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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO LETRAS E ARTES CELA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE-
MEL/UFAC
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: IDENTIDADE
LINHA DE PESQUISA: CULTURA E SOCIEDADE
WHELITON SOUZA DA SILVA
AS HISTÓRIAS COMANDAM A VIDA: PARÁFRASE, PARÓDIA E
CARNAVALIZAÇÃO EM A ILHA DA CONSCIÊNCIA, DE SÍLVIO MARTINELLO
Rio Branco/Ac
2011
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE
CENTRO DE EDUCAÇÃO LETRAS E ARTES CELA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
COORDENAÇÃO DO MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
PROGRAMA DE MESTRADO INSTITUCIONAL EM LETRAS: LINGUAGEM E
IDENTIDADE- MEL/UFAC
LINHA DE PESQUISA: CULTURA E SOCIEDADE
WHELITON SOUZA DA SILVA
AS HISTÓRIAS COMANDAM A VIDA:PARÁFRASE, PARÓDIA E
CARNAVALIZAÇÃO EM A ILHA DA CONSCIÊNCIA, DE SÍLVIO MARTINELLO
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado Institucional em Letras da
Universidade Federal do Acre, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Letras: área de concentração
Linguagem e identidade sob orientação da
Prof. Dra. Simone de Souza Lima.
Orientadora: Prof. Drª. Simone de Souza Lima
Universidade Federal do Acre
Rio Branco/Ac
2011
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SILVA, W. S. DA, 2011.
SILVA, Wheliton Souza da. As histórias comandam a vida: paráfrase, parodia e
carnavalização em A ilha da consciência, de Sílvio Martinello. Rio Branco: UFAC,
2011. 171f.
Ficha catalografica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC
Marcelino G. M. Monteiro CRB 1- 258
S586h Silva, Wheliton Souza da, 1980-
As histórias comandam a vida: paráfrase, parodia e carnavalização em A
ilha da consciência, de Silvio Martinello / Wheliton Souza da Silva -- Rio
Branco : UFAC, 2011.
171f. : il.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade) Centro de
Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre - UFAC.
Orientadora: Profª. Drª. Simone de Souza Lima.
Inclui bibliografia
1. Acre - História. 2. Paródia acriana. 3. A ilha da consciência Romance
acriano. 4. Martinello, Silvio escritor acriano. 5. Língua portuguesa
Paráfrase. I. Título.
CDD: 801.957098112
CDU: 82-7(811.2)
CENTRO DE EDUCAÇÃO LETRAS E ARTES CELA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
COORDENAÇÃO DO MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
PROGRAMA DE MESTRADO INSTITUCIONAL EM LETRAS: LINGUAGEM E
IDENTIDADE- MEL/UFAC
LINHA DE PESQUISA: CULTURA E SOCIEDADE
WHELITON SOUZA DA SILVA
AS HISTÓRIAS COMANDAM A VIDA: PARÁFRASE, PARÓDIA E
CARNAVALIZAÇÃO EM A ILHA DA CONSCIÊNCIA, DE SÍLVIO MARTINELLO
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado Institucional em Letras da
Universidade Federal do Acre, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Letras: área de concentração
Linguagem e identidade sob orientação
da Prof. Drª. Simone de Souza Lima.
Orientadora: Prof. Dra. Simone de Souza Lima
Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação apresentada e aprovada
pela Banca Examinadora em: ____de_____________de________, com média
_____(____)
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Drª. Simone de Souza Lima (orientadora)
____________________________________
Prof. Drª. Margarete Edul Prado Lopes (membro)
_____________________________________
Prof. Drª. Luciana Marinho (membro)
Rio Branco/Ac
2011
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por tudo que me deu e por tudo que ainda me dará, se
assim for sua vontade. Também agradeço a todas as pessoas que de modo direto ou
indireto me ajudaram nessa jornada, principalmente à família e aos amigos. Entre
meus familiares, destaco minha avó Terezinha Maria de Souza, minha mãe Maria
das Neves de Souza Marques, minhas tias Nilda, Franha, Dilva e meu tio Zé Cigarra.
Não posso deixar de agradecer também aos meus irmãos Wilton e Francisco
e, principalmente, à Nadja, pela correção do texto, pelas comentários críticos que
ela entre os meus parentes, por ser formada em Letras, poderia me dar. Dificuldade
enorme achar alguém que se disponha a ler o que a gente escreve.
Entre os amigos, agradeço ao Luiz Braz, Luiz da Silva, Paulo Henrique,
Gonçalvez e Iriscélio. Uma amiga especial que conheci no mestrado também,
Rauana Batalha, que tanto me incentivou a continuar, a não desistir, apesar dos
obstáculos que se impunham diante de mim. Foi uma grande jornada! Trabalhar,
fazer o curso Direito da UFAC ao mesmo tempo em que fazia as disciplinas do
mestrado em Letras e mais uma especialização em Direito Ambiental pela
Universidade Federal do Mato Grosso, foi dureza.
Uma pessoa que não posso colocar entre os amigos nem entre os parentes é
o meu ex-padastro que foi casado com minha mãe por quase vinte anos, o senhor
Sebastião Gomes de Abreu, a quem também agradeço.
Agradeço, ainda, à minha orientadora, pela inestimável ajuda, pelas ideias
despertadas em mim, por tantas outras aproveitadas neste trabalho e, acima de
tudo, pela dedicação, paciência e apoio não só intelectual, mas, sobretudo, moral e
emocional.
Agradeço, ainda, especialmente à professora Margarete Edul Prado Lopes,
tanto por sua presença em minha banca, quanto pelas conversas prazerosas e
extremamente úteis ao desenvolvimento desta dissertação. Da mesma forma,
agradeço à Professora Luciana Marinho, por ter aceitado participar de minha banca
e pela forma sincera mas sem rudeza em suas críticas.
Por sua ajuda no início do meu mestrado, agradeço também ao Prof. João
Carlos de Carvalho, cuja orientação não foi bem sucedida devido a diversos
problemas que tive, bem como a dificuldade de uma orientação à distância. A sua
decepção quando conversamos que seria melhor eu trocar de orientador e sua
descrença na possibilidade de eu concluir a dissertação no tempo adequado e com
um trabalho de boa qualidade por causa da mudança na orientação, me
incentivaram a querer provar o contrário, que eu iria terminar no tempo correto e
ainda faria um trabalho de qualidade.
Por ter sido minha orientadora desde os idos da faculdade de Letras, também
não posso deixar de agradecer à professora Olinda Batista, especialmente por tanto
me ter feito ler naqueles tempos de graduação e tanto insistir que eu devia trabalhar
um autor local na minha dissertação de mestrado.
Por fim, agradeço ao autor Sílvio Martinello e à Universidade Federal do Acre,
especialmente à coordenação do Curso de Mestrado em Letras.
SILVA, Wheliton Souza da. As Histórias comandam a vida: paródia e
carnavalização em A Ilha da Consciência, de Sílvio Martinello. Rio Branco/Ac, 2011.
182 p. Dissertação de Mestrado- Programa de Pós-graduação em Letras:
Linguagem e Identidade, Universidade Federal do Acre.
RESUMO
No presente estudo, concentramo-nos em analisar o livro A Ilha da Consciência
(AIC), do escritor Sílvio Martinello, em razão de ser esta uma obra complexa e
inovadora no âmbito da literatura de expressão acriana, tendo suscitado diversos
debates no meio acadêmico. O texto de AIC, constitui-se em capítulos que podem
ser lidos autonomamente e recontam a história do Acre por meio de um viés irônico,
crítico, às vezes paródico e carnavalizado, permitindo o debate sobre temas
fundamentais dessa história e opondo-se à visão oficial dessa mesma história. A
filiação à história demonstra uma preocupação com o sentido da terra, a defesa dos
excluídos e a busca de identidade(s), engendrando um discurso identitário que se
opõe ao discurso identitário divulgado pelo Governo do Estado do Acre. Além disso,
os procedimentos utilizados na escrita de AIC são uma inovação no âmbito da
literatura local e são notadamente hauridos de Márcio Souza, especialmente do livro
Galvez, Imperador do Acre. Devido a isso, no trabalho, utilizamos como à
metodologia capaz de encontrar as chaves de leitura de AIC os estudos de Bakhtin
(1981; 1987) sobre a paródia e a carnavalização, bem como estudos de Linda
Hutcheon, Beth Brait, Bergson, Afonso Romano de Sant'Anna, aos quais foram
acrescidas algumas poucas outras contribuições. A pesquisa foi bibliográfica,
partindo sempre de premissas gerais para chegar a conclusões particulares. Com
esse arcabouço metodológico e teórico, o primeiro passo da pesquisa para acessar
à escrita de A Ilha da Consciência, foi buscar o significado de uma ilha como
metáfora, para, depois, buscar seu simbolismo e diagnosticar uma trajetória
discursiva sobre o tema da Ilha da Consciência na literatura de expressão
amazônica e acriana. Em seguida, procuramos debater um dos aspectos mais
complexos da obra, qual seja, sua classificação quanto ao gênero, utilizando as
lições de estudiosos e críticos da literatura como Antoine Compagnon (2001; 2009),
Eagleteon (2001), Iser (1996), etc, procurando identificar os elos de ligação da
tecitura textual. Dessa forma, após um longo percurso, chegamos a algumas
conclusões a respeito de A Ilha da Consciência, entre as quais, que o viés irônico
permite tanto dizer que o próprio Acre é a Ilha da Consciência quanto permite a
urdidura textual e a utilização da mistura de tempos, a existência de vários
narradores, a atualização dos fatos históricos, etc.
PALAVRAS-CHAVE: História, Acre, Paródia, Consciência
SILVA, Wheliton Souza da. Las Historias gobiernan la vida: La parodia y la
carnavalización en A ilha da Consciência, de Sílvio Martinello. Rio Branco / AC,
2011. 182 p. Tesis de Maestría, Programa de Posgrado en Literatura: Lengua e
identidad, de la Universidad Federal del Acre.
RESÚMEN
En este estudio, nosotros hacemod el análisis del libro A Ilha da Consciência (AIC),
del escritor Sílvio Martinello, debido a que esta es una compleja e innovadora en la
literatura de expresión acriana, que ha iniciado varios debates en el ámbito
académico. El texto de la AIC es en capítulos que pueden leerse de manera
independiente y cuentan la historia del Acre por medio de un sesgo irónico, crítico y,
a veces paródico y carnavalizado, permitiendo el debate sobre las cuestiones
fundamentales de la historia y haciendo la introducción de un punto de vista opuesto
al oficial de esa historia. La filiación a la historia demuestra una preocupación por el
significado de la tierra. O sea, la defensa de los excluidos y la búsqueda de las
identidad(es), generando un discurso de la identidad que se opone al discurso de la
identidad emitido por el Gobierno del Estado de Acre. Además, los procedimientos
utilizados en la escritura de AIC son una innovación en el ámbito dela literatura local,
por medio de procedimientos y técnicas copiados del escritor Marcio Souza, en
especial en el libro Galvez, Imperador do Acre. Debido a esto, en la investigación
nosotros utilizamos para encontrar las claves de lectura de AIC de las teórias de
Bakhtin (1981; 1987) acerca de la parodia y la carnavalización, asy como de otros
estudios de Linda Hutcheon, Brait, Bergson, Afonso Romano de Sant'Anna. Con este
marco teórico, junto con algunos otros aportes, el primer paso en la investigación,
para mirar a la escritura de A Ilha da Consciência, buscamos el significado de una
isla como metáfora, después, buscamos su simbolismo y el discurso en el camino
para el diagnóstico de lo tema de la isla de la consciencia en la literatura de
expresión amazónica y acriana. En la continuación, analisamos uno de los aspectos
más complejos de la obra, es decir, su clasificación de acuerdo al género, por medio
de las lecciones de Antoine Compagnon (2001; 2009) y otros estudiosos, tratando
de identificar los vínculos de la estructura textual. Así, después de un largo viaje,
hemos llegado en el trabajo a algunas conclusiones acerca de A Ilha da
Consciência, señalando que el vies ironico es el responsable por la urdidura textual,
permitiendo las inovacciones como la mistura de los templos cronologicos, la
existencia de muchos naradores, la actualizacion de los eventos históricos, entre
otras cosas.
PALABRAS LLAVES: Historia, Acre, Parodia, Consciencia
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1- Capa do livro, 17
TABELA 1, Crescimento populacional de Rio Branco,
27
TABELA 2 - Serviços básicos de saneamento, 28-29
TABELA 3 Comparação entre a visão euclidiana e
AIC, 89
TABELA 4 - Comparação estatística entre as partes da
obra, 112
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIC- A Ilha da Consciência
GIA- Galvez, imperador do Acre
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 10
CAPÍTULO 1- ANÁLISE ICONOGRÁFICA DE A ILHA DA CONSCIÊNCIA
1.1 O que é uma Ilha?, 14
1.2 O Acre como Ilha da Consciência, 16
1.3 crítica social: Amazônia e isolamento, 22
CAPÍTULO 2- MAPEAMENTO DO IMAGINÁRIO SOBRE A ILHA DA
CONSCIÊNCIA
2.1 Os discursos e o imaginário sobre a Amazônia, 35
2.2 A origem da ilha da Consciência, 39
2.3 Paródia e carnavalização em A Ilha da Consciência, 48
CAPÍTULO 3- AIC: FICÇÃO OU JORNALISMO?
3.1 Discurso ficcional e discurso jornalístico: convergências e divergências, 64
3.2 As teias da urdidura textual, 73
3.3 AIC: gênero híbrido, 82
CAPÍTULO 4- SÍNTESES ANALÍTICAS E COMENTÁRIOS: O ACRE PRÉ-
REVOLUCIONÁRIO
4.1 A divisão da obra, 85
4.2 Síntese dos capítulos, 86
4.3 Visão parcial, 110
CAPÍTULO 5- SÍNTESES ANALÍTICAS E COMENTÁRIOS: O ACRE
REVOLUCIONÁRIO
5.1 Plácido, o herói revisitado, 112
5.2 Síntese dos capítulos, 113
5.3 Visão parcial, 145
CAPÍTULO 6- SÍNTESES ANALÍTICAS E COMENTÁRIOS: O ACRE PÓS-
REVOLUCIONÁRIO
6.1 Do Acre Pós- Revolução ao Acre contemporâneo, 147
6.2 Síntese e comentários dos capítulos, 147
6.3 Visão parcial, 169
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 171
REFERÊNCIAS, 174
10
NTRODUÇÃO
A literatura como forma de expressão humana surge sempre à luz da cultura
de uma sociedade. Assim, estudá-la é também estudar e compreender a nossa
sociedade atual. Em especial, no Acre, ainda poucos estudos voltados para a
literatura de expressão local, embora a produção literária amazônica, da qual a
acriana faz parte, possua uma tradição já identificada e assinalada no trabalho de
doutoramento do Prof. João Carlos de Carvalho (2005), intitulado Amazônia
Revisitada: de Carvajal a Márcio Souza .
O primeiro estudo a respeito da produção literária de expressão acriana surgiu
apenas em 1996 com o trabalho de Laélia Rodrigues da Silva, intitulado Acre: Prosa
e poesia 1900-1990. Nesse trabalho, a pesquisadora realizou a primeira
sistematização sobre a produção literária do Acre, refletindo criticamente sobre essa
produção, além de identificar a busca contínua dessa produção em dialogar com a
literatura nacional. Entretanto, pela delimitação temporal não abarcou os escritos
mais contemporâneos tais como os de Sílvio Martinello e Florentina Esteves.
Outro trabalho de extrema importância é o de Lopes (2005), intitulado Motivos
da mulher na Amazônia: produção de escritoras acreanas no séc. XX, que investiga
a produção literária feminina no Acre, buscando delinear um perfil acriano nessa
produção, não pela diferenciação de vozes entre mulheres e homens escritores,
mas, sobretudo, pela diversidade de motivos e temas que as mulheres tendem a
insistir e perseguir (ALVES apud LOPES, 2005).
ainda uma gama de outros trabalhos voltados para autores específicos, no
entanto, nenhum trabalho, ainda, abordou uma obra relativamente nova no cenário
literário da região e que chamou bastante a atenção da academia devido às
inovações e experimentos que trouxe em seu bojo. Essa obra é A Ilha da
Consciência, lançada em 2003, de autoria de Sílvio Martinello, jornalista catarinense
radicado no Acre há mais de 30 anos.
A Ilha da Consciência, além do meio acadêmico, também teve ampla
aceitação no meio comercial (já está na terceira edição esgotada) e permite o
questionamento da tradição literária da região. Em razão disso, escolhemos trabalhar
A Ilha da Consciência, de Sílvio Martinello autor que publicou outros três obras:
Corações de
11
Borracha (2004), Amanda (2005) e Acre, onde o vento faz a curva (2010).
Em A Ilha da Consciência, tal como nos seus outros livros, Martinello, na
esteira dos historiadores contemporâneos, tenta representar de forma total a história
dos seringais numa visão que retrata uma clara opção pelas classes desprestigiadas
pela história oficial, a qual, se, por um lado, recentemente, vem elegendo o
seringueiro como símbolo de acrianidade e sustentabilidade, por outro, ao mesmo
tempo e contraditoriamente, engrandece personagens que foram cruéis seringalistas.
A opção pela defesa do seringueiro reflete o engajamento de Martinello em
questões sociais. Engajamento, aliás, que não é de hoje, pois quando veio para o
Acre na década de 70, aqui se tornou um dos fundadores do Jornal O varadouro em
1977, o qual, segundo Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio inseria-se
no que se convencionou chamar de 'imprensa alternativa', adotava uma
linguagem combativa e projeto gráfico peculiar. A proposta principal era
registrar as consequências da expansão agropecuária no Acre, dando voz a
índios, posseiros, seringueiros e tantos outros excluídos
socialmente.(BONIFÁCIO, 2008, p.36)
No autor catarinense há uma opção bem clara de realizar um projeto de
recontar a história acriana de maneira total, como dissemos, e, em A Ilha da
Consciência ele propõe esse projeto e o inaugura. Nesse sentido, Martinello segue
o caminho de Márcio Souza, que ao publicar A expressão amazonense (1977)
historicizou e criticou a literatura de expressão amazonense, propondo novas
perspectivas nas quais ele mesmo se inseriu. Carvalho (2005) afirma que A
expressão amazonense é uma poética de combate. A Ilha da Consciência,
portanto, pode ser aproximada de A Expressão amazonense por carregar um
projeto poético de combate e inovação.
Nesse diapasão, o estudo dos textos de A Ilha da Consciência é fundamental
no entendimento da produção de Martinello, inclusive por ―beber‖ do texto souziano,
que é o herdeiro de toda a tradição discursiva amazônida, ao mesmo tempo em que
a rompe e a inova, conforme concluiu o Professor João Carlos de Carvalho (2005). A
obra souziana é fonte original e inspiradora das cnicas utilizadas em A Ilha da
Consciência, sendo que em boa parte dos capítulos o texto de Márcio Souza é
citado ou copiado.
Entre as técnicas inspiradas da obra souziana, está o caráter descontínuo da
obra, até mais acentuado que em Galvez, imperador do Acre, que não permite uma
12
classificação a priori do trabalho, além da mistura de tempos, das mudanças bruscas
de posição entre autor, personagem e narrador, da fragilidade da narração muitas
vezes desmentida em nota de rodapé, etc.
Diante de tudo isso, então, perguntamos, afinal, o que é essa obra? Quais as
chaves de leitura de AIC? A busca dessas chaves nos motiva e nos faz repensar a
literatura de expressão acriana.
Ademais, outro motivo que nos levou a escolher a obra para análise foi a
preocupação com a identidade acriana que a permeia. Em face disso, acreditamos
também que esta pesquisa, por via reflexa, auxiliará no desvendamento da(s)
identidade(s) da/na Amazônia ou amazônias, tendo em vista que é por meio da
linguagem que o homem expressa seus sentimentos, emoções, sensações,
apreende o real, pois o real é posto em signos, situação que já põe a linguagem
como sendo uma interpretação do real e uma forma de organizar o mundo que nos
cerca de modo particular.
Aliás, o desvendamento da identidade cultural implica sempre no
desvendamento da linguagem. Inclusive, em relação à identidade acriana, ao nosso
sentir, a obra de Martinello surge como resposta do autor sobre o sentido e a
natureza dessa identidade e, por isso, talvez, a vinculação de sua obra à história.
Assim, acreditamos que A Ilha da Consciência representa uma tentativa de
descoberta e delineamento da identidade acriana.
De toda sorte, o trabalho de Martinello em análise revigora diversas
discussões sobre o desenvolvimento do Acre e da Amazônia, pois mesmo buscando
no passado as explicações para o presente, retomando discursos, utilizando textos
de outros autores, às vezes os repetindo, às vezes os contradizendo de forma
jocosa, é ao presente que sua obra se refere, na necessidade de pensar o presente.
Os problemas e temas abordados em A Ilha da Consciência são discussões
do presente realizadas pelos mais diversos estudiosos. Martinello dialoga com
historiadores, ensaístas e literatos na sua produção, especialmente com Márcio
Souza em AIC, em que as técnicas souzianas são utilizadas à exaustão, provocando
efeitos muito interessantes, que procuramos identificar e buscar interpretações.
Quanto à metodologia, o trabalho é resultado de uma pesquisa bibliográfica,
cujo caminho foi feito sempre do geral para o particular. É também por essa razão
que, para investigar A Ilha da Consciência, os estudos do teórico russo Mikhail
Bakhtin (1981; 1687), com os devidos recortes e adaptações feitos por outros
13
teóricos e críticos como Beth Braith (1996), Linda Hutcheon (1989; 2000), Afonso
Romano de Sant'Anna (1995), Bergson (1980), etc serão de suma importância.
No mais, na tentativa de alcançar os objetivos propostos, esta dissertação
está organizada em introdução, seis capítulos e uma conclusão (considerações
finais), seguida das referências bibliográficas.
No primeiro capítulo fizemos uma discussão sobre o que é uma ilha, quais os
significados dessa metáfora, o porquê da escolha dessa metáfora, procurando
visualizar as posições expressas nos textos de A Ilha da Consciência sobre a
região e o sentido da acrianidade.
No segundo capítulo, realizamos um mapeamento do imaginário formado em
torno da Ilha da Consciência, cuja primeira referência consta em Euclides da
Cunha. Perscrutamos desde a origem discursiva da ilha até as técnicas e os
recursos mais utilizados e importantes no livro.
Por sua vez, no terceiro capítulo, centramo-nos na discussão quanto ao
caráter da obra, se ficcional ou jornalístico, além de ofertar uma visão geral dos seus
capítulos e, em especial, a forma como eles foram urdidos.
nos capítulos quatro, cinco e seis apresentamos sínteses comentadas e
analisadas do tecido textual da obra. A divisão dessa parte do trabalho em três
capítulos foi uma opção tanto para evitar a desproporção da extensão dessa parte do
trabalho em relação ao trabalho como um todo, como apresentar uma forma de
leitura de AIC, dividindo a obra em três partes que correspondem ao momento pré-
Revolução, o Revolucionário e, por fim, o Acre pós-Revolucionário. Assim, o capítulo
quatro volta-se para a Pré-revolução, o quinto, para a Revolução e o sexto para a
Pós-Revolução.
Em sede de considerações finais, apontamos a ironia como um dos fios
interpretativos de AIC. É a ironia o elemento que possibilita amalgamar tempos e
espaços distintos, personagens e eventos distantes uns dos outros, de maneira a
proporcionar uma linha romanesca a esse misterioso conjunto de textos chamado
A Ilha da Consciência, que a academia tanto elogiou, mas pouco conseguiu
explicar e situar no contexto literário da(s) Amazônia(s). A ironia, ainda, nos permite
chegarmos à conclusão de que o próprio Acre é a Ilha da Consciência, havendo,
portanto, na obra uma forte crítica ao sentido da terra acriana oferecida pela história
oficial.
14
CAPÍTULO 1- ANÁLISE ICONOGRÁFICA DE A ILHA DA CONSCIÊNCIA
1.1 O que é uma Ilha?
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum
grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele;
e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome o
Monte Pascoal e à terra a Terra da Vera Cruz. (CAMINHA , 1500 In:
PAES, 1968, p. 66 )
A Carta de Caminha inaugura a Literatura Nacional, isso todos sabemos. No
entanto, iniciamos este capítulo com um trecho da missiva não só por isso, mas para
demonstrar que a primeira visão portuguesa sobre o solo brasileiro descreve a terra
como uma ilha. O Brasil, como ilha, era passagem, porto efêmero, assim como a Ilha
da Consciência. Aliás, o Brasil, a ilha de Vera Cruz, era um obstáculo ao projeto
português de atingir as Índias. Éramos uma ilha no caminho para as ilhas Molucas,
na Oceânia, e para as Índias Orientais. Portanto, a imagem da ilha está presente no
documento inaugural da literatura pátria e faz parte do imaginário sobre nosso país,
inaugurando a descrição da terra. Se o Brasil foi ilha, seria a Amazônia uma ilha,
o Acre uma ilha, uma ilha da falta de consciência?
Mas, afinal, o que é uma ilha, que significados e sentidos essa imagem traz?
Essa é a pergunta que nos fizemos primeiro ao nos depararmos com A Ilha da
Consciência. O dicionário Michaelis online define o vocábulo ilha da seguinte forma:
• sf lat insula (...)
1. Geogr Porção de terra cercada de água por todos os lados. Col:
arquipélago.
2. Objeto completamente isolado.
3. Casa ou quarteirão de casas que não confina com outras.
4. Reg (Marajó, Mato Grosso e Maranhão). Grupo espesso de altas árvores,
em meio aos campos. Dim irreg: ilhota ilhéu ilheta. sf pl , e Qualquer
arquipélago. I. cultural, Sociol: cultura local que difere da cultura mais
ampla de que está rodeada. I. de casca: denominação dos sambaquis em
certas regiões. (MICHAELIS, 2011, p. 01)
Já o dicionário Aulete online oferece as seguintes definições:
(i.lha) sf.
1. Geog. Porção de terra cercada de água em toda a sua periferia e menos
extensa que um continente.
2. Fig. Coisa à parte ou isolada, num certo contexto: uma ilha de
prosperidade em meio à miséria
3. Bras. Calçada no meio de uma via para dividir as mãos de direção e
15
proteger pedestres
4. MA MT PA. Grupo cerrado de árvores altas, em meio aos campos
5. Mar. No porta-aviões, plataforma elevada de comando.
6. Bras. Pequena elevação de terreno característica da região do cerrado;
MURUNDU[F.: Do lat. insula, ae. Hom./Par.: ilha (flex. de ilhar)] (AULETE,
2011, p. 01)
Portanto, de modo geral, pelas definições dos dicionários, o vocábulo ilha está
relacionado a isolamento e à passagem. Contudo, não apenas a isso. Relaciona-se à
singularidade em relação aos elementos que a cercam. Dessa forma, afirmar que um
determinado lugar é uma ilha é, também, afirmar que este lugar diferencia-se de
todos os outros que o cercam.
É por meio da criação de uma ilha que Thomas More (2001) demonstra sua
insatisfação com a sociedade de seu tempo. Seu país perfeito não caberia num lugar
comum. Apenas num lugar isolado dos outros, diferente dos outros. O mundo utópico
de More poderia existir numa ilha. Assim, o isolamento poderia ser fator
purificador, mas, por outro lado, dizer que alguém ou algo é uma ilha pode, também,
querer dizer que não está integrado à sociedade nacional.
More, vivia numa ilha, a Grã Bretanha, e projetava que sua terra se
transformasse na ilha de Utopia. Logo, a Bretanha era seu foco, sua critica voltava-
se para ela. Em A Utopia, na verdade, More (2001) critica a necessidade de
exploração do camponês, demonstrando que uma divisão equitativa do trabalho, por
meio da razão, poderia indicar o caminho da felicidade geral. O filósofo inglês, na
verdade, projetou na ilha de Utopia a necessidade de transformação social. Dessa
forma, ele é o precursor de todos os grandes utopistas e um dos inauguradores do
―sentido da terra‖ e da atenção às questões sociais e políticas, aspectos capitais no
humanismo do Renascimento.
Nesse aspecto, guardadas as devidas proporções, A ilha da Consciência, de
Sílvio Martinello, guarda elementos assemelhados com a Utopia, de More, tendo em
vista a afirmação do sentido da terra, a preocupação com as questões políticas e
sociais de seu tempo, presentes em ambas as obras, embora a ilha de More seja a
idealizada, com uma sociedade perfeita, enquanto a de Martinello é, justamente, a
mais imperfeita de todas. Numa, os interesses coletivos o dominantes, na outra,
prevalece o egoísmo, a exploração desenfreada do homem pelo homem. Contudo,
ambas, são críticas às sociedades de seu tempo.
O simbolismo da ilha, portanto, atravessa o tempo, sendo sempre
16
reaproveitado.
Aliás, quem parece inaugurar a metáfora da Ilha, muito tempo antes de More,
é o filosofo grego Platão, nas obras Timeo o de La naturaleza e Crítias o Atlântida.
Platão (2011) retratou uma sociedade no auge de sua glória, e sua posterior
queda, localizando-a numa ilha, a Ilha de Atlântida. Para o filósofo grego, Atlântida,
à medida que se corrompeu foi destruída por desastres naturais. Como Platão viveu
numa época em que ele acreditava que os princípios estavam sendo abandonados,
utilizou o relato com um viés moralizante. Assim, o fim de Atlântida também seria o
fim dos gregos, caso o se voltassem para a virtude. O viés platônico, portanto, ao
utilizar o exemplo de Atlântida representa também uma crítica à sua sociedade.
Com efeito, explica o Dicionário de Símbolos de Gheerbrant e Chavalier que a
ilha, em verdade, significa um centro espiritual primordial nas diversas culturas:
A ilha, a que se chega apenas depois de uma navegação ou de um vôo, é o
símbolo por excelência de um centro espiritual e, mais precisamente, do
centro espiritual primordial. (GHEERBRANT; CHEVALIER, 2009, p. 501, )
Nesse sentido, a Ilha da Consciência é o centro espiritual primordial da
conquista do Acre e da Amazônia, quiçá do Brasil e da América Latina. A capa do
livro em análise parece-nos fornecer elementos comprovadores dessa hipótese, por
isso, faremos uma breve análise da capa.
1.2 O Acre como Ilha da Consciência
Os caminhos discursivos e imagéticos utilizados em AIC indicam que o Acre é
a ilha da Consciência. Esses caminhos utilizam a ironia como fundamento. por
meio da ironia o texto de AIC consegue transformar o Estado do Acre numa ilha sem
quebrar a verossimilhança da obra, que todos sabemos que o Acre não é, de fato,
uma ilha no seu sentido geográfico.
vários conceitos de ironia, mas todos eles apontam como ponto fulcral o
contraste entre o que foi dito e o que se pensou em dizer. Ou seja, toda Ironia é um
contraste entre o sentido literal e o sentido figurado de um texto. Lógico que, a rigor,
não existe sentido literal, pois todo sentido é construído na ação discursiva dos
sujeitos. Por isso, o significado de literal deve ser tomado como aquele que foi
17
solidificado numa construção histórica, de forma a tornar-se hegemônico. Por isso, a
definição de Hutcheon nos parece bastante acertada:
A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas
dizem. Mentir faz o mesmo, é claro, e é por isso que o ético assim como o
político nunca estão muito abaixo da superfície em discussões sobre o uso
da ironia e as respostas a ela. Ela foi até chamada de um tipo de ‗gás
lacrimogêneo intelectual‘. A ironia obviamente deixa as pessoas
desconfortáveis. Diz-se que ela desmente e desvaloriza, geralmente porque
ela distancia. (HUTCHEON, 2000, p. 32 )
A capa do livro, como já dissemos antes, indica que o Acre é uma ilha,
materializando o discurso ficcional de AIC em imagem. Até mesmo o título A Ilha da
Consciência é uma ironia, pois é justamente o contrário que se quer dizer. Vejamos
com mais detalhes a capa do livro:
Ora, a capa do livro A Ilha da Consciência ( AIC), do chargista Raimundo
18
Mendes
1
(Dinho), destaca o Acre em forma de um tronco de árvore serrado,
enfincado na extremidade de uma floresta, com raízes quase saindo da capa. O
interior da figura geográfica do Estado é preenchido por tons de vermelho, que
encobrem os pés de parte dos personagens que circulam nesse espaço demarcado.
Esses personagens são diferentes entre si e suas feições lembram figuras muito
conhecidas e outras pouco conhecidas da história acriana.
A começar, destacamos Galvez
2
·, vestido a caráter, com espada e fardamento
militar nas cores vermelha, verde e amarela que altivamente entrevista a Sílvio
Martinello, o qual está trajado com simplicidade, munido com uma pena na mão, com
que faz anotações, e uma bolsa no braço. O Repórter sério e curioso e o
entrevistado altivo e confiante.
Ao lado deles, à direita, um personagem quase caindo fora do desenho
geométrico do Estado, segura uma motosserra. É uma caricatura
3
de Hildebrando
4
Pascoal que, pela forma com que segura o instrumento, foi quem cortou a árvore,
cujo tronco é o Acre.
Quase no mesmo plano, mais num nível um pouco acima de Hildebrando,
mas do lado oposto, à esquerda de onde Galvez conversa com Martinello, um
homem de braços abertos se põe em frente a um trator que solta fumaça e que
empurra uma árvore derrubada. É Chico Mendes
5
, em trajes de seringueiro: uma
camisa verde que deixa o umbigo de fora, bermuda e sapatos. Seu rosto reflete a dor
de quem resiste a algo mais poderoso que ele e que sabe o fim inexorável que o
1
Chargista do Jornal A Gazeta , empresa de Comunicação com sede em Rio Branco/AC.
2
Luis Gálvez Rodríguez de Arias (San Fernando, Espanha, 1864 Madrid, Espanha, 1935) foi um
jornalista, diplomata e aventureiro espanhol (muitas vezes erroneamente apontado como boliviano)
que proclamou a República do Acre em 1899. Governou o Acre entre 14 de julho de 1899 e 1 de
janeiro de 1900 pela primeira vez e entre 30 de janeiro e 15 de março de 1900, pela segunda e última
vez (WIKIPEDIA, 2011, p. 01)
3
deformação das características marcantes da pessoa, animal, coisa, fato pode ser usada
como ilustração de uma matéria (MENDONÇA, 2005)
4
Hildebrando Pascoal Nogueira Neto (Rio Branco, 17 de janeiro de 1952), conhecido
popularmente como o Deputado da Motosserra, é um político brasileiro e coronel da Polícia Militar do
Estado do Acre. Foi eleito deputado federal e expulso pelo PFL[1]. Ao mesmo tempo em que
comandava a corporação, chefiava o crime organizado no Estado, praticando crimes com requintes
de extrema crueldade[2]. Já foi condenado a 65 anos de reclusão, pena que pode ser aumentada em
razão de processos pendentes (WIKIPÉDIA, 2011, p. 01)
5
Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como "Chico Mendes" (Xapuri, 15 de
dezembro de 1944 Xapuri, 22 de dezembro de 1988), foi um seringueiro, sindicalista e ativista
ambiental brasileiro. Ele luta-va pela preservação da Amazônia e ficou mundialmente conhecido por
causa de sua morte. (WIKIPÉDIA, 2011, p. 01)
19
aguarda.
Acima de Chico Mendes, trava-se uma batalha em que um homem armado
com um facão ou terçado desfere um golpe em outro homem, que cai devagar com
pernas e braços abertos. O que desfere o golpe está vestido de vermelho e seus pés
parecem afundar no solo também vermelho, sendo que quase metade de seu corpo
já está submerso. O que cai está inteiramente vestido de verde.
Sobre a cena descrita anteriormente, a ex-senadora acriana Marina Silva
6
,
com auréola de anjo, conversa com o entrevistador da Rede Globo de Televisão,
Soares
7
, como que sobrevoando o Estado, acima dos demais personagens.
Contudo, a noção de perspectiva nos faz observar que Marina continua dentro do
espaço aéreo do Acre. Seus trajes contrastam bastante com os de outros
personagens. Veste-se elegantemente, pois, aparentemente, seu traje cor de rosa,
com bordas brancas, lembra as roupas chiques das damas da alta sociedade. Esse
aspecto é ressaltado pelo colar que ostenta no pescoço e pelos sapatos brancos,
pequenos e de bico bem fino.
Ainda abaixo de Marina, ao lado esquerdo da batalha descrita anteriormente,
um homem, de rosto sofrido e zangado, com traje típico de cangaceiro, grita com um
rifle em punho como que discutindo com alguém. Seus olhos estão direcionados
para um busto que segura uma espada com a mão direita, enquanto aponta para o
oriente com a esquerda. Seria o personagem d'A Ilha da Consciência, João
Minervino discutindo? Quanto à identidade do seu interlocutor, não resta dúvida que
se trata apenas de um busto parado, pois sua cor não é a mesma dos outros
personagens. É metálica, cinza. É Plácido de Castro
8
, que, como estátua em
tamanho natural, não responde.
A estátua de Plácido contraria o conjunto do quadro ensaiado. Seu tamanho,
as partes de seu corpo, são proporcionais enquanto as outras figuras que povoam o
desenho geométrico do Estado do Acre não o são. Ora, a figura de Plácido é a que
conserva as melhores proporções geométricas entre cabeça, corpo e membros.
6
Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima (Rio Branco, 8 de fevereiro de 1958) é uma
ambientalista, historiadora, pedagoga e política brasileira. Foi senadora pelo estado do Acre durante
16 anos. Atualmente, está sem partido (SENADO FEDERAL, 2011, p. 01)
7
José Eugênio Soares (Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1938), mais conhecido como
Soares ou simplesmente Jô, é um humorista, apresentador de televisão, escritor, artista plástico,
dramaturgo, diretor teatral, músico e ator brasileiro. (WIKIPÉDIA, 2011, p. 01)
8
José Plácido de Castro (São Gabriel, 9 de Setembro de 1873 Seringal Benfica, 11 de
agosto de 1908) foi um político e militar brasileiro, líder da Revolução Acreana e que governou o
Estado Independente do Acre. (WIKIPEDIA, 2011, p. 01)
20
Além disso, por estar na extremidade do desenho, sua figura era para ser menor,
mas chega a ser maior do que a do personagem Hildebrando, que está mais próximo
do observador, num primeiro plano.
A mesma noção de perspectiva demonstra que a figura por trás da estátua de
Plácido de Castro também está fora de sintonia com as outras cenas. Atrás de
Plácido, quase fora do espaço geométrico do Estado, um homem com vestes
religiosas, deita-se sobre uma mulher tentando beijá-la. A mulher está nua, com uma
calcinha vermelha na mão e parece contente com a situação. Aparentemente, trata-
se de Padre Ludovico, personagem de A Ilha da Consciência. Assim, se a noção de
perspectiva demonstra que a estátua de Plácido não está em sintonia com o
conjunto das cenas, também demonstra que Padre Ludovico também não está. Aliás,
a figura do Padre Ludovico deitando com uma mulher é maior até que a de Plácido
de Castro, apesar de localizar-se por trás dessa imagem.
Ao fundo, um imenso verde, não ilustrado, mas de fotografia, entrecortado
pelo título da obra em letras garrafais em amarelo e, sobre estas, o nome do autor na
cor branca.
Diante da iconografia, num aspecto mais geral, à primeira coisa que notamos
são as cores. As cores prevalecentes, vermelho, verde e amarelo, são as cores da
bandeira do Acre. A capa, nesse sentido, é uma representação da bandeira acriana.
que aí, a própria forma geométrica do Estado ocupa o lugar da ―estrela altaneira‖
de sua bandeira. Se o Acre é sua própria estrela, o Acre, ou melhor, o acriano
pode iluminar os seus passos para o desenvolvimento, para a superação de seus
problemas. Daí que os modelos de desenvolvimento da região, como prognosticava
Leandro Tocantins (2000), têm que ser próprios da terra, ou seja, devem ser
endógenos.
A diversidade de situações e personagens, todos ligados à terra, demonstram
a multiplicidade de agentes da história, de versões da história, de identidades. De
toda a sorte, a ilha da Consciência não pode ser um lugar físico, pois se assim o
fosse, o caberia personagens como Chico Mendes, cujos braços abertos na
forma da morte o aproxima da figura clássica de Jesus Cristo.
O tronco cortado pode indicar o mal, o escamoteamento de verdades
históricas, a corrupção, o furto das riquezas acrianas ao longo da história de tal
forma que quem simboliza o maior mal é a figura de Hildebrando Pascoal, pois
portador do motosserra que cortou o tronco. Misto de político, traficante e justiceiro.
21
Essa imagem também pode representar a devastação ambiental contemporânea,
inclusive, responsável por uma série de mortes, principalmente nas décadas de 70 e
80, e que até hoje ocorrem com bastante frequência. Aliás, a cor vermelha que
encobre toda a área geométrica do Estado é bastante enfática quanto a isso. Um
mar de sangue parece ter inundado o Estado e pintado a estrela altaneira tanto em
defesa da nacionalidade, na época da Revolução, quanto nas relações sociais dos
seringais, nas mortes causadas pelas doenças tropicais e na defesa da floresta.
O personagem golpeado com um terçado ou facão está de verde por inteiro e
cai lentamente como a floresta diante da devastação. As vestes de seu assassino
são vermelhas e seu olhar, cruel. O vermelho, associado ainda à emoção humana é
a cor, por excelência da raiva, da indignação. É também a cor do pecado e ao
mesmo tempo da paixão e do sangue, portanto, da vida.
O Acre é uma árvore cortada que sangra. É uma ilha isolada em meio ao
verde amazônico. Enquanto uns a defendem como Chico Mendes, outros acentuam
o sangramento como Hildebrando Pascoal. Contudo, esperança. As raízes
indicam renascimento, a árvore não foi cortada pela raiz e enquanto houver raiz,
renascimento. A raiz se relaciona com identidade. Logo, enquanto houver acrianos,
haverá esperança de renascimento, de reconstrução.
Essa esperança é acentuada pelo grande verde que envolve o Acre. Contudo,
esse verde se, por um lado, é sinônimo de renascimento, por outro, significa o
isolamento. Porém, não o isolamento físico, mas o abandono do Estado nacional,
pois a economia extrativista não atrai políticas do Estado Nacional por não alcançar
valores econômicos relevantes, como a pecuária ou a agricultura de exportação.
Assim, surge a pergunta: qual o modelo de desenvolvimento adequado para a
região? A resposta parece advir da estrela altaneira, ou seja, do próprio Acre que
deve ser guia não de si, mas de toda a Amazônia, como laboratório de
desenvolvimento endógeno.
Ainda em relação à capa, percebe-se que a caricatura da ex-senadora Marina
Silva está em outro nível em relação aos demais personagens. Sua roupa rosa
demonstra sua finura, sua delicadeza. No entanto, também demonstra a ascensão
social negada aos demais seringueiros. Enquanto uns morreram na pobreza,
defendendo a floresta e seu modo de vida, outros poucos chegaram a níveis de vida
da elite da terra.
Ao nosso sentir, não se trata de uma crítica à Marina Silva, mas uma forma de
22
contrastar, demonstrar como a real vida dos seringueiros é mascarada. A ex-
senadora virou símbolo de vitória, mas ao mesmo tempo, como símbolo, escamoteia
a situação de vida concreta dos seringueiros, hoje ainda enganados pelas políticas
oficiais.
Aliás, a política oficial tem uma figura oficial e essa figura oficial esconde a
não-oficial. A figura oficial é Plácido de Castro. Mais ainda, a figura de Plácido
utilizada oficialmente não corresponde ao personagem histórico real, de carne e
osso. Por isso, sua cor é fria, cinzenta e sem vida. Há, portanto, ao nosso sentir, aí
um protesto. Contudo, não é contra a figura histórica de Plácido de Castro, mas
contra o oficialismo com que foi carregada a imagem de Plácido, utilizando-a para
mascarar a verdadeira face da política dos trópicos acrianos. Aliás, é emblemático os
gritos do cangaceiro com Plácido, mas este, como representante do Estado acriano,
não ouve, pois é uma simples estátua representante do poder, que é mudo e surdo.
A simetria quase perfeita entre as partes da estátua de Plácido de Castro
reforça o caráter oficial da imagem, o pertencimento da imagem ao mundo oficial,
cheio de formalismos. outros personagens não possuem essa simetria. Cabeças,
troncos e membros não são proporcionais como os da estátua. São outras versões
menos ―certinhas da história‖, logo, menos oficiais. Até mesmo Galvez entra nesse
contexto conversando com Martinello, o que torna possível concluir, que o
personagem nunca fez parte do discurso oficial com o mesmo efeito que a imagem
de Plácido de Castro. A esse respeito, é sintomático o fato que no capítulo
Entrevista com o Imperador o entrevistado Luiz Galvez ser uma árvore de
mulateiro no descampado do nada, uma referência ao relativo esquecimento desse
importante personagem da história acriana.
Assim, A Ilha da Consciência (AIC) reuniu diversos discursos, inclusive
discursos contra o próprio discurso do narrador, que muitas vezes é desmentido em
nota de rodapé, proporcionando a crítica social e um riso sarcástico e irônico, capaz
de suscitar o debate sobre o Acre e sua história.
1.3 crítica social: isolamento e desenvolvimento
A galeria de caricaturas mostrada na capa da obra representa os personagens
tanto fictícios quanto com base histórica desfilados em AIC e, todos eles, em
23
conjunto, representam o povo do Acre, pois localizados nesse pedaço de chão e
isolados por um imenso verde. Nesse espaço geográfico, os personagens também
representam os discursos sobre a região como o discurso ecológico (Chico Mendes)
ou o discurso da história oficial (estátua de Plácido de Castro) ou, ainda, o discurso
contra a história oficial (João Minervino), ou, também, o discurso do desenvolvimento
a qualquer custo (o trator), etc. Como base comum de todos esses discursos, o Acre,
isolado pelo verde.
O isolamento aparece como uma constante em AIC. Como superá-lo parece
ser uma das questões a serem debatidas e este isolamento relaciona-se diretamente
com os projetos de desenvolvimento voltados para a região, além, é claro, da
ausência do Estado Nacional. Nesse sentido, para entender a crítica do livro,
faremos um breve resumo da história desenvolvimentista da região.
Desde os primeiros viajantes, a Amazônia sempre foi retratada pelo olhar do
deslumbramento e do estranhamento, oriundos da sua diversidade biológica e de
sua imensidão territorial. Essa imensidão, a partir de Euclides da Cunha (apud
GONDIM, 1994) foi vista como portadora de um enorme potencial produtivo,
especialmente agrícola. No entanto, a floresta era um obstáculo, um mal
anticivilizatório que precisava ser domado.
O enorme potencial da Amazônia, segundo Gunn e Correia (2005, p.44)
ensejou no século XX uma herança desenvolvimentista ligada a alguns tipos básicos
de recursos a naturais para fins industriais, tais como látex para borracha, madeira
para papel e celulose, arroz e outros produtos agrícolas. Então, via de regra, os
projetos desenvolvimentistas para a Amazônia, ligaram-se à exploração da riqueza
da floresta tropical.
Entretanto, tais projetos não vieram acompanhados de estudos técnicos
condizentes com o meio amazônico, pois idealizados sem o conhecimento da região,
tão pouco foram felizes nos seus aspectos econômicos, sociais e ambientais.
Segundo Gunn e Correia (2005 p. 44) ―(sic) Quase todos os locais na região
Norte envolvem contextos históricos de dificuldade, no que se refere às
consequências produzidas pelo impacto dos esquemas de desenvolvimento
envolvendo assentamentos industriais do século XX‖.
Sem dúvida, a primeira riqueza que se tentou explorar na Amazônia foi o látex,
tido por alguns historiadores como o grande mal da Amazônia, pois impediu o
desenvolvimento da região, tendo em vista que todas as forças produtivas se
24
voltaram para a sua extração.
Foi sob a égide da necessidade de produção de borracha que se instalou na
região, nos idos de 1920, a empresa Ford, que tencionava produzir sua própria
borracha para seus veículos. A empresa de Henry Ford chegou a comprar uma área
de mais de 1 milhão de hectares entre Itaituba e Santarém, na margem esquerda do
Rio Tapajós, onde construiu uma cidade à qual se deu o nome de Fordelândia.
No entanto, o projeto de Henry Ford fracassou em Fordelância e Cristovam
Sena (2005) aponta os seguintes motivos:
1) a falta de critério técnico na escolha do local;
2)a área, a topografia montanhosa e o solo predominantemente arenoso de
Fordelândia dificultavam o cultivo mecanizado, elevando o custo de implantação do
seringal;
3) clima com umidade relativa do ar elevada, que favorecia o ataque do
inimigo número um da seringueira na Amazônia, o ―Mal das Folhas‖, doença causada
pelo fungo Microcyclus.
