LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Filosofia de um par de botas, de Machado de Assis
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em O Cruzeiro 1878
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à
Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali
fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem
morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma,
respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro.
Deus nobis haec otia fecit.
Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo
se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos
passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota,
o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens
camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra
tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de
lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.
Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a
conjecturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um
rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não
havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei
consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e
riam, mostrando em vez de dentes, uma pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido;
eis o que diziam as botas:
BOTA ESQUERDA. Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.
BOTA DIREITA. Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande;
mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do
tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?
BOTA ESQUERDA. Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas.
Ao menos na elegância...
BOTA DIREITA. Na elegância, ninguém nos vencia.
BOTA ESQUERDA. Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas
botinas cor de chocolate... aquele par...
BOTA DIREITA. O dos botões de madrepérola?
BOTA ESQUERDA. Esse.
BOTA DIREITA. O daquela viúva?
BOTA ESQUERDA. O da viúva.
BOTA DIREITA. Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando,
uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade.
Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre
dure, nem mal que se não acabe.
BOTA ESQUERDA. O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida.
Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado, postas
sobre um tapete, até que um dia, o dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu,
de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.
BOTA DIREITA. Sempre te conheci pirracenta.
BOTA ESQUERDA. Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o dr. Crispim levou-nos.
BOTA DIREITA. Era bom homem, o dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava