Download PDF
ads:
LITERATURA BRASILEIRA
Textos literios em meio eletrônico
A Vida eterna, de Machado de Assis
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1870
É opinião unânime que não há estado comparável àquele que nem é sono nem vigília,
quando, desafogado o espírito de aflições, procura algum repouso às lides da existência.
Eu de mim digo que ainda não achei hora de mais prazer, sobretudo quando tenho o
estômago satisfeito e aspiro a fumaça de um bom charuto de Havana.
Depois de uma ceia copiosa e delicada, em companhia de meu excelente amigo o dr.
Vaz, que me apareceu em casa depois de dois anos de ausência, fomos eu e ele para a
minha alcova, e aí entramos a falar de coisas passadas, como dois velhos para quem já
não tem futuro a gramática da vida.
Vaz estava assentado numa cadeira de espaldar, toda forrada de couro, igual às que
ainda hoje se encontram nas sacristias; e eu estendi-me em um sofá também de couro.
Ambos fumávamos dois excelentes charutos que me haviam mandado de presente
alguns dias antes.
A conversa, pouco animada ao princípio, foi esmorecendo cada vez mais, até que eu e
ele, sem deixarmos o charuto da boca, cerramos os olhos e entramos no estado a que
aludi acima, ouvindo os ratos que passeavam no forro da casa, mas inteiramente
esquecidos um do outro.
Era natural passarmos dali ao sono completo, e eu lá chegaria, se não ouvisse bater à
porta três fortíssimas pancadas. Levantei-me sobressaltado; Vaz continuava na mesma
posição, o que me fez supor que estivesse dormindo, porque as pancadas deviam ter-lhe
produzido a mesma impressão se ele se achasse meio acordado como eu.
Fui ver quem me batia à porta. Era um sujeito alto e magro embuçado em um capote.
Apenas lhe abri a porta, o homem entrou sem me pedir licença, e nem dizer coisa
nenhuma. Esperei que me expusesse o motivo da sua visita, e esperei debalde, porque o
desconhecido sentou-se comodamente em uma cadeira, cruzou as pernas, tirou o chapéu
e começou a tocar com os dedos na copa do dito chapéu uma coisa que eu não pude
saber o que era, mas que devia ser alguma sinfonia de doidos, porque o homem parecia
vir direitinho da Praia Vermelha.
Relanceei os olhos para o meu amigo, que dormia a sono solto na cadeira de espaldar.
Os ratos continuavam a sua saturnal no forro.
Conservei-me de pé durante poucos instantes a ver se o desconhecido se resolvia a dizer
alguma coisa, e durante esse tempo, apesar da impressão desagradável que o homem
produzia em mim, examinei-lhe as feições e o vestuário.
Já disse que vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e vi
que o homem calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano amarelo e um
colete verde, cores estas que, se estão bem numa bandeira, não se pode com justiça
dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano.
As feições eram mais estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um grande
bigode, um nariz à moda de César, boca rasgada, queixo saliente e beiços roxos. As
sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa estreita, coroando tudo uns cabelos
grisalhos e em desordem.
O desconhecido, depois de tocar a sua música na copa do chapéu, levantou os olhos
para mim, e disse-me:
— Sente-se, meu rico senhor!
Era atrevimento receber eu ordens em minha própria casa. O meu primeiro dever era
mandar o sujeito embora; contudo, o tom em que ele falou era tão intimativo que eu
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
insensivelmente obedeci e fui sentar-me no sofá. Daí pude ver melhor a cara do homem,
à luz do lampião que pendia do teto, e achei-a pior do que antes.
— Chamo-me Tobias e sou formado em matemáticas.
Inclinei-me levemente.
O desconhecido continuou:
— Desconfio que hei de morrer amanhã; não se espante; tenho certeza de que amanhã
vou para o outro mundo. Isso é o menos; morrer é dormir, to die, to sleep; entretanto, não
quero ir deste mundo sem cumprir um dever imperioso e indispensável. Veja isto.
O desconhecido tirou do bolso um quadrinho e entregou-me. Era uma miniatura;
representava uma moça formosíssima de feições. Restituí o quadro ao meu interlocutor
esperando a explicação.
— Esse retrato, continuou ele olhando para a miniatura, é de minha filha Eusébia, moça
de vinte e dois anos, senhora de uma riqueza igual à de um Creso, porque é a minha
única herdeira.
