Conforme Kátia Vietta (1992, p. 119), os Mbyá renomeiam esses espaços
como se fossem três mundos distintos: o mundo dos Mbyá,
1
a terra que
habitamos; o dos jesuítas,
2
que ca ao leste, no além-mar; e o dos deuses
e antepassados,
3
que se situa acima do céu que cobre os dois primeiros
mundos.
No gráco
4
desenhado por Mário Toriba, as referências espaciais
principais são os pontos cardeais leste e oeste, destacando-se o leste na
orientação do grupo. Os Kaiová representam o mundo como uma plataforma
circular, que sugere uma concepção horizontal do universo (Melià, 1989,
p. 328). A morada das divindades localiza-se nas bordas da plataforma
terrestre e a morada dos seres humanos ca no centro dessa plataforma. O
espaço intermediário, por sua vez, é uma espécie de purgatório, por estar
ocupado pelas “almas” (ma’etirõ) que não puderam entrar no paraíso e por
uma entidade tutelar dessas “almas” (Tupã Arasa). A concepção horizontal
do universo também se deixa reconhecer na descrição do mundo como uma
série de plataformas sobrepostas, o que ajuda a explicar as divisões que
cada uma das três partes do mundo comporta (Chamorro, 1995, p. 63).
Assim, o “paraíso” tem uma abertura (yvakua) ou porta na primeira
camada, a qual está aos cuidados dos pássaros divinos (arára). Por essa
porta se ingressa nos vários “céus”. No primeiro “céu”, a palavra-alma dos
parentes falecidos passa por uma espécie de teste que põe à prova o grau de
plenitude alcançado por ela (Melià & Grünberg, 1976, p. 234). Raramente
uma pessoa é dispensada dessas provações.
É interessante estar atento para o conceito guarani de habitar o centro
da terra (yvy mbyte). Nos catecismos coloniais, com os termos yvy pyte e yvy
mbyte foram traduzidos para a língua indígena, aparentemente sem motivo,
as palavras “inferno” e “cemitério”. O critério para a tradução certamente
foi o mundo de três andares da cosmologia grega. Assim, nos catecismos
está escrito que o inferno ca no meio interior da terra
5
lugar habitado pelo
diabo. Luis Bolaños e os autores dos Catecismos Vários usam essa expressão
para traduzir a descida de Jesus ao mundo dos mortos, conforme recitado
no Credo Apostólico. Para os Kaiová, no entanto, o “centro da terra” é o
umbigo do mundo, uma espécie de “éden”, lugar onde a história humana
começou. O “centro da terra” é, ainda hoje, ponto signicativo na orientação
espacial desse grupo. Idêntico sentido é registrado nos outros grupos de fala
163
guarani (Cadogan, 1960, p. 133; 1971. p. 34). No relato do líder religioso
Acaraymi, por exemplo, os Guarani (Avá-Chiripá) se apresentam como
aqueles que permanecem xos ao coração da terra (Perasso, 1986, p. 55).
O vínculo dos desses indígenas com o “centro”, porém, não impede
que eles concebam a terra como um corpo murmurante que se estende e
se alarga continuamente. Para os Kaiová, num passado-começo a terra e
o milho balbuciavam e embalavam sua palavra, yvy (o)ñemongo’i vaekue,
itymby oñemongo’i vaekue. O termo oñemongo’i carrega em si o sentido
de movimento e sonoridade, de modo que a terra e o milho apontam para
a Palavra Primordial, a voz do universo, com a qual os demais seres, as
palavras individuais, procuram se sintonizar. o termo itymby se refere
diretamente ao brotar dos vegetais, em especial do milho, e, em sentido
gurado, ao ato pelo qual os demais seres chegam à existência. Esse ato
é freqüentemente explicado como um murmúrio, um ensaio do falar, do
dizer-se. O signicado religioso desta palavra, itymby, se deixa perceber
com toda a plasticidade em um recitativo proferido durante uma espécie
de procissão levada a cabo na festa do milho novo. A seguir um fragmento
desse longo relato cosmogônico.
Itymbýra Jasuka Brota o princípio de vida (o universo)
Che ropapa, che ropapa Eu te conto, eu te conto tua história
Itymby Mba’ekuaa Brota a sabedoria
Che jereropapa Meu mútuo contar
Itymbýra Jeguaka Brota a diadema masculina
Che jereropapa Meu mútuo contar
Itymbýra Ryapu Brota a palavra (do trovão)
Che jereropapa Meu mútuo contar
Itymbýra Ñandua Brota o enfeite de plumas
Che ropapa, che ropapa Eu te conto, eu te conto tua história
Itymbýra Kurusu Brota a cruz, eixo do mundo
Che jereropapa Meu mútuo contar
Itymby Kurundaju Brota o enfeite da cruz
Che ropapa, che ropapa Eu te conto, eu te conto tua história
Como pode ser visto, surgem o princípio ativo do universo - símbolo
feminino -, a sabedoria, o símbolo da masculinidade e a palavra. Estrutura-
se a terra, que vai sendo enfeitada, como se enfeita um corpo.
164
4.1.2 – Os enfeites do universo
A terra aparece nos cantos kaiová como corpo enfeitado. Não
ela, mas também as pessoas e os outros seres são descritos como seres
“paramentados”, quando se quer destacar sua boa constituição, seu bom
crescimento, sua maturidade. De modo que, ao repetirem “enfeita-me,
enfeita-me”, os Kaiová, na festa do milho novo, aclamam a plenitude
alcançada pela semente e alegram-se porque isso é um bom augúrio, uma
conrmação de que os humanos também podem ser plenicados.
As divindades são os seres enfeitados por excelência. Enfeite, adorno
ou paramento (jegua) não é um acessório, algo supéruo ou complementar,
como à primeira vista pode parecer; mas algo essencial, o coração dos seres.
Por isso o enfeitar-se é indispensável no processo de aperfeiçoamento e de
identicação com as divindades. Nesse sentido cabe lembrar que, entre os
epítetos que os Paĩ-tavyterã e os Kaiová costumam aplicar a si mesmos,
gura o de “enfeites do universo” (ára jeguaka). Ao escutarem sua história,
sua origem, sua palavra original, os seres se defrontam com seu verdadeiro
modo de ser. Provêm para si um enfeite e prosseguem sua caminhada,
enfeitando-se sempre, até realizarem plenamente o que estão destinados a
ser. No caso do milho, a madurez das espigas; no caso das pessoas, boas
palavras e grandeza de coração.
Quase todos os enfeites convergem a um enfeite que parece ser
primário para os grupos estudados: a or (poty, yvoty). Ela faz parte do
enfeite da cabeça (jeguaka poty, akãngua), do enfeite da cintura (ku’akuaha
poty), do enfeite das mãos (mbaraka poty) e do enfeite da boca, da palavra
(ñe’ẽ poty). Nos cantos e nas narrativas kaiová, a or aparece como recurso
para dizer mãos, dedos e cabelos das pessoas. Isso sugere que o grupo
estabelece uma estreita relação entre ser humano e natureza. Assim, canta-se
“dança daquele cuja mão é uma or (oresce)”, Opopoty mbojeroky
,
, “dança
daquele cuja mão é broto dourado do seu galho”, opóva ru’ãju mbojeroky.
Semelhante ocorrência se verica também entre os Mbyá: “galhos oridos
das divinas palmas das mãos”, vára popyte rakã poty (Cadogan, 1959. p.
13, 17). No mito dos irmãos, a or é motivo de conito entre Nossa Mãe e
o Irmão Maior, representado pelo sol, Pa’i Kuara. Remontando-se a esse
episódio, os Kaiová chamam a or de Pa’i Kuara poty, ‘Flor do sol’ ou do
Nosso Irmão.
6
ainda um outro verbete que fala da terra como um corpo que
165
precisa ser enfeitado. Trata-se de omongy, fazer chover. Omongy signica
enfeitar, fertilizar, fortalecer e batizar. As sementes, se não fossem enfeitadas
pela chuva, morreriam. Como elas, as pessoas precisam conhecer sua
origem, a palavra que repousa no coração de cada uma delas (itymbýra
ryapu). As pessoas são enfeitadas na água de seu modo de ser (hekorypype)
e os ociantes da cerimônia são denominados “aqueles que farão chover”
(mongyharã). Entre os Aché-Guajaki acredita-se que o canto das mulheres
provoca a chuva, que cai sobre a sepultura dos antepassados, enfeita a
terra e estimula o crescimento das plantas. Nas plantas aninham-se os “ex-
tamanduás” que, por sua vez, representam os defuntos. Fecha-se, assim, o
ciclo entre o ser humano e a natureza (Münzel, 1978, p. 246). Esse é um
exemplo de como os indígenas entendem a interdependência entre os seres
e de como, a partir desse entendimento, pode-se imaginar a plenicação da
criação.
4.1.3 – Os guardas do ser: as plantas e os animais
Os poderes da natureza e dos fenômenos naturais são transformados
pelos indígenas em seres sobrenaturais que, nas palavras de Melià (1989, p.
322), numa taxionomia ocidental corresponderiam a entidades inferiores, ou
seja, divindades que atuam positiva ou negativamente sobre o ser humano.
Esses seres são comumente chamados, hoje em dia, de espíritos. Além dos
espíritos de plantas e de animais de caça, há também os guardas das matas
e dos montes, o que é bastante signicativo, que a vegetação é concebida
como uma espécie de pele ou de pêlo do corpo da terra. Em muitos casos,
os termos “espírito” e “dono” são usados como sinônimos pelos índios.
“Os espíritos são os cuidadores e guardas, herekua, ijára, dos animais e
das plantas”, tenta explicar um indígena. Em vários grupos kaiová e paĩ-
tavyterã, esses espíritos são chamados de “guardas do ser” (Tekojára). Eles
são os guardas ou as donas do modo de ser de uma determinada espécie
animal ou vegetal, bem como de alguma faculdade do ser humano. Os
“guardas do ser”, em algumas circunstâncias, parecem marcar o limite
entre seres sobrenaturais e naturais. A diferença essencial entre ambos os
seres seria que os sobrenaturais são seres completos, conhecedores de seu
próprio modo de ser,
7
enquanto que os naturais muitas vezes carecem de
entendimento.
166
A terminação jára, “dono”, indica que os seres denominados sob o
epíteto Tekojára são os que conferem características animistas à religião
guarani.
8
A crença nos guardas da mata é fundamental entre os Chiriguano-
Isoseño da Bolívia. Esses guardas da natureza costumam ser invocados
nos ritos de caráter mais familiar, através dos quais as pessoas tentam se
fazer propícias aos espíritos tutelares dos animais celebrando uma espécie
de missa em favor do protetor e do animal que querem caçar. É provável
que esses guardas da natureza “representem as crenças religiosas mais
arcaicas, relacionadas com uma forma de vida e uma economia de coletores
e caçadores” (Melià, 1989, p. 328).
Temos de ter bem presente, nesse sentido, que essas formas arcaicas
de relação com a natureza são experiências no nível de consciência da não-
dualidade entre objeto-sujeito, ser humano-divindade, ser humano-natureza.
nelas uma vivência religiosa em que a natureza se torna teofania e em
que a ação humana é sempre ritual (César, 1988, p. 84). Entre os Kaiová,
um tipo de canto chamado guahu ai é exemplo da profunda reverência que
os animais recebem dos indígenas. Nesses cantos, o mais importante não é
o que se canta, mas o cantar em si. Outro signicado de guahu também é
“pranto”, e o canto é uma espécie de lamento ritual, um tipo de funeral pelos
animais, sua encomendação. Esses cantos são entoados geralmente antes de
sair para a caça, seja para “enamorar/atrair” o animal para a armadilha, seja
para tornar impróspera a intenção de outro caçador.
Ype hũ guahu Canto-choro do pato selvagem
Ambope che rembeta Quebrei meu enfeite labial
Evokóirupi Pelos lugares que andei
Ambope che rembeta Quebrei meu enfeite labial
Juguy’y guasu mbytérupi No meio do varjão
Ambope che rembeta Quebrei meu enfeite labial
Akuti guahu Canto-choro do acuti
Ambogua monde miri Burlo a pequena armadilha
Guakekehe guakekehe Guakekehe guakekehe
Ambogua monde miri Burlo a pequena armadilha
Monde mboguarire Depois de burlar a armadilha
Guakekehe guakekehe Guakekehe guakekehe
Ambogua monde miri
Burlo a pequena armadilha
167
A pertença mútua entre os seres humanos e os outros seres não
implica necessariamente em que aqueles sacralizem os animais, o milho
ou o sol. Parafraseando Constança Marcondes César, podemos dizer
que, ao enfatizar o gênero vegetal, o gênero animal e os astros, os povos
chamados guarani, como outros povos, são invadidos e possuídos por algo
meta-humano, por uma realidade metafísica que se expõe à consciência.
Dessa forma, como o fazem outros povos, eles compartem a consciência do
misterium tremendum (César, 1988, p. 85). Para eles, o mundo é hierofânico
e seus mitos etiológicos completam a concepção de uma natureza sagrada.
Deus cria o mundo de uma porção de sua sabedoria. De certa forma, isso
nos remete à grande força da natureza de Gn 1. 3, 6, 11, 20, 21.
E disse Deus: Haja luz. E houve luz. (...) Haja um rmamento no meio das
águas (...) E assim foi. (...) E disse Deus: Produza a terra relva verde, ervas
que dêem semente conforme sua espécie, e árvores que dêem fruto segundo
sua espécie, cuja semente esteja mole sobre a terra. E assim foi. (...) E disse
Deus: Produza a terra enxames de seres viventes (...) E viu Deus que isso
era bom.
Comparada com as tradições precedentes esse relato bíblico mostra
uma geração que já tinha começado a desencantar a natureza, porém
se o lermos junto com os mitos mbyá e kaiová encontramos nele uma
proximidade muito maior entre o Criador e a Criação, que a que nosso
objetivismo nos deixa supor. Deus põe as sementes de seu Ser Criador em
todas as coisas.
Essa natureza sagrada inclui uma grande quantidade de animais
e plantas de origem divina, que são objeto de especial consideração. A
taxionomia mítica tem como principal valor o de proporcionar uma “razão
de ser no mundo” para os animais e as plantas. Num jargão que se aproxima
do platonismo, Cadogan considera que, para os grupos considerados
Guarani, os animais atuais são apenas “imagens perecíveis dos animais
eternos” (Cadogan, 1968, p. 80), cuja existência se inaugura no mito. A isso
se referia nosso informante quando reetia sobre a necessidade de enfeitar-
se, de fazer desenvolver o que cada ser traz inscrito na sua natureza. Por
isso, não as condutas humanas, mas também as condutas dos animais e
das plantas encontram sua razão de ser e sua estatura plena na Divindade.
168
4.2 – O estar a caminho e a busca da “terra sem males”
“Grande e Primeiro Mestre, seja forte e tenha coragem para nos
levar pelo caminho sagrado” (Memória Viva Guarani, Canto 5), cantam as
crianças guarani da região de São Paulo. Com suas vozes elas alentam as
gerações mais velhas, e as próprias divindades que lideram a caminhada,
a prosseguir na busca de uma terra renovada. Um lugar onde lhes seja
possível viver conforme seu modo de ser com dignidade e segurança, sem o
assédio mas também sem a indiferença da sociedade envolvente. Enquanto
não se possui esse lugar, os pés que o procuram consagram, ao andar, o
caminho como templo da esperança e liberdade. Sobre o fascínio que essas
imagens exercem sobre os indígenas e sobre nós outros versa esta parte do
trabalho.
4.2.1 - Sobre a expressão “terra sem males” e seus desdobramentos
O termo “terra sem males” foi registrado já por Ruiz de Montoya. No
seu Tesoro de la lengua guaraní consta yvy marãne’ỹ como “solo intato”
(Ruiz de Montoya, 1876c, f. 209), no sentido de “mata virgem”. Na literatura
etnológica a expressão reaparece em 1914, nos escritos de Nimuendaju.
9
Ele
coloca a busca da “terra sem males” e, com isso, a religião do grupo como
provável motor da mobilidade apapokúva (Nimuendaju, 1987, p. 108). Anos
mais tarde, Alfred Métraux, estudando a religião dos Tupinambá, recorreu a
essa hipótese oriunda do contato com os grupos tupi-guarani, precisamente
com os Apapokuva e os Tembé, para estudar as migrações dos Tupinambá
exterminados. O autor associou denitivamente a hipótese da busca de
uma “terra sem males” com a idéia das “migrações históricas” dos grupos
tupi-guarani.
10
Na seqüência, León Cadogan, Egon Schaden, Branislava Susnik,
Bartomeu Melià, Friedl e Georg Grünberg e também uma série de novos
autores abordaram histórica e etnogracamente a questão da “terra sem
males”. Durante minha pesquisa com os Kaiová e os Ñandeva do Mato
Grosso do Sul, não me deparei com a expressão yvy marãne’ỹ
11
e sim com
yvy araguyje, “terra de tempo-espaço perfeito”, e yvy ñomimbyre, terra
guardada ou escondida. Nesses grupos, a expressão marãne’ỹ aparece como
um atributo adjudicado às sementes, aos paramentos rituais, às pessoas e à
169
palavra, no sentido de eles serem verdadeiros, originais ou plenicados.
Num artigo sobre a invenção da busca da “terra sem males”, Francisco
Noelli destaca os dois primeiros autores que se ocuparam da “terra sem
males” entre os grupos tupi-guarani, Nimuendaju e Métraux, que, de
certa forma, fundaram um discurso que inuenciou muito a formação do
pensamento sobre os diferentes povos chamados genericamente Guarani.
Noelli comenta que Métraux, ao “comprovar cienticamente” as intuições
de Nimuendaju sobre a “terra sem males”,
12
acabou inaugurando um mito
acadêmico sobre esses indígenas.
A crítica é pertinente por confrontar o discurso que rege boa parte
dos estudos guaraníticos com informações oriundas da etnograa. Quanto
a Nimuendaju, eu destacaria, por um lado, que não se pode desmerecer
o signicado do fato de ele ter priorizado as informações do âmbito
religioso, o que permitiu conhecer aspectos dessa cultura indígena até então
desconhecidos e subestimados. Por outro lado, que se reconhecer que isso
deu asas à imaginação de muitos autores e autoras que, tomando como ponto
de partida os relatos sobre os povos apapokuva, zeram desdobramentos
exagerados precisamente da “terra sem males”, tornando a encobrir esses
indígenas como sujeitos de um processo histórico-social.
Noelli considera, por exemplo, infundada a associação entre
“migração” e “terra sem males” como se uma fosse pressuposto da outra.
Entre seus argumentos guram, na etnograa, a constatação de León
Cadogan entre os Mbyá, de que o ingresso na “terra sem males” se dá “sem
a necessidade da migração terrena” (Cadogan, 1959, p. 144-155) e, na
arqueologia, a tese de José Proenza Brochado (1984) que, juntamente com
outros pesquisadores, vem demostrando que a migração é mais um legado
que domina o imaginário das pessoas e menos um habitus dos grupos tupi-
guarani (Noelli, 1999b, p. 141-143).
13
Em situações normais, esses grupos não abandonavam as terras
previamente ocupadas e manejadas por eles para ocupar novas áreas. “O
que ocorria eram sucessivos desdobramentos das aldeias antigas em novas
devido ao crescimento demográco, incorporação de pessoas ‘não-guarani’,
brigas e ascensão de lideranças jovens que criavam novos agrupamentos”
(Noelli, 1999b, p. 143). Somente em situações de crise os grupos indígenas
considerados guarani adotaram a mobilidade espacial como estratégia
para “resistir” aos outros. Assim, na opinião de Noelli, as migrações dos
séculos XVI e XVII teriam sido reações contra a conquista européia e a dos
170
Apapokuva, uma fuga do processo de colonização do atual Mato Grosso do
Sul e da região contígua no Paraguai.
Para o deslocamento dos Mbyá, a partir da segunda metade do século
XIX, o autor menciona guerras, epidemias, opressão e devastação ecológica,
tomando como base a pesquisa de Ivori Garlet (1997). Nessa mesma lógica,
a intensicação do trânsito desse grupo nas últimas décadas em direção
ao Atlântico, acrescentaria eu, é conseqüência da colonização acelerada
e impiedosa da região da bacia do alto e médio Paraná, a construção da
usina hidrelétrica de Itaipu, o desmatamento em benefício da imposição da
monocultura da soja e de outros cereais.
A crítica de Noelli é oportuna por lembrar a dimensão histórica e
social dos fenômenos religiosos e por mostrar como uma idéia pode se tornar
dominante e emperrar a pesquisa cientíca.
14
O autor constata nos estudos
da “terra sem males” a vigência de duas abordagens, uma de cunho mais
simbólico-religioso e outra de cunho mais ecológico (Noelli, 1999b, p. 134).
Na primeira, as migrações sãos consideradas, quase que exclusivamente,
como movimentos messiânicos e, na segunda, como movimentos históricos.
Na perspectiva ecológica, a abordagem simbólico-religiosa é considerada
atemporal e despida de conteúdo histórico-social, devido à natureza das
causas e conseqüências das migrações que ela destaca. Noelli defende que
o comportamento de busca da “terra sem males” tem uma causalidade
material e é um fator desviante do padrão cultural guarani.
Noelli toca num problema freqüente nas pesquisas sobre religião e
que consiste em transcendentalizar as utopias, connando-as ao mundo
espiritual, de forma a desviar a atenção da realidade histórico-social. Nas
ciências das religiões e na própria teologia tem-se avançado, nesse sentido,
situando-se os grandes temas e os fatos fundadores das religiões nos seus
respectivos contextos.
15
O outro extremo nas pesquisas desse gênero é
subestimar o elemento religioso na dinâmica social. Por conseguinte, a
crítica de Noelli deve nos levar a considerar as causas materiais na busca
da “terra sem males” mas não a reduzir nelas as razões da mobilidade de
alguns grupos guarani. A religião parece gerar no caso deles situações e
fatos que repercutem sobre outros aspectos da vida desses grupos, o que
corrobora a idéia de que os fatos da religião não são necessariamente “fatos
segundos” quando comparados com os outros fatos sociais que atingem um
determinado grupo.
Nesse sentido, a enorme atração que a “terra sem males” vem
171
exercendo sobre pessoas e grupos das mais diversas procedências culturais
e acadêmicas pode mostrar que o sonho de um mundo melhorado não é
insignicante na experiência humana. Em outras palavras: “idéias, ideais,
delidades, paixões e saudades não se deixam diretamente observar, mas
seu signicado na história humana não é por isso menos transcendente
nem sua pesquisa menos valiosa ou importante” (In: Eliade, 1959, p. 35).
Para Melià, o fascínio gerado pela “terra sem males” mostra “como uma
experiência indígena pode se tornar exemplar e paradigmática para pensar e
trabalhar uma realidade mais ampla e geral, como seria o projeto a utopia
de uma sociedade mais solidária e humana”. A incorporação do tema da
“terra sem males”, prossegue o autor, apoiado no estudo da etnóloga Judith
Shapiro, é “um ‘lugar teológico’ que serve providencialmente para entender
e tornar atual a busca do verdadeiro Reino de Deus” (Melià, 1989, p. 335;
Shapiro, 1987, p. 255-257).
Como a perspectiva na qual trabalho coloca no centro da questão
as pessoas afetadas pelo fenômeno, gostaria de prosseguir, especicando
o fenômeno da busca da “terra sem males” na fala e nas atitudes dos
indígenas.
4.2.2 – A “terra sem males” nos relatos indígenas
Nos últimos cem anos pode se falar, no mínimo, de três momentos
históricas em que as imagens espaciais ganharam destaque no imaginário
religioso guarani.
A “terra sem males” dos Apapokuva
Nimuendaju relata que nos grupos apapokuva, que lhe tocou
acompanhar no início do século XX, havia duas opiniões sobre a “terra
sem males”. Uns a imaginavam situada nas esferas celestes, no outro lado
do oceano, inaccessível aos caminhantes, que eram desaados a reduzir
o peso especíco dos seus corpos, a m de poder voar até esse lugar.
Outros, porém, armavam que a “terra sem males” se situava no centro da
superfície da terra e que nela se realizavam as virtudes autocriadoras das
origens. Como acontecera nos primórdios, nela a roça planta-se sozinha e
frutos imediatamente (Nimuendaju, 1987, p. 98, 135, 143). Segundo
Nimuendaju, os grupos apapokuva que buscaram a “terra sem males” pelo
leste foram intimidados pelo quebrar das ondas, “que, como inimigo feroz,
172
parecem estar sempre arremetendo contra a terra”. Convictos de que seus
planos eram inexeqüíveis, “sempre recuaram até onde não pudessem ver
nem ouvir o mar” (Nimuendaju, 1987, p. 99).
Nimuendaju registrou várias peregrinações dos grupos apapokuva.
Com relação aos que partiram de Ypehu, ele escreveu que, depois de terem
superado razoavelmente o medo diante da visão inusitada do mar, retiravam-
se novamente um pouco para o interior, erguiam uma casa de dança e
começavam seriamente a dança com o objetivo de atingir a “terra sem
males” através da água (Nimuendaju, 1987, p. 103). Na busca da “terra sem
males”, o grupo se depara com a frustração e intensica sua consciência de
que a destruição iminente do mundo é inevitável. A terra já tinha desabado
no Oeste e ardia em chamas. Anunciava-se na seqüência sua inundação. Os
indígenas do litoral se preparavam para enfrentar a destruição, que ainda
não os tinha alcançado. Construíram uma casa de madeira, entraram nela
e começaram a dançar e a cantar, enquanto a terra era inundada. “Nosso
Pai” lhes recomendou “cuidem-se, para não ter medo” e eles resistiram
com coragem às águas que inundavam a terra. “A casa se moveu. Girou
e utuou sobre a água, subiu e partiu. Finalmente chegaram à porta das
esferas celestes”. Esse lugar foi denonimado yvy marãe’ỹ “terra sem
males”. Nela as plantas nascem por si só, os frutos da terra se processam
por si próprios, a caça chega aos pés do caçador morta, as pessoas não
envelhecem nem morrem, tampouco conhecem o sofrimento(Nimuendaju,
1987, p. 154, 156).
A busca empreendida pelos Apapokuva, segundo Nimuendaju,
deve-se exclusivamente ao medo da destruição do mundo e à esperança de
ingressar na “terra sem males”. Essa interpretação, como foi indicado
no tópico anterior, precisa ser corrigida, pois tanto as causas do medo da
destruição podem ser sócio-historicamente situadas, como a busca de uma
“terra sem males” não corresponde necessariamente a fuga da realidade.
A “terra sem males” dos Mbyá-Guarani
Para os Mbyá contemporâneos, a “terra sem males” é um lugar
guardado e protegido; uma terra boa e fértil, um lugar onde existem as
plantas e os animais que compõem o mundo original, onde as próprias
pessoas experimentam as condições favoráveis à sua plenicação. Essa
terra produz não só alimento, mas também inspiração para rezar e cantar. A
oresta, a mata atlântica, representa o espaço anterior à ocupação européia,
enquanto que a ruína indica o espaço no qual seus ancestros, no período
173
colonial, construíram casas de pedra para morar.
16
Como foi mencionado, os Mbyá são os únicos dentre os chamados
Guarani que, no presente, literalmente se encontram a caminho. Cercados
pelas novas frentes de colonização no oeste brasileiro, leste do Paraguai
e nordeste argentino, eles tinham que escolher entre tornar-se mão-de-
obra escrava (Burri, 1993, p. 30) para os novos guardas da terra, expor-
se à humilhação de conviver com os representantes do desenvolvimento
agrícola que os consideram “entraves do progresso” ou pôr-se a caminho
na busca da “terra sem males” que se encontra do outro lado do oceano. As
seguintes canções, extraídas do CD gravado recentemente pelos Mbyá de
São Paulo e Rio de Janeiro, fazem referência a essa busca.
Che kyvy’i Meu irmãozinho
Che kyvy’i, che kyvy’i, ereo rire Meu irmãozinho, meu irmãozinho, você se foi
Ejevy voi jaa aguã, ejevy voi jaa aguã Retorne logo, retorne logo para partirmos
Jaa mavy, jaa mavy joupive’i Para irmos juntinhos, para irmos juntinhos
Para rovái jajerojy, para rovái jajerojy Reverenciando a Deus, para o outro lado do oceano
Ore ru orembo’e katu Nosso Pai
Ore ru, orembo’e katu ne amba roupity aguã Nosso Pai, ensina-nos como chegar à tua morada
Ore ru, orembo’e katu ne amba roupity aguã Nosso Pai, ensina-nos como chegar à tua morada
Ñañembo’e, ñañembo’e e’i Deixe-nos rezar, deixa-nos rezar
Para rovái jajapyra aguã Para atravessar ao outro lado do oceano
Para rovái jajapyra aguã Para atravessar ao outro lado do oceano
Jajerojy, jajerojy Fazendo reverência, fazendo reverência
Japapyra aguã Para cruzar ao outro lado do oceano
Caminhando, os Mbyá retornam a lugares outrora habitados por
grupos indígenas falantes de línguas guarani e formulam, perante as
autoridades e a população brasileiras, que, para viver, necessita-se de um
pedaço de terra. É o que consta no canto 9 do acima referido CD.
Ore yvy peraa va’ekue A nossa terra
Peme’ẽ jevy, peme’ẽ jevy Devolvam, devolvam
Ore yvy peraa va’ekue A nossa terra que vocês tomaram
Roiko’i aguã Para que a gente continue vivendo
174
Maria Inês Ladeira recolheu entre os Mbyá do litoral brasileiro
algumas expressões que descrevem a maneira como esses indígenas
imaginam a “terra sem males”. Primeiramente, ela é uma terra boa, bonita,
dourada. É o lugar onde nasce o sol. Todos os que vivem e tudo o que nela
existe estão enfeitados com a qualidade marãne’ỹ”, sem males. Assim, a
vegetação desse lugar é perene, eterna e sempre cuidada, com destaque para
a palmeira eterna. Dentre as espécies cultivadas nessa terra, destaca-se o
milho verdadeiro, cujo plantio e cuja colheita asseguram a perpetuação dos
ciclos da vida social através do ritual de atribuição do nome às crianças.
todas as plantas nascem e se espalham sozinhas sobre a terra. Assim,
quando a batata doce é colhida, já nasce outra no lugar. E esse é o modo de
ser de todas as plantações. Na “terra sem males” existe uma fonte de água
iluminada pelo sol nascente, o vento que sopra nesse lugar é bom porque é
marãne’ỹ e a água que corre sobre sua face é sadia. Lá não existe sujeira, a
casa de reza está sempre limpa, porque ela é marãne’ỹ; não existe doença,
tudo é sempre sadio, porque tudo é marãne’ỹ; não tristeza, sempre se vive
feliz. As pessoas se levantam sempre bem-humoradas e se cumprimentam
com alegria; ninguém ca bravo, nem briga (Ladeira, 1999, p. 83-86).
A autora destaca que a noção de fartura associada com a “terra sem
males” está fundada no princípio da qualidade dos recursos naturais e da
continuidade da produção e não no da quantidade dos gêneros produzidos.
Assim, quando os Mbyá transportam as sementes do seu milho tradicional,
não estão preocupados em produzir grandes roças mas sim em perpetuar sua
produção através da ritualização da proto-roça do mundo original (Ladeira,
1999, p. 87).
A “terra sem males” não é uma mera utopia, no sentido de um não-
lugar, como muitos querem entender, para se desvencilhar dos incômodos
que a reivindicação dos indígenas pode desencadear. Os Mbyái estão
convencidos de que, para entrarem na “terra sem males”, precisam caçar,
plantar, festejar e viver como Mbyá. Para isso lhes é imprescindível uma
terra. Mas a “terra sem males” tampouco pode ser reduzida à dimensão
terrena e social, haja vista que, em muitos casos, as áreas que os indígenas
deixam para trás apresentam maior equilíbrio do ponto de vista ecológico
do que as áreas que eles passam a ocupar ao longo do litoral brasileiro.
Nesse caso, que se levar em conta dois elementos: a compulsoriedade
da saída dos Mbyá das áreas que ocupam no Paraguai e na Argentina e o
signicado do “estar a caminho” como uma forma de “aproximar-se” dos
175
lugares verdadeiros.
De modo que não só a “terra sem males” é um lugar teológico,
17
mas
também o “estar a caminho” em si, conforme depoimento de alguns Mbyá
contemporâneos. “Quem não põe o pé na estrada não pode pretender o yvy
marãne’ỹ”. O caminho é o ponto de partida para aproximar-se desse lugar.
Quem está a caminho e mantiver minimamente o modo de ser guarani
enfrentará provações, inclusive alimentares. Somente àqueles que, apesar
das provas, permanecerem éis, somente a esses que protagonizaram uma
boa caminhada, um oguata porã, será revelada a direção que devem seguir
para chegar à “terra sem males” (Ladeira, 1999, p. 92).
A “terra sem males” dos Kaiová e dos Guarani
A expressão yvy marãne’ỹ tem implicações distintas não entre os
Mbyá que se encontram em plena mobilidade e os Mbyá sedentários, mas
também entre os outros grupos guarani por mim estudados. Assim, entre
os Kaiová e os Ñandeva, a imagem espacial para onde são projetadas as
esperanças é a “terra plenicada”, a “terra do tempo-espaço perfeitos”, yvy
araguyje. O curioso é que, embora essa terra não pressuponha a mobilidade
geográca, o caminho é um elemento fundamental no imaginário desses
grupos. Em várias obras, Egon Schaden os considerava verdadeiros
viandantes, tapeja. Depois da fase de exploração da erva-mate, foi a da
Colônia Agrícola Federal (Silva, 1982, 18s; Chamorro, 1995, p. 41s.) a
que mais ameaçou a vida e a terra desses grupos no Mato Grosso do Sul.
Mesmo desesperados por verem suas terras divididas e temerosos de serem
expulsos do último sítio que lhes restava, esses indígenas não partiram em
busca de uma “terra sem males”; tentaram, sim, precipitar a destruição do
mundo e partir para o além (Schaden, 1963, p. 81-82; 1974, 173-175).
Hoje em dia, particularmente os Kaiová e os Paĩ-Tavyterã ritualizam
de várias formas o “estar a caminho”. Apresento a seguir apenas alguns
cantos, reservando uma descrição detalhada da ritualização do caminhar
para o capítulo seis.
Guyra rovajúko che reraha Pássaro de rosto brilhante me leve consigo
Guyra rovajúko che reraha Pássaro de rosto brilhante me leve consigo
Guyra rovajúko Ñandejára upe Pássaro de rosto brilhante leve-me até Deus
Okaraguijépy ma’e re’i Você já está chegando no pátio do tempo-espaço perfeito
No’amo’áko okaraguyje Olha só como é grande no pátio do tempo-espaço perfeito
Erehechávo okaraguyje Você já está vendo o pátio do tempo-espaço perfeito
176
Ñane pyguyrõko Já levanta os nossos pés
Ñane pyguyrõko Já levanta os nossos pés
Aguyje rendy A chama do bem
Ñande hohaguãko Para a nossa partida
Aguyje rendy A chama do bem
Kandire upépe Lá alcançaremos a perfeição
Aguyje rendy A chama do bem
O enraizamento do caminho na compreensão de espaço dos indígenas
deixa-se vericar quando essa imagem, mesmo erradicada dessa terra,
persiste na expressão paradoxal de um “caminho sem terra”. O “caminho
de luz” é um caminho escatológico. Nele se transguram os desejos de
uma terra pródiga com seus lhos e com suas lhas, terra que seja fértil, dê
fartura e seja propícia para as palavras. É como se fosse possível alcançar a
perfeição, sem precisar resolver o conito com os novos colonizadores, os
fazendeiros da soja.
4.2.3 – O estar a caminho: símbolo de liberdade e desterro
A terra se apresenta para os grupos indígenas chamados guarani
como espaço que deve ser caminhado. Oguata é caminhar. Uma terra
caminhada é um espaço cultivado, ocupado, humanizado. O pensamento
mítico e religioso desses povos integra na idéia criacional uma terra que
deve ser caminhada, que comporte novos horizontes, que seja ocupada de
modo humano e pleno (Melià, 1987b, p. 6). Desde o mito dos gêmeos até
hoje, para eles a terra habitável pelos humanos é um espaço onde se pode
abrir caminhos, onde se é livre para andar.
Animicamente o Guarani é um povo em êxodo, ainda que não desenraizado,
que a terra que busca é a que serve de base ecológica, hoje como em
tempos passados e como será amanhã. Ao longo dos últimos 1500 anos
período em que as tribos Guarani podem considerar-se formadas com suas
características próprias os Guarani se têm mostrado éis a sua ecologia
tradicional, não por inércia, senão pelo trabalho ativo que supõe a recriação
e a busca das condições ambientais mais adequadas para o desenvolvimento
de seu modo de ser (Melià, 1991, p. 14-15).
177
Vista nessa perspectiva, a busca da “terra sem males”, o estar a
caminho, é símbolo de liberdade e pressupõe espaço de liberdade, lugares
adequados para os seus cultivares, matas com a fauna e a ora que eles
manejam centenas de anos, rios e climas aos quais eles se adaptaram.
Como esses lugares não existem mais, como as últimas matas foram
transformadas em campo ou em “reserva ecológica”, a busca da “terra sem
males” carrega em si o sinal do desterro dos indígenas. Expulsos de seus
antigos esconderijos, eles não têm outra terra que possam ocupar. A saída é
compulsória. O caminho aparece como espaço de liberdade. A verdadeira
obsessão que se pode perceber entre os líderes religiosos mbyá por alcançar
a “terra sem males” indica que, no âmbito religioso, ritualiza-se o que não
se pode transformar. Teologicamente, porém, o caminho para a “terra sem
males” não deveria desviar da “terra sem males”, mas aproximar dela.
Deveria propiciar a vivência dessa utopia aqui e agora “num caminhar
esforçado e livre, sem alienação e sem opressão” (Melià, 1989, p. 335). Na
forma de pequenas transformações que são sinais de um sonho maior.
A importância que o caminho assume no pensamento-existência
guarani nos faz lembrar as tribos palestinenses seminômades. Para elas
também a experiência de estar a caminho foi reveladora e se tornou um
ponto de referência da sua conssão de fé. Milton Schwantes escreve que o
“estar a caminho” não permitia viver sem a coesão e a inserção grupal, ao
mesmo tempo em que fortalecia a identidade do grupo e seu vínculo com
uma divindade que acontecia na experiência do coletivo, sem mediações
complexas tais como templo ou sacerdócio. Esse Deus não era Deus de um
lugar. Ele era viandante, como as tribos.
A gente o celebra na saída. Identica-o na chegada. Conta com ele no
caminho, durante a migração. Por ocasião da saída, comemora-se, por
exemplo, a páscoa, um típico rito de partida de grupos seminômades. Na
chegada, improvisa-se um altar para agradecer pela companhia (Schwantes,
1987, p. 111).
A atitude dos grupos indígenas, seja na busca do yvy marãne’ỹ, “terra
sem mal”, ou do yvy araguayje, “terra do tempo espaço perfeito”, traz à tona
a concepção de uma ordem primordial na constituição do mundo. Ao evocar
e insistir em alcançar a terra original, os indígenas mostram à sociedade que
os cerca que um descompasso entre o mundo que hoje habitamos e o
das origens. Transitando, geográca e simbolicamente, eles contestam a
178
sorte a que foram relegados pelo desenvolvimento implantado nos estados
paraguaio, brasileiro e argentino. Contradizendo os prognósticos mais
pessimistas escritos sobre eles, como foi apresentado no capítulo primeiro,
os Mbyá encontraram no seu “estar a caminho” a forma de continuar sendo
os mesmos. Carregando o que lhes é minimamente indispensável para não
serem desenraizados, ampliam
18
seus espaços e se aproximam, no mínimo,
psicologicamente das origens. Os Kaiová e os Guarani, por sua vez, depois
de terem sido intimidados a se reduzirem nas “reservas”, nos últimos anos
eles recuperaram em torno de 20 territórios da mão de fazendeiros de gado
e de soja.
19
4.3 – O Ser Criador e sua Sabedoria Criadora
As expressões guarani traduzidas por “sabedoria” aparecem
associadas a duas situações distintas nos relatos desses grupos: no contexto
da origem do mal e como artíce da criação. Essa última signicação
enfatizarei nesta parte do trabalho.
4.3.1 – Sobre os termos “Arakuaa” e “Mba’ekuaa
É signicativa a freqüência com que o termo “sabedoria” (arakuaa,
kuaarara ou mba’ekuaa) aparece na cosmogonia de todos os grupos
chamados guarani. Arakuaa é traduzido como “entendimento” por Ruiz
de Montoya
20
e é usada pelos Chiripá e pelos Kaiová como sinônimo de
espírito, referindo-se àquele ou àquela que conhece o tempo-espaço, que
ausculta a história. Assim se expressa um Chiripá a respeito: “Existe o
Arakuaa, que vocês chamam de Espírito” (Perasso, 1986, p. 56). A mesma
analogia aparece no relato do Kaiová Mário Toriba, ao explicar que sua
concepção de universo ultrapassa a materialidade, pois ele é mais do que
a soma das plantas, dos animais e das pessoas que nele habitam. “Se não
existisse o Arakuaa, o mundo seria sem graça”.
O cognato de arakuaa, expressão chiripá e kaiová, é okuarara, em
língua mbyá. A mesma se compõe de kuaa (“saber”) e ra (radical de jera,
“criar”). Seu signicado literal é “sabedoria-poder criador” (Cadogan, 1959,
p. 25). Com semelhante signicação aparece o substantivo Mba’ekuaa, um
179
termo não registrado por Ruiz de Montoya. Mba’e signica “coisa” e kuaa
“saber”. Seu signicado mais evidente parece ser “sabedoria criadora”,
conforme registra Cadogan no seu vocabulário mbyá-guarani (Cadogan,
1959, p. 199). Em outras traduções propostas pelos indígenas, personica-
se como “Aquele-que-sabe”.
Como já foi mencionado no capítulo anterior, esse é também o nome
da enigmática personagem que acompanha “Nosso Pai” no ato criacional.
Nesse gênero de relato, onde Aquele-que-sabe é referido como alguém que
perturba a convivência do primeiro casal, a “sabedoria” aparentemente não
tem nenhuma relevância do ponto de vista cosmológico. “Nossa Mãe” lhe
faz referência apenas para provocar ciúme no seu marido. Grupos guarani
contam que voltando certo dia “Nosso Grande Pai” à sua casa encontrou
uma maraca quebrada, dentro da qual achou a mulher. Acariciando-a, ele
lhe teria dito: “Está por surgir o ser por mim amado (meu lho)”. Ao que ela
respondeu: “Não é teu lho, é lho de Mba’ekuaa (d’Aquele-que-sabe)”.
Pelo paralelismo entre o papel da maraca (porongo) indígena, símbolo
masculino, e a costela de Adão, da narrativa bíblica, pode-se deduzir que
esse relato seja de elaboração mais tardia, certamente posterior à conquista
espiritual. Como ele introduz a questão da origem do mal, será retomado no
capítulo quinto, juntamente com outros textos, que têm o mesmo caráter.
Aqui gostaria de concentrar-me na “Sabedoria” como porção da divindade
criadora.
4.3.2 – A sabedoria na construção do mundo
que se convir que é nas tradições míticas dos Mbyá que a sabedoria
faz sua manifestação mais eloqüente.
O verdadeiro Pai Ñamandu, o Primeiro, fez com que, a partir de uma
pequena porção de sua própria divindade, da sabedoria contida na sua
própria divindade, e em virtude da sua sabedoria criadora, se gerassem as
chamas e a neblina. Tendo-se erguido (assumido forma humana), concebeu,
a partir da sabedoria contida em sua própria divindade e em virtude da sua
sabedoria criadora, a origem da linguagem humana. A partir da sabedoria
contida em sua própria divindade e em virtude de sua sabedoria criadora,
criou Nosso Pai, o fundamento da linguagem humana, e fez com que
formasse parte de sua própria divindade. Antes de existir a terra, no meio
das trevas primogênitas, antes de se ter conhecimento das coisas, criou o que
180
seria o fundamento da linguagem humana (...), concebeu o fundamento do
amor ao próximo, (...) criou para si a origem de um hino sagrado (Cadogan,
1959, p. 19-20).
O texto citado é um fragmento do segundo capítulo do Ayvu rapyta,
“Origem da palavra”, ditado pelos Mbyá da região do Guairá, do Paraguai,
a León Cadogan. O mesmo é comparável à tradição sapiencial do Primeiro
Testamento, à “gênese” segundo o livro de Provérbios.
O Senhor me possui no princípio de seus caminhos, antes de suas obras mais
antigas. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo
da terra. Antes de haver oceanos, fui gerada, e antes de ainda haver fontes
carregadas de águas; antes que os montes fossem rmados, antes de haver
outeiros, eu nasci antes que ele zesse a terra (...). Eu estava lá quando ele
preparou os céus; quando traçou o horizonte sobre a face do abismo, quando
pôs ao mar o seu termo, para que as águas não desobedecessem à sua ordem,
quando compôs os fundamentos da terra. Então eu estava com ele, e era seu
arquiteto. Eu era cada dia as suas delícias, folgando perante ele em todo o
tempo (Pv 8.22-30).
O termo hebraico traduzido por “sabedoria”, nesse texto, é hokmah.
Recorrendo aos trabalhos de Fohrer, M. Saebo ressalta o duplo sentido
desse termo. Por um lado, o vocábulo se aplica de uma forma progressiva
aos mandamentos e à lei de Deus; por outro, aparece de modo independente
e personicado com respeito a Ele. Esse é seu sentido em Pv 8. A hokmah
personicada aparece “por um lado como mediadora da revelação, que
intervém com sua proclamação da mesma maneira que um profeta e, igual
a este, atribui a si mesma a autoridade máxima, e, por outro lado, como
revelação da vontade divina com respeito ao ser humano, que oferece
ao ser humano a vida e indica que sua aceitação equivale à aceitação da
vontade divina” (Jenni & Westermann I, 1978 col. 494).
