mesma coisa; mas não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se
nomeavam dias nem meses, nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa
vestígios no ar.
— Se eu achar um modo de trazer presente aos olhos os dias e os meses, e o reproduzir
todos os anos, para que ela veja palpavelmente ir-se-lhe a mocidade...
Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao amor, ainda quando ele brota de ruínas. O
Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada;
tão-somente os dias, as semanas, os meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a
terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova
espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso
pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O
almanaque trazia a língua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra
possuiu, na mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos os não têm ainda
hoje, se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que
estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal.
— Agora, sim, disse Esperança pegando no folheto que achou na horta; agora já me não
engano nos dias das amigas. Irei jantar ou passar a noite com elas, marcando aqui nas
folhas, com sinais de cor os dias escolhidos.
Todas tinham almanaques. Nem só elas, mas também as matronas, e os velhos e os
rapazes, juízes, sacerdotes, comerciantes, governadores, fâmulos; era moda trazer o
almanaque na algibeira. Um poeta compôs um poema atribuindo a invenção da obra às
Estações, por ordem de seus pais, o Sol e a Lua; um astrônomo, ao contrário, provou que
os almanaques eram destroços de um astro onde desde a origem dos séculos estavam
escritas as línguas faladas na terra e provavelmente nos outros planetas. A explicação
dos teólogos foi outra. Um grande físico entendeu que os almanaques eram obra da
própria terra, cujas palavras, acumuladas no ar, formaram-se em ordem, imprimiram-se
no próprio ar, convertido em folhas de papel, graças... Não continuou; tantas e tais eram
as sentenças, que a de Esperança foi a mais aceita do povo.
— Eu creio que o almanaque é o almanaque, dizia ela rindo.
Quando chegou o fim do ano, toda a gente, que trazia o almanaque com mil cuidados,
para consultá-lo no ano seguinte, ficou espantada de ver cair à noite outra chuva de
almanaques. Toda a terra amanheceu alastrada deles; eram os do ano novo. Guardaram
naturalmente os velhos. Ano findo, outro almanaque; assim foram eles vindo, até que
Esperança contou vinte e cinco anos, ou, como então se dizia, vinte e cinco almanaques.
Nunca os dias pareceram correr tão depressa. Voavam as semanas, com elas os meses,
e, mal o ano começava, estava logo findo. Esse efeito entristeceu a terra. A própria
Esperança, vendo que os dias passavam tão velozes, e não achando marido, pareceu
desanimada; mas foi só um instante. Nesse mesmo instante apareceu-lhe o Tempo.
— Aqui estou, não deixes que te chegue a velhice... Ama-me...
Esperança respondeu-lhe com duas gaifonas, e deixou-se estar solteira. Há de vir o
noivo, pensou ela.
Olhando-se ao espelho, viu que mui pouco mudara. Os vinte e cinco almanaques quase
lhe não apagaram a frescura dos quinze. Era a mesma linda e jovem Esperança. O velho
Tempo, cada vez mais afogueado em paixão, ia deixando cair os almanaques, ano por
ano, até que ela chegou aos trinta e daí aos trinta e cinco.
Eram já vinte almanaques; toda a gente começava a odiá-los, menos Esperança, que era
a mesma menina das quinze primaveras. Trinta almanaques, quarenta, cinqüenta,
sessenta, cem almanaques; velhices rápidas, mortes sobre mortes, recordações amargas
e duras. A própria Esperança, indo ao espelho, descobriu um fio de cabelo branco e uma
ruga.
— Uma ruga! Uma só!
Outras vieram, à medida dos almanaques. Afinal a cabeça de Esperança ficou sendo um
pico de neve, a cara um mapa de linhas. Só o coração era verde como acontecia ao
Tempo; verdes ambos, eternamente verdes. Os almanaques iam sempre caindo. Um dia,