Eu me espantaria do contraste que havia entre a riqueza e a aparência do desconhecido
se não tivesse já a convicção de que tratava com um doido. O que eu estava a ver era o
meio de pôr o homem pela porta fora; mas confesso que receava algum conflito, e por
isso esperei o resultado daquilo tudo.
Entretanto perguntava a mim mesmo como é que os meus escravos deixaram entrar um
desconhecido até a porta do meu quarto, apesar das ordens especiais que eu havia dado
em contrário. Já eu calculava mentalmente a natureza do castigo que lhes daria por causa
de tamanha incúria ou cumplicidade, quando o desconhecido atirou-me estas palavras à
cara:
— Antes de morrer quero que o senhor se case com Eusébia; é esta a proposta que
venho fazer-lhe; sendo que, no caso de aceitar o casamento, já aqui lhe deixo este maço
de notas do banco para alfinetes, e no caso de recusar mando-lhe simplesmente uma
bala a cabeça com este revólver que aqui trago.
E pôs à mesa o maço de bilhetes do banco e o revólver engatilhado.
A cena tomava um aspecto dramático. O meu primeiro ímpeto foi acordar o dr. Vaz, a ver
se ajudado por ele punha o homem pela porta fora; mas receei, e com razão, que vendo
um gesto meu nesse sentido, o desconhecido executasse a segunda parte do seu
discurso.
Só havia um meio: ladear.
— Meu rico sr. Tobias, e inútil dizer-lhe que eu sinto imensa satisfação com a proposta
que me faz, e está longe de mim a idéia de recusar a mão de tão formosa criatura, e mais
os seus contos de réis. Entretanto, peço-lhe que repare na minha idade; tenho setenta
anos; a sra. D. Eusébia apenas conta vinte e dois. Não lhe parece um sacrifício isto que
vamos impor à sua filha?
Tobias sorriu, olhou para o revólver, e entrou a tocar com os dedos na copa do chapéu.
— Longe de mim, continuei eu, a idéia de ofendê-lo; pelo contrário, se eu consultasse
unicamente a minha ambição não diria palavra; mas é no interesse mesmo dessa
gentilíssima dama, que eu já vou amando apesar dos meus setenta, e no interesse dela
que eu lhe observo a disparidade que entre nós existe.
Estas palavras disse-as eu em voz alta a ver se o dr. Vaz acordava; mas o meu amigo
continuava mergulhado na cadeira e no sono.
— Não quero saber de sua idade, disse Tobias pondo o chapéu na cabeça e segurando
no revólver; o que eu quero é que se case com Eusébia, e hoje mesmo. Se recusa, mato-
o.
Tobias apontou-me o revólver. Que faria eu naquela alternativa, senão aceitar a moça e a
riqueza, apesar de todos os meus escrúpulos?
— Caso! exclamei.
Tobias guardou o revólver na algibeira, e disse:
— Pois bem, vista-se.
— Já?
ads:
— Sem demora. Vista-se enquanto eu leio. Levantou-se, foi à minha estante, tirou um
volume do D. Quixote, e foi sentar-se outra vez; e enquanto eu, mais morto que vivo, ia
buscar ao guarda-roupa a minha casaca, o desconhecido tomou uns óculos e preparou-se
para ler.
— Quem é este sujeito que está dormindo tão tranqüilo? perguntou ele enquanto limpava
os óculos.
— É o dr. Vaz, meu amigo; quer que lhe apresente?
— Não, senhor, não é preciso, respondeu Tobias sorrindo maliciosamente.
Vesti-me com vagar para dar tempo a que algum incidente viesse interromper aquela
cena desagradável para mim. Além disso estava trêmulo, não atinava com a roupa, nem
com a maneira de vestir.
De quando em quando deitava um olhar para o desconhecido, que lia tranqüilamente a
obra do imortal Cervantes.
O meu relógio bateu onze horas.
Subitamente lembrou-me que, uma vez na rua, podia eu ter o recurso de encontrar um
policial a quem comunicaria a minha situação, conseguindo ver-me livre do meu
importuno sogro.
Outro recurso havia, e melhor que esse; vinha a ser acordar o dr. Vaz na ocasião da
partida (coisa natural) e ajudado por ele desfazer-me do incógnito.