Pelo que se vê, faltou a Ford conhecer a região, além de conhecimentos
técnicos sobre o cultivo das seringueiras. Mas Henry Ford não se deu por vencido e
construiu, em outro local, com condições de solo, clima e topografia mais favoráveis
ao cultivo da hévea, novo seringal. Nesse local construiu-se a cidade de Belterra.
O seringal de Belterra também foi atacado pelo ―Mal das Folhas‖, mas a
utilização de práticas de manejo como seleção de sementes, utilização de clones
resistentes, enxertia de copa e controle com fungicidas, fizeram com que o seringal
passasse a conviver com o Microcyclus sem problemas. (SENA, 2005).
Mesmo conseguindo produzir em Belterra, tendo a exploração das
seringueiras iniciada em 1941, a Empresa Ford encerrou suas operações no local
após a Segunda Guerra Mundial, tendo em vista a produtividade extremamente
baixa em relação ao alto custo de produção e de transporte, em relação aos preços
praticados pela Malásia, cujo cartel havia sido derrubado pelo governo inglês, tendo
em vista a necessidade de reconstrução da economia global após a Grande Guerra.
Outro grande projeto, na década de 70, foi o de papel e celulose, que tinha
como investidor o norte-americano Daniel Ludwig que se empenhou em um projeto
industrial inovador, situado à margem esquerda do Rio Amazonas, na divisa entre os
estados do Pará e do Amapá (GUNN; CORREIA, 2005).
Segundo Gunn e Correia (2005) o projeto ficou conhecido como Jari e, diante
25
de vários incentivos financeiros e fiscais recebidos por recebidos por Ludwig, foi alvo
de críticas, inclusive quanto ao impacto ambiental de suas operações e a imigração e
urbanização espontânea que o acompanharam. O projeto foi abandonado por
Ludwig na década de 80, tendo em vista a crise econômica que passava o Brasil,
mas ainda hoje se encontra ativo, administrado por um grupo de investidores
brasileiros que está também envolvido na produção agroindustrial de arroz e
eucalipto.
Após a queda do preço da borracha, uma alternativa apresentada nos anos 60
foi a indústria da mineração, que ―levou a uma série de investimentos em mineração,
estradas de ferro e instalações portuárias industriais.‖ (GUNN; CORREIA, 2005, p.
45).
Gunn e Correia (2005) apontam que a atividade mineradora, ao contrário de
muitas outras, foi feita de forma planejada, inerente à sua própria natureza
com o contrato pela empresa de escritórios de consultoria em engenharia e
arquitetura para projetar as instalações residenciais, urbanas e infra-
estruturas dos assentamentos projetados. Isso é exemplificado por um
projeto de mineração de magnésio no então território federal do Amapá,
onde, em 1947, a 'Companhia Icomi' ‖ (GUNN; CORREIA, 2005, p. 45).
No entanto, Gunn e Correia alertam que houve também o caso de Serra
Pelada, verdadeiro formigueiro humano e por isso, pugnam pelo regime contratual
entre o Estado e as mineradoras.
Outro importante marco após a queda do preço da borracha provocada pela
retomada da produção da Malásia foi a tentativa de implantação indiscriminada da
agropecuária pelos governos militares.
O lema era integrar para o entregar, adotando-se como forma de incentivar
o desenvolvimento da região os incentivos fiscais, reorientados legalmente em 1967
da borracha para outras atividades, principalmente para a pecuária, a extração
madeireira, a mineração, atividades que, simultaneamente, requerem grandes
quantidades de terra, destinam-se à exploração de produtos primários ou
semielaborados e geram poucos empregos. Eram concedidos via Sudam e Basa aos
empresários por longos períodos (dez a quinze anos) (LOUREIRO; PINTO, 2005, p.
78).
Com essa intenção foi, por exemplo, criada a Zona Franca de Manaus em
1967, cujo objetivo era viabilizar uma base econômica na Amazônia Ocidental,
26
promover a melhor integração produtiva e social dessa região ao país, garantindo a
soberania nacional sobre suas fronteiras. Sua isenção alfandegária favoreceu a
formação de um expressivo distrito industrial junto à capital do Amazonas, mas a
maioria de suas indústrias é apenas montadora de produtos obtidos com tecnologia
estrangeira, havendo, portanto, um desenvolvimento excludente e irregular na
região, desvinculado do meio tropical em que a zona está inserida.
No Acre, a partir de 1967, o incentivo desenvolvimentista voltou-se para a
agropecuária e se deu principalmente no governo Wanderley Dantas, que chegou a
financiar propagandas no Sul do país para que fazendeiros daquela região se
instalassem no Acre. O projeto pecuarista para a Amazônia provocou sérias
consequências sociais, econômicas e ambientais.
Em primeiro lugar, houve um aumento extraordinário do desmatamento e das
queimadas na região, pois era necessário criar pasto para o gado, embora houvesse
em algumas áreas da região pastagens naturais, que não foram aproveitadas.
Grande parte da população foi expulsa dos seringais, sendo obrigada a
deslocar-se para as cidades, o que originou um brusco crescimento populacional nas
cidades amazônicas, principalmente nas capitais, aumentando a pobreza da região.
Quanto ao Acre, Leandro Tocantins disserta dessa forma:
A situação de pobreza em que a população do Acre se encontra é
resultado da implantação de um modelo econômico concentrador da renda,
cujo resultado, além de elevar o índice de concentração de terra piorou as
condições de vida de considerável parcela da população, na medida em que
separando-a dos seus meios de produção, acelerou um processo de
migração interna. Este fato se constituiu ainda mais grave pela incapacidade
de absorção de força de trabalho por parte dos diversos setores produtivos
(TOCANTINS, 1984, p. 86)
A população de Rio Branco, por exemplo, apresentou o seguinte crescimento:
Ano
1940-1950
1950-1960
1960-1970
1970-1980
Taxa de
crescimento
populacional
6,20%
6,00%
7,00%
10,00%
Tabela 1
Além do deslocamento interno da população da zona rural para a urbana,
houve um aumento populacional oriundo da migração de outros estados para a
Amazônia, pois se a população da região amazônica era de 2.601.519 (dois milhões,
27
seiscentos e um mil, quinhentos e dezenove) habitantes em 1960, havia ascendido
a 4.197.038 (quatro milhões, cento e noventa e sete mil e trinta e oito) em 1970
(LOUREIRO; PINTO, 2005, p. 79) incentivada pelo governo brasileiro que achava
necessário ocupar o ―espaço vazio‖ que era a Amazônia, como se nela já não
morassem brasileiros.
Afora isso, diversos conflitos por terra foram deflagrados, ocorrendo vários
assassinatos e massacres, tendo como vítimas, geralmente, líderes seringueiros.
A partir da cada de 70, vislumbra-se que a população da Amazônia, apesar
do mito de que a mesma é predominantemente moradora da floresta, tornou-se
predominantemente urbana. Homma (2005, p. 8) afirma que a Amazônia é
praticamente urbana: ―O processo de urbanização da sociedade brasileira não tem
sido diferente para a região Norte, onde 70% da população é urbana. Atinge 90%
no Amapá, 79% em Mato Grosso, 76% em Roraima, 75% no Amazonas, 74% em
Tocantins, 67% no Pará e Acre e 64% em Rondônia‖.
Mas, no Acre, o projeto pecuarista foi, de certa forma, desestimulado a partir
do governo Geraldo Mesquita e os governos que se seguiram receberam pressões
tanto dos movimentos sociais dos seringueiros, notadamente representados pelo
líder sindical Chico Mendes, quanto de entidades internacionais de proteção ao meio
ambiente, obtendo um êxito relativo por meio da criação de áreas protegidas.
Leandro Tocantins (1984, p.101) alerta que se o processo continuasse naquele
ritmo, o próprio regime de águas do rio e o próprio clima seriam afetados. Contudo, à
época, Leandro Tocantins (1984) enumera vários projetos em que o Estado estava
inserido, quase todos ainda voltados para a pecuária e a indústria madeireira, tais
como:
1- Plano integrado de Desenvolvimento do Corredor Leste-Oeste
(PLANCOR), cujo objetivo era promover a aceleração do desenvolvimento na faixa
territorial à margem da rodovia BR-364 desde a sua penetração no Estado até a
fronteira com o Peru.
O plano previa o reforço da infraestrutura econômico-social e voltava-se para
a ocupação da área, por meio da fixação de projetos empresariais, principalmente
ligados à exploração racional de madeiras, borracha, cana, gado de corte,
oleoginosas, cereais, etc, bem com a aplicação de investimentos públicos em
colonização, equipamentos urbanos, sistema viário, educação e saúde. Beneficiaria
parte dos municípios de Rio Branco, Sena Madureira, Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do
28
Sul, abarcando cerca de 80% da população do Estado e devendo constituir um futuro
corredor de exportação Brasil-Pacífico. Baseava-se na implantação de estrada
ligando Rio Branco a Cruzeiro do Sul (TOCANTINS,1984, p.101);
2- Planos integrados de Desenvolvimento do Eixo Purus- Tarauacá
(PLANEIXO): Baseava-se na implantação de estradas ligando Feijó, Santa Rosa e
Assis Brasil e tinha como objetivo realizar a ocupação econômica da parte central do
Estado, vinculada ao polo madeireiro em perspectiva, devendo receber o impulso do
estabelecimento de projetos industriais ligados a: madeira, borracha, castanha, gado
de corte, cereais, etc (TOCANTINS,1984, p.101);
3- Plano integrado de desenvolvimento do Alto Acre (PLANACRE): voltado
para o Vale do Acre, objetivando o fortalecimento da estrutura social urbana de suas
cidades, desenvolvimento agropecuário à base de empresas e núcleos de
colonização, bem como a implantação de um pólo regional de desenvolvimento
(MICROPOLO SUL-ASSIS BRASIL) e o estabelecimentos de projetos
agroindustriais. Buscava ainda diversificar a produção agrícola e reorientar a
pecuária (TOCANTINS, 1984, p.101);
4- Plano de Desenvolvimento Integrado do Vale do Juruá (PLANJURUA):
Voltava- se para a região que congrega Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues
Alves, objetivando o desenvolvimento agropecuário diversificado, a colonização
orientada, o reforço da urbanização dos principais núcleos e a implantação de um
distrito agroindustrial em Cruzeiro do Sul e de um pólo de desenvolvimento regional
(MICROPOLO OESTE) (TOCANTINS,1984, p.101).
Assim, em síntese, parece que nenhum dos projetos foi completado em razão
de, até então, não existirem as vias de ligação preconizadas para as suas efetivas
implantações. Contudo, como já dito, demonstra-se que continuava o Estado, tanto o
Federal quanto o Estadual, a fomentar as atividades agropecuárias e a ocupação do
território.
Nesse compasso, o crescimento populacional de Rio Branco, tal como outras
cidades amazônicas, ocorreu sem a infraestrutura para suportar tal demanda
populacional, o que pode ser demonstrado pelo quadro da oferta de serviços básicos
de saneamento, água e esgoto, exposto abaixo:
Ano
1989
1994
1999
2004
29
Encanada (dentro
de casa)
50,00%
45,00%
40,00%
30,00%
Encanada (fora de
casa)
25,00%
25,00%
20,00%
15,00%
Poço com bomba
15,00%
15,00%
25,00%
45,00%
Poço sem bomba
10,00%
10,00%
10,00%
5,00%
Do vizinho
5,00%
5,00%
3,00%
2,00%
Outro
0,00%
0,00%
2,00%
3,00%
Total
100,00%
100,00%
100,00%
100,00%
Tabela 2 (CORDEIRO;SHIMINK, 2008, p. 149)
De acordo com os números colacionados por Cordeiro e Schimink, notamos
que um movimento negativo no sentido de cada vez mais o serviço de água fique
mais restrito a uma parcela menor da população.
Outro projeto desenvolvimentista com claros reflexos tanto na economia
quanto na sociedade e no meio ambiente relaciona-se ao mercado de fornecimento
de energia, notadamente as usinas hidrelétricas e a extração de petróleo e gás
natural.
Quanto à extração de petróleo, algumas áreas da Amazônia, como Coari
apresentaram sucesso, enquanto as pesquisas no Acre, iniciadas nas décadas de 40
e 50 e reiniciadas neste século, ainda não apresentaram resultados.
Quanto às hidrelétricas, uma experiência extremamente frustrante foi a
hidrelétrica de Balbina, no município de Presidente Figueiredo/AM, criada no período
da ditadura, mas inaugurada apenas no final da década de 80.
Balbina é criticada pela baixa geração de energia em relação à área alagada
2.360 quilômetros quadrados para produzir 250 megawatts, enquanto, por exemplo,
Tucuruí produz cerca de 4.240 megawatts, com a mesma área alagada. Isso decorre
do local escolhido para construir Balbina ser muito plano.
A usina também é criticada pelo fato de que as árvores mortas, que não foram
retiradas para a construção do lago, emitirem dióxido de carbono e metano.
Outra usina igualmente problemática é a de Samuel (RO), cuja construção se
iniciou em 1982, mas foi terminada muito tempo depois. A obra foi responsável pela
30
criação de grandes bolsões de miséria na periferia de Porto Velho ao ter ignorado
direitos e negado assistência a cerca de 650 famílias atingidas.
Cabe ainda consignarmos que estão em construção as usinas do Rio Madeira,
Santo Antônio e Jirau, que, ultimamente, despertam as críticas e atenções do Brasil
inteiro, tendo em vista os impactos sociais, econômicos e ambientais que tendem a
causar.
No Acre, especialmente, a produção sucroalcooleira foi incentivada pela
Alcoobrás, na cada de 80. Contudo, a Alcoobrás não teve êxito, aparentemente
devido a ausência de uma rede viária pronta para interligar o Estado e tão pouco a
almejada integração com o Pacífico estava próxima a ocorrer. Por meio da estrutura
da Alcobrás foi criada recentemente, em 2005, a empresa Álcool Verde, cujos
defensores alegam que as condições para o sucesso de produção de álcool agora
estão presentes.
Em resumo, hoje, basicamente, há duas propostas de desenvolvimento para a
Amazônia. A primeira, segundo Homma (2005), defende o desenvolvimento
sustentável por meio da criação de reservas extrativistas, reservas de
desenvolvimento sustentável, manejos florestais comunitários, reservas marinhas e
outras acepções nesse sentido, no modelo defendido pelos movimentos sociais dos
seringueiros das décadas pretéritas.
Aliás, essa proposta é a defendida pelo Ministério do Meio Ambiente, o
IBAMA, instituições e organismos internacionais entre outros. Como consequência,
essa proposta é completamente contrária a projetos de atividade agropecuária na
região, a extração madeireira, os grandes projetos, a expansão dos grãos etc. Por
óbvio, contraria tanto os grandes quanto os pequenos e médios agricultores e
pecuaristas da região.
A segunda proposta defende a utilização das áreas desmatadas da
Amazônia como a maneira de se reduzir o desmatamento e propostas ambientais
como mecanismo de troca (HOMMA, 2005), além da recuperação de outras áreas. A
bem da verdade, as duas propostas possuem sérias limitações conforme disserta
Homma (2005).
A primeira proposta de desenvolvimento da Amazônia, ou seja, a que defende
o desenvolvimento sustentável por meio da criação de reservas extrativistas,
reservas de desenvolvimento sustentável, manejos florestais comunitários, reservas
marinhas e outras acepções nesse sentido, apresenta o problema da viabilidade
31
econômica. É emblemática, nesse sentido, a crítica do capítulo Camisinhas made
in Acre que demonstra essa visão como inapropriada pela impossibilidade
econômica e social de se atender a um grande contingente populacional, pois a
economia extrativista caracteriza- se pela baixa produtividade da terra e da mão de
obra, limite da capacidade de oferta (HOMMA, 2005).
Nesse sentido, a AIC concorda que, ―o argumento da criação de mercados
verdes, com preços mais valorizados, pode apresentar dificuldades de sustentação
com a democratização desses produtos. A antítese poderia levar a um limite de
destruição que tornaria irreversível a sua recuperação‖ (HOMMA, 2005, p.27).
Para AIC, o Estado defende oficialmente essa primeira proposta, contudo,
contraditoriamente é o patrocinador da maior feira agropecuária do Estado.
Os adversários políticos devem obedecer a essa proposta, enquanto os
aliados, mesmo pecuaristas são chamados de ambientalistas pois, ironicamente, até
seus bois são verdes, conforme descrito no capítulo ―Quentinhas com cocaína‖.
Quanto à segunda proposta, ou seja, aquela que defende a utilização das
áreas desmatadas na Amazônia como a maneira de se reduzir o desmatamento e
propostas ambientais como mecanismo de troca, além da recuperação de outras
áreas, ao nosso sentir, esta claramente atende aos interesses dos grandes e
pequenos proprietários de terras, madeireiros e principalmente produtores de grãos e
criadores de gado de corte e leite, cuja perspectiva de crescimento é bastante
grande, tendo em vista a demanda nacional por tais gêneros alimentícios,
interessados em manter a situação tal como está, isto é, preservar o lucro em
detrimento da natureza.
Ao que nos parece, é este o posicionamento adotado em AIC. Além disso,
em AIC uma nítida preferência por um projeto de desenvolvimento endógeno que
parece ainda não existir.
Nesse aspecto, acreditamos que AIC esboça o entendimento de que à
Amazônia não cabe um único modelo de desenvolvimento, pois, na verdade,
várias amazônias, com características distintas, seja cultural, histórica, geográfica e
geologicamente.
Assim, o modelo adotado por um Estado da região amazônica não deve ser o
mesmo adotado por todos, pois cada um tem suas especificidades, apresentando
padrões de desenvolvimento econômico, social, político e histórico diferenciados
(HOMMA, 2005).
32
Além disso, é necessário que os problemas amazônicos em relação à
preservação da natureza, sejam conjugados com ações que envolvam diretamente
outras regiões. O contingente populacional da região, por exemplo, vem crescendo a
cada ano, mediante a necessidade de incorporação de terras produtivas à cadeia
econômica, tendo em vista a inexistência de uma reforma agrária eficaz em outras
regiões. Portanto, o problema amazônico perpassa por outras questões, como a
distribuição das terras em outros Estados.
Ademais, os modelos adotados para desenvolver a região, como vimos,
sempre partiram de fora e não de dentro das próprias comunidades íncolas, ou seja,
baseados em sistemas fechados, com sustentabilidade exógena, em vez de vir
endogenamente (HOMMA, 2005). Esses modelos, invariavelmente propiciaram a
exclusão social e a destruição da natureza.
Por outro lado, recorda Homma (2005), a inclusão social não pode ser
efetuada com a defesa de algumas atividades e a exclusão de outras, necessárias à
sociedade. A população da Amazônia também necessita de gêneros como carne,
leite, soja, café, etc, os quais, independentemente de incentivos fiscais tendem a
crescer, pois gêneros de primeira necessidade, não sendo, portanto, válidas
propostas como de corte de recursos para construção de estradas e melhoria de
rodovias e a supressão de incentivos fiscais para a produção agropecuária local,
como defende Fearnsead (1991).
É justamente contra isso que A Ilha da Consciência parece se levantar. Para
preservar a Amazônia é necessário isolá-la? É justamente o isolamento que a
prejudica.
Na Amazônia, o que deve ser evitado, na verdade, não são todos os
empreendimentos, mas o os que afetam a qualidade ambiental, enquanto
outros, que não afetam, devem ser incentivados, tendo em vista que favorecem a
economia local, gerando novos empregos. Na realidade, a necessidade de se
levar a sério uma política de preservação ambiental, com o máximo cuidado, como
no processo de Licenciamento Ambiental.
Por isso, qualquer empreendimento na região deve vir precedido de consulta à
população local. Os modelos de desenvolvimento exógenos, que não levam em
conta a cultura e a opinião da população local estão fadados ao fracasso. João
Minervino, o seringueiro amarelo é a ficcionalização que melhor traduz esse
posicionamento.
33
No capítulo “João Minervino, o seringueiro”, quando lhe impingem a
alcunha de guardião da floresta, ele responde raivosamente: ―guardião da floresta é
o cacete!‖ (AIC, 2003, p.114). Isso por que ninguém perguntou a ele antes de darem-
lhe a alcunha. Dessa forma, a ficção alimenta-se de um elemento advindo de outros
discursos, como o jornalístico e o ensaístico.
Com efeito, essa postura de Minervino é uma recusa ao modelo de
desenvolvimento exógeno. Quem diz o que é e o que não é, ou o que está sendo, é
o próprio Minervino, embora, comprimido pelas condições materiais que o cercam.
Portanto, repetimos, acreditamos que AIC filia-se a uma determinada corrente
de desenvolvimento da Amazônia e, portanto, do Acre, numa postura anti-
isolacionista e defendendo modelos de desenvolvimento endógenos, exteriorizados
pela ficcionalização presente na obra.
Aliás, a luta contra o isolamento da região vem desde Euclides da Cunha, que
defendia a interligação do Acre por meio de uma estrada de ferro, a transacriana,
aproveitando as vias fluviais. Esse isolamento, com a ausência do Estado, fomentou
o capitalismo selvagem na região, originando o sistema de produção dos seringais.
No capítulo A fallencia dos seringaesdemonstra-se a forma como o Acre
foi tratado pelo governo nacional. Legítima colônia de exploração. Nesse capítulo,
demonstra-se que o governo federal sabia da situação e nada fazia. A derrocada da
borracha deu-se, assim, não em razão apenas da produção malaia, mas devido a
falta de incentivo do Estado Nacional, a ausência de um projeto que assentava as
pessoas à terra, além de haver favorecimento ao latifúndio, da ausência de vias de
ligação entre os centros produtores, dos métodos arcaicos de produção, da não
intervenção na regulação do mercado pelo Estado, etc. Enfim, o espírito de
exploração desenfreada, a ilha da consciência dentro da alma dos donos do poder,
fez com que a borracha entrasse em derrocada.
O pior é que aparentemente, há um círculo vicioso nisso tudo, que AIC parece
refletir na sua estrutura e que em outra parte do trabalho analisaremos mais
atentamente. Por ora, podemos dizer que é a ficcionalização presente no texto o
elemento que permite uma reflexão mais livre e irônica da realidade. A ficção de AIC
incorpora elementos de outros discursos (ensaístico e jornalístico), realizando uma
crítica social mordaz. Nesse aspecto é no personagem João Minervino que a
ficcionalização é sentida mais fortemente. O personagem invoca a inadequação
entre os discursos sobre a região e sua realidade.
34
Aliás, o próprio personagem é um estereótipo do indivíduo da região (amarelo
e com olhos de açafrão). Então, no personagem constatamos uma contradição: se
ele é a encarnação de discursos contra os estereótipos criados exogenamente sobre
a região, por qual motivo ele mesmo é um desses estereótipos?
Acreditamos que essa contradição, em verdade, decorre da adoção do senso
comum sobre a região e dos discursos fundacionais, então, ele é justamente aquilo
sobre o qual protesta.
Nesse caso, também reside uma ironia, capaz de suscitar discussões
prolíferas sobre os discursos fundacionais e sobre o próprio imaginário amazônico e
sobre a Amazônia. Afinal, a ironia às vezes usa seu poder para para fins de oposição
e crítica; às vezes ele é mais uma tentativa indireta de ‗trabalhar contradições
ideológicas de não deixá-las se resolver em dogmas coerentes e, assim,
potencialmente opressivos. Como tal, a ironia tem sido vista como ―jogo sério‖, tanto
―uma estratégia retórica quanto um método político‖ (HARAWAY,1990:191) que
desconstrói e descentra discursos patriarcais. Operando quase que como uma forma
de guerrilha, a ironia é vista como se trabalhasse para mudar a maneira de
interpretar das pessoas. A premissa operacional aqui é que ―a visão única produz
mais ilusões que a visão dupla (HARAWAY, 1990, p. 196 apud HUTCHEON, 2000, p.
56).
Ademais, o contraste entre Minervino e a contra ideologia que é apresentada
na sua fala pode ser uma forma de olhar as coisas sob diferentes pontos de vista, o
que seria uma visão mais crítica da realidade e apontaria para possíveis mudanças
por parte dos leitores. Sem falar que, às vezes, a ironia volta-se contra o próprio
discurso do sujeito enunciador, sendo isso mais um dos motivos de sua beleza.
Ora, no discurso irônico, toda posição solapa a si mesma, deixando assim o
escritor politicamente engajado numa posição onde seu discurso irônico poderia
começar a desconstruir sua própria política. (MOI, 1985, p. 40 apud HUTCHEON,
2000, p. 35).
Com efeito, essa contradição não nos parece ser um equívoco da obra, pelo
contrário, amolda-se ao seu espírito, qual seja de discutir ironicamente a região,
inserindo-se numa tradição ficcional de crítica social, notadamente voltada para a
realidade local. E isso não pode se dar sem o retorno aos discursos fundacionais e
ao imaginário sobre a região.
35
CAPÍTULO 2- MAPEAMENTO DO IMAGINÁRIO SOBRE A ILHA DA
CONSCIÊNCIA
2.1 Os discursos e o imaginário sobre a Amazônia
Acreditamos que para analisar A Ilha da Consciência é necessário discutir o
que é a Amazônia e, principalmente, o que é a Amazônia Acriana, tendo em vista as
inúmeras discussões e propostas presentes na obra sobre a região. Aliás,
acreditamos que diante de todo o emaranhado de propostas da obra não é estranho
que até hoje a academia ainda esteja tateando em como explicá-la.
Com esse propósito, como fio condutor da análise, sentimos a necessidade de
discutir, em primeiro lugar as visões sobre a Amazônia. A leitura do livro A invenção
da Amazônia, de Neide Gondim (1994,) é essencial para se compreender os
discursos sobre a Amazônia na atualidade, pois os imaginários que permanecem
hoje sobre a Amazônia possuem muitas semelhanças com os primeiros escritos.
No entanto, antes de adentrarmos nas ideias de Gondim, é conveniente
conceituarmos o que é imaginário.
Neste trabalho, adotamos o conceito que nos dá Kalina Vanderlei Silva e
Maciel Henrique Silva (2005). Para os autores,
imaginário significa o conjunto de imagens guardadas no inconsciente
coletivo de uma sociedade ou de um grupo social; é o depósito de imagens
de memória e imaginação. Ele abarca todas as representações de uma
sociedade, toda a experiencia humana, coletiva ou individual: ideias sobre a
morte, sobre o futuro, sobre o corpo.
Para Gilbert Durant, é um museu mental no qual todas as imagens passadas,
presente e as que ainda serão produzidas por dada sociedade. (SILVA; SILVA, 2005,
p. 213).
No entanto, o imaginário não se representa apenas com imagens, mas
também por meio de discursos, pois tanto imagem quanto discurso reproduzem
figuras da memória (SILVA; SILVA, 2005). Essa memória é coletiva, portanto, um
autor ao escrever, por mais que tente ser original está sempre imbuído num
imaginário, que depende sempre da sociedade, de seus sistemas, sua religião, das
formas como se dão as relações de classe, das maneiras de se comunicar, etc.
36
Logo, o imaginário é dinâmico, porque a sociedade não é estanque e reatualiza-se a
cada momento para manter a memória.
No imaginário sobre a região amazônica destaca-se discursos que traduzem
imagens estereotipadas que para Neide Gondim (1994) foram criadas antes mesmo
da região ser conquistada. Para Gondim (1994) A Amazônia é inventada a partir dos
escritos dos expedicionários europeus imbuídos de um imaginário sobre a Índia e de
resquícios da mentalidade europeia do medievo.
O trabalho de Gondim (1994) se estabelece como uma crônica de uma grande
viagem pelo tempo, pelos discursos, pela formação das imagens sobre a Amazônia e
que permanecem até nossos dias, pois a autora afirma que as potencialidades
imaginárias que os autores de ficção pensam existir na Amazônia ―ainda guardam o
vigor dos tempos primeiros dos navegadores de águas turvas e cristalinas do rio das
Amazonas e de seus tributários no bordado de suas estradas líquidas‖ (1994, p.
271).
Indo de autor em autor e de obra em obra, a estudiosa demonstra que a visão
da Amazônia maravilhosa e exótica foi criada mesmo antes de sua conquista.
Em contraponto a Neide Gondim, o estudo de Paes Loureiro (1995) aponta
outras questões, afirmando que a própria áurea misteriosa da floresta tem origem
numa constante áurea de mistério que a envolve. Seriam essas visões
contraditórias?
Acreditamos que Loureiro traz uma visão interna, enquanto Neide Gondim
demonstra a construção de visões externas sobre a Amazônia, então, na verdade,
seriam trabalhos complementares.
outros estudos, mas acreditamos que estes dois são os mais importantes
e, nesse mundo de estudos realizados sob diferentes ângulos, somos levados a
concluir que a região é o local onde convergem diversos imaginários, promovidos
pela exuberância da floresta num sempre porvir promissor, mas também
extremamente esquecida pelo Estado Nacional e extremamente à mercê de
interesses escusos nacionais e internacionais. Se o Brasil é explorado e faz parte de
uma periferia global, a Amazônia, é a periferia do Brasil, sendo, nesse aspecto, o
colonizado do colonizado (TOCANTINS, 1982).
Portanto, a Amazônia continua sendo uma colônia de exploração, cujo
potencial sempre pode ser alcançado, mas que seu agente é sempre o não-nativo,
ora o nacional de outras regiões ora os estrangeiros, com modelos exógenos de
37
desenvolvimento ou tão-só o desejo de exploração desenfreada, engendrando uma
perversa forma de exploração do homem pelo homem que acaba se integrando às
instituições, fomentada pela ausência do Estado. É uma região cujo modelo de
desenvolvimento precisa ainda ser criado, englobando as suas particularidades.
(TOCANTINS, 1982).
Nesse sentido, podemos citar duas experiências: a da zona franca de Manaus
e a do Estado do Acre. Se por um lado, o modelo da zona franca de Manaus
propiciou a preservação da floresta, por outro, esconde o problema de completa
desvinculação à ecologia local, enquanto o modelo recentemente adotado pelo
Estado do Acre, ou seja, o extrativista, revela resultados econômicos pífios, que
apenas ratificam a região como colônia de exploração.
Dessa forma, a grandiosidade da Amazônia é sua bênção e sua desgraça,
pois os superlativos acabam prevalecendo sobre suas verdadeiras facetas e
escondem a enorme diversidade de áreas que a Amazônia contém, o que faz
necessário pensar que a região não pode ter um único modelo de desenvolvimento.
Se, por um lado, os modelos propostos devem ser ligados à ecologia local, por
outro lado, devem ser capazes de superar o status de colônia de exploração,
agregando valores à produção da terra e incluindo uma gama de despossuídos no
mercado de trabalho, levando em consideração sempre a diversidade cultural e
ambiental da região.
Inserida nesse contexto amazônico, a Amazônia acriana seria o protótipo mais
desenvolvido das idiossincrasias a que o povo amazônico está submetido, por viver
na periferia da periferia da periferia, onde os sistemas cruéis de produção acentuam
sua tonalidade mais perversa. Como lugar de imaginários, a exuberância florestal
margens a devaneios de grandeza que chegam a ser satíricos entre as elites e
governantes do local como a ideia de fazer uma espécie de canal do Panamá
ligando duas margens do rio Acre e, talvez, possa aí ser incluída a postura de
acreditar em fazer da capital do Acre uma das sedes da copa do mundo do Brasil,
em 2014, concorrendo com Manaus.
Assim, se a ilha da consciência está arraigada na mentalidade das instituições
amazônicas, em geral, no Acre, a ausência de consciência age de forma mais
acentuada, ainda carregada com as cores pintadas pelos discursos fundadores da
Amazônia.
O caráter pândego (de viés negativo) atribuído por Martinello ao povo do Acre
38
no prólogo do livro intitulado Pobre, mas abusado‖, podemos supor, deriva da
construção imagética fornecida pelos cronistas do grande e do maravilhoso da
Amazônia e sua inadequação com as reais possibilidades materiais presentes. Um
palácio na floresta acriana, um microcanal do Panamá ligando duas margens do rio
Acre, um governador de um Estado pequeno e economicamente inexpressivo
cogitado a ser candidato a Presidente da República, etc. São inúmeros fatos que
demonstram a inadequação da imagem à realidade.
Na Amazônia, especialmente, na Amazônia acriana, tudo é grandioso, afinal ―a
modéstia não é virtude dos trópicos‖ (AIC, 2003, p. 51). Nessa grandiosidade
amazônica, a Ilha da Consciência reúne a possibilidade da mais completa ausência
de limites, do exagero sem culpa, de uma ilha onde cada um é por si, totalmente ao
contrário de outra ilha, a ilha de Utopia.
Contudo, a ilha da Consciência, por ser local onde se pode realizar os mais
sórdidos desejos, é, para alguns o paraíso, enquanto para outros seria o inferno.
Assim, a Ilha é a própria Amazônia institucionalizada. Ou seja, não é um local físico,
mas uma rede de articulações corruptoras das consciências dos deres políticos,
religiosos, etc.
Dessa forma, não basta está na Amazônia para ser corrompido, mas é
necessário integrar-se ao sistema corruptor. A Ilha de Marapatá é a forma de incluir-
se no sistema. Deixar a consciência na ilha é a forma de aceitá-lo. Por isso, o
capítulo inicial de AIC chama-se Na Ilha da Consciência e narra a história de
como padre Ludovico corrompeu-se depois de entrar no local.
O personagem de Márcio Souza, Galvez, por exemplo, ao dizer que não
deixou a consciência em Marapatá, na verdade, está dizendo que não se integrou ao
sistema.
Com efeito, o Acre é também ilha da consciência, de tal forma que a própria
capa do livro, como demonstrado, retrata o Estado destacado da Amazônia e do
Brasil. Contudo, a Ilha não é o Acre físico, mas os sistemas dominantes, corrompidos
e corruptores, enraizados nas instituições.
A ilha da consciência é estruturante e não serve apenas para denunciar o
sistema produtivo dos seringais, mas a própria forma de organização da sociedade
amazônica. Aliás, a Ilha da Consciência assemelha-se a um lugar de ritual, afinal,
simbolicamente, é lugar de eleição e se aproxima das noções de templo e de
santuário, conforme o dicionário de símbolos de Gheerbrant e Chevalier, in verbis :
39
A ilha é, assim, um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e
perfeita, pois que apresenta um valor sacral concentrado. A noção se
aproxima sob esse aspecto das noções de templo e de santuário. A ilha é
simbolicamente um lugar de eleição, de silêncio e de paz, em meio à
ignorância e à agitação do mundo profano. Representa um Centro primordial,
sagrado por definição, e sua cor fundamental é o branco.‖ GHEERBRANT;
CHEVALIER, 2009, p. 501)
Dessa forma, a ilha da consciência, na verdade, além de ser um local não
físico, é local de transformação, de ritual de passagem para a corrupção, incentivada
pela certeza da impunidade, devido ao isolamento, a ausência do Estado Nacional.
2.2 A ilha da Consciência (origem discursiva)
A ilha da consciência não é puro produto da imaginação de Sílvio Martinello.
Encontramos a primeira referência à Ilha da Consciência em Euclides da Cunha nos
seus escritos sobre o Acre em 1905 reunidos em Um Paraíso Perdido (2000). A Ilha
aparece como metáfora explicativa da natureza do sistema produtivo prevalecente
nos seringais amazônicos, que para um homem de espírito liberal como Euclides da
Cunha soava como verdadeira afronta ao progresso da humanidade, uma vez que,
para ele, o sistema fazia o seringueiro realizar uma anomalia: ―é o homem que
trabalha para escravizar-se‖ (CUNHA, 2000, p. 127). A sua crítica volta-se à
desordem com que a conquista do ―deserto verde‖vinha se dando, ou seja à
gandaia‖ (CUNHA, 2000, p. 149) de modo análogo às colônias de exploração do
século XV e com a completa ausência do Estado:
Abram-se os últimos relatórios das prefeituras do Acre. Nas suas páginas
maravilha-nos mais do que as transformações sem par que ali se verificam,
o absoluto abandono e o completo relaxo com que ainda se efetua o seu
povoamento. Hoje, como trinta anos, mesmo fora das aperturas e dos
tumultos da secas, os imigrantes avançam sem o mínimo resguardo, ou
assistência social (CUNHA, 2000, p. 151).
Na verdade, Euclides acreditava que o homem poderia domar a natureza e
não o fazia na região devido ao aspecto que o movimento colonizador encetara, o do
ganho rápido, que impedia a fixação à terra e ao trabalho construtivo, de tal forma
que chamava a atenção para o desprezo pela empresa construtiva dos pioneiros ao
relatar a travessia de uma corredeira nestes termos:
40
Por que os homens que ali mourejam- o caucheiro peruano com suas
tanganas rijas, nas montarias velozes, o nosso seringueiro, com os varejões
que lhes impulsionam os ubás, ou o regatão de todas as pátrias que por ali
mercadeja nas ronceiras arrastadas à sirga- nunca intervêm para melhorar a
sua única e magnífica estrada; passam e repassam nas paragens perigosas;
esbarram mil vezes a canoa num tronco caído dez anos junto à beira de
um canal; insinuasse mil vezes com as maiores dificuldades numa ramagem
revolta barrando-lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam
penosamente as conas sobre os mesmos salões de argila endurecida (...)
mas não despendem o mínimo esforço e não despendem um golpe único de
facão ou de machado num daqueles paus, para desafogar a travessia.
(CUNHA, 2000, p.141).
Nesse contexto, não é o clima que é ruim, propício às enfermidades, mas o
homem, abandonado à própria sorte pelo Estado, é que o é. Não condições de
salubridade pública devido ao baixo desenvolvimento técnico da sociedade, o qual
se torna mais difícil de ser obtido pela dispersão populacional proporcionada pela
empresa extrativista, a ―conservar a sistemática do deserto, e a prisão celular do
homem na amplitude desafogada da terra‖ (CUNHA, 2000, p. 154). Trata-se,
portanto, de um ambiente que propicia à justiça resumir-se a quase nada e, por isso,
a semiescravidão do seringueiro não ser contestada.
Assim, para explicar essa gama de situações inconcebíveis para um homem
da cultura do escritor de Os sertões, surge a Ilha de Marapatá, fruto da crendice
popular, mas adequada perfeitamente às elucubrações euclidianas sobre a
colonização acriana:
À entrada de Manaus existe a belíssima Ilha da Marapatá- e essa ilha tem
uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos- um lazareto de
almas!Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência....Meça-se o alce deste
prodígio da fantasia popular. A ilha que existe fronteira à Boca do Purus,
perdeu seu antigo nome geográfico e chama-se ilha da consciência; e o
mesmo acontece a uma outra, semelhante, na foz do Juruá. É uma
preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas que lavam ao paraíso
diabólico dos seringais, abdica as melhores qualidades nativas e fulmina-se
a si próprio, com aquela ironia formidável. (CUNHA, 2000, p. 127).
Esta, porém, não é a única metáfora para demonstrar a situação da conquista
do Acre e tão pouco da situação dos seringueiros, pois há outras metáforas felizes
como a de Judas Asvero. Todavia, a metáfora da ilha é uma das mais felizes
utilizadas por Euclides.
Após Euclides, cronologicamente, outro autor a fazer referência à Ilha da
41
Consciência foi Osvaldo Orico com o Folclore do Norte (LIMA, 2011), de 1909 e a
ideia de uma Ilha da Consciência não passou despercebida por um autor
preocupado com as culturas regionais do país como Mário de Andrade. Em
Macunaíma (1928), a ilha surge no momento em que o protagonista tem que partir
para São Paulo em busca da Muiraquitã e como não pode ter critérios para recuperar
o amuleto, opta por deixar a consciência na ilha de Marapatá, num mandacaru de 10
metros, a fim de que as saúvas não a comessem.
Dessa forma, Macunaíma inverte o jogo de colonizado/colonizador, inclusive,
no nível de postura, pois o herói sem nenhum caráter adota o mesmo critério que
qualquer colonizador/conquistador utiliza, ou seja, viaja em busca da riqueza sem
critério algum.
Com efeito, em Macunaíma, tal como na obra de Euclides, a Ilha da
Consciência traz o dilema dos seringais, com seu sistema de exploração desumano,
cuja realidade era ignorada pela inteligência brasileira (ANTELO, 1976 apud LIMA,
2011).
Contudo, na obra andradiana, o herói sem nenhum caráter, ao retornar de São
Paulo, lembra-se que esquecera a consciência e não a encontrando, coloca a de um
latino americano, o que faz com que a metáfora da ilha, em Macunaíma, amplie-se,
ganhando ares internacionais, ultrapassando a simples denúncia da situação de
exploração dos seringueiros para alcançar status de denúncia contra a exploração
de toda a América Latina. (ANTELO, 1976 apud LIMA, 2011).
A próxima referência à Ilha da Consciência encontramos em Leandro
Tocantins (1968), importante intérprete da Amazônia. Contudo, ao contrário dos
outros autores, ele trata a ilha como simples apêndice, ou melhor, nota de rodapé, ou
seja, apenas como uma curiosidade.
o importante autor amazonense, Márcio Souza, em Galvez, Imperador do
Acre (1992) também dedica algumas palavras à ilha. A referência aparece no
capítulo Tradição‖, em que Luiz Galvez, próximo a chegar à Manaus, fugindo de
Belém, tendo como passagem obrigatória a ilha de Marapatá, afirma ter sido o único
aventureiro que não deixou sua consciência antes de entrar em Manaus: ―Na ilha
de Marapatá os aventureiros costumavam deixar a própria consciência antes de se
entregarem à caça. Fui o único aventureiro a entrar em Manaus com a consciência
bem ativa. Nunca me arrependi‖ (SOUZA, 1992, p.99).
Em Galvez, imperador do Acre, a Ilha mantém sua nefasta função de retirar
42
a consciência dos homens. Mas, como em Macunaíma, o herói mantém sua alma ao
final e como o herói sem nenhum caráter, Galvez, ao nosso sentir, alça ares
internacionais na defesa da região, que sua nacionalidade é espanhola,
engendrando uma postura de defesa das terras amazônicas não pelos latino-
americanos, mas por toda a humanidade contra a exploração desordenada,
indiscriminada e depredadora da imensa e rica natureza da região.
Noutro giro, acreditamos que o título da obra de Martinello e ela mesma em si,
indica, em verdade, duas tradições, uma cultural, referente à falta de escrúpulos dos
aventureiros que vinham tentar a sorte na Amazônia, remontando à exploração
desde os pioneiros e, outra literária. Nos parece que a referência à ilha da
consciência como metáfora do sistema de exploração dos seringais, em Márcio
Souza, é reconhecida como uma tradição temática, que articula um diálogo entre
as obras Galvez, imperador do Acre, Macunaíma e Um paraíso perdido no
tocante ao fundamento de interpretação da Amazônia, guardadas as devidas
proporções e diferenças entre as ideias veiculadas pelas obras, bem como seus
contextos enunciativos.
Portanto, acreditamos que a ideia da ilha da Consciência, que Martinello
retoma em livro homônimo, está algum tempo permeando as interpretações
sobre a Amazônia, inclusive na literatura.
Na obra de Martinello, acreditamos que a ilha da Consciência, que seria
melhor chamada de a ilha da ausência de consciência, se institucionalizou na vida
social amazônida e seria a razão de inúmeros problemas político-sociais e
econômicos da região, como a corrupção, a ausência de produção agrícola, etc.
Assim, a ilha sobrevive dentro das instituições. Para nós, nesse sentido,
Martinello parte do mesmo princípio de Leandro Tocantins para interpretar a
Amazônia acriana, ou seja, de que
o sistema ou regime decorrente da exportação da borracha criou, assim,
uma teia complexa de normas técnicas, de princípios de organização
econômica e social que além de penetrarem no íntimo das instituições
regionais , modalizando um modo de vida caracterizada pelos próprios da
cultura, de inteligência, de sentimentos, de tipos e costumes, enfim, um
estado d‘alma peculiar, ao lado das significativas expressões materiais, -
foram suscitar os espíritos, nos centros ditos civilizados, a fazerem
descobertas, a inventarem objetos, criando um mundo de coisas essenciais
ao progresso e ao bem-estar da espécie humana (TOCANTINS, 1984, p.
134).
43
Essa parece ser justamente a visão da florestania
9
, ideologia criada pelo
governo do ex-governado do Acre (1998-2006), Jorge Viana, que nos parece ser alvo
de críticas em A ilha da consciência.
Assim, entendemos, porém, que apesar da obra de Martinello partir do mesmo
princípio de Leandro Tocantins, ela não partilha da mesma visão que o historiador
paraense. Tocantins tinha uma visão positiva sobre esse fenômeno, acreditando que
a forma de colonização propiciou um modelo acentuadamente ecológico de
ocupação, cuja singularidade faria com que surgissem descobertas que seriam
essenciais ao mundo, apesar de saber das consequências na organização do
trabalho na região.
Por sua vez, parece-nos que a visão veiculada em AIC sobre o mesmo
fenômeno não é tão positiva. Aliás, é negativa, pois credita como consequência
disso, a semiescravidão do seringueiro, a negação de diversas visões ou versões da
história, os modelos de desenvolvimento extrativistas sem resultados expressivos,
etc.
É emblemático o capítulo Mademoseille Raimunda da Silva‖, em que se
credita o escravizamento de muitos e o enriquecimento de poucos à monocultura da
borracha.
Portanto, acreditamos que a obra AIC simboliza um combate em duas frentes
políticas: a literária e a cultural. A literária se no sentido de desmistificação da
região e revisitação da literatura sobre a Amazônia, tanto que nesse sentido, o
capítulo João Minervino, o filósofoé contundente, esboçando diversas críticas à
literatura de expressão acriana. Bem como a diversas obras literárias ambientadas
na região.
No capítulo referido, a crítica é exposta sobre os diversos discursos que dão o
tom das visões sobre a Amazônia, desde Euclides da Cunha a Miguel Ferrante e
Abguar de Bastos, demonstrando a inadequação dos discursos à realidade social
9
Mais adiante trabalharemos com o conceito de florestania nos dado por Maria de Jesus
Morais. Por ora, ficaremos com a definição dada por Antônio Alves, um dos seus idealizadores: surgiu
como alternativa à cidadania, que cidadania depende do substantivo, cidade, então seria aplicável
aos direitos dos moradores de cidades, mas a maioria da população do Acre vivem na floresta e até
hoje foi formada pela experiencia de vida na floresta, por isso florestania. Esse conceito não se limita
a uma ideia rígida de vida na floresta como um bioma virgem, fechado e pronto para exploração pelos
humanos, mas se baseia numa forma de vida tradicional da Amazônia, em equilíbrio com os sistemas
da natureza existentes, como as estacoes temporais e os ecossistemas delicados (ALVES, 2011 apud
MACHADO, 2011)
44
vivenciada nas selvas amazônicas e, principalmente, na selva amazônica do Acre.
o duelo na frente cultural se no sentido de combater o enraizamento do
modelo exploratório da colonização nas instituições sociais, ensejador de várias
injustiças sociais e problemas como corrupção e que, desde o início do século XX, é
criticado por intelectuais como Euclides da Cunha. Com efeito, acreditamos que a
obra de Martinello tenta demonstrar como operou e ainda opera nas instituições essa
consciência ou falta de consciência criada pelo modelo colonizador da região, a fim
de tentar combater seus efeitos nas diversas esferas de atividades acrianas e, quiçá,
amazônicas.
O combate nessas duas arenas envolve um combate numa arena mais ampla
e mais acentuadamente política, qual seja, a arena identitária. Ora, a própria forma
como a obra foi escrita, apesar de também ter rasgos homogeneizadores de
identidade, reverbera uma postura crítica contra o modelo de identidade defendido
pelo Estado acriano.
A obra guarda elementos que tornam problemática a sua classificação: é
ficção ou jornalismo? É romance, ensaio ou crônica? A resposta não pode ser dada a
priori .
Além disso, os procedimentos utilizados na obra, copiados de Márcio Souza,
especialmente, de Galvez, imperador do Acre (1992), que ao lado de Relato de um
certo oriente (1990) trouxe o s- modernismo à literatura da região norte,
configuram a inserção de novos procedimentos na literatura de expressão acriana,
ainda fortemente apegada à segunda fase do Modernismo brasileiro (COSSON,
1993) e com um forte viés documental (SILVA, 1998).
Quanto à arena cultural, AIC parece querer responder quem é o acriano,
oferecendo uma resposta ao creditar o espírito da terra principalmente ao
seringueiro, numa visão que ainda conserva, como dito antes, rasgos
homogeneizadores, mas que tem o mérito de defender as classes desprestigiadas,
embora não lhes dando voz de fato.
O sentido da terra, a singularidade que situa nessas paragens acentuam o
viés nitidamente identitário da obra. O seringueiro é o único indivíduo que ao vir para
o Acre o passa pela ilha de Marapatá, ou melhor, não se integra ao sistema
corruptor representado pela ilha.
Logo, esse indivíduo é o mais legítimo representante da acrianidade,
enquanto os membros das elites, mesmo os de origem acriana, ainda conservam a
45
mentalidade colonizadora internalizada.