No relato mbyá, embora apareça com uma função denida, a
personicação da sabedoria não é tão clara como em Provérbios 8. Aqui, a
sabedoria fala na primeira pessoa e faz uma referência externa a Deus; na
tradição dos Mbyá, como terceira pessoa, como uma porção da divindade
de “Nosso Pai”.
Quanto à relação entre a sabedoria e o cosmo, em ambos os textos
a sabedoria está relacionada com Deus e com a criação. A sabedoria é
criadora. “A partir da sabedoria contida em sua própria divindade e em
181
virtude da sua sabedoria criadora, fez com que se formasse”, diz o texto
indígena. Othmar Keel interpreta a íntima relação entre Deus, a sabedoria e
a criação, em Pv 8.30s, como uma planilha do mundo (Keel, 1974, p. 12),
sendo a sabedoria como que uma arquiteta (‘âmon) da criação. Ela se alegra
com sua obra, se delicia e dança perante Deus. Além disso, o termo em
questão sugere ainda a idéia de “sentir-se em casa”, de sentir-se à vontade.
Nesse sentido, Keel explica o signicado simbólico do riso, ou melhor, do
“ser ridente” da sabedoria. Para o autor, a hokmah pode ser considerada “a
lha primogênita de Deus” (Keel, 1974, p. 68). Pode rir e brincar à vontade,
sua alegria é transbordante.
Na cosmogonia mbyá, a sabedoria é o elemento fundamental da
criação,
21
é a matéria-prima que origina e seguimento ao mundo. Na
sua condição divina, a sabedoria cria e infunde divindade a todas as coisas.
Ao gerar as chamas, a neblina e o fundamento da linguagem humana, ela
tornou hierofânica toda a natureza. A matéria é sagrada, sábia e divina.
Esse é o princípio para imaginar o mundo como um corpo murmurante,
provido de palavra. O mundo fala. Sem isso não existiria revelação
22
para
os indígenas.
Nos diversos grupos chamados guarani, arakuaa se explica também
como a capacidade com a qual todos os seres são dotados para desenvolver
a potência de ser que carregam. Trata-se da mesma sabedoria criadora de
Deus, infundida a todos na criação. O sentido soteriológico de arakuaa
consiste na co-responsabilidade que todas as criaturas têm, ao serem dotadas
de ciência, de fazer a criação evoluir
23
até a plenitude.
4.4 - A água como mãe é matéria primordial
Conforme foi apresentado no capítulo anterior, os Kaiová e os Mbyá
acreditam em Jasuka, princípio ativo do universo, do qual se originam
todas as coisas. Gostaria de retomar aqui o simbolismo desse uido vital e
de situá-lo no contexto da discussão teológica sobre “matéria”.
Jasuka é a fonte de cujo interior emergiram todos os seres e, a partir
dela, até mesmo as divindades e os ancestrais se descobriram. Os Aché-
Guajaki do Paraguai se liam à Jasuka ao dizer que saíram do interior da
terra seguindo o curso de uma bela corrente de água (Münzel 1978, p. 240-
250; Clastres 1978, p. 207-230). Alguns Mbyá, por sua vez, contam que
182
Nosso Pai apareceu misteriosamente ao de uma palmeira eterna situada à
margem de um manancial, no centro da terra. Em outra versão, a Verdadeira
Mãe, a grande avó dos humanos, surgiu, sem ser gerada, do uido vital
e saiu das entranhas da terra mediante uma bela nascente subterrânea. O
manancial brota do umbigo da terra. Dele nascem as primeiras sementes de
vida e as espécies que se desenvolveram posteriormente.
Entre os Kaiová, fala-se de Jasuka como “treva”, “neblina” e como
uma “chuva perpétua e clara”. Para marcar que Jasuka é algo que
sustentação à criação, que a restitui de seu desgaste, os indígenas a comparam
ao “ato de banhar-se”. Para marcar seu caráter renovador, comparam-na
com a bebida de milho servida nas festas. O nome sagrado dessa bebida
é Jasuka rekory, “sumo do modo de ser de Jasuka”. Essa fonte de vida é
referida, no mito mbyá, como as trevas primogênitas,
24
o que lembra as
trevas do “vazio” original de Gn 1.2.
O simbolismo da água como elemento primordial a partir do qual
se constitui o mundo associa-se, freqüentemente, com a mulher e com a
mãe. Ao que parece, essa associação corresponde a formas de organização
da experiência humana que perpassam os limites de uma determinada
cultura.
Carl G. Jung pergunta, nesse sentido, se o mar não seria hoje um
símbolo da “grande e primitiva” imagem da mãe, que primeiramente foi
todo o nosso universo e só depois se tornou símbolo dessa totalidade (Jung
V, 1986, p. 243). Isso explica porque, no mito babilônico da criação, que
remonta ao mundo sumério, uma mãe primordial origem ao cosmo e
aos deuses. De modo semelhante à cosmogonia mbyá, do corpo dessa
mãe original surgem os primeiros pais, o céu, a terra e as forças cósmicas.
Esse símbolo primitivo, no entanto, não podemos observar em relatos
posteriores como os da Bíblia, onde a água aparece como inimiga, como
grande monstro e serpente que deve ser abatida. Assim, em 26.12-3, pode
ler-se que “(Deus) com a sua força fendeu o mar, com o seu entendimento
abateu a Raabe. Pelo seu sopro os céus se aclararam, a sua mão trespassou
a serpente veloz”; no Sl 74.13-4, Deus é louvado por abater o monstro: “Tu
dividiste o mar pela tua força, quebraste as cabeças dos monstros nas águas.
Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã”.
25
A história das religiões tem mostrado que essa transformação no
simbolismo da água corresponde a uma profunda mudança na forma de
organização social e que boa parte do Primeiro Testamento herdou dos
183
babilônicos essa nova forma de ver o mundo.
Conhecemos os relatos babilônicos através do Enuma Elish, mito
que narra a epopéia fantástica dos primórdios e que foi escrito para celebrar
o domínio de Marduque na Babilônia. Maria Lamas nos o signicado
básico dos protagonistas da epopéia:
o elemento fundamental era a água. Da fusão da água doce - o oceano
primordial (Apsu) - e da água salgada - o mar tumultuoso (Tiamat) -
resultou a agitação das ondas (Mummu) e depois nasceram todos os seres, a
começar pelos deuses (...) Apsu pode comparar-se ao rio-oceano dos gregos,
que Homero apresenta, igualmente, como pai de todas as coisas. Tiamat
personicava o mar, representando o elemento feminino de que nasceu o
mundo. No mito da criação, Tiamat gura também as forças cegas do caos
primitivo, contra as quais os deuses inteligentes e organizadores entraram
em luta” (Lamas, 1972, p. 22).
Apsu não parava de lamentar-se a Tiamat que os deuses perturbavam
sua tranqüilidade. “Durante o dia não descanso; durante a noite não posso
dormir!” Finalmente, os dois antepassados do mundo decidiram aniquilar
a sua descendência. Os deuses combateram contra Tiamat mas não
conseguiram vencê-la. Então, o deus mais inteligente convocou seu próprio
lho Marduque para enfrentar a velha Tiamat, que pereceu na luta (Lamas,
1972, p. 23). É na sua condição de combatente vencida que Tiamat aparece
nos mitos patriarcais.
26
Dela nasciam todas as coisas mas, ao ser sacricada
por Marduque, torna-se matéria morta a partir da qual é formado o universo
(Ruether, 1993a, p. 30).
No seu estudo sobre o simbolismo da mãe, Carl G. Jung retoma e
comenta o mito babilônico destacando que Tiamat se tornara um monstruoso
animal do sexo feminino. Atacada pelos ventos de Marduque, encheu seu
corpo com os ventos furiosos, até que sua boca não pôde mais ser fechada.
Marduque “despedaçou seu corpo, retalhou suas entranhas, cortou seu
coração, dominou-a e pôs m à sua vida; jogou ao chão o seu cadáver e
o pisou”. Com os restos mortais da deusa da água, Marduque planejou a
criação do mundo. Ele dividiu o corpo de Tiamat como se divide o corpo de
um peixe chato. De uma metade fez o céu, da outra metade a terra. Assim,
Marduque criou o universo a partir da mãe, com a libido que ele tirou dela
vitimando-a (Jung V, 1986, p. 246).
A referência clássica da presença dessa tradição na Bíblia é de origem
sacerdotal e data do século VI ou V a.C. Os autores conheciam muito bem
184
a interpretação babilônica do mito da grande mãe e a adotaram, embora
com importantes inovações. Assim, em Gn 1.2, lemos que “a terra era sem
forma e vazia”. Os termos hebraicos tohu (“sem forma”) e bohu (“deserta”)
remetem, juntamente com as trevas (hoshek) e as águas (tehom), ao caos
primordial. No segundo dia da criação, Gn 1.6-8, o criador bíblico, igual a
Marduque, separou as águas em duas partes, criando o céu e a terra. A água
se transforma assim de mãe primordial em matéria primordial.
Não pode ser por acaso que nas línguas indo-européias os termos
“matéria” e “mãe” tenham a mesma raiz etimológica (mater). Segundo
Rosemary Ruether, a origem dessa “coincidência” remonta à transformação
da mãe elementar em matéria a partir da qual o cosmo é moldado (Ruether,
1992, p. 243). É importante conferir a semelhança entre os termos “água”
(y, yy) e “mãe” (sy, shyy) na língua guarani. Além disso, segundo Cadogan,
costuma-se dizer nos grupos chamados guarani que a água é a mãe. Nesse
sentido ele explica que, na linguagem religiosa, poty’y que poderia ser
traduzido como “água ou árvore das ores” – se traduz por “mãe”, por ser
poty o termo sagrado que designa o seio materno.
A concepção guarani de um mundo que surge a partir de um elemento
primordial dotado de subjetividade, independente da ação humana e
reverenciado eventualmente como mãe, proporciona um oportuno confronto
com o cristianismo, onde a matéria perdeu sua dimensão teológica. Marilyn
Godoy encontra na imagem desse pré-universo indígena uma espécie de
“buraco negro” primordial que a faz pensar no big-bang de Hawking
(Godoy, 1994, p. 127). Ampliando a armação da autora, pode-se dizer que
as cosmologias baseadas no princípio que resgata Deus como fonte criadora
e sustentadora da vida estão em sintonia com as respostas que a moderna
cosmologia especulativa tem dado sobre o que se presume ser o início do
mundo (Godoy, 1994, p. 127).
As características da cosmologia guarani aqui desenvolvidas colocam
algumas questões para o cristianismo, no âmbito da sua liturgia, soteriologia,
escatologia e cosmologia. Ocupo-me a seguir com esta última.
4.5–Desaosdacosmoteologiaindígenaàteologiacristã
Os termos “corpo”, “sabedoria” e “matéria”, quando associados
a “criador/a” e “criação”, interpelam não nossa visão de mundo mas
185
também nossa teologia. Retomo, pois, a discussão do terceiro capítulo
concentrando-me desta vez na secularização e na tentativa de recosmicação
de Deus no cristianismo.
4.5.1 – Carrascos e vítimas da secularização
Como vimos, o cristianismo herdou a simbologia babilônica
através do mundo hebraico. A imagem de Deus como único, masculino e
transcendente, bem como anterior à natureza, deslocou a relação simbólica
da consciência masculina com a vida material (Ruether, 1992, p. 244). E
é essa a consciência que prevaleceu no cristianismo, a despeito do refrão
bíblico “E viu Deus que isso (a natureza) era bom”, “E viu Deus que isso (o
corpo humano) era muito bom”.
Essa consciência é marcada pela vontade masculina de dominar
sobre a natureza e pelo sentimento de repugnância pela matéria. Desde o
“pecado de Adão e Eva” não se reconhecia valor intrínseco algum nem aos
humanos, nem à terra, nem aos outros seres vivos e inertes. A valoração dos
humanos residia em Deus e a dos demais seres na sua utilização pelos seres
humanos. Ignorava-se, assim, a autonomia que esses seres desfrutaram
durante o tempo em que a terra não era habitada por nenhum humano.
O pensamento grego se encarregou de radicalizar essa separação,
que elevou a consciência (masculina) ao mesmo status transcendente de
Deus, fora da natureza e acima dela. A consciência humana (masculina)
participa desse âmbito transcendente do espírito masculino, que é o âmbito
original e eterno do ser (Ruether, 1993b, p. 71). A transcendentalização da
consciência humana redunda na crescente alienação do ser humano da base
biológica que o sustenta: seu corpo, os outros seres humanos, a natureza
não-humana, a matéria.
Apesar de os primeiros esforços humanos para controlar a natureza
terem ocorrido uns 12.000 anos, os fatos que acarretaram as conseqüências
mais drásticas para o cosmo se situam entre os séculos XVI e XVIII. Nesse
período, as tradições culturais que vinham justicando e sacralizando
relações de dominação acabaram ampliando e aprofundando o âmbito do
senhorio humano sobre a natureza.
Na revolução cientíca, a consciência masculina se revolta contra a
demonização da natureza
27
e reclama para si o controle sobre a mesma. Então
186
seculariza-se a natureza, proclamando-a sem vida e sem alma. Chegou-se
à conclusão de que, denitivamente, o poder divino não interferia sobre
ela. A ciência destituiu o Deus masculino e a hierarquia eclesiástica da
posição de intérpretes da natureza e assumiu o papel de investigadora das
leis da natureza, disposta a conhecer e a manipular os segredos do universo.
As antigas metáforas ruíram e a terra passou a ser vista como matéria
essencialmente estática e inerte.
Daí em diante, a ciência processou a versão secular das imagens e das
concepções que no passado vitimaram as mulheres e a matéria. Nas palavras
de Sölle (1994, p. 318), não há escapatória, “todos crescemos sob a religião
patriarcal e autoritária ou, em sua substituição, sob a fé na ciência”. De um
lado, o cristianismo que se arma na autoridade de um Deus autoritário que
em algum momento irá intervir com força na história humana; de outro, a
pós-religiosa numa ciência que atua sobre os subjugados como a antiga
divindade do destino,
28
“que predispõe a ver o espírito como algo separado
do mundo material e do mundo da ação política, econômica e do meio
ambiente” (Primavesi, 1994, p. 473).
Hoje, vivendo num mundo onde o padrão cultural dominante
modicou de tal maneira o meio ambiente a ponto de perdermos o contato
com a nossa base biológica e ecológica mais do que em qualquer outra
cultura do passado, os “avanços” se deparam com a nitude da natureza
e com a exploração social que custeou a expansão da consciência humana
da elite ocidental. A partir da modernidade, as culturas eurocêntricas se
apoderaram das proezas tecnológicas para nos afastar dos limites impostos
pela natureza (Spretnak, 1994, p. 483). Esse afastamento da base biológica
se tornou letal com a chegada das modernas tecnologias (Primavesi,
1994, p. 476), pois ainda se incentiva que nosso papel natural é funcionar
em oposição à natureza, dominá-la e assim manter sob controle o caos
(Spretnak, 1994, p. 486).
Com essa postura radicalizou-se o antropocentrismo e rearmou-se
o patriarcalismo, pois o projeto de dominação foi pensado e implantado
pelo homem marginalizando a mulher, identicando-a com a natureza e
criminalizando suas formas de saber através da “justiça da inquisição”.
Gostaria de concluir este tópico lembrando as palavras de Anne
Primavesi em seu texto Poder jerárquico y poder ecológico. Para a autora,
a revolução copernicana, que nos ensinou que o Sol não gira ao redor da
Terra mas que é a Terra que gira ao redor do Sol, levou-nos à falsa conclusão
187
de que a Terra gira em torno da humanidade e que a relação dos cristãos
com o mundo gira em torno da salvação do ser humano (Primavesi, 1994,
p. 456).
Hoje a teologia, solapada por questões bioéticas cruciais que têm a
ver com a sobrevivência do planeta, precisa reencontrar no mundo a porção
da sabedoria-criadora-de-Deus. A teologia feminista, crítica à imagem de
um Deus único e transcendente, modelado segundo a consciência masculina
alienada da natureza, quer retornar à imagem de Deus como fonte imanente
da vida, que sustenta toda a comunidade planetária, voltando a Deus como
manancial do qual brota, em cada nova geração, a variedade de plantas e
animais, recuperando Deus como a matriz que sustenta a interdependência
mútua dos seres (Ruether, 1992, p. 249). Concluirei este capítulo apontando
algumas convergências entre a cosmologia guarani e uma das teologias
feministas.
4.5.2–Oecofeminismoearecosmicaçãododivino
Como tivemos a oportunidade de ver, o estabelecimento do
monoteísmo exclusivo resultou, como bem expressa Niebuhr (1965, p. 52),
na “secularização sistemática de todos aqueles objetos simbólicos que o
politeísmo e o henoteísmo consideravam como uma mescla de alegria e
temor sagrado”. Dessa forma, o impulso anti-religioso que se encontra nos
profetas do monoteísmo prossegue o autor “se explica em boa parte
como um ataque, não à emoção religiosa, senão à sistematização dessa
emoção pelas formas não monoteístas de crença”.
Assim, o monoteísmo que começou dessacralizando todas as
divindades menos uma, acabou dessacralizando o mundo e desprezando
a matéria, até chegar, em seu idealismo, a negar, primeiramente, sua
existência e, na seqüência, a existência de Deus. Os povos e as culturas que
continuaram se desenvolvendo à margem desse processo apresentam um
outro panorama. Na reexão teológica das comunidades indígenas falantes
de línguas guarani, por exemplo, criador e criatura, mundo e divindade
não se excluem; ao contrário, se complementam. O mundo é a morada da
divindade e a divindade não é exterior ao universo.
Por um lado, essa concepção coloca em questão um dos dogmas
cristãos radicalizado pela teologia moderna, o de que o espírito é destituído
188
de natureza por ser capaz de conhecer e dominar a natureza e que esta é
destituída de espírito porque pode ser sujeitada por ele (Moltmann, 1993, p.
330). Por outro lado, ela nos remete a uma tradição cristológica dissidente
na igreja ocidental, em cuja teologia Cristo era considerado a manifestação
cósmica de Deus. Ambos eram “a fonte divina imanente e a base da criação,
assim como sua última recuperação redentora” (Ruether, 1993a, p. 236).
Dessa cristologia deriva-se uma concepção sacramental do universo que,
como foi visto, o cristianismo ocidental passou a esquecer por completo, a
partir do nal da Idade Média e da Reforma, de forma paulatina e cada vez
mais veloz.
Somente neste século, diante da crise ecológica e da emergência de
teologias alternativas que contestam a suposta oposição entre espírito e
matéria, história humana e natureza, religião e história, homem e mulher,
é que essa visão totalizadora de Deus e mundo começou a ser recuperada.
A teologia ecofeminista, nesse sentido, é uma das poucas teologias cristãs
que reete cosmologicamente e suas preocupações e formas de imaginar o
sagrado aproximam-se das dos indígenas. Por isso, pareceu-me oportuno e
justo concluir este capítulo remetendo ao ecofeminismo. Nele convergem
imagens muito parecidas às usadas pelos indígenas para falar do mundo: a
terra, com tudo e todos os que a habitam, é vista dialogicamente, como um
corpo que murmura sua palavra. Todo ser é porção da sabedoria criadora de
Deus e a divindade é fonte de vida e de renovação para todos os seres.
O conceito “ecofeminismo” foi cunhado pela francesa Françoise
d’Eubonne em 1974 e se caracteriza, grosso modo, pela união do
movimento ecológico radical, também chamado de “ecologia profunda”,
com o feminismo. Ele se propõe a estudar as conexões simbólicas, sociais e
éticas entre a opressão das mulheres e a dominação masculina da natureza
(Ruether, 1992, p. 240). O ecofeminismo pode ser considerado um
movimento que tenta imaginar “um novo sistema sócio-econômico e uma
nova consciência cultural que sustentariam relações de mutualidade, e não
de poder competidor” (Ruether, 1992, p. 241).
Rosemary Ruether quer ir além das teologias e espiritualidades
ecofeministas que propuseram, em prol de um bem-estar ecológico, uma
divindade que fosse o reverso do Deus herdado das tradições semíticas
monoteístas. Ruether fala de uma “solução mais imaginativa” em lugar
dessas “oposições tradicionais”. O que importa não é corrigir a imagem
divina de transcendente para imanente, de macho para fêmea, de dominadora
189
para relacional, de uniforme e monocentrada para pluriforme e policentrada
(Ruether, 1993a, p. 253). Há que se construir uma espiritualidade ecológica
sobre três premissas: “a transitoriedade dos seres, a interdependência da vida
de todas as coisas e o valor do pessoal para a comunidade” (Ruether, 1993a,
p. 257). Isso se desdobra em uma necessidade urgente de “armarmos a
integridade de nosso centro pessoal de existência em correspondência com
os centros pessoais de todos os seres de todas as espécies e, ao mesmo
tempo, aceitar a transitoriedade de nossa existência” (Ruether, 1993a, p.
258). A consciência da nossa transitoriedade nos levará à consciência de que
somos parentes dos demais organismos. Como eles, nós existimos por uma
temporada apenas. Mas as substâncias materiais de nosso corpo continuam,
a despeito da nossa nitude, vivendo em plantas e animais, “assim como
nossos próprios corpos se compõem minuto a minuto de substâncias que
alguma vez foram parte de outros animais e plantas, remontando-se através
do tempo às samambaias e répteis pré-históricos, à antiga ‘biota’ que boiava
nos mares primitivos da Terra” (Ruether, 1993a, p. 258).
Essa consciência da transitoriedade humana deve levar a uma
revalorização do centro pessoal de cada ser e ao reconhecimento de todas as
coisas como Eu e Tu (Ruether, 1993a, p. 259). É a fraternidade e sororidade
proposta por Francisco de Assis, que nos leva a cumprimentar todas as
coisas como irmãs e companheiras. Ele entendeu perfeitamente que, se
somos lhos e lhas de Deus, então somos irmãos e irmãs do sol e da lua,
do fogo e da água, das ervas daninhas, das enfermidades e da morte (Boff,
1993, p. 52-54).
A partir dessa mística de confraternização universal, tratava todas as coisas
com sumo respeito e veneração. Pedia aos irmãos que não cortassem
totalmente as árvores, para que elas pudessem de novo brotar; no inverno dava
mel às abelhas porque sofria vendo-as irrequietas e famintas. Nele irrompeu
a ternura como atitude frontal no encontro com todas as alteridades. Nele
predominavam o Eros e o Pathos (capacidade de sentir e de vibrar diante
do valor das pessoas e das coisas) acima do Logos (estatura de compreensão
da realidade). O coração ganhou com ele o seu direito, como forma sutil e
profunda de conhecimento. O conhecimento cordial não nos distancia das
realidades, antes, possibilita-nos estabelecer comunhão e amizade com elas
(Boff, 1993, p. 53).
Para Ruether (1993a, p. 259), ao revalorizarmos o centro pessoal
de cada ser, “a compaixão por todas as coisas viventes pode encher nosso
190
espírito e romper a ilusão da alteridade. Neste momento, podemos encontrar
a matriz de energia do universo que sustenta a dissolução e a recomposição
da matéria, assim como também um coração que nos conhece exatamente
como somos”. então conheceremos Deus como o grande Tu, como a
divindade criadora. Deus será reconhecido como o manancial de vida e
criatividade do qual todas as coisas brotaram e ao qual todas as coisas
regressarão. Ele é o centro pessoal do processo universal. Nele convergem
todos os pequenos centros do ser pessoal, num diálogo que cria e recria
continuamente o mundo (Ruether, 1993a, p. 259), em um perene ñemongo’i,
diriam os Kaiová do Mato Grosso do Sul.
Ñemongo’i pode ser traduzido por “sussurro” ou “balbucio”.
Assemelha-se ao signicado dado por Moltmann ao termo hebraico rachaph,
de Gn 1.2. Para o autor, o signicado do termo traduzido freqüentemente por
“pairar” ou “chocar” vai mais no sentido de “vibrar”, “tremer”, “mover”.
Moltmann (1993, p. 384-385) se serve desse signicado de rachaph para
recomendar que, no caso da criação por meio da palavra, “deve-se pensar
menos na metáfora da ordem e da obediência, porém antes na metáfora do
cântico da criação”. Também para os povos chamados guarani, dormita
no interior de todas as coisas e na cosmologia original uma canção que é
a verdadeira palavra. Para Moltmann (1993, p. 385), “a vibração cósmica
é a origem e a razão de todas as formas de energia e matéria no cosmo. O
vibrante fôlego de Deus é como que o tom pelo qual está anada a criação
do mundo”.
Sem pretender ter esgotado as múltiplas metáforas da cosmoteologia
aqui estudada, bem como a pertinência de seus signicados para o
cristianismo, passo a considerar a questão do mal e as possibilidades da sua
superação, nesta teologia ameríndia da palavra em foco.
(Notas)
1 Mbya retã, sendo que Mbyá signica gente, ser humano.
2 Yrovaigua: literalmente “de frente ao mar”.
3 Tupã retã. È interessante notar que a porta de acesso a esse mundo localiza-se ao leste,
depois do mundo dos jesuítas.
4 Cf. Anexo VII.
5 Yvy ypytépe ou igbi apiteripe.
191
6 Sua signicação atual, porém, é completamente independente das metáforas missionárias
usadas para descrever a Virgem Maria, assim como em Yvoty heakuãndete’i “Flor muito
perfumada” (Ruiz de Montoya, 1876b, p. 311).
7 De “seu tempo-espaço”, segundo a expressão ara- (tempo-espaço) -kuaa (conhecer)
8 A expressão, todavia, não se refere só a tais seres. Ela tornou-se tão genérica quanto seu
homônimo guarani “tupãnguéra”, traduzida por “divindades”. Neste trabalho, no entanto,
a expressão é empregada na sua signicação stricto sensu, refere-se aos aspectos animistas
da religião Guarani.
9 Trata-se de As lendas da criação e destruição do mundo como fundamento da religião dos
Apapokuva-Guarani. A obra foi publicada em alemão em 1914, em espanhol em 1978 e em
português em 1987.
10 Conforme Noelli, Métraux continuidade à crença, inaugurada cem anos antes por
Martius, de que os povos indígenas viviam em desordem, degeneração e nomadismo (1999b,
p. 136).
11 Friedl Grünberg no entanto constata a expressão entre os Paĩ-Tavyterã (Grünberg, 1995,
p. 20s.).
12 Noelli, 1999b, p. 125s. Segundo o autor, além das obras de Métraux, os trabalhos que
efetivamente contribuíram para transformar em dogma a “suposição” original de Nimuendaju
foram os de Egon Schaden ([1945] 1989), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), Hélène
Clastres ([1975] 1978) e Branislava Susnik (1975, 1994). Dentre esses trabalhos, pode-se
dizer com relativa certeza que o mais conhecido em ambientes acadêmicos é o de Hélène
Clastres, Terra sem mal. Nele arma-se de forma incisiva que todo o pensamento e a prática
religiosa dos povos chamados guarani gravita em torno da “terra sem males”, como se nada
mais determinasse a vida dos indígenas.
13 Segundo Noelli, os povos pré-coloniais chamados Guarani, uma vez assentados,
permaneciam no lugar. Esse lugar passava a ser seu lugar de origem. Era dentro dessa área que
se dava, principalmente pelo tipo de agricultura que praticavam, a mobilidade. Escavações
realizadas no Vale do Jacui (RS), atestam que os Guarani da região se movimentaram por
300 anos dentro de uma pequena área (Schmitz, 1981, p. 188).
14 O autor propõe um trabalho interdisciplinar, o que não é fácil pois requer competência
em várias áreas e, ao mesmo tempo, exige que as especicidades de cada disciplina não se
percam.
15 Há certamente situações em que este problema é agravado por inuência dos próprios
informantes, que podem ter expectativas bem distintas frente às esperanças que compõem
as utopias. Tudo indica que os Apapokuva conhecidos por Nimuendaju se encontravam
em processo de capitulação com a imagem mítica que os motivou a buscar a “terra sem
males”. Eles já estavam convencidos de que não a poderiam mais alcançar (Nimuendaju,
1987, p. 104).
16 Celeste Ciccarone recolheu vários depoimentos sobre o tema (1999, p. 44-47).
17 Tratarei mais detalhadamente este aspecto da “terra sem males” dos povos chamados
guarani ao considerar a dimensão cosmológica da soteriologia do grupo, no capítulo cinco.
18 Em 1998, eles ocupavam efetivamente 63 locais distintos nos estados sulinos (Assis &
192
Garlet, 1999, p. 225s).
19 Cf. as conseqüências do connamento dos Kaiová no trabalho de Antonio Brand
(1993).
20 Literalmente se desdobra nos signicados de ára (tempo-espaço, mundo, época, dia) e
kuaa (saber) (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 66).
21 O yvára py mba’ekuaá gui signica “por causa” ou “a partir da” sua própria sabedoria.
22 Isso nos lembra uma teologia combativa do segundo século II. Irineu, teólogo cristão
dessa época, lutou contra o gnosticismo que pregava o anticosmismo, a natureza má. Na
tentativa de combater essa doutrina, Irineu imaginou o cosmo todo como um tornar-se corpo
da Palavra e do Espírito de Deus, como a corporicação sacramental do Deus invisível.
23 Conforme o signicado de guerojera, asojavo, no capítulo três. A questão será retomada
no capítulo cinco.
24 Pytũ ymã gui signica “desde as trevas primordiais” (Cadogan, 1959, p. 13).
25 Com Raab se designa o monstro que representa o caos e signica “turbulento” (Schökel,
1988, p. 36).
26 É interessante conferir o poema no qual é contada essa história e compará-lo com textos
paralelos no Primeiro Testamento: Is. 3.7; 27.1, Sl 74.13s; 89.11, 26.12s; 40.20s. Esse
trabalho foi realizado por Hermann Gunkel em seu livro Schöpfung und Chaos, fonte usada
por Carl Jung (V, 1986, p. 246-247) para estudar o simbolismo da mãe.
27 A compreensão de Deus na Idade Média estava intimamente ligada a um universo
verticalmente organizado: inferno, terra e céu, que pretendia ser uma síntese cientíco-
teológica. O “Ancião Eterno de olhar severo”, como o representava a arte da época, ocupava o
topo do edifício de três andares, cercado das hostes celestiais. Como ser transcendente, ele não
ocupava a esfera natural. Mesmo o cristão tinha os olhos voltados lânguida e beaticamente
para o alto, para as estruturas celestiais habitadas por Deus. O âmbito compreendido entre
a Terra e a Lua era dominado por uma legião de demônios. Eles reinavam sobre a natureza
caída, o mundo não-humano e não-cristão. Somente através da igreja essa natureza podia ser
restaurada. De modo que aventurar-se a entrar em esferas da natureza fora do controle da
igreja era correr o risco de encontrar-se com os demônios e tentar perscrutar os segredos da
natureza era rmar um pacto com o diabo (Ruether, 1993b, p. 74).
28 Sölle, 1994, p. 319. É interessante observar o comentário de Rubem Alves sobre a
matéria. Apoiado em Freud, que em 1932 indagou numa carta a Einstein se a ciência no nal
não era um tipo de mitologia, Alves sugere que “a ciência pode muito bem ser vista como
um fator funcional e legitimador das ordens instauradas e a religião pode ser exatamente um
fator disfuncional e, portanto, ainda que num nível simbólico, crítico da realidade” (Rubem
Alves, 1979, p. 141).
193
5 – O SER HUMANO: BIFURCAÇÃO E REDENÇÃO DA
PALAVRA
Neste capítulo apresento o que poderia ser chamado de concepção
do mal, nos povos kaiová, paĩ-tavyterã, guarani e mbyá. Apresento também
os esforços desses grupos para superar suas experiências nesse âmbito.
Nesse sentido, descrevo aqui alguns aspectos da antropologia que sustenta
essa compreensão, comento a forma como os conquistadores espirituais
traduziram para a língua indígena as categorias teológicas “pecado” e
“salvação” que, de certa forma, são análogas ao que os indígenas chamam
“bifurcação” e “redenção” do dizer. Por m, ocupo-me em formular os
questionamentos que surgem ao relacionar o pensamento indígena com a
soteriologia cristã.
5.1 – O ser humano entre a animalidade e a divindade
Como Melià costuma armar, nos grupos chamados guarani, as
pessoas são capazes de compreender toda a sua vida como experiências
de palavra. Sobre as experiências humanas relacionadas com a palavra
divina cabe apontar que elas consideram a gravidez como resultado do ato
de ter sonhado a palavra, portanto um ato mais lógico do que siológico.
O humano é, assim, “palavra sonhada de Deus” (Melià, 1992, p. 279-280).
Por ocasião do nascimento, a palavra senta-se e provê para si um lugar
no corpo da criança.
1
Cada pessoa é, assim, uma encarnação da palavra
divina, ayvu, ñe’ẽ. Estando prestes a nascer uma criança, o Verdadeiro
Pai e a Verdadeira Mãe das palavras-almas dizem à palavra-alma que vai
se encarnar: “Então, vai à terra, meu lho (minha lha); lembra-te de mim
no teu ser ereto, e farei a minha palavra circular pelos teus ossos para te
lembrares de mim” (Cadogan, 1950b, p. 88). No ser ereto se faz alusão
à palavra original, pois o Criador ergueu-se e concebeu a linguagem. A
palavra divina é o que mantém em pé, o que humaniza; porque ela circula
pelo esqueleto humano (Cadogan, 1959, p. 19).
A palavra, porém, não se completamente pronta. Ela é um impulso
194
inicial que deve desenvolver-se ao longo da vida através da dedicação e do
esforço pessoal. Alguns rituais marcam momentos especiais desse processo.
No de nominação, o xamã revela o nome da criança, marcando com isso
a recepção ocial da nova palavra, do novo membro na comunidade. A
iniciação dos adolescentes é uma oportunidade de “conrmar” a palavra-
divina na pessoa e na comunidade e de introduzir os meninos ocialmente
no saber particular do grupo, através de um complexo ritual.
2
Depois de
ouvirem por várias semanas a tradição oral do grupo, “a palavra” irá prover
neles um lugar para si, o que se simboliza entregando um banquinho
3
a cada
um dos iniciados. Esse ato litúrgico alude certamente à nova condição que
os meninos estão prestes a alcançar, a de adultos.
Os povos indígenas, como pôde ser visto nos capítulos anteriores, não
estabelecem uma diferença essencial entre o divino e o cosmo. Do mesmo
modo, eles não separam o humano da natureza, como se esta fosse a “coisa
extensa” e aquela a “coisa pensante”, segundo consta no jargão cartesiano.
Não, os indígenas apreendem o mundo como um ser social e mantêm com
ele uma relação social, dotando os objetos e os outros seres de predicados
que, na tradição ocidental, foram reservados exclusivamente aos humanos.
Eles acreditam ter ao lado da alma divina uma alma animal,
4
que
atrai os seres humanos para a horizontalidade e os afasta do m último da
existência, que é o tornar-se UM com Deus. Sob a inuência dessa alma
animal, os humanos são acometidos de várias perturbações. As crises da
vida são, desse modo, explicadas como uma dissociação, uma interrupção
da comunicação entre a pessoa e seu nome divinizador. A palavra-alma
de origem divina se afasta da pessoa sob a pressão da sua alma animal,
causando nela fragmentação e doenças. Por isso, a principal função dos
rezadores e das rezadoras é “trazer de volta”, “sentar novamente”, “re-
situar” a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde e a disposição para
esforçar-se pela restituição da palavra divina na sua vida pessoal e social.
Em resumo, disposição para vencer o animal, o jaguar.
5
A tendência para o divino e para o animal divide o ser humano.
Na linguagem teológica cristã convencional, se diria que na condição
humana convergem tanto a inclinação para o pecado como a chance da
sua superação, a salvação. Nesse sentido, também nas narrativas bíblicas
o ser humano pode ser compreendido como um ser entre a animalidade e
a divindade. Em Gn 1, o hebraico usa dois termos: “imagem” (tsäläm) e
“semelhança” (demüt) para dizer que a humanidade foi criada com base no
195
modelo de Deus, destacando com isso a dignidade que lhe coube entre os
demais seres da criação. Na Bíblia, por um lado, a despeito da sua posição
privilegiada, a criatura humana não chega a ser identicada com Deus e, por
outro, apesar de pertencer ao gênero animal, não é igualada aos animais mas
colocada como senhora de todos eles. Para Fohrer, a humanidade original,
adam, “não é deus nem animal, mas coloca-se entre ambos como um ser
peculiar, criado segundo a imagem de Deus” (Fohrer, 1982, p. 277). Ela só
desce ao plano dos animais chega ao nível dos instintos animalescos –,
prossegue Fohrer, quando, sonhando ser igual a Deus, recorre à violência e
ao despotismo para chegar à vitória pela força (Fohrer, 1982, p. 285).
5.2 – O pecado na catequese colonial
Nas línguas indígenas agrupadas na família tupi-guarani certamente
não havia palavras equivalentes às categorias teológicas cristãs, de modo
que as traduções eram uma verdadeira aventura. Mas a não existência do
termo “pecado” nas línguas tupi-guarani não signica necessariamente que
os indígenas não tenham conhecido ou protagonizado, antes da conquista
espiritual, experiências que eles consideram fundadoras do mal no grupo.
O certo é que os missionários que registraram a língua indígena poucas
vezes se ocuparam em recolher informações dessa natureza, investindo seus
esforços em manter seus conceitos teológicos em espanhol ou português
ou traduzindo-os através da criação de neologismos na língua indígena.
Apresento, a seguir, um resumo da maneira pela qual eles traduziram para o
guarani o conceito “pecado”, nas primeiras décadas da missão cristã.
Angaipa é uma expressão composta de ãng.a “alma” e pa.b
“acabar”.
6
Esse provável neologismo carrega o signicado de “esvair-se a
alma/palavra”. Com esse nome, Antonio Ruiz de Montoya traduziu para a
língua guarani o termo “pecado”, um conceito, na época, muito mais ligado
com a culpa pessoal do que com a condição contraditória e decadente da
humanidade. Pecado original passou a ser “início ou mãe do pecado”;
pecado mortal, “líder do pecado”; pecado venial, “pecado pequeno”;
pecados capitais, “raiz do pecado”; pecado da carne, “pecar com mulher”
7
e
sacrilégio ou pecado abominável, “pecado verdadeiramente indígena”.
8
Outra palavra usada pelos missionários para traduzir o conceito de
pecado foi marã, que também signica maldade, delito, enfermidade e
196
aição. Esse termo é um dos mais usados hoje pelos indígenas para fazer
referência ao mal. Entre os exemplos de Ruiz de Montoya guram: “caí em
pecado”, “pequei contra ti” e “a Virgem Maria não teve nenhum pecado”.
Marã também é traduzido por “guerra”. Marãmoña e marambota signicam
“guerrear” e marãndeko “fazer mal” (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 209).
Os registros mostram que o missionário reinterpretou termos e expressões
da língua guarani, assim como os hábitos de seus falantes, em função das
necessidades lingüísticas da missão.
9
Gostaria de chamar a atenção para o uso do termo kuña, “mulher”, no
contexto da tradução do conceito “pecado carnal”, na língua indígena. Das
mais de sessenta expressões dedicadas à mulher no Tesoro, trinta e duas a
apresentam como protagonista dos chamados “pecados carnais”. Seguem
alguns exemplos: ela dá seu corpo a todos, toma beberagem para abortar, é
dissoluta, prostituta, puta, lésbica, tentadora, armadilha do diabo, corrupta,
desonesta, fornicadora, sem sossego, induz o homem a ter desejos carnais,
etc.
10
O curioso é que o jesuíta recorreu basicamente ao termo “mulher”
para introduzir na língua indígena esses qualicativos negativos, reram-se
eles às mulheres ou aos homens. Ao termo “homem”, kuimba’e, contudo,
ele reservou, através de um procedimento semelhante, uma função mais
nobre, conforme veremos mais adiante. Agora, porém, gostaria de mostrar
e analisar a forma como o missionário traduziu seu pensamento, servindo-
me para tal de algumas expressões construídas a partir do termo “mulher”:
kuña rehe ojesareko’íva’e, “homem desonesto”; kuña mbotaháva, “desejo
carnal” (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 107) e kuña rehevyka, “fornicação”
(Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 8).
Na primeira, Montoya toma o verbo jesareko’i, “ocupar-se com os
olhos”, precedido pelo sinal de terceira pessoa o-, nominaliza-o através do
suxo -va’e, “aquele/a que”, e o relaciona com o nome kuña, “mulher”,
mediante a “posposição” termo usado por Montoya na sua Arte rehe,
“por causa”. Na segunda, o processo é idêntico. O autor nominaliza o verbo
mbota, “querer, desejar”, agregando-lhe o suxo –háva, “quem, aquele que”,
e o justapõe diretamente como atributo ao substantivo kuña, “mulher”.
Como pode ser visto, nas expressões em língua indígena o homem
(oculto) está implícito nas formas nominais mencionadas. É ele quem
procura com seu olhar a mulher, é ele quem deseja ou quer possuir a mulher;
que é apenas objeto do olhar e do desejo e desempenha um papel passivo na
197
frase. Se observarmos as frases equivalentes em espanhol, porém, veremos
que os papéis e os signicados foram invertidos. O termo “mulher”, que era
passivo, passou a ser ativo e a expressar a qualidade “carnal” do “homem”.
De modo que a frase kuña mbotaháva, que originalmente signicava
“quem deseja mulher”, passou a signicar “mulher que incita no homem
desejos carnais”. Na frase “kuña rehe ojesareko’íva’e”, usada para traduzir
na língua indígena a expressão “homem desonesto”, Montoya procede do
mesmo modo, extraindo a desonestidade que adjudica ao homem do termo
“mulher”, apesar desse termo não constar na expressão “homem desonesto”
que ele originalmente queria traduzir. O mesmo pode observar-se em
expressões como “homem fornicador”, kuña ri tekuára (Ruiz de Montoya,
1876aII, p. 8), e “homem muito desonesto”, kuña mẽnonde.
11
Curiosamente, essa valoração prevalece ainda hoje em alguns léxicos.
Em português, basta conferir os verbetes “homem” e “mulher” do Novo
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
5.3 – A bifurcação da palavra
Esses registros sobre os povos chamados genericamente de “guarani
históricos”, quando comparados com a etnograa dos kaiová, mbyá e
dos guarani (ñandeva, chiripá) contemporâneos, mostram, especialmente
entre os grupos que não estão na mira das missões fundamentalistas, uma
considerável autonomia na forma de compreender o mal, que eles expressam
dizendo que “se tem bifurcado sua palavra”. A origem dessa bifurcação
é adjudicada à ignorância, à ira ou à cólera e ao adultério. Incluirei nos
tópicos seguintes algumas narrativas epônimas.
5.3.1 - A bifurcação da palavra como “ignorância”
Os grupos falantes do guarani, que pude conhecer, experimentam
o mal não como pecados e culpas pessoais, mas como uma condição do
ser humano, semelhante àquela designada pelo termo grego hamartia, que
era quase um poder pessoal que agia “no” e “através do” ser humano (Rm
7.13-25, Gl 5.16-26). Como os demais relatos da queda, os desses grupos
também são precedidos pelos de uma primeira terra onde a realização plena
198
e perfeita garantia a indestrutibilidade. Neles aponta-se o caráter trágico da
existência, junto à esperança e à possibilidade de re-união do ser humano
com a divindade.
A primeira terra é um lugar onde todos os humanos poderiam ter
alcançado a perfeição, se tivessem resistido aos ímpetos de sua alma animal.
Pela sua ascendência divina os humanos conheceram a boa ciência, porém
a animalidade privou-os dessa faculdade. Desse modo eclodiu a ignorância
humana a irracionalidade e rompeu-se a amizade, o parentesco entre o
humano e o divino. Nos relatos compilados no Ayvu rapyta, “Fundamento da
linguagem humana”, se fala dos que careceram de entendimento,
12
dos que
se inspiraram na ciência, dos que se afastaram dos preceitos deixados
pelos “Nossos Pais”, dos que sofreram a metempsicose e se converteram
em pássaros, rãs, escaravelhos e veados.
13
Comparando esse episódio com Gênesis 3, nos deparamos com uma
situação exatamente oposta. Os humanos conhecem o pecado por causa
de querer conhecer o bem e o mal (Gn 3. 5), como se a sabedoria humana
ameaçasse a divindade:
Então, disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tornou como um de nós,
conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome também
da árvore da vida, e coma, e viva eternamente. O Senhor Deus, por isso, o
lançou fora do jardim do Éden (Gn 3. 22-23ª).
Para os grupos indígenas aqui estudados, ao contrário, pecado é o
ignorar, o não-saber. Mostra, nesse sentido, fortes analogias com a tradição
sapiencial na Bíblia, que incentiva as pessoas a serem abertas à sabedoria,
que é eterna e estava com Deus antes mesmo da criação do mundo. Segundo
essa tradição, quem encontra a sabedoria e lhe dá ouvidos, encontra a vida
e o favor do Senhor; quem peca contra ela, violenta a própria alma e ama a
morte (Pv 8.22-30; 22.17-23.34).
No relato mbyá, depois do episódio de separação entre o divino e o
humano, as divindades não queriam mais criar uma segunda terra e uma
nova humanidade. Um dos personagens sobrenaturais se escusa dizendo
que a nova humanidade estaria predestinada a não perdurar, pois ela voltaria
a “pecar” como a primeira humanidade. Um outro diz que a terra tinha
sinais de infortúnios para as gerações vindouras (Cadogan, 1992, p. 103-
105). No entanto, apesar da indisposição dos deuses, a segunda terra foi
povoada e o foi por uma humanidade imperfeita. De modo que tanto as
199
gerações dos que eram portadores do símbolo da masculinidade como as
gerações que levavam o símbolo da feminilidade estavam predestinadas a
serem perturbadas por todo tipo de maldade (Cadogan, 1992, p. 154-155).
Um episódio inaugural da ignorância humana narrado pelos indígenas
tem por enredo a transgressão do tabu do incesto. O “Senhor Incestuoso”
tomou por mulher sua tia paterna e originou com isso uma série de males.
