A família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 1808. Nessa época Basílio
Valença estava retirado da vida pública, em virtude de várias moléstias graves, das quais,
todavia, já se achava restabelecido naquela época. Tomou parte ativa na alegria geral e
sincera com que o príncipe regente foi recebido pela população da cidade, e por uma
anomalia que muita gente não compreendeu, admirava menos o representante da real
nobreza bragantina do que os diferentes figurões que faziam parte da comitiva que
acompanhava a monarquia portuguesa.
Tinha queda especial para os estudos nobiliários; dispunha de uma memória prodigiosa e
era capaz de repetir sem vacilar todos os graus de ascendência fidalga deste ou daquele
solar. Quando a ascendência se perdia na noite dos tempos, Basílio Valença parava a
narração e dizia com entusiasmo que dali só para onde Deus sabia.
E este entusiasmo era tão espontâneo, e esta admiração tão sincera, que uma vez julgou
dever romper as relações de amizade com um compadre só porque este lhe objetou que
muito longe que fosse certa fidalguia nunca podia ir além de Adão e Eva.
Darei uma prova da admiração de Basílio Valença pelas coisas fidalgas. Para alojar os
nobres que acompanhavam o príncipe regente foi preciso, por ordem do intendente de
polícia, que muitos moradores das boas casas as despejassem incontinente. Basílio
Valença nem esperou que esta ordem lhe fosse comunicada; mal soube das diligências
policiais a que se procedia foi de moto próprio oferecer a sua casa, que era das melhores,
e mudou-se para outra de muito menor valia e de mesquinho aspecto.
E mais. Muitos dos fidalgos alojados violentamente tarde deixaram as casas. e tarde
satisfizeram os aluguéis respectivos. Basílio Valença não só impôs a condição de que não
se lhe devolveria a casa enquanto fosse necessária, senão que declarou
peremptoriamente não aceitar do fidalgo alojado o mínimo real.
Esta admiração que se traduziu por fatos era efetivamente sincera, e até morrer nunca
Basílio deixou de ser o que sempre foi.
Tibério Valença foi educado nestas tradições. O pai inspirou-lhe as mesmas idéias e as
mesmas simpatias. Com elas cresceu, crescendo-lhes entretanto outras idéias que o
andar do tempo lhe foi inspirando. Imaginou que a longa e tradicional afeição de sua
família pelas famílias afidalgadas dava-lhe um direito de penetrar no círculo fechado dos
velhos brasões, e nesse sentido tratou de educar os filhos e avisar o mundo.
Tibério Valença não era lógico neste procedimento. Se não queria admitir em sua família
um indivíduo que na sua opinião estava abaixo dela, como pretendia entrar nas famílias
nobres de que ele se achava evidentemente muito mais baixo? Isto, que saltava aos olhos
de qualquer, não era compreendido por Tibério Valença, a quem a vaidade de ver
misturar o sangue vermelho das suas veias com o sangue azul das veias fidalgas era
para ele o único e exclusivo cuidado.
Finalmente o tempo trouxe as necessárias modificações às pretensões nobiliárias de
Tibério Valença, e em 1850 já não exigia uma linha de avós puros e incontestáveis, exigia
simplesmente uma fortuna regular.
Eu não me atrevo a dizer o que penso destas preocupações de um homem que a
natureza fizera pai. Indico-as simplesmente. E acrescento que Tibério Valença cuidava
destes arranjos dos filhos como cuidava do arranjo de umas fábricas que possuía. Eram
para ele a mesma operação.
Ora, apesar de toda a vigilância, o filho de Tibério Valença, Tomás Valença, não
comungou com as idéias do pai, nem assinou os seus projetos secretos. Era moço,
recebia a influência de outras idéias e de outros tempos, e podia recebê-la em virtude da
liberdade plena que gozava e da companhia que escolheu. Elisa Valença, sua irmã, não
estava, talvez, no mesmo caso, e muitas vezes teve de comprimir os impulsos do coração
para não contrariar as idéias acanhadas que Tibério Valença lhe introduzira na cabeça.
Mas fossem ambos com as suas idéias ou não fossem absolutamente, era o que Tibério
Valença não cuidava de saber. Ele tinha a respeito da paternidade umas idéias especiais;
entendia que estava na sua mão regular, não só o futuro, o que era justo, mas ainda o
coração dos seus filhos. Nisto enganava-se Tibério Valença.