Nesse aspecto, A ilha da consciência representa uma discussão da
identidade acriana, servindo, tal como a Expressão amazonense, de ponto de
partida de um projeto político e estético de seus respectivos autores.
Aliás, a escrita de Martinello surge num momento em que um conturbado
cenário político discursivo, em que não se distingue direita ou esquerda, onde a
busca pela identidade tornou-se uma obsessão e o governo do Estado do Acre
procura produzir uma identidade acriana identificada com a ideologia de sua elite
burocrática (MORAIS, 2008), tendo como argumento o resgate do ―orgulho de ser
acriano‖. Reverberando essa realidade, acreditamos que surgiu no autor uma
necessidade de refletir sobre a cultura e a política oficial em procura de uma
identidade acriana, tendo em vista as contradições dessa política.
Ainda quanto à questão da identidade, para reafirmar o que dissemos
anteriormente sobre a vinculação da obra a um projeto de delineamento identitário é
salutar assinalar as contribuições da pesquisadora Maria de Jesus Morais (2008).
Em primeiro lugar, para Maria de Jesus Morais (2008), a identidade está
assentada em duas dimensões: a histórica e a geográfica. A geográfica ancora-se
nos espaços de referência, enquanto a histórica ancora-se em uma memória
coletiva, a qual, associa-se três eventos encadeados pela história oficial, quais
sejam: a Revolução Acriana, o Movimento Autonomista e o Movimento Social de
Índios e Seringueiros no Acre.
Ora, esses eventos históricos são retratados na obra de Martinello.
Notadamente, a Revolução Acriana é representada explicitamente em A Ilha da
Consciência, enquanto o Movimento Social de Índios e seringueiros ganha vulto em
Amanda. menos explícito e sequer com referências ao Movimento autonomista,
Corações de Borracha, diante do modelo de sustentabilidade do seringal projetado
por José Eugênio, protagonista do romance, parece projetar os ideais do Movimento
Autonomista. a atualidade com suas ―novas revoluções‖ sem armas, está
representada em Acre, onde o vento faz a curva.
Ademais, Maria de Jesus Morais (2008, p. 75-76) identifica a Revolução
Acriana como o Mito fundador do Acre, alertando que os conflitos entre brasileiros e
bolivianos não se deram em período tão curto, como o discurso oficial quer fazer
crer, pois uma década antes de Plácido de Castro comandar as tropas acrianas, os
conflitos se davam de forma contumaz, sendo inclusive constantes as batalhas no
46
Alto Purus e Alto Juruá, as quais são relegadas a segundo plano, tendo em vista que
não detêm a grandiosidade de uma guerra contra a Bolívia.
Nesse aspecto, AIC distingue-se de outras versões da história por demonstrar
justamente a existência de conflitos antes de Plácido de Castro e pouco lembrados
pela historiografia oficial, embora, tal como esta, trate a Revolução Acriana como
um movimento épico, de grandes proporções.
Ressalta ainda Maria de Jesus Morais (2008, p. 77) que os personagens mais
utilizados para conformar um discurso identitário são Plácido de Castro, como
libertador e Luiz Galvez, com ―o discurso fundador‖, o manifesto da ―Junta
Revolucionária do Acre.‖
Contudo, lembramos que os personagens Galvez e Plácido de Castro são
lembrados e utilizados em proporções diferentes. A partir do governo Jorge Viana, o
discurso identitário tomou mais força, havendo a ressignificação de diversos
elementos, tais como a estrela vermelha da bandeira, lembrança de muitas lutas e
batalhas dos movimentos sociais, dos quais o governo que se autodenomina da
―floresta‖, diz-se continuador.
No entanto, assevera Morais (2008) que, se por um lado, o governo se diz
continuador das lutas sociais pela preservação da floresta e pelo desenvolvimento
econômico, operando uma ―nova revolução‖ e uma nova postura sobre o seringueiro,
por outro, revela contradições, tais como o fato de ser o maior colaborador para a
expansão da pecuária no Estado chegando a arcar com milhões para a realização de
uma feira agropecuária anual. Esse tipo de evento em outros Estados é patrocinado
pelos próprios fazendeiros.
Além disso, o discurso preservacionista dos Movimentos sociais seringueiros
e indígenas é negligenciado pelo discurso do manejo sustentável da madeira, pois
a política estadual implementada pelo Governo da Floresta tem sido
justificada como inspiração nos ideais do movimento social de índios e
seringueiros, o que nos parece uma contradição, pois uma das
questões que os seringueiros defendiam era a não transformação
dos seringais em que viviam em fazendas para a criação de gado,
bem como eram contra a exploração de madeira (MORAIS, 2008, p.
209).
É na tentativa de entender esse contexto e de recontar a história que Sílvio
Martinello escreveu seus quatro livros. Assim, A Ilha da Consciência é o ponto
47
inaugural de uma produção que abarca toda a história acriana, partindo do
movimento fundante, a Revolução Acriana (A Ilha da Consciência), percorrendo a
batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial (Corações de Borracha), os
movimentos sociais dos seringueiros nas décadas de 70 e 80 (Amanda) e os
modelos de desenvolvimento atuais (Acre, onde o vento faz a curva).
Dedicando um livro a cada momento importante da história acriana, o autor,
em A ilha da consciência, talvez por ser o livro que retrata o mito fundador, não se
volta a um período histórico apenas, ao contrário dos outros livros. AIC é obra em
que se misturam os tempos passado, presente e futuro, demonstrando como se
renova o mito, afinal, o mito é entidade que não se submete aos rigores do tempo,
sempre se renovando por meio da repetição (CHAUÍ, 2000).
A repetição, no caso de AIC confere certo caráter circular à obra, pois o
seringueiro é sempre enganado, iludido. A obra, em determinado momento, parece
começar a dar voltas sobre si mesma, como se não mais saísse do lugar. Isso pode
ocorrer por falta de inspiração do autor ou até mesmo se dar inconscientemente.
No entanto, a metáfora da estrada de seringa sempre circular é emblemática
no sentido de apontar que o caráter circular de AIC é proposital ou pelo menos
inspirado na circularidade das estradas de seringa. Ora, o seringueiro é o indivíduo
que passa a vida andando nas estradas circulares de seringa:
Socado em sua colocação Valha-nos Deus, cumprindo a anomalia
ou maldição de Euclides da Cunha, de João Craveiro da Costa, de Ferreira
de Castro, de Arthur Cezar Ferreira Reis, de Pedro Martinello e outros
historiadores clássicos que os da nova geração criticam como
economicistas, deterministas demais, nosso João Minervino da Silva passou
vinte anos dando voltas nas estradas de seringa e sobre si mesmo.
O Repórter tentou acompanhá-lo em um de suas saídas de
madrugada para fazer o corte da seringa e quem saber faturar um Prêmio
Esso. Não conseguiu. Dispostas em círculo, essas estradas são uma tortura:
elas levam o seringueiro ao interior da floresta e o trazem sempre ao mesmo
ponto de partida. (AIC, 2003, p. 121)
A circularidade da estrada demonstra a imobilidade social a que estava
submetido o seringueiro e a repetição de modelos de desenvolvimento ineficazes. Na
verdade, uma tradição herdada de Euclides, portanto, aqui se demonstra mais
uma filiação à obra euclidiana. A metáfora, como se assinalou, aqui também se
relaciona aos modelos de desenvolvimento da região.
Aos modelos de desenvolvimento é creditada a culpa da desgraça de
48
Minervino. No capítulo Camisinhas made in Acre‖, o personagem tenta diversos
empreendimentos relacionados ao extrativismo e em todos não obtém êxito. Não por
causa dele mesmo, mas por causa dos modelos serem elaborados sem levar em
consideração a técnica, o mercado, o gosto da população acriana.
Tanto é assim, que o capítulo Minervino, o filósofo aponta como as teorias
e os modelos desenvolvimentistas exógenos não servem, sem adaptações, para
serem aplicados às terras acrianas.
Nesse capítulo, a tradição discursiva também é criticada, tendo em vista a
inadequação de determinadas visões à realidade, senão, vejamos alguns trechos:
A começar por Euclides da Cunha, para o qual a Amazônia era uma
página do Gênesis ainda não escrita; que o homem ali, ainda é um intruso
impertinente ; que chegou sem ser esperado nem querido...‖ que o ―palco é
grande demais para atores minúsculos‖.
-Arre égua! Se não queriam a gente aqui, por que trouxeram,
entonces ? protestava João Minervino, a essas alturas, tendo absorvido
um pouco de castelhano, devido ao intenso contato que tivera com os
bolivianos [...] (AIC , 2003, p. 261)
Nosso herói, agora metido a filósofo, reclamava também que,
enquanto o autor de Os sertões sustentava que a Amazônia era um paraíso
perdido, seu amigo, Alberto Rangel, escrevia que era o Inferno Verde .
Sem contar com os títulos de outros autores: - Paraíso Perdido, Inferno
Verde, A Selva, Deserto Verde, Águas e Selvas, Paes das Pedras
Verdes, Terra Verde, o Pais das Amazonas esses dotô não se
decidem, se é paraíso ou inferno, se é água ou deserto, se é pedra ou mu
amazona. (AIC , 2003, p. 262).
O trecho perfaz o caminho imagético/discursivo sobre a região, atualizando-o
de forma debochada, remetendo à dificuldade de se pensar a Amazônia de forma
total, o que leva a qualquer interpretação ou visão sobre a região a grandes
equívocos.
Além disso, um novo elemento é acrescentado, ou seja, a mistura do
português com o espanhol, a indicar que a Amazônia é muito mais ampla que os
limites geográficos do Brasil e que há trocas culturais da região.
Portando, a Amazônia depende dos olhos de quem vê. No entanto, apesar de
toda a corrupção, dos modelos de desenvolvimento inadequados, AIC aponta uma
brecha como possibilidade de superação, qual seja, o movimento social, indicado no
último capítulo ―Quentinhas com cocaína‖, como sendo a esperança.
Ou seja, a resistência surge como elemento capaz de operar mudanças
substanciais no sistema. Portanto, o um pessimismo total na obra. Pelo
contrário, há uma possibilidade de quebrar o círculo vicioso de desenvolvimento.
49
Contudo, se por um lado os modelos de desenvolvimento são criticados, a
ausência de adoção de um modelo para o Acre também o é. O capítulo ―João
Minervino, o seringueiro amarelo demonstra que o impasse entre os modelos
extrativistas e os pecuaristas acabam por transformar Minervino num arremedo de
homem, sempre submetido a ausência de um desenvolvimento que o inclua.
Portanto, AIC aponta diversas questões, as quais, acreditamos que
poderiam surgir no Acre no contexto pós-1988, conjugado com a ascensão do
Partido dos Trabalhadores (PT).
Esses eventos, para nós, constitui marco constitutivo da busca de uma
identidade acriana, cuja postura oficial é criticada pela intelectualidade local, que
associada a um projeto político discursivo de perpetuação no poder.
Assim, a obra de Martinello, especialmente AIC, corresponde a formação
desse novo cenário até então, inédito no Acre, propondo debates e incrementando
elementos novos na forma dessa discussão, pois a obra literária não faz parte de
seu próprio contexto como, aliás, ajuda a construir o seu contexto (MAINGUENEAU,
1995).
2.3 Paródia e Carnavalização em A Ilha da Consciência
É necessário consignarmos que A Ilha da Consciência amolda-se
perfeitamente no paradigma da literatura carnavalizada, pois na tentativa de criar
uma história do Acre não-oficial, como fez Márcio Souza em Galvez, Imperador do
Acre, Sílvio Martinello utilizou uma lógica discursiva carnavalizada.
Mas o que é essa lógica discursiva carnavalizada? Bakhtin (1987) explica que
o carnaval medieval é o momento de tradução de um mundo às avessas, cuja lei é a
liberdade. Na visão carnavalesca, o mundo é colocado de cabeça para baixo, ou
seja, há a libertação da vida cotidiana. O carnaval, então, é o momento da quebra de
proibições, da suspensão das leis, isto é:
O carnaval ignora toda distinção entre atores e espectadores. Também
ignora o palco, mesmo na sua forma embrionária. Pois o palco teria
destruído o carnaval (e inversamente, a destruição do palco teria destruído o
espetáculo teatral). Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o
vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para o todo
o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do
50
carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma
fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo
com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. (BAKHTIN, 1987, p. 6 )
A festa carnavalesca privilegia o livre contato humano, pois é um espetáculo
em que atores e espectadores misturam-se, anulando-se todas as formas de
reverência, devoção, medo ou etiqueta, pois não hierarquias. Desse livre contato,
originam-se quatro categorias ou aspectos do mundo carnavalizado.
Conforme Leonor Fávero (1994), a primeira categoria é o livre contato
humano, que instaura um novo modo de relações humanas, oposto às relações
hierárquico sociais todo poderosas da vida cotidiana, em que uma
excentricidade (segunda categoria), na expressão porque o homem se abre e se
permite tudo aquilo que comumente está reprimido. A terceira categoria é a das
mesalliances, que se refere à aproximação dos contrários o carnaval aproxima,
reúne, casa, amálgama o sagrado e o profano, o alto e o baixo, o sublime e o
insignificante, a sabedoria e a ignorância etc, ligando-se à quarta categoria, que é a
profanação, formada pelos sacrílegos carnavalescos, pelas indecências
carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do corpo, e pelas
paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas.
À transposição do carnaval para a Literatura, o mestre russo chamou de
carnavalização da literatura. Portanto, literatura carnavalizada é aquela que promove
as liberdades de forma, a inversão dos procedimentos e discursos, a quebra de
distâncias e barreiras, a junção de contrários, os excessos e ausências, as contra
ideologias e os contra discursos, caracterizando toda uma nova lógica discursiva.
Essa lógica discursiva possui algumas características que embora
identificadas por Bakthin na literatura da Idade Média e do Renascimento, podem ser
aplicadas à literatura moderna. Entre essas características, o hibridismo de gênero
deflui da ambivalência carnavalesca, que derruba as distâncias entre os gêneros,
estilo, autor e personagem, até a crítica a sistemas ideológicos, discursos do poder,
etc (BARROS, 1994, p.7).
Ora, o próprio gênero escolhido por Sílvio Martinello em AIC é uma das
marcas da carnavalização, pois a obra é híbrida, de difícil classificação, ficando entre
a ficção e o jornalismo, entre o romance e o ensaio e, talvez, também, a crônica.
Além disso, sua narrativa é cambaleante, sem uma linearidade fixa, cuja tênue linha
de continuidade é dada por elementos sobre os quais discutiremos em outra parte do
51
trabalho.
A ambiguidade quanto ao gênero favorece também a quebra de regras
clássicas de narração. Em AIC uma complexa narração, pois um personagem
Repórter que às vezes é o personagem narrador, outras vezes é narrador e
comentarista, noutra não narra nem comenta.
Na verdade, a própria organização dos textos também é carnavalizada, pois
não obedece a uma ordem cronológica rígida quanto à sua ambientação, embora os
capítulos sempre se relacionem com o assunto anterior.
O capítulo Entrevista com o Imperador‖, por exemplo, é ambientado na
contemporaneidade, tanto que o imperador Galvez é um defunto e depois, nos
capítulos seguintes, inicia-se um introito sobre quem realmente foi Galvez. Mas
antes dos tempos de Galvez, o texto trabalha com a Revolução dos Poetas.
Outra característica bastante notória na obra é o poder de transformação, das
metamorfoses. O personagem João Minervino, por exemplo, é sanguinário, corajoso,
mas acaba transformando-se numa péla de borracha:
[…] Estava tão absorto nesses pensamentos e sempre a maldita
saudade do Nordeste a persegui-lo e mortificá-lo, que, um dia, por descuido
do gerente do seringal, nosso herói João Minervino da Silva foi jogado junto
com outras pélas de borracha no batelão e seguiu rio abaixo, onde seria
vendido às casas aviadoras de Manaus e Belém e depois para a Goodyear.
Mas atenção caro leitor!Herói bom pode até transmutar-se. Todavia,
não pode morrer. Precisa viver a aventura e pagar o preço do seu sonho até
o fim. Nosso herói precisava plantar sua semente, seu sêmen. (AIC, 2003, p.
294)
Nesse sentido, ele é coisificado e mesmo derrotado, como péla é vencedor
pois atinge a imortalidade, que como péla não pode ser morto. As metamorfoses
presentes na obra são típicas da carnavalização. Macunaíma é um exemplo do uso
desse recurso com maestria. Em A Ilha da Consciência, no texto, Entrevista com
o imperador ‖, a metamorfose é utilizada para possibilitar uma entrevista com Luiz
Galvez Rodrigues de Arias. Ao tomar o chá da Ayuasca, o Repórter-narrador uma
árvore de mulateiro se transformar no imperador do Acre:
[…] A paisagem do nada vai se transformando num mundo
fantasmagórico. Principalmente, se antes de chegar ao descampado, o
viajante tiver feito duas paradas no caminho, para tomar um chá
esverdeado, o Ayuasca, que, em quechua ou quíchua, significa vinho das
almas‖ ou ―vinho dos mortos‖.
52
No caso, a definição é apropriada, porque o mulateiro solitário e
afrodisíaco vai sendo envolto por uma aura e, em seguida, tomando formas
de uma figura humana. Raízes, tronco e folhas vão se compondo a silhueta
de um homem alto, magro, um pouco curvado, com um cavanhaque e
bigode portenhos.
Repórter: Bom dia!
Buenos dias!
Repórter: No lo creo! Dom Luiz Galvez Rodrigues y Arias, el
Imperador del Acre ! Por suposto? - indaga, surpreso, o Repórter ao
reconhecer o Imperador por uma velha fotografia que vira nos livros de
História do Acre. (AIC, 2003 p. 30).
Interessante também é que a cena assemelha-se bastante com o capítulo VII,
intitulado O Inca de A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls, em que o
personagem referido apenas como Doutor, após ingerir uma bebida preparada
pelas nativas, é transportado oniricamente no tempo até a época do Império Inca e
descobre a origem das Amazonas ao travar uma conversa com o Imperador
Atahualpa.(CRULS apud SILVA, 2010, p. 10). Se comparados, portanto, os dois
textos, percebemos que ambos procuram origens. Um, a origem das Amazonas,
outro, a do Acre.
Retornando à questão da metamorfose, outro exemplo de metamorfose ocorre
com o Padre Ludovico, personagem do capítulo ― Na ilha de Consciência ‖, em que
Padre Ludovico transforma-se em um boto cor-de-rosa.
Todos os historiadores, porém, estão de acordo que, em ali
chegando, na Ilha de Marapatá, ninguém resiste. Foi o que aconteceu com
Padre Ludovico. Um santo, que pecado! Com apenas três dias na ilha,
operou-se uma diabólica transformação em sua alma.
Largou batina e saiu atrás de todas as saias que esvoaçavam no
convés do Santa Edwirges, metido em uma minuscula sunga, que
desenhava suas partes pudendas. Trocou o breviário por revistas
pornográficas e entregou-se a todas as orgias que se praticavam na ilha.
À noite, virava boto cor-de-rosa. (AIC, 2003, p.22-23 )
No trecho também se destaca um outro fenômeno que é explorado na obra. O
rebaixamento do sagrado ao profano é um dos elementos que compõe partes do
texto de A Ilha da Consciência como o caso do Padre Ludovico, que de quase
santo, passou a devasso.
A redação de A Ilha da Consciência possui sensibilidade carnavalesca ainda
por mais alguns aspectos que podemos citar. A própria dissonância retratada na obra
entre a realidade e as imagens criadas a respeito da Amazônia, entre o que se ler e
o que se vive, trata-se de uma carnavalização, baseada em dissonâncias e
53
inversões, e no qual tudo é ambivalente, porque visto por uma lógica às avessas.
Salutar, então, lembrarmos do trecho abaixo transcrito:
Até um dos autores mais consequentes, como Ferreira de Castro,
com sua A Selva, uma das obras mais recorrentes da literatura sobre a
região, empacou. Mostrou apenas o lado da opressão no seringal. A
denuncia do outro lado, o lado irresponsável e perverso dos ―coronéis de
Barranco, ficou esfumada.
Muitos anos depois, no começo da década de setenta, aparecia um
livro com o título O seringal, de autoria do jurista Miguel Ferrante, com todos
os ingredientes desse mesmo viés ideológico. Fábio, o dono do seringal;
Toinho, um seringueiro, cria do seringal; Cazuza, um contador de causos e
Paula, morena ―de olhos verdes‖ desmaiados de ternura e afeto. Como
cenário, a presença sempre esmagadora e estonteante da floresta
amazônica e esses personagens a desafiá-la (…). Além dos escritores, havia
ainda os poetas. Extasiados, embevecidos, inebriados, embriagados,
sobretudo, embriagados, danaram-se a enaltecer a beleza deslumbrante ,
luxuriante, inebriante, possante, esfuziante, vibrante, estonteante da
floresta amazônica. (AIC, 2003, p. 263)
Até a própria forma de descrever essa dissonância guarda uma crítica mordaz.
O uso exagerado dos adjetivos utilizados no trecho acima transcrito aponta para um
dos principais defeitos apontados em AIC para a literatura da região, ou seja, o
excesso de adjetivos que acabam escondendo a verdadeira Amazônia ou as
verdadeiras amazônias.
Além disso, tal dissonância é, também, uma crítica à cultura fraca e a literatura
lida no Estado. No mais , aí, uma crítica à maneira como a literatura é usada, ou
seja, como cultura de fachada.
Sentimos isso mais dura e claramente em AIC no capítulo Na ilha da
Consciência” quando se expõe que padre Ludovico formou-se defendendo a tese
De Betumine Arcae Noensis usum fuit:
Formado em Teologia pelo Colégio Pio Brasileiro, em Roma, com a tese De
bitume Arcae Noensi usum fuit, Padre Ludovico compôs um tratado
originalizadíssimo. Chegou a ser comparado pelo cardeais da Cúria
Romana com a Summa Teológica de Santo Tomás de Aquino. Embora, a
rigor, ninguém conseguisse atentar para a utilidade que teria o betume,
usado por Noé para vedar sua arca de bichos, na salvação das almas.
(AIC, 2003, p. 21)
A crítica à cultura de fachada e inútil, identificamos também em Machado de
Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
a universidade esperava-me com suas aulas árduas, estudei-as
54
muito mediocremente e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-no
com a solenidade do estilo ... tinha eu conquistado em Coimbra uma grande
nomeada de folião; era acadêmico estroina, superficial, tumultuário e
petulante, dado ás aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo
teórico...No dia em que a universidade me atestou um pergaminho , uma
ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que
me senti de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me, o
diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a
responsabilidade.(ASSIS, 1998, p. 48)
Assim, AIC estabelece uma ironia por meio de Ludovico que não é a única na
obra. Diversas ironias são expostas ao longo de AIC, podemos citar, algumas como
forma de exemplo:
Os bois dos fazendeiros amigos já não são os mesmos bois brabos que com
suas patas abriram a fronteira agrícola. Como a política é sempre muito
dinâmica na Amazônia, são chamados agora pelo eufemismo de
―fazendeiros verdes‖ porque criam ―bois verdes‖, porque comem ―capim
verde‖ e porque ―cagam verde‖. ( AIC, 2003, p. 300)
O excerto colacionado acima trata da atual política do governo do Estado do
Acre, no entanto, refletindo o presente, observamos, ainda, que em AIC há uma
forte recontagem da história, que todos os capítulos da obra são recontações de
fatos históricos ou remetem a esses fatos, muitas vezes os refletindo e atualizando.
Em outros momentos, o fato descrito é dessacralizando, provocando o
questionamento de como na verdade ocorreu. O capítulo em que se narra o corte da
corrente no rio Acre é emblemático, ao suscitar o possível engrandecimento da
―verdade‖ histórica, tendo em vista que a história contada por Frederico dos Reis
Lima, um ex-combatente da ―Revolução Acriana‖, não é tão épica ou heróica como
as histórias oficiais fazem crer. Inclusive, a história do Senhor Frederico é muito mais
verossímil que o corte da corrente tenha sido realizado à noite, no seco e sem
mortes.
'Os bolivianos atravessaram a corrente durante a noite. Cavaram
em volta
de um tronco de árvore e esconderam-na dentro de uma vala. Nenhum
brasileiro viu. O major Salinas, branco, forte, corajoso, dirigiu-se a Plácido de
Castro:
Coronel, vou ver se acho a corrente.
'Usando mãos de ferro (luvas), ao escurecer embrenhou-se no
barranco enlameado, tateando o terreno, de gatinhas, procurando corrente
até localizá-la, mas ao norte, fortemente presa ao tronco de uma grossa
árvore'.
Marcou a zona e disse ao Comandante da Revolução que serrar a
corrente durante o dia era impossível. Os bolivianos atiraram do outro lado
55
sem pena de gastar munição, mas a noite seria possível fazer o serviço sem
perigo algum. […] No local, fizemos uma trincheira de dois metros de
cumprimento, um metro de largura e 1m60 de profundidade. Cavamos a
noite inteira, mas encontramos a corrente […] Ninguém morreu […] 'Não
houve aquela história de seringueiro-soldado cair n'água para serrar e
morrer. Se tivesse ocorrido assim, os bolivianos teriam acabado com toda a
tropa de Plácido de Castro e a revolução terminaria ali mesmo' ( AIC ,
2003, p. 187-189)
Aliás, ao defrontar as versões oficiais com o relato de um ex-combatente, um
seringueiro aposentado, quebra-se a hierarquia das verdades estabelecidas. O oficial
é igualado ao não-oficial e até mesmo prestigiado como mais verossímil, numa lógica
carnavalesca e irônica.
Aliás, em se tratando de ironia, para Hutcheon (1989), a ironia está
relacionada diretamente com a paródia, pois ambas possuem como ponto em
comum o contraste. E a paródia, por sua vez, relaciona-se com a carnavalização
bakitiniana. Aliás, para Bakhtin, a paródia é elemento inerente à literatura
carnavalizada. Para ele, sempre houve ao lado dos gêneros rios duplos em
sentido contrário, pois a natureza humana baseia-se em oposições que se
complementam (seriedade/comicidade, gravidade/riso, tragicidade/prazer, etc.).
Para ele:
Com a paródia é diferente. Aqui também, como na estilização, o autor
emprega a fala de um outro; mas, em oposição à estilização, se introduz
naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamente à original. A
segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala, entra em antagonismo
com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins diretamente
opostos. A fala transforma-se num campo de batalha para interações
contrárias. Assim, a fusão de vozes, que é possível na estilização ou no
relato do narrador (em Turgueniev, por exemplo), o é possível na paródia;
as vozes na paródia não são apenas distintas e emitidas de uma para outra,
mas se colocam, de igual modo, antagonisticamente. É por esse motivo que
a fala do outro na paródia deve ser marcada com tanta clareza e agudeza.
Pela mesma razão, os projetos do autor devem ser individualizados e mais
ricos de conteúdo. É possível parodiar o estilo de um outro em direções
diversas, introduzindo acentos novos, embora se possa estilizá-lo, de
fato, em uma única direção a que ele próprio se propusera. (BAKHTIN105
apud SANT´ANNA, 2004, p. 14)
A paródia, portanto, é uma repetição, mas como afirma Linda Hutcheon
é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com
distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo.
Versões irônicas de transcontextualização e inversão são seus principais
operadores formais, e o âmbito do ethos pragmático vai do ridículo
desdenhoso à homenagem reverencial (HUTCHEON, 1989, p. 54)
56
Dessa forma, a paródia necessita sempre de um texto-base a fim de
contradizê-lo, antagonizar com ele de forma aguda. É no aspecto da diferença que
repousa a distinção entre paródia e paráfrase. A paráfrase, em verdade, atua como
ratificação do discurso dito, como continuidade. A paráfrase é uma continuidade,
logo é uma intertextualidade das semelhanças (SANT'ANNA, 1995).
Nesse sentido, pode-se dizer que tanto Galvez, imperador do Acre, quanto
A Ilha da Consciência operam como paródias em relação às obras oficiais de
história do Acre, notadamente, a de Leandro Tocantins. A Ilha da Consciência,
especialmente, é a paráfrase de uma paródia, pois se funda em Galvez, Imperador
do Acre, que por sua vez, contrapõe-se à Formação Histórica do Acre (LIMA,
2008).
Contudo, sem dúvida, a paródia, assim como a paráfrase, estabelece o
diálogo intertextual, embora negue o texto primitivo e ao mesmo tempo articule-se
sobre ele, reestruturando-o. Assim, se por um lado, não se pode entender elementos
e fatos utilizados nas obras literárias citadas sem a obra de Leandro Tocantins, a
obra de Martinello e, principalmente, Márcio ressignifica a obra de Tocantins.
Bakhtin via essa força de ressiginificação apenas na paródia antiga. Ele
considerava a paródia moderna apenas como negatividade. Contudo, disserta
Hutcheon (1989, p. 39) que, ―não obstante, a rejeição por Bakhtin da paródia
moderna, existem ligações estreitas entre aquilo a que ele chama paródia
carnavalesca e a transgressão autorizada dos textos paródicos atuais‖.
Bahktin (1987) afirma que os gêneros sério-cômicos, carnavalizados, diferem
ainda dos elevados também quanto à contemporaneidade. Nesse aspecto, os
gêneros elevados dedicam-se ao passado, enquanto os sério-cômicos, às
atualidades.
É por esse trabalhar com o presente que se confere à criação cômica a
possibilidade de questionamento e de criticar, advindo daí a parodização dos
gêneros elevados e, consequentemente, dos mitos nacionais. A partir daí, Bakhtin
conclui que a épica tem por característica a memória, enquanto o mico, o
esquecimento.
Em se tratando justamente de esquecimento, a paródia, trabalha, numa visão
psicanalítica, com aquilo que está no texto primitivo, que de forma recalcada. A
paródia, portanto, é uma libertação do texto primitivo (SANT' ANNA, 1995) e, porque
57
não dizer, um revivamento do que ficou oculto ou em segundo plano.
No caso de AIC, os esquecidos foram os seringueiros, os verdadeiros heróis
da ―Revolução Acriana‖. Nesse aspecto, a paródia pressupõe distanciamento e,
portanto, amadurecimento crítico (SANT'ANNA,1995). Com efeito, a crítica não se
apenas na paródia, mas também é extrema na sátira, só que a sátira é ―uma
inversão de regras que segue regras‖. Para Hutcheon:
Representação crítica, sempre cômica e muitas vezes caricatural, de uma
―realidade não modelada‖, i.e., dos objetos reais (a sua realidade pode ser
mítica ou hipotética) que o receptor reconstrói como referentes da
mensagem. A ―realidade‖ original satirizada pode incluir costumes, atitudes,
tipos, estruturas sociais, preconceitos, etc. (HUTCHEON, 1989, p. 67-68)
A sátira, portanto, embora extremamente crítica é uma repositora de valores
moralmente aceitos. Ela crítica para corrigir, ratificando a ideologia dominante.
Justamente no campo da contra-ideologia é que Sant‖Anna (1995) afirma que a
paródia opera sendo um gesto de rebeldia, como o filho que reclama sua autonomia .
Com efeito, não os estudos de Sant'Anna (1995), como o de todos ou
quase todos os estudiosos da paródia na contemporaneidade referem-se aos
estudos de Bakhtin, que é parada quase obrigatória (ou obrigatória) nos estudos da
paródia. Assim, embora, as reflexões bakhtinianas dissertem sobre obras de outra
época e outro contexto, é necessário acompanharmos o entendimento de teóricos
modernos que acreditam que essas reflexões baktinianas se amoldam aos nossos
tempos.
O esquecimento e a preocupação com o presente, por exemplo, que
encontramos muito presente na paródia consoante o entendimento do teórico russo
Bakhtin (1981; 1987), presentifica-se de forma patente em AIC, pois apesar de se
transcorrer um grande período histórico em suas páginas, suas atenções e
preocupações são com o presente, afinal, a história se faz do presente. Logo,
acreditamos que, apesar de em A Ilha da Consciência haver certa defesa de
Plácido de Castro e de Luiz Galvez, uma crítica contundente aos heróis-coronéis
da Revolução Acriana, desmitificando a fundação nesse sentido.
Ora, em AIC procura-se demonstrar que os verdadeiros heróis foram pessoas
do povo, como João Minervino. Logo, a fundação não se deu tal qual a história oficial
divulga e pretende fazer crer.
Nesse entendimento, é emblemático o caso relatado no texto Cagacite
58
aguda‖em que o coronel Antunes Alencar se acovarda em lutar contra os bolivianos,
enquanto João Minervino vai à loucura com a cagacite aguda do patrão. Esse
episódio é extremamente cômico, contrastando com qualquer forma séria de contar a
história do Acre.
No entanto, apenas o leitor que conhece a história do Acre percebe a
mudança de discurso, pois a paródia pressupõe um acordo tácito entre autor-leitor, o
que também ocorre na ironia. Para Hutcheon (2000), nos dois casos o descodificador
deve reconhecer os dois planos de sentido o explícito e o implícito e
complementá-los.
Por outro lado, o texto de AIC também é fortemente parafrásico. Ali estão os
discursos de historiadores como Carlos Alberto de Souza, Pedro Martinello, Gerson
Albuquerque, etc. momentos, inclusive que há uma total cópia dos trechos dos
livros de alguns autores, como no trecho do capítulo Cutucando a onça na toca
que segue:
Neste ínterim, inconformados com as sucessivas derrotas, os bolivianos
reagiram. Fizeram incursões sobre o Alto Acre, colocando em risco as
conquistas sobre Xapuri e Brasileia, Como o Repórter precisa de algum
tempo para preparar-se para aquela que será a Grande Batalha ou ―A mãe
de todas as batalhas‖, nada mais cômodo do que valer-se do livro didático
do professor Carlos Alberto Souza para resumir os acontecimentos que
marcaram este interregno: ―Antes de seguir para Porto Acre (Porto Alonso),
onde estavam os soldados bolivianos comandados por D. Lino Romero, o
Exército acreano, sob o comando de Plácido de Castro resolveu penetrar na
Bolívia para combater tropas bolivianas, que se dirigiram para o Acre. ( AIC,
2003, p. 171).
O procedimento de colar discursos é comum na obra. Muitas vezes é feito de
forma cômica e irônica ou até mesmo para contradizê-los. Noutras, a crítica é
direta. Os textos e a visão de Leandro Tocantins sobre a história do Acre são o alvo
preferido, assim como foram em Márcio Souza (LIMA, 2008). Vejamos um trecho do
capítulo O pinochetaço do general‖:
Alguns historiadores ortodoxos, como Leandro Tocantins tentam minimizar
esta desavença entre o General Olímpio da Silveira e Plácido de Castro.
Citando Machado de Assis, Tocantins afirma que eram ―coisas miúdas,
migalhas da História‖. Uma pinóia! […] Por pouco não houve o
enfrentamento entre as duas tropas. (AIC, 2003,p. 212).
Dessa forma, a adoção da afirmação de Tocantins quanto à organização
social propiciada pela borracha é paródica, tendo em vista que em Martinello tem um
59
viés negativo, enquanto para Tocantins é positiva. Tocantins afirma que ao sistema
ou regime decorrente da exportação da borracha criou, assim,
uma teia complexa de normas técnicas, de princípios de organização
econômica e social que além de penetrarem no íntimo das
instituições regionais, modalizando um modo de vida caracterizada
pelos próprios da cultura, de inteligência, de sentimentos, de tipos e
costumes, enfim, um estado d‘alma peculiar, ao lado das significativas
expressões materiais, - foram suscitar os espíritos, nos centros ditos
civilizados, a fazerem descobertas, a inventarem objetos, criando um mundo
de coisas essenciais ao progresso e ao bem-estar da espécie humana
(TOCANTINS, 1984, p. 134).
Em termos de paráfrase, esta se dá, especialmente quanto à Galvez,
imperador do Acre. A propósito, é notório a cópia da técnica do comentário, típica
do jornalismo, nas narrações. Vejamos como os textos de GIA e AIC assemelham-se
na técnica do comentário. No texto de Márcio Souza: ―Perdão, leitores!Neste
momento sou obrigado a intervir, coisa que farei a cada momento em que o nosso
herói faltar com a verdade dos fatos‖ (GIA,1992 p.45). No texto de Martinello: ―Nota
do autor: O leitor perdoe o delírio , do nosso herói e sua completa desinformação
sobre a cronologia dos fatos(...)‖ (AIC, 2003, p. 131).
Devemos dizer, ainda, que essa técnica utilizada por Márcio Souza em GIA,
associada ao fato de haver no bojo do texto um narrador personagem que não se
confunde com o sujeito que encontrou o manuscrito contando a história do espanhol
Luiz Galvez, ao mesmo tempo que cria uma história dentro de uma história, torna-se
um complicador para classificar o narrador.
Segundo Carvalho (2005) os estudiosos dessa obra souziana chegaram a
conclusões diversas. Neide Gondim (1982 apud CARVALHO, 2005) concluiu pela
existência de três narradores, um comentarista (que acha os manuscritos), um
narrador autobiográfico (que narra os acontecimentos) e um narrador crítico (que
intervém na narrativa do narrador auto-biográfico). Já Roberto Acízelo de Souza
(1982 apud Carvalho, 2005) aponta dois narradores.
Por sua vez, Simone de Souza Lima (2008) afirma que, na verdade, os dois
narradores seriam a interação de duas personae, que, na verdade, seriam uma única
coisa. Logo, a cópia da técnica do comentário, associado ao fato do personagem
Repórter às vezes narrar, às vezes comentar, às vezes não se confundir com o
comentarista, engendra complicações semelhantes a GIA, quanto à natureza do
narrador em AIC.
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Nesse aspecto, acreditamos que as formulações de Simone Lima (2008)
quanto ao narrador em GIA, aplicam-se, grosso modo, à AIC. Assim, em AIC três
narradores representantes de uma única personae.
Porém os três narradores são mais complexos que os narradores de GIA. Ora,
em AIC o narrador personagem, muitas vezes é também o narrador comentarista.
Além da problemática do narrador, em AIC, tal qual em GIA, um aspecto
fragmentário do texto. Aliás, em AIC, isso é muito mais forte que em GIA e a leitura
das sínteses analisadas e comentadas nos capítulos seguintes deste trabalho
demonstrará melhor esse fato.
Esse caráter fragmentário parece derivar do fato de que boa parte dos textos
que compõe AIC terem sido produzidos para jornal, em períodos diferentes. Essa é
mais uma semelhança entre os textos de AIC e GIA, tendo em vista que GIA possui
o caráter folhetinesco, gênero voltado a ser publicado em capítulos nos jornais
Nesse aspecto, justifica-se, portanto, os capítulos de AIC serem quase todos
curtos. Contudo, não atingem o nível de síntese de GIA, que possui capítulos
compostos por poucas linhas.
O diálogo com Márcio Souza, como estamos demonstrando, é uma constante
na obra e fica bastante patente no capítulo Entrevista com o Imperador‖, em que
Luiz Galvez Rodrigues de Arias, personagem principal de Galvez, Imperador do
Acre é entrevistado e defende-se das críticas de Márcio Souza:
Repórter: E todos os outros casos com mulheres que Vossa Majestade teria
tido em Belém e Manaus? No livro Galvez, o Imperador do Acre , do escritor
amazonense Márcio Souza, sua passagem pelo norte é uma verdadeira
orgia, um bacanal com prostitutas francesas, com mulheres de autoridades,
de prefeitos, governadores, diplomatas. Até uma noviça, Joana, Vossa
Majestade teria seduzido e pervertido? Dom Galvez: Não foi bem assim. O
escritor amazonense Márcio Souza foi muito cruel comigo e com meu
Império ao retratar-me como um pervertido. Porém, ele mesmo escreveu que
morri velho e broxa, numa cama (risos)...‖(AIC , 2003, p. 35).
Pelo trecho, apesar do personagem Galvez defender-se das acusações de
Márcio Souza em seu folhetim, o caráter bonachão atribuído a Galvez por Márcio
Souza permanece, pois ele rir até de seu próprio fim, velho e broxa, numa cama.
Nesse mesmo trecho podemos observar outra constante presente nas obras
em comento, qual seja, a visão negativa da política nos trópicos amazônicos: por
conta dessa volatilidade da política na Amazônia, sobretudo nos períodos eleitorais,
tudo ou quase tudo é permitido. (AIC , 2003, p. 301). Noutro trecho, o texto é mais
61
enfático: ―Nota do autor: […] o Acre agora é um estado manequim, que pode
aparecer na Globo...Afinal, 'a política nos trópicos é questão de coreografia' (Lá vem
Márcio Souza, de novo meter o bedelho)‖(AIC, 2003, p. 131)
Um outro fato interessante verificado em ambas as obras é a presença da
excentricidade, elemento carnavalesco elencado por Fávero (1994). Se em GIA
um colecionador de falos, em AIC, Minervino adquire uma compulsão por sangue.
Um vampiro na floresta é uma imagem, sem dúvida, nova na literatura de
expressão acriana, remetendo a Bram Stoker, com seu livro Drácula. No entanto,
aqui uma inversão de lógica. Na verdade, Minervino como o explorado é a vítima
dos coronéis, verdadeiros sugadores de sangue.
Esse procedimento de inversão, ou seja, do explorado encarnar a
representação do explorador, encontramos em Kafka, em A metamorfose e isso nos
leva a acreditar que o fantástico presente na obra não advém apenas da tradição
literária da região, repleta de mitos, lendas e causos, mas também da experiência
com a literatura universal do autor, especialmente a fantástica. Influência igual, desta
vez de Gabriel Garcia Marques, identificamos no livro Amanda (2005), de autoria de
Sílvio Martinello, no episódio em que um boi explode.
A esse respeito, a influência é notória na adoção do título Cem anos de
escravidãopara um dos capítulos de AIC. Ora, um dos livros de Garcia Marquez é
Cem anos de Solidão, portanto, a associação é patente.
Ainda quanto à literatura universal, uma notória comparação entre a
situação vivida por Minervino nos seringais e a injusta condenação do personagem
Papillon, do livro homônimo Papillon, de Henri Chariérre. O personagem principal de
Papillon foi preso na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa e conseguiu escapar.
No capítulo Papillon jamais‖, portanto, instaura-se uma impossibilidade de
Minervino escapar, ao contrário de Papillon, devido à força do sistema opressor dos
seringais.
Interessante ainda quanto a inclusão de elementos hauridos da literatura
nacional é que o personagem Ludovico, quando seu trabalho é comparado à
Summa Teológica, lembra o personagem machadiano Brás Cubas, que, em seus
delírios, sonha em se transformar na Summa Teológica de Tomás de Aquino
(ASSIS, 1998).
A diferença é que Ludovico não está sonhando e quem comparou seu
trabalho à obra de Tomás de Aquino foi a Cúria Romana, afinal ele formou-se em
62
Roma. Nesse caso, quem estaria delirando não seria Ludovico, mas o estrangeiro.
Isso nos lembra bastante o estudo de Neide Gondim (1994) sobre as imagens
externas construídas sobre a Amazônia. Novamente, uma critica quanto à
inadequação da realidade à imagem projetada.
AIC, apesar de Euclides da Cunha ter sido quem inaugurou os estereótipos da
região, não contesta alguns aspectos dos trabalhos euclidianos como a constatação
da exploração nos seringais ou o modo de ocupação da terra. Aliás, sua organização
estrutural é haurida da descrição euclidiana dos seringais acrianos. A crítica a
Euclides, no caso, se mais quanto ao discurso da terra como gênese, que no
capítulo João Minervino, o filósofo‖, é feito com mais ênfase, demonstrando um
posicionamento reformador do discurso fundacional euclidiano, in verbis:
[…] João Minervino e os seringueiros foram vítimas de outros autores que
escreveram sobre a região ou sobre a Hiléia, como eles preferiam. Esses
senhores encheram páginas e páginas de grossos volumes. Dificilmente,
chegaram a alguma lugar. Eram tantos adjetivos e superlativos, num
preciosismos verbal o caudaloso quanto os rios da região, que os
impediam enxergar a realidade. Só viam a seringueira e a castanheira.
Nunca floresta no seu todo. A começar por Euclides da Cunha, para o qual a
Amazônia era 'uma página do Gênesis ainda não escrita'; o homem, ali,
ainda é um intruso impertinente'; que chegou sem ser esperado nem
querido...' que 'o palco é grande demais para atores tão minúsculos'. -Arre
égua!Se não queriam a gente qui, por que trouxeram, entonces? -
protestava João Minervino […] ( AIC, 2003, p. 261)
Como dissemos, a obra conserva certa circularidade, que, pelas constantes
referências ao caráter circular das estradas de seringa identificado por Euclides da
Cunha, indica uma intencionalidade em copiar a forma circular dessas estradas.
Ademais, o personagem Minervino, parece basear-se no indivíduo identificado como
João Amarelo no livro de Euclides da Cunha (2000) e nos apontamentos do líder da
Primeira Insurreição Acriana, José de Carvalho, conforme demonstrado no capítulo
“A primeira Revolução sem tiros”, em que aparece um serigueiro com olhos de
açafrôa como os de Minervino. Igualmente, o seringal valha-nos Deus aparece na
obra euclidiana. Portanto, AIC transforma em ficção personagens e ambientes
citados por Euclides da Cunha, dando-lhes, muitas vezes, um papel mais importante
que os heróis oficiais do Acre.
Enfim, AIC perfaz toda uma trajetória discursiva sobre a história do Acre, às
vezes ficcionalizando, às vezes repetindo discursos, às vezes os contradizendo, mas
acima de tudo, propondo uma abertura discursiva, o confronto de ideias. Nesse
63
percurso, notório a filiação à Márcio Souza e à base histórica de Leandro Tocantins,
seja para negá-la seja para ratificá-la. Dessa forma, podemos afirmar com convicção
que AIC assenta-se, principalmente, em três pilares, quais sejam: Euclides da
Cunha, Leandro Tocantins e Márcio Souza, sendo este último o principal, que
instaurador de uma nova ótica sobre a Amazônia na literatura.
64
CAPÍTULO 3- AIC: FICÇÃO OU JORNALISMO?
3.1 Discurso ficcional e discurso jornalístico: convergências e divergências
Nessa parte do trabalho procuraremos apontar se a obra em análise pode ser
classificada como ficção, demonstrando as características da ficção e do gênero
jornalístico. Em primeiro lugar, dependendo dos critérios adotados para a
classificação, insta consignarmos que tanto ficção quanto jornalismo podem ser
classificados como gêneros literários, embora, modernamente, o jornalismo não
venha sendo mais considerado literatura.
Na contemporaneidade, Carlos Heitor Cony (2007, p.15) afirma que Literatura
e jornalismo são duas palavras para uma mesma coisa e identifica um ponto em
comum entre jornalismo e literatura. Ambos fazem parte do gênero universo das
palavras.
No entanto, antes de Cony, Alceu de Amoroso Lima destaca-se como um dos
teóricos que considera o jornalismo como gênero literário, no que é acompanhado
por Antônio Olinto (1954, apud NICOLATO, 2006). A razão para ambos considerarem
o jornalismo como literatura assenta-se no fato de que literatura e jornalismo são
formas de discurso e‖ 'ambas se sujeitam às leis da descrição e narrativa, a que não
pode fugir a reportagem (real atual) nem tampouco a ficção' (real atual ou possível)'
(OLINTO, 1954, p. 43 apud NICOLATO, 2006, p. 10).
Assim, o fato de ambos os discursos terem características em comum, faz
com que a relação entre literatura e jornalismo sempre tenha sido problemática.
Medel (2002), citado por Nicolato (2006), afirma que
parece que aquela, sem abandonar a dimensão lúdica e fruitiva,
deve encaminhar-se para o essencial humano, bem que encarnado nas
inevitáveis coordenadas espaço-temporais que nos constituem. A atividade
informativa, ao contrário, aponta mais para o efêmero, passageiro,
circunstancial (e sabemos até que ponto a vertigem informativa devora a
estabilidade e permanência dos acontecimentos. (MEDEL, 2002, p. 18 apud
NICOLATO, 2006, p. 10).
Aliás a aproximação entre literatura e jornalismo se bastante tempo.
65
Fábio Lucas (2007) afirma que na passagem dos séculos XVIII e XIX foi-se
implantando o uso da informação, consubstanciado no Jornal. O Jornal informava,
esclarecia e interpretava eventos e situações políticas. Em suas palavras ―Nutriam a
curiosidade do saber, dentro de uma temporalidade própria: o cotidiano‖. (LUCAS,
2007, p. 10).
Ademais, o jornal formou um público específico que se interessava por
notícias circunstanciais, efêmeras e conjunturais. Essa relação entre jornal e público
era interativa, ou seja: [o jornal] Produzia o que o público desejava e, ao mesmo
tempo, pautava o estímulo do consumidor, orientava as suas aspirações intelectuais
e consumistas‖ (LUCAS, 2007, p. 10).
Dessa forma, o jornal preocupava-se com o consumo imediato, não com a
perenidade, pois preocupado sempre com o Mercado. A busca pelo consumidor, para
Lucas, fez com que em determinados momentos, o jornalismo se outorgasse no
direito de mentir, abrindo um salão de horrores. Nesse sentido, para o teórico, o
Jornalismo deve tratar de fatos verídicos, não criando informações.
No entanto, a intensa busca de consumidores, para o estudioso, forneceu algo
positivo para o jornalismo e a literatura. A aproximação da linguagem jornalística à
oralidade. Como o jornalismo recrutou uma rede de letrados quando foi criado, a
oralidade expandiu-se para a literatura: ―Desta forma, o Jornalismo, dotou os
escritores de uma linguagem mais ágil e comunicativa na poesia, na ficção e no
ensaio.‖ (LUCAS, 2007, p. 12).
Por outro, lado, Lucas identifica no jornalismo uma extensão dos interesses
egoístas da sociedade, sendo instrumento de construção de consenso a favor da
ordem vigente. Ou seja, ―pendeu para virar uma arma cultural da indústria, do
comércio e do poder (LUCAS, 2007, p. 11). Aliás, para Nelson Traquina (2002, p.
123, apud NICOLATO, 2006, p. 13) ―as fontes oficiais dominam o processo de
produção das notícias e que os mídia noticiosos reforçam o poder instituído‖.
Portanto, o jornalismo, comumente, reforça a ideologia dominante, homogeneizando
gostos e valores.
Retornando a relação entre Literatura e Jornalismo, constata-se que até às
primeiras décadas do século XX, com início na metade do XIX, o jornalismo tinha
ares literários, adotando o romance, o conto, a poesia, a crônica, o teatro,
substituindo o livro que era impresso em Lisboa, no Porto ou em Paris (PINTO,
2008, p. 9). Aliás, era comum jornalistas serem também escritores.
66
No Brasil, muitos escritores dedicavam-se a escrever para jornais, publicando
crônicas e romances em forma de folhetim. Desses, destacam-se Machado de Assis,
José do Patrocínio, Lima Barreto, etc.
Cristiane Costa, em Pena de aluguel (2005) analisa a trajetória de escritores
jornalistas de 1904 a 2004 e demonstra como o jornalismo foi mudando suas
características a fim de se diferenciar da literatura e os dilemas que vivem escritores
divididos entre os dois mundos, o da literatura e o do jornalismo.
Aponta como sendo os anos 50 a época em que a influência do jornalismo
francês, prolixo e opinativo, foi trocada pela influência americana, concisa e objetiva.
Essa prática, ganhou maior ênfase na década de 80, traduzida num
jornalismo que prima pela clareza, concisão e objetividade, ―como se a realidade
pudesse se apresentar por si sem a interferência do processo de escolha, dos
pontos de vista, enfoques e hierarquias nas decisões editoriais.‖(NICOLATO, 2006).
Cristiane Costa, em verdade, não adentra nas diferenças entre literatura e
jornalismo propriamente, pois sua pesquisa consiste em averiguar se o exercício
diário de escrever notícias interfere no processo de criação literária, por meio de
questionários aplicados a escritores que se dividem entre a literatura ficcional e o
jornalismo.
Entretanto, mesmo não tendo o objetivo de diferenciar jornalismo e literatura,
Cristiane Costa dedica parte do livro ao assunto. Nesse aspecto, a autora de Pena
de Aluguel cita Sandra Vasconcelos, para quem:
Nos seus estágios iniciais, o romance se apresentava como uma forma
ambígua, uma ficção factual que negava sua ficcionalidade e produziu em
seus leitores um sentimento de ambivalência quanto ao seu conteúdo de
verdade. Essa indiferenciação teria que ser desfeita para que as narrativas
factuais pudessem se distinguir das ficcionais e se pudessem constituir os
dois tipos de discurso originários daquela matriz: o jornalismo e a história, de
um lado, e o romance, do outro. (VASCONCELOS, 2002 apud COSTA,
2005, p. 293)
Portanto, a diferenciação dos discursos foi fundamental para o romance
moderno. Ora, embora próximos num primeiro momento, Jornalismo e literatura
tentaram trilhar caminhos diferentes. Cristiane Costa (2005) afirma que esse
distanciamento é relativo, pois dependendo do momento histórico, as áreas se
aproximam ou se distanciam.
Lucas (2007) aponta que a primeira característica do jornalismo é a
67
temporalidade. Se não há perenidade, logo, é necessário haver periodicidade. Lucas
(2007, p. 10), então, defende que o Jornalismo sustenta-se em dois pilares: a
atualidade e a periodicidade.
O primeiro pilar do Jornalismo exigiria uma constante busca de informações,
enquanto a periodicidade diria respeito ao fornecimento cotidiano de novidades
desejadas pelo público.
Dessa, forma, o jornalismo estaria quase sempre voltado para a quantidade,
para o mercado. Enfim, Lucas, tem uma visão da relação entre literatura e jornalismo
que diferencia bastante as áreas. Enquanto o jornalismo volta-se para o efêmero, o
circunstancial, o comércio, o poder, fazendo parte da cultura de massa, a literatura,
se dedica a algo mais nobre, a eternidade, a qualidade, o público mais letrado.
Carlos Heitor Cony (2007) aponta a temporalidade como primeiro elemento
a diferenciar os campos do conhecimento. Para ele, o tempo no jornalismo é datado,
enquanto na literatura não o é. Não considera, porém, que o jornalista seja inferior ao
literato, mas que, pelo fato do jornalista se voltar para a atualidade e não para a
eternidade, o literato permanece no tempo enquanto o jornalista fica no seu tempo.
Como exemplo, cita Zola: ―Zola não escrevia para o dia seguinte, escrevia para
sempre. Tanto que seus romances continuam sendo editados, traduzidos, adaptados
para o teatro, para o cinema, para a TV‖ (CONY, 2007, p. 17). Como escreve para
sempre, o escritor, não precisa ser lido todos os dias, não precisa ser imediatista,
enquanto o jornalista sim. Um jornalista, afirma Cony (2007, p.17) ―não pode passar
duas edições sem ser lido‖.
Dessa forma, embora procure não rebaixar o jornalismo diante da literatura,
Cony não escapa de assim agir, filiando-se a Fábio Lucas nas diferenças entre
Jornalismo e Literatura. Ademais, o critério da datação não pode ser aplicado para
diferenciar literatura e jornalismo, pois ambos os discursos são datados.
Por sua vez, Sérgio Villas (2007) Boas nos oferece uma opinião diferente
sobre as relações entre jornalismo e literatura. Ele concorda que os discursos são
distintos, porém, acredita que podem ser unidos sob a forma do jornalismo literário,
que seria a junção dos métodos de reportar com as técnicas de expressão literária.
Numa visão mais teórica, Manuel Angel Vazquez Medel (2002, apud
NICOLATO, 2006, p. 02) afirma que a diferença entre o discurso do jornalismo e o da
literatura está no fato de que o discurso literário se baseia num pacto estético,
eximindo-se de provas comprobatórias, enquanto o jornalismo é regido por um pacto
68
ético, com a verdade.
Estabelecidos esses primeiros pilares diferenciais, em meio a essa tensão
entre Literatura e Jornalismo, para melhor efeito de análise, acreditamos
conveniente, portanto, conceituar literatura neste momento para, então, apontarmos
se AIC pertence ao gênero jornalístico ou ficcional.
Na conceituação de literatura é impossível não se falar sempre dos
formalistas russos. Nas décadas inciais do séc. XX, eles conceituaram as obras
literárias como um uso especial da linguagem. A obra literária, então, é aquela que
possui literariedade.
Dessa forma, deixaram as análises conteudistas de lado, mas não
conseguiram explicar a beleza da literatura. De para cá, outros estudiosos vieram
tentando elucidar o problema. Eagleton (2001), por exemplo, não crê que a literatura
seja um uso especial da linguagem.
No Brasil, Afrânio Coutinho (1978), nos diz que a literatura é a arte da palavra
e, como tal, somente lhe pertence o que for produto da imaginação, logo, não
enquadra o jornalismo como literatura, que associa literatura à imaginação. Para
tal utiliza a classificação de Wellek e Hankis que classifica os gêneros conforme a
forma de representação seja direta ou indireta.
Para Alfredo Bosi (1985), trabalhar literariamente com a palavra significa
potencializar nela a força e a expressão que seu uso cotidiano já desgastou.
Para Marisa Lajolo (1995), é por meio da linguagem que se instaura a
literatura, isto é, na relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a
situação de produção e leitura, isto é, quando seu uso instaura um universo, um
espaço de interação de subjetividade (autor leitor) que escapa ao imediatismo e ao
estereotipo das situações e usos da linguagem que configura a vida humana
cotidianamente.
Por sua vez, para Domício Proença Filho (1987), o texto literário, isto é, o
texto que possui linguagem literária, é uma utilização especial da língua que falamos
e tem características inerentes como a complexidade, a multissignificação, a
liberdade na criação, a ênfase no significante, a variabilidade, os modos de
realização. Porém, o próprio Domício alerta sobre as limitações de definição do que é
literário e do que não é.
É justamente nessa problemática do que é literário e do que não é que
Compagnon (2001, p. 44) afirma que a linguagem literária explora o material
69
lingüístico de forma organizada, sistemática que desautomiza as formas habituais de
percepção da linguagem. Logo, credita ao texto literário, a literariedade e esta advém
da renovação da sensibilidade linguística dos leitores mediante a leitura de uma
obra. Contudo, alerta que a literariedade é comprometida com a realidade, portanto,
com uma referência extraliterária que lhe impõe valores e normas. Para Eagleton,
justamente pelo fato dos valores mudarem é que ―alguns textos nascem literários,
outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta.‖
(EAGLETON, 2001, p.12).
Dessa forma, para Eagleton, o conceito de literatura é variável conforme o
momento histórico, tendo em vista que o parâmetro de julgamento de que uma obra
é bela amolda-se ao conceito de cânone. Logo, para ele
os julgamentos de valor parecem ter, sem dúvida, muita relação com
o que se considera literatura, e o que não se considera o
necessariamente no sentido de que o estilo tem de ser ―belo‖ para ser
literário, mas sim de que tem de ser do tipo considerado belo; ele pode ser
um exemplo menor de um modo geralmente considerado como valioso.
(EAGLETON, 2001, p.14).
Assim, há uma imposição do tipo que é considerado belo pelo cânone
que é formado por textos elevados à categoria de discurso, no sentido de
que nele se tem a palavra institucionalizada pelo poder. O cânone o
pretende ter uma estrutura, mas ser simplesmente a condensação dos textos
selecionados da tradição e pela tradição, por causa de sua qualidade
artística superior: o fundamento de sua poética é, no entanto, política.
(KOTHE, 1997, p. 108).
Quanto à questão da impositura, Eagleton (2001) insiste que mesmo obras
que não tenham grande literariedade são enquadradas como literárias por se
amoldarem a determinado gênero ou formas. Aliás, para Compagnon (2001), o
gênero é o conjunto de regras do jogo que informa o leitor sobre a forma de ler o
texto. Em suas palavras:
A concretização que toda leitura realiza é, pois, inseparável das imposições
de gênero, isto é, as convenções históricas próprias ao gênero, ao qual o
leitor imagina que o texto pertence, lhe permitem selecionar e limitar, dentre
os recursos oferecidos pelo texto, aqueles que sua leitura atualizará. O
gênero, como código literário, conjunto de normas, de regras do jogo,
informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto,
assegurando desta forma a sua compreensão. (COMPAGNON, 2001, p.
158)
70
Dessa forma, a questão do gênero ainda é importante no âmbito dos estudos
literários. E diante do todo o que foi exposto, não podemos deixar de nos posicionar
no sentido de que a obra literária é uma forma de uso especial da linguagem e a
imaginação, ou seja, a ficção lhe preenche o conteúdo. Lógico, é claro que a ficção é
criada sempre a partir da ―realidade‖, mas não se preocupa em reproduzi-la
fielmente. Portanto, instaura um novo mundo distinto da realidade. Nesse aspecto, o
próprio vocábulo ficção aponta para a imaginação.
O Dicionário on line Michaellis, assim define o termo:
ficção • ( sf lat fictione )
1. Ato ou efeito de fingir.
2. Simulação.
3. Arte de imaginar.
4. Coisas imaginárias. Obra ou literatura de f.: aquela cujo enredo é criado
pela
imaginação do autor.
(MICHAELLIS, 2011, p. 01)
Já o Dicionário on line Aulete, assim define o termo:
sf.ficção • (fic.ção)
1. Ação ou resultado de fingir: Esse entusiasmo dele é só ficção.
2. Criação imaginosa, fantástica; FANTASIA: Os contos de fadas são pura
ficção. [ antôn.: Antôn.: realidade ]
3. Cin. Liter. Teat. Telv. Ramo de criação artística, literária, cinematográfica,
teatral, etc. baseada em elementos imaginários (ficção científica; ficção
policial).
4. Liter. Obra de ficção (3), esp. conto, novela, romance: Já li muitos ensaios,
agora quero ler ficção
5. Liter. Toda a prosa literária de um autor, de uma época, de um país etc.: a
ficção de Machado de Assis.
[Pl.: -ções.]
[Pl.: -ções.]
[F.: Do lat. fictio,onis, pelo fr. Fiction.]
Ficção científica
(AULETE, 2011, p. 01)
Coutinho (1978) aponta ainda para a etimologia da palavra, que vem de
fictinonem (fingire, fictum) ato de modelar, criação, formação, ato ou efeito de fingir,
inventar, simular;suposição, coisa imaginária; criação da imaginação.
No entanto, a ficção não pode ser confundida com pura imaginação. Iser
(1996, apud OLIVEIRA, 2010, p. 02), inclusive diz que a ficção não se restringe
apenas à literatura.
71
Ela se prende, junto com o imaginário, às disposições antropológicas da
humanidade. Logo, ficção e imaginário não se confundem.
Portanto, ficção fica num terceiro terreno, entre a realidade e a irrealidade do
imaginário. Dessa forma, a ficção, para Iser (apud OLIVEIRA, 2010) apresenta duas
transgressões, quais sejam: tornar irrealizável o real e tornar realizável o irreal.
A primeira transgressão seria feita de maneira que a ficção transporte o real
não o reproduzindo exatamente conforme o universo empírico, mas ―em signo de
algo diferente dele mesmo, por meio do imaginário - livre e aberto às invenções de
novas ordens‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 04).
a segunda transgressão é realizada passando do ―nível de irrealidade do
imaginário, no qual tudo é possível acontecer, para o de ―tornar real‖ um universo
ficcional cuja existência e singularidade se fazem por meio de leis e determinações
próprias‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 04).
Costa Lima (apud OLIVEIRA, 2010, p.04) baseado nas ideias de Iser, então,
distinguiu ficção e imaginário da seguinte forma:
Quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre
forçosamente uma transgressão de sua determinação correspondente. O
ato de fingir é, portanto, uma transgressão de limites. Nisso se expressa a
sua aliança com o imaginário. Contudo o imaginário é por nós
experimentado antes de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de
referência [...] Por isso o fingir tampouco é idêntico ao imaginário. Como o
fingir se relaciona com o estabelecimento de um objetivo, devem ser
mantidas representações de fins, que então constituem a condição para que
o imaginário seja transladado a uma determinada configuração, que se
diferencia dos fantasmas, projeções, sonhos e ideações sem um fim, pelas
quais o imaginário penetra diretamente em nossa experiência. Portanto
também aqui se verifica uma transgressão de limites, que conduz do difuso
ao determinado [...]. É significativo que ambas as formas de transgressão de
limites, realizadas pelo fingir no espaço da relação triádica, sejam de
naturezas distintas. Na conversão da realidade vivencial repetida em signo
de outra coisa, a transgressão de limites manifesta-se como uma
forma de irrealização; na conversão do imaginário, que perde seu
caráter difuso em favor de uma determinação, sucede uma realização do
imaginário. (1983, p. 386-387)
Então, o imaginário antes solto e caótico é reunido numa lógica, capaz de nos
iludir com a verossimilhança que suscita. A isso chamamos ficção. Contudo, nem
toda ficção é literária. A ficção literária é aquela revestida de toda uma estrutura
lingüística e técnica, com determinados meios de realização.
Essa ficção possui como essência a narrativa, enformada numa cnica de
arranjo e apresentação, que comunica a beleza da forma, uma estrutura e unidade
72
de texto capazes de instaurar um valor artístico.
A ficção possui uma estrutura que engloba técnicas e meios de meios de
realização. São grupos de convenções literárias. Os elementos de ficção
correspondem a três perguntas que se faz diante de uma obra: Quem participa dos
fatos? O que acontece? Onde e em que circunstâncias acontece? Há, ainda a
questão do tempo em que as ações ocorrem, o diálogo entre os personagens, ligado
à caracterização dos mesmos e ao estilo característico da obra; o tema, através do
qual o autor manifesta a sua filosofia de vida,etc (COUTINHO, 1978, p. 33).
Resumidamente, para Coutinho (1978, p. 33), personagens, enredo, diálogo, tempo
e lugar de ação, estilo, temática e filosofia da vida são elementos componentes da
estrutura da ficção.‖
As lições de Coutinho não são capazes, no entanto, de abranger obras mais
problemáticas, pois muitos desses elementos podem estar ausentes. Ademais,numa
obra produto da imaginação, mas não-literária também temos narração, diálogo,
tempo e lugar de ação, bem como os outros elementos que Coutinho enumerou.
Dessa forma, portanto, o que diferencia literatura e jornalismo, portanto,
embora ambas sejam práticas representativas do real, são os olhares distintos com
que observam e traduzem a realidade. O jornalismo procura uma representação fiel
do ―real‖, enquanto a literatura usa o real para criar um mundo independente do
mundo empírico ou factual (SALES, 2009), usando as ficcionalidades, figuras,
mundos, espaços, retirados de visões da realidade, mas, ao mesmo tempo, sem
compromisso com a realidade.
Dessa forma, tanto literatura quanto jornalismo refletem visões da realidade,
mas enquanto a literatura não tem como objetivo a fidelidade a uma dessa visões, o
jornalismo tem. Assim, na literatura, a linguagem é o ponto chave de sua
autoreflexão, enquanto no jornalismo a linguagem é mero meio de passar
informações.
Assim,
A (sic) obra literária é um evento linguístico que projeta um mundo ficcional
que inclui falantes, atores, acontecimentos e um público implícito [...]. As
obras literárias se referem a indivíduos imaginários e não históricos. [...] O
discurso não-ficcional geralmente está inserido num contexto que diz a você
como considerá-lo: um manual de instrução, uma notícia de jornal, uma carta
de uma instituição de caridade. O contexto da ficção, entretanto,
explicitamente deixa aberta a questão do que trata realmente a ficção. A
referência ao mundo não é tanto uma propriedade das obras literárias
73
quanto uma função que lhes é conferida pela interpretação. (CULLER, 1999,
p. 37-38, apud SALES, 2009, p. 16).
Então, resumidamente, portanto, hoje, o discurso jornalístico distingue-se do
literário. Entre os pontos de divergência, podemos citar:
1. O jornalismo tem o objetivo de trabalhar, pelo menos em tese, com os
acontecimentos e fatos, enquanto a literatura tem como norma trabalhar com fatos
ficcionais, baseados nos acontecimentos e fatos;
2. O escritor de ficção literária não é limitado pelo seu público e escreve
para a eternidade, enquanto o jornalista possui um público delimitado e sua escrita
volta-se sempre para a atualidade, perdendo a eficácia espaço-temporal no decorrer
do tempo;
3. A escrita literária não é motivada principalmente pela necessidade
utilitária, enquanto o jornalismo o é. Dessa forma, o escritor é realmente um artista
despreocupado com o salário que irá receber enquanto o jornalista precisa ganhar o
pão de cada dia rotineiramente;
4. O texto jornalístico esforça-se para eliminar os ruídos da comunicação
literária, enquanto o literário possui como característica justamente a existência
desses ruídos, capazes de fazer com que um mesmo texto seja interpretado
diferentemente por leitores distintos. Esses ruídos são as metáforas, as figuras de
linguagem, os subentendidos. (FONTCUBERTA, 1996, p. 95 In: LOPES, s/d).
Portanto, hoje, o discurso jornalístico procura delimitar seu espaço a fim de
diferenciar-se da literatura e buscar credibilidade, enquanto a obra literária busca
ampliar seus espaços e sofre tanto influência de outros discursos que pode chegar a
ser enquadrada neles, afinal, como disse Bakhtin, o romance absorveu os
discursos de outras áreas.
3.3 As teias da urdidura textual
Em meio a essa discussão quanto ao caráter ficcional da obra,devemos
destacar que se um elo de ligação entre os diversos capítulos, por vezes
desconexos, este elo é frágil e complexo, cuja ligadura é dada por uma fina ironia.
74
Feita essa primeira observação inicial, voltamos, então, para tentar demonstrar
as teias da urdidura de AIC, possibilitadas pela ironia.
À primeira vista, é João Minervino, o seringueiro amarelo que faz a ligadura
entre as diversas partes de AIC. No entanto, uma análise mais atenta nos mostra
que Minervino não aparece na primeira parte da obra. O personagem aparece
apenas na segunda parte, em que serve no exército de Plácido de Castro. Suas
peripécias, ideias, idiossincrasias chamam a atenção e, por isso, chegamos a
acreditar que ele é o elo de ligação mais forte entre os capítulos de AIC.
De fato, Minervino chega a fazer parte da urdidura, mas apenas da segunda
parte da obra. O primeiro trecho em que Minervino aparece é o seguinte:
A julgar pelos traços de seus descendentes que vivem, atualmente, no bairro
Santa Terezinha, em Rio Branco, que já foi conhecido como Bairro do Bostal,
João Minervino da Silva era legítimo nordestino da cabeça chata, ponto.
Qualquer outra descrição seria supérflua. (AIC , 2003, p. 113)
O narrador personagem deste capítulo o aproxima de Fabiano de Vidas
Secas e do retirante de Morte e vida Severina. No entanto, as falas do
personagem, retratando uma visão sempre cômica, porém crítica ao mesmo tempo
e, em determinados momentos, inocente, nos lembra vários outros personagens da
literatura nacional.
A começar, Leonardo Pataca de Memórias de um Sargento de Milícias, tal
como Minervino, foi militar e suas aventuras e desventuras são muito cômicas.
Depois, podemos lembrar o próprio Macunaíma, preto e feio, enquanto Minervino é
amarelo, com olhos vermelhos de açafrão, orelhas de abano. Logo, os dois parecem
fazer parte de uma mesma tribo. A dos despossuídos. Se Macunaíma percorre o
Brasil, João Minervino percorre o tempo. Se aquele se transforma em estrela, este se
transforma em péla de borracha.
No entanto, Minervino tem um destino mil vezes pior do que o
daqueles personagens. Aliás, o adjetivo amarelo, que Minervino ostenta tem um
significado interessante. Ora, os qualificativos amarelo e olhos de açafrão aparecem
em vários momentos nas narrativas de Sílvio Martinello referindo-se aos
seringueiros: ―Além do beija-mão, notou que os seringueiros eram todos curvados.
Mais do que o peso dos jamaxis que carregavam nas costas (…) o peso da
autoridade do coronel Tonhão Ribeiro os transformava num bando de corcundas.‖
75
(Corações de Borracha,2004, p. 270).
Em Corações de Borracha (2004), no entanto, os seringueiros transformam-
se, como comprova o trecho abaixo: ―... seringueiro João Amarelo, que não era mais
tão amarelo, em uma de suas vindas ao barracão, pegou uma discussão braba com
o arigó Raimundo Mossoró.‖ (Corações de Borracha, 2004, p. 320). Desta forma, o
adjetivo amarelo refere-se tanto ao medo que o seringueiro tem de enfrentar o
sistema que oprime, quanto as doenças que enfrenta. Apesar da importância desse
personagem, entretanto, na verdade, consideramos que ele não é o principal nem o
único elemento de urdidura de AIC.
Esse papel, na nossa visão também é desempenhado por outro personagem,
o Repórter. Ora, o personagem Repórter aparece no texto de AIC bem antes de
Minervino, no capítulo Entrevista com o imperador‖. Seu papel é acompanhar o
desenrolar da história do Acre, inclusive, participando de muitos eventos. A esse
propósito, o Repórter conhece João Minervino e a mesmo serve com ele no
Batalhão Franco Atirador, consoante demonstra o seguinte trecho:
Como o Repórter precisa de algum tempo para prepara-se para aquela que
será a Grande Batalha ou 'A mãe de todas as batalhas', nada mais cômodo
do que valer-se do livro didático do professor Carlos Alberto de Souza para
resumir os acontecimentos que marcaram este interregno:[...] (AIC , 2003,
p. 171)
Além disso, o personagem Repórter é, por vezes, também o narrador e
noutras ainda se confunde com uma espécie de comentarista. O comentarista, aliás,
também confere atualidade aos fatos narrados e, igualmente, atua para dar
continuidade à obra.
Ademais, ao desmentir muitas vezes o narrador-personagem ou apenas o
narrador, oferece uma nova visão da história, além de, muitas vezes, suscitar o riso,
o cômico e o deboche:
Nota do autor: É que são tantas revoluções que se sucedem no Acre! Agora
mesmo, nos dias que correm, tem alguém dizendo que está fazendo mais
uma. A sua revolução. É o leitor que quer mais emoção neste papelucho,
de ter um pouco de paciência ainda que esta a seguir é mais uma revolução
sem tiros ( AIC, 2003, p. 59)
Nesse trecho, percebemos ainda que há uma crítica quanto à política do
governo do Estado do Acre, pois na época da escrita de AIC, divulgava-se por meio
76
dos veículos oficiais de comunicação que o governo estava operando uma nova
Revolução no Acre, tendo em vista uma série de mudanças propostas, como a
valorização da floresta, o pagamento do funcionalismo público em dia, etc, que não
ocorria há algum tempo no âmbito do Estado.
Mais adiante, o mesmo comentarista vai associar a política do Bolivian
Sindicate com a do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o governo do
Acre com a Bolívia, nestes termos:
Nota do autor: Diante do descaso secular da União, não é à toa que
volta e meia apareça alguém com planos de aproveitar a imensa
biodiversidade que ainda está de em mais de 80% da cobertura florestal
do Acre, avaliada em bilhões de dólares, para fazer grandes negociatas […]
Há oito anos, um Governador do Acre cogitou em arrendar algumas áreas de
floresta para uma empresa colombiana. Teve que desistir diante da reação
da população e das suspeitas de que, no caso, não seria propriamente
madeira que se iriam explorar.
Mais recentemente, encontra-se em gestação um financiamento do
BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), de U$$ 60 milhões. Em
contrapartida, o Governo do Estado ofereceria como garantia repasses do
Fundo de participação do Estado (FPE) e cerca de 600 mil hectares de
florestas para serem exploradas. A discussão promete ser longa e acirrada.
(AIC, 2003, p. 91)
Trata-se no caso de uma paródia a comparação entre o BID e o Bolivian
Syndicate. Aqui vemos o discurso de preservar a Amazônia por meio de incentivos
do Banco Interamericano de Desenvolvimento ser comparado com o Bolivian
Syndicate que justamente representou o imperialismo internacional no início do
século XX.
Essa associação demonstra certa incongruência do governo do Estado do
Acre, apontando que aquele que se diz inaugurador de uma nova Revolução
(MORAIS, 2008) está justamente atuando ao lado do capital internacional,
colaborando para a entrega das riquezas da região amazônia.
Essa nova Revolução baseia-se na ascensão do Partido dos Trabalhadores
(PT) no Estado do Acre, que para Maria de Jesus Morais (2008, p. 275), fundamenta-
se no esquecimento, como se nada tivesse existido no Acre após a morte de Chico
Mendes:
após a morte de Chico Mendes, em 1988, parece que nada existiu no Acre,
até surgirem os ―meninos do PT‖ fazendo uma ―nova revolução‖, ganhando a
eleição e dando continuidade aos sonhos do seu líder maior, Chico Mendes
que lutou contra a pecuarização do Estado do Acre (MORAIS, 2008, p. 275)
77
Portanto, a associação do BID (sic) com o Bolivian Syndicate,
ideologicamente, trata-se de uma paródia, que aponta um caminho oposto e mais
consentâneo com os ideais divulgados pelo governo do Acre.
Como vemos, portanto, ironia e paródia a um tempo no trecho em
análise. Ora, elas são bastante semelhantes estruturalmente pelo fato de ambos
assimilarem a diferença. Para Hutcheon:
Devido a essa semelhança estrutural a paródia pode servir-se, fácil e […]
naturalmente, da ironia como mecanismo retórico preferido e até privilegiado.
A patente recusa pela ironia da univocalidade semântica equipara-se à
recusa pela paródia da unitextualidade estrutural (1989, p. 74-5)
Logo, é muito comum a paródia utilizar da ironia para alcançar seus objetivos.
Hutcheon considera que
Trata-se de um resultado da dupla estrutura de sobreposição comum
da paródia e da ironia, que não obstante, assinala paradoxalmente diferença
em termo semânticos ou textuais. Esta dependência diferencial, ou mistura
de duplicação e diferenciação, quer dizer que a paródia funciona
intertextualmente como a ironia funciona intratextualmente: ambas
ecoam para marcar mais diferença que semelhança (HUTCHEON,
1989, p. 84).
Portanto, a ironia configura-se como o elemento mais importante na urdidura
de AIC, pois viabilizadora, em muitos casos, da própria paródia. No entanto, como
assinalamos, elementos que permitidos pela ironia contribuem para a ligadura
textual,os quais, por ora, devemos centrar atenções.
Em alguns parágrafos atrás inciamos uma discussão sobre a mudança de
narradores e a mudança de posições do personagem Repórter. Isso é permitido pela
ironia, como dissemos, e essa mudança do personagem Repórter para narrador e
do narrador comentarista, muitas vezes, identificar-se como sendo o personagem
Repórter, algo de especial à AIC e se adequa perfeitamente à estrutura utilizada.
Ora, se o propósito é discutir visões da história, nada mais adequado de que opor
visões de uma mesma personae.
Em verdade, a mistura de tempos confere uma ligação mais sólida que
qualquer personagem. Ora, os adiantamos e regressões no texto oferecem a ligação
pelas temáticas que tratam.
78
No capítulo A Revolução dos Poetasque trata da Revolução dos poetas,
por exemplo, o tempo da história narrada é passado, cuja temática é um fato
acontecido antes da Revolução Acriana‖. No entanto, os termos e expressões
utilizadas o atuais, bem como eventos futuros são de conhecimento dos
personagens. Nesse aspecto, portanto, um adiantamento temporal, mas que se
encaixa nos textos seguintes, cujo tempo é, cronologicamente, situado no passado.
Nesse capítulo, vemos que os fatos passados são reatualizados com o
engendramento de personagens
Sobe ainda mais o tom da discussão e quase degenera, quando um
rapaz magérrimo, amarelo, com o rosto marcado por nódulos sebosos, um
'camarada', sugere que se adie o começo do ataque para 17 anos depois,
quando irromperia a Revolução Russa.
Discordo. Fosse por isso deveríamos esperar por 1948, pela
Revolução Chinesa; por 1958, pela Revolução cubana...ou o camarada quer
que esperemos também pela Revolução do Hugo Chavéz? Quem sabe por
2003, pela Revolução dos cocaleros de Evo Morales?- atalha, com firmeza e
irônico, que parece o mais turrão da mesa.(AIC, 2003, p. 65)
Aliás, estão presentes também no capítulo temas da atualidade como os
contratos firmados entre o Estado do Acre e o Banco Interamericano de
desenvolvimento (BID):
- A revolução começa conforme o combinado, depois de amanhã,
29 de dezembro. Ou os companheiros já esqueceram que a Bolívia
arrendou o Acre ao BID, digo, ao Bolivian Syndicate , essa corja de
imperialistas ingleses e americanos.(AIC, 2003, p. 65)
A questão da acrianidade é outro tema abordado no seguinte trecho do
capítulo em comento :
-Alto lá! Identifique-se ou eu atiro interrompeu os passos do viajante
bisbilhoteiro com uma voz sussurrada, mas decidida.
-Saudações Revolucionárias!Arrisca o Repórter.
-Não basta. Identifique-se mais- ordena, autoritária, a mesma voz.
-Viva o Acre Independente!- arrisca de novo o Repórter.
-Ainda não é o suficiente diz, a essa altura já saindo detrás de uma
castanheira, um rapaz imberbe.
- Liberdade e Luta! Esforça-se o Repórter.
-Chegou perto, mas falta ainda alguma coisa e desembucha senão abro fogo
.
-Vocifera o fedelho.
- Orgulho de ser acreano! Faz a última tentativa o Repórter.
-Agora, sim! Pode se aproximar- concorda o rapaz, conduzindo o visitante
até ao navio (AIC, 2003, p. 64)
79
Assim, no capítulo do qual foi extraído esse trecho, apesar de os fatos se
derem no momento pré-Revolução, os personagens se referem a fatos futuros e o
bordão, ―orgulho de ser acriano‖, utilizado como símbolo da acrianidade, suscita o
riso, pois nos dias hodiernos, é amplamente utilizado como propaganda de uma das
mais conhecidas redes de supermercado de Rio Branco, capital do Estado.
O riso, nesse aspecto, surge da incapacidade humana de adaptação a
situações novas (BERGSON, 1980), resultado aí da impropriedade da adoção de um
símbolo do capitalismo acriano, de certa forma oficial, para um movimento
revolucionário, com viés marxista.
Além disso, o episódio demonstra como a questão da acrianidade esta
envolvida em uma espécie de mercantilização na atualidade. Ademais, as
referências à formação marxista dão um tom mais irônico ao diálogo.
Aí, a ironia consiste em colocar um slogan de um Supermercado local,
portanto, símbolo do capitalismo, como palavra chave de uma reunião que se diz
revolucionária e de caráter comunista, cujo final será o mais completo fracasso pelo
fato de seus membros sequer se entenderem e, talvez, sequer serem comunistas.
Afinal, a ironia guarda uma diferença semântica entre o dito e o não-dito
(HUTCHEON, 1989, p. 74-5).
Entretanto, segundo Maria de Jesus Morais (2008) apesar do fracasso da
Revolução dos poetas, para o historiador oficial Marcus Vinícius Neves a Expedição
serviu para manter ―viva a utopia que o Governo de Galvez tinha lançado‖ (MORAIS,
2008, p. 66).
Logicamente, é necessário ao leitor conhecer a realidade do Acre, o slogan
―orgulho de ser acriano‖ para poder inferir a ironia. Portanto, essa ironia também tem
um viés político que instaura uma diferença entre aqueles que vivem no Estado do
Acre e os que não vivem, estabelecendo uma relação de superioridade/inferioridade.
A ironia claramente diferencia e assim potencialmente exclui: como a
maior parte das teorias diz, existem aqueles que a pegam‘ e os que não.
Alguns teóricos, como Paul de Man, sentiram que qualquer distanciamento
irônico implica o dualismo superioridade/inferioridade (DE MAN, P.,
1969:195) e se voltam para a declaração famosa e muito citada de
Kierkegaard de que a ironia não é entendida por todos porque ela viaja em
incógnito exclusivo, por assim dizer, e menospreza, de sua posição
elevada, com compaixão, a fala comum rasteira‘. (HUTCHEON,2000,
p. 86).
80
Além disso, instaura-se um diálogo entre o passado e o presente, ratificado,
ainda, por personagens que lembram figuras da política acriana atual, como o jovem
de espinhas sebosas, muito assemelhado ao político comunista acriano Edvaldo
Magalhães. Seria Edvaldo Magalhães?
Minervino, por exemplo, adiantado no tempo, mesmo quando ainda não existe
televisão no Brasil, queria participar das novelas da Globo e contracenar com
atores importantes no cenário nacional, tais como a atriz Geovana Antonelli.
Aliás, a esse propósito, de certa forma, o texto nos fornece uma possível
inspiração para a construção do personagem Minervino. Seu Artur Sena, do capítulo
Na tela da Globo‖ , que antever aparecer na rede Globo de Televisão:
Antevendo essa possibilidade de aparecer na tela da Globo, o
curado do patrimônio histórico de Proto Acre, Artur Sena Souza, 75 anos, um
descendente de cearenses como o são quase todos os que vivem na vila,
pega o Repórter pelo braço […] (AIC , 2003, p. 51)
Retornando ao fato de Minervino querer aparecer na Globo, isso, além de dar
uma certa continuidade ao texto, por outro lado, confere o riso e o humor, tendo em
vista a figura de Minervino não ser nem um pouco apropriada ao mundo televisivo,
como ele mesmo sabe. Por exemplo, no capítulo Cem anos de escravidão ele
diz que lhe sobraria o papel de coco de cavalo, acaso tivesse de disputar algum
papel em um filme norte-americano. Igualmente, no capítulo João Minervino, o
seringueiro‖, há a afirmativa de que seu perfil estava mais para Programa do
Ratinho do que para ator global.
Ora, para Bakhtin (1981), o riso é fundamental no carnaval, pois é um
elemento ritual da carnavalização responsável pelo destronamento, sendo fundador
de mudanças e transformações impossíveis na forma do sério, tendo em vista que
esse antiquíssimo sentido ritual da ridicularização do supremo (da divindade
do poder) determinou os privilégios do riso na Antiguidade e na Idade Média.
Na forma do riso resolvia-se muito daquilo que era inacessível na forma do
sério. Na Idade Média, sob a cobertura da liberdade legalizada do riso, era
possível a ―paródia sacra‖, ou seja, a paródia dos textos e rituais sagrados.
O riso carnavalesco também está dirigido contra o supremo; para mudança
dos poderes e verdades, para a mudança da ordem mundial. O riso abrange
os dois pólos da mudança, pertence ao processo propriamente dito de
mudança, à própria ―crise‖. No ato do riso carnavalesco combinam-se a
morte e o renascimento, a negação (a ridicularização) e a afirmação (o riso
de júbilo). É um riso profundamente universal e assentado numa
concepção do mundo. É essa a especificidade do riso carnavalesco
ambivalente (BAKHTIN, 1981, p. 109)
81
Lógico que o riso que o teórico se refere é o medieval e ele acredita que o riso
moderno não carrega a mesma força. No entanto, Bergson (1980) em texto sobre o
cômico, afirma que o riso é elemento por excelência da celebração da vida livre e
se dá em grupo.
O riso e o humor também são conferidos pelo narrador comentarista ao
denunciar a fragilidade do discurso, ao desmentir o que os personagens fazem ou
dizem:
Nota do autor: O leitor perdoe o delírio do nosso herói e sua
completa desinformação sobre a cronologia dos fatos. O Repórter tentou
explicar que seu sonho de aparecer na tela da tevê...no meio desse
povo...agente vai se ver na Globo, deverá acontecer, talvez, cem anos
depois, em outro contexto e com outros personagens. (AIC , 2003, p. 131)
Ora, Bergson (1980) afirma que por mais franco que se suponha o riso, ele
oculta uma segunda intenção de acordo, uma quase cumplicidade, com outros
galhofeiros, reais ou imaginários (BERGSON, 1980, p. 13). Desta forma, este riso
provocado é uma forma de comunhão com outros discursos sobre a história do Acre,
contrários à história oficial.
Portanto, traduz-se num exercício de reflexão. Aliás, um exercício de
inteligência (BERGSON, 1980, p. 13).
O riso provocado pela ignorância de Minervino confundir os tempos indica o
conhecimento de eventos futuros, no entanto, essa consciência de eventos futuros,
vista com ar de ignorância, não lhe confere nenhuma vantagem, nenhuma
possibilidade de superar suas dificuldades materiais. Isso nos leva a pensar que o
personagem tem consciência de seu papel na história do Acre. Seu fim, como o de
Macunaíma, é transformar-se.
Portanto, a urdidura de AIC é complexa. Mas se a continuidade do texto é
bastante frágil, apesar dessa fragilidade, podemos visualizá-la tomando a ótica de
que não um personagem dá ―ligadura‖ ao texto, mas a própria forma de utilização
dos tempos em cada capítulo, a rememoração e o conhecimento de eventos futuros,
junto com a reatualização de eventos históricos colaboram para vermos a construção
do Acre, retratada numa espécie de grande crônica desde a sua fundação até os
82
dias atuais.
Mas tudo isso é possível devido a um elemento essencial presente em
AIC: a ironia. A ironia, esse elemento ambíguo e aberto é o elemento que permite
essas aproximações e dissonâncias sem que haja uma quebra da verossimilhança
interna da obra.
3.3 AIC: gênero híbrido
Após essa discussão, chegamos à conclusão de que a obra possui um viés
ficcional que prevalece sobre os muitos rasgos do discurso jornalístico que a permeia
e a nutre.
Em se tratando de Acre, em termo de ficção, a diferenciação entre ficção e
história é bastante complicada. A professora Laélia Rodrigues da Silva (1998, p. 23)
em Acre: prosa e poesia/ 1900-1990, tese em que estuda as manifestações
literárias acrianas de 1900 a 1990, por sua vez, esclarece que a ―função da literatura
explica-se a partir das correlações dentro do processo de formação da própria região
(acriana)‖. Em outras palavras, uma imensa dificuldade em estabelecer as
fronteiras entre Literatura e História no Estado do Acre, visto que o que poderia ter
sido e o que tem sido articulam-se num espaço de fuga do cotidiano, num
empreendimento a-histórico paralelo a uma constante busca de identidade local.
Quer dizer, para se estudar a formação cultural do estado do Acre se tem que
considerar que os documentos possuem dados ficcionais e a ficção possui dados
históricos. Dessa forma, de modo geral, no Acre a ficção sempre se prendeu aos
fatos históricos, numa busca de identidade, de ―cultivo‖ da terra.
Retornando à classificação de AIC, devemos observar as características da
obra, para classificá-la como ficcional ou não. Em primeiro lugar, AIC possui uma
narrativa que,embora tênue, é capaz de lhe dar uma unidade. Mas a necessidade de
narrativa pertence tanto à literatura de ficção quanto ao jornalismo. Portanto, essa
única característica não ajuda a nos dizer se a obra é ficção ou jornalismo. Sem
dúvida uma filiação aos fatos históricos, no entanto, a esses fatos é acrescida
uma ficcionalização.
Por óbvio, a ficcionalização, também, por si só, não é critério suficiente, mas
essa constatação é um grande avanço. Os instrumentos utilizados nessa
83
ficcionalização tornam a linguagem especial, sobretudo filiando-se e sofrendo
influência das obras de Márcio Souza, numa verdadeira angustia da influência, que
não é quebrada, mas cujo embate se tenta estabelecer.
A cópia das técnicas e procedimentos narrativos indicam essa filiação, assim
como o tom irônico, paródico e carnavalizado também, envoltos numa ideologia de
inovação e contra a ideologia oficial que escreve a história do Acre sob a visão dos
governantes.
Essa ficcionalização é notada, principalmente, na criação do personagem
João Minervino da Silva, o seringueiro amarelo. No entanto, outros personagens
também participam da ficção e eles mesmo são ficção. O personagem Galvez
também atravessa os tempos, embora de forma inerte, transformado em um
mulateiro no descampado do nada, ainda herda as qualidades e defeitos de Galvez,
Imperador do Acre . Em verdade, Minervino também não morre, pois transforma-se
numa péla de borracha.
o personagem Repórter é o único que não enfrenta as agruras do
envelhecimento temporal. Ele viaja no tempo tanto para o passado quanto para o
presente para viver todas as aventuras e desventuras da história acriana. É claro,
tudo isso, espaços, tempos, narradores problemáticos, é possibilitado pela ironia.
Ademais, o texto não se prende ao tempo, contudo, o personagem João Minervino
possui uma história com início, meio e fim, o qual é aberto, assim, como o de Galvez
e do Repórter que continuará suas viagens pela história. Esse personagem, aliás,
pode também ser considerado uma espécie de alter ego do autor.
Em razão disso, e pela obra não se encaixar em diversas características do
gênero jornalístico apontadas ao longo deste capítulo, acreditamos que AIC pode ser
classificado como pertencente ao gênero ficção, como romance.
Ora, mesmo os textos que porventura, individualmente possam ser
classificados no gênero ensaístico, estes não se amoldam às modernas concepções
de ensaio ou crônica.
Como ensaio, os textos de AIC que podem, destacados do conjunto de textos,
individualmente, serem classificados como ensaios, não se adequam à moderna
concepção de ensaio, ou seja, de estudo. Entretanto, certamente, alguns poderiam
se adequar na concepção antiga de ensaio, como os de Montaigne ou Voltaire.
(COUTINHO,1978).
quanto aos textos que individualmente algum analista considere crônicas,
84
estes não se amoldam às características elencadas como pertencentes da crônica
moderna, como a falta de importância dos fatos narrados, o circunstancial e o
efêmero, etc.
Acreditamos que apenas sob o ponto de vista de ser uma grande crônica da
história do Acre, AIC pode ter alguns de seus textos classificados como crônicas.
Com efeito, para nós, literatura ainda está relacionada, principalmente, à
questão do belo e do prazer propiciados pela linguagem que funda um outro mundo
aproveitando o real, sem intenção de reproduzi-lo fielmente. Obviamente que
aescrita jornalística pode e deve ser bela e prazerosa, mas não é essa a sua
principal função, pois se assim o fosse haveria uma perda de sentido do discurso
jornalistico, que é informar.
Para Ramos (2010)
As variações de estilo, o aprofundamento, o tamanho da narrativa,os
ornatos... Nada disso costuma dar em análises que tirem da reportagem
aquele compromisso primeiro, de informar, de veicular a verdade (ainda que
ilusória), de se apoiar em dados comprováveis. E esse contrato importa,
sobremaneira (RAMOS, 2010, p. 39)
Entretanto, por óbvio, esses apontamentos não escapam de ser apenas uma
visão do fenômeno, a qual é sempre envolta em ideologias. Apesar, do paradigma da
modernidade identificar flutuações, acreditamos que algo que ainda pode ser
utilizado como paradigma para diferenciar literatura e jornalismo. Todos esses
pontos, em conjunto, cremos que diante de gêneros híbridos, nunca serão
contemplados, mas, mesmo assim, nos indicam o caminho classificatório, ainda
importante no âmbito do ensino da literatura (COUTINHO, 1978).
85
CAPÍTULO 4- SÍNTESES E COMENTÁRIOS SOBRE A PRIMEIRA PARTE DA
OBRA
4.1 A divisão da obra
Nesta parte do trabalho esboçamos sínteses comentadas e analisadas dos
capítulos de AIC, a fim de comprovar as observações levantadas a respeito da obra
e melhor situar o leitor no mosaico textual de AIC, identificando a ironia como
elemento que permite a urdidura da obra.
Bem, em primeiro lugar, acreditamos que a leitura deve ser feita tendo como
perspectiva que a proposta da obra é discutir como o Acre pode ser explicado, quais
suas identidades fundantes por meio de um olhar orientado pela ironia.
Em verdade, na própria introdução do romance, o narrador deixa claro esse
propósito, lançando exemplos de fatos curiosos e pitorescos da história acriana
como, por exemplo, ter o Acre um número de inserções na internet superior a de
estados mais populosos e mais fortes economicamente, ou ainda, o território ter sido
trocado com o governo boliviano por um cavalo de raça
10
, ou ainda, a existência de
personagens díspares na recente história como Marina Silva e Hildebrando Pascoal,
etc. Em nossa opinião, inclusive, esse espanto do narrador com a existência de
personagens díspares é injustificado, pois, por exemplo, se a Alemanha nos deu
Albert Einstein, ela também nos deu um Hitler. Por isso, talvez, esse preocupação do
narrador seja um tanto homogeneizadora.
De qualquer forma, o narrador tenta justificar a necessidade de entender o
Acre, partindo da premissa de que um caráter pândego no povo acriano, bem
como idiossincrasias apontadas pelos estudos euclidianos como a forma de
colonização e a exploração do povo seringueiro.
Apesar da obra ser dividida em duas partes, sendo a primeira voltada para a
fase pré-Revolução e a segundo para a Revolução e a pós-Revolução,
10
Episódio em que o ditador Boliviano chamado Mariano Melgarejo, pouco depois do tratado de
Ayacucho em negociações com o Brasil assinou diversos tratados, concedendo terras ao Brasil no sul
do Amazonas. Segundo Marcus Vinícius Neves, na verdade, o governo do Brasil, antes de negociar
os tratados havia presenteado o presidente boliviano com medalhas e um par de lindos cavalos
brancos, o que deu origem a diversas versões conhecidas na Bolívia de que o Acre havia sido
trocado por um cavalo. (NEVES, 2006, apud MACHADO, 2006, p. 01)
86
consideramos mais adequado dividirmos a obra em três partes, que nos parece uma
forma melhor de leitura e compreensão do texto de AIC, além de possibilitar um
maior equilíbrio na divisão dos capítulos desta dissertação.