Os habitantes da primeira terra tinham alcançado todos o estado de
indestrutibilidade (...). Os que careceram de entendimento (...), porém,
sofreram a metempsicose (...). O Senhor Incestuoso transgrediu contra Nossos
Primeiros Pais, por casar-se com sua tia paterna. Estava por chegar o dilúvio.
14
O Senhor Incestuoso orou, cantou e dançou. As águas chegaram, sem que o
Senhor Incestuoso tivesse alcançado a perfeição (Cadogan, 1992, p. 96-97).
Outra personagem, Capitã Chiku, aparece em algumas versões da
narrativa mbyá como epônimo dos que “carecem de entendimento”. Capitã
Chiku estava empenhado em obter a plenitude de seu ser. Seu sogro dera-lhe
um lugar na casa das orações e ele se dedicava a obter a graça. Ele cantou,
dançou, orou e pediu imortalidade. Além destes exercícios, Chiku devia
abster-se sexualmente e ser vegetariano. Kuarachy Ete (“O Verdadeiro Sol”,
uma referência a “Nosso Pai” ou a “Nosso Irmão”), vigiava os exercícios de
seu genro, pondo-o à prova várias vezes, sob a alegação de que a fortaleza
só se adquire com perseverança e delidade (Cadogan, 1992, p. 232-237).
Numa das provações, Chiku teria se desviado do seu objetivo e
maculado seu esforço para obter a perfeição. Kuarachy Ete disse para sua
lha: “Bem, leva milho verde e fumo para teu esposo”. Chiku comeu e
encheu de fumo o interior da casa de oração. Depois fechou a porta e quis
fornicar (Martínez, 1991, p. 63). Imediatamente, sobreveio-lhe a sentença
de que morreria e seria convertido em terra, sem alcançar a perfeição.
Pierre Clastres (1990, p. 46) comenta o episódio do Senhor Incestuoso
como a disjunção entre o humano e o divino. Ou seja, ao transgredir o
tabu, o homem teria incorrido numa “conjunção do mesmo com o mesmo
(...) numa dobra do humano sobre si próprio, como desao e negação do
divino”. A unidade explodiu, criando na explosão uma barreira que separa
divindade e ser humano. À moderação apreciada pela divindade, à calma
da lei, sobrepôs-se a violência do desejo, da alma humana animal. Com a
quebra do encanto do UM,
15
a humanidade passa a experimentar, ao invés
da serenidade, o sentimento de perda; ao invés do bem viver, a nostalgia.
200
A terra nova, a segunda, a cujo ciclo nós pertencemos, é terra dos seres
humanos e não mais dos deuses. É “terra do mal e da infelicidade” (Clastres
P., 1990, p. 46-47, 57).
A palavra que constitui o ser humano se bifurca. O pecado ingressa
na história. Mas não porque os humanos desejassem ser igual a Deus e
conhecer os segredos do bem e do mal, mas exatamente pelo contrário.
Porque eles perderam intimidade com Deus e porque a sabedoria deixou de
ser natural para ele.
Provavelmente essa reexão indígena, se colocada ao arbítrio da
teologia cristã, iria merecer a mesma crítica que o episódio entre Eva e a
serpente tem merecido. Tillich, por exemplo, chama de hybris essa “auto-
elevação dos humanos à esfera do divino; (...) o pecado em sua forma
total (...) é recurvar-se em si mesmo, (...) é o homem (ser humano) não
reconhecer sua nitude” (Tillich, 1984, p. 282-283). Embora Tillich fale de
uma centralidade estrutural do ser humano em Deus, na qual se enraízam
sua grandeza e dignidade como imagem do divino, ele entende que a
decisão de Eva ao da árvore da vida foi uma auto-elevação por cima dos
limites do seu ser nito, ocasionando a ira divina (Tillich, 1984, p. 282).
Para os indígenas, ao contrário do desenlace da história em Gn 3, Deus não
castiga aqueles que alcançaram sabedoria, pelo contrário, leva-os à morada
incorruptível.
No Gênesis bíblico, Gn. 3.5, a alegação através da qual o tentador
“iludiu” a mulher foi que ela e seu marido seriam como Deus, conhecedores
do bem e do mal. A interpretação que muitos léxicos fazem desse episódio
rearmam a mesma idéia. O desejo dos humanos teria sido uma “ímpia
aspiração”, “o mais blasfemo dos assaltos contra a integridade divina”. O
detonador do mal é a própria concupiscência humana, que o lugar de
onde procede o mal é o coração e a mente da pessoa. Valha como exemplo
o seguinte comentário:
Em sua disposição de confabular com o tentador, no ato de não ter reagido
com horror contra as suas sugestões, e em sua aquiescência ca desvendado
o processo que precedeu o ato de comer da fruta proibida. Aqui temos a
origem do pecado, sendo-nos exibido o seu verdadeiro caráter (Douglas III,
1979, p. 1235).
A interpretação de Georg Fohrer sobre Gn 3, no entanto, apresenta
uma outra lógica sobre a origem do mal. Ele coloca a seguinte pergunta:
201
“Homem e mulher, a criatura deve ser e permanecer um ser irresponsável,
infantil e ingênuo, como fora concebido ao princípio, ou se desenvolverá em
uma pessoa plenamente consciente, que, ao mesmo tempo, se encontre com
a possibilidade de desobedecer a Deus?” (Fohrer, 1982, p. 281).
O autor mostra que o relato da queda apresenta esse dilema junto com
a imagem de um Deus aparentemente prejudicado pela consciência que sua
própria criatura alcançara. Ao contrário do que o relato bíblico comunica em
primeiro plano, Fohrer vê a metáfora de comer da árvore do conhecimento
do bem e do mal um passo à frente dado pela primeira humanidade, “um
inesperado desenvolvimento da vida” que se repete biogracamente em
cada homem e em cada mulher. O ser humano, ao adquirir conhecimento de
tudo, toma consciência plena de si mesmo, passa da fase infantil à adulta,
de ser natural e instintivo a ser que vive uma existência histórico-humana.
“Deus perdeu”, segundo Fohrer (1982, p. 282), na lógica do mito bíblico.
5.3.2 – A bifurcação da palavra como “ira” e “ato de ofender”
Os que carecem de entendimento, os que possuem a ciência,
permitem que se bifurque sobremaneira seu amor, e ainda aquelas coisas que
não o deviam enfurecer o enfurecem em extremo (Cadogan, 1959, p. 91).
Essa constatação se refere ao comportamento dos humanos contemporâneos.
A ira, porém, não se limita a esta geração. Como poderá ver-se a seguir, que
os personagens do primeiro e do segundo ciclo mítico são protagonistas em
narrativas epônimas referentes à ira.
A ira de “Nosso Pai”
Tanto os Kaiová, como os Guarani (Ñandeva, Chiripá) e os Mbyá
falam da cólera ou ira como a origem do mal, causadora das peripécias
enfrentadas pelo grupo. Conforme o xamã de Ava Tape, da Colônia Fortuna,
no Paraguai,
Hyapuguasu(va)
16
fez a roça e nela plantou o milho. Ele foi para casa e
pediu a Ñande Sy (Nossa Mãe) que fosse pegar o milho na roça. Ela não
acreditou que as espigas já estivessem maduras, causando com isto a cólera
e a indignação de Hyapuguasu(va). Por isso ele a abandonou” (Perasso,
1986, p. 44-45).
202
Em outros relatos, a ira entra no mundo quando “Nossa Mãe” acusa
“Nosso Pai” de ter-se embebedado numa festa e de ter causado a primeira
morte na terra. Até hoje, entre os Paĩ-Tavyterã, acusações e críticas diretas
e públicas, sem ter se ocupado em fazer correções indiretas e pacícas,
são consideradas uma ofensa e um ataque contra a integridade pessoal,
pois toda pessoa tem o direito de ser admoestada em boa forma e de ter a
possibilidade de se corrigir (Melià & Grünberg, 1976, p. 235).
A ira de “Nossa Mãe” e do “Nosso Irmão Maior”
No mito que narra a vida dos heróis culturais na tradição apapokuva,
paĩ-tavyterã e kaiová (Cf. Nimuendaju, 1987; Melià & Grünberg, 1976;
Chamorro, 1995) é também a ira o “pecado original”. Transcrevo a seguir
um trecho do relato de Paulito Aquino e Mário Toriba, do Mato Grosso do
Sul.
Estando ainda no ventre de sua mãe, o Irmão Maior, quis pegar uma or para
si. (...). A criança quis brincar com a or, Nossa Mãe a tomou e a deu ao seu
lho. Chegando a uma encruzilhada, o menino pediu novamente a mesma
or. A mãe cou brava, pegou a or e a estendeu ao lho. Noutro lugar,
quando o lho novamente lhe pediu a or, a mãe lhe disse: “Você ainda não
está fora (da barriga) para brincar com uma or, (...)”. Bateu na mão dele
e ele se enfezou; cou muito irado, abandonou sua mãe e se foi, sozinho,
procurar por seu pai (Chamorro, 1995, p. 95-96).
Outras narrativas entre os Paĩ-Tavyterã do Paraguai também colocam
a ira como gênese do mal. Elas trazem variações que aproximam o relato
indígena de alguns relatos bíblicos, como o de Caim e Abel, o das pragas do
Egito e o de Sara e Abraão no Egito (Gn 4; Ex 7-11; Gn 20).
Numa festa, Yryvera batera em um parente seu, que adoeceu e morreu.
A alma do defunto queixou-se a Nosso Pai que, muito irado, se propôs a
destruir o delinqüente. Enviou-lhe, para tanto, doenças; as plantas atacou
com uma serpente e com uma seca. Yryvera criou uma fonte para si e se
salvou. Então Nosso Pai enviou uma chuva como para afundar toda a terra.
Yryvera fez uma canoa, (...) e nela se salvou com toda sua família. Um de
seus irmãos, (...) tentou salvar-se no alto de uma palmeira, cuja copa crescia
à medida que cresciam as águas. Quando as águas desceram, Yryvera enviou
relâmpagos aos quatro cantos do mundo para reencontrar-se com seus
irmãos. Numa grande reunião, (...) eles tentaram acalmar a ira de Nosso Pai
(...) e restabelecer a ordem na terra (Melià & Grünberg, 1976, p. 230).
203
Gostaria de destacar a analogia que entre a primeira parte desse
relato e o episódio narrado em Gn 4, o conito entre Caim e Abel, que
teve como desenlace umas das maiores conseqüências da ira humana: o
homicídio.
Hoje em dia, apenas em alguns grupos guarani do Paraguai encontram-
se resquícios “retóricos” de uma prescrição arcaica provavelmente
derivada do ritual antropofágico de vingança – que pode relacionar-se
com o relato acima de dano corporal, seguido de doença e morte. Os Avá-
Guarani possuem um código ético-penal conhecido como o tuguy ñe’ẽ
repy que, literalmente, signica “sangue-palavra-vingança” e que Miguel
Chase-Sardi traduziu por “preço do sangue derramado”. O código prevê
que todo homicídio seja pago com a morte, o que se efetua simbolicamente
entregando os homicidas à polícia paraguaia, castigo ainda pior para os
indígenas (Chase-Sardi, 1992, p. 81). Um código semelhante encontramos
entre os Mbyá do Guairá. Eles armam:
aquele que por desamor tenha ferido furtivamente a seu semelhante, tenha
desolado o lar de um próximo, devemos matá-lo também para que haja
justiça (Cadogan, 1959, p. 91).
Além dessas exceções, não hoje qualquer indício de que esses povos
se orientem por padrões comportamentais ancorados na violência ou que
incluam violência como uma medida preventiva. Ao contrário, as virtudes
cardeais para os povos chamados guarani são a serenidade, a mansidão e a
longanimidade, a nobreza de um poeta e não a de um guerreiro.
Curiosamente, como se mencionou, um hiato entre o marãngatu,
modo de ser “religioso” e “bom” dos grupos indígenas atuais chamados
genericamente guarani, e o marãndeko, supostamente o modo de ser “ruim,
belicoso e hostil” dos grupos guarani históricos. Ambas as expressões
constam nos registros jesuíticos seiscentistas e têm em comum o termo
marã, “maldade, delito, enfermidade”. Adicionado a katu, “bom”, marã
forma marãngatu; e adicionado a teko, “modo de ser”, forma marãndeko.
Etimologicamente, o signicado de marãndeko parece mais coerente que
o de marãngatu, ainda que seja improvável que qualquer uma das duas
expressões seja originária dos indígenas e/ou que tenha sido usada por eles
com esses signicados. Como se sabe, as crônicas da época atestam que
os missionários aplicaram o termo marãndeko (ruim, mau) ao modo de ser
204
indígena anterior à conversão e marãngatu (bom, religioso) aos indígenas
professos do cristianismo.
Um dos fatos que integra o conjunto considerado marãndeko, modo
ruim e abominável de ser, pelos missionários e que foi em detalhes registrado
entre os tupi-guarani da costa e menos precisamente entre os do interior, foi
a antropofagia. Sem ater-me a esse episódio, que será retomado no nal
deste capítulo, gostaria de associar o conjunto marãndeko à interpretação
de Milton Schwantes, para Gn 4.
O autor considera o episódio bíblico como luta entre duas formas de
ocupação da terra e de organização social que disputam a aceitação divina.
Abel representaria, assim, o seminomadismo e Caim, o sedentarismo.
Extrapolando para os Guarani a disputa entre esses atores sociais da
sociedade israelita, podemos dizer que a mudança no habitus guarani, da
ênfase no marãndeko – “modo de ser belicoso e hostil” para o marãngatu
“modo de ser religioso e bom” pode ter ocorrido porque, no conito entre
o seminomadismo, imposto pelo tipo de ocupação da terra (representado
por Abel - karai - marãngatu) e o sedentarismo incipiente a que levavam
os novos chefes
17
(representado por Caim - pa´i - marãndeko), prevaleceu
o primeiro. Sobreveio a conquista ibérica e, então, Caim não teria futuro
se não se convertesse em Abel (Schwantes, 1989, p. 61). Nas palavras de
Viveiros de Castro,
extrapolando para os Guarani antigos o que sabemos sobre os Tupinambá,
dir-se-ia que o sogro-guerreiro, “principal” das enormes malocas e líder dos
homens de sua casa na guerra, desaparece para dar lugar ao xamã-pai (Ñande
Ru, Nosso Pai, é o título dos líderes político-religiosos Guarani atuais) - do
mesmo modo e talvez pelo mesmo impulso que fez estes antigos canibais
se converterem em ascetas, que buscam superar a condição humana “por
cima”, pela Sobrenatureza (Viveiros de Castro, 1986, p. 641-642).
Para nalizar, cabe ainda destacar que os Mbyá relacionam a ira
com a ignorância. Para eles, a revolta básica da humanidade é resultado da
inspiração na ciência nociva, que incita a cólera desde a mais tenra idade e
induz as crianças a se irarem contra os seios de suas próprias mães, mbochy
ñane moarandu, ñande chy kã jepeve jaropochy (Cadogan, 1992, p. 68-69).
Os Mbyá chegam a personicar a cólera ao traduzir o demônio cristão por
“Ser Colérico”, mba’e Pochy (Cadogan, 1992, p. 71).
205
A ira contra si mesmo
A cólera implica também a idéia de autoviolência, auto-agressividade,
apatia, “desafeto” pela vida. Ela é freqüentemente mencionada para
interpretar os suicídios que têm ocorrido na aldeia de Dourados MS e
circunvizinhança. A transcrição das falas de alguns informantes paĩ-tavyterã
do Paraguai conrmam o que Melià já dissera sobre esse grupo há mais de
25 anos: que crianças não abençoadas (sem nome divino, que não foram
iniciadas) eram expostas a conitos, fúrias, brigas e aos “Seres Inquietos”.
Pelo fato de as crianças crescerem sem adorno, elas cam tristes, enfezadas
e “caem na corda” (referindo-se aos enforcamentos). Quando as crianças
não são enfeitadas, elas crescem pensando só em si, esquecem-se dos donos
do ser. Ñemyrõ é tristeza, é crescer sem escutar mais ninguém, sozinho, sem
a reza e sem os versos dos antigos, é crescer ao vento, é crescer à toa, é fazer
as coisas para si mesmo.
Ñemyrõ é o estado de ânimo característico das pessoas que
reprimem a emoção da cólera, tornando-se passivas. Paulito conrma o que
outros rezadores paĩ-tavyterã e kaiová disseram sobre o suicídio. Eles o
interpretam como uma crise do nome. A criança, não sendo iniciada no
bom costume guarani, é alguém que carece do “enfeite”, do nome que é sua
palavra divinizadora e algo essencial que a vincula com a vida. Não sendo
enfeitadas, “são como milho bichado, não servem mais para semente”.
Entre os Araweté, Viveiros de Castro constatou que ñemyrõ é cognato
de cólera.
18
Também nesse grupo tupi o termo se relaciona com paixões
negativas como a saudade e a tristeza (Viveiros de Castro, 1986, p. 476-
478). Não tenho conhecimento de um relato mítico nos grupos estudados,
que aponte o desenlace trágico da ira dirigida contra si mesmo, mas não
dúvida que os suicídios entre os Kaiová do Brasil e os Paĩ-Tavyterã do
Paraguai são exemplos atuais dessa forma de violência e mal.
19
Exortações diversas
Para os grupos paĩ-tavyterã a cólera seria o estado de ânimo que leva
ao que no cristianismo é chamado de “pecado original”. Essa idéia está
presente em muitas exortações proferidas pelos indígenas como conselhos
cotidianos ou como prescrições rituais. Os indígenas são instados a buscar
a longanimidade, como se pode conferir: “Não cheguem a acalorar-se,
manifestem nossa alegria. Não sejam intratáveis, briguentos, levantando-
206
vos uns contra outros. Isto é a conversa das divindades”, Aipova’e jekoTupã
ñemongeta (Melià & Grünberg, 1976, p. 272-273). Teko ñemboro’y
signica “moderação”. Ao nascer, as crianças devem ser abençoadas para
que enfrentem situações de conito, briga e fúria com serenidade. O pai e
a mãe que assim procederem não verão seus lhos se tornarem presas dos
Seres Inquietos (Melià & Grünberg, 1976, p. 277).
Longanimidade, moderação e serenidade são exigências básicas
para se dirigir os rituais ou participar deles. que se estar despido de
toda ira ou cólera, para desfrutar da alegria. As palavras esquentadas e
apoquentadas, as cabeças encolerizadas e os corações divididos afastam as
pessoas de Deus, da paz e da fonte da alegria. Valha como exemplo o canto
entoado no momento mais solene da cerimônia de iniciação dos meninos,
no momento em que um dos ociantes se dispõe a colocar o enfeite labial
no lábio inferior de quem está sendo iniciado.
Aguijéramo nipo che ru, araka’e Na antigüidade meu Pai era achado perfeito
Aporo’yny araka’e Na antigüidade, a mão era fria;
Aporo’y, gypyny, araka’e Como na primeira antigüidade a mão seja fria
Aporo’y ro’ysã anga ypyru Como no começo da primeira antigüidade
Gypýny, araka’e Esfrie-se rapidamente a mão.
Muitas dessas informações recolhidas entre os Paĩ-Tavyterã do
Paraguai encontram analogias entre os Kaiová do Mato Grosso do Sul.
Entre estes, o “cru” e o “cozido” são, segundo o depoimento de Nailton
Aquino, as imagens para contrapor a animalidade à divindade.
Os verdadeiros Kaiová são poucos, hoje, pois a maioria não têm mais
lábio perfurado, não trazem o enfeite labial, não são cozidos.
Em conseqüência, são violentos e esquentados ao ponto de trazerem
inimizade e morte na aldeia. Como um cobertor cobre o corpo no
frio, os valentes podem dominar os índios verdadeiros.
Nosso informante entende que os que buscam a serenidade não
estão impedidos de enfrentamentos com indígenas do próprio grupo que já
não vivem segundo as pautas da cultura tradicional. Ele entende também
que aqueles que não seguem as tradições não têm a “vida-eternidade”,
por isso não vivem bem e são violentos. Os Kaiová mais conservadores
acreditam que até uma inimizade entre os que passaram pela iniciação
dos meninos, que são os que usam o enfeite labial, e os que não praticam
207
mais esse costume.
A diferença entre os Kaiová que respeitam e praticam as tradições e
os que não as praticam mais pode gerar estranhamento, gozação, zombaria
e a violência mais radical: o homicídio. Assim o atestam João e Paulito
Aquino.
Os “mestiços” cam zombando dos Kaiová, (...) logo se segue o enfrentamento
(...). Em todo lugar, qualquer morador (...) para matar ou se matar começa
com nervoso. Também as guerras começam com simples desentendimento.
Paulito diz que somente com a reza se pode acalmar a violência. com o
canto se consegue esfriar o ânimo das pessoas, mborahéimante omboro’y
tekove pochy (Chamorro, 1995, p. 115).
5.3.3 – O adultério
Apoiado em pesquisas publicadas por Cadogan em 1962, Melià
arma que o adultério segue a ira na ordem dos pecados capitais para os
Paĩ-Tavyterã (Melià & Grünberg, 1976, p. 235).
O suposto adultério de “Nossa Mãe” perturbou a ordem social no
sentido de provocar o afastamento de seu consorte, “Nosso Pai”. Conforme
o relato, ela se indispôs com seu companheiro e lhe provocou o ciúme,
dizendo-lhe que não era dele o lho que ela esperava, senão d’Aquele-que-
sabe.
20
Esse impropério da “Nossa Mãe” faz lembrar a atitude da rebelde
Lilit, a primeira mulher de Adão.
Como se sabe, Lilit aparece na saga judaica como uma mulher
demoníaca e de fertilidade extraordinária que se recusou a se submeter a
Adão, seu marido, que a temia e disputava com ela o poder. Um dia, ela o
abandonou e subiu aos ares, graças à magia do nome de Deus, mas Adão a
obrigou a voltar. Lilit entrou na memória da humanidade, juntamente com
Eva, Pandora e outras, como responsável pelo caos (Ruether, 1993b, p.
141).
Teoricamente, como no caso dessas mulheres, o desacato da “Nossa
Mãe” da tradição guarani ao marido e ao lho lhe teria custado às indígenas
a fama de serem consideradas como “naturalmente más” e propagadoras
do mal. Contudo, é mais seguro armar que não existe entre os indígenas
um discurso que tire, como na tradição judaico-cristã, conseqüências dessa
natureza em prejuízo das mulheres a partir do relato da “insubordinação” e
208
“indelidade” de “Nossa Mãe”.
Isso também vale para o papel de “Nosso Pai”, nesse episódio. Apesar
de ter abandonado a família e sujeitado sua esposa e seus lhos a muitas
peripécias, ele não é tratado como um bode expiatório nem considerado um
“prejudicado” pela “traição” da esposa.
Mas o enredo desse relato, como dito, denitivamente não se ana
com a tradição guarani de gênero sapiencial. Nesta, a Sabedoria é criadora
e divina; não destruidora e demoníaca, como a terceira personagem que
ingressa na protofamília indígena. Atualizando o episódio entre “Nossa
Mãe” e “Nosso Pai”, diria que o fato de o homem ter aparentemente uma
“dignidade superior” à das mulheres nos relatos e desempenhar um papel
supostamente mais importante do que o das mulheres nos rituais não
signica muita coisa do ponto de vista prático numa sociedade relativamente
igualitária. Como bem lembra Viveiros de Castro, “a dominação da mulher
pelo homem é tanto mais forte quando o é a da dominação dos homens
pelos homens” (Viveiros de Castro, 1999, p. 41).
Em outra versão, o peso das relações sexuais proibidas na gênese
do mal guarani, é narrado a partir da relação sexual de Yryvera com sua
sobrinha. Cabe lembrar que essa é uma relação explicitamente proibida nos
grupos aqui pesquisados. Provavelmente existiu, no passado, um tipo de
casamento preferencial entre os indígenas: para os homens, com a irmã do
pai ou sua lha; para a mulher, com o irmão da mãe ou seu lho. Hoje, o
casamento entre primos (tanto cruzados - lhos da irmã do pai ou do irmão
da mãe - como paralelos) está explicitamente proibido (Melià & Grünberg,
1976, p. 255).
5.3.4 – O mal na terra e os malfeitores
Na sua concepção do mal, os indígenas não se limitam a repetir esses
clássicos episódios. Eles são conscientes também dos males exteriores
ao seu sistema, como as doenças contra as quais as terapias tradicionais
nada podem fazer; o desmatamento, o adubo químico e a monocultura que
secularizam muitos dos seus hábitos e dos seus cultivos; as escolas e as
igrejas, aquelas desconsiderando seu saber milenar e estas fazendo deles
pagãos para poder convertê-los; as cidades que os atraem com suas luzes
e querem fazer deles “cidadãos comuns”; a televisão e outros símbolos do
209
“desenvolvimento”; o preconceito da sociedade envolvente; o desterro e o
“despejo”,
21
entre outros. Para os indígenas, esses males cansaram a terra
que, pelo fato de ela não ter mais resistência, aproxima-se do m. E seguem
as histórias da destruição do mundo e da sua recriação, pois nesse mundo
cheio de coisas nefastas, a palavra redimida é capaz de encorajar os
indígenas a superar essa situação (Melià, 1991, p. 96).
Uma importante observação é a forma com que esses males são
apreendidos e interpretados pelos porta-vozes da comunidade, especialmente
pelos mais conservadores. Para eles, existe um malfeitor, a personicação
do mal. Ele é um experto que, com sua ciência má, causa tais perturbações;
às vezes é chamado de “feiticeiro” e outras vezes de “curador”. Ele, porém,
não cura, mas joga praga e morte com seu saber nocivo. A comunidade
não não duvida do seu poder como o teme e o considera um ser sem
legitimidade. Ele é quase sempre referido de forma bastante imprecisa e
misteriosa, como se não fosse possível situá-lo na sociedade.
5.4 – A conquista espiritual dos povos guarani, em guarani
Nos léxicos do Padre Montoya caram registrados em guarani os
turbulentos primeiros anos de implantação das reduções, nos quais os
indígenas de forma sistemática e duradoura se depararam com o imperativo
da conversão. Neles, como provavelmente em nenhum outro lugar, caram
também registradas na língua indígena as transformações pelas quais os
povos guarani tiveram que passar.
O termo mais comum com o qual Ruiz de Montoya, seguindo a Luiz
Bolaños, traduziu para a língua indígena a doutrina da salvação foi yva. Tal
palavra, porém, explicita pouco o conteúdo dessa doutrina na catequese
colonial. Yva quer dizer “céu”. Salvar-se é ir para o céu e ser condenado é
ir para a terra ou país do demônio, Aña retãmengatu ohóne (Bolaños, 1931,
p. 62). Estar salvo, para Montoya, é enviar a alma para o céu, amondo che
anga yvápe (Ruiz de Montoya, 1876b, p. 185). A pesquisa sobre o mesmo
verbete, a partir de sua entrada pelo espanhol, “cielo”, nos léxicos da época,
não reúne novos dados. Há que se investigar outros termos para encontrar
mais informações a respeito. Vejamos três outros verbetes.
Como vimos pouco, a expressão marãne’ỹé traduzida por “sem
mal” ou “imaculada”, quando se refere à virgindade de Maria, e por “ainda
210
não cultivada” quando se refere à terra. Por sua vez, teko marãngatu se
aplica ao modo de ser dos indígenas cristianizados, sendo traduzida por
“virtuoso, santo, religioso, eterno”. A terceira expressão é pysyrõ, usada para
traduzir “salvar, tomar o lugar de alguém, sacricar-se por, livrar, defender,
escapar de alguma coisa”. Ela deu origem a pysyrõhára, “salvador”, aquele
que “morre por alguém para salvá-lo”, que é a idéia de salvação trazida para
as Américas: “Deus é nosso libertador, redentor”; “Deus nos remiu com seu
sangue”; “não pode o pecador escapar da ira de Deus”, Tupã ñemoyrõ gui
angaipavija ñepysyrõ, nipohangy (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 292), “(Deus
é) refúgio dos pecadores”, iñangaipáva’e ñepysyrõhára (Ruiz de Montoya,
1876b, p. 309-313).
Nos próximos tópicos apresento a salvação como processo de
“humanização”, “hominização” e “despajeização” dos indígenas.
5.4.1 – “Tornar-se cristão” como humanizar-se
A salvação, na catequese colonial, foi pregada como um processo
de ir-se humanizando. Com essas palavras, Ruiz de Montoya descreveu a
conversão do cacique Guyravera. No discurso dos jesuítas, teko ymã “antigo
modo de ser” foi igualado a teko avaete “autêntico, indígena”. O que era
verdadeiramente, ete”, indígena, ava”, passou a signicar “selvagem,
bestial, não-humano”. Quando Guyravera se converteu, os missionários
escreveram: “ele vai perdendo seu ser e vai se humanizando” (Cortesão
IV, 1970, p. 96). Dados procedentes de outros contextos raticam que, na
semântica colonial, salvar-se é humanizar-se, amansar-se.
Sois cachorros ou carneiros para que machos e fêmeas andem à toa? Por este
pecado e outros que tendes permitiu Deus que andeis perseguidos e feitos
escravos como se fôsseis bestas porque não quereis viver como homens,
mas como cavalos e carneiros de prado, sem ordem nem limpeza em vossas
almas nem em vossos corpos (Borges, 1987, p. 177).
Para serem “humanizados”, os índios deviam abandonar a vida livre
na selva. “Ordem e limpeza” são virtudes que somente vivendo reduzidos
em povoados os índios poderiam experimentar. O próprio Montoya fala por
que os índios deveriam se reduzir: para se tornarem cristãos e civilizados.
211
Vivi (...) em busca de feras, de índios bárbaros (...) para agregá-los ao
aprisco da Santa Igreja e ao serviço de Sua Majestade. (...) unidos aos meus
companheiros, consegui o surgimento de treze “reduções” ou povoações.
(...) já foram reduzidos por nosso esforço ou indústria a povoações grandes
e transformados de gente rústica em cristãos civilizados com a contínua
pregação do Evangelho (Ruiz de Montoya, 1985, p. 19-20).
Apesar dessa concomitância entre o temporal e o eterno na pregação
cristã, a salvação carregava muito o sentido de “livrar (os indígenas) do
fogo sem m do inferno” (Bolaños, 1931, p. 49).
Retomando a questão introduzida em “o pecado na catequese
colonial”, gostaria de ocupar-me a seguir com os signicados agregados ao
termo “homem” durante na missão cristã, para com isso traduzir a doutrina
da salvação.
5.4.2 – “Ser salvo” como tornar-se varão
Com a pesquisa do verbete kuimba’e, varão, confere-se que o
jesuíta lhe agregou os signicados de “valentia”, “coragem”, “conquista” e
“capacidade”. Assim, da expressão che kuimba’e, que literalmente signicava
“sou homem”, foi derivado “sou homem valente”; de kuimba’ehápe, “entre
homens”, e kuimba’évo, “assumir-se como homem”, foram derivados
“varonilmente” e “triunfo” ou “troféu”. O missionário-lingüista chega
mesmo a usar o termo kuimba’e com o signicado de virtude cristã,
mantendo assim a lógica da língua latina, na qual vir/viris signica “homem,
varão constante e reto, homem de distinção”, virílis/virile “próprio de
homem” e virtus/virtutis “virtude”. Assim, nos léxicos de Montoya, “o bom
cristão triunfa (oñemokuimba’évo) sobre o demônio vencendo-o”, “Jesus
nosso Senhor triunfou (oñemokuimba’évo) sobre a morte”, os cristãos são
admoestados a se tornarem homens (chañemokuimba’e),
22
no sentido de
serem pacientes nas diculdades.
23
O termo “homem” se desdobra, desse
modo, em “valentia”, “coragem” e “vitória”; “tornar-se homem” é vencer a
morte, “ser ressuscitado”.
Vemos que Montoya, sob o imperativo de traduzir o ideário da sua
época, acabou mudando e alguns casos falsicando o sentido das palavras.
A moral cristã da época o levou a aparentar, na língua indígena, a “mulher”
e o “pecado”, o “homem” e a “virtude”.
212
5.4.3 – “Ser salvo” como tirar do pajé seu ser de pajé
Converter-se era “humanizar-se”, era tirar de si o ser indígena,
añemboavaete’og, era abandonar o modo retraído e amedrontado de ser,
jepoyhu’og, ajepoyhu poi (Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 157); era “mudar
de vida”, como mudar a pele, jeape kuavo, jeeko apeng’og (Ruiz de
Montoya, 1876aII, p. 101); “mudar-se em costume”, tirar o modo de ser
indígena e substituir por outro, ahekoviarö che reko (Ruiz de Montoya,
1876aII, p. 102); era “desarraigar vícios antigos”, ahapo’og che reko aikue
ymäguaréra (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 143); descarregar o modo de
ser irado, ajeeko pochy ekuavog (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 153); “fazer
com que o outro deixe seu costume”, amboeko ekuavog (Ruiz de Montoya,
1876c, f. 255). Era, sobretudo, tirar do pajé o seu ser de pajé, ambopaje’og
(Ruiz de Montoya, 1876c, f. 261).
Para ser efetiva, a conversão pressupunha a “redução”; ou seja, o
ajuntamento dos índios num lugar para “estabelecer costume entre eles”,
amboypy teko pyahu, teko pyahu amoï teko ramö (Ruiz de Montoya,
1876aI, p. 369), criar lei, dar o ser às coisas, atekove’ë, aheko moingo (Ruiz
de Montoya, 1876aI, p. 369), “dar estado”, “ordenar a vida”, amoïngatu
che reko (Ruiz de Montoya, 1876aI, p. 119), “reduzir a bem o que era
mal”, amboekuavog imomarängatúvo (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 153).
O novo homem das reduções olhava para o passado e via “o ser que ele
foi ou teve”, sy kue (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 115) e do qual ele se
despojou, ajepokuaaai’og (Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 135), ou, mais do
que isso, do qual ele se esvaziou, ajeeko ekuavog (Ruiz de Montoya, 1876c,
f. 255), e via seu antigo modo de ser cortado pela raiz, che reko angaipáva
aipepï hejávo (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 268). Então, para alegria dos
seus conquistadores, ele se percebia impregnado de (uma nova) ciência,
mba’e kuaa che hu katu (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 159), sendo louvado
pelos cronistas das missões pela sua “boa disposição para o evangelho”. O
exemplo no qual mais se cristalizou essa mentalidade foi o líder guarani
Ignacio Piraici. Nele realizou-se de maneira perfeita o ideal de indígena
convertido que sonhavam os missionárifos. Na sua obra mística, Montoya o
descreve como anima naturaliter christiana. Em cinqüenta anos que viveu
gentil guardou a lei natural em sua pureza, contente com uma mulher,
sem ofender a ninguém” (Ruiz de Montoya, 1991, p. 156).
Porém, como foi visto no capítulo dois, muitos pajés guarani resistiam
213
à missão que queria fazer deles cristãos e armavam que ninguém poderia
tirá-los do seu proceder “ordinário”, nache pysimboi ahë che rekokuéragui
(Ruiz de Montoya, 1876c, f. 291). Essa expressão pode bem ter saído da
boca dos “malcontentes” ou “inimigos capitais dos ministros evangélicos”,
de quem nos fala o Pe. Cardiel (Furlong, 1953, p. 130). Enquanto esses
se enfrentavam com os conquistadores em verdadeiros duelos xamânicos,
outros resistiam à redução com sua atitude eumática ou pachorrenta de
ser, karuru, teko mbegue, ate’ỹ, o que provocava uma indignação gadal
do missionário, que dizia sentir-se aigido com a euma dos indígenas,
añemopy’a ekoteve nde reko mbegue (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 285).
Do indígena que resistiu à redução se disse que trocara seu ser “de
homem” pelo ser “das feras”, so’o rehe ereje’ekoa (Ruiz de Montoya,
1876c, f. 8), que se despira do modo de ser “humano” para vestir o modo de
ser das “bestas”, so’o reko eremonde, ava reko mbóivo (Ruiz de Montoya,
1876c, f. 8). De modo que ao desistirem da “luz divina”, da chance de se
tornarem humanos, os indígenas “pareciam ter retornado a seus primitivos
costumes e ferocidade”, convertendo aquelas paragens em campo “inculto
e estéril” (Del Techo IV, 1897, p. 72).
Mas se os povos chamados guarani não sucumbiram, foi graças a
essa “ferocidade” que lhes abriu caminho para a liberdade. Nada podia
ser mais incompatível com uma missão que tinha em vista a suplantação
do ser indígena, do que a ferocidade, a agressividade, a altivez, a atitude
inquiridora dos catecúmenos. Não é casual que uma das expressões chave
para descrever a conversão indígena seja pochy”, que signica diretamente
“ira”, mas que, por outro lado, expressa gestos de “coragem”. Quem se
reduzia ao cristianismo devia despir-se, esvaziar-se dessa “ira” (coragem),
ajeeko pochy ekuavog, (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 153). Devia “jogar
fora o mau viver”, aity che reko pochy (Ruiz de Montoya, 1876c, f. 180).
Estamos diante de uma forma de criminalização da resistência.
5.5 – A redenção do dizer
Os povos guarani contemporâneos acreditam que eles, como todos
os seres humanos, fazem parte da “segunda humanidade”, marcada pela
imperfeição e separação da divindade. Diante disso, eles reivindicam para
si as virtudes que a primeira humanidade perdeu. Insistem em recuperar a
214
unidade desfrutada na primeira criação. Nas palavras de Pierre Clastres,
eles “não mantêm com seus deuses uma relação simples de pura piedade”.
Sua religiosidade exclui a espera passiva da criatura sem liberdade. Sua
consigna diz: “Devolvam-nos (...) nossa verdadeira natureza de seres
destinados à totalidade acabada de bem viver no coração eterno da morada
divina”. Eles não suplicam um favor, reivindicam um direito (Clastres P.,
1990, p. 57-58). E
a segunda humanidade foi beneciada com a água vivicante da bruma do
amanhecer e com as chamas sagradas, que são derramadas sobre todos os
seres que percorrem os caminhos da imperfeição (Cadogan, 1959, p. 105).
Para os indígenas, está claro que a geração atual não participa mais
da unidade original. Nós, que pertencemos ao ciclo dos humanos, vivemos
sobre a constante ameaça de fragmentação, pois a unidade original está
arruinada. Resta-nos buscar uma maneira de retornar à unidade de origem
(Cadogan, 1959, p. 92).
A ignorância ou a “má ciência” é superada ativando-se a sabedoria
divina presente na natureza humana. A ira e o ato de ofender podem se
transformar em serenidade, temperança, longanimidade e reciprocidade,
através do autodomínio, da busca de palavras inspiradas, entre outros.
Curiosamente, não para o adultério
24
um paradigma que oriente sua
transformação.
Apresento, a seguir, algumas metáforas que especicam o que os
grupos indígenas aqui estudados entendem por “restituição da palavra”.
5.5.1 - Erguer-se: “e
Algumas das expressões que mais se destacam nos discursos que
tematizam a quase obsessão mbyá por alcançar a plenitude é jeepya e
eepy. O vocábulo central nelas é e”, “palavra, verticalidade, vida”. No
âmbito religioso, jeepya e eepy deixam-se traduzir por “redenção do dizer”,
“recuperação do falar”, “ressurreição” ou “restituição da palavra” (Cadogan,
1992, p. 166, 172).
Essas expressões aparecem nas orações ou nos conselhos através dos
quais os grupos mbyá reivindicam às divindades que lhes restituam o dizer
e lhes permitam alcançar boas e belas palavras. Pela palavra o ser humano
215
supera a horizontalidade animal e adquire a verticalidade característica das
divindades. “Erguer-se” aparece também no contexto da cura, como se
pode ver a seguir:
Vós reunis inumeráveis restituidores da palavra, e assim fazeis escutar vossas
vozes, fazeis escutar vossos gritos; e, mesmo quando nos encontramos nos
umbrais da morte, nos infundis repetidamente valor e nos tornais a erguer”
(Cadogan, 1992, p. 154-155).
“Erguer-se”, “restituir o dizer” era, via de regra, nos povos guarani, a
culminação de uma série de aperfeiçoamentos que se davam na comunidade.
Hoje, porém, dada a condição de “desterrados” em que muitos deles se
encontram, a experiência religiosa tende a ser cada vez mais individualista.
As grandes convocações em muitas aldeias passaram a ser substituídas pela
inspiração pessoal e pelo sonho. Não é menos verdade, porém, que todos
os recursos que fortalecem uma comunidade guarani são os mesmos que
fortalecem e aperfeiçoam a palavra na vida de uma pessoa.
5.5.2 - Alcançar grandeza de coração: “py’a guasu
Uma outra metáfora para a “redenção do dizer”, entre os mbyá, é
alcançar “grandeza de coração” ou “coração frio”, o que para os indígenas
tem a ver com a recuperação da integridade. “Se permitimos que nosso
amor se bifurque, não iremos alcançar valor, fortaleza” (Cadogan, 1959, p.
92). Outros sentidos com que a expressão aparece são “coragem” e “pureza
de coração”. Py’a, “estômago”, é na língua guarani o órgão para expressar
sentimentos, afetos, emoções. E é esse o termo básico para a experiência aqui
destacada. Transcrevo a seguir fragmentos dos hinos de Inocencio Martínez
e Laureano Escobar, Mbyá do Guairá, informantes de León Cadogan.
Por teres sido o primeiro em te erguer, faz que nós (que nos lembramos
de ti erguido), também sejamos erguidos com grandeza de coração e assim
permaneçamos na terra. Sendo esse o objetivo de nossas rezas, considerando
em nosso coração todas as coisas com o único objetivo de obter valor,
alcançaremos grandeza de coração (Cadogan, 1992, p. 163).
Diante de uma pessoa doente, de quem se diz que a medula da sua palavra
espor ascender, há que se pedir pela vinda dos que redimem o dizer.
216
Eis-me aqui, Nosso Pai Ñamandu, invocando a teus inumeráveis lhos,
resgatadores do dizer. Neles eu cono e peço que enviem sua palavra à terra,
(...) Envia teus lhos que redimem o dizer frente à terra, faça que eles escutem
seus clamores em nossas mentes (...); que em virtude disso se produza a
redenção do dizer. Desta maneira, concede-me grandeza de coração, grandeza
de coração que nunca se bifurcará (Cadogan, 1992, p. 164-167).
À grandeza de coração se chega através do “esforço” pessoal
por alcançar duas virtudes que se enraízam na Palavra: a temperança e a
serenidade. “Palavra”, neste caso, como bem lembra Melià, é a prova de que
algo aconteceu, de modo que dizer algo (orar, ñembo’e) já é dar realidade
a esse algo dito (Melià, 1991, p. 105). “Alcançar grandeza de coração” é
uma expressão que denota a ansiedade pessoal de ser salvo. O itinerário
para se chegar a esse estado seria o mesmo percorrido pelos xamãs pois, no
fundo, nos grupos tupi-guarani, é o xamã que representa o ideal de pessoa e
um dos pilares do mundo (Viveiros de Castro, 1986, p. 628). O xamanismo
está, nesse sentido, muito mais perto do “sacerdócio universal de todos os
crentes” como proposto por Lutero do que do “sacerdócio” entendido como
um “estatuto sacramental” da Igreja católica.
5.5.3-Plenicar-se:“aguyje
Aguyje é o termo de uso mais generalizado e o mais abrangente
para expressar o que se pode considerar “salvação” para os grupos kaiová.
Traduzido por “plenitude, perfeição, completeza”, ele é análogo ao termo
grego plêrôma, usado no Segundo Testamento com o signicado de
plenitude (Rm 11.12), cumprimento, abundância, como a plenitude daquele
(o verbo divino) que encheu tudo em todos (Ef 1.23).
Enquanto que as expressões “erguer-se” e “grandeza de coração” se
referem mais à salvação pessoal e social, aguyje é a perfeição para a
qual os kaiová acreditam ser vocacionados junto com os demais seres e
com a terra inteira. De modo que se, por um lado, a salvação requer um
empenho individual, por outro, tem a ver com a plenitude do sistema social
e religioso o que pode acontecer numa terra renovada. Isso pode ser
observado claramente na expressão yvy araguyje, “terra de tempo-espaço
perfeito”, com a qual os Kaiová e os Paĩ-Tavyterã mostram, em sua teoria
da “redenção do dizer”, o âmbito cosmológico. Eles aguardam não só que
217
as comunidades indígenas
25
e as sociedades não indígenas que as cercam
“moderem seu mútuo falar”, oñoñe’ẽ emboro’y mas que também “se alegre
a terra”, embohory yvy. Todos os seres carregam em si o impulso para se
transformarem até alcançar a perfeição dos modelos incorruptíveis que
inspiraram sua criação.
As várias expressões tomadas da língua guarani para reetir, na
perspectiva indígena, o conceito “salvação” têm signicados semelhantes
aos seus análogos latino, grego e hebraico, salus, sötëria, yeshu’ä: o sentido
de “livrar-se”, “ser preservado de perigo ou enfermidade”, “superar a
condição de estar alienado”.
5.5.4 –Terra e palavra sem males: “yvy ha ñe’ ẽ marãne’
Como foi apontado, a terra é a base biológica e simbólica para
alcançar a perfeição pessoal (Melià, 1989, p. 346), de modo que, se ela está
cheia de coisas nefastas e imperfeitas, ela precisa ser redimida e renovada.
Hoje, mais do que nunca, a busca da “terra sem males” é uma
necessidade bem real, não dos indígenas, mas de toda a humanidade.
Contrariando a opinião dos que têm visto nessa busca um comportamento
sociopata dos indígenas, gostaria de enfatizar que nela uma expectativa
real de ocupar novos lugares, onde lhes seja possível continuar vivendo
como um grupo diferenciado culturalmente. O descontentamento com este
mundo está presente, sim, em muitos discursos que chamam a comunidade
para partir rumo à “terra sem males”. Neles, porém, ecoam a dimensão
cosmológica da soteriologia indígena, tanto no sentido da busca de uma
terra rme sob os pés como no de uma projeção dessa esperança para o
além.
