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Curiosidades e Factos Notaveis do Ceará
J. G. Dias Sobreira
Digitalização e revisão de Juan Carlos
<euclidesite@hotmail.com>
Reprodução permitida somente para fins escolares.
Digitalizado de
SOBREIRA, J. G. Dias. Curiosidades e factos notaveis do Ceará. Rio de Janeiro: Desembargador
Lima Drummond, 1921. 135 p.
NOTA: A ortografia original foi mantida.
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CURIOSIDADES
e
Factos notaveis do Ceará
pelo professor
J. G. Dias Sobreira
O que me proponho a escrever linhas abaixo, são factos, que não admittem contestação; por mais
extraordinarios que pareçam, são elles naturaes e verdadeiros.
Peixes Petrificados
Nas faldas da serra do Araripe, municípios do Crato e do Jardim, no Cariry, ha uns pedregulhos,
em certas baixas, descobertos pelas aguas pluviaes, que descem da serra, cujas pedras toscas, de
todos os tamanhos e formatos achatados, partem-se em bandas, apresentando o esqueleto
perfeito de peixes petrificados, muitos dos quaes conhecidos; notando-se, em alto e baixo relêvo, o
desenho da coluna vertebral, das espinhas, barbatanas, olhos, guelras e caudas; e em outras até
camarões e carangueijos petrificados;
[p.4]
como que denunciando que o mar já estivéra alli com "as suas salsas ondas encuravadas" como
diz Camões, em seus Luziadas.
Alguns desses exemplares, acham-se no Museu, em Fortaleza, capital do Estado.
Além desses signaes evidentes, encontram-se alli monticulos de cascas de carangueijos, conchas
e outras manifestações de praia.
Quem as levou para tão grande distância?
Só o próprio mar as podia ter alli deixado, em tempos immemoriaes.
VEGETAL QUE NÃO MORRE
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Todos os annnos, pelo verão, que dura seis meses e mais, de Julho a Dezembro, sem cahir uma
só gotta d'agua de chuva; no fim desse tempo, o alto sertão dá idéia de ter sido devastado por
grande incendio.
Nem uma folha verde!
Tal é o aspecto contristador do sertão outrora tão verdejante e uberrimo, como no tempo do
inverno, que terminou.
Agora o viandante não vê sinão ramos desfolhados que parecem de arvores mortas pela sequidão
dos campos.
Nem uma folha verde se encontra!
O solo fica varrido e o gado morreria de inanição si não fosse o auxilio do sono.
Neste estado de absoluta falta de verdura, uma chuva basta para, no dia seguinte, no dia
immediato, amanhecer grande parte daquelles campos coberta de surprehendente verdura!
Milagre? Não.
É uma planta rasteira, que vegeta durante o inverno (tempo das aguas pluviaes) e a de que os
animais não se servem, por não lhes agradar, talvez, o
[p. 6]
paladar. Agóra, porem, que tudo está secco e mirrado, sem vida, basta a côr verde para lhes
appetecer, ao menos emquanto vem outra rama, elles comem esta com avidez.
Essa planta prodigiosa é conhecida pelo nome de orós. Outros a chamam giricó em memoria,
talvez da rosa de Jericó, que, estando secca, abre-se logo que a ponham n'agua.
Durante a secca ou verão, as suas ramas enroscam-se sobre si mesmas, solta suas raizes do solo,
e, em forma de pequenos torrões, fica rolando disseminada sem vida, nos campos em que se cria.
A primeira chuva basta para dar-lhes vida e distender suas ramas, até então enroscadas,
conservando a mesma extensão, que ellas tinham ao perder a seiva, que possuiam durante o
inverno anterior, quatro a seis centimentros de comprimento!
Neste estado, o gado as come com avidez, sem se aperceber, talvez, do mau paladar!
Orós é o nome dessa planta phenomenal, que não morre com a secca!
ARVORES UTEIS
Quatro especies de arvores, que vegetam no sertão cearense, de uma utilidade incomparavel, são
a carnaubeira, a oiticica, o joaseiro e o piquiseiro.
Carnaubeira
A carnaubeira vegéta abundantemente nas varseas, e as grandes seccas nenhum damno lhe
causam. Conserva-se sempre verdejante e viçosa, como si lhe fosse indifferente a falta das
chuvas.
A carnaúbeira é uma linda palmeira e das mais uteis ao homem.
As raizes são excellente depurativo e substitúem com vantagem a salsaparrilha, com a qual muito
se assimilha, na figura e na côr.
A haste é usada na construcção de casas, já para travessões, já para caibros, tesouras, etc. E' de
forma cylindrica em todo seu comprimento:
A haste da carnaubeira estando ao abrigo das chuvas não tem fim a sua duração.
As suas fibras correm todas na direcção da haste, de modo que é muito facil abril-as em bandas ou
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quartos para servir de caibros e outros mistéres.
[p. 8]
As folhas são abertas em forma de leques regulares, destendidas na ponta de um talo, guarnecido
de espinhos rijos e recurvados, no tronco do qual alarga-se para prender-se à haste de onde se
desprende quando seco.
Com esses talos tecem cercas bellissimas, que privam os animaes de destruir suas plantações.
As folhas, que verdes tinham a forma de léque, ao amadurecerem, pendem ellas na direcção do
tronco, tomando agora a forma do léque fechado.
Neste estado, a população pobre utilisa-se d'ellas para cobrir suas choupanas e é de grande
duração.No logar da cosinha duram um decennio, por causa da fumaça, que as esterilisam.
Os fructos da carnaúbeira são dispostos em grandes cachos e assimilham-se a uma azeitona,
quando maduros.
As crianças, as cabras e ovelhas gostam muito da sua polpa, que é bastante adocicada.
A amendoa, que elles contêm, sendo torrada e moida tem a côr perfeita do café e é usado como tal
para alimento misturado com leite.
E' bebida agradavel e sadia.
Das palhas novas ou olhos fabricam cordas, chapéos, esteiras, balaios, urús e muitos outros
objectos de commercio.
Ainda dessas folhas novas extrahem a cêra de carnaúba, hoje vantajosamente conhecida.
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Para esse fim estendem-nas em logar abrigado pelo vento e estando bem nas seccas, levam-nas
sobre um lençol e, com uma varinha, batem sobre a palha, da qual se desprende um pó glutinoso
um tanto abundante.
Esse pó, posto depois em vasos de barro ou tachos, ao calor do fogo, derrete-se formando a cêra,
que hoje já se fabrica em grande quantidade para exportação.
A descoberta desse producto foi feita, perto de 1810,pelo cearense Sr. Antonio Manoel de Macedo.
O Dr. Marcos Antonio de Macedo, seu parente proximo, tratou de fazel-o conhecido, enviando-o
para laboratorios Europeus, afim de ser analisado e procurar sua applicação na industria.
A haste desta utilissima palmeira pode chegar a 20 metros de comprimento.
A carnaúbeira, quando nova, até a altura de cinco a seis metros, é de difficil aproximação do seu
tronco, por causa dos innumeros espinhos.
Para desembaraçal-a deitam-lhe fogo ás palhas seccas, que em vez de matal-a, pois fica
exteriormente carbonisada, dois ou tres mezes depois, está ella a util carnaúbeira completamente
refeita e viçosa, o que não supportaria nenhum outro vegetal. Morreria!
Vi, em S. Bernardo das Russas, entre o enorme carnaúbal, duas ou tres d'ellas com galhos; o que
é um verdadeiro phenomeno!
[p. 10]
Oiticica
A oiticica vegéta á margem dos correntes; engrossa muito no tronco; mas é de pouco crescimento.
A sua maior altura é, talvez, dez metros. Esgalha muito e faz muita sombra.
Os seus frutos são abundantíssimos e produzem muito azeite applicavel ás machinas, como
lubrificante.
Já o sabem purificar.
O fructo é similhante a um cajá verde, sempre pequeno.
Esta arvore nunca perde a sua folhagem; e, por isso, é o pouso escolhido pelos viandantes e
animaes, durante a secca ou verão.
Suas folhas são intragaveis e duras.
Joaseiro
O Joazeiro é a terceira e ultima arvore do sertão cearense, que não perde a sua folhagem no
correr da seca, sinão por pouco tempo; pois, cahindo as folhas velhas, logo se reveste de novas e
abundantes, acompanhadas da floração.
Os frutos são redondos, pequenos e cobertos de uma polpa adocicada, quando maduros e muito
ambicionados pelos porcos, cabras e ovelhas.
A amêndoa ou caroço do joá é muito rígido; de modo que os ruminantes o deitam fóra, por
occasião da segunda mastigação: não o trituram.
Não tem sabor nenhum acido, ainda mesmo estande verde o fructo, caso em que não se disprende
do ramo sem que seja tirado.
As arvores novas e os galhos são guarnecidos de espinhos rigidos.
O mel das flôres do joaseiro, colhido pelas abelhas, é muito saboroso e espumante.
As folhas são muito amargosas, mas o gado as come em falta d'outras.
A raspa da casca do joaseiro serve como sabão finissimo para lavar seda e outras fazendas finas e
delicadas.
Desprende muita espuma, como o melhor sabonete.
Utilizam-se da raspa do joá tambem para lavar os dentes e a cabeça.
O joaseiro cresce nas varzeas, á margem dos correntes, nas planicies arenosas e raramente nos
taboleiros.
É arvore secular.
Pisiqueiro
O pisiqueiro é, no Cariry, uma arvore utilíssima.
Vegéta abundantemente sobre a serra do Araripe.
Dá um fructo, que contém uma castanha envolvida n'uma casca móle, grossa e muito amargosa;
mas o gado vaccum a come, deitando fóra o caroço
[p. 12]
ou castanha, talvez por causa dos espinhos, que ella encerra.
O seu tamanho regúla o de um limão com a figura da castanha do cajú; a esse fructo chamam
piquí.
Não se tira do galho; espera-se que se desprenda por si; do contrartio a casca não se separa da
castanha e fica amargosa e sem serventia.
No tempo da colhêta, que é annualmente de Novembro a Dezembro, os habitantes os vão colher,
em grande quantidade, espalhados pelo chão em baixo dos pisiqueiros e os levam aos mercados.
Conduzem-nos em cassuás ou malas de couro e saccos.
Para servirem-se da castanha ou piqui, rolam a casca com uma faca e retiram-na de dentro
facilmente.
Neste ponto comem-na, mesmo crua, assada ou cosida.
É, porém, preciso muito cuidado, porque logo por baixo d'aquella polpa alimenticia, acha-se uma
camada de espinhos muito delgados e rigidos, que se soltam con facilidade, ao contacto dos
dentes, e penetram na lingua.
Conhecido, porém, este perigo, é o piquí um alimento sadio e muito utilisado por toda população
daquela região do Cariry.
A sua polpa é bastante oleósa.
No tempo do piqui, toda a pobreza vive farta e gorda.
Quando cosido solta muito óleo, que guardam, em
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garrafas para tempêro de outros alimentos ou para venderem.
Da amendoa, que a castanha contém, extrahem outra porção de óleo claro, sendo que o da polpa
é de cor amarella como a banha de gallinha.
O piquí, apezar de saboroso, tem um cheiro bastante activo e desagradavel, assimilhando-se ao do
peixe.
A madeira ou haste é tortuosa; e suas fibras são retorcidas em todas as direcções, de modo que
não se presta a ser rachada em achas.
Não contém amago por grossa que seja.
A sua flôr é miúda e os fructos crescem separados ou ligados, contendo duas, tres ou quatro
castanhas bem desenvolvidas, o que se conhece, mesmo antes de abrir com a faca, por causa da
forma externa, que tomam.
Algumas pessoas gostam de fazer provisão de piquís para usarem depois da safra.
Para conserval-os sem se deteriorar, salgam-nos e os deitam a seccar ao sol ou á sombra; mas
apezar de ser o mesmo piquí, já não é tão saboroso como quando ainda frescos.
[nota manuscrita, provavelmente do autor](Em Mato Grosso, o piqui é muitissimo apreciado para o
fabrico de um precioso licôr que toda a população usa, na occasião em que esse fructo apparece.
Ha porém uma modificação a se fazer neste livro, quanto ao piqui, naquele Estado (Mato Grosso).
É que lá o gado váccum não aproveita o invólucro da castanha; a qual não &%#* pasto a nenhuma
especie de gado.)
[p. 14]
FORÇA PRODIGIOSA
Na comárca de Quixeramobim vivia uma familia meio abastada, cujo chefe chamava-se Borges
Gomes, casado e tendo tres filhos varões.
Uma noite o velho chamou os seus dois filhos mais velhos e ordenou que, no dia seguinte, pela
manhã, levassem uma junta de bois a um certo logar e de lá trouxessem um pau, afim de fazer
d'elle um coxo para a casa de farinha.
Com effeito, pela manhã, os dois rapazes pegaram os bois, metteram-nos em um carretão e
seguiram para o logar indicado.
Lá estava o tronco, tão grosso e pesado que os bois não o poderam arrastar.
Depois de empregarem todos os esforços, desligaram-no do carretão e voltaram sem o levar,
dizendo que os bois não poderam com elle.
O filho mais moço, que se achava presente, na occasião, disse:
_ Deixem que eu vou buscar o pau. E sahiu.
Todos tomaram aquelle dito por méra brincadeira.
Mas, qual não foi o assombro e pasmo de todos, quando, algumas horas depois, voltava Bernardo
[p. 15]
(assim chamava-se elle) com o pau ao hombro e o lançara ao terreiro da casa, dizendo:
_ Está aqui o pau.
Todos acorreram a vêr o que se passava, exclamando:
_ Isto é arte do diabo! Não é possível que um menino tenha mais força do que dois bois!
_ É o diabo!
Gritavam todos! É o diabo!
O velho, tomado de terror, disse com voz espavorida:
_ Ponha-se fora de minha casa! Eu não quero o diabo aqui!
O pobre mocinho sem culpa, mas obediente, sahiu sem destino.
Corria o anno de 1872.
Algum tempo depois chegou elle a Fortaleza e uma vez alli, divertia-se em praticar algumas
proezas admiraveis, que lhe mereceram a alcunha de mandingueiro ou feiticeiro.
Partia elle com os dentes uma moeda de cobre, tirando della quantos pedaços quizesse.
Um dia dirigiu-se elle á loja do Sr. Antonio Gonçalves da Justa e perguntou si tinha machados
California.
Eram uns machados americanos, conhecidos por este nome, cujo aço era tão polido que podia
servir de espelho.
O caixeiro affirmou que sim.
[p. 16]
O moço disse: Quero vêr e quero bom.
O caixeiro apresentando-lhe o machado, respondeu-lhe o freguez:
_ Ah! este não presta: é de cêra.
_ Disse o caixeiro:
Qual de cêra! Você não encontra melhores.
O sertanejo continuando a affirmar que era de cêra, interveiu o patrão e disse que o machado era
verdadeiro Calífornia, não existiam melhores.
_ Affirmno que este machado é de cêra; e, si o Sr. duvida, eu tiro um pedaço com os dentes.
_ Tire lá, disse o patrão.
O nosso desconhecido, levou o machado á bocca e arrancou delle um grande pedaço, deixando-o
inutilisado e o patrão e caixeiro pasmados pelo que acabavam de presenciar!
O rapaz sahiu deixando-os atonitos, a se olharem sem dizer uma palavra!
O nosso mandingueiro vagou algum tempo pela capital e seus arredores e desapareceu.
Passaram-se os annos, quando manifestou-se a grande e terrivel secca de 1877 a 1879.
Começa a capital a encher-se de emigrantes famintos e o nosso Bernardo fazendo parte delles, a
exhibir as suas mandingas, que o povo as tinha como sendo arte do maldito! Arte diabolica!
Já para o fim da secca, o governo que fornecia generos em abundaucia, começou a escacear; e,
para diminuir a população de emigrantes na capital, o Pre-
[p. 17]
sidente os mandou acampar em Porangaba, oito kilometros distante dalli.
Lá estavam elles debaixo do cajueiral, abrigados por palhoças de ramos das arvores.
Uma tarde ouviu-se o apito da locomotiva, que ia da capital.
O povo, na esperança que o trem conduzisse generos, acorreu para a estação.
Chegou o trem e nada levou.
Este facto desagradou os emigrantes; e o nosso mandingueiro, que se achava entre elles, disse,
referindo-se ao trem:
_ Pois este diabo não sae daqui, que eu não quero; e approximou-se da trazeira do ultimo vagão.
Alguns minutos depois, a sineta deu signal de partida.
A locomotiva apitou, dando assim o ultimo signal.
Os emigrantes, que esperavam um fiasco da parte do Bernardo, ficaram attentos ao lado do
mandingueiro.
Ao terminar o segundo apito, o machinista deu movimento e as rodas entraram a mover-se, mas
como um motor fixo!
Isto causou grande surpreza em todos: ao machinista, passageiros e aos circumstantes.
Parado o movimento estático da locomotiva, todos deixaram seus logares, anciosos por saber a
causa.
Tudo examinado, nada encontrou de anormal o machinista.
[p. 18]
Segunda tentativa, o mesmo phenomeno reproduziu-se.
Os emigrantes, vendo que o trem não andava, disseram:
_ Bernardo, deixa o trem ir embora!
_ Bem, respondeu elle:
Vae-te, diabo!
E, soltando a traseira do ultimo vagão, que elle segurava com uma das mãos, o trem deslizou
sobre os trilhos e desappareceu na linha, no meio de uma quantidade, sem conta, de palmas e
gritarias dos emigrantes!!
E diziam:
_ É damnado mesmo o diabo deste mandingueiro!!
_ Nunca pensei que elle fizesse isto! Dizia outro.
Esse excepcional sertanejo, dotado, pela natureza, de um dom tão prodigioso e extraordinario,
nunca se utilisou delle, em proveito proprio, sinão para se divertir e attrahir sobre si o mau pensar
dos ignorantes, suppondo ser arte diabolica aquelle dom natural, do qual nunca se aproveitou,
podendo ter-se locupletado e enriquecido!
Morreu pobre e miseravel, levando para a sepultura somente a alcunha de mandingueiro, que o
povo lhe déra.
"E digam os sabios da Escriptura,
Que segredos são esses da Natura".
[p. 19]
ANIMAL QUE SE CURA A SI MESMO
O tejuassú é um lagarto da especie dos camaleões, mas não se trepam como estes; andam
sempre de rasto.
É caça appetecida pela gente do povo.
O seu tamanho ou comprimento, da cabeça á ponta da cauda, que é longa, regúla de 80 a cem
centímetros.
A sua côr é escura, tirando a preto, com malhas brancas desmaiadas, sendo que a cauda é ornada
de annéis brancos e pretos em toda a sua extensão.
É inimigo da cobra cascavel; e, encontrando-a, investe contra ella, açoutando-a com a cauda até
entorpecel-a, até deixal-a sem acção.
Si, no meio da lucta, a cobra ferra-lhe o dente, o tejuassú corre vertiginosamente e, alguns minutos
depois, está de volta atacando o inimigo com maior ardor.
A que ponto teria o tejuassú se dirigido, na sua veloz carreira?
Foi curar-se do veneno do temivel reptil!
Foi ter á sua pharmacia, a batata do seu nome; comeu um pouco e sentindo-se curado, voltou a
terminar a lucta começada!!
[p. 20]
Desfallecida a cobra, elle esmaga-lhe a cabeça com os seus rijos dentes!
Está assim terminada a sua missão.
É facto corrente na bocca de todo o sertanejo, affirmando alguns de já terem presenciado essa
lucta de morte.
[p. 21]
AVES DE ARRIBAÇÃO
Um phenomeno, que se manifesta, nas grandes seccas, é o numero prodigioso de aves de
arribação.
Nos annos communs, ninguem noticia d'essas aves.
Não se sabe de onde procedem; o certo é que ellas aglomeram-se em tamanhos bandos, que ao
passarem voando, não se encherga o ar do lado opposto, que ellas atravessam!
Estando pousadas e espantando-se, voam todas a um só tempo, produzindo um forte ruido ou
estrondo, como de um trovão longinquo.
Alguns mezes, depois do seu apparecimento, chega o tempo da postura.
Então affluem todas para um ponto da matta e a esta reunião dão-lhe o nome de pombal.
Cada uma põe somente dois óvos, mas a quantidade dellas é tamanha que, uma semana depois,
juntam-se cargas e mais cargas de ovos, que ellas põem a granel, espalhados em toda a extensão
occupada pelo pombal!
Juntam-nos e os cosinham duros para não se machucarem e os levam aos mercados.
É alimento saborosissimo e tem o gosto do ovo de gallinha.
[p. 22]
Só vendo-se (parece fabula) a reunião daquella multidão sem conta, e apezar da destruição, por
todos os meios, ellas reproduzem-se consideravelmente, nesses pombaes!
Havendo seccado as aguas, ellas procuram onde beber, e só a podem encontrar em algum açude.
Para lá dirige-se toda aquella imensa quantidade de pombas sequiosas, a beber com grande
avidez.
Os moradores julgam-se, então, com a vida ganha; porque não lhes faltará, tão cedo, carne nem
dinheiro.
Armam barracas ou espéras de ramos bem tapadas, dispondo uma travessa encostada n'agua,
sobre a qual as incautas e sequiosas pombas vão pousar afim de saciar a sêde.
Pousam alli aos montões, aos milhões!
Introduzem n'agua o bico até acima dos olhos; tal é o affan, a anciedade com que ellas pousam
para beber!
Aquella turba-multa não se apercebe que as suas companheiras estão desapparecendo, logo
após!
O homem, que está escondido na espera ou barraca, mettido n'agua, que as pombas vão beber,
vae puxando-as pelo bico e estrangulando-as, em tamanha quantidade, que, em um quarto de
hora,já tem juntas mais de um milheiro!
Quando julgam ser bastante, sahem do esconderijo e vão preparal-as para o seu sustento e da
familia; mas, como sobra, em demasia, depois de salgadas, expõem-nas ao seccar ao sol.
[p. 23]
Depois de bem enchutas, levam-nas em cargas e mais cargas aos mercados para vendel-as.
Negociantes ha que as compram em tanta quantidade, ao ponto de encherem armazens até ao
tecto.
É o refrigerio da pobreza, é o manná, que Deus envia para sustento d'aquella onda sem conta de
flagellados, que a grande secca os reduziu á miseria!
Na grande secca de 1845, a Camara Municipal de Quixeramobim, vendo o nome d'essas aves não
lhe soava bem, entendeu de reunir-se em sessão especial, e determinou, sob pena de prisão, que
d'alli em diante fossem chamadas _ avoantes, nome pelo qual são ellas hoje conhecidas, em todo
Ceará.
[p. 24]
Corria o anno de 1864, quando, uma noite, assistindo eu a um cantador de improvisos, ao som de
uma vióla, entre muitas outras quadras, cantou elle uma que nunca mais sahiu-me da memoria.
Foi a seguinte:
«No tempo qui eu cantava,
«Que meu peito arritinia,
«Eu cantava no Icó,
«No Cariry se ouvia.»
Ora, o Cariry é uma grande area de terreno fertilissimo, em cujo centro acha-se situada a cidade do
Crato, que dita trinta leguas da do Icó.
Não é possivel a voz humana chegar a ser ouvida a tamanha distancia, por vias naturaes.
O cantador queria apenas exagerar a força do seu peito, cantando, e ninguem supporia que isto
podesse jamais acontecer; era um exagero de sua parte.
Correram os tempos, quando, já em 1900, trinta e seis annos depois, estava eu feito encarregado
da estação telegraphica do Crato, justamente no Cariry e um outro collega da estação telegraphica
do Icó, justamente a cidade citada, na quadra acima transcripta.
Uma noite, o collega que se achava no Icó, chamou-me pelo apparelho telegraphico, e perguntou-
me si eu queria ouvir uma modinha.
_ Affirmei que sim.
_ Retorquiu elle:
Então vamos ao telephone.
Está tudo aclarado.
Commutei a linha para o apparelho telephonico e ouvi cantar no Icó estando eu no Cariry.
Applaudi as cantoras, agradecendo a fineza e ellas e o collega fizeram-me recordar a predição do
cantor.
Eram uma moças que estavam em visita á familia do collega e divertiam-se em cantar
acompanhadas ao som de um violão.
Eis a realisação da prophecia:
«Cantava-se no Icó»
«No Cariry se ouvia.»
Naquelle tempo, em 1864, quem seria capaz de pensar, ao menos, que um apparelho podesse
conduzir a voz humana a tal distancia?!
O propheta o disse.
Cumpriu-se!
[p. 26]
UM JANTAR DE PEDRAS
Entre o povo da plebe, muitas vezes completamente analphabeto, encontram-se caboclos de uma
intelligencia, de uma perspicacia admiraveis.
O facto seguinte dá-nos uma nova prova arrebatadora d'isto:
Viajava certo cavalheiro no alto sertão, onde as moradas são muito distantes umas das outras.
Nada conduzia para comer, juntamente com o seu pagem. Levava dinheiro e portanto não
precisavam conduzir uma carga com alimentos.
Viajavam escoteiros.
Sahiram uma manhã, antes do dia amanhecer, afim de aproveitar o tempo fresco.
Era já meio dia, não encontravam ninguem e precisavam descançar.
Uma meia hora depois, avistaram uma morada ao lado da estrada.
Para lá se dirigiram, na esperança de obter alguma cousa para o jantar daquelle dia.
Antes de tudo, pediram licença para se arranchar. É este o uso do sertão.
Concedida esta, apearam-se á sombra de uma grande latada coberta com folhas de oiticica, que
não se separam do ramo, sinão a custo.
O arrieiro ou pagem tirou da maca, feita de couro de carneiro, cortido com cabello, uma vistosa
rede de varandas; armou-a entre dois esteios da latada e disse:
_ Patrão, a rede está armada.
Em seguida tirou os arreios dos animaes, foi dar-lhes agua, laval-os e deital-os a um cercado, onde
havia ainda um pouco de capim murcho para forragem dos animaes dos viajantes, que pagam por
cabeça certa quantia previamente ajustada.
Voltando elle desse ligeiro trabalho, disse dirigindo-se á dona da casa:
_ Dona, pode vamicê vendê uma gallinha ou um frango p'ra nós jantá?
_ Não tenho. Respondeu ella seccamente.
_ Antão, nos arrange uma pedaço de carne secca.
_ Também não tenho.
_ Neste caso, uns óvo.
_ Não tenho nada. Retorquiu a mulher.
Era inservivel.
_ Patrão, disse o arrieiro com voz firme. Sabe que mais?
Vamo fazê nosso jantá de pedra qui é muito mió.
Eis o repente, a ideia luminosa do arrieiro.
E dirigindo-se á senhora, acrescentou:
_ Dona, visto não nada p'ra se cumê eu vou fazê o nosso jantá de pedra.
E seguidamente começou a juntar umas pedras no terreiro, pondo-as na fralda da camisa.
[p. 28]
A mulher ficou olhando.
Tendo juntado cerca de litro e meio de pedras bem roliças, voltou-se e disse:
Sa dona, póde vancê me arrumá uma panella p'ra mode cuzinhá estas pedra?
A mulher, já curiosa, repondeu:
_ Posso, sim sinhô.
Veiu a panella.
_ Um vaso com agua?
Veio a agua.
O nosso ardiloso repentista fez o fogo alli mesmo e deitou sobre elle a panella com agua; e,
lavando as pedras, lançou-as dentro.
Logo em seguida pediu sal, que veiu sem demora.
A senhora mostrava-se cada vez mais curiosa, e não se affastou mais d'alli.
Começando a agua a ferver, disse o cosinheiro:
_ Sá dona, mincê póde arrumá um pouco de gordura p'ra tempero?
Ella arranjou, e o homem pol-a na panella.
A cousa ia bem.
O repente, o ardil do arrieiro ia dando o resultado esperado e desejado.
Depois disse elle:
_ Si tivesse um dente de toucim, umas fôia de cuento, umas pimenta, uns tres óvo...
A senhora, que estava anciosa por vêr o que resultava d'aquillo, arranjou tudo, sem se aperceber ,
sem reflectir.
[p. 29]
Meia hora depois estava prompto o jantar; pois já recendia agradavem aroma, deprendido pela
fervura.
Já neste ponto, disse o cosinheiro:
Sá dona, póde arrumá uns dois prato, duas cuié e um pouco de farinha?
A senhora, embebida na sua curiosidade, e, anciosa, cada vez mais, pelo resultado, tudo arranjou,
quando antes nada tinha!
Bemdita curiosidade!
O cosinheiro tirou a panella da trempe improvisada, pol-a a um lado e despejou um pouco daquelle
saboroso caldo num prato com farinha, preparando assim appetitoso escaldado, que serviu o
patrão e a si mesmo.
Feito isto, lançou ao terreiro as pedras ainda fumegantes e começando ambos a servirem-se do
appetitoso e saboroso manjar, disse a senhora com ar desdenhoso:
_ Eu bem logo vi que os senhores não comiam pedras!
A ideia, o ardil do arrieiro metteu-a na maca!!
Era tarde a observação.
[p. 30]
CURANDEIROS DE COBRA
É o sertão cearense fertil em curiosidades de toda especie.
Existe alli, de longe em longe, uma especie de patriarcha, que não desmente a sua fama.
São os curandeiros de cobra.
Quando algum animal é picado ou mordido por algum desses temiveis reptis, dizem logo os
sertanejos:
_ Mandem depressa chamá o véio Bastião.
Um positivo desfila a correr na direcção da sua morada.
Si o enconrtra, está salvo o pobre animal ou mesmo alguma pessoa, que tivesse a desdita de ser
picado por alguma cobra.
Ao chegar lá o portador, dá-lhe a notícia, e elle o curandeiro, responde:
_ Pode voltá.
Si ainda não morreu, não morre mais; e accrescenta:
Leve meu chapeu qui eu já vou.
E assim é.
Está salvo.
Apparece depois o nosso velho Bastião, conversa um pouco e volta levando o chapeo que o porta-
[p. 31]
dor trouxera, e está feita a cura do animal ou da pessoa mordida pela cobra.
Algumas vezes, quando é alguma pessoa e começa a perder a vista e os sentidos, os
circumstantes julgam o caso perdido. Vae morrer.
Chega neste interim o curandeiro, que não tinha sido encontrado e está, apezar disto, está salvo o
doente!
Não morre mais daquella vez.
Abre os olhos, que estavam cerrados, esfrega, com ambas as mãos, o rosto, senta-se, conversa,
dizendo como o caso se deu, põe-se de pé e está salvo o homem, como si nada houvera lhe
acontecido!!
Contam que um padre, ainda novo, fôra tomar conta de uma Freguezia do alto sertão.
Empossado do cargo, algum tempo depois, veio a saber que em sua freguezia, bem perto, havia
um homem afamado curador de cobra.
Achando elle que isto não passava de feitiçaria, mandou chamal-o a sua presença, e prohibiu
terminantemente, que elle exercesse essa profissão vedada pela igreja, e para intimidal-o disse:
_ Si o Sr. adoecer, sem deixar essas curas, morrerá sem confissão, porque eu lá não irei.
O homem prometteu não curar mais e sahiu certo disso.
De tempo em tempo lá ia um chamado ás pressas para curar uma vacca, um bezerro, um cavallo...
A tudo elle se recusava e o animal morria.
[p. 32]
Até uma pessoa teve a mesma sorte.
Não posso, não vou, dizia elle, purque o seu Vigaro imporibiu.
Já estavam todos certos disso, e ninguem se animava a chamal-o, porque o homem não ia mesmo.
Temia elle morrer sem confissão.
Um dia, o cavallo de sella do Sr. Vigario, appareceu mordido por uma cascavel.
Via-se o logar, em que a cobra picou; minava sangue.
O cavallo estava cahido, estirado no chão; já não se levantava.
Alguns visinhos disseram:
_ Mal empregado! Um cavallo tão bonito e tão bom!
_ Sr. Vigario, mande chamar o velho Bento sinão o cavallo morre; mande sem demora; não diga
p'ra que é.
O Bentinho morava n'uma palhoça, no fim da rua.
Chegando elle, o Vigario, que sentia a perda do seu cavallo alli estendido, no chão, já quasi sem
vida, disse:
_ Si o Sr. curar o meu cavallo, eu dou licença para curar tudo, que quizer.
O velho curandeiro mostrando-se satisfeito pelo levantamento da prohibição, approximou-se do
animal, que ainda estava deitado e batendo-lhe no corpo, com a mão, em signal de affago, deu-lhe
em seguida, um ponta-pé, dizendo com convicção:
[p. 33]
_ Levanta-te, bruto.
O cavallo ergueu-se de subito, sacudiu-se e soprou forte pelas ventas; estava salvo!
O curandeiro abriu-lhe a bocca, deitou-lhe uma cusparada e estava feita a cura.
E assim foi.
O nosso vigario admirado e satisfeito, ao mesmo tempo, pelo que acabava de presenciar, disse:
_ De hoje em diante, pode o senhor curar tudo; tem licença ampla; e acrescentou baixinho:
_ É extraordinario este homem!
Como este, são sem conta os diversos casos passados no sertão.
O que, sobre tudo, admira nesses homens, verdadeiros benemeritos, é não receberem cousa
nenhuma em remuneração pelo seriço prestado, porque (dizem elles) perdem a força.
[p. 34]
UMA CEGA E OUTRA CEGA
Durante a grande e medonha secca do Ceará de 1877 á 1879, uma pobre cega, que tinha os olhos
aparentemente limpos e sadios, percorria as moradas da Serra de Baturité, guiada por uma menina
afim de grangear alguma provisão.
Uma tarde, approximavam-se de uma casa grande, construida de tijolos e caiada, situada em um
plano, rodeada de cafésáes.
Estava em pé á porta a moradora, quando, estendendo a vista ao longo do caminho, divulgou as
duas, que se dirigiam para a casa.
Conservou-se de pé até que as duas se approximaram da porta.
A menina dando signal, a sua companheira elevando a voz, disse:
"Uma esmola pelo amor de Deu, á pobre céga."
A matrona mirou fixamente os olhos da pedinte e notando que elles mostravam-se perfeitamente
limpos, disse-lhe:
_ Mulher, o que tem você para pedir esmola?
a estas palavras retorquiu a pedinte:
_ Ah! Senhora, eu peço esmola por que sou cega.
[p. 35]
A soberba matrona ouvindo estas palavras, em vez de internecer-se, replicou emphaticamente:
_ Você é céga? Você é uma preguiçosa.
E ajuntou: "Eu não me dava de ser céga como você."
"Deus a favoreça".
E dando-lhe as costas seguiu para o interior de sua casa sem outra satisfação.
a pobre mendiga e a menina, que a guiava retornaram o seu caminho e desapareceram.
Sabem os nossos amaveis e pacientes leitores o que succedeu?
No dia seguinte, por castigo da soberba ou por acaso, a nossa matrona, ao levantar-se, pela
manhã, estava inteiramente céga de gotta-serena, como é conhecida esta especie de cegueira,
que deixa os olhos completamente limpos.
Os proprios parentes encarregaram-se de espalhar esta noticia, tomando-a como um castigo da
Providencia, pelo modo brusco e grosseiro com que recebeu a pobre mendiga, dando-lhe as
costas e seguindo para o interior de sua casa.
Cousa ruim não se deve pedir nem mesmo desejar.
Aquelle dito _ "que não se lhe dava de ser céga como a mendiga", pareceu um desejo, um pedido,
e foi-lhe concedido sem demora.
Sirva de exemplo aos vindouros o que fica linhas acima.
[p. 36]
A senhora, que cegou é bastante conhecida e pertence a uma familia importante de Baturité.
Baturité é também o nome de uma cidade situada ao pé da serra d'este nome.
É essa serra muito populosa e muito fertil.
O café, que alli produz tem a fama de ser o melhor conhecido.
Ha grandes proprietarios de cafezaes, que apaham annualmente muitas mil arrobas.
Sobre essa serra de Baturité existem tres villas importantes com boas habitações e diversos outros
povoados, que lhe dão vida e animação commercial.
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FUNDAÇÃO CASUAL DO CALDAS (Fonte Thermal)
O Cariry, extremo sul do Ceará, confina com o Piauhy a Oéste e com Pernambuco ao Sul, pela
Cordilheira da Iblapaba ou Serra Grande, que, alli toma o nome de Araipe.
Em toda a sua extensão, comprehendendo o Cariry, é este valle fertilisado por umas 60 _ fontes
possantes, que irrompem do tronco ou sopé do Araripe, onde as grandes seccas, pouco estrago
fazem, pois, durante ellas, mais se avoluma a massa d'agua dessas fontes perennes, formando
extensos brejos, sempre aproveitados com grandes plantações de canna de assucar, milho, arroz,
feijão, etc.
A sua fertilidade é tamanha, que uma vez plantada a canna de assucar, fica alli como bem de raiz;
pois, feita a primeira colhêta, ella brota cada vez mais vigorosa e viçosa. Á primeira colhêta
chamam planta e a segunda socca.
Até o trigo alli produz bem.
Em 1869, o Padre Ignacio de Souza Rolim plantou e colheu bom trigo, no logar Lameiro, perto do
Crato legua e meia.
Elle o fez por experiencia; mas ninguem mais o imitou.
[p. 38]
Entre as fontes perennes do Cariry, conhecidas por Olhos d'agua, existe uma, no municipio de
Barbalha, que o acaso a celebrizou, pelo facto seguinte:
Corria o anno de 1867, quando o Padre José Antonio de Maria Ibiapina, pregador emérito, abrira
suas Missões em Barbalha.
Já vinha elle de outras localidades.
Alguns dias havia que elle as tinha iniciado alli.
Uma tarde, estava o padre descançando, em sua residencia, quando foi destrahido por uma
mulher, que lhe queria fallar.
Approximando-se ella do pregador, com bastante difficuldade, pois apoiava-se em moletas, pediu
instantemente que lhe desse um remedio. Soffrêra ella de fortes dores cerca de tres mezes,
deixando-a naquele estado.
A este pedido, o Padre respondeu:
_ Minha filha, eu não sou medico, eu curo somente a alma.
A mulher insistiu dizendo que si elle lhe desse um remedio, ella ficaria boa; e tantas vezes pediu e
rogou que elle lembrou-se de satisfazel-a dizendo:
_ Tome banhos calidos; sim banhos calidos.
Bastou esta affirmação para a pobre mulher voltar satisfeita.
Chegando a seu casebre, convenceu a todos que o Padre lhe dissera que tomasse banhos no
Caldas que facaria boa.
[p. 39]
Assim chama-se a fonte, que se celebrisou: a fonte do Caldas.
O Pregador não lhe podia mandar que fosse tomar banhos no Caldas, pois não o conhecia!
A pobre doente, pore, continuava a affirmar que o Padre Mestre lhe mandar tomar banhos no
Caldas, que ficaria boa.
Um seu sobrinho, attendendo a seus rogos, conseguiu leval-a a cavallo, no meio de uma carga.
Quanta difficuldade, porem, não encontrou elle, para lá chegar!
A fonte é situada, como todas as outras, no sopé da serra, e um pouco distante das moradas.
Para lá chegar, teve de abrir caminho dentro do palmeiral intrincado de matto de toda especie.
Essa fonte é assim chamada, porque suas aguas são sempre tepidas, quentes, calidas.
Nasce ella por baixo de uma pedra mettida pela terra a dentro no tronco do Araripe.
Chegados naquelle ponto, o sobrinho, mesmo ao lado, apeou a doente, que sabendo ser alli o
Caldas, mostrou-se satisfeita, e, sem perda de tempo, metteu-se nagua, emquanto o sobrinho tinha
se afastado para tratar do animal.
Com o auxilio de um facão e uma fouce, que levara, armou uma barraca de palhaas de palmeiras,
que alli tem com abundancia e acommodou nella a tia e a si proprio.
A doente continuou o uso dos banhos, e, no fim
[p. 40]
de tres dias, não precisou mais das moletas; andava sem ellas: estava curada!
"Bem que o Padre Santo me disse:
"Tome banho no Caldas, que a senhora ficará bôa". Repetia ella.
Achando-se curada, d'aquella paralysia das pernas, retomaram o caminho e voltaram para
Barbalha, onde moravam ella e o sobrinho.
Em toda a viagem, não cessava ella de dar graças a Deus e pedir beneficios para o santo Padre,
que lhe ensinou o remedio contra o seu mal!
Chegados a Barbalha, todos ficaram admirados de a verem andar sem molêtas e quasi sem
cochear!
Ella, em pessôa, foi á presença do Padre Ibiapina a dar-lhe os agradecimentos.
Elle ignorava a razão d'isso, e ella lembou-lhe que fôra elle que lhe dissera que fosse tomar banho
no Caldas que ficaria boa.
Ella o fizéra e alli estava sã e escorreita.
Para não desmentir a sua fé, o Padre nada lhe disse em contrario.
O povo, porem, sabendo o occorrido, começou uma especie de romaria ao Caldas.
Grande foi o numero de curas alli obtidas com os banhos continuos na celebre fonte, até então em
completo esquecimento e abandonada!
Todos os visitantes alli passavam, no minimo, tres dias a banhar-se, e, o numero delles foi tão
elevado que dentro em pouco, aquella serrada matta es-
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tava transformada em um alegre acampamento, construido de palhoças de todos os tamanhos e no
centro d'elle, uma capella, ou casa de oração.
Era tão grande a fama que corria de curas admiraveis, que o proprio pregador a foi visitar.
Molestias de pelle e rheumaticas desapareciam com os banhos continuos.
No fim de alguns mezes já haviam os rheumaticos deixado alli grande numero de molêtas!
Eu as vi amontoadas ao lado da fonte.
A agua desse poço e clarissima e transparente de tal forma que parece não chegar a cobrir o peito
do pé, mas uma vez dentro, vae até á cintura.
Todos bebem della na occasião do banho e tem um sabor especial como de metaes diversos em
solução.
Não serve para saciar a sêde e nem é enjoativa; ao contrario é de sabor muito agradavel.
Ella irrompe de dentro para fóra com impeto, em borbutão; de modo que está sempre renovada e
sadia.
A água é tépida, como já disse e dahi veio-lhe o nome de fonte do Caldas.
Importante observação é que ao lado d'ella, uns quatro metros de distancia, existe outra, cujas
aguas muito transparentes e cristalinas são frigidissimas, parecendo virem de uma geleira!
É potável e boa.
Corre, porem, com vagar.
No fim de um anno já era o Caldas uma alegre
[p. 42]
povoação, já tendo habitações regulares, sua capella, contruida em regra e regular commercio,
onde já se podia comprar e vender tudo: fazendas e o mais.
Foi creada uma cadeira de instrucção primaria, alli mantida pelo Governo.
E assim foi aquelle pedaço de matta virgem, transformado em povoado, devido á ignorancia
d'aquella mulher, que desconhecia a significação da palavra _ Calido.
Foi preciso aquelle equivoco para que ficssem conhecidas as virtudes daquella importante fonte
thermal, até aquelle momento desconhecidas.
Bemdita ignorancia, que produziu tamanho bem!
[p. 43]
OLHO D'AGUA DO AZEDO
É o Ceará fertil em curiosidades de toda a especie.
No municipio de Sobral ha uma fonte denominada _ Azedo, _ cujas aguas são purgativas e nos
animaes inferiores produzem diarrhéa.
Não são utilisadas para cousa alguma.
Vivem abandonadas.
Mel que embriaga
_ Na serra da Barriga, tambem em Sobral, o mel de certa abelha, colhido em certa epocha do
anno, produz a embriaguez, principalmente, nos tempos da secca.
Uma cousa singular: O embriagado por esse mel, no delirio da embriaguez, para berrar como
bóde, como querendo dizer que foi o mél que o embriagou.
[p. 44]
A gruta de Ubajàra
No municipio da villa de Ubajára existe uma enorme grutta, conhecida com este mesmo nome.
Contém ella um grande e largo salão de paredes mais ou menos lisas, cuja cupula é muito alta.
Em seguida ha outra sala menor, passando no fundo d'ella uma corrente d'agua fresca e crystalina.
O vento, que entra por essa furna, vae sahir no cume da serra da Ibiapaba, por um pequeno furo, a
que chamam o _ Suspiro de Ubajara.
Uma folha de papel, que se lance alli, é jogada fóra pelo vento de dentro.
Lagoa que serve de barometro
_ No Icó perto da cidade ha uma lagoa, que serve de barometro.
É conhecida por Lagoa da Torre.
Durante o tempo das aguas ou inverno, ella enche e sangra.
Pelo verão ou sêcca, como séccam todos os mananciaes, ella também sécca até desaparecer toda
a agua, que recolheu pelo inverno.
O seu fundo sendo de massapê, o sol o deixa resequido a ponto de abrir grandes e profundas
rachaduras.
[p. 45]
Ao chegar o mez de Setembro para Outubro, seus habitantes a vão visitar, na intenção de saberem
si, o anno vindouro, será de inverno ou de secca; cousa que preoccupa a todo sertanejo.
Dentro d'aquelle dois mezes, si as aberturas do fundo da lagoa enchem-se d'agua, brotando de
baixo para cima, mesmo sem ter cahido chuva alguma, toda a população fica alegre e satisfeita,
porque o anno vindouro será de bom inverno.
Ao contrario, si, aquellas enormes rachaduras conservam-se seccas, desapparece a esperança de
inverno no anno seguinte!
Haverá secca.
É facto conhecido e observado por toda aquella população.
Tinta preta natural
No municipio da nova cidade do Joaseiro, distante tres léguas do Crato, existe um sitio chamado _
Brejo-Queimado, nome tirado do proprio terreno.
Corre por elle uma levada d'agua pouco volumosa, no fundo da qual junta uma lama negra.
Essa levada ou corrente d'agua é formada e mantida pelo sangradouro da lagoa de Timbaúba, cuja
descripção acha-se mais adiante.
Qualquer fazenda, que seja posta alli, cobrindo-se a côr negra de azeviche, e é indelevel.
[p. 46]
Nada mais a faz largar.
As religiosas do Joaseiro vestem-se de preto, tingindo por esta forma, a chita, o madapolão, o
algodãozinho e até o panno de algodão.
Assim usam os seus mantos pretos e as demais roupas de uso diario.
A pedra da gloria
Na cachoeira de Missão Velha ha uma grande pedra, cavada de baixo para cima, formando uma
larga bacia emborcada e presa fortemente ao terreno occupado pelo leito do riacho que forma a
cachoeira, de modo que a tal pedra com a sua bacia emborcada, fdica uns dois metros proximo da
agua.
Quando o riacho enche,a agua se avoluma a ponto de cobrir aquella pedra, mas deixa em secco o
vacuo da bacia.
Neste estado, os banhistas, que já conhecem, mergulham e vào ter ao vacuo, ficando horas e
horas a brincar, cantando, gritando, assoviando, para se divertirem com a multiplicidade de sons
produzidos por falta de espaço ou ar.
De fóra nada ouve-se.
A essa pedra dão o nome de Pedra da Gloria.
[p. 47]
Carvão de pedra
Em S. Rosa, municipio do Crato, existe uma mina de carvão de pedra.
Agora com a Estrada de Ferro, que se acha perto, torna-se facil a sua exploração.
Lages lisas e planas
Ao pé do Araripe, no Cariry, encontra-se uma pedra durissima, tendo de espessura cerca de cinco
centimetros e de longa dimensão.
Essas pedraso muito abundantes em certos pontos.
Teem ellas uma das faces tão lisa como uma banca de marmore!
São sobre-postas, sendo por isso de facil extracção.
Os habitantes servem-se d'ellas para ladrilhar os passeios das casas de suas residencias.
Nas ruas do Crato vê-se lage de um metro e mais de extensão sobre meio metro e mais de largura.
Em S. Anna do Cariry empregam-nas como tijolos nas construcções de casas e muros.
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Minas de salitre
No Ipú, ao pé da serra da Ibiapaba, ha uma mina tão abundante e de tão facil extracção que para
fabricarem fogos de artificio, vão á mina colher todo o salitre, de que necessitam para o preparo da
polvora.
Minas de Prata
No municipio de Assaré ha uma mina de prata bem abundante.
Minas de Cobre
Na serra da Ibiapaba perto da cidade de Viçosa, no logar Pedra-Verde, ha uma mina de cobre
bastante rica.
Vive em questão.
Minas de Ouro
No riacho Ipuçaba, comarca do Ipú, encontra-se ouro em palhetas, e em pó, signal de haver por alli
mina desse metal.
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Ferro e Graphito
Em Caio-Prado, estação da E. de Ferro de Baturité, ha uma serrota formada de pedras da
consistencia do ferro e, mais abaixo, ha uma mina de graphito, bastante rica deste minerio.
Kerosene
Na serra de Baturité encontra-se uma pedra formada de camadas sobrepostas, de côr parda-
escura, um tanto porosa e de facil separação.
Essa pedra parece impregnada de kerosene, porque, chegando-se uma lapa á labareda, ella
inflama-se, soltando uma fumaça negra como a do carvão de pedra.
Lixa natural
Ha no Cariry e nos taboleiros uma arvore de nome sambayba, cujas folhas largas e rijas servem de
lixa finissima, muito utilisada nas marcenarias.
É tambem chamamda Cajueiro-bravo a sambayba.
Giz colorido
Nas margens e no leito do rio Batateira, que banha a cidade do Crato (e é perénne até meia legua
abaixo, desapparecendo por fim, porque suas aguas
[p. 50]
são utilisadas em irrigações de immensas culturas) encontra-se giz finissimo de côres diversas,
muito utilisado pelos alfaiates.
É conhecido pela denominação de tauhá.
Ossada discommunal
No Cariry e nos termos do Quixadá e do Aracaty tem sido encontrtadas ossadas de dimensões
colossaes:
Uma costella de taes proporções, que servem-se de um pedaço della as lavandeiras como taboa
de bater roupa!
Uma vértebra da espinha dorsal, da qual servem-se para assento, como uma tripeça!
Tudo isso tem sido encontrado, no fundo de lagoas, por occasião das escavações para o fabrico de
tijolos e telhas. O mesmo tem se dado no Cariry, nas torrentes da Serra.
São raças extinctas, de que não se tem mais noticia.
[p. 51]
APPREHENSÕES E ALEGRIA
Quando, no começo de cada anno, não apparecem chuvas, a população do interior fica
apprehensiva.
Diariamente só se ouve dizer:
_ O tempo está feio!
Tempo feio por lá é justamente o que no sul chamam bom tempo ou dia lindo: são dos dias claros e
sol sem nuvem.
Ao contrario, nos dias carregados, escuros e chuvosos, a população manifesta-se satisfeita,
dizendo com alegria:
_ Que tempo bonito!
E é logo confirmado por seus ouvintes, repetindo todos a um tempo:
Está lindo!
A aspiração de todo o sertanejo é o inverno de cada anno.
Quando elle tarda é uma esperança, que ameaça perder-se; é a lembrança do éxodo para fóra do
seu lar, para terras desconhecidas; é a perda de seus possuidos, que lhe vem á mente; é a morte
dos entes queridos e a sua propria, como succede nas grandes seccas.
É justo, pois, que se alegrem com as manifestações do inverno.
[p. 52]
Certo anno, as chuvas tardaram, a ponto de alguns terem procurado o littoral, e outros, ainda
esperançosos, continuavam na espectativa.
Uma noite desabou uma chuva torrencial para os lados das nascenças do rio, que passava em
certa cidade, onde o povo já contava com uma secca.
Pela manhã cedo, correu a noticia de que o rio estava descendo com muita agua.
Os mais abastados não se poderam conter. Mandaram comprar foguetes e os soltaram em signal
de regosijo!
Outros, arrebatados de prazer, correram para a margem do rio e alli soltavam os fogos dando vivas
e accompanhando (o que elles chamam) _ a cabeça d'agua, _ que descia rio abaixo, levando
espuma.
Tinha assim desapparecido a contristadora appehensão de uma secca!
Tinha sido, apenas o que elles, os sertanejos chamam de repiquete.
Antes de cahirem as primeiras chuvas, todos os campos estão em pó; mas sem fallar do gericó e
dos orós, que vivificam em poucas horas, temos a fertilidade surprehendente daquella terra de
fogo, pois logo que uma chuva regular irriga aquelles campos resequidos, tres dias depois della,
faz gôsto e causa pasmo vel-os tão depressa, cobertos de verde manto.
São as sementes avidas de humidade, que brotam com surprehendente presteza.
[p. 53]
Phenomeno curioso
(Sitio de Timbaúba)
No municipio da cidade do Joaseiro, distante d'alli meia legua, ha um brejo, antiga propriedade do
finado Dr. Marcos Antonio de Macedo, tendo abaixo uma lagoa bastante longa, em forma de
ferradura, conhecida por lagôa da Timbaúba.
O sitio tem o mesmo nome da lagôa.
O seu terreno é formado de camadas sobrepostas de envolta com raizes e ramusculos de
vegetaes, de modo a tomar tal consistencia que suporta o pezo dos trabalhadores que o vão
cultivar.
A sua fertilidade é sem igual.
Alli cresce a canna de assucar, como em parte alguma; o milho, o arroz e outros legumes
produzem abundantemente, por ser grandemente estrumado e o terreno de alluvião.
No tempo da moagem das cannas, ellas são conduzidas para o engenho, em carros puchados a
bois. Esses carros não podem transitar sinão no terreno firme, do contrario afundar-se-iam.
Em certos pontos desse brejo, uma pessoa em pé, fazendo movimento com o corpo de cima para
baixo e vice-versa, sem sahir do logar, vê o terreno estremecer ao redor de si, como si estivesse
suspenso por uma móla de aço, ou sobre uma cama de tela
[p. 54]
de arame; no entanto, está esse terreno coberto de plantações lindas e viçosas.
Uns dois ou tres kilometros abaixo, começa a lagôa, cujas margens são aproveitadas para culturas
diversas.
Nos pontos em que o terreno oscila, pelo movimento de quem por alli transite, fincando-se uma
estaca, a bater com a ponta, quando ella tiver penetrado no chão uns quatro ou cinco palmos (o
que fazem sem esforço), ao retirarem-na, jorra agua com abundancia, como si alli estivesse ella
comprimida.
Até tem vindo, com essa agua, certos peixes de lagoa, como mussú, trayra e camboatás!
É facto conhecido e observado por todos os habitantes daquelles brejos da Timbaúba.
É necessário fechar logo o furo feito; do contrario o brejo ficará todo alagado!
Para enchugar o terreno, e poderem as plantações desenvolver-se, fazem pequenos rêgos, pelos
quaes escôam as aguas na direcção da lagôa.
Suppõe-se que estes brejos são formados pela infiltração das aguas procedentes das possantes
fontes do tronco do Araripe, que desapparecem ao atravessar longos taboleiros, para despontarem
alli na distancia de tres leguas.
[p. 55]
PHENOMENO SURPREHENDENTE
(Estouro do Morro)
Há cousas, no meu Ceará, que contadas, parecem fabulas; no entanto são ellas naturaes e
verdadeiras!
No municipio da cidade do Aracaty, situada á margem direita do Rio Jaguaribe, tres kilometros da
sua fóz, ha um sitio denominado Cumbe.
Esse sitio fica perto da praia, constituido por alagadiços em terreno de massapé e separado da
praia por enormes dunas de arêa, levada por constante ventania, e, por isso essas dunas cada dia
se avolumam a ponto de formarem verdadeiras serras!
Alli no Cumbe ha bonitas plantações de cannas e grande variedade de legumes diversos.
De tempos a tempos, os seus habitantes ouvem um certo rumor subterraneo, como de um trovão
longinquo, a que elles chamam gemido e annunciam logo que o morro vae estourar!
Ficam assim prevenidos, de alcatéa a espéra do annunciado estouro!
Com effeito, passados alguns dias e até mezes, quando menos se espera, ouve-se um estrondo
rouco, como de trovão, que estremeceu a terra!
[p. 56]
Foi o morro que estourou!
Todos acorrem a vêr de perto aquelle extraordinario phenomeno sismico!
O que teria acontecido?
Lá estava tudo revirado!
O enorme morro de arêa tinha ficado por metade.
O seu peso descommunal, fazendo pressão sobre o terreno, de massapê alagado, internou-se por
elle a dentro, forçando ir para o alto o antigo brejo com todas as plantações: coqueiros, casas de
taipa e tudo o mais, que havia na baixa passou a occupar outro logar, o alto do morro!!
Eu proprio visitei o Cumbe após um desses phenomenos.
Profundas e largas rachaduras viam-se, no massapê, que passou da baixa para o alto do morro
com tudo o que existia em baixo, no brejo!!
Todas aquellas plantações que foram para o alto, estão condemnadas a morrer por falta d'agua.
E assim é.
Os seus donos vão tratar de approveitar algumas , mudando-as para a baixa, despresando as
outras.
Si são elles os donos da habitação transportada, tratam logo de construir outra, em logar mais
afastado e seguro.
Foi em 1899, que ouvi fallar, pela primeira vez, no estouro do morro do Cumbe.
E como estava eu no Aracaty, lá fui com diver-
[p. 57]
sos companheiros, afim de vêr de perto, os effeitos do fallado estouro do morro, e lá presenciei o
que fica linhas acima.
***
Em 1794, diz o Dr. Marcos A. de Macedo, houve um desmoronamento da serra do Araripe,
motivando o fechamento completo ou interrupção dos Olhos d'agua, na confrontação do Crato.
Ficaram elles por muito tempo intupidos.
Uma especie de vulcão aterrado.
As aguas subterraneas accummularam-se em taes proporções que chegou o momento de estourar
como um vulcão.
As aguas irromperam com tal impeto que a terra impelida deu para cobrir as palmeiras e as arvores
fronteiras, produzindo uma enchente extraordinaria, nos brejos!
O mesmo escriptor affirma que auscultando-se sobre o Araripe, ha confrontação da fonte, ouve-se
um ruido cavernoso, como de muitas aguas rolando sobre pedras, nas cachoeiras.
[p. 58]
BOQUEIRÃO DE LAVRAS
É este um dos boqueirões mais dignos de nota.
Está elle situado na serra do Boqueirão, abaixo da cidade de Lavras da Mangabeira, uns seis
kilometros d'alli.
É este boqueirão formado de lados perpendiculares, partindo assim a serra ao meio.
Entre os dois lados passa o rio Salgado, que vem do Cariry com grandes voltas e recebendo
diversos tributarios.
Naquelle ponto, nos tempos primitivos, não tendo por onde passarem suas aguas, o rio ou o
immenso volume d'agua aproveitou um rebaixo ou depressão da serra, que lhe ficava em frente, e
por alli começou a escoar-se com fragor.
E, tantos annos passaram-se, talvez seculos, que conseguiram ellas romper o obstaculo natural,
partindo a serra ao meio.
Rompido obstaculo para a passagem d'aquella incalculavel massa d'agua, formou-se o actual rio
Salgado, que banha a cidade de Lavras acima, e abaixo a cidade de Icó.
Em um dos lados desse boqueirão, existe uma
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profunda caverna escura, e sem ar; de modo que ainda não foi possivel descobrir-se o seu limite.
Diversas vezes teem tentado ir ao fundo, levándo fachos accesos, que logo apagam-se, fazendo
recuarem os seus exploradores.
Na entrada d'ella encontra-se um numero sem conta de morcegos, que voam espavoridos por
causa dos importunos visitantes!
As paredes, que formam o boqueirão, são a pino e em toda a altura da serra.
Lá no fundo está o leito do rio, que por alli conduz suas aguas a entregal-as, como tributario, ao rio
Jaguaribe, que as recebe, tres kilometros abaixo da cidade do Icó, no logar Forquilha.
É no Boqueirão de Lavras, que o Governo pretende lançar um paredão, fazendo assim um açude,
que importa em crear um mar interior.
Feito elle, desapparecerá a cidade de Lavras com todos os sitios a ella pertencentes, indo as
aguas represadas até a villa Aurora, cinco leguas acima.
***
Uma observação:
Sobre os Altos de Santo Antonio, ao lado norte desse Boqueirão, encontram-se diversas
carnaubeiras altas.
Ora, a carnaubeira vegéta somente nas varseas e como foram ter alli, nos altos?
[p. 60]
É supposição minha que as sementes foram levadas na tona d'agua até alli, quando ellas ainda
estavam impedidas; e, logo que começaram a escoar, essas sementes da carnaubeira assentaram
na terra, que estava bastante fresca e alli medraram.
[p. 61]
BOQUEIRÃO DO POTY
O segundo boqueirão digno de nota é o do Poty.
As aguas accummuladas do largo e espaçoso valle de Carathéus, alli nos tempos primitivos
estavam sem sahida; pois é fechado por diversas serras.
Sendo, porem, mais baixo para o lado do Piauhy do que para o do Ceará, aquellas aguas
estagnadas começaram a correr sobre a serra da Ibiapaba, procurando o ponto mais baixo.
Tanto annos ou seculos trabalharam, até que conseguiram romper a serra e formar o profundo
Boqueirão do Poty.
É, pois, o rio Poty com grande número de tributarios, que, nascendo no Ceará, atravessa a serra
da Ibiapaba por esse boqueirão e vae lançar-se ao rio Parnahyba, no Piauhy.
Os dois lados desse boqueirão, no alto da serra, ficam tão proximos um do outro que os viados o
atravessam de um solto!
Esse grandioso valle, ou alto sertão de Caratheùs, já pertenceu ao Piauhy, que não possuindo um
porto de mar, propoz ao Ceará trocar por Amarração, que foi acceito e confirmado pelo Congresso
Nacional.
[p. 62]
É um sertão creador, bastante habitado e possuindo villas importantes e povoados.
Amarração, que pertenceu ao Ceará, faz hoje parte do territorio do Piauhy.
É uma praia de areia movediça.
[p. 63]
ASSIGNAR DE CRUZ
É este um dito muito empregado no Ceará.
Costumam dizer que tal pessoa é tão atrazada que assigna de cruz.
Eu ouvi esta expressão diversas vezes, sem atinar com seu verdadeiro sentido.
Assignar de Cruz.
Em começo, pareceu-me applicavel a um homem de boa fé, a quem podiam enganar facilmente.
Succedeu, porém, que certo dia, comecei a lêr umas actas do antigo "Senado da Camara" da villa
de Porangaba, no tempo da Colonia e alli vi o dito applicado no seu verdadeiro sentido.
O escrivão ou secretario lavrava a Acta e passava, depois de lida, ao Presidente, que a assignava.
Seguiam-se as assignaturas dos Snres. Veriadores.
Como entre elles havia diversos que não sabiam lêr nem escrever, lá estava riscada á penna uma
mal feita cruz, diante da qual o escrivão dizia:
_ Cruz do Sr. Veriador F. de tal.
Esta mesma declaracão estava lançada em frente de diversas outras cruzes, dizendo a quem
pertencia a tal assignatura!
Eis ahi o que significa assignar de cruz.
[p. 64]
ANTIDOTO OPHIDIANO
Um facto, por mim observado, prova que o veneno mais poderoso das serpentes não tem acção
alguma contra o embriagado pelo alcool.
Uma mulher do povo, a quem conheci, dava-se ao vicio da embriaguez.
Morava slla [sic] perto da casa de um meu cunhado que era agricultor, onde havia um alambique
de destilar aguardente.
N'um sabbado os empregados tendo recolhido aos depositos toda a aguardente destilada,
deixaram um vaso ao pé do alambique, aparando o resto da destilação, a que chamam cachací ou
aguardente fraca.
Anoiteceu, ficando em aberto os machinismos.
A nossa amante do alcool observando que alli não havia mais ninguem, chegou-se ao alambique
com uma coité na mão e tirando do vaso muitas coités cheias, bebeu até não poder mais.
Sahiu dalli cambaleando na direcção da casa que ficava perto.
Ao passar por um barreiro, ao lado do caminho, desequilibrou-se e cahiu dentro d'elle por cima de
uma toceira de bannaneira, que havia alli, rodeada de enorme formigueiro de pequenas formigas
pretas.
[p. 65]
Na manhã do dia seguinte, lá estava a Comadre Bôa (como a chamavam) toda descomposta,
rasgadas as roupas e horrivelmente mordida, ainda a dormir tranquilamente.
As formigas tinham desapparecido e ao lado daquella mulher estava morta uma medonha
cascavel, que a tinha mordido diversas vezes sem lhe cauzar o menor mal!!
Lá estavam as marcas dos dentes da cobra, ainda a minar sangue!
Acordaram-se e de nada queixou-se ella sinão das dentadas das formigas, que cançadas de
morder, haviam se retirado!
[p. 66]
OLEO DE COPAHYBA
Na serra de Baturité e no valle do Cariry, existe uma especie de arvore secular, conhecida pela
denominação de pau d'oleo, a produtora do conhecido oleo de copahyba.
Esse oleo é de muito facil extracção.
Para isto, tomam um machado e com elle furam uma funda cava, em um lado da haste, em posição
obliqua, para receber o oleo, que se desprende da casca rompida pelo machado.
O operador deixa feita esta especie de armadilha e, só alguns dias depois, volta alli para colher o
oleo, que se acha depositado dentro do furo praticado na arvore.
Ás vezes tem juntado em tamanha quantidade que dá para derramar por fóra, pelas bordas do
furo.
De cada receptaculo retiram cerca de meio copo de oleo.
Levam-no, depois, ás pharmacias e alli o vendem, em geral, por preços diminutos, de modo que
não dá lucro a sua extracção.
É, no entanto, um oleo medicinal com diversas applicações.
[p. 67]
NOME SUGGESTIVO
Ao noroeste de Fortaleza, capital do Estado, encontra-se a serra de Uruvuretama, ao pé da qual
está a villa que recebeu um nome suggestivo.
Dalli avista-se uma alta rocha, que, á primeira vista, dizem logo:
"É um frade Franciscano perfeito, com o seu capuz!"
Dessa similhança manifestada por aquele monolitho, veio o nome daquella pedra para o povoado,
que é hoje conhecido por villa de S. Francisco de Uruburetama.
Muitos logares há, cujos nomesa são dados por alguma dessas circumstancias.
É a Uruburetama uma serra fertilissima e alli plantam muita canna de assucar, algodão e café.
Tem bom clima e é bastante habitada.
A rocha, que suggeriu o nome da villa, é bastante alta, de modo a ser avistada de grande distancia.
Nessa serra ha sempre agua, de optima qualidade, procedente de olhos d'agua ou fontes
permanentes, que se escoam por pequenos regatos, que refrescam os pontos mais affastados de
suas nascenças.
[p. 68]
O CAJUHI
Cajuhi é um cajú em miniatura.
É fructo silvestre e vegeta abundantemente no valle do Cariry, mas somente nos taboleiros ou
mattas arenosas.
O seu fructo é saborosissimo e a castanha é proporcional ao seu tamanho.
A arvore que o produz não tem a menor differença do cajueiro commum.
No tempo da sua colheita, encontram-se grupos e mais grupos de rapazes e mulheres do povo,
que pela tarde, voltam da matta carregados de cajuhis, cada qual mais doce e agradavel ao
paladar.
Não tem o ranso do cajú commum; é ao contrario, bastante doce e saboroso.
É, para essa gente um agradavel divertimento, a colheta dos cajuhis.
[p. 69]
RIOS DO CEARÁ
É curioso tratar-se sobre os rios do Ceará.
Ha diversos, podendo mesmo dizer-se muitos rios, em todo o Estado, e correndo por diversos
pontos.
Os mais importantes, que desaguam no Oceano, são o Jaguaribe e o Aracahú, não contando
outros menores nem grandes affluentes dos principaes.
O primeiro de todos é o Jaguaribe, que tem um percurso de 750 kilomentros, recebendo mais de
metade das aguas pluviaes do Estado.
Só por este facto, deveria ser elle um rio perenne.
Apezar do seu immenso curso e receber grande numero de possantes tributarios durante a epocha
das torrenciaes chuvas, apparentando um rio caudaloso no inverno, vem o verão e aquella
discommunal massa d'agua escôa-se, deixando no leito somente arêa!
Si acontece, ao Jaguaribe, seccar completamente, como não soffrerá o mesmo mal os demais rios
com muito menor percurso?
Tanto o Jaguaribe como alguns outros, até o meio do verão, conservam poços de longe em louge
[sic], que, por fim, dasapparecem por completo, nas grandes seccas.
***
Nos tempos primitivos, as aguas corriam com liberdade plena e formavam grandes lagos ao
chegarem
[p. 70]
nas planicies vizinhas, continuando as aguas a sua marcha até lançarem-se no Oceano.
Depois, com a dominação portugueza, os novos colonos, forçados pela necessidade, começaram a
desviar as aguas do leito dos correntes e empregal-as na irrigação de suas lavouras, nos brejos do
Cariry.
Como, porem, os canaes derivativos fossem construidos sem as regras d'arte, e fossem só para
atingir a certos e determinados logares, o excesso perdia-se nas florestas sem vantagem alguma,
ou derramava-se pelos caminhos, a ponto de os tornar intransitaveis.
A ideia foi pegando e as necessidades augmentando pelo crescimento da população do Cariry e o
curso do Salgado foi diminuindo.
Em 1816, ainda corria o Salgado até o Icó durante todo o anno, mais de 30 leguas a partir da sua
nascença.
Com o augmento das irrigações mal feitas nos brejos do Cariry, cada vez encurtou mais o seu
curso.
Hoje mal chega ao Burity, meia legua do Crato!
Os chamados rios do Ceará são, pois, actualmente verdadeiros escoadouros das aguas pluviaes.
As enchenteso colossaes, mas tudo desapparece dentro em pouco tempo.
Isto acontece por causa da grande inclinação do territorio cearense para o Oceano.
Só as projectadas barragens poderão deter as aguas desses escoadouros, impropriamente
chamados _ rios.
[p. 71]
O Cariry é uma zona feliz, porque tem abundancia d'agua perenne, procedente das innumeras
fontes do Araripe, que cada vez mais se avolumam nas grandes seccas periodicas.
Feitas as barragens com arte e sciencia, a felicidade do Cariry estender-se-á, por certo, a todo o
Estado, porque a agua não poderá escoar-se tão rapidamente e permanecerá, pelo menos, uns
seis mezes nos leitos dos falsos rios.
Façam-se as barragens.
Um distincto cearense de nome Antonio Bezerra de Menezes, escrevendo artigos sobre as seccas,
terminava com as palavras: _ "Agua, agua pelo amor de Deus!" É só o que falta ao meu Ceará.
O illustrado cearense Dr. Marcos Antonio de Macedo, de saudosa memoria, foi o primeiro que
lembrou-se da canalisação das aguas do rio S. Francisco para o Jaguaribe, a ir ter no Riacho dos
Porcos, que nasce no Jardim.
Para isto levantou elle a planta do projectado canal, que fez lithographar; no qual trabalho vê-se a
possibilidade da execução do seu projecto.
Hoje, porem, esta idéa está completamente abandonada e nunca teve inicio.
O autor era bacharel, exerceu cargos na magistratura e representou o Paiz na Camara dos
Deputados.
[p. 72]
RECTIDÃO DE UM JUIZ
Pelo meio do seculo passado, foi nomeado um Juiz de Direito, (cujo nome não me occorre) para a
comarca do Aracaty e para lá seguiu.
Era elle um homem ás direitas e de uma vontade de ferro!
Assumiu o seu logar.
Alguns mezes depois começou elle a notar que as ruas viviam, á toda hora, cheias de meninos de
todas as classes a jogar cambalhótas, correr e saltar, gritar e jogar pedras e atordoar a visinhança,
noite e dia.
Por esta causa, lembrou-se elle de oppôr uma barreira a esse mau modo de vida.
O que fez então?
Ordenou ao Delegado de Policia que recolhesse á cadeia todos os meninos encontrados a brincar
nas ruas, e sem distincção.
O agente da policia, que já conhecia com quem lidava, tratou de executar a ordem recebida!
Logo no primeiro dia encheu-se a cadeia da criançada solta a brincar.
Imagine o leitor que alvoroço formou-se pelos paes daquella malta de crianças de todas as classes
a gritar e chorar na prisão!!
[p. 73]
Paes e mães, tios e primos, parentes e amigos correram ao juiz para relaxar a ordem.
Tudo foi inutil.
O Juiz não se molgou e a ordem foi mantida.
Foi este o meio que, aquelle magistrado de vontade de ferro descobriu para felicitar a comarca,
que tão dignamente administrava.
Aquella onda de crianças foi distribuida pelas officinas de ourives, carpinteiros, marcineiros,
alfaiates, sapateiros, funileiros, etc.
Com este acto, acabou elle com a vagabundagem da rua e formou um corpo de artistas de mérito.
É hoje o Aracaty e S. Bernardo das Russas, que fica perto, onde se encontram artistas para todas
as obras e dos mais affamados.
As que elles fazem de encommenda ou á medida, são tão perfeitas que parecem não serem
executadas no paiz!
Eis ahi a execução de uma ordem, que para todos era um absurdo e que veio a produzir tamanho
bem.
Pelo que fica acima, vê-se a veracidade do proverbio que diz:
"Ha males que veem para o bem".
[p. 74]
GOMMA ELASTICA
O Ceará produz borracha, que extrahem de duas especies de vegetaes: a maniçoba e a
mangabeira.
A maniçoba é cultivada.
Ambas dão esse producto de excellente qualidade.
Já exportam mais de duas mil arrobas annualmente.
O tinguiseiro
É o tingui uma fava oleósa, que o tinguiseiro produz com grande abundancia e vegeta nos largos
taboleiros do Cariry.
A mór parte d'aquella população, para não dizer a totalidade, serve-se dessa fava ou vagem para
fazer o sabão de que precisam para lavagem da roupa.
É pena que esse producto seja de côr muito escura, quasi negra; mas de bôa qualidade para os
mistéres de sua applicação.
A potassa empregada no fabrico desse sabão, é tirada da cinza de certas arvores de madeiras rijas
como angico, aroeira, o proprio tinguiseiro e outras.
Para isso enchem de cinza um cone feito de cipós ou uma fôrma de assucar, feita de barro, tendo
cuidado de apertar bem a cinza para que seja mais de-
[p. 75]
morada a passagem da agua, que ao sahir assim pelo furo inferior do cone ou fôrma, esteja bem
forte, pois sahirá gotta á gotta.
A este producto dão o nome de decuáda, verdadeira potassa caustica, que destróe tudo que cahir
dentro della, diluindo.
Eis a forma do fabrico do sabão preto, feito de tingui:
Enchem grandes tachos de decuada deitado dentro as vagens de tingui, e uns dois dias depois,
deitam ao fogo a ferver, mechendo sempre até tomar a consistencia desejada.
Eis o sabão de tingui.
[p. 76]
AS PIRANHAS SURPREHENDEM
Em toda a extensão do Rio Jaguaribe, nos poços que ficam no leito, além de outros peixes d'agua
doce, encontram-se cardumes sem conta, de piranhas.
Esta qualidade de peixes, aliáz pequenos, não medindo mais de um palmo de comprimento, sobre
meio de largura, é munida de fortes dentes implantados, e tão ajustados e cortantes que mordendo
qualquer animal, leva na boca o pedaço de carne com o couro.
É, por isto, perigosissimo entrar uma pessoa no pôço contaminado de piranhas; porque arrisca-se
a sahir todo mutilado e, muitas vezes deformado, faltando-lhe a ponta da nariz ou um pedaço dos
labios ou da orelha!
A piranha tem uma força desmedida nas mandibulas.
Tirado o primeiro chaboque, o perigo redobra de intensidade; pois as piranhas, sentindo sangue,
cada vez investem com maior furor.
Muitos animaes teem ficado sem o pedaço de beiço, só ao pôr a bocca n'agua para beber.
Si o pobre animal com a dôr do beiço tiver a infelicidade de correr para dentro, ao em vez de cor-
[p. 77]
rer para fóra, está completamente perdido, porque as terriveis piranhas o devorarão dentro em
poucas horas!
Isto succede, porem, nos poços impestados onde ninguem se atreve nem metter a ponta do pé na
certeza de perder, pelo menos um dêdo.
Para fazer uma ideia da sua voracidade, ouça o leitor o que contou-me um rapaz de bôa familia e
sincero em seus conceitos.
Morava elles á margem da estrada de rodagem que vae do Aracahy para o alto sertão, pasando
por diversas cidades e villas, sempre acompanhando o Jaguaribe.
Quixeré era o logar da sua residencia.
Estava eu, (disse-me elle) á margem de um pôço impestado de piranhas.
Era de tarde, cerca de duas horas, quando avistei um gavião, que perseguia uma jurity.
A pobre ave sentia que o gavião nào tardava a alcançal-a.
Na occasião atravessavam os dois aquelle poço.
Nesse momento a jurity cahiu n'agua e o gavião, sentindo-se vencedor, cahiu tambem sobre a sua
victima.
Eu fiquei olhando (continuou elle) a espera de ver o gavião retomar o vôo, levando a sua preza
enfiada nas garras.
Mas, qual! Nem a jurity nem o gavião appareceram mais!
Sobre a tona d'agua só se viam as pennas de ambos!
[p. 78]
Foram assim devorados pelas teriveis e famintas piranhas, com a rapidez de um raio!
***
Facto estupendo foi o que se deu com um rapaz do povo.
Residia elle á margem direita do Jaguaribe, na estrada de rodagem, onde havia um Arraial com
umas dez ou doze casas de morada.
Vivia elle de uma venda, que mantinha e achava-se em prosperidade.
Neste estado, sentindo-se capaz de poder manter familia, ajustou casamento.
Antes de o effectuar, resolveu augmentar o seu negocio.
Entregou a casa a uma pessoa de sua confiança e foi á cidade fazer a nova provisão.
Comprou á crédito, porque já era conhecido e bom.
De volta, conduzindo duas cargas de mercadorias, chega elle á margem do Jaguaribe, onde tinha
de atravessar um longo e profundo poço, para chegar a sua morada, que ficava do outro lado.
O poço era muito extensoe dava nado durante muito tempo.
A travessia era feita em canôa, mas, na occasião o canoeiro tinha passado para o lado opposto,
onde avistava-se a canôa amarrada á margem.
O rapaz e seu cargueiro deitaram as cargas abaixo e gritaram, chamando o canoeiro.
Este não tendo apparecido, disse o negociante:
[p. 79]
_ Espere ahi que eu vou buscar a canôa.
Era elle bom nadador, e preparando-se metteu-se n'agua e nadou até a outra margem.
Fez a travessia muito bem, emquanto sulcava agua funda; mas, ao chegar á margem opposta foi
ele atacado pelas terriveis piranhas.
Ainda nadava na occasião do ataque.
Imagine o leitor o estrago, a deformação, a mutilação, que sofreu aquelle pobre rapaz!!
As famintas e vorazes piranhas o tinham inutilizado completamente para a vida, que pretendia
abraçar, o casamento!!
O seu desgosto foi tamanho, que resolveu in continenti entregar as mercadorias a seus legitimos
donos, findando assim a sua vida commercial, as suas aspirações de moço e todas as esperanças
futuras da vida.
Retirou a sua palavra do contracto de casamento, acabou com o negocio e retirando-se do seu
arraial, foi residir em Arêas, pequeno povoado, do municipio do Aracaty.
Até 1899, ainda existia, naquelle povoado um velhinho ao qual pertence o monstruoso facto que
acabo de narrar.
[p. 80]
FUNDAÇÃO DO JOASEIRO DO CRATO
(Historico)
Do primeiro para o segundo decennio do seculo passado, o seculo XIX, no dominio colonial, existia
no Cariry, uma poderosa e numerosissima familia, cujo tronco genealogico provinha do Brigadeiro
Leandro Bezerra Monteiro.
Uma sua filha, D. Luiza, casada duas vezes, além de outros filhos, foi mãe do Padre Pedro Ribeiro
da Silva, a quem o Brigadeiro dedicava verdadeira affeição.
A este mesmo sacerdote pertencia um sitio, conhecido pelo nome de Joaseiro.
Esse sitio foi assim chamado, porque alli havia uma bonita e viçosa arvore deste nome.
O seu dono levantou, ao lado da arvore, uma casa para sua residencia, no citado sitio.
Possuia o padre diversos escravos, que tambem levantaram as suas moradas ao lado da do seu
Senhor.
A do padre Pedro era de taipa, coberta de telhas; a dos escravos, porem, eram choupanas,
cobertas de palhas de carnaúba.
Faziam plantações de arroz, no baxio, que fica alli ao lado, juntando ao arroz, tambem milho, feijão
e outros legumes.
Por fallar em milho, convém dizer que a uberdade das terras do Cariry é tal que um pé de milho
[p. 81]
regula tres metros e mais de altura e a mór parte produz duas ou tres espigas de 25 á 30
centimetros mais ou menos de comprimento sobre seis centimentros de diametro e granadas, em
toda a sua extensão.
Dos productos agricolas iam vivendo o padre e seus escravos, aos quaes juntaram-se outros
moradores, cada qual com sua choupana ou palhoça mais ou menos alinhadas.
Estava assim formando-se um arraial, n'aquelle ponto.
Entre os escravos havia alguns que conheciam o officio de pedreiro.
O padre Pedro desejando construir alli uma capella, afim de poder celebrar as suas missas, sem
precisar ir ao Crato ou á Barbalha, que distam dalli cerca de tres leguas, resolveu um alvitre:
Propoz a seus escravos que, si elles construissem a desejada capella, elle dar-lhes-ia a carta de
liberdade.
O padre não desejava dispojar-se de seus possuidos com a construcção, que subiria a muitos
contos de réis, e assim o trabalho iria proseguindo sem nada desfalcar, empregando o serviço dos
captivos; pois as lavouras pouco trabalho lhes dava.
Esta proposta os agradou, e marcado o local, iniciaram elles a obra desejada.
Alguns annos haviam decorrido, e a capella estava ainda em meio, tendo somente o que se
chama a capella mór, e um lado da sachristia.
Ahi já celebrava o padre as suas missas e prati-
[p. 82]
cava outros actos, como baptizados, casamentos, etc.
Desejando elle e conclusão da obra, chamou, um dia, seus escravos á falla e declarou que
estavam todos elles com uma banda fôrra e precisavam trabalhar com mais affinco e mais gosto,
afim de receberem todos a sua carta de alforria.
Correram mais alguns annos e o serviço andava vagarosamente por falta de material, que ia sendo
obtido difficilmente.
O nosso sacerdote, sentindo-se envelhecer e já muito achacado de males, a que não poderia
resistir, resolveu fazer doação das terras, que alli possuia, á Nossa Senhora das Dôres, que elles
escolhera para Padroeira da capella e seu patrimonio.
A sua previsão veio alguns annos depois a realizar-se, porque cada vez aggravaram-se os seus
males e elle não chegou a ter o prazer de ver a conclusão de sua Igreja.
Nesse tempo já se compunha o Joaseiro de umas trinta ou quarenta casas de morada; pois o
padre ia cedendo terras a todos, que o pediam para morar.
Desapparecendo, por morte, o padre, os escravos relaxaram o serviço, que foi só concluido lá para
o meio do seculo.
Eu ainda conheci alguns desses ecravos, aos quais davam a alcunha de banda fôrra, appellido,
que elles não gostavam de ouvir.
Não obstante, depois da morte do Padre, elles, os escravos, não tiveram mais senhor.
[p. 83]
Foi em 1856 que vi, pela primeira vez, o Joaseiro, já com a sua igreja de duas torres.
O povoado, nesse tempo, compunha-se de umas sessenta casas de taipa, umas cobertas de
telhas e outras de palha de carnaúba ou de palmeira.
A disposição dellas não obedecia á regra natural de arruamento.
Logo na entrada do povoado, começavam duas fileiras de casas, sem guardar a equidistancia, no
seu prolongamento.
Ao seguir iam ellas affastando-se, de modo que, tendo no começo uns vinte metros de largura,
terminavam com mais de cem metros ao chegar á igreja, e assim ainda hoje conservam-se.
Não havia estetica nem nexo, naquella formação de arruamento.
A sua população era pobrissima.
Não sei mesmo como podiam manter-se do necessario!
Neste estado, quasi de miseria, vivia aquelle povo.
Mantinham-se das plantações de arroz, no baxio, que exsite ao lado, e de outras culturas pouco
abundantes, porque nào dispunham de meios para alargar os seus haveres.
***
Lá pelo anno de 1860, o governo creou alli uma cadeira de instrucção primaria.
O padre Antonio de Almeida, ainda novo, foi o professor nomeado para regel-a.
[p. 84]
Dahi começou, então o Joaseiro a melhorar.
Já havia missas diarias e, as dos Domingos e dias Santificados eram bastante concorridas.
Já se notava alguma animação.
Veio a guerra do Paraguay, e o padre Almeida, capellão e professor, offereceu-se como voluntario.
Por este motivo ficou o Joaseiro sem o seu capellão e tambem vaga a cadeira, que elle regia.
Pouco tempo depois foi ella prehenchida pelo professor Simão Corrêa de Macedo.
Este moço veiu a casar-se com uma filha do Capitão Domingos Gonçalves Martins, residente no
sitio Limoeiro, uns oito kilometros do Joaseiro.
Deste consorcio, além de outros filhos, teve o casal um de nome Pelusio Corrêa de Macedo, de
quem fallarei mais tarde.
Quanto ao capellão, era contractado um, que pouco tempo durava; conseguiam outro accontecia o
mesmo.
***
Chega por fim o anno de 1870.
Nesse anno ordenara-se o padre Cicero Romão Baptista, cuja familia residia no Crato, tres leguas
dalli.
Este accontecimento despertou os habitantes do Joaseiro, que foram convidar o novo padre para
seu capellão, promettendo certa quantia para sua manutenção e da familia.
Elle, ainda desenpregado, acceitou o convite.
[p. 85]
Arranjaram a conducção e o transportaram para o local de sua capellania.
Até o fim do segundo ou terceiro mez, foram pontuaes no pagamento da espótula offerecida e
tractada.
D'ahi em diante ficou suspensa, motivada pela habitual pobreza de seus capellaneados e, apezar
de estarem satisfeitos, nunca mais recomeçaram o pagamento promettido.
Apezar d'isto, elle continuava em suas funcções, vivendo só para o serviço da igreja, de onde quasi
não se affastava.
As familias abastadas do Districto, desde a sua chegada, enviam-lhe cargas de mantimentos de
toda especie de modo que, nada lhe faltava para o seu sustento, de sua mãe e de sua irmã, unicas
pessoas que o accompanhavam.
Só lhe faltava dinheiro, cousa de que elle não fazia o menor caso.
Tanto fazia tel-o como não.
Passando elle na rua, si um cégo ou aleijado pedia-lhe esmola, mettia a mão no bolso e dava o que
lá encontrasse, sem procurar saber a quantia, grande ou pequena, dava tudo.
Se alguem dava-lhe algum dinheiro, em paga dum serviço feito, elle o punha no bolso, e alli ficava
esquecido, dando-o todo ao primeiro pedinte.
Era só nessas occasiões, que lembrava-se que tinha bolso a sua batina.
[p. 86]
Só não dava esmola, quando nada encontrava; e, despedia o pobre pedinte com palavras amaveis,
chamando-o de filgou ou irmão.
Quando, em casa, elle mandava dar qualquer cousa sempre; de modo que cada vez adquiria maior
estima.
Como passava a maior parte de sua vida na igreja, alimentava-se uma só vez por dia e fóra de
horas; no entanto conservava-se robusto e sadio, como que o seu organismo fosse feito para tal
vida!
Com este modo de viver só na igreja, começaram as confissões e communhões.
O povo começou a dar o nome de beatas ás frequentadoras das communhões diarias.
Ellas, por sua vez, arranjaram um traje especial; todas vestidas de preto com as cabeças tambem
cobertas com um chale preto. Mal appareciam-lhes os olhos.
Eram as beatas.
Entre ellas distinguia-se uma cabocla, a quem conheci, quando ainda menina, em companhia de
seus paes, o caboclo João de Araujo e sua mulher, os quaes eram moradores de meu cunhado,
João Ferreira de Andrade, já fallecido, que possuia um sitio dois kilometros do povoado, no logar
denominado Volta; nome dado, porque, naquelle ponto, o rio, que vae do Crato, faz alli uma curva.
Chamava-se Maria de Araujo.
Essa rapariga era assidua frequantadora da igreja e commungava sempre, diariamente.
[p. 87]
Um dia, naquella occasião, não poude ella consumir a particula, porque encheu-se-lhe a bocca de
sangue!
O padre affligiu-se com aquilo e recolheu tudo em um vaso separado.
O facto passou-se e as outras beatas entenderam que aquilo se déra, porque a Maria era santa!
O Padre Cicero, então, prohibiu que aquella noticia se espalhasse.
No entanto, ella correu de bocca em bocca; mas tudo em segredo, receiando que o padre viesse a
saber de onde partia e a quem propalava.
Este facto reproduziu-se mais de uma vez.
Era impossivel abafal-o!
Elle corria mundo, dando como santa a beata Maria de Araujo!
Alguns annos passaram-se, propalando-se ás occultas.
Só por esta noticia, começaram a apparecer diversos romeiros, que achavam de seu devêr ficarem
residindo no Joaseiro, por causa do milagre do sangue.
O povoado já contava, no numero de seus habitantes, cerca de trinta ou quarenta familias,
attrahidas por similhantes noticias.
***
A má construcção das torres da Igreja fez que se arruinassem e, por occasião d'um rigoroso
inverno, cahiram por cima do corpo della, deixando um montão de ruinas!
[p. 88]
O Padre Cicero não desanimou.
Convidou o povo em massa, distribuiu o serviço entre todos e deu inicio á reconstrucção, não
somente das torres, mas de todo o templo.
Para maior regularidade, determinou que no primeiro dia comparecessem todos os homens da
lettra A; depois os da letra B e assim seguidamente.
Por este systema nunca faltou trabalhador durante a reconstrucção.
Em menos de um anno, ficou terminado o serviço da nova Igreja, representando um bello templo
de estylo moderno.
Era preciso agora uma imagem de acordo, e, para isso, foi feita uma encomemmenda directamente
a Paris.
Em 1887 chegara, pelo meiado do anno, a desejada imagem da Virgem, em tamanho natural e de
uma perfeição admiravel.
Para a solemnidade do seu benzimento, foi convidado o padre Francisco Rodrigues Monteiro, que
occupava, naquelle tempo, o logar de Vigario de Iguatú.
Viera fazer o sermão da solemnidade. Tinha elle a palavra facil.
Chegou alli na vespera da festa.
Na noite d'aquelle dia, o Vigario Monteiro pediu ao seu collega de habito que lhe contasse o que
havia sobre a beata Maria de Araujo.
O padre Cicero excusou-se de fallar do assumpto; mas o Vigario insistiu.
[p. 89]
Por fim resolveu o padre Cicero a contar tudo; pedindo-lhe, porem, o maior sigillo.
De posse d'elle, no dia seguinte, por occasião do sermão e com surpresa de todo o auditorio e
pasmo do padre Cicero, o vigario Monteiro, esquecendo que era segredo, declarou do pulpito que,
entre os seus ouvintes, havia uma santa, a beata Maria de Araujo!!!
Seguidamente explicou porque razão era ella santa.
"Aquele sangue, dizia elle, era o sangue de Jesus Christo!!"
Esta declaração do pulpito, esta noticia extraordinaria espalhou-se com a rapidez de um raio!
Si, só com os boatos espalhados em segredo, já appareciam romeiros de pontos diversos, que
para alli acorriam; faça ideia o leitor o que não se deu, depois d'aquella declaração formal!
Não tardou a concurrencia extraordinaria de romeiros, anciosos por presenciar o estupendo
milagre do sangue de Christo!
Acorriam de todos os pontos proximos e affastados.
Viam-se levas de familias inteiras de boa apparencia, que iam visitar o Joaseiro, afim de verem
com seus proprios olhos, os prodigios e santidade de Maria de Araujo!!
Era o assumpto obrigatorio, o estrondoso milagre do sangue!!
Veio a constatar-se depois que nada de prodigioso
[p. 90]
existia, por apparecer sangue na bocca daquella beata.
Era pura e simplesmente esterismo e não milagre, como ficou provado mais tarde.
Grande parte desses romeiros ricos e abastados ficaram definitivamente morando no Jaseiro.
Cada familia construia a sua propriedade, de modo que a miserrima povoação, das suas sessenta
ou setenta moradas, que dantes possuia, elevou-se de forma tal, que em 1899, já contava mais de
mil e seiscentas habitações!
Já naquelle tempo, não havia nenhuma das cidades do interior que chegasse a ser do tamanho da
povoação do Joaseiro; todas ficavam-lhe em plano muito inferior.
Apesar d'isto, do seu tamanho extraordinario, continuava a ser povoação.
Dava ella crescida renda á camara do Crato, e, por esta razão, ella opunha-se formalmente, a que
o Joaseiro subisse de categoria.
A politica interveio e, afinal, conseguiu eleval-a á Villa, conservando o mesmo nome.
Obtido este triumpho, a sua população animou-se e a vida alli tornou-se mais agradavel e mais
facil.
A politica dominante do Joaseiro, temendo que, mais tarde, viesse a perder a sua influencia
perante os chefes da capital, conseguiu elevar a villa do Joaseiro á categoria de cidade.
Menos de dois annos foram suficientes para chegarem a conseguir o seu desideratum,
merecidamente.
[p. 91]
***
Voltando a fallar do sangue, que apparecia na bocca de Maria de Araujo, na occasião que
comungava, dois medicos, os Drs. Madeira e Ildefonso Lima, examinaram a santa e attestaram ser
o sangue divino e milagroso!
O povo acreditou piamente no estupendo milagre e juntamente o padre Cicero!
As auctoridades acclesiasticas submeteram a questão á Santa Sé e, depois de bem estudada
canonica e scientificamente, foi a questão decidida em sentido opposto aos attestados dos dois
medicos, que perderam por haver fallado. Não havia milagre.
Era puro esterismo e nada mais.
Esta decisão, porem, não os convenceu e continuaram na sua primitiva crença; era milagre e
ninguem os convencia do contrario!
Logo depois da decisão opposta áquella crença o Sr. Bispo ordenou a reclusão de Maria de Araujo
á Casa de Caridade do Crato, afim de acabar com o suposto milagre.
Ella não se conformara com essa reclusão e á noite, ia ao Joaseiro, commungava e voltava á sua
prisão, e, por fim, ficou impedida de sahir.
Hoje, porem, o ardor d'aquella crença passou.
Foi, no entanto, esta a causa da prosperidade do Joaseiro, que ainda seria uma réles povoação,
com os seus sessenta ou setenta casebres, si não tivesse alli apparecido aquella manifestação de
milagre, que arras-
[p. 92]
tou aquella massa de novos habitantes, os romeiros, que lhe deram tal incremento.
***
O padre Cicero é idolatrado por aquelle povo.
A maior parte o chama de Meu padrinho, e o obedece cegamente.
Em 1910, mais ou menos, tinha elle um prélo, que acabava de chegar em Fortaleza.
Mandou ordem para o remetterem montado para a cidade de Senador Pompeo, ultimo ponto da E.
de Ferro; noticia que passou a sen [sic] povo, dizendo:
Quero elle aqui.
Bastou isto e poucos dias depois, entrava, no Joaseiro, crescido numero de povo com o prélo ao
hombro e a gritar triumphantemente:
"Viva meu padrinho padre Cicero!"
A distancia é de cerca de 50 leguas e o pezo, de algumas toneladas.
***
Quando era ainda povoação o Joaseiro, e a sua sempre crescente corrente de emigrantes o tinham
feito augmentar consideravelmente, os seus habitantes ainda se proviam d'agua, indo-a buscar do
outro lado do baxio, ao pé da serrota, que se vê em frente, cerca de um kilomentro.
Um meu irmão, de saudosa memoria, de nome Pedro Gonçalves Dias Sobreira, que havia
mudado-se do sitio para o povoado, lembrou-se de plantar uma carreira de cajueiros, atravessando
a praça em frente a
[p. 93]
igreja, na intenção de fazer sombra, que abrigasse os mercadores, nos dias de feira, que já era
grande.
Effectuada a sua lembrança, quando os cajueiros cresceram, elle notou que um d'elles mostrava-
se mais viçoso e desenvolvido do que os outros.
Por esta causa, pensou elle:
_ Isto quer dizer que por alli deve haver agua perto.
O terreno em que assenta o Joaseiro, é arenoso, de taboleiro e fica tres e meia leguas abaixo do
tronco da Serra do Araripe e por tanto deve haver agua das fontes da serra infiltrada naquella
direcção, passando por alli. Era este o seu raciocinio.
Animado por esta esperança, reuniu elle alguns trabalhadores e mandou cavar uma profunda fossa
ao lado do cajueiro viçoso.
Quando chegaram a uma certa profundidade, começou a brotar agua em abundancia.
Estava assim realisada a sua esperança, a sua previsão.
Comprou tijolos bem cosidos, chamou pedreiros e construiu um largo e profundo poço, similhante
aos que vira na capital do Estado.
A parede circular começa do fundo e eleva-se uns quatro palmos acima do solo para evitar que alli
podesse cahir algum animal ou alguma criança.
A agua encontrada é de optima qualidade: fina, clara e transparente, quasi como as das fontes do
Araripe.
É potavel e boa.
[p. 94]
Esse poço, assim construido, foi por elle facultado á serventia publica; e daquella data em diante,
cessou, por completo a ida, ao pé da serra para proverem-se d'agua necessaria á vida domestica.
Esse povo ficou sendo conhecido por _ "Cacim do povo".
Mais tarde, outras pessoas, a exemplo do Pepê, como o chamavam na intimidade, fizeram o
mesmo, no quintal de suas casas, obtendo o mesmo resultado: boa agua e abundante.
Actualmente, grande parte dos moradores, os mais abastados, teem o seu poço com agua
excellente, no seu proprio quintal.
A nova cidade do Joaeiro vae em prosperidade.
Alli já existe de tudo e com abundancia.
A zona da cidade occupa actualmente, mais de uma legua de terreno arruado!
Já se eleva a mais de tres mil casas de morada.
***
Já ficou dito acima que o professor Simeão Corrêa de Macedo, teve um filho de nome Pelusio
Corrêa de Macedo, nascido e creado no Joaseiro, sem nunca ter sahido d'alli para parte alguma. O
seu genio artistico o fez entregar-se com exito ao officio de relojoeiro.
O Padre Cicero satisfeito pela reconstrucção da igreja, lembrou-se de pôr em prova a habilidade do
Pelusio, que nunca teve mestre.
Um dia chamou-o e disse:
_ Pelusio, eu preciso de um relogio para a torre da igreja.
[p. 95]
Bastou isto; a manifestação d'esse desejo.
O nosso artista, sem ferramenta propria para o caso, metteu, não obstante, mãos á obra e com as
maiores difficuldades, construiu um relogio, cuja pendula peza vinte e cinco kilos e montou-o na
torre da igreja.
Fundiu um sinal especial, de modo que, quando toca as horas, ouve-se meia legua em roda, por
todos aquelles sitios, principalmente á noite!
Esse relogio funcciona com a maior regularidade, ha quasi vinte annos!
O meu Ceará tem de tudo!
É penna que seja elle causticado pelas grandes seccas periodicas.
***
Esse extraordinario artista é neto (como vimos) do Capitão Domingos Gonçalves Martins, do
Limoeiro, o qual foi um dos jurados, qne [sic] composeram o Conselho de Sentença, que
condemnou á penna de morte ao Coronel Joaquim Pinto Madeira.
A mesa, sobre a qual foi lavrada essa sentença, acha-se na casa da Camara do Crato, guardada
como reliquia.
É construida de uma só peça, tal era a grossura da arvore.
Tem ella tres palmos e meio de largura, sem emenda alguma, sobre sete e meio de comprimentoe
dez a doze centimentros de espessura.
[p. 96]
INGENUIDADE
Já deixei dito, em começo, que o que vae, linhas abaixo, são factos, que não admittem
constestação.
Não queiram, pois, os amaveis leitores suppor anecdota o que se segue.
É um facto occorido em 1875, em pleno seculo das luzes.
Havia nos Inhamuns, alto sertão do Ceará, um pequeno arraial, que dista cerca de quatro leguas
do Tauhá, a cujo termo pertence; de modo que, por sua distancia, os habitantes desse arrial
desconheciam, quasi completamente, os deveres do christão.
Lá um ou outro, que possuia um animal de carga, levava, uma vez por outra, algum dos productos
de suas lavouras ao mercado da villa.
Só n'essas occasiões, aproveitava elle o dia de Domingo para ouvir missa.
O arraial compunha-se de umas seis ou oito moradas proximas e outras tantas um pouco mais
afastadas, umas das outras, seguindo a estrada.
Lembraram-se os moradores de melhorar esse estado de cousas, contruindo alli uma capellinha, a
que chamam orotorio e conseguiram seu intento.
Contruida ella, convidaram o Vigario da Freguezia para benzel-a e celebrar alli uma missa, ao
menos uma vez cada mez.
[p. 97]
O Vigario achou boa a lembrança e marcou o terceiro Domingo do mez de Novembro para
effectuar a cerimonia e pediu que avisassem toda a visinhança para assistir.
Chegado o dia marcado, todos compareceram ao lacal [sic] da capella.
O sr. vigario não se fez esperar, e, logo as oito horas do referido dia, compareceu acompanhado do
sachristão com os paramentos necessarios.
Antes das nove horas seguiram todos a capella afim de assistirem aos actos religiosos, que iam
ser alli celebrados pela primeira vez.
O sachristão accendeu as vellas do altar e o povo ficou em attitude de assistir os actos, que iam
seguir-se.
Neste momento o vigario, viu um dos caipiras dirigir-se ao altar.
Alli chegando, tomou elle uma das vellas e nella accendeu o seu cigarro!
O vigario presenciando essa má accção, chamou o nosso matuto com tão bom humor que elle
chegou-se ao sacerdote com ar alegre e disse:
_ Prompto, seu vigaro.
_ Diga-me uma cousa: Você de onde é? Disse-lhe o sacerdote.
Elle alegre e satisfeito por estar fallando com um Padre, respondeu:
Eu, seu vigaro, sou do Mundo Novo, sim sinhô.
Ah! Disse-lhe com brandura o nosso bondoso parocho.
_ Ah! eu bem logo vi que você era do mundo novo, porque se fosse do mundo velho, não faria isto,
pois é uma falta de respeito ás cousas sagradas. Não faça mais isto, meu filho.
O nosso matuto um pouco desconcertado com a lição do Sr. Vigario, mas convencido do mal que
tinha praticado, disse:
_ Inhô sim. Ói, seu vigaro, eu sipunha qui não fazesse mau.
_ Sim, meu filho, aqui é a casa de Deus. Não faça mais isto.
Eis a crassa ignorancia do nosso caipira transformada em santa ingenuidade!
[p. 98]
INTELLIGENCIA EXCEPCIONAL
Existe no Crato uma familia, cujo chefe chama-se Sesinando Baptista.
Entre outros filhos do casal, ha um com o nome de Sisenando.
O seu preparo literario não passou das primeiras letras.
Desde a sua mais tenra idade, celebrisou-se elle em calculos mentaes, de modo a surprehender.
Perguntavam-lhe, por exemplo:
Sisnando, o dia tanto de tal mez do anno tal, que dia era da semana?
Elle respondia immediatamente sem hesitar:
_ Era tal dia.
Isto fazia sem a menor demora, fosse de uma data anterior ou posterior, proxima ou remota, de
poucos ou de muitos annos passados ou futuros.
Um dia, para se certificarem da exatidão de suas respostas, diversos rapazes tomaram um
almanack velho e fizeram diversas perguntas neste sentidoe o nosso Sisnando respondeu sem
titubiar a todas ellas com a maior exatidão.
Um delles, porem, depois da resposta exacta do nosso calculista, disse:
_ Errou. E deu o nome de um outro dia dizendo:
_ Está aqui o almanack. Errou!
Sisnando então respondeu sem se perturbar:
_ É porque o almanack está errado.
O seu interlocutor o queria enganar; mas, não poude fazel-o, porque foi logo confirmado pelos
outros companheiros.
A resposta estava certa.
Elle falla muito compassadamente e pouco, limitando-se a responder as perguntas que lhe fazem.
No fim de algumas dellas, um dos companheiros perguntou como era que elle fazia aquelles
calculos?
O Sisnando respondeu:
_ Não sei.
***
Alem disto nosso extraordinario calculista, é também um polyglota.
Traduz e escreve com correcção o latim, o grego, o sanskrito; diversas linguas vivas como o inglez,
o allemão, o holandez, o italiano, o arabe, etc., etc.
É de notar, porem, que fazendo esses estudos comsigo mesmo e sem mestre de especie alguma,
elle desconhece a pronuncia de cada lingua, limitando-se a traduzir e escrever qualquer dellas.
Não as falla.
É elle um estudioso eterno.
Não arreda o pé de casa para parte alguma, sempre pegado aos livros a aprender linguas vivas e
mortas, de que elle tem noticia, de modo que é quasi desconhecido na cidade de seu nascimento,
de onde nunca sahiu.
[p. 101]
Em 1900 estive eu, no Crato, oito mezes e só o vi uma vez casualmente, porque o foram chamar
para m'o apresentarem.
Fiz-lhe diversas perguntas, tendo sempre resposta cabal.
Respondidas que sejam, fica elle calado com um ar concentrado e como que preocupado em
algum pensamento.
É este o seu estado normal.
[p. 102]
CEARENSES
Duas qualidades são peculiares aos cearenses:
A sobriedade e a honestidade.
Tudo mais lhe é indifferente.
Vivem todos satisfeitos, alegres e brincalhões, sem se lembrarem do dia de amanhã, nem de
accumular riquezas.
Este é o plebeu, a gente do povo. São elles, porem, correctos, fieis e trabalhadores.
O seu traje, no campo, não passa de uma camisa e ceroula de algodão, por elles mesmos
arranjadas.
Os que tratam do gado dos patrões, vestem por cima um traje pittorêsco, pelo qual distingue-se
logo o vaqueiro da Fazenda, anda encourado.
Consiste em um par de sapatos, calças, palitot, collete e chapéo, tudo feito de grosso e forte couro
de boi novo, ou de viado - capueiro, bem cortidos e macios.
Só o chapéo e os sapatos não teem nomes especiaes:
Ao palitot chamam gibão, ao collete guarda-peito, a às calças dão o nome de perneiras.
Este fardamento é o luxo do vaqueiro do sertão com o qual elle apresenta-se nas festas intimas e
até
[p. 103]
nas igrejas, por occasião das missas e outras solemnidades, como tambem nos passeios.
A um homem vestido assim, dizem encourado; quando essa roupa é de panno, dizem empannado.
Muitos sertanejos moram á margem das estradas, perto de algum poço para proverem-se d'agua,
quando cessarem as chuvas do inverno.
Quando as aguas vão escasseando, elles vão aprofundando o poço, buscando sempre agua do
sub-solo, quanto possivel.
Os viandantes partem de casa para uma viagem qualquer, longa ou pequena, e muitos delles nada
levam para comer durante ella, na certeza de nada lhe faltar, e assim é.
Cortam e recortam os nossos sertões em todas as direcções, chegam de volta a sua morada e
nada lhes faltou.
D'ahi vê-se quanto são elles hospitaleiros e prestaveis; nada exigem em contribuição e até não
gostam que se lhe offereça qualquer pagamento pelo beneficio recebido.
Além de sobrios são faltos de ambição, que tambem é uma virtude.
Empregam elles certas expressões admiraveis:
Muitos moram em telheiros ou em palhoças, ás vezes sem nenhuma divisão interna e dizem com
muita graça:
Patrão, a minha casinha é tão pequena que não
[p. 104]
tem _ dentro _ querendo assim dizerque tudo que existe nella está á vista!
A maior patente que elles conhecem é Capitão; de modo que ao enfrentar um cidadão qualquer,
elle o chama logo de seu Capitão. _ Seja elle General ou não tenha patente alguma.
Este modo de tratamento, vem, sem duvida do tempo da Colonia, em que existiram os capitães-
móres que eram as figuras mais salientes de então e mais respeitadas.
***
A classe media é emprehendedora e arrasta a classe inferior a acompanhal-a.
Aos cearenses deve-se, pois, o adeantamento extraordinario do immenso collosso do Amazonas!
Quasi que o seu descobrimento.
Foi o cearense que os desbravou e povoou com o sacrificio de milhares de vidas; mas o fez!
É, portanto, o Amazonas e o Acre, um prolongamento do Ceará.
A mór parte dos seus habitantes são cearenses ou descendentes delles.
Foi um cearense o primeiro a estabelecer charqueadas no Aracaty, antes da secca de 1845.
Com a secca referida, que exitingiu quasi completamente o gado, elle não podendo continuar a sua
industria, mudou-se para o Rio Grande do Sul, e alli poude continuar sem receio de faltar o gado
preciso.
[p. 105]
D'ahi veio o nome de carne do Ceará para o charque, que apezar de não ser preparado lá,
conservou-se o nome durante muitos annos.
***
Um cearense abastado e viajado, contou-me que estando de passeio em Pekim, casualmente
avistou um carrinho de mão, guiado por um homem que trazia o seu respectivo rabicho, conforme o
uso da terra.
Até ahi nada de novo.
Mas o meu conterraneo admirou-se foi de ver escripto, naquelles confins, a palavra Mecejana na
chapa do tal carro daquelle chim!
Não se contece na sua surpreza, e, dirigindo-se immediatamente ao homem do rabicho, disse-lhe
em portuguez:
_ Você é brasileiro?
E o homem do carro respondeu, tambem em portuguez:
_ Não, senhô; sou Cearenso, sou do Ceará.
_ De que logar?
_ De Mecejana, sim, senhô.
Contou-lhe depois como foi ter alli, onde já tinha constituido familia, etc., etc.
Do Ceará tem sahido grandes ideias, estupendos feitos!
Foi o diacono José Martiniano de Alencar, que pregou no Crato as ideia [sic] republicanas em Maio
de 1817.
[p. 106]
Tristão Gonçalves d'Alencar Araripe proclama, em Fortaleza, a Republica do Equador, embora de
ephemera duração.
O Dr. Pedro Pereira da Silva Guimarães foi o primeiro que, como deputado, appresentou na
Camara o primeiro projecto de lei, libertando os escravos.
Naquella occosião [sic] um Sr. deputado perguntou-lhe em a parte:
_ Quantos escravos possue V. Exc.?
_ Não vim dar bens á pinhora.
Respondeu elle.
E continuou a justificação do seu projecto, que não vingou.
Em 1884 foi o Ceará o primeiro que aboliu a escravatura do seu territorio.
E todos sabemos que só em 13 de Maio de 1888, foi sanccionada a Lei Aurea, que aboliu por
completo a escravatura no Brazil.
[p. 107]
REMEDIOS CASEIROS
Como se sabe, ha em todos os povos uma especie de medicina caseira, prolongando assim a
classe medica a todos os recantos.
Todo mundo sabe ensinar um remedio.
O mais extraordinario, que conheço, vi ser applicado por uma familia cearense, no tratamento do
embaraço gastrico, conhecido por indigestão.
Essa molestia, que costuma maltractar a certos individuos por um modo tal que impede a sua
nutrição, e o definha consideravelmente, mesmo com applicações medicas de vomitorios, laxativos
e o mais; fica, muitas vezes um mal chronico para todo a sua vida. Não o cura. É verdadeiro
paleativo.
Pois bem; a familia, a quem me refiro, sabe applicar um remedio simples e de facil manipulação, de
um effeito surprehendente, rapido e infalivel!
É, como dizem, agua na fervura.
A cura é radical e instantanea.
Toda a difficuldade está em saber ao certo qual foi a comida ou bebida, que produziu o mal.
Sabido isto e applicado o remedio, o mal desapparece como por encanto.
A pessoa, que indigestou com tal ou qual comida ou bebida, mesmo depois dos vomitorios ou pur-
[p. 108]
gativos, nunca mais poderá servir-se della, porque os incommodos voltarão.
Ao passo que com essa applicação, pode, depois, servir-se sem receio e nada mais sentirá.
Consiste apenas em uma chicara de chá, feito da comida ou bebida que produziu o mal.
Para isso, toma-se meia colherinha della, da comida ou bebida, põe-se em uma chicara, deita-se
agua fervendo e cobre-se durante uns cinco minutos.
Passados elles, decanta-se, mudando para outra chicara, com cuidado para não toldar; põe-se
assucar, meche-se e bebe-se. Tambem pode tomar sem assucar.
Está feita a cura.
É uma especie de applicação homeopathica, que se funda no principio;
O mal cura-se com o proprio mal.
Similia similibus curantur.
Quando o embaraço ou indigistão manifestar-se depois de o passiente, haver servirdo-se de
diversas iguarias, sem ter a certeza que foi esta ou aquella, que lhe fez mal, fará o chá de cada
uma dellas separadamente, e não obstante a cura será infallivel, como no caso de ter sido uma só
especie de comida ou bebida que causou o mal.
De um para outro chá deixará espaço de uma ou duas horas.
Um exemplo basta para fazer ideia o leitor da promptidão da cura.
[p. 109]
Certo dia viajava um engenheiro amigo dessa familia cearense e de certo ponto telegraphara,
dizendo que ia muito incommodado e que talvez voltasse dalli, si pudesse chegar. Tal era o seu
estado morbido.
A familia amiga tinha-lhe preparado uma recepção condigna.
Ao approximar-se, quasi hora do almoço, pediu um commodo para deitar-se, tal era o seu mau-
estar.
A familia endagou a causa do mal e veio a saber que fôra um pouco de leite azêdo, que tomara,
não tendo podido dormir de incommodo, toda a noite.
Desse leite ainda restava na garrafa cerca de um calix.
A familia tomou-o preparou o chá e eu em pessoa levei-o ao enfermo.
Elle tomou-o já deitado, pedindo que o deixasse descançar; nada queria do almoço, que seguiu-se.
Tres ou quatro horas depois, levantou-se elle alegre e satisfeito a dizer;
Bemdito chá! Estou bom! Nada mais sinto!
Que remedio santo!
O que foi que me deram?
A familia satisfez-lhe as perguntas, e ensinou como se fazia o chá.
Passou elle alli a noite e na manhã seguinte proseguiu na sua viagem.
[p. 110]
De todos os pontos, que chegava, o seu primeiro cuidado era telegraphar a essa familia dizendo:
Bemdito chá!
Nada mais sentiu estava curado!!
[p. 111]
MENINO PHENOMENAL
Em Setembro de 1887, viajava eu com dois companheiros, atravessando o alto sertão do Ceará,
de Fortaleza ao Crato.
Ao aproximarmo-nos da villa de Missão-Velha, já no Cariry, o sol estava de rachar.
Quasi ao meio dia, encontrámos uma morada á margem da estrada, e para lá nos dirigimos, na
intensão de descançarmos alli.
Com effeito, obtida a costumada licença, apeamo-nos e, armadas as nossas rêdes, alli ficámos até
ás tres e meia horas da tarde.
Uma hora e meia, mais ou menos, depois de alli estarmos, appareceu um menino phenomenal, que
nos atrahiu para logo a attenção.
O seu todo era de uma criança, mas com todos os signaes de homem refeito!!!
Morava, com seus paes, na visinhança, o tal menino, que contava apenas cinco annos de idade,
segundo nos affirmaram os donos da casa, em que estavamos descançando.
Media elle, naquella occasião, um metro e vinte centimetros de altura!
Todos os seus membros eram proporcionaes ao seu corpo e a sua altura, notando-se bastante
robustez.
[p. 112]
Tinha a intelligencia pouco desenvolvida, pelo tamanho da pessoa; era, porem, tão ingenuo, como
uma criança de dois ou tres annos.
Viam-se, nelle, todos os signaes exteriores de um homem perfeito; até barba crescida!!
Contaram-nos que a mão delle, por acanhamento, tinha todo o cuidado de conserval-o sempre
vestido, pois que elle não se envergonhava de sua nudez.
Era uma perfeita criança neste sentido.
Na occasião em que o vimos, vestia só uma camisa de grosso algodão, que lhe descia até abaixo
dos joelhos e nada mais.
Já fazia trabalhos grosseiros, como pilar milho e arroz para toda a familia: Isto fazia por gosto e
sem constrangimento.
Já tinha as mãos grossas e callejadas, como as de qualquer roceiro, apesar de sua pouca idade!
***
Precocidade similhante li, em um jornal, um ou dois annos depois de 87, que uma menina de dois
ou tres annos de idade, tinha os seios do tamanho de uma laranja, tão desenvolvidos como os de
uma mulher e enchiam-se de leite, por tal forma que era preciso esvasial-os diariamente mais de
uma vez do contrario não podia dormir.
[p. 113]
A EMA
A ema é uma especie de avestruz do Brazil.
Vivem as emas no alto sertão, nos pontos mais desertos dos taboleiros descobertos de mattas.
Uma ema velha chega a medir setenta e cinco centimentros de altura e levantando o pescoço, vae
quasi a um metro e meio.
A sua arma de defesa consiste apenas em um esporão, na curva da aza.
É a ema dotada de força extraordinaria.
Ninguem é capaz de sustentar uma pelo pé!
As suas pennas são todas esfrangalhadas.
Não se prestam para voar.
A sua pelle é tão grossa e forte que os sertanejos tiram inteira a do pescoço, que é bastante longo,
(mais de meio metro) curtem-na e preparam-na para servirem-se della como sacco de conduzir
dinheiro de metal, sem receio de rasgar-se ou furar-se com o peso.
Os ovos da ema têm o comprimento de dez a onze centimentros, sobre oito de diametro!
A ema põe os seus ovos no chão, entre o capinzal, onde prepara o seu ninho a contento.
E, cousa singular. Não chóca todos os ovos.
Reserva um, despresando-o e pondo-o para fóra pouinho.
[p. 114]
Aquelle está condemnado a apodrecer!
Qual a razão desse desprezo?
A natureza deu-lhe o instincto, a razão disto.
Logo que os filhotes sahem dos ovos, que a ema chocou, teem necessidade de alimentar-se.
Vae agora o leitor admirar como a natureza, a Providencia divina é prodiga em sabedoria.
A ema quabra com o bico o ovo condemnado, que apodreceu e, então, o fétido que delle
desprende faz affluir um enchame sem conta de moscas, que a ema vae pegando e dando ás
recem-nascidas!!
Eis o seu primeiro alimento.
É bastantemente conhecida a penna de ema, com que preparam lindos espanadores.
[p. 115]
NOVENAS NO SERTÃO
Os sertanejos costumam festejar alguns santos de sua devoção particular.
Para isso, em tempo determinado e conhecido por todos, chega o dia de levantar a bandeira.
É a vespera de começarem os festejos.
Na tarde desse dia, afflúem todos os moradores d'aquella zona para o ponto dos festejos,
chegando alli ao escurecer.
São avisados pelo estampido ensurdecedor de um grosso bacamarte, cujo desparo é reproduzido
de momento á momento.
Estando já reunida grande massa de povo de ambos os sexos e de todas as idades, com faxos
accesos na mão, sahem levando, um delles, uma bandeira branca, presa á ponta de uma vara.
Cantam versos análogos ao levantamento della, acompanhados ao som de pifanos e rufos de
tambores.
Durante o trajecto (especie de procissã), vão dando vivas ao santo festejado. A cada passo o povo
é atorduado pelos medonhos estampidos do bacamarte ou roqueira!
No momento dado, ao chegarem, de volta, ao terreiro da casa, amarram a vara com a bandeira na
[p. 116]
ponta de comprido mastro, que alli se acha estendido no terreiro, tendo, junto ao tronco, um buraco
no chão.
Alli fincam o mastro, que leva na ponta a bandeira da festa.
As pessoas presentes, entre a maior alegria, retiram-se para voltar na noite seguinte, que é o
começo das novenas.
No fim de cada exercicio, cantam o que elles chamam o bemdito.
Em uma novena a S. José, ouvi cantar uma quadra, que (me parece) não podia fazer parte do
bemdito.
No entanto cantavam.
A ingenuidade daquelle povo, porem, acha isso muito direito e muito bom.
A quadra a que me refiro é a seguinte:
«São José, que moda é esta,
«Largue o prato e a cuié.
«Home, não vai im cuzinha,
«Onde tem tanta muié.
[p. 117]
LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS
Foi em Fortaleza, Capital do Ceará, que começou o movimento de libertação dos captivos.
Um grupo de enthusiastas, composto de João Cordeiro, José do Amaral, Isaac Amaral, Frederico
Borges, D. Maria Thomasia e outros, deu o primeiro gritto de alarma, em sessão secreta, na qual
ficou deliberado que, na semana proxima, desappareceriam os escravos de A. ou B.
Com effeito.
Cada membro daquelle humanitario grupo, procurava entender-se pessoalmente com os pobres
captivos e incutia-lhes no espirito a ideia de liberdade.
"Tome este bilhete e vá apresentar-se a meu amigo F. de tal. Você não é mais escravo. É tão livre
como eu. Somos iguaes em tudo."
E despedia com carinhoso abraço e forte aperto de mão o seu novo amigo.
Aos nomes já citados dos libertadores juntaram-se mais os senhores João Lopes Ferreira, Justiano
de Serpa, Antonio Bezerra, D. Elvira Pinho, etc., etc.
Deliberaram a creação de um jornal de propaganda, cujo nome foi _ "O Libertador".
Nelle expandiam largamente a ideia nova, que em breve invadia toda a população cearense.
[p. 118]
Já era intensa a corrente libertadora contra os negreiros donos dos escravos, os quaes prevendo
perder sua mercadoria humana, a sua propriedade, procuravam, a todo transe, desfazer-se della,
tentando embarcal-a para as senzalas do Sul, empenhando nisto toda a segurança; mas, no ponto
do embarque, lá estava preparada fortissima barreira!
Era Francisco do Nascimento, conhecido pela alcunha de Chico da Mathilde ou Dragão do Mar.
Exercia elle o logar de Pratico-mór da Barra.
A sua jangada não se rebaixaria, transportando aquella mercadoria humana!
Elle oppunha-se tenazmente a isso, ao transporte para bordo de qualquer navio.
Houve lucta e lucta renhida das autoridades negreiras contra os libertadores.
Para esse fim os escravocratas conseguiram a demissão de Frederico Borges do logar de
Promotor Publico da Capital e a do Pratico-mór, o Dragão do Mar, por serem libertadores!
Mesmo assim, nada conseguiram, porque o povo, em massa, oppunha-se áquelle trafego humano!
Os libertadores cada vez, empenhavam maior esforço.
A casa das suas sessões era conhecida por _ Furna na Rocha Negra _ e outra _ Furna da Rocha
Branca.
Alli lavravam elles as cartas de Liberdade.
Em seguida despachavam um portador com um
[p. 119]
bilhete dirigido ao ex-senhor enviando-lhe a quantia arrecadada, dizendo ser a importancia total
pela alforria de seu ex-escravo fulano, hoje cidadão brasileiro.
O tal negreiro ficava furioso e tinha de conformar-se porque o seu ex-escravo não lhe apparecia
mais.
Os conflictos reproduziam-se cada dia.
Montavam guarda na praia, dia e noite, de modo a não ser possivel mesmo um embarque
clandestino de carne humana!
A qualquer hora invadiam o ponto de embarque, viravam jangadas e qualquer outra embarcação,
que se atrevesse a tentar qualquer serviço favoravel aos negreiros.
***
Um dia assentaram em libertar todos os escravos de certo municipio proximo.
Tomaram o trem e cheios de patriotico enthusiasmo, foram saltar na villa do Acarape e uma vez
alli, entre grande numero de pessoas de todas as classes, depois de eloquentes discursos
analogos, declararam livres todos os escravos do municipio e que para a feliz memmoria dessa
data gloriosa, ficava, tambem mudado o nome do municipio e o da villa do Acarape para o de
Redempção.
Esse nome de occasião pegou e mais tarde, tendo sido elevada a categoria de cidade, o foi com o
nome de Cidade da Redempção, juntamente o seu municipio que perpetuou assim o extraordinario
feito!
[p. 120]
A lucta dos libertadores não terminou o seu ardor.
Em 25 de Março de 1884 fizeram elles o mesmo com relação ao municipio da Capital, e por fim
com todo o territorio da então Provincia do Ceará.
Os escravos das provincias visinhas Piauhy, Pernambuco, Parahyba e Rio Grande do Norte,
sabendo não haver mais escravos no Ceará, alli se refugiavam, na certeza de não serem
perseguidos.
Estavam livres!
Na noite de 25 de Março fazia gosto ver-se o enthusiasmo popular em fovor [sic] da libertação dos
captivos.
A capital regorgitava de povo, convidado pelo jornal _ O Libertador.
O enfeite e ornamentação das ruas era em tal profusão que difficil se tornava reconhecer a
residencia de certos cavalheiros amigos!
A iluminação era tão abundantemente distribuida que deslumbrava.
Na casa mais pobre, das areias, nos suburbios, via-se, ao menos, uma vela de carnaúba com
lanterna de papel de côr, fincada n'areia, junto da porta, por falta de castiçal.
Mas tinha illuminação em regosijo.
A capital e seu municipio não tinham mais escravos.
Estavam livres desta mancha!
[p. 121]
O ARARIPE
Araripe é o nome, que a serra da Ibiapaba ou Serra Grande toma, na parte Sul do Ceará e com
esta denominação circula todo o Cariry.
Sobre a Ibiapaba, na confrontação dos Inhamuns e povoado de Cococy, em logar completamente
ermo, encontra-se grande numero de vazos de barro, pezadissimos e grosseiramente fabricados
por indios, alli existentes antes da colonisação do Ceará.
É tão plana esta serra que, avistada de longe pelo azul que apresenta, da-nos a ideia, a illusão
perfeita de estarmos em frente do Oceano, tal a sua extensão e belleza. Parece a linha do alto do
mar!
Mede de largura, quatorze leguas approximadamente a sua chapada, sem uma baixa nem um alto.
Parece nivelada toda ella.
Só ha ladeira para subir do lado do Cariry.
O lado opposto vae declinando insensivelmente até confundir-se com o sertão.
Os municipios do Crato, Barbalha e Jardim são abundantemente irrigados por essas fontes, que
nas grandes seccas, cada vez mais augmenta o seu volume d'agua.
D'ahi os largos brejos do pé do Araripe, tão utilisados na cultura da canna de assucar e tudo mais.
[p. 122]
Algumas dessas fontes irrompem com tal impeto que introduzindo-se uma vara, ao soltal-a, a agua
impelle-a com força até fora.
Apezar de não existir agua na chapada da serra é ella muito fresca.
Em qualquer epocha do anno ha sempre muita pastagem verde e as arvores igualmente verdes.
Por causa da sua grande altitude, a ventania obriga a crescerem arvores todas pendidas para um
mesmo lado.
Como não ha nenhuma criação sobre a serra, fazem alli grandes plantações de mandioca, milho,
etc. tudo no aberto, sem cerca, sem amparo contra os animaes.
Não precisa tratar dellas.
Os seus donos voltam lá somente no tempo da colhêta.
[p. 123]
O DIA DE RÊIS
É curioso assistir-se, no sertão do Ceará, a um divertimento ou folguêdo popular, a que chamam
tirar rêis.
No comaço de cada anno, reúne-se certo grupo, de pessoas amigas e conhecidas de ambos os
sexos, que se preparam para tal fim.
Arranjam certas figuras a serem exhibidas de fazenda em fazenda, dentro da larga zona:
O boi, a burrinha, o babau, o caipora e outras, cada qual mais mal feita e mal acabada.
Para servir de boi, tomam uma caveira deste animal, forram-na com um panno ou papel, e com
tinta fingem os olhos, as ventas, etc: enfiam n'ella um pau de comprimento regular e dispõem sobre
elle diversos arcos de circo, bem seguros e o cobrem com um lençol par fingir-lhe o corpo.
Alli debaixo occulta-se um homem, que executa os movimentos da dança aos sons de bumba, meu
boi.
Tudo assim preparado, logo no começo da primeira noite, todos reunidos, sahem conduzindo as
esquisitas figuras, a que acompanham tambem os tocadores de viola.
Ao chegarem diante da porta da primeira morada os tocadores tomam as suas violas, dispostos a
acom-
[p. 124]
panham a musica dos cabalisticos versos apropriados para o caso, os quaes são sempre os
mesmos e cantam todos a um só tempo:
Oh! de casa! Oh! de fora!
Quem está dentro, saia fora!
Si tá com o seu bem nos braços
Diga qu'eu me vou embora.
Esta casa está bem feita
Por dentro, por fora, não
Por dentro cravos e rosas
Por fora mangiricão.
Aqui estou em vossa porta
Em figura de raposa
Não vos venho pedir nada
Mas o dar é grande cousa.
Si o dono da casa custa a abrir a porta, ainda cantam outros versos acompanhados de muito
alarido para o obrigarem a acordar; e, caso não appareça ninguem, ainda cantam:
Abri vossa porta
Si tem de abrir
Nós somos de longe
Queremos nos ir.
Si nesse interim, abre-se a porta, os carêtas ou vaqueiros mascarados avançam todos a um só
tempo a cumprimentar o dono da casa, pedindo licença para deixal-os que brinquem um pouco alli
no seu terreiro e lhe apresentem o boi, a burrinha e o mais, que trazem.
[p. 125]
Esses carêtas são homens encourados, isto é, de perneiras e gibão de couro cortido com umas
mascaras de cacos de cabaça sem forma.
Estão elles munidos do classico chiquerador, que os companheiros lhes applicam a cada passo,
não attingem á pelle e continuam a brincar do mesmo modo.
Obtida a licença pedida, correm os caretas a conduzirem o boi, que vai dançar, no meio da roda,
em presença dos donos da casa, sempre guiados pelos carêtas, que vão cantando o que o boi tem
de executar.
Depois de ter este desempenhado o seu papel, fazem-no approximar-se, o mais possivel, do
patrão e cantando sempre com palavras apropriadas, batem com o cabo do chiquerador cantando
ainda:
"Morre, meu boio"!
A estas vozes, o homem occulto abaixa-se deixando o boi repousar alli.
Os carêtas começam a lamentar a sua perda e dizem que vão arranjar um remedio para levantal-o.
Antes de morrer o boi, passam-se diversas scenas alegres, que dão causa a muito riso, provocado
pelos ditos chistosos dos carêtas, verdadeiros palhaços.
Para levantarem o boi, pegam de surpresa um menino, e o levam a trazeira delle, procurando
introduzir-lhe a cabeça d'aquelle lado.
É uma scena hilariante,a da ajuda ou clystér no boi.
[p. 126]
Applicado o tal remedio, levanta-se elle, ainda no meio de estrepitosas gargalhadas dos
circumstantes.
Em seguida conduzem-no para fora do circo e voltam a offerecerem uma burrinha, que é um
encantoum primor para dançar.
Com o consentimento do patrão, vão os caretas acompanhar a nova figura que vae á scena.
Ladeado por dois vaqueiros, apresenta-se um homem vestido de panno, todo enfeitado de fitas de
côres diversas cavalgando uma figura a que chamam burrinha.
Esta é representada por uma pequena cabeça de burro, feita de madeira, trazendo redeas tambem
de fitas, nas quaes o cavalheiro segura de leve.
O corpo é similhante ao do boi. É, porem, muito curto e arredondado.
Entra na roda até perto dos donos da casa, fazendo signaes de cumprimento e depois de ter
dançado deita-lhe um lenço e retira-se a correr.
Os carêtas acompanham-na e voltam sem demora fingindo grande assombro e terror, procuram
esconder-se por traz dos donos da casa.
O que é? O que há?! O que foi? Perguntam todos.
_ Foi, (dizem elles espavoridos) foi a burrinha que sahindo a correr, teve, logo alli um burrinho, que
é medonho!
O patrão pede que lh'o mostrem.
Nisto, dois, os mais corajosos vão buscal-o, emquanto os outros vão atraz d'elles os espreitando.
[p. 127]
***
Apparece logo depois o babau, filho da burrinha. Vem sugigado pelos dois vaqueiros e o homem
que o cavalga.
A sua figura é formada de farrapos de pannos velhos, sustentando n'um pau a caveira completa de
um burro, cujas queixadas abrem-se a cada passo, mordendo a todos e zurrando fortemente como
jumento.
É um verdadeiro assombro a entrada do babau na roda dos assistentes.
Depois de muitas correrias, deita o seu lenço nas mãos da dona da casa e retira-se, correndo.
O alvoroço foi medonho em quanto o filho da burrinha esteve na roda.
***
Vem agora outra figura, o caipóra. É um rapaz vestido de saióta, do qual só se avistam as pernas,
porque o corpo fica occulto por uma disforme cabeça, que começa na cintura, onde apparecem uns
braços abertos, sem movimento algum.
Para isso tomam uma urupema, que posta sobre a cabeça delle, prendem por cima os babados de
uma saia presa á cintura do caipora que vae dançar.
É uma figura exotica e que causa muito riso emquanto está na roda.
***
Apresentadas todas as figuras, despede-se todo aquelle grupo e segue em direcção de outra
morada a
[p. 128]
repetir as mesmas scenas, sempre a divertir-se da melhor forma.
Os lucros desses festejos, que terminam dia de Reis, são confiados a um dos companheiros, que
se encarrega de preparar em sua residencia o samba de que todos devem participar, na noite do
primeiro sabado depois do dia de Rêis.
A festa consiste em comedorias, alguma aguardente e muito aluá; bons tocádores de viola e os
cantadores mais afamados do logar.
Já se sabe. É um samba, que durará a noite inteira, onde todos divertem-se largamente.
[p. 129]
EPíLOGO
Para que não viessem a perder-se na voragem dos tempos, resolvi dar á luz da publicidade as
presentes notas com o titulo de Curiosidades e Factos Notaveis do Ceará, entregando-me assim a
uma especie de trabalho de abelhas, colhendo-as ao acaso por todo o territorio do meu querido e
saudoso Estado, nas differentes épochas e localidades diversas.
A mór parte do que fica exposto, foi por mim observado pessoalmente.
Não ha, pois, nestas notas a mais leve sombra de exagero.
Appresentando-as ao publico, tambem não tive em vista e nunca pretendi fazer litteratura; mas
somente narrar os factos com a maior simplicidade e singeleza, tal qual elles occorreram.
Terminando, resta-me agradecer ao publico e ao meu benevolo leitor o acolhimento que deram a
meu humilde trabalho.
O Autor
[p. 131]
CORRIGENDA
Pg. 10. Em vez de: O joaseiro é a terceira e ultima arvore do sertão, etc.; leia-se: é uma das
arvores, etc.
Pag. 51. Em vez de: sol sem nuvem, leia-se: ceu sem nuvem.
Pag. 57. Em vez de: ha confrontação, etc.; leia-se: na confrontação, etc.
Pag. 59. Em vez de: que as recebe tres kilometros, etc.; leia-se: que as rece desoito kilometros
abaixo da cidade do Icó, no logar Forquilha.
Pag. 94. Em vez de: Cacim do povo, leia-se: Cacimba do povo.
Pag. 113. no fim, leia-se: para fora do ninho.
Pag. 121. Em vez de: por essas fontes, leia-se: por muitas fontes, etc.
INDICE
Peixes petrificados, pagina 3
Vegetal que não morre, 5
A carnaubeira, 6
A oiticica, 10
O Joaseiro, 10
O piquiseiro, 11
Força prodigiosa, 14
Animal que se cura a si mesmo, 19
Aves de arribação, 21
Prophecia que se cumpre, 24
Um jantar de pedras, 26
Curandeiros de cobra, 30
Uma cega e outra cega, 34
Fundação casual do Caldas, 37
Olho d'agua do Azedo, 43
Mel que embriaga, 43
A grutta de Ubajara, 44
Lagôa que serve de barometro, 44
Tinta preta natural, 45
A pedra da Gloria, 46
Carvão de pedra, 47
Lages lisas e planas, 47
Mina de salitre, 48
Mina de prata, 68 [sic]
Mina de prata, 48
Mina de cobre, 48
Mina de ouro, 48
Ferro e graphito, 49
Kerosene, 49
Lixa natural, 49
Giz colorido, 49
Ossada descommunal, 50
Aprehensões e alegria, 52
[p. 134]
Phenomeno curioso, pagina 53
Phenomeno surprehendente, 55
Boqueirão de Lavras, 58
Boqueirão do Poty, 51 [sic]
Assignar de Cruz, 63
Antidoto Ophidiano, 64
Oleo de copahyba, 66
Nome suggestivo, 67
O Cajuhi, 68
Rios do Ceará, 69
Rectidão de um juiz, 72
Gomma elastica, 74
O tinguiseiro, 74
As piranhas surprehendem, 76
Fundação do Joaseiro do Crato, 80
Ingenuidade, 96
Intelligencia excepcional, 99
Os Cearenses, 102
Remedios caseiros, 107
Menino phenomenal, 111
A Ema, 113
Novenas no Sertão, 115
Libertação dos escravos, 117
O Araripe, 120
O dia de Reis, 123
Epilogo, 129
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Curiosidades e factos notaveis do Ceará, 1a. edição.............2$000
Simplificação da Grammatica Portugueza theorica e pratica com mais de duzentos exercicios para
aprender-se analyse em seis mezes, 8a. edição...........2$000
Geographia Especial do Ceará com um mappa do Estado, 5a. edição............(Esgotada)
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