Download PDF
ads:
LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Gregório de Matos
Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,
Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.
Crônica do Viver Baiano Seiscentista
Índice
PANÇA FARTA E PÉ DORMENTE
DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO DO ENTRUDO.
DESCREVE A JOCOZIDADE, COM QUE AS MULATAS DO BRASIL BAYLÃO O PATURI.
DESCREVE O POETA HUMA JORNADA, QUE FEZ AO RIO VERMELHO COM HUNS
AMIGOS, E TODOS OS ACONTECIMENTOS.
SEGUNDA FUNÇÃO QUE TEVE COM ALGUNS SUGEYTOS NA ROÇA DE HUM AMIGO
JUNTO AO DIQUE, ONDE TAM BEM SE ACHOU O CELEBRADO ALFERES THEMUDO,
E SEU IRMÃO O DOUTOR PEDRO DE MAITOS, QUE ENTÃO ANDAVA MOLESTO DE
SARNAS.
DESCREVE A CAÇADA QUE FIZERAM COM ELLE SEUS AMIGOS NA VILLA DE S.
FRANCISCO À HUMA PORCA REBELDE.
DESCREVE O PERIGO EM QUE O POZ NA ILHA DE Me. DE DEOS HUMA VACCA
FURIOSA CHAMADA CAMISA, INDO DIVERTIR-SE AO CAMPO COM HUM IRMÃO DO
VIGARIO.
DESCREVE O DIVERTIMENTO QUE TEVE COM ALGUNS AMIGOS INDO AOS
CAYJÚS.
DESCREVE A VIAGEM, QUE INTITULOU DOS ARGONAUTAS DA CAJAIBA PARA A
ILHA DE GONÇALLO DIAS, ONDE COM SEUS AMIGOS HIA DIVERTIR-SE.
DESCREVE ESTANDO NA CAJAIBA HUMA CAVALHADA BURLESCA, QUE ALI
FIZERAM PELO NATAL, HUNS FOLGAZÕES.
DESCREVE HUMAS COMEDIAS, QUE NA CAJAIBA FORAM REPRESENTADAS
PELOS MESMOS, OU PARTE DELLES COM OUTROS DA MESMA CONDIÇÃO.
DESCREVE OUTRA COMEDIA QUE FIZERAM NA CIDADE OS PARDOS NA
CELEBRIDADE COM QUE FESTEJARAM A NOSSA SENHORA DO AMPARO, COMO
COSTUMAVÃO ANNUALMENTE.
DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU O
VINHO NO BANQUETE, QUE SE DEO NA MESMA E;ESTA ENTRE AS JUIZAS, E
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM.
DESCREVE OUTRA FUNÇÃO IGUAL, QUE NO SEGUINTE ANNO ESTAS, E OUTRAS
MULATAS DA MESMA CONDIÇÃO FIZERAM A. N. SENHORA DE GUADALUPE.
DESCREVE O POETA AS FESTAS DE CAVALLO QUE SE FIZERAM NO TERREYRO
EM LOUVOR DAS ONZE MIL VIRGENS, SENDO ESCRIVÃO EUZEBIO DA COSTA
REYMÃO FILHO DE MARIA REYMOA; EM QUE ASSISTIRAM ESTES DOUS
PRINCIPES PAY, E FILHO COM O MAYOR DA NOBREZA NO COLLEGIO DE JESUS.
AS FESTAS DE CAVALLO QUE FEZ NO TERREYRO ESTRONDOSAMENTE
GONÇALLO RAVASCO CAVALCANTE SINGULAR JUIZ DAS ONZE MIL VIRGENS COM
ASSISTENCIA DESTE PRINCIPE, A QUEM
O POETA OBSEQUÊA, REMOQUEANDO A SEU ANTECESSOR: COMO TAMBEM
OBSEQUÊA A ANDRE CAVALLO, E OUTRAS PESSOAS NOMEADAS.
ads:
3 – PANÇA FARTA E PÉ DORMENTE
Descreve o Poeta as festas ...
Manuel Pereira Rabelo, licenciado
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi
DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO DO ENTRUDO.
Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.
Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.
Das janelas com tanhos dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo.
Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.
DESCREVE A JOCOZIDADE, COM QUE AS MULATAS DO BRASIL BAYLÃO O
PATURI.
Ao som de uma guitarrilha,
que tocava um colomim
vi bailar na Água Brusca
as Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi!
Não usam de castanhetas,
porque cos dedos gentis
fazem tal estropeada,
que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.
Atadas pelas virilhas
cuma cinta carmesim,
de ver tão grandes barrigas
lhe tremiam os quadris.
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.
Assim as saias levantam
para os pés lhes descobrir,
porque sirvam de ponteiros
à discípula aprendiz,
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.
DESCREVE O POETA HUMA JORNADA, QUE FEZ AO RIO VERMELHO COM HUNS
AMIGOS, E TODOS OS ACONTECIMENTOS.
1 Amanheceu finalmente
o Domingo da jornada
co'a mais feia madrugada,
que viu nunca o Oriente:
bufava o Sul de valente,
de soberbo o mar roncava,
ninguém a briga apartava,
e eu perplexo, mudo, e quedo
entre valor, e entre medo
en salgo, y no salgo estava.
2 Resolvi-me, e levantei-me,
posto que o quente da cama
com Gonçalo, e com sua ama
dizendo estava, comei-me:
vesti-me, e aderecei-me:
batem os pais de ganhar,
mandei-lhes abrir, e entrar,
estava a rede à parede,
e em pondo o vulto na rede,
comecei de caminhar.
3 Cheguei a São Pedro, e em vão
busquei os mais companheiros,
que devendo ir os primeiros,
não tinham ido até então:
entrei na imaginação
de se acaso me enganassem,
e acaso as bestas faltassem,
que havia eu de fazer,
e foi fácil resolver,
que por bestas lá ficassem.
4 Assim o cri, e era assim,
pois o pouco espaço andado
veio o Jardim esbofado
mais rosado, que um jardim:
não vem mais outro rocim?
lhe perguntei com desdém:
ele respondeu, não vem;
estive aguando os canteiros,
e não acho os companheiros,
pois não me cheira isto bem.
5 Isto dito, assoma o Freitas,
e eu disse entre duvidoso,
o Gil é-me belicoso
mas tem cara de maleitas:
chegou, e as minhas suspeitas
veio tanto a confirmar,
que disse, que o seu tardar
fora causado, e nascido
de o rocim lhe haver fugido,
indo ao Tororó parar.
6 Quem deu tão ruim conselho
(disse eu) a esse catrapó,
pois quer ir ao Tororó,
antes que ao Rio Vermelho?
mas um cavalo tão velho,
que já por cerrado perde,
que muito, que se deserde
do vermelho, e seus primores,
se deixa todas as cores
um cavalo pelo verde.
7 Que é do Gil? não aparece.
E o Guedes? fica sem besta.
Eia pois, vamo-nos desta,
que o sol trepa, e a calma cresce;
quem não aparece, esquece;
vamo-nos sem conclusão;
com que eu na rede um cação,
e os dous nas duas cavalas
fazíarnos duas alas,
e as alas meio esquadrão.
8 Assim fomos caminhando
sobre os dous cavalos áscuas
alegres como uas páscoas,
ora rindo, ora zombando:
eu que estava perguntando
pela viola, ou rabil,
quando ouvimos bradar Gil,
que recostado à guitarra
garganteava a bandarra
letrilhas de mil em mil.
9 Olá, ô! chegou o Tudesco:
e já ele entre nós vinha
posto sobre uma tainha,
feito Arião ao burlesco:
riu-se bem, falou-se fresco,
e eu da viola empossado
cantava como um quebrado.
tangia como um crioulo,
conversava como um tolo,
e ria como um danado.
10 Apertamos logo o trote,
e em breve fomos chegados,
onde éramos esperados
pelo ilustre Dom Mingote:
ali o nosso sacerdote,
vendo a nova arquitetura
da casa da Virgem pura,
se apeou por venerá-la,
os mais puseram-se em ala,
passei eu, e houve mesura.
