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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literios em meio eletrônico
A Mulher lida, de Machado de Assis
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em A Estação 1881
I
Rangeu enfim o último degrau da escada ao peso do vasto corpo do major Bento. O major
deteve-se um minuto, respirou à larga, como se acabasse de subir, não a escada do
sobrinho, mas a de Jacó, e enfiou pelo corredor adiante.
A casa era na Rua da Misericórdia, uma casa de sobrado cujo locatário sublocara três
aposentos a estudantes. O aposento de Máximo era ao fundo, à esquerda, perto de uma
janela que dava para a cozinha de uma casa da rua D. Manuel. Triste lugar, triste
aposento, e tristíssimo habitante, a julgá-lo pelo rosto com que apareceu às pancadinhas
do major. Este bateu, com efeito, e bateu duas vezes, sem impaciência nem sofreguidão.
Logo que bateu a segunda vez, ouviu estalar dentro uma cama, e logo um ruído de
chinelas ao chão, depois um silêncio curto, enfim, moveu-se a chave e abriu-se a porta.
— Quem é? — ia dizendo a pessoa que abrira. E logo: — é o tio Bento.
A pessoa era um rapaz de vinte anos, magro, um pouco amarelo, não alto, nem elegante.
Tinha os cabelos despenteados, vestia um chambre velho de ramagens, que foram
vistosas no seu tempo, calçava umas chinelas de tapete; tudo asseado e tudo pobre. O
aposento condizia com o habitante: era o alinho na miséria. Uma cama, uma pequena
mesa, três cadeiras, um lavatório, alguns livros, dois baús, e pouco mais.
— Viva o sr. estudante, disse o major sentando-se na cadeira que o rapaz lhe oferecera.
— Vosmecê por aqui, é novidade, disse Máximo. Vem a passeio ou negócio?
— Nem negócio nem passeio. Venho...
Hesitou; Máximo reparou que ele trazia uma polegada de fumo no chapéu de palha, um
grande chapéu da roça de onde era o major Bento. O major, como o sobrinho, era de
Iguaçu. Reparou nisso, e perguntou assustado se morrera alguma pessoa da família.
— Descanse, disse o major, não morreu nenhum parente de sangue. Morreu teu
padrinho.
O golpe foi leve. O padrinho de Máximo era um fazendeiro rico e avaro, que nunca jamais
dera ao sobrinho um só presente, salvo um cacho de bananas, e ainda assim, porque ele
se achava presente na ocasião de chegarem os carros. Tristemente avaro. Sobre avaro,
misantropo; vivia consigo, sem parentes — nem amigos, nem eleições, nem festas, nem
coisa nenhuma. Máximo não sentiu muita comoção à noticia do óbito. Chegou a proferir
uma palavra de desdém.
— Vá feito, disse ele, no fim de algum tempo de silêncio, a terra lhe seja leve, como a
bolsa que me deixou.
— Ingrato! bradou o major. Fez-te seu herdeiro universal.
O major proferiu estas palavras estendendo os braços para amparar o sobrinho, na queda
que lhe daria a comoção; mas, a seu pesar, viu o sobrinho alegre, ou pouco menos triste
do que antes, mas sem nenhum delírio. Teve um sobressalto, é certo, e não disfarçou a
satisfação da noticia. Pudera! Uma herança de seiscentos contos, pelo menos. Mas daí à
vertigem, ao estontear que o major previa, a distância era enorme. Máximo puxou de uma
cadeira e sentou-se defronte do tio.
— Não me diga isso! Deveras herdeiro?
— Vim de propósito dar-te a notícia. Causou espanto a muita gente; o Morais Bicudo, que
fez tudo para empalmar-lhe a herança, ficou com uma cara de palmo e meio. Dizia-se
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muita coisa; uns que a fortuna fìcava para o Morais, outros que para o vigário, etc. Até se
disse que uma das escravas seria a herdeira da maior parte. Histórias! Morreu o homem,
abre-se o testamento, e lê-se a declaração de que você é o herdeiro universal.
Máximo ouviu contente. No mais recôndito da consciência dele insinuava-se esta reflexão
— que a morte do coronel era uma coisa deliciosa, e que nenhuma outra notícia lhe podia
ir mais direta e profunda ao coração.
— Vim dizer isto a você, continuou o major, e trazer um recado de tua mãe.
— Que é?
— Simplesmente saber se você quer continuar a estudar ou se prefere tomar conta da
fazenda.
— Que lhe parece?
— A mim nada; você é que decide.
Máximo refletiu um instante.
— Em todo o caso, não é sangria desatada, disse ele; tenho tempo de escolher.
— Não, porque se você quiser estudar dá-me procuração, e não precisa sair daqui.
Agora, se...
— Vosmecê volta hoje mesmo?
— Não, volto sábado.
— Pois amanhã resolveremos isto.
Levantou-se, atirou a cadeira ao lado, bradando que enfim ia tirar o pé do lodo; confessou
que o padrinho era um bom homem, apesar de seco e misantropo, e a prova...
— Vivam os defuntos! concluiu o estudante.
Foi a um pequeno espelho, mirou-se, consertou os cabelos com as mãos; depois deteve-
se algum tempo a olhar o soalho. O tom sombrio do rosto dominou logo a alegria da
ocasião; e se o major fosse homem sagaz, poderia perceber-lhe nos lábios uma leve
expressão de amargura. Mas o major nem era sagaz, nem olhava para ele; olhava para o
fumo do chapéu, e consertava-o; depois despediu-se do estudante.
— Não, disse este; vamos jantar juntos.
O major aceitou. Máximo vestiu-se depressa, e, enquanto se vestia, falava das coisas de
Iguaçu e da família. Pela conversa sabemos que a família é pobre, sem influência nem
esperança. A mãe do estudante, irmã do major, tinha um pequeno sítio, que mal lhe dava
para comer. O major exercia um emprego subalterno, e nem sequer tinha o gosto de ser
verdadeiramente major. Chamavam-lhe assim, porque dois anos antes, em 1854, disse-
se que ele ia ser nomeado major da Guarda Nacional. Pura invenção, que muita gente
acreditou realidade; e visto que lhe deram desde logo o título, repararam com ele o
esquecimento do governo.
— Agora, juro-lhe que vosmecê há de ser major de verdade, dizia-lhe Máximo pondo na
cabeça o chapéu de pêlo de lebre, depois de o escovar com muita minuciosidade.
— Homem, você quer que lhe diga? Isto de política já me não importa. Afinal, é tudo o
mesmo...
— Mas há de ser major.
— Não digo que não, mas...
— Mas?
— Enfim, não digo que não.
Máximo abriu a porta e saíram. Ressoaram os passos de ambos no corredor mal
alumiado. De um quarto ouviu-se uma cantarola, de outro um monólogo, de outro um
tossir longo e cansado.
— É um asmático, disse o estudante ao tio, que punha o pé no primeiro degrau da escada
para descer.
— Diabo de casa tão escura, disse ele.
— Arranjarei outra com luz e jardins, redargüiu o estudante.
E dando-lhe o braço, desceram à rua.
II
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Naturalmente a leitora notou a impressão de tristeza do estudante, no meio da alegria que
lhe trouxe o tio Bento. Não é provável que um herdeiro, na ocasião em que se lhe anuncia
a herança, tenha outros sentimentos que não sejam de regozijo; daí uma conclusão da
leitora — uma suspeita ao menos — suspeita ou conclusão que a leitora terá formulado
nestes termos:
— O Máximo padece do fígado.
Engano! O Máximo não padece do fígado; goza até uma saúde de ferro. A causa secreta
da tristeza súbita do Máximo, por mais inverossímil que pareça, é esta: — O rapaz amava
uma galante moça de dezoito anos, moradora na Rua dos Arcos, e amava sem ventura.
Desde dois meses fora apresentado em casa do sr. Alcântara, à Rua dos Arcos. Era o pai
de Eulália, que é a moça em questão. O sr. Alcântara não era rico, exercia um emprego
mediano no Tesouro, e vivia com certa economia e discrição; era ainda casado e tinha só
duas filhas, a Eulália, e outra, que não passava de sete anos. Era um bom homem, muito
inteligente, que se afeiçoou desde logo ao Máximo, e que, se o consultassem, não diria
outra coisa senão que o aceitava para genro.
Tal não era a opinião de Eulália. Gostava de conversar com ele — não muito —, ouvia-lhe
as graças, porque ele era gracioso, tinha repentes felizes; mas só isso. No dia em que o
nosso Máximo se atreveu a interrogar os olhos de Eulália, esta não lhe respondeu coisa
nenhuma, antes supôs que fora engano seu. Da segunda vez não havia dúvida; era
positivo que o rapaz gostava dela e a interrogava. Eulália não pode ter-se que não
comentasse o gesto do rapaz, no dia seguinte, com umas primas.
— Ora vejam!
— Mas que tem? aventurou uma das primas.
— Que tem? Não gosto dele; parece que é razão bastante. Realmente, há pessoas a
quem não se pode dar um pouco de confiança. Só porque conversou um pouco comigo já
pensa que é motivo para cair de namoro. Ora não vê!
Quando no dia seguinte, Máximo chegou à casa do sr. Alcântara, foi recebido com frieza;
entendeu que não era correspondido, mas nem por isso desanimou. Sua opinião é que as
mulheres não eram mais duras do que as pedras, e entretanto a persistência da água
vencia as pedras. Além deste ponto de doutrina, havia uma razão mais forte: ele amava
deveras. Cada dia vinha fortalecer a paixão do moço, a ponto de lhe parecer inadmissível
outra coisa que não fosse o casamento, e próximo; não sabia como seria próximo o
casamento de um estudante sem dinheiro com uma dama, que o desdenhava; mas o
desejo ocupa-se tão pouco das coisas impossíveis!
Eulália, honra lhe seja, tratou de desenganar as esperanças do estudante, por todos os
modos, com o gesto e com a palavra; falava-lhe pouco, e às vezes mal. Não olhava para
ele, ou olhava de relance, sem demora nem expressão. Não aplaudia, como outrora, os
versos que ele ia ler em casa do pai, menos ainda lhe pedia que recitasse outros, como
as primas; estas sempre se lembravam de um Devaneio, um Suspiro ao luar, Teus olhos,
Ela, Minha vida por um olhar, e outros pecados de igual peso, que o leitor pode comprar
hoje por seiscentos réis, em brochura, na rua de S. José nº...., ou por trezentos réis, sem
o frontispício. Eulália ouvia todas as belas estrofes compostas especialmente para ela,
como se fossem uma página de S. Tomás de Aquino.
— Vou arriscar uma carta, disse um dia o rapaz, ao fechar a porta do quarto, da rua da
Misericórdia.
Efetivamente entregou-lhe uma carta alguns dias depois, à saída, quando ela já não podia
recusá-la. Saiu precipitadamente; Eulália ficou com o papel na mão, mas devolveu-lho no
dia seguinte.
Apesar desta recusa e de todas as outras, Máximo conservava a esperança de triunfar
enfim da resistência de Eulália, e não a conservava senão porque a paixão era verdadeira
e forte, nutrida de si mesma, e irritada por um sentimento de amor próprio ofendido. O
orgulho do rapaz sentia-se humilhado, e, para perdoar, exigia a completa obediência.
Imagine-se, portanto, o que seriam as noites dele, no quartinho da rua da Misericórdia,
após os desdéns de cada dia.
Na véspera do dia em que o major Bento veio de Iguaçu comunicar ao sobrinho a morte e
a herança do padrinho, Máximo reuniu todas as forças e deu batalha campal. Vestiu
nesse dia um paletó à moda, umas calças talhadas por mão de mestre, deu-se ao luxo de
um cabeleireiro, retesou o princípio de um bigode mal espesso, coligiu nos olhos toda a
soma da eletricidade que tinha no organismo, e foi para a Rua dos Arcos. Um colega de
ano, confidente dos primeiros dias do namoro, costumava a fazer do nome da rua uma
triste aproximação histórica e militar. — Quando sais tu da ponte d’Arcole? — Esta chufa
sem graça nem misericórdia doía ao pobre sobrinho do major Bento, como se fosse uma
punhalada, mas não o dizia, para não confessar tudo; apesar das primeiras confidências,
Máximo era um solitário.