Efetivamente, vesti-me o mais depressa que pude, e declarei-me às ordens do sr. Tobias,
que fechou o livro, foi pô-lo na estante, rebuçou-se no capote, e disse:
— Vamos!
— Peço-lhe entretanto para acordar o dr. Vaz, que não pode ficar aqui, visto que tem de
voltar para casa, disse-lhe eu dando um passo para a cadeira onde dormia o Vaz.
— Não é preciso, atalhou Tobias; voltamos dentro de pouco tempo.
Não insisti; restava-me o recurso do policial, ou de algum escravo se pudesse falar-lhe a
tempo; o escravo era impossível. Quando saímos do quarto o desconhecido deu-me o
braço e desceu comigo rapidamente as escadas até a rua.
À porta de casa havia um carro.
Tobias convidou-me a entrar nele.
Não tendo previsto este incidente, senti fraquear-me as pernas e perdi de todo a
esperança de escapar do meu algoz. Resistir era impossível e arriscado; o homem estava
armado com um argumento poderoso; e além disso, pensava eu, não se discute com um
doido.
Entramos no carro.
Não sei quanto tempo andamos, nem por que caminho fomos; calculo que não ficou no
Rio de Janeiro canto por onde não passássemos. No fim de longos e aflitivos séculos de
angústia, parou o carro diante de uma casa toda iluminada por dentro.
— É aqui, disse o meu companheiro, desçamos.
A casa era um verdadeiro palácio; a entrada era ornada de colunas de ordem dórica, o
vestíbulo calçado de mármore branco e preto, e iluminado por um magnífico candelabro
de bronze de forma antiga.
Subimos, eu e ele, por uma magnífica escada de mármore, até o topo, onde se achavam
duas pequenas estátuas representando Mercúrio e Minerva. Quando chegamos ali o meu
companheiro disse-me apontando para as estátuas:
— São emblemas, meu caro genro: Minerva quer dizer Eusébia, porque é a sabedoria;
Mercúrio, sou eu, porque representa o comércio.
— Então o senhor é comerciante? perguntei eu ingenuamente ao desconhecido.
— Fui negociante na Índia.
Atravessamos duas salas, e ao chegarmos à terceira encontramos um sujeito velho, a
quem Tobias me apresentou dizendo:
Aqui está o dr. Camilo da Anunciação; leve-o para a sala dos convidados, enquanto eu
vou mudar de roupa. Até já, meu caro genro.
E deu-me as costas.
O sujeito velho, que eu soube depois ser o mordomo da casa, tomou-me pela mão e
levou-me a uma grande sala, que era onde se achavam os convidados.
Apesar da profunda impressão que me causava aquela aventura, confesso que a riqueza
da casa me assombrava cada vez mais, e não só a riqueza, senão também o gosto e a
arte com que estava preparada.
A sala dos convidados estava fechada quando lá chegamos; o mordomo bateu três
pancadas, e veio abrir a porta um lacaio, também velho, que me segurou pela mão,
ficando o mordomo do lado de fora.
Nunca me há de esquecer a vista da sala apenas se me abriram as portas. Tudo ali era
estranho e magnífico. No fundo, em frente da porta de entrada, havia uma grande águia
de madeira fingindo bronze, encostada à parede, com as asas abertas, e preparando-se
como para voar. Do bico da águia pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa às
garras, conservando assim a posição inclinada que costuma ter um espelho de parede.
A sala não era forrada de papel, mas de seda branca, o teto artisticamente trabalhado;
grandes candelabros, magnífica mobília, flores em profusão, tapetes, tudo enfim quanto o
luxo e o gosto sugerem ao espírito de um homem rico.
Os convidados eram poucos e, não sei por que coincidência, eram todos velhos, como o
mordomo e o lacaio, e o meu próprio sogro; finalmente velhos como eu também.
Introduzido pelo criado, fui logo cumprimentado pelas pessoas presentes com uma
atenção que me dispôs logo o ânimo a querer-lhes bem.
Sentei-me numa cadeira, e vieram reunir-se em roda de mim, todos risonhos e satisfeitos
por ver o genro do incomparável Tobias. Era assim que chamavam ao homem do
revólver.
Acudi como pude às perguntas que me faziam, e parece que todas as minhas respostas
contentavam aos convidados, porquanto de minuto a minuto choviam sobre mim louvores
e cumprimentos.