11 Tornamos a cavalgar,
e vendo tão pouco siso,
tomou o dia tal riso,
que se pôs a escangalhar:
parou tudo em chuviscar,
e os malditos cavaleiros
picaram tanto os sendeiros
que eu mesmo não entendia,
que sendo cavalaria,
fugissem como piqueiros.
12 Eu fiquei com minha mágoa
solitário, e abrasado,
dando-me pouco cuidado,
que a rede nadasse em água:
por seu ofício se enxágua
toda a rede nágua clara,
e se esta se não molhara,
com abalo, ou sem abalo
nem eu vira o São Gonçalo,
nem também jantar pescara.
13 Orvalhado um tanto, ou quanto
o santo me agasalhou,
e logo a chuva passou,
que foi milagre do santo:
tratava-se no entretanto
da missa, e estando esperando,
ali vieram chegando
duas belezas ranhosas,
sempre à vista bexigosas,
e feias de quando em quando.
14 Para a missa do Santinho
mui pouco vinho se achou,
e ele fez, que inda sobrou,
porque é milagroso em vinho:
tomamos dali o caminho
para o porto das jangadas
ver as casas afamadas
do nosso Domingos Borges,
que sem levarmos alforjes
nos pôs as panças inchadas.
15 O Gil, que é tão folgazão
se foi ao pasto folgar,
e se outra cousa há de achar,
achou um camaleão:
lançou-lhe intrépido a mão,
e com pulsos tão violentos
cortou ao bruto os alentos,
que depondo o bruto a ira
disse, que depois o vira,
pelo Gil bebia os ventos.
16 Deu-nos gosto, e prazer arto
um caçador tão gentil,
porque vimos, que era o Gil
mais lagarto, que o lagarto:
e assim como estava farto
de vento o camaleão,
Gil assim de presunção
tão inchado estava, e duro,
que foi força dar-lhe um furo
para ter evacuação.
17 Sopas de leite almoçamos,
e logo o Guedes chegou,
que nem pão, nem leite achou,
e achou, que o apregoamos:
mas todos depois jantamos
uma olha imperial,
e houve repolho fatal
ensopado, e não de azeite
com pratos de arroz de leite,
e vontade garrafal.
18 Já levantados da mesa
se quis cantar, senão quando
a pança me estava impando
a goela entupida, e presa:
eu tenho esta natureza,
que depois de manducar
não me é possível piar:
será, porque certarnente
pança farta, e pé dormente,
como é adágio vulgar.
19 Sesteamos no areal
onde o mar por mazumbaia
refrescando estava a praia
com borrifos de cristal:
a onda piramidal,
que nos ares se desata,
descaindo em grãos de nata
pedia por bom conselho,
que em vez de Rio Vermelho
lhe chamem Rio da Prata.
20 O Sol vinha já descendo
por graus, ou degraus do Céu,
e a todos nos pareceu
o irmo-nos acolhendo:
forarn-se os rocins prendendo,
e selados, e enfreados,
allons dissemos a brados
já postos nos cavalinhos,
e alvoroçando os caminhos
chegando, fomos chegados.
SEGUNDA FUNÇÃO QUE TEVE COM ALGUNS SUGEYTOS NA ROÇA DE HUM
AMIGO JUNTO AO DIQUE, ONDE TAM BEM SE ACHOU O CELEBRADO ALFERES
THEMUDO, E SEU IRMÃO O DOUTOR PEDRO DE MAITOS, QUE ENTÃO ANDAVA
MOLESTO DE SARNAS.
1 Fez-se a segunda jornada
da comédia, ou comedia,
que inda nos deu melhor dia,
do que a jornada passada:
vimos a mesma selada,
e de vinho a mesma cópia,
de ovos maior cornucópia
que a de Almatéia florida,
e sendo a mesma comida,
contudo não era a própria.
2 Já Pedro esperava adrede
da culatra tão sarnento,
que embalançando-se ao vento
era um cação em rede:
versos a matéria pede,
me disse a sua lazéria,
e se os faço com miséria,
não se espante, quem os lê,
de que tanta sarna
(se é podre) tanta matéria.
3 Cantou-se galhardamente
tais solos, que eu disse, ô
que canta o pássaro só,
e os mais gritam na semente:
tocou-se um som excelente,
que Arromba lhe vi chamar,
saiu Temudo a bailar,
e Pedro, que é folgazão
bailou com pé, e com mão,
e o cu sempre num lugar.
4 Pasmei eu da habilidade
tão nova, e tão elegante,
porque o cu sempre é dançante
nos bailes desta cidade:
mas em tal calamidade
tinha Pedro o cu sarnudo,
que dando de olho, ao Temudo
disse pelo socarrão,
assim tivera o cu são,
como tenho o cu sisudo.
5 Pôs-se a mesa, e escabelos,
foram seguindo-se os pratos,
que eram tanto à vista gratos,
como ao gasnate eram belos:
Pedro se pôs a lambê-los,
e dando-se a Berzabu
de não beber com Jelu
o licor, que o entorpeça,
porque o que dá na cabeça,
temeu, lhe desse no cu.
6 Não quis o cu inflamar,
por isso bebeu só água,
do que nós com grande mágoa
nos pusemos a chorar:
este fim teve um folgar
de tanto gosto, e alinho,
de que eu colho, e esquadrinho
a exemplo da vida breve,
que quem rindo o vinho bebe,
chorando desbebe o vinho.
DESCREVE A CAÇADA QUE FIZERAM COM ELLE SEUS AMIGOS NA VILIA DE S.
FRANCISCO À HUMA PORCA REBELDE.
1 Amanheceu quarta-feira
com face serena, airosa
o famoso André Barbosa
honra da nossa fileira;
por uma, e outra ladeira
desde a marinha até a praça
nos bateu com tanta graça,
que com razões admirandas
nos tirou dentre as holandas
para levar-nos à caça.
2 O lindo Afonso Barbosa,
que dos nobres Francas é,
por Filho do dito André
rama ilustre, e generosa:
já da campanha frondosa
os matos mais escondidos
alvoroçava a latidos,
quando nós de mal armados
à vista dele assentados
nos vimos todos corridos.
3 Rasgou um porco da serra,
e foi tal a confusão,
que em sua comparação
menino de mama é a guerra:
depois de correr a terra,
e de ter os cães cansados
com passos desalentados
à nossa estância vieram,
onde casos sucederam
jamais vistos, nem contados.
4 Estava eu de uma grimpa
vendo a caça por extenso,
não a fez limpa Lourenço,
e só a porca a fez limpa:
porque como tudo alimpa
de cães, e toda a mais gente,
Lourenço intrepidamente
se pôs, e ao primeiro emborco
mão por mão aos pés do porco
veio a cair sujamente.
5 Tanto que a fera investiu,
tentado de valentão
armou-se-lhe a tentação,
e na tentação caiu:
a espada também se viu
cair na estrada, ou na rua,
e foi sentença comua,
que nesta tragédia rara
a espada se envergonhara
de ver-se entre os homens nua.
6 Lourenço ficou mamado,
e inda não tem decidido
se está pior por ferido
da porca, se por beijado:
má porca te beije ? é fado
muito mau de se passar,
e quem tal lhe foi rogar,
foi com traça tão sutil,
que a porca entre Adônis mil
só Lourenço quis beijar.
7 Lourenço, na terra jaz,
e conhecendo o perigo
deu à porca mão de amigo,
com o que se punha em paz:
a porca, que é contumaz,
e estava enfadada dele,
nenhuma paz quis com ele,
mas botando-lhe uma ronca
por milagre o não destronca,
e inda assim chegou-lhe à pele.
8 Ia Inácio na quatrilha,
e tão de Atônis blasona,
que diz, que a porca fanchona
o investiu pela barguilha:
virou-lhe de sorte a quilha,
que cuidei, que o naufragava:
porém tantos gritos dava,
que infeliz piloto em charco
a vara botava o barco,
quando o porco a lanceava.
9 Inácio nestes baldões
teve tanto medo, e tal,
que aos narizes deu sinal
de mau cheiro dos calções:
trouxe na meia uns pontões
tão grandes, e em tal maneira,
que à guerra hão de ir por bandeira,
onde por armas lhe dão
em escudo lamarão
uma porca costureira.