Assim, dividimos a obra em três partes da seguinte forma:
a) Pré-Revolução: compreendendo 14 capítulos que tratam desde a
Revolução dos Poetas a Galvez e a criação do Bolivian Syndicate;
b) Acre Revolucionário: compreendendo 31 capítulos que se voltam para as
campanhas de Plácido de Castro;
c) Acre Pós- Revolução: compreendendo 13 capítulos que se centram no Acre
Pós- Revolução até o Acre mais contemporâneo;
Neste parte da dissertação trabalhamos os capítulos que enquadramos dentro
da Pré-Revolução Acriana, centrados nos eventos anteriores à ―Revolução‖, como
dissemos. Então, a partir do próximo tópico iniciamos a análise.
4.2 Acre pré-revolucionário: síntese comentada e analisada dos capítulos
Nesse quadrante, a primeira narrativa que abre o livro de Martinelo é o
capítulo Na Ilha da Consciência‖, o qual se centra na formação do espírito dos
pioneiros. Trata-se da história da transformação do Padre Ludovico, jesuíno (sic),
formado em Teologia pelo Colégio Pio Brasileiro, em Roma, com a tese De Betumine
Arcae Noensis usum fuit
11
, a qual foi muito elogiada pela Cúria Romana como
verificamos abaixo:
Formado em Teologia pelo Colégio Pio Brasileiro, em Roma, com a
tese De bitume Arcae Noensi usum fuit, Padre Ludovico compôs um tratado
originalizadíssimo. Chegou a ser comparado pelo cardeais da Cúria Romana
com a Summa Teológica de Santo Tomás de Aquino. Embora, a rigor,
ninguém conseguisse atentar para a utilidade que teria o betume, usado por
Noé para vedar sua arca de bichos, na salvação das almas. (AIC , 2003, p.
21)
Em verdade, reside uma ironia que reside em criticar implicitamente o
pedantismo, a cultura que não se sabe a que serve, que ninguém entende, mas que
status de sábio a quem a possui. Afirmar que Ludovico compôs um tratado
11
O Uso do Betume na Arca de Noé (tradução livre)
87
originalíssimo sobre o betume que foi usado na arca de Noé, a ponto do trabalho ser
comparado à Summa Teológica de Tomás de Aquino para depois questionar a sua
utilidade, configura o procedimento irônico, o qual é:
estratégia intertextual e interdiscursiva que permite 'efeitos de sentido como
a dessacralização do discurso oficial ou o desmascaramento de uma
pretensa objetividade em discursos tidos como neutros' (BRAIT, 1996, p. 15).
Esse tipo de crítica à cultura de fachada encontramos também em Machado
de Assis. Logo, notamos que a ironia é um dos elementos mais comuns nas obras
dos grandes mestres da literatura brasileira moderna. Ela é elemento ambíguo,
dúplice ou ambivalente, sendo uma dissimulação involuntária e, ao mesmo tempo
refletida, pois nela
tudo deve ser brincadeira e dissimulação. […] Ela contém e suscita o
sentimento do conflito insolúvel do absoluto e do circunstancial, da
impossibilidade e da necessidade de uma comunicação total (HUTCHEON,
1989, p. 76)
A perspectiva irônica, por outro lado, nos possibilita uma abertura para a
desleitura, para a crítica que o leitor não sabe se está ocorrendo ou não, pois ―A
leitura do texto irônico é vertiginosa, porque a todo momento o chão sobre o qual se
trilha começa a ruir‖ (SELLIGMANN-SILVA, 2003, p. 371). Identificamos, portanto, a
ironia desde as primeiras páginas de AIC e ela é elementos essencial da obra.
Após essa ironia bem sucedida, a narração prossegue contando que Ludovico
que ao retornar para Belém do Pará, foi enviado para fundar uma missão na aldeia
indígena Apurinã, em Boca do Acre. A caminho de seu destino, a bordo do
gigantesco vapor Edwiges, Ludovico pregava a religião católica e era visto quase
como um verdadeiro santo, que podia até levitar sobre as águas. Portanto, Ludovico
sacraliza-se, tornando elemento representante da divindade. A divindade, para
Bakhtin (1981) é o cerne do discurso oficial, intocável e cheio de formalidades, ao
qual se contrapõe o discurso carnavalesco.
Esse comparação moral de Ludovico com um santo, portanto, terá a função de
ser mais adiante dessacralizada, por meio de um ritual, qual seja, a passagem pela
ilha da consciência. Ora, Ludovico, ao passar por Manaus, o seu vapor perdeu-se
nos igarapés, indo parar na Ilha de Marapatá, após 65 (sessenta e cinco) dias de
88
viagem. Lá, após três dias, o Padre Ludovico transformou-se: largou a batina e
tornou-se um homem sensual, devasso e corrupto.
Assim, Ludovico confirmou a fama da Ilha de Marapatá, a ilha em que os
homens perdem a consciência. Por lá, Ludovico aprendeu com os seringalistas a
queimar notas de mil réis e escravizar os seringueiros e, após gastar todo o dinheiro
que lhe foi confiado para
fundar a missão, abriu um
parque aquático de
levitação e passou a ter
uma vida na-babesca.
Passados quarenta dias,
período, inclusive, igual
ao que Cristo peregrinou
no deserto sofrendo as
tentações do Demônio, o
vapor Edwirges partiu da
Ilha de Marapatá,mas
Ludovico é a prova que
confirma que a passagem pela ilha trata-se de um ritual de corrupção.
Nesse aspecto, a ilha como passagem ritual se confirma, inclusive não apenas
como centro espiritual da conquista do Acre, mas de toda a Amazônia, pois, segundo
o narrador comentarista
não eram apenas sobre aqueles que vinham para o Acre que a Ilha de
Marapatá exercia o poder de arrancar seus escrúpulos. Os que passavam
por ela e voltavam para o Maranhão, Para, ou ficavam no Amazonas, onde
constituíam suas capitanias hereditárias, também. Basta ver o assalto que
fizeram aos cofres da Sudam [...]( AIC , 2003, p. 24)
Ludovico, portanto, passou por um ritual. Mas o que realmente representa
Ludovico no contexto de A Ilha da Consciência? Ludovico seria uma antítese de
Cristo ou mesmo uma representação de Lucífer, o anjo caído? Ele, por exemplo, ao
contrário de Cristo, não resistiu às tentações. Para Cristo, o deserto representou a
purificação, enquanto para Ludovico, o deserto verde, a perdição. Se analisarmos
que a Amazônia foi tida por Euclides da Cunha como a última página do gênesis,
então, podemos visualizar um forte oposição a esse discurso euclidiano.
89
Jesus Cristo- purifica-se por meio do
ritual de peregrinação no deserto
Ludovico- torna-se impuro por meio de
um ritual de peregrinação no deserto
verde
Amazônia paraíso (um paraíso
perdido?)
Ilha da Consciência - perdição
TABELA 3
Portanto, aqui temos a primeira paródia veemente de AIC. Aliás, a paródia,
embora com um distanciamento crítico, sempre resgata o discurso original
(HUTCHEON, 2000).
Ainda nessa linha intelectiva, podemos observar que o nome Ludovico pode
ser lido como a junção das palavras latinas Lu (luz) vico + (aldeia), logo pode
significar luz da aldeia ou da cidade, assim como Lúcifer significa luz da manhã (a
estrela da manhã). No entanto, Ludovico nos parece a junção de outras duas
palavras latinas: Ludus (jogo) e vico (aldeia). Então, Ludovico pode significar jogar
na aldeia ou jogar com a aldeia. E como sabemos, aldeia relaciona-se com
identidade. Seria a busca da identidade o objetivo que se almeja por meio de um
jogo que será realizado em AIC? É justamente isso que Ludovico faz. Ele brinca,
joga sem se preocupar com as convenções sociais, com o oficial, com o não-
permitido. Interessante é que justamente na brincadeira, no jogo, no riso, que se
assenta a carnavalização da literatura, impregnada do sentido da festa popular
(BAKHTIN, 1981;1987).
Ludovico, portanto, indica que o texto de AIC irá brincar com a história e os
personagens num jogo centrado num lócus específico, o Acre. Esse jogo, articula
diversos discursos, permitindo refleti-los.
Os quarenta dias em que Ludovico ficou na Ilha de Marapatá é o tempo ritual
por excelência no Cristianismo, pois foi o tempo que Cristo ficou no deserto sofrendo
as tentações do Demônio. Mas ao contrário de Cristo, Ludovico sucumbe frente à
devassidão da Ilha da Consciência. Assim, houve uma descida, uma
dessacralização, típica da carnalização.
Aliás, o exagero do tamanho do navio em que viaja Ludovico é também
elemento carnavalesco:
90
Na verdade, o Santa Edwirges não era um navio qualquer, um
paquete, um batelão, uma chata ou uma chatinha. Para cercar de misticismo
e odor de santidade a missão, o Santa Edwirgrd fora escolhido por ser um
vaticano, com 166 pés de comprimento, 33 de largura, nove de calado e
capacidade para 400 toneladas. ( AIC , 2003, p. 21)
Após os quarenta dias, o vapor partiu rumo ao Acre, não se sabendo ao certo
se Ludovico ficou na ilha até a morte, se vendeu o parque aquático para o
governador do Amazonas ou se foi para o Acre com a trupe de Luiz Galvez ou com a
Expedição dos poetas.
Assim, apesar de não haver referência a datas, percebe-se que os fatos
ocorrem no final do século XIX, apesar de se utilizar referências a fatos e
acontecimentos próprios da atualidade, revestidos por uma linguagem atual. É a
maneira com que o texto atualiza o passado e o compara ao presente, fazendo
crítica social à ilha da consciência que permanece dentro da política amazônica.
Tudo pode, abaixo da
Linha Cunha Gomes, é o texto
seguinte à “Na Ilha da
Consciência”. Nesse texto, o
caráter ensaístico é mais
acentuado que no anterior,
ressaltando-se os diversos
estudos que fizeram referência à
Ilha de Marapatá (Ilha da
Consciência).
O narrador procura situar
a ilha geográfica e
historicamente, dando maior
grau de veracidade à história
anterior. Nessa perspectiva, o
autor mais citado é Euclides da
Cunha, que tem algumas
máximas citadas ou referidas
recorrentemente ao longo da
obra, como, por exemplo, que o
91
seringueiro é o homem que trabalha para escravizar-se. Outro autor citado é Leandro
Tocantins, visto como historiador oficial, que justifica o amoralismo da conquista do
Acre. Ainda se cita Márcio Souza. As referências a Leandro Tocantins, Márcio Souza
e Euclides da Cunha, portanto, começam a se impor no corpo da obra, indicando que
serão seus pilares.
O texto seguinte, Entrevista com o Imperador, é um diálogo imaginário
travado entre o personagem Repórter e Luiz Galvez Rodrigues de Arias. O diálogo é
introduzido por uma curta narrativa em terceira pessoa, em que se deixa claro que a
entrevista é produto dos delírios do Repórter sob efeito da Ayuasca (sic) e do sol
escaldante de 40º graus, capazes de transformar um mulateiro solitário no
descampado do nada na figura do espanhol Luiz Galvez. Nesse aspecto a Ayasca
(sic) é o elemento utilizado para dar verossimilhança ao fantástico e mais adiante
trabalharemos com esse elemento.
Ao longo da entrevista, Galvez é tratado como majestade (imperador) e
questionado sobre diversos fatos ocorridos supostamente no seu governo,
principalmente os narrados por Márcio Souza. O imperador defende a si e a seu
império das descrições realizadas por Márcio Souza, inclusive tentando demonstrar
uma aproximação dele com
personagens recentes da vida
política acriana, desembocando
numa crítica debochada e irônica
da vida social e política,
principalmente, dos políticos da
Amazônia contemporânea.
Todos os políticos gostam
de palácio e uma das primeiras
aproximações, ao dizer que
todos os políticos gostam de
palácio é o fato que uma das
primeiras ações do governo
Jorge Viana ter sido a
restauração do Palácio do
Governo. (MORAIS, 2008)
92
A crítica é tão contundente que o Repórter tenta não se comprometer com as
declarações de Galvez, as quais são feitas numa linguagem própria dos tempos
atuais, inclusive com referências a fatos ocorridos recentemente, de maneira a
supor-se que Galvez, apesar de morto, acompanhou atentamente as transformações
ocorridas ao longo do século. Ressalte-se, ainda, que, apesar de defender-se do
texto souziano, ao fim e ao cabo, o caráter bonachão do imperador acaba
prevalecendo ao longo da entrevista, a qual Galvez encerra saudando o povo do
Acre, dizendo que de nada se arrepende do que fez, conclamando a aventura da
vida, mais bela e mais anárquica que teorias e posições políticas e dando uma
―sonora banana‖ aos seringalistas e aos demais que lhe retiraram do poder.
Dessa forma, estabelece-se que apesar de digladiar um pouco com o texto
souziano, o texto de Martinello sofre ainda certa angustia da influência e não
consegue se libertar do texto souziano. Por isso, acaba por ressaltar o aspecto
bonachão de Galvez. A esse respeito, Márcio Souza, aliás, apesar de expor um lado
nada idealizado de Galvez, fez transparecer em GIA o esquecimento desse grande
personagem da História Acriana nos meios oficiais. Francisco Matias (2007), falando
disso, descreve Galvez como o injustiçado:
Ao definir D. Galvez como ―O injustiçado‖ é para lembrar que este
homem deu a primeira organização do Acre, como uma República
Independente, enfrentou a fúria dos EUA, foi vítima da política amazonense,
semeou a semente do atual estado do Acre e, por conseguinte, da primeira
formação de Rondônia pela Madeira- Mamoré, e não tem nenhum município
acreano com o seu nome. Tem um rio, o rio Galvez, mas não corresponde à
sua importância histórica. Ele era um aventureiro, mulherengo, conquistador,
corajoso, inteligente e sagaz, mas não conseguiu concretizar o seu sonho de
poder. Está esquecido pela História, como esquecida está a parte da História
que trata das várias rebeliões acreanas e da Guerra do Acre. (2007, p.2)
A esse tempo, a figura do mulateiro, ao meio dia, começa a perder as feições
do espanhol, voltando a ser novamente uma árvore solitária no descampado de uma
fazenda em que uma vaqueiro tange uma rês desgarrada até os dois sumirem na
pastagem e não poder mais se distinguir vaqueiro e rês. Portanto, o efeito da
Ayuasca (sic), então, se dissipa.
O termo ayahuasca, segundo Oliveira (2010, p. 2) é ―originário da língua
quíchua falada pelos incas e seus descendentes. Seu significado estaria na soma de
dois elementos: huasca, que significa cipó, e aya, que significa almas, espíritos. Ou
93
seja, o ―cipó dos espíritos‖, ou ―cipó das almas‖.
Na verdade, trata-se de um chá ou infusão psicoativa (SHANON, 2003, p. 01)
que, ―provoca poderosas visões, assim como alucinações em todas as demais
modalidades de percepção‖. Segundo Shanon (2003), essas alucinações estão
associadas a insights pessoais, ideações intelectivas, reações afetivas e
experiências espirituais místicas profundas. Por isso, é necessário certos cuidados
na ingestão.
O autor enumera uma série de requisitos para a ingestão da bebida. Em
primeiro lugar, ele afirma que existe a necessidade de uma certa atmosfera. Essa
atmosfera geral envolve desde o lugar em que está a pessoa, se ela está sozinha ou
mesmo se há música.
O segundo cuidado é
com o estado de espírito para o
ritual, sob pena de haver
sensações muito negativas. É
uma preocupação com os
sentimentos pessoais e
emocionais, o estado psíquico
da pessoa antes da experiência.
O terceiro cuidado é com
os efeitos ideacionais e
reflexões oriundas da
experiência.
o quarto ponto é a
presença de dança ou não no
ritual. Outros pontos são: as
metamorfoses, as mudanças na
estrutura da consciência e do
self e as experiências místicas e
espirituais. Enfim, Shanon resume a experiência com a ayahuasca da seguinte
forma:
A ayahuasca é uma infusão vegetal psicoativa da Amazônia. Tipicamente,
provoca poderosas visões, assim como alucinações em todas as demais
94
modalidades de percepção. Essas experiências geralmente se associam a
insights pessoais, ideações intelectivas, reações afetivas e experiências
espirituais e místicas profundas. Também se observam alterações dos
parâmetros básicos da experiência identidade pessoal, conexão com o
mundo exterior, temporalidade e os sentimentos de significação e de noese.
No passado, a ayahuasca era um dos pilares centrais de várias culturas
tribais da Amazônia. Hoje, a infusão ainda é instrumento corriqueiro dos
curandeiros em toda a região. Além disso, no decorrer do século XX,
constituíram-se no Brasil vários grupos religiosos sincréticos nos quais as
tradições indígenas relativas à ayahuasca se combinam com elementos
culturais não-indígenas cristãos ou outros. Dentre esses grupos, os mais
importantes são a Igreja do Santo Daime, a União do Vegetal
(abreviadamente, UdV) e a Barquinha. Em todos, a ayahuasca funciona
como um sacramento‖(SHANON, 2003, p. 01)
Oliveira (2010), por sua vez, acrescenta que diversos grupos indígenas e
movimentos sociais fazem uso ritual da ayahuasca. Entre os movimentos sociais,
destacam-se três vertentes do uso da ayahuasca, a saber: a união do Vegetal, o
Santo Daime e a Barquinha.
Todos esses grupos
agregam uma série de elementos
oriundos do catolicismo, das
religiões afro-brasileiras e do
kadercismo (de Alan Kardec).
Como vimos, o efeito principal da
ayahuasca é a provocação das
visões ou alucinações. Nesse
aspecto, esse efeito é ricamente
utilizado pela literatura para dar
verossimilhança a viagens no
tempo e no espaço. Observamos
isso, por exemplo, no capítulo O
inca de Amazônia Misteriosa,
como já destacamos o uso da
ayuhuasca. Então, a ayahuasca é
um dos elementos naturais que
permitem a viagem no tempo que o
personagem Repórter de AIC faz
ao longo da obra.
95
O capítulo seguinte, denominado No trono de Galvez‖, apesar do título, não
se centra no governo do espanhol. Trata-se, em verdade, de texto narrativo focado
no espírito dos viajantes que chegaram ao Acre. Segundo o narrador, os
personagens consideram a região o fim do mundo ou o seu começo, um lugar
imaginado.
A narrativa trata da visita
do personagem Repórter a Porto
Acre, lugar em que Galvez
estabeleceu o seu império. Em
Porto Acre, o Repórter tropeçava
em marcas da história acriana,
entre elas, panelas de ferro,
correntes, cascas de cartucho e
garrafas, muitas garrafas, a
sugerir que se bebia muito
naqueles tempos. Além disso,
identificou o abandono dos
seringais transformados em
fazendas. Contudo, apontou que
algumas coisas ainda continuam
como nos tempos de Galvez,
entre elas, a notícia dada por rádio sobre a prisão de um senhor, morador há três
anos em Rio Branco, bem conceituado entre seus pares, oriundo de Goiás, onde
praticou um estupro, portanto, fugitivo assim como Galvez o fora da Argentina. A
velha questão colonizadora de que para o Acre vinham degredados ou fugitivos
da polícia, novamente, então, volta à tona e tenta demonstrar que se Galvez foi um
aventureiro, praticamente todos os outros que vieram para o Acre também o foram.
Nesse aspecto, novamente há uma valorização de Galvez e uma desleitura de
Plácido de Castro.
E esta não foi a única notícia dada pelo rádio, havia uma segunda, tema do
texto seguinte.
96
Na tela da Globo‖, trata-se de narrativa em terceira pessoa e volta-se para a
segunda notícia ouvida pelo Repórter em Porto Acre. O conteúdo da notícia era que
naqueles dias o município de Porto Acre receberia a visita do Governador do Estado
e do Presidente da Fundação Roberto Marinho, com perspectiva de se produzir uma
novela sobre a Revolução
Acriana.
A presença do Presidente
da Fundação Roberto Marinho
fez até mesmo se cogitar a
candidatura à Presidência da
República do governador
acriano, hipótese essa
rechaçada com ironia pelo
narrador ao dizer que ―a
modéstia não é uma virtude dos
trópicos‖, quiçá também se
remetendo ao império de
Galvez.
Com a possibilidade de
aparecer na Globo, Artur Sena
Souza, 75 anos, curador do patrimônio histórico de Porto Acre, indicou as relíquias
da revolução para o Repórter, relatando que os seringueiros fizeram diversas
revoltas contra os seringalistas, impedindo o tráfego de navios, colocando grossas
correntes atravessando os rios, para roubar os suprimentos transportados.
Enfatiza-se, entre as relíquias, o número e a variedade de garrafas
encontradas, fato condizente com o texto de Galvez, imperador do Acre, cujo um
excerto concernente à preocupação do imperador com o suprimento de bebidas é
reproduzido. No entanto, em defesa da ―boa imagem do Estado‖, o personagem
Arthur Sena afirma serem as garrafas o de menos importante, pois o acervo histórico
conta com muitas preciosidades, como telhas de barro importadas de Lisboa, etc.
97
O narrador aponta como
maior preciosidade a reprodução
da primeira página do Jornal do
Brasil‖, com data de 8 de março
de 1990, em que, no alto da
página, no espaço reservado à
charge, o título notícias de o
Maravilhoso Acre in JB‖, com a
figura de Galvez envolto num
manto branco flutuando sobre as
águas, indo ao encontro do
Exército boliviano, enquanto
soldados e canhões disparam
contra ele. O narrador encerra
concluindo que os fatos da
revolução acriana acompanhados
pelo ―Jornal do Brasil‖, eram
retratados como maravilhosos e
como sendo o Acre o fim do
mundo.
O texto seguinte Um herói
deslocado no tempo é um texto centrado na decadência do império de Galvez e
na decadência do próprio Galvez. Inicia-se com o levantamento de trabalhos e
escritores que atestam a existência de espanhol, como Galvez, Imperador do Acre,
do amazonense Márcio Souza; Daquém e dalém mar, de Veiga Simões, Formação
Histórica do Acre, de Leandro Tocantins, etc.
Com efeito, o texto defende a importância de Galvez para a história acriana,
afirmando que as elites acrianas tentaram apagar a memória de Galvez, preterindo-o
em relação a outros heróis, os quais não foram menos aventureiros que o espanhol.
Destaca, entre os poucos historiadores a dar importância ao espanhol, Carlos Alberto
de Souza, com História do Acre- Novos temas, novas abordagens, que dá grande
dimensão ao governo de Galvez, ponderando que o espanhol não fundou seu
império sozinho, mas apoiado pelo governo do Amazonas e seringalistas da
Amazônia. Assevera que a data da Independência foi grandiloquente, a data da
98
queda da Bastilha, 14 de julho e que o governo do espanhol chegou a ter diversos
ministérios, uma constituição, diversas leis, além de ter estabelecido contato com
outros diversos países.
Entretanto, segundo o texto, o Estado Independente não foi bem visto pelo
governo brasileiro e até internamente mostrou-se fragmentado, tendo Galvez
enfrentado diversas insurreições urdidas pelos seringalistas, muitos dos quais, até
hoje são conclamados como heróis do Acre. Esse fato é destacado tanto por
Leandro Tocantins quanto por outros historiadores como Carlos Alberto de Souza e
mesmo em GIA houve o retratamento de uma rebelião contra o espanhol e é
justamente essa que AIC retrata.
A rebelião retratada por AIC era liderada por Antônio de Souza Braga,
seringalista, que em 28 de dezembro de 1899 tornou-se o novo presidente do Estado
Independente do Acre. No entanto, o seringalista, muito despreparado, não ficou
muito tempo no poder, pois em 30 de janeiro de 1900, Luiz Galvez voltou ao
comando. Foi efêmero, no entanto, o retorno de Galvez ao trono, pois o governo
brasileiro, pressionado pela diplomacia boliviana, pôs fim ao Estado Independente do
Acre, enviando autoridades a bordo do navio Tocantins, as quais depuseram Galvez
sem disparar um único tiro.
Para o narrador de AIC, Galvez se retira, portanto, nesse momento, do
cenário acriano. Contudo, o narrador afirma que segundo Leandro Tocantins, o
espanhol não se retirou do cenário amazônico, protagonizando ainda alguns
acontecimentos no Amazonas. Foi acusado de ser dono de um prostíbulo em
Manaus o New Club e de ser agente do Bolivian syndicate, acusação pela qual foi
preso e enviado à Guiana Francesa. Sua morte, o narrador diz que segundo o
escritor Álvaro de Las Casas, em artigo publicado em “O Jornal‖, Rio de Janeiro,
citado por Leandro Tocantins, ao contrário de sua vida, foi humilde e no
esquecimento completo. O texto encerra-se repetindo a constatação de Leandro
Tocantins quanto à vida de Galvez, ou seja, que sua vida foi de romance, vida de um
autêntico espanhol, deslocado na época em que viveu. A essa constatação pode-se
acrescentar que, talvez, Galvez tenha vivido tão deslocado no tempo quanto Dom
Quixote. Portanto, o tom jornalístico acaba prevalecendo no texto.
A primeira revolução sem tiros é o texto que inaugura propriamente a
análise da Revolução Acriana. Em verdade, o narrador comentarista considera que
várias versões da revolução, propondo isso ironicamente em nota de rodapé. A
99
referência a primeira revolução sem tiros é irônica porque na atualidade, o governo
do PT, segundo Maria José Morais (2008), dizia-se operador de uma nova revolução
no Estado do Acre, uma revolução sem tiros.
Nota do autor: é que são tantas revoluções que se sucedem no Acre!Agora
mesmo, nos dias que correm, tem alguém dizendo que está fazendo mais
uma. A sua revolução. E o leitor que quer mais emoção neste papelucho,
de ter um pouco de paciência ainda que esta a seguir é mais uma revolução
sem tiros. (AIC, 2003, p. 59)
Daí a ironia do título que,
como se verá, em outras
revoluções apontadas em AIC,
seus idealizadores eram pessoas
despreparadas ou mesmo
realizadores de revoluções
apenas quando no estado ébrio.
Aliás, pelo título, revela-
se que o narrador acredita que
outras versões menos
certinhas da história acriana e a
versão que ele mesmo apresenta
é apenas uma entre muitas
versões. Nesse viés, o texto
inicia-se afirmando que não foi
Galvez quem expulsou os
bolivianos pela primeira vez.
Essa glória coube a outro aventureiro, o advogado e jornalista José de Carvalho.
José de Carvalho, financiado por seringalistas expulsou os bolivianos de Porto Acre,
relatando a aventura no opúsculo intitulado ―A Primeira Insurreição Acriana‖.
No texto, se afirma que o relato de Carvalho narra que os bolivianos ocuparam
as margens do rio Acre, fundando Porto Alonso (Porto Acre), provocando uma
imensa indignação entre os brasileiros ocupantes das terras acrianas, tanto
empregados quanto patrões. Inclusive, José de Carvalho admira-se com a
indignação de um seringueiro magro, atarracado, amarelo como açafrôa, querendo
expulsar os bolivianos.
100
Sob o comando de José
de Carvalho, em de maio, um
grupo de seringueiros ivadiu a
sede boliviana, num barranco do
rio Acre, sendo que não houve
esboço de reação.
Cansadíssimo pela subida ao
barranco, José de Carvalho
intimou Dom Moisés Santivañez
a abandonar as terras acrianas,
ordem que o boliviano
condicionou a obediência ao
recebimento de uma intimação
por escrito, no que foi atendido.
Etapa posterior à
rendição boliviana foi levantada
a bandeira do Brasil, mas em
silêncio, em razão de acordo com o líder boliviano derrotado, o que foi protestado por
um seringueiro, que disse que sempre se dá um ―vivazinho ao Brazil‖, o que fez José
de Carvalho quase rir, apesar da seriedade da ocasião. Assim, a primeira revolução,
termina o relato, não disparou um tiro sequer. Contudo, José de Carvalho, ao
retornar a Manaus, foi processado por crime de lesa-pátria, tendo em vista que
desobedeceu um acordo entre Brasil e Bolívia, ou seja, o Tratado de Ayacucho.
Logo, o Acre voltou a ser boliviano.
Prosseguindo com a temática da revolução, o texto A Revolução dos
Poetas‖ estrutura-se em forma de narrativa, ficcionalizando como deve ter sido
organizada a conhecida Revolução dos Poetas, denominada oficialmente de
expedição Floriano Peixoto, segundo o narrador comentarista em nota de rodapé.
Aliás, as notas de rodapé merecem uma atenção especial, pois, exercem
muitas funções. No trecho citado acima a sua função é atualizar a Primeira
Revolução, mas noutros momentos terá outras funções, tais como estabelecer um
diálogo com o leitor, apontar quando inserção da ficção no discurso jornalístico e
histórico ou ratificar a ficção (a existência de João Minervino) e mesmo inserir o
narrador comentarista como sendo o personagem Repórter. ainda, em outros
101
momentos em que o próprio Minervino começa tomar conta também das notas de
rodapé.
Nota do autor: Embora, esse pingue-pongue possa ter sido útil, para
conhecer o outro lado- como os bolivianos avaliam o que os acreanos
chamam de Revolução e eles de Guerra-, desta vez quem delirou foi o autor.
(...)
Com efeito, as notas de
rodapé, portanto, tornam mais
problemática a narração de AIC.
Retornando ao capítulo
em comento, ainda em nota de
rodapé, o comentarista diz que
não registros em Porto Acre
da existência dessa revolução,
sequer pessoas como o senhor
Artur Sena, de 75 anos, ouviram
falar de tal acontecimento. No
entanto, tanto os livros oficiais
quanto os não-oficiais registram
esse fato.
Em se tratando mesmo da
narração, esta se inicia com uma
localização espacial e temporal
dos fatos. Duas da manhã, Porto
Acre, notívagos do botequim da
gameleira, na rua do Commércio, dormiam derrubados pelo álcool e pela
gravidade.
Nesse ambiente, o personagem identificado apenas como Repórter um
navio ancorado na margem do rio. Era um navio que chegara alguns dias, com
um grupo de rapazes e moças. Ao se aproximar do navio, alguém escondido na
escuridão pede para que o Repórter se identifique ameaçando atirar. O Repórter
cumprimenta o interlocutor com a expressão ―saudações revolucionárias‖, mas o
atirador continua solicitando a sua identificação. Viva o Acre Independente! Arriscou
o Repórter, recebendo a mesma resposta. Liberdade e luta! Tentou o Repórter e a
102
mesma resposta lhe foi dada, advertindo-lhe que haveria apenas mais uma chance
de acertar, sob pena de se abrir fogo. Orgulho de ser acriano! Finalmente o
interlocutor aceitou a resposta e o conduziu ao navio. Após um interrogatório sobre
suas tendências ideológicas, o Repórter recebe a permissão de assistir a reunião-da-
reunião-da-reunião, sobre a revolução dos Poetas.
A reunião é nervosa, não havendo consenso quase sobre nada: ideologia,
estratégia, tática, quem governaria após a revolução, momento da eclosão do
movimento. Um rapaz com rosto marcado por nódulos sebosos sugere que se adie a
revolução para dezessete anos depois, quando se irromperia a revolução Russa.
Outro sugere a chinesa em 1948; outro a Cubana, em 1958; outro a de Hugo Chavez
ou a de Evo Morales em 2003.
Em meio a discussão, o mais
turrão da turma, talvez o mais
velho da turma, bate na mesa e
diz que a revolução começa dia
29 de dezembro, alertando que o
Acre estava arrendado ao Bird
(depois corrige para Bolivian
Syndicate). O Repórter deixa o
navio, enquanto os
revolucionários se preparam
para o ataque.
Em 29 de dezembro de
1900, sobre os gritos de ―o povo
unido jamais será vencido‖ e
―orgulho de ser acreano‖, com
tiros de rifles e espingardas, o
povo foi acordado, dirigindo-se
para o local de origem do barulho, o porto da gameleira, imaginando ser a chegada
de mais uma companhia de teatro francesa. Rapidamente a algazarra cessou. Os
revolucionários foram escorraçados pelos soldados bolivianos, que se postaram na
encosta do rio e passaram a metralhar o navio.
103
Nesse aspecto, uma atualização do espaço público da gameleira
12
como
espaço de lazer, mas não um lazer oficial, marcado pelas formalidades como nos
dias atuais ocorre, com festas organizadas pelo governo. O espaço da gameleira,
pelo contrário ficava do lado, podemos dizer, ―sujo‖ da cidade de Rio Branco, onde
ficavam localizados os bordéis, os clubes de dança, etc, enfim, onde a população
que não fazia parte da elite se acomodava e mesmo a elite se divertia.
Abguar Bastos (s/d), em Certos Caminhos do Mundo: romance do Acre,
bem demonstra isso, incluindo, nisso certa rivalidade entre os dois lados da cidade,
divididos pelo rio Acre.
O mais hilário é que sequer o comandante-em-chefe da revolução sabia a
diferença entre a boca de um canhão e sua culatra. Em menos de 1 hora, 57 minutos
cronometrados, o navio foi tomado, apreendendo-se o canhão e demais objetos da
insurreição. Muitos se jogaram do navio, conseguindo fugir, outros foram capturados,
mas logo soltos, pois na avaliação do comandante boliviano não apresentavam
perigo, pois brigavam e xingavam demais entre si, mas ainda do que contra o
domínio estrangeiro. Soltos foram para o botequim da gameleira, onde bateram boca
com acusações de toda ordem.
Portanto, a narração acaba por dessacralizar alguns dos chamados heróis do
Acre, igualando-os a pessoas do povo, que gostam de se divertir bebendo, típico do
processo de carnavalização. Também aí, uma quebra das hierarquias, pois se a
gameleira era o espaço não oficial por excelência no início do século, por outro, é
que os poetas, homens que se distinguem do povo, se misturam a eles, como na
festa carnavalesca. Afinal, na festa carnavalesca é o momento da total inversão do
regime e da a abolição das hierarquias, regras e tabus (BAKHTIN, 1987)
Ainda tratando sobre a Revolução do poetas, o texto A fina flor da boemia
disserta sobre a maneira como o grupo era desorganizado e pouco coeso, com base
em diversos fatos e estudos. A começar, o narrador afirma que Leandro Tocantins
identificou diversas incriminações recíprocas que, depois do fracasso da revolução,
seus membros expuseram em páginas de jornal: Gentil Norberto- ambicioso, desleal
e criançola; Rodrigo de Carvalho- sem prestígio entre os acrianos; Souza Braga-
seringueiro bronco, sem iniciativa e sem altivez; Hipólito Moreira e Alexandrino José
12
Espaço público à margem do Rio Acre, localizado no que se chama hoje Segundo Distrito de
Rio Branco/Ac.
104
da Silva, vaidosos e ambiciosos, sem inteligência; Joaquim Vitor tencionava
apreender mercadoria do vapor Lábrea; Pedro Braga- submisso aos bolivianos;
Domingos Carneiro- hipócrita, desleal e ignorante. De acordo com o texto, faltava a
todos, segundo a visão de Tocantins esboçada no texto, disciplina tática para vencer
os bolivianos, além de que nenhum exerceria o comando sem susceptibilidades.
Esclarece o texto que, em verdade, a expedição não foi composta apenas de
poetas, mas de advogados, estudantes, frequentadores das noites de Manaus, que
era, nesse tempo, cosmopolita, com bares onde se reunia toda sorte de
aventureiros, de boêmios, de onde saíram os poetas. O apelido expedição de poetas
teria sido dado por Plácido de Castro, ao ver o navio Solimões passar pelo seringal
Boca do Pauini, lotado de desajeitados milicianos. O texto conduz a uma conclusão
de que muitas revoluções de esquerda são realizadas, até hoje, em bares, sem que
se saiba disparar o canhão.
Mais uma vez, a narração aponta a referência a Márcio Souza, no episódio da
Revolução Acriana protagonizado pelos ébrios de Luiz Galvez em GIA. Por isso, o
narrador afirma que Márcio Souza bem soube utilizar isso em seu folhetim,
transcrevendo-se um trecho da obra do amazonense e concluindo, ironicamente, que
fora maldade pura de Márcio Souza.
A expressão pura maldade é uma ironia da forma sarcasmo, que diz uma
coisa para dizer outra, que, em verdade, apoia a opinião expressa em GIA de que
a Revolução não ocorreu conforme defende a história oficial.
O capítulo Yes! O Acre é Yankeeé texto em que se trabalha as razões do
declínio posterior dos bolivianos frente às tropas de Plácido de Castro. A começar, o
texto descreve o Acre como pobre, mas abusado, visitado pelo ex-quase presidente
dos Estados Unidos, Al Gore, assim como pela ex-primeira dama da França, Danielle
Miterrand, o ex-presidente americano Roosevelt, o Barão Alfred Rothschild, até a fina
flor de Wall Street, demonstrando que sempre houve uma cobiça internacional pela
Amazônia.
105
A Bolívia, no início do
século, prevendo grandes
lucros com a produção
gomífera acriana, após
derrotar a expedição dos
poetas e Luiz Galvez ter sido
banido do Brasil, reforçou suas
tropas na região.
Primeiramente, as tropas
bolivianas contaram com um
ano de fartura, mas no ano de
1902, a seca foi tão grande
que favoreceu o florescimento
das doenças tropicais,
notadamente, o paludismo e o
beribéri, apontando como fonte
de tais informações os relatos
de José Manuel Aponte. O
texto, no entanto, ironicamente afirma que os latinos sempre carregam nas tintas,
retirando, portanto, a credibilidade do relato do boliviano.
Tudo é roubo, tudo é ladroeira... aponta que além de doenças tropicais,
outros fatores contribuíram para a derrocada do governo boliviano, como a
106
corrupção, pois os bolivianos também passavam pela Ilha da Consciência, bem
como as razões que levaram à constituição do bolivian syndicate. Um dos negócios
corruptos aludidos no texto, apoiado no relato de Carneiro de Mendonça, cônsul
brasileiro citado por Leandro Tocantins, era o preparo de processos de
regulamentação de propriedades, inventários, liquidações de casas comerciais,
cobrança de impostos, enfim, existia em Porto Alonso um sindicato da corrupção.
Até mesmo quem denunciava essa situação, na verdade, somente o fazia para
também roubar, como o fazia o vigário de Lábrea, Padre Leite. Outro problema eram
as disputas de terra, os homicídios, etc, que provocavam constantes pedidos de
pena de morte.
Outro fato apontado é que a região era composta quase que exclusivamente
por brasileiros. Segundo o texto, diversos trabalhos comprovam a informação e são
citados no Álbum do Rio Acre, de Emílio Galvão e em Um Paraíso Perdido, de
Euclides da Cunha. Assim, os bolivianos começaram a perceber a impossibilidade de
exercer seu domínio completo sobre a região, o que levará à formação do Bolivian
Syndicate.
Dessa forma, apesar do viés documental ser bastante forte, a ficção faz parte
do texto, pois é por meio dela que se explica a corrupção dos bolivianos. Ademais, o
próprio título remete a um dos mais ferozes críticos da corrupção brasileira: Gregório
de Matos Guerra.
Tratando do Bolivian Syndicate, o capítulo O famigerado Bolivian
Syndicatedisserta sobre as intenções do Bolivian Syndicate, situando a companhia
no contexto do capitalismo do início do século XX. Argumenta o texto que foi
circulando entre a nata das finanças de Londres que o embaixador boliviano Felix
Avelino Aramayo teve a idéia de arrendar o Acre a um truste internacional, afirmando
serem nebulosas as intenções do boliviano, ou seja, não se sabia se ele pretendia
resguardar os direitos de seu país ou os seus próprios direitos, pois tinha minas de
prata arrendadas para companhias internacionais.
Nesse ponto, o texto concentra-se nas transformações industriais no início do
século XX, alavancadas por diversos inventos como a vulcanização, a aviação, a
oferta de capitais disponíveis para investimentos como o Bolivian Syndicate,
formulado, segundo o texto, com as feições da companhia das índias ocidentais, cujo
modelo foi copiado pelas companhias inglesas, francesas e alemãs, mudando
apenas de nome de país para país.
107
Argumenta que essas companhias representavam o lado mais nefasto do
capitalismo, atirando-se sobre
a África, Ásia e América,
consoante retratado por livros
como Aden Arábia, de Paul
Nizan.
A Amazônia era alvo
privilegiado do capitalismo
internacional, tendo em vista
que possuía em abundância o
látex ou a borracha natural,
que ao lado do café e do
açúcar era considerado
produto essencial. Dessa
forma, Dom Felix Aramayo
conseguiu, não sem
desconfiança de alguns
patrícios seus, aprovar no
congresso o contrato de
arrendamento do território do
Acre em 17 de dezembro de
1901, com o nome de Bolivian
Syndicate. As clausulas do contrato, transcritas no corpo do texto, não deixam
dúvidas quanto às intenções do Bolivian Syndicate e seus poderes plenipotenciários.
O capítulo Por um milhão de dólares‖ trata de quais empresas participariam
do sindicato. Nesse viés, o texto transcreve um trecho de Leandro Tocantins, o qual,
por sua vez, copiou de uma carta de Aramayo ao General Pando, na qual se
afirmava que o sindicato era composto por poderosos e influentes banqueiros de
Nova York, havendo grande interesse do governo americano, comprovada por um
despacho do secretário de Estado americano John Hay ao embaixador de
Washington em La Paz, informando o valor de um milhão de dólares como capital da
empresa regida pelas leis do Estado americano da West Virginia, embora o governo
americano não fosse participar oficialmente do negócio. Contudo, o secretário
americano roga ao embaixador que preste toda a ajuda necessária à companhia.
108
Deu no Le temps e no timesé o capítulo que trata do posicionamento da
opinião pública internacional sobre o Bolivian Syndicate, demonstrando a
importância que a Amazônia detinha no cenário internacional. Os governos da
Bolívia e dos Estados Unidos chegaram a planejar quem chefiaria a organização e
se cogitava, segundo o relato do
francês Auguste Plane citado no
texto, que o Acre seria uma
colônia americana e novas
companhias se instalariam na
região.
Porém, antes mesmo de
instalação do sindicato, os
embaixadores brasileiros no
exterior, sob o comando do
ministro do exterior, Olinto
Magalhães, passaram a
torpedear o empreendimento.
Jornais como o Le temps
difundiram a trama, alertando
sobre as intenções imperialistas
da companhia.
Sob o argumento de que
o empreendimento prejudicaria
as relações entre Brasil e
Estados Unidos, sem falar de que o governo brasileiro não permitiria o tráfego pelo
rio Amazonas, única via de escoamento da produção pelo mar, o governo brasileiro
demoveu o governo americano de apoiar o projeto.
O Peru também se insurgiu contra o truste, afirmando que suas fronteiras com
o Brasil e a Bolívia ainda não estavam delimitadas. Apenas o governo boliviano ficou
irredutível, porém cedeu quando o governo brasileiro concordou em indenizar os
gastos na formação da corporação, continuando a reconhecer o direito da Bolívia
sobre a região.
109
Mesmo assim, o sindicato chegou a contratar cem colonos, na verdade,
segundo o texto, mercenários, mas foram dispersados ao chegarem a Manaus e
saberem que Plácido de Castro estava retomando o Acre.
Finalizado o episódio do Bolivian Syndicate, que comprometia a soberania
dos países sul americanos, o texto afirma que o Brasil voltou a dar as costas para o
Acre. Em nota de rodapé, o narrador-comentarista disserta ainda que o descaso
secular da União com o Estado, volta e meia, faz surgir ideias de aproveitar a
cobertura florestal do Estado, avaliada em bilhões de dólares, para fazer grandes
negociatas. Houve tentativas de arrendar áreas do Estado para uma companhia
colombiana, ideia que a opinião pública rechaçou por desconfiar que não seria
madeira que se iria explorar, mas outro produto, ironicamente, cujo nome não se
declinou.
Disserta, ainda, de
certa forma comparando o
Bolivian Syndicate ao BID,
que o Estado financiou
sessenta milhões de dólares,
oferecendo como garantia
repasses do FPE e 600
(seiscentos) mil hectares de
florestas, gerando protestos
da oposição, que argumenta
que o governo pretende
entregar ao BID e às
madeireiras asiáticas parte
das florestas do Estado. Daí
o discurso do governo do
Estado do Acre é
contraditório. Esse capítulo,
portanto, é fortemente
marcado pelo enfoque jornalístico.
Nesse sentido, o texto analisa não o passado como o presente e encerra a
fase pré-Plácido de Castro da obra. Na tentativa de dar maior veracidade aos fatos e
argumentos articulados ao longo da obra, após o capítulo descrito anteriormente,
110
segue-se uma série de fotos, e figuras que se relacionam com os textos de AIC,
tanto os pré-Plácido de Castro quanto os pós-Plácido de Castro. Há, por exemplo, a
foto de um mulateiro, árvore que se transforma em Luiz Galvez Rodrigues de Arias,
no capítulo ―Entrevista com o imperador‖.
Assim, a título de comprovação, colacionamos nas páginas deste capítulo as
fotos referidas. Aliás, a presença de fotos é elemento do muito utilizado no discurso
jornalístico e elas enceram a primeira parte da obra, que, portanto, volta-se mais
para Luiz Galvez e os movimentos que desembocaram na revolução propriamente
dita ou a Guerra do Acre.
4.3 Visão parcial
Portanto, como demonstrado ao longo deste capítulo, há no conjunto de textos
que inauguram AIC uma perspectiva crítica desde as primeiras páginas da obra,
realizando uma revisão dos discursos fundacionais e, ao mesmo, tempo, por meio da
ironia, atualizando esses discursos e fazendo uma crítica à política e aos políticos da
contemporaneidade.
A figura de Galvez ganha notoriedade e os eventos pré-Revolução Acriana,
111
muito negligenciados pela história oficial em alguns momentos e, em outros,
tomados sob uma perspectiva idealizada são retratados de modo a enfatizar a sua
importância, embora, muitas vezes sob o olhar do deboche.
A visão da Amazônia como alvo do imperialismo internacional é elemento
central na temática dessa primeira parte que, por causa das possibilidades da ficção,
é trazida para a problemática da defesa da Amazônia diante a cobiça internacional.
Muitos discursos que se dizem em defesa da Amazônia, muitas vezes, são oriundos
de ―poetas‖ que não sabem sequer disparar o canhão. Nesse aspecto, acreditamos
que essa primeira parte reúne uma característica incendiária, que por meio da ironia
e da carnavalização chamam mais a nossa atenção do que qualquer documento. É
por isso que nos diz Compagnon: ―A literatura não é a única, mas é mais atenta que
a imagem e mais eficaz que o documento e isso é suficiente para garantir o seu valor
perene.‖ (COMPAGNON, 2009, p. 55)
112
CAPÍTULO 5- SÍNTESES E COMENTÁRIOS SOBRE A SEGUNDA PARTE DA
OBRA
5.1 O Acre revolucionário
Neste capítulo abordaremos os textos de AIC que tratam dos eventos da
Revolução Acriana em si. Nessa parte de AIC aparece o Plácido de Castro como
personagem histórico, bem como a figura ficcional e irreverente de João Minervino, o
seringueiro amarelo.
Proporcionalmente, esta parte do livro ocupa maior numero de páginas, quiçá
devido a ênfase no maior herói da Revolução Acriana: Plácido de Castro. Colocando
num gráfico a divisão da obra em três partes, observamos que essa parte ocupa
sozinha mais da metade do texto de AIC:
Ênfase em Galvez e nos
eventos pré-
revolucionários
Ênfase em Plácido
Castro e nos eventos
da Revolução
Ênfase no Acre pós-
revolucionário
14 textos
31 textos
13 textos
24% dos textos
54% dos textos
22% dos textos
Tabela 4
Portanto, nesta parte o mito fundador do Acre é muito trabalhado e se, não é a
ele só, que é creditada a culpa pelas mazelas sociais dos seringueiros, pois a ilha da
consciência operou na própria forma de organização do trabalho da região, a esse
mito é creditado a culpa por não ter operado em favor de uma legítima transformação
social.
Aliás, a visão oficial desse mito serve, justamente, para justificar e preservar
as estruturas circulares e estanques da organização social acriana. Portanto, é
necessário revisar o mito fundador sobre uma ótica não oficial. A articulação entre
passado e presente, torna-se, portanto, sempre importante e ela se por meio da
ironia, associada à paródia e à carnavalização. Então, vamos lá.
113
5.2 Síntese dos capítulos: síntese comentada e analisada dos capítulos
A segunda parte inicia-se com uma epígrafe do próprio autor, em que ele faz
referência ao soldado João Minervino, codinome Amarelo, afirmando a história não o
registrou e, parafraseando Saramago, afirma que ―a história não registre um facto,
não significa que este facto não tenha ocorrido‖. Portanto, a epígrafe vaticina que
João Minervino será um dos pontos fulcrais da segunda parte da obra.
João Minervino, o seringueiro‖, capítulo inaugural da segunda parte da
obra, centra-se no sistema sócio produtivo dos seringais, procurando demonstrar a
exploração e os engôdos a que foram submetidos os seringueiros, bem como
procurando a origem de alguns problemas econômicos, como a cultura da produção
agrícola.
