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O Conde d'Abranhos
Eça de Queirós
NOTAS BIOGRÁFICAS POR
Z. ZAGALO.
À EX.ma SRª CONDESSA D'ABRANHOS
Minha Senhora: Tive, durante quinze anos, a honra tão invejada de ser o secretário particular
de seu Ex.mo Marido, Alípio Severo Abranhos, Conde d'Abranhos, e consumo-me, desde o dia
da sua morte, no desejo de glorificar a memória deste varão eminente, Orador, Publicista,
Estadista, Legislador e Filósofo.
V. Exª, Srª Condessa, ergue-lhe neste momento, no cemitério dos Prazeres, um mausoléu
comemorativo, onde o cinzel do escultor Craveiro faz reviver a nobre figura do Conde.
Respeitosamente me arrojo, Srª Condessa, a imitar o piedoso acto de V. Exª, e neste livro
como o artista esculpiu no mármore o seu invólucro físico eu pretendo reconstituir o seu ser
moral. A estátua é assim completada pela biografia: na pedra, as gerações contemporâneas
poderão contemplar a grandeza da sua atitude e a expressão do seu rosto; no livro, admirar-
lhe-ão a elevação do espírito e a rectidão da alma.
E quem melhor do que eu poderia tornar conhecido este português histórico eu, a quem ele
fez a confidência das suas crenças, da sua filosofia tão profundamente religiosa, da sua alta
ambição, do seu puro amor da Pátria, da sua vasta ciência política? Eu, que tenho presente a
sua correspondência, cuidadosamente arquivada no copiador os seus manuscritos, os
rascunhos dos seus discursos, naquela letra larga e ampla que apresentava similitude com a
sua alma; eu, que tive o piedoso cuidado durante quinze anos, de recolher as menores
palavras que saíam dos seus lábios ai! que a anemia ia adelgaçando tão cruelmente e,
apenas entrava no meu quarto andar da Rua do Carvalho, ninho doméstico que a sua
generosidade me permitiu adquirir escrevia as conversas que, à hora do chá, ou mais tarde
no seu escritório, me enlevavam de admiração.
Eu fui a testemunha da sua vida. Outros o viram em S. Bento, nas Secretarias, no Paço, no
Grémio, mas só eu o vi, perdoe-me V. Exª, Srª Condessa, a familiar expressão em chinelos
e de «robe-de-chambre».
Todos conhecem o grande homem. Eu, conheço o homem. Eu e V. Exª, de quem ele me
dizia, pouco antes de morrer, no momento em que lhe dava a colher de bromureto de potássio:
–«Zagalo amigo, ao fim da experiência de oito anos de casamento, a Lulu (porque nos
momentos de expansão comigo, era este o nome que ele lhe dava, SCondessa pois que,
ordinariamen te, aos inferiores dizia, a Condessa, e aos seus iguais, a D. Catarina) a Lulu,
amigo Zagalo, tem sido mais que uma esposa, tem sido «um bálsamo». Referia-se o ilustre
marido de V. Exª às circunstâncias dolorosas do seu primeiro casamento, a que ele se
costumava, referir, chamando-lhe «uma chaga».
Tais são os motivos, Srª Condessa o desejo de lhe erguer um monumento espiritual e o meu
conhecimento íntimo da sua vida que me levam, depois de demorada reflexão, a escrever
esta biografia do Conde d'Abranhos.
Eu conheço ainda que as minhas tentativas literárias m recebido do país um acolhimento
remunerador que me escasseiam as qualidades de Estilo e de Critica, para escrever a
história complexa deste grande homem: seria necessário, para bem o pintar, um Plutarco, ou,
nos tempos mais modernos, um Victor Cousin (que ele tanto admirava), ou ainda,
contemporaneamente, um Herculano, um Rebelo, um Castilho um desses astros que se
destacam no céu da nossa Pátria, com uma luz de serenidade eterna. Eu sei, além disso, não
serem necessárias apoteoses biográficas para que o pais reconheça o homem que perdeu no
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Conde d'Abranhos. A dor de toda a Lisboa devia ser bem grata à sua alma. Sim, Srª
Condessa, devia ser bem grato ao seu espírito imortal, arrebatado à serenidade dos eleitos,
ver, em baixo, nesta Capital que ele amava, nestas ruas que ele tão bem conhecia, a
imponente cerimónia do seu préstito fúnebre: o camarista que representava S. M. El-Rei; o
presidente do conselho que, apesar da firmeza da sua vontade de ferro, não podia conter as
lágrimas que lhe humedeciam as pálpebras; a deputação dos meninos do Asilo de S.
Cristóvão, por quem ele tomava um interesse tão delicado e a quem chamava, com aquela
graça que nas horas felizes era o encanto da sua conversa, «os meus pintainhos»; a
deputação das duas casas do Parlamento, levando à frente o orador da maioria, o poeta
maravilhoso dos «Sonhos e Enleios», que me disse estas palavras memoráveis que ficarão na
História: «Vimos em nome da Viúva.. E como eu lhe perguntava, admirado: «Em nome
da Srª Condessa?» «Não respondeu o poeta em nome da Tribuna, viúva do Génio!» E
enfim, fechando o préstito, vinte carruagens particulares, vinte e cinco da companhia e
algumas de praça entre as quais notei com admiração alguns operários da Sociedade
«Probidade Cristã», que ele tanto ajudara a formar, e que vinham pagar um tributo derradeiro
ao homem que, mais que nenhum em Portugal, amou, protegeu e educou o operário! Ali
vinham, quatro numa tipóia, nos seus casacos dos domingos, as lágrimas nos olhos, a no
peito, levar com saudade à sepultura aquele que um dia exclamara na Câmara dos Deputados
(sessão de 15 de Agosto, «Diário do Governo» 2758): «Não podemos dar ao operário o
pão na terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe no Céu banquetes de Luz e de
Bem-aventurança!»
E quem negará que não seja esta a verdadeira maneira de promover a felicidade das
classes trabalhadoras?
Mas não foram estas as únicas demonstrações de luto social. A Imprensa a que ele se
orgulhava de pertencer, e a que chamava, com tanta elevação, o «porta-voz do progresso»
dedicou-lhe ginas que, pela unanimidade do sentimento, e até, se me é permitido descer a
estes detalhes, o tipo grande dos artigos, entre tarjas negras, lembravam os funerais de um
Rei.
As musas mesmo o choraram, e quem esquecerá essa jóia da poesia portuguesa, que dedicou
à sua morte o nosso grande lírico, o autor melodioso dos «Cânticos e Suspiros»? Ah! Srª
Condessa, recitemos ambos, na nossa dor comum, esta estrofe, digna dos Hugos, dos Passos
e dos Leais:
Teu corpo desce à terra escura e fria...
Terra de Portugal. Treva sombria
Te cobre e te devora!
Mas não perecerá teu génio altivo,
E surges para a História redivivo
como da Noite a Aurora...
A música mesmo (para que todas as Artes se reunissem no coro de prantos) lhe vai dar o
seu tributo, nessa inspirada com posição–eA Civilização» valsa dedicada à memória do
ilustre Conde d'Abranhos, pelo padre Abílio Figueira!
Era tempo, pois, Srª Condessa, que eu, que nessa grande explosão de dor me conservei
taciturno e retraído (devendo dizer-se que o severo ataque de fígado que então me prostrou,
resultante das longas noites de vigília à cabeceira do grande enfermo, me forçou a um silêncio
involuntário) venha enfim depor sobre o seu túmulo esta memória humilde.
A Ele, Srª Condessa, devo tudo. O pão do corpo e o pão da alma, me deu ele com
generosidade larga e fidalga. Nunca o esquecerei. Por vezes, quando me via (sobretudo.4
depois da bronquite de que padeci no Inverno de 1870) um pouco pálido ou debilitado, ele
próprio ia ao armário do seu escritório e por sua mão me servia de um, às vezes dois cálices
de vinho do Porto de 1815. Nos dias em que tinha gente a jantar, nunca se esquecia de
ads:
mandar guardar alguma sobremesa para eu levar a meus filhos, que lhe devem, além desta
lembrança mimosa, a educação sólida e cristã de que gozam e que os habilitará, espero, a
entrar um dia, com justo mérito, nas Repartições do Estado.
Mas, Srª Condessa eu sou feliz em o poder dizer bem alto o que acima de tudo devo ao
Conde d'Abranhos, é ter-me ele refeito um ser moral. Eu, que na mocidade, sob a influência
perniciosa de leituras inconvenientes e de camaradagens fúteis, partilhava as ideias que a
sociedade condena, fui transformado pelo seu exemplo, pelos seus conselhos, pela sua
eloquência e pela sua protecção. Sim, Srª Condessa, seu ilustre marido encontrou-me pobre, e
portanto repastando-me de leituras perniciosamente democráticas, e acompanhando com
moços de talento, é certo, mas inteiramente devorados pelos estragos de unia filosofia
materialista e de uma sociologia anárquica; empregando-me como seu secretário particular,
com um ordenado suficiente às neces-sidades de minha família (eu casara então com a minha
angélica Madalena), o Conde d'Abranhos deu-me os meios materiais de me tornar um
conservador convicto, um defensor fervoroso das instituições, um amigo da ordem. Pondo-me
ao abrigo da pobreza, digo-o bem alto, pôs-me ao abrigo da depravação intelectual, moral e
social.
E de V. Exª, Srª Condessa, que direi, que o não tenham dito na terra os pobres de que V. Ex.»
cura os males e afasta a necessidade, e no Céu, os anjos de quem V. Ex.» é seguramente
predilecta e decerto futura companheira? Permita-me pois, Srª Condessa, que ponha aos
pés de V. Exª este trabalho, no qual consignei a primeira fase da carreira admirável do Conde
d'Abranhos, essa ascensão vertiginosa às culminâncias do poder, de modesto filho de Pena
fiel a ministro ilustre, e onde deixei o que na minha alma existe de melhor, de mais nobre, de
mais duradouro a minha respeitosa admiração pela grande figura do Conde d'Abranhos.
Sou de V. Exª
o mais humilde criado
Z. Z.
Ex-secretário do Ex.mo Sr. Conde d'Abranhos,
sócio honorário
do Grémio Recreativo do Rio Grande do Sul.
108 – Rua do Carvalho
Lisboa – 1º de Janeiro de 1879.
O CONDE D'ABRANHOS
ALÍPIO SEVERO ABRANHOS nasceu no ano de 1826, em Penafiel, no dia de Natal.
A Providência, por um símbolo subtil e engenhoso, fez nascer no dia sagrado em que nasceu
Jesus de Nazaré, aquele que em Portugal devia ser o mais forte pilar e o procurador mais
eloquente da Igreja, dos seus interesses e do seu reino.
Muitas vezes o Conde se comprazia em contar que, nessa noite de 24 de Dezembro de 1826,
Inverno que ficou na história pelas grandes neves que caíram, seus pais segundo a tradição
venerada na família tinham armado um presépio, como era costume nesses tempos em que
a boa portuguesa amava a piedosa devoção dos altares íntimos. Ao centro do presépio,
florido de muita verdura, entre os animais da narração evangélica, o Menino Jesus sorria, nos
braços de uma Virgem, obra delicadamente trabalhada por Antão Serrano, o grande santeiro
de Amarante. Em torno, ardiam as velas de cera; na cozinha, cantavam nas frigideiras os
rojões da ceia; o lume de lenha húmida estalava jovialmente, e fora, na neve que caía, os sinos
repicavam para a missa do Galo – quando a mãe do Conde, subitamente
Sentiu o tenro ser...
como diz o nosso grande lírico no seu poema, A Mãe.
O parto foi singularmente feliz, e, aludindo a esta circunstância, o Conde muitas vezes me
dizia, que, segundo o seu velho amigo Dr. Flores, a facilidade em nascer era o indício
misterioso de um destino fácil e de imprevistas fortunas. Todos os homens providenciais
Napoleão I, o nosso Santo Papa Pio IX, o grande estadista Fonseca Magalhães, nasceram
como dizia o Conde com chiste «com uma perna às costas!» A fortuna começa-lhes no
ventre maternal: a porta da vida abre-se-lhes a dois batentes, mostrando-lhes uma sequência
de épocas gloriosas, como salões festivos. Outros têm de arrombar com dor essa mesma
porta, saindo para um destino escuro como uma estrada de Inverno. Providenciais antíteses da
Sorte!
E o parto da mãe do Conde foi tão feliz, que, meia hora depois das primeiras dores, o pequeno
Alípio foi trazido triunfantemente para a sala. A comadre sentara-se casualmente diante do
presépio, e os dois meninos – o que havia de ser um homem, e o que fora um Deus – sorriam-
se à claridade das velas festivas do Natal, ambos nuzinhos, ambos ao colo, enquanto de fora,
lançados vivamente, vinham os repiques do sino, através dos flocos de neve!
Tocante quadro; e poucos conheço – se atendermos à glória do Conde d'Abranhos que mais
mereçam ser lançados na tela ou esculpidos no mármore.
Os pais do Conde, é geralmente sabido, eram pobres. Mas a origem da sua família não é
plebeia como afectavam supor os seus adversários de ideias mas, bem estudada, revela
uma origem tão nobre como a das melhores casas do norte de Portugal.
Os Abranhos são originários de Amarante e aliados, pelas mulheres, à ilustre casa de
Noronha. Em 1758, D. Jacinta Ana de Sobral Vieira Alcoforado e Noronha, viúva do capitão-
mor Teles Azurara, senhora avançada em anos, mas ainda de aspecto imponente, casara
com Manuel Abranhos, que, pelas suas formas atléticas e beleza viril, era chamado o Apolo de
Amarante. Manuel Abranhos não era decerto um fidalgo, mas é inteiramente inexacto o dizer-
se, como se imprimiu na Revolução de Setembro, então na oposição, que era um carniceiro:
estas insinuações pérfidas desonram as grandes lutas intelectuais da política!
D. Jacinta Ana concebera por ele uma dessas paixões, como aquelas que a poesia Alípio
Severo Abranhos nasceu no ano de 1826, em Penafiel, no dia de Natal. A Providência, por um
símbolo subtil e engenhoso, fez nascer no dia sagrado em que nasceu Jesus de Nazaré,
aquele que em Portugal devia ser o mais forte pilar e o procurador mais eloquente da Igreja,
dos seus interesses e do seu reino..6 tem celebrado, e, apesar da renitência dos parentes
que faz lembrar a dos Capuletos, pai e irmão da doce Julieta (tanto as famílias históricas se
assemelham nos grandes sentimentos que as agitam) D. Jacinta apoderou-se do belo
Abranhos, e o casamento foi celebrado (recordo-o a título de curiosidade histórica) pelo padre
Vicente Tardinho, reitor de Varzelhe, que depois tanto se celebrizou num processo retumbante.
então, digamo-lo de passagem, sob a influência dessa vaga aragem revolucionária que
soprava de França, tinha principiado esta longa perseguição ao clero, que um dia devia tomar
proporções que de certo modo lembram as perseguições de Diocleciano.
O casamento, escrevo-o com dor, não foi feliz. Não possuo os documentos necessários para
decidir a quem pertence a responsabilidade das desinteligências crescentes, mas é certo que
o belo Apolo que, como dizia com um chiste adorável o Conde, «frequentava muito o seu
colega Baco», espancava tão imprevistamente D. Jacinta, que obrigou muita vez esta dama a
refugiar-se em casa dos seus parentes, levando apenas sob as suas formas, que tinham
conservado uma grande majestade aristocrática, um saiote de flanela! Apesar, porém, destas
violências, a paixão de D. Jacinta, que eu respeitosamente comparo à mulher de Putifar ou às
Fedras da lenda antiga, trazia-a de novo, submissa e amorosa, à casa comum e ao leito
conjugal, até que um dia, (e aqui textualmente copio uma carta, existente no arquivo da família
e escrita por Segismundo de Noronha, irmão da dama espancada): «...a sova foi tão forte, que
vimos a mana Jacinta entrar-nos pelo portão da casa em camisa e tendo nos ombros nódoas
tão roxas e dilatadas, que o padre Simões, o nosso bom capelão, as comparou, com o devido
respeito, às nódoas roxas nos ombros do Redentor depois de 12 horas de Via Dolorosa».
A família Noronha exigiu uma reparação. D. Jacinta veio viver com seus irmãos, e cinco meses
depois deu à luz um menino que, por se julgar que não sobreviveria, foi à pressa baptizado
pelo capelão Simões, com o nome poético de Florido. Sobreviveu, porém, felizmente. E aqui
encontro um facto que, por respeito às duas famílias Abranhos e Noronhas, não cerco de
comentários; é ele igualmente justificável e condenável. Biógrafos irreverentes e temerários
poderiam talvez emitir uma opinião nítida, cortante, definitiva: eu abstenho-me, e assim deve
fazer todo o historiador honesto, sempre que se trate de factos em que duas famílias, ambas
ilustres, ambas históricas, tenham um conflito de interesses: a ordem social repousa nestas
respeitosas reticências.
O facto é este na sua nudez histórica: o menino Floridozinho foi lançado à roda.
Um irmão, porém e aqui dou amplamente saída ao meu desejo de glorificar os Abranhos
um irmão, porém, de Apolo (que Apolo a esse tempo desaparecera de Amarante) reclamou
Florido, adoptou-o, educou-o, e foi recompensado desta nobre dedicação, porque Florido
Abranhos foi um espelho de virtudes e uma flor de honradez. É talvez aqui a ocasião de
destruir outro erro que tende a introduzir-se na História: o irmão de Apolo, tio de Florido, sem
estar decerto numa alta situação social, não era todavia, como perfidamente insinuou em
tempos a Gazeta de Portugal, um padeiro. Como dizia o Conde com grande elevação moral,
estas pesquisas miúdas, mesquinhas, na intimidade familiar de um homem de Estado, são
singularmente odiosas.
Florido, que pelo lado materno era um Noronha, casou em Penafiel, e a sua vida teve a
tranquilidade límpida de um belo rio de águas claras que corre entre margens de serenidade
idílica. Viveu, amou, trabalhou...
Et sa vieillesse fut comme le soir d'un beau jour...
Teve dois filhos uma menina que herdou a beleza de seu avô Apoio, e um rapaz.7 que foi
António Abranhos, o pai feliz que na noite de Natal de 1826, diante da pompa do Menino Jesus
no seu presépio iluminado, apertou nos braços o seu filho único Alípio Severo de Noronha
Abranhos, futuro Conde d'Abranhos.
O Conde, portanto, é da família dos Noronhas e dos Noronhas que direi que o não saiba a
Pátria? O seu nome está na História pelos altos feitos e na Legenda pelos poéticos amores.
Não vos lembrais da nobre canção:
Aldina na alta torre
Alta torre d'Algeciras,
Chora de noite e de dia
Que condenou-a seu pai
A não ter mais alegria...
Levai-lhe os prantos, oh! rios,
Nuvens, levai-lhe os suspiros...
Aldina é uma Noronha. Da torre de Algeciras restam vestígios todo um lanço de alvenaria,
evidentemente do século XIII, descoberto ultimamente pelo nosso distinto arqueólogo Macedo
Garção, que ofereceu à família Noronha uma formosa fotografia da ruína.
Outra Noronha foi de grande beleza e ilustrou o seu nome e o da sua raça, partilhando o leito
do nosso Rei D. Afonso V.
D. Violante de Noronha, de uma beleza clássica que lhe mereceu o nome de Juno (nesta
família, a beleza das mulheres iguala a bravura dos homens) recebeu o mesmo alto favor do
nosso senhor Rei D. Pedro II.
Dos varões desta casa citarei Fernando de Noronha, tão cioso da sua raça que um dia,
entrando no momento em que um criado repelia com força seu filho Afonso que num inocente
brinquedo lhe arrepelava os cabelos, mandou decepar a mão direita ao lacaio.
Estes actos inspiravam um terror salutar e ainda que nos nossos tempos mais doces poderiam
ser desaprovados e o ri decerto mandaria o seu autor para a costa de África, eram todavia
necessários nessa época gloriosa da monarquia, para manter as classes nos justos limites
indicados pela Providência.
Citarei também Camilo de Noronha, que, neste século foi notável como toureiro e varredor
de feiras. A sua destreza no jogo de pau era tal, que chegava a um arraial, apeava e
destroçava a multidão, atirando homens por terra como uma criança que derrota um regimento
de soldadinhos de chumbo. Contam-se dele deliciosas anedotas. Na Covilhã, por exemplo,
tinha um cavalo adestrado que escoiceava, mal o alegre Camilo de Noronha assobiava.
Costumava aproximá-lo de fidalgos e senhoras (mas sobretudo de plebeus)... Um assobio
rápido, um coice imprevisto, e o indivíduo ou a dama eram levados em braços, no meio da
hilaridade que entre os seus amigos causavam sempre tais façanhas. Sem inteiramente
aprovar estas distracções violentas, não se pode, todavia, deixar de reconhecer que há em tais
actos uma plenitude de seiva, de vida animal e de força que agrada em jovens fidalgos.
Estas migalhas de História, apanhadas ao acaso, pintam a traços largos a feição desta família
ilustre. Os Noronhas usam sobre o campo de prata três castelos de ouro e este mote: In
Chistro spes meu (em Cristo a minha esperança), sublime divisa, a melhor, a mais nobre. E foi
esta a divisa do Conde d'Abranhos, até que, por decreto do de Janeiro de 1860, S. M. lhe
concedeu o título de Conde. Tomou então este outro mote: Ex corde pro rege (do coração pelo
Rei!) Estas palavras, partindo de um homem que não era um cortesão e até então não
mostrara especial dedicação pelo Monarca, parecem-me exemplo alto e resplandecente de
reconhecimento, neste século de ingratidões endurecidas e lealdades frouxas.
Foi sempre para mim um motivo de assombro que durante a sua infância, Alípio Abranhos não
tivesse como Napoleão, Chateaubriand ou Lord Byron revelado a sua futura elevação de
espírito e de carácter por alguma dessas estranhas precocidades que são como as faíscas
inesperadas que saem de um fogo ainda incubado. Os seus primeiros anos são sem relevo e
inteiramente incaracterísticos. Ele mesmo o reconhecia com modéstia, quando dizia, sorrindo:
«–Como toda a gente, apanhei ninhos e fiz papagaios de papel...
É certo que o meio em que se passou a sua mocidade não oferecia ocasião a que se
revelassem os seus gostos inatos e se acentuassem as suas tendências. Estou bem certo que
se tivesse sido educado numa dessas velhas casas morgadas, onde gerações letradas
formavam ricas e sábias bibliotecas, veríamos o pequeno Alípio deixar os ninhos e os
papagaios, para se ir esconder nalgum recanto da silenciosa livraria, e ali, folhear os antigos
romances de cavalaria, ou, o que era mais natural à feição nativa do seu espírito, ler,
compreendendo-os mal, os filósofos do passado. E porém sabido que seu pai e não creio
ofender a sua memória revelando-o tinha um pequeno e honesto estabelecimento de
alfaiate, e as únicas publicações que decerto ali se veriam entre os cortes de pano, seriam os
volumes do antigo Espelho da Moda. Eu creio, porém, que esta falta de vida intelectual foi
singularmente favorável ao seu desenvolvimento físico. Não tendo livros que o prendessem em
casa, Alípio passava os seus dias pelas hortas e pelos quintais, crescendo em plena natureza,
crestado pelo Sol, batido dos largos ares, e, como dizia um poeta antigo, mamando à farta nos
peitos de Cíbele.
Foi esta forte educação rural que lhe deu aquelas cores sadias, aquele porte erecto, que
destacavam com um tão edificante relevo entre os bustos anémicos e as faces amareladas da
raça lisboeta. E a esta primitiva comunicação com a Natureza que ele deveu o seu espírito
recto e tão bem ponderado, amando em tudo a ordem, o equilíbrio, a formosa disposição das
hierarquias. Mens sana in corpore sano: que eu por mim tenho que as ideias falsas,
anárquicas, o o resultado das organizações debilitadas. As cidades modernas, com as suas
ruas mal arejadas, os seus quintos andares abafados, o seu rumor trovejante de fábricas e de
veículos, a luz crua do gás, a alimentação insa-lubre, formam estas gerações pálidas,
nervosas, agitadas por um desejo histérico de novidade, de artifício, de desordem e de
violência. E esta a origem do espírito revolucionário. O homem que, pelo contrário, habita os
campos, que respira o ar dos largos prados, repousa a vista na vasta linha do horizonte, na
serenidade silenciosa das aldeias, ganha, num corpo forte, um espírito calmo: odeia a
agitação; está naturalmente preparado para respeitar a Autoridade, os Princípios sólidos, a
Ordem, toda a ordenação harmónica e bela do Estado.
Tenho, porém, a certeza de que o Conde, com a sua grande modéstia, não exprimia
inteiramente a verdade quando atribuía aos ninhos e aos papagaios o privilégio de lhe
absorverem todo o interesse! Não! então naquele espírito de criança deviam passar ideias,
ainda indefinidas mas fortemente marcadas de originalidade: soltando aos ares os seus
papagaios, é de crer que pensasse na eterna aspiração da alma para os cimos azulados da
graça; e, ao contemplar ovos de pintassilgo, fofamente dispostos no fundo de um ninho muito
quente e muito tenro, decerto lhe devia passar na alma a ideia eterna.9 da instituição da
família. Um dia mesmo, ao contar-lhe estas suposições que me tinham atravessado o espírito:
Qual história! respondeu com bondade o Conde. Isso são coisas da sua imaginação de
poeta. Eu era um cavalão, aqui onde me vê!... Não nego, porém, que desde novo, fui
inclinadote a agitar questões sociais!...
E quando eu vejo, hoje, moços saídos das escolas, sem experiência da vida, do Estado, da
Administração, quererem reformar a Sociedade, como me parece admirável a modéstia deste
homem notável, que classificava assim o seu grande génio filosófico: inclinadote a agitar
questões sociais!...
Assim, pois, crescia o jovem Alípio Abranhos, quando – do que depende o destino dos homens
e muitas vezes a sorte das nações! sua tia Amália veio a Penafiel consultar um dentista
americano, então famoso em todo o Norte.
Esta senhora providencial (em que reaparecia a singular beleza do Apolo de Amarante) casara
em nova com um proprietário rico de Amarante, e viúva, sem filhos, vivia em isolamento na sua
Quinta dos Miguéis.
Naturalmente, em Penafiel, a tia Amália viu frequentemente seu sobrinho Alípio, e bem
depressa a graça, a vivacidade, a esperteza do pequeno cativaram a tia, que, secretamente
infeliz por não ter filhos, se vira até então obrigada a empregar o seu fundo de afeição
maternal nas aves domésticas e nos diversos animais da sua quinta. Alípio era como um filho
inesperado que lhe aparecia «a meio do caminho da sua vida» (Dante).
Não é hoje segredo para ninguém que o Conde d'Abranhos preparava um volume de
Memórias Intimas, quando o acometeu a doença. E dessas notas interrompidas, truncadas,
que eu transcrevo o seguinte parágrafo, relativo a este período decisivo da sua carreira:
«Minha tia Amália concebera o plano abençoado plano! de me levar para a Quinta dos
Miguéis, e mandar-me dar uma educação que me habilitasse a tomar na sociedade a posição
elevada que naturalmente me pertencia pela minha bisavó paterna: numa palavra, fazer de
mim um Noronha, digno dos Noronhas.
Abriu-se a este respeito com meu pai, que acedeu prontamente, deslumbrado pela perspectiva
de me ver possuidor de uma educação que os seus meios de fortuna o lhe permitiriam dar-
me. A sua vontade, porém, encontrou formidáveis escolhos nas lágrimas de minha mãe.
Separar-se do filho que ela criara ao seu peito, parecia-lhe tão doloroso como uma amputação.
Lembra-me vagamente de a ver abraçada a mim, dizendo, banhada em rios de lágrimas: Ó
Lipinho, que te querem levar! Ai, Lipinho, que querem fazer de ti um doutor!
Mas meu pai, com o seu bom-senso, minha tia, com as suas promessas, venceram essa
resistência, igual à da leoa a que impudente caçador quer arrebatar os filhos, e numa manhã
de Agosto como recordo o opulento Sol nascente, cravando o mundo das suas flechas de
ouro! – parti com minha tia Amália para a pitoresca Quinta dos Miguéis, onde me decorreram a
infância e a puberdade, primeiro nos infantis brinquedos, mais tarde em úteis estudos. E nunca
revisitei a Quinta dos Miguéis, sem uma profunda saudade desses anos descuidosos, e sem ir
ao pequeno cemitério, – onde minha tia Amália repousa no seu bem tratado jazigo, cercada de
floridos goivos ajoelhar e murmurar uma reconhecida prece, no silêncio da tarde, pela alma
simples que me abriu a sua bolsa e me habilitou a cursar as aulas da nossa sábia
Universidade.»
Página admirável! em que se nos revelam as qualidades eminentes do escritor e a tocante
bondade do homem! Que quadro aquele em que o vemos, ilustre, titular, ministro,
seguir o caminho estreito do cemitério, por alguma tarde suave de Outono, pousar o joelho
sobre a relva, descobrir-se, e rezar! Página admirável, repito, repassada de uma saudade
grave, num colorido tão delicado de paisagem!
Na Quinta dos Miguéis se passou a mocidade do Conde d'Abranhos. Ali estudou a gramática e
o latim, sob a direcção do abade de Serzedelo, velho de raras virtudes cristãs. Ali passou as
suas férias de formatura.
Eu tive a honra de o acompanhar, quando o Conde foi tratar da sua eleição a Amarante, numa
visita à Quinta dos Miguéis. Do portão, uma rua plantada de loureiros conduz à casa de
habitação, baixa, sólida, coberta de um dos lados por uma formosa trepadeira, atulhada de
rosinhas brancas. Um lanço de escadas de pedra, ornado de velhos vasos azuis, leva ao
salão, grande, pintado de oca, com cortinas vermelhas e brancas, e nas paredes litografias das
batalhas de Napoleão. Tudo é simples, patriarcal e grave. O Conde mostrou-me o seu quarto e
o rebordo da janela onde, em pequeno, pendurava gaiolas de grilos, com a sua folhinha verde
de alface. Dali descobre-se a estrada, no traçado do antigo caminho, onde o Conde (segundo
ele próprio me contou) via com inveja passar as liteiras que levavam a Braga e ao Porto os
fidalgos das vizinhanças. então, um sentimento vago pressentimento do seu alto destino
ou simples aspiração de um espírito distinto para os centros letrados e inteligentes o levava
constantemente a desejar a existência das grandes cidades.
Ao fundo da quinta foge um pequeno regato, muito claro, muito pausado, cujo rumor tem a
tristeza das águas mansas que correm entre ervas altas; as margens são cobertas de
salgueiros; na Primavera os rouxinóis enchem de ninhos aquele lugar assombrado e terno.
Como a noite que passei na quinta era muito calma, fomos depois de jantar, passear junto ao
Ribeiral, que é o nome daquele canto de paisagem elegíaca, e nunca esquecerei a bela
confidência com que ali me honrou o Conde.
V. Exª tinha eu observado devia, muitas vezes, durante as férias, vir passear aqui e
sentir-se inspirado...
O Conde, que por causa da frescura da noite se estava cuidadosamente agasalhando no seu
cachené, parou e disse, com aquele gesto grave que tanto impressionava a Câmara:
– Não o conte em Lisboa, Zagalinho, mas uma noite, aqui compus versos!
Eu não me atrevia a pedir-lhe que mos recitasse, mas, sem dúvida, a claridade da Lua no meu
rosto revelou um desejo tão intenso de os ouvir, que o Conde, sempre bom, me tomou o braço
e disse:
Era uma noite de apetite: eu andava aqui a passear, a pensar, fumando o meu charuto,
que a tia Amália tinha horror ao fumo do tabaco –quando, de repente, a Lua ergueu-se por
detrás dos salgueiros e um rouxinol pôs-se a cantar... e sem saber como, fiz uma quadra. Não
a repita! Lembra-me perfeitamente:
Deus existe! Tudo o prova,
Tanto tu, altivo Sol,
Como tu, raminho humilde
Onde canta o rouxinol!
Não pude conter um bravo, respeitoso mas sentido.
– O pensamento é bonito, mas não o diga em Lisboa, Zagalinho. Se os jornais soubessem que
fiz versos... Que gostinho para a oposição...
Eu exclamei, rindo:
– Que gostinho para a oposição, mas que glória para o ministério...
Ele acrescentou:.
Enfim, são rapaziadas. Todos nós, mais ou menos, em rapazes, fomos poetas e
republicanos... Antes isso que andar a beberricar genebra nos botequins e frequentar
meretrizes... Mas quando se entra na verdadeira vida política, é necessário pôr de lado esses
sentimentos ternos...
Eu então citei, com respeito, alguns dos nossos homens de estado, que foram, são ainda,
poetas de alta imaginação.
Pois sim... interrompeu o Conde. Mas m o seu lugar marcado na formação do
Ministério... Um poeta não pode ser Ministro do Reino, mas pode muito bem ser Ministro da
Marinha.
Grande verdade política!
Quando entrámos, eu atrevi-me a pedir a S. Exª que escrevesse aquela formosa quadra no
álbum de minha esposa, que trouxera comigo, esperando obter, no Porto e em Braga,
autógrafos de alguns poetas e prosadores das províncias do Norte.
O Conde tomou o álbum, sorrindo, e retirou-se para o seu aposento. Qual não foi, na manhã
seguinte, a minha alegria, quando ele mo restituiu, e li ao abrir a página:
Deus existe! Tudo o prova,
Tanto tu, altivo Sol,
Como tu, raminho humilde
Onde canta o rouxinol!
Estes versos, que eu escrevi quando me verdejavam na alma as ilusões da mocidade, poderia
escrevê-los hoje que a experiência da vida me tem demonstrado que fora de Deus, não
senão ilusão e vaidade...
Conde d'Abrunhos.
Quando voltei a Lisboa e mostrei esta página preciosa à minha Madalena que surpresa, que
arrebatamento! Falámos até tarde, essa noite, da bondade do Conde e da vastidão do seu
génio.
Se eu me detive neste incidente íntimo de uma existência histórica, foi para mostrar que o
Conde não era um homem destituído de sentimento poético e de imaginação idealista.
Naquele cérebro todo ocupado de legislação, de reformas, de economia política, de debates
parlamentares, tinha havido um momento, na sua mocidade, em que florescera, como uma
violeta isolada mas fresca, a flor delicada do sentimentalismo. E quis também provar que a
poesia não é inteiramente unia arte subalterna e própria de espíritos efeminados, pois que um
homem de tão robusto génio prático não desdenhou um dia, sob a influencia de uma paisagem
romântica, servir-se dela para exprimir um alto conceito filosófico. Estou certo de que os
poetas contemporâneos, os Hugos épicos, os delicados Tennysons, os Campoamores de
humorística melancolia, se orgulhariam deste colega que eu lhes revelo, e que, se apenas uma
vez feriu a lira, fê-lo com tal originalidade, vigor e elevação, que esse simples verso isolado
sobe mais alto no céu da Arte do que muitas sinfonias majestosas dos Mussets debochados
ou dos Baudelaires histéricos:
Deus existe! Tudo o prova,
Tanto tu, altivo Sol,
Como tu, raminho humilde
Onde canta o rouxinol!
Não farei uma narração detalhada da mocidade estudiosa do Conde. Este estudo não é
propriamente uma biografia em que deva seguir, ano a ano, a carreira intelectual do seu vasto
espírito. São simples apontamentos, quadros destacados de uma nobre carreira, que servirão
para que um mais alto engenho (na frase enérgica do Épico) reconstrua, com suficiente relevo,
esta soberba figura histórica.
Desde os onze anos, pois, Alípio Abranhos viveu na companhia de sua tia Amália, e a não ser
nas rias do segundo ano, em que a doença da mãe o chamou imperiosamente a Penafiel,
não tornou a ver seus pais.
Compreender-se-á facilmente que o jovem Alípio, tendo penetrado num meio mais elevado,
habituado no Porto, onde estudara parte dos preparatórios, e depois em Coimbra, às
convivências eruditas, cultivadas, educadas, se achava extremamente deslocado na
companhia pobre e iletrada de seu pai. Quando, durante anos, se tem vivido pela imaginação
com os heróis da História e do Romance, quando se tem o ouvido habituado à nobre
linguagem dos Cíceros, dos Titos Lívios, quando se tem acostumado o espírito aos interesses
da Ciência, da Lógica e da Metafísica –não é fácil suportar-se a conversação de pessoas que
só se preocupam com pequenos interesses locais e «mexericos de vila pobre».
Depois das largas salas e dos vastos horizontes da Quinta dos Miguéis, a pequena casa do
pai, com o chão atravancado de retalhos de fazenda e o ar abafado do cheiro acre dos
estrugidos, a pequena vila escura, onde os vizinhos vão de noite despejar as imundícies,
causavam aos costumes fidalgos daquele Noronha uma repulsa instintiva.
então revelava o seu gosto pelo luxo, pelas largas habitações tapetadas, pelo serviço
harmonioso de lacaios disciplinados. A pobreza e os seus aspectos era-lhe odiosa. Quanta
vez, mais tarde, quando ele subia o Chiado pelo meu braço, eu me vi forçado a afastar com
dureza os pobres, que à porta do Baltresqui, ou da Casa Havanesa, vinham, sob o pretexto de
filhos com fome ou de membros aleijados, reclamar esmola; o Conde, se os via muito perto,
«ficava todo o dia enjoado». Todavia a sua caridade é bem conhecida, e o Asilo de S.
Cristóvão, a que em parte deveu o seu tulo, está como um atestado glorioso da sua
magnanimidade.
Além disso, ele reconhecia que a caridade era a melhor instituição do Estado. Quanto ao
pauperismo, tinha-o como uma fatalidade social: fossem quais fossem as reformas sociais,
dizia, haveria sempre pobres e ricos: a fortuna pública devia estar naturalmente toda nas mãos
de uma classe, da classe ilustrada, educada, bem nascida. deste modo se podem manter
os Estados, formar as grandes indústrias, ter uma classe dirigente forte, por possuir o ouro e
base da ordem social.
Isto fazia necessariamente que parte da população «tiritasse de frio e rabeasse de fome». Era
certamente lamentável, e ele, com o seu grande e vasto coração que palpitava a todo o
sofrimento, lamentava-o. Mas a essa classe devia ser dada a esmola com método e
discernimento: e ao Estado pertencia organizar a esmola. Porque o Conde censurava muito a
caridade privada, sentimental, toda de espontaneidade. A caridade devia ser disciplinada, e,
por amor dos desprotegidos, regulamentada: por isso queria o Asilo, o Recolhimento dos
Desvalidos, onde os pobres, tendo provado com bons documentos a sua miséria, tendo
apresentado bons atestados de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de
homens práticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva e um caldo contra a
fome. O pobre devia viver ali, separado, isolado da sociedade, e não ser admitido a vir
perturbar com a expressão da sua face magra e com a narração exagerada das suas
necessidades, as ruas da cidade. «Isole-se o pobre!» dizia ele um dia na Câmara dos
Deputados, sintetizando o seu magnífico projecto para a criação dos Recolhimentos do
Trabalho. O Estado forneceria grandes casarões, com celas providas de uma enxerga,
onde.13 seriam acolhidos os miseráveis. Para conseguir a admissão, deveriam provar serem
de maior idade, haverem cumprido os seus deveres religiosos, não terem sido condenados
pelos tribunais (isto para evitar que operários de ideias subversivas que, pela greve e pelo
deboche, tramam a destruição do Estado, viessem, em dia de miséria, pedir a esse mesmo
Estado que os recolhesse). Deveriam ainda provar a sobriedade dos seus costumes, nunca
terem vivido amancebados nem possuírem o hábito de praguejar e blasfemar. Reconhecidas
estas qualidades elevadas com documentos dos párocos, dos regedores, etc., seria dada a
cada miserável uma cela e uma ração de caldo igual à que têm os presos.
Mas, dir-se-á, o Estado, então sustenta-os de graça? Não,poderia exclamar triunfantemente
o Conde, mostrando as páginas admiráveis do seu regulamento, em que se estabelecia, com
um profundo sentimento dos deveres do cidadão para com a cidade, que todo o pobre
admitido seria forçado a uma considerável soma de trabalho, segundo as suas aptidões. O
mais útil parágrafo, a meu ver, é aquele que determina que grupos de pobres sejam forçados a
calçar as ruas, colocar as canalizações de gás, trabalhar em monumentos públicos, etc. Tais
serviços, todos em favor da Câmara Municipal, obrigá-la- iam a concorrer para a despesa
desta instituição, aliviando assim o Estado de uma grande parte dos gastos.