Um dos convidados, homem de setenta anos, condecorado e calvo, disse com aplausos
gerais:
— O Tobias não podia encontrar melhor genro, nem que andasse com uma lanterna por
toda a cidade, que digo? por todo o império; vê-se que o dr. Camilo da Anunciação é um
perfeito cavalheiro, notável por seus talentos, pela gravidade da sua pessoa, e enfim
pelos admiráveis cabelos brancos que lhe adornam a cabeça, mais feliz do que eu que os
perdi há muito.
Suspirou o homem com tamanha força que parecia estar nos arrancos da morte. A
assembléia cobriu de aplausos as últimas palavras do orador.
Articulei um agradecimento, e preparei imediatamente os ouvidos para responder a outro
discurso que me foi dirigido por um coronel reformado, e outro finalmente por uma
senhora que, desde a minha entrada, não tirava os olhos de mim.
— Sra. condessa, disse o coronel quando a senhora acabou de falar, confesse V. Excia.
que os rapazes de hoje não valem este respeitável ancião, futuro genro do incomparável
Tobias.
— Valem nada, coronel! Em matéria de noivos só o século passado os fornece capazes e
bons. Casamentos de hoje! Abrenúncio! Uns peraltas todos pregadinhos e esticados, sem
gravidade, sem dignidade, sem honestidade!
A conversa assentou toda neste assunto. O século dezenove sofreu ali um vasto
processo; e (talvez preconceito de velho) falavam tão bem naquele assunto, com tanta
discrição e acerto, que eu acabei por admirá-los.
No meio de tudo, estava ansioso por conhecer a minha noiva. Era a última curiosidade; e
se ela fosse, como eu imaginava, uma beleza, e além do mais riquíssima, que poderia
exigir da sorte?
Aventurei uma pergunta nesse sentido a uma senhora que se achava ao pé de mim e em
frente à condessa. Disse-me ela que a noiva estava no toucador, e não tardava muito que
eu a visse. Acrescentou que era linda como o sol.
Entretanto decorrera uma hora, e nem a noiva, nem o pai, o incomparável Tobias,
aparecia na sala. Qual seria a causa da demora do meu futuro sogro? Para vestir-se não
era preciso tanto tempo. Eu confesso que, apesar da cena do quarto e das disposições
em que vi o homem, estaria mais tranqüilo se ele estivesse presente. É que ao velho já eu
tinha visto em minha casa; habituara-me aos seus gestos e discursos.
No fim de hora e meia abriu-se a porta para dar entrada a uma nova visita. Imaginem o
meu pasmo quando dei com os olhos no meu amigo dr. Vaz! Não pude abafar um grito de
surpresa, e corri para ele.
— Tu aqui!
— Ingrato! respondeu sorrindo o Vaz, casas e não convidas ao teu primeiro amigo. Se
não fosse esta carta ainda eu lá estaria no teu quarto à espera.
— Que carta? perguntei eu.
O Vaz abriu a carta que trazia na mão e deu-me para ler, enquanto os convidados de
longe contemplavam a cena inesperada, tanto por eles, como por mim.
A carta era de Tobias, e participava ao Vaz que, tendo eu de casar-me naquela noite,
tomava ele a liberdade de convidá-lo, na qualidade de sogro, para assistir a cerimônia.
— Como vieste?
— Teu sogro mandou-me um carro.
Aqui fui obrigado a confessar mentalmente que o Tobias merecia o título de incomparável,
como Enéas o de pio. Compreendi a razão por que não quis que eu o acordasse; era para
causar-lhe a surpresa de vê-lo depois.
Como era natural, quis o meu amigo que eu lhe explicasse a história do casamento, tão
súbito, e eu já me dispunha a isso, quando a porta se abriu e entrou o dono da casa.
Era outro.
Já não tinha as roupas esquisitas e o ar singular com que o vira no meu quarto; agora
trajava com aquela elegância grave que cabe a um velho, e pairava-lhe nos lábios o mais
amável sorriso.
— Então, meu caro genro, disse-me ele depois dos cumprimentos gerais, que me diz à
vinda do seu amigo?
— Digo, meu caro sogro, que o senhor é uma pérola. Não imaginará talvez o prazer que
me deu com esta surpresa, porque o Vaz foi e é o meu primeiro amigo.