Em primeiro lugar, o texto identifica João Minervino como um legítimo
nordestino, de cabeça chata a julgar pelos traços de seus descendentes, moradores
do Bairro Santa Terezinha, em Rio Branco, antigo bairro Bostal. Em sua descrição,
aproxima-se o personagem a Fabiano de Vidas Secas e ao peregrino em que não
havia beleza nem formosura, de Morte e Vida Severina. Então, se indaga se João
Minervino é um pobre retirante como Fabiano, ou um forte, na definição de Euclides
da Cunha?
Em seguida, utilizando a primeira pessoa, o narrador identifica-se como ―este
Repórter‖, dizendo ter apurado em sua investigação sobre o homo acreanus, que
João Minervino da Silva é de Quixeramobim, Ceará, vindo ao Acre na segunda leva
de migrantes, tangido pela seca de 1877, sem passar pela Ilha de Marapatá, rota
proibida para os seringueiros para que fossem escravizados. Chegando ao Acre,
trabalhou no seringal Xapury, do Coronel Antunes Alencar.
O uso da primeira pessoa aproxima o narrador dos fatos narrados
promovendo maior ficcionalização e retirando, em parte, qualquer margem de
neutralidade, ao mesmo tempo que dá maior veracidade aos fatos ficcionalizados.
usando a terceira pessoa, o narrador afirma que o Repórter reverenciou a
figura de Minervino quando o viu a caráter como seringueiro, vendo em Minervino o
autêntico seringueiro. Figura, que segundo o narrador, Márcio Souza definira em seu
114
folhetim como clássica da sociologia amazônica e que alguém, demagogicamente,
nos tempos atuais, afirmou ser ―o guardião de nossas fronteiras‖.
Assim, o uso da terceira pessoa retoma o texto para uma análise mais neutra
e imparcial dos fatos narrados, retomando o aspecto informativo do capítulo.
Assim, o uso da terceira pessoa retoma o texto para uma análise mais neutra
e imparcial dos fatos narrados, retomando o aspecto informativo do capítulo. Nesse
momento, um salto temporal é realizado, pois se vê a equipe da Rede Globo, nos
dias atuais, entrevistando João Minervino que diz que ―guardião da floresta é o
cacete! E sai rosnando. Esse salto temporal, logicamente, é possível por meio da
ficção. Somente a ficção pode permitir a intervenção de Minervino, pois ela ―nos
liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida- a nossa e a dos outros-
ela arruína a consciência limpa e a -fé‖ (COMPAGNON, 2009, p. 50).
Devido a seu isolamento completo, maior do que o de Fabiano de Vidas
Secas, pois não possuía sequer uma cadela baleia, Minervino era um ser Pré-
rousseaniano, portanto, ainda não trabalhado a obedecer a convenções sociais, ao
contrário de ex-seringueiras como Marina Silva, que emocionou Soares em seu
programa de entrevistas.
Minervino estava mais para programa do Ratinho, com seu tipo exótico,
cabelo ruim, orelhas de abano, voz fanhosa, cabeçorra, pele esturricada, olhos
esbugalhados. Tudo desconexo, mas que era o biótipo acriano em sua primeira
versão.
Portanto, Minervino destrona a visão idealizada do herói representante da
nação, assim como Macunaíma. Há, aí, portanto, também uma dessacralização da
visão romântica do herói medieval.
Retornando às condições de vida do seringueiro, o texto afirma que ao sair do
Ceará, Minervino, devia uma fortuna e, por mais que trabalhasse e produzisse,
nunca conseguiria saldar os débitos no barracão, pois em sua primeira produção, o
herói quebrou todos os recordes de maneira honesta, sem colocar cascas de paus,
pedras ou outras impurezas nas pélas de borracha e sem vender para o marreteiro
Zé dos Anzóis, ao contrário de muitos outros colegas seus. Mas mesmo assim
continua devendo ao patrão e percebeu que fora enganado, reclamando do
desenvolvimento sustentado, guardião da fronteira, globo Repórter, o gordo
Soares e cogita voltar para o Ceará.
Como Minervino pode saber de conceitos contemporâneos como
115
desenvolvimento sustentado? Como pode ter uma visão crítica desse discurso?
Somente a literatura poderia realizar tal coisa sem quebrar o sentimento de
verossimilhança, pois ela é ―constitutivamente oposicional (COMPAGNON, 2009, p.
50). O poder da literatura nos conduz a querer derrubar os ídolos e mudar o mundo
(COMPAGNON, 2009, p. 51).
O viés irônico da narrativa atua como operador da atualização dos problemas,
engendrando uma visão negativa das iniciativas governamentais para resolver os
problemas dos serigueiros. A ironia permite o amalgamento de discursos distintos
(HUTCHEON, 2.000).
Sem perspectivas, Minervino pede mais uma garrafa de cachaça ao guarda
livro do seringal, Seu Jorge Mendonça, e começa a amansar até que percebe que
não se pode deixar vencer, afinal era um cabra da peste. Então, ao invés de passar o
inverno comendo e dormindo, por não ser possível produzir borracha, apela para o
subterfúgio de produzir seu próprio alimento para quitar as dívidas.
O roçado prosperou, pois, ironicamente, na Amazônia tudo dá, se não
apodrecer por falta de ramais e estradas. Contudo, surpreendido por uma inspeção
anual do patrão, o herói tem seu roçado destruído por formigas treinadas pelo
seringalista, além de sofrer uma multa de 50% sobre o débito que possuía e ser
humilhado pelo patrão e seus capangas.
Nesse parte, percebe-se uma perfeita harmonia entre a ficção e o jornalismo.
A ficção é colocada dentro do jornalismo, mas o supera e o domina. As formigas
treinadas pelo patrão retratam uma ficcionalização que atua em dois sentidos. Que a
floresta ajudava a dominação do patrão sobre os seringueiros e que os patrões,
historicamente, sempre atuaram com poder absoluto em seus seringais. A multa de
50% em caso do seringueiro plantar é um fato histórico afirmado por diversos
historiadores, como Pedro Martinello (1988).
Na mesma linha de João Minervino, o seringueiro‖, o capítulo A Maldição
de Euclides‖, traça um perfil das condições socioeconômicas do Estado,
relacionando as antigas condições com as atuais.
O texto inicia-se dizendo que João Minervino, recluso na sua colocação, o
Valha-nos Deus, cumpria sua anomalia ou maldição Euclidiana, qual seja, dava
voltas nas estradas de seringa e sobre si mesmo. Introduz, em terceira pessoa, o
personagem Repórter que, em busca do prêmio Esso, tenta acompanhar o
seringueiro em suas andanças, mas não consegue devido ao labirinto que são as
116
estradas que levam ao interior da floresta e sempre trazem ao mesmo ponto de
partida. Partindo dessa constatação euclidiana, o narrador afirma que o Estado ainda
não conseguiu se livrar desse círculo vicioso, mesmo com a proposta de um sistema
de neoextrativismo ou florestania, o qual diante dos resultados econômicos pífios
mantém o círculo vicioso.
A esse respeito, Maria de Jesus Morais (2008), afirma que o governo do
petista Jorge Viana adotou o slogan ―Governo da Floresta‖ , o qual, para ela,
é termo ambíguo, pois de um lado tenta-se associar ao governo dos povos
da floresta, inspirado no movimento social de índios e seringueiros; e, por
outro lado o que tem se concretizado é um governo que explora a floresta,
um governo dos negócios sustentáveis, onde na realidade os maiores
beneficiados não são os povos da floresta e sim aqueles que sempre se
beneficiaram das políticas públicas estaduais. (MORAIS, 2008, p. 179)
O que o capítulo demonstra é justamente isso: na realidade o modelo da
florestania não vem beneficiando as populações tradicionais da floresta acriana,
especialmente os seringueiros. É por isso que o narrador pondera que, apesar dos
governantes defenderem que com o modelo da Florestania, o Acre será a Finlândia
dos trópicos, evocando o mito de Chico Mendes, na verdade 90% da população tem
renda per capita de um dólar.
Argumenta que muitos defensores do desenvolvimento sustentável, na
verdade, apenas recebem incentivos do governo, tal como uma empresária e
colunista paulista que montou um atelier de finos móveis em Xapuri, recebendo 1
milhão de reais para fabricar móveis para a reforma do Palácio do Governo. Por
outro lado, outras atividades produtivas são satanizadas, como a pecuária,.
Nesse aspecto, Morais (2008) disserta que o governo do Estado do Acre
atuou na direção de formar um consenso em torno da vocação florestal que
―resgata‖/constrói também signos da identidade acreana, tanto para elevar a ―auto-
estima‖ do povo acreano quanto para justificar e legitimar o ―discurso florestânico‖
(MORAIS, 2008, p. 181) quanto em torno da continuidade dos sonhos de Chico
Mendes.
Entretanto, o próprio governo financia a maior feira agropecuária local, que é a
maior festa do Estado, afirma o narrador. O narrador em tom debochado, afirma
também que a satanização da agropecuária pelo governo é apenas intriga da
117
oposição, embora o governo sustente que a preservação da floresta gere mais
empregos que a agropecuária.
Segundo o texto, o governo sustenta, ainda, a possibilidade de desenvolver
um rol de projetos como uma fábrica de preservativos em Xapuri, mesmo que se
tenha que comprar látex centrifugado da malásia, o manejo e a exploração de
resinas, fármacos e cosméticos no seringal Cachoeira, no Antimari, na Reserva
Chico Mendes, onde tudo é de todos e nada é de ninguém, conclui ironicamente o
narrador.
Ainda em tom irônico, disserta que, segundo os ideólogos da Florestania, a
Florestania é um modo de ser e pensar dos povos da Floresta, que o
necessariamente precisam preencher os requisitos de índices de desenvolvimento
das cidades, pelo fato de não precisarem deles, pois uma criança Kaxinauá não
precisa de creche e um pajé não precisa de farmácia.
Maria de Jesus Morais (2008) aponta que várias contradições nesse discurso
florestânico do governo do Estado. Entre essas contradições, aponta o manejo da
madeira, que, para muitos seringueiros é um contrassenso a uma das diretrizes do
discurso florestânico, qual seja, a melhoria da qualidade de vida das populações
tradicionais sem necessidade de derrubar árvores.
Para o narrador, os mesmos ideólogos da Florestania, indo para um segundo
governo, começam a se inquietar, mesmo acreditando piamente que o modelo
melhorou muito a vida no Estado. Temem a política do pequeno varejo, a falta de
discussão, a ambiguidade dos governantes, a dificuldade em fornecer um modelo de
desenvolvimento genuinamente amazônico ao resto do mundo.
Por sua vez, a oposição acusa o modelo da Florestania como um atraso, pois
calcado no extrativismo, já defunto no século passado. A oposição defende um
modelo de desenvolvimento aberto, baseado em diversas atividades, principalmente
a pecuária e a agroindústria, apoiando suas críticas no pífio PIB do Estado em
relação aos outros.
Para o narrador, a oposição acrescenta que a atividade pecuária dispõe de
modernas cnicas capazes de tornar a atividade sustentável. Disserta ainda que a
figura do seringueiro, a rigor, nem mais existe e que necessário se faz escrever a
História do presente, como disse Hobsbawn. Logo, necessário sair do círculo vicioso,
de preferência explorando racionalmente os recursos naturais conjugando a
sabedoria do índio com o saber científico.
118
Por enquanto, afirma o narrador, há um empate seja no campo do debate, que
peca pelo reducionismo, seja no campo do desenvolvimento. Ele não se admira que
diante de tudo isso, no peso da exploração do seringal antigo ou no debate entre
floresteiros e fazendeiros, João Minervino, após três anos no seringal tenha se
reduzido a um arremedo de homem. As verminoses, o impaludismo, a fumaça da
defumação do látex açafrão, o que lhe valeu o codinome de João Amarelo, que se
agarrou a ele como um gogó-de-sola
13
.
Enfim, a maldição euclidiana colou em Minervino. Mas o que seria essa
maldição?
Para nós, pela leitura da obra, essa maldição, em verdade, é o retrato da vida
dos serigueiros no início da conquista do Acre, a qual ainda, para o narrador, não
mudou com o tempo, por isso, ele chama de maldição, que como um gogó-de-sola,
na cultura popular, ataca o indivíduo em suas partes mais fracas, sangrando-lhe e
podendo até matá-lo.
O capítulo Amarrado no tronco continua tratando do sistema
socioeconômico dos seringais, em especial, abordando o assunto com base nos
apontamentos de J.B. Parisier e depoimento de Raimunda Gomes da Conceição, de
81 anos, dispostos na obra Enciclopédia da Floresta, organizada por Manuela
Carneiro da Cunha e Mauro Barbosa de Almeida, que o seringueiro vivia em
escravidão, obrigado a trabalhar para o patrão para saldar uma dívida muitas vezes
fictícia e que não conseguia fugir dessa escravidão, pois não arranjava emprego em
outra parte e até mesmo era surrado num tronco preparado no meio do seringal.
Quando conseguia saldar suas dívidas, era morto a mando do patrão.
Assim, podemos dizer que há uma comparação dos seringueiros a Cristo, pois
o texto remete à imagem de Chico Mendes na capa do livro e vaticina que haverá um
capítulo falando da impossibilidade de fuga de Minervino, inclusive, não apenas em
um, mas em dois capítulos: Papillon, jamais e Cem anos de escravidão‖.
o capítulo seguinte, O Barracão das sete mulheres trata-se de uma
paródia de A casa das sete mulheres, minisséie da Rede Globo de televisão. Trata-
se de uma paródia porque não caberia uma minissérie retratando a revolução
acriana com seus heróis coronéis cheios de ideais republicanos e liberais, pois no
Acre esses heróis não tiveram esse tipo de ideal, mas apenas o desejo do lucro a
13
Tipo de macaco muito pequeno
119
qualquer custo.
O capítulo retrata as esperanças que a Revolução Acriana despertou nos
seringueiros, representados pelo personagem João Minervino. A narrativa inicia-se
com uma marcação temporal, meados de maio, em que João Minervino ouviu falar
de que os bolivianos haviam arrendado o Acre, e os seringalistas, com o apoio do
Amazonas e Pará, além das casas aviadoras, cansadas com os pesados impostos
que pagavam aos bolivianos resolveram libertar o Acre.
Ademais, havia um gaúcho que, disfarçado de agrimensor, lideraria a
revolução e que os seringalistas perdoariam as dívidas dos seringueiros que
lutassem na revolução e lhes concederiam um pedaço de terra. Era o ano de 1902 e
isso era tudo que João Minervino desejava, ainda mais que não gostava mesmo de
boliviano, desde que conhecera alguns deles na casa do patrão, onde, por falta de
mulher, homem dançava com homem e um dos bolivianos o patolou
14
, o que era
inadmissível para um cabra macho.
Aliás, essa simples patola parece conduz boa parte da vida de Minervino. Na
teoria bakhtiniana da Carnavalização, podemos lembrar que pequenos atos
assumem proporções gigantescas, capazes de mudar a vida ou o destino dos
personagens. É claro que essa raiva do boliviano de Minervino por causa da
patolada também reflete um sentimento machista da cultura de Minervino.
A essa altura, o personagem Repórter ouvia igualmente falar de seu Jorge
Mendonça, o guarda-livros, que seu xará, o futuro governador do Acre estava
acertando com a globo uma minissérie O barracão das sete mulheresou a saga
de um certo ―Guerreiro do Iaco‖, com nome de Childerico Fernandes de Queiroz
Maia II. Circulava, inclusive, que um maioral da Globo se encantara com uma nativa
e mês sim, mês não, visitava o Estado. Ora, nada melhor do que mulheres, porque
João Minervino não tinha mulher, uma cabrita que o patrão lhe dera por quebrar
recordes seguidos de produção.
Mais manso e mais sabido, João Minervino ao ver quase todos os dias na TV
o governador do Estado, seu irmão senador, a ministra Marina Silva e outros, mudou
de ideia quanto a aparecer na TV e passou a desejar aparecer na televisão, talvez
numa novela da acriana Gloria Perez, no papel de um viciado, em ―veneno do sapo
14
patolar
gír O mesmo que abecar ou abotoar
.
(MICHAELIS , 2011, p. 01)
v. tr. || (Bras.) (gír.) o mesmo que abotoar ou abecar (q. v.). F. Patola2. (AULETE, 2011, P. 01)
apalpar com as mãos a genitália masculina alheia. (DICIONÁRIO INFORMAL, 2011, P. 01)
120
kampô‖, como aquela menina grã-fina, a Mel de O Clone‖. Além disso, mirando-se
em Chico Anísio, Renato Aragão, Adamastor Pitaco, Tom Cavalcanti, concluiu que os
nordestinos sabem rir da própria desgraça e ele como bom nordestino poderia
conquista a tela da Globo, nem que seja para divertir sulistas, até porque soube que
em tv os homens usam -de-arroz e batom e, assim, poderia disfarçar seu aspecto
amarelo.
Em rodapé, o narrador comentarista pede perdão ao leitor pelo delírio do
personagem e explica que o delírio de Minervino deveria ocorrer cem anos depois e
que isso ocorreu pelo fato de ele não conhecer a cronologia dos fatos. Essa
intromissão desqualifica a fala do personagem e está presente em boa parte da obra.
Contudo, em alguns momentos, esse narrador comentarista passará a dar
credibilidade não só à existência de Minervino, como às suas falas e opiniões.
O texto, ainda, argumenta, ironicamente, que o fato do Acre aparecer na
novela das oito é um bom argumento ideológico para mostrar que o Acre mudou, que
agora é um Estado manequim, com governantes arrojados, mulheres bonitas, de
pernas e bustos de fora, rebolando e banhando-se nuas. Conclui, afinal, que a
política nos trópicos é uma
questão de coreografia, como disse Márcio Souza, novamente metendo o bedelho.
João Minervino, o soldadoretrata a forma como João Minervino conheceu
Plácido de Castro. João Minervino, delirando ou não, sequer esperou o patrão
Antunes Alencar aderir ao movimento revolucionário para se alistar no exército de
Plácido de Castro, comandante ainda jovem, com 29 anos de idade.
Minervino alistou-se no batalhão Franco Atirador porque os outros batalhões
como Independência e Liberdade eram abstratos para ele. No seringal Caquetá viu
pela primeira vez Plácido de Castro, esguio, bem apessoado, chegando a confundi-lo
com os galãs da Globo, Werner Schunemann, Tarcisinho Filho, Thiago Lacerda.
Nessa altura, o narrador, em nota de rodapé, pede perdão ao leitor, dizendo que
Minervino estava novamente delirando com televisão, devido ao veneno do sapo
kampô, em que se viciou. Aliás, depois que Repórter Luiz Carlos Azenha, no Globo
Repórter, atestou os efeitos medicinais do sapo, o animal entrou na lista de animais
em extinção.
O fato é que Minervino gostou de Plácido. Inicialmente pelo Che que passou a
chamá-lo como chamava a todos e, depois, pelo gaúcho ter se imposto aos
seringalistas, determinando que apenas ele mandava, pois percebera que os
121
seringalistas, apesar de dizerem que empenhariam o melhor da vida na revolução,
nenhum queria ser o primeiro.
O primeiro ataque seria em Porto Acre, em 14 de julho, porém, por algum
contratempo que nenhum livro de história explica, a data foi alterada para 6 de
agosto, dia da independência boliviana, em Mariscal Sucre, hoje Xapuri, lugar em
que os bolivianos haviam instalado uma alfândega.
O texto esclarece que em Xapuri rolava de tudo e, talvez por isso, seja
comparada a Pelotas. Mas tudo parece ser intriga dos outros municípios que não
geraram tantos personagens ilustres como Xapuri. Nos primeiros dias de agosto, os
ânimos estavam exaltados porque o governo boliviano reatara as negociações com o
Bolivian Syndicate e nomeara um novo delegado para comandar seus negócios em
Porto Acre: Dom Lino Romero. Romero impôs diversas restrições aos brasileiros, as
quais foram o estopim para a revolta.
O capítulo O bêbado supersticioso relata um fato pitoresco: um bêbado
que quase pôs a perder o ataque surpresa à Xapuri. Plácido, trilhando varadouros,
rios e igarapés, chegou na escuridão às redondezas de Xapuri, acompanhado de
poucos soldados, entre eles, João Minervino. Solicitou reforço de José Galdino, no
seringal Vitória, para obter mais homens. A piorar a situação, o gaúcho teve de lidar
com um bêbado, que por ser o mês de agosto, recusava-se a remar com medo de
algum desastre.
Aliás, Bakhtin (1981) identifica em Gargantua e Pantagruel diversas
superstições, provérbios populares, sendo, portanto, elementos da carnavalização,
em que até o real e o irreal ganham o mesmo status. No caso, a superstição é
elemento identitário, que tanto o texto de AIC procura demarcar.
Plácido, ainda sem saber como lidar com a situação, puxou o revólver e o
obrigou a remar. No entanto, o velho seringueiro bêbado, à noite, quando o batalhão
Franco Atirador chegou a Xapuri, cuidando de não despertar os inimigos, quase pôs
tudo a perder, fazendo barulho. Plácido teve que ameaçar o bêbado, dizendo que se
eles fossem desco-bertos, o mataria.
Esse evento, que certamente, a história oficial não deu importância, enquanto
versões não-oficiais como a de AIC resgatam num movimento, portanto, contra-
ideologico e parodístico, pois a paródia atua justamente nesse sentido (SANT'ANNA,
1995). Afinal, apesar desse ter sido um evento menor, sem dúvida, o início da
―Revolução Acriana‖ talvez tivesse sido também o seu fim.
122
Es temprano para La fiestacentra-se na tomada de Xapuri pelo exército de
Plácido de Castro. Na véspera, 5 de agosto, mais 33 seringueiros se juntaram à
tropa de Plácido, levado pelo coronel José Galdino, o único coronel que a história
registrou como adepto do movimento neste momento. Tudo ocorreu como previsto
por Plácido de Castro, consoante a transcrição de seus apontamentos no texto.
Assim, os bolivianos foram vencidos sem o disparo de nenhum tiro, o que frustrou
bastante João Minervino, que pretendia vingar-se do boliviano que lhe dera a patola.
Porém, explica o narrador que para Minervino os bolivianos, descentes de índios
quéchuas, chiquitanos, tumupaceños, aymarás, como os japoneses, são todos iguais
e ele não conseguiu encontrar seu inimigo pessoal.
Essa indiferenciação entre os bolivianos realizada pelo narrador é uma
homogeneização, mas uma que reflete uma tentativa de diferenciação, ou seja, de
separação de identidades e isso se dá, muitas vezes, pela adoção de chistes ou
preconceitos contra os bolivianos.
O capítulo seguinte, A tomada da Casa Branca trata-se de texto voltado
para a atual Xapuri, elencando as suas preciosidades históricas, principalmente as
que restaram da primeira batalha da Revolução Acriana. Entre os monumentos
históricos, destaca-se a intendência boliviana, uma casa de madeira, pintada de
branco, restaurada recentemente pelo governo do Estado do Acre, a que os
xapurienses chamam de casa branca.
Em verdade, afirma o texto, uma discordância entre os historiadores se
realmente a construção seria a sede da intendência boliviana, chegando alguns a
afirmar que a construção fora um hotel pertencente a um italiano, em que se reuniam
comerciantes, seringalistas e intelectuais para trocar ideias. A chamada Casa Branca
reúne, em seu segundo piso, uma série de artefatos como jamaxi, lamparinas,
candeeiros, cabrita (faca de riscar árvores), livro de contas do seringal Boa vista, etc.
Até mesmo artefatos indígenas antes da chegada dos brancos estão guardados na
casa. Inclusive, um alforje em que os seringalistas traziam as libras esterlinas,
obviamente, vazio, e nesse ponto se vaticina que, como se verá adiante, tudo que é
valioso no Acre, some.
Ainda entre as relíquias, rifles utilizados na revolução. Nesse momento,
introduz-se no texto, um personagem chamado apenas de o Repórter, que ao tocar
no mosquete, cujo dono não era identificado, uma voz fanhosa lhe sussurra: Este era
meu mosquetão! Era João Minervino, ainda a procurar o boliviano que lhe dera a
123
patola. Nesse momento, em nota de rodapé, aparentemente deslocada e mais
adequada ao texto anterior, o comentarista afirma que, a despeito dos devaneios de
João Minervino, os fatos narrados sobre a conquista de Xapuri correspondem à
verdade, tanto que são narrados por Leandro Tocantins, em Formação Histórica do
Acre e até hoje se recomenda a quem vai à Cobija, na fronteira com o Acre, evitar a
expressão es temprano para La fiesta, expressão usada pelo chefe boliviano quando
da conquista de Xapury por Plácido de Castro.
Na sequência do texto, o Repórter volta-se para um jornal, o Commércio do
Acre, do dia 13 de janeiro de 1918, a fim de ver ainda alguma referência à
Revolução acriana e ao herói João Minervino. No entanto, havia apenas referência à
primeira Guerra Mundial.
Ainda perscrutando a Casa Branca, o Repórter se depara com um gerador de
energia trazido a Xapuri pelo prefeito Minervino Bastos, na década de 40 e que João
Minervino afirma ser seu parente. Era com o gerador que os xapuriense assistiam ao
cinema e toda vez que a fita arrebentava, fazia-se um barulho de metralhadora e o
cinema esvaziava, pois os xapurienses tinham muito medo dos alemãs.
João Minervino, o guerrilheiro trata do momento logo após a primeira
vitória da tropa de Plácido de Castro em Xapuri. Mesmo após a vitória, comemorada
por três dias pelos seringueiros, Plácido de Castro estava temeroso por três motivos.
O primeiro era que os seringalistas prometiam recursos, mas se mostravam
receosos. Desta forma, comprometeu os seringalistas através de um abaixo
assinado que fez chegar ao governo boliviano em Porto Acre.
O segundo é que os bolivianos revidariam a derrota e Xapuri era apenas um
dos muitos pontos em que os bolivianos fincaram bases.
O terceiro era a ausência de preparação militar dos seringueiros, apesar de
estes, ao contrário dos patrões seringalistas, serem valentes. Plácido anotou tudo em
seus apontamentos e, utilizando a tática da guerrilha que depois, segundo o texto,
Che Guevara e Fidel Castro patentearam como sua, treinou os seringueiros, que
conheciam bem o terreno para fazer ataques surpresa.
A esse propósito, o narrador registra, procurando legitimar suas palavras, que
Leandro Tocantins também afirmara que Plácido de Castro utilizou a tática das
guerrilhas. Quanto ao fato da história não registrar João Minervino como guerrilheiro,
em nota de rodapé, o narrador comentarista se auto-identificando como o
personagem Repórter, afirma que apesar de ele ter registrado esse fato não
124
significa que não tenha ocorrido, in verbis:: que a história não registre um facto não
significa que esse facto não tenha ocorrido‖ ( AIC, 2003, p. 144).
A propósito, esta também é a frase da epígrafe que abre a segunda parte da
obra. Em geral, as epígrafes nas obras literárias têm a função de indicar uma
determinada filiação a esta ou àquela tradição. Nesse aspecto, acreditamos que a
referência a Saramago indica uma filiação ao romance histórico, que veremos em
outras obras de Martinello como Amanda e Corações de Borracha.
Por outro lado, a epígrafe enfatiza a existência de Minervino, portanto, tenta
dar maior grau de verdade à existência de Minervino.
Eu prendo, eu matoretrata como Plácido de Castro conseguiu controlar as
diversas forças que tencionavam assumir o comando da revolução. A princípio,
Plácido enfrentou as dificuldades que previra desde a tomada de Xapuri, entre as
quais, a escassez de recursos.
Além disso, Plácido teve que controlar as futricas e intrigas protoganizadas
por ex-participantes da Revolução dos poetas, Gentil Norberto e Rodrigo de
Carvalho, os quais passavam os dias em discussões estéreis.
Numa de suas andanças angariando soldados e fundos para a Revolução, o
comandante gaúcho encontrou Gentil Norberto, que fora seu conterrâneo em São
Gabriel e este havia se apropriado de 120 winchesters, 12 cunhetes de balas e 100
sacos de farinha, julgando-se, com isso, preparado para a guerra. Plácido escreveu
em seus apontamentos que Norberto era um ignorante em coisas militares e Rodrigo
de Carvalho, um medroso.
No entanto, em nota de rodapé, o comentarista afirma que não se deve dar
absoluta credibilidade a Plácido de Castro, pois em carta de Rodrigo de Carvalho ao
governador do Amazonas se afirma que as declarações de Plácido eram apenas
injúrias para ―queimar seus desafetos‖, prática esta até hoje recorrente na vida
pública do Estado. Com o perigo de divisão do comando, Plácido intimou Norberto a
obedecê-lo, ameaçando-o de prisão e morte, sob a acusação de prejudicar a
Revolução.
Nesse aspecto, a nota de rodapé é uma forma de intervenção do comentarista
que interpreta os fatos históricos, procurando apresentar outra versão ou visão além
daquela registrada pelos documentos históricos.
O Doutor é fuzilado trata de diversos eventos em que Plácido de Castro
teve que lidar com contra-revolucionários. Entre esses contra-revolucionários, um
125
comerciante judeu que num primeiro momento apoiou a revolução, mas depois
iniciou uma violenta campanha anti-revolucionária.
Porém, o caso mais emblemático foi o de um jovem de 22 anos, Antônio
Francisco da Silva, apelidado de o Doutor, por saber ler e escrever e ser bem falante,
exercendo certa influência sobre a tropa. O Doutor vociferava discursos contra a
revolução, afirmando ser o Acre, de fato, boliviano.
Plácido de Castro, ao saber disso, em passagem pelo seringal Liberdade em
que o Doutor vivia, o ameaçou de morte, mas o perdoou. Contudo, ao visitar o
seringal Panorama, meses depois, notou um esmorecimento na tropa. Investigou e
descobriu que o Doutor havia se mudado para o seringal e exercia influência
negativa nas tropas. Dessa vez, o mandou a fuzilamento. João Minervino contou ao
personagem Repórter, o qual também é narrador que fora ele o escolhido do gaúcho
para prender, conduzir e executar o Doutor.
Nesse ponto, o texto afirma que o depoimento de Minervino não é idôneo, pois
o herói o simpatizava com dotô metido a besta e é mais idôneo o relato de
Leandro Tocantins, o qual passa a copiar.
Segundo o texto, a identidade do Doutor gera controvérsias até hoje,
chegando alguns a sequer acreditar na existência dele. Para João Minervino, era um
agente infiltrado do Bolivian Syndacate, enquanto Manuel Aponte, cujos
apontamentos são transcritos no texto, demonstram que o Doutor efetivamente
existiu e que o ato de fuzilamento de Plácido de Castro ressaltava o comando que
tinha o gaúcho e até mesmo uma admiração dos seringueiros por ele, apesar dos
castigos que sofriam.
Aponte deixa claro sua admiração por Plácido. Um jovem que transformou
tímidos seringueiros em soldados. Um relato mais romântico da execução do Doutor
encontra-se em O Acre e seus heroes, de Napoleão Ribeiro, em que Plácido de
Castro chora a execução do jovem apelidado de Doutor, dizendo ser aquele a
primeira vítima da Revolução. Segundo o narrador, outros historiadores apontam que
o episódio do fuzilamento demonstra que o chefe gaúcho era duro e muitas vezes
cruel com seus homens e que o exército de Plácido era formado por recrutas jovens,
muitos adolescentes ainda.
Por outro lado, o texto aponta para a ficção dentro do próprio discurso
histórico. É, por isso que Laélia Rodrigues da Silva (1996) afirma que em se tratando
126
de Acre há ficção nos documentos e documentos na ficção. Logo, um
questionamento da veracidade do próprio discurso histórico em alguns momentos.
Os bolivianos ganham a primeiracentra-se na primeira derrota do exército
de Plácido no conflito. Inicia-se o texto com o personagem identificado apenas como
Repórter notando que o soldado-guerrilheiro João Minervino, codinome Amarelo,
após a execução do Doutor, passou a ter uma certa compulsão por sangue,
chegando a estripar preás para beber o sangue.
O Repórter e os seus companheiros do batalhão Franco Atirador chegaram a
cogitar que ele fosse um vampiro da novela das sete. Contudo, segundo o narrador,
Minervino queria apenas viver a vida no limite, pois aprendera que quem tem medo
da vida não vive. Minervino, com vontade de lutar, conversou com Plácido de Castro
questionando o porquê não dera ordem de atacar os bolivianos, pois se alistara em
junho e era setembro e até aquele momento nada de lutar, comia e engordava.
Afinal dissera ele: ―nóis viemo aqui pra comê ou pra brigá?‖
A essa frase em nota de rodapé, o narrador comentarista afirma que houve
uma indústria de cerveja que a copiou, afinal, o capitalismo sempre absorve
símbolos de esquerda, a exemplo de Che Guevara. Nesse aspecto, a ironia
novamente se estabelece.
A despeito das bravatas de Minervino, o narrador afirma que aquilo que será
narrado a seguir é verdadeiro, com base em 37 livros de história que o Repórter
consultou.
Dessa forma, em diversos momentos, o próprio narrador distingue Minervino
(ficção) e realidade histórica. Essa diferenciação ocorre em em diversos capítulos e é
feita especialmente pelo narrador -comentarista.
Por ora, voltando ao capítulo em comento, o texto relata que Plácido de
Castro desceu o rio Acre para atacar Porto Acre, deixando parte de sua tropa em
Xapuri com José Galdino e levando consigo apenas 63 soldados e pouca munição.
Acampou no se-ringal Empresa, pouco abaixo da comunidade Volta da Empresa. Em
rodapé, explica que Empresa e Volta da Empresa correspondem ao município de Rio
Branco, correspondendo, respectivamente, ao segundo e ao primeiro distrito.
Antes de ser chamado de Segundo Distrito, Empresa também teve o nome de
Penapólis em homenagem a Afonso Pena, que não se sabe o que fez pelo Acre.
Empresa e volta da Empresa, ressalta o narrador, dois seringais às margens do rio
Acre, formam um semicírculo hidrológico que os extremos faltam se tocar.
127
Em razão disso, um prefeito, diz o narrador, mais pescador que administrador,
conjecturou fazer um canal ligando as extremidades, assim como o canal do
Panamá. Retornando à batalha, Plácido foi vencido pelo fato de os bolivianos
contarem com a ajuda de um padeiro português, Antônio Português, que conhecia
como ninguém as trilhas e varadouros da floresta.
O erro de Plácido foi ter liberado o português que ele mesmo mandara
prender no seringal Liberdade. Com a ajuda do padeiro, o Coronel Rosendo Rojas,
em 17 de setembro de 1902, derrotou a tropa de Plácido com 200 soldados
bolivianos bem armados, tendo como saldo 22 mortos e dez feridos do lado brasileiro
e dez mortos e oito feridos do lado boliviano. O comandante gaúcho escreveu em
seus apontamentos que essa foi a estreia, enquanto os bolivianos comemoravam
com 500 engradados de cerveja paceña.
O capítulo ―A mulher guerreira‖ começa apontando a indignação do professor
Carlos Alberto de Souza com a exclusão, por parte dos historiadores oficiais, de
importantes personagens da história acriana, entre eles, as mulheres.
No entanto, o narrador afirma que pelo menos um relato envolvendo uma
mulher, ocorrido após a primeira derrota de Plácido de Castro. Trata-se do ato de
coragem de Angelina Gonçalves de Souza, consoante relata Leandro Tocantins.
Ocorreu que os bolivianos em incursões nos seringais invadiram a casa de um
seringueiro (que João Minervino diz ser seu primo) até hoje de identidade
desconhecida e acabaram matando-o. Sua esposa, de rifle em punho atirou,
acertando de raspão o coronel Rosendo Rojas, que, segundo Tocantins mandou os
soldados a deixarem em paz..
Outro historiador, Napoleão Ribeiro, em o Acre e seus heróis, acrescenta
que Rosendo Rojas teria dito que se Plácido tivesse dez mulheres como aquela em
seu exército, conquistaria a Bolívia. Em nota de rodapé, o narrador afirma que
muito tempo cineastas acrianos tentam fazer um filme sobre Angelina, mas esbarram
na falta de recursos, pois apesar de membros do governo chorarem quando ouvem a
história, não colocam a mão no bolso. Se o filme sair, João Minervino, por se dizer
primo do seringueiro morto, quer um papel, de preferência, para contracenar com
Giovana Antonelli, mais produzida que na casa das sete mulheres. O narrador afirma
que Minervino, nas mãos de um marqueteiro como Duda Mendonça seria um
128
candidato perigoso, pois com um pífaro
15
encantaria jararacas ou quem sabe seria
mais um imperador do Acre.
A guerra da informaçãocentra-se no episódio em que Plácido de Castro e
Rosendo Rojas trocaram farpas recíprocas, após a primeira vitória boliviana. Batalha,
inclusive, em que João Minervino, teve uma de suas orelhas de abano vitimada por
uma bala e recebeu tratamento do médico Francisco Mangabeira, autor do hino
acriano.
Enquanto recompunha a tropa, Plácido de Castro tomou conhecimento de um
manifesto em que o coronel Rosendo o chamava de covarde. O narrador reproduz
parte do documento no texto, a fim de provar que esse fato teria dado início a uma
guerra de informação e contra-informação, que seria popularizada por Busch contra
Sadan Hussein anos depois.
Nesse aspecto, uma atualização da trama, associando a ―Revolução
Acriana‖ com conflitos contemporâneos importantes para o mundo todo como o
protagonizado entre o governo americano e o Iraque, por causa do petróleo. A
―Revolução Acriana‖, portanto, assume ares de evento mais importante de todo o
mundo. Como cada pessoa é o centro de seu mundo, acreditamos que , aí, uma
valorização do Acre e dos acriano.
Voltando ao texto, o narrador diz que Plácido contra-atacou Rojas divulgando
um manifesto que, pela virulência, para o narrador, parece ter sido Plácido
assessorado por João Minervino, sempre desbocado e engasgado com os
bolivianos, primeiro por causa da patola, depois, por causa do tiro na orelha.
Plácido contra-atacou divulgando um manifesto que, pela virulência, para o
narrador, parece ter sido Plácido assessorado por João Minervino, sempre
desbocado e engasgado com os bolivianos, primeiro por causa da patola, depois, por
causa do tiro na orelha.
O manifesto de Plácido acusou Rosendo de fazer injúrias, de ter uma
linguagem imprópria a um oficial, mesmo a um oficial boliviano, além de acusar a
nacionalidade boliviana de covarde, citando o exemplo da perda das terras litorâneas
para o Chile sem muita luta. Além disso, os bolivianos arrendaram sua soberania ao
15
pífaro • sm (médio alto-al pifer) 1.Instrumento popular e pastoril, semelhante a uma flauta,
mas sem chaves. 2.Aquele que o toca. Var: pífano. (MICHAELLIS, 2011, p. 01)
pífaro • (pí. fa.ro) Bras. sm.1. Flauta rústica, de som agudo, com seis orifícios, us. em
conjuntos musicais populares; PÍFANO2. Músico que toca essa flauta. [F.: Do it. piffero, do médio alto-
al. Pifer.] (AULETE, 2011, p. 01)
129
Bolivian Syndicate. Por último, diz que o coronel boliviano e seu governo não se
comparam aos soldados bolivianos, pois esses não carregam a pátria nas solas dos
sapatos.
O capítulo O papelão do patrão relata a covardia do patrão de João
Minervino, Coronel Antunes Alencar e a vitória do exército de Plácido de Castro na
segunda batalha do seringal Volta da Empresa. Enquanto rolava a guerra de
informação e contra-informação, o comandante gaúcho modificou a cor do uniforme
de seu exército para azul, pois notara que os mortos na batalha de Volta da Empresa
vestiam quase exclusivamente uniforme claro. Em nota de rodapé, o narrador explica
que João Minervino foi mais radical na mudança, além do uniforme azul, ele se
camuflava com folhas de árvores e barro. Chegou a vender sua invenção para o
exército, mas foi enganado, pois entregara a patente de sua invenção a um biopirata
que contrabandeava unha-de-gato. (biopirataria na Amazônia tema moderno mas
que remete ao roubo das sementes de seringueira narrada em Coronel de Barranco,
de Claúdio de Araújo lima. Também uma nova atualização quanto aos engodos a
que fora submetido João Minervino. A comercialização de unha de gato é
relativamente recente, retratando a mercantilização da natureza, consoante nos diz
Morais, citando Becker.
Plácido, tentou animar as tropas, temendo o abandono do movimento pelos
seringalistas financiadores, no que estava certo, pois o coronel Antunes Alencar, que
tinha recrutado 100 homens- Napoleão Ribeiro diz que foram 360- dispersou a
tropa e disse que como não havia entrado em combate não estava comprometido
com a Revolução. O medo dos seringalistas aumentara também devido a divulgação
da notícia de que o governo boliviano estava enviando 12 mil homens para por fim à
Revolução. José Galdino mandou de Xapuri seu filho, Francisco, para intimidar o
coronel Antunes a não mudar de lado. Depois, Plácido de Castro foi pessoalmente
conversar com o coronel que, com medo, o recebeu com vivas.
Em nota de rodapé, diz o narrador comentarista que João Minervino tem
certeza que o patrão borrou-se e mijou-se ao ver Plácido de Castro. Mas não é
idônea a palavra de Minervino pois ele poderia apenas querer vingar-se dos maus
tratos do patrão.
O certo é que Minervino, codinome Amarelo, espalhou que Antunes Alencar
era cagão e mijão, fato este que terá relevância como se verá num capítulo próximo,
conclui o narrador. Assim, há uma dessacralização de um dos heróis da revolução, o
130
coronel Antunes Alencar, típico da carnavalização (BAKHTIN, 1981;1987). Antunes
Alencar ainda nomeou Plácido general, mas ele recusou e destituiu diversos oficiais
da tropa montada pelo coronel, por terem esses sido nomeados pelo critério do
puxa-saquismo e não o de mérito.
O comandante brasileiro, então, empreendeu sua contraofensiva ao exército
boliviano em 5 de outubro, posicionando suas tropas no seringal Nova Empresa e no
seringal Panorama. Os bolivianos tomaram um vapor, o rio Afe de disparavam
contra as tropas de Plácido. Foram quatro dias de batalha até que no dia 7 de
outubro o destacamento do vapor rendeu-se e Plácido apertou o cerco contra o
general Rosendo Rosas. O gaúcho propôs uma trégua para que ambos os lados se
abastecessem de víveres, mas esta foi rejeitada. Nesse ínterim, o exército de
seringueiros conseguiu prender o padeiro português que foi executado
sumariamente, sob as ordens de Plácido.
Quanto a este ato, o narrador, em nota de rodapé afirma que Minervino apoiou
integralmente, sugerindo que se fizesse do fuzilamento uma grande ato público, de
repercussão internacional, para mostrar como se deve tratar os traidores das
revoluções.
O narrador comentarista defende Minervino, pois se até Chico Buarque de
Holanda e Frei Beto apoiaram os fuzilamentos em Cuba, por que Minervino, forjado
em batalhas não poderia? Retornando à batalha, esta continuou até 14 de outubro,
até que um prisioneiro boliviano, Luiz Penedo, se propôs a levar uma mensagem
para Rosendo Rojas, que concordou em se render, desde que seus homens fossem
bem tratados. O termo de rendimento foi escrito em espanhol e português,
garantindo-se a vida aos bolivianos e liberdade aos prisioneiros.
Em rodapé, o narrador comentarista afirma que esta é a versão oficial, mas
que Minervino possui outra. Segundo Minervino, os bolivianos se renderam com
medo da luta de faca, cara a cara, bafo da cerveja paceña contra bafo da cachaça
cocal. Nas batalhas, o herói notara que os bolivianos eram bons de tiro, mas se
puxassem um faca corriam três dias e três noites. O Repórter, que vive 30 anos
na fronteira também notou isso, porém não sabe explicar o motivo.
O capítulo cutucando a onça na tocacentra-se nos momentos anteriores à
tomada de Porto Acre. Após a vitória em Volta da Empresa, as tropas seringueiras
passaram a dominar toda a região do Alto Acre e se iniciaram os preparativos para
tomar Porto Acre. A essa altura, a produção de borracha estava parada alguns
131
meses, o inverno amazônico entrava em ação e os seringalistas se impacientavam
com os prejuízos provocados pela paralisação da produção. Nesse ínterim, os
bolivianos reagiram atacando violentamente o Alto Acre e pondo em risco as
conquistas de Xapuri e Brasiléia.
A essa altura, o Repórter- narrador, afirma que por necessitar se preparar para
a mãe de todas as batalhas, isto é, a batalha de Porto Acre, diz que deixa a narração
para Carlos Alberto de Souza. O texto, portanto, segue com uma cópia do livro de
Carlos Alberto, no trecho em que narra que Plácido decidiu atacar os bolivianos
dentro da Bolívia.
Nesse aspecto, é interessante como o narrador apropria-se descaradamente
do discurso de outrem e sem sequer esconder a cópia. Seria uma escrita que
procura se autoexplicar?
Após isso, o texto centra-se em terríveis derrotas sofridas pelos brasileiros.
Uma em Brasiléia, nas margens do igarapé Baía, onde bolivianos comandados pelo
seringalista boliviano D. Nicolas Suarez, em 1º de setembro de 1902, com a ajuda de
índios bolivianos, derrotou o exército de seringueiros, matando 50 brasileiros. Outra
derrota foi a do Major Nunes, que penetrou na Bolívia dominando o povoado
Tauamano, localidade onde todos os seus comandados foram mortos por índios
bolivianos comandados pelo seringalista boliviano D. Miguel Roca. Apenas o major
Nunes escapou com vida. Plácido, sabendo da iminência de um ataque de 800
índios a Xapuri, em ataque prévio, tomou em 17 de novembro de 1902, o povoado
boliviano de Santa Rosa e em 10 de dezembro o povoado de Costa Rica. O
comandante da Revolução, segundo Leandro Tocantins, estava disposto a penetrar
mais a fundo na Bolívia, porém foi demovido da ideia por seus oficiais. José Galdino,
nesse ínterim, voltou para o Acre a fim de preparar o ataque a Porto Acre ou Porto
Alonso.
Ninho de serpentes é o capítulo em que se retrata que os seringalistas
tramavam a substituição de Plácido de Castro, tão logo achassem que a Revolução
era vitoriosa. O caráter dos seringalistas é demonstrado no início do texto, o qual
explica o porquê o Major Nunes foi o único a escapar com vida da batalha contra os
índios bolivianos.
Major Nunes não entendia nada de guerra e fugiu para Xapuri antes da
batalha acabar, deixando os seringueiros à própria sorte. Mais uma vez, então, se
132
demonstra como não caberia uma casa das setes mulheres na história acriana,
que os líderes seringalistas não tinham os ideais republicanos dos farroupilhas.
Após as vitórias de Plácido, os seringalistas achavam que a guerra estava
ganha, entre eles, o patrão de Minervino, e espalharam a notícia, através de Rodrigo
de Carvalho, desafeto do gaúcho e remanescente da Expedição dos poetas, de que
o comandante da Revolução estava doente e, portanto, era necessário substituí-lo
no comando. se vislumbrava o futuro, ou seja, quem seria o chefe do futuro
governo do Acre.
“A e de todas as batalhas‖, apesar do título, não narra a batalha de Porto
Acre ou Porto Alonso. Em verdade, ainda, trata dos preparativos de Plácido de
Castro para tomar a cidade, após ter dominado todo o Acre. Apesar de todas as
batalhas, o exército de seringueiros estava forte, com mil soldados treinados,
divididos em três batalhões: O Franco Atirador, o Independência e o Acreano. O
ânimo dos bolivianos estava baixo e Plácido, antes de ordenar o ataque, trocou
intensa correspondência com Dom Lino Romero, Delegado boliviano em Porto Acre
(Porto Alonso), na intenção de convencê-lo em não resistir.
O exército boliviano contava apenas com 200 soldados e não dispunha de
reforços de La Paz, devido à distância, além de que as enfermidades assolavam a
tropa. Dom Lino concordava com Plácido e chegou a escrever para o governo
boliviano, carta esta que parte foi reproduzida no texto. Porém, Dom José Manuel
Pando, obrigou Dom Lino a resistir. Enquanto isso, Plácido começou a fazer o cerco
a Porto Acre, tanto por terra, através de um varadouro que mandara abrir, quanto por
água, por meio dos navios de carga, cujos comandantes receberam benefícios na
redução de impostos para concordarem com o uso de seus navios. Por sua vez,
João Minervino sonhava com aquela última batalha que ele achava que seria a
última de todas as batalhas e que também seria a redenção de todas as suas
desgraças.
O capítulo Cagacite aguda volta-se para o episódio do serramento da
corrente sobre o rio Acre, a qual impedia a passagem de navios com mantimentos
para o exército de Plácido, pronto para atacar Porto Acre. Para passar o vapor
Independência seria necessário cortar a grossa corrente que atravessava o rio.