Uma vez admitidos, os recolhidos perderiam o direito de sair a não ser que provassem que
iriam dali ser empregados, de tal sorte que não lhes fosse possível recair nos acasos da
miséria.
Em nenhuma legislação humana conheço instituição tão justa, tão eficaz, tão profundamente
cristã, o beneficamente social. E mesmo muito preferível ao Work-House inglês: ali, o pobre
conserva uma soma de independência que lhe faz supor a existência de uma soma de direitos:
considera-se ainda um cidadão, tem pretensões ao respeito, à igualdade, à consideração:
desobedece, revolta-se, foge do Work-House, recai no deboche, na fome, na desordem, no
vício. Aqui, não: o pobre fica prisioneiro da caridade! Perde o direito de ter fome. E as classes
dirigentes, tendo a certeza de que os seus pobres estão, bem aferrolhados, com uma
razoável enxerga e um caldo diário, podem dormir descansadas, sem receio de perturbações
da ordem ou de revoltas do pauperismo.
Infelizmente este projecto tão perfeito, de que todos os jornais sérios falaram com palavras de
comovida admiração, nunca conseguiu passar nas Câmaras. Motivos mesquinhamente
governamentais impediram uma tão bela instituição de resolver o grande problema da miséria,
pois é com estas sábias medidas que ela se arranca do seio da sociedade, e não com as
vossas reformas hipócritas, sofistas da revolução social!
Foi esta instintiva repulsão pela pobreza, pelas maneiras rudes, pelas instalações incómodas,
que impediu Alípio, desde que gozava na Quinta dos Miguéis as vantagens da educação e os
regalos da riqueza, de visitar amiúde a casa modesta de seus pais. li porém uma calúnia dizer-
se como o disseram certos panfletos indecorosos que o Conde, rico, ministro,
renegara a sua família.
É para mim uma honra, vir hoje, perante Portugal, explicar, destruir esse erro voluntário e
hostil.
Logo que o Conde entrou na Câmara, fez o seu casamento tão rico e se estabeleceu em
Lisboa, pensou sem demora em elevar paralelamente a situação social de seu pai. Encontrou
nele, porém, exigências tais que tornaram impossível a realização dos seus desejos. As
negociações foram longas, muito delicadas, muito secretas. Tenho nas mãos toda essa
correspondência, e posso dizer que nela o Conde mostra um tacto, uma prudência, uma
previdência geniais. Seu pai, ao princípio, desejou que o Conde lhe fornecesse meios de abrir
em Lisboa um grande estabelecimento de alfaiate. Isto era.14 naturalmente inaceitável. Como
o Conde me disse muita vez, não podia passar, com o correio de ministro atrás, pela rua onde
reluzisse a tabuleta «Abranhos, Alfaiate». Como conseguiria ele, na Câmara, aniquilar um
adversário que lhe poderia responder: «Tudo isso é muito bonito, mas o pior é que o senhor
seu pai me estragou inteiramente este par de calças e roubou-me na fazenda!
Era impossível esta permanente tortura moral. E o pai do Conde tanto o compreendeu, que
escreveu (não cito textualmente, pois que nem a sua ortografia, nem a sua gramática
poderiam ter lugar num livro correcto): – Se não queres que eu possua um estabelecimento do
ofício em que me criei, que é honrado e me tem ajudado a viver, e à tua mãe, então o melhor é
que eu para a tua companhia, para tua casa, onde tua mãe, que é tão económica e tão
hábil nos arranjos, pode ser uma governanta útil e poupar a tua mulher todos os incómodos
«dos azeites e vinagres». (Esta expressão é dele).
O Conde recusou com indignação. Realmente a exigência é curiosa. Virem aquele homem e
aquela mulher de Penafiel, com os hábitos, os modos, as figuras, a fala de dois trabalhadores
de Penafiel, viver numa casa onde se recebia a fidalguia de Lisboa, os representantes dos
Reis estrangeiros, a flor da literatura, a Maioria! Absurdo! Se o Conde, como ele dizia, não
fosse um homem público, poderia sacrificar-se a essa companhia plebeia. Mas como
Estadista, a presença na sua casa daquele pai de feição reles, a comer o arroz com a faca, a
escabichar os dentes com as unhas, a perguntar às senhoras então como vai essa bizarria?
com o seu catarro, cuja expectoração perpétua era repulsiva, serviria para diminuir a
autoridade moral do Conde e o prestígio do seu talento. Em nome dos interesses superiores
do Estado, devia repelir aquela proposta. Se um dia tivesse a jantar o Ministro de Inglaterra ou
de França, no momento de uma negociação delicada e de alto interesse para Portugal, como
poderia impressionar os diplomatas estrangeiros, com o pai, ao lado, a tirar cera dos ouvidos?
Foi por isso que ele informou o pai de que o receberia em sua casa, com a condição de
nunca aparecer aos jantares ou às soirées. O velho, decerto mal aconselhado por intrigantes
políticos, respondeu com uma carta (que, pelas razões dadas, não cito textualmente) em que
lhe diz que, desde que o filho se envergonha de seu pai, todos os arranjos são inúteis, e que
cada um siga o seu caminho; eu (diz ele) não posso, aos 55 anos, mudar os meus hábitos e o
meu catarro: sou como sou; não tenho as maneiras de um elegante, mas tenho a minha honra
e os meus sentimentos. Que meu filho jante na sala e me faça jantar na cozinha, não!
Continua a ser Abranhos deputado, que eu continuarei a ser Abranhos alfaiate. Mas nem por
isso deixo de ser tão homem de bem como tu.
Homem de bem! Não o era decerto, dando, pela sua ingrata obstinação, motivo a que se um
dia se soubesse, como se soube, este incidente o Conde fosse insultado na imprensa e
escarnecido na Câmara!
Esta resposta do pai desgostou muito o Conde; mas com uma bondade quase sobre-humana,
escreveu-lhe novamente, remetendo-lhe 200$000 réis, e afiançando-lhe que se algum dia, por
falta de trabalho ou doença, se encontrasse em necessidade, o avisasse logo, pois que,
apesar da sua carta ofensiva, nunca ele, como filho cristão, perderia o respeito que lhe devia!
A esta carta tão nobre, tão filial, o velho alfaiate respondeu devolvendo a letra, nas dobras de
um papel onde havia uma palavra única: – M....! – Não transcrevo a palavra
(que de resto a inteligência dos que me lêem logo compreenderá) porque me respeito, e nunca
ponho nos meus livros essas obscenidades que se permitiu escrever o visionário autor dos
Miseráveis, esse épico enfático de uma democracia estéril!
M....! Essa palavra foi para o Conde o desgosto grave da sua vida. Era evidente.15 que seu
pai, perdendo o respeito próprio, propendia para a obscenidade! Boa razão tivera ele, pois, em
não o admitir em sua casa, no convívio da sociedade mais raffinée de Portugal!
Deste incidente da vida do Conde, que mais direi que o não saiba o País? É conhecido hoje
(tanto o escândalo popularizou o episódio) que, obstinando-se na sua ingratidão, o alfaiate
morreu pobre, sem nunca ter escrito a seu filho, que o soube quando o velho se tinha
enterrado. Mas o Sr. Carvalhosa, o deputado da oposição por Penafiel, com essa perfídia que
inspira o despeito político, apenas teve conhecimento de que o velho expirava na miséria,
apressou-se com pompa, com evidência, a ir-lhe a casa, levar-lhe um médico e enterrá-lo à
sua custa. Para quê? Para que se pudesse imprimir nos jornais da oposição que o Sr.
Ministro deixara morrer o pai numa mansarda infecta e que fora o deputado da oposição quem,
por misericórdia, lhe chegara aos lábios a última malga de caldo!
Eu vi o Conde chorar na intimidade da sua livraria. Lágrimas de raiva, que para outras o
havia lugar. Aquela morte isolada, obscura, silenciosa, numa miséria voluntária, era a
vingança do pai! Deixava-lhe aquela vergonha permanente. Quem sabe mesmo se o alfaiate
não teria combinado com a oposição toda aquela lúgubre cena, a enxerga, a aparição do
Carvalhosa, a tumba de esmola!
Ai, Zagalo disse-me o Conde abraçando-me o maior erro da minha vida foi nascer de
semelhante pai!
E foi! Por isso o Conde, na sua severa justiça, deixou que o corpo do alfaiate repousasse na
vala onde o levara a tumba de misericórdia.
Diante de Deus, como ele dizia, considerava-se filho de sua tia. E a ela, filialmente, elevara
aquele belo monumento onde o Anjo chora sobre uma coluna truncada que sustenta um livro,
símbolo da educação que facultara ao Conde, e uma pequena bolsa, emblema da fortuna em
terras que por testamento lhe deixara.
Mas estas digressões necessárias (pois que, repito, eu o conto na sua disposição
cronológica os episódios de tão ilustre existência, mas apenas dou, a traços largos, as feições
essenciais da sua fisionomia histórica) trouxeram-me aos anos, não distantes, em que o
Conde d'Abranhos viu, por assim dizer, Portugal a seus pés.
Volte pois o leitor comigo a essa formosa estrada do Porto, onde, numa liteira, acompanhado
pelo procurador de sua tia, vai o nosso Alípio em direcção a Coimbra.
Os sete anos que aí viveu foram serenos e graves.
Muitas vezes o Conde me disse que a Universidade lhe fizera uma impressão profunda, não
tanto como edifício ainda que seja imponente aquele monumento no alto do monte, severo e
isolado, como uma imutável fortaleza de vetusta ciência mas sobretudo como Instituição. Eu
confesso não ser talvez competente para avaliar estas questões de Ensino e de Educação. A
pobreza de meus pais não me permitiu a honra vantajosa de ser bacharel, mas tendo convivido
com tantos homens ilustres, eu sou como aquele antigo fabricante de ídolos, que, à força de
viver entre eles, guardava nas mãos e na túnica alguma coisa do seu dourado. Além disso,
neste assunto, como em todos, sigo, por admiração muda e reconhecimento correcto, as
ideias e opiniões do Conde d'Abranhos.
A primeira vantagem da Universidade, como instituição social, é a separação que se forma
naturalmente entre estudantes e futricas, entre os que apenas vivem de revolver ideias ou
teorias e aqueles que vivem do trabalho. Assim, o estudante fica para sempre penetrado desta
grande ideia social: que duas classes uma que sabe, outra que produz. A primeira,
naturalmente, sendo o cérebro, governa; a segunda, sendo a mão, opera, e veste, calça, nutre
e paga a primeira.
Dois mundos – como diz o nosso poeta Gavião – que se não podem confundir e que, vivendo à
parte, com fins diferentes, caminham paralelamente na civilização, um com o título egrégio de
Bacharel, outro com o nome emblemático de Futrica. Bacharéis são os políticos, os oradores,
os poetas, e, por adopção tácita, os capitalistas, os banqueiros, os altos negociadores.
Futricas são os carpinteiros, os trolhas, os cigarreiros, os alfaiates... O Bacharel, tendo a
consciência da sua superioridade intelectual, da autoridade que ela lhe confere, dispõe do
mundo; ao Futrica resta produzir, pagar para que o Bacharel possa viver, e rezar ao Ser Divino
para que proteja o Bacharel.
O Bacharel, sendo o Espírito, deve impedir que o Futrica, que é apenas a Matéria, aspire a
viver como ele, a pensar como ele, e, sobretudo, a governar como ele. Deve mantê-lo portanto
no seu trabalho subalterno, que é o seu destino providencial. E isto porque um sabe e o outro
ignora.
Esta ideia de divisão em duas classes é salutar, porque assim, educados nela, os que saem da
Universidade não correm o perigo de serem contaminados pela ideia contrária ideia absurda,
ateia, destruidora da harmonia universal de que o futrica pode saber tanto como sabe o
bacharel. Não, não pode: logo as inteligências são desiguais, e assim fica destruído esse
princípio pernicioso da igualdade das inteligências, base funesta de um socialismo perverso.
Como pode realmente o homem que todo o dia trabalhou no seu tear, e à noite, depois do
caldo de couves, dormiu do sono brutal da fadiga física, participar do governo da coisa pública
como esse outro homem que conhece as línguas, tem os princípios da Introdução aos três
remos, estudou o Direito Romano, se penetrou do Direito Canónico, leu os poetas do século,
discutiu as leis no Parlamento, fez administração nas Secretarias?
Irrisão?
Outra vantagem da Universidade é a organização dos seus estudos. O Conde considerava-a
admirável e a melhor garantia da Ideia Conservadora. E aqui copio textualmente o relatório que
acompanha o seu notável Projecto de Reforma do Ensino:
«Têm alguns espíritos ávidos de inovação, ainda que no fundo sinceramente afeiçoados aos
princípios conservadores, sustentado que o sistema da Sebenta (como na sua jovial linguagem
lhe chama a mocidade estudiosa) é antiquado. Eu considero, porém, a Sebenta como a mais
admirável disciplina para os espíritos moços. O estudante, habituando-se, durante cinco anos,
a decorar todas as noites, palavra por palavra, parágrafos que quarenta anos permanecem
imutáveis, sem os criticar, sem os comentar, ganha o hábito salutar de aceitar sem discussão e
com obediência as ideias preconcebidas, os princípios adoptados, os dogmas provados, as
instituições reconhecidas. Perde a funesta tendência que tanto mal produz de querer
indagar a razão das coisas, examinar a verdade dos factos; perde, enfim, o hábito deplorável
de exercer o livre-exame, que não serve senão para ir fazer um processo científico a
venerandas instituições, que são a base da sociedade. O livre-exame é o princípio da
revolução. A ordem o que é? – A aceitação das ideias adoptadas. Se se acostuma a mocidade
a não receber nenhuma ideia dos seus mestres sem verificar se é exacta, corre-se o perigo de
a ver, mais tarde, não aceitar nenhuma instituição do seu país sem se certificar se é justa.
Teríamos então o espírito da revolução, que termina pelas catástrofes sociais!
Hoje, destruído o regime absoluto, temos a feliz certeza de que a Carta liberal é justa, é sábia,
é útil, é sã. Que necessidade de a examinar, discutir, verificar, criticar, comparar, pôr em
dúvida? O hábito de decorar a Sebenta produz mais tarde o hábito de aceitar a Carta. A
Sebenta é a pedra angular da Carta! O Bacharel é o gérmen do.Constitucional.»
Conheço na filosofia contemporânea sem mesmo exceptuar os livros dos Thiers, dos
Guizots, dos Bastiats, dos Pagès poucas páginas tão profundas. A frase é tersa, viril, nobre,
bem ponderada; a argumentação é sã e cerrada, inexpugnável; a ideia tem a solenidade
severa de um dogma. Nobre página! E pensar que aquele que a escreveu não escreverá outra,
e repousa sob o pedestal da sua estátua, com as mãos em cruz, na terra bruta!
Não menos maravilhoso parecia ao Conde o sistema das relações entre o estudante e o lente.
O hábito de depender absolutamente do lente, de se curvar servilmente diante da sua austera
figura, de obter por meio de empenhos que a sua severidade se abrande, forma os espíritos no
salutar respeito da autoridade. O sentimento excessivo da dignidade pessoal leva ao amor
exagerado da independência civil. Cada um se torna por este modo o seu próprio dono, o seu
chefe, o seu Rei, o seu Deus. E a anarquia! Assim educado, durante cinco anos, a curvar-se, a
solicitar, a sorrir, a obedecer, a lisonjear, a suplicar, a depender, o bacharel entra na vida
pública disciplinado, e, em lugar de ser o homem que quer tomar na vida o lugar que lhe
convém (o que seria a desorganização das posições sociais) vai humildemente colocar-se,
com um sorriso, no lugar, na fila, no cantinho que lhe marcam os que governam. Assim se
forma uma imperecível harmonia social.
O jovem Abranhos bem depressa mostrou, em Coimbra, o seu profundo amor da Disciplina e
da Ordem.
O lente de Direito Natural era então o velho Dr. Pascoal; muito míope, a sua veneranda
ciência, os seus achaques, os seus serviços de decano, inspiravam a todos os que admiram
estes vetustos sábios encanecidos nos comentários de vetustos compêndios, uma admiração
simpática.
Havia, porém, nesse curso (a recordação recente das guerras civis de algum modo o explica)
temperamentos rebeldes e perniciosos, que, por o ancião pertencer a uma velha família
Miguelista, procuravam como dizia o Conde, achincalhar a prelecção. Foi assim que uma
ocasião, de repente, de entre os bancos, um morcego solta o voo, e estonteado pela luz,
esvoaça furiosamente, vai bater nos vidros, vai bater nas paredes, vai bater, finalmente, no
rosto venerável do Dr. Pascoal. O velho grita, o archeiro corre... Mas, como diz o nosso grande
poeta, autor dos Cânticos do Céu:
Quem sabe donde vem a aragem fresca?
Quem sabe donde vem o voo d'ave?
Quem sabe de onde vinha o morcego?
No dia seguinte, tinha justamente o venerando doutor aberto a pauta – quando outro morcego,
maior, mais negro, começa a esvoaçar furiosamente pela aula! O respeitável Dr. Pascoal
fechou a pauta, saiu da aula, todo trémulo, todo branco...
Alípio, porém, vira o condiscípulo indigno que soltara os morcegos, e ali mesmo, na geral,
decidiu, por amor da disciplina violada e do professorado ultrajado, acusá-lo ao decano. Mas
como repugnava ao seu carácter leal ir, de viva voz, a casa do Dr. Pascoal, denunciar o
condiscípulo, redigiu uma carta anónima com estas palavras:
O vilão que arrojou o morcego às faces de V. Ex.ª perturbou o recinto escolar, é o nº 89!
Era um certo Adriano Cravilho, que posto que de uma inteligência notável e de.18 um
temperamento honesto – tinha, como se diz em Coimbra, «o furor de fazer partidas».
Uma semana depois, condenado por um processo secreto e sumário, era riscado da
Universidade perpetuamente. O respeitável Dr. Pascoal, porém, ficara tão reconhecido ao
«anónimo» que lhe revelara o autor do malefício, que costumava dizer no conselho da
faculdade, que, se soubesse quem era, «pespegava-lhe um accessit no fim do ano. Porque
enfim, colegas, livrou a aula de um malvado!»
Estas palavras, espalhadas, impressionaram Alípio. O seu acto apareceu-lhe revestido de uma
importância inesperada; examinando-o, descobria-lhe a nobreza, via-o como um verdadeiro
serviço feito à Ciência, à Disciplina, à Ordem, ao princípio autoritário. E considerava que se é
justifi-cado o pudor que nos faz ocultar o serviço feito a um amigo, há uma falsa modéstia em
esconder um benefício prestado à sociedade. Pode esquivar-se ao reconhecimento quem
salva um homem – não quem salva um princípio!
E dias antes dos actos, dirigiu-se a casa do Dr. Pascoal, e escrevendo diante dele as palavras
textuais da carta anónima, convidou-o a comparar as letras, provando ao venerável professor
que era ele, Alípio Abranhos, quem prestara aquele serviço tão marcante à Disciplina.
Pois faz favor de deixar o seu nome... faz favor de deixar o seu nome exclamou o ancião,
que estava na idade em que a memória é como tela gasta, que, repuxada, se esgaça.
Alípio deixou o seu nome – e no fim do ano recebia o 1º accessit.
Teve ainda o accessit no segundo ano –ano em que ele, justamente, dedicou a sua
dissertação sobre o Direito das Gentes ao Dr. Capelo, conhecido pela redundância dos seus
períodos, com esta dedicatória: «Ao Deus da Eloquência, Ex.mo Dr. Capelo, of. d. c. Alípio
Abranhos, discípulo deslumbrado».
Teve uma distinção no terceiro ano ano, exactamente, em que (segundo vejo nas suas
notas) a tia Amália lhe aumentou a mesada, o que habilitou Alípio a fazer presentes delicados
a D. Rosalinda Carreira, que a calúnia então apontava como concubina do seu lente de Direito
Civil.
No quarto ano recebeu enfim o segundo prémio – para o que concorreu uma sabatina em que,
argumentando com o lente, o sofista Dr. Abreu, e enleado por um sofisma complexo, lhe
lançou estas belas palavras: «não sei o que hei-de responder; a luta é desigual: eu tenho
por mim o estudo e V. Exª, tem o génio!»
No quinto ano, ignoro que recompensa recebeu a sua fecunda aplicação.
Estas honras, porém, não eram dadas unicamente ao seu talento: eram, também o prémio da
sua conduta moral. Nunca o moço Alípio fora visto em conflitos com futricas ou em noitadas
nos bilhares da Baixa. O seu ódio à estroinice era tão grande, que, para evitar a brutalidade
burlesca do entrudo, refugiava-se em Celas, para onde ia a pé, em deliciosas excursões pelas
margens suaves do Mondego. Não se pense, porém, que as severidades do estudo tão
justamente comparadas pelo nosso lírico a um vento esterilizador, tinham ressequido no
jovem Alípio as florescências naturais do sentimento moço. Se eu o receasse afectar uma
forma preciosa, compará-lo-ia a um código dentre cujas folhas saísse uma flor de amor-
perfeito. Neste urso (nome pitoresco que se em Coimbra aos premiados, que, absorvidos
pelo estudo, se descuidam de cul-tivar as graças exteriores) neste urso, havia um gamo se
tomarmos o gamo como símbolo animal das naturais vivacidades e das irreprimíveis simpatias.
Somente Alípio era destas naturezas prudentes que cuidadosamente ocultam o que o Destino,
o Acaso ou a Providência, lhes deu de mais excessivo ou desregrado.
Todo o homem tem vícios, ou paixões, ou gostos perversos, mas o seu dever é.19 escondê-los
e mostrar-se apenas aos seus semelhantes como um ser regrado e bem equilibrado. Era
assim, por exemplo, que apesar de gostar de genebra, Alípio nunca se entregava a esta
inclinação na publicidade brutal dos botequins ruidosos: aí, tomava regradamente o seu copo
de orchata. Mas, tendo assim cumprido o seu dever de homem, de cidadão, de premiado,
dando um exemplo severo de sábia sobriedade, julgava poder, sem escrúpulos, depois de
satisfeito o dever, satisfazer a inclinação; e em casa, no seu quarto solitário, usava com
largueza da garrafa de genebra que guardava debaixo da cama, no caixote da roupa suja.
Tocante exemplo de respeito pessoal e de submissão à decência!
A mesma discrição usava no que se refere aos sentimentos temos: seria incapaz de ir com
condiscípulos, «numa troça», a casa dessas Vénus vulgares que batem o lajedo com sapatos
cambados e cujo leito é como uma praça pública. Mas se a natureza, nas suas iniludíveis
exigências, que às vezes os eflúvios da Primavera ou a preguiçosa e tépida atmosfera do
Outono tornam mais mordentes, o solicitasse, esperava pela noite, e, com sapatos de borracha
para que nem lhe ouvissem os passos, procurava as vielas mais retiradas, onde, depois de ter
pactuado com a paciente que lhe seria guardado absoluto segredo, sacrificava com seriedade
no altar de Vénus Afrodite.
Foi por essa discrição tão digna que ninguém – nem os seus companheirossouberam de um
terno episódio passado durante o seu quinto ano. Ele era então hóspede das Barrosos,
respeitáveis velhas onde estudantes encontravam carinhos maternais por preços discretos. A
servente, uma Júlia, tinha 18 anos, era virgem, e, segundo me confessou o Conde, a sua
beleza delicada e tocante fazia lembrar esses tipos de odaliscas que se encontram nos
Keepsakes, recostadas em coxins, à sombra de arcadas mouriscas, acariciando com a ponta
aguçada dos dedos ideais uma gazela familiar. Tanta beleza, tão nobre, numa condição tão
rasteira a natureza compraz-se por vezes nestas irónicas antíteses comoveram o coração
de Alípio, e, uma noite em que a servente dormia na sua água-furtada, o jovem quintanista
atreveu-se a subir, em pontas de pés, a admirar a forma delicada, mais bela na sua camisa de
estopa do que as nus que os artistas florentinos recostavam em coxins de seda, com
rouparias de damasco... Mas ao ranger perro da porta a servente acordou: ia gritar, assustada,
quando Alípio, tapando-lhe a boca com a mão (sem a magoar contudo) rogou, na balbuciação
supli-cante do desejo:
– Mas ouve, filha, ouve primeiro o que te vou dizer...
O que lhe disse? Quem sabe o que ao arvoredo diz o vento, o que dizem as alegres águas
correntes às relvas dos prados, o que diz o rouxinol na sombra dos salgueiros, quando sobre a
colina, serena e branca, se ergue a Lua?
Desde essa noite, Alípio não trocaria aquela água-furtada, onde a caliça caía com a humidade,
pelas salas de mármore do Vaticano! Mas, admirável exemplo da seriedade do seu espírito,
mesmo ali, não esquecia o seu trabalho: levava os expositores, a sebenta, os apontamentos,
e, depois do primeiro transporte amoroso, enquanto, como ave fatigada, a servente se
aninhava na cova da enxerga, o nosso Alípio, à luz de uma vela de sebo, ia estudando as mais
altas questões do Direito Penal até que o Desejo, ferrão despótico, o arremessava de novo
aos braços brancos que o sono enlanguescia. Delicioso idílio!
E quantas vezes, nos seus anos ilustres, quando ele fazia História, decerto lhe volveriam à
memória, como um trecho de mal lembrada melodia, aqueles meses de Verão e de amor
romântico, em que a bela Júlia e o jovem Alípio, abafando as suas risadas, faziam no quarto
miserável, sob as telhas, a caça aos mosquitos nas paredes e aos percevejos nas frinchas...
Ah! bem o têm dito os poetas: a mocidade, como o sol, tudo esbate e envolve numa vaga
névoa de ouro; e os mosquitos que se matam aos vinte anos, numa alcova amada, parecem
deliciosos àqueles, que, aos quarenta, dormem sob cortinados de seda, sentindo na rua, junto
à porta, o passo respeitoso da sentinela protocolar!
Quando Alípio, concluída a formatura, deixou Coimbra, Júlia estava no terceiro mês da sua
gravidez. No entanto conservou-lhe sempre uma estima terna, até que um companheiro, daí a
tempos, lhe escreveu, dizendo que Júlia fora expulsa da respeitável casa das Barrosos (como
de resto era justo) e que, achando-se sem emprego, formosa e com um filho a sustentar, se
lançara na prostituição.
Desde então o nosso grande Alípio só concebeu por ela desprezo e repulsão – porque naquele
espírito nobre sempre houvera o horror das miseráveis, que, esquecendo o que devem ao
respeito próprio à sociedade, à família, ao filho, vão pedir ao indolente abandono do lupanar o
pão que deveriam obter das severas fadigas do trabalho. Recusou mesmo, com indignação, a
esmola que ela lhe mandara pedir, temendo que os pouco mil-réis que lhe poderia remeter,
fossem porventura, contribuir para enfeitar e arrebicar uma nova sacerdotisa da Vénus das
vielas. Tanto a esta alma severa e forte repugnavam as moles condescendências e as vãs
piedades!
Dois anos depois da sua formatura, encontrámos Alípio Abranhos em Lisboa, numa casa da
Rua do Ouro que faz esquina para o Rossio, e praticando no escritório do famoso Dr. Vaz
Correia.
O Conde nunca me deu pormenores minuciosos sobre estes primeiros anos de Lisboa, nem
encontro nas suas notas elementos pelos quais possa fazer deles uma narração detalhada. O
País tinha então atravessado a grande crise social que e popularmente conhecida pelo nome
da Maria da Fonte. Não me proponho, neste estudo puramente íntimo, fazer crítica histórica ou
apreciar as consequências desta formidável convulsão da nossa política portuguesa.
Uma vantagem, porém, e insisto nela porque se prende indirectamente com a carreira
política do Conde d'Abranhos tirámos da Junta: e foi essa vantagem o ficar provada a
impossibilidade em Portugal de um desses ministérios à Polignac e à Cabral, que vão, com
uma obstinação altiva e brutal, contra as tendências do espírito público e pretendem impor-se
pela força em lugar de conquistar pela habilidade. O povo é como um desses monstruosos
elefantes da Índia de que tenho ouvido contar: de uma pujança indomável e de uma
simplicidade risível, o mundo inteiro, pela violência, não o pode obrigar a caminhar contra a
sua vontade, e uma criança, pela astúcia, obriga-o a fazer cabriolas grotescas. O povo tem a
força de um elemento e um regimento não lhe pode impor uma ideia que um simples advogado
hábil em declamação lhe faz aceitar sem esforço. Isto eram verdades velhas no antigo
mundo helénico. Os Polignacs, os Guizots, os Cabrais, são portanto culpados, não de falta de
civilização, mas de falta de astúcia. Para que se há-de combater um monstro invencível,
quando é tão simples iludi-lo?
Os Romances de Cavalaria dão-nos uma alta lição política, quando nos pintam esses
medonhos gigantes que guardavam as entradas das pontes, sobre torrentes tenebrosas: as
lanças dos melhores cavaleiros, tentando forçar a passagem, quebravam-se de encontro à
pele coriácea dos temerosos brutos, até ao dia em que um bravo Percival ou um Lancelote, flor
de cavalaria, lhe mandavam um anão pérfido e hábil em manhas, que adormecia
profundamente o colosso e os cavaleiros podiam, impunemente, trepar-lhe sobre o ventre
monstruoso, como sobre uma montanha inerte, e entrar no castelo desejado onde os esperava
um seio branco e os vinhos raros que vêm das colinas de Inspruk.
Polignac, Guizot, Cabral, quebraram as lanças de encontro ao gigante; ainda hoje.21 viveriam,
e decerto estariam no castelo, coroados de rosas, nos braços da Princesa, se, em lugar do
heróico e vão esforço, tivessem mandado adiante o anão, profundo em manhas.
Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram a grave lição da Maria da
Fonte. O sistema da violência foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil
método da habilidade.
O Conde d'Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma nova
política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural em que a sua
fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o governo nada perdia do seu
poder discricionário mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada no
país, clamando com força: Para aqui! Eu quero! os governos democráticos conseguem
tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo
com doçura: – Por aqui, se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!
Tomemos um exemplo: o eleitor que não quer votar com o Governo. Ei-lo, aí, junto da urna da
oposição, com o seu voto hostil na mão, inchado do seu direito. Se, para o obrigar a votar com
o Governo o empurrarem às coronhadas e às cacetadas, o homem volta-se, puxa de uma
pistola e temos a guerra civil. Para que esta brutalidade obsoleta? Não o espanquem,
mas, pelo contrário, acompanhem-no ao café ou à taberna, conforme estejamos no campo ou
na cidade, paguem-lhe bebidas generosamente, perguntem-lhe pelos pequerruchos, metam-
lhe uma placa de cinco tos-tões na mão e levem-no pelo braço, de cigarro na boca, trauteando
o Hino, a junto da urna do Governo, vaso do Poder, taça da Felicidade! Tal é a tradição
humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do
cidadão e em nome da Liberdade.
Quantas vezes me disse o Conde ser este o segredo das Democracias Constitucionais: «Eu,
que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a Soberania ao povo, que é forte e
simples. Mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade, e o adormecimento da
consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito... E
quanto ao seu proveito... adeus, ó compadre!
Ponho-lhe na mão uma espada; e ele, baboso, diz: eu sou a Força! Coloco-lhe no regaço uma
bolsa, e ele, inchado, afirma: eu sou a Fazenda! Ponho-lhe diante do nariz um livro, e ele
exclama, de papo: eu sou a Lei! Idiota! Não que por trás dele, sou eu, astuto manejador de
títeres, quem move os cordéis que prendem a Espada, a Bolsa e o Livro!»
E eu que, durante quinze anos, vivi na honrosa intimidade do Conde d'Abranhos e me penetrei
nas suas ideias, estou tão crente desta verdade, que dado um Chefe de Estado
irresponsável, ministros e uma Câmara electiva me comprometo, oh! leitores, a fazer
governar esse grande e velho reino da Taprobana pela Camila Pelada, do Beco dos Cavaletes!
Como procederei eu? Tomo a Pelada, enamoro dela o Chefe do Estado, o que é fácil, hoje que
o deboche tem as persuasões de uma religião e os métodos de uma ciência. Dirigido por ela, o
Chefe do Estado escolhe os ministros, e os ministros, como no conto popular, convencem os
eleitores, que nomeiam os deputados, que os legalizem a eles, ministros, e às suas fantasias,
decretos, empréstimos e discursos! O povo, satisfeito, afirma: Eu sou o dono! Eu, rio-me. A
dona é a Camila – e se eu, por acaso, for o Serafim da Camila, sou eu, afinal, quem governa a
Taprobana, dentre os lençóis de uma alcova, no Beco dos Cavaletes!
Tudo isto o sentiu num relance o Conde, quando, depois da Maria da Fonte, os ministérios da
Força cederam o passo aos ministérios da Astúcia. A Maria da Fonte foi.a introdução no
Estado de uma nova táctica social.
Entretanto, querendo vir à arena com todas as armas, o Conde preparava a sua reputação
literária, como redactor-chefe da Bandeira Nacional, jornal de que, atendendo ao brilho que lhe
deu a colaboração de Alípio e à sua curta existência, eu poderia dizer, parafraseando o
conhecido verso de Malherbe sobre a rápida vida das rosas – que viveu o que vive um foguete,
o espaço de um estalo e de um clarão!
A Bandeira Nacional era um destes muitos jornais, que fundados sem capitais e não
correspondendo a nenhuma necessidade intelectual, têm na sociedade um lugar isolado e sem
valor, arrastam uma vida difícil, tendo que mendigar, aqui e além ou da oposição ou do
governo – a esmola de um subsídio, e, quando este lhes falta, se extin-guem por si mesmos no
silêncio e na obscuridade.
Os fundadores da Bandeira, moços ambiciosos que rondavam em torno das repartições do
Estado, tinham encontrado um patrono num homem político, alta figura de relevo na história
Constitucional, o conselheiro Gama Torres. A protecção que dispensava porém à Bandeira
este homem notável, era, como dizia finamente o Conde platónica, toda platónica! Não lhe
dava dinheiro, porque, chefe de família, entendia, e muito bem, que a política não deve sorver
fortunas, mas, pelo contrário, produzi-las. Não dava tão pouco ideias, porque, apesar da sua
alta ilustração, que o torna um dos nossos grandes contemporâneos, a sua prudência, a sua
reserva eram tais, que raras vezes se lhe tinha ouvido uma opinião nítida.
Sabia-se que aquela fronte um pouco calva, de entradas largas, estava recheada de ideias;
somente conservava-as como um tesouro escondido. Era, por assim dizer, um avaro
intelectual. As suas ideias eram para si; no silêncio do seu gabinete, agitava-as como o velho
Grandet agitava o seu ouro, regalando-se do seu brilho e da sua sonoridade. Mas se alguém
entrava de repente, aferrolhava tudo à pressa no cofre do cérebro, e a sua larga testa, de
entradas altas, não oferecia mais que uma fachada impenetrável e monumental, que
impressionava a todos e não aproveitava a ninguém.
Era alto, encorpado, e os seus olhos, azulados e redondos, tinham uma singular falta de
expressão e de intenção. Porém, todos sabiam que por trás daquele olhar parado um mundo
de ideias fermentava.
É curioso observar quantos homens públicos do nosso país têm esta aparência apagada,
vazia, vaga, abstracta, sonâmbula; e, todavia, eu que pelo Conde fui admitido a conhecê-los,
sei quanto génio habita em segredo naquelas cabeças calvas ou cabeludas, a que os
superficiais, não lhes conhecendo as secretas riquezas, acham um aspecto alvar. É que nós
somos uma raça reservada, inimiga da ostentação e das atitudes: ao inverso dos franceses,
que mal têm uma ponta de talento, tratam de o fazer brilhar, reluzir, deslumbrar, nós, com
vastidões de génio no interior, desprezamos estas demonstrações vaidosas e guardamos para
nós mesmos as nossas riquezas intelectuais. Assim faz o árabe, que cerca os seus jardins
deliciosos e as suas habitações douradas de um muro negro de pedra e lama, de modo que se
julga ver uma cabana onde realmente existe uma Alhambra! Mas não somos nós de raça
árabe?
Por isso nunca o Conselheiro Gama Torres se dignou fazer à Bandeira Nacional a esmola de
uma ideia. Deu-lhe, porém, a protecção do seu nome; dizia-se «a Bandeira do Gama Torres» e
isto trazia ao jornal uma autoridade imprevista.
Muitas vezes, segundo me contou o Conde, durante os meses de Estio em que a política,
refugiada na sombra das quintas ou na frescura das praias, dormita, o redactor da Bandeira,
sem assunto para o seu artigo de fundo, recorria ao génio do Conselheiro, como um pobre
envergonhado. Gama Torres, porém, colocando-se no meio da casa, as pernas afastadas, o
ventre saliente, as mãos atrás das costas, fitava o soalho e.23 bamboleando o crânio fecundo,
murmurava surdamente:
Ele muitas questões!... Há questões terríveis. a prostituição... o pauperismo... Ele
muitas questões...
Mas, repito-o, era um avaro intelectual que não gostava de fazer a esmola de uma ideia. Não o
censuro, pois é sabido que ele dava todo o seu tempo e todo o seu génio às grandes questões
sociais. Elas preocupavam-no tanto que era usual sempre que diante dele se falava de
assuntos políticos – ouvi-lo murmurar soturnamente:
– Ele muitas questões! Questões terríveis: o pauperismo, a prostituição! São grandes
questões! Questões terríveis!
E pareciam com efeito terríveis essas questões, de uma tenebrosidade de abismo, quando se
via o olhar esgazeado com que ele parecia contemplá-las mentalmente.
Pouco tempo antes da sua morte, lembro-me de o ter visto, uma noite, em Casa do Conde,
numa ocasião de crise ministerial, e nunca esquecerei a terrível impressão que me deixou
aquele grande homem, de pé no meio da sala, esgazeando o olhar em redor e dizendo
cavamente:
Os senhores podem crê-lo, nem tudo são chalaças; ele questões terríveis... A
prostituição, o pauperismo, o ultramontanismo... Questões terríveis.
E no silêncio apavorado que deixara aquela voz profética, em que se sentia a ameaça de
graves tormentas sociais rolando do fundo do horizonte, aproximei-me instintivamente do
Conde, como quem procura asilo seguro.
Tal era o director da Bandeira. Devo acrescentar que os únicos artigos que ele dava para o
jornal anunciavam as suas jornadas para a Ericeira, ou os partos frequentes de sua esposa, ou
ainda os progressos da sua doença de bexiga: artigos curtos, de resto, mas numa linguagem
tersa, firme, grave, em que se sentia o homem de Estado!
A colaboração de Alípio Abranhos na Bandeira Nacional veio dar ao jornal anémico um sangue
novo e vivo. Eu possuo precioso presente do Conde uma colecção da Bandeira, ricamente
encadernada, e muitas vezes, abrindo-a com vene-ração, me repasto desses artigos, que,
como prosa e como argumentação, lançam na sombra os famigerados Girardins, os Sampaios
tão preconizados. Quereria transcrever alguns desses modelos de literatura jornalística, mas a
estreiteza deste estudo apenas me permite extractar um trecho, por onde o leitor pressentirá o
colosso, como Cuvier, por uma vértebra, adivinhou o mastodonte.
O jornal, a quem o ministério desse período recusara, sem razão, um honroso subsídio, fazia
uma oposição amarga. O ministro apresentara um projecto de reforma administrativa. Estas
reformasm sido tão numerosas em Portugal tal é o honroso esforço de todos os governos
para um ideal melhor que não posso precisar os princí-pios sobre que esta se baseava:
debalde tenho perguntado aos homens públicos que então a discutiram e votaram: nenhum se
recorda. Deduzo, porém, dos artigos da Bandeira, que o seu espírito era centralizador. Foi
então que Alípio escreveu esse artigo, tanto mais admirável quanto é certo que ele concordava
inteiramente com os princípios defendidos na reforma. Porém, jornalista de oposição, não
duvidou fulminá-los – tal era a sua lealdade aos compromissos políticos.
