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Psicanálise e saúde mental:
a análise do sujeito psicótico
na instituição psiquiátrica
São Luis/MA
EDUFMA
2009
Adriana Cajado Costa
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Dedico este livro aos meus amores:
Alexandre Fernandes Corrêa e
Bruno de Lorenzo Costa Corrêa
A memória do meu pai, Walter Martins Costa
COSTA, Adriana Cajado. Psicanálise e saúde mental:
a análise do sujeito psicótico na instituição
psiquiátrica. São Luis/MA: EDUFMA, 2009, 146p.
ISBN 978-85-7862-042-4
Capa: www.flickr.com/photos/ze1/10769192/
Impresso somente no formato eletrônico (e-book)
De acordo com a Lei n.10.994, de 14/12/2004,
foi feito depósito legal na Biblioteca Nacional
Este livro foi autorizado para domínio público e está disponível para
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FICHA DE CATALOGAÇÃO
Edição desenvolvida através do projeto e-ufma
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Com apoio do
Núcleo de Educação de Jovens e Adultos - NEJA
Universidade Federal do Maranhão
Gabinete da Reitoria - Administração Natalino Salgado Filho
Diretor Edufma: Ezequiel Antonio Silva Filho
Adaptação da Dissertação de Mestrado Psicanálise e saúde mental: a
análise do sujeito psicótico na instituição psiquiátrica, defendida no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob orientação de Maria Lucia Vieira Violante, em 2002
Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo
Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo,
era uma coisa sua que ficou em mim,
que não tem fim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás
POEMA
CAZUZA
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
PSICANÁLISE NA INSTITUIÇÃO
PSIQUIÁTRICA
METAPSICOLOGIA:
O CONCEITO DE VERLEUGNUNG EM FREUD
ASPECTOS DA PSICOPATOLOGIA:
O FENÔMENO PSICÓTICO
ANÁLISE DE UM SUJEITO
PSICÓTICO INSTITUCIONALIZADO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
9
11
25
67
89
109
131
139
Apresentação
Estamos todos em uma sala ampla e escura. O reconhecimento
dos objetos e dos outros é difícil. Os pontos de referência se dissolvem
e se reorganizam formando uma imagem disforme; não há descanso,
não há um espelho que o situe no contorno do seu próprio corpo –
pode ser homem, mas também pode ser mulher, jovem, adulto,
criança ou, apenas, o resto de algo que, ao tentar se constituir,
fracassou. Fratura que o deixou fora de si, de uma história
compartilhável, da cidade, do trabalho e do amor.
Como apresentar um processo de investigação e trabalho
analítico, com sujeitos psicóticos em instituição psiquiátrica, sem
recorrer à construção imagética que localize meu leitor na trajetória
de uma escuta psicanalítica que aposta na suposição de um sujeito
na psicose?
Publicar um trabalho, que já foi escrito sete anos atrás, no
momento de um Mestrado e que viabilizou a elaboração de uma
investigação clínica, que já trazia uma história de outros sete anos,
é um exercício de reorganizar uma pesquisa. O que apresento ao
leitor nesse livro é o resultado de uma dissertação de mestrado
defendida em 2002. De lá para cá, o trabalho de investigação clínica
e de pesquisa se aprofundaram.
A clínica das psicoses movimenta uma escuta analítica delicada
e atenta ao manejo transferencial. A direção do tratamento precisa
ser inscrita na construção do sujeito e de nomeação de sua obra,
assinar em nome-próprio. As dimensões do Outro, do Desejo e do
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa é fruto de inquietações e questionamentos
oriundos do atendimento a sujeitos psicóticos confinados em hospital
psiquiátrico (conveniado ao SUS) de cunho asilar. Pode-se afirmar
que tais sujeitos foram institucionalizados numa prática de tratamento
eminentemente medicamentosa. Entretanto, se esta foi a fonte de
interesse da pesquisa, terreno no qual foi possível sua concepção,
passados alguns anos, seu desenvolvimento se deu numa instituição
pública.
Esta instituição passa por inúmeras reformas, disponibilizando
aos pacientes, no momento, os seguintes tratamentos: no CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial) – oficinas de marcenaria, serigrafia,
reciclagem de papel, bijuteria, cabeleireiro, artesanato etc.; no
Serviço Ambulatorial – atendimento psiquiátrico e psicoterápico; Lar
abrigado; Emergência e Internação. Os muros que cercavam a área
do hospital foram derrubados e, no lugar, uma grade foi erguida;
agora é possível ter-se uma comunicação direta com as pessoas que
passam pela rua.
O ambulatório constituiu-se como o espaço privilegiado da
pesquisa. A agenda de consultas oscilava muito: ora estava lotada,
fazendo com que alguns pacientes ficassem na fila de espera
almejando por uma vaga para iniciar seu tratamento, ora o fluxo
diminuía a ponto de não haver ninguém para ser atendido. Muitas
pessoas se dirigiam ao ambulatório em busca do psicólogo e
recusavam-se a ser atendidas pelo psiquiatra. Temiam ser “dopadas”
ou indicadas para a observação – um passo para a internação.
Adriana Cajado Costa
Gozo precisam ser alinhavados, tecidos e localizados para que o
sujeito na psicose encontre seu lugar.
Atualmente, pode-se questionar sobre o que impede a
inscrição em nome-próprio e a introdução do sujeito psicótico na
ordem fálica. Qual a porção demoníaca dos delírios paranóicos de
cunho persecutório que em seu desfecho podem situar o sujeito, em
termos de filiação, no Nome-do-Pai? O que há de odioso na loucura?
Compreendo as limitações e possibilidades da escuta de
sujeitos institucionalizados, mais pelo instituído da instituição - sem
esquecer da invasão medicamentosa e da aliança mecânica da
máquina de prescrição de receitas - do que da demanda do sujeito.
Há uma lógica para o delírio? E se houver, no que o ódio
participa em sua vertente paranóica? Por que deus e/ou o diabo são
convocados a encarnar seus personagens no imaginário da construção
delirante de cunho persecutório?
Pretendo problematizar essas perguntas na pesquisa de
doutoramento que agora inicio. Por enquanto, o leitor ficará com
uma parte do percurso que me fez chegar a essas questões.
É um convite honesto para pensar sobre o funcionamento de
uma instituição psiquiátrica, como também, seu atravessamento na
instalação de uma escuta psicanalítica que, em si, já é uma oferta
que cria uma demanda e, assim, configura qual o lugar e a função
do psicanalista na instituição. Na psicose, a demanda está fundada
na colagem ao Outro. É uma demanda desesperada por localizar o
gozo e o desejo do Outro. É um apelo para não sucumbir à deriva de
ser refém de um gozo TODO.
O diálogo entre Psicanálise e Saúde Mental, superficialmente,
pode ser paradoxal em termos epistemológicos, mas pode ser uma
aposta possível, desde que o psicanalista preserve sua ética, sua
douta ignorância.
Adriana Cajado Costa
31 de Janeiro de 2009
10
Se, nessa pesquisa, sempre me balizo pela noção de escuta
que a psicanálise fundamenta e até inaugura, enfatizando sua função
decisiva na clínica das psicoses, é por estar ciente de sua importância.
Como afirma Dolto, em prefácio à Mannoni
2
, “falando do psicanalista,
o que faz a sua especificidade é a sua receptividade, a sua ‘escuta’”
3
.
É a especificidade da psicanálise que nos garante empreender algo
novo, no caso do hospital psiquiátrico, quebrar o movimento de
mumificação e objetalização do sujeito. Garante, também, um lugar
a ser ocupado no âmbito social, nas instituições e na esfera privada,
no caso do consultório.
O processo de institucionalização do sujeito psicótico tem sua
origem na ideologia predominante na psiquiatria atual que encontra-
se estruturada, como afirma Raul Gorayeb, na “premissa básica do
biológico” caracterizada pela “objetivação do sujeito e desqualificação
da subjetividade”
4
. É a valorização da subjetividade que marca a
presença da psicanálise na instituição.
A escuta psicanalítica engloba essencialmente três dimensões:
1. Teórica – fundamento da escuta, pois a direciona e fornece-
lhe subsídios para apreensão do material inconsciente que
advém pela fala do paciente;
2. Clínica – enquanto método de trabalho, a psicanálise recorre
às associações livres do paciente e sua contrapartida é a escuta
e a atenção flutuante do psicanalista que através destes
recursos, além do teórico também, constrói suas hipóteses e
interpretações;
3. Institucional – a compreensão da escuta, como afirma Joel
Birman
5
, é demarcada por critérios sócio-institucionais que
confirmam uma visão de sujeito veiculada pela abordagem
teórica assumida por uma instituição psicanalítica.
3
Ibid., p. 11.
4
GORAYEB, Raul. Subjetividade ou objetivação do sujeito?. In: VIOLANTE, Mª. Lucia.
V. (Org.) (Im)possível Diálogo Psicanálise e Psiquiatria. São Paulo, Via Lettera,
2001, p. 144.
5
BIRMAN, Joel. A clínica na pesquisa psicanalítica. In: Psicanálise e Universidade.
n.2. São Paulo, Educ, 1992.
Introdução
13
Acreditavam que o tratamento psicológico era suficiente. O manejo
apropriado, nos casos em que era imprescindível o acompanhamento
psiquiátrico, foi o de realizar um trabalho de preparação do paciente
para o encaminhamento psiquiátrico, mantendo as sessões comigo,
nas quais a questão medicamento entrava em pauta. Outras
preteriam o atendimento psicológico e valorizavam a consulta com
o psiquiatra para que fossem medicadas o mais rápido possível. Às
vezes, nas quais se pôde observar pacientes simulando crise psicótica
para receber medicação venal, o atendimento foi múltiplo, o que
caracteriza medicação excessiva e pouco tratamento psicoterápico
ou qualquer outro que promova no sujeito condições mais dignas de
contornar seu problema e conviver com ele.
O serviço ambulatorial está localizado num dos prédios mais
antigos do hospital. Nele, as salas de atendimento possuem tamanho
adequado e ar condicionado. O consultório 05 é a sala de atendimento
psicológico e está sendo ocupada, no período da tarde, apenas por
mim, na qualidade de psicanalista pesquisadora voluntária. Este dado
indica a escassez de profissionais para o atendimento psicológico
desses sujeitos, contribuindo para a excessiva medicalização da
população assistida.
Para Aulagnier, a finalidade da pesquisa é que guiará todo o
trajeto percorrido e indicará os instrumentos a serem utilizados:
“(...) a finalidade de uma pesquisa determina a maneira de conduzi-la, o
método que ela privilegia e o tipo de questões que ela se coloca”
.1
A finalidade do presente estudo é compreender, a partir do
que nos ensina a metapsicologia de Piera Aulagnier, os percalços da
análise do sujeito psicótico na instituição psiquiátrica. A especificidade
da transferência na psicose e as peculiaridades da escuta psicanalítica,
quando ofertada a sujeitos que sofrem de um conflito tão profundo
quanto desorganizador, permeiam a reflexão, pois é de psicanálise
que se trata, mas não constituem o foco principal da investigação.
1
AULAGNIER, Piera (1975). A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado.
Rio de Janeiro, Imago, 1979, p. 16.
2
MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro, Campus,
1981.
Adriana Cajado Costa
12
de escuta, ambos alienados: a escuta arrogante do superior, a escuta servil
do subordinado (ou dos seus substitutos); este paradigma é hoje contestado,
é bem verdade que de uma maneira grosseira e, talvez, inadequada: acredita-
se que, para libertar a escuta, basta que o indivíduo tome a palavra, ele
mesmo – quando, na verdade, uma escuta livre é essencialmente aquela
que circula, que permuta, que desagrega, por sua mobilidade, a malha
estabelecida que era imposta à palavra: já não é possível imaginar-se uma
sociedade livre, aceitando de antemão nela preservar os antigos espaços de
escuta: os do crente, do discípulo e do paciente”
6
.
Ao se configurar como o meio pelo qual o analista tem acesso
ao inconsciente, a escuta psicanalítica torna-se um dos instrumentos
mais importantes no desenvolvimento da análise. É ela que detecta
a demanda, viabiliza o manejo transferencial, permite o acesso ao
inconsciente, conduzindo o analista às vias pertinentes para a
utilização da técnica.
A metapsicologia de Piera Aulagnier, construída a partir da
clínica das psicoses, informa minha escuta dos sujeitos deste estudo,
fornece os instrumentos de compreensão da transferência na psicose
e introduz as ferramentas técnicas que permitem o desenvolvimento
do trabalho de análise.
Privilegio, nessa pesquisa, a reflexão sobre o percurso analítico
de sujeitos psicóticos institucionalizados. Nele, pude detectar que
os sujeitos que se submeteram à psicanálise no hospital modificaram
sua relação com a “doença”, passando a se interessar menos pelos
sintomas e seus comportamentos desviantes e mais por um
questionamento dos motivos que os levam a responder de tal ou
qual maneira aos estímulos da vida.
Nesse caminho, pude construir um pensamento de que esses
sujeitos, que escutei na instituição psiquiátrica, podem vir a ser
sujeitos de suas falas ao invés de depositários e objetos de um
“problema”.
Em aspecto amplo, nesse estudo, interrogo: quais são os
alcances e limites da escuta analítica dos sujeitos psicóticos por
mim atendidos no espaço institucional a partir da utilização do aporte
teórico de Piera Aulagnier?
6
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1990, p.228.
Introdução
15
É com esse espírito que este trabalho se desenvolve e constrói
seus pontos de apoio. O psicanalista, já atravessado pela escuta
analítica, percebe como se configuram as relações numa instituição.
No caso desse hospital, uma postura distanciada é adotada pelos
funcionários em relação aos pacientes e familiares. É importante
ressaltar que a psicanálise inaugura um novo paradigma, muito
diferenciado daquele que rege o conhecimento psiquiátrico.
Assim, o olhar e a maneira dos funcionários perceberem os
pacientes e familiares é repleto de significações que respondem a
uma marca da doença e do fracasso. Para eles, tais indivíduos estão
desprovidos de uma singularidade e são apenas restos do que não
deu certo. É por isso que não olham para esses sujeitos quando
falam com eles, não se disponibilizam a fornecer informações mais
precisas, fazem um ar de cansaço e irritação quando são abordados
pelos mesmos. Toda essa postura é adotada por esses profissionais
em decorrência de uma visão pejorativa e quase virótica da psicose,
pois estão trabalhando dentro de uma perspectiva que faz
diferenciações precisas entre saúde e doença, quando tal precisão é
apenas ilusória.
Outro aspecto a salientar é o de que tais profissionais não
recorrem a nenhum tipo de tratamento ou reciclagem pessoal;
parecem não se indagar acerca do que vivem na instituição, gerando
descaso que culmina no cansaço, aumentando o mal-estar e a
preocupação. Note-se que num hospital psiquiátrico de cunho público,
os profissionais que lá trabalham foram submetidos a concurso público
e, muitas vezes, não sabiam que iriam ser alocados em hospital
psiquiátrico.
Para definir melhor em que tipo de escuta essa pesquisa se
ergueu colha-se um trecho do livro de Roland Barthes (1976), no
qual ele realiza um apanhado histórico do ofício de escutar, passando
pela religião e culminando no que denomina de “escuta moderna”, a
escuta psicanalítica:
“(...) o ato da escuta já não tem a mesma rigidez de outrora; já não há de
um lado aquele que fala, que se entrega, que confessa, e de outro lado,
aquele que escuta, que se cala, julga e sanciona; o que não quer dizer que
o analista, por exemplo, fale tanto como o seu paciente; o que ocorre, como
já dissemos, é que sua escuta é ativa, assume participar do jogo do desejo,
cuja linguagem é a cena: é necessário repetir que a escuta fala. Daí, um
movimento que se esboça: os espaços da palavra são cada vez menos
protegidos pela intuição. As sociedades tradicionais conheciam dois espaços
Adriana Cajado Costa
14
Percorrendo o caminho dessa escolha, deve-se notar que,
como salienta Aulagnier
9
, todo psicanalista tem para si uma idéia de
normalidade e será usufruindo dela que irá construir suas hipóteses
diagnósticas. Contudo, mesmo recorrendo a uma noção do que se
pode conceber como um funcionamento da psique normal, essa idéia
é qualitativamente diferente da categoria de normal trabalhada pela
medicina.
Portanto, é preciso ressaltar que esta pesquisa é
eminentemente psicanalítica, por realizar uma investigação pelo
método e paradigma psicanalíticos, interrogando um determinado
fenômeno de maneira que só a psicanálise pode responder teórica e
clinicamente e, por isso mesmo, descomprometida com a
padronização, taxonomização e categorização propostas pela
psiquiatria.
Na psiquiatria, é freqüente um enquadramento diagnóstico
logo na primeira entrevista. Este uso é muito bem observado no
cotidiano de um hospital psiquiátrico. É comum serem encontrados
alcoólatras internados com diagnóstico de esquizofrenia e, mais
freqüentemente, de PMD. Na psicanálise, o uso do diagnóstico ocorre
sempre no âmbito da hipótese e apenas nos serve como guia condutor
da análise, podendo ser reformulado com o tempo e, principalmente,
nunca é fechado ou proposto numa primeira entrevista.
Pesquisar, em psicanálise, é proceder a uma investigação que
tem por meta aproximar-se, ao máximo, das produções do
inconsciente. Seu método abrange o pesquisador, no caso o analista
– com os instrumentos metodológicos e técnicos da atenção flutuante,
interpretação, construção, reconstrução e contribuição figurativa –,
e o paciente que deve proceder à associação livre. Silva
10
, no artigo
Pensar em Psicanálise (1993), caracteriza o método psicanalítico
por abertura, construção e participação. E ainda acrescenta:
“Diria também que se trata de um método receptivo, valorizando mais a
escuta do que a fala, mais a espera do que a indução de um sentido”
11
.
9
Id.
10
LINO DA SILVA, Mª Emília . Pensar em psicanálise. In: LINO DA SILVA, Mª. Emília.
(coord.). Investigação e Psicanálise. Campinas, Papirus, 1993, pp. 11-25.
11
Ibid., pp. 20-21.
Introdução
17
Enfatizo, ainda, a construção teórica de Piera Aulagnier, que
culmina na inovação técnica da Contribuição Figurativa, a qual une
a escuta analítica, a história do sujeito que está sendo atendido e
uma compreensão do funcionamento psíquico do sujeito psicótico.
Para tanto, a escuta deve estar afinada e aberta para o novo, para
aquilo que está no limiar da significação. Se, como afirmou Freud,
só terá o nome de psicanálise a terapêutica que fizer uso da
transferência e da resistência, no presente contexto, uma escuta
discreta e atenta vem revelar uma especificidade na transferência
com psicóticos, dando-lhe um direcionamento psicanalítico. É a partir
dela que um novo olhar pode ser construído diante daquele que
nada tem a comemorar quando está diante do espelho.
Contudo, uma segunda questão, ainda mais específica é
colocada: qual a viabilidade, a possibilidade e o que se pode observar
durante o tratamento, quando se lança mão, na análise desses
sujeitos, da técnica contribuição figurativa?
Essa pesquisa apoia-se em uma perspectiva psicanalítica que
agrega consigo um pensamento sobre o que é normal e patológico
diferenciado da psiquiatria, ou seja, um olhar e uma escuta que não
estão preocupados com esta classificação ou dicotomia. Ao se falar
em sujeito, subjetividade e singularidade, a psicanálise deixa de
lado tais distinções, concebendo a noção de normalidade
7
como um
dado que representa a norma, não estando vinculada ao sentido de
correto, saudável ou superior. Nesta dissertação, os conceitos de
saúde e doença não serão trabalhados, como também o conceito de
“cura”. Aqui usam-se as aspas para salientar que, se há algum desejo
de cura, ele se delineia no sentido em que Aulagnier o empregou:
“(...) essa possibilidade da psique, que representa o limite e a façanha de
sua liberdade, que lhe permite refletir-se sobre sua própria atividade para
reconhecê-la como efeito de sua razão e como efeito da loucura do desejo
que a habita”
8
.
7
CANGUILHEM, Georges. Normal e patológico. Lisboa, Edições 70, 1977.
8
AULAGNIER, Piera. O sentido perdido...(1971). Um Intérprete em Busca de Sentido
II. São Paulo, Escuta, 1990, p. 54.
Adriana Cajado Costa
16
se fala
15
, propiciar um trajeto rumo à sua singularidade, ao sentido
do seu delírio, à verdade do seu desejo inconsciente. Diante de
tamanha importância, a escuta analítica não pode ser passiva, como
nos alerta Barthes, e principalmente como salienta Violante (2001),
ao interpretar Aulagnier:
“No registro da psicose [...] a escuta do analista não pode ser passiva e
silenciosa. Antes, suas interpretações devem apoiar-se sobre os eventos da
realidade histórica do paciente, a fim de ajudá-lo na construção de sua
história. Se, na neurose, trata-se da reconstrução da história do paciente,
no registro da psicose, trata-se de uma construção
16
.
Complementando a reflexão, Mezan, no livro A Sombra de
Don Juan e outros Ensaios, no artigo “Que Significa Pesquisa em
Psicanálise?” (1993), trabalha com diferenciações no campo
epistemológico e no da pesquisa no interior da teoria escolhida.
Nesta última, ele discorre a respeito de um momento no qual o
analista se questiona sobre de que modo a teoria informa a escuta e
a interpretação na situação analítica
17
, mas também situa-nos no
momento em que a própria pesquisa ganha seu impulso e vem tentar
responder ao que Aulagnier denominou de questões fundamentais.
Nas palavras de Mezan:
“É o momento em que o analista já não se dirige ao seu paciente, já não
deseja encontrar a interpretação adequada do que escutou, ou mesmo do
que pensou a partir do escutado, mas busca dar conta em termos conceituais
do modo pelo qual puderam se produzir tanto o que ouviu como o que o fez
ouvir assim”
18
.
15
Devo salientar que o sujeito psicótico que passou por um processo de
institucionalização não se refere a sua história singular e, sim, à história de um
corpo-máquina que sucumbe às (re)presentações de sua “doença”. Ele é a “doença”.
Sua história é a história das internações, dos efeitos de cada nova medicação
testada. Seu delírio já não consegue ter a força de antes, foi minado pela força
mumificante dos psicotrópicos. Diluídos na lentidão e marasmo dos efeitos colaterais
do fármaco, alguns dos sujeitos que pude observar já não conseguiam fazer uso
da linguagem, paralisados autisticamente, pareciam assistir da última poltrona à
cena de um corpo morto-vivo.
16
VIOLANTE, Maria Lucia Vieira (2001). Piera Aulagnier: uma contribuição
contemporânea à obra de Freud. São Paulo, Via Lettera, 2001, pp. 147-8.
17
MEZAN, Renato. A sombra de Don Juan e outros ensaios. São Paulo, Brasiliense,
1993, p. 94.
18
Ibid., p. 92.
Introdução
19
Renato Mezan, no prefácio do livro A vingança da Esfinge
(1988), logo na primeira página, alerta para o sentido da pesquisa e
do pesquisador em psicanálise. Lembrando Foucault para falar sobre
as mudanças por que passam tanto as investigações como seus
agentes, Mezan cita-o e oferece também outros sentidos:
“Pois, como mostrou Foucault em A Arqueologia do Saber, as idéias não
provêm da subjetividade soberana de uma consciência, mas de um solo que
torna possíveis certos recortes e impossíveis outros, que autoriza alguns a
falar e a outros impõe silêncio, que legitima certos objetos de pensamento e
certos tipos de discurso, em detrimento de outros, desqualificados”
12
.
O solo que torna possíveis certos recortes e impossíveis outros
é fruto de construções e produções no campo do conhecimento. O
campo epistemológico fornece e cria as condições de viabilidade de
determinada pesquisa. Unir psicanálise e psiquiatria é tarefa difícil
13
,
pois há um abismo epistemológico entre elas; é por isso que se
adota a postura, nesta pesquisa, de estar atento às particularidades
da escuta na análise de sujeitos psicóticos institucionalizados.
Proponho, nesse estudo, que a escuta psicanalítica fornece
instrumentos para o sujeito psicótico apropriar-se de significações
que lhe dizem respeito. É ela também que possibilita o espaço e o
tempo para o analítico. Veículo de criação, por favorecer a entrada
do elemento novo, a escuta molda o setting. No caso em questão,
da psicanálise na instituição psiquiátrica, é a escuta que vislumbra,
no espaço e tempo institucionais, o espaço e o tempo da análise,
recriando um novo espaço/tempo, uma Outra cena
14
capaz de
significar a experiência da análise. Esta Outra cena configura-se
como a possibilidade de que um novo espaço, imbuído de um novo
sentido, permita e favoreça ao sujeito a criação de um outro
momento, distinto do vivido até então, que lhe proporcione a
elaboração ou a ressignificação de seu sofrimento. No caso dos
sujeitos desse estudo, sofrentes de um conflito psicótico, a finalidade
da análise na instituição é a de mudar os termos nos quais o sujeito
12
MEZAN, Renato. A vingança da esfinge. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 07.
13
FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. ESB. 2
ª
ed., vol. XX, 1987, p.
262.
14
MANNONI, Maud. Amor, ódio, separação: o reencontro com a linguagem esquecida
da infância. Rio de Janeiro, Zahar, 1995.
Adriana Cajado Costa
18
bagagem teórica. Esta última constatação é um alerta a nossos leitores:
nossas reflexões sobre a psicose não escapam ao perigo de fazer parecer
construção teórica acabada, o que não passa de seu embasamento”
19
(Grifo
meu).
Deve-se pontuar que, em psicanálise, método, técnica e teoria
andam juntos, ora se cruzam, ora um prevalece, ora outra,
influenciando-se mutuamente num jogo dialético de investigação e
construção de sentido.
* * *
Por ser uma pesquisa com o método psicanalítico, mas fora
do setting analítico convencional, e por considerar que é necessário
e premente questionar e refletir sobre o hospital psiquiátrico, esta
dissertação apresenta, no primeiro capítulo, A Psicanálise Na
Instituição Psiquiátrica, uma discussão sobre o universo da pesquisa
– o espaço e o tempo no qual a investigação se desenvolveu.
Freud (1919) já havia nos alertado para as implicações sociais
da psicanálise e a possibilidade de sua expansão em direção a um
número maior de pessoas com poder aquisitivo baixo. Prevê que
“haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais
serão designados médicos analiticamente preparados”
20
. Atualmente,
existem inúmeros psicanalistas trabalhando em instituições públicas
e exercendo seu ofício. Algumas modificações são implementadas,
mas como sinalizou Freud, “qualquer que seja a forma que essa
psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os
elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos
e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados
à psicanálise estrita e não tendenciosa”
21
.
Ana Cristina Figueiredo
22
expõe com clareza o que vem a ser
a prática da psicanálise na instituição psiquiátrica e, especificamente,
no ambulatório. Afirma ser desnecessário fazer grandes distinções
19
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., pp. 174-5.
20
FREUD, Sigmund (1919). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. ESB, 2. ed.,
vol. XVII, 1987, p. 210.
21
Ibid., p. 211.
22
FIGUEIREDO, Ana C. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica
psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro, Remule-Dumará, 1997.
Introdução
21
Diante de tal perspectiva, considerando as questões
fundamentais dessa pesquisa, cabe frisar a importância da
psicanálise, não só nos espaços clínicos habituais, mas também no
espaço público e institucional.
Ao circunscrever o objeto da pesquisa na análise de sujeitos
psicóticos institucionalizados, transformo tais indivíduos em sujeitos
desse estudo e apresento a importância do desenvolvimento do
processo analítico na cena institucional, para que o universo do
hospital psiquiátrico seja pensado. Pude observar que o sujeito
psicótico, que já passou por uma instituição, traz as marcas
institucionais consigo, remetendo a escuta do analista às ressonâncias
do que foi e está sendo vivido no hospital.
Quanto aos aspectos teóricos que fundamentam a prática
analítica e, especificamente, a minha prática no hospital psiquiátrico,
considero que a metapsicologia proposta por Piera Aulagnier, além
de fornecer novas formas de entendimento acerca da psique, oferece
ao psicanalista a possibilidade de pensar o seu trabalho. Esse sentido
pode ser encontrado no seu conceito de “teorização flutuante” (1984),
que nos remete diretamente à escuta analítica.
Será com essa flexibilidade que as interrogações, oriundas
da dificuldade de se escutar aquele que comumente chamam de
louco, ganham respaldo e vislumbram um caminho a percorrer na
tentativa de viabilizar um tratamento mais digno e responsável.
Entretanto, ao uso da teoria, Aulagnier (1975) adverte:
“Como o inferno, os caminhos da teoria são pavimentados de boas intenções:
elas não bastam para esconder o quanto um querer saber comporta de
desrespeito por aquele a quem ela impõe uma interpretação, a qual só faz
repetir, sob uma outra forma, a violência e o abuso de poder dos discursos
que a precederam. Atualmente, temos a impressão de que freqüentemente
a psicose serve a interesses que não são os seus: quase sempre, quando se
fala em nome do louco, na verdade se está, mais uma vez, negando-lhe
qualquer direito de ser escutado. Utiliza-se a palavra que lhe é imputada
para se demonstrar o fundamento de um saber, de uma ideologia, de um
combate, que concernem aos interesses do não-louco, ou daqueles que se
pretendem como tal. A apologia da loucura, a apologia da não-terapia e da
não-cura são as formas modernas de uma rejeição e de uma exclusão que
não se tem nem mesmo a coragem de reconhecer enquanto tal, o que as
torna pelo menos tão opressivas e nefastas quanto as que as precederam.
Abordarmos a loucura exige que avancemos num terreno onde se desenrola
um drama que o observador, salvo exceções, não paga nem com sua dor
nem com sua razão e exige também que não esperemos muito de nossa
Adriana Cajado Costa
20
O segundo capítulo é essencialmente teórico. Nele apresento
a teoria que serve de base para minha prática analítica. Utilizo como
fio condutor o pensamento freudiano acerca da psicose e delineio os
aspectos mais significativos e reveladores da construção teórica de
Piera Aulagnier sobre o fenômeno psicótico. Cumpre ressaltar que
além do aspecto teórico e metodológico, a proposta da técnica
Contribuição Figurativa desenvolvida por Piera Aulagnier impõe-se
como fundamental.
Na terceira seção, dedico-me à análise de um caso clínico por
mim atendido no hospital e limito-me a apresentar algumas vinhetas
clínicas de outros casos, quando necessário, para melhor exemplificar
a argumentação.
Os alcances e limites da escuta analítica na análise dos sujeitos
psicóticos que atendi na instituição, com o aporte teórico de Piera
Aulagnier, é o tema das Considerações Finais.
Organizada dessa forma, a presente dissertação tem por
objetivo problematizar, explicitar, analisar e provocar junto ao leitor
uma reflexão sobre o universo de um hospital psiquiátrico, as
possibilidades da psicanálise nesse espaço e a viabilidade de se
empreender uma análise com um sujeito psicótico nesta cena.
Utilizo o termo cena para frisar a importância da construção
de um lugar da palavra, da escuta, do diálogo. Espaço de produção
de imagens, com o uso da técnica contribuição figurativa, servindo
de auxílio na construção de uma história libidinal e identificatória,
pois é isso o que o psicótico, na análise, vai ter de construir.
Roland Barthes, ao fazer uma análise histórica da escuta em
nossa sociedade, lembra Freud e sua teoria dos sonhos, na sua
exigência de figurabilidade. Afirma, então, que, ante o sonho, estamos
trabalhando com “imagens acústicas”. Esta noção concentra um
sentido peculiar e aproxima-se, em muito, da noção de contribuição
figurativa.
Nesse percurso, um olhar e uma escuta tiveram sua
sustentação nas contribuições de Piera Aulagnier à psicanálise
freudiana por meio de seu estudo da clínica das psicoses.
Introdução
23
entre psicanálise praticada em consultório próprio e no ambulatório
e enfatiza a incorreção de se pensar no ambulatório como um outro
contexto.
Neste intervalo, realizo uma pequena reflexão acerca do lugar
da psicanálise e do analista no hospital psiquiátrico no que se refere
à presença do psicanalista na instituição e suas conseqüências,
quando são pontuadas as atividades ali desenvolvidas, apontando
para a ocorrência do fenômeno da transferência, não só do paciente
com a minha figura de analista, mas da instituição com o psicanalista,
o que denominei de A Transferência na Instituição. No item seguinte,
A Escuta e o Setting Analítico, conceituo e reflito acerca das
dificuldades e particularidades que vivo para sustentar a escuta
analítica na análise dos sujeitos psicóticos por mim atendidos na
instituição. Aproveito ainda, para pensar o papel da escuta e analisar-
lhe a importância, chegando a identificá-la como motor da análise
e, junto à transferência, ferramenta imprescindível para a construção
do setting analítico. Neste caso, a construção do setting é tanto
simbólica quanto real, pois no caso de uma instituição psiquiátrica,
muitas vezes, o setting construído, em determinados momentos,
não possui o contorno firme de um sofá, divã e paredes e sim de
bancos, árvores, ar livre e passeios no pátio.
Freud demonstra a flexibilidade e a viabilidade do atendimento
fora do consultório, sirvo-me do caso de Katharina
23
para uma breve
ilustração. Em suas férias de verão, Freud faz uma excursão ao
Hohe Tauern (Alpes Orientais). Resolve subir a montanha e
contemplar a paisagem numa cabana de hospedagem. Ao pedir uma
refeição é servido por uma moça, que lhe solicita ajuda psicológica.
Ali mesmo se inicia um trabalho analítico.
Finalizo esse capítulo, discorrendo sobre O Ambulatório,
espaço de investigação, o qual se mostrou frutífero ao ser ocupado
pelo psicanalista e pela psicanálise e, por fim, apresento um certo
balanço geral do que se pode chamar a psicanálise na instituição
psiquiátrica.
23
FREUD, Sigmund (1983-1985). Estudos sobre a histeria. ESB, 2. ed., vol. II, 1987,
pp. 143-151.
Adriana Cajado Costa
22
PSICANÁLISE NA
INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA
O presente capítulo tem por finalidade delinear o espaço e o
tempo da pesquisa. Tento, aqui, traçar a viabilidade da psicanálise
na instituição, delineando seus sucessos e enganos. Demonstro que
lugar pode a psicanálise ocupar no hospital psiquiátrico,
especificamente, na instituição pública na qual desenvolvo minhas
atividades, permitindo que eu ofereça minha escuta a sujeitos
psicóticos.
Nesse espaço, pode-se afirmar que há um atravessamento
da instituição na prática analítica. Mesmo assim, a psicanalista Drª.
Ana Cristina Figueiredo
1
salienta que a psicanálise no ambulatório
ou na instituição não está fora de contexto. Conclui ser esse um
lugar possível e também necessário da experiência analítica.
Acrescenta ainda, que o consultório público e o privado não fazem
parte de contextos distintos e que pensar o local como contexto é
um falso problema.
No caso desta pesquisa, que aproxima psicanálise e saúde
mental
2
, ou melhor, psicanálise e instituição psiquiátrica, um olhar e
uma escuta diferenciada – do sujeito psicótico e do discurso da
instituição - galgaram seu espaço.
1
FIGUEIREDO, A. C. (1997). Op. cit., p. 10.
2
Joel Birman e Jurandir Freire Costa alertam para o uso conceitual do termo saúde
mental. Tal conceito nasceu com a psiquiatria preventiva e, logo depois, com a
psiquiatria comunitária norte-americana. Eles expressam: “(...) o que ocorre nesta
prevenção sem sustentação teórica efetiva, é uma forma abusiva de psiquiatrização
institucional sobre o sujeito, e do sujeito sobre o espaço institucional.
Disto decorre que os lugares e ações ou intervenções dos profissionais
devem estar bem esclarecidos. No caso do analista, esse lugar é um
lugar à parte, não se inserindo completamente na instituição e
também não se coadunando com o espaço familiar.
A psicanálise sempre teceu críticas à psiquiatria e,
conseqüentemente, aos hospitais psiquiátricos. Um dos entraves
desse diálogo foi a medicalização exacerbada dos pacientes internos
ocasionando a supressão do sintoma – o delírio. Contudo, os impasses
não se restringem ao tratamento. A própria noção de doença mental
aponta para uma distância epistemológica.
Em Psicanálise e Psiquiatria (1917)
5
, Freud delineia as
diferenças entre as duas ciências. Delimita as ações da psiquiatria
na observação superficial do fenômeno psicótico e defende a
investigação psicanalítica do conteúdo do delírio apresentado pelo
paciente. Assim temos:
A psiquiatria não emprega os métodos técnicos da psicanálise; toca
superficialmente qualquer inferência acerca do conteúdo do delírio, e, ao
apontar para a hereditariedade, dá-nos uma etiologia geral e remota, em
vez de indicar, primeiro, as causas mais especiais e próximas”
6
.
Freud continua sua palestra e acrescenta que, na verdade, os
princípios de tratamento da psiquiatria não invalidam a psicanálise,
caso fossem realizados esses dois tratamentos no mesmo paciente,
mas alerta para a dificuldade em relação aos psiquiatras, pois “o
que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os psiquiatras”
7
.
No texto “A Questão da Análise Leiga” (1926), Freud parece
pensar diferente. Comenta que a psiquiatria tem seu papel no
tratamento das “perturbações das funções mentais, mas sabemos
de que maneira e com quais finalidades ela o faz”. Acrescenta ainda,
“ela procura os determinantes somáticos das perturbações mentais
e os trata como outras causas de doença”
8
.
5
FREUD, Sigmund (1917). Psicanálise e psiquiatria. Conferência XVI. Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise. ESB, 2
ª
. ed. Vol. XV, 1987.
6
Ibid., p. 301.
7
Id.
8
FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. ESB, 2
ª
ed., vol. XX, 1987, p.
262.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
27
Ao proceder à análise de psicóticos numa instituição
psiquiátrica vários impasses e desencontros marcam o processo e
influenciam a situação analítica. Por isso, para pensar a Psicanálise
na instituição psiquiátrica, duas concepções devem ficar claras. Quais
as possibilidades de atuação do psicanalista nesse espaço e qual o
olhar que ele constrói acerca desse lugar para empreender o seu
trabalho?
Entre essas duas concepções, outros pequenos cuidados
devem ter seu lugar garantido no atendimento de sujeitos psicóticos
em instituição. Piera Aulagnier não se dedicou a escrever um texto
sobre o assunto, mas fez algumas pontuações acerca da problemática
institucional, afirmando que não há diferenças de método na análise
de psicóticos em instituição ou no consultório. Pontua apenas que:
“(...) um dos mais graves problemas que a instituição coloca – com ou sem
analista – é a repercussão de todo conflito institucional sobre a vivência dos
sujeitos nela tratados. Inevitável repetição de um papel que estes últimos
conhecem muito bem por ter sido o deles durante toda a infância”
3
.
Aulagnier ainda acrescenta que o analista será aquele que irá
reescutar “uma re-presentação viva e falada do que o sujeito repete
e projeta sobre o espaço institucional e sobre aqueles que estão
perto dele”
4
.
O que se pode apreender disso é que, na dinâmica
institucional, há uma dupla repetição e projeção: do conflito
da vida social, com o nome de promoção da saúde mental, já que a doença ou sua
ameaça torna-se caracterizada como desadaptação social ou negativismo social”.
E, ainda: “Na era da Saúde Mental, a estrutura de ação nas Comunidades
Terapêuticas é esticada ao extremo, arrebentando o objeto e o sujeito do
conhecimento psiquiátrico, que se traduz pela pulverização do sujeito da prática:
qualquer um pode ser ‘técnico em Saúde Mental’ “. E em relação a esses técnicos,
os autores afirmam que “deve-se colocar um obstáculo ativo a este movimento de
psiquiatrização maciça da população, liderado pelos ‘técnicos de Saúde Mental’ “.
Ciente desta problemática em torno do termo Saúde Mental, esta pesquisa não
adentrará a discussão, apenas utilizará o termo quando for imprescindível para o
entendimento do leitor, sem nenhum compromisso com a política e a idéia que lhe
servem de arcabouço. Ver BIRMAN, Joel & COSTA, J. Freire. Organização de
instituições para uma psiquiatria comunitária. In: AMARANTE, Paulo. (org.).
Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1994.
3
AULAGNIER, Piera (1984). O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro: do discurso
identificante ao discurso delirante. São Paulo, Escuta, 1989, p. 54.
4
Ibid., p. 56.
Adriana Cajado Costa
26
questionam-lhe a validade e a eficácia de sua prática, mesclando
sentimentos de amor e ódio para com ele. Aqui estamos no terreno
fértil da transferência, ferramenta imprescindível que guia qualquer
análise que um psicanalista possa vir a realizar com um paciente ou
numa instituição ou, por que não dizer, a qualquer material que lhe
demande tal feito. Porém, estamos também no terreno do “já sabido”,
no qual dizeres sobre a psicanálise são veiculados a partir de sua
disseminação cultural, impregnando o discurso institucional acerca
desse saber com mal-entendidos.
Um exemplo pode ser encontrado em Violante
10
, quando
buscou “uma interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria” no seu
estudo de pós-doutoramento. Nele encontramos uma das explicações
que justificam tal confusão. Em relação ao “já sabido” de alguns
estudiosos da psiquiatria sobre a psicanálise, a autora indica-o como
pura ignorância e afirma:
“Ora, a psicanálise nem faz pesquisa empírica nem trabalha com validade
estatística [...]. Conclui-se que o que se defende (pelos psiquiatras) é um
controle comportamental capaz de remover o que há de observável no
comportamento [...]. Tal façanha não é nem almejada nem tangível pelo
método psicanalítico [...]. O sofrimento a que a psicanálise se reporta é o
sofrimento psíquico, resultante de um conflito identificatório, no qual o sujeito
está implicado como um todo e não apenas os seus neurotransmissores”
11
.
Como já mencionei, ao construir seu espaço
12
de trabalho, o
psicanalista contempla as vias de possibilidade de sua atuação. A
construção do setting, a determinação dos horários de atendimento,
o estabelecimento da transferência com os pacientes que lhe
demandam a escuta analítica viabilizam-lhe o trabalho. São essas
as condições necessárias para o empreendimento de uma psicanálise
numa instituição psiquiátrica.
No primeiro momento, a demanda do paciente perfaz um
caminho por meio de outras pessoas a ele ligadas: parentes, amigos,
vizinhos etc. No entanto, aqueles que permanecem, demandam,
10
VIOLANTE, M ª. L. V. Psicanálise e psiquiatria: campos convergentes ou divergentes?.
In: VIOLANTE, Mª. Lucia. V. (Org.). op. cit, 13-46.
11
Ibid., pp. 27-28.
12
Num hospital psiquiátrico, diversas vezes, o setting analítico é construído de maneira
diferenciada da habitual. Porém, pode-se constituir um espaço viável mesmo que
não tenha ao seu redor quatro paredes. Não são raras as vezes em que uma
sessão se faz andando pelo pátio, sentado num banco e, até na sala do psicanalista.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
29
Compreendo que Freud não nega as afirmações que faz na
conferência, apenas abdica de criticar a psiquiatria quanto a sua
postura diante da psicanálise, afirmando que a formação de um
médico psiquiatra corre por um caminho contrário ao da psicanálise
e que isso não pode ser considerado um defeito ou incapacidade.
Dentre suas características encontra-se a visão de homem unilateral,
fato este não censurável.
Parece que Freud tenta compreender a formação médica, e
por que, para ela, os eventos psíquicos são indiferentes. Contudo,
não abre mão de apontar o desinteresse do médico em tratar os
neuróticos. Freud expressa:
A educação médica, contudo, nada faz, literalmente nada, para compreendê-
los e tratá-los (...). Mas ela faz mais do que isso: dá-lhes uma atitude falsa
e prejudicial. Os médicos cujo interesse não foi despertado pelos fatores
psíquicos da vida estão mais que prontos para formar uma estimativa
deficiente dos mesmos (...). Quanto menos tais médicos compreenderem
do assunto, mais aventurosos se tornam”
9
.
Entendo que a crítica feita por Freud aos psiquiatras em 1917
retorna de maneira mais elaborada em 1926. A reflexão apresentada
é ampla e percorre um caminho desde a formação do médico até
seu exercício profissional. As afirmações contidas no texto “A Questão
da Análise Leiga” sobre os psiquiatras e a própria psiquiatria,
enquanto área do conhecimento, recebem um trato singular,
ampliando a discussão para o uso inadequado da psicanálise, questão
essa que o autor trabalha com preocupação em todo o texto.
Preocupação legítima, se considerarmos as dificuldades que,
ainda hoje, encontramos na instituição, qualquer que seja. Espaço
conturbado que envolve diferentes interesses e exercícios de poder,
o hospital psiquiátrico pode ser visto como uma instituição que
engloba inúmeros conflitos, não estando o lugar de cada profissional
bem delineado como deveria.
O psiquiatra, mesmo fazendo parte de uma equipe
multiprofissional, ainda exerce o poder de decisão acerca do que
cada sujeito irá receber como medicamento, tratamento e posterior
alta. No caso do psicanalista, figura vista com certa desconfiança e
receio, todo um simbolismo é construído. Os demais profissionais
9
Ibid., pp. 262-263.
Adriana Cajado Costa
28
Curiosamente, o momento de crise do paciente pode se tornar um
momento de alívio para a família. A exasperação predominante no
início da internação, com o passar dos dias, abre espaço para uma
divisão de responsabilidades com a instituição. Neste período, o pai,
a mãe, o marido, a mulher, o irmão ou a irmã depositam parte de
sua preocupação nos profissionais, como se, ao ultrapassarem os
portões da instituição, o “problema” deixasse de ser da família. Porém
pude escutar um movimento transferencial iniciando-se no pedido
de ajuda feito ao “saber” do médico sobre o “problema”. O paciente
desde há muito tempo deixou de ser sujeito, ele é o “problema”, a
“coisa” que incomoda, transtorna, que ocupa a família e lhe fornece
todos os elementos que formam um discurso que o coisifica. De
maneira semelhante, a instituição repetirá essa cena, mas por outras
vias, ainda mais poderosas.
Bezerra alerta-nos para o poder da indústria farmacêutica e
de sua política agressiva junto aos médicos – investindo em
congressos, propagandas, financiamento de pesquisas, jornais,
revistas etc. – que, aliada ao reduzido tempo das consultas, viabiliza
uma “economia da prescrição” na qual “a maioria dos psiquiatras
não atende, despacha. Não medica, repete receitas...
15
.
O cotidiano de um hospital psiquiátrico prova tais argumentos
e sinaliza para as brechas das quais a psicanálise pode se valer.
Uma mulher acompanhando o marido diz: “aquele doutor é muito
bom, ele vai resolver nosso problema. Ele vai acertar a
medicação”(sic). Um pensamento quase mágico é depositado na
figura do médico. Acertar a medicação significa ser abençoado ou
ter a sorte de encontrar a solução certa para o “problema”. Aqui há
transferência, já que um outro é suposto detentor de um “saber”
sobre o sujeito. A fé no médico, no fármaco e na religião predominam
no pensamento das pessoas que pude escutar. Por enquanto não há
espaço para o questionamento, não há espaço para a psicanálise.
Será utilizando esse movimento transferencial que a psicanálise
surgirá, produzindo no sujeito a possibilidade de se fazer questão.
Entretanto, quando isso ocorre, o espaço analítico é outro; o espaço
da palavra, e não o espaço da contenção, da emergência.
15
BEZERRA JR. Benilton. Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde
mental. Cidadania e Loucura: Políticas de Saúde Mental no Brasil. 4
ª
ed. Petrópolis,
Vozes/Abrasco, 1994, p. 148.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
31
após algum tempo, uma escuta. Escuta de sua dor, da sua
exasperação, do seu delírio... Como salienta Figueiredo (1997):
“No hospital psiquiátrico, o psicanalista convive com situações agudas, de
emergência, que não são as mais favoráveis para o trabalho analítico. Para
elaborar é preciso um tempo que não é o da crise. Seu trabalho, portanto, é
de oferta e convívio, tanto com a equipe quanto com o sujeito, num tempo
de espera até que a transferência lhe possa ser endereçada mais
particularmente”
.13
No caso específico desta pesquisa, no que diz respeito ao
lugar dos atendimentos, um fato curioso aconteceu. Inicialmente,
os atendimentos ocorriam na parte do hospital dedicada à internação;
após algumas semanas, houve o convite para que se continuassem
os atendimentos no ambulatório, também localizado no hospital;
atualmente, eu me encontro realizando os atendimentos no
ambulatório e no CAPS(Centro de Atenção Psicossocial). Todo esse
trajeto vem expressar que “identificar o psicanalista como profissional
não parece ser corriqueiro nas instituições públicas”
14
.
Fato que pode ser corroborado com o percurso, acima descrito,
que tive que realizar nesta instituição pública. No primeiro momento,
o lugar oferecido para a realização dos atendimentos foi o da
internação. Lugar que concentra pacientes em crise psicótica,
alcóolica ou de abstinência devido ao uso de drogas. De acordo com
Figueiredo, “para elaborar é preciso um tempo que não é o da crise”,
no entanto, o lugar da internação é o lugar do tumulto, da
exasperação e da indignação de pacientes e familiares, é o lugar da
crise. De acordo com o que pude observar e escutar, é o lugar do
reconhecimento de uma falência pessoal e familiar.
Os profissionais que atuam na internação são psiquiatras,
enfermeiros e assistentes sociais. Cada um exerce uma função no
processo de internação. O assistente social recebe o indivíduo em
crise, o psiquiatra diagnostica e prescreve o medicamento e o
enfermeiro assegura que o indivíduo receberá a medicação e
permanecerá no hospital no período de sua internação.
Durante o tempo em que desenvolvi minhas atividades nesse
espaço, escutei familiares e pacientes contando suas histórias.
13
FIGUEIREDO (1997). Op. cit, p. 171.
14
Ibid., p. 57.
Adriana Cajado Costa
30
Aos poucos, o psicanalista vai ocupando seu espaço. Suas
ações vão mostrando seu trabalho e as primeiras diferenças entre o
psicólogo e o psicanalista vão sendo percebidas, tanto pelos
funcionários quanto pelos pacientes.
Também é comum ver o psicólogo quase assumindo as funções
do assistente social. Esses profissionais, além de participarem de
praticamente todos os tratamentos oferecidos pela instituição (que
vão desde atendimento individual a oficinas terapêuticas), assumem
o trabalho burocrático da instituição, preenchendo formulários,
prontuários e uma infinidade de papéis, utilizando uma linguagem
eminentemente médica.
Minha postura foi a de me recusar a proceder dessa forma;
ao ser impelida a preencher os papéis burocráticos, o fiz de maneira
direta, utilizando uma linguagem que fala do sofrimento do sujeito e
não de seu diagnóstico e prognóstico, como se ele fosse objeto
16
de
pura observação. A psicanálise ocupa o lugar daquilo que falta na
instituição e esta é a sua melhor prática.
Após algum tempo convivendo com o cotidiano institucional
pude perceber a importância da escrita do médico, do psicólogo ou
do assistente social a respeito do paciente. O prontuário é um
documento institucional que fala de uma história da doença em
direção ou não à cura. Alguns pacientes, devido ao longo tempo de
internação ou de convívio no CAPS, fazem amizade com determinados
profissionais e recebem funções na instituição. Ao serem promovidos
a esse posto, começam a ter acesso livre aos prontuários e, muitos
deles, se interessam por ler o seu. Uma leitura difícil, se nela o
sujeito não reconhece sua história, mas gratificante, se aqueles nos
quais ele confiou, e com quem construiu uma relação terapêutica,
garantem-lhe uma história singular e não apenas uma história
mórbida da doença.
16
Apoiado em Michel Foucault Gorayeb escreve: “(...) a psiquiatria nasce quando
inventa para si um objeto de interesse ou objeto de discurso” (GORAYEB, Raul.
Op. cit., p. 143). Conclui-se que, ao criar para si um objeto de estudo, a psiquiatria
cria também o objeto “o louco”, adotando um pensamento generalista, biologizante
e prescrevendo receitas idênticas para um número estatisticamente controlável de
pacientes.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
33
Caso o espaço da emergência fosse aquele destinado a
favorecer que uma fala diferente pudesse emergir, despindo-se dos
arsenais de contenção – doses maciças de psicotrópicos conhecidas
como “sossega leão”, camisa de força, contenção física (amarrar o
sujeito na cama) entre outros procedimentos que não observei nesta
instituição, mas que ainda hoje são utilizados, como é o caso do
eletrochoque.
Diante deste fato, comecei a visitar outras dependências da
instituição, conversando com uma ou outra pessoa, paciente ou
profissional. A espera foi longa mas, ao me pôr em movimento na
instituição, as demandas foram surgindo, sendo construídas também
pela oferta do analista, que se traduz na escuta analítica. Cheguei
ao ambulatório e posteriormente ao CAPS.
Nesse percurso, a psicanálise foi sendo compreendida no que
tange ao tratamento que proporciona ao sujeito. A partir do momento
em que ocorre essa demanda institucional, na qual eu, enquanto
psicanalista, sou solicitada a ocupar o espaço do ambulatório,
inúmeras confusões vão sendo desfeitas. É verdade que a psicanálise
tem pouco a oferecer a um sujeito excessivamente medicado, no
caso da internação e, nas oficinas terapêuticas, no caso do CAPS. O
sistema do ambulatório acaba por reunir as melhores condições.
Sistema que, a duras penas, permite ao psicanalista construir um
setting capaz de acolher o sujeito. Atualmente, mantenho sessões
com pacientes do ambulatório e do CAPS; neste último consegui,
aos poucos, ter uma sala disponível para o atendimento psicológico,
o que até então não existia.
Prosseguindo a reflexão, a seguir será enfocada uma discussão
peculiar, qual seja: o lugar que a psicanálise e o psicanalista podem
ocupar numa instituição psiquiátrica.
O Lugar da Psicanálise e do Analista
Ao refletir sobre o lugar que ocupa o pensamento psicanalítico
e o psicanalista na instituição psiquiátrica, inúmeras questões se
apresentam diante dos nossos olhos e ouvidos. É muito comum serem
encontrados psicanalistas trabalhando em hospital psiquiátrico na
posição de psicólogo. Quando isso ocorre, o lugar do analista está
atravessado pelos sentidos que estão em torno da atuação de um
psicólogo numa instituição.
Adriana Cajado Costa
32
imprescindível garantir ao paciente um espaço propício para sua
fala, seu discurso. Acostumado com medidas corretivas e educativas,
e ao interrogatório a que era submetido por quem o atendia, como
por exemplo: “Seu José, o senhor sabe que dia é hoje? Em que ano
estamos? Você tem visto coisas e ouvido vozes? O que o senhor
está sentindo com a medicação? Há alguma melhora? Como está
seu relacionamento com a família? O senhor está mais calmo, parou
de beber? Fez o que lhe recomendei?”, minha posição foi estranhada,
recebida como algo diferente.
Note-se que todas as perguntas tentam enquadrá-lo, tentam
adequá-lo a uma realidade na qual ele é apenas um objeto. A
preocupação reinante é se está orientado no tempo, se está mais
contido. Quando finalmente surge o interesse por “o que o Seu José
está sentindo”, esse interesse é apenas quanto a sua condição física.
Enquanto psicanalista, optei por realizar um primeiro manejo,
colocando-me à escuta do sujeito logo no contato inicial. Devo
ressaltar que, no primeiro contato, o anseio de alguns pacientes
quanto ao procedimento do tratamento era tamanho que foi
extremamente difícil sustentar a escuta analítica.
A diferença entre minha prática e a de outros profissionais
era sentida logo que o paciente entrava na sala. Sempre me posiciono
de maneira a recebê-lo cordialmente, indicando-lhe um lugar (do
falante) para se acomodar. Pergunto sobre os motivos que lhe
trouxeram e escuto. Reconheço um estranhamento por parte deles.
Geralmente, os pacientes contam um pouco de sua história
institucional, ou seja, de suas internações. Essa é a única história
que eles reconhecem como sua. Ficam um pouco em silêncio e
perguntam: “A senhora não vai me perguntar se sei que dia é hoje?”
(sic) ou o paciente já começa a responder às perguntas que, mesmo
sem que eu as faça, está treinado a oferecer. Dizem: “hoje é dia tal,
tomei meu remédio direitinho, não estou vendo nada não senhora,
que mais, Ah! estou me comportando bem lá em casa, estou até
ajudando na louça” e assim por diante. Friso que não lhe fiz essas
perguntas e que podem falar sobre o que quiserem. Quando não há
essa resposta treinada e dirigida à instituição, os pacientes pedem
por ela. Certo paciente me diz: “eu pensei que eu vinha aqui, sentava
e a senhora ia perguntando e eu ia respondendo, não sabia que eu
tinha que falar de mim, do que eu sinto, do que eu penso, não sei
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
35
Aulagnier entende a potencialidade psicótica
17
como um
conflito entre a dimensão identificada e a identificante do Eu,
dimensões que deveriam formar uma unidade, contando uma história
do tempo passado (do bebê que ele foi) aliada ao tempo presente.
Identifiquei a escrita de quem atende o sujeito, no prontuário, como
parte de sua história institucional. Inúmeros exemplos podem ser
fornecidos para confirmar essa escuta. Os usuários têm acesso livre
aos seus prontuários. Dependendo da pergunta que lhes façam, o
comportamento é o de buscar o prontuário e lê-lo junto com o
profissional que o está acompanhando.
Certo dia, escutando Jorge falar sobre sua história – “vou
pegar meu prontuário para a senhora ler e saber o que aconteceu
comigo, minha história está toda lá, até o que eu não lembro mais
tá lá também, desde quando eu tive a primeira visão” (sic) –, enfatizo
que gostaria de ouvi-lo falar sobre sua história como um todo, além
da história de internações. Ele responde: “a minha história toda tá
lá, tudo escrito pelo meu médico e pela psicóloga que eu consultava.
Jorge reconhece apenas uma história como sua, a história de sua
“doença”. Depois de muito tempo de sessões, algo muda: Jorge já
não entende sua história como a história de uma “doença”. Ele chega,
senta-se e diz: “hoje tenho que te contar tudo desde o começo,
tenho que te dizer que antes de ter esse nome tive um outro nome,
outros pais...”(sic) e assim começou uma nova etapa na análise de
Jorge. O tema das internações e das medicações desapareceu. Agora
escuto o conflito e o sofrimento de Jorge para dar conta de uma
realidade que ele não compreende, questionamentos quanto às suas
sensações.
Retomo o livro de Ana Cristina Figueiredo (1997) para pensar
o lugar do psicanalista. Ela expressa:
“Uma certa atopia, um estar ‘à sombra’, pode ser salutar como lugar para o
psicanalista no trabalho institucional”
.18
Ao ser aceito numa instituição psiquiátrica, o psicanalista deve
assumir sua função. No caso desta pesquisa, identifiquei como
17
Uma fundamentação mais elaborada pode ser encontrada no capítulo III – “Aspectos
da Psicopatologia”.
18
FIGUEIREDO, A. C. (1997). Op. cit., p. 10.
Adriana Cajado Costa
34
Vários aspectos podem ser analisados nessa primeira fala da
diretora do hospital. Primeiro, ressalta-se a profusão de “nãos” que
são pronunciados em tão pouco tempo; depois, o caráter
desqualificador do saber analítico; por fim, ela aceita e tenta apostar.
Essa fala em muito se assemelha à fala de algumas pessoas que nos
procuram no consultório, munidas de seus escudos de resistência,
mas almejando um lugar para se fazerem ouvir.
No segundo contato com a instituição, os acontecimentos se
fizeram radicalmente diferentes. Fui levada à diretoria do hospital
por um psiquiatra que estava empenhado em fazer com que fosse
desenvolvida a pesquisa na instituição
20
. Ao chegar, a vice-diretora
nos recebe. Explico o propósito de realizar atendimento com sujeitos
psicóticos no hospital. A acolhida é rápida e, na mesma semana, é-
me reservada uma sala. Iniciam-se os atendimentos no hospital e,
após um pequeno percurso, já descrito, chego ao ambulatório. Há
uma recepcionista que exerce a função de secretária, marcando e
agendando os pacientes para consulta.
Em relação à recepcionista do ambulatório, há que se fazer
um parêntese. O profissional que ocupa este cargo, com apenas o
segundo grau, é responsável por uma certa “triagem” dos pacientes
no ambulatório. É ela quem decide o encaminhamento dos pacientes.
Pelo que pude observar, essa triagem é feita com os seguintes
critérios: o profissional que estiver livre no momento e a solicitação
do paciente; nos casos duvidosos, o paciente é dirigido ao serviço
social. Geralmente, o serviço social encaminha o paciente para o
psicólogo. Aqui começa o trabalho do psicanalista. Feito esse
parêntese, retorno aos primeiros contatos com a direção do hospital.
Em relação ao primeiro contato com a diretora, um aspecto
importante quanto à noção de demanda na instituição deve ser
esclarecido. Quando a diretora abre um espaço e me propõe que
convoque os pacientes, há que se fazer uma pontuação. A atitude
tomada é a de preferir que os pacientes tomem conhecimento de
20
A partir da reforma psiquiátrica, o interesse do hospital psiquiátrico em receber
pesquisadores credenciados por alguma instituição oficial tornou-se evidente. Ter
um pesquisador na casa é sinal de desenvolvimento, de empenho na melhoria dos
serviços oferecidos aos usuários. Prova disto é o pedido da vice-diretora do hospital
para que eu assinasse uma declaração de que estou desenvolvendo minha pesquisa
de mestrado na instituição.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
37
não, não sei falar de mim assim não”(sic). Outro paciente chega à
sessão, senta-se, grita muito, levanta, ameaça me bater e se cala.
Durante essa cena, permaneço sentada e olhando-o nos olhos. Ele
se senta, fica me olhando por um bom tempo e diz rispidamente:
“você não vai chamar o enfermeiro? Não tem medo que te meta a
mão na cara dura? De repente, sorri e diz que está brincando.
Pergunto se sempre brincou assim. Ele responde com um ar
desolador: “eu não sei brincar de carrinho, nunca tive um carrinho...
Eu gritei porque vocês não querem me dar o remédio certo, mas a
senhora ficou aí me olhando, nem ficou com medo de mim, se eu te
pego eu te acabo, mas fica tranqüila que eu gostei da doutora” (sic).
A reação esperada por esse sujeito era que eu levantasse,
mandasse ele se acalmar e, como ele não iria se acalmar, eu chamasse
o enfermeiro para lhe acalmar com uma medicação de emergência.
Procedimento com o qual deve estar acostumado. Quando procedo
de maneira distinta, abre-se um caminho para sua singularidade. O
que pode ser observado quando fala da sua dor por não ter tido um
carrinho na infância. A partir daí ele pode falar. Falar
19
de sua dor, do
seu sofrimento, de suas lembranças e de suas conquistas. Esse é
um pequeno exemplo da distância que separa a prática psicanalítica
de outras práticas que pude observar nessa instituição. Feito esse
primeiro manejo, outros aspectos devem ser tratados.
No caso da presente pesquisa, fui aceita na instituição como
psicanalista mesmo com a ressalva da diretora do hospital: “Não sei
se isso serve aqui, não sei se vai ter resultado, mas sei lá, vamos
ver, isso não demora muito? Psicanálise não é uma coisa longa?
Aqui os pacientes não ficam tanto tempo. É, vou arranjar uma sala
e você faz o seu horário e chama os pacientes” (sic).
Uma descrença logo no início contorna o lugar a ser ocupado
pela psicanálise e em decorrência, pelo psicanalista. Figueiredo
(1997) apontou para a fantasia que gira em torno da psicanálise e
da figura do psicanalista; é nesse campo que as confusões devem
ser desfeitas.
19
Remeto o leitor ao capítulo IV no qual abro a discussão sobre a demanda de
análise na psicose e como a entrada em análise dos sujeitos que pude escutar é
marcada por uma fala que denuncia uma dor profunda e que raramente pôde ser
comunicada pela mediação da linguagem, da palavra.
Adriana Cajado Costa
36
são feitas, mas podem ser consideradas normais ante a complexidade
de uma instituição e dos aspectos transferenciais oriundos desta
relação. Cumpre destacar que, além da transferência do paciente
com a instituição e posteriormente comigo, pude perceber uma
transferência dos profissionais a mim direcionada.
Por vezes, esse tipo de transferência assumiu dimensões
consideráveis, a ponto de um dos profissionais solicitar-me ajuda,
demonstrando com isso uma explícita demanda de análise; outras
vezes, esse pedido de ajuda não se configurou enquanto demanda
de análise, sendo apenas um desejo fantasioso de experimentar
isso que chamam de análise.
Diante disso, não pude vacilar, tive que ficar atenta e impedir
que uma mistura entre demanda de análise e demanda de apoio me
retirasse do lugar que deveria ocupar na instituição. Minha função é
a de oferecer uma escuta aos pacientes que procuram o serviço
público. No caso dos profissionais que atuam no hospital, há um
serviço psicológico diferenciado para eles fora da instituição e
oferecido pelo Estado.
É certo que a transferência não obedece às regras
institucionais. Ela ocorre a partir de um movimento singular entre o
sujeito e a figura do analista. Entretanto, o psicanalista que trabalha
numa instituição, mesmo ocupando um lugar “à sombra” tem um
contrato mínimo a seguir. O que se deve fazer quando é
expressamente proibido o atendimento a funcionários? Alguns
manejos podem ser adotados. A cada procura, uma escuta fina,
uma palavra, um encaminhamento. Se esse sujeito procurou-me
para falar de suas questões, foi porque naquele momento ocupo o
lugar de analista; certamente, se sua demanda for de análise, será
capaz de transferência com outro analista. Ressalto que a
transferência não se dá com qualquer analista, mas pode ocorrer
com alguns.
Numa perspectiva de abertura e sem as amarras que afundam
o hospital psiquiátrico num fosso árido e burocrático, uma reforma
psiquiátrica deveria privilegiar a singularidade de todos aqueles que
convivem no espaço institucional. Usuários, funcionários, médicos,
psicólogos, psicanalistas... Um espaço que privilegie a vida, Eros, o
investimento nas relações, os laços. Rotelli propõe que “no lugar de
ambulatórios, ‘laboratórios’ de produção de vida; não mais
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
39
que há um psicanalista na instituição. No primeiro momento o
paciente repete o mesmo movimento que está acostumado a realizar
com outros terapeutas. Ele quer conversar. Na maioria dos casos
eles chegam à sessão dizendo: “doutora, eu vim aqui conversar
com a senhora para ver o que eu tenho que fazer para resolver meu
problema. A senhora precisa me ajudar que a labuta é grande”(sic).
Figueiredo (1997) chama atenção para essa “conversa”:
“No caso da psicanálise, é justamente essa conversa que se deve deslocar
para dar lugar a uma fala mais ‘monológica’, cuja contrapartida é a escuta”
21
.
No início do exercício da psicanálise na instituição psiquiátrica
temos que lidar com uma pequena confusão quanto aos
procedimentos que adotamos e a finalidade da análise. Os
profissionais e pacientes necessitam, para seu alívio e segurança,
distinguir a função de cada profissional. Explicar do que trata a
psicanálise logo no início é dar margem para que as confusões se
intensifiquem e, de certa forma, inaugurar uma distância
intransponível. Com o tempo e o desenvolvimento da prática do
psicanalista, seu espaço e sua função vão sendo esclarecidos.
Com o tempo os esclarecimentos são fornecidos, mas de
forma simplificada, pois são pessoas com pouca escolaridade e, como
se encontram num momento difícil de suas vidas (estão internados
ou freqüentando semanalmente o hospital), não se deve dar margem
a mal-entendidos.
Na minha experiência, a partir do momento em que esses
sujeitos sabem do que se trata, procuram-me para tentar sondar
minha posição diante deles e da instituição. Apostam num aliado
para alcançar a tão almejada alta ou um porto seguro. No início,
essa expectativa se sustenta por algum tempo; mas tão logo as
sessões se intensificam, essa esperança dá lugar a outro sentimento.
Às vezes, é um sentimento de amor; outras, de ódio e raiva; mas
sempre há a presença de um estado afetivo que conduz a relação.
Aos poucos, fui conseguindo estabelecer meu lugar de analista
na instituição, saindo do lugar da desconfiança. Os outros
profissionais, exceto os psiquiatras, começaram a solicitar minha
presença em outros espaços da instituição. Algumas confusões ainda
21
FIGUEIREDO, A. C. Op. cit. p. 112.
Adriana Cajado Costa
38
Esse espaço da reflexão é pouco exercido até mesmo por
quem o preconiza. Figueiredo (1997), em sua pesquisa, apontou
inúmeras desculpas dos profissionais para não abrirem esse espaço,
mas o psicanalista não pode se omitir quanto a isto. A abertura ao
novo, à reflexão, a escuta discreta e atenta que faz calar e falar o
analista faz parte do seu trabalho. O lugar do analista é o lugar de
fazer viver o desejo do outro, de fazer com que o outro possa desejar,
de fazer com que o sujeito assuma seu sintoma como uma questão
28
sua, como um mal-estar seu que deve ser falado, escutado, pensado
e elaborado. E questionar a instituição em sua alma burocrática
também faz parte do analítico? Acredito que sim e talvez seja, no
caso daquele psicanalista que está na instituição, o seu trabalho
mais penoso, mais desgastante e cansativo. Questionar uma
instituição que procede arraigada a um paradigma biologizante
29
requer serenidade, muito estudo, investimento na própria análise e
supervisões, e uma escuta atenta. Na maioria dos casos, o
questionamento deve estar presente nos atos do analista ou no seu
silêncio. Buscar o confronto não produz efeitos analíticos, apenas
encena os dilemas e contradições entre a psiquiatria e a psicanálise
30
.