10 Miguel de Oliveira ia
com dianteira alentada,
de porcos era a caçada,
e o que fez, foi porcaria:
quando o bruto o investia,
ele com pé diligente
se afastava incontinenti,
com que o julgas desta vez
por mui ligeiro de pés,
e de mãos por mui prudente.
11 Pissarro sobre um penedo
vendo a batalha bizarra
era Pissarro em piçarra,
que val medo sobre medo:
nunca vi homem tão quedo
em batalha tão campal;
porém como é figadal
amigo, hei de desculpá-lo,
com que nunca fez abalo
to seu posto um General.
12 Frei Manuel me espantou,
que o demo o ia tentando,
mas vi, que a espada tomando
logo se desatentou:
incontinenti a largou,
porque soube ponderar,
que ficava irregular
matando o animal na tola,
de que só o Mestre-Escola
o podia dispensar.
13 O Vigário se houve aqui
cuma tramóia aparente,
pois fingiu ter dor de dente,
temendo os do Javali:
porém folga, zomba, e ri
ouvindo o sucesso raro,
e dando-lhe um quarto em claro
os amigos confidentes,
à fé, que teve ele dentes
para comer do Javaro.
14 Cosme de Moura esta vez
botou as chinelas fora,
como se ver a Deus fora
sobre a sarça de Moisés:
tudo viu, e nada fez,
tudo conta, e escarnece,
com que mais o prazer cresce,
quando o remedo interpreta
Lourenço, a quem fez Poeta
um amor, que o endoudece.
15 Silvestre neste dia
ficou metido num nicho,
porque como a porca é bicho,
cuidou, que sapo seria:
mas agora quando ouvia
o desar dos derrubados,
mostrava os bofes lavados
de puras risadas morto,
porque sempre vi, que um torto
gosta de ver corcovados.
16 Bento, que tudo derriba,
qual valentão sem receio,
pondo agora o mar em meio,
fugiu para a Cajaíba:
não quis arriscar a giba
nos afilados colmilhos
de Javardos tão novilhos,
e se o deixa de fazer,
por ter filhos, e mulher,
que mau é dar caça aos filhos?
17 Eu, e o Morais as corridas
por outra via tomamos,
e quando ao porco chegamos,
foi ao atar das feridas:
co as mentiras referidas
de uma, e outra arma donzela
se nos deu a taramela;
nós calando, só dissemos,
se em taverna não bebemos,
ao menos folgamos nela.
DESCREVE O PERIGO EM QUE O POZ NA ILHA DE Me. DE DEOS HUMA VACCA
FURIOSA CHAMADA CAMISA, INDO DIVERTIR-SE AO CAMPO COM HUM IRMÃO DO
VIGARIO.
1 Tem Lourenço boa a taca,
fomos tourear ao pasto,
e depois de tanto gasto
o tourinho era uma vaca
Lourenço na sombra opaca
de um pé de limões grosseiro,
eis a vaca pelo cheiro
deu com ele, e ele então
por não morrer na prisão
arrombou o Limoeiro.
2 Tomou da praia o retorno,
porque o morrer melhor é
na reponta da maré
do que na ponta de um corno:
eu com notável sojorno
numa capoeira estava,
vendo, em que o caso parava,
e a vaca com seu focinho
me tratou como a ratinho;
pois qual gato me miava.
3 Temi logo a malquerença
da vaca tão marralheira,
e o medo me deu em reira,
que é melhor do que em corrença:
rompi pela mata densa,
e dei com meu envoltório
de um vale no território,
tomando por meu sossego,
não las de Villa Diego,
mas as de Vila Gregório.
4 Subi num monte comprido,
que do vale é Polifemo,
que quando uma vaca temo,
subo mais do que um valido:
vim à casa espavorido,
achei Lourenço pasmado,
mudo, e desassisado,
e eu disse: se escapo, vaya,
que quem fugiu pela praia,
força é que esteja areado.
5 Deu-se-nos grande matraca,
e com ser dia de peixe,
sem que a consciência se queixe,
todos gostamos da vaca:
o Padre aguçou a faca,
e afeiçoou um bordão,
e tais ralhos disse então,
que me convidou enfim
para diante de mim
dar na vaca um bofetão.
6 Mas eu não tornei ao mato,
e ao Padre, que me chamava,
respondi, que não gostava
de vaca, senão no prato:
e terei por insensato,
a quem com pau, ou com faca,
brigar com rês tão velhaca
a quem razão não convence,
nem terá prêmio, quem vence
um touro, se o touro é vaca.
7 Custódio, que é prudente,
pacífico, e sossegado,
topou na costa co gado,
e entre ele a vaca nocente:
e em se pondo frente a frente
a vaquinha, que o aguarda,
e em dar carreiras não tarda,
disparou como uma seta,
com que lhe deu a vaqueta
mais susto, que uma espingarda.
8 Tomou o monte de um pulo,
e deu consigo no vale,
sem dar jeito, a que o iguale
a ligeireza de um mulo:
mas o meu Mestiço fulo
o emparelhou no correr
donde veio a suceder,
que Custódio um pé retroce,
sendo pé, que se não troce,
quando o dono o há mister.
9 A vaca é terror da aldeia,
pois faz armada de sanha
praça de armas a montanha,
e a praça veiga de areia:
todo o mundo se receia
de inimiga tão comua,
porque armada a meia-lua
parece pelo cruel
talvez Fatimá de Argel,
talvez de Salé Gazua.
10 Não vi vaca tão ousada
de mais brio, e fantesia,
pois traz toda a freguesia
corrida, e envergonhada:
murmura a gente pasmada,
que uma vaca parideira
nos pusesse em tal fraqueira,
e eu tal medo lhe concebo,
que, quando o leite lhe bebo,
me dá logo em caganeira.
11 Senhor Estêvão, que é dono
da rês, que o branco divisa,
já que lhe deu a camisa,
faça-a mansa como um sono:
e se não em alto tono,
quando a vaca se remangue,
tirei morto ao pé de um mangue,
que se trata de a manter
para o leite lhe beber,
isso é beber-nos o sangue.
12 O Senhor Domingos Borges,
que é sujeito de feição,
se resistir seu Irmão,
responda-lhe logo: alforjes:
e tu, vaca, não me forjes
outra traição mais precisa,
a passada passe em risa,
mas se vens noutra ocasião
a furar-me o casacão,
hei de rasgar-te a camisa.
DESCREVE O DIVERTIMENTO QUE TEVE COM ALGUNS AMIGOS INDO AOS
CAYJÚS.
Valha o diabo os cajus,
que a todos tem degradado,
uns vão caminho das ilhas,
outros caminho dos campos.
Assim me coube por sorte
ir um dia degradado
para a de Jorge de Sá,
que é ilha dos mEus pecados.
Saímos com vento em popa,
mas no mais triste pangaio,
que nasceu de embarcações,
de que foi Eva a Nau Argos.
Desembarcamos em terra,
e querendo registar-nos
com nossas cartas de guia,
que nos deu o saibam quantos:
Achamos deserta a ilha
sem câmara, nem senado,
que os cajus são restringentes,
não houve câmara este ano.
Tornamo-nos a embarcar
no mesmo triste pangaio
em demanda de outra ilha,
em que o degredo compramos.
Não pudemos tomar terra
porque era o vento contrário,
assoprava pelo olho,
e era o tal olho o do rabo.
Porque vento tão maldito,
e tão despropositado
só por tal olho saíra,
para nos ir espeidando.
Tomamos porto na pátria
depois de tantos trabalhos,
fomes, que em terra curtimos,
sustos, que no mar tragamos.
Fomos mui bem recebidos,
porque o passado passado,
e sobre os cargos da culpa
nos deram logo outros cargos.
Todos saímos com vara,
como meirinhos do campo
sobre os pobres dos cajus
prendendo, e executando.
Indo a eles uma tarde,
prendemos quase um balaio,
outros deixamos pendentes,
que é o mesmo, que enforcados.