Aproveitei a ocasião para o apresentar a todas os convidados, que foram de geral acordo
em que o dr. Vaz era um digno amigo do dr. Camilo da Anunciação. O incomparável
Tobias manifestou o desejo e a esperança de que dentro de pouco tempo ficaria a sua
pessoa ligada à de nós ambos, por modo que fôssemos todos designados: os três amigos
do peito.
Bateu meia-noite não sei em que igreja da vizinhança. Ergueu-se o incomparável Tobias,
e disse-me:
— Meu caro genro, vamos cumprimentar a sua noiva; aproxima-se a hora do casamento.
Levantaram-se todos e dirigiram-se para a porta da entrada, indo na frente eu, o Tobias e
o Vaz. Confesso que, de todos os incidentes daquela noite, este foi o que mais me
impressionou. A idéia de ir ver uma formosa donzela, na flor da idade, que devia ser
minha esposa — esposa de um velho filósofo já desenganado das ilusões da vida —,
essa idéia, confesso que me aterrou.
Atravessamos uma sala e chegamos diante de uma porta, meia aberta, dando para outra
sala ricamente iluminada. Abriram a porta dois lacaios, e todos nós entramos.
Ao fundo, sentada num riquíssimo divã azul, estava já pronta e deslumbrante de beleza a
sra. D. Eusébia. Tinha eu até então visto muitas mulheres de fascinar; nenhuma chegava
aos pés daquela. Era uma criação de poeta oriental. Comparando a minha velhice à
mocidade de Eusébia, senti-me envergonhado, e tive ímpetos de renunciar ao casamento.
Fui apresentado à noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade, uma ternura,
que acabaram por vencer-me completamente. No fim de dois minutos estava eu
cegamente apaixonado.
— Meu pai não podia escolher melhor marido para mim, disse-me ela fitando-me uns
olhos claros e transparentes; espero que tenha a felicidade de corresponder aos seus
méritos.
Balbuciei uma resposta; não sei o que disse; tinha os olhos embebidos nos dela. Eusébia
levantou-se e disse ao pai:
— Estou pronta.
Pedi que Vaz fosse uma das testemunhas do casamento, o que foi aceito; a outra
testemunha foi o coronel. A condessa serviu de madrinha.
Saímos dali para a capela, que era na mesma casa, e pouco retirada; já lá se achavam o
padre e o sacristão. Eram ambos velhos como toda a gente que havia em casa, exceto
Eusébia.
Minha noiva deu o sim com uma voz forte, e eu com voz fraquíssima; pareciam invertidos
os papéis.
Concluído o casamento, ouvimos um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que
o casamento impõe e da santidade daquela cerimônia. O padre era um poço de ciência e
um milagre de concisão; disse muito em pouquíssimas palavras. Soube depois que nunca
tinha ido ao parlamento.
À cerimônia do casamento seguiu-se um ligeiro chá e alguma música. A condessa dançou
nm minueto com o velho condecorado, e assim terminou a festa.
Conduzido aos meus aposentos por todos os convidados, soube em caminho que o Vaz
dormiria lá, por convite expresso do incomparável Tobias, que fez a mesma fineza aos
circunstantes.
Quando me achei só com a minha noiva, caí de joelhos e disse-lhe com a maior ternura:
— Tanto vivi para encontrar agora, já quase no túmulo, a maior ventura que pode caber
ao homem, porque o amor de uma mulher como tu é um verdadeiro presente do céu! Falo
em amor e não sei se tenho direito de o fazer... porque eu sou velho, e tu...
— Cale-se! cale-se! disse-me Eusébia assustada.
E foi cair num sofá com as mãos no rosto.
Espantou-me aquele movimento, e durante alguns minutos fiquei na posição em que
estava, sem saber o que havia de dizer.
Eusébia parecia estar chorando.
Levantei-me afinal, e acercando-me do sofá, perguntei-lhe que motivo tinha para aquelas
lágrimas.
Não me respondeu.
Tive uma suspeita; imaginei que Eusébia amava alguém, e que, para castigá-la do crime
desse amor, obrigavam-na a casar com um velho desconhecido a quem ela não podia
amar.
Despertou-se-me uma fibra de D. Quixote. Era uma vítima; cumpria salvá-la. Aproximei-
me de Eusébia, confiei-lhe a minha suspeita, e declarei-lhe a minha resolução.
Quando eu esperava vê-la agradecer-me de joelhos o nobre impulso das minhas
palavras, vi com surpresa que a moça olhava para mim com ar de compaixão, e dizia-me
abanando a cabeça:
— Desgraçado! é o senhor quem está perdido!