Foi; declarou-se formalmente, Eulália recusou formalmente, mas sem desdém, apenas
fria. Máximo voltou para casa abatido e passou uma noite de todos os diabos. Há fortes
razões para crer que não almoçou nesse dia, além de três ou quatro xícaras de café. Café
e cigarros. Máximo fumou uma quantidade incrível de cigarros. Os vendedores de tabaco
certamente contam com as paixões infelizes, as esperas de entrevistas, e outras
hipóteses em que o cigarro é confidente obrigado.
Tal era, em resumo, a vida anterior de Máximo, e tal foi a causa da tristeza com que pôde
resistir às alegrias de uma herança inesperada — e duas vezes inesperada, pois não
contava com a morte, e menos ainda com o testamento do padrinho.
— Vivam os defuntos! Esta exclamação, com que recebera a notícia do major Bento, não
trazia o alvoroço próprio de um herdeiro; a nota era forçada demais.
O major Bento não soube nada daquela paixão secreta. Ao jantar, via-o de quando em
quando ficar calado e sombrio, com os olhos fitos na mesa, a fazer bolas de miolo de pão.
— Tu tens alguma coisa, Máximo? perguntava-lhe.
Máximo estremecia, e procurava sorrir um pouco.
— Não tenho nada.
— Estás assim... um pouco... pensativo...
— Ah! é a lição de amanhã.
— Homem, isto de estudos não deve ir ao ponto de fazer adoecer a gente. Livro faz a
cara amarela. Você precisa de distrair-se, não ficar metido naquele buraco da Rua da
Misericórdia, sem ar nem luz, agarrado aos livros...
Máximo aproveitava estes sermões do tio, e voava outra vez à Rua dos Arcos, isto é, às
bolas de miolo de pão e aos olhos fitos na mesa. Num desses esquecimentos, e enquanto
o tio despia uma costeleta de porco, Máximo disse em voz alta:
— Justo.
— O que é? perguntou o major.
— Nada.
— Você está falando só, rapaz? Hum? aqui há coisa. Hão de ver as italianas do teatro.
Máximo sorriu, e não explicou ao tio por que motivo lhe saíra aquela palavra da boca,
uma palavra seca, nua, vaga, susceptível de mil aplicações. Era um juízo? uma
resolução?
III
Máximo teve uma idéia singular: experimentar se Eulália, rebelde ao estudante pobre, não
o seria ao herdeiro rico. Nessa mesma noite foi à Rua dos Arcos. Ao entrar, disse-lhe o sr.
Alcântara:
— Chega a propósito; temos aqui umas moças que ainda não ouviram o Suspiro ao luar.
Máximo não se fez de rogado; era poeta; supunha-se grande poeta; em todo caso
recitava bem, com certas inflexões langorosas, umas quedas da voz e uns olhos cheios
de morte e de vida. Abotoou o paletó com uma intenção chateaubriânica mas o paletó
recusou-se a intenções estrangeiras e literárias. Era um prosaico paletó nacional, da Rua
do Hospício nº... A mão ao peito corrigiu um pouco a rebeldia do vestuário; e esta
circunstância persuadiu a uma das moças de fora que o jovem estudante não era tão
desprezível como lhe havia dito Eulália. E foi assim que os versos começaram a brotar-lhe
da boca — a adejar-lhe, que é melhor verbo para o nosso caso.
— Bravo! bravo! diziam os ouvintes, a cada estrofe.
Depois do Suspiro ao luar, veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao mesmo tempo,
e ainda o Colo de neve, até que o Máximo anunciou uns versos inéditos, compostos de
fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem! Todos os ouvidos afiaram-se
para tão gulosa especiaria literária. E quando ele anunciou que a nova poesia
denominava-se Uma cabana e teu amor — houve um geral murmúrio de admiração.
Máximo preparou-se; tornou a inserir a mão entre o colete e o paletó, e fitou os olhos em
Eulália.
— Forte tolo! disse a moça consigo.
Geralmente, quando uma mulher tem de um homem a idéia que Eulália acabava de
formular — está prestes a mandá-lo embora de uma vez ou a adorá-lo em todo o resto da
vida. Um moralista dizia que as mulheres são extremas: ou melhores ou piores do que os
homens. Extremas são, e daí o meu conceito. A nossa Eulália estava no último fio da
tolerância; um pouco mais, e o Máximo ia receber as derradeiras despedidas. Naquela
noite mais do que nunca, pareceu-lhe insuportável o estudante. A insistência do olhar —
ele, que era tímido —, o ar de soberania, certa consciência de si mesmo, que até então
não mostrara, tudo o condenou de uma vez.