Os maduros se prenderam,
que era a ordem, que levamos,
mas os verdes se enforcaram,
por serem cajus velhacos.
O Meirinho-mor do Reino,
que é Custódio Nunes Daltro,
não larga a vara, e os cajus
andam como homiziados.
Tem uns alcaides pequenos,
que andam correndo esse campo,
e vão ligeiros de pé
por vir pesados de papo.
Este castigo merece
Cururupeba afamado,
porque os engenhos não moem,
e o rio é, quem paga o pato.
Em se acabando os cajus,
as varas vão co diabo,
salvo formos meirinhar
aos airus por esses campos.
DESCREVE A VIAGEM, QUE INTITULOU DOS ARGONAUTAS DA CAJAIBA PARA A
ILHA DE GONÇALLO DIAS, ONDE COM SEUS AMIGOS HIA DIVERTIR-SE.
Era a Dominga primeita
desta quaresma presente,
já eu estava na praia,
seriam seis para as sete.
Estava o dia formoso
por ser hora, em que se veste
a esfera de azul, e ouro
com seus renglaves de neve.
A aurora teve bom parto,
pois botou em tempo breve
um menino como um sol
para alegria das gentes.
Gritei eu: ah Sor Gregório,
ele desperto gritou,
aqui estou, e Sor Silvestre.
Só falta o Pissarro moço:
já foi chamá-lo o moleque,
e em se juntando conosco
estamos prestes, e lestes.
Toda a noite não dorrni
com pensamento no beque,
que há de levar-nos à ilha,
onde façamos um frete.
Não tem, que me despertar,
que eu escuso, me despertem,
porque para esta viagem
estive de acordo sempre.
Os três à praia chegaram,
e eu no bergantim co'a gente
mandei embarcar a todos
um por um, ele por ele.
Botamos a Nau no mar
um bergantim excelente
nos nossos mares nascido
obra do estrangeiro mestre.
O alforje lá me esquecia,
disse eu, e a vocês lhes esquece:
mandei logo um negro à casa,
que fosse num pé, e viesse:
Veio logo carregado
o negro com uma serpe
de bananas, e farinha,
e al não disse o tal negrete.
Fomos, e dobrando o mangue
encontrarnos um banquete,
em que vem Miguel Ferreira
cercado de muita gente.
Allons, allons, lhe dissemos,
e ele nos disse: salvete,
trespassamos o saveiro,
que ia então vendendo azeite.
Fomos à costa correndo,
e ajudados da corrente
de Chico o porto tomamos,
que estava manso, e alegre.
Tocou-se logo a trombeta,
que um búzio era potente,
um sinal de haver chegado
a capitânia do Ostende.
Deu-nos uns poucos de apupos,
e vendo, que Chico desce,
embarcou-se, e socorreu-nos
com China, e melado quente.
Fomos seguindo a viagem
tão folgazões, tão alegres,
que até as duas guitarras
iam folgando de ver-se.
Assim chegamos à Ilha,
e sobre areias de neve
dezoito chancas saltavarn,
com que a Ilha se estremece.
Perguntei por Esperança,
e soube, que estava ausente.
Chico, que entonces servia
de guia dos nossos fretes.
Quis-me eu então repelar,
tendo pouco, que repele,
disse mal da minha vida,
de mim mesmo maldizente.
Corremos a Ilha toda,
por sinal, que o bom Silvestre
fez um letreiro na areia,
cuja letra isto refere.
"O Senhor da Ilha é um Asno"
e foi disto tão contente,
como se no tal letreiro
uma asneira não fizesse.
Nós lhe estranhamos a asneira,
e ele arreganhando os dentes,
a celebrou como sua,
por não ter, quem a celebre.
Achamos uma Mulata,
que estava ali num casebre,
que eu não fretei, por ser Nau
já carregada por prenhe.
Tornamo-nos a embarcar
algum tanto descontentes,
porque em toda a Ilha achamos
dois maracujás somente.
DESCREVE ESTANDO NA CAJAIBA HUMA CAVALHADA BURLESCA, QUE ALI
FIZERAM PELO NATAL, HUNS FOLGAZÕES.
1 Veio a Páscoa do Natal,
primeira, e segunda oitava,
quando Araújo assentava,
uma festa garrafal:
mas a Cajaíba é tal,
este monte tão mesquinho,
que para um festim de alinho
veio Araújo famoso,
Paulinho com João Cardoso,
Carvalho, e Falcão Marinho.
2 Só cinco em cinco rocins
foi visto, que em meu sentido
para o pasto andar corrido
poucos bastam, se são ruins:
mas não faltaram malsins,
entre os quais foi mui notado
este número apoucado:
e eu tive os homens por loucos,
pois bons são cavalos poucos
para o pasto andar folgado.
3 O Araújo coitado,
para que nada lhe sobre,
andou sem freio, que ao pobre
sempre lhe falta o bocado:
mas por isso aventejado
andou à outra parelha,
mais que aos mais arnês brilhante,
que Araújo é rocinante,
que val muito pela ovelha.
4 João Cardoso à mourisca
pela encolhida perneta,
tanto mais lustra a gineta,
quanto mais nela se arrisca:
e bem que de todos trisca,
porque com juízo, e brio
nunca paga de vazio
os altos, na refestela
pagou de vazio a sela
três vezes, ou quatro a fio.
5 Paulinho não há alcançá-lo:
era da festa o enigma,
e alguém a dizer se anima,
que indo em mula, ia a cavalo:
deu-lhe tão pequeno abalo
o festim burlesco, e rude,
que nunca obrigá-lo pude
a fazer largas entradas,
porque em verdes laranjadas
era o Juiz da saúde.
6 O meu cavaleiro foi
(por me dar maior regalo)
Carvalho, que ia a cavalo,
e dava passos de boi:
mui prenhado "yo no voy,
estos me lleban" dizia;
tão pouco, e tão mal corria,
que nem ele se correu,
nem o pasto floresceu,
mas sem florescer se ria.
7 O Marinho andou galhardo,
tal, que teve desta vez
o pasto por Aranguês,
que quer sempre o dia pardo:
como é Marinho bastardo,
desprezou seu coração,
gineta, e bastarda então:
mas em osso o coitadinho
nadava como um Marinho.
voava como um Falcão.
8 Nas laranjadas folgou-se
muito bem no meu sentir,
ia Araújo a cair,
e por não cair, deitou-se:
caiu, porém levantou-se
bizarro, e mui animoso,
para que o povo invejoso
veja em seu mesmo rencor,
que se caiu pecador
se levantou virtuoso.
9 João Cardoso não quis
crer, que fora a queda leve,
e dando uma volta breve,
a foi medir co nariz:
achou, que, o que se lhe diz,
era mentira esbrugada,
porque de uma laranjada
quem vai desde a sela ao chão,
achou pela medição,
que era a queda mui pesada.
10 Bem do Marinho se riu,
quando fez co'a terra escambos,
porém sendo a terra d'ambos,
o Marinho não caiu:
o rocinante, que viu
com as costelas quebradas
Araújo às laranjadas,
rindo não se pôde ter,
e assim em vez de correr
se espojou em carcajadas.
11 Inácio não me lembrou,
que branco do sobressalto
antes que entrasse no assalto
coitadamente arribou:
no princípio começou
num cavalo inteiriçado,
e vendo-se mal parado,
não quis mais parar ali,
e dando um homem por si,
partindo o deixou soldado.
12 Depois houve laranjadas
com todos os circunstantes,
e o que eram laranjas antes,
vi em risco de punhadas:
com várias calamocadas
saiu mais de algum mirão,
e foi tal a confusão,
que sendo o Falcão previsto,
e corredor mui bem visto,
hoje está cego o Falcão!
DESCREVE HUMAS COMEDIAS, QUE NA CAJAIBA FORAM REPRESENTADAS
PELOS MESMOS, OU PARTE DELLES COM OUTROS DA MESMA CONDIÇÃO.