Em favor da dimensão sócio-histórica da busca, contam: (1) o fato
de a “terra sem males” almejada pelos diversos grupos guarani apresentar
características ecológicas e econômicas semelhantes às das áreas ocupadas
por eles no passado; (2) o fato de os Mbyá acreditarem que a “terra sem
males”, a do além, eles alcançarão se viverem aqui e agora conforme
o sistema guarani, tanto econômica como celebrativamente; (3) o fato de
ela se congurar na imaginação dos indígenas como uma grande aldeia
inserida numa imensa mata. Para os Kaiová, dada a cruel experiência da
falta de lenha em algumas áreas, a terra de tempo-espaço perfeito é um
218
lugar com bastantes árvores que, derrubadas, caiam ao chão já feitas lenha
boa, da qual não sai fumaça, brasa e chama (Cf. Chamorro, 1995, p. 51).
Uma frase de Horácio Lopes ilustra a questão do lado mbyá: “tendo mato,
o Mbyá tem direito de ocupar, para poder cumprir bem certo com Ñanderu”
(Garlet, 1997, p. 55). Assim, está implícita a convicção de que os grupos
mbyá e a selva se pertencem, e que aqueles podem se realizar como
pessoas e alcançar o marãne’ỹ na mata.
O que acontece é que a intensicação das diversas formas de opressão
e de contato compulsório com a sociedade envolvente redundaram na
depotenciação atual da metáfora de “terra sem males” e na redução do campo
de ação da palavra que impulsiona a busca. Diante disso, parafraseando
Assis e Garlet (1999, p. 10), pode-se dizer que, persistindo essa situação de
progressivo desterro e a interpretação da busca da “terra sem males” como
um fenômeno exclusivamente mítico, não restam dúvidas de que o único
espaço que restará aos indígenas, sua única salvação possível, é aquele
projetado para o “além”. Então, não só os Mbyá, mas todos os que sonham
com a terra menos má se obrigarão a ritualizar o que não podem alcançar.
Porém, a busca da “terra sem males”, mesmo a mais ritualizada,
prossegue Melià, “não é um simples retorno conservador a estruturas sociais
e religiosas tradicionais, mas uma forma de contestação face ao sistema
neo-colonial envolvente. Mantendo os principais princípios da economia
de reciprocidade, e sendo éis a seu peculiar modo de pensar e construir
a pessoa humana, os indígenas estão se libertando de ser reduzidos, sem
mais, a cidadãos genéricos” (Melià, 1989, p. 347).
Uma saída que os diversos povos falantes de guarani têm encontrado
quando a situação se torna insuportável e quando percebem que não lhes
é mais possível zelar pelo bom modo de ser, é a de se retirarem e pedirem
o m do mundo (Melià & Grünberg, 1976, p. 234). Assim o atestam o
registro de Nimuendaju sobre os Apapokuva no início do século:
Não é a tribo dos Guarani que está velha e cansada de viver, mas é toda
a natureza. Quando os pajés, em seus sonhos, vão ter com Ñanderuvuçú
(Nosso Grande Pai), ouvem muitas vezes como a terra lhe implora: “devorei
cadáveres demais, estou farta e cansada, ponha um m a isto, meu pai!” E
assim também clama a água ao criador, para que a deixe descansar; e assim
também as árvores, que fornecem a lenha e o material de construção; e assim
todo o resto da natureza” (Nimuendaju, 1987, p. 71).
219
Nos anos quarenta, Schaden recolheu informação semelhante entre os
Kaiová. O líder espiritual Chiquito interpretou o loteamento e a entrega de
suas terras aos novos colonos
26
como a chegada do m. Esse comportamento
se repetiu quando os descendentes dos indígenas entrevistados por Schaden,
em 1995, temiam a revogação do Decreto 22, assinado na Eco-92, no Rio
de Janeiro, que lhes proporcionara um relativo otimismo com relação à
demarcação de suas terras. Em situações como essas, de extrema incerteza,
é literalmente a palavra o único caminho de salvação possível.
Observemos o seguinte exemplo. Era julho de 1991, início da
guerra no Golfo Pérsico. Num gesto que tentava exorcizar os males da
sua comunidade, a belicosidade das forças aliadas e a de Sadan Hussein, o
rezador Paulito Aquino começou a cantar e a abençoar todas as nascentes
do dizer, os quatro pontos cardeais. Ele pediu que a palavra “esfriasse” os
corpos, as iniciativas, os relacionamentos e a própria terra. Que esta fosse
novamente alegre e que se restituísse nos seres humanos seu mútuo dizer,
o dom da reciprocidade.
Che ru, ojoete emboro’y, embohory yvy Meu pai, o nosso mútuo corpo esfria, alegra a terra
Che ru oñoñe’ẽ emboro’y, embohory yvy A nossa mútua fala esfria, alegra a terra
Che ru(a) piraguái emboro’y embohory yvy A braveza-violência esfria, alegra a terra
Che ru(a) ataguái emboro’y, embohory yvy O que está pegando fogo esfria, alegra a terra
Che ru oñoñe’ẽ (a)guapykáva emboro’y, O lugar onde repousa nossa mútua fala esfria,
embohory yvy alegra a terra
Che ru oñoñe’ẽ (a)tataguái emboro’y, A nossa mútua fala se abrindo em chamas esfria,
embohory yvy alegra a terra
Che ru oñoñe’ẽ (a)karai (a)piraguái emboro’y, O sangue mútuo da nossa palavra esfria,
embohory yvy alegra a terra
Che ru oñoñe’ẽ (a)karai atataguái emboro’y, A chama da nossa mútua palavra esfria,
embohory yvy alegra a terra
Che ru oñoñe’ẽ (a)guapykáva emboro’y, O lugar onde se senta nossa mútua palavra esfria
embohory yvy alegra a terra
Papa tapia rete marãngatu E nosso corpo terá sempre algo bom para contar
Os grupos kaiová, como os apapokuva no passado, acreditam que, se
o corpo se tornar imponderável, eles poderiam voar para uma nova terra de
tempo-espaço perfeito. É graças ao canto que o corpo pode perder seu peso
e decolar da sua condição de alienação e participar de uma das faculdades
das divindades: voar, que é símbolo da liberdade e da alegria.
Mas, via de regra, chegar a pronunciar palavras inspiradas não é um
m em si mesmo; é um indicador de que o indígena está consolidando no
âmbito individual a restituição da unidade que os humanos desfrutam com
220
Deus. Segue como exemplo uma exortação mbyá em prol da perseverança
e da disciplina em busca da perfeição:
Devemos nos dedicar com fervor à obtenção da vida imperecível (...).
Sejamos fortes, sejamos valentes todas as noites, todos os dias, pois somente
assim (...) nos enviará Nosso Primeiro Pai os dirigentes de seus numerosos
lhos e fará que eles pronunciem longas séries de belas palavras (Cadogan,
1959, p. 92).
Alcançar belas palavras não é, pois, um ato isolado; é a culminação
de uma série de aperfeiçoamentos: na justiça, na diligência, na paz, na
serenidade e no amor recíproco. Essas virtudes tramam o ideal da pessoa
humana e se visualizam e socializam nas convocações políticas e religiosas
(Melià, 1991, p. 69-79).
5.6 – A restituição da palavra e a soteriologia cristã
Comparando o que os povos aqui estudados entendem por “restituição
da palavra” com um dos pontos centrais da teologia cristã, sua cristologia,
gostaria de destacar que, para os indígenas, “redenção” e “restituição
prescindem dos méritos de um Salvador. Na seqüência, formulo uma
hipótese sobre a provável origem dessa concepção e comento as questões
que a experiência da palavra indígena coloca para a soteriologia cristã.
5.6.1–SemaguradeumSalvador
Não existe no imaginário religioso guarani um personagem que
tenha carregado sobre si o pecado da humanidade. Não há, nesse sentido,
um ser análogo ao Jesus interpretado pela comunidade primitiva como
alguém que, com sua morte, prestou um serviço extremo à humanidade,
sacricando-se por ela. Entre as personagens que mais se destacam nas
narrativas indígenas estão os dois irmãos, especialmente o Irmão Maior.
Mas ele não é um salvador e sim um exemplo que pode inspirar os seres
humanos a se esforçarem para alcançar a plenitude. Seu “retorno ao Pai” por
um caminho de echas reluzentes é a metáfora através da qual o mito arma
a legitimidade e a viabilidade do desejo humano de plena auto-realização
221
e uma re-união com os seres sobrenaturais. O mito encoraja as pessoas a
persistirem no caminho da boa ciência e a resistirem à concupiscência da
ignorância.
O fato de os irmãos terem transposto vitoriosamente os obstáculos
da existência é um bom augúrio para a humanidade. “Se eles retornaram ao
Pai, se eles se reencontraram com ele, por que nós não o conseguiríamos?”,
desaam os Avá-Guarani. Nesse mesmo espírito eles também lembram os
antepassados que, tendo vencido grandes diculdades, foram divinizados
e divinizadas, tornando-se exemplos para os demais. Conforme Miguel
Alberto Bartolomé, Ñande Jári Pire, a “Nossa Avó” para os Mbyá,
sobreviveu às águas do dilúvio sobre as folhas de uma palmeira. o
Senhor Incestuoso nadou nas águas do dilúvio, dançou, orou e cantou até
adquirir fortaleza. Tendo obtido a perfeição, ele e sua mulher “criaram uma
palmeira milagrosa com duas folhas e em seus galhos descansaram para
logo dirigirem-se à sua futura morada” (Melià, 1991, p. 69-79).
A soteriologia sem salvador desses grupos nos faz lembrar de
uma cristologia quase esquecida na teologia cristã. Como se sabe, duas
tendências interpretativas da salvação mediante Jesus Cristo se delinearam
nos primeiros anos do cristianismo: a divinização ou gloricação do
ser humano (theosis) a exemplo de Jesus, e a justicação do ser humano
mediante a paixão de Cristo (pro nobis).
A primeira compreensão de salvação parte do princípio de que o
alvo salvíco nal está na divinização e gloricação da humanidade. Ou
seja, em sua ascensão, Jesus Cristo ressuscitado teria arrebatado consigo
simbolicamente o ser humano para o céu, ocasionando uma theosis
(Kretschmar, 1991, p. 268). Atanásio dizia que Deus tornou-se humano
para que fôssemos divinizados. Um dos textos que serve de base para a
theosis é 1Jo 3.1s:
Vede que grande amor nos tem demonstrado o Pai, ao ponto de devermos
ser chamados crianças de Deus, o que de fato somos. (...) Amados, agora
somos crianças de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Porém, sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos iguais a Ele; pois
o veremos como Ele é.
De modo que a teologia que interpreta a morte de Jesus como sacrifício
pelos pecados da humanidade é uma entre, no mínimo, duas possibilidades
de interpretação. Como é sabido, no judaísmo tardio e helenístico circulava
222
já a idéia de que o martírio, inclusive o de crianças, poderia assumir caráter
representativo e redentor em favor dos pecadores. Assim, o valor expiatório
dos sofrimentos dos mártires judeus é celebrado em 2Mc 6.28; 7.18, 32,
37. Mas o texto clássico retomado pelo Segundo Testamento é Is 53,
especialmente os versículos 10-12:
Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma
se puser por expiação de pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus
dias (...), com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justicará a muitos,
e as iniqüidades deles levará sobre si, (...), porque derramou a sua alma na
morte, (...). Pois ele levou sobre si o pecado de muitos.
Este é o texto-chave pelo qual se tem interpretado a morte de Jesus
como serviço e resgate no Segundo Testamento: “Pois o Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
muitos” (Mc 10.45).
Como se pode ver, prevalece nesses textos a idéia da substituição,
do único em prol dos muitos. Na língua hebraica, a idéia de um redentor
estava vinculada à de um vingador (gõ’el). Essa concepção pode se derivar
de práticas restitutivas da época tribal. J. J. Stam se serve dos estudos de
Koch e Proksch para armar que, na expressão gõ’el haddãm (“vingador
do sangue derramado”), gõ’el referia-se originariamente ao parente mais
próximo como aquele que deveria restituir à comunidade o sangue da vítima
que pertencia a essa comunidade (Jenni & Westermann I, 1978 col. 554).
Assim, interpretada por essa antiga concepção sacrical, a morte de Jesus
passou a ser uma morte vicária, “em resgate por muitos”. Jesus é o gõ’el,
aquele que, “pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez
por todas, havendo obtido uma eterna redenção” (Hb 9.12b). Esse também
foi o coração da forma mais antiga da proclamação deuterotestamentária,
que dizia: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras”
(1Co 15.3).
Gostaria de retomar aqui um fato da cultura indígena que, pelo
menos aparententemente, se aproxima da morte de Jesus interpretada como
sacrifício: o ritual antropofágico da vingança. O mesmo era praticado, em
especial, pelos grupos tupi-guarani da costa até as primeiras décadas da
conquista européia.
Um inimigo era capturado para tal, alguém que por sua vez tenha
sacricado parentes dos seus capturadores. A vítima era objeto da estima
223
dos seus “hospedeiros” e em alguns casos era honrado com uma esposa.
No dia do sacrifício, ele era enfeitado e apresentado ao seu carrasco, que
mantinha com ele um diálogo ritual. Durante o colóquio lembravam-se
as vinganças passadas, atestava-se a coragem da vítima e prometiam-se
novas vinganças. Terminado o diálogo, procedia-se ao sacrifício da vítima
e o banquete antropofágico, do qual participava toda a aldeia, menos o
carrasco. Este, tendo cumprido seu papel, iniciava um período de resguardo,
no nal do qual passava por um ritual de renominação. Depois, retornava ao
convívio da comunidade com um nome adicional, com todas a implicações
que a recepção do nome signicava nos grupos tupi-guarani. Mas ao mesmo
tempo em que ele era “renomeado”, sua vítima tornava-se um “sem nome”.
A comunidade que o sacricara tinha-o expropriado.
27
Esse ritual deixou de ser praticado poucas décadas depois do início
da conquista espiritual, no século XVI, e com seu desaparecimento parece
ter fechado as possibilidades de os indígenas imaginarem que alguém tenha
se sacricado para dar nome a outros; ou seja, a salvação mediante um
redentor.
Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985, p. 196s), na sua análise
do ritual de vingança, interpretam essa prática como forma de a vítima
alcançar uma terra escatológica sem males e o carrasco, a imortalidade.
A cerimônia impregnava o destino escatológico e a realização terrena dos
indivíduos. A compensação para o sacricado consistia em manter aberta
a porta para o além; para o carrasco, signicava seu reconhecimento como
herói social, pessoa exemplar do grupo, habilitada a “saldar” as contas,
ainda que temporariamente, com seu inimigo (Suess, 1999, p. 331-332).
A teologia que interpreta a morte de Jesus como um ato vicário em
favor da humanidade parece fazer parte da lógica da vingança. “O salário do
pecado é a morte”, lemos em Rm 3.23. A diferença estaria em que o ritual
indígena saldava apenas ritualmente a “dívida”, não a cancelava verdadeira
e denitivamente, mas antes a conrmava (Fausto, 1992, p. 393). o
sacrifício de Jesus pretende ser a derradeira vingança propiciada pro nobis.
Ao sacricar seu próprio lho, Deus quis transformar a religião da vingança
(gõ’el haddãm) em religião do perdão. Mas a absoluta ausência dessa
concepção entre os indígenas sugere que, para os Guarani, assim como para
os Tupinambá, a religião do perdão se opõe à religião da vingança (Carneiro
da Cunha & Viveiros de Castro, 1985, p. 196). É como se ao ser erradicada
do comportamento dos grupos guarani contemporâneos, a vingança tivesse
224
levado consigo a possibilidade de imaginar Deus como alguém que decidiu
vingar, no seu lho, a dívida da humanidade. É a impossibilidade de eles
imaginarem um Salvador como alguém que, com sua morte, colocou à
disposição dos demais as virtudes redentoras (seu nome) que o distinguem
dos outros humanos.
Os numerosos grupos tupi-guarani da costa desapareceram, vítimas
das guerras de conquista. Aos descendentes dos que fugiram para o interior
das matas subtropicais e dos que viviam e conseguiram se livrar das
sucessivas invasões, devemos as informações etnográcas veiculadas neste
livro. Os que não sucumbiram à voracidade avassaladora dos conquistadores
confrontam hoje a própria religião que os “evangelizou” com mensagens de
paz e procuram, com a perseverança de um místico, alcançar a perfeição
humana, senão no âmbito da “terra sem males”, no âmbito da “palavra sem
mal”.
5.6.2 – Jesus ressuscitado e os “Nossos Irmãos”
A reexão guarani, ao mesmo tempo em que questiona a vertente
cristológica que considera Jesus ressuscitado como a realização da glória que
aguarda os seres humanos, sintoniza-se com ela em alguns aspectos. Assim,
como Jesus ressuscitado, as crianças vitoriosas do mito guarani preguram
o destino da humanidade. É como se toda a esperança humana se realizasse
antecipadamente nessas personagens. A antropologia transcendental
pressuposta nessa perspectiva salvíca repercute sobre a doutrina cristã da
encarnação e da graça.
A encarnação e a redenção
A teologia cristã tradicional entende que Jesus é a encarnação da
Palavra de Deus. a cristologia dos pensadores medievais, da qual Leonardo
Boff cita o Beato João Duns Escoto como seu principal representante, tem
por tese fundamental que a encarnação de Jesus
signica a realização exaustiva e total de uma possibilidade que Deus
colocou pela criação dentro da existência humana (...). O homem pode, pelo
amor, abrir-se de tal modo a Deus e aos outros, que chega a esvaziar-se
totalmente de si mesmo e a plenicar-se na mesma proporção, pela realidade
225
dos outros e de Deus. Ora, isso se deu exatamente com Jesus Cristo. Nós
outros, irmãos de Jesus, temos recebido de Deus e dele o mesmo desao: de
nos abrirmos mais e mais a tudo e a todos, para podermos ser, à semelhança
de Cristo, repletos da comunicação divina e humana (Boff, 1983, p. 221).
Em outras palavras, é pela encarnação de Jesus Cristo que nós
viemos a saber quem de fato somos e ao que de fato estamos destinados.
A encarnação é a plenitude da manifestação divina no ser humano. Deus
se manifestou absoluta e exaustivamente na vida, morte e ressurreição de
Jesus de Nazaré, na peregrinação dos heróis culturais dos Guarani e nos
personagens exemplares de outros povos. Esses epônimos sinalizam, para
nós, o nosso destino comum: a plenitude.
Os Guarani entendem que todos e cada um dos seres humanos são
Palavra sonhada de Deus. O fundamento de cada pessoa, sua unidade vital
é a Palavra. Todos são portadores de virtudes salvícas. Para os teólogos do
processo, há um “desígnio inicial” ao qual todos os seres estão destinados,
sem que sua própria subjetividade seja prejudicada. A Natureza Primordial
de Deus é a provedora dessa qualidade, que é a melhor opção potencial
para os seres. Deus procura fazer com que cada ocasião da vida seja
aproveitada pelas pessoas da melhor maneira possível para a realização e
o desenvolvimento do impulso inicial que elas carregam; a auto-realização
nal dessa iniciativa, porém, não está nas suas mãos (Cobb & Grifn,
1979, p. 52s). Semelhantemente, para os Guarani, cada Palavra é como o
hálito divino que infunde a vida. Mediante essa Palavra, o ser humano é
constituído do próprio tecido da divindade. É como se cada pessoa fosse
uma centelha numinosa. A salvação ou a restauração da Palavra é, nessa
lógica, a restauração e a realização dos atributos divinos nos seres humanos,
é realizar, ao máximo, as possibilidades da existência.
Não os seres humanos, mas todos os demais aspiram alcançar a
plenitude para a qual estão destinados. Sendo a palavra o tecido primordial
que constitui os seres,
28
neles existe uma ânsia universal para a plenitude
e essa é a dinâmica intrínseca da vida segundo os Guarani. Nesse sentido,
como foi indicado no quarto capítulo, ela desaa as teologias do nosso
tempo a reconsiderar a dimensão cosmológica da soteriologia.
Como é sabido, sob a inuência do platonismo, por muitos séculos a
igreja repugnou a matéria. Nos séculos XVII e XVIII, a revolução cientíca
terminou de secularizar a natureza. Proclamou-se que esta era sem vida e
sem alma. Chegou-se à conclusão de que, denitivamente, o poder divino
226
não interferia nela. Assim, presa a essa concepção que coloca o ser humano
“sobre” ou “no centro” da criação e não “com” ou “na” criação, o cristianismo
se tornou portador de uma soteriologia interessada exclusivamente nos
seres humanos, aliás, na “alma” dos seres humanos. Pesa sobre a tradição
judaico-cristã a acusação de ser, no mínimo, co-responsável pela atitude
que prevalece no Ocidente em relação à natureza. Uma teologia por demais
centrada no homo perditus et deus salvator “acabou enfatizando a relação
com Deus às custas de uma visão mais incisiva da natureza, inclusive da
natureza humana. O ser humano mesmo foi desincorporado” (Westhelle,
1994, p. 291).
O cristianismo é confrontado hoje com a profecia de que, sem a
ressurreição da natureza, não haverá vida no mundo vindouro (Moltmann,
1993, p. 364), pois não existe redenção pessoal sem a redenção da
natureza humana e da natureza da terra com a qual as pessoas estão ligadas
inseparavelmente, porque convivem nela e com ela. O elo entre a redenção
experimentada pessoalmente na e a redenção de toda a criação é a
corporalidade dos seres humanos (Moltmann, 1993, p. 378).
Os limites do heroísmo
Deixar-se desaar pelo heroísmo dos Irmãos é uma tarefa cada vez
mais difícil de ser realizada. Nessa situação crítica, o “otimismo” com que,
aparentemente, os Guarani assumem sua própria redenção vitimou-os, não
poucas vezes, com uma obsessão que tomou conta deles e, em momentos de
crise, levou-os à alienação compulsória deste mundo, como nos exemplos
que seguem.
Nimuendaju, no início deste século, referiu-se várias vezes aos
Apapokuva como uma tribo dominada por uma “melancolia profunda”, um
“pessimismo inconsolável”, um “desalento senil”, uma “elegíaca apatia” que
encontrou, na fuga para o além, o único caminho da salvação (Nimuendaju,
1987, p. 70-71, 129). A expressão mais drástica dessa visão do mundo é
descrita pelo autor com a expressão mba’e megua, “infortúnio, desgraça”. A
fala do líder espiritual Roryguy, informante do início do século vinte, ilustra
a inuência desse desânimo no comportamento do grupo: “Quando penso
no mba’e megua, meu lho, queria mesmo era largar tudo, tirar até minhas
roupas, tomar somente meu maracá, e cantar, cantar, cantar” (Nimuendaju,
1987, p. 70).
Egon Schaden (1974, p. 177) vericou, nos anos quarenta, entre os
Guarani do Mato Grosso do Sul, que o resultado negativo das cerimônias
227
religiosas muitas vezes ocasionava depressão psíquica geral, mania de
perseguição, fuga e, em alguns casos, tanatomia e suicídio. É interessante
observar que poucos anos depois da passagem de Schaden pelo então Mato
Grosso, houve vários suicídios nas famílias dos mais fervorosos rezadores
que incentivavam seu grupo, com rituais especiais, a obter a aguyje,
“plenitude”, para assim se livrarem da invasão dos estranhos e da tristeza
de ver suas terras loteadas e suas famílias recluídas em reservas.
Entre os Mbyá do litoral, as tentativas mal sucedidas de atravessar o
mar são relatadas pelas gerações mais novas com certo humor.
29
Conforme
relata Maria Inês Ladeira, há décadas atrás, após muitas orações à beira do
mar, um dirigente espiritual avistou sobre as águas um meio de transporte na
forma de um banquinho ritual, o que ele acreditou ser enviado por “Nosso
Pai” para transportá-lo à outra margem do oceano. Para abreviar a espera,
ele atirou-se ao mar e teria morrido afogado, se não fosse o socorro de um
pescador (Ladeira, 1999, p. 97).
Relatos menos jocosos, porém, descrevem o desapontamento dos
indígenas à beira do mar. Dias de jejum, oração e dança não resultaram
em arrebatamento para a terra que ca do outro lado do mar. Os Guarani
venceram todas as provações até chegar ao mar, porém o mar mesmo se
lhes apresentou intransponível. É o limite do seu sonho.
Entre os Kaiová do Brasil e os Paĩ-Tavyterã do Paraguai, são as
cifras alarmantes de suicídios
30
as que, hoje, nos colocam face a face com
o lado trágico da teologia e da história do grupo. Não se lhes apresentaria a
morte aos indígenas - em muitos casos desterrados ou sem autonomia nas
terras que ocupam - como o único caminho para entrar em contato com a
divindade e alcançar a vida perfeita e boa que eles buscam? Os indígenas
que se suicidaram ou tentaram se suicidar são, em sua maioria, adolescentes.
Enfrentar o desao de ser el à cultura tradicional e alcançar a perfeição
tornou-se uma carga insuportável para eles, no ambiente caótico e cheio de
rupturas em que vivem (Costa Pereira, 1995, p. 31s).
No âmbito físico, são ao todo aproximadamente 9.000 indígenas de
três grupos distintos vivendo em uma área de 3.500 hectares. A aldeia está
situada a quatro quilômetros do centro da cidade de Dourados e nela
cinco escolas, postos de saúde e um grande hospital. Por ela cruzam estradas
públicas, por onde trafegam diariamente carros, caminhões e ônibus de
inúmeras linhas. Nela é contínua a presença de arrendatários de terras, de
missionários, de funcionários não indígenas, de visitantes, de mascates, etc.
228
No âmbito espiritual, há uma grande base missionária interdenominacional
chamada “Missão Caiuá” e as igrejas “Deus é amor”, “Deus é Verdade”,
“Casa da bênção”, “Quadrangular”, “Tabernáculo de Jesus”, “Evangélica
Betel”, “Evangélica Presbiteriana”, e outras, sendo que muitas delas têm
vários locais de culto dentro e fora da área. No âmbito econômico, além de
superpovoada, boa parte da área kaiová é arrendada pelos índios Terena.
Muitos indígenas abandonaram o cultivo tradicional e passaram a viver de
trabalhos sazonais nas terras vizinhas, o que contribui para o esfacelamento
das famílias, o aumento do alcoolismo e da mendicância, a fragmentação
do pensamento coletivo e o distanciamento das práticas religiosas. No
psicológico, a delidade dos indígenas, especialmente a das novas gerações,
é disputada pelo setor conservador – detentor do saber tradicional e pelos
atores sociais que representam novos valores.
Nesse contexto, “os adolescentes, reduzidos a si mesmos assumem
uma condição de risco” (Costa Pereira, 1995, p. 49). Eles se encontram sós e
desaados a serem virtuosos até a perfeição, a restabelecer a unidade com o
Ser Criador. É provável que a morte
31
seja, nesse contexto, o único caminho
possível para a liberdade e o reencontro com “Nosso Pai” e “Nossa Mãe”.
Diante dessa situação, a teologia da justicação pela graça diria:
“aquele que olha para si mesmo e tenta medir sua relação com Deus através
de suas próprias conquistas aumenta ainda mais sua alienação e ansiedade
da culpa e desespero” (Tillich, 1984, p. 381). Mas os indígenas não têm
medo da morte. Esta, como o grande mar, se lhes apresenta como o limite
que, transposto, lhes abrirá o entendimento para a vida perfeita e plena.
É conhecido o comportamento de xamãs guarani que buscam e aceitam a
morte para viver com maior perfeição (Melià, 1995, p. 154).
Embora trágica, essa morte é uma forma de vencer os obstáculos
da existência e chegar à morada de “Nosso Pai”. É o desenlace de uma
história que exigiu dos indígenas uma resistência exacerbada. Segundo
Maria Aparecida da Costa Pereira, psicóloga que pesquisou o suicídio na
aldeia de Dourados de 1986 a 1992, o modo de ser regido pelo arquétipo
kirirĩ32 induz os indígenas a terem atitudes de “silêncio”, mesmo quando
a situação exige o “grito”. Para a autora, nesse silêncio transgura-se a
rebelião atual dos grupos kaiová e guarani no Mato Grosso do Sul e os
suicídios consumados e frustrados “não traduzem uma renúncia à vida,
senão uma luta silenciosa pela vida e para a vida” (Costa Pereira, 1995, p.
50). De todos modos, essa trágica forma de buscar a restituição do dizer,
229
não se traduzirá em “mais vida” para os indígenas, se eles não tiverem a
oportunidade de reconstruir social e ecologicamente padrões de produção e
consumo, de restauração e recriação que ressigniquem seu modo de ser e
dêem sentido à sua existência.
(Notas)
1 Literalmente, oñemboapyka signica “ele/ela (o) providencia (mbo) um assento (apyka)
para si (ñe)°.
2 Mais informações sobre esse ritual, conferir no capítulo seis.
3 Observe-se a relação desse ato com a expressão “oñemboapyka”, que signica “nascer”.
4 Asykue, ãngue. As terminações -kue e -ngue indicam passado. Asy é sofrimento e ãng
palavra, alma, sombra. Asykue refere, portanto, a conseqüência da ação da alma animal e
ãngue sua procedência: as palavras-almas de defuntos que degeneraram à animalidade por
não terem alcançado a boa ciência.
5 Convém lembrar o papel desse animal no primeiro ciclo mítico explicitado no capítulo
três. É ele, o jaguar ou a onça, quem desvia a “Nossa Mãe” do seu objetivo de reencontrar-se
com o “Nosso Pai” e faz dela a primeira vítima da morte.
6 Ruiz de Montoya, 1987c, f. 40. O registro das consoantes b, m, r, no nal de palavras se
refere à pronúncia característica das línguas tupi-guarani faladas desde o Rio de Janeiro até
a Paraíba, no século XVI. Montoya registrou raramente essas consoantes, pois nas línguas
faladas ao sul do Rio de Janeiro esses sons no nal das palavras estavam em desuso
(Rodrigues, 1997, p. 371-400).
7 Angaipa vypy ou angaipasykue, angaipa tuvicha, angaipa mirĩ, angaipa rapo e kuña rehe
angaipa respectivamente.
8 Curiosamente, o que era verdadeiramente, ete, indígena, ava, passou a signicar
abominável. Cf. angaipa avaete (Ruiz de Montoya, 1876aI, p. 129).
9 Sou dessa opinião porque de certa forma é estranho que os indígenas considerassem um
mal a coabitação de um homem e uma mulher, a ponto de chamar uma virgem de kuña
marãne’ỹ, “mulher sem mácula”. A tradução dessa expressão num plano mais neutro não
poderia julgar a virgindade, mas apenas constatá-la. O próprio Ruiz de Montoya procede
dessa forma ao traduzir por “terra onde não foi feita ainda roça” a expressão yvy marãne’ỹ,
sem sugerir com isso que a terra roçada e plantada seja má.
230
10 Noutras frases a mulher menstruada aparece como suja e perigosa; a que está grávida,
a que é sujeita a um só marido, é a que é casta e piedosa. Convém lembrar sobretudo que a
imagem terrena da mulher foi compensada com a imagem celestial da virtuosa Maria. Ela
é o ser imaculado, sem mancha e sem pecado, kuña marãne’ỹ”, e o missionário se serve
dessa condição de não pecado para destacar o pecado. Não podemos esquecer que a mulher
idealizada, Maria, foi o protótipo da humanidade redimida na retórica missionária, mas isso
não livrou suas congêneres da condição de “lhas de Eva” (Ruiz de Montoya, 1876c, f.
107).
11 Ruiz de Montoya, 1876c, f. 107. Para uma análise mais completa sugiro consultar meus
artigos: “A construção do ‘ser homem’ e do ‘ser mulher durante a ‘conquista espiritual’”:
um aporte lingüístico. In: Mandrágora 07, Gênero, história e religião. São Paulo: UMESP,
Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina, 2001/2002, p. 30-36, e
“Expresiones del erotismo y de la sexualidad guaraní”. In: Suplemento Antropológico,
Asunción, 31(1-2):221-250, 1996.
12 Ijarakuaae’ỹ signica literalmente “sem (e’ỹ) conhecimento (kuaa) de seu (i) tempo-
espaço (ára)”. A outra possibilidade de composição etimológica é “não (e’ỹ) ser (i) dono
(jara) de conhecimento (kuaa)”; ou seja, “não ter domínio sobre si mesmo”.
13 Cadogan, 1992, p. 97. Na metempsicose, deixar-se dominar pela irracionalidade dos
seres inferiores pode representar, à semelhança da serpente do Gênesis bíblico e de outros
mitos do Antigo Oriente, as tendências dinâmicas destruidoras na natureza humana.
14 O dilúvio que sobrevém imediatamente depois da transgressão sugere uma idéia de
castigo na avaliação que os Mbyá fazem dessa catástrofe.
15 “UM” é o termo através do qual Pierre Clastres se refere à unidade divino-humana que
caracteriza a primeira criação, na cosmogonia mbyá.
16 “O Grande Falar”, uma metáfora para “Nosso Pai”. A expressão também se refere ao
trovão.
17 Registros históricos indicam que a chegada dos conquistadores europeus na região
coexistiu com o surgimento de líderes político-religiosos que, em algumas regiões,
angariaram grande reconhecimento e poder.
18 Narã, mo-irã, oyi-mirã.
19 A complexidade desse fenômeno e do seu contexto deixa-se ver no nal desse capítulo.
20 Mbae’kuaa, a Sabedoria. Em alguns relatos fala-se dessa personagem como Papa Réi e
não como Mbae’kuaa.
231
21 Termo usado no Mato Grosso do Sul para descrever a ação de transportar como lixo os
indígenas de uma área em litígio para outro lugar, onde eles têm que se agregar à população
local.
22 Verique-se, no exemplo acima, a exão verbal de primeira pessoa do plural, cha. Trata-
se de uma das formas do “nós inclusivo”, ou seja, um “nós” que inclui a segunda pessoa.
23 Ruiz de Montoya, 1876c, f. 105. Não no âmbito do humano, mas também no das
plantas e das coisas o termo kuimba’e (homem) é usado pelo jesuíta para expressar qualidades
positivas. Assim, uma planta, uma madeira ou uma corda se tornam homens (masculinos)
(oñemokuimba’e) quando são fortes e aptas para o trabalho.
24 Nas aldeias indígenas que conheço, uma relativa estabilidade nos relacionamentos
familiares e os casos de “indelidade” são assimilados pela comunidade sem causar maiores
constrangimentos às pessoas envolvidas.
25 A salvação aguardada pelos Kaiová inclui todos aqueles que permanecerem éis a seus
próprios sistemas. Segundo Paulito Aquino, crentes, brasileiros e paraguaios serão salvos
e buscados nas suas igrejas. Os Kaiová serão buscados por um tocador de mbaraka que os
conduzirá pelo caminho que está oculto atrás da cruz. “Ele vai arrancar a cruz e então se
revelará o caminho perfeito, por onde iremos caminhar até chegar a um lugar onde há uma
casa de reza para nós”.
26 Trata-se de famílias agricultoras assentadas por Getúlio Vargas no atual estado de Mato
Grosso do Sul.
27 A melhor documentação a respeito refere-se a grupos do litoral. Consultar Anchieta 1988,
p. 55s; Cardim, 1980, p. 95s; Abbeville, 1975, p. 229s; Thevet, 1978, p. 135s e Staden, 1974,
p. 82s.
28 Também os animais e as árvores têm alma. Assim, no quarto capítulo do Ayvu Rapyta, um
Mbyá do Guairá destaca que o ipê é, entre as árvores de alma indócil, a mais feroz e que o
cedro é a árvore de alma dócil por excelência, a árvore de Ñamandu, “Nosso Pai” (Cadogan,
1959, p. 90).
29 Muitos jovens nascidos nas aldeias litorâneas não partilham com os mais velhos a
obsessão de alcançar a “terra sem males” do além.
30 Os índices mais elevados são: Em 1986, para uma população de 3.900 Kaiová, foram
registrados 16 casos consumados e 20 tentativas; em 1990, 19 casos consumados e 31
tentativas (Costa Pereira, 1995, p. 45).
31 A morte por enforcamento é a forma mais comum de suicídio praticado entre os Kaiová,
232
o que não deixa de ter sua signicação. Na interpretação dos indígenas, trata-se do sacrifício
da palavra-alma de origem divina (Costa Pereira, 1995, p. 50).
32 Esse termo signica “calado” e “calmo”. Neste contexto, ele mostra que a moderação,
a serenidade, uma das qualidades supremas da pessoa, para os grupos kaiová e guarani
(ñandeva), é também sua grande tragédia.
Terceira parte:
PARADIGMA RITUAL
“Singular e assombroso o destino de um povo
como os Guarani!
Marginados e periféricos,
nos obrigam a pensar sem fronteiras.
Tidos como parcialidades,
desaam a totalidade do sistema.
Reduzidos,
reclamam cada dia espaços de liberdade sem li-
mites.
Pequenos,
exigem ser pensados com grandeza.
São aqueles primitivos
cujo centro de gravitação já está no futuro.
Minorias,
que estão presentes na maior parte do mundo”
(Bartomeu Melià, 1997, p. 50)
235
6 – CELEBRAÇÃO DA PALAVRA:
SACRAMENTOS DA VIDA
A religião dos grupos guarani não corresponde denitivamente
à imagem clássica de religião primitiva fetichista, que reica o sagrado
e cultua os objetos reicados. Tampouco é uma religião de oferendas
e sacrifícios dedicados à divindade em troca de seus favores. A religião
deles se assemelha do que se pode chamar de “experiência mística”, onde a
palavra não só é dita e ouvida, mas também “é vista”, acontece. O canto é a
suma essência dessa palavra. É a atividade religiosa por excelência, através
da qual os grupos guarani entram em comunicação com as divindades.
Estas, como pôde ser visto, no capítulo terceiro, são sobretudo seres de
fala; melhor dizendo, sua fala é sempre cantada. Inspirados nessa forma
de ser das divindades, o canto a palavra ritualizada sintetiza para os
indígenas os sacramentos da vida. Descrevo, a seguir, os principais rituais,
mostro o vínculo que eles têm com o tempo-espaço primordial, com os
principais momentos da vida dos grupos guarani, hoje, e com a religião que
os catequizou no passado.
6.1 – A história: das maracas indígenas aos sinos da redução
A missão religiosa na Arica consistiu basicamente no transplante para
as novas terras da liturgia da Igreja cris ocidental e de seus sacramentos. Como
a palavra ritualizada constituiu-se em uma linguagem extremamente sensível,
tanto para os jesuítas quanto para os grupos indígenas, é bastante plausível que
os relatos que transcrevo abaixo não sejam experiências isoladas, mas algo que
marcou o cotidiano dos missionários e dos indígenas envolvidos.
6.1.1 – A música
Segundo a descrição de Charlevoix, é provel que em algumas situações
a sintonia inicial entre indígenas e jesuítas tenha se dado através da música.
236
Enquanto navegavam pelos rios, os jesuítas, que cantavam cânticos
espirituais para o seu deleite santo, perceberam que muitos índios se
punham a ouvi-los, e que pareciam ter nisso especial gosto. Os ignacianos
aproveitaram-se disso para explicar-lhes o que cantavam. E, como se tal
melodia tivesse transformado seus corações, os indígenas se tornaram tão
suscetíveis aos afetos que os missionários lhes queriam inspirar, que estes
não tinham diculdade em persuadi-los a que os seguissem. Achavam-nos
doces e pouco a pouco faziam entrar em seus ânimos os grandes sentimentos
da religião (Charlevoix II, 1912, p. 60).
Do tempo em que as reduções foram constituídas, sabemos que a
música foi uma das artes privilegiadas na região do Paraná, do Uruguai e do
Tape. O Pe. José Manuel Peramás (1946, p. 82) registrou que a música dos
indígenas era excelente pois, além da sua inclinação natural, os meninos
e jovens escolhidos para esse ofício passavam por um período intenso de
aprendizagem. Peramás acolheu o testemunho do jesuíta italiano Cayetano
Cattaneo que, em 1729, encontrara um menino guarani de doze anos que
executava ao órgão as mais difíceis partituras dos compositores de Bologna
sem um único tropeço. A música das reduções, prossegue Peramás, era
devota e solene, sem cadências ou melodias teatrais que pudessem profaná-
la ou que corrompessem os costumes. Os indígenas cantavam diariamente
durante a missa, acompanhados de um órgão e de outros instrumentos. À
tarde, entoavam um breve motete ao qual respondia todo o povo.
O Pe. J. Pfotenhauer, por sua vez, constatou que os indígenas
cantavam em guarani o benedicte e o laudate e que executavam árias,
motetes e óperas. A orquestra era ensaiada da melhor forma e as incontáveis
vozes encaixavam tão bem quanto possível. Referindo-se ao auge do
desenvolvimento musical nas reduções, o Pe. José Cardiel escreveu:
Todas as reduções têm de 30 a 40 músicos. Instruídos desde a infância e com
muita continuidade são eles muito destros. Eu cruzei toda a Europa e em
poucas catedrais ouvi músicas melhores que estas (Ap. Szarán, 1999, p. 64).
A música executada por indígenas nas reduções jesuíticas do Paraguai
mereceu uma menção especial do Papa Benedicto XIV, em sua carta aos
bispos em 19 de fevereiro de 1749:
237
Tanto se expandiu o uso do canto harmônico ou gurado, que até nas missões
do Paraguai se estabeleceu, graças à excelente índole e aos felizes dotes
naturais daqueles éis da América, seja para a música vocal e instrumental,
assim como para tudo o que pertence à arte da música. Aproveitando-se
dessa oportunidade, os missionários usaram piedosos e devotos cânticos
para reduzir os indígenas à de Cristo, de sorte que atualmente quase não
há diferença alguma entre as missas e as vésperas de nossos países e as que
lá cantam (Ap. Szarán, 1999, p. 63-64).
Nessas experiências, certamente os povos indígenas viveram ainda
por muitas décadas seus usos tradicionais. Não podemos esquecer que
a música era para eles fonte de prestígio e de dignidade. Como bem o
expressa Melià (1999, p. 13-14), “ser músico era ser mais”. É atuar “com”
e estar impregnado “da” virtude salvíca que possui a prática musical. Cabe
perguntar-se: “... se nas maracas e nas autas nativas estava a voz de Deus,
por que não estaria também nas caixas dos violinos, no regaço das harpas e
no ventre das campanas?”
6.1.2 – Os banquetes e as festas
Os missionários naturalmente perceberam os ritos indígenas e
registraram alguns deles (Ruiz de Montoya, 1985, p. 52), não poucas vezes,
sob o juízo de serem práticas selvagens e demoníacas. Sobre os grupos
tupi-guarani do âmbito de colonização portuguesa, ao m do século XVI,
o jesuíta Fernão Cardim (1939, p. 146, 155) registrou importantes dados.
Segundo ele, os indígenas tinham dias particulares em que faziam festas
que se caracterizavam pela abundância de bebida e por durarem dois ou três
dias, durante os quais não comiam, somente bebiam. E para que fosse mais
festivo, alguns andavam cantando de casa em casa, chamando e convidando
a quem encontravam para beber. Eles se organizavam em turnos para que
os bailes e a música não parassem, e assim bailavam cantando juntamente,
porque não faziam uma coisa sem a outra.
Por sua vez, o Pe. Diego de Torres Bollo, na sua carta de 1611,
referindo-se a grupos tupi-guarani localizados no âmbito de colonização
espanhola, descreveu a celebração do mutirão como um impedimento para
a cristianização dos indígenas.
238
Quando chegavam de alguma caça ou pesca e quando iniciava a fase de fazer
roça, reuniam-se para beber e embebedar-se, e terminando o vinho numa casa,
iam para a casa vizinha fazer o mesmo. Ferozes, vestidos com muita plumagem
e pintados de urucum, pareciam demônios (Cartas Anuas I, 1927-29, p. 88).
Mas as reduções se estabeleceram e perduraram por pouco mais de
150 anos, e os indígenas que nelas permaneceram, bem como os que
nasceram reduzidos, tiveram nas celebrações cristãs uma compensação,
senão uma substituição, de seus antigos ritos. Não se pode esquecer que
os jesuítas agregaram à sensibilidade dos indígenas para a palavra cantada
e falada todo um aparato exterior herdado da tradição espiritual ignaciana
e do mundo barroco europeu. Eles valorizaram os sentidos e as emoções
como faculdades que, sob efeito da ornamentação, das imagens, da música,
da dança, da solenidade e do canto poderiam fazer entrar no ânimo dos
indígenas a simpatia pela religião cristã.
Depois de comer os nossos acharam conveniente atrair mais a aquele
homem1 por meio de outras solenidades organizadas em sua honra (Cartas
Anuas I, 1927-29, p. 296).
Eram famosas as festividades nas reduções. Já nos primeiros anos da
atuação jesuítica, em 1617, o Pe. Cataldino escreveu, com relação à festa
de inauguração do sacramento no povoado de Loreto, que havia dois tipos
diferentes de refeição, “uma para os espanhóis que acudiram à festa, e outra
para os índios”. Esta segunda, de acordo com o padre, durou da uma hora
até pelo pôr do sol (Cartas Anuas I, 1927-29, p. 164-165).
As atividades teatrais, os colóquios e as declamações foram
documentados a partir dos primeiros anos da missão jesuítica tanto no
Paraguai como no Brasil. O apreço que os indígenas tinham pela eloqüência
e pela boa palavra (ñe’ẽngatu) teve um papel decisivo no cultivo dessas
expressões artísticas. No âmbito da colonização portuguesa são famosas as
obras teatrais de José de Anchieta e, no Paraguai, destaca-se o Pe. Roque
Gonzáles de Santa Cruz pela sua dedicação a esse gênero da palavra.
Os corais, as orquestras, os dramas, as procissões e outras expreses da
arte sacra européia faziam dos domingos e dos dias santos um tempo dentro do
tempo.
2
Atras dessas novas expressões artísticas, os jesuítas ressignicaram
aspectos tradicionais da cultura dos povos contactados; aspectos escolhidos
taticamente para favorecerem a implantação sica do projeto missionário e a
239
boa recepção da vida “política e humana” que era anunciada.