— Vamos, vamos, disseram os curiosos ao poeta.
— Uma cabana e teu amor, repetiu Máximo.
E começou a recitar os versos. Essa composição intencional dizia que ele, poeta, era
pobre, muito pobre, mais pobre do que as aves do céu; mas que à sombra de uma
cabana, ao pé dela, seria o mais feliz e mais opulento homem do mundo. As últimas
estrofes — juro que não as cito senão por ser fiel à narração — as estrofes derradeiras
eram assim:
Que me importa não tragas brilhantes,
Refulgindo no teu colo nu?
Tens nos olhos as jóias vibrantes,
E a mais nítida pérola és tu.
Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso, a teus pés,
Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!
O efeito destes versos foi estrondoso. O sr. Alcântara, que suava no Tesouro todos os
dias para evitar a cabana e o almoço, um tanto parco, celebrado nos versos do estudante,
aplaudiu entusiasticamente os desejos deste, notou a melodia do ritmo, a doçura da frase,
etc...
— Oh! muito bonito! muito bonito! exclamava ele, e repetia entusiasmado:
Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso a teus pés,
Amoroso a teus pés... Que mais? Amoroso a teus pés, e... Ah! sim:
Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!
Note-se — e este rasgo mostrará a força de caráter de Eulália —, note-se que Eulália
achou os versos bonitos, e achá-los-ia deliciosos, se os pudesse ouvir com orelhas
simpáticas. Achou-os bonitos, mas não os aplaudiu.
“ para usar a expressão do sr. Alcântara, querendo dizer que se dançou um pouco. —
Armemos uma brincadeira, bradara ele. Uma das moças foi para o piano, as outras e os
rapazes dançaram. Máximo alcançou uma quadrilha de Eulália; no fim da terceira figura
disse-lhe baixinho:
— Pobre sou, pobre quero ajoelhado...
— Quem é pobre não tem vícios, respondeu a moça rindo, com um pouco de ferocidade
nos olhos e no coração.
Máximo enfiou. Não me amará nunca, pensou ele. Ao chá, restabelecido do golpe, e
fortemente mordido do despeito, lembrou-se de dar a ação definitiva, que era noticiar a
herança. Tudo isso era tão infantil, tão adoidado, que a língua entorpeceu-se-lhe no
melhor momento, e a noticia não lhe saiu da boca. Foi só então que ele pensou na
singularidade duma notícia daquelas, em plena ceia de estranhos, depois de uma
quadrilha e alguns versos. Esse plano, afagado durante a tarde e a noite, que lhe parecia
um prodígio de habilidade, e talvez o fosse deveras, esse plano apareceu-lhe agora pela
face obscura, e achou-o ridículo. Minto: achou-o ousado apenas. As visitas começaram a
despedir-se, e ele foi obrigado a despedir-se também. Na rua, arrependeu-se, chamou-se
covarde, tolo, maricas, todos os nomes feios que um caráter fraco dá a si mesmo, quando
perde uma ação. No dia seguinte meteu-se a caminho para Iguaçu.
Seis ou sete semanas depois, tornado de Iguaçu, a notícia da herança era pública. A
primeira pessoa que o visitou foi o sr. Alcântara, e força é dizer que a pena com que lhe
apareceu era sincera. Ele o aceitara ainda pobre; é que deveras o estimava.
— Agora continua os seus estudos, não é? perguntou ele.
— Não sei, disse o rapaz; pode ser que não.
— Como assim?
— Estou com idéias de ir estudar na Europa, na Alemanha, por exemplo; em todo o caso,
não irei este ano. Estou moço, não preciso ganhar a vida, posso esperar.
O sr. Alcântara deu a notícia à família. Um irmão de Eulália não se teve que não lançasse
em rosto à irmã os seus desdéns, e sobretudo a crueldade com que os manifestara.
— Mas se não gosto dele, e agora? dizia a moça.
E dizia isso arrebitando o nariz, e com um jeito de ombros, seco, frio, enfarado,
amofinado.