1 As comédias se acabaram
a meu pesar, e desgosto,
pois para ter, e dar gosto
tomara eu, que começaram:
bem os mirões se admiraram,
e por caminhos umbrosos
iam dizendo saudosos,
e cheios de admiração,
bem haja esta geração
de Pissarros, e Cardosos.
2 Não me esquecera em meus dias
a boa arte, e disciplina,
com que a Madre Celestina
fazia as feitiçarias:
nas suas astrologias
usava de tais cautelas,
que diziam as Donzelas,
o Gregório em todo o caso
por evitar um fracasso
domina sobre as estrelas.
3 Dizem, formosas, e feias
mulheres de todo o estado,
que o Carvalho no tablado
chove-lhe a graça às mãos cheias:
ele é velhaco de meias,
ora santo, ora velhaco,
e eu, que o vi vestido em saco,
disse logo espavorido.
basta, que foi Deus servido
fazer um santo de um caco?
4 Não me esqueça o Azevedo,
porque posto no tablado
rebertolou de atinado,
porque ora é manso, ora azedo:
a nenhum outro concedo
ser homem tão peregrino,
tão geral, e tão divino,
pois a dizer me provoca,
que traz por língua na boca
as folhas do calepino.
5 Ninguém o pode entender,
e eu muito menos o entendo,
e só ele compreendo,
que o não posso comprender:
o que tem, que agradecer,
é o prazer, e o bom ar,
com que se vem ofertar,
porque em todas as jornadas
quer, que lhe dêem as pancadas,
porém não as quer levar.
6 Ele é um lindo rapaz,
e o primeiro filho de Eva,
que dá gosto, quando leva
muito mais que quando traz:
mas o Carvalho sagaz,
que lhe sabe das manqueiras,
lhe sacode as costaneiras,
porque quando desentoa,
dá-lhe uma má, e outra boa
com talos de bananeiras.
7 Inácio é grande estudante,
e nos mostrou tão bom fio,
que do seu jeito confio,
que há de ser grande farsante:
para moço principiante
nos deu bastante regalo,
e nas comédias, que falo,
como nas mais, que hão de haver,
a muitos há de exceder
sim por vida de Gonçalo.
8 Veio a festa a se acabar,
e eu, que lhe vim assistir,
estou cansado de rir,
mais do que de trabalhar:
agora entendo passar
à Catala, que é buçaco,
porque em lugar tão opaco
a todos dê, que entender,
depois das comédias ver,
ir vê-las por um buraco.
DESCREVE OUTRA COMEDIA QUE FIZERAM NA CIDADE OS PARDOS NA
CELEBRIDADE COM QUE FESTEJARAM A NOSSA SENHORA DO AMPARO, COMO
COSTUMAO ANNUALMENTE.
1 Grande comédia fizeram
os devotos do Amparo,
em cujo lustre reparo,
que as mais festas excederam:
tão eficazes moveram
ao povo, que os escutou,
que eu sei, quem ali firmou.
que se ainda agora vivera
Viriato, não pudera
imitar, quem o imitou.
2 O Sousa a puro valor,
e a puro esforço arrojado
não pode ser imitado,
de quem foi imitador:
e bem que a arte maior
não cnega, por ser ficção,
a natural perfeição,
tanto a arte aqui o fazia,
que o natural não podia
igualar a imitação.
3 As Damas com galhardia
altivas, e soberanas
muito excedem as Romanas
na pompa, e na bizarria:
cada qual me parecia
tão Dama, e tão gentil Dama,
que quando Lucinda em chama
de amor fingida se viu,
eu sei, que se não fingiu,
quem por ela então se inflama.
4 Mais airosa do que linda
Laura no toucado, e pêlo
não foi pouco parecê-lo,
sendo à vista de Lucinda:
tanto me namora ainda
a idéia do seu ornato,
que em fé de tanto aparato
meu requebro lhe dissera,
e ciúmes lhe tivera
de afeição de Viriato.
5 O Inácio a puro sal
tanta graça em si acrisola,
que podem pedir-lhe esmola
marinhas de Portugal:
nele a graça é natural,
naturalíssima a cara,
e eu de riso arrebentara,
se me não fora mister
toda a tarde ali viver
porque dele me lograra.
6 O nosso Juiz passado,
que Salema aqui se diz,
como foi mui bom Juiz,
também foi mui bem julgado:
em passos, gasto, e cuidado
se houve com tanto fervor,
que merece em bom primor
não ser só Juiz do Amparo,
mas por único, e por raro
ser do Amparo Julgador.
DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU O
VINHO NO BANQUETE, QUE SE DEO NA MESMA E;ESTA ENTRE AS JUIZAS, E
MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM.
1 No grande dia do Amparo,
estando as mulatas todas
entre festas, e entre bodas,
um caso sucedeu raro:
e foi, que não sendo avaro
o jantar de canjirões,
antes fervendo em cachões,
os brindes de mão em mão
depois de tanta razão
tiveram certas razões.
2 Macotinha a foliona
bailou robolando o cu
duas horas com Jelu
mulata também bailona:
senão quando outra putona
tomou posse do terreiro,
e porque ao seu pandeiro
não quis Macota sair,
outra saiu a renhir,
cujo nome é Domingueiro.
3 Por Macotinha tão rasa
de putinha, e mais putinha,
que a pobre Macotinha
se tornou de puta em brasa:
alborotando-se a casa
as mais se foram erguendo,
mas Jelu, ao que eu entendo,
é valente pertinaz,
lhe atirou logo um gilvaz
de unhas abaixo tremendo.
4 A mim com punhos violentos
(gritou a Puta matrona)
agora o vereis, Putona,
zás, e pôs-lhe os mandamentos:
e com tais atrevimentos
a Jelu se enfureceu,
que indo sobre ela lhe deu
punhadas tão repetidas,
que ficando ambas vencidas,
cada qual delas venceu.
5 Acudiu um Mulatete
bastardo da tal Domingas,
e respingas, não respingas
deu a Mulata um bofete:
ela, fervendo o muquete,
deu c'o Mulato de patas,
eis aqui vêm as Sapatas,
porque uma é sua madrinha,
e todas por certa linha
da mesma casa mulatas.
6 Chegou-se a tais menoscabos
que segundo agora ouvi,
havia de haver ali
uma de todos os diabos:
mas chegando quatro cabos
de putaria anciana,
a Puta mais veterana
disse então, que não cuidava,
que tais efeitos causava
vinhaça tão soberana.
7 Sossegada a gritaria
houve mulata repolho,
que, o que bebeu por um olho,
pelo outro o desbebia:
mas se chorava, ou se ria,
jamais ninguém comprendera,
se não se vira, e soubera
pelo vinho despendido,
que se tinha desbebido,
quanto vinho se bebera.
8 Tal cópia de jeribita
houve naquele folguedo,
que em nada se tem segredo,
antes tudo se vomita:
entre tantas Mariquita
a Juíza era de ver,
porque vendo ali verter
o vinho, que ela comprara,
de sorte se magoara,
que esteve para o beber.
9 Bertola devia estar
faminta, e desconjuntada,
pois vendo a pendência armada,
tratou de se caldear:
bebeu naquele jantar
sete pratos não pequenos
de caldo, e sete não menos
de carne, e é de reparar
que a pudera um só matar,
e escapar de dois setenos.
10 Maribonda, minha ingrata
tão pesada ali se viu,
que desmaiada caiu
sobre Luzia Sapata:
viu-se uma, e outra Mulata
em forma de Sodomia,
e como na casa havia
tal grita, e tal contusão
não se advertiu por então
o ferrão, que lhe metia.
11 Teresa a da cutilada
de sorte ali se portou,
que da bulha se apartou,
porque era puta sagrada:
da pendência retirada
esteve num canto posta,
mas com cara de Lagosta
trocava com muita graça
o vinho taça por taça,
a carne posta por posta.
12 Enfim, que as Pardas corridas
saíram com seus amantes,
sendo, que no dia d'antes
andavam elas saídas:
e sentindo-se afligidas
do já passado tinelo,
votaram com todo anelo
emenda à Virgem do Amparo,
que no seu dia preclaro
nunca mais bodas al cielo.
