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UFF-FE / PPGE Julho / 2010 1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO
CURSO DE EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO - Prof. Drª Regina Leite Garcia
O Programa Etnomatemático como humanizador
do ensino de matemática
Andréa Thees
RESUMO
O presente trabalho foi concebido para avaliação da disciplina Epistemologia e Educação do
curso de mestrado da FE-UFF, cujas aulas semanais foram coordenadas pela Prof, Dra.
Regina Leite Garcia no semestre de 2010, e tem por finalidade apresentar uma análise
resumida do programa etnomatemático. Pretendemos indicar as contribuições que o
programa proporciona para humanizar o ensino de matemática. O texto começa com a uma
notícia de jornal, que acarretou vários questionamentos. Em seguida, conceitua, brevemente,
o programa etnomatemático. O objetivo principal é mostrar a possibilidade de diálogo entre
os autores apresentados durante as aulas do curso em referência e os aspectos da
etnomatemática como abordagem pedagógica.
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PERCEPÇÕES INICIAIS
Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
(...)
Fernando Pessoa
O dia 4 de julho de 2010, primeiro domingo do mês, foi reservado para reler textos,
retomar apontamentos, aprender a desaprender pensamentos matemáticos euro-eua-cêntricos e
aprofundar o olhar de professora-mestranda comprometida com a etnomatemática. Nesta
perspectiva, procurei elaborar um esboço do texto para o último encontro do grupo de
Epistemologia da Educação do curso de Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da
UFF. Os estudos desta disciplina foram coordenados por Regina Leite Garcia, pesquisadora,
doutora e, acima de tudo, eternamente professora.
O primeiro caderno do Jornal O Globo deste dia continha uma matéria da jornalista
Regina Alvarez intituladaAs muitas urgências do Brasil, a qual me instigou à leitura. O
conteúdo da reportagem, entristecedor e angustiante ao mesmo tempo, suscitava algumas das
questões mais urgentes do ensino de matemática através de afirmações como:
- Com 98% de crianças na escola, o Brasil atingiu um nível de acesso ao sistema escolar
similar ao de países desenvolvidos, mas ainda figura entre os piores do mundo na qualidade
de ensino.
- Em 2007, apenas 28% dos alunos da série do ensino fundamental, 21% dos que
completaram este nível e 25% dos que completaram o ensino médio tiveram desempenho
adequado para a sua rie em língua portuguesa. Em matemática, os resultados são ainda
piores
1
.
- O nível educacional médio do brasileiro é baixo, mesmo se comparado com países de renda
per capita similar. Apenas 60% das crianças e 45% dos jovens completam o ensino
fundamental e dio, respectivamente.
1
Grifo da autora
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- Apenas 2% dos estudantes de ensino dio em escolas públicas e particulares do país
cogitam seguir a carreira de professor. E estes poucos se concentram no grupo dos 30% de
alunos com pior desempenho escolar.
- As universidades públicas apresentam, em média, produção científica modesta e um dos
mais elevados custos por aluno do mundo: US$ 13 mil por ano. O triplo do custo de países
similares.
- O governo gasta por aluno no nível superior mais de seis vezes o gasto por aluno no ensino
fundamental, na contramão do que acontece na maior parte do mundo.
- Em 2008, havia 14,2 milhões de analfabetos entre as pessoas com 15 anos ou mais.
- Em 2008, o Brasil tinha 30 milhões de analfabetos funcionais dentre as pessoas de 15 anos
ou mais de idade.” (ALVAREZ, JORNAL O GLOBO, 2010, p.17)
Cada item desta reportagem, por si só, é assunto para uma profunda e merecida
reflexão. Frente à dimensão do problema educacional no Brasil e considerando o baixo
desempenho dos alunos da educação básica em matemática, procurei apresentar a postura
etnomatemática e suas possibilidades humanizadoras para o ensino de matemática e para a
formação do professor de matemática, como o principal objetivo deste trabalho.
As vidas foram surgindo, uma após a outra: Etnomatemática para 98% das crianças
que estudam num sistema com os piores índices de qualidade do mundo? Etnomatemática para
os poucos estudantes que completaram o ensino fundamental ou ensino médio com desempenho
adequado para o seu nível? Etnomatemática para 60% de crianças e 45% dos jovens que
completam o ensino fundamental e médio? Etnomatemática para os 2% de estudantes que
cogitam seguir a carreira de professor? Etnomatemática para as universidades públicas que
apresentam um dos mais elevados custos por aluno do mundo? Etnomatemática para justificar os
gastos do governo com os alunos no nível superior? Etnomatemática para os 14,2 milhões de
analfabetos e 30 milhões de analfabetos funcionais com idade entre 15 anos ou mais anos? Que
importância tem a etnomatemática neste contexto educacional? Como o programa
etnomatemática pode influenciar a formação inicial e continuada dos professores, especialmente
os de matemática?
No âmago destes questionamentos, percebi conexões com alguns dos autores estudados
no curso de Epistemologia e Educação. Suas ideias elucidam, de certa forma, grande parte destas
ponderações. As publicações que foram disponibilizadas durante as aulas do grupo possuem
indícios necessários e suficientes para embasar a possibilidade do programa etnomatemático
como humanizador do ensino de matemática.
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Sendo assim, procurei trilhar caminhos na busca de respostas esclarecedoras para as
questões acima, sem ter a pretensão de, com apenas este trabalho, abranger todos os debates e
opiniões acerca da etnomatemática.
O PROGRAMA ETNOMATEMÁTICO: UMA BREVE INTRODUÇÃO
Foi em 1984, no Congresso Internacional de Educação Matemática, em Adelaide,
Austrália, que o professor Ubiratan D‟Ambrosio apresentou sua teorização para o Programa de
Pesquisa Etnomatemática. Algumas novas tendências em Educação Matemática, como
“Matemática e Sociedade”, “Matemática para todos” e “História da Matemática e de sua
pedagogia” entre outras (ESQUINCALHA, 2004, p.3), também estavam em foco naquela época.
A principal motivão era procurar entender o saber/fazer matemático ao longo da História da
Humanidade, contextualizado em diferentes grupos de interesse, comunidades, povos e nações.
A gestação do programa deu-se durante a estada de D‟Ambrosio em Mali, na África, ocasião em
que dirigia o programa de doutorado da UNESCO, e também onde lhe ocorreu a ideia da
Etnomatemática:
“Nas conversas que eu tinha com os doutorandos, pessoal de alto nível, culturalmente ligado
à sua realidade, eles me mostraram que aquela Matemática de Primeiro Mundo levada à eles
não tinha nada que ver, na sua origem, com a tradição deles. Os malinenses, que são
mulçumanos, construíram grandes mesquitas típicas deles, de pau-a-pique. Estão de
mais de 500 anos . . . Eles tiveram os arquitetos deles, os urbanizadores deles, que fizeram
coisas maravilhosas com uma matemática muito própria, com soluções diferentes das nossas
para problemas comuns a todos os povos. Então comecei a estudar muita Antropologia,
História Comparativa, para entender melhor esse fenômeno, que, claro, não se explica
somente pela Matemática.” (D´AMBROSIO
2
apud ESQUINCALHA, 2004, p.4)
O Programa de Pesquisas em Etnomatemática, para ser compreendido, exige um
mergulho nas ideias de Ubiratan D‟Ambrosio. A Etnomatemática lança mão dos diversos meios
de que as culturas se utilizam para encontrar explicações para a sua realidade e vencer as
dificuldades que surgem no seu dia-a-dia. Ela propõe um enfoque epistemológico alternativo
associado a uma historiografia mais ampla, ou seja, parte da realidade e chega, de maneira
natural através de um enfoque cognitivo com forte fundamentação cultural, à ação pedagógica. O
2
Entrevista de Ubiratan D´Ambrosio à Revista Nova Escola, em agosto de 1993.
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programa reconhece que o é possível chegar a uma teoria final das maneiras de saber/fazer
matemático de uma cultura, daí o caráter dinâmico deste programa de pesquisas.
Seu objetivo maior é dar sentido a modos de saber e de fazer das várias culturas e
reconhecer como e por que grupos de indivíduos, organizados como famílias, comunidades,
profissões, tribos, nões e povos, executam suas práticas de natureza Matemática, tais como
contar, medir, comparar, classificar.” (D´AMBROSIO, 2009b, p.19)
Para conceituar Etnomatemática, D‟Ambrosio identifica a aventura da espécie humana
através da aquisição de estilos de comportamentos e conhecimentos para sobreviver e
transcender nos diferentes ambientes ocupados por ela, isto é, na aquisição de modos, estilos,
artes e técnicas de explicar, aprender, conhecer e lidar com o ambiente natural, social, cultural e
imaginário.
A definição possui um significado maior do que a simples identificação de diversas
técnicas, habilidades e práticas utilizadas por grupos culturais distintos, em suas buscas para
explicar, conhecer e compreender o mundo no qual estão inseridos. Nesta perspectiva, o seu
conceito de etno tem uma abrangência muito grande, pois se refere a grupos culturais
identificáveis. Seus exemplos mostram o que se entende por estes grupos: sociedades nacionais,
sociedades tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças de certa faixa etária, etc. e inclui
memória cultural, códigos e símbolos.
Depois da criação do International Study Group on Ethnomathematics, o ISGEm, em
1985, muitas discussões têm sido levantadas por pesquisadores em Etnomatemática a respeito da
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criação de sua proposta epistemológica. Segundo D‟Ambrósio (2009a, p.37), não se deve tentar
construir uma epistemologia para a Etnomatemática. Na sua visão, agir assim significa propor
uma explicação final para a mesma, o que mudaria a ideia central do programa.
Alguns historiadores da matemática, ao se depararem com formas de matematizar
diferentes da ocidental, tomam uma posição eurontrica e classificam-nas como um estágio
primitivo na evolução das ideias matemáticas. D‟Ambrosio afirma que
“A História da Matemática vem procurando identificar nas culturas fora da Bacia do
Mediterrâneo, conceitos e resultados da Matemática Ocidental e, daí, inferir, erroneamente,
que essas matemáticas equivalem a estágios primitivos da Matemática Ocidental e que, se
dessem às mesmas alguns séculos a mais atingiriam um estágio mais avançado, comparável
ao ocidental.” (D‟AMBROSIO apud ESQUINCALHA, 2004, p.7)
Ao estudar a História das Ciências observamos uma total desvalorização das culturas e
produções não ocidentais. A equivalência entre as sentenças ciência e ocidente aparece com a
única verdade aceitável. Sendo assim, toda e qualquer produção não eurocentrista ou
influenciada por esta pode estar, no máximo, num processo de evolão para o status de Ciência.
O meio científico e acadêmico desconsiderou, por muito tempo, as produções orientais e
dos grupos nativos das terras colonizadas, muitas delas anteriores à consolidação do império
europeu. Como resultado da globalização, as transformações nos sistemas de comunicação, de
informatização e de produção, colaboraram para se repensar muitos conceitos já fechados
séculos.
A ideia de questionar, de forma séria e livre de medos e pré-conceitos, todos esses
dogmas que temos a respeito de Homem, Sociedade, Cultura e Educação, deu início ao processo
de reconhecimento e valorização de outras culturas, buscando-se estudar os processos de geração
e troca de conhecimento. Ainda segundo Esquincalha (2004, p.1), houve um reconhecimento,
pela maior parte dos estudiosos e pesquisadores da área, que de alguma forma todas as culturas
se influenciam.
Aspectos e características de produção científica nas culturas dos povos colonizados são
revelados pelas pesquisas antropológicas, que passam a ter um papel primordial. Mesmo aquelas
que foram, absurdamente, extintas nos processos de colonização deixaram alguma marca na
cultura de seus colonizadores. Neste contexto multicultural, entende-se que todas as culturas se
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influenciam mutuamente e que são igualmente importantes. Logo, uma o deve sobrepor outra,
mas sim aproveitar o seu melhor.
Com a perspectiva da etnomatemática, intuímos que o devemos inferiorizar ou mesmo
tomar como simples curiosidades da História da Matemática, as matematizações dos povos não
centro-europeus ao longo dos séculos. Esquincalha (2004, p.8) afirma que
“(...) cada povo desenvolve sua própria forma de matematizar de acordo com suas
necessidades e está mais do que comprovado que suas matemáticas, ainda que muitas vezes
não compreendidas por nós ocidentais, até porque sempre queremos entendê-las a partir da
nossa, são tão ou até mais eficazes do que a ocidental.
Resumidamente, vimos que o programa etnomatemático procura dar visibilidade aos
saberes discentes, legitimando seus conhecimentos e suas práticas numa via de mão-dupla. Em
conjunto com estes objetivos, busca ainda contribuir para uma docência caracterizada pela
disponibilidade de ouvir e aprender com os alunos, disposição para dialogar com a cultura,
construção da autonomia do aluno, possibilitar a inter, multi e transdisciplinaridade.
OS DESAFIOS DE HUMANIZAR O ENSINO DE MATEMÁTICA
Para Ubiratan D‟Ambrosio
3
desde pequena a criança é condicionada a achar que a
matemática é complicada”, e continua, “se ela tem em casa um irmão mais velho, ouve que
matemática é difícil”. É com este comportamento condicionado que a criança entra na escola
apavorada com a disciplina, quando o natural seria a matemática ser tratada como um
conhecimento presente em todas as coisas do cotidiano das pessoas de maneira espontânea. A
repetição deste discurso se resume, perigosamente, numa história única. Esta visão é
compartilhada por Chimamanda Adichie
4
. Para ela, “a história única cria estereótipos”. E
acrescenta “e o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam
incompletos”, ou seja, eles fazem um história tornar-se a única hisria. A Etnomatemática
3
Em entrevista concedida à Revista Diário na Escola Santo André, de 31 de outubro de 2003
4
Palestra proferida pela escritora no TED (Technology, Entertainment, Design) Global em julho de 2009.
Dispovel em < http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html>.
Acesso em 08 de julho de 2010.
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propõem desmistificar esta história única de que a matemática é difícil e complicada. Ela
valoriza a diversidade cultural e desenvolve a criatividade. Dito de outro modo,
“Ao reconhecer „mais de uma matemática‟, aceitamos que existem diversas respostas a
ambientes diferentes. Do mesmo modo que há mais de uma religião, mais de um sistema de
valores, pode haver mais de uma maneira de explicar e de compreender a realidade.
(D‟AMBROSIO, 2010, p.8)
Contudo, a proposta da etnomatemática não significa a rejeição da matemática
acadêmica, nem se trata de ignorar conhecimentos e comportamentos modernos. Por
circunstâncias históricas, os povos que conquistaram e colonizaram todo o planeta a partir do
século XIV, tiveram sucesso graças ao conhecimento e comportamento cartesianos. Hoje, esse
conhecimento e comportamento estão incorporados na modernidade e conduzem nosso dia a dia.
Podemos aprimorá-los, incorporando a eles valores de humanidade, sintetizados numa ética de
respeito, solidariedade e cooperação. “Conhecer e assimilar a cultura do dominador se torna
positivo desde que as raízes do dominado sejam fortes. Na educação matemática, a
etnomatemática pode fortalecer essas raízes.” (D‟AMBROSIO, 2009a, p.43).
Paulo Freire (1984, p.59) nos alerta para a criação de uma ciência mitificada, isto é,
endeusada”, inacessível, inatingível, imutável. Nela, encaramos o cientista, instituição ou
qualquer pessoa como “um enviado do céu ou privilegiado”. Precisamos levar em conta que
uma correta prática educativa desmitifica a ciência na pré-escola”, permitindo acesso à uma
parte do conhecimento científico importante para a compreensão do mundo em que vivemos.
Os supostos epistemológicos localizam a produção de conhecimentos unicamente na
academia e dentro dos cânones e paradigmas estabelecidos pelo cientificismo ocidental. Ao
refletir se é possível refutá-los, WALSH (2007, p.104) argumenta que as ciências sociais podem
e devem ser repensadas numa pluri-versalidade epistemológica. Este pensamento deve levar em
conta e dialogar com as formas de produção de conhecimentos que são geradas em âmbitos
extra-acadêmicos e extra-científicos.
Considerando os exemplos concretos da nova Constituição equatoriana, WALSH (2009,
p.3) aprofunda o entendimento da interculturalidade crítica e seu enlace com a decolonialidade.
A autora chama atenção do reconhecimento jurídico e de uma necessidade cada vez maior de
promover relações positivas entre distintos grupos culturais, confrontar a descriminação, o
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racismo e a exclusão”, e completa formar cidadãos conscientes das diferenças e capazes de
trabalhar conjuntamente no desenvolvimento do país e na construção de uma sociedade justa,
equitativa, igualitária e plural.
A etnomatemática se encaixa nestas reflexões de Catherine Walsh sobre a decolonização
e na procura de reais possibilidades de acesso para o subordinado, para o marginalizado e para o
excluído. Para D‟AMBROSIO (2009a, p.42)
“A estratégia mais promissora para a educação, nas sociedades que estão em transição da
subordinação para a autonomia, é restaurar a dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e
respeitando suas raízes. Reconhecer e respeitar as raízes de um indivíduo não significa
ignorar e rejeitar as raízes do outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias
raízes. Essa é, no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemática”.
De acordo com o pensamento de Mignolo (2008, p.287), descolonização, ou melhor,
decolonialidade, significa para o autor, ao mesmo tempo,
“desvelar agica da colonialidade e da reprodução da matriz colonial do poder (que, é claro,
significa uma economia capitalista); e desconectar-se dos efeitos totalitários das
subjetividades e categorias de pensamento ocidentais (por exemplo, o bem sucedido e
progressivo sujeito e o prisioneiro cego do comunismo).” (ibdem, p. 313)
Este conceito está intrinsecamente ligado à identidade em potica, uma vez que, para o
autor, “é a única maneira de pensar descolonialmente” (ibdem, p.290). A opção descolonial se
desvincula dos fundamentos originais do ocidente e do acúmulo de conhecimento.
Consequentemente, significa aprender a desaprender
5
, e deve suscitar uma desobediência
política e epistêmica.
De maneira análoga, a etnomatemática nos convida a descolonizar o ensino de
matemática. Entretanto, apesar de estar se consolidando no mundo inteiro através de pesquisas,
publicações e cursos de formação, ainda existem muita resistência e incompreensão na área. Não
é de se estranhar que muitos ainda dizem queisso não é matemática, como nos revela
D‟Ambrosio (2009b, p.17), num movimento claro de resistência ao que nos propõem Mignolo, o
desafio de aprender a desaprender. Como educadores dos dias de hoje, é imprescindível
estarmos abertos para aceitar o novo e a diversidade, estarmos abertos para o encontro de grupos
5
Grifo do autor Walter D. Mignolo.
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culturais, que caracteriza momentos de globalização reconhecidos em toda a evolução da
humanidade. Assim, tendo a concordar novamente com D‟Ambrosio (2009b, p.18): “O grande
desafio é ampliar as possibilidades de voar/criar para entender e explicar o mundo que nos cerca,
com toda a sua complexidade.”.
Todavia, conhecer a matemática nas suas diferentes expressões etnomatemáticas, é
imprescindível tanto ao desenvolvimento pessoal, como ao desenvolvimento local e global.
Assim sendo, é necessário focar a atenção na importância do desenvolvimento de competências
matemáticas para a vida em nível local e na sua relevância para os fenômenos globais. Para
Moreira (2009, p.64)
“(...) por um lado, é necessário desenvolver o conhecimento matemático local na medida em
que as formas locais de conhecer o indispenveis tanto à preservação das diferentes
culturas locais, e logo da multiculturalidade, como ao entendimento, interpretação e
adaptação do fenômeno da globalização, ao próprio local
6
, (...) por outro lado, não menos
importante é a apropriação de um conhecimento e linguagem matemáticos com os quais seja
possível não só comunicar matematicamente nas diferentes comunidades, criando uma
comunicação matemática intercultural, como tamm em dimensões mais amplas da
sociedade
7
.”
Vivemos num mundo em busca de novas territorialidades (GONÇALVES, 2002, p. 217),
no qual os limites já não são gidos, indicando que as fronteiras epistêmicas, sociológicas ou
geográfico-poticas são mais porosas do que se acreditava. Concordamos com o autor, que não
encontra razão consistente para falar de local e global somente, e amplia a discussão para “um
novo campo que é, ao mesmo tempo, local, regional, nacional e global”. Sendo assim, nos vemos
diante de geo-grafias, e não mais de geografias, conformando novos territórios, novas
territorialidades, e do desafio de geo-grafar nossas vidas, nosso planeta. Da mesma forma,
estamos diante da possibilidade de etno-matematizar a matemática e do desafio de humanizar o
ensino de matemática.
De acordo com Ceceña (2004), o desafio de criar um mundo onde caibam todos os
mundos”, pressupõem uma mudança total de mentalidades, onde é preciso reconhecer essa
utopia ou projeto político de construir um universo harmonioso, diverso coletivamente e coerente
com a vontade geral. Ou seja, cada um no seu espaço, à sua própria maneira, fazendo parte do
6
Neste caso, a autora denomina a necessidade do conhecimento matemático local.
7
Caso em que a autora denomina a necessidade do conhecimento matemático global.
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todo. Isto nos remete a D´AMBROSIO (2009a, p.46) que “a etnomatemática como um
caminho para uma educação renovada, capaz de preparar gerações futuras para construir uma
civilização mais feliz”. A proposta pedagógica da etnomatemática é fazer da matemática algo
vivo, lidando com situações reais no tempo e no espaço e, através da crítica, questionar o aqui e
agora. Como educadores, nossa missão é oferecer uma visão crítica do presente e os
instrumentos intelectuais, comunicativos, analíticos e materiais para que, no futuro, possamos
finalmente “bem viver
8
numa sociedade multicultural e altamente tecnológica.
Atingir essa nova organização da sociedade é uma utopia para muitos, inclusive para
Ceceña (2004), “a utopia consiste em construir no cotidiano o sonho do futuro. Mas, pensando
bem, como ser educador sem acreditar numa utopia?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por razões várias, ainda pouco explicadas, a civilização ocidental, que resultou da
interação de várias culturas antigas, veio a se impor a todo o planeta. Com essa hegemonia, a
Matemática, cuja origem se traça às civilizações mediterrâneas, particularmente à Grécia antiga,
também se impôs a todo o mundo. Uma afirmação muito frequente é que a Matemática é uma só,
é universal. Segundo D‟Ambrosio, essa questão é muito bem abordada pelo historiador Oswald
Spengler, em 1918, num certo sentido preconizando a Etnomatemática ao dizer que não “há
uma escultura, uma pintura, uma matemática, uma física, mas muitas, cada uma diferente das
outras na sua mais profunda esncia, cada qual limitada em duração e auto-suficiente.”
9
A Etnomatemática, seja ela uma ciência, pensamento ou filosofia, é dinâmica, emerge das
discussões entre Matemática, História, Filosofia, Antropologia e tantas outras áreas do saber. E
por isso, a conclusão à que podemos chegar, é que seu incrível poder para quebrar a ideia de
unicidade/universalidade da Matemática é algo fundamental para a valorização e manutenção de
8
Bem viver ou sumac kawsay sustenta-se no conhecimento, o que tem sido transmitido através de gerações como
condição fundamental para a gestão das bases locais ecológicas e espirituais e de resolução autônoma das
necessidades. Mais informações em <http://www.amawtaywasi.edu.ec/objetivos.htm>. Acesso em 30 de julho de
2010.
9
Oswald Spengler: The Decline of the West. Volume I: Form and Actuality, trans. Charles Francis Atkinson
(orig.ed.1918), Alfred A. Knopf Publisher, New York, 1926; p.21.
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outras formas de conhecer diferentes das ocidentais. A matemática como ciência vista pelo
prisma da história única, transforma-se numa disciplina perversa e excludente, que nega uma
concepção mais abrangente do mundo, desconhecendo seu papel nas diversas manifestações
culturais, desvalorizando a relação entre cultura e educação matemática.
No meu entendimento o programa etnomatemático indica possibilidades que não se deve
reprimir, mas sim acolher e abrar em favor de um mundo unido pela diferença, um “mundo
onde caibam outros mundos”.
A Etnomatemática pode contribuir para uma globalização com tendências
emancipatórias, tanto do jeito que eu a vejo, como da maneira como os outros a veem. Por menor
que seja nossa ação, ela certamente influenciará alguém. Através desta abordagem, podemos
conhecer um pouco mais de nós mesmos, procurando pensar e sentir como o outro, e assim,
buscar uma convincia mais harmônica, com o intuito de viver de forma plena, tanto intra como
interpessoalmente.
Como educadores, somos antes de tudo, aprendizes. Mas, para sermos de fato aprendizes,
precisamos estar atentos às necessidades dos nossos alunos e não deixar escapar nenhum sinal,
nenhum olhar, nenhum pensamento. Os professores de matemática com formação
etnomatemática desenvolvem práticas docentes que respeitam e valorizam os saberes discentes,
numa perspectiva profundamente humanizadora do ensino de matemática.
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O trabalho Algumas implicações das atitudes docentes pelo saber matemático discente de Andréa Thees foi
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