Designado para esta missão, coronel Antunes Alencar, alegou ficar doente, o que
Plácido de Castro, em seus apontamentos, chamou de cagacite aguda e, para evitar
novas cagacites, assumiu o comando da missão.
133
Ao episódio de covardia protagonizado por seu patrão, João Minervino ficou
furioso e em nota de rodapé, o narrador, identificando-se como Repórter, diz que
para não dizer que ele está revigorando a luta de classes, além dos apontamentos
de Plácido de Castro, afirmou que diversos historiadores que relatam o episódio
do corte da corrente. A missão de cortar a corrente parecia impossível, pois os
bolivianos possuíam um canhão, que tomaram dos poetas, rifles de fabricação
americana e eram beneficiados pela cheia do rio Acre.
No entanto, a missão foi cumprida, mas diversos historiadores divergem sobre
a forma. Leandro Tocantins, detalhista e empolgado com o acontecimento, diz que
Plácido dispôs de 25 homens que se revisavam numa chuva de balas e do pequeno
canhão em poder dos bolivianos, até que em 18 de janeiro, o navio irrompeu em
frente a Porto Acre.
A versão mais popular é de que teriam morrido dezenas de seringueiros no
episódio. Em nota de rodapé, o narrador comentarista afirma que Minervino não
participou da façanha, embora muitos se gabem de terem participado. É que
Minervino não gostava de concorrência e sabia muito bem dos perigos em se nadar
nos rios acrianos, como os candirus e puraquês-gigantes. Além do mais, Minervino
não possuía dentes, instrumento que outros seringueiros afirmaram que usaram para
cortar a corrente.
Outro escritor, Craveiro Costa, em A conquista do deserto ocidental, afirma
que a corrente foi cortada a machadadas. Por sua vez, José Potyguara, numa
ficcionalização épica do evento, afirma que o instrumento utilizado foi uma lima,
introduzindo, ainda, um certo capitão Salinas, como comandante da missão.
Portanto, a conclusão expressa no texto é que diversas versões divergentes.
(discutir ficção, jornalismo e história)
Um certo Major Salinas é o capítulo que trata de esclarecer quem é o
personagem referido no relato de José Potyguara, no texto anterior. Salinas era um
chileno de Valparaíso, que lutara em diversas guerras entre Bolívia e Chile. Seu
nome completo era Wenceslau Salinas Viegas, que após passar a quarentena na
Ilha da Consciência, aportou no Acre. Notabilizou-se por usar o artifício de assustar
os bolivianos distribuindo cornetas entre os soldados seringueiros de maneira que
estes faziam um barulho infernal, dando ideia de que se tratava de um exército tal
qual o de Napoleão.
134
Os bolivianos, certa vez, também tentaram ludibriar os brasileiros, ensaiando
uma procissão, com a imagem de nossa senhora. Porém, os brasileiros perceberam
e centraram fogo nos bolivianos, tomando a imagem, que até hoje é reverenciada
como nossa senhora seringueira. Capitão Salinas, depois promovido a major, por
conhecer os costumes dos bolivianos, em especial, o de beber, propôs a Plácido que
o ataque a Porto Acre fosse no dia de Nossa senhora, de madrugada, quando os
inimigos estariam bêbedos. Após a Revolução, Salinas estabeleceu-se no Acre, no
seringal Velho Porvir, sendo assassinado em 1913, a mando do coronel Leonardo
José de Freitas.
Além de Salinas, outro estrangeiro nas terras acrianas que aparece no
episódio da corrente, sendo apontado como um dos autores do corte é o italiano
Ernesto Aosta. O texto conclui que tão o ouro negro poderia explicar o que um
italiano estaria fazendo no Acre, naqueles tempos. Esclarece, no entanto, que os
italianos presentes hoje no Acre não são parentes de Aosta e não vieram e vivem no
Acre por causa do ouro negro, mas por se encantarem pelas acrianas.
“Eu serrei a corrente é o texto que apresenta uma versão totalmente
contrária a heróica relatada por Leandro Tocantins, Craveiro Costa e outros
escritores. O texto enfoca uma entrevista reproduzida por José Wilson Aguiar em A
passagem triunfal do navio Independencia na Guerra do Acre contra o Exército
Boliviano, concedida ao jornalista Chalub Leite pelo ex-seringueiro Frederico dos
Reis Lima, publicada em 1993, no Jornal A Gazeta.
Pelo relato do ex-seringueiro e ex-combatente, ninguém morreu ao serrar a
corrente. Na verdade, os bolivianos cavaram ao redor do tronco grosso de uma
árvore e a esconderam, à noite. O Major Salinas iniciou a procura da corrente,
embrenhando-se na floresta com dois homens, o senhor Reis e Antônio Francisco de
Melo. Ao encontrar a corrente, disse para Plácido que seria impossível serrá-la
durante o dia, então, à noite, com seus ajudantes fez uma trincheira e cavou até
encontrar o objeto. Na noite seguinte, os revolucionários voltaram ao local e
iniciaram o corte da corrente, usando serrote, lima e azeite. Os bolivianos atiravam a
esmo, ouvindo o barulho do serrote, mas ninguém morreu e pela manhã a corrente
cedeu. Os bolivianos ficaram surpresos quando o Independência, antes conhecido
como Afuá, atravessou Porto Acre. Segundo Reis, se o fato não tivesse ocorrido da
maneira que narrou, os bolivianos teriam acabado com o exército de Plácido de
135
Castro. Assim, o texto conclui que pelo menos numa coisa verdade, a corrente foi
de fato cortada.
Tudo que é valioso someé capítulo voltado ainda à corrente, procurando
elucidar seu paradeiro e retratando uma constatação sinistra: tudo que é valioso
some no Acre. Grosso modo, trata-se de um texto que remonta o texto tudo é roubo,
tudo é ladroeira, com a diferença que, agora, se trata da corrupção dos brasileiros e
não dos bolivianos.
Então, na verdade, também uma ironia na forma de eufemismo, se
atenuando o tom crítico promovido no capítulo. Ora, o eufemismo consiste
justamente em dizer uma coisa de forma menos chocante ou grave possível. Seria
uma precaução a represálias o uso do eufemismo?
Sendo ou não, o fato é que a narração inicia-se com o encontro do
personagem Repórter com uma grossa corrente no museu de Porto Acre. O Repórter
pensou que aquela era a corrente do episódio da Revolução e ela estava
enferrujada, jogada sem cuidados, porém, ainda, quase intacta.
Entretanto, Arthur Sena de Souza, o curador do museu, advertiu ao Repórter
que aquela não era a verdadeira corrente, pois a verdadeira havia sumido e que
aquela havia sido encontrada num seringal acriano.
O personagem Repórter investigou e encontrou uma referência dada por
Chalub Leite, citado por José Wilson Aguiar sobre o paradeiro do objeto histórico.
Chalub relata em 1993, no jornal A Gazeta, que o governador Geraldo Mesquita
reconstruiu o obelisco em homenagem aos heróis da revolução e ao procurar a
verdadeira corrente cortada, esta foi encontrada na casa do empresário Luiz
Malheiros Tourinho, em Porto Velho, sendo que o empresário a devolveu a pedido do
governo do Acre. Conclui o narrador que os governadores que se sucederam no
Estado do Acre, todos, derrubaram e reconstruíram o obelisco, querendo demonstrar
que o seu é mais imponente, mais fálico, enquanto a verdadeira corrente ainda não
se sabe o paradeiro.
A questão do falo também está presente em GIA e atua como elemento
carnavalesco, que a carnavalização celebra a própria vida e o falo é elemento de
reprodução. O falo aqui também num viés psicanalítico, ou seja, de ressaltar poder ,
de afirmação de poder. Logo, criticar o monumento fálico [e criticar o poder de quem
o construir e quiçá não aceitar esse poder.
136
Abílio toca a flautaé o capítulo em que se demonstra o respeito mútuo em
que os soldados bolivianos e o exército de Plácido de Castro se trataram na batalha
de Porto Acre, tanto antes da derrota quanto após a capitulação. Inicialmente, se
relata que os bolivianos estavam não em menor número como em condições
precárias, quase insustentáveis. Em 23 de janeiro, os bolivianos ensaiaram uma
falsa paz, enviando mensageiros a Plácido de Castro, pedindo trégua para sepultar
os mortos. Plácido não aceitou e, desconfiando das intenções do adversário, mudou
o acampamento de lugar, sendo que este foi quase que imediatamente
bombardeado pelos bolivianos.
Mesmo em guerra, à noite, relata Leandro Tocantins, citado no texto, que os
exércitos adversários se correspondiam por meio da música. No meio da noite,
alguém, gritava em português do acampamento boliviano: Abílio, faz o favor de tocar
a tua flauta. E Abílio tocava, cordialmente, La Siciliana. Por isso, o narrador diz que
os latinos são um exemplo para Bush, pois cordiais até na mãe de todas as batalhas.
João Minervino, alerta o narrador comentarista, em nota de rodapé, que achou
La Siciliana uma frescura. Ele preferia Valdick Soriano, ou Vanderley Andrade ou,
ainda, Gonzagão ou Gonzaguinha e até mesmo Sérgio Souto. João Minervino,
portanto, se intromete na própria nota de rodapé, conversando com o narrador
comentarista.
Nota do autor: O soldado guerrilheiro João Minervino achou la Siciliana uma
frescura. Preferia Valdick Soriano com ―eu não sou cachorro não‖ ou
Vanderlei Andrade, o ―Traficante do Amor‖ com sua ―Ladra, ô ladra‖ ou pelo
menos, os conterrâneos Luiz Gonzaga, o Gonzagão, com Asa Branca‖ e
Gonzaguinha com ―Minha vida é andar por este país/ pra ver se um dia
descanso feliz...‖ Por que não, o acreano Sérgio Souto com ―Puxa a cadeira
e senta‖...Parece que naqueles anos de antanho puxavam a cadeira de
Sérgio Souto
Ora, essa intromissão nos parece produto da própria evolução ficcional da
trama. Cada vez mais Minervino ganha força dentro de AIC e o próprio narrador
comentarista que no início voltava-se mais para apontar os lugares em que a ficção
tomava corpo de tal forma que deformava a história, passou ele mesmo a ratificar a
ficção.
Noutro giro, observamos que a repulsa de Minervino por uma canção
estrangeira que nada significa para ele retoma a mesma discussão sobre os modelos
137
de desenvolvimento exógenos, que não podem ser aplicados no Acre e na Amazônia
de forma generalizada.
A música popular, que faz mais sentido para o herói amarelo, encontra mais
aceitação para ele. Aliás, somente por meio da ficção é possível que Minervino goste
de Valdick Soriano ou qualquer outro artista que não é do início do século XX como
ele.
O personagem Repórter, segundo o narrador comentarista, também achou
que La Siciliana não tinha nada haver com aquele fim do mundo. Seria como pedir
para Dercy Gonçalvez cantar Ave Maria na Boca do Lixo.
Retornando ao corpo do texto e à batalha, em 24 de janeiro, Moisés
Santivañez a mando de Dom Lino Romero, levantou bandeira branca. Plácido
aceitou a rendição, mas rejeitou a espada de Dom Lino, afirmando que isso
aumentaria o infortúnio dos derrotados.
A parir daí, demonstra-se que Plácido adotou muitas medidas semelhantes a
Galvez. Ocupou o palácio de paxiúba de Galvez, proclamou a República
Independente do Acre, criou pastas, adotou a mesma bandeira do espanhol e tornou
Porto Acre capital do Estado Independente do Acre, dando-lhe o mesmo nome que
Galvez havia lhe dado, qual seja, Cidade do Acre. Na manhã do dia 24 de janeiro, a
tropa de Plácido proclamou-o governador e ao meio-dia os comandantes dos navios
ofereceram-lhe um almoço no vapor Eurico.
Nesse ponto ao que nos parece o narrador tenta aproximar a imagem de
Plácido à de Galvez, de maneira a fazer o resgate da imagem do espanhol ou, pelo
menos, justificá-lo demonstrando que o espírito aventureiro também estava presente
em Plácido de Castro. Inclusive, mais à frente na obra um capítulo demonstrando
como Plácido estava imbuído do espírito aventureiro da época.
No clima de cordialidade, que alerta o narrador, é ressaltado pelos
historiadores engajados, em prol do MERCOSUL e da grande nação
latinoamericana, até João Minervino perdoou o boliviano que lhe havia aplicado a
patola, embora não o tivesse encontrado para tomar bons tragos de cachaça juntos.
Por último, o narrador diz que daí para frente haverá menos batalhas e mais
diplomacia. Novamente, notamos que há uma aproximação feita pelo viés irônico
entre passado e presente por meio das referências ao MERCOSUL, inclusive o texto
de Marcus Vinícius Neves (2011) atesta que em prol dessa suposta boa vizinha do
Brasil com os outros países da América do Sul, alguns documentos tidos como
138
secretos pelo ITAMARATI não podem ter livre acesso aos pesquisadores, tendo em
vista algumas práticas imperialistas do Brasil na anexação do Acre.
Um barão muito populartrata dos fatos que após a vitória de Plácido de
Castro contra os bolivianos desembocaram no tratado de Petrópolis. Em verdade,
explica o texto que o tratado de Petrópolis fora idealizado pelo Barão de Rio Branco,
mas correspondeu a diversos interesses.
O primeiro era o temor de um guerra de grandes proporções, pois o General
Manoel Pando preparava-se com grande contingente de homens para ele mesmo
acertar as contas com Plácido de Castro, que também preparava um exército com
cerca de 400 soldados.
Em segundo lugar, o governo brasileiro também temia que Plácido tivesse a
intenção de formar um Estado Independente, ainda estando viva a memória do que
acontecera em Canudos. Ruy Barbosa foi contra o tratado, afirmando que a Bolívia
receberia coisas demais sem merecer.
Lembra o narrador comentarista, em nota de rodapé, que João Minervino, em
nota de rodapé, lembra o narrador, também foi contra, protestando, inclusive, que o
Barão não colocou um palmo de Chão no tratado para os seringueiros. Novamente,
portanto, Minervino aparece no texto em rodapé, dominando esse pequeno espaço
de texto junto com o narrador comentarista. Esse é uma inovação que nos chama
bastante a atenção e problematiza mais ainda o papel das notas de rodapé, sem
falar da transposição do personagem ficcional, antes desmentido em rodapé, para a
própria nota de rodapé. Acreditamos, em razão disso, que a intromissão de Minervino
nas notas, em determinado momento de AIC, tem uma função de autoreflexão dele
sobre sua própria história (a história do Acre). Isso ocorre quando já temos um
Minervino mais maduro, que passou pela Revolução, foi enganado e iludido
diversas vezes.
Aliás, o narrador comentarista afirma que somente os gênios como Ruy
Barbosa, o Águia de Haya e Minervino, o Carcará de Quixaramobim perceberam na
época o grande erro do tratado.
Nesse aspecto, mais uma quebra de hierarquia, havendo mais uma
carnavalização. Ora, comparar Minervino com Ruy Barbosa é, sem dúvida, uma das
grandes quebras de hierarquias que o carnaval pode oferecer (BAKHTIN, 1987).,
que Ruy Barbosa é um personagem histórico conhecido pelos seus conhecimentos,
139
considerado um verdadeiro gênio, enquanto Minervino é um cearense com pouca ou
nenhuma instrução. É o que podemos chamar de aproximação dos contrários.
Mas aí também há uma ironia que esconde uma crítica. Ora, se Minervino, um
cearense sem instrução foi capaz de julgar o Tratado de Petropólis como um erro,
por qual motivo as autoridades brasileiras não conseguiram visualizar o mesmo erro?
Haveria algo desconhecido do grande público, que inclusive, ainda hoje, o governo
brasileiro esconde, como a possível corrupção do presidente Campos Sales, como
Neves suspeita? AIC também suscita essas suspeitas quanto ao evento.
Também em rodapé, o narrador comentarista (que afirma ser ele mesmo o
personagem Repórter) afirma que o consultor do Repórter para assuntos aleatórios,
Agnaldo Moreno, sentenciou que o tratado foi uma maldição para o Acre. Ainda em
rodapé, o narrador afirma que o tratado de Petrópolis não foi bom para o Brasil nem
para o Acre.
Voltando ao corpo do texto, afirma-se que a Bolívia foi pressionada a assinar o
tratado, pois um grande contingente de soldados brasileiros foi deslocado de Mato
Grosso até a fronteira com a Bolívia. Entre os soldados brasileiros estava Getúlio
Vargas. Assim, assinou-se o Tratado de Petrópolis em 17 de setembro de 1903 e a
Bolívia, dessa forma, perdeu grande quantidade de terras. Com isso, o Barão de Rio
Branco foi aclamado como herói, gênio, que para o narrador, em nota de rodapé, era
um homem esquisito, que comia em seu escritório, entre livros e mapas e que,
estranhamente, embora nunca tenha vindo ao Acre, é o popular quanto Plácido de
Castro.
Em verdade, esse popular também conserva um tom irônico que um
homem tão desconhecido no Acre na época e pouco afeto às massas não havia
como ser popular. Sem falar que para o narrador o tratado de Petropólis foi uma
tragédia para o Acre. Logo, aí há, também, uma crítica ao chamado ―puxa-saquismo‖
dos dirigentes acrianos mediante os grandes políticos nacionais. A exemplo, se cita
em AIC, noutro momento, homenagens a figuras como Afonso Pena, cujo nome foi
dado ao Segundo Distrito da Cidade de Rio Branco, sem que o narrador encontre
algo que justifique a homenagem.
A proposito, era muito comum no início do século XX, nos jornais acrianos as
disputas políticas serem apenas locais, pois no nível nacional, via de regra, os
grupos locais se colocavam do lado do Partido do Presidente da República e
elogiavam os políticos de expressão nacional (SILVA, 2002).
140
O capítulo ―Sob fogo amigo‖ centra-se nos conflitos entre o exército de
Plácido de Castro e o enviado pelo governo brasileiro à região, general Antônio
Olímpio da Silveira. Apesar de Plácido governar o Acre Meridional ou Alto Acre e
Olímpio o Acre setentrional ou Baixo Acre, os conflitos foram inevitáveis.
General Olímpio era um linha dura, que lutara na Guerra do Paraguai e
suspeita-se que tenha vindo ao Acre com terceiras intenções. Destratou seringueiros,
apossou-se de coisas do exército acriano, deu contraordens às ordens de Plácido de
Castro e tratou o próprio Plácido de Castro como um civil à paisana. Chegou a
prender um dos oficiais de Plácido de Castro, Gentil Norberto e mandou 80 homens
prenderem o próprio Plácido, coisa que não ocorreu porque o gaúcho estava
acompanhado de trezentos homens de seu exército.
Segundo o texto, os historiadores oficiais tratam o fato apenas em nota de
rodapé, sem dar importância ao momento que poderia ter originado uma guerra civil.
João Minervino disse a Plácido que peitasse o general e o botasse pra correr do Acre
com seus oficiais almofadinhas. Mas Plácido dissolveu seu exército, dando fim ao
Estado Autônomo do Acre, por meio de uma ordem-do-dia, que fez circular, e
anunciando que passaria à vida privada. Trechos do documento são reproduzidos
no texto, revelando que o exército brasileiro alcançou pela traição o que o boliviano
não conseguiu pela armas. No mesmo documento, Plácido promoveu oficiais, excluiu
outros, chamando-os de traidores e exortou os soldados a continuarem suas vidas
como cidadãos zelosos.
O pinochetaço do general‖ centra-se ainda nos conflitos entre Plácido de
Castro e o general Olímpio, o qual, em resposta à ordem do dia de Plácido divulgou
uma proclamação dando por encerrada a Revolução Acriana. O narrador afirma que,
pelo conteúdo, a proclamação referida assemelhava-se a um ato institucional de
outro golpe e reproduziu vários trechos no texto para provar sua afirmativa.
Por sua vez, Plácido respondeu de forma incisiva, denunciando ações
truculentas do exército brasileiro, comandando por Olímpio, como os saques aos
armazéns de reabastecimento da revolução sob sua responsabilidade e amesmo
de coisas de seu uso pessoal, bem como da usurpação da flotilha revolucionária, de
uma metralhadora e de troféus de guerra, que representavam a bravura dos heróis
da Revolução, mas que para o exército brasileiro representavam apenas o dinheiro
de suas vendas.
141
Plácido dizia ainda que os seus soldados nunca trataram um inimigo da
mesma forma como o exército brasileiro os estava tratando. Porém, segundo o
narrador relatando essas desavenças, historiadores como Leandro Tocantins
afirmam que eram coisas miúdas. O narrador protesta: coisa miúda é uma pinoia!
Poderia ter havido uma guerra civil.
Plácido, em maio de 1903 viajou para o Rio de Janeiro para prestar contas da
Revolução e reclamar seus bens espoliados, sendo que por onde passou foi
aclamado como herói. Em nota de rodapé, o narrador comentarista explica que
Plácido convidou João Minervino para acompanhá-lo ao Rio, talvez, na tentativa de
compensá-lo por não o ter promovido. Mas Minervino recusou, não se sabe se por
birra ou por receio das balas perdidas no Rio de Janeiro, afinal, era mais fácil
combater bolivianos na selva do que Fernandinho Beira Mar ou Elias Maluco nas
ruelas das favelas cariocas.
Sumindo no boqueirão enfoca a transformação do Acre em território
federal, atribuindo a esse fato o ostracismo e o esquecimento que o Estado sofrera
após a Revolução Acriana. Porém, o texto inicia-se com o retorno de Plácido de
Castro ao Acre em agosto de 1903, para governar o Acre Meridional e a substituição
do general Olímpio que retornou ao Rio de Janeiro e foi preso ao se negar a apertar
a mão do Ministro da Guerra.
A partir daí, segundo o narrador, Olímpio caiu no esquecimento, enquanto a
conquista do Acre foi amplamente comemorada no país, de tal forma que o prefeito
do Rio de Janeiro, em homenagem a Revolução, batizou a rua entre a Lagoa da
Prainha e a Rua dos Ourives, de Rua do Acre.
Com efeito, o governo Federal, no mesmo ano, por meio da Decreto n 1.181,
criou o território do Acre e, em abril de 1904, dividiu o território em Departamento do
Alto Acre, com sede em Rio Branco; Departamento do Alto Purus, com sede em
Sena Madureira e Departamento do Alto Jurúa, com sede em Cruzeiro do Sul. Após
isso, com exceções de algumas batalhas travadas contra os peruanos e da revolta
dos Autonomistas do Juruá, que queriam a elevação do território a Estado, a história
do Acre, segundo o narrador, começa a perder seu encanto, sumindo no boqueirão
da mediocridade, com governantes nomeados pelo governo federal.
O texto cita Epaminondas Jacome como inepto em tratar assuntos do antigo
território, a ponto de ser chamado de macaco de loja, havendo notícias nesse
142
sentido publicadas no Jornal do Commercio, de julho de 1921, de autoria do
Senhor Edgard Neves.
Outro governador do território citado é Manoel Martiniano Prado, que Chalub
Leite afirmou ter assustado a população com suas fobias por corujas e poses. Mais
um citado é Hugo Carneiro, que usava sua influência para que a polícia reprimisse as
revoltas dos seringueiros contra os seringalistas no Vale do Juruá. Ainda se cita José
da Cunha Vasconcelos, que pelo que diz o escritor Humberto Campos, era valentão
mas pelo menos era honesto.
Humberto Campos, segundo o narrador, ainda afirmou que viver no Acre era
viver em hibernação, pois da região se tinha notícias de tempos em tempos.
antes de 1904, ir para o Acre era sinônimo de execração, pois era o local aonde se
enviava os degredados.
A respeito disso, o trabalho de Francisco Bento (2010) intitulado Acre, a
pátria dos proscritos: prisões e desterros para as regiões do Acre em, 1904 e 1910
confirma a existência de degredados enviados para o Acre tanto no início do século
XX. Segundo Bento, mais de 2.000 pessoas foram enviadas para o Acre, por serem
indesejados sociais, especialmente, em decorrência da simpatia ou participação em
revoltas populares como a da Vacina ou da Chibata.
Inclusive, Oswaldo Cruz conseguiu que Rodrigues Alves assinasse um
decreto em que previa o degredo para o Acre a quem se recusasse a tomar a vacina
contra a febra amarela, varíola, etc. Até hoje, diz o narrador, talvez por isso, o
Dicionário Aurélio registra a expressão ir para o Acre como sinônimo de degredo,
morte. Mesmo na ditadura, na década de 60, a pena ainda era aplicada, como no
caso do general que esqueceu de censurar uma reportagem que saiu na veja.
Conclui o texto: de lascar!
O capítulo uma história suja inaugura a parte da obra que se centra na
morte de Plácido de Castro. O texto inicia-se com uma narrativa bastante lírica em
que o Repórter visita o local em que morreu o herói comandante da Revolução, ou
seja, o igarapé Distração, no segundo Distrito de Rio Branco, antigo seringal Volta da
Empresa.
O Repórter sente todas as sensações do momento em que Plácido foi abatido,
a natureza em volta, a bala perfurando o baço. A partir do grito lacinante do urubu rei,
após o abatimento do chefe da Revolução acriana, inicia-se uma narração mais
objetiva dos acontecimentos.
143
Em 8 de agosto de 1908, Plácido era um simples seringalista, proprietário
do seringal Capatará e sabendo do comppara matá-lo, seguindo os conselhos de
seus amigos e de seu irmão Genesco, pernoitou na colocação de seu amigo Dias
Pereira a fim de evitar passar à noite no igarapé Distração. Inclusive, no dia anterior,
uma mulher o advertira a não seguir viagem, dando-lhe os nomes dos mentores e
dos executores do complô. Mas o herói gaúcho, no dia seguinte, 9, acompanhado de
seu irmão, dos advogados Barros Campelo e José Alves Maia e do pajem Francisco
de Melo, dirigiu-se para o seringal Capatará por uma trilha do igarapé Distração
Aliás, o fato do nome do garapé em que Plácido foi assassinado ser Distração
é um sacada formidável, sendo uma ironia incrível pois aponta também para que
Plácido estava distraído. Francisco Dandão, no prólogo do livro fala que o próprio
narrador perdeu-se no igarapé Distração.
O texto, a partir de um determinado ponto começa a divagar sobre os motivos
e os mandantes do assassinato. Assevera-se que há uma confusão quanto aos
motivos do crime e tudo se torna, segundo o narrador, uma história suja. Os nomes
dos mentores do crime são conhecidos: Coronel Gabino Besouro, prefeito de Rio
Branco, e o Coronel Alexandrino, que fora um dos homens de confiança de Plácido
na Revolução. As circunstâncias também são conhecidas, inclusive, coronel
Alexandrino espalhara suas intenções antes do assassinato e dois homens
haviam sido executados, confundidos com Plácido, além de que, Genesco, irmão do
gaúcho, havido sido antes preso e espancado e um seringal de amigos de Plácido
havia sido invadido.
Contudo, os motivos do crime, apontados pela polícia, resumem-se a um
disputa pela hegemonia do poder local entre coronéis da borracha, o que, segundo o
narrador, pode ser um dos motivos, mas o o principal. Neste ponto, o narrador
convida o leitor ao local da emboscada para ter uma visão mais abrangente dessa
história suja.
O capítulo “tudo acaba em emboscada‖ associa a forma como Plácido
morreu à forma como morreram outras figuras da história acriana, como Chico
Mendes, Major Salinas e Wilson Pinheiro, concluindo que a emboscada é uma
instituição maldita no Acre que atinge seus melhores homens.
Com Plácido, todas as evidências estavam claras, mas o herói, por subestimar
os inimigos ou guiado por uma força interior, caminhou para a morte.
144
A partir daí, é reproduzida o relato da morte por Genesco de Castro, que a
tudo assistiu, dando nomes e protestando contra o presidente Afonso Pena que nada
fez para que os culpados fossem presos, pois o crime prescreveu e os culpados não
foram punidos, o que levanta uma suspeita que será confirmada no capítulo
seguinte, qual seja, o interesse do governo federal em manter Plácido longe da
política.
Em canudos fizeram pior‖ é o capítulo que sustenta a tese de que o
assassinato de Plácido de Castro não se deu por simples disputa por poder local,
mas que havia interesses do governo federal, de tal forma, que nem as autoridades
locais nem as federais se esforçaram em apurar o assassinato, consoante as
denúncias de Genesco de Castro.
O texto confirma essa hipótese pelo fato de Plácido, em seu leito de morte,
transportado para o seringal Benfica, disse que em Canudos haviam feito pior. Isso
associado ao fato de que não houve esforço das autoridades para elucidar o caso e
pelos precedentes do General Olímpio em tentar desmoralizar a Revolução Acriana,
confirmaria que o gaúcho se tornou uma figura perigosa aos olhos do governo
federal e que o prefeito de Rio Branco, Gabino Besouro tinha orientações para
manter Plácido à distância da política.
Além disso, Gabino Besouro até hoje é festejado como um dos fundadores de
Rio Branco e coronel Alexandrino é nome de rua. Quanto a Plácido, sua família não
tinha boas relações com o Estado, vindo recolher seus restos mortais na década de
70. Porém, em 2002, o governo do Estado realizou uma reaproximação com os seus
descendentes e, no Igarapé Distração e no seringal Benfica, construiu um memorial
e um pequeno cemitério em homenagem ao herói.
Nessa altura do texto, introduz-se uma descrição de gaviões sobrevoando o
local da emboscada, às nove horas da manhã, aparentemente dos dias atuais. Dois
gaviões reais, Harpia harpya, pousam em um mourão de cerca de protege o
cemitério. Segundo o narrador, na lenda kaxinauá gaviões podem virar gente. Seriam
Gabino Besouro e seu comparsa Alexandrino a fim de confirmar que o serviço fora
bem feito?Pergunta o narrador e assim, termina o texto.
Plácido, herói ou aventureiro? é o capítulo que problematiza a figura de
Plácido de Castro, gaúcho nascido em 9 de dezembro de 1873, em São Gabriel,
participante da Revolução Federalista, que subiu o mapa passando do Rio de
Janeiro a Manaus e de Manaus ao Acre. Para o narrador, iversas interpretações
145
sobre Plácido, defendidas por diversos autores. Gerson Albuquerque o entende
como um homem pago a soldo, que veio ao Acre não por altruísmo, mas por
dinheiro. Inclusive, Plácido veio pobre e ao final da Revolução estava rico, dono de
seringais. Carlos Alberto de Souza, por sua vez, vocifera contra os historiadores
oficiais, asseverando que a revolução não teve apenas a figura de Plácido de Casto
ou os generais do exército boliviano, mas os soldados é que protagonizavam as
batalhas.
Aliás, alerta o narrador comentarista em nota de rodapé, que é proibido
manchar a imagem de Plácido perto de algumas autoridades acrianas, pois alerta o
narrador que um certo jornalista do governo (o qual não conseguimos identificar)
teve o emprego ameaçado a pedido de um ex-governador por sugerir que Plácido
fosse homossexual, que tinha uma noiva que nunca mandou buscar. Retornando
ao corpo do texto, ainda como visão de Plácido de Castro, Rodrigo de Carvalho,
vivendo na época de gaúcho, o acusou de desonesto, feroz e sanguinário. Sugeriu
que herói chegou ao Acre sem nada, puxando a cachorrinha, o que confirma
Napoleão Mendes, embora com intenção de louvar o gaúcho.
Plácido veio tão pobre ao Acre que até o hotel em que se hospedara em
Manaus estava atrasado. Rodrigo de Carvalho, ainda, o acusou de contrabandear
produtos pelo rio Abuña, com um boliviano, Nicolas Suarez, que antes perseguia e
se tornou seu aliado. Acusou, ainda, o comandante da Revolução de ter
descaminhado documentos, o que facilitou ao próprio Plácido a compra de terras e
sentenças favoráveis de extorsões de seringais.
De qualquer forma, mesmo que ele tivesse sido assim, o texto exorta que,
como qualquer ser humano, o herói tinha muitas faces, citando Carlos Alberto Alves
de Souza. Plácido era um homem que sentia saudades da família e as acusações de
Rodrigo de Carvalho devem ser sopesadas pelo fato de que ambos eram desafetos
e o gaúcho já o havia qualificado de frívolo, medíocre, que nada entendia de guerra.
A favor do chefe militar da Revolução também o depoimento de Euclides
da Cunha, para quem, apesar dos defeitos, Plácido tem valor inestimável para a
conquista do Acre. O próprio Márcio Souza não nivela Plácido a outros heróis do
ciclo da borracha. O amazonense o considera uma figura que reúne o caudilhismo
com uma oratória impressionante e gestos de cavalheiro e afirma que a ação do
caudilho provocou uma negociação com a Bolívia, motivada não só pela presença de
Paranhos Júnior, mas também pela visão da política continental que Plácido detinha.
146
Além disso, o gaúcho era um homem com leitura e que propôs um modelo
novo de organização do seringal, em que se sobressaía uma agricultura que não era
apenas de sustentação, bem como a mecanização e o abandono das formas
tradicionais de extrativismo. Márcio Souza chega a arriscar que o real motivo da
morte do libertador do Acre foi ter mexido na sacrossanta estrutura do extrativismo.
5.3 Visão parcial
Como já dissemos no início deste capítulo, a parte de AIC que trabalha
especificamente com a Revolução Acriana (mito fundador do Acre), em verdade, não
está preocupada com o passado, mas com o presente. Por isso, volta ao passado
para compreender o presente e dizer que as coisas não tal qual divulgadas pela
história oficial.
Assim, Plácido tem seus atos considerados menos nobres revelados, embora
suas qualidades de líder não sejam questionadas. De um modo geral, então,
podemos dizer que a narrativa oscila entre o plano inventado e o plano reconstituído,
e esta oscilação constitui poderoso elemento de verossimilhança utilizado por Sílvio
Martinello em A Ilha da Consciência. Em comparação com Márcio Souza, esta
técnica distancia da de Márcio Souza, pois este coloca os personagens históricos
como principais, como em Galvez, Imperador do Acre, enquanto em Martinello, não
se pode dizer que Plácido de Castro seja o personagem principal. Esse papel, como
dissemos anteriormente é dividido entre o personagem João Minervino e o
personagem Repórter.
147
CAPÍTULO 6- SÍNTESES E COMENTÁRIOS SOBRE A TERCEIRA PARTE DA
OBRA
6.1 Do Acre Pós- Revolução ao Acre contemporâneo
Essa terceira parte em que dividimos a obra centra-se nos eventos pós-
revolução e no Acre contemporâneo. Assim, gradativamente, o texto vai se centrando
mais na atualidade, que reconstrói o passado. Tudo é feito de uma maneira que
evoca uma nostalgia dos tempos revolucionários, das esperanças perdidas. É nessa
parte que sabemos o final de João Minervino e qual a perspectiva da obra para seus
descendentes.
6.2 Síntese dos capítulos: sínteses analisadas e comentadas dos capítulos
Essa parte da obra é inaugurada pelo capítulo Rolex e Chanel ‖. Se mesmo
Plácido de Castro desenvolveu relações comerciais com os bolivianos, como
expresso nos capítulos anteriores, o capítulo Rolex e Chaneltrata dessas relações
na atualidade, demonstrando que hoje o Brasil e a Bolívia são países parceiros.
Em primeiro lugar, Acre e Bolívia possuem festas comemorativas no mesmo
dia, 6 de agosto, de tal forma que um escritor surrealista indo a Brasiléia nesta data
se deliciaria com a festa do lado brasileiro concomitante com a festa na Cobija,
Bolívia, onde se comemora a independência do país com muito civismo, apesar de
não haver coturno para todos os soldados, alfineta o narrador.
Lá, após as solenidades oficiais, festeja-se o chamado carnavalito. De praxe,
as autoridades do lado brasileiro participam das festividades bolivianas e vice-versa.
Apesar dos discursos patrióticos de cada lado, nem brasileiros nem bolivianos
querem se engalfinhar.
Em Cobija, estabeleceu-se uma troca comercial interessante para os dois
lados. O Acre fornece alimentos e a Cobija produtos importados, desde uísque a
computadores, de tal forma que ministros iriam poder presentear seus colegas com
um logam 12 anos, ou um rolex e a primeira dama poderia comprar um Chanel.
148
Cobija é o contraste do velho e do novo, onde se carros importados ao mesmo
tempo em que existem muros com ―dizeres carajos neoliberales”, “fuera gringo‖ e
fuera FMI‖. no país o movimento dos cocaleros ligado ao socialismo, enquanto
grupos de Santa Cruz de La Sierra defendem o separatismo e a inclusão da Bolívia
na globalização e na modernização, satanizando a possibilidade de mestiços
chegarem ao poder.
Os negócios entre Brasil, Bolívia e Peru tendem a aumentar nos próximos
anos devido a carretera do pacífico, mas a estrada poderá trazer também problemas.
Como um dos problemas da carretera do pacífico, apresenta-se o tráfico de drogas e
o aumento da prostituição infanto-juvenil.
Os bolivianos, embora, tenham perdido guerras por territórios, são ciosos por
eles, levantando bandeiras nos limites de seu país e reverenciando, invariavelmente
seus heróis nas cidades, onde há numerosas estátuas de seus bustos.
O Acre por um cavalo é o capítulo em que reaparece o herói João
Minervino, cem anos após a Revolução Acriana. A narrativa inicia-se com uma
localização temporal, 6 de agosto, ocasião em que se comemora os cem anos da
Revolução Acriana.
Na praça da zona franca de Cobija, dois homens discutem ao da estátua
do general Manuel Pando. Enquanto turistas almoçam no restaurante La esquina
de abuela , as autoridades bolivianas correm as escadas do comitê cívico de Pando,
preocupadas com a confusão.
estava João Minervino, metido numa farda azul, tentando derrubar a
estátua do general Pando, sob os protestos do médico, idoso, Herman Messute
Ribera, todo vestido de branco.
A respeito da troca do Acre por um cavalo, o historiador Marcus Vinícius
Neves (2011) explica que não fora o Acre trocado por uma cavalo mas sim um
pedaço do território do atual Estado do Amazonas. Assim, o próprio título, do
capítulo, para ele é equivocado. No entanto, como dissemos inúmeras vezes, a
ficção não se submete ao crivo da verdade histórica.
Retornando ao texto, no ponto em que Minervino se encontra com Ribera, o
narrador conversa com o leitor indicando algumas precauções para se relacionar
com os bolivianos, como evitar morrer na Bolívia, pois o cadáver ficará insepulto; não
andar de faca, pois os bolivianos por algum motivo misterioso têm imenso medo de
faca; não concorrer com boliviano na Bolívia no tráfico de drogas, pois o brasileiro vai
149
preso e o boliviano não; não humilhar os bolivianos no futebol; sair imediatamente da
Bolívia caso ocorra qualquer golpe, pois poderá ficar retido no país e; por último,
nunca elogiar os chilenos.
Todos esses chistes são típicos da cultura acriana e se estabelecem como
diferenciais de identidade. A identidade, em AIC se estabelece principalmente como
diferença e essa diferença se dá principalmente em relação aos bolivianos (MORAIS,
2008).
João Minervino, ao tentar derrubar a estátua do general apenas copiava um
gesto que vira na televisão da derrubada de um ditador. Com efeito, para os
bolivianos comerciantes, ávidos de vender quinquilharias, o ato poderia passar
apenas por uma tonteria, mas ocorreu que Minervino encontrou outro cabeça quente,
o médico e historiador Ribera. Os dois, então, travaram uma discussão colérica,
passando a limpo uma série de questões deixadas de lado pelos historiadores
oficiais, mas que valem a pena serem reveladas, coisa que ocorrerá no capítulo
seguinte da obra, em que a versão boliviana da Revolução Acriana seconfrontada
com as versões acrianas.
O capítulo Cabeças quentestrata de um diálogo fictício e nervoso travado
entre João Minervino e Herman Messute Ribera. O texto inicia-se com a fala das
personagens, sem nenhum tipo de introdução. O primeiro ponto da discussão é se o
evento conhecido como Revolução Acriana foi de fato uma revolução ou uma guerra.
João Minervino afirma ter sido uma revolução, enquanto Herman Messute Ribera
afirma ter sido uma guerra, uma vez que foi um conflito de um povo contra outro e,
ainda, assevera que o Acre foi usurpado da Bolívia.
Minervino retruca dizendo que o Acre não era boliviano, pois os brasileiros
ocupavam a região antes dos bolivianos. O médico boliviano concorda que os
brasileiros habitavam a região e que, por isso, ao ver as imensas riquezas, o
coronel brasileiro Thaumaturgo de Azevedo, em 1879, recomendou ao governo
brasileiro a posse da região. Tanto é verdade que os brasileiros ocupavam a
região ilegalmente, que o Brasil, segundo Herman, teria que pagar, na época, à
Bolívia cerca de 12 milhões de dólares pela exploração indevida da borracha. Essa
dívida mais o potencial gomífero fez com que Thaumaturgo recomendasse a
usurpação das terras acrianas.
A isso, Minervino responde que Thaumaturgo fez muito bem, pois a Bolívia
nunca se interessou por aquela região, considerando-a como tieras no descubiertas.
150
Herman revida, dizendo que a Bolívia possuía, na época, um plano de exploração
agrícola do sul para o norte e, como o Acre ficava ao norte, poucos bolivianos
ocupavam a região. Acrescenta Ribera que a região, por meio de tratados, pertencia
a Bolívia, portanto, nunca foi território litigioso, como o Barão de Rio Branco, depois
veio a considerar, enviando soldados para a fronteira, forçando a Bolívia a aceitar o
tratado de Petrópolis.
João Minervino, em visão oposta, afirma que a região era litigiosa, enquanto
Ribera assevera possuir, inclusive, documentos que atestam que um ditador
boliviano chamado Mariano Melgarejo, analfabeto, trocou o Acre por cerca de 500 mil
quilômetros quadrados entre o paralelo 7º e o 10º da latitude sul, em troca de um
cavalo de raça e quatro medalhas oferecidas pelo embaixador brasileiro Regino
Correia.
A isso, Minervino retruca dizendo que os ditadores bolivianos, além de não
prestarem, o analfabetos, coisa que Ribera responde dizendo que os ditadores
brasileiros são iguais.
Nesse ponto, João Minervino passou a rir descontroladamente. O próprio
descontrole do riso de Minervino é um elemento de carnavalização, pois realizado
em um momento sério. O Repórter continuou a entrevista com Ribera, perguntando
se a troca não contrariou o Tratado de Ayacucho, ao que Ribera afirmou que sim,
acrescentando que o mais incrível é que o Tratado fora feito pelo próprio ditador
Mariano Melgarejo. Prosseguindo, Ribera afirma que havia interesses financeiros
internacionais pela região, que na época um quilo da borracha valia 4 dólares.
Sabendo da riqueza do Acre, o governador do Amazonas, Ramalho Junior, enviou ao
local Rodrigo de Carvalho, a fim de fomentar uma revolta entre os brasileiros do Acre
contra o governo boliviano.
Nesse momento, João Minervino interrompe, dizendo ter conhecido Rodrigo
de Carvalho e confirma que Rodrigo era um agitador, mas não era flor que se
cheirasse. Continuando, o Repórter pergunta sobre como a Bolívia reagiu à cobiça
internacional e Ribera responde que seu país ficou indignado, voltando a afirmar que
o Acre foi roubado.
João Minervino se intromete de novo, dizendo jocosamente que os bolivianos
deram mole. Para o médico boliviano, tanto é verdade o roubo frente à opinião
pública internacional que o Brasil concordou em indenizar a Bolívia tão-só por isso.
Inclusive, assevera que o Brasil nunca pagou a quantia acordada, comparando a
151
ação dos brasileiros com a de um assaltante que invade sua casa e coloca um
revólver na sua cabeça para roubá-lo. João Minervino, novamente, interrompe: ―não
pagamos nem vamos pagar!‖ O Repórter, então, indaga, por que o governo boliviano
não cobra agora mesmo e Ribera responde que o Brasil é muito maior que Bolívia,
mais populoso e com muitos aliados.
A Bolívia seria como um menino de 10 anos querendo brigar com um homem
de 25 anos, com muitos irmãos. Nesse instante, o Repórter muda de assunto e
indaga sobre a visão que os bolivianos têm de Plácido de Castro. Minervino fala para
que o boliviano Ribera veja lá o que vai falar do herói.
O médico boliviano, então, descreve Plácido como um aventureiro, pago a 60
mil dólares, para fazer a guerra do Acre. É herói apenas no Acre, onde a história não
é bem contada. Acrescenta o Repórter que Plácido é mais que um herói, um mártir.
Herman Ribera, respondendo ao Repórter, continua dizendo que é um mártir porque
foi morto pelos próprios interessados na revolução e teria se tornado um homem
perigoso para os interesses internacionais.
O fato é que a Bolívia, conclui Herman, não estava preparada para a Guerra,
por ser um país pequeno. Minervino acrescenta, pequeno e frouxo e o Repórter se
desculpa por mais uma das interrupções de Minervino. Herman continua falando que
a Bolívia foi pressionada pelo Barão de Rio Branco, que enviou 25 mil soldados para
a fronteira, mas diz que a ameaça brasileira correspondia a interesses internacionais.
Completa que a Bolívia chegou a perder 1.500 soldados no conflito e João
Minervino, sempre bravateiro, interrompe novamente dizendo que só ele matou mais
de 100 bolivianos.
Assim, Herman Ribera conclui que a Bolívia foi assaltada e sequer os 2
milhões de libras esterlinas foram pagos, bem como a estrada madeira-mamoré em
nada serviu de compensação.
Em nota de rodapé, o narrador comentarista ressalta que Eduardo Galeano
em As veias abertas da América concorda que o Brasil agiu de forma imperialista
no caso do Acre, o que o narrador não concorda, dizendo que o truste internacional
Bolivian Syndicate é que havia intentado antes um ato imperialista contra o Acre.
Ainda em rodapé, o narrador comentarista afirma que, desta vez, não foi
Minervino quem delirou, mas o próprio narrador, pois a entrevista de Ribera foi
concedida ao Repórter Josafá Batista, do Jornal Página 20, após o médico e
historiador boliviano proferir uma palestra na Universidade Federal do Acre, de forma
152
tão agressiva que um senador do Acre protestou junto à embaixada boliviana no
Brasil.
O delírio do próprio narrador comentarista é, nesse caso, uma novidade que
não encontramos sequer em GIA. Mesmo o narrador comentarista se ver
contaminado pela áurea delirante que a floresta permite. Teria ele também tomado
Ayahuasca? O delírio do narrador comentarista quebra o papel que ele vinha
desenvolvendo ao longo da obra, ou seja, de apontar quando a ficção distorce o
evento histórico ocorrido.
Dessa forma, é feita uma inversão de papéis, típica da carnavalização
(BAKHTIN, 1987). Voltando à entrevista, a essa altura, o Repórter indaga se nunca
alguma autoridade boliviana resolveu cobrar a dívida e o médico boliviano responde
que não, pois o desejo é uma coisa, a prática outra. Minervino retruca que se vierem
cobrar vão apanhar de novo e o Repórter interrompe a entrevista, temendo os rumos
que poderia tomar. Portanto, o capítulo é fortemente ficcionalizado, envolvendo essa
questão essencial que é se a Revolução Acriana foi de fato revolução ou uma
Guerra.
Cem anos de escravidão‖ é o capítulo que inaugura o tratamento do destino
de Minervino após a Revolução. O texto inicia-se com uma explicação pela sua
existência: o pedido de 37 leitores do papelucho para um desfecho para o herói João
Minervino. Ademais, a história de Minervino é a história de todos os seringueiros
acrianos que lutaram com Plácido de Castro. Após a batalha de conquista de Porto
Acre, Minervino ainda acompanhou Plácido em diversas incursões pela Bolívia, no
Chipamano, Tauamano, Caramano, Abunã, Rapirã Orton e Ina, rios da região, onde
a bancada da pescaria dos deputados acrianos costuma pescar.
Trata-se de mais uma ironia a questão da bancada dos deputados. A pescaria,
esse evento lúdico assume um papel de unir deputados com ideologias distintas ao
mesmo tempo que acaba por propor uma crítica, qual seja, de que em momentos na
assembléia em que é necessário união para decidir assuntos fundamentais para o
estado não esse tipo de interação. Seria essa referência uma atualização do
episódio do prefeito mais pescador que administrador? Alguma coisa mudou na
política dos trópicos acrianos?
Seria também esse um dos motivos da maldição euclidiana ter-se agarrado a
Minervino?O próprio título Cem anos de Escravidão, como dito, nos remete ao
livro Cem anos de solidão. que se no livro de Garcia Marquez, o isolamento é o
153
responsável pela solidão, em AIC, o isolamento é responsável também pela
impossibilidade do seringueiro fugir do sistema dos seringais.
Minervino muito queria se alistar no exército de um outro Che, que não fazia
conchavos com patrões-seringalistas. não se alistou porque este comandante
viria à Bolívia quase um século depois.