— Ao menos confesse que é um moço de talento, insistiu o irmão.
— Não digo que não.
— De muito talento.
— Creio que sim.
— Se é! Que bonitos versos que ele faz! E depois não é feio. Você dirá que o Máximo é
um rapaz feio?
— Não, não digo.
Uma prima, casada, teve para Eulália os mesmos reparos. A essa confessou Eulália que
o Máximo nunca se declarara deveras, embora lhe mandasse algumas cartas. — Podia
ser caçoada de estudante disse ela.
— Não creio.
— Podia.
Eulália — e aqui começa a explicar-se o título deste conto — Eulália era de um moreno
pálido. Ou doença, ou melancolia, ou pó-de-arroz, começou a ficar mais pálida depois da
herança do Iguaçu. De maneira que, quando o estudante lá voltou um mês depois,
admirou-se de a ver, e de certa maneira sentiu-se mais ferido. A palidez de Eulália tinha-
lhe dado uns trinta versos; porque ele, romântico acabado, do grupo clorótico, amava as
mulheres pela falta de sangue e de carnes. Eulália realizara um sonho; ao voltar de
Iguaçu o sonho era simplesmente divino.
Isto acabaria aqui mesmo, se Máximo não fosse, além de romântico, dotado de uma
delicadeza e de um amor-próprio extraordinários. Essa era a outra feição principal dele, a
que me dá esta novelita; porque se tal não fora... Mas eu não quero usurpar a ação do
capítulo seguinte.
IV
— Quem é pobre não tem vícios. Esta frase ainda ressoava aos ouvidos de Máximo,
quando já a pálida Eulália mostrava-se outra para com ele — outra cara, outras maneiras,
e até outro coração. Agora, porém, era ele que desdenhava. Em vão a filha do sr.
Alcântara, para resgatar o tempo perdido e as justas mágoas, requebrava os olhos até
onde eles podiam ir sem desdouro nem incômodo, sorria, fazia o diabo; mas, como não
fazia a única ação necessária, que era apagar literalmente o passado, não adiantava uma
linha; a situação era a mesma.
Máximo deixou de freqüentar a casa algumas semanas depois da volta de Iguaçu, e
Eulália voltou as esperanças para outro ponto menos nebuloso. Não nego que as noivas
começaram a chover sobre o recente herdeiro, porque negaria a verdade conhecida por
tal; não foi chuva, foi tempestade, foi um tufão de noivas, qual mais bela, qual mais
prenda da, qual mais disposta a fazê-lo o mais feliz dos homens. Um antigo companheiro
da Escola de Medicina apresentou-o a uma irmã, realmente galante, D. Felismina. O
nome é que era feio; mas que é um nome? What is a name? como diz a flor dos
Capuletos.
— D. Felismina tem um defeito, disse Máximo a uma prima dela, um defeito capital; D.
Felismina não é pálida, muito pálida.
Esta palavra foi um convite às pálidas. Quem se sentia bastante pálida afiava os olhos
contra o peito do ex-estudante, que em certo momento achou-se uma espécie de hospital
de convalescentes. A que se seguiu logo foi uma D. Rosinha, criatura linda como os
amores.
— Não podes negar que D. Rosinha é pálida, dizia-lhe um amigo.
— É verdade, mas não é ainda bem pálida, quero outra mais pálida.
D. Amélia, com quem se encontrou um dia no Passeio Público, devia realizar o sonho ou
o capricho de Máximo; era difícil ser mais pálida. Era filha de um médico, e uma das
belezas do tempo. Máximo foi apresentado por um parente, e dentro de poucos dias
freqüentava a casa. Amélia apaixonou-se logo por ele, não era difícil — já não digo por
ser abastado —, mas por ser realmente belo. Quanto ao rapaz, ninguém podia saber se
ele deveras gostava da moça, ninguém lhe ouvia coisa nenhuma. Falava com ela,
louvava-lhe os olhos, as mãos, a boca, as maneiras, e chegou a dizer que a achava muito
pálida, e nada mais.
— Ande lá, disse-lhe enfim um amigo, desta vez creio que encontraste a palidez mestra.
— Ainda não, tornou Máximo; D. Amélia é pálida, mas eu procuro outra mulher mais
pálida.