Assim, conforme compilado por Guillermo Furlong (1962, p. 170),
por ocasião dos vários banquetes que se ofereciam nas casas dos índios
principais, o sacerdote contribuía com uma ou duas vacas e com cestos de
mel e frutas secas, enquanto que os indígenas aportavam aves domésticas,
frutos da terra e bebidas. Juntava-se tanta gente nessas festas que se
necessitava de trinta a quarenta mesas. nos domingos e festas maiores,
segundo as fontes de Furlong, os indígenas reuniam-se para a instrução do
catecismo e para ouvir sermão. No dia de Santo Ignácio somavam-se às
solenidades jogos populares, exercícios a cavalo, música, arcos triunfais,
etc. Os novos líderes espirituais entendiam que essas atividades eram
“honesto entretenimento” para os indígenas, a m de que a tentação de
fugir não os vencesse, e para que as coisas de Deus lhes fossem “deleite da
alma e do corpo”.
Com os banquetes, se levarmos em conta que começavam um pouco
depois do meio dia e estendiam-se até a noite, provavelmente marcava-se
o encerramento das celebrações. É de supor que os banquetes tenham sido
mais um exemplo de aproveitamento da base cultural dos indígenas porque,
mesmo nos anos árduos de implantação da redução jesuítica no Guairá, o
banquete fez parte das celebrações. Nesse sentido, como bem destaca María
Cristina Serventi (1999, p. 334), a frase lacônica de Montoya, “zemos
convite geral que é o que solenidade às festas”, não deixa de ser no
mínimo sugestiva.
6.1.3 – O tempo reduzido
Nos capítulos anteriores zemos referência ao “espaço reduzido”.
Aqui, cabe-nos comentar o “tempo reduzido”. A experiência reducional
foi, sem dúvida, se não uma ruptura uma violenta interferência na
temporalidade indígena. No caso das reduções jesuíticas, essa interferência
consistiu na passagem de um “todo tempo” livre na selva a um “tempo para
tudo” no espaço reduzido. Não podemos esquecer a introdução do relógio
na vida dos indígenas. A esse respeito consta nos documentos:
Em cada povoado um ou dois relógios de rodas, uns feitos pelos
índios, outros comprados em Buenos Aires, pelos quais nós governamos a
distribuição religiosa (Furlong, 1953, p. 134).
240
Reduzir os povos índios a um outro tempo era tão importante para o
projeto missionário que se chegou a escrever um livro titulado Sobre o uso
perfeito (virtuoso) do tempo.
3
A respeito desse livro escreve Peramás:
Ensina o autor aos índios, ponto por ponto, como passar o dia inteiro, santa
e dignamente, seja trabalhando em casa, cultivando o campo, ora a
caminho da igreja ou assistindo à Santa Missa, ora recitando o Santo Rosário
ou fazendo qualquer outra coisa (Peramás, 1946, p. 96).
É de se pensar que, assim como o relógio impôs aos indígenas
reduzidos um novo sentido de urgência cotidiana, o calendário católico
também deve tê-los confrontado com uma série de feriados novos, aos
quais eles foram se acostumando, haja vista que, aos conitos das primeiras
décadas, sucedeu um período de acomodação dos indígenas à rotina do
novo tempo.
No entanto, entre a sintonia inicial e a monótona unanimidade do
período de esplendor dos povoados jesuíticos, referidos acima, houve
décadas de conitos e enfrentamentos liderados pelos indígenas que
perceberam que a nova religião iria suplantar seu modo de ser tradicional
com a imposição de uma estranha forma de viver. Como vimos no capítulo
dois, diante dessa ameaça, os indígenas começaram a parodiar o culto
cristão e a desautorizar os sacramentos da nova religião. Fizeram igrejas
e construíram púlpitos. Imitaram os sacerdotes em tudo: ministravam a
palavra, batizavam e davam a comunhão aos indígenas desconvertidos da
religião cristã. A reação dos missionários, não poucas vezes, calou seus
adversários com uma sentença de morte.
Tanto a atração inicial que os ritos cristãos exerceram sobre os
indígenas como a contestação de que foram objeto posteriormente mostram
o poder de mobilização que o rito e a palavra tiveram entre os indígenas e
os missionários.
6.2 – Os mil rostos da dança e do canto
Até o início do século XX, a palavra indígena foi percebida por
conquistadores e viajantes ora como “detestável costume” (Cartas Anuas
II, 1927-29, p. 235), ora como algo “digno de louvor”. Atenho-me, a seguir,
no comentário deste último posicionamento.
241
6.2.1 – O testemunho dos conquistadores
Antonio Ruiz de Montoya (1892, p. 129) ressalta o falar de magos
e pregadores registra que Zaguacari, por sua ingenuidade e eloqüência,
passou a ser temido como Deus (Ruiz de Montoya, 1892, p. 167-168). Em
outros capítulos da sua Conquista Espiritual, o jesuíta reitera essa mesma
informação:
Eles se sentem enobrecidos com a eloqüência no falar (tanto estimam sua
língua, e com razão, porque é digna de louvor e de ser celebrada entre as de
fama) (Ruiz de Montoya, 1892, p. 149).
Os jesuítas que atuaram no âmbito da colonização espanhola tinham
por orientação “aprender e estudar a língua guarani ... com sumo cuidado e
sempre, não conformando-se em conhecê-la de qualquer forma, mas com
eminência”. A motivação principal para isso era o fato de acreditar-se que
falando a língua indígena “os sacerdotes se tornariam como um deles (dos
Guarani)” (Lozano I, 1754-55, p. 137, 248).
Mas como ocorreu entre os religiosos que atuaram no México;
4
também entre os jesuítas do Paraguai se desenvolveu “um verdadeiro
entusiasmo” (Ap. Melià, 1969, p. 83) pela língua indígena, o que para Melià
indica de que a palavra guarani também reduziu e conquistou aqueles que a
queriam reduzir e conquistar. Um dos testemunhos desse entusiasmo diz:
“Confesso que depois de ter sido iniciado nos mistérios desta língua, quei
surpreendido por encontrar nela tanta majestade e energia. Cada palavra é
uma denição exata que explica o que se quer expressar (...) Nunca jamais
teria imaginado que no centro da barbárie se falasse uma língua, que segundo
meu sentir, por sua nobreza e por sua harmonia não perde para nenhuma
daquelas que eu tinha aprendido em Europa” (Melià, 1995, p. 37).
Em seus léxicos, Ruiz de Montoya registrou alguns aspectos da
percepção que os conquistadores tiveram da palavra cantada dos indígenas.
Ele registrou com o termo mborahéi e sua variante porahéi a música, no
sentido genérico. Dessa palavra ele se serviu para traduzir o conceito cristão
“canto religioso”, como pode se ver em “canção ‘a lo divino’, mborahéi
Tupã reheguára(Ruiz de Montoya, 1876aI, p. 234) e em “partitura de
242
canto: mborahéi kuatia (Ruiz de Montoya, 1876aII, p. 158). A música
dos indígenas aparece como canção humana, à toa, mborahéi ei (Ruiz de
Montoya, 1876aI, p. 234), canção triste e lamentosa (provavelmente a que
se entoava na saudação lacrimosa) mborahéi poriahu e como cantares
deshonestos: porahéi avaete, porahéi sandahe. Aparece também sob as
expressões añemongo’i (Ruiz de Montoya, 1876aI, p. 17), balbucio, guahu,
canto entoado nos rituais de beberagem (Ruiz de Montoya, 1876aI, p. 234),
e ñe’ẽngara’i, canção entoada pelas índias (Ruiz de Montoya, 1876aI, p.
134).
Entre os instrumentos indígenas mencionados por Ruiz de Montoya
guram os de percussão do tipo pandeiro e tambor, angu’a (Ruiz de Montoya,
1876aI, p. 133, 193), os de sopro feitos de caracol, guatapy, de chifre,
mimby e diversos tipos de maracás, mbaraka (Ruiz de Montoya, 1876aI,
p. 220, 229). Para os grupos indígenas o som deste último instrumento é
a representação da palavra divina que está no começo da vida no mundo,
uma espécie de balbucio original (ñemongo’i). O murmúrio produzido por
esse instrumento “masculino” - entre os Mbyá hoje substituído pelo violão
5
- e pelo bastão de ritmo das mulheres é, segundo os informantes de León
Cadogan, indispensável para certos exercícios espirituais denominados
“esforços espirituais acompanhados de música” (kumbijáry pegua mba’e
a’ã) (Cadogan, 1968, p. 112).
O padre português Fernão Cardim e o capuchinho que conheceu os
Tupi do Maranhão, nos primeiros anos do século XVII, Claude d’Abbeville,
descreveram os cantos indígenas como melodias entoadas durante as
danças. Eram cantadas por um indivíduo, o pajé, enquanto os demais
escutavam, retomando depois, em coro, o que fora cantado (Cardim,
1939, p. 176, 306). Abbeville, por sua vez, registrou que cada canto tinha
melodia própria, com estribilho repetido, em coro e em cadência, no m de
cada estrofe (Métraux, 1979, p. 169). Os cantos contavam as façanhas dos
antepassados, imitavam pássaros e serpentes, incitavam à luta, louvavam
árvores e relatavam mitos como o reencontro com os avós e o dilúvio
universal (Métraux, 1979, p. 169).
Ao registrar o costume da saudação lacrimosa entre os Tupi do
Maranhão, Yves d’Evreux arma que os índios “uns após outros, palavra
por palavra, recordam os seus pais e avós, assim como tudo que se passara
entre eles através dos séculos” (Métraux, 1979, p. 157). Semelhantemente,
a referência ao contar casos como contar-cantar (aguahu papa) e ao chorar-
243
contar (ajaheo papa) (Montoya, 1876c, f. 262) sujere o lugar do canto no
ritual da saudação lacrimosa, nos povos indígenas.
Aos hóspedes, ou aos que voltam de uma viagem, recebem-nos com um
pranto de vozes, formado do seguinte modo: - Entrando o hóspede em casa,
toma assento e junto dele o que o recebe. Apresentam-se logo as mulheres
e, rodeando o hóspede, sem ter-se dito qualquer palavra, levantam elas
um alarido conjunto, e contam nesse choro os parentes do que veio, suas
mortes, suas façanhas e feitos ou bravuras, que em vida zeram, bem como
a sorte boa ou que lhe ocorreu. Os homens cobrem o rosto com a mão,
ostentam tristeza e choram em coro com as mulheres. Com palavras baixas
vão conrmando as endeixas ou canções lastimosas que as mulheres recitam
(Ruiz de Montoya, 1985, p. 53).
No caso das reduções guaraníticas, a admiração dos conquistadores
pela língua indígena concretizou-se na adoção do guarani como língua ocial
das reduções. Mas a constatação de que ela transmitia “detestável costume”
desencadeou uma campanha de erradicação, substituição e ressignicação
de uma das expressões mais autênticas dessa língua: os cantos indígenas.
Mesmo assim, eles e outras formas da palavra guarani sobreviveram
aos anos de conquista. Como mencionado, devemos seu redescobrimento
a Kurt Unkel Nimuendaju e a quantos o sucederam no estudo da etnograa
guarani. Do vasto material disponível hoje constata-se que enquanto a
saudação lacrimosa caiu em desuso, o guahu e o mborahéi são gêneros
vivos do canto guarani, junto com o ñe’ẽngarai, o kotyhu e o ñembo’e.
Acolhendo a advertência de Melià (1989, p. 306) - que tentar uma
sistematização da palavra guarani é tão difícil como tentar uma teologia
sistematizada do Espírito ou do Logos na tradição cristã - ater-me-ei,
a seguir, apenas na descrição das formas de dança e palavra que tive
oportunidade de conhecer entre os indígenas: ñembo’e, mborahéi, guahu,
kotyhu, ñe’ẽngarai ou nemoñe’ẽ e xondáro.
6.2.2 – Ñembo’e – reza
Ñembo’e é pronunciar palavras sagradas, é tornar-se parecido com
elas. Comumente esse termo é traduzido por “reza”. Na sua forma clássica,
ñembo’e é uma espécie de mitologia condensada em forma de hino litânico.
Nele, os versos de uma estrofe são gerados a partir de uma frase inicial, cujo
244
substantivo-base é ampliado e comentado por outras palavras ou adjetivado
de modo cumulativo (Melià, 1991, p. 95), como no canto seguinte entoado
por Lauro.
Itymby ryjúi ryjúi Nasce a espuma, sinal da alegria,
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Jasuka Nasce Jasuka, nossa origem,
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Jasuka ryjúi ryjúi Nasce a espuma, sinal da alegria de Jasuka
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymby Mba’ekuaa Nasce Mba’ekuaa, a Sabedoria,
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymby Mba’ekuaa ryjúi ryjúi Nasce a espuma, sinal da alegria da Sabedoria
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Jeguaka Nasce Jeguaka, símbolo da Fecundidade masculina,
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Jeguaka ryjúi ryjúi Nasce a espuma, sinal da alegria de Jeguaka
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Ryapu Nasce Tyapu, o trovão, a fala original,
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Ryapu ryjúi ryjúi Nasce a espuma, sinal da alegria do som primordial
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
Itymbýra Ñandua Nasce Ñandua, o enfeite de pena,
Chembojegua, chembojegua Me enfeita, me enfeita
O jerosy puku ou ñembo’e puku, “o longo canto-dança” ou “a longa
reza”, é um exemplo da forma de canto-dança. Sua estrutura interna
salmódica e litânica e a ousadia poética de suas imagens tornam essa forma
do dizer extraordinária. Ela exige do cantor memória especial. Consiste em
uma sinfonia teológica na qual são sintetizados os grandes temas da religião
dos Paĩ-Tavyterã e dos Kaiová. O canto longo transcrito por Samaniego
(1968) se desenvolve em 58 estâncias ou estrofes recitadas e dançadas numa
espécie de marcha ascendente que proporciona aos celebrantes experiências
de encontro com a palavra. De fato, é como se durante a caminhada ritual
os cantores avançassem, entrassem e tomassem lugar nas novas terras e nos
novos céus designados pelo canto, que realiza o acesso místico à realidade
signicada.
6
Cantando e dançando, os Paĩ-Tavyterã entram numa nova
realidade (Melià, 1991, p. 95). Dessa expressão musical e religiosa existem
algumas gravações e traduções. Uma delas é intitulada Takua Rendy Ju
Guasu Ñengarete Canto Ritual da Grande Mulher (Bambu) Fulgurante.
Friedl Grünberg destaca o poder feminino deste canto, que começa assim:
“A partir da espuma primordial de Jasuká descobriu-se Nosso Grande Pai
245
Último-Primeiro. Ele mamou no seio, na or, de Jasuká e cresceu”.
Além do “longo canto-dança” ainda uma outra forma de reza entre
os Kaiová. Ela consiste numa espécie de invocação de caráter individual e
está relacionada com cerimônias mais domésticas de curas e intercessões.
a reza avá-guarani (chiripá) é bem diferente da dos Kaiová. Ela
parece mais um discurso sem forma nem métrica xa, por isso a apresentarei
com mais detalhes ao tratar do ñe’ẽngarai. Como pode se ver na fala
do avá-guarani (chiripá) Tupã Ñevangávy recolhido por Perasso, nessa
forma tematiza-se insistentemente a questão da identidade, as condições
existenciais em que o grupo vive e sua preocupação cosmológica.
Nós dançamos aqui, como nos ensinou Ñande Ru (Nosso Pai). Rezamos
para nos fortalecer e para que nada de mal nos aconteça. Nós camos
preocupados porque o mundo se deteriora dia após dia. Antigamente havia
um tempo em que tudo se cumpria e hoje já não é assim. Isso nos preocupa.
O que Nosso Pai nos deixou nós não abandonamos (Perasso, 1986, p. 75).
(...) Antigamente houve um cataclismo, para que isso não se repita é que
rezamos. (...) Nós rezamos pelo bem de tantos inocentes que existem no
mundo. Nós somos pobres e por causa das nossas necessidades imploramos
a Ñande Ru (Nosso Pai). Nós somos a última geração, moramos, a bem
dizer, num chiqueiro, nossa terra é pequena e nós somos muitos, por isso
pedimos que nos aumentem um pouco a terra (Perasso, 1986, p. 78-79).
6.2.3 – Porahéi – canção
Os porahéi ou mborahéi são os cantos mais melódicos dos Kaiová.
Os cantos masculinos chamam-se avakue mborahéi, os femininos são
denominados kuñangue mborahéi, e os que podem ser cantados por homens
e mulheres recebem o nome de jopara, termo que signica “misto”. Como
expressão ritual coletiva a canção é sempre dançada. A descrição dessa
dança entre os Kaiová pode ser acompanhada nas partes subseqüentes deste
trabalho que apresentam aspectos da festa do milho, da iniciação do menino
e da imposição do nome.
Entre os Mbyá, os porahéi são uma das poucas expressões musicais
onde as mulheres não se limitam a repetir os nais das frases proferidas
pelos cantores, a murmurar a melodia com a boca fechada ou a vocalizá-la
numa sílaba.
7
As canções não são só cantadas mas também dançadas pelas
246
mulheres. Colocadas em la como os homens, de mãos dadas ou com seus
bastões de ritmo, elas dançam sem liberar o peso dos seus corpos. Avançam
para os lados e para frente e retornam ao seu lugar marcando com seus
passos todas as pulsações (Ruiz, 1984, p. 80).
O mborahéi é o gênero musical que mais se aproxima do padrão da
música ocidental, dada a repetição regular das guras rítmicas, a extensão
dos intervalos, o desenvolvimento e a resolução da melodia. As seguintes
canções foram recolhidas por mim na aldeia Kaiová de Panambizinho em
1990.
Mbaraka rupápy ore roju, Estamos chegando à casa (cama) da maraca,
Ore poty rupápy ore roju, Estamos chegando à casa de nossa or,
Oñe’ẽ rupápy roju. Chegamos ao lugar onde repousa sua palavra.
Apyka kue, joty Verdadeiramente, não é mais apyka
Mbaraka kue, joty Denitivamente, não é mais mbaraka
Kurusu kue, joty Verdadeiramente, não é mais kurusu
Apyka kue, joty Denitivamente, se desfez o apyka
Outros exemplos podem ser apreciados no CD lançado pelos grupos
kaiová do Mato Grosso do Sul na primavera de 2000, com as seguintes
canções: O yvyraija me faz dançar, Dança muito bem mesmo, Chegamos
ao lugar das crianças, As crianças chegam de novo, Vai me fazer dançar,
Chegamos ao lugar do assento ritual, Eis as crianças que contaram nossa
história, Eu também vou, Presta atenção à sua dança, Enfeitamos as crianças,
Marakanã me faz dançar.
Quanto aos Avá-Guarani (Chiripá), Perasso (1986, p. 73) classica
os cantos de acordo com seu movimento. O cultivo do milho, da batata e da
cana-de-açúcar formam parte do complexo caracterizado pela dança lenta,
jiroky mbeguengatu. O jiroky hatã (dança rápida) fortalece o modo de ser
religioso, teko marãngatu mombaretea, e constitui o meio para afugentar
os espíritos nocivos, portadores de enfermidades e das pragas dos cultivos.
Perasso apresenta em sua obra mencionada alguns exemplos dessa forma
do dizer entre os Chiripá.
Os Mbyá são sobretudo conhecidos pelas suas rezas, por seus
elaborados discursos, seus relatos míticos e ultimamente também por suas
canções. Em 1999, quatro comunidades desse grupo situados nos estados
de São Paulo e Rio de Janeiro publicaram um CD gravado com o apoio do
poder público e de pessoal técnico do setor privado. Nesse disco, Memória
247
Viva Guarani, os Mbyá apresentam canções do tipo porahéi ou mborahéi;
isto é, uma melodia instrumental e vocal. Depois de uma introdução ao
som de violinos, acompanhados por violões, maracás, bastões de ritmo e
tambores, um coral de indígenas entoa e repete várias vezes um pequeno
texto – um estribilho apenas.
Ainda que alguns líderes mais tradicionais do Rio Grande do Sul e
do Paraná, críticos a essa iniciativa, digam que esses cantos são articiais e
que foram compostos para saciar a curiosidade dos “brancos”, eles são
testemunhos da ansiedade religiosa Mbyá. Cinco dos 15 cantos desse CD
tematizam a busca da “terra sem males”, outros descrevem a terra, exaltam
e incentivam a coragem das divindades, sua sabedoria, sua luz. A seguir a
letra dos cantos seis e sete de referido disco, com algumas modicações da
tradução.
Ñamandu O sol
Ñamandu jogueru O sol traz consigo sua sabedoria e sua luz
Ñande Ru tenonde omã’ẽ Nosso Pai Primeiro olha por nós
Ñande Sy tenonde ñande re omã’ẽ Nossa Mãe Primeira olha por nós
Mamõ tetãgui reju De onde procedes?
Mamõ tetãgui reju De que lugar sagrado procedes?
Tetã ovy rajy’i Filha querida do país azul
Eike (e)re chévy Diz “entra” para mim
Eike (e)re ndévy Diz “entra” para ti
Estas canções foram apresentadas pelo coral que as gravou também
em alguns eventos públicos aparentemente numa coreograa “moderna”
ensaiada para a ocasião. Grupos da mesma etnia de outros estados brasileiros
têm se engajado desde então na aprendizagem e no desenvolvimento desse
gênero musical, com a expectativa de também gravá-lo e apresentá-lo à
sociedade envolvente. Signicativamente em 22 de abril de 2000, quando
muitos comemoravam os 500 anos da conquista européia no Brasil, o Coral
Mbyá-Guarani “Renascer do Sol”, contendo 16 canções, sob o apoio da
Unisul do Campus de Tubarão, gravou um CD intitulado “Cantos Sagrados
(sem males)”.
248
6.2.4 – Ñe’ẽngarai, ñemoñe’ẽ – relato, discurso
Essa forma da palavra não se observa nas grandes festas religiosas
dos Kaiová do Brasil. Aparece, sim, nas assembléias do grupo, ainda que
de modo mais informal. Entre os Chiripá foi referido uma espécie de
discurso declamado, que gostaria de descrever.
O discurso é iniciado pelo xamã que, com sua maraca, vai proferindo
as palavras perante uma leira de cantores e cantoras que tocam seus
instrumentos enquanto vocalizam, sobre um “e” ou um “a” aspirado, uma
melodia em intervalos descendentes: “he e e e e e he - he e e e e e e he -
he e e - he e e - he he he he”. Tal estribilho funciona como introdução ao
discurso, como interlúdio e como nalização da reza. O coral, em pé, sem
dançar, continua seu canto enquanto o líder declama. A um sinal dele, o
canto pode variar em intensidade e em textura. Durante sua reza, o xamã
dirige sua palavra a uma pessoa. Muitas vezes, ele chora enquanto declama
seu canto. É provável que em seus lamentos ele retorne à antiga saudação
lacrimosa, levando em conta que a reza muitas vezes também é chamada
de guau ou guahu (choro, lamento) entre os Guarani (Ñandeva). Cabe
lembrar que Ruiz de Montoya (1876aI, p. 234) registrou como mborahéi
poriahu uma forma de “canto triste” que relatava alguns acontecimentos.
Não sabemos se com “triste” ele se referia à forma do canto, ao relato ou às
lágrimas vertidas ritualmente enquanto o canto-relato era entoado.
Convém salientar que, hoje, os líderes que se manifestam explicitamente
sobre os problemas sociais do grupo, não são necessariamente líderes
religiosos, mas sobretudo uma “liderança civil” nova, indígenas engajados
nas assembléias
8
comunitárias, regionais e gerais. Estes são uma espécie
de relações públicas dos indígenas, que atuam como intermediários entre
a sociedade envolvente e as comunidades indígenas. A palavra profética
dos líderes religiosos via de regra não tem um engajamento explícito nas
questões temporais, melhor dito, eles não fazem política externa, apesar
de ameaçarem aqueles que, na sua opinião, são responsáveis pelo mal na
terra.
É interessante notar que os Guarani (Ñandeva ou Chiripá) são
chamados pelos Kaiová “gente do canto pequeno” (oguau’íva) referindo-se
aparentemente com isso à “ininteligibilidade” do canto entoado pelo coral
e ao caráter pouco poético do texto declamado pelo xamã.
A expressão ñemoñe’ẽtraz a partícula mo”, que um caráter
249
ativo a ñe’ẽ, “palavra”. Com o recíproco ñe” anteposto à expressão, pode-
se traduzi-la por “fazer com que se faça palavra, com que se realize”.
Entre os Mbyá e entre os Chiripá, a palavra é menos cantada e mais
declamada. Boa parte dos textos mais conhecidos, aparentemente, não tem
forma xa como a dos Kaiová e consiste em narrativas e invocações de
rara beleza poética, especialmente entre os Mbyá. Os textos clássicos da
etnograa religiosa dos grupos chamados guarani, como as registradas por
Nimuendaju e Cadogan podem ser consideradas desse gênero. Apresento
a seguir uma cerimônia que presenciei na aldeia mbyá e chiripá, em
Palmeirinha, Sudoeste do Paraná, no Brasil, na qual o ñe’ẽngarai (relato) é
a forma essencial da palavra.
No interior da casa de reza, aproximadamente 80 pessoas formavam
uma circunferência. Imóvel, a roda parecia um enorme anel. O silêncio e
a quietude imperavam no ambiente, propiciando a contemplação, até que
o cantor, abraçado a seu violão e tangendo-o com as cordas livres como se
estivesse marcando a pulsação da música com a maraca nativa, começou a
declamar os primeiros versos do ñe’ẽngarai.
Sem desfazer sua semelhança com o anel, a roda começou a mover-
se, transportando seus integrantes, lentamente e sempre em sentido contrário
ao relógio, em direção à sua origem. É caminhando que eles se aproximam,
roguatamo roñemboypy.
Após alguns minutos, os caminhantes quebraram
seu mutismo cantando com ânimo, como num grande coral, uma melodia
descendente vocalizando apenas a sílaba he.
Seguiram-se a caminhada e o canto ao redor do altar. O solo do
oporaíva era independente do refrão entoado pelo coro e era acompanhado
pelo violão de cinco cordas. Era um longo texto, que não pude gravar e
cujo signicado não me foi autorizado transmitir. Fora da roda, as pessoas
pronunciavam palavras, declamando seus desejos ou lamentando sua
situação.
Passado em torno de meia hora, os caminhantes diminuíram o ritmo
de seus passos, mas não a intensidade do seu canto. Como se quisessem
retornar ao início da cerimônia, o movimento e o canto foram cedendo à
quietude e ao silêncio até que, pouco a pouco, o anel de pessoas começou
a se desfazer.
O ñe’moñe’ẽ por sua vez é proferido pelos Mbyá, e pelos Guarani
(Chiripá e Ñandeva) individualmente diante de uma audiência que pode
estar sentada e mais reexiva como em pé e executando algum instrumento
250
ou entoando uma melodia. O orador gesticula com os braços e caminha em
direção paralela ao pequeno altar de taquara no recinto, enquanto os demais
assentem os principais momentos do discurso falando em coro uma espécie
de “amém”: aevete.
6.2.5 – Guahu – lamento
O guahu é outra forma em que a palavra-ritual aparece. Ele é solene;
em algumas ocasiões, é restrito aos homens, em outras, às mulheres e, às
vezes, pode ser entoado indistintamente por ambos os sexos. Entre os Kaio
dois tipos de guahu. Os guahu ai correspondem a ritos mais familiares,
realizados por ocasião de saídas para caça ou pesca. Os cantos são curtos e
têm por protagonista um animal. Os indígenas interpretam este gênero de
lamento ora como conversa (ñemongeta) ou “namoro” (mymba mongeta) com
a presa, ora como formas de envergonhar as feras do caminho. Outras vezes,
transparece no canto a intenção explícita de livrar o animal das armadilhas
de um caçador indesejado, conforme se pode ver nos exemplos de guahu ai
que foram apresentados no capítulo sobre cosmoteologia. Muitas invocações
dos Paĩ-Tavyterã pertencem ao guahu ai. Como vimos, essas palavras
acompanham de perto a ecologia e a economia indígena. Há invocações para
quando se ateia fogo à roça, se acha rastos de tamanduá, se bendizem os
frutos e o mel, etc. (Cadogan, 1962, p. 57-62).
Os guahu ete fazem parte das cerimônias mais coletivas. nos
registros de Ruiz de Montoya (1876aI, p. 234) gura esta forma musical
como “cantar en las bebidas” (aguahu), que era como os conquistadores
chamavam as grandes festas dos indígenas, por considerá-las meros ritos
de beberagem (borracheras). Hoje, os guahu ete estão construídos numa
espécie de Guarani arcaico e são aparentemente indecifráveis para os
próprios cantores. Seguem alguns exemplos de guahu ete, entoados por
Nailton Aquino, da aldeia de Panambizinho, Mato Grosso do Sul.
Gueiju gueiju rereja igueguehe rereja
gueiju gueiju rereja igueguehe riro
gueiju gueiju igueguehe rereja rupa
rugua rugua guararirõ
Guariri gauri eojesóne guariri
he oresóne guariri guariri
251
Sanjaguajasanka guendu ja’ehehéere
rejaguajasanka guendu pa’ire
guendujagua guaireni hi
Tangarã jo’avei jova jovavéi
jovavéi jovavéi ijeguaka jovavéi
jojavéi jovavéi joapyraka
Exemplos semelhantes podem ser encontrados no livro Ava Guyra
kambĩ”, de José A. Perasso. A linguagem arcaica dos guahu ete, aliada à
importância que esses cantos têm nas festas principais da comunidade,
pode ser indicadora da existência de fórmulas secretas, cujas chaves, hoje,
são silenciadas por quem as conhece ou, com o tempo, foram esquecidas
pelo grupo.
6.2.6 – Xondáro – defesa
O termo xondáro é provavelmente uma variação guaranizada do
termo português e espanhol “soldado”. Ele é o nome de um gênero musical
dançado e o termo pelo qual são designados alguns meninos, adolescentes
e adultos do sexo masculino
9
. Treinados sicamente, os xondáro são
incumbidos de zelar pela segurança da comunidade, especialmente durante
as celebrações religiosas. A música denominada xondáro é sem texto e sus
objetivos principais são tornar ágil sicamente, despertar a atenção dos
dançarinos e alegrar a comunidade.
Como os kotyhu dos Kaiová e dos Guarani (Ñandeva), a dança do
xondáro marca o límite entre o profano e o sagrado. Irma Ruiz registrou
esta forma musical entre os Mbyá de Missiones com o nome de ñemboarái,
jogo, divertimento. Baseada em seus informantes, a autora mencionada
escreve: “existe uma clara separação entre o que existe ou se faz dentro do
recinto cúltico e o que acontece fora dele” (Ruiz, 1984, p. 79). A dança do
xondáro se realiza, via de regra, no pátio e excepcionalmente dentro da
casa de reza.
Inicia-se ao som do violino de três cordas, instrumento que entre
os Mbyá invariavelmente a línea melódica de todas as danças, e do
violão de cinco cordas, que marca o movimento da peça. Os integrantes se
posicionam em círculo. Embora mais suaves, seus movimentos lembram
252
a capoeira afro-brasileira. Os dançarinos alternam o apoio de seus corpos
sobre cada uma das pernas. O tronco é levemente inclinado ora para frente,
ora para os lados, ora para trás. O corpo revela suas habilidades. Os braços,
as pernas, o tronco, a cabeça, os ombros, com muita leveza, são dirigidos
em direção ao alvo: o corpo do outro. Semelhantemente, com a mesma
destreza, cada xondáro tenta evitar que seu corpo seja alcançado pelo ataque
daquele que é seu “inimigo”.
Durante a dança, o líder do grupo enfrenta várias vezes o desao dos
dançarinos que, um a um, sem sair do círculo, se aproximam dele e iniciam
uma luta corporal nos passos da dança. A dança ca mais interessante, como
se em cada gesto progredisse uma hisria. O líder esquiva-se com facilidade
dos movimentos que procuram alcançá-lo. Nesse sentido, a dança dos xondáro
se assemelha a um folguedo, cuja trama consiste em o líder não ser “ferido” e
manter-se, assim, invencível (Chamorro, 1998, p. 202-204).
6.2.7 – Kotyhu – divertimento
Os kotyhu são cantos de caráter mais lúdico. Por não estarem
diretamente vinculados com os discursos religiosos, seu lugar na comunidade
é semelhante ao do xondáro
10
, no entanto, são bem diferentes quanto à forma.
Podem ser cantados em qualquer ocasião, inclusive nas grandes festas. São
uma espécie de brincadeira de roda. Em círculo, homens, mulheres e crianças
tomam conta do espaço cerimonial, com seus estribilhos e sua alegria. Os
textos, muitas vezes improvisados, são frases curtas, que não formam uma
narrativa. Neles, porém, percebe-se a freqüência de ações como “chegar”,
“ir embora”, “chorar”, “alegrar-se”, “levar”
11
e diversos verbos indicativos
de estado de ânimo, como se pode ver nestes kotyhu chiripá: “Venho de
longe, para escutar tuas palavras”, “Eu venho [para onde] onde há alegria”,
“Já acabou nossa chicha?”
12
Os kotyhu marcam a liminariedade no contexto da palavra ritualizada
das festas guarani. Cantados quando as celebrações religiosas chegam ao
m, eles parecem marcar o caminho de regresso para o cotidiano. Entoados
e dançados durante essas celebrações, eles primeiramente delimitam os
espaços e integram as pessoas de modo diferenciado no acontecimento.
Assim, enquanto os kotyhu são entoados e dançados num ambiente, as
formas de canto-dança de caráter religioso são cantadas em outro; enquanto
253
as crianças e alguns adultos se divertem ao som e no gingado do kotyhu,
os adultos compenetrados acompanham os relatos míticos e a história do
grupo. Mas chega o momento em que a gravidade das celebrações religiosas
e o silêncio da contemplação é quebrada pela alegria do kotyhu.
Como se pode ver, a palavra é uma arte de muitos rostos entre os
indígenas. Melià os resume assim: “Os textos de origem mbyá brilham
com um raro fulgor profético, os dos Chiripá reetem a alegria moderada
e tranqüila de uma festa ritual ao redor de uma ‘canoa’ cheia de chicha,
enquanto que os procedentes dos Paĩ-Tavyterã se destacam pela sua
roupagem cerimonial” (Melià, 1991, p. 85). As rezas, os cantos, e os relatos
são as “formas de dizer” que freqüentemente aparecem, através de diversos
recursos citacionais, no discurso religioso guarani. É como citar a Bíblia e
outros documentos da tradição, para os cristãos.
Mas uma certa teoria da palavra guarani delineia-se no trabalho de
alguns autores e autoras. Friedl Grünberg a propõe como “substância de
uma energia que é a mesma essência da pessoa humana” (Melià 1991,
p. 104). Eduardo Viveiros de Castro, a partir dos Araweté, e Dominique
Gallois, a partir dos Waiãpi, denem a palavra como “princípio psicológico
e mental” ou “princípio vital” que dado seu caráter “móbil” corresponde
mais ao “estado” de ser do que a um conceito de identidade (de ser) da
pessoa (Ap. Schuler, 2000, p. 102, 108).
Neste trabalho, como pôde ser visto nos capítulos anteriores,
tento apresentar a palavra não como o princípio vital que congura
os humanos, mas também como a fonte e o sustentáculo do próprio ser
das coisas, podendo ser igualada ao termo “Deus” na teologia. Este é a
palavra original. Desta palavra procedem as diversas formas de dança, os
diversos gêneros de cantos e instrumentos musicais. A essa palavra conduz
a prática musical. Ela é o Verbo Universal e este, como o disse certa vez
Pedro Casaldáliga, fala dialetos. Ao não podermos denir essa palavra,
fazemos teologia descrevendo suas manifestações.
6.3 – Ritualizar a palavra como imitação de um ato primordial
Duas expressões se destacam entre aquelas que os indígenas usam
para interpretar os rituais, ñea’ã, “imitar” e papa, “contar”.
13
Papa signica
contar números e relatos históricos. Assim o registrou Ruiz de Montoya
254
em seus léxicos e com esse signicado é usado hoje pelos indígenas.
Paulito Aquino aplica para si esse termo quando se refere ao ato de contar-
me suas histórias, aipapa ndéve che ñe’engára. Quando algumas rezas e
alguns cantos – formas do dizer com narrativa – vão chegando ao m, diz-
se (o)jeropapa, (o)jereropapa, ambopapa. Essas expressões se traduzem
por “contar uma mútua história”, “dizer-se” ou simplesmente “relatar”,
“história”.
A expressão papa é, assim, usada pelas comunidades indígenas para
explicar “por que” e “para que” se canta. Canta-se “para contar-lhes” – ao
milho, ao menino, aos bebês – sua história. Maria, a sábia lha de Paulito e
Mariana, explica que a história é o enfeite da pessoa. O milho também tem
sua história. O milho, as pessoas e as coisas precisam escutar sua história,
seu princípio e m. Por isso, na festa, o rezador conta para o milho sua
história, oipapa itymbýpe. Conta ao milho a história que é a própria palavra
do milho, itymbýra ryapu: palavra que está brotando. Paulito insiste em
armar que a “longa reza” é o começo, moembypy upéa, e que o rito é o
ponto de ligação, joapyre’i, de uma geração com o seu passado e com o
seu porvir: “Para que até hoje, se nós morrermos, que um começo, uma
maneira de juntar essa história nossa com a dos outros”, ñamanõramo
ñande joapyre’i opyta haguãicha”.
A análise da estrutura dos cantos e das rezas indígenas também leva
a crer que a palavra ritualizada conduz a um ato religioso primordial. As
repetições de frases, palavras e sílabas que caracterizam os cantos geram
um intermitente jogo de paralelismos, metáforas e sinédoques. Esses
recursos lingüísticos, somados com as aposições, com o estilo salmódico,
com o ritmo litânico das melodias e a emoção da celebração em si evocam
nas pessoas o sentido original da existência, propiciam a contemplação e o
encontro com os Donos do Ser. Depois de horas de canto e caminhada, o
movimento é perfeito porque parece imóvel. A palavra não é ouvida,
mas também vista. Podemos dizer, parafraseando Schökel ao falar da poesia
hebraica, que na repetição se encontra a tendência a perseverar, a prolongar-
se a raiz da temporalidade humana expressa na linguagem. Assim, enquanto
o conhecimento racional discursivo procede no tempo avançando por
silogismos, deduções ou induções, a emoção tende a permanecer, a deter-se
diante de seu objeto (Schökel, 1988, p. 88-89).
Valorizando as aposições como guras que ordenam a seqüência
de idéias que aparecem nos cantos, podemos dizer que elas estabelecem
255
conexões entre episódios (diversas festas), tempos (passado e presente) e
personagens (rezadores atuais do plano histórico e seres sobrenaturais ou
“sobrenaturalizados”) confundindo os tempos, os planos de realidade e a
identidade das personagens. Expressões como vaekue, “passado remoto”,
che ramõi, “meu avô ou antepassado”, araka’e, “antigamente”, gypy, ypyrũ,
“antiguidade, princípio”, conectam o presente com as origens através das
aposições traduzidas por “assim é dito”, kóva aipo he’i; “diz meu nome”,
he’i che réra; “diz Verandyju”, he’i Verandyju; “diz meu Irmão Maior
Ñengajuti”, he’i che ryke’y Ñengajuti. Aqui a celebração, que é histórica,
é reassumida como verdade e fundamento da identidade do grupo. Nas
palavras de Lyotard,
Ser nomeado é ser recontado (...). Cada repetição (...) reatualiza os nomes e
as relações nominais. No repetir, a comunidade se assegura da permanência
e da legitimidade de seu mundo de nomes através da ocorrência deste mundo
dentro de suas histórias (Lyotard, 1985, p. 565).
As aposições, em particular, são bastante conhecidas na tradição
profética bíblica e extrabíblica. A conhecida fórmula “Assim fala o Senhor”
não deixa de ser um recurso lingüístico através do qual o profeta busca
credibilidade para sua mensagem. Outras pesquisas ampliam o signicado
da nossa constatação entre os Kaiová. Viveiros de Castro observou entre
os Araweté uma considerável incidência de citações dentro de citações
(Viveiros de Castro, 1986, p. 63). Analisando o encadeamento citacional,
podemos dizer que o uso desse recurso corresponde à necessidade de
relacionar o falar com o ver. O dizer remete ao ver. É como se o testemunho
oral remetesse à Palavra Primordial, cuja contemplação se quer alcançar.
A fala dos que hoje não vêem, mas apenas escutam, Ohendúvante, ganha
força à medida que estabelece seu vínculo com as testemunhas oculares do
passado, hechakára.
Esse procedimento citacional, segundo vários autores, dá-se
comumente pelo discurso direto que, por sinal, é característico de toda língua
tupi-guarani. O verbo “dizer” é o marcador mais usado para isso (Grenand,
1982, p. 95). É notável que depois de desterros, de escravaturas, de mais de
150 anos de reduções jesuíticas e depois de tantas formas de contato que
os grupos indígenas falantes de línguas guarani conheceram nos últimos
200 anos, os povos chamados guarani contemporâneos permaneçam tão
arraigados à sua palavra tradicional. A ritualização dessa palavra é seu
256
sacramento por excelência. Nela convivem elementos herdados das várias
experiências históricas do grupo. No repertório “tradicional” dos Guarani,
no âmbito das grandes festas, constam o rito da nominação de crianças, o
do milho novo, o da iniciação de meninos e o dos frutos maduros (Melià &
Grünberg, 1976; Schaden, 1974; Perasso, 1986; Cadogan, 1959; Chamorro,
1995, capítulos III e IV). Seguem alguns comentários, a meu ver, pertinentes
para a teologia e um relato sobre a festa de nominação de crianças, mitã
karai, mitã mbo’éry.
6.4 – A palavra-sacramento como caminhada
A sacramentabilidade da palavra guarani se manifesta, entre outros,
na caminhada. Caminhar é o movimento básico da dança do grupo. Podemos
dizer que a metáfora fundante da coreograa dos cantos e das rezas dos
indígenas são as peregrinações que os grupos tupi-guarani protagonizaram,
seja por motivos sociais, econômico-ecológicos ou religiosos. No plano
simbólico-ritual, hoje, todos os povos guarani se entendem como grupos
que têm um profundo vínculo com o caminho. Na reexão dos Kaiová, por
exemplo, a palavra cantada e dançada é considerada um ser peregrino. Ao
ser proferida ela percorre a superfície do corpo (a carne) do Dono do Ser,
Tekojára ro’o pe jerosy, que no fundo é a totalidade do cosmo.
A “longa reza” caminhada costuma ser dividida em vários Jasuka. O
primeiro Jasuka narra o surgimento do céu e da terra. Na versão recolhida
pelo General Samaniego o canto começa assim: “No princípio, era meu
Último-Primeiro Pai Eterno, quando ainda não existia nada”. Na segunda
estrofe evoca-se: “Meu Grande Pai Eterno” e se prossegue mencionando
diretamente seu agir: “Eu levantei esta terra, (...) no passado remoto; com
a espuma primordial de Jasuká eu levantei esta terra (...) com Jasuká,
fulgurando a luz dos relâmpagos”. Este “lugar” (Jasuká) é alcançado logo
nas primeiras horas da noite, quando recém inicia a procissão. A terra é
contemplada como nos primórdios, uma tênue neblina forma um anel ao
seu redor.
As próximas estrofes cantam o nascimento e a cerimônia de nomeação
dos Seres Divinos e de elementos da natureza; a assunção dos Pais e das
Mães das Palavras-almas às esferas celestes; o nascimento do primeiro
instrumento ritual: o bastão de bambu usado pelas mulheres; a escolha do
257
papagaio fulgurante: guardião do saber sobre o caminho que comunica a
terra com o céu; o estado de prontidão dos Seres Divinos para andar por
esse caminho; a abertura do céu e a celebração de um “rito de passagem”
espiritual (Grünberg, 1995, p. 90-92).
À medida que a reza avança, vão-se rememorando diversos episódios
das origens. É como se a reza fosse desenhando cada personagem. Assim,
comenta-se que se está chegando ao corpo de Tani
14
, ao corpo do milho,
ao corpo do índio, ao corpo de “Nosso Pai”,
15
etc. Caminhando sua longa
reza, os Kaiová rememoram ritualmente as diculdades enfrentadas pelos
seus antepassados, simbolizados na gura do “Nosso Irmão”. O caminhar
repete, então, a peregrinação do herói cultural que, enquanto andava, foi
aperfeiçoando o mundo, tornando-o humano. Nas palavras do índio kaiová
Mário Toriba, à medida que os indígenas vão estabelecendo vínculo com a
origem, omboapýmaramo, “esse que nos ilumina”, o sol, começa a contar
sua tristeza, oipapa iporiahu, começa a se lembrar que chorou no passado.
É por isso que, pela madrugada, enfrentamos diculdades para rezar! A
tristeza do “Nosso Irmão” se reete em nós e não agüentamos.
Aqui aparece o profundo sentido comunitário da palavra. O rezador,
no meio da tristeza que vem das histórias do “Nosso Irmão”, das gerações
passadas e da sua própria, precisa abrir caminho com sua reza. Abrir e
percorrer caminhos são tarefas que não se realizam na solidão. O líder
espiritual precisa do apoio da comunidade que o acompanha simbolicamente
na gura dos “ajudantes”, yvyra’ija. A relação com esse passado, a julgar
pela emoção de que vem acompanhada, está carregada de uma energia
psíquica singular, como pode conferir-se na explicação de Mário Toriba:
Quando a reza chega neste lugar e coma a mencionar a tristeza daqueles que
nos ensinaram o nosso modo de ser, começamos a chorar. Então o rezador,
enquanto caminha com sua reza, pensa nos seus lhos, pensa no destino da sua
palavra, no destino da história que ele conta. Quem vai continuar a reza? Quem
vai encher de bem as crianças? Estas perguntas entristecem sua palavra. Sua
voz se tranca, porque à tristeza da reza ninguém consegue resistir. Nós também
pensamos: e quando Paulito (um dos líderes espirituais da comunidade) parar,
quem vai contar ao milho sua história? Quem vai sarar as crianças que nascerem
com alegria imperfeita? Todos nossos quebrantos são relatados na reza. Ela nos
lembra de nossos antepassados, do sofrimento de Nossa Mãe grávida e sem
marido, andando à deriva. Essa lembrança nos faz chorar. Nós sabemos pela
reza o que aconteceu conosco e o que pode acontecer.