Sobre o problema atual da vertente biologizante da psiquiatria,
Violante salienta que “o sujeito não se reduz ao seu organismo e ao
seu bem-estar orgânico”
31
. Vê nesse processo algumas divergências
“entre a psicanálise e a ideologia que subjaz à prática psiquiátrica
levada a cabo pela psiquiatria dominante, no que diz respeito: à
compreensão do que é ‘mental’; [...] à prevalência do fator
neurológico; ao encaminhamento terapêutico”
32
.
Considero que, ao exercer minha função de analista,
exercitando minha escuta com sujeitos psicóticos institucionalizados,
pude acompanhar uma pequena transformação em suas falas. Se
estas falas se configuraram em um discurso sobre si, ainda não
28
TENÓRIO, Fernando. Desmedicalizar e subjetivar: a especificidade da clínica da
recepção. A Clínica da Recepção nos dispositivos de Saúde Mental. Cadernos IPUB.
vol. VI, Nº 17. Rio de Janeiro, IPUB/UFRJ, 2000, pp, 79-91.
29
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a Psicanálise?. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
30
VIOLANTE, M ª. Lucia V (org.). O (im)possível diálogo psicanálise e psiquiatria.
São Paulo, Via Lettera, 2002.
31
VIOLANTE, M ª. L. V. Psicanálise e psiquiatria: campos convergentes ou divergentes?
In: VIOLANTE, Mª. Lucia. V. (Org.). op. cit., p. 40.
32
Ibid., p. 42.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
41
profissionais psi, e sim ‘artistas, homens de cultura, poetas, pintores,
homens de cinema, jornalistas, inventores de vida...’”
22
. Concordo
com ele na proposição, mas acredito que há espaço em um
“laboratório de produção de vida” para a psicanálise.
Quanto às confusões que podem impregnar o cotidiano do
psicanalista no trato com os outros profissionais e, por que não,
com os pacientes, Leite Netto
23
salienta que se deve ter clara a
distância epistemológica que existe entre psiquiatria e psicanálise
e, mais ainda, que tipo de resposta um profissional que nos dirige
determinada demanda espera. Ele assim se expressa
“(...) o psicanalista é aceito, convidado a se manifestar, mas se espera dele
uma contribuição dentro de um referencial eminentemente médico...
.24
Leite Netto ainda acrescenta que “há espaço e necessidade,
numa instituição desse tipo, para os que têm conhecimentos e
experiência em psicanálise”
25
. Acredito que esse espaço deve ser
ocupado sem desvirtuar a proposta psicanalítica, ou seja: o analista
deve estar atento e investir na transformação e na crítica constante,
favorecendo ao sujeito psicótico exercer sua fala e à instituição criar
uma espaço de transformação para a qualidade de vida e bem-estar
do sujeito que ali se encontra internado
26
, ou fazendo uso dos serviços
por ela oferecidos. Nesta direção Tacchinardi comenta:
“O lugar de analista só me é dado a ocupar a partir do momento em que
posso me afastar do cotidiano totalizador e abrir um espaço para a reflexão”
.27
22
ROTELLI apud TENÓRIO, Fernando. Da reforma psiquiátrica à clínica do sujeito.
Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro, Rios
Ambiciosos, 2001, p. 122.
23
LEITE NETTO, Oswaldo Ferreira. Um psicanalista na instituição (nem herói, nem
“picareta”...). Jornal de Psicanálise. São Paulo. 30 (55/56): 205-212, jun. 1997.
24
Ibid., p. 209.
25
Ibid. p. 210.
26
Apesar das recentes conquistas, no âmbito legislativo, a luta antimanicomial ainda
não alcançou seus verdadeiros objetivos. Os hospitais psiquiátricos brasileiros ainda
se mantêm com característica asilar. Pode-se pensar nas exceções, como no caso
de Santos, cidade que eliminou todos os seus hospitais psiquiátricos de
enclausuramento, mas no interior e em cidades mais pobres do Brasil, a situação
se mantém. Algumas modificações são realizadas e se perpetua o tratamento
eminentemente medicamentoso e de contenção.
27
TACCHINARDI, Silvia R. Psicanálise e instituição psiquiátrica: o analista dentro do
Juqueri?. São Paulo, Percurso, nº. 1. 2 sem. 1988.
Adriana Cajado Costa
40
Afirmou, também, na conferência intitulada Transferência
(1917), que os pacientes “(...) paranóicos, melancólicos, sofredores
de demência precoce, permaneceram, de um modo geral, intocados
e impenetráveis ao tratamento psicanalítico”
34
. Freud não percebia
a presença do fenômeno da transferência agindo na relação analítica
com esses sujeitos, mas deixou em aberto a possibilidade de serem
analisados, ao acreditar nos avanços da pesquisa psicanalítica.
A noção de transferência em Freud, como considera Maria
Cristiane Nali (2002)
35
, percorre toda sua obra, principalmente nos
casos clínicos, sofrendo “uma série de reformulações”, “pois é
retroativamente que Freud a descobre”
36
. Neste estudo sobre a
transferência no ambulatório de um hospital, o conceito é esmiuçado.
Porém, por não figurar objeto desta pesquisa, recorro ao conceito
de transferência em sua forma final, apenas para fundamentar minha
argumentação quanto à análise de sujeitos psicóticos em instituição
psiquiátrica.
Contudo, antes de adentrar no universo da psicose, cabe
distingui-la da neurose, pois a transferência foi descoberta por Freud
como resultante da relação estabelecida entre o médico e o(a)
paciente neurótico(a).
Em “A Dinâmica da Transferência” (1912), Freud vai pontuar
que o que é transferido para a situação analítica e para a figura do
analista são “impulsos eróticos reprimidos” que nutrem a resistência
ao tratamento. O que se apreende daí é que, para compreender o
fenômeno da transferência na análise, deve-se levar em conta a
resistência, a repressão e a repetição.
Em Laplanche & Pontalis (1992), a noção de transferência é
conceituada como “o processo pelo qual os desejos inconscientes se
atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo
de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da
relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis
vivida com um sentimento de atualidade acentuada”
37
34
FREUD, Sigmund (1917). Transferência. Conferência XXVII. Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise. ESB, 2
ª
ed., vol. XVI, 1987, p. 511.
35
NALI, Maria Cristiane. Um estudo sobre as particularidades da transferência no
consultório tornado público. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 2002.
36
Ibid., p. 12.
37
LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins Fontes,
1992, p. 514.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
43
posso afirmar, mas posso registrar uma mudança lenta e gradativa
no conteúdo delas. A história contada por alguns pacientes já não é
a da doença e internação, mas de seus amores, de suas lembranças,
de seus delírios, alucinações, dos seus sentimentos diante de uma
sociedade que os exclui, que os coloca no lugar de mortos-vivos.
Compreendo que o lugar do analista na instituição psiquiátrica
é o lugar de uma escuta específica, serena, que deve abrir um espaço
acolhedor a uma fala que obedece a uma lógica própria – resultado
do trabalho de construção de uma nova realidade, de novos
personagens, expressando um vazio mortífero e assustador – num
encadeamento não linear, atemporal, que muitas vezes sucumbe ao
silêncio ou se expressa pelas vias sensoriais.
Pude, a partir da escuta analítica, firmar uma posição atenta
e discreta no espaço institucional. Com isso, colhi vários frutos, dentre
eles, o respeito ao momento das sessões. Numa instituição
psiquiátrica é comum funcionários abrirem a porta, interromperem
a sessão com problemas burocráticos e tantos outros problemas
que só dizem respeito às obrigações institucionais.
O lugar do analista no hospital, na minha experiência, é um
lugar diferenciado, estranho à norma institucional, fazendo reviver
outros sentidos para o sofrimento. É o lugar no qual o interesse de
quem atende não é pela doença e suas manifestações, mas pelo
sujeito e sua história. É, finalmente, o lugar da escuta dos fenômenos
pelos quais o inconsciente encontra uma brecha para se manifestar.
É o lugar da análise pela via e pelo manejo da transferência.
A Transferência na Instituição
Sigmund Freud, no texto A História do Movimento Psicanalítico
(1914), afirmou, em relação às neuroses, que “qualquer linha de
investigação que reconheça a transferência e a resistência e os tome
como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se
psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes...
33
.
33
FREUD, Sigmund (1914). A História do Movimento Psicanalítico. ESB, 2
ª
ed., vol.
XIV, 1987, p. 26.
Adriana Cajado Costa
42
3. Do Superego – Considerada a mais obscura e menos poderosa por Freud,
é a resistência originada do “sentimento de culpa ou da necessidade de
punição, opondo-se a todo movimento no sentido do êxito, inclusive, portanto,
à recuperação do próprio paciente pela análise”
42
Retomando o verbete “transferência”, no Vocabulário de
Laplanche & Pontalis, esse fenômeno é compreendido em quatro
dimensões significativas. Salienta-se aqui, a dimensão acerca da
especificidade da transferência no tratamento, pois é a partir daí
que podemos compreender a afirmação de Freud (1914)
43
, na qual
concentra as principais dificuldades da análise no manejo
transferencial.
O trabalho da análise com neuróticos, no seu plano descritivo,
é o de preencher lacunas na memória do paciente sobre sua história;
já no plano dinâmico, configura-se por possibilitar a superação das
resistências oriundas da repressão e, assim, favorecer a que uma
perlaboração
44
aconteça. Com esse último processo, que ocorre
inúmeras vezes, as lacunas são preenchidas e as lembranças ganham
um novo sentido.
A esse movimento dá-se o nome de reconstrução, mas no
caso do sujeito psicótico o movimento, segundo interpretação de
Violante a respeito de Aulagnier, é de “construção de sua história
identificatória e libidinal, no lugar dos brancos, do vazio
identificatório”
45
.
No registro da psicose, o manejo transferencial é ainda mais
complexo, pois o analista pode estar sendo enquadrado pelo sujeito
no centro do seu delírio, por meio de uma projeção maciça, ocupando
o lugar do agente perseguidor (ódio) – fenômeno que, ao ser único
e exclusivo, inviabiliza a relação analítica
46
- ou no lugar da única
42
Ibid., p. 185.
43
FREUD, Sigmund (1914). Observações sobre o amor transferencial. ESB, 2
ª
ed.,
vol. XII, 1987, p. 208.
44
Em Laplanche & Pontalis, no Vocabulário da psicanálise, esse termo vem substituir
a palavra elaboração e é conceituado da seguinte forma: “(...) a perlaboração
constitui um fator propulsor do tratamento comparável à rememoração das
recordações recalcadas e à repetição na transferência”
45
VIOLANTE, Maria Lucia V (2001). Op. cit.
46
AULAGNIER, P. (1984). Op. cit., p. 196.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
45
O conceito de resistência em Freud é trabalhado na conferência
intitulada Resistência e Repressão, na qual ele argumenta:
“Uma violenta oposição deve ter-se iniciado contra o acesso à consciência
do processo mental censurável, e, por este motivo, ele permaneceu
inconsciente. Por constituir algo inconsciente, teve o poder de construir um
sintoma. Esta mesma oposição, durante o tratamento psicanalítico, se insurge,
mais uma vez, contra nosso esforço de tornar consciente aquilo que é
inconsciente. É isto o que percebemos como resistência. Propusemos dar ao
processo patogênico, que é demonstrado pela resistência, o nome de
repressão”
.38
Posteriormente, no artigo “Inibições, Sintomas e Angústia”
(1926), Freud salienta que a repressão não ocorre apenas uma vez
e requer um “dispêndio permanente de energia” para assegurar o
não retorno do recalcado, pois as pulsões “são contínuas em sua
natureza” fazendo com que o ego exerça constantemente sua “ação
defensiva”. Acrescenta que “essa ação empreendida para proteger a
repressão é observável no tratamento analítico como resistência
39
.
Ainda nesse texto, Freud vai afirmar que a resistência na
análise, ao ser removida, pode ativar a compulsão à repetição,
definida como “a atração exercida pelos protótipos inconscientes
sobre o processo libidinal reprimido”
40
, devendo ser superada. A
esse processo, o autor o denominou de resistência do inconsciente.
Freud complementa sua exposição sobre as resistências
encontradas na análise, dividindo-as em cinco tipos, que provêm de
três direções: do ego, do id e do superego:
1. Do ego – “O ego é a fonte de três, cada uma diferindo em sua natureza
dinâmica”. São elas: a resistência da repressão, a resistência da transferência
– que estabelece uma relação com a situação analítica, reanimando assim
uma repressão que deve somente ser relembrada – e a resistência originada
do “ganho proveniente da doença” baseada numa “assimilação do sintoma
no ego”
41
.
2. Do Id – Resistência que necessita de elaboração.
38
FREUD, Sigmund (1917). Resistência e repressão. Conferência XIX. Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise. ESB, 2
ª
ed., vol. XVI, 1987, p. 346.
39
FREUD, Sigmund (1926). Inibições, sintomas e angústia. ESB, 2
ª
ed., vol. XX,
1987, p. 181.
40
Ibid., p. 184.
41
Id.
Adriana Cajado Costa
44
O analista só pode assumir o lugar do Outro e assim garantir
“ao sujeito a verdade de seu enunciado sobre a origem” se houver
uma relação transferencial. Portanto, a escuta analítica do psicótico
torna-se possível, quando concebida num espaço dual, no qual o
paciente irá utilizar a transferência de maneira a tender a uma espécie
de osmose com a figura do analista, posicionando-o no lugar do
Outro.
Ao salientar que a transferência, no registro da psicose, ocorre
de uma maneira mais complexa e diferenciada do que em relação
ao neurótico, objetiva-se compreender a qualidade desta distinção.
Mergulhado numa dimensão atemporal, o psicótico ao delirar,
tenta escrever sua história, pois para o psicótico, “seu presente já
foi decidido pelo seu passado; tudo já foi anunciado, previsto, predito,
escrito
51
. O delírio se impõe a essa “escravidão consentida”
52
.
Então, o que se trabalha, pela via da transferência, com o
sujeito psicótico? De acordo com Piera Aulagnier, em primeiro lugar,
o analista deve “tornar sensível para o sujeito o que não se repete”,
na relação analítica, “o que ela oferece de diferente, de ainda não
experimentado”
53
.
Por não demandar análise, o psicótico, em relação à
transferência, vai colocar o analista no lugar do “sujeito-suposto-
saber” antes ocupado pelo discurso parental que lhe proibiu de
“acreditar que um outro pensamento além do deles (pais) poderia
saber a respeito do desejo, da lei, do bem e do mal”
54
.
Será por isso que, no registro do saber, o analista só ocupará
o lugar do “sujeito-suposto-saber” pela via “de uma projeção sem
brechas que dotará esse saber projetado sobre nós” de um “poder
mortífero para o pensamento do sujeito”
55
.
Aulagnier ainda acrescenta que, no registro do investimento,
o psicótico também estabelecerá uma relação de “investimento
massivo, por mais conflitiva que seja, com esses representantes
encarnados do poder que são seus pais”
56
.
51
AULAGNIER, P. (1984). Op. cit., pp. 198-199.
52
Ibid., p. 198.
53
Ibid., p. 196.
54
Ibid., p. 199.
55
Ibid., pp. 199-200.
56
Ibid., p. 200.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
47
pessoa que o escuta (escutador-investidor
47
) e que lhe propõe
mudanças (Outro em direção aos outros), “uma escuta que lhe
permite novamente separar o que ele pensa do que o obrigam a
pensar”
48
.
No registro psicótico, a dimensão do fenômeno transferencial
e de sua economia surgem de maneira distinta. Aulagnier (1975)
fornece um instigante resumo da especificidade da transferência na
psicose e da viabilidade da análise com esse sujeitos:
“Recorrer ao conceito de transferência e fazer de sua impossibilidade no
psicótico a explicação do fracasso, não nos parece satisfatório. Esta
“impossibilidade” deveria nos confrontar à necessidade de redefinir o conceito,
o que permitiria uma melhor compreensão de porque a transferência, tal
qual o mostra a relação neurótica, exige não apenas o investimento libidinal
de uma imagem projetada sobre o analista – coisa em que o psicótico é
mestre – mas a transferência para a situação experimental de uma demanda
feita ao saber do Outro, demanda que tem sua fonte no encontro inaugural
sujeito-discurso. Esta ‘transferência’, o psicótico vai realizá-la e,
paradoxalmente, é aí que reside a causa fundamental do que obstaculiza o
projeto analítico. Com efeito, o psicótico vai transferir, na situação analítica,
o que ele continua a repetir na sua relação ao discurso do Outro, e portanto,
a nosso discurso”
.49
Após um quarto de século de psicanálise, a análise de
psicóticos galgou espaço e o pensar analítico tem podido escutar
determinadas falas que viabilizaram o tratamento desses sujeitos.
Hoje, os estudos metapsicológicos mostram que o psicótico é
capaz de uma transferência maciça, mas de uma outra ordem,
fantasmada, na qual o analista e o paciente estão, para este último,
numa osmose, da mesma ordem daquela vivida com a mãe – porta-
voz que está ocupando o lugar de um único Outro. Aulagnier adverte:
A partir do momento em que uma relação analítica se instaura, é o analista
que, na cena do real, deverá assumir a função desta voz única, que garante
ao sujeito a verdade de seu enunciado sobre a origem”.
50
47
Ibid., p. 201.
48
Id.
49
AULAGNIER, Piera (1975). A Violência da interpretação: do pictograma ao enunciado.
Rio de Janeiro, Imago, 1979, p. 18.
50
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 216.
Adriana Cajado Costa
46
a transferência negativa está presente, mas uma outra qualidade de
transferência, distinta daquela própria ao neurótico, é constituída
na instituição e nos paranóicos. O problema institucional colocado
por Figueiredo, distintamente de Freud, afeta o manejo da
“transferência que se diversifica e se dispersa”
62
.
O manejo desse processo de dispersão da transferência é tão
importante que Figueiredo o retoma em outro texto. Nele, a autora
salienta que há a existência da transferência “em qualquer tipo de
tratamento e toma características mais pulverizadas no atendimento
em instituição onde um paciente é recebido por diferentes
profissionais com funções diversificadas”
63
.
O primeiro endereço da transferência é o da instituição. Após
o primeiro atendimento, seja com o assistente social, ou com o
médico, com o psicólogo, psicanalista ou mesmo com a recepcionista,
é que a transferência vai sendo endereçada para outro lugar, agora
mais específico. Ao chegar ao psicanalista, o sujeito já criou laços
com uma gama de “doutores” para pedir socorro.
Pode-se pensar que a transferência dessa forma está diluída.
Prefiro pensar que ela, num primeiro momento, foi partilhada
64
. Ao
procurar o ambulatório de um hospital psiquiátrico, geralmente o
sujeito psicótico se defronta com sua incapacidade. Na maioria dos
casos ele é trazido por um familiar que pede para acompanhá-lo na
sessão. Com os outros profissionais esta companhia é vista com
bons olhos, o que gera certo mal-estar quando nós, psicanalistas,
solicitamos o atendimento individual, singularizado. Nesse momento,
um dado novo é apresentado para o paciente e família, e também
para a instituição. Esta postura implica uma tomada de decisão e
direcionamento do tratamento, ocasionando dúvidas e inseguranças
para o acompanhante e para os outros profissionais.
62
Ibid., p. 74.
63
FIGUEIREDO, A. C. Do atendimento coletivo ao individual: um atravessamento na
transferência. A Clínica da Recepção nos Dispositivos de Saúde Mental. Cadernos
IPUB, nº 17, Rio de Janeiro, UFRJ/IPUB, 2000, p. 127.
64
A essa passagem de um profissional a outro, que o sujeito é impelido a realizar na
instituição, Fernando Tenório aponta para o problema transferencial e, ao citar M.
L. Calderoni, alerta para o fato de que nesse espaço a transferência deve acontecer
e permanecer, transferindo-se. TENÓRIO, F. Op. cit, p. 88.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
49
O que corresponde afirmar que no caso da psicose o analista
não pode assumir o lugar de “suposto-saber”, pois esse lugar está
ocupado por um ser idealizado. Idealização que produz “o
desaparecimento do traço individual, a erradicação de toda
diferença”
57
. No caso do analista, o sujeito psicótico o colocará nessa
posição, mas ele não deve assumir o lugar de ideal, o que
impossibilitará a análise e servirá de objeto persecutório para o
sujeito, dificultando o manejo transferencial. Pommier pontua:
“(...) um ideal tão presente não deixa de tornar-se persecutório e o sujeito
do saber assim encarnado constitui a ocasião suficiente para o
desencadeamento de um delírio”
58
.
Fundamentada nas conceituações acima, percebo que todo
atendimento/tratamento psicanalítico que é realizado numa
instituição, seja ela clínica-escola, seja hospital geral, seja hospital
psiquiátrico etc., tem que se haver com um fenômeno peculiar: a
transferência estabelecida pelo sujeito com a instituição como um
todo. É a ela que o sujeito procura para aliviar seu sofrimento. No
caso do psicótico, com essa projeção maciça que pode transformar
a instituição em um perseguidor poderoso.
Retomo o texto “A Dinâmica da Transferência” para salientar
a afirmação de Freud de que os paranóicos limitam sua capacidade
de transferência a uma transferência negativa. Nesse mesmo texto,
ao falar das instituições nas quais os “doentes dos nervos são tratados
de modo não analítico”, ele complementa: “podemos observar que a
transferência ocorre com a maior intensidade e sob as formas mais
indignas, chegando a nada menos do que servidão mental”
59
, e mais
adiante ele reitera: “a manifestação de uma transferência negativa
é, na realidade, acontecimento muito comum nas instituições”
60
.
Ampliando as afirmações freudianas, de acordo com Figueiredo
(2001), “um psicanalista faz na saúde mental tudo que lhe concerne
pela via da fala na transferência”
61
. Isso equivale a dizer que não só
57
POMMIER, G. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro, Zahar, 1990, p. 211.
58
Ibid., p. 214.
59
FREUD, Sigmund (1914). A dinâmica da transferência. ESB, 2
ª
ed., vol. XII, 1987,
p. 136.
60
Ibid., p. 141.
61
FIGUEIREDO, A. C. O que faz um psicanalista na saúde mental. Saúde Mental:
Campo, Saberes e Discurso. Rio de Janeiro, IPUB/CUCA, 2001, p. 81.
Adriana Cajado Costa
48
do tratamento, denunciam a falta de preparo e estudo dos
profissionais e, penosamente, denunciam o lugar de resto no qual o
sujeito psicótico pode ser colocado numa sociedade.
No caso específico da instituição psiquiátrica, a “boa distância”
é referida pelos diversos profissionais como garantia do “bom
tratamento”. Inspirando-me em Aulagnier
68
, entendo que a distância
mantida pelo paciente pode estar relacionada com suas experiências
de vida e, nesse manejo, ele reconhece sua própria história, história
de um ser não-pensante, já que o que deve pensar já foi imposto
por um Outro, traduzindo-se num conto de uma vida sem escolha,
sem demanda e sem oferta. Será por isso que o sujeito manterá
distância, por saber que, ao se aproximar, um nada lhe será oferecido.
Se uma escuta discreta for direcionada para o discurso institucional,
ver-se-á nessas falas a marca de uma distância preconceituosa,
pejorativa e prejudicial ao sujeito psicótico.
Inúmeras reclamações são dirigidas a mim quanto ao
comportamento do sujeito. Questionam a ausência de medidas
educativas e outras tantas que denunciam a incompreensão teórico-
prática do tratamento dirigido ao paciente, seja apoiado na
psicanálise, na psiquiatria, ou nas teorias cognitivas e
comportamentais de psicólogos que ali desenvolvem suas atividades.
Ao interrogar essa “boa distância”, Aulagnier não deixa de
lembrar ao leitor o seu papel crítico, não deixando, também, de
inspirar esse mesmo leitor em suas reflexões.
Aquele que já se pôs a escutar um sujeito psicótico sabe que
sua fala, seus gestos, ou mesmo sua aproximação física é cautelosa.
Cautela que responde menos a um discernimento do que a um pavor,
por vezes desembocando numa exasperação em que, ou o sujeito
pede um toque por necessidade de se sentir vivo, ou mantém uma
distância desumanizante. Infelizmente, quando ele escolhe manter
distância, essa atitude é interpretada por alguns profissionais como
eficácia do tratamento.
68
AULAGNIER, Piera (1984). Op. cit
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
51
O que pretendo ressaltar aqui é a ocorrência da transferência,
não só do paciente pela via da instituição, mas dos profissionais
65
para com a figura do analista. Quando Figueiredo (1997) fala do
lugar “à sombra” do analista na instituição, elenca inúmeras questões
que invadem o setting analítico. Ao assumir a postura do silêncio,
do acolhimento pela escuta e da abdicação de explicar
66
tudo, nós
assumimos a psicanálise e seu método e posicionamo-nos de maneira
diferenciada. Esta atitude marca um lugar, e será a este lugar que o
sujeito irá, posteriormente, se direcionar.
Nessas circunstâncias, o discurso psicótico envereda por outro
caminho. O delírio se impõe no lugar da repetição e as atitudes do
sujeito são orientadas por essa criação de uma realidade autocrática.
Diante disto, o analista deve manter sua oferta, ou seja, deve escutar.
Por fim, uma última problemática que inclui a transferência
deve ser aludida: a relação dos profissionais de saúde mental com o
paciente. Aulagnier chama a atenção para a relação dos analistas,
mas entendo que tal problema não atinge apenas psicanalistas, incluo
aqui os outros profissionais. A autora assim se expressa:
“Freqüentemente se tem dito que uma das características da transferência é
a impossibilidade na qual o sujeito se encontra de manter uma ‘boa
distância’(?) do terapeuta. Pergunto-me se, nesse caso, o problema da
distância não é muito mais um problema do analista que do analisado”
67
.
Deve-se questionar, assim como o fez Aulagnier, a que “boa
distância” se referem, não só os psicanalistas, mas os profissionais
de saúde mental. Um dos discursos institucionais mais repetitivos,
colhidos por mim, foi exatamente esse: “eles colam na gente, eles
são viscosos e pegajosos. Temos que ter cuidado, se não eles nos
beijam, abraçam, apertam.... Essas falas denunciam a precariedade
65
Figueiredo aponta para a noção lacaniana de transferência de trabalho. Poder-se-
ia adotar esta noção aqui para falar do que ocorre entre os outros profissionais e
o psicanalista, mas crê-se que esta noção ainda não atinge o cerne do problema
que se coloca. Vamos ao conceito: “Seria a condição de estabelecimento de um
laço produtivo entre pares visando, por um lado, a produção de saber e, por outro,
o fazer clínico”. FIGUEIREDO, A. C (2000). Op. cit., p. 126.
66
FREUD, S (1933). Explicações, aplicações e orientações . Novas Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise. Conferência XXXIV. ESB, 2
ª
ed., vol. XXII, 1987.
67
AULAGNIER, Piera. Observações sobre a estrutura psicótica (1963). Um Intérprete
Em Busca de Sentido-II. São Paulo, Escuta, 1990, p. 30.
Adriana Cajado Costa
50
história libidinal e identificatória – definirá as regras do trabalho de
análise. Esta relação é assim descrita por Freud:
“O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente,
exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe explicações e observa
as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista, suscita no
paciente”
71
.
Em “Sobre o Início do Tratamento” (1912), Freud fala do
processo analítico como um todo – espaço, tempo, honorários,
associação-livre, escuta, trabalho do material analítico. Afirma: “(...)
enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente
de meus pensamentos inconscientes...
72
.
Em toda sua obra, os temas da escuta e da atenção flutuante
são pincelados nos casos clínicos, em algumas conferências e nos
textos técnicos. Garimpar a conceituação de escuta analítica é tarefa
difícil e imprecisa, pois obedece a um movimento sobredeterminado
no qual os mesmos métodos utilizados para a associação-livre,
interpretação e construção, estão presentes na escuta. No trecho
acima citado, escutar é entregar-se ao movimento próprio do
inconsciente. Nas “Recomendações aos Médicos que exercem a
Psicanálise” (1912), a escuta é preparada pela atenção
uniformemente suspensa que se configura por “(...) não dirigir o
reparo para algo específico...
73
. A atitude do psicanalista neste
momento – e que define sua escuta – é assim apresentada:
“Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar
atenção e abandonar-se inteiramente à memória inconsciente. Ou, para dizê-
la puramente em termos técnicos: ele deve simplesmente escutar e não se
preocupar se está se lembrando de alguma coisa”
74
.
Acréscimos ainda são feitos a esta recomendação:
71
FREUD, Sigmund (1916). Conferência I. Conferências Introdutórias sobre
Psicanálise. ESB, 2
ª
ed., vol. XV, 1987, p. 29.
72
FREUD, Sigmund (1912). Sobre o início do tratamento. ESB, 2
ª
ed., vol. XII, 1987,
p. 176.
73
FREUD, Sigmund (1916). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise.
ESB, 2
ª
ed., vol. XII, 1987, p. 150.
74
Id.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
53
A Escuta e o Setting Analítico
A escuta psicanalítica revolucionou o tratamento das
enfermidades ditas psíquicas e abriu espaço para o campo do sentido
nas experiências de sofrimento e/ou prazer pelas quais o ser humano
passa ao longo da vida.
No estudo da histeria, Freud pôde perceber a relação entre
os afetos vivenciados pela psique e suas repercussões no corpo, as
famosas conversões histéricas. Ao tratá-las, este pensador passou
de neuropatologista a psicoterapeuta
69
. Essa passagem, de um
médico que diagnosticava problemas psiquiátricos para analista, veio
acompanhada de uma ruptura com a forma de tratamento até então
desenvolvida para tratar dos “problemas nervosos” - banhos, choques
e uma gama de tratamentos que agiam apenas no corpo.
A primeira análise completa de uma histeria deu-se no
tratamento da Srta. Elisabeth Von R., sendo esta a responsável por
fornecer a Freud (1895) o sentido de sua escuta que, posteriormente,
transformou-se na psicanálise:
“Ocorreu assim que nesta, que foi a primeira análise integral de uma histeria
empreendida por mim, cheguei a um processo que mais tarde transformei
num método regular e empreguei deliberadamente”
70
.
O escutar analítico vai além do ouvir do senso comum. É o
resultado e a contrapartida da regra fundamental da psicanálise,
constituindo-se como o meio pelo qual o analista atinge o sentido da
fala do analisando, a verdade de seu desejo inconsciente. Configura-
se, então, o lugar, para o paciente, de aceitar a associação livre (a
regra fundamental). Para alcançar este caráter, um determinado
fenômeno e condição deve acontecer: a transferência. A escuta do
analista, então, começa a receber, via discurso do paciente, o material
que vai mostrar a singularidade e o infantil deste sujeito, seu modo
de funcionamento e as marcas das suas vivências primevas. O sujeito,
enquanto inscrito pela intersubjetividade, carrega esta marca em
sua existência, o que no processo analítico – caminho percorrido
por uma dupla que vai ressignificando, construindo e tecendo uma
69
Freud faz esta afirmação nos Estudos sobre a histeria (1895), precisamente no
Caso Clínico 5 dedicado à Srta. Elisabeth Von R. (ESB II, p. 172).
70
FREUD, Sigmund (1983-1985). Op. cit., p. 155.
Adriana Cajado Costa
52
No Vocabulário da psicanálise, o verbete atenção
(uniformemente) flutuante é definido como uma técnica que
engendra, como atitude subjetiva do analista, a escuta:
“Segundo Freud, modo como o analista deve escutar o analisando: não
deve privilegiar a priori qualquer elemento do discurso dele, o que implica
que deixe funcionar o mais livremente possível a sua própria atividade
inconsciente e suspenda as motivações que dirigem habitualmente a atenção.
Essa recomendação técnica constitui o correspondente da regra da
associação-livre proposta ao analisando”
80
.
Prosseguindo, o verbete é finalizado com uma definição
específica da escuta psicanalítica:
“Finalmente, numa perspectiva teórica que acentua a analogia entre os
mecanismos do inconsciente e os da linguagem, seria esta semelhança
estrutural entre todos os fenômenos inconscientes que seria preciso deixar
funcionar o mais livremente possível na atitude de escuta psicanalítica”
81
.
A atenção flutuante, além de viabilizar essa atitude subjetiva,
abre caminho para que a comunicação entre inconscientes seja
realizada. Contudo, a escuta é um procedimento técnico ideal que
deve comportar e contextualizar os dados da situação analítica e da
realidade.
Os casos clínicos apresentados por Freud provam o valor desta
escuta e, além disso, servem de material para a investigação do
fazer psicanalítico. Em seu texto sobre o pequeno Hans (1909),
temos a análise do caso de uma criança fóbica que, aos cinco anos,
é tratada (escutada) por seu pai, o qual é supervisionado por Freud
nessa tarefa. Há um trecho sobre esta escuta que aparece na fala
da criança e que é imediatamente reconhecida e pontuada por Freud.
A conversa entre o pequeno Hans e seu pai é a seguinte:
Pai: “Foi por isso que você pensou, quando a mamãe estava
dando o banho dela, que, se ela a soltasse, Hanna cairia na água...”
Hans: “... e morreria.”
Pai: “E então você ficaria sozinho com mamãe. Mas um bom
80
LAPLANCHE, J. PONTALIS (1993). Op. cit., p. 40.
81
Ibid. p. 42.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
55
A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a
necessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar especulação ou
meditação sobre os casos, enquanto eles estão em análise, e em somente
submeter o material obtido a um processo sintético de pensamento
após a análise ter sido concluída
75
(grifo meu).
Na parte acima grifada das recomendações de Freud, pode-
se estabelecer uma aproximação com o conceito de teorização
flutuante de Piera Aulagnier. No livro O aprendiz de historiador e o
mestre-feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante
(1984), a autora o define:
“Momento de corte entre pensamento teórico e escuta clínica, mas corte
que é apenas aparente. Permanece oculto para nós, neste último caso, o
trabalho de ligação subterrânea que relaciona o que escutamos no hic et
nunc de nossos encontros clínicos e as aquisições sedimentadas graças ao
trabalho de teorização flutuante, latente às vezes, que nos permitiram
escutar algo novo, e escutá-lo enquanto tal”
76
.
A teorização flutuante é um procedimento que só pode ser
executado após as sessões do paciente. Isto se aproxima, no meu
entender, ao que Freud diz: “Não se deve esquecer que o que se
escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado
posteriormente”
77
. O que se distingue da advertência freudiana é a
possibilidade que o analista tem de recorrer à teorização flutuante
em cada final de sessão, ou seja, permite que a pesquisa psicanalítica
se desenvolva numa dinamização maior, como no caso desta
pesquisa
78
.
O processo de escuta dos sonhos obedece ao mesmo
procedimento. Na Conferência XXIX (1933) dedicada a uma “Revisão
da Teoria dos Sonhos”, Freud confirma que “a comunicação que
recebemos na forma de sonho, nós a acrescentamos ao restante
das comunicações do paciente e prosseguimos com a análise”
79
75
Ibid., 153.