— Perdido! exclamei eu dando um salto.
— Sim, perdido!
Cobriu-se-me a testa de um suor frio; as pernas entraram a tremer-me, e eu para não cair
assentei-me ao pé dela no sofá. Pedi-lhe que me explicasse as suas palavras.
Por que não? disse ela; se lhe ocultasse seria cúmplice perante Deus, e Deus sabe que
eu sou apenas um instrumento passivo nas mãos de todos esses homens. Escute. O
senhor é o meu quinto marido; todos os anos, no mesmo dia e à mesma hora, dá-se
nesta casa a cerimônia que o senhor presenciou. Depois, todos me trazem para aqui com
o meu noivo, o qual...
— O qual? perguntei eu suando.
— Leia, disse Eusébia indo tirar de uma cômoda um rolo de pergaminho; há um mês que
eu pude descobrir isto, e só ha um mês tive a explicação dos meus casamentos todos os
anos.
Abri trêmulo o rolo que ela me apresentava, e li fulminado as seguintes linhas:
Elixir da eternidade, encontrado numa ruína do Egito, no ano de 402. Em nome da águia
preta e dos sete meninos do Setentrião, salve. Quando se juntarem vinte pessoas e
quiserem gozar do inapreciável privilégio de uma vida eterna, devem organizar uma
associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu, um velho maior de
sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima.
Compreende alguém a minha situação? Era a morte que eu tinha diante de mim, a morte
infalível, a morte dolorosa. Ao mesmo tempo era tão singular tudo quanto eu acabava de
saber, parecia-me tão absurdo o meio de comprar a eternidade com um festim de
antropófagos, que o meu espírito pairava entre a dúvida e o receio, acreditava e não
acreditava, tinha medo e perguntava por quê?
— Essa é a sorte que o espera, senhor!
— Mas isto é uma loucura! exclamei; comprar a eternidade com a morte de um homem!
Demais, como sabe que este pergaminho tem relação?...
— Sei, senhor, respondeu Eusébia; não lhe disse eu que este casamento era o quinto?
Onde estão os outros quatro maridos? Todos eles penetraram neste aposento para
saírem meia hora depois. Alguém os vinha chamar, sob qualquer pretexto, e eu nunca
mais os via. Desconfiei de alguma grande catástrofe; só agora sei o que é.
Entrei a passear agitado; era verdade que eu ia morrer? era aquela a minha última hora
de vida? Eusébia, assentada no sofá, olhava para mim e para a porta.
— Mas aquele padre, senhora, perguntei eu parando em frente dela, aquele padre
também é cúmplice?
— É o chefe da associação.
— E a senhora! também é cúmplice, pois que as suas palavras foram um verdadeiro laço;
se não fossem elas eu não aceitaria o casamento...
— Ai! senhor! respondeu Eusébia lavada em lágrimas; sou fraca, isso sim; mas cúmplice,
jamais. Aquilo que lhe disse foi-me ensinado.
Nisto ouvi um passo compassado no corredor; eram eles naturalmente.
Eusébia levantou-se assustada e ajoelhou-se-me aos pés, dizendo com voz surda:
— Não tenho culpa de nada do que vai acontecer, mas perdoe-me a causa involuntária!
Olhei para ela e disse-lhe que a perdoava.
Os passos aproximavam-se.
Dispus-me a vender caro a minha vida; mas não me lembrava que, além de não ter
armas, faltavam-me completamente as forças.
Quem quer que vinha andando chegou à porta e bateu. Não respondi logo; mas insistindo
de fora nas pancadas, perguntei:
— Quem está aí?
— Sou eu, respondeu-me Tobias com voz doce; queira abrir-me a porta. —
Para quê?
— Tenho de comunicar-lhe um segredo.
— A esta hora!
— É urgente.
Consultei Eusébia com os olhos; ela abanou tristemente a cabeça.
— Meu sogro, adiemos o segredo para amanhã.
— É urgentíssimo, respondeu Tobias, e para não lhe dar trabalho eu mesmo abro com
outra chave que possuo.
Corri à porta, mas era tarde; Tobias estava na soleira, risonho como se fosse entrar num
baile.
— Meu caro genro, disse ele, peço-lhe que venha comigo à sala da biblioteca; tenho de
comunicar-lhe um importante segredo relativo à nossa família.