258
Na tentativa de tornar mais plástica a caminhada como metáfora
que propicia um evento revelatório, gostaria de narrar alguns momentos da
longa reza presenciada entre os Kaiová do Mato Grosso do Sul, em 1990 e
1991.
A reza é, do ponto de vista de seu movimento, uma caminhada que
dura em torno de dez a doze horas, conforme a estação do ano e o lugar onde
acontece. Realiza-se ao redor de um dos pilares centrais da casa de reza,
onde repousa uma bacia de bebida de milho. A marcha inicia ao anoitecer,
com os homens em formação circular, liderados por um rezador e por seus
ajudantes. Durante a reza, ninguém se detém. A caminhada é lenta como
a reza e longa como a tradição que nela se evoca. A caminhada não leva a
nenhum outro lugar; ela se faz no tempo. Pela magia dos pés e dos corpos
dançantes, porém, ao amanhecer, o mesmo lugar terá se transformado. O
canto e a caminhada se iniciam. Na voz cadenciada e grave do rezador,
tremem os primeiros versos da longa reza:
Chembojegua che ru Me enfeita meu pai
Chembojegua itymbýra ruguasu O grande pai do milho me enfeita
Chembojegua che ru Me enfeita meu pai
Os homens que o acompanham na marcha iniciam também seu
canto, vocalizando algumas sílabas e palavras da reza numa melodia que
funciona como uma espécie de véu sobre a história narrada pelo líder
da comunidade. Em torno da meia-noite, a reza incorpora uma variação
que, para a comunidade, é uma espécie de “viva ao milho”, ñembohehe
avatípe. A participação do coro se torna mais intensa. Em pulsação mais
acelerada e em movimento ternário, a caminhada parece mais festiva. Em
duas notas, o heeee he he; hee he, hee he, hee heconverte o momento em
eternidade. A unidade sobressai. O grupo está possuído pela caminhada. O
pelotão de 50 homens treme e utua como um imenso corpo. A solenidade
é interrompida por gritos e exclamações de animação, enquanto o líder
espiritual prossegue, absorto e solitário, sua caminhada. Gritos de alegria se
juntam ao refrão. Solenidade e festa se encontram.
A reza não pára. O canto adquire características polifônicas quando
os meninos que foram iniciados no ano anterior desaam, com suas vozes
agudas, a textura gutural e grave da voz dos adultos. Por volta das cinco
horas da manhã, a dança adquire nova dinâmica. As mulheres se integram ao
grupo. Forma-se um círculo maior e, em seguida, outro círculo concêntrico
259
ao primeiro. Todos querem dançar. Algumas crianças acordam e se dispõem
a integrar a procissão circular. Os círculos tomam direções opostas. Os
corpos não parecem mais do que dezenas de sombras que deslizam, umas
sobre as outras. À medida em que o dia se avizinha, a solenidade vai cando
denitivamente marginal.
Ao amanhecer, o rezador é festejado por seus parentes. Seu rosto
está alterado, depois de dez horas e meia de canto e caminhada. Sentado no
banco ritual, ele se prepara para a cerimônia da benção. Alguns indígenas
traduzem a palavra jehovasa por “abençoar” ou “batizar”. Na festa, é como
descobrir o rosto da bebida do milho novo, é encontrar-se cara a cara com
o dono do milho. O olhar desempenha o papel principal nessa cerimônia. O
celebrante é chamado de hechakára, porque ele é aquele que irá ver o rosto
da bebida feita do milho. Ele aguarda com paciência o momento oportuno.
Uma reza introspectiva e secreta o acompanha. Somente quando a luz
avermelhada do sol ilumina-lhe o rosto, ele se encontra com o Dono do Ser
do milho, abençoa a bebida e permanece com o olhar to no oriente.
A Palavra-Sacramento não tem a ver apenas com os grandes
momentos da vida do indivíduo, ela rememora, liturgicamente, também
os fatos fundantes da cultura coletiva. O exemplo mais notável disso no
caso guarani é, indubitavelmente, a domesticação do milho. Assim como
as pessoas são levadas pela palavra a participar da Presença Espiritual,
também o milho necessita ouvir a palavra que lhe deu seu começo e lhe
garante continuidade.
6.5 – Palavra que conta a história do corpo do milho
Todos os grupos guarani são profundamente marcados pela cultura do
milho e todos têm seu modo de ritualizar sua dependência desse vegetal.
16
Os Kaiová têm a festa do avatikyry, “bebida do milho novo”, celebrada
anualmente no verão. Os Chiripá têm o ñembo’e ka’aguy, “reza da mata”,
também realizado uma vez por ano para celebrar a colheita do milho. Os
Mbyá têm a festa dos “frutos maduros”, tembi’u aguyje, e do “abençoar-
se”, nimongarai (Cf. A respeito Melià & Grünberg, 1976; Ruiz, 1984;
Bartolomé, 1991; Cadogan, 1992, 1971). A exuberância do simbolismo
desse cereal aparece na bebida de milho, servida nas festas kaiová e chiripá,
e no bolo de milho,
17
oferecido aos participantes nas celebrações mbyá. Seu
260
valor simbólico é tão grande a ponto de muitos migrantes mbyá carregarem
sempre consigo a semente do seu milho tradicional. Eles costumam chamar
de “tempo de trocar o milho” à temporada durante a qual acampam no
espaço situado entre a estrada e a cerca das fazendas. Para evitar que o
milho se perca, eles se instalam num lugar e plantam a semente do milho
nativo. Quando chega a época da colheita, realizam os rituais, colocam o
milho novo no alforje e empreendem uma nova caminhada. Em todos esses
ritos, observa-se como operam os elementos simbólicos que pertencem
ao horizonte mítico do grupo. Tais ritos são, por isso, uma forma de
autoconsciência coletiva, capaz de conseguir a presença da comunidade
tribal em sua totalidade, inclusive daqueles que se distanciaram do grupo.
Cabe lembrar que, para George Gusdorf, o sentido positivo do mito é que
a manutenção da existência exige a busca de um equilíbrio frágil e ameaçado,
do qual a menor das rupturas impõe penalidades severas. Insegurança
ontológica, geradora de angústias, como se a vida mesma do homem (ser
humano) correspondesse a uma transgressão da ordem natural. No seio
desta primeira existência ameaçada pelo mundo, o mito se arma como uma
conduta de retorno à ordem. Ele intervém como um protótipo de equilibração
do universo, como um formulário de reintegração (Gusdorf, 1979, p. 24).
Mário Toriba e Maria Aquino parecem concordar com o mitólogo e,
a meu ver, seu testemunho ilustra e amplia a insegurança ontológica de que
fala Gusdorf para toda a natureza:
Falando a verdade, nós não temos hora; não sabemos se vai nos sobrevir
vida nada (...). O mesmo é com o milho. Ele não sabe se amanhã vai haver
chuva de pedra ou vento forte, que o derrube e quebre completamente
(...). Isso pode acontecer, mas o milho não sabe. Ele nem sabe se vai haver
colheita. A nossa vida e o nosso corpo são como o corpo do milho, não
conhece o amanhã. Por isso devem ser ritualizados determinados momentos
da vida. Para nós indígenas, a reza narra a história do corpo do milho,
desde o começo até o m. A reza conta o começo das coisas, por exemplo,
como o milho começou. A comunidade deve celebrar, deve fazer cantar e
dançar todas as coisas para garantir sua duração, para que elas saibam como
“manter” seu começo.
Como disse Mircea Eliade, “recitando o mito de origem, se obriga
o arroz a crescer tão belo, vigoroso e abundante como era quanto apareceu
pela primeira vez” (Mircea Eliade, 1972, p. 19).
261
No milho, os Kaiová encontram a metáfora de si mesmos e das
divindades. Itymby, como substantivo, é “semente”, é “broto do milho”;
como verbo, é “brotar”, “nascer”. O broto do milho é como uma criança, e
seu crescimento simboliza o processo de maturação das próprias pessoas.
O milho pode mesmo ser tomado como padrão de maturidade masculina. O
de milho é comparado a um menino prestes a ser iniciado. Sua copa é um
kunumi ru’ã, a cabeça do menino; suas folhas, os cabelos e as mãos. Assim
como o milho, os meninos precisam ser enfeitados para crescerem e se
tornarem maduros. Na comunidade kaiová, os rituais do milho e do menino
formam o elo que liga a história do grupo ao tempo, ara, verdadeiro, ete.
Um instante eterno, cheio de um sentimento supremo.
A linguagem dos cantos e dos relatos mostra que uma relação
interpessoal entre as divindades, o vegetal e os próprios indígenas. A
forma como a comunidade indígena se relaciona com o milho traz à tona o
testemunho bíblico sobre Deus como alguém que se relaciona diretamente
com a natureza, sem que essa relação redunde, necessariamente, em benefício
pessoal para os seres humanos (Ruether, 1993a, p. 216). Rosemary Ruether
entende que a relação entre Deus e a natureza é, muitas vezes, interpessoal e
animista, o que signica basicamente que a natureza não é morta, mas viva
(Ruether, 1993a, p. 306, nota n° 5).
Assim, no Salmo 65.9-10, a terra é visitada por Deus na chuva: “Tu
visitas a terra e a regas; tu a enriqueces copiosamente; os ribeiros de Deus são
abundantes de água; preparas o cereal, porque para isso a dispões, regando-
lhe os sulcos, aplanando-lhe as leivas. Tu a amoleces com chuviscos e
lhe abençoas a produção”. A terra responde destilando farturas sobre as
pastagens do deserto; se os outeiros revestem-se de júbilo, os campos
cobrem-se de rebanhos e os vales vestem-se de espigas. Como consta no
versículo primeiro: “Todas as coisas exultam de alegria e cantam”. Embora
muitos estudiosos considerem textos desse gênero (Sl 29, Sl 107, Jó 38-39,
Ec 17.1-2, 12.7-10) como “poesia sem signicado” ou como “relíquias
do baalismo”, Ruether (1993a, p. 216, 306, nota 5) as valoriza como
passagens que revelam a imagem de um Deus mais inclusivo que se relaciona
diretamente com a natureza. Aplicada aos cantos e relatos indígenas que
personicam o milho e o colocam em relação direta com as divindades, esta
forma de interpretar os textos sagrados pode reanimar em nós a imagem de
Deus como alguém que não está interessado exclusivamente nos humanos.
Isso, certamente, não de signicar pouco diante da visão secularizada
262
de mundo que prevalece no cristianismo e na ciência ocidental, que por
sua vez causam uma progressiva secularização das cosmologias indígenas,
através de diversas formas de contato e interferência.
6.6 - A palavra que provê um lugar para si
Kunumi pepy é o ritual de iniciação de meninos na idade de 10 a
13 anos. O acontecimento central da cerimônia é a perfuração do lábio
inferior do iniciante e a colocação do enfeite labial ou tembeta. Sendo um
dos ritos mais importantes e complexos da tradição guarani, nele aparecem
o zelo que o grupo tem pela sua autopreservação. É provável que nunca um
estranho tenha conseguido observar integralmente esse ritual, possibilidade
ainda menor tratando-se de mulheres.
O kunumi pepy é um ritual mencionado nas primeiras décadas de
contato. Numa das cartas ânuas publicadas por Maeder consta que todos os
homens da região próxima à redução de Santa Tereza eram criados a partir de
terna idade com um bárbaro costume: “perfuram o bio inferior e penduram
nele, como enfeite, um osso grande e redondo que chamam em sua língua de
tembetá [...] os padres lhes repreenderam por essa barbárie, e todos jogaram
essas insígnias no fogo” (Carta Anua 1632-34, 1984, p. 236).
Tudo indica que hoje a cerimônia de iniciação dos meninos seja
a única ocasião em que é dispensada uma educação do tipo formal à
comunidade. Podemos dizer que isso consiste em ir passando de geração
a geração o modo de ser das coisas e das pessoas. A responsabilidade de
conduzir esse período de “educação formal” recai sobre um instrutor e
sobre membros bem afamados da comunidade que sejam conhecedores das
tradições do grupo. Durante o período de reclusão que antecede a cerimônia
de perfuração do lábio, os meninos escutam de modo sistemático os relatos
míticos e são instruídos sobre os diversos rituais do grupo. Eles precisam
aprender os cantos, as rezas, as danças, a técnica de fazer o enfeite labial
e o banquinho ritual, e de fazer e executar os diversos tipos de autas e
maracas, etc.
Tudo indica que a iniciação dos meninos é, atualmente, uma prática
exclusiva aos Kaiová do Brasil e aos Paĩ-Tavyterã do Paraguai. Nos outros
grupos, esse ritual foi caindo em desuso. A experiência religiosa, propiciada
na iniciação dos meninos, é buscada pelos Mbyá e pelos Chiripá, hoje,
263
incutindo nos meninos a necessidade de receberem uma inspiração, na
forma de uma reza e de um canto próprios. Com esse objetivo, eles são
incluídos desde cedo nas celebrações.
Um rito que, na prática cristã, pode ser considerado análogo à
iniciação dos meninos é o batismo nos primeiros séculos. Esse era um rito
de passagem, que habilitava as pessoas a usufruir e a assumir os privilégios
e deveres da fé. Signicava fazer parte de um grupo. O batismo era
somente realizado depois de se ter participado de um período de instrução
na classe de catecúmenos, tempo durante o qual se recebiam informações
detalhadas sobre a vida e as crenças da comunidade (Salvador 1980, p.
60). O catecumenato, nesse caso, correspondia ao período de reclusão dos
meninos, durante o qual se conduz a pessoa para um tempo liminar, marcado
pela crise. O objetivo dessa reclusão é tornar a pessoa sensível e despertar
suas capacidades de fazer experiências totalizadoras.
Interpretando ambos os ritos pelo crivo da psicologia do profundo,
podemos dizer que eles são um momento que marca um encontro decisivo
com o Sagrado. O catecúmeno se encontra com o seu Criador e a ele se entrega
denitivamente. O menino indígena retorna às camadas mais profundas da
identidade original, existente entre a mãe e a criança, ou entre o ego e o
self, o que o força a conhecer a experiência de uma morte simbólica, uma
dissolução temporária da identidade no inconsciente coletivo, do qual ele
é salvo pelo rito de um novo nascimento (Jung, O homem e seus símbolos,
p. 130). Como o batismo praticado na igreja cristã dos primeiros séculos
era realizado depois de um período de reclusão e jejum, a cerimônia de
perfuração do lábio é precedida de várias semanas de dieta e de um dia de
dança e de bebedeira ritual.
A intenção, no caso do ritual indígena, é anestesiar os meninos para
que sejam destemidos no momento mais crítico da cerimônia. A julgar pelo
tema das canções entoadas pelo instrutor e seus ajudantes, a reclusão visa
preparar os meninos para se separarem de suas mães e enfrentarem com
coragem tanto o encontro com os Donos do seu Ser, “Tekojára”, quanto a
perfuração dos lábios. Enquanto enumeram os paramentos que adornam os
meninos, os adultos repetem em seus cantos: “eu enfeito o menino, enfeito
a or, o cinto, a palavra, a história do menino”.
Durante todo o tempo de reclusão, quando termina a última reza do
dia, os meninos gritam: “Oh, mãe! Cadê a mãe?”. Recluídas em outro lugar,
as mães, acompanhadas de suas lhas, respondem ao som dos seus bastões
264
de ritmo e dos seus cantos. Elas também descrevem o menino e seus enfeites
resguardados para o grande dia da iniciação. Elas cantam: “desla a or,
Ñengajy;
18
desla a or do cinto dos meninos; desla a or da diadema dos
meninos; desla a or da fala dos meninos; conta-se a história da mansa
palavra dos meninos”.
Faltando uma semana para a perfuração do lábio, os paramentos de
todas as crianças são levadas com cantos pelas mães dos primogênitos para
dentro da casa de reza. Na ocasião elas cantam: “As ores dos meninos
estão enleiradas, diante do rosto de Ñengaju, os cintos dos meninos estão
enleirados, os diademas dos meninos estão enleirados, as ores do
diadema dos meninos são abençoadas”.
No dia da perfuração do lábio, os meninos vestem os paramentos
resguardados para a ocasião. Apreensivos, eles aguardam no pátio o
momento em que sua palavra será “provida de assento”. Na antropologia
do grupo, a pessoa adulta é descrita como uma palavra-alma que tem um
lugar, um assento. O ato litúrgico de “prover os meninos, ou sua palavra,
de assento” alude, portanto, à condição de “adultos” que eles estão prestes
a alcançar.
Chega a hora de apresentar-lhes os banquinhos, que também
passaram por uma temporada de resguardo, em um lugar secreto. Os pais
dos meninos, com passos de dança, entram na casa de reza carregando os
assentos. Eles cantam: “Assim diz Verandyju, Aquele de áureo fulgor, aqui
está o assento, eu o estou levando, aqui está o assento principal, para mostrar
o bem, eu estou levando este assento, assim diz Verandyju”. Os assentos são
colocados em la dentro da casa. Fora, os meninos aguardam, com medo,
o momento mais difícil. Seus guardiões tomam-nos pelos ombros e pelas
mãos e procuram infundir-lhes coragem.
As mães saem de onde estavam reclusas e se dirigem ao lugar
reservado para o choro ritual. Elas se comovem muito com o que está para
ocorrer. Os ajudantes gritam procurando impedir que o medo dos meninos se
transforme em pânico. No silêncio, os meninos podem entrar em desespero
e querer fugir para perto de suas mães.
O celebrante chamado de “Aquele que vê”, hechahára, abençoa
a bebida. Os meninos são servidos e começam a dançar até carem
completamente bêbados. Chegam os Donos do Ser, os que velam pela
palavra dos meninos, e presidem a cerimônia. Começa-se a cantar: “Já se
sente aquele que vai fazer chover sobre a or do menino, pode senti-lo, pode
265
senti-lo, já se sente aquele que vai fazer chover sobre o cinto do menino,
se sente aquele que vai fazer chover sobre o diadema do menino”.
À tarde, em frente ao marãngatu, no espaço ritual externo, os meninos
são exaltados como meninos sem males. Momentos antes da perfuração
do lábio, ipepýta jave, “Aquele-que-vê” entoa: “Dança daquele cuja mão
oresce, exclama meu Irmão Maior, pai de Ñengaju, dança daquele cuja
mão é broto tenro revestido de luz, exclama meu Irmão Maior, pai de
Ñengaju, dança daquele cuja mão oresce”. A mão ca fria. É o sinal de
que tudo está pronto.
Agora o primogênito principal está no centro. Um dos celebrantes
segura o lábio dos meninos, hembepyhyha, um outro marca com jenipapo
verde o lugar da perfuração, omongýha, o terceiro toma uma agulha e
perfura o lábio, ombokuaha, e o quarto coloca o pequeno enfeite labial,
tembeta mirĩ moingeha. Os guardiões do modo de ser das crianças correm
com o primogênito para dentro da casa, deitam-no na rede principal. As
mães levantam seu pranto. Um dos líderes toma o arco ritual e começa a
entoar o guahu. As pessoas que permaneceram no interior da casa de reza
se integram ao canto. Os meninos escutam-nos de suas redes. Terminada
sua função, os ociantes da cerimônia se despedem dos Donos do Ser e
ingressam na casa de reza para prosseguir sua função. Depois da meia
noite os meninos são acordados e conduzidos até o centro do recinto, onde
nalmente podem ocupar seus apyka, “assento ritual”.
Particularmente entre os Kaiová e os Paĩ-Tavyterã pode-se dizer que
as festas do milho novo e da iniciação dos meninos são duas festas irmãs que
marcam ciclos de vida. No ano em que acontece a iniciação dos meninos, a
fase do resguardo chega a coincidir com a temporada da colheita do milho
tradicional. Desses acontecimentos brota o tempo. Fim e começo do ciclo
agrícola se encontram nas festas e tornam-se metáforas da vida humana.
Na festa ativa-se a memória coletiva do grupo através dos cantos que unem
passado e futuro na celebração da palavra.
6.7 – A palavra e o nome
Um dos símbolos através do qual brilha o caráter sacramental da
palavra é o nome. Costuma-se dizer que nos grupos chamados guarani as
pessoas não têm nome como se tivessem uma coisa; elas são seu nome.
Nesse sentido, o nome da pessoa é o fundamento fora do qual a pessoa não
266
terá outro suporte válido. Cada nome vem a ser como uma cifra poética que
acompanha a pessoa desde o seu nascimento até a sua morte (Melià 1991,
p. 103; 90). A concepção do ser humano é atribuída ao sonho (Schaden,
1974, p. 107-108). Esse sonho gera uma palavra. A pessoa será então
uma “palavra sonhada”. Daí se deduz que “a concepção de uma criança
é um ato não siológico mas lógico, é um ato de conhecimento sonhado”
(Melià, 1991, p. 102). Vista dessa forma, “a concepção do ser humano não
se diferencia em sua forma do ato místico pelo qual o xamã guarani, em
sonho, recebe a palavra que toma lugar nele” (Melià, 1991, p. 86). Em essa
concepção de nome e de palavra se origina um dos ritos mais importantes
dos grupos chamados guarani, o da nominação de criança, mitã mbo’éry,
nimongarai. Somente com a recepção do nome – que ocorre até o segundo
ano de vida a mãe possui de forma plena sua criança. A recepção do
nome é um ato revelatório, revela-se o verdadeiro nome da pessoa, que
é ao mesmo tempo sua palavra divinizadora, itupãréry, e seu nome da
mata, héra ka’aguy. Estes nomes são usados exclusivamente no interior do
grupo indígena ou eventualmente para armar-se como “outro” diante da
sociedade envolvente.
Antonio Ruiz de Montoya (1985, p. 53) escreveu no início do século
XVII que os indígenas usavam “uma espécie de batismo ou modo de pôr
nome” ao bebê. Kurt Unkel Nimuendaju também registrou, no início do
século vinte, a cerimônia de nominação entre os Apapokuva. Conta ele
que, poucos dias depois do nascimento de uma criança, a aldeia se reunia
ao redor do xamã encarregado de descobrir a procedência da alma recém
chegada, tarefa que ele cumpria consultando as divindades com cantos e
rezas, acompanhado ou não dos presentes, e desdobrando sobre o bebê as
forças mágicas espirituais recebidas das divindades (Nimuendaju, 1987, p.
29-30). Entre os Chiripá, a época propícia para essa celebração, geralmente
coletiva, é o chamado tempo claro (novembro a março). Durante a
celebração, as mães choram, ritualizando sua angústia diante dos poderes
sobrenaturais (Bartolomé, 1991, p. 86). Entre os grupos kaiová e mbyá
tive a oportunidade de presenciar, em mais de uma ocasião, a cerimônia de
recepção do nome, o que a seguir passo a descrever.
267
6.7.1 – A liturgia kaiová: mitã mbo’éry
Cassiana, dois anos e cinco meses, estava doente. Seu pai e sua mãe
acreditavam que somente sendo rebatizada ela seria curada. Suspeitava-se
que houvesse um descompasso, um desajuste entre a criança e seu nome ou
que, por ocasião do primeiro batismo, tivesse-lhe sido revelado um falso
nome. Reparando a tempo esse equívoco com um novo batismo, a criança
passaria a ter saúde e seu nome se acostumaria a ela. Minhas impressões
sobre o ritual de renominação e o ambiente em que foi celebrado podem ser
acompanhados a seguir.
Quando o sol começa a declinar, um dos cantores se levanta e
começa a dançar ensaiando com as crianças o canto e os passos da dança.
Um pouco mais e outro cantor se aproxima do marãngatu
19
e começa a
tocar uma pequena auta ritual. Seu som é doce, entrecortado, tremido às
vezes, misterioso. Como no canto dos pássaros, a apojatura lhe dá beleza e
espontaneidade. Acompanhado de algumas maracas, seu som é um último
convite à vizinhança para participar da cerimônia. Esporádicos relâmpagos
são interpretados como caminhos de luz pelos quais viajam os Donos do
Ser.
No pátio, diante do pequeno altar, duas las são formadas: as mulheres
com as meninas, atrás; os homens com os meninos, na frente, ladeando o
rezador. O som da maraca erguida pelo rezador marca a abertura ocial da
cerimônia. Num instante, as demais maracas transformam o solo do primeiro
instrumento em inebriante crepitar sonoro. Sem demora, o som espalhado
pelos ares sem qualquer intenção rítmica se converte numa pulsação precisa
que vai incorporando o som dos bastões de ritmo e o canto.
Jeroky ñomongeta honopóko che aju. A dança é uma conversa, eu vim para escutar.
Jeroky ñomongeta rechávoko che aju. A dança é uma conversa, eu vim para ver.
Jeroky ñomongeta rendúvoko che aju. A dança é uma conversa, eu vim para escutar.
Ñomongeta redúvo che aju. Para escutar a conversa eu vim.
Ñomongeta, “diálogo, conversa”, é a palavra mais forte desse
texto. Algumas pessoas a repetem mais de uma vez. A última parte é um
estribilho que conrma o tema exposto pelo rezador. O canto é entoado por
aproximadamente meia hora, tempo durante o qual os corpos percorrem
o espaço dançando. Os corpos dos homens se movem ligeiramente,
encurvados para a frente, exionando os joelhos. As mulheres, com a
268
cintura rme batem seus bastões e quase não deixam seus corpos rebolarem.
O movimento que predomina é o de cima para baixo e a impressão que
se impõe aos olhos, na penumbra, é o de corpos utuantes. Ao som do
mesmo refrão, os dançadores, em la, rodeiam o marãngatu, o centro do
espaço ritual, em movimentos entrecortados a cada três ou quatro passos.
viradas de corpos, passos em retrocesso, genuexões discretas sobre
um pequeno passo. O movimento circular muda de direção e os passos se
repetem.
Agora, de frente ao marãngatu, as las se viram para o oeste e,
ao cantarem a terceira frase do canto, voltam-se novamente ao leste, até
chegarem bem perto do marãngatu. Repete-se o movimento várias vezes
e repete-se toda a coreograa mais outras tantas. O canto cessa. Entre os
comentários, sobressai a voz de quem vê nos relâmpagos do oriente a vinda
do Dono do Ser da menina, cujo nome o líder espiritual do grupo está
procurado “ouvir”. A dança reinicia ao som de uma outra melodia. Canta-
se: nopo ijeroky katúva, “Escuta com atenção aos que têm a boa dança!”
.
Melodicamente, o tema exposto no canto não se desenvolve; recebe, sim,
uma conrmação rítmico-melódica em textura mais grave: “Os que têm
a boa dança, os que têm a boa dança!” Essa aclamação dos que têm a
boa dança vai incluindo os demais presentes numa espécie de desle, de
conversa-caminhada.
Depois de um descanso, começa tudo outra vez, com um canto que
tematiza o fogo e lembra uma das virtudes divinas: o fulgor, o brilho.
Nopo hendýva jepota, (2x) Olha bem para o fogo se abrindo em chamas, (2x)
Nopo hendýva jepotápe, Olha bem o fogo que se abre em chamas,
hendýva jepotápe. o fogo que se abre em chamas,
Nopo hendýva jepota, olha bem para o fogo se abrindo em chamas,
Hendýva jepapa o fogo que se conta em chamas.
No início, só o rezador canta o texto, limitando-se os outros a repetir
“nopo nopo”. Essa dança é mais animada que a anterior. A pulsação mais
rápida leveza aos corpos. Crianças e adultos se movem uniforme e
graciosamente. A dança dura mais de 40 minutos. O texto é repetido mais de
cem vezes e, no nal, incorpora uma pequena variação: “Dança no pátio da
casa da Arara, abre-se o fogo em chamas”. Som e movimento desvanecem
de repente, mas logo é entoado um novo canto.
269
Jeroky jojavusu porã Dançar bem todos por igual
ivetei katuete ra’e, é de fato coisa muito boa,
ko yvanga rapýpe nos limites deste céu
ojeroky jojavusu porã dança-se por igual muito bem
ivetei katu, isso é muito bom
eia eia eia eia eh eheh eh eh eh eia eia eia eia eia eh eh ehehe eh eh
Nopo ijeroky katu é repetido uma centena de vezes e é seguido por
uma animada canção que tematiza de novo a conversa da dança.
O texto da canção seguinte anuncia que está chegando a parte mais
esperada da celebração. “Escutem, olhem, prestem bem atenção a esta que
está prestes a unir-se a seu nome, tão bem e harmoniosamente”.
O rezador apenas introduz a música e se afasta do grupo juntamente
com o pai e a mãe da criança a ser rebatizada. Durante todo esse tempo,
Cassiana esteve no colo da sua mãe, que não parou de dançar. Quatro
ajudantes e os familiares da criança se internam na casa. Eu também sou
convidada a fazê-lo. O rezador se senta com a criança nos braços. A mãe se
acomoda à sua frente. As demais pessoas, em pé, estiveram em silêncio por
mais de quinze minutos, reverenciando a chegada dos Donos do Ser.
Convencido de que os Donos do Ser estão presentes no recinto, o
rezador pega o sumo de cedro e massageia a cabeça da criaa. Em seguida,
em atitude de oração, ele tenta ouvir o nome da mesma, o que é acompanhado
com muita ansiedade pelos demais. Os que cam do lado de fora continuam
cantando. O canto-dança já não acontece na terra. Depois de horas de
caminhada, as divindades e as pessoas se encontram percorrendo um novo
espo traçado “pela cruz(assim foram interpretados os relâmpagos). Nesse
novo espaço a fala do mbaraka é inteligível para todos. O canto torna-se um
verdadeiro diálogo e a dança é um instante que transgura o tempo.
Dentro da casa, o celebrante reza. Outras pessoas assentem ao
monólogo através de expressões de admiração, entre suspiros de aparente
consentimento. O nome sagrado, itupã réra, achado para a menina é Kuña
Apyka Veraju ou “Mulher que tem um lugar (assento) resplandecente”.
O rezador recomenda que seja usado sempre o nome divino da criança,
porque agora ela precisa se acostumar com seu verdadeiro nome, para ter
boa saúde e viver bem. Com isso se inicia um eloqüente discurso.
As crianças são como as plantas, como as sementes. As sementes descansam
unicamente no seu pai e na sua mãe. Por isso, a mãe e o pai, as madrinhas e
os padrinhos devem cuidar e limpar os lhos para crescerem felizes como o
270
de milho e de arroz quando são beijados pelo vento. Enquanto crianças
crescerem no mundo, esperança. Se assim não fosse, poderia-se plantar
milho, mas este não daria fruto; as mulheres engravidariam sem nunca
chegar a parir; as crianças que nascessem morreriam; nossos desejos, então,
não seriam tão fortes para poder acontecer. Sem criança o mundo vai
acabar (...) Criança é a nossa vida.
Terminado o discurso, o rezador coloca a criança nos braços da mãe,
a quem cumprimenta dizendo: “Qual é o nome da criança?”. Ela responde:
“Kuña Apyka Veraju”. O celebrante estende-lhe a mão e diz: “Ficamos,
pois, parentes, eu sou seu compadre”. A mãe assente à frase e recebe um
copo de bebida. Esse gesto se repete até que todos se cumprimentam e
cam compadres e comadres entre si.
Enquanto isso, fora da casa, o canto pára quando o rezador anuncia
que outras pessoas podem ver a criança. Em pouco tempo, uma mulher me
instrui sobre a cerimônia que acaba de acontecer.
O “batismo”
20
deve acontecer entre a meia-noite e a madrugada porque a vida
do ser humano é como o dia. A criança é o dia começando, é a madrugada. Se
o batismo ocorrer antes da meia-noite ou na madrugada avançada, anuncia-
se uma vida fugaz para a criança. Resta-lhe pouco tempo e morrerá sem
ter-se acostumado à vida. (...) Mas outras coisas que devem ser levadas
em conta para que o batismo seja perfeito. O cacique não pode embriagar-se
antes do batismo, pelo risco de errar o nome da criança. A criança, por sua
vez, não deve ter recebido o batismo cristão ainda. Só depois de o rezador
ter-lhe dado seu verdadeiro nome ela pode ser levada ao padre ou ao pastor.
estava avançada a madrugada, quando o rezador nos convidou
para um solo acompanhado pela sua maraca.
Aee’e a’ee, aee’e a’ee Aee’e a’ee, aee’e a’ee
Ropoko ñendu joja vusu katu Tocamos na palavra escutada com boa vontade
A’e a’e ko Ñande Rúva rovake A’e a’e diante do rosto de Nosso Pai
A’e a’e ko Ñande Sýva rovake A’e a’e diante do rosto de Nossa Mãe
Ae ae a’e ohótama niko ra’e Ae ae a’e já estão prestes a partir
Ko Ñande Ru marãngatu Este Nosso Pai de bom modo de ser
Aee’e a’ee, aee’e a’ee Aee’e a’ee, aee’e a’ee
Ko marãngatu arapýpe Para o tempo-espaço do amor
Ojeroky porã ivetei katu Dança muito bem, sim,
Ñane Reindy jojavusu Dança harmoniosamente nossa irmã
Aee’e a’ee, aee’e a’ee Aee’e a’ee, aee’e a’ee
Marãngatu Bem
271
Teko marãngatupýpe Conforme o perfeito modo de ser
Aee’e a’ee, aee’e a’ee Aee’e a’ee, aee’e a’ee
Depois desse solo do rezador, houve ainda muita reza e muita dança.
O amanhecer surpreende a todos em plena caminhada no pátio da casa
de reza. Somente com os primeiros raios do sol, os cantores e as cantoras
encerram seu andar. Lucila acomoda sua lha no colo e empreende o
caminho de regresso com a família. Cassiana não é mais Cassiana; é Kuña
Apyka Veraju. Mas ela não foi a única a mudar. A experiência foi um convite
à reexão e, de algum modo, eu e a minha teologia também não somos
as mesmas desde então.
6.7.2 – O ritual mbyá: nimongarai
21
As primeiras informações sobre o ritual de nominação mb nos
chegaram através de León Cadogan. Segundo ele, as es mb são
instruídas a consultar o líder espiritual dizendo: “Meu lho já está entre nós,
trago-o porque quero escutar seu nome”. O xamã deve então colocar-se em
comunicação com as divindades averiguando qual a procedência da palavra-
alma que se encarnou no bebê. Acende seu cachimbo e sopra, jogando fumaça
sobre a cabeça da criança. O nome que ele irá descobrir é como uma substância
que mantém erguido o “uir do dizer” no bebê e o acompanha durante toda
sua vida, até a morte (Cadogan, 1992, p. 71-73). Somente quando as crianças
são chamadas pelos seus nomes divinos “elas acharão gozo na morada terrena
e não serão rebeldes” (Cadogan, 1992, p. 73).
Na cerimônia de revelação do nome entre os Mbyá do Paraná, a água
e a fumaça são os símbolos mais importantes. Esses elementos lembram
para a comunidade que toda criatura está ligada a Jasuka, Matéria ou Ser
original. Desse modo faz sentido chamar as assistentes dos sacerdotes de
Jasuka ñemotenonde”, mulheres que presidem a cerimônia, na linguagem
religiosa. Jasuka é o Princípio Ativo do Universo, freqüentemente
representado pela água e, com menos incidência, pela Mãe Primordial.
Disso provavelmente deriva que o nome religioso das mulheres seja Jasuka.
No ritual em vista, uma das funções dessas mulheres é o de estar na frente
dos sacerdotes segurando em suas mãos a bacia com a água do cedro com a
qual serão marcadas as crianças.
Durante o nimongarai, essas mulheres eram as responsáveis pela
272
iluminação. Duas assistentes acenderam uma vela principal no fogo de um
cachimbo. As outras duas mulheres zeram o mesmo. Com essas duas velas
maiores, elas foram acendendo as velas menores, que rodeavam o altar,
mediante um suporte colocado para esse m em torno da cruz, que assim
cou cercada por um quadrado completamente iluminado.
Enquanto isso, “Aquele-que-canta”, oporaíva, anava seu violão.
Os que iam ociar como sacerdotes se posicionavam com seus ajudantes.
Em diagonal e à direita do altar, um deles era assistido pela sua esposa.
Próximo dele, o outro, de frente ao altar, era assistido por duas mulheres
que seguravam uma pequena gamela em forma de canoa contendo a água
de cedro, ygáry.
Quando todas as velas estavam acesas, o cantor iniciou sua longa
reza e os presentes, postos em círculo, começaram a andar lentamente.
As mães dos oito bebês cujos nomes seriam revelados, uma a uma,
foram se detendo na frente do pajé que iria descobrir e pronunciar os nomes.
Ele, oporaíva, ajudado pela sua esposa, soprou a fumaça no meio da cabeça
das crianças, à medida que lhes revelava o nome. Entre uma baforada de
fumaça e outra, ele orava e massageava a cabeça e os ombros da criança
e da sua mãe. Ele orava em voz alta, como admoestando ou advertindo,
como ativando a “lembrança” das origens, a consciência coletiva, nas mães,
omomandua, omboypy oxýpe. Seguidamente, as mães se detiveram perante
o outro ociante. Este molhou a cabeça das crianças com o sumo de cedro,
sem parar de cochichar sua oração. Molhou também o peito e a garganta
dos bebês.
Com a cerimônia de imposição do nome às crianças, a comunidade
recebia “ocialmente” seus novos integrantes e seus integrantes ouviam
ritualmente mais uma vez os nomes da onomástica tradicional do grupo.
Esses nomes relacionavam assim as gerações novas com a comunidade
atual que os recepcionava, com sua história e com os personagens epônimos
desses nomes, os heróis culturais ou as divindades do panteão aborígine.
Sendo relativamente escassos os nomes tradicionais ou sagrados haverá
sempre alguém que atendia ou atende pelo “novo” nome revelado para
as crianças. Essa escassez de nomes mostra o caráter coletivo do nome e da
identidade. Quase todas as mulheres têm nomes compostos ou derivados
de Takua, “Bastão de ritmo”, Kuña, “Mulher”, Kereju, “Filha do Sol”, Ara,
“Tempo-Espaço”, Poty, “Flor”, enquanto os homens o têm derivados de
Karai, “Líder Religioso, Senhor”, Kuaray, “Sol”, Vera, “Brilho”, Tupã,
273
“Divindade Urânica, Trovão”, Tataendy, “Fulgor, Brilho do Fogo”, e Ava,
“Homem”.
Há uma relação profunda de pertença entre as pessoas e seus nomes.
Os indígenas a explicam fazendo uma analogia entre o ser humano e a or e
entre o nome das pessoas e o “orvalho” e a “neblina”, representados no ritual
pela água de cedro e pela fumaça. Esses elementos “enfeitam” a “or” e,
enquanto símbolos de Jasuka, vinculam as pessoas aspergidas ao Princípio
Ativo do Universo e, sendo uma das suas virtudes o de poder vivicar,
renova e reanima nas pessoas seu próprio ser. Para melhor compreender
essas metáforas é necessário levar em conta que tanto o termo “or” quanto
a expressão “enfeitar-se” os indígenas usam para se referirem ao ser, ao
âmago, que consubstancia as pessoas.
Passado o ritual de nominação das oito crianças, a cerimônia
começou a adquirir semelhança com um culto cristão de conrmação. As
crianças maiores, os jovens e os adultos, que em anos anteriores tinham
ouvido a revelação de seus nomes, foram aspergidos novamente, renovando
e fortalecendo assim sua or.
Esses rituais de renominação e nominação mostram que os indígenas
entendem a vida como um delicado vínculo entre o corpo e o nome, ou
palavra-alma. Dessa concepção deriva a interpretação da doença como um
acidente mental. A palavra-alma afasta-se da pessoa em virtude de alguma
ofensa recebida. As terapias para curar e salvar a pessoa dessa perigosa
situação visam a, assim, re-unir o corpo da pessoa com a sua palavra-alma,
ou seu nome. É como se o nome fosse dotado de uma força mágica tal que
o leva a apoderar-se da pessoa “que o tem”.
Nessa concepção, porém, não somos nós que temos nossos nomes,
mas são os nossos nomes que nos têm. A palavra é tão forte que a
pessoa muitas vezes chega a se identicar com o animal ou a planta que
representam seu nome, presumindo que esse animal ou essa planta tem um
tipo de autoridade sobre ela. Essa identidade psíquica, que mantém o que
Lucien Lévy-Bruhl chamou de participation mystique(Ap. Jung V, 1986,
p. 129) com os outros seres da natureza, indica, a meu ver, que os indígenas
reconhecem sua dependência dos demais seres e mostram seu parentesco
com eles.
A importância da palavra-nome no antigo oriente era singular.
Gerhard von Rad escreve que,
274
na mentalidade antiga, o nome não era um simples som, um sopro, mas
havia entre ele e seu portador uma íntima relação substancial. O portador
existe em seu nome e, por conseguinte, o nome contém uma armação sobre
a essência de seu portador ou, pelo menos, algo de seu próprio poder. Esta
noção era tão importante para a vida cultural do antigo Oriente que podia ser
considerada como constitutiva (Von Rad, 1973, p. 188).
Para o estudo dos nomes de Deus, essa informação é de singular
importância, como foi visto no capítulo três. Em várias passagens do
Primeiro Testamento, os nomes dados a Deus eram uma espécie de
hipostase do divino e, em alguns casos, uma personicação da experiência
com a divindade. O nome carrega para os povos guarani uma densidade
semelhante. Ele não os mantêm vivos e singulares num mundo cada
vez mais homogêneo, mas também marca e diferencia sua forma de ser
religiosa. O nome conrma na pessoa humana e divina uma determinada
qualidade de ser. Como no Primeiro Testamento, se a pessoa passasse por
uma profunda experiência, seu nome deveria ser mudado; assim, Abrão se
torna Abraão; no Segundo Testamento, Saulo se transforma em Paulo; e, no
âmbito deste trabalho, Cassiana passa a ser nomeada Kuña Apyka Veraju.
6.8 – A sacramentalidade da palavra
Quando dizemos que a palavra ritualizada é o sacramento guarani
por excelência, queremos dizer que ele é o grande sinal mediante o qual as
comunidades indígenas participam da Presença Espiritual. É o meio visível
através do qual a comunidade participa do Grande Outro.
Mas como falar dessa palavra-sacramento? Leonardo Boff, em
um pequeno ensaio de teologia narrativa, escreve que o testemunho ou a
reexão sobre o sacramental precisa levar em conta o gênero da linguagem
que estrutura o próprio sacramento. Como o sacramento relaciona o ser
humano com o mundo e com Deus, sua linguagem “não argumenta nem
quer persuadir”;
quer apenas celebrar e narrar a história do encontro dos seres humanos com
os objetos, as situações, e os outros seres humanos que e-vocaram uma
Realidade superior, em parte neles, num determinado grupo ou pessoa
(Boff, 1986, p. 13).
275
Embora minha percepção da espiritualidade guarani seja fragmentada,
seletiva e, em parte, exterior à experiência indígena, intentei até aqui
apresentar o que minha memória reteve dos “encontros” com essa Realidade
nas aldeias guarani. E gostaria de encerrar este capítulo considerando
alguns dos desaos teológicos aos quais se soma a experiência de palavra-
sacramento indígena.
6.8.1 – Palavra e demonização
Para o ouvido cristão, acostumado a uma teologia enraizada em uma
antropologia de tendência dualista, certamente é um tanto contraditório
escutar que a “palavra” é o “sacramento”. É sabido que católicos e
protestantes se digladiaram mutuamente durante a Reforma por causa da
compreensão que tinham de “Palavra” e “Sacramento”. Os protestantes
criticavam a doutrina do opus operatum da Igreja Romana, que distorcia os
sacramentos rebaixando-os ao nível da técnica mágica e auto-salvacionista.
Os católicos opunham resistência consciente aos teólogos protestantes, que
tentavam aniquilar o efeito sacramental dos sete sacramentos reduzindo-os
drasticamente e colocando em seu lugar a palavra (Tillich, 1984, p. 478).
Para Tillich, não dúvida que o protestantismo não pretendia com essa
atitude secularizar o sacramento, mas sim mostrar que o sagrado não está
restrito a lugares, ordens ou funções particulares. Contudo, ao fazer isso, os
protestantes acabaram preparando o caminho para uma total secularização.
Nessas controvérsias, as igrejas cristãs desconsideraram o fato de que o
conceito “sacramental” abarca mais do que dois ou sete sacramentos e que
o sentido mais amplo do termo denota tudo aquilo em que a Presença
Espiritual foi experimentada; (e que) num sentido mais restrito, refere-se
simplesmente a alguns “grandes” sacramentos em cujo ofício a comunidade
Espiritual se auto-atualiza (Tillich, 1984, p. 477-478).
Conforme Tillich (1984, p. 478), as grandes responsáveis pela
interpretação que sacricou o sentido estrito dos sacramentos foram a
exagerada ênfase posta no aspecto consciente do eu psicológico, do lado
protestante, e a distorção mágica da experiência sacramental, do lado
católico. De certa forma, porém, a responsabilidade pela distorção dos
sacramentos recai também sobre a teologia que prevaleceu como normativa
276
no Ocidente. Ela é, no mínimo, legitimadora de um processo que foi
deslocando o numinoso da natureza para o ser humano.
Grande parte do Segundo Testamento apresenta uma concepção
cosmológica do Cristo como criador e redentor de todo o cosmo e não
dos seres humanos. Mesmo assim o cristianismo ocidental, a partir do
nal da Idade Média e da Reforma, esqueceu essa visão totalizadora. O
humano e as esferas planetárias passaram a ser o centro de sua atenção,
e não as outras formas de vida terrestre (Ruether, 1993a, p. 236, 243). A
exposição do ser humano como centro do universo fez-se, entretanto, às
custas do ocultamento do Ser. Nas palavras de Vicente Ferreira da Silva, o
humano é o vácuo deixado pelo reuxo de um antigo poder e a noite dos
deuses manifestou-se como a luz dos seres humanos. O cristianismo, nesse
sentido, para o lósofo brasileiro, “é essencialmente um criptograma, isto
é, linguagem de uma ocultação” (César, 1988, p. 86).
Na teologia cristã que prevaleceu no ocidente, o destino da palavra
acabou sendo a substantivação. Longe daquela palavra que está no começo
de tudo, que é criadora e habitante do mundo - a teologia converteu a
palavra em conceitos abstratos distantes das coisas terrenas. Acabou
reduzindo a palavra-falante dos mitos ritualizados, que estão na origem
das experiências religiosas, em palavra-falada. Com isso, impediu o acesso
às dimensões mais profundas da realidade humana. Tillich acertadamente
considera essa teologia que vigorou e vigora nos meios eclesiásticos como
uma demonização da palavra fundante do cristianismo.
uma linha de demonização no cristianismo, desde a primeira perseguição
aos hereges imediatamente após a elevação do cristianismo à posição de
religião de estado do império romano, mediante fórmulas de condenação nas
declarações dos grandes concílios, através de guerras de eliminação contra as
seitas medievais e os princípios da Inquisição, através da tirania da ortodoxia
protestante, do fanatismo de suas seitas e a teimosia do fundamentalismo,
à declaração de infalibilidade do papa. O evento em que o Cristo sacricou
todas as reivindicações de absolutizar algo particular, em que os discípulos
queriam forçá-lo, ocorreu em vão para todos esses exemplos de demonização
da mensagem cristã (Tillich, 1984, p. 675).
Uma das conseqüências dessas reivindicações foi o distanciamento
do cristianismo das coisas terrenas. A tradição teológica dominante nos
meios eclesiásticos levou a um comportamento anticósmico. O nojo
pela matéria, “a suspeita lançada sobre o corpo, o desprezo do mundo, a
277
desconança acerca do prazer, da sexualidade e da feminilidade, o anúncio
de um Deus desligado do mundo, foi o que favoreceu o surgimento de um
mundo desligado de Deus. Tais elementos reforçaram a entrega do mundo
à agressão humana” (Boff, 1993, p. 47).
Para Moltmann, o anticosmismo que caracteriza a ética agressiva
do mundo moderno deve ser substituída pela ética da reconciliação. Esta
deve tanto equilibrar as necessidades da cultura humana com as condições
e forças regenerativas da natureza quanto buscar uma cooperação produtiva
para a sobrevivência comum. Não se trata, pois, da sobrevivência ou
da salvação dos seres humanos, mas de reconhecer que “assim como
a dignidade humana representa a fonte de todos os direitos humanos, a
dignidade da criação é a fonte de todos os direitos dos animais, das plantas
e da terra. A dignidade humana é apenas a forma humana da dignidade
criacional genérica” (Moltmann, 1993, p. 409).
6.8.2–RecosmicaçãodaPalavra
Felizmente pensadores e pensadoras que vem tentando corrigir
as conseqüências de um antropocentrismo anticósmico na teologia que
se consolidou no cristianismo. O humano é redescoberto como unidade
multidimensional, que tem no passado mítico as referências para seus
desejos mais profundos. Como se deixa vericar nas palavras de George
Gusdorf (1979, p. 24), o mito, procurando uma intenção restitutiva, detém
um olhar em direção à integridade perdida pelos humanos. Ele se atualiza
num imaginário presente e vivo, quando revive as imagens espaciais
criacionais em outras imagens ou dentro de outras imagens, mantendo ou
criando um espaço vital novo, onde os seres humanos são reconhecidos
como tais. Esse é o tempo-lugar onde o sentido arcano da palavra está
disponível. Nas palavras de Vítor Whestelle (1990, p. 261),
o que importa é a transmitização que revive o espaço e os referenciais míticos
em um outro espaço, com outros referenciais. O mito traz consigo seu lugar
vivencial (...). Não é o seu signicado que é aprendido a partir de seu lugar
vivencial. O mito se refaz, através do rito, em um novo lugar vivencial. É
assim que se ancora a fé.
Cabe dizer que nem a “consciência mítica” nem a “mentalidade
278
primitiva” conspiram contra a razão humana, mas a compõem. Para Lucien
Lévy-Brühl, quando penetramos nos perigosos delírios do antropocentrismo
exacerbado, “a consciência mítica é a que nos devolve a possibilidade de
retornarmos com alguma humildade mediante o sentido do sagrado, que nos
ultrapassa e nos situa no mundo com alguma sensatez”.
22
Os seres humanos
chamados primitivos vivem seus símbolos sem pensarem neles. Eles
“viviam-nos, e eram inconscientemente estimulados pelo seu signicado”,
ainda que o signicado mesmo do que eles faziam possa ser mais claro para
quem os pesquisa do que para aqueles que praticavam esses símbolos sem
reetir a respeito.
23
Não se aplicaria aos Mbyá a armação jungiana, se for verdade o
que se arma deles, que investiram seus esforços em pensar seus símbolos
e comunicá-los na expressão falada, no sentido ocidental do termo.
24
Mas “mito” ou “pensamento”, não há dúvida de que a palavra desses
indígenas questiona a compreensão de palavra que se institucionalizou no
cristianismo.
Quando dizemos que a palavra é o sacramento para os povos
guarani, estamos referindo-nos não à palavra proferida, mas sobretudo
à palavra acontecimento, à palavra-corpo, à palavra vista e ouvida durante
o sonho ou nas festas religiosas. Nesses acontecimentos, retorna o grande
princípio do mundo mítico: assim devem fazer os seres humanos, porque
assim zeram os deuses (Crippa, 1975, p. 163). A palavra-rito é, assim,
o grande sinal, o ato religioso que reintegra constantemente os chamados
guarani ao princípio ativo do universo, ao uído vital, ao coração da grande
mãe, à terra. “Deixar de rezar e descuidar do ritual é como tirar à terra seu
próprio suporte, provocando sua instabilidade e sua iminente destruição”
(Melià, 1989, p. 339). Em suas celebrações, eles reelaboram as imagens
do passado em espaços imaginários onde projetam suas esperanças. Essas
imagens provocam as pessoas e têm a virtude de deixá-las “prontas”, ou
seja, ajustadas às imagens espaciais que elas elaboraram sobre aquilo que
há de vir, que esperam acontecer.
A Palavra é, assim, o sacramento guarani no sentido restrito do termo.
Ela é o símbolo
25
que contém, exibe, recria, visuabiliza e comunica uma
outra realidade – diferente dele, mas ao mesmo tempo presente nele.
Parto do princípio de que proporcionar o encontro com Deus é o
coração da religião e que o simbolismo sacramental se relaciona com
os grandes momentos da vida do indivíduo e do grupo. Nesse sentido,
279
apontei a palavra-sacramento guarani nas principais metáforas em que ela
se concretiza: no ato de recontar a história primordial, na caminhada, na
dependência vegetal do ser humano, na comunidade que provê um assento
para a palavra dos meninos e no ato de selar-se a unidade divino-humana
com um nome de procedência divina. Em todos esses ritos está presente a
crença que os humanos existem num universo que tem signicado e sentido
que alguém por trás de todas as palavras e ao mesmo tempo presente
nelas.
Para relacionar essa palavra-sacramento dos indígenas com o culto
cristão tradicional, recorro ao testemunho de dois indígenas guarani
(ñandeva) do Mato Grosso do Sul, Hipólito e Epitácio. Para eles, a palavra
ritualizada dos guarani “tem terra”, ijyvýva, ao passo que a dos cristãos
“tem papel”, ikuatiáva. Conhecedores do culto cristão, eles percebem nele
o descompasso entre a espiritualidade da terra e a piedade cristã, o lugar
marginal dado nele ao corpo pessoal e ao corpo terrestre. Nesse sentido,
teólogas feministas nos lembram que podemos reconhecer processos
vitais da natureza se nós mesmos formos capazes de reconhecer nosso
processo vital, nossa corporalidade. Assim como o mito e os símbolos
são comunicações religiosas acústicas e visuais, a celebração precisa ser a
comunicação de todo o corpo que evoca a aparição pessoal dentro de tudo
o que é palpável, escreve Charlene Spretnak (1994, p. 503). Nas igrejas
cristãs, o culto tem seu centro sobretudo no sacrifício redentor de Jesus
Cristo, no perdão dos pecados e na proclamação de uma salvação para uma
humanidade sem corpo. Nele não se celebra a criação do mundo, nem a
esperança da sua redenção.
Mas numa celebração da Palavra que “tem terra” irrompe o momento
da criação de Deus que dormita em cada instante e mesmo os indígenas
que não têm lugar vital
26
, os que estão desolados, reinventam seus
espaços imaginários, onde lhes é possível o impossível. A vivência dessa
espacialidade é profundamente comunitária para os indígenas. Seu sentido
somente pode ser captado pela expressão arete, que signica tempo-espaço
(ára) verdadeiro (ete), quando e onde se celebra a mutua (oño-) palavra
(ñe’ẽ). É a palavra restauradora que por m se voltará contra os espaços
dominados e agraciará os desolados com um novo tekoha, um novo espaço
vital.
A festa é o tempo-espaço verdadeiro. Arete é a reinauguração de
um tempo caracterizado pela presença ativa e criadora das divindades. É
280
o tempo de recontar histórias, tempo de dizer às coisas seu começo. É o
tempo profundo durante o qual se reinaugura o mundo. É o ato religioso
que sustentação ao universo e reintegra todos os seres à sua origem.
Arete possui o sentido profundo que carrega o termo “sábado” na teologia
do Antigo Testamento. É como a irrupção da santidade dentro do tempo,
como a presença da eternidade na história, como ato que nos capacita para
“recordar que temos uma alma adicional”,
27
que reivindica o sábado.
28
Nesse
sentido, segundo Moltmann (1985b, p. 279), os humanos são criaturas
sacerdotais e seres eucarísticos, que celebram a autorevelação de Deus e o
contemplam no seu descanso sabático. “O Sábado é a presença mesma da
eternidade no tempo, uma prova do mundo vindouro”.
Ameaçados pelo “tempo sem lugar”, os povos guarani teriam
motivos sucientes para cair no desespero. Eles, porém, com exceção dos
casos de suicídio comentados no capítulo anterior, nos têm dado um belo
testemunho de que vale a pena interromper nossa falta de esperança e entoar
um canto! Seu desao: não deixar esmorecer o sonho da “terra sem males”,
mas animar-se na sua busca. Enquanto não a habitamos, que sua virtude
(sem mal, marãne’ỹ) nos habite e nos inspire a pronunciar belas palavras.
E enquanto esse sonho for realizável no espaço da palavra ritualizada,
nenhuma personagem é e será mais real do que o poeta;
29
nenhuma tarefa
mais imprescindível do que a de celebrar a vida.
(Notas)
1 A um cacique do grupo dos Itatim.
2 Arete: “tempo, ara, verdadeiro, ete”.
3 A obra se intitulava, em guarani: Ára poru aguyje’iháva.
4 Diego Durán nasceu na Espanha em torno de 1573, mas desde os 6 anos de idade viveu no
México, onde se tornou mais tarde sacerdote dominicano e um dos grandes conhecedores da
cultura mexica ou asteca. Para ele, sem dominar em profundidade a língua, era impossível
compreender a cultura indígena e alcançar uma implantação efetiva do cristianismo. O
saldo da colossal tarefa assumida pelo dominicano, porém, revelou que ele se tornou um
ser dividido: “um cristão convertido ao indianismo que converte os índios ao cristianismo”
(Todorov, 1983, p. 199-214).
281
5 Sobre a procedência e o uso do violão e do violino pelos Mbyá consultar de Irma Ruiz,
1984, p. 74-78.
6 Samaniego, 1968, p. 373-423. Retomarei essa idéia na seqüência do trabalho, ao considerar
o “estar a caminho” como metáfora da palavra-sacramento.
7 Para os Mbyá, no período mítico, o canto dos homens e das mulheres desfrutavam do
mesmo status; depois da destruição da primeira terra, porém, o canto sagrado da mulher se
tornou um acompanhamento do canto do homem (Ruiz, 1984, p. 70).
8 Os nomes respectivos em guarani são: aty, aty guasu e ñemboaty guasu se referem s
assembléias são constituídas, via de regra, por pessoas mais jovens, as “lideranças”, julgadas
competentes para a política externa, muitas vezes, por falarem português e/ou espanhol.
9 Entre os Mbyá do litoral também mulheres são honradas com o título de xondária.
10 Convém ter em conta que o xondáro é praticado principalmente pelos Mbyá e
ocasionalmente pelos Guarani (Avá, Chiripá ou Ñandeva), que, via de regra, substituem o
som do violino por vocalizações sobre a sílaba he”. A dança é desconhecida pelos Kaiová
e Paĩ-Tavyterã. Curiosamente, o uso do violino e do violão, fundamentais para a execussão
do xondáro, é comum entre os Mbyá, eventual entre os Guarani (Chiripá) do Sul do Brasil
e desconhecida entre os Guarani (Ñandeva) do MS, entre os Kaiová e os Paĩ-Tavyterã.
a prática do kotyhu nesses grupos é inversamente proporcional à do xondáro. O kotyhu
é comum entre os Kaiová e os Paĩ-Tavyterã, importante para os Chiripá e Ñandeva que
convivem com os dois subgrupos anteriores e desconhecida entre os Mbyá.
11 Respectivamente: aju, ajúma”, “ahámako che”, jahe’o jahe’o”, nde takuára ovy’a”,
chereraha”.
12 Respectivamente: “Mombyrýgui che aaju ne ñe’ẽ rendúvo”, Che aju ñembovy’árupi”,
Opamapa ñane kaguĩ”.
13 É signicativo, nesse sentido, observar a diferença que os indígenas estabelecem entre
seus ritos nativos e os da religião cristã. Eles falam dos seus ritos como sendo “de história”
e dos ritos cristãos como sendo “de pedido”. Tentei vericar essa armação analisando
algumas fontes da religiosidade de cada grupo e deparei-me, de fato, com a notável ausência
de “pedidos” - do tipo “tende piedade”, “rogai por nós”- nas rezas e nos cantos indígenas.
Estes são geralmente descrições ou relatos. Com exceção de um canto, todos os outros
cantos entoados na festa do milho novo e da iniciação do menino, bem como outros cantos
de forma xa recolhidos por outros pesquisadores, correspondem à classicação proposta
pelos Kaiová.
14 Referência a Santo Estanislau.
282
15 Tani retére. Tani é forma abreviada de (São) Estanislao. Retére provém de rete rehe e
signica “por seu corpo”. Na seqüência: Itymby retére, Ava retére, Ñande Ru retére e Ñande
Ru retére.
16 Eles domesticaram no mínimo seis tipos desse cereal. Ainda que muitas dessas espécies
tenham se perdido, o termo “milho” - avati - é palavra viva, com força geradora no
discurso do grupo. O milho foi e é um dos alimentos básicos dos Guarani.
17 Kaguĩ: bebida de milho. Mbojape: bolo de milho.
18 Aquele de áureo falar.
19 Pequeno e rústico altar de taquara enfeitado, em alguns casos, com penas e ores. Situa-
se no centro do pátio ou no interior da casa de reza.
20 Muitas vezes os Kaiová, para nos “fazer entender”, falam da cerimônia como o
“batismo”.
21 A expressão é controvertida. Nimuendaju a traduziu por “tornar-se pajé”. Os indígenas
designam com ela, hoje, a festa dos frutos maduros, o ritual de recepção do nome, o
batismo, a bênção, etc. Pesquisas realizadas na região de Missões, Argentina, mostram
que no nimongarai coexistem dois fatos relevantes da vida da comunidade: a consagração
dos alimentos preparados a base de milho (aporte das mulheres) e dos frutos do guembe
(Phylodendron Selleum) (aporte dos homens) e a imposição do nome às crianças (Ruiz,
1984, 53-62).
22 Morais, 1988, p. 78-79. Se o autor a estuda nos povos chamados primitivos não é porque
sua geração não a tivesse, mas porque nos primitivos é mais fácil descrevê-la e analisá-la.
23 Jung, O homem e seus símbolos, p. 81. Por muito tempo os humanos criavam mitos
inconscientemente e eram possuídos por eles. a partir do século XVI é que as pessoas
começam a ter uma relação consciente com seus mitos. O racionalismo lhes destruiu a
capacidade para reagir a idéias e símbolos numinosos, sobrevindo-lhes crise de vacuidade e
falta de sentido à vida e à morte (Jung, O homem e seus símbolos, p. 93ss).
24 A eles se refere Pierre Clastres quando escreve: “Pobres em mitos, os Guarani são ricos
em pensamentos (...). A metafísica substitui o mitológico. Se os Guarani têm menos mitos
para nos contar é porque dominam mais pensamentos para nos opor” (Clastres, P., 1990, p.
12-13).
25 Não como o propunha Calvino - uma representação desvinculada daquilo que se quer
representar - mas como o propuseram Tillich e Ricoeur, um meio que aponta para uma
realidade da qual esse meio participa.
283
26 Tekoha é para os Guarani o lugar (-ha) que reúne as condições para se viver de forma
plena o modo de ser (teko-).
27 Sölle, 1991, em uma conferência pronunciada na Escola Superior de Teologia em São
Leopoldo, Brasil.
28 No contexto do Primeiro Testamento, onde provavelmente o próprio calendário semanal
era desconhecido, o dia do descanso é tão importante que a criação é exprimida em seis dias,
para ser celebrada e contemplada no sétimo.
29 Como canta Milton Nascimento na canção Coração de Estudante “Se o poeta é um
sonho, que vai ser real?”
284
285
7 – A LIBERTAÇÃO DA PALAVRA: O DIÁLOGO
Teólogos e teólogas das igrejas cristãs têm se ocupado em dialogar
fundamentalmente com o judaísmo, hinduísmo, budismo, islamismo e
com a cultura ocidental secularizada. Quanto aos povos indígenas, porém,
têm se limitado a profetizarem que esses estão fadados a um m próximo.
Como outros atores sociais, também esses teólogos e essas teólogas
contavam com o desaparecimento das populações tribais cujas tecnologias
e complexidade social são consideradas relativamente “simples”. Tentar
reverter essa situação, ou seja, reconhecer os povos indígenas como sujeitos
de e de palavra, é tarefa da teologia contemporânea. Os grupos aborígines
são professos de uma religião milenar que, em alguns casos, continuou se
desenvolvendo livre da inuência cristã e, em outros, se amalgamou com
ensinamentos e usos cristãos. As igrejas cristãs, como os demais setores
da sociedade envolvidos no extermínio das populações nativas da África e
das Américas, necessitam reetir criticamente sobre esse episódio histórico
ainda atual, para que se dêem as condições de instaurar-se um diálogo
restaurador com esses povos. Quero concluir este livro propondo que a
palavra libertada funde um novo tipo de aproximação entre comunidades
indígenas, igrejas cristãs e a sociedade como um todo. Urge que o “outro”
indígena seja reconhecido na sociedade latino-americana como alguém
que tem algo a dizer aos demais atores sociais. Retomo nesse sentido
as peripécias que resultaram do desencontro inicial e os desaos que a
persistência indígena nos colocam hoje.
7.1 – Do ocaso ao ressurgimento indígena
Por muitos séculos, as teologias que predominaram no Ocidente
consideraram pagãs as práticas religiosas dos povos que não estavam
submetidos à igreja e julgaram herético o posicionamento de teólogos
e teólogas que relativizaram a pretensão da igreja de ser portadora
exclusiva da palavra salvadora de Deus (extra ecclesiam nulla salus). Essa
autocompreensão foi uma das propulsoras da missão da Igreja Romana no
286
período das grandes viagens e descobrimentos. Como ilhas no meio dessa
teologia e dessa eclesiologia predominantes, houve também vozes que
interpretaram as religiões não-cristãs de modo mais compassivo. Uma delas
é a teologia das sementes do Verbo divino (logoi spermatikoi), formulada
originalmente pelo apologista Justino o Mártir (?-165). Ele admitia que
havia um prenúncio da vinda de Cristo nas outras religiões e que cabia
ao cristianismo corrigir e aperfeiçoar tudo o que a mesma e única palavra
motora de Deus havia realizado confusamente no paganismo. Essa teologia,
como outras do seu gênero, porém, não teve continuidade institucional. A
reexão teológica que marcou a história do cristianismo foi a que viu nas
outras religiões um mal que deveria ser extirpado, e nos seus adeptos, povos
que deveriam ser exterminados se não aceitassem se submeter à igreja e aos
governos “cristãos”.
Apesar da bula Sublimis Deus, do papa Paulo III, de 2 de junho de
1537 – que reconhecera aos indígenas o direito de posse sobre seus bens –
nas Américas prevaleceu o espírito do requerimiento. Escrito em 1514 pelo
jurista espanhol Juan López Palacios Rubios, esse documento colocava os
indígenas diante de duas alternativas: ou eles se sujeitavam ao papa e ao rei
sem oferecer resistência, ou seriam, na melhor das hipóteses, submetidos à
força pelos representantes da igreja e da coroa ou, na pior, exterminados.
1
Fatos como esse na história do cristianismo permitem discordar da
armação de Tillich
2
e dizer que o cristianismo não é consciente de sua
própria condicionalidade, que a autocrítica não lhe é inerente e que sua
suposta maior vocação para a universalidade
3
é um risco. O cristianismo
histórico de conquista e de dominação nas Américas destruiu religiões,
culturas e grupos humanos inteiros e impôs a religião cristã ocidental como
“universal”. Se a isso pode-se chamar de equívoco, esse foi um dos maiores,
senão o maior, que o cristianismo cometeu, pois implicou a depauperação
econômica, social, cultural, religiosa e lingüística das Américas.
A história que se sucedeu durante os cinco séculos de colonização
e “evangelização” é conhecida. Apresento aqui apenas alguns dados que
mostram como a “inclusão” dos indígenas na Orbis Christianorum resultou
no despovoamento de dois continentes: África e América.
A partir dos dados deixados por cronistas quinhentistas, especialmente
daqueles que constam da avaliação do missionário José de Anchieta, que
chegara ao Brasil em 1553, Darcy Ribeiro estima que, em 1500, à chegada
dos europeus, havia 5.000.000 de habitantes no território que hoje é Brasil.
287
O balanço demográco dos 100 primeiros anos contabiliza: 50.000 brancos
nascidos no Brasil, 30.000 escravos trazidos da África, 120.000 indígenas
integrados à sociedade colonial, 4.000.000 vivendo isolados, chegando a
1.000.000 o número dos dizimados. Total 4.200.000.
Cem anos mais tarde, os brancos são 150.000, os escravos 150.000,
os indígenas integrados 200.000, os isolados 2.000.000 e 2.000.000 os que
foram dizimados nesse século. Total: 2.500.000. Em 1800, o número dos
brancos é de 2.000.000, o dos africanos escravizados e de seus descendentes
1.500.000, os indígenas integrados 500.000, os isolados 1.000.000 e os
dizimados nesses cem anos, 1.000.000. Total: 5.000.000.
Como se vê, trezentos anos depois de iniciada a conquista, o Brasil
recuperou seu montante original de 5 milhões de habitantes, que na
composição invertida. A metade é branca. Dos 1,5 milhões de negros, 500
mil são nascidos no Brasil. Os indígenas subjugados somam apenas 500.000
e os “arredios” se encontram nas regiões pouco ou ainda não colonizadas,
como o Amazonas, e nas zonas de matas indevassadas do Sul e do interior
de todo o Brasil (Ribeiro, 1998, p. 150-159).
A dizimação da população africana segue a mesma proporção.
Concordando com os cálculos de M. Buescu (1968), Ribeiro (1998,
p. 162) admite que no século XVI teriam ingressado no Brasil cerca de
75.000 africanos, no século XVII 452.000, no XVIII 3.621.000 e no XIX
2.204.000. A conquista foi um verdadeiro moinho de gastar gente (Ribeiro,
1998, p. 106ss). Calcula-se que o Brasil “gastou” no seu fazimento cerca
de 12 milhões de pessoas oriundas da África, incluindo seus descendentes.
Esses foram “desgastados” como a principal força de trabalho de tudo o que
se produziu no Brasil e de tudo que no Brasil se edicou (Ribeiro, 1998, p.
220). Esse tráfego humano foi o que mais afetou o destino da humanidade
pelo número espantoso de povos e de seres que mobilizou, desgastou e
transgurou. Sua intermediação foi, por séculos, o motor mais poderoso da
civilização ocidental. Exercida por “honrados dignitários”, essa atividade
foi muitas vezes considerada como a grande missão do homem branco,
“herói civilizador e cristianizador” (Ribeiro, 1998, p. 178).
Os anos seguintes à independência do Brasil (1822) não foram
melhores para os indígenas. Em todo o século XIX os governos brasileiros
se inspiraram na atitude de D. João VI. Este teve a “inédita franqueza”
4
de
combater os indígenas. Declararam-se verdadeiras guerras de conquista e
massacre que dizimaram mais uma vez a população indígena, reduzindo-a
288
a cerca de 200 mil pessoas, segundo os cálculos apresentados por Marta
Azevedo (Azevedo, 2000, p. 79).
A população que emergiu no Brasil herdou dos colonizadores a
brutalidade racista e classista. A oligarquia enxergava sua própria gente com
olhos europeus. “Olhavam suspeitosos os negros e mestiços que formavam
a maior parte da população e explicavam o atraso prevalecente no país pela
inferioridade racial dos povos de cor. Sob a pressão desse complexo (...)
puseram-se a campo para substituir aos seus próprios povos, radicalmente
se praticável, por gente eugenicamente melhor. Essa seria a população alva
da Europa Central” (Ribeiro, 1998, p. 436). A esse racismo somaram-se os
pré-conceitos trazidos pelos novos colonizadores europeus e a tese pseudo-
cientíca segundo a qual os indígenas não seriam verdadeiramente humanos
e que, entre as diversas raças humanas, eles tinham uma organização
incompatível com a civilização (Carneiro da Cunha, 1992, p. 134, 135).
No início do século XX, a situação indígena brasileira era altamente
conituosa. Além de alguns missionários terem se apropriado da terra dos
índios, vastas áreas entregues à colonização estrangeira, principalmente
alemã, viviam convulsionadas por bugreiros
5
pagos pelos colonos para
limpar suas terras do incômodo ‘invasor’. O próprio diretor do Museu
Paulista e eminente cientista, Hermann von Ihering, pediu ao governo que
optasse entre a selvajaria e a civilização. Se seu propósito era civilizar o
país, cumpria abrir guerras de extermínio com tropas ociais para resolver
os problemas (Ribeiro, 1998, p. 147. Conferir a respeito Souza Lima, 1992,
p. 155-172). A campanha de extermínio dos indígenas foi denunciada no
congresso de Americanistas de 1908, em Viena, por Alberto Vojtec Fric.
Seu destaque: o extermínio rendia uma valorização de 1.500% das terras
das colonizadoras, por serem consideradas “livres de índios” (Wirth, 1999,
p. 33).
Sob pressão de órgãos do exterior, instalou-se no Brasil uma nova
política, assimilacionista e “pacíca”. Institui-se, em 1910, o Serviço de
Proteção ao Índio com a missão de “proteger” os indígenas. Ironicamente,
depois de 40 anos de funcionamento da entidade, caiu para 150.000 o número
dos aborígines no Brasil. Nesse período, oitenta grupos desapareceram. Isso
parecia conrmar a opinião generalizada de que os indígenas eram seres
que, inexoravelmente, estavam fadados a desaparecer.
Mas esses povos destinados ao apagamento ressurgiram nas últimas
décadas. Seu ressurgimento mostrou, por um lado, “que todas as questões
289
politicamente relevantes no Brasil e na América Latina atravessam a
questão indígena: a questão da terra e da reforma agrária, a questão da
autodeterminação e do protagonismo, a questão do projeto e da utopia”
(Suess, 2001, p. 226). Desse modo, a luta dos povos indígenas não divide
o movimento libertário mas o enriquece, radicaliza e complexica, ao
agregar um “resto” de alteridade não integrada na agenda dos demais atores
sociais (Suess, 2001, p. 229). Os povos indígenas reaparecem não como
índios genéricos ou cidadãos comuns, mas como parcela remanescente da
população original. Os indígenas permanecem alternos dos “brasileiros”
porque se enxergam e sofrem como indígenas e porque assim são vistos
pela gente com que estão em contato (Ribeiro, 1998, p. 145). No último
senso realizado de 1996 a 2000, conrma-se que a população indígena
cresceu, em média, 3,5% ao ano.
6
No nal do século XX, o número de
pessoas que se assumem como índias foi estimado entre 350 e 500 mil,
7
em 216 o número de povos a que elas pertencem e em 186 as línguas por
elas faladas. Além disso, há evidências de pelo menos 42 grupos indígenas
ainda isolados (Ricardo, 2000, p. 15).
Mas os povos indígenas não cresceram em número nos últimos
anos; eles também vêm ganhando uma imagem positiva no Brasil. É o que
revela uma pesquisa nacional de opinião realizada de 24 a 28 de fevereiro
de 2000 pelo Instituto Sócio-Ambiental (ISA) e pelo Instituto Brasileiro
de Opinião Pública e Estatística (IBOPE): 88% da população brasileira
considera que os indígenas conservam a natureza e vivem em harmonia
com ela, 81% pensa que eles não são preguiçosos e que apenas encaram
o trabalho de forma diferente do resto da população brasileira e 89% acha
que eles não são ignorantes e que apenas possuem uma cultura diferenciada
(Ricardo, 2000, p. 57-62).
O ressurgimento dos povos indígenas que durante quase cinco
séculos foram considerados seres efêmeros, em transição para a cristandade,
a civilização, a assimilação e o desaparecimento deixa claro, hoje, que eles
são parte do futuro da humanidade e não do seu passado (Carneiro da
Cunha, 1992, p. 22). Por isso, as igrejas que foram cúmplices nas iniqüidades
cometidas contra essas sociedades têm a oportunidade de indenizar a
geração presente e as vindouras pelo prejuízo causado e estabelecer com
elas, a partir de agora, relações de cumplicidade na justiça.
Mas no apagamento indígena também o Estado e os “lhos da
terra” – a população não indígena herdeira do colonialismo – tiveram uma
290
participação decisiva. De modo que o ressurgimento dos povos aborígines
oportuniza também nessas instâncias uma análise crítica da mentalidade
colonial e da ideologia da unidade nacional, que passo a comentar no
âmbito do Brasil.
7.2 – Descobrindo o “outro” indígena invisibilizado
Presa nas redes de uma cultura de dominação, a classe de dirigentes
que dominou no período pós-independente tanto no Brasil quanto em outros
países latino-americanos, interiorizou acriticamente o código cultural
ocidental e depreciou os valores autóctones de suas próprias tradições
culturais (Fornet-Betancourt, 1995, p. 23). Os povos indígenas, por sua vez,
apesar de terem sobrevivido à devastação colonial e, na seqüência, ao racismo
das oligarquias nacionais, e apesar de muitos deles terem desenvolvido uma
cultura paralela à da sociedade colonial, ocupam o imaginário das pessoas
em muitos países latino-americanos como “fantasmas”; ou seja, como seres
que, embora “irreais”, amedrontam.
Eni Pulcinelli Orlandi estudou o discurso da descoberta e os discursos
posteriores que construíram “o indígena” no Brasil. Ela sua análise ela
mostra como funciona a hermenêutica do invasor e como se processou
a invisibilização dos povos indígenas e da sociedade que os sucedeu na
colônia.
Transplantando para o mundo do colonizado o conceito de Norbert
Elias sobre “civilização”, Orlandi aponta uma contradição fundamental.
Para ela, “submetidos aos desígnios (dever ser) da civilização ocidental,
somos
8
seres culturais, sobretudo quando resistimos em nossas diferenças.
Mas, para isso, perdemos a possibilidade de termos uma história, que é
pela parcela que nos cabe na civilização ocidental que somos contados em
uma história (a da colonização)” (Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 46). Ou seja,
o princípio pelo qual se nega sistematicamente os “outros” na sociedade
brasileira redunda no apagamento dos próprios brasileiros no âmbito das
relações com a Europa. “O europeu nos constrói como seu ‘outro’ mas, ao
mesmo tempo, nos apaga. Somos o ‘outro’, mas o outro ‘excluído’, sem
semelhança interna”. Orlandi prossegue dizendo que os europeus “nunca
se colocam na posição de serem nosso ‘outro’. Eles são sempre o ‘centro’,
dado o discurso das descobertas, que é um discurso sem reversibilidade.
291
Nós é que os temos como nossos ‘outros’ absolutos.” (Pulcinelli Orlandi,
1990, p. 47). A lógica através da qual os europeus convertem no seu “outro”
os indígenas e, na seqüência, os descendentes de europeus que foram se
tornando “lhos da terra”, impõe sobre a população latino-americana o
“dever” de ter certas “singularidades” e exibir certo “exotismo”, às vezes
atraentes, às vezes marcados pela barbárie (Pulcinelli Orlandi, 1990, p.
33).
Mas “somos singulares em relação a quê e a quem?” , pergunta a
autora. “A um padrão lá. O outro europeu”, responde. Para ela, “o discurso
da singularidade é o discurso da cultura (dominado pelo da civilização),
que a historiciza. Fica sempre como se nós tivéssemos um ‘outro’. O
nosso outro é o português, o italiano, o francês, etc. Como nos constroem
uma história em que somos apagados como alteridade, somos apenas
‘singulares’, temos ‘particularidades’” (Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 48).
A descrição de Orlandi se enquadra no que Panikkar denomina
“monoformismo cultural”, que consiste na crença de que uma única forma
de ser humano, uma única forma de cultura, etc. Um unum culturale. Essa
pretensão é parte do gênio do Ocidente e de seus tentáculos colonialistas
(Panikkar, 1993, p. 26).
No Brasil, essa convicção se historiciza diluindo as diferenças
através da secular insistência na unicidade da “nossa” cultura. Aqui também
se aplica o que Benjamin Akzin escrevera sobre o desenvolvimento dos
nacionalismos, que a igualdade se tornou um bom solvente para diluir
as identidades étnicas (Ap. Robins, 1999, p. 24). Com essa ideologia
os descendentes de africanos e os indígenas são apagados, tornados
invisíveis, no Brasil. O índio é totalmente excluído; no que se refere à
identidade nacional, ele não gura nem como estrangeiro, nem sequer
como antepassado. “Os portugueses descobriram o Brasil”. Daí se infere
que os antepassados dos brasileiros são os portugueses e que antes deles
o Brasil era apenas uma extensão de terra. O único “outro” que age como
contraponto da “nossa identidade” (brasileira) é o europeu: seja como nosso
antepassado ou como imigrante (Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 57). uma
ruptura histórica pela qual se passa do índio para o brasileiro através de um
“salto” (Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 56).
Junto à invisibilidade, a autora destaca a existência de um “silêncio
constitutivo” na formação da identidade brasileira. Na sua opinião, esse
silêncio não é nenhum vácuo, nenhum vazio: o silêncio também é. De modo
292
que se história no silêncio é porque sentido no silêncio. O silêncio
signica no contexto em que ele é produzido (Pulcinelli Orlandi, 1990, p.
50). uma política da palavra por trás dele. Ela faz com que a pessoa
silenciada acabe por signicar ao longo dos seus apagamentos e a partir
das falas exteriores a ela. “O brasileiro, para signicar, tem como memória
(domínio do saber) o já-dito europeu. Essa é a ‘heterogeneidade’ que o
pega desde a origem. A sua fala é falada pela memória do outro (europeu)”
(Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 51). No caso dos indígenas, esse silenciamento
vai “desde o assassinato puro e simples até a exclusão do índio da discussão
de problemas que o afetam diretamente” (Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 59).
A autora enfatiza que a ciência, a política social e a religião se apresentam
como três modos de domesticar a diferença: a primeira pelo conhecimento,
a segunda pela mediação e a terceira pela salvação. As três contribuem
para que se apague a identidade do indígena enquanto cultura diferente e
constitutiva da identidade nacional. “A ciência torna o índio observável,
compreensível, e sua cultura, legível; o indigenismo o torna administrável;
a catequese o torna assimilável. Diríamos, pois, que a compreensão amansa
o conceito índio; a pacicação amansa o índio como corpo e a conversão
amansa o índio como espírito, como alma. Essa domesticação representa
o processo pelo qual ele deixa de funcionar, com sua identidade, na
constituição da identidade nacional” (Pulcinelli Orlandi, 1990, p. 57).
7.3 – Nós “outros” na perspectiva indígena
Mas o ressurgimento do “outro” indígena traz consigo também
a possibilidade de ouvir, da boca dos próprios indígenas, o modo como
eles construíram o “branco” - o colonizador de ontem e de hoje - como
seu “outro”. Assim, o que se pode vericar nas narrativas indígenas sobre
a origem do mundo, a chegada dos brancos e os 500 anos do Brasil,
publicadas pelo Instituto Sócio-Ambiental, é que na perspectiva dos povos
indígenas, “os índios são anteriores aos brancos, na ordem do parentesco e
na ordem do território. Os brancos não chegaram aqui, eles saíram daqui;
não descobriram os índios, mas encobriram a si mesmos, até voltarem para
o que pensaram ser um encontro com o desconhecido, mas que não foi
senão o encontro com o olvidado” (Viveiros de Castro, 2000, p. 16).
Para o Yanomami Davi Kopenawa (2000b, p. 19, 2000a, p. 21,
293
23), os “brancos” foram criados na oresta amazônica pelo ser criador
Omama, mas este os expulsou porque tinha medo da sua falta de sabedoria
e porque se tornaram perigosos para o grupo. Esse episódio não impede
que os Yanomami reconheçam que os “brancos” são engenhosos e que têm
muitas máquinas e mercadorias. Por outro lado, eles são muito esquecidos,
precisando por isso desenhar suas palavras. Eles xam seu pensamento sem
descanso em suas mercadorias, como se elas fossem suas namoradas.
Ailton Krenak retoma os relatos dos Tikuna, dos Guarani e do seu
grupo, os Krenak, e arma que seus parentes “sempre reconheceram na
chegada do branco o retorno de um irmão que foi embora muito tempo”,
e que, indo embora, afastou-se do tipo de humanidade que os indígenas
estavam construindo. Para ele, o “branco” “é um sujeito que aprendeu muita
coisa longe de casa, esqueceu muitas vezes de onde ele é, e tem diculdade
de saber para onde está indo” (Krenak, 2000, p. 46-47). Os brancos não
chegaram ao Brasil 500 anos atrás, eles apenas retornaram. E os indígenas
assistiram ao retorno deles e de cada povo que veio mais tarde. “Nós vimos
chegar os pretos, os brancos, os árabes, os italianos, os japoneses. Nós
vimos chegar todos esses povos e todas essas culturas. Somos testemunhas
da chegada dos outros aqui (...). Nós não podemos car olhando essa
história do contato como se fosse um evento português. O encontro com as
nossas culturas transcende a essa cronologia do descobrimento da América
(...). Reconhecer isso nos enriquece muito mais e nos a oportunidade
de ir anando, apurando o reconhecimento entre essas diferentes culturas
e ‘formas de ver e estar no mundo’ que deram fundação a esta nação
brasileira” (Krenak, 2000, p. 47).
O notável é, como destaca Viveiros de Castro, que alguns relatos
contemporâneos dos indígenas correspondam estruturalmente a uma “arqui-
narrativa” tupinambá publicada em 1575 e que a presença dos “brancos”
tenha sido tão cedo integrada a um complexo mítico evidentemente anterior
a 1500. Nele, segundo a análise de Lévi-Strauss, os brancos estavam contidos
virtualmente, isto é, previstos em uma estrutura constitutiva do pensamento
indígena como “um operador dicotômico que faz com que toda posição
de um termo seja inseparável da contraposição de um termo contrário”
(Viveiros de Castro, 2000, p. 49. Consultar a respeito Lévi-Strauss, 1993,
p. 61-71).
Os “brancos”, nessa lógica, teriam vindo ocupar apenas um degrau
suplementar na cascata de dicotomias reiteradas entre as posições de ‘si’ e
294
de ‘outrem’”. Para Lévi-Strauss, a “necessidade retrospectiva da posição
do outrem” no pensamento indígena deve entender-se como abertura ao
“outro” e como algo consubstancial a esse pensamento. Mas esse “outro”
(branco), lamenta Viveiros de Castro (2000, p. 50), tinha toda uma outra
idéia do que devia ser o “outro” indígena. Nas narrativas indígenas, “os
brancos oscilam entre uma positividade e uma negatividade igualmente
absolutas. Sua gigantesca superioridade cultural (técnica, ou objetiva) se
dobra de uma innita inferioridade social (ética, ou subjetiva): são quase
imortais, mas são bestiais; são engenhosos, mas estúpidos; escrevem, mas
esquecem; produzem objetos maravilhosos, mas destroem o mundo e a
vida” (Viveiros de Castro, 2000, p. 50-51).
Essa ambivalência da cultura do “outro” “branco” radica hoje o
problema do desterro dos indígenas, “pois o desao ou enigma que se põe
aos índios consiste em saber se é realmente possível utilizar a potência
tecnológica dos brancos, isto é, seu modo de objetivação sua cultura
–, sem se deixar envenenar por uma absurda violência, sua grotesca
fetichização da mercadoria, sua insuportável arrogância, isto é, por seu
modo de subjetivação – sua sociedade” (Viveiros de Castro, 2000, p. 51).
Para que o ressurgimento dos povos indígenas seja também uma
ocasião para romper com a mentalidade colonial, que Panikkar chama de
“epistemologia do caçador”,
9
precisa-se de um paradigma de relacionamento
que reconheça e respeite a alteridade indígena e promova seu protagonismo.
Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, “o encontro entre índios e
brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre
parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o
desequilíbrio perpétuo
10
do mundo um pouco mais para a frente, adiando
assim o seu m” (Viveiros de Castro, 2000, p. 54). Em todo caso, a pergunta
que nos cerca mais uma vez é: o que fazer com o “outro” próximo? A seguir,
intento reagir a essa questão no âmbito religioso.
7.4 – Os povos indígenas têm algo a dizer para nós
Para que a “emergência” de uma “sociedade mundial” redunde na
instauração do diálogo entre os povos, as tradições espirituais precisam ser
vistas como fontes de enriquecimento mútuo entre as religiões e as culturas.
Retomo aqui o inclusivismo e o pluralismo, referidos brevemente no início
295
deste livro, e aponto as possibilidades que eles oferecem para o diálogo
com as populações indígenas. Pretendo destacar, ainda, o que esses povos
podem aportar para o debate sobre a globalização.
7.4.1 – Quando a inclusão do “outro” entrava o diálogo
A atitude inclusivista impede o diálogo quando incorpora outras
experiências religiosas e outros sujeitos religiosos ao que considera
universal e cristão e quando reduz as outras formas de saber à “lógica”
que lhe é familiar. Entende-se nesse procedimento que todas as religiões
são, no fundo, uma “mesma coisa” e que o cristianismo tem as chaves para
decodicar a diversidade “aparente” que se observa nelas e convertê-las à
“mesma coisa” que no fundo elas são. nessa atitude uma preponderância
do “eu” que se arroga o direito de falar em nome do “tu”, mediante os
conceitos e a linguagem da primeira pessoa. Nas palavras de Carlos Alberto
Steil, que se reporta a Panikkar,
aqueles que desposam essa atitude, com freqüência, se vêem como aqueles
que detêm o privilégio de estabelecer o lugar que os outros devem ocupar
no universo. Ou ainda, o inclusivismo pode cair num relativismo estéril,
na medida em que as diferenças são arranjadas dentro de uma estrutura
lógica e formal, que é propriedade de quem se atribui o direito de pensar o
mundo como uma determinada totalidade, onde sua fé, ideologia, intuição
ou qualquer outro nome que se possa dar, torna-se um super-sistema, capaz
de abarcar os pontos de vista “inferiores” e de colocá-los em seus lugares
certos (Steil, 1993, p. 28-29).
Ao proceder dessa forma, entende-se no inclusivismo que há, na
cultura européia, uma espécie de “núcleo duro” – que se remonta em última
instância ao logos grego-ocidental com suas categorias racionalistas que
teria que ser inculturado nas outras culturas (Fornet-Betancourt, 2000, p.
55). Por outro lado, esquece-se, nessa perspectiva, que cada religião diz
uma coisa distinta da outra e que a manifestação e articulação que cada
uma é essencial para a autocompreensão dessa religião. Ou seja,
desconsidera-se que a religião não pode ser despojada do que ela mesma
disse que é, e que ela não pode ser reduzida a uma quinta essência platônica
na qual supostamente todos nos comunicamos e nos fazemos ou nos
tornamos inteligíveis (Panikkar, 1993, p. 22-23). O suposto “diálogo”
296
que se instaura dessa forma consiste em pinçar da outra religião aqueles
elementos que cabem na moldura predeterminada pelo cristianismo. O
interesse pelo que o “outro” tem a dizer se restringe ao âmbito do que é
conveniente para a conrmação do que se considera “próprio”. Não se ouve
a palavra do “outro”, mas o eco da própria voz. O que parece ser um gesto
de “generosidade” consiste apenas em dar oportunidade ao “outro” para
que conrme com suas palavras o status quo do seu interlocutor.
Essa atitude que instrumentaliza o “outro” a favor do “próprio”
desconsidera que o dizer de uma religião é essencial ao dito e que igualmente
indissociável do dito é seu conteúdo. De modo que não só há que se atentar
para o que as outras religiões têm a dizer mas também para a forma como
elas dizem o que dizem. Nos dizeres das religiões não lateja o logos,
senão também o mito. Isso signica que no contato das espiritualidades
indígenas com as teologias cristãs que se prestar atenção para que (1) a
memória simbólica do imaginário indígena não que desestruturada pelos
conceitos lógicos, (2) as palavras fundantes oriundas do âmbito do mito
não se sujeitem à razão grega sob a pressão da hierarquia estabelecida pela
lógica ocidental e (3) as tradições autóctones não se desloquem para a
margem sob o peso de um outro centro fundante imposto pela inculturação
do logos grego.
