LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A Última receita, de Machado de Assis
Edição de referência: Contos completos de Machado de Assis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1875
A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido.
Fosse o que fosse, a verdade é que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar
de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia surda e devota. A
doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que
coisa seria? Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do
céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos remédios
da tia, mas opinava por um médico.
Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na
localidade. Era o dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio
o dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e
reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a
prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido,
anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.
O dr. Avelar limitou-se a torcer o nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou
três remédios, dos quais só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.
D. Paula tomou os remédios como quem não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas
dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze meses que
lhe morrera o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.
A esta circunstância é justo acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de
seu. Três razões para agarrar-se à vida como o náufrago a uma tábua de salvação.
Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente
saudades do marido. Mas não tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele
próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao
marido nem estima nem amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida
para ela começava apenas. A idéia de morrer seria para ela não só a maior de todas as
calamidades, mas também a mais desastrada de todas as tolices.
Não quis morrer nem o caso era de morte.