graça daquela... vá lá.. de D. Lucinda?
Se um condor, segurando D. Joana em suas garras possantes, subisse com ela até perto
do sol, de lá a despenhasse à terra, menor seria a queda do que a que lhe produziu a
última palavra de João Barbosa. A razão da queda não era, na verdade, aceitável,
porquanto nem ela até então sonhara para si a honra de desposar o amo, nem este, nas
poucas palavras que lhe dissera antes, lhe fizera crer claramente tal coisa. Mas o
demônio da cobiça produz maravilhas dessas, e a imaginação da caseira via as coisas
mais longe de que elas podiam ir. Creu um instante que o opulento septuagenário a
destinava para sua esposa, e forjou logo um mundo de esperanças e realidades que o
sopro de uma só palavra dissolveu e dispersou no ar.
— Lucinda! repetiu ela quando pôde haver de novo o uso da voz. Quem é essa D.
Lucinda?
— Um dos anjos do céu enviado pelo Senhor, a fim de fazer a minha felicidade na terra.
— Está caçoando! disse D. Joana atando-se a um fragmento de esperança.
— Quem dera que fosse caçoada! replicou João Barbosa. Se tal fosse, continuaria eu a
viver tranqüilo, sem conhecer a suprema ventura, é certo, mas também sem padecer
abalos de coração...
— Então é certo... —
Certíssimo.
D. Joana estava pálida.
João Barbosa continuou:
— Não pense que é alguma menina de quinze anos; é uma senhora feita; tem seus trinta
e dois feitos; é viúva; boa família...
O panegírico da noiva continuou, mas D. Joana já não ouvia nada. posto nunca meditasse
em fazer-se mulher de João Barbosa via claramente que a resolução deste viria prejudicá-
la: nada disse e ficou triste. O septuagenário, quando expandiu toda a alma em elogios à
pessoa que escolhera para ocupar o lugar da esposa morta há tão longos anos, reparou
na tristeza de D. Joana e apressou-se a animá-la.
— Que tristeza é essa, D. Joana? disse ele. Isto não altera nada a sua posição. Eu já
agora não a deixo; há de ter aqui a sua casa até que Deus a leve para si.
— Quem sabe? suspirou ela.
João Barbosa fez-lhe os seus mais vivos protestos, e tratou de vestir-se para sair. Saiu, e
dirigiu-se da Rua da Ajuda, onde morava, para a dos Arcos, onde morava a dama de seus
pensamentos, futura esposa e dona de sua casa.
D. Lucinda G... tinha trinta e quatro anos para trinta e seis, mas parecia ter mais, tão
severo era o rosto, e tão de matrona os modos. Mas a gravidade ocultava um grande
trabalho interior, uma luta dos meios que eram escassos, com os desejos, que eram
infinitos.
Viúva desde os vinte e oito anos, de um oficial de marinha, com quem se casara aos
dezessete para fazer a vontade aos pais, D. Lucinda não vivera nunca segundo as
ambições secretas de seu espírito. Ela amava a vida suntuosa, e apenas tinha com que
passar modestamente; cobiçava as grandezas sociais e teve de contentar-se com uma
posição medíocre. Tinha alguns parentes, cuja posição e meios eram iguais aos seus, e
não podiam portanto dar-lhe quanto ela desejava. Vivia sem esperança nem consolação.
Um dia, porém, surgiu no horizonte a vela salvadora de João Barbosa. Apresentado à
viúva do oficial de marinha, em uma loja da Rua do Ouvidor, ficou tão cativo de suas
maneiras e das graças que lhe sobreviviam, tão cativo que pediu a honra de travar
relações mais estreitas. D. Lucinda era mulher, isto é, adivinhou o que se passara no
coração do septuagenário, antes mesmo que este desse acordo de si. Uma esperança
iluminou o coração da viúva; aceitou-a como um presente do céu.
Tal foi a origem do amor de João Barbosa.
Rápido foi o namoro, se namoro podia haver entre os dois viúvos. João Barbosa, apesar
de seus cabedais, que o faziam noivo singularmente aceitável, não se atrevia a dizer à
dama de seus pensamentos tudo o que lhe tumultuava no coração.