11
7.4.2 - Quando a inclusão do “outro” dinamiza o diálogo
Mas o inclusivismo é, por outro lado, proveitoso para o diálogo
por ele oportunizar que, no âmago de cada cultura e religião, ocorra o
reconhecimento de que naquilo que se costuma chamar de “próprio” estão
gravadas as pegadas do “comércio” com o “outro”. O “próprio” carrega
em si mesmo o aguilhão do forasteiro, do próximo, do supostamente “não
próprio” (Fornet-Betancourt, 2001, p. 380), bem como a capacidade de
fazer uma experiência intercultural. Essa não se dá somente no exterior das
fronteiras da própria cultura, mas também como uma experiência interna,
uma espécie de fronteira que se vive no interior de cada cultura (Fornet-
Betancourt, 2001, p. 381). Percorrendo as vielas que conduzem às fronteiras
internas do cristianismo, chegaremos a constatar que “o cristianismo não
pertence ‘por si só’ a uma tradição de armações monolíticas e sem ssuras”
(Gesché, 1993, p. 42), mas que ele é
297
a “religião judaico-greco-romano-celto-gótico-moderna”, “convertida” a
Cristo. Em síntese, hoje o cristianismo é de fato o “paganismo” convertido,
é o conjunto das religiões mediterrâneas, que encontraram em Cristo a
sua plenitude. Esta é a razão teológica fundamental, subjacente às origens
“pagãs” da maior parte das formas de vida cristã, desde as festas religiosas
até a liturgia e a própria teologia. O cristianismo, efetivamente, não é um
meteorito caído do céu, um corpo errante, mas ele está radicado no solo
pagão da Europa e a ele deve a sua força e a sua fraqueza (Panikkar, 1971,
p. 122).
nas Sagradas Escrituras se verica semelhante estrutura. Roberto
Bartholo (1993, p. 132) destaca que o Primeiro Testamento “mostra na longa
história de sua composição, uma abertura de contatos para com as literaturas
egípcia, babilônica ou mesmo grega”. A Torá judaica, por exemplo, é um
livro que se caracteriza pela acumulação de textos diferenciados. Ela não
realiza supressões ou amálgamas, para evitar contradições (Bartholo, 1993,
p. 132) e os profetas desmascaram incansavelmente a tentação idolátrica
que em termos modernos chamaríamos de rejeição da alteridade, do outro
(Gesché, 1993, p. 53).
Bartholo naliza dizendo que, no Segundo Testamento, “a doutrina
cristã da Graça imerecida exclui toda absolutização farisaica da religião,
construída sob o ‘álibi’ de ser verdadeira” (Bartholo, 1993, p. 136). É o
que também ressalta Silvia Schroer no âmbito das Sagradas Escrituras e da
história do cristianismo. Para ela,
A de Israel, como também a das primeiras gerações cristãs, se prende
basicamente a processos de inculturação, com passagem por vários
‘sincretismos’. A Bíblia, cuja mensagem hoje vem sendo traduzida nas
culturas da Ásia, da América Latina e da África, é, em si mesma, um
documento de aprendizado intercultural e de procura de identidade ao tempo
de sua origem. Em seu trânsito para a Europa, esse documento nalmente
teve de ser inculturado em nosso meio, através de ingentes esforços
missionários (Schroer, 1994, p. 9).
A constatação da constituição plural de si mesmo desenvolve-se
numa apropriação ativa e crítica da própria tradição. Essa relação com as
Sagradas Escrituras poderá mostrar que a Bíblia foi lida durante séculos
com um espírito que lhe é estranho: “com o espírito da losoa abstrata
helenística, com o espírito imperial de Constantino, com o espírito europeu
298
da conquista e da colonização, com o espírito ocidental patriarcal e ilustrado,
com o espírito individualista do liberalismo moderno” (Richard, 1992, p.
17). Esses “espíritos” interditaram o caminho do encontro, do diálogo e
da solidariedade. Para reverter esses desencontros, a Bíblia deve ser lida
e interpretada com o mesmo espírito que a inspirou; isso, segundo Pablo
Richard, exige um ponto de referência não-ocidental, “não-helenista,
não-imperial, não-colonial, não-ilustrado, não-patriarcal, não-liberal, não-
moderno”. Richard é da opinião que os povos indígenas, com sua cultura
e religião, podem nos dar esse ponto de referência não-ocidental ou “esse
reverso da história a partir do qual possamos ler e interpretar a Bíblia
com olhos novos e limpos, e re-encontrar o Espírito com que foi escrita”
(Richard, 1992, p. 17).
As religiões indígenas, por sua vez, não são estruturas monolíticas
nem meteoritos caídos do céu; elas também têm sua própria “história da
salvação”, que é posta à prova geração após geração pelos aborígines de
cada grupo, seja de forma independente da religião cristã ou indigenizando
alguns elementos do cristianismo.
Alguns aspectos da reapropriação crítica que os povos indígenas da
geração atual vêem fazendo da sua história, cultura e religião podem ser
observados nas conclusões que eles tiraram no IV Encontro Ecumênico
Latino-americano de Teologia Índia realizado no Paraguai, em maio de
2002 (http://www.missiologia.org.br/artigos/Concles.htm). Por um lado,
as populações congregadas nesse evento instam a restaurar as festas e os
projetos de vida baseados nos seus valores fundamentais. Elas querem
recordar os mitos, celebrar e fortalecer os ritos e dar lugar aos sábios e
às sábias, que detêm a sabedoria dos seus respectivos povos. Por outro
lado, os 44 povos reunidos no encontro convocam as diversas etnias a se
encontrarem a nível local, regional e continental e a somarem seus esforços
aos dos não indígenas que são solidários com a causa indígena e os ajudam
a conhecer as leis e os modos de vida vigentes na sociedade circundante.
Em suma, as populações indígenas estão dispostas a lançar mão
criticamente dos instrumentos da modernidade, sem abdicar da “lógica”
nativa. Elas estão convencidas de que também no exterior das fronteiras
de suas próprias culturas vozes comprometidas com a promoção do
desenvolvimento integral dos povos.
299
7.4.3 – Libertando a palavra das amarras do “eu” e do “outro”
Se na versão colonial do exclusivismo o “outro” devia desaparecer,
seja por etnocídio direto ou sendo dissolvido na sociedade colonial,
no inclusivismo ele é determinado sobretudo por um “eu” que se julga
detentor do “próprio” e expressão do “universal”. O pluralismo, por sua
vez, decompõe essas visões de “outro” e mostra que, no assimilacionismo
das duas perspectivas anteriores, não é o “outro” o problema mas o
“eu”, que usurpa a posição de “próprio” e a partir daí seu próximo
como “outro”. No entanto, a compreensão que ele tem do “outro” não
equivale à autocompreensão do “outro”, de modo que resta aceitar que o
“outro” não se como “outro”, mas como “si mesmo” (Panikkar, 1993,
p. 26). No pluralismo, o “outro” é um sujeito de autoconhecimento, de
autocompreensão e de auto-interpretação, de modo que ele nunca pode ser
conhecido pelo “eu” como ele realmente é (Panikkar, 1993, p. 26, 27). Se
o “eu” quiser conhecer o “outro” como ele é, precisa que esse “outro” se
manifeste para ele. O “eu” é dependente do “outro”, não por este ser a
fonte que lhe permitirá conhecê-lo, mas também por ele lhe revelar os seus
próprios limites e os limites do que ele considera seu “próprio” (Panikkar,
1993, p. 32).
Nessa forma de compreender o “outro”, o diálogo é como um
encontro entre dois aprendizes que se reconhecem mutuamente, que querem
se levar a sério e aprender um sobre o outro. Sem essa condição e essa
disposição, haverá o monólogo de alguém que prega, para as pessoas que
estão “em baixo”, seu saber “superior”. Por isso, o diálogo inter-religioso
com os povos indígenas que priorize o crescimento na interculturalidade
precisa (1) cultivar uma abertura descentrada frente ao “outro”, deixar-se
interpelar pela sua alteridade e tratar de encontrá-lo a partir de seu horizonte
próprio (Fornet-Betancourt, 1995, p. 23-24). Mas, como o diálogo não é um
exercício de pacicação das controvérsias, (2) ele não pode ser uma tática
para reunir as diferenças numa totalidade supostamente superior a elas, que
as harmoniza. A harmonia só pode ser alcançada a longo prazo e através da
solidariedade que “quer o outro”. (3) que se sair de um modelo mental
que se xa na verdade como algo dado em si mesmo para um modelo que
leva em conta o transcurso. (4) A inteligência deve ser exercitada para
perceber a respectitividade da realidade, ou seja, “o real como algo que diz
respeito a”. (5) Arrancar o que nos é culturalmente “estranho” do domínio
300
dos conceitos e colocá-lo na vida e na corporalidade do outro, ensaiando
uma compreensão respectiva
12
desse culturalmente “estranho” e evitando
os hábitos de sujeição, redução e denições apressadas (Fornet-Betancourt,
1995, p. 24-28).
A proposta intercultural contempla como condição prévia a disposição
de renegociar com base numa discussão igualitária entre as culturas,
numa espécie de “parlamento democrático que não concede a nenhuma
cultura direito a veto, mas sim o direito a expressar-se sem limitações
conceituais prévias” (Fornet-Betancourt, 2000, p. 55-56). De modo que se
entende obviamente que a teologia não se faz só na Europa ou nos Estados
Unidos. teólogos e teólogas na selva, entre os desolados na beira das
estradas, nos púlpitos e nas academias, nas catedrais cristãs e nas casas de
oração guarani. A teologia não se concebe racionalmente; teologias
ritomórcas e míticas e muitas não conhecem o aprisionamento da escrita,
pois estão inscritas no pentagrama da memória, nos passos da dança e nas
imagens do sonho.
Nessa maneira de formular a alteridade, o que se chama de “outro”
não está em oposição ao “próprio”, não é um “não-eu”, mas uma dimensão
do “eu”. Da mesma forma, o “outro” não é um objeto ao qual um super
“eu” assina o lugar que deve ocupar, mas um sujeito que compartilha
essa posição com outros atores sociais. Assim, o pluralismo enquanto
relacionalidade procura desconstruir os preconceitos acumulados sobre o
“outro”, descobrindo-o como sujeito e pleiteando para que ele se assuma
e seja reconhecido como tal na sociedade. No caso dos povos indígenas
isso implica em transgredir as velhas normas cientícas convencionadas no
Ocidente: deixar de ser “objetos de estudo” e revelar-se ou rebelar-se como
“sujeitos de auto-reexão”, o que sem dúvida sempre foram, ainda que sem
ser reconhecidos.
7.4.4 A autocomprensão dos povos guarani no debate da
globalização
Isso implica, no caso especíco tematizado neste livro, que a
sociedade latino-americana, integrada majoritariamente por não-indígenas
e marcada pelo monoformismo cultural ocidental, se deixe interpelar pelos
indígenas. Para os indígenas, isso implica não se deixar intimidar pelos
301
desencontros históricos, que os marginalizaram e que ridicularizaram sua
forma de pensar, de agir e de conhecer. Eles precisam de coragem e apoio
para construírem seu espaço na sociedade, sem medo de serem “reduzidos”
pelas outras subjetividades; precisam de um lugar onde possam viver em paz
o modo de ser que eles consideram ser-lhes “próprio”, oréva, e relacionar-se
em liberdade com os “outros”, conformando-se a esses “outros”, ñandéva,
se eles assim quiserem ou precisarem.
Oréva e ñandéva, como foi visto no primeiro capítulo, formam dois
tipos de consciência de si, uma exclusiva e outra inclusiva. Provavelmente,
antes mesmo do período da conquista, os Guarani vieram alternando
comportamentos que, sob determinadas condições, xavam-nos aos
limites estabelecidos pelo orévae, em outras, animava-os a extrapolar
esses limites, a abrirem-se ao “outro” e a aceitá-lo como seu interlocutor, a
constituir um “ñandéva”.
Ambas as atitudes diante do “outro” são imprescindíveis para a
concretização de um diálogo sincero. Ao se afastar do “outro”, eles cultivam
a consciência de possuir um bem próprio que se perpetua dia após dia. Sendo
receptivo ao “outro”, ñandéva, eles compartilham não só suas experiências
de risco e de derrotas, mas também de cumplicidade e crescimento. O
caminho que conduz à intercomunicação é a própria tradição, vivida
nos diversos âmbitos do oréva. Não como identidade fechada e pronta,
mas como algo em curso, em trânsito, como ponte para a outra beira, o
ñandéva. E não podemos saltar a ponte, mas transitar nela. Ninguém pode
prescindir da própria tradição para chegar ao “outro”. “Trans-portamos
nossas tradições e deixamos que nos trans-portem outras, e nos fazemos
assim agentes-pacientes de verdadeiros processos de universalização”
(Fornet-Betancourt, 2001, p. 31). Neles a universalidade é procurada
desligada da gura da unidade, mas como “arquipélago de fragmentos”
diria Boaventura de Souza Santos, como programa regulativo centrado
no fomento da solidariedade entre todos os universos (Fornet-Betancourt,
2001, p. 31-32).
Depois de centúrias de rejeição
13
é possível que os indígenas precisem
hoje de sinais que lhes garantam que “do outro lado da ponte” não está
espreitado um “jaguar”, pronto para “devorá-los”; isto é, para em nome
da igualdade convertê-los em “cidadãos comuns”. Em acontecendo isso,
ñandéva já não signicaria “nós inclusivo”, mas desguramento e diluição
da pessoa. Interpretando a ansiedade dos indígenas com as palavras de
302
Todorov (1983, p. 245), pode-se dizer que eles desejam a igualdade sem
que ela lhes acarrete a identidade; mas também a diferença, sem que ela
degenere em superioridade/inferioridade. Como diria Boaventura de Souza
Santos, eles têm o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e
de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.
Nesse sentido, se no presente a globalização é um processo que
agudiza as assimetrias a nível planetário e uniformiza o imaginário das
pessoas apresentando um futuro como possível, a proposta intercultural
quer fazer valer a polivalência da história. Há vários futuros possíveis e “a
maior ou menor universalização histórica de um desses futuros é um assunto
que deve ser decidido mediante o diálogo das culturas” (Fornet-Betancourt,
2001, p. 376). Assim, a globalização passa a ser vista como oportunidade
para a instauração de um diálogo entre os povos. O depoimento que se
segue mostra que os indígenas estão preparados para essa nova forma de
relacionamento.
Cada tradição, cada costume, seja dos Guarani ou de outros povos,
seja dos brancos, ela tem valor. (Tem valor ) porque Deus (a) criou
para cada nação, para cada etnia, para cada povo, para cada país. (...)
Cada costume (...) é uma riqueza que a gente tem. uma riqueza)
da força de Deus.
14
Em que sentido - perguntaria - a cultura e a religião dos Guarani são
“uma riqueza da força de Deus” que tem algo a dizer a todos? Nas páginas
deste livro concentrei-me em destacar dois aspectos dessa “riqueza”: o
vínculo dos Guarani com o que chamamos de “natureza” e sua capacidade
de crer e manter a fé e a esperança no meio da desolação. Para os Guarani,
tanto a natureza e as manifestações da natureza como os humanos e suas
obras são seres com alma.E é o contato no nível da alma que é a fonte para
uma relação qualitativa, de alma para alma, entre os Guarani e seu mundo
exterior (Grünberg, 1995, p. 8).
Em geral, entre os povos indígenas podemos apreciar que o encontro
com a “natureza” é um encontro com Deus, que os seres vivos formam uma
cadeia única e sagrada de vida, que dentre eles os humanos são os mais
dependentes do planeta e que eles precisam viver com responsabilidade
essa condição. Isso requer o cultivo de uma espiritualidade baseada numa
imagem não-hierárquica do divino, que inspire relações não hierárquicas
entre os seres humanos e destes com os outros seres da natureza.
303
E porque os indígenas contemporâneos são uma das maiores vítimas
da concepção de mundo que prevaleceu na teologia cristã e legitimou a
depredação e a secularização da terra e do corpo dos seres humanos e
condenou ao desterro povos inteiros, a relação de cumplicidade na justiça
signica associar-se a eles na sua luta pela terra e nos seus esforços por
transformá-la, de “cercada pelo mal”, em lugar bom para se viver. O que
no caso dos povos guarani é uma terra onde o grupo tire sua subsistência
da agricultura, caça, pesca e coleta tradicionais; é um lugar que além de
assegurar a vida material propicie sonhar belas palavras.
E a Bíblia se encerra com o anúncio da realização da primeira aliança
colocada pela no começo da história: “Tudo o que vive merece viver”.
Ap 21 anuncia: Deus será de novo de todos e todos serão povos de Deus.
Para que essa utopia continue viva, é fundamental que os outros atores
sociais se associem à experiência que os indígenas vêm fazendo para que
o contato com a sociedade “global”, que os cerca, não os converta em
cidadãos genéricos. Igrejas e outros atores sociais podem achar seu lugar
nesse processo, associando-se a eles contra sua exclusão e marginalização
da sociedade e ao mesmo tempo contra sua integração compulsiva e
sua diluição na sociedade, apoiando-os a preservarem sua dignidade
e orientarem sua autoconança para, em condições iguais, participar do
diálogo com as outras culturas que compõem as Américas e com os seres
humanos de outros continentes.
Que podemos aproveitar da experiência que os Guarani juntaram ao
longo dos anos para reetir a situação dos povos indígenas no contexto
da globalização atual? Que não é possível assegurar a diversidade cultural
como pluralidade de visões de mundo, onde cada cultura tem algo a dizer a
todos, se as transformações em curso em nossa sociedade não oferecerem
espaço e condições e, sobretudo, não incentivarem a manutenção das
fronteiras de diferenciação cultural, oréva, e o protagonismo de todos os
atores sociais na mesma medida em que fomentam a abertura das fronteiras,
ñandéva, e a construção de uma sociedade global.
Termino apontando que nas narrativas indígenas sobre a origem do
mundo, a chegada dos “brancos” e os 500 anos do Brasil consta que os
humanos não são todos descendentes de um casal primordial. Tendo-se
apropriado do relato bíblico, alguns grupos indígenas armam que Eva tinha
um irmão, que se tornou o progenitor de alguns humanos descendentes
colaterais de Eva e não de Adão. A moral que Viveiros de Castro encontra
304
nesses relatos é a seguinte: Se na visão dos indígenas fôssemos todos
os humanos irmãos e irmãs, nos identicaríamos naturalmente, como o
fazem os irmãos e as irmãs. Mas nós somos primas e primos cruzados,
isto é, cunhadas e cunhados potenciais, seres de relação. “Seremos sempre
diferentes, pois é essa diferença que nos torna socialmente necessários uns
aos outros, e igualmente necessários uns aos outros” (Viveiros de Castro,
2000, p. 54).
(Notas)
1 Para uma comparação entre os dois documentos, cf. Boff, Leonardo, 1991, p. 126ss.
2 Para Tillich, a “cruz de Cristo” é o símbolo que expressa que o cristianismo está consciente
da sua própria condicionalidade e que, sendo-lhe inerente a autocrítica radical, ele é, dentre
todas as religiões, a que apresenta maior vocação para a universalidade (Tillich, 1984, p.
22-23).
3 Tillich, Dinâmica da , p. 81. O autor, apesar de reconhecer que todas as religiões do
mundo têm em si a estrutura do “novo ser”, concede ao cristianismo o mérito de ser o detentor
do critério para medir as revelações. Para ele, a teologia “deve mostrar que tendências
imanentes em todas as religiões e culturas caminham em direção à resposta cristã” (Tillich,
1984, p. 22-23).
4 “Inêdita” porque até então a guerra aos indígenas tinha sido dada ocialmente como
defensiva (Carneiro da Cunha, 1992, p. 136).
5 Bugreiro: caçador de “bugres”. Bugres”: nome pejorativo dado aos indígenas,
especialmente aos que habitavam a região situada entre os rios Piriqui, Iguaçu e Uruguai,
no Sul do Brasil.
6 Nesse mesmo período, o crescimento da população brasileira é estimado em 1,6%.
Segundo a autora, resta saber se o acelerado crescimento da população indígena é devido à
queda da mortalidade ou se se trata de uma recuperação demográca consciente (Azevedo,
2000, p. 80).
7 Conforme os dados da ONU, existem hoje em torno de 300 milhões de indígenas no
mundo. Comparado a isso, a quantidade de indígenas no Brasil é relativamente modesta.
Bruna Franchetto mostra que, mesmo assim, o Brasil é, no contexto sul-americano, o país
com a maior densidade de línguas indígenas, ou seja, com maior diversidade genética. Por
outro lado, essa riqueza lingüístico-cultural revela que o Brasil tem uma das mais baixas
305
concentrações de população por língua, com uma média de menos de 200 falantes cada uma
(Franchetto, 2000, p. 84).
8 Pulcinelli Orlandi usa a primeira pessoa do plural para referir-se à população brasileira
não-indígena.
9 Com essa imagem o autor compara a “razão” com uma “arma” e o “ato de conhecer” com a
“caça”. O caçador aponta com a sua razão, enfoca o objeto de forma clara e distinta, separa-o
do todo e atira nele. Esse ato de atingir o alvo é, segundo Panikkar, indevidamente chamado
de “conhecer”. Esse termo origina-se de “cognoscere”, que signica ‘nascer juntamente
com’ ou ‘começar uma nova existência’ (Panikkar, 1993, p. 30).
10 Com a expressão “desequilíbrio perpétuo”, o autor se refere a uma frase cunhada por
Lévi-Strauss para indicar o princípio dicotômico do mito tupinambá. Na sua interpretação,
os gêmeos dissimétricos que protagonizam os mitos mostram que as dualidades se opõem
sistematicamente, gerando não uma verdadeira igualdade, mas um desequilíbrio dinâmico
do qual depende o bom funcionamento do sistema (Viveiros de Castro, 2000, p. 50).
11 Baseado nas observações de Fornet-Betancourt sobre inculturação do logos grego nas
tradições do pensamento indígena (Fornet-Betancourt, 2000, p. 55).
12 “Respectiva” no sentido de “ser referente a”.
13 Há que se entender que alguns grupos indígenas não estejam interessados em aprofundar
o contato com a sociedade envolvente, nem se sintam motivados a desvelar-se àqueles que
por 500 anos os estigmatizaram julgando seu modo de ser como “detestável costume”.
14 Memória Viva Guarani, 1998. A armação acima mostra, não que os Guarani não
conheçam a diferença entre natureza e cultura, mas que para eles essa diferença não é tão
importante e que a diversidade étnica e cultural da humanidade é algo bom. Por isso o
âmbito da tradição e da cultura é colocado por eles no mesmo plano da natureza, como algo
que se desenvolveu a partir do Ser divino.
306
307
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343
344
345
ANEXOS
Anexo I:
Glossário Guarani-Português
Anexo II:
Xamãs tupinambá dançando com a mbaraka
Anexo III:
Tekoha (lugar vital) dos grupos guarani
Anexo IV:
A og gusu (casa comunal) dos grupos kaiová
Anexo V:
A localização dos grupos guarani atuais
Anexo VI:
As Frentes Missionárias da Província
Jesuítica do Paraguai
Anexo VII:
Teocosmologia kaiová:
Uma intuição monoteísta?
346
347
ANEXO I:
Glossário Guarani-Português
Ã, ãng: Para os Paĩ-Tavyterã, três almas de origem terrena. Uma delas
se manifesta na sombra, ’ãnga. As outras duas estão no sangue e no
leite materno. Os Mbyá comentam a Ã, ãng como a “alma animal”
da pessoa. Baseiam-se provavelmente no relato segundo o qual os
animais posteriores à primeira criação vivem na terra sem sua alma
de origem divina, que teria cado no “céu”, manifestando-se na terra
através da sombra.
Ã, ãngue: A alma terrena da pessoa falecida.
Ache ou Ache-Guajaki: Grupo de caçadores e coletores classicado por
alguns de proto-guarani e por outros de grupo guaranizado. Vive na
região oriental do Paraguai.
Aguyje: Satisfação, perfeição, plenitude. Os Guarani entendem que,
plenicados, os humanos alcançam sua divinização.
Apyka: Banquinho feito de cedro, usado também ritualmente. Simboliza o
arraigo da palavra no ser humano.
Apyka kue: Ritualmente é assim mencionada a pessoa que morreu. Ela
torna-se um banco que já foi assento da palavra.
Ára pyau: novo tempo-espaço, primavera, na linguagem religiosa dos
Mbyá.
Ára ymã: velho tempo-espaço, inverno, na linguagem religiosa dos Mbyá.
Ára: Dia, tempo, clima, tempo-espaço, horizonte, rmamento. Junto com
saber forma árakuaa, discernimento.
Araguyje: Primavera, tempo-espaço perfeito.
Araka’e: Antigamente.
Arete: Tempo-espaço verdadeiro. Possui sentido semelhante ao sábado
bíblico, na semântica judaico-cristã.
Aty: Junta, reunião. Entre os Guarani do Brasil se estabeleceu a seguinte
terminologia: aty para a reunião local, aty guasu para a convocação
regional e ñemboaty guasu para a reunião geral das lideranças.
Ava: Gente, humano, homem. indígena.
Avati: Milho.
348
Avatiky: Milho novo.
Avatikyry ou kagui: Bebida feita do milho novo, também chamada de
“chicha”. Em alguns casos avatikyry indica o tempo compreendido
entre uma “festa do milho” e outra, aproximadamente um ano.
Avati moroti: Milho saboró. Espécie não comercializada no Brasil, conhecida
quase que exclusivamente pelos indígenas e chamada em linguagem
religiosa de avati jakaira.
Ayvu rapyta: Germe ou origem da porção divina da alma.
Ayvu: Alma de origem divina, palavra, falar, linguagem humana, palavra-
alma. Para os Mbyá, é o ser, a personalidade, a vida.
Chariã: Trickster, inimigo dos Mbyá
Chembojegua: Me enfeita.
Cheropapa: Eu te conto tua história.
Chícha jára: Guarda da “chicha”. Aquele que “nancia” a festa do milho;
ou seja, destina uma parte da sua roça para tal. É ele quem convida.
Chícha rechaha: Responsável espiritual e intelectual pela festa do milho.
Ele precisa conhecer o longo hino e os demais cantos. É ele quem
“batiza” o milho. Quem “vê” a chicha.
Chiku: Herói divinizado.
Chiripa: Saiote de algodão cru. Veste ritual dos homens.
Chiripa, Ñandéva ou Ava Katuete: Nomes de um dos grupos guarani
atuais. A segunda signica “nós inclusivo”; a terceira, gente de bom
caráter.
‘E: Dizer.
Eepy: resgatar, redimir o dizer, ressuscitar.
Endu: Ouvir, sentir, sentir empatia.
Epy: Resgatar, remir, preço
Ery mo’ã a: Médico tradicional, aquele que mantém erguido o uir do seu
dizer.
Guahu: Lamento. Canto solene, “com história” e de caráter religioso. Os
guahu ai são ritmicamente mais simples e são entoados em cerimônias
mais familiares, por ocasião de uma partida para caça ou pesca. Os
guahu ete têm ritmo mais complexo e muitas vezes estão em uma
linguagem arcaica, que não se consegue traduzir.
Guyra ñe’ẽngatu: Pássaro da boa palavra, o papagaio. Guarda dos portais
do “céu”.
Guyrapã: Arco ritual com o qual se canta e se dança o guahu ete.
349
Gypýny: Começo. Com araka’e indica uma antiguidade ainda mais
remota.
Hekory: Água de seu modo de ser.
Hembekuáva: Os que foram iniciados na adolescência, têm portanto o lábio
perfurado.
Itymby: Broto do milho, começo das coisas, nossa vida.
Ivoja: Iniciandos que têm um irmão já iniciado.
Jakaira: Guarda das plantas. Especialmente do milho.
Jasuka ou Jasukávy: Substância original, princípio feminino ativo do
universo, uido vital do qual se originou o universo. Emblema da
feminilidade, orvalho, água, árvore da vida. É fonte de vida, “uma
espécie de motor”, capaz de recompor as pessoas, omyatyrõ. Jasuka
é a base espumante da cruz, de onde procede a vida.
Jasukáva: “Mulher mbyá”, na linguagem religiosa do grupo. Signica
“aquela que traz o adorno das mulheres”.
Jasuka venda: Lugar de Jasuká, o Cerro Guasu. Para algumas pessoas
jasuka venda é uma árvore.
Jasy: Lua. Símbolo de Tyvýry.
Jeguaka: Diadema ritual feita de pena ou de pano de algodão. É usado pelos
homens. Emblema da masculinidade.
Jeguakáva: “Homem mbyá”, na linguagem religiosa do grupo. Signica
“aquele que traz o adorno dos homens”.
Jehovasa: Abençoar, ver o rosto, “batizar”.
Jera, (je)asojavo: Abrir-se em or, descobrir-se o criado, desenvolver-se,
desdobrar-se.
Jeroky, jerosy: Dança kaiová.
Joapyre’i: Uma ponta que pode ser ligada a outra. Continuidade. A reza, a
história das origens são um joapyre’i, vinculam uma geração com o
seu passado e o seu futuro.
Jopara: Mistura. Canto entoado e dançado indistintamente por homens e
mulheres, geralmente nos últimos dias das festas.
Ju: Amarelo, dourado, a luz do Sol.
Ka’aguy: Mata.
Kaiová: Um dos grupos guarani contemporâneos. Vivem no Mato Grosso
do Sul.
Kamañyti: Assim chamam os Mbyá o bastão de ritmo das mulheres na
linguagem religiosa.
350
Kandire: Translado ao paraíso sem passar pela morte, “com os ossos
frescos”. Ressurreição.
Karai ou karaíva: Líder religioso com acentuado carisma e religiosidade.
Xamã. Hoje em dia o termo é usado com esse signicado somente
pelos Mbyá. Nos outros grupos, o líder religioso é chamado de pa’i e
karai passou a signicar simplesmente “senhor”, “homem”.
Karoapy: Nas redondezas do “céu”.
Kotyhu: Cantos de caráter lúdico, de entretenimento, cantados e dançados
em roda por homens, mulheres e crianças. É cultivado especialmente
pelos Kaiová, Paĩ-Tavyterã, Chiripá e Ñandéva. Na sua interpretação,
esses cantos “não têm história”; isto é, não têm um enredo
narrativo.
Kuaapota: Vontade de saber, de investigar, de conhecer. Desejo de
sabedoria.
Kuaarara: O mesmo que arakuaa ou mba’ekuaa. Sabedoria criadora.
Ku’akuaha ou chumbe: Faixa usada na cintura.
Kuarahy: O Sol. O mesmo que Pa’i Kuara. Símbolo do “Nosso Irmão”.
Kuña Vera: “Mulher” que alcançou as virtudes xamânicas, entre os Kaiová
e os Paĩ-Tavyterã. Antigamente: hai.
Kunumi pepy: Festa do menino, iniciação dos adolescentes.
Kurundaju: Adorno semelhante ao pochito. É a veste ritual da cruz.
Kurusu: Forma guaranizada do termo espanhol e português “cruz”. É a
escora da terra, os bastões cruzados a partir do qual se formou a terra.
Usado também como símbolo de poder terreno, é igual a yvyra’i.
Kurusuja, kurusujára: O dono da cruz. Enfermeiro no período
missioneiro.
Kurusu kue: O mesmo que apykakue e mbarakakue. Com a morte, desarma-
se a cruz que sustenta o corpo e a fala da pessoa.
Kurusu Ñe’ẽngatu: A Boa Palavra da Cruz. Os Kaiová a referem como um
ser que integra as diversas manifestações divinas.
Kurusu ropyta ryjúigui roju: Nós procedemos da base espumante da cruz,
temos Jasuka.
Marane’ỹ ou marae’: Sem uso, novo, recém consagrado, virgem.
Mba’e a’ã: Ensaio, imitação, intento. As palavras, a oração, os relatos
imitam, remetem às coisas, à realidade.
Mba’e guasu: “A grande coisa”. O cadáver.
Mba’e marãngatu: Coisa santa. Pequeno e rústico altar feito de taquara.
351
Encontra-se no meio do pátio. Dentro da casa ritual dos Paĩ-Tavyterã,
Kaiová e Ñandéva, situa-se na frente da porta voltada para o leste.
Marãngatu é uma das expressões que mais se aproxima do que
costumamos chamar “religião”. Imarãngatu ou heko marãngatu:
Tem bom modo de ser, é amigo de bons costumes, é virtuoso ou
virtuosa, santo ou santa.
Mba’e pepy ou pepy: Convite, festa.
Mba’e pochy: Fúria, cólera, diabo ou outra forma de personicação do
mal.
Mba’ekuaa: Aquele ou aquela que sabe. Sabedoria. Nos mitos kaiová e
Paĩ-tavyterã personica-se num homem que contracena com “Nosso
Pai”. Nos relatos mbyá é uma “porção da própria divindade”.
Mbaíry ou maíry: Não indígena, o estranho ou estrangeiro. O mesmo que
jurua.
Mbaraka: Maracá. Chocalho feito de porongo. Instrumento de percussão
executado principalmente pelos homens, entre os Paĩ-Tavyterã,
os Kaiová, os Ñandéva e os Chiripá. Para os indígenas, nele mora
a voz de Deus. Para os Mbyá, ele é chamado de maraka miri. O
instrumento chamado de mbaraka pelos Mbyá é um violão de cinco
cordas, certamente de procedência européia, que eles adotaram como
seu no período missioneiro.
Mbaraka kue: O mesmo que apyka kue e kurusu kue. Na pessoa que falece
emudece a voz de Deus.
Mbogua: Em mbyá, alma da pessoa falecida. O mesmo que angue.
Mborahéi mbyky ou jerosy mbyky: Fragmento do que provavelmente foi o
canto longo das mulheres. Entoado igualmente nas grandes festas,
pelas mulheres.
Mborahéi ou Porahéi: Canção.
Mborahéi puku ou jerosy puku: Canto longo. Longa peregrinação. Espécie
de litania que narra a criação do mundo. É entoada pelos homens nas
grandes festas dos Paĩ-Tavyterã e dos Kaiová.
Mborahéi pukuja: Guarda do longo canto, uma pessoa religiosamente
madura.
Mbya: Gente. Pessoa. Autodenominação de um dos grupos guarani atuais.
Vivem no Paraguai, no Brasil e na Argentina.
Mbya: Guarani de verdade
Mimby: Pequena auta que os Kaiová e os Paĩ-Tavyterã usam para executar
352
uma espécie de intróito frente ao mba’e marãngatu.
Mitã Karai ou mitã mbo’éry: Ritual de nominação de crianças entre os Paĩ-
Tavyterã e os Kaiová.
Mitã ka’u: Bebedeira. Cerimônia ou ato de embeber as crianças ingerindo
kaguĩ. Estado de transe dos meninos.
Mitã kutu: Cerimônia de perfuração do lábio.
Ñamandu: Primeiro ser divino que se manifesta como “Nosso Pai” na
mitologia mbyá.
Ñande Jári: “Nossa Avó”.
Ñande Ru: “Nosso Pai”, ancestral, ser divino. De acordo aos atributos que
com ele ou com eles são identicados, o nome varia de grupo para
grupo e mesmo dentro de uma mesma parcialidade. Exemplos: Ñande
Ru Pavê, Ñande Ru Jusu Papa, Ñande Ru Tupã. No âmbito sócio-
histórico, é o líder religioso, o pai, o chefe de uma família extensa.
Ñande Ru Papa: “Nosso Pai” Último-Primeiro. Primeiro ser divino nos
mitos Paĩ-tavyterã. O canto de “Nosso Pai”.
Ñande Sy: “Nossa Mãe”, ancestral, ser divino. No âmbito terreno, é a mãe,
a rezadora, a gura principal de uma família extensa, esposa do líder
religioso.
Ñandua: Diadema feita de pena de tucano. Usada ritualmente pelos
homens.
Ñe’ẽ: Alma de origem divina, palavra, fala, linguagem, palavra-alma. Para
os Kaiová: ser, personalidade, vida.
Ñe’ẽ mara(n)e’ỹ: Palavra sem mal, a boa palavra, a palavra divinamente
inspirada.
Ñe’ẽngatu: Boas Palavras. Pessoa que sabe falar, tem boas palavras ou fala
demais.
Ñe’ẽ oñemboapyka, oñeapykanõ: Algo ou alguém “toma lugar”, “realiza-
se”. A palavra toma seu lugar. Alguém está aprendendo. A mulher
está grávida.
Ñe’ẽ Porã Tenonde: “As belas palavras do princípio”. Mito, na linguagem
religiosa dos Mbyá.
Ñe’ẽ ypy: Palavra-alma originária.
Ñembo’e: Reza.
Ñembohovái: Canto-dança do encontro. Saudação ritual entre os grupos
convidados.
Ñemoñe’ẽ: Dar conselho. Fazer-se falar.
353
Ñemongeta: Conversa, diálogo. Nos rituais: rezar, ouvir as e reagir às
palavras divinas.
Ñemongo’i: Murmúrio, pulsação vital, palavra ou canto que pulsa em
tudo.
Ñemyrõ: Tristeza, depressão, viver à toa.
Ñengarai: Falsa oração. O rezador pede o poder divino para usá-lo contra o
próximo. Consta também com o signicado de relato.
Ñengarete: Verdadeira oração. O poder divino é para dar saúde e
entendimento.
Nimongarai: Ritual mbyá e chiripá, na qual se revela o nome das crianças.
Og gusu, óga jekutu: Casa grande, casa com o teto ncado na terra. Antiga
casa comunal. Hoje, casa de reza, onde realizam seus rituais os Paĩ-
Tavyterã e os Kaiová. É a residência do líder espiritual.
Og gusu,: Casa
Og, óga: Casa.
Oguauíva: Aqueles que cantam de forma ininteligível. Os Kaiová assim
chamam os Ñandéva.
Ohechakára: Aquele ou aquela que se tornou líder mercê a uma experiência
de contemplação. Ele ou ela não ouviu, mas também viu a palavra,
traz luz em seu corpo, vê longe.
Ohendúva: Aquele ou aquela que aprendeu seu ofício ouvindo o ensinamento
de outro.
Okaraguyje: Terreiro, ante-sala do tempo-espaço plenicado.
Omongy: Marcar, “fazer chover sobre”, enfeitar, “batizar”.
Oñesyrõ: Enleira-se. Estar em resguardo, quieto.
Oñoñe’ẽ: A mútua palavra, a palavra da comunidade, o consenso.
Opy: Casa onde se realiza as cerimônias dos Mbyá.
Opygua: Rezador, líder religioso mbyá
Oréva: “Nós” que exclui o interlocutor.
Pa’i Kuara: O mesmo que Kuarahy. O Sol. Símbolo de Tyke’ýra.
Girassol.
Paĩ poty: Flor dos Paĩ e dos Kaiová, o girassol.
Pa’i: No passado era assim designado o líder que agia mais no âmbito do
temporal. Hoje em dia, designa o líder religioso.
Paĩ-Tavyterã: “Morador da verdadeira aldeia”. Autodenominação dos Paĩ-
Tavyterã.
Paje vai: Líder religioso que usa seu poder para destruir.
354
Papa Réi: Figura mítica através da qual os Paĩ-tavyterã contam a origem
dos não-indígenas.
Papa: Contar ou relatar o que aconteceu. Junto com as partículas reexivas
jero ou jere forma jeropapa, contar-se na história - do milho, do
menino, etc.
Poapy kuaha: Pulseira.
Pochito: Do espanhol “ponchito”. Poncho de algodão cru. Veste ritual dos
homens.
Pochy: Fúria, cólera, coragem.
Popygua: O que se carrega na mão. Ritualmente, o mesmo que yvyra’i: vara
ou bastão, emblema ritual masculino.
Py’a guasu: Coração grande. Generosidade.
Reñoimbyrã: Milho separado para semente. Indica posteridade, futuro,
continuidade. Quando o futuro é incerto, “as sementes estão
bichadas”.
Sy, tchy ou syy, tchyy: Mãe.
Takua Rendy Ju Guasu: Nome divinizador da “Nossa Avó”, Ñande Jári.
Takua, takuapu: Bastão feito de taquara, mais grosso que o yvyra’i, É usado
exclusivamente pelas mulheres enquanto cantam e dançam nas
cerimônias.
Tamõi ou amyrỹi: Antepassados.
Tape araguyje ou tape aguyje: Caminho que conduz ao tempo-espaço
perfeito.
Tape: Caminho.
Tataendy: Chama, manifestação da divindade. Entre os Mbyá, a luz da
vela.
Teko katu: Bom modo de ser. Modo de ser religioso.
Teko pyahu: Novos costumes. Aplica-se àquele que se converteu ou se
modernizou.
Tekoa ruvicha: Liderança local. Líder religioso.
Tekoaku ou jekoaku: Modo de ser quente, estado de perigo. Tempo de
crise e resguardo, como a gravidez, o nascimento, as doenças e as
iniciações.
Tembeta miri: Pequeno enfeite labial para as crianças.
Tembeta: Adorno labial feito da resina de uma árvore. Tem a forma de um
T e é colocado no lábio inferior dos adolescentes por ocasião da sua
iniciação.
355
Tendy katu: Boa chama, boa luz.
Tendy: Chama, luz da chama, áurea.
Téra ka’aguy: Nome da mata, para os Chiripá. Tem o mesmo sentido de
Tupãréry.
Te’ýi ou Teýijusu: Uma das autodenominações dos Kaiová e dos Paĩ-
Tavyterã. Signica “habitantes”, “gente”. A segunda expressão
agrega valor à pessoa com a metáfora “muito resplendor”, “cheia de
luz”.
Tupã ra’y katu: Os bons lhos de Deus.
Tupã réry: Nome verdadeiro e divinizador para os Paĩ-Tavyterã e os Kaiová.
É como a alma da pessoa.
Tuvicha: Líder, autoridade. No contexto do kunumi pepy é aquele menino que
faz o papel de primogênito na família temporariamente constituída
pelos iniciandos. Além disso, designa aquele que é, entre os irmãos,
o primeiro a passar pela iniciação.
Tyapu: Trovão. A manifestação do ser divino, sua fala.
Tyke’ýra ou Ke’ỹ: O prestigiado herói cultural no plano mítico. No real, o
irmão maior.
Tyvýry e Tyke’ýra: São os gêmeos ou irmãos dos relatos míticos. Designa
também o parentesco entre o irmão menor e o maior.
Tyvýry: Irmão menor, quando fala o irmão maior.
Vera katu: Bom brilho.
Xondáro: Em Mbyá refere-se à dança, à música e às pessoas que dançam
essa peça executada com violino. A coreograa sugere “defesa”. Os
xondáro e as xondária têm a função de zelar pela ordem na aldeia,
especialmente durante os ofícios religiosos.
Y, yy: Água.
Ygáry: Cedro. Em linguagem religiosa se chama Yvyra Ñamandu, árvore
de Nosso Pai.
Ymã: Passado indenido.
Ypy: Origem, começo. Com relação a tempo estabelece distância e com
relação a espaço indica proximidade.
Ypyrũ: Origem.
Yva, yváy: “Céu”.
Yvoty: Flor. Enfeite básico na ornamentação guarani.
Yvy: Terra, mundo, universo.
Yvy apy: Horizonte, limite da terra.
356
Yvyaraguije: Terra do tempo-espaço perfeito.
Yvy jekoka: Estrutura ou suporte da terra.
Yvy mara(n)e’ỹ: Terra sem mal, mata virgem.
Yvy ñomimbyre: A “terra sem mal” para os Ñandeva.
Yvy opuã ramo guare: Do tempo em que a terra se levantou.
Yvy pyte ou yvy mbyte: Umbigo da terra, centro da terra, lugar original
dos Kaiová e dos Paĩ-Tavyterã. Conforme a orientação espacial do
grupo, esse lugar é o Cerro Guasu, morro grande, e ca no Paraguai,
no departamento de Amambai. Na linguagem religiosa, esse lugar se
chama também jasuka venda.
Yvy rymbypy: Virilha da terra, sendo a terra concebida como um corpo
humano.
Yvy tenonde: A primeira terra.
Yvyra: Árvore, corpo dos humanos.
Yvyra’i: Vara ou bastão de até um metro de cumprimento portado pelos
homens nos rituais. O mesmo que popygua
Yvyra’ija: Portador ou guarda do bastão ritual.
Yvyra’i: Pau cavador ou semeadeira. Ritualmente é o mesmo que popygua:
pequeno bastão carregado pelos homens durante as celebrações.
Símbolo de poder terreno.
Yvytyrõ joasaha: Colar que cruza o peito em diagonal formando uma cruz.
357
ANEXO II:
Xamãs tupinamba dançando com a mbaraka
Fonte: Acción, 1993, p. 33, conforme um gravado do século XVI.
358
359
ANEXO III:
Tekoha (lugar vital) dos grupos kaiová e guarani
Fonte: Desenho do Kaiová Assunção Gonçalves, Caarapó, MS – Brasil, 1988.
360
361
ANEXO IV:
A og gusu (casa comunal) grupos kaiová
“Ainda que numeroso, o grupo vivia antigamente em casas isoladas. (...) (A
casa) é uma peça única onde vive o cacique com toda sua parcialidade (...),
que por sua vez podia consistir em 20, 30, 40 e às vezes mais famílias. (...)
As casas não têm outra divisória, a não ser umas pilastras, que (...) servem
para sustentar a cumieira e delimitar a moradia de cada família, que é o
espaço que há entre uma pilastra e outra, uma a um lado da casa e outra no
outro lado dela”.
Fonte: Cartas Anuas II, 1927-1929, p. 363
362
363
ANEXO V:
A localização dos grupos guarani atuais
Fonte: Acción, 1995, p. 21
364
365
ANEXO VI:
As Frentes Missionárias da Província
Jesuítica do Paraguai
Fonte: Becker, 1992, p. 19
366
367
ANEXO VII:
Teocosmologia Kaiová: Uma intuição monoteísta?
Fonte: Desenho do Kaiová Mário Toriba, Mato Grosso do Sul – Brasil.
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