DESCREVE OUTRA FUNÇÃO IGUAL, QUE NO SEGUINTE ANNO ESTAS, E OUTRAS
MULATAS DA MESMA CONDIÇÃO FIZERAM A. N. SENHORA DE GUADALUPE.
1 Tornaram-se a emborrachar
as Mulatas da contenda,
elas não tomam emenda,
pois eu não me hei de emendar:
o uso de celebrar
àquela Santa, e a esta,
com uma, e com outra festa
não é devoção inteira,
é papança, é borracheira
dar de cu, cair de testa.
2 Bebeu Pelica, um almude,
e não faltou, quem notasse,
que mil saúdes tragasse;
e ficasse sem saúde:
caiu como em ataúde,
sendo mortalha as anáguas,
e eu entrei num mar de mágoas
vendo a casaca, que era
finíssima primavera,
ficar chamalote d'águas.
3 Vomitou toda a casaca,
e as Mulatas desconvinham
que umas por vômito o tinham
outras o tinham por caca:
levou sobre isto matraca
entre riso, e murmurinho,
e a carinha com focinho
lhe armou de grande altivez,
mas resvelando-lhe os pés
nadou em mares de vinho.
4 Angelinha aquela posta
manjuba de palafréns,
jogando fortes vaivéns
ao vomito estava posta:
com máscara de lagosta
ora arrotava, ora impava;
tomando puxos estava
até que a hora chegou,
não pariu, mas vomitou,
porque tudo então trocava.
5 A Filha da Mangalaça
de cuxambre tão maldito
indo a parir; o Hermanito
viu que o parto era vinhaça:
chorou tão grande desgraça
a triste da Macotinha,
vendo, que a sua Madrinha
ao botar o tal monstrinho
parira como com vinho,
porém não como convinha.
6 Anastácia a dos corais,
que fornicando a gandaia
para botar uma saia
mete sete oficiais:
bebeu tanto mais que as mais
borrachas desta folia
que cada qual lhe dizia
que os oficiais chamava
quando uma saia botava,
chamasse, quando bebia.
7 Brazia, que a meu entender
por bonita, e por galharda
excedia a toda a Parda
em cara, como em beber:
depois de muito comer
bebia com tanto afinco,
que dando às demais um trinco,
constou, que de seis frasqueiras
mui cheias, e muito inteiras
só ela bebera as cinco.
8 Helena, o cu de borralho,
asmática, porém gorda,
se ensopou como uma torda
na sorda de vinho, e alho:
tiveram grande trabalho
as mais em a levantar,
sem poder-se averiguar,
se era odre, ou se penedo,
e estando neste segredo
ela o veio a vomitar.
9 A Agueda do Michelo,
que tampouco se recata,
nem merece ser Sapata,
que entre todas é chinelo:
assentada no tinelo
dava aos sorvos tal carreira,
que disse uma companheira,
que a tirassem com presteza,
por não haver em tal mesa
azeitona sapateira.
10 Tomou a Garça no ar
a Sapata incontinenti,
e indo arreganhar-lhe o dente,
não teve, que arreganhar:
porém por se desquitar
foi-se bailar o cãozinho,
e como sobre o moinho
levou tantas embigadas,
deu em sair às tornadas
a puro vômito o vinho.
11 Ninguém com Marta Soares
quer trocar odre por odre,
porque de podre, e mais podre
não há distinção de azares:
os copos de vinho a pares
e aos nones a água bebia,
que Deus para ela não cria
água de rios, nem fontes,
e havendo de andar por pontes,
pelas de vinho andaria.
12 Vem Luzia sacrifício
Juíza de refestela
Agrela, que já não grela,
por ser puta d'abinitio
deu um jantar, que era vício
rodava o Santos licor,
e a negra serva do amor
gritava com saia verde,
aqui-d'El-Rei, que se perde
a roupa de meu Senhor.
13 Assim pois se embebedaram
a Mestiça, e a Mulata,
todos tomaram a gata,
só as Gatas não tomaram:
bem fizeram, bem andararn
em não irem à função:
porque se me caem na mão,
(como as outras que beberam)
então viram, e souberam
que sou para um gato, um cão.
14 A Gaguinha celebrada
se afastou desta folia,
dizendo que não queria
com Marinículas nada:
entendida, e engraçada
respondeu, por vida minha,
por saber que não convinha,
que a vinhaça moscatel
graduasse em Bacharel
quem fora sempre Gaguinha.
15 Inácia, chamada Ilhoa
para cada beiçarrão
não bastava um canjirão
com sopas de pão, e broa:
bebeu vinho de Lisboa,
bebeu do Porto, e Canárias,
e vendo, que em copas várias
outras o bebem do Beja,
disse picada de inveja,
ó Virgem das Candelárias!
16 A Surda, que gaga é,
escutando estas plegárias
da Virgem das Candelárias,
chamou a de Nazaré:
que licor é este, que
converte esta mulatinha?
bendita seja esta vinha,
que deu tão santo licor,
que para dar-lhe o louvor
se esgotou a ladainha.
17 Acabado o tal banquete
sem mais, nem mais dilação
foi-se um, e outro putão,
atrás do seu pontalete:
deixararn saia, e traquete,
dentro na casa fechada;
e lá pela madrugada,
veio a negra da Juíza
e não achando a camisa
gritou que estava roubada.
18 Voto solene fizeram
ouvindo da negra os brados
dizendo foram pecados,
que na festa cometeram:
porque a virgem a quem disseram,
que aquela festa faziam,
lhe ouviram, quando bebiam
dizer a senhora então;
que não se servia, não,
do modo com que serviam.
19 Elas já em seu juízo
(se de seu juízo têm)
dizem, que o ano que vem
haverá festa de siso:
que hão de olhar seu perjuízo,
sua honra, e opinião;
de putaria, isso não,
mas, eu por certas seqüelas
não me ficarei mais nelas
nem na sua devoção.
DESCREVE O POETA AS FESTAS DE CAVALLO QUE SE FIZERAM NO TERREYRO
EM LOUVOR DAS ONZE MIL VIRGENS, SENDO ESCRIVÃO EUZEBIO DA COSTA
REYMÃO FILHO DE MARIA REYMOA; EM QUE ASSISTIRAM ESTES DOUS
PRINCIPES PAY, E FILHO COM O MAYOR DA NOBREZA NO COLLEGIO DE JESUS.
1 Clóris, nas festas passadas
que às virgens são prometidas
houve quadrilhas corridas
parentas de envergonhadas:
porém estas realçadas
vi neste ano derradeiro:
pois na esfera do Terreiro
aparecia um Brandão,
que correndo exalação,
acabava cavaleiro.
2 Com estas aparições
de cometas tão luzidos,
nos mirões espavoridos
eram tudo admirações:
em máximas conjunções
de ouro, de prata, e de cores,
notei que os Festejadores
faziam com graças sumas
no ar um jardim de plumas,
e na terra um mar de flores.
3 Sua Excelência assistia,
o Conde, e toda a Nobreza,
e os padres por natureza
lhes faziam companhia:
estava sereno o dia,
a esfera toda anilada,
a água do mar estanhada,
brando o vento e lisonjeiro,
e contudo no Terreiro
houve muita carneirada.
4 Enfim a festa passada
tão cheia de cavaleiros,
se a fizeram dois Barbeiros,
não seria mais sangrada:
ali vi dar cutilada,
que todo o vento dissipa,
do bruto, que a participa,
e eu disse, pasmado e absorto,
que a catana era do Porto,
por rilhar sempre na tripa.
5 Logo e da primeira entrada
houve jogo de manilha,
que para isso a quadrilha
pêlo lindo era pintada:
quem lhe dava uma encontrada,
tudo então nos agradava,
pois conforme ouvi julgar
ali entre dar, e levar
pouca vantagem se dava.
6 Cada qual sem mais tardança,
à dama a quem mais se aplica,
levou na ponta da pica,
o que ganhou pela lança:
até o Padre Hortolança,
digo, o Cônego Gonçalo,
se logrou deste regalo:
eu só na baralha ingrata,
não vi manilha de prata,
que na de ouros já não falo.