— Impossível.
— Não é impossível. Quem pode dizer que é impossível uma coisa ou outra? Não é
impossível; ando atrás da mulher mais pálida do universo; estou moço, posso esperá-la.
Um médico, das relações do ex-estudante, começou a desconfiar que ele tivesse algum
transtorno, perturbação, qualquer coisa que não fosse a integridade mental; mas,
comunicando essa suspeita a alguém, achou a maior resistência em crer-lha.
— Qual doido! respondeu a pessoa. Essa história de mulheres pálidas é ainda o despeito
que lhe ficou da primeira, e um pouco de fantasia de poeta. Deixe passar mais uns
meses, e vê-lo-emos coradinho como uma pitanga.
Passaram-se quatro meses; apareceu uma Justina, viúva, que tratou de apoderar-se logo
do coração do rapaz, o que lhe custaria tanto menos, quanto que era talvez a criatura
mais pálida do universo. Não só pálida de si mesma, como pálida também pelo contraste
das roupas de luto. Máximo não encobriu a forte impressão que a dama lhe deixou. Era
uma senhora de vinte e um a vinte e dois anos, alta, fina, de um talhe elegante e esbelto,
e umas feições de gravura. Pálida, mas sobretudo pálida.
Ao fim de quinze dias o Máximo freqüentava a casa com uma pontualidade de alma
ferida, os parentes de Justina trataram de escolher as prendas nupciais, os amigos de
Máximo anunciaram o casamento próximo, as outras candidatas retiraram-se. No melhor
da festa, quando se imaginava que ele ia pedi-la, Máximo afastou-se da casa. Um amigo
lançou-lhe em rosto tão singular procedimento.
— Qual? disse ele.
— Dar esperanças a uma senhora tão distinta...
— Não dei esperanças a ninguém.
— Mas enfim não podes negar que é bonita?
— Não.
— Que te ama?
— Não digo que não, mas...
— Creio que também gostas dela...
— Pode ser que sim.
— Pois então?
— Não é bem pálida; eu quero a mulher mais pálida do universo.
Como estes fatos se reproduzissem, a idéia de que Máximo estava doido foi passando de
um em um, e dentro em pouco era opinião. O tempo parecia confirmar a suspeita. A
condição da palidez que ele exigia da noiva, tomou-se pública. Sobre a causa da
monomania disse-se que era Eulália, uma moça da Rua dos Arcos, mas acrescentou-se
que ele ficara assim porque o pai da moça recusara o seu consentimento, quando ele era
pobre; e dizia-se mais que Eulália também estava doida. Lendas, lendas. A verdade é que
nem por isso deixava de aparecer uma ou outra pretendente ao coração de Máximo; mas
ele recusava-as todas, asseverando que a mais pálida ainda não havia aparecido.
Máximo padecia do coração. A moléstia agravou-se rapidamente; e foi então que duas ou
três candidatas mais intrépidas resolveram-se a queimar todos os cartuchos para
conquistar esse mesmo coração, embora doente, ou parce que... Mas, em vão! Máximo
achou-as muito pálidas, mas ainda menos pálidas do que seria a mulher mais pálida do
universo.
Vieram os parentes de Iguaçu; o tio major propôs uma viagem à Europa; ele porém
recusou. — Para mim, disse ele, é claro que acharei a mulher mais pálida do mundo,
mesmo sem sair do Rio de Janeiro.
Nas últimas semanas, uma vizinha dele, em Andaraí, moça tísica, e pálida como as
tísicas, propôs-lhe rindo, de um riso triste, que se casassem, porque ele não acharia
mulher mais pálida.
— Acho, acho; mas se não achar, caso com a senhora.
A vizinha morreu daí a duas semanas; Máximo levou-a ao cemitério.
Mês e meio depois, uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever uma
carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu. Antes de cair teve
tempo de murmurar.
— Pálida... pálida...
Uns pensavam que ele se referia à morte, como a noiva mais pálida, que ia enfim
desposar, outros, acreditaram que eram saudades da dama tísica, outros que de Eulália,
etc... Alguns crêem simplesmente que ele estava doido; e esta opinião, posto que menos
romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim que ele morreu, pedindo
uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors, etc.
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