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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
CONTANDO HISTÓRIAS DE CUIDADO À INFÂNCIA EM
UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA
Ariane Cristiny da Silva Fernandes
NATAL
2011
ii
ARIANE CRISTINY DA SILVA FERNANDES
CONTANDO HISTÓRIAS DE CUIDADO À INFÂNCIA EM
UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA
NATAL
2011
Dissertação elaborada sob a orientação
da Professora Dra. Symone Fernandes
de Melo e apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
iii
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Fernandes, Ariane Cristiny da Silva.
Contando histórias de cuidado à infância em unidade de terapia intensiva
pediátrica / Ariane Cristiny da Silva Fernandes. 2011.
292 f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Natal, 2011.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Symone Fernandes de Melo.
1. Psicologia clínica da saúde - Natal (RN). 2. Literatura infantil. 3.
Serviços de saúde infantil. 4. Unidade de tratamento intensivo - Natal (RN). 5.
Fenomenologia. I. Melo, Symone Fernandes de. II. Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 159.922.7
iv
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A dissertação “Contando histórias de cuidado à infância em Unidade de Terapia
Intensiva Pediátrica”, elaborada por Ariane Cristiny da Silva Fernandes, foi considerada
APROVADA por todos os membros da Banca Examinadora e ACEITA pelo Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de
MESTRE EM PSICOLOGIA.
Natal (RN), 27 de maio de 2011.
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Symone Fernandes de Melo
Profª. Drª. Izabel Augusta Hazin Pires
Profª. Drª. Elizabeth Ranier Martins do Valle
______________________________________
______________________________________
______________________________________
v
A velha da casa do alto da serra contava ao menino coisas espantosas:
A velha dizia que havia na terra fadas, feiticeiras e bruxas maldosas.
Mas quando o menino cresceu em idade e trocou a serra pela povoação
E foi para a escola que era na cidade aprendeu as coisas tal como são.
Passaram-se anos e então quis voltar e ao subir a serra ficou admirado de encontrar a velha,
que estava a fiar tal como nos dias de tempo passado.
Então, quis explicar-lhe nessa mesma hora tudo o que aprendera e tudo o que ouvira.
Quis dizer à velha que sabia agora que em suas histórias tudo era mentira.
“Tanta coisa, tanta que tu me dizias histórias tão esquisitas e tão baralhadas.
Não sei para quê tantas fantasias se afinal as coisas já estão inventadas.
Lembras-te da bruxa que tinha a mania de andar de vassoura, de varrer o chão, voando nos
ares de noite e de dia? Se queria voar... tinha o avião.
E o conto pateta da princesa bela que foge ao gigante seu amo e senhor e deixa-lhe um cuspo a
falar por ela tal como se o cuspo fosse gravador?
E aquele rochedo do Ali-Babá que abria e fechava com certas farinhas.
Mas que disparate! Agora há portas que se abrem e fecham sozinhas!”
A velha ia ouvindo toda a explicação que parecia nunca mais ter fim.
Até que encontrou uma ocasião de poder falar, e falou assim:
Se os homens fizeram o que pensaram, sonharam bem antes de o realizar; e se o
conseguiram foi porque o sonharam sonhos que ninguém queria acreditar.
E os contos de fadas, sempre repetidos de velhos e novos pelas gerações, traziam em si sonhos
escondidos que os homens guardavam em seus corações.
(Autor anônimo, 1992)
vi
À minha família, minha fada mãe, meu marido rei
e minha filha princesa, sentidos da minha existência...
À pequena Mel* (in memoriam), por ter redirecionado os rumos
deste estudo, e a todas as crianças que estão ou já estiveram
internadas em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica,
pequenos grandes heróis desta história...
vii
AGRADECIMENTOS
Aqui conta-se uma história de gratidão. Trata-se da gratidão que tenho por todos
aqueles que, direta ou indiretamente, fizeram parte dos caminhos e descaminhos percorridos ao
longo da confecção deste trabalho. Várias foram as personagens que me ajudaram a tecer os fios
do conto que a seguir se desvela. A eles dedico contos de Cuidado, exatamente o que
representam para mim...
Cuidar do Ser: Em primeiro lugar, agradeço a Deus, que, diante de todos os grandes
dragões que precisei enfrentar, me fortaleceu e mostrou saídas quando eu pensava em não mais
persistir. Ao meu Deus, que apontou aquelas crianças que necessitavam de ajuda, que me
colocou no lugar e hora certos.
Mamãe Bela, Mamãe Fera: Em segundo lugar, agradeço à minha querida mãe, minha
grande fada madrinha, que com seu toque mágico me ilumina todos os dias, me ajuda e me
oferece o suporte emocional de que tanto necessitei ao longo de toda a minha vida. Ao seu lado,
me sinto cuidada e sempre capaz! Potência de vida e cuidado essencial que permite
continuamente o alcance do meu poder-ser é o que você representa em minha vida! Quem dera
se todas as nossas crianças pudessem contar com uma mãe como você... Mãe, a você devo mais
essa vitória!
A Mãe da Menina e a Menina da Mãe: À minha pequena Mari, a princesinha desta
história, a quem eu devo toda a minha inspiração e, mais que isso, devo a ela todo o sentido da
minha existência. Filha, mágico e encantador é poder ser tocada (e me emocionar) diariamente
pela luz, pela alegria e pela vida que emanam do seu olhar e preenchem meu caminhar com
vitalidade, esperança e uma imensa sensação de plenitude!
viii
O Reizinho Mandão: Ao meu marido, Juscelino, pelo apoio, na presença ou na
ausência, e pelo ciúme das horas dedicadas ao mestrado. Obrigada, , por me reposicionar no
mundo e fazer renascer em mim a fé em Deus!
O Pequeno Príncipe: À minha orientadora, Symone Fernandes, por despertar em mim
verdadeira paixão pelos contos de literatura infantil, pela consideração e apoio incondicional,
pelas mãos que sempre estiveram estendidas a me acolher, nos momentos de vitórias e de
tristeza, de renovação e de desânimo, pela sua fiel companhia e por sua orientação constante,
atenta, respeitosa, ética e cuidadosa. Enfim, por acreditar ser possível sempre, por acreditar em
meu trabalho, e depositar confiança em mim. Pela sincera paixão que nutriu ao estudo
construído, não por mim, mas por nós duas, paixão esta que ajudou a dar sentido a todo o
esforço empreendido e me impulsionou a seguir em frente até o final feliz!
O Menino Maluquinho: À querida grande Mu, pela amizade sincera, por sua
irreverência, seu interesse autêntico, que me permitiu compartilhar os momentos difíceis, pelas
gargalhadas que sempre atuam como um chamamento à vida, à alegria, à leveza do existir, por
juntas enfrentarmos o passo a passo dessa trajetória, dividindo expectativas, medos, angústias e
toda a sorte de sentimentos que emergem diante de grandes desafios.
A Menina que aprendeu a voar: À Geane, amiga do coração, que esteve comigo em
momentos cruciais, me ajudando nas tormentosas transcrições e, sobretudo, enaltecendo o
trabalho desenvolvido e me indicando a necessidade de perseverar.
A Menina Cabeça-de-Vento: À professora Eulália Maia, que despertou em mim o
interesse pela pesquisa e pela Psicologia da Saúde/Hospitalar e que, com seus puxões de orelha,
me sacudiu rumo à retomada do caminho até então trilhado.
Polegarzinha: À professora Clara Santos, pela leitura atenta e cuidadosa deste
trabalho no nosso segundo seminário de qualificação de dissertação.
ix
A Cigarra e a Formiga: Às minhas colegas de trabalho do Núcleo Articulador da
Humanização, Acácia, Geni e Sheylla, que viabilizaram o tempo necessário para me dedicar aos
estudos e conseguir conciliar as exigências acadêmicas com as tarefas laborativas. Em especial à
Acácia, por seu imenso carinho, sua escuta compreensiva, sua sincera admiração pelo trabalho
aqui construído e seu acolhimento contínuo que também me fizeram prosseguir.
Hospital não é Mole!: Às minhas colegas de trabalho do Complexo Hospitalar
Monsenhor Walfredo Gurgel, Denilde, Ivaneide, Jésia, Leila, Nilza, Odete, Rosana, Simone e
Vanessa, que escutaram pacientemente minhas lamentações com atenção, bom humor e carinho.
Em especial à Leila, pela compreensão ao ceder o tempo necessário para que eu pudesse trilhar
este árduo e delicioso caminho de mestrado. Agradeço desde sempre!
Um Cantinho pra Mim: A CAPES, pela concessão da bolsa de estudos; a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, minha segunda grande casa; aos professores e
colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, pelas valiosas discussões e
contribuições ao longo do trajeto de mestrado; e aos membros do Grupo de Estudos em
Subjetividade e Desenvolvimento Humano (GESDH), pelo partilhar de conhecimentos,
especialmente os vinculados às noções teóricas heideggerianas.
Quem tem Medo de Quê?: Às professoras, Dra. Elizabeth Valle e Dra. Izabel Hazin,
que aceitaram prontamente o convite para participar da Banca Examinadora deste trabalho.
A Cidade dos Carregadores de Pedras: Às enfermeiras, às técnicas de enfermagem e
a todos os profissionais de saúde que fazem parte da equipe de cuidados da UTIPED do
CHMWG.
Se Criança governasse o Mundo...: Acima de tudo, agradeço às crianças que fizeram
parte deste estudo, as quais bravamente venceram grandes desafios e compartilharam comigo
suas lutas e conquistas, ouvindo, criando e recriando contos de Cuidado.
x
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS ............................................................................................................. xii
RESUMO .................................................................................................................................. xiii
ABSTRACT .............................................................................................................................. xiv
CONTANDO HISTÓRIA... APRESENTAÇÃO ................................................................... 15
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 21
1. CURAR... PROTEGER... CUIDAR... A UTI E SEUS VÁRIOS SENTIDOS .......... 28
1.1 BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES ABRIGANDO A VULNERABILIDADE... A
CRIANÇA E A UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA ................................................ 28
1.2 O PEQUENO POLEGAR E O GIGANTE PROMOVENDO O CUIDADO... A INTERVENÇÃO
PSICOLÓGICA NA ASSISTÊNCIA A CRIANÇAS GRAVEMENTE ENFERMAS ............................... 41
2. A HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL A PARTIR DA FENOMENOLOGIA
EXISTENCIAL CONTRIBUIÇÕES DA NOÇÃO DE CUIDADO .................................. 48
2.1 A FÁBULA DE HIGINO O CUIDADO COMO CONSTITUTIVO DO SER .......................... 49
2.2 O PEQUENO PRÍNCIPE O SENTIDO DO CUIDADO E A PRODUÇÃO DE SAÚDE............ 60
3. OS CONTOS DE LITERATURA INFANTIL SEU ENREDO E SUA
APROPRIAÇÃO TERAPÊUTICA NO CUIDADO À INFÂNCIA ..................................... 70
3.1 OU ISTO OU AQUILO... TECENDO AS DISTINÇÕES NECESSÁRIAS................................ 71
3.2 A FADA MADRINHA E SUA VARINHA DE CONDÃO NARRATIVAS PRODUZIDAS SOBRE
O POTENCIAL TERAPÊUTICO DO CONTO ................................................................................. 82
3.3 CONTAR PARA ACOLHER... PROTEGER... CUIDAR O USO TERAPÊUTICO DA
LITERATURA INFANTIL EM SAÚDE E SUA INSERÇÃO NO CONTEXTO DA TERAPIA INTENSIVA
PEDIÁTRICA ........................................................................................................................... 115
4. MÉTODO ........................................................................................................................ 131
4.1 JOÃO E MARIA O FENÔMENO A SER DESVELADO .................................................. 131
4.2 O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO: FENOMENOLOGIA .............................. 133
4.3 FLORESTA, CASTELO OU CASEBRE? CARACTERIZANDO O CENÁRIO ....................... 136
4.4 CONHECENDO OS HERÓIS E AS OUTRAS PERSONAGENS DESTA HISTÓRIA ............... 139
xi
4.5 CONTO POR CONTO COMPREENDENDO OS CONTOS E SUAS TEMÁTICAS ............... 148
4.6 PROCEDIMENTOS DE CONSTRUÇÃO DO CORPUS DA PESQUISA................................. 151
4.6.1 Delineamento do Estudo ................................................................................... 151
4.6.2 Instrumentos e Materiais .................................................................................. 152
4.6.3 Pinóquio e Gepeto - O artesão e o desenrolar de encontros com contos e
encantos... Descrição do passo a passo ............................................................................ 157
4.7 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO CORPUS UM OLHAR FENOMENOLÓGICO SOBRE OS
DADOS... REVELANDO SENTIDOS ......................................................................................... 162
4.8 PROCEDIMENTOS ÉTICOS E DESAFIOS METODOLÓGICOS ......................................... 165
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO .................................................................................... 172
5.1 ERA UMA VEZ... AS CRIANÇAS DA UTIPED ............................................................ 176
5.2 ENTRELAÇANDO OS SENTIDOS DO CUIDADO CONTOS LITERÁRIOS E EVOLUÇÃO
TERAPÊUTICA... UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL .................................................................. 185
5.2.1 Eixo lúdico ........................................................................................................ 186
5.2.2 Eixo reflexivo .................................................................................................... 199
5.2.3 Eixo afetivo ....................................................................................................... 226
5.3 E, AFINAL, O QUE AS CRIANÇAS ACHARAM DA HISTÓRIA? NARRATIVAS TECIDAS
PELAS PROTAGONISTAS DESTA HISTÓRIA............................................................................. 246
5.3.1 E no fim emergem os significados da experiência contada e vivida... .............. 246
5.3.2 Conto ou não conto? Comentários adicionais .................................................. 253
6 E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE... CONSIDERAÇÕES FINAIS ............... 258
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 265
ANEXOS .................................................................................................................................. 276
APÊNDICES ........................................................................................................................... 278
xii
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DOS PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA .......................................... 141
QUADRO 2: MATERIAIS ACESSÓRIOS PARA A EFETUAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ............ 154
QUADRO 3: ETAPAS, OBJETIVOS E INSTRUMENTOS DA PESQUISA .......................................................... 156
QUADRO 4: DESCRIÇÃO DO ENQUADRAMENTO TERAPÊUTICO DAS SESSÕES DE PESQUISA.................... 158
QUADRO 5: ESTRUTURA DA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DO CORPUS DA PESQUISA ............................. 175
xiii
RESUMO
Os contos de Literatura Infantil, em seus enredos, assinalam dilemas existenciais do ser
humano, como a morte, as situações de separação, perda, abandono, medo, desafios,
conquistas, e outros elementos, que os tornam material apropriado para auxiliar as
crianças em seu processo de desenvolvimento. Tais elementos presentes nas histórias
infantis se aproximam, de modo especial, das experiências vividas por crianças em
contexto de hospitalização. Isto posto, pretendeu-se compreender, pautando-se na noção
heideggeriana de Cuidado e adotando a Fenomenologia como método, as possibilidades
terapêuticas dos contos de Literatura Infantil no cuidado a crianças hospitalizadas em
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIPED). Para tanto, elegeu-se como cenário
a UTIPED de um hospital público estadual, localizado no município de Natal/RN, e
como assistentes de pesquisa quatro crianças internadas em tal setor, com idade entre
seis e nove anos, todas do sexo masculino, com quadros clínicos variados, e
selecionadas a partir de critérios de faixa-etária e condições clínicas. O procedimento de
construção do corpus abrangeu oito sessões individuais de contação de história,
acompanhadas por recursos lúdicos de expressão. A proposta de compreensão
fenomenológica acerca das possibilidades terapêuticas dos contos estruturou-se sob três
eixos principais: (1) o eixo lúdico; (2) o eixo reflexivo; e (3) o eixo afetivo. Evidencia-
se a adequabilidade da proposta terapêutica ao contexto da UTIPED e o potencial do
conto como fator de proteção ao ser criança. A contação de histórias emoldurou um
cenário de cuidado incomum em contexto de tratamento intensivo, demarcando ali um
espaço simbólico de expressão infantil. Indica-se, com esse estudo, uma proposta
terapêutica para o cuidado à criança em UTIPED que considera sua etapa evolutiva, o
quadro clínico que lhe acomete e, sobretudo, suas necessidades emocionais diante da
imersão em ambiente diverso do seu e repleto de elementos potencialmente prejudiciais
ao seu pleno desenvolvimento.
Palavras-chave: Criança, Cuidado, Literatura Infantil, Unidade de Terapia Intensiva,
Fenomenologia.
xiv
ABSTRACT
The tales of children's literature, in their plots, mark existential dilemmas belonging in
human’s lives, such as death, situations of separation, loss, abandonment, fear,
challenges, achievements and other elements that make them suitable material to assist
children in their developmental process. Such elements, present in children’s
storybooks, are close to the experiences lived by the children in the context of
hospitalization in a special manner. With that said this study focus on the understanding
of the therapeutic possibilities of the tales of children's literature in the care of
hospitalized children in Pediatric Intensive Care Units (UTIPED) based on the
Heidegger's concept of Care and adopting the Phenomenology as the method. The
UTIPED of a state public hospital located in the municipality of Natal/RN was elected
as the study site and four hospitalized children aged between six and nine years, all
males, presenting different clinical conditions were selected to participate in the study
following age and clinical conditions as the selective criteria. The procedure of corpus
construction included eight individual sessions of storytelling accompanied by the use
of ludic resources. The phenomenological understanding about the therapeutic
possibilities of tales was structured under three main elements: (1) the ludic axis; (2) the
reflective axis; and (3) the affective axis. The appropriateness of the proposed therapy in
the context of the UTIPED and the potential of the tales as a protection factor to the
child was evident. The storytelling activity framed a scenario of care unusual in the
context of intensive care units, establishing a symbolic space for children’s expression.
Therefore, this study indicates this therapeutic proposal for children’s care in the
UTIPED that considers their evolutionary stage, their clinical conditions at the time and
especially their emotional needs during their immersion in a diverse and foreign
environment which is filled with potentially harmful elements to their full development.
Keywords: Child, Care, Children's literature, Intensive Therapy Unit, Phenomenology.
15
CONTANDO HISTÓRIA... APRESENTAÇÃO
Quando percorremos uma história, muitos
caminhos se oferecem: caminhos sinuosos,
obscuros, que nos levam a adentrar na floresta,
com seus perigos e encantos, desafios e
obstáculos. A ela nos entregamos e a ouvimos
como a criança que ainda somos.
(Santos Filho & Arruda, 2005, p. 105)
Eis que um dia se resolve pela mudança. E como toda mudança, não foi fácil.
Mas quem disse que procurava algo fácil? Os desafios aquecem minha alma, me fazem
respirar mais fundo. Viver! Eis que surge, então, um novo projeto, cercado de cuidado,
dúvidas, insegurança, tensão. Medo de errar, de não mais poder, de desistir, de não
tentar.
Nas palavras acima tentei tecer o fio de uma história pessoal que versa sobre a
trilha de um recomeço. Devo contar.
Minha inquietude com a temática relativa aos contos de literatura infantil surge
em uma das aulas referente à disciplina Psicoterapia Infantil Humanista-Existencial,
ministrada pela minha atual orientadora. Ora, na ocasião, a mesma afirmava serem os
contos, em conformidade com a literatura científica especializada, potentes ferramentas
para a mediação em ludoterapia, produzindo efeitos plurais no cuidado à criança. Até
então, muito havia escutado sobre o brincar, os jogos, o desenho, como promotores do
desenvolvimento infantil. Todavia, sobre os contos nada sabia. E aquela nova
16
informação me chamou a atenção, despertou-me o interesse, queria saber mais,
conhecer os contos e tentar reconhecer neles o que os tornam terapêuticos, como podem
ajudar as crianças, como atuam em sua subjetividade.
Passado algum tempo, ingresso no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, apostando em um projeto que tinha
como intento principal empreender um estudo sobre o potencial terapêutico dos contos
para crianças vítimas de abuso sexual. A orientadora sugere modificações pertinentes,
no que diz respeito ao público-alvo do estudo. E assim o faço. Delineiam-se então os
contornos de um novo projeto de pesquisa. Este teria como objetivo averiguar a função
dos contos literários no auxílio a crianças em situação de acolhimento institucional. A
questão central a ser respondida seria: que efeitos os contos produzem nas crianças que
os escutam? O que esse instrumento de intervenção tem a contribuir na ajuda às crianças
abrigadas?
Estabelecidas as questões norteadoras, mergulho em campo para prescrutar suas
nuances, discorrer sobre seu dinamismo, conhecer as crianças e seu locus de
desenvolvimento, qual seja a instituição de acolhimento. Define-se método, inspirado
em métodos anteriormente utilizados por pesquisadores do campo, elencam-se
instrumentos, etc.
E, no transcurso de um ano, como nos contos de fadas, novos rumos são traçados
para o enredo, no meu caso rumos de vida, pessoal, profissional. Desafios são
enfrentados, obstáculos vencidos. Talvez o conto, com sua propriedade de
ressignificação de histórias, a possibilidade que ele aponta de um novo fim, tenha
produzido seus efeitos na aluna que vos fala... Fim e recomeço, marcados por uma série
de coincidências, magicamente ocorrem quase que em paralelo. Fim de uma história e o
17
desenrolar da trilha de um recomeço, que “não nada permanente exceto a
mudança” (Heráclito, sec. VI a.C., citado em Papalia & Olds, 2006, p. 45).
Como em toda história, vivida, contada ou ouvida, há um divisor de águas e uma
questão basal: o que faz você feliz? Dou-me conta do que me faria realmente feliz, do
que de fato faria sentido produzir como fruto da tessitura de uma história. Tal história,
para ser significativa, manteria como personagens principais as crianças, entretanto
inseridas em outro contexto, a Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIPED) de
um hospital da rede pública estadual. Locus de minha atuação profissional recente, o
hospital e a área da psicologia hospitalar desperta em mim verdadeira paixão. Somado
ao encantamento pelos contos, parecia-me bastante oportuno compreender a natureza
terapêutica deles frente às demandas afetivas dos infantes hospitalizados em UTIPED.
Parecia-me relevante, de igual modo, estruturar uma proposta terapêutica
direcionada especialmente às crianças em situação crítica, tais como o o aquelas que
se encontram em tratamento intensivo, proposta que se mostrasse adequada àquele
ambiente, onde os pequenos permanecem imóveis na maior parte do tempo, impedidos
de realizar determinadas atividades lúdicas. O ouvir histórias se revelou uma
possibilidade de atenção psicológica. Decidi-me por este caminho.
Como se não bastasse todas essas mudanças, rupturas e reviravoltas, não por
acaso é que encontro uma princesa nesse caminho. Trata-se da pequena Mel. Convido
todos a conhecer sua história.
18
Era uma vez Mel
, internada na UTI em virtude de uma crise de apendicite
aguda, não tratada devidamente e que, portanto, culminou em um quadro de septicemia
generalizada e necrose do intestino. Por trás desse frio diagnóstico, existia uma
garotinha de apenas cinco anos, amedrontada com os aparelhos e o barulho da UTI,
longe de sua e e de seus familiares, sem comer e sem beber, tentando entender o que
estava acontecendo com ela, que local era aquele, que pessoas eram aquelas que
passavam pra lá e pra cá, que ora brincavam com ela, ora lhe infligiam dor.
Alvo de procedimentos constantes, cirurgia, punções, exames, Mel chorava,
pedia por sua mãe, que podia estar ao lado dela na hora da visita. Pedia que, por
favor, alguém lhe desse ao menos água. Sem entender que não podia beber água e nem
se alimentar. Pedia então que alguém lhe molhasse os lábios ao menos. E mais uma vez
recebia o não como resposta, sem maiores explicações. A expressão de sofrimento e
angústia marcava o seu rostinho e nada parecia capaz de lhe aliviar a dor. Naquele
momento não só a dor física, mas, sobretudo, a dor emocional.
Nosso primeiro contato foi breve. A criança parecia ter desistido de seus
protestos, e eu talvez representasse pra ela mais uma pessoa vestida de branco que iria
lhe negar a satisfação de suas necessidades básicas e lhe trazer sofrimento, uma vez que
ela não entendia o porquê de tudo aquilo. Mel me olhava com reserva, e respondia
monossilabicamente a toda e qualquer tentativa de contato. Virava a cabeça, fingia
dormir, não me queria ali.
- Oi, Mel? Como eu posso lhe ajudar?
- Tia, me dá um copo d’água...
Os nomes das crianças foram alterados tendo em vista preservar suas identidades. Esta observação é
válida para todas as demais crianças participantes deste estudo, que tiveram seus nomes substituídos por
nomes de personagens de histórias infantis.
19
- Infelizmente, meu amor, você fez uma cirurgia na barriginha, não pode
beber água por enquanto... E nem se alimentar... vendo esse sorinho
ai? Ele é que tá lhe alimentando, deixando forte... É passageiro...
Nesse primeiro diálogo mais duradouro, tentei explicar pelas vias da razão o que
estava se passando. Mel pareceu entender, mas não era o suficiente. Acalanto, proteção,
carinho, atenção... pareciam ser essas as suas maiores necessidades. Pergunto então o
que ela gostaria de fazer enquanto estivesse ali, ao que ela me responde:
- Tia, pega aquele livrinho ali que tá com Vitória... Conta a historinha pra
mim...
- Tudo bem, Mel, vou pegar um livrinho e contar uma história pra você.
Você gosta de alguma história?
- Qualquer uma, tia, qualquer uma...
E assim, todas as tardes, ao me ver no vidro da porta da UTI, antes de entrar,
Mel estendia sua mãozinha, num gesto carinhoso, me convidando a contar histórias para
ela. Convidando-me a cuidar, a lhe acolher e trazer algum momento de conforto e
alegria, em meio àquela confusão de coisas que vivia. Aos poucos, passou a se
alimentar e beber água. Aos poucos, foi tecendo os fios de afetividade e carinho para
com a equipe e os coleguinhas que ali permaneciam. Aos poucos, preparou a sua
despedida. E nos deixou...
Não por acaso a pequena Mel pedia justamente para ouvir histórias. E é à
pequena grande Mel que devo o nascimento de um novo projeto. Pleno de sentido para
mim.
Chegamos à reta final desse longo caminho, apresentando ao leitor esta
dissertação, qual seja: Contando histórias de cuidado à infância em Unidade de Terapia
20
Intensiva Pediátrica. Nas páginas que se seguem, é possível ler o desenrolar de um
conto.
Convido o leitor a imergir no mundo encantado da literatura infantil,
considerando-a como potencialmente promotora do desenvolvimento infantil, mesmo
em meio à adversidade. Iniciemos então nossa história. Espero que seja tão profícua
para o leitor como o foi para mim.
21
INTRODUÇÃO
Voar parecia encantadoramente cil, mas, ao
tentarem, primeiro saindo do chão e depois das camas,
eles sempre iam para baixo em vez de para cima.
Como é que você faz? perguntou João, passando a
mão no joelho.
É pensar em coisas agradáveis e maravilhosas
Peter explicou , que os pensamentos levantam vocês
no ar.
Claro que Peter Pan estava brincando com eles, porque
nenhuma pessoa consegue voar se o mágico não for
soprado sobre ela. Por sorte, uma das mãos de Peter
estava cheia desse pó. Ele soprou uma pitada em cada
irmão: o resultado foi incrível.
(Barrie em Peter Pan, adaptado por Sabuda, 2009)
Como apresentado no tulo desta dissertação, a proposta é estudar e propor
como possibilidade psicoterapêutica a utilização dos contos de Literatura Infantil no
cuidado a crianças hospitalizadas em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica
(UTIPED).
Em primeiro lugar, é relevante apreciar a realidade da criança internada em UTI.
E aqui então cabe elencar alguns questionamentos: considerando o hospital como
instituição de saúde que prioritariamente acolhe a doença, afastando-se das expressões
subjetivas daquele que adoece, o que dizer da atenção oferecida quando se trata de um
pequeno paciente vivenciando o processo de doença e hospitalização? Que lugar as
crianças ocupam na esfera assistencial especializada e que lugar essa esfera ocupa no
22
seu universo existencial? De que maneira é ofertado o cuidado a esse público, em fase
peculiar do desenvolvimento humano? Quais são suas necessidades em face dessa
vivência e tudo que ela suscita?
Compreender a criança como ser em desenvolvimento, sujeito de direitos e ser-
no-mundo carente de cuidados em prol de sua existência é um primeiro passo a ser dado
na busca de responder a tais questões.
Como ser em desenvolvimento, a criança revela-se ativa na construção do
mundo, e o faz caracteristicamente por meio do brincar. A construção de sua
singularidade, de suas possibilidades de ser-com, de suas formas de compreender e lidar
com as vicissitudes do existir, são emolduradas por suas atividades lúdicas (Medeiros &
Andreoli, 2008). O brincar poderia, então, ser considerado como constitutivo e
constituinte da subjetividade infantil. Daí extrai-se uma reflexão: qual o lugar do lúdico
no contexto hospitalar, uma vez considerado como eixo balizador do desenvolvimento
do infante?
A resposta a esta pergunta revela, portanto, o quão maléfico pode ser o processo
de doença e hospitalização na infância. Ora, se o hospital historicamente se constituiu
como lugar onde se tratam doenças, e não pessoas circunstancialmente doentes, de que
forma é possível a manifestação de necessidades que transcendem a doença? Em que
espaço simbólico a chance de se fazer expressar as dimensões saudáveis da
existência infantil?
Assim como ocorre com os demais sujeitos assistidos na instituição referida, as
crianças habitualmente são tratadas como doenças ou órgãos doentes, desrespeitando
23
suas singularidades e necessidades constitutivas (Angerami-Camon, 2009; Campos,
1995; Chiatonne, 2003).
Diante do exposto, torna-se possível imaginar o lugar ocupado pelo hospital no
universo existencial dos pequenos pacientes: um ambiente potencialmente ameaçador,
desconhecido, hostil, que separa a criança de sua família, que lhe toma de assalto a
independência recém-conquistada, que lhe impõe uma série de restrições (Chiattone,
2003). E, como afirmado logo acima, quando se considera a Unidade de Terapia
Intensiva como locus de permanência da criança, tende a haver um redimensionamento,
particularmente em termos emocionais, das experiências.
Perante esse quadro, o qual ameaça a integridade do desenvolvimento infantil, é
imperativo a investigação de métodos capazes de promover o cuidado, fortalecer a
resiliência e prevenir o desencadeamento de formas de existência inautênticas derivadas
da situação que engloba três elementos principais: afastamento temporário dos
familiares e de sua rotina, destituição de sua singularidade enquanto indivíduo em fase
peculiar do desenvolvimento e vivência de experiências potencialmente aversivas a sua
constituição subjetiva.
Desta feita, pensar e propor o cuidado em UTIPED que transcenda a dimensão
essencialmente biológica, considerando a criança em todas as dimensões de sua
existência, constitui tarefa a ser cumprida de forma prioritária. O Cuidado aqui é
entendido como categoria ontológica do existir humano, tal como proposto por
Heidegger (1927/2005), e será alvo de considerações posteriormente. Eis então que se
inserem os contos literários infantis: como possibilidades de cuidado.
24
Alguns estudos têm apontado o potencial terapêutico e preventivo dos contos de
literatura infantil, evidenciando seu papel como facilitador da expressão de sentimentos,
da identificação projetiva, da elaboração de conflitos internos e crenças acerca da
experiência vivenciada, como recurso auxiliar e pacificador das emoções (Bettelheim,
2007, Caldin, 2010; Canton, 2009; Corso & Corso, 2007; Góes, 2010; Gutfreind, 2003;
Lucas, Caldin & Silva, 2006; Radino, 2003; Rodrigues & Rubac, 2008).
Os contos são concebidos como elementos capazes de fomentar o
enriquecimento da vida imaginária das crianças e o processo de ressignificação de suas
experiências, sejam elas positivas ou negativas (Bettelheim, 2007; Gutfreind, 2010).
São, portanto, possibilidades de Cuidado, uma vez que oportunizam o que era
defendido no início da era cristã por Fílon e os Terapeutas de Alexandria: “antes de
tudo, cuidar do que não é doente em nós, do Ser, do Sopro que nos habita e inspira”
(Crema, 1996, citado por Silva, 2006, p. 137).
Em que pese a escassez de trabalhos relacionados ao uso dos contos de literatura
infantil no cuidado a crianças internadas em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica
(UTIPED), o empreendimento de investigação fenomenológica do tema tem como
principal objetivo lançar luz sobre tal instrumento e facilitar a compreensão de suas
possibilidades psicoterapêuticas. O método fenomenológico, neste sentido, se apresenta
como uma das possibilidades plausíveis para acessar o fenômeno tal como ele se impõe
à experiência.
Intenta-se, pois, fazer uso do conto de literatura infantil, entender como ele
funciona na ajuda psicoterapêutica a esse público específico, apreender como ele atua
no sentido de trazer à tona a criança para além da patologia que lhe acomete. Pretende-
se considerar o ponto de vista das crianças, o auto-relato de suas experiências quando
25
em contato com o conto, efetuando uma investigação com as crianças, possibilitando
que elas ocupem um lugar social diferente do que costumeiramente ocupam (lugar de
objeto, seja de intervenção, estudo, disciplinamento, ou educação e moralização), e
desse lugar exprimam, simbólica e verbalmente, suas fragilidades e suas
potencialidades, num processo mediado pelo conto (Cruz, 2008).
Dito de maneira mais clara, os objetivos do atual trabalho são:
1. Objetivo geral: compreender as possibilidades psicoterapêuticas dos contos de
Literatura Infantil no cuidado a crianças hospitalizadas em Unidade de Terapia
Intensiva Pediátrica de um hospital público estadual, localizado no município de
Natal/RN.
2. Objetivos específicos: (a) entender como a utilização da literatura infantil atua
no acesso e compreensão das necessidades da criança gravemente enferma; (b)
investigar o papel dos contos na promoção do cuidado à infância frente à
experiência de adoecimento, hospitalização e separação dos pais; (c) apreender a
construção de sentidos e significados relativos à experiência de adoecimento e
hospitalização facilitada pela contação de histórias; (d) compreender a função
exercida pelos contos na relação terapêutica entre psicólogo e criança.
Tais objetivos foram lançados visando responder à seguinte interrogação: que
efeitos os contos produzem nas crianças que os escutam?
Alguns desdobramentos dessa pergunta inicial o: o que esse instrumento de
intervenção, ainda não utilizado amplamente como o são o brincar, os jogos e os
desenhos, tem a contribuir na ajuda às crianças hospitalizadas em UTI pediátrica? Em
26
que medida a interação da criança com a tradição literária pode lhe servir como
mecanismo de apoio e proteção a sua saúde psíquica?
No intuito de responder a tais questões, a presente dissertação será desenvolvida
por meio dos seguintes capítulos:
1. Curar... Proteger... Cuidar... a UTI e seus vários sentidos: este capítulo está
subdividido em dois tópicos. No primeiro tópico, explicitam-se as peculiaridades
da esfera hospitalar e os efeitos na subjetividade dos infantes que vivenciam a
experiência de hospitalização. O último tópico aborda como a intervenção
psicológica pode fomentar espaços de cuidado ao ser-criança.
2. A hospitalização infantil a partir da Fenomenologia Existencial
contribuições da noção de Cuidado: o segundo capítulo se subdivide em dois
tópicos. O primeiro é dedicado a elucidar, em termos teóricos, a noção de
Cuidado heideggeriana. O segundo e último tópico versa a respeito do
entrelaçamento entre o sentido do cuidado e a produção de saúde.
3. Os contos de literatura infantil seu enredo e sua apropriação terapêutica
no cuidado à infância: mergulha-se no mundo encantado dos contos de
literatura infantil, explicitando as distinções entre contos, fábulas, mitos, lendas;
alguns trabalhos relevantes que asseveram serem os contos literários
instrumentais psicoterapêuticos, bem como trabalhos que apresentam o uso da
literatura infantil em âmbito hospitalar.
4. Método: são expostas as inquietações e interrogações sobre o fenômeno a ser
pesquisado e o caminho metodológico escolhido para respondê-las, com a
explicitação do referencial teórico-metodológico da Fenomenologia. Ademais,
27
são apresentados os protagonistas do enredo construído e a caracterização do
cenário da história. Os procedimentos de construção e de análise do corpus da
pesquisa são detalhados, bem como os procedimentos éticos e desafios
metodológicos.
5. Resultados e discussão: o capítulo é dedicado a indicar os resultados
alcançados, as aproximações e distanciamentos frente à literatura especializada
sobre a temática, os discursos produzidos pelas crianças, os sentidos e
significados das histórias compartilhadas.
6. E viveram felizes para sempre... Considerações finais: o derradeiro capítulo
tece apontamentos sobre a imersão em campo, sentimentos e pensamentos
despertados na pesquisadora, os encontros e desencontros da construção de uma
história de cuidado à infância em UTIPED.
De acordo com a estrutura apresentada, dá-se início à construção dissertativa.
28
1. CURAR... PROTEGER... CUIDAR... A UTI E SEUS VÁRIOS
SENTIDOS
Trabalhar com crianças doentes e hospitalizadas é
uma experiência única, inigualável. É viver cada
momento como se fosse o último. É estar junto,
sempre. É sorrir, brincar, sofrer. É aprender a
viver!
(Chiattone em Aprendendo a viver..., 2003, p. 24)
Este capítulo tem por objetivo apresentar a problemática da criança internada em
Unidade de Terapia Intensiva, contextualizando este espaço de oferta de cuidado e a
atenção psicológica possível e necessária para auxiliar a criança e sua família no manejo
da situação de vulnerabilidade física e psíquica.
1.1 BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES ABRIGANDO A VULNERABILIDADE... A
CRIANÇA E A UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA
Descrita por alguns autores como ambiente asséptico em termos técnico e,
sobretudo, afetivo, a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) define-se como um setor
hospitalar constituído por maquinário de alta eficiência tecnológica de suporte à vida
29
que assiste de forma especializada e intensiva pacientes em estado crítico, com as mais
variadas enfermidades. O objetivo desta unidade é oferecer profissionais especializados
e tecnologias avançadas para o diagnóstico, terapêutica e monitoramento contínuo das
funções vitais, com vistas à manutenção da vida e à estabilização de quadros clínicos
e/ou cirúrgicos que comprometam a sobrevivência do paciente (Dias, Laloni & Baptista,
2008; Haberkorn, 2004; Mello, 2008; Pregnolatto & Agostinho, 2010; Torres, 2008).
As UTIs podem ser classificadas segundo as patologias predominantes que
assistem, como UTI Cardiológica, UTI Geral; de igual modo, podem ser nominadas de
acordo com a faixa etária a qual abarcam, como UTI Adulto, UTI Pediátrica, UTI
Neonatal. Essa modalidade de alta complexidade assistencial surgiu na década de 1950
nos Estados Unidos e se propalou pela Europa nos anos de 1960, em resposta à
necessidade de atendimento especializado a pessoas gravemente doentes. Em 1970, as
UTI’s começaram a ser implantadas também aqui no Brasil (Haberkorn, 2004; Nucci &
Perina, 2008; Torres, 2008).
Geralmente as UTI’s são estruturadas sob os moldes de um ambiente
completamente fechado, com pouca visibilidade e contato com o mundo externo, com
iluminação artificial constante e estimulação sonora de repetição produzida pelos
aparelhos de monitoramento da vida, obedecendo a uma rotina frenética de cuidados
durante 24 horas por dia, contínua movimentação da equipe de saúde, entre outros
elementos que dificultam o repouso e relaxamento do paciente. Este comumente se
encontra restrito ao leito, sem acompanhante, sendo seus cuidados de higiene pessoal e
alimentação assumidos pela equipe de saúde (Dias, Laloni & Baptista, 2008;
Haberkorn, 2004; Mello, 2008; Nucci & Perina, 2008; Pregnolatto & Agostinho, 2010).
30
A UTI figura como lugar de intensidades, tudo é intenso: os riscos, as emoções,
o ritmo de trabalho. A temporalidade da existência parece fixar-se no presente, na
situação imediata, que em seu desfecho determinará o prolongamento ou a emergência
da condição finita inerente ao ser humano. O tempo é precioso, o tempo é vida na
unidade de tratamento intensivo, o que exige condutas no momento exato; rapidez,
agilidade, competência, eficiência, eficácia e efetividade o exigências da rotina
intensivista (Nucci & Perina, 2008; Pregnolatto & Agostinho, 2010; Simonetti, 2004;
Torres, 2008).
A terapia intensiva é ícone representativo da cultura ocidental, local de maior
expressão da racionalidade médica, que anseia pelo poder e saber através da técnica e
do domínio sobre o viver e o morrer (Andreoli, 2008; Sá, 2010; Torres, 2008). Nela, o
paradoxo existencial entre vida e morte, traduzidos pelos termos sucesso e fracasso
terapêuticos coexistem como possibilidades, a despeito da tentativa dos profissionais de
saúde de afastar o fracasso como possível desfecho do tratamento concedido aos
pacientes. A ambiguidade abrange elementos como a dor, a tristeza e a angústia e, por
outro lado, a superação, a alegria e as vitórias (Torres, 2008).
Percebe-se o investimento maciço em aparelhos de alta complexidade voltados
ao prolongamento da vida, de um lado, e a pouca atenção à subjetividade humana, de
outro (Torreão, Pereira & Troster, 2004; Torres, 2008). Dito de outro modo,
acompanhando o progresso tecnológico e o aprimoramento dos recursos existentes para
a assistência à saúde, em especial no âmbito da atenção intensiva, pode-se verificar o
incremento de práticas tecnicistas, algumas vezes descomprometidas com a qualidade
de vida do paciente. Neste contexto, a relação predominante se estabelece entre a equipe
31
de saúde e os aparelhos que mantêm vivos os pacientes (Andreoli, 2008; Azzi &
Andreoli, 2008; Lago et al., 2005; Nucci & Perina, 2008; Torres, 2008).
A inobservância dos aspectos éticos e humanos em prol de uma busca incessante
do afastamento temporário e a todo custo da morte pode gerar malefícios ao bem-estar
psíquico do paciente e de seus familiares. Os procedimentos, muitas vezes invasivos e
dolorosos, o ambiente ordenado por situações de urgência e emergência, vida e morte,
entre outros fatores citados podem contribuir para a instauração e/ou agravamento de
distúrbios nas esferas emocional, social e cognitiva. Tais distúrbios podem servir como
elemento de retroalimentação da condição física desfavorável do paciente, produzindo
ou intensificando os sinais e sintomas que compõem seu quadro clínico (Andreoli,
2008; Dias, Laloni & Baptista, 2008; Lorençon, 1998; Mello, 2008; Nucci & Perina,
2008; Torreão, Pereira & Troster, 2004; Torres, 2008).
No que diz respeito à Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIPED), seu
objetivo primordial é conservar a vida de crianças e adolescentes gravemente doentes,
reduzindo os índices de mortalidade e tentando assegurar melhor sobrevida a esse
público. Atende situações de urgência (quadros que podem ser assistidos no período
entre 24 e 48 horas) e emergência (quadros de maior gravidade que necessitam de
assistência imediata ou até 24 horas) (Dias, Laloni & Baptista, 2008; Scaranto, 2007).
Especialmente nessa modalidade de UTI (pediátrica) se testemunha a
possibilidade de inversão da ordem biologicamente determinada do ciclo vital no
tocante à morte. Tal possibilidade incrementa a utilização da tecnologia de suporte à
vida, perante a dificuldade da própria equipe de saúde em gerir decisões em conjunto
com a família a respeito das medidas a serem tomadas nos casos de crianças portadoras
de quadros irreversíveis e de prognóstico reservado. A UTI pediátrica amiúde é palco de
32
violações dos princípios do respeito à autonomia, da beneficência e não-maleficência
determinados pela Bioética (Garros, 2003; Lago et al., 2005; Nucci & Perina, 2008;
Torreão, Pereira & Troster, 2004).
Equipada com um arsenal tecnológico para o enfrentamento de demandas de alta
complexidade, a UTI constantemente coloca o médico e demais profissionais de saúde
frente a um dilema ético e ideológico que envolve a sobrevivência e a morte (Andreoli,
2008; Hoffmann, 1993; Torreão, Pereira & Troster, 2004). Citando o que Rotta (2005)
denomina de lice sagrado do intensivismo, algumas vezes, é difícil distinguir se o
profissional ao optar por empregar procedimentos de suporte avançado apropriados
para situações potencialmente reversíveis em pacientes considerados terminais está
prolongando sua vida, ou seu processo de morte.
Como resposta a tal estado de coisas, segundo Garros (2003), a medicina
paliativa está ocupando lugar de destaque nas Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica,
como um recurso para a manutenção de uma qualidade de vida e uma morte digna e
humana dentro de tal contexto. Deste modo, aliado aos cuidados paliativos dirigidos ao
alívio da dor e dos sintomas de desconforto apresentados, um movimento em prol da
criança enferma, movimento este que prevê a abertura da UTI para a participação ativa
dos pais, inclusive no momento da despedida, com a inserção de rituais que julguem
necessários, bem como o oferecimento de privacidade e da oportunidade de tomar parte
nos processos decisórios relativos ao seguimento do tratamento da criança.
Crianças hospitalizadas e/ou gravemente doentes têm sido alvo de vários
estudos, que tomam por empréstimo noções teóricas e experiências profissionais para
relatar a vivência infantil em hospital (Kudo & Maria, 2009). unanimidade entre os
autores a respeito da configuração potencial de experiência traumática do processo de
33
adoecimento e internamento na infância, que habitualmente ocorre de forma abrupta e
inesperada, ocasionando intensas transformações (Teles & Valle, 2010).
Diversos são os efeitos elencados como prováveis, tais como: ansiedade, medo,
insegurança, sensação/fantasias de abandono e temor à perda do amor das pessoas
queridas, distúrbios comportamentais variados (como a regressão), inapetência,
irritabilidade/agressividade, intolerância, raiva/revolta, tristeza, estados depressivos,
isolamento, negativismo/oposicionismo, temor à aproximação, alteração da
autoimagem/autoestima/autoconceito, embotamento afetivo, instabilidade emocional,
apatia, conformismo, sensação de perda, de culpa, de castigo/punição, distúrbios
psicossomáticos e do sono, dentre outros (Azzi & Andreoli, 2008; Baldini, 1997;
Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista, 2010; Dias, Laloni & Baptista, 2008;
Fortuna, 2007; Kudo & Maria, 2009; Lima, 2004; Medeiros & Andreoli, 2008; Pérez-
Ramos & Oliveira, 2010; Silva, 2008; Teles & Valle, 2010).
Entretanto, como afirmam Valle e Françoso (1997), as reações perante o adoecer
são reveladoras dos modos de existência da pessoa acometida. Desta feita, os efeitos da
hospitalização sofrerão influência das características singulares da criança, como
disponibilidade ou não para mudanças e adaptações, idade, sexo, modo de ser e de se
relacionar com as pessoas, contexto familiar e de desenvolvimento, experiências
anteriores e ao longo do internamento (compensatórias ou invasivas), relacionamento
com a equipe de saúde, tipo de internação (via ambulatório/enfermaria ou via serviço de
pronto socorro), natureza (se aguda, crônica e/ou terminal) e evolução da doença,
rotinas e procedimentos aos quais a criança é submetida, duração do internamento, entre
outras (Azzi & Andreoli, 2008; Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista, 2010;
34
Lima, 2004; Medeiros & Andreoli, 2008; Pérez-Ramos, 2008; Scaranto, 2007; Torres,
2008).
Considerando a Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIPED), a qual em
algumas instituições destitui o direito básico da criança de permanecer acompanhada
por seus pais (realidade parcialmente modificada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei 8.069/1990, e pela Cartilha dos Direitos da Criança e do
Adolescente Hospitalizados, Resolução 41/1995 CONANDA), principalmente sob
a égide da necessidade de conservação da assepsia do ambiente, os efeitos citados como
prováveis galgam maior expressão e podem efetivamente delinear os contornos do
modo de enfrentamento das crianças diante da hospitalização em tal unidade (Azzi &
Andreoli, 2008; Baldini, 1997; Barbosa & Rodrigues, 2004; Campos, 1995; Chiattone,
2003, 2011; Lima, 2004; Nucci & Perina, 2008; Pérez-Ramos, 2008; Scaranto, 2007;
Teles & Valle, 2010).
Com a atenção focalizada no monitoramento incessante da vida, na realização de
atendimentos emergenciais, no cumprimento de protocolos técnicos medicamentosos e
de rotina, comumente os profissionais de saúde que executam suas atividades diárias no
locus intensivista pouco ou nada atentam para as necessidades infantis que transcendem
o cuidado ao corpo adoecido, interpretando inclusive com certo estranhamento os
protestos, choro, irritabilidade e/ou apatia dos pequenos seres alvos de seu cuidado. A
criança, não diferente dos demais pacientes, comumente é vista e identificada como um
órgão doente, um diagnóstico médico, um número de leito ou de prontuário. Seus
familiares são habitualmente alijados do cuidado, agora delegado exclusivamente à
equipe de saúde, uma vez que a mesma é que supostamente detém o poder e o saber
técnicos necessários à manutenção da vida da criança (Azzi & Andreoli, 2008;
35
Chiattone, 2003; Fortuna, 2007; Haberkorn, 2004; Lima, 2004; Nucci & Perina, 2008;
Pérez-Ramos, 2008; Pérez-Ramos & Oliveira, 2010; Torres, 2008).
Espaço completamente diverso do seu, a UTIPED exige da criança um alto grau
de esforço, em termos cognitivo e emocional, para, em primeiro lugar, tentar
compreender o que lhe ocorre, o que está fazendo naquele lugar, qual o objetivo de
todos aqueles que a manipulam e a fornecem por hora os cuidados básicos, para que
servem todos os aparelhos que a cercam e emitem sons estranhos e repetitivos, por que
seus pais e demais familiares não estão ao seu lado, qual a função dos medicamentos e
demais procedimentos, dentre outros elementos que lhe são estranhos e que por isso
mesmo podem lhe causar temor, ansiedade, fantasias e dúvidas (Azzi & Andreoli, 2008;
Chiattone, 2003; Hoffmann, 1993; Kudo & Maria, 2009; Lima, 2004; Lindquist, 1984;
Medeiros & Andreoli, 2008; Nucci & Perina, 2008; Pérez-Ramos, 2008; Pérez-Ramos
& Oliveira, 2010; Scaranto, 2007; Silva, 2008; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008).
Entendida como fase específica do desenvolvimento humano, em que se
adquirem importantes habilidades físicas, cognitivas, sociais e afetivas, a infância se
constitui e é constituída com a inserção da criança no mundo, em interações dentro e
fora da família, em instituições como a escola, a comunidade, a igreja, dentre outras.
Um dos principais eixos estruturantes da subjetividade infantil é a atividade lúdica.
Outro eixo estruturante paralelo a esse são seus relacionamentos afetivos, especialmente
com seus pais e/ou figuras significativas de cuidado (Medeiros & Andreoli, 2008;
Pérez-Ramos & Oliveira, 2010). E são notadamente os dois eixos estruturantes do viver
infantil aqui apontados diretamente afetados pelo ingresso na UTIPED, espaço físico o
qual privilegia a técnica em detrimento da noção humana de cuidado (Silva, 2008).
36
As consequências nocivas da hospitalização sobre o desenvolvimento da criança
envolvem, ainda, o transtorno da dinâmica familiar, a interrupção ou retardo do
processo de escolarização, a interferência no cotidiano e no processo evolutivo infantil,
a limitação de suas atividades lúdicas e de estimulação, a intensificação do sofrimento
físico determinado pelas condutas diagnósticas e terapêuticas, a interpretação dos
procedimentos, desconhecidos e/ou não comunicados, como agressões físicas e
psíquicas (Azzi & Andreoli, 2008; Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista,
2010; Fortuna, 2007; Kudo & Maria, 2009; Lima, 2004; Lindquist, 1984; Medeiros &
Andreoli, 2008; Pérez-Ramos, 2008; Pérez-Ramos & Oliveira, 2010; Silva, 2008; Teles
& Valle, 2010).
Todavia, o maior malefício trazido se refere à separação da criança gravemente
doente de seus pais, conforme mencionado, precisamente diante de uma experiência
altamente crítica de sua existência, em que ela carece do apoio e atenção
materna/paterna e/ou de uma figura (parental ou não) significativa, e pode compreender
a ausência de seus entes queridos como indicativo de abandono. Tal malefício deve
estar claro para todos aqueles que, no afã de suas atividades cotidianas no hospital
proíbem a presença de familiares junto a seus filhos em UTI’s, mostrando-se por vezes
insensíveis ao sofrimento da criança afastada das pessoas com as quais mantém vínculo
(Campos, 1995; Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista, 2010; Lima, 2004;
Lindquist, 1984; Nucci & Perina, 2008; Pérez-Ramos, 2008; Scaranto, 2007; Silva,
2008; Teles & Valle, 2010).
Mesmo perante as adversidades, aos poucos o ambiente intensivista pode tornar-
se menos amedrontador, especialmente quando são estabelecidas relações balizadas pela
confiança, pelo cuidado, proteção, segurança, sinceridade, quando as informações e
37
procedimentos relativos à doença e hospitalização passam a ser assimilados e
compreendidos pela criança e sua família. Se à criança é ofertado um espaço lúdico em
que possa esclarecer suas dúvidas e expressar suas opiniões, o conteúdo emergente
provavelmente será rico, demonstrando o nível de compreensão que detém sobre sua
doença e tratamento. Ela pode encontrar formas saudáveis e criativas para manejar a
situação, revelando o que adquiriu de conhecimento no tocante à sua experiência de
internamento; e, a depender do tempo de hospitalização, formar laços de amizade e
compartilhar suas vivências. Ademais, estar em um setor especializado e dotado de
múltiplas possibilidades de intervenção para reabilitação pode gerar sentimentos de
confiança na sobrevivência e cura (Kudo & Maria, 2009; Nucci & Perina, 2008; Pérez-
Ramos & Oliveira, 2010; Torres, 2008).
A vivência em Unidade de Terapia Intensiva comumente é permeada por
conflitos e sentimentos ambivalentes cultivados não pelas crianças, como também
pelos familiares e pela equipe de saúde. Isto porque, muitas vezes desconhecido e
assustador para alguns, tal ambiente de assistência à saúde carrega consigo
representações fortemente negativas relacionadas ao agravamento da enfermidade e à
iminência de morte (Haberkorn, 2004; Mello, 2008; Nucci & Perina, 2008; Pregnolatto
& Agostinho, 2010; Torres, 2008).
Considerando a constelação familiar, quando um membro de tal constelação
adoece, todos os outros padecem, que frente à doença e à necessidade de
hospitalização, a dinâmica familiar sofre modificações significativas, uma
desorganização vinculada ao sentimento de vulnerabilidade. Perante a instalação da
doença, os familiares podem se sentir impotentes e manifestar atitudes de desespero,
desesperança, sentimentos de solidão, de culpa, impotência, fracasso, incredulidade,
38
raiva/hostilidade, ansiedade, medo, desintegração familiar, frequentemente lançando
mão de mecanismos de defesa variados, superproteção ao filho doente,
afastamento/rejeição ao filho, negação da gravidade da doença, emergência de doenças
em outros membros, etc. (Borges, 2009; Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista &
Baptista, 2010; Favarato & Gagliani, 2008; Haberkorn, 2004; Lima, 2004; Lorençon,
1998; Nucci & Perina, 2008; Oliveira, 2007; Pregnolatto & Agostinho, 2010; Scaranto,
2007; Torres, 2008).
Contribuem ainda mais para o desajustamento emocional da família as atitudes
da equipe de saúde, que, por diversas ocasiões, omite informações sobre o quadro
clínico da criança, trata de forma desrespeitosa os familiares e dificulta o acesso destes
às visitas médicas e aos prontuários. É necessário ter em mente que a doença, a
hospitalização e a morte são experiências que atingem de forma intensa todo o núcleo
familiar, devendo ser este tomado como um dos pontos de intervenção. Faz-se mister o
incentivo à participação da família em todo o período de internamento em UTI,
mantendo-a consciente do real estado de saúde e do prognóstico do paciente e, ao
mesmo tempo, alimentando a esperança na reabilitação tendo em vista preservar a
orientação para o futuro e evitar o possível desinvestimento afetivo diante da
possibilidade de perda do infante (Azzi & Andreoli, 2008; Barbosa & Rodrigues, 2004;
Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista, 2010; Haberkorn, 2004; Lima, 2004;
Lindquist, 1984; Lorençon, 1998; Nucci & Perina, 2008; Poles & Bousso, 2006;
Pregnolatto & Agostinho, 2010; Silva, 2008; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008).
A relevância da preparação dos pais para o devir se situa na necessidade destes
contribuírem efetivamente com o tratamento, transformando-se em elementos ativos e
participantes de todo o processo. Isto, a depender do desfecho do internamento em UTI,
39
facilitará a vivência de um luto saudável, o que poderá preservar a integridade psíquica
da família. Sendo assim, prestar assistência à criança deve significar também considerar
o seu entorno sócio-afetivo, o que engloba a assistência à família. Oferecer apoio à
mesma, informar acerca da evolução clínica da criança e favorecer a compreensão da
situação vivenciada torna-se tarefa indispensável e medida básica no processo de
relação de ajuda (Azzi & Andreoli, 2008; Chiattone, 2003; Dias, Baptista & Baptista,
2010; Lima, 2004; Lorençon, 1998; Nucci & Perina, 2008; Pregnolatto & Agostinho,
2010; Silva, 2008; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008).
Infelizmente, a assistência centrada na criança e na família é um movimento
ainda muito incipiente entre os profissionais de saúde e depende em boa parte da
motivação pessoal de cada um (Pauli & Bousso, 2003). Geralmente, a família não é
valorizada no contexto hospitalar, sendo poucos os profissionais de saúde que
conseguem compartilhar o espaço com ela e concebê-la como um sistema enfraquecido
pela enfermidade de sua criança, bem como uma ferramenta essencial na terapêutica por
promover o bem-estar e a confiança do pequeno paciente. A atitude mais comum é
considerar a família como um elemento intruso, o qual apenas atrapalha a rotina da
assistência e conserva a intenção de supervisionar o trabalho dos profissionais (Azzi &
Andreoli, 2008; Barbosa & Rodrigues, 2004; Chiattone, 2003, 2011; Nucci & Perina,
2008; Scaranto, 2007; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008).
Verifica-se ser de suma relevância que os membros da equipe sejam capazes de
projetar-se no lugar daquela família que sofre, tendo em vista melhor avaliar a dimensão
da inquietude e do sofrimento experimentado e ampliar o espectro da atuação
profissional para além da cura, auxiliando tal família a se aproximar da criança no
momento da perda e promover a despedida (Poles & Bousso, 2006). O profissional,
40
deste modo, percebe que o universo do cuidar é bem mais abrangente que o do curar,
que ele não poderá curar sempre, mas sempre poderá cuidar e amenizar o sofrimento.
Até aqui se discorreu sobre a criança e sua família no enfrentamento da situação
de adoecimento e hospitalização em UTI. Cabe questionar: e os profissionais de saúde,
como se situam existencialmente frente ao contexto da terapia intensiva? O modo-de-
ser-profissional-de-saúde parece implicar ambivalência nas relações mantidas com o
exercício de suas atividades laborais e com as pessoas de quem cuidam. Sentimentos de
aflição, tristeza, temores e um alto nível de ansiedade e estresse podem compor seu
quadro psicológico. Lidar com a possibilidade de morte a todo instante, imerso em uma
rotina frenética na busca de manter a vida, traz à tona uma forte carga emocional que
produz efeitos comportamentais adversos a curto, médio e longo prazo (Borges, 2009;
Favarato & Gagliani, 2008; Torres, 2008).
Um desses efeitos é a assunção de postura fria e distante por parte do
profissional no relacionamento com o paciente e sua família. Presume-se que esta
atitude seja um elemento de defesa contra o envolvimento afetivo, na tentativa de evitar
o consequente sofrimento. Esse afastamento emocional por parte dos profissionais é
acompanhado, por vezes, por sentimentos de depressão, culpa pelo “sofrimento
administrado”, fracasso/impotência/frustração, prejuízo do raciocínio clínico,
comportamentos estereotipados e/ou aditivos (toxicomania), agressividade e
autoritarismo, desumanização da assistência, temor à morte e à própria condição de
finitude, podendo gerar inclusive conflitos entre os integrantes da equipe como reação à
angústia transmitida pelos pacientes e seus familiares (Borges, 2009; Chiattone, 2011;
Lorençon, 1998; Torres, 2008).
41
Assim, percebe-se que por trás de uma apresentação fria e tecnicista, um
misto de sentimentos de culpa, impotência, fracasso, medo e insegurança, o que torna
difícil lidar com a situação de maneira satisfatória, bem como acolher eficazmente as
pessoas envolvidas (Poles & Bousso, 2006; Torres, 2008). A convivência diária com
pacientes críticos, em contraponto, pode gerar a manifestação de uma conduta, mais
humana e afetiva, de aproximação dos familiares e pacientes, optando o profissional por
compartilhar a dor e sofrimento sentidos (Hoffmann, 1993).
Em suma, é função da UTI Pediátrica, também, cuidar da criança e de sua
família, considerando todas as dimensões de seu existir, transcendendo o tratamento à
doença restritivamente (Scaranto, 2007).
Ora, dada a materialidade do cuidado técnico, o distanciamento emocional
mantido pelos profissionais de saúde em relação às crianças que assistem, o afastamento
temporário das figuras de referencial afetivo para a criança, a ruptura com o seu
cotidiano e seu modo de ser, a imersão em ambiente desconhecido e ameaçador, e a
negligência a eixos estruturantes de seu existir, que revelam suas necessidades e
fragilidades, lança-se a indagação: espaço para o cuidado à infância, ao ser-criança
em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica?
1.2 O PEQUENO POLEGAR E O GIGANTE PROMOVENDO O CUIDADO... A
INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA NA ASSISTÊNCIA A CRIANÇAS GRAVEMENTE
ENFERMAS
42
Este tópico abordará a atuação do psicólogo em Unidade de Terapia Intensiva
Pediátrica.
Para autores como Chiattone (2003, 2011), Lorençon (1998), Teles e Valle
(2010) e Torres (2008), a intervenção em UTI deve priorizar a comunicação terapêutica,
no sentido de reduzir os níveis de ansiedade, conflitos e sofrimento psíquico do paciente
e sua família em face do processo de hospitalização, além de incentivar a participação
ativa desses atores, facilitar a compreensão e a adaptação ao processo vivenciado. De
igual modo, essa comunicação terapêutica deve ser dirigida à expressão de sentimentos
e pensamentos, oferecendo o apoio emocional necessário e estimulando a manutenção
do equilíbrio.
Quando a pessoa hospitalizada é uma criança, o recurso principal a ser utilizado
pelo psicólogo é a atividade lúdica, que esta é parte essencial do processo evolutivo
infantil, é a linguagem constitutiva e um dos elementos estruturantes e mantenedores da
saúde mental na infância. O brincar, o brinquedo e o jogo são amplamente defendidos
como instrumentais importantes para a promoção da saúde, das habilidades motoras,
cognitivas, sociais e afetivas, do autoconhecimento, da reflexão e expressão de
sentimentos inquietantes e dolorosos, da formação de vínculos e socialização, da
interação profícua com o mundo, organizando percepções, experimentando e
solucionando desafios, aprendendo a reconhecer e respeitar regras e limites, orientando
a ação e o pensamento da criança de forma espontânea e prazerosa (Azevedo, 2008;
Chiattone, 2003, 2011; Fortuna, 2007; Gimenes, 2007; Góes, 2010; Kudo & Maria,
2009; Lange & Matina, 2008; Lindquist, 1984; Medeiros & Andreoli, 2008; Pérez-
Ramos & Oliveira, 2010; Oliveira, 2007; Romano, 2008; Silva, 2008; Sunderland,
2005; Teles & Valle, 2010; Vieira & Carneiro, 2008).
43
Diante da alta relevância do brincar na vida das crianças, o que dizer a respeito
de seu valor para aquelas que se encontram hospitalizadas em UTIPED? Qual a relação
entre o brincar e a promoção da saúde? E o que pode acontecer quando privamos essas
crianças, em situação de crise e de alta vulnerabilidade psíquica, da atividade que lhes é
de extrema utilidade em seu cotidiano para enfrentar situações conflituosas e difíceis?
A significância do brincar no hospital é consenso entre os autores que versam
sobre a hospitalização na infância.
Como dito no tópico anterior, a hospitalização em terapia intensiva representa
para a criança um evento adverso, por produzir uma série de modificações em sua
rotina, como o afastamento temporário de suas figuras parentais e de seus amigos, da
escola, além de ser o ambiente completamente desconhecido e ameaçador para ela. O
brincar como recurso terapêutico pode contrabalancear as experiências negativas da
internação e possibilita à criança compreender sua vivência da maneira como lhe é
possível, exprimir desejos, medos, fantasias, dúvidas, e superar os obstáculos e as
tensões que o processo de adoecimento lhe impõe. Uma criança gravemente doente
pode, por meio do brincar, resgatar os aspectos sadios de sua existência e se situar de
maneira ativa perante o adoecer, experienciando a infância em sua dimensão lúdica,
mobilizando sua capacidade imaginativa, sua autoconfiança e segurança, mesmo em
meio ao contexto de adversidades inerentes à hospitalização em UTI. De certo modo,
por meio da brincadeira transformam-se as desventuras do adoecimento e hospitalização
a favor do desenvolvimento infantil (Chiattone, 2003, 2011; Favarato & Gagliani, 2008;
Fortuna, 2007; Gimenes, 2007; Lange & Matina, 2008; Lindquist, 1984; Medeiros &
Andreoli, 2008; Pérez-Ramos & Oliveira, 2010; Oliveira, 2007; Romano, 2008; Silva,
2008; Teles & Valle, 2010; Vieira & Carneiro, 2008).
44
Scaranto (2007) propõe, como atividades que podem promover um ambiente de
acolhimento, entretenimento e bem estar na UTIPED, o Teatro de Clown (teatro de
palhaços que faz uso da brincadeira dirigida com vistas a trabalhar humoristicamente
com elementos constitutivos do contexto de internamento); a Brinquedoteca adaptada
ao contexto em questão por meio de brinquedoteca móvel ou baú de brinquedos (espaço
lúdico regulamentado pela Lei Federal nº 11.104/2005 e destinado à execução de
atividades livres e dirigidas, de cunho terapêutico, recreativo e/ou educativo); e o
Contador de histórias (definido como integrante de equipes especializadas e treinadas
para contar histórias às crianças hospitalizadas, selecionando textos de acordo com a
idade e patologia).
Atividades como desenho e pintura, recorte e colagem, modelagem, teatro de
fantoches, dramatização, contação de histórias, entre outras, são citadas como
importantes para propiciar à criança expressar suas inquietações, distinguir seus afetos,
colocar em ação sua capacidade criativa, ensaiar e, então, elaborar e enfrentar as
situações vividas, perceber e interpretar a hospitalização e assumir atitudes profícuas
perante a situação que vivencia. O psicólogo, que deve focar sua intervenção na
experiência de adoecimento e hospitalização em UTI e na utilização de meios lúdicos de
expressão simbólica, adota uma relação de empatia e abertura ao ser criança e suas
possibilidades de existir e lidar com a doença (Chiattone, 2003, 2011; Favarato &
Gagliani, 2008; Oliveira, 2007; Teles & Valle, 2010).
É fundamental que a criança seja ouvida em suas necessidades e informada
sobre o que lhe ocorre, respeitando seu direito de participar ativamente do tratamento e
das decisões sobre sua vida. Isto permite ao infante aderir de forma satisfatória aos
procedimentos. Ademais, permite estabelecer com os membros da equipe e com sua
45
família uma relação de confiança, abandonando crenças e fantasias sobre o
adoecimento, e mobilizando recursos favoráveis para organizar sua experiência,
amenizar seu sofrimento e lidar de forma criativa com a hospitalização (Azzi &
Andreoli, 2008; Chiattone, 2003, 2011; Lima, 2004; Medeiros & Andreoli, 2008; Pérez-
Ramos & Oliveira, 2010; Oliveira, 2007; Teles & Valle, 2010).
Faz-se de suma importância o acolhimento aos familiares da criança, com a
efetuação de orientações acerca da Unidade de Terapia Intensiva e seu funcionamento,
bem como a prestação de esclarecimentos sobre a forma como encontrarão a criança
dentro da UTI e a facilitação da interação entre a família e o paciente, tarefa que pode
ser realizada antes da visita diária. Também é relevante incentivar a reflexão e a revisão
dos papéis de cada membro na estrutura familiar, visando facilitar as adaptações
necessárias no modo de operar da família em relação à criança doente. A reflexão, de
igual modo, pode ser direcionada a escutar, acolher e clarificar junto à família o sentido
e significados que atribui à situação de internamento do filho em unidade intensivista.
Deste modo, poderá favorecer junto à família a ocupação do lugar de continência para o
pequeno paciente (Azzi & Andreoli, 2008; Borges, 2009; Chiattone, 2003, 2011;
Favarato & Gagliani, 2008; Haberkorn, 2004; Lorençon, 1998; Pérez-Ramos &
Oliveira, 2010; Pregnolatto & Agostinho, 2010; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008).
No que tange ao relacionamento entre equipe de saúde-paciente-família, o
psicólogo, por vezes, representa uma fonte segura de suporte afetivo, o que pode ser
usado como um instrumento para fortalecer o sentimento de confiança nos cuidadores e
a adesão satisfatória ao tratamento. Fomentar a comunicação compreensiva entre equipe
de saúde e familiares também é tarefa essencial (Azzi & Andreoli, 2008; Chiattone,
46
2003, 2011; Haberkorn, 2004; Mello, 2008; Silva, 2008; Teles & Valle, 2010; Torres,
2008).
No trabalho em equipe, é imprescindível que o psicólogo atue com vistas a
favorecer a interdisciplinaridade, tomando parte nos estudos sobre o quadro clínico da
criança, por meio de discussões integradas com a equipe, e nas decisões que envolvam
dilemas da esfera bioética, como, por exemplo, os casos em que de se decidir o que
se fará frente ao desejo da criança de saber a respeito de seu quadro clínico, a despeito
da determinação de seus pais para que não sejam fornecidas informações deste tipo à
mesma. Somente através da instauração de uma prática interdisciplinar é que o
psicólogo e demais profissionais poderão efetuar cuidados de saúde sob a perspectiva da
humanização. Na interação com os colegas, seja nas discussões de casos clínicos ou em
ocasiões diversas, o psicólogo pode facilitar a abertura de um espaço institucional para
que os demais profissionais possam expressar os sentimentos e ansiedade mobilizados
pela lide diária com pacientes terminais, objetivando promover um melhor preparo dos
colegas frente à morte. O trabalho pode ser feito por meio de grupos terapêuticos, rodas
de conversa, grupos de discussão, cursos e seminários (Azzi & Andreoli, 2008;
Chiattone, 2003, 2011; Favarato & Gagliani, 2008; Haberkorn, 2004; Mello, 2008;
Torres, 2008).
Outras medidas que podem ser sugeridas pelo psicólogo, com vistas a tornar a
UTI pediátrica um ambiente menos hostil, consistem em modificações ambientais, que
envolvem a decoração com a inserção de motivos infantis; modificações também nas
normas de acesso à UTI, flexibilizando horários de visita e garantindo a presença de um
familiar junto à criança; incentivo à participação dos pais nos cuidados ao filho;
realização de trabalhos em grupo com os pais (grupos terapêuticos e/ou operativos), em
47
que estes possam compartilhar a experiência de ter um filho internado em UTI;
consecução de intervenções dirigidas à equipe de saúde, no sentido de trabalhar as
resistências nutridas pela mesma no que tange à flexibilização das normas e ao convívio
mais acentuado com os familiares, procurando o psicólogo promover um
relacionamento harmonioso entre a equipe, os pacientes e seus familiares (Borges,
2009; Chiattone, 2003, 2011; Favarato & Gagliani, 2008; Haberkorn, 2004; Mello,
2008; Pauli & Bousso, 2003; Scaranto, 2007; Torres, 2008).
No que diz respeito à postura exigida do profissional de Psicologia, torna-se
imperativo o exercício da empatia, do interesse sincero pelo paciente e sua situação
atual, o estabelecimento de aliança terapêutica satisfatória, colocando-se à disposição
caso o paciente sinta necessidade de atendimento psicológico. A inserção do psicólogo
na assistência em UTI pode configurar uma abertura à subjetividade, ao olhar que
transcende o corpo adoecido e promove o cuidado ao ser criança em sua integralidade
existencial (Borges, 2009; Favarato & Gagliani, 2008; Teles & Valle, 2010).
Feitas as considerações sobre a UTIPED, as principais personagens que
compõem o cenário e a intervenção psicológica, dar-seinício ao segundo capítulo,
referente à noção heideggeriana de cuidado e as práticas de saúde.
48
2. A HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL A PARTIR DA
FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL CONTRIBUIÇÕES DA
NOÇÃO DE CUIDADO
... Tu procuras galinhas?
Não disse o príncipe. Eu procuro amigos. Que
quer dizer “cativar”?
É algo quase sempre esquecido disse a raposa.
Significa “criar laços”...
Criar laços?
Exatamente disse a raposa. Tu não és ainda para
mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil
outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu
também não tens necessidade de mim. Não passo a teus
olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas.
Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do
outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para
ti única no mundo...
(Saint-Exupéry, 1943/2006, pp. 67-68)
As próximas linhas serão dedicadas a tecer os fios que integram a noção
heideggeriana de Cuidado, entendido como condição ontológica do humano, às práticas
de promoção e manutenção da saúde.
Três são os eixos centrais deste trabalho, como pode observar o leitor. De um
lado, os contos de literatura infantil e suas propriedades psicoterapêuticas; do outro, a
noção de Cuidado enquanto constitutivo do ser-no-mundo. E, permeando estes dois
49
eixos, a condição de adoecimento e hospitalização em UTIPED na infância. É na
interposição entre os três eixos que reside o foco da pesquisa empreendida.
2.1 A FÁBULA DE HIGINO O CUIDADO COMO CONSTITUTIVO DO SER
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve
uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma.
Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-
lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando,
porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o
proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o
Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o
seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra.
Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a
Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que
pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este
espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo;
receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura
morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a
criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre
vocês acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será
chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil” (Fábula-
mito de Higino, extraído de Boff, 2008, p. 46).
A fábula-mito do Cuidado essencial, acima reproduzida, é de origem latina com
base grega e galgou seu contorno literário definitivo pouco antes de Cristo em Roma.
Seu autor, Higino, era um escravo egípcio e, anos depois, se tornou diretor da Biblioteca
Palatina em Roma (Boff, 2008).
50
A fábula-mito de Higino é referida por Martin Heidegger como emblemática
para versar a respeito do caráter ontológico do Cuidado para o ser humano. Discorre
sobre a criação do homem, moldado pelo Cuidado a partir de uma porção de barro.
Ilustra simbolicamente a noção de que o Cuidado é o fundante do existir humano. Disso
resulta a ideia de que o ser do homem tem sua existência permanentemente constituída
pelo Cuidado, é dele que emana o ser e sem ele o homem seria apenas um pedaço de
barro, desprovido de forma e de vida, tal como os entes simplesmente dados (Silva,
2006).
Fernandes (2011) faz uma instigante análise da fábula-mito apresentada a partir
das ideias de Heidegger:
Nesta fábula, vemos testemunhado o saber de que o ser, a partir do qual
emerge e se configura o humano, enquanto filho do Céu e da Terra,
encontra a sua origem primordial no Cuidado. O humano é cidadão de dois
reinos, mas seu ser se recolhe na unidade do cuidado. Ao cuidado ele
pertence, enquanto viver. Esta origem o tem e não o abandona, enquanto ele
vigora como ser-no-mundo. Essa é, afinal, a decisão do Tempo (Saturno).
Viver é, para nós, cumprir esta decisão do Tempo, a saber, realizar a
determinação de que pertencemos ao cuidado, do nascer ao morrer, dia e
noite, a cada momento e em todo o lugar. Somos, antes de tudo, filhos do
cuidado: é no cuidado que irrompemos para o existir, é nele que somos
gerados como ser-no-mundo, é nele que nos formamos e nos constituímos
como o ser que somos (p. 21-22).
Em que pesem os simbolismos impregnados nas palavras que, como advogam os
filósofos, gestam significados existenciais, é relevante resgatar aqui uma breve análise
das origens do vocábulo cuidado, conforme apresentado por Boff (2008). Um unívoco
erudito de cuidado é a palavra cura, ou coera tal como se escrevia cura em latim em
sua forma mais antiga. Este vocábulo era contextualmente usado frente a relações de
51
amor e amizade, denotando atitude de desvelo, preocupação e de inquietação pela
pessoa amada ou por objeto de estima. Alguns filólogos, de igual modo, apontam a
palavra em latim cogitare-cogitatus, e sua corruptela coyedar, coidar, como
possibilidades de tradução do sentido etimológico do termo cuidado, mantendo o
mesmo significado de cura, ou seja, cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse,
revelar atitude de desvelo e de preocupação. (Boff, 2008; Silva, 2006)
No estudo empreendido, trabalha-se, pois, com a noção de Cuidado, a partir das
ideias de Martin Heidegger (1889-1976), considerado o “filósofo do cuidado”. Para
compreendermos a centralidade do cuidado no pensamento deste autor, é importante
discorrermos sobre algumas de suas ideias.
Heidegger (1927/2005) denomina Dasein (Ser-aí) o ente que nós mesmos
somos, que tem o modo de ser do homem, que não possui uma essência positiva
determinada a priori, de modo que o que ele é está sempre em jogo no seu existir. O
Dasein diferencia-se dos entes simplesmente dados que, embora intramundanos, são
destituídos de mundo, “não possuem o caráter da pre-sença(p.165). Considerando-se
mundo como “estrutura de sentido, contexto de significação, linguagem, sempre
historicamente em movimento” (Sá, n.d., p. 02), compreendemos que o ente que é
segundo o modo de ser-no-mundo é o homem.
“A expressão ser-no-mundo revela a unidade estrutural ontológica da existência
do Dasein(Sá, n.d., p. 02). O Dasein se sempre “no mundo”, numa estrutura de
significância, num contexto de relações. (Sá, 2002, p. 259). Da-sein significa uma
abertura “de um âmbito do poder-apreender daquilo que aparece e que se lhe fala a
partir de sua clareira” (Heidegger, 1947/2009, p.33).
52
Segundo Heidegger (1927/2005), o esclarecimento do ser-no-mundo mostrou
que, de início, um mero sujeito nunca é dado sem mundo, tampouco é dado um eu-
isolado, sem os outros. O mundo da pre-sença é sempre mundo compartilhado. A
palavra cuidado (Sorge) é utilizada para significar a característica ontológica do ser-no-
mundo de estar sempre em relação com outrem.
O modo de ser da pre-sença dos outros que vêm ao encontro dentro do
mundo se diferencia da manualidade do ser simplesmente dado. O mundo
da pre-sença libera, portanto, entes, que não apenas se distinguem dos
instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de pre-
sença são e estão “no mundo” em que vêm ao encontro segundo o modo de
ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São
como a própria presença libertadora são também co-presença (p.169).
O Cuidado, assim como os demais existenciais, revela a condição ontológica que
guarda consigo diversos modos ônticos de expressão cotidiana, que vão desde o modo
da indiferença, passando pelo modo amoroso, até o modo da pré-ocupação.
A partir da apreensão de suas dimensões ontológica e ôntica, torna-se possível
compreender o duplo sentido do cuidado, tal como proposto por Heidegger, que diz
respeito ao modo do ser humano se relacionar com os outros e com as coisas, a saber: o
cuidado como ocupação e o cuidado como pré-ocupação.
O cuidado como ocupação (Besorge) faz referência ao modo das relações com
os “entes cujo modo de ser é simplesmente dado” (Vorhandenheit). O filósofo refere-se
aos instrumentos, às coisas, aos entes intramundanos, cujo modo de ser revela-se a
partir da utilidade instrumental (Sá, 2002). A palavra latina occupare, encerra o verbo
capere, que significa pegar, tomar, agarrar, prender, apreender (Fernandes, 2011).
53
O cuidado como preocupação (Fürsorge) remete ao modo das relações com os
“entes também dotados do seu modo de ser, os outros humanos e seres viventes” (Sá,
2002, p. 263). O ente, com o qual a pre-sença se comporta enquanto ser-com, (...) ele
mesmo é pre-sença. Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa (Heidegger,
1927/2005, p. 173). Ao cuidado com o outro se denomina também solicitude
(Fernandes, 2011).
A preocupação admite possibilidades diversas de expressão: o cuidado
indiferente, o substitutivo e o antepositivo.
O modo indiferente sinaliza o modo impróprio, impessoal, inautêntico de ser-
com, e é evidenciado pela ausência de surpresa e pela banalização da existência do
outro. Enquanto nos ocupamos com o mundo circundante, os outros nos vêm ao
encontro naquilo que são. Cotidianamente eles comumente são o que empreendem. Na
convivência cotidiana, a pre-sença está muitas vezes sob a tutela dos outros. A tutela do
outro dispõe sobre as possibilidades cotidianas de ser da pre-sença. A presença é
dissolvida no modo de ser dos outros, desaparecendo as possibilidades de diferença e
expressão. O impessoal prescreve o modo de ser da cotidianidade (Heidegger,
1927/2005).
Também “ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo doente é
preocupação. (p.173). Na maior parte das vezes e antes de tudo a pre-sença se mantém
nos modos deficientes de preocupação (p. 173). O ser por um outro, contra um outro,
sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são
modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por
último, de deficiência e indiferença caracterizam a convivência cotidiana e mediana de
um com outro (p.173).
54
O cuidado substitutivo consiste, por assim dizer, em retirar o cuidado do outro
e tomar-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o. Essa preocupação assume a ocupação
que outro deve realizar. Este é deslocado de sua posição, retraindo-se para,
posteriormente assumir a ocupação como algo disponível e pronto ou então se
dispensar totalmente dela. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e
dominado, mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o
dominado (Heidegger, 1927/2005, p.174).
De acordo com proposição heideggeriana, “nos modos de pré-ocupação
indiferente e substitutivo, o arbítrio dos outros dispõe sobre as possibilidades cotidianas
de ser da pre-sença. O domínio do outro é assumido sem que a pre-sença enquanto ser-
com, disso se dê conta” (Heidegger, 1927/2005, p. 179).
Na nossa existência, o risco de perder-se nas próprias ocupações é sempre
iminente, sendo comumente um fato na vida humana. Assim sendo, é preciso resgatar o
cuidado, resgatá-lo da cadência precipitada e atropelada a qual nos lançamos, a que
Heidegger denomina de-cadência (Verfall) (Fernandes, 2011).
É importante considerar, entretanto, que, conforme Heidegger (1927/2005)
“mesmo quando cada pre-sença de fato não se volta para os outros, quando acredita não
precisar deles ou os dispensa, ela ainda é no modo de ser-com.” (p. 175). “O ser-com
determina existencialmente a pre-sença mesmo quando o outro não é, de fato, dado ou
percebido. Mesmo o estar-só da presença é ser-com no mundo.” (p. 172). O impessoal,
entretanto, tira a responsabilidade de cada presença, vem ao encontro do outro o
dispensando de ser.
55
Segundo Critelli (1996) lançados no mundo somos convocados e pressionados a
aprender a ser impessoais. “Somos chamados para sermos como se é no mundo, como
se é de praxe, segundo o padrão” (p.122). Esta impessoalidade é um modo inautêntico
de se cuidar da vida. No entanto, o ser, por condição ontológica, é plural e singular.
Sendo assim, um constante apelo de vivermos a vida segundo quem nós mesmos
somos, a que Heidegger chama de clamor da consciência. “O encontro ou a
aprendizagem de ser quem propriamente nós somos é um acontecimento que se abre
como uma compreensão.” (p. 123).
A compreensão da impropriedade suscita o vazio e a necessidade de recuperar
um novo sentido para ser. À experiência do vazio e à compreensão da falta de sentido
Heidegger (1927/2005) chama de angústia. A experiência da angústia sempre nos revela
sós, entregues a nós mesmos, por nossa própria conta para dar conta de ser.
É importante reafirmar que:
Mesmo quando a pre-sença dos outros se torna, por assim dizer, temática,
eles não chegam ao encontro como pessoas simplesmente dadas. Nós as
encontramos (...) em seu ser-no-mundo. Mesmo quando vemos o outro
meramente em volta de nós, ele nunca é apreendido como coisa-homem
simplesmente dada. O estar em volta é um modo existencial de ser. (...) O
outro vem ao encontro em sua co-presença no mundo (Heidegger,
1927/2005, p.171).
O último modo de cuidado como preocupação, que em sua essência diz respeito
ao cuidado propriamente dito, atua na existência humana como sustentáculo que permite
o vir-a-ser do homem permanentemente. O Cuidado como “antecipação libertadora” é
aquele que devolve o outro a si mesmo, liberando-o para seus modos próprios e
singulares de ser-no-mundo (Sá, 2002). Nas palavras de Heidegger (1927/2005):
56
Subsiste ainda a possibilidade de uma pré-ocupação que não tanto substitui
o outro, mas que se lhe antepõe em sua possibilidade existenciária de ser,
não para lhe retirar o cuidado e sim para devolvê-lo como tal. Essa
preocupação que, em sua essência diz respeito à cura propriamente dita, ou
seja, à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro
a tornar-se em sua cura transparente a si mesmo e livre para ele (p.174).
Desta forma, conforme aponta Heidegger (1927/2005), os modos de Cuidado
como pré-ocupação, a substituição e a anteposição liberadora, são possibilidades
extremas da preocupação não indiferente. Na convivência cotidiana, se dão inúmeras
formas mistas.
Heidegger (1927/2005) coloca que a preocupação está sempre guiada pela
consideração e pela tolerância. O relacionar-se com alguém, com o outro numa
maneira envolvente e significante, é o que Heidegger chama de solicitude, que imbrica
as características básicas do ter consideração para com o outro e de ter paciência com o
outro” (Spanoudis, 1981, p.19).
É importante ressaltar que, para Heidegger (1947/2009), “o Dasein deve ser
visto sempre como ser-no-mundo, como ocupar-se com coisas e cuidar de outros, como
ser-com as pessoas que m ao encontro, nunca como um sujeito existente para si” (p.
199). No âmbito do cuidado com as coisas e com os outros está também o cuidado do
homem consigo mesmo. Tal cuidado, entretanto, se perde na multiplicidade de
ocupações com as coisas, em meio a que “fugimos de nós mesmos, de nossa
possibilidade mais própria de ser” (Fernandes, 2011, p. 26).
Mas cuidado como constituição fundamental existencial do Da-sein do
homem no sentido de Ser e Tempo é, nada mais nada menos, do que o nome
de toda a essência do Dasein, uma vez que este é sempre dirigido para algo
que se lhe mostra e, como tal, é absorvido constantemente, desde o início,
57
sempre num relacionamento qualquer, em cada caso, com aquilo que se lhe
mostra. Assim também, todos os modos de relacionamento ônticos, seja dos
amantes, dos que odeiam, do cientista natural objetivo, etc. estão igualmente
fundamentados em tal ser-no-mundo como cuidado (Heidegger, 2009, p.
267).
Considerando que existir corresponde a ser-no-mundo-com-os-outros, e que o
cuidado é constitutivo do humano, é apropriado ressaltar uma colocação proposta por
Critelli (1996) sobre o cuidado. Ela afirma:
Cuidando de existir, os homens, então, tomam para seu cuidado tudo o que
pertence à existência: o mundo, as coisas do mundo, os outros homens, si
mesmos. O cuidar é, ainda que veladamente para a consciência, ‘seletivo’.
Individual e/ou coletivamente, os homens ‘escolhem’ o que vai estar sob
seus cuidados, aproximando-o e afastando-o de sua cercania, de sua
cotidianidade, de seu mundo vivido, de sua atenção, de seu interesse. O
cuidar de ser é uma possibilidade que se estrutura sobre uma escolha com
tríplice aspecto: do que se vai cuidar/do que não se vai cuidar; de como se
vai cuidar e/ou não cuidar; de como se vai cuidar do cuidar mesmo. É
cuidando de ser, é dando conta de ser que os homens existem como homens
e como o homem que cada um deles é (p. 120-121).
Mattar e (2008) asseveram que o cuidado (Sorge), segundo Heidegger, é um
dos existenciais, isto é, uma das características ontológicas que fundam o existir
humano, ao lado de outros existenciais, como: (1) a abertura original do ser ao mundo;
(2) a temporalidade e a espacialidade originais; (3) a compreensão e a disposição
afetiva; (4) o ser-com-o-outro; (5) o discurso; (6) a corporeidade; e (7) o ser-para-a-
morte.
58
A compreensão do cuidado requer a alusão a outros existenciais. A análise das
características ontológicas da pre-sença suscita a necessidade de explicitação de três
existenciais fundamentais: disposição afetiva, compreensão e discurso.
O que ontologicamente denominamos disposição pode ser onticamente designado
como humor, ou estado de humor. O humor revela “como alguém está e se torna”
(Heidegger, 1927/2005, p. 188). Pela disposição afetiva a pre-sença se abre para si
mesma antes de qualquer conhecimento e vontade e para além de seus alcances de
abertura (p. 190). A angústia constitui-se na disposição afetiva fundamental, pois traz
consigo a possibilidade de ruptura do domínio da impessoalidade sobre o ser e a
possibilidade de uma retomada do poder-ser mais próprio (Casanova, 2009).
A compreensão é outro constituinte do ser, sendo este um existencial
fundamental. Trata-se de um modo possível de conhecimento, sintonizado com o
humor. Por meio desta o mundo se abre como significância. A compreensão se apropria
do que compreende pela interpretação. Toda interpretação se funda na compreensão.
Trata-se da apropriação do que se compreende (Heidegger, 1927/2005).
O discurso é também originário da disposição e compreensão. A compreensão
está sempre articulada no discurso. A compreensibilidade do ser-no-mundo se
pronuncia como discurso. A linguagem é o pronunciamento do discurso. Das
significações brotam palavras:
A palavra não é uma relação; a palavra revela, abre. O decisivo da
linguagem é o significado. O sonoro também pertence à linguagem, mas não
é o fundamental. Pela linguagem posso dizer a mesma coisa em diversas
línguas. O essencial da linguagem é o dizer, que uma palavra diga algo e
não que tenha um som. Que uma palavra mostre algo. Dizer mostrar. A
linguagem é o que mostra (Heidegger, 1947/2009, p. 223).
59
Para Heidegger (1927/2005), a escuta e o silêncio também são inerentes à
linguagem discursiva, dela fazendo parte como possibilidades intrínsecas, “escutar é o
estar aberto existencial da pre-sença enquanto ser-com-os-outros”. (p.222). O silêncio é
outra possibilidade constitutiva do discurso, pois o estar em silêncio também articula a
compreensibilidade da pre-sença. (Heidegger, 1927/2005).
A centralidade da noção de ser-para-a-morte na analítica heideggeriana faz-se
relevante neste trabalho, dado o locus escolhido para realização da pesquisa e a
necessidade de compreensão dos modos de cuidado aí presentes e atuantes.
Para o referido filósofo, ser um poder-ser, ser um ser-no-mundo significa ser uma
dinâmica existencial finita que tem em sua finitude a sua determinação fundamental.
Para o ser-aí cotidiano, entretanto, a morte não é uma experiência existencial e sim um
evento extrínseco. A morte tem um potencial desvelador, pois traz à tona o todo
fenomenal do ser-aí. A partir da antecipação da morte, o ser-aí passa a se realizar
plenamente em sintonia com todos os existenciais que lhe constituem, o que desvela a
possibilidade de uma nova relação consigo mesmo enquanto cuidado (Casanova, 2009).
Nas palavras de Heidegger (1927/2005), “é na compreensão do ser-para-a-morte
enquanto possibilidade mais própria que o poder-ser próprio se torna totalmente
transparente em sua propriedade.” (p. 99).
Os existenciais aqui descritos são úteis na tarefa de entendimento do âmbito
assistencial do intensivismo, especificamente do intensivismo pediátrico. O ser-com-o-
outro, a disposição afetiva, a linguagem, a compreensão e o ser-para-a-morte são
existenciais que se ancoram, todos eles, no cuidado enquanto característica ontológica
fundamental do ser-aí. Em suas expressões ônticas, desvelam modos de ser com o outro
capazes de produzir estranhamento nos que da saúde não fazem parte, uma vez que
60
elucidam situações em que predomina a objetificação do outro, enquanto ser de
cuidados primariamente intervencionistas.
Sem a intenção de extenuar as proposições heideggerianas sobre a noção de
cuidado e seu caráter ontológico, esta discussão que por hora se inicia será alvo do
próximo tópico, que busca tratar do sentido do cuidado nas práticas de saúde
considerando a esfera da atenção terciária.
2.2 O PEQUENO PRÍNCIPE O SENTIDO DO CUIDADO E A PRODUÇÃO DE SAÚDE
Neste tópico, far-sea teorização sobre os entrelaçamentos possíveis entre o
sentido do cuidado, na perspectiva fenomenológico-existencial, e as práticas de
produção de saúde, especialmente no contexto hospitalar.
Como indicado na discussão prévia, concebe-se o Cuidado como o solo
fundamental de onde brota a existência humana. Logo, o cuidado antecede toda e
qualquer atitude, perpassa todas as práticas, imbuindo de sentido a vida e tudo o que se
faz (Heidegger, 1927/2005).
Não é diferente com o exercício profissional, particularmente, o exercício
profissional na área da saúde. O cuidado também aqui se faz presente, chegando
inclusive a denominar a área e as categorias profissionais que a compõe como
categorias do cuidado. Entretanto, o que se observa neste campo multidisciplinar é a
dificuldade de se fazer revelar o cuidado enquanto atenção, solicitude, desvelo,
61
inquietação perante o outro, preocupação. Não é à toa que atualmente existem
movimentos em prol da humanização nas práticas de produção de saúde.
Considerando-se ser função da equipe de saúde o “cuidado” ao paciente que lhe
chega, como este construto se relaciona com a noção ontológica de cuidado proposta
por Heidegger?
Evidentemente, como um existencial, o cuidado jamais pode ser vivido,
pensado ou sentido como um ato meramente atrelado a uma categoria
profissional, ou como algo que se possui como objeto ou característica
pessoal. Mais do que uma ação isolada, pontual, ou uma virtude dentre
outras, o cuidado expressa um “modo-de-ser essencial”, uma atitude perante
a vida, a própria vida e a vida de outrem. Por conseguinte, esta categoria
existencial transcende a transitoriedade de momentos de atenção, zelo e de
desvelo. “Não temos cuidado. Somos cuidado”. Constituímo-nos a partir
dele e por ele preservamos o nosso existir e a presença humana no mundo
(Boff, 2008, p. 89).
Desta forma, o cuidado que o profissional de saúde dispensa ao paciente é,
inelutavelmente, uma expressão ôntica do cuidado ontológico. Tratando-se de uma
relação entre dois seres que têm o modo de ser do Dasein, o cuidado como preocupação
se faz presente na relação profissional de saúde-ser doente, em seus mais diversos
modos de expressão. Sendo uma relação existencial, não pode ser objetivada, pois “sua
essência fundamental é ser aproximado e deixar-se interessar, um corresponder, uma
solicitação, um responder, um responder por baseado no ser tornado claro em si da
relação” (Heidegger, 1947/2009, p. 222).
Como se apresenta o “cuidado” em saúde hoje? Sem a pretensão de dar uma
resposta cabal a tal pergunta, considera-se relevante tecer algumas considerações a esse
respeito.
62
Uma primeira questão que se apresenta refere-se à noção de homem que
fundamenta a intervenção em saúde. A prática profissional neste campo evidencia um
cuidado ao corpo que sofre, como algo distinto do ser. Tal divisão revela-se artificial, se
considerarmos que, numa perspectiva heideggeriana,
Tudo o que chamamos a nossa corporeidade, até a última fibra muscular e a
molécula hormonal mais oculta, faz parte essencialmente do interior do
existir, não é, pois, fundamentalmente, matéria inanimada, mas sim um
âmbito daquele poder perceber não objetivável, não opticamente visível de
significação do que vem ao encontro, que constitui todo o Dasein. Este
corporal forma-se de tal modo que pode ser utilizado no trato com o
“material” do animado e inanimado do que vem ao encontro. Mas, ao
contrário de uma ferramenta, as esferas corporais do existir não ser
descartadas do ser homem. Não podem ser guardadas isoladas numa caixa
de ferramentas. Ao contrário, elas permanecem permeadas pelo ser homem,
seguras por ele, pertencentes a ele, enquanto um homem viver. (Heidegger,
1947/2009, p. 272).
Como, então, cuidar do corpo sem cuidar do ser?
Certamente o corporal do Da-sein admite que já em vida ele seja visto como
um objeto material, inanimado, como uma espécie de máquina complicada.
Tal observador, na verdade, perdeu de vista para sempre o essencial do
corporal. Então, a consequência de tal observação inadequada é a
perplexidade perante todas as manifestações essenciais do corporal
(Heidegger, 1947/2009, p. 272).
Para a fenomenologia do cuidar, existir é cuidar de ser; é cuidar de ser si-mesmo
e cuidar de ser-com-o-outro; é existência na coexistência (Pokladek, 2004). O cuidado
na produção de saúde ultrapassa a instância ôntica apenas quando singulariza o doente;
caso contrário, transforma-se em meras técnicas e normas a serem seguidas. Retomando
Heidegger (1947/2009):
63
Se o médico achar que ele está operando a cura de um objeto, então o ser do
homem e o ser-com desaparecem... Para os médicos, o fenômeno do corpo
como tal está tão encoberto porque eles apenas se ocupam do corpo
material, reinterpretando-o como função corporal (p. 250).
diversas tentativas de explicação para a perda gradativa da habilidade de
ofertar cuidado genuíno na terapêutica em saúde. Uma das hipóteses defendidas é a de
que a modificação que se opera no modo de se relacionar entre os membros da equipe
de saúde e o ser doente dá-se fundamentalmente em virtude da necessidade desses
membros se protegerem do sofrimento e da dor que podem ser provocados pelo contato
autêntico com a experiência do outro. Deste modo, lança-se mão de recursos para
afastar-se, distanciar-se do outro, o que culmina em uma atitude fria, imprópria,
impessoal de interação com o outro ser de quem se cuida.
A esta discussão, convida-se Saint-Exupéry (1943/2005) e um trecho de sua obra
O pequeno príncipe para ajudar a refletir sobre a hipótese acima mencionada:
Para que servem os espinhos?
O pequeno príncipe jamais renunciava a uma pergunta, uma vez que a
tivesse feito. Mas eu estava irritado com o parafuso e respondi qualquer
coisa:
Espinhos não servem para nada. São pura maldade das flores.
Oh!
Mas, após um silêncio, ele me disse com uma espécie de rancor:
Não acredito! As flores são fracas. Ingênuas. Defendem-se como podem.
Elas se julgam poderosas com os seus espinhos... (p. 28).
Como as flores supostamente conservariam seus espinhos para se defenderem,
os profissionais de saúde podem adotar o modo de ser cuidado da indiferença, do
desprezo, do descaso, ou o modo de ser cuidado que se assemelha à mera ocupação com
os entes simplesmente dados como recurso para enfrentar e se proteger do dia a dia
64
carregado de sofrimento, inquietude, angústia diante da possibilidade de morte do outro
e de si mesmo. Análises simplistas podem levar a crer que o modo indiferente de ser
cuidado consiste em um “traço de personalidade”, ou um modo de ser permanente,
imutável. Entretanto, tal modo de ser integra um rol contínuo que oscila entre as
diferentes possibilidades de ser apontadas por Heidegger (1927/2005). O homem é
abertura ao mundo e, como tal, ser de possibilidades múltiplas.
Outra hipótese é a de que, gradualmente, o cuidado em saúde, que antes
privilegiava a relação entre médico e paciente e dela extraía informações valiosas que
serviam ao propósito de estabelecer diagnóstico, tratamento e compreensão
macrodinâmica dos casos clínicos, passa a ser mediado pela alta tecnologia, que
progressivamente distancia o médico do paciente em busca da objetividade no
entendimento das afecções e seus determinantes (Silva, 2006).
Preocupa-se muito mais com a atuação pautada na objetividade da tecnociência e
a consequente necessidade da conservação de uma atitude de assepsia emocional, do
que propriamente com a pessoa acometida por dada patologia. A ênfase no aparato
tecnológico, em detrimento do cuidado ao ser doente, é um processo resultante de
transformações na própria acepção do fazer médico.
Em sua origem, a medicina ocidental consistia em uma ciência essencialmente
humanista, assentada em um sistema teórico-filosófico que propunha uma visão integral
do ser humano, pautada no entendimento de que este homem é um ser dotado de matéria
e espírito, elementos indissociáveis. O médico era, antes de tudo, um homem sábio, um
humanista que fundamentava sua prática na compreensão minuciosa do ser a quem
prestava seus cuidados. Para formular seu diagnóstico, este profissional não restringia
seu olhar aos dados puramente biológicos. Tentava apreender a totalidade do ser, de sua
65
família, seu contexto de desenvolvimento, dados socioculturais, psicológicos,
ambientais e até mesmo espirituais (Silva, 2006).
Contudo, conforme assinala Silva (2006), em meados do século XIX, a
sabedoria médica paulatinamente cede lugar às grandes descobertas relativas aos
agentes infecciosos causadores das enfermidades, às análises laboratoriais dos
microorganismos e ao desenvolvimento de drogas medicamentosas úteis no combate às
doenças. O poder de cura é incrementado pela invenção de equipamentos resultantes de
um acelerado processo de desenvolvimento técnico-científico.
Ora, a atuação e formação médicas não mantêm em seu cerne a compreensão
proposta pela tradição filosófica humanista. Com o avanço tecnológico, cumpre
aprofundar por hora os estudos sobre os mecanismos etiopatogênicos e fisiológicos das
moléstias que acometem as pessoas, extirpar do organismo os efeitos danosos desses
agentes microbianos, desenvolver máquinas e substâncias efetivas no diagnóstico e
tratamento das doenças. O olhar clínico, a relação de proximidade entre médico e
paciente, o exame e anamnese, enfim, os princípios hipocráticos de condução dos casos,
não são mais ferramentas suficientes, pois guardam supostamente a imprecisão e
imperícia determinada pela subjetividade humana (Silva, 2006).
Prima-se pela objetividade e isso implica, em consequência, relações objetivas.
A relação sujeito-sujeito é substituída pela relação sujeito-objeto. A pessoa doente se
torna tão somente um objeto de análise e intervenção terapêutica. Acredita-se, pois, que
a objetividade necessária será garantida unicamente a partir da coisificação do outro,
exatamente o outro de quem se almeja cuidar (Sá, 2002; Silva, 2006).
66
A antiga “arte de curar” é deixada de lado em prol do estabelecimento de uma
ciência exata e fundamentalmente biológica, perdendo pouco a pouco o seu caráter
humanístico. Esta tendência que se inaugura no campo do fazer médico repercute na
formação em saúde, determinando a centralidade do estudo dos órgãos e de sua
funcionalidade. Capacitar profissionais para a leitura de um sem número de variáveis
biológicas, o manuseio eficiente de máquinas, o estudo de medidas terapêuticas
complexas e eficazes: estes são, grosso modo, alguns dos objetivos delineados para a
formação em saúde, todos direcionados à procura incessante por afastar a sombra da
morte. É a luta pela manutenção da vida que secundariza a própria vida, suas nuances,
suas histórias, e o detentor de seu pulsar: o homem em sua integralidade (Silva, 2006).
Bernard Lown (1997), cardiologista e autor do trabalho A arte perdida de curar,
citado por Silva (2006), propõe: “nunca a medicina avançou tanto no diagnóstico e
tratamento das doenças como no século passado, contudo nunca o ser humano enfermo
foi tão mal cuidado” (p. 43). Isso porque o foco do cuidado não reside na pessoa
circunstancialmente enferma, mas sim na doença que lhe acomete. Ora, a doença como
ente simplesmente dado permite uma modalidade de cuidado: a mera “ocupação”. Se
se transforma o ser doente em mero objeto, em doença, se estabelece com ele o modo de
cuidado semelhante à “ocupação”, alimentando-o, higienizando o seu corpo,
administrando medicamentos (Iencarelli, 2009). “Este conviver dissolve inteiramente a
própria pre-sença no modo de ser dos ‘outros’ e isso de tal maneira que os outros
desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão” (Heidegger,
1927/2005, p. 179).
O cuidado é um existencial que revela nossa condição de ser-no-mundo-com-os-
outros. Os profissionais de saúde, quando deixam de acolher o outro como sujeito, que
67
pede ajuda, que requer atenção e zelo, distanciam-se da efetiva produção de saúde e de
vida. Nas palavras de Boff (2008), inspirado em Heidegger (1927/2005), o cuidado é
um existencial, é o que nos faz existir. Sem o cuidado, deixamos de ser humanos, pois é
dele que surge permanentemente o ser (p. 89).
Os apelos a favor da humanização na área da saúde denunciam que,
considerando o cuidado como fundante do ser do homem, enquanto cuidado, a
existência humana está impregnada pelo modo deficiente de ser-no-mundo e ser-com-
os-outros. Um modo inautêntico, impróprio, impessoal, como assinalado por Heidegger
(1927/2005). Os profissionais do “cuidado” não escapam a este modus operandi
peculiar dos tempos atuais (Silva, 2006).
Boff (2008) aponta o modo-de-ser-no-mundo do homem como essencialmente
paradoxal. Ora prevalece o modo-de-ser-cuidado, ora o modo-de-ser-trabalho. O
cuidado e o trabalho podem caminhar juntos, não são modos-de-ser excludentes, mas
complementares. Todavia, o que se vivencia nos tempos atuais é a dominação do modo-
de-ser-trabalho em detrimento do modo-de-ser-cuidado, o que pode culminar em
práticas desprovidas de solicitude e atenção ao outro que, no campo da saúde, pode
fundar relações impróprias, impessoais, despojadas de afeto e consideração. Tal estado
de coisas pode ser compreendido à luz das transformações macroestruturais decorrentes
da progressiva evolução social.
Diante dos enfrentamentos na luta pela manutenção da vida, com o cotidiano
marcado pela impessoalidade, o modo de ser impróprio, as mais variadas situações
deixam de despertar surpresa ou estranhamento nos profissionais de saúde, que acabam
por adotarem a indiferença como modo-de-ser-cuidado prevalente em seu fazer diário.
68
O outro é sempre previamente dado como “paciente”, “doente”, “doença”, “número
de leito”. E isso não é tão diferente quando se trata de crianças (Boff, 2008; Sá, 2002).
Assim, após as digressões sobre o cuidado e o contexto de atuação em serviços
de saúde, parte-se para a problematização do lugar da criança e do cuidado à infância na
terapia intensiva, considerando os contos de literatura infantil como alternativa de
concretização do cuidado essencial. A pergunta central é: e quando se trata de crianças,
o que podemos dizer sobre o cuidado a elas ofertado no âmbito do intensivismo
pediátrico?
Para refletir sobre essa questão, pede-se novamente o auxílio de O pequeno
príncipe (Saint-Exupéry, 1943/2006):
Todas as pessoas grandes foram um dia crianças mas poucas se lembram
disso (p. 7).
A frase acima é representativa do estranhamento que a pesquisadora vivenciou
ao notar que, no campo de estudo escolhido, embora seja direcionado especialmente às
crianças gravemente enfermas, não há nada que evidencie que ali se cuidam de crianças,
a não ser, ironicamente, a presença das mesmas. As formas de ser da infância,
prioritariamente expressas pelo brincar, pela fantasia, pelos jogos, pelo simbólico, não
encontram espaço naquele lugar.
Considerando a resposta ao questionamento sobre o cuidado ofertado à criança
no hospital, e mais especificamente na UTI, é plausível afirmar que predomina o modo
de cuidado (Sorge) semelhante ao da mera ocupação (Besorge), nos termos
heideggerianos, alternando-se com o modo de cuidado como pré-ocupação (Fürsorge)
que beira à indiferença, o descaso, o afastamento crítico em relação ao ser cuidado. O
69
cuidado substitutivo e o antepositivo, evidentemente, modalidades de pré-ocupação não
indiferente, também são verificáveis na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica,
embora predomine a primeira modalidade. Esta assertiva toma por base a observação de
que ora a criança usualmente é alvo dos procedimentos de rotina, manipulada como
objeto de mera ocupação, ora ela e sua família são, por vezes, alvos de condutas que
desconsideram sua existência e que as desalojam de seu lugar no mundo.
Reafirmando a proposição anteriormente citada, primordial se faz indicar modos
de intervir em tal espaço a fim de construir o cuidado como pré-ocupação, em seu modo
de antecipação libertadora, que permite uma sustentação existencial para que a criança
possa vir-a-ser, expressar-se como criança que é, experimentar a liberdade de ser, de
construir significados e sentidos próprios para o fragmento de seu viver determinado
pelo adoecimento e internamento em UTI. Garantir o autêntico cuidado, como
movimento capaz de dar o outro a si mesmo, ao abrir espaço para que a fala e a vida se
deem em liberdade, o que permite a revelação do ser (Sá, 2002).
Esta modalidade de cuidado, que se evidencia por meio de uma atitude de
desvelo, solicitude, zelo, atenção, bom trato, pode se revelar como uma alternativa para
responder às necessidades da criança internada na unidade de tratamento intensivo. A
pouca frequência desse tipo de cuidado, provavelmente emerge do fato de que as
crianças, e todos os demais seres assistidos em unidades de atenção à saúde, são
destituídos de sua própria condição humana, o cuidados de forma inautêntica, o
meras doenças: “sem Cuidado, deixamos de ser humanos, pois é dele que surge
permanentemente o ser” (Boff, 2008, p. 89).
Finalizar-seaqui esta discussão sobre cuidado. Adiante, aponta-se o capítulo
contendo as reflexões sobre as histórias infantis.
70
3. OS CONTOS DE LITERATURA INFANTIL SEU ENREDO E
SUA APROPRIAÇÃO TERAPÊUTICA NO CUIDADO À
INFÂNCIA
Uma vida se faz de histórias a que vivemos, as que
contamos e as que nos contam.
(Corso & Corso, 2006, p. 23)
Pretende-se, aqui, apresentar as contribuições de alguns dos vários autores que
se propuseram a estudar os contos como ferramentas de promoção do desenvolvimento
humano, abordando desde as considerações sobre as raízes históricas das narrativas até
sua apropriação como instrumento de trabalho terapêutico.
Antes de tudo, definir-se-á o que se concebe como Literatura e Literatura Infantil
para, em seguida, apresentar as principais diferenças entre as espécies literárias escritas
em prosa: contos de fadas, mitos, fábulas, contos de ensinamento, lendas e histórias
realistas, levando em consideração que o estudo por hora descrito elegeu como
instrumentais de trabalho os contos de fadas e, especialmente, os textos realistas.
Em segundo lugar, será explanada sucintamente a história das histórias, o
surgimento dos primeiros contos, de tradição oral, a finalidade que cumpriam em épocas
remotas. então serão apresentadas algumas contribuições de diversos autores para o
reconhecimento dos agentes curativos presentes nos enredos literários. Isto seguido de
71
uma explicitação dos trabalhos realizados na área da saúde que usam a literatura
infantil como ferramenta principal de acesso ao universo simbólico da criança.
Finalizar-secom a exposição breve do uso psicoterapêutico das histórias em
âmbito hospitalar, especificamente em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica.
3.1 OU ISTO OU AQUILO... TECENDO AS DISTINÇÕES NECESSÁRIAS
De antemão, faz-se necessário delimitar alguns conceitos no que tange à arte
literária. A primeira conceituação indispensável diz respeito ao que é denominado de
Literatura e, especificamente, o que é considerado Literatura Infantil.
Cada época histórica concebeu e gerou a literatura a seu modo, daí a dificuldade
em estabelecer exatidão nas conceituações relativas a esta área. A compreensão da
natureza, da maneira de entender e de produzir literatura em cada época nos habilita a
acessar as particularidades e o processo evolutivo da Humanidade (Coelho, 2000,
2010).
Em que pesem as imprecisões conceituais, adota-se neste trabalho a definição de
Literatura proposta por Coelho (1986), a saber:
Literatura é arte, é um ato criador que, por meio da palavra, cria um
universo autônomo, realista ou fantástico, onde os seres, coisas, fatos, tempo
e espaço, mesmo que se assemelhem aos que podemos reconhecer no
mundo concreto que nos cerca, ali transformado em linguagem, assumem
uma dimensão diferente: pertencem ao universo da ficção (p. 29-31).
72
Literatura, portanto, é concebida como arte que comunica pela palavra os
elementos que estruturam a existência humana: “Como arte, ela expressa a presença do
homem no mundo e eterniza os seus atos e os seus pensamentos” (Góes, 2010, p. 12).
No que tange à definição de Literatura Infantil, esta é controversa entre os
estudiosos. Jesualdo (1978) lança o seguinte questionamento: “Existiria mesmo uma
literatura propriamente infantil? Haverá livros, pois, que correspondam cabalmente à
intimidade da criança?” (p. 14).
Embora se admita a provável existência de livros que, mesmo não sendo
direcionados às crianças, possam lhes despertar o interesse, neste trabalho assume-se
uma posição diversa.
Para a pesquisadora, em conformidade com a suposição de Coelho (2000),
especialmente a partir da apreciação dos produtos literários contemporâneos, existe uma
literatura especificamente direcionada à criança, hoje entendida como sujeito de direitos
e dona de expressivas possibilidades de ser e estar no mundo de maneira peculiar,
correspondente ao seu processo de desenvolvimento.
A literatura infantil, sobretudo a contemporânea, deixando de lado o caráter
puramente pedagógico e/ou disciplinador, consiste em uma expressão artística rica em
simbolismos, bem escrita e com alto valor estético que, utilizando prioritariamente a
linguagem metafórica, a linguagem da imaginação (ou seja, a linguagem que caracteriza
a infância), é capaz de despertar o interesse do infante por levar em consideração seu
modo de existir e pensar sobre as coisas, utilizando recursos gráfico-ilustrativos
importantes para a facilitação da interação criança-conto e, sobretudo, respeitando e
valorizando a potencialidade de reflexão, imaginação, capacidade dica, poética,
73
criativa e de simbolização infantil (Abramovich, 1997; Amarilha, 1997; Caldin, 2010;
Coelho, 2000, 2010; Góes, 2010; Oliveira, 2008; Parreiras, 2008; Sunderland, 2005).
A despeito da consideração da literatura infantil como uma modalidade
específica, aspecto polêmico entre os autores, é notória e unânime a relevância da
articulação entre o conteúdo abordado no livro, a linguagem utilizada e o processo de
desenvolvimento global infantil, com vistas à assunção de sentidos benfazejos e o
despertar do interesse da criança pela história ali contada. A necessidade de tal
articulação sobrepuja qualquer rotulação prévia do que seja ou não literatura infantil
(Góes, 2010; Jesualdo, 1978; Parreiras, 2008).
De posse dos conceitos abraçados nesta dissertação em relação ao que é
Literatura e, especificamente, ao que é Literatura Infantil, principia-se por hora as
delimitações atinentes ao campo específico da Literatura Infantil, alvo das produções da
investigação aqui proposta.
Dada a centralidade das histórias de fadas e dos contos realistas no trabalho, a
ênfase recairá sobre essas duas categorias literárias. Deste modo, torna-se importante
diferenciar, quanto a sua origem, os contos de tradição oral (também referidos como
folclóricos, clássicos ou tradicionais) e as histórias contemporâneas (denominadas
contos modernos, contos realistas ou histórias de autor).
De acordo com Gutfreind (2010), o conto de tradição oral é considerado “antigo,
pertencendo ao patrimônio mundial ancestral sob diferentes formas, conforme países e
regiões”. E continua: “trata-se do conto polido pelos séculos, engrandecido pela
sabedoria e a memória humana” (p. 26). Sugere-se que essas histórias acompanharam a
74
humanidade e se proliferaram mundo afora a partir da figura dos narradores, carregando
os valores, a cultura e as crenças de um povo.
as histórias modernas, segundo o mesmo autor, consistem em textos de
caráter realista, os quais “não possuem essa densidade conferida pelo tempo (...)
representam um produto da língua escrita...” (p. 26). São expressões artístico-culturais
que refletem a realidade atual, em muitos casos, contemplando, igualmente, contos
tradicionais recontados sob o prisma da cultura vigente.
Feita essa distinção primeira, e antes de sinalizar outras diferenciações
imprescindíveis, é interessante ressaltar que, por vezes, ao longo dessa dissertação, a
exemplo de alguns autores (Busatto, 2008; Gutfreind, 2010; Jesualdo, 1978), o termo
genérico “contos” será utilizado como sinônimo de literatura infantil.
Conforme assinalado anteriormente, o acervo literário destinado a crianças
abrange gêneros diversos. Delinear as diferenças e semelhanças entre eles, entretanto,
revela-se tarefa árdua, tendo em vista a controversa nomenclatura presente nas várias
obras que tratam do tema e sua imprecisão conceitual.
Sem a pretensão de uma exposição exaustiva, consensual e/ou absoluta no
tocante a essa questão, proceder-sea uma breve caracterização dos principais gêneros
narrativos, de acordo com a classificação proposta por autores como Bettelheim (2007),
Busatto (2008), Caldin (2010), Coelho (2008, 2010), Corso e Corso (2006), Gutfreind
(2010), Góes (2010), Jesualdo (1978), Oliveira (2008) e Radino (2003). A categorização
é de cunho exclusivamente didático, dada a impossibilidade de se restringir a arte
literária aos limites de qualquer arranjo classificatório, sua riqueza simbólica implica
dificuldade prática em organizá-la em divisões fixas (Coelho, 2010; Góes, 2010).
75
Isto posto, os gêneros literários da prosa contos de fadas, mitos, fábulas, contos
de ensinamento, lendas e histórias realistas serão caracterizados enfocando os aspectos
relevantes ao objetivo deste trabalho.
Iniciando pela descrição dos contos de fadas, seus primeiros exemplares se
caracterizam por serem derivados da tradição oral (Bettelheim, 2007; Busatto, 2008;
Caldin, 2010; Radino, 2003).
E por que contos de fadas? Essa denominação não é consensual entre os autores,
e aqui se aceita a concepção de contos de fadas como sinônimo de conto maravilhoso,
como propõe Propp (1997, citado por Corso & Corso, 2006), em função da presença de
um elemento mágico ou fantástico, não necessariamente uma fada.
Os contos maravilhosos se caracterizam por desenharem situações que, embora
mirabolantes, se aproximam das vivenciadas pelos mortais, proporcionando, assim, a
identificação dos que ouvem o conto com suas personagens. Os próprios nomes dados
às personagens, geralmente comuns ou gerais, exemplificam essa tendência dos contos
de se assemelharem ao real (Abramovich, 1997; Bettelheim, 2007, Góes, 2010).
Ademais, as histórias traduzem situações tormentosas que terminam em
desfechos harmoniosos, o que produz, em seus ouvintes, uma sensação de alívio das
pressões internas geradas pelo enredo e um conforto frente à possibilidade de alcance de
conquistas e vitórias diante de desafios inicialmente percebidos como insuperáveis e
insuportáveis. As situações ocorrem em lugar e tempo indefinidos (Era uma vez, num
certo lugar...), característica que cumpre a função de assegurar o ingresso na fantasia,
em uma dimensão composta por elementos fantásticos, possibilidades e lógicas diversas
76
do real (Abramovich, 1997; Bettelheim, 2007; Corso & Corso, 2006; Jesualdo, 1978;
Silva, 2006).
De modo geral, com base na preocupação de manter a verossimilhança, eles
ilustram situações típicas de enfrentamento de adversidades, impostas quer seja por
vivências concretas, quer seja por experiências advindas de elementos fantásticos. Em
seu bojo, o conto de fadas, ainda conforme os autores, traz comumente a figura de um
herói, representando o bem, e a figura de uma bruxa ou outra personagem,
representando o mal (Abramovich, 1997; Bettelheim, 2007; Jesualdo, 1978; Leivas,
2011; Rosa, 2011; Silva, 2006).
São exemplos de contos de fadas os clássicos da literatura infantil, como
Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, O Pequeno Polegar, João e Maria, Cinderela,
O Patinho Feio, Os Três Porquinhos, A Bela Adormecida, O Gato de Botas, entre
outros.
Outra marca inconfundível do conto de fadas é que ele, a partir de uma trama
que envolve amigos e inimigos, situações conflituosas e dramáticas, fatores de fantasia e
realidade, sinaliza em seu desenlace a superação dos obstáculos de forma mágica pelo
herói da história, o que culmina, conforme referido, no tradicional final feliz
(Abramovich, 1997; Bettelheim, 2007; Corso & Corso, 2006; Jesualdo, 1978; Silva,
2006).
E é exatamente nesse ponto, dentre outros aspectos, que os contos se
diferenciam dos mitos. Estes últimos, como propõem Bettelheim (2007) e Góes (2010),
na maior parte dos casos, resultam em um final trágico. O pessimismo é uma das
características marcadamente pertencente à estrutura narrativa dos mitos, em
77
contraposição ao otimismo transmitido pelos contos de fadas (Bettelheim, 2007;
Busatto, 2008; Góes, 2010).
As fábulas, os contos de ensinamento e as lendas, do mesmo modo, se
constituem em variações da literatura infantil clássica. Considera-se relevante defini-las,
de modo a fornecer ao leitor um panorama global da literatura destinada às crianças,
entretanto, optou-se por não ater-se às mesmas, por não fazerem parte do escopo desta
pesquisa.
Por fábula, entende-se toda e qualquer história cujos protagonistas são animais
dotados de características humanas, e cujo mote basilar é uma máxima moral emanada
das situações apresentadas. Os contos de ensinamento, semelhante às fábulas, trazem
como foco valores e preceitos éticos como a solidariedade, o respeito ao próximo, a
cooperação, a fé, a lealdade, a compaixão, a generosidade. Porém, diferentemente das
fábulas, se inspiram em linhas filosóficas e/ou religiosas. As lendas, por sua vez,
ilustram episódios conservados pela tradição popular de fatos que poderiam ter
acontecido, ou aconteceram muito próximo do narrador e que explicam coisas que
racionalmente não podem ser explicadas. Trata-se de contos que falam de casos
corriqueiros do dia-a-dia de um povo (Busatto, 2008).
Uma última variação da literatura infantil clássica em prosa refere-se aos textos
realistas, os quais, por sua relevância neste estudo, serão abordados de forma mais
extensa.
No Brasil, a partir do denominado boom da Literatura Infantil, o qual ocorre nos
anos de 1970 em diante, surgem os textos realistas, categoria na qual se encontra a
78
maioria das histórias utilizadas neste estudo (Coelho, 2010; Góes, 2010; Vasconcelos,
2008).
Caldin (2010), ao versar sobre os textos realistas, resume:
Na esteira de Lobato foi criado o que se convencionou chamar de realismo
mágico, uma junção de fatos cotidianos com personagens características dos
contos de fadas. São narrativas que, ao mesmo tempo em que apresentam os
heróis reais ou fictícios da tradição, questionam verdades cristalizadas pelo
tempo. Na maior parte, valem-se de recursos da paródia e do humor como
forma de crítica às ideologias. É uma literatura engajada. (...) Como um
jogo, de forma prazerosa e instigante, interroga a realidade e permite ao
leitor-criança a compreensão dessa realidade (p. 98-99).
Em tais contos, as fadas, bruxas e demais elementos fantásticos contidos nas
narrativas clássicas são substituídos por pessoas e fatos cotidianos, os quais se
aproximam das experiências das crianças, em um realismo mágico e/ou objetivo que
estimula o imaginário infantil e traduz essas experiências em uma linguagem, embora
clara e concisa, também poética e sedutora (Góes, 2010; Oliveira, 2008).
Comumente, as crianças aparecem nesses contos como atores principais, os
heróis da história, assumindo uma postura tipicamente ativa, questionadora e crítico-
reflexiva. O protagonismo infantil presente nos enredos, que podem atuar como
exercícios preparatórios para o enfrentamento de situações variadas da vida, evidencia a
exaltação da nova concepção de infância na literatura contemporânea, como um período
de intenso desenvolvimento, de construção de conhecimento de mundo a partir das
experiências vividas pela criança, considerada como ser criativo, espontâneo e sensível,
dotado de uma capacidade imaginativa que lhe possibilita dar vida aos objetos por meio
da fantasia, com direitos e necessidades a serem assegurados, com liberdade para viver
79
a infância e a ludicidade intrínseca a tal tempo existencial (Góes, 2010; Jesualdo, 1978;
Vasconcelos, 2008; Oliveira, 2008).
Essa categoria literária geralmente apoia o enredo em recursos de humor,
paródia e descontração, enfatizando, de igual modo, questionamentos à ordem
instituída. Além disso, as ilustrações, abundantes nos contos realistas, cumprem papel
essencial, pois que estabelecem diálogos efetivos com o enredo dos contos e com o
imaginário infantil (Caldin, 2001; Oliveira, 2008).
Os contos realistas atendem à sugestão de Parreiras (2008), quando argumenta
em favor de que os textos literários infantis devam trazer o que há de mais característico
da infância: a ludicidade, e devam guardar em si o olhar da criança sobre o mundo, a
infância, respeitando o ponto de vista dos pequenos. Esse respeito à infância é tributário
da concepção de que hoje não mais como conceber a criança como um vir a ser,
como um projeto de homem, como um ser futuro. A criança é o “presente, o hoje, o
agora”. Nem é um ser passivo, nem mero reprodutor de sentidos do mundo adulto.
Precisa ser considerada em sua existência e modo de se posicionar no mundo, precisa
ser valorizada como ser da dúvida e da produção de sentidos.
Góes (2010) caracteriza da seguinte forma as histórias maravilhosas modernas:
“histórias que tratam do maravilhoso dentro do real com uma intencionalidade crítica.
(...) Realidade e maravilhoso, sonhos e verdades são confrontados, (...) sempre numa
linguagem gostosa, ritmada, cuja fonte é o encantamento da poesia e a sabedoria
popular” (p. 241-242).
Em contraponto aos contos de fadas, nas histórias modernas frequentemente
intervém o elemento real. Os obstáculos a serem superados pelos heróis comumente não
80
são de natureza fantástica ou sobrenatural, são obstáculos reais, cotidianos, sobre os
quais o protagonista triunfa, seja em virtude de sua inteligência e sagacidade, seja
lançando mão das invenções científicas ou à custa de grandes façanhas; ao contrário dos
contos de tradição oral, que habitualmente ilustram conquistas decorrentes da
intervenção de objetos mágicos e pouco esforço humano (Jesualdo, 1978).
Histórias ilustrativas da contemporaneidade são: O Menino Maluquinho
(Ziraldo, 2005), Flicts (Ziraldo, 2009), Quem tem medo de quê? (Rocha, 2003), A
Cidade dos Carregadores de Pedras (Branco, 2008), Nós (Furnari, 1999), Alguns
medos e seus segredos (Machado, 2009), A Menina Cabeça-de-vento (Branco, 2008), as
obras literárias infantis de Monteiro Lobato, etc.
Esse e outros contos realistas retratam uma infância vivida com liberdade de ser
e se expressar no mundo, abandonando rotulações anteriores que advogavam em prol
dos bons costumes, do disciplinamento dos corpos, julgando as travessuras e demais
comportamentos típicos do ser criança como problemáticos, requerendo séria
intervenção de caráter pedagógico, visão que também predominava na literatura dirigida
ao infante (Caldin, 2010; Oliveira, 2008; Vasconcelos, 2008).
autores que apontam sérias objeções às produções literárias modernas
dirigidas às crianças, como é o caso de Bruno Bettelheim, julgando serem produções
empobrecidas de conteúdos simbólicos, ao se restringirem ao realismo maravilhoso
(Gutfreind, 2010). A esse respeito, Caldin (2010), mencionando atividades usando
textos literários com finalidades terapêuticas, assevera:
A experiência (...) tem mostrado que histórias modernas, com forte apelo
estético, com personagens-crianças que vivenciam situações muito próximas
da realidade cotidiana, seduzem e possibilitam a identificação. (...) Não
81
necessidade de seres míticos, de objetos mágicos ou grandes desafios a ser
vencidos. O compromisso com a verossimilhança nas narrativas
contemporâneas, a valorização do cotidiano, a inserção do humor como
forma de enfrentamento das dificuldades, a cadência rítmica, a
informalidade na escrita, a criatividade e originalidade, características dos
novos textos literários infantis, envolvem a criança de tal forma que tais
narrativas se configuram como um espaço poético terapêutico (p. 160-161).
Para Caldin (2010), qualquer história que dê primazia ao imaginário, que ofereça
ao ouvinte o envolvimento efetivo com o texto literário e com suas personagens por
meio do mecanismo da identificação, e que ilustre situações verossímeis, pode ser
proveitosa nas atividades de contação de histórias.
Sobre as objeções aos contos realistas, Gutfreind (2010) acrescenta: “o que
aprendi na experiência é que, em contos, qualquer ideia mais rígida se esvai pela
plasticidade e abertura do material” (p. 179).
A propósito da qualidade das produções literárias correspondentes aos séculos
XIX e XX, Corso e Corso (2006) se dizem satisfeitos, haja vista também ter sido neste
período que efetivamente se cria a ficção propriamente voltada à infância. Argumentam
que as histórias são estruturalmente semelhantes aos contos de fadas, no que diz
respeito às potencialidades que apresentam em prover as crianças de elementos que as
ajudem a refletir e organizar seus conflitos e sentimentos intrigantes (sobre isto, ver
Tópico 3.2). É perceptível a mudança de temas, tempos, lugares, personagens, no
entanto, a operação é a mesma dos contos tradicionais, trazendo à tona cenas que podem
ser usadas pelas crianças tanto como oportunidade de crescimento emocional, quanto
para fins de regressão desenvolvimental, e tal uso dependerá da disposição afetiva ou
momento da vida experienciado pela criança.
82
Desta feita, a literatura infantil contemporânea, ou significativa parcela dela,
sustenta predicados que se coadunam com a Fenomenologia Existencial heideggeriana,
adotada nesta dissertação, o que, então, justifica a eleição prioritária de tal modalidade
literária como material de estudo e construção do corpus da pesquisa.
Completada, mas não esgotada, a tarefa de caracterização e distinção dos contos
de literatura infantil, resta indicar que foram selecionados apenas contos de fadas (ou
contos maravilhosos) e histórias modernas como instrumentos durante a construção do
corpus da pesquisa, inspirando-se em trabalhos da mesma natureza que apontam as duas
categorias como as mais adequadas para os fins a que se propõe este estudo. A
finalidade é intercalar essas modalidades a cada encontro entre a pesquisadora e os
pequenos participantes, em consonância com suas necessidades e interesses.
Crianças como sendo as protagonistas desta história por hora tecida assumirão o
cerne das discussões empreendidas nos tópicos subsequentes, em que se buscará
explicitar os aportes teóricos acerca do potencial terapêutico dos contos para essa
população.
3.2 A FADA MADRINHA E SUA VARINHA DE CONDÃO NARRATIVAS PRODUZIDAS
SOBRE O POTENCIAL TERAPÊUTICO DO CONTO
De onde viemos? Para onde vamos? Quem somos?
Diz-se que os contos de literatura oral são frutos da imaginação humana na
busca de respostas a essas e tantas outras perguntas que circundam a vida; nascem,
então, da tentativa da humanidade de traçar um sentido para sua existência, da
83
necessidade do homem de formular explicações acerca de suas origens e da origem dos
elementos da natureza (explicações pautadas no pensamento mágico, frente à ausência
de domínio do conhecimento científico), extraindo daí exemplos ou cantos/fórmulas
mágicas (para vencer as forças hostis da natureza), consolação ou mecanismos para
exorcizar os “espíritos malignos” e atrair para seu cotidiano os “espíritos do bem”
(Busatto, 2008; Canton, 2009; Coelho, 2010; Corso & Corso, 2011; Góes, 2010;
Jesualdo, 1978; Rosa, 2011; Silva, 2006).
Conta a história das histórias, que não existiria local ou época precisa para o
surgimento dos contos. Há indícios que teriam surgido no Oriente, mas não há consenso
quanto a esta questão (Coelho, 2010; Radino, 2003).
Aos contadores de histórias é conferida a responsabilidade pela propagação da
literatura oral, “até o dia em que antropólogos, folcloristas, historiadores, literatos,
linguistas e outros entusiastas do imaginário popular saíram a campo para coletar e
registrar estes contos” (Busatto, 2008, p. 20).
A difusão oral, por séculos, representou a única forma de transmissão de valores,
ensinamentos, costumes e regras sociais compartilhadas por um povo. E foi graças a ela
que os contos se perpetuaram, atravessaram fronteiras geográficas, mostrando a força e
a perenidade do folclore popular e alcançando os tempos atuais (Abramovich, 1997;
Coelho, 2008, 2010; Góes, 2010; Jesualdo, 1978; Radino, 2003; Rosa, 2011; Safra,
2005).
Em muitas dessas sociedades antigas, que ainda não dispunham do sistema de
escrita, a transmissão oral dos contos retratava momento ritualístico de grande
importância. Todos se organizavam em roda perante o fogo e um contador de histórias
84
iniciava sua tarefa de contar e encantar com narrativas que revelavam as vicissitudes da
vida daqueles ouvintes, seus medos, suas angústias, os perigos aos quais estavam
submetidos, as doenças, a magia e o poder da natureza e dos elementos sobrenaturais.
Diante da escassez de alimentos e itens de sobrevivência, os contos lhes serviam como
alimento à alma, com a finalidade de “instruir e distrair”. Neste caso, o conto ostentava
as características de um totem, rodeado de significados sagrados cuja função era
preservar as tradições e os tabus de uma aldeia, comunidade, tribo ou outra forma de
organização social (Canton, 2009; Corso & Corso, 2006; Góes, 2010; Jesualdo, 1978;
Radino, 2003; Rosa, 2011; Safra, 2005; Silva, 2006; Tatar, 2004).
Ao longo dos tempos, os contos considerados como fundamentos essenciais de
uma civilização por carregarem informações diversas de cunho histórico, etnográfico,
sociológico, jurídico, entre outras passaram por transformações que obedeciam às
características e tradições do povo para os quais eram apresentados, sendo omitidos e/ou
acrescidos cenas, personagens, situações e desfechos consoantes com as necessidades
dos narradores e de seus ouvintes (Canton, 2009; Jesualdo, 1978; Radino, 2003; Rosa,
2011; Silva, 2006; Tatar, 2004).
O que chama a atenção em toda essa trajetória é que os contos, a despeito de
hoje funcionarem, especialmente, como aconchego e fomento à imaginação infantil, não
surgiram com o referido intento. E nem poderia ser diferente, uma vez que nesses
tempos arcaicos sequer existia a infância como categoria social tal qual a concebemos
nos dias atuais. Os enredos literários da época retratam esta realidade (Canton, 2009;
Coelho, 2010; Corso & Corso, 2006; Rosa, 2011).
De totem a acalanto, o conto não perde sua função social e terapêutica no
decurso dos tempos, sinalizando seu potencial como protetor dos homens e apaziguador
85
de suas aflições (Canton, 2009; Corso & Corso, 2011; Oliveira, 2008; Radino, 2003;
Rosa, 2011; Santos Filho & Arruda, 2005).
As narrativas originais sofreram uma série de transformações com vistas ao
abrandamento do que dantes era retratado pelos contadores de histórias de maneira
direta, nua e crua; um mundo de brutalidade, de perigos e morte iminente, de fome e
caos, componentes da realidade vivida naqueles tempos longínquos, e que ainda hoje
perduram nos contos em certa medida (Canton, 2009; Coelho, 2010; Corso & Corso,
2006; Tatar, 2004).
Essa “infantilização” dos contos e suas versões modernas, em alguns casos de
caráter moralista e pedagógico, são datadas do século XIX e respondem à invenção da
família, enquanto núcleo de funcionamento social de elevada importância para a
estruturação e ordenação do mundo; e à invenção da infância, enquanto fase peculiar do
desenvolvimento que necessita de cuidados especiais voltados à moralização, controle
de instintos e disciplinamento, em que o lúdico é tomado apenas como uma via para o
alcance de objetivos didático-pedagógicos (Amarilha, 1997; Canton, 2009; Corso &
Corso, 2006).
Registros anteriores, entretanto, indicam que esse endereçamento dos contos ao
público infantil ocorre antes, na segunda metade do século XVII, na França, com
Charles Perrault (1628-1703), em virtude da preocupação crescente com a criação de
uma literatura para crianças ou jovens. Conquanto produzido em um momento em que
ainda não existia o gênero literário infantil, Os Contos da Mãe Gansa (Perrault, 1691-
1697) galga forte apelo popular, por ser derivado da coletânea de histórias da tradição
oral, da Antiguidade Clássica, e valorizar a cultura dos povos. Com o passar do tempo,
o volume de contos reunidos e reescritos por Perrault propalam-se como leitura para
86
crianças (Canton, 2009; Coelho, 2000, 2008, 2010; Parreiras, 2008; Tatar, 2004;
Vasconcelos, 2008).
Conhecendo o panorama geral de como emerge a “literatura infantil”,
evidenciam-se as metas subjacentes que balizaram cada um dos títulos confeccionados
ou reescritos para tal público.
Eis, então, que os contos chegam até as crianças, frutos de adaptações sucessivas
que se preocupavam em resguardar esse público de suas tramas originais, perversas e
inapropriadas frente à nova concepção de infância e aos desígnios da educação e da
moral higienista e religiosa. Ora de cunho religioso, ora de cunho didático-pedagógico,
ora pura e simplesmente lúdico e fantástico, os livros infantis conquistam as crianças,
quando a estas é dada a oportunidade de deles se valer (Abramovich, 1997; Amarilha,
1997; Canton, 2009; Coelho, 2000, 2010; Rosa, 2011; Tatar, 2004).
Desta feita, pode-se perceber que as histórias têm sido usadas pela humanidade,
através dos tempos, com diversas finalidades: medicinais, religiosas, filosóficas, etc.
(Safra, 2005).
Bom, sinalizado o percurso histórico que solidificou os contos como agentes
importantes no processo de evolução humana, e antes de adentrar de forma mais
acurada na discussão sobre a terapêutica dos contos, cumpre especificar o sentido da
palavra terapia adotado neste trabalho.
O adjetivo “terapêutico”, segundo Pintos (1999), tem sido usado de forma
indiscriminada na linguagem cotidiana, para designar atividades as mais diversas, como
caminhar, andar de bicicleta, passear com os filhos, ir ao cinema, frequentar aulas de
teatro, dança, música, etc. Embora possam se configurar como atividades terapêuticas,
87
não obedecem a critérios de sistematização e ordenação com objetivos e planejamento
para o alcance de efeitos que repercutam no modo de ser da pessoa beneficiada. Não
necessariamente consistem em circunstâncias de cuidado ao ser que resultem da relação
terapêutica eu-outro.
Terapêutica, como concebida neste trabalho, implica a “abertura compreensiva
aos estados do adoecer e aos sentidos atribuídos a essas modalidades de existir e estar
no mundo”, conforme aponta Pazinato (2008, p. 296), ao falar sobre a utilização
terapêutica dos contos em âmbito hospitalar, ancorada nos pressupostos filosóficos da
Fenomenologia. Nesse sentido a terapêutica estaria necessariamente apoiada em uma
relação de aproximação existencial, que favoreceria ao ser a assunção de suas
possibilidades de viver de forma autêntica e criativa.
É notório que, historicamente, os contos guardam consigo a possibilidade de
traduzir os sentidos e significados do existir humano. Logo, muito se tem argumentado
em favor do uso desse recurso literário no fomento ao amadurecimento pessoal e
cognitivo, ou seja, como instrumental terapêutico, de cuidado com o ser.
Conforme assinala Busatto (2008), entre os povos orientais havia a crença de
que os contos de literatura oral, mais do que divertimento, produziam encantamento e
carregavam um poder curativo. Neles estariam contidos os ensinamentos e o modo de
pensar e funcionar de um povo, e por meio deles se apontavam condutas, se resgatavam
valores e se curavam doenças: “eles acreditavam no poder curativo do conto, e em
muitas situações o remédio indicado era ouvir um conto e meditar sobre ele” (p. 17).
88
Caldin (2010) também faz alusão aos povos antigos que anteciparam a apreensão
das narrativas como fontes terapêuticas, sendo recomendadas para leitura individual,
como parte do tratamento médico:
A intuição da capacidade terapêutica do livro remonta às antigas
civilizações egípcia, grega e romana, que consideravam suas bibliotecas um
espaço sagrado, repositório de textos cuja leitura possibilitaria um alívio das
enfermidades e, assim, medicina e literatura sempre foram parceiras no
cuidado com o ser (p. 12).
O conto, para esses povos, atuava como material capaz de promover o
reequilíbrio emocional, frente a situações de desestruturação psíquica as quais geravam
distúrbios físicos. Desta feita, aos contos eram atribuídas propriedades terapêuticas, um
encanto que cura (Busatto, 2008; Caldin, 2010; Gutfreind, 2010; Safra, 2005).
E por que os contos produzem encantamento? Por que é possível afirmar que
possuem propriedades terapêuticas? Justamente por possuírem características que
auxiliam o ser humano a entender e dar significado a sua existência, por alimentarem
sua imaginação e serem abertos a toda e qualquer interpretação, a depender da
subjetividade, da história de vida e do modo como cada ouvinte se permite ser afetado
pela narrativa (Busatto, 2008; Caldin, 2010; Coelho, 2000, 2008, 2010; Corso & Corso,
2006, 2011; Góes, 2010; Gutfreind, 2010; Oliveira, 2008; Tatar, 2004).
Um fator que inquieta os autores e os remetem a considerar o conto como
instrumento terapêutico se traduz na questão: como, diante de uma sociedade
caracterizada pela tecnologia e pela primazia da ciência e da razão em contraponto à
fantasia e à imaginação, os contos e seu encantamento ainda persistem despertando o
interesse de crianças e também de adultos? Que elemento subjetivo tão poderoso está
presente nos contos a ponto de garantir, inclusive, a comunalidade das histórias, as
89
quais formam um acervo compartilhado pela humanidade ao longo dos anos? O que
torna essas histórias especiais, fazendo com que elas sobrevivam a despeito das
transformações sociais? (Busatto, 2008; Coelho, 2010; Corso & Corso, 2006; Gutfreind,
2010; Oliveira, 2008).
Ensaiando uma resposta à indagação acima, Gutfreind (2010) afirma que,
considerando seu caminhar evolutivo, “é de crer que os contos tiveram, desde o
princípio, uma função terapêutica, o que já explicaria sua permanência e transmissão de
geração a geração” (p. 26).
O fato de a literatura surgir junto com o próprio homem, com o advento da
comunicação oral, de todos partilharem um acervo comum de histórias em um mundo
plural de ideologias, tradições e religiões, e delas subsistirem até os dias de hoje, pode
indicar a força do conto e de suas mensagens: “podemos supor que, se eles sobrevivem,
é porque nos tocam de determinada forma e que provavelmente algo foi preservado de
seu arranjo inicial; caso contrário, teriam perdido a força, o encanto e cairiam no
esquecimento” (Corso & Corso, 2006, p. 28).
Todavia, a função terapêutica do conto, assinalada como historicamente uma das
responsáveis por sua conservação, era exercida empiricamente, não havendo
investigações que apontassem nesse sentido. Até que um dia, por volta do século XIX, a
Psicanálise, com Freud e seus discípulos, resolve tomar os contos como objeto de
estudo científico, donde se inicia, então, a edificação de aportes teóricos relacionados às
propriedades terapêuticas das narrativas; muito embora, no início da civilização,
Aristóteles fizesse alusão ao papel catártico de gêneros literários como a tragédia,
defendendo a função de cura da literatura por meio da catarse frente às pressões
90
emocionais sofridas pelos homens (Bettelheim, 2007; Caldin, 2004; Coelho, 2008;
Corso & Corso, 2006; Gutfreind, 2010; Safra, 2005).
Destarte, é tributado à Psicanálise o mérito de desvelar as narrativas como
instrumentos terapêuticos eficazes, haja vista conterem, em suas tramas, motivos e
representações significativas do funcionamento psíquico do ser humano.
Gutfreind (2010), citando Freud (1908), afirma que o teórico se aventurou a
lançar hipóteses a respeito das raízes históricas dos mitos e dos contos, alegando que
tais fenômenos seriam produtos de “sonhos seculares da jovem humanidade” e “fonte de
motivos humanos”. Freud, em seus escritos, havia apontado o poder dessas histórias,
em função de seus conteúdos, que permitiriam ao leitor ou ouvinte reconhecer seus
desejos mais profundos e, concomitantemente, mantê-los à distância, pois que
representados metaforicamente a partir de personagens e cenas fictícias; “como se o
conto permitisse viagens, a um só tempo necessárias, perigosas e seguras” (p. 145).
Investigações de caráter científico sobre os contos podem ser divididas em três
tipos principais: (1) estudos clínicos e/ou funcionais, que utilizam as histórias como
material clínico no diagnóstico ou propõem o uso terapêutico dos contos e sua
compreensão na evolução de pacientes; (2) estudos teóricos, cujo objetivo é descrever o
funcionamento psíquico humano tomando por exemplificação os elementos ilustrativos
dos contos e mitos; (3) estudos texto-analíticos, que têm como finalidade apreciar as
estruturas narrativas e morfológicas dos contos, as problemáticas principais abordadas
neles e as representações simbólicas, arquetípicas e/ou inconscientes ali contidas
(Simonsen, 1981, citado por Gutfreind, 2010). Faz-se mister salientar que o atual estudo
se enquadra no primeiro tipo descrito.
91
Outra classificação dos estudos, restrita ao primeiro tipo acima exposto, tem por
critério o referencial teórico elucidativo usado. Para Gutfreind (2010), notadamente
predominância de estudos embasados na abordagem teórica junguiana ou na abordagem
freudiana ou clássica. Isto revela o desafio de lançar um estudo de base
fenomenológico-existencial em um terreno pouco explorado por esta perspectiva
teórico-metodológica.
Sobre os estudos de base freudiana que exploram o país dos contos de literatura
infantil, destaca-se como marco a obra de Bruno Bettelheim. Na introdução do clássico
A psicanálise dos contos de fadas, o psicanalista austríaco, considerado o primeiro
teórico a propor uma sistematização das ideias sobre a relevância dos contos de fadas na
vida da criança, no ano de 1976, argumenta que uma das principais tarefas a ser
empreendida pelo homem, se não a principal, consiste em encontrar e produzir sentido
para sua existência. Diz ele:
Se esperamos viver não apenas de momento a momento, mas sim
verdadeiramente conscientes de nossa existência, nossa maior necessidade e
mais difícil realização será encontrar um significado em nossas vidas. (...) A
aquisição de uma compreensão segura do que o significado da própria vida
pode ou deveria ser é o que constitui a maturidade psicológica. E essa
conquista é o resultado final de um longo desenvolvimento: a cada idade
buscamos e devemos ser capazes de achar alguma quantidade módica de
significado congruente com o quanto nossa mente e compreensão já se
desenvolveram (p. 09).
Um dos mais valiosos apetrechos para incitar a formação de significados à
própria vida, quando se trata de crianças, é, na visão do autor aludido, a literatura
infantil.
92
Incontáveis estudos se seguiram ao de Bettelheim, corroborando o poder
terapêutico dos contos, sendo tal proposição hoje irrefutável.
As histórias, como todas as outras coisas do mundo, não têm um sentido em si
mesmas. São capazes, isto sim, de “fazer gerar sentidos”, e nesse “fazer gerar sentidos”
é que se tornam significativas para as crianças. Além de despertar sua curiosidade, e
aperfeiçoar suas habilidades intelectivas, os contos promovem a justa medida das
emoções e, de igual modo, ajudam-nas a compreender suas angústias, lidar com
ansiedades e medos e enriquecer suas potencialidades criativas (Caldin, 2004; Corso &
Corso, 2006; Safra, 2005; Silva, 2006).
Isto porque, em seu cerne, as histórias retratam, de forma indireta e, portanto,
não ameaçadora, conflitos enfrentados pelos infantes no decurso de seu processo
evolutivo e para os quais não sabem atribuir nomes e nem fontes originárias, o que
incrementa sua aflição. O conto atua como mediador por meio de metáforas alusivas a
circunstâncias de abandono, negligência, separação, perigos, desafios, e toda uma gama
de fantasias inerentes ao processo de simbolização infantil , facilitando a expressão de
sentimentos e pensamentos e a reorganização emocional.
Assim, ao mesmo tempo em que oferece a oportunidade de representação de
situações conflitivas, permite à criança manter um distanciamento crítico em relação ao
que lhe perturba. Esse distanciamento é garantido a partir da fórmula gica Era uma
vez... proposta inicialmente por Perrault, em 1649, em seu poema intitulado Os
desejos ridículos, direcionado a adultos , que sinaliza ao ouvinte ou leitor o ingresso
em um mundo de fantasia que não oferta perigos, operando como uma senha para a
imersão em um imaginário simbólico rico, repleto de emoções e eventos perturbadores
sob o manto da magia e encantamento (Caldin, 2010; Canton, 2009; Góes, 2010;
93
Gutfreind, 2010; Jesualdo, 1978; Safra, 2005; Santos Filho & Arruda, 2005; Silva,
2006).
O interesse por determinadas histórias é delimitado pelo entrelaçamento das
mesmas com as vivências e a fase de desenvolvimento em que a criança se encontra,
como dizem Corso e Corso (2006): “Cada história conteria uma mensagem, um desafio
e um desfecho que para a criança interessa ouvir em determinado momento de sua vida
(p. 26). Mais do que a idade da criança, importa a essa seleção de histórias preferidas as
experiências vividas por ela naquele momento, e o quão bem os contos a ela
apresentados satisfazem seus anseios atuais e respondem as suas necessidades afetivas
(Bettelheim, 2007; Silva, 2006).
As mensagens transmitidas às crianças pelas narrativas são diversas. Como
aponta Bettelheim (2007), os contos, com seus heróis e os obstáculos que estes precisam
vencer, informam à criança que:
Uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca
da existência humana mas que, se a pessoa o se intimida e se defronta
resolutamente com as provações inesperadas e muitas vezes injustas,
dominará todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa (p. 15).
Segundo o referido autor, mensagens de otimismo, de grandiosidade e de
superação são frequentes nos contos, o que potencializa na criança um sentimento de ser
forte e competente para solucionar seus problemas, dominar seus medos e amadurecer.
Os grandes temas concernentes à existência humana são abordados nas histórias
infantis. Essas histórias falam figurativamente de temores, desamparo, traições, rejeição,
fantasias, juramentos, inveja, sonhos, desejos, sentimentos de perda, carências,
abandono, desafios, amor, tristezas, desconfortos, descobertas, sexualidade, indolência,
94
imprevidência, sagacidade, ciclos de vida e de morte, dificuldades de ser criança,
turbulências internas, busca da felicidade, e de como todos esses grandes temas, parte da
condição humana, figuram e precisam ser compreendidos e resolvidos, por vezes a
duras penas (Abramovich, 1997; Tatar, 2004; Safra, 2005; Santos Filho & Arruda,
2005; Silva, 2006; Sunderland, 2005).
Todos esses temas fazem parte das inquietações e curiosidades da criança ao
longo de seu desenvolvimento e as histórias podem ajudá-la a compreender o mundo em
seu entorno de forma lúdica e prazerosa, por meio do uso de metáforas como respostas
aos seus questionamentos e interesses. Os contos podem propiciar um diálogo interior
(Abramovich, 1997; Oliveira, 2008; Safra, 2005; Santos Filho & Arruda, 2005; Silva,
2006; Sunderland, 2005; Tatar, 2004).
Desta feita, entende-se o porquê é importante contar histórias para as crianças.
Nas palavras de Rosa (2011): “Conta-se e ouve-se para satisfazer essa íntima sede de
conhecimento e instrução, que é própria da natureza humana. Enquanto se vai contando,
passam os tempos de crise, o inverno, as tristezas, as catástrofes, as doenças” (p. 46), tal
como ocorria com os nossos antepassados.
Ao mesmo tempo em que tratam de temas de extrema valia e capazes de
mobilizar sentimentos angustiantes, as histórias trazem o apaziguamento por meio da
resolução mágica, através do encantamento, da presença do maravilhoso (Abramovich,
1997).
Além de problemáticas existenciais, os contos ilustram situações rotineiras,
cotidianas, como “noções sobre organização e limpeza; comportamentos pró-sociais e
95
anti-sociais; educação ambiental; o relato de inverdades; a importância da rotina e de
uma dieta saudável; a sexualidade” (Vasconcelos, 2008, p. 190-191).
Portanto, ao entrar em contato com uma história e transitar entre o mundo real e
o mundo imaginário, a criança pode gradualmente despertar seu potencial crítico para
pensar, duvidar, questionar, sentindo-se inquieta com o conteúdo do conto, querendo
saber mais sobre o que ele trata (Abramovich, 1997; Vasconcelos, 2008).
Na Literatura Infantil, o mundo é todo ele representado de forma simbólica,
resultado da mescla entre a fantasia, o maravilhoso, o fantástico, o sonho, o mágico. Sua
matéria-prima é a própria vida humana, transformada em palavras e comunicada por
meio de metáforas, ou, dito de outro modo: “literatura é experiência de vida, que se
expressa pela palavra” e “é pelo verbo, pela palavra, que as realidades existem”. É pela
palavra que “o mundo real existe, nomeado/recoberto pelo mundo da linguagem”
(Oliveira, 2008, p. 11-12).
O mundo organizado em forma de narrativa oferece à criança a coerência de que
ela necessita; o mundo aparentemente caótico a seu modo de percebê-lo, sob narrativa
torna-se compreensível e racional (Amarilha, 1997).
Por meio de histórias, torna-se possível ao adulto dialogar com a criança sobre o
que é importante e sentido às nossas vidas, sobre questões e fantasias da criança que
vão desde o medo do abandono e da morte a fantasias de vingança, castigo e culpa,
sobre as diferentes situações pelas quais o ser humano passa em sua trajetória no mundo
(Silva, 2006; Tatar, 2004).
Em resumo, “a literatura é vista como expressão da vida humana e agente de
formação da mente infantil”, e é nas mãos e mentes dos pequenos, que transitam
96
livremente entre o real e o fantástico, entre o sonho e o lúdico, brincando
simultaneamente com a realidade e com a fantasia, que emergem as possibilidades
formativas e terapêuticas da literatura infantil (Oliveira, 2008, p. 14).
Para as crianças, a literatura age como um “brinquedo bem elaborado, um jogo
cujos dados são a emoção e a imaginação” (Caldin, 2010, p. 119). A concepção do
brinquedo, do brincar e da brincadeira como componentes soberanos da infância
sinaliza a relevância da literatura como integrante da cultura lúdica constitutiva da
subjetividade infantil (Gimenes, 2007; Parreiras, 2008).
Literatura Infantil pode, então, ser entendida como um brinquedo, ou um jogo
dramático proposto em linguagem, um jogo de faz-de-conta, um jogo de fantasia que
proporciona prazer, media a comunicação, permite a criação constante de si mesmo e,
assim, age terapeuticamente. Ela fala a língua das crianças: a ludicidade, e esta é o
motor propulsor da imaginação na vida do infante (Amarilha, 1997; Caldin, 2010;
Gimenes, 2007; Parreiras, 2008).
Como o brinquedo, o livro fornece à criança a possibilidade de fazer de conta,
sonhar, imaginar, associar, recordar. Muito mais que a ludicidade, as histórias e as
brincadeiras em geral são, para a criança, um instrumental de trabalho a serviço do
imaginário e da construção de seu modo de ser no mundo e de se relacionar com as
pessoas e as coisas, organizar sua vida e seus dilemas (Caldin, 2010; Corso & Corso,
2011; Gimenes, 2007; Parreiras, 2008).
A paixão pela fantasia acompanha a criança desde a tenra idade, não como
conceber infância sem ela. Na verdade, algumas teorias relativas à psicologia infantil
defendem que a imersão no mundo da fantasia, no mundo da simbolização, ainda é a
97
grande saída para promover a saúde mental. Essa paixão pela fantasia encontra solo
fértil nas histórias infantis (Corso & Corso, 2006; Gimenes, 2007; Gutfreind, 2010;
Silva, 2006).
Para Corso e Corso (2006), a fantasia é “resolutiva de conflitos, constitutiva de
identidades, criadora de espaços psíquicos tão reais e potentes quanto à dita realidade da
vida” (p. 16). A aproximação entre a criança e a fantasia é intermediada pelo brincar,
atividade inerente e fundamental à infância. Seja através de brinquedos, jogos ou contos
literários, o brincar promove a saúde física e psicológica das crianças.
De acordo com Vasconcelos (2008), brincar com livros, como jogo, permite “o
desenvolvimento de noções básicas de interação social, de valores culturais, de noções
éticas e, até mesmo, o desenvolvimento de uma visão crítica pela criança” (p. 13).
Brincar de solucionar problemas no plano da fantasia, criando e ampliando alternativas
para galgar êxito, pode trazer implicações reais para o incremento de habilidades
cognitivas importantes na resolução de conflitos que fazem parte do cotidiano da
criança.
No curso das últimas décadas, psicólogos infantis recorreram aos contos
clássicos como veículos terapêuticos privilegiados para ajudar crianças, através da
reflexão sobre os dramas neles encenados, a buscar alternativas para a resolução de seus
conflitos, a enfrentar seus medos e a “desembaraçar-se de sentimentos hostis e desejos
danosos”.
Ingressando no mundo da fantasia e da imaginação, crianças e adultos
garantem para si um espaço seguro em que os medos podem ser
confrontados, dominados e banidos. Além disso, a verdadeira magia do
conto de fadas reside em sua capacidade de extrair prazer da dor. Dando
98
vida às figuras sombrias de nossa imaginação como bichos-papões, bruxas,
canibais, ogros e gigantes, os contos de fadas podem fazer aflorar o medo,
mas no fim sempre proporcionam o prazer de -lo vencido (Tatar, 2004, p.
10).
À criança é necessário fornecer recursos para que possa administrar sua angústia
de maneira saudável, quando o que sente é difícil ou intenso demais, ultrapassando sua
habilidade para entender e regular o nível de suas emoções. A linguagem cotidiana não
é suficiente, ou não é eficaz, para estabelecer diálogo com a criança e procurar ajudá-la.
Para ela, a linguagem do dia a dia não é sua linguagem natural, especialmente quando é
solicitada a falar sobre seus afetos. A linguagem dos afetos, dos sentimentos, é aquela
derivada da imagem, da metáfora, do simbolismo, como a linguagem que subjaz às
histórias e sonhos (Sunderland, 2005).
O uso do conto como veículo para acessar a experiência emocional da criança
permite uma aproximação de maior profundidade com a mesma, uma vez que esse
instrumento é estruturado na linguagem da imaginação, natural da criança, e não na
linguagem do pensamento, ou linguagem literal cotidiana. Se tal linguagem fosse apta a
apontar com sutileza, clareza, complexidade e profundidade os afetos humanos, não
seriam necessárias as grandes produções culturais, como a música, o teatro, a literatura,
as artes plásticas ou a poesia, por exemplo (Sunderland, 2005):
Para uma criança, as palavras do cotidiano e os rótulos comuns para os
sentimentos são sensorialmente muito áridos. Para ela, são palavrinhas
mortas. São rasas demais, reducionistas demais, cognitivas demais para
prender sua atenção. Em geral, não são suficientemente fortes para a
intensidade do modo de ser da criança. Elas o são compatíveis com a
força absoluta dos sentimentos que ela experimenta de vez em quando. No
mundo imaginativo em que ela vive, tão cheio de cor, magia, imagens, ação,
99
luz e outras coisas, palavrinhas insípidas não conseguem capturar suas
experiências imaginativas, emocionalmente carregadas. Para uma criança,
os rótulos comuns como “triste” ou “apavorado” pouco fazem além de
comunicar sentimentos (p. 19).
Essa linguagem limita as possibilidades de expressão infantil, não consegue
captar ou traduzir a experiência da criança, restringindo sua compreensão de mundo e
de si mesma a um nível superficial e inautêntico. Os rótulos sentimentais são
convenientes aos adultos que, na cotidianeidade mediana, se ancoram neles para
mascarar o que realmente estão vivendo, sendo a eles então permitido manter-se na
impessoalidade, na impropriedade, como aponta Heidegger (1927/2005).
Ao contrário da linguagem cotidiana, a linguagem metafórica das histórias
representa um mecanismo mais respeitoso e menos invasivo de dialogar com o infante,
atua como um ingresso de acesso ao universo infantil, como um pedido de permissão
delicada para entrar neste universo, mobilizar afetos, compreender e cuidar. Caso a
história seja bem escolhida, em geral o ingresso é aceito e a criança ouve com atenção e
percebe que o outro assume uma postura compreensiva e empática para com o que ela
sente (Sunderland, 2005). Ademais,
A história terapêutica apresenta esperança e possibilidades em forma de
modos de ser e de mecanismos para enfrentar problemas que sejam mais
saudáveis e criativos. Com isso, ela leva a criança a um mundo fantástico,
um mundo mágico. Mas é um mundo que contém mais do que o olho vê. Os
processos psicológicos representados, nesses mundos, pelas personagens e
suas aventuras, são repletos de significado. Se a criança está aberta a isso,
ela pode entrar, através do mundo da história, num mundo de esperança, de
opções e de possibilidades. No mundo da história, ela pode encontrar as
ferramentas para um futuro mais rico e mais gratificante. Ela pode deixar as
100
“ferramentas” ali mesmo ou pode levá-las consigo e usá-las em sua vida,
agora ou em outro momento (p. 27-28).
As histórias terapêuticas podem libertar ou tornar a criança capaz de conviver
com seus sentimentos perturbadores, intensos ou dolorosos demais, uma convivência
que permite o tempo necessário para que ela possa pensar sobre tais sentimentos, sobre
o que está acontecendo consigo mesma, sem precisar fugir deles ou escondê-los. Pensar
sobre os afetos se torna possível porque a imagem e a metáfora lançadas pela história
propiciam à criança recursos para que ela possa observar seus sentimentos a uma
distância segura, que equivale ao que Gutfreind (2010) chama de duplo alcance dos
contos, por “oferecerem as representações do conflito e mantê-lo a distância através da
metáfora” (p. 34).
Caldin (2010) sobre o uso da linguagem metafórica, a considera importante por
permitir às crianças “deslizarem com segurança nos dramas e conflitos das personagens,
e assim, aprenderem a lidar com seus próprios dramas e conflitos. Sem cobranças, sem
ameaças, a metáfora é um remédio poderoso: cuida brincando” (p. 12).
E esse processo de observação e reflexão sobre os próprios sentimentos e
conflitos pode permitir uma percepção derivada da imaginação criativa, e não do
pensamento árido que tenta por tudo encobrir as angústias. A descoberta de afetos e o
que eles significam, quando ocorre por intermédio da imaginação criativa, tem maior
probabilidade de ser sentida profundamente e ser duradoura (Sunderland, 2005).
Para Caldin (2010), as propriedades terapêuticas das narrativas residiriam, na
sua capacidade de promover três fenômenos primordiais: (1) a catarse, “na medida em
que liberam emoções”; (2) a identificação com as personagens, “no momento em que o
sujeito assimila um atributo do outro ficcional”; e (3) a instrospecção, “a educação das
101
emoções”. Nesse sentido, a catarse, a identificação e a introspecção são defendidas pela
autora como os principais “componentes biblioterapêuticos ativados no receptor do
texto literário” (p. 20).
A arte de cuidar na terapia mediada pela literatura é fundada no relacionamento
interpessoal eu-outro de ajuda e confiança e, sendo assim, a narração se configura como
um tratamento, uma forma de promoção da saúde, um cuidado com o desenvolvimento
do ser (Caldin, 2010; Pintos, 1999).
Os contos são fenômenos complexos, por abordarem questões basais da
existência humana de forma articulada e temporalmente organizada em narrativas com
início, meio e fim, tal como se expressa a própria temporalidade existencial, o vir a ser
humano. Dentro de uma estrutura complexa de relações, conflitos e resoluções, as
histórias, como objeto lúdico, permitem à criança encontrar um sentido para as suas
experiências entendidas em sua temporalidade e espacialidade (Safra, 2005).
Ora, narrar é contar uma história que tem seu desenrolar circunscrito a um tempo
e espaço, assim como a existência humana é permeada por estas circunscrições da
temporalidade e espacialidade, conforme definida por Forghieri (2002), como
dimensões subjetivas do ser no mundo. O experienciar da contação de uma história
permite à criança navegar por diversos tempos, que pressupõem espaços subjetivos
também distintos: “os tempos cronológico (sucessão de acontecimentos no enredo),
histórico (época histórica do conto), psicológico (tempo subjetivo dos ouvintes) e
discursivo (contação da história pelo narrador)” (Pazinato, 2008, p. 310).
Ainda referindo-se às inter-relações entre histórias e temporalidade da
existência, Pazinato (2008) acrescenta: “Na narrativa como na vida o que opera desde o
102
começo é a noção de fim. Tudo chama, tudo convoca a um final, dando sentido à vida
cotidiana em sua plenitude existencial” (Pazinato, 2008, p. 311).
A dimensão do cuidado procedente de tal modalidade terapêutica, expressa
inclusive na sinalização narrativa da temporalidade do existir, propicia uma abertura do
ser ao mundo que se lhe apresenta sob forma de enredo, levando o ser a interpretar e
compreender o mundo e si mesmo: “pela leitura desvelamos o mundo: o mundo do
texto, o mundo da imaginação, o mundo exterior, o mundo sensível” (Caldin, 2010, p.
67).
Pode-se dizer, então, que todo texto literário é terapêutico? Seria mais
sensato dizer que todo texto poético tem o potencial de ser terapêutico. Não
se sabe, de fato, o quanto uma narrativa ficcional atinge cada pessoa.
Entram em cena sentimentos, valores, faixa etária, estado de ânimo e
personalidade (Caldin, 2010, p. 120).
Portanto, para ser terapêutica, a história precisa garantir ao seu interlocutor a
possibilidade de abertura ao mundo e de produção de novas percepções e significações.
O espaço poético que se desvela pela literatura é um terreno fértil, carregado de
simbolismos e potencialidades terapêuticas.
Todas essas proposições se coadunam com a perspectiva heideggeriana de que o
homem precisa ser compreendido como ser de abertura, e esta abertura se
temporalmente, na relação com o mundo, criando-se e recriando-se em suas
interpretações de si e do mundo. A abertura como possibilidade e as interpretações
múltiplas daí decorrentes podem ser facilitadas pela aproximação entre histórias
literárias e histórias de vida (Pazinato, 2008).
103
Alguns autores tentaram sistematizar, em obras dirigidas a investigar os contos e
suas potencialidades na promoção do desenvolvimento psíquico infantil, os temas que
emergem com maior frequência ao longo das narrativas.
Assim o fizeram Bettelheim (2007) e Corso e Corso (2006), lançando estudos
acerca desse material sob o enfoque psicanalítico. Ambas as obras tentam explanar as
relações existentes entre os contos, seus conteúdos simbólicos e os sentidos e
significados produzidos consciente e inconscientemente pelas crianças a partir da
imersão no mundo fantástico proposto. Deste modo, conto por conto, selecionados pela
sua relevância e sobrevivência nos tempos modernos, são analisados tendo em vista os
dilemas essenciais envoltos no processo de desenvolvimento psíquico infantil. Ao longo
de suas obras (Bettelheim, 2007; Corso & Corso, 2006), são indicados eixos de análise
dos contos coerentes com os conflitos intrapsíquicos e as vivências infantis.
Não há, por parte dos autores, a ambição de exaurir as possibilidades de
interpretação do conteúdo imbricado nas narrativas infantis. Além disso, como bem
assinalou Kehl, no prefácio do livro Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis,
que apresenta o trabalho empreendido por Corso e Corso (2006), seria um tanto quanto
“ingênua a pretensão de se propor uma única chave de entendimento para as histórias,
uma vez que as crianças sabem utilizar os contos à sua maneira e segundo suas
necessidades” (p. 16). Na assertiva dos próprios autores:
Seria uma deslealdade tratar qualquer fantasia de modo simplista, é
necessária uma relação de respeito com o caráter surpreendente de cada
história, assim como uma assumida humildade do quanto sua riqueza
transcende nossa capacidade de análise (p. 22).
104
Tais assertivas mostram-se condizentes com o referencial que fundamenta este
projeto a Fenomenologia, ao dar ênfase ao significado atribuído pela criança ao conto.
Porém, não desconstroem o que há subjacente a tais interpretações: a tendência à
simplificação e ao reducionismo da riqueza simbólica presente na arte literária e das
possibilidades de alcance da mesma na promoção do cuidado à infância.
Estudos das estruturas narrativas presentes nos contos, de modo similar,
sinalizam dados morfológicos e estruturais que auxiliariam o exercício da função
terapêutica, tais como a presença do sentido de reparação e a técnica da repetição ou
reiteração (Coelho, 2010; Corso & Corso, 2006; Gutfreind, 2010).
A reparação consistiria no delineamento de desfechos felizes para histórias que
em seu curso, costumeiramente, produzem elevados níveis de ansiedade e medo. Dito
de outra forma, a despeito dos aspectos negativos e das experiências amedrontadoras e
difíceis, frequentemente nos enredos a predominância da esperança e da confiança
na vida e na superação dos desafios, o que atua como veículo importante para a criança
acreditar na possibilidade de obter sucesso na resolução de seus conflitos. O sentido de
reparação, que corrige o erro, repara o mal e acaba com o sofrimento, nem sempre
esteve presente nas narrativas, orais e/ou literalizadas, emergindo ao longo das
reiteradas transformações às quais foram submetidas (Canton, 2009; Coelho, 2010;
Corso & Corso, 2006; Gutfreind, 2010).
Destaque-se como exemplo os diferentes finais do conto Chapeuzinho
Vermelho. Na versão de Perrault, a história finaliza após o lobo devorar Chapeuzinho e
sua avó; enquanto na versão dos Irmãos Grimm, a figura do caçador é introduzida com
o objetivo de “reparar o dano”, permitindo que Chapeuzinho e sua avó sejam salvas
(Canton, 2009; Coelho, 2010; Corso & Corso, 2006).
105
No que se refere à repetição ou reiteração como outro dos elementos
constitutivos básicos da estrutura narrativa dos contos populares, somada à simplicidade
dos enredos e das problemáticas tratadas, Coelho (2010) assinala tratar-se de uma
técnica que “consiste (como o nome diz) na repetição exaustiva dos mesmos
esquemas básicos (argumentos, tipos e atributos de personagens, motivos, funções das
personagens, valores ideológicos, etc.)” (p. 154). E complementa:
Da mesma forma que a elementaridade ou simplicidade da mente popular ou
da infantil repudia estruturas narrativas complexas (devido à dificuldade de
compreensão imediata que elas apresentam), também se desinteressa da
matéria literária que apresente excessiva variedade ou novidades que
alterem continuamente as estruturas básicas já conhecidas. É só lembrarmos,
a respeito, do prazer sempre renovado com que as crianças ouvem repetidas
vezes as mesmas histórias, e como as exigem imutáveis em seus termos,
reclamando contra quaisquer alterações que o “contador” lhes queira
introduzir (p. 154).
Tal repetição ou reiteração dos mesmos esquemas na literatura infantil parece
atender a uma exigência de caráter subjetivo de seus interlocutores, uma vez que
permite a eles:
Apreciarem a repetição das “situações conhecidas”, porque isso permite o
prazer de conhecer ou de saber, por antecipação, tudo o que vai acontecer
na história. E mais. Dominando, a priori, a marcha dos acontecimentos, o
leitor sente-se seguro interiormente. É como se pudesse dominar a vida que
flui e lhe escapa (Coelho, 2010, p. 154).
A técnica de reiteração também é apontada por Caldin (2010) e Parreiras (2008)
como importante artefato terapêutico, habitualmente presente nas experiências de
106
contação de histórias fundamentadas na Biblioterapia
. Caldin (2010) diz ser fato
curioso o quão as histórias são capazes de despertar o interesse das crianças repetidas
vezes, por mais conhecidas que sejam. Relaciona tal permanente interesse em
determinadas histórias como um indicativo de que elas carregam propriedades
terapêuticas, possivelmente por conterem elementos que se aproximam da vivência das
crianças ouvintes. Por meio da repetição, a criança adquire ferramentas para dissolver
medos, ansiedades e ameaças, ou abrandá-las pela sensação de domínio resultante da
repetição (Caldin, 2010; Parreiras, 2008).
Contudo, existe uma série de críticas relativas aos autores que discorrem sobre
interpretações possíveis para as narrativas literárias, baseadas seja em seus enredos, seja
em suas estruturas morfológico-narrativas. Ainda que relativizem suas anotações, de
modo simplista e reducionista apontam significados que cerceiam o simbolismo e a
pluralidade de interpretações possíveis para qualquer tipo de arte, especialmente a
literatura.
De acordo com Caldin (2010) e Pintos (1999), Biblioterapia, etimologicamente definida, significa
“terapia por meio de livros”. É caracterizada como “a leitura compartilhada e a posterior discussão em
grupo. Isso implica o uso de materiais de leitura que nutram a saúde mental, a presença de um
profissional que atue como mediador da leitura e um público-alvo que aceite participar de um programa
de leitura. A produção bibliográfica no Brasil tem apontado a Biblioteconomia como área atuante na
biblioterapia, seguida pela Psicologia. É dividida em duas categorias: “biblioterapia de desenvolvimento e
biblioterapia clínica, sendo a primeira desenvolvida por bibliotecários e a segunda, por psicólogos
clínicos” (Caldin, 2010, p. 13). A esse respeito, cumpre aclarar ao leitor as distinções entre a biblioterapia
e o trabalho por hora apreciado. A primeira se propõe, “por meio de um trabalho sistemático de leituras
(narrações e/ou dramatizações)”, além do desenvolvimento emocional do ser, a desenvolver habilidades
do ponto de vista educacional, cognitivo, promoção da cidadania, resgate da memória popular, entre
outros aspectos. Os objetivos do presente trabalho são dicos em relação ao escopo de atuação da
biblioterapia, e o modo de entender o uso terapêutico da literatura também é substancialmente diferente,
haja vista se assentarem em áreas de estudo específicas, quais sejam: a Biblioteconomia, no caso da
Biblioterapia, e a Psicologia, no caso do atual estudo. A despeito das diferenças, os conhecimentos
advindos desta área trazem excelentes contribuições para se pensar e compreender a função terapêutica da
literatura infantil.
107
A título de ilustração, Coelho (2010) menciona alguns estudos (de áreas como a
Psicanálise, a Sociologia, a Antropologia, o Misticismo/Esoterismo, a História, etc.) que
se detiveram a investigar a suposta simbologia implícita nas histórias, sobretudo as
originárias de fontes arcaicas, como o são, por exemplo, os contos de fadas e os mitos,
chegando tais estudos a diferentes conclusões analítico-interpretativas, a depender do
ponto de vista de cada autor proponente, de qual perspectiva ele adota para “ler” as
histórias.
A autora faz alusão, de forma especial, às interpretações psicanalíticas, a seu ver
as mais numerosas e expressivas, e cita as obras de Erich Fromm, A Linguagem
Esquecida (Fromm, 1982), e Bruno Bettelheim, A Psicanálise dos Contos de Fadas
(Bettelheim, 1976), como emblemáticas. Em relação a esta última, Caldin (2010) aponta
sérias restrições no que tange às proposições do autor relativas ao processo de
identificação das crianças com as personagens dos contos, bem como às suas análises de
cunho psicossexual.
Caldin (2010) argumenta ser possível a identificação das crianças não apenas
com os protagonistas das histórias, como advoga Bettelheim, mas também com
personagens coadjuvantes, ou mesmo personagens dotadas de características malévolas.
A exemplo dessa possibilidade, o lobo mau poderia representar para a criança a
personificação da força, da bravura e da coragem, características desejadas por crianças
que, por exemplo, se encontrem em situação de vulnerabilidade e impotência. Para
Caldin (2010), qualquer personagem pode ser alvo de identificação, sendo suficiente
para tanto que manifeste “qualidades desejáveis que o ouvinte admire e gostaria de
possuir (e acontece a introjeção), ou atributos indesejáveis que o ouvinte despreze e
gostaria de não possuir, mas infelizmente os possui (quando dá-se a projeção)” (p. 153).
108
Ainda em relação ao processo de identificação, Caldin (2010) sinaliza o que
seria para a estudiosa o erro de alguns autores, como Cashdan (2000), que creditam à
verossimilhança das personagens a facilitação da identificação das crianças com elas. E
questiona como concordar com tal hipótese, considerando que as personagens das
histórias, especialmente quando se trata de contos de fadas, não são, sequer se
aproximam, de crianças comuns:
Princesinhas que trabalham como escravas, filhas de moleiros que enganam
a realeza, meninos pequenos do tamanho de um dedo polegar que vencem
ogros, meninas presas em uma torre que se casam com príncipes e meninos
que vendem a vaquinha por grãos de feijão e enganam gigantes, não
descrevem a realidade infantil deste século nem dos que passaram. É
justamente a diferença que estimula a identificação, pois se admira o que
não se tem (p. 158).
As críticas às análises psicanalíticas e/ou psicológicas também são derivadas das
hipóteses divergentes sugeridas pelas correntes interpretativas de cunho histórico, que
sinalizam elementos e fatos contextuais como importantes influências na construção e
reconstrução das narrativas literárias.
Canton (2009) e Tatar (2004) chamam a atenção para o fato dos contos de fadas,
por exemplo, não poderem ser considerados textos atemporais e/ou neutros, uma vez
que seu material de fundo se ancora em períodos e lugares circunscritos. Cada conto
possui um autor e um contexto histórico, elementos essenciais para definir a “voz do
texto”, para definir e agregar valores morais particulares e universais, ligados à história
de vida e à conjuntura política, social e econômica experienciada pelo autor que
escreveu ou transcreveu o conto. Assim é que se justificam, inclusive, as diferentes
versões para um mesmo conto em cada época reescrito.
109
Os componentes narrativos, portanto, não seriam exclusivamente produto da
imaginação humana às voltas pela busca da realização de desejos inconscientes, e sim
arroubos literários que expressam o vivido, a realidade social de cada período evolutivo
da humanidade. Sujeito a toda sorte de adversidades, é de se compreender, pois, que as
histórias contemplassem as ameaças, perigos e temores que, vencidos, convertiam o
homem em herói (Coelho, 2010; Tatar, 2004).
Em que pesem a historicidade, a temporalidade e a pertença cultural dos contos,
eles sobreviveram quase incólumes até os tempos atuais e ganharam aceitação quase
universal nas mais diferentes sociedades, transformando-se em parte vital de nosso
capital cultural. Para autores como Tatar (2004), “o que os mantém vivos e pulsando
com vitalidade e variedade é exatamente o que mantém a vida vibrando: angústias,
medos, desejos, romance, paixão e amor” (p. 15).
Além da compreensão sócio-histórico-cultural, é imperativo salientar que alguns
autores (Braunschvig, 1914; Rigaul, 1935, citados por Jesualdo, 1978), rechaçam os
contos literários infantis, notadamente os oriundos da tradição oral (contos de fadas ou
contos maravilhosos), por acreditarem que os mesmos são perniciosos na educação das
crianças, uma vez que conduzem os pequenos a alimentarem falsas percepções sobre o
mundo e a vida. Conforme aponta Tatar (2004): “Despertando a um tempo medo e
alumbramento, os contos de fadas atraíram ao longo dos séculos tanto defensores
entusiásticos, que celebram seus encantos vigorosos, quanto críticos severos, que
deploram sua violência” (p. 10).
Ao ilustrar situações de confronto entre o bem e o mal, entre o forte e o fraco,
entre o belo e o feio, e propagar a falsa ideia de que a felicidade é fiel companheira da
virtude e o infortúnio acompanha de maneira infalível o vício, os críticos literários
110
advogam que às crianças se apresentam verdadeiras ilusões que, mais cedo ou mais
tarde, resultarão provavelmente em amargas decepções com a vida (Jesualdo, 1978;
Tatar, 2004).
Ademais, as objeções também dizem respeito à vinculação recorrente nos contos
entre virtude e alcance de conquistas, sejam elas materiais e/ou sociais. O efeito que isso
produziria, ainda conforme os autores citados por Jesualdo (1978), seria uma suposta
associação da virtude como “fonte asseguradora de lucros” e benefícios, o que poderia
acarretar na crença de que o que importa não é a virtude em si, mas os resultados através
dela galgados. É como se às crianças fosse ensinado “o cálculo em vez da moral”
(Braunschvig, 1914; Rigaul, 1935, citados por Jesualdo, 1978, p. 17).
Em realidade, significativa parte das censuras à literatura destinada a crianças e
jovens provém de educadores franceses, como Rousseau e Lamartine, os quais
avaliavam os contos, especialmente as fábulas, como nocivos ao adequado
desenvolvimento moral dos infantes, então (entre os séculos XVIII e XIX) reconhecidos
como categoria social dotada de características peculiares e de cuja educação
dependeria seu preparo apropriado para tornar-se um adulto civilizado e de bom caráter
(Coelho, 2010; Góes, 2010; Tatar, 2004).
Tatar (2004), entretanto, argumenta:
Se por um lado os contos de fadas não nos fornecem as lições morais e
mensagens adequadas pelas quais às vezes ansiamos, por outro continuam a
nos proporcionar oportunidades para pensar sobre as angústias e desejos a
que dão forma, para refletir sobre os valores condensados na narrativa e
discuti-los, e para contemplar os perigos e possibilidades revelados pela
história (p. 12).
111
Para Jesualdo (1978), o maior argumento em favor da utilidade dos contos para
as crianças é a expressiva riqueza criativa dos grandes escritores, que, por meio de
enredos fantasiosos e altamente simbólicos, disponibilizam os recursos necessários para
o fomento à imaginação infantil, enriquecendo seu pensamento e o repertório de contato
com experiências diversas das suas.
Ora, em sendo o sonho, a imaginação, a fantasia, eixos vitais para a existência
do homem no mundo, condutores do sentido da realidade, apenas a militância inflexível
e destrutiva de um adulto pode retirar da criança seu potencial imaginativo. Por questões
religiosas, educativas e/ou moralistas, alguns consideram a fantasia como danosa por
falsear a realidade, tentando afastar a criança de artefatos que induzam à fertilidade da
imaginação e/ou à ilusão. Outras crianças são afastadas do mundo fantástico pelas
próprias condições precárias de vida, em que lhes resta dedicar-se ao trabalho para
suprir suas necessidades de sobrevivência e as de sua família (Corso & Corso, 2011).
Os “exilados da fantasia”, como denominam Corso e Corso (2011), depois que
crescem podem enfrentar sérias limitações em sua capacidade de criação, de abstração,
apresentando uma subjetividade empobrecida, enrijecida, que opera como um motor
sem lubrificação, que lhes dificulta a abertura ao mundo em suas infinitas
possibilidades, a habilidade de interpretação compreensiva das pessoas, das coisas e dos
fatos, a capacidade de entender as sutilezas das diversas manifestações do humano, e até
mesmo o relacionamento interpessoal. Ademais, como elucidam os autores, a “privação
da ficção é um estreitamento das possibilidades de ser”, haja vista as narrativas serem
fundamentais inclusive para organizar e dar sentido à vida, dado que traduzem a
experiência vivida. E, “mais do que a experiência vivida, somos a versão que damos a
112
ela”, portanto, nossa vida é também uma narrativa ficcional, montada de acordo com
nossa percepção e organização do mundo (Corso & Corso, 2011, p. 256).
Felizmente, não é fácil escapar à fantasia, pois ela encontra brechas para sua
emergência, se não por meio da arte, da literatura, por meio então dos sonhos (Corso &
Corso, 2011).
Ainda em contraposição às objeções anteriormente explanadas, outros autores da
área da Educação, Pedagogia, Linguística defendem os contos não só como instrumental
terapêutico: o adotam também como ferramenta eficaz e essencial à promoção do
desenvolvimento intelectual dos educandos, à facilitação do processo de aprendizagem
da leitura e da escrita, à formação de um leitor crítico e com ampla visão de mundo
(Abramovich, 1997; Amarilha, 1997; Coelho, 2000, 2010; Góes, 2010; Radino, 2003).
Em face às exposições acima elencadas, é patente o contraponto entre as
interpretações de cunho psicanalítico, as de cunho sócio-histórico-cultural, e aquelas
derivadas de princípios pedagógicos. E, então, explicitados pontos e contrapontos
acerca da utilização de histórias ao longo do desenvolvimento da criança, é importante
por hora assinalar para o leitor as concepções assumidas nesta dissertação.
Em primeiro lugar, seja qual for a ótica de compreensão, o fato é que as
narrativas, a literariedade, as histórias, a arte literária, a literatura infantil, ou qualquer
outra denominação, têm, em seu caráter transitório e aberto, alta relevância como
ferramenta que convida à reflexão por meio da ludicidade e imaginação, e fornece a
“possibilidade de organizar, interpretar e dialogar com os acontecimentos do viver
psicológico” (Pazinato, 2008, p. 302).
113
Em segundo lugar, não se trata de atestar as propriedades terapêuticas dos
contos. Essa tarefa, na percepção da pesquisadora, está amplamente efetivada. O intento
é, tão somente, compreender tais propriedades terapêuticas para as crianças em situação
de vulnerabilidade, hospitalizadas em UTIPED. De que modo elas fazem uso dessas
propriedades, como elas significam suas experiências a partir da contação de histórias,
de que modo essas crianças podem ser beneficiadas. Este é o propósito assumido pela
pesquisa de campo a ser explanada posteriormente.
Em terceiro, parte-se do princípio de que, ao se aproximarem da vivência das
crianças, os contos consistem em narrativas experienciais que possivelmente
reverberariam em sua subjetividade, produzindo sentidos e significados os mais
distintos.
No tocante a este último ponto, a produção de sentidos e significados, do mesmo
modo é indispensável clarificar ao leitor que, quando se fala sobre possibilidades,
potencialidades e/ou propriedades terapêuticas dos contos de literatura infantil, os
achados teóricos cá explicitados são apreciados como importantes subsídios para a
compreensão dos contos como aliados no cuidado à criança em UTI.
Entretanto, em consonância com a abordagem teórico-metodológica assumida
pelo estudo, a Fenomenologia, concebe-se que os sentidos e significados gerados pelo
contato entre criança-conto-pesquisadora vão além dos constructos conceituais
assinalados, são muito mais frutos da relação subjetiva que se estabelece entre as
personagens aludidas, que compõem uma tríade produtora de múltiplas possibilidades
de apropriação e simbolização experiencial. Os resultados que podem ser atingidos
sobrepujam qualquer análise apriorística, e podem ou não corresponder ao que foi
construído de narrativas a respeito do potencial terapêutico da literatura infantil. Citando
114
Caldin (2010): “ao relatar um projeto de finalidade terapêutica, lembra-se que a
fenomenologia é uma metodologia da compreensão, e, assim, a atitude fenomenológica
implica (...) em mostrar que a narração só adquire sentido na vivência” (p. 87-88).
Os sentidos estarão sujeitos inclusive à própria singularidade da criança
participante, sua história de vida, suas necessidades emocionais, suas características de
desenvolvimento, seu contexto familiar e social, a vivência atual e anterior de
adoecimento e hospitalização, o seu modo de ser e de estar no mundo, de se relacionar
com os outros e com os entes simplesmente dados, a natureza e qualidade da relação
que estabelecerá com a pesquisadora, entre outros elementos que edificam sua
existência.
Sobre isso, Sartre (2004) e Iser (1996-1999), ambos citados por Caldin (2010),
asseveram que, em realidade, o leitor (ou o ouvinte) é o verdadeiro criador da obra
literária, uma vez que o sentido da obra não está contido nas palavras ali alocadas, mas é
atribuído pelo ouvinte, da maneira que lhe aprouver, preenchendo as lacunas da
narrativa e fornecendo-lhe os significados em conformidade com sua visão de mundo,
suas lembranças e expectativas.
A literatura, como toda forma de arte, dá margem a várias apreensões de sentido,
fornece liberdade à imaginação e ao poder de criação humana. Nas palavras de Caldin
(2010):
É essa liberdade de criação de um novo texto, esse preenchimento dos
vazios do texto literário, que permite ao leitor/ouvinte/espectador pensar
sobre seus sentimentos e problemas e, amalgamando suas lembranças e
expectativas com o simbólico, transformar uma narrativa ficcional em
narrativa terapêutica, posto que todo texto literário carrega como germe essa
possibilidade de terapia. O objeto literário tem essa potencialidade
115
embutida; pode-se mesmo afirmar que justamente por ser ficcional, a
narrativa é terapêutica (p. 85-86).
O que tão logo à criança é possível apreender por meio da aproximação com a
literatura infantil é que “os seres humanos dão sentido ao mundo contando histórias
sobre ele usando o modo narrativo para construir a realidade”. As histórias são
ferramentas, “instrumento(s) da mente em prol da criação do sentido” (Geertz, 2001,
citado por Corso & Corso, 2011, p. 21).
Interagir com a criança por intermédio do uso de contos, como fomento à
ludicidade, e daí apreender como eles podem lhe ajudar na significação de sua
realidade, como auxílio à reflexão, este é o ponto nodal do estudo, e do tópico
subsequente, que busca evidenciar algumas pesquisas que se aproximam deste intuito
junto a crianças hospitalizadas.
3.3 CONTAR PARA ACOLHER... PROTEGER... CUIDAR O USO TERAPÊUTICO DA
LITERATURA INFANTIL EM SAÚDE E SUA INSERÇÃO NO CONTEXTO DA
TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA
Pois bem, considerando o percurso histórico que a vinculou à infância, as
propriedades terapêuticas, educativas, lúdicas, sociais e culturais as quais sustenta, os
encontros e desencontros entre correntes teóricas que tentaram dar conta de sua
conceituação, uso e análise, neste estudo à Literatura Infantil é creditada a possibilidade
de cuidado antepositivo à criança em UTIPED. Cuidado antepositivo tal como
116
concebido por Heidegger (1927/2005), como o cuidado que liberta o ser para o seu
autêntico poder-ser.
Sinalizada esta compreensão basilar, a seguir elenca-se a matéria objeto de
discussão do último tópico desta história sobre as histórias.
Em que pese o número acentuado de trabalhos que abordam a literatura infantil,
seja do ponto de vista pedagógico, terapêutico, lúdico, entre outros, são escassos
aqueles referentes à utilização do conto em contexto hospitalar.
Sem a pretensão de apresentar aqui uma revisão bibliográfica exaustiva sobre o
assunto, em primeiro lugar serão elencados alguns estudos gerais compilados por meio
de buscas em livros e em bancos de dados científicos que reúnem dissertações, teses e
artigos (tais como o Scielo, BVS-PSI, entre outros) sobre a utilização dos contos de
literatura infantil com os mais diversificados propósitos, locais e públicos.
Assim, é possível encontrar estudos com adultos referentes a contos e sua
utilização junto a pessoas com problemas relacionados ao uso abusivo de substâncias
químicas álcool e outras drogas (Caldin, 2010; Zago, 1998); usuários de CAPS
portadores de transtorno mental (Moraes, 2008); pacientes com AIDS (Meneghel,
Farina, Silva, Walter, Brito, Selli & Schneider, 2008); idosos em asilos (Caldin, 2010;
Silva, 2006); mulheres em presídio (Caldin, 2010); pacientes cardíacos em UTI (Pereira
& Costa-Rosa, 2008); indivíduos em tratamento psicoterapêutico (Pintos, 1999) e
professores da educação infantil (Radino, 2003).
No tocante à população infantil, há estudos que envolvem o contexto da adoção
(Prestes, 2008; Rosa, 2008; Vieira, 2006); crianças separadas de forma prolongada de
seus pais, em situação de abrigamento (Carvalho, 2008; Gutfreind, 2010); crianças com
117
déficits de simbolização (Lima, 2010); pré-escolares (Caldin, 2001; Heck, 2008;
Kishimoto, Santos & Basílio, 2007; Lucas, Caldin & Silva, 2006; Maia, 2004; Motta,
Enumo, Rodrigues & Leite, 2006; Rodrigues, Henriques & Patrício, 2009; Rodrigues,
Oliveira, Rubac & Tavares, 2007; Rodrigues & Rubac, 2008; Simões, 2000) e escolares
(Almeida, 2010; Alves, 2010; Botelho, 1998; Gonçalves, 2009; Gonçalves, 2009; Klein,
2010; Seitenfus, 2009; Silva, 2006; Souza, 2005; Souza, Folquitto, Oliveira & Natalo,
2008); crianças com asma (Schneider, 2008); crianças em tratamento psicoterápico
(Branco, 2001; Safra, 2005); crianças vítimas de violência doméstica (Alves, 2007;
Alves & Emmel, 2008); crianças vítimas de abuso sexual (Gutfreind, 2010); e alguns
com crianças doentes e/ou hospitalizadas (Caldin, 2002, 2004; Castanha, Lacerda &
Zagonel, 2005; Ceribelli, 2007; Fontenele, Pinto, Andrade, Dias, Moura & Pinto, n.d.;
Gutfreind, 2010; Mendes, Broca & Ferreira, 2009; Moreno, Diniz, Magalhães, Souza &
Silva, 2003; Oliveira, 2009; Rockenbach, 2006; Silva, 2006; Vieira, 2005).
Em correspondência ao recorte assumido por esse estudo, serão a seguir
apresentadas pesquisas referentes ao contexto da saúde infantil.
Em investigação realizada por Caldin (2002), a partir da leitura de histórias em
grupo, leitura individual para crianças restritas ao leito, contação e dramatização de
histórias, e utilização de recursos lúdicos (música, gravuras em cartolinas e isopor,
figuras fixadas em palitos, dedoches, desenhos, etc.), objetivou-se promover a
humanização do processo de tratamento das crianças hospitalizadas na divisão
pediátrica de um hospital universitário, com vistas a ajudar as crianças a superar medos,
tristeza, desalento e ansiedade que acompanham o processo de doença-hospitalização.
Os principais resultados alcançados dizem respeito aos efeitos benéficos das atividades
de biblioterapia para as crianças hospitalizadas, sendo comum o arrefecimento do
118
desconforto, da dor e da apatia, que cediam lugar à identificação com as personagens, à
vivacidade, à descontração e ao riso, ao processo de socialização, ao estímulo à
imaginação e à criatividade, ao alívio/pacificação das pressões emocionais pela
satisfação das necessidades estéticas e lúdicas dos participantes.
Em outro trabalho, Caldin (2004) procede a uma análise literária de seis contos
de literatura infantil, sendo cinco contos realistas (Seu Feliz, A Casa Sonolenta, Lúcia-
-vou-indo, Chapeuzinho Amarelo e Maria-vai-com-as-outras) e um conto tradicional
(Chapeuzinho Vermelho), com o objetivo de delinear sua aplicabilidade terapêutica
junto a crianças hospitalizadas. A autora finaliza a discussão defendendo a utilização de
textos breves, haja vista a condição clínica da criança dificultar a sua concentração e
atenção; destaca os contos de fadas como terapêuticos em virtude de reassegurarem
vitórias e apresentarem desfechos felizes; assinala a catarse proporcionada pela
literatura como benéfica, por permitir a redução do medo e ansiedade da criança
hospitalizada; e a identificação com as personagens como importante por traduzir a
capacidade libertadora do texto literário, que conduz a criança ao universo ficcional,
com o consequente desprendimento da realidade.
Fontenele, Pinto, Andrade, Dias, Moura e Pinto (n.d.), na descrição de um
trabalho que usa a biblioterapia como coadjuvante no tratamento de crianças com
câncer, argumentam em favor da leitura associada a outros recursos lúdicos como
instrumentos eficazes na melhoria da qualidade de vida das crianças com ncer, no
estabelecimento da comunicação e vinculação entre equipe e paciente, no fomento à
expressão de si mesmo por meio da verbalização, do desenho, da criação de histórias e
da expressão corporal.
119
Com o objetivo de avaliar a importância da leitura mediada para crianças,
acompanhantes e equipe hospitalar, Moreno, Diniz, Magalhães, Souza e Silva (2003)
utilizaram um questionário padronizado a ser preenchido por mediadores de leitura ao
longo da contação de histórias, observando os seguintes aspectos:
participação/interação, receptividade, colaboração, atenção, alegria, entusiasmo,
dispersão, indiferença e ausência. A avaliação de tais aspectos se referia às crianças,
acompanhantes e profissionais de saúde participantes da mediação de leituras. Além do
registro das observações, foram realizadas entrevistas com os acompanhantes e os
profissionais de saúde. Os resultados apontam os benefícios da leitura mediada na
percepção dos participantes, auxiliando no bem-estar das crianças, aliviando as tensões
e ansiedades, favorecendo momentos de entretenimento, benefícios que podem ser
favoráveis à evolução clínica. A inclusão da família na mediação de histórias infantis
parece ter favorecido a coparticipação ativa da mesma no processo de tratamento da
criança. Ademais, foram apontados benefícios pelos entrevistados, tais como: melhor
aceitabilidade de procedimentos dolorosos; alívio da dor; esquecimento da doença;
sentimentos de alegria, relaxamento e confiança; melhora da auto-estima; melhora da
doença; viagem ao mundo da fantasia; e construção do processo de leitura/hábito de
leitura.
Em uma pesquisa de caráter qualitativo-descritivo, realizada com dez crianças
hospitalizadas, dez acompanhantes, sete mediadores de leitura e dez membros da equipe
de enfermagem, Mendes, Broca e Ferreira (2009) traçaram como objetivos: (1)
identificar os sentidos atribuídos pelos sujeitos às ações de mediação de leitura
realizadas junto à criança hospitalizada; (2) caracterizar as contribuições da leitura
mediada no âmbito do tratamento e recuperação da criança hospitalizada, a partir da
120
experiência dos sujeitos envolvidos na ação; (3) analisar as possibilidades de integração
da leitura mediada no cotidiano do cuidado à criança hospitalizada; e (4) discutir a
leitura mediada como estratégia expressivo-lúdica de cuidado fundamental. Os
resultados apontam o resgate da alegria das crianças; o lúdico como “linha de fuga” às
normas instituídas pelo hospital; a leitura como catalisador das adversidades, facilitador
da integração ao meio, da boa qualidade das relações interpessoais entre crianças-
familiares-equipe; a otimização da participação da criança no processo de tratamento; o
estímulo à autonomia e à criatividade da criança; a promoção do bem-estar geral. A
leitura mediada, neste trabalho, atuou como estratégia de humanização do cuidado,
diminuindo a sobrecarga psíquica e proporcionando conforto emocional à criança no
decorrer do processo de hospitalização. Evidenciou-se o reconhecimento, por parte dos
profissionais, de que o cuidado à criança deve ultrapassar a intervenção puramente
técnica, envolvendo o lúdico como elemento intrínseco à arte de cuidar de crianças
hospitalizadas.
Castanha, Lacerda e Zagonel (2005) relatam a experiência sobre a atuação do
enfermeiro como cuidador na modalidade “contador de histórias” em um hospital
pediátrico. O contar histórias é adotado como instrumento de cuidado que alimenta o
imaginário das crianças, transformando a realidade vivida e transportando-a para um
mundo de fantasias onde não existe dor e sofrimento. Além disso, as histórias mediam e
fortalecem a relação entre enfermeiro e criança, auxiliando em sua recuperação, na
aceitação de sua atual condição e na sua adaptação ao ambiente hospitalar, alterando seu
estado emocional geral e permitindo ao profissional de enfermagem desenvolver o
cuidado sensível.
121
Rockenbach (2006), em uma pesquisa qualitativa realizada com crianças em
situação de hospitalização prolongada no setor de onco-hematologia de um hospital
pediátrico e no setor de pediatria de um hospital geral, intentou produzir conhecimento
nas áreas de Teoria da Literatura e Musicoterapia, partindo da hipótese de que a
literatura infantil e a musicoterapia podem contribuir para a melhoria do estado de
ânimo das crianças hospitalizadas. Utilizou sessões de musicoterapia e contação de
histórias, efetuando 139 avaliações do estado emocional das crianças antes e depois das
sessões. Além das sessões, foram realizadas, em conjunto com as crianças,
improvisações e composições musicais, baseadas nas histórias de vida de cada criança
participante e nas suas vivências relativas à hospitalização, tendo como pano de fundo
os contos de fadas. Dentre as principais considerações do estudo, Rockenbach aponta a
melhora no estado de ânimo em 74,8% das crianças hospitalizadas participantes das
sessões de musicoterapia e contação de histórias. E acrescenta: “crianças hospitalizadas
precisam de música e de contos de fadas para continuarem sonhando e para que novas
canções e histórias sejam compostas. São vidas que se transformam em histórias e
histórias que se transformam em vidas” (p. 15).
Silva (2006) avalia como satisfatórios os resultados alcançados no atendimento
arteterapêutico de crianças com leucemia a partir da utilização de histórias infantis
breves. Dentre os achados, destaca a expressão/liberação de conteúdos emocionais
significativos pelas crianças, através do jogo, do desenho e da brincadeira após a
contação de história.
Em sua dissertação de mestrado, intitulada “A mediação de leitura como recurso
de comunicação com crianças e adolescentes hospitalizados: subsídios para a
humanização do cuidado de enfermagem”, Ceribelli (2007), partindo da análise do
122
Projeto Biblioteca Viva em Hospitais (PBVH Fundação Abrinq), procurou apreender
em que medida a estratégia da mediação de histórias infanto-juvenis proposta pelo
projeto pode ser um recurso de comunicação com a criança e o adolescente
hospitalizados. Valendo-se da observação de sessões de mediação de leitura terapêutica
e de entrevistas semi-estruturadas realizadas com nove mediadores de leitura e quatorze
crianças maiores de sete anos de idade, a autora constatou que a mediação de leitura foi
benéfica para estabelecer a qualidade da comunicação e da relação entre a equipe de
enfermagem e a criança, destacando o papel essencial do lúdico que atua como
estratégia de aproximação e humanização dos cuidados à criança. Argumenta que a
contação de histórias trouxe benefícios tanto para quem ouve quanto para quem conta a
história. A função terapêutica da leitura mediada ficou patente nos depoimentos dos
participantes da pesquisa. Ademais, a leitura mediada foi apontada como facilitadora do
processo de aprendizagem formal de leitura e escrita, da apreensão de formas adequadas
de manejo das dificuldades e do preparo psicoemocional da criança, trazendo benefícios
também para seus familiares e equipe de saúde.
Também como trabalho de mestrado, Vieira (2005) se propôs a compreender a
percepção da criança hospitalizada sobre o sentido das histórias infantis utilizadas como
estratégia promotora de saúde em Terapia Ocupacional. Trata-se de uma pesquisa
qualitativo-descritiva realizada em unidade pediátrica de um hospital geral, com dez
crianças vítimas de acidentes não intencionais, entre 6 e 10 anos, de ambos os sexos.
Com a utilização de diário de campo, contação de histórias, atividades simbólicas pós-
contação e entrevistas, Vieira concluiu que o sentido que as crianças atribuem às
histórias está diretamente relacionado as suas vivências nos diversos contextos sociais,
culturais e pessoais dos quais fazem parte. Ademais, as crianças encontraram nas
123
histórias correlações com suas próprias histórias de vida, correlações que foram
retratadas em seus desenhos pós-contação. As narrativas funcionaram como excelentes
dispositivos de promoção à saúde, proporcionando momentos de alegria, prazer e
fantasia para as crianças e ressignificando para a contadora-pesquisadora o seu exercício
profissional.
Mais especificamente relacionada à produção acadêmica aqui apresentada, a tese
de doutorado de Oliveira (2009), cujo título é Tecendo histórias: intervenção clínica
em uma UTI semi-intensiva pediátricafoi o único trabalho encontrado em contexto de
terapia intensiva com crianças, cuja proposta inicial era fazer uso dos contos de fadas.
Buscava-se compreender o papel do procedimento interventivo de contar histórias para
crianças no fortalecimento psíquico das mesmas e no enfrentamento da hospitalização
em UTI. Utilizando o método fenomenológico-hermenêutico e inspirada nos construtos
teóricos propostos por Winnicott e Safra, a autora se propôs inicialmente a narrar contos
de fadas escolhidos pelas crianças internas em UTI. Todavia, no curso da pesquisa,
Oliveira percebeu o potencial terapêutico do encontro entre pesquisadora-criança-
familiares-equipe de saúde. Deste modo, alterou seu enfoque, que deixou de ser o conto
e passou a ser a escuta de histórias construídas pelos sujeitos mencionados e suas
próprias experiências pessoais como pesquisadora. A autora concluiu que, mais do que
as histórias, seu encontro com os atores em cena intensivista marcou um espaço
potencial de cuidado e intervenção clínica.
Gutfreind (2010), em seu livro “O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na
psicoterapia da criança”, faz alusão a alguns trabalhos na área de saúde utilizando o
conto como mediador (Battin, 1977; Krietemeyer & Heiney, 1992). Cita o trabalho de
Lafforgue (1988), desenvolvido na França, como inspiração para o seu estudo. O autor
124
citado propõe e desenvolve uma técnica que denomina ateliê de contos terapêuticos,
com o que trabalha no tratamento de crianças institucionalizadas em hospitais
psiquiátricos (hospital-dia) por diferentes enfermidades, sobretudo autismo e quadros
psicóticos (Lafforgue, 1995, citado por Gutfreind, 2010).
Resguardadas as distinções determinadas pelo referencial teórico capital, pelos
procedimentos metodológicos adotados, o público alvo e o locus do estudo, o trabalho
que inspira esta dissertação foi realizado por Gutfreind (2010) na França, no ano de
2000, junto a crianças “carentes afetivamente e separadas de modo prolongado de seus
pais”. O psiquiatra e psicanalista brasileiro tratou de criar dois grupos: um experimental,
formado por crianças em situação de abrigo, vivendo em dois lares mantidos pelo
governo frânces; e um grupo controle, formado por crianças não separadas de seus pais,
alunas de duas escolas municipais. Foram ao todo 23 crianças participantes do estudo,
na faixa etária entre cinco e onze anos, divididas igualitariamente e de forma
emparelhada (idade, sexo e origem cultural) entre os dois grupos.
O autor utiliza a estratégia de ateliê terapêutico de contos, que consiste na
intervenção em grupo de no máximo seis crianças, compreendendo a sessão três
momentos principais: (1) contação de história; (2) espaço aberto para encenação da
história ou outra forma de expressão, de acordo com o desejo do grupo; (3) desenho,
diálogo sobre a história, ou mediação com massa de modelar. Os encontros,
aproximadamente 26 para cada grupo (um por semana), foram desenvolvidos em regime
de coterapia, haja vista a necessidade do que Gutfreind chama de “auxiliares de escuta”,
responsáveis por registrar as atitudes das crianças ao longo das sessões e desempenhar a
função de continência frente às expressões emocionais das crianças em relação às
histórias ouvidas. Foram utilizados contos tradicionais e histórias modernas. Os ateliês
125
tiveram a duração de um ano escolar e as crianças foram avaliadas antes do início dos
ateliês e após sua finalização, com o uso de instrumentos projetivos e psicométricos,
questionários e entrevistas semi-estruturadas com os educadores e/ou professores,
relatórios clínico-descritivos e análise dos desenhos feitos pelas crianças, sendo estes
dois últimos instrumentos avaliados pelo pesquisador como os mais ricos em termos de
dados ilustrativos a respeito da evolução terapêutica das crianças.
A partir de sua pesquisa clínica experimental, cujo objetivo primordial foi
“observar os efeitos terapêuticos de um ateliê de contos sobre uma população de
crianças separadas, de forma prolongada, de seus pais”, o autor constatou ter sido
possível ofertar às crianças participantes mecanismos para representarem seu
sofrimento, através da organização de narrativas próprias, relativas às suas histórias de
vida, à separação e ao abandono de seus pais; bem como através da identificação com as
tramas e as personagens, o que as ajudou a entender melhor e nomear os seus
sentimentos, desejos, conflitos, pensamentos e necessidades emocionais. Além disso,
como fruto dos dados projetivos e psicométricos, Gutfreind (2010) aponta que houve
ganhos importantes do ponto de vista cognitivo, expressivo e social das crianças do
grupo experimental em comparação com as crianças do grupo controle. São indicados
como principais resultados: melhora no nível dos discursos (menos inibidos e mais
elaborados); maior capacidade de verbalização de afetos; melhora na capacidade de
simbolização, abstração e conceitualização, com enriquecimento da vida imaginária; e
desenvolvimento da habilidade de construção de relatos obedecendo à estruturação
narrativa de um conto.
O trabalho de Gutfreind (2010), ao mesmo tempo em que serve de inspiração
para o estudo hora elucidado, também guarda distinções consideráveis, respectivamente
126
explicitadas: (1) referencial teórico psicanalítico versus referencial fenomenológico-
existencial; (2) avaliação dos efeitos terapêuticos dos contos com uso de instrumentos
projetivos e psicométricos versus compreensão fenomenológico-interpretativa das
possibilidades terapêuticas dos contos; (3) intervenção em grupo versus intervenção
individual; (4) situação de separação dos pais em condição de abrigamento versus
situação de separação dos pais em condição de hospitalização.
No entanto, a proposta de compreensão das possibilidades terapêuticas dos
contos de literatura infantil assinalada pelo referido autor servem como pilares para a
intenção do atual estudo.
Neste sentido, o cuidado mediado pelos contos literários, sejam eles de fada ou
realistas, pode ser compreendido por dois eixos de análise, em consonância com a
proposição de Gutfreind (2010): o eixo lúdico e o eixo reflexivo, separados
didaticamente, mas emaranhados no cuidado à criança.
O autor conceitua o eixo lúdico de compreensão das possibilidades terapêuticas
dos contos valendo-se do conceito de espaço lúdico, tal como proposto pelo psicanalista
Pavlovsky (1980): “o espaço no qual, a partir da combinação de imagens, de jogos, de
ilusões, a criança poderá jogar, inventar, imaginar, criar, olhar de outra forma o
concreto, guardando-o como um local, interno, onde poderá sempre se refugiar nos
momentos mais difíceis de sua vida” (p. 42). A abertura deste espaço lúdico seria uma
das formas pela qual o conto enriqueceria a vida imaginária, simbólica da criança.
Também amparado em conceitos psicanalíticos, Gutfreind (2010) define o eixo
reflexivo como a propriedade terapêutica do conto de, ao ser utilizado, gerar espaço
para o auxílio à reflexão, ao pensar, uma vez que, exercendo as suas duas funções
127
principais, a saber, organizador e continente, o conto poderia ajudar a criança a ordenar
seus pensamentos, dar-lhes sentido e estimular a reflexão sobre suas vivências, a partir
do enredo literário.
Os eixos lúdico e reflexivo assinalados por Gutfreind (2010), que fundamenta
sua descrição na teoria psicanalítica, podem ser compreendidos à luz da Fenomenologia,
especialmente considerando o ambiente hospitalar.
Ora, inserida nesse contexto, a criança é comumente privada do que de mais
próprio em seu existir: o brincar. Seja pela própria condição clínica, que lhe exige
repouso, seja pelas normas hospitalares instituídas, à criança não é permitido o acesso
ao que lhe é fundamental, inclusive para que possa interagir com o mundo e apreender o
processo que vivencia, de adoecimento e hospitalização.
O cuidado ofertado pelo psicólogo pode lhe devolver recursos expressivos e
criativos com o intento de se apropriar autenticamente de sua atual realidade. E a forma
de assegurar tais recursos é, essencialmente, abrir espaços de ludicidade, seja por meio
de brinquedos, jogos, brincadeiras, ou contos de literatura infantil. A inserção destes
últimos, deste modo, compreenderia o fomento ao brincar, ao criar, ao imaginar, à
possibilidade de ser criança mesmo inserida em um ambiente que possivelmente não lhe
reconhece enquanto tal, por não demonstrar compreensão de suas reais necessidades
para além do cuidado técnico ao corpo. Representaria, pois, uma possibilidade de
aproximação ao ser-mais-próprio. Esta pode corresponder à compreensão de eixo lúdico
sob a perspectiva fenomenológico-existencial adotada.
Entretanto, considerando o espaço hospitalar intensivista e a rigidez de suas
rotinas, rituais de investigação nosológica e procedimentos interventivos de alta
128
complexidade, a inserção de um ritual de cunho lúdico e artístico como o é a contação
de histórias, pode causar estranhamento e certo grau de hostilidade, de repulsa, ou de
indiferença, escárnio ou discórdia. Não é, pois, tarefa fácil, ainda que necessária,
benéfica e constitutiva dos direitos da criança (Pazinato, 2008).
No que se refere ao eixo reflexivo, este remete à possibilidade da criança pensar
sobre o mundo, as pessoas, as coisas e si mesma, a partir das tramas retratadas pelas
histórias infantis, em respeito à linguagem da imaginação que lhe é própria. Também
este eixo pode ser abraçado como uma possível forma de compreensão fenomenológica
sobre as possibilidades terapêuticas dos contos, aproximando-se à noção de pensamento
meditante.
Assim, embora inicialmente definidos sob o prisma da Psicanálise, os eixos
compreensivos propostos por Gutfreind (2010) podem servir de base para produzir
reflexões de base fenomenológica adequadas à atual proposta de pesquisa-intervenção.
Neste sentido, é importante ressaltar o que assevera Pazinato (2008):
O contador de histórias, ancorado na ótica fenomenológico-existencial,
tende a olhar para o ser-doente em suas necessidades, capacidades, apelos e
desejos, manifestos em relações históricas, situadas e delineadoras de
horizontes do viver. A doença é percebida como o viver corpóreo em sua
facticidade, como experiência de finitude e fragilidade da existência humana
(p. 298).
Encarando o fenômeno do adoecimento e hospitalização como expressão ôntica
da condição ontológica de fragilidade humana, carente de cuidado para existir, é
possível conceber que o cuidado à criança em UTIPED deve abarcar a garantia de um
espaço que auxilie a produção de sentidos e significados à existência e ao estar doente
129
no mundo (eixo reflexivo), bem como a criação de perspectivas e recursos para a
transformação da experiência (eixo lúdico). Portanto, gerar um espaço dialógico para
contar histórias é a tentativa de firmar-se ao lado do outro como parceiro da totalidade
da experiência do existir, nas quais o morrer, adoecer e sofrer são pertencentes à
condição ontológica e ôntica do ser” (Pazinato, 2008, p. 299).
Como sugere Gutfreind (2010), os eixos lúdico e reflexivo, embora separados
com a finalidade de assegurar a precisão conceitual, se misturam na interpretação
compreensiva do potencial terapêutico da literatura infantil. Este fenômeno
corresponderia ao que é descrito por Pazinato (2008) como paradoxo lúdico, que, a um
tempo, promove a brincadeira gratuita e a reflexão e elaboração psicológicas. A
autora assinala:
A condução do enredo suscita a criação de um vínculo de cumplicidade,
envolvimento e imaginação entre seus participantes, na qual o estar-só e o
estar-com se entrelaçam no paradoxo lúdico promotor de elaboração
psicológica. A arte do contador encanta os “fantasmas hospitalares” e os
humaniza, tornando-os reconhecíveis para a consciência subjetiva e coletiva
(...) (p. 300).
O vínculo de cumplicidade, envolvimento e imaginação sinalizado pela autora
como fruto da arte de contar histórias pode alterar a percepção do mundo, suavizar a
relação da criança com sua realidade adversa de adoecimento e internamento em terapia
intensiva, além de poder favorecer o alívio de sua dor e sofrimento. É perceptível a
relação entre as histórias e o cuidado. Como indica Pazinato (2008):
Contar, como atividade lúdica, é exploração da condição de liberdade e da
espontaneidade, mesmo que restrito às condições do tempo e do lugar.
Narrar como atividade dica é condução a outro mundo, à outra realidade,
na qual o ritual, a magia, o mistério e o sacramento indicam o poder de
130
transformação do ser doente. A aceitação de que os acontecimentos
cotidianos comportam o amor e o ódio, o viver e o morrer, expressos nas
personagens e seus enredos, auxilia a potencializar o que existe no
ambiente, enquanto recurso transfomador do adoecer em horizonte de saúde
(Pazinato, 2008, p. 313).
A relação entre conto e cuidado, ou cura, é assinala por Walter Benjamin
(1995, citado por Santos Filho & Arruda, 2005). Tal relação se revela na noção de
cuidado que revitaliza, “da palavra que espanta os males da enfermidade”:
A criança está doente. A mãe a leva para a cama e se senta ao seu lado.
Então começa a lhe contar histórias (...). A cura pela narrativa (...). Se sabe
como o relato que o paciente faz ao médico no início do tratamento pode se
tornar o começo de um processo curativo. Daí vem a pergunta se a narração
não formaria o clima propício e a condição mais favorável de muitas curas
(Benjamin, 1995, p. 269, citado por Santos Filho & Arruda, 2005, p. 60).
Assume-se, nesta produção dissertativa, que o literário para a criança é hábil na
tarefa de envolvê-la emocionalmente por meio da ficção, transportando-a para o mundo
da fantasia (eixo lúdico) e traduzindo e/ou tornando-se cúmplice de suas vivências (eixo
reflexivo).
Por hora, é o que a dizer. Seguem as seções constituídas pelos elementos
nodais de toda e qualquer produção acadêmica, o que efetivamente pode garantir a
produção de novos conhecimentos.
131
4. MÉTODO
O meu olhar é nítido como um girassol, sei ter o pasmo
essencial que tem a criança se, ao nascer, reparasse
que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada
momento para a eternidade do mundo... Creio no
mundo como num malmequer, porque o vejo. Mas não
penso nele. Porque pensar não é compreender... O
Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar
doente dos olhos). Mas para olharmos para ele e
estarmos de acordo... Não basta abrir a janela para ver
os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver
as árvores e as flores. Para ver as árvores e as flores é
preciso também não ter filosofia nenhuma. Procuro
despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do
modo de lembrar que me ensinaram. E raspar a tinta
com que me pintaram os sentidos, desencaixotar as
minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser
eu... O essencial é saber ver. Mas isso (triste de nós que
trazemos a alma vestida!), isso exige um estudo
profundo, uma aprendizagem de desaprender...
(O meu olhar, Alberto Caeiro)
O leitor é convidado agora a conhecer o trajeto, desde a formulação da questão
de partida, até o detalhamento dos procedimentos seguidos no estudo.
4.1 JOÃO E MARIA O FENÔMENO A SER DESVELADO
132
João e Maria tinham um grande problema pela frente: sua madrasta planejava
abandoná-los no bosque... como fariam para voltar para casa? Que estratégias lançariam
mão para achar o caminho de volta? Assim como as crianças desta história precisariam
encontrar a solução para um problema que se apresentava, aqui também se busca os
caminhos que apontem quais as possibilidades de auxílio dos contos junto a crianças
hospitalizadas.
Inspirado no trabalho desenvolvido por Gutfreind (2010), a interrogação de base
é: que efeito produz o conto sobre a criança que o escuta? (p. 30).
Outros questionamentos que norteiam o trabalho são: O que esse instrumento de
intervenção, ainda não utilizado amplamente como o são o brincar, os jogos e os
desenhos, tem a contribuir na ajuda às crianças em regime de internamento hospitalar?
Em que medida a interação da criança com a tradição literária pode lhe servir como
mecanismo de apoio e proteção a sua saúde psíquica? O que considerar ao se optar pelo
conto como possibilidade de auxílio quando se trabalha com o público infantil em
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica?
Partindo da inquietação e interrogação sobre o fenômeno assinalado, pretendeu-
se compreender, pautando-se na noção heideggeriana de cuidado e adotando a
Fenomenologia como método, as possibilidades terapêuticas dos contos de Literatura
Infantil no cuidado a crianças hospitalizadas em Unidade de Terapia Intensiva
Pediátrica.
Para tanto, elegeu-se como cenário a UTIPED de um hospital público estadual,
localizado no município de Natal/RN, e como assistentes de pesquisa quatro crianças
133
internadas em tal setor, selecionadas a partir de critérios de faixa-etária e condições
clínicas.
Tomando como referência o fenômeno interrogado, a primeira imersão no
contexto da UTI ocorreu por meio da confecção de um diário de campo, produzido
como ferramenta para delineamento metodológico da investigação e como alicerce para
a problematização dos apontamentos teóricos. É válido lembrar ao leitor que o diário de
campo foi produzido na Unidade de Terapia Intensiva campo deste estudo, fruto dos
registros pessoais da pesquisadora, no transcurso de dez dias de observação. Nele se
encontram relatos de cenas emblemáticas da produção de saúde em terapia intensiva,
falas ilustrativas dos profissionais, das crianças e de seus familiares, descrição da
dinâmica de funcionamento da UTIPED, impressões pessoais sobre a qualidade e
natureza das relações entre os atores principais da trama.
Face ao fenômeno alvo de pesquisa exposto, tratar-se-á de apresentar os recursos
teórico-metodológicos dos quais se lançou mão no transcurso da confecção do corpus.
4.2 O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO: FENOMENOLOGIA
A pesquisa fenomenológica, essencialmente qualitativa, responde a
investigações sobre o humano, investigações não passíveis de quantificação quando o
intento é compreender um nível de realidade que engloba como matéria-prima os
significados, os motivos, as aspirações, as crenças, os valores, as atitudes, as
experiências, a cotidianidade. O mundo das relações, das representações, da
subjetividade e da intencionalidade humanas dificilmente pode ser reduzido a
134
indicadores quantitativos. A preocupação em foco não é descrever, explicar ou
quantificar, mas sim compreender os fenômenos estudados, compreender o vivido
(Amatuzzi, 2001, 2003; Holanda, 2003; Minayo, 2010; Moreira, 2004; Valle, 1997).
Fenômeno, do grego phainomenon, significa o manifesto, o revelado, o que se
mostra tal como é. É através do fenômeno, do mundo tal como experienciado pelo
homem, que se pode chegar ao conhecimento do mundo. E este desvelamento do
fenômeno, da experiência vivida, emerge no envolvimento entre pesquisador e
pesquisado (Amatuzzi, 2001; Bruns & Trindade, 2003; Forghieri, 2002; Holanda, 2003;
Moreira, 2004; Valle, 1997).
Esta busca pelo acesso ao vivido torna o estudo de natureza fenomenológica
necessariamente uma pesquisa-intervenção, na medida em que o limite entre pesquisa e
ação se esvanece na interação dialética entre o pesquisador e o indivíduo participante
(Amatuzzi, 2001, 2003; Holanda, 2003).
Aqui o vivido expressa uma realidade psicológica que compreende tríades de
palavras, a saber: sentimento-pensamento-ação, experiência-percepção-comunicação,
vivido-simbolizado-manifesto (Amatuzzi, 2001, p. 57).
É possível afirmar, então, que o acesso ao vivido se efetua através de
pensamentos e ações que o revelam de forma direta. Nas palavras de Amatuzzi (2001):
Lemos o vivido, entrando em contato com suas manifestações. Depoimento
é o nome que se convencionou dar para essas manifestações quando são
tomadas exatamente como apoio empírico para pesquisas. Obviamente
existem formas mais adequadas de depoimento para cada pesquisa. Mas em
princípio qualquer forma de expressão humana pode se constituir em
depoimento. Pois o que importa é a luz sob a qual lemos essa expressão.
135
Deve ser justamente uma luz que atravessa a materialidade do depoimento,
e embarcando em sua intencionalidade, vai em direção ao vivido puro (ou
ao sentimento primeiro que se faz presente) buscando expressá-lo em outro
pensamento que faça sentido no contexto da problemática trazida pelo
pesquisador (p. 58).
Deste modo, as expressões do vivido, no caso deste estudo, estão evidenciadas
nas falas, nas atitudes, nos comportamentos, na manifestação de sentimentos, por parte
das crianças participantes em sua experiência imediata no contato com os contos de
literatura infantil; além dos indicativos de afetação expressos pela pesquisadora em
diário de campo, posteriormente organizado em relatório de descrição fenomenológica
das sessões de contação de histórias. Esta é a matéria-prima constitutiva do corpus da
pesquisa, consoante ao indicado por Holanda (2003): “o fenômeno escolhido para a
pesquisa, por se tratar da experiência, mesmo podendo ser detectado pela observação
externa, não pode ser apreendido senão por sua vivência. Portanto, um estudo que
vise à vivência de um determinado fenômeno, necessitará trabalhar com dados obtidos
através de experiências relacionadas com o fenômeno em questão (p. 50).
Neste tipo de empreendimento investigativo, os significados e sentidos dados
pelo indivíduo pesquisado às suas vivências, elementos centrais da pesquisa, o
apreendidos por meio da compreensão e interpretação fenomenológicas. Isso implica
uma atitude de abertura ao fenômeno tal como ele se apresenta, uma atitude empática e
de aceitação, evitando pré-julgamentos sobre o vivido a ser desvelado. Trata-se de uma
pesquisa de construção da compreensão a partir da vivência comunicada pelo
participante, e não de verificação do que está disposto em teorias (Amatuzzi, 2001,
2003; Bruns & Trindade, 2003; Forghieri, 2002; Holanda, 2003; Minayo, 2010;
Moreira, 2004; Valle, 1997).
136
4.3 FLORESTA, CASTELO OU CASEBRE? CARACTERIZANDO O CENÁRIO
A Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIPED) de um hospital público
estadual localizado na cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, foi o cenário
escolhido para a realização da pesquisa. A escolha desta UTIPED como locus da
investigação fundamenta-se na ausência de propostas de intervenção psicológica junto à
criança que possam resgatar os aspectos sadios de sua existência, prevenindo os efeitos
potenciais da hospitalização infantil em tal contexto, conforme apontado nos capítulos
precedentes.
Tal local conta com seis leitos de internação, sendo um leito dedicado ao
isolamento, para aquelas crianças que apresentem quadros clínicos com alto risco de
contaminação.
As crianças internadas na UTI recebem cuidados intensivos e monitoramento
das funções vitais durante vinte e quatro horas por dia, com equipe de plantonistas que
trabalham seis horas diariamente, ou em plantões de doze horas diárias.
Todos os leitos são equipados com máquinas de monitoramento dos batimentos
cardíacos e pressão arterial, oxímetros, bomba de infusão endovenosa e/ou nasogástrica,
aparelhos de ventilação mecânica. O ambiente possui ar-condicionado central, cortinas
de isolamento para cada leito, estantes para armazenamento dos itens de higiene pessoal
do paciente ao lado dos leitos, suporte para soro, cadeiras para acomodação dos
visitantes ao lado de cada leito, frigobar para armazenamento de medicamentos e
vacinas, etc. Há um posto de prescrição, onde a equipe fica alocada. Em frente ao posto
de prescrição, há um balcão e pia para preparação dos medicamentos e procedimentos.
137
A estrutura física da UTI pediátrica também é composta por um pequeno
cômodo onde se situam os armários contendo brinquedos e livros de histórias infantis,
além de armários para armazenamento de materiais para procedimentos e para artefatos
de uso pessoal da equipe de saúde. Duas portas dão acesso ao ambiente em questão,
uma destinada à entrada de funcionários e visitantes, e outra para a entrada e saída de
macas transportando os pacientes. Finalizando a descrição física, a UTI pediátrica
dispõe de janelas (com películas) na parte superior de uma das paredes, voltadas para a
parte externa do hospital.
No que concerne aos profissionais que prestam seus serviços na UTI, esta
unidade conta com uma equipe multidisciplinar, composta por: (1) uma nutricionista;
(2) dez pediatras intensivistas; (3) dois fisioterapeutas; (4) uma fonoaudióloga; (5) uma
terapeuta ocupacional; (6) uma psicóloga; (7) uma assistente social; (8) cinco
enfermeiras; (9) vinte técnicos de enfermagem; (10) três especialistas médicos, sendo
um infectologista, um nefrologista e um cardiologista. As demais especialidades
médicas porventura necessárias atendem na UTI quando solicitação da equipe
plantonista.
Quanto à presença dos pais e demais familiares ao lado da criança
, esta é
permitida em três horários destinados à visita: no turno matutino, das 10h às 11h; no
turno vespertino, das 15h às 18h; e no turno noturno, das 20h às 21h. Em cada horário, é
permitida apenas a entrada de três visitantes por criança internada.
É válido informar ao leitor que, antes da defesa da dissertação, no dia 01 de maio de 2011, a equipe de
saúde da UTIPED, campo deste estudo, decidiu em reunião permitir a permanência da mãe e/ou
responsável 24 horas ao lado da criança, em cumprimento às determinações legais do Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei 8.069/1990) e da Cartilha de Direitos da Criança e do Adolescente
Hospitalizados (Resolução nº 41/1995 CONANDA)
138
Iniciemos a caracterização assistencial, sem a pretensão de dar conta dos dados
nos moldes estatísticos, o que escaparia aos propósitos deste estudo. Os dados
levantados dizem respeito ao número total de internamentos, às idades e gênero das
crianças assitidas, à média de permanência e à média de internamento mensal em
tratamento intensivista, quadros clínicos mais comuns, a procedência das crianças e o
destino pós-alta.
Para tal caracterização, adota-se por referência o livro de atas da equipe de
enfermagem da UTIPED (em que se registram dados referentes à admissão, alta, óbito,
procedência, e encaminhamento das crianças) e o intervalo entre o mês de janeiro do
ano 2009 e o mês de julho do ano 2010. Assim, foram 372 internamentos ao todo.
Destes, 221 internamentos foram de crianças do sexo masculino e 147 foram de crianças
do sexo feminino, sendo quatro o número de omissões em relação a esse dado. A faixa
etária prevalente engloba crianças em diferentes fases do desenvolvimento. Entre 0 e 3
anos foram internadas 174 crianças do número total de internamentos no intervalo de
tempo considerado. Crianças na faixa etária entre 4 e 6 anos somam 49 ao total.
Crianças entre as idades de 7 a 11 anos são 80 ao todo. As omissões de idade
totalizaram oito.
Considerando a faixa etária selecionada para participação na pesquisa, qual seja
crianças entre seis e onze anos, depreende-se dos dados que elas somam 96 ao todo, no
período analisado, o que constituiu prerrogativa adicional para opção metodológica.
A média de permanência das crianças na unidade intensiva configura, de igual
modo, dado relevante para delineamento do estudo. Desta feita, no ano de 2009, o
tempo de permanência das crianças variou entre 4 e 8,7 dias, sendo a média de 6,4 dias.
A proposta metodológica prevê oito encontros com cada criança participante. Tal média
139
de permanência não inviabilizou o estudo, haja vista que, quando a criança recebia alta
da UTI antes de concluídos os procedimentos, dava-se continuidade no ambiente da
enfermaria pediátrica, até sua alta hospitalar.
Ademais, a média de internamento mensal é de 19,6, considerando os meses
entre janeiro de 2009 e julho de 2010. As crianças são procedentes, em boa parte, de
outros serviços hospitalares e/ou do serviço de pronto-socorro. São acometidas por
diversos quadros clínicos, como traumatismo crânio-encefálico, insuficiência
respiratória aguda, insuficiência cardíaca congestiva, convulsão, ferimento por arma de
fogo e/ou arma branca, pós-operatório imediato de diversos tipos de cirurgia, dentre
outros quadros. As crianças, finalizado o internamento em UTI, são redirecionadas para
a enfermaria pediátrica do próprio hospital (175 ocorrências), ou encaminhadas para
outros hospitais (82 ocorrências). Algumas são encaminhadas para outros serviços,
internos ou externos ao hospital. Foram registradas durante o período investigado 78
ocorrências de morte.
Cumprida esta etapa, passemos às considerações sobre os protagonistas da
pesquisa.
4.4 CONHECENDO OS HERÓIS E AS OUTRAS PERSONAGENS DESTA HISTÓRIA
Previamente, é imperativo clarificar os critérios de inclusão para a seleção das
crianças participantes da pesquisa. Portanto, em razão dos objetivos da presente
investigação compreensiva, delinearam-se como critérios de inclusão,
fundamentalmente, a faixa etária da criança e sua condição clínica.
140
Adotou-se especificamente como critérios de inclusão os seguintes: crianças na
faixa etária de 6 a 11 anos, logo vivendo a fase da terceira infância, segundo
classificação desenvolvimental (Papalia & Olds, 2006), de ambos os sexos, internadas
na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do hospital público estadual referido, em
condições de vigília, orientação espaço-temporal, preservação da capacidade de
expressão verbal, de responsividade a estímulos e de atenção dirigida.
Como critério para participação na pesquisa também se estabeleceu a anuência
dos pais e/ou responsáveis pela criança, através de preenchimento do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido TCLE (Apêndice A), e a anuência da própria
criança. Estando as crianças que corresponderam aos critérios de inclusão em número
superior ao intervalo de quantidade proposto para a pesquisa, qual seja quatro, foram
selecionados por critério de condição clínica os assistentes que participaram, sendo
eleitas aquelas crianças que possivelmente permaneceriam por um período maior de
tempo na UTIPED em virtude de seu quadro clínico.
A prevalência significativa de crianças na faixa etária referente à terceira
infância (conforme demonstrado em levantamento de dados exposto no tópico anterior),
bem como a adequabilidade da proposta a tal público, motivou a escolha por crianças
nas idades acima mencionadas.
Elucidados os critérios para seleção dos colaboradores do estudo, convida-se por
hora o leitor a conhecer os protagonistas da história aqui tecida. São as crianças
participantes da pesquisa que pedem licença para se apresentar.
Foram quatro ao todo os heróis desta narrativa. Cada um deles recebeu um nome
fictício, o nome da personagem principal do conto que mais lhe marcou e/ou que mais
141
se aproximou de sua vivência, na percepção da pesquisadora. Porquanto, temos Bulu,
personagem do conto de fadas O lobo e os sete cabritinhos (Girassol Brasil Edições
Ltda, 2005); Bié, personagem da história moderna Bié, doente do (Pimentel, 1989);
Pedro, protagonista do conto realista Pedro e Lua (Moraes, 2004), e Arthur,
personagem central da história contemporânea Arthur vai para o hospital (Bennet,
2010). É válido ressaltar que o fato das crianças serem todas do sexo masculino não se
deveu a qualquer opção metodológica, mas à disponibilidade durante o período de
construção do corpus da pesquisa. Abaixo o quadro com a identificação das crianças.
QUADRO 1: DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DOS PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA
PERSONAGEM
DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
BULU
Nome da criança (iniciais): V. K. C.
Idade: 8 anos
Sexo: Masculino
Data de admissão (UTIPED): 05.06.2010
Tempo de internamento (UTIPED): 10 dias
Diagnóstico médico: insuficiência renal
crônica/peritonite/derrame pleural
BIÉ
Nome da criança (iniciais): J. V. M. P. D.
Idade: 6 anos
Sexo: Masculino
Data de admissão (UTIPED): 03.07.2010
Tempo de internamento (UTIPED): 06 dias
Diagnóstico médico: Pós-operatório de laparotomia
exploradora por trauma abdominal fechado importante
PEDRO
Nome da criança (iniciais): E. S. D. N.
Idade: 9 anos
Sexo: Masculino
Data de admissão (UTIPED): 04.07.2010
Tempo de internamento (UTIPED): 06 dias
Diagnóstico médico: Politrauma por acidente de moto
com fratura exposta grave de fêmur direito, tíbia direita
e fratura fechada do cotovelo direito
142
ARTHUR
Nome da criança (iniciais): P. C. L. S.
Idade: 7 anos
Sexo: Masculino
Data de admissão (UTIPED): 12.09.2010
Tempo de internamento (UTIPED): 09 dias
Diagnóstico médico: Diabetes mellitus e nefropatia
Estes são os heróis do estudo. A seguir a pesquisadora convoca o leitor a
conhecer um pouco das histórias dos pequenos assistentes de pesquisa.
Em primeiro lugar, faz-se mister apontar que as crianças que participaram desta
pesquisa apresentam alguns aspectos em comum que, certamente, repercutiram em sua
forma de vivenciar a situação de hospitalização. São crianças oriundas de famílias de
classe sócio-econômica baixa, cujos pais têm pouca escolarização. Apenas Bulu não se
encaixa em tal descrição, constantando-se condições econômicas favoráveis e nível
superior de escolarização paterna. Duas crianças, Bulu e Arthur, foram internadas por
doenças crônicas, insuficiência renal crônica e diabetes, respectivamente. As outras
duas crianças, Bié e Pedro, tiveram sua hospitalização determinada por adoecimento
agudo, ambas foram vítimas de acidente. Esta divisão em adoecimento agudo e crônico
foi casual, não fazendo parte de qualquer delineamento metodológico.
Bulu: uma história de (des)amparo e proteção
Bulu, primeira criança a participar da pesquisa, mora com sua mãe, sua irmã
mais nova e seu padrasto, pois seus pais são separados. Frequenta a escola nas séries
iniciais. poucos meses (setembro de 2009), sua família descobriu que Bulu tem
143
insuficiência renal crônica. Desde então, a criança é dependente de diálise com
periodicidade diária.
Em seu formulário de história clínica, documento anexo ao prontuário, é
possível encontrar a seguinte descrição:
Paciente renal crônico descompensado encaminhado de outro hospital com
edema agudo de pulmão. Portador de insuficiência renal crônica. Internado
11 dias com quadro de insuficiência renal crônica, peritonite, diarréia,
desidratação, edema agudo de pulmão, tosse cheia, dispnéia, afebril, dor
abdominal difusa, desconforto respiratório, obstrução do cateter de diálise
peritoneal.
Bulu tem deficiência auditiva parcial em um dos ouvidos. É uma criança
reservada, que interage pouco em termos de verbalização e contato. Tem
comprometimento significativo de seu desenvolvimento, especialmente no aspecto
psicossocial, o que dificulta sua interação social, sua comunicação verbal, a formação
de vínculos, etc. Seu pai chegou a acreditar que ele tivesse autismo. Bulu, conforme
relata sua mãe, nunca foi uma criança de pedir para se alimentar, sempre ela precisou
levar a criança até a mesa nas horas das refeições, pois ela comumente não expressa
seus desejos e necessidades. Costuma brincar sozinho e suas brincadeiras e atividades
favoritas são: andar de bicicleta, jogar videogame, assistir DVD e filmes, jogar lego.
A mãe de Bulu afirma que ele era uma criança normal, alegre. Teve uma
infância saudável, segundo relato de seus pais, até a descoberta da doença. Em virtude
desta, a mãe refere restrições relativas à alimentação, brincadeiras, etc. Desde que
adoeceu é constantemente hospitalizado, permanecendo a maior parte do tempo entre
hospitais e clínica para diálise. Entretanto, esta é a primeira internação de Bulu em UTI.
144
Seu pai considera ser este um momento crítico devido à gravidade do quadro clínico da
criança.
Bié, doente da barriga e do pé
Bié tem registrado no seu formulário de história clínica a seguinte descrição:
Criança vítima de trauma abdominal fechado após queda de bicicleta ontem
(02 de julho de 2010). Hoje (03 de julho de 2010) submetido a laparotomia
branca exploratória”. Bié foi encaminhado de um pronto-socorro pediátrico
do município de Natal/RN. Encontrava-se estável, lúcido, consciente,
orientado, leve sonolência, pálido, hidratado, com dieta zero e hidratação
venosa.
A criança tem seis anos, mora com a mãe, a irmã mais velha e o pai. Estuda o
primeiro ano do Ensino Fundamental. Suas brincadeiras e atividades favoritas são:
assistir televisão, comer, passear, jogar futebol, estudar, escrever e ir ao cinema. A
criança nunca havia sido hospitalizada antes. É descrito por sua mãe como uma criança
muito esperta, que gosta muito de brincar com outras crianças, com carrinhos e com
animais.
Pedro: uma história de perdas e vitória
No formulário de história clínica de Pedro, encontrava-se a seguinte descrição:
145
Paciente vítima de politrauma (acidente automobilístico), apresenta fratura
exposta grave de fêmur direito e tíbia direita. Submetido a procedimento
cirúrgico: debridamento e fixador externo (fixação transesquelética) e sutura
de lesão. Criança encaminhada de um hospital regional. Vítima de acidente
de moto, seu pai e sua mãe estavam na moto também. Ambos foram a óbito.
A criança chegou em choque, com fraturas expostas de membros superiores
e inferiores. O acidente ocorreu no interior. Hipotérmica. Escoriações em
todo o corpo. Respiração espontânea. Oxigênio ambiente. Calha gessada em
1/3 do antebraço direito. Hematoma bipalpebral. Palidez. Sonolência. Dieta
líquida. Hidratação venosa.
Pedro é filho único do relacionamento de seus pais. Morava com seu pai e sua
mãe. Está no quarto ano do Ensino Fundamental. Sua mãe tem outro filho, de 21 anos
de idade, fruto de seu primeiro casamento, mas que não mora com o casal. Seu pai e sua
mãe eram alcoolistas e estavam embriagados no momento do acidente. Os pais tiveram
morte instantânea.
Pedro é descrito por sua tia como uma criança dócil, inteligente, que gosta de
fazer amizade com todo mundo, o descreve como um menino agitado, que não pára
quieto quando está em casa. Afirma que alguns comportamentos da criança soam como
inadequados para sua idade. A voz de Pedro é infantilizada. Seu comportamento
também. Pedro tem uma linguagem imatura, com comunicação verbal confusa.
Suas atividades favoritas são brincar de bola, esconde-esconde, tica-gelo, e
estudar. Já permaneceu internado por uma semana, aos quatro anos de idade, devido a
um quadro de pneumonia.
Arthur: uma história de resiliência no conviver com a doença crônica
146
No formulário de história clínica de Arthur estava registrado:
Criança portadora de diabetes, apresentando mais ou menos quatro dias
edema periorbitário e generalizado, hipocorado, diurese pouca, diarréia,
eupnéico.
Na verdade, a equipe médica investigava se a criança teria alguma comorbidade,
qual seja nefropatia associada ao quadro de diabetes, pré-existente e em tratamento com
administração de insulina diariamente.
Arthur apresenta aspecto edemaciado e pressão arterial elevada. Até então
realizava tratamento para controle de diabetes, através da aplicação diária de insulina
(três vezes ao dia). A descoberta da comorbidade (nefropatia) se deu a partir de sua
internação no hospital. Tal fato mobiliza significativamente a família (mãe, pai, irmãos
e tia). A mãe chora constantemente. E fica ainda mais angustiada pelo fato de seu filho
ter que permanecer na UTIPED, longe de sua companhia.
O tratamento contra a diabetes é diário, o que exige rotinas diferenciadas para a
criança, em relação às outras crianças. Inclusive exige dieta rigorosa e incomum para
crianças em sua faixa etária. Uma criança com doença crônica e afastada de sua mãe,
em virtude da hospitalização em UTIPED.
Durante a pesquisa, foi possível presenciar Arthur realizando o exame de glicose
e, logo em seguida, administrando insulina em si mesmo, sem a ajuda e/ou supervisão
de ninguém. Surpreendente para uma criança na sua idade. Ela demonstra franca adesão
e participação ativa em seu próprio tratamento, de forma natural, sem protestos, sem
choro, com aceitação e maturidade.
147
No entanto, a mãe de Arthur também relata que, em alguns momentos, a criança
assume um comportamento de revolta, ficando estressado, questionando a Deus o
porquê de ele pedir tanto para ser curado e não ter o seu pedido atendido, e afirmando
que não aguenta mais conviver com a doença.
A criança, referida pela mãe como habitualmente comunicativa, permanece a
maior parte do tempo calada, comportamento frequente entre as crianças hospitalizadas
em UTIPED. Mora com sua mãe e seus dois irmãos em um povoado em município
interiorano. É descrito como um menino inteligente, amigável, curioso, ansioso,
inquieto, muito amado pelos familiares e amigos, o filho caçula “xodó” da casa.
O diagnóstico de diabetes foi descoberto quando a criança ainda tinha três anos
de idade e, de lá para cá, conforme relata sua mãe, houve uma reviravolta em sua vida e
na vida da criança. A rotina de Arthur é perpassada pelos cuidados em prol do controle
das taxas de glicose no sangue. Entre suas atividades diárias estão a frequência à escola,
onde cursa o primeiro ano, o assistir televisão e o brincar. Suas brincadeiras e atividades
favoritas são: andar de bicicleta, andar de motocicleta com o pai e o irmão, jogar bola,
brincar de carrinho, assistir televisão e DVD, passear com a mãe. Geralmente brinca
sozinho. Arthur nunca havia sido internado, apesar de já ter permanecido em observação
em serviço de urgência e emergência.
Sobre o contato prévio com os contos de literatura infantil, dado extraído das
entrevistas iniciais com as crianças e seus pais/responsáveis, fica patente que as
histórias já faziam parte da vida das quatro participantes da pesquisa e, de acordo com a
opinião destas e/ou de seus pais/responsáveis, elas gostam de ouvir histórias, que são
contadas pelo pai e/ou padrasto (no caso de Bulu), pelos irmãos mais velhos (no caso de
Bié e Arthur), e pela professora (no caso de Pedro).
148
Concluída a apresentação dos pequenos heróis, agora serão expostos os contos
de literatura infantil utilizados ao longo do processo de investigação compreensiva.
4.5 CONTO POR CONTO COMPREENDENDO OS CONTOS E SUAS TEMÁTICAS
Os contos de literatura infantil são, nesta dissertação, simultaneamente, objetos
de estudo e material de acesso ao universo simbólico das crianças participantes da
pesquisa. Deste modo, cabe por hora trazer à baila as informações referentes à seleção
dos livros utilizados como mediadores nas sessões de contação de histórias.
O critério de seleção abarcou a análise prévia das temáticas gerais presentes nos
contos, buscando apreender a pertinência destas ao manejo terapêutico de crianças
internadas em unidade de tratamento intensivista.
Para definir os contos a serem utilizados ao largo das sessões com cada criança,
duas etapas principais foram cumpridas.
A primeira consistiu na definição dos critérios de seleção das histórias, que
englobaram quatro aspectos centrais: (1) considerando o número de encontros a ser
realizado, qual seja oito, ao todo, com cada criança participante, adoção de contos
clássicos da tradição oral e histórias modernas com textos realistas não obedecendo
critério igualitário em número, variando conforme a necessidade da criança, e sendo
intercalados na consecução do trabalho; (2) escolha de contos que contivessem em seu
desenrolar temas próprios ao processo de desenvolvimento infantil e, de maneira
especial, ao processo de doença e hospitalização, ou seja, os conflitos picos desse
149
processo, como separação entre pais e filhos, perdas, morte, superação de dificuldades,
medos, enfrentamentos bem sucedidos, conquistas, temas estes hipoteticamente
próximos da realidade de infantes em UTIPED; (3) a aplicabilidade e adequação dos
contos à faixa etária alvo da pesquisa; e (4) os protagonistas da narrativa serem crianças
ou filhotes de animais, supondo que a identificação dos participantes com tais
personagens seria facilitada.
A segunda etapa consistiu em identificar os principais elementos dos contos
selecionados, quais sejam: título do conto, autor original, modalidade (se conto de fadas
ou conto realista), o protagonista, temáticas emergentes e o resumo do mesmo. Esta
etapa resultou na produção de um quadro-síntese contendo a descrição das histórias. As
mesmas estão organizadas na seqüência de uso previsto (não obedecida
criteriosamente), totalizando quatorze livros de contos infantis (Apêndice B).
Feita essa seleção prévia, os contos foram utilizados em uma sequência que
obedecia às necessidades afetivas da criança participante, a partir do que comunicava
seu comportamento, a especificidade de sua vivência em hospital, as indicações de sua
mãe ou figura de referência.
Conforme assinalado no terceiro capítulo, os contos modernos foram adotados
com primazia, haja vista retratarem em seus enredos a noção de infância contemporânea
e serem adequados às necessidades relativas à terceira infância, por apresentarem relatos
realistas que favorecem uma aproximação com as questões individuais relativas ao
desenvolvimento e à situação atualmente vivenciada (Jesualdo, 1978; Papalia & Olds,
2006; Vasconcelos, 2008).
150
Igualmente, fez parte das preocupações na seleção dos contos, entendidos como
possibilidade de cuidado à criança em UTI, a apresentação de um final feliz, uma dose
de humor e a referência a situações cotidianas da infância e/ou da criança em hospital
(para assegurar a verossimilhança, a provável identificação com as tramas e as
personagens e a simbolização de sua própria experiência). Buscou-se, ainda, enredos
instigantes, capazes de promover reflexão. Essas características são consideradas
importantes para facilitar a compreensão da narrativa, seu conteúdo simbólico e a
apropriação dela como realmente benéfica do ponto de vista terapêutico (Caldin, 2010;
Gutfreind, 2010; Safra, 2005; Silva, 2006).
Como propõe Góes (2010): “Os livros infantis devem atender às necessidades
fundamentais da infância. (...) Assim, é importante que os assuntos escolhidos
correspondam ao mundo da criança e ao seu interesse; facilitem progressivamente suas
descobertas” (p. 39).
Obviamente, a depender das singularidades de cada criança participante, seu
contexto de desenvolvimento e situação atual, os interesses, necessidades, capacidade
de compreensão e aproveitamento das histórias também sofrem variações. Nesse
sentido, procedeu-se à seleção caso a caso de algumas narrativas, inclusive como forma
de evitar a utilização de contos que pudessem intensificar as aflições das crianças, em
vez de ajudá-las na elaboração das mesmas. Tal preocupação é necessária tendo em
vista assegurar a apresentação das temáticas em conformidade com as possibilidades de
cada criança assimilá-las (Góes, 2010; Safra, 2005).
Ademais, considerando as condições clínicas de crianças em UTI, que
geralmente implicam debilidade física e cognitiva, além dos próprios efeitos possíveis
da hospitalização, é premente a utilização de contos com enredos breves, de
151
estruturação simples e linear. Em resumo, as circunstâncias ditaram a escolha do
repertório utilizado, levando em conta o que é afirmado por Kast (1996, citado por
Gutfreind, 2010, p. 181): escolher o conto correto no momento certo”, uma escolha
baseada na problemática da criança e na necessidade de propostas terapêuticas breves e
focais, em respeito às características do internamento em UTI.
O leitor interessado em conhecer os critérios de seleção dos contos utilizados
para cada criança pode verificar o Apêndice C, em que encontrará dados sobre a seleção
comum e a seleção caso a caso das histórias. A seguir, serão descritos os procedimentos
da pesquisa.
4.6 PROCEDIMENTOS DE CONSTRUÇÃO DO CORPUS DA PESQUISA
Item por item, descreve-se aqui o percurso realizado na busca de respostas à
interrogação de pesquisa. Destaque-se, antecipadamente, que os procedimentos foram
adaptados às condições do contexto intensivista e das crianças participantes. Tais
condições estão longe de serem as ideais, entretanto foram as possíveis. O trabalho com
contos, como argumenta Gutfreind (2010), deve ser aberto o suficiente para se adequar
criativamente a cada circunstância, instituição ou população. A adoção da
Fenomenologia como método para acesso e compreensão do vivido possibilita essa
abertura/flexibilidade necessária dos procedimentos.
4.6.1 Delineamento do Estudo
152
O referencial teórico-metodológico adotado para a construção e análise do
corpus da pesquisa baseia-se no método fenomenológico, fundamentado nas acepções
heideggerianas de interpretação compreensiva. A metodologia se fundamenta na
abordagem qualitativa e no desenvolvimento de estudo com caráter de pesquisa-
intervenção, com a participação ativa do pesquisador na etapa de construção do corpus,
fazendo uso da observação participante e da intervenção direta sobre os pequenos
assistentes do estudo.
4.6.2 Instrumentos e Materiais
Os procedimentos metodológicos utilizados, conforme descrito anteriormente,
foram pensados com base nos elementos obtidos a partir da confecção de diário de
campo, durante dez dias de observação da UTIPED.
Além da sequência de oito encontros com as crianças, lançou-se mão de dois
formulários de entrevista semi-estruturada com a mãe e/ou responsável pela criança
(Apêndice D e E). Um deles era aplicado antes de dar início às sessões de contação de
história, com vistas a conhecer melhor a criança, antes e após seu internamento,
conhecer a natureza e evolução da doença, como a criança e sua família estão
enfrentando a atual situação de doença e hospitalização, e a opinião do familiar sobre
como o infante irá receber a proposta de contação de histórias e o que ele (familiar)
espera das sessões propostas. O outro formulário, aplicado após a finalização dos
encontros com a criança, traz questões direcionadas a levantar as opiniões do familiar
153
sobre as sessões realizadas, a avaliação que este familiar faz do processo e como
percebe que os encontros afetaram o pequeno participante.
Analogamente, foram utilizados dois formulários de entrevista semi-estruturada
com as crianças (Apêndice F e G). A entrevista inicial com a criança, além do objetivo
de iniciar o vínculo terapêutico, intencionou compreender melhor a criança, como ela
estava se sentindo na UTI, o entendimento que tinha acerca do que estava acontecendo,
do que sentia falta, entre outros aspectos. o formulário de entrevista final teve o
objetivo de conhecer sua opinião sobre as sessões de contação de história durante sua
permanência no hospital, qual história mais gostou e menos gostou, buscando um relato
breve da experiência.
Além dos formulários de entrevista, e do registro áudio-gravado, lançou-se mão
da observação e relato fenomenológicos de todos os encontros. Este material foi
consolidado em relatório de descrição fenomenológica, inspirado na Versão de Sentido
proposta por Amatuzzi (2001), consistindo em uma espécie de radiografia
fenomenológica dos encontros de pesquisa, em que se buscou esboçar o sentido dos
encontros, construídos na interação dialética entre pesquisadora e criança. Nos relatórios
encontram-se descritos basicamente três fenômenos: (1) comportamento, reações,
comentários e atitudes das crianças ao longo das sessões de contação de histórias; (2)
afetos, vivências e impressões pessoais da pesquisadora; (3) descrição do encontro e da
relação entre pesquisadora e criança.
Quanto aos materiais utilizados, estes, conforme referido, variavam de acordo
com a necessidade e o desejo da criança participante, porém os encontros e os
procedimentos a serem realizados em cada sessão foram todos previamente desenhados.
O quadro a seguir apresenta uma síntese dos materiais utilizados, incluindo aqueles que
154
sempre estavam disponíveis para a criança, caso a mesma optasse por aderir à proposta
metodológica para o encontro específico.
QUADRO 2: MATERIAIS ACESSÓRIOS PARA A EFETUAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS DE
PESQUISA
MATERIAL
ITENS
LIVROS DE LITERATURA INFANTIL
02 Contos de fadas
12 Contos realistas
CAIXA LÚDICA
Lápis grafith nº 02
Borracha
Apontador
Régua
Tesoura pequena
Pincel
Cola branca
Durex colorido
Tinta para pintura de rosto
Aquarela em pasta para pintura
Coleção de lápis de cor em madeira
Coleção de giz de cera
Coleção de lápis hidrocor
Gravuras para colagem
Dedoches
Jogo da memória Sentimentos
OUTROS MATERIAIS
Papel Ofício nº 2
Prancheta
Cartolina guache
Cartela dos sentimentos
A cada encontro era levada uma história. Na contação houve a utilização direta
dos livros e as histórias foram lidas, em alguns encontros, e contadas, em outros. A
caixa lúdica e os outros materiais estavam disponíveis às crianças, a depender delas o
155
uso ou não. Caso a criança optasse por escutar mais uma história (em vez de fazer uso
da caixa lúdica), ao término daquela destinada à sessão, lhe era apresentado o conto
relativo ao encontro seguinte ou aquele pelo qual manifestasse interesse. As crianças
acompanhadas, durante a permanência na UTI, tinham limitações físicas para a
execução de algumas atividades previstas após a contação, o que foi respeitado.
Cabe esclarecer o uso de dois materiais em especial, qual seja a cartela de
sentimentos e o jogo da memória dos sentimentos. Trata-se de materiais elaborados pela
pesquisadora, recorrendo a figuras do tipo emoticons, para confeccionar uma cartela e
um jogo da memória.
Na cartela estão dispostas lado a lado carinhas que expressam diversos
sentimentos, nomeados como se segue: alegre, triste, bravo, sono, espanto, vergonha,
medo, dúvida, berrando, chorando. Tal cartela era apresentada à criança ao início e ao
final de cada encontro.
o jogo da memória fazia parte dos materiais que compunham a caixa lúdica,
sendo de livre acesso à criança, a depender de seu desejo. Ele era composto pelas
mesmas carinhas utilizadas na cartela de sentimentos. Eram vinte cartões ao todo,
contendo, cada um, uma carinha de sentimento, colorida em um cartão e sua
correspondente em preto e branco em outro cartão. A cada par formado, seja pela
pesquisadora, seja pela criança, o jogador deveria falar sobre o sentimento ilustrado na
carinha e que situação ou pessoa lhe desperta tal sentimento. Almejava-se, com isso,
investigar o estado emocional da criança frente à contação de história estreitamente
vinculada à sua vivência.
156
Feitas as devidas considerações, a seguir apresenta-se quadro sintético com as
etapas, objetivo de cada etapa e os instrumentos correspondentes no decorrer do
processo de investigação.
QUADRO 3: ETAPAS, OBJETIVOS E INSTRUMENTOS DA PESQUISA
ETAPA
OBJETIVO
INSTRUMENTO
ETAPA INICIAL
Compreensão Preliminar
das Crianças antes do
Início dos Encontros de
Pesquisa
1. Entrevista inicial semi-estruturada
com os pais e/ou responsáveis pela
criança;
2. Entrevista inicial semi-estruturada
com a criança.
ETAPA
INTERMEDIÁRIA
Pesquisa-intervenção As
Sessões de Contação de
Histórias
1. Relatório de cada sessão, contendo
descrição fenomenológica do
encontro e incluindo os desenhos e
demais produções das crianças;
2. Registro áudio-gravado dos
encontros.
ETAPA FINAL
Compreensão da
Experiência das Crianças
ao Final dos Encontros de
Pesquisa
1. Entrevista final semi-estruturada com
os pais e/ou responsáveis pela
criança;
2. Entrevista final semi-estruturada com
a criança;
3. Observação das crianças durante as
sessões;
4. Análise dos relatórios de descrição
fenomenológica das sessões e análise
das transcrições dos registros áudio-
gravados durante as sessões.
Passemos à descrição do passo a passo.
157
4.6.3 Pinóquio e Gepeto - O artesão e o desenrolar de encontros com contos e
encantos... Descrição do passo a passo
Inicialmente, foram feitas dez visitas à Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica,
em dias e turnos alternados. No decorrer das visitas, se observavam alguns aspectos, de
forma livre e assistemática, porém evidenciando quatro pontos principais: (1) rotina,
dinâmica, funcionamento da UTIPED; (2) qualidade e natureza das relações tecidas
entre profissionais, crianças e familiares; (3). cenas e falas ilustrativas do modus
operandi do serviço intensivista e da equipe que o compõe; e (4) impressões,
considerações e análises pessoais dos elementos observados.
Este material serviu de base para a definição de caminhos teóricos a serem
adotados, inclusive no que tange à escolha do conceito principal que orienta todo o
trabalho, qual seja a noção fenomenológico-existencial de Cuidado.
O diário de campo inicial também foi de suma relevância para a demarcação do
percurso em termos de procedimentos a serem utilizados, os horários mais adequados
para a pesquisa, a definição dos possíveis empecilhos e das maneiras de solucioná-los.
Feito isto, deu-se início ao delineamento das sessões de contação de história,
com a definição dos contos a serem utilizados, os materiais, a sequência dos encontros,
e a sequência de atividades a cada encontro.
A seguir a descrição do enquadramento terapêutico das sessões, disposta em
quadro-síntese, em que estão elencados os contos literários utilizados em cada encontro,
bem como as demais atividades após a contação de história.
158
QUADRO 4: DESCRIÇÃO DO ENQUADRAMENTO TERAPÊUTICO DAS SESSÕES DE
PESQUISA
PROTAGONISTA
SESSÃO
CONTO
ATIVIDADE
BULU
Quem tem medo do novo?
Contação de história
Gaspar no hospital
Contação de história
O lobo e os sete cabritinhos
Desenho
Quem tem medo de quê?
Desenho
O patinho feio
Contação de história
Marilu
Contação de história
O lobo e os sete cabritinhos
Contação de história
O patinho feio
Contação de história
B
Quem tem medo do novo?
Contação de história
Gaspar no hospital
Contação de história
O lobo e os sete cabritinhos
Painel temático
Quem tem medo de quê?
Jogando fora os medos
O patinho feio
Desenho
Marilu
Contação de história
Bié doente do pé
Contação de história
Se criança governasse o mundo...
Contação de história
PEDRO
Quem tem medo do novo?
Contação de história
Gaspar no hospital
Contação de história
Pedro e Lua
Jogo da memória Sentimentos
Alguns medos e seus segredos
Desenho e pintura
Quem tem medo de quê?
Jogando fora os medos
A menina cabeça-de-vento
Bons e maus pensamentos
Hospital não é mole!
Minha história
Se criança governasse o mundo...
Contação de história
ARTHUR
Quem tem medo do novo?
Contação de história
Gaspar no hospital
Desenho e pintura
O patinho feio
Desenho e pintura
Arthur vai para o hospital
Desenho e pintura
O menino maluquinho
Eu sou o doutor!
A menina cabeça-de-vento
Bons e maus pensamentos
Hospital não é mole!
Minha história
Se criança governasse o mundo...
Desenho e pintura
159
É preciso chamar a atenção do leitor que neste quadro explicitam-se apenas os
oito encontros previstos como procedimento. Contudo, excederam-se o número de
sessões inicialmente delineadas, sendo o acompanhamento com histórias efetuado até a
alta hospitalar de cada criança.
Os encontros foram divididos em quatro momentos distintos, assim
denominados:
Palavreando: neste momento, a criança era convidada a expressar, através da
cartela de sentimentos previamente fabricada pela pesquisadora, como estava se
sentindo naquele dia. Ou ainda, optava-se por explorar de antemão, por meio da
capa ou das ilustrações contidas no livro de história previsto para aquele encontro, o
que a criança achava que aquele conto trazia como enredo.
Contando história: este era o momento dedicado à contação de história
propriamente dita.
Conversando sobre o conto, entrelaçando história: este momento da sessão era
destinado ao diálogo sobre o conto, procurando investigar o que a criança achou da
história, como a história afetou e que significados produziu a criança em sua
subjetividade.
Produzindo sentidos o tempo do jogo, do desenho... ou de mais uma história:
neste momento a criança era livre para escolher o que gostaria de fazer, sendo as
atividades previstas apenas sugeridas, ficando a cargo da criança optar pela adesão
ou realização de outra atividade de seu interesse. Assim, o quarto e último momento
poderia ser dedicado ao jogo, ou ao desenho, ou à contação de mais uma história.
160
Conforme anteriormente descrito, todas as atividades executadas foram
sugeridas às crianças, que podiam fazer a escolha se desejavam ou não participar. Em
alguns casos, foi possível como atividade a própria contação de história, seja pela
disposição das crianças, seja pelas limitações físicas que lhes impedia de se envolver em
outras atividades para além da contação.
Os encontros tinham frequência diária e duração aproximada de sessenta
minutos. A opção por tal enquadramento é tributária do respeito às peculiaridades da
permanência em UTI e do tempo vivido naquele espaço: tempo da brevidade, da
urgência, da carência, da necessidade de acompanhamento intensivo, tempo distinto do
cronológico. O horário escolhido para os encontros correspondeu àquele ainda não
preenchido no dia a dia da criança em UTI, o horário após a visita do turno vespertino,
Prezou-se pela manutenção da regularidade das sessões, no que tange ao horário
aproximado e periodicidade.
Sobre as atividades elencadas no quadro 4, cumpre esclarecer alguns pontos.
A atividade intitulada painel temáticoconsistia na apresentação à criança de
gravuras recortadas em uma caixa que deveriam ser escolhidas por ela livremente e
coladas em uma cartolina guache. Feito isto, a criança era convidada a criar uma história
que contemplasse em seu enredo as figuras selecionadas. Aqui a finalidade era propiciar
ao participante a oportunidade de criar suas próprias cenas e recriar a história.
A atividade jogando fora os medos acontecia da seguinte forma: a
pesquisadora incentivava a criança a falar sobre todos os seus medos, estivessem eles
relacionados ou não à situação de hospitalização em UTI, anotando-os (a pesquisadora
procedia à anotação) em sequência numa folha de papel em branco. Esgotado o relato
161
dos medos da criança, a mesma era convidada a amassar a folha e, figurativamente,
jogar no lixo todos os seus medos. O intuito dessa atividade era, simbolicamente,
restaurar na criança sua capacidade de enfrentar medos, desafios e fantasias, com a
mediação da temática tratada pela história dessa sessão, qual seja Quem tem medo de
quê?.
O jogo da memória dos sentimentos, descrito na seção de instrumentos e
materiais, foi utilizado com a finalidade de investigar os diversos sentimentos, sua
vinculação com a vivência da criança em UTI e o papel da contação de histórias.
Bons e maus pensamentos”, semelhante à atividade jogando fora os medos”,
consistia no registro pela pesquisadora, em folha de papel, dos bons e maus
pensamentos da criança, divididos em colunas. Após o relato da criança sobre seus bons
e maus pensamentos, dividia-se o papel ao meio e a metade que continha os maus
pensamentos era entregue à criança para que a mesma pudesse jogá-los fora. A outra
metade era mantida com o participante, que decidiria se iria guardá-los ou não.
Pretendia-se, desta forma, a partir da temática suscitada pelo conto A menina cabeça-de-
vento, levantar as ideias, pensamentos e sentimentos principais da criança e suas
necessidades.
A atividade denominada Minha história” era fruto da interpretação das imagens
contidas no livro Hospital não é mole!, a partir das quais a criança era convidada a criar
uma história.
Como é possível perceber no quadro anterior (Quadro 4), algumas histórias
foram comuns a todos os participantes, outras variaram conforme a experiência vivida
pela criança.
162
Feita a descrição do passo a passo, a indicação do procedimento para análise do
fenômeno segue logo abaixo.
4.7 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO CORPUS UM OLHAR FENOMENOLÓGICO
SOBRE OS DADOS... REVELANDO SENTIDOS
Primordial se faz explanar a opção metodológica de análise do corpus.
Em pesquisa fenomenológica, a análise do corpus tem como objetivo revelar a
experiência intencional, vivida. Para tanto, toma de empréstimo o relato verbal feito
pelo participante no decurso da pesquisa. É sobre este material que se debruça o
pesquisador de base fenomenológica para desvelar os sentidos e significados
intencionais verbalizados. O relato traz à tona a experiência vivida (Amatuzzi, 2003).
Ademais, o material que serve ao exame analítico, caso os encontros de pesquisa
sejam profícuos e produzam a afetação necessária, é construído na própria relação
pesquisador-pesquisado. É que se delineiam os contornos da experiência vivida. Isto
não pode ser diferente quando se trata de uma pesquisa fenomenológica, que é
caracterizada essencialmente pela dimensão investigativa e interventiva, participante
(Amatuzzi, 2003).
A análise do fenômeno em estudo deve ser efetuada mediante a preocupação em
despir-se de teorizações e hipóteses pré-concebidas, estando baseada no “talhamento de
um olhar”, como propõe Critelli (1996).
163
Isto posto, a apreciação do corpus será inspirada em apontamentos de
pesquisadores como Amatuzzi (2003), Bruns e Trindade (2003), Giorgi (1985, citado
por Moreira, 2004). Esta opção metodológica justifica-se pela conformidade com o
referencial teórico-filosófico, além de se julgar mais adequada e útil na compreensão
dos sentidos e significados emergentes dos elementos estudados. Acrescente-se a isso o
fato desse método ser amplamente utilizado nas pesquisas qualitativas de base
fenomenológica. Tal método aponta alguns passos a serem efetuados para extrair
informações do corpus da pesquisa (Amatuzzi, 2003; Bruns & Trindade, 2003; Giorgi,
1985, citado por Moreira, 2004).
Em primeiro lugar, estabelece-se a necessidade da organização dos resultados,
culminando na produção de um texto de referência, que pode ser fruto de transcrições
de entrevistas, observações anotadas em diários de campo, etc. No caso deste estudo, o
texto de referência será constituído por três pilares básicos: (1) as entrevistas iniciais e
finais com as crianças e seus responsáveis; (2) os relatórios de descrição
fenomenológica caso a caso das crianças participantes, registrados pela pesquisadora;
(3) as transcrições de cada sessão de contação de histórias realizada com as
protagonistas, material fruto de registros áudio-gravados.
Formado o texto de referência, o segundo passo consiste em efetuar a leitura
inicial do material e a releitura, almejando alcançar uma compreensão global do que ali
está posto, evitando análises apriorísticas, embora se admita haver uma compreensão
prévia do objeto (Bruns & Trindade, 2003; Forghieri, 2002; Giorgi, 1985, citado por
Moreira, 2004).
O terceiro passo é, a partir da leitura repetida do material, delimitar unidades de
significado, ou seja, sistematizar em temas as variantes e invariantes presentes em cada
164
experiência verbalizada, estreitamente vinculadas ao fenômeno em estudo, qual seja o
potencial terapêutico dos contos para crianças hospitalizadas em Unidade de Terapia
Intensiva. As unidades devem ser decorrência de apreensões espontâneas sobre o
fenômeno, também isentas de teorizações prévias (Amatuzzi, 2003; Bruns & Trindade,
2003; Forghieri, 2002; Giorgi, 1985, citado em Moreira, 2004).
O quarto passo proposto é a definição das unidades de significado, seus temas
centrais e o que elas expressam. As unidades de significado são discriminadas e
explicitadas com vistas a responder à questão de pesquisa (e a suas derivações) que
dispara o estudo, nesse caso: que efeitos os contos produzem nas crianças que os
escutam? (Giorgi, 1985, citado em Moreira, 2004).
O último passo consiste em estruturar uma síntese compreensiva, um texto em
que se declara de forma consistente a experiência das crianças participantes da pesquisa.
Esse texto é denominado estrutura da experiência, ou estrutura geral do vivido. A
narrativa é construída tomando por referência as unidades de significado convergentes e
divergentes relativas à experiência das participantes. Nela estão contidas também
apreciações teóricas entrelaçadas aos resultados produzidos, o que corresponde à fase de
compreensão e interpretação do corpus em análise. Considerando o atual trabalho, os
dados serão articulados com a proposição heideggeriana de cuidado, os apontamentos
sobre hospitalização infantil em UTI e os contos literários (Amatuzzi, 2003; Bruns &
Trindade, 2003; Forghieri, 2002; Giorgi, 1985, citado em Moreira, 2004).
Salienta-se, em derradeira instância, que o exame analítico apresentado na seção
de resultados e discussão é apenas uma possibilidade de compreensão do fenômeno em
estudo, não se pretende única e/ou definitiva. A fase de compreensão e interpretação
implica o envolvimento subjetivo de quem interpreta, o que explica ser uma das
165
inúmeras possibilidades de compreensão fenomênica (Amatuzzi, 2001; Bruns &
Trindade, 2003).
Descritos os passos adotados, vamos à seção seguinte.
4.8 PROCEDIMENTOS ÉTICOS E DESAFIOS METODOLÓGICOS
Para dar início a esta seção, é imperativo indicar a submissão e a aprovação pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, do
protocolo de pesquisa nº 58/2010, referente a este trabalho, através do parecer favorável
nº 162/2010, de 16 de julho de 2010.
Propor e realizar uma pesquisa-intervenção é de extrema ousadia. Propor uma
pesquisa-intervenção em um serviço de assistência crítica, como o é a Unidade de
Terapia Intensiva Pediátrica do maior hospital público do estado do Rio Grande do
Norte, se torna ainda mais ousado. As dúvidas, os embaraços, os obstáculos foram
diversos, em termos éticos e metodológicos. Logo ao iniciar o estudo, com a
confecção do diário de campo na UTIPED, pude observar as grandes agruras a serem
encaradas na construção do corpus da pesquisa, que abarcavam desde a inclusão ou não
de determinadas crianças na pesquisa até a formatação necessariamente maleável que os
procedimentos de pesquisa inicialmente propostos tiveram que ser submetidos.
Em primeiro lugar, a rotina do local, repleta de procedimentos, ruídos,
intervenções, falta de privacidade, alta rotatividade das crianças. Mas, sobretudo, o não
lugar reservado à infância, ao ser criança. Talvez sobrepujando a rotina turbulenta, este
166
foi um dos maiores obstáculos, haja vista que o estudo implicava garantir à criança um
espaço de ludicidade, quase inexistente no contexto em que se encontrava. Por mais
simples que possa parecer, garantir tal espaço implica mudança na rotina e,
especialmente, implica reconhecimento por parte dos demais integrantes da equipe de
saúde da significância do lúdico para o fortalecimento psíquico do infante.
Ainda considerando a rotina da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica,
delimitar o horário apropriado para as intervenções se constituiu fator indispensável
metodologicamente. Para tornar viável a efetuação adequada dos encontros, com o
menor número possível de interrupções, com menor circulação de pessoas, redução dos
ruídos e das interferências externas e, primordialmente, o respeito ao horário dedicado
às visitas familiares, optou-se pelo turno noturno, após a visita vespertina, que é
finalizada às 18 horas. De fato, este foi o melhor momento para a realização dos
encontros com a criança. Neste horário a criança está alimentada, tem passado o
período crítico de separação dos pais ao fim da visita vespertina, e a própria dinâmica da
UTI sofre modificações, assume um funcionamento mais tranqüilo e silencioso.
A partir da delimitação do horário, constatou-se o valor da manutenção do
mesmo para a realização das sessões de contação de história, de modo a garantir uma
rotina lúdica para a criança, o que considero ser importante. Manter uma sequência de
encontros, sem rupturas, em virtude da alta relevância da manutenção de uma rotina
lúdica para a criança, tal como o é a rotina de procedimentos médicos aos quais a
criança é comumente submetida.
No que concerne à inclusão das crianças no estudo, os desafios éticos
relacionaram-se ao quadro clínico das mesmas e, acima de tudo, ao enfrentamento de
167
situações de um grau de complexidade que extrapolava sua condição inspiradora de
cuidados médicos.
Este foi o caso de Pedro. Em um dado momento, a pesquisadora que vos fala
optou por não incluí-lo na composição amostral. Pensei que a situação na qual estava
imerso (morte dos pais) era altamente delicada e sofrida para ele. Também pude avaliar
que, ao mesmo tempo em que participar da pesquisa poderia lhe ajudar, sua demanda e
a necessidade de acompanhamento psicológico transcendiam os objetivos da proposta
de pesquisa. Até que ponto seria possível incluir Pedro, uma criança que havia acabado
de perder seus pais? Como em seu caso eu poderia estabelecer os limites entre a
construção de um corpus de pesquisa e a assistência psicológica? Qual é a linha que
separa minha atuação como pesquisadora e o meu exercício profissional? Diante da
gravidade do que a criança estava vivendo, seria cabível mobilizar afetos e emoções que
porventura não pudessem ser devidamente elaborados ao longo da intervenção
contemplada pela pesquisa?
Optamos, enfim, pela inclusão da criança, considerando que os contos poderiam
ajudá-la, de alguma forma, a organizar sua experiência e cientes de que a criança seria
também acompanhada pela psicóloga da instituição e que estaríamos disponíveis para
acolhê-la de forma mais extensa, caso fosse necessário.
O fato de ser, ao mesmo tempo, psicóloga da instituição e pesquisadora
constituiu-se também em desafio; se por um lado facilitou o desenvolvimento da
pesquisa, por outro provocou, por vezes, a confusão de papéis, seja por parte da
pesquisadora, que vivenciou conflitos relativos à delimitação de sua atuação, seja por
parte da equipe, que demandava intervenções junto a crianças não participantes da
pesquisa. Questionamentos a respeito da confusão de papéis são válidos para todas as
168
demais crianças participantes da pesquisa, e galga centralidade especial neste trabalho
em virtude da natureza intervencionista da pesquisa. Assim, como clarificar, em relação
a todas as crianças participantes do estudo, o limite tênue entre a pesquisa-intervenção e
a intervenção psicológica propriamente dita?
Outro desafio metodológico é alusivo à utilização dos contos de literatura
infantil como recurso à promoção do cuidado na UTI. O desafio que aqui se evidencia é
relativo aos procedimentos de análise do corpus da pesquisa. Devo explicar: como
distinguir os benefícios e transformações advindas do uso das histórias como
mediadores terapêuticos, uma vez que se observou claramente que os benefícios e
transformações alcançados vão muito além do uso das histórias? Tento esboçar uma
resposta razoável a este questionamento na seção concernente a resultados e discussão.
Quanto aos procedimentos, senti constantemente a necessidade de adaptá-los a
cada caso. Emoldurar sistematicamente procedimentos a serem executados junto a
crianças em unidade intensiva de tratamento se mostrou opção falha logo ao primeiro
encontro, junto à primeira criança participante. Tornou-se imprescindível flexibilizar as
atividades previstas, frente à condição clínica da criança, sua disposição afetiva a cada
dia, seu desejo autêntico de realizar o que era proposto durante e após o conto. A
flexibilização também foi importante tendo em vista a necessidade de se ofertar à
criança a possibilidade de escolher se queria ou não participar a cada encontro, se
desejava ou não ouvir histórias. Isto porque a oportunidade de escolha, a partir de seu
desejo e de sua disposição, é fato raro para a criança hospitalizada em UTIPED.
Apreende-se claramente o quão significativo se torna a não imposição dos
procedimentos de pesquisa, o alto valor de acompanhar o movimento e interesse da
criança, sem impelir a mesma a participar das sessões propostas, pois de outro modo, o
169
que potencialmente poderia promover satisfação, alegria, bem-estar emocional, pode se
assemelhar aos procedimentos médicos, no que tange ao caráter de obrigatoriedade e
desprazer. Agindo assim, evita-se incorrer no erro de assemelhar a pesquisa-intervenção
aos procedimentos rotineiros da UTI, frente aos quais a criança não tem possibilidade de
recusa.
Além dos procedimentos, na tessitura dos encontros me chamou a atenção, de
igual modo, a necessidade de adequação do método e das histórias que, a meu ver,
deveriam ser selecionados a partir da compreensão da vivência de cada criança, do seu
caso e de suas disposições afetivas, bem como de suas limitações físicas impostas pela
doença.
Como é razoável presumir, as formulações e reformulações metodológicas
aconteceram persistentemente, considerando os desafios impostos a cada dia, a cada
criança participante, a cada encontro. E este movimento de maleabilidade procedimental
por si só constitui desafio importante, em que pese à impossibilidade que gera de
padronizar os encontros e assim favorecer uma análise regular, linear dos resultados
construídos, levando em conta a tipicidade dos encontros com cada criança, a
irregularidade em termos de desenho metodológico, a variabilidade necessária para que
seja viabilizado o empreendimento investigativo na UTI. Destarte, a manutenção da
sequência dos encontros e dos procedimentos previstos, bem como a frequência diária
dos encontros, conforme inicialmente delineado, não pôde ser cumprida. Os
procedimentos de pesquisa necessariamente precisam ser repensados frequentemente
frente aos imperativos determinados pelo contexto de assistência intensiva.
170
Outra observação diz respeito à transferência da criança da unidade de
tratamento intensivo para a enfermaria. Também aqui se revelaram desafios
metodológicos.
Uma vez que se propunham oito encontros ao todo com a criança, tais encontros
não ocorriam todos durante sua permanência em UTIPED. Para algumas crianças
participantes, houve a exiguidade de se dar prosseguimento aos procedimentos no
ambiente da enfermaria, o qual é dotado de outra dinâmica funcional. Enquanto a UTI
oferece a possibilidade de encontros individuais, com mínima interferência externa, a
enfermaria é um local marcado pela coletividade, por interferências externas constantes,
um local onde se revela veementemente a dificuldade de execução de propostas de
cunho individual.
Desta maneira, pensei em diminuir o número de encontros com as crianças,
considerando a média de permanência em UTI pediátrica, que é de 6.4 dias, segundo
levantamento estatístico interno com base no ano de 2009 (informação extraída do setor
estatístico da instituição hospitalar alvo do estudo). Tal não foi viável, por se acreditar
que seis encontros não seriam suficientes para atender aos objetivos do trabalho.
Retomando as questões relativas à opção pela pesquisa-intervenção,
notoriamente se mostraram estruturantes os encontros para a criança, de tal modo que o
vínculo estabelecido por ocasião da pesquisa se estendia para além da permanência da
criança até mesmo no hospital. O acompanhamento das crianças participantes da
pesquisa requer continuidade, mesmo fora da UTI, onde quer que a criança esteja, em
respeito ao vínculo formado.
171
Outrossim, não limite temporal possível para o vínculo tecido. Mesmo nos
outros encontros, não mais relacionados à pesquisa, as crianças me traziam informações
importantes para análise, solicitações para ouvir histórias, sinalizando a significância
que atribuíram à experiência. Verifiquei que a pesquisa não se encerra com a
consecução do último encontro previsto.
Somado a isso, pode-se indicar outro elemento desafiador: o registro dos
encontros. Efetuar pesquisa em espaço médico intensivista é tarefa árdua, haja vista que
os registros por vezes sofrem prejuízos. Elegi como companheiro de registro um
gravador portátil e a confecção de diário de campo. Para duas das crianças participantes,
Bié e Bulu, pouco se fez necessário o uso do equipamento de áudio-gravação, em
virtude do fato de Bulu pouco interagir verbalmente, apenas monossilabicamente, e Bié,
o fazer de forma pouco audível e compreensível, o que dificultava a boa captação dos
sons emitidos. Em face de tal realidade, elegeu-se como instrumento principal de
sistematização das informações o material de descrição fenomenológica das sessões de
contos.
Por fim, mas não menos importante, percebi ao longo da realização das sessões
de contação de histórias, o quão a pesquisa-intervenção aqui apresentada exigiu em
termos de persistência e alto grau de investimento afetivo por parte da pesquisadora
com cada criança, o que produziu desgaste físico e emocional consideráveis.
Após a discussão dos desafios enfrentados para o alcance dos objetivos da
pesquisa, a seguir desvelam-se os resultados obtidos no transcurso deste recorte das
histórias de vida de cada herói participante, agora marcadas pela hospitalização e por
novas experiências.
172
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ando com ideias de entrar por esse caminho:
livros para crianças. De escrever para marmanjos
me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as
crianças um livro é todo um mundo. (...) Ainda
acabo fazendo livros onde as nossas crianças
possam morar. Não ler e jogar fora, sim morar...
(Monteiro Lobato, 1916)
É chegada a hora de trazer à baila os resultados da construção do cuidado à
infância em Unidade de Terapia Intensiva por meio dos contos literários.
Ao longo da imersão nos dados para a construção da pedra angular do trabalho,
constituída pelas apreciações fenomenológicas, a geração das unidades de significado e
os textos de síntese, foi notória a quantidade significativa de material produzido.
Qualquer tentativa de descrição dos resultados não daria conta da riqueza dos encontros
com cada criança.
Ora, partindo do enfoque fenomenológico, pretendeu-se dar sentido à
experiência das crianças em UTIPED ao dialogarem com as histórias infantis. Portanto,
os sentidos e significados explicitados são produto do olhar intencional da pesquisadora
sobre o fenômeno em questão, considerando inclusive os significados produzidos na
interação criança-pesquisadora-conto. Por conseguinte, a proposta analítica, conforme
173
mencionado anteriormente, não se pretende única ou mais completa, apenas uma
maneira de compreender e significar o fenômeno.
Ademais, captar as possibilidades terapêuticas dos contos para as crianças em
UTIPED revelou-se empreitada desafiadora, haja vista que os significados e o modo de
afetação para cada criança não é acessível a não ser para a própria criança. Apenas ela
compreende de modo fiel em que medida a história permitiu-lhe acessar os benefícios
advindos da apropriação e ressignificação de seus enredos, e se isso de fato ocorreu.
Todavia, assumiu-se como noção fundamental a de que as sessões adotando contos
como mediador poderiam produzir resultados benéficos sobre o imaginário das crianças
internadas em UTIPED e separadas temporariamente de seus pais e/ou figuras de
referência.
Optou-se por tomar como referência três fontes de informações, conforme
apontado na seção de procedimentos de análise do corpus: (1) as entrevistas iniciais e
finais com as crianças e seus responsáveis; (2) os relatórios de descrição
fenomenológica caso a caso, registrados pela pesquisadora em diário de campo,
compondo o protocolo de observação e interpretação fenomenológica das sessões; (3) as
transcrições de cada sessão de contação de histórias realizada com as protagonistas,
material fruto de registros áudio-gravados. As protagonistas são as crianças, embora os
relatos de suas mães, na entrevista inicial ou final, e os registros da pesquisadora
também constituam o corpus da pesquisa.
Inicialmente, será exposto o relato sobre a vivência da hospitalização para as
crianças. Os demais tópicos se dedicam à análise do corpus edificado, entrelaçando a
intervenção mediada pelos contos, a noção heideggeriana de Cuidado e a experiência
compartilhada entre a pesquisadora e as pequenas personagens.
174
Os resultados estão dispostos em três linhas de análise, subdivididas em eixos e
unidades de significado, cada qual respondendo a objetivos do estudo (geral e
específicos). Visando clarificar a estrutura da experiência resultante, a partir da inter-
relação entre objetivos e organização dos resultados, apresenta-se ao leitor um quadro
sintético contendo exposição geral de tais informações.
É válido relembrar as interrogações que balizaram o estudo: que efeitos os
contos produzem nas crianças que os escutam? O que esse instrumento de intervenção,
ainda não utilizado amplamente como o são o brincar, os jogos e os desenhos, tem a
contribuir na ajuda às crianças hospitalizadas em UTI pediátrica? Em que medida a
interação da criança com a tradição literária pode lhe servir como mecanismo de apoio e
proteção a sua saúde psíquica?
175
QUADRO 5: ESTRUTURA DA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DO CORPUS DA PESQUISA
LINHAS DE ANÁLISE
UNIDADES DE SIGNIFICADO
OBJETIVOS DO ESTUDO
ERA UMA VEZ... AS
CRIANÇAS DA UTIPED
-
Geral e Específico: (1) Investigar o
papel dos contos na promoção do
cuidado à infância frente à experiência
de adoecimento, hospitalização e
separação dos pais
ENTRELAÇANDO
OS SENTIDOS DO
CUIDADO
CONTOS
LITERÁRIOS E
EVOLUÇÃO
TERAPÊUTICA...
UMA
APROXIMAÇÃO
POSSÍVEL
Eixo
Lúdico
1. É chegada a hora?! A
expectativa pela hora do conto
Geral: Compreender as possibilidades
psicoterapêuticas dos contos de
Literatura Infantil no cuidado a crianças
hospitalizadas em Unidade de Terapia
Intensiva Pediátrica de um hospital
público estadual, localizado no
município de Natal/RN.
Específicos: (1) Entender como a
utilização da literatura infantil atua no
acesso e compreensão das necessidades
da criança gravemente enferma; (2)
Investigar o papel dos contos na
promoção do cuidado à infância frente à
experiência de adoecimento,
hospitalização e separação dos pais; (3)
Apreender a construção de sentidos e
significados relativos à experiência de
adoecimento e hospitalização facilitada
pela contação de histórias; (4)
Compreender a função exercida pelos
contos na relação terapêutica entre
psicólogo e criança.
2. Contos, humor e prazer: entre
o desejo e a necessidade de
ouvir histórias
Eixo
Reflexivo
1. Contos, produção simbólica e
expressão de pensamentos,
sentimentos, desejos e conflitos
2. Contos: fantasia e realidade se
misturam e se diferenciam
Eixo
Afetivo
1. Separação dos pais: a hora do
conto como espaço de
acalanto e maternagem
2. Contos e vínculos de cuidado
E, AFINAL, O QUE AS
CRIANÇAS ACHARAM DA
HISTÓRIA? NARRATIVAS
TECIDAS PELAS
PROTAGONISTAS DESTA
HISTÓRIA
1. E no fim emergem os
significados da experiência
contada e vivida...
Geral e Específicos: (1) Investigar o
papel dos contos na promoção do
cuidado à infância frente à experiência
de adoecimento, hospitalização e
separação dos pais; (2) Apreender a
construção de sentidos e significados
relativos à experiência de adoecimento
e hospitalização facilitada pela contação
de histórias; (3) Compreender a função
exercida pelos contos na relação
terapêutica entre psicólogo e criança.
2. Conto ou não conto?
Comentários adicionais
176
5.1 ERA UMA VEZ... AS CRIANÇAS DA UTIPED
Onde você vive?
Com os Meninos Perdidos.
Quem são eles?
São crianças que caíram do carrinho enquanto a
babá delas, distraída, olhava para o outro lado. Se
ninguém os encontra em sete dias, eles são enviados
para a distante Terra do Nunca. Lá, eu sou o capitão.
Ah, se pelo menos eu pudesse ver esse lugar... As
histórias que teria para contar aos meninos!
exclamou ela.
(Barrie em Peter Pan, adaptado por Sabuda, 2009)
A primeira linha de análise compreende a vivência da hospitalização dos
protagonistas da pesquisa. A pretensão é apresentar o relato dos quatro casos que
compõem a pesquisa, com vistas a propiciar um melhor entendimento dos resultados
alcançados ao longo dos encontros com as crianças. Descrevem-se informações sobre
como as crianças estavam experienciando o internamento, na visão das próprias crianças
e/ou de seus responsáveis, e as disposições afetivas e comportamentos predominantes.
Assim, as informações sobre como Bulu estava reagindo à hospitalização em
UTIPED são provenientes da descrição fornecida pelo seu pai em sua entrevista inicial,
que a criança apresentava limitada expressão verbal, fazendo uso restrito da fala para
fins comunicativos.
Quando questionado sobre como Bulu experiencia o internamento, revela:
177
Pai: Ah, Bulu é uma pessoa calma, ele chora um pouquinho, fica triste,
dizendo querer ir pra casa, mostro a foto da irmãzinha dele, ele fica muito
feliz. E é incrível, aguenta qualquer coisa, de dor, ele deita, ele não
reclama, ele não faz revolta. E, como eu falei, acho que essa revolta seja
bom, mas ele aceita tudo, tudo, e assim, eu fico falando a verdade, fazendo
ele entender o que vai acontecer porque nem os médicos, nem os
enfermeiros, ninguém fala a verdade, o que vai acontecer, então pelo menos
eu tento explicar pra ele, o quê que acontecendo, porque eu sei que ele
entende.
É notória a preocupação do pai com as reações emocionais da criança frente ao
processo de adoecimento e internação. Na relação com o filho, a partir de sua afetação,
compreende as reações da criança e busca prover a esta um cuidado que podemos
conceber como antepositivo. O mesmo admite ser maléfico para a criança assumir
postura passiva, apática, tal como acontecia com Bulu, busca, outrossim, que o filho
aproxime-se de seu ser-mais-próprio e signifique de forma mais autêntica a experiência
de hospitalização e, para tal, fala a verdade, acreditando que Bulu tem recursos para
lidar com a mesma.
No que tange às principais disposições afetivas e/ou expressões
comportamentais da criança, a mesma, quando em estado clínico favorável, usualmente
se encontrava desperta, sentada em seu leito, ora assistindo televisão e/ou DVD, ora
prestando atenção aos preparativos para procedimentos, entre outros elementos. Apesar
de alerta, permanecia boa parte do tempo circunspecta, sem interagir verbalmente com a
equipe de saúde, apenas com seus pais.
No caso de Bié, o mesmo aponta como se sente durante sua entrevista inicial.
Bié: [Sobre seu dia na UTIPED] É bom. que o problema é o pica-pau.
Eu não gosto não [da UTI]. Não pra assistir o pica-pau. É, num pega [o
178
canal que transmite o desenho animado favorito de Bié]. Hum, comer...
Comer e assistir televisão [Sobre o que faz durante o dia na UTI]. Não sei
porquê não pode fazer nada! fazer isso... [Sobre o que gostaria de fazer
na UTI] Brincar! [Sobre o que mais gosta na UTI] Só da televisão. [E sobre
o que menos gosta] De sempre ficar deitado!
Pesquisadora: Como é que você se sente aqui na maior parte do tempo?
Bié: Sei não. Mais ou menos.
Pesquisadora: Mais ou menos o quê?
Bié: Triste.
Pesquisadora: Triste? O quê que lhe deixa mais triste aqui dentro, Bié?
Bié: Não sei não. Eu sair pros canto muito, muito, muito longe.
Pesquisadora: O quê que lhe deixa mais alegre aqui dentro?
Bié: Assistir televisão.
Pesquisadora: Qual é a hora do dia mais alegre pra você aqui?
Bié: É... A mesma coisa que eu disse. Assistir televisão. E ver minha mãe!
Minha mãe e meu pai!
O brincar é citado por Bié como a atividade que gostaria de realizar na UTI. Sua
fonte de diversão e entretenimento se restringe à televisão, ainda que privado de seu
desenho animado predileto. Bafirma se sentir triste pelo afastamento de sua casa,
apontando que a hora de maior alegria ao longo do dia é quando vê seus pais. É possível
perceber em seu discurso o quão importante se faz o acesso à ludicidade como inerente
à rotina do serviço intensivista, propiciando espaços de expressão e prazer para a
criança, bem como o sofrimento suscitado pela ausência dos pais, que não podem
permanecer na UTI de forma contínua.
No que diz respeito à disposição afetiva e/ou expressões comportamentais de
Bié, ele, como outras crianças observadas e atendidas, recusava-se a falar.
Permanecia boa parte do tempo imóvel no leito. Mesmo à hora da visita, com sua mãe
ao lado, a criança passava considerável parte do tempo com seu rostinho virado para o
179
lado contrário a quem lhe dirigia a palavra. Cabisbaixo, calado, a despeito das várias
tentativas de familiares para fazê-lo interagir e sorrir durante o horário da visita.
Membros da equipe de saúde demonstravam preocupação com o estado
emocional e o comportamento introspectivo da criança. Uma enfermeira diz, durante
procedimento: “Esse menino é tão deprimidinho, tão triste... Eu fico tão preocupada!”.
Introspecção, isolamento, quietude, recusa ao contato verbal, é assim que se
pode descrever a afetividade e o comportamento predominantes de Bié ao longo do
processo de adoecimento e hospitalização em UTI. Suas respostas, interações verbais,
comumente assumiam um tom de indiferença, apatia, como uma espécie de tanto faz”.
Ainda no segundo dia de internamento em UTI, a mãe dele diz que observa no filho
uma melhor aparência. Mas ainda o percebe triste. Já na entrevista inicial com a
genitora, ela apontava sua preocupação com o comportamento da criança.
Mãe:
Eu notando ele muito caladinho, no primeiro dia [na UTI]. Agora
hoje eu notei ele com uma feição, assim, mais bonita. Eu não sei nem
explicar, eu tô notando que ele tá muito assim caladinho, com aquela
vontade de chegar em casa. Em casa ele é muito conversador, mas eu acho
que ele assim, com pouca, assim, com vergonha sabe, de vez em quando
passa uma enfermeira lá, né? Ele fica, ele é muito vergonhento. Eu não sei
nem explicar que ele tá tão calado.
Pedro, não diferente de Bié, aponta sua aversão ao hospital, especialmente
devido à saudade que sente de sua família. Cita, entretanto, o brincar como atividade da
qual gosta de desfrutar ao longo do processo de internamento.
Pedro: Eu não gosto de ficar aqui no hospital, não! Aqui é muito rim!
[Sobre o que há de ruim no hospital] Porque não pode ir pra casa agora! Só
quando eu melhorar! [Sobre o seu dia no hospital] É ruim. Eu não como
180
quase nada! Eu comi hoje porque a enfermeira é muito chata! [Sobre o que
faz durante o dia no hospital] Brinco... Mas, hoje eu tomei banho. [Sobre a
parte do dia que mais lhe deixa alegre] Nenhum dia! [Sobre a parte do dia
que lhe deixa mais triste] Todo dia. Com saudade da minha família! Hoje eu
liguei pra minha vó! [Sobre como se sente no hospital] Rim... [Sobre do que
mais gosta e do que menos gosta] Nada! [Sobre do que sente mais falta] De
minha mãe e do meu pai. [Sobre o que gostaria de fazer enquanto está
hospitalizado] Brincar. Andar. Andar de cadeira de rodas mas... Aqui não
tem não.
Distantes de seus lares, vivenciando a paralisação temporária de suas tarefas
diárias, as crianças se sentem tristes, e solicitam o brincar como alternativa para
enfrentar o dia a dia no hospital.
Quanto ao comportamento e disposição afetiva predominantes, Pedro permanece
consciente, por vezes sonolento, envolto em uma manta, quieto, imóvel e, como Bié,
calado. Entretanto, Pedro conversa com seus familiares à hora da visita e, quando
necessário, com a equipe que lhe presta assistência. Poucas vezes dirige seu olhar a
quem lhe fala, e comumente responde de forma abreviada às perguntas e intervenções
da pesquisadora. Em alguns momentos, Pedro permanece triste, com olhar distante, e
em silêncio, deliberadamente em silêncio, comportamento não incomum às crianças em
sua idade internadas em UTI, conforme experiência profissional. Afirma, fazendo uso
da cartela de sentimentos, que está triste, justificando sua tristeza pela saudade que sente
de sua mãe.
Assim como Bié, Pedro, ainda participando da pesquisa, foi transferido para a
enfermaria. Neste local assumiu outro comportamento, ativo, participativo, alegre.
Interessante notar o quão faz bem à criança estar ao lado de familiar significativo,
interferindo de forma positiva no modo dela interagir e reagir à hospitalização.
181
O quarto herói do estudo, Arthur, em sua entrevista inicial, aponta seu
desconhecimento dos motivos que o mantém internado em UTI, que diz não sentir
nada que justifique sua permanência naquele local.
Pesquisadora: Arthur, você sabe desde quando você tá aqui na UTI?
Arthur: Não. [Sobre se a criança sabe a respeito do motivo de seu
internamento] Não! [Sobre o que sente] Nada, tá, bem. [Sobre se lembra
o que sentia antes de ser internado] Tava com dor. Aqui na barriga. Tava
inchado e muito! Mas desinchou!
Como se sentia bem, apesar das altas taxas de glicose no sangue e hipertensão
arterial, Arthur costumeiramente revelava estar alegre, na expectativa de receber alta.
Segundo relato de sua mãe, todos os dias Arthur lhe questionava se iria sair da UTI. A
mesma, se sentindo pressionada e sem saber o que dizer, reafirmava à criança que no
outro dia ela sairia, alimentando falsas esperanças. Diante da frustração, no dia seguinte
Arthur reagia com agressividade, choro, insistindo para sair.
Semelhante a Bié e Pedro, quando questionado sobre o que faz ao longo do dia
na UTI, Arthur afirma: “Eu brinco, e durmo! E assisto TV”. Curioso observar que eles
habitualmente não citam os procedimentos, medicamentos, banhos no leito, e demais
rotinas da UTI. Prevalecem em suas narrativas apenas os momentos bons, os momentos
de brincadeira, de distração. Mais uma vez é indicado o potencial do lúdico,
especificamente, para inscrever na subjetividade infantil experiências compensatórias
que lhe aliviem a dor e a saudade (Azevedo, 2008; Chiattone, 2003, 2011; Dias, Laloni
& Baptista, 2008; Fortuna, 2007; Gimenes, 2007; Kudo & Maria, 2009; Lange &
Matina, 2008; Lindquist, 1984; Medeiros & Andreoli, 2008; Oliveira, 2007; Parreiras,
2008; Pérez-Ramos, 2008; Pérez-Ramos & Oliveira, 2010; Romano, 2008; Silva, 2008;
Teles & Valle, 2010; Vieira & Carneiro, 2008).
182
Abaixo fragmentos da entrevista inicial com Arthur que indicam como a criança
experienciava a hospitalização em UTI.
Arthur: [Sobre como é o dia da criança na UTI] É, bem. [Sobre o que faz
durante o dia] Brinco com esses brinquedo e assisto desenho.
Pesquisadora: E come, né?
Arthur: É.
Pesquisadora: E toma os medicamentos?
Arthur: Sei não.
Pesquisadora: Tem os médicos aqui...
Arthur: É.
Pesquisadora: As enfermeiras...
Arthur: E minha mãe vem me visitar! [Sobre como a criança se sente na
UTI] Bom. [Sobre o que deixa a criança mais triste na UTI] Quando minha
mãe não vem me visitar. [Sobre o que deixa a criança mais alegre] Quando
eu vou sair daí, daqui. [Sobre do que ele mais gosta na UTI] Brincar.
[Sobre o que menos gosta] Num sei não. [Sobre do que sente mais falta] Da
minha família. [Sobre o que gostaria de fazer na UTI durante o dia] Ficar
andando. Por aqui.
A separação dos pais e/ou das figuras de referência da criança constitui ponto
crucial para compreender a dinâmica emocional infantil na terapia intensiva. E ajuda a
compreender, igualmente, uma das principais funções terapêuticas exercidas pela hora
do conto no cotidiano das crianças participantes deste estudo, conforme apontado
posteriormente. Sobre isso, selecionou-se um trecho da entrevista inicial com a mãe de
Arthur que indica como está sendo doloroso para a criança seu afastamento da figura
materna.
Mãe: Ele chorou porque não queria ficar. O problema de Arthur maior é
porque com certeza ele disse: ‘Mainha, se a senhora tivesse aqui...’, porque
eu não estou com ele, principalmente dormindo, aí o problema maior dele é
183
só esse. Aí eu sinto que ele tá ficando mais triste por conta disso. Porque ele
acha esperança que vai sair hoje, vai sair hoje, vai sair hoje, todo dia ele
diz isso. Aí aquela coisa pra mim deixando ele mais triste, porque num
conseguindo. Eu digo: ‘Meu filho, enquanto mainha tiver, se não deixarem
mainha ficar ali, mainha fica ali fora, mas não vai deixar, não vai embora
não! Não se preocupe que eu não vou embora e vou ficar aqui pertinho de
você!’. Sempre eu dizendo isso e vou, ‘Você vai sair daqui quando
você estiver bom, porque eu não quero mais que você volte pra casa doente,
você quer?’. Ele disse: ‘Não!’, ele disse, ‘Então, fique aí!’. Eu disse isso
a ele, ‘Você vai sair daqui não sei se é hoje, amanhã, não sei, então, mas
você vai sair daqui sem precisar voltar mais!’. ele ficou melhorzinho,
aí eu vou ver agora.
Como é possível constatar, para Arthur apenas a presença de sua e seria
suficiente para lhe fortalecer, diminuindo sua ansiedade que, de tão alta, interferia
inclusive nas taxas glicêmicas e na pressão arterial da criança, o que pôde ser
confirmado quando de sua liberação para a enfermaria de outro hospital pediátrico. No
primeiro dia de permanência em enfermaria, ao lado de sua mãe, tais taxas sofreram
redução considerável, assumindo os níveis da normalidade.
No que concerne ao comportamento e afetividade da criança, a mesma é séria,
introspectiva, responde o estritamente necessário, e demonstra uma maturidade precoce,
inclusive na adesão ao tratamento da diabetes, com auto-administração do exame para
verificação das taxas de glicose e da insulina. Apesar da seriedade, Arthur, no decorrer
dos encontros, sempre apontava a carinha de alegre na cartela dos sentimentos, seja
antes ou depois das sessões, e respondia ao estímulo assim que lhe era apresentado.
Arthur é muito ativo, gosta de desenhar e adere prontamente às atividades sugeridas
pós-contação, atividades estas que tiveram que sofrer adaptações e/ou serem descartadas
com outras crianças participantes da pesquisa, em respeito ao desejo da criança. É
184
cooperativo com a equipe de saúde, disciplinado, por vezes chegando a lembrar-lhe seus
horários certos para se alimentar.
Nas narrativas apresentadas, evidencia-se o sofrimento psíquico das crianças
hospitalizadas em UTI. Para além das dificuldades inerentes ao processo de
adoecimento, aos procedimentos, às restrições consequentes ao contexto, a separação da
figura de referência é ressaltada pelas crianças, uma dificuldade adicional, que poderia
ser evitada caso fosse respeitado o seu direito de ter um acompanhante na UTI
(Campos, 1995; Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista, 2010; Favarato &
Gagliani, 2008; Lange & Matina, 2008; Lima, 2004; Lindquist, 1984; Mello, 2008;
Pérez-Ramos, 2008; Scaranto, 2007; Silva, 2008; Torres, 2008)
As expressões infantis, a observação por parte da pesquisadora e o depoimento
dos familiares revelam o silêncio das crianças na UTI. Heidegger (1927/2005) concebe
a linguagem como morada do ser. Ao referir-se à disposição afetiva, compreensão e
discurso, como existenciais fundamentais, o filósofo destaca que a compreensibilidade
do ser-no-mundo se pronuncia como discurso. Para o filósofo, a palavra revela, abre.
Como compreender, então, a ausência da palavra na UTI Pediátrica? A reflexão sobre
tal questão requer o reconhecimento de que da linguagem fazem parte o silêncio e a
escuta, o sonoro não é o fundamental, o decisivo da linguagem é o significado. No caso
das crianças desta pesquisa, o silêncio encobre e desvela significados atribuídos à
experiência da hospitalização em UTI. É importante considerarmos que o silêncio é
possibilidade constitutiva do discurso, pois o estar em silêncio também articula a
compreensibilidade da pre-sença. No discurso das crianças, quando é oferecida a
abertura para seu pronunciamento, a partir da entrevista inicial, predomina sentimentos
185
como tristeza e saudade, donde brotam as significações atribuídas ao momento atual
(Heidegger, 1927/2005).
5.2 ENTRELAÇANDO OS SENTIDOS DO CUIDADO CONTOS LITERÁRIOS E
EVOLUÇÃO TERAPÊUTICA... UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL
Ah, como é importante para a formação de qualquer
criança ouvir muitas, muitas histórias... Escutá-las é o
início da aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é
ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e
de compreensão do mundo... É também suscitar o
imaginário, é ter a curiosidade respondida em relação
a tantas perguntas, é encontrar outras ideias para
solucionar questões (como as personagens fizeram...). É
uma possibilidade de descobrir o mundo imenso dos
conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos
e atravessamos dum jeito ou de outro através dos
problemas que vão sendo defrontados, enfrentados (ou
não), resolvidos (ou não) pelas personagens de cada
história (cada uma a seu modo)... É a cada vez ir se
identificando com outra personagem (cada qual no
momento que corresponde àquele que está sendo vivido
pela criança)... e, assim, esclarecer melhor as próprias
dificuldades ou encontrar um caminho para a resolução
delas...
(Abramovich, 1997, p. 16-17).
A partir do processo de construção da análise, com a leitura e a releitura do texto
de referência, foi possível compreender os significados atribuídos pelas crianças à
experiência vivida a partir da intervenção proposta. Tais significados foram
186
discriminados em unidades, de modo a destacar suas diferentes nuances. Dada a
amplitude dos resultados e visando uma melhor compreensão dos mesmos, optou-se por
organizar as unidades em eixos, tendo como parâmetro o modelo proposto por
Gutfreind (2010), que foi adaptado às informações evidenciadas nesse estudo.
A segunda linha de análise, portanto, de maior amplitude, abrange a
apresentação dos resultados referentes a três eixos de compreensão das possibilidades
terapêuticas dos contos de literatura infantil: o eixo lúdico e o eixo reflexivo, apontados
por Gutfreind (2010), e o eixo afetivo, acrescentado por esta autora. Em relação aos dois
primeiros eixos, Gutfreind (2010) refere:
Se a conceitualização na terapia pelo conto abarca numerosas tendências, é
de se fixar dois eixos para dar conta de seus efeitos nesse campo, o lúdico e
o reflexivo, não esquecendo que o aspecto lúdico pode estar presente no
eixo reflexivo (Gutfreind, 2010, p. 42).
Cumpre ressaltar que o mesmo fenômeno ocorreu neste empreendimento
analítico.
O terceiro eixo foi adicionado em virtude da densidade de dados gerados a partir
dos encontros com as crianças, dados estes que evidenciavam de forma significativa os
afetos e os vínculos de cuidado envolvidos na experiência.
5.2.1 Eixo lúdico
Segundo Gutfreind (2010), o uso do conto como mediador psicoterapêutico
fomenta a abertura de possibilidades lúdicas que estimulam a criança a brincar,
187
imaginar, fantasiar, criar. Levando em consideração o público que compôs esta
pesquisa, ofertar espaços lúdicos como o de contos pode libertar a criança de seus
fantasmas internos relativos ao estar doente, em estado crítico, afastada de seus pais e
familiares, produzindo, por conseguinte, as condições favoráveis para que a criança
fortaleça seu potencial de enfrentamento e maneje de forma mais adequada a situação
em que se encontra.
Ademais, a inserção da ludicidade na rotina das crianças em UTIPED delimita a
especificidade do cuidado à criança, que deve levar em conta sua necessidade vital de
brincar e viver sua infância em qualquer lugar que esteja.
Neste sentido, os resultados encontrados, que podem ser compreendidos como
pertencentes a uma dimensão lúdica da experiência, dividem-se em duas unidades de
significado: (a) É chegada a hora?! A expectativa pela hora do conto; (b) Contos,
humor e prazer: entre o desejo e a necessidade de ouvir histórias.
a. É chegada a hora?! A expectativa pela contação de histórias
As sessões de contação de histórias pareciam ocupar lugar privilegiado no
cotidiano das crianças participantes da pesquisa, sendo alvo de grande expectativa. De
algum modo era importante aquele momento para a criança. Conforme assinalado
pelas próprias crianças durante a entrevista inicial, ao serem questionadas sobre o que
mais gostariam de fazer enquanto estivessem internadas em UTI, a possibilidade de
brincar emergia como atividade mais desejada. A hora do conto, portanto, poderia
representar para elas tal possibilidade de imersão na ludicidade.
188
Tal assertiva é corroborada por estudiosos do tema (Amarilha, 1997; Caldin,
2010; Parreiras, 2008) que, conforme exposto, consideram que a Literatura Infantil
pode ser entendida como um brinquedo proposto em linguagem, um jogo de faz-de-
conta, de fantasia que proporciona prazer, media a comunicação, permite a criação
constante de si mesmo e, assim, age terapeuticamente.
Para Bulu, por exemplo, a hora do conto era esperada da mesma forma como era
esperada a visita materna. A criança permanecia sentada em seu leito, com o olhar fixo
e atento direcionado à porta da UTI. Somente assumia uma posição de tranquilidade e
relaxamento, deitando no leito e estendendo sua mão para que a pesquisadora segurasse
quando do início do encontro.
A expectativa pela hora do conto, para Bié, pode ser sinalizada no que seria sua
terceira sessão de contos. Neste dia, a pesquisadora o encontra dormindo. Ao abordar
sua mãe, a mesma afirma que teria dito à criança enquanto aguardava a chegada da
pesquisadora: “A tia disse que vinha contar história e nem veio!”. E então teria
adormecido.
Para Pedro, a hora do conto parecia representar momento marcante no dia da
criança. Assim revela a tia, acompanhante de Pedro, em conversa sobre os encontros:
Tia: Eu achando muito ótimo, muito bom porque eu vendo que ele,
quando ele tá triste que eu digo ‘Tia Ariane vai vir hoje, viu?’, vixe! Ele fica
numa alegria só, num a hora. me pergunta, sempre me perguntando:
‘E perto, tia, e perto?’. ontem ele disse assim, porque você
demorou ele disse: ‘Infelizmente, ela chegou!’ (em tom de ironia).
Querendo dizer que por certo que você não vinha, sabe? Aí, ‘Tia, ela não
vem não, tarde!’, olhou pra janela, viu que tava escuro,
189
disse: ‘Olhe, tia, ela não vem não! escuro!’. Eu digo: ‘Ela vem, ela
disse que vinha ela vem!’. Aí aquilo ele dá aquele sorriso.
É fato que Pedro sempre recebia a pesquisadora com muita expectativa e alegria.
Era comum a criança dizer: Ah, eu pensei que você não vinha!ou Tia, eu tava
com saudade de você! Trouxe historinha hoje?”.
Com Arthur não foi diferente. Uma das sessões foi significativa. Teria a criança
permanecido o dia todo sentada em uma poltrona, cena incomum em ambiente de
tratamento intensivo, onde usualmente se pessoas prostradas em seus leitos,
consideravelmente debilitadas.
A pesquisadora, de fato, encontrou a criança sentada na poltrona, assistindo
televisão e aguardando o encontro. Parecia disposto e bem melhor do que todos os
outros dias. Diz sua mãe que, após o término da visita do turno vespertino, perguntara à
criança se a mesma gostaria de voltar a seu leito. Arthur respondera que não, pois
gostaria de esperar a “tia” sentado ali, naquela poltrona, que faria o encontro ali, para
que eu visse que ele estava melhor. A seguir o extrato que corrobora o fato descrito:
Mãe: Ei, você não saiu daqui? Ele disse não vou esperar a tia aqui! Passou
o dia nessa cadeira! Eu disse a ele ‘Vamo pra cama?’, ele disse ‘Não, vou
esperar a tia aqui’. Eu perguntei: ‘Tá cansado?’, ele disse ‘Não, não!’.
Arthur: Mãe, mãe! e! Não! Não! Foi assim oh! Eu fui tomar banho,
quando eu voltei eu botei a cadeira aqui e eu fiquei até agora! (A criança
faz questão de ela mesma explicar, com sorriso aberto e entusiasmo).
Mãe: eu disse “Quer ir pra cama?”, de 6 hora, ele disse “Não, vou
esperar a tia aqui!”. Pra você ver ele aqui! Pra ver que ele bom! Né,
Arthur? Ah, hoje quando eu entrei ele tava com um riso agora de tarde,
bem grande! Foi! (Risos). Quiseram botar ele na cama, ele disse: ‘Não,
vou esperar a tia aqui! Vou fazer hoje aqui!’. As enfermeira ‘Arthur, quer ir
pra cama?’, ‘Não, vou ficar aqui!’. quando eu fui saindo, no, na, quando
190
foi de seis horas, ‘Arthur, vamo pra cama?’, ‘Não, vou esperar a tia
aqui! Nós vamo conversar aqui!’. Tanto é que você chegou ele tava!
(Risos). Ele parece que tava realizado, ele ali mostrar, era como que
queria mostrar pra você que já tava ficando bom, né? Ficando bom, é!
É importante observar o papel dos encontros no movimento interno da criança
em prol de sua reabilitação. A despeito da sutileza de se manter sentado em uma
poltrona, fora do leito, tal comportamento representa atitude simbólica de grande valor
para uma criança hospitalizada em UTI.
A expectativa das crianças desta pesquisa pela hora do conto é evidente,
desvelando a valência da experiência construída na co-presença. Critelli (1996) coloca
que “individual e/ou coletivamente, os homens ‘escolhem’ o que vai estar sob seus
cuidados, aproximando-o e afastando-o de sua cercania, de sua cotidianidade, de seu
mundo vivido, de sua atenção, de seu interesse.” (p. 120).
Ao escolher trabalhar com as crianças da UTI com a mediação dos contos,
escolhemos que estarão sob nossos cuidados, o que implica, necessariamente em afetar
e se deixar afetar. Conforme afirma Heidegger (1927/2005), “pre-sença é
essencialmente ser-com (...) mesmo o estar da presença é ser-com no mundo.
Somente num ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar.” (p. 172).
Chama-se à presença, mais uma vez, Saint-Exupéry (1943/2006) para nos
auxiliar na reflexão sobre a expectativa pela hora do conto:
Teria sido melhor se voltasses à mesma hora disse a raposa. Se tu
vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz!
Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas,
então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! (p. 69)
191
A relação estabelecida entre pesquisadora e criança remete a experiências de
cuidado, ora substitutivo, ora antepositivo. É na expectativa que o conto e a relação
terapêutica por ele mediada se revelam como cuidado que atende a uma das
necessidades apontadas de forma contundente pelas crianças da pesquisa: o brincar, a
ludicidade. É na expectativa que se revela o ser-com pesquisadora e crianças, ser-com
que permite a falta do outro, pois que já numa relação de ser-com-o-outro.
b. Contos, humor e prazer: entre o desejo e a necessidade de ouvir histórias
Nesta unidade, será discutida a maneira como a disposição afetiva e a condição
clínica das crianças se entrelaçam para determinar o desejo ou até mesmo a necessidade
da criança de ouvir histórias.
Não obstante estarem debilitadas, as crianças demonstravam seu interesse em
participar da sessão de contos. A relação entre o estado clínico e o desejo de ouvir
histórias parecia ser diretamente proporcional, ou seja, quanto mais debilitadas, maior
era o desejo de ouvir as histórias. Tal assertiva pode ser confirmada no relatório das
sessões de Bulu e Bié.
No segundo encontro com Bulu, a criança estava com uma aparência diferente:
edemaciado, com os olhos intumescidos, barriga protuberante, tosse frequente, e parecia
mais cansado, com maior dificuldade para respirar. A pesquisadora cumprimenta a
criança com um bom dia e ela responde com seu típico balançar de cabeça. Pede por
sua mãe, como das outras vezes nos encontros.
192
Após Bulu tomar seu café, a pesquisadora senta ao seu lado e pergunta se ele
está disposto a ouvir mais uma historinha. Ele acena com a cabeça afirmativamente.
Pede para que o coloque deitado no leito. A pesquisadora mostra o livrinho. Bulu olha,
folheia por inteiro o livro e depois entrega à pesquisadora, como que num gesto
indicativo de que podia iniciar a contação. Explica-se a Bulu do que se trata a história.
Trata-se do conto realista Gaspar no hospital, selecionado para ser utilizado no segundo
encontro com a criança. A Bulu é solicitado apontar como está se sentindo hoje, com o
auxílio das carinhas dos sentimentos. Ele aponta a carinha alegre e a carinha de sono.
Enquanto a pesquisadora conta a história, nota-se que a criança, embora com
desconforto respiratório, a tosse frequente e os olhos inchados, mantém uma postura de
interesse, fazendo esforço constante para manter seus olhos abertos o máximo que podia
para conseguir enxergar bem as figuras ilustrativas do livro e acompanhar a história.
Evidente o movimento interno que se produz na criança ao ouvir as histórias.
Bulu, não obstante o agravamento de seu quadro clínico, direcionava a atenção que lhe
era possível para viver o momento da contação. Tal reação se repetiu em outros
encontros.
Era comum Bulu, mesmo cansadinho, com quadro de hipertensão arterial, se
colocar sentado no leito à chegada da pesquisadora e estender sua mão para que a
mesma a segurasse durante o tempo do conto. Comportamentos como estes sinalizam o
quão importante e prazeroso era para a criança ouvir histórias. O prazer parecia se situar
entre o desejo e a necessidade de se beneficiar dos encontros.
A necessidade é revelada pelos protestos de Bulu, criança que na maior parte do
tempo não se comunicava verbalmente, apenas por gestos. Os protestos ocorreram no
193
quarto encontro de contação de história. Logo após ser submetido a exame
oftalmológico, enquanto era acomodado em seu leito, Bulu diz:
Bulu: Vai chamar a tia, vai chamar a tia para contar historinha! (fala em
tom irritado. E logo depois fala em tom mais alto e ainda irritado). Vem,
tia, vem!
A pesquisadora, então, retorna para o lado de Bulu e convida a criança a
continuar ouvindo a história que estava contando antes dele ir ao exame. Bulu acena
afirmativamente.
O desejo, atrelado ao prazer de ouvir contos, e a necessidade, no caso de Bulu
atrelada à demanda da criança por um espaço substitutivo, que pudesse lhe aliviar a
angústia de estar separado de sua e, motiva mudança de humor e o uso de
subtefúrgios pela criança para adiar ao máximo o final da sessão de contos. Extratos do
quinto encontro com a criança sinalizam tal assertiva. Nesta sessão, concluído o conto, a
pesquisadora pergunta para Bulu se ele quer fazer alguma coisa, pintar, desenhar. Ele se
põe sentado. Olha para a porta da UTI, como que para checar se sua mãe havia chegado.
Depois recosta novamente sua cabeça no travesseiro. Eis o que ocorre: Bulu pede para
que a pesquisadora cante uma música. Ao terminar de cantar algumas músicas, a criança
diz: “Mais historinha!”. A pesquisadora pergunta qual historinha Bulu gostaria de ouvir.
Ele então responde: “A do patinho feio”.
Bié, semelhante a Bulu, sofria mudança perceptível de humor equiparando o
início e o transcurso da contação com o final do tempo de história. Ao sinalizar o fim da
história, era perceptível o recolhimento da criança. Ele, que até o tom de voz mudava ao
longo da história, voltava a funcionar como aquele garotinho isolado, introspectivo,
194
silencioso. Ocorria ao final da história notório prejuízo do progresso obtido em termos
emocionais e sociais ao longo da contação.
A relação entre a condição clínica da criança e o seu desejo expresso de ouvir
histórias acentuava-se no caso de Bié. Quando fraco do ponto de vista físico, indicava a
sua vontade de ouvir histórias, e costumava não aderir satisfatoriamente a outras
atividades sugeridas pós-contação. Quando fortalecido, Bié manifestava seu desejo de
se envolver em brincadeiras diversas, recusando-se a ouvir contos.
Em sua segunda sessão, após sugerir à criança para elaborar um painel temático
com figuras recortadas e, a partir dele, inventar uma história, a mesma demonstra
desinteresse pela atividade, desinteresse justificado inclusive por sua debilidade física, e
solicita: “Queria mais história, não tem outra história?”.
Indiferença e introspecção como predominantes ao longo de seu internamento
em UTI, a hora do conto parecia representar para Bié uma abertura de possibilidade
para a criança poder ser de forma autêntica.
Neste sentido, em sua segunda sessão, após o conto Gaspar no hospital, a
pesquisadora pergunta como se sente. Bié responde: Bem!”, em tom de indiferença. E
então a pesquisadora questiona à criança se quer fazer mais alguma coisa. Ela de
ombros, em resposta de tanto faz, ou sei lá, ou não sei. Depois completa baixinho:
Ouvir história! Ouvir mais história!”. Atendendo ao pedido da criança, a pesquisadora
conta a história prevista para o terceiro encontro: Quem tem medo de quê?. O
comportamento da criança frente à história é inteiramente outro. Ela passa a interagir
desde a capa da história, alterando consideravelmente seu humor, abandonando a
195
indiferença e introspecção observadas e adotando um comportamento de interesse e
extroversão, com franca interação entre criança-conto-pesquisadora.
O desejo e a necessidade de ouvir contos são dirimidos em outra fase do
tratamento de Bié.
Ainda participando da pesquisa, naquele que seria seu quinto encontro, a criança
foi transferida para a enfermaria, onde podia permanecer na companhia de sua mãe,
receber visitas diariamente em horário estendido, adquirindo maior autonomia no
autocuidado, independência e liberdade para se envolver em atividades variadas, em
conjunto com as demais crianças hospitalizadas, e apresentava significativa melhora
clínica.
É neste contexto que, no que seria sua quinta sessão de contos, a pesquisadora
pergunta a Bié se quer ouvir uma história. Ele responde pela primeira vez de forma
negativa. Suas necessidades por hora pareciam ser outras, e isso é expresso pela
negação a ouvir histórias. Readquirir sua autonomia, sua independência, perdidas ao
longo do processo de tratamento em Unidade de Terapia Intensiva, tornam-se
imperativos. Se adaptar ao novo contexto, conhecer suas normas, sua dinâmica de
funcionamento, a possibilidade que esse novo contexto apresenta de tecer amizades,
brincar, contrariamente ao que a UTI apresenta em termos de limitações e
possibilidades.
As histórias preenchiam as necessidades da criança enquanto estava na UTI, e
neste lugar a criança, em nenhum encontro, negou seu desejo de ouvir contos. Na
enfermaria, ao contrário da UTI, existem outras atividades lúdicas possíveis. A própria
interação facilitada entre as crianças, mesmo na ausência de brinquedos, cria um espaço
196
lúdico que por si só se torna terapêutico, recreativo, educativo, etc. A presença dos pais,
a visita aberta, a presença de outras crianças na mesma situação, tudo corrobora para
que a criança possa ficar bem emocionalmente e possa entender melhor a doença, se
adaptar e se permitir ser criança.
Na quinta sessão de contos, Bié estava passando muito mal, apresentando febre e
vômito. É nesta ocasião de piora clínica que mais uma vez as histórias se tornam
necessárias à criança, como uma de suas únicas alternativas lúdicas para mergulhar em
um mundo de fantasia e, por alguns instantes, amortizar a dor e o sofrimento pelos quais
está passando. Aqui se elucida a relação entre estado de saúde, desejo e necessidade de
ouvir histórias. Tal também se verifica no encontro seguinte, a princípio sexta sessão de
contos, em que, melhor, não são as histórias que Bié pede. Animado, sentado em seu
leito, na companhia do pai, Bié sorri com as demais crianças que estão jogando. Ao ser
questionado pela pesquisadora se gostaria de ouvir histórias, ele prontamente responde
que não, afirmando que queria pintar com tinta.
A sexta sessão ocorre, então, no dia seguinte, dia em que Bié volta a passar mal.
A criança sente mal-estar, náusea e, por vezes, vomita. Não está se alimentando bem, só
aceitando comer frutas e líquidos, e apresenta quadro de constipação. Seu abdômen
permanece edemaciado e dolorido.
A pesquisadora pergunta a Bié o que ele quer fazer. Ele diz murmurando e
cabisbaixo: Ouvir história”. Elege-se a história de Marilu. A criança não interage
verbalmente ao longo da história, mas escuta atentamente, por vezes balançando a
cabeça em tom afirmativo. A criança não estava receptiva à interação verbal, estava
sentindo dores e a ela parecia bastar ouvir o conto. Ao término da contação, a
197
pesquisadora questiona o que ele quer fazer. Ele repete: Ouvir mais história!”. Elege-
se desta vez a história de Bié doente do pé.
A interrelação entre contos, humor, prazer, desejo e necessidade de ouvir
histórias, de igual modo, fica evidenciada no sétimo encontro com a criança, quando
conta-se para ela a narrativa Dolores dolorida. Bié, neste encontro, permanece no leito,
deitado, enrolado, calado, ensimesmado.
A pesquisadora senta ao lado da criança e a convida a escutar a historinha. Bié
se anima. Sorri timidamente. E permanece deitado, atento ao livro, às gravuras e à
contação da história. Ao mesmo tempo em que se conta, faz-se analogias entre o conto e
a criança, sua conduta diante da situação de doença e hospitalização.
A história se aproxima absurdamente da vivência da criança. Até o episódio de
uma festa, tal como se fez para Bié em comemoração ao seu aniversário e que, mesmo
com dores, ele participou, se permitindo ser mais forte que a dor que referia
constantemente. Bié sorri, se identificando com a personagem. Sorri de si mesmo,
brinca. E a pesquisadora, procurando favorecer a identificação da criança com a
protagonista do conto, brinca com Bié dizendo que acredita que na verdade ele não é
irmão de Alice, mas sim de Dolores dolorida. Ele sorri. Seus olhos brilham.
É interessante o momento da contação de história, especialmente essa que se
resolve contar, tendo em vista sua condição atual. Terminada a história, Bié estava
mais alegre, animado, interagindo verbalmente, sorrindo, brincando.
Tomando como referência as sessões de contos realizadas com Pedro, do mesmo
modo se elucidaram os efeitos da contação de histórias no humor da criança e o prazer
que sentia neste período do seu dia. Segue extrato de fim de sessão que confirma isto.
198
Pedro: Bora pegar o joguinho?
Pesquisadora: Vou pegar! (mostra para a criança a cartela dos
sentimentos).
Pedro: (Aponta a figura da carinha com sono).
Pesquisadora: Sono? Quê mais?
Pedro: (Com o dedo, procura outra carinha).
Pesquisadora: O que é isso?
Pedro: Feliz!
Pesquisadora: E por que Pedro tá feliz?
Pedro: Porque tô sorrindo...
Pesquisadora: Por que tá o quê? Sorrindo? Você tava como antes?
Pedro: (Aponta outra carinha, a mesma que ele apontou no início da sessão
de contação de história).
Pesquisadora: Como é isso aí?
Pedro: Triste!
Pesquisadora: Por que você tava triste?
Pedro: Por causa da minha mãe...
Pesquisadora: E agora, por que você tá alegre?
Pedro: Você contou uma história pra mim...
A interferência da hora do conto no humor da criança também é apontada em
fragmento da entrevista feita com a tia de Pedro.
Pesquisadora: É... em relação ao estado emocional dele, como é que ele
fica na maior parte do tempo aí?
Tia: Pensativo, triste às vezes... Ele só tem alegria mais quando... é, quando
chega uma pessoa, começa a conversar, quando se lembra da tia Ariane
contando história... (risos). Fica falando “Titia, na hora de tia
chegar?”, perguntando direto. E eu tá assim, sempre incentivando ele...
Com Arthur não foi diferente. A alteração da disposição afetiva é observada pela
própria criança. Finalizados a hora do conto e o momento de produção simbólica,
199
através de uma partida de jogo da memória, a pesquisadora apresenta à criança a cartela
de sentimentos, buscando saber como a criança se sente naquele momento.
Pesquisadora: Como é que vo tá? (apresentando a cartela de
sentimentos à criança).
Arthur: (A criança aponta para uma carinha).
Pesquisadora: Que é isso aí?
Arthur: Feliz.
Pesquisadora: Feliz? Por que você tá feliz?
Arthur: Porque eu me acalmei mais.
O que ontologicamente denominamos disposição pode ser onticamente
designado como humor, ou estado de humor. O humor revela como alguém está e se
torna” (Heidegger, 1927/2005, p. 188). Pela disposição afetiva a pre-sença se abre para
si mesma antes de qualquer conhecimento e vontade e para além de seus alcances de
abertura (p. 190). Esta passagem remete ao que foi encontrado no que tange ao humor
das crianças antes, durante ou após a contação de histórias. Sua disposição afetiva
representa abertura ao mundo e, como tal, delineia os contornos de sua compreensão
deste mundo e, de forma imediata, sua experiência de hospitalização em UTIPED. A
relação de cuidado, em sua modalidade não indiferente (pré-ocupação antepositiva ou
substitutiva), pode ter reverberado na disposição afetiva das crianças, ampliando suas
possibilidades de abertura ao vivido.
5.2.2 Eixo reflexivo
200
O segundo eixo para a compreensão das possibilidades terapêuticas dos contos,
o eixo reflexivo, engloba o potencial do conto em gerar significados em termos afetivos
e cognitivos. A ideia defendida por Gutfreind (2010) é a de que os contos são capazes
de libertar o pensar, produzindo novos sentidos e (re)significando experiências do
existir humano, através do enlaçar entre fantasia e realidade.
Este eixo é composto por duas unidades de sentido: (a) Contos, produção
simbólica e expressão de pensamentos, sentimentos, desejos e conflitos; (b) Contos:
fantasia e realidade se misturam e se diferenciam.
a. Contos, produção simbólica e expressão de pensamentos, sentimentos, desejos e
conflitos
Esta unidade de sentido abarca fragmentos do texto de referência que apontam
as possibilidades dos contos no incremento da expressão de si em nível verbal, gráfico,
lúdico ou imaginário, bem como na facilitação do processo de atribuição de significados
ao vivido.
Os enredos dos contos, por si só, despertavam nas crianças a livre expressão do
que pensavam, dos sentimentos que alimentavam, dos seus principais anseios, dúvidas e
conflitos. Por vezes, apenas as gravuras que ilustravam o livro já eram capazes de gerar
a verbalização das crianças sobre o que habitava seus pensamentos. Disto é que trata a
presente unidade de sentido. Mas não somente disto. Trata-se, ainda, da possibilidade
verificada dos contos produzirem significados de forma não literal, mas simbólica e
metafórica.
201
No caso de Pedro, é notória sua capacidade de gerar símbolos, de interpretar os
contos, de mergulhar na história, sentir o que ela transmite, enfim vivenciar a história.
Ele interage, pergunta e aponta seus pensamentos e sentimentos de maneira frequente.
Para ilustrar, abaixo se explicita fragmento do encontro com a criança em que se
utilizou o conto “Alguns medos e seus segredos” (Machado, 2009).
Pedro: Tia, coisa aqui, oh? Pega aqui! (apontando para seu peito).
Pesquisadora: (Encosta sua mão no peito da criança, próximo ao coração)
Que é isso?
Pedro: Coração batendo forte!
Pesquisadora: E por que seu coração tá batendo forte?
Pedro: Com medo!
Pesquisadora: Com medo? (risos). De quê?
Pedro: (Silêncio). (Aponta para o céu). A lua cheia... Abra ali! (apontando
para a janela, na tentativa de ver a lua).
Pesquisadora: (Ri e se levanta para abrir a janela). Vamos ver se tem
mesmo? Mas eu acho que não!
Pedro: (Olha para o céu, procurando a lua). Hum-rum.
Pesquisadora: Tem? Lua cheia? (olhando para o céu e procurando a lua).
Vamos continuar? Quer que continue?
Pedro: (Afirma com gesto da cabeça).
Pesquisadora: (Prossegue a contação).
Pedro: (Mais uma vez, interrompe a contação para comentar suas
sensações). Tô com arrepio já!
Pesquisadora: De quê?
Pedro: Do lobo mau!
Pesquisadora: (Risos). Mas será que o lobo mau existe? (em tom de
curiosidade e mistério).
Pedro: Existe na mata!
É inegável o quanto a história mobiliza a criança. O quanto ela leva a sério o
enredo ilustrado. A história parece suscitar temor, disposição afetiva apontada por
202
Heidegger. “No momento em que o temor se abate, o ser-aí recua e procura encontrar
algum tipo de proteção para além daquilo que se mostra. Diante daquilo que atemoriza,
o ser-aí é imediatamente levado a procurar uma via de escape em relação à ameaça que
um tal ente ou situação ôntica traz consigo” (Casanova, 2009, p.120). O temor suscitado
pela história, considerando o momento vivido pela criança, aproxima-o da tonalidade
afetiva da angústia diante da inospitalidade do mundo. Eis que sua tia, no dia seguinte,
relata que Pedro quase não dormiu, acordava com medo, chamando pela mãe. Um sono
intranquilo. Alguma relação?
A partir da expressiva reação da criança frente ao conto e à temática relativa ao
medo, na sessão seguinte elegeu-se Quem tem medo de quê? como história oportuna
para dialogar com Pedro e trabalhar de forma mais acurada seus temores. Buscava-se
não a fuga para terreno seguro, mas o enfrentamento do que era temido. Mas, dessa vez,
a contação de história foi acompanhada da intervenção prevista para tal encontro, qual
seja Jogando fora os medos. Deste modo, quando a pesquisadora finalizou a história,
convidou a criança a citar seus temores e, então, escreveu todos eles numa folha de
papel, que posteriormente foi jogada fora pela própria criança. Seguem transcritos os
trechos principais desta sessão.
Pesquisadora: Sabe o que a gente vai fazer? Vamos colocar seus medos
aqui escritos? (apontando para uma folha de papel).
Pedro: Lobisomem. De morcego. Cachorro grande pitbull.
Pesquisadora: (Escreve os medos na folha de papel). Quê mais?
Pedro: Só isso. E medo de cair!
Pesquisadora: Medo de cair? (escreve o medo). De cobra, Pedro, que você
falou ontem! Quê mais?
Pedro: (Pede para contar os medos escritos na folha de papel). Um, dois,
três, quatro, cinco. Medo de faltar energia! Só isso!
203
Pesquisadora: Só? Então... Vamos... Fazer agora o quê? Agora Pedro vai
amassar esses medos! Vamos amassar esse papel com esses medos e jogar
no lixo?
Pedro: (Amassa o papel).
Pesquisadora: Ele amassou, olha, todos os medos! Com força, hein?
Menino!
Pedro: Tia! Olha! (chamando a atenção da pesquisadora para o momento
em que joga o papel para fora da janela da enfermaria).
Pesquisadora: Foi embora!
No dia subsequente, então, Tia Benta fala que Pedro dormiu muito bem depois
que a pesquisadora se despediu, a noite toda, com tranquilidade.
Analisando as duas sessões, é possível perceber que a primeira, sem qualquer
intervenção posterior à contação, produz inquietação, chegando a interferir de forma
negativa no sono da criança, que passa a referir medo e chamar por sua mãe. na
segunda sessão, a intervenção posterior puramente simbólica em torno da expressão dos
medos da criança, gera uma resposta satisfatória, pois que o conteúdo da história é
trabalhado em nível imaginário, com o incentivo à criança a libertar-se de seus temores,
jogando-os fora”. Simbolicamente, a intervenção mencionada parece restaurar o poder
da criança para dominar os seus medos, embora não os elimine, funcionando como uma
catarse terapêutica.
Em outra ocasião, Pedro é instruído a criar uma história a partir das ilustrações
do livro Hospital não é mole!. Abaixo o que ocorre durante esta sessão.
Pesquisadora: É, do hospital! que... Não tem histórias, você quem vai
inventar a história! Tem as figurinhas... Oh, tem as imagens, certo? De
acordo com as imagens, você vai contando sua história. Diga ! Dando
nome aos personagens... Hum? Como é o nome dessa menininha que
aqui no colo da mãe?
204
Pedro: Ariane. Essa é a mãe... Esse é o pai...
Pesquisadora: Certo... Aí vamos contar... Era uma vez...
Pedro: Era uma vez... Uma menininha chamada Ariane, que estava muito...
(Pedro interrompe a história que estava prestes a contar e de seu olho cai
uma lágrima). Eu tenho medo de você adoecer...
Pesquisadora: (Risos). Não precisa ter medo, não! Pode continuar sua
história.
Pedro: (Continua calado, pensativo).
Pesquisadora: Que foi, Pedro?
Pedro: Tô com medo de você adoecer...
Pesquisadora: Tem medo de eu adoecer? Mas eu não vou adoecer, não!
Viu? Se preocupe, não! Pode contar! Era uma vez uma menina chamada
Ariane... Quê mais?
Pedro: Que estava muito doente... E foi um médico ver ela... Pra ela
receber alta pra ela ir pra casa... Ah! Foi verdade ela recebeu alta e tá indo
pra casa! (apontando gravura do personagem no carro com os pais).
Pesquisadora: Tava indo pra casa? Aí, quê que aconteceu aqui?
Pedro: O avô dela... com vergonha... O avô dela disse... Que ela precisa
muito ir pra casa... Esse é um hospital? Ela precisa ir pro hospital porque
ela está muito doente. As pessoa fica visitando ela... E a mãe dela cuidando
dela... A enfermeira levou comer pra ela, e deu comer na boca. Pro pai
dela... Tava sozinho, e a mãe dela tava sentada numa cadeira... A
enfermeira escutou o pulmão dela pra ver se tava bom. Tomei injeção... A
ambulância... Levando ela pro hospital. E ela tava deitada na cama... E ela
tava esperando alta pra ir pra casa!
Pesquisadora: Aí o quê que a mãe dela diz aqui pra ela?
Pedro: Você vai pra casa! As enfermeira gostam muito dela... Aqui ela está
falando com o pai dela... A enfermeira vendo porque ela não quer mais
comer mais... E ela é muito danada, fechou o hospital.
Pesquisadora: Eita! (risos). Foi mesmo? E aqui? Ela pensando em quê,
oh? (apontando para a figura ilustrativa). Ela no hospital, dormindo, e
sonhando com o quê?
205
Pedro: Com amarelinha... (se referindo à brincadeira de amarelinha, tal
como ilustrada na gravura a que faz referência). Brincando de amarelinha.
E a doutora pensava que ela estava muito doente, e ela pensava que tava
brincando com os pais dela em casa... E a enfermeira deu banho nela, e ela
estava chorando... E ela quer ir pra casa à força... A enfermeira não deixa!
E ela pegou o ursinho pra brincar... E o médico disse, diz a ela recebeu alta
pra ir pra casa... O doutor disse, ela foi pra casa! Pronto! Foram felizes
para sempre! Já tava boa a menina!
Fato interessante acontece nesta sessão. Pedro nomeou a protagonista da história
usando o nome da pesquisadora. E disse que estava com medo porque achava que a
pesquisadora iria adoecer como a personagem, caso insistisse em dar-lhe o seu nome.
Fantasia típica para criança na segunda infância, que distingue ainda com imprecisão
fantasia e realidade. Pedro é uma criança que se encontra na terceira infância e, ou por
efeito da hospitalização (Chiattone, 2003, 2011; Dias, Baptista & Baptista, 2010;
Favarato & Gagliani, 2008) ou por questão desenvolvimental (mais provável a partir
dos apontamentos elucidados por meio da entrevista inicial com a tia da criança),
apresenta crenças e fantasias atreladas a níveis de desenvolvimento anteriores ao seu.
Importante perceber que, apesar de denominar a personagem principal com o
nome da pesquisadora, a criança projeta na história criada sua própria história de
hospitalização. Com isso, é possível asseverar que Pedro faz uso da metáfora e do
distanciamento propiciado pela fantasia para falar de si e da experiência que atualmente
vivencia. Efetua, por assim dizer, o duplo movimento de aproximação e afastamento
seguro garantido pela estrutura narrativa dos contos. É interessante que a criança refere-
se à personagem utilizando outro nome, mas, em determinado momento de sua
narrativa, chega a utilizar a primeira pessoa (tomei injeção...). A história traz
conteúdos de cuidado, temores e expectativas relativos à hospitalização.
206
As sessões de Arthur, assim como as de Pedro, costumavam ser ricas em
produção imaginária e expressão de pensamentos e sentimentos.
Em sua quarta sessão, após o conto Arthur vai para o hospital, a pesquisadora
pede a Arthur que represente graficamente o hospital e conte uma história a partir de seu
desenho.
Pesquisadora: O que você tá com vontade de fazer?
Arthur: Brincar.
Pesquisadora: Arthur, a gente hoje vai brincar de desenhar. Vamos fazer
assim, eu vou pedir pra você desenhar o hospital, pode ser? Eu queria que
você desenhasse o hospital, um garotinho e contasse um pouquinho da
história, pode ser?
Arthur: (Acena de modo afirmativo).
A criança então desenha, conforme pedido, um hospital, pinta de verde, e
escreve: Arthur vomitar Anastácia curou. Pede ajuda para que a pesquisadora dite as
letras que formam as palavras que queria escrever. Desenha uma ambulância na porta
do hospital e dois meninos, um na porta do hospital e outro em uma janela. E inicia a
contação:
Arthur: O nome dele era Arthur. Ele foi pro hospital. Como se escreve
vomitar?
Pesquisadora: Vomitar? (pesquisadora soletra a palavra). Pronto.
Arthur: Arthur foi pro hospital porque ele tava vomitando muito. É... A
doutora o nome era Anastácia (mencionando o nome de sua mãe)... Ela...
Curou ele e ele foi pra casa! Pronto.
Pesquisadora: Pronto? Ok. Quer fazer mais alguma coisa?
Arthur: Quero escrever um desenho pra mãe. (a criança desenha e pinta
seu desenho bem colorido, procura utilizar de todos os recursos de que
dispõe. A pesquisadora permanece ao seu lado). Pronto!
Pesquisadora: Hum. Pronto? E aí, quê que temos nesse desenho?
207
Arthur: É eu, minha casa e minha bicicleta.
Pesquisadora: Quem é que tá aí nessa casa, dentro dessa casa?
Arthur: Minha mãe, meu pai, meu irmão e minha irmã... E eu tô aqui fora.
Curioso notar que Arthur costumeiramente em seus desenhos retratava sua casa.
Suas produções gráficas provavelmente sinalizariam, em nível simbólico, seu desejo de
retorno ao lar. Constantemente a criança e sua mãe apareciam nos desenhos do lado de
fora da casa, possivelmente indicando sua atual situação. Por vezes a criança se
desenhava fora da casa em companhia de sua mãe, por vezes sozinho.
Na sexta sessão, após a contação da história A menina cabeça-de-vento, a
pesquisadora convidou Arthur a criar uma narrativa a partir das gravuras ilustradas no
livro Hospital não é mole!. Arthur aceitou prontamente o convite e o demonstrou
dificuldades em criar a história. Antes folheou o livro, procurando conhecer as figuras.
Em alguns momentos a narrativa parecia se aproximar de sua vivência, em outros
momentos não. A ênfase recaía na presença e/ou ausência dos pais.
Pesquisadora: Você vai... Pode olhar ele todinho (se referindo ao livro), as
figurinhas, viu? Aí depois você inventa a historinha.
Arthur: Alice. Alice tava doente porque tava com febre. o pai levou pro
hospital. E o médico... O médico mediu a temperatura dela. Tava cento por
oito! Ela andou na cama. E os doutor só... Os doutor dando remédio a
ela e ela não gostando. Alice teve medo da injeção. É... a médica disse que
ia olhar um negócio nela. Olhar o coração dela! Aí levou para outro
quarto. O médico falou com os pais pra ir embora que ela ia ficar sozinha
mais os médicos. Depois o pai, a mãe ficou... Veio de manhã. E o pai veio à
noite. A mãe conversou com ela... quando o pai chegou ela ficou com
raiva, a mãe foi embora e o pai brincou com ela. Ela ficou sozinha no
hospital. Ela ficou sozinha no hospital comendo. a médica... ela levou
outra injeção e chorou. ela coisou, ficou com o ursinho dela. Ela
sonhava que brincava de amarelinha. A médica falou com ela que ela tava
208
com febre... deu um pouquinho d’água. Ela sonhou de novo, passeando
com os pais... Ela tirou o negócio da mão e ficou inchado. Ela sonhava que
tomava banho em casa sozinha... O médico passou a mão nela, deu o
ursinho pra ela a médica, depois jogou. A mãe falou com ela e o pai. A
doutora disse que... O doutor disse que tava melhorando... ela dormiu de
novo, tava vendo a revista... ela tava calçando o sapato pra ir embora...
Aí ela foi embora do hospital!
Desejos e necessidades são comunicados ao ouvir histórias e se identificar com
as personagens. Na quarta sessão, Arthur denuncia seu desejo de brincar de faz-de-conta
tal como o protagonista do conto Arthur vai para o hospital, tendo a oportunidade de
simbolicamente encenar de modo alternado o papel de médico e paciente, e assim
elaborar suas fantasias e sua própria vivência de internamento.
Em sua quinta sessão, foi utilizado o conto O menino maluquinho, associado à
atividade de médico e paciente, tal como solicitado no dia anterior pela criança ao ouvir
a história Arthur vai para o hospital, na cena em que a personagem principal tem a
oportunidade de brincar com um boneco, levado pela psicóloga que lhe assiste, fazendo
de conta que era o paciente e ele, o doutor. Arthur parece ter se divertido bastante,
sendo a primeira vez que a pesquisadora o vê de sorriso aberto, largo, descontraído.
Deste modo, a pesquisadora leva para o último momento da quinta sessão
(Produzindo sentidos o tempo do jogo, do desenho... ou de mais uma história) um
boneco-fantoche, que Arthur nomeou como quis, e uma maleta com os acessórios
médicos. Inspirado na história que ouvira no dia anterior, Arthur vai para o hospital, o
participante brinca de faz-de-conta. Segue o convite feito à criança:
Pesquisadora: Vamos brincar? Vamos ver o que eu trouxe ali pra você!
Trouxe Dr. Bernardo (fazendo referência ao nome do boneco do conto
Arthur vai para o hospital).
209
Arthur brinca com o boneco, fazendo de conta que ele está falando. Inicia a
brincadeira dizendo que o boneco é muito feio, parece um macaco. A criança assume o
lugar de médico, e a pesquisadora assume o papel do boneco-fantoche que ele examina.
Arthur explora a maleta com os instrumentos médicos, estetoscópio, injeção,
termômetro, etc. Coloca os óculos de doutor, o estetoscópio no pescoço e começa a
fazer de conta que está examinando o boneco. A criança sorri abertamente, como apenas
uma vez fizera ao longo dos encontros.
O faz-de-conta, tal como presente nos contos, mostra-se útil e importante para as
crianças manejarem seus medos, falar sobre, desenhar, expressar de algum modo como
vivem suas experiências em contexto hospitalar. Através do faz-de-conta, Arthur cria
sua própria história, baseada na sua experiência, fazendo uso de sua imaginação e
criatividade de maneira espontânea e livre. Arthur prossegue no jogo simbólico,
ocupando um lugar inimaginável para si, e podendo deste lugar dramatizar a respeito de
sua vivência.
Técnica: (Se aproxima para administrar insulina na criança. Arthur toma
para si o cuidado, e por si só aplica as duas doses de insulina na perna com
naturalidade e agilidade). Esse menino é demais! É tão difícil, né, criança
assim? E ele faz tudo, ele sabe de tudo! E agora que é um doutor! (se
referindo à brincadeira de faz-de-conta de Arthur).
A mãe de Arthur chega para visitá-lo e se surpreende quando vê seu filho
brincando, sorridente e comunicativo.
Pesquisadora: Olha o doutor! (se dirigindo à mãe da criança). não
sei o nome desse doutor! Ele não usa crachá!
Arthur: É Dr. Arthur, Dr. Arthur!
210
Arthur toma para si o boneco, colocando ele no colo e fazendo de conta que o
examinava. A pesquisadora interage com a criança, fazendo a voz do boneco, que
reclama dos procedimentos, pergunta se vai tomar injeção, se vai ficar naquele hospital,
se vai poder ficar com sua mãe, se vai poder receber visita da sua mãe, etc. Arthur
procura envolver sua mãe na brincadeira. Ela age com misto de alegria e vergonha. Ri
com a brincadeira do filho e o que ele fala. Arthur é por vezes severo com o boneco,
fazendo injeções, colocando esparadrapos, etc.
Mãe: Como é o nome do paciente, Arthur?
Arthur: Chico José! (risos).
Mãe: (Risos). Coração. Tá bom o coração?
Arthur: Mais ou menos! Vai levar uma martelada! (risos).
Pesquisadora: Como é que esse doutor me remédio e eu ainda fico
doente? Ora bolas, não gostando disso aqui não! Eu vou é pra outro
hospital! (risos).
Arthur: (Risos).
Pesquisadora: Nossa! Quanta delicadeza! (risos). (fazendo menção ao
comportamento da criança como doutor com o paciente, nada gentil). é
cansado de levar injeção!
Arthur: É pra ficar bom!
A pesquisadora, a mãe e Arthur riem com as trapalhadas do Dr. Arthur, que
colocava os óculos ao contrário, deixava o paciente cair no chão, que não sabia sequer o
nome do paciente, que dava injeção toda hora.
Arthur pede para que sua mãe seja a médica e ele assuma o lugar do boneco,
como paciente.
Pesquisadora: Ele quer que a senhora seja o doutor! (risos).
Mãe: Eu?! (risos).
211
Arthur: E eu vou ser o paciente! (Arthur agora quer que sua mãe seja o
boneco-paciente e ele continue a ser o médico).
Pesquisadora: De novo, hein, Arthur? basta aqui?! Na vida real?!
(risos).
Arthur: Eu sou o Dr. Biruta! Não é, mãe, o Dr. Biruta?
A mãe aceita o convite da criança e começa a brincar com ela, fazendo outra
voz. A mãe é o boneco-médico e Arthur o paciente.
Mãe: Eu vou dar uma mordida em tu! (risos).
Arthur: (Risos). Ai! Os dentes são de verdade! Já tá bom ele!
Mãe: Já tá bom?
Pesquisadora: Já recebeu alta ele! (risos).
Mãe: Legal, viu Arthur?! Gostei! (risos).
Pesquisadora: E aí, gostou Arthur? Como é que você tá?
Arthur: Ótimo! (responde com entusiasmo).
Pesquisadora: (Risos). Que bom! E aí, como é que você tá? (mostrando a
cartela dos sentimentos).
Arthur: (aponta a carinha de alegre).
Pesquisadora: Você tá alegre por que, Arthur?
Arthur: Porque eu já tô bom!
Fazendo uso da abertura de possibilidades representada pelo conto, em um
momento de cuidado que permite o poder-ser da criança, esta se sente bem, relata
estar melhor, e pode incluir no mundo de fantasia por ela criado sua e, figura de que
tanto sente falta e anseia estar ao lado.
Bié, durante o conto Quem tem medo do novo? (primeira sessão de contação de
histórias), noticia com entusiasmo do que tem e do que não tem medo, a cada trecho
contado. Ao abrir a narrativa na primeira gina, logo a criança diz: “É um disco
voador!”. Quando a pesquisadora o primeiro trecho, Bié imediatamente começa a
dizer que tem medo do escuro. Na segunda página, que fala da mudança de casa, a
212
criança afirma que não teme isso não. E complementa dizendo que não tem amigos, que
sua única amiga é sua irmã, pois seus coleguinhas não o defendem, só sua irmã o faz:
Bié: Eles não são meus amigos não, que eles não me defende... minha
irmã é que defende eu... Mais ninguém... Por isso não tenho amigo... Eles
são tudo falso, não gostam de mim...
A pesquisadora prossegue contando a história, que agora versa sobre o medo de
mudar de escola. A criança diz já no primeiro trecho:
Pesquisadora: Quem é que tem medo de mudar de escola?
Bié: É, eu tenho medo! Tenho medo de entrar na sala... Tenho vergonha...
Bié dá uma pausa e a pesquisadora então continua a narrar.
Pesquisadora: Quem é que tem medo de mudar de escola? Entrar numa
classe onde ninguém dá cola e a pessoa mais bonita não dá a menor bola?
Bié: (Uma vez mais ela interrompe para relatar seus sentimentos e
comportamentos). É por isso que eu também nem dou bola pra ela
(corroborando a atitude da personagem da história)... Eu... Vou ficar
rastejando para quem não nem pra mim... Eu não, fico na minha...
Meus amigos também não dão bola pra mim! É por isso que prefiro ficar no
recreio escrevendo no meu caderno, desenhando... Nem vou atrás deles!
Relevante perceber a criança desvelando sua subjetividade, seu modo de ser para
além da doença, revelando uma historinha que vive no seu dia-a-dia, revelação
completamente propiciada pela história que lhe é contada, pelo vínculo terapêutico que
por hora se constrói, progressivamente, intermediado pelos contos.
A pesquisadora dá prosseguimento à contação.
Pesquisadora: Quem é que tem medo de provar um prato que nunca
comeu?
Bié: (Balança a cabeça afirmativamente).
213
Pesquisadora: Quem é que tem medo de cortar o cabelo e ficar com cara
de pesadelo?
Bié: (Balança a cabeça). Eu não!
Pesquisadora: (Prossegue história). Quem é que tem medo de aprender
inglês, aprender a nadar ou a falar francês? Tomar lições de dança... Quem
é que tem medo de tanta mudança?
Bié: (A criança responde com o balançar de cabeça de modo positivo).
Pesquisadora: Quem é que tem medo de ser diferente? Chamar a atenção
de quase toda a gente? Botar uma roupa meio escandalosa, assim como
umas calças todas cor-de-rosa?
Bié: Eu não!
Pesquisadora: Quem é que tem medo de aprender um jogo, não saber jogar
e passar por bobo?
Bié: Eu tenho medo disso!
A pesquisadora pergunta se isso aconteceu com ele. Bié diz que não, mas que
ainda assim tem medo de que aconteça.
Pesquisadora: (Continua a narração). E você? Tem medo de telefonar e
alguém atender, começar a falar e você não saber como se comportar?
Bié: Eu não tenho medo disso não, tenho medo é de falar no computador,
que a gente não sabe quem é que falando com a gente! Mas de telefonar
não, eu já telefonei pra minha tia, pra meu primo...
Pesquisadora: Quem é que tem medo de escutar a ideia de outra pessoa e
ver que essa idéia é uma idéia boa? E de jogar fora sua idéia antiga, sem
muita discussão, sem nenhuma briga...
Bié: (A criança afirma com o balançar da cabeça e faz gesto indicativo
para que eu continuidade à história. Antes, diz, ao ver a ilustração do
garoto com a bola de futebol). Uma bola... Eu nem gosto de futebol não.
Mas eu jogo.
Pesquisadora: (Prossegue contação) Quem é que tem medo afinal de
crescer? que tudo isso é apenas viver... A gente não gosta de ser
214
diferente. Mas goste ou não goste, tem que andar pra frente! Voar como o
vento! Pois quem pára é poste: a vida é movimento!
Bié: (Balança a cabeça concordando com a história. E aponta uma das
figuras da última página). O pai com o filho! Jogando bola! Eu queria
jogar bola...
Pensamentos, sentimentos e desejos são explicitados no transcurso da interação
entre a criança e o conto. Isto se repete para Bié na quarta sessão, frente à narrativa
Quem tem medo de quê?. Logo na primeira página do livro, ao ser recitado trecho que lá
está disposto, a criança elenca uma série de medos que tem: de morcego, de soro, de
ficar sozinho em casa, sem televisão, entre outros. Tal comportamento expressivo
ocorreu de forma recorrente ao longo do conto.
Pedro reagiu tal como Bié frente às duas histórias sobre medo contadas para ele
na quarta e quinta sessões, quais sejam: Alguns medos e seus segredos e Quem tem
medo de quê?. No transcorrer das narrativas, aponta seus temores.
Pesquisadora: São três histórias. A primeira história é de uma mãe que tem
medo de lagartixa!
Pedro: Eu não tenho medo de lagartixa, não! Tenho medo de cobra! Mas
de noite, quando apaga a luz aqui...
Pesquisadora: Quê que tem? (em tom de curiosidade).
Pedro: Tenho medo!
Tia: Quando apaga a luz de noite. É porque ele é acostumado a dormir no
claro.
Os medos relativos ao processo de adoecimento e hospitalização não emergem
nos relatos das crianças, seus apontamentos transcendem tal situação, remetendo aos
medos que enfrentam em seu cotidiano fora do hospital.
215
Pesquisadora: (Prossegue contação)... Mas apesar de valente, eu tenho
medo é de avião!
Pedro: Também! Nunca andei, mas eu tenho medo!
Pesquisadora: (Prossegue a história). Pelo que vemos, pessoal, ter medo
não é vergonha, todo mundo tem um medo, que a gente nem mesmo sonha!
Pedro: Tenho medo de cachorro pitbull!
Na interação com o conto A menina cabeça-de-vento, no momento da produção
de sentidos, Pedro é convidado a elencar seus bons e maus pensamentos. Recorrendo à
fantasia, à estrutura narrativa de exposição indireta de conflitos presente nos contos, ele
anuncia tais pensamentos, assegurando para si que são apenas imaginários, invenções,
não integrando seu repertório de medos e conflitos.
Pesquisadora: Pedro! Vamos colocar aqui os seus maus pensamentos?
Você tem algum mau pensamento?
Pedro: Eu invento? Pode inventar?
Pesquisadora: Pode.
Pedro: Penso assim... Eu acho que eu vou... Que ela vai deixar eu. Minha
tia. Tô inventando, viu?
Pesquisadora: Certo! (escreve no papel o mau pensamento relatado pela
criança). Sim... Que mais, Pedro?
Pedro: Eu penso que ninguém gosta mais de mim. Penso que minha avó
não gosta mais de mim. Cadê? Eu botei quanto?
Pesquisadora: Você botou um, dois, três.
Pedro: Eu penso que ninguém, ninguém, ninguém mais gosta de mim! Eu
penso que... eu mermo não gosto de mim! Cadê? Botei quanto? (pedindo
para ver o papel).
Pesquisadora: Um, dois, três, quatro, cinco.
Pedro: Só isso! É inventando, né?
Pesquisadora: É inventando. Vou colocar aqui ‘maus pensamentos’, né?
(se referindo ao nome a ser escrito na coluna referente aos maus
pensamentos). E os bons pensamentos?
216
Pedro: Eu gosto... De você e você... Gosta de mim!
Pesquisadora: (Risos). Certo. Outro bom pensamento?
Pedro: Os doutore daqui, pensa que os doutore gosta de mim. Penso que
todo mundo, todo mundo gosta de mim! Cadê? (A criança pede para que eu
lhe mostre o papel onde anoto seus pensamentos).
Pesquisadora: Um, dois, três bons pensamentos!
Pedro: Só isso!
Pesquisadora: Só isso? É?
Pedro: Hum-rum. Você é minha melhor amiga!
Pesquisadora: Eu sou sua melhor amiga? É?
Pedro: Não, né pensamento não!
Pesquisadora: pensamento não! Então vamos fazer assim, fazer igual o
que aconteceu com a menina cabeça-de-vento! A gente fica com os bons
pensamentos. O que você acha?
Pedro: (Olha atentamente eu dividindo o papel ao meio e separando em
duas partes, em uma estão os bons pensamentos e na outra os maus
pensamentos).
Pesquisadora: O vento passou, o vento passou, ele deu bem forte na cabeça
de Pedro, esse vento! Aí o vento, oh?! Levou os pensamentos ruins! Hã?! Lá
foi o pensamento ruim embora! Olha o vento levando?! (apontando para o
papel voando para fora da janela da enfermaria, sendo carregado pelo
vento). Tá vendo?
Pedro: Tô! (se esforça para olhar para o papel fora da janela).
Pesquisadora: Vai levar embora! Ficou os bons pensamentos! Igual à
menina cabeça-de-vento!
Curioso notar o arrolamento de bons e maus pensamentos que a criança
alimenta. Maus pensamentos todos relacionados à fantasia da criança de que ninguém
mais gosta dele, fantasia esta, como tantas outras, presente no imaginário de crianças
hospitalizadas, tal como refere a literatura da área (Chiattone, 2003, 2011; Dias, Laloni
& Baptista, 2008; Favarato & Gagliani, 2008; Fortuna, 2007; Kudo & Maria, 2009;
Lima, 2004; Medeiros & Andreoli, 2008; Oliveira, 2007; Pérez-Ramos & Oliveira,
217
2010; Silva, 2008; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008). Pela distância física, pela
ausência das figuras de apego, pela impossibilidade de visitá-las, por se sentirem
culpadas pelo processo penoso que supostamente estão infligindo sobre seus pais e
demais familiares, elas acabam por crer que as pessoas significativas de sua vida lhe
esqueceram, ou não gostam mais dela. Isso é claramente expresso por Pedro nesta
sessão, após a contação de história, ao que ele chama de maus pensamentos e diz estar
apenas “inventando”. Isso é mais interessante ainda: a criança insiste em frisar que está
inventando os maus pensamentos, afastando assim o temor à possibilidade real de que
isso aconteça.
Na última sessão de Pedro, em que se utilizou o conto Se criança governasse o
mundo..., a verbalização da criança sinalizou a recordação das circunstâncias em que
ocorreu o acidente que sofreu. A criança, antes do início da contação, ao ser questionada
sobre o que faria se pudesse governar o mundo, respondeu que retiraria os quebra-molas
das ruas. Ora, Pedro atribui ao quebra-molas a causa do acidente de moto que o vitimou
e causou a morte de seus pais.
Tal atribuição pode estar vinculada ao relato de sua tia sobre o desastre. A
mesma afirma que o acidente teve também como pivô um quebra-molas. Ao ultrapassar
a avenida, conforme descrição da tia de Pedro, o pai da criança ao certo acreditou que
havia tempo hábil para passar pelo quebra-molas e atravessar com a moto, porém o
cálculo de tempo necessário não correspondeu ao real, e o carro então colidiu com a
moto onde estavam Pedro, seus pais, e seu cachorrinho de estimação.
Já em seu título, o conto propiciou o expressar das emoções, pensamentos,
sentidos, significados. A criança sinaliza os caminhos para a intervenção terapêutica,
218
indicando que por hora estaria disposta a falar sobre a perda de seus pais. Segue trecho
da sessão:
Pesquisadora: (Inicia citando o nome da história). Se criança governasse o
mundo... Se Pedro governasse o mundo, o que ele faria?
Pedro: Tirava os quebra-more...
Pesquisadora: Os quebra-molas? É?
Pedro: Era...
Pesquisadora: Por quê?
Pedro: Porque eu não gosto de quebra-mola...
Pesquisadora: Porque não gosta de quebra-mola? O que tem os quebra-
molas?
Pedro: Quando a pessoa passa, morre.
Pesquisadora: Quando a pessoa passa no quebra-mola morre? É? Então,
se Pedro governasse o mundo, ele tiraria os quebra-molas das ruas, não
era? É isso?
Pedro: (A criança balança a cabeça de modo afirmativo).
Ao término da história, Pedro permanece comunicando seus pensamentos e
desejos.
Pedro: Se fosse eu, eu... Eu cuidava de doutor... Eu era doutor.
Pesquisadora: Você era doutor? Pra fazer o quê? Doutor faz o quê?
Pedro: injeção. Nas pessoa. Pra ficar boa... Não tinha hospital... Era
num prédio!
As crianças do estudo, estabelecida uma relação de confiança com a
pesquisadora e instigadas pelos enredos dos contos de literatura infantil, utilizam a hora
do conto para expressão de si.
Para Heidegger (1927/2005), o Dasein (Ser-aí) não possui uma essência a priori,
de modo que o que ele é está sempre em jogo no seu existir. É instigante acompanhar o
219
movimento das crianças na direção de conferir significado ao vivido, o que se dá
primordialmente de forma metafórica, a partir da experiência imediata, não de um a
priori. O Da-sein significa uma abertura “de um âmbito do poder-apreender daquilo que
aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira” (Heidegger, 1947/2009, p.33). Em
sendo abertura de sentido ao mundo, atribuímos significado às nossas experiências,
deixando-nos afetar pelo que nos chega, no encontro com o outro. Nessa afetação, não
só produzimos sentido, como comunicamos nossos pensamentos, sentimentos, desejos e
conflitos, tal como ocorreu com as crianças.
Ademais, a linguagem do dia a dia não é a linguagem natural da criança,
especialmente quando é solicitada a falar sobre seus afetos. A linguagem dos afetos, dos
sentimentos, é aquela derivada da imagem, da metáfora, do simbolismo, como a
linguagem que subjaz às histórias e sonhos (Sunderland, 2005). Ora, o fato da metáfora
ser uma linguagem comum aos contos e à infância ajuda-nos a compreender o potencial
da literatura infantil no incremento da expressão infantil.
Expressão mediada pela fantasia, dúvidas, inquietações, pensamentos se
revestem de uma roupagem que oferece às crianças condições de projetar com
segurança o vivido. Assim, por meio dos contos, é possível à criança nomear seus
medos e demais sentimentos, nominação importante para lidar com o que antes podia
ser desconhecido e, por isso mesmo, fonte de apreensão para a criança (Abramovich,
1997; Bettelheim, 2007; Caldin, 2010; Corso & Corso, 2006; Fortuna, 2007; Gutfreind,
2010; Góes, 2010; Oliveira, 2007).
b. Contos: fantasia e realidade se misturam e se diferenciam
220
Em seu comportamento, demonstrando interesse ou desinteresse, ou mesmo
conforme sua resposta direta na entrevista final, as crianças revelaram suas preferências
no que tange aos contos selecionados para cada encontro. Tais preferências têm estreita
relação com as tramas tecidas. Deve-se explicar: quanto mais próximo o conto das
necessidades afetivas da criança, tanto mais despertava seu interesse e estimulava a
interação, verbalização e simbolização das histórias e de suas experiências.
Em sua sexta sessão de contos, após o conto Marilu, Bulu pede: Mais uma
história”. A pesquisadora pergunta para ele qual história gostaria de ouvir, e Bulu
responde: “A das cabrinhas”. Neste momento a pesquisadora se surpreende, pois ocorre
que Bulu lembra uma história contada há alguns dias, no início da construção do corpus
da pesquisa com ele. O que julgava ter se perdido, quando avaliava que não havia sido
formado vínculo satisfatório, nem que a criança tivesse construído sequer significados
em relação às histórias trabalhadas outrora, todas essas crenças foram soterradas no
momento em que Bulu relembrou o conto O lobo e os sete cabritinhos, o qual estava
pedindo para ouvir novamente.
Neste sentido, para Bulu, os contos de fadas ocupavam lugar especial em seu
imaginário. Por que a atração de Bulu pelos contos de fadas, a tal ponto de sempre que
se deixava livre sua escolha, ele relembra justamente dos contos de fadas? Assim foi
com a história O lobo e os sete cabritinhos e o mesmo ocorreu com o conto O patinho
feio. O que nessas histórias que tanto atrai a atenção e o interesse do pequeno Bulu?
Duas histórias que versam um pouco sobre sua vida.
O mesmo não ocorreu com Bié, que nas sessões de contos de fadas pouco se
expressou. Para Bié, as histórias que de fato se inscreviam em sua subjetividade, que lhe
221
aguçavam os sentidos, que lhe afetavam profundamente, pareciam ser aquelas que
tratavam da temática do medo.
Tal assertiva é evidenciada no comportamento claramente distinto assumido pela
criança frente a tais histórias, como ocorreu com o conto Quem tem medo do novo?,
logo ao primeiro encontro de pesquisa, comportamento não esperado para aquela
criança tão apática e que se recusava a falar com a equipe; e como se repetiu com o
conto Quem tem medo de quê?. Comportamento que não se repetiu em outras histórias,
como Gaspar no hospital, O lobo e os sete cabritinhos, O patinho feio. Percebe-se o
quão importante é adaptar as sessões de contação, inclusive no que tange à escolha dos
livros a serem utilizados, a partir da demanda da criança e de suas preferências.
Em sua entrevista final, Bié afirma claramente seu conto preferido e o preterido.
Pesquisadora: Qual foi a história que você mais gostou?
Bié: Bié doente do pé.
Pesquisadora: E qual foi a que você menos gostou?
Bié: Do cachorro (se referindo ao conto Gaspar no hospital).
Sua resposta corrobora a eleição do nome dado ao protagonista do conto Bié
doente do pé para fazer menção ao participante ao longo do presente estudo.
para Pedro, ao ser questionado sobre suas preferências em relação aos contos
utilizados, o mesmo elegeu todas as histórias como sendo de sua estima. Todavia, na
entrevista final com sua tia, a mesma revela a provável predileção de Pedro.
Pesquisadora: É, como é que você acredita que Pedro tem reagido às
histórias?
Tia: Ele gosta muito, fica muito animado com as historinha, aí, sempre
quando você saí, ele ‘Tia, mas eu gostei da historinha de, da Lua e
Pedro!’. Ele gostou muito dessa historinha. Comentou comigo. Ele disse
222
assim: ‘Tia, olhe, foi tão interessante, porque a Lua e Pedro, eu pensava
que a Lua era Pedro, mas não. Depois eu vi que era porque Pedro ficava
pensando na lua. Sim, e a Lua depois era uma tartaruga!’.
O encantamento de Arthur pela história O Menino Maluquinho, evidenciada em
sua entrevista final, pode estar vinculado ao fato da quinta sessão de contos ter se
configurado como espaço de elevada produção simbólica, com a condução da criança,
pela via da fantasia, para a recordação da vivência da infância para além dos muros do
hospital. Ademais, pela possibilidade ofertada de, após a contação, viver alternadamente
os papéis de médico e paciente.
Nesta sessão, Arthur parece ter se divertido com as traquinagens da personagem,
sorrindo, apontando, falando, perguntando, se identificando com o protagonista. Eis sua
resposta na entrevista:
Pesquisadora: De qual historinha, Arthur, você mais gostou?
Arthur: É... ‘Menino maluquinho’.
Pesquisadora: E qual foi a que você menos gostou?
Arthur: Essa. (Apontando para o livro ‘A menina cabeça-de-vento’).
Pesquisadora: ‘A menina cabeça-de-vento’? Por que você menos gostou
dela?
Arthur: Porque ela tinha uma janela na cabeça.
Pesquisadora: E do menino maluquinho, o quê que você mais gostou dele?
Arthur: Porque ele tem os pés rápido.
A identificação com as personagens é descrito por Bettelheim (2007) como
sendo uma das ricas fontes de evolução para a criança, uma vez que permite, por
exemplo, que a mesma possa dominar seus medos e construir possibilidades reais de
superar as tarefas evolutivas próprias ao seu desenvolvimento psíquico.
223
Os heróis dos contos usualmente deparam com situações atípicas (nos contos de
fadas principalmente) ou comuns ao cotidiano (nos contos realistas), que representam
desafios, exitosamente enfrentados ao final da história. Ao se identificar com as
personagens, simbolicamente a criança também representa seus desafios e vislumbra
perspectivas para vencê-los.
A terceira sessão de Bié, em que se trabalhou o conto O lobo e os sete
cabritinhos, aponta para uma possível identificação da criança com a personagem Bulu,
grande herói da história e, posteriormente, com a identificação com trecho da narrativa
que versa sobre a cisão feita na barriga do lobo para a retirada dos cabritinhos alvos de
seu ataque.
Na cena em que o lobo devora todos os cabritinhos, menos Bulu, Bié pergunta:
Menos Bulu? É o mais velho né?”. E eu respondo que não, ao contrário, Bulu é o mais
novinho dos filhos da Mamãe Cabra. E era muito esperto, eu completo. A criança
permanece atenta. Quando conto a cena sobre a barriga do lobo, curiosamente Bié olha
para sua barriga, que se encontra suturada após cirurgia. Talvez aqui a criança tenha se
sentido afetada, pois da mesma forma que o lobo teve sua barriga cortada para retirar os
filhos da Mamãe Cabra e depois colocar dentro as pedras e em seguida costurar, Bié
também, por procedimento cirúrgico, teve sua barriga “cortada” e depois “costurada”,
estando ainda com os pontos.
A identificação com o protagonista da história se repetiu com o conto Bié doente
do . Durante sua entrevista final, a criança relembra a história de Bié. De fato essa
história lhe marcou bastante. Ele diz:
224
Bié: Dia desses eu tava que nem Bié! Começou com uma dorzinha aqui na
barriga, depois passou prá (apontando o tórax), depois subiu pra
(apontando o coração), depois pra cá, pra cá, e acabou no pé!.
Bié sorri abertamente. A pesquisadora então diz: “Deixa eu ver se saiu as
feridinhas no pé?!”. E olha seu embaixo do lençol. Pesquisadora e criança riem
juntas. Ela pergunta se seria esse o nome que Bié queria que constasse para lhe
identificar em seu “trabalho escolar”. Ele responde afirmativamente.
Por explicitar o cotidiano de muitas crianças, o conto O menino maluquinho
propiciou a aproximação entre fantasia e realidade, traduzindo as experiências de Arthur
e fomentado a identificação com a personagem, identificação facilitada também pelas
intervenções da pesquisadora ao longo da contação. Não foi à toa que o conto emergiu
como predileto pela criança.
Pesquisadora: (Continua contação). O menino maluquinho tinha dez
namoradas! Arthur também é? (risos).
Arthur: (A criança sorri). Tenho mais!
Pesquisadora: (Risos). Você tem mais do que ele? Tem quantas
namoradas, Arthur?
Arthur: Vinte!
Pesquisadora: Vinte namoradas?! Quanta namorada esse menino tem!
(Prossegue história). Ele era um namorado formidável! Que desenhava
corações nos troncos das árvores, que desenhava flores no caderno de
desenho... Você faz isso?
Arthur: (Acena de modo afirmativo).
Pesquisadora: O menino maluquinho jogava futebol! Tu também Arthur?
Arthur: (Acena de modo afirmativo).
Pesquisadora: E toda turma ficava esperando ele chegar pra começar o
jogo. Adivinha? O menino maluquinho era goleiro! (continua contação). E
o menino maluquinho dizia: Deixa comigo! E ia correndo pro gol...
225
Arthur: Ele defendia?
Pesquisadora: Ele defendia todas!
Arthur: Num deixava nenhuma entrar?
Pesquisadora: Danado, hein, Arthur, esse goleiro?
Arthur: Hum-rum. (olhando para as figuras ilustrativas).
Por vezes a interação pesquisadora-criança-conto servia ao propósito de
provocar a identificação das crianças com as tramas, fornecendo a elas a possibilidade
de dar sentido as suas próprias vivências. Segue passagem da quarta sessão de Arthur
para exemplificar o exposto:
Pesquisadora: (Inicia a contação de história). E na noite em que Arthur
adoeceu, sua mãe tinha feito seu prato favorito que era macarrão com
queijo...
Arthur: É bom! Minha mãe bota.
Pesquisadora: Pois é, e Arthur adora macarrão com queijo, mas Arthur
ficou com dor de estômago logo depois da primeira garfada... (prossegue
contação). A mãe de Arthur logo percebeu que havia algo errado, porque
Arthur não deixaria de comer macarrão com queijo por nada nesse mundo!
Arthur: É! (Arthur escuta atentamente a história).
Pesquisadora: (Prossegue contação). O médico lhe disse que levasse o
menino até a emergência do hospital. É para que vamos quando
precisamos consultar um médico imediatamente. Foi pra que você foi,
num foi? Pra emergência?
Arthur: Foi. Foi lá embaixo.
Pesquisadora: Lá embaixo? E lá, o que foi que eles fizeram? Você lembra?
Arthur: Eles... coisaram aqui, aqui. Num foi esse não. Aí tirou.
Pesquisadora: Colocaram a borboletinha. (se referindo ao acesso venoso).
Aí fizeram o quê?
Arthur: Me mandaram pra cá.
Pesquisadora: E foi exatamente assim que aconteceu com Arthur também.
Arthur jamais tinha ido para o hospital e estava com medo do que poderia
226
acontecer... (continua a história). A emergência estava lotada... (prossegue
história).
Arthur: (A criança interrompe a contação para olhar as figuras do livro
que ilustram o espaço da emergência lotada. E aponta). Olha?!
Pesquisadora: Lotada, né? (continua história). Havia sons de bipes... Esses
sons, oh, que você escutando, bi, bi, bi, bi (imitando som da máquina de
monitoramento). Tá escutando? E máquinas estranhas... (prossegue
contação).
Arthur: Oh?! (criança aponta gravuras do livro).
Pesquisadora: Ah, onde está o Barney? Perguntou Arthur. Não se
preocupe, está aqui, disse sua mãe pegando o coelhinho de pelúcia em sua
bolsa. Arthur sempre se sentia melhor com presença do coelhinho... Tem
algum brinquedinho que você goste?
Arthur: Eu gosto do... Do meu travesseiro. Aí eu durmo. Quando eu fico
com meu travesseiro aí eu durmo! De noite, lá em casa.
Mesclar realidade e fantasia em busca de apreender a experiência é recurso
eficaz para as crianças. Por meio de tal mescla, à criança é facultada o acesso ao
indizível de sua angústia, traduzindo os significados de se estar doente. A
interpenetração entre o real e o fantástico permite, de igual modo, estruturar e manter
ativos os aspectos saudáveis da existência infantil (Corso & Corso, 2006; Favarato &
Gagliani, 2008; Góes, 2010; Gutfreind, 2010; Pazinato, 2008)
5.2.3 Eixo afetivo
Os vínculos terapêuticos estruturados em torno dos contos corroboram a função
destes como instrumentais essenciais para fomentar espaços de cuidado antepositivo
e/ou substitutivo. Tal aspecto é abordado ao longo deste eixo.
227
Os participantes, no decorrer das sessões, indicavam sutilmente seus afetos,
interesses e necessidades, por meio do comportamento, do olhar e do toque. Para
compreender como estavam sendo afetadas, revelaram-se dignas de nota as respostas
em nível dos gestos, respostas por vezes desprezadas, mas de extrema valia para
analisar a evolução psicoterapêutica de crianças, especialmente crianças internadas em
UTIPED. Sobretudo, revelou-se importante a relação de cuidado estabelecida com as
crianças participantes, a qual habilitava a pesquisadora a identificar os sinais indicativos
da disposição afetiva, natureza e qualidade da evolução alcançada ao longo das sessões
de contos.
O eixo afetivo encontra-se dividido em duas unidades de sentido: (a) Separação
dos pais: a hora do conto como espaço de acalanto e maternagem; e (b) Contos e
vínculos de cuidado. Tais unidades de sentido são ilustradas por fragmentos das falas
das crianças no decorrer dos encontros, de seus pais e/ou responsáveis, bem como das
impressões e reflexões da pesquisadora registradas a cada sessão.
a. Separação dos pais: a hora do conto como espaço de acalanto e maternagem
Nesta unidade de sentido estão descritos as falas, os comportamentos, os afetos
que circundavam os encontros com as crianças participantes e que sinalizavam
intensamente o lugar simbólico ocupado pela contação de história e pela tríade
pesquisadora-criança-conto no processo de hospitalização infantil em UTIPED.
Antes de dar prosseguimento, é necessário referendar a definição de maternagem
que por hora se adota na tentativa de compreender as informações relativas a esta
228
unidade de significado. Diferente de Winnicott, que prevê a maternagem como
fenômeno que se dá intensamente na díade e-bebê, Winter e Duvidovich (2004)
propõem a ampliação deste conceito para a área da saúde, entendendo-o como:
Uma forma específica de atuação preventiva (...) em qualquer idade, em que
haja manifestações de regressão ou fragilização das relações do indivíduo
com ele próprio, com o outro ou com o coletivo. A maternagem, nesta
concepção, implica aproximação, vínculo e empréstimo de recursos reais,
afetivos e simbólicos para aquele que não tem, indo muito além de um
modelo calcado na doação de bens materiais, como remédios, etc., mas na
doação de continência, presença e escuta advertida para as singularidades
em jogo em cada caso (p. 10).
Que fique claro que esta é a concepção de maternagem assumida nesta
dissertação que, a despeito de ser oriunda de trabalhos orientados teoricamente por
noções psicanalíticas, auxilia na compreensão da natureza e qualidade dos vínculos
tecidos entre pesquisadora e criança.
Separado de sua mãe e das demais figuras significativas em seu viver, o conto, e
a relação por ele mediada, favoreceram o desenvolvimento de um espaço de
acolhimento à criança, a tal ponto de atuar por vezes como substitutivo materno.
Os conflitos vivenciados pelas crianças durante o internamento, a tristeza que
predominava em seus semblantes, evidenciavam o quão maléfico era a separação de
seus pais em um momento tão crítico de sua existência.
Das quatro crianças alvos do estudo, talvez Bulu tenha adotado mais firmemente
a hora do conto como espaço de proteção a sua vulnerabilidade, como um espaço que
temporariamente preenchia a ausência de sua mãe. Este foi, indubitavelmente, o dado
mais significativo das sessões de contos com Bulu.
229
Logo nos primeiros encontros, a criança olhava para a pesquisadora e dizia:
Quero minha mãe!”. Sempre assegurava à Bulu que logo mais, à hora da visita, sua
mãe estaria ao seu lado. Isto parecia dirimir provisoriamente sua tristeza.
Era frequente Bulu, durante a contação, pedir para ser colocado deitado no leito.
A pesquisadora atendia ao seu pedido e iniciava a história. Ao término, perguntava a
Bulu o que havia achado da história. Ele repetia gesto afirmativo com o típico balançar
de cabeça. A pesquisadora segurava sua mão para se despedir e ele, como sempre,
chamava por sua e. A criança permanecia por longo tempo de mão dada com a
pesquisadora. Ao tentar distanciar sua mão, a criança, num gesto discreto, abria sua
mãozinha, como pedindo que a pesquisadora lhe desse a mão novamente. E assim o
fazia, permanecendo de mão dada com Bulu até a chegada de uma de suas figuras de
referência parental.
O gesto de manter-se de mãos dadas parecia sinalizar a garantia para a criança
de que estaria na companhia de alguém de sua confiança, alguém que provavelmente lhe
remetia à sensação de segurança e conforto psíquico, quando da ausência de seus pais.
Tal gesto iria assumir lugar central nos encontros subsequentes.
Em seu segundo encontro, ao chegar, Bulu pede a presença de sua mãe e emite
gesto inédito: aponta a cadeira que está no canto do quarto de isolamento onde
permanece. A pesquisadora pega a cadeira e coloca ao lado de seu leito, perguntando
para que serve aquela cadeira ali. Bulu responde: Pra você sentar!”. E a pesquisadora
então senta. Bulu, que estava sentado até então, recosta sua cabecinha no travesseiro,
deitando-se. Ele logo entrega sua mão à narradora, que passa a segurar a mão da
criança. E diz: Quero minha mãe!”. Pergunta-se à criança se quer ouvir histórias, e ela
diz que sim.
230
Em outras sessões, à chegada da pesquisadora, Bulu se punha sentado e a
chamava. Apontava a cadeira e pedia para que a pesquisadora sentasse ao seu lado. E
dizia: Contar historinha”. Isto se torna gesto corriqueiro, ocorrendo em todas as
demais sessões.
A pesquisadora confirma seu pedido e conta para Bulu a história O patinho feio,
selecionada para sua quinta sessão. A criança escuta a história atentamente, e permanece
o tempo todo olhando para a narradora, com sua cabeça encostada no travesseiro e
segurando sua mão. Não faz qualquer colocação ao longo da história, apenas sussurros
afirmativos. Ao término do conto, imediatamente Bulu pede para que lhe cante uma
música. Diz: A música, canta a música... da casa...”. Ao terminar algumas músicas,
Bulu pede: “Mais uma história”.
Ao prolongar a sessão de contos, a criança prolongaria de igual modo a
satisfação de sua necessidade de ser acolhido, acalentado, enquanto aguardava a visita
de seus pais.
Em sua sétima sessão de contos, a pesquisadora encontra Bulu sentado no seu
leito, olhando para a porta da UTI, o que não era incomum, a criança parecia estar
sempre à espera de alguém.
Bulu pede para que a pesquisadora sente-se ao seu lado, prontamente recostando
sua cabeça no travesseiro e estendendo a sua mãozinha em direção à da pesquisadora. E
então diz: A historinha!”. Indaga-se à criança qual história gostaria de ouvir. Bulu
responde: A das cabrinhas... A das cabritinhas...”. Bulu está confortavelmente deitado
em seu leito, todo coberto com uma manta e estende novamente sua mão para que a
segure, como em todos os demais encontros. Inicia-se a contação. Bulu ouve
231
atentamente, dessa vez olhando boa parte do tempo para o livro, e por vezes para a
narradora, principalmente frente a algumas expressões, como a fala do lobo mau.
Ao finalizar a contação, pergunta-se à Bulu o que ele achou da história, ele
acena com a cabeça e mais uma vez repete a frase pedindo por sua mãe. A pesquisadora
segura sua mão e lhe responde dizendo que ainda naquele dia ele irá receber a visita
dela. Bulu responde com o balançar afirmativo da cabeça e diz: Tá!”. Repete o gesto
de continuar segurando a mão da pesquisadora, agora tentando dormir. A tosse não o
deixa adormecer e, constantemente, tosse e abre os olhos, dirigindo seu olhar para a
pesquisadora.
A criança parece se reconfortar com a presença da pesquisadora, o apoio
simbolizado pela mão dada a sua, a afirmação de que posteriormente sua mãe estará ali
com ele. Bulu continua tentando adormecer. A mãozinha estendida junto à da
pesquisadora é mantida durante um bom período. O conto que fala da volta da Mamãe
Cabra parece funcionar como acalanto.
Aguardar com expectativa a hora do conto, solicitar à pesquisadora que sente e
permaneça ao seu lado, recostar a cabeça no travesseiro, estender sua mão em direção à
da pesquisadora, pedir recorrentemente para ouvir outros contos, relaxar ao ponto de
tentar adormecer após a contação, tentar prolongar o encontro até que sua mãe se faça
presente, são sinais emitidos por Bulu indicativos do lugar de relevância terapêutica
ocupado pelas sessões de contação de histórias, que pareciam gerar apaziguamento de
sua ansiedade e desamparo.
Bulu respondia a algumas indagações feitas ao longo do conto, indagações estas
com o objetivo meramente de perceber o quão a criança estava ou não envolvida com a
232
história. Ele respondia com dificuldade, estava cansado, por vezes lhe falta o ar, sua voz
sai sem força, em tom baixo, quase inaudível. Por vezes respondia apenas com Hum-
hum”. Por vezes acena com a cabeça. O momento para Bulu não era para pensar,
responder perguntas, o momento parecia ser dedicado apenas ao ouvir história, e
permanecer sendo acolhido, confortado.
Ao finalizar o conto Marilu, na sexta sessão de pesquisa, Bulu pede mais
história. Iniciou-se mais um conto. Nesse ínterim, sua mãe ingressa na UTI, e então ele
repete com ela o gesto anteriormente direcionado à pesquisadora: pede para que ela
sente a seu lado. E pegue na sua mão. A mãe atende ao pedido do filho. E eis que cessa
a necessidade de Bulu em manter a pesquisadora ao seu lado, seja contando histórias,
seja cantando músicas. É como se tal presença, as histórias e as músicas por ela
contadas ou cantadas significassem um substituto materno.
Maternagem, os contos infundem um espaço onde se delineiam os contornos da
maternagem, o que parece ser tão importante para essas crianças que aqui permanecem
longe de seus pais e de qualquer figura que lhes inspire segurança e apoio afetivo.
(Winter & Duvidovich, 2004)
A pesquisadora pergunta se Bulu quer que a história seja finalizada. Sua mãe
repete a mesma pergunta à criança. Ele acena com a cabeça em tom afirmativo. Então a
pesquisadora volta a contar a história. O clima de contação não é o mesmo. Bulu
permanece segurando a mão de sua mãe, olhando para ela, como que ansioso para que
as horas não passem, para que não chegue a hora de ela ir embora. Durante a contação,
desta vez Bulu permanece olhando para sua mãe. Pede a ela para ir para casa, para que
ela o leve para casa, para que tire o acesso venoso. Interrompe a contação para fazer
suas solicitações à mãe. E a mãe diz: Espere, filho, vamo escutar o resto da história?”.
233
Bulu responde com “Hum-hum”. Finaliza-se o conto. Ao lado da mãe, as histórias
parecem pouco necessárias.
A impressão é que Bulu sempre está à espera de alguém, sempre ansioso ao
chegar próximo à hora da visita, sentado olhando em direção à porta da UTI. Nota-se,
igualmente, que Bulu se acalma e recosta a cabeça no travesseiro, assumindo uma
postura de tranquilidade quando a pesquisadora, sua mãe ou seu pai chegam. Parece,
então, ficar mais seguro, para relaxar e permanecer deitado em seu leito, tranquilo, se
sentindo acolhido.
Também com seu pai, a criança se comporta de maneira semelhante. Enquanto a
pesquisadora e seu pai conversam sobre a condição clínica de Bulu, ele permanece
caladinho, com os olhos bem atentos, prestando atenção na conversa e em tudo a seu
redor. Está irritado, pedindo para retornar ao outro hospital. O pai explica que Bulu não
gosta de ficar na UTI, pois sente falta de seus pais. A criança permanece ao lado de seu
pai, e não solta por nada sua mão. Sente dores abdominais. Pouco interage com a
pesquisadora. Pouco lhe desperta o interesse sua presença ali.
Possivelmente, o espaço é concedido pela criança quando não conta com seu pai
ou sua mãe por perto. A sessão de contação de histórias parece consistir em ponto de
apoio secundário, substitutivo na ausência de suas figuras de referência.
A não permissão para permanência dos pais na UTIPED é angustiante não
para a criança, mas também para seus pais, que por vezes podem alimentar fantasias
sobre o que está sendo feito com seus filhos, por acreditarem que caso estejam perto
deles poderão protegê-los de qualquer dano, por se sentirem mais seguros e confiantes
ao lado dos filhos, podendo ver o que está acontecendo, etc. (Chiattone, 2003, 2011;
234
Favarato & Gagliani, 2008; Lindquist, 1984; Mello, 2008; Oliveira, 2007; Pérez-Ramos
& Oliveira, 2010; Teles & Valle, 2010; Torres, 2008).
A falta dos pais esteve presente nos primeiros relatos das crianças, conforme
apontam trechos das entrevistas iniciais com Bié e sua mãe.
Pesquisadora: O que você gostaria mais de fazer enquanto está aqui
dentro?
Bié: Muito, muito, muito?
Pesquisadora: Hum, muito, muito, muito!
Bié: Minha irmã, meu pai e minha mãe.
E a mãe de Bié ratifica o desejo da criança.
Mãe: ... Ele é muito apegado comigo. Quando eu chego aqui (na UTI),
duas vez que eu chego aqui, ele fica chorando, assim, mode, mode ele me
vê, né?
Dirimir transitoriamente a lacuna deixada pela ausência dos pais, ofertando à
criança a possibilidade de ser cuidada de modo integral, é uma das funções terapêuticas
dos contos de literatura infantil (Góes, 2010; Gutfreind, 2010)
No que diz respeito a Pedro, o primeiro encontro também é marcado pela
sinalização da saudade que sentia de sua mãe. Assim que a pesquisadora se coloca a seu
lado, explica a Pedro que além dele irá acompanhar o colega Bulu. A pesquisadora diz
que Bulu chamava por sua mãe. E afirma:
Pesquisadora: Você estava aqui com sua tia, e Bulu chamava por sua
mãe... Você já o conhece?
Pedro responde que não, e logo completa, olhando para baixo:
Pedro: Também sinto falta da minha mãe... Queria ver ela. Tô com saudade
da minha mãe!
Pesquisadora: Você sente a falta dela?
Pedro: Sinto!
235
Pesquisadora: Há quanto tempo não a vê?
A criança hesita, pensa e diz:
Pedro: No acidente... No dia do acidente...
Neste mesmo encontro, a técnica cobre a criança com seu lençol. Pedro pergunta
a ela se a pesquisadora dorme no hospital. Ela sorri e diz que o, apesar da
pesquisadora estar bocejando. A criança sorri. E diz que está com frio. A técnica
cobre mais uma vez a criança, agora com dois lençóis. Pedro então diz:
Pedro: Eu dormia bem agarradinho com minha mãe! Por isso, não sentia
frio!
A separação dos pais, notadamente de sua mãe, é tema recorrente nas sessões de
Pedro. Perante tal carência, a sessão de contos e a relação tecida entre pesquisadora e
criança passam a assumir centralidade em sua evolução psicoterapêutica.
Pedro, ainda sem estar informado sobre a morte de seus pais, em sua entrevista
inicial aponta o seu maior medo.
Pesquisadora: Você tem algum medo?
Pedro: Tenho.
Pesquisadora: Qual?
Pedro: Deus a livre, Deus a livre... vou... Mas eu vou dizer... Tenho
medo deles (pai e mãe) morrer!
Pesquisadora: Você tem medo deles morrerem?
Pedro: Vou pedir a Deus, quando sair daqui, rezar pra eles! Quando eu
sair daqui do hospital, que eles não morre de fome. E eu também.
A falta que sente de sua mãe também é apontada pela tia da criança na entrevista
inicial.
Tia: Fala... Pergunta demais por ela, por ele, mas ele é muito, pergunta
mais é, é dela. Chama por ela, por que ela não vem ver ele... E eu fui
236
orientada pra dizer que ela tava muito doente, que eles tavam muito doente,
passando mal... Até agora o que ele sabe é isso sobre eles.
A separação de sua mãe interfere sobremaneira na dinâmica emocional de Pedro.
Paulatinamente, as sessões de contação de histórias passam a lhe servir como acalanto
perante o anseio de estar junto da figura materna. A pesquisadora passa, então, a ocupar,
em seu imaginário, o espaço que a criança confere a sua mãe. É o que ocorre em sua
quarta sessão, quando a criança afirma que a pesquisadora é sua mãe. Aconteceu da
seguinte forma: sua tia atendeu um telefonema. Benta informa à pessoa que Pedro está
bem, na companhia da psicóloga. Pedro então corrigiu sua tia:
Pedro: Não, é minha mãe! Ela é minha mãe, tia!
A pesquisadora olha para a criança surpresa. E fala:
Pesquisadora: Não, Pedro, sua tia, né?
Tia: É a tia dele, pronto! Né, Pedro?
O que responder diante de tal responsabilidade, desse papel, desse lugar que
Pedro concedeu à pesquisadora? Uma criança que perdeu sua mãe e ainda não “sabe”
disso.
Através dos encontros, da contação de histórias, da interação pesquisadora-
criança, se inscreve em sua subjetividade a representação parental que lhe é mais
significativa: aquela que lhe conta histórias diariamente, que lhe cuida, na ausência de
sua mãe, assume o seu lugar e supre transitoriamente a carência da criança. Torna-se
compreensível porque, então, para Pedro, o momento da contação de histórias era tão
ansiosamente esperado e tão vigorosamente prolongado.
Na sexta sessão de Pedro, mais uma vez a criança surpreende a pesquisadora.
Pedro: Tia, você veio contar historinha para mim? Eu gosto de você!
237
A pesquisadora pergunta à criança por que, ao que Pedro responde:
Pedro: Porque você conta historinha para mim.
E completa:
Pedro: Tia, você é minha mãe por parte de Deus!
Contos como espaço de exercício da maternagem. Muito bem identificado pelas
crianças. A declaração de Pedro torna patente o quão significativos são os laços afetivos
formados entre pesquisadora e criança com a mediação dos contos. A relação
desenvolvida entre a pesquisadora e Pedro requer atenção, exigindo da pesquisadora,
para além do envolvimento existencial, um distanciamento reflexivo que lhe possibilite
explorar as possibilidades de um cuidado antepositivo, que liberta e não aprisiona o ser
em uma relação de dependência (Forghieri, 2002; Sá, 2002).
Para todas as crianças participantes, inclusive para Arhur, uma das questões
centrais era a ausência da mãe ao seu lado na UTI. E isso marcará os encontros de
pesquisa com Arthur.
Em sua terceira sessão, após o conto O patinho feio, a criança explora a caixa
lúdica e se interessa pelo jogo da memória dos sentimentos. Tal como para Pedro, este
jogo passa a ser o preferido de Arthur ao longo dos encontros, através do qual tem a
oportunidade de expressar o que sente e pensa, seus desejos e conflitos. A pesquisadora
explica-lhe as regras do jogo e inicia-se a partida. A seguir, explicitam-se trechos de fala
da criança que evidencia o que sente em face da ausência de sua mãe.
Pesquisadora: Aê, Arthur! Muito bem! Alegre, né? Quê que lhe deixa
alegre?
Arthur: Eh... Quando eu fico bem pertinho da minha mãe.
Pesquisadora: Essa carinha é a carinha de medo. Quê que lhe deixa com
medo?
Arthur: Quando eu fico sozinho, sem minha mãe.
238
Pesquisadora: Eita! Tá achando todas, hein? Essa é a cara de sono.
Arthur: Quando a minha mãe conta uma história pra mim.
Pesquisadora: Quando sua mãe conta uma história pra você?
Arthur: Aí eu durmo.
Pesquisadora: Você dorme? Dorme com a história... (prossegue o jogo).
Essa é a carinha de triste...
Arthur: Quando... Eu não tô perto da minha mãe.
Ante a ausência materna, Arthur parecia aproveitar as sessões de contos para, no
momento da produção de sentidos, desenhar, pintar, fazer cartas, sendo todos os
materiais elaborados direcionados a sua mãe. Possivelmente, ao ouvir contos e
confeccionar desenhos e cartas, indiretamente Arthur aproximava sua mãe de si,
tornando-a simbolicamente presente.
Em todas as sessões com Arthur, a criança, como de costume, estava em seu
leito, sentada. A pesquisadora cumprimentava a mesma e oferecia a história. Antes,
mostrava a ela a cartela dos sentimentos, em que sempre apontava a carinha de feliz. E
tal sentimento, Arthur continuamente atrelava ao fato de que estava prestes a receber
alta da UTI para ficar com sua mãe. Tal esperança parecia ser o que lhe fortalecia
diariamente para permanecer ali.
A sessão de contos oportunizava à criança imergir na ludicidade e extrair dela
prazer e satisfação temporárias de suas necessidades afetivas, apaziguando sua angústia
em face da ausência de suas figuras de referência.
Como descrito, acalanto e maternagem parecem ser uma das funções
terapêuticas primordiais exercidas pelos contos para crianças em UTIPED, que não
podem permanecer na companhia de seus pais e/ou familiares significativos. Embora
239
não supra em definitivo a carência dos infantes, lhes permite aliviar a aflição diante da
separação.
A ausência de pessoas com as quais a criança mantém vínculos afetivos
importantes pode interferir substancialmente na evolução de seu quadro clínico. Foi
também o que ocorreu com Arthur.
Ele recebeu alta da UTIPED no dia 20 de setembro de 2010 e foi encaminhado
para a enfermaria de outro hospital pediátrico. No dia seguinte ao seu encaminhamento,
a pesquisadora realizou uma visita à criança no hospital em que agora se encontrava. A
mesma tinha alcançado súbitas melhoras em seu estado clínico, com a redução
significativa dos indíces glicêmicos, controle da diurese e da pressão arterial.
Provavelmente tal rápida melhora tenha se dado em virtude da liberação da criança da
UTI e, sobretudo, da possibilidade de permanecer ao lado de sua mãe na enfermaria. A
pesquisadora encontra Arthur feliz, sentado ao lado de sua mãe em uma poltrona.
Impressionante é saber que as taxas de glicose de Arthur baixaram
assustadoramente em relação às taxas que ele apresentava durante toda a sua
permanência em UTI. Coincidência ou não, a criança agora está ao lado da pessoa da
qual sentia mais falta na UTI: sua mãe.
Mãe, figura tão indispensável no cuidado à criança. Constata-se um ciclo
vicioso: não liberavam a criança da UTI em virtude das altas taxas de glisoce no sangue,
por consequência a criança ficava mais ansiosa e triste, e as taxas permaneciam subindo
ou inalteradas, e eles então não liberavam a criança, e assim sucessivamente, num
circuito ininterrupto. Até que optam por arriscar e dar alta a criança. Eis a resolução do
problema.
240
b. Contos e vínculos de cuidado
Esta unidade de sentido expressa a relação terapêutica formada entre
pesquisadora e criança, a qual produziu efeitos que transcenderam as possibilidades
literárias.
Os vínculos tecidos com as crianças participantes da pesquisa foram
significativos, ao ponto de gerar mobilização importante na pesquisadora, o que
implicou a necessidade de persistência e alto investimento afetivo ao longo da pesquisa
com cada criança, produzindo desgaste físico e emocional.
No caso de Bulu, foi revelador e instigante perceber que a criança, apesar do
pouco tempo de interação e a suposta quebra no vínculo terapêutico pela interrupção
temporária dos encontros de contação de histórias (devido à transferência de Bulu para
outro hospital), ao retornar à UTIPED, reclama atenção e cuidado à pesquisadora,
solicitando sua permanência a seu lado, segurando sua mão como no período anterior à
transferência. A presença da pesquisadora parecia remeter a ideia de segurança à
criança. E como foi surpreendente perceber que Bulu recordava trechos da história
contada ainda no nosso segundo encontro antes de sua transferência.
As sessões de contos com Bulu em geral foram avaliadas de maneira positiva.
Em uma sequência diária de encontros, alcançaram-se resultados modestos, porém não
imaginados para uma criança tão debilitada fisicamente e com um prejuízo
desenvolvimental considerável como Bulu. Atribui-se tais resultados especialmente à
relação terapêutica estabelecida, a qual proporcionou inclusive uma forma de
241
comunicação em que foi possível à pesquisadora identificar as necessidades e respostas
da criança mesmo na ausência de uma verbalização mais evidente.
Considera-se ser importante a sequência de encontros ininterruptos, em virtude
da alta relevância da manutenção de uma rotina lúdica para a criança, tal como o é a
rotina de procedimentos aos quais é submetida.
Ao mesmo tempo, percebeu-se ser de suma importância acompanhar o
movimento e interesse da criança, sem impelir os encontros, pois de outro modo, o que
potencialmente poderia promover satisfação, alegria, bem-estar emocional, pode se
assemelhar aos procedimentos médicos, no que tange ao caráter de obrigatoriedade e
desprazer. Tal conduta ajuda a fortalecer os laços afetivos entre pesquisadora e criança,
permitindo a abertura de núcleos potenciais de evolução terapêutica.
O cuidado à criança mediado pelos contos fomenta uma aliança terapêutica
pautada na confiança e segurança, tornando-se a pesquisadora figura de referência para
o pequeno assistente de pesquisa. Tal cuidado ultrapassa as sessões de contação de
histórias, como acontece com Bulu, em sua terceira sessão.
Durante a contação de história, O lobo e os sete cabritinhos, a enfermeira-chefe
informa que Bulu será levado para fazer um exame oftalmológico. Interrompe-se a
contação e começam então os preparativos para que a criança possa ser conduzida ao
exame. A criança é colocada numa cadeira de rodas. Olha para a pesquisadora e fala:
Bulu: Quero minha mãe! Mãe! Vai chamar ela!
Pesquisadora: Bulu, ela vai chegar, viu? Você quer que eu com você
ao exame?
242
Bulu estende sua mãozinha em direção à da pesquisadora. A enfermeira então
pergunta:
Enfermeira: Ah, você vai ao exame com ele?
Pesquisadora: (Responde afirmativamente).
Técnica de enfermagem: Deixa eu ver se a mãe dele está fora que
ela pode ir acompanhando ele.
A técnica constata que a e de Bulu ainda não chegou para visitá-lo. A
enfermeira-chefe então completa:
Enfermeira: Ah, mas não tem problema não, ele vai com a mãe hospitalar!
A pesquisadora continua segurando a mão de Bulu e seguem para o exame. Ele
não quer largar a mão da pesquisadora, e quando isso ocorre, olha para trás como que
para se certificar de que ela permanece ali.
Na ausência da mãe, a pesquisadora torna-se a referência de cuidado e figura que
inspira a proteção a o apoio de que tanto a criança precisa ao longo da hospitalização em
terapia intensiva. E quão rico e valoroso são os laços de cuidado cultivados no decorrer
das sessões de pesquisa, laços que tecem a história vivida pela criança como
protagonista, história repleta de desafios e também de conquistas e alegrias.
Os vínculos de cuidado também reverberam para além do momento de interação
entre pesquisadora e criança. Bié recebe alta hospitalar, e retorna ao seu lar bem. Alguns
dias depois, a pesquisadora recebe uma ligação. Uma vozinha que dizia: Tia Ariane?.
Era Bié. A pesquisadora pergunta como ele se sente e diz que está muito feliz por ele
ter retornado a sua casa. A criança escuta. Mas diz que continua sentindo dores. A
pesquisadora conversa com Bié, dizendo que aos poucos ele irá se sentir melhor.
243
Para Pedro, o vínculo terapêutico estabelecido o fez relacionar a pesquisadora à
figura materna, de quem tanto sentia saudade. Na presença da pesquisadora, Pedro
parecia sentir-se cuidado.
na sua entrevista inicial, após a contação da história Quem tem medo do
novo?, Pedro anuncia:
Pedro: ... Sim, minha tia já tá aqui! E ela vai contar uma história pra mim e
eu fico triste! E eu tô com saudade quando ela não vem aqui!
Em sua quarta sessão, Pedro revela seu sentimento em relação à pesquisadora,
quando outras crianças interrompem a sessão em busca de lápis e papel para fazer
desenhos.
Pesquisadora: Papel? Eu tenho papel, mas não tenho lápis. Tem esse lápis
aqui que eu vou usar, viu? Mas eu trouxe um livro. Quer ler pra ele? (se
referindo a outra criança que sabe ler e que se dispõe a ler para os
colegas). Pode ir lá pegar!
Pedro: Tia, eu tô com ciúme! Tia! Eu fico com ciúme se você lê pra eles! Só
pra mim e pra Bié! E pro menininho na UTI...
A expectativa pela hora do conto e, mais ainda, pela presença da pesquisadora ao
lado da criança, é expressa na quinta sessão de contos de Pedro, em meio à narração.
Pesquisadora: (Continua a história). Eu tenho um medo danado! Mas é de
pegar piolho! pegou piolho, Pedro? (tentando resgatar a atenção da
criança).
Pedro: (Balança de forma negativa a cabeça). Amanhã você vem? Amanhã
você vem de novo? (pergunta Pedro interrompendo a contação).
Pesquisadora: Amanhã eu tô aqui! (continua a história).
Na sexta sessão, uma vez mais Pedro sinais do quão intenso são os laços de
afeto tecidos entre a criança e a pesquisadora.
244
Pedro: Tia, sabe por que eu tava com dor de cabeça? (se dirigindo à tia).
Tia: Por quê?
Pedro: Porque eu tava com saudade dela! (se referindo à pesquisadora).
Tia: Ave Maria! juntou a minha saudade com a dela, pronto, deu dor
de cabeça! Já passou a dor de cabeça?
Pedro: (Sorri e acena afirmativamente com a cabeça).
Pesquisadora: (Risos).
Tia: Oh, coisa boa! Só foi tia aparecer ali!
As histórias servem como recurso de extrema valia à promoção do cuidado à
criança em UTIPED, embora tenha ficado evidente que os benefícios e transformações
alcançados transcendem o uso das histórias.
Não é à toa que pareceu o tempo todo que a necessidade de Pedro ia além da
contação de histórias. O que ele comunica o tempo todo é sua necessidade de interagir
com a pesquisadora, manter-se ao seu lado. Percebe-se de forma clara que algumas das
histórias contadas não lhe afetam de forma significativa. A contação é secundária ao
longo da sessão.
Os vínculos de cuidado interferem significativamente na dinâmica emocional de
ambos os participantes dos encontros de pesquisa: pesquisadora e pesquisado,
implicando envolvimento afetivo que gera efeitos tanto positivos quanto negativos. Isto
ocorreu de maneira clara na sessão em que Pedro comunicou à pesquisadora sobre a
morte de seus pais. No transcurso da sessão, Pedro por vezes parecia disperso. Essa
sessão foi, de igual modo, difícil para a pesquisadora.
E na sétima e penúltima sessão, Pedro tenta assegurar a presença da
pesquisadora lhe acompanhando após a alta hospitalar.
245
Pedro: Eu quero... Você leva eu pra casa quando eu... Quando... Pra casa
quando eu, quando... Quando você contar isso pra mim?
Pesquisadora: Você levar isso pra casa? (acreditando que a criança se
referia aos dedoches que utilizava).
Pedro: Não, pra levar pra casa isso aqui quando eu coisar daqui, esses
personagem.
Pesquisadora: Pra levar pra sua casa?
Pedro: Lá pra casa, quando você for... Quando terminar esses personagem.
Pesquisadora: Sim, é, eles vão todos pra casa!
Pedro: Não, você!
A última sessão de Pedro também é marcada pela tentativa da criança de
postergar o fim dos encontros, assegurando assim a manutenção do vínculo
estabelecido. Em tal sessão, a pesquisadora leva consigo a história Se criança
governasse o mundo..., conto previsto para o último encontro com a criança. Outros
contos encontram-se guardados em uma pasta e, como numa tentativa de adiar o
máximo possível o fim do nosso encontro, Pedro pede para que lhe conte também as
outras histórias. A pesquisadora pede para que a criança selecione duas outras histórias,
e então as conta.
Pedro conversou, fez rodeios, parecendo querer adiar a hora da despedida. A
pesquisadora esclareceu à criança que iria visitá-la antes de ela receber alta definitiva do
hospital. Pedro perguntou repetidas vezes quando a pesquisadora iria retornar para vê-
lo. A pesquisadora respondeu que o visitaria no dia previsto para sua alta.
Como sucedeu com Bié, Pedro, mesmo após a alta hospitalar, permaneceu em
contato com a pesquisadora por telefone. Os vínculos de cuidado extrapolam os muros
do hospital, se estendem à vida da criança pós-alta hospitalar. São encontros de
contação e construção de histórias altamente frutíferos. Encontros de cuidado autêntico,
246
que permitem a vivência da infância em contexto potencialmente adverso ao
desenvolvimento infantil como o é a Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica.
Já para Arthur, a relação terapêutica estabelecida parece ter propiciado a redução
de sua ansiedade perante o afastamento de sua mãe.
5.3 E, AFINAL, O QUE AS CRIANÇAS ACHARAM DA HISTÓRIA? NARRATIVAS
TECIDAS PELAS PROTAGONISTAS DESTA HISTÓRIA
Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como
desencantá-la? É a senha da vida, a senha do mundo.
Vou procurá-la. Vou procurá-la a vida inteira no
mundo todo. Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo, procuro sempre. Procuro sempre, e
minha procura ficará sendo minha palavra.
(Carlos Drummond de Andrade em A palavra mágica, 2002)
Nesta terceira e última linha de análise expõem-se os resultados obtidos acerca
do diferencial propiciado pela inserção do conto no contexto da terapia intensiva. Com a
palavra as principais personagens deste estudo, seus familiares e a equipe de saúde. Tal
linha de análise é composta por duas unidades de sentido: (1) E no fim emergem os
significados da experiência contada e vivida; e (2) Conto ou não conto? Comentários
adicionais.
5.3.1 E no fim emergem os significados da experiência contada e vivida...
247
Esta unidade de sentido destaca os trechos essenciais das entrevistas finais com
as crianças e seus responsáveis, buscando elucidar o que significou para cada um deles
o trabalho desenvolvido por meio dos contos de literatura infantil.
De modo geral, as mães avaliaram como importante a proposta de contação de
histórias aos seus filhos, indicando como a participação deles nos encontros afetou seu
comportamento, estado emocional e produção simbólica. Seus discursos apontam o
lugar ocupado pelos contos na rotina hospitalar das crianças.
A primeira fala ilustrativa é da mãe de Bulu, que traduz fielmente a principal
função terapêutica exercida pela hora do conto frente às necessidades de tal herói, qual
seja: a função de cuidado antepositivo expresso sob a forma de maternagem. Deste
modo, a mãe relata fato curioso: diz que sempre quando é chegada a hora de ir embora,
Bulu a faz prometer que vai chamar a médica que conta histórias para ele:
Mãe: Bulu me deixa sair daqui sem chorar se eu afirmar pra ele que sim
quando me pergunta: ‘Mamãe, você então vai chamar a médica para contar
histórias para mim?’.
E completa:
Mãe: Mulher, eu tenho que mentir, sei que nem é bom, mas tenho que
mentir, pra se ele para de perturbar, de chorar, pra ele não ficar triste.
Fico arrasada, mas tenho que dizer que vou chamar você, senão ele não me
deixa ir embora.
Maternagem, talvez uma das principais funções exercidas pelos contos. Eles se
revelam especialmente atrativos à criança quando da ausência materna, como ocorreu
por diversas vezes nas sessões com Bulu.
A mãe de Bié descreve da seguinte maneira a experiência vivida:
248
Mãe: Eu gostei... achei muito bom, importante! Ah, ele vive perguntando
por você. ele diz: ‘Mainha, e a tia não vem hoje não, mainha? Pra ela
contar pra mim historinha, que eu gostei muito! É tão ruim, mãe, sozinho
aqui sem livro, sem, assim, umas coisinha melhor pra pessoa ouvir, assim
uns desenho, uns negócio assim...’. Aí tinha a televisão, o pessoal queria
a televisão pra novela, pra filme, né? as coisinha de criança, uns
desenho assim o pessoal não botava lá, o que ele gostava, né? quando
você chegava ele achava, ficava mais alegre... Eu acho que ele se sentia
bem, ele se sentia aí, muito sozinho assim, e quando você chegava assim ele
achava bom...
Em sua fala, a mãe de Bié revela o quão esperado era a hora do conto pela
criança, como uma de suas únicas oportunidades, senão a única, de se divertir, brincar,
fantasiar, enfim ser criança em UTIPED. O sentimento de estar sozinho, mesmo na
companhia de pessoas (profissionais de saúde) durante 24 horas diárias, denota a
fragilidade deste contexto em garantir espaços eminentemente psicoterapêuticos e de
expressão da infância no que ela tem de mais específico e estruturante: o brincar e a
interação com o outro.
Assim como Bié, para Pedro também era de alto valor o momento da contação
de história, momento aguardado ansiosamente, tanto pelo desejo de ouvir histórias
como pelos laços afetivos formados entre a pesquisadora e a criança.
Tia: ... Ele disse, ele comenta tudinho. Aí ele diz ‘Amanhã, eu quero que ela
venha pra contar outra historinha!’. fica me perguntando por você o
tempo todo. Sim, quando, assim que, aí quando ele liga pra minha
menina diz que conversou, que você contou historinha pra ele, que ele
gostou muito. ele quer assim, porque ele queria que minha menina
conhecesse você, ele é assim, sabe? (risos).
Pesquisadora: E o quê que você achou da, dos encontros com Pedro? Dos
meus encontros com Pedro?
249
Tia: É, eu gosto muito, pra mim tá sendo muito bom pra ele, ele fica
animado, quando, é só falar na Tia Ariane dele... eu já tô com ciúme!
(risos).
Pesquisadora: (Risos). E, após os encontros com ele, né, que eu contava
história, você percebia alguma mudança nele? Do ponto de vista
emocional? Do ponto de vista do comportamento?
Tia: Ele tá se comportando bem. Ele fica animado, fica uma criança, ontem
ele, pronto, ontem ele, depois que você saiu esse menino dormiu a noite
todinha! Eu acho que assim, só de lhe ver ele fica animado. E eu percebi
que ele fica muito feliz, ele muda. Vixe Maria! muito boa a recuperação
dele, tem muita influência porque assim quando eu cheguei aqui eu fui, quis
me desesperar, porque ele dizia ‘Tia, vamo pra casa, tia, vamo pra casa!’, e
eu ‘Ai, meu Deus do céu!’. E eu achei bom demais, essa pessoa que vem
aqui contar historinha, apesar de eu contar, mas você tem um jeito mais
doce, sabe? E ele fica muito animado. Sim, aí já queria ligar pra você hoje,
queria porque queria, ‘Ela não vai vir não, porque ela disse que vinha à
tarde e não veio! Ligue, tia, ligue!’. Aí eu digo ‘Mas ela vem!’. Pois é, achei
muito ótimo, muito importante mermo!
Para Arthur, segundo o relato de sua mãe, os contos e a contação de histórias
serviram como apaziguadores de sua ansiedade para sair da UTIPED e permanecer ao
lado de sua mãe. na entrevista inicial, e no transcorrer dos encontros com a criança,
ficou evidente a angústia despertada pelo afastamento da criança de sua mãe, conforme
ocorreu também para os outros participantes deste estudo. Nas sessões de contação de
história, o momento dedicado à produção simbólica para Arthur representava a
oportunidade de trazer à presença a figura materna. Simbolicamente, com a produção de
cartas e desenhos, a criança aproximava sua mãe de si, mesmo em sua ausência. Arthur,
ao ver sua mãe na hora da visita, em conformidade com o relato da mesma em
entrevista inicial, a pressionava para saber se no dia seguinte receberia alta da UTI.
Ainda segundo a mãe, com os encontros, tais questionamentos e a ansiedade da criança
250
sofreram uma redução importante, como mostra o trecho a seguir, extraído da entrevista
final com a mãe da criança:
Pesquisadora: O que a senhora achou da proposta dos encontros com a
criança pra contar histórias durante a permanência dela na UTI?
Mãe: Foi muito importante pra... Porque ajudou muito na recuperação, ele
teve muito, ele se esforçou bastante, tanto é que as enfermeira dizia que ele
era muito comportado, e eu acho que foi através desses encontros que
ajudou mais ele ainda, né? Ele tentar ter aquela força de vontade que eu,
tinha vez que era difícil até eu explicar que todo dia ele dizia ‘Eu vou sair
hoje?’. pra mim foi muito importante e pra ele também... Porque ele, ele
inventava, dizia, quando eu chegava ele dizia as historinhas, tinha aqueles
desenho, né? Então, isso foi, foi tipo um, uma história que pra mim eu
peguei como lição. Pra mim e pra ele, né? Pra mim foi bom mermo! E ele
gostou, pra ele foi bom. Eu tenho certeza que ajudou muito... Como a
distância pra gente, nunca tinha se afastado, né, e ele, como ele tava ali se
sentindo só, foi muito bom! Foi como que chegou um anjinho pra ajudar
ele! Eu senti assim e eu acho que ele também. Com certeza. Tava difícil eu
controlar e contar a ele que ele ia sair, como ele ia sair, hoje não dava
certo, mas que seria logo, logo... pra mim, após os encontros foi bom
porque isso ajudou, né, e ele ficou mais, tipo assim mais calmo, porque
ele dizia ‘Mãe, mainha, daqui a dois dias eu saío’, e foi, realmente tava
quase no final dos encontro na UTI, né? ele foi disse ‘Daqui a uns dois
dia eu saío. Num tem nada não! Vou sair já bom, nós vamo pra casa!’.
os protagonistas afirmaram que gostaram dos encontros de contação de
histórias, salientando que, dentre as atividades feitas ao longo das sessões, destaque
obteve os contos de literatura infantil. Abaixo trechos da entrevista final com Bié que
revelam o que é aqui apontado.
Pesquisadora: O que você achou dos nossos encontros?
Bié: Legal.
251
Pesquisadora: E por que foi legal?
Bié: Por causa da historinha.
Pesquisadora: Como você se sente quando ouve historinha?
Bié: Bem.
Pesquisadora: E qual historinha você mais gostou?
Bié: Tudinha.
Pesquisadora: Hoje será nosso último encontro.
Bié: Não.
Pesquisadora: Por que não?
Bié: Porque não...
Bié, como as demais personagens, diz que se sentia bem quando ouvia as
histórias, e manifesta seu desejo de permanecer ouvindo-as, de permanecer participando
dos encontros.
Embora tenham demonstrado preferências ao longo das sessões, na entrevista
final Bié e Pedro afirmaram ter gostado de todas as histórias contadas.
Pesquisadora: O que você achou dos nossos encontros?
Pedro: Bom.
Pesquisadora: Bom? Por que era bom?
Pedro: Porque você... é minha tia! Porque você é minha tia de... me contar
historinha!
Pesquisadora: Como foi pra você participar, escutar história durante esses
dias?
Pedro: Bom.
Pesquisadora: Como é que você se sentia quando ouvia as historinhas?
Pedro: Bem. Você contava história pra mim.
Pesquisadora: Teve alguma historinha que você mais gostou?
Pedro: De todas.
Arthur responde de maneira similar aos seus companheiros, sinalizando terem
sido proveitosas as sessões de conto na UTIPED.
252
Pesquisadora: Arthur! O que você achou dos nossos encontros lá na UTI?
Arthur: Legal!
Pesquisadora: Por que você achou legal?
Arthur: Porque... é... sei não! Porque! ... Eu gostei!
Pesquisadora: Como é que foi pra você participar dos encontros?
Arthur: Foi bom!
Pesquisadora: Do que você gostava mais?
Arthur: Contar história.
Pesquisadora: A gente fazia uma porção de coisa, né, contava história,
depois você desenhava, fazia desenho pra sua mãe, cartinha, lembra?
Arthur: Lembro.
Pesquisadora: E do que você mais gostava nos encontros?
Arthur: Contar história.
Pesquisadora: Como é que você se sentia quando escutava as historinhas?
Arthur: Bem!
No discurso das crianças, é possível observar que, provavelmente, o que dizem
não conta da experiência que viveram. A linguagem da criança, conforme apontado
por Sunderland (2005), não é a linguagem do cotidiano. Por esta linguagem não se
alcançam os afetos. A criança é muito mais vivencial, experiencial, do que discursiva,
verbal. Ademais, é no decurso do vivido que se revelam, pela linguagem, suas
percepções, afetações, enfim os significados atribuídos à experiência imediata.
Tomando de empréstimo as palavras de Heidegger (1947/2009) sobre a linguagem e o
discurso, também se torna possível entender a comunicação das crianças sobre sua
experiência na interação com os contos na entrevista final:
A palavra não é uma relação; a palavra revela, abre. O decisivo da
linguagem é o significado. O sonoro também pertence à linguagem, mas não
é o fundamental. Pela linguagem posso dizer a mesma coisa em diversas
línguas. O essencial da linguagem é o dizer, que uma palavra diga algo e
253
não que tenha um som. Que uma palavra mostre algo. Dizer mostrar. A
linguagem é o que mostra (Heidegger, 1947/2009, p. 223).
De igual modo, uma frase extraída da obra O pequeno príncipe (Saint-Exupéry,
1943/2006), fiel companheiro desta dissertação, auxilia na compreensão dos extratos de
fala das assistentes de pesquisa:
As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as
crianças, estar a toda hora explicando (p. 10).
Deste modo, pela linguagem, não necessariamente sonora, apreende-se de forma
autêntica e com a simplicidade e significância comunicativas próprias à infância, os
significados da experiência de imersão no mundo imaginário dos contos de literatura
infantil para os participantes do estudo.
5.3.2 Conto ou não conto? Comentários adicionais
A despeito de não terem feito parte da pesquisa, em termos de definição
metodológica de participação, alguns membros da equipe de saúde, tendo conhecimento
do trabalho que estava sendo executado, procuravam a pesquisadora para comunicar o
que pensavam a respeito, como acreditavam que as crianças se sentiam, as alterações
que haviam observado no comportamento das crianças, entre outros apontamentos.
Transcrevo, a seguir, alguns fragmentos de conversas assistemáticas com,
respectivamente, uma técnica de enfermagem, duas enfermeiras e uma fisioterapeuta,
todas integrantes da equipe de assistência da UTIPED. Os trechos auxiliam a reflexão
254
sobre as possibilidades terapêuticas dos contos e o potencial de cuidado à saúde mental
propiciado pela intervenção psicológica a crianças hospitalizadas.
Isto posto, uma das técnicas de enfermagem, enquanto executa seu trabalho de
rotina, comenta acerca da importância de trabalhos lúdicos com as crianças. Em sua
percepção As crianças precisam de trabalhos como esses, elas se sentem bem,
brincam, se divertem!”. E persiste, solicitando atendimento para outra criança
internada. Pede a confirmação de suas assertivas pela enfermeira-chefe, que repete
enfaticamente as mesmas colocações e diz: Faz toda diferença, com certeza, no
tratamento do paciente!”.
O reconhecimento deste tipo de trabalho pode sinalizar a abertura da equipe que
assiste crianças para considerar suas peculiaridades e necessidades desenvolvimentais.
Em outro momento, cena que se passa também no hospital, a pesquisadora é
abordada pela fisioterapeuta que atende a Bié e Pedro. Ela questiona o que a
pesquisadora fez com Bié. Afirma que ele está “outra criança, que mudou
completamente”. Diz que ele está “muito feliz” e que durante o atendimento dela
naquele mesmo dia ele comentou sobre sua festa de aniversário (realizada na
brinquedoteca do hospital) com bastante alegria. A fisioterapeuta diz o quão parece ter
sido importante aquele momento para a criança. E elogia o trabalho, afirmando o quão
positivos estavam sendo os resultados com Pedro também.
Fisioterapeuta: perfeito o trabalho, toda vez que eu chegava para
atender ele perguntava por você! E dizia que não queria fazer os exercícios,
pois eu não contava histórias para ele! Pedia para eu ir lhe chamar! E
depois pedia para eu contar uma história pra ele antes de iniciar os
exercícios! ia eu contar! E contava história de Cachinhos Dourados,
Chapeuzinho Vermelho! (risos).
255
Os efeitos produzidos pelos contos e pelo vínculo terapêutico por eles mediado
eram extensivos ao longo do dia das crianças. A partir desta fala, é possível perceber a
significância das sessões de contação de história e a repercussão no próprio tratamento e
na relação da criança com os demais profissionais.
Embora não executem atividades desta natureza, alguns profissionais parecem
atribuir lugar de destaque a elas na recuperação da criança. Outra enfermeira se
aproxima da pesquisadora, durante uma sessão de contação de história de Arthur, para
falar sobre seu desejo de desenvolver um trabalho como aquele, pois tem lido sobre o
assunto e participado de congressos em que teve a oportunidade de assistir relatos de
experiências em prol da humanização. Fala de seu encantamento por tal trabalho e da
relevância para os pacientes, e completa:
Enfermeira: Oh, coisa boa, né? Essa amiga é maravilhosa, não é, essa
Ariane? Vir contar história todo dia! Oh, coisa boa! [Se dirigindo a
Arthur]... E assim, hoje em dia, o que tem sido buscado na enfermagem é
esse cuidado, que é essa a maneira de cuidar da enfermagem. A técnica é
importante? É! Mas fazer isso de forma humanizada, né? E às vezes a gente
esquece-se disso.
O trabalho desenvolvido, em seu início, enfrentou dificuldades próprias à
dinâmica funcional da UTIPED, como também dificuldades relativas ao
reconhecimento por parte de alguns integrantes da equipe de saúde da significância do
lúdico para o fortalecimento psíquico do infante.
Admite-se que apenas através deste reconhecimento é que verdadeiramente se
alcançou o respeito pelo trabalho desenvolvido, o que culminou na franca aceitação e no
incentivo da equipe para que fossem exitosas as intervenções. Paulatinamente, foi
256
perceptível a modificação na postura de alguns profissionais, os quais de uma atitude de
descaso e desrespeito, evidenciado principalmente pelas constantes interrupções durante
a aplicação dos procedimentos de pesquisa junto às crianças, passaram a exprimir
respeito, a elogiar e a colaborar com a pesquisa.
A dificuldade inicial pode ser compreendida a partir da própria noção de
cuidado que prevalece nas práticas de saúde em terapia intensiva, cuidado mediado pela
técnica, que secundariza a característica ontológica do ser-com-o-outro, objetivando as
relações mantidas e adotando o modo-de-ser-trabalho como o ideal para a garantia de
efetividade no suporte à vida (Boff, 2008; Heidegger, 1927/2005; Silva, 2006; Sá,
2002).
Igualmente, o reconhecimento do trabalho, ou o seu não reconhecimento, está
atrelado à construção histórica do fazer psi no contexto de atenção à saúde (Angerami-
Camon, 2009), que ainda hoje depara com percalços na consolidação de sua atividade
em tal campo.
O discurso das profissionais de saúde aqui mencionado pode ser compreendido
à luz da constatação do Pequeno Príncipe, na aventura que empreendeu percorrendo
diversos planetas e conhecendo diversas pessoas e suas tarefas laborativas:
Talvez esse homem seja mesmo um tolo. No entanto, é menos tolo que o rei,
que o vaidoso, que o empresário, que o beberrão. Seu trabalho ao menos
tem um sentido. Quando acende o lampião, é como se fizesse nascer mais
uma estrela, ou uma flor. Quando o apaga, porém, faz adormecer a estrela
ou a flor. É um belo trabalho. E sendo belo, tem sua utilidade (Saint-
Exupéry, 2006, p. 49).
257
Diante do volume de resultados decorrentes desta pesquisa, o que se escreveu até
aqui é o que por hora se tem a dizer. As histórias construídas e contadas são fonte
inesgotável de apreensões, de possibilidades.
258
6 E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE... CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Em meio às teorias, contei histórias, verdadeiras,
mas histórias, terapêuticas, mas histórias, na
certeza de que explique-se ou não contar
histórias é promover a saúde mental.
(Gutfreind, 2010, p. 217)
Trajeto longo e com percalços. Ora floresta, que abriga vários perigos e desafios,
ora casa, casinha, casebre, que nos acolhe e nos revela o aconchego de estarmos em
nosso canto, no espaço que escolhemos.
Assim descrevo o caminho percorrido até a conclusão deste estudo, que se
propôs, em linhas gerais, a compreender as possibilidades terapêuticas dos contos de
Literatura Infantil para crianças hospitalizadas em Unidade de Terapia Intensiva
Pediátrica.
No cenário em questão, o conto figurou como possibilidade lúdica especial, haja
vista ter favorecido momentos fundamentais à expressão do ser criança (incentivando o
resgate de seu universo imaginário e a ampliação sensível de sua capacidade criativa),
bem como ter ofertado um espaço de maternagem (tão necessário frente à ausência da
figura materna). Tudo isso respeitando aspectos como a condição clínica e desejo de
participação da criança.
259
Fazendo uso da atitude compreensiva, tal como a Fenomenologia heideggeriana
alvitra, procurei estar o mais próximo possível da experiência da criança imersa em UTI
e em interação com os contos literários infantis, na tentativa de delinear um espaço
fecundo, acolhedor e seguro para a manifestação de seus afetos e pensamentos.
Um fator importante decorrente do uso das histórias pareceu ser a prevenção, por
meio da construção de enredos saudáveis sobre a vivência da hospitalização em terapia
intensiva, enredos em que a criança poderia vislumbrar aspectos positivos e um
desfecho exitoso para a sua experiência, semelhante ao que ocorre no final dos contos
utilizados. Encarado desta forma, o estudo interventivo pôde ter servido como fator de
proteção ao ser criança, ao lhe conceder o cuidado capaz de resgatar o seu ser mais
próprio, o experienciar da ludicidade inerente à infância e, ao mesmo tempo, ausente em
ambiente que lhe agencia tão somente o cuidado ao seu corpo frágil e adoecido.
Como atestam diversos autores que utilizaram os contos como instrumentais
terapêuticos (Caldin, 2001, 2002, 2004, 2010; Gutfreind, 2010; Safra, 2005; Silva,
2006), estes permitem à criança retomar o fio narrativo e relacional de suas vidas,
mesmo diante das adversidades, fortalecendo-as para enfrentar as experiências, e
convidando-as a, ouvindo outras histórias, recontar, reviver, expressar e elaborar sua
própria história.
Entretanto, os resultados deste estudo devem ser tomados como uma das
possibilidades de compreensão do vivido, pois que a cautela frente a generalizações ou
validações externas da experiência das crianças participantes na interação com o conto e
a pesquisadora é necessária, haja vista que a interpretação é perpassada pela
subjetividade da pesquisadora e jamais dará conta do fenômeno tal como ele se
apresentou, em toda a sua profundidade, para as pequenas assistentes de pesquisa.
260
As informações apontam a que ponto as crianças hospitalizadas em UTIPED,
separadas temporariamente de seus pais e/ou responsáveis, beneficiaram-se da
abordagem terapêutica utilizando o conto infantil.
Destarte, os principais subsídios decorrentes da compreensão proposta são
relativos à vivência da hospitalização pelas crianças participantes; à captação de como
os contos de literatura infantil se inserem nesta vivência, a saber como possibilidade
lúdica tão desejada/apontada nos discursos das crianças ao serem questionadas sobre
suas experiências em UTIPED; à proposição de três eixos capitais para a compreensão
das possibilidades terapêuticas dos contos literários: o eixo lúdico, o eixo reflexivo e o
eixo afetivo, com base na noção heideggeriana de cuidado; e à explicitação dos
significados construídos pela criança, pelos pais e/ou responsáveis e por membros da
equipe de saúde sobre a pesquisa-intervenção desenvolvida.
Outra reflexão de alta relevância proveniente deste trabalho é a convicção de
que, em pesquisa fenomenológica de cunho interventivo principalmente, afetamos e
somos afetados diretamente. E isto parece ser condição sine qua non para o bom
desenvolvimento da investigação de tal natureza. Assim, tal como explicitei as
possibilidades de compreensão das afetações produzidas nas crianças, por hora procuro
evidenciar os afetos em mim gerados no curso da pesquisa.
Os contos e o vínculo de cuidado progressivamente construído a partir dos
mesmos foram relevantes na produção de modificações na natureza e qualidade das
relações entre pesquisadora e crianças. No decorrer dos encontros com os participantes,
foi possível galgar um maior amadurecimento na lide com crianças. Percebi um melhor
preparo, que inclusive interferiu de maneira significativa na qualidade do vínculo
terapêutico formado. De tal forma que essa mudança a qual se operou na pesquisadora,
261
em relação à postura, à compreensão da criança, lhe habilitou a identificar de forma
aguçada as necessidades reais, afetivas ou de outras dimensões, da criança.
O vínculo construído ao longo das sessões de contação de histórias parece ter me
permitido uma aproximação verdadeira à criança, autêntica, estabelecendo-se um canal
de comunicação que ultrapassa a dimensão do verbal. Gradualmente passei a
compreender melhor a criança e estabeleci com ela uma relação de autenticidade, de
sinceridade, modelando o agir a partir do que ela me revelava, de seu movimento
interno.
Formaram-se vínculos de cuidado, vínculos duradouros, que marcaram, que
entrelaçaram histórias, que fizeram florescer o apoio e a confiança. Onde se inicia e
onde se finaliza essa história? Parece não existir limites temporais para histórias de
cuidado.
Ademais, é relevante anotar considerações sobre os limites deste estudo, que são
vários, porém aqui destacamos três.
Em primeiro lugar, ressalte-se os incontáveis estudos sobre o uso terapêutico dos
contos de literatura infantil, estudos sobre crianças hospitalizadas, e estudos sobre a
noção heideggeriana de cuidado, tanto em nível nacional como em nível internacional, o
que nos obrigou a restringir a consulta bibliográfica a alguns dos estudos nacionais,
ainda que sabendo da elevada contribuição que os demais estudos poderiam nos
fornecer. A opção foi fundamentalmente de natureza pragmática, considerando os
limites temporais que circunscrevem a confecção de uma dissertação de mestrado.
Em segundo lugar, é importante apontar o fato de todas as crianças da pesquisa
serem do sexo masculino. Tal fato, apesar de justificável em função do perfil da
262
população da UTIPED (majoritariamente masculina), pode limitar o estudo em sua
capacidade de compreender o fenômeno de maneira mais abrangente. A abordagem
teórico-metodológica adotada, entretanto, permite relativizar o que seria limitação para
outras abordagens de pesquisa.
Em terceiro lugar, ainda que cientes da impossibilidade de esgotar a
compreensão do fenômeno em estudo, permanece a inquietação que nos move a
prosseguir na exploração dos dados produzidos.
Outrossim, apontamos como imprescindível a formulação de estudos na área de
Psicologia que assumam como locus de investigação as Unidades de Terapia Intensiva
Pediátrica, com o propósito de entender a experiência infantil neste âmbito de
tratamento e propor intervenções terapêuticas junto às crianças, suas famílias e à equipe
de saúde. Este apontamento é derivado da constatação sobre o escasso número de
trabalhos na área que intentam investigar os elementos indicados.
Finalizamos este conto com a reflexão sobre o potencial de cuidado da Literatura
Infantil frente às demandas e agruras vividas pelas crianças internadas em Unidade de
Terapia Intensiva Pediátrica. O espaço de contação de histórias configurou, em primeira
instância, um espaço de cuidado que liberta, que permite a expressão máxima da
infância, o lúdico, carregado de simbolismos e possibilidades. Cabe elencar alguns
comentários.
Conforme apontado na seção de método, houve, de fato, recusas à consecução de
algumas atividades pelas crianças. Entretanto, os contos pouco figuraram como recurso
alvo de rejeição. Parece que às crianças muitas vezes o conto bastava, satisfazia às suas
necessidades. Isto pode nos levar a supor que o conto parece ser o combustível
263
temporário da imaginação e da fantasia. Quando as crianças participantes mergulhavam
no mundo da imaginação, pareciam assumir uma postura ativa, criativa e entusiasmada.
Ao saírem do tal mundo fantástico propiciado pela contação de histórias, e depararem
com o contexto no qual se encontravam, em estado crítico e longe das pessoas que
amam, a impressão, por vezes, era que neste momento a sua potência se esvaía.
Apresentar os procedimentos de pesquisa como alternativas, e não como
atividades obrigatórias, resguardava seu potencial de promoção da ludicidade e do
prazer. Em meio a tantas obrigações e restrições inerentes ao processo de hospitalização
em UTI, o espaço de contação de história também pôde cumprir a função de possibilitar
escolhas à criança.
A disposição afetiva e o comportamento das crianças ao longo da sessão de
contos provocam reflexões importantes sobre a situação em que se encontravam. Ora,
como se não bastasse o afastamento de seus pais, ficavam recolhidas em um leito, sem
ter acesso a um direito que lhes é fundamental: o brincar. A sessão de contação de
história, neste ambiente, é uma gota da infância em um longo dia que parece não ter
fim.
Os profissionais se aproximam para realizar procedimentos tão somente, e, nesta
ocasião, tentam brincar um pouco com as crianças. E as crianças se recusam a falar,
simplesmente se recusam, deliberadamente, como percebido em relação à Bulu, Bié,
Pedro e Arthur, e em relação a outras crianças que não fizeram parte deste estudo.
Talvez a recusa a falar seja sua única possibilidade de se recusar a alguma coisa, que
todo o resto precisam aceitar, obrigatoriamente. A recusa a se comunicar pode ser sua
única possibilidade de escolha na UTI. E assim também o são, ou foram no decurso
deste trabalho, a sessão de contação de história.
264
A arte literária infantil, como proposta terapêutica direcionada especialmente às
crianças em situação crítica, tais como o são aquelas que se encontram em tratamento
intensivo, se revelou fonte de possibilidades inesgotáveis de cuidado à infância em
UTIPED. Os pequenos muitas vezes permanecem inertes em seus leitos, impedidos de
realizar outras atividades lúdicas afora o ouvir histórias. Dito de outro modo, as crianças
habitualmente não podem contar com outras possibilidades de brincar, haja vista as
diversas limitações impostas pelo quadro clínico, pelo ambiente intensivista e a própria
debilidade física que lhes impede de alimentar interesse ou disposição para se envolver
em outras atividades.
Arrisco afirmar que, ao longo da imersão no mundo encantado dos contos de
Literatura Infantil e da construção de relações de cuidado mediadas pela contação de
histórias, ofertaram-se às crianças assistentes de pesquisa ferramentas potencialmente
promotoras de seu desenvolvimento, mesmo em meio à adversidade. Observamos que
as narrativas agiram como estratégia de fomento à elaboração de recursos para
enfrentamento da experiência vivida e para o fortalecimento da subjetividade infantil.
A pesquisadora que vos fala, contando histórias de cuidado à infância em
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, pôde descobrir o poder gico das mesmas
de transformar a experiência de hospitalização das personagens principais, de promover
o cuidado essencial de que tanto carecem, de fortalecer suas potencialidades e torná-las
resilientes frente a todos os grandes gigantes que enfrentam durante a terapia intensiva.
265
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276
ANEXOS
277
278
279
APÊNDICES
280
APÊNDICE A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - TCLE
ESCLARECIMENTOS
Este é um convite para Sr.(Sra.) e seu(sua) filho(a) participarem da pesquisa Contando Histórias de
Cuidado à Infância em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica”, que é realizada por Ariane Cristiny da
Silva Fernandes, aluna mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, sob orientação da professora Dra. Symone Fernandes de Melo.
A participação é voluntária, o que significa que o Sr.(Sra.) e seu(sua) filho(a) poderão desistir a qualquer
momento, retirando o consentimento, sem que isso lhe traga nenhum prejuízo ou penalidade.
Essa pesquisa objetiva comprender como a contação de histórias infantis pode ajudar a criança
hospitalizada em UTI pediátrica a enfrentar adequadamente essa experiência. Tal proposta justifica-se
pela pouca quantidade de estudos nesse contexto de tratamento hospitalar, o qual impõe à criança além de
limitações físicas, pouca oportunidade de expressão de seus sentimentos. Verifica-se, portanto, a
necessidade de uma intervenção psicológica voltada à criança que considere sua experiência em Unidade
de Terapia Intensiva, como percebe tal experiência, o que pensa, o que sente e como o brincar, através
dos contos de literatura infantil, pode ajudá-la a enfrentar o processo de doença e hospitalização em UTI.
Caso decida aceitar o convite, o Sr.(Sra.) e seu(sua) filho(a) serão submetidos(as) ao(s) seguinte(s)
procedimentos: (1) entrevista inicial com o responsável pela criança; (2) entrevista inicial com a criança;
(3) seis sessões de contação de história com a criança, seguidas de diálogo sobre a história contada e
aplicação de atividades de livre expressão, tais como desenho e pintura, encenação do conto, recorte e
colagem em painel temático, desenho-história, complementação de frases incompletas, criação de novas
histórias; (3) entrevista final com a criança; (4) entrevista final com o responsável pela criança. As
entrevistas e demais procedimentos serão registrados por meio de gravação, com o uso de gravador de
voz.
Os riscos envolvidos com a participação na pesquisa são: despertar ou aumentar sentimentos relativos à
condição de internamento em UTI, como ansiedade, medo, tristeza, riscos que serão minimizados através
das seguintes providências: apoio psicológico integral à criança e a seus familiares por profissional de
Psicologia da própria instituição hospitalar, Complexo Hospitalar Monsenhor Walfredo Gurgel.
O Sr.(Sra.) e seu(sua) filho(a) terão os seguintes benefícios ao participar da pesquisa: oportunidade de
compartilhar a experiência de hospitalização em terapia intensiva e desenvolver modos saudáveis de lidar
com tal experiência.
Todas as informações obtidas serão sigilosas e os participantes não serão identificados em nenhum
momento. Os dados serão guardados em local seguro e a divulgação dos resultados será feita de forma a
não identificar os voluntários.
Se Sr.(Sra.) tiver algum gasto que seja devido a sua participação na pesquisa, será ressarcido, caso
solicite.
281
Em qualquer momento, se o Sr.(Sra.) ou seu(sua) filho(a) sofrer algum dano comprovadamente
decorrente desta pesquisa, terá direito a indenização.
O Sr.(Sra.) ficará com uma cópia deste Termo e toda dúvida que porventura tiver a respeito desta
pesquisa, poderá perguntar diretamente para a pesquisadora Ariane Cristiny da Silva Fernandes, no
endereço Avenida Senador Salgado Filho, s/n, Tirol Natal/RN CEP: 59015-380 Brasil ou pelo
telefone (84) 3232-7531.
Dúvidas a respeito da ética dessa pesquisa poderão ser questionadas ao Comitê de Ética em Pesquisa da
UFRN no endereço Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UFRN), Praça do Campus Universitário, Lagoa
Nova, Caixa Postal 1666 Natal/RN CEP: 59078-970 Brasil ou pelo telefone (84) 3215-3135.
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Declaro que compreendi os objetivos desta pesquisa, como ela será realizada, os riscos e benefícios
envolvidos e concordo em participar voluntariamente da pesquisa Contando Histórias de Cuidado à
Infância em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica”.
PARTICIPANTE DA PESQUISA:
Nome: _______________________________________________________________________
Assinatura: __________________________________________________________________
PESQUISADOR RESPONSÁVEL:
Nome: _______________________________________________________________________
Assinatura: __________________________________________________________________
Endereço Profissional: Avenida Senador Salgado Filho, s/n, Tirol Natal/RN CEP: 59015-
380
Telefone: (84) 3232-7531
COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CEP/UFRN
Endereço: Praça do Campus Universitário, Lagoa Nova, Caixa Postal 1666 Natal/RN CEP: 59078-
970 Brasil
Telefone: (84) 3215-3135
282
APÊNDICE B
DESCRIÇÃO DAS HISTÓRIAS INFANTIS UTILIZADAS NAS SESSÕES DE
CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS EM UTIPED
TÍTULO DO CONTO
DESCRIÇÃO
QUEM TEM MEDO DO NOVO?
AUTOR: Ruth Rocha
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Medo do desconhecido, do novo, da mudança
PROTAGONISTA: Indefinido
RESUMO: Através de sucessivos questionamentos, o conto traduz
os medos alimentados por todos nós humanos, especialmente
pelas crianças, diante de mudanças, que vão desde mudanças
simples como mudar de casa ou de escola, até mudanças mais
complexas, intrínsecas ao crescimento.
GASPAR NO HOSPITAL
AUTOR: Anne Gutman e Georg Hallensleben
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Hospitalização
PROTAGONISTA: O cãozinho Gaspar
RESUMO: Conta, de maneira leve e divertida, a história de um
cachorro que, acidentalmente, ingere um chaveiro e vai parar no
hospital. é submetido a procedimentos, exames e cirurgia.
Recupera-se e recebe a visita de seus pais.
ARTHUR VAI PARA O HOSPITAL
AUTOR: Howard J. Bennett
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Hospitalização infantil
PROTAGONISTA: Um garotinho chamado Arthur
RESUMO: Narra a vivência de Arthur, hospitalizado em virtude de
uma gastroenterocolite aguda. A história traz os principais
elementos que compõem o cotidiano de crianças internadas:
procedimentos de urgência, exames, medo da criança em relação
ao afastamento dos pais, à necessidade de tomar soro, o
atendimento psicológico, e o retorno para casa.
O LOBO E OS SETE CABRITINHOS
AUTOR: Charlles Perrault
MODALIDADE: Conto de fadas
TEMÁTICA: Separação da mãe, perigos, desafios, vitórias
PROTAGONISTA: Sete cabritinhos, o lobo mau e a Mamãe Cabra
RESUMO: Conto clássico que retrata a história de sete cabritinhos
que, durante a ausência temporária da mãe, são devorados pelo
lobo mau. Apenas um deles, o filho mais novo e supostamente
mais frágil, escapa ao ataque e revela tudo o que aconteceu
quando da chegada de sua mãe em casa. A mãe, chorosa e
revoltada, vai ao encontro do lobo e descobre que seus filhos
estão todos vivos na barriga do mesmo. Ela então, junto com seu
filho caçula, abrem a barriga do lobo enquanto ele dorme e
salvam os outros cabritinhos. O lobo morre no final da história.
283
QUEM TEM MEDO DE Q?
AUTOR: Ruth Rocha
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Medos, fantásticos ou reais
PROTAGONISTA: Narrador
RESUMO: O narrador da história, interagindo diretamente com o
leitor, apresenta uma diversidade de medos, reais ou fictícios.
Emergem no transcorrer do conto medos relativos a fenômenos
naturais, a insetos, animais, escuro, vampiro, injeção, avião,
lobisomem, piolho. A cada trecho, o narrador, ao mesmo tempo
que expõe o medo, o relativiza, oferecendo argumentos sobre sua
irrealidade ou formas de superar.
O PATINHO FEIO
AUTOR: Hans Christian Andersen
MODALIDADE: Conto de fadas
TEMÁTICA: Rejeição, diferença, isolamento, solidão, superação
PROTAGONISTA: O patinho feio
RESUMO: Este é um conto clássico que conta a história de um
patinho que, por ter nascido diferente de seus irmãos, é rechaçado
e excluído por seus familiares e por todos os demais com quem
mantém contato ao longo de sua trajetória. É chamado de patinho
feio. Passa por vários desafios, todos associados à rejeição,
abandono e perigo. No fim de sua saga, ao ver refletida sua
imagem na água, se descobre um lindo cisne. Enfim é aceito e
acolhido pelos novos companheiros cisnes.
MARILU
AUTOR: Eva Furnari
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Percepção de mundo, escolhas, bom humor
PROTAGONISTA: A menina Marilu, um coelho e um homem
chamados Pimpolhos
RESUMO: Conta o conto que Marilu era uma menina que vivia
mal-humorada e via o mundo cor de cinza e sem graça. Até que
um dia ela encontra uma bela loja toda colorida e julga que os
Pimpolhos, donos da loja, roubaram todas as cores do mundo.
Deslumbrada com a infinidade de cores no interior da loja, Marilu
reage irritada, culpando os Pimpolhos por ser seu mundo sem
cores e vida, pois que eles tinham todas as cores do mundo
para eles. De maneira bem humorada, os Pimpolhos cantam para
Marilu uma canção que diz que o mundo é engraçado e colorido,
basta que nós o vejamos assim, com bom humor.
A MENINA CABEÇA-DE-VENTO
AUTOR: Sandra Branco
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Pensamentos bons e ruins, sentimentos, escolhas
PROTAGONISTA: Uma menina
RESUMO: É a história de uma menina que, certo dia, aprisiona em
seu pensamento uma idéia fixa, trazida pelo vento. Eis que essa
idéia fixa se transforma em um mau pensamento. Vários anos se
passam, e a menina, entristecida e fechada em seu pensamento,
não sabia como se libertar dele. Até que um vento forte e atrevido
carrega para longe o mau pensamento. E a menina pôde abrir sua
cabeça para novas ideias e pensamentos, descobrindo que nossas
cabeças podem conservar bons pensamentos e expulsar os
pensamentos ruins.
284
HOSPITAL NÃO É MOLE!
AUTOR: Isabel Linares e Alcy
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Hospitalização infantil
PROTAGONISTA: Uma garotinha doente
RESUMO: Este é um conto atípico em relação aos demais, pois
que conta uma história de hospitalização infantil apenas fazendo
uso de imagens representativas. A criança aqui é convidada a criar
sua própria história por meio das imagens ilustradas no livro. São
ilustrações que mostram desde o adoecimento em casa, a consulta
médica, a chegada ao hospital, o internamento, primeiros
procedimentos, o ingresso em Unidade de Terapia Intensiva, a
visita dos pais, os exames, a rotina de alimentação e higienização,
o lúdico dentro do contexto da UTI, os sonhos e desejos da
criança, a raiva e a revolta com a mãe e a equipe, e, finalmente, a
recuperação e alta hospitalar da criança, que sai do hospital na
companhia de seus pais.
SE CRIANÇA GOVERNASSE O MUNDO...
AUTOR: Marcelo Xavier
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Poder da criança, infância
PROTAGONISTA: Crianças governantes
RESUMO: Trata-se de uma história curta e leve, em que se
descreve como seria o mundo caso as crianças tivessem a
oportunidade de governá-lo. Mostra, de maneira rica e prazerosa,
o que compõe o mundo da infância e como seria delicioso habitar
a terra liderada por pequenos governantes.
PEDRO E LUA
AUTOR: Odilon Moraes
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Separação, perda, morte, saudade
PROTAGONISTA: Um garotinho chamado Pedro e seu animal de
estimação, uma tartaruga chamada Lua
RESUMO: Pedro é um garoto que vivia com a cabeça na lua. Um
dia, supondo que as pedras caiam da lua e que, portanto, deviam
sentir saudade de sua casa, resolveu juntar pedrinhas para perto da
lua. Eis que um dia uma tartaruga cruza seu caminho. Ele a adota
como animal de sua estima e passa a lhe chamar de Lua. Crescem
juntos, até que um dia Pedro viaja e, ao retornar, Lua havia
morrido. Pedro sofre com saudades da amiga e decide levar o
casco de Lua para junto das pedras. Descobriu que tartaruga
também sente saudades.
MAS POR QUÊ??!: A HISTÓRIA DE ELVIS
AUTOR: Peter Schössow
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Morte, perda, separação, revolta, despedida
PROTAGONISTA: Uma menina e seu pássaro Elvis
RESUMO: Este conto ilustra a situação de uma criança que,
aborrecida, caminha por um parque arrastando uma bolsa. Nela
jaz seu passarinho de estimação chamado Elvis. A criança, ao
longo do trajeto, esbraveja repetidas vezes: mas por quê? Até que
um grupo que acompanhava suas manifestações de revolta resolve
questionar o que estaria acontecendo. A menina explica que seu
querido Elvis está morto. Propõe-se, então, a realização dos rituais
de despedida, velório e enterro. A criança compartilha as boas
recordações que o animalzinho iria lhe deixar. Assim termina a
história.
285
BDOENTE DO PÉ
AUTOR: Luís Pimentel
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Solidão, tristeza, sentimentos, superação
PROTAGONISTA: O garotinho Bié
RESUMO: O conto, repleto de simbologias e metáforas, versa
sobre a saga de um garotinho que, por não expressar sua tristeza, a
dorzinha de seu coração toma forma no seu corpo, entra pela alma
e sai pelo pé. Daí o da criança fica cheio de feridinhas e ela,
ainda forte, resolve escrever cartinhas para todos, especialmente
seu pai e sua mãe, contando sobre sua dor. As cartinhas lhes serve
como forma que a criança encontrou para expressar um pouco do
que está sentindo. Mas não adiantava, as feridinhas continuavam
lá. Até que um dia, Bencontra uma receita para curar feridas do
pé. Ele segue a receita mágica e fica curado do pé. Decide então
ajudar outras pessoas a curar suas feridas no pé, distribuindo a
receita milagrosa.
DOLORES DOLORIDA
AUTOR: Vera Cotrim
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Escolhas
PROTAGONISTA: Uma serpente chamada Dolores
RESUMO: Dolores era uma cobra que vivia cheia de dores. Todos
lhe acudiam, com chás, receitas caseiras, remedinhos de atenção e
cuidado. Porém, a primavera vai embora e, com a chegada do
verão, todos se organizam para uma grande festa na floresta.
Deixam de lado a pobre Dolores dolorida. Ela, ao se ver sozinha
na mata e com a vontade de ir à festa, se arruma toda e esquece
suas mazelas. E de Dolores dolorida passa a ser Dolores a cobra
sem dores.
O MENINO MALUQUINHO
AUTOR: Ziraldo
MODALIDADE: Conto realista
TEMÁTICA: Infância, ser-criança, comportamento infantil
PROTAGONISTA: O menino maluquinho
RESUMO: Conto que ilustra o dia a dia de uma criança.
Comportamentos típicos da infância, peraltices, tristezas, alegrias,
e tudo o mais que compõe a vivência da criança, seja na escola, na
família, com os amigos, com os pais. Retrata situações de
amizade, namoro, conquistas, brincadeiras, separação dos pais, e
culmina com o crescimento e amadurecimento do menino
maluquinho, que se transforma no cara mais legal do mundo. É
quando se descobre que, na verdade, ele não tinha sido um
menino maluquinho, mas sim um menino feliz.
286
APÊNDICE C
A ESCOLHA DOS CONTOS PARA CADA CRIANÇA
UTILIZAÇÃO
CONTO
PROTAGONISTA
CRITÉRIOS DE ESCOLHA
HISTÓRIAS
COMUNS
Quem tem medo do novo?
Bulu
Por ser uma história que versa
sobre mudanças, o desconhecido
e o medo que comumente se
sente diante disso, optou-se pela
utilização no contato inicial com
todos os participantes, haja vista
que todos vivenciavam sua
primeira internação em
UTIPED, onde tudo era novo,
desconhecido e, potencialmente,
lhes causava medo e dúvidas.
Ademais, a própria participação
na pesquisa também
representava algo novo para as
crianças.
Bié
Pedro
Arthur
Gaspar no hospital
Bulu
Escolhida para ser usada com
todas as crianças porque retrata
a hospitalização e os
procedimentos vivenciados de
forma simples e breve.
Bié
Pedro
Arthur
O lobo e os sete cabritinhos
Bulu
Esse conto foi utilizado por
ilustrar a saga de um pequeno
cabritinho que, na ausência de
sua mãe, precisou lutar contra o
lobo mau que havia devorado
todos os seus irmãos.
Simbolicamente se aproxima da
experiência das crianças em
UTIPED, que precisam lutar não
contra a doença (lobo mau),
mas também contra os
sentimentos gerados pelo
afastamento temporário de suas
figuras de referência, como mãe
e pai.
Bié
Quem tem medo de quê?
Bulu
A narrativa foi selecionada
tendo em vista a necessidade de
conversar com as crianças sobre
seus temores relativos ou não à
experiência de adoecimento e
hospitalização.
Bié
Pedro
287
O patinho feio
Bulu
O conviver com a doença
crônica pode trazer para a
criança o sentimento de ser
diferente de seus irmãos e
colegas. A história ilustra, entre
outras coisas, que ser diferente
não significa ser inferior aos
demais, o que se pensou ser útil
para Bulu.
Bié
Desde sua entrevista inicial Bié
comunicou seu isolamento dos
colegas da escola e o quão se
sentia excluído. Apesar de
extrapolar questões relacionadas
à hospitalização, optou-se por
inserir em seu repertório de
histórias O patinho feio”, com
o intuito de propiciar a
identificação com a personagem
e promover a expressão de
sentimentos.
Arthur
Optou-se pela inserção de tal
história no roteiro de sessões de
Arthur em virtude da doença
crônica que acomete a criança e
que, porventura, pode lhe
motivar sentimentos
semelhantes aos vivenciados
pela personagem principal da
história, como isolamento,
sentimento de menos valia e/ou
inferioridade, rejeição.
Marilu
Bulu
O modo de perceber o mundo a
sua volta como cinzento, sem
cor, caracteriza Marilu. O modo
de perceber e reagir ao mundo
de Bulu e Bié é semelhante.
Portanto, tal história foi adotada.
Bié
A menina cabeça-de-vento
Pedro
Bons e maus pensamentos
povoam a cabeça de todos. A
menina cabeça-de-vento fixou
um mau pensamento, não dando
abertura para outros
pensamentos. Com Pedro a
introdução dessa história se
deveu a necessidade de explorar
seus pensamentos bons e ruins.
Arthur
A história foi selecionada haja
vista a necessidade de dialogar
com a criança sobre sua ideia
fixa de alta da UTI.
288
O menino maluquinho
Pedro
Uma história que fala da
infância, com desenrolar leve e
alegre, o que se considerou
adequada por não tocar em
temáticas fortes que não
poderiam mais ser trabalhadas,
que se tratava do último
encontro presencial com a
criança.
Arthur
Tal história foi escolhida por
retratar a infância de um
garotinho com idade similar a de
Arthur, que pode propiciar
identificação e um clima de mais
descontração e alegria,
rememorando seu dia a dia fora
do hospital.
Hospital não é mole!
Pedro
Por se tratar de um livro
contendo apenas gravuras
ilustrativas do processo de
adoecimento e hospitalização,
foi utilizado tendo em vista a
criação de uma narrativa pelas
crianças.
Arthur
Se criança governasse o mundo...
Bié
A inserção desta história
obedeceu à sequência prevista
inicialmente, como ideal para
conclusão dos encontros com
cada criança, pois além da
leveza e simplicidade da
narrativa, propicia a livre
comunicação das crianças sobre
o que fariam/desejariam caso
governassem o mundo.
Pedro
Arthur
HISTÓRIAS
CASO A CASO
Bié doente do pé
Bié
Bié carregava consigo feridinhas
que não saravam e que haviam
sido produzidas por trsitezas e
mágoas que ele não expressava.
Assim também parecia ser a
criança participante da pesquisa,
por isso a introdução da história.
Pedro e Lua
Pedro
Optou-se por contar Pedro e
Lua” por ser uma história que
fala indiretamente de morte,
perda, saudade, com vistas a
iniciar a preparação da criança
para receber a notícia sobre o
falecimento de seus pais no
acidente que também lhe
vitimou.
289
Alguns medos e seus segredos
Julgou-se importante trabalhar
mais acuradamente os medos da
criança através do conto.
Mas por quê??!
Após ter recebido a notícia sobre
a morte de seus pais, resolve-se
então contar para Pedro a
história Mas por quê??!”, que
fala diretamente sobre morte,
perda, rituais de despedida,
embora de um bichinho de
estimação, com o objetivo de
propiciar a livre expressão da
criança
Arthur vai para o hospital
Arthur
Optou-se por inserir essa
história para Arthur por ser uma
história que se aproxima de
modo especial de sua
experiência, uma vez que conta
a saga de uma personagem
semelhante a ele, de idade
similar. A história também foi
selecionada em virtude da
necessidade de trabalhar a
hospitalização e o afastamento
temporário do convívio com os
pais e demais familiares.
290
APÊNDICE D
ROTEIRO DE ENTREVISTA INICIAL COM OS PAIS/RESPONSÁVEIS
Nome (iniciais):
Idade:
Sexo:
Procedência:
Escolaridade:
Trabalha? [ ] Sim [ ] Não
Ocupação:
Composição familiar:
Quem mora com a criança?
Motivo de internamento da criança:
Tempo de internação:
Acompanhante: [ ] Sim [ ] Não Entrevistado: [ ] Mãe [ ] Pai [ ] Outro. Quem?
I. QUESTÕES GERAIS
Me fale um pouco sobre seu(sua) filho(a). Seu contexto de vida, suas relações familiares, seu cotidiano,
desenvolvimento.
O que ele(a) mais gosta de fazer?
Do que ele(a) mais gosta de brincar?
Você costuma ler para ele(a)? Ele(a) gosta de ler e/ou ouvir histórias? Tem alguma história que ele(a)
mais goste?
II. QUESTÕES SOBREADOECIMENTO E HOSPITALIZAÇÃO EM UTI
1. Como foi que ele(a) ficou doente? História da doença.
2. Já esteve internado antes? Por qual motivo?
3. Como decidiram interná-lo(a)?
4. Como você se sentiu quando soube que seu(sua) filho(a) seria internado(a) na UTI?
5. E seu(sua) filho(a), como reagiu? Como você avalia a adaptação dele(a) à UTI? Houve
mudança no comportamento dele ou no estado emocional? Como a criança se relaciona com
a doença? Com a permanência no hospital? Com os procedimentos aos quais é submetida?
6. Como se sente durante as visitas? Você acha que seu filho percebe como você se sente?
7. Como você avalia a assistência ao seu(a) filho(a) aqui na UTI?
8. Qual(is) a(s) sua(s) expectativa(s) em relação ao tratamento e reabilitação de seu(sua)
filho(a)?
9. Como acredita que a criança vai reagir à proposta da participação nas atividades da
pesquisa? Nas sessões de contação de histórias?
291
APÊNDICE E
ROTEIRO DE ENTREVISTA FINAL COM OS PAIS/RESPONSÁVEIS
I. QUESTÕES SOBREAS SESSÕES DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS
1. O que você achou da proposta dos encontros com a criança para contar histórias
durante sua permanência na UTI?
2. Como você acha que foi para seu(sua) filho(a) participar desses encontros?
3. Após os encontros, você observou alguma mudança no estado emocional de
seu(sua) filho(a)?
292
APÊNDICE F
ROTEIRO DE ENTREVISTA INICIAL COM A CRIANÇA
Nome (iniciais):
Idade:
D.N.:
Sexo:
Irmãos:
Origem:
Escolaridade:
Leito:
Dt. Admissão:
Dt. Entrevista:
Tempo de internação:
Diagnóstico:
Acompanhante:
I. QUESTÕES GERAIS
Quantos anos você tem?
Com quem você mora?
Você estuda?
Em que série você está?
Você tem amigos na escola? E perto da sua casa?
O que você costuma fazer quando não está na escola?
O que mais gosta de fazer? E o que menos gosta?
Quais são suas brincadeiras preferidas?
II. QUESTÕES SOBREADOECIMENTO E HOSPITALIZAÇÃO EM UTI
1. Como foi que você chegou aqui? O que aconteceu?
2. Você já ficou doente e/ou internado(a) em algum hospital antes? Como foi?
3. Me fale um pouco sobre como é seu dia aqui?
4. Como você se sente na maior parte do tempo aqui? O que lhe deixa mais triste? E o
que lhe deixa mais alegre?
5. Do que você mais gosta e do que menos gosta aqui no hospital?
6. Do que você sente mais falta?
7. Você tem algum medo? De quê?
8. Você tem algum(a) amigo(a) aqui?
9. O que você gostaria de fazer enquanto está aqui no hospital?
10. Alguém contou histórias para você? Quem? Você gosta de ouvir histórias? Tem
alguma preferência?
293
APÊNDICE G
ROTEIRO DE ENTREVISTA FINAL COM A CRIANÇA
I. QUESTÕES SOBRE AS SESSÕES DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS
1. O que você achou dos nossos encontros?
2. Como foi para você participar desses encontros?
3. Como se sentiu ao escutar as histórias?
4. De qual historinha você mais gostou? E qual foi a que menos gostou? Por que?
O trabalho Contando Histórias de Cuidado à Infância em Unidade de Terapia Intensiva
Pediátrica de Ariane Cristiny da Silva Fernandes foi licenciado com uma Licença Creative
Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0o Adaptada.
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