Eis a conclusão desse trecho imortal:
«...A centralização, pois, chamando toda a vida política do país ao centro, à capital, à cabeça
da Nação, cria, por assim dizer, um estado político pletórico e apopléctico, em que é o centro
que tem todo o sangue, todo o vigor, e as extremidades, onde não chega a circulação
necessária para que elas se conservem num calor benéfico e saudável, arrefecem, e, em
breve, definham, ficando como organismos mortos, apenas ligados, para assim me exprimir,
por tendões artificiais, que o mais pequeno choque despedaça, o que produz a situação
anormal dum corpo que, por falta duma vitalidade.24 que o mantenha intacto e compacto, se
a cada momento arriscado a perder membros essenciais, cuja falta lhe faz imediatamente
sentir a aproximação da morte, sendo tarde para lhe insuflar à pressa uma vida, que, de
resto, apenas poderá ser artificial, e que rapidamente se extinguiria, deixando,
consequentemente, a gangrena moral fazer a sua sinistra obra de destruição e de
decomposição. Que o saiba, pois, o Governo, que, em desprezo de todos os princípios mais
provados da Economia e do Direito, está à frente da nossa entidade nacional: se a sua reforma
for avante, arrisca-se a que o país se decomponha socialmente e que a posteridade um dia,
vendo o seu cadáver à beira da estrada da civilização, diga, apontando com horror para os
loucos que têm nas mãos culpadas as rédeas da governação: eis aí os assassinos!»
Mostrem-me, se a conhecem, em todo o jornalismo contemporâneo, uma página igual! Como o
período se desenrola em curvas lustrosas e fluentes, seguindo na cadência melódica e
quando o leitor, extático, imagina que ele vai findar, ei-lo que se reergue e se arqueia, mais
límpido e mais fácil, para fechar num remate sonoro e magistral.
Assim, nas praias do mar Tirreno, se sucedem e se produzem umas das outras as ondas de
curvas moles em que os antigos viam as linhas harmónicas de Vénus, mãe do Amor!
Que imagem aquela, em que a posteridade, à beira da estrada da civilização, depara com
Portugal exangue, fulminado pela apoplexia causada pelo excesso de sangue administrativo
no cérebro, e exclama: eis ai os assassinos!, mostrando faces pálidas de estadistas que se
encolhem na sombra!
Não me admira por isso, que, sempre que em Portugal se anuncia uma reforma administrativa,
este sublime artigo reapareça textualmente, palavra por palavra, nos periódicos que por dever
de partido combatem a centralização, causando sempre a mesma impressão profunda.
Somente, com respeito o digo aos meus colegas da imprensa, é lamentável que o reproduzam
como obra original tanto mais que todos os letrados lhe conhecem o autor, e até a Selecta
para o curso de Português do segundo ano dos liceus o coleccionou, como um modelo de
estilo oratório e jornalístico.
De resto, a facilidade do Conde era extraordinária. Prova-o bem uma anedota, que me é
referida por um sábio professor de economia política, que ao tempo escrevia na Bandeira
folhetins de muita imaginação. Como disse, o governo tinha recusado um subsídio a esta folha
(tanto em Portugal é pertinaz a tradição cruel de esfomear o Génio!) e a Bandeira rugia na
oposição, quando o ministro fez a nomeação de um certo Abranches (hoje personalidade
esquecida), nomeação considerada por toda a gente de bem como um favor torpe. Havia de
resto no caso uma complicação asquerosa de esposa cedida à concupiscência de um
estadista lúbrico.
Era uma magnífica ocasião «de escachar» o ministério, e o nosso Alípio, imediatamente
compôs um artigo que o sábio professor que me relata a anedota compara às sátiras de
Juvenal e às verrinas clássicas de Cícero indignado.
O Governo, porém, que a essa hora sentira que era imperioso abafar todo o protesto, calculou
logo que o ataque mais violento lhe viria decerto da Bandeira Nacional. Por isso viu-se, à meia-
noite, o gerente do jornal, que fora chamado a casa do ministro, precipitar-se desvairado na
redacção, exclamando:
– O Governo dá a cheta! duzentos mil-réis por mês!
E correndo à janela, berrar com força para o fundo do pátio, onde era a tipografia:
– Tio Marçal, suspenda a tiragem! Traga cá acima a desanda! Temos cheta!
E enquanto o tio Marçal mandava desfazer a verrina, o nosso Alípio, tomando a pena,
improvisou outro artigo, louvando o despacho do Abranches que o sábio.25 professor que
me conta este notável incidente, compara, pelo seu vigor, a sua lógica, a sua elevação moral e
a penetração dos seus argumentos, às defesas mais célebres da história alguma coisa de
semelhante a Lorde Brougham, defendendo, na Câmara dos Pares de Inglaterra, a desolada
princesa Carolina!
Quando um homem possui tais poderes intelectuais e faz deles um uso tão útil, a sua carreira
política está marcada, e, olhar para ele, é como ver uma prolongação verdejante de altos arcos
triunfais.
Mas tal é a tradicional ingratidão dos grandes o Governo, depois de obter aquela defesa
sublime do seu patrocinato torpe, suspendeu imediatamente o subsídio, porque então era
claro que a Bandeira, desamparada de assinantes em lhe faltando aquele apoio, findaria a
sua gloriosa marcha avante.
Na sua justa cólera, Alípio quis escrever um terceiro artigo em que o caso Abranches fosse
revelado na sua realidade abjecta. Mas era tarde: passara um mês, a opinião desinteressara-
se do incidente, e o Abranches, inamovivelmente instalado na sua sinecura, parecia indiferente
às cóleras da opinião ou à crítica dos poderes públicos. A Bandeira, pois, despediu-se dos
seus leitores num artigo admirável em que Alípio exclama: «A Bandeira não morre: enrola-se
por um momento, em virtude de considerações particulares, mas para se desfraldar ovante,
um dia, cedo, e palpitar então bem alto no parapeito da Civilização, a todos os ventos da
Liberdade!
Desgostado com as lutas da imprensa por este indigno procedimento do ministério, Alípio
recomeçou a aplicar-se ao seu trabalho de advogado, sendo mais assíduo ao escritório do
famoso Dr. Vaz Correia, com quem praticava. Vaz Correia, de quem Alípio celebrara muitas
vezes na Bandeira os triunfos forenses, tinha por Alípio uma consideração a que se misturava
tocantemente uma simpatia paternal. Quem não conheceu de resto aí o Dr. Vaz Correia?
Ele oferecia plenamente o tipo do bula. Que esta palavra não seja tomada no seu sentido
grotesco: o Dr. Vaz Correia era um resplandecente espelho de lealdade. Os seus olhinhos
vivos que espreitavam por cima dos óculos, a sua canta redonda e enrugada, as duas repas
de cabelo grisalho, espetadas como orelhas de diabo de cada lado da calva, a alta gravata de
seda preta às pintas, o colete de xadrezinho, e o hábito de falar com as mãos atrás das costas,
tornando saliente a sua barriguinha próspera, são feições dele bem conhecidas em Lisboa.
O que menos se conhecia era a sua grande bondade, que me faria dizer se eu não odiasse
as preciosidades de linguagem que naquele Pegas havia um S. Cristóvão! E digo S.
Cristóvão, porque, entre toda a população santificada do Reino dos Céus, este bom gigante,
com a sua bonomia, a sua paciência, o seu ar paterno, me parece um modelo amável de
bondade terrestre.
Eu, na realidade, ignoro os actos de bondade do Dr. Vaz Correia. Devia-os ter porém, e
grandes: mas a sua história íntima é-me desconhecida. Todavia, a avaliar pelo seu
procedimento com Alípio, justifica-se que eu o compare com S. Cristóvão, que, apoiado ao seu
pinheiro, ajudava os fracos e os fatigados a passar a torrente traiçoeira.
Uma crise, com efeito, estalara na vida serena de Alípio Abranhos. Sua tia Amália, de cujas
mesadas vivia e com cuja fortuna contava, acabava, inesperadamente, de contrair segundas
núpcias com um jovem delegado de Amarante. Nem a idade, nem a obesidade (que lhe viera
nos últimos anos), nem o respeito dos próprios cabelos grisalhos a retiveram, e, possuída de
uma chama tardia mas exigente, trocou a delícia toda moral de apoiar a ilustre carreira do
sobrinho, pelos encantos baixamente materiais de um esposo robusto. Foi para o futuro
estadista um golpe severo. Sua tia, é certo, não lhe suspendia presentemente a mesada: mas
a certeza da sua fortuna dissipava-se,.26 porque, não uma dama de paixões tão ardentes
poderia, apesar da idade, ter descendência, mas decerto, acorrentada à vontade do marido,
veria todas as suas posses passarem para os bolsos cio delegado e dos parentes esfomeados
que lhe cercavam as propriedades com olhos ávidos e cobiçosos.
Alípio teve dias de amargura: não era daqueles seres orgulhosos que erguem alto a cabeça e
crêem que podem apoderar-se da fortuna pelo jogo simples das suas energias naturais. Pelo
contrário, o nosso Alípio era destes sábios espíritos que nunca se arriscam na estrada da vida
sem irem bem amparados da esquerda e da direita, sem alguém que os alumie adiante, e
alguém que por trás os proteja das feras imprevistas.
Este desalento do seu espírito espalhava-se-lhe na expressão; e o Dr. Vaz Correia, sabedor do
caso, vendo-o dobrado sobre os autos como «sobre o rio do destino», segundo a expressão
bíblica, perguntou-lhe um dia, do fundo da sua poltrona:
– O amigo conhece o Desembargador Amado?
– Não conheço, senhor doutor. Isto é, conheço de reputação, de vista, mas não pessoalmente.
O doutor mergulhou sobre o papel selado, e, durante minutos, a sua longa pena de pato fez
prosa sábia. Por fim, recostando-se novamente na poltrona:
– Então o amigo não conhece o Desembargador Amado?
Não conheço, senhor doutor. Isto é, repito, pelo menos pessoalmente. Pessoa muito
estimável, dizem.
O doutor anediou as duas repas grisalhas da calva, e depois de tossicar:
– Pois se o amigo quer, eu levo-o a casa do Desembargador Amado, que são amanhã os anos
da filha. Conhece a filha?
– Não conheço, senhor doutor. Isto é, do mesmo modo, não conheço pessoalmente.
– Boa moça!
– Muito galante – disse respeitosamente Alípio.
Este diálogo foi, poderia dizer-se, a origem do casamento do Conde d'Abranhos, de que eu,
segundo as notas do próprio Conde e os relatos de testemunhas presenciais, quero dar uma
narração detalhada.
O Sr. Desembargador Amado era de uma boa família do Norte e tivera uma carreira
singularmente fácil. Dizia-se dele: «aquele deixou-se ir e chegou».
Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem
choques, numa ascensão gradual e confortável, até à sua poltrona de damasco vermelho da
Relação de Lisboa. se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando as mãos
sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente. Que de modo nenhum se creia que eu
queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a
natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir
com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou
o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante
noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar numa recepção em casa do chorado
duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal:
– Aquele ventre que ali vem, é o Amado!
Era com efeito um ventre, que em certos dias da semana punha sonolentamente os óculos, e
assinava com a mão papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência
jurídica, nada direi, para não envergonhar as paredes e os móveis deste.27 quarto onde
escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as suas pro-priedades de Azeitão
o tornavam indiferente às tentações do dinheiro: mas condenaria Jesus e absolveria o mau
ladrão, se o peitassem com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do Rio
Minho.
Fazia, ao comer a sopa, um glou-glou nojento e repelente, e atirava para o soalho os escarros
que merecia na face. Tal era esta besta obesa. O Conde detestava-o. E eu mesmo, apenas o
respeito que lhe devia como sogro de S. Exª, me impediu certa noite – ainda tremo ao recordá-
lo! de lhe atirar estas mãos ao pescoço gordalhufo, e apertar-lho, apertar-lho até que lhe
pendesse, inchada e negra, aquela língua onde a banalidade era mais usual que a saliva, e lhe
saíssem das órbitas aqueles olhos que tinham fixado neste mundo com algum interesse as
postas de vitela de que se abarrotava.
Era uma noite que ele passara em casa do Conde. Desde o jantar, estirado numa poltrona,
denunciando a sua presença por arrotos frequentes, tinha dormido o sono bestial do seu
enfartamento senil. Eu estava justamente contando à Srª Condessa, que me escutava com
interesse, uma deliciosa anedota do Sr. D. João VI que lera nessa tarde quando ouvi, do
fundo da poltrona onde dormitava o Vitellius, estas palavras, naquela voz espessa e brutal que
era a repercussão sonora da sua inteligência:
– Olá, senhor secretário, veja lá em baixo se já vieram com a sege!...
Eu fiquei petrificado, com a lividez da cal. Mas a Srª Condessa que sejam quais forem as
suas culpas – tinha delicadezas tocantes, acudiu imediatamente.
– Oh papá!
E agitando a campainha, dirigiu-se ao João que aparecera.
– Veja se já está a carruagem do papá!
Enquanto fui secretário do Conde, tratei com Fidalgos, com Ministros, com Embaixadores, com
Augustos Personagens, e recebi de S. Ex.ª e poderia dizer de S.S. MM. e AA. aquela
benévola consideração que talvez as minhas aptidões justificassem, mas que eu recebia como
preciosa recompensa da minha dedicação. Mesmo junto dos degraus do Trono, encontrei
bondade, e a mão que eu ia beijar na humildade tradicional, apertava a minha com uma
simpatia que me deixava na alma impressões inesquecíveis.
Só aquela obesa carcaça se arrojou a tratar-me como um lacaio!
Morreu. Morreu da bexiga. Notou-se com admiração o fétido que lhe saiu do corpo, depois de
morto, e a decomposição muito rápida das matérias serosas: isto talvez fosse a dissolução do
corpo; mas o cheiro asqueroso vinha da sua alma torpe que se soltava, dando a exalação de
uma latrina que se destapa.
O caixão em que o levaram pesava arrobas, e quando o embalsamaram e lhe extraíram o
cérebro, viram que não era mais volumoso que o de um bacorinho recém-nascido. Na
cavidade craniana meteram-lhe um pedaço de esponja velha, decerto mais útil e tão inteligente
como o cérebro que substituía!
Amortalharam-no na sua beca de cetim, que não cobre agora um desembargador mais
morto e mais pútrido do que tinha coberto nos dias de sessão da Relação de Lisboa. Levaram-
no ao Alto de S. João, ao passo de quatro éguas cobertas de panos negros; e as quatro éguas
agitavam a cabeça, parecendo vaidosas do cadáver que arrastavam: foi o único orgulho que
inspirou jamais a companhia da sua pessoa. Ali apodrece aquele resto de matéria mal
organizada, que rebolou durante anos pela terra, sob o nome desacreditado de Justiniano
Sarmento Amado.
Este ventre segundo a frase de José Estêvão era naturalmente um títere, um títere obeso
nas mãos de sua mulher: era ela quem lhe puxava as guitas da vontade. D. Laura Amado, de
aspecto, dava a impressão de uma régua: esguia, chata, erecta,.28 perpendicular, com o seu
vestido de seda negra, parecia, não uma senhora, vivendo num prédio à Estrela, mas uma
criação pitoresca do ilustre Dickens. Moralmente, tinha a mesma rigidez dura e inflexível, o
mesmo rectilíneo de régua. Era uma devota, de uma pontualidade de máquina no cumprimento
da sua devoção. Desde nova até ao dia em que a levou uma benemérita escarlatina, rezou,
rezou imperturbavelmente, cronometricamente, com um tique-tique-tique, de relógio.
Era dotada de uma língua feroz com que lacerava todas aquelas – porque raras vezes, decerto
por pudor, se referia aos homens que não exerciam uma devoção tão complicada, ou tinham
os gozos, os luxos, as paixões que lhe proibia o seu Deus, um Deus especial, dela um Deus
terrível, que vivia na Igreja de S. Domingos, insaciável de louvores, pródigo de catástrofes,
sempre pronto a despedir, como raios, doenças mortais ou desgostos com as criadas, e que
era necessário abrandar constantemente com promessas, missas, ladainhas e ofertas, porque
o seu divino temperamento, de uma irritabilidade fora do vulgar, o mantinha no desejo frenético
de fazer mal.
O sacerdote particular deste Deus, o intérprete na terra das suas vontades, era o padre
Augusto, que morava numa casa de hóspedes às Portas de Santo Antão, e de quem D. Laura
recebia a direcção espiritual, as ordens, os conselhos, as admoestações e as baforadas do
hálito impregnado de alho.
Pode parecer irrespeitosa esta apreciação da família Amado, mas, para minha justificação,
direi, que o Ex.mo Conde a abominava. E todavia tanto a sua polidez era perfeita nunca
deixou de beijar respeitosamente a mão de sua devota sogra mão magra, amarela e seca
como um caranguejo, de longos dedos que ela tinha sempre postos em atitude de reza, contra
o peito, na igreja, sobre o regaço, na sala, e em cima do prato, à mesa.
Desta devota, e do outro, do montão de gordura de que falei acima, tinha nascido um anjo.
Que me perdoe a memória do Conde, mas D. Virgínia Sarmento Amado, primeira Condessa
d'Abranhos, era um anjo!
Não ignoro os seus erros: mas se, para os atenuar, não bastasse lembrar-me que 1800
anos, Jesus de Nazaré defendeu das pedras farisaicas a pobre mulher amorosa prostrada a
seus pés, bastar-me-ia recordar a bondade de D. Virgínia, a sua tocante delicadeza, o mimo
das suas maneiras, aquela necessidade de ver todos à volta dela confortáveis e contentes...
Era um anjo, tanto na sua alma, viva e toda espontânea, como nos seus cabelos loiros,
sempre um pouco desordenados, nos seus grandes olhos activos e banhados num largo riso
doce, no seu nariz tão fino, de um tom de marfim, na sua figura delicada, patrícia, de
movimentos de ave... Era um anjo!
Desta família, o pai foi magistrado condecorado, a mãe, devota respeitada, e a filha segundo
a lei e a moral corrente criminosa repulsiva. Hoje, dormem os três no jazigo monumental do
Alto de S. João, e eu estou bem certo que esta opinião dos homens não foi corroborada por
Deus. A devota estimada está, não o duvido, atravessada pelo espeto tradicional, que um
diabo, por toda a Eternidade, vai fazendo girar, para a assar ora de um lado ora do outro. O
pai, magistrado coberto de honras, impossível para ser de Deus, muito abjecto para ser do
Diabo, deve estar nesse lugar tenebroso, latrina da Eternidade, onde os Vitellius torpes e os
Amados pútridos chafur-dam para todo o sempre numa massa líquida, feita dos excrementos
dos homens e da baba das feras.
E ela, a doce culpada, a loira condessa, parece-me vê-la, com um vestido cândido, a palma
verde na o, os fios de ouro fino dos seus cabelos soltos, banhada na luz paradisíaca e
mística que sai dos olhos de Deus.
Que não me acusem de ir, nestas apreciações, de encontro à moral social, ou,.29 possuído de
um orgulho sobre-humano, de dar indiscretamente um conselho a Deus. O crime de Virgínia é
horroroso – mas a sua pessoa era adorável. À que pecara como ela,
Cristo perdoou, e lavada a culpa pelo perdão divino o que nos resta é uma deliciosa
criança loira, daquele loiro que um dia cantou em versos inolvidáveis o mavioso poeta das
Névoas:
O ouro da tua trança
Vaie os milhões dum avaro;
Não é pagar muito caro
Morrer por a ter beijado!...
Este anjo fazia 18 anos na noite em que o Dr. Vaz Correia conduziu Alípio à casa apalaçada
do Desembargador Amado.
O Conde, que era supersticioso como Napoleão e Lamartine, contou-me depois que entrara na
sala com o pé esquerdo.
Preocupado com isto, quando se achou defronte de uma grande barriga que um amplo colete
branco vestia, em lugar de dizer «Sr. Desembargador», titubeou «Sr. Conselheiro», o que foi
tão agradável ao obeso magistrado, que, ao apresentar Alípio à sua seca e hirta esposa,
exclamou:
– É já colega do Vaz... Diz que é um talentarrão!...
Isto fez impressão na devota senhora, que, em todos os homens novos e com talento, via
invariavelmente inimigos da religião.
Mas o nosso Alípio desfez bem depressa esta impressão hostil, afiançando a D. Laura, o que
era de resto exacto, que sempre, antes e depois dos actos em Coimbra, ia à Nova,
prostrar-se aos pés da imagem de Nossa Senhora da Saúde, antes, a implorar a sua mística
influência nos lentes, depois, a agradecer humildemente o nemine discrepante. E corroborou
esta descrição da piedade dos seus costumes, mostrando a gravidade das suas maneiras: em
vez de procurar a companhia das meninas, que, de boquinha ao lado e olhos doces, perturbam
a paz dos espíritos puros, foi de preferência juntar-se ao grupo severo dos magistrados e
sólidos negociantes. E isto fez dizer a D. Laura que Alípio parecia ser «um moço de propósito».
A soirée era de resto animada; e pelo conhecimento que eu mais tarde tive da famosa sala do
Desembargador e das pessoas que habitualmente a frequentavam, e pensando na influência
que essa noite exerceu no destino do Conde d'Abranhos, mais de uma vez me tenho entretido
a reconstituir essa soirée, com os seus personagens, os seus agrupamentos e a sua
decoração.
Ali está, sob o retrato a óleo do Desembargador, o alto sofá de damasco vermelho e as quatro
poltronas empertigadas e sentenciosas em que se sentam D. Laura e as duas ricas manas
Vitorino, ambas magras, cor de cidra, de nariz acavalado, bandós achatados, com enfeites
pretos, todas de uma tonalidade negra onde destaca o lenço branco, sustentado na mão seca
de cordoveias fortes, sobre o regaço. Muito liberais, seu irmão, magistrado, fora enforcado no
Porto no tempo de D. Miguel, e este incidente patético, de que ainda falam, parece ter-lhes
perpetuado a tristeza na alma e a amarelidão na face.
Ali vejo também o velho Serrão, coronel reformado, com o seu espesso bigode grisalho,
aparado à tesoura, a calça cor de flor de alecrim esticada pelas presilhas, ainda rijo, cheio de
opiniões, censurando com rancor as promoções do exército e acompanhando uma filha,
aquela magrinha de vestido de cassa com pintinhas, dentes maus do abuso dos doces,
omoplatas salientes sob o estofo transparente, e tendo, a falar com os homens, a
impertinência familiar de quem está sempre a pensar nos seus vinte contos de réis de dote. Na
sombra, quase a um canto, está a pobre D. Joana Carneiro, triste e macerada, com o seu
cirro no estômago, muito lamentada por todos, que admiram a sua resignação, apesar de lhe
censurarem o mau hálito.
Junto ao piano, vejo ainda D. Amália Saraiva, cujos seios enormes parecem dois pequenos
odres; traz sempre sua filhinha, de 7 anos, a Julinha, que durante toda a noite, muito
sossegada, com o cabelo encaixando-lhe a canta magra, folheia o volume ilustrado da Ásia
Pitoresca, admirando pagodes índios e selvagens seminus, até que a chamam para recitar:
então, no rculo admirador, sob o olhar ansioso da mãe, cujos odres arfam de emoção, diz,
numa vozinha fina e igual, como o correr do fiozinho de água numa torneira estreita:
Vai alta a Lua na mansão da morte,
Já meia-noite com vagar soou...
Ao fundo, junto à mesa do voltarete armada, o Conselheiro Andrade, atraído para ali pela
paixão das cartas, vai fazendo a sua paciência devagar, e explicando os seus contratempos de
lavoura ao amigo Torres Pato e a outro personagem taciturno, apenas conhecido pelo nome
de «o Doutor», que, muito apertado numa sobrecasaca azul, quebra o seu silêncio lúgubre
para murmurar, com a testa franzida numa grande concentração de espírito:
– É notável! Homem, é notável!
Mais além, vejo ainda, de peito alto e penteado soberbo, a bela Luísa Fradinho, casada
pouco com o Dr. Fradinho, advogado e publicista, que aparece atrás, fincando no nariz a
luneta de ouro ou retorcendo entre os dedos finos a ponta das suíças de azeviche.
D. Luísa é, nas soirées do Desembargador, a bella, a sereia. O coronel, o conselheiro, os
magistrados admiram os seus soberbos olhos, o seu corpo de estátua, as suas toilettes de
enxoval; diz-se baixo que inspirou uma paixão a um Augusto Personagem; os seus
movimentos, os seus olhares, os seus gestos, são seguidos por olhos vorazes de velhas que a
criticam, sob a vaga sensação da influência que deve ter nos homens aquela soberba criatura
de cor de pele tão brilhante: uma, acha que ela ri atabalhoadamente e com coquetismo; outra,
que arruína o marido em vestidos; e quando ao fim da noite o Dr. Fradinho lhe diz: «são horas,
filha, vai-te agasalhar» todos, o coronel, o conselheiro, as damas, a doente do estômago, os
seguem com os olhos, com um pensamento involuntário ao leito conjugal, onde decerto se vão
recolher.
Ao canto do sofá, no seu lugar consagrado, vejo também, de grande casaco negro e volta
branca, com a face gorda, grave, trigueira, muito barbeada, o reverendo padre Augusto.
Junto da janela, a adorável Virgínia e as duas amigas, as filhas do Conselheiro Andrade,
cochicham vivamente, com as cabecinhas muito juntas.
E ao pé da mesa do voltarete, numa poltrona, enfartado e obtuso, dormita o obeso Amado.
Tal devia ser então uma soirée em casa do Desembargador; e naquele meio um tanto
incaracterístico, a figura aprumada do jovem redactor da Bandeira, seria, decerto, de vivo
destaque.
Alípio era então, digo-o afoitamente, um formoso moço: de elevada estatura, bem
proporcionado, a testa larga e alta como a ideia que abrigava, os ombros sólidos de quem
pode, sem esforço, sustentar um mundo, o olhar azulado, penetrante, preparado pela natureza
para sondar, nas suas mais longínquas consequências, as altas resoluções políticas um
desses olhares que atravessam e exploram num breve relance todo um.31 problema
complicado a barba aloirada, em colar, como nesse tempo era ainda a moda, e se no
retrato do imortal Garrett tal era, aos 26 anos, o futuro Conde d'Abranhos. E posso dizer que
não foi sem desapontamento (que me perdoem este expressivo galicismo) que Virgínia, as
Andrades, e, ouso afirmá-lo, a bela Fradinho, viram aquele esbelto moço afastar-se da sua
companhia graciosa, para ir, pausado e grave, conversar com o conselheiro, o coronel e o
amigo Torres Pato.
Aconteceu mesmo que ao chá, quando Alípio então o excessivo calor de uma sala lhe
dava opressões asmáticas se aproximava da janela, notou que a bela Fradinho conservava
na mão a sua chícara vazia. Imediatamente, como um verdadeiro Noronha, muito homem de
sala, muito homem de corte, Alípio apressou-se a tomar-lha da mão, depositando-a sobre o
piano. D. Luísa agradeceu, e logo com grande volubilidade:
– Creio ter visto V. Exª na galeria da Câmara dos Deputados.
– Eu frequento com regularidade as sessões da Câmara, minha senhora – foi a resposta grave
do redactor da Bandeira.
E como havia junto da bela Fradinho uma poltrona vazia, sentou-se respeitosamente, e bem
depressa a conversa, dirigida pela inteligente senhora, tomou um tom elevado e crítico.
Falavam de oradores ilustres, dos folhetins notáveis da Revolução, de poetas e de Arte
quando Alípio percebeu com terror que as matronas, o coronel, o conselheiro, D. Laura e as
duas colegiais, tinham os olhos cravados naquele diálogo isolado. Afastou-se logo um pouco,
endireitando-se na poltrona; mas isto tornava mais saliente a gesticulação animada da bela
Fradinho! Então, aterrado de suspeitas possíveis, Alípio ergueu-se bruscamente. Para ele
nada existia mais sagrado que a Família, e esses assaltos à honra conjugal, que a sociedade,
culpadamente, complacentemente admite e até idealiza, considerava-os, como muitas vezes
mo afirmou, o cúmulo da torpeza, sobretudo tratando-se de senhoras que, pela sua posição
social, muito observadas, não podem trazer ao sedutor senão desgostos e embaraços na sua
existência, além de darem um exemplo funesto às classes subalternas.
Foi sempre fiel a este severo princípio. É certo que o acusaram de ter relações culpadas com a
mulher de um tal Bento, correeiro nas Portas de Santo Antão, mas este caso é inteiramente
diferente. O correeiro era tão insensível à honra do seu lar, que consentia que sua mulher
fosse visitar diariamente uma tia – que ele sabia ter falecido havia meses. Além disso, pela sua
posição modesta, esta ligação nunca poderia ser posta em evidência nem andar nas
conversas da cidade, não correndo assim o risco de ser uma lição perniciosa para a mocidade.
Por estas considerações que ele pesou conscienciosamente antes de se entregar a actos
libidinosos com a mulher do correeiro Alípio julgou poder, sem risco para a ordem social e
sem prejuízo para a sua carreira, permitir-se este gozo oculto.
De resto, ele compensou com nobreza a injúria moral que fizera ao correeiro, pois que, quando
este artífice faliu, Alípio, então deputado, proporcionou-lhe uma proveitosa situação numa
repartição do Estado.
Foi, pois, sob a influência destes altos princípios que ele se arrancou com dignidade à
conversa cativante da bela Fradinho, indo mesmo dizer ao marido, que, de perna traçada,
fumava na saleta pxima:
– Acabo de ter uma conversa muito filosófica com sua Ex.ma esposa, e raras vezes tenho visto
uma senhora tão instruída... Discutimos Vítor Hugo...
Ah, ah! Sim, é apreciadora! ... E eu não lhe proíbo esse gostinho, porque sou do meu século
e entendo que uma mulher, para fazer figura na sociedade, deve ter o seu bocado de literatura
e o seu vernizinho de filosofia.
– Tem V. Exª muita razão...
Mas tinha-se feito na sala um silêncio e havia em todos os rostos um riso mudo de.32
aprovação complacente. Dirigida por D. Amália, de seios cheios como dois odres, Julinha
estava no meio da sala, amarelinha, esguia, de membrozinhos moles e olheiras fundas, e da
sua boquinha aberta como o bico de um pintainho que espera um grão de milho, saía uma
vozinha trémula que dizia:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo o plúmbeo céu;
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu...
Esta precoce menina foi depois D. Júlia de Mendonça, esposa do meu chorado amigo Carlos
Luís de Mendonça, hábil taquígrafo da Câmara dos Deputados. Não correspondeu, porém, a
sua vida de mulher ao seu delicado sentimento de criança, pois, como é sabido, esquecendo o
que devia a si própria, a Carlos Luís e à Sociedade, foi encontrada, na própria alcova conjugal,
nos braços plebeus de um Alfredo, galã do Ginásio. E era tal a sua perversidade estes
pormenores não são indiscretos, pois que os dois esposos repousam no cemitério dos
Prazeres que tirava da gaveta do seu esposo as melhores camisas e as ceroulas mais finas,
com que presenteava o abjecto comediante, que a seduzira pelos cabelos encaracolados e os
olhos langorosos de trovador de balada. Ah! bem mal pagou os desvelos de sua mãe, que a
educou no culto de tudo o que é fino e delicado, ensinando-lhe, de pequena, os poemas dos
nossos melhores líricos, cercando–lhe a mocidade de exemplos tão elevados. Os cândidos
lírios que tinham sido semeados naquela alma refloresceram mais tarde em venenosas
plantas!
Aos sete anos, porém, era um pequenino anjo, dotado de extraordinária memória: e nada mais
doce do que o meigo langor dos seus olhos, quando dizia, apertando as mãos contra o
peitinho, onde decerto já se rosavam os dois frutos gémeos do seio:
Meiga Lua, os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d'além do mar?
E mesmo o nosso Alípio, impressionado pela revelação de uma alma tão sensível num corpo
tão franzino, não pôde conter uma exclamação:
– Bravo à Julinha! Há-de ser uma mulher de grande ilustração!
– Bravo, bravo!
E Julinha, devorada de beijos, passava dos lindos braços cheios de rendas da bela Fradinho,
para os joelhos do respeitável coronel, que lhe dizia:
Ah! sua pequena, essa cachimónia é que eu queria para a minha Catarina... Mas aquilo para
versos é uma tumba...
– Pois é grande prenda, coronel...
É grande prenda para a sociedade, Srª D. Vitorina... Mas a rapariga nunca teve memória, e
eu nunca quis puxar por ela, porque é delicada, e filha única.
– Tem razão, coronel.
– Parece-me que tenho, Srª D. Vitorina.
Foi então que Alípio, que voltara para a saleta onde os homens fumavam, viu, com espanto, o
Dr. Fradinho aproximar-se dele, pedir-lhe em nome das senhoras que recitasse «alguma
coisa» ao piano, e, sem quase lhe dar tempo a colocar no parapeito da janela o charuto meio
fumado, arrastá-lo para a sala, exclamando:
– Aqui o trago à força! ... E agora é obrigá-lo!
Debalde Alípio expôs que a seriedade dos seus trabalhos não lhe facultara nunca a
oportunidade de decorar as poesias sublimes dos Garretts ou dos Castilhos...o aceitaram a
desculpa. Custava a compreender, realmente, que um bacharel formado não soubesse alguma
poesia bonita, de mais tendo, durante anos, dirigido com tanta eloquência a Bandeira
Nacional! Não, as senhoras não lhe perdoavam. Ali estava a D. Luísa ao piano, com o pezinho
no pedal dos graves! Era necessário ser complacente! Era dia de anos e de folia como
disse padre Augusto.
Alípio via, em redor, rostos abertos num riso de admiração antecipada, e parecendo-lhe que os
olhos de D. Virgínia, cujos cabelos loiros o tinham impressionado, se fixavam nele com uma
suplicação quase tocante, apoderou-se das costas de uma cadeira, e depois de passar o lenço
sobre os beiços, disse com gravidade:
Eu obedeço a V. Ex
.as
. Somente devo dizer que não sou recitador. E apenas por
comprazer... Em Coimbra, às vezes, por brincadeira, recitava, mas, realmente, não tenho
nenhuma poesia estudada... Enfim, vou dizer Ciúmes do Céu, do nosso chorado Gomes
Guiães.
A bela Fradinho feriu o teclado, e Alípio começou estes formosos versos, que um
acompanhamento doce, gemente e triste, acentuava deliciosamente:
Recordas-te, Elvira, dessa praia triste
Onde passeámos, uma noite, sós?
O luar brilhava sobre o mar quieto,
E tu murmuravas, a tremer-te a voz:
Para que levantas, sem cessar, poeta,
A fronte, e contemplas a Lua sem véu?
Não vês tu, poeta, dentro dos meus olhos,
Segredos mais fundos que os que tem o céu?
Mas os Ciúmes do Céu são bem conhecidos. Não em todo Lamartine um canto mais
desolado e mais filosófico. Elvira queixa-se que os olhos do poeta se elevem constantemente,
explorando os céus, indo procurar, lá longe, o ideal, quando ele está ali perto, num olhar do ser
que o adora. Mas o poeta explica a sua alma: encontra nas grandes alturas, a que se eleva,
um gozo divino que nunca encontraria na terra. E Elvira, toda zelosa de que haja no Universo
alguma coisa que o poeta lhe prefira, mesmo o u, mesmo a divina face de Deus, promete
fazer-lhe conhecer um gozo maior que lhe fará esquecer o mistério insondável que o atrai:
«Sou tua!» exclama, unindo os seus lábios aos dele num beijo infindável. E o poeta,
recordando esse momento, em que a sua alma conheceu o êxtase supremo, exclama,
torturado pela saudade:
Vento que murmuras, onde estão os ecos,
O timbre divino dessa meiga voz?
Onde estão, rochedos, os ais magoados,
Tristes, que soltámos nessa noite sós?
Sobre a areia branca reclinaste o corpo,
Eu prendi-te a cinta na mão palpitante...
E um beijo infinito desfez-se na aragem,
Rosa desfolhada na brisa distante!
Mas nesse momento, erguendo casualmente os olhos para a porta da sala, o nosso Alípio viu
com espanto o Dr. Vaz Correia, em bicos de pés, que lhe fazia com os olhos, com os beiços,
acenos impacientes que pareciam significar: Não! não! Cuidado! Então?...
Mas D. Luísa bateu uma nota grave e Alípio, atarantado, começou a seguinte estrofe:
Que divinos beijos, que soluços brandos,
Que momento doce, que ideal anseio...
A Lua de prata, no azul suspensa,
Inundava a curva branca do teu seio.
Seio d'alabastro, cor d'espuma,
Luminoso, quente, palpitante – e meu!
E que me faria esquecer o mundo,
Renegar a crença, proclamar-me ateu!
Vaz Correia então não se conteve: lançou no silêncio pesado a sua grossa tosse catarrosa; e
quando Alípio, naturalmente, ergueu a vista para ele, como de resto todos os presentes, viu-o
mudo, hirto, apopléctico, cravando-lhe um olhar chamejante. Mas, levado pelo ritmo da música,
Alípio, enfiado, teve de continuar:
Não mais os meus olhos quero erguer a Deus...
A voz seca e dura de D. Laura cortou a recitação:
– Virgínia! Vá lá para dentro! Vá lá para dentro, menina, que isto não é para senhoras!
E Alípio, aterrado, reconheceu que tinha provocado um escândalo.
Com a sua penetração maravilhosa, compreendeu logo que se poderia salvar se
conseguisse improvisar algumas estrofes, em que o poeta, findo o seu reprovável delírio,
repelisse a sedução da carne representada por Elvira, e voltasse a orgulhosa fronte para o
Céu, vivo espelho da alma. Isto daria decerto uma formosa intenção moral ao canto lúbrico...
Mas Alípio não era poeta! Como ele me disse depois, teria dado, naquele momento, todos os
seus trabalhos, a sua soberba dissertação académica, os seus maravilhosos artigos políticos,
para ter a potência imaginativa de um Hugo ou de um Garrett, e improvisar um fecho
profundamente religioso, que imediatamente lhe conciliasse aquelas honradas senhoras! Mas,
na impossibilidade de o fazer, embrulhou versos, saltou estrofes, e apressado, concluiu:
Não te esqueças nunca desse instante, Elvira,
E o que me dizias, a tremer-te a voz,
E o luar de prata, que inundava a praia
Onde nos amámos, uma noite, sós.
Calou-se. Vozes discretas disseram, aqui e além:
– Muito bonito! muito bem!
E coberto de suores frios, Alípio enfiava para a saleta, quando Vaz Correia lhe travou do braço,
rosnando com uma voz apopléctica:
– Fê-la bonita! Limpe a mão à parede! Está tudo perdido... Fez escândalo grosso!.
– Ó senhor doutor, mas...
Tudo pela água abaixo! Um homem de bom-senso, um premiado! Pôs-se a recitar dessas
indecências! A mãe está como uma fera! Tudo perdido!... escute V. Exª...
Não escuto nada. Lavo daí as minhas mãos. O senhor imagina que se encontra todos os
dias uma rapariga bem-educada, e bonita, com doze mil cruzados de renda?
– Quem? Que quer V. Exª dizer?
– Quero dizer que o trouxe aqui para agradar à pequena, à mãe, ao pai, ao padre
Augusto, às Vitorinos e que o senhor, como um simplório, escandaliza as Vitorinos, o padre
Augusto, o pai, a mãe e a pequena! Limpe a mão à parede, e... chafurde no atoleiro!
– V. Exª é severo...
– Severo? O senhor chama-me severo? O senhor acha de bom-senso, pôr-se no meio de uma
sala a dizer obscenidades?
– É uma poesia...
– É uma obscenidade!
– Eu não sabia... E uma poesia conhecida... Recita-se em toda a parte.
– Isto aqui não é toda a parte. Isto aqui é a casa da D. Laura e do padre Augusto.
Aqui recita-se o Agnus Dei e a ladainha... E em dias de festa, em dia de anos, por excepção, a
pequena, por galantaria, recita a Lua de Londres!...
– Vou pedir desculpa à Srª D. Laura – disse Alípio com decisão.
– Lavo daí as minhas mãos – respondeu o doutor friamente.
E Alípio, imediatamente, com aquela enérgica decisão que mais tarde, nas crises políticas,
tantas vezes lhe deu o triunfo, dirigiu-se para o sofá de damasco vermelho, onde D. Laura,
erecta, pálida, o nariz mais longo, o recebeu de olhos chamejantes.
– Minha senhora, eu venho dar uma explicação a V. Exª.
– E uma indecência, senhor doutor... vir a uma família...
Eu rogo a V. Exª o favor de um momento, um momento só. V. Exª é muito cristã para me
condenar sem me ouvir. Direi só a V. Exª crê V. Exª que eu viria a uma casa, a casa de V. Exª,
que eu respeito, que sempre respeitei como uma das senhoras mais virtuosas de Lisboa, um
modelo de qualidades cristãs, um anjo de caridade, uma mãe exemplar que eu viria de caso
pensado afrontar os princípios mais sagrados princípios que são os meus? V. Exª responda
a isto. Eu peço a V. Exª que responda a isto.
– Foi justamente por isso, Sr. Alípio, que me escandalizei...
– Que V. Exª considere. Pedem-me para recitar. Para ser agradável...
D. Casimira Vitorino, que estava ao lado, hirta, sinistra e enrugada, interrompeu:
– Escusava, para ser agradável, de se pôr a dizer porcarias.
O Srª D. Casimira, ó minhas senhoras, por quem são! V. Ex.
as
bem vêem... Os Ciúmes do
Céu, são uma poesia conhecida, considerada pela melhor crítica como uma magnífica peça
lírica... Refiro-me à forma. O assunto, confesso, é torpe, é infame... Mas, quando se recita, é
para se apreciar a forma. E como uma música ao ouvido... Eu não sei outra poesia de cor...
Não me lembrei, de repente, daquela abjecta cena no areal... Depois, levado pelo fogo da
declamação... Mas acreditem V. Ex.as que compreendo a sua desaprovação, acuso-me,
quero-me mal por a ter recitado como além disso se recita em casas muito respeitáveis...
Mas confesso que o assunto é torpe... V. Exª não me conhecem mas o Dr. Vaz Correia
conhece os meus princípios morais, o meu horror à devassidão, a minha indignação com todos
os casos de infidelidade conjugal, enfim, as minhas convicções. Apelo para ele...
E sem esperar a resposta, curvando-se profundamente, afastou-se, atravessou a sala, indo
encalhar junto da mesa do voltarete.
– Frescalhotes, os versos – disse-lhe o Conselheiro Andrade.
Alípio acudiu:
– Oh! Sr. Conselheiro, nem me fale nisso! Que desgosto... Eu não imaginei...
Qual história! Eu, não me pareceu bem por causa das pequenas, mas por mim, gosto de
versinhos picantes... Lembra-se do Bocage? Sete vezes amor voltou, é... O quê, três
matadores? O amigo Torres, o senhor muda-lhes as cores, com certeza!
No entanto Alípio, da mesa do voltarete, seguia os movimentos do padre Augusto; vira-o
erguer-se pesadamente da cadeira, ir fazer uma cócega no pescoço da Julinha; depois, com
as mãos por baixo das abas do casaco, fazendo-as saltar, conversar, curvado, com a bela
Fradinho: finalmente, devagar, ir para a Saleta dos Fumistas. Alípio precipitou-se logo, e
dirigindo-se vivamente a ele:
Ó Sr. Padre Augusto, eu, sem ter a honra de conhecer V. Exª, venho pedir-lhe um favor. V.
Exª é um sacerdote de grande ilustração, de grande virtude, de grande eloquência, e deve
compreender a minha situação. Eu, pediram-me para recitar...
O padre Augusto que conservava uma das mãos com o cigarro por trás das costas, disse,
raspando o queixo com a outra:
– Homem, ele não é lá por dizer... Mas olhe que os versos são de arrepiar... Eu estava a vê-los
diante de mim, no areal, a mulher deitada, o homem... Ó senhor doutor!...
– Mas V. Exª sabe o que é poesia: questão de imaginação, de exageração!
Mas é que realmente está a gente a vê-los. È que se me não tira o quadro dos olhos! A
mulher toda desapertada... Foi um desgosto para a Srª D. Laura. E se V. Exª soubesse com
que cuidado, com que recato tem sido educada a Virgininha. E a primeira que ela ouve... É a
primeira – e é de mão-cheia!
Pois Sr. Padre Augusto, V. Exª é um sacerdote, e eu, acredite, tenho pelo clero o respeito
mais profundo. Verdadeiramente, curvo-me diante de V. Exª porque tem experiência, e sei que
virtude, que saber, que dedicação se escondem debaixo de uma batina modesta... E realmente
o que eu desejo é que V. Exª seja verdadeiramente um sacerdote cristão. Isto é, que
restabeleça a harmonia e que dissipe a irritação da Srª D. Laura. Eu lhe expliquei, lhe
supliquei... Mas fi-lo a tartamudear... A sua virtude inspira-me um respeito! Desejo que V. Exª a
convença de que eu, foi na minha boa fé, na minha inocência, por estupidez – aí está o que foi
por estupidez, sem reparar, que comecei a recitar... E aqui lho digo em segredo, suprimi
várias estrofes, as piores! Lembrei-me a tempo... V. Exª faça-me isto. Não Lhe ofereço a
minha dedicação, porque ela lhe é inútil; mas se, como advogado, como jornalista, como
homem, como crente, puder um dia ser-lhe prestável, é dizer: aqui, Alípio! e Alípio
estará, ao pé de V. Exª.
Ó senhor, muito obrigado, muito obrigado! Não é para tanto. Deixe estar que eu falarei a D.
Laura. Eu falarei. Há-de se arranjar... Há-de ficar tudo em paz.
Agradeço muito a V. Exª disse Alípio; e ia a retirar-se quando a voz do padre Augusto o
chamou com um psiu! discreto.
Alípio voltou-se, e o padre, levando-o para o vão de uma janela:
Desculpe a curiosidade. Mas eu, nestas coisas de literatura, sou curioso. Sou apreciador.
Gosto de bons versos... quando são bons! –E baixando a voz: Vamos a ver como são as
tais quadras...
– Quais? As que suprimi?
– Sim, as que suprimiu.
– Ah, deliciosas! – E, complacente, o nosso Alípio recitou ao ouvido do padre
Augusto estas estrofes de um ardente erotismo lírico:
Fria, me dizias! Fria, tu, mulher?
Mas esses teus braços que s'estorcem, loucos,
Esse frágil corpo que o delírio agita,
Dessa ardente boca os gemidos roucos?
Porque balbucias no delírio, diz?
Porque desfaleces, adorada amante?
Oh! dá-me os teus lábios, oh, invoca a morte...
Que morrer é doce neste doce instante!
O padre Augusto coçou vivamente a cabeça:
Hum! E o que eu dizia, é estar a vê-los. É que os estou a ver! Pois é uma bela poesia... E
direi a D. Laura: tudo se acomoda, tudo se acomoda... Bela poesia!
Durante o resto da noite a atitude de Alípio foi reservada e prudente. Passou-a junto da mesa
do voltarete, em silêncio, seguindo com uma atenção grave o interessante movimento das
vazas. Mas, como me confessou mais tarde, «tinha a cabeça em fogo». As palavras do Dr.
Vaz Correia voltavam-lhe constantemente à memória, tocando a rebate e alvoroçando-lhe a
imaginação: «Eu trouxe-o aqui para agradar à mãe e à pequena! E parecia-lhe então que no
seu futuro, que ultimamente se carregara, apareciam, aqui e além, como abertas reluzentes,
clarões entrevistos de felicidades possíveis!
Doze mil cruzados de renda! E o Desembargador, com aquela obesidade, mórbida, D. Laura,
com aquela amarelidão artrítica, não podiam decerto, coitados, durar muito... Os cabelos de
Virgínia eram na realidade deliciosos... E uma cadeira em S. Bento tornar-se-ia decerto
acessível a quem dispusesse de uma renda de doze mil cru-zados. Excelente casa aquela:
mobília sólida e útil, boas pratas, bom piano!
E o seu desejo de agradar à família, aos amigos, era tão intenso, que, tendo o Conselheiro
(que perdia) falado com irritação em «calistos», o nosso prudente Alípio levantou-se sem ruído,
afastando-se discretamente.
A sua soirée fora até ali singularmente infeliz: querendo ser amável com a bela Fradinho, vira
nos olhares indignados das senhoras que se suspeitava das suas intenções; desejando dar à
sociedade o gozo de uma bela poesia bem recitada, ofendia os sentimentos pudicos de D.
Laura; pensando lisonjear o Conselheiro pelo prazer que manifestava em o ver jogar,
encalistava-o! Então, para não chocar nenhuma susceptibilidade, para não ferir nenhuma
conveniência como um homem que numa loja de bric-à-brac não se move, com medo de
partir alguma peça cara – o nosso Alípio refugiou-se no vão de uma janela, e ali ficou, entre as
cortinas, solitário, imóvel. Esse isolamento voluntário, porém, foi-lhe a breve trecho
amplamente compensado: quando examinava, através da vidraça, o céu que se toldava, um
ruge-ruge de seda correu sobre a esteira da sala, e voltando-se, pôde ver D. Virgínia que
passava, e que lhe deu um longo olhar, um olhar de muda repreensão, como se ela também
lhe quisesse dizer:
Para que levantas, sem cessar, poeta,
A fronte e contemplas a Lua sem véu?
Não vês tu, poeta, dentro dos meus olhos,
Segredos mais fundos que os que tem o céu?
Foi grande a sua tentação de entrar na sala, de falar com ela. Reteve-o, porém, o receio da
indignação de D. Laura, quando visse o homem que recitava versos lúbricos em conversa
íntima com sua filha.
Por isso, e porque eram onze horas, foi despedir-se de D. Laura; e qual não foi a sua comoção
quando a ouviu, com uma voz que, agora, era quase branda e amiga, dizer-lhe:
Quando quiser, senhor doutor, esta casa está às suas ordens. Teremos muito gosto em o
ver...
Ao dela, padre Augusto sorria e o nosso Alípio compreendeu que era à diplomática
intervenção do honrado sacerdote que ele devia aquela benevolência inesperada.
Que influência ele tinha, o reverendo! Tudo em D. Laura mudara: a voz, o olhar, e até a mão
que, agora, lhe pareceu menos hirta, mais quente, mais humana.
E ao descer, abafando-se cuidadosamente no seu cachené, perguntou ao criado que o
acompanhava:
– Sabe-me dizer onde mora o Sr. Padre Augusto?
– Às portas de Santo Antão, 36, segundo, meu senhor. Em casa da Gervásio.
E daí a dois dias, como havia em casa da Adelaide Gervásio um quarto devoluto, Alípio
tomava-o e passava a ser o companheiro, o confidente e o amigo do benévolo sacerdote.
Muitas vezes me disse o Conde, anos depois, que esta convivência com o padre Augusto lhe
fora extremamente instrutiva, porque o esclarecera definitivamente sobre os costumes íntimos
dos senhores eclesiásticos, e destruíra muitos prejuízos que uma tradição injusta formou em
volta do clero, em hostilidade aos excessos dos frades. Assim se convenceu que é
absolutamente infundada a reputação que têm S. Ex.as de costumes lúbricos. «Durante
dezoito meses que vivi com o padre Augusto, Zagalinho, nem por palavras, nem por olhares,
nem por obras, o vi desviar-se da regra imposta pelos votos. Um modelo de castidade,
Zagalinho! Um modelão!
Ele mesmo, pelos seus olhos, se certificara desta verdade. O seu quarto e o do padre Augusto
eram separados por um tabique, onde outrora houvera uma comunicação sem porta. Esta
abertura, para isolar os dois quartos, fora depois tapada com uma simples lona coberta de
papel pintado, onde um pequeno rasgão triangular permitia a Alípio mergulhar um olho
observador no interior do quarto do reverendo. Conseguiu assim verificar que este homem
inteligente poderia ser comparado (se tal comparação não fosse ofensiva da sua qualidade de
sacerdote cristão) ao profeta do Islã, de quem as legendas do deserto celebram os costumes
simples e o amor das ocupações domésticas. O reverendo sacerdote, ele próprio, passajava
as suas meias, cosia as suas voltas e limpava a batina com benzina; vivia arrumando,
espanejando o quarto, e todos os dias polia o seu candeeiro de latão, com uma dissolução de
ácido oxálico que ele mesmo ia comprar à Farmácia Azevedo. Pendurado defronte da janela,
tinha um canário de que tratava com cuidados femininos. À noite, ao recolher, dispunha sobre
a mesa um covilhete de marmelada, uma garrafa de Porto (de que D. Laura o tinha sempre
bem provido) e com satisfação e método, tomava a sua ceia, tendo defronte o breviário aberto
que ia lendo. Alípio nunca o viu tomar mais de meio cálice de Porto, aos pequenos goles, que
conservava um momento na boca, saboreando-lhe o aroma, e que engolia com um estalo
plácido. Depois, despia-se, dobrava a roupa com método minucioso – e daí a pouco ressonava
com estridor. Vida de um santo!
Uma tarde de grande calma, em meados de Agosto, a engomadeira da casa, depois de levar a
roupa a Alípio, entrou no quarto do padre Augusto. Era uma formosa rapariga. Alípio
imediatamente correu a aplicar o olho ao rasgão da lona, a observar o que faria o eclesiástico,
no quarto com a engomadeira, naquela tarde de Verão em que a casa estava solitária e
calada. Padre Augusto dormitava na sua poltrona, com o lenço de seda sobre o rosto, as
pernas estendidas, as mãos sobre o ventre. Alípio julgava.39 que passaria ao menos os dedos
pelo queixo da rapariga, que lhe beliscaria o braço apetitoso. Pois não: ergueu a ponta do
lenço, e vendo com o olho meio fechado que era a engomadeira, continuou a sua sesta
plácida! Excesso de quebreira, dir-se-á. Não, porque daí a pouco Alípio ouviu-lhe dizer por
baixo do lenço:
– Ó menina, que não esqueça o par de peúgas que ficou da outra vez.
Tão grande era a sua indiferença às tentações do amor!
Era, além disso, sóbrio o que destrói inteiramente a conhecida e lendária gula canónica e
não de todo hostil às profanidades da arte, pois que, sempre que o homem do realejo fazia, ao
cair das tardes de Verão, o seu giro no bairro, padre Augusto propunha entre os hóspedes da
D. Adelaide uma subscrição de cinco-réis por cabeça, para mandar tocar ao italiano as peças
escolhidas da Norma, que ele escutava com deleite.
O fraco deste santo era o alho; gostava dele cru: esfregava com alho o gume da faca, o miolo
do pão, o fundo do prato, e dizia sempre depois desta operação:
– Muito estomacal, caros companheiros, muito estomacal...
Não era um fanático; nunca a sua conversação recaía sobre «questões religiosas». Quando se
falava diante dele do progresso das ideias revolucionárias, não se exaltava, mas, coçando o
queixo, dizia:
Pois será o que quiserem, caros companheiros, será o que quiserem. Mas lembrem-se das
palavras de Cristo: «Não prevalecerão contra ele as portas do Inferno; a barca de Pedro não
se submergirá!»
E se ouvia algum dos companheiros um certo Azevedo do Ministério do Reino, sobretudo,
proferir impiedades ou achincalhar os dogmas, o bom sacerdote sorria:
Tudo isso é muito bom enquanto se tem saúde, amigo Azevedo. Mas quando vem a velhice,
e as doenças, e o final... Eh! Eh! O amigo verá como se chega às boas ideias. Verá como
ainda me manda chamar! Não, que a Eternidade é coisa séria!
Tal era este santo homem. As suas ocupações eram simples: de manhã, dizer missa em S.
Domingos; durante o resto do dia, salvar a alma de D. Laura.
Nem gula, nem lubricidade, nem ambição. Os três Inimigos da alma, da Cartilha, os três
sinistros colegas Mundo, Diabo e Carne que de braço dado rondam em volta da
humanidade, à caça das almas indefesas, ou nunca ousaram aproximar-se deste varão
impecável, ou, se o fizeram, foram vergonhosamente escorraçados, como ratos se me
permitem a comparação – surpreendidos sobre um velho pedaço de queijo.
A admiração que ele inspirou a Alípio foi grande e duradoira.
Muitas vezes ouvi o Conde afirmar, quando se agitavam as grandes questões do
Clero, do Ultramontanismo:
Não, não... Não é tanto assim! O Clero é extremamente virtuoso. Olhe, um padre conheço
eu, o padre Augusto, que foi meu companheiro nas Portas de Santo Antão... Uma vez...
E era certo então vir alguma deliciosa anedota, em que as virtudes do padre Augusto
resplandeciam, como jóias fulgurantes delicadamente engastadas.
E julgando todos os eclesiásticos, de todo o Universo, por este sacerdote que conhecera na
mocidade tanto o seu espírito prático amava as opiniões a posteriori e fundadas na
experiência o Conde nunca concebeu o clero senão como uma classe cheia de virtudes,
passajando meias, indiferente às engomadeiras e cheia de benevolência pelas fraquezas
humanas.
Poucos dias depois da sua instalação na casa de hóspedes de D. Adelaide, a intimidade de
Alípio com o padre Augusto era tão completa, que à noite, depois de deitados, ainda
conversavam através do tabique. O assunto nunca variava: os Amados, as virtudes de D.
Laura, as prendas de D. Virgínia, as capacidades do Desembargador, os méritos da Ana
cozinheira de tal sorte que ao fim de uma semana Alípio conhecia os Amados, os seus
hábitos, os seus fracos, as suas propriedades, os seus gostos, as suas ideias, melhor do que
se, com a sua própria imaginação, os tivesse concebido e descrito nas folhas manuscritas de
um romance.
Foi deste modo que ele veio a esclarecer qual o tipo de marido que D. Laura desejava para
sua filha. Esse tipo não demonstrava ambições desordenadas: um bacharel, de costumes
honestos, com uma carreira começada, temente a Deus, sem tísicos na família, observando os
jejuns, económico, caseiro e pontual à missa.
Alípio, com uma grande humildade, interrogou-se, sondou-se, folheou-se como quem folheia
um livro, e achou que correspondia exactamente ao tipo de D. Laura. Estou certo de que, se
encontrasse em si condições divergentes se se reconhecesse inclinado à frequentação dos
bilhares, ou fraco diante da beleza, ou se algum seu parente tivesse deitado sangue pela boca,
estou certo (pois conheci bem aquele carácter rectilíneo e rígido), de que ele se teria
considerado indigno de ser o marido da loira Virgínia. Mas como nenhuma destas
circunstâncias objectáveis concorria nele, Alípio não hesitou, e, habilmente, deixou ver ao
padre Augusto que ali, do outro lado do tabique, existia um bacharel com todas as qualidades
de saúde, de fé, de moral e de dis-ciplina que D. Laura exigia do futuro marido de sua filha
Virgínia, loira como os loiros trigos, segundo a formosa expressão do poeta.
Padre Augusto, de resto, reconhecia-o; e a sua simpatia crescia por aquele moço que não
blasfemava, o acompanhava no seu passeio higiénico ao comprido do Cais do Sodré, que o
tinha presenteado com duas formosas navalhas de barba, e que, uma noite em que ele estava
sofrendo de um defluxo terrível, lhe pusera um sinapismo de mostarda com cuidados e
carinhos de enfermeira. De tal sorte que esse moço exemplar, benévolo, doce, instruído, se
tornara a preocupação dominante do bom sacerdote; e mal chegava a casa do
Desembargador, ainda antes de se servir a sopa, padre Augusto, puxando o guardanapo para
o pescoço, encetava o assunto querido: – Alípio!
Todavia, D. Laura podia verificar por si mesma as qualidades de Alípioou pelo menos aquela
que mais a interessava: a sua devoção. Na missa das nove, em S. Domingos, no Lausperene,
no Santíssimo, no Mês de Maria, ela podia ver aquele bacharel impecável, ora de joelhos,
devorando as orações do seu ripanço, ora de pé, a cabeça caída numa meditação grave, ora
estático, contemplando a edificante cintilação dos altares. Nunca os seus olhos se distraíam,
solicitados por algum chapéu mais alto em que se destacasse a cor viva de um ramalhete, ou
por qualquer ruge-ruge de folhos de seda. Não. Ali estava, sério, compenetrado, circunspecto,
reverente. À saída, ao passar por D. Laura, uma cortesia respeitosa; e depois, taque-taque-
taque, no seu caminho, com o seu livro debaixo do braço, os olhos nas pedras da calçada.
– É um modelo – dizia um dia D. Laura. – Um rapaz assim é que dá gosto a uma mãe.
Estas palavras, repetidas à noite pelo padre Augusto, mostraram a Alípio que ele podia enfim,
com honestidade, fazer ao sacerdote a confidência do seu sentimento e da sua ambição.
Fê-lo com palavras dignas, graves, elevadas... Desde que vira D. Virgínia, amava-a. Amava-a,
menos pela sua beleza que era grande, que era cativante do que pelas qualidades morais
que ela não podia deixar de ter, sendo «filha de tal mãe». Não se atrevera, ao princípio, a
dizer-lho a ele, padre Augusto; não o conhecendo bem, poderia suspeitar que, pobre bacharel,
ele apenas aspirasse ao dote da senhora. Mas agora o padre Augusto conhecia-o, não é
verdade? Estava bem certo do seu desinteresse, do seu desprendimento de todas as
ambições de dinheiro não é verdade? Julgava então poder desabafar no seio de um amigo
sincero! Amava a Srª D. Virgínia! Mas uma coisa pedia.41 ao padre Augusto uma coisa lhe
pedia, ali, como amigo, como companheiro –que não dissesse nada às senhoras! Se ele
tivesse urna posição social, uma sólida fortuna em terras, um título de fidalguia deste reino,
então, decerto, não hesitaria em revelar o alto anelo do seu coração! Mas estava apenas no
começo da sua carreira, infelizmente. Por modéstia, por dignidade, por circunspecção, devia
calar-se... E todavia, sentia em si energias, delicadezas, todas as condições para fazer feliz,
bem feliz, uma menina... Sabia o padre Augusto o que ele desejaria? Casar com ela, ter uma
pequenina casa em Campolide, ilustrar-se na carreira do foro, viver com conforto, e ter um
velho amigo respeitável que viesse todos os dias comer a sopa com intimidade e fazer a sua
partida de voltarete... Um amigo como o padre Augusto... Que se ele casasse, o padre
Augusto não havia de ficar a viver ali, no quarto estreito da Adelaide Gervásio, com janela para
as pedras do saguão! Havia de viver com eles, ter o seu talher à mesa, a sua roupa branca
bem tratada, o seu caldo de galinha à noite, os carinhos de uma família... Mas enfim, tudo
aquilo eram sonhos...
Daí a dias, ao sair da Igreja de S. Domingos, Virgínia que, como me afirmou o Conde mais
tarde, tinha, em rapariga, o hábito de escutar às portas – ao ver Alípio, corou prodigiosamente.
Na semana seguinte, Alípio recebeu do padre Augusto um convite verbal para ir passar a noite
com os Amados. Aceitou. Foi uma soirée íntima grave, um pouco silenciosa, edificante. Alípio
falou da sua excelente tia, da sua caridade e da caridade dos Noronhas. Contou a maravilha
de um velho, ao de Penafiel, que vivia havia vinte anos em estado de graça; narrou
anedotas piedosas de Fr. Bartolomeu dos Mártires; provou como todos os países protestantes
a Inglaterra, a Alemanha, a Suécia iam numa decadência progressiva e fatal; voltou as
páginas da Prece à Virgem que Virgínia tocou com mimo ao piano, e fez, com padre Augusto,
o voltarete do Sr. Desembargador.
E, quando recolhia com o sacerdote às portas de Santo Antão, teve o gozo de lhe ouvir estas
palavras memoráveis:
Não que ver, o amigo deu no goto às senhoras! E todos aprovamos. Isto é, o nosso
Desembargador é que parece um bocado renitente...
– Se a Srª D. Laura quiser... Isto é, se o padre Augusto quiser!...
Não digo que não. Estimam-me na família... Vão muito pelo que eu digo... Mas às vezes o
nosso Desembargador tem birras!
Tinha começado a chuviscar, e para que o padre Augusto, tão sujeito a defluxos, se não
constipasse, o nosso Alípio, sempre bom, sempre afectuoso, tomou generosamente uma
tipóia.
As birras do obeso e obtuso Amado eram realmente singulares. Sem razão, de repente,
embirrava. E era então como o obstáculo bruto, inerte, material, de um enorme pedregulho
numa estrada. Era uma resistência passiva e espessa: as bochechas tornavam-se-lhe mais
balofas, as pálpebras papudas mais pesadas, e sem dar razões, rosnava surdamente:
– Não estou pelos autos... Não vai... Não me calha.
E causava indignação e horror, sentir aquela massa bestial e adiposa, atravancando
obstinadamente o caminho!
O Dr. Vaz Correia, que todas as manhãs pedia a Alípio que lhe fizesse o relato do estado do
negócio, tinha-o avisado:
E cuidado com esse animal! Se ele começa a dizer que não calha, acabou-se. Você esbarra
e não há-de ir para diante.
Como conseguiu Alípio desvanecer a resistência inerte e espessa do Desembargador? Não
possuo documentos em que possa basear uma narração anedótica fidedigna. Sei apenas que
ao fim de três meses Alípio ia então todas as quintas e.42 domingos a casa dos Amados o
Desembargador, segundo a expressão pitoresca do Dr. Vaz Correia, começou a «derreter».
dizia:
– Não é mau rapaz... Começa a calhar-me!
Pude averiguar que o nosso fino Alípio lhe dera uma receita para fazer chá de erva cidreira,
que aliviava o Desembargador nas suas digestões monstruosas. No dia dos seus anos,
publicou na Semana uma leve biografia, em que, num grandioso estilo à Plutarco, a
integridade do Desembargador era comparada à dos Sénecas e dos Catões.
Por fim teve ocasião de lhe prestar um serviço resplandecente, que muito deve ter contribuído
para o «derretimento» do Desembargador.
A história foi-me assim contada: no escritório do Dr. Vaz Correia praticava, havia anos, um
certo Dr. Pimentel, moço estimável, mas que, segundo a expressão moderna, «tinha telha».
Era um mancebo franzino melancólico, de grande nariz e lunetas de ouro, que passava horas
em silêncio, catando um a um os pêlos do bigode.
Excessivamente metódico, sempre, antes de sair, lavava cuidadosamente os bicos das penas
de pato, para que não se estragassem. Tinha sobre a mesa pequenas caixas feitas de cartas
de jogar, com dísticos em letra gótica que lhes designavam a serventia: caixa das penas, caixa
da borracha, caixa do limpa-penas, caixa das obreias, etc. Era tão escrupuloso das coisas que
lhe pertenciam, que fazia no alto dos seus lápis uma larga incisão onde escrevia o seu nome.
Tinha casado novo e quando se referia a sua mulher, dizia sempre: a minha senhora. Fora ela
que lhe bordara a almofada de veludo verde sobre que se sentava. Esta almofada era para ele
objecto de uma veneração supersticiosa: antes de se sentar, espanejava-a cuidadosamente, e
ao levantar-se, quando saía, cobria-a religiosamente com um pedaço de cassa. O seu terror
Constante era que, na sua ausência, alguém se sentasse sobre a almofada de sua senhora;
por isso, tinha preparado um letreiro que colava com uma obreia às costas da cadeira e onde
se lia, escrito a tinta azul: «Pede-se que se respeite esta cadeira, que é do Dr. Pimentel». Isto,
porém, incitava indivíduos facetos a sentarem-se com ferocidade sobre a almofada sagrada, e
por vezes, ao entrar subitamente no escritório, o Dr. Pimentel ficava petrificado, vendo um
corpanzil profano repoltreado sobre os veludos que sua senhora, com as suas próprias mãos,
bordara amorosamente! Tais irreverências, para ele, eram crimes, e, com uma estrita ideia de
justiça penal e a perversidade natural aos hipocondríacos, inventou uma desforra medonha:
arranjou um prego, muito agudo, de cabeça muito chata, que colocava sobre a almofada de
bico para o ar, de modo que se algum jocoso ousasse profanar a sua almofada, o horrível
prego penetrava-lhe na carne, sendo assim o delito imediatamente seguido da penalidade. Não
revelou a ninguém esta perfídia, nem sequer destruiu o aviso escrito a tinta azul, como se,
para gozar melhor a vingança, quisesse facilitar a ofensa.
Foi por esse tempo que uma manhã em que o Dr. Pimentel saíra, o Desembargador Amado
apareceu inesperadamente no escritório: tinha uma demanda com um vizinho, proprietário de
Campolide, e vinha falar com o Dr. Vaz Correia, que nesse momento trovejava na Boa Hora.
Alípio, apenas avistou na porta o ventre enorme do Desembargador, precipitou-se a tirar-lhe o
chapéu das mãos, a perguntar-lhe pelas senhoras; ofereceu-se mesmo para ir à Boa Hora
buscar o Dr. Vaz Correia.
Nada de incómodos disse Amado eu espero. Que, com este calor, até não se me de
descansar...
Quer V. Exª um copo de orchata? (o Dr. Vaz Correia tinha sempre, na saleta de dentro, uma
caixa de orchata fresca, nos meses de Verão).
Pois venha de a orchata. Vai de refresco. Alípio entrara na saleta e preparava.43 a bebida
– quando um berro medonho vindo do escritório atroou a casa! Correu, aterrado. De pé, junto à
poltrona do Dr. Pimentel, lívido, os olhos esgazeados, a boca aberta, exalando mugidos de dor,
o Desembargador apertava nas duas mãos abertas as suas rotundidades posteriores!
– Que foi, Sr. Desembargador, que foi?
– Enterrou-se-me uma coisa!
O escrevente que acudira, pálido, aos mugidos do magistrado, teve um grito de horror:
– Deve ser o prego do Sr. Dr. Pimentel!
E desapareceu, aterrado decerto das consequências de tão grande crime.
Sem perder o sangue-frio, o nosso Alípio puxou o ferido para junto da janela, acocorou-se,
levantou as abas do casaco, e logo descobriu a cabeça amarela de um prego reluzindo sobre a
calça preta de S. Exª, cravado na carne.
O Desembargador, quase desmaiado, com camarinhas de suor frio na testa, não queria que
Alípio arrancasse o prego: ouvira dizer que uma faca, um punhal, um ferro que se arrancam de
uma ferida, causam imediatamente a morte pela hemorragia. E com gemidos roucos, pedia um
médico.
Mas o escrevente desapareceu cobardemente – Alípio estava só no escritório. Então, com uma
decisão brusca, como as que se contam de Dupuytren, de Nélaton, dos grandes operadores
clássicos, Alípio puxou vivamente o prego. O Desembargador deu um mugido terrível, e Alípio,
sustentando-o, amparando-o nos braços, levou-o até à poltrona amiga do Dr. Vaz Correia.
S. Exª, porém, arquejava de dor. Parecia-lhe que tinha ali uma brasa, sentia o sangue
empapar-lhe a ceroula... Queria um médico.
Então, num relance, Alípio sentiu que tinha ali, ferido, necessitando auxílio, um magistrado, um
proprietário, um cristão, um semelhante, o pai de Virgínia, e com uma voz repassada de
cuidado e de solicitude:
– Não se assuste, Sr. Desembargador. Não é nada... Venha V. Exª comigo...
E amparando-o sempre, levou-o consigo a um quarto desabitado, que era a cozinha daquele
primeiro andar: aí havia um lavatório e uma esponja dependurada na parede por um barbante.
Com cuidado, tirou o casaco ao Desembargador, desabotoou-lhe com respeito as calças, as
ceroulas de linho, e acocorando-se, examinou a parte ferida de onde corria um fio de sangue
breve, como um pedacinho de retrós vermelho.
– É muito fundo? – gemeu o magistrado.
– Uma bagatela, Sr. Desembargador, uma arranhadura.
Limpou com a toalha o breve fio de sangue; encheu a bacia de água fresca, tomou a esponja e
pedindo ao respeitável magistrado que se agachasse, ele mesmo, Alípio Abranhos, da casa
dos Noronhas, esponjou com amor a nádega obesa de S. Exª!
– Que alívio! – roncava o magistrado, respirando com esforço.
– Fresquinho, hem, Sr. Desembargador?
E esponjava solícito, tomava mais água na cova da mão, chapinhava a carne mole.
– Melhor, Sr. Desembargador?
– Mais aliviado, amigo, mais aliviado...
Depois, com uma toalha limpa, secou a pele, repuxou a camisa, apertou as ceroulas de S. Exª,
que o deixava fazer, com os braços moles, as pálpebras mórbidas, bufando, a face lívida, toda
banhada de suores dolorosos.
Depois, deu-lhe um copo de orchata, acomodou-o no canapé, e agarrando no chapéu, correu a
buscar uma tipóia.
Ele mesmo o acompanhou a casa recomendando ao cocheiro que fosse devagar,.44 para
que os solavancos não irritassem a parte ferida.
O Desembargador esteve uma semana no leito: e ao médico que o vinha ver, ao padre
Augusto, a D. Laura, a Virgínia, a todos os amigos da casa, repetia:
– Aquilo foi o meu Anjo salvador!
Referia-se a Alípio, que, dois meses depois, numa manhã de Outubro, casava com D. Virgínia
Sarmento Amado, encantadora herdeira de doze mil cruzados de renda.
Foram passar a lua de mel para a casa de Campolide. Porém, deste período de felicidade
profunda, nada deve escrever a minha pena. A alcova nupcial tem o augusto recato de um
templo, e à sua porta o anjo dos amores delicados vela com as asas abertas, o olhar risonho, e
o dedo sobre os lábios.
Deixemos, pois, este par enamorado passear sob os murmurosos arvoredos da quinta, ao
rítmico som das águas que cantam nas bacias de mármore e vejamos o que a essa hora se
passava na terra.
Para qualquer nação que volvamos os nossos olhos, vemos, sob a aparente tranquilidade,
fazer-se uma muda transformação interior.
É este realmente o momento em que se preparam os factos que deram à história do século
XIX o seu carácter grandioso.
Ali vemos, no pequeno Estado da Prússia, um militar com cara de freire velho, sob um
capacete de forma bárbara, preparar ocultamente, por desconhecidos processos científicos, a
destruição infalível dos antigos exércitos, comandados pelos métodos antigos da inspiração e
da bravura; e ao lado, um grosso diplomata de cachaço de touro, tão seguro de si como se
tivesse na mão o dado de ferro do destino, tramando apoderar-se da Europa Central, dilatando
o pequeno Estado do Brandeburgo até às proporções de um Império Germânico, e soprando
um esguio Hohenzollern devoto, até lhe dar a corpulência heróica de um César gótico.
Na Itália, vemos a sinistra matilha republicana e mazinista, a que se aliou, ai! uma dinastia
gloriosa alucinada de ambição, arremessar-se, aos clamores fanfarrões de um Garibaldi,
contra o trono de S. Pedro onde um velho sublime ora imperturbavelmente, e aos que lhe
arrancam a posse de algumas léguas de terra, responde pela voz de um concílio, apoderando-
se do domínio ilimitado da alma universal.
Na Espanha, vemos generais despeitados e insensatos, sôfregos de honras, tramar contra o
princípio de que emanam e o trono que lhes significação; e decerto veremos mais tarde as
paixões plebeias, soltas por eles do garrote providencial que as mantinha, precipitarem-se
através da nação espanhola, destruindo tudo sem discernimento, como touros devastadores à
solta numa horta bem plantada.
Olhemos para a Inglaterra, esse disforme império artificial, maior que nenhum império clássico,
feito de continentes distantes ligados entre si por fios telegráficos que pousam no fundo dos
mares. Essa imensa mole mal equilibrada ameaça a cada momento dessoldar-se, aqui e além,
na Índia, na África, na Oceânia; uma oligarquia, mais orgu-lhosa do seu domínio universal que
o patriciato romano, mal a pode manter unida pelo ferro e pelo ouro; e no entanto a revolução
social, com um movimento preciso, compassado, geométrico, automático, vai preparando o fim
dessa oligarquia obsoleta e a dissolução do imenso Império balofo.
Na Rússia autocrática, a vontade de um homem, do Homem, do Czar, realiza com uma
palavra o que a América do Norte pode conseguir dispendendo milhares de milhões e
regando o solo de sangue: na Rússia e na América os escravos são livres. No império, uma
assinatura consegue o que na república pode alcançar-se com uma guerra civil profunda
lição que nos dá o poder social concentrado nas mãos de um eleito.
Voltemos, enfim, os olhos para a França a Mater-Gália: nunca mais alta a vimos, gloriosa e
firme resplandecendo sob os Napoleões. Nunca a sua homogeneidade pareceu mais sólida e o
seu messianismo mais penetrante. Paris reedificado, arejado, verdejante, rectilíneo,
resplandece. As suas modas são por um momento dogmas, como as suas filosofias: dela o
mundo recebe com devoção a Crinoline e o Positivismo. A tra-dição galante das classes
fidalgas permanece tão inalterável, que um descendente dos La Trémouille, que tinham
precedência sobre o Rei, paga por 25000 cruzados as botinas de cetim com que M.lle Cora
Pearl se estreia no teatro.
O formoso desdém gaulês que inspirava calembours aos que subiam à guilhotina, conserva-se
tão brilhante que, na suave praia de Biarritz, coronéis elegantes, ouvindo o Sr. de Bismark
desenvolver os seus planos, murmuram com graça: «Que idiota!» A salutar influência religiosa
penetra por tal forma a vida social, que, mesmo nas figuras de cotillon, as marcas mais
delicadas representam mitrazinhas episcopais e pequenos báculos de chocolate.
A galantaria francesa está tão rediviva, que um letrado da Academia não hesita em assinar os
seus escritos: Merimée, bobo de S. M. a Imperatriz. O luxo, que promove a prosperidade
industrial, é tão refinado, que custam contos de réis as robes de chambre do Sr. Duque de
Morny e a dívida de uma virtuosa dama, à sua costureira de roupa branca, ultrapassa a soma
fabulosa de noventa e seis mil cruzados!
Formoso espectáculo de um país próspero! direis. Ai! Ai de nós! Nesta formosa harmonia
se percebem sintomas sinistros: o imortal Cousin jaz no seu leito de dor, com a sua doença
de fígado; um Thiers ousa condenar a soberba expedição do México; o espírito frondista
das salas aplaude os epigramas de um Prévost-Paradol e os boulevards riem quando um
garoto, Rocheforte, injuria a cuia de S. M. a Imperatriz; e, suprema dor, sar, devorado
pela doença pertinaz, passa os seus dias em banhos de sal, a pálpebra mórbida, o pulso, que
um dia salvara a ordem e a sociedade, abandonado entre os dedos do especialista Ricord. E
no entanto, de um rochedo do mar da Mancha, um personagem lendário, um S. Paulo
romântico da Santa Democracia, tão extraordinário de génio e tão alucinado de orgulho que se
confunde a si mesmo com Deus e se crê no segredo da Natureza, escreve Os Miseráveis, As
Contemplações, A Lenda dos Séculos, e profetisa, em atitudes teatrais, a monstruosa desforra
da plebe e uma vaga fraternidade dos homens reconciliados.
Tal é a Europa enquanto o nosso Alípio murmura ao ouvido de Virgínia aquelas palavras
eternas que há três mil anos saem dos lábios dos amantes.
E agora volvamos os olhos para Portugal. Em Portugal, nessa época, não vejo que se passe
coisa alguma, a não ser que o Ministério Cardoso Torres acaba de declarar que o seu
programa será: Ordem, Moralidade e Economia.
É pois nesta serena e calma unidade nacional que Alípio Abranhos aparece e entra a passos
largos nos umbrais da História.
A maneira como Alípio Abranhos foi eleito deputado, parece inteiramente providencial. O
ministério Cardoso Torres tinha, como é sabido dos que conhecem a história política dessa
época, dissolvido as câmaras. O ministério antecedente, denominado Ministério Bexigoso (de
cinco ministros, coincidência singular, três eram picados das bexigas) não caíra segundo os
métodos parlamentares: aluíra, sumira-se. Em plena maioria, sem razão, sem discussão, de
repente, desaparecera –caso singular, depois, muitas vezes repetido, e comparável à
conhecida catástrofe da corveta Saragoça. A Saragoça, num dia delicioso de Junho, num mar
tão calmo como uma larga taça de leite, sem borrasca, sem vento, caiu no fundo do mar. O
casco, parece, estava tão podre que se dissolveu como açúcar numa xícara de chá. Um
indivíduo que.46 estava na esplanada vendo-a dar uma curva magnífica sob um sol
resplandecente, abaixara-se para apertar um atilho do sapato, e, ao erguer-se, não viu mais a
corveta: sondou ansiosamente com o óculo o horizonte azul-ferrete; olhou aflito em redor, pela
praia; mesmo, num gesto grotesco mas muito naturalmente instintivo, apalpou sofregamente
as algibeiras: – nada! O mar brilhava sereno, azul, imóvel, coberto de sol.
O Ministério Bexigoso acabou como a corveta Saragoça. O novo ministério foi portanto tirado
do mesmo grupo da maioria e, consequentemente, dissolveu as câmaras, precaução
exagerada, porque os chefes da maioria afirmavam ao ilustre Dr. Cardoso que dariam ao novo
governo se ele, como o governo anterior, fosse pela Ordem, pela Moralidade e pela
Economia um apoio eficaz e homogéneo.
Razões facilmente compreensíveis determinaram o Dr. Cardoso Torres a persistir na
dissolução tanto mais quanto no primeiro Conselho de Ministros, o Dr. Cardoso e os seus
colegas, conferindo a lista de parentes, amigos e notabilidades que desejavam fazer entrar na
Câmara, reconheceram que necessitavam de vinte e três círculos, e que havia apenas,
presentemente, quatro vagaturas. E como, além disso, esses vinte e três indivíduos eram
geralmente homens de ilustração, de respeitabilidade, de boas letras e de fortuna, a dissolução
era justa.
S. M. concedeu-a – o que produziu aquele artigo célebre do Estandarte, jornal do Governo dos
Bexigosos, que ameaçava S. M. com a sorte de Luís XVI ou de Carlos I exactamente oito
dias depois do artigo em que o mesmo jornal comparava S. M., pelas virtudes, a Tito, pela
justiça, a S. Luís, e pelo respeito da Constituição, à Rainha Vitória!
A resposta do Globo, jornal do Dr. Cardoso Torres, foi enérgica: dizia que se podia
responder com um chicote a um jornalista que ameaçava com o cadafalso S. M., que, pelas
virtudes, estava muito acima de S. Luís, e, pelo respeito da Constituição, era
incomparavelmente superior a Sua Graciosa Majestade a Rainha Vitória eloquente artigo, e
que apareceu exactamente quinze dias depois de outro, violento, em que, então na oposição,
o redactor do Globo, inspirado pelo Dr. Cardoso, dava claramente a entender que o fim
provável de S. M. seria a guilhotina de Luís XVI, ou pelo menos o cadafalso de Carlos I!
Pondo em relevo estes factos, eu não quero por forma alguma insinuar que haja na imprensa
política falta de sinceridade, de lógica ou de dignidade. Quero apenas fazer sentir a perniciosa
influência da ambição e da paixão em espíritos cultos. Creio, porém, que S. M., ao ver-se
alternadamente destinado, pelo mesmo jornal, ao cadafalso de Luís XVI ou à canonização de
S. Luís, decerto não experimentaria nem terror, nem vaidade, pois que nenhuma destas
ameaças representavam o desejo íntimo do jornalista, mas eram apenas a explosão de uma
cólera biliosa ou de um reconhecimento enternecido, e, muitas vezes mesmo, uma manobra
útil na táctica da vida pública.
Um dos círculos menos disputados era, nessa ocasião, o de Freixo de Espada à Cinta.
Propunha-se como deputado da oposição um obscuro Gervásio Maldonado, proprietário local,
com uma parentela larga na terra, interesses de lavoura, etc., e o governo Cardoso Torres
combatia-o, apresentando na lista governamental, como candidato por Freixo de Espada à
Cinta, o moço bacharel Artur Gavião, filho do presidente do Banco Nacional, que o pai,
cansado da sua dissipação, queria forçar, pelos deveres que lhe imporia S. Bento isto é o
Parlamento – a uma vida disciplinada, sóbria e útil.
Conta-se que o Sr. Alexandre Herculano, a este respeito, dissera, com aquele espírito
misantropo que a sua voz ríspida acentuava de um relevo amargo:
Se o Gavião queria morigerar o rapaz, devia-o conservar no bordel, e não o mandar para o
Parlamento!
Mas o que eu penso do Sr. Alexandre Herculano, dos seus ditos, da sua.47 misantropia, da
sua moral e das suas letras, escrevê-lo-ei um dia, desassombradamente.
O Sr. Artur Gavião (que tão desgraçadamente morreu depois afogado ao de Caxias), era
pois o candidato governamental por Freixo de Espada à Cinta, quando Joaquim Osório
Teixeira, ministro da Justiça, declarou, com decisão, que era sim-plesmente uma afronta ao
Bom-Senso, à Câmara e à Dignidade do Governo, nomear por Freixo de Espada à Cinta um
indivíduo que, às quatro horas da tarde, descia o Chiado, numa tipóia, com meretrizes
andaluzas, inteiramente embriagado.
Gavião pai, mais tarde, afirmava que esta oposição do ministro da Justiça não era inspirada
por puros motivos de moralidade pública, mas constituía a vingança pessoal de uma antiga
humilhação, caso complicado de letras a três meses, etc., etc... como ele acrescentava com
uma reticência maligna.
O Presidente do Conselho, porém, amigo do Gavião, e desejando conservar ao Governo
aquele sólido apoio do Capital e da Propriedade, insistia na candidatura do libertino Artur.
Um dia, contudo, Joaquim Osório Teixeira declarou que faria dessa candidatura uma questão
pessoal, que ele não podia autorizar o patrocinato legal do deboche, e que, se o Colega
Cardoso insistisse, ele, Joaquim Teixeira, trotaria para Sintra a pôr a sua demissão nas mãos
de S. M.
Cardoso, receando o conflito, riscou sem mais observações da lista governamental o nome do
jovial libertino.
À noite, porém, em casa, ao chá, exprimiu com azedume o seu embaraço: não só
descontentava o Gavião pai um colosso mas ficava o círculo de Freixo de Espada à
Cinta vazio, viúvo...
Homem acudiu imediatamente o Dr. Vaz Correia, velho amigo da casa parece-me que
tenho exactamente o que lhe convém: o Alípio Abranhos!
Cardoso Torres não o conhecia pessoalmente. Vaz Correia, porém demonstrou-lhe com
abundância eloquente as vantagens da escolha: como família, Alípio era um Noronha; como
ilustração, um premiado; como posição de fortuna, era genro do Amado; como experiência
política, fora redactor da Bandeira, formado na prudente escola do taciturno e profundo
Conselheiro Gama Torres; como maneiras – um fidalgo; como lealdade – um Baiardo!
E Cardoso, apontando-lhe imediatamente no livro de notas que trazia sempre consigo, o nome,
a idade, a morada e os prémios, retomou a sua xícara de chá, dizendo:
– Pois mande-mo cá. Metemo-lo por Freixo!
As eleições realizaram-se daí a três semanas e o ministério teve uma maioria compacta,
sólida, homogénea.
Os jornais da oposição, é certo, afirmaram que, como corrupção, tricas, violências, peitas,
influências obscenas, não continuavam a tradição obsoleta dos Cabrais, mas ofereciam a
evidência dolorosa da nossa decadência social!
O Estandarte dizia: «E imenso como torpeza; mas nós aplaudimos, porque um ministério que
assim procede, inspira, ipso facto, um nojo genérico. Este governo não há-de cair porque
não é um edifício. Tem que sair com benzina, – porque é uma nódoa!»
O Progresso Social afirmava: «somos o escárnio da Europa!»
A Nacionalidade informava com chiste: «Está averiguado que a maior parte das urnas tinham
fundos falsos: nada admira o expediente, vindo de um ministério de pelotiqueiros» aludindo
maliciosamente ao ministro das Obras Públicas, cuja perícia em fazer habilidades com cartas
era geralmente estimada e muito apreciada na socie-dade.
Mas o Globo, jornal do Governo, teve esta saída resplandecente: «O Estandarte,.48 jornal dos
Bexigosos, escreve no seu artigo de ontem: «O governo não há-de cair porque não é um
edifício. Tem que sair com benzina – porque é uma nódoa!» Este plagiato é torpe: aquela frase
foi escrita por nós, ipsis verbis, no 1214 deste jornal, na ocasião em que os Bexigosos
elegeram a câmara passada».
Ambos os partidos se consideravam reciprocamente uma nódoa e se queriam suprimir com
benzina! Ah, quando se compenetrará a Imprensa da elevação do seu sacerdócio?
A única eleição que nunca foi vituperada nos jornais da oposição foi a de Freixo. Com efeito
Alípio Abranhos, logo que soube da sua nomeação, prevendo os uivos da minoria, correu as
redacções, onde, do tempo da sua colaboração na Bandeira, conservara ligações afectuosas,
e foi dizendo, aqui e além, com uma notável habilidade política:
Vocês compreendem. Eu venho por Freixo. Venho pelo Governo... Mas eu não me liguei,
não me comprometi. Estou na expectativa. Vocês compreendem...
Compreenderam, creio e a Nacionalidade escreveu mesmo: «o melhor resultado destas
eleições, foi mandar à Câmara o nosso antigo condiscípulo, o Ex.mo Alípio Abranhos, esposo
da formosa filha do digno Desembargador Amado, e que nos bancos da Universidade era
justamente reputado pelos seus dotes notáveis de orador».
Eu conservo religiosamente a carta que Alípio Abranhos escreveu ao Dr. Cardoso Torres,
agradecendo a sua eleição. Considero-a sinceramente um modelo epistolar; ela pode
realmente sofrer comparação com todas as cartas históricas sem exceptuar a célebre carta
do Dr. Samuel Johnson ao Conde de Chesterfield. Eis esse notável monu-mento de estilo:
Ex.mo Sr.
Vindo expressar a V. Exª o meu reconhecimento imorredouro pela maneira
espontânea como V. Exª me abriu de par em par as portas da vida pública, eu não julgo
necessário produzir bem alto a afirmação da minha profunda adesão ao Governo. O
ministério a que V. Ex.0 preside representa o que de mais elevado como inteligência,
de mais completo como ciência de administração, de mais estrito como moral, e de mais
genuíno como elemento conservador. Não há quase mérito em que um homem que só
deseja para o seu pais instrução, administração proba, moral e ordem o seu apoio
incondicional e absoluto a quem tão alto garante a prosperidade pública.
Quero contudo expressar a V. Ex.0 a minha dedicação particular para com a pessoa
de V. Exª e rogar-lhe que me o mais depressa possível ocasião de publicamente lha
patentear não porque me pese esta honrosa dívida de gratidão, mas porque me
consumo no desejo de dar publicamente um testemunho da minha admiração pelas altas
qualidades políticas e individuais de V. Exª.
De V. Exª, etc.
ALÍPIO ABRANHOS.
Esta carta deu ocasião a que se estabelecesse nas regiões políticas um útil e nobre princípio,
que muito tem concorrido para manter perante o país o prestígio dos homens públicos.
Quando, três meses depois de a ter escrito, Alípio Abranhos passou para os bancos da
oposição e pronunciou aquele notável discurso em que provou claramente ao país que o
Governo Cardoso Torres não possuía nem inteligência, nem ciência, nem.49 ordem, nem
economia, nem moralidade, Cardoso Torres, num condenável impulso de vingança mesquinha,
quis tornar pública a carta que eu respeitosamente citei.
Não havia decerto nada de desagradável para Alípio Abranhos na publicação dessa eloquente
página de prosa, mas tal publicidade, autorizada por tal individualidade, equivalia a
desconhecer o salutar princípio do segredo da correspondência privada, em matéria política.
Por isso, em defesa do princípio, Alípio Abranhos intimou Cardoso Torres a que não publicasse
a sua carta.
As negociações foram longas e muito delicadas. Mas em presença da opinião de vários
membros do Governo, de numerosos membros da maioria, de jornalistas e notabilidades de
todos os credos políticos, ficou estabelecido que uma carta particular não sofria publicação;
que tal regra, a desprezar-se, estabeleceria um pernicioso sistema de vinganças e de
represálias; que, nesse caso, muitas cartas, que por motivos óbvios convinha guardar nas
secretarias, apareceriam a público; e finalmente que era do interesse de todos os partidos e
indispensável à sua consideração pública, que nunca vissem a luz da publicidade documentos
privados, isto em obediência àquela sábia regra política, tão pitorescamente formulada por
Napoleão I: «é necessário que a roupa suja seja sempre lavada em família!»
Temos pois Alípio Abranhos deputado por Freixo de Espada à Cinta. A sua surpresa, ao ver-se
subitamente e inesperadamente instalado numa cadeira em S. Bento, foi na realidade
deliciosa.
Decerto, contava entrar um dia na vida pública, onde logicamente o chamavam o seu talento e
os seus estudos, mas não esperava que fosse tão cedo, apenas chegado da quinta de
Campolide e das pieguices da lua de mel. Podia pois dizer com orgulho que não fora a intriga,
a corrupção, a pressão que lhe davam a posse daquele círculo, que se tinha aberto de par em
par ao seu talento dominador. Ele, de facto, conhecia tão pouco Freixo de Espada à Cinta, que
lhe sucedeu dizer no agradecimento que dirigiu aos seus eleitores: «Um dia, meus amigos, irei
visitar a vossa bela província do Minho, que eu apenas conheço incompletamente, e espero
então, ó freixenses, apertar a vossa mão honrada de verdadeiros liberais e de verdadeiros
portuguesesOra é bem sabido que Freixo de Espada à Cinta não é no Minho: é em Trás-os-
Montes.
Porém, este natural equívoco de que ele mesmo mais tarde se ria com bonomia– é a prova
mais decisiva de que Alípio Abranhos foi eleito deputado, não por ter «intrigado» num círculo,
mas pela simples evidência do seu formoso talento.
De resto, apenas abertas as Câmaras, tendo-se informado com cuidado dos nomes das
pessoas influentes de Freixo de Espada à Cinta, a todas escreveu, oferecendo a sua
influência, os serviços da sua eloquência e a sua casa.
E foi infatigável: cartas de empenho, recomendações para examinadores, Cruzes de Cristo,
empregos subalternos, licenças para visitar Monserrate, tudo deu prodigamente,
espontaneamente aos freixenses. Nenhuma solicitação vinda de Freixo era descuidada.
Mesmo um jovem poeta, filho de um influente, que viera implorar a sua protecção teve o
orgulho de ver o seu drama Vingança de um Rival representado em D. Maria, ainda que
sofreu no fim o desgosto de uma pateada memorável. Alípio, porém, consolou-o, empregando-
o imediatamente na repartição das Contribuições indirectas.
No primeiro ano em que eu exerci as funções de seu secretário particular, muitas vezes notei,
à mesa, ou à noite na sala, indivíduos silenciosos que se sentavam com timidez na borda das
cadeiras, se levantavam sempre que o Conde lhes passava rente, e tinham nas fisionomias e
nos fraques o quer que fosse de insólito: eram freixenses que vinham à Capital e ali
encontravam uma hospitalidade benévola, e que, de volta à sua.montanha, celebravam o
poder do deputado e a sua grande afabilidade. Naturalmente, logo que o Conde foi nomeado
Par do Reino, esta benevolência sistemática findou, e ele, segundo a sua engraçada
expressão, «livrou-se para sempre daquela horda de carrapatos!»
Como disse, a sua nomeação causou a Alípio Abranhos uma viva alegria. Mais tarde, a
Condessa contou-me que, poucos dias depois da eleição, o surpreendera, uma manhã, diante
do espelho, vestido com a sua farda nova de deputado e exclamando:
Peço a palavra, Sr. Presidente! Ordem! Ordem! Apoiado! Não seremos nós que
desertaremos a bandeira do progresso!
A Srª Condessa, na sua simplicidade de mulher, ria deste incidente. Mas a mim comoveu-me e
fez-me pensar em Demóstenes, ensaiando, junto do mar, as suas apóstrofes sublimes aos
tiranos.
Toda a família, de resto, gozava prodigiosamente este triunfo inesperado. Sua tia mesmo
escreveu-lhe uma longa carta – que tenho diante de mim – em que a sua ternura divagava nos
ziguezagues, da grossa letra de ganchos. Pedia-lhe que nunca se esquecesse de que a ela
devia «a grande posição que tinha» e prometia visitá-lo com seu marido, «não para ver as
belezas da Capital, mas para te admirar agora que estás no poleiro!» Até D. Laura, tão
desinteressada das coisas da terra, lia o extracto das sessões nos jornais, gozando de ver
impresso o nome do genro, e o padre Augusto, apesar da sua habitual pacatez, ia agora todas
as noites ao Martinho, para surpreender, no brouha-ha das conversas, os elogios dados a
Alípio Abranhos. D. Virgínia, essa frequentava assiduamente a galeria da Câmara, até ao dia
em que o estado adiantado da sua gravidez não lhe permitiu, como ela dizia, «mostrar-se
decentemente em público».
Contudo, Alípio conservava na Câmara um silêncio discreto. Eu poderia dizer, parafraseando
um dito histórico, que não estava embatucado, mas sim concentrado. No entanto, preparava-
se: ia-se penetrando dos hábitos parlamentares, estudava o regulamento, o mecanismo
legislativo, as tricas; por assim dizer, aguçava devagar e com prudência as finas lâminas do
espírito loquaz. Formava então a sua biblioteca de homem de Estado: munira-se dos discursos
de Mirabeau, de Berryer, de Lamartine, de Guizot; adquiriu o útil dicionário de conversação;
estudou aturadamente as instituições da Bélgica; mas, sobretudo, frequentava, escutava os
velhos parlamentares, os venerandos práticos da política constitucional. Como Aquiles,
recolhido na sua tenda, Alípio Abranhos forjava as suas armas para a batalha.
A sua estreia, isto é, a primeira palavra que soltou na Câmara, foi singularmente admirada.
Não foi propriamente um discurso: apenas um. curto aparte. Mas, como num gole de água se
contém um mundo de organismos, num aparte pode existir toda uma revolução.
Temos um exemplo clássico, desta verdade política, na sessão da Convenção que precedeu a
queda de Robespierre: o sinistro e seco ditador, na tribuna, sente de repente a voz perturbar-
se-lhe, sumir-se-lhe...
– É o sangue de Danton que te sufoca! – grita-lhe Lemaillet.
O estremecimento, o grito de apoio que corre nas galerias a esta lúgubre apóstrofe, prova que
Robespierre está bem abandonado pela França, que chegou enfim o glorioso Termidor!
O aparte do nosso Alípio não teve decerto esta ênfase trágica, porque não se tratava,
felizmente, de abater um tirano. Era simplesmente a discussão da resposta ao discurso da
Coroa: falava o obeso Sr. Gomos Barreto, da minoria, afecto aos Bexigosos, que, o rosto
incandescente, o punho alto, atacava o ministério Cardoso Torres em períodos brutais.
Quem sois? Para onde ides? exclamava ele. O que representais vós no país?.Onde
estão as vossas medidas, os vossos benefícios? Ninguém vos conhece! Éreis uma minoria
obscura e intrigante (ordem! ordem!). Intrigante, Sr. Presidente, uma minoria intrigante e
tortuosa! De repente, vejo-vos aí, nessas cadeiras amadas do poder... Tenho o direito de vos
perguntar: como vos chamais, que fazeis aí? Como entrastes vós para aqui? Vós sois o
ministério que entrou para o poder com uma gazua!
Mas nesse momento Alípio ergue-se e brada:
– E vós sois o ministério que se sumiu daqui por um alçapão!
Então, a esta rancorosa alusão ao modo como o gabinete dos Bexigosos tinha desaparecido
do poder, à maneira da corveta Saragoça, uma enorme hilaridade sacode as ilhargas da
Câmara, das galerias, dos estenógrafos... uma hilaridade imensa, como aquela que o velho
Homero põe na boca dos Deuses e que fazia tremer as colunas de cristal do Olimpo. Bravos
roucos saem impetuosamente das galerias negrejantes de gente. E o presidente, o honrado
Dr. Antão Carneiro, escarlate de jovialidade contida, fungando pelo nariz frouxos de riso mal
comprimidos, repica furiosamente a campainha...
– São os do alçapão! São os do alçapão! – ruge com júbilo a maioria.
As lunetas de Gomes Barreto caíram; bagas de suor cobrem-lhe a testa cor de cidra, e,
aniquilado, engolindo ainda alguns períodos confusos, rola da tribuna com a inércia de uma
pedra desequilibrada!
Todos os jornais, na manhã seguinte, citavam o dito, e Alípio Abranhos entrou na
popularidade.
Gozou ele este triunfo? Não. Muitas vezes mo disse mais tarde: aquele dito saíra-lhe da boca
inesperadamente, involuntariamente, como um ataque de tosse, como um arroto! Não o
pudera conter. O que ele estava preparando, desde o começo do discurso de Gomes Barreto,
era esta bela frase: «Nós chamamo-nos o Progresso e vamos para a Liberdade!» E
infelizmente saíra-lhe este dito, pitoresco sim, mas baixamente popular.
Alípio Abranhos teve assim o desgosto de passar durante algum tempo por «um grande
chalaceador».
As orelhas abrasaram-se-lhe de vergonha quando, nessa noite, o padre Augusto lhe veio dizer
que no Martinho era voz geral que «para chalaça não havia outro!»
Quisera estrear-se, mostrando a profundeza de um filósofo, e faziam-lhe a reputação de um
folhetinista... Teve rancor ao seu aparte. Negá-lo era impossível: lá vinha ao outro dia no Diário
das Câmaras, com esta indicação do movimento (imensa hilaridade).
Teve então de sofrer um martírio mudo, grotesco, de receber parabéns por uma façanha que o
vexava. O Cardoso Torres dissera-lhe:
– É disso que se quer! E disso que se quer! Vejo que o amigo é homem de pilhéria. E matá-los
com dichotes ....
Que agonia! E pior ainda foi quando sua tia lhe escreveu, dizendo que em Amarante, em casa
das Neves e das Cunhas, «se tinha falado muito da pilhéria que ele dissera na Câmara, que
fizera rir toda Lisboa» e que a opinião de todos era que devia ser muito temido, «por causa das
chalaças que soltava». Isto era odioso para um espírito elevado como o de Alípio Abranhos.
Então a sua atitude tornou-se cautelosa. Para destruir aquela falsa, grotesca fama de
«chalaceador», assombreou, sublinhou a sua natural seriedade. Tornou bem patente que
aquele dito era, nos seus hábitos intelectuais, uma extravagância isolada. Conversava com
prudência, evitando tudo o que pudesse ser tomado como «gracejo», «saída» ou «pilhéria». A
sua atitude na Câmara era como a afirmação exterior da gra-vidade dos seus pensamentos:
conservava-se erecto, com os braços cruzados, a testa franzida, pensativo. E um dia que
Cardoso Torres lhe disse:
O amigo recolheu-se ao silêncio. Atire-lhes outro epigrama, homem! Não os deixe...
espicace-os!
Alípio respondeu, despeitado:
Quando eu combater a oposição, Sr. Cardoso Torres, há-de ser com a gica não com a
pilhéria!
– Pois sim, mas olhe que o ridículo é uma grande arma.
– Não a sei manejar, Sr. Cardoso Torres.
– Histórias! ... O amigo tem graça... E utilizá-la.
Alípio Abranhos tomou rancor a este cavalheiro, e eu posso mesmo, com afoiteza, datar desta
entrevista a sua resolução de se separar do ministério Cardoso Torres.
Entretanto ele compreendia que a maneira eficaz e digna de mostrar à Câmara e ao país a
verdadeira feição do seu talento sério, era pronunciar um grande discurso de eloquência grave:
preparou-se então com fervor para a sua verdadeira estreia.
Os projectos pueris nesse momento em discussão, não lhe davam a oportunidade de fazer
uma oração elevada. Eram medidas subalternas estradas, um projecto de caminho de ferro,
legislação para as colónias uma série de trabalhos monótonos, em que se comprazia o
espírito mesquinhamente prático de Cardoso Torres, e que a maioria votava, distraída,
desinteressada, perante as galerias vazias.
Esperava-se, porém, uma Reforma da Instrução, e Alípio Abranhos decidiu fazer nessa
ocasião a sua «estreia de estadista».
A composição deste discurso célebre foi feita no meio de preocupações graves de família.
Chegava Março e com ele o nono mês de gravidez de D. Virgínia Abranhos. D. Laura instalara-
se em casa do genro para se achar mais perto da filha no momento do transe. Uma bela moça
de Campolide, a futura ama, já estava em casa, e toda a noite ardiam lamparinas propiciatórias
junto de santos especiais.
Entretanto, no seu escritório, Alípio Abranhos, cercado de autores, compunha o seu discurso.
A Condessa, mais tarde, muitas vezes me confessou quanto a afectava, no meio dos seus
terrores pois estava certa de que morreria ver de repente, às onze horas, à meia-noite, o
marido entrar-lhe pelo quarto, de chinelos e robe de chambre, o olhar brilhante, e ler-lhe algum
período magnífico que acabava de produzir. Com a roupa sobre o queixo, a face um pouco
inchada, que lhe repuxava a pele em torno dos olhos, escutava, olhando a sombra grotesca,
de grande nariz, que o perfil de Alípio projectava sobre a parede, e aterrava-se pensando que
o menino ou a menina pudesse nascer com aquele nariz descomunal, fora de toda a
proporção, de tromba, medonho!
Enfim o dia chegou. Nessa manhã D. Virgínia tinha sentido de madrugada algumas dores, e
isto causou entre D. Laura e Alípio uma pequena altercação ao almoço. A velha devota não
compreendia que Alípio Abranhos fosse à Câmara nesse dia, quando sua mulher estava numa
crise tão grave e na proximidade de um perigo possível.
– Mas, minha senhora, eu estou inscrito para falar...
Não falas nem discursos! O seu dever é estar aqui, a animar a pequena... O seu lugar
hoje é em casa! Primeiro que tudo estão os deveres que tem para com sua mulher.
Alípio Abranhos aniquilou-a com esta nobre frase:
Se tenho grandes deveres para com minha mulher, não os tenho menores para com o meu
país.
E para terminar o incidente, acrescentou para o criado:
– José, vá-me buscar uma tipóia. Fechada!
Tomara, logo ao erguer-se, duas gemadas para clarear a voz, fortificá-la, e queria.53 evitar o
frio dessa áspera manhã de Março. O tempo, com efeito, inquietava-o: havia um sudoeste
brusco no ar enevoado, e ele receava que a chuva afastasse o público da galeria.
Choveu, infelizmente, a torrentes; e Alípio teve o desgosto de ver, ao chegar a S. Bento, que
não só a Câmara era menos numerosa do que habitualmente, mas que os bancos das galerias
estavam quase desertos.
Os deputados que tinham vindo a e traziam as botas encharcadas e os joelhos húmidos
passeavam nos corredores; ruidosamente a chuva fustigava a clarabóia. E Alípio não pôde
deixar de pensar com despeito, que havia da parte de Deus uma certa ingratidão, fazendo tão
chuvosa essa manhã memorável, em que ele vinha à Câmara defender o sagrado princípio da
educação religiosa.
Tem a palavra o Sr. Alípio Abranhos disse enfim, na sua voz um pouco fanhosa, o
presidente, Dr. Antão Carneiro.
Muitas vezes o Conde me confessou que sentiu nesse momento uma agonia: o estômago
contraía-se-lhe, e receou um momento que uma súbita dor de ventre o obrigasse a correr à
latrina situação medonha ou que, de repente, se lhe varresse da memória todo o discurso,
que, havia três noites, declamava sucessivamente no silêncio do seu escritório.
Felizmente para o país, nem a memória nem a entranha o traíram... e Alípio Abranhos, nessa
fria manhã de Março, fez o primeiro discurso da sua fecunda e grandiosa carreira política.
Este discurso é bem conhecido.2 Alguns dos seus melhores trechos estão transcritos na
Selecta para uso dos alunos do 3º ano de português.
O Conde conservou sempre por este primeiro trabalho uma predilecção parcial. Ele é, com
efeito, apesar do liberalismo exagerado que o caracteriza e que mais tarde a experiência, o
poder, os anos, o conhecimento dos homens devia tão cabalmente diminuir a obra
literariamente mais bem trabalhada do Conde.
Esse exagero liberal, é, porém, facilmente explicável. Não só, então, ainda moço, o seu
espírito, apesar de grave e reflectido, era susceptível de um certo entusiasmo, mas também o
discurso, composto sob a influência de recentes leituras de Mirabeau e de Lamartine, tomara
naturalmente a ampla retórica liberal que domina as orações desses mestres. Esse excessivo
espírito de liberalismo pode-se dizer que é puramente reflexivo: assemelhando-se tanto à
eloquência desses inspiradores, o discurso conservou alguma coisa das suas doutrinas. Que
é, porém, genuinamente de Alípio Abranhos, atestam-no o estilo, o colorido, o período.
Quem não conhece essa formosa imagem sobre o envenenamento das fontes públicas,
comparado ao envenenamento das nascentes do espírito? Que formoso quadro aquele em
que descreve o «sombrio vulto de Filipe II» no Escorial! Com que vigor pinta a poesia dos
tempos cavalheirescos da Meia Idade! Que página aquela em que descreve a invasão dos
Bárbaros e «o cavalo de Atua que, onde pousa a pata, faz secar a erva dos prados!» Que
sublime apóstrofe arremessada a Tibério! Que traços de um pitoresco histórico nossa imagem
sobre o «sombrio jesuíta, aqui metendo na mão de Ravaillac o punhal regicida, além aperrando
a clavina que há-de fazer em estilhaços os vidros do coche de D. José I, depois vertendo na
taça de vinho de Chipre que o Papa Clemente leva aos lábios, o veneno negro dos Bórgias!»
Que períodos repassados de lágrimas sobre o cadafalso de Luís XVI! Que grandeza épica,
descrevendo, através da Europa «o galope triunfante do cavalo branco de Napoleão!»
Poderia dizer-se que tudo isto nem sempre vinha a propósito; poderia dizer-se mesmo, como o
conhecido litigante ao advogado loquaz: «Não se trata de Roma, de Cartago, nem da
destruição de Babilónia: trata-se do meu sobrinho. Fale do meu sobrinho!» Mas a isto dever-
se-ia responder: «Então reclamai para sempre a supressão da Poesia, da Eloquência e do
Génio!»
Cada uma destas grandes imagens, destinadas a enriquecer o pecúlio nacional da oratória
clássica, era seguida de um estalar entusiasta de «bravos!», de «sublimes!» A voz, muito
admirada, tinha uma plenitude metálica e sonora e ia, nas suas ondulações vibrantes, como
ondas triunfantes que banham os rochedos da praia, bater os renques de peitos dilatados e
extáticos. O gesto foi considerado perfeito, ainda que as frequentes punhadas no rebordo da
tribuna, dando um som oco de pau, pareceram demasiadamente impetuosas.
E Alípio, que subira à tribuna «simples Alípio Abranhos» era, quando desceu, «o nosso
inspirado Alípio Abranhos!»
Muitas vezes este adjectivo, ou outros paralelos «o nosso espirituoso, o nosso rtil» são
todo o proveito de uma vida de labor e de produção. Quantos dão tudo o que contém o
cérebro, até à última gota, ficando depois, para sempre, com o aspecto grotesco e triste de um
limão espremido cuja recompensa é, ao fim de tanto esforço doloroso, uma sinecurazinha
numa repartição do Estado e um adjectivo adiante do nome!
Mas, para Alípio Abranhos, a recompensa não se limitou a um adjectivo, e esse discurso foi o
começo da sua prodigiosa carreira.
Ao entrar em casa, ainda vibrante das emoções da Câmara, esperava-o outra alegria, mais
grave, mais íntima: era pai! Era pai desde as três horas da tarde! Foi sua sogra que lho veio
anunciar ao alto da escada, num grito:
E o senhor até a estas horas por fora! Está tudo acabado! E um menino! E com a maior
felicidade! ... É um menino! O seu vivo retrato!
Não descreverei a cena tocante e doce que se passou no quarto da parturiente, porque a ela
não assisti. Não quero, como esses biógrafos de antigos reis e estadistas, que descrevem os
gestos e as palavras de cenas passadas em outros séculos, introduzir o elemento imaginativo,
o romance, neste trabalho histórico. Mas todos nós podemos conceber a emoção desse pai,
saído apenas de um triunfo social para vir gozar inesperadamente um triunfo doméstico, no
mesmo dia orador consagrado e pai venturoso.
Dizem-me que Alípio Abranhos, acabrunhado de uma felicidade muito forte, se deixou cair
numa poltrona com os olhos banhados de lágrimas, o filho nos braços, envolto nas suas faixas
brancas, e murmurou:
– Isto é um dia histórico... isto é um dia histórico!
Passou-se então dos dois lados da cama onde D. Virgínia, branca como as rendas da fronha,
sorria de um vago sorriso exausto – uma tocante troca de impressões exaltadas. Alípio contava
o seu discurso e D. Laura o parto.
– A Câmara ergueu-se como um só homem, e eram bravos, eram berros!
As primeiras dores foram terríveis, não é verdade, filha? Estava agarrada ao meu braço, que
até tenho a certeza que me deixou uma nódoa negra.
– Coitadinha! Mas o melhor foi quando eu desci; os apertos de mão, os abraços...
– Abraços merece ela, que se portou com muita coragem! E a criança, que saiu como por uma
porta aberta...
Ao canto do quarto, o novo ser, tenra vergôntea da casa dos Noronhas, indo dos braços da
parteira para os braços da ama, chorava baixinho, com um som de boneca a que se aperta o
estômago, nas suas primeiras contrariedades humanas.
Nesse mesmo dia, «em atenção à coincidência do seu nascimento e do triunfo do.papá»,
como disse o padre Augusto, foi decidido que o menino se chamasse Carlos Benvindo.
Durante o período legislativo desse ano, Alípio Abranhos fez ainda dois discursos, um, sobre
política colonial, outro, sobre o projecto do Caminho de Ferro de Leste. Este último é
sobremodo eloquente: poder-se-ia chamar a Ode ao Caminho de Ferro.
Nunca o utilitário modo de comunicação foi descrito com tal colorido, com tal vigor de
imaginação: «Vede-lo exclama o orador esse monstro de ferro, soltando das narinas
turbilhões de fumo, semelhante ao Leviatã da fábula! (bravo! bravo!) Vede-lo, atravessando
como um relâmpago os mais áridos terrenos: e que maravilhoso espectáculo se nos oferece
então: ao contrário do cavalo de Atua, cuja pata fazia secar a erva dos prados, por onde passa
este novo cavalo de fogo (bravo! bravo!) brotam as searas, cobrem-se as colinas de vinha,
(muito bem! muito bem!) penduram-se os rebanhos nas encostas verdejantes dos montes,
murmuram os ribeiros nas azinhagas, ondulam as searas (muito bem!) e o jovial lavrador lá vai,
satisfeito e alegre, cantando as deliciosas canções do campo, junto à esposa fiel, coroada das
mimosas flores dos prados! (Bravo! Bravo! Sensação!).
Encerradas as sessões, Alípio Abranhos, sua esposa e o tenro Benvindo partiram para
Campolide, onde iam passar o Verão.
Foram três meses de concentração, de íntima felicidade. Tinham passado ali, havia um ano, a
sua lua de mel, e a sombra de cada árvore, cada moita de flores, possuíam para eles o valor
de uma recordação deliciosa: a quinta tornara-se-lhes como uma vasta confidente simpática;
era com orgulho que lhe levavam o tenro Bibi, rabujando nos braços da ama, como o fruto vivo
do amor que ela protegera.
Mas nem por isso Alípio Abranhos ficou inactivo. Trabalhou muito e ali escreveu trechos,
imagens, perorações de futuros discursos. Foi ali também que ele tomou, passeando à tarde
na bela alameda de loureiros, como costumava, devagar, com as mãos atrás das costas, a
resolução importante que devia ter na sua carreira uma influência tão grave.
O ministério Cardoso Torres, ao fim da última sessão parlamentar, estava gasto. Esta
expressão a que eu chamaria, se me não contivesse o respeito, a «gíria constitucional»,
refere-se a um fenómeno venerável e repetido, que eu nunca com-preendi bem, apesar das
explicações benévolas que me foram dadas por conservadores, republicanos e cépticos.
ministérios que se gastam. E todavia, esses ministérios, como os outros, administram o
tesouro com honestidade, fazem o expediente das secretarias com suficiente regularidade,
mantêm no país uma ordem benéfica, não oprimem nem a imprensa nem a consciência, são
respeitosos para com o Chefe de Estado, acompanham com dignidade, ao Alto de S. João,
todos os defuntos ilustres, falam nas Câmaras com honrosa correcção, são na vida privada
cidadãos estimáveis, e no entanto ao fim de alguns meses desta rotina honesta, pacata e
higiénica – gastam-se.
Gastam-se porquê? Compreende-se que um ministério que luta com dificuldades, que se
coloca ao través da opinião pública, se gaste, como ao través de um frágil estacado que uma
corrente hostil incessantemente bate. Compreende-se ainda que um governo criado
especialmente para resolver certas questões sociais ou políticas, se torne desnecessário,
desde que as tenha resolvido, e fique como o zângão que fecundou a abelha e é daí em diante
um inútil.
Mas quando se não nenhuma destas hipóteses, quando os ministroso foram trazidos do
seio da sua família para resolver questões sociais, – ou porque as não haja, ou porque seja um
princípio tacitamente estabelecido deixá-las sem resolução quando,.56 em lugar de se
esforçarem contra a larga corrente da opinião, os ministros lhe bolam regaladamente no dorso,
não compreendo como um ministério se possa gastar.
Um dia pedi respeitosamente ao Conde d'Abranhos a explicação da palavra e do fenómeno, e
S. Exª, o que raras vezes sucedia, deu uma resposta vaga, tortuosa, reticente:
– É uma coisa que se sente no ar. É um não sei quê... Sente-se que a situação está gasta...
Não me permitiu o respeito que insistisse, mas, no fundo do meu entendimento, guardo um
secreto terror por este fenómeno incompreensível!
O ministério Cardoso Torres estava portanto gasto. Calculava-se que ele pudesse talvez
sobreviver durante grande parte da próxima sessão, mas, para o fim de Abril, devia
desaparecer subitamente, como tinham desaparecido os Bexigosos e a corveta Saragoça!
O Partido Nacional retomaria então o poder, e Alípio Abranhos que, agora, era Governo,
Influência, Força, Lei, passaria a ser o deputado loquaz de uma oposição estéril, pois que
ninguém acreditava que os Reformadores – a que pertencia Cardoso Torres tendo subido ao
poder por um acaso, vissem esse acaso repetir-se. Os Reformadores eram pois, na frase
clássica, «um partido sem futuro». O próximo ministério Nacional havia de colar-se às cadeiras
do poder durante anos. E poderia, durante anos, Alípio Abranhos ver as suas faculdades, o
seu génio, gastarem-se na retó-rica hostil e rancorosa da oposição?
Além disso o seu círculo de Freixo não era ainda um círculo certo. Durante esses curtos meses
de sessão, Alípio o tivera tempo de prender definitivamente, pela gratidão, pelo interesse,
pela lisonja, pelos serviços prestados, os influentes de Freixo. Se os Nacionais dissolvessem a
Câmara, quem sabe se Alípio Abranhos não se veria empurrado involuntariamente para as
doçuras da vida íntima, fazendo biribi no beicinho do Bibi, sob as sombras de Campolide,
enquanto outros, sem a sua eloquência nem os seus estudos, trotariam para Belém,
repoltreando-se nas almofadas do poder?
Decerto tinha deveres para com Cardoso Torres: fora ele que o nomeara deputado, que lhe
abrira as portas da vida pública, que o fizera... Mas, por outro lado, tinha deveres maiores para
consigo mesmo, para com a sua carreira, o seu nome, e, sobretudo, para com o tenro Bibi.
Não devia ele tornar-se grande no seu país, para um dia poder apoiar a carreira do Bibi? Tinha
ainda deveres para com Virgínia, a quem pesava a obscuridade social, e que, como uma
verdadeira portuguesa, ansiava por fazer a sua grande mesura de corte diante de SS. MM.
Tinha enfim deveres para com o país, ao qual não podia negar os serviços do seu alto
entendimento!
Estas considerações pesou-as bem Alípio Abranhos, nessas horas da tarde em que passeava
solitário na alameda de loureiros; e quando em princípios de Novembro voltou para Lisboa,
tinha decidido, no segredo da sua alma, passar-se com as suas armas de eloquência e a sua
bagagem de saber para o campo inimigo. Ia fazer-se oposição!
Esta resolução não a revelou a ninguém, nem à sua esposa mas durante meses preparou
o grande discurso em que explicaria, como ele disse, «as razões de Estado que me fazem
passar destas bancadas estéreis (e designava a maioria) para aqueles bancos fecundos!» (e
mostrava a oposição).
Muitas vezes este grande acto político foi chamado uma «indecente traição». Nada mais
absurdo. Pergunto eu: que é trair? É abandonar os ideais que se serviram, e passar, sem
razão, para o serviço de ideais opostos que até se combatiam! Isto é normalmente,
materialmente, uma traição.
Mas havia entre os Reformadores e os Nacionais ideais opostos? Abandonava Alípio Abranhos
ideias queridas, para ir, por interesses grosseiros, defender ideias.57 detestadas? Não.
As ideias que servia entre os Reformadores, ia servi-las entre os Nacionais.
Em Religião, que eram os Reformadores? Católicos, Apostólicos, Romanos. E os Nacionais?
Idem.
Em Política, o que eram os Rei armadores? Conservadores constitucionais. E os Nacionais?
Idem.
Não tinham ambos o mesmo amor pela dinastia? – O mesmo.
Não eram ambos sustentáculos dedicados da propriedade? – Dedicadíssimos.
Não desejavam ambos a estrita aplicação da Constituição, da Constituição, de toda a
Constituição? Desejavam-na ambos, ardentemente.
Não eram ambos centralizadores? Eram.
Não estavam ambos firmes na manutenção de um exército permanente? Firmíssimos, ambos.
Não tinham ambos um nobre rancor aos princípios revolucionários? Um rancor nobilíssimo.
E em questões de Instrução, de Imprensa, de Polícia, não tinham ambos as mesmas óptimas
ideias? Absolutamente as mesmas.
Não eram ambos patriotas? Fanaticamente!
Então? Pode-se dizer que Alípio Abranhos, indo dos Reformadores para os Nacionais, traía
as suas ideias? Não! Certamente não!
Mas, dir-se-á, traiu o seu amigo Cardoso Torres.
Distingamos: Em Cardoso Torres o homem e o político. Trair o homem, seria, por exemplo,
(ainda que tal suposição me faz tremer de horror) pôr mão libidinosa no seio respeitável de D.
Josefa Cardoso Torres. Alípio Abranhos fê-lo?
O vosso silêncio grave é a melhor resposta!
Mas traiu o político, direis. Vejamos: que é um político? E um ser que simboliza um complexo
de ideias: só se pode traí-lo, traindo as ideias que ele representa. Ora eu provei
suficientemente que Alípio Abranhos não traiu nem em Religião, nem em Moral, nem em
Economia Política, nem em Administração, nem em Pedagogia as ideias representadas pelo
Ex.mo Cardoso Torres.
Onde está pois a traição? Dizei-o. Ah! esses olhares no chão, essa expressão consternada,
provam sobejamente que nada tendes a responder aos meus argumentos impecáveis!
Passou pois para a oposição o nosso grande Alípio, e com que prodigiosa impressão esse
passo foi recebido no país, di-lo a História Constitucional.
Foi no discurso de resposta ao Discurso da Coroa que se viu Alípio Abranhos subir à tribuna, e
com palavras comovidas, dizer que a sua consciência, os seus princípios, o seu patriotismo,
forçavam-no a separar-se de amigos «cujo estandarte segui» – exclamava – «enquanto julguei
que eles levavam o País à conquista do Progresso mas de quem me separo com dor, ainda
que com firmeza, no dia em que vejo que eles impelem a minha Pátria, esta Pátria que eu
amo mais do que amei minha mãe – para os abismos e para a ruína!» (Bravo! Bravo!)
Com um grande tacto político, Alípio Abranhos nunca disse claramente, nesse discurso
magistral, os factos que lhe provavam que o Ex.mo Cardoso Torres fosse arrastando Portugal
aos Abismos; mas os apoiados unânimes, os bravos frenéticos da oposição, mostravam-lhe
que, ainda que ele, por respeito aos seus antigos camaradas, calasse esses factos, a oposição
os compreendia absolutamente.
Assim, que grande ovação quando Alípio Abranhos traçou o inspirado quadro do estado do
País sob a administração Cardoso Torres: «Olhai em redor, e vede este formoso torrão de
Portugal, que vós jurastes, nas mãos de El-Rei defender e fazer.58 prosperar; olhai e dizei-me
se sois dignos de estar nesses bancos uma hora mais: por toda a parte o esbanjamento da
fazenda pública, por toda a parte o patrocinato primando o mérito; a escola, essa fonte pública,
seca de instrução; as férteis campinas, desoladas; as estradas que prometestes, cobertas dos
pedregulhos e das lamas da incúria; as cadeias, esses depósitos do mal, trasbordando; e o
pobre camponês, que sucumbe ao peso dos impostos, regando com lágrimas o grão escasso
que lhe um solo desolado!» (Bravo! Bravo!). E os ministros, nos seus bancos, com os
braços frouxos, a cabeça pendente, sentindo retumbar-lhes aos ouvidos aquela voz, igual a
outra que na Antiguidade, do fundo dos ares apostrofara Caim, pareciam contemplar,
aterrados, a visão pavorosa da Pátria arruinada!
A sensação foi prodigiosa.
Nessa noite, quando, deitado no seu sofá exausto do seu grande feito oratório, Alípio se
reconfortava na placidez do chá doméstico, recebeu uma carta do Conselheiro Guedes
Navarro, chefe da oposição Nacional, em que lhe dizia, depois de outras considerações:
«Como discurso, poucos conheço iguais em Mirabeau ou em Lamartine. E para o partido
Nacional uma honra, não ter recebido nas suas fileiras um homem do seu valor, mas ter
dado ocasião a que pronunciasse um discurso de tal elevação. Já não é somente para cumprir
o nosso pacto, que lhe será guardada uma pasta na formação de um ministério Nacional. Essa
pasta não é, d'ora em diante, a recompensa da sua adesão: é uma necessidade de existência
para o partido Nacional, que terá em V. Exª, de futuro, o seu Mirabeau conservador.»
Donde se deduz, de resto, que Alípio Abranhos, com um grande alcance político e uma
profunda experiência dos homens, não dera aquele passo sem primeiro ter garantidos todos os
meios de penetrar no poder, e prestar ao País aqueles altos serviços que lhe estava
preparando o seu génio político.
O desespero do governo e da maioria teve um raro carácter de alucinação. Alípio Abranhos
passou a ser o infame, o canalha. Nessa mesma noite toda a sua vida foi explorada,
rebuscada como uma velha algibeira, na esperança de se encontrar algum escândalo
esquecido. Disse-se que fora o amante da velha Madame Gato, que tinha um prostíbulo no
Arco do Bandeira; espalhou-se que era filho de um sapateiro de Penafiel, muitas vezes
condenado por ladrão; afirmou-se que vivia em desavenças contínuas com sua mulher e que
os vizinhos ouviam de noite os gritos das lutas conjugais; contou-se que o velho Dr. Vaz
Correia lhe dera pontapés no escritório, por o ter encontrado a falsificar um documento;
murmurou-se que era dado em Coimbra a deboches contra a natureza.
Dos artigos dos jornais nem falarei, para não concorrer a desacreditar mais ainda, perante o
público, uma instituição a que implicitamente pertenço.
Sentia-se que a sessão seguinte seria, na frase consagrada, «tempestuosa». Com efeito, as
galerias trasbordavam de gente: todos os amigos que outrora pertenciam às soirées do
Desembargador Amado, e que, agora, começavam a frequentar a casa dos Abranhos,
estavam. Esperava-se que em presença das recriminações, que não podiam deixar de se
produzir da parte da maioria indignada, Alípio Abranhos pronunciaria outro discurso, no qual o
orador se mostrasse, na frase que ouvi a não sei que personagem: «Demóstenes multiplicado
por três!»
estava o coronel Serrão, que idolatrava Alípio, descarregando olhadelas ferozes como
cutiladas sobre os «cachorros da maioria!» Lá estava o Conselheiro Andrade, que
acompanhava D. Virgínia e a bela Fradinho; estava o sobrinho da pobre D. Joana Carneiro,
em bicos de pés, na última bancada, e à frente, mais sombrio, mais meditativo, o Doutor.
Antes da ordem do dia, um deputado de estatura hercúlea e de voz de roncão, pediu a palavra.
Era o famoso Gorjão, e a sua presença na tribuna, onde ele subiu, se plantou, fazendo reluzir
sob as sobrancelhas espessas um olhar coruscante, revelou suficientemente o plano infame
da maioria. Eu classifico este plano com uma palavra: tentativa de assassinato.
O famoso Gorjão representava no partido dos Rei armadores, a que ele de resto sempre
pertenceu, o papel que desempenhava nas redacções dos jornais parisienses da Restauração
o espadachim, tão poderosamente descrito por Balzac. O espadachim era ordinariamente um
antigo oficial da Guarda Imperial, que a Restauração reformara, e que, levado à miséria pelo
absinto, o tabaco e as meas, alugava a força do seu pulso e a sua destreza à espada a
algum jornal de combate. De olho avinhado, voz catarrosa, bigode erriçado, grande casaco
debruado de astracã abotoado até ao pescoço, cabelo à escovinha, chapéu ao lado, este
personagem temeroso passava o seu dia na antessala de uma redacção, queimando o
cachimbo de espuma, repastando-se nos jornais de histórias de crimes e de roubos, e
esperando que pessoas ofendidas subissem as escadas, a pedir a explicação de um artigo
muito insultante ou de uma calúnia muito directa. E se algum desgraçado aparecia, o feroz
indivíduo erguia a sua enorme estatura, escarrava grosso no chão, e perguntava com voz
agressiva e o olho raiado de sangue:
– As suas armas? Os seus padrinhos? As ordens!
E, ou o ofendido recuava diante da medonha aparição deste cão de fila ou, ao outro dia,
recebia, através de uma entranha essencial, a lâmina infalível da sua espada.
Gorjão era, entre os Reformadores, o espadachim do partido. Ele foi, durante vinte anos, neste
país, o papão! A sua barba negra era feroz, e quando descia o Chiado com o chapéu sobre o
olho, fazendo sibilar a bengala, um terror invencível contraía o coração dos cidadãos... A sua
biografia, desde Coimbra, era uma lenda pavorosa de cabeças partidas, queixos
esmigalhados, tremendos heroísmos de pulso. Quando entrava num café, toda a gente se
curvava palidamente sobre o periódico ou o copo de genebra, evitando ser notado por ele
pois se dizia que o seu olhar era imediatamente seguido do seu murro. O Marrare, então
florescente, era o antro desta fera. Quando ele morreu de um catarro de bexiga, Lisboa sentiu
um alívio suave e as costas dos cidadãos endireitaram-se, porque não as ameaçava de alto
a bengala do Gorjão.
A intenção perversa da maioria era, pois, clara: Gorjão, da tribuna, injuriava Alípio; Alípio,
bravo, retorquia com irritação; e Gorjão, nos corredores, esmagava Alípio a murros, ou, ao
outro dia, nas terras da Pólvora, varava-o com uma espadeirada!
Parece hoje provado que tal plano fora resolvido numa reunião da maioria: vergonha eterna!
Não procederia de outro modo uma conjuração de zulos, agachados ferozmente entre o alto
tojo africano, no Kraal de Cettivayo! Este grosso brutamontes entrara para S. Bento para
assassinar a Eloquência, o Patriotismo e o Génio, na pessoa de Alípio Abranhos!
Ainda bem que te matou, fera, um providencial catarro de bexiga: a tua bengala não mais
oprime os homens livres, e eu posso impunemente, e com regozijo, escarrar-te sobre a
sepultura que o haver-te escarrado na face ter-me-ia sido impossível, por ser, como sou,
de constituição delicada!
Com efeito, as fauces do cão de fila abriram-se, e durante uma hora ladrou a injúria; e como
ele tinha (meu Deus, sejamos justos com todo o mundo!) uma certa habilidade de prosa, uma
experiência astuta da perfídia parlamentar, não o fez claramente, o que lhe atrairia sobre o
dorso as severidades do Regulamento. Não pronunciou o nome de Alípio. Falou apenas do
traidor, do apóstata, e sob esta designação vilmente vaga, rugiu, com punhadas de atleta, a
sua verrina estudada. O desgraçado, porém, participava, como todos os da sua corpulência,
da clássica estupidez.dos colossos: não contava com a finura, a habilidade, o génio de Alípio.
Com efeito, o nosso herói deu-lhe uma lição severa: todo o tempo que o Roldão da Baixa
trovejou, Alípio, curvado, rufava tranquilamente com os dedos sobre a sua pasta de verniz.
E quando, entre os aplausos da maioria alucinada, o medonho Gorjão terminou, lançando uma
apóstrofe «aos cobardes que sob a injúria, em lugar de erguer a cabeça em desafio, rufam,
agachados, sobre as mesas» Alípio, que todos esperavam ver pular para a tribuna, tomou
serenamente o Diário do Governo, e pôs-se a folheá-lo com pla-cidez.
Dos bancos da maioria saíram vozes:
– Que nojo! Que abjecção!
Mas o grande homem, pálido, sim, de emoção reprimida, mas sereno na aparência, continuou
imperturbável a folhear o Diário do Governo. Assim o plano da maioria falhava. Alípio
Abranhos, provocado, insultado, caluniado, lia o Diário do Governo!
Esperando provocar-lhe uma cólera fatal, produziam-lhe apenas uma serenidade sublime!
Daqui, uma raiva desordenada e outro orador da maioria, o Sr. Albino Peixoto, subir à tribuna:
depois do Roldão trovejante, era Simão de Nântua, o melífluo.
Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos de ouro, por todo o seu
serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas palavras, pela sua plácida polidez,
assemelhava-se ao amável filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que fala o livro
querido onde aprendemos a soletrar.
O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias, mas em voz suave e chorosa. Os
vitupérios que o outro rugira, este lagrimejou-os. Era, de resto, pessoa de uma proverbial
pacatez: havia nos seus movimentos a hesitante timidez de um ope que perdeu os óculos;
caminhava na vida como na rua, com extremo cuidado, evitando pisar um calo ou uma
susceptibilidade.
Em consequência da sua autoridade intelectual (e não, como vilmente se disse, porque deste
não tinha medo), Alípio decidiu responder-lhe.
O silêncio que se fez na Câmara quando Alípio Abranhos se ergueu e pediu a palavra, foi um
daqueles clássicos silêncios muito conhecidos e estimados em retórica «que precedem as
tempestades».
Começou por dizer que se erguia para responder ao Sr. Albino Peixoto e ao Sr. Albino
Peixoto acrescentando estas palavras tão admiradas, tão dignas de ficarem clássicas (ainda
que se disse depois perfidamente que ele as imitara de Guizot):
– Pode o ilustre deputado acumular as calúnias, elas não chegarão à altura do meu desprezo!
Peixoto ergueu-se de um jacto, e erecto palidíssimo:
– O ilustre deputado insinua que eu sou um caluniador?...
– Ordem! Ordem!
Resposta admirável de Alípio Abranhos:
Eu não quero insinuar que o ilustre deputado é um caluniador. Eu afirmei, e claramente,
que o ilustre deputado acumulou calúnias!
– Ordem! Ordem!
Leio no extracto da sessão esta infecta interrupção de Gorjão:
– Não responda, Peixoto! Para os cobardes, só o escarro ou o chicote...
Alípio Abranhos não se dignou responder-lhe.
Mas o pacífico Peixoto, que decerto a maioria excitava, exclamou lívido:
O desprezo de um homem de bem poderia magoar-me, o desprezo de um traidor.só me
regozija!
Triunfante réplica de Alípio Abranhos:
– Traidores são os que vendem a sua pena e fazem de um jornal um prostíbulo!
Esta alusão a certos factos lamentáveis da carreira jornalística de Albino Peixoto, produziu
uma tormenta que eu encontro assim descrita no Diário das Câmaras: (Sensação prolongada.
Diversas interrupções que não chegam à mesa dos taquígrafos. Os senhores deputados, de
pé, em grande confusão, trocam palavras coléricas. O Sr. Presidente, não podendo fazer-se
escutar, suspende a sessão).
O que me resta contar é doloroso. Nos corredores da Câmara, Alípio Abranhos é subitamente
interpelado pelo Dr. Albino Peixoto, que se lança de entre um grupo da maioria, e lhe grita:
– Retire as palavras que disse, senhor!
Alípio, prudente, balbuciou:
– Mas colega... mas caro colega...
– Retire as palavras, canalha! – rugiu Peixoto.
Alípio (como ele me disse depois) ia talvez, por amor da dignidade parlamentar, retirá-las,
quando Gorjão, intervindo bruscamente, trovejou:
Não retira nada! Entre cavalheiros, estas questões de honra não se tratam assim. Não retira
nada! Venha daí, Peixoto...
Arrastou o Dr. Peixoto e, daí a pouco, voltava acompanhado de um certo Sequeira, que depois
morreu em África, e dirigindo-se a Alípio Abranhos:
– Preciso fazer-lhe uma comunicação séria. Tenha a bondade de nos acompanhar ao gabinete
A da Comissão de Fazenda.
Alípio seguiu-o, e, com ele, todos os seus amigos, na expectativa excitante de um conflito
inesperado. Porém entraram s no gabinete A da Comissão de Fazenda e Gorjão, que
retomara o seu ar pomposo, declarou:
– Vimos aqui numa missão de honra. O nosso amigo, Dr. Albino Peixoto, reclama uma
satisfação. V. Exª chamou-lhe vendido...
– Mas primeiro tinha-me ele chamado...
V. Exª chamou-lhe vendido! O que ele tinha chamado a V. Exª é-nos perfeitamente
indiferente. V. Exª chamou-lhe vendido, e, ou V. Exª, quando se abrir de novo a sessão
explicações...
Eu estou pronto a dar explicações... (Ouço daqui estas palavras precipitadas de Alípio
Abranhos, que, com os seus altos princípios de civilização, tinha o horror dos conflitos de
força).
Perfeitamente. As explicações são estas: V. Exª sobe à tribuna e diz: «Declaro que, quando
disse que o meu amigo Albino Peixoto era um vendido, menti, e que tenho as provas mais
evidentes da sua probidade impecável!»
– Então os senhores querem que eu diga publicamente que menti?...
Não querendo dar esta explicação, tenha a bondade de nos dizer a que horas poderemos
encontrar dois amigos seus, para regular as condições do combate...
– Do combate?... Mas, queridos colegas, ponham-se no meu lugar...
A estas palavras tão cordiais, tão conciliadoras, o brutal Gorjão respondeu:
No seu lugar qualquer de nós tinha muito tempo marcado a hora e as armas! V. Exª que
diz?
– Ao menos quero consultar alguns amigos...
– Consulte V. Exª os seus amigos.
Consultou, com efeito, dois amigos mas, infelizmente, escolheu aqueles que.eram menos
próprios para promover uma solução humana, sensata e cristã. Não os mencionarei, porque
vivem ainda e ocupam altas situações no Estado. Chamarei a um A e ao outro B.
A, fidalgo de alto porte, recebera das tradições da sua raça, um pouco deteriorada, o
preconceito clássico do ponto de honra. B, moço estimável, valente, caçador, possuía uma
única especialidade: a sua destreza à pistola e ao sabre. Ambos, em questões de honra,
tinham a manter uma reputação de seriedade e de valor. De resto, tanto um como o outro,
perfeitos cavalheiros, mas, infelizmente, muito predispostos, por índole, a soluções violentas.
Estes dois amigos opinaram, com a unanimidade de um coro antigo, que aceitar tal exigência,
era aceitar, implicitamente, uma humilhação infamante. Um homem que se declara mentiroso,
fecha diante de si as portas da Sociedade, da Vida Pública e dos seus conhecidos. O Sr.
Abranhos passaria daí por diante a ser um cobarde estabelecido. O medo seria a sua
profissão. Tornar-se-ia o homem que se pode insultar sem perigo. B disse-lhe mesmo
brutalmente:
Um homem que comete no começo da sua vida pública uma tal cobardia, torna-se, mais
tarde ou mais cedo, um armazém de pancada! Mostre que é homem e ninguém o torna a
insultar.
Que se podia responder a isto? Havia, sob o ponto de vista social, alguma verdade naquelas
frases triviais. Alípio Abranhos ou tinha de ceder às regras absurdas, obsoletas, monstruosas
que regulam a sociedade, ou tinha de abandonar essa sociedade e a carreira que um dia lhe
daria o delicioso prazer de a dominar.
Mas a ideia de se colocar diante de uma espada desembainhada ou de uma pistola aperrada!
Teve, um momento, o desejo furioso de fugir com D. Virgínia, com o Bibi, para um canto
ignorado da terra, e aí, vil mas intacto, sem elogios nos jornais, mas com todos os membros no
corpo, gozar egoistamente o amor, a paternidade, o repouso, a natureza, o conforto...
Mas consentiria Virgínia em ser a esposa do cobarde Alípio? Não seria cruel condenar Bibi a
ser o filho do abjecto Abranhos? Que diriam os jornais? Que diria o coronel Serrão? Que
risadas no Marrare! Esta ideia torturava-o. E foi com grande dignidade que respondeu a A e a
B:
Eu não tenho medo, os amigos bem o sabem. A minha questão é de princípios. Sou um
homem de progresso, e repugna-me esse meio de salvar a honra, à maneira da Idade Média!
Mas enfim, a sociedade é a sociedade... Vão-se entender com a fera do Gorjão. Espero-os em
casa... Mas prudência, lembrem-se que tenho família.
As negociações foram longas, muito delicadas. Infelizmente, parece que desde a primeira
palavra entre as testemunhas, ficou assente a priori, como base natural da argumentação, que
«haveria duelo», e, às 8 horas da noite, Alípio recebeu no seu escritório os seus amigos A e B,
que lhe anunciaram em voz baixa que ele, Alípio Abranhos, se batia à espada, às sete da
manhã, na Cruz Quebrada, e que os do Peixoto lhe deixavam a ele, Abranhos, a escolha do
cirurgião que melhor lhe conviesse.
– Um cirurgião! – exclamou Alípio, juntando as mãos, atónito.
E necessário um cirurgião, para o caso de ser preciso, por exemplo, ligar uma artéria. Enfim,
é sempre indispensável um cirurgião...
Alípio curvou-se, calado. Há, em certos silêncios humanos, em certo humano vergar de
ombros, uma ironia feroz, que deve fazer corar o destino, envergonhado da sua tirania... Alípio
Abranhos ficou só no escritório, prostrado sobre o canapé – tendo diante de si a visão nítida de
um corpo retalhado a golpes de espada, que uma viúva pranteia, esguedelhada.
A voz do padre Augusto que, como costumava, dizia algum inocente gracejo à Joana, (bonita
criada que eu ainda conheci) tirou-o deste legítimo torpor, e de repente, como um pássaro que
subitamente atravessa uma sala aberta, uma ideia de um engenho subtil atravessou-lhe o
espírito.
Abriu a porta, chamou o padre, e com uma gravidade que fez arregalar de terror os olhos do
bom eclesiástico, murmurou:
Padre Augusto, vou-lhe confiar um grande segredo... Um segredo tremendo, que há-de ficar
consigo.
O padre, aterrado, balbuciou:
– É em confissão? E segredo de confissão?
Não! exclamou logo Alípio. Pelo amor de Deus! Nem por sombras o considere segredo
de confissão. Que tolice! Credo! Isso estragava tudo... Fique bem entendido que não é
segredo de confissão... Mas é um segredo que lhe confio: bato-me amanhã em duelo!
– Caramba! – exclamou o respeitável sacerdote, caindo de chofre no canapé.
Então Alípio, sentando-se junto dele, contou-lhe a história do seu duelo. E terminou dizendo:
Se eu lhe digo tudo isto é para que seja o amigo que amanhã, se houver desgraça, console
a Virgininha. E agora adeus, que tenho papéis a pôr em ordem... Mas guarde o segredo, que
pode a coisa chegar aos ouvidos da polícia e transtorna-se tudo.
O sacerdote queria objectar, pregar, parabolar mas Alípio, suave e firme, empurrando-o
pelos ombros:
– É uma coisa decidida. Adeus. E agora veja lá, padre Augusto, não o vá dizer... Que a polícia,
se o sabe, impede a coisa... Adeus. E amanhã, às sete, na Cruz Quebrada. Não se esqueça
às sete – e guarde-me o segredo, amigo.
Padre Augusto foi ao cabide do corredor, agarrou o chapéu, e precipitou-se pela escada, como
uma pedra que rola.
Ao outro dia, às sete da manhã uma manhã clara, fria e seca quando Alípio com as suas
testemunhas chegavam ao sítio aprazado, o Regedor de Belém e seis cabos de polícia,
desembocando com fúria de trás de um maciço de árvores, apoderaram-se dos sete
cavalheiros (incluindo o respeitável Teles, cirurgião)!
Foram postos em liberdade às dez horas, de sorte que D. Virgínia soube por seu marido do
perigo que ele correra, e da intervenção providencial, que lho salvara. O seu orgulho foi
grande. Alípio tomou para ela as proporções de um d'Artagnan, de um Conde de Monte Cristo!
E a sua ternura, os seus afagos, a sua admiração, estavam dando a Alípio momentos
deliciosos, quando a Joana lhe veio dizer que os Srs. A e B, desejavam absolutamente falar-
lhe e esperavam na sala.
– Há-de ser para o almoço... Há sempre um almoço...
Não, não era para este fim honesto: era para lhe dizer para que A lhe dissesse secamente,
sem se sentar, com as mãos nos bolsos das calças, fazendo tilintar nervosamente um molho
de chaves:
Está provado temos a prova evidente que a polícia foi avisada por um amigo desta
casa... Isto é uma brincadeira torpe. Nem as testemunhas do Peixoto, nem nós, somos
pessoas com quem se brinque torpemente. O duelo que não de ter lugar hoje, há-de ter
lugar amanhã, no Lumiar. Se a polícia aparecer de novo, o que não é natural, agora que ela
está desprevenida, ficaremos cientes que o mesmo amigo desta casa a avisou, e nesse caso
nós todos nos consideraremos ofendidos, e V. Exª terá de se bater por ordem de número, com
o amigo Gorjão, o amigo Sequeira, o amigo B, este criado de V. Exª, e depois, com o
Peixotinho! Cinco duelos em lugar de um!
– Mas eu dou a minha palavra de honra... Eu não tenho culpa... É um assassinato!.
Temos a honra de desejar a V. Exª muito boas tardes. Aqui estaremos amanhã, às sete. E a
mesma tipóia, o cocheiro é seguro... E o Pintado. Não se incomode V. Exª... Criado de V. Exª...
Alípio, só no escritório, teve um grito de revolta:
– Aí está o que é um homem de bem meter-se com espadachins!
Se ele tivesse posto este negócio nas mãos prudentes do Conselheiro Andrade ou do
Fradinho, por exemplo, a solução decerto teria sido outra, toda honrosa, toda amigável; mas
entregara-a a dois personagens sôfregos de publicidade, pedantes do ponto de honra e ali
estava agora, empurrado fatalmente para diante de uma espada nua!
Que se passou na alma deste grande homem, nessa noite de agonia? Mal sabiam os que
passavam, à saída de S. Carlos, pelo Largo do Quintela, que ali, no segundo andar, por trás de
uma janela iluminada, havia um Horto, uma hora do Jardim das Oliveiras.
Quantas sensações, ideias, imaginações, se revolveram naquele vasto e complicado cérebro
de estadista. Ele revelou-me algumas dessas torturas em detalhe. Ao princípio tentou correr a
casa do Petit, e pedir-lhe que lhe ensinasse um bote-secreto, desses de que lera nos
romances, que se aprendem em Itália e que inspiram terror nas salas de esgrima. Pensou em
fazer o seu testamento, mas pareceu-lhe um mau agoiro lúgubre. Desejou então que houvesse
uma revolução, ou um incêndio que devorasse metade da cidade, uma catástrofe social, e
ficava a olhar, desesperadamente, para a tenebrosa pacatez do Largo do Quintela. Lembrou-
se com prazer, com esperança, que o Peixotinho sofria de um aneurisma... Quis rezar, mas
distraía-se: permanentemente, via a mesma visão da véspera um corpo traspassado de
estocadas, e uma viúva, desgrenhada, soluçando.
Que desespero! E ainda nessa tarde estava tão seguro, com todo o perigo passado,
saboreando as felicitações do seu fácil heroísmo, descansado para sempre, e agora ali se via
outra vez, recaído nas agonias da incerteza e nos terrores da Eternidade...
Enfim, ao outro dia, depois de um sono agitado, uma carruagem que parou à porta despertou-
o.
Dissera na véspera a D. Virgínia que havia, com efeito um almoço de amigos no Farol da Guia,
e que deviam sair cedo; e tão persuadida ela ficara, que apenas murmurou, meio a dormir,
voltando-se para a parede:
– Tem cautela... Não faças excessos, sabes que te dá a dor...
Aludia a certos espasmos nervosos de que ele sofria no estômago.
Partiram. A manhã, muito fria, estava nublada e parda. A e B, justo é dizê-lo, que na véspera
se tinham mostrado tão secos, tão cortantes, representavam agora com uma solicitude tocante
o seu papel de padrinhos. Enquanto a caleche batia e parecia a Alípio Abranhos que uma tal
velocidade era um exagero irritante davam-lhe conselhos práticos, tirados da própria
experiência e adequados aos conhecimentos elementares que Alípio Abranhos tinha da
esgrima: que se não descobrisse muito; a ponta da espada sempre diante dos olhos do
adversário; que nunca recuasse – e a sua solicitude era tão grande, que apagaram os charutos
matinais, vendo que o fumo enjoava Alípio. O grande orador, no entanto, como ele me revelou
mais tarde, sentia uma lassitude extrema, o desejo mórbido de um sono profundo, de anos, em
que nada o perturbasse, nem os despeitos do Peixotinho, nem as crises do Estado, nem a
piedade dos seus amigos. Por vezes uma casa, ou uma esquina de rua, recordavam-lhe outras
épocas de felicidade tranquila, em que a morte lhe aparecia como uma hipótese distante. A
morte!... Maldição! Ia agora talvez para ela, ao trote exagerado, estupidamente exagerado,.65
daquela magra parelha de praça... Lamentou então as coisas boas da vida os jantarzinhos
em família, as carícias de Virgínia, o seu quarto em casa das Barrosos, em Coimbra, e os
folhados de cocó, de que gostava tanto!
Mas, temendo que o seu silêncio pudesse ser tomado como a prostração do medo, começou a
falar com os seus amigos de política com uma prodigiosa lucidez e segundo me afirmou
depois um destes cavalheiros – num tom em que se sentia uma solenidade de testamento.
Chegaram enfim, e viram logo, ao de uma árvore magra, o grupo do Peixotinho e dos
padrinhos, tagarelando jovialmente.
Depois das saudações tradicionais, os quatro cavalheiros, reunidos ao da árvore, falaram
baixo, marcaram o terreno, desembrulharam as espadas e colocaram os adversários nos seus
lugares, com uma vivacidade muda, que parecia a Alípio Abranhos comparável, segundo o que
lera, aos preparativos rápidos e taciturnos dos carrascos sobre o cadafalso.
Apenas colocado, Alípio sentiu com terror tomá-lo um vago enjoo: ou fosse o balanço da tipóia
ou o ar frio da madrugada, o estômago, segundo a frase popular, «embrulhava-se-lhe».
Quando lhe deram a sua espada, um suor frio banhou-lhe a testa; uma debilidade esvaía-lhe
os rins... Desejou vivamente uma cama, um encosto, mas vendo que o
Peixotinho o fixava por trás dos óculos de ouro, resolveu ser heróico e plantou-se firmemente
sobre o solo, erecto, esperando o sinal.
A, bateu as palmas e então, subitamente, viram Alípio esgazear os olhos, abrir a boca e
apoiando-se fortemente sobre a espada, debruçado sobre ela, vomitar, vomitar longamente,
primeiro resíduos mal digeridos de comida, depois uma baba gelatinosa, e finalmente, com
anseios roucos, fezes esverdeadas! A, sustentava-o pelos ombros; B, amparava-lhe a cabeça,
e o grande orador, entre os puxões dos vómitos, murmurava com os lábios babados:
– É do estômago! ... É um bocado... de indigestão!
Todos viram bem que «era do estômago» e ninguém duvidou do seu valor.
Peixoto, porém esquecendo toda a delicadeza, disse alto, com desdém, voltando-se para os
seus padrinhos:
– Eu esperarei... Deixá-lo vomitar... Que vomite, que vomite!
Tanto desprezo indignou Alípio: endireitou-se, pálido, e tomando o ferro, balbuciou:
– Estou bem, estou melhor... vamos a isto!
E com uma patada na terra mole, ergueu alto a espada.
O Conde contou-me depois que mal tivera consciência da luta; vira os dois longos clarões das
lâminas lustrosas, e subitamente sentiu na orelha uma frialdade fina, penetrante. Recuou com
um berro:
– Estou ferido! Estou ferido na orelha!
O cirurgião correu e a serenidade penetrou longamente, largamente a alma de Alípio,
quando o ouviu declarar:
– Não é nada; é um golpezito. Com adesivo está pronto em três dias!
A honra foi, no cerimonial do estilo, declarada satisfeita; os dois adversários que, segundo
dizia a acta, se tinham batido como leões, apertaram-se as mãos, chamando-se Excelências, e
Alípio voltou para Lisboa com os seus padrinhos, na tipóia, tapando a orelha com o lenço.
Tal foi este combate histórico.
Os jornais da oposição celebraram o orador que sustentava as suas ideias com a espada e
derramava por elas o sangue da sua orelha. D. Virgínia sentiu todo o seu amor.66 flamejar
mais alto e mais forte, por este homem que lhe parecia superior aos Roldões e aos Oliveiros.
Os jornais do Governo, esses sim, falaram com escárnio dos vómitos do orador, mas foram
bem depressa reduzidos ao silêncio pelos jornais da oposição, que lembraram que anos antes,
o Ministro das Obras Públicas, batendo-se em duelo, não vomitara, mas tivera um tão
vergonhoso contratempo intestinal, que fora necessário conduzi-lo a uma venda próxima,
onde, durante horas, o prostrado estadista circulou lividamente de um banco da cozinha para
um recanto do pátio, como sob a influência dissolvente de óleo de rícino tomado sem
discernimento!
Como, porém, nem a intempestiva indigestão de Alípio Abranhos, nem o desastroso
relaxamento do Sr. Ministro das Obras Públicas foram exarados nas actas, o público
considerou estas insinuações como meras tácticas de discussão política e a coragem de Alípio
ficou estabelecida em bases duradoiras. Mais tarde o Conde tinha mesmo uma certa vaidade
neste duelo, a que ele chamava o seu «baptismo de sangue». Pelo menos deveu-lhe um
resultado estimável: depois dessa gota de sangue, os comentários irritantes sobre a sua
passagem para a oposição foram respeitosamente suprimidos.
Foi por este tempo se me não enganam os documentos que possuo que se começou a
organizar em torno de Alípio Abranhos um grupo fiel de amigos íntimos, a que se chamou
maliciosamente a coterie Abranhos ou a panelinha Abranhos, mas que eu depois designei num
folhetim do Globo geralmente estimado, com o nome mais respeitoso e mais justo de «Salão
de S. Exª». Não se creia, porém, que eu digo o Salão de S. Exª como diria o salão de M.me
Récamier, o salão de M.me de Girardin, ou o salão de M.me Adolphe Adam, ou ainda, numa
ordem mais efémera e mais boémia, o salão de M.me Troubetskoï; estes salões são uma pura
instituição parisiense, que Londres, Viena, Roma, Madrid, Berlim, copiam, dando-lhe a feição
particular da raça, das maneiras e da preocupação nacional. Tudo difere, por exemplo, entre
um salão de Berlim e um salão de Roma, desde a decoração das salas a às figuras
familiares e características. Num salão berlinense, tudo é duro, estreito, hirto, fortemente
destacado, desde a cor viva dos papéis ou das sedas baratas, até à forte iluminação de um
gás económico, que o mesmo tom áspero ao loiro seco dos cabelos das mulheres e à
figura regrada do oficial de Estado-Maior.
Pelo contrário, num salão de Roma, tudo é discreto, de meias-tintas, sóbrio, desde a
decoração dos mármores plácidos, dos doirados leves, da luz aristocrática dos candelabros,
até à palidez dos rostos, ao frufru subtil das caudas dos cardeais e ao murmúrio brando do
italiano, falado por vozes discretas e delicadas.
Não falo por experiência própria. A minha posição subalterna na sociedade nunca me permitiu
viajar ou penetrar nesses recintos augustos, mas uma pessoa eminente da minha família, meu
bom tio Julião, touriste bem conhecido, tem-me esclarecido sobre estas formas luxuosas das
civilizações superiores.
Em Lisboa, porém, o Salão não existe. Não me compete estudar aqui as razões desta
deficiência: enuncio somente o facto; portanto, quando digo o Salão do Conde d'Abranhos,
quero designar uma reunião pacata e íntima, onde se toma um chá bem servido, se abre uma
mesa de voltarete, se toca uma valsa conhecida e se fala no preço dos géneros ou nos
«podres» das famílias.
As soirées do Conde d'Abranhos eram desta estimável espécie. Não havia cerimonial nem
aparato: às dez horas vinha o chá com torradas e bolachas de água e sal; às vezes duas
senhoras enlaçadas valsavam graciosamente; não poucas vezes eu fui chamado a recitar
alguma poesia dos nossos grandes líricos; e os homens graves repousavam dos cuidados do
Estado num pacato voltarete a Vintém.
Insisto nestes detalhes, para destruir a errada opinião (que tende a introduzir-se na.História
Contemporânea) de que o Salão Abranhos era uma caverna política. Não nego decerto que
por vezes se não falasse dos negócios públicos, e que, quando o Ex.mo Conde era ministro,
as personalidades eminentes da maioria não viessem tomar sem cerimónia a sua chávena de
chá. Posso, porém, afirmar, que nunca nestas pacatas soirées se decidiram ou se combinaram
os grandes movimentos da política, como sucede nos salões estrangeiros, onde, segundo me
tem contado meu bom tio Julião, se tramam, por trás dos leques, golpes de Estado e se
decidem os destinos da Pátria entre duas vazas de whist!
Os íntimos dos Abranhos, eram, na sua quase totalidade, os antigos familiares do
Desembargador Amado.
Era o coronel Serrão sempre o primeiro a chegar, bufando alto, de aspecto feroz e coração
bondoso, sempre com sua filha Catarina, magra e estonteada, de grande cuja, os dentes maus
do abuso dos doces, as omoplatas salientes sob o corpete do vestido atabalhoado. Nunca
simpatizei com esta família.
Era a excelente D. Joana Carneiro, cujo cirro no estômago alastrava, inspirando geral
compaixão, sempre triste, trazendo todas as noites a narração dos sintomas crescentes da sua
doença. Acompanhava-a, amiúde, um sobrinho, marialva de calça justa e jaquetão cingido,
grande frequentador do Café Central, com voz rouca da noitada da véspera, e sempre
acanhado de se encontrar naquela sala, entre senhoras, num lugar onde nem havia fadistas,
nem pilecas, nem meios litros. Sua tia, inquieta do futuro, procurava afincadamente colocá-lo
numa repartição do Estado.
Era ainda a enorme D. Amália Saraiva, a que também me referi neste trabalho: os seios
fenomenais desta senhora, que se iam desenvolvendo progressivamente com os anos,
pareciam dois mundos. Quando desapertasse o vestido fortemente espartilhado que os
continha, o trasbordar daquelas duas prodigiosas massas de tecido celular devia ser um
espectáculo pavoroso e grandioso! Viúva de um homem que prestara vagos serviços ao
Estado, reclamava agora com pertinácia uma justa pensão. Vinha geralmente com sua
delicada filha, a tocante Julinha, adorável pela fidelidade e graça juvenil com que recitava A
Lua de Londres e outras maravilhas da literatura pátria.
Não devo esquecer o Conselheiro Andrade, agora frequentador assíduo do Salão Abranhos,
pequeno, aprumado, escarolado, com o seu perfil de jurista, as suicinhas brancas, o ar
próspero. Proprietário abastado do Ribatejo, continuava a dar toda a sua atenção à agricultura,
e, como agora escrevia artigos profundos no Arquivo Rural, este lado literário da sua
personalidade estabeleceu entre nós uma simpatia, que, vindo de um homem tão opulento, é
ainda uma das honras da minha carreira.
Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável, mas de aspecto lúgubre, que
todos apenas conheciam por este nome: o Doutor. Sempre vestido de preto, sempre de luvas,
amarelo como uma cidra, persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com
uma atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos, como num profundo
trabalho cerebral. Respeitador fervente das instituições, das personalidades oficiais, ninguém
sabia ainda onde ele vivia, nem de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque
era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das senhoras, dizia com tanta
convicção, na sua voz cavernosa, «tem V. Exª carradas de razão»; que era geralmente
considerado como um excelente moço.
Mas a maior animação daquelas soirées era dada, como outrora em casa do Desembargador,
pelos nossos conhecidos Fradinhos. O Dr. Fradinho, que teve depois uma tão gloriosa carreira,
não passava então de um modesto advogado. Possuía, porém, uma certa fortuna, e com as
suas lunetas de ouro e o farto bigode, era na verdade um belo homem. Nada encantava nele
todavia como a vivacidade da conversa; não, em boa.68 verdade, que eu jamais lhe ouvisse
expor uma ideia original ou um dito faiscante: mas era fecundo e verboso. Ninguém conhecia
melhor a nossa legislação, e sobretudo a da Bélgica, o seu país favorito. Era além disso activo,
ambicioso, dúctil, e a sua admiração, a sua dedicação por Alípio Abranhos, davam o traço
dominante do seu carácter.
De D. Luísa Fradinho, que direi? Como em casa do Desembargador, quando ela entrava na
sala dos Abranhos, com o seu belo corpo de Juno, o penteado alto, o brilho dos olhos felizes, a
sala iluminava-se daquela luz particular que irradia da beleza feminina. E certo que a sua
amabilidade, o seu espírito, deram lugar a que a sua reputação fosse manchada pela nódoa de
uma calúnia anónima; eu não a creio, porém, culpada e se havia entre ela e o bacharel
Tavares uma grande intimidade, provinha somente de que os seus espíritos, muito
semelhantes, encontravam na conversação um encanto mútuo e todo intelectual.
Este bacharel lavares era um primo segundo de D. Virgínia. Formoso e variado talento o seu!
Pintor, poeta, dramaturgo, cultivava estas artes apenas como amador. Algumas das suas
deliciosas traduções de vaudevilles foram representadas com êxito no Ginásio, sob o
pseudónimo de César Trajano, e os seus versos, de um encanto pene-trante, de uma
suavidade simples, à João de Deus, os dizia muito solicitado, ou oferecia às senhoras
alguma cópia, que era ao mesmo tempo uma obra notável de caligrafia.
Este formoso talento era amanuense na Procuradoria Geral da Coroa, e ele não me ocultou
que esperava da futura elevação política de Abranhos a sua própria elevação na carreira
publica, esperança que era de resto partilhada por todos os familiares do Salão Abranhos, aos
quais devemos acrescentar o padre Augusto e os Amados.
Toda esta gente, com efeito, seguia com um interesse ansioso a carreira parlamentar de Alípio
Abranhos. Pode-se dizer que esta, desde a sua passagem para a oposição, não era pacífica
nem preguiçosa: o grande orador, segundo a expressão conhecida, estava sempre na brecha.
Nunca um ministério teve um inimigo mais persistente, mais vigilante: – interpelações, moções,
ordens do dia, discursos, apartes, e muitas vezes, na sua justa indignação, patadas no soalho
tudo empregou contra o governo, à maneira do bravo combatente Roldão, que ia contra os
mouros à espada, à pedra, e aos coices do seu ginete! Foi um período de febre, de batalha.
Dizem-me que havia então nas suas palavras, nos seus olhos, nas suas passadas, alguma
coisa de guerreiro, de belicoso. A noite, ao chá, entre os amigos, exclamava, de pé, no meio
da sala, com a chávena na mão:
– Hei-de-os atirar de cangalhas, minhas senhoras! Hei-de-os atirar de cangalhas!
É sabido, porém, que a Providência determinara que o ministério Cardoso Torres não seria
«atirado de cangalhas» segundo a sua pitoresca expressão pelo nosso sublime Alípio
Abranhos.
Com efeito, quando as Câmaras fecharam em Abril, o ministério Cardoso Torres era, como
dizia Esquilo, o pomposo dramaturgo, «torre de ferro, de força e de domínio». Alípio Abranhos,
portanto, retirou-se como de costume para Campolide, a retemperar na comunhão da Natureza
as suas forças cerebrais, exaustas por tantos com-bates da inteligência.
E foi aí, numa clara e luminosa manhã de Junho, que recebeu de golpe a notícia de que o
ministério Cardoso Torres fora derrubado por uma revolução!
Não me compete aqui fazer a narração da Revolta de 20 de Junho. Os detalhes desse
episódio são familiares à nossa geração. Um velho general despeitado, saltando através da
Constituição, com a desenvoltura com que num circo um atleta salta através de um arco de
papel, trotou tranquilamente para o Paço, seguido de três regimentos, e pediu a demissão do
ministério e a concentração na sua pessoa heróica e legendária, de.69 todo o poder social. Foi
de resto um pronunciamento à espanhola, na proporção, todavia, que existe entre o feroz
génio castelhano e o nosso temperamento pacífico, entre uma sangrenta corrida de Sevilha e
uma alegre tourada no Campo de Santana. Não vimos as patéticas derramações de sangue
que são da tradição clássica na violenta terra do Cid; houve apenas, segundo se diz,
ferimentos ligeiros, facilmente curados numa farmácia amiga. E o general ilustre, que partira às
sete da manhã, rebelde, à testa de um exército rebelde voltava, às sete e meia, num trote
sossegado, presidente do Conselho, à frente das forças da Ordem!
Que surpresa para esta boa população de Lisboa! Mas que desgosto para mim!
Eu, que nunca presenciara uma revolta nem uma guerra civil, perdia assim, roncando
estupidamente o sono da madrugada, a oportunidade de ver um pronunciamento, de assistir a
episódios de guerra, de testemunhar a única revolução armada da minha época, no meu país.
E isto inteiramente por negligência minha. Eu escrevia então, com proveito e aplauso, as locais
no jornal O Estandarte; às duas horas da manhã, depois de rever as provas de uma deliciosa
anedota que copiara do Almanach Pour Rire, preparava-me para deixar a redacção, quando
dois colegas entraram, trazendo o boato de que o general citado organizava um movimento
para essa madrugada, e propondo que tomássemos uma tipóia para «ir ver a revolução a
Belém».
Descemos ao Rossio e apreçámos uma caleche: o cocheiro, um batedor respeitado, o Ginja,
pediu-nos 3$60 para nos levar a Belém, a presenciar a revolta. Éramos três e isto constituía
um desembolso de um quartinho por cabeça, para ir assistir a um facto histórico... Tanta
rapacidade indignou-nos. Achámos odioso que o Ginja aproveitasse as desgraças da sua
Pátria para erguer tão impudentemente a cifra das suas tarifas. Dissemos-lho em palavras
severas e eloquentes: o Ginja ameaçou-nos com o pingalim. Então, percebendo que se
começavam a desencadear as paixões da plebe, recolhemos eu pelo menos recolhi a casa,
pensando que se o boato da revolta era exacto e a impudência do Ginja um sintoma, veríamos
ao outro dia, repetidos no Chiado e na Baixa, os horrores de 93 e as matanças de Setembro.
Mas a verdade é que eu não acreditava na revolta; e no meu quarto, depois de ter meditado,
como costumo todas as noites, sobre as vantagens da Ordem e a grandeza do Ente Supremo,
adormeci, tranquilo e satisfeito.
Qual não foi o meu desgosto, ao outro dia, quando o Sr. Ferreira, estimável dono da casa de
hóspedes onde eu então vivia, na Travessa da Conceição, me anunciou, atónito, que nessa
madrugada houvera uma revolução em Portugal! Corri precipitadamente ao Estandarte... à
mesma hora em que uma caleche entrava a largo trote nas portas da cidade, trazendo Alípio
Abranhos, D. Virgínia, Bibi e a ama. O nobre homem blico, como depois me disse
textualmente o Conde, «precipitara-se para o seu posto, desde que soubera da crise da
Pátria!»
Se houvesse guerra civil, ele queria bater-se em defesa da Carta e da Legalidade, e se se
atender, segundo a acta do seu duelo à coragem que mostrara em frente da espada do
Peixotinho, não duvido que daria um valente soldado da Monarquia, à maneira dos Charettes e
dos La Rochejaquelins de imperecível memória.
Se não houvesse guerra civil, pensava combater a ditadura militar, na tribuna, se ela estivesse
aberta, na imprensa, se ela fosse livre; senão, na rua, na Casa Havanesa, no Grémio, em S.
Carlos, no Magalhães do Chiado – pois não importa o púlpito a quem prega a verdade!
Apenas o Conde chegara a casa, o coronel Serrão, Fradinho e o Doutor, apareceram
simultaneamente, prevendo com sagacidade que Alípio Abranhos decerto não se isolaria em
Campolide, «quando Lisboa estava entregue a Cila», como disse o eloquente Fradinho.
Então no meio dos seus amigos, fechadas as portas, Alípio trovejou. Uma tal violação da
Carta, a introdução petulante, em Lisboa, dos métodos espanhóis, «a tirania da soldadesca»,
indignavam-no. Foi, segundo depois me disse Fradinho, sublime; sentia-se, ouvindo a sua
verbosidade trovejante que pela cólera lembrava Juvenal e pela correcção era comparável a
Cícero que, se fosse dado a Alípio Abranhos subir à tribuna, aniquilaria, numa sessão, a
Ditadura, os créditos do velho general e a influência perversa das armas.
Fradinho acompanhava-o numa explosão paralela de cólera patriótica; o Doutor, de testa mais
franzida, mugia apoiados surdos. o coronel, calado, fumava com desespero. No fundo da
sua alma, o triunfo do velho general e do elemento militar encantavam-no: era a sua gente,
que diabo! Eram os seus velhos companheiros, caramba! Porém, o seu respeito beato pelas
opiniões de Alípio, abalava-lhe o entusiasmo; e coçava freneticamente o cabelo grisalho
cortado à escovinha, rolando olhares ferozes, sacudido entre a influência civil de Alípio e o
prestígio militar do velho general, furioso com o próprio cérebro, que não produzia naquela
crise uma opinião profícua e pessoal.
De repente, D. Virgínia abre a porta da sala, agitada, e informa que «um primo do general quer
falar ao Alipiozinho». Ela não o conhecia, mas vinha fardado e parecia amável: no corredor até
tinha feito cócegas na barriguinha do Bibi!
Alípio Abranhos aprumou a nobre estatura, na pose clássica do patriota ultrajado, pensando
que à maneira de Luís Bonaparte depois do golpe de estado de 51, o General ditador ia
prender, lançar no exílio as inteligências liberais.
Todavia as cócegas na barriga do Bibi pareciam pressagiar uma missão amiga... E foi com
firmeza, embora pálido, que se precipitou para a livraria.
Os três amigos ouviram no corredor a voz alegre do militar exclamando:
– Como está V. Exª? Imenso gosto em ver V. EXª. Desejo dar uma palavra a V. Exª...
Positivamente, vinha em missão amiga! Os três olharam-se, petrificados, sem compreender; e
durante um quarto de hora que tanto durou a entrevista pelo relógio do Doutor passearam
da janela para a porta, calados, em fila, com os charutos em riste e as mãos atrás das costas.
Fradinho contou-me depois que lhe bateu alto o coração, que sentiu cólicas como em Coimbra
nas Sabatinas, quando ouviu de novo, no corredor, a voz jovial do militar: «um criado de V.
Exª... Respeito os escrúpulos de V. Exª... Às três então... Não se incomode V. Exª.»
Logo que Alípio abriu a porta, mais pálido, três vozes devoradoras o assaltaram:
– Então?
– Que era?
– Que há de novo?
– O General propõe-me que entre para o ministério... Para a pasta da Justiça...
– E então?
– Pedi duas horas para reflectir...
Porém «o caso» parecia prodigioso a Fradinho. Como? O General tinha feito uma revolta, e
não formara de antemão, numa lista, num papel, o seu ministério? Mas Alípio explicou «o
caso». Havia, com efeito, um ministério preparado, que, segundo a frase pitoresca e histórica
do capitão, acompanhara a expedição ao Paço, na bagagem. Mas à última hora, o cavalheiro
que devia ser ministro da Justiça recusava, recusava com obstinação, recusava com frenesi,
batendo patadas no chão. E o General, em presença daquela perrice, mandava oferecer a
pasta a Alípio. Porque o General queria a legalidade, queria as Câmaras e necessitava um
Demóstenes. (Palavras do senhor.71 capitão).
– E para isso não há outro em Portugal senão você, juro-lho eu! – exclamou com entusiasmo o
coronel.
Era também, realmente, a opinião de Fradinho. Porque, enfim, colocava-se no bom-senso:
qual fora, durante a sua carreira de oposição, o fim, a ambição de Alípio? Deitar de cangalhas
os Reformadores! Caramba, eram as suas palavras textuais! E os Reformadores estavam
de cangalhas, de pernas ao ar, o lombo na calçada! Prostrados, meu caro amigo, prostrados!
O General, pois, fizera com a espada o que Alípio queria fazer com a língua! Era lamentável
decerto; mas, desde que El-Rei entregara o poder ao General, a espada que era rebelde às
sete da manhã, tornava-se legal às sete e meia. Podia Alípio ter escrúpulo em a servir?
Demais, ele, pela autoridade do seu talento, introduzia nesse ministério nascido da revolta, um
elemento de moderação, de ordem; ele iria com a sua prática parlamentar constitucional,
contrabalançar o que houvesse no temperamento do General de mais autoritário e de mais
fanfarrão. Ele seria o elemento jurídico, ponderado, equilibrando o elemento militar. Ainda que
lhe custasse, devia aceitar, para impedir que o General se lançasse numa ditadura muito
pessoal. Era um sacrifício à Ordem, à Liberdade, à Carta. O amigo Alípio devia sacrificar-se!
Alípio, de uma palidez crescente, coçando nervosamente o «passa-piolho», entrevia aspectos
dessa coisa invejada, vaga, cintilante e prodigiosa: o Poder! o Ministério!
Via a sua entrada na Secretaria, entre espinhaços respeitosamente curvados; via-se
distribuindo os empregos, dominando a magistratura; à porta, esperava-o o correio; e ao longe,
estendia-se a estrada deliciosa que leva à Ajuda, ao aperto de mão de El-Rei.
Que sensação em Penafiel, quando se soubesse! Que ferro para os que o tinham chamado na
imprensa pedante e roncão! Que vingança deliciosa para Virgininha, que iria ao Paço,
enquanto a mulher de Cardoso Torres, que lhe chamara sirigaita, ficava fora da Corte,
reduzida ao seu crochet! Poderia enfim compensar o padre Augusto dos seus serviços tão
persistentes, tão desinteressados; erguer-se-ia diante do Amado, do sogro, que nunca o
respeitara suficientemente, como um colosso: não seria o genro, seria o Ministro de seu
sogro! Ah! Estas solicitações cativantes da ambição são bem irresistíveis têm a persuasão
fatal do ouro e da nudez da mulher!
Mas notai a nobreza de espírito de Alípio Abranhos: respirou fundamente, porque sentia o peito
oprimido, e disse:
Tudo isso é muito bonito, mas os amigos bem o sabem, este ministério não deve durar três
meses...
o coronel interrompeu-o com ímpeto. não vacilava: agora, Alípio e o velho General
pareciam-lhe idênticos, sentados lado a lado nas cadeiras do poder. E a sua funda simpatia
pelo antigo companheiro, pelas espadas, pelos militares, fez explosão, furiosamente... E foi
com um mugido que bradou:
Três meses? Se ele quiser, com o exército atrás de si, está no poleiro três anos! Três
séculos!...
Três séculos era talvez exagero, como notou com discernimento o Doutor! Ah, mas três anos,
era bem possível!
Fradinho deu um vivo puxão às calças e disse:
– Eh! Eh! E que o coronel tem razão! Com o exército por ele, quem o há-de deitar abaixo?
E os quatro cavalheiros olharam-se assombrados desta possibilidade deliciosa. Sim, quem o
havia de deitar abaixo? A sua influência no exército era grande: dispondo agora das
promoções, das condecorações, caramba! essa influência seria medonha! Os interesses do
General confundiam-se com os interesses do exército; o General na presidência do Conselho
era, ipso facto, o exército na presidência do Conselho. O ministério não era um homem, eram
dez mil, quinze mil marmanjos, armados até aos dentes. Quem iria derrubar essa multidão
formidável?
Alípio, muito abalado, murmurou:
– Mas a opinião...
Fradinho e o coronel, ao mesmo tempo, bradaram numa nota aguda:
– Ora, a opinião!
E o Doutor, numa nota grave, repetiu:
– Ora, a opinião!
Mas Alípio Abranhos, com o faro subtil dos verdadeiros homens de Estado, insistia:
– Nada, este ministério não dura...
Então Fradinho exasperou-se. E por que não havia de durar? O General era o grande patriota
nacional. Os outros ministros eram inteligências estimadas! No fim de contas, mesmo quando
o General inaugurasse a ditadura, caramba! A ditadura era necessária, num País como este!
Que tinha feito a Câmara? Palrado! Oitenta cavalheiros a palrar não organizam, não criam, não
fecundam. Era necessário um homem! Veja você Napoleão! Precisamos de um Napoleão!
– Mas Abranhos, obstinadamente, murmurou:
– Não dura, os amigos verão. Não dura três meses... Se durar! Mas não dura...
Fradinho perdeu o domínio de si mesmo. Arrastou Alípio para o vão da janela e atacou-o em
surdina: Por que não havia de aceitar a pasta? Se não fosse por ele, por sua esposa, que
fosse pelos seus amigos... Era necessário franqueza, que diabo! estava a pobre D. Joana,
com o cirro no estômago, coitada, e o marmanjo do sobrinho, sem um bocado de pão! Era
necessário empregar aquele marmanjo! estava a D. Amália que queria a sua pensão.
estava o padre Augusto e todos sabiam os serviços que lhe prestara que se mirrava no
desejo de ser cónego! ... Abranhos não podia trair os seus amigos, as suas legítimas
esperanças... Ele, Fradinho, podia falar livremente, não desejava nada. Tinha a sua banca de
advogado, oitocentos mil-réis por ano. Mas os outros: o coronel! o Doutor! o Tavares! Era
necessário ter consideração pelos amigos que se esfalfavam a ir daqui e dali, a glorificar o Sr.
Alípio Abranhos! ... Devia aceitar a pasta, por decência, por gratidão...
– Não me cheira, não me cheira... – murmurou ainda Alípio.
Então Fradinho, vermelho, suado do esforço, foi ter com os outros dois, e travando-lhes do
braço:
É uma besta, diz que não lhe cheira! Vamo-nos embora, deixemo-lo com a mulher. Ela lhas
cantará.
Com efeito D. Virgínia atacou o marido com a sua habilidade feminina. Parecia-lhe, a ela, uma
tolice perder aquela ocasião. Quando voltaria outra assim? Era tentar a sorte. Que ela não
queria que ele fosse ministro para ir ao Paço, a figurar, a espanejar-se! Era para calar a boca a
certos fulanos e sicranos, que tinham dito sabia-o ela pelas Vitorinos e pela mãe «que
Abranhos era um parlapatão que nunca havia de ir a ministro!»
– O quê, disseram isso? – exclamou Alípio.
E naquele instante teve o desejo furioso de aceitar a pasta e triunfar, ali, em Lisboa. Mas a sua
razão de estadista manteve-o firme, e apenas acrescentou:
– É lá possível que dissessem semelhante coisa?
– Juro-te, filho. Disseram-no à mamã. Vê tu que descaro...
Tenho razões para crer que D. Virgínia inventava, mas nem por isso a sua finura feminina é
menos admirável. Alípio, porém, desprendeu-se da sua sedução, daquelas carícias
penetrantes que queriam amolecer, fazer ceder a sua integridade política, e disse com
bondade:
Tu não entendes destas coisas, filha. Eu não sou tolo. Para ser ministro uma vez, não quero
perder a probabilidade de o ser dez vezes...
Tal era, com efeito, o raciocínio deste grande homem. O ministério do General era um
ministério de revolta, de acaso, de surpresa, de conspiração, que daria um carácter suspeito a
todos os que dele fizessem parte, inutilizando-os para a vida política, feita de legalidade, por se
terem introduzido uma vez no poder pela porta travessa da revolta.
Não eram políticos, eram insurrectos, e não tornariam a voltar ao poder senão pela insurreição,
o que equivalia a dizer, nunca mais na sua existência. E como, através das fórmulas precisas
que empregava, falando com sua mulher, ele parecia sentir mais intensamente a prudência, a
sabedoria da sua resolução, apressou-se a escrever esta carta, que ficana História, e que é
dos mais belos documentos que conheço de patrio-tismo esclarecido:
General:
Tenho o respeito mais profundo pela pessoa de V. Exª, mas, pesa-me dizê-lo, eu não poderia,
dados os meus princípios, aceitar uma pasta num ministério que teve a sua origem num acto
violento e inconstitucional.
De V. Exª
Criado respeitosíssimo
ALÍPIO S. DE NORONHA ABRANHOS.
Nessa noite, o cavalheiro que, por perrice, recusara a pasta da Justiça, tendo reconsiderado, o
ministério militar e revolucionário, de 20 de Junho, ficou definitivamente organizado.
Mas os dias seguintes foram amargos para Alípio Abranhos. D. Joana Carneiro e D. Amália
Saraiva, informadas pelo coronel da recusa de Alípio, vieram de manhã «fazer uma cena» a D.
Virgínia. Uma, via a sua pensão indefinidamente adiada, e a outra ali estava, com o seu cirro e
aquele sobrinho desempregado que a ralava de desgostos. O Sr. Alípio não tinha entranhas!
Choramingaram e D. Virgínia o lhes ocultou que reconhecia no seu marido um carácter
teimoso, obstinado, casmurro. Ai! uma mulher devia pensar muito, antes de se casar!
E a ti, filha disseram lacrimosamente as duas amigas recusar-te a posição, a
consideração!...
– Eu não é por mim, mas é pela mamã... Que ele, sendo da Justiça, era também dos Negócios
Eclesiásticos, e vejam que influência!
– Ai! é uma vilania! Olha o pobre padre Augusto, que ocasião perde...
O padre Augusto sentia-se com efeito logrado. Em casa dos Amados queixou-se com uma
resignação amarga. Falou mesmo em promessas muito explícitas...
E um pascácio, sempre o disse rosnou afogado em indigestão o bestial magistrado, pai de
Virgínia.
O coronel, esse fanático do novo ministério, o ministério da militança, não duvidou dizer que
não tornava a pôr os pés em casa de Alípio, e insinuou mesmo que nele, aquela recusa,
aquela reserva, não era política era medo. «Aí m os senhores o que é: é muito medo
naquelas entranhas!».
Fradinho declarou que Alípio «era todo palavriado, mas nenhum tacto político». Ele
aconselhara-o, mas desde que o pedante se queria regular pela sua cabeça, abandonava-o...
E vocês o verão chafurdar!
Na quinta-feira seguinte a sala dos Abranhos estava deserta. Veio apenas, fielmente, o
Doutor. Mas parecia mais lúgubre, a casimira do fato, a pelica das luvas, mais negras, de um
negro amargo.
Vendo aquela solidão, D. Virgínia, despeitada, foi choramingar para o quarto da ama – e Alípio,
só, muito ofendido do abandono, toda a noite, defronte do Doutor taciturno, folheou com
secura a Revista dos Dois Mundos.
E ao outro dia, depois de algumas entrevistas com os homens eminentes do seu partido, em
que fez soar bem alto o seu rasgo de lealdade política, retirou-se para Campolide, a esperar,
no remanso do campo, a próxima crise.
Foram três meses longos, penosos, arrastados. Esse Verão, se bem recordam, foi ardente. A
estiagem e o ministério pareciam a Alípio Abranhos eternos.
A sua ambição, como uma cobra entorpecida, fora vivamente sacudida, despertada por aquela
rápida visão de uma pasta e desde então não sossegava, inquieta, retorcendo-se com fúria,
com as goelas escancaradas, ávida da presa. Os dias sucediam-se na monotonia do mesmo
céu tórrido, azul-ferrete, da mesma folhagem imóvel no seu verde crestado, sob um véu de
poeira: e o ministério estava, imperturbado, gozando as suas rias, na dispersão
providencial da oposição pelas quintas e pelas praias.
Campolide, segundo uma expressão muito dele, «secava-o mortalmente».
Tinha saudades o termo é correcto da verbosidade jovial de Fradinho, da presença do
coronel, da grande cauda da bela D. Luísa nas soirées das quintas-feiras; faltava-lhe mesmo a
figura sombria do Doutor taciturno.
Sua sogra, quando os vinha ver, tornava-se odiosa, dizendo com escárnio:
Em lugar de estar aqui às moscas, podia agora muito bem estar no poleiro! E é que temos
ministério para anos.
E era esta uma ideia que às vezes passava, com um suor de agonia, pelo espírito do estadista,
apesar das cartas animadoras dos amigos do partido, que lhe afirmavam
«que o trabalhinho por baixo de mão ia bom, que o General estava todo minado por baixo...»
Porém as palavras do coronel – apesar de, no fundo, o considerar um boçal – perturbavam-no:
«se ele quiser, ninguém o deita abaixo!» E era possível, caramba! O
General tinha o exército, quieto, decerto, mas como um cão de fila que dormita: se sentisse
que lhe vinham tirar sorrateiramente o poder, bastava-lhe despertar a fera: e logo, mal ela
rosnasse, oposição, jornais, poderes do Estado, Carta, tudo se agachava, com as pernas a
tremer!
Mas, finalmente, a crise veio – ou antes, findou.
Seria nestas memórias uma redundância, contar o desenlace inesperado e doloroso. Quem
não se lembra desse dia um dia abafado, de céu plúmbeo e canicular em que se espalhou
a notícia de que o General estava a expirar? Tínhamo-lo visto, havia dias, subir o Chiado a
cavalo, como costumava, e ali estava agora, agonizando, entre o terror dos que a ele tinham
ligado as carreiras e as fortunas, e a esperança daqueles que por dever oficial lhe cercavam o
leito, mas ansiavam por herdar o poder de que ele se apossara.
Quem não recorda esses grupos, reunidos diante do seu palácio, à Estrela, ávidos de notícias,
atravessados a cada momento por oficiais, por correios, em cujos rostos se sentia uma súbita
desorientação moral?
Lisboa esqueceu os erros desse homem, para recordar a sua personalidade cativante e o
brilho da sua carreira.
Eu, buscando notícias para o Estandarte, estava entre esses grupos, ouvindo nos
comentários do povo formar-se a legenda daquela personalidade, em que havia traços de
herói. Vi parar à porta a berlinda vermelha do Sr. Cardeal Patriarca, que vinha trazer-lhe a
Extrema-Unção. A porta abriu-se com grande ruído e o venerável sacerdote desapareceu na
sombra do pátio que tinha alguma coisa de funerário, com o seu passo rápido de padre,
arrastando a cauda escarlate.
Depois era outra carruagem que chegava, chapéus que se erguiam aqui e além, e o Rei que
penetrava no antigo palácio, a despedir-se do velho servidor.
A calçada estava coberta de saibro e havia um perpétuo ranger de passos subtis sobre a areia
áspera. E as faces consternadas contemplavam as três janelas do quarto, por trás das quais
os médicos davam, havia três dias, uma batalha desesperada à morte!
E quem não se recorda ainda, daí a dias, do sumptuoso funeral, caminhando devagar, com
paragens solenes: a mórbida monotonia da música fúnebre, o arrastar grave de espadas, essa
marcha funerária de um exército, e, adiante, entre tochas que levantavam alto as chamas
lívidas, a complicada estrutura do féretro, coberto de crepes e de dourados, marchando numa
oscilação lenta; e atrás, o longo e negro cortejo, solene, cadenciado, desprendendo-se de toda
aquela multidão silenciosa, para o azul-ferrete de um esplêndido dia de Setembro, uma
sensação difusa de luto e de morte!
O esplendor sombrio desse luto, comparei-o eu, no meu artigo do Estandarte, à magnificência
lúgubre com que Roma chorou César. E lamentei não ter a pena de Tácito para contar as
pompas dos funerais de Augusto!
Apenas se dispersou o fumo das últimas descargas, os personagens ilustres, vendo fechar-se
sobre o General as portas do jazigo, onde ele ficava bem aferrolhado no seu triplo caixão de
chumbo, tiveram uma sensação de imenso alívio. Um ufá! colossal, de quem respira em paz, a
pulmões cheios, saiu dos tórax fardados de S. Ex.as : o grande perturbador estava enterrado!
Enfim!
O ministério nessa tarde, depôs a sua demissão nas mãos de El-Rei, e os regimentos voltaram
aos quartéis, despidos do seu prestígio e do terror que inspiravam, como se, com o
desaparecimento da influência que os movia, tivesse morrido a força que os tornava
temerosos.
Alípio Abranhos, desde a notícia da doença do General, viera imediatamente para Lisboa, e
tivera o gosto de ver os seus amigos voltarem, mais fiéis, mais dedicados, mais devotos, a
tomarem a sua chávena de chá no salão de repes azul.
Na tarde do dia em que se enterrara o General, soube-se que El-Rei encarregara a formação
do ministério a Guedes Navarro, chefe do partido Nacional.
Em casa de Alípio Abranhos, porém, sabia-se com mais precisão que Guedes Navarro fora
chamado ao Paço às sete horas da tarde: e desde as sete e meia todos os amigos começaram
a afluir.
Que soirée! Fradinho confessou-me muitas vezes que nunca tivera «tantas cólicas». Pelo
relato circunstanciado que ele me fez, e por informações colhidas de outras testemunhas
presenciais, eu pude reconstituir em todos os seus detalhes os pormenores dessa noite
histórica, que marca um momento decisivo na carreira do Conde d'Abranhos. Todos na casa
sabiam que existiam compromissos antigos, pelos quais, se os Nacionais fossem ao poder, a
pasta da Marinha seria dada a Abranhos.
Esse pacto datava do dia em que Alípio, com grande brilho e pompa, se separara dos
Reformadores; mas nem por isso se podia esquecer que ele era apenas, segundo a frase de
Fradinho, «um Nacional da véspera!» Guedes Navarro tinha no seu partido homens com
longos serviços, amigos de anos, Nacionais de tradição; teria ele a força de dispor de uma
pasta a favor de um novo, de um principiante, de um intruso? Era decerto um intruso de génio,
mas quem considera o génio quando se trata de recompensar a.76 amizade? Além disso, a
sua mesma passagem para os Nacionais, tão brusca, num salto de clown, tornava-o suspeito,
e era, para os velhos do partido, um argumento pronto para afastar aquela nova ambição.
Se Guedes Navarro tinha compromissos com
Abranhos, não os teria decerto menores com outros: havia sobretudo o famoso Torres, que
fora duas vezes ministro da Marinha com Navarro; aquela pasta parecia pertencer-lhe como
um património: tinha por si a experiência ganha, o seu talento de orador, a sua posição literária
como um dos nossos mais estimados dramaturgos! Era um colosso! E iria Guedes Navarro
substituir-lhe Alípio Abranhos?
Estas considerações que Fradinho fazia e que comunicava aos amigos da casa, não
escapavam ao espírito penetrante de Alípio.
Quando sobreviera a doença do General, uma alegria furiosa revolvera-o. Enfim! Morto o
personagem, o poder caía por lei, por praxe, nas mãos sofregamente estendidas dos
Nacionais: e houve um momento em que se sentiu ministro! Mas, depois reflectiu; e o seu
espírito, debatendo-se entre a dúvida e a esperança, foi como um campo devastado pelas
hastes de dois veados rivais. Havia um sintoma terrível: no dia do enterro, no Cemitério dos
Prazeres, Alípio aproximara-se de Guedes Navarro, e dissera-lhe:
É uma grande desgraça. Mas enfim, le Roi est mort, vive le Roi! Creio que posso dar os
parabéns a V. Exª.
E Alípio, com aquela frase hábil, esperava obter esta resposta–lógica, desde que havia
compromissos formais – «também eu lhos posso dar, amigo Abranhos!»
Porém Guedes Navarro, em lugar dessa resposta natural, tivera apenas um vago encolher de
ombros e dissera, recusando-se:
– Tudo depende de El-Rei... A vontade de El-Rei é que há-de dizer...
– Decerto, decerto – murmurou Alípio.
Mas apesar do calor canicular, sentia-se todo frio, todo murcho. Que significavam aquela
reserva, aquela secura de Navarro? Esquecera ele os compromissos tomados? Tentava traí-
lo?
Uma cólera vaga grasnou-lhe na alma. Se assim fosse, que vingança medonha tiraria! Ele
conhecia bem os Nacionais, os seus podres, e se lhe «passassem o pé», fundaria, com o dote
da Virgininha, um jornal onde esmagaria o partido com a revelação indignada dos seus
escândalos e da sua corrupção. Seguiu então pelo cemitério, com o olhar vigilante, todos os
movimentos de Guedes Navarro. Isto tranquilizou-o um pouco: Guedes Navarro conservava-se
taciturno, reservado, carregado o rosto numa consternação bem educada.
Por isso se compreende que nessa noite, apenas soube que Navarro fora chamado ao Paço,
sofresse os assaltos terríveis e contraditórios da esperança e da suspeita.
Fradinho muitas vezes me afirmou que nessa noite a face de Alípio Abranhos estava de um
lívido térreo. Queria, diante dos amigos, mostrar serenidade, jovialidade mesmo: mas não
podia permanecer no mesmo lugar; tinha, segundo as alternativas de esperança ou de
desalento, risos bruscos, joviais, ou um abatimento que lhe punha na face uma sombra, uma
moleza de vencido.
Na sala, havia um embaraço manifesto. Ninguém falava na coisa: manifestar esperanças,
poderia tornar o desapontamento mais amargo; mostrar desalento seria incivil. Faziam-se, de
repente, silêncios desagradáveis: eram os momentos em que cada um pensava nas suas
próprias esperanças: a gorda D. Amália na sua pensão, a macerada D. Joana no emprego do
sobrinho, padre Augusto no canonicato, o Doutor em postas vagas...
O bacharel Tavares oferecera-se para ir pela Baixa, ao Martinho, ao Central, coleccionar os
boatos, mas voltara ofegante, limpando o suor do pescoço, a dizer que se.77 não sabia nada:
o Guedes ainda devia estar para o Paço.
Eram então nove horas e meia. Aquela demora no Paço parecia inexplicável. Fradinho, porém,
que era o mais animado, lembrou que seria necessário, pelo menos, hora e meia para ir à
Ajuda. Padre Augusto protestou:
Hora e meia?... Três quartos de hora, se me faz favor. Foi para o Paço às sete, chegou às
oito menos um quarto; um quarto de hora para conferenciar com El-Rei; voltou às oito horas,
chegou a Lisboa às oito e três quartos. São nove e meia: três quartos de hora que está em
Lisboa.
Aquele cálculo consternou as faces.
– Mas depende do cocheiro – disse o Conselheiro Andrade.
– Mesmo com um batedor – observou o bacharel – não se vai em menos de uma hora.
E como aquilo o tempo que se levava até Belém era um assunto, apoderaram-se dele
sofregamente. Disfarçava as preocupações, evitava os silêncios vazios, tão desagradáveis.
Fradinho contou logo que em questões de velocidade, ele, Fradinho, fora a Sintra em hora e
meia. Era bater, hem?
Mas o bacharel que em novo fadistara, tinha histórias bem superiores de tipóias velozes: que
lhes parecia: em três horas ir a Sintra, e de Sintra a Cascais?
– Impossível! Impossível!
Ó minhas senhoras, impossível? bradou o bacharel. Fi-lo eu. Posso trazer-lhes aqui o
cocheiro, o próprio, um picado das bexigas!
– Sem descansar a parelha?
– Sem descansar a parelha!
– Histórias!
Ninguém queria irritar aquele excelente moço, mas contrariavam-no para produzir discussão,
palavras – e, com efeito, o bacharel, tomado de um súbito fluxo labial, prodigalizou histórias de
velocidades maiores. Estava encantado de se sentir o centro da conversa; falava, dando
puxadelas aos punhos para produzir efeitos. No Porto, tinha ido à Foz em meia hora; e,
exaltado, contou outros feitos, comparáveis à velocidade de um trem expresso, ou da
electricidade atmosférica!
O relógio da sala, porém, bateu as dez horas, e aquele timbre melancólico despertou as
inquietações: ninguém contradisse o bacharel, e o silêncio pesou, mais angustioso.
A bela Fradinho, então, tentou o piano: todos pareceram escutar com uma atenção o
diletante, que D. Luísa, que ao princípio fora tocar para preencher o silêncio, animando-se,
estimulada, fez correr sobre o teclado os dedos ágeis onde reluziam os anéis com que, por
amor dela, se arruinava o advogado.
Mas eram dez e vinte. Segundo ele próprio me contou depois, Alípio Abranhos esforçava-se
em considerar que, naturalmente, Guedes Navarro, à volta do Paço, fora primeiro falar com
outros colegas. Porém essa hipótese não era suficiente para o calmar. Então não se conteve,
foi perguntar aos criados se era certo que não tinham ouvido tocar à campainha; mas
encontrando-os na cozinha, palrando alto, enfureceu-se: que barulho era aquele? Que pouca
vergonha! Podiam vir vinte pessoas procurá-lo, que não era possível ouvir bater à porta.
A ideia de que Guedes Navarro podia ter vindo, tocando em vão, e, despeitado, tivesse ido
bater a outra porta, aterrou-o. Bradou para os criados, tratando-os por alarves:
Se ouvir aqui mais uma palavra, vão todos para o meio da rua! Que despropósito! Parece
uma feira!
Porém, pensou que Guedes Navarro não viria a pé, e que, na sala, se teria ouvido a.78
carruagem; essa ideia calmou-o, mas, por precaução, mandou o João para o pátio, esperar.
Quando entrou na sala havia um silêncio pesado. O bacharel fora de novo à Baixa, aos boatos;
e vendo que era insuportável aquela situação, Abranhos, com grande sinceridade, falou ele
mesmo na coisa.
Era inútil que o Alfredinho se incomodasse. Eu, para lhes falar com franqueza, estou a ver o
que se passa... O Guedes Navarro é meu amigo, mas, enfim, tem compromissos antigos...
Foi um alívio para todos que ele mesmo autorizasse a falar-se na coisa. Houve uma explosão
alvoroçada de opiniões. Fradinho exclamou que Guedes Navarro, se tal fizesse era um
canalha!
O padre Augusto, porém, apostava, apostava, apesar do seu carácter sacerdotal, que o
Guedes Navarro havia de ser leal.
Alípio, no entanto, declarou-se indiferente. Até estimava não entrar agora para o ministério! A
possibilidade daquela recusa causou uma indignação geral. O quê? Recusar! Por quê?
– Que o amigo se conservasse na expectativa com o General, sim! – exclamou Fradinho. – Foi
um acto digno. O General, grande homem, o que quiserem, está no Reino da Verdade,
mas era um insurrecto! O amigo fez perfeitamente em se afastar de semelhante
comprometimento! Eu mesmo lho aconselhei, se se recorda bem, aqui, nesta mesma sala lho
aconselhei... Mas agora recusar-se a entrar com os seus amigos no poder!...
A voz de Fradinho soava alto, mas a sua indignação era puramente artificial: porque ele sabia
todos na sala sabiam que Alípio Abranhos não recusaria a pasta! O que começavam a
recear era que não lha oferecessem; e os olhares devoravam os grossos ponteiros do relógio,
cujo tique-taque parecia a todos bater com uma pressa surpreendente.
De repente, uma carruagem que vinha do lado da Rua do Alecrim, rolou no largo: houve um
silêncio grave, uma espera ansiosa; a carruagem trotou na calçada para a Rua de S.
Francisco.
Então todos murcharam. Eram quase onze horas. Cada um pensava que àquela hora o
ministério devia estar formado, ou, pelo menos, que as negociações se passavam longe,
noutras casas, com outros personagens. A Alípio nem lhe davam a importância de o consultar.
Fradinho teve a franqueza de mo confessar mais tarde: àquela hora, às onze julgou Alípio
um pascácio! Positivamente não o tomavam a sério. Palrava bem, mas homem de estado não
o consideravam. E, não se contendo, chamou o Doutor que me referiu para o vão de uma
janela, na sala de jantar:
Pregam-lhe uma peça... O Guedes nunca teve tenção de lhe dar a pasta. E um homem
perdido! ... Aquela passagem com armas e bagagens para a oposição, matou-o! Não
garantias de lealdade. E uma besta!
Uma carruagem, a meio galope, parou de repente a porta. Fradinho entrou na sala. Havia um
silêncio angustioso. A campainha repicou e o padre Augusto precipitou-se, com medo que o
criado tivesse adormecido.
Era Guedes Navarro que queria falar com S. Exª!
Daí a pouco entrava o bacharel; vinha dos boatos, da Baixa, mas as fisionomias de todos eram
tão particularmente expressivas que ele exclamou logo, adivinhando.
– O homem veio!
– Estão ambos no escritório!
– Hurra! – gritou, agitando o chapéu.
D. Laura, porém, observou com prudência:.
– Nada de cantar vitória... Ninguém sabe... E tentar a Deus! É esperar, é esperar...
Mas não esperaram muito. Sentiram a porta do escritório abrir-se com ruído, e duas vozes, a
do Guedes e a do Abranhos, no corredor, falando alto, joviais. Depois a carruagem, em baixo,
bateu a trote, e Alípio entrou na sala.
– Então?... – exclamaram todos.
– A Marinha! – disse ele, banhado num riso irreprimível.
Correram para ele. D. Virgínia pendurara-se-lhe ao pescoço, e as senhoras, os homens,
procuravam apoderar-se das mãos, da manga do ministro. Ele rebolava dos braços de um
para os braços do outro, sufocado, os olhos húmidos, defendendo-se molemente.
– Deixem-no! Deixem-no, que o abafam, credo! – exclamou D. Laura. – Deixem-no!
O Doutor então foi sublime. Aquele homem taciturno soltou uma voz de trombone, e com
gestos furiosos, como alucinado:
– Qual deixem-no! E para aqui, é para mim! E todo!
E dava-lhe apertões furiosos, sôfrego dele, querendo sepultá-lo no seio, penetrar-se de S. Exª.
Todos riram. Quiseram saber «como tinha sido», o que dissera o Guedes Navarro. Cercaram-
no, estendendo as faces banhadas de riso para lhe beber as palavras.
Abranhos foi muito conveniente, muito discreto:
Sua Majestade disse es muito afectada. A morte do General causou-lhe uma grande
emoção. Mas enfim, constitucionalmente, está satisfeito. Sente que os serviços públicos estão
desorganizados. Quer um ministério forte. E necessário, com efeito, uma situação forte.
Os homens concordaram gravemente que era necessário uma situação forte. Gozavam como
se fossem parte, elementos dessa força. Fradinho crescera, sentia-se um personagem; e o
Doutor, cujo modo hesitante de andar dava a impressão de que não estava bem firme sobre a
terra, tinha agora, plantado no meio da sala, a atitude firme de um monumento edificado pelos
Romanos.
Então, para celebrar o triunfo, o bacharel propôs que se bebesse uma garrafa de Champanhe.
Não o havia em casa: mandar um criado comprá-lo parecia ridículo: poderia saber-se, fornecer
pilhéria à oposição. Então o bacharel ofereceu-se para ir ele mesmo buscá-lo:
– Digo que é para mim, para levar ao Dafundo, numa pândega! – exclamou.
E, pela terceira vez nessa noite, abalou pelas escadas, de chapéu para a nuca.
Alípio Abranhos, entretanto, dava outros detalhes, que todos devoravam gulosamente: S. M.
estava contente com o ministério formado pelo Guedes. Não o conhecia a ele, Alípio, mas vira
D. Virgínia em S. Carlos: tinham-lha mostrado e achara-a muito galante.
– É mentira! – exclamou ela, com todo o sangue na face, apopléctica de orgulho.
– Palavra de honra, filha. Disse-o ao Guedes: «Eu não conheço esse cavalheiro, mas tem uma
senhora muito galante; mostraram-ma no teatro».
Então todos a felicitaram. Ah! Ah! Ia ser a beleza da Corte! Parabéns!
Ela negava. Eram tolices do Lipinho! E D. Joana, a do cirro, de comovida, começou a
choramingar.
Mas o bacharel apareceu, triunfante, com duas garrafas nos braços. Ele mesmo, com a sua
experiência, as abriu, fazendo estalar as rolhas. E depois de uma saúde, ficaram todos em
grupo, no meio da sala, com os copos na mão, gozando a atmosfera ministerial de que
estava peneirada a casa.
O Ministro, entre Fradinho, o Doutor e o Conselheiro Andrade, felicitava-se por ter a pasta da
Marinha: havia muito a fazer na Marinha. Assim, por exemplo: sendo nós os primeiros
descobridores do mundo, parecia incrível que não tivéssemos ainda mandado uma expedição
ao pólo!
Os três cavalheiros não pareciam excepcionalmente impressionados com aquela ideia. O
Doutor mesmo, depois de reflectir, de testa franzida, e vendo que não tinha de certo nada a
ganhar com aquele heroísmo geográfico, disse apenas, por civilidade:
– Tem V. Exª razão. É uma grande ideia.
E tudo a reformar; todo o pessoal administrativo das colónias... Uma colecção de inúteis!
lembrou Fradinho.
– Também há alguma coisa a fazer nesse sentido – concordou o Ministro.
Então o Doutor pareceu particularmente entusiasmado:
– Tem V. Exª muitíssima razão! Isso é que é uma grande ideia!
Mas era quase uma hora da manhã. A infeliz D. Joana foi pôr os seus agasalhos. E as
felicitações recomeçaram: os beijos chilreavam na face corada de D. Virgínia; o Ministro sentia
a mão apertada ao mesmo tempo pelo bacharel, pelo Conselheiro, pelo Doutor; e Fradinho,
acendendo o charuto, disse com uma voz em que se sentia o gozo daquela intimidade:
– Amanhã por cá apareço, para falarmos...
– Amanhã é que é ler os jornais! – exclamou padre Augusto.
Então o Doutor foi outra vez sublime: com uma verbosidade, espantosa naquele melancólico,
exclamou:
A nomeação vem no Diário do Governo,. amanhã: pois, meus senhores e minhas senhoras,
eu vou mandar encaixilhar o Diário do Governo!
Aquela graça pareceu deliciosa. E a escada esteve um momento toda sonora de risinhos, de
frufrus de vestidos, e do ruído que fazia o bacharel, muito estroina, pulando os degraus a dois
e dois.
Mal a porta se fechou, D. Virgínia correu à cozinha, e diante dos criados em pé:
Então vocês sabem?... O Sr. foi feito Ministro. Daqui por diante, vocês devem sempre dizer-
lhe Sr. Ministro. É o costume.
Quando voltou à sala, Alípio Abranhos, nervoso, passeava, com o peito alto, passando a mão
pelo cabelo.
– Então que lhe parece, Srª D. Virgínia? –disse radiante; – está satisfeita?
– E tu, diante de toda essa gente, com aquela mentira a respeito do que disse o Rei!
Ó filha, juro-te que é verdade. Juro-te. Disse-o ao Guedes, palavra... E muito natural!. Pois
os amigos parece que estão contentes... E o Doutor, hem? Tem graça!
Hem?... E bom diabo... E tem talento... O diabo tem talento!
A porta abriu-se e o João, o criado, muito sério, pronunciou estas palavras:
– A que horas quer V. Exª o almoço, Sr. Ministro?
Alípio, tomado de surpresa, sentiu por todo o corpo uma carícia deliciosa; ficou um momento a
gozá-la, num sorriso mudo, e com bondade:
– Às dez. Chame-me às nove horas, João.
– Tenha V. Exª muito boas-noites, Sr. Ministro.
Boa noite, João. E voltando-se para D. Virgínia que fechava o piano: É bom rapaz, este
João.
No entanto os amigos íntimos, parados do alto da Rua do Alecrim, onde cada um tomava o
seu destino, ainda parolavam. Segundo D. Amália, o mais satisfeito dos dois era D. Virgínia:
ela é que parecia o ministro.
A bela Fradinho quis saber se ela poderia ir a S. Carlos, para o camarote do.ministério? Não,
não era costume. Mas era apresentada no Paço.
– E há-de fazer boa figura! – disse D. Amália.
São tudo ilusões disse com secura a bela Fradinho. O verdadeiro é cada um ser feliz em
sua casa. Agora ele, sim, há-de ser um bom ministro...
O Alípio é um nio afirmou Fradinho. Ainda pouco eu dizia ao Doutor: vai-os
espantar a todos. Tem ideias. E ainda dos poucos que tem ideias.
E o padre Augusto resumiu:
– Enfim, não é lá por dizer. Mas agora, estamos no poleiro!
Todos riram.
Quero dizer acudiu quando digo nós... os amigos sabem, é um costume que tenho. Sou
tanto daquela família... Quero dizer, enfim, o nosso Alípio está no poleiro.
Então houve um momento de silêncio. Todos gozavam aquela ideia de que eles, os amigos, os
íntimos, estavam no poleiro.
Separaram-se. O Doutor desceu a Rua do Alecrim, assobiando. Fradinho chamou uma tipóia:
era caso para tornar tipóia. Ofereceu-se mesmo para levar a casa D. Joana, que se estava a
sentir mal do golito de champanhe. E o bacharel estava tão entusiasmado, que, para celebrar
o caso, segundo me confessou depois, foi passar a noite ao prostíbulo.
Portugal sabe bem que o Ministério Nacional durou dois anos e o que foi a administração do
Conde d'Abranhos nos negócios da Marinha e Ultramar.
Dois serviços que se completam e vivem um pelo outro – as Colónias e a Armada – constituem
esse ministério, e, em ambos eles, Alípio Abranhos deixou os esplêndidos vestígios do seu
génio administrativo. E notai que o Conde não era, como vulgarmente se diz, um homem do
ofício. Até à idade de vinte e um anos em que, nas. rias do ponto, fez uma visita à praia
pitoresca de Buarcos nunca tinha visto o mar. E esse formidável elemento, que cobre as
quatro quintas partes do globo mundo de trevas e de mistério, juncado de destroços,
asfixiador, hostil ao homem deu-lhe uma impressão que, segundo ele me disse, com aquele
vigor pitoresco da sua frase, lhe fizera eriçar todos os cabelos do corpo.
Sempre detestou o mar, e se alguma vez passou a estação calmosa em Cascais, foi
unicamente em respeito aos deveres sociais da sua posição no País, ou para comprazer com
D. Virgínia, e depois com sua segunda mulher, a respeitável Condessa d'Abranhos. Tal era
esta repugnância, que o Conde d'Abranhos nunca visitou a Inglaterra, porque, sendo esse
grande país dos Pitts e dos Chaucers infelizmente uma ilha, não lhe seria possível visitá-lo sem
embarcar: e o horror do Conde aos navios era invencível.
Era mesmo um sacrifício grave, quando as suas altas funções o forçavam a visitar algum navio
de guerra. De resto, a mesma paisagem marítima essa infinidade de água azul causava-
lhe, como ele dizia, «um peso estúpido na cabeça», e é portanto mais para admirar que, com
esta antipatia pelo mar e por tudo que dele vive ou nele trabalha, dirigisse as repartições da
Marinha com tão grande brilho.
Outra circunstância que torna mais admiráveis esses serviços, é o facto do Conde tendo
dado todo o seu tempo ao estudo das questões sociais jamais se ter ocupado do
conhecimento subalterno da geografia. Segundo ele dizia, nunca pudera reter todos esses
nomes esquisitos e bárbaros de rios, cordilheiras, vulcões, cabos, istmos! Assim, por exemplo,
nunca compreendeu, confessou-mo muitas vezes, esses cálculos estranhos degraus, latitudes
e longitudes, nem dava grande crédito à ciência da navegação.
E mais nos admiramos ainda dos serviços que prestou, quando sabemos que o seu
conhecimento das nossas colónias não era detalhado. Disse-se, por exemplo, que só.depois
de dezoito meses de ministro é que soube, por acaso, onde ficava Timor! Dezoito meses é um
exagero pérfido de oposição mesquinha. Mas, aceitemos mesmo que adquirisse essa
insignificante informação depois de alguns meses de gerência dos negócios coloniais: o que
prova isso, senão que a sua vasta inteligência, toda voltada para os altos problemas políticos,
não dava valor a essas pequenas ciências de exactidão local?
Uma ocasião, na Câmara, ele falava de Moçambique como se considerasse essa nossa
possessão na costa ocidental da África. Alguns deputados mais miudamente instruídos desses
detalhes, gritaram-lhe com furor.
– Moçambique é na costa oriental, Sr. Ministro da Marinha!
A réplica do Conde é genial:
Que fique na costa ocidental ou na costa oriental, nada tira a que seja verdadeira a doutrina
que estabeleço. Os regulamentos não mudam com as latitudes!
Esta réplica vem mais uma vez provar que o Conde se ocupava sobretudo de ideias gerais,
dignas do seu grande espírito, e não se demorava nessa verificação microscópica de detalhes
práticos, que preocupam os espíritos subalternos.
Não me compete, porém, nestas reminiscências íntimas do Conde d'Abranhos, fazer a história
política da sua administração nos negócios da Marinha. Essa missão gloriosa pertence aos
Herculanos e aos Rebelos do século XX.
Eu desejei somente, sem invadir o solo pomposo e difícil da História, deixar aqui consignado
que, na minha opinião, de todos esses estadistas, esses poetas ardentes, esses moços de
largo sopro lírico, esses estimáveis cavalheiros que em Portugal, desde a outorga da Carta,
têm dirigido os negócios da Marinha e Ultramar, nenhum, como Alípio Abranhos, compreendeu
tão patrioticamente o espírito de que deve inspirar-se a nossa política colonial.
Ainda perdura a obra imorredoura que nos legou esse génio glorioso, que hoje, cercado da
veneração saudosa de Portugal, repousa no Cemitério dos Prazeres. Sobre o mausoléu
comemorativo que a saudade da respeitável Condessa d'Abranhos lhe ergueu, o talento do
escultor Craveiro fez reviver no mármore a figura majestosa do Estadista.
E não é sem uma emoção profunda que ali vou cada ano em piedosa romagem, contemplar a
alta figura marmórea, com o seu porte majestoso, o peito coberto das condecorações que lhe
valeu o seu merecimento, uma das mãos sustentando o rolo dos seus manuscritos, para
indicar o homem de letras, a outra assente sobre o punho do seu espadim de Moço Fidalgo,
para designar o homem de Estado – e os olhos, por trás dos
óculos de aros de ouro, erguidos para o firmamento, simbolizando a sua em Deus e nos
destinos imortais da Pátria!.
A Catástrofe
Eu moro à esquina do Largo do Pelourinho, justamente defronte do Arsenal.
antes da guerra e dos nossos desastres, eu ali vivia, no segundo andar, à direita. Nunca
gostei do sítio: sem ser bucólico, a minha ambição foi sempre habitar longe destes
arruamentos tristes da baixa, num bairro de mais ar e de mais horizonte, com um quintal, uma
frescura de folhagem e alguns metros de terra, onde, num rumorejar de árvores, pudesse ter
roseiras e acolher pássaros nas tardes de Verão.
Mas quando herdei de minha tia Petronilha, comprei esta casa, defronte do Arsenal. Estes
prédios são, por causa das lojas e dos armazéns, casas de maior rendimento do que as dos
outros bairros, e, como emprego de capital, um prédio na Baixa é mais vantajoso do que uma
casa bonita em Buenos Aires ou no bairro das Janelas Verdes. Foi pelo menos o que me
disseram proprietários experientes.
De resto, eu tencionava alugar o prédio e ir habitar, com os meus, uma casinha pequena,
alegre e fresca, que tinha apetecido para os lados do Vale de Pereiro. Mas quando vieram as
nossas desgraças e o exército inimigo ocupou Lisboa, a necessidade de economia, os tempos
tão difíceis, forçaram-me a abandonar esse plano de viver no campo, e agora aqui estou, neste
triste segundo andar do Largo do Pelourinho, defronte do Arsenal.
Em hora vim eu para aqui. Porque creio que esta vizinhança do Arsenal me tem feito sentir
com uma intensidade maior todas as amarguras da invasão. Os que vivem para Buenos Aires,
para as Janelas Verdes, para Vale de Pereiro, sofrem decerto, dolorosamente, da presença
dum exército estrangeiro em Lisboa. Ainda que o primeiro terror passou, que a cidade vai
retomando pouco a pouco a sua fisionomia ordinária, que circulam as tipóias e os trâmueis,
pesa todavia o que quer que seja de doloroso sobre a cidade: o ar está carregado de qualquer
coisa de subtil e opressivo, como uma atmosfera intolerável que circula nas praças, penetra
nas casas, muda o gosto à água, faz parecer o gás menos claro, deposita na alma uma
tristeza contínua, obcecante.
Às vezes, quando uma pessoa sai, e ocupada nalgum negócio, distraída por ele, se esquece
do grande desastre que nos envolve basta, a uma esquina, a presença dum uniforme inimigo,
para fazer imediatamente recair na alma, com um peso de penedo, a ideia da derrota e do fim
da Pátria. Não sei o que é, mas, por exemplo, desde que no alto de algum edifício flutua a
bandeira estrangeira, parece que este azul já não é o do nosso céu, e tem alguma coisa duma
bruma lutuosa.
Contudo, noutros prédios, noutros bairros, basta a gente isolar-se em casa, para se subtrair a
esta desolação ambiente!
que não pátria, família: fecham-se as portas, reúnem-se todos na sala, em volta do
candeeiro doméstico; conversa-se. A recordação das desgraças oferece como um alívio
pungente e a perspectiva da esperança ilude como uma felicidade passageira; lembram-se os
amigos, os conhecidos que morreram bravamente na batalha; às vezes a recordação dum feito
heróico como a sensação da honra conservada; depois, em redor do candeeiro, baixo,
numa palpitação de todo o ser, há uma pequena conspiraçãozinha em família!
E o sonho da desforra faz suportar a realidade da catástrofe...
Mas a mim, nem sequer me é dado este isolamento: porque a não ser que feche as janelas,
que me enterre numa treva constante, que viva à luz do gás quando o sol de Julho faísca
fora, não posso deixar de ver diante de mim, como um memento odioso, à porta do Arsenal, a
sentinela estrangeira pisando a terra da Pátria....
E é justamente esta sentinela que me indigna: decerto outros uniformes estrangeiros, todos
esses oficiais dos couraçados que estão no ancoradouro, passam a toda a hora, na insolência
brilhante das suas fardas espectaculosas... Pois bem, esses não me irritam... naquele
vaivém de oficiais alguma coisa de apressado, de inquieto, que me a ideia duma ocupação
transitória, de esquadras que vão levantar ferro, de humilhações que vão partir para sempre.
Mas aquela sentinela, eterna, que me parece sempre a mesma, tem um ar de estabilidade, de
perpetuidade que me faz o coração negro. Cada passada que ela dá com a sua dura sola, cai-
me com um eco lúgubre na alma, e no seu monótono passeio, de guarita a guarita, dá-me a
sensação de que nunca deixará de haver, sobre a terra portuguesa, uma sentinela estrangeira.
E não me posso arrancar a este espectáculo! Pela manhã, ao fazer a barba, fico de navalha no
ar, a face coberta de flocos de espuma, espantado para o pequeno soldado, que parece
entrouxado no capotão azul, com o boné de couro envernizado e a arma ao ombro... uma
daquelas armas que alcançavam o dobro das nossas, e que ceifavam de longe, nas linhas de
defesa, regimentos inteiros.
De modo que, agora, conheço quase todas as. sentinelas do Arsenal. Durante algum tempo,
foram soldados de marinha; agora são geralmente do 15 de Linha. Mas sobretudo um tipo
de soldado que me indigna: é o rapagão robusto, sólido, bem plantado sobre as pernas, de
cara decidida e olhos reluzentes; penso sempre: foi este que nos venceu! o sei porquê,
lembrando-me do nosso próprio soldado, bisonho, sujo, encolhido, enfezado do mau ar dos
quartéis e da insalubridade dos ranchos vejo nessa superioridade de tipo e de raça toda a
explicação da catástrofe.
Antigamente, antes da invasão, raras vezes pensei em observar a sentinela do Arsenal:
lembra-me, porém, de a ter visto, por acaso, ao chegar à janela: se chovia, era certo descobri-
la encolhida na guarita, fixando um olho apagado e triste sob o caudal de água; se fazia calma,
era o seu andar, o seu derreado de ombros que me impressionavam... era a moleza lenta do
passo, uma expressão contínua e evidente de tédio e de fadiga; e depois, ao fim de duas
horas de serviço, era um derreamento maior, um embrutecimento, uma maneira lorpa de fixar
tudo os bois, os americanos, as varinas apregoando peixe, os vendilhões, a tenda defronte
que tornavam visível a falta de nervo, de vigor, de fixidez disciplinada, de firmeza, de
persistência. E esta visão do nosso soldado, parece-me então alargar-se e abranger toda a
cidade, todo o País! Foi esta sonolência gubre, este tédio, esta falta de decisão, de energia,
esta indiferença cínica, este relaxamento da vontade, creio, que nos perderam...
Ainda hoje me soam aos ouvidos as acusações tantas vezes repetidas do tempo da luta: não
tínhamos exército, nem esquadra, nem artilharia, nem defesa, nem armas!... Qual! O que não
tínhamos era almas... Era isso que estava morto, apagado, adormecido, desnacionalizado,
inerte... E quando num Estado as almas estão envilecidas e gastas – o que resta pouco vale...
Nunca me há-de esquecer a impressão que tive, no dia em que soube que a guerra nos havia
sido declarada e que estavam reunidas tropas organizadas de antemão, para a invasão, pelo
sul e pelo norte.
Fazia anos o meu pobre amigo Nunes, que morava então ao Rossio. Desde a tarde que um
pânico pairava sobre a cidade, porque a verdade é que, mesmo desde que estalara na Europa
a guerra,o violentamente provocada pela Alemanha, invadindo a Holanda, nunca em Lisboa,
pelo menos na maioria do público, houvera o receio de que a coisa chegasse ao nosso
canto, como então se dizia.
Nem mesmo quando o velho Salisbury, quase no seu leito de morte, lançou o seu grande
manifesto e declarou a guerra à Alemanha, e quando vimos assim a nossa única.85 protectora
tão ocupada numa luta no Norte, nos considerámos em perigo. E todavia parecia ter chegado
o dia terrível em que podiam desaparecer da Europa as pequenas nacionalidades!... Por isso,
ao ser, nessa tarde fatal, anunciada oficialmente a entrada dum exército inimigo na fronteira,
toda a cidade ficou como petrificada, num desvairamento de terror.
O primeiro movimento da população foi correr às igrejas! se imaginava ver os regimentos
inimigos espalhando-se pelas ruas... Não creio mesmo que tivesse havido a ideia duma
resistência séria. Disse-se, é certo, que tentaríamos dar uma batalha junto a Caminha, ou em
Tancos, unicamente para mostrar à Europa que tínhamos ainda alguma vitalidade: mas era
apenas uma demonstração, porque a ideia seria recolhermos às linhas de Torres Vedras e
defender Lisboa. Eu, de resto, não estava nos segredos do Estado-Maior nem do Governo, e
apenas sei o que se dizia nos grupos que enchiam as ruas, apavorados, falando baixo.
Nessa noite fui ao Rossio. O Nunes dava uma soirée... Na sala pesava a mesma tristeza
soturna da rua. Havia nas faces, nas vozes, como que uma expressão desvairada de espanto
e de terror: uma singular maneira de perguntarentão? com os olhos muito abertos nas faces
pálidas...
Apesar de haver duas salas, a de visitas e uma outra onde se jogava, estavam todos
aglomerados em redor do sofá, como um rebanho que sente o lobo... A dona da casa, que
tinha um filho militar em Tancos, apesar do seu vestido azul, decotado, mostrava uma face de
pasmo e os olhos vermelhos e inchados... Chorara todo o dia. E nas mulheres, nos homens,
havia como que um abatimento invencível, na aceitação muda da derrota futura, na
passividade inerte das almas fracas... Como não se sabiam notícias, os boatos eram absurdos;
a todo o momento se faziam silêncios, silêncios lúgubres, que davam a sensação do
recolhimento cerimonioso dos dias de enterro. O Nunes, coitado, muito pálido, ia ao acaso pela
sala, com as abas da casaca a bater, esfregando nervosamente as mãos, querendo distrair-
nos daquelas preocupações dolorosas, propondo que se fizesse alguma coisa. Houve o pedido
duma quadrilha... Sentou-se uma senhora ao piano, mas os primeiros compassos dos
lanceiros soaram, perderam-se no sussurro geral das conversas apavoradas: ninguém tirou
par –não se dançou... Alguém lembrou um jogo de prendas, uma charada figurada: faces
espantadas sorriam, murmuravam com esforço:
– Vamos a isso, não era mau...
Mas ficava-se sentado, com as mãos inertes, os pés parados.
Eu vim para a sala de jogo conversar com alguns sujeitos. Havia jornalistas, magistrados,
políticos, e agora, através das frases, sentia-se em todos, o abatimento das almas. Ninguém
acreditava na resistência possível, e, diante do perigo, o egoísmo erguia-se feroz e brutal. O
ódio ao inimigo era violento – menos pela perda possível da Pátria livre do que pelos desastres
particulares que traria a derrota: um, tremia pelo seu emprego, outro, pelo juro das suas
inscrições. Até o Estado dera o o ao País, e na perda do Estado, via-se o fim do pão de
cada dia. Mas esta indignação em frases parecia esgotar toda a quantidade de patriotismo que
podiam dar aquelas almas: porque em cada proposta que sugeriam as frases aterradas
ceder as colónias em troco duma aliança inglesa imediata, ou fazer a cessão de duas
províncias havia, no fundo, a ideia imutável da capitulação, o horror da luta, a ansiedade de
não perder o emprego, o terror de perder as inscrições! E, de resto, cada um, sentindo a
fraqueza egoísta da sua alma, julgava instintivamente o País tomado do mesmo abatimento. A
ideia dum levantamento em massa, da criação de uma guarda-móbil, de milícias, era recebida
com um encolher de ombros: para quê? Não se pode fazer nada! Somos esmagados!.
Enquanto falavam assim, ao da mesa de jogo onde jaziam, esquecidas, as cartas do antigo
voltarete pacato, cheguei-me à janela: todo o vasto céu estava toldado duma névoa
esbranquiçada; mas sob o Arco do Bandeira alargava-se um grande espaço azul, como a
entrada circular dum imenso pórtico, e no centro brilhava uma larga Lua triste, muda, lívida. A
colina, ao lado, com o seu castelo, recortava em escuro a sua linha mole sobre a palidez azul
do fundo. Uma tristeza imensa parecia cair daquela decoração. Invadiu-me a alma uma
piedade vaga pelas desgraças pátrias, e, sem saber porquê, senti-me tomado duma saudade
angustiosa, a saudade de alguma coisa que desaparecera, que findara para sempre e que eu
não sabia bem o que era... Em baixo, o Rossio brilhava surdamente entre as linhas iluminadas
das lojas: o largo, em torno da coluna, que o luar tocava dum traço pálido, negrejava de gente:
nem um grito, nem uma voz... era uma massa escura, que parecia estar ali amodorrada,
arrebatada no terror instintivo que congrega os animais, esperando resignadamente a
tormenta; e das casas brancas, altas, desconsoladas, caía a mesma sensação de abstenção
aterrada e de concentração egoísta num medo obscuro.
De repente, do lado da Rua do Carmo, veio um rumor: era como que uma melopeia ritmada,
que se sentia, que vinha no ar, que se aproximava; luzes de archotes, destacando-se no
caiado das casas, apareceram à esquina do Rossio, e um grupo desembocou, marchando
vivamente, ao compasso dum hino patriótico, cujo ritmo o impelia, num passo largo:
Guerra, guerra, a guerra é santa,
Pela santa independência...
Eram talvez vinte e pareciam, de cima, da janela, pelos chapéus altos, serem rapazes das
escolas ou de alguma das associações que então abundavam na cidade.
Continuaram ao longo do Rossio, agitando os braços, erguendo a voz, num apelo à multidão
escura. Mas nenhum gesto lhes respondeu; toda a massa se apinhava a ver passar aqueles
entusiasmos solitários; lojas apagaram-se logo, fecharam num susto de bernarda; e naquele
silêncio frio, que vinha da indiferença da gente e da mudez das fachadas, parecia que o canto
se extinguia por si mesmo, que o entusiasmo se abatia, como uma bandeira a que falta a
brisa, caindo ao longo do mastro! Quando chegaram perto do Teatro de D. Maria, o hino quase
cessara, os archotes apagavam-se... Aquilo sumiu-se, perdeu-se entre a massa escura da
gente, como um esforço efémero de heroísmo numa vasta indiferença pública.
Recolhi-me para dentro, pensando, com a garganta apertada, que estávamos para sempre
perdidos.
Enfim, como a noite se adiantava, foi necessário fazer alguma coisa para dissipar aquele pavor
ambiente. Eu, o Nunes, o Correia, abancámos a um voltarete. Na sala, também decerto se
sentira a necessidade de sacudir o torpor apavorado das senhoras: houve uma escala no
piano, acordes abafados, e, daí a pouco, uma voz que eu conheci pela dum oficial de
cavalaria, amigo da casa, ergueu-se, branda e plangente, recitando a Judia:
Dorme que eu velo, sedutora imagem...
Então aquela melodia, aquela voz mórbida e saudosa pareceram-me singularmente estranhas
naquela hora. Era como que um som antigo, obsoleto, a voz dum mundo extinto, passando em
sonhos. Em redor da mesa as vozes monótonas continuavam: passo, dou cartas... De baixo,
do Rossio, vinha o mesmo rumor surdo da multidão que.87 enchia a praça, e na sala, no
langor amoroso do acompanhamento, balançada e com requinte, a voz do alferes suspirava:
Dorme que eu velo, sedutora imagem...
E já a essa hora o exército inimigo pisava o solo da Pátria! Pobre alferes!
Encontrámo-nos mais tarde... Eu seguia então com os meus companheiros da milícia nacional.
E que milícia! Tudo o que tínhamos de uniforme era um capote esfarrapado! E que armas as
nossas armas de caça! Mas enfim íamos, nessa fria man de Abril, sob a chuva
torrencial.
Parece que se estava dando uma grande batalha, mas não sabíamos nada. Encontrávamo-nos
ali, a meia encosta duma colina que nos escondia a vista da frente, ao dum casebre
abandonado. Ali permanecíamos havia duas horas, com lama pelos joelhos, encharcados,
depois de termos marchado toda a noite, idiotas de fadiga, esfomeados, encostando-nos uns
aos outros para não adormecer. Em volta de nós, dum céu baixo e lúgubre, caía um dilúvio; e o
casebre parecia, entre as suas quatro árvores, todo envolvido de chuva, tão encolhido e tão
sonolento como nós. A distância, a artilharia troava; outras vezes eram descargas secas, que
pareciam o rasgar repentino duma grande peça de seda; mas nem víamos o fumo, naquela
névoa de ar e de chuva. Nem sei onde estávamos, nem o que defendíamos.
Quem comandava a companhia era o alferes o mesmo que recitava a Judia! Amarelo,
encharcado, encolhido no seu capote, ia e vinha defronte de nós. Ai! Não se parecia com o
alferes que torcia o bigode junto do piano, revirando olhos ternos nos versos mais tocantes.
De repente, na terra molhada, um galope surdo: é um oficial, com a farda desapertada, de
espada em punho, a face acesa duma cólera de batalha; belo rapaz, com um fio de sangue a
cair-lhe da orelha. Estaca o cavalo, berra com uma voz furiosa:
– Quem comanda este destacamento?
– Sou eu, meu capitão – responde o alferes, aprumando-se.
Com um milhão de diabos! Roda pela esquerda, por trás do casebre, a tomar posições na
estrada, ao pé da valeta!
E partiu a galope. E seguimos nós, a marche-marche, na lama onde os pés se enterravam,
fazendo um esforço brutal para galgar aquele terreno duma resistência mole, arquejando sob a
tormenta de chuva e o estrondo da artilharia que parecia agora aproximar-se.
Passámos defronte do casebre: à porta, carros de ambulância e de dentro, gritos de feridos.
Era a primeira vez que ouvíamos aqueles brados dilacerantes de dor abandonada, e houve no
destacamento como que uma impressão, uma hesitação: era a nossa carne de paisanos, de
burgueses, que se recusava, àquela evidência tão brusca da morte e da dor!
– Marche! – berrou o alferes.
Chegámos à estrada: mas não víamos nada. Defronte, uma linha pálida de choupos; depois
outras árvores, uma ermida no alto dum monte e, por todo o vale, a névoa agreste e áspera da
chuva incessante. Parámos: à distância negrejava outro destacamento. E ali ficámos, na
mesma imobilidade, sob a água, tiritando, numa fadiga mortal. Nem um gole de aguardente...
Os pés inchados nas botas encharcadas torturavam-me. E pensando nos dias da paz, quando
era da poltrona do meu escritório que eu via cair a chuva, vinha-me uma cólera furiosa contra o
estrangeiro, um furor de.88 marchar avante, um desejo brutal de carnagem... E desesperado
daquela imobilidade, acusava, na alucinação da lera, os generais, o governo, todos os que
estavam de cima e que me não mandavam marchar. Aquela inacção era odiosa. O fato colava-
se-nos ao corpo e sentíamos a água a escorrer ao comprido das pernas; as mãos gelavam
sobre os canos das espingardas, na brisa aguda e agreste que soprava, encanada do vale.
De repente, um ruído surdo: era uma bateria de artilharia, galopando, a tomar posições:
passou como um turbilhão, aos berros, na névoa, na chuva e na lama, aos concorvos dos
cavalos, aos solavancos das carretas, num estalar furioso de chicotadas, e abalou, perdeu-se
na bruma, com um rumor surdo e mole sobre a terra ensopada.
Subitamente, à nossa direita, rompe uma fuzilaria; agora sentimos o silvar das balas.
Instintivamente abaixámo-nos, num recuo covarde de milícia bisonha...
– Firmes! – grita o alferes.
Diante de mim, um soldado abate-se como um fardo, sobre a lama... e fica imóvel, morto...
Agora vemos nuvenzinhas de fumo pardo, que a chuva abala e o vento sacode ... O alferes, de
repente, cambaleia cai sobre o joelho: está ferido no braço... mas ergue-se como uma mola,
agita a espada, como doido, aos berros:
– Fogo!... Fogo!
Depois... não me recordo bem. O tremendo som da artilharia alucina-nos. É como num sonho,
num sonambulismo, que faço fogo, ao acaso, contra a névoa parda que envolve tudo diante de
mim.
Ao meu lado, o alferes cai outra vez: espolinha-se no chão aos gritos, num furor de agonia:
– Acabem-me, rapazes! Acabem-me, rapazes!...
Foi nesse momento que nos sentimos envolvidos, absorvidos por uma massa negra, que
descia como uma tromba, na violência dum elemento! Partimos, correndo, atirando as armas,
no meio duma gritaria ensurdecedora! ... Sinto que aquela enorme mole de gente se quebra,
se dispersa, aos grupos; somos uns cem, no meio, que correm, caindo, erguendo-se, rolando
na lama, espezinhados ... Tenho uma vaga consciência de que é a derrota, a debandada, o
pânico das milícias... e fujo, fujo com uma amargura exasperada, gritando sem saber porquê,
na ânsia abjecta de achar um canto, uma casa, um buraco...
Recordo-me de ver, naquela carreira, diante de mim, um oficial em cabelo uma figura
esguedelhada e furiosa berrando com a boca aberta, agitando a espada, querendo decerto
deter a debandada. Mas a maré de gente abate-se sobre ele, embrulha-o e eu sinto,
vagamente, a minha bota escorregar sobre o seu corpo inerte e esmagado...
Oh! maldita guerra!
Como entrei em Lisboa e me achei na minha casa, realmente não sei. Sim, lembro-me de
passar no Rossio, e vê-lo cheio de uma multidão horrível toda a população dos arredores
refugiando-se na fuga aterrada diante do inimigo. Era um caos de carros, de gado, de
mobílias, de mulheres, gritando; uma massa brutal e apavorada, redemoinhando sobre si
mesma, clamando por pão, sob a chuva implacável.
Foi em Lisboa que soube, aos fragmentos, todos os detalhes da catástrofe: as esquadras
inimigas no Tejo, a cidade sem água, porque o conduto do Alviela fora cortado, a insurreição
nas ruas, e uma plebe alucinada, passando do abatimento ao furor, ora arrojando-se contra as
igrejas, ora pedindo armas, e juntando à confusão da derrota os horrores da demagogia!
Dias amargos! Todos os meus cabelos encaneceram.
E pensar que durante anos nos podíamos ter preparado! E pensar que, à maneira da
Inglaterra, podíamos ter criado corpos de voluntários, fazendo de cada cidadão um soldado, e
preparando assim, de antemão, um grande exército nacional de defesa, armado, equipado,
enérgico e tendo recebido, no hábito da disciplina, o orgulho da farda...
Mas de que vale agora pensar no que se podia ter feito!.. O nosso grande mal foi o
abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se
atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles
não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num
cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa
anulação de toda a vontade... Estávamos caquécticos! O Governo, a Constituição, a própria
Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo
dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País
próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que
devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo
fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria,
que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o
Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!
Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o
sacerdote, o pintor, o arquitecto tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo
toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe cai feita das
secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os
braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E
como o governo está para fazer tudo o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir.
Mas, quando acorda é como nós acordámos com uma sentinela estrangeira à porta do
Arsenal!
Ah! Se nós tivéssemos sabido!
Mas sabemos agora! Esta cidade, hoje, parece outra. não é aquela multidão abatida e
fúnebre, apinhada no Rossio, nas vésperas da catástrofe. Hoje, vê-se nas atitudes, nos
modos, uma decisão. Cada olhar brilha dum fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-
se como se verdadeiramente contivessem um coração! não se pela cidade aquela
vadiagem torpe: cada um tem a ocupação dum alto dever a cumprir.
As mulheres parecem ter sentido a sua responsabilidade, e são mães, porque têm o dever de
preparar cidadãos. Agora trabalhamos. Agora, lemos a nossa história, e as próprias fachadas
das casas não têm aquela feição estúpida de faces sem ideias, porque, agora, por trás da
cada vidraça, se pressente uma família unida, organizando-se fortemente.
Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a
SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita em guarita, na sombra que faz o
edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...
Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos
sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro e faço-lhes desejar
ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam, sobre a terra de
Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E, para isso, mostro-lhes o caminho
seguro aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e, sendo pequenos pelo
território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela
força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós
fizéramos outrora.
Como me lembro! íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna, e entre duas fumaças,
dizer indolentemente:
– Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...
E em lugar de nos esforçarmos por salvar "isto" pedíamos mais conhaque e partíamos para o
lupanar.
Ah! geração covarde, foste bem castigada!...
Mas agora, esta geração nova é doutra gente. Esta já não diz que "isto" está perdido: cala-se e
espera; se não está animada, está concentrada...
E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festa, tudo nos
serve: o de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa, contando que
celebre uma data nacional. Não em público ainda o não podemos fazer mas cada um na
sua casa, à sua mesa. Nesses dias colocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com
verduras, põe –se em evidência a linda velha Bandeira, as Quinas de que sorríamos e que
hoje nos enternecem e depois, todos em família cantamos em surdina, para não cha mar a
atenção dos espias, o velho hino, o Hino da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro
melhor!
E uma consolação, uma alegria íntima, em pensar que à mesma hora, por quase todos os
prédios da cidade, a geração que se prepara está celebrando, no mistério das suas salas, dum
mundo quase religioso, as antigas festas da Pátria!
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