7 Ao Marinho generoso
o dia franco, e escasso
concedeu-lhe o Galanaço
recatando-lhe o ditoso:
e visto que por airoso
é o Adônis da quadrilha
Zundu se lhe rende, e humilha,
dando-lhe (porque o conforte)
no cravo a primeira sorte,
a segunda na manilha.
8 Barreto alheio do susto,
que não implica amostrado
nem ao forte o asseado,
nem ao galante o robusto:
luzimento a pouco custo,
bom ar sem afetação,
foi julgado, em conclusão,
que a destreza o não desvela,
pois sem cuidado na sela,
caía no capressão.
9 Muito Eusébio se desvela
em correr mais que ninguém,
e por correr sempre bem
nunca se assentou na sela:
como há de sentar-se nela,
se correr só pertendia
tão propriamente o fazia,
que se assentar, e correr
não podem juntos caber,
não se assentava, corria.
10 O valeroso Muniz
em gala, cavalo, e arreio,
quanto ganhou pelo asseio,
o perdeu pelo infeliz:
o que eu vi, e a terra diz,
é que de muito adestrado,
andou tão aventejado,
que a voz do povo levou,
com que desde então deixou
o Povo mudo, e pasmado.
11 Outro Muniz valentão
o fez tão perfeitamente,
que sendo em sangue parente
era na destreza Irmão:
pelo forte em conclusão
deixou de si tal memória,
que por sua, e nossa glória,
(deixando aos demais em calma)
fez pouco em levar a palma,
sendo filho da Vitór
12 Do Bolantim a cavalo
dizia o Povo gostoso,
que era da festa o gracioso,
e eu digo que era o badalo:
quem chegou a ponderá-lo
correndo sobre a Rucina,
revirar a culatrina,
perni-aberto para o ar,
a que o pode comparar
mais que a um sino que se empina?
13 Ao Araújo famoso
no princípio da carreira,
resvelou-lhe a dianteira
o cavalo furioso:
cego, arrojado e fogoso,
entre uns baetas meteu-se:
quem sentado estava, ergueu-se:
porém o baixel violento
como ia arrasado em vento,
deu nuns bancos, e perdeu-se.
14 Caído o moço infeliz,
houve grita e alarido,
sendo que cai o entendido
em tudo, que se lhe diz:
ergueu-se em menos de um triz,
e pondo-se na vareda
correu com cara tão leda,
que causou admiração
em todos; porque já então
tinha ele com todos queda.
15 Um sobrinho do Frisão
ao cheiro acudiu dos patos,
porque é em públicos atos
mui ousado um patifão:
presa a rédea a um arpão,
nos estrivos dois arpéus
pus eu os olhos nos céus,
e disse que bem podiam
louvar a Deus, os que viam
a cavalo um Louva-Deus.
16 Uma aguilhada por lança
trabalhava a meio trote,
qual o Moço de Dom Quixote,
a que chamam Sancho Pança:
na cara infame confiança,
na sela infame perneta,
e com tramóia discreta,
ia sobre o seu jumento
pelo arreio, e nascimento
à bastarda e à gineta.
17 Ele andou tão desestrado,
que para dar-lhe sentido
o cavalo era o corrido,
e ele o desavergonhado:
estava o Frisão pasmado
de gosto babando o freio,
por ser de razão alheio
ver-se com tão pouco abalo
não no centeio a cavalo,
mas no cavalo o centeio.
18 A este filho universal,
com três Pais e três Padrastos
todo vestido de emprastos,
se emprastado o mesmo val:
se seguia um cirragal,
de quem tomavarn modelos
para a corcova os camelos,
cuja perna dobradiça
sempre a memória me atiça
da rua dos cotovelos.
19 No Menino Ascânio falo,
que o Pai Enéias a murro
devendo de o pôr num burro
o deixou pôr a cavalo:
este menino ia ao galo
e encontrou-se co'a galhofa,
onde servira de mofa,
os dias, que ali gastara,
se um braço lhe não quebrara,
e o mandaram numa alcofa.
20 Lá vem o Chico às carreiras
dando esporadas cruéis,
numa sela de arambéis
vestido de bananeiras:
nas Laranjadas primeiras
teve tão adversa estrela,
que caiu na esparrela,
não como Rola, em verdade,
porque a queda foi de frade,
pois logo agarrou da sela.
21 Às festas não deu desmaio
nenhum destes entremezes,
que não há ouro sem fezes,
nem comédia sem lacaio:
qualquer correu como um raio
e fez sua obrigação,
exceto o boi do sertão,
sendo, que alguém lhe cobiça
o resistir à justiça,
e dar co'a forca no chão.
22 O lindo Eusébio da Costa
escrivão das onze mil,
por assombrar o Brasil
fez tudo de sobre-aposta:
cos passados deu à costa,
e excedeu a toda a lei:
e assim eu sempre direi
hoje e em toda a ocasião,
que o ser por Costa Reimão
he vem por ter mão de Rei.
AS FESTAS DE CAVALLO QUE FEZ NO TERREYRO ESTRONDOSAMENTE
GONÇALLO RAVASCO CAVALCANTE SINGULAR JUIZ DAS ONZE MIL VIRGENS
COM ASSISTENCIA DESTE PRINCIPE, A QUEM O POETA OBSEQUÊA,
REMOQUEANDO A SEU ANTECESSOR: COMO TAMBEM OBSEQUÊA A ANDRE
CAVALLO, E OUTRAS PESSOAS NOMEADAS.
1 Foi das Onze mil Donzelas
Juiz o Juiz mais nobre
de quantos no Brasil cobre
o manto azul das estrelas:
nesta festa sem cautelas
gastou com liberal mão,
e para mais devoção
usar de Escrivão não quis,
sendo o primeiro Juiz,
que serviu sem escrivão.
2 Bem mostra, que de Bernardo
tem herdado o natural,
além de ser principal
o seu ânimo galhardo:
aplausos grandes aguardo,
e de Camena melhor,
que publiquem seu primor,
que a minha Talia nova
hoje admirações aprova
por mais heróico louvor.
3 Seis dias de cavaleiros
houve com bastante graça,
foram bons, e maus à praça
em ginetes, e sendeiros:
também houve aventureiros,
prêmios, e mantenedor,
touros, que foi o melhor,
porém sem ferocidade,
que os touros nesta cidade
não são de muito furor.
4 E pois coronista sou
desta grã festividade,
tenho de falar verdade,
e dizer, o que passou:
agaste-se, quem andou
mal, que a mim se me não dá:
sem saber, não foram lá,
e se lhe der isto espanto,
quando eu fizer outro tanto,
também de mim falará.
5 Bem sei, que é culpa fatal,
e contra a razão soçobra
dizer mal, de quem bem obra,
e bem, de quem obra mal:
mas nesta festa cabal
com meu fraco entendimento
aos cavaleiros intento
julgar sem ódio nenhum,
aplaudindo a cada um
conforme o merecimento.
6 Nestes dias festivais
com suma gala, e grandeza
assistiu toda a nobreza
dos homens mais principais:
Ministros, e Oficiais
de guerra e Damas mui belas,
que em palanques, e janelas
mostravam com arrebol,
que estando ali posto o sol,
bem podiam ser estrelas.
7 Posto o sol ali se via
porém com notável gosto,
quando vi, que era o sol posto,
mais o Terreiro luzia:
dois sóis postos na Bahia
vi com diferença atroz,
um Saturno, que se pôs
outro posto na janela,
Sol de luz mais clara, e bela,
que hoje nasce para nós.
8 Desterrando sombras mil
de um sol, que causou desmaios,
nasce com benignos raios
este Sol para o Brasil:
oh quem tivera a sutil
de Apolo Lira discreta,
da Fama aguda Trombeta,
para que pudesse ousado
sem temor, nem perturbado
descrever este Planeta.
9 Mas é fraco o meu engenho,
para de um Sol sem desmaios
querer ventilar os raios,
quando olhos d'águia não tenho;
e se a tão sublime empenho,
(onde o mais sábio delira)
meu pensamento subira,
logo dessa esfera clara
como Faetonte rodara,
ou como Ícaro caíra.
10 Quando o Planeta maior
à vista humana se expõe,
é, que a seus raios se opõe,
atrevido algum vapor:
e se neste sol melhor
nenhuns eclipses se vêem,
não se atreverá ninguém
(sem ter de néscio desmaios)
querer contemplar os raios
esclarecidos, que tem.
11 Quando da estéril Mulher
nasceu o maior do mundo,
admirações, e profundo
pasmo veio a gente ter:
e se com João nascer
houve tanta admiração:
à Bahia outro João
sol de claro nascimento
nasce com merecimento
pare a mesma suspensão.
12 E como não pasmarei
eu, e este Povo também
de ter por General, quem
cetro merece de Rei?
pois a ventura, e a lei
divina dispôs, Senhor,
o seres Governador,
contudo sabemos nós,
que um foi dos vossos Avós
de Pedro progenitor.
13 Daquele em tudo primeiro
João, em nada segundo
sois, e bem conhece o mundo,
descendente verdadeiro:
também da casa de Aveiro
muita nobreza alcançais:
Alencastre vos chamais
de Duarte Inglês potente
claríssimo descendente,
Silva sois, e nada mais.
14 Com branca, e encarnada pluma
galã vestido de verde,
que inda a esperança não perde
do neto da clara espuma:
Capitão de graça suma
André Cavalo saiu:
logo o Povo se sentiu,
porque de incidente novo
os olhos levou do Povo,
quando no Terreiro o viu.
15 Num branco bruto corria
mais ligeiro do que o vento,
tanto que co pensamento
correr parelhas podia:
veloz desaparecia
das pernas ao leve abalo,
e não podia julgá-lo
o Povo, que ali se achava,
se era vento, que levava
pelos ares o Cavalo.
16 Pôs André com bizarria
todas as lanças mui bem,
e inda assim não faltou, quem
murmurasse todavia:
soube ele da zombaria,
que se fez, e persentiu,
quem fora, o que ali se riu,
e no outro dia com brio
um cartel de desafio
pôs, mas ninguém lhe saiu.
17 No cartel, que pôs, mostrava,
que a qualquer que julgassem
três lanças, que se tirassem,
mil cruzados ofertava:
o delinqüente aceitava
o desafio esta vez,
porém que sem interês
com gosto perder queria
nesta contenda, e porfia
não só mil cruzados, três.
18 Pede licença, ao Senhor,
que no nome a graça traz:
mas ele como sagaz
o aconselha com primor:
diz-lhe, que fora melhor
esta contenda escusar;
porém o Mancebo alvar
fiado em ser cavaleiro,
e fiado em ter dinheiro
não quis o pacto aceitar.
19 Porque se não vence não
(dizia o Moço Magnata)
nem por ouro, nem por prata
o seu sangue de Aragão:
e vendo o Senhor D. João,
que se a licença negava,
a André Cavalo ultrajava,
pois podiam presumir,
se ao campo o não vissem ir,
que o dinheiro lhe faltava:
20 Lhe disse, que não só três
(se corressem) mil cruzados,
senão que depositados
tinha André Cavalo dez:
mas o moço Aragonês
vendo esta resolução,
por temer a perdição,
a que punha o seu dinheiro,
toma conselho primeiro
co reverendo Frisão.
21 O Padre, que sem estudo
as Leis entende civis,
e com manhosos ardis
obra mal, e sabe tudo:
lhe diria mui sisudo
com aspecto venerando,
rindo-se de quando em quando,
que assim seus enganos lavra,
não se lhe dê da palavra,
diga, que estava zombando.
22 Assim foi, que o desafio
veio a parar em burrada,
que a palavra não val nada,
se na ocasião falta o brio:
e para que com desvio
não fossem mais inimigos,
evitando alguns perigos
em boa paz os chamou
o General, e tratou,
de que fossem muito amigos.
23 Depois das pazes enfim
lhes pediu, que cavalgassem,
e um par de lanças tirassem
cada qual em seu rocim:
ele lhe disse, que sim,
e de improviso avisou
ao Irmão, que não tardou
em trazer-lhe bons arreios,
cavalos, selas, e freios,
e com eles se embarcou.
24 Num dia dos derradeiros
ao Terreiro os dous chegaram,
e ambos se separaram,
logo dos mais cavaleiros:
cuidam, que são os primeiros
Fidalgos, que a terra tem,
e néscios não antevêem,
que diz o Povo, e não erra,
se são Fidalgos da terra,
na terra há outros também.
25 Empinou-se-lhes a ruça,
e de quatro companheiros
sem mais outros cavaleiros
fizeram a escaramuça:
o General se debruça
para metê-los bem nela
na janela com cautela,
porém usou de revoltas,
porque metendo-os nas voltas,
mandou cerrar a janela.
26 A escaramuça acabada
fizeram a cortesia,
e todo o Povo se ria
vendo a janela fechada:
nas voltas não viram nada,
que com notável trabalho
no ay hombre cuerdo a cavalo,
porém depois que acabaram,
e o General não acharam,
ficaram de vinha-d'alhos.
27 Cos rostos descoloridos,
desesperados agora
iam por dentro, e por fora
da própria cor dos vestidos:
os que são desvanecidos,
e de néscia presunção
presumem mais, do que são,
emendem seus pensamentos,
que para seus desalentos
e vivo o Senhor D. João.
28 Não presumam, porque têm,
que são mais que os pobres nobres,
pois há muitos homens pobres,
mui bem nascidos também:
ao pequeno não convém
por pequeno desprezar,
que se este quiser falar,
achar pode algum defeito
que nenhum há tão perfeito,
em quem se não pode achar.
29 Seguia-se um cavaleiro
ao famoso André Cavalo,
que levou sem intervalo
de cada golpe um carneiro:
também foi aventureiro
de um prêmio: mas com defeito
dava ao corpo um grande jeito,
e ficou passado, e absorto,
de que fosse ao prêmio torto,
e o prêmio a outro direito.
30 Ao famoso Brás Rabelo
razão é de mestre o apode,
que dar dias santos pode
nesta arte, ao que for mais belo:
e se com louco desvelo,
do que digo, algum se abrasa,
escute a razão, que é rasa,
e verá, se faz espantos,
que dar possa os dias santos,
quem tem Domingos de casa.
31 Nas lanças, que pôs mui bem,
teve de prêmios ganança,
e certo, que pela Lança
não o há de vencer ninguém:
dos cavaleiros, que tem
modernos hoje a Bahia,
leva Brás a primazia,
porque não há nesta praça,
quem se ponha com mais graça,
fortaleza, e bizarria.
32 Também aquela fatal
emulação de Mavorte,
para os inimigos forte
para os amigos Leal,
aplauso merece igual,
pois nesta cavalaria,
se aos mestres não excedia,
por mais antigos na arte,
aos Modernos desta parte
ele leva a primazia.
33 Também no Machado falo,
que e razão por ele acuda,
pois sempre ao cavalo ajuda,
mas não o ajuda o cavalo:
inda assim posso louvá-lo,
dando-lhe vários apodos,
porque conheço em seus modos,
e mui bem posso afirmar,
que nisto de cavalgar
leva vantagens a todos.
34 Em mau cavalo corria,
mas um prêmio mereceu;
veja-se, quem o perdeu,
que cavaleiro seria:
aposto, que alguém diria,
vendo, que as carreiras passa
sem fortaleza, nem graça,
que o Moço com seu sendeiro
é nos fumos cavaleiro,
porém não cá para a praça.
35 Outro cavaleiro airoso
andou na festividade,
e vi na velocidade,
com que corre, ser Veloso:
por cavaleiro famoso
o Povo o aclamou de novo,
eu só admirando o louvo,
e acho discrição calar,
que é escusado falar,
quando por mim fala o Povo.
36 O Ripado valeroso
andou bem, porém sem sorte,
porque tem pouco de forte,
se bem tem muito de airoso:
perdeu pouco venturoso,
mas sem nenhum sentimento,
um prêmio, que Brás atento
ganhou, porque não se atreva
a aquilo, que também leva
com as palavras o vento.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo