«Querida: — Tenho aqui no meu quarto, diante de mim, as mi nhas malas fechadas e
afiveladas: Tenho o meu passaporte... É verdade! Não te esqueças de tirar o teu. Escrevi
aminha mãe. Es crevi a um amigo querido, que vive na intimidade da minha vida. Por isso bem
vês que te escrevo, na austera firmeza da tua resolu ção. Sou só. O meu destino tenho-o aqui
preso na minha mão, como um pássaro, ou como uma luva: posso pousá-lo sobre atolda de
um paquete, pô-lo numa mesa de jogo em cima de uma carta, colocá-lo na ponta de uma
espada, ou fechar-to na mão e dar-to. Mas tu pelas condições da tua vida tens um
lugardefinido no mundo, li mitado e circunscrito. Estás presa, por um anel de casamento, a
uma ordem de coisas, a um certo número de leis, e és na vida co mo um navio ancorado no
mar. Por isso é justo que antes de te se parares violentamente do teu centro legítimo, eu, que
tenhoa ex periência das desgraça s, das viagens, e do espectáculo do mundo, te diga algumas
palavras, que, se não me tornarem mais amado ao teu coração, tornar-me-ão mais estimadoao
teu carácter. Fias-te de mais no amor, minha doce amiga! Abstrai neste momento de mim, da
minha honra e da minha fidelidade. Falo do amor, lei ou mistério ou símbolo, força natural ou
invenção literária. Fias-te de mais no amor! Aquele amparo superior, aquele apoiosólido e
protector, que todo o espírito procura no mundo, e que uns acham na família, outros na
ciência, outros na arte, tu parece quereres encontrá-lo somente na paixão, e não sei se issoé
justo, se isso é rea lizável!
«Creio que te fias de mais no amor! Ele não constrói nada, não resolve nada, compromete
tudo e não responde por coisa alguma. É um desequilíbrio das faculdades; é opredomínio
momentâneo e efémero da sensação; isto basta para que não possa repousar sobre ele
nenhum destino humano. É uma limitação da liberdade; é uma diminuição do carácter;
especializa, circunscreve o indivíduo; é uma tirania natural, é o inimigo astuto docritério e do
arbítrio. E queres que tenha esta base a tua situação na vida? E crês na estabilidade do amor,
tu?... Sim, é possível, enquanto ele viver do im previsto, do romance e doobstáculo; enquanto
necessitar do coupé de estores cerrados; mas logo que entre num estadoregular, que se
estabeleça definitivamente para durar, que se organize, que se economize, extingue-se
trivialmente; e quando quer conservar -se, tem a miséria de se assemelhar àschamas pintadas
de um inferno de teatro. E então, desde o momento que o amor desaparecesse, que razão de
ser tinha a tua vida, e que justificação tinha que dar de si o teuincoerente destino? Ficavas
sem uma situação definida; tudo te era vedado, ou pela força das leis sociais, ou pela alti vez
da tua honra. Recuar para as coisas legitimas, arrepender-te, era impossível: o
arrependimento é um facto católico, não é um fac to social. Continuar apersistir em viver pelo
amor era um equívoco hipócrita, e poderias um dia encontrar-te a viver na
libertinagem.«Imaginas hoje que o amor é a única tendência, a única preo cupação da tua
vida... Não: é apenas ideia dominante na tua natu reza. Há outras exigências, que hoje não
sentes clamarem dentro de ti, porque têm sido plenamente satisfeitas nomeio legitimo em que
tensvivido; mas quando, mais tarde, estiveres retirada de tudo, fechada no amor como numa
concha, sentirás então amarga mente que te falta o quer que seja que é a sociedade, a
opinião,o centro de amizades, o rang, as consolações incomparáveis que dá a estima dos que
nossaúdam. E o não encontrar então no mundo o teu lugar, elegante, aveludado, agaloado,
emplumado e coroado, dar-te-á a sensação do abandono; e as consolações que então
tequiser ministrar o amor pela sociedade que te falta, encontrarão aos teus olhos o mesmo
tédio que encontrariam agora as consolações da sociedade pelo amor que te fugisse.
Umamulher que foge com o seu amante, só pode ter um lugar no Demi-monde; ou então um
lugarequívoco nas salas, quando é célebre por um talento ou por uma arte. Ora tu não
quererás ir para a Itália frequentar, em Nápoles, Madame de Salmé, nem quererás cantar num
teatro, nem cometera inconveniência de escrever um livro. A viver modesta, tens de viver triste;
a viver radiante, tens de viver humilhada. E pensas que podes, por um ano sequer, viver na
intimidade absoluta e no segredo?«O segredo, o refúgio, um ninho perfumado num quinto
andar, são coisasextremamente doces, no meio da sociedade e das rela ções do mundo; a
public idade oficial da vida dá então um encanto estranho àqueles momentos de mistério. Mas
a perpetuidade domistério deve ser igual àquela legendária tortura da beatitude eterna!
Quando dois entes se encontram, pelas fatais condições do seu procedimento, obrigados a
viverem um do outro,um para o outro, um eternamente no segredo do outro, quandoisto se não
passa na ilha de Robinson, num entre dois discípulos de Swedenborg, nem entre dois
desgraçados cheios de fome — mas numa cidade ruidosa e viva, entre duas pessoas positivas
e educadas pelo Se-gundo Império, e que têm as complacências do luxo, crê que deve ser