76
AULAGNIER, Piera (1984). Op. cit., p. 17.
77
FREUD, Sigmund (1916). Op. cit.
78
A Prof ª Dr ª Edna Linhares, no exame de qualificação deste trabalho, introduziu a
questão das distinções entre a teorização flutuante e a advertência freudiana.
79
FREUD, Sigmund (1933). Revisão da teoria dos sonhos. Novas Conferências
Introdutórias de Psicanálise. ESB, 2
ª
ed., vol. XXII, 1987, p. 23.
Adriana Cajado Costa
54
O impedimento que o sujeito psicótico encontra em significar
a presença de dois interlocutores resulta no “apelo ao delírio” devido
à “impossibilidade do sujeito continuar a acreditar na presença da
escuta do outro”
86
. Será em decorrência dessa incapacidade que a
escuta psicanalítica irá ocupar, no primeiro momento, o “lugar da
orelha de quem fala”, para posteriormente, assumir o lugar de uma
“nova escuta” que garantirá ao sujeito “que o que ele diz faz parte
novamente de um escutável, de algo investível por um outro”
87
,
garantia essa que não é demandada pelo neurótico.
Pode-se derivar daí a importância da teorização e conseqüente
técnica da contribuição figurativa proposta por Aulagnier e comentada
na introdução desta dissertação.
Em minha escuta dos sujeitos portadores de um conflito
psicótico, pude apreender a importância de “escutar com o corpo”,
escutar colocando-me no lugar ao qual a fala do analisando se
remetia. Escuta que, muitas vezes, recebe um material incongruente,
de difícil significação. Os subsídios teóricos que fortaleceram e
garantiram minha escuta giram em torno da técnica da contribuição
figurativa. Aulagnier (1984) indica vários caminhos para que o
analista possa sustentar sua escuta:
“... escutar como analista induz uma presença total no que acontece nesse
fragmento do tempo que compartilhamos com o outro, presença ainda mais
intensa quando estamos lidando com sujeitos, psicóticos ou não, cuja fala
exige essa espécie de osmose, tenho vontade de dizer, com a escuta do
interlocutor deles”
88
.
Em nossa sociedade, todo aquele que não está compartilhando
do sentido comum é rechaçado, criticado ou excluído. Esta palavra,
louco, logo aparece no discurso social para falar daquele que está
em desordem quando comparado à maioria. Assim, a busca de
sentido, para este que recebe tal denominação, torna-se a meta
principal do seu Eu que, incansavelmente, busca-o sem ser
reconhecido ou escutado. A escuta analítica, então, pode ocupar
este lugar de reconhecimento do sujeito. É aí que o pensamento de
Aulagnier (1984) é pontual:
86
Id.
87
Id.
88
Ibid., pp. 120-21.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
57
menino não deseja esse tipo de coisa.”
Hans: “Mas ele pode PENSAR isso.”
Pai: “Mas isso não é bom.”
Hans: “Se ele pensa isso, é bom de todo jeito, por que você
pode escrevê-lo para o Professor.”
Nesse momento, Freud abre uma nota de rodapé e escreve:
“Muito bem, pequeno Hans! Eu não poderia desejar uma
compreensão melhor da psicanálise por parte de nenhum adulto.”
82
.
Aqui temos, de maneira explícita, a noção psicanalítica de
escuta . Escuta que busca entender a organização do funcionamento
do psiquismo do paciente e, a partir daí, no caso da neurose, recorrer
aos efeitos da transferência e da resistência, formular as primeiras
hipóteses, produzir uma interpretação que faça eco, que possibilite
alguma mudança, alguma forma daquele que fala apoderar-se do
que isso pode significar. No caso do sujeito que sofre de um conflito
psicótico, o manejo transferência, como foi dito no item anterior, é
distinto.
Se, no caso do neurótico, o paciente transfere para a figura
do analista “intensos sentimentos de afeição”, e estabelece com este
uma “vinculação amorosa”
83
, no caso do psicótico, a transferência
perfaz outro caminho, transfere para o analista a relação que vive
com o Outro (mãe).
Denis Vasse
84
afirma que a escuta do psicótico requer um
olhar que vá além da fala do sujeito, que se direcione também para
o sintoma do analista, para o que o analista “escuta com seu corpo”.
Já Aulagnier ressalta que a escuta do psicótico deve ser o instrumento
de investimento na relação analítica, instrumento que garante ao
sujeito que um outro pode escutá-lo
85
.
82
FREUD, Sigmund (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. ESB,
2
ª
ed., vol. X, 1987, p. 81.
83
FREUD, Sigmund (1917). Transferência. Conferências Introdutórias de Psicanálise.
ESB, 2
ª
ed., vol. XVI, 1987, pp. 514-515.
84
VASSE, Denis. La escucha del psicótico. El Peso de lo Real, el Sufrimiento. Madri,
Gedisa, 1985. “escucha con su cuerpo”.
85
AULAGNIER, P. (1984). Op. cit., p. 200.
Adriana Cajado Costa
56
dialética demanda-oferta ocupará o cerne do processo transferencial
imprimindo-lhe a importância de assegurar a existência da própria
análise. A autora afirma:
“Ora, a dialética demanda-oferta transferir-se-á no tratamento onde
permanecerá sendo justamente o ‘pivô da transferência’, com o paciente
visando assegurar-se que essa dialética não seja nunca excluída de sua
análise”
93
Figueiredo
94
, ao colher inúmeros relatos de psicanalistas que
exercem suas atividades em hospital psiquiátrico, apontou para a
dificuldade do sujeito psicótico demandar análise. Mas encontrou
vários depoimentos que reivindicavam um outro entendimento.
Alguns profissionais chegaram a discorrer sobre seus pacientes
afirmando que entre alguns deles era possível identificar uma
demanda de análise, mas para isso a escuta teria que ser atenta,
ofertada de maneira singular, levando em consideração o
funcionamento psíquico do sujeito psicótico. Nos casos em que a
oferta respeitava essa direção, o paciente permanecia em análise e
alcançava alguns progressos.
A análise dos sujeitos desta pesquisa mostrou a possibilidade
de alguns psicóticos demandarem análise, contrariando a afirmação
de Piera Aulagnier. Compartilho do pensamento de Pommier sobre
essa problemática. Ele escreve:
“Quando um sujeito psicótico demanda análise é porque sofre e gostaria de
ver acabar o calvário de que padece. Contrariamente a uma opinião difundida,
ele não ignora mais do que o neurótico que a psicanálise é feita para isto e
não está acima de seus recursos procurar nela um benefício”
95
.
O trabalho do psicanalista numa instituição é permeado por
interfaces que deslocam e condensam inúmeros sentidos e enganos.
O lugar a ser conquistado, a renúncia às explicações prolongadas
sobre o fazer analítico, o manejo transferencial dentro e fora do
setting analítico são elementos que devem ser muito bem elaborados
pelo analista.
93
AULAGNIER, Piera. Um Intérprete em busca de sentido – I.. São Paulo, Escuta,
1990. p. 23.
94
FIGUEIREDO, A. C. (1997). Op. cit.
95
POMMIER, Gerard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro, Zahar, 1990, p.
206.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
59
“... escuta que prova para o sujeito que seu discurso merece ser escutado,
e que se suas construções delirantes não são compartilháveis não é por que
lhes falte sentido mas por que esse sentido permanece oculto para os
interlocutores”
89
.
Investigar e contextualizar a noção de escuta nas psicoses,
apoiando-se na mais recente e importante contribuição psicanalítica
ao assunto, é proporcionar aos profissionais de saúde mental uma
compreensão atual deste problema na psicanálise, derivando-se até
a clínica, numa perspectiva transformadora do tratamento e da análise
de psicóticos na instituição psiquiátrica.
Nesse sentido, o espaço institucional pode se configurar em
um outro espaço, possibilitando, por meio da escuta analítica, a
construção de uma Outra cena que agregará uma simbologia
específica. Cada sujeito irá representar as cenas de sua vida de
acordo com sua singularidade, sua história e com a capacidade que
possui de significar suas experiências.
No espaço de um hospital psiquiátrico, a possibilidade de se
criar uma Outra cena, ou melhor, um Outro espaço, é precária. Para
O. Mannoni, a palavra cena pode ser compreendida como uma
disposição psíquica em que se pavoneiam as imagens, que acolhe
o fantasiar e o sonho”
90
. Os signos identitários de cada indivíduo são
praticamente desconstruídos pelo processo de institucionalização
91
por que passa o sujeito ao ser internado ou ao freqüentar
periodicamente o hospital psiquiátrico.
A escuta analítica pode se revelar uma aliada na configuração
de uma Outra cena, transformando a sala de atendimento – espaço
físico - num setting analítico – espaço da palavra
92
- propício a fazer
o discurso do sujeito circular, pois é a escuta e a palavra que definem
a psicanálise. A oferta da escuta introduz a dialética oferta-demanda.
Aulagnier pontuou a impossibilidade de o sujeito psicótico demandar
análise, pois ele inverte as posições e coloca o analista no lugar de
demandante. Mesmo assim, o analista não pode deixar de ofertar. A
89
Ibid., p. 58.
90
Mannoni, Octave apud Mannoni, Maud (1995). Op. cit., p 47.
91
GOFFMAN, Erving (1961). Manicômios, prisões e conventos. 6
ª
ed. São Paulo,
Perspectiva, 1999.
92
MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro, Campus,
1981.
Adriana Cajado Costa
58
Um exemplo pode ser fornecido a partir da fala de um paciente
que chega para sua primeira consulta. Após explicar os motivos de
solicitar o atendimento, mostra-me a guia de encaminhamento
ambulatorial e diz: “o psiquiatra me disse que meu problema tem
que ser resolvido com a senhora, mas, sabe, eu não agüento mais
ficar nisso, nenhum resolve. Será que a senhora vai ficar comigo ou
vai conversar e me mandar para outro?” (sic). Felizmente, o paciente
pôde perceber que no ambulatório era possível desenvolver um
tratamento com o mesmo psicólogo. Marcou um horário semanal e
vem comparecendo às sessões.
Nesse sentido, o ambulatório, paradoxalmente, pelo fato de
proporcionar ao sujeito o movimento, pois ele pode ir e vir quando
quiser, é o lugar do hospital onde a transferência pode ser direcionada
a um número menor de profissionais, ou mesmo, a um só, como foi
o caso do exemplo acima. No restante do hospital, existe um número
muito grande de funcionários responsáveis pelo paciente, o que o
impede de estabelecer uma relação mais próxima. O CAPS pode ser
um lugar possível, mas no caso da instituição em que trabalho, a
diversidade de oficinas, profissionais e estagiários abre espaço para
uma outra proposta, a de fornecer ao sujeito um tempo para o
trabalho manual.
A partir do momento em que o sujeito é atendido no
ambulatório, assume algum tipo de tratamento. Consultas são
marcadas semanalmente para ele, ou com o psicólogo, ou com o
psiquiatra, ou com o psicanalista.
Figueiredo (1997) define o ambulatório, no seu plano ideal
de funcionamento, como o lugar fecundo, quando gerido
devidamente, para o psicanalista agir:
“O ambulatório é, sem dúvida, o local privilegiado para a prática da psicanálise
porque faculta o ir-e-vir, mantém uma certa regularidade no atendimento
pela marcação das consultas, preserva um certo sigilo e propicia uma certa
autonomia de trabalho para o profissional”
98
.
Mesmo possibilitando ao sujeito essa “liberdade”, o
ambulatório, em muitos casos, fracassa em seu objetivo. Aulagnier
(1984), no livro O Aprendiz de Historiador e o Mestre-Feiticeiro,
98
FIGUEIREDO, Ana C. (1997). Op. cit., p. 10.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
61
Psicanálise e instituição podem ter uma aproximação frutífera
e duradoura se o analista permanecer no lado da psicanálise e
comprometido com seus princípios e seu método de investigação.
Só assim manterá uma distância, essa sim necessária, para sua
análise e reflexão dos elementos que se interpõem quando do
atendimento a sujeitos psicóticos institucionalizados.
O Ambulatório
A palavra ambulatório vem do latim ambulare, ambulator que
significa caminhar, caminhador. Em seu sentido adjetivado temos:
“que impele a andar, a movimentar-se”. O exemplo fornecido pelo
dicionário
96
é “delírio ambulatório”. Prosseguindo o verbete encontra-
se: “Departamento hospitalar para atendimento de enfermos que
se podem locomover”.
Recorrer ao dicionário é sempre uma tarefa que ajuda e auxilia
o exercício do pensamento e, para nós, psicanalistas, ajuda na busca
da significação. Partindo das explicações fornecidas pelo dicionário,
pode-se pensar no ambulatório como um lugar de passagem. Espaço
propício para o deslocamento.
No item sobre a transferência na instituição, uma das
percepções colhidas foi a de que, no ambulatório, e até mesmo no
hospital como um todo, devido à gama de profissionais e tipos de
tratamento, o paciente é encaminhado a diversos profissionais; disso
decorre que ele acaba por travar uma relação dita “terapêutica”
com cada um deles, mas que se sustenta por pouco tempo.
Levando em consideração as palavras de Freud (1917), a
“transferência está presente no paciente desde o começo do
tratamento”
97
. O que pude observar e escutar é que o paciente
estabelece transferência com quase todos os profissionais que o
atendem. Desta forma, quando um deles o indica para o outro, a
carga afetiva estabelecida na transferência parece se transferir para
o próximo profissional.
96
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da
língua portuguesa. 3
ª
ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
97
FREUD, Sigmund (1917). Transferência. Op. cit., p. 516.
Adriana Cajado Costa
60
do deputado Paulo Delgado. Tenório recupera a memória do
ambulatório dos anos 80, o qual se assemelha em muito com o
ambulatório em que desenvolvo minhas atividades.
Um exemplo do ambulatório nos moldes descritos por
Fernando Tenório, quanto às prescrições medicamentosas, pode ser
dado para melhor explicitar o problema. No ambulatório desta
pesquisa, certo dia, a recepcionista encaminhou um paciente
acompanhado da esposa, que já havia falado com a assistente social.
O sujeito e sua mulher entram na sala de atendimento, ele passa o
tempo todo chamando minha atenção para seu cansaço, fraqueza e
batimento cardíaco lento. Depois de falar um pouco sobre seu
sofrimento, o sujeito solicitou um medicamento. Expliquei-lhe que,
como psicanalista, essa não era minha função. Tentei escutá-lo. Ele
implorou que lhe fosse dada uma medicação venal, pois estava
precisando muito. Inquieto, pediu o encaminhamento para o
psiquiatra e saiu da sala. Esse sujeito estava calmo, mas inquieto,
aparentava estar cansado e comunicava-se razoavelmente bem; por
alguns minutos pôde falar de si, dos seus problemas, mas a falta do
medicamento era impeditiva de sua possibilidade de continuar a
falar.
Num segundo encontro, o medicamento é novamente a moeda
de troca na relação. A demanda de análise só foi a mim direcionada
após um pedido de auxílio para que ele conseguisse a medicação.
Vamos escutar o que ele diz: “oi doutora, que bom ver a senhora,
tudo bem?” (sic), respondo: e você como está?; ele faz seu pedido:
“estou bem, mas eu preciso tomar meus remédios e a mulher aí (da
recepção) não quer me dar, eu já mostrei a receita e minha carteira
(de identidade). Eu preciso falar com a senhora, mas só depois de
conseguir o remédio” (sic).
A reforma psiquiátrica preconiza uma mudança significativa
nos serviços em saúde mental. O ambulatório faz parte de sua política
– funcionando com uma equipe multiprofissional – mas a realidade
do ambulatório no qual atendo é outra. A prescrição médica reina
soberana. Num único período do dia, o mesmo psiquiatra consulta
em média 20 pacientes. Atendidos por ordem de chegada,
permanecem no corredor do ambulatório por horas. No caso da
instituição em questão, o CAPS é valorizado e o ambulatório é
rechaçado, mantendo seu aspecto manicomial.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
63
narra os procedimentos utilizados no hospital, no qual trabalhava,
para os atendimentos. O que se pode apreender é que os pacientes
eram atendidos por uma equipe de profissionais, cada qual com sua
função. Após as sessões, essa mesma equipe se reunia para discutir
o caso. No contexto sócio-cultural dessa pesquisa, bem diferente
daquele no qual Aulagnier trabalhou, a diversidade e a
descontinuidade dos profissionais, principalmente de psicólogos
disponíveis, dificultam a continuidade do tratamento. Quando há a
possibilidade dessa permanência, outras incorreções prejudicam o
funcionamento do ambulatório, no seu sentido mais específico, que
é o de fornecer tratamento e acompanhamento a sujeitos que não
estão internados. Quando a precariedade prepondera, tem-se o risco
de se chegar ao que Silva Filho
99
alertou como asilamento do
ambulatório, ou seja: “pode-se asilar o ambulatório, ou melhor, ele
pode ser uma espécie de hospício aberto na frente”.
No ambulatório desta pesquisa, a demanda é primordialmente
psiquiátrica, o que revela a falta de um trabalho voltado para o
sujeito e a imposição de um tratamento educativo e (domestica)dor.
Os acompanhantes ou familiares dos pacientes preferem a
intervenção medicamentosa, que adormece o sujeito, do que a
análise, que ativa seus afetos e questionamentos.
Pensando no ambulatório, Fernando Tenório faz um alerta
contra esse excesso. Ao lembrar as reformas psiquiátricas da década
de 80, salienta:
“(...) os ambulatórios, funcionando em consultas espaçadas e repetindo
burocraticamente prescrições medicamentosas enraizadas pelo hábito, não
alteraram o ciclo internação-alta-internação e acabaram por representar um
outro circuito de cronificação da clientela, marcada pela indução à
farmacodependência”
100
.
Tanto Tenório quanto Figueiredo falam do ambulatório e de
sua importância. Figueiredo pensa o ambulatório dos últimos anos,
revisto pelas leis da reforma psiquiátrica conquistadas com o projeto
99
SILVA FILHO, João Ferreira da. O ambulatório e a psiquiatria. A Clínica da Recepção
nos dispositivos de Saúde Mental. Cadernos IPUB. Vol. VI, nº. 17. Rio de Janeiro,
UFRJ/IPUB, 2000, pp. 17-20.
100
TENÓRIO, Fernando (2000). Op. cit., p. 80.
Adriana Cajado Costa
62
“doutor” que escuta, significa ainda estar doente, significa ter de
falar de uma dor que desejam sufocar.
Com isso, não se está defendendo posição contrária à
prescrição médica do fármaco e, sim, pontuando que essa prescrição
deve ser limitada, pensada e ajustada na medida em que não faça
calar o sujeito, que sua singularidade seja respeitada e valorizada.
O sujeito que possui uma história de internações já foi
psiquiatrizado o suficiente para ele mesmo solicitar sua camisa de
força. Aprendeu a temer a si próprio e também a calar-se diante de
seu sofrimento.
Contudo alguns sujeitos venceram a barreira da medicação
excessiva e buscaram um espaço para falar, o espaço da palavra.
Foi com esses sujeitos que minha escuta pôde transformar o
consultório nº 05, antes esquecido e pouco utilizado, num espaço
ocupado por dois sujeitos objetivando empreender uma análise,
construindo, assim, um lugar para a palavra.
Psicanálise na Instituição Psiquiátrica
65
A utilização desse serviço para continuar ou empreender uma
terapia é pouco freqüente mas alcança determinados sujeitos. Na
maioria dos casos de alta, o sujeito não retorna para continuar as
sessões. O retorno se dá, em grande parte, para a retirada gratuita
de medicamentos e consulta ao psiquiatra, que lhe garante a receita.
Somente munido da receita e carteira de identidade o paciente pode
receber seus remédios. Suspeito que, caso não fosse necessária a
receita para a retirada dos medicamentos na farmácia do hospital,
os pacientes não demandariam consulta com o psiquiatra. Os retornos
para renovar a receita são geralmente mensais e, em muitos casos,
é algum familiar que se disponibiliza para ir buscar o remédio. Além
desses pacientes, uma outra clientela adere ao serviço ambulatorial.
São pessoas de baixa renda, indicadas por leigos, pacientes que já
estão livres das internações há bastante tempo, e uma parcela
considerável de pacientes encaminhados pelos psiquiatras. Os
sujeitos que fazem a opção de continuar a análise sentem-se
marcados por um certo estigma, pois não estão saindo de casa para
o consultório do analista, que pode estar situado em um endereço
qualquer, mas estão se dirigindo ao hospital psiquiátrico, à cena de
seu desconforto, de seu sofrimento... à lembrança de sua cruel
posição frente ao mundo.
A indústria farmacêutica em muito contribui para a
transformação do ambulatório em “uma espécie de hospício aberto
na frente”. Fernando Tenório defende a proposta segundo a qual se
deve “desmedicalizar a demanda e subjetivar a queixa”
101
.
Portanto é explícita a atuação da psiquiatria atual, que pouco
conversa, pois deixa essa ação para o psicólogo, e muito medica.
Assim, a continuidade do tratamento psicológico ou psicanalítico
corresponde à continuidade no estar doente. Esse pensamento, com
o tempo, por meio da transferência
102
– sentido e força
103
-, abre
caminho para a análise, para o questionamento. Quando o psiquiatra
medica e silencia o sintoma, silenciando também o sujeito, para os
familiares e o próprio indivíduo, o tratamento está finalizado e o
paciente curado. Retornar todas as semanas, para falar com aquele
101
Ibid., p. 82.
102
Remeto o leitor ao item “A transferência na Instituição” p. 33.
103
VIDERMAN, Serge. A construção do espaço analítico. São Paulo, Escuta, 1990
Adriana Cajado Costa
64
METAPSICOLOGIA
O CONCEITO DE VERLEUGNUNG
*
EM FREUD
O conceito freudiano de defesa Verleugnung abre este capítulo
por configurar-se na maior contribuição de Freud ao estudo das
psicoses. Sabe-se que o termo Verwerfung, traduzido por Jacques
Lacan como forclusão, delimita com maior profundidade o que está
em cheque na psicose, mas o percurso teórico freudiano para alcançá-
lo imprime um fio analítico que deve ser escutado. Conforme afirmou
Simanke
1
em pesquisa de mestrado, “a investigação da Verleugnung
concentra os esforços de Freud para definir metapsicologicamente a
psicose”
2
. Ao vasculhar a obra freudiana em busca de uma teorização
sobre o fenômeno psicótico, o autor conclui:
A Verleugnung foi o único mecanismo investigado sistematicamente em
relação ao problema da origem das psicoses e o único a ser alvo de evidentes
esforços de inclusão no quadro geral da teoria psicanalítica...
3
É a partir desse enigma, qual seja, a relação conflitante do
psicótico com a realidade, que a pesquisa psicanalítica sobre o tema
*
Do alemão verleugnen que corresponde a negar, renegar, desmentir, retratar.
Verleugnung equivale a renegação, retratação, repúdio (cf. TOCHTROP, Leonardo
et CARO, Herbert. Dicionário alemão-português; português-alemão. Porto Alegre,
Globo, 1943, p. 517).
1
SIMANKE, Richard Theisen. A Formação da Teoria Freudiana das Psicoses. Rio de
Janeiro, Ed. 34, 1994.
2
Ibid., p. 229.
3
Id.
Em 1911, no texto “Formulações Sobre Os Dois Princípios do
Funcionamento Mental”, Freud começa a desconfiar da inexistência
do recalque na psicose. Menciona que em certos casos de psicose
alucinatória há um afastamento da realidade por meio de um
dispositivo de negação do evento perturbador. Ele expressa:
“Tais dispositivos são simplesmente o correlativo do ‘recalque’, que trata os
estímulos desagradáveis internos como se fossem externos – ou seja,
empurra-os para o mundo externo”
8
.
Em 1923, quando escreve “A Organização Genital Infantil”,
apresenta o conceito de rejeição (recusa) para falar do mecanismo
utilizado pelas meninas quanto à ausência de pênis. Em nota de
rodapé, do editor, temos que esse conceito, a partir de então, começa
a “ocupar lugar cada vez mais importante nos escritos de Freud”
9
,
assumindo uma conexão um pouco diferente no texto “A Perda da
Realidade na Neurose e na Psicose (1924)”, vinculando-se sempre
ao complexo de castração. O texto de 1924 é o que melhor trata
metapsicologicamente o conceito de Verleugnung.
Outro texto do mesmo ano, mas escrito um pouco antes,
podendo ser considerado como introdutório deste, é “Neurose e
Psicose”. Nele, Freud afirma que na psicose não há recalque e, sim,
outro mecanismo. Ele se questiona:
“(...) qual pode ser o mecanismo, análogo ao recalque, por cujo intermédio
o ego se desliga do mundo externo. Segundo me pareceria, tal mecanismo
deve, tal como o recalque, abranger uma retirada da catexia enviada pelo
ego”
10
.
Freud procede a uma reflexão colocando o ego com a função,
a partir daí, de criar, autocraticamente, “um novo mundo externo e
interno (...) de acordo com os impulsos desejosos do Id”
11
.
Para a criação promovida pelo ego do psicótico, Freud aponta
duas funções: a) a do delírio – remendo de uma fenda entre o ego e
a realidade e que, b) tais manifestações patogênicas do ego são
8
FREUD, Sigmund (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
mental. ESB. 2
ª
ed., vol. XII, 1987, p. 279.
9
FREUD, Sigmund (1923). A organização genital infantil. ESB, 2
ª
ed., vol. XIX, 1987,
p. 182.
10
FREUD, Sigmund (1924). Neurose e psicose. ESB, 2
ª
ed., vol. XIX, 1987, p. 193.
11
Ibid., p. 191.
Metapsicologia
69
avança. Na grande maioria dos textos freudianos dedicados a pensar
a psicose, a investigação se direciona, especialmente, para duas
questões: a) a recusa do ego em relação a um fragmento da realidade
e b) a alteração/divisão do ego provocada por tal recusa.
O interesse de Freud nos processos patogênicos inclui a psicose
desde seus estudos mais antigos. No “Rascunho H” (1895), Freud já
está preocupado com o que acontece na paranóia e nas suas
produções. Afirma, falando da confusão alucinatória, o seguinte:
A totalidade da idéia incompatível – afeto e conteúdo – é mantida afastada
do ego; e isto só se torna possível à custa de um desligamento parcial do
mundo externo. Resta o recurso às alucinações, que comprazem ao ego e
apóiam a defesa”
4
.
Nesse rascunho, ele ainda realiza uma diferenciação entre
confusão alucinatória e paranóia, mas o sentido de que se recusa
uma realidade é mantido, isto é, na alucinação, o que é recusada é
a realidade do mundo externo, na paranóia, a recusa é da realidade
psíquica.
Em 1896, no Rascunho K intitulado “As Neuroses de Defesa”,
Freud compara a Histeria, a Neurose Obsessiva e a Paranóia, ao
afirmar que “são aberrações patológicas de estados afetivos psíquicos
normais”
5
. Em seguida, apresenta algumas distinções. No caso da
paranóia focaliza seu “elemento determinante” no “mecanismo da
projeção, que envolve a recusa da crença na autocensura”
6
. Localiza
a ocorrência do recalque após um “processo de pensamento
consciente e complexo (a recusa da crença)”
7
, num tempo posterior
ao do recalcamento nas neuroses.
Note-se que Freud ainda nesse momento pensa que haja o
mecanismo de defesa do recalque na psicose, acreditando que sua
presença se dê mais tardiamente. Porém hipotetiza a ocorrência da
recusa anterior ao recalque. Veremos, nos seus textos seguintes,
que Freud perceberá que na psicose não há recalque e sim o
mecanismo de defesa da Verleugnung.
4
FREUD, Sigmund (1895). Rascunho H. ESB, 2
ª
ed., vol. I, 1987, p. 298.
5
FREUD, Sigmund (1893). Rascunho K: as neuroses de defesa. ESB, 2
ª
ed., vol. I,
1987, p. 307.
6
Ibid., p. 316.
7
Ibid., p. 317.
Adriana Cajado Costa
68
do processo pelo qual haverá a alteração do ego e seu possível
distanciamento da realidade. Sintetiza as distinções entre neurose e
psicose na seguinte frase: “a neurose não repudia a realidade, apenas
a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la”
16
.
O sábio vienense prossegue seus estudos sobre a Verleugnung
e, em 1925, com “Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção
Anatômica Entre Os Sexos”, reitera a ocorrência da recusa na psicose.
Introduz o conceito para falar no processo pelo qual a criança passa
ao se dar conta da genitália feminina, e afirma:
“(...) pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de rejeição,
processo que, na vida mental das crianças, não parece incomum nem muito
perigoso, mas num adulto significaria o começo de uma psicose”
17
.
Contudo só em 1927, com o texto “Fetichismo”, Freud
apresentará a distinção entre os conceitos de Verdrängung e
Verleugnung. Ele expressa:
“Se quisermos diferenciar mais nitidamente a vicissitude da idéia como
distinta daquela do afeto, e reservar a palavra Verdrängung (recalque) para
o afeto, então a palavra alemã correta para a vicissitude da idéia seria
Verleugnung (recusa)”
18
.
Entretanto, no “Esboço de Psicanálise (1938)”, especificamente
no capítulo VIII, Freud apresenta uma distinção diferente entre tais
conceitos. O recalque é explicado como defesa contra exigências
pulsionais e a recusa como defesa contra as reivindicações da
realidade externa.
Acredito que a preocupação freudiana se concentra no
processo pelo qual o ego é alterado, se pela Verdrängung ou pela
Verleugnung, é uma questão mais específica. Para ele, a alteração
se justifica em todo o sujeito em maior ou menor proporção, pois “o
aparelho psíquico não tolera o desprazer, tem de desviá-lo a todo
custo, e se a percepção da realidade acarreta desprazer, essa
percepção – isto é, a verdade – deve ser sacrificada”
19
.
16
Id.
17
FREUD, Sigmund (1925). Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica
Entre Os Sexos. ESB, 2
ª
ed., vol. XIX, 1987, pp. 314-315.
18
FREUD, Sigmund (1925). Fetichismo. ESB, 2
ª
ed., vol. XXI, 1987, p. 180.
19
Ibid., p. 270.
Metapsicologia
71
tentativas de cura ou reconstrução.
Como continuação a esse texto, Freud, em A Perda da
Realidade na Neurose e na Psicose (1924)
12
, reafirma as instâncias
em conflito na neurose e na psicose. Na neurose, o ego, em sua
dependência da realidade, suprime um fragmento do id. Na psicose,
acontece algo inverso, o ego, a serviço do id, se afasta de um
fragmento da realidade. No lugar do recalcamento na neurose, ocorre
a Verleugnung (recusa da realidade interna e externa) na psicose.
Simanke (1994)
13
realizou uma garimpagem na obra freudiana
buscando conceituações acerca da psicose. Afirma ser, nesse texto
freudiano de 1924, quando Freud denuncia o conflito do psicótico ao
se relacionar com a realidade, o momento no qual o termo psicose
recebe a marca da psicanálise.
No texto acima referido, Freud tenta explicar os mecanismos
de defesa que ocorrem tanto na neurose quanto na psicose. Procede
a uma intensa comparação e distinção com o objetivo de recortar
com maior êxito as características de cada patologia. Retoma uma
pequena descrição do caso de Elisabeth Von R. Precisamente, o
momento no qual está ao lado do corpo da irmã morta e pensa na
possibilidade de realizar seu amor pelo cunhado. Seu caso é usado
como um exemplo para a distinção do que seria uma resposta
psicótica. Ele salienta:
A reação psicótica teria sido uma rejeição do fato da morte da irmã”
14
.
Com essa frase, Freud afirma o conceito de defesa
“Verleugnung” dirigido à psicose e abre caminho para uma distinção
com a neurose ainda mais reveladora. No desenvolvimento do texto
temos:
A neurose e a psicose diferem uma da outra muito mais em sua primeira
reação introdutória do que na tentativa de reparação que a segue”
15
.
Argumenta, assim, que a diferença da reação do sujeito diante
do evento traumático irá interferir no desfecho defensivo, ao invés
12
FREUD, Sigmund (1924). A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. ESB, 2
ª
ed., vol. XIX, 1987, p. 229.
13
SIMANKE, Richard T. Op. cit.
14
FREUD, Sigmund (1924). Op. cit., p. 230.
15
Ibid., p. 231.
Adriana Cajado Costa
70
Tomei o dicionário de Luiz Alberto Hanns (1996) para pensar
a tradução do conceito de Verleugnung. O autor faz a seguinte
demarcação sobre o uso de quatro mecanismos de defesa
24
, usados
em momentos distintos da obra freudiana, são eles:
a) Verleugnung: negação/recusa – necessita de reedições;
b) Verwerfung
**
: rejeição/forclusão/preclusão – eliminação/
liquidação;
c) Verneinung
***
: negação/denegação/negativa – julgamento
(projeção);
d) Verdrängung: repressão/recalque – desalojar.
Na psicose, a realidade recusada é substituída por uma
realidade alucinatória e, assim, a “realidade psíquica e a externa já
não se distinguem”
25
. Aqui, o que está sendo introduzido por Hanns
é o termo alemão de Freud: Verleugnung. Essa noção, aplicada para
pensar a psicose, e em algumas vezes a perversão, vem falar de
uma recusa da realidade.
Kaufmann, para afirmar o conceito de Verleugnung dirigido
às psicoses, lança mão da teoria freudiana no caso do Homem dos
Lobos para falar de um “mecanismo de recusa da realidade diferente
tanto do recalcamento como da renegação”
26
. A renegação estaria
recobrindo um mecanismo ainda mais primitivo: o da recusa da
24
Cabe ressaltar que o interesse pelo conceito de Verleugnung se insere na
problemática da psicose. Percorrer a trajetória desse conceito em muito auxiliou
na pesquisa e serviu como fio condutor na leitura dos textos de Freud. O uso que
outros autores fizeram dele não será enfocado. Apenas é importante frisar que a
concepção de J. Lacan difere do que se apresenta a partir do dicionário de Hanns.
Lacan liga o conceito de recalque à neurose; a denegação às perversões; e a
forclusão, às psicoses.
**
Verwerfung – desaprovação, deslocação. (TOCHTROP, Leonardo et CARO, Herbert.
Op. cit., p. 526).
***
Verneigung – inclinação, mesura, negação. (Ibid., p. 518).
25
HANNS, Luiz Alberto. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro,
Imago, 1996.
26
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e
Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 1996.
Metapsicologia
73
O tema da divisão do ego ainda é exposto no “Esboço de
Psicanálise (1938)” para falar do fenômeno psicótico. Freud reafirma
seu pensamento quando escreve:
“Duas atitudes psíquicas formaram-se, em vez de uma só delas, a normal,
que leva em conta a realidade, e outra que, sob influência das pulsões,
desliga o ego da realidade. As duas coexistem lado a lado”
20
.
Note-se que Freud está falando da psicose. No texto de 1924
21
temos a conceituação de que o ego, após a Verleugnung, procede a
um movimento autocrático de criação de uma nova realidade, pois a
realidade externa foi recusada.
No texto “A Divisão do Ego no Processo de Defesa (1938)” há
uma reiteração do que é exposto no “Esboço.... Ele expressa:
“O ego deve então decidir reconhecer o perigo real, ceder-lhe passagem e
renunciar à satisfação pulsional, ou rejeitar a realidade e convencer-se
de que não há razão para medo, de maneira a poder conservar a satisfação.
Existe assim um conflito entre a exigência por parte da pulsão e a proibição
por parte da realidade. Ela responde ao conflito por duas reações contrárias,
ambas válidas e eficazes”
22
(grifo meu).
Todo o processo de divisão do ego, descrito por Freud, no
psicótico, recebe a marca da Verleugnung. Tal movimento provoca
uma fenda no ego que, para se manter vivo inicia uma correção da
realidade externa, pela via do delírio, e da realidade interna, pelo
caminho da alucinação. Esta explicação pode ser encontrada no texto
“O Ego e o Id (1923)”.
A relação do sujeito com a realidade, com os objetos que daí
surgem e sua interseção com a percepção, possibilita o encontro
entre o objeto real e o imaginário. De acordo com Freud
23
, seja qual
for o funcionamento psíquico, a relação com a realidade sempre
será marcada por uma distância.
20
FREUD, Sigmund (1938). Esboço de Psicanálise. ESB, 2
ª
ed., vol. XXIII, 1987, pp.
231-232.
21
FREUD, Sigmund (1924). Op. cit.
22
FREUD, Sigmund (1938). A Divisão do Ego no Processo de Defesa. ESB, 2
ª
ed., vol.
XXIII, 1987, p. 309.
23
FREUD, S. (1924). Op. cit.
Adriana Cajado Costa
72
Arthur Bispo do Rosário parece concordar com o criador da
psicanálise. Sua afirmação é a seguinte: “Os doentes mentais são
como beija-flores. Nunca pousam. Estão sempre a dois metros do
chão”
30
. De que distância nos fala Bispo do Rosário? Camille Claudel
também fornece uma frase semelhante quando escreve a seu irmão:
“Há sempre algo de ausente que me perturba”
31
. Parece que a
distância entre eles e a realidade é marcada pelo não-sentido. Poder-
se-ia pensar nos ditados e frases populares, como: “Ponha os pés
no chão!” Essa frase é geralmente dita para as pessoas que estão
fantasiando muito, não percebendo o que está acontecendo na
realidade ao seu redor. Será a essa distância que Bispo se refere?
Certamente, não. A distância que aponta Bispo está inserida numa
incapacidade, numa impossibilidade de perceber o diferente, o outro.
Falta-lhe o sentido de exterioridade. Daí a percepção de uma
distância, de uma não-superfície onde apoiar os pés.
No caso de Camille, apontar para o que falta, reclamar pelo
que está ausente, seria uma busca de sentido contra o vazio, por
uma filiação que a introduzisse numa dimensão histórica, biográfica.
A realidade criada pelo delírio, além de ser o que Freud apontou
como arranjo psíquico em direção à cura, é a busca de significar a
vida, a morte, a existência.
Como já foi salientado, o conceito freudiano Verleugnung
e seus textos de 1924
inauguram e direcionam a pesquisa psicanalítica sobre o
assunto, construindo um terreno fértil para a investigação das
relações do sujeito com a realidade interna e externa. Considero
que a obra de Piera Aulagnier segue na direção freudiana, ampliando
a discussão sobre a clínica das psicoses e contribuindo para o
desenvolvimento do saber psicanalítico.
30
Frase apresentada na exposição Brasil 500 anos, Bienal, sessão Imagens do
Inconsciente.
31
Exposição “Camille Claudel” / Curadoria de Reine-Marie Paris de la Chapelle. - São
Paulo, Pinacoteca do Estado, 1997.
Metapsicologia
75
castração. Aqui o editor faz alusão ao conceito lacaniano de
forclusão
27
. Recorro à parte do texto freudiano que Kaufmann utilizou
e recortou para chegar a essa conclusão:
Afinal, seriam encontradas nele, lado a lado, duas correntes contrárias, das
quais uma abominava a idéia de castração, ao passo que a outra estava
preparada para aceitá-la e consolar-se com a feminilidade, como uma
compensação. Para além de qualquer dúvida, porém, uma terceira corrente,
a mais antiga e profunda, que nem sequer levantaria ainda a questão da
realidade da castração, era ainda capaz de entrar em atividade”
28
.
Apresentei um recorte maior ao exposto por Kaufmann, por
considerar que a citação completa melhor exemplifica a dimensão
do conceito de Verleugnung. Portanto esse conceito remete a um
mecanismo mais arcaico, que estaria ainda ligado às vivências infantis
de crença na existência de pênis na menina, ou melhor, que um
pênis há ainda de crescer na mulher. A equação é todos têm pênis
ou terão. No caso da criança, essa atitude é perfeitamente justificada
e aceitável mas, como afirmou Freud, na vida adulta é preocupante
e denuncia um funcionamento psíquico psicótico.
Na psicose, a Verleugnung (recusa) em aceitar a castração é
a responsável por fazer com que o ego recorra à criação de uma
nova realidade. Freud acrescenta:
“O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da
realidade, contudo, não às expensas de uma restrição do id – como acontece
na neurose às expensas da relação com a realidade – senão de outra maneira,
mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais
as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada”
29
.
27
A consulta aos dicionários se faz necessária para melhor compreensão da tradução
dos conceitos. No que se refere ao conceito lacaniano de forclusão, concordo com
Piera Aulagnier quando diz que “a precocidade da entrada em cena do ‘desejo do
pai’ mostra o erro de muitas teorizações sobre a psicose (e particularmente sobre
a esquizofrenia), nas quais o único lugar deixado para este desejo é sua ‘forclusão’
pela mãe ou sua ausência, o que a experiência clínica não cessa de desmentir. O
desejo do pai tem, no destino do sujeito, um papel muito importante” AULAGNIER,
Piera. (1975). Op. cit., p. 79.
28
FREUD, Sigmund (1918). História de uma neurose infantil. ESB, 2
ª
ed., vol. XVII,
1987, p. 107.
29
FREUD, Sigmund (1924). Op. cit., p. 231.
Adriana Cajado Costa
74
representação). O modo de representação utilizado por cada uma
pode ser pensado como um processo de metabolização próximo
àquele próprio do organismo, que transforma um elemento
heterogêneo em elemento homogêneo à estrutura da instância que
o representou. Portanto sua noção de instância difere das instâncias
psíquicas em Freud que são o id, ego, superego e ideal do ego.
A noção de sujeito compreende a “totalidade das instâncias
presentes no espaço psíquico”
34
. Já sua concepção de Eu difere do
ego freudiano pois a mesma comporta o Édipo parental. O eu é
antecipado, historicizado, historiador e estruturado pela linguagem,
pois é uma “instância constituída pelo discurso”
35
e, portanto, não
comporta a idéia de Id-Ego indiferenciado
36
.
No meu entender, a contribuição de Aulagnier desloca, em
certo aspecto, os estudos psicanalíticos para as questões relacionadas
à identificação e para a noção de Eu. A constituição do sujeito estará
sendo investigada a partir do processo identificatório. A noção de Eu
será empregada de maneira distinta da noção freudiana de ego, o
que acarretará uma teorização mais abrangente.
Cabe ainda ressaltar que o ego freudiano difere do Eu
conceituado por Aulagnier. Em entrevista com Hornstein ela explica
tal diferenciação:
“Para mim, o Eu é uma instância que está diretamente vinculada à linguagem.
Não há lugar na minha concepção metapsicológica para o conceito freudiano
Ego-Id indiferenciado. Nesse sentido, não se pode fazer uma equivalência
entre a maneira como Freud se serve do conceito de Ego e o que eu defini
como Eu. Defini um conceito para mim fundamental que é o Eu antecipado
e não se pode falar de um ego antecipado no discurso materno”
37
.
34
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 61.
35
Ibid., p. 105.
36
HORNSTEIN, Luis. Diálogo con Piera Aulagnier. In: HORNSTEIN, Luis y otros. Cuerpo,
historia, interpretación: Piera Aulagnier – de lo originario ao proyeto identificatorio.
Buenos Aires, Paidós, 1994., p. 369.
37
HORNSTEIN, L. Op. cit., p. 369. “Para mí el yo es una instancia que está directamente
vinculada al lenguaje. No hay lugar en mi concepción metapsicológica para el
concepto freudiano yo-ello indiferenciado. En ese sentido, no se puede hacer una
equivalencia entre la manera como Freud se sirve del concepto de yo (moi) y lo
que he definido como yo. Definí un concepto para mí fundamental que es el yo
antecipado y no se puede hablar de un yo (moi) antecipado en el discurso maternal”.
Metapsicologia
77
A Constituição do Sujeito na Metapsicologia de Piera Aulagnier
A contribuição metapsicológica de Piera Aulagnier à psicanálise
freudiana pode ser considerada um avanço nos estudos psicanalíticos
sobre a clínica das psicoses. A partir de suas reflexões em sua clínica
com sujeitos psicóticos, acrescentou à metapsicologia freudiana um
modo de funcionamento psíquico anterior aos processos primário e
secundário: o processo originário. A formulação teórica do processo
originário fundamenta a criação da técnica da contribuição figurativa.
Nos primeiros momentos de constituição, o sujeito só conhece
do mundo aquilo que o seu porta-voz, sua mãe, comunica-lhe, traduz-
lhe, e o que sua psique pode e consegue metabolizar. É pela voz e
olhar maternos (objetos) que o bebê vai conhecer, por meio dos
seus sentidos correspondentes (zona complementar), o mundo.
Nesse encontro entre objeto-zona complementar, pode ocorrer um
movimento de repulsa ou atração; desse processo resulta a formação
do pictograma. A psique do infans irá metabolizar esses encontros
de acordo com seu modo de funcionamento. Assim que o bebê nasce,
entra em funcionamento o processo originário. Ele é o responsável
pelo modo de representação pictográfica, composta pela união do
objeto com a zona complementar – imagem da coisa corporal – que
sempre irá representar essas informações numa unidade sensorial e
auto-engendrada. Aulagnier a respeito desse processo assim se
expressa:
“(...) corpo e organização sensorial fornecem os modelos somáticos que
esse processo repete nas suas representações”
32
.
De acordo com Aulagnier (1975), no espaço psíquico tem-se
a presença de três modos de funcionamento ou processos: o originário
– que representa toda vivência de encontro por meio de um
pictograma, assim como ele próprio, o primário e o Eu; o primário –
que representa o vivido por meio de uma fantasia, bem como a si
mesmo e o Eu; e o secundário – que representa o vivido por meio
de uma idéia ou enunciado, assim como representa o primário e a si
mesmo. Este último modo rege o funcionamento do Eu.
A autora definiu o termo instância como o “resultado da
reflexão da atividade de cada processo sobre si mesmo”
33
(auto-
32
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 20.
33
AULAGNIER (1975). Op. cit. p. 28.
Adriana Cajado Costa
76
Jacques Lacan (1936) buscou conceituar o que Freud salientou
ser necessário para que uma mudança no aparelho psíquico
ocorresse, a nova ação psíquica. Lacan a complementou com a
formulação de que esse momento narcísico fundamental da
constituição do Eu ideal se dá por meio do estádio do espelho. Esse
ocorre dos seis aos dezoito meses e torna-se algo de extrema
importância.
Lacan
41
compreende esse momento como uma identificação,
isto é, “a transformação produzida no sujeito quando ele assume
uma imagem”
42
. O autor ainda acrescenta:
A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda
mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que
é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar,
numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita
numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação
com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função
de sujeito”
43
.
O autor prossegue sua argumentação frisando que a função
do estádio do espelho é a de configurar uma relação entre “o
organismo e sua realidade – ou, como se costuma dizer, do Innenwelt
com o Umwelt”
44
. A partir da transformação da imagem fragmentada
do corpo para a formação de uma imagem total, o sujeito acede a
um novo estágio que se inicia quando da conclusão do estádio do
espelho, por meio, como afirmou Lacan, de uma dialética
identificatória que “desde então liga-o a situações socialmente
elaboradas”
45
.
Aulagnier confirma sua posição em relação à teorização de
Lacan sobre o estádio do espelho, desde 1963, quando escreve o
texto Observações Sobre A Estrutura Psicótica, época na qual ainda
compartilhava com Lacan suas reflexões sobre a clínica, a teoria e a
instituição psicanalítica. Em 1975, momento esse já marcado pelo
rompimento que se deu em 1969, ela assim se expressa:
41
LACAN, Jacques (1963). O estádio do espelho como formador da função do eu tal
como nos é revelada na experiência psicanalítica. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar,
1998, pp. 96-103.
42
Ibid., p. 97.
43
Id.
44
Ibid., p. 100.
45
Ibid., p. 101.
Metapsicologia
79
O Eu é produto de uma dialética identificatória. Comporta
três condições para sua existência, na medida em que responde ao
“sistema de parentesco, à estrutura lingüística e aos afetos que
provocam efeitos nos discursos e operam uma outra cena”
38
.
Aulagnier ainda define o conceito de Eu a partir do que ele demanda
ou do que outro Eu lhe demanda. Ela assim o resume:
“(...) ele é sucessivamente daquilo que tem, daquilo que dá, daquilo que
cobiça”
39
.
A dimensão deste conceito é resultante de suas teorizações e
interfere significativamente na compreensão dos mecanismos que
estão presentes nas matrizes clínicas que servem de guia na clínica
psicanalítica, principalmente para o analista que se apóia nessa
abordagem.
Em psicanálise existem distinções entre as noções de Eu e
sujeito, mas elas são complementares para o entendimento da psique.
Hornstein, ao realizar um percurso pela obra da autora, sintetiza os
dois referidos conceitos:
“O Eu tem uma organização que o diferencia das outras instâncias. O sujeito
designa, ao contrário, uma dinâmica que vai além da divisão em instâncias.
Não se pode pensar o sujeito sem essa instância fundada na linguagem e no
pensamento que é o Eu. O sujeito é aquilo que subverte não somente a
pretensão do Eu de se igualar ao conjunto da psique, senão também a
possibilidade para o pensamento de se constituir numa organização autônoma
e de não estar submetido mais que a suas próprias leis”
40
.
Aulagnier concebe o modo de funcionamento psíquico como
um processo de metabolização de informações, que cada instância
irá proceder de acordo com a lógica de seu próprio modo de
representar o elemento heterogêneo, de tal maneira que ele se
transforme em um elemento homogêneo à sua estrutura.
38
AULAGNIER (1975). Op. cit., p. 36.
39
AULAGNIER, Piera (1986). Op. cit.
40
HORNSTEIN, Luis. Piera Aulagnier: sus cuestiones fundamentales. In: HORNSTEIN,
Luis y otros. op. cit., p. 21. “El yo tiene una organización que lo diferencia de las
otras instancias. El sujeto designa, en cambio, una dinâmica que desborda la división
en instancias. No se puede plantear el sujeto sin esta instancia fundada sobre el
lenguaje y el pensamiento que es el yo. El sujeto es aquello que subvierte no
solamente la pretensión del yo de igualarse al conjunto de la psique, sino también
la posibilidad para el pensamiento de constituirse en organización autónoma y de
no estar sometido más que a sus propias leyes”.
Adriana Cajado Costa
78
A amplitude do seu conceito de Eu remete à instância
inconsciente. Há um Eu inconsciente responsável por garantir a
repressão de parte da história do sujeito que seja contraditória ao
projeto identificatório, permanecendo inconsciente. O Eu inconsciente
é o “efeito do poder repressor exercido pelo projeto, a despeito dos
enunciados nos quais o Eu sucessivamente se reconheceu e que ele
reprime...
51
.
O Eu é constituído pela linguagem, no decorrer da história
identificatória e libidinal do sujeito. A linguagem é para o homem o
caminho pelo qual ele se inscreve no discurso parental, social e
cultural. É dela que signos são interiorizados para auxiliarem o Eu a
construir representações ideativas do vivido, isto é, aquilo que é
experienciado é transformado numa representação que possa ser
pensada, falada e nomeada.
O discurso materno vai falar de um “antes” do Eu, sua
dimensão identificada, compreendendo-se no discurso materno sobre
esse bebê, como ele foi chamado, como foram nomeadas suas
vivências, quais os sentidos dados ao bebê que ele foi. Essa dimensão
pode ser formulada em termos de investimento ou desinvestimento.
Cabe à dimensão identificante, que se circunscreve no modo pelo
qual ele irá interpretar esse discurso do Outro a seu respeito,
reconhecer e assumir a identificada como fazendo parte de sua
história anterior e, assim, formarem uma unidade. Já o discurso
paterno deve introduzir um tempo novo, o da simbolização.
Para Aulagnier, o Eu é estruturado pela linguagem. O registro
identificatório se compõe da junção de dois campos semânticos que
estão no cerne da linguagem fundamental
52
. São eles: 1) nomeação
dos afetos, atividade pela qual eles se tornam sentimentos dizíveis;
2) nomeação dos lugares simbólicos do sistema de parentesco e seu
lugar relacional na cultura em questão. Daí, o “poder da linguagem
enquanto ato identificatório”
53
.
Uma boa elucidação sobre o conceito de linguagem
fundamental está em Violante (1994):
51
AULAGNIER, P. (1975). Op. cit., p. 160.
52
Aulagnier afirma ter optado por esse termo como uma certa dedicatória a Schreber.
53
AULAGNIER. Op. cit., p. 128.
Metapsicologia
81
A relação do Eu à imagem na qual ele se reconhece e se aliena, surge no
momento definido por Lacan como o estádio do espelho. Encontro decisivo
entre o observador e seu reflexo, mas encontro que só pode adquirir sentido
em referência a este movimento do olhar da criança que, ao descobrir-se no
espelho, volta-se para o olhar da mãe, em busca da confirmação da beleza
da imagem, antes de retornar ao espelho e a seu reflexo especular
46
No texto Demanda e Identificação
47
, o estádio do espelho é
demarcado como o segundo tempo da dialética identificatória,
responsável pela identificação especular ou imaginária.
Porém creio que a explicação fornecida por Violante sobre o
estádio do espelho, como o tempo que inaugura a relação do sujeito
com seu próprio corpo, sintetiza o conceito de maneira mais clara e
objetiva:
“Isto significa que, através do estádio do espelho, a imagem do semelhante
(a mãe) antecipa ao bebê a intuição de sua própria imagem corporal. E a
identificação com a imagem de seu próprio corpo, como uma unidade,
promoverá a organização do Eu”
48
.
Retomando o que já foi exposto, para Aulagnier o Eu é
antecipado, historicizado e estruturado pela linguagem, originando-
se “nos primeiros enunciados produzidos pelo discurso materno”
49
.
Isto significa que o bebê, ao nascer, já foi imaginado e investido
pelos pais e inserido no Édipo parental – portanto não se pode falar
em momento pré-edípico. A constituição dessa instância, segundo a
autora, processa-se a partir de uma dialética identificatória que
comporta dois momentos: o da identificação especular seguido pelo
da identificação simbólica
50
.
46
AULAGNIER, P (1975). Op. cit., p. 166. O último trecho desta citação é uma
referência que a autora faz às palavras de Lacan.
47
AULAGNIER, Piera. Demanda e identificação. Um Intérprete em Busca de Sentido
I. São Paulo, Escuta, 1990, p. 201.
48
VIOLANTE, Maria Lucia V. A criança mal-amada: estudo sobre a potencialidade
melancólica. Rio de Janeiro, Vozes, 1994, p. 90.
49
HORNSTEIN, Luis. Piera Aulagnier: sus cuestiones fundamentales. In: HORNSTEIN,
Luis y otros. op. ct., p. 21. “en los primeros enunciados producidos por el discurso
maternal”.
50
Momentos esses que serão trabalhados mais à frente quando será introduzida a
noção de demanda.
Adriana Cajado Costa
80
Piera Aulagnier considerava-se freudiana. Fez acréscimos à
metapsicologia legada por Freud e deu a ela um arcabouço que nos
permite pensar a psicose. Ao introduzir um novo elemento na
compreensão do funcionamento psíquico, ela o concebe a partir de
uma situação de encontro do indivíduo com o próprio corpo e o meio
psíquico ao seu redor. Esse encontro resulta para a psique num
trabalho de metabolização (representação) que, como já salientado,
compreende: processo originário, que produz representação
pictográfica ou pictograma; processo primário, representação
fantasmática ou fantasia e processo secundário, representação
ideativa ou idéias e enunciados.
O processo originário tem como postulado estrutural o auto-
engendramento e, como resultado da atividade de representação, a
produção do pictograma, que contém representações de si mesmo
(instância pictografante), do primário e do Eu. Seu único material é
o da coisa corporal, indiscriminada, produzida pela atividade
pictográfica caracterizada por ser uma atividade pulsional. Seu
funcionamento se dá por meio da repetição infindável de uma cena
imutável e originária. Representa apenas o prazer e o desprazer
oriundos das vivências sensoriais de encontro; o pictograma nunca
invade o espaço do Eu e jamais o Eu terá conhecimento dele. Confira-
se o conceito de originário em Aulagnier:
“(...) testemunho da perenidade de uma atividade de representação que
usa um pictograma, que ignora a imagem de palavra e tem como material
exclusivo a imagem da coisa corporal”
58
.
Essa noção de originário, proposta em sua obra de 1975
dedicada à construção de sua metapsicologia, é rica e exemplifica o
material que vem metabolizar esse primeiro modo de funcionamento
ou processo psíquico. Contudo, a conceituação trabalhada no artigo
Nacimiento de un cuerpo, origen de una historia (1986), no caso
desta pesquisa, permitiu maior entendimento e visualização da
atividade desse processo, haja vista que a inovação técnica da
contribuição figurativa fundamenta-se nesse conceito a partir da
escuta de sujeitos psicóticos. Ela assim o define:
58
AULAGNIER (1975). Op. cit. p. 20.
Metapsicologia
83
“Num primeiro momento da vida, ainda que haja precedência da voz materna,
o porta-voz, o discurso dos pais, ao falar da criança, para a criança e pela
criança, veicula seu desejo pelo filho e o desejo que liga o casal parental.
Tais enunciados servem de emblemas identificatórios primários para a criança.
É sobre esta base que se apóia a linguagem fundamental. Para além de
propiciar a nomeação dos afetos e a significação dos termos do sistema de
parentesco, ela vem propiciar à criança a identificação com um lugar numa
rede de relações”
54
.
Mauro Meiches
55
acresce a essa reflexão um pensar trágico
acerca da constituição do sujeito e de sua utilização da linguagem.
Trazendo algumas palavras de Alfredo Naffah, ele ressalta o caráter
ambíguo, a impossibilidade da linguagem nomear tudo, como, por
exemplo, o afeto, pois “a transmutação para a forma da linguagem,
daquilo que supostamente era natureza sem verbo, será a mais
trágica delas”
56
.
Nessa gama de possibilidades de que dispõe a dinâmica própria
à linguagem, Meiches salienta o lugar fixo do delírio, de uma certeza
que nunca permite trocas. Ele escreve:
A adesão exclusiva a um sentido poderia ser a tradução de uma forma
sintomática que, em seu grau máximo, forma um delírio sistemático de
sentido único”
57
.
Sentido único, pois que o texto em branco sobre um tempo
anterior da história desse sujeito não permite que circule uma
polissemia de sentidos para os significantes que são apresentados.
A conceituação freudiana sobre a psicose é firmada no conflito
psíquico entre o ego e a realidade. Já Aulagnier (1984) afirma que o
conflito é identificatório, no caso da psicose, ocorre no interior do
Eu, entre suas dimensões identificada e identificante. Seria no
advento do Eu (estádio do espelho) que teríamos a origem da psicose,
mesmo que a autora admita que a psicose é o resultado de vários
acidentes de percurso durante a constituição psíquica do sujeito na
infância.
54
VIOLANTE, Maria Lucia V(1994). Op. cit., p. 105.
55
MEICHES, M. P. A travessia do trágico em análise. São Paulo, Casa do Psicólogo,
2000, pp. 74-87.
56
Ibid., p. 77.
57
Ibid., p. 78.
Adriana Cajado Costa
82
O reconhecimento de um espaço separado de si se dá pela
obra do processo primário que representa tal informação numa
fantasia. Seu postulado é o de atribuir a causalidade do vivido à
onipotência do desejo do Outro. Capaz de representar a alternância
presença-ausência materna, produz a representação de coisa que
se configura cenicamente numa composição de três elementos: o
fantasiante, a mãe e o outro sem seio (pai). Ainda nesse processo,
abre-se um segundo momento, no qual a representação de palavra
se produz enquanto significação primária de um desejo e diferenciada
do signo lingüístico.
O processo primário, tal qual definido por Aulagnier (1975),
diferencia-se do freudiano apenas no que tange a esse segundo
momento no qual haveria a presença de uma imagem-de-palavra
distinta do signo lingüístico. Nessa definição, a autora defende que
nesse processo já existem protótipos do secundário que “(...) se
referem à realidade, ao Eu, à castração e ao complexo de Édipo”
64
.
O protótipo da castração está presente no processo primário
e configura-se antes da imagem-de-palavra advir no secundário. A
angústia de mutilação oriunda da atividade do processo originário é
vivenciada de acordo com o modo de funcionamento que lhe é próprio,
ou seja: vive como auto-engendrado o que lhe ocorre. Esta precede
a angústia de amputação própria à atividade do primário, que se
circunscreve numa angústia de perder a autonomia de sentir prazer
e posteriormente de pensar. A angústia de castração está vinculada
ao processo secundário, propriamente edípico quando já temos um
Eu constituído.
O processo secundário atribui uma causa inteligível a tudo
que é vivido pelo sujeito. Espaço no qual o Eu se constitui, ele é
responsável pelo que é pensável e dizível. Ao entrar em
funcionamento, permite ao sujeito atribuir sentido ao mundo,
erguendo os pilares que dão sustentação à capacidade de significação.
Sua finalidade é a de construir uma imagem da realidade que seja
coerente à sua estrutura, ou seja, metabolizando as informações de
forma que se possa nomear, pensar e investir nessas mesmas
informações.
64
AULAGNIER (1975). Op. cit. p. 74.
Metapsicologia
85
“O processo originário não conhece do mundo mais do que seus efeitos
sobre o corpo, assim como não conhece dessa vida somática além das
conseqüências de sua ressonância natural e constante com os movimentos
de investimento e desinvestimento que significam a vida psíquica”
59
.
Essa técnica foi desenvolvida por Aulagnier a partir dos seus
atendimentos a sujeitos psicóticos. Está diretamente vinculada com
a primeira forma do aparelho psíquico funcionar, que ela denomina
de processo originário. O postulado que rege esse processo é o do
auto-engendramento, excluindo qualquer referência a uma
exterioridade.
Inspirada em Freud para pensar sua técnica, ela busca na
interpretação dos sonhos aquilo que Freud pontua como exigência
de figurabilidade. A partir daí, assume a contribuição figurativa como
a “injunção mais drástica de nossa prática”
60
. Porém necessária no
caso do sujeito psicótico, pois:
“(...) por não operar essa ligação entre as imagens de palavras (aquelas
que pensamos-pronunciamos) e as imagens de coisas dotadas de uma
qualidade efetiva particular, por não tornar uma ligação operante para o
sujeito, nada de essencial será transformável em sua economia libidinal”
61
.
A técnica da contribuição figurativa é salutar no
desenvolvimento da análise de um sujeito que possua um modo de
funcionamento psíquico psicótico. Violante (2001)
62
fornece,
resumidamente, uma excelente explicação desta técnica ao escrever:
“(...) no registro da psicose, muitas vezes o analista deve relevar a exigência
de figurabilidade em suas interpretações. Isto implica encontrar palavras
que tornem figuráveis para o Eu as representações de coisas e composições
picturais, de modo a desembaraçar os efeitos dos afetos como inveja, fusão,
ódio e raiva, operando a ligação entre as imagens de palavras e as imagens
de coisas”
63
.
59
“El proceso originario no conoce del mundo más que sus efectos sobre el soma, así
como no conoce de esta vida somática más que las consecuencias de su resonancia
natural y constante com los movimientos de investidura y desinvestidura que signam
la vida psíquica” (Aulagnier, 1986; 145).
60
AULAGNIER, Piera (1980). Da linguagem pictural à linguagem do intérprete. Um
intérprete em busca de sentido II(1986). São Paulo: Escuta, 1990, p. 94.
61
Ibid., p. 95.
62
VIOLANTE, Maria Lucia V (2001). Op. cit.
63
Ibid., p. 166.
Adriana Cajado Costa
84
“O que dará à identificação pré-genital seu estatuto específico, diferenciando-
o da identificação primária, é que a partir desse primeiro enunciado ‘eu é
isso’, o ‘isso’ não aliena mais de modo direto o enunciante no campo do
Outro (Eu não é mais nem o seio, nem a mãe), mas se mediatiza graças ao
objeto, que chamamos objeto de demanda (e que, todavia, recobre o campo
do objeto parcial sem reduzir-se a isso)”
72
.
A identificação imaginária ou especular – “encontro entre um
olhar e um visto identificado por aquele que olha como idêntico a si
mesmo”, instaura o registro imaginário como “o lugar das
identificações do ego”
73
, lugar que porta o “primeiro emblema
identificatório” – corresponde às demandas pré-genitais. Configura-
se como o segundo tempo (T1) da dialética identificatória. Está-se
no momento do estádio do espelho que desemboca no advento do
Eu, momento esse que torna o sujeito capaz de se assumir como Eu
ideal diferenciado do Eu materno.
O tempo para compreender é o “ponto de passagem entre a
identificação pré-genital e a pós-edipiana”
74
. Após esse momento,
temos o tempo para concluir (T2) que corresponde às demandas
pós-edípicas, ou seja, de ideais dirigidos a si mesmo. A essa demanda
corresponde a identificação ao projeto. A assunção da castração
marca o ponto de remodelagem do Eu, permitindo ao sujeito construir
um projeto identificatório, que sempre aponta para o futuro, pois
possibilita ao sujeito entrar no registro da temporalidade. O projeto
identificatório assemelha-se ao que Freud denominou de ideal do
ego. Tem-se, para melhor compreensão, a definição de projeto em
Aulagnier:
“O projeto é aquilo que na cena da consciência, se manifesta como efeito de
mecanismos inconscientes próprios da identificação; representa, a cada
etapa, o compromisso ‘em ato’”
75
.
Normalmente, o estabelecimento de um projeto identificatório
assegura ao sujeito sua entrada no mundo das significações
partilhadas, dos ideais, da temporalidade, da autonomia no pensar
e no falar. Assegura-lhe um discurso compartilhável com os outros
sujeitos. Assegura-lhe, também, estar de acordo com as leis de sua
72
Ibid., p. 204.
73
Ibid., p. 201.
74
Ibid., p. 196.
75
Ibid., p. 214.
Metapsicologia
87
Todo esse processo de constituição do Eu articula demanda e
identificação. A demanda primária é responsável por circular um
pedido e uma oferta, ou melhor, “a demanda se pretende não apenas
resposta à nossa oferta mas igualmente oferta a nos situar em posição
de demandante”
65
.
O processo identificatório se dá por um movimento dialético
no qual Aulagnier destaca três tempos: a identificação primária, a
identificação especular ou imaginária e a identificação simbólica.
À demanda primária corresponde o nascimento do bebê (T0).
Nesse tempo, ele apenas demanda o desejo materno, demanda libido.
Aulagnier resume esse momento com a seguinte fórmula: “A mãe
deseja que o infans demande e o infans demanda que a mãe
deseje”
66
. A identificação primária – “manifestação inaugural da
atividade psíquica”
67
– resulta dessa demanda, constituindo-se numa
primeira introjeção de “um significante de um desejo heterogêneo,
metabolizado como substância própria”
68
. A partir daí haverá “a
primeira ‘nominação’ dos objetos de desejo, primeira série de
significações das quais [o infans] pode dispor”
69
.
Será somente nesse momento que haverá a coincidência entre
demanda e desejo. O bebê, então, ao visar o desejo materno, só
pode demandar a si mesmo “ser resposta em conformidade com a
oferta”. Nessa coincidência entre demanda e desejo, o seio vira
suporte do desejo materno e da demanda do bebê, assumindo uma
dupla função: ser matriz da identificação significante e da identificação
pré-especular
70
.
Quando o seio se torna suporte do desejo materno e da
demanda do bebê, ele se torna objeto. As demandas pré-genitais
são demandas de objeto dirigida ao Outro, objetos que são
significantes do dom materno. Tais objetos têm “como principal função
tapar um buraco na linguagem”
71
. A importância da mediação do
objeto na relação com o Outro é dada por Aulagnier quando expressa:
65
AULAGNIER, Piera (1986). Op. cit., p. 190 e 196.
66
Ibid., p. 197.
67
Ibid., p. 196.
68
Ibid., p. 198.
69
Id.
70
Ibid., p. 201.
71
Ibid., p. 207.
Adriana Cajado Costa
86
ASPECTOS DA PSICOPATOLOGIA
O FENÔMENO PSICÓTICO
Piera Aulagnier, com formação médica e eminente psicanalista,
dedicou-se ao estudo do fenômeno psicótico e suas manifestações,
contribuindo, como já foi mencionado, para o avanço da psicanálise
na clínica das psicoses. Com uma vasta experiência no atendimento
a sujeitos sofrentes de um conflito psicótico, exercia sua escuta no
espaço institucional e no consultório particular, chegando a escutar,
não só o sujeito, mas igualmente seus familiares.
Suas reflexões culminaram numa firme teorização sobre o
fenômeno psicótico, afetando também os conceitos metapsicológicos,
como exposto no capítulo anterior. Introduz o conceito de
potencialidade no pensamento psicanalítico definindo-o, inicialmente,
como uma disposição psíquica. Posteriormente, em 1984, amplia-o:
“O conceito de potencialidade engloba os “possíveis” do funcionamento do
eu e de suas posições identificatórias, uma vez terminada a infância”
1
.
Diante dessa definição, tem-se que a potencialidade pode
assumir três formas distintas: neurótica, psicótica e polimorfa. Cada
uma delas recorre a diversos tipos de defesa contra o conflito
identificatório. A potencialidade neurótica é concebida como um
conflito identificatório entre o Eu e seus ideais. Na polimorfa, o conflito
é misto porque se dá no interior do Eu e entre o Eu e seus ideais. A
1
AULAGNIER, Piera (1984). O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro: do discurso
identificante ao discurso delirante. São Paulo, Escuta, 1989, p. 228.
cultura. Veremos que será isso que faltará ao sujeito psicótico.
No caso das psicoses, a identificação ao projeto, o terceiro
momento da dialética identificatória, é impossibilitada. Então, o que
não é alcançado pelo psicótico é a possibilidade de se pensar
separado, autônomo e portador da capacidade de realizar escolhas
de ideais que apontam para um futuro, para a temporalidade, quando
o Eu será diferente do que é e do que foi. Ideais esses que, para se
constituírem enquanto tais, se “liberam da onipotência e [...] implicam
a aceitação da castração no registro identificatório”
76
. Aqui estamos
no terreno da simbolização. No registro do pensamento, a dúvida
equivale à castração. É nesse sentido que o funcionamento do Eu
psicótico encontra-se fraturado, resultando na certeza delirante.
Pode-se pensar que a organização psicótica é composta por
um prisma que denuncia fraturas ocorridas na identificação primária
e especular, aliadas a um fundo representativo próprio ao originário
que produziu pictogramas de rejeição, ocasionando para o Eu psicótico
uma vivência dos seus efeitos, dentre os quais posso destacar a
angústia de mutilação e, posteriormente, de amputação, presentes
nos delírios e alucinações.
76
Ibid., p. 89.
Adriana Cajado Costa
88
“(...) uma interpretação única e exaustiva que recobre toda experiência
carregada de afeto e, portanto, significativa: o que escapa ao domínio desta
interpretação única será desinvestido e ignorado pelo sujeito e por seu
discurso”
4
.
As dimensões identificada e identificante, após o advento do
Eu, devem formar uma unidade. O registro psicótico caracteriza-se
justamente pela impossibilidade de tal unificação devido ao conflito
identificatório entre ambas. O funcionamento psíquico nesse registro
pode manter-se como potencialidade psicótica ou manifestar-se por
meio do delírio, de alucinações e atuações que irão denunciar não
mais uma potencialidade, mas uma psicose.
Mas há um momento anterior a esses dois, quando o bebê
ainda não nasceu, no qual a ação antecipatória está em pleno
funcionamento, trazendo no discurso materno a marca de sua história
edípica e de sua própria repressão.
Piera Aulagnier sustenta a importância dos cuidados maternos
na constituição do sujeito psíquico e do funcionamento do Eu. Ela
afirma:
“De maneira geral, o termo mãe vai, a partir de então, se referir a um
sujeito em quem supomos presentes as seguintes características: a repressão
bem realizada de sua própria sexualidade infantil; um sentimento de amor
dedicado à criança; seu acordo com o essencial do que o discurso cultural
do seu meio diz sobre a função materna; a presença, a seu lado, de um pai
da criança, a quem ela dedica sentimentos positivos”
5
.
A autora ainda confirma a existência de um tipo de pólo de
atração na psique do bebê, formado pelo recalcado materno, que
lhe é transmitido. Tal transmissão assegura a estruturação do Eu
pela via identificatória intermediada pelo discurso.
O discurso materno que pré-investe o bebê e o antecipa, no
momento de seu nascimento, transforma-se na sombra falada
ancorada, ou melhor, projetada sobre o corpo do bebê, sendo o
ponto de referência ao qual a palavra da mãe se remeterá,
aguardando por uma “confirmação da identidade da sombra”
6
.
4
Ibid., p. 178.
5
Ibid., p. 110.
6
Id.
Aspectos da Psicopatologia
91
perversão, certas somatizações, a toxicomania e as relações
passionais ou alienantes são manifestações desta potencialidade. Já
na potencialidade psicótica, o conflito identificatório ocorre no interior
do Eu, entre as dimensões identificada e identificante.
Conforme já referido anteriormente, a dimensão identificada
é constituída pelo discurso materno sobre o Eu e que faz referência
ao sujeito. É tudo aquilo que fez parte de sua história passada,
portanto, faz parte daquilo que permanece; trata-se dos primeiros
enunciados emitidos pelo porta-voz (a mãe), assumindo uma função
identificatória, transformando-se para o sujeito em um ponto de
ancoragem, alicerçado nos pontos de certeza – “lembrança do
realizado e do realizável”. Serão esses pontos de certeza os
responsáveis por inaugurar e preservar a identificação simbólica. A
dimensão identificante forma-se quando o Eu se assume
(jubilosamente ou não), no estádio do espelho, a partir do qual
pode continuar a contar sua história, mantendo ou reformulando o
discurso do Eu sobre o Eu, a partir do discurso do representante dos
outros (o pai). Para tanto, deve ser capaz de reconhecer aquilo que
muda, estabelecendo a prova da dúvida, que “exige que se reconheça
a impossível fixidez do que vive, sente e sofre o Eu”
2
. Essa dimensão
tem a função de assumir e investir no identificado, o que garante a
identificação especular e, depois, a simbólica.
O conceito de potencialidade psicótica é definido por Aulagnier
como:
“(...) organização da psique que pode não produzir sintomas manifestos,
mas que mostra, a cada vez que podemos analisá-la, a presença de um
pensamento delirante primário enquistado e não reprimido”
3
.
O enquistamento permite que o sujeito se relacione com o
mundo de maneira aparentemente normal. Conforme salienta
Aulagnier, o pensamento delirante primário vem afirmar como
verdadeiro um postulado do discurso materno que é falso, e, para
exercer essa afirmativa, no caso da vivência esquizofrênica, torna-
se, de acordo com a autora:
2
Ibid., p. 23. Ver também: AULAGNIER, Piera. Os dois princípios do funcionamento
identificatório: permanência e mudança. Um Intérprete em Busca de Sentido II.
São Paulo, Escuta, 1990.
3
AULAGNIER, Piera (1975). A Violência da interpretação: do pictograma ao enunciado.
Rio de Janeiro, Imago, 1979, p. 177.
Adriana Cajado Costa
90
origem da criança: momento que provaria que, ao abandonar seu corpo, a
criança ‘abandonou’ também o passado materno; momento que, na sucessão
temporal, representa um ponto de partida, em função do qual se organizará
um novo tempo, que nenhum indivíduo pode fazer retroceder”
10
.
De acordo com Aulagnier, a inexistência de um desejo materno
referido ao sujeito no sentido de sua singularidade caracteriza e
propõe um destino esquizofrênico
11
para o sujeito. A existência do
Eu está vinculada aos investimentos do identificante no identificado
atual e em sua transformação – devenir – sendo a garantia da sua
auto-antecipação. Na psicose, não há aspiração identificatória
12
. A
dimensão identificante não pode assumir, e por isso investir, na
dimensão identificada do seu Eu. Isto resulta numa incapacidade do
sujeito de investir no Eu presente, assim como no Eu futuro – num
projeto identificatório. O delírio vem tentar tamponar o buraco
deixado na sua história, pois algo não-dito pelo discurso dos pais
leva o sujeito à impossibilidade de atribuir sua origem a um desejo
compartilhado pelo casal parental.
Destarte, a busca por dar sentido à origem torna-se o centro
de preocupação e de investimento do Eu. O conteúdo do delírio
pode auxiliar o analista a pensar uma gama de sentidos dos quais o
sujeito poderá vir a se apropriar.
A respeito desse tema Aulagnier discorre em diversos
momentos de sua obra. Em A Violência da Interpretação (1975), no
capítulo dedicado à potencialidade psicótica, a autora pontua:
“Designamos pelos termos de esquizofrenia e paranóia dois modos de
representação que, sob certas condições, o Eu forja de sua relação ao mundo,
construções que têm como traço comum o fundarem-se em um enunciado
sobre as origens, que substitui aquele que é partilhado pelo conjunto dos
outros sujeitos”
13
.
São funções do Eu pensar e investir. Tais funções estão, nas
patologias, em menor ou maior grau, obstaculizadas nas relações
do Eu consigo mesmo, com os outros e com a realidade.
10
Ibid., p. 185.
11
Ibid., pp. 173-225.
12
AULAGNIER, Piera (1979). Os destinos do prazer: alienação, amor, paixão. Rio de
Janeiro, Imago, 1985.
13
Ibid., pp. 176-77.
Aspectos da Psicopatologia
93
A sombra, portanto, é constituída por enunciados que falam
do desejo materno em relação à criança. Nas palavras de Aulagnier,
a sombra é “aquilo que, do objeto impossível e interditado deste
desejo, pode transformar-se em dizível e lícito”
7
.
A sombra falada abriga “tudo o que, no discurso materno,
fala a linguagem da libido e do amor” é por isso que “o conjunto do
discurso da sombra pode ser colocado sob a rubrica dos desejos”.
Resumidamente, o conceito de sombra falada se constitui
como uma “sombra projetada sobre o corpo do infans pelo discurso
materno, que se torna a sombra falante de um solilóquio a duas
vozes, executado pela mãe”
8
. Sua função é a de preservar a mãe do
retorno do recalcado.
No caso da psicose, “a sombra falada não antecipa o sujeito,
ela o projeta regressivamente neste lugar que o porta-voz já ocupou
num tempo passado”. Daí decorre que o sujeito é aprisionado num
discurso que o impede de ter acesso ao universo de significações
compartilháveis da cultura na qual está inserido, ao sentido de tempo
e à sua própria história. Ao vir ocupar um mesmo lugar, o sujeito
psicótico fica impedido de olhar, ver, escutar, perceber a existência
do novo, do diferente, da dúvida e do tempo.
Ao projetar uma sombra com tais conteúdos, a mãe falha, de
um determinado modo, no que a caracteriza como mãe; ela pode
nunca desejar ter um filho, mas pode ter um desejo de maternidade
o que é a “negação de um desejo pela criança”. Nesse intercurso, a
mãe ao invés de transmitir um desejo de ter filhos o substitui por
um “dever de identidade”, ou seja, “o que é desejado se refere ao
registro do retorno e do mesmo. (...) a identidade e a transmissão
de uma função simbólica é substituída por um dever de identidade”
9
.
A seguir tem-se a definição deste desejo de maternidade que difere
do de ter filhos:
“(...) desejo de maternidade pelo qual se exprime o desejo de reviver, em
posição invertida, uma relação primária com a mãe, desejo que excluirá do
registro dos investimentos maternos tudo o que se refere ao momento de
7
Ibid., p. 113.
8
Ibid., p. 111.
9
Ibid., p. 191.
Adriana Cajado Costa
92
as produções do psicótico apóia-se num entendimento de que tais
construções abrigam uma “ordem causal contraditória à lógica
segundo a qual funciona o discurso do meio”
19
.
“Para que a potencialidade psicótica não desemboque no delírio manifesto,
é preciso que o discurso e o Eu encontrem um ponto de ancoragem possível
na voz de um Outro e não mais dos outros, e que este tenha a função que o
texto desempenha para os outros”
20
.
A permanência do sujeito na potencialidade é firmada na
idealização de um outro possuidor de um poder de vida e de morte
do sujeito. Ao mesmo tempo que a ancoragem se dá por meio de
um suporte no Outro, tudo o que é vivido é experimentado como
sendo desejo desse Outro. A partir daí, abre-se caminho para a
construção do objeto persecutório.
Contudo, será a permanência na potencialidade o melhor
caminho para o sujeito psicótico. A potencialidade permite que o
pensamento delirante primário permaneça enquistado, resultando
para o sujeito, de acordo com Aulagnier, na possibilidade de viver
uma vida aparentemente normal.
O sujeito psicótico se define pela manifestação de um
funcionamento do Eu responsável pela criação de uma nova
significação sobre a história das origens e de sua origem. Esta nova
significação não vem ocupar o lugar de uma outra e sim preencher
um vazio, os brancos no texto da história do sujeito. Aulagnier
acredita que o Eu na psicose é:
“(...) o artesão de uma reorganização da relação que ele terá que manter
com os dois outros processos, co-presentes no seu próprio espaço psíquico
e com os discursos do representante do Outro e do representante dos
outros”
21
.
Essa reorganização realizada pelo Eu do psicótico é
responsável pela construção do delírio. Criação que tem a função de
garantir ao sujeito sua entrada no universo da significação, fazendo
surgir sentido onde não existia, devido à ausência de um enunciado,
ou mesmo de sua presença mortífera, por intermédio do pensamento
19
Ibid., p. 177.
20
Ibid., p. 213.
21
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 178.
Aspectos da Psicopatologia
95
No que se refere ao conceito de realidade, Aulagnier o define
como “o conjunto das definições sobre ela formuladas, pelo discurso
cultural”
14
. Posteriormente acrescenta, em Os Destinos do Prazer
(1979)
15
, a discussão sobre o que seria para o sujeito dar-se conta
da existência de uma realidade exterior. Conclui que isto resultaria,
para ele, na capacidade de fazer uso de um dispositivo, a prova da
realidade, habilitando-o a “separar objeto real e objeto mnêmico” e,
principalmente, fazendo com que esse mesmo sujeito “interiorize e
partilhe com o grupo uma mesma concepção do lícito e do interditado
e, em parte, do permitido e do proibido”
16
.
No caso das psicoses, agora retomando sua obra de 1975,
conclui que, no momento em que o Eu forja um enunciado sobre as
origens que substitui aquele que é partilhado pelos outros sujeitos,
sua relação com a realidade é prejudicada. Para ela:
“(...) pensar a realidade é dever pensar uma realidade que só podemos
acreditar como tal na medida em que ela é também a realidade dos outros.
A dura necessidade do pensamento, seu risco essencial, é de não poder
escapar à busca de certeza e de não poder ser ‘auto-avalista’ exaustivo e
exclusivo de sua própria verdade”
17
.
Aulagnier entende a potencialidade psicótica como o preço
pago pelo sujeito por assumir um compromisso identificatório que
se torna suporte identificatório não desidealizado e, por isso,
idealizado e idealizante. A autora salienta: “Apesar da importância
do preço pago, contanto que esse compromisso seja preservado,
não haverá psicose manifesta”
18
.
Ainda afirma que a potencialidade psicótica se manifesta
quando não há mais um Outro a corresponder aos sentidos do sujeito.
A potencialidade (qualquer que seja) não se estabelece no autismo
e quando a psicose eclode na infância. O qualificativo delirante para
14
AULAGNIER, Piera (1975). A Violência da interpretação: do pictograma ao enunciado.
Rio de Janeiro, Imago, 1979, p. 29.
15
AULAGNIER, Piera (1979). Os destinos do prazer. Rio de Janeiro, Imago, 1995, pp.
121-128.
16
Ibid., p. 124.
17
Ibid.
18
AULAGNIER, Piera. Os dois princípios do funcionamento identificatório: permanência
e mudança. Um Intérprete em Busca de Sentido II. São Paulo, Escuta, 1990, p.
191.
Adriana Cajado Costa
94
A falta de reconhecimento, pelo porta-voz, de uma
singularidade no infans impede à criança o acesso conciliável com a
história do desejo ou do ódio que circularam no momento de sua
chegada ao mundo. Contrariamente ao psicótico, o neurótico criará
uma teoria infantil da sexualidade; no caso do primeiro, isto não
será possível e, ao invés disso, teremos a teoria delirante primária
focalizada na temática da origem.
“Graças à presença do pensamento delirante primário, concebido como um
enunciado que preenche um buraco do discurso, poderá elaborar-se uma
teoria sobre a origem que chamaremos a teoria delirante primária”
25
.
Essa teoria é resultado de um pensamento delirante primário
que interpreta a violência materna como causada por algo diferente
da mãe e com isso mantendo-a como “suporte libidinal necessário”.
“(...) interpretação que liga a origem a uma causa incompatível aos modelos
segundo os quais o meio funciona”
26
.
Por isso, esse pensamento não faz referência ao sistema
cultural e de parentesco, como fazem as crianças neuróticas em
relação ao romance familiar. Fantasias que fazem parte da teoria
infantil acerca da origem.
Em vários momentos da obra dessa psicanalista pode-se
encontrar uma teorização acerca do conteúdo do delírio e da função
da criação psicótica. No momento no qual o sujeito não reconhece
sua história passada, tributária dessa dimensão identificada não
assumida pelo sujeito, está-se diante de um conflito entre o que se
pensa ser e o que se foi, o que gera um buraco na história do sujeito,
pois uma parte está em branco, e é justamente essa que o psicótico
delira, na tentativa de construí-la. Daí a face terapêutica, ou de
“cura” do Eu, ao produzir o delírio.
O Eu do psicótico, ao iniciar o movimento de preenchimento
dos brancos na trajetória identificatória do sujeito, recorre a eventos
de sua história e de sua realidade, pois ele não tira do nada o que
delira, o que cria. Certamente, essa criação não é compartilhável
com os outros.
25
Ibid., p. 201.
26
Ibid., p. 204.
Aspectos da Psicopatologia
97
delirante primário.
Os sujeitos psicóticos, em sua maioria, deliram sua origem,
buscam construir uma história sobre seu passado. Em Observações
Sobre A Estrutura Psicótica (1963)
22
, como já mencionado
anteriormente, Aulagnier afirma que “(...) são tão freqüentes no
delírio os temas ligados a uma espécie de pré-história mítica, espécie
de reconstrução delirante das origens do mundo, como se, por não
poder encontrar seu lugar numa história familiar, o psicótico
procurasse um sentido para seu ser num início que – porque anterior
a toda história humana – ser-lhe-ia o único permitido e acessível”.
Quando no discurso materno ou parental o falar sobre a origem
desse sujeito – se foi desejado ou não, se foi amado, se veio ocupar
um lugar de amor ou de ódio na cena familiar – é faltoso de desejo
por um novo ser, único e autônomo e das nomeações dos elementos
que ocupam o sistema de parentesco, é formada uma lacuna na
linguagem fundamental. A autora ainda pontua que, geralmente, há
uma história de ódio entre o casal parental, ou foi assim que o
paranóico interpretou os sentimentos oriundos dessa relação. O Eu
recorrerá a uma interpretação dessa violência secundária. Violência
essa que se caracteriza por um excesso do porta-voz (mãe) que
decreta para a criança “só pensar o que já foi pensado por ela”
23
.
O conceito de violência em Aulagnier designa o fenômeno
que separa o espaço psíquico da mãe, no qual já ocorreu a repressão,
e o do bebê. Configura-se numa primeira violação do espaço psíquico
do infans. Diferencia esse fenômeno desdobrando-o em violência
primária, necessária ao desenvolvimento psíquico do bebê, e a
violência secundária, essa sim, desnecessária e nociva à constituição
do psiquismo. A autora pontua:
A violência secundária abre seu caminho apoiando-se sobre a violência
primária, da qual ela representa um excesso, excesso quase sempre nocivo
e desnecessário ao funcionamento do Eu”
24
.
22
É importante notar que Aulagnier até esse momento ainda não se havia desligado
de J. Lacan. Após a ruptura ela preferiu, ao falar em estrutura, usar o termo
potencialidade no sentido de disposição psíquica. Esse artigo se encontra In Um
Intérprete em Busca de Sentido-II. Op. cit., p. 13.
23
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 194.
24
Ibid., p. 36.
Adriana Cajado Costa
96
Maria, muito sorridente e amável, senta-se e começa a contar
sua história. Afirma que descobriu a causa de sua perturbação e
de seu sofrimento, o qual remonta a sua infância. Inicia um relato
longo e denso. Diz que tudo começou quando as amebas (vermes)
foram colocadas em seu ventre por invenção do bicho
demônio. Retifica e diz: “Na verdade, as amebas já estão desde
muito tempo na minha família, vem da minha avó que passou
para minha mãe e para mim e eu passei para meu primeiro
filho, esse que está aí fora é frade e foi salvo. Minha avó era
perturbada por elas. Elas ficam na barriga depois vão para o cérebro
e deixam o cérebro da gente assim com uma secreção. É por isso
que eu nunca consegui amar meus filhos, meu esposo, por que essa
bobagem de que a gente ama com o coração é mentira, a gente
ama é com o cérebro. Minha mãe não me ensinou nada, eu
não sabia cuidar deles (dos filhos), não sabia que tinha que dar o
peito, que tinha que alimentar eles de vez em quando. Eles foram
internados bebezinhos por que eu deixava eles chorando e ia dormir.
Eu não tenho isso que o povo chama de maternidade. Larguei eles
sozinhos em casa e fui para Fortaleza procurar um remédio para
acabar com essas amebas. Meu problema não é homem, eu nem
gosto de sexo, tenho até nojo daquilo. Eu sou assim por que as
amebas tomaram conta de tudo, elas que me fizeram ser assim.
Querida, se você tivesse uma fórmula mágica e pudesse voltar o
tempo quando eu tinha 7 anos, eu iria dizer para minha mãe me
dar remédio para acabar com essas amebas, aí tudo seria
diferente e eu seria outra pessoa” .
Ao construir sua história a partir dos efeitos que as amebas
produzem no seu corpo, na sua psique e, principalmente, depositar
nelas uma transmissão hereditária pela via das mulheres de sua
família, pois em nenhum momento Maria fala de qualquer figura
masculina responsável por essa transmissão, ela, segundo Aulagnier,
“remodela a realidade de um escutado”
31
do discurso materno:
“Não será jamais no campo da representação fantasmática que
encontraremos qualquer traço específico da psicose, mas encontra-lo-emos
nas conseqüências do encontro da representação fantasmática com o
significado que o discurso materno lhe atribuiu”
32
.
31
Ibid., p. 189.
32
Id.
Aspectos da Psicopatologia
99
A partir daí o Eu estará funcionando com uma fratura
provocada pelo vazio na história sobre sua origem, sobre o tempo
passado, o que impedirá um investimento no tempo futuro. Para
Aulagnier, “(...) a imagem de um Eu futuro se caracterizará pela
renúncia ao atributo de certeza”
27
. A certeza do discurso delirante
se insere nessa dimensão oca das identificações. Nunca consegue
escrever essa história e por isso tende a repetir infinitas vezes a
história criada por meio do delírio.
O vazio identificatório produz uma ausência de sentido que
impele o Eu a ir em busca de uma significação para o sujeito. A
criação psicótica, considerada por Aulagnier como um “a mais”, dará
início a um trabalho peculiar de interpretação do vivido. O delírio
então surge como obra de um Eu que funciona com algumas falhas.
Aulagnier (1975) faz uma descrição sobre três formas do
sujeito psicótico funcionar
28
. Na primeira, haveria essa criação do
Eu para responder às causas das origens do próprio sujeito, do
mundo, do prazer e do desprazer. Essa criação seria o motor do
pensamento delirante primário – que é um “enunciado sobre a origem
estranho ao nosso modo de pensar”
29
– garantindo-lhe seu pleno
funcionamento, resultando no sistema paranóico. A segunda,
denominada de vivência esquizofrênica, caracteriza-se por realizar
uma interpretação única do vivido, sendo que aquilo que não pode
ser explicado por essa interpretação é desinvestido. A terceira
situação apresentada é aquela com a qual o analista, ao receber um
sujeito funcionando no registro psicótico, francamente delirante,
almeja fazê-lo retornar ao estado de potencialidade, momento no
qual o pensamento delirante primário encontra-se enquistado.
Apresento um fragmento da fala de uma paciente
30
, por mim
atendida no hospital, que fornece um exemplo do pensamento
delirante primário em pleno funcionamento.
27
Ibid., p. 154.
28
Ibid., p. 76.
29
AULAGNIER, P. (1975). Op. cit., p. 177.
30
Neste capítulo apenas utilizo algumas vinhetas clínicas com o objetivo de auxiliar
na construção de minha reflexão, pois o capítulo seguinte tratará da análise de um
sujeito psicótico atendido por mim na instituição psiquiátrica.
Adriana Cajado Costa
98
chora, ri, dá conselhos e estabelece uma relação transferencial
comigo.
Um outro fragmento da análise de uma outra paciente parece
ser revelador quanto ao processo de construção de um objeto
persecutório. Simone
33
aguarda ansiosamente sua vez de ser
atendida. Ao entrar na sala demonstra estar muito desesperada e
apresenta movimentos involuntários característicos de uma
medicação de emergência. Procedo de forma que ela sente e fale
sobre seu sofrimento. Durante alguns minutos ela discorre sobre
uma história de tentativas de homicídio e suicídio. Afirma ser refém
desses acontecimentos e que ficou louca por ter sido vítima do
marido. A cada vez que seu marido tentava matá-la, ela tentava
cometer suicídio. Religiosa, repetiu por inúmeras vezes: “minha
alma clama por justiça! Fui injustiçada!.
Ao mesmo tempo em que fala, Simone gesticula muito, como
se estivesse encenando o que diz. Começo a lhe fazer perguntas
sobre essa violência e ela responde de forma mais calma. Permanece
por um certo momento em silêncio olhando a analista nos olhos. De
repente pergunta: “Por que fica essa voz me dizendo – ela parece
uma bonequinha, eu sou uma bonequinha, você é uma
bonequinha... Por que ela quer ser uma bonequinha?”. Realizo uma
pequena intervenção. Preferi apenas repetir os pronomes pessoais
que a paciente utilizou: ela, eu, você... É nítido que o eu e o outro
estão misturados. Parece que a paciente pensou o que afirma ter
sido pronunciado pela voz. Ela, eu, você fazem parte do mesmo,
não estão diferenciados. Em determinado momento a paciente
suplica: “por favor, me cura! Eu não era assim, não ficava ouvindo
essa voz, eu era uma mulher trabalhadeira, era gerente da lanchonete
da minha família
34
, vivia bem arrumada, não tinha essas vozes me
dizendo coisas. Eu agora sou uma louca completa (chora), sou uma
maluca. Será que um dia eu vou ficar boa? Ninguém entende meu
sofrimento. Minha alma clama por justiça. Acho que se eu me matar
eu vou me vingar dela, mas eu não consigo (continua a chorar).
33
Optei por esse nome pelo fato da própria paciente se nomear assim. No prontuário,
seu nome é outro.
34
Filha adotiva, Simone reclama do ciúme de sua irmã em relação à mãe. Diz que
essa irmã foi a responsável pela fúria vivida pelo marido contra ela, pois a mesma
disse ao seu marido que Simone o estava traindo.
Aspectos da Psicopatologia
101
Além de não se referir a figuras masculinas para falar de sua
origem, localiza a origem das amebas no poder do “bicho demônio”.
Aqui, o demônio, mesmo estando ligado a uma origem mítica, está
metamorfoseado em bicho/animal. Parece que, na história de Maria,
o discurso materno nunca se referiu a um outro espaço, ou seja:
não apresentou um outro (sem-seio – o pai) por quem nutrisse um
certo amor e desejo – objeto enigmático do desejo da mãe.
Compreendo que, por conta dessa ausência, a sexualidade não tem
sentido para Maria; em sua relação com o sexo, ela sente nojo.
Dentre tantos aspectos e fatos que devem estar presentes na
constituição de um sujeito, Aulagnier ressalta a importância da
presença de um pai por quem a mãe nutre sentimentos positivos.
Isto levará à criação de um outro espaço no qual os outros e seus
discursos adentrarão. A presença de um pai e do seu desejo por
essa criança, e de ter um filho, provocam conseqüências psíquicas
para o sujeito. Ao fazer esta afirmação, Aulagnier (1975) exemplifica
a importância desse convívio (pai – filho) ao sinalizar traços
paranóicos em alguns pais de esquizofrênicos aliados à ocorrência
de um abuso de poder que não abre espaço para a contestação.
Ainda pensando no processo analítico de Maria, em uma outra
sessão, ela pede que possamos ir a uma varanda. Senta-se e começa
a contar sua história. Diz que seu Eu nasceu morto e que num tempo
passado olhava para frente sem virar para trás, mas agora vive uma
vida em que seu Eu virou as costas para o futuro e só olha o passado
como um filme que fica repetindo os seus erros. Justifica sua idéia
de estar morta afirmando que nunca acertou na vida, só cometeu
erros. Finalmente, Maria consegue chorar, começa a fazer um balanço
de sua vida desde a juventude até os dias atuais. Reconhece que
hoje tem um grande afeto pelos filhos e consegue se preocupar com
o futuro deles. Ao final da sessão Maria solicita um novo encontro,
pede que eu procure um livro que fale sobre as amebas e que eu
tome um remédio contra elas enquanto tenho o poder de acertar na
vida.
Reconheço a entrada em análise de Maria por sua apropriação
de um discurso sobre si. Mesmo arraigada em sua certeza delirante,
ela consegue pensar sua vida. Ao solicitar um lugar escolhido por
ela, solicita também um escuta analítica. De uma morta-viva que
nunca amou ninguém, Maria adentra a um estado afetivo e se permite
se preocupar com os filhos. Agora que nutre um afeto de mãe, ela
Adriana Cajado Costa
100
mesmo sofrendo agressões reais do ex-marido. O que denota que a
figura da irmã é idealizada. Simone é filha adotiva, sua irmã é filha
biológica de sua mãe que já morreu. Assim, por idealizar a figura da
mãe que a criou, ela elegeu como seu perseguidor a figura feminina
que está encarnada na irmã mais velha. Outro aspecto é o de que
Simone não nasceu do ventre da mãe que tanto amou e sua irmã
sim. Novamente, como no caso de Maria, a figura masculina, mesmo
infringindo uma agressão mortal, não é percebida como objeto
perseguidor ou a odiar. Simone chega a justificar as ações do ex-
marido pelo comportamento da irmã. Entendo que como não há
possibilidade de acesso a outros espaços, o sujeito se dirige ao Outro
que se encontra idealizado. Neste caso, a idealização da figura da
mãe foi deslocada para a da irmã. Simone interpretou assim a
violência vivida em relação ao seu marido. Aulagnier trata dessa
questão quando expressa:
“(...) a psicose não é jamais redutível à projeção de fantasias sobre uma
realidade neutra: neste sentido, ela se distingue da neurose. Evidentemente,
a projeção fantasmática existe, mas seu papel na eclosão de uma psicose é
função da interpretação, operada nestes casos, entre a representação
fantasmática e o que aparece na cena do real”
38
.
Aqui há uma dupla alienação do sujeito, alienado no desejo e
no imaginário do Outro:
“Essa dupla alienação demonstra, caso seja necessário, porque os
mecanismos próprios da identificação primária só serão encontrados no adulto
tragicamente na psicose...
39
.
A palavra tem um papel “metafórico e mediador”, além de
ser a responsável por transformar “em comunicável aquilo que foi
vivido no nível do corpo”
40
. Entretanto, toda a beleza da palavra
pode prender-se a um movimento metonímico. Aqui, pode-se pensar
no que Aulagnier define como palavra-coisa-ação
41
. A autora trabalha
com a idéia de que o analista recebe o discurso psicótico como
palavra-coisa-ação. O analista tende a responder a esse discurso
com um modelo anacrônico que na maioria dos casos remete ao
38
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 176.
39
Ibid., p. 200-1.
40
AULAGNIER, P (1962). Op. cit., p. 06.
41
Ibid.
Aspectos da Psicopatologia
103
Me ajuda, me ajuda por favor. Eu não era assim, fiquei assim por
causa de tanto sofrimento. Meu ex-marido tentou me matar cinco
vezes e cada vez que ele tentava eu tentava me matar também.
Isso não é invenção da minha cabeça. Eu vou trazer minha outra
irmã aqui para te confirmar o que eu estou te falando. Eu sou doente,
mas eu não minto”.
A falha na construção de outro espaço, contribui para o vazio
identificatório, dando lugar a uma construção fantasmática que luta
contra a separação eu/outro e vê na tentativa de distanciamento
um sentido mortífero. Uma resultante dessa construção pode ser o
objeto persecutório definido por Aulagnier da seguinte forma:
“O objeto persecutório é sempre um objeto cujo poder é intensamente
idealizado, este fenômeno é também obra do primário. Perseguição-
idealização: este binômio designa as duas ações psíquicas, complementares
e antinômicas que pode sofrer o objeto investido no registro do primário.
Este binômio é encontrado cada vez que se analisa a relação do psicótico a
seu corpo, ao outro e ao mundo”
35
.
Esse objeto está presente na paranóia e deve ser diferenciado
do que Aulagnier denomina de potencialidade persecutória, pois essa
potencialidade, ao assumir a função e o lugar do perseguidor, torna-
se o último recurso do Eu na tarefa de exteriorizá-lo, deixando,
portanto, de ser potencialidade para transformar-se em paranóia.
Ela expressa:
“(...) uma propriedade presente em estado latente em todo objeto cujo
investimento é uma necessidade vital para o Eu; ou ainda, diria que todo
objeto cujo investimento se torna condição de vida para o Eu pode, em
certos casos, assumir o lugar e a função do perseguidor”
36
.
Fica claro que Simone construiu uma história que responde à
causa do seu desconforto. A função do analista é a de investigar a
veracidade do discurso do sujeito, compreendendo a que vem
responder esse discurso. A paciente está funcionando nitidamente
num sistema paranóico
37
e elegeu um objeto persecutório, a irmã,
35
Ibid., p. 93.
36
AULAGNIER, Piera. A “filiação” persecutória. Um Intérprete em Busca de Sentido
II: O Conflito Psicótico. São Paulo, Escuta, 1990, p. 72.
37
Pode-se pensar que Simone recorre a manobras neuróticas, mas ao deslocar para
a irmã a responsabilidade dos atos do ex-marido, Simone constrói um objeto
persecutório encarnado na figura da irmã que porta uma origem almejada por ela.
Adriana Cajado Costa
102
É levando esse odiar em consideração que Aulagnier vai
escrever:
“Se a origem da existência, de si próprio como do mundo, remete ao estado
de ódio, o sujeito só poderá se preservar vivo e só poderá preservar a
existência do mundo na medida em que persiste algo a ‘odiar’ e alguém que
o ‘odeia’”
45
.
Assim, ele investe numa relação perseguido-perseguidor que
responde a uma teoria delirante que remete a um escutado e, além
de falar de um desinvestimento, um ódio, vem mostrar uma falha,
vem negar-se a nomear outros espaços autônomos e possíveis de
serem apropriados pelo sujeito psicótico.
Freud, em Construções em Análise (1937), já pensava no
conteúdo do delírio, ao falar numa verdade histórica que estaria por
trás desse tipo peculiar de criação. Note-se que, segundo Aulagnier,
a realidade histórica se refere aos acontecimentos ocorridos na vida
do sujeito, o que se distingue do termo verdade histórica, que remete
à verdade libidinal e identificatória. Contudo, ambas as histórias
influenciam na construção do delírio. Constate-se o que Freud
escreveu:
“(...) há não apenas método na loucura, como o poeta já percebera, mas
também um fragmento de verdade histórica, sendo plausível supor que a
crença compulsiva que se liga aos delírios derive sua força exatamente de
fontes infantis desse tipo”
46
.
Aulagnier vai definir realidade histórica como “o relato, feito
pelo próprio sujeito ou por um terceiro, através do qual tomamos
conhecimento dos acontecimentos que, efetivamente, marcaram a
infância do sujeito”
47
.
A respeito da aproximação entre o termo freudiano e o termo
de Aulagnier, Violante
48
afirma:
45
AULAGNIER, Piera (1975). Op. cit., p. 247.
46
FREUD, Sigmund (1937). Construções em análise. ESB, 2
ª
ed., vol. XXIII, 1987, p.
302.
47
AULAGNIER, Piera (1975). Pp. cit., p. 216.
48
VIOLANTE, Maria Lucia V(2001). Op. cit., p. 24.
Aspectos da Psicopatologia
105
silêncio. Nessa peculiar apropriação da linguagem – patrimônio
partilhado que nos traz sentido –, o psicótico se encontra na esfera
do inominável, intraduzível.
Além dessa linguagem percebida como palavra-coisa-ação,
ela ainda introduz uma outra noção apoiada num olhar e escuta
muito singulares. Apresenta, então, o que denomina de corpo-
máquina
42
, enfatizando a precariedade de investimentos libidinais
da mãe para com o bebê, cuidado como um robô, uma coisa sem
Eu, sem nome, sem singularidade, sem uma história que o faça
reconhecer sua origem.
Todo o material escutado pela criança, daquilo que se refere
ao lugar que ocupa para os pais nos seus investimentos, será utilizado
para compor a dimensão identificada do Eu desse sujeito. Esse
escutado compõe o universo de significação de sua existência. É a
partir desse entendimento que:
A criação de uma significação, compatível com o ‘escutado’ e com a exigência
identificatória do Eu será a tarefa do ‘pensamento delirante primário’ e da
‘teoria delirante infantil sobre a origem’, tornando sinônimos conflito e desejo,
situação de casal e situação de ódio, e estabelecendo como causa das origens
e de sua própria origem o conflito de desejos”
43
.
Entretanto o psicótico sente dificuldade para atribuir ao
desprazer um desejo no sentido de significá-lo O conteúdo do delírio,
quando é circunscrito na dimensão do odiar ou do ser instrumento,
objeto, sacrifício de um Outro, denuncia um ódio materno da
possibilidade da criança pensar em segredo, de desejar outras coisas,
a saber, de constituir-se como um ser autônomo.
Esse segredo faz parte da capacidade e possibilidade do Eu
de pensar e de investir na relação com seu corpo, com os outros
corpos, com a psique desses outros corpos e com o mundo
44
. Tal
capacidade resulta no processo de significar as experiências de
maneira a partilhar sentidos comuns.
42
Aulagnier trabalha com a idéia de corpo-máquina ao falar do poder psicotizante de
certas mães que, ao cuidarem dos seus bebês, somente se preocupam com as
necessidades fisiológicas.
43
Ibid., p. 246.
44
Aulagnier trabalha claramente esse assunto nos seus dois últimos textos do primeiro
volume de Um Intérprete em Busca de Sentido - I. São eles: O Direito ao Segredo:
condição para poder pensar; Condenado a Investir.
Adriana Cajado Costa
104
A pulsão de morte, Tânatos, pode ser pensada em inúmeras
construções humanas. A necessidade de mascarar a castração, de
fazer uso autoritário do poder estão no seu cerne. Nos trabalhos de
Aulagnier, a pulsão de morte é apresentada como o desejo de não
desejo. Alguns fenômenos psicóticos carregam consigo essa marca
do não-desejo.
Diante de tantas falhas no processo de constituição do sujeito
psicótico, será que se pode pensar na ajuda oferecida pelo analista?
Ajuda, agora, qualificada de psicanalítica? A escuta em psicanálise
pode ser um instrumento de significação para o sujeito psicótico?
Cabe ao analista fornecer meios de apropriação de sentido para
esse que fala de si como outro?
Freud, ao falar em ajudá-lo a tornar real o seu delírio, estaria
propondo ao analista o lugar de escuta(dor) que auxilia o sujeito a
construir um sentido comum para suas percepções? Um sentido que
fosse menos penoso que o anterior?
Parece que sim. Contudo não é só Freud que pensa assim.
Piera Aulagnier propõe que a escuta psicanalítica seja um instrumento
de dar sentido ao delírio do sujeito. Penso ser esse um bom começo;
o analista ocupar o lugar de testemunha das palavras e do discurso
do psicótico.
O processo analítico de cada sujeito diagnosticado portador
de um funcionamento psíquico psicótico é distinto e obedece à
singularidade da dupla analítica. Fatores institucionais são
importantes de serem ressaltados. Devido à riqueza do material, a
partir de agora procedo ao relato do caso clínico”, em separado da
apresentação da teoria que fundamentou os atendimentos, para que
se possa desvelar a análise, sem desvencilhar-me, no entanto, da
teorização flutuante.
Aspectos da Psicopatologia
107
“O interesse pela realidade histórica do paciente permite a Aulagnier
aproximar-se da orientação freudiana, acerca da construção na análise.
Apesar de Freud estar se referindo à história libidinal do sujeito...
A verdade histórica faz referência à história libidinal e
identificatória do sujeito, visa o infantil, aqueles traços e imagens
guardados e que formam o fundo representativo que o acompanha
durante toda sua vida. A realidade histórica é fruto das vivências,
daquilo que marcou a vida do sujeito, não em relação ao capital
representacional, mas em relação aos acontecimentos que marcaram
a sua infância , como doenças, separações etc.
No caso específico do sujeito psicótico, Aulagnier oferece uma
nova técnica – diferenciada da interpretação e das construções –
que leva em consideração a realidade histórica desse sujeito.
Apresenta a contribuição figurativa, utilizada em momentos
específicos, principalmente quando o paciente se encontra
mergulhado em angústia – definida, pela autora, como a perda,
pelo Eu, de toda referência identificatória
49
– oriunda dos efeitos da
atração do processo originário no funcionamento do Eu. Aulagnier
propõe que se ofereça ao paciente uma imagem próxima desse modo
de funcionamento psíquico, o qual coexiste com o Eu durante toda a
vida de todo sujeito.
Um sujeito é diagnosticado psicótico, em psicanálise, quando,
no processo de sua constituição, os elementos – enumerados
anteriormente – que compõem seu acesso à linguagem fundamental,
não são transmitidos pelo discurso do Outro, do porta-voz,
implicando, ao sujeito, recusar as significações referentes à castração,
diferença sexual e filiação
50
.
No caso do sujeito psicótico, não há possibilidade de significar
o desprazer, o que lhe falta abre um buraco, e nesse espaço se
constrói, na paranóia, o delírio, e na esquizofrenia, uma interpretação
única e exaustiva sobre o vivido.
49
AULAGNIER, P (1962). Angústia e identificação. Percurso. n°. 14, 1/1995.
50
A constituição do sujeito psicótico é sobredeterminada por diversos fatores sócio-
psico-ambientais, e, como salienta Aulagnier, as reflexões psicanalíticas propõem
mais uma forma de pensar esse intrigante modo de estar no mundo.
Adriana Cajado Costa
106
ANÁLISE DE UM SUJEITO
PSICÓTICO INSTITUCIONALIZADO
“(...) não há história clínica, por exemplar ou particular que seja, que se
deixe reduzir a uma leitura teórica, à elaboração da qual todavia ela colaborou.
A menos que se extraia artificialmente uma única faceta, esquecendo-se
todas as outras que compõem o prisma psíquico, este último nos confronta
com um jogo de luz e sombra, momentos que remetem à luz de uma faceta
sobre a outra, deixando na sombra uma terceira. O ‘prisma humano’,
porquanto a morte não se mistura a ele, jamais se deixa recobrir por uma
rede teórica que poderia nos oferecer uma imagem fixa, bem clara, não
mutável. Escolhe-se o caso do qual se fala ou se publica, escolhe-se ainda
em seu percurso analítico tal ou qual fragmento por ser o mais apto para
nos fornecer uma resposta e para justificá-la: duas escolhas legítimas e
necessárias a menos que se exclua a clínica de nossos escritos. Mas, apesar
da arbitrariedade dessa dupla seleção, o discurso clínico ultrapassa sempre
sua contrapartida teórica; se ele pretende ilustrar nossas hipóteses, esclarece
ao mesmo tempo aquilo que deixaram na sombra”
1
.
Apresento nesse capítulo um recorte da análise de um sujeito
psicótico institucionalizado. A escolha, por proceder a apresentação
de um caso clínico, e deste em particular, respeita duas condições. A
primeira é a de que o sujeito deste estudo iniciou e findou sua análise
no período da pesquisa. A segunda concentra-se no que Aulagnier
descreve acima. Escolhi este caso por apresentar questões
pertinentes ao objetivo do presente estudo.
1
AULAGNIER, Piera. Alguém matou alguma coisa (1984). Um Intérprete em Busca
de Sentido II. São Paulo: Escuta, 1990. p. 142.
para o médico que, na realidade, era-lhe indiferente; de maneira que o
último terá sido escolhido como representante ou substituto de alguém muito
mais chegado ao paciente”
3
.
A primeira internação do presidente Schreber deu-se em
outubro de 1884, quando caiu enfermo de uma “crise grave de
hipocondria”
4
. O fenômeno transferencial é apontado por Freud. Na
segunda internação, cerca de 13 anos mais tarde, o Dr. Flechsig (ou
melhor, sua alma
5
) ocupa posição privilegiada no delírio de Schreber,
como seu único inimigo: “Flechsig, contudo, permanecia sendo o
primeiro sedutor...” e mesmo após a mudança de hospital, Schreber
transferiu tais sentimentos para o assistente-chefe do novo asilo: “A
influência do novo ambiente foi demonstrada pelo fato de a alma de
Flechsig reunir-se à alma do assistente-chefe”
6
. Considero que a
relação transferencial estabelecida com o médico, na ocasião da
primeira internação, foi mantida na segunda e deslocada para um
terceiro médico.
Ao afirmar que o tratamento com psicóticos poderia ser
realizado a partir dos avanços da pesquisa psicanalítica, Freud deixa
em aberto a possibilidade de se entender, num tempo futuro, o
fenômeno transferencial na psicose. Aulagnier, aproveitando essa
brecha, avança os estudos nessa direção e oferece uma
metapsicologia derivada das suas experiências na análise de
psicóticos. A partir de então, a transferência na psicose é teorizada,
manejada e especificada seguindo uma postura eminentemente
freudiana
7
.
3
FREUD, Sigmund (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de
um caso de paranóia. ESB. 2
ª
ed., vol. XII, 1987, p. 66.
4
Ibid., p. 27.
5
No delírio de Schreber o perseguidor é projetado na alma do Dr. Flechsig, sem
afetar a pessoa do médico.
6
Ibid., p. 58.
7
Os avanços da pesquisa psicanalítica sobre as psicoses recebe as marcas das
teorizações de Melanie Klein e Jacques Lacan, mas considero que Piera Aulagnier
manteve-se mais fiel ao pensamento freudiano, oferecendo uma contribuição (ver
Violante, 2001). No caso de M. Klein há uma mudança teórica significativa com a
formulação da posição esquizo-paranóide e da posição depressiva. Já com Lacan
temos um releitura da obra de Freud que redireciona amplamente a teoria, a
escuta psicanalítica, a técnica e a ética.
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
111
O uso do termo “institucionalizado” é feito para frisar um
processo de medicalização e objetivação do sujeito que se inicia no
momento de sua entrada no hospital psiquiátrico. Como já foi
mencionado na introdução e trabalhado no primeiro capítulo, tal
processo culmina no a(dor)mecimento da história do sujeito e, em
seu lugar, dá-se a construção, por intermédio da instituição, do que
chamei a história da “doença”. A(dor)mecer uma história que fala
de uma dor, nega um sofrimento que remonta à infância, que
questiona a família, o hospital e a própria indústria farmacêutica.
Como diz Aulagnier, o caso clínico não se reduz à teoria, dele
lanço mão para me auxiliar na reflexão de como se dá um processo
analítico de sujeitos sofrentes de um conflito psicótico no âmbito do
hospital psiquiátrico, especialmente, no ambulatório.
A escuta psicanalítica desses sujeitos, nas primeiras
entrevistas, e desse em particular, foi permeada por inúmeros
questionamentos quanto aos aspectos da trajetória da transferência
deles em relação à instituição e, posteriormente, com minha figura
de analista, quanto ao uso de palavras próprias ao discurso
institucional como, por exemplo: orientação, controle, agressividade,
medicação, fracasso, doença, normalidade, loucura, etc. Foi com o
sujeito desta pesquisa que pude compreender a necessidade e a
validade de recorrer às primeiras entrevistas de maneira a possibilitar
a ele despir-se da pele institucional e poder se apropriar de sua
própria história. A passagem do indivíduo que fala de uma história
da “doença” para o sujeito que fala sobre sua história marcou a
entrada em análise de Francisco.
Freud sempre afirmou, a partir de sua teorização sobre a
psicose, a impossibilidade do fenômeno da transferência ocorrer
nesses sujeitos
2
. Entretanto, ao pensar o caso Schreber e a relação
deste – no transcorrer do seu primeiro tratamento – com o doutor
Flechsig, afirma:
“O sentimento amistoso do paciente para com o médico bem se pode ter
devido a um processo de ‘transferência’, por meio do qual uma catexia
emocional se transpôs de alguma pessoa que lhe era importante [o irmão]
2
Ver nota 34 do primeiro capítulo p.34.
Adriana Cajado Costa
110
Apresentando esse caso, espero contribuir com aqueles que
se interessam pela análise de psicóticos e, principalmente, por
aqueles que foram institucionalizados. Acredito que, com as
mudanças implementadas pela reforma psiquiátrica, o número de
sujeitos psicóticos institucionalizados tende a diminuir. Mas ainda
temos muitos sujeitos a escutar e com eles encontrar o caminho de
suas singularidades. O caso de Francisco foi difícil e demonstra alguns
acertos e vários enganos da prática analítica com psicóticos em
instituição. Foi a partir desse movimento dialético que um trabalho
pensante e não alienado pôde ser realizado.
Apresentação do Caso de Francisco
Buscando uma objetividade maior, escolhi apresentar o caso
de Francisco a partir das três primeiras entrevistas. As demais sessões
serão utilizadas parcialmente, quando for necessário para a análise
e reflexão. Os dados mais importantes e reveladores foram colhidos
nas entrevistas preliminares. A continuidade das sessões obedeceu
a um processo de construção da história do sujeito Francisco. Uma
espécie de travessia, a qual se inicia numa fala institucionalizada,
como já foi debatido anteriormente, e culmina no discurso de
Francisco tentando contar sua história e formular questões sobre
suas experiências.
A história de Francisco assemelha-se a tantas outras histórias
de sujeitos psicóticos que oscilam entre a potencialidade psicótica e
a manifestação psicótica. Da infância Francisco guarda a lembrança
do matadouro municipal, ao qual gostava de ir para ver o gado ser
morto a golpes de machado. Agradava-lhe ver o sangue escorrendo.
Diz: “eu achava bonito aquele sangue bem vermelho escorrendo
pelo chão”(sic). Nada além dessa lembrança é recobrado. Sua fala
sobre a família é apagada, afirma ter sido uma criança normal e
sem problemas, mas não relata nenhum momento alegre ou triste
que o tenha marcado. Apenas o matadouro é lembrado e relembrado.
Em todas as sessões Francisco se lembrava do prazer que lhe causava
ver a morte dos animais e, principalmente, o movimento do sangue
escorrendo pelo chão.
Coração batendo muito devagar, mente vazia, vontade de
cortar as mãos e os braços, alucinação de uma aranha o
perseguindo... São com estas queixas que Francisco inicia sua
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
113
Valendo-me do mestre Freud para compreender a análise dos
sujeitos deste estudo, recorro ao Caso Schreber
8
com o objetivo de
apreender o que o psicanalista Freud escutou do sujeito Schreber.
Seguindo a linha interpretativa de Freud, observei que o autor, a
partir de uma escuta informada por sua teoria, estabeleceu uma
série de questionamentos, dos quais agora faço uso no auxílio à
apresentação e discussão do caso de Francisco.
As questões fundamentais que orientam minha reflexão, a
partir da escuta de Francisco, são:
1. Qual a relação que Francisco tem com a realidade?
2. Qual o sentido e a origem
9
de sua precária construção delirante?
3. Qual o lugar da instituição na vida de Francisco?
4. Qual o seu lugar na dinâmica familiar?
5. Qual a função do álcool em suas vivências?
6. Francisco pode ser considerado um sujeito psicótico? Por quê?
Minha escolha por apresentar esse caso clínico obedece ao
próprio percurso de investigação da presente pesquisa. Mesmo se
configurando num caso clínico incompleto e de difícil apresentação,
foi a partir dele que um processo de abertura se iniciou. As questões
quanto à psicanálise na instituição, o movimento de psiquiatrização,
medicalização e objetalização do sujeito psicótico, a possibilidade
de escutar um movimento de entrada em análise de alguns sujeitos,
a partir da mudança do discurso sobre a história das internações
para a própria história, foram percebidas, pensadas, questionadas e
escutadas por meio da escuta do sujeito Francisco. Foi durante esse
processo analítico que pude pensar os alcances e limites da psicanálise
com psicóticos na instituição.
8
FREUD, Sigmund (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de
um caso de paranóia. ESB. 2
ª
ed., vol. XII, 1987.
9
Freud, ao discutir o caso Schreber diz: “Na verdade, nosso único interesse é o
significado e a origem da idéia patológica” entendendo esta idéia como: “o delírio
de estar sendo transformado em mulher.... Ibid., p. 62.
Adriana Cajado Costa
112
de profissão, não trabalha, alegando que não consegue cortar cabelos.
Questiono sua impossibilidade e ele diz: “agora que estou assim é
difícil, eu não sei por que não, fraco desse jeito vou malinar com
tesoura? Não dá não, eu não tenho mais paciência de cortar cabelo.
Estou tão fraco que meu corpo tá tremendo e estou cuspindo sangue”
. Francisco sai da sala, vai até o banheiro e depois nos chama para
ver o sangue que ele cuspiu. Permaneço na sala à espera dele e da
mulher que foi comprovar o ocorrido. Quando retornam, pergunto a
Francisco se viram o sangue. Ele responde: “eu mostrei para ela e
ela viu que o sangue é meu” . O paciente está submerso em seu
mundo de sangue e morte. Está entregue ao seu delírio e entregue
ao discurso da instituição.
A palavra na instituição só é usada para nomear doença,
remédio e exasperação. Usando esse discurso, Francisco sabe que
será atendido prontamente pelo psiquiatra que irá medicá-lo sem
fazê-lo falar.
Ao retornar do banheiro, tento trazê-lo para sua história.
Pergunto se foi criado com a mãe, ele responde que sim e fala que
quando pequeno gostava de ver boi sendo morto no matadouro da
cidade. Pergunto o porquê e ele diz que achava bonito ver todo
aquele sangue escorrendo. Saliento a palavra sangue e ele sorri
afirmando: “é bonito, eu achava lindo”. Francisco silencia, começa a
ficar inquieto e agitado. Suplica por uma medicação venal. Ele se
levanta e salienta que precisa da medicação logo. Eu respeito seu
sofrimento e ânsia e o encaminho à psiquiatria.
Na sessão seguinte, Francisco está no balcão da recepção
esperando para ser atendido e receber sua medicação. No momento
em que me vê, sorri e se direciona para me cumprimentar. Mostra-
se bem diferente da primeira vez. Note-se que a mulher não veio
acompanhá-lo. Pede que eu o auxilie para conseguir o medicamento,
pois a recepcionista responsável não veio e as substitutas estão
atribuladas o suficiente para não perceberem que o pedido do
paciente é direcionado à farmácia. Diante de sua insistência, dirijo-
me à farmácia do ambulatório, entrego-lhe os remédios e convido-
o para a sessão. Atendo-o alguns minutos depois.
Desta vez, Francisco está calmo, conversando e
aparentemente se sentindo bem. Queixa-se da psiquiatra. Esta o
recriminou muito. Imediatamente percebi que a médica havia se
comportado da mesma maneira que a família dele. Reagiu ao seu
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
115
10
A partir de agora usarei o negrito para chamar a atenção do leitor para o material
que pude escutar da fala de Francisco. A reflexão sobre o mesmo será apresentada
no próximo item: “A Escuta de Francisco”.
11
Mais adiante o tema sobre a transferência será discutido.
primeira entrevista. Por ser num ambulatório de hospital psiquiátrico
público, o paciente entra na sala de atendimento acompanhado da
mulher que, praticamente, fala por ele.
Durante toda a entrevista
10
, Francisco me olha e pede para
que eu lhe toque o pulso e veja como sua pulsação está lenta. Sente-
se quase morto. Está muito embria(gado). Sua mulher fala logorréica
e repetitivamente em nome de Jesus (Pai/filho).
Tento, por várias vezes, dizer que gostaria de ouvir Francisco
a respeito do que está sentindo. A mulher continua a falar e eu a
interrompo dizendo que, se ela quiser, terá um espaço para ela, mas
que, naquele espaço, o paciente é Francisco. Ela ri e pede desculpas.
Diz estar precisando de ajuda psicológica, que não é fácil a vida que
leva com Francisco. Dirijo-me a ele e pergunto o que lhe ocorreu.
Diz que bebeu muito e que está sem comer há muitos dias, estando
muito fraco: “preciso de uma (medica)ção logo, pega aqui para você
ver como meu coração está batendo bem fraquinho”. Esta é a primeira
vez que Francisco fala do que lhe falta, ele precisa de uma médica,
ele precisa de alguém que saiba como ajudá-lo. Ao endereçar esse
pedido a mim, entendo que ele estabelece uma relação
transferencial
11
.
Sua mulher (Mãe) começa a dizer que Francisco tem que
contar tudo. Ele obedece e começa a dizer que vê aranhas correndo
atrás de si. Que tem vontade de cortar os braços e as mãos. Pergunto
o porquê e ele responde que isso só acontece quando sua cabeça
está vazia. Mostra-me o antebraço com pequenas queimaduras
circulares. Pergunto o que lhe aconteceu. Ele responde que se
queimou com cigarro, pois sentiu vontade e sempre sente vontade
de fazer isso. Põe as mãos na cabeça e diz: “minha cabeça fica
vazia, sem nada, não consigo pensar em nada e aí vem essa vontade
de me cortar e me queimar”.
Pergunto a Francisco se tem familiares e ele responde que
tem mãe e irmãos, mas não os vê com freqüência devido às
recorrentes recriminações acerca do seu comportamento. Cabeleireiro
Adriana Cajado Costa
114
analista é ao mesmo tempo aquele que oferta uma escuta e aquele
que demanda o discurso do paciente. Ao discutir um caso clínico, a
autora adentra na reflexão sobre a demanda do psicótico. Ela
esclarece:
“(...) vai colocar o analista no lugar do demandante. Graças a esse subterfúgio
poderá se aproximar prudentemente, sempre pronto para fugir, de uma
relação de demanda da qual somos feitos responsáveis. Será somente
aceitando reconhecer-se como demandante de suas palavras, de sua
presença, das modificações que possam aparecer, que o analista pode, à
vezes, criar as condições que tornem a interpretação possível. Precisa além
do mais, manejar com extrema prudência esse papel de demandante, não
demandar nem demais, nem cedo demais, permanecer constantemente alerta
com relação a qualquer manifestação que poderia ser interpretada como
uma manobra de sedução, uma demanda de amor, de reconhecimento”
14
O manejo da demanda do analista não é fácil e, muitas vezes,
está-se demandando demais ou de menos. O grande número de
faltas, os atrasos, o pouco tempo que o paciente fica na sessão
estão relacionados a esse manejo. No caso de Francisco, as sessões
sempre foram amistosas. A fúria que relatava sentir no seu cotidiano
ganhava uma (arma)dura de ternura. Faltava muito, mas quando
comparecia estava sempre ansioso pelo atendimento.
Ao ofertar a escuta analítica, demando sua fala. Francisco,
então, parece ter controle sob seus impulsos, pois agora pode traduzi-
los em palavras. Ao responder com rispidez uma pergunta, logo
sorria e se desculpava. Tentava recuperar o clima amistoso que era
a regra das sessões.
Penso que a utilização de uma arma(dura) é resultante de
sua institucionalização. Ao se manter amistoso nas sessões, Francisco
acredita que permanecerá no jogo institucional, fechado no discurso
pulverizado e na repetição infindável de uma mesma cena.
Entretanto, a partir de um determinado momento, ele se permitiu
deslizar para um discurso na primeira pessoa, além do que,
questionador.
A partir do momento em que uma relação transferencial foi
construída com Francisco, novos elementos foram introduzidos nas
sessões. Assuntos familiares, sobre suas alucinações, sobre o próprio
14
Ibid., pp. 149-150.
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
117
alcoolismo com falas repressoras e desqualificadoras, repetindo na
instituição, a mesmice do discurso que Francisco escuta no meio
familiar. O caminho do paciente foi o de não escutar a médica.
Agendou outro psiquiatra que “acertou a medicação para seu
problema”. Agora ele está bem. Bem-estar que não permanecerá
por muito tempo.
Ao me comunicar seu desgosto em relação à primeira
psiquiatra e dizer que procurou outra que, enfim, procedeu
corretamente com ele, Francisco objetivava pedir explicações quanto
ao encaminhamento que fiz. Na verdade, a preocupação dele era
saber qual seria o grau de preocupação e cuidado que eu estaria
tendo com seu caso.
Francisco já é capaz de demandar algo. Ao comunicar que
desaprovou a psiquiatra, ele, ao mesmo tempo, comunica que quer
atenção. Estabelecida a transferência, ele sinaliza como é ruim seu
convívio com a família. Testa a possibilidade de falar de seu
sofrimento, sem ter que temer uma reação desaprovadora
12
.
Demanda, assim, uma escuta. Porém, não permanece no lugar de
demandante. Tenta fazer um jogo no qual os papéis possam ser
trocados.
Em duas sessões de Francisco ocorreu um fato interessante
quanto à demanda de análise. Nessas duas ocasiões o paciente
parecia estar em sessão para me agradar com sua fala. Explico.
Francisco repete um comportamento de pedir ajuda material como,
por exemplo, o evento da farmácia, ou uma declaração de que está
em tratamento comigo. Quando lhe ofereço o que me solicitou, ele
quer ser atendido, ou seja, ele demanda análise por meio de uma
demanda direcionada a algo que possa ser-lhe entregue
materialmente. Nesse caso, a cena montada é a de que eu sou a
demandante de sua fala na análise.
Aulagnier
13
foi pontual ao salientar a dificuldade do sujeito
psicótico demandar análise, fazendo um caminho no qual ele coloca
o analista no lugar de demandante. No circuito oferta-demanda, o
12
Novamente a experiência vivida com a instituição é colocada na análise. Ao falar
de suas certezas delirantes, o sujeito sabe que a reação institucional será a de
fazer calar o delírio. Será considerado paciente delirante em crise psicótica. O
procedimento é medicar.
13
AULAGNIER, Piera (1984). Op. cit.
Adriana Cajado Costa
116
que está fazendo tratamento comigo. Acha que pode estar sendo
injustiçado por não saber se realmente cometeu o delito.
Após Francisco me contar sua longa história sobre os últimos
acontecimentos que o fizeram ser intimado a comparecer à delegacia,
ele me pergunta se é louco. Temos abaixo um pequeno trecho:
ELE – Depois de tudo isso, eu fico pensando... será que eu
sou louco? Será que o que eu tenho é isso?
EU – O que você acha?
ELE – Eu acho que deve ser isso mesmo que eu tenho... ou o
que eu tenho é problema psiquiátrico?!
EU – Essa palavra, louco, é muito usada e está cheia de
preconceitos, por isso ela não serve para falar do sofrimento de
ninguém...
ELE – Então eu tenho é problema psiquiátrico, por isso não
posso ser responsabilizado por nada. Eu nem me lembro de ter feito
isso, acho que estão me acusando injustamente. Eu bebi muito, até
distribuí meus remédios para os meus colegas, mas eles dormiram
e eu fiquei bebendo sozinho.
EU – O fato de você não se lembrar, não quer dizer que você
não tenha feito isso.
ELE – Deve ser aquilo que as pessoas falam de amnésia
alcoólica.
EU – Você já pensou em parar um pouco de beber? Você sabe
que seus remédios não fazem efeito quando você bebe...
ELE – Eu sei, mas quando vou ver já estou conversando com
alguém na rua e indo para um bar.
EU – Com que dinheiro você bebe?
ELE – Com uns trocados que ela (a companheira) me dá, ou
então eu vendo as coisas, dou o que estou vestindo, calçando...
EU – O que você sente em ficar bêbado e nu?
ELE – (risos) Eu fico parecendo um mendigo, uma pessoa
sem família, sem casa, nem lembro meu nome...
EU – Você bebe mesmo sabendo que vai ter que pagar com a
própria roupa, bebe tanto que dorme na rua, esquece que tem família,
mulher, endereço, nome...
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
119
alcoolismo que, até então era assunto que provocava grande
nervosismo, podiam ser colocados abertamente. A necessidade de
falar sobre sua embriaguez, dos seus sonhos descritos como
(pesa)delos
15
, sua relação com a companheira, começavam a ganhar
espaço na sessão. Sua história começou a ser contada. História que
transparecia ter um peso mortífero. Esse processo pelo qual a análise
possibilita ao sujeito demandar o que até então nunca havia
demandado é explicitado por Aulagnier.
“(...) na psicose teremos que tentar fazer com que o sujeito formule demandas
que nunca expressou, tentar garantir os direitos de uma ‘criança que
demanda’, inocentá-lo do crime de que o acusaram: o que afirmava ver,
sentir, compreender era uma pura criação de seu espírito (definição profana
do termo fantasia)”
16
A partir de um fato real e perturbador, Francisco se pôs a
demandar análise de forma intensa e questionadora. Começou a
questionar sua “doença”, mesmo fazendo dela um álibi para as ações
anti-sociais
17
que praticava. Queria compreender o que se passava
em sua psique. As sessões decorrentes foram produtivas para
Francisco, a riqueza de seus questionamentos impulsionavam o
investimento da dupla no processo analítico.
Durante a sessão na qual Francisco me conta sobre os
acontecimentos que lhe fizeram se sentir ainda mais perturbado,
ele introduz o elemento que justificará sua entrada na crise psicótica.
Ansioso, ele chega à sessão querendo me contar o que lhe aconteceu.
Permanece em pé na sala e depois, atendendo minha solicitação,
senta-se. Afirma estar vindo da delegacia. Bebeu muito junto com a
medicação, perdeu roupas, sapatos e relógio. Ficou cinco dias longe
de casa, dormindo na rua. Assaltou uma mulher e diz não se lembrar.
Agora está sendo processado. Irá a julgamento. Afirma estar com
muito medo e acha que se provar que realmente não se lembra de
nada, por ser louco, será absolvido. Pede-me uma declaração de
15
Ao escutar Francisco, seu discurso remetia a uma fala densa, marcada por um
peso tão grande que parecia ser-lhe insustentável.
16
AULAGNIER, Piera (1984). Op. cit., p. 157.
17
Francisco faz uso de álcool descontroladamente e quando alcoolizado pratica
pequenos furtos. Porém desta vez ele praticou um assalto contra uma mulher do
seu bairro, o que resultou num processo judicial contra ele. Quando intimado a
falar com o juiz, ele caiu em crise psicótica e foi internado.
Adriana Cajado Costa
118
ELE – Eu não sei quem ela é, ninguém tem rosto nessa aldeia.
EU – E você?
ELE – (Silêncio) De noite eu acordo desesperado e fico me
pegando, vendo minha pulsação, fico um tempão fazendo isso, pego
aqui no braço, depois no pescoço. Por que eu fico fazendo isso?
EU – Parece que você fica muito preocupado em se certificar
de que está vivo. Todo aquele gado sendo morto no matadouro, o
sangue escorrendo, a violência das marretadas, tudo aquilo ficou
gravado em sua memória e talvez você às vezes se confunda com
esses animais. É preciso se tocar e sentir o corpo pulsando para
saber que você é o Francisco e está vivo?.
ELE – (balança a cabeça em sinal positivo, parecia estar
esperando exatamente essa resposta, demonstra até um certo alívio
e sorri) É verdade, eu faço isso mesmo... Eu adorava ver o boi
sendo morto, eu adorava ver o sangue escorrendo, achava lindo...
Mas estou muito preocupado. Não posso ser preso, minha
mãe...(Silêncio)
EU – Parece que você está com medo da lei...
ELE – (com ar de medo e preocupação) É, estou mesmo, não
posso ficar preso. Eles vão marcar o dia para eu me apresentar ao
juiz, eu não quero ir, não vou conseguir...
A realidade dos fatos e as conseqüências oriundas das ações
praticadas por Francisco quando bebia se interpuseram ao
tratamento. Francisco foi levado à observação, numa madrugada, e
encaminhado para internação em um hospital psiquiátrico particular
conveniado ao SUS (Sistema Único de Saúde).
Quanto à mulher de Francisco, no dia de sua primeira
entrevista, após alguns minutos do término da mesma, a
recepcionista vai até minha sala e solicita que eu a atenda. Vera
entra na sala e diz que precisa muito desabafar. Fala
compulsivamente, dizendo que também estava doente, mas que se
curou em nome de Jesus. Repete esta frase inúmeras vezes. Fico
calada por muito tempo enquanto ela fala incansavelmente tecendo
uma história lamuriosa. Queixa-se que sofre muito com o
companheiro, mas que ela não tem escolha, pois o ama. Diz que
gostaria de ter um filho, mas que nessas condições não dá, até por
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
121
ELE – Eu fico com pena da minha família, do meu irmão.
EU – E de você?
ELE – De mim eu não sinto nada
EU – Você não merece?
ELE – Não é isso, eu tenho a mente vazia. Eu fico aqui falando
com a senhora e minha mente tem uma confusão, quando fico sozinho
minha mente fica vazia.
EU – Quando você está perto de alguém ela fica vazia também?
ELE – Quando eu estou conversando minha mente fica normal,
mas quando fico sozinho começa tudo, fico com a mente vazia, com
vontade de cortar (faz gestos com as mãos como se estivesse
cortando-as), como não tenho coragem, me queimo com o cigarro
(no antebraço há várias marcar redondas de queimadura).
EU – O que você sente quando isto acontece?
ELE – Nada... Você é analista? Investigadora da mente da
gente?
EU – Sou psicanalista.
ELE – Acho que vou contar um sonho que eu tenho.
EU – Que você tem sempre?
ELE – É. Eu sonho que tem uma mulher que quer me matar
(faz os gestos característicos de enforcamento em minha direção).
EU – Qual o motivo?
ELE – Eu não sei, mas ela quer me matar e tem muita força,
eu não consigo fazer nada.
EU – Como ela é?
ELE – Morena, alta, cabelos compridos... Ela é uma índia.
EU – Aonde vocês estão?
ELE – Numa igreja dentro de uma aldeia. Ela quer me matar
dentro da igreja, junto com aqueles índios.
EU – Há alguém que está vendo vocês?
ELE – Não sei, mas deixa pra lá isso de sonho, eu estou muito
preocupado para falar disso.
EU – Preocupado...
Adriana Cajado Costa
120
encontra na posição do bebê indefeso. Nem mesmo em seus
pesadelos há uma voz, um olhar ou alguma superfície que faça
referência aos traços humanos. Sua angústia é oriunda dos efeitos
de um pictograma de rejeição. Daí a repetição de uma cena na qual
se apresenta um corpo fragmentado e um Eu tentando uni-lo.
Francisco acorda e fica se tocando, tentando se certificar dos seus
batimentos cardíacos e de sua pulsação. Ao decidir contar seu sonho,
Francisco decide questioná-lo: “Por que tenho esse pesadelo? Por
que não consigo ver o rosto? Mas ela não tem rosto!.
Como se certificar da própria existência a partir de um trajeto
identificatório como esse? Infligindo ao corpo as marcas que deveriam
ser inscrições na psique. O uso do cigarro, vício fonte de algum
prazer, ganha uma outra função, a de queimá-lo, de feri-lo, de lhe
proporcionar uma marca na carne que produza ecos no corpo. A
beleza que ele encontra no sangue do boi escorrendo, em suas feridas
no braço, em cuspir sangue e pedir reconhecimento do outro da
origem do sangue (episódio descrito na primeira entrevista), sinaliza
para minha escuta que Francisco se identifica com a cena da morte
do boi. Identifica-se também com a figura do boi.
Nesta região do país (nordeste), as significações que giram
em torno do boi exercem grande influência. Significações de virilidade
e força. As festas do Bumba-meu-Boi param as cidades. É uma festa
sagrada e profana, na qual o consumo de álcool é muito grande.
Francisco comenta o quanto se sente bem no mês de junho,
justamente o mês dessa festa. Diz que gosta de se vestir de boi. Há
um detalhe importante dos rituais que marcam a festa; nela temos
a seqüência: 1. Batizado do Boi; 2. Festa do Bumba-meu-Boi; 3.
Morte do Boi.
Poderia reconhecer nesse processo de se vestir de boi uma
simbolização, Francisco brinca de boi. Mas ao escutá-lo falar sobre
sua “brincadeira”, essa esperança esvanece. Entre tantas falas sobre
a festa, pude colher: “na hora eu sou boi, sinto a força, minha cabeça
fica leve, não fica pesada, eu sou boi, vou correr atrás deles
(brincantes) e meter o chifre”.
A imagem da infância, o sangue escorrendo pelo chão e as
feridas feitas pelo fogo do cigarro parecem atualizar para Francisco
um sentido. Francisco pode não recorrer a um sistema delirante
paranóico encarnado na figura de alguém ou de Deus, mas reitera
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
123
que só recentemente perdeu o pavor de ficar grávida. Repetiu muitas
vezes que tinha medo da gravidez. Perguntei se era por conta da
transformação do corpo, ela disse que achava muito estranho toda
aquela barriga crescendo e que depois ainda tinha que cuidar do
bebê e dar o peito, ela achava que não iria conseguir. Disse que tudo
isso passou com a ajuda de Jesus e que agora está curada, faltando
só Francisco ficar bom para terem um filho.
Francisco entra na sala e solicita a presença de Vera no
corredor de espera da psiquiatria. Ela se levanta e pergunta se pode
retornar. Digo que se quiser posso encaminhá-la para outro psicólogo,
ela aceita, mas nunca mais retornou ao Hospital. Após alguns meses,
encontro Vera numa farmácia do shopping da cidade. Enquanto estou
no caixa, ela se aproxima para falar com o vendedor. Cumprimento-
a e ela começa a dizer que Francisco gosta muito de mim, que ele
sempre comenta que com essa psicóloga vai dar certo. Porém, na
época desse encontro fortuito, Francisco já não estava mais em
análise, encontrava-se internado numa clínica psiquiátrica.
A Escuta de Francisco
Para Francisco, a imagem do sangue escorrendo pelo chão é
fonte de prazer. Há beleza na cena. Mas por que é bela? Por que
essa imagem se torna fonte de prazer?
Quando se alcooliza, Francisco perde a roupa, os sapatos e,
como ele mesmo afirmou, quando está embria(gado), esquece o
próprio nome. “Pareço um mendigo, fico como um animal de rua”,
diz Francisco. De frente a tamanho vazio identificatório resta-lhe
flagelar-se, oferecer-se em sacrifício, identificando-se com o animal
sendo morto no matadouro. Pois quais são seus referenciais, ou
melhor, quais os elementos que fazem parte de seu “quebra-cabeça
identificatório”?
Francisco nunca se referiu a seu pai. A única vez que o fez foi
para responder uma pergunta minha e a resposta foi: “ele morreu”.
Sua mãe assume a figura de uma aranha nas suas alucinações e
associações em análise. A mulher com quem mantém uma relação
conjugal imputa-lhe uma relação de mãe e filho. Sofrente de um
conflito desagregador, seus sonhos são pesadelos de uma índia
infligindo-lhe uma agressão mortífera, mas esse ser não tem rosto
e, contra isso, nada pode fazer. Diante dessas imagens, ele se
Adriana Cajado Costa
122
objeto persecutório está em seus sonhos e, mesmo assim, ele não
se defende, fica paralisado com a visão de uma mulher sem rosto.
As alucinações visuais retornam com a suspensão intencional da
medicação para consumo de álcool. Nessa suspensão poderia
acreditar que há uma escolha de Francisco; entre a medicação e o
álcool, ele escolhe o álcool, mas como pensar tomado pelo alcoolismo
e pelos efeitos da síndrome de abstinência? Penso que para Francisco
não há escolha, ele bebe para não sofrer de um corpo em
decomposição.
O roteiro do seu auto-flagelamento é: 1) Sente-se sozinho
em casa enquanto a mulher trabalha, 2) sai para conversar um
pouco, 3) sem perceber já está se alcoolizando num bar qualquer,
4) após beber desmedidamente, perde os referenciais, sem dinheiro
para pagar a conta do bar, dá o que veste, 5) começa a se queimar
com a ponta do cigarro, 6) dorme na rua, quase nu, como um
mendigo
22
, 7) nesse intervalo comete alguns delitos, mas afirma
não se lembrar de nada.
Durante uma sessão, pergunto ao paciente como vai e o que
anda fazendo, perguntas simples que o remetiam a seu cotidiano.
Pergunto também sobre a família e sobre sua mãe. Nesse momento
Francisco me surpreende com a seguinte resposta:
– “Graças a Deus que não vi ela mais, nunca mais eu vi aquela
coisa feia, horrível que andava na minha direção”.
De imediato percebi que Francisco havia escutado aranha no
lugar da palavra mãe. Continuei escutando suas observações quanto
ao seu nojo da aranha. Após algum tempo de silêncio, ele começa a
falar em sua mãe, na saudade que sentia dela, mas que não podia
vê-la com freqüência por causa do seu comportamento com a bebida
alcoólica.
Francisco, mesmo sem fazer referência a sua infância, traz
consigo uma história marcada por sentimentos de pavor, raiva e
medo. As alucinações com a aranha o fazem se sentir angustiado,
apavorado. Questionado em relação ao que faz quando das
alucinações, ele responde: “Eu saiu correndo, eu corro e não olho
para trás”. Acompanha essa fala um gesto de medo e horror. Ele
22
A palavra mendigo foi utilizada pelo próprio paciente.
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
125
inúmeras vezes a imagem fonte de prazer no roteiro de seu auto-
flagelamento.
A repetição da mesma cena no cotidiano desse sujeito – sentir-
se só, sair, beber, sentir a mente vazia, queimar-se, continuar
bebendo, perder roupa, sapato etc., até se encontrar no lugar do
mendigo
18
– demonstra que ele não só carece de referenciais
identificatórios que lhe garantam um ponto de ancoragem, como
também da possibilidade de significar suas vivências, suas relações
com as outras pessoas e, aqui, ele carece dos seus pontos de certeza
e dúvida.
Após escutar Francisco em várias sessões, foi possível construir
uma hipótese diagnóstica e, assim, tentar compreendê-lo melhor.
Em Violência da Interpretação (1975) Aulagnier distingue as psicoses
em: potencialidade psicótica, sistema paranóico e vivência
esquizofrênica
19
. Vivência que formula uma explicação única e
exaustiva sobre o vivido. Nesse aspecto temos a repetição infindável
de Francisco de uma lembrança fonte de prazer que lhe filtra o olhar,
o pensar e o sentir. Além da conceituação de Aulagnier, temos uma
outra que pode contribuir para a reflexão. Colette Soler
20
, apoiada
em Lacan, destaca três indicações fundamentais para o
reconhecimento da esquizofrenia. A primeira se funda na postulação
de que para esses sujeitos “todo simbólico é real”; o que pode ser
pensado na relação de Francisco com o momento de se vestir de
boi. A segunda se insere na esfera do discurso pulverizante. A terceira,
e mais característica em Francisco, resume-se na frase: “o
esquizofrênico se vê diante de seus órgãos sem o socorro de um
discurso estabelecido”
21
Proponho que esse paciente sofre de vivências esquizofrênicas
aliadas ao alcoolismo. Quando se mantém sóbrio, há um movimento
de nulidade, ou seja, sem trabalhar, fica sozinho em casa, seus
pensamentos são entrecortados pela sensação de um corpo morto.
Voltado para si, Francisco não construiu um sistema paranóico. O
18
A posição subjetiva de um mendigo pode falar dos significantes que representam
Francisco: “eu sou um mendigo” e na escuta do analista: eu (me) n digo.
19
As definições podem ser encontradas no capítulo anterior.
20
SOLER, Colette. A esquizofrenia. Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e
convergências. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2001. pp. 237 – 244.
21
Ibid., p. 238.
Adriana Cajado Costa
124
traz uma história de alcoolismo. Privado de uma relação familiar,
seu único referencial é o da companheira. Funcionária pública do
Estado, ela provê financeiramente o seu sustento.
A relação de Francisco com o tempo obedece a um lógica
estranha, própria ao seu movimento repetitivo de uma espécie de
metamorfose de Homem em animal/mendigo. Privado de um projeto
identificatório, seu acesso à temporalidade é interditado por um Outro
possuidor de um direito de lhe fazer viver ou morrer.
Suas inúmeras faltas à sessão prolongavam o intervalo dos
encontros em até 15 dias. Contudo, quando as retomava, percebia
que, para ele, o tempo não havia passado, a mesmidade era
predominante, o que é característico nos sujeitos psicóticos, já que
estão privados de um acesso à temporalidade.
Seu cotidiano repetitivo de uma mesma cena cobria-lhe o
olhar, Francisco não percebia as mudanças no espaço da instituição.
Comportava-se como se tivesse comparecido à sessão anterior.
Fixava em minha imagem toda sua atenção. Fato mencionado
por Aulagnier quando afirmou que o analista, para o sujeito psicótico,
ocupa o lugar do Outro. Quando aparentava algum cansaço, ele
dizia: “a senhora está cansada, deve descansar.... No início de uma
outra sessão ele comenta: “a senhora tem um bebezinho, não é? Eu
vi vocês no centro da cidade. Ele é risonho, gostei dele.... Mas, ao
se referir a outras pessoas ele não demonstrava nem a preocupação,
nem a ternura que podem ser percebidas nas falas acima.
Ao me perguntar sobre o bebê, aproveito e questiono:
EU – Você lembra quando ainda era muito pequeno?
ELE – Não, quando a gente cresce, esquece tudo, já tenho 38
anos.
Para Francisco o tempo passa cronologicamente e não deixa
marcas, lembranças...
Francisco não construiu um delírio sistematizado como o que
encontramos em Schreber ou Nijinsky
25
. Suas vivências persecutórias
25
COSTA, Adriana C. Uma escuta psicanalítica dos diários de Nijinsky: reflexões
entrelaçadas à teoria freudiana e às contribuições de Piera Aulagnier ao estudo do
sujeito psicótico. Monografia de Especialização. São Paulo, PUC/COGEAE, 2000.
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
127
esfrega as mãos nos olhos e no rosto e me olha balançando a cabeça.
No seu ato falho pôde-se identificar a que a alucinação da
aranha o remete. Mas, também, um traço característico em sua
história. Em suas experiências com o porta-voz, ele não fixa o olhar,
ele não olha, pois não há nada de diferente que possa ver, não há
um outro olhar. Na função espelho, o espelho reflete algo da ordem
do horror.
Aulagnier
23
demarca muito bem o processo identificatório, ao
salientar que, no caminho percorrido pelo sujeito, ele deve ter acesso
a um movimento de permanência e mudança. Subtítulo de um texto
singular no estudo da clínica das psicoses, seu artigo oferece uma
reflexão ao leitor que, no caso de Francisco, pode ser muito bem
aplicada.
Aulagnier recomenda que na relação transferência com o
sujeito psicótico, cabe ao analista garantir a verdade do pensamento
delirante. Contudo essa garantia só é fornecida por meio de um
sentido que torna ambígua a relação do analista com esse mesmo
pensamento, pois ele é heterogêneo às suas representações. Nessa
esfera, a relação do sujeito psicótico com um único Outro é transferida
para o analista. Transferência que pode assegurar a permanência do
sujeito na potencialidade psicótica.
O caminho transferencial vivido pelo sujeito psicótico, de
acordo com Aulagnier, pode seguir duas vias. Incapacitado de se
apoiar no ego especular, fonte de angústia por colocar em risco a
existência do Eu, o sujeito fala a partir de dois lugares: do ego ideal,
e aí ele está perdido na fala de alienação ao Outro, ou, do Ideal do
Ego, e seu lugar é o do morto. Sobre isto Aulagnier escreve:
“O psicótico não tem problema: ou nos fala enquanto Ego-Ideal e nos
tornamos objeto de sua introjeção, sendo anulada qualquer distância pois é
nele que estamos, ou nos fala enquanto Ideal do Ego, e a distância a nos
separar é infinita, pois é uma fala que não é sua que ele nos dá; ele é o
morto”
24
.
O início do tratamento de Francisco é atribulado. Além de
uma história de internações e alucinações visuais, nosso paciente
23
AULAGNIER, Piera. Os dois princípios do funcionamento identificatório: permanência
e mudança. Um Intérprete em Busca de Sentido II. São Paulo: Escuta, 1990. pp.
24
AULAGNIER (1963). Op. cit. pp. 30.
Adriana Cajado Costa
126
ELE – (balança a cabeça em sinal positivo, parecia estar
esperando exatamente essa resposta, demonstra até um certo alívio
e sorri) É verdade, eu faço isso mesmo... Eu adorava ver o boi
sendo morto, eu adorava ver o sangue escorrendo, achava lindo...
O analista oferece ao analisando, ao utilizar a técnica da
contribuição figurativa, uma “linguagem figurativa”, ou seja, uma
linguagem que propõe uma “representação que ofereça ao sujeito
um suporte exterior ao qual associar o afeto que o submerge”
27
.
Esse foi o objetivo das palavras do analista, o que não caracteriza
uma contribuição figurativa.
Como afirmou Aulagnier, o uso da contribuição figurativa é a
tarefa mais drástica de nossa prática e impossível de ser feita com
freqüência. No caso aqui apresentado, não se pode afirmar que se
fez uso dessa técnica conforme teorizada por Aulagnier, pois Francisco
apenas me descreve o que lhe ocorre quando submerso em angústia.
No momento da sessão ele não está angustiado. Para fazer uma
afirmação desse gênero seria necessário propor uma ampliação da
teorização e do uso da técnica para momentos nos quais, mesmo
sem estar angustiado, o sujeito se remete ao estado de angústia e
solicita um movimento de figurabilidade nas palavras do analista, o
que ocorreu no caso de Francisco.
Entretanto, a teorização proposta por Aulagnier influenciou
decisivamente as intervenções e a condução da análise de Francisco.
A interrupção da análise de Francisco decorre de problemas
graves que teve que enfrentar com a justiça e, principalmente, do
mecanismo objetalizador da instituição. Caso a reforma psiquiátrica
fosse conduzida devidamente, o espaço da internação seria
repensado. Retirar o sujeito de um lugar no qual está realizando seu
tratamento para interná-lo em outro é um procedimento que não
privilegia o sujeito e apenas se preocupa com o remanejamento de
leitos. Francisco foi internado em outra instituição e impossibilitado
de seguir com sua análise. Suas visitas foram restringidas à mãe e
ao irmão.
Por não possuir um planejamento no tratamento de seus
pacientes, essa instituição inviabiliza um acompanhamento e, mesmo,
um processo de singularização do sujeito. A cada nova crise, ou
27
Ibid., p. 110.
Análise de um sujeito psicótico institucionalizado
129
são deslocadas para as alucinações com a aranha, que remete à sua
mãe e para um sonho (pesadelo), que tem com freqüência, de uma
índia que tenta matá-lo. Não podemos saber se esse sonho também
se refere à sua mãe, mas posso salientar que se refere a uma figura
feminina que nunca lhe dirigiu um olhar e uma voz que o
reconhecessem em sua singularidade.
Ao analisar psicóticos, Aulagnier construiu uma técnica
específica para retirar o sujeito da angústia oriunda dos efeitos
devastadores do pictograma da rejeição, obra do originário. No texto
Da Linguagem Pictural à Linguagem do Intérprete (1980) ela demarca
o cerne e o objetivo da contribuição figurativa. Para ela o analista
deve:
“Propor ao olhar, à escuta, ao pensamento desse sujeito um ‘pensado-
figurado’ por nós, uma construção cujos signos lingüísticos (ou seja, a soma
imagem de palavras e imagens de coisas) se encadeiem de maneira a lhe
oferecer: a) No registro do sentido e da significação, um enunciado pensável,
partilhável que obedece as leis às quais todo enunciado deve se curvar... b)
No registro do discurso, essas palavras, essas imagens de palavras, não
remetem a nenhum conceito abstrato, tornando figuráveis um ‘visto’...
26
Seguindo essa regra, pode-se afirmar que o uso aproximado
da técnica na análise de Francisco foi realizado apenas um vez,
mesmo assim não corresponde fielmente ao que é postulado por
Aulagnier, pois a pergunta de Francisco é em relação a uma angústia
vivida num tempo anterior, angústia que não está presente no
momento da sessão. Recupero o trecho, já apresentado, para elucidar
outros momentos da análise:
ELE – (Silêncio) De noite eu acordo desesperado e fico me
pegando, vendo minha pulsação, fico um tempão fazendo isso, pego
aqui no braço, depois no pescoço. Por que eu fico fazendo isso?
EU – Parece que você fica muito preocupado em se certificar
que está vivo. Todo aquele gado sendo morto no matadouro, o sangue
escorrendo, a violência das marretadas, tudo aquilo ficou gravado
em sua memória e talvez você às vezes se confunda com esses
animais. É preciso se tocar e sentir o corpo pulsando para saber que
você é o Francisco e está vivo.
26
AULAGNIER, Piera (1980). Da Linguagem Pictural à Linguagem do Intérprete. Um
Intérprete em Busca de Sentido II. São Paulo, Escuta, 1990, p. 108.
Adriana Cajado Costa
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise de sujeitos psicóticos institucionalizados perfaz um
caminho que busca a singularidade na psicose. Seria errôneo afirmar
que o processo analítico de tais sujeitos é distinto daquele
desenvolvido no consultório particular, mas a marca institucional
merece uma escuta analítica. Contudo, após algum tempo de análise,
em alguns sujeitos que escutei, a instituição deixou de vigorar em
suas falas para dar lugar a uma fala que denunciava a dor, as alegrias,
os delírios e os percalços daquele sujeito, demarcando a entrada em
análise e a formação singular do espaço da palavra.
Diante de um percurso denso, cauteloso e permeado pela
atemporalidade, o processo analítico desses sujeitos informou esta
pesquisa, criou a possibilidade de que eu pudesse pensar
psicanaliticamente sobre ele. Aqui não há espaço para o fechamento,
impossibilitando que se faça uma conclusão; no máximo, posso fazer
um movimento de abertura, realizando uma reflexão sobre os limites
da psicanálise na instituição e com esses sujeitos, e demarcar seus
alcances.
Pensar os limites do trabalho do analista na instituição
psiquiátrica é ter claro para si que há um jogo de forças entre o
pensamento psiquiátrico e o psicanalítico. De um lado, tem-se um
processo de medicalização, psiquiatrização e objetalização do sujeito.
Do outro, o discurso psicanalítico que se dispõe a interrogar o sujeito,
a questionar a instituição e oferecer uma escuta que impele uma
novo surto, o paciente é encaminhado para um outro lugar, o que
auxilia em sua permanência na deriva psicótica.
Considero que essa instituição, no espaço do ambulatório,
trabalha nos moldes do manicômio, mesmo tendo implementado
pequenas modificações estabelecidas pela reforma, mas que não
interferem significativamente no tratamento, pois priorizam o espaço
físico. Concordo com Fernando Tenório quando enfatiza:
“O ‘manicômio’, ao qual a reforma se opõe, é um agenciamento social da
loucura que convida o sujeito à demissão subjetiva”
28
.
Ao se apropriar da palavra, o sujeito psicótico apropria-se de
sua história, rejeitando tal demissão. Os efeitos analíticos desse
deslizamento – de uma fala que reproduz o discurso do Outro, para
uma fala que diz de um sujeito – implementam uma mudança no
olhar do sujeito, em sua relação com a instituição hospital, “instituição
‘doença mental’”
29
e instituição família.
Por ter sido interrompida prematuramente, a análise do sujeito
Francisco deixou uma lacuna para o entendimento de sua história,
mas a riqueza de suas experiências e questionamentos me ensinaram
muito e permitiram que a reflexão que hora exponho fosse realizada,
instrumentalizando o processo analítico dos sujeitos psicóticos que
escutei na instituição psiquiátrica e demarcando sua viabilidade. A
esperança presente é a de que tão logo receba alta, Francisco retome
seu tratamento.
Adriana Cajado Costa
28
TENÓRIO, Fernando. Da reforma psiquiátrica à clínica do sujeito. In: QUINET,
Antonio. (org.). Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de
Janeiro, Rios Ambiciosos, 2001, p. 123.
29
Fernando Tenório utiliza esse termo para falar do processo de desinstitucionalização
preconizado pela reforma psiquiátrica brasileira. “A desinstitucionalização consiste
em negar não a instituição ‘hospital psiquiátrico’, mas a instituição ‘doença mental’,
isto é, negar a própria noção de doença mental que reduz o fenômeno da loucura
a uma categoria negativa e grosseiramente simplificada” (Ibid., p. 122).
130
Atravessamento esse que não está presente apenas na fala
do sujeito psicótico, mas nas relações e intervenções dos funcionários
no cotidiano do psicanalista na instituição. Quando, no primeiro
capítulo, fiz uma análise da psicanálise na instituição, demonstrei o
quanto a transferência se impõe nessa relação. De um lado, minha
figura de analista despertou um movimento transferencial dos
funcionários em direção à análise; do outro, uma delimitação do
significante instituição em minha escuta.
O trabalho possível e permitido, levando em conta a
transferência, nesta instituição, foi o de reconhecer a ocorrência do
fenômeno e, a partir daí, significar um olhar, um encaminhamento,
ações e conversas, numa perspectiva analítica, imbuindo estas
pessoas de um sentido para seu trabalho.
A crítica à burocracia institucional – mecanismo que propicia
e auxilia na objetalização do sujeito – pode e deve ser feita, não só
pelo psicanalista, mas por qualquer profissional que se depare com
as aberrações e exclusões feitas contra o sujeito psicótico, em nome
de uma organização camuflada em papéis timbrados com a marca
de uma psiquiatria organicista que transforma o sujeito em órgão e,
principalmente, reitera a vivência esquizofrênica num corpo sem
nome.
Ilustro o que tem a dizer a psicanálise em relação à presente
problemática com o pensamento de Aulagnier nas palavras de
Violante: “(...) atribuir a loucura ao código genético é mais
desestruturante do que atribuí-la à possessão do demônio! Deste, o
sujeito pode se exorcizar; do corpo, seu Eu não pode fugir e nem
abatê-lo como fonte de sofrimento, sem que o sujeito como um
todo pereça”
7
.
A medicalização excessiva, as consultas mensais de no máximo
5 minutos, as filas absurdas
8
para o atendimento contrastam com
7
VIOLANTE, M ª. L. V. O (im)possível diálogo psicanálise e psiquiatria. São Paulo,
Via Lettera, 2001, p. 11.
8
Este fato é espantoso. Certo dia, ao entrar na sala de atendimento em que realizo
algumas sessões, encontrei um papel amassado no qual constava o nome dos
pacientes que foram atendidos por determinado psiquiatra no período da manhã.
Eram 23 nomes, todos assinalados como atendidos e medicados. Num cálculo
aproximado, entre o número de pessoas atendidas e o de horas que o médico
passou na instituição (das 9:00 às 12:00), temos um resultado médio inferior a
Considerações Finais
133
fala, pois o sujeito de que trata a psicanálise “se produz a cada vez
que o paciente toma a palavra”
1
.
Ao se apropriar dessa fala, o sujeito psicótico, quando
“escolhe” tomar para si a palavra, começa a experimentar viver
sentimentos, a sofrer e se alegrar. Ao sair da posição de objeto/
máquina, o sujeito tem que se haver com sua dor. É esse começo, a
entrada em análise, um dos momentos mais difíceis da escuta
analítica e do manejo transferencial; se tudo correr bem, o sujeito
permanece em análise, caso haja algum deslize, o sujeito escolhe
permanecer no lugar de objeto, permanecer no lugar daquele que
nem chora e nem ri.
Essa travessia
2
é permeada pela “coisa institucional”
3
, ou seja,
o discurso do Outro é o discurso da instituição. Tal discurso invade o
psicótico, perpetuando sua impossibilidade de tomar a palavra. Para
Serge Leclaire (1996), “(...) todo tratamento verdadeiro de um
psicótico, quer o saibamos ou não, tirará sua eficácia do fato de
que, por meio de qualquer técnica, a fala lhe seja devolvida, e, com
isso, o acesso ao prazer, fazendo com que a palavra retome sua
função literal de anticorpo”
4
. Pois na psicose, palavra e corpo estão
juntos, submetidos ao mesmo espaço, ou seja, “é de ‘palavras-coisas’
que se trata, para o esquizofrênico”
5
. Para complementar, recupero
Aulagnier, quando diz que é de “palavra-coisa-ação” que se trata a
fala do psicótico.
A análise de psicóticos na instituição encontra sua primeira
limitação nessa confusão entre “coisa institucional” e sujeito psicótico.
A escuta analítica, como função do analista, por algum tempo, deve
apenas cumprir o papel de “(...) ser testemunha e mesmo destinatário
de uma produção refratária às nossas operações de dar sentido”
6
.
Será durante um certo tempo o lugar a ser ocupado pelo analista
em sua relação com o paciente. A partir de então, quando o sujeito
toma a palavra, o atravessamento da instituição é amenizado.
1
TENÓRIO, F. Da reforma psiquiátrica à clínica do sujeito. In: QUINET, Antonio.
(org.). op. cit., p. 123.
2
MEICHES, Mauro. P. A travessia do trágico em análise São Paulo, Casa do Psicólogo,
2000.
3
Expressão do Prof. Dr. Mauro P. Meiches, que sintetiza muito bem o que vem a ser
a marca institucional na história e na vida do sujeito psicótico.
4
LECLAIRE, Serge (1996). Escritos clínicos. Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 211.
5
Ibid., p. 218.
6
TENÓRIO, F. Op. cit., p. 128.
Adriana Cajado Costa
132
São inúmeros os limites da análise de psicóticos em instituição,
mas são limites que contam uma história, mostrando um caminho
que não se deve mais seguir e, por si só, questionam a prática
atual, que ainda mantém o olhar da exclusão. Limites que podem
ser superados, produzindo prazer onde reinava a dor e investimento
naquilo que se acreditava perdido.
Num movimento de abertura por meio do questionamento, a
análise de um sujeito psicótico institucionalizado, que apresentei
com o caso clínico de Francisco, inaugurou um caminho do possível,
da positivação do sujeito em sua psicose. Foi a partir deste caso que
minha escuta permitiu uma passagem em direção à singularidade
do sujeito que estava diluído em sua psicose, dissolução permitida e
produzida pela institucionalização. A passagem a que me refiro é a
entrada em análise de alguns sujeitos a partir de uma fala sobre si,
começando a contar sua história, ou melhor, a construí-la, ao invés
de recorrer a uma história institucional da doença e das internações.
Ao inaugurar a ruptura com a repetição infindável e fechada
do discurso institucional, a psicanálise nesta instituição atingiu alguns
objetivos. Entre seus alcances destaco: a escuta analítica,
configuração do setting – espaço da palavra –, o fenômeno da
transferência, as primeiras significações – as quais o paciente percebe
o poder falar –, a delimitação do lugar do analista na instituição e a
possibilidade de proporcionar ao paciente assumir seu tratamento.
Devo alertar que manter a escuta analítica diante da fala do
psicótico é tarefa árdua e falha. A especificidade da transferência na
psicose modifica as bases nas quais me posiciono para entregar-me
à escuta analítica, o que cria particularidades para a escuta com
psicóticos, pelo menos, em minha experiência.
De acordo com Fernando Tenório, “o trabalho da psicanálise
consiste em, diante dos fenômenos da psicose, oferecer-lhes uma
escuta clínica através da qual eles possam ‘se tornar discurso,
inscrição, obra de sujeito’”
11
. Finalidade que resgata o sujeito em
sua psicose, pois “a função do analista é acompanhar o sujeito num
trabalho que é dele, do sujeito”
12
.
11
TENÓRIO, F (2001). Op. cit., p. 125. Ao final da frase temos Sbano apud Tenório.
12
Ibid., p. 126.
Considerações Finais
135
as sessões de psicanálise que são agendadas com dia e hora marcada
e duram em média 1 hora.
Contrastantes, os paradigmas psiquiátrico e psicanalítico
podem conviver e proporcionar um tratamento complementar. O
uso do fármaco é importante, desde que não promova a anulação
do sujeito. Penso nesta complementaridade por concordar com o
pensamento de Joel Birmam quanto à diferença entre ambos:
“Enquanto a psiquiatria, ao negar a subjetividade na loucura enunciando-a
como ausência de obra, promove a dissolução não apenas do sujeito como
também da própria clínica, a psicanálise reconhece em sua clínica a
positividade de um saber sobre o enlouquecimento que reafirma o que existe
de singular na subjetividade”
9
Considero que, na instituição na qual trabalho, principalmente
no ambulatório
10
, a reforma psiquiátrica chega em vagarosos passos
e inviabiliza um trabalho mais analítico com a instituição. A diferença
descrita acima marca o diálogo que poderia ser possível entre elas.
No entanto cada um desenvolve seu trabalho isoladamente.
É por isso que o enquadramento institucional impõe regras e
normas conflitantes que favorecem a dissolução do sujeito, a confusão
dos funcionários e o trabalho enclausurado do profissional “psi”.
A psicanálise é limitada para tratar do manejo institucional, a
não ser que seja desejo da instituição e realizada por um grupo de
profissionais que reconheçam o sujeito psicótico. Numa instituição
pública como esta, que mantém um serviço oferecido a todo o Estado,
apenas um único psicanalista presente, na qualidade de pesquisador
voluntário, torna inviável tal intuito.
oito minutos por consulta: 7,83 minutos, sem descontar o tempo dispensado pelo
profissional em preencher formulários, acertar a agenda com a recepcionista etc.
9
BIRMAN, Joel. Despossessão, saber e loucura: sobre as relações entre psicanálise
e psiquiatria hoje. Psicanálise e Psiquiatria: Controvérsias e Convergências. Rio de
Janeiro, Rios Ambiciosos, 2001, p. 29.
10
O CAPS, que também funciona no hospital, está de acordo com a reforma. Mantém
oficinas, atendimento psicológico e psiquiátrico, e os usuários desenvolvem suas
atividades conforme suas preferências. O próprio prédio demonstra a diferença.
Possui salas amplas com mobiliário condizente à oficina que abriga. No caso do
ambulatório, tem-se a cena de uma prisão, com grades, aspecto sombrio e bancos
de madeira para servir de descanso durante a espera na fila para o atendimento
psiquiátrico. Espaço típico do antigo manicômio.
Adriana Cajado Costa
134
nossa condição); a facilidade com que delírios e alucinações são
reduzidos à terapêutica de um bem-estar psicossocial, ainda que
produzindo um agenciamento social mais generoso, tudo isso pode
servir à nossa dificuldade de admitir a diferença radical e a dureza
da condição psicótica”
14
, e compactuar com o discurso que não
promove o sujeito e nem está de acordo com a ética que todo
psicanalista assume.
A ética psicanalítica no tratamento de sujeitos psicóticos deve
se pautar em “reconhecer a diferença em vez de a abolir, dar lugar
àquilo que escapa à nossa operação cotidiana de sentido e admitir o
real da psicose como ponto de partida de nosso trabalho”
15
, e é
justamente aí que a escuta psicanalítica torna-se difícil de ser
sustentada.
O balanço que apresentei da análise de sujeitos psicóticos
em instituição psiquiátrica também conta uma história. Evidencia
que a psicanálise não pode ser generalista, fechada e comprometida
com normas ou regras estranhas a sua ética. Cada dupla analítica
em cada instituição desenvolverá um trabalho que percorrerá um
caminho possível e condizente com a história de cada um. Se há
uma clínica do singular, essa clínica é a psicanalítica.
14
Ibid., p. 131.
15
Id.
Considerações Finais
137
A escuta analítica barra o processo de dissolução do sujeito,
por criar as condições necessárias e suficientes que permitem a
abertura de um espaço, no qual ele (o sujeito) toma a palavra e se
permite questionar. Ao formular uma questão, ou ao contar sua
história, o sujeito dá início a um novo trilhamento, a construção de
sua obra.
No seu movimento de cura, o psicótico delira, já dizia Freud.
Ao tomar a palavra, a escuta deve buscar o sujeito em sua psicose
e será dela que ele deve advir
13
para garantir sua singularidade.
Será nesses termos que haverá escuta analítica e que o espaço da
palavra será construído.
A partir de então, o discurso do sujeito psicótico é direcionado
a uma testemunha. Com um destinatário para sua fala, ocorrem as
primeiras significações com as quais é possível ter uma resposta de
um outro. Ao perceber as mudanças produzidas na relação
transferencial, o analista pode introduzir novos elementos para
favorecer um melhor remanejamento do sujeito com sua nova
situação diante do mundo, ou seja, sua nova condição de sujeito,
mas sempre psicótico.
Ao se ver sujeito de sua fala e portador de um corpo menos
dilacerante, percebi, com aqueles que atendi, que eles assumem o
tratamento com o objetivo de ficarem “bons”. Ao questionar esse
desejo de cura, surpreendi-me com a resposta, eles não almejavam
a normalidade, mas trabalhar, casar, ter filhos, viajar, ter uma velhice
tranqüila, tudo dentro de sua forma de pensar o mundo, a partir de
suas certezas, de suas explicações e de seus delírios.
Talvez o que podem almejar ainda esteja sob a égide de um
Outro que os esmaga, e pontuar tal ocorrência, nesse momento da
escuta, produza efeitos de subjetivação. Em alguns casos isso foi
feito, em outros não, sempre obedecendo à ética psicanalítica. Pois
“a romantização da loucura; a aposta voluntarista nas potencialidades
do sujeito psicótico (que o carrega de exigências fálicas às quais ele
muitas vezes não pode responder: ‘trabalhe’, ‘seja independente’,
‘cuide de si’); a valorização ingênua dos ideais de autonomia e
liberdade (que desconhece o caráter radicalmente heterogêneo de
13
Este pensamento é defendido por TENÓRIO, F. (2001). Op. cit.
Adriana Cajado Costa
136
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