— Amanhã, não acha melhor? disse eu.
— Não, há de ser já! respondeu Tobias franzindo a testa.
— Não quero!
— Não quer! pois há de ir.
— Bem sei que sou o seu quinto genro, meu caro sr. Tobias.
— Ah! sabe! Eusébia contou-lhe os outros casamentos; tanto melhor!
E, voltando-se para a filha, disse com frieza de matar:
— Indiscreta! vou dar-te o prêmio.
— Sr. Tobias, ela não tem culpa.
— Não foi ela quem lhe deu esse pergaminho? perguntou o Tobias apontando para o
pergaminho que eu ainda tinha na mão.
Ficamos aterrados!
Tobias tirou do bolso um pequeno apito e deu um assobio, ao qual responderam outros; e
daí a alguns minutos estava a alcova invadida por todos os velhos da casa.
— Vamos à festa! disse o Tobias.
Lancei mão de uma cadeira e ia atirar contra o sogro, quando Eusébia segurou-me no
braço, dizendo:
— É meu pai!
— Não ganhas nada com isso, disse Tobias sorrindo diabolicamente; hás de morrer,
Eusébia.
E segurando-a pelo pescoço entregou-a a dois lacaios dizendo:
— Matem-na.
A pobre moça gritava, mas em vão; os dois lacaios levaram-na para fora, enquanto os
outros velhos seguraram-me pelos braços e pernas, e levaram-me em procissão para
uma sala toda forrada de preto. Cheguei ali mais morto que vivo. Já lá achei o padre
vestido de batina.
Quis ver antes de morrer o meu pobre amigo Vaz, mas soube pelo coronel que ele estava
dormindo, e não sairia mais daquela casa; era o prato destinado ao ano futuro.
O padre declarou-me que era o meu confessor; mas eu recusei receber a absolvição do
próprio que me ia matar. Queria morrer impenitente.
Deitaram-me em cima de uma mesa atado de pés e mãos, e puseram-se todos à roda de
mim, ficando à minha cabeceira um lacaio armado com um punhal.
Depois entrou toda a companhia a entoar um coro em que eu só distinguia as palavras:
Em nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião.
Corria-me o suor em bagas; eu quase nada via; a idéia de morrer era horrível, apesar dos
meus setenta anos, em que já o mundo não deixa saudades.
Parou o coro e o padre disse com voz forte e pausada:
— Atenção! Faça o punhal a sua obra!
Luziu-me pelos olhos a lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o sangue
jorrou-me do peito e inundou a mesa; eu entre convulsões mortais dei o último suspiro.
Estava morto, completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim; restava-me
uma certa consciência deste mundo a que já não pertencia.
— Morreu? perguntou o coronel.
— Completamente, respondeu Tobias; vão chamar agora as senhoras.
As senhoras chegaram dali a pouco, curiosas e alegres.
— Então? perguntou a condessa; temos homem?
— Ei-lo.
As mulheres aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais;
todos concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato.
— Não podemos assá-lo inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos
esquartejá-lo; venham facas.
Estas palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis: o coronel
cortar-me-ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um braço, ele outro e a
condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para comer de cabidela.
Vieram as facas, e começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que
me haviam cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito.
— Bem, agora ao forno, disse Tobias.
De repente ouvi a voz do Vaz.
— Que é isso, ó Camilo, que é isso? dizia ele.
Abri os olhos e achei-me deitado no sofá em minha casa; Vaz estava ao pé de mim.
— Que diabo tens tu?
Olhei espantado para ele, e perguntei:
— Onde estão eles?
— Eles quem?
— Os canibais!
— Estás doido, homem!
Examinei-me: tinha as pernas, os braços e o nariz. O quarto era o meu. Vaz era o mesmo
Vaz.
— Que pesadelo tiveste! disse ele. Estava eu a dormir guando acordei com os teus gritos.
— Ainda bem, disse eu.
Levantei-me, bebi água, e contei o sonho ao meu amigo, que riu muito, e resolveu passar
a noite comigo. No dia seguinte, acordamos tarde e almoçamos alegremente. Ao sair,
disse-me o Vaz:
— Por que não escreves o teu sonho para o Jornal das Famílias?
— Homem, talvez.
— Pois escreve, que eu o mando ao Garnier.
cleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo