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ATAQUES E UTOPIAS
Espaço e Corpo na obra de
ROBERTO PIVA
Gláucia Costa de Castro Pimentel
Maio de 2009
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A literatura deveria se advogar culpada.
Georges Bataille
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 04
I - O POETA E SEUS LEITORES 18
1.1. Biografia: Realidade e Utopia 21
1.2. Biografia: Armas e Combates 38
1.3. Fortuna Crítica: Percursos de Leitura 48
1.4. Fortuna Crítica: Visões de um Libertário 53
1.5. Fortuna Crítica: Coloquialismo e Erudição 65
II - 1ª FASE: CORPOS NA CIDADE SURREALISTA 73
2.1. O Surrealismo e a Beat: Delírios na face da cidade 77
2.2. São Paulo: Nomadismos na cidade pudica 91
2.3. Corpos: Risco e prazer pela metrópole 125
III - 2ª FASE: EROS NA PALIÇADA 139
3.1. Contracultura: Quando o corpo quer espaço 141
3.2. Androgenia: Um sim ao corpo 163
3.3. Anos de Chumbo: Violência, confronto e escapes 171
3.4. Anarco-monarquia: Carnavalizando a Aura 190
IV - 3ª FASE: O GAVIÃO EM PLENO VOO 212
4.1. Degradando e sacralizando Espaços 213
4.2. Eros na fraternidade 233
CONCLUSÕES 256
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 262 - 274
4
APRESENTAÇÃO
Piva é um poeta do abissal
1
.
David Arrigucci
Por um curto espaço de tempo convivi com o poeta que, dono de uma persona
poderosa marcou com humor e surpresas minha formação estética e ética em um período tão
delicado e vívido quanto pode ser a adolescência. E se não guardo um fluxo contínuo de
nossa convivência, com certeza saltam-me flashes que viriam, mais tarde, explicar a tônica de
seus versos.
Conheci o Piva por um encantamento comum: a arte. Por fazer teatro, dizer
poemas pelas ruas, fui aceita em seu convívio. Com o tempo, chegou a gostar de mim, por ter
uma imagem rebelde e andrógina. Acabei fazendo parte do séquito que sempre rodeava
aquela figura controvertida e magnética. Íamos ao teatro, ao Cine Niterói, onde passava
filme japonês, caminhávamos juntos pelas ruas entre sustos e maravilhamentos.
Por sua influência, saí do rumo certo para entrar na ECA/USP e entrei na
Sociologia e Política quando me deparei com uma convicção impactante: Tudo é política! E
das visões edulcoradas, embaladas em castas aspirações burguesas e religiosas, me deparei
com as dúvidas e acusações advindas do mundo vibrante e perigoso da ditadura militar, que
ainda persistia por aqueles dias.
Onde está o delírio que é mister inocular-vos?
2
Friedrich Nietzsche
Entre as percepções distantes e distorcidas por teorias transcendentes, e os
mergulhos no terror e nos prazeres arrancados da pele do perigo, escolhi o segundo. E nesse
„desvio‟ partilhei da companhia de Roberto Piva, uma criatura que, magnética e feroz,
afrontava e marcava seu entorno de maneira consciente. Seu trabalho poético, transgressivo e
inovador, vibrava por todos os seus gestos, o que o tornava alvo de admirações e rejeições
muito contundentes.
1
Postácio para Estranhos sinais de Saturno.
2
Assim falou Zaratustra.
5
Por ser quase performático, suas interferências no cotidiano da faculdade, certos
temas eram, praticamente empalados em nossos confortos intelectuais, como aquela manhã
quando irrompe na sala de aula onde, gravemente entretidos, fomos tomados num susto. Ele
vinha acompanhado por um rapaz desgrenhado, de uma beleza profundamente impactante,
mas de postura soturna, malandra, quase criminosa, misturando altos e baixos em nossas
percepções, como se fosse um pequeno anjo decaído, em forma de roqueiro drogado. E sua
beleza era tão irretocável, que me lembrou o personagem do filme Morte em Veneza
3
,
responsável pela sobrecarga emocional, que viria a matar o grande compositor, protagonista
da história. E enquanto estávamos embasbacados com aquela visão, Piva nos apresenta sua
companhia de maneira altissonante: “Vejam o que eu achei na rua: aqui está o verdadeiro
Fleur du Mal!”. E uma grossa gargalhada pode dar vazão à nossa perturbação.
Durante os primeiros anos da Faculdade de Sociologia e Política, uma fundação da
USP instalada num lindo casarão tombado na região central, entre a Consolação e o chamado
Minhocão, em meados dos anos setenta do século XX, saíamos das aulas, ainda manhã, e
rumávamos ao Largo do Arouche, onde uma livraria deliciosa, a Avanço, reunia ávidos
leitores. Ficávamos por ali, garimpando preciosidades, saindo com nossos pacotes de livros-
joias, ansiosos por folheá-los.
Algumas vezes íamos para sua casa saciar esse desejo, já que, morando em Santa
Cecília, tudo era meio quintal-de-casa. Piva não tinha mais paredes para acomodar sua
incrível biblioteca que se espalhava pelo piso, em pequenas pilhas, que gostávamos de pular,
por pura festa... E ficávamos, folheando, descobrindo, lendo em voz alta, enamorados pela
vista estonteante que são os livros, sentidos também como entidades estéticas.
POEMA LACRADO
4
meu abraço plurissexual na sua
imagem niquelada
onde o grito
desliza suavemente nos seios fixos
a
diminuta peça teatral estreando para os alucinados
e as
crianças instalavam transatlânticos nas bacias
3
De Luchino Visconti, de 1971, inspirado na vida de Gustav Mahler.
4
De Paranóia, in Um estrangeiro na Legião, p. 54/5. Embora a obra de Piva tenha sido reunida, optou-se pela
indicação da obra original de onde o poema é retirado, com a intenção de se manter a identificação dos livros
com suas peculiaridades. A segunda anotação se refere ao volume da obra reunida, uma vez que, todas as
edições de seus livros estão esgotadas, salvo algum volume em um sebo, e por fim a página da edição atual
para que possa ser conferido.
6
de água morna
Tarde de estopa carcomida
e pêssego com marshmallow no Lanches Pancho
meu pequeno estúdio invadido por meus amigos
bêbados
Miles Davis a 150 quilômetros por hora
caçando minhas visões como um demônio
uma avenida sem nome e uma esferográfica Parker
nos meus manuscritos
e os anjos catando micróbios psicomânticos
dentro dos Táxis
minhas alucinações arrepiando os cabelos do sexo de Whitman
ó janela insone que a chuva
abre desesperada!
ó delírio das negras à saída das
prisões!
Os drinks desfilam diante dos amigos
embriagados no tapete
Saratoga Springs
Kümmel Coquetel
minhas almas estão sendo enforcadas
com intestinos de esqualos
meus livros flutuam horrivelmente
no parapeito meu melhor amigo
brinca de profeta
no meu cérebro oito mil vaga-lumes
balbuciam e morrem
Quando li esse poema pela primeira vez, ele havia sido escrito uns quinze anos
antes, mas parecia ser o diário daqueles dias, com seus eventos de choque pelas ruas da
cidade estupefata, entre happenings contraculturais e batalhões de choques militares; com as
visitas à casa do Piva, quando aproveitávamos para divagar entre os lidos e os imaginados.
Com nossas idas ao ido Pancho bar, ao lado do Colégio Equipe (na época situado perto da
Av. Consolação), onde assistíamos à „fina flor‟ da subversão cultural da cidade daqueles dias,
e onde, como esquecer, sofri meu primeiro aprisionamento sob a alegação (exposta na
delegacia) de me “parecer” com uma hippie entendendo-se, por isso, „comunista-
maconheira‟.
Outras tantas referências saltam de seus versos, como a citação das trilhas sonoras
daquelas tardes sob Miles Davis, Charles Parker e tanto jazz, alucinando momentos de
leituras, excitando imaginações, performances, vivências, somando às vezes alteradores de
consciência como algum álcool, abrindo passagem para os baixos e fundos, aque saímos
do apartamento aturdidos e intoxicados de espasmos e poesia.
7
No poema muitas indicações que, já naquele período, apontavam para uma
abertura tão rasgada, que era difícil abarcar. Sob a ditadura vivia-se sob um moralismo
atarracado e, na tentativa de se passar incólume, encolhiam-se os gestos e, assim, diminuíam-
se os riscos. Mas nas palavras e nos versos de sua obra, a ousadia apontava para a vida, e não
para o heroísmo. Apontava para uma plurissexualidade eufórica e indefinida, que liberava a
cada um, seus reais contornos e limites, enquanto formas variadas de alteradores de
consciência faziam as pontes entre a urbis e as serras, entre amigos e os anjos, entre os táxis e
os pêssegos de Walt Whitman, bebendo com Miles Davis, em plena Avenida da Consolação.
Multipliquei-me para me sentir, / para me sentir, precisei sentir tudo,
transbordei, não fiz senão extravasar-me, / despi-me, entreguei-me,
e há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
Álvaro de Campos
5
Mergulhar na obra de Roberto Piva é pretender lidar com abismos, farpas,
labirintos, plágios e o encanto de infinitas citações e encontros. Ainda que não tenha a
pretensão de esgotar, ou traduzir, esclarecer e desvendar suas “verdades”, apenas pela
oportunidade de discuti-la em um momento em que as linhas teóricas de discussão ensejam
posicionamentos o relativistas, provoca alívio refrescante. Dada a própria forma
contundente de sua expressão poética, envolver-se com essa criação é entrar no labirinto
atormentado e exultante dos que estrangulam a desesperança com um otimismo ardente.
Longe do sonambulismo conivente dos relativistas, soterrados e escondidos por
denominações de cunho democrático, a oportunidade de trabalhar com a obra de Roberto Piva
é uma alfinetada que se toma por um estímulo maior. E suas sutilezas hão de desafiar linhas
teóricas, bem como obrigar a afiar ferramentas pouco sólidas, que embaralha o
convencional, rediscutindo com conhecimento de causa, os equívocos perpetrados por tantos
candidatos às liberalidades democráticas. Em uma de suas várias entrevistas, ele comenta:
Eu, como o Pasolini, não acredito na dialética. O que existe são oposições
irreconciliáveis. Acredito naquilo que Freud afirma em O mal-estar na
cultura: existe um movimento cada vez mais restritivo, não só da vida
sexual, mas da subjetividade de um modo geral.
6
O estudo que apresento segue o mesmo percurso cronológico da produção do
poeta, agrupado em três grandes fases: a dos anos „60; a do final dos anos „70 até início dos
5
In „Passagem das Horas‟.
6
WEINTRAUB, Fábio. A poesia paranóica de Roberto Piva. In: Revista Cult, n. 34, ano III, maio de 2000. p. 6.
8
„80 e por fim, a de meados dos anos „90 até 2008, quando é lançado o terceiro e último
volume de suas Obras Reunidas e reeditadas. Estranhamente, sua produção foi surgindo com
longos intervalos, em média doze anos, entre uma leva‟ e outra, por motivos desconhecidos
até por ele próprio, como confessou em entrevistas. Durante um período mais profícuo, o
poeta trabalhava muito, escrevia vários livros e depois se afastava dos versos, parando de
escrever, até que novamente, era invadido por nova febre.
A obra do Piva, basilar em minha formação, segue instigando e interessando por
muitas razões, mas, fundamentalmente, pela visão que tem da cidade, que ele jamais
percorreu toda, delimitando cinco ou seis bairros de sua escolha, num recorte definitivo, do
qual se serviu, percorreu e inseriu com força em sua obra. E essa cidade vivida e desdobrada
em poesia e vivência, foi apenas uma cidade mediana de alguns milhares de habitantes, mas
que, de algum modo, conteve o todo que a continha. Um locus mônada no qual viveu e o
alimentou.
Do centro da cidade onde sempre morou, em círculos expansivos, rumou ao sul e
a oeste basicamente, mas sem se afastar muito do ponto onde escolheu percorrer. Esse mapa
consta em sua obra com suas particularidades, horrores, amores e acima de tudo, sua
percepção única de um mundo desconhecido, ainda que bem à nossa frente. Essa cidade,
trajetos e paisagens, embora tenha permanecido no mesmo “mapa”, foi mudando em sua
poesia, o que era mesmo de se esperar, já que o apenas a cidade mudou, e muito, neste
grande período, que vai do início dos anos „60, ao século XXI, mas o mundo em si sofreu
grandes alterações, bem como as pessoas e, claro, o próprio poeta. O que emoldura e recorta
esse mapa político-afetivo é um mistério que nem sua obra, acredito, possa desnudar ou
justificar, afinal, como ele mesmo explica: “Só a desordem nos une”
7
. Assim, espaço urbano
e todo o espaço que circunda sua produção irá invadir versos e visões - propondo,
enviesando, atravessando e atrapalhando marcadamente, o universo poético. O poeta
confessa: “Não sou um poeta da cidade, sou um poeta na cidade. E se pudesse, estaria
longe daqui. São Paulo me fascina, mas também oprime”
8
. E Baudelaire assinaria em baixo.
Outro aspecto fascinante é a questão do corpo nessa obra potente. Pelo corpo
entrevemos liberdades, abusos, repressões, imagens da beleza, da história, da política desde a
mais diplomática e sutil, à mais bombástica e violenta. Pelo corpo, a cidade vocifera e
violenta. Mas será pelo corpo que o poeta sabe mais largamente propor suas ideias
7
Do manifesto „A Catedral da desordem‟, incluído no primeiro volume de sua Obras Reunidas, Um estrangeiro
na legião. São Paulo: Globo, 2005. p. 141.
8 DIOS, Valesca Canabarro. Assombração Urbana ` com Roberto Piva. Documentário em DVD. São Paulo:
Produção de Cultura Marcas/ DocTV, 2004.
9
utópicas. Pelo corpo, o desconforto pungente e o prazer mais transcendente - o Céu e o
Inferno - num dizer outro, mas não negando Blake, entre anjos, pecados, prazeres e sublimes
horrores. E de fato, a intimidade da poesia com o corpo, será absoluta. Pelos corpos passarão,
não apenas a cidade, não apenas o sexo e o desejo, mas seus antídotos aos horrores que
denuncia e ataca.
Tomando sua própria vida como medida, Piva fez da poesia não apenas um diário
de experiências emocionais e estéticas, mas acima de tudo, políticas, e esta constatação,
embora não torne sua poesia como “de protesto”, possui um contorno tão denso, que não se
consegue dissociá-la da ética mais explícita. Ainda que em simbiose com todas as suas
referências estéticas, o viés político de seus poemas carrega armas de ataques, mas também
de aspirações utópicas difusas, ainda que não cheguem a se delinear com clareza. Seus
poemas apontam inimigos em quadros claros de confronto, como também focam idílios e
jogos de utopias implícitas sob os mesmos antagonismos, e em meio a muitas asas,
lembrando o séquito celeste que permeia seus poemas, entre anjos e arcanjos, para além de
tantos pássaros.
A reedição da obra de Roberto Piva foi agrupada em três grandes blocos ou fases,
de acordo com as edições originais, mantida pelo estudo de seu organizador Alcir Pécora,
respeitada pela editora e reconhecida pelo próprio autor. A cada fase corresponderá um
volume. Na primeira fase, a dos anos „60, identifica-se uma clara influência surrealista e do
movimento beat, sob o título de Um estrangeiro na legião, em que se encontram a Ode a
Fernando Pessoa de 1961, que nunca havia sido acoplado a nenhuma publicação, posto em
circulação sob forma de plaquete; os livros Paranoia, de 1963, e o Piazzas, de 1964, além de
quatro manifestos agrupados sob o título geral de Os que viram a carcaça. O primeiro
manifesto é „O Minotauro dos minutos‟, depois „Bules, bílis e bolas‟, A máquina de matar o
tempo‟, e „A catedral da desordem‟ datados de março de 1961. Nesse volume, uma
apresentação da obra do poeta assinada por Alcir Pécora abre o livro e Cláudio Willer se
encarrega do posfácio com a incumbência de propor “uma introdução à leitura de Roberto
Piva”. Esse primeiro volume foi lançado em 2005.
Da segunda fase, dos anos „70/80, sua obra é classificada por uma tônica mais
psicodélica e irá ensejar a edição do segundo volume sob o nome Mala na o & asas
pretas, agrupando os seguintes textos: Abra os olhos & diga Ah!, de 1976; Coxas: sex fiction
10
& delírios, de 1979; 20 poemas com brócoli
9
, de 1981 e Quizumba, de 1983, acrescido de
mais quatro manifestos esparsos, lançados entre 1983 e 1984, reunidos sob o título O século
XXI me dará razão. O primeiro se chama „Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia
& do delírio‟, sem data; o segundo sem título, é datado em SP 1983, „Hora Cósmica do
Tigre‟, ao qual Piva faz questão de assinar e dar fé, como cabe a um documento cartoriado. O
terceiro manifesto dará nome ao bloco, e será „O século XXI me dará razão (se tudo não
explodir antes)‟, datado de fevereiro de 1984, na „Hora Cósmica do Búfalo‟, e por fim, o
„Manifesto da selva mais próxima‟, datado em SP outubro 1984, „Hora Cósmica da Águia‟.
Esse volume será, novamente, apresentado pelo organizador Alcir Pécora e encerrará com
um posfácio de Eliane Robert Moraes intitulado „A cintilação da noite‟. Esse segundo livro
foi publicado em 2006.
Por fim, em sua terceira e última fase, os poemas tornam-se visionários e
místicos, segundo a classificação de seus analistas e aceita pelo poeta. O terceiro volume da
série reúne os livros Ciclones de 1997 e Estranhos sinais de Saturno, que nunca havia sido
editado, sendo publicado e lançado conjuntamente, fornecendo o título ao livro como um
todo: Estranhos sinais de Saturno. Neste último livro, mais um grupo de manifestos será
agrupado sob o título Sindicato da natureza, somando nove textos. O primeiro, com várias
datas e vários lugares diferentes em tempos diferentes, foi intitulado „Relatório pra ninguém
fingir que esqueceu‟; o segundo, „Quem tem medo de Campos de Carvalho?‟
10
(sem data); o
terceiro não tem título nem data; o quarto, em forma de poema, foi indicado apenas pelo
nome da cidade Mairiporã, com a data de 90; o seguinte também não tem título ou data; o
próximo, novamente, somente indica Ilha Comprida, 90; a seguir o „Manifesto do Partido
Surrealista-Natural‟ de Juquitiba, 90; seguido por outro manifesto sem data ou título, e o
último manifesto é intitulado por „Todo poeta é marginal, desde que foi expulso da república
de Platão‟ (sem data). Esse volume segue sendo apresentado por seu organizador e recebe um
posfácio de Davi Arrigucci Jr. de nome „O mundo delirante (a poesia de Roberto Piva)‟. E
por fim, ainda no mesmo volume, um Compact Disc foi anexado, em que o próprio Piva,
grande leitor de seus poemas, gravou dezessete deles, recolhidos ao longo de toda obra. E
este foi seu último livro publicado, em março de 2008, concluindo a produção poética de
quase cinco décadas, que pôde ter a participação direta do autor auxiliando nas decisões de
toda a reelaboração, em novo formado, de sua trajetória.
9
Assim mesmo, sem o „s‟.
10
Em 2004, vinte anos depois desse manifesto piviano, um livro foi lançado com este mesmo título, de autoria
de Juva Batella, pela editora 7 Letras. Coincidência?
11
Infelizmente esta tese, apresentada e defendida em maio de 2009, levou quase seis
meses para que pudesse chegar às os do poeta, que a esperava desde 2007. Mas para
minha decepção, o Mal de Parkinson que já vinha debilitando seu corpo desde os anos
noventa, entrou em fase crítica, sem que pudesse se recuperar de suas idas e vindas do
hospital. Faleceu em 3 de julho de 2010.
Atravessando todos esses anos, algumas características permaneceram por toda
sua obra, como sua investidura libertária sobre as muitas paixões que impregnam sua obra, e
seus diálogos o abrangentes quanto inusitados e inriquecedores, trazendo ao palco de sua
construção e leitura do mundo, dezenas de outras mentes de artistas ou filósofos, vivos ou
mortos. Aliás, muito mais mortos, pois encontramos de Dante Alighieri, Nietzsche a outros
tantos não tão conhecidos como o barão siciliano Julius Evola
11
e Gary Snyder, um beatinik
menos conhecido que Piva trouxe à luz, como muitas outras descobertas da literatura,
filosofia e artes em geral.
Em sua paixão libertária a linguagem surrealista reafirmou o compromisso
arriscado de se manter constantemente sobre a linha divisória entre razão e inconsciente,
trabalhando, às vezes brincando, à beira dos abismos de seus jogos, de suas dores e muitos
horrores.
E ainda, uma outra permanência, tônica constante desde as primeiras folhas de
suas experiências, a ânsia pelo espaço natural ou reformulado. Associado assim, à sempre
presente cruzada libertária, mesmo em suas caminhadas as mais citadinas, verificaremos
como os espaços são empurrados para suportar as performances de vivências amorosas e
fraternas, jogando críticas duras sobre seu progressivo „apertamento‟. Mesmo nos trabalhos
mais tardios, a questão do espaço natural estará marcada, percebida em meio a tantas
possibilidades da cidade, onde o poeta apontará para um projeto mais enriquecedor de trocas
com um meio pleno de vida, numa idéia que modifica e desqualifica ações predatórias sobre
a natureza. Sua poesia caminha, na última fase, para formas transcendentes, onde revisita
simbologias e mitologias, até mesmo, teogonias, num contexto que mescla vivências
contemporâneas com míticas.
Sua obra vem sendo objeto de alguns poucos pesquisadores dos Estudos
Literários dos quais me sirvo, agradecida, pois me poupam redescobrir a roda, e sigo com
essa (ainda escassa) fortuna crítica rumo ao que me interessa: seus alvos de combate, bem
11
Figura controversa, pois sendo nobre, lutou contra a modernidade laica responsável, segundo ele, pelo
enfraquecimento do espírito humano
12
como seus antídotos utópicos estético-político-ecológicos, contra inimigos tão resistentes
quanto mutantes, aos quais denomina sem meias palavras.
A cada fase, novos alvos irão se somando, aos quais buscará formas estéticas
adequadas ao ataque para, acima de tudo, ensaiar utopias de convívio nas entrelinhas dos
poemas. Emergem deles, surpreendentes em forma e jogos diversos, grandes confrontos, não
apenas de palavras, mas de vida, uma vez que, como grande parte de seus parceiros por
afinidade, Rimbaud, Baudelaire, Ginsberg e outros, faz de seus versos espelho de sua vida, e
essa vida, tema de sua obra. E todos esses combates e utopias assomam de seus poemas como
produtos de sua vivência no espaço onde circulou, aprendeu, sofreu, ejaculou e confrontou: a
metrópole paulistana.
Desse universo caudaloso onde sua vida se expôs é que surgiu a justificativa do
título da presente tese: Ataques e Utopias, referindo-se às questões mais evidentes ao olhar
de uma socióloga, encantada com os meandros perturbadores que escolheu para lutar: a
poesia. Poesia de encantar e enlevar, mas, sobretudo, poesia de se por às turras em ambiente
hostil, onde empunhou o corpo erotizado e pecaminoso, em vívida memória histórica com
seus ferimentos explosivos, auxiliada por imensa biblioteca de fantasmas coautores, que
desdobram compartimentos para novas leituras, e assim, por vezes, causadores de vivas
risadas.
Se a poesia é a arma mais afiada do arsenal bélico de Roberto Piva, outras ainda
lhe dão sustentação, e minhas indagações se voltam para as bigornas onde afiou lâminas tão
possantes. Por isso escolhi um recorte que, sem me furtar a mergulhar em sua obra
propriamente dita, também me permitiu conhecer parceiros, demônios e encantos que
impulsionaram a obra do poeta, e se transformaram em matérias de primeira necessidade.
Como Piva navegava, por competência ou atração, beirando abismos, entre paradoxos e
heresias, julguei que o presente recorte possa apenas se somar aos outros tantos estudos que,
com certeza, sua obra ainda irá suscitar.
Ler” seus ataques e utopias exigirá mais do que um instrumental teórico literário
e sociológico, havendo de somar-se ainda, incursões pela filosofia, história e cultura pop.
Além do mais, que se enfrentar uma labuta contra os arquivos arrumadinhos de uma
estudiosa esforçada, exigindo mais coragem, ousadia e serenidade frente ao fogo cego de um
“caralho fumegante”, como lembraria Alcir Pécora, no prefácio ao segundo volume de sua
Obra Reunida, citando o próprio poeta.
13
“Ver” seus combates é mais simples, direto e óbvio, até porque Piva se serve de
escatologias, do obsceno, do grotesco, da profanação e mesmo da brutalidade sobre o corpo,
principalmente, mas também sobre as religiões, a cidade e as instituições de controle.
Quanto às utopias a dificuldade é maior, até porque, se pensar em utopia é
imaginar uma construção bem acabada, o escorregão para outra tirania é inevitável. Mas, se
viver pela justiça e a paz é, como disse Carlos Felipe Moisés em Poesia & Utopia “operar
com êxito nas empresas, não o que hesitar: a utopia será, mais do que nunca,
necessária”
12
. E poderá vir inacabada, esboçada, ou até uma contra-utopia. Algo que, sem
forma, sem desejos costurados, aponte bem no olho de seus ódios, aquele “não” que incrusta
em meio a seus versos.
Por ser prolixo, errático e contraditório, suas projeções utópicas, ou contra-
utópicas, também sofrem desse esfacelamento entre a aparente esquizofrenia e um
neologismo enriquecedor. Criador de pares oximóricos, Piva se autodenomina anarco-
monarquista. E será com pares opositores dessa natureza, que haverei de lidar na trajetória
que me proponho a percorrer.
Seguindo essa ideia de pares paradoxais, outro conceito sugerido pelas leituras é
uma androgenia-misogênica, pouco desenvolvida por entre suas linhas, quase sempre
cáusticas e barrocamente sedutoras, em que anjos, querubins e arcanjos se enlevam numa
nuvem de violentos sentimentos, onde se entrevê uma grande fauna celeste, por entre
meninos e meninas que pululam pelos poemas, saltando poças imundas, exibindo suas
bundinhas ariscas. Mas asas celestiais, no entanto, não se ligam à ideia da pureza, embora às
vezes, asejam usadas como tal, mas em geral, o séquito alado estará mais próximo de uma
imundície redentora. Rapazes, meninos e anjos que pendem fortemente para as formas e
jeitos yin, femininos, como o taoísmo instrui: os úmidos, os escuros, os frios, frágeis, rápidos,
os que se alteram, que não permanecem, que não são, mas estão, os que escorregam e não
seguram, os que se deixam envolver sem se dissolver, os que se sombreiam, escurecem e não
se mostram. O yin nos olhos do desejo - a androgenia como desejo erótico e, acima de tudo,
como projeto ético - utópico. Um mundo sem muros polares, mas de deuses ambíguos,
dionisíacos, doces, fortes, loucos e deliciosos.
Por outro lado, que se perguntar até que ponto teremos de levar a sério esses
pares paradoxais, em que uma radicalização carnavalizada e dissonantes nos leva,
novamente, às suas provocações de cunho mais políticas do que estéticas. Em Piva, as linhas
12
MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia & Utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras,
2007. (Coleção ensaios transversais, n. 35). p. 136.
14
entre a estética e a política ficam borradas desde o início, uma vez que sua obra não se alia
nem ao inefável nem ao nefando, pois ele de nominar sonhos e horrores, sem medo de
palavras, desejos e imagens. As contradições não são por ele inventadas, mas percebidas ao
seu redor, em outro caleidoscópio pulsante, broxante e erótico: a desmesurada cidade onde
vive.
Por fim, faltou comentar algo sobre essa última fase, a chamada místico-visionária,
como classificada por seus estudiosos, quando o poeta, rompendo mais materialmente, mais
concretamente com a cidade, em longas jornadas por florestas de reservas e serras, desenvolve
conhecimentos e intimidade com o xamanismo, junto a comunidades tradicionais indígenas
no litoral sul do estado. Religações tradicionais, ancestrais, com deuses e deusas, sexualidade
libertária, orgiástica, androgênica, busca contato com outras formas de relações de poder. Em
sua maturidade, o poeta assume um universo místico panteísta que, embora esboçado desde
cedo, virá para o centro da arena poética, quando de seu envolvimento direto e frequente
com o xamanismo propriamente dito, quando então, um novo foco ampliará sua paleta de
cores, isto é, seus instrumentos de poetar: palavras, instâncias construtivas, novos
sensorialismos, tons e percepções, que nos levam a mais surpresas poéticas.
Nesta última fase, o desejo de rompimento com a cidade torna-se mais evidente,
até porque, parece, localizou um atalho que lhe dá novo fôlego de atravessar rumos da
existência, ainda que, após ritos e transcendências, volte para o umbigo da monstra-cidade. E
novamente, frente a seus embates, Piva aponta, indica apenas, seus opostos por andanças
vivenciais.
Ainda que a obra do poeta o seja propositiva ou prescritiva, suas ideias de
tantos nãos” ficam bem expostas por entre poemas, mas também em prosa poética reunida
sob a forma de Manifestos que rói a corda com rancor e volúpia. Assim é que, em cada fase,
manifestos foram, e são lidos, expondo „lapidarmente‟ os jorros de tantas ideias, seja em um
plano político-social ou em um plano interrelacional, onde pretendo cavar.
O estudo da obra de Roberto Piva terá o apoio metodológico da Análise de
Discurso de vertente bakhtiniana e não francesa, uma vez que Bakhtin não postula um
conjunto de conceitos organizados sistematicamente, nem fechados, enquanto estrutura
teórico-analítica. Mas além dele, outros tantos teóricos serão chamados, tantos quantos
possam auxiliar-me nos focos da obra em questão, já que me projeto para fora de seus versos,
sondando seus ecos fundantes, seus interlocutores de tantas vertentes, me fazendo mais
Crítica Cultural do que, estudiosa de seus versos, tecnicamente falando. E para que esta
Crítica Cultural possa se fazer vasta e rica, me servi de apoios preciosos. Além de Bakhtin e
15
Foucault, passei pela riqueza dos ensaios críticos de Octavio Paz a quem Piva tanto se refere,
sem perder de vista as colocações sociológicas de Antonio Candido que, percebia os ganchos
inevitáveis feitos de paisagens, tempos históricos, talentos e vísceras. E falando em vísceras,
contarei com Bataille, Nietzsche, Freud e, para além de tantas lógicas raras, Mircea Eliade e
Guattari, somando aos abissais poetas que alimentaram Piva de seiva e delírio, como Blake,
Ginsberg, Lautréamont, Álvaro de Campos, Rimbaud, Murilo Mendes e outros tantos.
Os temas mais recorrentes da obra de Roberto Piva, sob minha ótica e interesse,
irão apontar para o Corpo num diapasão altamente libertário que confunda altos e baixos.
Assim a obra percorrea beleza, a escatologia e transgressões, tanto afetivas quanto nas
correntes de teogonia-política por onde vaza sua pederastia pagã em erotismo sacralizado em
seus muitos aspectos sempre não-cristãos.
Um dos contornos mais saborosos da obra é a observação de sua crítica feroz e
direta a um meio político, que o poeta irá tratar com fúria, mas também com muito humor e
escárnio. Usando da acidez e da sátira, embaralha teorias políticas as mais canônicas, lidando
pelas nuanças da anarquia, do anarquismo, da monarquia, do humanismo, da democracia e
claro, do capitalismo liberal, com seu séquito de seguidores, adoradores e odiadores
profissionais, como a esquerda, sempre atrelada e perdida na sombra do grande projeto
Capital versus um Trabalho que virou mais poeira esquecida nas estantes dos militantes, do
que realidade na formulação antagônica que se apresenta em conjunturas contemporâneas.
Além do corpo, outra categoria que se fará tema central neste trabalho será o
Espaço fonte de lutas, desencontros e promessas de um total abandono da sensibilidade
sobre o entorno de indivíduos e cidadãos, que forma e deforma subjetividades, personas e
projetos políticos. Sobre o meio circundante, natural ou urbano, a intervenção humana jamais
é inocente ou desprovida de um traçado, seja ele consciente ou não. E o meio, degradado,
ensandecido cada vez mais, esmaga e confunde o projeto original de “agrupar para proteger”.
O espaço se torna vilão e meio utópico para novas formações. Substrato da dor
contemporânea, de convivência doentia, assume o papel de circular mercadoria, mas guarda o
desejo de novas interrelações, demonstrado em seus gritos e berros transbordantes em
enchentes, tempestades e tantas calamidades que seu protesto natural sabe emitir.
Analisar suas licenças teóricas é mergulhar em uma ética sofisticada e conflituosa,
que reafirmando a lucidez, apesar de negar o racionalismo enquanto arma de discussão, traz
para a arena poética e ética, aspectos pertinentes da atual ecologia, do xamanismo, do
trabalho e lazer, do cristianismo, do sexo e claro, a força poética da obra em si.
16
Concluindo, pretendo capitular o presente estudo conforme as fases de sua obra,
definindo o plano do seguinte modo:
O Primeiro Capítulo pretende apresentar as bases de formação do poeta, desde o
meio ambiente, biografia e sua biblioteca. Também trata de pesquisar entre a fortuna crítica
dispersa e pouco acessível alguns estudos descobertos, fãs e blogs associados a ele.
O Segundo Capítulo aborda mais especificamente sua primeira fase, aquela
associada ao Surrealismo e ao Movimento Beat, além do estudo de seus primeiros livros
produzidos sobre e na cidade de São Paulo, inspiração e inferno, repressão e buscas, em meio
ao provinciano do período (final dos anos `50 e começo dos `60), onde um sexo justo e
marginal passa a ser material poético. Na construção desses livros, suas andanças com seus
amigos, colegas de criação e aprendizagem também povoam suas ginas, colocando-os na
pauta de atenção e estudo. Associados a eles, artes plásticas, filosofia, jazz, Bach, cinema e
nomadismo vagabundo.
O Terceiro Capítulo tratará mais diretamente do ambiente ditatorial pelo qual
vivia o país, afetando humores e ritmos de associação pelas ruas da cidade, além das vias de
escape para o meio natural, acompanhando a Contracultura internacional, que no país
assumiu desenhos muito particulares devido à presença do exército no cotidiano dos
cidadãos. O projeto ditatorial tornará claro o moralismo que se arrastava com certo pudor
desde o modernismo, mas, uma forma de resistência, também se define. Contracultura,
Psicodelia, Ditadura militar, Hippismo, Tropicalismo, Ecologia, Drogas, Sexo e Nomadismo
por uma cidade em ebulição, onde obras transformam o território urbano em mais um
desassossego, além da instabilidade do exército patrulhando ruas. Grandes rompimentos
darão ensejo a que novos valores se insurjam, propondo o „borramento‟ de fronteiras antes
tão demarcadas, trazendo à tona o tema da Androgenia e do Anarco-Monarquismo, com seu
desdobramento inevitável sobre a Arte: de massas e erudita, e o Brasil sai do casulo,
definitivamente, enfrentando um mundo múltiplo com ironia e rock`n roll.
Para o Quarto Capítulo haverá de se fazer uma viagem a outro universo, mas
que vinha sendo indicado desde o primeiro livro do poeta, ainda que, em forma de grito
agônico por entre a fuligem da grande cidade. Sua visão crítica do projeto urbano chega ao
seu oposto - o espaço povoado por outras substâncias que, mesmo não se materializando,
transladam barreiras num diálogo de infinitas vozes migradoras. Nesta fase, uma visão mais
radical sobre seus desejos demarcam os limites e, assim, buscas já são feitas sobre escolhas
definitivas. Não apenas a negação da cidade e seu convívio paranóico, mas a clareza de outra
forma de convivência e trocas naturais, entrecorpos, intraespaços, transcendentes. Ver além,
17
saber além, rumar para o além eis a origem da denominação visionária que recebeu de seus
leitores. Anseios que, desde o primeiro livro delineava em forma de crítica, rejeição, e
embate. Muito jovem o poeta poderia não saber o quê verdadeiramente almejava, mas
certamente, já denunciava o que seguiu atacando.
E será esse o rumo que me proponho percorrer para realizar leituras e desleituras
criativas sobre material tão diverso que é a obra de Roberto Piva.
18
Foto de Joy, filha do jornalista Décio Bar em 1962
Da esquerda para direita:
1. Demétrio Ribeiro
2. Cláudio Willer
3. Décio Bar
4. Rodrigo de Haro
5. Eduardo
6. Cassiano
7. Roberto Piva
8. Marcos Ribeiro
19
Capítulo I
O POETA E SEUS LEITORES
Difícil não amar gente inconformada
num mundo de mansos.
Alcir Pécora
Nesse primeiro capítulo, pelas pesquisas empreendidas sobre os leitores de Roberto
Piva, surgem os comentários da presença performática do autor, colada a sua obra poética, e a
estupefação percorre ambas as leituras: tanto de sua obra, quanto de sua presença. Assim,
falar de sua obra, também nos remete a sua pessoa. Embora sua biografia seja muito pouco
veiculada, críticos e leitores de seus poemas logo comentam passagens sobre a pessoa. E foi
por meios assim tortuosos que alguns dados de sua biografia puderam ser levantados, uma vez
que nos livros que publicou ou em antologias de que participou, nenhuma referência
biográfica relevante era assinalada, como foi o caso da famosa antologia organizada por
Heloisa Buarque de Hollanda em 1976, 26 Poetas hoje.
Ele permaneceu colado às suas próprias publicações, o que não impediu que
arregimentasse um grande número de seguidores-leitores, principalmente quando se deu por
aposentado do magistério (sobreviveu como professor por quinze anos), e iniciou uma
carreira de palestrante e leitor de sua própria obra em recitais e outros eventos pela cidade.
Sua presença associada à força de seus poemas fez com que, na busca por material sobre o
poeta pela internet, fossem encontrados setecentos e trinta e quatro sites
13
. Percorrer todos
eles fez com que surgissem muitas entrevistas e artigos em revistas virtuais, jornais on line,
diários especializados em literatura e artes, além de muitos releases de lançamentos, vídeos
do Youtube e blogs dos mais diversos interesses e impressões, confirmando um público
envolvido, desde adolescentes até seus contemporâneos, em demonstração de aceitação
bastante estendida e variada.
Embora sendo um poeta, cujo fazer tem sido relegado a edições tão esporádicas
quanto às teimosias e diletantismos de seus editores, os números desmentem o abandono do
gênero e o desinteresse pela figura “arcaica” do poeta - relegado a imagens adocicadas e
13
Os setecentos e trinta e quatro sites mencionados foram acessados durante os meses de novembro e dezembro
de 2007, enquanto era feita a pesquisa por estudos, blogs e citações de sua obra. Dois anos depois, é de se
imaginar um certo aumento desse número.
20
irritantes, como o bardo da história em quadrinhos do Astérix, o Chatotorix, com sua lira e
versos infindáveis, sempre pronto a tornar formal qualquer encontro entre amigos.
Pode-se dizer também que, apesar de um trabalho bastante consistente desde os
anos sessenta, sua obra não tem sido efetivamente estudada, talvez pela intermitência de suas
publicações, numa média de doze anos de uma fase para outra, ou talvez por seu gênio não
muito fácil de conviver, ou ainda como bem dizem alguns de seus leitores, pela violência de
seu texto. Mas há quem alegue outras causas, como veremos adiante.
Um de seus leitores e comentadores mais frequentes é Cláudio Willer, amigo de
juventude, além de ser, ele mesmo, poeta e tradutor de grandes nomes da poesia surrealista,
maldita e herética em geral, como é o caso de Lautréamont, Antonin Artaud, Allen Ginsberg e
outros. Contribui regularmente para revistas impressas (Cult, Ilustrada da Folha de São
Paulo, Isto É e outras) e virtuais (Agulha, Triplov, Jornal de Poesia, etc.). Outro conhecido
comentarista é Floriano Martins, que também é do círculo pessoal de Piva, ainda que com
vinte anos menos. Poeta, editor de revistas eletrônicas e colaborador em entrevistas diversas,
publicando no México (revista Blanco Móvil) e traduzindo Federico García Lorca, Guillermo
Cabrera Infante e José Luis Vega. Outro comentarista regular de sua obra é o ensaísta e
organizador de sua Obra Reunida, o crítico literário Alcir Pécora, professor doutor na
Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP e diretor do Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL). Um comentarista menos frequente, mas também de seu círculo de amigos,
David Arrigucci, celebrado e prolífico ensaísta do país, participa da curta lista de interessados
na obra dos poetas. E ainda lê-se sobre Piva, pelas palavras de Fábio Weintraub, Ricardo
Lima, Antonio Fernando de Franceschi (outro poeta-amigo desde que tinham menos de vinte
anos e perambulavam juntos pela cidade), João Silvério Trevisan, Ricardo Rizzo e uma legião
de adolescentes, fãs „blogueiros‟, que faziam a festa cada vez que Piva era agendado para
algum recital na cidade. A lista de leitores-comentadores não parou por levando sua obra a
traduções e participações em eventos nacionais e internacionais.
Sua obra segue se desdobrando pelo país (entre comentadores, releases, blogs e
fãs), e fora dele, em outros formatos. No final de cada livro de suas Obras Reunidas, uma lista
foi organizada no sentido de mostrar as traduções de seus poemas em coleções sobre poesias e
poetas do Brasil ou do Continente, ou mesmo de parte de seu trabalho exclusivamente, para o
espanhol, para o inglês e para o francês. Também foram relacionadas, cuidadosamente, as
citações de seu trabalho no teatro (o poema “Vertigem” do livro Ciclones, foi encenado por
José Celso Martinez Correa no espetáculo Ela, de Jean Genet), em programas de rádio, com a
21
locução de alguns de seus poemas
14
, e TV para o Musikaos, programa 18 da Fundação
Anchieta, a TV Cultura
15
. Ainda são citadas as inserções em outros filmes, documentários,
exposições de artes plásticas, além de verbetes nos Dictionnaire General Du Surrealisme et
de ses environs (nunca esquecido por seus comentaristas), na Encyclopaedia Britannica, na
Enciclopédia de Literatura Brasileira e na Larousse Cultural, assim como outros tantos
artigos, orelhas e coletâneas.
1.1. BIOGRAFIA - Realidade e Utopia
O poeta existe para impedir que
as pessoas parem de sonhar.
Roberto Piva
Nascido em 25 de setembro de 1937 em São Paulo, Roberto Lopes Piva, passou os
primeiros dez anos na fazenda do pai em Analândia, no interior do estado, onde explica:
minha formação é futebol, cinema, gibi, Hegel e muito troca-troca
16
. Depois desse período,
não se tem mais notícias precisas sobre sua vida. Em nenhuma entrevista, ensaio ou
comentário, sua infância é mencionada novamente, surgindo ao público após os dezesseis
anos, quando começa a estudar italiano com o adido cultural do Consulado da Itália em S.
Paulo (Eduardo Bizzarri), para ler Dante no original, permanecendo nesse estudo por três
anos. Após esse período de estudos, ele irá se reunir com um grupo, ao qual permanecerá
próximo o resto da vida.
As narrativas de suas aventuras por uma São Paulo ainda acanhada em fins dos
anos cinquenta e início dos sessenta são recorrentes, quando circulava com os amigos noite
adentro. Nesse período estudavam juntos, assistiam a filmes, peças de teatro e começavam
também a editar seus livros. O primeiro a publicar um livro de poemas foi Piva com Paranoia
(lançado no final de ‟62). Em seguida foi a vez de Sérgio Lima com Amore (editado em ‟63,
com textos de ‟59 e „60); e, pouco depois, em outubro de 1964, Anotações para um
Apocalipse, de Cláudio Willer. Anotações... é lançado, aliás, juntamente com o segundo livro
14
Para o programa Momento do Poeta, na rádio IMS (Instituto Moreira Salles) em 2004, ano em que a editora do
mesmo Instituto reeditou e lançou Paranoia, o primeiro livro da obra piviana, ilustrado pelas contundentes,
fantasmagóricas e belíssimas fotos do centro de São Paulo de autoria do amigo e artista plástico Wesley Duke
Lee, disponível em www.ims.com.br.
15
Disponível em http://www.tvcultura.com.br/musikaos/18/artesplasticas-fabrizio.htm.
16
WEINTRAUB, Fábio e DAMAZIO, Reynaldo et alli. In: Revista eletrônica do Memorial da América Latina,
2005. Em http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/ContentBuilder .do?pagina=687, acessado em novembro
de 2007. (Texto e áudio).
22
de Piva, o Piazzas (1964) que, escrito em ‟63, um ano depois do primeiro, sinalizava um
diapasão distinto de seu primeiro livro, Paranoia, como veremos adiante.
Não apenas assistiam aos mesmos filmes e peças de teatro, como participavam de
estudos em casa do filósofo Vicente Ferreira da Silva, a quem afirmam, dever grande parte de
sua formação intelectual. O filósofo organizava grupos de estudos com Piva e seus amigos
para estudarem Heidegger, Nietzsche, Sartre e outros. Também promoviam leituras de poesia,
até porque, a Dora, casada com Vicente, também era uma poeta com várias publicações (ainda
que de vertente bem diversa). Com toda a caretice das ruas, suas leituras desafiavam o homem
médio e os poetas que naquele momento se formavam.
Fazia parte dessa busca por novidades e formação, não apenas compras de livros
(com eventuais furtos como chegam a confessar em entrevistas), como também a busca pelos
lançamentos internacionais, de sorte que nunca ficassem defasados em relação aos
lançamentos editoriais da França, Inglaterra, Itália, EUA e Espanha. Frequentou as
tradicionais livrarias Francesa e a Italiana e chegavam mesmo a importar os livros recém
lançados pelo grupo beat, diretamente de S. Francisco, da City Light Books, de propriedade de
Lawrence Ferlinghetti, trocando informações e comentários, imediatamente.
O cineasta Ugo Giorgetti documenta esse período de convivência em uma cidade já
grande, mas ainda muito provinciana, sob a ótica de um grupo de poetas e amigos que
circulavam pelo centro e passam a narrar suas impressões. O lme Uma Outra Cidade:
Poesia e Vida em São Paulo nos anos ’60 (2000), com 58 minutos, enfoca esse período na
vida dos poetas Antonio Fernando de Franceschi, o catarinense Rodrigo de Haro, Claudio
Willer, Jorge Mautner e Roberto Piva, além das inclusões por citações de outros membros
afastados do círculo. É o caso de Sérgio Lima, o maior difusor do movimento surrealista no
país
17
, com quem conviveram alguns meses, até verem no colega o mesmo viés autoritário de
Breton, cioso e ciumento do movimento que havia criado. Também é citado o artista plástico
Wesley Duque Lee, com quem Piva fez seu primeiro trabalho poético, editando Paranoia
com fotos da cidade feitas por Lee, em recortes tão inusitados quanto primorosos, tornando
17
Sérgio Lima produziu um estudo em quatro volumes sobre o movimento surrealista brasileiro, dividido em três
períodos, dos anos 20 aos dias de hoje, chamado A aventura surrealista. Nesse trabalho, Lima narra o início
com a chegada ao Brasil de Benjamin Péret em 1929, quando decide morar no país até 1931. Um resumo desse
material está disponível na internet pelo portal Triplo V, em www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html.
Claudio Willer fará comentários sobre esse estudo, disponíveis na Revista de Cultura Agulha n. 37, pelo
endereço www.jornaldepoesia.jor.br/ag37willer.htm , em que uma polêmica se estabelece quanto à „pureza‟ do
movimento surrealista no país.
23
esse livro, ainda hoje, uma obra marcante, e Décio Bar, morto prematuramente, lembrado por
todos com carinho
18
.
Ugo Giorgetti buscou neste documentário revisitar uma cidade perdida, mas que,
talvez pudesse ser resgatada um pouco que fosse, pela memória afetiva de um grupo de
moradores, em sua maioria poetas, em nada representativo do cidadão médio citadino. Esse
grupo possuía um olhar e um histórico de fazeres estéticos e éticos que marcaram uma
produção artística ainda reconhecida na cidade. O inusitado é que esse grupo irá começar a
produção de suas obras em um meio altamente puritano e quase sufocante, conforme seus
próprios depoimentos. Giorgetti visou com este trabalho, não apenas à recuperação e
reprodução imagética de uma cidade movimentada, ainda que muito distante da atualidade,
mas também capturar, através dos depoimentos desse grupo de poetas (todos ainda na ativa),
um momento cultural específico e bem restrito que, em todo o caso, era típico da cidade,
conforme se viu.
Segundo o diretor “só a palavra parece conseguir evocar com alguma precisão esse
tempo em que as pessoas acreditavam que „estavam no mundo para fazer alguma coisa‟, para
usar a expressão de Willer. Os hoje ensaístas, além de poetas, De Franceschi e Willer narram
condições lúcidas e precisas da cidade e seus entornos, enquanto Mautner e Piva jogavam
com humor delirante, na captura das mesmas lembranças”. E o autor avisa que, com esse
filme, não pretendeu fazer história literária, nem estabelecer juízos de valor sobre os inúmeros
poetas que também se iniciavam na época. “A ideia de reuni-los obedeceu, sobretudo, a
impulsos de afetividade e de amizade”
19
. Conforme De Franceschi, o documentário seguiu a
linha de Boleiros (outro filme de Giorgetti), mas substituindo o futebol por poetas e o bar pelo
apartamento do Willer. Aliás, Giorgetti havia se interessado pelas criaturas gauche da
cidade e da vida. No seu filme A Festa, a história se volta para quem ficou do lado de fora,
por quem não entrou, por pessoas que não se encaixam, não pertencem, mas desequilibram e
constroem outras formas de permanência e interferência. Outra Cidade foi motivado por esse
mesmo do diretor em dar margem aos da margem.
No documentário, podemos acompanhar por suas narrativas apaixonadas, como foi
construir uma vida cultural naquele período, quando circulavam entre a Avenida São Luiz, a
18
Maria Adelaide Amaral escreveu uma minissérie, Meus Queridos Amigos, em homenagem a Décio Bar, seu
amigo mais íntimo, quando informa que ele, falecido em 1991, fazia “parte dos Novíssimos, uma geração que
estava revolucionando a poesia em São Paulo. A esse grupo pertenciam também Lindolf Bell, Fernando de
Franceschi, Roberto Piva, entre outros”. Essa declaração foi feita à Central Globo de Comunicação, em 12 de
fevereiro de 2008. In: <http://tvtribuna.globo.com/programacao/progcategoria.asp?idCategoria=2&id
Programa=168&idSinopse=2680> - acessado em 12 de fevereiro de 2008.
19
In: Paranoia. 2 ed. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000. Contracapa.
24
Rua 7 de Abril, a Praça da República e seu entorno, percorrendo um circuito que rodeava o
Museu de São Paulo, „nascido‟ na Rua Sete de Abril
20
, a Biblioteca Mário de Andrade e as
muitas livrarias, onde confessaram, todos roubavam um ou outro livro.
Pelas confissões e lembranças, fica fácil perceber a quase ausência de mulheres
naquele círculo. Ao contrário do que ia surgindo no Rio de Janeiro (ou pelo menos em
alguns trechos de algumas praias, como o Posto 6 de Copacabana onde o movimento da Bossa
Nova estava se iniciando), em S. Paulo, acanhada e fora dos focos nacionais, “só existiam
dois tipos de mulher”: a velha dicotomia entre as certinhas (virgens mantidas na ingenuidade
e, quase sempre, sem muitas exigências intelectuais, o que as tornava raras nos círculos
boêmios), e as erradas, leia-se „galinhas‟, „fáceis‟ ou prostitutas. Com algumas exceções,
claro.
De qualquer forma, como comenta De Francheschi em um dos depoimentos do
filme, a vida sexual era bem controlada. Se não havia uma vida sexual interessante, ou uma
vida social variada, por outro lado, o havia uma massificação”, um padrão a seguir,
cabendo ao grupo a invenção de suas atividades sociais e intelectuais, levando-os a encontros
de estudo na casa do filósofo Vicente Ferreira da Silva, um heideggeriano perdido em um
mundo marxiano
21
, com quem conheceram, não apenas Heidegger, mas também Mircea
Eliade, o estudioso das religiões não ocidentais.
Juntos ainda faziam leituras comuns de Rimbaud, Dante, Pessoa, Murilo Mendes,
Rilke, Jorge de Lima, Augusto dos Anjos, os principais nomes do movimento Beat, além de
Sartre, Camus e vinho, muito vinho - baratos, mas muito.
A Nouvelle Vague, o cool jazz, o cinema realista italiano e, um cinema japonês
muito marcante desse período, que se fez constante na cidade, através de, principalmente, o
Cine Niterói, na Liberdade, seguiu com programações interessantes até a década de setenta.
Foram unânimes em se identificar com o filme La dolce vita, suas festas e desvarios, e numa
grande semelhança com aquele ambiente, em que buscavam também atuar performaticamente
com suas aparências-aparições, servindo-se de roupas extravagantes, acessórios vários (citam
a enorme cruz templária de Rodrigo de Haro
22
e echarpes coloridas), cabelos (cortes exóticos,
20
Que só iria para sua atual e famosa sede de autoria de Maria Bo Bardi, na Av. Paulista, em 1967.
21
Numa era onde a USP produzia e difundia o CPC (Centro Popular de Cultura), apostando na ideia leninista de
„vanguarda revolucionária‟, a estética ficava vinculada a intenções de convencimentos políticos,
constrangimentos sectários e formas de construções estéticas coladas aos manuais e cartilhas do partidão‟.
Devido a esse corporativismo, o filósofo foi mantido afastado da USP, sendo reconhecido e homenageado
pelas academias (USP e Academia Paulista de Letras) apenas depois de morto.
22
Uma curiosidade a respeito de Haro desse período é mencionada por Willer: “A bruma simbolista que cobre
Florianópolis, responsável pela riqueza em imagens de seus poetas, entre eles, cabe destacar Rodrigo de Haro,
representante daquilo que antecedeu o Surrealismo e o fundamentou, o assim chamado “decadentismoe a
25
ou longos)
23
, além de emblemáticos casacos de couro que produziriam imagens bem distantes
do esperado pela recatada capital paulistana.
Veiculado por diversos sites e blogs como os „Subcultura‟ e „Umazona‟, Piva lança
sua AUTOBIOGRAFIA
24
, onde proclama seu autossaber em poucas linhas:
Nasci na maternidade Pró-Matre no coração de São Paulo. Piva é um
antigo nome do Veneto (Itália do Norte). Meu avô era de Saleto, perto
de Rovigo.
O Livro da Família, que tinha lá em casa, conta a história de um
antepassado cavaleiro que combateu nas Cruzadas. Como o avô
Cacciaguida de Dante. Só que ao voltar das Cruzadas virou herético &
começou a pregar a favor do Demônio. Por ordem do bispo local, foi
queimado na praça pública com armadura & tudo. No momento, deve
estar passando uma temporada na IX Bolgia do Inferno de Dante.
Local destinado aos semeadores de discórdia. Os filhos fugiram da
cidade & a descendência continuou.
Mas em matéria de revolta eu não preciso de antepassados. A minha
vida & poesia tem sido uma permanente insurreição contra todas as
Ordens. Sou uma sensibilidade antiautoritária atuante. Prisões,
desemprego permanente, epifanias, estudo das línguas, LSD,
cogumelos sagrados, embalos, jazz, rock, paixões, delírios & todos os
boys. O cinema holandês informará.
acredito em poeta experimental que tenha vida experimental. Não
tenho nenhum patrono no Posto”, nem leões-de-chácara & guarda-
costas literários nas redações de jornais & revistas.
Nada mais provinciano do que os clubinhos fechados da poesia
brasileira, com seus autores-burocratas tentando restaurar a Ordem &
cagando Regras que o futurismo, dadaísmo, Surrealismo &
modernismo se encarregaram de destruir. A estes neozdanovistas
25
de todos os matizes, gostaria de lembrar esta passagem do manifesto
criação artística fundada na tradição hermética”. In: Surrealismo no Brasil - rebelião e imagens poéticas.
Revista de Cultura Agulha 27, de agosto de 2002. Fortaleza e o Paulo:
<www.revista.agulha.nom.br/ag27willer.htm>. Acessado em dezembro de 2007.
23
Associação inevivel com a figura exuberante e passional de Maiakovski (1894-1930), que saía às ruas de
Moscou numa época em que „homem de bem‟ usava preto, enquanto ele se deixava agasalhar por uma enorme
bata de tri “amarelo-limão que lhe caía até o meio dos quadris e que usava sem cinto, com uma grande
gravata preta. Uma cartola e um elegante sobretudo completavam sua imagem”, além de seus cabelos anelados
loiros e despenteados, em um homem muito alto e espigado, causava um impacto desejado, ao redor da
Revolução Russa de 1917. Relato na introdução de E. Carrera Guerra à Antologia poética de Vladímir
Maiacovski. 2.ed. Rio de Janeiro: Leitura, 1957.
24
Originalmente publicado em sua Antologia Poética de Piva, lançada em 1985. Também disponível em
<http://www.subcultura.org/index.php?option=com_content&task=category&sectionid=4&id=89&Itemid=33
5>, acessado em dezembro de 2007. E o Umazona: <http://umaszona.blogspot.com/2007/04/biografia.html>.
Acessado em agosto de 2008.
25
Zdanovismo - Doutrina estética soviética que vem a ser o realismo socialista.
26
redigido por André Breton & Leon Trotsky: “Em matéria de criação
artística, importa essencialmente que a imaginação escape a toda
sujeição, não se deixe impor filiação sob nenhum pretexto. Àqueles
que nos pressionam, hoje ou amanhã, para que consintamos que a arte
seja submetida a uma disciplina que sustentamos radicalmente
incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável, e nossa
deliberada vontade de nos manter no lema: todas as licenças em arte”.
Fecho também com John Cage & não abro: “Sou pela multiplicidade,
a atenção dispersa e a descentralização, e, portanto me situo do lado
do anarquismo individualista”. Ou Jean Dubuffet: “O uníssono é uma
música miserável”. Precisamos de criações desprovidas de regras &
de convenções paralisantes. A poesia é um salto no escuro como o
amor. Por isso, meus leitores preferidos são os heréticos de todas as
escolas & os transgressores de todas as leis morais & sociais. Como
não sou intelectual de esquerda, estou sempre às voltas com o
problema da grana.
Pasolini começou a contagem regressiva do nosso planeta a partir do
desaparecimento dos vagalumes na Itália. Eu poderia começar a
mesma contagem regressiva a partir do desconhecimento &
desaparecimento da abelha Jataí no Brasil. Acredito que, para a defesa
do nosso planeta, as melhores ideias, como disse Edgar Morin, são as
ideias “biodegradáveis”.
Uma tarde, numa ilha esquecida do litoral sul de São Paulo, um garoto
com olhos de Afrodite me perguntou no que eu acreditava. Respondi:
Amor, Poesia & Liberdade. E nos Ovnis também.
Iguape (SP)
Fevereiro de 1985
Hora Cósmica do Leopardo
Importante ressaltar algumas passagens em meio a tanto humor: sua insistência em
afirmar que acredita em poeta experimental que tenha vida experimental é uma delas. Um
dos lemas mais repetidos por ele mesmo, apresentações de livros e „blogueiros‟, internet a
fora, foi por ele perseguido, vitimando-o duramente, causando sua morte prematura, aos
setenta e dois anos, por complicações advindas do Mal de Parkinson que foi fragilizando seu
corpo nos últimos dez anos. Sua vida errática e radical foi sua escolha para, conforme
afirmou, não lidar com condições que lhe lapidassem o espírito, tornando-o manso e
acomodado, como acusa no poema „A Piedade
26.
26
Transcrito na página 41 deste estudo.
27
Quanto ao folclore do tal ascendente queimado pela Inquisição, foi até criticado
27
por pretender um charme nobiliárquico a seu passado já tão nebuloso, que talvez seja afinal,
simplesmente rural. Mas não há como esquecer suas escaramuças frente às construções
fantasiosas da burguesia, para esconder sua prosaica origem, mas pode ser que este mal tenha
recaído sobre o próprio combatente.
A despeito do tom irreverente e irônico da autobiografia, quando afirma que
minha vida & poesia tem sido uma permanente insurreição contra todas as Ordens”, que
se reconhecer na obra, pelos testemunhos e pela trajetória profissional, que a Utopia tem sido
a tônica de Roberto Piva. Uma utopia sem contornos fixos, sem projeto acabado, mas com um
viés romântico bastante claro, ainda que, em „contradição natural‟, realmente pós-moderno.
Pensar a Utopia é passatempo de todos os mortais, certamente. E como diz Teixeira
Coelho
28
, essa liberdade de pensar alternativas aprimoradas sobre a realidade que se observa
(e sofre) poderia chamar-se Esperança, mas também de Sonho, dependendo do nível de
permissividade do espírito de quem divaga por melhores condições de convívio e
sobrevivência. Porém, Teixeira Coelho defende que não se constrói uma utopia em sonho,
porque a utopia é desejo cido, e não inconsciente involuntário, como ocorre enquanto se
sonha.
Pensar o mundo é vê-lo com estranhamento, é conseguir -lo pelo avesso, é
sonhá-lo acordado, é sofrê-lo pelo horror de suas falhas. Uma grande abstração para um
futuro inatingível passa a ser um ideal ético que, de fato, não deve se acreditar alcançável.
Pensar uma Utopia é desejar linhas básicas mestras e definitivas. Todo o resto é controle
político. Para Moisés “Utopia e liberdade são inconciliáveis”
29
, que quem ousa produzir
seus contornos nos detalhes, fará tudo para forçar a realidade a se encaixar no castelo
construído com tanto esmero e desejo de felicidade. Por outro lado, como diria Oscar Wilde:
“Um mapa do mundo que não inclua Utopia não merece nem mesmo uma espiada”
O fato é que concepções absolutas de espaço, modus vivendi racionalizado e fluxo
de conduta organizado, é apenas o sonho do tirano mais sanguinolento, produzindo a própria
„heterotopia‟ como frisou Foucault em As palavras e as coisas, para descrever a
incongruência de que a linguagem é tão capaz de produzir, como é neste caso. Entre ter-se o
imperativo desejo de reordenar o mundo e percebê-lo enclausurado sem as surpresas do fluxo
27
Um dos jornalistas que comentavam o lançamento do primeiro volume de suas Obras Reunidas, num sinal de
enfado, denotando desconhecimento da ironia do poeta.
28
COELHO, Teixeira. O que é Utopia. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Primeiros passos, n.12). p.7.
29
MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia & Utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras,
2007. (Coleção ensaios transversais, n. 35). p. 32.
28
da vida, pelo menos se pensa na Utopia enquanto consolo. Mas ao contrário do dicionário
Aurélio, em que a heterotopia lida apenas com “um deslocamento físico diferente do normal”,
em Espaços de Esperança, Harvey a entende como
Espaço de ordenação fluída [...] que organiza uma parcela do mundo social
de uma maneira distinta do ambiente que a circunda. Essa ordenação fluida
marca esses espaços como Outro e lhes permite serem considerados um
exemplo de maneiras alternativas de fazer as coisas [...]. Logo, a heterotopia
revela que o processo de ordenação social é justamente processo, em vez de
coisas
30
.
A ideia de Utopia, portanto não se apoia exclusivamente em um espaço delimitado,
e sim, muito mais em relações interpessoais, que a questão espacial, ainda que não tópica,
no sentido demarcado no mapa, como gostaria de sonhar Wilde, tem sido associada aos
espaços enquanto ocupação e possibilidades de convívio.
Para um período histórico em que a simples menção ou desejo utópico é, , uma
ingenuidade tola, ou por outro lado, um desejo mal encoberto sobre a dominação alheia, após
tantos projetos utópicos de linhagem perfeccionista e ditatorial, tantas tentativas anteriores de
projeção de desejos ou ambições de cunho ideal, tem sido imediatamente rechaçado. Mas o
desejo utópico é inerente ao ser socializado, porque, por mais „alienado‟ que seja, sempre irá
provocar críticas e observações, e nesse momento, uma contrapartida estará sendo criada,
como contraponto às críticas e objeções apontadas.
Por outro lado, abandonar qualquer forma de pensamento utópico é abdicar de
tentar nova inserção, tentar qualquer forma de perturbação, deixando os equívocos ou
apropriações errôneas sobre as formas de convívio nas garras dos moralismos dos
conservadores - tanto da variedade neoliberal como da religiosa”
31
. Quanto aos
autodenominados democratas de vertente relativista, vêem numa neutralidade quase
indiferente, uma forma „blasé‟ ou „cool‟ de ser moderno, mas segundo Harvey, “o problema é
que [...] sem uma visão de Utopia, não como definir para que porto poderíamos querer
rumar”
32
.
Pensar a utopia assim, não é ser delirante e/ou atoleimado, mas é parte de uma
disposição inquisitiva frente ao meio e às relações humanas. Pensar utopicamente rompe
barreiras simplistas e acovardadas do cotidiano, quando, mesmo que partindo de fatores
30
HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Loyola, 2004. p. 241-2
31
HARVEY. idem, p. 248.
32
HARVEY, idem, p. 248
29
subjetivos num primeiro momento, segue se nutrindo “dos fatores objetivos produzidos pela
tendência social da época”
33
e mantendo um olhar crítico frente as contingências cotidianas.
Piva manterá essa postura alerta e crítica na percepção de inimigos bem definidos,
aos quais não pretende fazer acordos ou entrar em tréguas. Os inimigos serão aqueles que
pretendem sempre circunscrever a bela ilha de Utopia, perdida em um mar de abandono e
sonho alheio. O inimigo é o que força às colheradas, „verdades rumo à felicidade coletiva‟,
seja de direita ou de esquerda. O inimigo é o tirano que se esconde atrás de uma história de
felicidade eterna - geral e obrigatória: seja o céu dos cristãos (como tantos us-castos de
outras religiões), seja o mercado-livre de Adam Smith, seja o trabalho-para-todos dos
socialistas. Arrigucci comenta: “Ele é combativo o tempo todo. Nunca está em paz com nada,
nem com ele mesmo”
34
e Piva acrescenta: O dia em que eu não estiver ao lado dos vencidos
irei me perguntar: Onde foi que eu errei?”
35
. Seu permanente combate contra as “Ordens” se
estilhaça em muitas direções, sem que um sectarismo lhe isole os movimentos e interesses,
mas ao contrário, uma vez que, como bem diz, se faz cercar por aqueles que sejam sedentos,
como ele. E essa arma utópica que cavalga seus versos, ora mira a cidade, ora o corpo, ora a
moral, mas sempre, se serve da poesia, seguindo o que diz ser seu lema:todas as licenças em
arte” do poema à performance.
No bom documentário dirigido por Valesca Dios, Assombração Urbana com
Roberto Piva, ele tem a oportunidade de esclarecer várias escolhas de seu trabalho, algumas
vezes com viés teatral, mas facilmente comprováveis na obra que retorna a circular após
longos anos de ausência no mercado, pois suas edições se esgotavam antes de seis meses de
publicadas. Talvez possamos comprovar o que afirma com ênfase, citando Octavio Paz, que
poesia é sangue”. E aos saudáveis remanescentes de obras esquizofrênicas, rachadas entre o
fazer e o viver, aqueles que nunca ousaram, preservando-se pelas glórias de uma ousadia bem
dosada, sensata e comedida, Piva acusou: acredito em poeta experimental que tenha vida
experimental”, ou seja, “aquele que não tem medo de beber, de tomar alucinógeno, de amar
tudo isso. As pessoas morrem de medo”.
Ecos de outras declarações perturbadoras também ficaram registrados no vídeo
citado, como o verso: Fui poeta na impossibilidade absoluta de conformar-me”. Afirmação
que ricocheteia na herança beat, mas também nas nossas próprias desgraças opressivas e
33
COELHO, Marcelo. Solidão e êxtase. In Folha de S. Paulo, Mais! de 22 de março de 1998.
www.nankin.com.br/imprensa/Materias_jornais/solidao_extase.htm, acessado em dezembro de 2007.
34
In: DIOS, Valesca Canabarro. Assombração Urbana com Roberto Piva. Documentário em DVD. São Paulo:
Produção de Cultura Marcas/ DocTV, 2004.
35
Idem, ibdem.
30
opressoras, de uma sociedade que, mesmo quando não está vivendo sob regimes ditatoriais,
deixa-se convencer por leis ilegítimas. A obra de Piva pretende desnudar aquelas ao menos,
que mira sua integridade e direito de ser e o não querer ser, e nossa tarefa será tentar
confirmar essa intenção. Piva escolhe sua mira e seus alvos, e reafirma sua ação por ter
decidido não se condenar à contemplação do que seria, para ele, a morte do espírito.
Piva foi sociólogo além de poeta, e conhecia o perigo por onde transitava: “Minha
poesia tem dinamite - abre caminho sozinha”. Embora longe da poesia militante, como disse
Pécora no prefácio ao primeiro volume de sua obra reunida: “o que se delineia é um campo de
batalha e não uma queixa impotente e desenganada”
36
.
Interessante observar a anuência de seus comentadores quanto a esse
comprometimento entre vida e obra. No documentário mencionado, um certo grupo chamado
Grupo d’Collage, formado por estudiosos de poesia, livreiros e admiradores da obra de Piva,
surge um comentário interessante sobre a percepção de que “a poesia do Piva tem pathos - ela
não é uma experiência de linguagem”, diz um de seus integrantes, “mas é uma experiência
emocional, uma experiência existencial [...]”
Vida e obra poética passam a fazer parte de uma mesma visão e ação políticas.
Fala-se da vida na poesia, e vive-se poesia. Quando cobrado por sua produção bissexta, Piva
alega que é preciso viver. Viver é mais importante do que a poesia, e ela (fazer poesia), toma
tempo do viver. Por isso o poeta confessa, não reelaborar seus versos como muitos outros
poetas, que passam meses, às vezes anos, burilando um mesmo poema. Piva diz: “não
reescrevo poesia, porque preciso viver. Não posso perder muito tempo com a poesia. As
poesias são como esculturas - objetos de arte”
37
. Por isso as leituras de seus versos pairam no
ar, em meio às mesas de um bar, no meio de garrafas de bebidas, no meio de gente que ouve,
às vezes escuta, mas são jogadas por aí, permanecendo no espaço, quiçá no tempo.
Vida e obra poéticas também fazem parte das discussões de Jacques Rancière
quando discute os “atos estéticos”. Tais atos ensejam novos modos de sentir, induzindo outras
formas de subjetividade política. E nos lembra que as teorias e experiências vanguardistas de
fusão da arte com a vida nessa era pós-qualquer-lei, condena a pretensão vanguardista ao
altar da autoimolação devido à contaminação da disciplina, ou à suprema predisposição à
leniência, confundida com democracia. De qualquer modo, várias formas de libertação foram
tentadas desde o final do século XIX até os anos 30 do século XX, período em que as
vanguardas propunham utopias estéticas e éticas.
36
PÉCORA, Álcir. In: Um estrangeiro na legião. Obras Reunidas, Volume I. São Paulo: Globo, 2005. p. 11.
37
DIOS. op. cit.
31
Formas ousadas de criar, se vestir, dançar, seduzir, amar e se expor publicamente,
mas que, a despeito de toda ousadia, se deixavam capturar pela tão confiável, íntima e basilar
disciplina. É fácil reconhecer a contradição do ser-agir dos vanguardistas, quando estão tão
próximos do século XIX, o século da disciplina, como o batizou Foucault.
E esse processo é iniciado com a implantação do cristianismo nos séculos III ao
VIII com o triunfo de Carlos Magno. Longos e duros séculos de imposição da disciplina como
salvadora da humanidade se seguiram. Perseguições às deusas da fertilidade, orgias
propiciatórias, colheitas sob ameaças, crenças sob ameaças, corpos sob ameaças. Terror,
punição, penúria, fome e castigos disciplinares, que a barbárie pagã precisava ser vencida.
Além do mais, desde o início do período cristão, a disciplina deveria sobrepor-se à aparente
dissolução social do Império Romano em decadência política, em que o vigor e a austeridade
não eram mais valorizados como nos tempos da República, amolecendo seus exércitos,
crentes religiosos, às fronteiras do império.
Por outro lado, no resto do território europeu, o paganismo com seus rituais
liberadores de forças anímicas, obscuras poções e danças orgiásticas, expandiam poderes da
natureza selvagem em nome do bem fluir das colheitas e outras tantas interpenetrações
telúricas e cósmicas, que deveria aparentar total caos - descontrolado e assustador. Frente aos
rituais „bárbaros‟, a supremacia da ratio e do logos grego encravados na Cultura Ocidental,
conduziria a um inevitável confronto.
Com a sujeição dos povos europeus e consequente imposição da lógica grega,
muitos séculos de disciplinarização foram precisos, de tal sorte que, lentamente, nova
mentalidade se construiu, e, não haveria de ser com algumas ousadias estéticas, com alguns
gritos vanguardistas, que o grande arcabouço delimitador ruiria! Foi preciso mais algumas
décadas de esforços, além dos poderosos reforços desregradores advindos de pensadores
audazes, que ajudaram a minar resistências, com suas pérolas heréticas, fortalecendo os
grupos que se rebelavam. Como diria Stuart Hall
38
, pensamentos insidiosos iam amolecendo
as fortalezas da autorrepressão e também do arrogante autocentralismo, num movimento a que
chamou “descentramento”. Esse movimento se inicia em meados do século XIX e segue
buscando o fora e o dentro, o moderno e o pós-moderno, o Eu e o Outro, desde então.
Mas antes que a busca clara e explícita pelo rompimento se manifestasse, foi
preciso que fôssemos humilhados em nossa condição de “filhos de Deus”, herdeiros de todo o
resto da criação planetária. Darwin comprovará cientificamente nossa “miquice”, isto é, nossa
38
HALL, Stuart. Des-centrando o sujeito. In: A questão da Identidade Cultural. Campinas: Unicamp, 1995. p.
27- 36.
32
condição primata, parente direto de um mundo muito mais simiesco do que sonhava nosso
edulcorado e dialógico criacionismo.
Também Freud nos causou uma pedagógica humilhação, quando confirmou que, a
despeito de nossos esforços para nos assenhorearmos de nossas vontades e convicções, como
nos ensinaram Descartes e Kant com tanto zelo e riqueza de detalhes, jamais teríamos poder
sobre todos os nossos pensamentos e desejos. Seríamos eternamente, reféns dos (quase)
inexpugnáveis porões do inconsciente indomável.
Ainda vale lembrar outra fragilidade do arcabouço moderno, pela evidência
demonstrada por Marx, lembrando-nos que somos delimitados pelo mundo a nossa volta,
tanto em termos de período histórico, quanto de condições de vivência, ou sobrevivência, isto
é, ambiência física, com seu equilíbrio ou não, das condições ecológicas, sintetizada em sua
máxima: “somos indivíduos hitóricos”. E claro ainda, assinalando vantagens e desvantagens
da classe social, desmontando o castelo de cartas do mérito, invadindo e desautorizando a
seara exótica do cientificismo do século XIX, da sorte, isto é, o privilégio de nascer-se rico,
negando no roldão, a escolha divina, quando se assiste a sorte pousar sobre alguns canalhas.
Seguindo Stuart Hall ainda, poderíamos somar a questão da linguagem, referindo-
se ao estudo de Saussure, mas na verdade, é mais um desdobramento da colocação marxiana,
uma vez que linguagem está embutida no período histórico e nas condições sociais do
indivíduo, ainda que seja permeável, evidentemente, como viria esclarecer Bakhtin.
Assim, as vanguardas, filhas ingratas do Iluminismo, a despeito de toda sua crítica
e espírito cruzado, dobraram-se à disciplina, íntima e familiar. Poderia ser outra disciplina,
mas acabava se dobrando a uma regra soberana, altaneira, arrogante como um general fugido
da caserna, que não consegue, apesar da dissidência, jogar fora suas medalhas de bravura,
lealdade e disciplina.
Rancière também se dá conta que, após as vanguardas “paramilitares” e o
esteticismo situacionista
39
, onde o verdadeiro terreno, decepcionado, dos confrontos da
história, deveria focar no terreno estético, caiu em languidez nostálgica. Jean-François
Lyotard demonstrou esse luto político pela via da estética crítica. Mas não se trata de resgatar
a ação estética como outro trajeto utópico-político, e sim como efetividade do pensamento,
39
Movimento liderado por Guy Debord tornou-se conhecido quando eclode a chamada “revolução de 68”,
propondo intervenções pontuais nas cidades contra as formas de controle e disciplina, tanto sociais, quanto
contra os lemas e regras do consumo capitalista. O situacionismo envolveu desde artistas plásticos, urbanistas,
às mais variadas áreas do pensamento e ação poticos. Suas intervenções estético-anarquistas acabaram
produzindo “invasões” culturais como os happenings do qual foram uma das influências mais evidentes,
dando novo sentido à antiga “Ação Direta” do anarquismo italiano de Mallatesta e até do brasileiro Jo
Oiticica, desde o século XIX ao início do XX.
33
como pensabilidade das relações e fazeres, e acima de tudo, suas possibilidades reais de
transformação. Produto do conceito-balaio de Modernidade em que se amontoou de Cézanne
a Duchamp, passando por Descartes, Freud, arrastando ao holocausto na Europa, a arte
segue propugnando ões políticas, ainda quando vista como democrática, isto é, quando não
propõe explicitamente, quando não induz, apenas soma. Com Rancière acertamos a ideia de
que, sendo a arte (e seu fazer) restrita a ela mesma, sua intervenção e interferência também,
possui essa mesma extensão, ou seja curta e pontual. Ainda que pleiteando verdades em
seus atos de arte-coragem, muitas “invasões” roubaram sua “alma pura”. Não mais pureza
nela, já que virou mercadoria e possibilidade de novas sobredeterminações disciplinares.
Arte e política sempre trouxeram conflitos de compreensão. Há os que supõem
politizar a arte para trabalhá-la panfletariamente, como os socialistas e comunistas, com o
realismo socialista, mas há os que procuram estetizar a política, como fizeram os fascistas. Na
politização da arte, ela deve ocupar o lugar da religião, tornando-se a-histórica, como uma
verdade transcendente. Quanto à estetização da política, Luiz Costa Lima comenta: A
violentação das massas forçadas ao culto de um ditador corresponde à violentação que sofre a
arte forçada à produção de valores culturais”
40
. Estetiza-se a política quando se pretende
conceder às massas sua expressão, mas não seus direitos. Assim, o projeto burguês de se
afastar do cotidiano na busca da perfeição da arte (arte pela arte), ou o projeto comunista de
enlevar as massas, ou o projeto fascista de enlevar a polis, são formas diversas de propor
leituras políticas sobre a arte e a sociedade, mesmo quando negam haver eleições políticas na
produção da obra. Estando inseridos em um projeto coletivo e comunitário, sempre haverá a
exposição de sua experiência pessoal, consciente ou não, e advogar pela „neutralidade‟ da
arte, só denunciará seu desejo por escamotear orientações políticas, já que, como diz Costa, “a
oposição o é entre politização ou não-politização, mas entre modalidades de politização”
41
.
A neutralidade não significa ausência de politização da obra de arte, apenas conivência,
indiferença ou manipulação. O risco não está em produzir arte politicamente, uma vez que
isto ocorrerá fatalmente, mas sim, ter a intenção de construir produtos políticos. Nietzsche
afirmou que quanto mais inconsciente, melhor: Para que haja a arte, para que haja uma ão
estética é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez”
42
.
40
LIMA, Luiz Costa. Benjamin: Politização ou Estetização. In Revista de teatro, crítica e estética O Percevejo,
n.6, ano 6, Rio de Janeiro: Uni-Rio, 1998. p. 33.
41
Idem, p.34. Grifo nosso.
42
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos: ou como filosofar com o martelo. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000. p. 70.
34
A embriaguez foi ingrediente fundamental para a criação de grandes obras e de
temerários poetas. A objetividade eficiente da mercadoria precisou afastar engolidores de
dores como Lautréamont, um plagiador confesso. O grande e perturbado, responsável por
saltos tão vis quanto profundos, mobilizou um grande exército que, como a flauta mágica do
flautista de Hamelin, arrastou almas para abismos do delírio, como Huysmans (o abissal
perfumado, mas abissal), antes do Surrealismo (que lhe paga tributos), fazendo rodas de
loucos apaixonados por sua coragem em transmutar máscaras sociais em vísceras.
Octávio Paz, Georges Bataille, André Breton, Antonin Artaud, Jean Cocteau, Jean
Genet pararam sobre seu horror: zoofilia, pedofilia, depravação e subversão. Seu personagem,
sobreposto ao seu alterego, jogam com o mal do mundo. Meros jogos literários? Isidore
Ducasse se mata aos vinte e quatro anos de overdose (metileno, anfetamina e plantas
alucinógenas misturadas a vinho). Quanto de tudo o que Maldoror escreve é real, quanto é
ficção? A morte daria aval à verdade? Então Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morris também
seriam mais militantes que hedonistas? Mas então, diários de suicidas e os blogs em geral
(salvo exceções), importariam para além da autocomiseração?
Maldoror/Lautréamont/Ducasse é escritor, e dos geniais. Verdade, vida, horror de
suas experiências, seja como vítima, e foi muito, seja como predador, quem de duvidar? E
quanto? Autoimagem é algo poderoso. Mas afinal, quanto importa? O fato é que mergulhou
em sua dor, tragédia pessoal, horror e solidão, com sua arma mais poderosa: a literatura.
Passou para a história como o maldito dos malditos. Em seus escritos, muito de Flores do
Mal, para além do satanismo magoado de Baudelaire, Maldoror é perverso, sádico, sórdido.
Ruy Camara alerta que “não há como passar por estes seis cantos, poesia em prosa,
banhados em “Flores do Mal” sem ser arremessado ao mais negro do ser humano”
43
.
Minha poesia consistirá, em atacar, por todos os meios, ao homem, esta
besta selvagem, e ao Criador, que não devia ter gerado semelhante criatura.
Recebi a vida como uma ferida e não permiti que o suicídio curasse a
cicatriz (Canto Primeiro).
O uso de hipérboles, de uma escatologia perversa, do escandaloso, do elogio ao
horror e ao crime, todos os seus ataques à cômoda indiferença da tragédia humana foram
jogados à luz do dia, no meio da classe média francesa do século XIX, onde a excelência de
sua escrita não bastou para aplacar a fúria levantada. Ducasse se apropria da língua francesa,
43
Ruy Camara, autor do prólogo para a Edição espanhola de Los Cantos de Maldoror. Disponível em:
www.ruycamara.com.br/antigo/lautreamont/critica_mundial/Os_Cantos_de_Maldoror_Claudio_Willer.htm.
Acessado em janeiro de 2008.
35
ousando misturá-la com grossas pitadas do espanhol, provocando novidades impensadas na
época (comentário feito por Ruy Camara e Cláudio Willer, para as edições espanhola e
brasileira, respectivamente).
Chamado de louco, esquizofrênico, devasso, depravado e outros horrores
assustadores para a altiva civilização que se compraz com os discursos evolucionistas, sua
obra serviu para realçar a crueldade humana e atacar o homem, “essa besta fera”, reforçando a
perversidade como padrão, delatando a blasfêmia do próprio sagrado, revelando a ferocidade
e o maligno, onde diziam estar elevado. Piva, embebido pela beleza e horror de Lautréamont,
escreve:
POEMA SUBMERSO
44
Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava
E via tuas meninas destruídas como rãs por
uma centena de pássaros fortemente de passagem
Ninguém chorava no teu reino, Maldoror, onde o
infinito pousava na palma da minha mão vazia
E meninos prodígios eram seviciados pela alma
ausente do Criador.
[...]
Em delírio e torpor, a imaginação abissal e delirante do Conde de Lautréamont irá
dar as bases do futuro irracionalismo surrealista, propondo no jogo literário, o jogo do
maldito. Piva percebe o grande ultraje à construção dos papéis sociais, tão duramente
elaborados pela direita, mas também pela autodenominada esquerda, que se apoiam em
projeto platônico maniqueísta de bons e maus, de controles sobre a vontade nefasta de nossos
baixos instintos e no vídeo Assombração Urbana, delata:
[...] os papéis freudianos, marxistas e positivistas definem e delimitam
indivíduos. Eles se apresentam como donas de casa, homossexuais, se
assumem como gays, como dionisíacos, essas „coisas psicanalíticas‟, que
foram inventadas por uma reunião de gerentes. Por que acham que acabaram
com Lautréamont?
De malditos Piva se serviu de muitos outros, como Baudelaire que, como
Lautréamont, mergulhou, além do óbvio e reconhecido satanismo, mas também em
44
De Paranoia, In: Um estrangeiro na Legião. op. cit., p. 35.
36
impensáveis pares contraditórios que, com certeza, também influenciaram Lautréamont, bem
como, claro, Piva, como atestamos no poema do mestre.
O HEATONTIMOROUMENOS
45
Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz!
Confrontos de dentro para fora, confrontos de fora para dentro, confrontos internos,
com a anulação da calmaria, travo imposto pelo mundo e o por mero jogo estético, dores
não autoinfligidas, mas nem por isso evitadas. Ritmo e força ritualística - e quem ousaria
interromper tal conjuro presentificando o mal e a força, a vítima e a vingança, „a vítima e o
algoz‟ - e o coração encolhe assustado frente a enfrentamento de si mesmo, no mais fundo e
baixo mal de seus sentidos.
O ritmo do „Poema Submerso‟ salta tão marcado, que associação a seu swing, já no
fundo da memória, trazido por tantos versos do Fleurs du Mal, o fortemente „suingados‟
entre carroças lascivas e dementes, caindo, literalmente, pela página, no imenso abismo, onde
encontra, como diz, “todas as paixões / convulsões...” e o poeta que se escapa “rumo à pálida
estrela”.
Piva se mistura e se solidariza com o poeta, mas vive outro Sena, na verdade, vive
um Tietê bem menos amoroso, mais rasgado, morto em seus cheiros, cansaços próprios de
usar o agudo olhar como faca sobre ratos da realidade. Ele perambula por uma São Paulo que
se mostra mambembe, alucinada, chic por entre andrajos e escórias, e também caipira,
mendiga, arrogante, suja, bêbada de abandono e excitação, e muito mais, num giro contínuo,
simultâneo, evanescente, imperativo. Mas essa flânerie difere da de Baudelaire, que sua
pobre cidade se rasgando a velocidade das carroças esfomeadas pelo capital, enquanto a
metrópole de Piva, aceita o doloroso veredicto de Lévi-Strauss, quando afirma, em Tristes
Trópicos, que as enormes cidades do novo mundo, entram em decadência sem jamais terem
atingido seu esplendor. E o pior, é que ele estava olhando, exatamente para São Paulo, quando
fez esta afirmação.
45
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (Coleção Poesia de todos os
tempos). p. 309.
37
A obra deste poeta lutará dentro e fora desse arranjo de uma realidade informe, de
um circo muito maior: o do capital. Piva, lúcido, arca e o verga, usando o mesmo espaço
para propor outras vivências. Grávido de vanguardas, de erotismo, de deboche e de delírio,
proporá seus versos.
O certo é que sua força poética, estética e política, somada às vanguardas que
traziam consigo outro olhar possível sobre o convívio humano, se misturavam pela força das
distâncias e realidades locais. Antropofagia ou não, as admirações sobre os jogos construtivos
de tantas formas diversas alteraram, forçosamente, seu olhar. Num movimento inverso ao
proposto por Adorno, tido e havido por elitista, Piva propõe um “rearranjo da distinção
popular-erudito, problematizada no modernismo e mais ou menos diluída no pós-
modernismo”
46
, num jogo utópico de união entre os chamados altos e baixos, apenas pelos
prazeres que cada um oferece, mistura tempos, mitologias e sabores, num:
projeto de valor radical, de superação da vida e da arte nos limites em que se
formulam e se ajuízam [...] Um ato de violência contra a natureza inercial de
práticas (e) hábitos adquiridos e aplaudidos, em favor do sublime, do
aterrador e do desconhecido.
47
A ideia que surge a partir dos ataques promovidos pela obra de Piva, fica menos
para um projeto político, e mais para um antiprojeto, ou como diz seu prefaciador, um contra-
programa político, numa “aposta nietzschiana na pura potência da arte. Nela se concentra a
transformação possível do homem livre”
48
. Essa ideia que soma várias interfaces, e não apenas
as nietzschianas como sugerido por Pécora, incorpora parcialmente, outras vertentes como a
ideia utópica ainda que (para lá de) elitista, na verdade aristocrática, de Schiller:
É mediante a cultura ou educação estética, quando se encontra no “estado de
jogo” contemplando o belo, que o homem poderá desenvolver-se
plenamente, tanto em suas capacidades intelectuais quanto sensíveis
49
.
Essa utopia de Schiller envolve o desenvolvimento da civilização pelo refinamento
do espírito, via artes, para além da educação socializada, que homogeniza e empobrece o
espírito humano, ainda que lhe forneça as ferramentas básicas inevitáveis. Há que se dar à
maioria, o mesmo trampolim inicial, mas é um jogo perigoso entre um embotamento
46
Alcir Pécora no prefácio ao segundo volume das Obras Reunidas: Mala na mão & asas pretas. São Paulo:
Globo, 2006. p. 16.
47
Idem, p. 17.
48
Idem, p. 18.
49
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 16.
38
conformado, e a chance de se iniciar a questionar seu próprio berço, que é quando
começamos, não só a criar, mas de fato, interferir.
Para Schiller, embora elitista, a ideia se apoia na percepção de que a educação
apenas propõe uma igualdade de condições para o indivíduo
50
que é fundamental, claro, mas
não o tira da mediocridade. Apenas a arte, segundo ele, poderá fornecer instrumentos
argumentativos, espirituais que de fato possam alavancar sua potência a outro nível de
cidadania. Pela arte, produz-se um real enobrecimento do espírito proporcionando ao
indivíduo, a capacidade do jogo, que é quando ele se torna pleno, potente e livre, uma vez
que, no „jogo da arte‟, a perturbação do espírito refina e alerta suas faculdades, ensejando não
apenas obras de arte, mas o aperfeiçoamento da realidade em si mesma.
1.2. BIOGRAFIA: Armas e Combates
Contra as sublimações antagônicas trazidas nas caravelas.
Manifesto Antropófago
A percepção de que o viés combatente de Roberto Piva carregue carga romântica
procede. Porém seu olhar ácido, lúcido e acurado, camufla e confunde leitores apressados.
Seu Romantismo ficou sendo associado ao de Primeira Linha, aquele arrebatado e
inconsequente, que tanto perturbou governantes de tempos em tempos desde o século XVIII.
Seu notório romantismo irá, no entanto, enveredar por uma linha libertária, anárquica e
iconoclasta, numa cruzada ao outro romantismo, propondo confrontos oximóricos, uma vez
que traz à arena, ideias monarquistas, associando-as a um contra-heroísmo, em um mergulho
pecaminoso das paixões.
Apesar de não haver espaço para um melhor estudo sobre a ideia romântica, é
mister frisar duas grandes facetas que costumam ser entendidas por romantismo, quando na
verdade, uma delas, diz mais respeito a um maneirismo ou aliciamento estetizado.
O romantismo reconfigurado
51
durante os estertores da Monarquia Absolutista, às
vésperas da Revolução Francesa, alterará a maneira como o povo lidará com questões
abstratas como o nacionalismo, até então, associadas à superioridade natural e divina da
nobreza, ao despojamento aristocrático e aos martírios religiosos. Quando Goethe se
surpreende pela onda de suicídios que seu Werther havia suscitado, vem ablico para
50
Ele nem está pensando ainda em educação pública, claro, pois essa ideia será defendida com a Revolução
Francesa.
51
Respeitando uma linha de pesquisa que considera o surgimento do romantismo, ainda que de outra natureza,
durante o amor cortês, ao redor do século XII.
39
reafirmar a realidade da ficção de sua obra, mas, neste momento, querendo dizer: “não se
matem, é só literatura”, ele já está impregnado por sua obra mestra: Fausto, em que a
destruição dará passagem à modernidade imperativa. O desvio da devoção está sendo
deslocado, ou pelo menos, de uma entrega cega e servil, para o utilitarismo racionalista que
impulsionará o progresso certo, ao qual, professa-se, é melhor manter-se alinhado.
Como nesse exemplo em que um mesmo autor expõe formas diferentes de se
vivenciar a paixão, essas duas formas românticas que oscilam entre a devoção, cega e
vertiginosa, e a garra utilitarista, otimista e de viés coletivista coexistirão pelos séculos até a
atualidade.
Um romantismo irá atravessar as vanguardas partidárias do entre guerras, a
esquerda tradicional (aquela surgida do pós-1848 que pretende manter traços nos partidos
contemporâneos) e a nova esquerda (que vai se delineando com as vanguardas do começo do
século e se define nos anos sessenta, culminando com o Movimento de „68 até o rock’n roll).
Dentro do próprio movimento do rock’n roll, essa divisão fica clara nos anos setenta entre a
discoteque e o rock progressivo. O primeiro associado à cocaína, ao álcool destilado, ao
mundo GLS, à formação do „mundo fashion‟, coletivista, de controle sobre o corpo em seu
despotismo estético, e de outro lado, os cabeludos maconheiros, do rock progressivo, sujos e
associados a outro braço do romantismo, o suicida. De um lado, o fervor busca mais a
liberdade sobre as virtudes, sejam republicanas, sejam morais. De outro lado, a associação de
grupo comunga aspirações de igualdade sobre direitos de liberdade individuais. Anseios e
paixões, no entanto, que sem a permissão sobre o outro, seu oposto, degradam em tirania, seja
de direita (com a imposição da liberdade), seja de esquerda (com a imposição da igualdade).
Pelas inúmeras manifestações passionais de grupos, tribos e expressões culturais,
as duas formas de envolvimento visceral confundem ações e opiniões até hoje, associando
formas criativas e ações públicas, como parte de projetos políticos e até visões utópicas. Daí
que fonte e produto, criador e criatura, instrumento e arma, inspiração e provocação, tudo se
mescla na pólvora dos mesmos versos.
Recentemente, um antologista incluiu-o entre os grandes poetas brasileiros do
século e, em sua breve referência grafou exatamente suas palavras de ordem mais recorrentes:
acredito em poeta experimental que tenha vida experimental. Não tenho
nenhum patrono no „Posto‟, nem leões-de-chácara e guarda-costas literários
nas redações de jornais e revistas. Nada mais provinciano do que os
clubinhos fechados da poesia brasileira, com seus autores-burocratas
40
tentando restaurar a Ordem e cagando Regras que o futurismo, dadaísmo,
Surrealismo e modernismo já se encarregaram de destruir
52
.
Como foi dito por Cláudio Willer, Piva não se propõe a ser prescritivo, mas
reafirma a crença de que “a poesia é um elemento de redenção”
53
, referindo-se a si mesmo.
Como tantos românticos, beats e outros degenerados aos olhos de Apolo, enquanto metáfora
da ordem e disciplina, a poesia se faz cajado contra os horrores com que se debate.
E ainda assim, buscando o meio que o construiu guerreiro, os meios desse combate
tão persistente, ainda assim, o é uma “sociologia da literatura” que se pretende fazer aqui,
embora se possa dizer da obra de Piva o que afirmou Antonio Candido, que possua:
certas dimensões sociais evidentes, cuja indicação faz parte de qualquer
estudo, histórico ou crítico: referências a lugares, modas, usos;
manifestações de atitudes de grupo ou de classe [...]. Apontá-las é tarefa de
rotina e não basta para definir o caráter sociológico de um estudo
54
.
Seguindo o raciocínio de Candido, o estudo deverá atravessar a relação entre obra e
condicionamento social, seu vínculo com o ambiente, ainda que reconheçamos que “a análise
estética precede considerações de outra ordem”
55
. Mas o fato é que, levando em conta o
elemento social como fator da própria construção artística, estudamos a sociedade na obra,
isto é, num nível analítico, e não ilustrativo, ou usando os fatores sociais para explicar toda a
obra, num sociologismo de “tendência devoradora”, como acusa o mestre
56
. E ainda diz mais:
A crítica atual, por mais interessada que esteja nos aspectos formais, não
pode dispensar nem menosprezar disciplinas independentes como a
sociologia e a história literária sociologicamente orientada, bem como toda a
gama de estudos aplicados à investigação de aspectos sociais das obras -
frequentemente com finalidade não-literária
57
.
Sob as diretrizes do mestre Candido, é que percorremos este caminho pelos sites de
leitores, estudiosos e fãs, na busca do homem, do poeta, dos fragmentos que nem precisarão
se juntar num todo coerente, mas como possibilidades de saídas de fuga, de fundos de
sensibilidade, de tal modo que, sobre ele, reverberem suas vivências e sua poesia.
52
PINTO, José Nêumanne (seleção). Os Cem melhores poetas brasileiros do Século. 2 ed. São Paulo: Geração,
2004. p. 265.
53
DIOS. Assombração Urbana... op. cit.
54
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8. ed. São Paulo: Publifolha, 2000. (Grandes nomes do
pensamento brasileiro). p. 7.
55
Idem, p.5.
56
Idem. p. 9.
57
Idem, p. 10.
41
E dito isto, pode-se assumir um certo romantismo no poeta, mas não de fácil
configuração. É certo que sua inclinação e luta, pendem para a liberdade irredutível, mas não
obviedade na postura. Em sua investidura para a direita, a ironia se faz presente, pois é de
coletividade que prospera. Ele não se impõe, ao contrário, se esquiva e recua frente às tiranias
das repressões ético-morais todas, porém, seus versos alvejam os voos dos animais de poder.
Os saltos dos grandes felinos predadores, potentes, livres e belíssimos em seus movimentos,
que o poeta não apenas sonha com uma Cocanha
58
sua e de seus pares, mas uma atualização
de Pindorama
59
... andrógina, erotizada, premente em arte e „artes‟, folguedos de expansão de
espírito, em um matriarcado mágico e andrógino no coração de uma polis indolente. Mas para
isso, troveja dardos.
Piva é ácido, afiado, rápido, passional, enviesado! Muitos jogos direcionam sua
linguagem que nunca se afasta muito de seu corpo... Piva não é poeta burocrático, como ele
mesmo critica a poesia que é feita por ourives. Ele se recusa a associar arte com disciplina,
como um bater-ponto no fazer aurático da poesia. Não pensa nas conclusões preciosas, mas no
processo febril, quando a vida ousa se suspender em poesia, impactando com tal força, que os
versos saem nos soluços e murros de um cataclisma-momento. Ele se solta em erotismo
libertário, no meio das palavras, como enxurrada, misturando seus respiros aos do poema. A
febre liberta o corpo e o desajusta dos controles - e o pós-poema é a ressaca. Por isso, sua
poesia busca o risco, o sexo libertário, o não controle de movimentos, de corpos, de imagens,
de sentidos, num fluxo onde se misturam vida e pecado. Por isso faz sentido seu poema mais
conhecido e sempre citado:
A PIEDADE
60
Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
58
Trata do mito da terra da fartura eterna, por oposição às condições famélicas do povo europeu no período
medieval, onde patos e porcos assados voavam à disposição de todos, e onde rios de leite e vinho corriam
sem cessar.
59
Esse é outro mito de fatura, abundância e liberdade. Reino fictício, Pindorama é um matriarcado idealizado,
surgido dos povos originais brasileiros, sobre o qual Oswald pros resgate e contraponto crítico contra o
mundo do trabalho industrializado.
60
De Paranoia, In: Um estrangeiro na legião. op.cit. p. 41.
42
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas: por que navio boia? Por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos
Essas leituras que o poeta ousa fazer, aos vinte e poucos anos quando compreende
as dicotomias que atravessam um momento dilacerante entre uma sociedade que se rasga para
abandonar raízes rurais tão pudicas, e atingir por um esforço violento sua ganância poderosa.
Eis que o poeta não se prostra ou se horroriza, mas afia suas armas e aponta seus inimigos: as
instituições que, Foucault, Debord e tantos outros, irão atacar sob o mesmo argumento. É a
contra-cultura avant-la-lettre. Tal acuidade com os tempos, com os focos, torna a obra de
Roberto Piva, além de corajosa e lúcida, muito atual, posto que a repressão não se faz na rua,
não se faz no camburão, mas torna-se insidiosa e sutil, e por isso o poeta jamais depositou
armas.
Neste poema se evidencia uma de suas armas mais afiadas usada em seu fazer
poético que é a carnavalização, quando fa uso irreverente da sátira e da paródia na
dessacralização das imagens pela via da subversão de hierarquias convencionais, provocando
com versos como “abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros!” dirá.
Aseu último livro, lançado em março de 2008, sua obra permanece a postos,
ainda que em meio a prazeres, amigos, lembranças e homenagens. Piva perseguiu em febre
pela libertação do corpo e do espaço, e para isto, usou a poesia para escorregar por entre as
algemas.
43
Esse poema fala de um de seus alvos mais certeiros: a moral religiosa. Contra ela
se faz cruel e corrosivo, contra ela vale o choque. Bataille explica como o Bem é passivo e
subordinado à razão, enquanto o Mal é ativo, e nasce da energia. Ora, a energia é a única
vida, pois ela é o corpo, enquanto a Razão é o limite ou a circunferência que circunda a
energia. Assim, é fácil perceber e assumir que “a energia é Delícia eterna”
61
. E, por valores
assim preciosos - vida e prazer valem o confronto. Reconhecendo e reafirmando limites e
diferenças, enfrenta oposições.
Mas ele não está só, nem está olhando apenas o momento histórico e político a seu
redor - ele se embebeda de muitas palavras, refletindo tantos outros, como o Poema em
Linha Reta” de Álvaro de Campos. E não é de se estranhar, que Piva engoliu e bebeu sua
obra por inteiro, devolvendo às cuspidelas Álvaro de Campos, por toda sua própria poesia.
POEMA EM LINHA RETA
62
[...] Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? [...]
Álvaro de Campos
Enquanto Álvaro de Campos rebaixa seu castelo de cartas egóico, revelando uma
humanidade frágil, própria, veraz, ele o faz o humildemente, mas ácido, irônico, final.
Também Piva é ácido e irônico, mas ele está desmontando o castelo de cartas cristão, contra o
qual dedicará a vida a combater. No vídeo Assombração Urbana ele acusa: Desenvolvi o
Mal de Parkinson como o papa (referindo-se ao então papa João Paulo II) de tanto ter de
conviver com cristãos!”. E ainda reunimos William Blake a esse mesmo debate, que em
sua fúria contra o prazer posto a parte do prazer celestial, propôs a orgia em solo ascendente,
nada decadente. Somando ao mais retumbante de todos os combatentes: “O cristianismo é
61
BATAILLE, Georges. A Literatura e o Mal. Porto Alegre: LP&M, 1989. p. 80-1
62
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, s/d. (Coleção Poesia, volume II). p. 312.
44
uma metafísica de carrasco”
63
e lá vamos nós, nos enredando em leituras, memórias e
labirintos pivianos.
Outro tema recorrente entre seus alvos de combate, certamente, será a Cidade
enquanto projeto e instituição, mas orientará seu foco para a cidade mais potente e absorvente
que está ao seu redor, e se impõe à sua vida e concidadãos, a metrópole São Paulo. A mega
cidade interfere no visual, no estado de espírito, na conformação interrelacional e na
ampliação da criminalidade, favorecendo dores e desequilíbrios de forma generalizada. Esse
alvo está presente em sua obra, mas também sempre é mencionado em palestras e entrevistas.
Em São Paulo no final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, nem tudo era
“anos dourados” ou “arte engajada” do pré-golpe. E será pela linguagem poética que esse
atravessamento por corpos, espaços e interditos se fará político, se fará ético, se fará erótico,
se fará obsceno, se proporá libertador.
A cidade seguirá sendo o palco de seus grandes confrontos, pelo menos por mais
da metade de sua obra poética. Sobre esse grande tabuleiro, assiste-se, promove-se, sofre-se, a
grande comédia humana do mundo contemporâneo. Paula Dume e Renata D‟Elia, em
entrevista para a Revista Cronópios
64
, marcam no título a imagem mais evidente da obra e da
persona do poeta, denominando o texto de “Ebulições Pivianas”. Para elas Piva comenta
como as metrópoles tornaram-se necrópoles, dado o aumento de violência e de morte do
próprio projeto original da urbis. Ele lembra que “o homem é o único animal que armazena
seus mortos”. A cidade, com seus lixões, seus presuntos, sua “criminalidade de massa”
65
,
não passa de uma área devastada como uma grande carniça apodrecendo. E é nesse espírito
que, confessa, escreveu Paranoia. Mas desde então, as coisas conseguiram ficar muito piores!
De uma cidade, não aproveitamos as suas sete
ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta
que dá às nossas perguntas.
Ítalo Calvino
A despeito de fonte quase inesgotável de riquezas vivenciais e conhecimento, fica
claro a falência do projeto das cidades. Piva irá usar o horror da cidade degradada para
compor sua crítica e propor outro projeto estético-existencial, olhando para as perdas das
63
NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. op.cit. p. 49.
64
DUME, Paula e D‟ELIA, Renata. Ebulições Pivianas. In: Revista eletrônica Cronópios, 19 de setembro de
2007. Disponível no endereço <http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=2739. Acessado em
dezembro de 2007.
65
Explicando que, em uma sociedade de massa, a criminalidade também é de massa. .
45
condições humanas dessa forma de aglomeração, que deixou de ser um lugar de encontro para
ser um amontoado de corpos que, no fundo, só atrapalham o fluxo da mercadoria.
As pessoas, seus habitantes, que hoje se amontoam pela urbis, são os focos dos
problemas para esse fluxo da mercadoria que, afinal, sem falsas ilusões, são a justificativa
para a manutenção das megaestruturas de organização e circulação da produção. Embora a
produção (industrial) tenha podido ser deslocada, não pode ficar muito afastada das outras
partes do sistema, que ainda dependem das megacidades. O fluxo, primordial para a
finalização do circuito, -se cada vez menos eficiente, devido ao excesso de indivíduos
66
. A
produção ainda não pode dispensar o uso dos contratos sociais com os trabalhadores-
habitantes, e nem os indivíduos-trabalhadores podem viver muito longe dessas deglutidoras
células produtivas. Suas deformidades tornaram-se um desafio à integridade física e psíquica
de seus moradores e, por conseguinte, à eficiência de seu circuito. Diz o poeta:
Estamos assistindo à crise da Economia. o é uma crise econômica, mas
uma crise da Economia. E tudo se liga a uma crise do urbano [...] O ser
urbano não é um centauro
67
, mas um ser sem horizontes
68
.
Personagens construtores da poesia de Piva, além da grande cidade óbvia e
onipresente, pelo menos nas duas primeiras fases, também se mostra onipresente o corpo
como metáfora política, sobre o qual irá se servir constantemente, discutindo uma ética pouco
óbvia.
Num mundo imagético e agitado pelas dispersões da infovia, as leituras se
recortam em meras definições, encurtando e homogeneizando conhecimentos, enquanto a
poesia ainda ousa desafiar conhecimentos, num processo de desaprender para construir
percepções e conhecimentos vívidos, sob a “estratégia da insubmissão
69
. Segundo Moisés, a
poesia tem a ideia de ser uma antipedagogia, uma “aprendizagem de desaprender”, tornado a
ver por outra ótica. Por isso supõe a atualidade poética como um dos últimos bastiões da
rebeldia e subversão, que a rebeldia proposta pela poesia é ontológica e imanente e, a
despeito de indiferenças ou tentativas de confinamento ou bloqueio, o ato mesmo de se criar,
66
HARVEY. Espaços de Esperança. op. cit. p. 155-8.
67
O centauro pode ser pensado neste caso, como a figura mitológica que, meio humano, meio besta, foi
associado ao conflito entre os baixos instintos e a chamada civilização. Por tal riqueza e complexidade, entre a
potência da independência e a violência, um deles (Quíron especificamente), foi considerado o tutor ideal para
a formação e educação de grandes heróis como Aquiles, Jasão e Hércules. Entre a força selvagem e o
conhecimento adquirido pelos riscos de uma liberdade plena, o Centauro, é mbolo potente tanto do instinto
mais poderoso, quanto do domínio de um conhecimento digno de um mestre.
68
WEINTRAUB, Fábio. A poesia paranóica de Roberto Piva. In: Revista Cult. n. 34, ano III, maio de 2000. p. 7.
69
MOISÉS. Poesia & Utopia. op. cit. p. 25.
46
manifesta um ato político. Nega-se a validade do gosto não se discute”, alterando-se para
“pode não se modificar, mas, certamente, se discute”, evocando Bakhtin inclusive
70
.
O fato de a poesia ter sido deslocada do centro das decisões de onde surgiu,
associada à reunião de anciãos e sacerdotes, é justamente por causa de suas muitas formas de
acesso - desde as passionais, às líricas, como também de outros componentes abissais
tenebrosos.
A poesia demanda atenção e olhar fixo - não se submete ao “passar de olhos”, pois
ela se evapora e não se mostra. Para que se mostre, a poesia seduz e tenta persuadir. Por não
ser apenas um peso morto, um jogo estéril do beletrismo, é que se tornou uma ameaça à
ordem ideal. Por isso o poeta tem de ser expulso da República platônica:não por ser inútil ou
incapaz, mas por ser perigoso”
71
.
A poesia é arma de dois gumes, pois exige atenção e entrega de quem lê, do
mesmo modo, exige cumplicidade de quem faz. Antonin Artaud soube descrever o preço que
a poesia cobra de seu criador: “Cada uma de minhas obras, cada um dos planos de mim
mesmo, cada uma das florações glaciais de minha alma interior baba sobre mim”
72
.
Moisés reconhece o afastamento da poesia de uma sociedade dispersa em jogos,
que planeja essa mesma dispersão para favorecer controles e desviar tensões. Seus
administradores desdenham, não apenas o poeta e a poesia, mas também “toda modalidade de
idealização”, nem se dando ao trabalho de expulsá-los, mas permitindo que sobrevivam nos
“interstícios da Aldeia, largados no monturo geral dos mitos inúteis e das excentricidades
obsoletas”
73
. E assim deve ser, uma vez que a poesia exige olhar atento e revisão do ver - do
desaprender - do reinventar - do transformar, e para quem sonha com a Ordem, com a
República, os desdobramentos propostos pela inquietação poética, abre escapes de um
controle que não se admite ceder.
No sistema que aprendeu a controlar, não se espera mais a severidade, a sisudez, a
responsabilidade. Mas ao contrário, se estimula a dispersão, o lazer, o prazer, o circo. As
radicalizações, os jogos de poder emocionantes, foram estetizados ou mercantilizados, de
forma que atualmente, os maiores riscos de vida e as maiores cargas de emoção que ocorrem
nas sociedades, saíram das áreas abissais dos questionamentos e confrontos políticos e
entraram para o campo do entretenimento, alavancando indústrias portentosas e riquíssimas.
70
Refiro-me à análise de discurso executado pelo autor, no intuito de desdobrar gêneros discursivos, expondo
dialogismos, polifonias, cronotopias e ideologias de um texto.
71
MOISÉS, idem, p. 35.
72
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 207.
73
MOISÉS, idem, p. 36.
47
Mas, se a sociedade bem planejada, agora visa e oferece inteligentemente o prazer, para que
serviria a poesia e o poeta? Para Moisés seria “para atemorizar planejadores de sociedades
perfeitas”.
Mas não é tão simples. Também a poesia foi edulcorada, civilizada, sofisticada e
bem educada. Ela é um meio, um instrumento. E pode disfarçar seus componentes explosivos,
como diria Piva: “Minha poesia abre caminho sozinha porque é feita de dinamite”. Ela tem de
ser visceral e real, como diria Bataille. A que José Paulo Paes ecoaria entre as palavras e as
espadas:
WORDSWORDSWORS /
SWORDS
74
Assim, se pensarmos porque Roberto Piva escolheu a poesia num mundo tão
avesso à poesia, podemos lembrar sua própria explicação: Fui poeta pela absoluta
impossibilidade de conformar-me”. E na linha de Moisés aponta a monstruosidade do Homo
Normalis”, aquele que esconde um grande Mal sob um grande Bem, como viu Bataille. E o
poeta debochando, conclui: “O Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia, o resto é
literatura”
75
.
Neste estudo da obra de Roberto Piva o que se busca é aquilo que se espalha por
seus poemas, que grita por liberdade, seja ferozmente, seja gentilmente, mas o o-limite que
extrapola a palavra, a retórica, a performance e se torna risco, abismo, exclusão.
Sua obra, tomada enquanto reflexo e impulso de ação pública, é atravessada por
muitos outros discursos, cruzando tempos históricos e traçados políticos. Ele consegue
dialogar, num mesmo poema, com eras e falas inimagináveis quando analisadas em separado,
mas seu trabalho rompe com maniqueísmos. No poema „Norte/Sul‟, por exemplo, lemos:
NORTE/SUL
76
[...] o leitão blindado dança no ziguezague de Hieronymus Bosch
seu tango de petúnias
[...] corredores apinhados de gerentes de banco
dando o cu para druidas com os paus embrulhados em celofane
[...] Hitler sacudindo seu pau mole para os Capitães de Areia
[...] com seus pássaros exóticos tocando banjo & flauta doce
o garoto sofreu o ataque da ave de rapina chamada Zeus [...]
74
Apud MOISÉS, idem, p. 35.
75
DIOS. Assombração Urbana..., op.cit.
76
De Coxas in: Mala na mão..., op.cit. p. 82.
48
Nesse pequeno trecho, saltamos de um pintor do norte da Europa, que embora
vivendo, historicamente, no período do Renascimento, ainda retrata, vividamente, os horrores
de uma religiosidade medieval, profundamente marcada pelo terror e a carência. E essa
personagem se associa a uma situação de tango, totalmente inverossímil. Relações
impensadas entre sonhos e pesadelos do Norte e do Sul do mundo, onde o norte se impõe,
mas se perde em sonhos confusos de um universo que sequer entende. Petúnia é flor símbolo
da raiva, do rancor, mas também da resistência, enquanto o tango, seu par impensável, é a
dança canalha, em que a escória assume a galhardia obscena de um erotismo explícito.
O poema consegue, não sem ser uma ácida sátira, projetar a imagem da burocracia
encarnada em uma de suas figuras mais emblemáticas, „o gerente‟, envolvendo-se
profundamente com um ícone doo-racionalismo ocidental capitalista, os míticos sacerdotes
celtas, que em todo o caso, se protegem de contatos diretos com os cheirosos e elegantes
representantes de famigerados bancos, associados ao mesmo ídolo cristão do capital profano -
numa associação direta e inesquecível com Weber, no clássico Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo.
Adiante, novamente, Piva desmonta o poder de „monstros do mal‟, numa
carnavalização obviamente política, quando assistimos a cena do grande Hitler sem qualquer
risco de ação contra ariscos e espertíssimos garotos do lumpesinato baiano, os „capitães de
areia‟, imortalizados por Jorge Amado. O norte e o sul. O primeiro e industrializado mundo,
poder e premeditação - contra os jogos esquivos, espertos, mas tolos, de quem se esquiva pelo
prazer - bem maior. E por fim, assistimos novas associações, dessa vez musical, quando é
posto o negro banjo de blues de encruzilhada, associado aos sons da flauta block setecentista,
cunhando uma dança entre o minueto e o sapateado de escravos caminhantes, e sob essa
trilha, deliciosa e inusitada, Zeus, que para satisfazer seus caprichos eróticos, nunca se furtou
a se transmutar, voando certeiro sobre sua presa, um efebo. Vertigem e prazer.
1.3. FORTUNA CRÍTICA: Percursos de leitura
Ninguém vai entender meus versos
se quiser interpretá-los
como performances literárias.
Walt Whitman
Como mencionado, os três volumes de suas Obras Reunidas receberam
prefácios, sempre do organizador dos livros, Alcir Pécora e posfácios de autores diversos. O
49
interessante é a abordagem sobre a obra e a sugestão de leitura que, cada um, à sua maneira,
explicita, favorecendo a ampliação de possibilidades do acesso a seus livros como um todo.
Em um dos estudos introdutórios, Willer, em posfácio ao primeiro volume, se
propõe a auxiliar na leitura da obra que está sendo lançada. Nesse texto, Willer percebe uma
predominância de fôlego, de leitura, de escrita, em cada livro editado. Curiosamente, aponta
os versos longos em Paranoia e Piazzas, livros publicados muito próximos um do outro, e
que, mesmo assim, assinalam um ritmo bem diferente. Ambos são caudalosos, porém no
primeiro, o ritmo é mais agressivo, contundente, quase feroz. Paranoia é um coice na
„caretice‟ burguesa que pretende enquadrar um jovem inquieto, ousado, transgressor e
autoconsciente. De posse de seus desejos, ele não pede, mas ataca, ofende, afronta, blasfema e
se impõe. Ousadia e violência, que usa no combate à violência opressiva e sub-reptícia de
uma norma cristã, capitalista, produtiva, centrada, apolínea, casta e tristonha.
em Piazzas, o poeta flana, noturnamente, por logradouros soturnos e pululantes,
prenhe de uma realidade que a „ordem careta‟, odiaria acreditar que persiste. Persiste porque
não se dobra, porque „a alegria é a prova dos nove‟, porque nos subterrâneos, nas praças
escusas, escuras e sujas, outra vida é experimentada, e se atravessa constantemente no
caminho do poeta que, no entanto, não se furta a nela penetrar. Willer irá chamá-la de „fruição
e contemplação‟. Ele não é um monge olhando o transcendente, não mira a purificação, mas,
do mesmo modo, vai à busca do maravilhoso, e se deixar levar em um universo insuspeito,
rico, vário, louco, bandido e sensorial. Ele se depara com corpos pelos cantos, em cores
inesperadas, com traçados construtivos encantadores, em que a corja, a turba, a malta - os
anjos lumpen se esbaldam próximos às muitas igrejas espalhadas pelo centro.
Willer nota que em Abra os olhos e diga Ah! o formato do poema será mais
conciso, mais curto, e, eufórico, fa“um hino à pederastia”, apoteótico, na curtição a dois.
Seu entusiasmo, no entanto, não o fará abandonar a ironia, a sátira e a paródia, como no verso
“o mundo muda a cor da jabuticaba muda teu cu muda”
77
. E arrebatado, a cidade deixa de ser
sua referência direta, mas surge mais como um ruído de fundo. E lembra, com precisão, do
período Contracultural, em que o escapismo conviveu com o ressurgimento das mobilizações
de massa, com as passeatas de 1977 pela redemocratização. E aponta também a vertente
adâmica que Piva empresta a sua política de corpo, numa “dimensão subversiva do corpo”.
Ainda outro apresentador, de fato o organizador de sua obra reunida, Alcir Pécora,
assinala na forma percebida nesses poemas do Abra os olhos... a presença de vozes diversas,
77
Postfácio para Um estrangeiro... op.cit. p.162
50
provenientes de vários lugares da cidade, mesclando o público com o privado, intercalando
vozes, criando uma “didascália
78
barulhenta - contemporânea, urbana, caótica e ostensiva”
79
.
Do livro Coxas, Willer irá apontar sua narrativa em prosa, coloquial, extensa e
hiperbólica do confronto das pequenas gangues sobrevivendo, ou não, à violência dos tempos.
E de fato a ditadura moralista instila um ethos policialesco pelas classes médias, que irão
ocupar toda a urbis, em que o careta‟ assumirá o poder sob argumento da santificação de
propósitos e santificação dos corpos - a violência corre solta e os mortos infestam seus porões.
Coxas comentará com muita veemência a androgenia em um pathos coletivo.
Nomadismo, resistência, uso político de eros à la Marcuse, coloca a marginalidade que se
amplia e espraia pela cidade, subúrbios, rumo a suas margens. O espaço se amplia, os
personagens se agrupam. Agora, não bastam os amantes, as „cuequinhas em flor‟ de um
amante exclusivo, mas uma abertura rumo à barbárie vegetal, à orgia grupal - rumo ao mato -
elementais do reino vegetal e animal, rompem suas barreiras cristãs, abandonam sua
subcondição de pasto e, insidiosamente, roubam a paisagem suburbana, invadem seus
monumentos de concreto armado... esbaldam-se. Pólem, Onça Humana, Rabo Louco, Lábios
de Cereja, Lindo Olhar e Coxas Ardentes são personagens de uma saga em que uma gangue
de lumpens se revezam fazendo sexo e “ouvindo a Nona Sinfonia ou Guerra Peixe, ou
Calabar do Chico”
80
e circulam pelas frestas da cidade.
Willer observa então em 20 Poemas com Brócoli, o retorno de um poema
“contido, conciso, condensado, ordenado e curto”. Nesse livro, seus poemas são joias gráficas
antes de mais nada. É olhar e -los balançando como móbiles - leves - pedaços eróticos
translúcidos, gotejando prazeres: os da mesa, os dos olhos, e das coxas. E novamente
Macunaíma se faz presente em festins de preguiça e olhares silvestres, embrenhando-se nos
matos, onde o corpo rola em clima de lagarto.
E chega-se a Quizumba, que em sua nota explicativa, é a única coisa em ordem do
ensandecido livro de poemas - caos, demônios, vômitos, alucinações e, claro, todos os seus
amigos, todas as sacanagens e muita risada enfileirada pelos absurdos socados lado a lado,
espremidos, gozando cada pedaço de ideia que o cabe, que não é, mas que se faz, ali, entre
uma “garoa de moedas / matinês no corpo do garoto nu / Punk-torrada / meu massacre
preferido e rosas-chá da belle époque- é como uma avalanche de sonhos e pesadelos de tudo
o que se viu e leu e ouviu e tocou e viveu e escutou e sofreu e vestiu e lambeu, e pensou e
78
São as rubricas (orientações) para encenação de uma peça teatral que constam de seu texto escrito.
79
Prefácio para Um estrangeiro... op. cit. p. 11.
80
De Coxas, in Mala na mão..., op. cit., p. 61.
51
esfregou e memoriou e, de repente, num espasmo, numa golfada, vem o livro, em forma de
Zodíaco com Rimbaud, com Diadorim, com Billy the Kid e Hesíodo, passando pelo Chovia
no teu coração de merda”, e findando no “Batuque III, em que Diadorim combate
vulgaridade, até que o poeta sacode o Amor garantindo seu retorno do grande êxtase
psicodélico-estético-cultural se anunciando: “Sou eu mesmo Amor sou eu mesmo”
E, tempos depois vêm Ciclones, que o próprio Piva gosta tanto. Para Willer é o
livro da sublimação e do êxtase sexual. São poemas curtos, quase Haikais, cuja figura central
é o Xamã. Willer acha que o Xamã pode ser o símbolo ou a metáfora do próprio poeta que
propõe a construção ritual de nova tribo. Não a recuperação da primitiva, mas outra, em que
possa reunir suas filiações, amizades e linhagens poéticas e artísticas, como “Nerval, Pessoa
& os templários, Lao Tsé”, título de um dos poemas. É uma tentativa de recuperação do
sagrado em um mundo pós-utópico.
Para Pécora, os últimos trabalhos do poeta reproduzem um bucolismo clássico, em
que as peças do tabuleiro são trocadas. Assim, no lugar de pastores e arcádias gregas, é
construída uma „Cena Xamânica‟ de base clássica. Passando por cinco fases, ou como
assinala, „cinco elementos de ouro‟, a Cena Xamânica se monta:
1. Com uma paisagem aberta oposta à cidade-sucata.
2. Pelo personagem principal, o Xamã, dotado de “seu pênis de elefante, com
propriedades curativas”, de posse de arsenal que é a grande tradição literária ocidental; e o
Discípulo do Xamã: invariavelmente um adolescente andrógino, com fortes atributos sexuais
(falo duro, coxas fortes), dotado de “ignorância honesta e generosa, embora selvática e
descontrolada”.
3. Componentes cenográficos que rodeiam a cena xamânica como uma moldura
variável, podendo ser ufos, cactos, diamantes, andorinhas, astronautas, etc.
4. Um “conjunto ritualizado de ações” que têm por função seduzir e copular com o
discípulo-efebo, e tais ritos podem passar por danças, gritos, riso, vômitos, quedas etc.
5. E por fim, “são os instrumentos mobilizados pelo feiticeiro para a iniciação do
adolescente: elixires, cogumelos, LSD, haxixe... tambores, beijos, sussurros, palavras, poemas
para excitar no jovem discípulo a potência da flor tesuda, do pau-ferro, do cu em flor...”
81
. E
essa cena busca o princípio da cópula cósmica e universal, das bodas sagradas, da hierogamia,
cujo “pensamento mais elevado apenas se atinge na máxima exploração dos sentidos”.
81
Prefácio a Estranhos sinais de Saturno. Vol. 3. São Paulo: Globo, 2008. p. 12.
52
cora constata ainda que, apesar das imagens serem “violentamente
anticonvencionais”, a cena xamânica e seus desdobramentos operam sobre uma base
metafórica clássica, no caso o Império Romano, ao qual Piva faz referências constantemente,
dando aval a um lócus onde não possa existir o grosseiro, o tosco, mas ao contrário, é onde
viceja a elegância, a graça, e portanto é divertido e não mesquinho ou medíocre. E essa
referência clássica, como a vê, passa a ter uma destinação civil [...] que deseja reordenar as
formas de convívio, e empreender a reforma dos costumes pelo cultivo das letras e do
espírito”
82
, concluindo que, talvez “Piva tenha hoje feições mais clássicas do que nos
acostumamos a pensar a seu respeito”
83
. O que faz de sua leitura uma perspectiva muito
interessante e provocadora, além de produzir uma reviravolta nessa linhagem de “maldito
romântico” a que, até então, se viu filiado.
Em todo o caso, outra contribuição muito rica, também por um dos posfácios (o do
terceiro volume de suas Obras Reunidas), vem de Davi Arrigucci Jr. Segundo sua leitura,
embora a vontade libertária em renegar a Ordem, e dar livre curso ao Desejo seja a vertente
mais evidente de toda a obra de Roberto Piva, também percebe essa inclinação clássica. Mas
refuta tal análise, assinalando o risco de reduzi-la e enquadrá-la ao sabido. No entanto,
confirma encontrar em toda sua obra uma “Lírica delirante, que se mistura à Épica” (!)
A justificativa vem pela observação do Eu-personagem que constrói cenários e
confronta inimigos, sempre em processo de exaltação do amor físico, sempre andarilho,
porém temporal, isto é, histórico, pois se relaciona com o mundo concreto, dando voz ao
refugo da ordem dominante, e acusa a metrópole predatória condenada ao mundo globalizado,
sem salvação. Assim, o poeta projeta e ufana o lado sombrio da cidade que se perde pelo ralo
do capitalismo, como narra, correndo pelos poemas “um epos da entropia urbana”, em que
visões dantescas e grotescas “nos assombram e às vezes nos iluminam”
84
.
Segundo Arrigucci, ao contrário da percepção de base clássica na construção da
obra poética, denota um “fluxo poético sem margem, que não teme o informe e a falta da
medida, sob o impulso dionisíaco”, alimentando-se conforme a sugestão de Nietzsche, “da
fonte originária da lírica que é o ditirambo, para exprimir tanto a alegria jubilosa quanto a
mais profunda tristeza”
85
. E por fim, reconhece no poeta essa rara coragem de optar pela
revolta permanente aos louros da academia.
82
Idem, p.13.
83
Idem, ibdem.
84
Posfácio de Estranhos sinais... op. cit., p. 201.
85
Idem, ibdem, p. 201.
53
Agora conhecemos Estranhos Sinais de Saturno, mais recente livro, em que muito
dos elementos de Ciclones permanecem presentes. não constrói a Cena Xamânica, e, ao
que parece, a tônica é a amizade. Não apenas entre seus personagens líricos, mas em
chamamentos, epígrafes e homenagens explícitas, nominadas. A intimidade e as brincadeiras
quando faz referência aos homenageados, é inevitável, como no poema A dor pega fogo”,
dedicado a Maria Rita Kehl e Marcelo Coelho, em que inicia assim: “O Marquês de Sade / &
a Marquesa de Santos / caminham ao jazz do crepúsculo...”.
E também brinca com Rodrigo de Haro, místico e refinado amigo de longa data,
chamado o Huysmans do grupo, quando conviviam nos anos sessenta, a quem dedica o poema
“Amon Ra”, e com ele brinca: “o efebo eletrônico / passeia pelos jardins do Desterro / como
uma gota de Sombra...”, assinalando a antiga nomenclatura da cidade de Florianópolis,
residência de Haro, associando antigos nomes às dores das distâncias. Também homenageará
Celso, com o poema “O chute do mandril da meia-noite”, a quem conta um „causo‟ no
qual “o poeta Virgílio ganhou / um garoto de / Augusto / o gladiador PIVOTUS / mergulhou
na bacanal / & até hoje não veio / à tona para / tomar fôlego”. E assim outros mais.
1.4. FORTUNA CRÍTICA: Visões de um Libertário
A alegria é a prova dos nove.
Manifesto Antropófago
Sua imagem iconoclasta está tão „colada‟ ao poeta que, basta citarmos os títulos e
algumas frases das citações e comentários encontrados pela infovia, dentre os sites visitados,
para termos uma ideia de como sua obra construiu essa tônica libertária
86
.
João Silvério Trevisan escreve um artigo à guisa de introdução à obra de Piva que
denomina A arte de transgredir
87
. Nesse artigo, após enumerar a longa lista de influências
da obra do poeta, comenta o desejo de Piva por desenvolver uma vida de Poeta-Profeta,
jogando com paradoxos da contemporaneidade, aproximando-se de um mundo natural, sob
um paradigma político autodefinido por „anarquista de direita‟. E por fim, irá apontar a
questão dos temas urbanos e eróticos, até chegar ao sagrado, por uma linguagem poética
fragmentada e delirante, distante de escolas poéticas já reconhecidas.
86
Importa afirmar que, todos os sites foram, conforme mencionado, visitados no período entre novembro de
2007 a fevereiro de 2008, tendo sido, muitos deles, revisitados, assim como fazemos com os acessos aos
livros, quando os lemos e os revisitamos, e novamente os acessamos, sempre que necessário.
87
TREVISAN, João Silvério. A Arte de transgredir: uma introdução a Roberto Piva. In: Revista eletrônica
Germina de Literatura e arte, de outubro de 2005. Acessado em dezembro de 2007, in:
www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva8.htm.
54
Em um depoimento ao vídeo Assombração Urbana, Trevisan narra uma celebração
ao “Intelectual do Ano” em que Piva esteve presente, e naquela ocasião, o homenageado seria
Fernando Henrique Cardoso. Quando foi anunciado o nome, para que o futuro presidente
fosse discursar em agradecimentos, Piva soltou a pérola em alto e bom som: Pois se o
Fernando Henrique Cardoso é o Intelectual do Ano, então eu sou o Intelectual do Ânus!”,
criando um embaraço geral no ambiente canônico.
Ricardo Rizzo, também reforça no título o marcante traço da obra de Roberto Piva,
denominando seu artigo de “A rebelião para o alto: impressões sobre a poesia de Roberto
Piva”
88
. Rizzo se surpreende com a escrita libertina do poeta, quando assinala os interditos,
“investindo contra eles, em franca transgressão [...] numa cruzada sem descanso contra a
megera cartesiana” citando Rosa. O autor aponta o uso da sátira e da paródia como recursos
para dessacralização das hierarquias convencionais, e o jogo de extremos para a suspensão da
lógica corrente, subvertendo imagens por associações transgressoras e rebeldes. Percebe
também a profusão de anjos enquanto meninos, assumindo, de alguma forma, um pendor para
contornos clássicos, rumo a uma figuração abstrata e até apolínea. E percebe ainda uma
intermitência muito própria, que o faz seguir dos baixos às elevações, transitando do
escatológico ao místico, chegando a citar um dos versos mais emblemáticos do poeta,
frequentemente lembrado: borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas”.
E Rizzo também observa que o poeta se apoia na ironia crítica para um jogo de associações
entre elementos líricos, eruditos, clássicos e signos de uma “queda” com agressividade
declamatória. Queda dos jogos de altos e baixos, dos anjos e demônios, invertendo desejos e
pecados. Rizzo enfatiza como Piva o nomeia os atores sociais que ataca, permanecendo
como figuras abstratas, sem expressões faciais, numa observação bastante singular, quando
percebe que, na obra poética não registros do singular, do pequeno, do concreto,
esquematizando inimigos e alvos, ampliando, pode-se dizer, um espectro de ataques.
Ricardo Lima, sem fugir à tentação hiperbólica chamará de Tempo de fúria e
mancha”, ao artigo editado no Jornal de Poesia em 2005, a pretexto de anunciar a Obra
Reunida que está prestes a ser editada, com o lançamento do primeiro volume. Nesse artigo, o
autor afirma que:
Tudo em Piva desde seus primeiros livros reunidos agora, tudo aqui grita. O
gosto do excesso reina, irrompe nas páginas, mina os versos com um teor
juvenil [...]. A regra é a Fúria [...] uma poética egótica, de viés e filiações
malditas, de uma ingenuidade enganadora [...]. Engana o sopro
88
RIZZO, Ricardo. A rebelião para o alto: impressões sobre a poesia de Roberto Piva. In: Revista eletrônica
Germina de Literatura e Arte, de outubro de 2005. Acessado em dezembro de 2007. In:
www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva.htm .
55
aparentemente “lisérgico” [...] amparado numa grossa camada de
referências: de Mário de Andrade a Murilo Mendes, de Blake a Isaac
Asimov, passando por Nietzsche e Artaud [...] esse grito furioso foi a forma
do poeta se colocar diante do seu tempo [...] contra as formas de
aprisionamento do corpo, da alma, da poesia [...] Seja como for, a poesia
dele está repleta da mais pulsante e irrequieta vida
89
.
Impressionado, Lima observa a “fúriacom que Piva se lança sobre a cidade, entre
amores e horrores, entre praças e paranoias, delirando entre sexos doces e espadas fugazes de
desejos e capturas. Ao articulista não passa despercebido a força com que o poeta captura
imagens mais ariscas que sua própria capacidade de cristalizá-las com a palavra, lembrando a
metáfora que Baudelaire utiliza para explicar sua própria luta na confecção dos poemas, entre
a velocidade dos acontecimentos, a febre dos envolvimentos emocionais, e o desejo de ver
capturada a vivência fugaz, mas profunda, como uma facada na sombra que grita e foge por
uma esquina. A luta de esgrima baudelairiana é vislumbrada na obra de Piva, com sua
aparente loucura, seus fragmentos que saltam como um felino sobre a emoção que escapa.
Outro comentarista é Lucas Moreira Santos, que deixa entrever no título esse
rasgo libertário próprio da persona e da obra de Piva. Ele o denomina “A catedral da
desordem: o Irracionalismo libertário de Roberto Piva”
90
. Santos irá constatar que a obra de
Piva respalda o paralelo entre a literatura e a transgressão da lei moral, citando George
Bataille em Literatura e o Mal. Seus poemas constroem uma negação radical de suas
instituições, valores morais e princípios de interpretação da realidade. Aponta também uma
reação constante contra o jugo de um sistema capitalista de produção, no qual todas as
virtudes se medem em função do princípio de utilidade. Condicionados pela moral do trabalho
e pela ideia funesta de pecado num mundo empobrecido, cita Paz: “a arte é a única ponte
possível para a travessia da existência”
91
.
Para ele, Roberto Piva continuidade à rebelião romântica do século XVIII que
concebe a poesia como atividade subversiva, e onde imagens encerram níveis altíssimos de
contradição, pela não-discursividade de seus poemas, bem como pela pluralidade de
significados ali contidos. Santos supõe que Piva retoma o tema da liberdade sexual em
vários de seus poemas como sinal de afirmação do princípio do prazer sobre as
responsabilidades sociais, o que parece ser uma leitura equivocada e, mesmo, invertida, pois
89
LIMA, Ricardo. Poeta em Pele de Tigre. In: Revista eletrônica Germina de Literatura e Arte, outubro de
2005. In: <www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1.htm, acessado em novembro de
2007>.
90
In: Revista Horizonte Científico, v.1, n.7, 2007. Disponível em <www.horizontecientifico.propp.ufu.br>,
acessado em janeiro de 2008.
91
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Coleção Debates, n. 48). p. 121.
56
condizente com uma utopia imanente a seus versos de concepção teogônico-política, será
discutida ao longo do estudo de sua obra no presente trabalho, onde o poeta não se furta a
compreender o prazer como ecologicamente produtivo, o que o o afasta da comunidade
humana, apenas a encara sob novo prisma.
Santos percebe que imbuído das linhas mais básicas e superficiais dos estudos de
teoria política, lembrando antigos manuais e catecismos de esquerda, que o poeta, a despeito
de toda sátira, ironia e paródias ali misturadas, não se refere à coletividade no intuito de
“salvar” a humanidade, mas no intuito de salvaguardar a riqueza subjetiva, rumo a um
enriquecimento mais complexo. Santos, acertadamente, no entanto, constata que o poeta
defende uma justiça e uma ética baseadas nas paixões individuais. Por isso reconhece em seus
poemas a fruição de uma estética agressiva, que nasce da insatisfação das potencialidades do
sujeito, e que se propõe a desconstruir verdades discursivas e a ordem social castradora que
elas sustentam. E por fim, afirma que para o poeta, a literatura não pode assumir a tarefa de
organizar a necessidade coletiva. Sua função, ao contrário, é de abrir espaço à liberdade
individual.
Outro articulista que demonstrava no título a percepção libertária que tinha da
persona poética do poeta é Felipe Fortuna. Seu artigo publicado no Suplemento de Ideias do
Jornal do Brasil em 1987 foi intitulado “Roberto Piva: Pivô da Anarquia”. Fortuna apresenta
a legião de influências que compõem a formação de Piva, que segundo ele, vai de Aretino a
Jean Genet, de Gregório de Matos a Jack Kerouac.
As imagens sexuais que o poeta constrói são, segundo Fortuna, todas violentas,
contrastadas com um lirismo físico que permeia seus versos. E em sua avaliação, a obra do
poeta se insere na linha da poesia erótica brasileira, até porque afirma, ter visto declaração do
autor como tendo, de fato, criado versos fesceninos
92
.
Para o articulista, vale ressaltar também, a coragem do poeta em desvelar sua
condição homossexual, sem tentar encobri-la de nobrezas, mas assumindo uma sexualidade
profana e ousada, revestida por uma teologia atormentada que inaugura o Delirium Tremens
diante do Paraíso” evocado por seus fortes versos.
Ainda lemos o artigo de Ricardo Lima que escreveu em 2005 para a Revista
Eletrônica Germina o texto denominado “Poeta em pele de Tigre”, reafirmando a força de seu
viés libertário, imposto a custa de um jogo violento, erotizado e sem concessões.
92
Gênero de versos licenciosos da antiga Roma.
57
Para Lima a poesia produzida por Piva “passa ao largo de todo e qualquer
modismo, mantendo-se visceral [...] com uma lírica retumbante”. Ele recorda quando o
conheceu, nos cinquenta anos do poeta, “com punhos erguidos, entoando cantos aos anjos
pornográficos, blasfemando contra toda e qualquer repressão (de direita e de esquerda, essa
principalmente)”. E mais uma vez notamos a estupefação causada por sua presença quando
afirma que “esse poeta em pele de tigre não permite a indiferença”. E novamente, como tantos
outros comentadores de Piva, Lima identifica novas, renovadas e profusivas referências como
os pintores Bosch, De Chirico e Caravaggio.
Ainda um aspecto relevante para Lima é o fato de Piva não ter projeto poético, mas
vivência poética, como faz questão de diferenciar, em que vida e poesia fundem-se em uma
coisa só. Para ele, as fases do poeta teriam outra divisão, diferente inclusive à linha adotada e
comentada pelo organizador de sua Obra Reunida, Alcir Pécora. Para o autor a primeira fase
do poeta é entendida como Blasfematória (a dos anos „60); a segunda é Surreal, dos anos
„70/80 e chama de Mística a última fase que se inicia nos anos „90 até o presente.
Lima discorresobre o que chama de poesia explosiva, que se movimenta num
jogo de extremos, com uma escrita libertina, centralidade no sexo e tangência no sagrado. E
Piva declara que “possuo tantas referências culturais e artísticas, não por ser bombardeado
pela indústria cultural, mas por reconhecer e assumir aproximações poéticas. Foram obras que
me impressionaram, me inspiraram, me impeliram à criação”. Piva também lhe conta que tem
se agradado mais da poesia portuguesa do século XX, mais influenciada pelo Surrealismo do
que a brasileira, salvo Murilo Mendes. E de sua predileção cita -Carneiro, Mário Cesariny
de Vasconcelos, António Maria Lisboa e claro, Fernando Pessoa. Por fim, pontua as fortes
críticas de Piva aos valores predatórios da civilização capitalista, em defesa da ecologia.
Outra entrevista que Piva deu, desta vez a Weintraub e Damazio
93
, também
suscitou observações à evidente confirmação de sua arte e vida libertinas, além de chamarem
a atenção para as recentes traduções de seus poemas às revistas internacionais: a Tsé-tsé da
Argentina, e a Kenning da Califórnia. Piva é apresentado como um poeta que circula entre
Nietzsche e o catimbó, entre Dante e as saunas de Itaquera, entre a literatura beat e o regime
monarquista, onde “o coração do poeta não bate entre eles, mas samba entre eles”.
Em sua guerra contra o coletivismo que só impossibilita o enriquecimento pessoal,
liberando o poder de transformação para os sedentos de poder, Piva vocifera: “Para quem
93
WEINTRAUB, Fábio; DAMAZIO, Reynaldo; et alli. Revista eletrônica do Memorial da América Latina,
2005. In: http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/ContentBuilder.do?pagina=687, acessado em novembro de
2007.
58
gosta de natureza morta, o marxismo é um prato cheio!”. E nessa passagem, a ideia das Três
Ecologias defendidas por Guattari fica muito clara e muito fácil de reconhecer
94
.
Os equilíbrios ecológicos evidentemente passam pelo fluxo livre do sexo, da leveza
da experiência do corpo, da naturalidade erótica. E Piva lamenta: Hoje tem aquela coisa
babaca e preconceituosa de gay com gay. O bacana é você transar com uma pessoa não gay, e
não ficar no gueto”. As trocas enriquecedoras se fazem entre as diferenças, interpenetradas,
como quer Guattari, e como propõe Piva.
Ainda lemos na entrevista, mais uma referência eleita por admiração política e
poética, comentando a obra de Timothy Leary: “ele misturou literatura, misticismo,
cibercultura, globalização, consciência cósmica, ecologia e Internet”.
Várias outras imagens romanceadas seguem no texto e se referem ao que chamam
„trabalho de alquimista‟, associando sua obra profanadora e seu aclamado antepassado
herético, Girolamo Piva, que acabou queimado vivo em praça pública (história repetida em
várias ocasiões). Com isso estendem a característica herética aseu fazer poético, já que
combate „todas as verdades absolutas‟, alinhando forçadamente, séculos muito distantes, o
que é dizer o mínimo.
Novamente Fábio Weintraub irá entrevistar Piva, desta vez para a Revista
WebLivros
95
. E novamente porá em destaque o que ele e sua obra têm de mais
irredutivelmente libertário.
Será destacado o uso do “método crítico de Salvador Dali” para escrever o livro
Paranoia. Piva abraça algumas idiossincrasias de Salvador Dali, inclusive sua falsa
arrogância, hilariante e perturbadora.
Segundo Piva, o „método-crítico‟ permite que, embora se fixe num ponto ou
detalhe para construir um mundo alucinatório, imaginário, parte daí para se deixar invadir
pelas sensações, com a diferença de que isso não o imobiliza. E Piva cita Allen Ginsberg que
dizia que a realidade é que era paranóica, não ele. Também lembramos a frase de Salvador
Dali que diz: “A diferença entre o louco e eu, é que eu não sou louco”. Reafirmando a loucura
como pincel de muitos matizes na execução de sua arte, bem como de sua intimidade, e
mesmo, como diz, de „parentesco‟ entre arte e loucura. E segue defendendo o pequeno e frágil
94
Guattari defende que um verdadeiro equilíbrio ecológico, não pode dizer respeito apenas, ao meio ambiente,
conforme tem sido difundido pela mídia e aceito pelo senso comum. Para este pensador, além do equilíbrio
ecológico do meio ambiente, que se estabelecer equilíbrios saudáveis para as relações sociais e também,
para a subjetividade humana.
95
WEINTRAUB, bio. Entrevista com Roberto Piva. Revista Eletrônica WebLivros, s/d. Disponível no
endereço www.weblivros.com.br/entrevista/roberto-piva-2.html, acessado em dezembro de 2007.
59
enclave entre a razão e a loucura, ali naquele miolo magmático onde são vistos e sentidos o
que não é visto e sentido, e onde borbulham o viver arte.
Eu, como Pasolini, não acredito na dialética. O que existe são oposições
irreconciliáveis. Acredito naquilo que o Freud afirma em O mal-estar na
cultura: existe um movimento cada vez mais restritivo, não da vida
sexual, mas da subjetividade de modo geral. É também, de certa forma, um
texto paranóico em relação à cultura, que é entendida como repressão.
Quanto ao parentesco entre arte e loucura, acho que o “desregramento de
todos os sentidos”, de que falava Rimbaud, refere-se não propriamente à
loucura, mas a um estado de transe. Um estado de transe xamânico, porque
Rimbaud era um alquimista, um xamã avant la lettre
96
.
Mas faz uma sensata ressalva: a loucura a que se refere, é aquela tomada como
manifestação do irracional, e não a doença mental que “é muito triste”. Pensa na loucura
enquanto criação artística, imaginação fértil e propiciatória.
Para Machado e Fraia
97
, Piva afirmou em entrevista na Revista Trip de 2007,
também online que: “Só é possível ser feliz quando se nada contra a corrente da
mediocridade”. E essa iconoclastia confessa, segundo esses entrevistadores, se deve ao
Surrealismo, não o Surrealismo do nonsense, em que a ausência de sentido é apenas uma
regra estética, mas o Surrealismo das imagens convulsivas, das aventuras e alucinações
urbanas, que revela uma forma nova de se conectar ao mundo”. E pontuam a solidão
irreversível que Roberto Piva pagou por tal “busca ilimitada por liberdade”. Sua paixão
escorre para seu fazer maior, a poesia, e Piva assegura como ela é vitalista, apontando para
um rejuvenescimento da experiência da linguagem, da experiência humana, desde o que
chama de “a aurora dos povos”.
Sua iconoclastia avança pelas ruas, até o desconforto das construídas aristocracias
fortuitas, surgidas pelo voto, pelos cargos, pela ciência, e diz:
O intelectual brasileiro entra em partido político para lavar chão, para ser
devoto, e não para criticar, para esculhambar [...] os professores preparam a
juventude brasileira para viver no século dezenove [...] a educação deveria
ser como no Banquete de Platão: conhecer os corpos para depois conhecer as
almas. As universidades deveriam ser substituídas por terreiros de
candomblé
98
.
96
In DIOS op.cit.
97
MACHADO, Cassiano Elek e FRAIA, Emílio. Um estrangeiro na legião. Revista Trip de maio de 2007.
<http://revistatrip.uol.com.br/155/desplugados/03.htm>. Acessado em janeiro de 2008.
98
DIOS. Assombração Urbana... op. cit.
60
Ele defende, constantemente, em entrevistas e palestras, a natureza da sanha dos
religiosos, dos sistemas econômicos e das ideologias políticas, que estabelecem hierarquias
perigosas sobre os recursos naturais. Nesta entrevista ele acusa: “No marxismo, a natureza
não existe, ela é ilimitada nos seus recursos... Marxismo é pra quem gosta de natureza morta”.
E os recursos estão à disposição da produção. Lembrando que o próprio Marx recusou-se a
sentir-se “marxista” quando ainda lutava por novos parâmetros ao confronto Capital versus
Trabalho, reajustando um diapasão conjuntural importante, uma vez que, desde o senso
comum a ciência da natureza, a percepção de finitude natural se deu após a Segunda
Guerra Mundial. E o comentário do poeta também sociólogo, distingue com precisão,
apontando o dedo para as formas ideológicas responsáveis pelo perigoso ataque a que o meio
ambiente vem sendo vítima. Por isso insiste: “Temos que profanizar o sagrado e sacralizar o
profano. Não entendo o sagrado como devoção. O sagrado está na natureza, disperso em tudo
[...]”
99
.
Percebe que o poeta não se sente, em nada, militante, e como diz, A poesia não
nasce do real, mas do real imaginário, da subjetividade do poeta”. Pensando a poesia
enquanto „expansora‟ de espírito, enquanto necessidade subjetiva. Ele percebe que a poesia
existe em sua vida por não conseguir se eximir ou se isentar frente ao mundo, ou como diz,
“escrevo movido por indignação” não desejando o poder. Ele se assume um vivente, e como
cidadão, um poeta, mas é o viver sua prioridade. E confessa: Crio sem regra. Do jeito que
veio fica. Não posso perder tempo escrevendo, a vida é maior”
100
.
Seguem outros artigos e entrevistas em que a marca do poeta se estampa na
chamada, no título, como é o caso de mais essa entrevista a Floriano Martins para a Revista
eletrônica Agulha: “Roberto Piva no miolo do Furacão”. Martins apresenta a obra de Piva
como sendo a mais incomum no âmbito de uma tradição lírica brasileira”, e segue
informando: “seus livros circulam quase que clandestinamente, considerando sua precária
distribuição, sobretudo fora da cidade de São Paulo”.
Surgem frases libertárias que cortam afiadas o desenrolar sereno dos textos dos
apresentadores: Entre Anarquia e Anarquismo, escolhe a Anarquia, aclamando a desordem
total, sabotando sempre a regra, na insubmissão absoluta. Lembrando Nietzsche, diz confiar
na reaparição gradual do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo, o deus da ecologia, do
99
DIOS. Idem.
100
Idem, ibdem.
61
vinho e orixá da vegetação. E sonha com um golpe de estado erótico, em que a guerra
profetizada por Freud no seu livro Totem & Tabu acontecerá e sairá vitoriosa.
Antonio Arruda da Revista Officina do Pensamento em 2002, denomina sua
entrevista de “Piva, Poesia e Paranoia”, falando da experimentação catártica da vida que o
poeta fez como fonte de sua obra. Apresenta a eterna paranoia citadina, sempre “atento ao
grande mal que é a normalidade humana”. E Piva lhe conta como a poesia pretendeu
transformar a Necrópole que é a Metrópole, em alucinação para o fazer poético, num processo
alquímico, como a extrair da matéria-prima hedionda sua quintessência. Rimbaud também
usava o “desregramento dos sentidos”, lembra, assim como Baudelaire e os Surrealistas. Para
Piva, esses estados de transe são usados para fazer poesia, com as técnicas arcaicas de êxtase
do xamanismo.
E apesar da crítica irredutível sobre a poesia e os poetas, cita Platão como a definir
esse momento de criação:
Sócrates, à beira de um rio, explica praquele menino de 16 anos, o Fedro,
que se ele quer ser poeta terá de saber que a poesia nasce do delírio, quando
o poeta é possuído por um deus. Toda verdadeira poesia é alucinatória. A
poesia não tem existência no real
101
.
E, como esse comentário nos remete à pederastia grega, vale transcrever a
observação que Piva faz sobre o assunto para o entrevistador Arruda: não vejo a
homossexualidade pela interpretação cristã, mas pela visão grega - pagã”, afirmando que sua
homossexualidade não define sua obra. Ele diz: “não faço poesia homoerótica, como não se
faz poesia heterossexual, se faz poesia”. Para o poeta, melhor seria que a homossexualidade
voltasse a ser proibida, porque, segundo ele, conseguiram amansá-la, tornando-a um nicho de
mercado aos moldes do heterossexualismo.
Hoje os homossexuais são casais consumidores, que têm propagandas
destinadas a eles [...]. Surgem essas Martas Suplício para reavivar essa
instituição falida, o casamento, entre os homossexuais [...]. O rótulo
homoerótico, homossexual é pernicioso, porque surgiu com a medicina no
Século XIX, que para poder controlar o corpo, dividiu-o que nem boi de
açougue [...] toda divisão é perniciosa porque o aceita a diversidade: tudo
isso deu nesses guetos homossexuais pavorosos
102
.
101
ARRUDA, Antonio. Piva, Poesia e Paranoia, in Revista Officina do Pensamento, 2002. Em
http://www.revistazunai.com.br/officina/arquivos/entre-vistas_roberto_piva.htm, acessado em dezembro de
2007.
102
ARRUDA, idem, ibdem.
62
Ele afirma que a manutenção do transgressivo tem de ser mantida por aqueles que
não pretendem se deixar domar. Negociar fatias da normalidade é ceder caminhões de
liberdade em troca de um respeito forçado à custa de leis preconceituosas e estreitas, por isso
advoga por não entrar para a normalidade, se ser normal é abrir mão da capacidade de
escorregar pela vida sem medo das margens edificadas pelos medíocres e apavorados. Nada
de legalizar o casamento homossexual, cedendo uma poltroninha na sala de visitas com
plaquinha de “para os esquisitos”, e nada de legalizar as drogas, pois que com os impostos só
se centraliza mais poder, virando vítima de outras publicidades.
Quando Piva concedeu entrevista a Marcelo Coelho para o Mais!, da Folha de São
Paulo, a ideia do „esquisito‟ se diluiu em eufemismos. Com o tulo de „Solidão e êxtase‟, o
articulista, responsável pela coluna “Cultura e Crítica” do conhecido diário, analisa Ciclones,
o lançamento de Piva de 1997 e se depara com suas páginas repletas de efebos. Seus
comentários irão, com muito cuidado de um extremo a outro, como podemos perceber pelo
trecho abaixo:
Seu último livro Ciclones tem todo o vigor da adolescência... uma
idealização do desejo sexual puro e simples: “O garoto / e seu cu em flor /
adorno de um deus / deslumbrando o caos”. como que uma ideologia do
sexo com adolescentes nas páginas deste livro. Tudo conduz ao „garoto
vestido de menina‟, ao „garoto-Panzer‟, ao garoto que ataca planícies / em
debandada‟, ao „meio-dia dourado‟, „garoto-jaguar‟, ao „corpo do garoto
lunar‟, ao „garoto Crevel / garoto inferno‟... garoto é a palavra mais usada
neste livro
103
.
Mas Coelho percebe o prolixo trabalho que lida com marginalidade,
homossexualidade, mas também com graça, e a agilidade da construção de imagens, digna de
“uma manobra de skate”. E como não poderia evitar conclui: Não se trata aqui, de
„inspiração‟, mas de gestualidade, de voo, arroubo libertário-liberal”. E comenta a poesia de
Piva como de apontamento, como iluminação curta, captura do momento, com economia de
verbos.
Lemos em Pedro Maciel com “O poeta do pesadelo e do delírio”, para a Revista
Digestivo Cultural de Belo Horizonte, que destaca o livro Paranoia como “uma beleza
103
COELHO, Marcelo. Solidão e êxtase. In: Folha de S.Paulo, Mais! de 22 de março de 1998. Acessado em
dezembro de 2007. Disponível em: www.nankin.com.br/imprensa/Materias_jornais/solidao_extase.htm .
63
insuportável”. Também comenta as fotos dos anos „60 de Wesley Duke Lee que criam uma
atmosfera alucinada da cidade, numa releitura delirante da Paulicéia Desvairada. E irá
identificar o poeta com a geração dos anos setenta, os „desbundados‟, que Piva nega
constantemente. O autor fará essa associação devido às menções ao consumo de drogas, as
prisões, os cogumelos sagrados, os delírios, tomando-o por algo entre um poeta trágico, à
beira do abismo, de “versos vorazes que transmitem o desespero de uma existência
tumultuada”, e o poeta que faz da anarquia um método & modo de vida”, para descer aos
subterrâneos do inferno. Paranoia é um pesadelo, ainda que veja em seus versos o mágico e o
ocultismo construindo poemas, não torna sua obra obscura ou irracional, mas apenas radical
em imagens e linguagem “fundindo sonho, poesia e vida”.
Adelto Gonçalves escreve Piva, o rebelde, está de volta”, sobre o lançamento do
primeiro volume de suas Obras Reunidas
104
. Ele irá comentar a perseguição que Piva sofreu,
menos da ditadura militar, e mais da ditadura da vanguarda Concretista, porque queria fazer
todo mundo acreditar que o verso estava morto. E se o verso estava morto, aqueles que
insistiam em remar contra a maré, só podiam ser cadáveres insepultos”.
Com Ricardo Lima, no artigo “De poucos & raros”, lemos uma crítica contundente
ao mercado editorial, devido à „covardia‟ por reproduzir o esquema de blockbuster
internacional, “trocando a crítica, em vias de extinção, pelo colunismo social da grande
imprensa, relegados aos pequenos sites
105
. Crítica bem oportuna e veraz, que, mais de
noventa por cento de toda a Fortuna Crítica levantada da obra de Roberto Piva foi, de fato,
obtida em sites de literatura e cultura, onde os lançamentos são discutidos, debatidos, e
contando com comentários dos leitores, num dinamismo muito interessante, mas sintomático.
Ricardo Lima lembra que a obra de Piva sofreu boicotes do mercado, devido,
principalmente, aos temas abordados como os cultos profanos, drogas, desregramentos,
rebeldia e homossexualismo, entre outros, todos temas marginalizados, que, ao contrário do
que ocorreu com uma geração inteira nos EUA, os beats, esse tipo de pesquisa de linguagem e
de existência, foi meticulosamente cultuado, ao contrário da crítica brasileira que, espelhando
a sociedade local, “é provinciana e pudica”. E conclui: A poesia dele ainda é de poucos e
raros”.
104
GONÇALVES, Adelto. Piva, o rebelde, está de volta. Outubro de 2005, in Revista Germina de Literatura e
Arte, de 15 de dezembro de 2007. Em www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_
robertopiva4.htm, acessado em dezembro de 2007.
105
LIMA, Ricardo. Poeta em Pele de Tigre. In Revista Eletrônica Germina de Literatura e Arte, outubro de
2005. Em www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1.htm, acessado em
novembro de 2007.
64
Sem alongar-se nos blogs e sites de fãs, seria interessante dar a conhecer, pelo
menos um, de Rauda Graco, que escreve para anunciar uma apresentação de Piva na Casa das
Rosas, da Avenida Paulista, por ocasião do aniversário da cidade, do ano de 2008.
Aparentemente um ex-aluno, Rauda registra: “Você pode frequentar dezenas de aulas de
literatura numa universidade qualquer, mas duvido que alguma delas possa ter o impacto de
uma lecture de Roberto Piva”
106
. E segue aprendendo e transcrevendo lições do velho mestre:
“Piva disse que uma das tendências do mundo cotidiano, prático, é banir o mistério porque „o
mistério desorganiza, bagunça a vida das pessoas‟. Por isso é preciso estar atento ao
mistério”.
Trevisan narra em A arte de transgredir: uma introdução a Roberto Piva”
107
sobre
essa sua trajetória no magistério, em estudos sociais, história e sociologia por quinze anos,
sempre usando a poesia para trabalhar as matérias, o que lhe rendeu muito reconhecimento
pela cidade. Seus ex-alunos não esquecem o dinamismo de suas aulas, misturando poesia com
história, com teatro, com política, com o bordado das letras emaranhadas sobre um bastidor
bem esticado, trocando „ós‟ com assustados querubins, em quem afunda, com dedadas
certeiras, suas „moleiras‟.
Edson Cruz, outro blogueiro-comenta um encontro com Piva em uma “Balada
Literária”
108
. Diz ele: “Apesar do horário, 10h30 em pleno feriado chuvoso, os adeptos da
„seita Piva‟ estavam presentes para uma libação com nosso xamã mais respeitado in lo(u)co:
Roberto Piva”.
Sua presença sempre performática encanta um séquito de novos leitores de poesia,
que misturam sua obra à sua imagem e outros jogos de sedução. O blogueiro capturou a
palestra de Piva para um canal veiculado na infovia, e o consegue omitir outras narrativas
do encontro:
Contou histórias saborosíssimas, como aquela, dele correndo com um amigo
atrás de um caminhão de mudança, com os armários abertos, de onde
esvoaçava um longo lençol, e gritava “olha a alma do Breton”. Fica sabendo
depois que, no mesmo dia e hora, Breton morria em Paris. O mais assustador
é que Breton escreve [descobre depois] que quando morresse, gostaria de ter
106
GRACO, Rauda. O Gavião fala. In Blog A Praça da República dos meus sonhos. De 29 de janeiro de 2008.
Em http://raudagraco.blogspot.com/2008_01_27_archive.html, acessado em julho de 2008.
107
TREVISAN, João Silvério. A Arte de transgredir: uma introdução a Roberto Piva. In: Revista eletrônica
Germina, de outubro de 2005. Em www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertpiva8.htm
acessado em dezembro de 2007.
108
CRUZ, Edson. Para a TV Cronópios, em 15 de novembro de 2007. Acessado em janeiro de 2008, disponível
em: http://www.cronopios.com.br/tvcronopios/conteudo.asp?id=31.
65
a alma transportada por um caminhão de mudança (!). “E dizem que
sincronicidade não existe”, pontuou.
[...]
Para Piva se Freud não tivesse existido as pessoas andariam pelas ruas
arrancando seus próprios olhos. E se Jung não aparecesse, as pessoas ainda
estariam se atirando nas paredes com medo de fantasmas
109
.
1.5. FORTUNA CRÍTICA: Coloquialismo e Erudição
Trago o mundo na orelha como um brinco imenso.
Roberto Piva
Outro dos aspectos sempre mencionados é o assombramento que produz pelo
insólito de sua linguagem, longe do coloquialismo quase pueril da geração mimeógrafo de
Chacal, Charles e outros do mesmo período. Piva mistura e confunde os etiquetadores de
plantão. E acusa: “Achar insólito o fato de eu ser marginal e erudito, é preconceito. Não
sou monoteísta”. E defendendo o caldo erudito de que é feito seus poemas, com rios de
citações, alega: Ficar hermético é o risco de toda poesia. Walter Benjamin falava que a
poesia é uma historiografia inconsciente... todas as referências no poeta autêntico
transformam-se em magma, sangue”
110
. E ainda cita Nietzsche: pense com sangue e verás
que sangue é espírito”.
Cláudio Willer, para discutir as sutilezas do estilo do poeta, irá denominar
Fruição, contemplação e misticismo do corpo” a um artigo de 2004, sobre o livro Piazzas
111
.
Nesse pequeno artigo Willer aponta a vocação de Piva para „lenda urbana‟
112
, quando já em
1965, com vinte e poucos anos, seu primeiro trabalho recebeu reconhecimento da revista
surrealista La Brèche, pela ousadia e qualidade da obra. Também irá comentar de sua
estilística com um repertório vocabular amplo, mas que não pende nem para o erudito, nem
para o chulo, sem separar expressão oral e escrita, condizente com sua presença, cuja riqueza
na expressão oral captura atenções ao redor. Outra inferência interessante é o uso da
„nomeação direta‟ como diz, chamando de pau um pau e o de pênis, e que, por sua clareza,
109
Idem, ibdem.
110
WEINTRAUB, Fábio e DAMAZIO, Reynaldo et alli (Antonio Fernndo de Franceschi, Cláudio Willer e
Glauco Mattoso). Revista eletrônica do Memorial da América Latin, 2005. Em novembro de 2007.
Acessível em http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/ContentBuilder .do?pagina=687 (Texto e áudio).
111
In Revista de Cultura Agulha, n. 40. Fortaleza/ São Paulo, agosto de 2004. Disponível pelo endereço
eletnico www.secrel.com.br/jpoesia/ag40piva.htm , acessado em dezembro de 2007.
112
Entendido como as pequenas histórias que correm de forma oral ou por e-mails, que constituem um tipo de
folclore moderno, em que são narrados fatos e acontecimentos presenciados por um “amigo de um amigo”.
Conforme a (boa) interpretação dada pela Wikipedia e assumida pela autora.
66
tornou-se um contendor do eufemismo na poesia brasileira”. Em outra de suas acuradas
observações, nota que “a poesia (para Piva) é um meio de conhecimento e de descobertas”,
por isso sua obra não tem planejamento, nem é movida por outro motor que não seja “o fluxo
da inspiração, e por vezes, da possessão”. Afirma que Piva incomoda por desconhecer
fronteiras e convenções, ao operar em todas essas dimensões e registros (referindo-se ao
escatológico, o pornográfico, o grotesco, o lírico, o sublime, o maravilhoso). Reconhece que
seu trabalho não se alia à chamada literatura gay ou GLS, expressando mais um misticismo de
corpo, onde êxtase e delírio se aliam a Bosch e William Blake, como “num gnosticismo
dissoluto, mas longe de um alheamento, passividade ou resignação, reafirmando a crença na
superação da dicotomia entre o simbólico e o real, pela orgia poética”.
Na entrevista a Fábio Weintraub e Reynaldo Damazio já mencionada, Piva é
chamado de poeta xamã, e dono de um vasto conhecimento historiográfico utilizado nos
poemas, falando de sua iniciação às técnicas arcaicas do êxtase, e do esgotamento do espaço
urbano como fonte de sua poesia. Por ter iniciado um novo tipo de convívio com os espaços
que lhe trarão novas poesias, chamam-no também de mochileiro do inframundo” e
“boxeador mediúnico”. Nessa entrevista comentam que sua poesia se choca entre vetores
culturais como a vanguarda concreta e a Contracultura; o rock e o jazz; o tropicalismo e a
música de protesto; o psicodelismo e a ditadura militar; as esquerdas e a TFP; o Vietnã e o
Woodstock etc.
Essas dicotomias, no entanto, não parecem fundamentadas, mas fruto de uma
leitura um tanto entusiasmada e superficial na busca de um folclore que não condiz com as
posições de Piva, nem como poeta, nem como indivíduo. Muitos desses “vetores culturais”
não estão apontados para polos opostos, mas seriam ambos „atacáveis‟, sem essa escolha que
mencionaram como os „vetores‟ rock e jazz, em que Piva, definitivamente, abraça a ambos
(além da bossa nova e da música erudita, que ele deixa entrever em seus poemas, quando não
os evoca diretamente). Por outro lado, nunca houve escolhas entre as esquerdas e a TFP,
que, para Piva, seriam investidas de um paramilitarismo inaceitável e inegociável, tornando-as
alvos frequentes em suas obras, e assim, esses comentários, surgiram, ao que parece da
tentativa de folclorizar a figura de Roberto Piva, com interesses mais publicitários do que
jornalístico (ou muito menos, analíticos). A vocação para lenda urbana parece sempre se
renovar.
Weintraub comenta que um de seus leitores, o também poeta Felipe Fortuna elogia
sua obra, mais pela qualidade literária da obra em si, do que pela radicalidade das
experiências tematizadas como homoerotismo, drogas etc., ao que Piva retruca:
67
A qualidade do arremate literário não exclui a radicalidade das experiências
que estão na origem do poema... o dionisismo é uma das religiões mais
profundas que existiram. Basta ver que uma de suas manifestações
produziu o teatro, arte que proclamava a sabedoria em sua própria
embriaguez [...]
113
E conclui:
Vivemos num país profundamente dionisíaco, onde os intelectuais têm
preconceito contra as manifestações espontâneas, criativas. Mesmo o fato de
me enquadrarem na poesia marginal, dos anos 70, tem a ver com isso. Eu
não sou dos anos 70 e não sou marginal; sou marginalizado. E por não ter
pactuado com a universidade, com uma certa esquerda, por não participar
das rodas literárias, nem dos chás-da-cinco”, aos poucos fui sendo
excluído
114
.
Devido a esse jogo de subleituras, referências, citações diretas ou indiretas,
assinalar suas influências, passa a ser o primeiro desafio e exigência de todo leitor,
comentador, ou ensaísta, passando a um largo rol guiado por associações ou diretamente
apontado pelo próprio poeta. Para ele, que sorve tudo que lhe estimula, não existe o “baixo e o
alto” da cultura - não havendo desnível entre Blake e o gibi, que ambos preencheram seu
espírito de novas sensações e percepções do mundo contemporâneo. E, aos que tentam
enquadrá-lo no grupo dos “poetas reflexivos”, como foi a leitura de Flora Sussekind, restou a
sensação de esforço no ajuste da obra em uma etiqueta
115
.
Sussekind tentará enfileirá-lo junto a Sebastião Uchoa Leite e Ronaldo Brito,
quando reconhece no processo criativo desses poetas outra vertente, deslocando-se da
tendência dos anos „70, a que chama de “poesia autoexpressiva”, quando o eu, efusivo e
engraçadinho ousava mostrar uma imagem desencanada” e leve, ou como ela mesma diz de
tom relaxado e cheio de gracinhas de poetas como Chacal, Charles e Ledusha. A autora
percebe que surge, em meados dos anos 80, incluindo em sua análise o 20 poemas com
brócoli, de Piva, juntamente com os outros poetas citados, uma poesia “com um pé na
filosofia, outro na literatura [...]
116
”. Mas essa leitura se esvanece quando percebemos que, a
filosofia bem estudada nos outros poetas dessa vertente, produz uma obra séria, polida, cheia
de maneirismo, como o poema “Asmas” de Ronaldo Brito
117
, onde lemos:
113
Para a Revista eletrônica do Memorial da América Latina, op.cit.
114
WEINTRAUB, Idem.
115
SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida literária: polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985. (Brasil: os anos de autoritarismo). p. 84.
116
Idem, p. 84.
117
Idem, p. 84-5.
68
A vida não
tudo menos esta
palavra mágica
o mundo talvez
a hipótese de mundo
metáfora sintoma
o texto silêncio
consente o mundo nada
a vida não
língua morta
Pela leitura de Sussekind a nova “poesia reflexiva” mais recente (referindo-se a
produzida nos anos „80, quando publica o ensaio), abandona o “registro milimétrico da vida,
do dia-a-dia. Passa a refletir sobre vida, mundo, acontecimento enquanto noções [...]”. Mas o
confuso é que Piva não combina com essa nova linha poética, ainda que denote domínio de
Filosofia e Literatura, como ela mesma percebe. A diferença que confunde a autora é que a
filosofia não é adereço, nem é jogo estético, ou como escreve: “poesia em tom próximo ao
conceitual”
118
. A poesia de Piva já deglutiu a filosofia, incorporando-a a seu arsenal de
leituras-de-mundo.
A filosofia em Piva não está mais nas prateleiras, nem enfeita mais a sala. não é
mais erudita, o é fina, não é alta, não é divina. A Filosofia é mais uma lente que se soma à
outra, e àquela outra, e mais aquelazinha esquecida na infância, que vão se embolando, se
amalgamando, cozinhando num caldo grosso de palavras ariscas como pimentas de
condimentar sensações. Em seu caldo poético somam-se filosofia, literatura, política, história
e, como ele faz questão de frisar: “futebol, cinema, gibi, Hegel e muito troca-troca”
119
.
I
120
última locomotiva. gregos de Homero
sonhando dentro do chapéu de palha.
últimas vozes antes dos lábios &
dos cabelos. sonoterapia voraz.
você adora as folhas que caem
no lago escuro
este é o banquete do poeta
118
Idem, p. 85.
119
In entrevista a WEINTRAUB e DAMAZIO et alli. op.cit.
120
De 20 poemas com brócoli, in Mala na mão... op. cit. p. 96.
69
sempre
querendo
penetrar
no caroço
da verdade.
nariz do garoto negro apontando para
a praça apinhada de tucanos sambistas.
você tranca o planeta.
E será frequente essa percepção de uma erudição que irá marcar os poemas
pivianos, principalmente porque sempre estarão na ponta de seu olhar, ao lado dos gibis, das
orgias, dos barulhos dos ventos nas florestas, que misturados, forneceram uma biblioteca
fascinante transposta aos versos. De qualquer modo, essa biblioteca tem sido uma frequente
referência entre seus comentadores e apresentadores, até porque, imagina-se, podem amansar
o impacto de seus muitos sons, tons e sentidos obscenos.
Há que se frisar, a despeito de suas múltiplas referências artísticas, que
assistimos inúmeras citações desfilarem por seus versos, uma deferência acintosa pela
literatura. Alcir Pécora também percebe que Piva escreve “colado” à grande riqueza literária a
seu dispor, observando que se trata de “literatura embebida em literatura”
121
. Ainda que sejam
citados e comentados compositores, artistas plásticos, musicistas e atores, será sobre a
literatura que, grande parte de suas citações e jogos ético-estéticos ocorrerão. Como a
avalanche é, mesmo de uma dimensão impressionante, seus comentadores, críticos e leitores,
acabam por fazer menção à caudal tão vasto. Para os que estão sendo apresentados, faz-se
quase obrigatório explicar a facilidade como escorrega de um para outro, dentro ou fora do
mesmo diapasão emocional.
Neste quadro, essas imagens, compondo grande painel em retalhos, captura um
cortejo cultural, o arsenal que lhe dará os meios. E o se restringirá a um universo cultural
ou outro, que seja erudito, pop ou tradicional, que seja historiográfico ou sagrado, mas todos
os matizes farão parte de sua paleta com intimidade e sem cuidados. Arrigucci comenta: “Ele
transformou a grande herança cultural do Ocidente, num patrimônio pessoal”
122
.
121
Prefácio para Um estrangeiro..., op. cit., p. 14.
122
In DIOS. op. cit.
70
João Silvério Trevisan
123
cita os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William
Blake, em seu curso à vida interior contatando o sagrado, depois cita alguns dentre os
expressionistas alemães como Gottfried Benn e Georg Trakl, onde soma visões de
pessimismo, alimentado por seu contato com Friedrich Nietzsche. Acrescenta ainda os
visionários franceses Rimbaud e Lautréamont, que extrapolam os limites da expressão
racional, mergulhando num desregramento de todos os sentidos na busca do poético. Segundo
Trevisan, passa a cultivar o Surrealismo em sua vertente francesa de André Breton e Antonin
Artaud, mas também recebe influência dos futuristas italianos, com seu culto à fragmentação
moderna. Na música, ele reconhece expressões do jazz e da bossa nova, por sua estilística
fragmentada e atemática, que também já havia influenciado a beat generation, além de
aprovar a aproximação entre o contemporâneo e o arcaico, misturando e confundindo
costumes de tempos diversos.
Em seu ensaio, Trevisan ainda observa a influência de Píer Paolo Pasolini após os
anos setenta, com suas „caminhadas pelas frinchas do paradoxo‟, mas não deixa de reconhecer
a influência de vários poetas brasileiros como o Surrealismo de Murilo Mendes, com sua
intensidade, espontaneísmo, sensorialismo, longe da gica dos franceses, bem como de Jorge
de Lima, um visionário atormentado e barroco. Mas a galeria de influências não para por aí,
pois Trevisan ainda identifica fortes doses de influência da cultura xamânica dos índios
brasileiros, além do candomblé, aprendidos por suas caminhadas pela represa de Mairiporã,
serra da Cantareira, serra de Jarinu, na busca de ligações com a natureza mais primária e
sagrada. Percursos apontados pelo próprio Piva, desde sua autobiografia, quando comenta o
impacto dessas culturas em sua vida, em sua obra e travessia mística.
Para Cláudio Willer, apenas em seu primeiro livro, Paranoia, ele identifica Jorge
de Lima (em Panfletário do Caos), Murilo Mendes, Laeutréamont, Garcia Lorca, Mário de
Andrade, Allen Ginsberg, além dos citados e identificados por Trevisan
124
. E Willer, na
tentativa de explicar obstáculos à aceitação da obra de Piva, sugere que o problema talvez não
resida no uso de palavrões e blasfêmias, mas na densidade, e em não se situar ou enquadrar
em nenhuma das correntes de poesia brasileira. Nem na poesia marginal, ou na poesia
engajada, ou licenciosa aos moldes de Glauco Matoso, nem tampouco como Sebastião Nunes,
onde “o humor negro e os discursos do baixo-corporal resultam em uma carnavalização
123
TREVISAN. A arte de transgredir. op.cit.
124
WILLER, Cláudio. Piazzas de Roberto Piva: fruição, contemplação e o misticismo do corpo. In: Revista de
cultura Agulha, n. 40. Fortaleza/São Paulo, agosto de 2004. Acessado em dezembro de 2007. Disponível em
www.revista.agulha.nom.br/ag40piva.htm
71
pornográfica”
125
, que espelharia apenas uma pequena parcela das inquietações poéticas de
Piva.
Quanto ao seu livro Ciclones, obra de sua terceira fase, quando sua inclinação
mística se torna explícita, Willer percebe um alinhamento de Piva aos chamados “magos”
como Paracelso, Julius Evola, e aos poetas Nerval, Rimbaud, Malcolm de Chazal, William
Blake, René Crevel, além de, num “sincretismo anárquico e pessoal”, associando Nerval,
Fernando Pessoa, os templários e Lao Tsé (!).
Outro de seus comentaristas, Carlos Augusto Lima (em Tempo de fúria e mancha),
assinala suas maiores referências entre Isaac Asimov, Nietzsche, Mário de Andrade, Murilo
Mendes, Blake e Artaud.
para Lucas Moreira Santos (em A catedral da desordem) suas bases mais certas
estariam entre Breton e Nietzsche.
Felipe Fortuna, (de Roberto Piva: Pivô da Anarquia), encontramos uma filiação
diversa, somando Aretino e Jean Genet, além de julgar que sua obra percorra de Gregório de
Matos a Jack Kerouac, passando pelos citados Murilo Mendes, Lautréamont, Rimbaud,
Bataille (em referência sutil à pederastia), Dante Alighieri (quando do cenário dos sodomitas
condenados ao Inferno) e mais Jorge de Lima, assumidos todos por Piva, explicitamente.
Também Jotabê Medeiros (em Símbolo da metrópole dos anos 60 é reeditado),
percebe nitidamente Walt Whitman (quando escreve divorciando linguagem poética de sua
ressonância visual), além de toda a versificação beatnik, a urbanidade de um Allen Ginsberg,
mas também reconhece Fernando Pessoa e Murilo Mendes.
Para Ricardo Lima (em Poeta em pele de tigre), é fundamental citar sua formação
intelectual que ele identifica claramente em Nietzsche, Kierkegaard e Heidegger, além dos
surrealistas como Artaud e a Beat Generation. Mas também repara que sua linguagem
fragmentada teria origem no cinema, bem como explícitos apoios nos pintores como Bosch,
De Chirico, Caravaggio e outros escritores que não chega a nominar.
E as tentativas de filiações o acabam por aí. Vários outros ainda percebem
Leopardi, Gide, Dostoievski, Lorca, Mário de Andrade, como diz Fábio Weintraub (em A
Pauliceia paranoica de Piva). E a lista é quase inesgotável, ainda que se repita em grande
medida. O fato é que esses alinhamentos não estão nas entrelinhas, não estão escamoteados,
mas fazem parte das próprias palavras que Piva usa para compor os versos.
125
Idem, ibdem.
72
O poeta se cercará de todos os seus livros, suas referências, seus fantasmas, para se
lançar no mar das palavras. Piva nunca tenta estar sozinho, num fazer sagrado do poeta tocado
pelo dom maior. Piva investe na vida carregando sua enorme biblioteca. É ele mesmo que nos
as pistas, evocando em meio aos poemas, ou nos títulos, ou em dedicatórias. Lemos os
nomes de poetas Rilke, Álvares de Azevedo, pintores como Bruegel e Picasso, músicos como
Barney Kessel, Villa-Lobos, Bach e Jorge Ben, além de citações de Dostoievsky e Machado
de Assis, e de entidades diversas como Orfeu e Baco, o vasto panteão grego, os orixás e
animais de poder de um panteísmo anímico e disperso. Piva se envolvido, inspirado,
associado por estes e tantos outros artistas de muitas e quase todas as artes e eras. Sempre se
sabendo rodeado, sempre se servindo com liberdade.
73
Foto: WESLEY DUKE LEE - 1963
74
Capítulo II - 1ª FASE:
CORPOS NA CIDADE SURREALISTA
A vida só parecia digna de ser vivida quando
se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília [...]
de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta
para inserir a pequena moeda a que chamamos “sentido”.
Walter Benjamin
Este capítulo se propõe a estudar detalhadamente o primeiro livro lançado e
editado em 2005, de suas Obras Reunidas, Um estrangeiro na legião, cujo título Piva explica
logo em sua abertura. Retirando uma passagem da História da filosofia oculta, Surane
Alexandrian ensina:
Os gnósticos modernos são também aqueles que procuram os pontos de
concordância de todas as religiões, que reivindicam uma moral
anticonformista, uma tomada de consciência das instituições do pensamento
mágico, enfim, todos o que propõe um método de salvação aos seres que se
sentem “estrangeiros” neste mundo.
Como anunciado, esse primeiro volume irá cobrir sua produção desde 1958 até o
ano do golpe militar, reunindo seus dois livros iniciais, um de 1963 (com criações de 1958,
quando Piva tinha apenas vinte e um anos, até 1962) e outro de 1964.
Os poemas desse período refletem as vivências que o poeta passa junto a um
grupo de amigos que se estranham, mas também se encantam e se divertem com a cidade,
percorrendo suas ruas e extraindo delas material para suas obras, espíritos, afetos e ação
política.
Esses dois livros que farão parte do primeiro volume de suas Obras Reunidas
correspondem à sua primeira fase chamada Surrealista e Beat. Essa classificação, anunciada
e mantida por vários leitores e comentadores, engloba os livros Paranoia e o Piazzas. São
poemas de andanças, vivências e delírios, pelas praças e ruas de uma São Paulo em franca
transformação. Também estarão reunidos neste volume o primeiro poema em circulação, sua
„Ode a Fernando Pessoa‟, além dos manifestos produzidos nesse período reunidos sob o
título de „Os que viram a carcaça‟.
75
Interessante mencionar o lançamento original de Paranoia, uma joia editorial do
editor utópico Massao Ohno. Essa pequena editora ousou, durante os anos „60, „70 e „80,
lançar poetas, cujos livros tornavam-se joias disputadas. Ousado nas ilustrações, nos
formatos, os livros editados pelo Massao eram de poesia, o grande filão desprezado pelas
editoras e livrarias comerciais. Por sua ousadia e bom gosto, Massao furou barreiras das mais
diversas: da censura, da indiferença, da distribuição, do cuidado com os jovens poetas, do
lançamento de uma geração, a qual ele chamou de „Os Novíssimos‟ e que se tornou um
marco na história da literatura nacional.
Paranoia, obra inaugural do poeta, foi publicada com as fotos caleidoscópicas e
fantasmagóricas de seu então parceiro de andanças e grande amigo, Wesley Duke Lee. Falar
em Duke Lee não é pouco. Esse artista plástico, mesmo antes da fundação da Escola Rex e da
Escola Brasil, quando então seu nome rompeu as fronteiras da cidade e do país, vinha
demonstrando um grande impacto devido às pesquisas que empreendia em suas telas,
excursionando com a palavra em misturas plásticas pelas tintas, em suportes até então pouco
visitados. Daí podermos inferir a influência das palavras e seu uso plástico na obra de Duke
Lee, desde suas excursões com seu amigo, mergulhado nas palavras misturando-as às
imagens e tintas, sobre a lona esticada de seus quadros. As andanças dos dois amigos pelas
ruas e praças da cidade irão produzir essa obra de grande beleza e perturbação visual, em que
o verso se engastalha nas imagens cortantes como vidraças quebradas, e palavras de lâminas
entesouram novos ângulos imponderáveis. Felizmente, o Instituto Moreira Salles, no ano de
2000, tornou a editar aos moldes originais do velho Massao Ohno, incluindo a preciosa
parceria com Wesley Duke Lee.
Em 1964, quando recém publicara seus dois primeiros livros, Piva escreve um
„Posfácio‟ esclarecendo a visão sobre eles:
Procurei de uma forma blasfematória (Paranoia) ou numa contemplação
além do bem & do mal (Piazzas) a la Nietzsche explicar minha revolta &
ajudar muitos a superar esta Tristeza Bíblica de todos nós, absortos num
Paraíso Desumanizado, reprimido aqui & agora
126
.
Cláudio Willer, um de seus parceiros mais constantes daquele período, irá
rememorar os anos sessenta em São Paulo quando ele, Piva e seu „grupo de estranhos‟,
circulavam atrás de conhecimentos, vivências e experiências (de acordo com a distinção feita
por Walter Benjamin) por uma quase pacata São Paulo de então:
126
„Postfácioao Um estrangeiro na legião. Obras Reunidas, Volume I; organização Alcir Pécora. São Paulo:
Globo, 2005. p. 129.
76
Nosso antiburguesismo militante tinha a ver com o grau extremo de caretice,
de moralismo, de provincianismo da burguesia paulista da época [...], que foi
se dissolvendo ao longo dos anos 60, naquele período mais
Contracultural
127
.
Se o vídeo de Ugo Giorgetti, Uma outra cidade
128
, tem a penetração imediata por
sua informalidade e descontração, própria de um encontro entre velhos amigos, um texto
muito citado a respeito desse período complementa o vídeo, esmiuçando alguns aspectos
dispersos entre saudades e risadas. Trata-se do „Meditações de emergência‟
129
, em que Willer
conta as andanças dos amigos por uma São Paulo, quando “uma turma se dedicava metade do
tempo a ouvir ópera e a outra metade a armar confusões”.
Esse grupo, aos moldes da Beat Generation, quando a existência e manutenção do
grupo de amigos fez diferença sobre outros movimentos culturais ocorridos anteriormente,
percorria eventos da cidade, acompanhando mostras de outras linguagens como o cinema da
Nouvelle Vague e o realismo italiano, e saíam para assistir a Sartre no teatro João Caetano e
no Cultura Artística, estudando Heidegger em grupo, enfim, o estreitamento da comunicação
entre cultura e vida, diferente da cultura livresca da academia, a que o Celso chamou de
Universotário, com a cisão entre cultura e vida. Ele conta como esses encontros não possuíam
outro filtro que o fosse o interesse por arte, cultura e claro, andanças e desatinos. Narra a
presença de um amigo criminoso, um delinquente romântico que, além da bandidagem, citava
Baudelaire e sabia de cor as Litanias a Satã de Flores do Mal.
Nessa entrevista Willer lembra também da coleção de revistas do Surrealismo
francês La Brèche que Piva colecionava e que foi seminal na formação de todo o grupo,
quando se reuniam em um bar para ações surrealistas
130
. Essa proximidade perdurou até 1968
com o golpe sobre o golpe militar e o recrudescimento das arbitrariedades em plena rua. Mas
de fato, por outro lado, Willer reconhece que, por esse tempo também, eles estavam
casando, e mesmo que não, foi um tempo em que projetos pessoais foram apartando,
naturalmente, aqueles percursos notívagos dos amigos.
127
WILLER. 'Meditações de emergência'. In Agulha, n. 34, São Paulo/Fortaleza, maio de 2003. Disponível pelo
endereço www.revista.agulha.nom.br/ag34willer.htm, acessado em dezembro de 2007.
128
Vídeo comentado na página 28 desta tese.
129
„Meditações... faz parte de uma série de entrevistas feitas por Roberto Piva sobre poetas e poesia em 1997,
para um projeto da FUNARTE, órgão vinculado ao Ministério da Cultura e que, ao que tudo indica, se perdeu
com a desativação do site da instituição. A entrevista feita com Willer não se perdeu também por uma
questão de interesse do próprio entrevistado, garantindo que esta, pelo menos, não se perdesse. A entrevista foi
re-editada por Willer na Revista eletrônica Agulha n. 34, op.cit., quando tivemos a oportunidade de lê-la.
130
Ações Surrealistas: essa ideia, embora muito curiosa, e mesmo saborosa, não se fez clara, a despeito de tantas
buscas.
77
Conta ainda que havia uma discordância entre o grupo surrealista, e seu grupo,
com relação ao valor da geração beat. E completa: “Para mim o movimento beat foi
fundamental porque foi a primeira vez em que a rebelião poética se transformou em
movimento social”. Enquanto para Sergio Lima, o surrealista que encabeçou a implantação
do Surrealismo no país, essa diversificação de interesses, leituras e envolvimentos,
significava uma espécie de abandono do movimento surrealista, enquanto que para o grupo de
amigos de Piva, o movimento beat apenas reforçava e atualizava as ideias expostas em 1929
por Breton. A beat e seus poetas nômades e desvairados (mais na imagem e na obra do que na
realidade de cada um, diga-se de passagem), traziam o impacto da grande cidade (Nova York)
que os jovens poetas começavam a experimentar aqui, com a implantação e ampliação do
parque industrial de São Paulo.
Willer também aponta um dos alvos de seus antagonismos, que era a poesia
formalista „bem comportada‟ de Lindolf Bell, dos concretistas, que também engessavam uma
fonte de existência, pelo jogo lúdico visual, além das concepções artísticas do PC, “o
Partidão”, em que o “eu” não participava do projeto coletivo.
Ao contrário desses acontecimentos do período, partiram para, efetivamente,
assumir o entorno, o meio, como área de trocas, de um sensorialismo cosmopolita e panteísta,
antecipando a grande metrópole que São Paulo estava prestes a se tornar (Willer comenta
como „sentiam no ar‟ essa vocação para grande metrópole da cidade). Buscavam uma sintonia
com o resto do mundo, revalorizações que eram trazidas pelo experimentalismo surrealista e
pelo desenraizamento do movimento beat, acelerando deslocamentos e buscas febris.
2.1. O SURREALISMO E A BEAT: Delírios na face da cidade
Em matéria de arrancar o homem de si mesmo,
há o Surrealismo e mais nada.
Georges Bataille.
Dar nome à dor, ao pesadelo, à deformidade, ao abuso, ao escuro medo, é se furtar
ao abismo. Dar forma ao monstro é apaziguá-lo, é negociar com ele um topos, uma
classificação, uma domesticação. Por isso o Surrealismo é uma via certeira de, sendo
perfeitamente incerto, espalhar-se do sonho ao combate, sem facilitar um discurso que se faz
cínico e sofista, para impugnar a grandeza que se sabe natural, ainda que perfeitamente
informe, e, portanto, não conforme a necessidade da produtividade. Porém, que não se
engane o não-sentido, com o não-existente, mas sim, com pontas soltas, como falar em
78
fractais, falar com pontas e deslocamentos, somando para a grande paisagem de uma
subjetividade perdida para as palavras definitivas e utilitárias. Daí o Surrealismo ser um jogo
de abismos. Artaud é contundente:
Toda a escritura é uma porcaria. As pessoas que saem do vago para tentar
precisar seja o que for do que se passa em seu pensamento são porcos. Todo
o mundo literário é porco, e especialmente o deste tempo... Todos aqueles
para quem as palavras m um sentido, todos aqueles para quem existem
altitudes na alma, e correntes no pensamento, aqueles que são espírito da
época, e que nomearam essas correntes de pensamento... são porcos
131
.
Embora saibamos que sem explicar, concatenadamente, essa fúria caudalosa não
se veicula a tais ideias, o que nos tranca em oxímoros complacentes, mas ainda assim, o
Surrealismo guarda sua forte identificação com ideias libertárias, abraçando mais e infinitas
contradições.
Na tentativa de explicar melhor a separação, ou o, entre vida e poesia, ou arte
em geral, Antonin Artaud, que pagou um alto preço por seu comprometimento, teve um
advogado adorável, na ficção de João Silvério Trevisan
132
, quando numa Assembleia
estranhíssima com os grandes escritores do mundo, o próprio Artaud explica: “a poesia por
nós criada não está à margem. Ela faz parte de nossas vidas [...] quem quiser conhecer a
minha obra deve ler a minha vida”
133
. E se não fosse uma comédia, diria que Trevisan
“psicografou” essa frase diretamente de Artaud.
O tempestivo movimento surrealista foi marcante, por suas obras e atores, mas
também pela ousadia de suas ideias. Como diz Paz, no caso da poesia, esta não salva o eu do
poeta, mas “dissolve-o na realidade mais vasta e poderosa da fala”
134
. E sua radicalidade,
rejeição e escândalo repousam exatamente na aceitação do OUTRO, quando “nega a ilusória
coerência e segurança de nossa consciência, esse pilar de nuvem que sustenta nossas
arrogantes construções filosóficas e religiosas
135
.
131
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 209.
132
TREVISAN, João Silvério. O livro do avesso / O avesso do livro. São Paulo: Ars Poetica, 1992. Nessa novela
Trevisan brinca com a condição de um autor-personagem que coloca seu criador na mesma condição,
julgando-o perante a „história da literatura‟. Promove então uma Assembleia onde o plágio, reconhecido e
apontado, torna-se „reciclagem‟ necessária à criação e à vida em geral. A riqueza de sua discussão envolve
figuras chaves da literatura, das artes e da filosofia, colocando em cheque auras, dogmas, totens e tabus da
criação artística e da postura ética em geral. Humor e crítica relembram o Artaud ousado, polemista e intenso
que o original sempre demonstrou ser.
133
Idem, p. 57.
134
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. (série Crítica). (Coleção Debates, n.
48). p. 222.
135
PAZ. Idem, p. 225.
79
Essa liberdade surrealista sonhou juntar-se a outro guerreiro libertário, o
anarquismo, e em 1951 os dois movimentos trabalharam juntos, quando um grupo de
surrealistas, dentre os quais André Breton, Benjamin Péret, Jean Schuster, Jean-Louis
Bédouin e Adonis Kyrou, colaborou durante quase dois anos com o jornal anarquista Le
Libertaire, da Federação Anarquista francesa, publicando inclusive um manifesto intitulado:
Surrealismo e Anarquismo, assumindo essa fusão heterogênea, que se revelou em seguida,
passageira, principalmente devido aos militantes anarquistas, rígidos moralmente, que
julgavam que a arte deveria ser realista, concreta, popular, e até, se possível, populista (!).
Assim, os dois grupos não atravessaram o ano de 1953, mas deixaram alguns artigos e
manifestações dessa convivência que, o deu certo, por seus militantes, mas que pelas
ideias, verifica-se facilmente, suas afinidades
136
.
Anarquismo e Surrealismo têm de fato pontos comuns, tanto de origem (motivos)
quanto de destino (projeto). Um dos princípios que ambos atacam é o uso político que a razão
cientificista fez das coletividades mantidas sempre à distância segura dos projetos de
usurpação do poder. A evidência de tal projeto mais o isolamento de suas denúncias tornaram
seus movimentos presas fáceis de seus detratores, uma vez que, de posse dos meios de
veiculação de ideias, seja o púlpito, a escola, enfim, todas as instituições já exaustivamente
arroladas por Foucault, Stuart Hall e outros depois deles, esvaziavam suas fúrias. Aos
surrealistas, deu-se a pecha de sonhadores drogados, irresponsáveis e inconsequentes,
enquanto os anarquistas, deturpando a base de seus princípios, foram tido por sórdidos
veiculadores do caos, pois, distorcendo, propositadamente suas críticas às hierarquias, os
acusam de defensores de um viver sem regras, associando-os ao perigo da selvageria
desenfreada. Assim, o surrealista passou a ser tido por um “porra-louca” e todo anarquista
tido por vândalo selvagem. Essas simplificações grosseiras têm-se demonstrado muito
eficazes no combate aos movimentos opositores ao sistema vigente, pois possuem um apelo
bastante imagético, de cil circulação publicitária. O cientificismo fez morada em mentes
assustadiças e humilhadas levadas a reverenciar acriticamente tudo o que diz a „santa madre
ciência‟, além de todas as doutrinas levadas pela idolatria dos incautos.
Podemos concordar que o cientificismo do século XIX tenha sido um
aperfeiçoamento do racionalismo aristotélico que, na tentativa de controlar explosões mágicas
e místicas da antiguidade, por uma ordem mais apolínea, previsível e confiável, extrapolou
136
COELHO, Pnio A. (seleção). Surrealismo e Anarquismo. São Paulo: Ed. Imaginário / Tesão A Casa do
Soma / Nu-Sol Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais da PUC-SP, 2001. (Coleção Escritos Anarquistas, n. 15).
80
para outras, de preferência todas as áreas de manifestação humana. E seguiu contagiando
Longino, Quintiliano, Horácio, até na modernidade clássica de Nicolas Boileau-Despréaux,
em sua A Arte Poética, de 1697, em que a mesma regra segue se impondo: “A arte literária é
uma imitação da natureza, sendo, pois a verdade o seu ideal - o homem na sua verdade eterna;
a arte não pode prescindir da razão”
137
. Mas a razão acabou tida por totalitária porque, “em
sua necessidade ávida de universalidade, ela conhece a unidade, o que equivale a levar à
destruição de todas as singularidades”
138
.
Daí a propriedade daquele que pagou seus últimos suspiros pela subjetividade mais
espraiada. Piva circula na ideia abissal de confrontar o racionalismo em uma tônica que beira
a insanidade - prazer e descontrole - em uma chave mais monstruosa do desejo. Ele revisita
seus sonhos, nossos pesadelos, carcaças de preconceitos, entulhos de pobres angústias,
misturando e confundindo percursos mentais, tornando ridículas lições de asseio, higiene,
saúde corporais, beleza apolínea, comedimento, etiqueta, refinamento, e todo o arcabouço que
dirigiu corpos cristãos com mãos de ferro, desde o século XVII quando, finalmente, a ciência
pôde justificar pela lógica, seu grande aparato disciplinador para o controle.
HOMENAGEM AO MARQUÊS DE SADE
139
O Marquês de Sade vai serpenteando menstruado por
máquinas & outras vísceras
imperador sobre-humano pedalando a Ursa maior no
tórax do Oceano
onde o crocodilo vira o pescoço & acorda a flor louca
cruzando a mente num suspiro
é aéreo o intestino acústico onde ele deita com o vasto
peixe da tristeza violentando os muros de sacarina
ele se ajoelha na laje cor do Tempo com o grito das
Minervas em seus olhos
o grande cu de fogo de artifício incha este espelho de
adolescentes com uma duna em cada mão
as feridas vegetais libertam os rochedos de carne
137
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 8.
138
MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior - ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: UNESP, 2002. p.
11.
139
De Piazzas, in Um estrangeiro... op. cit., p. 80-1.
81
empilhadas na Catástrofe
um menino que passava comprimiu o dorso descabelado
da mãe uivando na janela
a fragata engraxada nos caminhos da sobrancelha
calcina
o chicote de ar do Marquês de Sade
no queixo das chaminés
falta ao mundo uma partitura ardente como omen
dos pesadelos
os edifícios crescem pra que eu possa praticar amor
nos pavimentos
o Marquês de Sade pôs fogo nos ossos dos pianistas que
rachavam como batatas
ele avança com tesouras afiadas tomando as nuvens de
assalto
ele sopra um planador na direção de um corvo agonizante
ele me dilacera & me protege contra o surdo século de
quedas abstratas
Piva expõe vísceras do grande mestre do sacrifício sacrílego, vilão amante de
tantos uivos de prazer, filósofo do rompimento aos berros de saúde contra o sagrado
perverso. O poeta o coloca atravessando os céus de seu próprio percurso, onde todos os duros
se amolecem frente à evidência do confronto horror dos horrores a violência é safa e
santa!
E sem pontuação, num fôlego que nos rouba, desfila Sade por praças calcinadas,
impondo sua o ortodoxia sexual, cruzando trajetos loucos e engrenagens sangrentas e
dentadas. Seu Marquês caminha com os deuses pelos olhos e cus - orifícios de fogo de
artifício, conclamando pelo poder do hímen dos pesadelos, fazendo chacota do acúmulo de
concreto que amplia territórios do amor, e resta confiante, homenageando o grande
calcinador de escrúpulos e pudores, sob a proteção do Anjo-Demiurgo que o protege „contra
o surdo século de quedas abstratas‟ que não se apalpa, mas vai corroendo e minando,
empurrando para um coletivo de auto-horror anjos de impregnar culpa aos sangues que se
quer escorrendo como mênstruos pelas praças da cidade.
82
Para que Piva possa jogar com tais imagens conflituosas, construindo
analogias tão inesperadas, ele tem que viver na embriaguez e, em todas as
maneiras que o mantenham sempre, à beira do abismo. Piva é um poeta do
abissal
140
.
.
E como dizer que o, se o Surrealismo é alegórico! Assistirmos a Sade, o grande
agente erótico-obsceno, sangrando pelas pernas, em pleno fluxo amoroso-reprodutivo nas
praças de São Paulo? Cronotopos produzem a confusão de corpos, de funções, de disfunções,
papéis, poderes, capacidades, classes sociais e tempos históricos. Transladado pelo poder da
transgressão, do humor, da palavra, da transformação de corpos para o universo do poder
erótico difuso e andrógino menos aqui, mais para ali, aproximando corpos no direito ao
prazer.
Invertendo e debochando, slogans da esquerda clássica passam por sua lente
carnavalizada: “O coito anal derruba o capital!” bradou o poeta, o sem clareza sobre seu
alvo certo. Rindo, o jogo de corpo, pecado, ascetismo religioso e disponível para o trabalho e
todos os desígnios sagrados, sejam dos céus, sejam de um cotidiano irreprovável.
Anos depois, em 1979, Piva tornará a lhe prestar homenagem com seu „Porno-
Samba para o Marquês de Sade‟ no livro Coxas: Sex fiction & delírios.
A primeira fase criativa de Roberto Piva está associada também, a esse
movimento artístico-cultural estadunidense que ganhou as manchetes, mais como escândalo
do que como escola” ou estilo, o Beat. Esse movimento acabou por enterrar uma cunha
crítica sobre o comportamento de uma geração, demonstrando o esgotamento da fórmula pela
manutenção da ordem constituída. Essa “organização” foi exatamente o objeto principal de
estudos de Foucault, além de uma geração de estudiosos de um momento de transição, que
explodiria no movimento de maio de 1968”, contra o projeto de controle que atingiria seu
aperfeiçoamento repressor no século XIX.
No período em que Piva está concebendo seus livros, o movimento beat bebera
na fonte surrealista e se apropriara de suas técnicas de „fluxo automático‟. Quando se pensa
em Beat Generation, lembra-se de experimentalismo e de seu profundo desprezo pelo
formalismo. O grupo dos anos „60 no Brasil atravessa os mesmo anseios e encara a mesma
ousadia não apenas formal, estrutural, mas também estético-político, sem pretender ser
coloquial ou naturalista, implodindo mesmo assim, o academicismo poético, muitos anos
antes da Geração Mimeógrafo dos anos setenta. A obra de Piva irá proporcionar uniões até
então impensadas, como o Futurismo de Maiakovski, o Surrealismo de Artaud, o Dadaísmo,
140
ARRIGUCCI in DIOS. Assombração Urbana... op.cit.
83
colagens cubistas, os haikais orientais e outra multidão de “colaboradores” como Garcia
Lorca e outros mais.
Em geral seus colaboradores, como próprio Piva, associaram vida e obra,
buscando radicalizações viscerais em suas opções, em suas opiniões, em seus poemas.
Rimbaud rechaçou a chance de uma carreira na capital do país, com grande aceitação nos
meios intelectuais e artísticos, trocando por uma vida de aventuras cheia de violência e
condições de vida obscuras e mesmo rudes, responsáveis inclusive, pelo encurtamento de sua
vida, tamanho desregramento. Seu gesto marcará sua vida e obra. Anos depois, uma geração
de inconformados misturou Rimbaud numa poção explosiva: muitas doses de Rimbaud, o
Surrealismo de Artaud, Whitman, Budismo, o negro Jazz, muita bebida barata, e produziram
o primeiro movimento juvenil da história do ocidente, que incluía comportamento político e
estético, usando a poesia para criticar, blasfemar e desmontar um aparato elitista dos poetas
engalanados, o Movimento Beat.
De vertigens e nomadismos James Dean assumiu a personagem. Valendo-se da
mídia ou não, o fato é que se fez militante involuntário desse movimento indefinido, que se
instalava, sobretudo, em uma faixa etária que até então era julgada como um período
“encubador”, em que se gesta um adulto muito em breve exposto à sociedade, ou seja, a
primeira fase da Juventude, mais tarde chamada (e hipervalorizada) adolescência. O ator
estrelaria, mais do que seus filmes sobre jovens revoltados e violentos, uma imagem
fulgurante, errática e visceral projetando-se com ímpeto sobre desejos que se recusava a
conter. Por razões um tanto indeterminadas, tem seu carro jogado contra um poste e morre
muito jovem. Sua morte transforma-o em ícone de uma militância imprecisa, que começa a
se delinear com vertente romântica, e por isso mesmo, sedutora. Viver muito, com muita
intensidade e com sorte, morrer cedo. Esse comportamento adquire como que um aval,
estigma ou grife de alta qualidade: o Die Young. Viver intensamente implicaria em esgotar o
corpo em infinitas sensações, quimicamente induzidas, ou por adrenalinas naturais, incluindo
velocidades e vertigens de todas as formas.
O termo Beatnik, ou beat, é de origem controversa. Jack Kerouac queria que o
termo fosse uma abreviação de beatitude. Segundo as pesquisas de Willer, Ginsberg, que
protegia o movimento e todos os seus amigos envolvidos com ele nessa louca experiência
entre arte e vida, assumiu, em nota de rodapé em seu livro Uivo, esse sentido dado por
Kerouac, mas retrabalhando sob sua irônica visão. Ginsberg nomina seus devassos e
esquisitos amigos de santos, como também aos “mendigos desconhecidos sofredores e
84
fodidos santos os horrendos anjos humanos!”
141
. Em outras literaturas, julga-se estar
diretamente relacionado à influência do jazz, por sua batida e seus improvisos, mas também
como parte de um novo arsenal de termos, gírias de rua da época, num ensaio à Contracultura
que, de fato, teve no beat sua base fundadora. E por fim, a denominação também parece ter se
associado a um fenômeno da mídia do momento, quando o satélite russo, Sputnik, foi
lançado. Segundo Willer, o termo, irônico e depreciativo, “apareceu pela primeira vez no San
Franciso Chronicle de 2 de abril de 1958”
142
, fundindo o nome do satélite (símbolo de
novidades, tecnológica ou não) a esse fenômeno coletivo que se espalhava entre os jovens,
alterando aparência e comportamentos.
O movimento beat irá absorver esse “fluir” do Surrealismo, mas também,
somando a esse emaranhado de escapes escorregadios, fortes doses de uma anarquia um tanto
leiga, mais intuitiva, existencialista, que percebe trajetos individuais para o enriquecimento de
seu próprio caminho. Sem qualquer ranço cristão de uma democracia premeditada e
intelectualizada, como na teoria original, o anarquismo buscado está mais para anarquia, do
que para o projeto teórico anarquista, mas, coincide com ele quanto à extinção das
hierarquias, reconhecendo apenas a liderança por competência e talento pontual. A Beat
Generation, movimento beat, também buscará essa índole anárquica de criar e produzir, mas
será mais radical quanto ao comportamento subjetivo, apoiando todas as formas de
experiência individual, propondo a extinção de hierarquias entre vivências e sensações, isto é,
sem as noções de bem e mal, de certo e errado, de santo e pecaminoso. A liberalidade sobre a
subjetividade surge num momento em que o peso da existência de uma sociedade massificada
aparece como subproduto da industrialização e começa a se impor no cotidiano social.
A despeito do bombardeio das vanguardas e teóricos, começou a evidenciar o
desmoronamento do modus vivendi, isto é, a receber adeptos abertamente, a modificar
comportamentos cotidianos de forma mais abrangente, sociologicamente falando, ou seja, a
“contaminar” a sociedade, jovens em especial, a partir da cada de cinquenta. Aentão, os
escândalos provocados pela “turma das artes”, ou seja, as vanguardas, eram interpretados
como excentricidades de burguesia altamente letrada, portanto, de pequeno poder
transgressivo. E o que depende de leitura torna-se quase inofensivo, uma vez que instiga uma
pessoa por vez, como uma ação isolada, solitária, homeopaticamente se disseminando, se
espalhando de forma muito lenta. Formas de arte intelectualizada, ainda que muito
141
GINSBERG apud WILLER. O livro A Geração Beat é um estudo ainda no prelo, em vias de publicação pela
LP&M para o ano de 2009, cujos originais foram cedidos gentilmente pelo autor, Cláudio Willer, e acessado
por meio eletrônico em novembro de 2008.
142
Idem, ibdem..
85
contundentes, por depender da autoformação, que governo algum irá facilitar acesso a
conhecimentos além do básico, possui alcance político muito pequeno.
Ataques, mortes, excessos, grandiosos rompimentos públicos teriam de ser
amortecidos, amordaçados, domesticados, mas mesmo assim, a força dos confrontos acabou
por se pulverizar, pela força da indústria cinematográfica, que criou condições para a
apresentação das novas questões com filmes de extrema violência existencial, como o Vidas
Amargas (East of Eden, de 1955), que foi um escândalo visto como uma delação dos
silêncios impostos a uma geração, vítima de uma estrutura familiar e social repressora,
acovardada e violenta. A este filme, seguiu-se Juventude Transviada (Rebel without a Cause,
no mesmo ano de 1955) que levantou mais polêmica, mas sempre abafada pela indústria do
cinema, jogando com o glamour do jovem ator James Dean para relativizar impactos sobre
conceitos morais de uma sociedade puritana que, até então, esforçava-se para se manter casta
e vigorosa como padrão social. A polêmica levantava questões perigosas em um momento
tão delicado quanto o do macarthismo, em plena cruzada contra o comunismo, e para uma
sociedade que viu sua herança puritana ser tornar monstruosa ao invés de virtuosa como
sempre se fez ver e acreditou ser. Também os criadores cinematográficos acabaram por
suscitar desconfianças, e tem-se início de uma busca detalhada e paranóica de agentes
governamentais a procura de críticos do projeto social vigente, impondo punições graves,
alijando artistas, acabando carreiras, calando o movimento.
Mais adiante, já no final da década seguinte, muitos jovens viriam a morrer,
passando à história da arte e da cultura, como se amarrados num foguete”, expressão e
equipamento (high-tech) da época. Confirmando essa ideia, numa entrevista bem posterior ao
acidente sofrido por Arnaldo Batista, um dos Mutantes que se jogou do terceiro andar de uma
clínica de reabilitação para desintoxicação química, Callado
143
, um dos biógrafos da banda,
comentou melancolicamente que, se o Arnaldo Batista tivesse morrido de tantos excessos que
de fato cometeu, teria virado outra lenda do rock para engrossar a galeria de mortos que
saltaram para a fama eterna no período, apenas por terem morrido jovens. Aponta, assim, o
contrassenso de ter sua sobrevivência lhe custado caro para a memória de sua obra tão
marcante para o Tropicalismo e o rock brasileiro.
Além do cinema, o movimento Beat chegaria ao Brasil pela qualidade de sua
literatura, principalmente por três de seus mais famosos representantes: Jack Kerouac, Allen
Ginsberg e William Burroughs. Esse movimento, em si mesmo, era um emaranhado de
143
CALLADO, Carlos. A Divina Comédia dos Mutantes. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
86
influências. Seus ingredientes incluíam desconfiança pela tão propalada vida social dos
estadunidenses do pós-guerra, com seus direitos de consumo nunca dantes tão estimulados,
mas que se impunha por uma aparência apolínea traduzida por relações interpessoais, formais
e hierarquizadas. Por outro lado, o movimento se impunha também por fortes desejos de
experimentar formas de viver e sentir, sem o controle da lógica, da benção da Igreja, da
concessão da família, da segurança do mercado de trabalho que, por suas benesses, cobraria
sua eterna lealdade moral e ética, além de um elevado grau de culpa. Ainda havia a ideia de
uma vida marginalizada começar a ser romantizada, incluindo viagens ao Oeste
estadunidense, em busca de uma vida menos previsível, mais visceral e, obviamente, mais
arriscada.
Assim, uma sede de aventuras desestabiliza os sonhos de uma geração, apartando-
a dos projetos convencionais e seguros: a busca por riqueza, a imagem do sucesso público e o
consumo fácil. Essa busca por aventuras, por deslocamentos geográficos inclusive, irá
produzir uma inquietação também de espírito, pelos subterrâneos da consciência, pelos
limites do corpo, da mente, do sonho, e por caminhos freudianamente perigosos, repletos de
porões e sótãos de si mesmo - sempre camuflados, vertiginosos como o desejo de morte em
um confronto com o desconhecido. Um dos instrumentos para tais viagens de vertigens, além
do álcool e das drogas, será sem dúvida, o Surrealismo, com seus gestos sem autocensuras,
com escritas automáticas, em golfadas de imagens instantâneas dando passagem ao
desconhecido íntimo, talvez até, seu próprio monstro.
Piva adverte: “Sou uma alucinação na ponta de seus olhos”
144
.
Seus integrantes também foram chamados de hipsters
145
, base para a corruptela
futura do movimento hippie na cada seguinte. Hipsters em todo o caso, já designava
indivíduos que viviam à margem da sociedade, como se esse movimento não fosse
consequência da normalidade” imposta, pois assim sempre foi mais fácil o controle. Não é a
maioria que está errada, mas apenas uma minoria insatisfeita e desequilibrada. De qualquer
modo, fosse pelo cinema ou pela alta qualidade da produção literária da maioria de seus
integrantes, suas ideias escaparam do país.
144
In DIOS. Assombração Urbana... op .cit.
145
Segundo Seymour Krim, hipsters seriam “indivíduos que percorrem as cidades como membros de uma
sociedade secreta, misteriosa e pacífica, conservando viva uma filosofia existencial impopular, como era a
dos cristãos do primeiro século”. In Geração Beat. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 25. Ainda mais
abrangente e interessante, outra definição encontrada no Wikipédia: The hipster adopted the lifestyle of the
jazz musician, including some or all of the following: manner of dress, slang terminology, use of cannabis
and other drugs, relaxed attitude, sarcastic humor, self-imposed poverty, and relaxed sexual codes. Early
hipsters were generally white youths adopting many of the ways of urban blacks of the time, but later hipsters
often copied the early ones without knowing the origins of the culture”. Acessado em novembro de 2008.
87
Desse movimento, além das influências citadas, a marca mais impressionante,
sempre foi o que Kerouac designou por “prosódia bop”, significando uma linguagem rápida,
de versos longos, misturas espontâneas, saltos, ideias livres como os compassos do free
jazz
146
. Um som, um ritmo jazz, o domesticado, impaciente, marginal. Alguns nomes do
jazz do período ficarão associados aos road-poets, como poderiam ser chamados Charlie
Parker, Max Roach, Bud Powell, Dizzy Gillespie e Thellonious Monk, conforme ficou
inscrito nos “anais” da Beat Generation.
MATÉRIA & CLARINETA
147
As panteras das plumas & as tranças das estrelas
numa fuselagem sem saída
um pelicano de tempos em tempos esganiça o mar dos
ambulantes
noite de meninos com corações brancos
fendas diminuídas na imóvel lamentação entre a sopa
& o garfo de polaroide
os canteiros dos clavicórdios em oblíqua oração sob os
dentes
um curto langor & velas ampliando
Lindos sons espreguiçantes que tocam como notas nomes de coisas soando cores,
marcando sons nos olhos, nos ouvidos, no tempo de quem lê, no tempo de quem ouve em
langor de não buscar sentido, de se encantar com pequenos retalhos e cacos de vida
ambulante, de sorrisos pelas praças, canteiros e fuselagem sem saída. Esse jogo de fruição da
palavra tem mesmo essa intenção de deixar surgir como num improviso de jazz, esse jorro
rítmico, acelerado, às vezes construindo frente aos olhos um ente mítico, chamado poema.
“Ginsberg tinha razão ao falar em „ioga da palavraao referir-se a essa fruição das palavras
como ritmo e sonoridade, desligadas de seu sentido imediato”
148
.
O experimentalismo da escrita reproduz ousadias das artes plásticas, que buscava
se perder sem domínio, como fazia Jackson Pollock com sua pintura gestual, jogando corpo,
146
Idem. p. 19.
147
De Piazzas, em Um Estrangeiro... op.cit. p. 101.
148
WILLER, Cláudio. As aventuras e os subterrâneos de Jack Kerouac. In: Revista de cultura Agulha, n. 41, São
Paulo/Fortaleza - outubro de 2004. Disponível em: www.secrel.com.br/jpoesia/ag41kerouac.htm, acessado em
dezembro de 2007.
88
suor, raivas e erotismos pelos golpes de seus pincéis em febre. Também Burroughs
experimentava, com suas colagens cubistas, cujo procedimento consta de recortar e dobrar,
ou seja: cut up e fold in, usurpadas do dadaísmo. Burroughs escreveu o Almoço nu, entre
outras obras, com essa técnica. A técnica de Burroughs era:
Recortar algum manuscrito seu pronto, e dividindo em parágrafos,
embaralhava toda a sequência da trama. Outro procedimento era recortar
passagens e frases de diversas fontes diferentes como versículos da bíblia,
reportagens de jornais, comerciais de revistas, passagens de Shakespeare ou
diálogos de um filme. Depois usava enxertos com essas passagens em seus
textos e re-escrevia o resultado
149
.
Embora essa citação, retirada de um artigo sobre a obra e técnica de Burroughs,
não seja assinada, foi aceita para ilustrar e detalhar o método de criação do famoso beat,
porque é constatável em sua obra tais inserções, e porque, também, recebe um aval no poema
de Allen Ginsberg, que comenta assombrado essa maneira surrealista de Burroughs criar.
ON BURROUGHS’ WORK
150
The method must be purest meat
And no symbolic dressing,
Actual visions and actual prisons
As seen then and now
Prisons and visions presented
With rare descriptions
Corresponding exactly to those
Of Alcatraz and Rose
A naked lunch is natural to us,
We eat reality sandwiches.
But allegories are so much lettuce
Don‟t hide the madness
(San Jose, 1954)
149
In: Caderno Cultural: http://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=1287, de 4 de novembro de
2007, acessado em janeiro de 2008. Sem autoria anotada.
150
SOBRE A OBRA DE BURROUGHS: O método deve ser a mais pura carne / e nada de molho simbólico, /
verdadeiras visões & verdadeiras pries / assim como vistas vez por outra // Pries e visões mostradas / com
raros relatos crus / correspondendo exatamente àqueles/ de Alcatraz e Rose // Um lanche nu nos é natural, /
comemos sanduíches de realidade / Porém alegorias não passam de alface. / Não escondam a loucura.
Tradução de Cláudio Willer, para GINSBERG. Uivo, Kaddish e outros poemas (1953-1960). Porto Alegre:
LPM, 1984. p. 155. Original disponível em: http://www.secrel.com.br/JPOESIA/ag30ginsberg.htm,
acessado em dezembro de 2007.
89
No Brasil, pelo depoimento de Willer
151
, as publicações do movimento Beat eram
imediatamente adquiridas pelos ávidos leitores que incluía ele mesmo, Piva, e mais um grupo
grande de poetas e intelectuais que incluía Sérgio Lima, Décio Bar, De Franceschi e Rodrigo
de Haro, sempre citado, não como um componente nos moldes Beats, mas apontado como um
exótico „Huysmans redivivo‟, com suas manias decadentistas e exóticas. Esse grupo
aparecerá nas duas produções cinematográficas já citadas, em que o início da década de „60 é
percorrido pelos poetas na cidade, e o outro documentário centrado na biografia e obra de
Roberto Piva, em que novamente o mesmo grupo participa.
As obras circulavam rapidamente pelo grupo e, assim, Howl (Uivo, de Ginsberg,
editado em 1956), On the road (Na estrada, de Kerouak, lançado em 1957) e Naked lunch (o
Almoço nu, de Burroughs, publicado em 1959) levaram uns poucos meses para chegar às
suas mãos e fazer um saudável estrago. Em 1961, Roberto Piva estaria lançando Paranoia
que, com toda sua força literária e transgressiva, deixaria claro a influência beat acima de
outras mais.
Em tempos de ditadura, a Nouvelle Vague simpatizava ostensivamente com um
maoísmo muito mal esclarecido e veiculado sob um manto exótico, pleno de vigor
revolucionário, perfeitamente oficioso. Também recebiam ecos do Existencialismo
(charmosíssimo) do casal francês Sartre e Beauvoir, com sua aura de erudição pop-estelar,
apoiadores de Stalin, sem culpas, numa flagrante contradição. O fato é que o mundo ansiava
por mudanças.
Com um ritmo diferente, mas perturbando a organização cristã da família, exército
e outras instituições locais, também o movimento Beat começa a interferir, mesmo que
filtrado, tanto pela ditadura, então em pleno vigor, como pela esquerda local, como sendo
uma “reação a uma sociedade burguesa repressora”. Com isso, a realidade não era vista como
pertinente ao sistema, mas como uma reação focada, aliás, como hoje são vistos os tiroteios
em escolas públicas estadunidenses. As expressões “rebelde sem causa” e “juventude
transviada” foram forjadas na tentativa de esvaziar a grande pressão que confrontava, apenas
com a força da caneta, a estável, puritana e hipercompetitiva sociedade estadunidense.
Aqui no país, o nacionalismo altamente desenvolvido da época escondia suas
mazelas, assim como confrontos e desvarios intramuros indicados apenas em alguns produtos
culturais, cujo forte desequilíbrio era visível. Todas as tentativas de críticas eram veladas
151
WILLER. Meditações de emergência. op. cit.
90
ou francamente suprimidas, e assim releituras ficavam segregadas a uma pequena
comunidade bem informada da inteligentzia e da classe artística.
Piva toma partido sem se alinhar aos projetos já existentes. Como comenta Pécora,
o poeta formula uma política do corpo em fogo”, numa “poesia radicalmente pública e
violentamente hostil à domesticação da vontade”, no prefácio às Obras Reunidas, volume
dois
152
. E apresentando o livro, anuncia:
este volume pode ser lido como um grande poema do amor encarregado de
uma proeza política: atravessar o inferno de pijamas, família, TV, vida
doméstica, trabalho odioso e subalterno, autoridades cômicas, direita e
esquerda fascistas etc. - todo o domínio da “ordem careta”.
153
Outro traço poderoso do movimento é o deslocamento que promove sobre a
verdade racionalista Ocidental para o místico Oriente, em mais um par de confronto político,
que iria sugerir outras formas de percepção, de concepção e de produção artística. Gary
Snyder, o mais hippie dos beats, do grupo californiano, também incorporou o uso do fluxo
contínuo ao texto, como o grupo de Nova York, porém, sua ligação com a natureza e com o
Oriente o fará identificar-se com um incipiente movimento ecológico, muito provavelmente
devido ao impacto da natureza exuberante do meio ambiente em que viveu. Mas além desse
olhar menos ácido sobre o entorno urbano, Snyder cultiva um misticismo orientalizado,
modesto e quase suave, distanciando-se da crueza dos hipsters da costa leste. Seu olhar
impregnado pelo Oriente também repousa sobre referências culturais que alimenta e difunde,
como o teatro e outras técnicas de arte que unem ascese, conhecimento e misticismo.
Numa de suas obras curtas, a chamada Carta de Kyoto, ele enumera suas buscas: Amor,
respeito pela vida, pacifismo, recusa a qualquer religião organizada, drogas, ioga e
anarquismo”. E conclui: “Uma vida beat envolve contemplação, moralidade - que significa
para mim protesto social, busca de sabedoria e expansão do espírito, seja pela ioga, arte ou
droga, ou todas juntas”
154
. De forma confusa e romanceada, essas buscas se farão misturando
traços de taoísmo, tantrismo, hinduísmo, janaísmo e outras formas religiosas que incluem
animismo, rituais panteístas, recolhidos e recortados, aqui e ali, numa grande visão herética,
pois não reconhece unicidade ou uma devoção única, vivenciando e flanando sobre muitas
construções teogônicas, num projeto pessoal e panteísta. Snyder também será responsável
por defender uma ideia ainda inicial, mas o ingênua ou edulcorada, do que será chamada
152
Prefácio para Mala na mão... op. cit., p. 12.
153
Idem, ibdem, p. 12.
154
KRIM. op. cit. p. 152-6.
91
no futuro de visão ecológica, por negar a superioridade da raça humana sobre o resto da vida
planetária.
2.2. SÃO PAULO: Nomadismos na cidade pudica
Nenhum rosto é tão surrealista
quanto a face verdadeira de uma cidade.
Walter Benjamin
Rimbaud demonstrou, publicamente, seu repúdio pela bela e inebriante Paris,
pujante em seu tempo, detentora do título de capital cultural do Ocidente, além de sua
marcante vanguarda econômica, como comenta Berman no famoso ensaio
155
, atrás apenas de
uma Londres afundada na sujeira e caos de sua opressiva industrialização. Rimbaud rejeitou
com ela, seus pequenos jogos de poder, fofocas, controles entre parceiros, pares e curiosos,
numa rede de intrigas e repressões disfarçadas por saraus, festas, ópio, perfumes, cafés e
outras amenidades. E apesar da boa fama que angariava entre seu grupo, o poeta decide
abandonar o campo de batalha das vaidades por um viver mais arriscado, sobre sua
integridade física e mental, afundando-se em trocas de mercadoria por sobrevivência. E tais
foram seus gestos, entre o desatino, a coragem e a ambição ensandecida, que seus biógrafos
nunca chegaram às mesmas conclusões sobre suas aventuras turbulentas e sofridas. Mas sua
obra, marcante e irretocável, colou-se à sua vida desvairada, incompreensível e ousada.
CIDADE
156
Sou um efêmero e não demasiado descontente cidadão de uma
metrópole considerada moderna, porque todo o gosto conhecido foi
subtraído tanto dos mobiliários e do exterior das casas quanto da
topografia da cidade... Estes milhões de pessoas que não têm
necessidade de se conhecer ostentam de modo tão semelhante, a
educação, o ofício e a velhice, que a duração da vida deve ser várias
vezes menos longa...
Rimbaud
155
Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit.
156
RIMBAUD, Jean-Arthur. Uma temporada no inferno e Iluminações. Tradução de Ledo Ivo. 3. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1985. p. 101.
92
A contradição da cidade enquanto aglutinadora, protetora e facilitadora para tantos
sonhos, rompeu com seu projeto original. Muros protetores facilitaram os encontros, as feiras,
as trocas e o surgimento dos intermediários indicando novos rumos a esses mercadores. As
essas cidades atravessarem o Renascimento, sua aglomeração se desassocia da centralização
administrativa do grande território e da facilitação legalizada para trocas do sofisticado
mercantilismo.
As cidades mantiveram o mesmo discurso: o de dar fluxo às trocas, mas a
velocidade, junto com as carroças, as aglomerações de produção que forçarão a criação das
futuras fábricas, e um ritmo geral da chamada modernidade, irá contaminar e alterar esse
organismo social que foi parido dentro dos muros dos castelos do medievo. Com a velocidade,
sua descaracterização irá atingir o ápice nos grandes rasgos viários que o barão Haussmann irá
impor à cidade de Paris na segunda metade do século XIX. Historicamente é muito recente,
mas para uma vivência, é um marco o traumático que mudou para sempre o convívio
humano.
Baudelaire lamentou e se chocou, e Ginsberg, décadas depois, ainda não poderia se
conformar com a devastação sobre a memória e a importância do espaço na construção da
subjetividade e na manutenção de sua sanidade. Ginsberg não apenas lamentou, mas urrou
frente ao que lhe pareceu uma “trágica batalha de gigantes
157
. Ele investe sobre as forças
demoníacas da destruição e construção de magníficas monstruosidades - artefatos de esmagar
cérebros, de esmagar anjos aturdidos de asas chamuscadas e Ginsberg uiva para que possamos
ser acordados e enfrentar o que nos oprime. Epifanias profanas - a cidade se agiganta num
impacto que aprofunda a visão ontológica de um fazer humano que escapou a todos os
controles, e devorou o mundo.
As ruas de São Paulo do final dos anos cinquenta e começo dos sessenta
desafiavam mais pela modorrice, do que pelos excessos, mais pelos pudores que pela
violência, mais pela indigência cultural, do que por sua pulsante indústria cultural de
piratarias oficiais.
O primeiro poema que abre seu primeiro livro, o „Visão 1961‟, ainda paira sobre
sua obra como um luminoso, assustador e intermitente, abrindo passagem, denunciando o
impacto de se sofrer a cidade que escapa aos sonhos, escapa aos desejos, e que solapa forças.
O poema anuncia o jogo a que se propõe com os mecanismos que acumulou, seja por sua
vasta biblioteca introjetada, seja por suas vivências transgressoras e ariscas, seja pelo impacto
157
BERMAN, Marshall. op.cit. p. 295.
93
que imprime sobre a ética cristã, retalhando e esquartejando uma paisagem urbana que se
esforça para ser mantida na brandura da conformidade política:
VISÃO 1961
158
As mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma
flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido
maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume
das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de
chuva
fagulha de lua partida precipitada nos becos frenéticos onde
cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro
da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis
a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas
e lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas
tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários
dos manequins
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria
plástica eriçando o pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes
de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um
Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu
que renascem nas caminhadas
noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando
aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos
visionários da Beleza
já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias
vacilava com cabelo presos nos luminosos e minha imaginação
gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela
Noite
os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos
secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias
158
Em Paranoia, in: Um estrangeiro... op. cit. p. 30-1.
94
de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar
asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu
e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas
engorduradas
a Bolsa de Valores e os Fotógrafos pintaram seus lábios com urtigas
sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha
verteram monstros inconcebíveis
ao sudoeste do teu sonho um dúzia de anjos de pijama urinam com
transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos
das Catedrais sem Deus.
Em seu poema, a vertigem abole formalidades, dando passagem às visões que
saltam de susto em susto, rompendo expectativas, conclusões de impressões que o se
cumprem. Não descanso e seu olhar fixa lapsos de vida, entre a indigência e a secura do
abandono, sempre frio, apontando uma certa doçura, apenas na contra face mágica dos
improváveis visíveis: são imagens fugazes, queentrevemos por parcelas de uma presença,
como o nômade que não vemos, mas sua marcha, um perfume de vela sobre túmulos, assim
como não vemos a presença da lua, mas sua fagulha.
Piva, rapaz de vinte e quatro anos tropeça pela fauna maldita que alimenta esses
becos de vertigens, loucuras e vômitos, mas seu olhar não se sacia estilhaçado junto com o
vento que não respeita anteparo. Horrorizado, ele testemunha o destroçamento dos corpos em
luta por pertencimento, corpos femininos submissos, fugazes, descartáveis, barateados,
tocados por olhares do degredo sobre o corpo natural. A prostituição, sacro ritual
monstruoso, cujas hóstias recolhidas em becos encardidos valem sustento, valem
sobrevivência comezinha.
E embora na maturidade ele venha a menosprezar (em parte) Mário de Andrade,
ainda aqui ele o coloca no lugar do distante Sidarta. E o poeta alucinado e alterado, observa
aquele espocar de sons, cores, emoções e contradições que Mário de Andrade qualificou
como „arlequinais‟ assombros em que tantos absurdos passam a circular frente aos olhos de
um transeunte atento, de um poeta em trânsito, com caneta em riste, em que o poeta indaga
carente e alucinado: “Oh cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo na tua
face?”
95
Piva está mergulhado nos fragmentos de uma existência que o se sustenta
enquanto justificativa de dores tão difusas. Sem que as explicações possam justificar, ampara
na memória onde agarra cantigas-de-berço, enfrentando a rispidez e crueldades expostas
pelas vias, comprovando os efeitos dos tiranos sobre a indigência humana que segue
ignorante, respirando asfalto como se fosse sublime. E nunca se fazendo só, o poeta
congrega seus anjos decaídos, que urinam nos capachos das Catedrais sem Deus, divertindo-
se pelos esgotos que se escapam da ordem mais violenta. Como diz, que livre dos controles,
mais chances de se ter prazer.
Em seu trajeto, o poeta opera versos sobre a base da cidade: blocos de concreto,
permeados por sagrados segredos, marcam seres enlameados e lambuzados pela sevícia de
sobreviver. Nessa cachoeira delirante da política - ação na polis (a urbis romana), todo um
séquito degenerado atravessa seu olhar que se treina para nunca mais entrar em sossego.
Piva não está nesse confronto com a magnífica e medonha cidade: Edgar Allan
Poe, Karl Marx, Friedrich Engels, Baudelaire. Ela deixou de ser um espaço geográfico de
proteção, encontros, trocas e facilitações, para se tornar um organismo que se impõe com uma
força colossal sobre o ritmo, o trajeto e os desígnios de seus concidadãos. O convívio se
esfacela frente ao grande circo belo e enigmático de um crescer infindo sem rumo, e o
cidadão, aquele que se via protegido intramuros, que se organizava com o vizinho, aprende
que virou um mero peão: “Sou um efêmero e não demasiado descontente cidadão de uma
metrópole considerada moderna”
159
. Suas tentativas em se projetar e acontecer num grupo
(dos literatos) é espantosamente fácil e seus frutos são louros da vaidade que lhe custam o
beco sem saída de um depois sem justificativa: “[...] estes milhões de pessoas que o têm
necessidade de se conhecer [...]”
Gauguin, Rimbaud e tantos outros começaram a fazer o movimento contrário, e
fugiram de garras sujas de fuligem e óleo dessa infinita máquina de triturar subjetividades
(conforme Guattari). Um grande contingente de outros personagens, igualmente citadinos,
igualmente sofrendo seu perpetuar o-mais, como foram grande parte dos participantes do
movimento Beat, mesmo não abandonando suas cidades.
Analisando a vida moderna em seu meio correspondente, as cidades, Marshall
Berman comenta que “um dos fatos mais marcantes da vida moderna foi a fusão de suas
forças materiais e espirituais, numa interdependência entre o individuo e o ambiente
moderno”
160
. Citando Baudelaire como o primeiro autor da cidade moderna, comenta ter sido
159
RIMBAUD. „Cidade‟ em Uma temporada... op .cit., p. 101.
160
BERMAN. Tudo que é sólido... op. cit., p. 129.
96
ele, um dos grandes escritores urbanos para quem “a cidade desempenha um papel decisivo
em seu drama espiritual”
161
, e de fato, vivendo em meio ao grande canteiro de obras que se
tornou Paris, no período do prefeito e urbanista Haussmann, enfrentou por longos anos de sua
vida a mutabilidade frenética que é um dos atributos mais cruéis e imanentes à modernidade.
De acessos ao outro, suas ruas transformam-se em curto espaço de tempo em
artérias de escoamento, de fluxo rápido, de mera circulação de mercadorias. A destruição de
modus vivendi seculares fica devidamente justificada pelo “bem do progresso”, e ao cidadão,
se não quiser sofrer a ironia dos que se esforçam a sentirem-se modernos, deverá aprender a
remodelar seu ritmo, seu tempo, sua circulação. Em vez de sentir-se ameaçado, ele deve
agora, sentir-se imerso, crente, participante”, não mais um saudosista ou assustadiço
camponês, mas um blasé indivíduo motorizado
162
. Incorporar o movimento alterará os
paradigmas do planejamento e design modernos.
O novo homem, diz Le Corbusier, precisa de “outro tipo de rua”, que será
“uma máquina para o tráfego”. Uma rua verdadeiramente moderna precisa
ser “bem equipada como uma fábrica [...] Na cidade do futuro, o
macadame
163
pertencerá somente ao tráfego
164
.
E se o ritmo marcado pela imposição de produtividade será a marca das cidades,
tanto maior será quanto mais associada à produção e circulação de mercadorias ela
desenvolver, como é o caso de São Paulo que, ainda provinciana, com poucas possibilidades
sócio-culturais, já havia impactado gerações da década de vinte.
Algumas cadas depois, em 1986, o antropólogo urbano italiano Massimo
Canevacci, impressionado com São Paulo, procedeu a um estudo por vários anos, onde pôde
percorrer alguns de seus bairros, buscando histórias e especificidades, ainda que sem a
pretensão do viajante europeu dos séculos anteriores em abarcar ou capturar a “sociedade
total”. Ele se explica no prefácio de seu ensaio A cidade polifônica:
O que mais chamou minha atenção em São Paulo foi o ritmo, ou melhor, a
multiplicidade de ritmos que atravessam como correntes não os espaços
urbanos, mas também os espaços comportamentais e psicológicos das
pessoas
165
.
161
Idem, ibdem, p. 129.
162
Conforme Simmel analisa em seu estudo sobre a cidade industrial: A metrópole e a vida mental, de 1903.
163
Substrato na construção de vias carroçáveis.
164
BERMAN. op.cit. p. 161.
165
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2 ed. São
Paulo: Studio Nobel, 2004. (Coleção cidade aberta). p. 9.
97
A metrópole São Paulo, de fato polifônica, não se reduz a traçados de circulação,
nem a circuitos carroçáveis ou a distribuições dentro de um planejamento urbanístico. São
Paulo não se submeteu a ditames organizacionais. Por isso é um caos, um lixo, um monstro,
mas é também aberta, inacabada e indiferente, para o bem e para o mal. São Paulo não abraça,
não é amorosa. Viver numa metrópole que se expande no desespero da sobrevivência, não é
um crescimento por oportunidades, ou pela divisão de riquezas, é o desespero que abraça
muitas faces: a das torcidas de futebol, a das igrejas pentecostais, a das reuniões histéricas dos
encontros de lazer, à base de gritos, chacoalhadas, safanões, sustos e gargalhadas, como são
os churrascos na entrada do Horto Florestal, como são as excursões à baixada santista, quando
a alegria é imposta aos gritos, sob excitação extrema, como obrigação de se aproveitar as
parcas aberturas de prazer que a vida na metrópole tem para oferecer.
São Paulo é a maior cidade nordestina do país. É a cidade de maior concentração
de japoneses fora do Japão, do mundo, de armênios, de Sírios e coreanos, além de outras
estatísticas impressionantes, como sua diversidade cultural que abarca grupos ou tribos
neodândis, clubbers, grafiteiros, darks, punks, grunges, góticos, funks, blacks, torcedores,
heavies, breakers, carecas, roqueiros, rappers, headbangers, night rollers, iguaboys, skatistas,
entre vários outros, dentre os grupos jovens. Mas nenhuma tribo tem a porta aberta ou o
trânsito livre, ainda que se possa entrar e incorporar, tudo é paisagem, tudo é performance,
tudo é imagem, movimento, processo:
São Paulo, como outras grandes cidades, constitui um espaço privilegiado
para experiências desse tipo, dada a procedência de seus habitantes, a
riqueza de suas tradições culturais, a variedade de seus habitantes, a riqueza
de suas tradições culturais, a variedade de seus modos de vida e, por
conseguinte, a infinita possibilidade de trocas e contatos que propicia. Mas
também alimenta representações que a identificam com o ethos do trabalho,
com a formalidade e frieza das relações impessoais, o anonimato da vida
cotidiana. A desigualdade social, a violência - desde a poluição sonora e
visual até a criminalidade - passando pelas conhecidas e gritantes
contradições urbanas [...]
166
De suas noites e ruas sonolentas e galhofeiras até os anos oitenta, São Paulo
acabou produzindo um dos conglomerados industriais mais heterogêneos, verticais e injustos
dentre as metrópoles poderosas do planeta, grupo a que pertence, sem que tenha chegado a
166
MAGNANI, JoGuilherme e TORRES, Lílian (Org.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São
Paulo: Edusp/Fapesp, 1996. p. 18.
98
produzir justiça a seus habitantes, como aconteceu por algumas décadas no pós-guerra, com
as metrópoles da Europa, Estados Unidos e outras poucas. Apodrecendo antes de amadurecer.
Mas hoje em dia, o esfacelamento da cidade não é privilégio de São Paulo. O
projeto se esgotou e implode lentamente, em meio a confronto de gangues, de tribos, de
imigrantes, de traficantes, de mafiosos os mais diversos: chineses, coreanos e outros ainda. E
esse panorama percorre Paris, Berlin e se espalha por Milão, Chicago, e outra, e outra, e outra.
Viver numa metrópole é sofrer do sobressalto de sobreviver a tantos desejos.
O VOLUME DO GRITO
167
Eu sonhei que era um Serafim e as putas de São Paulo avançavam na
densidade exasperante
estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas
bacharéis praticam sexo com liquidificadores como os pederastas cuja
santidade confunde os zombeteiros
terraços ornados com samambaias e suicídios onde também as confissões
mágicas podem causar paixões de tal gênero
relógios podres turbinas invisíveis burocracias de cinzas
cérebros blindados alambiques cegos viadutos demoníacos
capitais fora do Tempo e do Espaço e uma Sociedade Anônima
regendo a ilusão da perfeita Bondade
os gramofones dançam no cais
o Espírito Puro vomita um aplauso antiaéreo
O Homem Aritmético conta em voz alta os minutos que nos faltam
contemplando a bomba atômica como se fosse seu espelho
encontro com Lorca num hospital da Lapa
a Virgem assassinada num bordel
estaleiros com coqueluche espetando banderillas no meu Tabu
eu bebia chá com perventin
168
para que todos apertassem minha mão
elétrica
as nuvens coçavam os bigodes enquanto masturbavas colérico sobre o
cadáver ainda quente de tua filha menor
a lua tem violentas hemoptises no céu de nitrato
Deus suicidou-se com uma navalha espanhola
167
Em Paranoia, in: Um estrangeiro... op. cit., p. 48.
168
Da família das anfetaminas.
99
os braços caem
os olhos caem
os sexos caem
Jubileu da morte
ó rosas ó arcanjos ó loucura apoderando-se do luto azul suspenso na minha
voz
O narcótico libera o louco que possibilita os saltos para o desconhecido. Em
entrevistas Piva fala dos riscos em se lançar nas drogas, no álcool, no descontrole e acusa o
medo que segura vidas em mediocridades consentidas, em perfeita previsibilidade. Sua obra é
fruto de seu talento, mas muito também, pelo inusitado em que coloca corpo e mente, de
encontro a uma cidade que, por si só, já é dragão de muitas cabeças. Com isso ele não
pretende „captar a verdade da cidade‟, mas certamente vivenciá-la de infinitas formas,
contando em poemas o que disse Calvino: “Nada do que se diz a respeito [...] é verdadeiro,
contudo permite captar uma imagem sólida e compacta da cidade”
169
.
Álvaro de Campos também gritou contra angústias muito próximas de Piva,
elevando a voz para espantar e para que ouça a si mesmo, enquanto sofre o mundo que sorve,
e contra o qual tenta reagir. Campos escreve aos brados:
PASSAGEM DAS HORAS
170
[...]
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.
Ho-ho-ho-ho-ho!...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do
corpo
Adiante da própria ideia veloz do corpo projetado,
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho... Helahoho...
Álvaro de Campos
169
CALVINO, Italo. As cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das letras, 1990. p. 65.
170
PESSOA. Poesias de Álvaro de Campos .op .cit., p. 233.
100
Cidade, corpo e opressões: da moral, do ritmo, da pressa, do rompimento das
relações, que requerem o vagar de se ouvir e tocar, mas que se em rodopios vertiginosos e
angustiantes, esfacelando o que deveria se ouvir, se amansar, ser uno: corpo e espírito. Corpo
que deveria ser porta de entrada e de troca passa a ser máquina de precisão na busca da
eficiência. E sobra o espírito, relegado às horas de espera pelo lazer, pelas férias, em um
tempo roubado das sobras de um banquete mirrado, espremido no cotidiano competitivo
171
.
Desde o século romântico, Schiller lutou por uma nova valorização do espírito,
não mais associada ao „pentecostes‟ ou a outra transcendência qualquer, mas como potência
humana. Pontuou o espírito enquanto potência em si, enquanto fonte de expansão humana.
Não apenas no se deixar fluir, mas se fazendo fluir, na busca pela captura do mundo,
transformando conhecimentos e construindo experiências, como a Erfahrung advogada por
Benjamin, cujo sentir constitui um conhecimento em outro patamar, não o mero livresco,
acumulativo, mas gravado em memória. E o “espírito”, com seus desdobramentos como a
intuição, sensibilidade e sensorialismo, já está sofrendo cooptação. Desde os anos noventa do
século passado, a „sensibilidade‟ vem sendo revalorizada (desde que devidamente treinada),
podendo figurar em Curriculum Vitae, pois adapta-se às novas ferramentas competitivas. O
uso dessa sensibilidade, obviamente, é outro, mas não se pensa em sensibilidade como um
desvio de caráter ou fraqueza de gênero.
Mas o grito é arma e alarme, é desabafo e delação. Álvaro de Campos também
grita com Piva, e grita mais ainda, em „Ode Marítima‟, em que o ouvimos aos berros pelas
beiras do cais, do mar e de seus próprios abismos e gozos assustadores. Português a rua, a
cidade, mas seu pesadelo e delírio ainda o chamam para o buraco das águas, a vertigem
aquosa do desconhecido. Portugal, balsa de pedra, que jamais esqueceu a vertigem do alto-
mar, seus sonhos, delírios e prazeres, toscos e vívidos nos estupros de seus nômades
embarcados, piratas alucinados, donos do desconhecido, navegadores de pesadelos passados.
ODE MARÍTIMA
172
[...]
Voz de sereia longínqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, boiam meus sonhos desfeitos...
171
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Os intelectuais, a potica e a vida. In: MORAES, Denis de (Org.). Combates e
Utopias, Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2004. p. 362.
172
PESSOA. Poesias de Álvaro de Campos. op. cit., p. 190.
101
Ahò-o-o-o-o-o-o-o yy...
Schooner ahò-o-o-o-o-o-o - yy...
Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescor noturno no meu oceano interior!
[...]
Álvaro de Campos
O heterônimo mais urbano, mais visceral, se debate ante os despojos de seus
sonhos tornados eficiência, engenharia perfeita de um desperdício de desejos, em desvio a um
inesperado prosaico, assente, pouco cais, nada pirata, mas cordato. Por isso grita os „não‟ que
deu aos ventos de arrebatamento, de sequestros, estupros sobre as rotinas, os cálculos
matemáticos de fincar colunas para nunca mais se mexer, para nunca mais se lançar e se cair.
E se cair, não será por experiência, por fracasso, por derrota da profissão. Ser
pirata, é ser nômade, é ser trêmulo sobre a face do planeta, é ser instável sobre a paleta do
pintor, onde o orvalho possa pousar em sua excitação, fora do controle protegido, ungido e
sagrado, do cômodo construído pela engenharia, que esconde, e isola aquilo que se
desestabiliza e peca. Corpos, mentes e espíritos na beira-cais, olhando o oceano interior que
não lhe é mais dado a navegar.
Essa metáfora das Sereias exposta na Dialética do esclarecimento por Adorno e
Horkheimer
173
, é identificada com o universo da palavra poética. Sereias perigosas porque
monstros aquáticos e femininos pretendem, pelo encanto, transformar a quem as ouve.
Encarnando os poderes mágicos anteriores à identidade racional. E se Ulisses triunfa sobre
seu canto, o faz por subterfúgio, porque oprime seu corpo (amarrando-se) e a de seus
marinheiros (tapando seus ouvidos com cera), impedidos de se entregarem ao arrebatamento
da expressão mágica da arte. E segundo os filósofos, a arte passa a ser tolerada na sociedade
da eficiência, apenas porque é relegada à impotência sobre o indivíduo e seus amantes
condenados ao gozo impotente de um luxo para privilegiados, que não pode atingir o
sistema, nem alterar a injustiça de sua estrutura social.
Piva faz eco ao “Homem Aritmético” (de que fala Mário de Andrade, e do
engenheiro Álvaro de Campos), e avista o deslocar de pesadelos sob a força da cidade que
carcome seus moradores: as putas em densidade exasperante, as estátuas com conjuntivite e
todo um séquito tornado caco, num caleidoscópio paranóico. Como Álvaro de Campos, o
engenheiro, Piva observa os sexos com liquidificadores, por falta de saídas humanizadas.
173
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Ulisses ou Mito e Esclarecimento. Excurso I. In Dialética do
esclarecimento: fragmentos filoficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 53-80.
102
Benjamin escreve: “No trato com a máquina os trabalhadores aprendem a coordenar o próprio
movimento com o movimento contínuo e uniforme de um autômato
174
.
Nessa grande vitrine urbana, o movimento se dispersa pelo centro antigo, onde
se via o recuo dos bairros residenciais para fora do „miolo‟ financeiro de suas estreitas ruas,
tomada, com a vinda da noite, por outros trabalhadores também ávidos, mas que se
especializavam em corpos, e tão agressivos quanto os pregões da bolsa, próximo de suas
rotinas.
São Paulo é autodissolvente.
São Paulo é a dissolvência.
Massimo Canevacci
Centro onde as estátuas de bronze, enaltecendo indivíduos da historiografia oficial,
são lentamente desfiguradas pela erosão, pela poluição, pela ação dos pássaros - todos mortos,
enobrecidos por mortes indiferentes aos transeuntes que apregoam corpos vivos, bem vivos,
com nomes, história, identificação, cheiro e cartão de visitas. Corpos vivos que gritam em
silêncio seus desejos, buscando continentes e conteúdos de girar sexo por sobre os cânones do
saber canonizado ali ao lado, na fábrica de produção de bacharéis, o Largo São Francisco.
Fluidez de versos sem controles matemáticos, que deslizam por uma cidade
noturna e enorme, que protege identidades, anonimatos, desvios fortuitos, num espaço
conhecido, etiquetado, onde o poeta identifica parcerias e outras esquisitices que constroem
versos, noites, prazeres e risos zombeteiros.
O mundo é recoberto por uma única
cidade (Trude), que não tem começo nem fim,
só muda o nome no aeroporto.
Ítalo Calvino
A cidade está à volta, está dentro do poeta. Ele a rejeita enquanto projeto
fracassado e a delata como Cidade-Sucata. Libertador em sua origem, as cidades
contemporâneas são usurpadoras de erários e direitos. Do pacto original por proteções aos
bárbaros, agora a barbárie assume o projeto. Abolida a solidariedade, e sem jamais ter
alcançado o direito ao Outro: quer seja um não-cristão quer seja um não-batedor-de-relógio-
174
BENJAMIN apud VAZ, Alexandre Fernandes. Memória e Progresso: sobre a presença do corpo na
arqueologia da modernidade em Walter Benjamin. In SOARES, Carmen (org). Corpo e História. Campinas:
Autores Associados, 2001. p.48.
103
de-ponto ou outro ainda qualquer. Sempre se mantendo intramuros do senhor castelão. Ela
tem um ser e estar consuetudinários, fundados no pecado da carne - na prisão do espaço - na
punição dos sonhos.
VISÃO DE SÃO PAULO À NOITE
175
Poema Antropófago sob Narcóticos
Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apoia em nada
eu não me apoio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
175
De Paranoia, em Um estrangeiro... op.cit., p. 38-9.
104
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horrorizados
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correrias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em volta das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo
O poeta irá percorrer a cidade, mas não flana exatamente, pois não desejo de
retração e distanciamento crítico. Para Benjamin, flanar requer “estar apartado do mundo da
mercadoria, seus fetichismos e fantasmagorias, exige estar em meio termo entre a casa
familiar e a rua [...]”
176
. Ainda assim, estar apartado da mercadoria é já uma impossibilidade.
O centro da cidade agrupa a diversidade humana, urbanística e arquitetônica. Ela
reúne o macumbeiro, o marginal retirante, o picareta e as funções canalhas que secundam o
trabalho em formas inusitadas de empreendedorismo amador, aquele que, etiquetado pela Lei
“Um, sete, um”, também produz riqueza, também é pão-do-suor-do-rosto, no entender do
golpista profissional que se esforça para desviar seu quinhão. Mas a cidade transcende aos
golpistas e, se não a mercadoria, deglute seus cifrões, misturado a sexo confuso, junto a
mentiras de suas ruas e o torpor de tantas alucinações.
A distribuição dos corpos nas cidades foi pensada ou sonhada, para assumir
determinados comportamentos, percorrer determinados trajetos, usufruir determinados
serviços, de acordo com seu círculo, padrão, segmento, classe social, tribo ou nicho, seguindo
176
VAZ. Memória e Progresso. op. cit., p. 51.
105
traçados urbanísticos que se dizem técnicos, quando são vozes oficiais da distribuição de
forças de poder em um espaço público
177
mas os corpos se escorregam e se insurgem
voluntariosamente, e os “anjos de Rilke dando o cu nos mictórios / reino-vertigem glorificado
[...]”, desfaz altos e baixos nos percursos dos desejos.
Olhar a cidade é ver o espectro de um dragão, de um monstro, é se ver como de
fato é - fetichizado, enumerado, ignorado. Ginsberg juntou-se ao coro dos aturdidos, mas ele
não o faz de sua torre de observação, ele é poeta das ruas da louca Maçã, e sob efeito de
peiote, engrossa o coro, olhando Moloch nos olhos, o deus devorador dos fenícios, que
estampado pelos prédios, causa o horror que o poeta vê na alma da cidade - monstros míticos
de destruição e transformação, contra o qual o poeta grita sua dor:
UIVO
178
[...]
Solidão! Sujeira! Fealdade! Latas de lixo e dólares inatingíveis!
Crianças berrando sob as escadarias! Garotos soluçando nos exércitos!
Velhos chorando nos parques!
Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! [...] Moloch o presídio
desalmado de tíbias cruzadas e o Congresso dos sofrimentos! [...]
Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo sangue é dinheiro
corrente! Moloch cujos dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é
um dínamo canibal! Moloch cujo ouvido é um túmulo fumegante!
Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! Moloch cujos arranha-céus
jazem ao longo das ruas como infinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas
sonham e grasnam na neblina! Moloch cujas colunas de fumaça e
antenas coroam as cidades! [...]
Allen Guinsberg
Depois disto só soluço e silêncio.
Sob narcótico os limites e as razões se embaralham e rompem interditos.
Narcóticos têm sido utilizados desde civilizações mais antigas, às formas mais recentes de
busca por acessos a „estados superiores da consciência‟
179
.
177
Essa linha de raciocínio não pertence a um único autor ou áreas de pesquisa, mas se insere num grande
panorama de base, ao qual pertencem Gastón Bardet com seu O Urbanismo; Milton Santos com Pensando o
Espaço do homem, além de Leonardo Benévolo com o grande estudo História da Cidade. E ainda pode-se
dizer que estes autores nem estão sozinhos, mas agrupam uma linha de entendimento ainda atuante.
178
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas (1953-1960). Porto Alegre: LPM, 1984. p. 49.
106
Fica difícil advogar por esse argumento, no momento em que a droga se tornou
uma das mercadorias mais cobiçadas por todas as máfias, configurando a segunda maior
indústria do planeta, só perdendo para a indústria das armas. Mas que não se confunda o
mercado de drogas atual, com sua presente utilização, como alternativa de inversão de
estratificação social, promovendo um grande acúmulo de riquezas nas os de larga parcela
de segmentos sociais, até então, mantidos na indigência. A transformação da droga em
mercadoria de alta valorização em mercado paralelo, e mantido como tal para prevenir
pagamento de impostos e outros controles de Estado, tem invertido sua percepção e uso, na
sociedade urbana contemporânea dos anos ‟80 para cá.
A transformação das drogas em mercadoria rara e de difícil acesso provocou seu
descolamento desde a inserção nas culturas ancestrais de milhares de anos, jogando-a na
ciranda financeira. A miséria, mantida por séculos com a ajuda de simplórias muletas
ideológicas, tais como religiões, justificativas de raça e classe, ainda somando justificativas de
espaços de circulação, seja zona rural, periferia, morro, favela, ou outra ideia qualquer que
pudesse auxiliar na manutenção das grandes desapropriações de riquezas e direitos civis, não
funcionam mais. A degradação social tem sido ocasionada, em grande medida, pela quebra do
acordo moral que amarrava as classes oprimidas até, ironicamente, os anos de maior
repressão, ou seja, do século XIX ao entre-guerras, quando as máscaras morais são derrubadas
depois da monstruosidade da guerra de trincheiras. Por pior que fosse, as justificativas
serviam de cordão de isolamento moral, arrefecendo ânimos, violências, recusas, explosões e
outras barbáries. Uma barbárie foi trocada por outra.
Mas como aponta Benjamin, a barbárie foi cometida pelo lado inverso, isto é, pelo
lado da „aristocracia‟, rompendo laços, sacralidades, esvaziando gravidades, tornando tudo em
rasos troféus dos triunfos de suas violências contra a cultura dos povos vencidos.
Apropriações, anexações, imposição de Estados Nacionais sobre os continentes da face do
planeta, acabou por degradar valores culturais, por romper as próprias letras morais que lhes
serviam de proteção, sob alegações do não-humano, do menos-humano, do baixo-humano, do
bárbaro, do selvagem, do quase-animal e do „eu mereço‟. A violência se instalou e assumiu a
nova face da opressão, como ocorreu com as drogas de alteração de consciência, ou seja, os
narcóticos misturados, para efeitos transmutativos, que de grandes atravessadores de portas
para novos conhecimentos, virou indústria transnacional.
179
WEIL, Andrew. Drogas e Estados Superiores da Consciência. São Paulo: Ground, 1986.
107
Em todo o caso, esta nova realidade das drogas, extrapola em muito, a
potencialidade da droga em si que, por muitos séculos, foi usada por outras possibilidades de
relações e realidade, e por novas vivências e experiências. O desvio, degradação e
transformação das drogas de alteração de consciência, em mercadorias de organizações
mafiosas, não eliminam o fato de serem o que sempre foram: rompedoras de barreiras.
No caso do poema „sob Narcótico‟, Piva aproveita o efeito e investe em sensações
tantas quantas possa suportar, enriquecendo sua trajetória pela cidade, onde misturará beijos,
espasmos, uivos, abismos, com Chet Baker „ganindo na vitrola‟, sentindo „o choque de todos
os fios saindo pelas portas partidas de meu cérebro‟.
Aliterações garantem o ritmo em galope pelas noites da cidade, colidindo cegos e
disparando bombas, seguindo ânsias e fúrias, nos fragmentos da riqueza absurda entre a
realidade e todas as possibilidades do ser e de nunca vir a ser, mas se ver!
O choque da grande cidade, tanto se disse, vem assaltando poetas por dois
séculos. Mas essas leituras não cansam de nos mostrar o que tentamos ignorar para seguirmos
com nosso cotidiano eficiente e organizado. Piva está bem acompanhado e dialoga com eles.
Em sua Ode a Fernando Pessoa‟, de 1961, dialoga com Álvaro de Campos, comentando os
espaços destruídos e invadidos, quando reconhece os temas em que esse diálogo tem eco com
seu homenageado:
ODE A FERNANDO PESSOA
180
O rádio toca Stravinsky para homens surdos e eu recomponho na minha
imaginação
a tua triste passada em Lisboa
Ó Mestre da plenitude da Vida cavalgada em Emoções,
Eu e meus amigos te saudamos!
Onde estarás sentindo agora?
Eu te chamo do meio da multidão com minha voz arrebatada,
A ti, que és também Caeiro, Reis, Tu-mesmo, mas é como Campos que vou
saudar-te, e sei que não ficarás sentido por isso.
Quero oferecer-te o palpitar dos meus dias e noites,
A ti, que escutaste tudo quanto se passou no universo,
180
Como anteriormente comentado, este poema não havia sido publicado, tendo sido circulado em forma de
plaquete quando de seu lançamento em 1961. Em 2005, finalmente, foi agrupado ao primeiro volume das
Obras Reunidas, Um estrangeiro na legião. op. cit., p. 20-5.
108
Grande Aventureiro do Desconhecido, o canto que me ensinaste foi de
libertação.
Quando leio teus poemas, alastra-se pela minh‟alma dentro um comichão de
saudade da Grande Vida,
Da Grande Vida batida de sol dos trópicos,
Da Grande Vida de aventuras marítimas salpicadas de crimes,
Da grande vida dos piratas, Césares do Mar Antigo.
Teus poemas são gritos alegres de Posse,
Vibração nascida com o Mundo, diálogos contínuos com a Morte,
Amor feito a força com toda Terra.
Sempre levo teus poemas na alma e todos os meus amigos fazem o mesmo.
Sei que não sofres fisicamente pelos que estão doentes de Saudade, mas de
Madrugada, quando exaustos nos sentamos nas praças, Tu estás
conosco, eu
sei disso, e te respiramos na brisa.
Quero que venhas compartilhar conosco as orgias da meia-noite, queremos ser
para ti mais do que para o resto do mundo.
Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta
noite?
Que paisagens são estas?
Quem são estes descabelados com gestos de bailarinos?
Vamos, o subúrbio da cidade espera nossa aventura,
As meninas já abandonaram o sono das famílias,
Adolescentes iletrados nos esperam nos parques.
Vamos com o vento nas folhagens, pelos planetas, cavalgando vaga-lumes
cegos
até o Infinito.
Nós, tenebrosos vagabundos de São Paulo, te ofertamos em turíbulo para uma
bacanal em espuma e fúria.
Quero violar todas superfícies e todos os homens da superfície,
Vamos viver para além da burguesia triste que domina meu país alegremente
Antropófago.
Todos os desconhecidos se aproximam de nós.
Ah, vamos girar juntos pela cidade, não importa o que faças ou quem sejas,
eu te
109
abraço, vamos!
Alimentar o resto da vida com uma hora de loucura, mandar à merda todos os
deveres, chutar os padres quando passarmos por eles nas ruas, amar os
pederastas pelo simples prazer de traí-los depois,
Amar livremente mulheres, adolescentes, desobedecer integralmente uma
ordem
por cumprir, numa orgia insaciável e insaciada de todos os prositos-
Sombra.
Em mim e em Ti todos os ritmos da alma humana, todos os risos, todos os
olhares,
todos os passos, os crimes, as fugas,
Todos os êxtases sentidos de uma vez,
Todas as vidas vividas num minuto Completo e Eterno,
Eu e Tu, Toda a Vida!
Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã,
enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado.
Vamos percorrer as vielas do centro aos domingos quando toda a gente decente
dorme, e só adolescentes bêbados e putas encontram-se na noite.
Tu, todas as crianças vivazes e sonolentas,
Carícia obscena que o rapazito de olheiras fez ao companheiro de classe e o
professor não vê;
Tu, o Ampliado, latitude-longitude, Portugal África Brasil Angola Lisboa São
Paulo e o resto do mundo,
Abraçado com Sá-Carneiro pela Rua do Ouro acima, de mãos dadas com
Mário
de Andrade no Largo do Arouche.
Tu, o rumor dos planaltos, tumulto do tráfego na hora do rush, repique dos
sinos de São Bento, na hora tristonha do entardecer visto do Viaduto do
Chá,
Digo em sussurro teus poemas ao ouvido do Brasil, adolescente moreno
empinado
papagaios da América.
Vamos ver a luz da Aurora chispando nas janelas dos edifícios, escorrendo
pelas
águas do Amazonas, batendo em chapa na caatinga nordestina,
debruçando
no Corcovado,
110
Ouçamos a bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo e a batucada
vinda
diretamente do coração do morro.
Tu, a selvagem inocência dos beijos dos que se amam,
Tu, o desengajado, o repentino, o livre.
Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pelo caixa,
Vamos ao Brás beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos
tudo de cima da ponte,
Vem comigo, eu te mostrarei tudo: o Largo do Arouche à tarde, o Jardim
da Luz
pela manhã, veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida,
assaltaremos o Fasano, iremos ver “as luzes do Cambuci pelas noites de
crime,
onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio,
Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo do Mário de Andrade
(ai de nós se ele desperta!),
Mas vamos respirar a Noite do alto da Serra do Mar: quero ver as estrelas
refletidas
em teus olhos.
Sobre as crianças que dormem, tuas palavras dormem; eu deles me
aproximo e
dou-lhes um beijo familiar na face direita.
Teu canto para mim foi música de redenção,
Para tudo e todos a recíproca atração de Alma e Corpo.
Doce intermediário entre nós e a minha maneira predileta de pecar.
Descartes tomando banho-maria, penso, logo minto, na cidade futura,
industrial
e inútil
Mundo, fruto amadurecido em meus braços arqueados de te embalar,
Resumirei para Ti a minha história;
Venho aos trambolhões pelos séculos,
Encarno todos os fora-da-lei e todos os desajustados,
Não existe um gângster juvenil preso por roubo e nenhum louco sexual
que eu
não acompanhe para ser julgado e condenado;
Desconheço exame de consciência, nunca tive remorsos, sou como um lobo
Dissonante nas lonjuras de Deus.
111
Os que me amam dançam nas sepulturas.
Da vidraça aberta olho as estrelas disseminadas no céu; onde estás, Mestre
Fernando?
Foste levar a desobediência aos aplicados meninos do Jardim América?
Dás um lírio para quem fugir de casa?
Grande indisciplinador, é verdade?
Vamos ao norte amar as coisas divinamente rudes.
Vamos lá, Fernando, dançar maxixe na Bahia e beber cerveja até cair com um
baque surdo no centro da Cidade Baixa.
Sabes que há mais vida num beco da Bahia ou num morro carioca do que
em
toda São Paulo?
São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil?
Até teus comunistas são mais puritanos do que padres.
Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para as praias?
Ó cidade de sempiternas mesmices, quando te racharás ao meio?
Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar os troncos medrosos
da floresta
humana.
Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloquentes da masturbação
transferida!
Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das manhãs de
setembro!
Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?
Fornalha do meu Tédio transbordando até o Espasmo
Horda de bugres galopando a minha raiva!
Sei que não há horizontes para a minha inquietação sem nexo,
Não me limitem, mercadores!
Quero estar livre no meio do Dilúvio!
Quero beber todos os delírios e todas as loucuras, mais profundamente que
qualquer Deus!
Põe-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser
como um raio para vós!
Violência sincopada de todos os boxeurs!
Brasileira do Chiado em dias de porre de absinto.
Arcabouço de todas as náuseas da vida levada em carícias de Infinito.
Tudo dói na tua alma, Nando, tudo te penetra, e eu sinto contigo o íntimo
112
tédio
de tudo.
Realizarei todos os teus poemas, imaginando como eu seria feliz se
pudesse estar
contigo e ser tua Sombra.
Este poema, impressionante pela força, fôlego e maturidade poética, foi escrito por
um jovem de vinte e poucos anos, sem que possamos -lo como uma obra da juventude. É
um trabalho em que as linhas mais marcantes de sua obra estão delineadas. O poema aos
trotes, potente, sem se deixar fechar às técnicas construtivas, mas produzindo uma marcação
definida, aonde delineia seu projeto de se deixar tomar pela não-razão. Também encara
límpida, a noção da degradação do espaço urbano, bem como aponta sua crítica irônica sobre
o agrupamento de indivíduos em um território, as cidades, além de uma leitura sobre a
condição do corpo enquanto objeto político, em sua luta pela conformidade subjetiva - “os
que me amam dançam nas sepulturas”.
Piva se associa a Fernando Pessoa naquilo em que mais os aflige: o projeto de
cidade associado ao capital e seus controles sobre o corpo, pela eficiência dessa máquina de
produzir (originalmente), e fazer circular mercadorias.
O poeta chega com seu arsenal completo, como disse Arrigucci no documentário
de Dios: Ele transformou a herança cultural num patrimônio pessoal”, tomou posse, mesclou,
usufrui sem escalas hierárquicas. Ele localiza o mestre no modernismo português, em meio às
linguagens experimentais que, certamente, o circundava e que provocaram nele essa ousadia
de desvencilhamento de um único ego-persona. Piva reconhece o mestre e se identificando
com Álvaro de Campos, travará com ele o diálogo deste poema.
O delírio de „Ode Marítima‟ é posto no centro da ideia da busca pelo rompimento
de um cotidiano regrado, educado e tornado empobrecedor sob desculpas morais. A grande
perda é a do espírito. Confinado, o grito se espalha pelos vagalhões, pelas aventuras em que o
Mal lava com seu sangue reparador todo o Bem posto em grilhões. Entre o Bem e o Mal, as
dicotomias cristãs logo vêm à baila, servindo-se de incensários sagrados para comungar farras
pagãs, reunindo santos pecados amorosos “para além da burguesia triste que domina o país
alegremente Antropófago”.
A ponta de um desejo recorrente começa a surgir quando goza antecipadamente a
possibilidade de “amar livremente mulheres, adolescentes” mesmo pederastas que possa trair
113
em seguida, mas, principalmente, dar livre curso a uma orgia insaciável de todos os
propósitos, numa visão profana e alastrada para um projeto de sexualidade sem regras.
As delícias dos contrários como a inusitada imagem de se ler Kierkegaard e
Nietzsche num jardim enquanto criancinhas brincam ao lado - senhores sisudos, graves e
profundos, assoprados pelas brisas leves da alegria total, que é a infantil. São os contrários dos
altos e baixos, i.e., hierarquias culturais entre pares que se associam inadvertidamente, e que
se mostram presentes em sua obra. Com o amálgama do estrito prazer, Piva começa a
propor o desmonte arrogante e tolo da erudição como arcabouço estético superior, bem como
propõe o desmonte de uma cultura pop de presença voraz e absorvente, como representativa
de uma „verdade coletiva‟, aproximando e se apropriando de todas as instâncias da expressão
humana, em grande sarau de puro deleite. E para ampliar o prazer desse passeio noturno, ele
chamará Stravinsky, os Césares, niilistas prodigiosos, Descartes (numa cena hilária e
galhofeira, troçando com o grande pai da consciência moderna), e outros indícios de nossas
bases intelectuais, conscientes ou não (no caso de Piva, vivamente conscientes, aliás, mesmo
com sua pouca idade).
E com seu „mestre‟ ele propõe celebrar todos os prazeres do mundo, e para isso, os
prazeres do corpo, do sexo, e as sensações alucinadas que a expansão da consciência pode
trazer. Tal expansão pode ser feita pelas drogas, pelo conhecimento, pela estética, pelas
sensações, pelo risco de pôr sua vida fora do previsível. Não sair do previsível é viver
devagarzinho, como Mário de Andrade. Ele avisa para não acordarem Mário de Andrade
durante essa noite de prazeres pela cidade com seu convidado, pois “ai de nós se ele
desperta”. E seguirá „cuidando‟ desses que são para ele, os que vivem de mansinho, sem a
radicalidade que a vida merece. Por isso expulsa o “policiamento familiar da alma dos fortes”,
por isso se oferece para seguir o mestre que a tudo se deixa penetrar, doer, sentir.
Essa peregrinação por uma cidade que sabe apartada de suas expectativas, não o
torna impotente. Ele luta e avança para arrancar de suas sombras o conhecimento e a vivência
que possa transmutar a sua. E em sua monstruosidade, a cidade propicia surpresas e
diversidade, que torna Piva cativo da cidade. Porque ama a cidade, porque teme avião, porque
não tem dinheiro para fugir dela, por suas ofertas de vida e morte em vida, sustos e visões,
tantas outras coisas que talvez se descubra pelas linhas e entre linhas de sua obra. Mas,
girando o “mesmo” espaço tantos anos, Piva é cameleiro que reinventa e sequestra seus
pedaços, enfiados a socos pelos versos, em meio às “cuequinhas em flor”
181
.
181
De Abra os olhos & diga ah, in Mala na mão... op. cit., p. 5.
114
A cidade pode ser seu parque-temático de muitas fantasias e até ganhar formatos
líricos inesperados, percorrendo poemas por entre as farpas de suas unhas que estarão sempre
em riste:
PARANOIA EM ASTRAKAN
182
Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram asticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação
Astrakan é uma cidade no Oriente, mas ela carrega uma história de luxo e morte: o
uso de peles feitas de fetos de carneiros caracul. Eles são arrancados e mortos assim que
nascem. A mãe pode morrer nessa violência, o que torna a pele ainda mais cara, pois se mata
182
De Paranoia, in: Um Estrangeiro... op. cit., p. 37.
115
uma matriz. Luxo, violência, feto, morte, cidade - Astrakan não foi visitada por Marco Pólo, e
se foi, preferiu esquecer.
A cidade é um dos maiores dos seus infernos, foco do seu olhar esgazeado, crítico
e encantado. Na busca pelo paganismo, ele está mergulhado no cristianismo que se delineia
por suas ruas, fachadas, pelos sorrisos das pessoas nas ruas. Mas será sobre esse mapa que o
rodeia, que tromba seu corpo e territórios de desejos, que estabelecerá também, o território de
combate contra o grande empecilho, o grande inimigo, o grande empestiador do território em
que circula: o moralismo cristão, que ajudou a formar esta cidade moderna e que seus
protetores sabem disso, sob os discursos de que os sustentáculos da “sociedade” (assim
mesmo, abstrato e atemporal) são o cristianismo e a família cristã.
A grande cidade abriga o pecado. Pecado é caminho do Inferno. A cidade se
degrada triplamente: por ela mesma (circulações, serviços, acessos), pela arquitetura,
engenharia (as chamadas, ironicamente obras de arte‟, referindo-se a pontes, viadutos, e o
gigantesco acúmulo de concreto mantido em por cálculos estruturais), e pelo urbanismo
(uma sociologia posta sobre um plano de desenho meticulosamente projetada - embora, quase
sempre, solapada). A degradação leva a uma ecologia deteriorada, com superfícies
impermeabilizadas em excesso, redução de áreas verdes públicas e privadas, causa e motivo
de aprisionamento, doença de espírito, doença dos corpos, doença das almas e destruição do
ideal dos velhos burgos.
183
A cidade vai para baixo, e a legião celeste vai junto, com suas crianças católicas
miseráveis sob as bênçãos das linhas tortas escritas no céu; com seus anjos de fogo que
iluminam cemitérios alegremente profanados; e a grotesca, assustadora e pictórica imagem
das borboletas de zinco devorando as hemorróidas góticas das beatas”...! Além de alusões
mais tênues, como a ideia de mortos que uivam por fracas penas..., anjos? Fracos anjos...,
fracos mortos...? Fracos uivos.
E a cabeça gira novamente em seu escorregar por caminhos que deveriam ser
conhecidos, mas se fragmentam, se desorganizam e constroem novas faces de uma realidade
tão verossímil, quanto a possibilidade de uma realidade monstruosa que, ainda que se mostre
diariamente pelos noticiários, nunca faz com que alguém possa se sentir confortável..., por ser
tão improvável quanto o rugir do Surrealismo em jogos de palavras rolando pelas ruas
noturnas.
183
HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Loyola, 2004.
116
O mundo angelical, longe da perfeição celestial apolineamente olímpica, segue
como fonte de confrontos entre o desejo puro e simples, o desejo pelos interditos que as
barreiras dos tabus impõem, e o mais puro desejo pela destruição do angelical em si. Freud,
Mircea Eliade e Georges Battaille analisam o combate ao estigma do Bem, fonte de tantas
regras, chamada a “estreita estrada”.
OS ANJOS DE SODOMA
184
Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
A loucura e o arrependimento de Deus
Os muitos anjos que riscam, cortam, sobrevoam e habitam a degradada metrópole
carregam a candura e erotismo do efebo, mas escondem também, sob suas belas e prodigiosas
asas, a destruição, a ruína da cidade que se afasta em um urrar longínquo sob a serra azul,
azul de abandono, de solidão, deixada em torpor, em que os últimos tambores cavam a
sepultura de uma cidade moribunda, que arfa e bufa, em estertores horrendos.
184
De Paranoia, in Um estrangeiro... op.cit., p. 61.
117
São os Anjos da História, como anunciou Benjamin, são os Anjos de Sodoma,
violentos e prodigiosos, terríveis, apocalípticos e fundamentais. Anjos de beleza e destruição,
anjos de desejo e violência, anjos urbanos sem perdão.
Esse poema vidente, aponta a luta contra a cidade, a fuga para a floresta, o
mágico como força real e imanente sobre os humanos. São Paulo é Sodoma - para o bem e
para o mal. Conflitos religiosos, onde os interditos são a senha de entrada para a fidelização e
acesso a um pedaço de um Éden entediante a a medula. São Paulo é Sodoma, onde a
decadência é libertadora e acusadora - desvendando as mutilações que a moral burguesa
weberiana enceta sobre as asas de quem aspira fugir da zona de ataque. O séquito dos anjos
enlouquece em sua sanha pela conformidade dos comportamentos, das formas e dos prazeres,
agarrando chibatas com as mãos sangrentas, inventando a loucura e o arrependimento de
Deus”. E citando Nietzsche, amplia: Se para o filósofo valeria acreditar num deus que
soubesse dançar, Piva soma: E num Deus que saiba beber, como Baco, Dionísio, Exu Tranca-
Rua.
Piva mantém suas associações e cumplicidades com os “malditos” e, com eles,
investe contra alguns de seus maiores inimigos: a cidade e o cristianismo. Envolto, rodeado e
soterrado pelos códigos e signos cristãos, inverte sentido, direção e objetivos de seu séquito e
exército. E se fará envolto, rodeado e soterrado por anjos, serafins e querubins, que sairão a
campo, em plena cidade santa-herética e tão pouco pade São Paulo, campo aberto onde o
poeta tenta lutar contra os pecados da castidade e da hipocrisia, e os crimes da conivência e do
conformismo.
Piva inverte vetores, prodigalizando outra sacralidade, outros anjos, aqueles que
saberão consolar aos que foram massacrados, aos que tombaram vítimas de suas humanas
pulsões, reafirmando seu brado: “Seremos sempre pelo deboche, pela anarquia e sempre do
lado dos vencidos”
185
.
Associações, sempre libertadoras, rompem o percurso do argumento lógico e
atacam o vão do horror: “anjos... desgrenhados e violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens, criando palavras turbulentas”! Mas sob o voo Surrealista, pode
fazer fluir seu olhar que se encanta entre o mistério da dor e a violência dos anjos.
A cidade é reconhecimento constante - medonha e fascinante. A megalópole é
berço de doces sonhos, de parcerias criativas, de projetos fantásticos, aglutinando o
185
DIOS. op.cit.
118
movimento modernista numa cidade tacanha, mas que possuía propensão, perceptível, para
a grandeza de um parque industrial deglutidor.
Indagado sobre a proximidade de Paranoia com Paulicéia Desvairada de Mário
de Andrade
186
, comenta que percebe como ambos tiveram o que chama deexperiência
alquímico-futurística” da cidade, mas com um vetor invertido, que afirma que “eu inverti
isso, pois tive uma relação de pesadelo [...] houve um fio-condutor de explosão, quando a
paisagem se racha de encontro às almas, o rebro que se racha de encontro a uma calota [...],
a ideia da ruína. É mais ou menos aquilo que diz Brecht: Da cidade sobrará apenas o vento
que passa sobre ela”
187
.
Quanto à obra citada, Piva sente maior aproximação com o poema „Girassol da
Madrugada‟
188
, quando se entrevê, mais claramente, “seu lado homoerótico, demonstrando
grande sensibilidade homossexual”
189
.
De fato, em algumas passagens esse poema se insinua quando diz:
GIRASSOL DA MADRUGADA
190
V
Tive quatro amores eternos...
O primeiro era a moça donzela,
O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados.
VI
Os trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas
cidades,
Não há senão Narciso entre nós dois, lagoa,
Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras,
Há só meu êxtase pousando devagar sobre você.
Oh que pureza sem impaciência nos calma
Numa fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se
agradam
Impossíveis que nem a morte e os bons princípios.
Que silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso
186
WEINTRAUB, Fábio. Entrevista com Roberto Piva. Revista Eletrônica WebLivros, s/d. Disponível em:
www.weblivros.com.br/entrevista/roberto-piva-2.html. Acessado em dezembro de 2007.
187
Idem, ibdem.
188
Do livro O Fogo irrefletido do amor de 1931, conforme identificação de Gilda de Mello e Souza, responsável
pela seleção e organização dos Melhores poemas de Mário de Andrade. 7. ed. São Paulo: Global, 2003.
189
In: Weintraub para a Weblivros, op.cit.
190
ANDRADE, M. op. cit.., p. 133.
119
dourado!
Nem beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia apaixonada
Em que a paz interior brinca de ser tristeza.
[...]
Também percebe esse mesmo traço e sensibilidade, no conto Frederico
Paciência‟, datado de 1924, do livro A crônica de Juca Belazarte Malazarte
191
, citado como
prova dessa sensibilidade que o impressionou. Segue abaixo alguns trechos que demonstram
essa impressão indicada por Roberto Piva:
Frederico Paciência [...]. Foi no ginásio [...]. Éramos de idade parecida, ele
pouco mais velho que eu, quatorze anos [...]. Senti logo uma simpatia
deslumbrada por Frederico Paciência, me aproximei franco dele, imaginando
que era apenas por simpatia [...] admirava lealmente a perfeição moral e
física de Frederico Paciência e com sinceridade o invejei [...]. Quis ser ele,
ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos [...]. E a vida de
Frederico Paciência se mudou para dentro da minha.
Mas, como é bem apontada por seus leitores, a associação de Paranoia à Paulicéia
Desvairada é inevitável, na maneira como narram esses trajetos em fragmentos,
„arlequinalmente‟, como diria o próprio Mário, e bem mereceria estudo mais detalhado.
E com „Ode ao Burguês‟, a relação fica um tanto óbvia, com seus insultos
explícitos, ao desprezível „cauteloso pouco a pouco‟, generalizando e ofendendo uma
aparência caricatural, preconcebida, entre o sedentarismo e suas adiposidades consequentes,
amortecendo vivacidade, acomodando perigosamente aos que se pretendem „zelar‟ pelo bem
coletivo. Mário, aos berros, conclama “morte à gordura! / Morte às adiposidades cerebrais /
Morte ao burguês-mensal!... / ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos [...]. Fora o
bom burguês!...”
192
. Mas Mário não é o panfletário em sua obra como um todo, cedendo a
arroubos enraivecidos em um ponto ou outro. Mas o que se nessa obra são as buscas
frenéticas, em que pede socorro aos amigos, em busca de um sossego que a cidade o lhe
pode trazer, nem tão pouco sua moral tacanha e provinciana. E esses confrontos, guardados os
períodos históricos e suas delimitações reais, são muito próximos:
191
Livro identificado pela organizadora da antologia Os melhores contos de Mário de Andrade, Telê Ancona
Lopes. 2.ed. São Paulo: Global, 1988. p.141-58.
192
ANDRADE, M. Paulicéia Desvairada. São Paulo: Casa Mayença, aos 21 de Julho do anno de 1922 (edão
fac-simile, integrante da Caixa Modernista, 2002). p. 67-9.
120
NOCTURNO
193
Luzes do Cambucí pelas noites de crime...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...
Gingam os bondes como um fôgo de artifício,
sapateando nos trilhos, cuspindo um orifício na treva cor de cal...
Num perfume de heliotrópios e de pôças
gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan;
e traz olheiras que escurecem almas...
E neste pequeno trecho do poema os paralelos ficam claros: os trajetos
explicitados e percorridos pela cidade, as caminhadas noturnas preferencialmente, o ar
densamente sensualizado, a referência a Baudelaire numa constante, seja nominando-o,
citando-o ou incorrendo nas mesmas flaneries onde se busca quebrar um ritmo contra o qual
se debate, como a ponta de um iceberg, ou como o rabo de uma onça, que se sabe na outra
ponta do que lhe açoita a face, ou ameaça arrancar-lhe a alma numa patada. Monstros prontos
para destroçá-lo ou deglutir, os pedaços, despedaços citadinos de um não-fazer imperdoável,
num ritmo de alta heresia!
A cidade e suas regras sobre os corpos, não é apenas uma questão para uma
poética belicosa, mas uma questão de toda uma vida. E se São Paulo era provinciana e
monótona nos anos sessenta quando Piva flanava com seus amigos por suas ruas, imagine o
que seria para o Mário de Andrade:
OS CORTEJOS
194
Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
[...]
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! os tumultuários das auséncias!
193
Idem, p. 91. Lembrando que, por ser uma edição fac-similar, fez-se a opção pela manutenção da ortografia
original.
194
Idem, p. 47-8.
121
Paulicea a grande bocca de mil dentes;
e os jôrros dentre a lingua trissulca
de pús e de mais pús de distinção...
[...]
Mas Mário é múltiplo e vasto, passando de agitador a teórico cultural, de fundador
do Patrimônio Histórico (só isso valeria sua louvação) a estudioso de música, além das
outras facetas mais conhecidas, associadas à literatura. Mas em seu „Prefácio
Interessantíssimo‟, essas pontas parecem convergir e, esgarçando seu olhar ousado e
modernista, encostar em um Surrealismo ainda nem existente, que foi escrito entre 1920 e
21, enquanto o Manifesto Surrealista foi publicado em 1924. Abrindo o texto, a ousadia
pós-freudiana: “Está fundado o Desvairismo”, e advoga pela imprecisão da palavra, dando
passagem a fluxos inconscientes. Com instrumental teórico do universo musical, propõe um
certo aproveitamento dessas duas linguagens quando diz:
A poética, com rara excepção até meados do século 19 francês, foi
essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia
musical: arabesco horizontal de vozes consecutivas, contendo pensamento
inteligível [...], mas uso frases soltas [...], portanto polifonia poética [...] uso
o verso harmônico: a cainçalha..., a Bolsa... As jogatinas... [...] a linguagem
admite a forma dubitativa que o mármore não admite [...]. Versos: paisagem
do meu eu profundo [...]. Com o vário alaúde que construí, me parto por essa
selva selvagem da cidade
195
.
Mário de Andrade apontava para um proto-Surrealismo, se antecipava ao
riquíssimo conceito bakhtiniano da polifonia, visualizando antes do genial teórico russo, as
muitas vozes na construção de um texto. A compreensão do termo, no entanto, para Bakhtin,
é que ele percebe a reunião de vozes de muitos tempos e lugares, enquanto Mário pensa no
acorde poético como um múltiplo olhar sobre um verso. O poeta, jamais seria único, mas
múltiplo, vário, difuso entre sensações e leituras possíveis, apontando ainda, para o
desarrumado da vida e, portanto, do poema, que ele quer dissonante, como „os músicos
preferem suas frases melódicas‟. Com as pesquisas musicais bem mais ousadas que as da
literatura, como ele bem aponta, antes dos anos vinte, Prokofiev, Stravinski e Schöenberg
rompiam a tonalidade romântica, partindo desde a simples dissonância às raias da atonalidade.
195
De „Prefácio Interessantíssimo‟, in: Paulicéia Desvairada. op. cit., p. 23-5.
122
A riqueza política, antes da estética, da polifonia, é que ela desarranja o discurso
unívoco, confiante e autoritário.
O autoritarismo se associa à indiscutibilidade das verdades veiculadas por
um tipo de discurso, ao dogmatismo; o acabamento, ao apagamento dos
universos individuais das personagens e sua sujeição ao horizonte do autor
[...]. O dialogismo e a polifonia estão vinculadas à natureza ampla e
multifacetada do universo (romanesco), ao seu povoamento por um grande
número de personagens [...]
196
.
A intimidade entre as obras de Mário e Piva, tirando sua vasta e inequívoca
polifonia, não são muitas, a porque o mundo virara do avesso, conforme observou
Hobsbawm em seu estudo do curto e explosivo, século XX, ao qual chamou de Era dos
extremos. Apesar da grandeza de Mário, Piva confessa uma identificação maior com a obra de
Antonio Mendes, poeta cujo livro apresentou, e cuja temática aponta para esse universo
caótico e degradado da cidade que se desfigura cruelmente. Como Mendes, Piva comenta
observar esses pequenos personagens, ricos e sujos, que circulam por áreas bem menos
admiráveis e, aparentemente, „menos São Paulo‟, como seus bairros industriais, seus
subúrbios carecas e sem brilho, onde ainda encontram hábitos prosaicos e comoventes, em
que se “placas de leciona-se piano, garrafeiros, loucos, tarados e heróis”
197
. Figuras e
imagens que se mantêm desde a São Paulo de Mário de Andrade passando por Antônio
Mendes, persistindo até hoje, desde os arredores do centro velho, até os confins das zonas sul
e leste, tão longínquos quanto esquecidos. E é valorizando essas pequenas riquezas que ele
pontuou na apresentação de A Confissão para o Tietê, de 1980, em que anuncia “os poemas
de Antonio Mendes como a Bossa-Nova do subúrbio”:
[...] bêbados proletários, vagabundos, bichas suburbanas com sotaque
italiano, garotos sentados no meio fio mastigando cenouras cruas, peladas no
pátio da Eletroradiobraz, placas de leciona-se piano, garrafeiro, loucos,
tarados e heróis, enchem de encanto as ruas da zona norte
198
.
Em entrevista para Dume e D‟Elia
199
, a visão extremamente ácida sobre a cidade se
destaca, após um aumento muito evidente da violência e da sujeira de todo seu território. A
196
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: Conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto,
2007. p. 191.
197
In: Prefácio para MENDES, Antonio. A Confissão para o Tietê. São Paulo: Marco Zero, 1980. p. 3.
198
Idem, ibdem.
199
Ebulições Pivianas. op.cit.
123
cidade que existiu, a dos anos 60, perdeu a magia, a dimensão lúdica, e não há mais os lugares
que se percorria naquele período”. Lembrando que a entrevista foi feita em 2007. Ele
comenta: “São Paulo está horrorosa porque em uma sociedade de massas, a criminalidade é
de massa, e as pessoas tornaram-se criminalóides”200. E acrescenta: “Hoje ela é uma cidade
devastada, com uma população desenraizada do campo, sem identificações urbanas [...]
Escrevi o livro Paranoia com uma visão mágica da cidade, como uma grande carniça
apodrecendo”
201.
[...] (n)a metrópole da modernidade os habitantes são transformados em
vencidos, em prisioneiros, em exilados. O cidadão moderno se descobre
como estranho, isolado, derrotado. A cidade só é cantada para ser denegrida:
como instrumento retórico que se dirige ao lamento
202
.
Piva está pensando a cidade como cidade-cenário, cidade-armadilha, cidade-
poesia. Seu campo da ética mais profunda. Por isso a poesia que ele persegue e produz, como
explica Davi Arrigucci, “não fala das „estrelinhas do céu‟, mas é usada como um dos
instrumentos mais profundos da visão do homem sobre o mundo, por isso que nas culturas do
mundo, a poesia está num patamar elevado do espírito humano”
203
.
Abraçado aos sentidos fugazes que a metrópole, de fato, impõe, o Surrealismo irá
se insurgir com plena veemência e todo vigor. É fácil perceber como o Surrealismo ensina e
conduz. Ele liberta a angústia do sentido, a angústia dos fazeres cotidianos para alvos
absurdos, quando se indaga - o que faria mais sem sentido: a realidade concreta ou o delírio?
Que verdugo sonhou a megalópole?
Percorrendo suas praças e avenidas, levando-se à sério demais, e às vezes
divertindo-se à grande, carnavaliza a presunção de autocontrole preconizada pelo
racionalismo pré-Freud, em que Piva faz a crônica dessas praças, enrolado no manto denso
do Surrealismo:
PIAZZA IV
204
Estômagos de praças
com plátanos manchados de azul
com filatelistas
200
Idem.
201
Idem, ibdem.
202
CANEVACCI. A cidade polifônica. op. cit., p. 100.
203
DIOS.op.cit.
204
De Piazzas, em Um estrangeiro... op. cit., p. 89.
124
transpirando
amputações de
pombas metálicas nos coitos rápidos
as armaduras
dos gineceus
em zumbidos surdos
de besouros de borracha
os bocejos macerando o ar
onde estão as
fricções fraudulentas das
ilusões do amor
o inatingível bolo
nascendo
no lindo lugar
de um amável coração
um banco revirado
cheio de silêncio
a tarde
sorrindo de frio
para poucas
cenas de ciúme
ou
Rimbaud
beijando as pessoas
sua máscara lógica
LIMITES DA LAREIRA acabando de tombar
sem nenhum pássaro dentro
Praças paulistanas, piazzas de trocas fugazes como coitos, selos, fricções, os quase
amores, desejos suspirantes por um quase nada que nem foi, cheio de silêncio e frio.
Tristonhos plátanos de inverno, ansiando por lareiras, pedindo e transpirando beijos. Tardes
de circuitos domingueiros, quadriláteros intestinos, tão internos, bocejando ares de fria
preguiça e sorrisos ciumentos. “Vivemos na grande metrópole, mas também somos vividos
por ela. A cidade está em nós”
205
.
Estranho dizerem, como se na parca fortuna crítica de sua obra, que Piva teria
uma identificação com o futurismo por estar tão próximo das coisas e detalhes da tecnologia.
E como não sê-lo após os anos „60, em qualquer metrópole como São Paulo? Ignorar
teluricamente as golfadas de eletricidade que atravessam a cidade por cima, por baixo e pelo
meio? Mas o que não se são suspiros entusiasmados sobre o progresso tecnológico. No
mais das vezes, o que se , é sua crítica direta, até às condições de vida que deveriam ser as
mais tradicionais como a própria atividade da prostituição, tão antiga quanto comum, mas
que sequer essa tradição, é mantida com tranquilidade.
205
CANEVACCI. op. cit., p. 37.
125
2.3. CORPOS: Risco e prazer pela metrópole
A realidade do corpo é uma imagem
em movimento fixada pelo desejo.
Roberto Piva
Como separar Espaço e Corpo em poeta tão citadino? Aliás, como separar Espaço
e Corpo em mundo tão urbanizado? O poeta vai bebendo e vomitando seus ares, odiando e
rejeitando, mas é pelos seus contrastes que seu corpo e seu olhar sobre os corpos, se prepara
para outras formas de ocupação de espaços, com outras formas de atravessar corpos, de
atravessar espaços.
O poeta irá percorrer seus dias numa plataforma que se confunde com outras
subjetividades, e percebe que essas tantas subjetividades são alvos de projetos de poder. Poder
sobre corpos, e poder sobre corpos num grande circuito extrator de mais poder chamado
cidade. Corpo e espaço como planos de ação de controle. Pensar em amenidades é ignorar as
ideias de controle camufladas sob a urgência da fruição, da eficiência, da competição, da
justiça de se deixar morrer quem não trabalha. As cnicas de controle são muito boas, por
lidarem sempre com dois abismos existenciais: o medo e o desejo. E é disto que se constroem
ideologias, armas de dominar por ameaça e sedução. E é bom lembrar que o termo „Sociedade
de Controle‟ foi cunhado por Burroughs e assumido pela Ciência, conforme esclarece
Deleuze
206
.
A poesia que o poeta constrói não serve para embalar namorados, não comove
Pollyanas, mas se propõe a perturbar como um vate contemporâneo de que fala Benjamin
207
,
um poeta-profeta que não se perdeu no tempo, e que desvela pela transgressão. Mas num
tempo das imagens, de dispersão do texto, do empobrecimento da leitura, a linguagem
poética, que é síntese e que no caso de Piva é fluxo de consciência sobre, e contra, os fluxos
ideológicos, porém, como a poesia é para poucos, reduz seu alarde e área de perturbação.
Ruas, praças e nomadismos - o rolar pelas cidades destas terras, de outras terras, em fluxo
transparente, com trocas tão fugidias, o opacas, soma-se às angústias da sobrevivência, o
risco de ser engolido, num desconforto que se espalhara. Cinema, poesia, drogas, sexo, não
pertencimento, hedonismo, deboche, erotismo, corpos, muitos corpos e a cidade por todos
os lados.
206
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo: 34, 1992. (Coleção Trans). p. 219.
207
BENJAMIN, Walter. Alguns temas sobre Baudelaire. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975. (Coleção
Os Pensadores, n. 48). p. 35.
126
No „Postfácio‟ de 1964 já mencionado, Piva indica linhas fundamentais desses
dois primeiros livros, e que não mais se desligarão de seus versos ou de suas lutas. Na
deformidade da constituição do „homem moderno‟, em sua ânsia e desígnio pela utilidade e
eficiência, propõe o interdito à fantasia e ao gozo que, na justificativa de uma acumulação de
riquezas para o além-vida, induz a uma ascese que favorece a acumulação de riquezas bem
materiais. Ao cristianismo caberá “a escola do Suicídio do Corpo”, que o poeta aponta como
“a grande Doença a ser extirpada do coração do Homem”
208
. E ainda adverte:
O que eu & meus amigos pretendemos é o divórcio absoluto da nova geração
dos valores destes neomedievalistas [...] (e que) sob o império ardente de
vida do Princípio do Prazer, o homem, tal como na Grécia dionisíaca,
deixará de ser artista para ser Obra de Arte
209
.
A missão é mesmo ser „estrangeiro na legião‟. Nesta primeira fase de sua obra, nos
anos „60, Piva está olhando para uma esquerda mobilizada, que se esforça para expandir seus
quadros de adeptos, usando uma arma muito sedutora que é a arte, através de ões de rua,
pela chamada arte-engajada. E essas ações organizadas e planejadas, espalham-se pelas
escolas, praças, portas de fábricas, festivais e algumas editoras cúmplices e guerreiras como a
Civilização Brasileira, que unificava o bloco do “agora vai”. Esse clima navegava na aura de
um presidente que se dizia de esquerda, João Goulart, o Jango, que propunha Reforma
Agrária e outras decisões pela distribuição de riquezas, de justiça política, legal etc., mas que
não se instalava, pois a personalidade de Jango não permitia ações contundentes. Sem
tradição de participação política, com altos níveis de analfabetismo, e contra um imenso
aparato repressor mantido por “coronéis” de todo o tipo, e de norte ao sul do país, a verdade é
que o projeto era grande demais para um presidente hesitante e leniente, fato que lhe custaria
o mandato, a frágil democracia do país e sua própria vida.
A mobilização da esquerda em torno de projetos artístico-culturais fazia ferver as
ruas em novidades estéticas que acabavam por invadir searas da Indústria Cultural, como era
o caso dos Festivais da Canção, a expansão da indústria fonográfica que precisava de
novidades no cenário musical, muitos esquetes de teatros de rua e outros mais. O fato é que,
fosse pela Indústria Cultural, fosse pela esquerda organizada encantada pela eminência de
uma tomada de poder (afinal, o mundo todo não estava se esquerdizando?), esse era o
sentimento que transparecia, principalmente no segmento dos estudantes e jovens em geral.
208
„'Postfácio‟ in: Um estrangeiro... op. cit., p. 128-9.
209
Idem, p. 131.
127
As canções de protesto buscavam os formatos de Hinos para a Nova Caminhada,
como Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo tentaram fazer. E essa efervescência que organizava
fileiras para montar exércitos, o era novidade. Historicamente, as Comunas de Paris
buscavam essa mesma febre.
O perigo é de se entrar em trincheira alheia, seguir vanguardas, gurus, tabus e
abandonar seus próprios projetos de aventura. Nos anos sessenta fazer o jogo de uma
esquerda paramilitar era um grande risco, ou fazendo o caminho inverso, e seguir a juventude
religiosa, casta, mas também paramilitar da TFP
210
que se organizava. Mas também havia
o risco de se levar pelos louros da „vida literária‟ ou artística que, enganando o jogo estético
almeja o lucro e o prestígio.
Rimbaud nunca explicou sua recusa em compactuar com a elite que lhe abriu as
portas. Preferiu o abrir mão da vida de aventuras. Surpreendeu a todos quando abandonou
o tapete vermelho que lhe estendiam nos círculos literários de Paris, o que não é dizer pouco,
principalmente num período em que ela concentrava a alta produção artística da Europa. Ele
rompeu com as expectativas de torná-lo um novo aedo, novo arauto. Para Mário de Andrade
essa tão propalada superioridade poderia ter sido apenas um arroubo juvenil, e nada mais.
Em Rimbaud, Mário viu apenas um “caso característico do menino espertinho: brilha muito e
vira povo depois”
211
, contrariando muitas outras visões sobre o gênio rimbaudiano. O que
sabemos é que Rimbaud se rebelou, não apenas contra a hierarquização social para a qual
estava sendo conduzido, como contra a própria roda civilizatória parisiense que se lhe
desvendava perigosamente suspeita e vil.
Rimbaud conseguiu fugir do que o oprimia. Foi ser obscuro na vastidão de outra
vida, inconcebível a parisienses tão cônscios da poderosa e brilhante cidade que, afinal, havia
produzido sensibilidade tão perturbadora e genial. A grande cidade ofuscava e vampirizava, e
fugir para a vastidão desértica da solidão, dirigiu seus passos, para além das seduções
parisienses.
210
T.F.P.- Tradição, Família e Propriedade. Os três pilares sagrados da sociedade brasileira, objetos de adoração
da sociedade constituída, e pretexto para seu permanente estado de alerta. A despeito do aparato externo, ou
seja, broches de nossa senhora na lapela de ternos impecáveis, escapulários marianos amarrados por rosários
de madeira, flâmulas, bandeiras e estandartes com referências explícitas aos templários, faziam jus à tradição
templária, no sentido de assumir uma ascese religiosa com guerra santa. Seus adeptos recebiam treinamento
de combate e estariam prontos a auxiliar o exército se fossem convidados.
211
ANDRADE, Mário. Rimbaud. In: COSTA, Walter C. (Org.). Mário de Andrade (1893-1945). Arca - Revista
Literária anual, n. 1. Porto Alegre: Paraula, 1993. p. 97.
128
DEMOCRACIA
212
A bandeira tremula na paisagem imunda, e nossa
gíria abafa o tambor.
Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição.
Massacraremos as revoltas lógicas.
Aos países inundados e que cheiram a pimenta!
A serviço das mais monstruosas explorações industriais
ou militares.
Adeus aqui, não importa onde.
Recrutas da boa vontade, teremos a filosofia feroz;
Ignorantes para com a ciência, extenuados para o conforto:
e que este mundo rebente!
É a verdadeira marcha.
Para a frente, a caminho!
O projeto dito democrático prevê, na era do Capital neoliberal, formas de
manifestação constantes, desde que sejam inócuas, como os slogans do mundo da moda: „O
estilo de minha roupa expressa minha verdade‟. O que se consegue é apenas a expressão de
um gosto construído, dialogando no vazio do bom e mau gosto, ou pior, entre estar-se bem
informado em um universo de controle, o que significa dizer, estar-se fashion ou não. É o que
Baudrillard chama de „imperativo publicitário‟
213
. Esta imposição extrapola em muito o
produto que se quer vender, que se tornam meros álibis na reconfiguração dos indivíduos,
usuários ou o. A liberdade de escolha e ação, que se cede à publicidade, é o terreno que se
perde no direito de escolhas e de existência com maior diversidade, sem angústias adicionais,
recriadas, impostas ou sugeridas por um mercado anomalamente ávido por lucros.
Muito mais grave, é o fato de que esse tipo de engodo dito democrático, se
estende a todas as outras manifestações públicas, incluindo o grande truque da representação
política. Num mundo „plugado‟, ter-se representação, ou seja, terceirizar opiniões e decisões
é manutenção apenas de um seguimento que achou o caminho para „abocanhar‟ o poder por
ele mesmo. Se houvesse interesse real de participação pública, poder-se-ia instalar
rapidamente, uma Ágora eletrônica, com atuação direta, sem intermediações dos
212
RIMBAUD, Jean-Arthur. Uma temporada no inferno e Iluminações. Tradução de Ledo Ivo. 3. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1985. p. 139.
213
BAUDRILLARD, Jean. Significação da Publicidade. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da Cultura de
massa. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 292.
129
profissionais do poder. Foucault assinalou, em Microfísica do Poder, a forma sutil e
inovadora de se impor controles disciplinares, não mais pelo impedimento ou interdito
explícito e violento, mas pela superexposição, pela autoexposição, numa utilização máxima
do ditado: „o peixe morre pela boca‟.
Embora estejamos falando de outro momento histórico, a lucidez de Rimbaud é
precisa. Nesse poema, o desvelamento do aparato ideológico de convencimento e sujeição,
são cirúrgicos: os símbolos nacionais criados para a mobilização emocional, funcionam
tanto para a justificativa de „abafamento de tumultos‟ no caso de resistência interna, quanto
para anexação de novos territórios, usando gerações contra resistências externas. Rimbaud
percebe o que chama, apropriadamente, de cinismo, conduzindo reivindicações justas a
incredibilidade e injúria. E sem compactuar com a ética oportunista dos governantes, ofende,
agride e abdica: “e que este mundo rebente!”
O poeta não está só.
BULES, BÍLIS E BOLAS
214
Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento.
A vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência. A Vida
explode sempre no mais além. Abaixo as Faculdades e que triunfem
os maconheiros. É preciso não ter medo de deixar irromper a nossa
Alma Fecal. Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, estudantes,
patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito
da juventude. Abaixo a Segurançablica, quem precisa disso?
Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos
com a Liberdade.
Os manifestos pivianos pedem por NOVAS DESORDENS ao contrário da
esquerda que pedia por NOVAS ORDENS. Confiante, Piva indica que sigamos o que
está em nós: somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a
Liberdade. E não poderia ser mais rousseaunianamente romântica sua em que possamos
liberalizar impulsos e desejos, numa crença esfuziante.
214
Manifesto de Os que viram a carcaça, in: Um estrangeiro... op. cit., p. 137.
130
A militância da esquerda estava, na verdade, mal informada e os apoios eram dado
às mais diversas linhas de socialismos implantados - quer fosse o da Albânia e de Mao (de
ênfases rurais), como a de Stalin (de linha industrial) e mesmo a linha teórica trotskista
215
.
Pensar em esquerda como uma maneira de interferir na realidade era uma
possibilidade de leitura, mas o fato é que, formando-se historicamente na era da implantação
da Revolução Industrial, ela se fixa no conflito Capital versus Trabalho, ou seja: proletários
contra burguesia. Esse arsenal teórico sofrerá confronto desde o anarquismo do próprio século
XIX, mas também das vanguardas do final do século XIX, seguindo pela descrença do pós-
guerra desanimador, e por fim, com o circo da Guerra Fria. E as críticas não pararam aí, com
a Escola de Frankfurt e os Situacionistas, os Estudos Culturais e assim, sem parar. Mas
naquele momento, tomar partido exigia devão.
As vanguardas assumem a febre romântica e radical em sua ânsia pelo radicalismo,
levando as ações artísticas a um despropósito ontológico, questionando seu próprio fazer. A
dimensão radical e romântica do dadaísmo, precursor do Surrealismo, pode ser visto no trecho
do Manifesto Dada escrito por Aragon:
Chega de pintores, chega de escritores, chega de musicistas, chega de
escultores, chega de religiões, chega de monarquistas, chega de
republicanos, chega de imperialistas, chega de anarquistas, chega de
socialistas, chega de bolcheviques, chega de políticos, chega de proletários,
chega de democratas, chega de exércitos, chega de polícia, chega de nações,
nada mais dessas idiotices, nada mais, NADA, NADA, NADA.
216
.
Diversamente do romantismo do século XVIII com seu viés bucólico, medievalista
e contemplativo, o romantismo que se mistura às ousadias vanguardistas do começo do século
XX, identifica-se com a velocidade e a violência, muito próprias das grandes cidades que se
espalham pelo mundo nesse ponto do capitalismo imperialista. Além disso, não como
confundir os dois momentos do romantismo, quando nos deparamos com a grande carga
irônica do período.
O poeta não se faz vanguarda, nem se faz romântico, pois se recusa a seguir
cartilhas. Em um período de poucas certezas, o zeitgeist teria de traduzir a imprecisão dos
rumos sociais. Piva escreve em luta, como observou Baudelaire, com um pincel na o,
215
A linha da chamada Revolução Permanente vencida ( que seu autor fora assassinado), mas o
desaparecida, pois se mantinha no movimento estudantil com a „Libelu‟: a facção “Liberdade e Luta”, que
tinha uma leitura bem superficial de Trotsky, embora este trabalho não seja fórum para essa argumentação.
216
BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 19.
131
capturando a paisagem na imprecisão das sensações visuais, misturadas com suas memórias,
fincadas em referências eruditas. As perfeições da paisagem se elaboram nas misturas de
cores do passado com os choques do presente, somando os esgarçados entre o justo e o
imundo, o ataque e a utopia.
Piva faz questão de estar sempre misturando o sujo e o puro, o alto e o estranho, o
nobre com a ralé mais pura, doce, e assassina. Suas referências extrapolam muitas culturas,
muitos tempos e leituras são hordas, séquitos, exércitos de anjos, que fazem parte de mitos
orientais, até assumirem formas humanas associadas à beleza eurocêntrica, à assepsia, à
castidade, à elegância, altivez, imagem nobiliárquica (ainda que celeste, ou refletida nos
céus), mas também aos decaídos, e nisto, foi único da tradição judaico-cristã. A decadência
aos infernos dos mesmos seres, fortes, belos, poderosos e altivos, revolucionaram a
percepção estética sobre o mal, devidamente conformado, ou seja, icônico. E no jogo da
linguagem e das imagens, o angelical exército, serve a um flaneur maravilhado, conforme a
busca dos surrealistas e suas hostes celestes seguem perambulando pelo centro da cidade.
BOLETIM DO MUNDO MÁGICO
217
Meus pés sonham suspensos no Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios
eu queria plantar um taco de snooker numa estrela fixa
na porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos
colégios e carros fúnebres estão desertos
pelas calçadas crescem longos delírios
punhados de esqueletos são atirados no lixo
eu penso nos escorpiões de ouro e estou contente
os luminosos cantam nos telhados
eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão suprema
minha face empalidece com o álcool
eu sou uma solidão nua amarrada a um poste
fios telefônicos cruzam-se no meu esôfago
217
De Paranoia, em Um estrangeiro... op. cit., p. 47.
132
nos pavimentos isolados meus amigos constroem um manequim fugitivo
meus olhos cegam minha mente racha-se de encontro a uma calota
minha alma desconjuntada passa rodando
Em seu delírio, Piva alude a um lirismo insuspeitado em meio a tanta violência do
livro Paranoia como um todo. Neste poema o tempo parece estancar e o poeta fixa pontos
que se deslocam lentamente, sem a fúria que o acomete quando se vê esquartejado pelos
fragmentos da cidade. A emoção do misticismo que o levará à sua maturidade, já está
delineada nestes versos e a cadência se alenta, se alonga em uma procissão fúnebre e funesta
que cruza seu caminho. Ele se percebe envolto, mas estanque e assinala: “sou uma solidão
amarrada a um poste” - visão soberba de uma dor que não segue, mas observa o cortejo sob a
lua, e só sua “alma desconjuntada passa rodando”.
Seu corpo circula, rola pela cidade, o cria limo, não suspira mas não é um
voyeur, é uma esponja que alucina e sofre, compondo a obra: corpo, cidade, poesia, às vezes
drogado, às vezes de uma lucidez alucinada, como uma lente de aumento sobre a indiferença
que se atravessa pela urbis. Loucura, nomadismo, desvendamento da loucura da cidade.
Pode-se dizer que a obra de Roberto Piva, em grande medida, trabalha nesse
espaço entre a lírica mais fiel, em que a voz do poeta se pensa e vivencia, e uma antilírica em
que o mundo é o centro do objeto poético. Com Piva, -se um poeta que se e sofre o
mundo, mas que também ataca e interfere. A personagem lírica é agente e pirata, sem se
deixar encurralar. Ele sofre entre a lucidez do impacto e a loucura do contra-ataque,
recusando-se a compactuar com o jogo de poder, delatando e confrontando, entre o deboche
e o achincalhe, sem que se obrigue a um discurso linear. Sonhos, pesadelos, delírios e
devaneios, orientam com mais propriedade sua poesia que, embora de verso livre, cadencia
em ritmos sempre presentes ainda que não regulares.
Na ponta última, o que fica claro em suas páginas, além do domínio da palavra, é
o erotismo da obra, em seus versos predadores que escorregam para as páginas depois de
saciados em praças centrais e becos escusos em suas beiras... Sexo, erotismo, obscenidade
218
que inspiram, mas que dialeticamente, modificam perceptivelmente o enfoque, o foco, o
objeto de desejo, o objeto de poesia. Sua arma política mais presente é o erotismo, contra
218
Henry Miller comentou sobre essa diferença e modo revelador. Disse ele: “o obsceno é processo purificador;
enquanto a pornografia apenas aumenta as trevas, o obsceno é direto e a pornografia indireta. Acredito dizer
a verdade, revelar tudo perfeitamente, chocar se necessário, não disfarçar nada”. In: As históricas entrevistas
da Paris Review. Os Escritores, 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 43.
133
todas as ortodoxias, abraçando a androgenia, a pederastia, a homossexualidade, usado como
grande antídoto e galhofa brutal, com uso pleno da heresia, da profanação e da obscenidade.
STENAMINA
219
BOAT
220
Prepara tu esqueleto para el aire
Garcia Lorca
Eu queria ser um anjo de Piero della Francesca
Beatriz esfaqueada num beco escuro
Dante tocando piano ao crepúsculo
eu penso na vida sou reclamado pela contemplação
olho desconsolado o contorno das coisas copulando no caos
Eu reclamo uma lenda instantânea para o meu Mar Morto
Tempo e Espaço pousam no meu antebraço como um ídolo
há um osso carregando uma dentadura
Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília
ele me espera no largo do Arouche no ombro de um santuário
hoje pela manhã as árvores estavam em Coma
meu amor cuspia brasas nas bundas dos loucos
havia tinteiros medalhas esqueletos vidrados flocos dálias
explodindo no cu ensanguentado dos órfãos
meninos visionários arcanjos de subúrbio entranhas em êxtase alfinetados
nos mictórios atômicos
minha loucura atinge a extensão de uma alameda
as árvores lançam panfletos contra o céu cinza.
Arcabouços culturais escancarados com a ajuda de químicas deliciosa e
provocativamente proibidas, ilegais, perigosas, de onde surgem as magníficas entidades de
della Francesca, de onde o poeta revê os ângulos assustadores de antigas histórias, como a
morte da pura Beatriz, enquanto Dante mergulha nas delícias netunianas de sons e cores
extremos de um crepúsculo. Sensorialismo inflamado pelos rumos das artes insufladas pelas
drogas, corajosamente cruzando logradouros públicos.
219
Stenamina, da família das anfetaminas, é um psicotrópico poderoso que, misturado ao álcool, produz
alucinações e delírios por umas quatro horas ou mais.
220
De Paranoia, in: Um estrangeiro... op. cit., p. 53.
134
Na imagem invocada na referência à Lorca, a imagem do deslocamento
improvável de algo inanimado e seco como um monte de ossos, que se alça aos ares, é
permissão assumida para ousar os mesmos rumos. O poeta solta-se nos ares liberando o acaso
como parceiro, sujeitando o prazer ao caos dos acidentes, em plena Santa Cecília, centro da
cidade, onde Lautréamont circula as presenças de Dali e flores de concreto.
Suas andanças trombam com a loucura maior da beleza esfarrapada de meninos
que o compelem a um misto de compaixão e desejo, circulando, transmutando olhares sobre a
cidade, exortando passantes aos interditos (meu amor cuspia brasas nas bundas dos loucos), e
delatando horrores dos meninos em situação de franca deriva, acusando o abandono das
árvores que conclamam para o alto na palavra instada.
Piva aproxima o descalabro das andanças beats, os desajustes dos olhares
surrealistas, dos tesouros, ainda que cristãos, dos portentos renascentistas, potencializando
delírios e revisitações de uma megacidade que sempre se renova, e engolfa, e regurgita, e
condena e redime, e nutre e mata. Ele se conta do que Bakhtin chamou de cronotopos,
quando diz: Tempo e Espaço pousam no meu antebraço como um ídolo”, e deles tira
vivência, riqueza e experiência.
Haveria, por justiça, que se visitar bem mais de seus poemas, mas seria um
trabalho fora dos limites permitidos pelo tempo a que se submete um estudo como o presente.
E assim, do primeiro livro de suas obras, reunindo dois livros dos anos sessenta, o poema
solto para Fernando Pessoa, os manifestos, pouco debatidos ainda neste capítulo, enfim, tanto
material, acaba comprimido em poucas páginas para dar conta dos tantos pontos e arestas de
uma obra vária e disforme, e por isso mesmo, rica. Resta um último mergulho, irresistível, no
que chamou
O JARDIM DAS DELÍCIAS
221
Teu sopro no corrimão anatômico sobre meus olhos
aquela serpente com escamas de cicuta sacudida entre
tuas coxas de megatons
é um meio seguro de não mais aconchegar a mais serena
catástrofe
como um espelho de vingança acordado por um bater
de asas
& um piano que rola até o limite de doces raízes
221
De Piazzas, in: Um estrangeiro... op. cit., p. 95.
135
onde se completam as cachoeiras das trepanações
TEUS OLHOS SÃO GRITOS DEMASIADO REDONDOS
Meu circuito de trincheiras pela mesma razão de ninho
de águia
tempo em que os 12 andares do sexo correm persianas
de galalite
relâmpagos do mesmo líquen magnético de tua boca
de quinze anos
quando não vias à escola para assistires Flash Gordon
& ler Otto Rank nas esquinas
O mundo continua sendo um breve colapso logo que as
pálpebras baixem
& meu amor por ti uma profanação consciente de eternas
estrelas de rapina.
Novamente Piva visita o louco aflito dos pecados absolutos, Hieronymus Bosch.
Perdido entre os sonhos, delírios de concupiscências, o terror premente e real das torturas
infernais (ainda que o racionalismo já batesse à sua porta, pois existiu no século XV, embora
o norte da Europa e zonas rurais estivessem, obviamente, longe demais do fervilhar
Renascentista do sul do Continente).
Com o hálito de Bosch por sobre o ombro, Piva segue reafirmando as heresias que
lhe abrem portas dos prazeres, havidos por malditos. Ele aponta os riscos de morte: serpente,
cicuta, megatons, catástrofe, vingança, trincheiras, pederastia e a confirmação: meu amor
por ti uma profanação consciente de eternas estrelas de rapina‟.
As inversões recolocam no lugar o santificado desejo pecaminoso, o herético
conhecimento canônico, quando observa a busca precisa da avidez nas escolas em que se
assiste Flash Gordon, enquanto nas esquinas, absorto das tolices irrelevantes, lê Otto Rank.
Seu texto é direto, abocanhando leituras que permeia sua vida e seu olhar sobre o
mundo e a cidade. Piva é homem da cidade, das ruas, dos encontros com os loucos, mendigos,
office-boys, prostitutas infantis, boêmios de todas as gerações. Nos mais recentes trabalhos
vistos e lidos pela mídia, Piva segue sendo associado ao Surrealismo, principalmente em seu
primeiro movimento ou fase literária.
Nesse poema as linhas fundamentais ficam evidentes: a riqueza é adquirida pela
experiência e não pela razão; o corpo é visto pelo desejo, e não pela norma; sua colocação
136
frente ao desejo nunca é militante, o advoga pela homossexualidade, renegando qualquer
hierarquia, mas reforçando a força da sexualidade, seja ela qual for. Quanto a urbis joga
como um playground-escola, onde, encantado, aprende como num parque temático de jogos
político-erótico-transgressores, invertendo, rebaixando e profanando. E por fim, um fio
utópico orientando nossos olhares para as coxas andróginas dos que se perdem nas paixões
de espírito, misturadas às da carne, em artes „surubáticas‟, frente aos sorrisos horrorizados
dos castrados.
Deste festival de inversões e possibilidades, aponta como a construção de papéis
são as etiquetas necessárias para o engavetamento das multiplicidades, e delata os que
justificam as delimitações morais usadas nos controles e exclusões:
São papéis freudianos, marxistas e positivistas que definem e delimitam
indivíduos. Eles se apresentam como „donas de casa, homossexuais, se
assumem como gays, como dionisíacos‟, essas coisas psicanalíticas, que
foram inventadas por uma reunião de gerentes para castrar as pessoas [...]
222
E em suas andanças, Piva e seus amigos, produziram obras importantes que não
chegaram a entrar em grande circulação, porque, num ato de mea culpa, admitiram a falha de
terem se afastado da mídia, que nesse momento surgia como uma força impulsionadora de
muitas linguagens. Mas se, de fato, a mídia auxiliava na circulação de novas linguagens e
experimentos estéticos, por outro lado também, e com mais força ainda, serviu para
disseminar uma degradante cultura de massa. A desconfiança e crítica à manipulação das
mídias reduziram a área de circulação das produções poéticas, num momento em que outros
grupos se arriscavam, quer fosse para mera circulação e distribuição, quer fosse para
investimento estético, ou experimentalismo sobre o meio em si, como ocorreu com a Poesia
Concreta.
Ainda assim, o risco era real. E se mencionássemos Debord para fundamentar o
empobrecimento da produção cultural levada pelo controle midiático de massa, pareceria
despeito, impotência, mágoa. Mas foi o próprio „guru da mídia‟ McLuhan, em 1967, negando
a leitura otimista dos anos cinquenta a respeito das comunicações, quem escreveu:
Toda mídia trabalha sobre nós de uma forma total. Estes meios são tão
pervasivos sem suas consequências pessoais, políticas, econômicas,
estéticas, psicológicas, morais, éticas e sociais, que o deixam nenhuma
222
DIOS.op. cit.
137
parte nossa intocada, não afetada, inalterada. O meio é a massagem.
Qualquer compreensão sobre mudanças sociais e culturais é impossível sem
um conhecimento do modo como a mídia funciona como contexto
223
.
Além de generalizar olhares, referências e gostos, a chamada massificação, tão
discutida e criticada na época, também servia no Brasil como veículo de aliciamento e
acobertamento à ditadura militar que desviava interesses para longe dos porões de
interrogações, onde exercia seu mister mais tenebroso - o de calar opositores sob tortura.
Como diz Carlos Felipe Moisés, a poesia se tornou menos perigosa quando
perdeu sua forma oral e cênica. Em períodos ditatoriais o teatro e a música são mais
censurados do que as publicações, sejam ficção, poesia ou mesmo teoria política. O círculo é
muito menor, portanto o risco também o é
224
. No Brasil, Hélio Oiticica teve obras e mostras
censuradas, mas foi mais exceção que regra. Tanta censura, controles e cautelas, fizeram da
obra do Roberto Piva pouco divulgada e nunca apoiada, até agora. E ele acusa: Não sou um
poeta marginal. Sou um poeta marginalizado”
225
. Por ter construído sua obra como
documento de seu percurso, uma forma diferenciada se fez desejada: os manifestos que, em
linguagem mais corrente, aparentam discursar sobre palanques sob holofotes. E em um de
seus manifestos de 1961, ele escreve:
A MÁQUINA DE MATAR O TEMPO
226
Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes. Procuramos
amigos que não sejam sérios: os macumbeiros, os loucos confidentes,
imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorróidas
e todos que detestam os sonhos incolores das Arcadas.
Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um luxo protozoário.
Sede violentos como uma gastrite. Abaixo as borboletas douradas.
Olhai o cintilante conteúdo das latrinas.
Nesse jorro preciso e corrosivo, Piva delimita sua proximidade com Apolo,
deixando claro que não veio para fazer acordos com o lado morno dos sonhos de uma
223
Apud HUYSSEN, Andréas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p. 74.
224
MOISÉS. Poesia & Utopia. op.cit.
225
Acusação que o poeta posta em diversas entrevistas dadas às revistas literárias.
226
Dos manifestos Os que viram a carcaça, em Um estrangeiro... op. cit., p. 139.
138
existência. Numa de suas entrevistas declarou que “burrice pega!”, e se recusa a fazer
concessões, nem fazer o jogo de seus inimigos que, para ter liberdade de espalhar visões
repressivas, pedem por “democracia” e direito de expressão sem censura, como é a ladainha
propalada pela publicidade, quando sofre tênues e esparsas críticas da opinião pública que, de
modo geral, tende a aceitar a enxurrada ideológica alegremente, chegando, mjitas vezes, ase
convencerem que vale mais quem faz, ou se parece, com quem a publicidade determina.
Identificando os vampiros que podem atacar se forem convidados a entrar
227
,
os inimigos o são subestimados imortais, eles não podem ser deixados em paz, e o
confronto não pode ter tréguas. Por isso se cercar de quem ajude a minar o centro do poder
tão ordenado, tão higienizado, mantido belo à custa de cirurgias no espírito. São chamados os
que o são bem vindos, os perturbados e perturbadores, os desagradáveis, os fracassados e
todos os que validam a grandeza dos contrários naturais: as singelas e efêmeras borboletas,
assim como nossas glórias fecais.
Mas os tempos nas ruas irão piorar. O AI-5
228
dará poder de verdugo a meros
guardinhas de trânsito. Por toda a cidade, pequenos carrascos uniformizados, se comprazem
em aterrorizar transeuntes, importunando de preferência aos barbudos, cabeludos e os com
cara de pobre trabalhador, vagabundo ou mero desempregado. Históricos de pequenas
prisões se democratizam e as grandes prisões, como as propaladas „estouro de células
comunistas‟, são jogadas aos ventos, em meios a bravatas da superioridade do Bem contra o
Mal. „Dos valores da família brasileira, contra os comunistas sanguinários‟. Aos que não se
alinham nem aos ditadores, nem à esquerda armada, estarão fora das trincheiras e se acabam
na esbórnia, no desbunde, mas também na cautela.
Piva só voltará a publicar depois do abrandamento desse período em que a
arbitrariedades e a ignorância reinaram na terra brasilis.
227
Conforme o mito, um vampiro pode entrar em uma casa para fazer uma tima se for convidado, pois
o„chão de um lar é sagrado‟.
228
Em 13 de dezembro de 1968 o Ato Institucional número 5, que seria revogado em 31 de dezembro de
1978, marcou o período ditatorial de forma mais brutal. Perseguindo e importunando, principalmente, jovens,
pobres, operários e cidadãos desprotegidos pelas ruas, espalharam paraicos, acuados e alienados
defensivos. Essa lei tinica retirou todos os direitos de cidadania, fechou o congresso, suspendeu a
autonomia do Judiciário, e assumiu total poder sobre todos os segmentos da sociedade, sem limites de tempo
ou de força. Foi o período de terror de todo o longo período militar (vinte e um anos), que ims pelo medo e
a tortura, uma subserviência que fez aumentar a ação armada da esquerda organizada, e virar a opinião da
classe média, até então dócil, cordata e conivente, para desconfiada inicialmente, até um malestar que se fez
acachapante em 1982. Nesse ano, o partido de oposição, o MDB, venceu as eleições em quase todo o
território nacional, sinalizando um basta às Forças Armadas, que se retiraram três anos depois. O auge da
violência do AI-5, no entanto, concentrou-se mais precisamente de 1969 até 1976, afrouxando lentamente até
o fim do período militar.
139
Foto de André Boccato - 1976
140
Capítulo III - 2ª Fase:
EROS NA PALIÇADA
Hoje, a luta por Eros é a luta política (...)
Fazer do corpo um instrumento de prazer
e não de labuta.
Herbert Marcuse
Neste terceiro capítulo, estará em foco o segundo volume das Obras Reunidas,
lançado em 2006, intitulado Mala na o & asas pretas. Como assinalado, este volume
reúne quatro de seus livros: o Abra os olhos e diga Ah!, de 1976; o Coxas: sex fiction &
delírios, de 1979; o 20 poemas com brócoli, de 1981 e o Quizumba lançado em 1983.
Também estarão reunidos mais quatro manifestos escritos entre 1983 e 1984 sob o título geral
O século XXI me dará razão, correspondendo à fase identificada como Psicodélica.
Escritos durante um período de repressão ostensiva do militarismo, esses poemas
capturam daqueles tempos uma grande sinfonia dissonante que mantinha o país entre
solavancos de terror e exaltação. As andanças do poeta se ampliam do circuito citadino,
sobressaltado e desconfiado, às paragens edênicas e oníricas de areias e montanhas, onde
vórtices desequilibram corpos, crenças e defesas. Nesses campos de experiências vertiginosas,
agarram-se gulosos Eros e Thanatos, ambos drogados.
Ditadura, esquerda armada e Contracultura tropicalista farão de um momento
histórico único, uma infinita fonte de leituras conflituosas, mas infinitamente ricas e poéticas.
O pano de fundo dessa produção tão variada vai do telegrama modernista à prosa poética,
passando pelo ditirambo e fragmentos de vivências exuberantes. A poesia do sexo, seja doce,
brutal, subversivo ou brincalhão, estará por trás de seus flagrantes cotidianos ou mesmo
épicos. Piva irá tecer verdadeiras molduras a instantâneos erotizados em um mundo
brutalizado pela repressão de uma visão unitária, canônica e perversa, imposta pela ditadura
militar, que se impôs por mais de vinte e um anos, e cuja herança respinga nos dias atuais.
141
3.1. CONTRACULTURA: Quando o Corpo quer Espaço
Poesia é subversão do corpo.
Octávio Paz apud Piva
A Contracultura, surgida de debates diretos e organizados nos campi dos EUA e
França originalmente, irá afetar grande parte da juventude da classe média, que vinha
emitindo sinais de distúrbio desde a chamada „juventude transviada‟ e a Beat Generation. O
fenômeno hippie propõe a ideia de um não-confronto com a sociedade gananciosa e careta.
Uma de suas saídas será a comunidade rural. Um quase êxodo ocorrerá entre meados dos anos
sessenta e setenta nos EUA, e alguns outros países em menor escala, como Alemanha,
México e França. Esse “êxodo urbano”, no entanto, não busca a recuperação saudosista de um
modus vivendi camponês, mas sob um projeto refrescante, utópico, bucólico, telúrico, ainda
que apoiado em muito trabalho na terra, claro, mas também auxiliado pelo contato com as
artes, os prazeres do corpo, de expressão e de experimentação corporal, o que somava ao
trabalho rural muito sexo, drogas e artes. Esse projeto, surpreendentemente, bastante
estadunidense em sua origem e justificativa, irá se espalhar pelo resto do mundo
desenvolvido, como resistência à industrialização e massificação. O surpreendente é que, por
formas adaptadas, outros países do terceiro mundo também seguirão a tendência, produzindo
uma onda de resistência político-comportamental generalizado, de proporção planetária.
Tida como continuação ao Movimento Beat, a Contracultura, de fato encampou
inúmeras assertivas beatniks, mas não todas, a porque, o momento histórico é outro e,
portanto, não se confunde com ele. Importante frisar que o chamado Movimento
Contracultural não possuía uma vertente única, seguidora de alguma cartilha. O próprio Beat
possuía também sua variação da costa Leste, que diferia da Oeste.
No caso da Beat, o grupo de NovaYork sofreu e expressou a riqueza e opressão de
uma megalópole, e a saída foi a estrada, a road-scape sob drogas - o rompimento sistemático
do autocontrole, a busca de outros paradigmas existenciais em todos os desdobramentos:
emocionais, mentais etc. Mas não havia um projeto utópico, não havia uma proposta social,
apenas uma repulsa à mera reprodução do projeto ocidental: Estado, família, trabalho.
Eles tentaram viver da produção literária sem vínculo empregatício (algumas vezes
se empregaram, mas não havia esforço pela permanência, ou menos ainda, por uma „carreira‟
profissional convencional). Não reproduziram formatos familiares, mesmo no caso de Jack
142
Kerouac, que voltou a viver com a mãe. Viver com a mãe na idade adulta, tampouco é
convencional, que não se desligou do núcleo original para construir sua própria família,
conforme é esperado pela lei consuetudinária.
O grupo da Califórnia, por outro lado, cujo expoente é Gary Snyder, pode ser
chamado de linha proto-hippie. Snyder, embora budista como Ginsberg, tem na natureza e na
vida saudável do corpo uma referência evidente, ao contrária da visão opressiva da vertente
novaiorquina do movimento. Na „Carta de Kioto‟, que viveu naquela cidade por uns anos,
ele comenta valores que, supostamente, seriam beats, mas que possuem forte semelhança ao
hippismo:
Procura-se pela visão e a iluminação. Esse resultado é obtido geralmente
pelo uso sistemático de narcóticos. A marijuana é um recurso de consumo
diário e o peiote é o verdadeiro estimulante da percepção. Tanto um como o
outro são complementados, às vezes, por práticas iogas, álcool e similares.
Amor e respeito pela vida, pacifismo e anarquismo [...] são tendências
provenientes de inúmeras tradições e religiões como o Budismo Shinshu, o
Sufismo, os Quakers, etc. Todas são frutos de um coração generoso e amante
[...] que levaram a condenarem ativamente as guerras, fundar comunidades e
amarem-se umas às outras [...] também são responsáveis pelas viagens a pé e
de caronas [...] Para uma vida beat, que se desenvolver „contemplação‟
(com capacidade de fazê-la sem drogas também), „moralidade‟ (que para
mim significa protesto social), e „sabedoria‟. E mesmo sem tudo isso a
pessoa pode ir longe, desde que não fique rodando pelas salas de aula ou
escrevendo tratados sobre a felicidade das massas, como fazem os
„quadrados‟ com tanto sucesso
229
.
“Sexo, drogas & rock’roll, embora produto de importação, fazia sentido pelo
mundo afora, depois de séculos de sisudez. O glamour do die young havia contaminado
parte da sociedade capitalista ocidental desde o romantismo, e a juventude tornara-se uma
força política colossal, com o impressionante Movimento de 1968 que se alastrou da França e
costa oeste dos Estados Unidos, para a Alemanha, o México, o Brasil, e muitos outros países,
com grande força. O mercado não havia conseguido ainda cooptar tanta instabilidade,
portanto, o período respirava num hiato de poder que permitiu uma espécie de “sonho
libertário” generalizado.
Foi uma fase de busca por maior rompimento, maior expansão da subjetividade.
Notícias de outros países trazem ações políticas que rompem fronteiras morais e éticas,
experimentando interditos e questionando tabus. Busca-se “a medida do impossível”
229
KRIM. Geração Beat... op.cit. p. 155/6.
143
(Torquato Neto), verso que espelha o espírito da época, juntamente com o indefectível “é
proibido proibir”, grafite espalhado pelos muros da cidade de Paris no Movimento de „68. A
sensação é de que a realização de uma utopia está prestes a ser realizada. Essa sensação que
acompanha atos, gestos, imagens e performances sociais desassombradas a despeito dos
perigos de tempos tão lúgubres, chega de fora, quando o Brasil é atingido por várias frentes.
Uma delas, o nomadismo, que a viagem, a circulação, a popularização da carona permite
deslocamentos constantes de grande parte de jovens buscando lugarejos ermos, tanto praias
quanto montanhas recônditas, mosteiros, desertos, serras e mesmo aldeias de pescadores e
indígenas. Pelas estradas encontram-se jovens de todas as partes do país, e de muitos lugares
do planeta. A valorização desses deslocamentos chega por várias narrativas e linguagens,
como as orais e letras de músicas. Gilberto Gil lançou uma canção onde contava dessas
caronas para o desconhecido, aceitando esfregar convés de navio atrás de um „oriente‟
fantasioso e supostamente sábio.
Também pela via literária, que a circulação de uma literatura, digamos,
propiciatória, tanto ao nomadismo quanto à psicodelia
230
, começará a ser consumida e,
principalmente, trocada de mochila para mochila em plena estrada. Essa „biblioteca
psicodélica básica e necessária‟, incluía obras de Lobsang Rampa (O Terceiro Olho), Carlos
Castañeda (A Erva do Diabo), J.D.Salinger (O Apanhador nos Campos de Centeio), Ray
Bradbury (O homem ilustrado e Fahrenheit 451), Adous Huxley (As portas da percepção),
Henry Thoureau (Walden), Herman Hesse (Sidarta e Demian), além, claro, dos parceiros
diretos e óbvios: Jack Kerouac (Na estrada), Burroughs (Almoço nu e Junky) e Ginsberg
(Uivo), que se lia bem „chapado‟ para entrar por portas impensáveis que, geralmente,
levavam a labirintos ou a sentidos fragmentados como num parque de diversões - às vezes
sentindo arrepios de aflição, às vezes rindo de nervoso, ou gritando de horror, ou suspirando
de encantamento e até gargalhando por absurdos deliciosos.
Durante a ditadura, a literatura das academias trazia palavras subversivas. Teóricos
iam solapando as „grandes sabedorias canônicas‟ da tradição ocidental cristã, como o pilar
familiar mantido sob um manto casto, cauteloso, pudico, e por isso mesmo malicioso,
procrastinador e dócil. Desde Freud, Reich, Marcuse, Marx, Foucault, Debord e outros mais,
novos comportamentos começam a se colocar. A leitura é circulatória, fundamental, como as
230
Os dicionários confirmam: psicodelia diz respeito às manifestações da mente, já que é constituída pelas
palavras gregas psi, tida originalmente por alma, e delos, que significa manifestação. E já que as surpresas
da mente foram buscadas em si mesmas com um empenho e constância como nunca antes, o termo lhe caiu
bem.
144
experiências de corpo. Não é mais necessário ser „vanguarda‟, „artista‟, „iluminado‟,
„especial‟ - mas tem de ser „louco‟! ou seja: não ter medo de romper e experimentar, e acima
de tudo, liberar o outro e a si mesmo, tanto ética quanto esteticamente. O excesso de zelo e
asseio com o próprio corpo seria visto com desconfiança. As regras de higiene desenvolvidas
ao limite no século XIX, e apontadas por Foucault em seu estudo da sexualidade no Ocidente,
passam a ser desacreditadas.
Pelo mesmo desejo de se aproximar do que seria a „loucura‟ e romper com o
sentido e o sensato, as linguagens mais populares da indústria midiática como o cinema,
também acabam aproximando a Contracultura internacional por cima da barreira militar
brasileira (que por sorte, era pouco letrada, haja vista o folclore que se tornou a memória da
censura
231
e seus censores).
As artes em geral, como a poesia, a história em quadrinho, o próprio cinema, e a
música em particular, passaram a ocupar a atenção de um público interessado em estímulos
psicodélicos. Filmes como 2001: Odisseia no Espaço, mágico e misterioso, propiciavam
compreensões e viagens aleatórias, e o nosso cinema „udigrudi‟ divertido e absurdo, de
Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, eram um caso à parte. A despeito de suas linguagens
alucinadas e truncadas, devido ao experimentalismo e à censura, estavam discutindo com
todos os risos e deboches, exatamente, esse olhar sério sobre o absurdo do momento de
opressão que se vivia. Carnavalizando o poder, suas obras cinematográficas, ousavam
rebaixar, não apenas uma realidade acachapante e cruel, imposta por instituições fardadas,
mas também a sacralização de trajetórias artísticas em circulação, como as „canções-de-
protesto‟, o „cinema-novo‟ e outras manifestações auráticas, que começaram a ser
questionadas, além, é claro, do alvo mais frequente e vago, o chamado “Sistema”. Como a
categoria “burgueses”, sistema” encampava diversas críticas que incluíam desde o
capitalismo como um todo, passando pela ideia de família unicelular, o uniforme escolar, a
novela, a moda até as macarronadas de domingo.
Filas de cinema ou filas para qualquer outra coisa eram sempre assediadas por
vendedores de história em quadrinhos, desenhistas, aquarelistas, vendedores de livretes de
poesia e mesmo pequenas novelas, com ou sem ilustrações. Era a „Geração Mimeógrafo‟ que
nunca perdia chances de veicular seus trabalhos, bem como atores com pequenas esquetes ou
performances, de forma a sempre estar-se sob estímulos criativos e incentivos participativos.
231
A história da Censura daquele período é cheia de casos terrivelmente constrangedores e, por imeras
demonstrações de ignorância, muitas dessas histórias tornaram-se piadas. Leila Diniz narra (na famosa
entrevista ao Pasquim, em 1969) o caso do censor que mandou chamar 'o tal do' Sófocles para depor, devido
às ofensas e desacatos proferidos contra a família brasileira.
145
As experiências de corpo e criação entram em voga, e a manutenção de barreiras a
seus acessos (como a timidez, o pudor e a desconfiança) tidos por „entulhos culturais‟, e
respeitar essas barreiras é subserviência às opressões. Pichado pelos muros, lê-se: “Dance
para não dançar”. E também: “Entre para o clube dos que dançam na chuva”. Beije-me -
Smack!”. “Ser animal anima a ânima - anime-se: animalize-se!”. Não se acoite, coite!”.
“Passou a mão, tá quente? É gente: Crau!”.
Encolhimento e Expansão - o Brasil se divide entre a Ditadura Nacional e a
Contracultura Internacional que, lentamente, se imiscui, misturando e desfigurando. Um
grupo de imagem performática e iconoclasta se destaca da esquerda tradicional, mas a
ditadura, ou a direita tradicional, não entende. Sua leitura esquematizada da realidade social
se reduz a etiquetas básicas. Para eles, „todo cabeludo é comunista e maconheiro‟. E se
estavam equivocados quanto à primeira afirmação, não erravam muito na segunda imagem
maniqueísta. A maioria dos cabeludos durante os primeiros anos dacada de setenta estava,
de fato, sinalizando sua afiliação à Contracultura.
O problema é o desdobramento equivocado neste jogo semiótico. A associação era
feita entre drogas, bandidagem, terrorismo, subversão, sujeira e outros desajustes morais. O
risco de discriminação e perseguição se ampliava, devido a uma leitura autodefensiva de
periculosidade e violência, pois, grande parte destes tais „cabeludos‟ era associada,
consciente ou inconscientemente à New Left
232
, mas não comungavam da visão tradicional da
esquerda de linha stalinista (leia-se: revolucionária e armada), que vicejava naqueles dias.
As coisas se complicavam.
MANIFESTO DA SELVA MAIS PRÓXIMA
233
[...]
Televisão/ Centauro na rota da Revolta/ Estrelas penduradas na
fuligem/ Catecismo da Perseverança Industrial/ Os governos existem
232
The New Left, foi um movimento que não direcionou suas críticas e ações blicas, sobre questões exclusivas
da chamada infraestrutura, ou seja, a relação Capital versus Trabalho. Embora aproveite o arsenal conceitual
marxiano, não se restringe ao uso da Economia Potica para análise conjuntural, incluindo outras facetas de
uma sociedade s-guerra fria, em que se constata uma complexidade para além dos pólos maniqueístas
constitutivos da Sociedade Industrial. Pela primeira vez a crítica potico-social irá contemplar minorias como
o feminismo, o movimento negro, gay, etc., levando em conta também, contribuições de teóricos e analistas
não ortodoxos como os maoístas, os trotskistas (com sua „revolução permanente‟), e uma inclinação anarquista
bem mais evidente, em que se abole a ideia de vanguarda potica, de um grupo guiando o povo. Além da
produção da mercadoria, foco da obra marxiana, a questão do consumo, do consumismo e da sociedade de
massas estará em pauta.
233
De O século XXI me dará razão, em Mala na mão & asas pretas. Obras Reunidas. Volume 2. São Paulo:
Globo, 2006. p. 148/9.
146
pra te deixar com esse ar de cachorro batido/ Os governos existem
pra preparar a sopa do General Esfinge/ Os governos existem pra
você pensar em política & esquecer o Tesão/ [...] Cidade esgotada
na feiúra pré-Colapso/ recriar novas tribos/ renunciar aos trilhos/
Novos mapas da realidade/ roteiro erótico roteiro poético/ [...]
É do Caos, da Anarquia social que nasce a luz enlouquecedora da Poesia/
[...]
Ir à deriva no rio da Existência.
A riqueza de detalhes em que a crítica é proferida, não requer mais esclarecimentos,
bastando enumerá-la, que é referida por metonímia. Aponta o dedo às diversas catequeses,
da Indústria Cultural de Massa (ICM), representada pela TV, da industrialização e poluições
das cidades e do mundo com suas fuligens, contra a obediência a postos de poder que não
correspondem absolutamente a méritos superiores, além de deixar claro o jogo pela supressão
sexual. Mas o Manifesto indica saídas, escapes... na anarquia, no caos e na poesia.
Apesar da existência de um canal de TV dominante que condiciona um padrão
globalizado na distribuição das novidades modernas”, não houve, naquele período, como
impedir a formação de uma “Geleia Geral”, termo cunhado por Hélio Oiticica, depois
assumido por tropicalistas como Jorge Mautner e, por fim, pela própria academia, conforme
indicado por Gilberto Vasconcellos
234
. Segue abaixo o uso que Frederico Morais, crítico e
historiador das artes plásticas, faz do termo para conceituar o Tropicalismo:
Tropicalismo é essa geleia geral de influências e motivações: Vicente
Celestino, Carmem Miranda, Rogério Duprat, Mutantes, Beatles, textos
eruditos, cultura de massa, consumo, publicidade, o concreto e o metafísico,
a nostalgia de um país edênico e amazônico, bonito por natureza e o
futurível 2010, o lírico e o acrílico, enfim, uma vasta, enorme e caótica
bricolagem, o luxo e lixo da cultura brasileira e planetária, tudo
transformado em um caldo grosso e lançado nas telas, nos objetos, nos
ambientes, nos palcos e discos tropicalistas
235
.
O movimento tropicalista de vertente anarquista, não poderia induzir uma
formação de exércitos, pois seria um contra-senso, mas não se omitiu politicamente, e
assumiu uma outra forma de resistência política contra a ditadura militar e conservadorismos
moralistas como a TFP, por exemplo, pichando seus muros e desvirtuando passeatas
marianas, coalhadas de estandartes que, vez por outra, invadiam as ruas do centro da cidade.
234
VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977. p. 40.
235
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 100.
147
Atrasado ou o, os anos setenta deram entrada à Contracultura nacional, embora
desde o final da década anterior, os artistas do Tropicalismo já indicavam suas cores, críticas
e excentricidades pelas ruas e mídias. O movimento fez com que garotos bonzinhos, de
terninhos e botinhas como os Beatles do início dos anos sessenta, explodissem em grandes e
desgrenhadas roupas e cabeleiras, seduzindo cada vez mais segmentos sociais. Sem
heroísmos, os marginalizados ganham status de personagens, integrando, não apenas o
ideário das artes (“Seja herói, seja marginal”, estandarte-instalação de Hélio Oiticica), como
ganham visibilidade fora das condições edulcoradas e sacralizadas das religiões e suas
justificativas morais e transcendentes. O mesmo ocorre com os movimentos de protesto,
tanto externos (Bob Dylan, por exemplo) quanto internos (com Geraldo Vandré), que pedem
releituras carnavalizadas, ainda que não menos críticas, quando suas questões não serão mais
envelopadas em bandeiras, mas abertas às diversidades dos olhares. De imediato, as
manifestações artístico-culturais, acostumadas às „mensagens engajadas‟, conforme
expressão da época, acusam a inclusão do prazer e da subjetividade nessas manifestações
artísticas, acusados pelas facções políticas, de alienados e „desbundados‟
236
.
A expressão cunhada na imprensa com ironia, apontava outras imagens urbanas,
presenças caleidoscópicas, corpos performáticos, que vão ganhando as ruas. Mas não era
uma mera moda. Na verdade, a moda enquanto construção e controle industrial,
conseguiria cooptar e submeter a imagem pública do movimento, algum tempo depois. Nos
primeiros anos (final da década de sessenta e início da de setenta), no entanto, a indústria se
choca com o desejo de autoexpressão, e fracassa na produção de uma imagem prèt-a-porter,
como estava habituada a fazer. Do movimento Punk em diante, a agilidade em cooptação
será bem mais rápida. Mas até lá, a tal imagem „desbundada‟, na verdade contracultural,
veiculava a imperfeição natural como valor.
„Desbundados‟
237
ou não, seria difícil permanecer indiferente às investiduras de
uma realidade violenta e opressiva, tanto do exército, da sociedade tradicional, conservadora,
quanto da esquerda convencional, de vertente stalinista ou maoísta. Na verdade, sua
resistência marcou transformações, abrindo uma fenda no maniqueísmo da Civilização
Ocidental Cristã, onde a poesia, a cidade, a questão dos corpos, a cidadania, o recato e,
mesmo o poder foram revisitados, receberam novos focos, e ganhando outras (quase) rimas.
236
HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. 3 ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992. p. 64.
237
Assumido pelo dicionário Aurélio, o verbo 'desbundar' foi definido como: perder o autodomínio,
enlouquecer, loucura, desvario”.
148
BICHO-PREGUIÇA
238
Flores calvas
calmas
colunas de fumaça
dançando
na Lua nua
seus beijos dançam
em minha boca vermelha
estrelas azuis folhas calcinadas
o parque é um sonho vegetal & seus olhos zumbem
vocês atravessam a ponte do delírio
Bem-te-vi bebendo o orvalho
na palmeira
correrias de crianças criando o caos
colorido
o parque espreguiça
onde você estiver esta tarde de janeiro 77
gostaria de receber seu coração por Via Aérea
com todas as pérolas do amor com mãos dadas
percorrendo as ruas à procura do Rumo
andaimes partidos na alma amassada na
mesma hora hora
tudo feito sob medida de um terremoto
seus dentes brilham na noite
a boca cheia de mostarda todo mundo quer participar do
Dolce Stil Nuovo assim chamado por aparentar um altiplano
no centro imaculado dos fios-de-ovos & suas grutas de
cerejas cristalizadas bem no final da avenida Paulista num
barzinho onde se reúne um pessoal bem-disposto escrevendo
poemas como flechas incendiadas incrível sexo lambuzado
com flores & sua nota trágica & perfeita entre os
alambrados de carne crua bem no alto da serra da
Mantiqueira os nomes conjurados em conjunto: boi Ápis
reserva de quatis definhados em Paris & Babilônia fonte de
Nova York descendo a crista da onda lulus mecanizados de
238
De Coxas, em Mala na mão... op.cit., p. 86.
149
Istambul fundo da fruta-pão no cacau exterior onde iremos
parar nesta selva de silhuetas obscuras Acelerando seu fim
pela tempestade sexto rosto desaparecido no cinema mental
de King Kong cheio de excrementos de Valquírias onde
ancorar seu triângulo amoroso mais prateado do que todos
nós?
Como encontrar título mais macunaímico? Mais Paul Lafargue, o genro infenso de
Karl Marx? Imagine-se o militante francês, frequentando festas e jantares na casa do sogro,
adorador do trabalho, tendo de ouvir um defensor da preguiça e controlar seu gênio por amor
à filha, que foi tão devota ao marido, a ponto de se suicidar com ele, em um pacto comum.
Paul Lafargue militou sim, mas contra o Deus Trabalho, contra o Deus Dinheiro, contra a
negação do prazer, contra a negação do ócio, contra o neg-ócio
239
.
Debochado e militante, Lafargue ora pela Preguiça, mãe amorosa e fundamental,
contra o Deus macho laborioso que, trabalhou, trabalhou, trabalhou e, deu nisto sofrimento
e destruição. E reza: “Preguiça, tenha piedade de nossa longa miséria! Preguiça, e das
artes e das virtudes nobres, seja o bálsamo das angústias humanas!”
240
.
Nos anos setenta São Paulo se prepara para receber o metrô por baixo, e sofre
redirecionamentos e ampliações de avenidas por cima. Vira um grande canteiro de obras.
Ruas em frangalhos, em obras, escapes por entre bares, amigos, fazendo poesia, como
cigarras no verão de 1977, quando a preguiça bate e se experimenta paladares, e se busca
outros contatos impensáveis como um King Kong ao som das Valquírias de Wagner e outras
mais. Perambular com preguiça é reduzir um ritmo para misturar coisas numa sequência de
vida. É o sonho de Baudelaire, caminhando e puxando uma tartaruga. Não há começo, meio e
fim, um instante em que a rua se mistura com sensações e memórias, em que tempos e
momentos da vida se agrupam, formando esse caudal a que Bergson reconheceria como o
responsável pela formação da percepção do mundo e do conhecimento real. Da real
percepção que se tem de si mesmo sobre o resto do mundo. Memória e conhecimento.
O poeta aponta, vislumbrando, a Serra da Mantiqueira na ponta do espigão
paulista, onde „o parque espreguiça‟, e onde os deuses ancestrais trafegam sobre monstros
modernos que não mostram o rosto, pedaços e cacos „acelerando seu fim pela tempestade‟...
239
Da Introdução de Marilena Chauí a O Direito à Preguiça, de LAFARGUE, Paul. São Paulo: Hucitec, 1999. p.
12.
240
LAFARGUE. op.cit., p.46.
150
Desde o xamanismo, o decadentismo (do movimento simbolista), o Surrealismo e
o movimento beat, a busca pelas alterações de consciência sempre ocorreram. Do desejo por
uma conexão com o sagrado, pela fuga às dores existenciais, por uma ligação com o belo e o
fazer artístico, as drogas na Contracultura passaram a ser usadas por puro e simples deleite
poder encantar-se com as alterações que olhos e mente sentem, inesperadamente.
As drogas psicodélicas se propõem a ampliar a capacidade de percepção e de
pensamento, ou seja, de acelerar o funcionamento cerebral. Com o aumento da velocidade,
nem tudo chega a ser processado, ou compreendido, por isso elas não podem ser usadas com
a finalidade de aprendizagem tradicional, pois acumulam um sem número de imagens e
informações desconexas, produzindo mudanças sinestésicas, sensoriais, alucinações e até
psicoses.
Quando você está sob o efeito de um alucinógeno, de uma droga psicodélica,
você não está preocupado muito em escrever, você está preocupado em
decifrar a escrita da natureza, decifrar o livro da natureza, da vida e da
morte. Todo poeta, todo artista tem que cair na vida. Enquanto não cair na
vida fica fazendo essas coisas de gabinete, essa estética cabaça
241
.
Mas há que se pontuar, embora as drogas não fossem buscadas para conhecimento,
mas ao contrário, para um „des-aprendizado‟, um „des-condicionamento‟, elas, efetivamente,
em seu embaralhamento, produziram um vel tal de questionamento que viriam a alterar,
principalmente, as justificativas convencionais de manutenção hierárquicas e disciplinares.
Estar alterado significava esquecer tudo o que se sabia, tudo o que se aprendeu e rever, ainda
que alucinado, em pleno gozo e prazer, o outro, a si mesmo e o mundo. No mesmo vídeo
Assombração..., Piva poeticamente, avisa: “Eu sou uma alucinação na ponta dos seus olhos”.
As imagens que se sobrepõem no poema acima se sucedem em novas ideias, muito indicativa
dessas modificações de percepções a que o poeta se deixa envolver: “[...] colunas de fumaça
dançando na Lua nua [...]”; [...] crianças criando o caos colorido[...]”; “[...] um altiplano no
centro imaculado dos fios-de-ovos & suas grutas de cerejas cristalizadas bem no final da
avenida Paulista [...]”.
O encantamento desse fluir de tantas sensações e visões, que o Surrealismo
conhecia, rompeu sentidos e a lei da velha escrita com “apresentação, desenvolvimento e
conclusão” - lição aprendida na escola desde cedo. O maravilhamento surrealista não respeita
a ordem e se desdobra. As imagens inusitadas que se sucedem parecem enriquecer o
imaginário de quem lê, e transportar para o delírio, aqueles que „viajaram‟ também, pois,
241
Piva in DIOS. Assombração Urbana. op.cit
151
contrariando os céticos, críticos e „caretas‟, viajar é aprender outro modo de ver o que antes
se conhecia, mas de um jeito herdado e ensinado
242
. Pelas drogas psicodélicas, a vivência
direta construirá uma memória que modificará essas leituras tradicionais
243
. Para Piva a
Revolução Psicodélica talvez seja a única que tenha algo a dizer ainda hoje”
244
.
XVI
245
abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de vida. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas
nos acampamentos. Sonhar Alto.
Esse poema tem uma forma malemolente e sinuosa como poucos, como onda, como
o vento que desarranja as palavras... poesia em cascatas, sopros de poesias sob brisas. No
desbunde
246
, tem início o delineamento de outro mapa, em que outras paragens surgem como
alternativa ao urbano, que perde, nesse momento da história, sua superioridade hierárquica
com relação aos locci sociais. O “mato” e a “mata” passam por redefinições simbólicas, e as
relações humanas buscam refrigério sob o signo das samambaias. Luiz Carlos Maciel,
rememorando os tempos em que escrevia a coluna “Udigrudi” no Pasquim, que o tornou uma
espécie de autoridade ou guru para assuntos afins, lista os novos anseios que esta geração
passou a propor, não apenas quanto às relações pessoais, mas também aos espaços em que
estas estariam contidas. E a lista clamava:
242
MACIEL, Luiz Carlos. Geração em Transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996. p.273.
243
BONTEMPO, Márcio. Estudos atuais sobre os efeitos da Cannabis Sativa (Maconha). São Paulo: Global e
Rio de Janeiro: Ground, 1980. p.41.
244
MACHADO e FRAIA. Para a Revista Trip. op.cit.
245
De 20 poemas com brócoli, em Mala na mão... op.cit., p. 111.
246
O período do Desbunde foi alvo de um ensaio primoroso feito por Heloisa Buarque de Hollanda chamado
Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, mas também por outros estudiosos e
partícipes, como Luiz Carlos Maciel, Marco Aurélio Garcia, Marcos Gonçalves e tantos outros.
152
Queremos que todos tenham o poder de determinar o seu próprio destino
[...]/ Queremos o fim de qualquer repressão política, cultural e sexual [...]/
Queremos uma economia mundial livre, baseada na troca de energia e
materiais e o fim do dinheiro [...]/ Queremos um planeta limpo [...]/
Queremos um planeta livre. Uma terra livre. Comida, teto, roupas para
todos, queremos uma arte livre, cultura livre, meios de comunicação livres,
tecnologia, educação, assistência médica para todos. Corpos livres, pessoas
livres, tempo e espaço livres. Tudo livre. Para todos. Tenho dito
247
.
Quando as flores passaram a participar de manifestações explícitas pelo direito ao
prazer, os corpos reivindicaram suas origens tribais e orgiásticas, pulsando às claras por mais
sensações, por mais liberações, por menos ortodoxias, por menos definições e mais
comunhão. Foi quando se viu uma alegria perigosa se expondo a pleno sol, enquanto o jogo
do mercado, base mais eficiente de todo controle, não conseguia se reorganizar para
amortecer o combate amolecido pela sensualidade, como dizia o ensinamento taoísta: seja um
bambu!
Nos anos „60, Herbert Marcuse
248
propunha o uso do corpo como arma política. O
desejo, o sexo, são sagrados demais, fundamentais demais, para servirem a propósitos
religiosos ou a controles morais de interesses políticos. E quando esta literatura chegou ao
Brasil, vivia-se sob o regime militar que via no sexo um perigo tão grande quanto o
comunismo. Aliás, confundia os dois, vendo os cabeludos e barbudos da época como
comunistas, maconheiros, imorais, subversivos, e tudo o que eles mais temiam, sem entender
do que se tratava.
A AGULHA DE TRICÔ CARISMÁTICA
249
(rock-balada: letra & música
De Coxas Ardentes)
pele de foca Nabucodicanduras
ganhou uma lebre ao amanhecer
gelou suas patinhas na crista da onda
espetou seu coração no punhal
do engraxate
247
MACIEL, Luiz Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. (Coleção Edições do Pasquim,
n.101). p.243-7.
248
Eros e Civilização foi editado em 1955, disseminando-se até tornar-se leitura imperativa no final dos anos 60,
como uma das „bíblias‟ do Movimento de 1968, juntamente com as obras de Foucault, Debord, Thoureau entre
outros.
249
De Coxas, em Um estrangeiro... op.cit., p. 71.
153
agora a costela escoteira corre a língua
na bunda adormecida
o punhal é anfíbio
Coxas Ardentes tomou um gole de kirsch seus olhos
arderam em lágrimas pensando no hambúrguer com bacon
por comer & seus amores passados & a solidão presente em
marcha agônica de Wagner urso do salão nietzschiano
propiciador de omeletes de queijo com vinho verde &
batucadas pornô-sambas de Luiz (da Baviera & Peter Gast
tocando Zequinha de Abreu ao piano enquanto Cosima Wagner
fritava salsichões vienenses para o grupo de filólogos &
Nietzsche sonhava com o corpo de salamandra eslava de
Lou Andréas-Salomé onde ascendeu seu fogo dionisíaco &
pitagórico para além do horizonte de palavras mortais de
Coxas Ardentes que só terá descanso quando estiver nos
braços do Andrógino Atropocósmico.
Em Coxas - sex fiction & delírios, a celebração da vida se espraia por seus versos,
e a alegria de viver toma seus personagens ocupados em sensualismos do corpo - tanto da
mesa, quanto do sexo. Exalta os encontros que ocorrem sob o signo do prazer, sob o comando
de Dionyso, pelo seu canto consagrado - o Ditirambo. Cinema, sexo, escatologia, colagem
surrealista, música da melhor - de Zequinha de Abreu a Wagner, sem hierarquia - êxtase,
sexo, muito sexo e filosofia. A profanação vem embebida em literatura, em fluxo poético
extático e sacralizado. Circula-se por fogueiras acesas, batucadas noite adentro e manhãs
cristalinas, mergulhada em natureza quase exasperante de tão premente, que no entanto, se
aglomera sem mérito, mas por prazeres que lambuzam, acordam, estimulam e se contrariam.
Aprender a conviver com a dúvida, a reconhecer a riqueza nos fragmentos,
descobrir que a angústia pela ausência de completude pode ser a grande aventura. “O mundo
perde sua imagem enquanto totalidade. O tempo torna-se descontínuo, o mundo se desfaz em
pedaços refletindo-se apenas como ausência ou enquanto coleção de fragmentos
heterogêneos, onde o eu também se desagrega”
250
.
Fragmento também significa pedaço, desmonte, incompletude e imperfeição. No
movimento do „faça você mesmo‟, o que se pregava não era a auto-suficiência, ou o
desenvolvimento de habilidades artesanais, mas a aproximação sensual do fazer. Cortar
250
HOLLANDA. Impressões de viagem... op.cit., p. 58.
154
cabelo, pelas mãos de um amigo, ou amiga, ou amante, ou mesmo um caso passageiro.
Furar orelha também. Não importava se ficasse meio-torto, capenga, mas teria história, teria a
sensualidade do gesto, do ato, do com-tato, no fato, na modificação da vida. Conviver com a
magia do toque a se submeter com a perfeição das máquinas industriais. A ideia era não
delegar ao mercado, mas ao parceiro, ao sensual. Ser selvagem, ser belo na natureza, ser
natural. Quanto às roupas, ser leve, frugal, básico, nômade, mas nem por isso estóico.
Barbeiros, alfaiates, sapateiros e tantos profissionais associados a um fazer de elite,
sofreram a queda comercial, sentindo a mudança dos costumes, na troca pela frugalidade que
invadiu todas as classes sociais, restando a vários profissionais uma adaptação aos novos
tempos.
As feiras hippies desde 1968, mesmo com atraso de vários anos em relação a outros
países, passaram a reunir quem produzia de forma autônoma, buscando distanciamento do
mercado tradicional. Eram artefatos associados à reciclagem e criações psicodélicas, isto é,
objetos associados às drogas, tanto no sentido de terem sido produzidas sob o efeito delas,
como também a produção de objetos e artesanatos para o consumo das próprias drogas, como
cachimbos, narguilés, deschavadores, etc.
Abandonar tudo, não para construir outro país, mas por direito à preguiça, à praia, à
viagem, ao sexo, ao prazer, a seu próprio uso do tempo. Abandonar para reinventar uma vida
que o tenha competição, que não seja rodeada de cuidados, de perigos, de desconfortos
como os ternos e gravatas, os saltos altos e os sutiãs. Abandonar as cidades pelas praias e os
matos, e as trilhas, e os acampamentos, e as caçadas... aos cogumelos de gado zebu, sem
medos, que possam largar os corpos sem cuidados, achados belos por seu aspecto selvagem,
fazendo de conta que é natural, primitivo, real. Eram os filhos de Rousseau... Rodrigo de
Haro, parceiro da juventude reafirma: “É a linguagem das cascatas, da água, do fogo, da
criança e do louco. Estar perto e atento aos elementos naturais, atento às vozes que nos
rodeiam”
251
.
Abandonar as cidades nem que fosse por uma vivência de final de semana, rumo às
praias, as mais ermas, de difícil acesso, abandonadas, rústicas, para ficar pelado, pescar para
comer, tomar ácido
252
. Abandonar as cidades para experimentar outra marcação de tempo em
acampamentos onde a relação solidária e fraterna, era fundamental. Longe das cidades, as
etiquetas eram outras, bem como suas ordens e regras. Além do mais, cada ingestão, trazia
251
In: DIOS. Assombração Urbana. op.cit.
252
Variações químicas do LSD original, que era mais forte, raro e caro. Os ácidos ou pedras possuíam efeitos
diferentes uns dos outros, e eram conhecidos por nomes sugestivos como Sunshine, Black Power, Pingo
Dourado, Verdinho e o puro 25 - o LSD propriamente dito.
155
mudanças poderosas sobre o cotidiano. As „viagens‟ somavam vivências sobre vivências, e
narrativas que se assenhoreavam do maravilhoso.
O LSD, criado na Suíça em 1938, foi usado para tratamento de enxaquecas e
esquizofrenias. Timothy Leary, no final dos anos cinquenta e começo dos anos sessenta,
passou a estudar a substância com grande sucesso (segundo consta) no “tratamento de
alcoólatras, homossexuais e mulheres frígidas”
253
. Em seus experimentos na Universidade de
Harvard (da qual foi expulso pelo tumulto que seus estudos acabaram causando), Leary
converteu-se ao budismo, abandonando o cristianismo e afirmando que, a capacidade desse
alterador de consciência é tão poderosa, que conduz o „estudante-pesquisador‟ a um “Zen
Instantâneo” e, que por seus inúmeros benefícios, seria aceito muito em breve pela sociedade
moderna. Para ele “a batalha psicodélica está ganha. Predigo que, por volta de 1970, entre dez
milhões e trinta milhões de americanos terão falado com suas próprias células”
254
- garantindo
viagens para o macro, como para o microcosmo.
Essas experiências poderiam receber variações quando viessem de determinados
fungos como os cogumelos, flores, raízes (peiotes) e, além do mais, estas experiências
demonstravam um grande envolvimento místico entre parceiros, despertando sentimentos de
fraternidade e gratidão num grau tal de envolvimento emocional que
uma excitação orgíaca era um dos traços dessas drogas, quando tomadas em
ambiente de um grupo informal. O relatório mostrou que o sentimento
místico de união, naqueles momentos, fora transferido para as atividades
sexuais em que as pessoas se despiam e brincavam eroticamente, como a
chamada „roleta-romântica‟, em que o ato sexual é praticado com constante
troca de parceiros
255
.
Depois de se atravessar uma „viagem de ácido‟ sob sua regressão poderosa, que,
por vezes, atinge-se a ingenuidade e deslumbramento de uma criança em seus cinco ou oito
anos (dependendo do usuário, evidentemente), fronteiras se borram e hierarquias se
evaporam. Não como manter a „superioridade‟ de alguém por mais que haja hierarquias
financeiras, ou prestígio, ou fama, ou poder político ou de gênero, pois, se o indivíduo tiver
uma bad trip toda aparência desaparecerá. Frente à bad trip, o risco de um surto psicótico é
muito fácil, e dependerá de outras pessoas ao redor para que seja acalmada, e até mesmo,
salva. O mal dessa fragilidade é que nem sempre haverá esse grupo de suporte, e seu auto-
253
CASHMAN, Jonh. LSD. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1980. (coleção Debates n. 23). p. 50.
254
Idem, p.78.
255
CASHMAN. op.cit., p. 107.
156
resgate se fará de forma solitária e penosa, ou o se fará. Por outro lado, o bom dessa
fragilidade é que essas alternâncias desfiguram e desmascaram os indivíduos frente a seus
pares. Sob as drogas psicodélicas desmontam-se estruturas sociais hierarquizas durante os
longos períodos de tempo que permanecem sob seus efeitos (entre quatro a doze horas,
dependendo de vários fatores).
Por isso o Feminismo Contracultural
256
, diferente do feminismo da esquerda que
estava sendo discutido nesse mesmo período histórico, teve um estabelecimento mais direto,
simples e óbvio. O imperativo do prazer sob a égide do „amor-livre‟, não poderia ter sido
mantido sob a crítica machista, que via a liberdade do corpo da mulher como o horror
assustadiço do descontrole, equiparando-as a animais reprodutores (vacas, galinhas etc). E
como mencionado, sob as drogas, as viagens‟ anulavam jogos de poder, colocando seus
componentes, em outro jogo - o jogo lúdico de „redescobrir do mundo‟ sob um
maravilhamento encantado.
Para a sustentação desse Jogo Lúdico, o esforço de um projeto político de tomada
de poder, estaria descartado. E é assim que entra em cena um tipo de Anarquismo mais
coerente com o que sonhavam como Sociedade. Sob uma releitura do Anarquismo clássico,
aquele cuja plataforma prioritária seria a de „quebra da máquina de Estado‟, reformulam e
adaptam novas formas de convívio, bem próximas de um sensualismo pueril, difícil de se ver
sustentada em um cenário do Capital Industrial, onde a cobiça pelo poder se fazia tão
estruturada. Para Marcuse, independente desse grande painel conjuntural (que ganhara
justificativas lógicas e científicas desde o século XIX pela manutenção da sociedade burguesa
cristã), que se opunha ao direito ao prazer do que seria uma Sociedade Contracultural, haveria
outro risco implícito, anterior mesmo, às organizações sociais, pois, segundo ele
O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua plica fatal, o instinto de
morte. Sua força destrutiva deriva do fato deles lutarem por uma gratificação
que a cultura o pode consentir: a gratificação como tal e como um fim em
si mesma, a qualquer momento
257
.
Esse alerta, quase crítica, herdado de Freud foi, não apenas corroborado pelo
discípulo, como também frisado. A sociedade Contracultural buscava uma utopia
256
Essa ideia foi mais detalhadamente discutida em minha dissertação de mestrado, na análise da obra
tropicalista de Rita Lee, quando ainda fazia parte do grupo musical Mutantes, entre os anos de 1967 e 1972.
O título do trabalho é: Guerrilha do Prazer: Rita Lee Mutante e os textos de uma transgressão.
257
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 4. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1969. p. 33.
157
perigosamente livre e escandalosamente hedonista, que beirava o egoísmo, a despeito do
discurso amoroso e solidário. Uma das frases mais correntes era: Estou na minha”, ou Fica
na tua”, ou variações que frisassem o direito inquestionável pelo prazer ilimitado. E esse foi
um dos motivos das Comunidades (rurais ou urbanas) não terem funcionado, pois, embora
dependessem de trabalho solidário, responsável e continuado, sempre era hora de se „fumar
unzinho‟...
A chamada Sociedade Hippie, de vertente libertária, naturalista e mística, jamais
organizou um projeto fechado utopista de nenhuma vertente, fosse político, religioso, erótico
ou ecológico. As tendências se misturavam de Guevara a Ravi Shankar, passando por Jesus
Cristo, se surpreendendo com Henry Thoreau
258
, sonhando com Charles Fourier, aprendendo
com o Pasquim, com Bach, com Allan Guinsberg, Celso e até com os Mutantes. Ainda
que de forma errática e herética, a busca era substituir a sociedade de consumo pela
(inatingível) sociedade do desejo, “na qual estariam abolidas todas as proibições morais,
todos os tabus ancestrais, todas as censuras conscientes ou inconscientes [...] e seria a
exaltação dionisíaca, com apelo permanente à espontaneidade
259
.
Piva também é herético e hedonista, e parece participar com muita facilidade desse
movimento que se infiltra entre a ditadura do exército e a ditadura do stalinismo armado
260
.
Em seu livro Quizumba, alguns títulos de poemas são indicativos dessa crítica: „Eu daria tudo
para não fazer nada‟; „Em 68 fiz 69‟; „Jorge de Lima + William Blake + Tom Jobim.
Dante observa‟.
Mas Piva vive no Largo Santa Cecília, perto do Minhocão
261
, do Largo do
Arouche, da Biblioteca Mário de Andrade. A expansão do espaço atravessa a ansiedade
psicodélica-naturalista e enfrenta o centro da cidade:
258
Um Thoreau de Walden ou A vida nos bosques, mais do que em Desobediência Civil, já que o hedonismo,
daqueles anos em diante, falava mais alto do que os princípios.
259
PETITFILS, Jean-Christian. Os socialismos utópicos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 161-2.
260
Seria injusto deixar de frisar o desprendimento que movia a esquerda armada naquele período. Mal
equipados, e parcamente treinados, decidiam expor suas vidas por uma „causa maior‟, a de „salvar o país das
garras da ditadura‟. O espírito heróico, no entanto, além de equivocado em sua análise conjuntural, reproduzia
a forma rígida, altamente hierarquizada e violenta de seu propalado inimigo, o que deixava um sinal de alerta
contra a opção sistêmica que estava sendo proposta.
261
Minhocão foi o apelido dado a um viaduto monstruoso construído para dar fluxo e escoamento à área central
da capital paulista, com total indiferença a seus moradores, pois, sobrepondo uma rua a outra, elevou e
espalhou verticalmente, o barulho, o mal-cheiro, a sujeira e a feiúra, dos andares térreos até andares bem
elevados de antigos prédios que margeavam a velha avenida. Se os males das vias carroçáveis subiram
andares, o sol foi expulso de toda sua extensão, degradando e desvalorizando quilômetros de antigas
resincias, relegadas à fuligem e ao barulho de tráfico permanente. Com sua estrutura colossalmente robusta e
desprovida de qualquer interesse estético, o Minhocão se tornou um monumento ao fluxo produtivo, em que o
ser humano fica relegado, ostensivamente, a uma sub-categoria na ordem imperativa do capital.
158
TRANSFORMANDO O HORIZONTE
262
o espaço
em
teu braço
abre o passo
corta o traço
no canto da boca
olho & escuto
teu soluço
encantado
molhando
os cabelos
te espero na garoa
da praça
O poema se espalha por espaços que se criam a partir de corpos se abrindo, num
movimento paradisíaco, como se a cidade pudesse aprender com a psicodelia. Marcelo
Coelho comenta: “Cada poema será reflexo rápido de algo que foi de uma vida menos
artificial do que a imposta pela urbanização... em Piva essa aspiração é epifânica e feliz...
parece sobrar felicidade em Roberto Piva”
263
.
Nunca o espaço natural tinha recebido tal valorização fora de sua utilidade para a
sobrevivência humana. Em Roma, um cidadão enriquecia em geral no comércio pelo Mare
Nostrum - o Mediterrâneo - usado para contatos com a África do Norte e o Oriente Médio,
onde estabeleciam portos e mercados de trocas. Com o enriquecimento, seu acesso a outros
círculos mais prestigiados, ficava concentrado em Roma. A transferência para a capital do
império se tornava obrigatória, mas não podia prescindir das terras - suas Villas, de onde
garantiam o sustento de sua família, agregados e escravos (a famulus). A manutenção de
terras sempre foi perigosa, difícil e fundamental, por isso foi ganhando importância e valor,
até que na Alta Idade Média, tornou-se moeda de troca fundamental, com a qual prescindia-se
até da guerra
264
.
O meio natural, a terra, passou a significar poder, prestígio, sobrevivência,
independência e barganha. Quando passa a fazer parte fundamental do Sistema Feudal, ela
será consequentemente, sacralizada ou demonizada, dependendo do lado a que estiver
associada. Com o advento das cidades modernas, ligadas diretamente ao primitivo
262
De Abra os olhos..., em Mala na mão... op. cit., p.43.
263
COELHO, Marcelo. Solidão e êxtase. In Folha de S.Paulo, Mais! de 22 de março de 1998. Em
www.nankin.com.br/imprensa/Materiais_ jornais/ solidão_extase.htm,, acessado em dezembro de 2007.
264
BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
159
capitalismo mercantil, tornar-se-ão máquinas de produzir rendas e, lentamente, irão drenar a
população, o dinheiro, o prestígio e claro, o imaginário dos indivíduos.
Ter uma „boa perspectiva de vida‟ será sair do meio rural e viver na cidade. O
estigma de indivíduo bronco e simplório ficará associado a quem vive nos espaços fora das
cidades, mesmo que ricos. Os espaços fora da cidade (tida como o grande carrossel de prazer,
oportunidades e aventuras), ficarão reduzidos à monotonia, à mesmice, ao tédio, à ignorância
e ao simplismo.
Com a Contracultura, a relação entre cidade e „espaço natural‟
265
, mesmo que
fantasiosa, se inverte: o natural tende ao prazeroso, ao belo, ao perfeito, com valor estético e
sensual. Ver o pôr-do-sol passa a ser um grande programa de grupos inteiros, principalmente,
se for acompanhado de alteradores de consciência como a Canabis Sativa. O desdobramento
natural dessa nova percepção sobre os espaços, antes valorizados por fazendeiros,
trabalhadores rurais, pescadores e índios, será um movimento de ocupação diferenciado que,
no futuro, transformará os lugarejos mais afastados e esquecidos, em pontos turísticos e, por
consequência, uma nova valorização do que seria entendido como o Verde. Uma nova
vertente de turismo assim como o Partido Verde e todos os estudos ecológicos foram
consequências diretas e inquestionáveis dos percursos originais feitos pelos hippies dos anos
sessenta e setenta - os protoecologistas.
VIKING 1
266
Queria reler Vico mas não posso / queria ler fico mas não fossa /
queria tomar pico mas na roça / queria ficar rico sem a coça / queria
ouvir Chico lá na choça / queria ficar rico sem a joça / queria ver
o Angico na palhoça / queria ser Cristo mas na nossa / queria ser
lírico na poça / queria mais um tico dessa troça.
Humor, deboche e jogo de palavras constroem este poema. Viking 1 é bárbaro
indomável, brutal e sedutor. Mas também é super-herói, é fantasia de carnaval, é violência
caricatural. Vico é filósofo, porém místico. Vai à contramão de Descartes e Kant - pais do
racionalismo moderno, onde um viking poderia, aproveitar delícias dos bens que a Civilização
265
O uso da ideia de espaço natural deve, forçosamente, estar entre aspas, uma vez que essa categoria, cheia de
contradições é, no entanto, tudo, menos não-cultural. Mantenho o termo com esta ressalva, por ser uma ideia
difundida e defendida amplamente pela Contracultura, arrastando um grande romantismo sobre as paisagens
afastadas das grandes cidades.
266
De Quizumba, em Mala na mão... op. cit., p. 127.
160
Ocidental misturou com regras de controle, como misturar opostos, somando partes, dispondo
do que se gosta, aprendendo com Vico.
Nos anos setenta, a despeito da decretação do fim do Tropicalismo por Caetano
Veloso, a Contracultura Tupiniquim se assume Tropicalista, mesmo sem a presença de seus
dois representantes mais famosos. É que a Contracultura no Brasil havia se tornado arma de
resistência: sensualismo, arte, cultura, carnaval, drogas e natureza - uma quizumba
267
na
ordem para o progresso da ditadura.
O poema segue em balanço malandro, fazendo rima suingada, lembrando o fim da
bossa nova que louvava a „fossa‟ existencialista, o chique, tão enfarada, brincando com
duplos opostos que, neste momento, se tocam. A antiga roça bronca, do Jeca, da barriga-
d‟água, é cenário de novas experiências, estreitando opostos, os cogumelos psicodélicos, e os
speed nos cano‟ em plena zona rural - bucólica? Não - invasora. Os choques são recíprocos:
ambos modelos são chacoalhados com a interpenetração.
O hippiesmo no Brasil, aqueles que resolvem abandonar seu destino por uma „vida
alternativa‟, não atingiu as classes médias como nos EUA, mas o proletariado. Fugitivos da
linha de produção partem para o artesanato, produzindo e alimentando as chamadas „feiras
hippies‟, algumas remanescentes até hoje. Tentativas de comunidades rurais foram muito
mais raras, e de curta duração. Mas havia o desejo no ar: Eu quero uma casa no campo [...]
onde possa plantar meus amigos, meus livros e discos, e nada mais”, faria coro até Tom
Jobim. Pegar no pesado mesmo, nem pensar! E viva Macunaíma, viva a preguiça!
Segue o poeta, com um na realidade mais simplória do capital, abandonando a
paranoia da acumulação de riquezas, solapando a ética, reescrevendo a moral: a riqueza do
nada, caída do céu, sem esforços. E brincar é o mote do poema todo: a troça, o jogo sonoro
como o pular de corda numa roda de amigos...
O poema desmonta muitas imagens, jogando com linhas de fuga de poder,
portanto nem tão inocente assim, nem tão puro assim. Foi como se deixar levar pelas
sensações que adormeciam nos corpos cristãos, assépticos, asseados, purificados, que foram
267
Na capa do livro Quizumba, uma reprodução da significação do verbete, explica: Bras. Pop. Conflito em que
se envolvem numerosas pessoas. [Sin. (nesta acepç.), quase todos eles bras. E pop.: arruaça, confusão,
embrulhada, desordem, banzé, rixa, água-suja, alteração, angu, angu-de-caroço, arranca-rabo, arregaço,
arrelia, bagaço, banzé-de-cuia, banzeiro, bruega, chinfrim, coisa-feita, cú-de-boi, esparramo, esporro,
estalada, estripulia, estrago, estrupício, fecha, fecha-fecha, forrobodó, furdúncio, fusuê, pega, pega-pega,
quebra-quebra, salseiro, sarapatel, sarrabulho, surumbamba, tempo-quente, aperta-chico, arranca-toco,
baderna, bafafá, bafa, banguelê, berzabum, destranque, fandango, frevo, fubá, gangolina, grude, pampeiro,
perequê, perereco, pipoco, porqueira, quebra-rabicho, safarrascada, sangangu, sururu, trança, trovoada,
turundundum, rififi].
161
buscando mais e mais de tudo de vida, querendo o insaciável do natural, da natureza, do
desigual.
Permitir-se ao prazer é gerar conflito quando os binômios de uma equação não
aceitam reinvenções. Usar o corpo, liberá-lo de cargas seculares, faz parte de um arsenal, que
lida com os riscos de não corresponder às peças de uma equação e não se dobra a outras
soluções. E quando o se reafirmam diferenças pelo confronto, mas pela malemolência, a
transgressão fica sem suporte para contra-ataque. Por isso Piva diz não se valer da dialética.
268
Para libertar a diferença precisamos de um pensamento sem contradição,
sem dialética, sem negação: um pensamento que diga sim à divergência; um
pensamento afirmativo cujo instrumento seja a DISJUNÇÃO; um
pensamento do LTIPLO - da multiplicidade dispersa e nômade que não
limita nem reagrupa nenhuma das coações do mesmo; um pensamento que
não obedece ao modelo escolar (que falsifica a resposta feita), mas que se
dirige a problemas insolúveis, quer dizer, a uma multiplicidade de pontos
extraordinários que se descobre à medida que se distinguem as suas
condições e que insiste, subsiste, num jogo de repetições
269
.
O desbunde o assume teorias, mas certamente mergulha num sonho anarquista,
perseguindo a vida-arte marcusiana e o sexo-pleno reichiniano, em grandes tentativas de
remodelar relações interpessoais, incluindo as hierárquicas, borradas pela busca constante de
alteração de consciência.
Na época, a Contracultura internacional, associando-se ao Modernismo dos anos
vinte, resultou em uma “Contracultura tropicalizada” chamada Tropicalismo. O velho
Modernismo se revitalizou e a Contracultura foi carnavalizada, ganhando em humor e
deboche, que foram usados como “armascontra a violência e a caretice do momento, pois
sem ingenuidade (de que os acusavam a esquerda organizada), esse humor funcionou como
cunha, sobrevivendo de forma escorregadia às investidas moralistas do arcabouço ideológico
militar.
O humor tropicalista, herança modernista, infiltrou-se pelas expressões artísticas
de todas as áreas, marcando a cultura brasileira indelevelmente, desde então. Essa vertente
modernista, a paulista dos anos vinte, apresentava uma grande releitura carnavalizada das
vanguardas europeias, saudando avant-la-lettre, a geleia que se formava na configuração de
uma Identidade Nacional, que era uma das questões da época. Amalgamando tantas
referências, e ao mesmo tempo duvidando da pertinência de todas elas, o forte da produção
268
Conforme define na página 65 do primeiro capítulo deste estudo.
269
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud & Marx - Teatrum Philosoficum. São Paulo: Princípio, 1987. p. 68.
162
modernista apontava para essa confusão que parecia apontar para a autoimagem brasileira
entre o elan das cartolas europeias, o sistema direto de sobrevivência indígena e negra, e uma
avacalhação da população em geral que, no fundo se via herdeiro de tantas vertentes
culturais, mas de uma maneira bastarda, indigente, avacalhada e malandra. Na ficção o Livro
dos Avessos mencionado, Trevisan a palavra a Oswald de Andrade que, em plena
Assembleia de escritores, faz uma afirmação insuspeita: confesso que meu Manifesto
Antropófago deve muito ao Manifesto Canibal do dadaísta Picabia [...] canibalizar é
preciso”
270
E de plágios e citações, a segunda metade do século XX é feita.
XII
271
“ci riguardava come suol da sera
guaradare uno altro sotto nuova luna”
Dante, Inferno, canto XV, “I sodomiti”
adolescentes violetas na porta do cinema.
Bar Jeca esquina da São João /
Ipiranga.
Revoada de revoltados. Maravilhosos. Jamais capitular.
Pijamas, família, tv doméstica: a
ordem Kareta se representa
a si mesma.
Corpo doce-delicado-quente na manhã alaranjada.
O planeta entra na órbita do
coração.
Ser afetuoso é não ser direto, é não ser objetivo, é se perder em devaneios, talvez
drogas. Ser afetuoso é ser subversivo num momento em que o Capital Internacional se impõe
pelos projetos da caserna: Ordem e Trabalho. Tortuoso e barroco, o afeto é subversivo,
porque demanda tempo, espaço e indiferença à produtividade. O afeto é subversão de corpo.
Este poema parece pregar a subversão, e deveria ter sido impedido pelos censores,
se eles lessem poesia, mas por sorte, eram apenas ciosos bedéis. Piva brada do terceiro giro
do sétimo Círculo do Inferno de Dante, onde ficam os sodomitas, os que são violentos contra
Deus. Negando a Deus, somam todo tipo de digressão e deriva. O escape vai em “revoada de
270
TREVISAN, João Silvério. O livro do avesso / O avesso do livro. São Paulo: Ars Poetica, 1992. p. 53.
271
De 20 poemas ..., em Mala na mão...op.cit., p. 107.
163
revoltodos”, a quem insta se manter como tal, apartados e em revoada alertas contra “a
ordem Kareta”. O descontrole é redentor, e comenta em flashs de prazer como instantâneos
fotográficos cada verso, um quadro e, no fim, anuncia a utopia que desejava se fazer
presente ver o planeta entrando em órbita do coração.
Graficamente o poema é um móbile balançando no ar e, novamente, ele usa da
cumplicidade do arcabouço cultural disponível à contemporaneidade, quebrando fronteiras
do tempo (cronotopos), contra a suposta hierarquia de referências culturais, enlaçando no
mesmo poema Dante, a televisão, banalidades cotidianas e imposições morais gravíssimas,
imposta pela ditadura, mas que será tratada por ele com humor, erotismo abusado, e uma
forte pitada lírica.
3.2. ANDROGENIA: Um sim ao corpo
O elemento comum a todos os ritos, mitos e símbolos [...]
consiste no fato de todos perseguirem a superação
de uma situação com vistas a abolir dado sistema de
condicionamentos e ter acesso a um modo de ser “total”.
Mircea Eliade.
No livro Coxas, lemos crônicas de uma cidade que perde o sentido, devido a seu
permanente estado de mutação. É o destino das cidades. As contradições na grande capital são
tão visíveis e atropelam mais do que os veículos. Pelas frestas de um olhar pederasta, gula
sobre pequenos Sacis tinhosos, galhofeiros e revitalizantes, mas também pelas reentrâncias da
cidade, desenha-se, não flanêurs isolados, mas ganguezinhas amotinadas que, solapando
trincheiras paranóicas, delineia lentamente uma ideia por entre obscenidades libertárias: a
androgenia. Imagens de belezas dúbias, escorregadias e picantes, além de levemente
sacralizadas, como pitadas angelicais sobre coxas ardentes, para suportar e recostar outras
coxas, e outras e mais tantas quantas couberem pelas esquinas.
As imagens andróginas serão recorrentes na obra de Roberto Piva, desde antes
dessa ideia se tornar Contracultural. Mas o fato é que a androgenia, efetivamente, entra no
cardápio como abertura de opções. A bissexualidade, não apenas é divulgada, como é
sugerida, testada.
Proclamar-se ortodoxamente heterossexual ou homossexual, é fechar
possibilidades, é impedir preconceituosamente, novas experiências. Gilberto Velho, em sua
tese de doutoramento em 1975, vasculhava no Brasil os traços da Contracultura que
164
transformava a droga em fronteira de novos conhecimentos. São depoimentos de jovens entre
16 e 25 anos aproximadamente, em três grupos diferentes da sociedade carioca naquele
período. Num dos depoimentos -se: “O tóxico te a noção de androgenia, você percebe a
sua androgenia. É uma experiência forte, mobilizante, que te ajuda a reagir, a superar os
preconceitos e tabus que meteram na tua cuca”
272
. Mais adiante outro entrevistado diria:
“Acho que o tóxico é enriquecedor, te ajuda a te situar em termos de corpo, de sexo, de
sentidos. Você se sente mais completo, mais assumido, sem medo do teu próprio corpo”
273
.
Agrandes bastiões do machismo foram revisitados: “o termo „careta‟ assume forte ênfase
no aspecto sexual também. Formas “caretas” de relacionamentos passam a se referir ao
casamento monogâmico e o heterossexualismo ortodoxo
274
.
O corpo asseado é demonstração de submissão e conivência, não é um corpo
erotizado. O corpo Contracultural sacode, por um período, os domínios do poder, mas, a partir
da cada de oitenta, emergem novas reivindicações, na tentativa de amortecê-lo numa
totalidade mais fácil de disciplinar. O corpo poderá se expor, mas haverá de dobrar-se a novas
regras. Como diz Foucault: “O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio
corpo [...] é um controle que não tem mais a forma de repressão, mas de estimulação: Fique
nu... mas seja magro, musculoso, bonito, bronzeado!”
275
.
OSSO E LIBERDADE
276
O Inferno de Dante é um paraíso [...]
Onça Humana agarrou Pólen & foram trepar atrás da cortina,
porque Onça Humana gostava dos mocós dignos da sabedoria felina
da Onça animal totem de muitas tribos de índios brasileiros &
com eles ameaçada de desaparecer sem que ninguém fale nisso
ou poucos falem nisso & Onça Humana queria que isso vivesse na
mente permanente dos garotos do clube & eles gostavam de Onça
Humana que os observava gulosa quando os via
enrabarem-se mutuamente ouvindo a Nona Sinfonia ou
Chico do Calabar ou Guerra Peixe [...]
272
VELHO, Gilberto. Nobres e anjos: Um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fund. Getúlio Vargas,
1998. p. 68.
273
Idem, p. 72.
274
Idem, p. 119.
275
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. (Biblioteca de filosofia e
história das ciências, vol. n. 7). p. 146-7.
276
De Coxas, em Mala na mão... op.cit., p. 60-1.
165
A androgenia propõe a reunião de corpos, de sensorialidades totalizantes, de
amolecimento de fronteiras, quando experimentalismos são bem vindos. Flores nos cabelos
deixados ao vento, para ampliar contatos com os elementos naturais, propõem revisão do
status da beleza para uma imagem associada ao selvagem, ao „bom selvagem‟,
romanticamente falando. E ainda assim, depois das vanguardas, depois da Beatnik, a beleza
pode ser desconcertante, dissonante, como foram os experimentos de Jimmy Hendrix, os
orientalismos de um religioso Ravi Shankar em shows de rock, a beleza procurada nas formas
desequilibradas de Wes Wilson
277
, a explosão sensual nos quadrinhos de Robert Crumb, e
todo o flower power que se espalhava pelas imagens na cidade.
A referência era bucólica, mas a manifestação dava-se nas grandes cidades,
principalmente. As ideias experimentalistas das vanguardas sofisticadas e iluminadas do
começo do século foram levadas aos porões undergrounds da „juventude transviada‟ dos anos
cinquenta, e dos anos sessenta a meados dos setenta, tomam as ruas, espalhando desejos antes
impensáveis ou lacrados por tabus.
Oriente e Ocidente, Altos e Baixos, interpenetração de culturas, referências,
carnavalizações éticas e estéticas. Bakhtin fornecerá um arsenal riquíssimo e preciso para a
compreensão desse momento político-cultural, possibilitando o questionamento da imagem de
dispersão, infantilidade e alienação da „geração desbunde‟.
O exotismo que, por definição, diz respeito ao estrangeiro, ao estranho, ao não
pertencente, passa a ser buscado, inserido, admirado, imitado. O exotismo surge em todos os
quadrantes da cultura, nas estampas, nas performances, nas referências visuais todas. Mas o
exotismo que surge, não é o dandy, citadino e snob, dos anos vinte, e sim o selvagem,
incontrolável, andrógino. A mesma selvageria que não respeita interditos das religiões,
servindo-se delas, naquilo em que se aproximam de uma incensada “Era de Aquarius”,
transformando Jesus em „superstar‟, Buda em camiseta e o Tantrismo em um uma longa noite
de sexo. Seu misticismo desterritorializa ignorando origens e complexidades dogmáticas. São
inserções, citações e usurpações culturais fast food. Importa o discurso que se estabelece
contra as formas de controle locais. Ninguém está debatendo ou acatando as castas indianas,
ou reverenciando Ganesh, mas a transparência de seus tecidos, a sensualidade das
sobreposições, toda uma outra leitura e uso, não sendo só estética. Não é um jogo de
277
Um dos pioneiros da arte psicodélica. Ficou mais conhecido pelas capas de discos do rock progressivo, como
as da banda Yes, com cores estouradas, quase primárias, formas distorcidas, indicando o uso de alucinógenos
na confecção de suas obras para a fruição psicodélica do som dos discos e de seus trabalhos.
166
passarela, ou do mundo fashion atual, é um debate sobre a civilização ocidental. Os cabelos
serão deixados longos e relaxados, e não frisados, nem amarrados ou presos sob redes, arcos,
laquês, géis fixadores de qualquer natureza, como fora usual até então, assinalando o desejo
de „falar‟ com ventos, chuvas, calores e frios, quando os cabelos chicoteiam faces, tornando o
meio exterior mais evidente e perceptível. Não se esconder dos elementos, mas lhes ser dócil,
deixar-se interpenetrar, expondo-se em sacos de dormir, dormindo ao relento, em barracas,
em barcos, em árvores...
(A POLÍTICA DO CORPO EM FOGO DO CORPO EM CHAMAS
278
DO CORPO EM FOGO) APAGANDO A LUZ as trevas devoram
teu corpo em chamas tua boca aberta teu suicídio
de prazer na grama tuas mãos colhendo meu rosto
de folhas machucadas na escuridão teu gemido à sombra
das cuequinhas em flor
teus cabelos são solidamente
negros
Este poema editado em 1976 contém os elementos de um período em que a obra de
Roberto Piva pôde usufruir, se servir e se expandir de um erotismo libertário, de um
sensualismo naturalista, e da ideia androgênica que ia além da sexualidade física, mas que
propunha rever dogmas, éticas e estéticas. Por um período de tempo, desejos libertários
ousaram a utopia.
Virtualmente, a cultura hippie, com seu estilo festivo e sua vocação
claramente carnavalizante, entrevê no orgasmo e na mística da divinização
do indivíduo uma trincheira contra a consternadora alienação do indivíduo
massificado, destinatário passivo do consumo irracional e vítima, não menos
passiva, da burocratização da sociedade
279
.
Com a estetização de um movimento que busca se permitir hedonista, a percepção
divinizada do próprio indivíduo se faz apropriado e mágico, expandindo suas possibilidades
de se fazer presente e atuante. No Banquete de Platão, pela boca de Aristófanes, o ser
primordial é bissexuado, e de forma esférica. Mas também Dionísio “era imaginado como um
278
De Abra os olhos..., em Mala na mão... op. cit., p. 28.
279
MERQUIOR, José Guilherme. Saudades do Carnaval: introdução à crise da cultura. Rio de Janeiro: Forense,
1972. p. 206.
167
ser robusto e barbudo, duas vezes poderoso devido à sua dupla natureza. mais tarde, na
época helenística, a arte fez dele um efeminado”
280
. Aliás, o pesquisador percebe que a
maioria das divindades da vegetação e da fertilidade são bissexuadas ou comportam vestígios
de androginia [...] pois a androginia era, por excelência, a forma da totalidade”
281
. E que
fertilidade implica sobrevivência, a busca pela força androgênica cósmica é forçosa. Por isso
que em outras tradições, ritos de passagem na puberdade somam sinais de ambos os sexos,
num processo de androginização de seus neófitos. Quer por incisões na pele, quer por vestes
ou disfarces intersexuais, pois passar a ter acesso ao outro sexo é conhecer o outro sexo, e
para isso é necessário vivenciá-lo.
[...] a teoria famosa de Lévy-Bruhl, segundo a qual a mentalidade do
primitivo seria, por assim dizer, qualitativamente diversa, na medida em que
subordina a visão do mundo, o a princípios lógicos, como nós, mas a uma
espécie de indiferenciação entre sujeito e objeto, entre as categorias e os
corpos, de modo a definir um espírito “pré-gico”, incapaz de abstrair e de
observar o princípio de contradição
282
.
Eliade afirma que tanto os disfarces como as trocas rituais das roupas, e mesmo os
carnavais e as libertinagens das Saturnálias, propunham fusões mágicas não apenas na Grécia
e Roma, mas também na Índia, Pérsia e outros países da Ásia. E sempre existe, sob esses
gestos, uma subversão dos comportamentos, uma suspensão das leis dos costumes,
equiparados, em força e crença às orgias cerimoniais. Trata-se, como diz, da “restauração
simbólica do Caos”. Todos esses ritos orgiásticos, propiciatórios, iniciáticos, de passagem,
instauram o sucesso para o novo o desconhecido, o futuro. O que se busca, é liberar forças
sagradas, no sentido de proteção aos empreendimentos humanos, como as colheitas, que
significam renovação, sobrevivência, mistério terreno, cósmico, sagrado e, claro, sexual. De
qualquer modo, a bissexualidade ritual sempre teve o intuito de transformar o homem.
A ideia da restauração simbólica do Caos para a possibilidade da instauração do
novo é o que subjaz, profanamente, no sensualismo Contracultural, que conduz e propõe,
abertamente, a androgenia e a bissexualidade. Com a intervenção e permeabilidade de outras
crenças e expressões religiosas, a arte, o comportamento e a ação política passam a
280
ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus.
2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos). p. 113.
281
Idem. p. 114-5.
282
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8. ed. São Paulo: Publifolha, 2000. (Grandes nomes do
pensamento brasileiro). p. 38.
168
demonstrar o Caos como sendo de alto valor. O Caos é ambicionado como impulsionador de
transformação.
O mundo deve retornar ao caos, deixando proliferar à vontade os
rizomas, esses caules subterrâneos laterais que não crescem verticalmente,
como as raízes, mas se estendem, indefinidamente, em arranjos heterogêneos
maquínicos e desconectados
283
.
Guattari e Deleuze não se iludem com o desejo sob controle, disciplinado. Desse
modo, o caos acaba sendo filtrado e “recentralizado” pelas forças catalisadoras, a menos que
se proponha uma articulação de outro tipo, longe do isolamento da busca da identidade
flexível
284
. Uma ação política não macro, mas pulverizada, sem formação de redes ou
controle sobre elas, sem estatuto de verdade, mas que funcione como impulso para ações
pontuais, rumo à desqualificação do sistema.
Marcuse, Gary Snyder, Wilhelm Reich falam, não apenas em liberação sexual,
mas em autopercepção do sexo como força cósmica e, portanto, libertadora de uma
subjetividade amarrada em usos, utilidades, culpas e juízos. Por vias diversas, esses autores,
pensam a yoga, o tantra e outras linhas místicas, como interferência sobre o prazer, o corpo, a
subjetividade e, por consequência, a política. Essa lucidez proposta sobre o gozo e o uso do
corpo como arma, é um tremendo salto dado pelo Ocidente, já que a ideia de „amor-livre‟, em
si mesmo, já havia sido aventada por Fourier e por Stuart Mill no século XIX, mas a proposta
estava associada à justiça social, e não a equilíbrios cósmicos.
O bissexual se androgeniza porque se apaixona pelo outro em si mesmo. Por isso
anseia se misturar, se confundir, borrando suas fronteiras. O andrógino é considerado a
imagem exemplar do ser perfeito. Mergulhar no outro rompe fronteiras na fusão dos sexos. A
criatura torna-se apolar, numa coexistência ampliada, cósmica. Mircea Eliade, pesquisando a
ideia da androgenia em tantas manifestações religiosas e místicas
285
, descobre ser uma
constante. “A perfeição humana era imaginada como uma unidade sem fissura [...] o Ser,
283
DELEUZE e GUATTARI. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997. p.233.
284
Outro risco empobrecedor apontado e nomeado por Zygmunt Bauman como líquida, que vem alertando em
seus livros, desde o Modernidade Líquida, contra a flexibilização requerida pelo mercado de trabalho
hodierno, em que subjetividades ficam à disposição de quem deseje executivos e executores robotizados e
descartáveis. Identidades líquidas, não lidas, se moldam, preenchem e suas formas não são impostas pelo
mercado, mas ficam sob responsabilidade e 'poder' dos indivíduos, o que faz com que eles arquem com seus
desajustes e fracassos.
285
ELIADE. Mefistófeles e o andrógino... op. cit., p.115. O Ser Primordial mítico da humanidade na mitologia
germânica, Tuisto, era bissexuado; como da Noruega, Tvistr, que significa „bipartido‟. Em outras culturas,
essa ideia de totalidade é substituída por um casal de gêmeos como na Índia (Yama e sua irmã Yami), e no Irã
(Yima e Yimagh).
169
consiste, em suma, numa unidade-totalidade. Tudo o que é por excelência deve ser total
[...]”
286
.
O efebo está nesse limiar entre os gêneros imberbe, corpo menor, mais frágil,
somando a ingenuidade e curiosidade da meninice com o erotismo potente e focado, aberto
a vivências sem os medos pequeno burgueses da segurança, da perspectiva futura. A relação
ideal, inspirada na grega, é aquela estabelecida sobre uma ligação vertical, i.e. entre o tutor e
seu pupilo-amante. Do efebo espera-se o maravilhamento, o ser arisco porém dócil, sensível
e curioso, quase feminino em seu desenvolvimento. Na Paideia, a formação correta ao futuro
cidadão pleno, digno de frequentar a Ágora, deve percorrer o ensino de filosofia, o controle
do corpo com a ética e a ginástica, além do refinamento do convívio e socialização, que
compreende a retórica e outras matérias formadoras (como a música, a álgebra, a astronomia
etc). Todo esse sofisticado arcabouço pedagógico ficará a cargo de um tutor que se dispuser,
tornando honrosa sua atuação na formação do efebo em sua trajetória rumo à polis. Mas essa
relação nunca será obrigatória, podendo ocorrer ou não, bem como seu envolvimento erótico-
afetivo, tido como natural e compreensível.
O homem que deseja é chamado de Erastes [...] e é um cidadão. [...] O que o
Erastes deseja é um Eromenos [...] também chamado de „menino‟ [...] isso
significa um jovem imberbe, no início da puberdade [...] Para o homem
grego na cidade clássica, o desejo que um cidadão adulto livre sente por um
menino livre constituiu o modelo dominante de laço erótico [...] descrito
como um processo educacional, o amante ao amado os benefícios de sua
experiência, e lhe ensina sobre o mundo
287
.
XIV
288
para o Carlinhos
vou moer teu cérebro, vou retalhar tuas
coxas imberbes & brancas.
Vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. Vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
Vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
286
Idem, p.111.
287
GOLDHILL, Simon. Amor, Sexo & Tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 53-7.
288
De 20 poemas ..., em Mala na mão... op.cit., p.109.
170
substância enlouquecida das
cartas de amor.
(música de Bach ao fundo)
Poema de beleza angustiante arrasta a dor que perpassa suas linhas no descalabro da
destruição do outro. Quebrar o mundo para destruir a dor, jogar a sorte na sarjeta, num
encantamento às avessas que vocifera contra o sonho e o risco de se perder no outro... e sair
vazio.
Piva advoga pela androgenia porque, em primeiro lugar é pederasta, o que significa
que jovens são o foco de seus desejos e fantasias sexuais. Em seus poemas, erotismo,
obscenidades, ternura, jovialidade e transgressão se misturam em cenas desmistificadoras. Ele
defende que “o interessante é você transar uma pessoa enquanto ela é andrógena, ou seja,
antes de crescer os pêlos”
289
. Denota preferência pelos seres mistos que não vibram com força
nem em uma direção nem em outra, mas na inquietação dos interstícios, na vibração da
incompletude, na excitação permanente da curiosidade e alegria, que, como nos ensinara
Oswald de Andrade, “a alegria é a prova dos nove”.
A bissexualidade e a estética andrógina foram abraçadas pela Contracultura e seus
ídolos e líderes mais ousados e simpáticos. David Bowie, Mick Jagger, além de nossas
versões locais, Caetano Veloso, e em menor grau de comprometimento com a „causa‟,
Gilberto Gil.
Visualmente, a influência das culturas e religiões orientais auxiliou nessa aparência
borrada, com o uso das batas e kaftans floridos, repletos de espelhos, miçangas, apliques e
nervuras, que funcionavam como vestidos a olhos não treinados. As mulheres, no uso de
macacões de jeans e as mesmas batas e kaftans, com cabelos grandes, soltos, confundiam os
sexos. Essa estética era, antes de tudo, parte de uma ideia utópica de quebra dos papéis
masculinos e femininos, além da alteração da ideia do “pai de família”, ou da “mãe de
família”, articulando e reinventando a família estendida e mesmo a família nuclear.
Mas o belo projeto grego, previsto na Paideia, elegante e civilizatório, chocou-se
frontalmente com o capitalismo cristão casto e trabalhador.
289
ARRUDA. Piva, Poesia e Paranoia. op.cit.
171
3.3. ANOS DE CHUMBO: Violência, confronto e escapes.
A virtude é mãe do vício.
Torquato Neto
O Brasil nos anos setenta, pós AI-5, é um período particularmente confuso e
doloroso da história do país. Histórias de torturas e arbitrariedades ainda permanecem
lacradas pelas autoridades, protegidas pela “Lei de Anistia”. Existe o temor de que as
justificativas para atos tão violentos o se sustentem, e de que a sanha pelo poder em si
mesmo se evidencie, para indignação da opinião pública. O que se suspeita sem que se possa
comprovar é que as atrocidades perpetradas contra a esquerda foi completamente
desproporcional, frente a um inimigo pouco numeroso e mal aparelhado, e dado o esquema
de investigação capilar pela sociedade, a violência ficou muito acima do necessário, sob um
falso motivo. Excesso de violência, ganância e vaidade, se impuseram sobre uma população
desarticulada e assustada por tempo demais, ao preço de uma dívida externa monstruosa e de
uma distribuição de bens e serviços públicos pífios e incompetentes. Sua herança foi, apenas,
o uso opaco e misterioso da máquina pública para usos particularistas. Enquanto não
podemos ter acesso aos arquivos, esse material comprobatório de nossa história recente vem
sendo sistematicamente destruído, para que a demonstração cabal das arbitrariedades da ão
militar do exército brasileiro não se evidencie. E a destruição desse material tem sido
possível devido à conivência do governo de centro-esquerda que permanece no poder
quase dezesseis anos.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, devido a sua ascendência
militar, era de se esperar o interesse em manter os segredos da violência, mas agora que o
sindicalismo e formas de esquerda associativas assumiram o poder, toda a documentação de
arbitrariedades de parte a parte está sendo apartada do conhecimento da população, devido a
seu viés autoritário e ganancioso. As Forças Armadas, por serem subalternas e deverem
obediência ao Poder Executivo, seriam obrigadas a abrir seus arquivos, mas isto não ocorre
porque não interessa a exposição ao escrutínio público, de nenhum dos dois projetos políticos
daquele período, seja o militar neoliberal, seja o stalinista/maoísta armado ou sindical,
mantendo-se inacessível, mesmo passados vinte e três anos do fim dos chamados „Anos de
Chumbo‟.
172
Mas de fato, várias semelhanças aproximavam esquerda e direita. Ambos
defendiam o mundo do trabalho, o recato de corpo, o sexismo, a obediência às hierarquias, e
também defendiam (como ainda defendem), projetos coletivos e desdobramentos desse
corporativismo, como privilégios a afiliados e alinhados, pela construção e perpetuação de
uma „Aristocracia de Estado‟, em que o funcionalismo, por mais incapaz e corrupto, seja civil
ou militar, ganha „blindagem‟ judicial sobre a ética profissional e inter-pessoal. Enquanto que
aos adversários, sob um discurso moralizante, decretam a Masmorra, o Inferno, o Paredón ou
o Deops
290
.
Piva diria na entrevista a Machado e Fraia que “o intelectual brasileiro entra em
partido político para lavar chão, para ser devoto, e não pra criticar, para esculhambar [...]”. O
anseio pela manutenção da máquina de Estado passa, não pela ideia de eficiência, mas pela
ideia de privilégio.
Desde a Guerra Fria, uma escolha teria de ser feita entre ser um aliado ou
dissidente por um lado ou um subversivo criminalizado por outro. E foi contra esse caldeirão
moralista, violento, pudico e discricionário (ou discriminatório?) que a Contracultura se
insurgiu galharda e carnavalescamente.
Nos anos setenta, pós-AI-5, o Brasil está esquizofrênico. A ditadura pedia cautela,
exigia decoro, sugeria discrição para sobreviver sem chamar a atenção. Ela impunha o
encolhimento da subjetividade. Pelo padrão da caserna todos seriam (ou deveriam ser, ou
deveriam querer ser) iguais, todos neutros - nem felizes, nem infelizes, apenas cumpridores.
Esta é a utopia, o sonho dourado dos generais daqueles dias. Infelizmente para eles, além de
uma esquerda pequena, mas armada, persistente e determinada, surgia pelas ruas uma
resistência que não se definia pelas palavras de ordem, nem pela gana de alteração do poder,
mas que tampouco se deixava convencer.
Por motivos que o ficavam claros, jovens de aparência desgrenhada, sem asseio,
sem limites e „sem modos‟ iam surgindo e se espalhando pelas ruas, pelas músicas, pelas
praias, pelas matas, se apinhando, ficando nus por qualquer coisa, perdendo a compostura, o
medo e o respeito pela farda e os símbolos sagrados da pátria, incluindo a família, a bandeira,
290
Fundado em 1949, o Departamento de Ordem Política e Social tinha a incumbência de impedir movimentos
operários, anarquistas e comunistas. Com a Segunda Guerra Mundial, passa a perseguir também os imigrantes
do chamado “Eixo”: japoneses, alemães e italianos. Com o golpe de „64 o órgão se encarregará dos
depoimentos dos suspeitos contra a “Revolução” militar, mas será com o AI-5 que ele se tornará, realmente,
uma central de torturas, comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe do Esquadrão da
Morte. As sessões de depoimentos serão transformadas em sessões de torturas das mais violentas, covardes e
sanguinárias. Os métodos abusivos foram adotados depois pelo DOI-CODI, misturando métodos biológicos,
químicos, mecânicos e psicológicos, jamais assumidas oficialmente, e tratadas com igualdade de direitos à
anistia, quanto aos assaltos de bancos, sequestros e mortes ocasionais cometidos pela esquerda de resistência.
173
e outras instituições. Essa nova resistência que crescia e se espalhava pelas ruas, a olhos
vistos, precisaria ser confrontada com mais aliados.
Do lado dos militares, o governo fabricou um „milagre econômico‟ que iria
reforçar as bases de apoio às Forças Armadas, desde a famosa “Marcha da família com Deus
pela liberdade”, ocorrida 13 dias depois do golpe. As classes médias se encantam com sua
nova capacidade de compra, e estreita-se o vínculo de lealdade, controlando-se mais
facilmente qualquer tentativa de alteração no modus vivendi, tidos, imediatamente, por
insubordinações, subversões e falta de patriotismo, justificando a implantação da Lei de
Segurança Nacional, que liberaria membros do exército e seus aliados aplicar prisão e tortura
a qualquer suspeito.
OS ESCORPIÕES DO SOL
291
O adolescente ajoelhou-se abriu a braguilha da calça de
Pólem & começou a chupar.
Eram 4 horas da tarde do mês de junho & o sol batia no
topo do Edifício Copan suas rajadas paulistanas onde Pólen
& Luizinho foram fazer amor & tomar vinho.
O adolescente vestia uma camiseta preta com o desenho no
peito de um punho fechado socialista, calças Lee desbotadas
& calçava tênis branco com listras azuis. Você é minha
putinha disse Pólen. Isso, gritou Luizinho, gosto de ser
chamado de putinha, puto, viado, bichinha, viadinho ah
acho que vou gozar todo o esperma do Universo!
Neste instante um helicóptero do Citibank se aproximava
pedindo pouso & os dois nem ligaram continuando com
suas blasfêmias eróticas heróicas & assassinas.
O guarda que estava no helicóptero então mirou & abriu fogo.
Luizinho ficou morto lá no topo do Edifício Copan com uma
bala no coração.
Por onde é preciso começar?
Pólen não sabia, mas seu olho sabia, sua mão sabia, sua
política cósmica sabia.
Hermafrodita morto no musgo mais alto. Suas baleias de
ternura, suas tranças do mais puro ouro, suas sardas em
291
De Coxas..., em Mala na mão... op. cit., p. 51-3.
174
torno do narizinho meio arrebitado & insolente.
Luizinho era uma sombra dentro do seu coração anarquista
& rápido suas lágrimas quebraram o aço dos elevadores com
seus guinchos de múmias eletrificadas ondas de reflexos
polaróide em frente à Igreja da Consolação rostos picados
nos escritórios & seus violinos enfadonhos, o amor
começaria por uma perda?
A atmosfera cor de azeitona era um alívio pra o coração
metralhado pela dor construída ao crepúsculo doente em
cargas elétricas & surdas feitas de veludo & espinhas de
peixe um rodízio de aberrações crispou o rosto de Pólen
que agora tomou um ônibus & percorreu São Paulo num
suspiro rodando & rodando por aquela massa cinzenta do
capitalismo periférico sem escapatória & suas grandes asas
cobriam o Sol & seus escorpiões.
Enquanto isso os cinemas sofriam ataques contínuos de
office boys armados com estilingues & bolinhas de gude &
partilhavam a turbulência do Grande Terror com
máscaras feitas de folhas de bananeiras & bermudas
justíssimas onde se podiam ver magníficas coxas & lindos pés
descalços com tornozelos rodeados com florzinhas amarelas
& muitos traziam a palavra COMA-ME costurada na
bermuda na altura do cu.
Naquela tarde todo mundo estava com vontade de nadar
em sangue.
Anjos da verdade pensou Pólen em sua calma estranguladora
de babuínos agora devem começar as quermesses com leitões
coloridos purê de maçã & delicados tutus à mineira ostras de
Cananeia apimentadas servidas com retumbantes batidas
de Maracujá (a fruta da paixão) codorninhas recheadas com
uvas passas & torresminhos com queijo ralado o verão bem
poderia chegar com seu perfume de acarajé invadindo os
colégios fazendo os adolescentes terem ereções & as garotas
desmaiarem de desejo com seus pequeninos seios latejantes.
agora
um anjo pousou
em seu ombro
175
& Pólen adormeceu.
Quando acordou alguém tinha deixado em suas mãos o
Livro As Américas e a civilização de Darcy Ribeiro & ele
desceu do ônibus para sentar na praça Buenos Aires & ler.
Abriu na página 503 & leu:
“Os Guerreiros do Apocalipse.
Uma vez implantadas as bases do Estado militarista na
América do Norte, uma série de acontecimentos comoveu
a opinião pública, os governantes, os militares, conduzindo
toda a classe dirigente do país a crises sucessivas de
apavoramento e histeria”
A narrativa de „Os escorpiões do sol‟ expõe, sem rodeios, a repressão num
julgamento sumário. Piva não está fazendo palestra sobre a violência, nem está contando uma
história, mas faz poesia. Delata e seduz, registra e constrói uma „escultura no ar‟ como chama
a poesia, em que fixa o sexo e a violência no instante de uma narrativa poética É uma
performance de dor e desejo. Ele finge que finge, como já confessara Pessoa. E termina um
poema-mentira, um poema-escultura, obra de arte solta no som das palavras, com uma citação
de livro teórico! E mais cânones entram em colapso.
O livro Coxas será quase que inteiramente composto por poemas narrativos e
distendidos, exaltatórios e declamativos, como Ditirambos Dionisíacos. Ele se desdobra em
imagens que percorrem os corpos com os quais, além de se divertir, expõe as formas cruas
como um olhar punk sobre as vivências, salvo por momento de intensa ternura. Seus poemas
expõem os corpos que deixam entrever cenas bem urbanas de sexo, resistência, repressão e
uma feroz gana pela transparência não há subterfúgio, não há meias-palavras, não há pudor.
São crônicas cruas, cujas narrativas apresentam corpos, cópulas, desejos e um pano de fundo
quase jornalístico. O foco dos poemas permanecerá nas partes baixas dos corpos que se
aventuram por uma cidade múltipla. Carnaval, escatologia e criminalidade.
Coxas atravessa o período do terror da ditadura na malandragem, no erotismo e
nomadismo. Pólen, Luizinho e seus amigos atravessam de um ponto a outro da cidade, sob
olhares raivosos de múltiplas instituições, lambuzando-se em carinhos, medos e obscenidades
libertadoras. Às vezes parecemos ver Macunaíma tentando „se dar bem pelo mar de
caretices‟, às vezes a associação às andanças de Encólpio e Ascilto de Petrônio é inevitável.
176
Nomadismo, de espírito mais do que de corpo, mas de preferência ambos, é a ideia
pós-moderna que o rock incorporou, ilustrada pelo próprio nome da banda Rolling Stones. A
ideia de nomadismo é vista com arguta percepção e interesse por Maffesoli, quando analisa o
que chama depluralidade da pessoa”, que não passa desapercebido pelo poeta, valorizando a
construção da grandiosa obra de Dante, em trânsito como afirma, enquanto criticava papas e
tantos poderosos, rolando pelas estradas, sem se fazer dependente de um local, evitando virar
alvo ou refém. A ideia de trânsito, de nomadismo, protege o poeta do mecenas, do imposto,
do Estado, do general e das grandes certezas. O nomadismo projeta o espírito numa deriva
que arrasta o espaço, mas pode o prescindir. Drogas, arte, caos, trajetória polissêmica.
Em homenagem a esta ideia Piva chamou o segundo volume de sua Obra Reunida
de Mala na Mão & Asas Pretas, e explica: “É uma forma de dizer que se está em trânsito no
planeta... Quando se morre não se volta mais”. Mas o trânsito é a deriva permanente - é o
nomadismo de espírito - é suportar a convivência da dúvida e o constante estranhamento, é
estar sempre com a mala pronta.
A fluidez, o nomadismo, o rolling stone que evita o limo do ficar e do conformar-
se, ajuda Piva a definir-se, não apenas como poeta, mas também como cidadão, quando diz:
“Ser brasileiro talvez seja, como disse Vinícius de Moraes: Pátria minha é o grande rio secular
que bebe nuvem, come terra e urina mar”
292
. Num tempo em que o lema era definições de
lugares, o seu descomprometimento com a geografia é sintomática. E quando se obrigava a
definir-se por ir ou ficar, fixado no “Ame-o ou Deixe-o”
293
, Piva propõe o deixar rolar...
Nos sonhos do personagem, muitos dos desejos heréticos, pecaminosos, ainda
persistem: os prazeres da língua sobre corpos, sobre frutas e delicadezas feitas pelas tradições:
tradições de dividir prazeres - tutus, e purês, e florzinhas macias, perfumadas, coloridas,
degustadas sobre as coxas, desmontando o ditado. “Fazer nas coxas” é fazer com mais prazer,
é se lambuzar mais, é misturar perfumes e delícias.
292
DUME e D‟ELIA. Ebulições Pivianas. op. cit.
293
Com o recrudescimento da repressão e da censura, um murmúrio de repreensão se ampliou no ar, a despeito
de toda repressão. Ouvia-se falar em porões de tortura, em pancadaria entre alunos, em ações violentas de
grupos açoitando artistas em pleno teatro, sabia-se que gráficas e editoras eram invadidas e depredadas... e
todos esses atos prescindiam da informação dos jornais. Eram colegas de trabalho que sumiam para
interrogatório, vizinhos que eram cercados em casa... apavorando e enchendo de vidas a população em
geral que, até então mantinha-se alheia a tantas violências. E essa onda de repreensão passou a ser
manipulada como ausência de patriotismo. Quem criticasse o governo seria considerado um não patriota,
que as forças armadas, para todos os efeitos, estavam „salvando‟ o país do mal, que era o comunismo. Essa
onda crítica em ascensão foi abafada pela propaganda, pelos discursos oficiais e pelos famosos plásticos
colados nos vidros dos carros, convidando aos insatisfeitos a se retirarem do país, juntamente com os demais
„subversivos‟ que fugiam para Cuba e outros países. Aos nacionalistas e patriotas caberia confiar no exército,
deixando-os fazer o „saneamento‟ do país.
177
Mas não inocência: o poema fala de pequenos bandidos, nômades, piratas de
torres de bancos, suas pilhagens, seus butins sagrados... O poeta emoldura o grande quadro da
gula sobre os corpos, a gula das palavras que direciona dardos, a gula sobre a língua que
percorre as sensações pelas serras, pelas praias, pelas torres citadinas e que enfrentam a
inquisição cristã sobre a preguiça, a luxúria, o desejo, com armas de fogo. Morte e desejo:
Eros e Thanatos - fogo nas coxas nômades que ainda buscam a poesia do prazer, a poesia da
sensação, da visão, do tato - comilanças que ignoram o pecado dos que acreditam no pecado.
(O SEXO DA MEIA-LUA LANÇA SUA NOTA METÁLICA & SEUS
294
GATOS SELVAGENS) onde dançamos com gorilas tântricos
cérebros eletrônicos fazendo xixi na cama vermelha
GRITOS MARAVILHOSOS NA JANELA política do esquecimento
sistemático ESTAMOS NA MERDA GENTIL
rosto de beterraba e sexos em ruínas
espelho bilíngue minhas esporas & olhos sorridentes
TODOS CHORAM AO MESMO TEMPO NO BRONZE DA TIRANIA
& COMEM SUAS MENINAS o vento da vida os braços
dependurados maxilares estourados ao amanhecer
TOTEM KAPITALISTA TOTEM KAPITALISTA TOTEM
KAPITALISTA
É com a palavra SEXO que este poema se inicia. E sob a lua, como gato de rua,
não o domesticado, mas o arisco, o selvagem, aquele que grita, faz escândalo, que rola bruto e
pesado em espasmos potentes do tantrismo, que prega aprendizados pelo... sexo!
Sexo? Para procriar, para amar, para manter a família, e mesmo assim, nas horas
certas, no momento certo, com a pessoa certa. Ou seria o outro lado do sexo honrado: o sexo
pecaminoso ainda que permissivo, reproduzindo relações com concubinas, com „a outra‟, em
garçonières, tão hierarquizado quanto pornográfico, sorrateiro e envergonhado.
O poema espirra irreverência, urinando na santa cama comunista, deitando na caca
que se tornou o país, propondo o não-comedimento erótico - mas lançando prazeres pelas
janelas, acordando e chocando símbolos militares de controle, como hinos que ensinam como
se ver e sentir o espaço em que se habita. Estando em geografia aprazível, mas sob as botas
militares, refaz-se a leitura para a „merda gentil‟, em que o prazer e o sexo estão em ruínas.
294
De Abra os olhos..., em Mala na mão...op. cit., p.31.
178
Sob leis „caretas‟ de todos os lados, o poeta que se e se sabe feliz, aponta o lamento dos
tempos de medonhos controles e sua referência chega em „variação sobre o tema‟: de Anos de
Chumbo, para Bronze da Tirania, quando então uma forma sujeitada e cruel de regime
internacional se impõe, unitário e global: Totem Kapitalista, grita em „caixa alta‟.
Nomadismo e trânsito percorrerão seus poemas em meio às coxas e beijos, mas a
cidade é maior, e, apesar de seus escapes, fugas e críticas, ela demonstra ser ainda a fortaleza
que serviu, em sua origem, de proteção à acumulação de capital sob o manto real no castelo
feudal. Nas colônias americanas, essa proteção contava com barreiras para se perpetuar, sendo
elas naturais como as serras e os rios, ou construídas como as torres e os muros, e hoje, suas
torres, já de concreto, aproveitam espaços internos para guardar gente. Seus edifícios nos anos
setenta serviram de mote para as angústias da cidade que já extrapolava a escala humana,
delineando até as simplórias e poéticas pichações da época. Pelas fachadas dos edifícios lia-
se: É-Difícil! Fachadas, prumadas e muros passaram, desde então, a expor narrativas, sempre
renováveis, que permanecem até hoje, sob formas bem diversas, e que não cabe aqui comentá-
las, mas ainda assim, narram.
O colunista da Folha de S. Paulo, Marcelo Coelho, comenta que talvez seja
decisivo na poesia moderna brasileira sentir a vida urbana como uma perda, como um
desastre (1998).
Antonio Mendes concordando, dá seu depoimento:
TUDO SE PERDE
295
tudo se perde aqui nesta terra
como se o vento que sopra o presente
& suas cantigas do amanhã
levasse na sua passagem
o passado aqui desta terra
como se o passado fosse a cinza
de um cigarro atirada pela janela
O autor do poema tinha menos de vinte e cinco anos quando escreveu estes versos,
e já vivia a tragédia das cidades americanas numa São Paulo em que a destruição é cotidiana e
295
MENDES, A. Confissão para o Tietê. op. cit., p. 31.
179
agudizada amargamente, em função do sonho de se tornar um moto perpetuo destruindo-se
para sobreviver.
A partir dos anos setenta a cidade entra nessa percepção de inchaço populacional
que o mais refluirá. O fluxo imigratório havia cessado nos anos quarenta, mas a migração
do Nordeste e de Minas Gerais se iniciara. Nos anos setenta, devido à concentração de terras
na zona rural, um grande êxodo produzirá o esfacelamento da urbanização o fragilmente
alinhavada, principalmente para o lado dos subúrbios. Todo o investimento público no
período dos anos „70 favorecerá os grandes fluxos de tráfico para escoamento de mercadoria,
e nada se investirá na qualidade de vida, destruindo-se parques, praças, campinhos e antigos
equipamentos comunitários. E como diz Berman
296
, “o modernismo da década de 70 foi um
modernismo com fantasmas”, com a destruição de identidades étnicas, mas também pessoais,
já que passado por um processo de desintegração.
É quando a cidade se transforma em um grande canteiro de obras, por cima e por
baixo da terra, com a construção do Metrô, das duas Marginais, do monstruoso Minhocão”,
da ampliação da Av. Paulista, e da sofisticação de determinadas áreas, em detrimento de
longos pedaços urbanos deixados no ostracismo, abandonados à violência e à feiúra. Também
foi condenado à penúria e abandono todo o centro histórico da cidade, que se manteve em
pé pela manutenção do agrupamento financeiro em torno da Bolsa de Valores.
Mas como o uso de grandes somas de „verbas‟ públicas são mais difíceis de serem
rastreadas, a cidade acaba por se beneficiar de obras grandiosas também, nas áreas de cultura
com a proliferação de centros culturais. Surgirão o Centro Cultural São Paulo ou Vergueiro, o
Sesc-Pompeia, a Grande Oficina Três Rios, e outros menores, quando até a produção e
distribuição de arte e eventos culturais serão estimulados a ficarem confinados, no mesmo
movimento da proliferação dos Centros Comerciais, das Lojas de Departamento e dos
Shoppings, que também se multiplicam a partir desse período. Nos anos setenta portanto, a
cidade se descaracteriza rapidamente, rompendo com os resquícios fabris que ainda
persistiam, desfigurando memórias, referências e circulações ancestrais.
Canevacci, pesquisador italiano, é apaixonado por São Paulo e, entre horrorizado
e maravilhado, sempre retorna para novas aferições antropológicas, seu campo de ação. Para
o estudioso, a cidade possui dores tão expostas que se serve do que chama de situações de
porno-scape”, por onde ameniza certas catástrofes ecológicas - sobre a degradação que se
deu após décadas de migração desenfreada, quase nenhum investimento público, e um
296
BERGMAN. Tudo que é sólido.... op. cit., p. 316
180
enfeiamento tão monstruoso que “a paisagem externa se torna pornográfica [...] enquanto a
paisagem interna se assemelha a uma catástrofe ecológica”
297
.
A cidade se pulveriza em pequenos delitos de desejos órfãos, sempre provocados,
nunca saciados, convidando ao desvio e ao crime. Nos estudos de „comportamentos
desviantes‟, psicólogos, pedagogos, antropólogos e sociólogos concordam que se trata de uma
análise de perspectiva sempre relativa, isto é, que depende do ponto de vista que se está
investigando o desvio. Mas muitos fatores irão retrabalhar o quadro social que se pesquisa e
uma de suas variantes seria a cronologia, o tempo histórico que modifica comportamentos e
percepções culturais.
O estudo de comportamentos desviantes tenderá a associar-se a “identidades
desviantes”, não assumindo que possa ser apenas um comportamento „divergente‟,
comprometendo o indivíduo e sua obra e ação públicas. Como disse Becker, “o desviante é
alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso: comportamento desviante é o
comportamento que as pessoas rotulam como tal”
298
. Assim, a noção de „poeta marginal‟,
quando Piva fala em „poeta marginalizado‟, se sustem pelo juízo de valor acoplado ao olhar e,
consequentemente, ao arsenal teórico do expert, pondo sob suspeição quaisquer conclusões de
um estudo dessa natureza, mesmo quando apoiado em pesquisa de campo.
Um exemplo interessante, mas muito evidente, surgiu no período mais violento do
militarismo, quando qualquer crítica, ou mesmo fugas do país para Cuba ou União Soviética
na época, era qualificada como não patriota e subversiva, enquanto que toda notícia que
notificava uma fuga da „cortina de ferro‟ era ovacionada e tratada como um ato heróico, de
um espírito democrático, sendo chamado de dissidente. Assim, subversivo ou dissidente,
seriam igualmente fugitivos de seus regimes de exceção, impostos sob violência equivalente,
mas que sofreriam leituras opostas, sob juízos de valores oportunistas e manipuladores.
Apesar da fragilidade do saldo de seus estudos, não como desqualificá-la, pois sua
percepção apenas enriquece um corpo de estudos de comunidades sob focos acadêmicos.
Segundo Gilberto Velho, analisando a questão do desvio, da violência e cidadania, comenta:
A cidade, em particular a grande metrópole, [...] não possui uma ordem
moral dominante, apoiada em explicações cósmicas e religiosas, que
justifique sua desigualdade [...] por outro lado não constituímos uma ética
social apoiada em uma negociação da realidade travada por indivíduos-
297
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2 ed. o
Paulo: Studio Nobel, 2004. (Coleção cidade aberta). p. 207.
298
BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology of deviance. NewYork: Free Press, 1973. p. 60.
Tradução nossa.
181
cidadãos que possam organizar-se e expressar-se politicamente [...] (assim) a
violência expressa a tensão e a inconsistência dessas convivências [...] O
autoritarismo se manifesta (então) através do exercício de um poder não-
legitimado em termos morais, religiosos e políticos
299
.
Erotismo, moralismo, repressão, a eficiência como justificativa para exterminar
quem se interpõe entre a acumulação de riquezas, os deveres e anseios por sucesso, fortuna e
fama. Imagens construídas da eficiência. O poema „Escorpiões do Sol‟ e outros dessa fase
constroem uma sequência cinematográfica onde a aventura de heróis delinquentes, degradados
e vencidos, assumem impulsos de represália satírica. E onde o conhecimento não se faz com
vivência de si mesmo apenas, mas, com os desdobramentos de parceiros e cúmplices de outros
tempos e lugares daí que a literatura, todas as artes e uma visão aguda sobre a polis buscam o
múltiplo e o polifônico, nos poemas. No final de „Escorpiões...‟, o poeta frisa essa construção
por colagem plurifacetada, quando insere na obra poética um texto de Darcy Ribeiro em que
anuncia os tempos de “crises sucessivas de apavoramento e histeria”.
APAVORAMENTO Nº 2
300
quinze adolescentes de ambos os sexos foram chicoteados na
bunda por batalhões da TFP que os insultavam enquanto
trezentos rapazes & moças da seita imperialista Igreja Católica
cortavam rodelas de cebola & colavam em seus olhos
O recrudescimento da repressão no período do AI-5 acabou por afetar o grupo de
poetas. Vendo na mídia apenas um veículo de propaganda ideológica e empobrecedora,
optaram por se isolar num momento crucial em que outras tendências e linguagens se
aproveitaram para enveredar por linguagens mais cifradas no intuito de „furar‟ controles.
Apesar das dificuldades de circulação de ideias e expressões, outros grupos continuaram
exercitando suas linguagens, mesmo com o absurdo da censura e da autocensura que
provocou, nas criações da época, linguagens truncadas, dando a falsa impressão de
experimentalismo (que de fato havia em certa medida) ou de elitismo para um público que
299
VELHO, Gilberto. Violência e Cidadania. In Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da
sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: 1981. p. 148/9.
300
De Coxas..., em Mala na mão... op.cit., p.55.
182
não estivesse afiado e atento aos „dribles‟ que a produção artística, nestes tempos, foi
obrigada a empreender.
Assim, além dos censores oficiais e dos dedos-duros associados diretamente à
repressão militar
301
, grupos saídos da sociedade civil começaram a se organizar
paramilitarmente, para assumir atitudes igualmente repressoras, como foi o caso do C.C.C.
302
,
e mesmo do grupo autoproclamado religioso, a T.F.P.
Nesse momento em que forças obscuras e obtusas decidem destruir formas
variadas de vida e de produção artística, esse grupo de poetas, que permanecera reunido do
final dos anos cinquenta até o final dos sessenta, se dispersa, restringindo sua produção à
distribuição acanhada de editoras românticas que os editava, recusando-se a participar de
outras formas de maior visibilidade, que conseguiam alguma respeitabilidade, se fossem
omissos quanto ao terror em que a sociedade civil estava mergulhada, pelo menos em alguns
de seus setores.
Nos anos sessenta a maioria da população, ofuscada pelas propagandas oficiais, e
por uma censura que não era ostensiva, apoiava a aparente calmaria das ruas depois do Golpe
de 64. Mas nos anos setenta, depois da violência do AI-5, alguns dos maiores jornais do país,
pararam de tentar disfarçar os cortes que os vitimava, como fazem as meninas que,
estupradas, escondem com vergonha as marcas de sua sevícia. Eles passaram a cobrir os
buracos das matérias censuradas, o mais com artigos feitos às pressas, mas com formas
ostensivas de remendos, denunciando” a censura dentro das redações. E se a maioria da
população desconhecia as perseguições aos intelectuais, artistas, movimentos estudantis e
operários pelo país afora, a partir de „69 a violência fica evidente, ostensiva e maniqueísta.
O perigo em qualquer ditadura é o guarda da esquina, não é o general. A
polícia toma o freio nos dentes e fica extremamente arbitrária [...] E como
301
Dedos-duros poderiam ser recrutados dentre elementos frequentadores de grupos religiosos que entravam em
faculdades e que, participando de uma sala de aula, delatariam professores e alunos que expusessem críticas ao
regime; também foram recrutados dentre os quadros do próprio exército como voluntários, no intuito de salvar
a nação do „perigo vermelho‟; e ainda existiram dedos-duros que foram forçados a esse papel como chantagem
por sua liberdade ou segurança familiar, em „pagamento‟ por delitos menores que algum órgão de repressão
pudesse manipular. Por isso dedos-duros eram uma possibilidade realmente paranóica, uma vez que poderia
ser aquele colega que, um tempo atrás, era identificado como crítico ferrenho do golpe militar, mas que
estivesse „trabalhando‟ para as instituições de controle político.
302
C.C.C. - Comando de Caça aos Comunistas - conhecido grupo de voluntários, em sua maioria estudantes
oriundos de colégios da classe média, como a Faculdade Mackenzie, que se reuniam para espancamentos e
destruições, como ocorreu com grupos de teatro e várias gráficas e editoras, que tiveram, além de corpos
surrados, perda de equipamentos e instalações devido aos vandalismos que tornaram o Estado de exceção
ainda mais violento e repressor.
183
sobreviver com tanta repressão e caretice? Com vaselina no corpo, para ser
escorregadio. Eles pensam que pegam, mas não pegam
303
.
Willer, relembrando o período nas suas „Meditações de emergência'
304
, conta que
o grupo de amigos que passaram os anos 60 perambulando pelo centro da capital, se dispersou
devido aos riscos físicos reais. Segundo ele, as perseguições, antes focadas sobre células
comunistas” e antagonistas armados, espalharam-se num movimento centrífugo paranóico por
toda a sociedade. “Havia dois motivos pelos quais você poderia ser preso, um por
envolvimentos contraculturais, outro por causa da política, até por ser amigo de alguém ou
figurar na caderneta de telefones de alguém. Por caretice, extremo moralismo [...]”. Na época
da repressão pesada, continua Willer, “a gente passou a frequentar a Feira de Poesia e Arte no
Teatro Municipal”, buscando na discrição, um transcurso pelo inferno da ditadura.
Os tiranos perderam o prurido de se mostrar e a resistência também começa a se
expandir para fora dos círculos e redutos da esquerda organizada, ganhando as famílias que
começam a demonstrar seu desagravo. Depois de doze anos de uma ditadura feroz contra
seus concidadãos, tem início outra compreensão de tanta violência, quando a população que
não percebia estar vivendo sobre um barril de pólvora, passa a dar apoio a movimentos civis,
como a luta por creches, que mobilizou centenas de pessoas na Praça da Sé em „76, onde um
grande aparato repressor foi acionado, com direito a cães e blindados, completamente fora de
propósito, ameaçando mães e criancinhas em plena luz do dia.
A partir de 1976, o mundo já está conhecendo o movimento Punk, que surge como
reação ao movimento Discoteque, mas no Brasil, o Punk fica restrito ao ABC paulista, por sua
proximidade com o proletariado mais organizado do país, espelhando o proletariado rebelde
de Londres que se opõe, ferozmente, à Discoteque. Mas aqui, devido ao isolamento que o país
sofre pela ditadura, o movimento contracultural acaba por conviver com esse movimento
opositor, fazendo com que o mercado recupere seu poder e, indo além, impondo, como nunca
antes, uma ansiedade pelo consumo, avassaladora, persistente até hoje. É o grande triunfo do
neoliberalismo que se inicia com essa juventude ligada a valores tradicionais do pré-Guerras,
com o mesmo espírito encantado do Futurismo italiano, deslumbrado pela „energia‟ do mundo
moderno, e os confortos propiciados por uma tecnologia tida como „progressista‟,
confundindo progresso com desenvolvimento. Para a pesquisadora Sonia Ramagem a ideia de
progresso está associada a acessos às tecnologias, enquanto o conceito de desenvolvimento
303
DUME e D'ELIA. Ebulições Pivianas. op.cit.
304
Acessível pelo endereço www.revista.agulha.nom.br/ag34willer.htm , op.cit.
184
tem por objetivo erradicar o desequilíbrio no acesso diferencial a novas tecnologias e
conhecimentos”
305
.
A Contracultura propunha a negação do projeto de produção e consumo como
forma de prover felicidade, ideia que está na base e no bojo do Capitalismo Liberal e suas
vertentes, e também se indispunha ao projeto urbano enquanto tal, isto é, com a substituição
de áreas verdes por vias carroçáveis. Por outro lado, o movimento Discoteque reafirmará os
valores do Capitalismo, intensificando o consumo, valorizando a aceleração dos ritmos
urbanos, criando e popularizando o mundo fashion com suas delimitações e regras físicas.
Esse movimento irá propor desenhos de corpos com a proliferação das academias, na busca
pelo „aperfeiçoamento‟ da aparência, de acordo com uma regra rígida, em desacordo,
inclusive, à dietética e linhas da ciência biológica, ampliando a indústria de reconstrução de
corpos, apoiadas nas ideias de status e da negação do corpo natural, com a proliferação de
clínicas de estética, de dietética, de próteses, de químicas, de plásticas, em grande rigor sobre
a aparência. O terreno que se havia percorrido, rompendo com a opressão do asseio e do
recato até os anos cinquenta, é vencido com o advento da tecnologia e da autodisciplina para a
ditadura da „magreza fashion que se imporá desde então, para regozijo de muitas indústrias
associadas às novas regras de beleza.
Apoiando a tecnologia e sua ideologia de aceleração da modernidade, o
movimento Disco, substituirá as drogas psicodélicas pelas de aceleração biológica como a
cocaína, uma droga ligada à ão e ousadia, pela ampliação química da autoestima, condição
que favorecerá a chamada Geração Yuppie, ligada ao mercado de capitais e seus
desdobramentos.
Indiferente ao desdobramento criminal a que a cocaína se ligará, Freud, em seus
estudos já havia confirmado o “grande aumento da disposição para o trabalho, como o
sintoma mais frequente do efeito da coca [...] como também com relação entre a cocaína e a
euforia, além de fazer desaparecer a fadiga e a fome”
306
. Mas sob a euforia da coca, escondia-
se o fim da utopia, a ressaca pós-hippie e a associação das drogas à acumulação de riquezas e
violência criminal. Para Piva, “careta é aquela pessoa que cheira cocaína e mata a família. É o
que acontece quando se dá droga pra turma do milkshake
307
.
305
RAMAGEM, Sonia Maria Bloomfield. Reflexões sobre o conceito de Desenvolvimento. In: Revista
Humanidades, n. 41, Brasília: Ed. Unb, 1996. p. 40-50. p.41.
306
CESAROTTO, Oscar. Um affair freudiano: os escritos de Freud sobre a cocaína. São Paulo: Iluminuras,
1989. (Coleção Leituras Psicanalíticas). p. 100/1.
307
MACHADO, Cassiano Elek e FRAIA, Emílio. Um estrangeiro na legião. Revista Trip de maio de 2007.
http://revistatrip.uol.com.br/155/desplugados/03.htm. Acessado em janeiro de 2008.
185
O novo movimento, que valorizará o bom gosto, a ambição, o controle do corpo e
o controle sobre projetos profissionais, será comentado por Luiz Carlos Maciel, o guru dos
„udigrudi‟ como ficou conhecido. Para ele, os yuppies foram impostos como modelo, mas
essa geração era
chamada de careta, e que é designado como „o jovem tolo‟ no hexagrama 4
do venerável I Ching [... Embora] valorizados como se fossem grande coisa,
é um fenômeno simplesmente ridículo, de domesticação dos instintos
naturais, em função dos interesses do sistema. Tais manobras mistificadoras
são praticamente diárias [...] que se define pelo projeto de organizar o mundo
ou seja, esta ilusão, esta alucinação, a que os hindus chamam Maya
308
.
Mais do que um simples movimento jovem, a estética Disco abrirá caminho para a
geração dos Yuppies, representando a retomada das rédeas sobre o mercado, e,
principalmente, sobre uma juventude que, se antes, na história nunca havia interferido nos
„negócios da polis‟, estava dando muito trabalho, desde os anos cinquenta, com a
„juventude transviada‟. Era preciso amansá-la, cooptá-la, e teria de ser em seu próprio
território, ou seja, com o jogo da „juventude rebelde‟ e a Youth Power. Desde o início do
movimento Punk em 1976 em Londres, o mercado cercou o movimento, transformando todo
seu aparato „raivoso‟ em mercadoria. Em três meses a indústria fonográfica „tomou conta‟ da
produção, e a indústria da moda absorveu sua aparência „irada‟, transformando-a em „estilo e
atitude‟, conceitos trabalhados pela publicidade para um „nicho de mercado‟ inofensivo,
mesmo que mal-educado e mal-encarado.
Apesar de reais aberturas pós-1968 e pós-Contracultura, muito das liberdades
supostamente adquiridas fazem parte de um jogo de esconde-esconde perigoso e bem
camuflado. Segundo o Grupo Krisis, em seu Manifesto Contra o Trabalho, na verdade o que
sobrou foram pseudo liberdades recém adquiridas pós-ditadura e pós-indústria em que nossas
escolhas reduziram-se à “liberdade ante as prateleiras do supermercado”
309
.
Essas pseudo-vitórias chegam a Piva ainda no final dos anos „70 e começo dos „80
com alertas bem tidos. E desse período lemos em um de seus Manifestos mais
contundentes:
308
MACIEL, Luiz Carlos. Geração em Transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996. p. 274/5.
309
GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad, 2003. (Coleção Baderna). p. 85.
186
O SÉCULO XXI ME DARÁ RAZÃO
310
(se tudo não explodir antes)
O século XXI me dará razão, por abandonar na linguagem & na
ação a civilização cristã oriental & ocidental com sua tecnologia de
extermínio & ferro-velho, seus computadores de controle, sua
moral, seus poetas babosos, seu câncer que-ninguém-descobre-a-causa,
seus foguetes nucleares caralhudos, sua explosão demográfica, seus
legumes envenenados, seu sindicato policial do crime, seus ministros
gângsteres, seus gângsteres ministros, seus partidos de esquerda
fascistas, suas mulheres navios-escola, suas fardas vitoriosas, seus
cassetetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida,
sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara
da cultura, seus pró-Cuba, anti-Cuba, seus capachos do pc, seus
bidês da direita, seus cérebros de água choca, suas mumunhas
sempiternas, suas xícaras de chá, seus manuais de estética, sua aldeia
global, seu rebanho-que-saca, suas gaiolas, seus jardinzinhos com
vidro fumê, seus sonhos paralíticos de televisão, suas cocotas, seus
rios cheios de latas de sardinha, suas preces, suas panquecas recheadas
com desgosto, suas últimas esperanças, SUS tripas, seu luar de agosto,
seus chatos, suas cidades embalsamadas, sua tristeza, seus cretinos
sorridentes, sua lepra, sua jaula, sua estricnina, seus mares de lama,
seus mananciais de desespero.
Roberto Piva
Fevereiro 1984
Hora Cósmica do Búfalo
Chocante vaticínio, este manifesto delata o fim do festim militar e seu butim
escabroso. No fim desse processo tão conturbado e paranóico da ditadura, toda a sociedade
havia sido contaminada, cada lado por seus motivos.
Henfil, o cartunista, nos brinda com um personagem vítima dos anos vividos
próximo a tantos horrores, convivendo com o arbítrio, tornando frágeis os sonhos por
repetidas e horrorosas repressões. O simpático “Ubaldo, o Paranóico” foi um triste espelho de
um período longamente medíocre. O Ubaldo propunha que se risse do acovardamento por que
passou a sociedade, fustigada pelo valor da Ordem por sobre todos os outros valores que a
310
De O século XXI me dará razão, em Mala na mão... op. cit., p.147.
187
modernidade havia lutado até então: honra, ética, beleza, garra, brio, ou o que quer que fosse,
sendo imposto o mais covarde dentre todos - a Ordem.
Por outro lado, uma das heranças mais consequentes surgidas no período
Contracultural envolvia esse „embrenhar-se‟ pela natureza que fez com que o mundo passasse
por uma revisão de sua leitura da natureza. Embora o „mundo natural‟ sempre tenha sido uma
preocupação de muitos grupos, nunca chegou a ir além de interesses localizados e específicos,
como os fazendeiros, ruralistas, bem como os naturalistas, botânicos, antropólogos e outros
olhares treinados para esses aspectos „exóticos‟ da vida, que a valorização da Cidade se
impôs enquanto símbolo da modernidade a reboque da Revolução Industrial.
Com o movimento hippie, a busca pela integração e intimidade com a natureza
dará início a uma outra valorização desta, enquanto fonte de prazer e vivência, mas também
irá alterar hábitos e olhares sobre o que seja o „mato‟, a mata, o verde, e qualidade de vida. A
natureza deixará de ser vista como o que ainda não recebeu o „toque da civilização‟, associada
ao selvagem degradado e monstruoso, ou com aquele olhar condescendente e romântico que
busca por uma paisagem bucólica e „saudável‟, mas começará a ser vista como parte
constitutiva de uma ocupação cultural, e também fortemente marcada pela compreensão de
uma natureza animal disseminada. Geógrafos, ecologistas e outros estudiosos do meio
ambiente passam a ter força de palavra experta e criam-se propostas por uma nova
planificação espacial” de forma abrangente, sem a separação hierarquizada entre o que se
entende por cidade e o que se entende por natureza
311
. A mudança no entendimento da
natureza também sofrerá alteração devido a influência das religiões do Oriente como o
Jainismo mas, principalmente, pelos muitos xamanismos, entre eles o dos povos indígenas
brasileiros, para quem a natureza é compreendida como fonte de prazer, sobrevivência e
dependência recíproca, sendo incorporada como parte das preocupações do cidadão médio.
Nos anos „70 e „80, com o avanço de tropas e estradas pela Amazônia, indigenistas
seguem na frente para amenizar o choque inevitável com inúmeras fratrias silvícolas que, em
muitos casos, serão dizimadas, por confrontos e/ou por doenças. A contrapartida será a
ocupação pela imprensa dessas empreitadas, com tantas informações que acabarão
mobilizando a opinião pública em favor da „causa indígena‟.
O Tropicalismo, entre a questão indígena que, de fato, grassava nesse período da
ditadura, e sua herança modernista que tinha olhado esses grupos sociais, pela primeira vez,
com real interesse e curiosidade (além de umas pitadas de humor como era próprio do
311
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: EDUSP, 2004. (Colão Milton Santos, n.5). p.
78.
188
movimento), também traesse apreço e intimidade para com raízes locais. A grande mídia,
expondo as ões invasivas do exército brasileiro, ajudada pelos jornais alternativos como o
Opinião, o Ex, o Versus, além do grande-pequeno Pasquim delatando constantemente,
fizeram com que um inédito movimento popular se insuflasse pelos ermos e longínquos
territórios dos índios. Em 1979, os famosos plásticos do „Ame-o ou Deixe-o‟ colados nos
vidros dos carros, ganharam a concorrência de centenas de outros plásticos que também
falavam em direito à ocupação da terra, mas desta vez, o clamor veio dos dissidentes,
exigindo: „Pela Demarcação das Terras Indígenas‟.
Ultrapassando a ingenuidade ou romantismo inicial sobre esse olhar enamorado
que passou a receber a natureza, um projeto político é proposto, quando integra o cardápio de
projetos pessoais, para uma geração que põe em cheque organizações religiosas (igrejas
institucionalizadas) e suas hierarquias sobre o meio ambiente, questionando o
desenvolvimento perpetrado pelo processo tecnológico e civilizatório aaquele momento,
chegando à formulação do Partido Verde. O olhar „verde‟ sobre o planeta também será fruto
dessa crítica aos paradigmas religiosos fundamentalistas, que pregam a superioridade da raça
humana sobre todas as outras formas de vida no planeta, recebendo, inclusive, aval por escrito
(seus textos sagrados) de que todos esses bens e vidas estão à sua disposição para uso e
usufruto. Essa crítica também recairá sobre o liberalismo ascético de que fala Weber (só tem
méritos quem trabalha), e de muito acampamento com mochila, carona, sleeping bag e
dormidas ao relento. Desse novo contato com a natureza, como faria Thoreau em Walden, a
civilização capitalista, altamente urbanizada, passará a rever o meio natural como parte do
projeto civilizatório, e não apenas como matéria-prima à disposição. A nova crítica sobre o
espaço, urbanizado em primeiro lugar, e em outras formas em que ele se apresenta, nega a
ideia da grande metrópole como a mais alta e sofisticada forma de agrupamento humano,
reconhecendo riqueza e fragilidade em outros ambientes. É a consciência ecológica que se
constrói.
Uma lenta diáspora em nome da recém inventada „qualidade de vida‟, conceito
que, além da clássica ideia de conforto e bens de consumo, valoriza o meio ambiente
enquanto fator de saúde e status social, início a deslocamentos para fora das metrópoles,
em direção às médias cidades do país e é iniciada a partir dos anos noventa. Mas até lá, o
equívoco arrogante sobre o uso da terra, da natureza e de todo o meio ambiente demandará
muitas formas de crítica e confronto.
189
MANIFESTO UTÓPICO-ECOLÓGICO
EM DEFESA DA POESIA & DO DELÍRIO
312
INVOCAÇÃO
Ao Grande deus Dagon de olhos de fogo;
ao deus da vegetação Dionísio;
ao deus Puer, que hipnotiza o Universo com seu ânus de diamante;
ao deus Escorpião atravessando a cabeça do Anjo;
ao deus Lúper, que desafiou as galáxias roedoras;
a Baal, deus da pedra negra;
a Xangô, deus-caralho fecundador da Tempestade.
Este manifesto explicita seu alvo logo no título e, circulando pela terra, desde sua
superfície aseus interstícios mágicos, propõe aos muitos deuses, vivos e esquecidos (os que
o recebem ritos, nem possuem fiéis, como é o caso de Puer e Baal), que ocupem o lugar
de honra na vida humana. E serão deuses, todos, que se misturam com o mundo subterrâneo,
brotando de seus intestinos, atravessando o Universo, em toda a glória de suas brincadeiras,
seu mimetismo e alegria das genitálias em franca permissividade. E tem tal poder de
invocação, que quase se ouve exultando-o pela recriação daquilo que insiste em se manter
„morrendo‟ eternamente. O título „Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do
delírio‟ resume o projeto utópico que move o poeta por uma trajetória sacralizada em divinos
prazeres: de corpo, de interrelações, de espaço, de criação, de expressão, de liberdade e contra
a igualdade, o que não quer dizer indiferença. Em seu enfrentamento com a esquerda, o ponto
de choque fica por conta desse sonho tirânico e equivocado pela igualdade, quando, na luta
por igualdade de oportunidades, impõe igualdade de condições de vida o que, em seu
entender é, além de monstruoso, ineficaz. Assim, enquanto a direita luta por liberdade e
amplia as diferenças, isolando-as para poder dominar, a esquerda massacra os diferentes para,
do mesmo modo, poder dominar sobre a igualdade massificada que, contraditoriamente,
também é chave de poder para a direita no domínio das riquezas simbólicas.
312
De O século XXI me dará razão, em Mala na mão... op.cit., p. 142.
190
3.4. ANARCO-MONARQUIA: Carnavalizando a Aura
-Não é ou é e.
-Sacou?
-Saquê!
Chacal
Uma das ideias mais controvertidas e carnavalizadas de Roberto Piva, sempre um
polemista, diz respeito a um oxímoro que ele defende sem nunca desdobrar suas partes e
particularidades.
Sou um anarco-monarquista, e sou pela anarquia, pela avacalhação, pelo
deboche. Sem isto não futuro - Temos que nos firmar no prazer imediato,
no álcool, nas drogas e ficar sempre do lado dos vencidos. Nada dessa de
ficar do lado dos vencedores. No dia que eu vencer alguma coisa vou falar:
onde foi que eu errei?313.
Na tentativa de compreender suas partes, forçoso é repensar suas origens e valores
simbólicos na formação cultural do Ocidente. Assim, pensar historicamente, é tentar resgatar
o frescor e resquícios dos escombros e ruínas de que fala Benjamin, para a sobrevivência em
momento hodierno.
Historicamente, a nobreza primaria, em sua formação pessoal, pelo acúmulo de
conhecimentos disponíveis, no intuito de garantir distância de plebeus, mantidos na
ignorância. A simples presença de um nobre, emudeceria opositores, frente ao impacto do
luxo de sua indumentária, de um complexo código de gestos e comportamentos
performáticos, mas também pela propriedade de sua palavra e conhecimento. Favorecidos
pela relação estamental
314
do medievo, o analfabetismo poupava a nobreza do esforço do
aprendizado, mas à medida em que a burguesia pressiona por ascensão social, a sofisticação e
refinamento de modos e de conhecimentos os manterá longe das ambições plebeias por
aproximação e confraternização.
Para ser aceita nas rodas da nobreza, ela se obrigada a um refinamento em sua
formação intelectual, além, é claro, de seu condicionamento comportamental. A tentativa de
se manter em distinção pública, faz com que um processo cultural se desenvolva no intuito de
313
DIOS. Assombração Urbana... op.cit.
314
Estamentos entendidos como estruturas sociais pprias do período medieval. Eram tão rígidas quanto as
castas no Oriente, uma vez que não haveria qualquer possibilidade de mobilidade social vertical, isto é,
camponeses seriam camponeses, ainda que passassem a frequentar a cama do rei, fornecendo seus herdeiros
ou, mesmo apenas bastardos (dependendo se o nobre precisasse de herdeiros ou não). E um nobre manter-se-
ia nobre, ainda que caísse na mendicância. Por sua justificativa transcendente (o desejo e proteção divinos), os
Estamentos não o confundidos com as Classes Sociais que os sucederão.
191
não perder o prestígio e privilégios que suas presenças deveriam impor, principalmente, pelo
constrangimento e distância vertical
315
. A preparação de um nobre passará, além das
habilidades licas, também pelo conhecimento chamado „humanista‟ que atravessa todas as
artes clássicas. O auge desse processo será o século das etiquetas (o XVII), quando a ideia
estética já estará associada a uma compreensão altamente racionalista de mundo, coadjuvante
na manutenção de poder geral e frente à burguesia que já negocia isonomias intersociais
316
.
Essa disputa por igualdade, porém, sofrerá seu verdadeiro abalo com a
Revolução Francesa, que entrega o poder do Capitalismo pré-industrial à burguesia. A nova
classe social irá trabalhar no seu processo de aristocratização, pela formação cultural e
artística, no intuito de um reconhecimento, tanto das elites nobiliárquicas, quanto do
proletariado em formação, que necessita manter intimidado e afastado
317
. Esse processo de
elitização da classe burguesa, ainda que permeado por um utilitarismo, será muito importante,
pois trata-se de uma barganha para a inclusão que deseja o poder e padrão da nobreza, para
a condução da „coisa pública‟.
O uso da educação artístico-cultural continuará a ser utilizado, desta vez, pelo resto da
sociedade. E esse „refinamento de espírito‟ impulsionará o mercado de artes do romantismo
em diante, quando então, além da nobreza, a alta burguesia estará preparada para se envolver
com a arte estética e financeiramente. Com a abertura de mercados, a pequena-burguesia
desenvolverá sua participação com a pesquisa, análise e crítica das artes. Gramsci localizará,
então, nesse segmento „pequeno-burguês‟, a fonte da nova intelligentzia
318
. Mas tanto o fazer
artístico, seus estudos de estética e pesquisas de linguagens, como produtos de criação,
seguirão o espírito clássico, ou seja, continuarão a linha mimética do Renascimento, até a
influência das „culturas exóticas‟ devido à expansão do capital
319
.
A absorção de referências e sua mistura não serão feitas por sentimentos elevados, ou
por formas superiores de contato, mas lembrando Benjamin em seu estudo sobre a história,
serão feitas por usurpação bárbara, às custas muitas vezes da extinção dessas culturas pela via
mais violenta, e por isso ele acusa: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse
também um monumento da barbárie”
320
. E a conjuração das artes pela absorção dessas outras
tantas riquezas culturais provocará o surgimento das chamadas Vanguardas, que se tornarão
315
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Volume 2. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993. p. 250.
316
HAUSER, Arnold. História social da Literatura e da Arte. Tomos 1 e 2. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 468.
317
GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 310.
318
GRAMSCI, idem, p. 344.
319
HAUSER. História social... op.cit., p. 1118.
320
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras escolhidas; vol. 1).
192
mais contundentes e radicais (no sentido marxiano de buscar a „raiz‟ do problema), à medida
que se tornam mais descrentes do projeto civilizatório no período das duas Grandes Guerras.
Entende-se a popularização de produtos culturais veiculados pela Indústria Cultural
de Massa (ICM), como uma real democratização, que já vinha se implantando desde o século
XIX, com a melhora na eficiência da rede de distribuição de mercadorias, porém, a
necessidade de ampliação de metas de produtividade passa a impor angustiante e enganadora
necessidade pela novidade, base para todos os segmentos produtivos, e fonte da acumulação
de riquezas. Face ao ganho social pela reprodutibilidade técnica em todas as artes, somou-se a
sombra da novidade paranóica da publicidade que, pegando carona na modernidade, persegue,
assola e decide sobre valores da criação artística. Seu envolvimento, na função suprema e
única de vender torna-a uma definidora de metas, prazos, valores e produtos, sob seu padrão
de eficiência comprometido com o lucro. É quando uma resistência começa a surgir entre a
classe artística, pressionada a cumprir prazos e a seguir o gosto de compradores que estarão
presentes, supostamente, à vernissage. A ideia libertária que contaminou as vanguardas,
partiu de um projeto associado ao anarquismo
321
.
Constituído por uma dissidência das fileiras socialistas, o anarquismo monta uma
organização, não hierárquica, de confronto à Máquina de Estado. Embora a forma de se
atingir o objetivo final ficar a cargo de iniciativas individuais como a „Ação Direta‟, ou de
grupos segmentares que acompanham uma ideia líder, ela se constitui por uma reunião
inabalável, em torno da ideia central de direcionar todos os esforços na direção de destruir a
„Máquina do Estado‟, rumo à autogestão, seu objetivo maior.
Mas o que se confirma, em todas estas „vanguardas‟ políticas, tidas por utópicas ou
científicas, é que nenhuma propõe o fim do Mundo do Trabalho, de onde o anarquismo se
autoconcebeu e se desenvolveu.O equívoco segue os projetos socialistas, propondo que se
abra mão da subjetividade em prol da „felicidade coletiva‟. Por isso o anarquismo, embora
pregue a autogestão, supõe lutar por formas libertárias de comunidades, e estas serão
possíveis, se todos desejarem a mesma coisa e volta-se à ilha-prisão de Utopia. Daí a grande
diferença entre anarquismo e anarquia.
Piva não se engana e frisa a diferença. Diz ele: A monarquia, por ser a forma de
governo mais verticalizada e mais normativa, permite que as bases fiquem mais abandonadas
321
HAUSER. História social... op.cit., p. 1117. Essa ideia também será corroborada por Dietmar Elger em seu
estudo sobre o Dadaísmo, por Fiona Bradley sobre o Surrealismo, bem como em maior medida, pelos textos
recolhidos por Plínio Coelho em sua obra Surrealismo e Anarquismo, em que agrupa diversos ensaios e que
podemos nos apoiar para a afirmação acima.
193
para viverem em anarquia” (risos!)
322
. Aliás, ele confessa ser, essa teoria-piada de Salvador
Dali, endossada por ele. Salvador Dali justifica sua escolha:Let us not forget that two
founders of anarchism were prince Kropotkin and the princely Bakunin. I’m, and have always
been, against the bougeoisie
323
.
Um conceito desta ordem, carnavalizado, propõe o roxo da mistura do vermelho
plebeu com o azul do nobre, mesmo que enfrentando muxoxo de ambos os lados. Mas o bom
dessa transgressão é não se aquietar na visão que a esquerda tinha de si mesma, entre a
coragem anarquista e a nobreza monárquica (e até monástica muitas vezes). Mas foi contra
essa esquerda envaidecida e autoritária, que Piva se insurgiu, ignorando a aura em que ela
vivia, por estar, como se via, „salvando o país das garras dos monstros fardados‟.
Piva não irá se encantar, tampouco, com a „superioridade‟ nobre da arte
aristocrática, num mundo edulcoradamente monárquico, pois, lúcido, conhece suas
armadilhas, e joga com ambos os conceitos, tentando tirar o sumo dos dois lados. E como
sugere Hakin Bey,
O monarquismo tem algo que queremos um encanto, um orgulho, uma
superabundância. Ficaremos com isto e jogaremos as aflições da autoridade
e da tortura na lata de lixo da história. O misticismo tem algo que
precisamos a auto-superação, consciência exaltada, reservatórios de
potência psíquica. Estes nós expropriaremos em nome de nossa insurreição
e deixaremos as aflições da moralidade e da religião apodrecer e se
decompor
324
.
Bey alega que “a arte morre quando tratada bem. Ela deve desfrutar da
selvageria de um homem das cavernas ou então ter sua boca preenchida de ouro por um
príncipe”
325
. Segundo o autor, anarquia e monarquia são uma única entidade, uma coisa única
que se merecem, pois uma ataca diretamente a outra, como opostos arquetípicos, como
gêmeos siameses, como um Jano beligerante. Hereges e onipotentes, ousam bastar-se a si
mesmas, num autogoverno delirante e arrogantemente ateu. Somar o misticismo à máquina de
governar, introduz um paradoxo barroco, como quando as bruxas floresceram à luz das tochas
vivas da Inquisição.
322
DIOS. op.cit.
323
“Não podemos nos esquecer que dois dos fundadores do anarquismo eram o príncipe Kropotkin, e o
principesco Bakunin. Eu sou, e sempre fui, contra a burguesia” (tradução nossa). DALI, Salvador. The
Monarchical Dali, in Dali by Dali. New York: Harry Abrams Publishers, 1970. p. 61-92.
324
BEY, Hakim. Anarco-Monarquismo e Anarco-Misticismo. Disponível em: http://catarse.110mb.com/>,
<hakimbey/anarco-monarquismo_e_anarco-misticismo.pdf. Acessado em outubro de 2008.
325
Idem.
194
Piva se mantém enfrentando uma relativização pseudodemocrática que sugere
mais permissividade do que real alinhamento, numa espécie de alheamento ou receio de
expor formas contrárias ao que já se tornou canônico. Bey completa:
Não precisamos mais da bagagem de masoquismo revolucionário ou auto-
sacrifício idealista - ou da frigidez do Individualismo com seu desdém pela
sociabilidade, pelo viver junto ou das superstições vulgares do ateísmo do
século XIX, cientificismo e progressismo
326
.
O anarquismo está morto vida longa à anarquia!
XX
327
vocês estão cegos graças ao temor
olhares mortos sugando-me o sangue
não serei vossa sobremesa nesta curta
temporada no inferno
eu quero que seus rostos cantem
eu quero que seus corações explodam em
línguas de fogo
meu silêncio é um galope de búfalos
meu amor cometa nômade de
riso indomável
façam seus orifícios cantarem o hino
à estrela da man
torres & cabanas onde foi flechado o
arco-íris
eu abandonei o passado a esperança
a memória o vazio da década de 70
sou um navio lançado ao
alto-mar das futuras
combinações
Poema de forma concisa, balanço preciso, o poeta aponta com clareza suas
palavras contra o momento de hiato repressivo, e propõe novo jogo de realidade, fazendo uso
326
Idem, ibdem.
327
De 20 poemas om brócoli, em Mala na mão... op.cit.., p.115.
195
de, como sempre, múltiplos aliados, de Rimbaud, cruzando jogos de curto fôlego como os
galopes, na pressa de lhe atravessar. Batido em ritmo forte, seus versos se encadeiam com aos
solavancos, marcados como um hino a ser entoado.
Direto, seu projeto se delineia e seus combates se esclarecem. Rimbaud é
testemunha nesta “curta temporada no inferno”. Ele propõe a própria deriva, o nomadismo do
espírito, a barbárie das estepes, dos desertos e sertões por cavalgar. Também propõe a quebra
das fronteiras do corpo, a embriaguez do mergulho, a alegria das manhãs, e declara estar
abandonando as ilusões que embalaram sonhos utópicos de muitas feições, como as
comunidades rurais em autogestão, células orientadas por uma massa confusa de deuses de
todas as procedências, de Jesus a Buda, passando por muitas divindades celtas, germânicas,
hindus e até o Tao raro em seu ateísmo. Sonhos de convivências e desejos coletivos, quase
tão românticos e amorosos, quanto irreais e autoritários em seus propósitos, desfigurando
rapidamente esses agrupamentos, sem que nada mais, que poucos resquícios, tenham sobrado
daquele período. E é sobre escombros culturais, sonhos poéticos, sonhos políticos
equivocados, que ele percebe querer ir mais além, ficando aberto ao “alto-mar das futuras
combinações”.
Para trás utopias tolas, mas também perigosas, porque autoritárias
inconscientemente, e é quando se diz que a ignorância não é inocente. No presente a
mediocridade da cultura de massa e a produção de um empecilho intencional criado pela
própria indústria de massa, auxiliada pela publicidade, que precisa quebrar paradigmas de alto
padrão, do contrário seus produtos descartáveis, rápidos e de fácil assimilação, não terão mais
penetrabilidade. Vender um produto complexo custa mais dinheiro, além de ser mais
arriscado, pois, quanto mais sofisticado intelectualmente, mais difícil de se garantir opiniões
uniformes, homogêneas, massificadas. Para frente, todas as combinações possíveis.
Eu não lido com o país inteiro, eu lido com grupos, com pessoas, com
indivíduos [...] Os mais solitários são os cultos. Pessoas medíocres eu evito,
porque burrice pega. Não atiro pérolas aos porcos, mas aos poucos. Como
diz Octávio Paz: a poesia é uma arte minoritária
328
.
Para Piva a arte o tem de negociar para ser aceita, ela é produto de um construto
imperativo, e só se dobra aos desígnios de seus próprios desafios. Nesse sentido arte é elitista,
pois não se faz democrática, ou boazinha, ou simpática, ou cil. Sua arrogância aparente é a
328
DUME e D'ELIA. Ebulições Pivianas. op.cit.
196
convicção de existir na exigência de suas dúvidas e desejos, e -la por elitista é engodo
premeditado, como tentar-se-á demonstrar abaixo. „Construir uma ideia‟, que seria uma
maneira (incompleta) de definir arte, implica mergulhar em um questionamento, em que se
pensa e discute questões da filosofia, social ou não. Suas fontes, além da filosofia ética e
estética, incorporam riquezas e vivências e arquétipos das artes populares e claro, também, da
cultura de massa ou pop.
As manifestações da cultura de massa, consciente ou involuntariamente, acabam
por usufruir das soluções e pesquisas produzidas por técnicas diligentemente aperfeiçoadas
nos „laboratórios da arte‟, indiferentes às pressões do mercado e seus gerentes. Essas soluções
serão expropriadas e absorvidas pelos produtos de cultura industrializados, sem que lhes
crédito ou que lhes identifiquem as origens e, portanto funciona como imperialistas
expropriações bárbaras de que falava Benjamin, mas já agora, intramuros, embora não menos
violenta, já que prega a morte de uma em detrimento da outra. A ideia difundida de que „arte-
erudita é elitista‟ o pleiteia a democracia das formas de criação, nem promove com justiça
sua definição, mas provoca seu afastamento um fosso.
A suposta destruição da Aura aprovada por Baudelaire e aplaudida por Benjamin,
não chegou a ser enterrada. A Indústria Cultural de Massa fez desse conceito (que
originalmente associava valor à uma aristocracia da criação) um selo de mercadoria projetada
por regras de marketing. E seria cego quem não percebesse os enormes halos auráticos criados
e mantidos sobre „artistas‟ contemporâneos que, não fosse pelo grande aparato publicitário,
jamais sobreviveriam ao primeiro disco, ou filme, ou novela, ou outros produtos de grande
investimento industrial.
A justificativa da chamada popularização da arte e seus acessos apenas escamoteia
sua ação e interesse. O argumento, no entanto, é tão bom e convincente que, as poucas vozes
que ousaram se erguer contra ela foram reduzidas à pecha de “elitistas”. Adorno alega que a
luta contra a cultura de massa pode ser levada adiante se demonstrada a conexão entre a
cultura massificada e a persistência da injustiça social. Mas este argumento é relativo e não se
sustenta, porque pode ser interpretado por acessos ao consumo, que é uma das teses mais
aceitas, defendidas e divulgadas pela „democracia capitalista‟ como um todo
329
. Adorno lutou
pela riqueza da chamada arte erudita (que ele insistia em chamar de „séria‟, como se Saint
Saens, Miró, Molière, Cervantes, Rabelais, e tantos outros artistas e obras não tivessem se
329
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das
massas. In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filoficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 113-
156.
197
servido do humor, dando margem a mais equívocos), porque não acreditou na autoproclamada
democracia da Indústria Cultural de Massa. Sua alegação foi que o produto da ICM se pauta
pela imposição da novidade, mas de modo a não perturbar hábitos e expectativas.
Se a ortodoxia de Adorno desagradou a quem efetivamente pode, lendo na grande
área fragmentada da realidade concreta, obter motes e fortunas para suas produções, também é
certo que ele se bateu por uma efetiva possibilidade democrática a acessos da linguagem
artística que a educação formal e institucional nunca se interessou por disseminar,
aprofundando um fosso esquizofrênico entre Conhecimento e Criação, Ciência e Estética,
Prazer e Conhecimento.
Na dimensão estética delineiam-se as potencialidades liberadoras da
imaginação produtora e criadora, os poderes de Eros contra a civilização
repressiva, porque a arte transcende as determinações espaço-temporais,
vence a morte. A arte é testemunha de outro princípio de realidade que não o
da submissão à produtividade; ao desempenho do mundo competitivo do
trabalho e da renúncia ao prazer [...] a arte é o antídoto contra a barbárie
330
.
Adorno, mesmo sem ser romântico, alinha-se (neste aspecto) à defesa de Schiller
sobre o real refinamento do espírito, não pela via da educação formal básica (apenas), de
formação republicana, mas pelos desafios que a estética propõe. A questão que tem gerado
oposição aos argumentos adornianos diz respeito à desautorização de todo produto da ICM,
quando se reconhece, apesar de todas as controvérsias, dialogar com a realidade, reafirmando
ou reinventando, mas, com frequência, espelhando a vida concreta, seu cotidiano, ou por
oposição espelhada, em fantasias alucinadas. Muitas destas produções parecem comprovar
que, mesmo longe dos requintes formais, históricos e filosóficos, também se pode promover
riqueza criadora e proposições coladas às vivências contemporâneas.
JORGE DE LIMA + WILLIAM BLAKE + TOM JOBIM. DANTE OBSERVA
331
Papê Satan, papê Satan aleppe / Stradivus cordis meus / formavulva
falastros / ripus Nicomedis / fla-flu Kricotomba / cantus Servilius /
Baudelaire-Maxixe / fontana efó luzes pardoin / farofa extravivax Vox
330
MATOS, Olgária C.F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.
(Coleção logos). p. 71.
331
De Quizumba, em Mala na mão... op.cit., p.132.
198
voluptas / moqueca / cachimbando cullus puer / Monte Branco
belladona / Montagu / Pasolini-panqueca / formas tuas in natura / pour
toi / Plebiscito Bakunin sin nombre ni sustância / tus pecados / dans
le salon de danse / Mon grosse Lewis Carroll / suchindo Le bambine /
na calçada / na porta do hospício / eu você nós dois aqui neste bagaço
à beira-mar / Curiango / Tiger / milhafres / sai de baixo.
Grande orgia sensorial, multilinguismo, prova concreta da carnavalização sobre
cânones, na comprovação da intimidade, apropriação, incorporação e paixão. Quizumba. Do
título à última palavra, um jorro em alegria, difícil em tradução, já que despeja sucessivas
referências de múltiplas filiações, conspurcando, sacralizando, lado a lado, exaltando pares
opositores, misturando línguas, linguajares e falares. Do latim mais castiço ao italiano safado,
o poema compõe um grande painel orgiástico de corpos, de línguas, cronologias e, acima de
tudo, loci sociais. Um carrossel de delícias, todas disponíveis, todas permissíveis, todas
vividas - fotografias - instantâneos em miniatura, de fantasmas aos sagrados amores com
Pasolini, Baudelaire e tantos outros, sem suas auras, na calçada, na porta do hospício, às
gargalhadas.
O que Piva deixa entrever em suas críticas, piadas e versos, é quase o inverso da
crítica adorniana - pois propõe a miscelânea dos altos e baixos - dos ricos e pobres - da
estética com a sacanagem - da filosofia com a diversão - dos conhecimentos, vivências e
experiências humanas. Mas também percebe e delata a manipulação ideológico-financeira
quanto ao uso da aura associada a uma publicidade que venderá, o por equívoco, mas por
esperteza, um produto descartável sob a ideia de arte. Não se admite a morte da arte, apenas
que ela deva ser agora, rasa, barata, redundante e ideologicamente previsível. Não se trata de
desautorizar o produto do ICM, mas de desvendar o que a própria indústria deseja manter
velado.
O poder ideológico tem como principal instrumento a palavra, ou melhor, a
expressão de idéias através da palavra. Hoje, a palavra não nos chega mais
através de contatos “quentes” (o sermão, o comício, a relação pessoal), mas
através de contatos “frios”: a mídia, com suas centenas de jornais, de
opúsculos, de livros de conferências e debates mais ou menos espetaculares
e sempre impessoais, de inumeráveis programas de rádio e TV. Continua-se
buscando influenciar comportamentos, mas agora não por meio do
discurso. O mundo das comunicações de massa é bem mais complexo, e não
se contenta com palavras: exige sempre mais sons e imagens. Não se
199
contenta também com indivíduos-receptadores ingênuos demais. Os
caminhos da reificação se complicaram
332
.
Quando Piva reafirma a manutenção da Arte como ação de elite, não se refere à
classe social, embora esta esteja implícita em sua significação enquanto simbologia. Ele se
refere ao interesse, enfoque e pesquisa, que se afirma necessário como chave de acesso, a um
universo multifacetado e não previsível das pesquisas estéticas. Adrenalina e vertigem.
I
333
última locomotiva, gregos de Homero
sonhando dentro do chapéu de palha.
últimas vozes antes dos lábios &
dos cabelos, sonoterapia voraz.
você adora as folhas que caem
no lago escuro
este é o banquete do poeta
sempre
querendo
penetrar
no caroço
da verdade.
nariz do garoto negro apontando para
a praça apinhada de tucanos sambistas.
você tranca o planeta.
Quando a viagem para o fundo implica em desvendar hierarquias empobrecedoras,
paga-se caro por desejos que se tornam ilegítimos aos que lhe podem imputar juízo de
valor
334
, ou paga caro a história por imputar ao mundo seu empobrecimento. E ele aponta:
332
NOGUEIRA. Os intelectuais, a potica e a vida. op.cit., p. 361.
333
De 20 poemas ..., em Mala na mão... op.cit., p. 96.
334
O conceito de vida indigna de ser vivida, estudada e desenvolvida por Agamben, anota o reconhecimento da
eutanásia, do suicídio, da exclusão e do homicídio, por um grupo de notáveis que possam decidir quem
merece viver e quem merece ser excluído. E como comenta, tais exclusões, às vezes acompanhadas de
violência, são tornadas possíveis, não por monstros abjetos, mas por crentes que julgam servir a uma causa
superior, como foram Himmler e Hitler. E este é um dos perigos da certeza, o perigo da exclusão. O risco não
é a morte, mas o empobrecimento do todo. A maior perda não é para quem vai, mas para quem fica. O
desenvolvimento dessa ideia foi feito em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua.
200
“folhas que caem / no lado escuro / este é o banquete do poeta / sempre/ querendo/ penetrar/
no caroço/ da verdade” que flui no poema como um aviso, uma ameaça e uma súplica. Esse é
o caminho do poeta, essa é a força da poesia:
A importância da experiência da poesia é total, porque a geração atual é
muito protegida, cheia de psicólogos e pedagogos, e não se pode quebrar a
cara nunca. As pessoas ficam cada dia mais burrificadas, mais sem iniciativa
[...] estamos vivendo hoje a industrialização do medo
335
.
Na superfície a proteção, os protegidos, os que não ousam ou nem se permitem. A
adrenalina ficará por conta da velocidade de jogos e esportes onde o corpo, por alguns
segundos, se abandona no vazio, preso a equipamentos de segurança. Tudo sob controle, tudo
previsível, para o tempo certo do grito que o corpo viu. A anestesia do espírito ficou
garantida.
“Você tranca o planeta” (!)
Penetrar descascando, folha por folha, pele por pele, e se deixar cair no lago
profundo, onde o poeta reconhece parceiros de viagem à paixão, sem distinções, sem guetos,
citando o mundo de quem se apropria da História, nada menos:
ONE’S SELF I SING
336
ONE‟S-SELF I sing a simple, separate Person;
Yet utter the word Democratic, the word En-masse.
Of Physiology from top to toe I sing;
Not physiognomy alone, nor brain alone, is worthy for the muse I say
the Form complete is wortier far;
The Female equally with the male I sing.
Of Life immense in passion, pulse, and power,
Cheerful for freest action form‟d, under the laws divine,
335
MACHADO e FRAIA. Um estrangeiro na legião.op.cit.
336
“O Próprio Ser eu Canto: /O próprio ser eu canto:/canto a pessoa em si, em separado / - embora use a palavra
Democracia / e a expressão Massa.// Eu canto o Corpo/ da cabeça aos pés:/ nem o cérebro/ nem a
fisionomia/ tem valor para a Musa/ - digo que a Forma completa/ é muito mais valiosa,/ e tanto a Fêmea
quanto o Macho/ eu canto.// A vida plena de paixão,/ força e pulsão/ preparada para as ações mais livres/ com
suas leis divinas/ - o Homem Moderno/ eu canto”. WHITMAN, Walt. Folhas das Folhas de Relva. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1983. (Coleção Universidade de bolso, n. 31248). Tradução de Geir Campos. p. 15.
201
The Modern Man I sing
Marx, em análise conjuntural, havia apregoado o fim da
produção artística, ou pelo menos de sua relevância para a ordem social vigente, uma vez que
“a burguesia simplesmente não tem tempo para ela”
337
. Mas a atração pela vertigem
permanece, por isso formas violentas de se jogar o corpo, desde que ele fique no mesmo
lugar, como acontece com a música „tecno‟, em que a palavra é abolida, restando apenas a
batida seca, de um ritual vazio, sem função outra que esgotar o físico, retornando a seus
mesmos afazeres, docilmente.
Whitman fala do espaço da paixão na vida do homem moderno. Fala da vertigem
da experiência moderna, possibilidades que, livres das superstições, fortalecidos por uma
dietética eficiente, permitiria ao ser, corpo inteiro, dentro e fora, psíquico e físico, divino e
pleno, viver o mais em tudo. E Álvaro de Campos faz eco: “Sentir tudo de todas as maneiras,/
viver tudo de todos os lados,/ Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo
tempo,/ Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos/ Num momento difuso,
profuso, completo e longínquo”
338
.
Marx diz que o burguês não tem tempo para a arte porque, como o narrador de
Benjamin, a arte precisa de um tempo para produzir uma compreensão tão densa e funda que,
quando ocorre, transforma o conhecimento em experiência, marcando sua vida. Mas não
significa que, pelo fato de ao burguês não ser mais permitido participar dessas experiências
enriquecedoras, o busque por estes impactos que a ICM tentará suprir, com a condição de
que tudo fique como está e que, verdadeiramente, apenas a vivência seja real o choque, a
adrenalina
339
.
A necessidade por arte permanece, e o desejo por contato com expressões
musicais, plásticas, ou outras formas, facilitaram a ação da ICM no sentido de filtrar o que
lhes mais lucro, valorizando as formas descartáveis compensadas por mais adrenalina, i.e.,
com hipervalorização da velocidade, das cores, de tudo o que possa causar impacto sem, de
fato, abrir para diálogos expressivos. Daí uma hipermanipulação da Aura que, sendo elitista,
como foi dito, deveria, caso a verdade fosse a democratização das produções artísticas, ser,
337
EAGLETON, Terry. (Org.). A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 265.
338
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. op.cit., p. 222.
339
BENJAMIN, W. Sobre alguns tema de Baudelaire. op.cit. p. 62.
202
de fato, extinta, como supôs Baudelaire com a aprovação de Benjamin
340
. Mas essa aura não
foi extinta, e sim, transferida.
A aura consiste nessa espécie de sobrevivência de um mundo desaparecido
onde as obras originais tinham alma e possuíam sentido [...] hoje o
desenvolvimento da arte profana das massas fez passar a obra do mistério do
culto à sua exposição social, e apagou a aura deixando apenas lugar à
reificação do objeto
341
.
A aura é usada hoje, pelas mãos eficientes da publicidade, para hipervalorizar
criadores, quase sempre improvisados, transformados em stars‟, cujas produções recebem o
impacto quase „transcendente‟ dessa „máquina de inventar deuses‟, no revés de seus discursos
democráticos, tornando a inacessibilidade de seus produtos (artistas e criações) em um jogo
de enfileirar adoradores-consumidores. Se a aura criava um fosso entre o criador e seu
público, o jogo se mantém, com um acréscimo de inacessibilidade, adicionado a fortes doses
de histeria coletiva, o que torna a pecha de elitista sobre a arte erudita, profundamente
hipócrita, ainda que eficiente.
O que se afirma é que, qualquer arte demanda uma chave, um envolvimento, um
acesso às bases da formação da linguagem. Mas esse acesso não é mais difícil do que o
conhecimento e domínio das regras e sutilezas que esportes e nichos da ICM oferecem com
tanto empenho pelo preço de um espírito humano.
O futebol, por exemplo, símbolo maior de um envolvimento democrático nessa
Indústria de Invenção de Deuses Descartáveis necessita, ainda assim, de uma disponibilidade
intelectual para que possa haver fruição e prazer, e para isso é fornecido um grande circuito de
debates e mesas-redondas que ocorrem na mídia às dezenas. Nesse sentido, o futebol também
deve ser considerado elitista. que se desenvolver certo grau de conhecimento e
informação, que mobilize pessoas de todos os níveis de escolaridade e condição financeira.
Mas esse arcabouço teórico é oferecido pela grande Indústria do Futebol, que mobiliza
bilhões de cifras pelo mundo afora, o por ser de real importância ou de real valor de
entretenimento, que vários países jamais se envolveram verdadeiramente, como é o caso
340
No ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (conforme tradução da coleção Os
Pensadores) ou A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (na edição de suas Obras Escolhidas),
Benjamin julga, equivocadamente (ou ingenuamente?), que o fim da aura poderia representar, exatamente, o
que a publicidade encampou como justificativa para a substituição, difusão e disseminação da ICM,
destituindo pesquisas nas áreas de diversas linguagens, sempre associadas à estética, portanto, à filosofia,
tidas pela ICM como dispendiosas, não favorecendo à circulação rápida de produtos substituíveis.
341
MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior. op.cit. p. 319.
203
dos EUA. Se fosse pelo valor do jogo em si, seria contaminador, mas não ocorre a penetração
naquele mercado, devido ao impedimento dos jogos locais, com suas verbas fabulosas. O
confronto não é por valor que, obviamente, foi inventado, mas pelo controle de mercado.
Assim, um mercado se amplia na proporção de adoradores-torcedores.
E o exemplo do futebol é interessante, quando se pensa em pessoas que, mesmo
jamais tendo sido estimuladas a lerem livros ou acompanhar uma discussão lógica, são
levadas a lerem jornais especializados, publicações as mais diversas, assistirem às mesas-
redondas, municiando-se com argumentos, pontos de vista, táticas e estratégias que os
coloque em situação de atenção e respeito, numa mesa de bar, por exemplo, aprendendo a
debater e afiando um arsenal discursivo verdadeiramente impressionante.
A despeito de serem mantidas numa situação de indigência intelectual por toda
suas vidas, as pessoas que se deixam cegar pela paixão do futebol, se esforçam, devido aos
estímulos publicitários, a entenderem desde as regras básicas às mais sutis, atualizando-se nas
alterações das peças e condições de momento (conjuntura?), de maneira a participarem, com
relevância, dessas grandes discussões irrelevantes. Os apaixonados por futebol, apesar de bem
informados e com um vel argumentativo bem azeitado, nem por isso se tornam leitores de
outros assuntos que não sejam as pequenas tragédias e mazelas de algo pueril e descartável,
não fosse pelos milhões que movimentam pelo planeta afora. A questão é desfazer esse
discurso de que futebol é democrático e a chamada “cultura erudita” é elitista.
Se este arsenal intelectual sofisticado, construído sobre informações de várias
fontes, além do desenvolvimento do método dedutivo, bem como do desenvolvimento
retórico e conhecimentos técnico, tático e estratégico, fosse usado para assuntos de Estado,
certamente não existiriam os disparates sociais que assolam e minam este, e a maioria dos
Estados Nacionais, sob jugos liberais ou ditatoriais, tanto de esquerda como de direita. O
aparato intelectual desenvolvido, porém é cuidadosamente canalizado para longe dos
territórios perigosos do poder, que os mantém aprisionados em uma ignorância e alheamento
confortáveis para os dois lados do poder: permitindo que os ladrões de cofres-públicos ajam
livremente, enquanto seus eleitores se ocupam com os problemas de seus times do coração.
Este mesmo aparato intelectual, desenvolvido para usufruir o futebol, seria o
substrato perfeito para fruir questões estéticas que as obras de arte propõem. Uma das
colocações mais contundentes de Piva, indiretamente associada a esta ideia, é exposta no
204
vídeo de Valesca Dios em que diz: “A única forma de desfazer a lobotomização imposta à
população é pela palavra poética”
342
.
Lukács, em sua Estética, reconhece e aponta duas formas possíveis de se estudar,
penetrar e conhecer o mundo: pela ciência ou pela estética
343
. Embora filósofos, artistas,
políticos e, especialmente tiranos (explícitos ou vestindo Prada) saibam disto, as pessoas são
mantidas distanciadas das grandes questões que envolvem a Estética e as criações artístico-
culturais.
A chamada Cultura Erudita é constantemente denegrida no intuito de mantê-la
como enfadonha, desagradável, sem „adrenalina‟, inócua e ininteligível. Na verdade é um
truque da mesmice. Sabemos que o teatro de Shakespeare, popular em seu tempo, sofreu um
descolamento do cotidiano conveniente para os detentores do poder social, uma vez que, não
apenas Shakespeare, mas ele, magnificamente, soube como expor e debater o poder em si, o
desejo, o sexo, e tantas questões vitais, de maneira possante e questionadora, até porque, o
formato do teatro, com sua proximidade física, aumenta a fragilidade e a vulnerabilidade,
tornando a vivência impactante. Pode-se lembrar também da ópera como um espetáculo
verdadeiramente popular em sua origem, que fazia parte dos assobios e cantarolares de
padeiros a reis e padres, desde a Itália, principalmente, mas que, por um bom tempo,
percorreu muitos outros países, da Europa e das Américas.
O fato é que, para se usufruir da ópera, como também de Shakespeare, da poesia,
das artes plásticas e outras manifestações artísticas contemporânea, precisamos ser iniciados.
Apresentados a seus fundamentos, fundadores, grandes figuras (algum folclore para apimentar
certas passagens e situações?), despertando desejo e curiosidade por aproximação, pelo
rompimento do muro, do fosso, da aura maligna que a ICM mantém no sentido de mantê-la
como “difícil e enfadonha”. Walter Benjamin em „Experiência e Pobreza‟, escrito no ano de
1933, de maneira abrangente, que inclui a presente discussão, resumiu:
Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do
patrimônio humano; tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo
do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do „atual‟
344
.
342
DIOS, V. Assombração urbana. op.cit.
343
LUKÁCS, Georg. Estetica: La peculiaridad de lo estetico - cuestiones preliminares y de principio. Vol.1.
Tercera edición. Barcelona/Buenos Aires/México: Grijalbo, 1974. p. 12.
344
BENJAMIN. Magia e técnica ...op.cit. p. 117.
205
Conhecer os fundamentos de uma arte, de um fazer, bem como de questões
políticas, é como estudar as regras dos esportes, o desenvolvimento dos capítulos das novelas.
Exige atenção, constância, envolvimento. Mas nada disso é elitismo. Apenas é mantido como
tal, pela manutenção de uma outra aura, de um outro valor, que permanece nas mãos da
própria indústria, fazendo e destruindo ídolos e mitos, à medida que renovar produtos é
renovar consumo.
Apreender o mundo por muitas vias, sem se deixar capturar pelas regras de
mercado quando dividem (“dividir para melhor dominar”, como diria Maquiavel ao Príncipe)
em nichos, como se fossem „forças tribais‟ perdidas e sem rumos, que se digladiam por
migalhas de fama: pit-boys, hip-hop, darks, emos, surfistas, e todos contra os o agrupados,
os não tribalizados, indivíduos de outras faixas etárias, sejam velhos ou não.
Como frisou Marcuse, as forças de controle abandonaram o uso da força ou a
opressão moral como instrumento eficiente. Ele diz: O povo, eficientemente manipulado e
organizado é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua
liberdade”
345
. Pode-se dizer que novos desejos, por mais irreverentes ou picantes que sejam,
serão irrelevantes, porque, ou são controlados e aproveitados, ou mesmo deflagrados pelas
indústrias, disseminados pela publicidade e avalizados pelo relativismo acadêmico.
A construção de auras associadas às artes foi transferida para os gerentes da ICM,
e hoje ela brilha sobre pop-stars de todas as áreas, de jogadores de futebol a atores de cinema
e TV, passando pela música, sempre descartável, e claro, incluindo outras personalidades
responsáveis pelo aprisionamento das aparências, as (os) modelos de moda.
A transferência da aura possui um papel fundamental na manutenção da quina
global de produção da insegurança e da inveja, que articula todas as indústrias relativas a ela
(a aura), quer seja a indústria fonográfica, a cinematográfica, além de outras indústrias
associadas menos ao entretenimento, do que, na verdade, à construção e alteração de corpos,
como as indústrias têxteis, da moda, da maquiagem, dos esportes, da beleza em geral, como a
cirurgia plástica, a dos remédios que prometem vida eterna, juventude eterna, beleza eterna.
346
345
MARCUSE. Eros... op.cit, p. 14.
346
A ideia de uma profusão de forças que se impõem à subjetividade contemporânea destruindo referências
identitárias, vem sendo estudada por Suely Rolnik, e ela explica: “Para proteger-se da proliferação das forças,
e impedir que abalem a ilusão identitária, breca-se o processo, anestesiando-se a vibratilidade do corpo. Um
mercado variado de drogas sustenta e produz esta demanda de ilusão, promovendo uma espécie de
toxicomania generalizada, com produtos do narcotráfico que proporcionam miragens de onipotência ou com
uma velocidade compatível com as exigências do mercado; psiquiatria biológica que nos faz crer que essa
turbulência não passa de uma disfunção hormonal ou neurológica; coquetel de miraculosas vitaminas que
prometem uma saúde ilimitada; vacinas contra o estresse e a finitude [...] a droga oferecida pela TV e
multiplicada pelos canais a cabo que oferecem identidades prèt-à-porter, com figuras glamurizadas [...] a
droga oferecida pela literatura de autoajuda […] tecnologias diet/light. Múltiplas fórmulas para uma
206
VÊNUS 9
347
Conversa com Mautner & Jacobina no Ponto Chic / Maracatu que
Gil gravou com voz de crioulo de Quilombo / tradição Villa-Lobos /
dança do índio branco / formidável veneno de pantera / o cometa
toma Crush / Califórnia Sunshine de novo atrás da igreja / guerrilheiro de
emoções / Augusto dos Anjos / São Juan de la Cruz / figuras de alta
voltagem do espírito + Bloody Mary matinal / queria estar no Rio no
Espírito Santo queria comer empadinha na onda preferida de Iemanjá
/ Dante afinou o piano ocidental no buraco ameno do purgatório /
figuras suaves figuras mortas figuras suaves / Claudio Willer olhando
a Lua através do córtex de sua amante / ministro do interior? / vidros
em procissão no presépio da história / este espelho ampliou Napoleão /
lente polida por Espinosa / calpestato dagli Ebrei / no mínimo o bater
de asas do anjo da história ouvido pelo conde Von Krosigk / moquecas
de malefícios / na boca torta da tarde / lagartos perdem o fôlego /
as horas espiam.
Nos corpos que atravessam a cidade, o mais o embate contra seus muros e
fantasmas, pois não mais utopias. Uma porno-scape delirante propicia prazeres entre os
amigos, entre os ácidos, vários contatos entre os corpos que se projetam em busca de
autonomia, em busca de autogestão, controle sobre desejos de se perder, direito por
descontrole. Carícias públicas afrontam a pudicícia heteronímica que resiste pelos olhares
dedos-duros, pelos bedéis voluntários - cadáveres anacrônicos.
Quando Quizumba foi lançado em 1983, a ditadura estava prestes a capitular. Dois
anos depois, sem reconhecer a devastação cultural da empreitada militar, recolhem-se aos
quartéis dando por „encerrada a missão‟. Na área dos confrontos se vê escombro,
devastação, desbaratamento, desarticulação, paranoia, ignorância, pobreza e sentimento de
impotência. Foram vinte e um anos em que o paradigma maior era a brutalidade, a submissão,
a ignorância e a ordem-unida. O Anjo da História, melancólico e terrível em sua dor, é
soberbamente descrito pelo poeta-pensador:
purificação orgânica e a produção de um corpo minimalista, maximamente flexível [...] Essa ameaça
imaginária de descontrole das forças, que parecem prestes a precipitar-se em qualquer direção, promove um
caos psíquico, moral, social e, antes de tudo, orgânico [...] in: 'A multiplicação da subjetividade', no
caderno Mais!, in Folha de S.Paulo, de 19 de maio de 1996.
347
De Quizumba, em Mala na mão... op.cit., p. 125.
207
Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma
cadeia de eventos, ele uma catástrofe única, que sem cessar acumula
escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem
gostaria de poder parar, de acordar os mortos e recompor as ruínas. Mas uma
tempestade sopra do paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que
ele não consegue mais fec-las [...] Essa tempestade é o que chamamos
progresso
348
.
O Anjo da História que passou pela Alemanha e arrastou o conde general (Von
Krosigk), responsável por baixar armas sob capitulação total, pousou em territórios tropicais.
Devastação, indigência intelectual e artística, e um mundo de alegria pret-à-porter: “o
brasileiro é o povo mais alegre do planeta” - diz o novo slogan da Santur.
Mas Piva reafirma sua resistência - em „Vênus 9‟ um grande caldeirão de delícias
foi preparado a despeito do cansaço dos tempos. Os amigos se consolam e dividem suas
vivências, apesar do olhar agudo e farto sobre as cidades arruinadas. A vingança da
devastação passará dos mais refinados aos mais hilariantes, e dos prosaicos aos sublimes. Piva
não está jogando fora as riquezas da história, venha de onde vier, mas não faz isto por
diletantismo, ingenuidade ou desprendimento, pois sabe que está misturando preços e
pecados, misturando apreços e rejeições. Ele compra a briga de uma hierarquia
emburrecedora.
A Contracultura e o Tropicalismo escancararam portas que vinham sendo
forçadas desde o dadaísmo, misturaram caminhos que rendeu uma expansão de horizontes
político-culturais sem precedentes, mas que acabou tendo arestas lixadas, aliciadas,
cooptadas, anestesiadas. Tudo virou prazer aparente pois como se diz na publicidade que
legitima e até incentiva o assassinato (em última instância) para o autoprazer: “Eu mereço!”.
Baudrillard chama a essa conformidade dos desejos individuais aos produtos a venda de
“imperativo publicitário”
349
, quando a publicidade suaviza a coerção em subterfúgios
fraternos ou até mesmo, maternais.
Com a expulsão de tantos talentos - exílios, amordaçamentos, apavoramentos,
degredos culturais para dentro das igrejinhas mais próximas, ou de guetos, de qualquer colo
pago a preço de zimo, a cantiga de ninar reforça o apequenamento de poucos sonhos, de
parcas ousadias, de uma mediocridade que pede passagem sobre o silêncio do terror. Fama e
348
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica... op.cit., p. 226.
349
BAUDRILLARD, Jean. Significação da Publicidade. In: Teoria da Cultura de Massa. op.cit., p. 287-300. p.
292.
208
sucesso, agora, favorece aos medíocres, aos que produzem obras descartáveis, recheadas de
efeitos especiais e associações baratas a um erotismo de catálogo.
A conclusão é que, mesmo sem o saber, grande parte da base instrumental de que
se servem linguagens da ICM tem sido criada, experimentada e experienciada (com
exceções), em círculos com muito menos holofotes, pois, muitas das áreas de pesquisa
estética permanecem em territórios eruditos, como foi o caso do trabalho de Stockhausen dos
anos „50 para cá, responsável por grande parte das soluções acústicas de que se serve a música
eletrônica, com todos os seus subprodutos como a house, acid, trance e outras. Por outro lado,
essas fontes de pesquisa e reflexão passam a investir em entretenimento e na mídia, no intuito
de se catapultar junto à ICM. É o caso dos Museus-espetáculos, a que se refere Andreas
Huyssen, que lutam por um lugar sob os holofotes da mídia, promovendo grandes eventos
visando participar da cultura de massa, e sonhando com uma sobrevivência autossuficiente,
longe da benemerência a que foram reduzidos
350
.
Aos infinitos plágios sobre soluções sonoras e visuais, a produção de massa não
expande o Outro, seu fruidor, não o desdobra sobre a vivência que propõe, mas busca o
séquito, o exército, o fiel, o fã, seduzindo-o com o invólucro (publicidade), mais do que pela
obra em si, pois esta, a obra, a criação, deve ser descartável para que se disperse em novo
flash-produto dirigido a seu consumidor, o “fã-líquido”, como diria Bauman, que é o sonho da
ICM. Ela não espera o amante da arte, não deseja quem dialogue com as questões que aborda,
conhecidas desde a Teoria do Drama Burguês, ou Melodrama. A Indústria aceita a
superfície, o jogo da aparência.
O deslocamento da atenção da obra em si e sua produção, coloca ênfase no corpo
hiperexposto, que vai no mesmo princípio da hiperexposição da palavra, quando se abre à
lente do panóptico, induzindo à pornografia, que é nicho de mercado, malicioso e cheio de
culpas, do jeito que lhe é permitido se expor. Vende-se o interdito transformando-o em
aparente tabu a ser vencido, um tabu-mercadoria, desde que se garanta a manutenção da
insatisfação sexual, no sentido de Eros, quando busca reinventar desejos e ansiar por
inovações, “na permanência do estado de miséria sexual”
351
.
O „jogo‟ pretende que, vencendo-se os interditos, a natureza possa fluir em
festa
352
. Na publicidade a síntese dessas ideias torna-se clara quando se reproduz naquelas
350
HUYSSEN. Escapando da amnésia o museu como cultura de massa. In: Memórias do Modernismo. op.cit.
p. 222-255.
351
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. (Biblioteca de filosofia e
história das ciências, vol. n. 7) p. 232.
352
Idem, p. 238.
209
nada democráticas palavras de ordem das vanguardas modernas, i.e., propondo a morte do
passado. Com a diferença de que as vanguardas, tão criticadas por sua inflexibilidade face ao
outro, buscavam naquela ocasião quebrar uma inflexibilidade ainda maior, que era a moral
cristã posta a serviço do chamado “auge do Capitalismo industrial” do século XIX e seu
funcionalismo.
No caso das modas atuais, a inflexibilidade vem camuflada de “liberdades” para
todas as tribos e, embora a mera existência de tribos pudesse nos dar a equivocada ilusão de
diversidade cultural, o que ocorre é a armação de batalhas por espaço, incentivadas pela
manutenção de seus correspondentes “nichos de mercado” - construindo fundamentalistas do
mundo fashion, das torcidas, dos s-clubes, onde todo o esforço criativo será focado na
limitação das opções, rumo aos produtos e estilos de vida à venda.
Esse jogo que a ICM, através da publicidade, faz contra o que chamam de Cultura
Erudita ou Clássica, usa os jargões da Revolução Francesa, mas de forma distorcida.
„Liberdade é tudo aquilo que me deixa livre, incondicionalmente‟ e o resto do mundo tem de
me dar espaço, mas assim que houver essa liberdade e o reconhecimento blico de meu
direito de existir, lutarei pelo fim de todos os que não se alinharem aos meus propósitos.
Assim, a publicidade pede respeito e direito de liberdade sem censura, mas sua função é
acabar com a diversidade e, portanto, acabar com quem lhe deu os mesmos direitos.
Piva irá propor, por toda sua obra, a diferença como forma de enriquecimento, sem
que liberdade e igualdade possam se digladiar. Fora do jogo descartável de veleidades
angustiantes, não abandona as críticas ao universo hierarquizado e aristocratizado da ciência,
da política, da disseminação e produção de conhecimento, mas também à banalização e
apropriação da aura a uma nova aristocracia indigente, pobre, mas não menos arrogante,
imposta por outra tirania delirante: a do mercado de produtos culturais descartáveis.
Anarquia no arrojo e coragem de suportar a liberdade de não controlar o fazer ou o
viver e monarquia por manter o rompimento com qualquer identificação com a burguesia
em primeiro lugar. Também por estar mais associada à frugalidade conquistadora dos
exércitos ligados à honra, coragem e expansão que às excentricidades de um soberano
mimado, segundo a definição de Montesquieu, pois ao pensar na possibilidade de uma
monarquia sadia (diferente da que ele estava vivenciando na pré-Revolução Francesa) olhava
historicamente para a potente e inquebrantável monarquia romana.
353
.
353
In ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 487.
210
Ainda elucubrando sobre o conceito oximórico piviano da anarco-monarquia, é
interessante pensar numa diferente ideia de nobreza, desta vez incrustada no taoísmo. Bey
anota: “o taoísmo rejeitou toda a burocracia confuciana, mas guardou a imagem do
Imperador-Sábio, que se sentava em silêncio em seu trono, encarando uma direção propícia,
fazendo absolutamente nada”
354
. Tempo disponível, esmero, requinte, entrega, altruísmo, um
rol de adjetivos compartilhados pela ideia associada à monarquia, distante, anos-luz, da
„pressa e eficiência‟ burguesas. Anarco-monarquia pela arte dita erudita, ainda que ela não
possa, nunca mais, ser livremente compartilhada pois, bloqueada por um discurso que a
mantém como a arrogante da expressão social. Sem que o sonho da arte vir a ser prerrogativa
social se confirmasse, ao contrário do que Merquior
355
disse e sonhou pelo sinais que percebia
entre os anos ‟60 e os „70, o ethos não se fez ética, e a estética encolheu.
O período Contracultural, sem data certa de início ou fim, atravessou o país num
período conturbado e foi, naquele momento, apesar de tudo, libertador; se sobrepôs, de
alguma maneira, às armas de fogo, à violência da caserna, das instituições e tradições
disciplinares e das organizações culturais de controle. Seu rompimento projetou ousadias que
transcenderam corpos, projetos de Estado, religiões, regiões culturais do planeta, relações
entre os corpos e o meio. Em tentativas experimentais e sensoriais, foram trazidas à tona,
novas relações do corpo com a natureza, bem como nova compreensão da natureza em relação
ao corpo, constituindo uma novidade para o Ocidente, que alterou a maneira de se relacionar
também com a beleza, com o selvagem, com as hierarquias entre culturas, entre o chamado
mundo racional e o instintivo, entre os filhos de Deus e o resto da fauna, e mesmo em relação
às suas próprias genitálias. Um corpo em paz com os impulsos instintivos e com todo o resto
do mundo „natural‟ passou a ser, ao menos cogitado, enquanto ideal.
Mas foi capitulado. Capitular não significa perda total, recuo severo, mas
negociação. „Panos quentes‟, em muitos casos, reaproveitamento em outros, ganhos reais em
outros ainda. A Liberdade conquistada sob muitas controvérsias, muitos combates, perdas,
danos, foi aproveitada pela publicidade, pelo mercado. A questão da natureza entrou para a
pauta de discussões, primeiro, dos então ainda chamados „ecochatos‟, depois da indústria do
turismo. Hoje em dia existem os „conscientes ambientais‟, os ambientalistas e os vilões da
354
BEY. Anarco-monarquismo... op.cit.
355
Em 1972, quando José Guilherme Merquior escreveu Saudades do Carnaval, a percepção de que a quebra
dos paradigmas repressores estavam em vias de implantação era quase palpável e, por maior distanciamento
científico que seu trabalho exigisse de sua postura crítica, não deixou de expor essa confiança quando disse
que “o novo etos, ainda não é uma nova ética, mas já parece ser uma vontade de reeticização da existência”.
Na ocasião o autor até assinala a grande dificuldade dessa vitória, mas se vê confiante, pois julga que o
indivíduo moderno está “cansado de ser menos de si”. op. cit. p. 219/20.
211
natureza, ainda que a natureza mesma esteja, em muitos aspectos, comprometida
irreversivelmente.
De qualquer modo, novos corpos, novos espaços e novas espiritualidades passaram
a ser pauta de discussões aentão impensáveis. Percursos de um novo corpo que se debate
entre o humano e a tecnologia mas que converge seu estar em espaços mais lúcidos e o
tão idílicos, ou por outro lado, soturnos. Hoje uma forte crítica à maneira de ocupação do
espaço e esta é uma das boas heranças. A religiosidade também conseguiu borrar suas
fronteiras e, embora a subjetividade se debata entre nichos de mercado e colocações de
trabalho, pelo menos os projetos coletivos de organizações sociais, são vistos com
desconfiança tirando as religiões fundamentalistas e resquícios maoístas. Ainda assim,
pode-se pensar que a Utopia, agora, pode passar a ser uma singularidade por novas trilhas
que, no caso do poeta Piva, se fez xamânica.
212
Foto: Mário Rui Feliciani - 1996
213
Capítulo IV - 3ª Fase:
O GAVIÃO EM PLENO VÔO
tudo o que é sagrado é poético,
tudo o que é poético é sagrado.
Georges Bataille
Neste quarto capítulo será analisado o último volume de suas Obras Reunidas. O
terceiro volume reúne os dois livros mais recentes da chamada fase Xamânica, que reflete e
discute as impressões de um tempo em que empreendeu experiências místicas junto a pajés
que o auxiliaram em mergulhos extáticos, ou incursões solitárias por trilhas em serras e praias
distantes. Os livros deste volume são Ciclones, de 1997, e Estranhos Sinais de Saturno,
lançado conjuntamente ao volume que lhe deu o nome, em 2008. Também fará parte deste
volume, mais uma reunião de manifestos agrupados sob o título geral de Sindicato da
Natureza, além de vir acompanhado de um CD, que recebeu o nome de Nama coracibus
tutela Mercurii
356
, onde ouvimos o poeta lendo uma parte de seus poemas, dentre todos os
livros que participaram do evento editorial.
4.1. DEGRADANDO E SACRALIZANDO ESPAÇOS
Este império que nos parecia a soma
de todas as maravilhas,
é um esfacelo sem fim e sem forma, e
sua corrupção é gangrenosa demais
para ser remediada pelo nosso cetro.
Ítalo Calvino
356
O título deste CD cuja tradução literal seria Saudação aos corvos sob a proteção de Mercúrio”, refere-se ao
Mitraísmo, religião oriunda da região da Pérsia, atual Irã, que trata do mito do deus-herói Mitras, responsável
pela luta do bem contra o mal, dentro de um panteão politeísta mais vasto. Foi aceito tanto na Pérsia quanto
pelos Vedas, em que Mitras é tido como um dos servidores direto dos céus, representando a luz e o sol, como
Hélio, Apolo ou Zeus. O Corvo Corax participa enquanto um dos graus de iniciação ao deus-guerreiro,
representando o Mensageiro, como Mercúrio ou Hermes (e o Exu). Em uma das placas de argila descobertas
pela arqueologia, narra-se que o Corvo Corax “simboliza o ar, e em sua iniciação o neófito deve passar por
provas iniciáticas relativas a este elemento, chamadas Corvina ou Coracina Sacra, que qualificará o
pretendente a se tornar um Ieros Koras, ou Corvo divino (tradução nossa). Acessível no endereço
www.farvardyn.com/mithras7.php.
214
São Paulo, destroçada e sem rumo, transformou-se em trampolim para políticos
com ambições nacionais. Ter a administração dessa cidade em um currículo é carimbar um
passaporte internacional do político até sua aposentadoria, e mesmo além. Por ter se tornado
moeda de troca, as ações que incidem sobre ela serão sempre pontuais, reduzindo-se àquelas
que extraem dividendos aos eleitores e parceiros políticos. Fragmentada, caótica, violenta e
degradada, a cidade parece não ter mais solução, já que não nenhum projeto que possa dar
conta como um todo da mega aglomeração, onde a riqueza de muitas nações e inúmeras
identidades étnicas e culturais se perdem no mero esforço da sobrevivência cotidiana.
A questão do território onde se vive, depositário de nossas ações afetivas,
profissionais, criativas ou ético-políticas, tornou-se ruinosa. Territórios de conflitos de
interesses, pleno de símbolos de status no grande tabuleiro de intrincada geometria, as
cidades se debatem entre suas potências as do bem e as do mal. O fragmento, grande
patchwork-in-progress de Benjamin, tão promissor, tão enriquecido pelas possibilidades
latentes que se oferecem em seus traçados expõe, agora, estranhos paradeiros e destinos,
confusas imagens e impensáveis desejos, prisioneiro do jogo de poderes que fará da
metrópole um amontoado sólido de deveres opressivos, em constante deslocamento, em um
nomadismo de expulsão e fugas.
A metrópole da modernidade transforma seus habitantes em vencidos, em
prisioneiros, em exilados. O cidadão moderno se descobre como estranho,
isolado, derrotado. A cidade é cantada para ser denegrida: como
instrumento retórico que se dirige ao lamento
357
.
A potência da cidade moderna, seu fragmento, será no entanto, uma incompletude
que aborta seus rebentos, pois do contrário, será arrancada das mãos de seus algozes, sem que
ninguém possa sentir-se responsável ou parturiente. Ali, o novo sempre terá que render votos,
ou não virá a ser. Como ensina Milton Santos pensando o espaço: “os construtores de espaço
não se desembaraçam da ideologia dominante quando concebem uma casa, uma estrada, um
bairro, uma cidade”
358
. Imprime-se um símbolo de poder e dispersão necessário ao controle
espacial e, logicamente, ao movimento dos indivíduos. Os símbolos permanecem enquanto a
realidade se modifica, reafirmando relações de poder, ainda que anacrônicas. É o que ocorre
com o desconforto de nomes de parentes de políticos a logradouros públicos. Indivíduos que
357
CANEVACCI. A cidade polifônica... op.cit., p.100.
358
SANTOS. Pensando o Espaço do Homem. op.cit., p.36.
215
se perpetuam por associações espúrias ao poder, impondo-se ao contexto e ao histórico da
cidade, tornando-a cada vez mais estranha e distante do cidadão que a habita e financia.
Se nos anos sessenta, como diria Piva, a cidade dava a perceber seu caráter
mega, nos noventa essa noção finda numa catástrofe angustiante, pois o desperdício humano é
monstruoso. A cidade não acabou, nem se pode imaginar, pós-modernamente, no “fim da
história”. Ela segue se degradando e se revitalizando aos pedaços, conforme pressões e
interesses, rumo a um futuro, até onde se enxerga, bastante tristonho e frio, mas tudo pode ser
desmentido, pois o aprendizado político de atuação e intervenção está sempre se reiniciando.
São Paulo estourou os estoques de possibilidades visuais, a começar pela sujeira de
sua fiação elétrica como poluidor visual que, mais do que uma sinalização de hiper
iluminação, denota o pouco caso com o tratamento visual de suas fachadas e logradouros.
Estourou também, as condições mínimas de vida digna quando, multiplicando cronotopos
que, se lhe enriquecem a paisagem humana potencialmente, relega-os a uma massa
desprezada, condenada a circular por toda espécie de espaço desumanizado, degradado e
horroroso, principalmente no centro da cidade, onde o poeta segue residindo.
O antropólogo visual italiano anota em seu estudo essa “quase obsessão de morte que
invade tudo, por causa destas transposições, destas poluições, destas inversões”
359
. Ainda que,
de fato, os tipos humanos de múltiplas origens se configurem como uma riqueza da cidade,
ficam submetidos aos mesmos descasos, “transpirando um Eros violado, não conciliado,
quando não excessivo, disponível a todas as surpresas e a todos os jogos”
360
. Riqueza humana
transformada em vítima de disputas por „currais político-eleitorais‟ e pela competitividade
que marca a movimentação do alto capitalismo, já tornou a feiúra da cidade sua marca
opressora.
para Sérgio Cohn
eu caminho seguindo
361
o sol
sonhando saídas
definitivas da
cidade-sucata
isto é possível
num dia de
visceral beleza
quando o vento
359
CANEVACCI. op. cit., p. 255.
360
Idem, ibdem, p. 255.
361
De Ciclones, em Estranhos sinais de Saturno. Obras Reunidas Volume 3. São Paulo: Globo, 2008. p. 58.
216
feiticeiro
tocar o navio pirata
da alma
a quilômetros de alegria.
Ponto Chic, 95
Os anos contraculturais ensinaram vias de fuga e crítica, capazes de abafar a
sensação de culpa imposta por instituições públicas, as quais hierarquizavam, cada vez mais,
setores e áreas comunitárias, cercando territórios e impondo fluxos, dando início ao estado de
ruína social a que foram relegadas as cidades, em contraste a hiperproteção de territórios de
segmentos privilegiados. O saldo foi o descolamento afetivo de seus moradores em relação
aos territórios da memória, depreciados pelo poder público.
O preço da modernidade crescente e em constante avanço é a destruição não
apenas das instituições e ambientes “tradicionais” e “pré-modernos”, mas
também e aqui está a verdadeira tragédia de tudo o que há de mais vital e
belo no próprio mundo moderno
362
.
A visão da cidade se arruína, e não apenas a sensação das relações interpessoais, mas
também com seu espaço em frenético, desrespeitoso e permanente movimento de destruição e
construção. “A cidade moderna é o palco de transformações incessantes, que revelam sua
precariedade. Ruínas e obras se confundem. A morte já se apoderou dos edifícios que estamos
construindo. O antigo se aproxima do moderno pela manifestação da caducidade do
presente”
363
.
Piva não oferece nem aceita muita negociação com a cidade arruinada que o
rodeia. Os destroços se amontoam pelas hierarquizações acovardadas, além de sua geografia,
de sua cartografia, de sua memória. O poeta não negocia melhores ares, acessos, facilidades.
Não aceita entrar para clubes de gays, como os guetos disto ou daquilo, pois sabe como fazem
parte de um constructo sociológico, em acordo a um facilitador de escapes, de alívios, de
paliativos. Piva saqueia e segue o rumo dos piratas:
362
BERMAN. Tudo que é sólido... op. cit., p.280.
363
GAGNEBIN apud PEIXOTO, Nelson Brissac. Ruínas. In Paisagens Urbanas. 3.ed. São Paulo: SENAC,
2004. p. 266-299. p. 275.
217
piratas
364
plantados
na carne da aventura
desertaremos as cidades
ilhas de destroços
Ilha Comprida, 88
Para baixo, o litoral, águas turvas, brandas, o desconhecido pode levar a
conhecimentos que valham a pena os dias. Dias que sobraram de uma ditadura mediocrizante,
que deixou sulcos e que não abandonou, completamente, o circuito. Nunca houve um real
retorno à caserna, que seus atos permanecem, e seus atores-aliados, idem. Os mesmos
ministros, Câmara e Senado, a mesma burocracia e um moralismo invertido: pornografia é
indústria, e é incentivada, pois é exposição foucaultiana, com culpa e controle. Uma
pornografia “lightgrassa por programas domingueiros, pelas bandas de música a, catimbó,
funk etc, onde uma ingenuidade bandida cativa criancinhas, adolescentes, bandidos e
familiares, projetando fora do país, essa imagem de um edenismo safado, que incentiva redes
de prostituição e de turismo sexual. Prostituição e drogas constituem-se em indústrias
protegidas, subordinadas a controles subterrâneos e jamais desbaratados. A sociedade civil se
agita em ignorância e abandono. As quadrilhas tomam o poder, e à polícia, resta tentar
vencer o inatingível.
Caminhamos para uma sociedade policial. O monopólio da informação e das
mídia nacionais favorece a subordinação administrativa no seu papel de
controle social, de burocratização do Mundo, segundo Max Weber. A
imagem do Estado policial popularizado pelos esquerdismos é retomada com
mais variantes pelos ecologistas que sublinham o o seu caráter violento,
mas a sua vontade de normalização. Trata-se menos de uma repressão franca
e policial do que de uma opressão insidiosa caracterizada pelo domínio do
conjunto dos comportamentos
365
.
O militarismo venceu. Agamben comenta como o „estado de exceção‟ é muito
mais articulado e eficiente do que a Ordem Militar, porque essa é mais transparente em sua
364
De Ciclones, em Estranhos sinais... op.cit., p. 44.
365
PIVA apud MARTINS, Floriano. Roberto Piva no miolo do furação. In: Revista de cultura Agulha n. 53, de
setembro/outubro de 2006, Fortaleza e São Paulo. Entrevista originalmente feita em 1986 e recuperada pelo
Suplemento Literário de Minas Gerais, # 1038 - publicação da UNESP de Assis. Disponível em
www.revista.agulha.nom.br/ag53piva.htm, acessado em dezembro de 2007.
218
violência
366
. Com a ocorrência de constantes exceções pode-se justificar a permanência da
quebra de barreiras jurídicas sobre o controle civil. A observância da manutenção da
desordem, para efeito de produção de medo e insegurança, autoriza e produz uma demanda
pública pela interferência do Estado sem fiscalização, e sem que tenha de se haver com uma
oposição organizada, pois seu papel é simpático à sociedade civil.
A ilusão do restabelecimento do Estado democrático se restringe ao alerta dado
por Foucault quando diz que o controle dar-sepela palavra
367
. Deleuze também não confia:
“não há Estado democrático que não esteja totalmente comprometido na fabricação da miséria
humana”
368
. E como explica, o mercado é a única democracia real e generalizada. Tudo o
mais será a produção e institucionalização da insegurança e insatisfação permanentes.
Comprar é a lei canônica e o dinheiro seu deus vivo. O cristianismo dá sustentação
transcendental a esta ideia, porque faz parte da mesma ciranda financeira, tendo se aliado e
lucrado com a ascensão do Capitalismo, apesar de, no início, criticá-lo pela usura. Mas essa
oposição tornou-se aliança.
O homem moderno não tem mais o apoio do Bem tradicional, ou da ordem
estabelecida [...] ainda na infância vive-se na [...] quando cresce que
não nada [...] sem os limites de uma „verdade transcendente‟, na
maturidade a pessoa se depara com sua terrível liberdade
369
.
Como a religião se despojou da magia, da contemplão e de todos seus rituais
místicos, que eram característicos e herança da tradição oriental, a religião no Ocidente,
deixou-se tomar pelo racionalismo, assim explica Weber em Ciência como Vocação. Ele
aponta que a racionalização e a intelectualização “levou os homens a banirem da vida pública
os valores supremos e mais sublimes” e avisa a quem quiser recuperar essa re-ligação, esse
contato com a ascese e a stica verdadeiramente transcendentes, terá de pagar o preço sobre
a limitação da razão, ou como diz, pagar com “o sacrifício do intelecto”
370
. Isto pode querer
dizer uma limitação sobre o utilitarismo que organiza nosso caráter eficiente, que facilita a
todos o acesso à competência, e por consequência, à estabilidade funcional. Embora de alto
preço espiritual, o utilitarismo garante maior probabilidade de segurança em uma sociedade
que mantém o afastamento de seus cidadãos, discriminando-os frente aos jogos de interesse
366
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. (Coleção Estado de Sítio). p. 14.
367
FOUCAULT. Microfísica do poder. op. cit., p. 231.
368
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo: 34, 1992. (Coleção Trans). p. 213.
369
BATAILLE, Georges. A Literatura e o Mal. op. cit., p. 31.
370
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 51.
219
do poder central. Sem os laços afetivos e comunitários das sociedades tradicionais, fica mais
fácil as escolhas caírem sobre aqueles que lhes possam dar maiores dividendos, sejam morais
(privilégios) ou materiais (trocas)
371
.
Piva aponta as convenções que alimentam o discurso contemporâneo sobre a
impossibilidade de outra forma de organização social que o seja por Estados Nacionais.
Mas esta forma, impondo-se apenas depois do século XIII na Europa, manteve-se pela
conivência e associação comercial e judicial, aproximando duas formas opostas de ocupação
do planeta. Do lado do Capitalismo Mercantil, onde lucro, usura e circulação de mercadoria
são o grande deus fundamental, abençoado e protegido por um corpo de ideias que dizia,
originalmente: “É mais fácil um camelo entrar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no
reino dos céus”
372
, entre outras coisas que negam e condenam o desejo por riquezas materiais
e a dedicação ao trabalho ao invés de orar e servir. Mas a questão do trabalho foi, desde o
início, o elo que aproximou esses universos teóricos. Esta união impensável será um dos
grandes temas de Max Weber.
A religião institucionalizada, seja monoteísta ou não, organiza seu discurso para o
convencimento de seu seguidor, o fiel, sob uma argumentação racionalista, e Weber diz:
“teologia é uma racionalização intelectual de inspiração religiosa”
373
. Pela insegurança busca-
se provar não existir nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de
uma vida, podendo-se dominar tudo por meio da previsão. Essa racionalização não conseguirá
dominar o mundo e a autodeterminação, mas apenas despojar o mundo de toda e qualquer
magia, mesmo que nada ocorra conforme planejado e ordenado.
PRISIONEIROS,
374
DEGRADADOS,
SODOMITAS,
HERÉTICOS,
PIRATAS,
ESTE PAÍS
NASCEU DA
ANARQUIA.
TIVEMOS
371
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia Potica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1982. (Coleção Ciências Sociais). p. 43.
372
Bíblia Cristã.
373
WEBER. Idem., p. 49.
374
De Sindicato da Natureza, em Estranhos sinais... op. cit., p. 180.
220
TODAS AS
OPORTUNIDADES
PARA VIVER O
MATRIARCADO
DE PINDORAMA,
SUA POESIA &
SEU MITO.
ENTREGAMOS
NOSSA
LIBERDADE
NAS MÃOS
EUNUCAS DA
IGREJA CATÓLICA,
DOS ACADÊMICOS
& DOS
ESQUERDISTAS
DE PAU PEQUENO
Mairiporã, 90
Neste Manifesto um antitotem exibe um lamento. Embora não tenha a dureza da
poesia concreta, a imagem gráfica aludindo a um totem é clara. Com a referência tribalizada,
ancestral, o poema trata das escolhas equivocadas do racionalismo lógico, imposto pelo
Capitalismo Mercantil trazido pelas caravelas cristianizadas. Com esta chegada, a tradicional
autoconfiança monoteísta abafou e substituiu uma enorme variedade de opções societárias,
onde um dado era comum: a negação da formação de Estado, bem como a negação de um
único deus, espalhando-o por toda mata.
Em A Sociedade contra o Estado, Pierre Clastres identifica dentre todas as
organizações chamadas primitivas, ou indígenas, além das nômades e tantas outras tribais
contemporâneas, a ausência do Estado. Essa ausência é tida pela sociedade industrial como
uma fraqueza, ou uma insuficiência e incompetência que os condenou a um estágio
tecnológico extremamente precário, impondo esforços que a sociedade capitalista não
enfrenta. É sabido, no entanto, que muita das ausências tecnológicas são compensadas por
ocupação geográfica que complete tais deficiências, de tal modo a que o conforto, ou seja, a
sensação do corpo sentir-se protegido e sem carências, pode ser plenamente vivenciada. Além
221
disso, sabe-se que a corrida tecnológica atravessou muito tempo o ponto da busca pelo
conforto, e que seu rumo atual é apenas a novidade por novos produtos, alimentando a ciranda
da indústria e do mercado de capitais.
Na atualidade, as tecnologias que operam um excesso de conforto ao corpo estão
prestes a colocar em risco a sobrevivência sadia da espécie humana, uma vez que inúmeras
doenças são detectadas em consequência direta dessa situação, como a obesidade, a diabetes,
os acidentes cardiovasculares frequentes, problemas de articulação por falta de movimentação
do corpo. Controles remotos, celulares, escadas rolantes, elevadores, acionadores elétricos de
janelas, picadores elétricos de cebola, cortadores elétricos de grama, e assim por diante, são
entulhos tecnológicos que acionam indústrias surgidas dessas perturbações, como a poderosa
indústria farmacêutica, os psiquiatras, as academias, um exército de esteticistas prontos a
combater a obesidade e outros males decorrentes.
Clastres identificou com precisão que a ausência da estrutura de Estado não ocorre
por incompetência ou por indigência intelectual, mas por opção política. O Estado não é uma
abstração que se autoadministra. O Estado demanda instituições de controle, numa
hierarquização vertical da sociedade, ainda por cima, cara. O cidadão paga para ser gerido e
controlado, perdendo autonomia, liberdade e respeito em sua participação. A recusa pela
existência do Estado é uma recusa pela perda da liberdade e contra o trabalho compulsivo,
sistemático e necessário apenas para a acumulação de riqueza. De outra maneira, o Manifesto
Antropófago avisa: “Só não há determinismo onde há mistério”
375
.
As sociedades sem Estado não devem ser consideradas nem primitivas, por um
lado, nem ingênuas e inocentes, por outro, como julgava Rousseau. Formas o racionalistas
de compreender o mundo e de propor convívio intersocial podem levar os indivíduos a
questionar formas bem amarradas da lógica cientificista. Yo no creo en brujas, pero que las
hay, las hay. O ditado conhecido aponta para nossa presunção universalista da razão, o que
não quer dizer, como segue afirmando Antonio Candido, que estes povos o possam
distinguir essencialmente como nós, o lógico do mágico”
376
apenas que o mágico não lhes é
folclórico, fazendo parte de suas construções mentais. Ele lembra a ação do indivíduo que
lança uma canoa nas águas fazendo seus rituais por uma boa travessia, não ignorando o uso da
375
ANDRADE, Oswald de. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios.
Obras Completas VI. Rio de Janeiro: Civilização brasileira/MEC, 1972. (Col. Vera Cruz, n. 147-E). p. 16.
376
CANDIDO. Literatura e Sociedade. op. cit., p. 38.
222
tecnologia sobre a boa construção da canoa, mas apenas que sua lógica inclui o mágico no
tecido de sua existência
377
.
Piva, neste poema, carnavaliza as escolhas infelizes que os novos ocupantes da
terra brasilis fizeram, quando tomaram posse. Ao invés de um matriarcado idílico e totêmico,
o de Pindorama, relatado e defendido por Oswald de Andrade em seu Manifesto Pau-Brasil,
escolheu implantar o mesmo Mundo do Trabalho forçado, do qual eram oriundos. Um mundo
ríspido e austero do patriarcado cristão, religião que juntamente com as outras duas grandes
religiões fundamentalistas (judaica e muçulmana) foram criadas a partir de um deus
masculino, único responsável pela eficiência e pujança da criação total de tudo o que existe,
do caos à tecnologia. Essa opção acabou por excluir a chance de se substituir o direito de
propriedade do homem civilizado pelo direito de posse do homem gentílico. O matriarcado
desencravaria o tabu patriarcal da História transformando-o em totem de uma feliz e nova era.
Por isto o Manifesto Antropófago conclamaria: “Contra a realidade social, vestida e opressora,
cadastrada por Freud por uma realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e
sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”
378
.
Também desperdiçou a oportunidade de superar a usura e o negócio pelo ócio, e
terminar com os poderes centralizadores e autoritários no advento de uma vida comunitária
aberta aos prazeres vitais.
FLORESTA SACRÍLEGA
379
para Jean-Pierre Duprey
I.
neste dia
o sol é transparente
céu erótico aberto
com olhos de borra
de vinho
o brilho solar canta
o deserto atravessa o
céu
pétalas selvagens
do horizonte sem fim
377
Idem, ibdem, p. 38
378
ANDRADE, Oswald. Idem, p. 19.
379
De Ciclones, em Estranhos sinais... op. cit., p. 56-7.
223
II.
pelos direitos não-
humanos do planeta
a Ilha Comprida
nada
nas pradarias do Céu
gavião pandemônio
talhado na parte
mais dura do vento
III.
máscara erótica louca
do verão
o chefe dos roedores
quizumbeia
sua fome de sombra
é grande
& o Invisível
aparece
Octavio Paz afirma: “pela palavra podemos ter acesso ao reino perdido e
recuperar os antigos poderes”
380
. Poderes de abrasamento do corpo em território do gozo,
território de gaviões, espaços selvagens de outra espiritualidade, em que corpo e alma tentam
se queimar em paixão, sem que se tornem cinzas, mas se acendam e ascendam no incêndio
dos amantes em homenagens ao céu alcoviteiro.
Os poemas de Piva redimensionam antigos espaços que se enriquecem em
cruzamentos nem sequer imaginados, como a imagem do deserto atravessando o céu, em
pleno refrigério, onde gaviões transitam. Também desloca em euforia sensorial, a ilha que
percorre, a chamada Comprida, vendo-a também cruzando um azul que já não é água, mas ar,
é céu, é morada de um vento que transcende o lugar, provocando gozos, quizumbando o que
deveria estar parado, quieto, estático, transfigurando o Invisível, em uma epifania vegetal.
Uma viagem mística na qual o poeta, tomado em júbilo, percorre o reino das matas em pura
magia.
380
PAZ. Octavio. Signos em Rotação. op. cit., p. 222.
224
Piva tende à confirmação da falência da razão, como acusada por Horkheimer (em
Eclipse da razão), em que assinala a condenação do homem à morte, e com ele toda a
civilização, devido a essa escolha irresponsável e vaidosa por uma “subjetivação que exalta o
sujeito”
381
. O equívoco foi de instaurar a democracia a partir do Sujeito, atingindo uma
consciência de si esvaziada de significado ou de vínculo, desconectando o valor da
comunidade e do Outro, em uma autovalorização. Num subjetivismo vazio, a barbárie interior
se instala. Esta é a tese de Jean-François Mattéi, quando exausto de observar a expansão do
mal, alia-se a Horkheimer e a Hannah Arendt, para pensar a ausência de Alteridade na
construção da subjetividade contemporânea. Para Mattéi, o desaparecimento da figura do
indivíduo na arte moderna é prova dessa ascensão da subjetividade, no sentido em que a
define como „cega‟. Ele explica que, quando “a arte se identifica inteiramente com a
subjetividade do artista no esquecimento comum do ser humano e do mundo, surge a barbárie
de uma mundialização cega, barbárie de uma subjetivação cega, do sujeito entregue a si
mesmo, e que já não constrói um mundo, mas um i-mundo”
382
.
Em Floresta Sacrílega‟, o poeta demonstra como vem se deixando tomar por
outra realidade que não é ascética, não é religiosa, não é laica, não é racional, rodeando-se de
forças vitais. Ele busca pelo erótico em mergulhos ancestrais de vinho báquico, em que
celebra formas várias da natureza - dos desertos às pradarias e até ao cosmos, novos espaços,
onde encontra seu animal de poder, o gavião, transfigurando-se em perturbações caóticas,
eivadas por fomes e liberalidades, em que o inesperado pode fazer visita.
Piva mergulha no xamanismo onde os poderes ficam difusos em cooperação
anímica com tudo que tenha vida. Deuses e deusas respiram nos domínios mágicos para além
do assustadiço racionalismo. Deixa-se rodear pela barbárie da civilização, mas sua obra nesta
fase parece, às vezes, ocupar o cargo do Arauto de uma barbárie redentora, conforme
Benjamin. “Os artistas, como afirma Joseph Campbell, são os xamãs da sociedade
contemporânea”, citou em entrevista a Weintraub
383
. Do fundo de um centro de cidade tão
difuso, conturbado e tão presente, o poeta se faz „trecheiro‟
384
, construindo caminhos
381
HORKHEIMER apud MATTEI, Jean-François. A barbárie interior op. cit., p.13.
382
Idem, p. 31.
383
Em entrevista para a Weblivros. op. cit.
384
Em auxílio ao estudo do comportamento desviante, Marques et alli, utilizam um conceito de deriva a
indivíduos que, embora tidos por marginais, ou mesmo mades, trafegam na verdade, por um „trecho‟ onde
constroem alianças permitindo que „deslizem‟ da sociedade “normal”, sedentária, para outra mais porosa, em
que relações não previsíveis se estabelecem de forma intermitente. In: MARQUES, Ana Claudia;
BROGNOLI, Felipe F; VILLELA, Jorge Luiz M. Andarilhos e Cangaceiros: A arte de produzir território em
movimento. Itajaí: Univali, 1999. p. 65-71. Embora o termo se aplique a grupos nômades, um paralelo à
busca que o poeta empreendeu em sua formação xamânica justifica o uso.
225
inesperados, pelas serras ao redor da metrópole, trilhando possibilidades de novos contatos
existenciais com tribos indígenas e outras culturas. Piva pesquisa saídas e caminhos. Ele
estuda e apura suas trilhas:Canalizei toda a experiência xamânica para a poesia”
385
.
ILUSÕES DA MEMÓRIA
386
Xamã provocador de pesadelos
meus espíritos começam a falar
todos planam urrando
na onda negra do coração
como uma gota de esperma
na palma impúbere
olhos baixos de criança
submissa
sob as flechas de uma deusa &
gaviões brancos
O poeta-xamã se desloca, sempre que pode, para as florestas tropicais da Jureia,
área de APP (Proteção Permanente), onde empreende longas caminhadas, participando em
grupo ou executando, solitariamente, rituais xamânicos com o uso do tambor, para em transe,
ser transportado a novos conhecimentos, mergulhando na sabedoria de seu animal de poder,
que no seu caso, é o gavião. O desconhecido o faz menino, cru, frágil, bicho. Com apoio
teórico de Mircea Eliade, desvenda os estranhos caminhos pelos quais Piva ousou guinar
depois de tantas batalhas em campos urbanos.
Benjamin localiza nos que partem do zero para escreverem suas obras um traço
de barbárie. É o que ele chama de a nova barbárie. O filósofo a aprova quando constata que,
tanto conhecimento e enorme patrimônio cultural perderam o vínculo com nossa existência e,
portanto, o sentido para nossa experiência. A consequência é a degradação. Os que
reconhecem o horror de seu tempo e lugar põem-se a produzir do zero, do pobre, como um
recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época”
387
.
Em sua nova fase, a obra de Piva converge para uma ão mágica, guiada pelos
mandamentos do xamanismo, do ocultismo e do candomblé. Sendo místico e rebelde, o poeta
385
In Weblivros. op. cit.
386
De Estranhos sinais..., em Idem, op.cit., p. 130.
387
BENJAMIN. Experiência e Pobreza. In Magia e técnica, arte e política... op . cit., p. 116.
226
propõe um norte para essa experiência radical de linguagem, recorrendo às imagens oníricas,
transfigurando a realidade e proporcionando uma aproximação com outros mundos, fundindo
sonho, poesia e vida, e que, mesmo assim, não se torna obscura e nem irracional
388
.
UFOS PROUSTIANOS NA ESTAÇÃO CENTRAL DOS SONHOS
389
Quando termina a cidade
Os seres elásticos aparecem
Minha alma resgatada
Feito um bólido
uiva no espaço
um lago sonoro
um punhal enterrado na
noite
relâmpagos psicodélicos
forçam os anjos
a dança do ventre
estrelas loucas
deusas orquídeas
& o jazz rolando das
Montanhas
como uma asa ferida.
Mairiporã, 2006.
A cidade foi superada, a opressão foi trocada por um rumo tortuoso, que não se
dobra, pagando o preço nômade dos sonhos. Ter coragem de dar as costas é ler na entrelinha
do território a falência desumana de sua permanência. Mattéi localiza, exatamente no “mundo
democrático, (a) matriz das barbáries do nazismo e comunismo” através da produção do
“homem-massa”.
Se toda a história humana é, com efeito, a história da opressão, é preciso
renúncia a essa herança, romper com o passado e, à imagem da cultura
388
MACIEL, Pedro. O poeta do pesadelo e do delírio. In: Revista Digestivo Cultural. Belo Horizonte, abril de
2003. Disponível no endereço http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=55, acessado em
dezembro de 2007.
389
De Estranhos sinais..., em Estranhos sinais. op. cit., p. 157.
227
destruída pela vanguarda, utilizar os impulsos destruidores do homem no
campo da sociedade
390
.
Para ter acesso ao maior, melhor e profundo, que se profanizar o sagrado e
sacralizar o profano. O poeta afirma não entender o sagrado como devoção, que o sagrado
não é um foco, um ponto, um deus, um acima, fora, maior - o sagrado está na natureza,
disperso em tudo. Ele busca o espaço que se expande e se desdobra pelas mãos de xamânicos
voos do gavião, e assim, um espaço desconhecido se faz trilha de conhecimento e vivências.
Piva conta como no candomblé, nenhum deus ou orixá é melhor do que outro”
391, ao contrário
das religiões monoteístas que por seu distanciamento, tanto das pessoas quanto da natureza e
toda intervenção cultural, estão condenadas a sua extinção. Ele afirma ainda que, por estarem
vivendo seu fim, debatem-se em estertores violentos, espalhando guerras em meio a um
mundo cético, cínico e hipócrita, em meio a deuses bélicos, misóginos e vingativos. Abaladas
em seus fundamentos tirânicos, tanto o judaísmo, quanto o cristianismo, passando pelo
islamismo e o comunismo, entre a arrogância dos muitos credos imperialistas, engalfinham-se
por dominações de territórios, de subsolos, por dominações das mulheres, dos mares, dos
animais, das economias, do planeta todo, enfim, das tiranias todas, sacralizadas ou não. Esse
foco se insere na palavra, toma forma, aparece, passa a existir e para ele, “o poeta está sempre
preocupado com as realidades não humanas do planeta”
392
.
O salto empreendido por Piva, do urbano ao místico e ao mágico, vinha sendo
ensaiado, indicado, ensejado, desde seus primeiros trabalhos, quando se eclipsa em meio aos
elementos, e a força de sua visão emerge:
na direção dos quatro ventos
393
o xamã
rodopia
na energia da luz
390
MATTÉI. A barbárie interior... op.cit., p. 283-4.
391
MACHADO e FRAIA. Um estrangeiro na legião. op.cit.
392
Idem, ibdem.
393
De Ciclones, em Estranhos sinais... op. cit., p. 24.
228
quatro ventos
394
quatro montanhas
no olhar do garoto
que dança
no céu chapado
o riso
395
flor tesuda
com seus dentes
pedindo vento
São três pequenos poemas que abrem o livro Ciclones
396
. Poemas curtos, quase
Haikais, fazendo parte do trabalho ao qual Piva confessou ter gostado mais. Ele tira as
maiúsculas do começo - não as apresenta com espetacularização, nem a palavra, nem o
sentido e sua simplicidade na promiscuidade com a natureza, sua absorção, é o sumir-se,
consumir-se, consumar-se em alegria - entrega.
Vento, um dos elementos mais eróticos da natureza, se incide e se impõe pelos
poemas insistentemente, denunciando a vertigem, demonstrando o êxtase, entre lúcido e
alucinado, arrastado para as matas, mares, montanhas e serras. Ventos poderosos, de todas as
latitudes do planeta, ventos de penetração, de iniciação, de ensinamento.
Não sacralização em seu olhar, nem negação de prazeres, vendo-se em um de
seus poemas mais contundentes e belos, a força dessas muitas vozes que compõe
galhardamente o séquito de seus desejos, vertiginosamente, como ele mesmo já anuncia.
394
De Ciclores, idem., p. 25.
395
Idem, ibdem, p. 26.
396
Significativamente, ciclone significa um percurso de violência, poder e beleza na natureza. O dicionário
define ciclone como “tempestade violenta produzida por grandes massas de ar animadas de grande velocidade
de rotação e que se deslocam a velocidades de translação crescentes até a tempestade se desfazer”. Existe um
ápice e uma bonança arrastando, assustando e encantando quem nela está e se submete.
229
POEMA VERTIGEM
397
Eu sou a viagem de ácido
nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
na montanha
Eu sou tecno pagão
Eu sou Reich, Ferenczi e Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
das garotas convulsivas
Eu sou o disco-voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
Casa Grande & Senzala
Eu sou a orgia com o
garoto loiro e sua namorada
de vagina colorida
(ele vestia a calcinha dela
& dançava feito Shiva
No meu corpo)
Eu sou o nômade do Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
(& o Xamã coberto
de peles e andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira no Absoluto.
Ilha Comprida, 91
397
De Ciclones, idem., p. 74-5.
230
Viagens tortuosas por caminhos do delírio e da transcendência. O poeta mergulha
no outro, outro tempo, em que Cronos governa - tempos à frente, tempos arcaicos - trilhas
místicas pela Ilha Comprida, quando alucinado, transita e conhece estranhos corpos. Desejos
tantos, saltam e vertem em delírios de ácido e de prazeres de corpo e de prazeres de espaço -
sem negar riquezas que somou e adquiriu.
Nesse festim vertiginoso, convida a força estética do precioso poema „Invenção de
Orfeu‟ de Jorge de Lima, e convida deuses vegetais, telúricos. Em seu poema faz transportar
espíritos pelos tambores que unem reinos, vegetal e animal, na heresia necessária de se comer
o mundo, macho e fêmea alto e baixo - puro e danado: pomba-gira dançando na
encruzilhada do Absoluto.
Caminhos-pontes entre os tempos, entre os corpos, entre mundos, em que o poeta
trafega no impulso de manter em júbilo o que resgata de sumo, das plantas, dos espíritos, dos
contatos, em orgia garantida pela magia do gavião, nas trilhas percorridas pelos deuses plenos
impregnados de vida.
Em seus manifestos, Piva havia informado que eram textos entendidos como
diferentes, com ideias diferentes, formas, mensagens, direção, pulsão, intenção, tudo
diferente. Mas o que se nota como uma grande miscelânea, em geral, são poemas em formatos
estranhos ao livro a que estão acoplados, apontando para um texto mais prosaico, mais
dissertativo. Em muitos deles, apesar de formatos e linguagens diversas, seus alvos ficam
mais certeiros. Além de sua vertente delirante, visionária e humorista, o poeta aborda temas
claros, que não deixa dúvida, sem diplomacias. Neste último livro de sua Obra Reunida, um
dos manifestos, sem título e sem data, Piva lapida suas preferências e, por mais utópico que
possa parecer, não se furta a esclarecer:
398
Dionysos, na Grécia Antiga, era o Deus da vegetação, da orgia, do
vinho, da anarquia. Pra começar a falar em Ecologia, precisamos iniciar a
gira invocando Dionysos, que traz a renovação da primavera & da
vegetação.
É importante lembrar Dionysos neste momento em que a Igreja
Católica nos impõe São Francisco de Assis como patrono da Ecologia.
Muitos ecologistas caíram neste conto do vigário, a Igreja Católica
esteve do lado dos senhores feudais na Idade Média, da burguesia depois da
Revolução Francesa & agora, com sua Teologia da Libertação (ou da
398
De Sindicato da Natureza, em Estranhos sinais... op.cit., p. 178-9.
231
Empulhação?), está do lado dos partidos chamados de “esquerda” & dos
trabalhadores.
A Igreja Católica só pode viver à sombra do Poder, qualquer
Poder. No Brasil, quando chegaram as caravelas de Cabral, o primeiro ato
dos padres foi um ato antiecológico: cortaram a primeira árvore brasileira
para fazer a cruz da primeira missa.
Ato seguinte converteram & vestiram os índios para melhor
escravizá-los. Por isso inaugurando esta coluna gritamos nosso Evoé a
Dionysos patrono da Ecologia, da anarquia, do vinho & da orgia.
É preciso não confundir Ecologia com jardinagem.
A Ecologia é uma ramificação da Biologia, que estuda as
interações entre os seres vivos & o seu meio ambiente.
Nos anos 60 quando eu falava de Ecologia, a resposta das
pessoas, que se amontoavam em bandos à direita & à esquerda, era sempre
uma profissão de fé na própria mediocridade. “Com tanta gente passando
fome, esse cara vem falar de natureza”. Como se a vida do cretino não
dependesse exatamente do equilíbrio ecológico. Os trabalhadores têm a
CUT, a CGT. A onça pintada não tem sindicato. Os rios não têm sindicato.
O mar não tem sindicato.
Eles terão agora o seu Sindicato neste cantinho. Crie você
também com os colegas do bairro, do serviço, do clube, um SINDICATO
DA NATUREZA. Nosso lema será sempre AMOR, POESIA &
LIBERDADE. A diversidade é a Verdade. Viva a diferença! Evoé!
Neste poema-texto, autodefinido Manifesto, a ideia é didática, pedagógica, paciente
como um professor que se ao trabalho de contextualizar e fundamentar conceitos
históricos. Ele instaura o espírito brincalhão e irônico, demonstrando sua irritação, mas
também expõe a urgência daão política pelo todo, que se chama natureza e, acima de tudo,
por essa mistura consciente e rica da diversidade. Diverso que é o Outro, e como afirmavam
os gregos, o Outro é o bárbaro o que não fala sua língua, o que, não partilhando a Paideia,
não lutará pela Polis, saqueando-a.
O rizoma dessa ideia, seu pequeno broto, é o que se esconde sob o horror
positivista contra o caos e o bárbaro. Mas saquear a Polis é apropriar-se de riquezas que
estavam mofadas, travadas no tempo e nas letras das leis, escritas ou o, no mofo das
crenças. O saque humaniza, iguala, ajusta, equilibra, rebaixa ou eleva, inoculando-a com
232
irreverência, anarquias, desarmando cânones. Instala-se o „caráter destruidor‟
399
, entendido
como ruptura, conforme afirmação de Benjamin, quando de sua defesa da „barbárie positiva‟.
Por não temer o passado, ou respeitar sua investidura, o bárbaro, destruindo, abre espaço,
combatendo frontalmente o “homem-estojo”, aquele a quem Benjamin aponta por buscar sua
comodidade, como já havia acusado Mário de Andrade com seu “burguês-tílburi”
400
que, do
mesmo modo, se protege e se acomoda. Em Benjamin, esse cater destruidor é saneador,
pois, quando se instala “vê caminhos por toda a parte [...] tranforma(ndo) o existente em
ruínas”
401
, sem pensar em novo projeto, sem buscar soluções, apenas abrindo espaços.
Este é o princípio das vanguardas artísticas, e está no princípio de Fausto, o
destruidor, conforme a leitura de Berman. O Destruidor será necessariamente jovial e alegre e
sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio. Benjamin aprovará esse
espírito revolucionário que destrói para dar espaço ao novo. A barbárie positiva de Benjamin,
conceito formulado nos anos trinta, entre guerras, apontava para o inacabado do bárbaro,
aquele que possa, sem apegos, ousar um outro olhar e outro gesto, mais incisivo e
consequente, um gesto-ação que dissolva e arrase o que foi construído para ficar parado,
como é o grande mofo cultural chamado massificação.
Mattéi também localiza na massificação cultural um dos caminhos para a docilidade
política, responsabilizando a ICM pelo aniquilamento da participação social junto à Ágora:
“A massificação do olhar leva à massificação do comportamento e à massificação do
pensamento”
402
. Esquivar-se da massificação é defesa política, é esperar pelo contra-ataque, é
romper sem negociação. E Piva avisa: Mediocridade pega”. A ão política é deriva, é o
agrupamento entre os margiais, não marginais, uma vez que, sem ilusões, estão inclusos:
pagam impostos, circulam, produzem conhecimentos, giram capital, interferem. A
marginalização é um conceito oportunista, que só reforça o desejo de exclusão dos que
possam ameaçar a Ilha de Utopia que se crê construir, a cada dia, pela aquisição de
mercadorias, pela ascensão social, pela defesa do patrimônio, pela negação a se confrontar
com a mediocridade.
Caráter Destruidor para abrir espaços, sem se fixar em imagem ideal, avançando
com “uma irresistível desconfiança do andamento das coisas [...] nunca apostando em nada
399
BENJAMIN, Walter. O caráter destrutivo. De Imagens do Pensamento. In: Documentos de cultura,
documentos de barbárie - Escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986. p. 187.
400
„Ode ao Burguês‟, in: Paulicéia Desvairada, op. cit., p. 68.
401
BENJAMIN. Idem, ibdem.
402
MATTÉI. A barbárie interior... op. cit., p. 284.
233
duradouro”
403
, mas seguindo como o rbaro que assola, usufrui e destrói, renovando
caminhos.
4.2. EROS NA FRATERNIDADE
A imaginação visiona a reconciliação do
indivíduo com o todo, do desejo com a
realização, da felicidade com a razão.
Herbert Marcuse
Em entrevista que concede à Revista Cronópios, o poeta narra como foi iniciado
no xamanismo: “Na fazenda de meu pai, em Analândia, com um mestiço de índio e negro,
que me iniciou na piromancia. Eu tinha 12 anos, e ele era um poeta intuitivo, um xamã”.
Fui iniciado no catimbó, que é uma vertente que incorpora a pajelança, a
visão espírita e uma pitada de catolicismo. No catimbó fui iniciado por um
mestre da Ilha Comprida. Com vinho de jurema, que é um psicotrópico
poderosíssimo. Nas festas de caboclo do Marco Antônio de Ossaim, no
terreiro do Jardim Tremembé, ele oferecia esse vinho; forte para os da casa e
mais fraco para os visitantes. A dose deve ser prescrita com todo cuidado,
pois, em excesso, o vinho de jurema causa parada cardíaca [...] Voltando à
iniciação no catimbó: fiquei três dias em cima de uma árvore, pássaros em
torno, uma maravilha. Depois tive uma outra iniciação com a Carminha
Levy, que, por sua vez, foi iniciada pelos índios pele-vermelha e por um
antropólogo americano importantíssimo, Michael Harner. Além de ser um
xamã intuitivo, tenho essa informação bibliográfica, que eu procurei a partir
das experiências de infância na fazenda do meu pai. Um caboclo mestiço de
negro com índio me iniciou na piromancia e, portanto, no xamanismo
natural: nos ventos, nas folhas das árvores, ele enxergava rostos,
personagens de poder espiritual. Como eu não tinha nenhum preconceito,
nenhuma repressão cultural, entendia tudo aquilo e via até mais coisas do
que as que ele me mostrava
404
.
Feito xamã, declina a filiação poética de seu envolvimento: A poesia é a aurora
dos povos. Os primeiros poetas eram xamãs, curandeiros, místicos, legisladores”
405
. Uma vez
envolvido nos mistérios e suas riquezas, não como parar, e diz: “uma verdadeira iniciação
nunca termina”.
403
BENJAMIN, Idem, p. 188.
404
DUME e D‟ELIA, op.cit.
405
MACHADO e FRAIA. op. cit.
234
Os primeiros poetas eram todos xamãs, e vem daí essa tradição de ligar
poesia e inspiração com as técnicas arcaicas do êxtase [...] o xamanismo é
uma religião de poesia, não de teologia. Em Dante, todo xamanismo está :
os três reinos, a ligação mágica com o número nove [...]. Dante era contra o
papa ter poder temporal... era um nômade... escrevia enquanto estava em
trânsito
406
.
Segundo o pesquisador de religiões não ocidentais, durante os rituais, o xamã
deverá desenvolver o entendimento com outra linguagem, secreta, que irá compreender toda a
natureza. Na iniciação caraíba, o povo “guarda a lembrança de um tempo em que os xamãs
eram muito poderosos”
407
. Em Eliade se ainda, sobre os xamãs terem sido os primeiros
poetas, mas não apenas isto, como também os primeiros legisladores, estrategistas e cantores
- tudo, devido ao domínio da palavra.
Em sua iniciação, o futuro xamã deve aprender a linguagem secreta, não apenas
da natureza, mas também dos espíritos, devendo se tornar aprendiz de seu mestre, que é seu
animal de poder, o qual o orientará no caminho dos espíritos. Para isso, o xamã desenvolverá
uma linguagem própria, secreta, e que Eliade explica como sendo a “linguagem dos animais”
ou que imita a voz dos animais de muitos animais
408.
Narrando o ritual xamânico, o
estudioso explica que “grande número de palavras utilizadas durante a sessão tem como
origem cantos de pássaros e vozes de outros animais [...] o xacai em êxtase utilizando o
tambor [...] e os textos mágicos são cantados
409
.
Bate o tambor
410
no ritmo dos sonhos espantosos
no ritmo dos naufrágios
no ritmo dos adolescentes
à porta dos hospícios
no ritmo do rebanho de atabaques
Bate o tambor
no ritmo das oferendas sepulcrais
no ritmo da levitação alquímica
no ritmo da paranoia de Júpiter
406
MACHADO e FRAIA. op. cit.
407
ELIADE, Mircea. O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
(Coleção biblioteca universal). p. 152.
408
Idem, p. 116.
409
Idem, p. 119.
410
De Ciclones, em Estranhos sinais... op. cit., p. 73.
235
Caciques orgiásticos do tambor
Com meu Skate-gavião
Tambor na virada do século Ganimedes
Iemanjá com seus cabelos de espuma
São Paulo, out/94
Na Ciência existe o pensamento de progresso, de superação, de melhora. Na Arte,
ao contrário, atingindo-se o ápice em uma obra, estará acabada e, em nada, jamais, será
superada. A experiência ligada a ela é vida vivida, é memória e compreensão. Não técnica
a ser melhorada, não suplantação, novas leis, ou materiais. Ela é uma obra acabada e
jamais envelhecerá. O tempo na arte, como na magia, o se prende ao cotidiano, à luta
política, à luta pelo progresso da ciência - o caminho é diverso.
Baco
411
me transforma
num astro vibratório
com este elixir
de cacto selvagem
Vejo uma andorinha
carregando um solfejo
enquanto o núcleo
do Sol explode.
Deixar-se tomar pela vertigem, enquanto a vida parece caminhar por seu colo,
agarrando o poeta em um deslumbramento tal que, o impacto da vida e sua volúpia toma a
forma do poema, escorregando de um verso a outro, apaixonado pelo que vê.
Músicas, ventos, ritmos e vertigens, embalam o trajeto de corpos que se
posicionam para além do mundo do trabalho, para além do desencantamento do mundo que é,
segundo Max Weber, o desamparo do mundo, quando a ligação do indivíduo se rompe com o
transcendente, dispondo-o ao sabor do contingenciamento mundano. A dor ontológica
advinda de um abandono, de uma insegurança, de um medo atroz sem remédio, faz parte do
preço pago pela modernidade e seu racionalismo desmedido, arrogante e devastador. Berman
quando vê Fausto anunciando a glória da modernidade, percebe o preço da perda do espírito
411
De Ciclones, idem, p. 33.
236
a dor de se saber para sempre, só. “Quanto mais sua mente se expandiu, quanto mais aguda se
tornou sua sensibilidade, mais ele se isolou e mais pobres se tornaram suas relações com o
mundo exterior suas relações com outras pessoas, com a natureza [...]”
412
. Só, sobre os
escombros do que já foi sagrado.
Alma fecal contra a ditadura da ciência
413
Rua dos longos punhais
Garoto fascista belo como a grande noite
esquimó
Clube do fogo do inferno: Alquimistas Xamãs
Beatniks
Je vois l‟arbre à la langue rouge (Michaux)
Templo
Procissão do falo sagrado
Deuses contemplam nas trevas o sexo
do anjo do Tobogã
Felizes & famélicos garotos seminus dançam
como bibelôs ferozes
Pedras com suas bocas de seda
Partindo para uma existência invisível
Tudo que chamam de história é meu plano
de fuga da civilização de vocês
Represa de Mairiporã, 95
Lucidez e alvo certo. Sabe o caminho, busca o rito e a linguagem passional do
corpo, sem negociar com a repressão - ele a vê, parte condenando, apontando, sem abrir
espaço ou ser condescendente, afinal ele sabe: “O princípio do prazer é subversivo”
414
. Ele
não negocia, não tenta fazer o matrimônio do Céu e do Inferno, desvenda e escolhe. Blake
tem muito a ensinar quando em seus Provérbios afirma: A estrada do excesso conduz ao
palácio da sabedoria, (enquanto) a Prudência é uma rica, feia e velha dama cortejada pela
Incapacidade”
415
. Acerta quando diz: prisões são construídas com pedras da lei, bordéis com
412
BERMAN. Tudo que é sólido... op. cit., p. 43.
413
De Ciclones, em Estranhos sinais... op. cit., p. 104.
414
PAZ. Conjunções e Disjunções. op. cit., p. 24.
415
BLAKE, William. Provérbios do Inferno, de Matrimônio do Céu e do Inferno. In Rizoma Editorial, de 28 de
agosto de 2002. Em <http://www.rizoma.net/interna.php?id=35&secao=hierografia>, acessado
em dezembro de 2007.
237
tijolos de religião”. Vem de Blake ainda, a ideia de que, “a noção que o homem tem do corpo
distinto de sua alma, deve ser banida”, e explica:
Os antigos poetas animavam todos os objetos sensíveis como Deuses ou
Gênios, chamando-os por nomes e adornando-os com as propriedades das
florestas, riso, montanhas, lagos, cidades, nações e tudo o que seus vastos e
numerosos sentidos podiam perceber. E estudaram em particular do gênio de
cada cidade e país, colocando-o sob sua deidade mental, até que um sistema
foi formado, do qual alguns se aproveitaram, e escravizaram o vulgo com o
intento de criar ou abstrair as deidades mentais de seus objetos: assim
começou o Sacerdócio. Escolhendo formas de adoração tiradas dos contos
poéticos. E com o tempo, pronunciaram que os deuses tinham ordenado tais
coisas. Assim, o homem esqueceu que todas as deidades residem no peito
humano
416
.
Segundo Bataille, Blake escandalizou por, não sendo louco, ter ousado muito além
do que seu tempo poderia suportar. Nascido em Londres em 1757, com instrução rudimentar,
foi tão visceral em seus escritos, beirando, de fato, a loucura. Bataille comenta que “muitos
outros desceram tão longe no abismo do inconsciente, mas não voltaram, como Nietzsche e
Hölderlin [...]”
417
. Suas ideias causaram escândalo, pela liberdade sexual que propôs e
rejeitou fazer concessões ao mundo do trabalho, dando a seus escritos uma liberdade
desenfreada e ao espírito “uma turbulência de festa”. Inevitável perceber linhas da sagrada e
ensandecida visão de Blake por sobre linhas e pedaços da obra de Piva.
ESPINHEIRA SANTA
418
planta de cabeceira
da Deusa
substância
do tempo
& suas cores
Ritos lunares
Epifanias da seiva
Ensinou meu coração a ficar
em estado de Raio
Só sabemos quem somos
depois de você
se mover
1999
416
Idem, ibdem.
417
BATAILLE. A Literatura e o Mal. op. cit., p. 69.
418
De Estranhos sinais..., em Estranhos sinais... op.cit., p. 168.
238
Mergulhado num mundo místico e verde, o poeta caminha por mistérios que vê
alastrar, mimetizar seu corpo ao verde mágico que o cerca. Vegetais que celebram e protegem
deusas, lendas de tantas curas e proteções. Propriedades femininas, lunares, que não se
mostram inteiras, mas face por face, escondendo sempre uma delas, completamente,
enveredando pelo mistério feminino, onde habita o escuro, o úmido, o subterrâneo, o que
sangra. Aura vegetal que envolve o poeta, embriagando-o com vida crua, nada santa, mas
viva.
Deusas que se imiscuem com deuses em prontidão erótica, prontos para parir novos
mundos verdes - deuses que se erotizam pelo verde prado de seus planos, praieiros e tropicais
Olimpos. A tecnologia herbária, rodeada de espíritos que manifestam potências e elementais
de vento, ar, água, terra e metal - transidos em pleno puerper. Cosmogonia plena. E com fé,
Piva afirma: “O xamanismo é uma religião de poesia, não de teologia”
419
.
Inúmeras formas de iniciação xamânica permanecem, ainda hoje, somando-se às
tradições de povos extintos, mas que, em pequenos grupos, ainda se entregam a seus
ancestrais ensinamentos como os Vikings e Celtas. No cotidiano de centenas de outros povos
ainda existentes, saudáveis, socialmente falando, isto é, atuantes, o xamanismo é parte
constitutiva de seus atuais rituais de re-ligações espirituais. O uso do tambor é recorrente em
praticamente todos os povos de todos os continentes, como meio constitutivo de viagem
extática rumo ao “Centro do Mundo”. O tambor terá a função de levar o indivíduo a seu
destino por seu tamborilar. “Por essa razão o tambor é chamado de „cavalo do xamã‟”
420
.
Relatos dessas viagens estão repletos de imagens e símbolos relacionados com
“voo”, “cavalgada” ou a “velocidade” dos xamãs, como expressões figuradas do êxtase, ou
seja, das viagens místicas realizadas por meios sobre-humanos e para regiões inacessíveis ao
comum dos homens.
Toda cosmogonia justifica o estabelecimento da conformação das linhas de poder.
Uma sociedade em que a castidade é condição de felicidade garantida (além vida, claro),
todos os esforços serão feitos nesta direção. Sobrepujar os hormônios é inútil e monstruoso,
no entanto, a palavra divina se mantém, cobrando e angustiando. Por isso os sacrifícios farão
parte da ética, maquiando e manipulando o conceito de solidariedade e outras relações
interpessoais pré-cristãs, pré-monogâmicas. As religiões fundamentalistas (que se auto
confirmam pela sacralização da palavra escrita), exigem a “com-postura”, isto é, o controle
419
DUME e D‟ELIA. op. cit.
420
ELIADE. O Xamanismo e as técnicas... op. cit., p. 199.
239
sobre o corpo. Não é, na verdade, uma negação do corpo, mas sua submissão à Mente
(divina). Ora, para que se possa cumprir mais facilmente os desígnios divinos, o objeto que
desvia o seguidor de seu caminho, conduzindo-o à perdição deve ser afastado, escondido,
amenizado, que não pode ser suprimido. Por isso as mulheres são forçadas a cobrir o corpo
e a não demonstrar desejo, porque assim, não podem se insinuar provocando o pobre fiel
fraco, que se culpará pelo desejo involuntário.
O cristianismo é uma que Piva encara como monstruosidade a ser combatida. E
não está só. Outros poetas antes dele, já fizeram esse combate pelo corpo, pelos sentidos, pela
sacralização da existência, e mesmo por um paganismo mitológico, ou panteísta.
ANTIGO
421
Gracioso filho de Pã! Entorno de tua fronte coroada de pequenas
flores e bagas, teus olhos movem-se, esferas preciosas.
Manchadas de borra parda, eis tuas faces cavadas. Tuas presas
brilham. Teu peito assemelha-se a uma cítara, tinidos circulam
em teus braços dourados. Teu coração bate nesse ventre onde o
duplo sexo dorme. Passeia, à noite, docemente movendo esta
coxa, esta segunda coxa e esta perna esquerda.
Jean-Arthur Rimbaud.
De Rimbaud, muito há que se aprender, se surpreender. Ele pagou caro pela
revisão das delícias que „A Cidade Luz‟ lhe oferecia. Buscou ficar longe de olhos
controladores, sob riscos de uma cosmogonia violenta, produzindo ética engessada por um
Deus insaciável.
Em sua trajetória de deriva, Piva percorre assumidamente, outra forma de se
relacionar com uma alteridade maior do que ele e seus semelhantes. Buscando outras
tradições, irá travar conhecimento com outros esotéricos como Julius Evola.
EMOÇÃO EM PEDAÇOS
422
Bomba atarefada
Bomba desastre
Anjo de voo de abutre
421
RIMBAUD. Uma temporada no inferno e Iluminações. op.cit., p. 89.
422
De Estranhos sinais..., em idem, op.cit., p. 128.
240
Garoto-bomba mini-Tarzã
bomba solar do barão Julius Evola
bomba na bunda de Hitler
sonhos secos em Tóquio
agonia de uma princesa deplorável
Parte de um de seus pares paradoxais, o barão Julius Evola constitui uma figura
muito interessante, porém, a princípio, inimaginável para os arquivos constitutivos de sua
ética poética. Nascido no final do século XIX, o baronete envolveu-se com uma formação
muito eclética, de movimentos artísticos associados ao dadaísmo (sabidamente de vertente
anarquista), a estudos de Nietzsche. Depois desse período de recolhimento, Evola começa a
editar sua produção. Primeiro foram estudos sobre o “idealismo mágico” e “yoga tântrica
423
,
em que centra esforços numa visão mais antropológica do mundo, cuja fase, parece, terá sido
o objeto de interesse de nosso poeta patchwork. Nessa fase publica Teoria do indivíduo
absoluto, em 1927, Império pagão, de 1928 e Fenomenologia do indivíduo absoluto, em
1930. Nessa sequência de obras, Evola ataca violentamente o cristianismo, militando pelo
paganismo, embora relevasse o cristianismo do período medieval, por sua “espiritualidade
heróica” e estóica, somando a outras práticas e crenças dos povos que foram dominados e
incorporados pelas tropas romanas, os chamados “bárbaros”.
Quando começa a estudar o esoterismo em longas caminhadas pelas montanhas,
chamando a esse processo de “magia operativa”, isto é, a ciência experimental do eu”,
integra um grupo esoterista de corrente iniciática e alquímica. Sua obra se reúne a do
respeitado e renomado René Guenon, criticando a espiritualidade fácil, a qual chama de
“contra-iniciação” ou de “religiosidade de segunda”, e edita A Tradição Hermética. Por fim,
sua obra mais polêmica, Revolta contra o mundo moderno, de 1932, cujo pessimismo chama
a atenção da crítica. A verdade é que sua visão sobre o capitalismo e modernidade era
degradante, propondo, ao invés, uma restauração viril (no sentido de vigoroso, enérgico, e
não no sentido de varonil, que se trata de uma apropriação sexista do termo) do espírito
humano. E esse novo vigor, muito próximo da ideia do Super-Homem nietzschiano em sua
forma enxuta de autocondução, poderia, segundo ele, interferir, alterar e restaurar as relações
423
Essas incursões às culturas do extremo oriente naquele tempo era uma novidade, em que o barão estudou “a
função iniciática do sexo”, misturando magia sexual, taoísmo e tantrismo, que sabidamente, visa o total prazer
sexual como caminho iniciático para a ascensão espiritual. EVOLA, Julius. Revolta contra o mundo moderno.
Lisboa: Dom Quixote, 1989. op. cit., p .479.
241
humanas, como as dualidades taoístas yin e yang, os caminhos do kharma e dharma, e no
princípio feminino da Civilização da Mãe à qual se associa em seus estudos de ritos, seitas e
religiões tradicionais.
Em Revolta contra o Mundo Moderno traz religiões primordiais pesquisadas, que
produzirão a chamada Tradição
424
. Apoiam-se nas genitoras primevas como Ísis, Cibele,
Afrodite e Deméter, divindades que integram o conceito metafísico de mulher, e a partir dela,
toda a criação como princípio e substância da humanidade. Diz ele: “É uma deusa que
exprime a realidade suprema”
425
.
O romeno Mircea Eliade irá reconhecer o valor das pesquisas do baronete, apesar
de uma óbvia leitura aristocrática do que chama de degradação da modernidade”, em que
cultiva um projeto utópico para uma sociedade à luz dos “princípios eternos da Tradição”. A
tradição a que Evola indica como sendo “eterna” trata-se na verdade, de uma estrutura
estamental, altamente rígida da sociedade, sacralizada por seus nascimentos, como nas
sociedades da Alta Idade Média, com a realeza, a cavalaria, a ascese sagrada e os símbolos
pré-formação dos Estados-Nação.
Roberto Piva não irá encampar todas estas ideias, principalmente a de ascese
espiritual tradicional, quando associada à “odiosa” castidade, comungando das ideias de
rejeição à formação de Estado de qualquer natureza, atacando tanto o materialismo marxiano,
quanto qualquer nacionalismo, aproximando-o, ainda que por argumentos bastante exóticos,
ao projeto anarquista.
O fascinante dentre as propostas de Evola é o recorte que faz sobre o indivíduo,
mesmo reconhecendo sua concretude histórica e social, que como Nietzsche, aposta no “tigre
interior” do guerreiro humano que existe em cada um de nós (o super-homem). Num período
em que, tanto a política quanto a religião, e mesmo as ações públicas de Estado, não viam o
indivíduo com tal recorte, tão “absoluto” como propôs desde o início de seus estudos, Evola é
muito ousado. Sua ideia de mundo perfeito, utópico, propõe o “tipo feminino como a mais
alta manifestação do sagrado”
426
, em que a realidade mantenha-se como de fato é, isto é,
lunar e misteriosa, e não como pretendem osenganadores que visam a acumulação de
riquezas menores”, sugerindo que a realidade seja solar, apolínea e masculina.
424
Importante comentar que tal conceito não possui um consenso quanto a sua significação, sequer em
dicionários de religiões, mas parece referir-se à religiosidade medieval da primeira fase. Na chamada Alta
Idade Média, quando da fase de implantação do cristianismo, em que ainda conviviam resquícios do
paganismo bárbaro pré-existente, com fortes tros orientais, o que não deixa de se manter um tanto obscuro,
afinal diversos desses povos chamados “bárbaros”, misturavam crenças e ritos de origens diferentes.
425
EVOLA. Revolta contra o mundo moderno. op. cit., p.285.
426
EVOLA. Idem, p. 287.
242
MOSTRA TEU SANGUE, MÃE DOS ESPELHOS
427
o mistério lunar da menina
lésbica
linda como um nenúfar
com seu nome de pássaro
levando na mochila
AS CANÇÕES DE BILITIS
428
uma coruja no ombro
429
& no sangue os gritos
dos náufragos de outrora
Tão pleno em símbolos, cada verso é discurso cifrado, é referência polivocal, é
dialogismo - ocidente e oriente; presente e passado longínquo, e passado recente; os ritos e
evocações em uma andrógina que se faz muitas; força de sacerdotisa, tão feminista, tão
feminina, tão vestal e tão guerreira.
Na “Tradição” a Deusa era considerada a origem única e exclusiva do pensamento
lógico organizado. Das dádivas intelectuais das mulheres surgiram disciplinas como a
Matemática (que significa originalmente “sabedoria da e”
430
), os calendários
(originalmente lunares ou mens-truais, pois de vinte oito dias), e todo um sistema de estudo e
análise do mundo baseados no mesmo princípio do mênstruo, dando base a formas de
medidas ou mens-urações. Esse paganismo lunar, de linhagem matrilinear, foi perdido quando
da ocupação do território europeu pelo exército romano, que será, depois, cristianizado.
OS LABIRINTOS VOAM DE NOITE
431
Para Vera
os pássaros cruzaram o
Zodíaco
quando você jogava bola
no Embú-Guaçú
427
De Estranhos sinais..., em idem, op. cit., p. 127.
428
As canções de Bilitis do francês Pierre Louys foram escritas em 1894, como se fossem uma tradução da obra
de Bilitis, uma poeta grega contemporânea de Safo mas confessa tê-la inventado. Em 1956, é fundada nos
EUA a primeira organização lésbica inspirada na personagem de Bilitis.
429
Símbolo de Hécate, a poderosa deusa do submundo na mitologia grega e também da Grande mãe na tradição
celta Wicca.
430
WALKER, Bárbara G. A Velha: Mulher de idade sabedoria e poder. São Paulo: A Senhora, 2001. p. 19.
431
De Estranhos sinais..., em idem, op. cit., p. 145.
243
como uma garota
pré-rafaelita de
Dante Gabriel Rossetti
suas bonecas inexistentes
eram todas de Aço
as borboletas viravam
nos extremos do Mundo
psicodélica loucura
na vida da imaginação
esperando o crepúsculo
iluminar a morte minimalista
do gaviãozinho
do gafanhoto-folha
do urso dos Andes
São Paulo, 2007
Seguem seus pares opositores, como as imagens mais lânguidas do pré-rafaelismo,
que jogando futebol (!), e não em cenário bucólico ou clássico, mas no Embu-das-Artes,
meio-cidade, meio-atelier, meio-caipira, meio-subúrbio... dorme-se e sonha-se, e vende-se o
que sonhou. Tal garota, tão dupla, dúbia e andrógina, poderia (não) ter bonecas, mas de
Aço, duras e absurdas como pode ser uma morte só mínima, só um pouquinho, como a de um
gavião, tão “inho”, que se reflete na invisibilidade e insignificância para ouvidos moucos,
consciências surdas, mortes senis do olhar sobre o mundo da morte crassa e bronca, que
condena vida ao esquecimento. Dor e vida, alegria e contradição. Tudo pulsa.
Nesse caudal poético da fase mais recente, o dúbio, o rico do impreciso ganha rua,
céus e morros. Agora que se espraia acintosamente, Piva clama o dia aberto, o peito aberto -
possibilidades várias de se estar em vida. O dúbio da androgenia, da expansão na palavra
polifônica - acordes de jazz ecoando pelas serras, o poeta instiga a colocação recorrente de
uma cosmogonia xamânica.
Seja devasso
432
seja vulcão
seja andrógino
432
De Ciclones, em Estranhos sinais... op. cit., p. 37.
244
cavalo de Dionysos
no diamante mais precioso
Possibilidades de assumir o Outro, vivenciar o Outro, e mais Outros - respirar o
estranho, assumir um olhar nômade, uma sexualidade nômade, escorregadia, em deriva. Sexo
e realinhamento de vida, na busca de transformação do homem, do indivíduo. Eliade
deparou-se com o xamanismo siberiano, quando o xamã acumularia simbolicamente os dois
sexos. Ele narra: “sua roupa é enfeitada com símbolos femininos e, em certos casos, ele se
esforça por imitar o comportamento das mulheres”, e essa bissexualidade - ou assexualidade
ritual é considerada sinal de espiritualidade, e por vezes, “é assumida enquanto condição
indispensável para superar a condição humana profana”
433
.
Chamado visionário nesta mais recente fase criativa, a ideia demanda maior
precisão, já que o dicionário se restringe a “quem tem ideias extravagantes; um excêntrico”, ou
no máximo se estende ao “utopista”
434
.
Seus poemas não propõem retornos, reducionismos, retomadas nostálgicas,
retrocessos, são apenas outras possibilidades de existência, outro jogo de convívio, outras
formas de polis, outra política. Não receita, porque não verdades, autoritarismo, nem
desejo de afunilamento de um único caminho, mas o enfrentamento contra a vertente chamada
„realidade concreta‟, por outro compromisso, antes de tudo, erótico enquanto houver tonus e
brilho nos olhos.
Tal projeto visionário, tal vertente, é tratado por Guattari numa „ecosofia‟ que,
abrangente, pode propor, não uma regra, uma forma, um caminho, mas a multiplicidade
permanente, prática e especulativa, dos campos ético-político e estético, e que poderão
substituir “antigas formas de engajamento religioso, político e associativo”
435
. Mais que
instâncias e dispositivos, ao mesmo tempo analíticos e produtores de subjetividade, possam,
ensejar
Subjetividade tanto individual quanto coletiva, transbordando por todos os
lados as circunscrições individuais, egoisadas‟, enclausuradas em
identificações, abrindo-se em todas as direções: do lado do socius, mas
433
ELIADE. Mefistófeles e o Andrógino. op .cit., p. 121.
434
David Harvey, no entanto, parece ter um entendimento um pouco mais distendido dessa qualidade, e cita
Roberto Mangabeira Unger para apoiá-lo: “O visionário é a pessoa que alega não estar restrita aos limites da
tradição na qual se acham mergulhados seus interlocutores [...] Observe-se que o pensamento visionário não é
inerentemente milenarista, perfeccionista nem utópico (no sentido vulgar do termo) [...] De modo geral não
apresenta a imagem de uma sociedade tornada perfeita”. In Espaços de esperança. op. cit., p. 245.
435
GUATTARI. As Três Ecologias. op. cit., p. 54.
245
também dos Phylum maquínicos, dos Universos de referência técnico-
científicos, dos mundos estéticos, e ainda do lado de novas apreensões „pré-
pessoais‟ do tempo, do corpo, do sexo [...] Subjetividade da
ressingularização capaz de receber cara a cara o encontro com a finitude sob
a forma do desejo, da dor, da morte [...]
436
Piva se retira, pois definiu opositores. Gigantes, monstruosos, burros na
profundidade abissal, ele decide aproximar referências, selecionando filiações, agregando
fraternidades. Cita e agrupa, reunindo parceiros de luta e sensações:
SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN
437
[...]
Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até á náusea em
meus sonhos.
[...]
Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
[...]
Arre! Vamos lá pra frente!
Se próprio Deus impede, vamos lá pra frente... não faz
Diferença
Vamos lá pra frente sem ser par parte nenhuma.
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do
pescoço...)
Álvaro de Campos
Seu olhar sem concessão, sem condescendência pela Igreja e seus preceitos,
acompanhou todo o seu trabalho, apropriando-se de seus anjos para copular com eles, para
degradá-los em Sodoma, para conspurcar o desejo que a Igreja exige seja „inocente‟ sobre o
menino púbere, seu anjo-efebo de preferência.
436
Idem, ibdem, p. 54.
437
PESSOA. Poesias de Álvaro de Campo. op. cit., p.206-9.
246
Não lhe perdoa a intransigência, o uso do corpo para, cravado de interditos, gido,
frio, solitário e humilhado, sirva de instrumento de submissão política. Sob alegações que
misturam o inatingível com o mais sujo, excluir, perseguir, alegando ação divinamente
autorizada. Piva não perdoa a arrogância dos suspeitíssimos agentes divinos das igrejas, cuja
maior sofreguidão e desejo, cai sobre o poder em si e o êxtase de se apoderar do outro - ão
que não os leva à mea culpa. Frente a essa Igreja suspeita, cruel, arrogante e violenta, ele irá
declarar, o sem muito humor, ainda que negro: “Estou como o papa, com (doença de)
Parkinson, de tanto ter de aturar cristão” - no vídeo Assombração Urbana.
A Igreja se pautou pelo uso da força e do poder para se apropriar e estabelecer o
certo e errado sobre todas as coisas, inclusive sobre as geográficas, que deixa de ser sagrada,
transformando-a em zona de prodígios deliberados, grandiloquentes e associados à
comprovação dos milagres: deslocamentos de montanhas, abertura de mares, incêndios,
enchentes, genocídios e outros mais. “Todas as chamadas guerras pela liberdade não passam
senão de episódios da guerra contra o regime da desigualdade e da herança, imposto pelo
Direito Romano e sagrado pelo Cristianismo”
438
.
Há que se profanar tudo para que tudo possa ser sacralizado. As hierarquias entre
altos e baixos, apenas instauram a concentração de poder e a impostura do pecado, da dor, do
remorso, da insegurança e da humilhação, conclamando por alívio e revide.
Como diria Nietzsche, só reverenciarei um deus que saiba dançar
e só acreditarei em quem saiba rir de si mesmo.
Hoje sou o mestre de mim mesmo e guardião dos sonhos.
Roberto Piva
Ele se coloca em coletivo, ampliando o número de aliados e reforçando uma leitura
macroecológica. Nessa linha a Ecologia se desdobra, enquanto harmonia equilibrada e fluida,
sobre o meio-ambiente, sobre as relações interpessoais, e a ecologia da harmonia e equilíbrio
individuais.
O poeta se une aos que, como ele, mergulham no grande sonho vegetal de uma
mitologia tropical que escorrega pelas matas, espelhando escolas de Raul Bopp (Cobra
Norato, em que o maravilhoso surrealista pode mergulhar e se saciar), de Oswald de Andrade
(e seus dois Manifestos Ecológico-Político-Ético-Estético fabulosos e hilariantes), de Mário
438
ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança: polêmica. Obras Completas V. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 1972. (Coleção Vera Cruz, n. 153). p. 190.
247
de Andrade (e a primeira saga ecológico-político-preguiçosa) e, como eles, se apoia na
matemática do prazer: “A alegria é a prova dos nove” - para nunca esquecer. Diversidade,
Liberdade e Prazer. E vem junto Whitman para reafirmar:
SONG OF MYSELF
439
21
I am the poet of the Body
and I am the poet of the Soul
the pleasures of heaven
are with me
and the pains of hell
are with me,
The first I graft
and increase upon myself,
the latter I translate
into new tongue.
I am he that walks
with the tender and grouwing night,
I call to the earth and sea
half-held by the nigth.
Smile
O voluptuous cool-breath‟d earth!
Mais do que em outros livros, ele agora, se aproxima de seus aliados, sejam
amigos, sejam figuras admiráveis. Muitos de seus poemas passam a ganhar dedicatórias, ou
são obras-poemas em homenagem declarada. Em Estranhos Sinais de Saturno, o primeiro
poema, dois grandes e antigos amigos recebem dedicatória: Claudio Willer & Antonio
Fernando de Franceschi. O quarto poema é dedicado a Maria Rita Kehl & Marcelo Coelho. O
décimo, novamente, é presenteado a Ademir Assunção & Jotabê Medeiros. O décimo sétimo
vai para João Silvério Trevisan. O seguinte ele dedica a Romulo Pizzi. O décimo nono, Amon
Ra, ele presenteia seu amigo catarinense, Rodrigo de Haro. O próximo poema terá dedicatória
a Regastein Rocha. O vigésimo primeiro será de Sergio Cohn, Danilo Monteiro & Rodrigo
Garcia Lopes. O seguinte será dedicado, singelamente, à Vera. „O rock da Serra da Canastra‟,
Piva irá homenagear Ugo Giorgetti, e o seguinte poema, o „Soluço de planetas‟, dedicará a
439
Canto a mim Mesmo - 21 - Eu sou o poeta do Corpo / e sou o poeta da Alma, / as delícias do céu / estão em
mim / e os horrores do inferno / estão em mim / - o primeiro eu enxerto / e amplio ao meu redor, / o segundo
eu traduzo / em nova ngua. // [...] Eu sou aquele que vai com a noite / tenra e crescente, / e invoco a terra e o
mar / que a noite leva pela metade. // [...] Sorria, ó terra cheia de volúpia, / de hálito frio!. In: WHITMAN.
Folhas das folhas de relva. Tradução de Geir Campos. op. cit.., p. 34-5.
248
Roberto Bicelli & Toninho Mendes. O vigésimo sexto irá para Antônio Zago & Wesley Duke
Lee. O poema seguinte também será presenteado a Luiz Roberto Ramos, Luciana Domschke
& Marisa Adachi. O vigésimo nono para Fabio Weintraub, o seguinte para Mário Pirone, e
depois para Valesca Dios, e o seguinte para Nando & Quilha. O trigésimo - quinto será
dedicado a Gyorgy, o sétimo para Dinho & Jorge Mautner; depois „O chute do mandril da
meia-noite‟ foi para o Zé Celso, e ainda doará seu quadragésimo - quarto poema, o
„Grumixama‟ para o Gustavo.
Dos quarenta e quatro poemas de Estranhos Sinais de Saturno, vinte e um poemas
terão dedicatórias explícitas, mas outras formas de homenagens Piva irá utilizar neste livro,
como citações e menções. „A bengala alienígena de Artaud‟, tido por „meio poema meio
manifesto‟. Ainda tem o „Bilhete para o Bivar‟, poema escrito no Parque da Água Branca, em
2007. E no poema dedicado a Luiz Roberto Ramos, Luciana Domschke e Marisa Adachi,
Piva faz referência a outra figura no título do poema „Os mil dias felizes do dr. Ferenczi‟
440
. E
ainda cita Marsicano,
441
cujo texto deixa claro de quem fala, quando lemos:
MARSICANO COM GUINDASTE
442
sua cítara dadaísta
é um verdadeiro
Tamanduá para
os cupins inimigos
deitado comendo sushi
na varanda do Inferno
sem data para visitar
Shiva
enquanto Glauco Mattoso
abençoa as botas
de alpinismo
de D‟Annuzio
no Parque do
Carmo você
reencontrou seu karma
de Arcanjo Miguel
com a garrafa de
conhaque na
gaveta
Jardim Botânico, 2007
440
Referindo-se, provavelmente, a Sándor Ferenczi, um dos mais íntimos colaboradores de Freud.
441
Alberto Marsicano é um conhecido citarista paulistano, poliglota e tradutor, conhecido por “O Zen-
umbandista underground”, fazendo jus ao círculo de amigos, também conhecido por Poeta-Xamã”, Roberto
Piva. O repertório desse músico mistura o oriental com o ocidental, o pop com o erudito, como nos CDs em
que toca Villa Lobos, Eric Satie, Debussy, mas também toca tara elétrica misturada a batidas eletrônicas
contemporâneas.
442
De Estranhos sinais..., em idem, op. cit., p. 152.
249
Neste livro mais recente, Piva a impressão de estreitar seu círculo de interesses,
de prazeres e afinidades. O poema acima parece confirmar esta ideia. Num pequeno
convescote, uma boa mistura de música, poesia
443
, referências brasileiras as mais tradicionais
como o tamanduá (em letra maiúscula por pura deferência) e seus cupins, apreciando
paladares japoneses, narra situações pessoais, em que prorrogações de grandes conflitos, estão
associados a Shiva que, embora bélico e destruidor, é também deus dançarino. Shiva é mais, é
o deus da reunião cósmica dos seres - o deus da androgenia, da reconstituição do ser inteiro, e
o poeta enfatiza a apresentação dessa narrativa
444
em um entorno revigorante, como o Parque
do Carmo, anunciando, como é próprio do Arcanjo Miguel
445
, um caminho fundamental, o
estigma, um Karma (o caminho do aprendizado), tudo regado a conhaque.
O poema nos remete a um óleo sobre tela pré-impressionista, suave e agradável,
associando a cítara oriental, ao mais cético dos movimentos de arte do Ocidente, o dadaísmo,
usando um dos mais exóticos filhos da terra (lembremos do vingativo jabuti), que Oswald de
Andrade trouxe para demonstrar nossa antropofagia atávica, enquanto usufrui boa companhia,
um piquenique bucólico, cheio de propósitos engalanados, com bons eflúvios etílicos.
Essas narrativas que ocorrem em um sem número de poemas, agora, neste livro,
parece favorecer imagens, não como os grandes painéis nervosos da fase „paranoica‟, mas
aquarelas delicadas e divertidas, brincando com suas referências prediletas, divertindo-se com
seus amigos.
A lista de aproximações com aliados avançará pelos Manifestos, com o belo
„Quem tem medo de Campos de Carvalho?‟, onde o poeta reafirma os laços anarco-
surrealistas que os une, construindo um poema enxuto, viril e cadenciado, onde enumera (para
que não se esqueça) as verdades da vertigem.
443
Glauco Matoso não é mero poeta, mas poeta-performance, de grande poder perturbador, Glauco é híbrido e
andrógino, é pecaminoso, escatológico, trágico e hilariante. Glauco Matoso não será nunca, um suave
comensal em um piquenique - se está presente, os ventos também estarão.
444
O poema sugere a narrativa da estranha história de Marsicano e seu avô alpinista, que o induziu a alcançar o
Everest, mas que teve o mapa e indicações de seu avô, morto anos antes, destruídos por sua avó, receosa de
que o neto acompanhasse a sugestão feita.
445
Esse arcanjo, de natureza ambígua, reúne em si duas fortes naturezas: uma bélica, destruidora, e outra, como
anunciador de partos e protetor das grávidas (grávidos?), por isso, foi o personagem angelical a avisar Maria
sobre seu futuro - Karma.
250
TARDE SABOR DE VINHO
446
Para o Dinho & Jorge Mautner
chupando o pau do
Saci
duas meninas & um
garoto ruivo
se deliciam no pasto
dos búfalos
cochilando debaixo da
mangueira
dois brasileiros &
um turco sonham
com Mussolini
levando mensagens para
o Exu de Serviço
sem pressa & rezando
muito
acabam empacotados
por duas lagartas
chapadas de haxixe
Diz Paz: “a piada e o poema, são expressões do princípio do prazer, vitorioso por
um instante sobre o princípio da realidade
447
. Carnavalizando em francas risadas sobre sérias
bases, evoca Cocanha, a terra mítica, mais que utópica, da alta Idade Média, quando a
preguiça era recompensada com patos assados voando destrinchados, dando rasantes por
sobre rios de leite, e por sobre o vale de lágrimas cristão, e sobre o vale de suor do castelão...
ai preguiça caipira, ai preguiça macunaímica, ai preguiça, Saci!
Jazem em tarde quente, com bom repasto em sítios pueris, traquinas e memoriais,
onde crianças voejam e se apalpam, descobrindo a transcendência de seus corpos e cochilos
entre amigos, sob o frescor das árvores de um sítio qualquer. Mato, mitos da floresta,
selvageria em harmonia com o bucólico dessacralizado, assim, quase silvestre - quase Exus de
quintal largado às fumaças. É a linguagem de corpos, sensual, da não razão, do princípio do
prazer - festa e subversão
448
.
Seu último poema-homenagem é dedicado a uma figura de grande impacto em
sua elaboração no „desarranjo‟ que foi sua arte e sua postura política: aquele a quem ele o
título de „Sua Excelência o Marquês de Sade‟, usando Michael McClure a guisa de reforço
esclarecedor, quando o cita em epígrafe.
446
De Estranhos sinais..., em idem, op. cit., p. 160.
447
PAZ. Conjunções e Disjunções. op. cit., p. 22.
448
Idem, p. 18.
251
SUA EXCELÊNCIA O MARQUÊS DE SADE
449
“esta sociedade é uma gaiola para os mamíferos”
Michael McClure
fora da tribo
um anjo de outrora
solidão cercada de
bugigangas
as águias me atravessam
por todos os lados
os brasões são TOTENS
contra Eguns
você dança o samba de
EROS
Cavalgando o cometa
da POESIA
Estranhos Sinais de Saturno é o livro de um „retirado‟. Embora preso na
megacidade, Piva misturou sua grande persona amalgamada, sua grande mistura
desfronteirada, com sujeitos-elementos de outra esfera de relações: animais postos em
interpolações, cruzados entre outros portais de uma realidade mágica, mas não ascética.
Visionária, mas não ingênua. Cínica, mas carnavalizada.
O poema parece comentar do entulho histórico que sobrecarrega antigas „verdades‟
culturais. Elas restam sob entulhos de crenças, perturbadas em sua santidade pelos voos
rasantes de outras percepções e olhares, por mais que lancem anteparos, escoras, muros,
empecilhos e ameaças. Eguns erotizados, vivos e carnavalizados, perpassam antigas tribos
fechadas, corroídas pelo mofo e pelo medo, atingidas por requebros de corpo, de sons, de
ritmos, de toques e desejos vivazes... adornando Sade.
Esse poema interpenetra muitos planos, desvendando-os. não uma única lei,
ou tribo, ou teogonia, pois que todos os seus elementos estão rearranjados, dentre os anjos,
águias, totens, Eguns e Eros, no grande cometa poético inventado pelo poeta.
MANIFESTO DO PARTIDO SURREALISTA-NATURAL
450
Para Arthur Bispo do Rosário
449
De Estranhos sinais..., em idem, p. 162.
450
De Sindicato da Natureza, em Estranhos sinais... op.cit., p. 184-5.
252
& Immanuel Velikovsky
“A alegria é a prova dos 90”
Zé Celso
“Mágicos de todo o mundo, uni-vos”
William Burroughs
+XAMANISMO+ RTAUD + RIMBAUD + LAMANTIA + LAUTRÉAMONT
+STIRNER+FÍSICA QUÂNTICA+ECOSSISTEMAS INTOCADOS+
PLANTAS ALUCINÓGENAS + CANDOMBLÉ + AROMATERAPIA +
ERVAS MEDICINAIS+ DROGAS PSICODÉLICAS + RITUAIS DE
TERROR + YOGA TÂNTRICA + DIONISISMO ORACULAR+INVENÇÃO
DE ORFEU + COLTRANE + JOHNNY ALF + JOBIM + EGBERTO +
HERMETO + CAZUZA + ORGIA TÂNTRICA + CATIMBÓ + UZINA
UZONA + TERREIRO ELETRÔNICO + EDGAR CAYCE + ELIPHAS LEVI
+ POESIA SMICA + PARACELSO + H.P. LOVECRAF + ROBERT
SHEKLEY + POLÍTICA DO ÊXTASE + GRANDE SERTÃO +
MESCALINA MANÍACA DE MICHAUX + OSCARITO + GRAFITES
SAGRADOS DE JOHN HOWARD & MAURÍCIO VILAÇA +
ANARQUISTAS COROADOS + CRUMB + ANGELI + MILO MANARA +
PETRÔNIO + PAISAGENS DESUMANAS + FABRE D‟OLIVET + JIM
MORRISON + MESA DOS ORIXÁS + BENÉ FONTELES + PIRAHY +
RUBEM VALENTIM + WESLEY + CHAPADA DOS GUIMARÃES +
IGUAPE + JURoia + TAMBORES DA NOITE + MAGIA + MIRONGAS +
MANDINGAS + CARMINHA LEVY & OS NOVOS XAMÃS + AMOR +
HUMOR + TÃO DA FÍSICA + FRANK O‟HARA + ALEITER CROWLEY +
LIVRO DOS MORTOS + BARDO TODOL + IMAGENS DO
INCONSCIENTE + RELIGIÃO DOS TUPINAMBÁS + CREVEL +
GAROTOS CAIÇARAS + GAVIÃO PRETO + HILDA HILST PORNÔ +
EXPRESSIONISMO ALEMÃO + FERENCZI + PASOLINI + ARQUÉTIPOS
+ CONHECIMENTO ILUMINAÇÃO + MISTÉRIOS ELEUSIS +
HELIOGÁBALO & SEUS VESTIDOS DE GAROTO LUZ + AMANITA
MUSCARIA + RODRIGO DE HARO & SUA POESIA DE SEGREDOS +
JOÃOZINHO TRINTA + ALMA SAXTENORIZADA DA BEAT +
REVERDY + ARQUIVOS INSÓLITOS DE GYORGY FORRAI + SERRA
DO MAR + JACOB BOHEME + YANOMAMI + SIGNATURA RERUM +
BOB KAUFMAN + OBRA EM NEGRO + SANDRO PENNA + DINO
CAMPANA + RELAÇÃO ERÓTICA COM O MUNDO + DANTE + FEIJÃO
253
PRETO + SAUNAS + FUTEBOL DE VÁRZEA + AFOXÉ DE JORGE
MAUTNER + CONTROLE DEMOGRÁFICO + AVES DE RAPINA +
ARRUDA + COGUMELO + JUREMA + MALCOM DE CHAZAL + KURT
SELIGMAN + ARRABALDES + ÓVNIS + PAIXÃO + TESÃO +
ANARQUIA + MOQUECA DE PEIXE + BEIJOS NO ESCURO + FODAS
SOLARES + PRAIAS DESERTAS + DANÇAS + VINHO + RALPH
CAMARGO & O TARÔ DE TERESÓPOLIS + TRIBO PRESENTE FUTURA
DOS DELIRANTES CAVALEIROS APAIXONADOS CARNAVALESCOS
BACANTES DA ORGIA PERMANENTE
EVOÉ LAROIÊ - JUQUITIBA 90
Grande homenagem a Arthur Bispo do Rosário, base formal dos painéis-
manifestos do louco-gênio, e da soma de tantos renegados, cigarras do planeta, estopins de
saltos civilizatórios que pleitearam o direito ao prazer. Embora deixem marca, não buscam
nova configuração fechada, como a revolução, seguindo análise de Paz, mas é generosa,
caótica, perigosa e romântica como os revoltados. Quer sob o humor, quer sob a festa, quer
sob o rito.
o poeta e o romancista constroem objetos simbólicos, organismo que emitem
imagens (no caso texto). Fazem o que faz o selvagem: convertem a
linguagem em corpo. As palavras não são coisas e, sem deixar de ser
signos, se animam, ganham corpo
451
.
E corpo é o que imprime o poeta para além das palavras, num poema todo em
caixa-alta, gritado, gfico, grande, espalhado, espaçoso, em permanente suspense como se,
após o grande painel, pudesse narra uma paz que já não lhe interessa.
O riso, a escatologia, incorpora a verdade que vela e expõe. A dúvida se instala, e
a rigidez do discurso hesita. O desaforo de jogar com instâncias tão canônicas como a ciência,
os ritos de passagem, não negam, mas rompem as distâncias e humanizam as buscas por
novas percepções. O riso é bárbaro, e baixo e real. Diz Bakhtin: “o riso tem um profundo
valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade
451
PAZ. Conjunções e Disjunções. op.cit., p. 18.
254
sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem”
452
. A obra do poeta,
frequentemente faz uso desse riso debochado, jubiloso, e relaxado, expondo uma
autoconfiança, inusitada para temas tão ligados à violência, discriminação, perseguição,
morte, intolerância e arrogância. Esse riso que não se cala, foi reconhecido desde Aristóteles
quando afirmou que o riso era considerado um privilégio espiritual supremo do ser humano.
Grande parada de tantos amores, velhos, novos, hodiernos, eternos, retornados.
Das histórias em quadrinhos, parte de sua arte de formação confessada, ele enfileira Robert
Crumb, o grande desatino dos anos sessenta, quadrinista que morria de tesão por roliças
potrancas que cavalgava literalmente, enfileira ainda, ao rol de seus prazeres, o Angeli, figura
que se permite devaneios plásticos, em plena crise de criatividade, colado ali com tantos pares
impossíveis, cada qual uma grande história, uma grande referência, riquezas de tantas culturas
- apropriações débitas.
De fato, Piva e seu grande séquito de loucos catastrofistas não fogem dos
impactos, admitem o convívio com a ruína, não produzindo ideais de destruição sanitária. Não
produzem utopias acabadas. Apenas algumas linhas são necessárias: variedade, não
hierarquia, não destruição, não competitividade e controle de natalidade.
Neste grande painel de querências e intimidades, somam-se admirações, amizades,
solidariedade e, sub-repticiamente, um sonho se desenha, que poderíamos chamar, não sem
uma boa dose de humor, de Projeto Ético-Estético-Lúdico-Erótico-Existencial-Místico-
Ecológico-Utópico-Fundamental-Optativo.
Estar no planeta é estar inserido, não importa como. Os chamados “excluídos”
fazem parte do “exército de reserva”, os reguladores e mantenedores dos salários baixos.
Além disso, os excluídos têm sido imprescindíveis na produção e ampliação de uma
infinidade de indústrias ligadas ao medo, à defesa de patrimônio, a defesas físicas e
familiares, desde artes marciais e todas as traquitanas ligadas a elas, academias, câmaras,
coletes a prova de balas, até armamentos, guarda-costas, blindagens de carros etc, que
ampliam as riquezas de novos segmentos financeiros, interessados na manutenção do caos.
Em uma análise conjuntural muito precisa dos anos „80, válida até hoje, Cazuza ataca:
“Transformam o mundo inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”
453
Por isso a manutenção da revolta, sem os grandes ideais revolucionários, crava
uma cunha sobre um meio-ambiente racionalista, fundamentalista (não apenas a cristã), já que
452
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento - o contexto de François
Rabelais. 4. ed. São Paulo/Brasília: Hucitec, 1999. p. 57.
453
De 'O Tempo não pára'. Canção de Cazuza e Arnaldo Brandão, de 1989
255
novas monstruosidades e desequilíbrios se levantam dentre judeus e muçulmanos. As grandes
religiões se agitam, se engalfinham, devastam e trucidam - ao planeta, a seus inimigos e a si
mesmos. A cunha da revolta não permite que o aperto, inevitável, de um entorno degradado se
abata sobre si. Não é o manter-se quieto, humilde, acomodado, conformado. Não é o manter-
se bélico, confiante na transformação dos regimes, nem apostando na consciência massificada
dos indivíduos que, cada vez mais, dobram-se à indigência cultural. É manter-se em revolta
erotizada, em jogo criativo não confinado, é a recriação oportunista pelas frestas de todos os
ambientes - é esculhambar, é permitir perder-se ensandecido em sagradas e profanas
experiências, é criar, ao invés de cumprir. É permitir-se não saber tudo, apostando no mistério
que se escapa. E o poeta indaga: Quando nossos poetas vão deixar de serem brochas para
serem bruxos? Quando nossos poetas vão cair na vida?”
256
Foto: Mário Rui Feliciani
257
CONCLUSÕES... (?)
Este estudo, inicial e geral, não possui a pretensão de abarcar a obra como um todo,
tendo percorrido apenas alguns poucos poemas de cada um dos livros publicados dentre a
extensa produção do poeta. Devido ao tempo exíguo de que se dispõe e da grande riqueza e
complexidade da obra, foi necessário optar dentre caminhos desconhecidos até para a autora,
uma vez que obedeceu a escolhas ligadas ao prazer, ao desafio, ao humor e a outras
associações eletivas. Sem ousar afirmar uma neutralidade científica, o estudo buscou se
apossar de todo o arsenal de que se dispõe, quer seja intelectual, como o afetivo, o memorial
e, certamente, o científico, no encalço de um entendimento deste caudaloso veio poético,
somado as suas reconhecidas ousadias, mas também seus desafios e abismos.
Piva fez uso do Surrealismo, da Psicodelia e do Xamanismo para o mesmo
objetivo: libertar o corpo no espaço, propondo o sexo libertário, na íntima interpenetração
com toda a natureza de forma panteísta e sem culpas, incorporando infinitas vozes,
referências e experiências, fossem eruditas, populares, tradicionais ou de massa.
Embora sua obra tenha sido dividida em fases, quando de fato outros tempos eram
experenciados influenciando sua linguagem, muito de suas concepções e interesses iniciais
jamais foram modificados, mas apenas somados. Ainda que a primeira fase tenha sido
chamada Surrealista, parte dessa visão e escrita o acompanhou até o final de sua produção,
com a manutenção da escrita em fluxo de consciência e associações de imagens por condução
inconsciente. Na segunda fase, a Psicodélica, manteve da fase anterior as investidas sob
drogas em cenários de grande fragmentação imagética e de interconexões narrativas,
somando-se a um pano de fundo em que a ditadura e um mundo mágico e natural se cruzam
com grande força de simbolismo e desafios. E ainda na terceira e última fase, a Xamânica,
observamos indícios dessa visão stica e mágica sobre o mundo de forma mais enfática,
ainda que siga dialogando com tantas vivências urbanas, desde as memoriais, passando pelas
fraternas e, acima de tudo, reunindo sempre as referências literárias e culturais, que
construíram no poeta esse desejo maior de mergulhar e dividir sem receios num mar de
referências que o acompanharam até o fim.
Das fortes experiências urbanas da juventude, paulatinamente, vai se
embrenhando nas matas, nas magias, nos percursos místicos africanos e indígenas, como
uma segunda porta de acesso ao conhecimento. E não apenas em contatos diretos com essas
culturas, mas também por extensas leituras de Mircea Eliade, e tantos poetas místicos, como
258
Trakl, Blake, Baudelaire e outros que conduzem o poeta para mundos apenas intuitivamente
conhecidos.
Pode-se dizer que „seu‟ Surrealismo, bem como a Psicodelia e o Xamanismo,
sempre foram traços de seu percurso, não apenas poético, mas serviram também como pontes
na construção de uma ética que pudesse libertar seu corpo e de seus amigos e amores das
amarras virtuais que a ideologia se encarrega de impor, esquematizadas e inscritas sobre um
território cujo desejo e escrita estão acoplados a um plano político que ele tenta desnudar e
desmascarar a cada poema.
O próprio Piva dá pistas desse caminho poético, quando solicitado por Weintraub a
comentar suas obras em Paranoia a Ciclones, sobre uma possível continuidade ou ruptura,
de um extremo a outro, ao que Piva afirma entender sua obra como continuidade. E esclarece:
“Minha experiência xamânica intuitiva está no Paranoia e a consciência xamânica em
profundidade está em Ciclones
454
.
A percepção na persistência de suas linhas de sustentação ética desde o início é um
fato. Seus combates incluem uma liberdade sobre o verso que beira a narração, o poema em
prosa estrito senso, com fluidez, onde o fugidio dos sentidos por sobre reais ideias expressas
desde o Surrealismo, seguem pelos manifestos. Esse escorregar dos versos acaba por imprimir
uma leitura que se faz bêbada, solta, e que avança às vezes por cambalhotas, e às vezes por
quedas vertiginosas, sem cumprir a regra da coerência clássica.
Sua melhor leitura parece ser aquela que é feita por um „jogar-se‟ no vazio
aparente de sentidos. Tentar desvendar e decodificar suas linguagens é frear o filme, o jazz e
os tambores que acionam o grande painel sensorial que constrói e oferece poeticamente. E
esse jogar-se ocorre na estética, mas mais ainda, enquanto ética - uma vez que, mesmo na
linguagem o pistas de uma fórmula, isto é, segue se jogando para não criar limo, para
propor o sentir sobre o desvendar, embora seja nesse mistério mesmo que suas leituras vão
sendo aclaradas.
Assim é que o Surrealismo, a Psicodelia e o misticismo atravessam a obra do
poeta, carregando a função de combater, de propor, de instigar, dar e ter prazer. Reafirma
também, conforme dito, a união entre os amigos, a aproximação da grande riqueza que é a
tradição cultural ocidental, o magma místico que mistura norte, sul, leste e oeste do planeta,
num caldeirão iniciático de muitas entradas, e muitas saídas, onde Piva cozinhou de Jane
454
WEINTRAUB. Entrevista com Roberto Piva. Revista Eletrônica WebLivros. op.cit.
259
Birkin a Marquês de Sade, de Saci Pererê a Novalis, e aseu folclórico antepassado herético,
Girolamo Piva, Il cavalier ghibellino.
Nessa trajetória poética, entre muitas vivências que ousou experenciar e expor, à
maneira dura e veraz de pensar o corpo, seu e de seu tempo sob os limites impostos por
instituições bem demarcadas e apontadas, abriu espaço de forma quase belicosa. Não apenas
não pede passagem, mas alveja potenciais empecilhos, por mais normativos que sejam. Num
período histórico em que ser homossexual ainda é visto como “situação delicada”, Piva tornou
público e advogou, pelo direito à pederastia - formato inter-relacional amoroso e sexual
tratado com pudicícia e cautela por autoridades de toda ordem - seja a jurídica, a judicial, a
legislativa, além de todas as instituições normativas clássicas, como escolas, igrejas, hospitais
e, claro, quartéis. Piva não se furtou em expor um desejo em seus muitos aspectos, tratando-o
com muitas tintas: do sublime ao ganancioso, passando pelo pedagógico e o impulsivo. A
defesa desse desejo pode o parecer tão ousada para os dias atuais, mas sua obra vem
tratando desses aspectos espinhosos (para muitos), quase meio século, sem que simule,
dissimule, disfarce, edulcore ou demonstre qualquer forma de constrangimento. Mais do que a
exposição de um diário, Piva tratou estética e eticamente, a visão de corpos tidos por tabu,
estando associados a formas de pureza e aprendizado, apoiado nos ensinamentos da Paideia
da tradição grega.
Para que sua visão pudesse se firmar em um corpo jurídico e moral tão adverso,
investiu contra as barreiras mais fortificadas da Igreja e seus seguidores - falsos e crentes.
Mas tanto hipócritas quanto convictos, tratou-os de modo igual: como monumentos à tirania,
ao empobrecimento do mundo físico, amoroso e social.
Foi pela via do impedimento do corpo que Roberto Piva estendeu sua compreensão
para o meio-ambiente, quando percebe que a mesma mentalidade que oprime corpos, a
serviço de seus propósitos de controle, ocupa o espaço degradando-o, por vê-lo também, a
serviço do mesmo desejo de poder, e para tanto, elabora a destruição do equilíbrio de ambos.
Foi nesta encruzilhada que ficou claro seu entrelaçamento com a obra e pensamento de
Guattari em sua defesa pelas Três Ecologias (meio ambiente, subjetividade e meio de
convívio interpessoal, o social).
Em seu processo de afastamento e desligamento da grande cidade, onde esses
desequilíbrios são mais acintosos e opressivos, i construir outra maneira de vivenciar o
corpo e o espaço, e o corpo no espaço.
Rejeitando o cristianismo imperante em sua sociedade e tendo acesso a outras
formas possíveis de vivenciar a religiosidade, Piva aprende com os loucos, ou quase loucos,
260
como Blake, Baudelaire e Rimbaud, formas radicais de investir, amorosamente, contra o
cristianismo. Em desespero de abandono cósmico e ontológico, suas investidas são doloridas
e magoadas. É quando se encanta por rompimentos possíveis e mais felizes, com os budismos
de Ginsberg, Snyder e outros. A beat o se pretende consequente, nem pleiteia ser levada a
sério ou respeitada, como o Surrealismo. A beat não se droga para „romper‟ e „aprender‟ - ela
quer simplesmente „enlouquecer‟ e „curtir‟, pois romper e aprender serão consequência.
Piva terá sua própria trajetória, já que vive, mesmo antes da ditadura militar,
implantada em uma sociedade altamente repressora, e mau cristã - pois dele (do cristianismo),
aprende seu moralismo e o sua amorosidade, como a acusa. Aproveitando a busca pela
rusticidade da Contracultura, icomeçar a amarrar várias pontas soltas de sua formação: sua
iniciação mística da infância; sua biblioteca vasta, sempre renovada e inquieta, que atravessa
„malditos‟ a canônicos, sem desperdiçar talentos; sua convivência com amigos de espírito e
criatividade privilegiados da juventude, com quem divide experiências pesadas e opressivas
na cidade que se fez mega sob uma ditadura bronca e violenta. E ainda soube somar uma vida
profissional na troca e contato com os adolescentes que sempre encantaram e inspiraram seu
espírito. Além disso, Piva somou o conhecimento com alteradores de consciência que o
levaram a lugares reais e mágicos, com incursões pelo interior do país, onde aprofundou com
culturas ancestrais os conhecimentos mágicos que sempre o instigaram.
Nessa trajetória ele encontra o amálgama que formou esse POETA-XAMÃ,
personagem ou não, metáfora ou não, como suspeitam alguns leitores, tendo sido o catalisador
dessas muitas vertentes poéticas e éticas: a liberdade de corpo, o rompimento com o tempo
eficiente do capital, a variedade de possibilidades de existência e de buscas existenciais, o
arsenal teórico-poético de que se armou para combater e proteger a ambiência planetária a
fauna, a flora, a cultura e a erótica, entendida por sua versão mais ampla: o tesão pela vida.
Enfrentando críticas frontais e veladas, Piva cavou um nicho seu de liberalidade,
apoiado em um círculo pequeno, mas suficiente, para que não sucumbisse, e pudesse
atravessar cinco décadas de produção e veiculação de seu trabalho que, por sua presença
teatral e performática - deu vida e voz a suas palavras perturbadoras, controvertidas e por
vezes, de belezas inesperadas.
Sua poesia costurou uma via de incluir enormes vácuos morais em uma sociedade
que se autoproclama, vaidosamente, democrática, sendo constantemente desmascarada por
ele. São ações poéticas, mas também políticas, que apontam para vários pontos obscuros
mantidos no silêncio pela turbulência que podem causar.
261
É na provocação dessas marolas que Piva se manteve confirmado pelos
esgotamentos sistemáticos de suas obras editadas, pelos convites que recebeu para palestras,
entrevistas e recitais, e também por centenas de sites associados a sua obra e pessoa que, por
si só, continuam gerando controvérsias e debates. Seja na pele do poeta maldito, ou como
poeta étnico, ou bélico, ou erótico, seja por ser pederasta, ou homoerótico, ou xamã ou tudo
isso junto, a obra de Roberto Piva segue causando polêmica. Com sua verve, impulsão e
desejo de mudança de um quadro racionalista, monoteísta, autoritário e predatório, ele
convida a grandes butins e vastos festins, numa linguagem ecológica, no sentido em que
demonstrou querer oferecer a riqueza do caos, contrário à busca angustiada por certezas vãs.
Tomando o desequilíbrio por natural, convida aos corpos que se embrenhem e se
percam em poemas-vivências que se alastram, por não temerem as névoas, os empecilhos e os
mistérios. Termina por produzir uma obra que abarca todas as insanidades e possibilidades
contra a turma do „deixa-disso‟, para uma poética bêbada de vida e magia.
Como essa obra não pede autorização para circular e ser relida, não pede direitos
também para polemizar e estar, dando livre curso a um fazer que circula e acontece, a
despeito de uma possível licença que possa lhe ser negada. Por isso, nessa trajetória, muitas
das questões levantadas pelo poeta não foram defendidas por este trabalho, abrindo mão de
seu julgamento, e tomando por certo apenas, o direito que sua obra se estabeleça, construindo
polêmicas e provocando controvérsias.
E dando abertura a que a potência dessa obra possa atingir outros tantos leitores
ávidos e insaciáveis, como o próprio criador destes tantos versos se manteve até seu final,
podemos nos fazer canal de acesso para outras tantas vivências poéticas que façam coro ao
chamamento que o poeta lança no ar:
XAMÃS DE TODO O MUNDO, ESPALHEM-SE !
262
Foto sem autoria identificada
263
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