Com efeito, em nota de rodapé, o narrador comentarista afiança que Che
Guevara fez incursões no Acre, inclusive existe quem diz -lo ajudado na
alimentação, mas o guerrilheiro preferiu ficar na Bolívia, pois havia muitos agentes
do SNI no Estado. Sem poder lutar contra os bolivianos, Minervino cogitou entrar
para o bando ―Buraco na parede‖, dos últimos pistoleiros do oeste americano, Butch
Cassidy e Sundance Kid. Pensou em se tornar um Hobin Hood da Amazônia, mas
Paul Newman e Robert Redford haviam roubado todos os bancos da Bolívia.
Ademais, não gostaria de dividir a gostosa Katharine Ross e, diante do charme dos
três Redford, só lhe sobraria o papel de coco de cavalo.
―Arre égua! Fuck you!‖.Ora, a transposição de Hobin Hood para a Amazônia
parece-nos, novamente, um questionamento sobre a impropriedade de transposição
de modelos europeizados para a Amazônia, sejam culturais ou econômicos.
Ademais, parece-nos também uma demonstração de como a região se ver
invadida pelo estrangeiro. Afinal, uma impropriedade entre o arre égua e o fuck
you, ambos espécies de palavrões, mas de culturas distintas e localizadas
espacialmente em lugares igualmente distintos.
Voltando ao Acre, Minervino viu sua carreira de soldado acabar quando
Plácido dissolveu seu exército para tornar-se um fazendeiro sulista. Inconformado,
ainda tentou organizar um levante de seringueiros para botar para correr o General
Olimpio e proclamar de vez o Estado Independente do Acre.
Chegou a tentar matar três vezes o general, contudo, uma nuvem branca
provocada por uma ―dordolho‖, o impediu. Pensara que matando o general poderia
ser promovido a algum posto por Plácido de Castro. Plácido não aceitou sua oferta e
nesse dia, Minervino e seus companheiros deram-se conta da empulhação de que
foram vítimas novamente.
Esse sentimento aumentou quando na dissolução do exército, Plácido
promoveu apenas os patrões- seringalistas e alguns oficiais, não promovendo
nenhum seringueiro, seja o senhor Reis que cortou a corrente, seja, Abílio, o tocador
de flauta, seja Minervino, que executou o Doutor, perdeu parte da orelha numa
154
batalha, que era o terror dos bolivianos, que tentou três vezes matar o general
Olímpio.
A partir daí, a opinião de Minervino e dos demais seringueiros sobre Plácido
começou a mudar. O herói amarelo ainda tentou colher explicações do gaúcho,
chegando a ensaiar um motim. Porém, os patrões-seringalistas haviam recolhido
os rifles e armas de guerra. cem anos depois um governante acriano faria uma
senhora festança para comemorar os acrianos do culo, com o oferecimento de
uma espada de Plácido de Castro de forma simbólica. Mas era tarde, até os
seringalistas não mais existiam. O governo do PT foi quem ofereceu a espada de
modo simbólico, mas o narrador, irônica e implicitamente, realiza um questionamento
sobre os resultados práticos desse ato. Ora de que adiante oferecer a espada sem
que outras ações sejam feitas, tais como a promoção do desenvolvimento, etc?
Então, os patrões tentaram convencer Minervino a voltar para a colocação,
prometendo perdão de parte das dívidas, bom tratamento, permissão para trazer
mulher e plantar roçado. Minervino não acreditou: ―Aqui ó! Conheço essas
jararacas!‖ Estrebuchou entre um gole e outro de cachaça no boteco do Raimundo
da Raimunda, onde os seringueiros se reuniam no final da tarde. Depois, vieram as
primeiras autoridades do território federal do Acre, anunciando que a partir daquele
momento em diante os seringueiros eram nomeados sentinelas da floresta e em
reconhecimento a tudo que fizeram, seriam erguidos monumentos, obeliscos
pontiagudos nos logradouros públicos.
Foram dias de bebedeira, mas João Minervino já havia aprendido que quando
autoridades fazem discursos extremados sobre civismo e patriotismo, é preciso
tomar cuidado com a carteira. A questão da bebedeira é dos elementos mais comuns
em GIA e o beber e o comer exageradamente são elementos carnavalescos por
excelência (BAKHTIN, 1981)
No boteco do Raimundo da Raimunda os sonhos dos seringueiros foram
dilacerados, mas como indicavam as pesquisas eleitorais, a esperança ainda era
maior que o medo (atualização- slogan da campanha de Jorge Viana- ironia).
Interessante é que esse era justamente o slogan de campanha do ex-governo Jorge
Viana.
A ironia novamente se impõe, pois se de um lado o texto critica o modelo de
desenvolvimento utilizado pelo Partido dos Trabalhadores, especialmente no governo
Jorge Viana, por outro, remete ao fato de que o Partido dos Trabalhadores chegou
155
ao poder propondo a superação de modelos fracassados e a valorização do
serigueiro.
Certo dia, o herói bravateiro acordou e se viu novamente na colocação
Valha-nos Deus e esbravejou: Félas da mãe! me pegaram e me socaram outra vez
neste maldito seringal.‖ Ao longe, um gavião seringueiro grita: vai cortar, vai-cortar,
vai-cortar. E assim, Minervino voltou a seguir as regras do regulamento dos
seringais, a sofrer com a maldição euclidiana e com os piuns, mosquitos, a ter que
distinguir entre cobras venenosas e não-venenosas, a saber como caçar veado.
Inclusive, o herói gaba-se de ter ensinado a cnica de caçar o quadrúpede aos
pesquisadores Manuel Carneiro da Cunha e Mauro Barbosa de Almeida,
organizadores da Enciclopédia da Floresta .
Enfiado na selva, Minervino aprendeu com os índios a tirar o enrasco e com
os macacos, símios com senso de justiça superior aos humanos, a quebrar ouriço de
castanha.
Os macacos teriam senso de justiça superior aos humanos? Esse senso de
justiça, acreditamos, deriva de que os macacos se solidarizaram com Minervino,
enquanto os homens com que e por quem Minervino lutou não lhe concederam nada
a não ser trabalho em regime de semiescravidão. É a maldição euclidiana.
João Minervino, o filósofocentra-se em diversas reflexões sobre as visões
sobre a Amazônia, desde paraíso a inferno verde. Em verdade, o narrador afirma
que João Minervino e outros seringueiros foram vítimas não da maldição
euclidiana, mas das tintas de outros autores, que imbuídos num preciosismo verbal e
adjetivos superlativos, não enxergaram a verdadeira floresta amazônica no seu todo.
João Minervino critica Euclides da Cunha, já que para Euclides, a Amazônia era uma
página do gênesis onde o homem é um intruso impertinente.
Arre égua! Esbraveja Minervino, ―Se não queriam a gente aqui,por que
trouxeram, entonces ?‖
Paraíso, Inferno Verde, A selva, Deserto Verde, Águas e Selvas, País
das Pedras Verdes, Terra Verde, O país das Amazonas, reclamava o
herói, que os doutores não decidiam se é água ou deserto, se é pedra ou
mulher amazona. Afinal, menino é menino, mulher é mulher, homem é
homem, baitola é baitola, frase que dizem que inspirou Falcão a compor sua
obra-prima.
Em verdade, alerta o narrador em nota de rodapé, dizer que Minervino
filosofava é uma extrapolação, pois o único livro que conhecia era a caderneta do
156
barracão. Porém, fazia sentido diante da literatura da região e dos costumes,
retratados, respectivamente por Laélia Rodrigues e Iris Célia Cabanellas Zannini.
Retornando ao corpo do texto, o narrador explica que para outros escritores, o
seringueiro é retratado sempre como trabalhador e o patrão como perdulário, sem
escrúpulos. Na verdade, alerta o narrador, que quem se insurgisse contra o
regulamento do seringal era tido como alguém que não prestava, fosse índio, fosse
seringueiro, e conclui-se, implicitamente, fosse seringalista.
Até Ferreira de Castro é criticado, por em seu A Selva ter apenas mostrado o
lado da opressão do seringal, sem ter denunciado o lado perverso dos coronéis.
Anos depois, Miguel Ferrante, em O seringal, se imbuiria no mesmo viés ideológico,
critica o narrador.
Além dos romancistas, havia ainda os poetas que inebriados, embriagados
exaltavam a beleza da floresta. Minervino os critica dizendo que são todos cheios de
chá de cogumelo, de nóia, de cerveja ou uísque e quando estão calibrados vêm
coisas ao avistarem alguma árvore ou animal. Não é justamente isso que ocorre ao
personagem Repórter no capítulo Entrevista com o imperador‖? Dessa forma, se
estabelece mais uma crítica sobre os imaginários sobre a região.
Até poetas mais sóbrios como Mario de Andrade falaram da beleza da
floresta, dizendo que o Acre é também seu chão, ao que Minervino esbravejou,
dizendo que os sulistas não vieram ajudar contra os bolivianos.
Outro escritor, Abguar de Bastos apenas balbuciou: Tão longe o Acre! Até
mesmo Galvez, numa passagem de Márcio Souza teria afirmado que a paisagem
amazônica é tão complicada em seus detalhes que se é induzido a vitimá-la com
adjetivos sonoros, abatendo o real em sua grandeza. Para Galvez, morrendo de
fome na floresta, a selva é podre e viva. Minervino, no Valha-nos -Deus, também
passava fome, tendo de se alimentar de latas de conserva, a despeito de toda a
exuberância da floresta.
Hoje, o narrador disserta, as latas de conserva vêm em programas
assistenciais do Governo e os barracões dos seringalistas foram substituídos por
supermercados que apesar de proclamarem-se orgulhosos de serem acrianos,
importam tudo de fora, do ovo à galinha.
A crítica à ausência de produção e a ausência de desenvolvimento, portanto,
permeia todo o capítulo e também toda a obra, especialmente pelo fato do modelo
de desenvolvimento almejado não surtiu até hoje os efeitos esperados. Há um
157
contraste entre a riqueza a floresta e a pobreza da população.
Mademoiselle Raimunda da Silva‖, apesar do título, não retrata a história
da personagem Raimunda da Silva, uma socialite de Sena Madureira no auge da
borracha, no início do século XX. O texto centra-se em demonstrar o ambiente
citadino que Sena Madureira tinha no início do século devido à borracha. Inicia-se
com uma constatação: o ciclo da borracha enricou alguns e tornou escravo milhares,
trazendo, como toda a monocultura, o gérmen de sua destruição.
O Repórter convidou Minervino a visitar Sena Madureira, uma das cidades
mais prósperas no início do século XX, mas Minervino não aceitou por ouvir dizer
que em Sena as pessoas tomavam banho nuas no rio Iaco e também por temer que
o Padre Paulino Baldassari o convidasse para uma de suas desobrigas pelos
seringais do Purus, que duravam meses e, quiçá, anos.
Diz o narrador que Minervino perdeu de ver o bonde, o primeiro automóvel
apelidado de fon fon, o theatro Cecy, o cinema, os vinhos especiais vindos da
França, os jornais anunciando viagens a Europa, casamentos, aniversários, aulas de
piano, etc.
Além disso, naquela época se reverenciavam os heróis da revolução, nos
jornais, contra a sanha dos revisionistas. Até mesmo os seringueiros tinham espaço
nos jornais, seja anunciando a situação de penúria em que eles estavam em razão
da queda dos preços da borracha, seja denunciando o assédio de suas esposas
pelos patrões. Enfim, os jornais da época eram cheios de ensinamento, conclui o
narrador.
A fallência dos seringaes” retrata a crise do primeiro ciclo da borracha,
abarcando a visão prevalecente à época sobre o fenômeno. A começar, é citado no
texto que o jornal Alto Purus passou o ano inteiro sem tocar no assunto da crise da
borracha.
No entanto, na edição de 9 de novembro começou a divulgar os alardes. No
ano seguinte, a situação complicou-se ainda mais e em entrevista com o Doutor
Carlos Vasconcellos, engenheiro do Ministério da Agricultura, este apontou as
causas da crise e as formas de como combatê-la, denunciando que o norte
carregava a República nas costas para que o sul vivesse luxuosamente. Apontou
como causas da crise, os impostos cobrados pelo governo e a ausência de socorro
da República aos compatriotas do norte contra a pirataria. Aliás, o próprio arcaísmo
do título atua como elemento a demonstrar que o problema é antigo.
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O Jornal Alto Acre acrescentou como causas da crise, ainda, o aviltamento
do preço internacional causada pela concorrência da Malásia e o contrabando da
borracha para a Bolívia e o Peru. Como consequência, a balança comercial do Acre,
todo ano ficava mais negativa. Diversas sugestões haviam, como a do Doutor Carlos
Vasconcellos de o governo brasileiro deveria comprar a borracha por um preço pré-
estabelecido e revendê-la, mediante contratos internacionais; outras sugeridas por
Amanajos Araújo, diretor e redator-chefe do Jornal O futuro, incluíam desde a
fixação de preços mínimos a criação de usinas de beneficiamento da borracha
acriana, criação da estrada de ferro transacreana idealizada por Euclides da Cunha,
etc.
No entanto, nada disso foi feito e não se pode acusar o inglês Henry Wickham
pela crise da borracha acriana como a hoje os governantes e os coronéis de
barranco o fazem. Na verdade, segundo Floriano Pastores Jr., da Universidade de
Brasília, em artigo de 2001, citado no texto, se não fosse Wickham, seria outro, pois
os barões da borracha não aumentariam a produção.
Em verdade, em 1906-1907, Emílio Falcão, em Álbum do Rio Acre
alertava os seringalistas quanto à necessidade de introduzir métodos mais modernos
na indústria extrativista. Conclui o narrador que apenas na década de 70 o governo
brasileiro tentou recuperar a produção de borracha por meio dos projetos Probor I e
Probor II, subsidiando a produção com empréstimos a juros baixos. Ocorreu, no
entanto, que os empresários pegaram o dinheiro, plantaram algumas moitas de
seringueira e tocaram fogo, aplicando os recursos no overnight , sendo que nunca
foram investigados ou punidos e alguns, hoje, aderiram à florestania e ganharam
muito dinheiro sujo com isso.
Feminismo e nudismo é o capítulo que reproduz uma rie de notícias e
artigos de jornais de Sena Madureira no início do século XX, demonstrando o
glamour da época e da atenção dada aos modismos em voga na capital, tal como o
nudismo praticado por um embaixador italiano nas praias de Copacabana e do
Leme. São doze notícias selecionadas, com os seguintes títulos: O primeiro
automóvel, o primeiro bonde, casa do diabo, Varadouro, Feminismo, Saúde Pública,
Nudismo, Governador inepto, Notícias da Guerra, Distincto moço, Fechamento de
Jornal e Pai-de-Santo. Em verdade, o capítulo um panorama cultural de uma
época, demonstrando o quanto num período posterior o Estado regrediu em bens
culturais.
159
O capítulo Até Marx se enrolariadisserta que o sistema do aviamento era
sui generis e até Marx teria dificuldade em classificá-lo. De início, o narrador, afirma
que apesar dos historiadores afirmarem que a visão de Euclides da Cunha era
economicista, pessimista e determinista, ao afirmar que o seringueiro é o homem
que trabalha para escravizar-se, o narrador concorda que o sistema de produção
realmente fazia isto, apesar de saber que os seringueiros tinham suas diversões,
suas tradições e crendices como o Mapinguari, bem como faziam mutirões para abrir
roçados e protagonizaram várias revoltas contra os seringalistas.
Quanto à crença no Mapinguari, em nota de rodapé, o narrador comentarista
afirma que João Minervino diz que foi o primeiro a encontrar com o monstro,
aterrorizante segundo a descrição que deu ao Repórter. Porém, o cientista
americano David Orwen e uma equipe de TV japonesa foram que ficaram com o
mérito da descoberta do monstro, dizendo ser o mapinguari apenas uma preguiça-
gigante. Mas, hoje, o mapinguari o causa mais medo, virou até nome de bloco de
carnaval. Porém, no tempo de João Minervino, metia medo, além do mais, que além
desse monstro havia ainda o batedor e a Matita Pereira.
Assim, a cultura popular teve um dos seus elementos transformados pela
força da ironia, de ser horripilante a bloco de carnaval. É isso que a festa popular
proporciona: a quebra das hierarquias e convenções. Logo, aprecer, novamente,
um dos elementos da carnavalização.
O capítulo seguinte Papilon, jamaisainda trata do futuro de João Minervino
após a dissolução do exército de Plácido de Castro. A narrativa inicia-se com o
inconformismo do Repórter com o fim chocho do herói bravateiro. Em razão disso, o
Repórter fez um trabalho de jornalismo-investigativo, a fim de encontrar algo que
pudesse livrar Minervino da maldição Euclidiana.
Fazendo o levantamento de opções, soube que João Minervino tentou se
alistar no exército brasileiro que expulsou os bolivianos do Vale do Juruá, mas
desistiu quando lhe disseram que a região era infestada por tribos ferozes e ele não
gostava de brigar com índio.
Essas tribos eram tão ferozes que fizeram até o explorador inglês William
Chandles diversas vezes mudar o curso de sua expedição e até hoje os historiadores
acrianos não se atrevem a mergulhar na história da conquista do Juruá.
O seringueiro amarelo ainda cogitou entrar na expedição de Euclides da
Cunha, em 1904, para fazer a demarcação do Acre com o Peru. Porém, desistiu por
160
diversos motivos. Houve um erro no texto, mas que não retira a verossimilhança,
pois a expedição de Euclides da Cunha foi em 1905 e não 1904.
O primeiro era que soube que fora Euclides quem jogara a maldição sobre os
seringueiros: o homem que trabalha para escravizar-se, e temeu que sua sorte
piorasse. Já nos referimos a essa maldição em outra parte do trabalho, então, iremos
prosseguir descrevendo a narração.
Segundo, demarcar a fronteira era uma enrascada, pois ouvira no seu
―radinho‖ de pilha que até a Polícia Federal e o exército têm medo de enfrentar os
narcotraficantes e os madeireiros peruanos em algumas áreas da Serra do Môa.
Terceiro, Minervino não gostou do homenzinho que era o escritor de Os
sertões. Euclides falava difícil, com um chapelão na cabeça, enfiado dentro de um
mosqueteiro e Minervino soube que o escritor era traído por sua bela mulher com um
certo Dilermando, que alguma tempo depois o mataria num duelo e posteriormente,
seu filho também seria morto em duelo com o mesmo Dilermando. João Minervino
concluiu que a vida de Euclides era uma tragédia grega, expressão que aprendera
com alguns poetas, atores e atrizes que lutaram ao seu lado na Revolução Acriana.
Portanto, Euclides que tão bem retratou tragédias sociais, também foi
personagem de um tragédia: a sua. Dessa forma, haveria também um núcleo irônico,
na referência a esse drama pessoal de Euclides da Cunha.
Em quarto, o escritor não possuía um grande navio, mas um simples batelão,
o que fez Minervino concluir que sobraria para ele empurrar o barco na subida do Rio
Purus, nas 88 corredeiras para transpor.
Em quinto lugar, na expedição era proibida bebida alcoólica, por
recomendações médicas e em sexto lugar, ao bisbilhotar as coisas do escritor, notou
vários objetos esquisitos como lunetas, mas pouca comida. Ademais, havia o risco
do escritor mandá-lo caçar borboletas e ele poderia ser apelidado de Papillon, o
caçador de borboletas, que podia ser um bonito nome para francês, mas não para
ele, um cabra macho acriano-nordestino, um soldado guerrilheiro. Preferia continuar
como João Minervino, codinome João Amarelo. Desistiu de vez da expedição.
Camisinhas made in Acre retrata as tentativas de Minervino como
empreendedor para se livrar do patrão-seringalista e ser dono de seu próprio
negócio. Descartada a alternativa de seguir na expedição euclidiana, o herói
amarelo, sempre adiantado no tempo, cogitou abrir uma ONG e fundar uma fábrica
de preservativos, chamados nessa época de camisinhas de Vênus, pois ouvira de
161
um cientista que se podia fazer 35 mil coisas diferentes com o látex e, como o látex
do Acre era o melhor, portanto, o mais indicado para o produto, era propiciou para
esse tipo de empreendimento. Inventou um modo de fabricação próprio. Fez
canudinhos com taboca, onde colocava o látex numa temperatura ideal e assoprava
a goma, criando as camisinhas.
Lógico que essa narrativa traz Minervino para o final do século XX que a
camisinha de vênus não era item de exportação nos tempos áureos da borracha. Ao
nosso sentir, também uma ironia estabelecida por meio do amalgamento de
dois discursos. O da riqueza florestal e do desenvolvimento tecnológico. Aí, não
basta Minervino deter o produto (borracha) sem deter o conhecimento científico para
utilizar o produto. É por isso que Minervino teve um grande problema.
Por não conhecer os processos de vulcanização que transforma a borracha
em elástica e resistente, que é feita com base na introdução de átomos de enxofre
na cadeia do polímero natural da borracha, o látex endurecia rapidamente, o que
dificultava aos seringueiros que foram cobaias se libertarem das camisinhas. Por
conta disso, surgiram três novas colocações: Pau Duro, Pau Mole e Pau no meio,
sendo que esta última ainda existe em Xapuri e dá nome a um dos forrós mais
frequentados da região.
Portanto, o elemento fálico aparece no texto, sendo um elementos
carnavalesco por se localizar nas partes baixas do corpo humano. Se associarmos a
parte superior como a parte do intelecto e da ordem, as partes inferiores, como
ventre e falo são as partes do prazer e da desordem, onde tudo é desejo e liberdade
(BAKHTIN, 1987).
Falida a fábrica, Minervino fez um curso no SEBRAE sobre
empreendedorismo e lá o convenceram de que confeccionar artesanato de sementes
era um grande negócio. Assim, ele colheu centenas de sementes de açaí, tucumã,
paxiubão, paxiubinha, jarina, murmuru, mulungu, cipó capricho, tala de marajá e
cupuaçu, que ainda não havia sido patenteado pelos japoneses. Novamente, o
negócio não deu certo, pois Minervino estava com os dedos da mão grudados, como
as patas de um pato, como se uma lei de Darwin tivesse agido às inversas. Suas
mãos viraram espátulas que eram úteis na hora de comer pirão, porque dispensa
talher.
Por fim, após se juntar com Jandira (alerta o narrador que o leitor conhecerá
Jandira nas próximas páginas), Minervino resolveu investir no negócio de vestes
162
indígenas, tecendo grandes vestes coloridas, que havia visto em suas andanças,
cobrindo os corpos dos Ashaninka. Também não deu certo porque Jandira era do
tronco Pano e os Ashaninka, do Aruak e apenar de ser Pano, Jandira só andava nua.
Aí, o jogo de palavras pano- nua engendra uma ironia formidável. A
inadequação entre pano (tronco linguístico) e pano (vestimenta) proporciona uma
ironia em que os elementos ficcionais se originam desses fatos observados e
articulados por Marintello em AIC.
Na rede com Jandira conta o final de João Minervino. O herói, após as
tentativas de mudar seu destino voltou a cortar seringa, dando voltas nas estradas e
sobre si mesmo. Foram tantas voltas que um século depois, viajando de avião, diz o
narrador, o paleontólogo Alceu Ranzi ao ver círculos próximos a Rio Branco, pensou
que estes teriam sido feitos por Minervino.
Porém, após checar a localização da colocação Valha-nosDeus, viu que não
batia com as dos círculos. Daí, Alceu Ranzi chamou os círculos de geoglifos e muita
gente suspeitou terem sido feitos por extraterrestres, afinal, no Acre tudo pode
acontecer, enquanto os cientistas da sucateada Universidade Federal do Acre, ainda,
reclamam recursos para resolver o mistério. Minervino, de tanto dar voltas, foi se
modelando e acabou se transformando numa péla de borracha. Passava os dias
sentado no seu tapiri injetando veneno do sapo kampô e ouvindo a música do véi
do Neo Pi Neo .
A referência a música do véi do neo Pi Neo, considerada muito popular se
aponta para a questão da adoção do popular, também aponta para a
contemporaneidade, gerando uma inadequação entre La siciliana tocada no campo
de batalha e o gosto popular, que, com certeza, dos seringueiros não deveria ser por
aquele tipo de música. Ocorre, portanto, uma certa ironia em relação ao relato de
Leandro Tocantins descrito no capítulo ―Abílio Toca a Flauta‖.
Por outro lado, a comparação entre Minervino, viciado em veneno de sapo
kampô e a personagem Mel, da novela televisa O clone, além de atualizar os
acontecimentos, ainda engendra o riso, visto que Minervino não possui a beleza da
personagem global.
Ocorre, portanto, uma paródia de um dos temas da novela, afinal, a paródia
também pode ser temática (SANT'ANNA, 1995). Nesse ponto, convém dizermos que
entre os próprios capítulos de AIC uma intratextualidade, pois é comum um
capítulo remeter a um evento narrado em outro capítulo ou mesmo em relação a
163
temas.
No conjunto da obra de Martinello, percebemos que sempre um
rememoramento e até mesmo cópia de trechos presentes numa obra para outra.
Especialmente trechos, temas e situações presentes em AIC são recorrentes nas
outras obras de Martinello.
Essa música lhe soava como uma obraprima do existencialismo sartriano, da
náusea, do ceticismo de quem acreditou e apostou tudo numa revolução e foi
enganado.
Absorto nestes pensamentos e sempre com saudade do nordeste, acabou
sendo jogado, por descuido do gerente do seringal, com outras pélas de borracha no
batelão. Como as outras pélas, foi vendido às casas aviadores de Manaus e Belém e
depois para a Goodyeer.
Nesse ponto, o narrador conversa com o leitor, dizendo: atenção, caro leitor!
Herói bom pode até transmutar-se. Todavia, não pode morrer.(...) nosso herói precisa
plantar sua semente, seu sêmen.‖ (AIC , 2003, p. 294). É basicamente o que
acontece com o Macunaíma que se transforma em estrela. Aliás, a transformação
em estrela em Macunaíma remonta às lendas indígenas sobre a morte. Para
algumas tribos, os seus membros quando morrem tornam-se estrelas. Esse
transformar-se é também ganhar imortalidade e Minervino ganha essa imortalidade
nas páginas de AIC.
Essa conversa com o leitor, inclusive, é bastante presente no contexto geral
de AIC. Podemos até dizer que leitores ideais do autor, quais sejam, 37 leitores
de sua coluna no jornal diário A Gazeta denominada ―gazetinhas‖.
Retornando ao texto, a partir da transformação de Minervino em péla de
borracha, surge o personagem Repórter que, na melhor das intenções, a fim de
colaborar com a identificação do acriano, descobriu que Minervino viveu um grande
amor com uma indígena, Jandira, capturada numa das muitas correrias do início do
século XX.
Essas correrias que aprisionavam mulheres segundo Wolff (1999) eram muito
comuns no início da conquista do Acre. Inclusive, em seu livro Mulheres da floresta,
uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945), Wolff narra a história de D. Mariana,
uma filha de uma indígena que foi capturada em uma correria e foi dada pelo o
patrão para um seringueiro.
164
Segundo o texto, o herói Minervino foi o primeiro cariú
16
a desposar uma
indígena, numa época em que índio ainda não era tido por gente. Por óbvio, esse
dado é mais uma ficcionalização, tendo em vista que Minervino é personagem de
ficção. Na obra, mais essa façanha do herói carrega em si toda uma verossimilhança
capaz de se fazer crer que realmente Minvervino foi o primeiro cariú da desposas
uma indígena.
Óbvio, claro que realmente Minervino o foi o primeiro cariú a desposar uma
indígena e, na verdade, isso não importa, pois a ficção não se submete ao crivo da
verdade ou das verdades históricas. As características de Minervino, tanto físicas
quanto morais dão a ele a força necessária para copular com uma indígena. Haveria
mais uma vez a referência à fundação do Estado? A união do nordestino com os
indígenas configurariam o verdadeiro acriano?
Ademais, aí há uma hipérbole comum no processo de carnavalização na
forma do exagero tão comum no carnaval identificado por Bakhtin (1981).
Aliás, no processo de busca de identidade é comum a origem ser creditada a
uma casal. A própria bíblia ao demonstrar a origem do povo de Deus aponta como
primeiro casal Adão e Eva. Nessa tradição o homem é sempre o mais forte e é o
dominador, que se distingue da mulher pelo fato de ter uma costela a mais. Mas no
novo testamento, a refundação da identidade cristã se por outro casal que
substitui Adão e Eva, qual seja, Jesus e Maria.
Na Literatura Brasileira, em Iracema, a união do branco colonizador com o
elemento nativo indica a busca de identidade nacional (BOSI,1992). Aliás, Iracema
sofre e Martim, também, sofre. Esse sofrimento é natural ao processo de nascimento
(BOSI, 1992, p. 178). Também Minervino e Jandira sofrem, logo, que se pensar
nas predições demais dessa união entre Minervino e a indígena Jandira.
Aliás, Jandira como Iracema são nomes que remetem a mel. No tupi-guarani
Jandira significa abelha melífera, ou seja, produtora de mel, enquanto Iracema
significa lábios de mel. Só que Jandira não possui a beleza de uma Iracema, logo,
como em Macunaíma a origem étnico-cultural é refeita, retirando-se seu idealismo
embelezador.
Jandira,como era costume ocorrer com as fêmeas capturadas nas correrias,
foi marcada em brasa com as iniciais do patrão, ou seja, no caso dela AA , de
16
Homem branco
165
Antunes Alencar.
Por não ter igualmente a beleza de uma Iracema, o texto também se
estabelece como uma paródia da idealizada história entre a indígena Iracema e o
português Martim, constituindo-se em contra ideologia à formação identitária
idealizada, bem típica do Modernismo.
João Minervino, apesar de velho, para descontar o tempo de celibato, passou
um mês inteiro fornicando com a mulher numa rede, apesar de ela não ter a beleza
de uma Iracema. O exagero apresenta-se novamente como elemento carnavalesco.
Para Bakhtin (1987,) os excessos carnavalescos celebram a vida e nada mais
lembra a vida que o sexo e a procriação.
Quanto ao exagero, Bakhtin (1981) aponta em Gargantua e Pantagruel esse
elemento como erroneamente interpretado fora do seu contexto original. Em
Gargantua e pantagruel, um dos personagens principais possui uma centena de
vestimentas e os intérpretes da obra, consideraram que se tratava de uma crítica aos
gastos reais com roupas, quando na verdade tratava-se apenas de suscitar o riso
por meio do exagero.
O exagero da performance sexual de Minervino ganha proporções maiores
pois contagia a própria natureza. Em homenagem à performance sexual de
Minervino, toda a floresta entrou em cópula, havendo uma superpopulação de
animais.
Nesse aspecto, é necessário dizermos que o ato sexual é elemento de
continuidade e, portanto, de vida e se o carnaval é a própria afirmação da vida, da
existência, o sexo será um dos seus elementos principais (BAKHTIN, 1981). Aliás,
esse sexo em AIC é diferente do idealizado, em que o cavalheiro corteja a dama,
assim como em Macunaíma. É um sexo também não bem visto pela ótica da ordem
e cujos rebentos representam também um excesso: mais de 10 filhos teve Minervino
com Jandira.
Em Macunaíma, que é uma paródia em relação à Iracema também uma
performance sexual invejável do herói com a rainha das Amazonas, Ci, Mãe do
Mato . Aliás, se em Macunaíma a relação sexual entre o herói e sua mulher é um
estupro (LIMA, 2011), a relação entre Minervino e Jandira também é um estupro,
que Jandira foi capturada e até marcada como um animal. Se Ci, a rainha das
Amazonas é capturada por Macunaíma com a ajuda de seus irmãos, Jandira é
captura pelos seringueiros a mando de Antunes de Alencar.
166
A aproximação entre AIC e Macunaíma, portanto é evidente. Seria Minervino
um Macunaíma acriano? Até mesmo as artimanhas para melhorar a performance
sexual são utilizadas pelos dois heróis.
Macunaíma, para melhorar a performance sexual utiliza produtos naturais
provocando uma intensa coceira nas partes genitais. Minervino derrubou tudo
quanto era árvore afrodisíaca para fazer chás. Em AIC, portanto, novamente o
elemento natural (chás) é o responsável pela inserção de um elemento
extraordinário, no caso o superpoder de copular. É o maravilhoso da floresta
novamente se impondo. Afora isso, AIC, realiza, desse modo, uma atualização do
problema ambiental, o que demonstra que o fascínio pelos poderes medicinais de
certas plantas pode le-las à extinção. Dessa forma, demonstra-se uma contradição
do discurso do governo Estadual com sua visão ambientalista, cujos efeitos podem
ser justamente o contrário: a destruição da floresta, conforme vimos que Homma
(2005) já alertava.
Ademais, Minervino derrubou e não foi multado, pois apesar dos satélites
localizarem clareiras na área, ele havia conseguido algumas licenças frias de um
certo instituto para derrubar todas as árvores afrodisíacas. A crítica quanto aos meios
de fiscalização da preservação da fauna e da flora da região, portanto, ganha vulto
nesse texto.
Como resultado do mês inteiro de fornicação, nasceram quadrigêmeos. A
prole chegou a 12 filhos, todos por parto natural. Jandira se virava sozinha para ter
os filhos, mas Minervino, após ter se convertido num floresteiro, passou a chamar
uma parteira das redondezas para assistir ao parto.
Nesse ponto, segundo o narrador comentarista, o texto se apropria da
descrição do ritual do parto feito por Dona Raimunda Pereira da Silva, presente no
Jornal O varadouro, ano I, número 4. A descrição demonstra as crendices que
rodeiam o ritual do parto, tais como o homem ficar girando com uma vassoura entre
as pernas, bater nas nádegas da mulher para o filho nascer com as sandálias do
marido ou, ainda, o homem sentar nas cadeiras da mulher após o parto, a fim de que
voltem ao normal, etc.
A adoção das crendices populares é sempre um elemento muito utilizado na
literatura, especialmente pelo fato de despertar curiosidades. Ademais,
aincorporação dos costumes e crendices aponta sempre para o sentido da terra, ou
seja, para a identidade.
167
Terminada a descrição dos partos, dá-se um final, igualmente ao patrão de
Minervino, Antunes Alencar. Esse, após a cagacite aguda, tentou limpar seu nome,
foi ao Rio de Janeiro defender Plácido de Castro contra o general Olímpio, governou
o Departamento do Alto Acre por alguns meses e deixou o seringal para seus
descendentes, falecendo aos 81 anos de idade.
Minervino, fofoqueiro, contou ao Repórter que o patrão foi acometido de uma
incontinência urinária que o acompanhou pelo resto da vida, deixando o fundo de
suas calças brancas de linho, importado da Inglaterra, sempre amarelados.
Quentinhas com cocaínaé o capítulo final do livro de Martinello. Centra-se
nos acontecimentos concernentes ao aumento da fronteira agropecuária na década
de 70, embora a expressão século próximo-passado indique uma situação
intemporal, o que atualiza a discussão sobre a situação dos seringueiros e seus
descendentes.
Ocorria que na década de 70, o governo federal promovia a política integrar
para não entregar e muitos seringais eram vendidos para fazendeiros a preço de
―banana‖. O primeiro a ser vendido foi justamente o seringal do coronel Antunes
Alencar. Seu comprador: Darli Alves da Silva. “Shiii!‖.
A antiga colocação de Minervino virou estábulo e um dos seus netos,
confundido com um bezerro, foi marcado em brasa no traseiro, sendo que apenas
após 10 dias, a mãe convenceu, com muito custo, o capataz de que o menino não
era um bezerro. Ineptos para a lida com o gado e porque eram muitos e a pecuária
precisa de poucos trabalhadores, os descendentes de Minervino foram expulsos do
Valha-nos-Deus. Os pecuaristas, apoiados pela doutrina da segurança nacional, de
integrar economicamente a região ao resto do país, de qualquer forma, substituindo
o extrativismo, utilizaram diversas táticas para expulsar os seringueiros, como o
herbicida tordon, o agente laranja, o gás napalm, etc.
Afora isso, os fazendeiros contrataram pistoleiros, que para amedrontar mais
ainda os seringueiros, contavam histórias macabras sobre o fim de seringueiros
recalcitrantes.
No entanto, afirma o narrador, que isso foi no século passado-próximo e que
hoje muitos fazendeiros se tornaram floresteiros e criam bois verdes. Esses bois
verdes são diferentes dos bois do início da introdução da pecuária, pois comem
capim verde, cagam verde e, se seus donos colaborarem para a campanha eleitoral,
se tornam até mesmo árvores. Se os fazendeiros forem de outros partidos,
168
continuam maus. Por conta dessa dinâmica da política amazônica quase tudo é
permitido e, por isso, quando um satélite localiza áreas desmatadas na região é um
deus-nos-acuda.
O aspecto político novamente toma conta do texto, pois a visão negativa da
política se impõe. A ironia do boi verde atualiza um fato passado, qual seja, a da
expansão fronteira agropecuária e os muitos problemas sociais que trouxe para o
Acre.
Ironia e política para Hutcheon sempre andam juntas, afinal, uma prática
política na ação irônica (HUTCHEON, 2000, p. 17) e, por isso, não é estranho que a
ironia tenha sido o mecanismo mais usado pelo autor de AIC, tendo em vista sua
história pessoal de engajamento em questões sociais.
Com efeito, o termo política que utilizamos no parágrafo anterior possui o
sentido amplo de desmontar ideologias vigorantes em determinada época, que
para Hutcheon (2000, p. 17) o termo política é usado no seu sentido mais amplo.
Retornando ao texto, os netos de Minervino tentaram resistir à maldição
euclidiana, porém tiveram de se entregar no dia em que foram cercados por um
pelotão. Jandira, fica-se sabendo em nota de rodapé, morreu nesse dia, dentro de
um vaso de barro, que recentemente agricultores encontraram.
Obviamente, essa forma de sepultamento de Jandira remonta ao costume
indígena, contudo, também uma ficionalização, pois Jandira esconde-se dentro do
vaso até morrer.
Expulsos para a cidade, os minervino alojaram-se em Rio Branco, no segundo
Distrito, no bairro Bostal, que depois foi rebatizado para Santa Terezinha por obra de
alguns políticos, embora as condições higiênicas do local façam jus ao antigo nome.
Alguns netos de Minervino tiveram sorte. Foram cabos eleitorais e arranjaram
empregos, embora com salários anêmicos pagos pelo Estado.
De qualquer forma são privilegiados, pois incluídos na economia do
contracheque, que movimenta a maioria dos estados amazônicos, cujas receitas
provêm em cerca de 80 a 90% de repasses da União. Outros minervinos tiveram
menos sorte, transformaram-se em peões de fazenda, contratados apenas nos
períodos de derrubada e, nos outros períodos, vão cortar seringa ou coletar castanha
na Bolívia. Ironicamente, alguns se estabeleceram na Bolívia se submetendo às leis
daquele país e a maus tratos de patrões e autoridades. São os chamados
brasivianos.
169
Um dos bisnetos de Minervino cansou de esperar os 400 mil empregos
prometidos por governos sucessivos e investiu na indústria mais próspera na região,
graças a grande produção dos países vizinhos, a indústria do narcotráfico. Este virou
notícia nacional ao ser preso por comandar uma boca de fumo e vender quentinhas
com cocaína em troca de votos.
Esse dado remete a um fato largamente noticiado na década de 90, ou seja, o
narcotráfico, quando era comum a apreensão de aviões carregados de drogas que
utilizavam o Acre como passagem. O hoje presidiário Hildebrando Pascoal foi
acusado de oferecer marmitas com cocaína para angariar votos em sua campanha
para Deputado Federal pelo Acre em 1998.
Atualmente, segundo o narrador, Hildebrando está preso num presídio de
segurança máxima e o bisneto de Minervino é um dos suspeitos de ter sido um dos
operadores da motosserra que esquartejou um dos desafetos do coronel
Hildebrando Pascoal. No entanto, disserta o narrador que não se pode ser
pessimista. Embora somente um da imensa prole de Minervino tenha escapado
desse fim sociológico, o homem é sujeito da história, logo, há esperança.
Reutilizando o jogo temporal, o narrador dirige-se para o futuro/passado
contando que na década de 70 do século próximo-passado, um bisneto de Minervino
voltou para Xapuri e ajudou Chico Mendes, construindo um novo capítulo na história
do Acre, como o leitor verá num próximo ―papelucho‖. Ou seja, num próximo texto.
Assim termina a obra de forma que nesse capítulo é feita uma articulação muito
interessante entre ficção, história e jornalismo que se repete em boa parte de AIC .
6.1 Visão parcial
À guisa de considerações parciais sobre esta parte da obra, verificamos que a
ficção foi muitas vezes suplantada pelo viés jornalístico, contudo, manteve sua
fluidez de maneira que permaneceu na superfície do texto, de maneira geral.
Ademais, o tom nostálgico pela primeira fase da história do Acre é sentido, como se
aquele passado fosse mais grandioso que o presente, embora com todos aqueles
defeitos, muitos dos quais permanecem devido a estrutura social amazônica, que
permite a existência de uma ilha da consciência.
O próprio personagem João Minervino, velho, orgulha-se de ter lutado ao
170
lado de Plácido de Castro e mesmo os ressentimentos que teve pelo gaúcho não o
ter promovido a oficial foram esquecidos. È um Minervino mais maduro que se
desenha.
De modo geral, até mesmo a relação Acre/Bolívia ganha outros ares. Ares de
cooperação, a não ser por um ou outro boliviano que deseja discutir os engôdos que
a nação boliviana sofreu do Brasil, por ocasião da anexação do território acriano ao
Brasil.
No mais, a mesma forma circular de desenvolvimento se impõe até mesmo
aos descendentes de Minervino e o Repórter a tudo assiste e documenta. Com
certeza, Galvez, também, esquecido no descampado do nada, em forma de um
mulateiro, também observa absorto como as coisas não mudaram para os
seringueiros.
Trata-se, portanto, esta parte da obra de ser muito mais analítica que as
outras. Por isso, acreditamos que podemos associar esta fase com a idade adulta de
uma pessoa. Dessa forma, a primeira parte trataria do nascimento do Estado do
Acre, a segunda parte seria a adolescência e essa terceira a idade adulta e, portanto,
a idade da reflexão, que, portanto, evoca amadurecimento e reconstituição do
passado feito a partir do presente.
171
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, acreditamos que não existe um único fio de Ariadne
para desvelar a obra A Ilha da Consciência, tendo em vista a delicada e intrincada
teia textual tecida na obra. Entretanto, um dos pontos fundamentais a ser
considerado é o entendimento de que o Acre é a ilha descrita na obra e que a
metáfora da ilha da consciência já faz parte de uma tradição temática da literatura de
expressão amazônica, embora não tivesse sido antes explorada, pelo menos, não
com tanta ênfase, na literatura de expressão acriana.
A metáfora da Ilha em Martinello aponta sempre para uma crítica social quanto
à organização da sociedade, bem como quanto ao isolamento da região.
Nesse aspecto, sem dúvida, Sílvio Martinello inovou sobremaneira a literatura
de expressão acriana em respeito à temática. Aliás, como demonstrado ao longo do
trabalho, outras novidades ―assombraram‖ a crítica local e o blico leitor, embora,
em termos de conteúdo histórico não traga novidades, já que, na verdade, amalgama
diversas visões da história local.
Em verdade, a grande transformação não é em relação a temas, mas na
forma de escrever. A adoção de procedimentos e técnicas ainda não utilizadas na
literatura de expressão acriana deram uma força ímpar à obra. O pilar fundamental,
nesse sentido é Márcio Souza. A leitura, portanto, de Márcio Souza esclarece
bastante as técnicas, formas e procedimentos utilizadas em AIC , além de subsidiar
a compreensão da trabalho como crítica política e cultural aos discursos oficiais.
Contudo, o diálogo não se trava apenas com Márcio Souza, mas com os
discursos fundacionais. Euclides da Cunha e Leandro Tocantins, de maneiras
diferentes são aproveitados. Se de Euclides, Martinello copiou a própria estrutura
circular dos seringais, aproveitando na organização do trabalho, de Leandro
Tocantins, não pôde deixar de utilizar a base histórica, cuja visão é fortemente
criticada, aliando-se aos historiados contemporâneos como Gerson Rodrigues de
Albuquerque, Pedro Martinello, Valdir Calixto, etc.
A linguagem jornalística utilizada em larga escala para retratar as visões da
história acriana não ocorre à toa. Essa linguagem, defluimos, é utilizada porque os
textos que compõe a obra foram originalmente feitos para jornal. Dessa forma, a
aparente descontinuidade é explicada. No entanto, uma forte coerência no texto,
172
realizada por meio dos personagens João Minervino, o Repórter e do narrador-
comentarista, mas, principalmente, pelo complexo jogo temporal realizado,
possibilitado pela ironia.
A ironia possibilita a aproximação de personagens, espaços e tempos, num
jogo de múltiplas alternativas. Somente por meio dela podemos compreender o
própria Acre como sendo a ilha da consciência. A ironia possibilita o retorno ao
passado e sua atualização numa crítica ao presente, tornando o tempo e o espaço
sempre relativos e quebrando a linearidade do romance, permitindo dissonâncias e
aproximações espaço-temporais seja na ambientação de cada capítulo, seja em
relação capítulo- obra.
A dissonância entre o tempo em que cada texto é ambientado e os fatos
referidos pelos personagens, contribui para a urdidura textual de maneira que AIC
segue uma cronologia temática associada à cronologia temporal da história do Acre.
O próprio narrador comentarista é um pilar fundamental nesse sentido, pois atualiza
os temas, mesmo quando os personagens ou a linguagem do texto não o faz.
Assim, embora com certa descontinuidade, uma grande coerência na
estruturação dos capítulos.
Em verdade, cada capítulo, exceto alguns que devem ser lidos juntos, detém
uma autonomia, mas em conjunto constituem um trabalho diferente, reflexo de
muitas leituras, estudos e escritos ao longo de anos elaborados por Sílvio Martinello.
Por isso, embora a obra pertença ao gênero ficção, individualmente,
acreditamos que cada texto possa ser classificado diferentemente. Portanto,
individualmente, muitos capítulos são pertencentes à categoria ensaística, conforme
a classificação de Coutinho (1978).
Com efeito, por reunir ficção e jornalismo, sendo que este último apega-se aos
fatos ocorridos e, portanto, mais à história, a classificação da obra não pode ser
estanque ou definitiva sob pena de, até mesmo, ferir o seu espírito híbrido.
Entretanto, apesar de acreditarmos que outras classificações são possíveis,
apontamos que boa parte dos textos que poderiam ser considerados individualmente
como do gênero ensaístico, estes não se amoldam perfeitamente às características
do ensaio moderno brasileiro, no sentido de estudo, mas no ensaio voltairiano
(COUTINHO, 1978). Tão pouco, as crônicas existentes se amoldam perfeitamente à
concepção moderna que se tem de crônica, ou seja, de recorte atual, com assunto
efêmero e desimportantes (SÁ, 1987).
173
Os textos de AIC que podem ser considerados como crônicas não guardam
essas características, a não ser por retratar cronologicamente os fatos da história do
Acre. Aliás, o apego do texto à história demonstra o apego à terra e ao
desvendamento de identidade(s) acriana(s). Minervino, assim como Macunaíma,
destrona de vez a imagem cósmica do nobre, segundo o falso ideal europeizado de
identidade.
Além disso, percebemos, mediante os diversos argumentos levantados
durante este trabalho, baseados nas observações feitas sobre o texto de Martinello
que sua escrita faz a reivindicação dos excluídos, de modo a defender sua inclusão
na história por meio do personagem João Minervino, o seringueiro Amarelo. No
entanto, ressaltamos que essa defesa advoga em favor dos seringueiros, mas não
lhes dá voz, a não ser em raras oportunidades, na fala de Minervino.
Esse personagem, para o narrador de AIC é a representação do legítimo
acriano, que lutou na Revolução sem ser reconhecido pelas autoridades, que sofreu
as intempéries da floresta e os maus tratos do patrão seringalista, que sofreu com
a expansão da fronteira pecuarista, patrocinada pelos governos federal e estadual,
que foi expulso dos seringais, que teve que ir para a Capital do Estado na década de
80 em busca de melhores condições de vida, tendo que se estabelecer na periferia
sem a menor infraestrutura.
A defesa dos excluídos acompanhará as outras obras em conjunto com outros
temas e situações expostas em A Ilha da Consciência. Assim, de modo geral,
AIC é a chave de compreensão para a produção literária de Sílvio Martinello.
Por fim, podemos dizer que AIC é um marco na literatura de expressão
acriana por trazer elementos como o narrador problemático, o entrecruzar de
tempos, a ironia mordaz, as metáforas relacionadas à fundação do Estado, sem falar
do imenso arcabouço histórico utilizado na construção de AIC , capaz de tornar a
história do Acre num entretenimento divertido e prazeroso. É uma obra, portanto,
bem sucedida, cujo viés paródico e carnavalizado demonstra um amadurecimento da
literatura de expressão acriana, pois como disse Afonso Romano de Sant'Anna
(1995), formas como a paródia surgem em momentos de reflexão e
amadurecimento.
174
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